Piauí #191 - Ago22

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piauí agosto
_ 191

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O palanque da Jovem Pan O desafio democrático


Ana Clara Costa e a radicalização da emissora Sergio Fausto analisa as eleições de 2022

O instrumento armado Lições para o futuro


Allan de Abreu e a bolsonarização da Polícia Rodoviária Pedro Cesarino e os povos do Vale do Javari
piauí_191_R$ 32,00_ano 16_agosto_2022
00191

Que bruaca, que nada


Dirceu Alves Jr. perfila a atriz Isabel Teixeira
ANa vida no cubículo
O gênio desaparecido estreia do projeto Querino,
Tiago Coelho conta a história dos que
Rivka Galchen e o matemático Grothendieck cresceram em quartos de empregada
A HISTÓRIA DO MAIOR INVESTIDOR
NA RÚSSIA CONTRA A REDE DE
CORRUPÇÃO E VIOLÊNCIA DE
VLADIMIR PUTIN

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“Uma história incrível, narrada com o ritmo e o estilo de um thriller.”
The Guardian

“Uma obra essencial, escrita por alguém que entendeu, muito antes de todos,
a corrupção da administração russa e de seus empresários — e as medidas
extremas a que eles chegam para defender sua riqueza ilícita.”
The Washington Post

“Browder transformou sua história pessoal em um livro impossível de largar.


E com tantos relatos que chegam diariamente sobre os horrores na Ucrânia,
essa obra nos fornece um insight bem compreensível da verdadeira natureza
do regime responsável por essas atrocidades.”
The Sunday Times

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piauí 191 _ capa Democracia acima de tudo


colaboradores_6 Quem fez o quê na edição de agosto
imagens Caio Borges

O DESAFIO DEMOCRÁTICO
questões vultosas_8 Para salvar o Brasil, não bastará derrotar Bolsonaro nas urnas
Sergio Fausto + imagem Allan Sieber

Randolfe Rodrigues nas graças da imprensa e da oposição; quem é Brunna Rosa, a estrategista
esquina_12 digital de Lula; diplomatas se divertem no Irã, agora sem o embaixador russo; uma secular
corrida de cavalos está de volta, após a Covid; o funk afrorreligioso da cantora MC Tha; a artista
que busca a cor do pau-brasil; na periferia do Rio, um cinema só de filmes brasileiros
imagens Andrés Sandoval

A JOVEM PAN E O GOLPE


questões do extremismo_18 Como a emissora tornou-se o braço mais estridente do bolsonarismo
Ana Clara Costa + imagem Vito Quintans

O INSTRUMENTO
questões político-policiais_26 A bolsonarização da Polícia Rodoviária Federal
Allan de Abreu

O NINHO DA SERPENTE
submundos da política_32 O sistema de comunicação que levou Bolsonaro a vencer as eleições de 2018
Consuelo Dieguez + imagem Franklin de Freitas

PARTE I_ A DEPENDÊNCIA
dossiê piauí_40 As histórias de mulheres e seus filhos que lutaram para sair do quarto de empregada
Tiago Coelho

QUARTO DE ESQUECER
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dossiê piauí_46 t.me/BRASILREVISTAS
Um ensaio fotográfico sobre as dependências de empregada
Taba Benedicto

OUVINDO OS POVOS DO JAVARI


anais da floresta_52 A Amazônia não é a periferia do Brasil, mas o centro de qualquer possibilidade de mundo
Pedro Cesarino + José Sebastião Nascimento Marubo

O ADVOGADO OSTENTAÇÃO
do mundo para o umbigo_56 A vida, a obra e todos os luxos de Nelson Wilians
Thais Bilenky + imagem Egberto Nogueira

EM BUSCA DA MELHORIA
do umbigo para o mundo_62 Um dia na vida de Luquinhas XV, skatista campeão e agitador cultural
Damian Platt

O GÊNIO DESAPARECIDO
vultos da matemática_68 Alexander Grothendieck era reverenciado por seu trabalho revolucionário.
Um dia, ele abandonou tudo e sumiu
Rivka Galchen

DOM JOÃO ABRE OS COFRES


anais da independência_74 Como os gastos do monarca desorganizaram as finanças públicas do Brasil
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira + imagem Roberto Negreiros

A MARATONA
vultos da dramaturgia_78 A trajetória da atriz Isabel Teixeira, do teatro feito
para poucos ao sucesso popular na novela Pantanal
Dirceu Alves Jr. + imagem Flavia Valsani

HE-MAN
ficção_84 Um cata-bagulho é sempre bem-vindo
Antonio Mammi + imagem Pedro Franz

poesia_87 Meu coração ficou ancorado no mapa de uma cidade antiga


Marília Garcia + imagens Ari Hisae

A capa é inspirada no manifesto do


cartas_88 Jornalismo bem feito custa caro
príncipe regente, dom Pedro I, de agosto
de 1822, marco inicial da diplomacia do BYE-BYE, COXINHA
país, que no mês seguinte se tornaria despedida_90 De tão alta, a inflação está deixando o proletariado surdo
independente de Portugal André Gabeh

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A construção histórica
do Sete de Setembro como
marco da Independência Uma nova
a partir de profundo estudo e original história
da cultura visual e política da Independência.
em torno do tema.

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Tomando como ponto de partida farto conjunto imagético, Estudo minucioso, Adeus, senhor Portugal oferece
que tem como elemento central o famoso quadro uma interpretação ampla do processo emancipatório
de Pedro Américo sobre o “Grito do Ipiranga”, brasileiro, relacionando as tensões políticas e sociais com
Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia K. Stumpf a questão fiscal e a crise econômica. O livro deixa evidente
analisam a construção do famoso 7 de setembro de 1822 um duplo movimento: se os impactos de imposto e inflação
como símbolo nacional de emancipação política, tendo crescentes pioram a vida da população e motivam
a tela de Pedro Américo se transformado com o tempo a ação social necessária para o fim do absolutismo,
em uma espécie de documento verídico do evento — a crise orçamentária causadora de tais problemas
quando devia muito mais à imaginação tardia do artista, econômicos era um reflexo do desgaste das instituições
que pintou a obra mais de 60 anos depois. O livro explora do Antigo Regime, incapaz de zelar pelo equilíbrio
como ocorreram em 1822, 1922, 1972 e 2022 batalhas do tesouro.
ideológicas e visuais em torno da independência.
“Esta obra certamente ficará como
“A pintura Independência ou morte! de Pedro uma das mais importantes contribuições
Américo se oferece como fio condutor de leituras para o estudo da Independência”
prodigiosas que se desenvolvem a contrapelo
EVALDO CABRAL DE MELLO
da história oficial, nos ajudando a compreender
o que de simbólico cabe em nossas percepções
de nacionalidade.”
RENATA BITTENCOURT

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colaboradores_ agosto

CAIO BORGES
Tiago Coelho Thais Bilenky Taba Benedicto Marília Garcia Allan de Abreu André Gabeh Ana Clara Costa

Sergio Fausto [O desafio democrático, das Letras). Trecho adaptado do livro O Ovo Damian Platt [Em busca da melhoria, Dirceu Alves Jr. [A maratona, p. 78],
p. 8] é cientista político e diretor executivo da Serpente – Nova Direita e Bolsonarismo: p. 62], escritor, investigador cultural e jornalista e crítico de teatro, trabalhou
da Fundação Fernando Henrique Cardoso. Seus Bastidores, Personagens e a Chegada skatista, publicou Nothing by Accident: em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São
Ilustração de Allan Sieber. ao Poder, a ser lançado neste mês pela Brazil on the Edge (Independent Publishing Paulo. Publicou os livros Elias Andreato:
Companhia das Letras. Network). Tradução de Rogério Galindo. A Máscara do Improvável (Humana Letra)
Angeli [Cartuns a partir da p. 10], cartunista e Sérgio Mamberti: Senhor do Meu Tempo
e colaborador da piauí, publicou a coletânea Tiago Coelho [A dependência, p. 40] é Rivka Galchen [O gênio desaparecido, (Edições Sesc). Fotografia de Flavia Valsani.
Todo Bob Cuspe (Companhia das Letras). repórter da piauí e roteirista de cinema. p. 68] é colaboradora da revista
The New Yorker, na qual o texto foi Antonio Mammi [He-Man, p. 84]
Ana Clara Costa [A Jovem Pan e o golpe, Taba Benedicto [Quarto de esquecer, originalmente publicado. É autora é jornalista e editor do Nexo Jornal.
p. 18], repórter da piauí, foi editora p. 46], fotojornalista freelancer e arquiteto, de Pequenas Resistências (DBA). Ilustração de Pedro Franz.
de política na Veja, editora do Globo é colaborador do jornal O Estado de S. Paulo. Tradução de Sergio Tellaroli.
em Brasília e editora-chefe na Época. Marília Garcia [Poesia, p. 87] é poeta e
Ilustração de Vito Quintans. Pedro Cesarino [Ouvindo os povos do Rafael Cariello [Dom João abre os cofres, autora de Câmera Lenta (Companhia das
Javari, p. 52] é antropólogo e escritor. p. 74] é jornalista. Thales Zamberlan Letras), vencedor do Prêmio Oceanos
Allan de Abreu [O instrumento, p. 26], Professor do Departamento de Antropologia Pereira, coautor, é doutor em economia 2018. Ilustração de Ari Hisae.
repórter da piauí, é autor dos livros da FFLCH/USP, publicou o romance Rio pela FEA/USP e professor da Escola de
O Delator, Cocaína: A Rota Caipira Acima (Companhia das Letras). Economia de São Paulo (FGV/EESP). André Gabeh [Bye-bye, coxinha, p. 90]
e Cabeça Branca (Record). O texto é um trecho do livro Adeus, é cantor, escritor, ilustrador,
Thais Bilenky [O advogado ostentação, Senhor Portugal: Crise do Absolutismo roteirista e observador – além de
Consuelo Dieguez [O ninho da serpente, p. 56] é repórter da piauí e apresentadora e a Independência do Brasil, a ser parte integrante – da vida suburbana.
p. 32], repórter da piauí, é autora da coletânea do podcast Foro de Teresina. Fotografia publicado neste mês pela Companhia das
de perfis Bilhões e Lágrimas (Companhia de Egberto Nogueira. Letras. Ilustração de Roberto Negreiros. Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

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questões vultosas_ ESTE ARTIGO É O PRIMEIRO DE UMA SÉRIE ANALÍTICA SOBRE AS ELEIÇÕES DE 2022

O DESAFIO DEMOCRÁTICO
Para salvar o Brasil, não bastará derrotar Bolsonaro nas urnas

SERGIO FAUSTO

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F
ossem tempos normais, não rios, mas para tanto teve de se dobrar ao para dar armas à população e não hesita mília e a sexualidade. A coação sobre a
haveria dilema maior. Dois seu representante mais caricato. em incitar o seu uso contra adversários individualidade é onipresente no cam-
turnos servem exatamente para Nem todos os seus aliados políticos políticos. Não recruta soldados, como po da cultura. Deus (punitivo), Pátria
isso: no primeiro, escolhe-se são extremistas, muito menos a maioria Benito Mussolini fez com os ex-com- (excludente) e Família (patriarcal), slo-
por convicção; no segundo, dos seus eleitores, mas quem hoje ainda batentes da Primeira Guerra Mundial gan tomado emprestado ao integralis-
mais por exclusão. Ocorre que não vi- tem dúvida do extremismo de Jair Bol- para formar suas tropas de choque, mas mo de Plínio Salgado, formam a tríade
vemos tempos normais, nem no Brasil sonaro ou da sua condição de líder do mantém acesa a sua base nas forças de de uma visão retrógrada do indivíduo e
nem no mundo. bloco de forças políticas e sociais que segurança, em particular as polícias mi- da sociedade. A novidade do bolsona-
Nunca antes estivemos diante de ele representa? O atual ocupante do litares, e chama as Forças Armadas de rismo é a adesão a um individualismo
um fenômeno como o bolsonarismo. Palácio do Planalto é tosco, mas não é “meu Exército”. Cultiva uma masculini- extremo e destrutivo, avesso a conside-
A Ação Integralista Brasileira, criada tolo. Conhece o jogo do poder, no meio dade bruta, talhada para o confronto. rações sobre o bem comum.
em 1932 por Plínio Salgado, inspirada civil e no meio militar. Não tem um Mussolini era um homem culto, mas Outra diferença é que Bolsonaro
no fascismo italiano e num catolicismo partido, mas é líder de um movimento, teatralizava a imagem do macho atléti- não quer pôr abaixo todo o edifício da
ultraconservador, não foi um fenôme- cuja força motriz é o ataque sistemático co, corajoso e implacável. democracia liberal. O fascismo elabo-
no de massas. Em democracia, a direita à cultura e às instituições democráticas. O combate bolsonarista extravasa os rou uma visão sobre a organização do
sempre chegou ao Palácio do Planalto O bolsonarismo não é fascista. Mas limites das instituições de representa- Estado e da sociedade em substituição
por interposta pessoa. Jânio Quadros tem traços fascistas que o distinguem ção política. Alcança cada campo da à democracia liberal. O bolsonarismo
se mostrou um estranho no ninho em da direita autoritária convencional. vida social, da igreja aos quartéis, pas- não pretende destruí-la frontalmente,
Brasília. Fernando Collor sofreu im- O bolsonarismo é mobilizador. Move- sando pelas escolas. Nisso ele também mas desfigurá-la pela corrosão. Não se
peachment. Ambos revelaram desco- se pela ideia de que há um combate a se assemelha ao fascismo. O uso dis- importa em manter a fachada da de-
nhecer o jogo do poder. Nenhum, porém, ser travado. A violência ocupa um lugar torcido do conceito de liberdade não mocracia liberal. Não questiona o prin-
afrontou as instituições (Jânio, ao ten- central no seu imaginário. Bolsonaro esconde a tendência totalitária do bol- cípio da soberania popular expressa pelo
tar, fez papel de tolo). Pela primeira não organizou os fasci di combattimen- sonarismo, visível na tentativa de con- voto. Prefere lançar suspeitas infunda-
vez, a direita chegou ao Palácio do Pla- to, embriões do Partido Fascista na Itá- trolar comportamentos em esferas da das sobre a lisura do processo eleitoral
nalto pelo voto popular, sem intermediá- lia, mas abusa do poder presidencial vida privada tão íntimas como são a fa- para deslegitimar de antemão qualquer

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ALLAN SIEBER_2022
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Depois da queda da União Soviética, o fantasma do comunismo acabou se tornando isso mesmo, apenas um fantasma: hoje, quem melhor se articula internacionalmente é a extrema direita

resultado que não o favoreça. Não con- peso na sociedade e influência na polí- precedente do caráter laico do Estado. toritária de países onde a democracia
testa a primazia do poder civil em ge- tica brasileira. Enquanto o catolicismo Os exemplos vão desde instruções para nunca havia se firmado. Depois da
ral e do Tribunal Superior Eleitoral em conservador reinou inconteste no cam- o aborto legal na rede do SUS que res- grande crise financeira, o quadro mu-
particular, mas busca submeter o TSE à po religioso, a Igreja não se furtou a pondem a crenças religiosas e não a dou. Partidos, movimentos e líderes
tutela das Forças Armadas para auditar tomar partido das forças da ordem. Em preceitos constitucionais até a indica- antissistema ganharam terreno na
as urnas e apurar os votos. Não convo- 1964, às vésperas do golpe militar, a ção de nomes para os tribunais superio- Europa e nos Estados Unidos. À es-
ca cabos e soldados para fechar o STF, classe média engajou-se na chamada res com base em critério religioso. querda, despontaram o Podemos, na
mas move uma campanha de execração “Marcha da Família com Deus pela Li- Espanha, e o Syriza, na Grécia, na es-

N
pública e intimidação dos seus mem- berdade”. A própria laicidade do Estado ão estamos nos anos 1930 do sécu- teira de movimentos de protesto contra
bros e reinterpreta o artigo 142 da Cons- acomodou-se às demandas da Igreja lo passado, quando se deu a ascen- a repartição socialmente injusta do ônus
tituição para difundir a tese de que às Católica. Nunca se viu, porém, uso tão são do nazifascismo na Europa. da crise financeira. Apesar do flerte ini-
Forças Armadas caberia a resolução de amplo e agressivo da religião para traçar Mas o bolsonarismo não é um fenôme- cial com o bolivarianismo sul-america-
conf litos entre os diferentes poderes as linhas divisórias da disputa política, no isolado. Faz parte da onda global no, então em alta na América Latina, os
da República. Claro, às vezes, o presi- numa estratégia coordenada de estigma- antidemocrática que se levantou de- partidos antissistemas de esquerda con-
dente se excede e diz o que realmente tização dos oponentes do bolsonarismo, pois da grande crise financeira da pri- fluíram para o leito da democracia liberal,
pensa: “Isso, democracia e liberdade, só dentro e fora das igrejas, em especial das meira década deste século. Até 2008 buscando alargá-lo com a participação
existe quando a sua respectiva Forças denominações evangélicas (incluindo era uma marolinha restrita aos países de novos atores sociais e revolvê-lo
Armadas assim o quer”, disse Bolsona- as mais tradicionais). em desenvolvimento. para que temas submersos (desigualda-
ro, ao maltratar a língua portuguesa Não há um partido evangélico nem Depois de crescer rápido durante as de, meio ambiente, igualdade de gêne-
em discurso ao Corpo de Fuzileiros uma identidade perfeita entre o bolso- duas últimas décadas do século XX , o ro) viessem à tona com força. Tiveram
Navais no Rio de Janeiro, em março narismo e o evangelismo, mas desde a número de democracias entre esses êxito limitado.
de 2019. proclamação da República jamais con- países começou a estacionar e, logo Maior foi o sucesso da direita antis-
À falta de uma doutrina própria, o vivemos com tal grau de politização da mais, a diminuir. A observação ficou sistema. Prometendo a restauração de
bolsonarismo transformou a religião religião e uso religioso da política. Isso restrita aos especialistas porque não um passado idealizado, apelando à xe-
em arma política. O clero sempre teve se reflete num enfraquecimento sem havia grande surpresa na recaída au- nofobia étnico-religiosa, mobilizando

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publicano coordena essas investidas, Outro alvo da Suprema Corte são as


ANGELI mas a lógica que as coloca em marcha políticas federais de mitigação da mu-
não é a de um partido convencional e dança climática. Pouco menos de uma
sim a de um movimento de fundo reli- semana depois de restringir o direito ao
gioso, que enxerga a luta política como aborto, a maioria republicana no tribu-
um combate travado em nome dos valo- nal limitou o poder da Agência de Prote-
res da cristandade, no caso norte-ame- ção Ambiental (EPA, na sigla em inglês)
ricano, associados à herança europeia e, de estabelecer limites para a emissão de
portanto, à população branca. Quaren- gases do efeito estufa.
ta anos atrás, quando Ronald Reagan se Nos Estados Unidos se trava a mãe
elegeu presidente, o fundamentalismo de todas as batalhas para o futuro da
cristão era uma força ascendente, mas democracia (para não falar na mudança
ainda marginal no Partido Republica- climática). Os resultados são incertos e
no. Hoje é a alma do Grand Old Party. os ventos não sopram em boa direção.
Um tipo amoral e oportunista como Do-

V
nald Trump soube instrumentalizar o oltemos ao Brasil e ao dilema co-
fundamentalismo branco evangélico e locado na abertura deste artigo.
expandir as suas fronteiras apelando Não tenho respostas definitivas,
aos trabalhadores industriais empobre- mas algumas considerações me pare-
cidos pela automatização e remoção de cem importantes para resolvê-lo, nos
indústrias no Cinturão da Ferrugem dois meses que temos até o primeiro
(Rust Belt). turno das eleições presidenciais. A pri-
o medo e o ódio aos imigrantes e a frus- Ambos compartilham a crença de que a Os riscos à democracia norte-ame- meira delas diz respeito à caracteriza-
tração contra as perdas reais e imaginá- política é um combate travado em todas ricana são crescentes e não decres- ção da política brasileira atual como
rias da globalização, tomou de assalto as dimensões da vida social, da família centes, como se podia imaginar depois um campo de forças polarizado por
o Partido Republicano, nos Estados ao Estado, passando pela escola, a mí- da vitória de Biden sobre Trump. As dois extremos. A imagem falseia a rea-
Unidos, empurrou o Partido Conserva- dia, as igrejas. As instituições políticas chances de o trumpismo retornar à lidade. Não há dois, mas um só extre-
dor, no Reino Unido, para uma posição são espaços a ser conquistados e utiliza- Casa Branca em janeiro de 2025, com mista a protagonizar a disputa política,
de ruptura com a União Europeia, en- dos como centros estratégicos de poder ou sem o ex-presidente, são reais. So- como escreveu Míriam Leitão em O Glo-
trou para o mainstream da política ita- para vencer o inimigo, e não como um mos testemunhas do mais amplo ata- bo, no artigo intitulado Centro Não
liana e francesa, chegou ao poder na conjunto de regras escritas e não escritas que aos direitos civis e políticos nos É o Ponto entre Dois Extremos. A jor-
Hungria e na Polônia. que permite aos adversários políticos Estados Unidos desde o final do século nalista é certeira ao escrever: “O cen-
Se no passado houve uma Internacio- resolver seus conflitos de modo não vio- XIX , quando, após a Guerra Civil, o tro deve procurar seu espaço, seu
nal Comunista, hoje quem melhor se lento. Nesse combate, nem as regras do Norte, embora vitorioso, aceitou que programa, seu candidato, ou seus can-
articula internacionalmente é a extrema jogo democrático nem as regras da obje- os estados do Sul, derrotados, adotas- didatos, porque o país precisa de alter-
direita. Depois da queda da União So- tividade factual merecem deferência. sem leis de segregação racial. As con- nativa e renovação. Mas não se deve
viética, o fantasma do comunismo se Tão importante quanto o que ocor-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS quistas alcançadas cem anos depois da equiparar o que jamais teve medida
tornou isso mesmo, um fantasma, como reu em 6 de janeiro de 2021 no Capitó- abolição da escravidão, com o Voting de comparação.”
aquelas estrelas que já morreram, mas lio é o que vem ocorrendo nos Estados Rights Act, aprovado em 1965, que Aos 45 minutos do segundo tempo
cuja luz ainda se vê. Já a extrema direita Unidos desde então. O assalto à sede do proíbe a discriminação eleitoral com da pré-campanha, o centro encontrou
cresce e se articula em toda parte, com Congresso, para impedir a confirmação base na raça, estão sob ataque. uma candidata a presidente, a senado-
apoio decisivo nos Estados Unidos e do resultado eleitoral que dera a vitória O mesmo acontece com os direitos ra Simone Tebet (MDB - MS). É um ex-
com recursos do Kremlin, que até a a Joe Biden, não foi um incidente. Foi civis. É o que se viu na decisão recente celente nome. Não tenho dúvida de que
eclosão da guerra na Ucrânia financiou o ponto culminante de uma estratégia da Suprema Corte sobre o direito ao a candidata encontrará o seu progra-
partidos nacionalistas e xenófobos na longamente preparada com base na aborto. Ao derrubar a jurisprudência fi- ma, dada a qualidade das equipes que
Europa. Maior das repúblicas da defun- mentira de que as eleições estavam su- xada no caso Roe versus Wade, de 1973, pode recrutar para esse fim. A questão
ta União Soviética, a Rússia se tornou, jeitas a toda sorte de fraudes. Qualquer a maioria conservadora do tribunal per- que resta responder é: encontrará o
sob Vladimir Putin, parte importante da semelhança com a sistemática investida mite aos estados proibir o aborto mes- seu espaço? Faço essa pergunta com
rede internacional formada por cristãos do bolsonarismo contra as urnas eletrô- mo em caso de estupro ou risco à saúde um olho nas pesquisas e outro no mapa
fundamentalistas, nacionalistas xenófo- nicas e o TSE não é mera coincidência. da mulher. Em alguns deles, como o das identidades político-ideológicas.
bos e ultraconservadores, da qual fazem A mentira visa atingir a democracia Texas, já entraram em vigor leis que Não tenho a fórmula mágica da deco-
parte também os negacionistas da mu- no seu pilar central: a alternância no preveem longas penas de prisão para lagem nas pesquisas de intenção de voto,
dança climática. Deus, Pátria e Família, poder determinada pelo resultado elei- quem praticar o aborto ou facilitá-lo, mas estou convencido de que se apre-
em luta contra o chamado “marxismo toral e a aceitação do veredito das urnas além de estímulos para denunciar os sentar como a opção equidistante en-
cultural”, designação absurda e pejora- por parte do candidato derrotado. Ela “criminosos”. A decisão de 1973 se tre dois extremos é mais do que um
tiva de toda e qualquer ideia que remon- tem um duplo e estratégico propósito: apoiou na ideia de que as liberdades erro de cálculo eleitoral.
te ao Iluminismo e à modernidade, em testar ao limite a resistência das institui- individuais incluem o direito à autono- Não se trata de apagar diferenças com
suas variadas vertentes. ções democráticas e, na hipótese de não mia e à privacidade no uso do próprio o PT e seu candidato em temas importan-
produzir de imediato o efeito pretendi- corpo. O mesmo conceito dá base ao tes como o papel das empresas estatais e

N
ão se deve desconsiderar esse con- do, ou seja, um golpe de Estado, impul- casamento entre pessoas do mesmo dos bancos públicos, comércio externo
texto na avaliação do risco que sionar em seguida uma campanha de sexo, incluído o direito de adotarem e políticas industriais, regras e gestão da
representa a reeleição de Bolsona- deslegitimação do presidente eleito. crianças e constituir família. A ampla política fiscal, mas de reconhecer com
ro para a democracia no Brasil e mesmo Vista dessa perspectiva, a estratégia maioria conservadora na Suprema Cor- clareza e sem demora que a importância
no mundo. Maior país da América La- da Grande Mentira (The Big Lie) se te, assegurada pelo bloqueio dos sena- das diferenças nessas áreas é menor do
tina, uma das quinze maiores econo- mostrou um sucesso. Em torno dela, a dores republicanos à nomeação de um que a importância de um compromisso
mias do planeta, aqui se trava uma extrema direita manteve tão ou mais juiz indicado por Barack Obama, pre- comum com a democracia.
batalha importante para reverter a onda mobilizada a sua base de militantes e o nuncia a derrubada de outros direitos Não nos enganemos, é isto que es-
global antidemocrática. seu controle sobre o Partido Republica- considerados anátemas pelo fundamen- tá em jogo nessas eleições: o direito
Dessa perspectiva, não percamos de no. O assalto ao Capitólio fracassou, talismo religioso. Em seu voto contra de continuarmos a divergir pacífica e de-
vista os Estados Unidos, o principal cen- mas o ataque às instituições eleitorais Roe versus Wade, o juiz Clarence Tho- mocraticamente sobre a melhor manei-
tro de irradiação da extrema direita continua em cada estado, em múltiplas mas, casado com uma militante ultracon- ra de construir um país mais justo,
mundial. São conhecidas as afinidades investidas para dificultar o voto dos gru- servadora, já deu o sinal nessa direção próspero e sustentável, orgulhoso da
e ligações entre o bolsonarismo e o ex- pos sociais e raciais nos quais o Partido para encorajar a base republicana a não sua diversidade, onde a liberdade reli-
tremismo norte-americano de direita. Democrata predomina. O Partido Re- se contentar com essa vitória. giosa seja plena, mas as crenças não

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constranjam a liberdade individual Lula. A vinda do ex-tucano para o par- ais importante do que o dilema mo e sem lastro. Com a democracia sob
nem sejam critério para a distribuição tido foi o lance final de uma rodada de eleitoral que alguns sentimos é o ameaça, não haverá estabilidade políti-
de recursos públicos, nomeações para filiações que trouxe para o PSB mais três desafio comum que todos os de- ca e segurança econômica, e o país po-
instituições do Estado ou definição de po- destacados políticos do campo demo- mocratas têm pela frente. Não é sufi- derá naufragar. Evitar o naufrágio requer
líticas públicas, onde haja consideração crático: Flávio Dino, Marcelo Freixo e ciente derrotar Bolsonaro nas urnas e unidade ampla para afastar a ameaça
pelos fatos objetivamente verificáveis Alessandro Molon. Esses movimentos, assegurar a posse de quem vier a vencer à democracia. Mas para reencontrar a
e pelos métodos científicos de produ- somados à reaproximação de Marina as eleições. É preciso contribuir para rota do desenvolvimento, que perdemos
ção de evidências. Silva (Rede), são indicações de uma que o próximo seja um governo capaz ao longo da última década, é necessário
A segunda consideração a fazer é nova possível configuração das forças de superar a herança maldita que rece- mais. Sem uma carta de navegação mi-
sobre ter ou não o PT aprendido as li- de centro-esquerda. À falta de uma di- berá do atual. Contribuir não significa nimamente comum, voltaremos a en-
ções de sua longa passagem pelo poder reita pura e dura, isso não foi possível adesão acrítica e complacência. Pode- frentar tempestades e tumulto a bordo.
federal. Não tenho resposta taxativa a no passado, quando PT e PSDB eram os se contribuir fazendo uma oposição leal, As forças do atual capitão não abando-
respeito. Mas penso que o alcance da partidos dominantes em nível nacional ao contrário do que fez o PT durante o narão o barco.
pergunta deveria ser estendido: apren- e os estímulos à competição eram mais governo FHC e o PSDB no segundo gover- Daí a necessidade de construir um
demos todos, do campo democrático, fortes do que os incentivos à coopera- no de Dilma Rousseff. programa mínimo comprometido com
com os erros que contribuíram para ção. Quem sabe agora, com novas for- O país entrará em 2023 com um Es- o estado democrático de direito, a esta-
impulsionar o bolsonarismo e levar ças e (semi) novas lideranças? tado em más condições de execução bilidade macroeconômica, o combate à
Bolsonaro à Presidência da República? A derrota de Bolsonaro é importante de políticas públicas, com órgãos des- pobreza e às desigualdades, a preserva-
A primeira pergunta não deve ser dis- também para permitir a reorganização mantelados, a exemplo do Ibama, ou ção e o uso sustentável dos nossos recur-
pensada. Sozinha, porém, ela bloqueia da centro-direita. Nada é mais eloquen- desestruturados, como o Ministério da sos naturais, a começar pelo bioma
a possibilidade de construir uma am- te do estrago que o atual presidente pro- Saúde, um orçamento com pouca mar- amazônico. Seria ideal que esse progra-
pla e duradoura aliança em defesa da duziu nesse campo do que o triste fim gem de gasto e capturado secretamente ma mínimo fosse construído na campa-
democracia que não limite diferentes do DEM, hoje desfigurado e assimilado por emendas que retalham programas nha e legitimado nas urnas. Parece
opções eleitorais, mas sirva de barreira ao União Brasil. Antes do vagalhão bolso- em pequenas ações locais desarticula- pouco provável. Que seja então criado
de proteção contra o extremismo bol- narista engolfá-lo, o Democratas despon- das, sem regra fiscal clara, depois que após as eleições, sob a liderança de
sonarista, agora, depois das eleições e tava como o possível polo aglutinador o atual governo lançou pelos ares o teto quem a vencer. Seja quem for, deverá
no futuro mandato presidencial, seja de uma centro-direita liberal com bases de gastos, sem nada colocar no lugar, saber que, por maior que for sua vitória
quem vier a exercê-lo. nos centros mais desenvolvidos do país. em um ambiente internacional adver- eleitoral, ela não lhe será suficiente
Dessa perspectiva, vejo com bons Herdeiro do velho PFL, na origem assen- so, devido à combinação de tensões para governar. Sem um programa claro,
olhos a movimentação política do can- tado em esquemas tradicionais da políti- geopolíticas crescentes, pressões infla- que expresse o melhor denominador
didato do PT desde que recuperou os ca nordestina, o DEM prometia completar cionárias e aperto de liquidez – um comum entre as forças democráticas,
seus direitos políticos. A aliança com o a sua transição do “atraso” ao “moder- combo de problemas inter-relacionados correrá o risco de se tornar refém do
PSB e outros partidos menores é signifi- no”. Também aqui, como é característi- que há muito não se via. fisiologismo e alvo fácil para uma extre-
cativa. Os socialistas atraíram Geraldo co na história brasileira, a modernização Navegar nessas águas exigirá perícia. ma direita empenhada em deslegitimar
Alckmin para ser o vice na chapa de ficou truncada. A nau brasileira está avariada, sem ru- desde o início o novo governo. J

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Dos Jerivás aos Pinhei ros

20.08 a 18.12 de 2022


Terça a sexta, 10h às 21h.
Sábados, domingos e feriados, 11h às 18h.

piauí_agosto 11
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esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2022
CADA CPI É UM FLASH
Randolfe Rodrigues nas graças da imprensa e da oposição

“P
or onde ele vai entrar?”, per- res, caminhou até a Câmara, gravou um numa batalha de feitiços contra um bru- bancada decidiram, em maioria, deixar
guntou um cinegrafista. “Por vídeo ao lado do deputado Ivan Valente xo que veste uma faixa presidencial. a CPI do MEC para depois da eleição. Ro-
ali”, respondeu um assessor do (Psol-SP), posou para fotos e deu um de- Com o celular apoiado sobre um drigues diz que, se a investigação não
senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), poimento em vídeo para o UOL. exemplar da Constituição personaliza- for instalada em agosto, vai recorrer ao
apontando em direção à passagem que Um assessor se aproximou de Rodri- do com seu nome, o senador passou o Supremo Tribunal Federal – estratégia
conecta o Salão Verde da Câmara dos De- gues para mostrar, no celular, como ele resto do dia fazendo ligações no modo que garantiu a CPI da Covid. É prová-
putados ao Salão Azul do Senado, onde havia se saído no Jornal Hoje, que acaba- viva-voz. Telefonou para os senadores vel que a investigação não prospere.
ficam os principais espaços da Casa. Eram ra de ir ao ar na Globo. “Depois eu vejo”, Jorge Kajuru (Podemos- GO) – “Kaju,

“O
onze e meia da manhã de 28 de junho, e dispensou o senador. Estava animado. macho, não afrouxa! Tu tem que estar pôr do sol aqui é lindo”, co-
uma dezena de câmeras e microfones já O deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), nessa porra dessa CPI” –, Omar Aziz mentou Rodrigues, quando
se posicionava em frente à entrada da Se- que passava por ali, parou para parabeni-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS (PSD -AM) – “Omar, sei que tu não pode já anoitecia. Levantou-se da
cretaria-Geral da Mesa, um conjunto de zá-lo. Rodrigues agradeceu e explicou participar dessa vez, mas vê se conversa cadeira e apertou um botão que fez girar
salas envidraçadas por onde passa toda a seu método: “O Bolsonaro funciona da aí com Nelsinho Trad [senador pelo PSD os brises de ferro da janela do gabinete,
burocracia do Senado. Os jornalistas ha- seguinte forma: você não pode dar tré- de Mato Grosso do Sul] pra ele não permitindo que a luz natural entrasse
viam sido avisados com antecedência pela gua. Tem que ser como no MMA: se ele tá mandar uma indicação escrota” – e Ro- na sala. “Das facilidades que Lucio Cos-
assessoria de Rodrigues que, ao meio-dia, caindo, tem que finalizar. Senão ele vol- drigo Pacheco (PSD -MG) – “Presida, tô ta deixou para nós...”, observou, satisfei-
o senador estaria ali para protocolar o pe- ta.” Agostinho riu e seguiu andando. lhe arranjando muito trabalho hoje?”. to com a iluminação crepuscular.
dido de abertura da CPI do MEC. Telefonou ainda para três jornalistas Às sete da noite, a secretária entrou

D
Rodrigues havia dormido pouco na esde a CPI da Covid, também pro- da GloboNews, um após o outro. Nas na sala para lembrá-lo de uma consulta
véspera. Foi para a cama às duas da ma- tocolada por ele, em 2021, Rodri- conversas, em clima de camaradagem, odontológica. O senador pediu que ela
nhã, depois de assistir ao Jornal da Glo- gues vem se esforçando para ser o zombou da estratégia dos bolsonaristas acionasse o motorista. Antes de deixar o
bo – como sempre faz. Às sete já estava mais tinhoso opositor ao governo, e por para barrar a CPI. Isso porque o líder do gabinete, ele se dedicou por alguns mi-
de pé, dando entrevista à rádio CBN. To- isso é perseguido por bolsonaristas. “Re- governo no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), nutos à campanha de Lula, da qual é
mou café, falou ao telefone com outros cebo de cinco a dez ameaças por sema- havia enviado um ofício para o presiden- coordenador. Ligou para a empresária
jornalistas e partiu para o Congresso. na no meu celular”, contou o senador, te da Casa, Rodrigo Pacheco, argumen- Paula Lavigne, anfitriã de reuniões do
Combinou com deputados e senadores mostrando à piauí uma mensagem re- tando que a investigação não poderia ser meio artístico e político no Rio de Ja-
aliados de se encontrarem na chapelaria cente, recebida por WhatsApp: “Sena- aberta pois já havia toda uma fila de CPIs neiro, e tentou armar na casa dela e de
do Senado para, dali, marcharem juntos dor filho de puta vamos botar fogo na aguardando decisão. O objetivo de Por- Caetano Veloso um encontro do ex-
até a Secretaria-Geral da Mesa. sua bunda.” Rodrigues já não se exaspe- tinho era pedir que a ordem cronológica presidente com “aquela turma boa do
Líder da oposição, Rodrigues encabe- ra: “Como não damos trégua para eles, fosse respeitada – jogando a nova CPI, Projac”. Repassou a ideia a Gilberto
çou o grupo. Pisou no Salão Azul vinte isso é esperado. Sou da máxima de que com isso, para as calendas –, mas o ofício Carvalho, que foi chefe de Gabinete da
minutos depois do previsto. Flashes para bala trocada não dói.” na prática pedia a instalação imediata de Presidência no governo Lula e tem cui-
todo lado. Caminhou triunfalmente en- Depois de almoçar, o senador se aco- todas as comissões. dado da agenda do petista. Depois gra-
tre as câmeras de tevê e protocolou a CPI. modou em seu gabinete no nono andar “É um argumento a nosso favor!”, vou um vídeo para o portal Mídia Ninja,
A comissão, que ainda não foi instalada, do Anexo I, área seleta do Senado, reser- concluiu Rodrigues, soltando uma gar- resumindo os passos necessários para a
pretende investigar o esquema que levou vada aos parlamentares que exercem galhada aguda em uma das ligações. instalação da CPI do MEC.
à prisão o ex-ministro da Educação Mil- cargos de liderança. A sala principal é re- Depois se divertiu ao telefone com o se- Sem mais afazeres, deixou a sala. No
ton Ribeiro e dois pastores evangélicos, pleta de referências ao universo de Harry nador Jean Paul Prates (PT-RN). “Essa caminho até o elevador, se deparou
em uma operação da Polícia Federal. Potter. Por lembrar vagamente o bruxo estratégia do governo é uma doce ilusão, com a assessora que cuida de suas redes
Suspeitos de cobrar propina – às vezes da ficção – óculos, cabelo preto curto e Jean. Quero saber quem vai estar interes- sociais. “Ficamos nos trending topics o
disfarçada sob a compra de Bíblias – em voz fina, o que lhe dá um jeito adolescen- sado na todo-poderosa CPI das obras ina- dia todo, né?”, perguntou o senador,
dinheiro e barras de ouro para liberar te –, Rodrigues ganhou esse apelido en- cabadas”, debochou. “Vai ter transmissão sorrindo. Ela respondeu que sim: as
verbas a prefeituras, Ribeiro e os pastores tre os colegas e levou na esportiva. Em sua ao vivo da GloboNews, com certeza... Já hashtags #CPIdoMEC e #BolsolaodoMEC
foram soltos no dia seguinte. mesa de trabalho há bonecos de Harry, tô imaginando até a escalada do Jornal tinham bombado no Twitter. “Mas tam-
Ao sair da secretaria, o senador deu Rony e Hermione, principais persona- Nacional: ‘A CPI das obras inacabadas do bém falaram em Randolfe, né?”, brin-
uma entrevista coletiva. Depois, entrou gens da saga. Foram um presente da século passado!’” Os dois riram. cou o senador. Entrou no elevador e foi
ao vivo no programa Estúdio I, da Glo- ex-senadora Heloísa Helena. Numa das A despeito das trapalhadas, a pressão embora tratar dos dentes. J
boNews. Atendeu outra leva de repórte- paredes, um desenho mostra Rodrigues do governo surtiu efeito. Os líderes de Luigi Mazza

12
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A COMPANHEIRA DO TIKTOK curtir e trocar mensagens com persona- aliado de Vladimir Putin. O candidato do De cada encontro ela saía com uma
Quem é Brunna Rosa, a gens que têm grande presença nas redes. PT tem apenas 74,6 mil seguidores no Te- base de contatos de novos militantes, que
estrategista digital de Lula Foi assim que Lula se tornou amigo virtual legram (tinha 46 mil em janeiro). passavam a receber missões específicas
de ex-BBBs – como Juliette, com 33,6 mi- O engajamento de Bolsonaro nessa diariamente. “Tinha dia em que escolhía-

N
o dia 20 de junho, a conta @lula- lhões de seguidores no Instagram, e Gil rede social também é enorme. “Ele mos falar do pré-sal, explicando que se-
oficial estreou no TikTok com um do Vigor, com 15,1 milhões – e de influen- atinge pelo Telegram cerca de 170 mil ria um passaporte para a independência
vídeo em que a mulher do presi- ciadores com grande audiência, como a pessoas por dia, fazendo 184 posts por econômica do país. Também avisávamos
denciável, a socióloga Rosângela da Sil- advogada Deolane Bezerra (14,7 milhões). mês. Lula agora está fazendo 250 posts onde a Dilma estaria para fazerem fotos
va, conhecida como Janja, canta Lula Além do alinhamento ideológico, é preci- por mês, e tem média diária de 11 mil dela e postarem em suas redes.”
Lá, o jingle da campanha. Sem medo de so pensar na força dos algoritmos. pessoas atingidas”, informa André Eler, Rosa ocupou o cargo de coordenadora
ser feliz, quero ver chegar/Lula lá, brilha diretor adjunto da Bites. digital de Dilma também em 2014, mas

B
uma estrela/Lula lá, cresce a esperança, runna Rosa foi chamada para a cam- Além de Rosa, só mais duas pessoas não da campanha de Fernando Haddad à
ela entoa num comício em Natal, no panha no ano passado. O convite têm a senha das redes do ex-presidente: Presidência em 2018 (na ocasião, ela
Rio Grande do Norte. Ao fundo, as ima- veio do jornalista Franklin Martins, o assessor de imprensa José Crispiniano atuou para abrir canais de denúncias de
gens da multidão eufórica. ex-ministro da Secretaria de Comunica- e o fotógrafo Ricardo Stuckert. “Sem- fake news contra a campanha petista).
A entrada de Lula no TikTok – o apli- ção Social do governo Lula. Na época, ele pre um de nós três estará ao lado de Hoje, ela comanda uma equipe de apenas
cativo mais baixado do mundo no primei- era chefe de comunicação da campanha, Lula, que gosta de resolver tudo pessoal- dez pessoas – analistas, jornalistas e um
ro trimestre deste ano, com 175 milhões cargo que deixou em abril para se tornar mente”, ela explica. “Nada é decidido antropólogo –, que trabalham na sede do
de downloads – foi decidida depois de conselheiro especial do presidenciável. com ele por WhatsApp.” Declarações e PT, em São Paulo. O mais jovem do time
uma análise de três meses realizada pela Rosa conta que sua preocupação inicial imagens inéditas – como a foto em que nasceu em 2004, segundo ano do primei-
equipe digital da sua campanha. A pes- foi fazer um “processo de reconstrução” Lula aparece de sunga, abraçado a Jan- ro governo Lula. Embora passe boa parte
quisa concluiu que é um erro achar que da imagem digital de Lula, que passou ja – precisam ser autorizadas. do dia conectada a dados de audiência,
a rede social só tem jovens infantiliza- 580 dias preso em Curitiba, entre 7 de engajamento e algoritmos das redes de

L
dos rebolando os quadris em dancinhas abril de 2018 e 8 de novembro de 2019. ogo que se formou em ciências so- Lula, Rosa não tem perfil em nenhuma
ridículas: há centenas, milhares de pági- “O que sobrevive desse terreno devastado? ciais, Brunna Rosa começou a traba- rede social. “Acho uma bobagem”, diz.
nas com temas políticos e sociais, e mui- Quase nada. A gente precisava estruturar lhar com política. A convite de um Candidato a vice na chapa do petista, o
ta gente usa a rede social como fonte de a nossa casa”, diz ela, sentada em um café amigo de Brasília, participou da reformu- ex-tucano Geraldo Alckmin (hoje no PSB)
conteúdos que compartilha em grupos na região da Avenida Paulista, em sua pri- lação do site do Ministério do Desenvol- pediu a Rosa indicações de nomes para
de WhatsApp. meira entrevista à imprensa. vimento Agrário, em 2007, no governo cuidar de suas redes. Ela não teve como
A previsão era lançar o perfil do pre- Entre as suas iniciativas digitais para Lula. Em 2010, assumiu a campanha ajudar, pois também está precisando de
sidenciável do PT alguns dias antes do avançar além da bolha lulista e dialogar digital de Dilma Rousseff. Na época, mais profissionais. “A equipe da Brunna
início de junho, mas a estreia foi adiada com um público mais amplo, Rosa des- apenas 35% dos domicílios do país ti- vai crescer. Vamos alugar uma casa na
porque a atenção dos brasileiros estava taca a entrevista dada por Lula ao pod- nham acesso à internet, e o Orkut (hoje Zona Oeste de São Paulo para ser o local
concentrada nas notícias sobre o desapa- cast Podpah, um dos mais ouvidos no extinto) era a rede social mais popular. de onde iremos tratar de toda a estratégia
recimento do indigenista Bruno Pereira país. A live aconteceu em dezembro de Também estava em alta a comunicação digital”, diz o deputado petista Rui Falcão,
e do jornalista Dom Phillips. O lança- 2021 e teve 2,1 milhões de acessos. “Re- em massa feita por correntes de e-mails. que, ao lado de Edinho Silva, coordena a
mento no dia 20, com Janja e o jingle, percutiu entre jovens que sequer vive-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Rosa teve a ideia de viajar pelo país a comunicação da campanha de Lula.
foi estimulante: o post teve 1,1 milhão ram durante o governo Lula”, diz. fim de construir uma base de apoiadores A guerra nas redes está apenas come-
de visualizações. No Instagram, as publicações de Lula engajados na circulação de boas notícias çando. J
Quem decidiu a nova data foi a res- com maior engajamento neste ano foram, sobre Dilma. A iniciativa, que ficou conhe- João Batista Jr.
ponsável pela parte digital da campanha, de acordo com um levantamento da con- cida como “caravanas digitais”, ministrava
Brunna Rosa, uma paulistana de 36 anos, sultoria Bites, a foto ao lado de Deolane oficinas para formar militantes online.
com tatuagens no braço e fala acelerada. Bezerra (1,2 milhões de interações), a foto “Ensinávamos a montar um blog e a fazer TEERÃ É UMA FESTA
A ela compete a delicada missão de con- oficial do casamento com Janja (1 milhão perfil nas redes, e pedíamos para seguir a Diplomatas se divertem no Irã,
figurar a voz do presidenciável de 76 anos de interações) e a foto do ex-presidente Dilma nas redes dela”, lembra Rosa. agora sem o embaixador russo
nas redes sociais e construir uma barra- usando óculos de sol modelo Juliet (967 mil

F
gem de contenção na internet à campa- interações). Esta última imagem não foi oi em Teerã que, em 1943, os líderes
nha de Jair Bolsonaro e seus filhos. planejada. A oportunidade surgiu duran- das potências aliadas – Winston
Rosa faz tudo que está ao seu alcance te uma reunião de Lula com lideranças Churchill, do Reino Unido, Joseph
para aumentar a influência de Lula nas jovens na favela de Heliópolis, em São Stálin, da União Soviética, e Franklin
redes. De acordo com a consultoria de Paulo, depois que um dos participantes Roosevelt, dos Estados Unidos – se en-
análise de dados Bites, ele obteve 7,1 mi- ofereceu a ele os óculos. A foto se conver- contraram a fim de discutir os planos
lhões de interações (a soma de curtidas, teu em memes e figurinhas de WhatsApp. para liberar a França do invasor nazista,
compartilhamentos e comentários) no O encontro de Lula com a influencia- na ofensiva que começaria pela Norman-
Instagram, Facebook e Twitter no pri- dora Deolane Bezerra foi articulado por dia em 6 de junho de 1944, o Dia D.
meiro semestre de 2022. É um número Janja, que também aproximou o marido Os lances finais da guerra na Europa fo-
promissor, mas ainda pequeno, diante da cantora Anitta. Mas Bezerra talvez não ram traçados em reuniões nas embaixa-
das 17 milhões de interações conquistadas seja mais uma companhia tão desejável das norte-americana, russa e inglesa na
por Bolsonaro. A diferença, porém, está para um candidato à Presidência: em ju- capital iraniana, entre festas e jantares.
diminuindo. No primeiro semestre do lho, a Polícia Civil de São Paulo realizou Na ocasião, os três líderes que participa-
ano passado era bem maior: Lula tinha uma ação de busca e apreensão na casa vam da Conferência de Teerã posaram
apenas 4,7 milhões de interações, contra dela, investigando a sua possível participa- sorridentes para uma foto histórica.
20,5 milhões de Bolsonaro. ção no esquema criminoso de um site de Quase oitenta anos depois – e trinta
Este ano, Bolsonaro ganhou 5 667 926 apostas esportivas. Ela nega envolvimento. anos após a dissolução da União Sovié-
novos seguidores nas redes Instagram, Lula vem somando avanços em quase tica –, a guerra da Ucrânia abalou as
Facebook, Twitter e YouTube, o que repre- todas as redes, mas há uma frente na qual relações entre Rússia, de um lado, e Es-
senta 13,9% de sua base total nas redes ainda existe um abismo entre ele e Bolso- tados Unidos, Reino Unido e demais
sociais, que atualmente reúne 46,5 mi- naro: o Telegram. De acordo com a Bites, países da Europa Ocidental, de outro.
lhões. Também em 2022, Lula conquis- Bolsonaro tem hoje o segundo maior ca- Chegou-se a um nível de tensão que
tou mais 2 934 262 de seguidores, 25,9% nal de política do mundo nesse aplicativo, não se via desde o fim da Guerra Fria.
de sua base, que é de 14,3 milhões nas com 1,3 milhões de seguidores. Passou Há décadas, o país dos aiatolás não
quatro redes sociais. Donald Trump (922 mil) no início do abriga mais encontros entre líderes de
O crescimento do petista se deve, em ano e hoje só perde para Ramzan Ka- grandes potências. Mesmo assim, um
parte, à estratégia que ele adotou de seguir, dyrov (2,6 milhões), líder da Chechênia e evento no meio diplomático de Teerã

piauí_agosto 13
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ofereceu recentemente um retrato em causa da guerra da Rússia com a Ucrânia. que havia acontecido lá. Os diplomatas
miniatura do atual estado de beligerância O distanciamento ficou claro no duro dis- estavam divididos em relação ao conflito
internacional. Em 6 de junho, a embai- curso que fez na festa de 6 de junho. Ele da Ucrânia. Alguns deles consideravam
xada da Rússia promoveu uma festa para criticou as sanções unilaterais impostas que não havia saída contra a agressivi-
comemorar o dia nacional da língua rus- pelos Estados Unidos e pelos países euro- dade de Putin a não ser aplicar sanções con-
sa. No grande salão contíguo à sala de peus à Rússia e lamentou o impacto que tra a Rússia. Outros consideravam que a
jantar – com sua imensa mesa cercada estão tendo sobre a população. Bateu na Otan forçara o conflito, em vez de buscar
por cadeiras no estilo império forradas tecla de que essa é uma guerra “por pro- a diplomacia para resolver o impasse.
com seda florida, em torno da qual Chur- curação”, na qual a Rússia não estaria in- Em relação a Levan Dzhagaryan,
chill, Stálin e Roosevelt confraternizaram vadindo a Ucrânia, mas confrontando os contudo, havia unanimidade. Todos se com-
em 1943 –, o embaixador russo no Irã, Estados Unidos e a Organização do Trata- padeceram ao saber que o russo se emo-
Levan Dzhagaryan, circulou entre duas do do Atlântico Norte (Otan). cionara com a presença dos poucos amigos
centenas de convidados. Nenhum deles Na visão do embaixador russo, apesar que lhe sobraram. “Que tristeza”, disse
era dos países da Europa Ocidental. das insistentes tentativas diplomáticas de um dos diplomatas. “Levan é uma ótima
Na celebração estavam presentes diplo- seu país para que a Ucrânia não fizesse pessoa.” Outro acrescentou: “Muito tris-
matas de países integrantes do Brics – blo- parte da Otan, os Estados Unidos defen- te termos que abandoná-lo.” E um tercei-
co que reúne Brasil, Índia, China e África deram a presença da organização no ro confessou. “De vez em quando dou
do Sul, além da própria Rússia – e repre- país, o que, disse ele, representaria uma um pulo escondido na casa dele, para ritório, as próprias canções e o próprio

ANDRÉS SANDOVAL_2022
sentantes de nações latino-americanas, clara ameaça. Por essa razão, a “entrada” visitá-lo.” Em seguida, todos se levanta- emblema, geralmente um animal. Em
árabes, africanas e asiáticas (as duas Co- da Rússia na Ucrânia teria sido um gesto ram e foram dançar. Afinal, the party parte sociedade de ajuda mútua, em parte
reias compareceram). O embaixador russo de “legítima defesa”. “Nossa luta não é must go on. J clube social, a contrada tem sua estrutura
não escondia sua alegria e até certa como- contra a Ucrânia”, insistiu. “É contra os Consuelo Dieguez, de Teerã organizacional particular, sua constituição
ção ao recepcionar os poucos amigos que Estados Unidos e a Otan.” e suas características democráticas. Ao lon-
ainda podiam prestigiar um evento pro- Depois, como todo bom diplomata, go do ano, seus membros se reúnem para
movido pelo país governado por Vladimir amenizou o tom. “Quero dizer que não 90 SEGUNDOS EM SIENA jantares, batizados, casamentos e enterros.
Putin. A maioria dos diplomatas europeus temos nada contra o povo norte-ameri- Uma secular corrida de cavalos O Palio é a manifestação suprema da
foi obrigada a se afastar do embaixador cano. Nós gostamos muito dos norte- está de volta, após a Covid vida da contrada. Equilibrando sorte e
Dzhagaryan, por causa do estremecimen- americanos”, disse. A briga, insistiu, era astúcia em igual medida, a corrida se

O
to das relações entre seus países e a Rússia. contra os governantes. Para atestar a tal s moradores de Siena dizem: Palio desenrola como uma ópera, em vários
simpatia pelos Estados Unidos, a festa è vita (Palio é vida). O Palio é a tra- atos, ao longo de quatro dias. Começa

L
evan Dzhagaryan é um sujeito sim- prosseguiu embalada por uma trilha dicional corrida de cavalos realiza- com um sorteio: autoridades públicas
pático, efusivo e estimado pelos sonora composta basicamente de jazz, da desde 1633 na cidade medieval italiana utilizam um aparelho especial para atri-
colegas. Também é tido como mui- nas vozes de alguns dos maiores canto- – hoje com cerca de 60 mil habitantes. buir, aleatoriamente, a cada contrada um
to bem informado. Esses atributos pes- res norte-americanos, como Ella Fitz- Ocorre duas vezes por ano, em 2 de julho dos dez cavalos pré-selecionados (devido
soais popularizaram o embaixador na gerald, Billie Holiday e Frank Sinatra. e 16 de agosto, em torno da praça central, a restrições de espaço, apenas 10 dos 17
capital iraniana, onde os diplomatas se Ao fim da comemoração, Dzhagaryan a Piazza del Campo, com seu formato de distritos podem competir em um Palio,
encontram com frequência em rega-bo- acompanhou os embaixadores que lhe são
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS concha. O primeiro Palio de 2022 veio ganhando sua vaga por rotação).
fes, coquetéis e aniversários. Pois Teerã mais próximos até a porta. Na despedida, carregado de uma significação especial, Quando a contrada recebe seu cava-
é uma festa – ou, pelo menos, uma festa após abraçar cada um, levantava o punho pois as corridas foram suspensas nos dois lo, ela avalia as chances. A força do ca-
para os embaixadores. E nesse quesito a e repetia o famoso bordão com que a ati- anos anteriores, devido à pandemia. No valo vai definir as estratégias para a
embaixada russa era, até há pouco tem- vista espanhola Isidora Dolores Ibárruri, passado, a competição foi cancelada em ra- corrida e a decisão crucial: qual jóquei
po, um lugar especialmente atraente, La Pasionaria, conclamava os republica- ras ocasiões: após um terremoto em 1798, contratar. O jóquei não pertence a ne-
pois sediava as melhores recepções. nos espanhóis a resistirem ao Exército do por causa de um surto de cólera em 1855 nhuma contrada; é um autônomo, e de
O entrosamento maior se dá entre os fascista Francisco Franco: No pasarán. e durante as duas guerras mundiais. costume vende seus serviços para quem
europeus e os latino-americanos. E os Cada Palio é disputado pelas várias dá o maior lance. Outro fator: a maioria

N
encontros mais divertidos, claro, não o dia seguinte ao evento russo, um contrade (distritos) de Siena, que fica no dos distritos tem um rival específico, e
têm caráter oficial: são reuniões de ami- grupo de embaixadores europeus se topo de uma colina, na região central da tão importante quanto buscar a vitória
gos para papear e beber. O consumo de reuniu numa das residências oficiais Toscana, e foi uma das cidades-Estados é garantir a derrota desse inimigo.
álcool é permitido nas residências diplo- para celebrar o aniversário de um diploma- autônomas que antecederam a fundação A tensão vai aumentando, enquanto os
máticas de Teerã, desde que não haja ta, com dança e muita conversa. Em ou- da Itália moderna. Um dos propósitos membros da contrada acompanham seu
integrantes do governo iraniano, para tros tempos, Dzhagaryan estaria presente. originais de cada contrada era fornecer cavalo em dois testes diários, realizados
não ferir suscetibilidades. Agora, ele era um dos assuntos da festa. soldados para os exércitos que defen- na piazza. À noite, eles se reúnem para
Para Dzhagaryan, porém, esses simpá- Em uma das mesas, falou-se bastante diam Siena de cidades rivais. comer, beber e especular sobre o possível
ticos convescotes com os amigos diploma- da recepção na embaixada russa. Aqueles Cada corrida dura, em média, noventa vencedor. Na véspera da corrida, grandes
tas chegaram ao fim há alguns meses, por que não compareceram queriam saber o segundos, e o objetivo é um só: a vitória. banquetes acontecem em toda a cidade.
Chegar em segundo lugar é uma vergo- Na contrada de Valdimontone (Vale do
nha. Um cavalo sem cavaleiro pode ven- Carneiro), 2 mil comensais desfrutam de
cer. Os jóqueis, que montam os animais um jantar de quatro pratos numa ruazinha
em pelo, usam trajes com as cores da res- de paralelepípedos, toda arborizada, que
pectiva contrada, e levam na mão um sobe suavemente até uma basílica do sé-
chicote feito de pênis de bezerro para ba- culo XIII. Mesas meticulosamente arruma-
ter uns nos outros e instigar seus cavalos. das e decoradas com toalhas cor-de-rosa se
Não existem apostas, mas grandes alinham sob o clarão das luminárias, orna-
somas de dinheiro mudam de mãos – mentadas de vermelho e amarelo. A maio-
há chefes de distritos que pagam aos ria dos clientes usa uma echarpe de seda
outros chefes para serem favorecidos no rosa com a figura de um carneiro. Antes
resultado da corrida. A contrada vence- do banquete, um porta-bandeira e um
dora não recebe nenhuma compensa- homem com um tambor, vestindo as co-
ção financeira, apenas uma bandeira de res da contrada, marcham entre os comen-
seda decorada: o almejado Palio. sais rumo à mesa superior, onde os chefes
do distrito se sentam ao lado do jóquei.

H
á dezessete contrade em Siena. Ca- Bebe-se o vinho, cantam-se as músi-
da uma funciona como um estado cas, e é a vez dos discursos. A comida é
dentro do Estado, com o próprio ter- toda feita por voluntários da contrada.

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M
SANTO BAILE em uma daquelas festas. Seus shows eram ahal Pita e MC Tha e chegaram
O funk afrorreligioso singulares: no meio do batidão, ela de- mais cedo ao Circo Voador para
da cantora MC Tha satava a cantar Elza Soares e Tim Maia. arrumar o cenário do palco. “Quan-
O público ficava desorientado. do você se propõe a fazer um trabalho

N
o bairro boêmio da Lapa, no Rio de A voz de MC Tha a diferenciava por visual elaborado e não tem grana, o jeito
Janeiro, os garçons arrumam as me- ser suave (ao contrário do tom grave dos é colocar a mão na massa”, diz o pro-
sas para a noite de sexta-feira. É um funkeiros de sucesso). E, para desespero dutor. A MC lança sua música de forma
fim de tarde de julho e o Centro da cida- dos contratantes de seus shows, a jovem independente, sem gravadoras. Para pro-
de já está em alvoroço. Buzinas soam no não rebolava no palco. “O funk é a ma- mover o novo EP, ela gravou um vídeo de
trânsito frenético e a música irradia dos nifestação cultural mais inventiva que 25 minutos inspirado no programa Alerta
botecos para as calçadas. Uma voz femi- a gente tem no Brasil hoje. Sempre en- Geral, que Alcione comandou na Rede
nina, entretanto, se impõe sobre a baru- xerguei o ritmo como uma possibilidade Globo no final da década de 1970. As ce-
lhada. Ela entoa os versos de Afreketê, para fazer a minha própria poesia. Ter nas foram registradas por uma equipe de
canção lançada em 1987 por Alcione que que ficar escutando o que eu deveria fa- quatro pessoas na casa onde MC Tha e Pita
homenageia Xangô, com uma roupagem zer ou não em cima do palco era extre- moram em Salvador.
nova: o que era um afoxé se tornou um mamente cansativo”, diz ela. No Circo Voador, a artista entra em
funk de 145 bpm (batidas por minuto). Aos 18 anos, a MC deixou Cidade Tira- cena descalça, em um vestido de tricô
Simone Turchi, um homem barbudo de A voz é da paulistana Thais Dayane da dentes para fazer jornalismo em uma preto, o cabelo preso numa trança que
olhos brilhantes, aparentando ter menos Silva, conhecida como MC Tha, que en- universidade privada no Centro de São beira o chão. Ao fim da primeira música,
que seus 50 anos, explica como foi pre- saia no Circo Voador a apresentação que Paulo. Afastou-se dos bailes. No primeiro pede justiça às comunidades que tiveram
parado o segundo prato, uma lasanha: fará à meia-noite. A cantora de 29 anos ano da faculdade, conheceu o paraense seus terreiros destruídos. “Que Xangô es-
“Há quatro dias um grupo de seis pes- tem chamado a atenção por levar a cultu- Jaloo, cantor e produtor musical indie teja presente nos nossos caminhos”, diz.
soas fez um ragu de carne suína, todo de ra afrorreligiosa às letras do funk. Na capa que causava frisson com seu disco de es- A penúltima música do show é Comigo
Cinta Senese, uma raça de porcos aqui do seu primeiro disco, Rito de Passá, lan- treia. Com ele, gravou sua primeira mú- Ninguém Pode. Na letra, MC Tha se des-
do local. Ontem à noite, outra equipe de çado em 2019, ela aparece como uma an- sica em estúdio, Olha Quem Chegou, de creve como a guerreira que canta/Encanta
dez pessoas fez 270 litros de molho be- cestral futurista: segura um par de velas e 2014. Mas a cantora diz que só encontrou e vence a guerra/Eu sou o passo mais largo/
chamel, com farinha, manteiga, leite e traja véu vermelho, boné de lado e óculos sua identidade como funkeira quatro anos Que já andou nessa terra. O funk foi lan-
noz-moscada. Terminaram por volta das de sol espelhados tipo Juliet, muito usados depois, quando gravou Valente, um funk çado há três anos, e desde então ela en-
três da madrugada. Hoje de manhã, nos bailes de favela. sobre a coragem. controu novas maneiras de se definir. Há
doze mulheres começaram a trabalhar Em junho, MC Tha lançou um EP (ex- Hoje, as chances de escutar as grava- algumas semanas, decidiu que seu próxi-
com o ragu, o molho bechamel, 20 kg de tended play, formato de gravação maior ções de MC Tha nos bailes de favela são mo álbum vai se chamar Santha.
queijo parmesão ralado e quatrocentas que o single e menor que o álbum) com muito pequenas. Em algumas dessas fes- Antes de deixar o palco, perto das
folhas de massa. Fizeram 130 travessas cinco músicas da discografia de Alcione. tas, o ritmo já acelerou até as 190 bpm. duas da madrugada, ela puxa uma cantiga
de lasanha, cada uma com 18 porções.” Todas referenciam as religiões de matriz O trabalho dela tampouco segue a fórmu- que reverencia Exu nos terreiros. É meia-
africana, mas acabaram se perdendo en- la das músicas que fazem sucesso no país. noite em ponto e o galo cantou/Cantou

N
o dia seguinte, poucas horas antes tre os sucessos românticos da sambista A paulistana, porém, conquistou pra anunciar que Tiriri chegou, cantaro-
da corrida, os cavalos concorrentes maranhense. No abafado camarim do
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS uma base de fãs aguerrida, formada ma- la. O chão do Circo Voador treme com
são levados às igrejas das contrade Circo Voador, descansando em um sofá, joritariamente por jovens que acompa- a batida grave do funk. J
para serem abençoados. Em seguida, a MC lembra que ouvia São Jorge quando nham a nova MPB, pela comunidade Thallys Braga
grupos selecionados entre jovens das con- começou a frequentar o terreiro de um- LGBTQIA+ e por adeptos das religiões de
trade, vestindo trajes medievais, partici- banda, em 2016, porém não reconhecia matriz africana. Em março, eles se es-
pam de uma lenta procissão ao redor da a voz da intérprete. “Um dia, pesquisei a premeram no gramado do Autódromo UM PAÍS VERMELHO
Piazza del Campo, agitando bandeiras e letra da música no YouTube e dei de cara de Interlagos para assistir ao primeiro A artista que busca
tocando tambores, num calor implacável com o disco da Alcione”, conta. show de MC Tha no Lollapalooza Brasil. a cor do pau-brasil
de 38ºC. Ao redor deles, os espectadores Acomodado no mesmo sofá está o pro- “Quando lancei o clipe de Rito de Passá,

N
pagantes lotam as arquibancadas que cir- dutor musical Mahal Pita, que colaborou a maioria das visualizações veio de pes- o primeiro dia de julho, a artista
cundam a pista. Outros acorrem ao cen- com a cantora na produção do EP. Os dois soas de terreiro que descobriram o vídeo Bel Falleiros curtia o final de uma
tro da praça para assistir de graça. atravessaram 2021 isolados em Salvador, em grupos para umbandistas nas redes”, temporada em São Paulo, antes de
Há uma última reviravolta na trama pesquisando as origens do funk. Ao anali- diz. “Na época em que entrei no terrei- retornar a Nova York, onde mora atual-
antes da corrida: as posições iniciais são sar músicas de terreiro, Pita identificou ro, quase não tinha gente jovem. Agora mente. Não, ela não foi ao boteco jogar
decididas, mais uma vez, por sorteio. Um que a base rítmica é constituída pelos sons a galera está lá, posta até stories no Ins- conversa fora com os amigos. Decidiu
silêncio tenso cai sobre a multidão de mais de atabaque e agogô, este responsável pela tagram dentro da gira.” se concentrar no trabalho que iria apre-
de 20 mil pessoas quando os lugares são clave aguda – o mesmo som que está na sentar na 37ª edição do Panorama da
anunciados, pois os cavalos que largam no gênese do funk. “Se você reparar, é o mes- Arte Brasileira, no Museu de Arte Mo-
interior da pista têm mais probabilidade mo tum tá tá tum tum tá”, diz o produtor. derna de São Paulo (MAM-SP).
de vencer. Com tanta coisa em jogo, vá- A música que abre o EP é Agolonã. De Por volta das cinco da tarde, Fallei-
rios concorrentes queimam a largada. origem iorubá, a palavra significa “com ros, paulistana de 39 anos, estava senta-
Quando por fim os cavalos partem, Valdi- licença”. Também é uma saudação a da em uma banqueta alta, pintando
montone fica para trás – o jóquei pensou, Exu, o senhor dos caminhos. A versão de com uma tinta extraída do pau-brasil
erroneamente, que era mais uma largada MC Tha e Pita tem ares místicos: por dois um tecido de 2,77 metros de altura por
falsa. A contrada do Drago (Dragão) ven- minutos e meio, a voz aveludada da can- 7,13 metros de largura. A última medi-
ce o Palio de julho de 2022. tora cresce junto a um instrumental mis- da também faz referência ao pau-brasil:
Apesar disso, Turchi está relaxado. terioso, até desembocar em um funk. o maior exemplar conhecido da árvore,
O Drago não é um inimigo. O cavalo descoberto na cidade de Itamaraju, no

T
da contrada de Valdimontone, novato na hais Dayane da Silva nasceu e cres- Sul da Bahia, em 2020, tinha um perí-
corrida, tinha uma chance mínima de ceu na Cidade Tiradentes, distrito da metro de 7,13 metros.
vencer. Para Turchi, o fato de todos da Zona Leste que tem a menor expec- Vermelho como Brasil – o título da
contrada estarem reunidos é tão impor- tativa de vida da capital paulista. Na ado- obra da artista – nasceu em uma sala de
tante quanto a corrida. A vida ali, diz lescência, quando via seu bairro aparecer janelões e porta de vidro, espaço cedido
ele, é sempre rica em “amor, paixão, no noticiário, quase sempre era nas pági- a Falleiros pela estilista Flavia Aranha,
vinho, música e boas risadas”. Depois nas policiais. E os bailes funks, que ale- que ali ministra oficinas de tingimento
da Covid, mais do que nunca. J gravam os jovens da região, não entravam natural. Na mesma casa, situada na Vila
Damian Platt, com tradução nos cadernos de cultura. Aos 15 anos, MC Madalena, bairro boêmio de São Paulo,
de Isa Mara Lando Tha foi a primeira garota a se apresentar Aranha mantém sua loja e um jardim

piauí_agosto 15
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com costelas-de-adão e uma jabutica- tro. À mistura, depois, são acrescen- O percurso é equivalente a cruzar várias pado pelo cinema norte-americano, ele
beira de mais de 6 metros de altura. tadas substâncias que a deixam mais cartografias sociais, como se o Rio fosse teve a ousadia e a coragem de se dedicar
Naquela tarde de julho, a artista de- alcalina ou mais ácida, dependendo do um mosaico de cidades, que vão se tor- à exibição de filmes brasileiros, e vem
lineava, com gestos pacientes, mas vigo- tom que se queira alcançar. “No caso da nando cada vez mais áridas à medida que assim formando um novo público.
rosos, troncos e raízes sobre o tecido. Bel, colocamos pedra-ume para fixação avançamos rumo ao subúrbio carioca. O Ponto Cine tem dezesseis anos e
Conforme a tinta vermelha, em tom da cor no tecido e também para atingir Eu tinha muita curiosidade de co- sobreviveu graças à força do seu ideali-
bordô suave, preenchia a superfície, um tom mais escuro. Essa tonalidade é nhecer o Ponto Cine, a única sala de zador, de sua equipe, dos apoiadores e
uma espécie de floresta ia se formando. viva, muda conforme o tempo”, explica cinema de rua de Guadalupe, um bairro do público. Em 2018, sua programação
Ferreira. A mistura também leva goma imenso, com cerca de 48 mil habitantes, de filmes, debates e oficinas teve que ser

O
interesse de Bel Falleiros pelo pau- de guar, uma espécie de fibra, que tor- marcado pela pobreza e a violência. No interrompida por seis meses, por causa
brasil surgiu em 2018, quando ela na o líquido mais espesso. Brasil, estima-se que 92% dos municí- do colapso social que se iniciou com o
morava em Sunset Park, bairro ao O encontro da serragem de pau-bra- pios não possuem cinema e, como todo golpe de 2016 e a deposição de Dilma
Sul do Brooklyn, em Nova York. Vez por sil, de um alaranjado terroso, com a mundo sabe, as periferias das capitais são Rousseff. Depois, veio a pandemia, e o
outra, ela passava na frente de uma loji- água fervente faz lembrar uma queima desprovidas de atrações culturais, que se Ponto Cine precisou fechar as portas.
nha de artigos religiosos. Na vitrine, em de fogos. Ao primeiro contato, a madei- concentram nas áreas socialmente privi- Há meses, Medeiros luta para obter
meio a imagens de santos católicos e ori- ra já libera seus pigmentos. “Daqui uns legiadas. O Ponto Cine é também uma um financiamento e reabrir o espaço.
xás, saquinhos com pedaços de madeira vintes anos, as cores que são fruto desse das poucas salas abertas para a rua no Procurou a prefeitura, e nada. Procurou
chamaram sua atenção. A etiqueta bran- tingimento não vão mais existir. O pau- país. Com a prevalência do cinema de entidades culturais, e nada. É terrível ver
ca informava, em letra cursiva, o que os brasil está em extinção. O plantio não é shopping, os cinemas de rua foram dan- uma sala que se tornou uma referência
sacos continham: Palo de Brasil. fácil de realizar”, diz Aranha. do lugar a estacionamentos, igrejas, far- real e simbólica para toda uma região e
Falleiros achou estranho encontrar As evocações históricas dessa árvore mácias ou supermercados. mesmo para o cinema brasileiro ser tra-
nos Estados Unidos fragmentos da árvo- na arte de Bel Falleiros são claras: sua Como se não bastassem essas qualida- tada com tamanha desconsideração.
re que deu nome a seu país. Um dia, extração corresponde ao primeiro ciclo des, o Ponto Cine tem ainda uma distin-

E
entrou no estabelecimento, comprou econômico do Brasil Colônia, início da ção importante: ali só são exibidos filmes m 2010, retornei ao Ponto Cine
alguns saquinhos e só depois arriscou devastação de florestas e do emprego de brasileiros, de todos os gêneros e estilos. com meu primeiro filme de ficção,
perguntar sobre a procedência do produ- mão de obra escravizada. O vermelho E esse foi outro dos motivos que me leva- Transeunte. Novamente, estáva-
to. “A dona da loja ficou meio ressabia- na obra remete a essa história de desres- ram até lá: eu iria debater com o público mos ali, Adailton e eu, debatendo com o
da”, conta. A origem era desconhecida, peito – não só aos recursos naturais. o meu segundo longa-metragem, Interva- público. Uma senhora de uns 70 anos,
o que tornava duvidosa a legalidade do lo Clandestino, um ensaio poético sobre acompanhada do marido, levantou o

O
comércio daquelas lascas. gesto final antes da exibição da pin- o imaginário político por meio das refle- braço e disse: “Gostei muito do seu fil-
No seu ateliê nova-iorquino, Falleiros tura gigante não se deu no ateliê, xões de cidadãos comuns, no contexto da me, mas não entendi bem a história.”
ferveu o Palo de Brasil em água. O resul- nem veio da artista. Ocorreu na eleição de Lula em 2002. Foi filmado em Então lhe perguntei: “Mas o que a senho-
tado foi uma tinta rubra. Ao longo da Sala Paulo Figueiredo do MAM, em 20 de boa parte nas periferias do Rio de Janeiro. ra entendeu?” E ela me contou a história
secagem, a cor foi mudando, mas per- julho, quinze dias depois de Falleiros vol- O convite do Ponto Cine me gerou cer- do filme de maneira precisa, tal como eu
maneceu no espectro do vermelho. Na- tar aos Estados Unidos. E foi obra de sua ta apreensão. Será que haveria espectado- não tinha escutado ainda. Até hoje me
quele mesmo ano, Jair Bolsonaro fazia irmã, a arquiteta Beatriz Falleiros, de 35 res interessados no filme de um jovem lembro de seu nome, Maria, e de suas pa-
sua campanha eleitoral proclamando anos, que acompanhou a montagem do
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS diretor (eu estava com 28 anos), apresen- lavras ao dizer que estava emocionada
que a bandeira nacional “jamais será trabalho, suspenso por cabos de aço fixa- tado em horário matinal, num sábado? porque, pela primeira vez, tinha visto
vermelha”. Falleiros decidiu pegar a dos no alto da laje do museu. No dia 23 Desembarquei do táxi em uma rua um filme numa sala de cinema.
contramão, e investiu na cor abominada de julho, ocorreu a abertura da 37ª edição do com numerosos vendedores ambulantes Quatro anos mais tarde, fui mais
pelo então candidato à Presidência. Panorama da Arte Brasileira, intitulada na calçada. Dentro de uma pequena uma vez ao Ponto Cine, para apresentar
O primeiro passo foi procurar pau- Sob as Cinzas, a Brasa e que tem curado- galeria estava o local que eu procurava. meu sétimo longa, Campo de Jogo, e
brasil de procedência certificada. Foi ria de Cauê Alves, Claudinei Roberto, Como a pessoa que me recepcionou no reencontrei Maria. Ela me disse que se
assim que a artista encontrou Flavia Cristiana Tejo e Vanessa Davidson. cinema me disse que ainda faltavam tornara espectadora assídua do Ponto
Aranha na internet. Para tingir algumas Vermelho como Brasil lembra um trinta minutos para acabar a sessão e co- Cine, mas agora ia sozinha, pois seu
de suas peças com serragem de pau- enorme biombo de formato cilíndrico. meçarmos o debate, decidi tomar um marido tinha morrido.
brasil, a estilista utiliza resíduos de uma Com diâmetro de 2,77 metros, tem café em uma padaria ao lado. Conto um pouco de minha história
fábrica no Espírito Santo que faz arcos uma abertura na parte da frente, permi- Ao sair, reparei no letreiro da bilheteria com o Ponto Cine porque esse é um
de violino. Adriano Ferreira, assisten- tindo que os visitantes “entrem” na do cinema informando o preço do ingres- local que muita gente não conhece e
te de tingimento de Aranha, explica que, obra. A ideia está associada a um episó- so: 4 reais. Na Zona Sul, a entrada para o que está em constante risco de desapa-
para ser usada nos tecidos da estilista, a dio afetivo que Falleiros viveu na infân- mesmo filme custava mais que o dobro recer. As ameaças são muitas e vêm
serragem é fervida em água de pH neu- cia com sua avó, que era bióloga. na época. Bem em frente ao cinema, um também da guerra cultural travada pelo
Passeando pelo Parque da Aclimação, vendedor ambulante vendia DVDs de fil- governo de extrema direita que des-
em São Paulo, a menina avistou um tron- mes norte-americanos, expostos no chão. montou importantes políticas públicas
co seccionado. “Minha avó me disse que o Ele gritava: “Cinco reais, qualquer filme implantadas nas últimas décadas. Mas
exterior, mais duro, é a parte velha da árvo- por 5 reais! Olha a promoção!” Adailton Medeiros é um bravo guerreiro.
re e protege a parte interna, viva. Quando Na padaria, pedi o café e fiquei ob- Ele diz: “A essa altura não vou desistir,
fica oca, a árvore morre”, recorda. A artista servando a rua em volta. Foi quando não sei fazer outra coisa, essa é a minha
diz que não pensou nisso enquanto fazia notei o título do meu filme estampado paixão. Acredito que o cinema alimenta
sua obra no MAM, porém gostou da associa- na fachada da pequena galeria. Aquilo a alma das pessoas, fortalece a consciên-
ção: “As pessoas no interior da instalação me deixou emocionado. cia e a memória de um país.”
são uma forma de celebrar a vida.” J O Ponto Cine está não apenas na mi-

V
Tatiane de Assis oltei ao cinema. Para minha alegria, nha memória, mas na memória de muitos
a sala de cerca de oitenta lugares realizadores e profissionais do cinema bra-
estava lotada. Mediado por Adail- sileiro que lá estiveram. E faz parte, prin-
UMA JOIA EM GUADALUPE ton Medeiros, idealizador, produtor e cipalmente, da memória coletiva das
Na periferia do Rio, um cinema curador do Ponto Cine, o debate, muito pessoas de Guadalupe. Num país como o
só de filmes brasileiros intenso e fértil, durou quase duas horas. nosso, numa cidade como o Rio de Janei-
Após a conversa, Medeiros me contou ro, e nesse grave momento da história bra-

P
ANDRÉS SANDOVAL_2022

or volta de 9h30 de um sábado en- sobre sua luta para criar uma sala de pre- sileira, um lugar assim é uma preciosidade
solarado de março de 2006 tomei ço popular. Não à toa, o slogan do Ponto que todos nós, fazedores de cinema e de
um táxi na Zona Sul do Rio de Ja- Cine é “Arroz, Feijão e Cinema”. A garra cultura, temos a responsabilidade de man-
neiro e fui ao bairro de Guadalupe, na e a criatividade de Medeiros são admirá- ter vivo, aberto e em pleno movimento.J
Zona Norte, conhecer o Ponto Cine. veis. Num mercado massivamente ocu- Eryk Rocha

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questões do extremismo

A JOVEM PAN E O GOLPE


Como a emissora tornou-se o braço mais estridente do bolsonarismo

ANA CLARA COSTA

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S
oprava uma leve brisa noturna tados Unidos, gostou do que ouviu e per- Jovem Pan, dona da maior audiência no antipetismo virulento, como demonstrou
no Rio de Janeiro quando Tu- guntou por que a Fox News, onde ele segmento de notícias em São Paulo, pela a reportagem A nova sinfonia paulistana,
cker Carlson, a estrela mais relu- exerce uma enorme influência na radica- tevê a cabo Jovem Pan, hoje o segundo na piauí_106, julho de 2015, e terminou
zente da televisão a cabo dos lização do conservadorismo norte- canal de notícias mais popular na tevê abraçando a extrema direita bolsonarista.
Estados Unidos, deixou seu apar- americano, não estava instalada no Brasil paga, e pelo seu canal no YouTube, onde

O
tamento no hotel Fasano, no Arpoador, para atender aos telespectadores bolsona- tem mais de 100 milhões de visualiza- estudo realizado pela Novelo Data
em direção ao aeroporto. Naquela noite ristas. “A CNN está aqui”, disse. “O senhor ções mensais. É o único programa de de- mostra que, no começo do governo,
de junho, voou para Brasília onde, no dia teve mais de 50 milhões de votos nas elei- bate político na lista dos mais vistos que Os Pingos nos Is era um programa
seguinte, entrevistaria pela primeira vez o ções. A CNN é um ator político aqui, assim não é exibido pela GloboNews, a maior moderadamente favorável a Bolsonaro.
presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do como a Globo. Mas não há canal de tevê tevê de notícias a cabo do país. É ancorado Às vezes, até criticava o governo ou o go-
Planalto. Carlson aceitou o convite articu- para os seus eleitores. Por quê?” pelo jornalista Vitor Brown, com comen- vernante. Em outubro de 2019, por exem-
lado pelo assessor presidencial Filipe Mar- Bolsonaro começou adulando o apre- tários de uma ex-jogadora de vôlei, Ana plo, ao comentar um tuíte do presidente
tins, pupilo do falecido Olavo de Carvalho sentador. “Se eu pudesse lançar um ape- Paula Henkel, e outros três jornalistas – associando o Supremo Tribunal Federal
e fã de Donald Trump e de seu estrategista lo a você, eu poderia apenas dizer que José Maria Trindade, Guilherme Fiuza e (STF) a uma imagem de hienas, Augusto
de campanha, Steve Bannon. Na quarta- você seria muito bem-vindo. Você seria a estrela do programa, Augusto Nunes. Nunes afirmou que se tratava de “mole-
feira, 29 de junho de 2022, dia da entrevis- um excelente contraponto aos outros Não há contraditório. Todos os comenta- cagem” e “brincadeira perigosa”, e aler-
ta, o assessor estava radiante. O presidente meios de comunicação.” Em seguida, ristas pensam a mesma coisa. tou que “não se brinca com esse tipo de
estava ansioso. E o jornalista estava cansa- disse que “há muito poucos veículos sem A pedido da piauí, a Novelo Data, uma declaração”. A essa altura, a Corte era
do. Durante a viagem, continuara apre- viés no Brasil. Então precisamos de consultoria de análise de dados, fez bastante mencionada no programa, mas
sentando o Tucker Carlson Tonight, seu mais”, e fez uma recomendação: “Há um uma radiografia de Os Pingos nos Is. Exa- não ocupava o centro da pauta. Fora cita-
programa diário na Fox News, a partir de programa, no canal Jovem Pan, chama- minou 1 080 episódios, num total de da 2 532 vezes ao longo de 343 episódios
um microestúdio montado no hotel, ten- do Os Pingos nos Is, e eles são excelentes. 1 994 horas de programação. O material até a metade de 2020. Também houve
do a Praia de Ipanema como cenário. Eles realmente mostram as coisas boas foi ao ar entre 1 de janeiro de 2019, data críticas amenas à demissão de ministros e
Em mais de uma hora de entrevista, que acontecem no país.” Tucker Carlson, em que Bolsonaro tomou posse, e 30 de às suspeitas de interferência do presidente
da qual 29 minutos foram ao ar, Bolso- cujo programa tem a maior audiência da junho passado, quando completou três na Polícia Federal.
naro sentiu-se ao lado de um aliado. tevê a cabo norte-americana, ouviu o elo- anos e meio de mandato. Nesse período Em 2020, com a chegada da pande-
Criticou a obrigatoriedade da vacina, mi- gio sem esboçar qualquer reação. de 42 meses, Os Pingos nos Is cresceu mia e a radicalização do discurso de Bol-
nimizou o racismo no Brasil, denunciou Os Pingos nos Is também é um sucesso. muito em audiência. Sextuplicou as visua- sonaro contra as medidas sanitárias, o
que as pesquisas eleitorais são manipula- Criado em 2014 sob o comando do jorna- lizações no YouTube e triplicou o número tom começou a subir nos programas da
das. Carlson, cujo programa, nas palavras lista Reinaldo Azevedo, que apresentou a de inscritos. Mais do que isso, fez uma Jovem Pan – até que chegou o dia 24 de
do New York Times, “talvez seja o mais atração durante três anos, é um programa trajetória exemplar no processo de radica- abril. Nessa data, o ex-juiz Sergio Moro
racista da história da tevê a cabo” dos Es- transmitido ao mesmo tempo pela rádio lização política, que começou com um deixou o Ministério da Justiça, acusando

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VITO QUINTANS_2022
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Tutinha, dono da Jovem Pan, que
considera sua emissora “de centro”:
“Se o público amanhã mudar de lado,
eu vou mudar com ele”, diz

Bolsonaro de interferir na Polícia Federal quem atenderia a audiência que ainda era adulterar o voto com qualquer sistema” e cia ao período em que participou da defe-
para proteger a família. O programa en- favorável a ele? Assim, na medida em que que estava “intrigado com a resistência à sa de Cesare Battisti, o ex-integrante de
tão entrou em curto-circuito. “O governo foi constatando que a audiência abando- tentativa de melhorar o sistema de vota- um grupo armado na Itália, condenado à
que assumiu em 1º de janeiro de 2019, nara Moro e mandara às favas seus pruri- ção” por parte do STF. “Não dá para enten- prisão perpétua por terrorismo. Alexandre
sob o olhar esperançoso de milhões de dos anticorrupção, continuando fiel ao der por que eles são contra”, disse. “Isso é de Moraes, que comanda o inquérito que
brasileiros que apostam pela vitória no presidente, Os Pingos nos Is mergulhou muito estranho. E tudo que é estranho investiga as milícias digitais de Bolsonaro,
combate contra a corrupção, esse gover- de vez no bolsonarismo – e o fez com precisa ser esclarecido.” Até então, o Tri- é “um homem despreparado”, “um vilão”
no terminou hoje”, decretou Nunes. Era uma voracidade ideológica poucas vezes bunal Superior Eleitoral (TSE) não era o que adota “métodos mafiosos”.
um sinal de que o programa tomaria um vista na mídia brasileira. centro da pauta do programa. Entre o iní- Quem assistiu ao programa nesses três
rumo definitivamente crítico ao governo. O STF tornou-se o maior alvo do pro- cio do mandato e a metade de 2020, teve anos e meio pouco ouviu falar de assuntos
Aconteceu o contrário. “Quando o grama, sobretudo depois que Bolsonaro apenas 244 menções em 124 episódios. como rachadinha, o esquema de corrup-
Moro saiu, tínhamos a certeza de que ampliou a frequência e a virulência dos Com a proximidade de uma eleição ção da família Bolsonaro que veio a públi-
o governo tinha acabado”, diz um profis- ataques à Corte, a ponto de ameaçar o presidencial em que Lula lidera em todas co em dezembro de 2018. Foram apenas
sional que integra a produção da emissora ministro Alexandre de Moraes e lançar as pesquisas e todos os cenários, ficou cla- 144 menções entre janeiro de 2019 e ju-
e falou à piauí sob condição de anonima- o grito do “Acabou, porra!”. Quando fi- ro que o ataque à integridade das urnas nho deste ano. O orçamento secreto, ins-
to. Naquela altura, Tutinha teve a mesma cou claro que o STF era – como é até hoje eletrônicas era o centro da estratégia gol- trumento que o presidente criou para
certeza e chegou a decretar o fim do – o obstáculo mais sólido aos planos gol- pista de Bolsonaro – e o programa virou comprar apoio no Congresso e cuja exis-
apoio ao bolsonarismo, anunciando que pistas de Bolsonaro, Os Pingos nos Is as- sua câmara de eco. As menções ao TSE tência foi denunciada pelo jornal O Esta-
o novo tom seria dado pelo jornalista José sumiu a trincheira. Dessa época em escalaram para quase 2 mil e apareceram do de S. Paulo em maio do ano passado,
Maria Trindade em seu comentário em diante, até o dia 30 de junho passado, a em 279 episódios. O tribunal passou a ser apareceu apenas quarenta vezes. A infla-
Os Pingos nos Is. Mas antes que a ordem Corte ganhou perto de 5 mil menções, tratado como “autoritário”, as urnas torna- ção, que atingiu seu ponto mais alto desde
fosse dada, o empresário foi bombardea- um crescimento de quase 100%, e apa- ram-se “questionáveis” e, em que pese o Plano Real e corrói os planos de reelei-
do por informações de que a audiência receu em 486 episódios. O STF, que antes Bolsonaro jamais ter apresentado um fia- ção de Bolsonaro, está entre os termos
não havia desembarcado. “Nos comentá- não devia ser desrespeitado, passou a ser po de prova contra a votação eletrônica, mais mencionados do programa. Foram
rios, víamos que a audiência seguia com visto como “casa da sogra”, “ameaça ao os comentaristas consideram que as frau- 1 866 vezes, mas que ninguém se engane:
o Bolsonaro, não com o Moro,” relatou o regime democrático” e “o mais feroz des são uma hipótese plausível. a inflação que galvaniza a atenção do
funcionário, que compilava as críticas e partido de oposição ao Bolsonaro”. O ministro Edson Fachin, o presidente Pingos nos Is é a da Argentina, país men-
xingamentos que se amontoavam no ca- Em julho de 2021, quando o presiden- do TSE que tem sido incansável na defesa cionado mais de 2 mil vezes no programa.
nal do programa no YouTube. Outra ob- te fez uma live prometendo revelar provas da urna eletrônica, é descrito como “ad- O presidente da Argentina, Alberto Fer-
servação sensibilizou o bolso de Tutinha: de fraude nas urnas, Nunes disse que não vogado do MST”, o que é falso. O ministro nández, é de esquerda e amigo de Lula.
se a imprensa estava majoritariamente esperava “nenhuma irregularidade docu- Luís Roberto Barroso, ex-presidente do É comum que o programa mude de
contra o presidente naquele momento, mentada”, mas afirmou que era “fácil TSE, é o “advogado do Battisti”, em referên- assunto quando o tema principal é preju-

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ANGELI
suas palavras “decorreram do calor do ser o mesmo consumidor de outro canal,
momento”, mas, a essa altura, o canal mas estima-se que o “universo Jovem Pan”
do Pingos nos Is já tinha cumprido seu atraia atualmente cerca de 50 milhões de
objetivo: capturara 90 mil novos inscritos pessoas, entre telespectadores e ouvintes,
no YouTube e seus vídeos alcançaram a a cada mês. Com esse patrimônio digi-
espetacular marca de 35 milhões de vi- tal, a Jovem Pan transformou-se, nos últi-
sualizações em apenas uma semana. De mos quatro anos, no polo de desinformação
todos os canais alinhados com o governo, mais poderoso do bolsonarismo.
Os Pingos nos Is só ganhou menos assi-

N
naturas no YouTube do que o canal de a noite de 20 de junho passado, o
Gabriel Monteiro (PL-RJ), o vereador bolso- empresário paulistano Antônio Au-
narista processado por assédio sexual. gusto Amaral de Carvalho Filho,
de 66 anos, conhecido como Tutinha,

C
om desempenho tão positivo, Os resolveu celebrar os 80 anos do grupo Jo-
Pingos nos Is tornou-se o carro- vem Pan em grande estilo. Afinal, a famí-
chefe do investimento mais ambi- lia Carvalho voltara a ter uma televisão
dicial à imagem de Bolsonaro, criando A tese não tem fundamento constitucio- cioso da Jovem Pan: virar uma emissora em seu patrimônio, pela primeira vez em
uma cortina de fumaça. A análise da No- nal, como já declararam os ministros do de televisão no sistema a cabo. O projeto, três décadas, desde que, afundada em dí-
velo Data mostra que, no dia da prisão de STF, mas é assunto caro aos extremistas que custou 55 milhões de reais, transfor- vidas, teve que vender a TV Record ao
Fabrício Queiroz, o miliciano da rachadi- que pregam “intervenção militar com mou-se em realidade em outubro do ano bispo Edir Macedo, da Igreja Universal
nha, o termo mais usado pelos comenta- Bolsonaro”. Examinando-se as menções passado. Desde então, a Jovem Pan tem do Reino de Deus. Para festejar a boa au-
ristas foi “STF”. No dia em que a inflação à tese do “poder moderador” no Pingos programação de 24 horas na tevê a cabo, diência e tentar ampliar seu faturamento
bateu recorde, o debate principal envolvia nos Is e como ela trafega nos canais da com programas de notícias, opinião, en- publicitário, organizou um evento para
os termos “Bolsonaro”, “Lula” e “STF”. No extrema direita, constata-se que o pro- tretenimento e comentários esportivos. apenas sessenta casais e deu uma orienta-
dia da prisão de Milton Ribeiro, o ex-mi- grama não é sempre pautado pelos bol- Os Pingos nos Is é o único, entre os pro- ção expressa ao seu diretor de marketing,
nistro da Educação suspeito de montar sonaristas, mas também os pauta. gramas políticos, que não tem contradi- Marcelo Camargo: só convidar líderes de
um balcão de negócios no Ministério da Até março passado, os novos vídeos tório – todos pensam a mesma coisa, empresas anunciantes, de preferência os
Educação, seu nome foi apenas o quarto defendendo o papel de árbitro das Forças todos defendem a pauta bolsonarista, to- presidentes. Nada de diretores menores.
termo mais mencionado no programa, Armadas tinham 411 mil visualizações. dos aplaudem a direita radical. No Shopping Morumbi, Tutinha man-
enquanto “Bolsonaro”, “Lula” e “STF” do- Em abril, quando Bolsonaro deu o indul- Os demais programas trazem uma voz dou alugar o salão que abrigava a experiên-
minaram o ranking de menções. to ao deputado Daniel Silveira, o símbolo discordante para dar um colorido ao de- cia imersiva Beyond Van Gogh, na qual
Embora os casos de corrupção tenham da “luta pela liberdade”, entraram doze bate. No 3 em 1, como o próprio nome quarenta projetores cobriam tudo – chão,
se multiplicado no governo – o mais re- novos vídeos no YouTube sobre o assun- diz, três extremistas de direita (Rodrigo teto, paredes – com imagens em 3D dos
cente revelou malas de dinheiro do orça- to. Conseguiram reunir 2,1 milhões de Constantino, Marco Antônio Costa e Jor- quadros mais célebres do pintor holandês.
mento secreto no Maranhão –, o tema foi visualizações – mas apenas dois deles, ge Serrão) duelam com o jornalista Fábio Os convivas jantariam como que dentro
perdendo incidência no programa a par- ambos feitos pela Jovem Pan, atraíram Piperno, o único que não reza pela carti- das obras de Van Gogh. Foi um fracasso.
tir da segunda metade de 2020, depois da quase 2 milhões. Um trazia uma entre-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS lha de Bolsonaro. No Jornal da Manhã, Quase metade dos convidados não apare-
saída de Moro do governo. O ministro vista dada ao programa Jornal da Manhã os bolsonaristas Cristina Graeml e, até ceu. Entre os presidentes de empresas
da Economia, Paulo Guedes, em que pe- pelo jurista Ives Gandra Martins Filho, pouco tempo atrás, Ricardo Salles, ex- anunciantes, José Domingos Alves, da
sem a inflação, o desemprego, os juros e defensor do intervencionismo militar. ministro do Meio Ambiente, contracena- varejista Lojas Cem, e Michel Gaspar,
as cinco ocasiões em que o governo furou O outro era uma reprodução dos trechos vam com a jornalista Amanda Klein, que da recém-criada marca de cosméticos Er-
o teto de gastos, também foi sumindo dos da mesma entrevista no programa Os faz ponderações críticas ao presidente. vik. A TecToy e a Honda Motor Company
comentários. Em compensação, “liberda- Pingos nos Is. Era tudo o que a bolha di- No Morning Show, até recentemente ha- mandaram seus gerentes de marketing.
de” e “liberdade de expressão” assumem gital do bolsonarismo queria ver e ouvir. via um equilíbrio: Adrilles Jorge, aquele O governador paulista, Rodrigo Garcia
uma relevância que não tinham antes. Um estudo encomendado pelo TSE, ao que fez uma saudação nazista ao vivo, e (PSDB), estava lá, mas o prefeito de São Pau-
As menções aumentaram 153%. A mu- qual a piauí teve acesso, reforça que o Zoe Martínez, ambos admiradores de lo, Ricardo Nunes (MDB), não. Tutinha
dança acompanha o discurso de Bolsona- programa é o principal difusor das ver- Bolsonaro, enfrentavam Guga Noblat e ficou furioso. Marcelo Camargo, seu dire-
ro, que foi gradualmente substituindo sões bolsonaristas nas redes. No relatório, Paula Carvalho, que faziam o contrapon- tor de marketing, amanheceu demitido.
“corrupção” por “liberdade”. Os Pingo nos Is é tratado como “mídia de to. Pela paridade de vozes, o Morning Apesar da plateia mixuruca, Tutinha
Cada tema precisa de um líder que o reframe”, expressão que os especialistas Show era visto pela audiência como o não entregou os pontos, simulou contenta-
represente. A “corrupção” era personifica- usam para designar meios digitais que “programa de esquerda”. No final de ju- mento e enalteceu o próprio trabalho. “Eu
da por Moro, apresentado no programa reenquadram narrativas por interesse po- nho, Salles e Jorge deixaram a rádio para peguei a bucha só há oito anos e tenho
Os Pingos nos Is como mestre planetário lítico, sem compromisso com o rigor de concorrer à Câmara dos Deputados. conseguido fazer bonito”, disse, em entre-
do combate à corrupção, em linha com o uma apuração jornalística, mas mantêm Desde maio passado, o canal TV Jovem vista ao repórter da Jovem Pan que cobria
apoio dos lavajatistas a Bolsonaro. No lu- a aparência de jornalismo. O programa, Pan News superou a audiência da CNN o evento para as plataformas do grupo.
gar da “corrupção” e de Moro, entraram diz o estudo, é a principal mídia de refra- Brasil e assumiu o segundo lugar entre os “Tanto que meu pai tem me abraçado e me
“liberdade” e Daniel Silveira (PTB-RJ), de- me da extrema direita no YouTube, com canais de notícia, ficando atrás apenas da dado parabéns.” Seu pai, Antônio Augusto
putado federal de atuação apagada que, ao uma audiência muito superior à do se- líder do segmento, a GloboNews, que per- Amaral de Carvalho, conhecido como
ser preso pelo STF por ameaçar os minis- gundo lugar, a Folha Política. (A esquer- tence ao Grupo Globo. A TV Jovem Pan, Tuta, deixou oficialmente o comando da
tros do Supremo num vídeo publicado na da também tem mídias de reframe. No segundo a medição da Kantar Ibope Me- empresa aos 83 anos, em 2014, quando a
internet, alçou-se ao estrelato da Jovem relatório, aparecem com essa classifica- dia, teve 0.13 de audiência, contra 0.5 da saúde já não lhe permitia levantar-se da
Pan e tornou-se um símbolo da “luta pela ção as tevês 247 e Afiada, uma costela do GloboNews – cada ponto equivale a cerca cama. Hoje, aos 91 anos, alterna períodos
liberdade”. Em Os Pingos nos Is, foi men- finado Conversa Afiada.) de 280 mil domicílios com televisores li- de lucidez com apagões e faz diálise dia-
cionado 1 219 vezes em 185 episódios. Desde que se bolsonarizou, de meados gados nas quinze maiores capitais do país. riamente no Hospital Sírio-Libanês, em
Na grade do programa também en- de 2020 em diante, Os Pingos no Is cres- Com sua entrada no mundo da tevê a São Paulo. A superação da figura paterna
tram temas praticamente fora da agenda ceu. Seu auge aconteceu na primeira cabo em 2021, a Jovem Pan tornou-se um tem sido o alfa e o ômega de Tutinha.
ou com repercussão mínima nos demais quinzena de setembro de 2021, quando o caso único no cenário de mídia do Brasil “Meu pai ficou doente e me convidou
veículos de imprensa, sites ou redes so- presidente convocou seguidores às ruas na porque transmite 100% de suas programa- para ser o presidente da rádio”, contou
ciais. O “poder moderador” é um bom preparação de um autogolpe e, do alto de ções em múltiplas plataformas – no You- Tutinha, em outro evento, realizado an-
exemplo. A expressão – que já apareceu um carro de som na Avenida Paulista, em Tube, na tevê, nas redes sociais e nas tes, em 2017. “Eu falei: meu Deus do
em 73 episódios do programa – é usada São Paulo, disse que não cumpriria mais rádios AM e FM. É difícil avaliar a audiên- céu! O homem só fez sucesso, fez televi-
para definir o papel que os bolsonaristas decisões do ministro Alexandre de Mo- cia em todas essas plataformas, já que são, montou a TV Record, criou os melho-
atribuem às Forças Armadas, o de mo- raes, do STF. Um dia depois, recuou, e es- cada uma usa diferentes métodos de me- res programas de música, fez da Jovem
derar os conflitos entre os poderes civis. creveu uma carta ao ministro dizendo que dição e o consumidor de um canal pode Pan a maior rádio do Brasil. Fui para lá e

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quando eu peguei a rádio, eu falei: nossa, filha Daniela, ouviu-a cantarolando o hit dar uma audiência forte. Falei: pô, por que Em seguida, Tutinha chamou o histo-
preciso achar alguma coisa nova!”, disse Estoy Aquí. De imediato, pegou o CD que não montar uma tevê digital?” riador Marco Antonio Villa, outro que
o empresário, num sotaque típico paulis- a Sony lhe oferecera, escolheu as músicas Roberto Araújo, em outra entrevista, trabalhava na Veja. Comentando noticiá-
tano que terminou eternizado pelo per- e fechou um acordo com a gravadora: complementou: “Essa nova fase começa rio no Jornal da Manhã, Villa chegava
sonagem Dr. Pimpolho, uma sátira do ganharia 1 dólar por CD vendido. O ál- mais ou menos oito anos atrás, quando o cedo, antes das seis da manhã, desfilava
humorista Felipe Xavier inspirada em bum explodiu. Vendeu mais de 1 milhão Tutinha resolve dar um choque no que pela redação no 24º andar do edifício da
Tutinha, que representa o arquétipo do de cópias só no Brasil. Quando Shakira era a Jovem Pan e levar para um outro rádio e se posicionava diante da janela de
chefe rico, grosseiro e explorador. finalmente chegou ao país, ficou hospe- patamar, fazendo um jornalismo mais onde se avistava a ciclofaixa da Avenida
Tanto o pai quanto o filho decidiram dada com a mãe na casa de Tutinha, no opinativo, porque naquela época foi Paulista, instalada na gestão de Fernando
não cursar faculdade para se dedicar à em- Jardim América, em São Paulo. diagnosticado que, ao ir para o meio di- Haddad (PT-SP) como prefeito. “Ele olhava
presa da família, mas as diferenças – de O programa Pânico, criado para a rá- gital, as pessoas buscam compartilhar para a ciclofaixa e falava sozinho, recla-
gestão, de personalidade – entre ambos dio, é outro acerto de Tutinha, que con- outros comentários, opiniões e formas mando e chamando Haddad de ‘Jaimi-
sempre ficaram patentes. De estilo pater- seguiu vendê-lo para a RedeTV!. Ficou de ver a notícia, e não o hard news pelo nho’”, conta um repórter que presenciava
nal, Tuta gostava de sentar-se à mesa dos oito anos em cartaz no canal, com suas hard news.” A expressão em inglês signi- a cena matinal. Jaiminho era um persona-
funcionários e dar longas orientações, ao boas passagens de irreverência e seus pés- fica, no jargão da imprensa, a notícia gem do humorístico mexicano Chaves,
mesmo tempo em que era rígido com ho- simos momentos de um sensacionalismo factual, sem opinião ou análise. Em exibido pelo SBT, que tinha uma bicicleta
rários e dedicação à rádio – “uma genero- grotesco, como quando a apresentadora 2014, portanto, Tutinha havia enxugado mas não a usava. No programa, Villa tor-
sidade severa”, conta um dos jornalistas Sabrina Sato masturbou um porco ao a empresa e instalado as primeiras câme- nou-se uma estrela da direita hidrófoba.
que conviveu com o patriarca. Pagava sa- vivo. Rendeu muito dinheiro. Pouco an- ras nos estúdios de rádio. Faltava escalar “O Villa é louco de pedra. E taí. Ele é um
lários maiores, assinava a carteira e tinha tes do final do contrato com a RedeTV!, o time que faria a audiência bombar. sucesso. Virou artista de novela da Globo.
seus protegidos – entre eles, José Carlos Tutinha comprou uma townhouse, como Começou contratando o jornalista Rei- Não pode mais sair na rua”, festejou Tuti-
Pereira, chefe do jornalismo por mais de são chamadas as casas geminadas, de naldo Azevedo, que mantinha um blog nha, num evento também em 2017, refe-
vinte anos e considerado um “filho adoti- quatro andares, em Nova York. Fica no no site da revista Veja, em que comentava rindo-se às filas que se formavam na porta
vo” do patrão. Ao assumir em 2014, Tuti- Upper East Side, uma das áreas mais notícias e tornou-se um estridente porta- da rádio para tietar Azevedo e Villa, as
nha, com sua cabeça empresarial e seu chiques de Manhattan. Com a valorização voz do antipetismo. Na Jovem Pan, Aze- duas sensações da casa.
faro por dinheiro, escanteou o jornalista do imóvel, associada à desvaloriza- vedo começou como comentarista do “Aí começou a virada da Jovem Pan.
veterano e demitiu todos os medalhões ção brutal do real, a residência de férias Jornal da Manhã e logo ganhou seu pró- Era uma posição política muito arriscada.
mais bem remunerados. Eram outros tem- que saiu por menos de 10 milhões de re- prio programa, Os Pingos nos Is, cujo Várias vezes, em Brasília, eu fui pressiona-
pos. Fez novas contratações, todas tercei- ais hoje vale mais de 50 milhões de reais. nome foi escolhido pela sua mulher. “Foi do”, contou Tutinha. Mas, em 2014, deu-se
rizadas, com salários menores e nenhum uma hecatombe”, relembra um diretor, a grande frustração do empresário: Dilma

Q
direito trabalhista – prática que tem se uando Tutinha assumiu os negócios que já não integra os quadros da empresa. Rousseff foi reeleita, ao contrário do que
disseminado entre veículos de imprensa. do pai, em junho de 2014, o setor “Deu muito certo ali porque foi na veia. indicava o “datapovo” dos membros da So-
“Tutinha estava sempre querendo radiofônico estava em declínio em Era exatamente o que as pessoas queriam ciedade Harmonia de Tênis, o clube da
mostrar para o pai que era capaz, que meio à transformação digital que se apro- consumir”, resumiu o ex-executivo, refe- elite paulistana que Tutinha frequenta. Na
não era só um herdeiro”, afirma um di- fundava no mercado de mídia, mas ainda rindo-se ao viés de direita que passou a noite da vitória petista, Azevedo sugeriu
retor que deixou a Jovem Pan antes da assim a Jovem Pan persistia e faturava na dominar os comentários na rádio. entrevistar o tucano Aécio Neves, derrota-
guinada bolsonarista. Um comentarista casa dos 60 milhões de reais – cinco anos
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
que já não integra mais os quadros da antes, eram 45 milhões. Os custos, contu-
empresa lembra que sua primeira con- do, eram muito altos, e a família, com
versa com Tutinha, logo depois de ser alguma frequência, tinha de aportar di-
contratado, foi sobre “seu Tuta”, embora nheiro para fechar as contas no fim do
não houvesse entre eles intimidade para ano. Ao assumir, Tutinha decidiu dar-se
tratar de assuntos pessoais. “Tudo o que um prazo de três anos para fazer o negócio
eu faço é pelo meu pai, e ele nem liga”, decolar. “Se eu for mal em três anos, tchau.
disse Tutinha, segundo a lembrança do Nova York que me espere porque eu não
comentarista. O filho estava magoa- fico aqui”, disse, em entrevista à própria
do com a indiferença paterna quanto ao Jovem Pan, no dia que em foi oficialmen-
crescimento que ele vinha promovendo te anunciado como sucessor do pai.
na empresa desde que assumira. Tutinha sempre quis fundar uma tevê,
Na década de 1990, Tutinha trans- tal como fizera seu avô, Paulo Machado de
formara a Jovem Pan FM em febre entre Carvalho, que criou a TV Record, emisso-
os jovens, ao tocar na rádio as músicas ra que fez história ao promover os festivais
que viravam hits nas casas noturnas e de música dos anos 1960. Em entrevista à
nas festas. As Sete Melhores da Jovem revista Playboy em 2006, quando tinha 50
Pan embalavam as noites da moçada e anos, confessou seu sonho: “Eu fico ani-
se tornaram um negócio lucrativo, in- mado porque o Roberto Marinho montou
cluindo métodos heterodoxos. Tutinha a Rede Globo com 60 anos. Eu sou uma
foi o primeiro empresário do mercado pessoa ambiciosa.” Há oito anos, quando
musical a institucionalizar o chamado assumiu a Jovem Pan, não tinha capital
“jabá”, valor que as gravadoras pagavam para uma empreitada tão ousada, mas teve
aos radialistas para que executassem as uma ideia durante uma viagem a Nova
músicas de seus artistas – e, com Tuti- York na companhia de Roberto Araújo,
nha, quem passou a cobrar o jabá foi a diretor executivo do grupo. Os dois visita-
própria emissora. Tutinha evitava o ter- ram uma loja de eletrônicos. Em entrevis-
mo. Preferia falar em “projeto de im- ta no ano passado, no lançamento do
plantação de um produto no mercado”. canal Jovem Pan News, Tutinha relem-
Quando a cantora colombiana Shaki- brou: “Vi uma câmera robótica e falei:
ra, em início de carreira, estava planejan- ‘Roberto, olha o tamanho dessa câmera!
do vir ao Brasil para lançar seu primeiro Será que cabe na mala?’ Ele respondeu:
disco, a gravadora Sony cercou Tutinha, ‘Cabe, vamos pôr. Mas se a alfândega pe-
oferecendo o álbum e pedindo que sele- gar, a gente se ferrou!’ Pusemos as câme-
cionasse as músicas de sua preferência. ras nas malas, trouxemos para o Brasil, fui
Mas o empresário não se interessou. Pou- pego na alfândega, paguei – eu sempre
co depois, ao passar pelo quarto de sua pago. Aí coloquei no estúdio e começou a

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estava transformando o Brasil “para me- pessoas, cifra impressionante, acompa-
lhor”. “Vamos ter coragem de mudar esse nharam a transmissão da prisão do ex-
país é agora, senão não muda mais”, disse, presidente Lula, que se entregou aos
na época. Na prática, era um sentimento agentes da Polícia Federal na sede do
mais comercial do que político. Diz um Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e foi
ex-diretor de jornalismo da Jovem Pan, levado de helicóptero até Curitiba, onde
que trabalhou diretamente com Tutinha: passou 580 dias detido. Tutinha estava
“É um cara de uma família conservadora radiante. Teve um rompante de genero-
e tradicional paulistana, que não tem fun- sidade. Deu um bônus de 500 reais a to-
damento nem profundidade para tratar dos que haviam trabalhado na cobertura.
de política, não lê muito sobre o assunto, Os Pingos nos Is, já então apresentado
não gosta de ler nada. Não consegue pres- por Felipe Moura Brasil e com comentá-
tar atenção em nada por mais de alguns rios de Augusto Nunes e José Maria Trin-
minutos. Mas tem um feeling impressio- dade, disparou e tornou-se o programa da
nante para entender o gosto das pessoas.” rádio mais assistindo no YouTube, des-
No processo de radicalização que le- bancando o Jornal da Manhã.
do por uma margem estreita de 3 pontos mas de opinião, sempre contando com o vou a emissora a apoiar inclusive as teses No período eleitoral, Os Pingos no Is
percentuais. Fez os contatos e, vinte dias aval de Reinaldo Azevedo. Contratou os golpistas de Bolsonaro, a Jovem Pan tro- não dava apoio escancarado a Bolsonaro,
depois do segundo turno, o tucano estava jornalistas Carlos Andreazza e Vera Maga- cou de equipe. De todas as estrelas da- mas Tutinha fazia questão de alardear sua
na bancada do Pingos nos Is. Foi recebi- lhães, e o humorista Marcelo Madureira, queles anos iniciais, ninguém mais está preferência. Ao perceber que as chances
do na rádio como se tivesse sido o vitorio- ex-Casseta & Planeta. Os três integravam na rádio: Reinaldo Azevedo trabalha na de o tucano Geraldo Alckmin chegar ao
so na eleição. Tutinha chamou familiares o 3 em 1, um programa de debates. Tuti- BandNews FM, Marco Antonio Villa é segundo turno eram nulas, Tutinha aban-
e amigos para irem ao estúdio conhecer o nha chamava o grupo de dream team pré-candidato a deputado federal pelo donou o PSDB e aderiu a Bolsonaro. À jor-
tucano. Derramou-se em elogios a Aécio, (time dos sonhos). Depois, começou a se Cidadania, Felipe Moura Brasil está no nalista Denise Campos de Toledo, então
detonou Dilma e o PT e, daquele dia em irritar com o fato de que não divergiam de portal UOL, Joice Hasselmann virou depu- comentarista de economia da rádio e
diante, encampou a tese do PSDB de que a forma enérgica, nem resvalando nas bai- tada federal bolsonarista, eleita pelo PSL- hoje na TV Gazeta, pediu que votasse em
eleição fora fraudada, mas nunca compre- xarias que fazem tanto sucesso nas redes SP (depois rompeu com o bolsonarismo), Bolsonaro porque, caso contrário, a rádio
endeu muito bem como as urnas eletrôni- sociais. Nessa época, voltou a recorrer à e o humorista Marcelo Madureira traba- seria fechada pelo PT. “Ele [Bolsonaro] é
cas poderiam ter sido adulteradas. redação da Veja para fazer outra contrata- lha na BandNews. Carlos Andreazza e uma bosta, mas tem que votar. Você está
Os estúdios da rádio tornaram-se en- ção: Augusto Nunes, que começou como Vera Magalhães estão hoje no jornal louca? Haddad não dá. Com Paulo Gue-
tão cadeira cativa de integrantes do Mo- comentarista do Morning Show. O Globo e na CBN. Magalhães também des, o mercado gosta dele. Vai ser bom
vimento Brasil Livre (MBL) e do Vem E queria mais. Sua intenção era con- apresenta o Roda Viva, na TV Cultura. pra caramba!” Em suas redes sociais, um
Pra Rua, que tomariam a frente na mo- tratar Rodrigo Constantino, que chegou A exceção é Rodrigo Constantino, que mês antes da eleição, escreveu: “Dica de
bilização pelo impeachment de Dilma. a ser colunista de economia da Veja, se mudou para os Estados Unidos, mas investimento: compre dólar agora por
Kim Kataguiri, do MBL e hoje deputado mas Azevedo não concordava com a es- continua com fé no Brasil de Bolsonaro. 4,20 e vote em [João] Amoedo. Quando
federal pelo União-SP, era presença fre- colha. “Sou um conservador informado, Participa do 3 em 1, que vai ao ar diaria- Haddad for eleito, venda por 9,48”, suge-
quente na sala de Azevedo, onde troca- não um reacionário babaca”, disse ele,
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS mente à tarde – e fatura alto. Em fevereiro rindo, a um só tempo, que apenas Bolso-
vam ideias até a madrugada e depois na época, para justificar o veto. Na opi- de 2020, no jantar em sua homenagem naro poderia derrotar o PT e, em caso de
esticavam no Café Creme, tradicional nião de Azevedo, havia outros “reacio- oferecido pelo empresário Flávio Rocha, vitória petista, o dólar dispararia.
bar 24 horas próximo à redação. Nas nários babacas” na lista de Tutinha, acionista da Riachuelo e um dos melhores Um dia depois do primeiro turno, Tu-
manifestações, os repórteres da Jovem como o jornalista Felipe Moura Brasil e amigos de Tutinha, Constantino pegou o tinha fez um apelo a seus amigos do Fa-
Pan ficavam nos carros de som do MBL a futura deputada federal Joice Hassel- microfone, falou por uns quinze minutos cebook para que votassem em Bolsonaro,
e do Vem Pra Rua. Villa discursou num mann, ambos também egressos da Veja. e deu seu recado. Disse que precisava de ao compartilhar uma postagem de auto-
deles. “O Villa discursando na Paulista Azevedo chegou a dizer para Tutinha apoio para lutar pelos ideais liberais que ria desconhecida sobre o PT. “É Bolsona-
era surreal, mas o Tutinha achava isso que se os três – Constantino, Moura todos ali defendiam. Lutar contra o “mar- ro ou ditadura petista”, escreveu, antes
fodido, achava que estava prestando um Brasil e Hasselmann – fossem contrata- xismo cultural” era difícil porque todos os de explicar que um golpe comunista
serviço ao país”, diz uma jornalista que dos pela Jovem Pan, ele deixaria a rádio. meios de comunicação estavam “impreg- estava em curso – e tudo estava muito
testemunhou tudo e continua na rádio. As divergências acabaram levando à nados”. Para que pudesse continuar “den- bem detalhado no site do partido. O tex-
Embora orgulhoso dos rumos ideoló- saída de Reinaldo Azevedo. Tutinha recla- tro da grande mídia lutando pelos nossos to citava páginas de um suposto progra-
gicos da rádio, Tutinha interferia pouco mava que o jornalista agia com “soberba” ideais”, ele precisava de ajuda. ma de governo petista em que se falava
no conteúdo. “Era mais diretor artístico e passara a se achar “maior que a rádio”. Ali mesmo, os empresários passaram o em “estatizar a Rede Globo”, “anular as
do que diretor de jornalismo. Ele se preo- Quando o assunto era a Operação Lava chapéu e recolheram doações. Desde en- sentenças do mensalão”, “cassar o man-
cupava com a cor da gravata, o cenário, Jato, Azevedo fazia críticas aos exageros tão, Constantino está na lista dos consul- dato de Jair Bolsonaro”, “dar o calote na
esse tipo de coisa. E com os números, jurídicos do então juiz Sergio Moro, mas tores remunerados do Instituto Liberal, dívida externa” e transformar o Brasil
claro”, conta um ex-subordinado do em- Tutinha considerava tudo um tremendo mantido pelo empresário Salim Mattar, em “fiador” dos “países comunistas da
presário. Quando interferia, era sem su- acerto. As coisas pioraram no dia em que dono da Localiza e ex-secretário de Deses- América Latina”. Em 30 de outubro,
tileza. No processo de impeachment, Marcelo Carvalho, irmão de Tutinha e tatização do governo Bolsonaro. A partir com a eleição decidida, Tutinha inven-
quando o apresentador do Morning Show, diretor comercial da rádio, pediu que Os daí, redobrou sua missão de ser “uma tou que o cantor Caetano Veloso prome-
Edgard Piccoli, criticou uma reportagem Pingos nos Is anunciasse um debate que a arma dentro da grande mídia comunista”, tera deixar o país em caso de vitória de
de capa da revista IstoÉ permeada de mi- rádio estava promovendo entre Jair Bolso- na definição de Edgard Corona, dono das Bolsonaro, e escreveu: “Já vai tarde.”
soginia, na qual se dizia que Dilma estava naro e Villa, mas Azevedo recusou. Em academias Smart Fit, um dos empresários Com o triunfo da extrema direita e
em “surto” com “explosões nervosas”, Tu- maio de 2017, a permanência do jornalista bolsonaristas presentes no jantar. Hoje, Moura Brasil no comando do Pingos nos
tinha ligou para Piccoli quando terminou tornou-se inviável quando a Lava Jato inter- além de participar do 3 em 1, Constantino Is, o programa aproximou-se um pouco
o programa. “Assim não vai dar. Por que ceptou-o em conversas privadas com An- pede patrocínio online. Oferece vários pa- mais do bolsonarismo. Aluno de Olavo
você está falando isso? Sou amigo do drea Neves, a irmã de Aécio que acabara de cotes. O mais barato custa 17,50 reais e dá de Carvalho, o ex-astrólogo que funcio-
dono da revista. Assim vou ter que te ser presa pela Polícia Federal sob suspeita “acesso prioritário em mensagens envia- nou como guia ideológico do bolsona-
mandar embora!”, bradou. (Piccoli dei- de pedir vantagens à JBS em nome do tu- das e aos [seus] vídeos e lives”. O mais caro
rismo até sua morte em 2021, Moura
xou a rádio quatro anos depois. Processa cano. (Andrea Neves ficou um mês presa. sai por 5 705 reais e dá “acesso direto ili-Brasil estabeleceu pontes com a família
a empresa por assédio moral. O caso cor- Acabou absolvida da acusação em 2022.) mitado por telefone e direito a sugerir pau-– o presidente e os filhos. Exibiu a pri-
re em segredo de Justiça no Tribunal Su- Com a saída de Azevedo, a porteira tas”. Constantino tem hoje 376 “patronos”. meira entrevista em vídeo concedida
perior do Trabalho, em Brasília.) abriu-se para a chegada de Rodrigo Cons- por Bolsonaro depois da facada em Juiz

N
Certo de que descobrira o caminho tantino, Moura Brasil e Joice Hassel- o dia 7 de abril de 2018, a audiência de Fora, a menos de um mês do primei-
para o sucesso, Tutinha continuou cha- mann, que se distribuíram entre toda a dos canais da Jovem Pan no YouTu- ro turno. No dia da vitória no segundo
mando outros profissionais para progra- grade da programação. Tutinha dizia que be explodiu. Mais de 3 milhões de turno, foi o único jornalista a transmitir

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diretamente de dentro da casa do futuro diversos tipos de mensagem – incluindo tros para o grupo no YouTube, suas receitas te em Brasília, o empresário saiu deci-
presidente, na Barra da Tijuca, no Rio. discurso de ódio e desinformação, que são com a plataforma engordaram 50%, gra- dido a entrar no ramo da tevê aberta.
Embora estivesse enfrentando as misé- vetados pela plataforma. O tratamento ças ao aumento de 32% em visualizações Apesar de uma audiência digital rele-
rias de um divórcio litigioso de Flávia especial chegou a gerar conflitos internos e 49% em horas assistidas, que levantaram vante, o grosso do público da Jovem Pan
Eluf, com quem fora casado, Tutinha não no YouTube entre os que defendiam a der- cerca de 20 milhões de reais, ajudando o ainda era formado por homens de classe
tinha muitos motivos para reclamar no rubada de canais da Jovem Pan e os que faturamento total do grupo a ultrapassar AB, acima de 60 anos, um contingente
fim de 2018. Bolsonaro havia vencido a achavam que deviam ser mantidos. 100 milhões de reais em 2021. mais conectado à tevê convencional do
eleição, a audiência da Jovem Pan estava A piauí perguntou ao YouTube sobre Uma estratégia bem-sucedida foi a cria- que a plataformas de vídeo como o You-
nas alturas e, em dezembro, o Google, o os critérios de derrubada de canais para ção de “cortes” do Pingos nos Is: são vídeos Tube. Por isso, Tutinha achava que ti-
gigante da tecnologia, trouxe outra boa parceiros como a Jovem Pan. A platafor- curtos com as passagens mais polêmicas nha um público em potencial, mas
notícia: anunciou oficialmente que a Jo- ma negou que a emissora esteja subme- do programa que ganham títulos chama- faltava um canal: tentou o antigo canal
vem Pan estava entre os primeiros veículos tida a regras mais brandas. “Aplicamos tivos. “A gente começou a fazer testes para da MTV, emissora que fez sucesso exibin-
de comunicação do Brasil que receberiam nossas regras (que existem para proteger ver o que funcionava melhor com o algo- do videoclipes musicais nos anos 1990.
financiamento da Google News Initiative, a comunidade contra problemas como ritmo. E os ‘cortes’ deram muito certo em Como o governo comanda as con-
um projeto de apoio à imprensa. A empre- conteúdo nocivo e assédio, entre outros) audiência”, diz uma fonte que participou cessões de tevê aberta, Tutinha obteve
sa de Tutinha levou 300 mil dólares. de forma consistente em toda a platafor- da elaboração da estratégia que aumentou o aval do ministro da Comunicação,
Logo ficaria ainda melhor. ma independentemente de quem seja o a receita sem aumentar os custos. Tutinha Fábio Farias, em maio de 2021, para
criador do conteúdo.” Ainda segundo a costuma dizer que um dia ainda ensinará assumir a nova tevê, caso seus donos

E
m março de 2019, o presidente execu- nota, “violações repetidas ou uma viola- a Globo a fazer tevê com baixo custo de quisessem mesmo vendê-la. Apesar da
tivo da Jovem Pan, Roberto Araújo, foi ção grave podem levar o canal a ser en- produção. Sua operação é enxuta. Tem situação juridicamente complicada do
convidado pelo YouTube para fazer cerrado”. O YouTube disse ainda contar quinhentos funcionários (quase todos ter- canal da MTV, as negociações caminha-
uma apresentação sobre o grupo na sede “com uma combinação de inteligência ceirizados), está focada em audiência em vam bem, cresciam as especulações de
do Google, em Palo Alto, na Califórnia. de máquina, revisores humanos e de- meios baratos (YouTube e redes sociais) e que logo a Jovem Pan viraria tevê, e
Antes da viagem, Araújo e Tutinha fize- núncias de usuários” para identificar os paga salários baixos. O assistente de pro- Tutinha resolveu fazer um comunica-
ram uma descoberta que teria um impac- vídeos em desacordo com as regras. dução do Pingos nos Is, a joia da coroa da do público. No dia 13 de junho, postou
to significativo no caixa da empresa. Em Com a crescente radicalização do dis- emissora, ganha cerca de 2,5 mil reais, e em sua conta no LinkedIn, a rede so-
conversas com os executivos do Google, curso político no Brasil, o YouTube co- não vai para a redação porque não há vale- cial de contatos profissionais, uma nota
eles perceberam que o convite para ir a meçou a tirar do ar vídeos antigos que transporte. Nesse regime, a Jovem Pan cuja íntegra vai a seguir na forma como
Palo Alto decorria do fato de que a Jovem violassem suas diretrizes internas. Desde lucrou 15,7 milhões de reais em 2021, 75% foi originalmente escrita:
Pan havia se transformado num caso o início de 2020, canais de extrema direita a mais do que no ano anterior. Em breve a Jovem Pan que tem uma
mundial de sucesso para o YouTube. Com que propagam desinformação já tiveram historia de 77 anos vai virar TV, se tudo der

C
a exibição de conteúdo durante 21 horas mais de quatrocentos vídeos derrubados – om o governo Bolsonaro, o sonho certo entraremos com uma rede de 45 emis-
por dia, a Jovem Pan havia se tornado a no caso da Jovem Pan, foram cerca de cin- de Tutinha de ter um canal de te- soras abertas+net+Sky+Digital+115
maior fonte de notícias no YouTube Brasil. quenta. A queda, no entanto, tem ocorrido levisão ficou mais viável. Em 2019, radios+rede +internet +rede social+ pan-
De imediato, Tutinha e Araújo enten- bem depois do dano causado. No dia 18 depois de uma audiência com o presiden- flix e mais tudo que conseguir colocar. Um
deram que tinham mais poder de barga- de julho passado, quando Bolsonaro rece-
nha do que imaginavam para negociar os beu o corpo diplomático em Brasília para
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
anúncios publicitários em seus canais no mais uma vez dizer que as urnas eletrôni-
YouTube. Conseguiram o direito de ven- cas são fraudadas, o YouTube finalmente Ministério do Turismo e

der a publicidade em seus vídeos na plata- tirou do ar a live do presidente de um ano Secretaria Especial de Cultura,
Valgroup e Ecofalante apresentam
forma. É uma grande vantagem, já que, atrás, na qual ele repete a afirmação in-
para a maior parte dos canais, quem detém fundada. Na época, a mesma live foi re-
o monopólio da venda é o próprio Google. produzida no canal do Pingos nos Is sobre
Era o começo de um relacionamento pri- o título “LIVE BOMBA de Jair Bolsonaro”.
vilegiado com a gigante da tecnologia. O vídeo ficou no ar até o dia 22 de julho,
Um dos benefícios é que canais da Jovem quando foi finalmente retirado. Tinha
Pan jamais podem ser retirados do ar por 300 mil visualizações. Mas a íntegra de
ação do algoritmo, como acontece com a Os Pingos nos Is daquela data, que contém
maioria dos produtores de conteúdo que a live do presidente, continua no YouTube
violem as diretrizes do YouTube. Em vez com mais de 1,3 milhão de visualizações.
do algoritmo, entra a ação humana. Pri- Uma penalidade mais branda que a
meiro, a área de trust and safety avisa a derrubada do canal são os chamados stri-
equipe encarregada da parceria, que, por kes, nome dado à retirada de um vídeo
sua vez, recorre a um vice-presidente do quando está no ar ou imediatamente de-
Google para decidir se é o caso de derru- pois de sua transmissão no YouTube. Ao
bar o canal. Grandes emissoras de tevê final de três strikes, o canal pode ser proi-
também usufruem o mesmo benefício, bido de subir novos vídeos por um perío-
mas nenhuma delas desafia tanto as dire- do determinado. No caso de Os Pingos
trizes do YouTube. Com esse privilégio, a nos Is, um polo de desinformação sobre a
Jovem Pan sofreu a punição uma única vacina, a pandemia e a credibilidade das
vez: o canal do programa Direto ao Ponto urnas, apenas um vídeo sofreu um strike
foi derrubado, mas por uma razão mais – e porque violara direitos de imagem ao
27.julho a
prosaica. Havia violado direitos autorais. exibir um trecho do programa Roda Viva. 17.agosto
“O laboratório para a Jovem Pan virar “A Jovem Pan se tornou um problema PROGRAMAÇÃO GRATUITA
tevê foi o YouTube, com uma ajuda muito para o YouTube”, diz uma das fontes liga- www.ecofalante.org.br

grande das equipes de parcerias do YouTu- das à empresa que conversou com a piauí.
be”, diz uma das fontes. “Ouvia-se inter- “É uma das dores de cabeça que temos
namente que a Jovem Pan poderia fazer o no momento. Era muito interessante o APRESENTAÇÃO PATROCÍNIO

que quisesse que o canal não cairia, que jornalismo combativo que eles faziam lá
eles tinham tratamento especial. E tinham atrás, com bons colunistas que acabaram
mesmo.” O privilégio abriu um campo de pulando fora por causa da radicalização. APOIO APOIO INSTITUCIONAL

experimentação. Ciente de que seus ca- Hoje é o oposto: não se dá destaque para a
nais não seriam derrubados nem desmo- Jovem Pan nos eventos e eles não são mais
netizados, a Jovem Pan passou a testar chamados.” Embora os tempos sejam ou-
CO-PRODUÇÃO REALIZAÇÃO

piauí_agosto 23
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O
ANGELI
presidente Bolsonaro tem dado duas Coco Bambu e a Gocil, grupo de um
grandes contribuições à Jovem Pan. ex-policial militar que reúne empresas
A primeira é financeira, ao irrigar os do agronegócio à segurança.
cofres da emissora com verbas públicas Um ex-gestor da área comercial, que
por meio de publicidade. Em junho, trabalhou muitos anos na empresa, re-
quando entrou no ar a campanha do Au- latou à piauí as dificuldades de captar
xílio Brasil e do programa habitacional clientes. “Quando ainda era só rádio, ven-
Casa Verde e Amarela, a Jovem Pan teve díamos os espaços no horário de futebol
195 inserções do governo federal. Algu- ou nos intervalos das faixas musicais. Mas
mas, com mais de um minuto de dura- na tevê não tem futebol nem música, en-
ção, foram apresentadas por jornalistas tão é mais difícil fugir da programação
da casa, sem qualquer aviso ao telespec- política”, diz ele. “No caso da tevê, a gen-
tador de que se tratava de uma propa- te terminava argumentando que, no fim
ganda. Os anúncios apareceram com do dia, as marcas queriam vender e bolso-
frequência inédita. Só no dia 24 de ju- narista queria comprar. Éramos muito
nho, sexta-feira, foram catorze inserções cobrados para vender Os Pingos nos Is.
que duraram ao todo dezoito minutos. Mas quem vai querer anunciar naquilo?”
momento especial pra mim e pro meus ir- outubro de 2021, fez a primeira trans- Naquela mesma sexta-feira, o governo Até programas de entretenimento foram
mãos que acreditaram no meu trabalho e missão da Jovem Pan no canal 576, na não colocou um único anúncio na CNN contaminados pela política. “A gente ven-
do Marcelo meu irmano que esta a frente Sky e na Claro. Para ampliar a audiên- Brasil, nem mesmo na líder do segmento, dia o Morning Show como entretenimen-
comigo dos negocios. Trazer de volta a TV a cia, comprou também um sinal de saté- a GloboNews. No consolidado do mês de to, mas eu te pergunto: é entretenimento
familia Carvalho que um dia foi dona da lite por meio do qual a tevê Jovem Pan junho, fica patente como o governo privi- o Adrilles gritando uma hora e meia sobre
TV Record e um desejo de mts anos. pode ser transmitida para quem tem legiou a Jovem Pan, em detrimento da urna eletrônica?” Adrilles Jorge é um ex-
To muto feliz, trabalho como se fosse antena parabólica, como se fosse um concorrência. Na GloboNews, houve ape- BBB que aproveitou a fama de subcelebri-
um adolecente, muita energia, muita gra- canal aberto. O mecanismo não funcio- nas 76 inserções de órgãos públicos (do dade que ganhou na Globo para disparar
tidão, muita fe em Deus. Meus sonhos so na bem nos centros urbanos, mas tem governo, do Ministério da Cidadania, dos teses conspiratórias e conservadoras.
estão começando e eles nao tem limite grande penetração nos grotões do país, Correios, do Ministério da Saúde). Na CNN Tutinha já chegou a encomendar um
quando chegam no topo novos desafios onde há mais de 20 milhões de parabó- Brasil, foram 105 (do governo, dos Cor- projeto comercial sobre a Amazônia,
aparecem e vou com toda força pra cima. licas em funcionamento. reios, do Ministério da Cidadania, do Mi- para tentar um patrocínio da Natura,
Hoje uma equipe de 500 pessoas traba- “A tevê foi toda autofinanciada pela nistério do Turismo e da Agência Nacional marca de cosméticos. Mas esbarrou no
lham pra TV virar realidade, vamos errar, rádio, pela família. Um negócio comer- de Energia Elétrica). Mas, na Jovem Pan, fato de que a maioria dos comentaristas
vamos aprender mas vamos dar certo, cial privado. Não teve ninguém que che- foi um sucesso: 267 inserções (do próprio de sua grade despreza a preservação am-
nem que eu coloque minha cama na Jo- gou com dinheiro”, diz o jornalista governo, do Ministério da Cidadania, dos biental. “Empresas preocupadas com
vem Pan e more la mesmo. Humberto Candil, ex-diretor de redação Correios, do Banco da Amazônia). imagem não entram. Não vai ter anúncio
Tenho recebido mensagens do Brasil da Jovem Pan, que, em razão de sua ex- É uma diferença grande em relação de Unilever, Procter & Gamble, Roche,
inteiro, fans da JP que me dão muito orgu- periência na Band, fora contratado para aos tempos dos governos petistas. Tutinha Nestlé, Natura, Magazine Luiza”, conta
lho. Minha meta não e so grana quero fazer a transição da rádio para a tevê. “Foi
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS já disse que, quando começou sua guina- o ex-gestor da empresa. A diretora de
deixar um legado e ajudar o Brasil a virar um esforço financeiro enorme a compra da à direita, foi pressionado em Brasília. mídia de uma grande agência de publi-
um grande pais. e a importação de equipamentos, contra- “O ministro virava para mim e falava: cidade de São Paulo explicou que, embo-
Espero vcs em breve assistindo a JP de tação de funcionários, seis estúdios em você é de direita! E eu retrucava: e você, ra sofresse grande pressão da Jovem Pan
qualquer lugar do Brasil e ate fora atraves atividade e um em construção.” Candil de esquerda, e daí?” Certa vez, segundo para comprar espaço publicitário para
do Panflix. Agradeço humildente ao meu deixou a Jovem Pan em fevereiro, mas é duas testemunhas do encontro, o então seus clientes, os riscos não compensavam
Pai meu idolo todo meu esforço sempre foi defensor do seu modelo. “Não é mais no- ministro da Secretaria de Comunicação a boa audiência. “Há um compliance
mostrar que ele me ensinou bem e que ticiário factual que a audiência quer. Ela Social do governo Dilma, Edinho Silva, mundial que o cliente tem de respeitar.
suas licoes estao dentro do meu coracão, quer análise e comentário com coragem. pediu que Tutinha moderasse nas críticas Se o anúncio é veiculado em meio a bri-
carater, descencia, honestidade, caridade, As pessoas não suportam mais aquela para ganhar publicidade dos Correios. gas, discurso de ódio, racismo ou misogi-
pensar no proximo, entender nossos ou- coisa de ficar em cima do muro”, diz. Como a rádio recebera apenas 500 mil nia, a responsabilidade é nossa e vira um
vintes/espectadores e que ele tenham total O discurso radical não incomoda reais de publicidade do governo entre problema global para a empresa”, explica
confiança na marca Jovem Pan eu jamais Candil, para quem o único limite que 2014 e 2015, Tutinha ouviu o tilintar das a diretora, que atende uma multinacio-
vou trair meus ouvintes /telespectadores e não pode ser ultrapassado é o da vida. moedas. Chamou o historiador Marco nal cobiçada pela Jovem Pan. Recente-
por fim eu sou de radio e o radio eu jamais “Você não pode ir para o ar e mandar Antonio Villa num canto e pediu que mente, ela fechou um pacote de anúncios
vou abandonar. Eu sou radialista. matar alguém. Aí você vai ser demiti- baixasse a bola. Villa não lhe deu ouvi- de uma marca do setor de turismo com a
Pra encerrar dizer a todos os meus ir- do”, diz. O resto está liberado. “Muitas dos, Tutinha insistiu, mas não resolveu. CNN, embora a Jovem Pan a tivesse pro-
maos radialistas que montem suas equi- vezes os comentaristas falam coisas que Os Correios só fizeram anúncios pontuais curado com proposta semelhante.
pes, coloquem suas ideias em pratica, nao não estão dentro da linha da Jovem Pan. na rádio até a chegada do atual governo, A segunda grande contribuição de Bol-
tenham medo de novos programas, novas Mas existe um respeito pela ideia. A Jo- quando os cofres de fato se abriram. sonaro é seu constante estímulo ao au-
experiencias, cameras nos estudios e fa- vem Pan sempre teve os dois lados. Me A generosidade do governo Bolsona- mento da audiência. Faz elogios públicos
cam muitos videos e todos dias olhem com diga um canal que tem uma Amanda ro não se reproduz no mercado privado. ao Pingos nos Is, como no caso da entrevis-
atenção para o futuro ele esta mais rapido Klein?” Candil refere-se ao troféu anti- Segundo um levantamento obtido pela ta ao jornalista norte-americano Tucker
que nunca, nao deixem que ele os engula. bolsonarista da emissora: Amanda Klein piauí, que inclui órgãos públicos mas Carlson, da Fox News. Mandou que todos
Deus nos ajude sempre. Muito orgu- faz parte do Jornal da Manhã e é a úni- também empresas privadas, em maio a os aparelhos de tevê do Palácio do Planal-
lho de ser radialista. Obrigado Brasil ca jornalista do programa que se opõe GloboNews teve 96 anunciantes, com to fiquem sintonizados no 576. No aniver-
que é o meu Pais e que por ele eu lutarei ao governo. Tutinha, quando indagado 3 584 inserções publicitárias ao longo sário de 80 anos do grupo, enviou um
sempre. Amem. sobre a parcialidade do seu grupo, recor- da programação. A CNN Brasil aparece vídeo de parabéns, dizendo tratar-se de
Quem conseguiu decifrar o patoá re ao mesmo argumento. “Aqui todo em segundo lugar, com 43 anunciantes “uma empresa que cada vez mais des-
ficou certo de que o jogo estava ganho. mundo pode falar o que quer. A Aman- e 1 962 inserções. A Jovem Pan, embora ponta na luta pela liberdade de expres-
A confusão jurídica do canal, no entan- da Klein não fala o que quer?” Tutinha tenha ultrapassado a audiência da CNN, são”. É comum que faça suas lives de
to, agravou-se em agosto, quando a Jus- hostiliza publicamente a jornalista. só figura em terceiro lugar com apenas quinta-feira com uma caneca do Pingos
tiça determinou em segunda instância Chegou a replicar em suas redes sociais 25 anunciantes e 1 119 inserções. Boa nos Is sobre a mesa. Saúda os comentaris-
a cassação da concessão – e Tutinha um vídeo em que o ex-ministro Ricardo parte das empresas que aparecem na tas do programa no final de sua transmis-
achou que o investimento seria arrisca- Salles rebate Klein de modo grosseiro. tela da Jovem Pan é pouco conhecida são. Ao encerrar a live do dia 15 de julho,
do demais. Em questão de dias, desistiu No vídeo, sobrepostos à imagem, apare- – como a Homeopatia Waldemiro Pe- disparou: “Assistam aí o Augusto Nunes
da tevê aberta e optou por negociar um cem os seguintes dizeres: “PARA DE FALAR reira – ou abertamente ligada ao bolso- até umas oito horas. Eles pegam uma re-
canal na tevê paga – e, no dia 27 de BOBAGENS AMANDA KLEIN !” narismo, como a rede de restaurantes barba da live da gente. Comenta alguma

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coisa.” Depois, emendou: “Tem um jor- Queiroga, para cobrar explicações. Em
nalismo de excelente qualidade pela sua seguida, mandou mensagem para Au-
isenção. É um exemplo de jornalismo.” gusto Nunes avisando que só adolescen-
A “rebarba” é uma mostra da simbiose tes com comorbidades seriam vacinados.
entre as lives de Bolsonaro e Os Pingos Os outros, não. O texto foi lido pelo co-
nos Is. Sempre que o presidente abria sua mentarista ao vivo. Pouco depois, Quei-
transmissão às sete da noite, caía a audiên- roga recuou e voltou a incluir todos os
cia do programa da Jovem Pan, que co- adolescentes. A vacinação, por causa da
meçava uma hora antes. A produção interferência do presidente, começou
entendeu que as pessoas estavam migran- com uma semana de atraso.
do de um para o outro, esvaziando o ca- Quando, no início da pandemia, Os
nal da emissora. No início de 2020, surgiu Pingos nos Is decidiu mostrar a evolução
a solução: Os Pingos nos Is começou a da mortalidade do vírus destacando o
retransmitir a live toda ao vivo, qualquer número de “curados” em vez do de mor-
que fosse a sua duração, que nunca era tos, o gabinete presidencial adotou a
de tempo fixo. No restante das 2 horas de ideia e ordenou que o Ministério da Saú-
programa, os comentaristas opinavam de fizesse o mesmo. Quando uma repor-
sobre os tópicos abordados por Bolsonaro. tagem do portal Metrópoles mostrou gesticulou, ao longo de toda a fala, insi- de extrema direita de participarem das
Com uma vantagem adicional: podiam que o governo gastava mais de 15 mi- nuando que o jovem estava louco ou sabatinas eleitorais que serão promovidas
ainda fazer perguntas a Bolsonaro e vice- lhões de reais com leite condensado, o dizendo loucuras. Tudo foi filmado, pela rede. O único a não ser excluído é o
versa. A partir de julho, em razão da lei programa fez um bloco inteiro para ex- mas a Jovem Pan logo deletou o vídeo debatedor Roberto Motta, considerado
eleitoral, a transmissão foi interrompida. plicar a razão do desembolso, e a expli- de sua conta no YouTube. o menos radical da turma. Para Tutinha,
Nesse sistema que se retroalimenta, os cação passou a ser usada pelo próprio Na mesma época, Tutinha mandou a Jovem Pan é de “centro”. “Se o nosso
assuntos se cruzam. Na semana em que o governo para prestar contas à militância. tirar do ar o programa Eva, voltado para público amanhã mudar de lado, eu vou
site The Intercept Brasil publicou a notícia A ideia de descredibilizar a reportagem o público feminino, depois que um epi- mudar com ele. Mas eu faço meu jorna-
de que uma juíza de Santa Catarina não partiu de Ubinha, o autor do título que sódio tratou do tema “masturbação”. lismo pro público que ouve a Jovem Pan,
autorizara que uma menina de 11 anos acompanhava o vídeo: “Oposição usou Em julho passado, no chocante episó- que vê a Jovem Pan e que entra nos canais
grávida de estupro fizesse um aborto, o fatos distorcidos para atacar o presidente dio em que uma mulher grávida foi es- digitais da Jovem Pan. Isso dá uma vanta-
diretor do Pingos nos Is, Clayton Ubinha, Bolsonaro.” Aos colegas, Ubinha costu- tuprada pelo anestesista Giovanni gem porque éramos praticamente eu e
acionou Ana Paula Henkel, a ex-jogadora ma dizer que o Pingos é “fundamental” Quintella Bezerra durante o parto, a O Antagonista. Agora, O Antagonista
de vôlei, no grupo de WhatsApp do pro- para “controlar a narrativa” do governo Jovem Pan exibiu as imagens sem tarja, mudou”, disse o empresário num vídeo
grama. Perguntou se ela, militante antia- no YouTube, atuando como linha auxi- expondo a identidade da vítima. Houve publicado em março no YouTube, refe-
borto, queria comentar o assunto. Henkel liar do bolsonarismo. Quando a cantora revolta nas redes sociais e um protesto rindo-se ao fato de que o site O Antago-
disse que não. Na mesma noite, por volta Anitta divulgou seu apoio à candidatura na frente da emissora. Em uma nota, a nista se afastou do governo Bolsonaro
das 21 horas, Bolsonaro se manifestou de Lula, o vídeo que mais teve engaja- empresa não se desculpou. Disse que as desde a saída de Moro. “Não quer dizer
sobre o tema no Twitter, apoiando a de- mento sobre o tema foi justamente o do mesmas imagens haviam sido exibidas que a gente é bolsonarista”, acrescentou
cisão da juíza. Pronto. Era a senha para programa, superando aqueles publica-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS por outras redes. Entre as principais Tutinha. “A gente não é nada. A gente é
que o assunto ganhasse a Jovem Pan. No dos pela imprensa e por apoiadores do emissoras, nenhuma mostrou as ima- uma emissora que fala a verdade.”
dia seguinte, era só o que se falava na PT. O título dado pela Jovem Pan era: gens sem proteger a vítima. A verdade da Jovem Pan já foi celebra-
emissora – e a maioria dos comentaristas “Após declarar apoio, Anitta pede que Quem conhece Tutinha, no entanto, da aos gritos no último 1º de maio, na
concordava que o aborto era ilegal por- Lula libere as drogas no Brasil.” arrisca que seu bolsonarismo é de oca- comemoração do Dia do Trabalho. Em
que o sexo fora consensual, ainda que Funcionário da emissora desde 2007, sião. Seu negócio é dinheiro. Apesar das cima de um carro de som, diante de uma
não existisse a figura legal do “sexo con- Ubinha faz um papel com o qual a maio- verbas públicas, da audiência no YouTu- grande plateia de verde e amarelo na
sensual” com uma criança de 11 anos. ria dos jornalistas da redação não concor- be e do lucro de 15,7 milhões, Tutinha Avenida Paulista, a deputada Carla Zam-
Ubinha, o diretor, também é respon- da. Por isso, sempre que sai de férias é um acha que pode ganhar muito mais. Com belli, maestrina da claque bolsonarista,
sável pelo contato direto com o gabinete martírio escalar alguém que aceite subs- as dificuldades de atrair anunciantes no deu uma diretriz: “Vocês têm um desafio
presidencial para tratar de aspectos técni- tituí-lo. Na redação, a equipe de comen- mundo privado, o empresário trocou seu para fazer. Liguem as televisões de vocês,
cos da live de Bolsonaro. Nessa função, taristas do programa é comumente responsável pela área comercial em abril nas empresas de vocês, não em música,
acabou ficando próximo dos assessores chamada de “aquele bando de malucos”. passado. Contratou José Carlos (Zeca) não na Globo, não no esporte, mas em in-
do presidente. Quando Bolsonaro quer Quem apoia a guinada bolsonarista inter- Vianna, um executivo de vendas sem ex- formação de verdade. É assim que a gente
fazer algum comentário sobre notícias namente costuma se defender dizendo periência no mercado de mídia. Vianna vai conseguir vencer. Convencendo cada
veiculadas na Jovem Pan, aciona o dire- que, não fosse por isso, a empresa estaria foi quem deu a ordem para que a emisso- um.” Em seguida, entrou no ponto que
tor. Em maio, quando se discutia no pro- fadada ao fracasso. “A Jovem Pan fez da ra divulgasse um editorial defendendo a interessava: “Quem elegeu o presidente
grama Opinião se Bolsonaro apoiaria a defesa do Bolsonaro um negócio lucra- urna eletrônica, o que chocou parte da Bolsonaro? A Jovem Pan? Quem aí gosta
deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) tivo”, diz um graduado funcionário, audiência e dos próprios comentaristas. da Jovem Pan? Então é o seguinte, aqui
ou a deputada estadual Janaina Paschoal para quem a emissora – “pelos bons servi- Deu a ordem porque, numa reunião um desafio pra vocês: põe no canal da
(PRTB-SP) para o Senado por São Paulo, o ços que presta” – deveria até ganhar mais. com um grande banco privado, desco- Jovem Pan, porra!” Os manifestantes co-
presidente mandou dizer a Ubinha que briu que o radicalismo da emissora a ex- meçaram a gritar em uníssono: “Jovem

N
não apoiaria nenhuma das duas, mas o o processo de bolsonarização, a cluía dos requisitos para receber anúncios Pan, Jovem Pan, Jovem Pan!”
apresentador José Luiz Datena, da Band. Jovem Pan comprou o pacote in- da instituição. Vianna também proibiu William Travassos, que naquele mo-
O jornalista William Travassos interrom- teiro. O racismo não é um tema que os comentaristas do Pingos nos Is vol- mento apresentava o JP Urgente, na Jo-
peu a programação para dar o recado de bem-vindo na programação. Não tem tassem a pregar contra a vacina – o que vem Pan News, agradeceu ao vivo: “Em
Bolsonaro ao vivo. Dias depois, Datena apresentadores negros. Quando, em 2019, nem sempre é cumprido pelo jornalista nome da família Jovem Pan, nós quería-
desistiu da candidatura. o programa Morning Show repercutiu o Guilherme Fiuza. mos agradecer esse carinho do público
Os Pingos nos Is até já mudou política episódio em que a empresária Donata Em julho passado, em entrevista ao site que está com a gente agora. Muito obri-
pública ao vivo. No dia 14 de setembro Meirelles foi fotografada rodeada de Notícias da TV, o presidente executivo Ro- gado pela audiência dos senhores.” A gen-
de 2021, depois que o Ministério da Saúde mulheres negras trajadas de baianas, berto Araújo já afirmou que a Jovem Pan tileza foi retribuída na convenção do PL,
autorizara a vacinação de adolescentes emulando o arquétipo da sinhá rodeada “não tem lado” e disse que Lula, se eleito, realizada no Maracanãzinho, que oficia-
contra a Covid, Ana Paula Henkel citou de mucamas, Tutinha se irritou. Um dos será “muito bem recebido”. Numa reunião lizou a candidatura de Bolsonaro à reelei-
um trecho do plano de vacinação em dois únicos repórteres negros da reda- entre comentaristas da rádio e a direção, ção no final de julho passado. Uma faixa,
que dizia que a imunização era indicada ção havia sido escalado para falar sobre ocorrida em 27 de julho, a produtora exe- com letras pintadas nas cores da bandeira
apenas para jovens acima de 18 anos. o tema no programa. Enquanto ele fala- cutiva Mariana Ferreira disse com todas nacional, informava: “Tamo junto – Ca-
Bolsonaro, que assistia ao programa, li- va, Tutinha fez uma rara aparição no as letras que o Pingos nos Is estava dando pitão e Jovem Pan – Guilherme Fiuza,
gou para o ministro da Saúde, Marcelo estúdio. Sentou-se ao lado do repórter e problemas e vetou todos os comentaristas Zé Maria e Augusto Nunes.” J

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questões político-policiais

O INSTRUMENTO
A bolsonarização da Polícia Rodoviária Federal

ALLAN DE ABREU

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S
ilvinei Vasques, um homem bai- nicar à Polícia Militar de Varginha que Vieira. “Calma aí que essa história ainda presidente, ocorreu em maio passado,
xo, corpulento e falante, tinha um bando de criminosos estava prestes a vai dar merda”, respondeu Vieira, de na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, na
reações contraditórias naquele assaltar um banco. Sem saber que os poli- acordo com o relato obtido pela piauí por qual morreram pelo menos 23 pessoas.
domingo. Às vezes, estava eufó- ciais rodoviários preparavam uma embos- dois policiais próximos de ambos. Mas o aplauso à operação em Varginha
rico. Outras vezes, irritado. Sua cada contra o grupo, a direção da PM local Assim que saiu a notícia da chacina também revela o papel singular que a
empolgação vinha do resultado da opera- tentou afugentar os assaltantes despachan- em Varginha, dois filhos de Bolsonaro Polícia Rodoviária Federal passou a re-
ção da tropa de elite da Polícia Rodoviá- do todos os seus veículos para a rua, em correram às redes sociais para exaltar a presentar no governo de Bolsonaro. De
ria Federal (PRF), a corporação que dirige patrulhamento ostensivo. “A PF queria fa- ação. “Apreensão de fuzis, munições, todas as forças policiais do Estado, in-
desde abril de 2021. Naquela manhã de zer um trabalho legítimo, investigando e granadas, explosivos e, após confronto, cluindo as polícias militares, a PRF tem
outubro do ano passado, os policiais ha- prendendo toda a quadrilha. Mas desde o 25 criminosos tiveram a conversa anteci- sido a mais maleável às intenções do pre-
viam acabado de matar todos os 26 ho- começo da investigação ficou claro que a pada com o Capiroto”, escreveu o senador sidente de colocar uma força armada a
mens que planejavam um assalto a uma PRF não queria agir na legalidade”, diz um Flávio Bolsonaro no Facebook. “Parabéns serviço de seus interesses e, se for o caso,
agência do Banco do Brasil em Varginha, policial federal envolvido no caso, que aos nossos policiais pelo brilhante traba- acima da lei. “A PRF não se constrange
no Sul de Minas Gerais. Não sobrou um pede o anonimato para evitar retaliações lho. Todos estão bem.” O deputado Eduar- em ser bolsonarista porque não há uma
único criminoso vivo, e os policiais saí- do governo. Vasques achou que o compor- do Bolsonaro também fez festa no Twitter. cultura organizacional de resistência às
ram sem um arranhão. Mas, de vez em tamento da PF era inadmissível e queria “Nenhum policial morto. Parabéns PRF e ingerências políticas”, diz Renato Sérgio
quando, ele ficava irritado ao lembrar que que Bolsonaro soubesse disso. PM-MG”, escreveu e, em seguida, fez a de Lima, diretor-presidente do Fórum
a Polícia Federal, algumas semanas antes, Naquela manhã, o presidente estava provocação de praxe. “Fiquem tranquilos, Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG
tomara a decisão de não ter qualquer par- em Roma para a reunião do G20, o grupo só vagabundos reclamarão. #GrandeDia.” que estuda o assunto e busca dar transpa-
ticipação direta naquela operação – e, que reúne os países com as maiores eco- Vasques, o diretor da PRF, só conseguiu rência aos dados sobre violência e políti-
pior ainda, fez o que pôde para evitá-la nomias do mundo. Sem conseguir alcan- falar com o presidente – pessoalmente – cas de segurança.
justamente por suspeitar que acabaria çar Bolsonaro, Vasques ligou então para na tarde de 8 de novembro, quando a

D
numa chacina. Movido pelos dois senti- o ministro da Justiça, Anderson Torres, comitiva presidencial já estava de volta esde os primeiros meses do manda-
mentos contraditórios, Vasques telefonou, cuja pasta cuida tanto da PF quanto da a Brasília. Não se sabe como Bolsonaro to, o presidente Bolsonaro presti-
ainda na parte da manhã, para o presi- PRF. Depois de ouvir as reclamações, Tor- reagiu ao saber da recusa da PF em ajudar giou a Polícia Rodoviária Federal e
dente Jair Bolsonaro. res acionou o delegado Luís Flávio Zam- na operação. tentou ampliar seu leque de atuação. Em
Sua intenção era comemorar o resulta- pronha, que na época integrava a direção A reação de Bolsonaro e filhos à ma- outubro de 2019, o então ministro Sergio
do da operação, pois sabia que Bolsonaro da PF, e lhe pediu que cobrasse explica- tança em Varginha é ao mesmo tempo Moro, da Justiça, assinou portaria autori-
ficaria feliz com a morte dos 26 homens, ções do superintendente da corporação previsível e reveladora. Previsível porque zando a PRF a auxiliar “as demais institui-
e também reclamar do comportamento em Minas Gerais, Marcelo Sálvio Re- a família é sabidamente entusiasta da vio- ções de segurança pública na prevenção
da Polícia Federal. Além da recusa em zende Vieira. Zampronha cumpriu a or- lência policial e costuma celebrar cha- e no enfrentamento ao crime”. A portaria
participar da ação, a PF tentou neutralizar dem. “Por que a PF não quis ajudar?”, cinas como a que ocorreu na cidade dava à corporação poderes de investigar e
a ação dos policiais rodoviários ao comu- perguntou ele, em telefonema a Marcelo mineira. A mais recente, festejada pelo cumprir mandado judicial – ações típicas

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COMUNICAÇÃO SOCIAL PRF_1957


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Policiais rodoviários federais nos anos 1950: eles passaram a ser presença obrigatória nas motociatas de Bolsonaro, nas quais ignoram uma infração do presidente, a de não usar capacete

de polícias judiciárias (como a Polícia Fe- raramente oferecida às forças de patru- meses, o número de mortos nas estradas não há nenhuma estrada federal. Tam-
deral e as polícias civis) e não de polícias lhamento rodoviário em outros países. aumentou 15%. A Justiça derrubou a de- bém se tornou, durante o governo Bolso-
ostensivas, como a PRF. Pela primeira vez Enquanto ampliava os poderes da PRF, cisão e os radares foram acionados de naro, uma polícia que mata cada vez
na história, a PRF assumia funções então o governo se empenhou em fortalecer a novo, mas o controle nunca voltou a ser o mais. Em 2019, foram quatro mortes.
típicas da PF, abrindo um contencioso en- corporação. Entre 2019 e 2021, o órgão mesmo. Em 2019, a fiscalização com ra- Em 2020, subiram para dezesseis. No
tre as duas forças policiais. “Há nítidos recebeu 704 milhões de reais em investi- dares móveis somou 42 mil horas. No ano ano passado, chegaram a 35. Neste ano,
sinais de que a corporação quer ir além da mentos, o que representa 54% a mais do passado, segundo levantamento do portal só até junho, já estão em 38.
prevenção e repressão criminal nas rodo- que havia recebido no triênio anterior. UOL, não chegou a 20 mil. Até na Via Du- Com mais dinheiro e o respaldo polí-
vias federais, transformando-se numa Em 2022, os irmãos Flávio e Eduardo tra, a rodovia mais movimentada do país, tico do presidente, a PRF está virando uma
polícia com maior abrangência territo- Bolsonaro mandaram 3,6 milhões de reais que liga Rio de Janeiro e São Paulo, dois polícia comum, com o agravante de que
rial”, escreveu o sociólogo Luis Flávio para a PRF por meio do orçamento secreto. postos de apoio foram fechados: um em suas ações são fiscalizadas com pouco ri-
Sapori, coordenador do Centro de Estu- Desde 2020, a corporação fechou quinze Itatiaia, outro próximo à Serra das Araras. gor pela corregedoria do órgão, o que
dos e Pesquisa em Segurança Pública, da contratos para a blindagem de veículos, Como resultado, as mortes nas rodovias acaba por estimular seus agentes a atua-
PUC Minas, em artigo para o Fórum Bra- no valor total de 39,9 milhões de reais, federais pararam de diminuir. No ano rem à sombra da lei. Durante seis sema-
sileiro de Segurança Pública. todos com a Combat Armor Defense do passado, foram 5 381 óbitos, 1,7% a mais nas, a piauí reconstituiu a matança de
Incomodada com essa ampliação dos Brasil, cujo dono é próximo do deputa- do que no ano anterior. (A PRF diz que Varginha com base em documentos, lau-
poderes da PRF, a Associação Nacional do Eduardo Bolsonaro. Além disso, seu isso aconteceu por causa do aumento no dos e entrevistas com quatro autoridades
dos Delegados de Polícia Federal ingressou efetivo cresceu no atual governo. Passou fluxo de veículos nas rodovias federais envolvidas direta ou indiretamente no
com ação no Supremo Tribunal Federal de 9,9 mil policiais para 12,2 mil. Ao mes- no “período pós-pandemia”, mas a expli- caso – todas falaram sob anonimato para
pedindo a suspensão da portaria. O minis- mo tempo em que ganhava mais dinhei- cação não combina com o calendário: evitar retaliação dos próprios policiais ro-
tro Dias Toffoli, do STF, acatou o pedido, ro e mais poderes, a PRF foi estimulada a 2021 foi o ano mais duro da Covid.) doviários e do governo. A conclusão ine-
sob o argumento de que novas atribuições se afastar cada vez mais de sua missão Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS vitável é que a chacina de Varginha foi
da PRF só poderiam ser criadas por meio original – e enfraqueceu a vigilância dos Estradas, ONG que trabalha para reduzir um festival de ilegalidades.
de lei, mas acabou vencido pelo plená- 75 mil km de rodovias federais. Bolsona- os acidentes, resume a situação: “No atual

E
rio. A portaria continuou em vigor. No ro pressionou a PRF a deixar de punir o governo, a Polícia Rodoviária tornou-se m setembro de 2021, semanas após
entanto, pressionado por agentes da PF, o transporte de armas pessoais e estimulou um instrumento político nas mãos do um grande assalto a bancos em Ara-
então ministro da Justiça, André Men- a corporação a amolecer o tratamento con- presidente. Negligenciaram a fiscalização çatuba, no interior paulista, a Polícia
donça, sucessor de Moro, acabou anu- tra infrações cometidas por caminhonei- do trânsito para assumir outras funções Federal e a Polícia Rodoviária Federal co-
lando a portaria em janeiro de 2021. Mas ros, sua base eleitoral. fora das rodovias.” De fato, no processo de meçaram a seguir os passos de Ítallo Dias
manteve a possibilidade de os policiais Em agosto de 2019, Bolsonaro chegou bolsonarização, a PRF expandiu suas ações Alves, um jovem de 25 anos, morador de
rodoviários participarem de operações a mandar tirar todos os radares das rodo- longe das estradas. De 2019 até o mês de Uberaba, em Minas Gerais. Não havia
em conjunto com outras polícias ou com vias federais para acabar com “a indústria junho passado, policiais rodoviários pren- indício de que estivesse envolvido no as-
o Ministério Público – uma prerrogativa das ‘multagens’ eletrônicas”. Em quatro deram 1 226 pessoas em municípios onde salto em Araçatuba, mas Alves era suspei-

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to de ser um dos líderes do “novo cangaço”, da Polícia Federal era instaurar um in- localização das chácaras e quantos assal- pela PF para apurar o caso (como envolve
como são chamadas as quadrilhas de cri- quérito formal, reunir provas contra a tantes havia em cada uma delas. policiais rodoviários federais, a investiga-
minosos que invadem cidades do interior, quadrilha, solicitar mandados de prisão Os criminosos alugaram os dois sítios ção do crime é de competência federal),
em geral à noite ou de madrugada, assu- e só então deflagrar a operação, colocan- nas extremidades Sul e Norte de Vargi- os policiais obtiveram apenas fragmentos
mem o controle do lugar e roubam gran- do todos na cadeia. É assim que funcio- nha, a 12 km uma da outra, ainda de das imagens das câmeras de segurança do
des quantidades de dinheiro dos bancos. na. Quando percebemos que a Polícia acordo com aquela mesma testemunha. posto, que não mostram a abordagem
Os policiais instalaram um rastreador Rodoviária queria matar todo mundo A primeira chácara abrigou dezoito ho- dos policiais à dupla. O dono do posto ale-
no carro de Alves (medida que prescinde sem investigar nada, pulamos fora”, diz mens (um deles era o caseiro que, segun- gou problemas técnicos no equipamento.
de mandado judicial) e começaram a um policial federal que acompanhou o do familiares, tinha uma deficiência Para os agentes federais envolvidos na
acompanhar seus passos. O rastreador é caso de perto. mental e não integrava a quadrilha) e o investigação, o saldo da operação é a maior
um aparelho, instalado embaixo do veícu- Com o rastreador (legal) e o Bruno armamento: vinte fuzis e seis pistolas, das ilegalidades: os criminosos foram exe-
lo, que informa à polícia a sua localização Espião (ilegal), os policiais rodoviários que só seriam desembalados no domin- cutados, incluindo Alves e o caminhonei-
em tempo real. Tudo corria dentro da lei, descobriram que uma quadrilha plane- go, horas antes do assalto. A missão desse ro. Segundo a única testemunha que
até que a PRF resolveu executar uma ação java fazer um assalto a banco em Var- grupo era revidar a ação policial, a co- sobreviveu porque não estava em nenhu-
ilegal: simulou uma abordagem rotineira ginha na madrugada de 1º de novembro meçar pelo batalhão da PM cuja sede fica ma das chácaras, quando o primeiro sítio
na beira da estrada, parou o carro de Al- do ano passado, uma segunda-feira. a apenas 2 km da chácara. A segunda foi invadido, às cinco da madrugada, os
ves, pediu seu celular e, sem que o sus- Também descobriram que os crimino- casa foi ocupada por oito homens com criminosos estavam dormindo, já que ha-
peito percebesse, instalou no aparelho sos se dividiam em duas chácaras, ambas 40 kg de explosivos que dinamitariam os viam promovido um churrasco na noite
um aplicativo chamado “Bruno Espião”, próximas a Varginha, mas não conse- cofres da agência do Banco do Brasil, no anterior. Quase todos os corpos tinham
que clona todas as ações do aparelho-alvo guiam saber a localização exata. Por isso, Centro da cidade, de onde os criminosos álcool no sangue, segundo laudos do Ins-
em um segundo celular, incluindo as na tarde de sábado, dia 30 de outubro, esperavam roubar 65 milhões de reais. tituto Médico Legal (IML). O ferimento
conversas por aplicativo. O software foi segundo as informações prestadas à Po- À noite, 28 policiais rodoviários – lota- de um dos cadáveres aponta que a bala atra-
criado por um jovem mineiro para que os lícia Federal por uma testemunha que dos no Comando de Operações Especiais vessou o braço direito e entrou na maçã
pais controlassem a rotina dos filhos, participou do planejamento do assalto, (COE) e no Grupo de Resposta Rápida direita do rosto – indicativo claro, segun-
com o consentimento destes, mas a PRF mas não estava nas chácaras no dia da (GRR), subordinado ao próprio COE – ru- do peritos ouvidos pela piauí, de que ten-
tem usado a ferramenta para interceptar chacina, uma equipe da PRF abordou Al- maram em direção a Varginha. Chegan- tou se proteger com o braço no momento
conversas de terceiros, o que só pode ser ves e o caminhoneiro Francinaldo Araú- do lá, já na madrugada, juntaram-se ao em que levou o tiro no rosto.
feito com aval da Justiça. jo da Silva em um posto de combustível grupo 22 policiais militares do Batalhão Com a eliminação de todos na primei-
Como a PRF não tinha ordem judicial de Muzambinho, cidade a 140 km de de Operações Policiais Especiais (Bope), ra chácara, oito policiais rodoviários e
para clonar o celular do suspeito, a PF Varginha. Ali, constataram que o cami- vindo de Belo Horizonte. Foi nesse meio- quatro PMs foram até a segunda proprie-
sentiu cheiro de queimado e decidiu nhão tinha um fundo falso sob a carro- tempo que o superintendente da PF, Mar- dade. Ali, segundo disseram em depoi-
abandonar a investigação. A determina- ceria, que seria usado para esconder a celo Vieira, avisou a PM de Varginha do mento, a cena repetiu-se de mesmíssimo
ção foi dada pela direção da corporação quadrilha na fuga depois do assalto. Se- assalto iminente. As viaturas da PM come- modo e com um desfecho idêntico: foram
em Minas Gerais, incluindo o superin- gundo a PF, a dupla foi pressionada – não çaram então a circular pela cidade, numa recebidos a tiros, revidaram e mataram
tendente, Marcelo Vieira. “O objetivo se sabe com que métodos – a revelar a tentativa de dissuadir os criminosos. Pou- todos sem sofrer um arranhão. No entan-
cas horas depois, no entanto, o comando to, segundo a testemunha, nenhuma das
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS da PM em Belo Horizonte mandou um oito vítimas da segunda chácara estava ar-
recado determinando que as viaturas vol- mada, já que o imóvel é cercado por vizi-
tassem aos quartéis, deixando o caminho nhos e qualquer descuido poderia resultar
livre para a PRF e o Bope. Começava a se em alguma denúncia à polícia. Para os
desenhar a chacina. investigadores, há poucas dúvidas de que
A primeira invasão se deu na chácara houve uma segunda chacina.
onde estavam o armamento e os dezoito Embora os 25 criminosos mais o ca-
homens (dezessete criminosos e o ca- seiro estivessem mortos (alguns sem um
seiro). Os 28 policiais rodoviários entra- pedaço do cérebro), às 6h30 todos foram
ram pela frente do imóvel, um sobrado levados na caçamba de uma caminho-
cercado por um muro de finas placas de nete da PRF, amontoados, para o Hospital
cimento, e os 22 membros do Bope cer- Bom Pastor e uma outra unidade de
caram os fundos da chácara, que dava pronto atendimento da cidade. Em de-
para um pequeno riacho. A partir desse poimento à PF, médicos e enfermeiros
ponto, como sempre acontece nas ações disseram que os policiais estavam exalta-
policiais que acabam em matança gene- dos, “exigindo que o atendimento fosse
ralizada, a versão dos policiais rodoviá- realizado o mais rápido possível”. Quan-
rios não faz sentido. Em depoimento à PF do um médico perguntou se todos esta-
e à sindicância da própria PRF, disseram vam mortos, um dos policiais respondeu
que, assim que pularam o portão princi- rispidamente: “Você é o médico, você é
pal, um dos criminosos começou a atirar que vai dizer.” Para a Polícia Federal, foi
do primeiro andar do sobrado, motivando mais uma ilegalidade. Em vez de urgên-
“intenso tiroteio”. No fim, morreram to- cia para prestar socorro, a correria foi
dos os dezoito ocupantes da casa – três apenas para alterar a cena do crime e
deles com mais de dez tiros – e os poli- dificultar a investigação da chacina.
ciais não tiveram um único ferimento.

A
Para essa versão fazer sentido, todos os Polícia Federal instaurou inquérito
dezoito homens deveriam estar na cháca- contra todos os cinquenta policiais
ra, incluindo Alves e o caminhoneiro Sil- rodoviários e militares para apurar o
va. Por isso, os policiais disseram à PF e à crime de homicídio. No fim de julho, a PF
corregedoria da PRF que ambos estavam aguardava o laudo de perícia do Instituto
no imóvel quando houve a suposta troca Nacional de Criminalística (INC) que, a
de tiros, e que encontraram o caminhão partir de poças de sangue e vestígios de
abandonado no posto de combustível. DNA encontrados nas duas chácaras, pre-
O que intriga os investigadores é que o tende reconstituir em imagens 3D o que
caminhão, vital para a fuga da quadrilha, de fato aconteceu naquele início de ma-
estivesse abandonado faltando poucas ho- nhã de 31 de outubro em Varginha. Mas,
ras para o roubo. No inquérito instaurado em junho, o INC foi pressionado pelo Pa-
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lácio do Planalto e pelo Ministério da Jus- los. Em um deles, soube-se que policiais de Goiás com socos no abdome e nas cos- Região Metropolitana de Florianópolis.
tiça a adiar a conclusão do laudo para rodoviários recebiam propina no Rio de tas, depois que o funcionário se recusou a Já foi filiado ao PL e foi próximo da petis-
depois das eleições de outubro a fim de Janeiro para permitir a circulação de ca- lavar um dos cinco veículos da PRF no pos- ta Ideli Salvatti, ex-ministra-chefe das
não causar dano à campanha do presi- minhões-tanque com combustível adul- to. A ação criminal por lesão corporal e Relações Institucionais, a quem ofereceu
dente Bolsonaro. Procurados, nem o INC, terado. Em outro, por meio da CPI dos abuso de autoridade também acabou pres- mimos como voar no helicóptero da PRF
nem o superintendente da PF em Minas, Grampos, na Câmara dos Deputados, crita. A vítima ganhou o direito a uma para participar de compromissos oficiais,
Marcelo Vieira, quiseram se manifestar. soube-se que a PRF vinha fazendo inter- indenização de 71 mil reais do governo segundo revelou o jornal Correio Brazi-
A PRF, por sua vez, abriu uma sindicân- ceptações telefônicas ilegais, a pedido da federal e, desde 2017, a Advocacia-Geral liense em 2013. Um ano depois, com a
cia, ouviu os policiais envolvidos e deu-se Polícia Federal e do Ministério Público. da União cobra de Vasques o ressarcimen- ajuda de Salvatti, Vasques conseguiu le-
por satisfeita, isentando todos de qualquer Mas, mesmo assim, a corporação ganhou to do valor. O policial já foi condenado em var a Universidade Corporativa da Polícia
infração. “Não se vislumbra qualquer irre- espaço. Conseguiu aprovar uma lei exi- primeira instância, mas recorreu ao TRF. Rodoviária Federal (UniPRF) para Floria-
gularidade praticada, em tese, pelos poli- gindo curso superior para quem fizesse O caso fez com que a corregedoria da PRF nópolis. A academia foi instalada no cam-
ciais rodoviários federais que atuaram na concurso na corporação, melhorou sua e o Ministério da Justiça pedissem a ex- pus de uma antiga universidade, alugado
operação”, diz a conclusão da investigação política salarial e montou um lobby no pulsão de Vasques da corporação. Mas a por 295 mil mensais.
interna. Dos 28 policiais rodoviários que Congresso para buscar mais verba. No go- investigação demorou para ser concluída Em 2019, guiado pela mudança de
participaram da matança em Varginha, verno Bolsonaro, seu primeiro diretor- e, mais uma vez, a punição prescreveu. poder, pediu para assumir o comando
quatro foram promovidos a cargos de che- geral foi Adriano Furtado, próximo do É esse o policial que comanda a PRF da PRF no Rio de Janeiro, onde aprovei-
fia depois do episódio. Um deles, Felipo então ministro da Justiça Sergio Moro. e que, ao longo de sua carreira na cor- tou para estreitar laços com o bolsona-
Jesus Medeiros, tornou-se superintenden- Furtado deixou o cargo em 2020 depois poração, respondeu a oito sindicâncias rismo. Por causa do seu passado na
te da corporação em Roraima. de cometer uma falha capital, na visão de internas. Quem quiser saber detalhes de corporação, a nomeação teve resistên-
A piauí pediu um posicionamento da Bolsonaro: lamentou publicamente a cada uma delas só terá acesso aos dados cia da Casa Civil, responsável por ana-
PRF em relação às incongruências da ver- morte de um policial rodoviário causada no ano de 2121, pois o governo federal, lisar o currículo de servidores em cargos
são dos seus policiais no episódio de Vargi- pela Covid. O presidente não gostou e, para proteger o policial, decretou sigilo de direção, e só foi efetivada em abril
nha. Em uma resposta curta, a corporação para o seu lugar, escalou Eduardo Aggio de cem anos sobre os processos. A deci- daquele ano. Empossado, aproximou-
negou o uso do aplicativo Bruno Espião de Sá, na época assessor da Secretaria- são do governo foi tomada quando o se do então governador Wilson Wit-
e disse ter adotado “todos os procedimen- Geral da Presidência da República. portal Metrópoles, com base na Lei de zel, hoje desafeto da família Bolsonaro,
tos e análises preliminares possíveis e Com Aggio de Sá, a PRF tentou am- Acesso à Informação, pediu para conhe- do então prefeito do Rio, Marcelo Cri-
pertinentes acerca desses fatos e condu- pliar os laços com o governo. Os policiais cer o conteúdo das sindicâncias. vella, hoje no ostracismo político, e de
tas, não tendo sido identificado nenhum rodoviários passaram a ser presença obri- Enquanto enfrentava acusações e Flávio Bolsonaro, a quem oferecia se-
indício de irregularidade acerca dos acon- gatória nas motociatas de Bolsonaro, nas condenações, Vasques sempre esteve aten- gurança, prestada por uma equipe de
tecimentos”. A Polícia Militar, por sua quais a PRF ignora abertamente uma in- to à política, embora não à ideologia. policiais rodoviários, sempre que o par-
vez, disse que o caso foi “devidamente fração recorrente do presidente, a de não Licenciou-se da corporação entre 2007 e lamentar estava no Rio. Em pouco tem-
apurado” pela própria corporação, mas usar capacete. Mas não conseguiu avan- 2009 para ser secretário de Transportes, po, caiu nas graças do clã Bolsonaro e
não informou as conclusões da investi- çar o quanto desejava. Tentou atuar dire- de Administração, de Segurança e Defe- foi recompensado com a direção-geral
gação. (Os 22 PMs têm se negado a depor tamente em investigações policiais, nos sa Social da Prefeitura de São José, na da PRF, por indicação de Flávio.
à PF, sob o argumento de que o caso é de moldes daquela portaria de Sergio Moro,
competência da Justiça Militar.) A defe- buscou estender seus braços aos portos e
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sa dos policiais rodoviários envolvidos aeroportos e propôs à Força Aérea Brasi-
não se pronunciou. leira (FAB) participar de operações ligadas
ao transporte de cocaína em aeronaves.

D
iante de casos de violência brutal, Não teve sucesso e, em abril de 2021, ao PARA RECEBER GRANDES
a PRF parece hoje uma sombra da divulgar que a PRF fizera uma investiga-
EXPOSIÇÕES E MANTER UM
força que surgiu em 1928 com o ção que, na verdade, fora realizada pela
DOS MAIS IMPORTANTES
nome singelo de Polícia de Estradas e PF, Aggio de Sá acabou demitido.
que, na década de 1960, já batizada de Assim, chegou a vez do policial rodo- ACERVOS DE ARTE BRASILEIRA,
Patrulha Rodoviária Federal, ganhou viário Silvinei Vasques, indicado para o A PINACOTECA DE SÃO PAULO
popularidade entre a garotada com o se- cargo por Flávio Bolsonaro. Nascido no PRECISA DE VOCÊ!
riado Vigilante Rodoviário, exibido na TV interior do Paraná mas criado em Santa
Tupi, em que o inspetor Carlos e seu cão Catarina, Vasques, de 47 anos, segundo
Lobo combatiam o crime nas estradas a dos quatro filhos homens de um motoris-
bordo de um Simca Chambord ou uma ta e uma dona de casa, é dono de uma
Harley-Davidson. Naquela época, a PRF biografia profissional pouco recomendá-
era apenas uma guarda armada. Ao fla- vel para um agente da lei. Em 1997, com
grar algum crime na estrada, detinha o apenas dois anos de carreira na PRF, Vas-
infrator e o levava até a delegacia. ques e outros quinze policiais rodoviários
Na Constituição de 1988, a corporação foram acusados de pedir propina para
ganhou o nome de Polícia Rodoviária permitir que uma empresa de guincho
Federal e passou a integrar o sistema de atuasse nas rodovias federais da região de
segurança pública brasileiro, já com po- Joinville, em Santa Catarina. Quem não
deres para investigar por conta própria se submetia à chantagem ilegal era impe-
crimes relacionados ao sistema viário. dido de trabalhar na região. Segundo
Seja um doador do Programa de
Dois anos depois, deixou de ser subordi- consta no inquérito, Vasques ameaçou
Amigos da Pina e garanta:
nada ao Departamento Nacional de Es- matar um deles “com um tiro na testa”,
tradas de Rodagem (DNER) e ficou debaixo pois “nada tinha a perder”. Ao investigar
— Acesso grátis e ilimitado ao museu
do guarda-chuva do Ministério da Justiça, o caso, a Polícia Federal descobriu depó-
Imagem: Levi Fanan.

— Previews de exposições com os artistas


ao lado da Polícia Federal, inaugurando aí sitos suspeitos nas contas bancárias dos
— Visitas guiadas com curadores
a rixa que se arrasta até hoje. Os delegados policiais, incluindo Vasques. A investiga- — Descontos em instituições parceiras
da PF chamam os policiais rodoviários, ção, porém, se arrastou por oito anos, o E mais!
jocosamente, de “patrulheiros”, para lem- Ministério Público Federal só denunciou
brá-los dos tempos em que eram apenas os policiais em 2009 e, dois anos depois,
guardas armados na beira da pista, um o Tribunal Regional Federal (TRF) deter-
tipo de policiamento tido como inferior. minou que o crime estava prescrito.
Nas duas primeiras décadas deste sé- Em 2000, Vasques espancou o frentis- Acesse:
https://pinacoteca.org.br
culo, a PRF envolveu-se em dois escânda- ta de um posto de combustível no interior
Faça parte!
[email protected]
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U
ma vez no comando da corpora- Janeiro usou 5 milhões de reais para
ção, Silvinei Vaques cumpriu à contratar a Cognyte Brasil, subsidiária
risca a cartilha bolsonarista – no da empresa homônima, também israe-
acessório e no principal. Quando o de- lense, para o “monitoramento de redes
putado Eduardo Bolsonaro ficou irritado sociais”, o que, em tese, dispensa medi-
com a abordagem de policiais rodoviá- das judiciais. A PRF diz que precisa mo-
rios a um motorista que levava uma nitorar as redes para investigar delitos
arma no carro no interior paulista, Vas- ligados direta ou indiretamente a rodo-
ques correu para mudar o modo como vias, como tráfico de armas, narcotráfi-
a PRF fazia a fiscalização. Quando o co e roubo de veículos. (Meses depois,
ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio já como superintendente no Rio, Vas-
de Freitas, hoje candidato bolsonarista ques assinou convênio com o Ministério
ao governo de São Paulo, reclamou das Público do estado para “viabilizar o inter-
multas aos motoristas de caminhões câmbio de dados e informações”. Inclui-
com traseira elevada, Vasques foi aciona- se, aí, informações de inteligência.)
do – e, segundo o próprio Freitas contou Foi no governo Bolsonaro, no entan-
num grupo de WhatsApp, combinou to, que o setor de inteligência da PRF ga-
“com o diretor-geral da PRF que monta- nhou impulso. Tanto que, em fevereiro
remos um grupo de trabalho para fazer passado, a Conectas pediu ao Ministério
um ‘revogaço’ de normas”. Público Federal que investigue uma pla-
Mas Vasques é impetuoso também no taforma chamada Córtex. Pouco conhe-
principal da cartilha bolsonarista. Sua cida, essa plataforma reúne mais de 160
gestão tem sido marcada pelo investi- bases de dados de pessoas físicas e de
mento em inteligência da PRF, com a empresas, como números de CPF, ende-
compra de softwares de rastreamento, reços, telefones e rendimentos, inclusive
identificação e interceptação de números o monitoramento de placas de veículos
de aparelhos celulares. É um mau sinal. por câmeras da PRF. Formalmente criada
A PRF é uma polícia ostensiva, e não judi- em 2021, a Córtex é gerenciada por um
ciária, como a Polícia Federal, a quem órgão do Ministério da Justiça, cujo
cabe investigar crimes. Por isso, é estra- nome é Secretaria de Operações Inte-
nho seu interesse em investigações sigilo- gradas (Seopi). A Seopi também é pouco
sas, muitas delas com equipamentos conhecida, mas ganhou notoriedade
invasivos, cujo uso só é possível com au- quando o repórter Rubens Valente reve-
torização judicial. “Não há controle nem lou no portal UOL que o órgão havia pro-
transparência sobre a atividade de inteli- duzido um dossiê com informações
gência policial no Brasil, o que aumenta sobre policiais antifascistas. O dossiê fora
o risco de que esses equipamentos sejam
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS feito logo depois que os policiais lança-
utilizados com fins políticos, violando ram um manifesto contra a “neutraliza-
uma série de garantias fundamentais”, ção dos movimentos populares” e a favor
alerta Gabriel de Carvalho Sampaio, da de uma “aliança popular antifascismo”.
Conectas Direitos Humanos, uma ONG Em setembro do ano passado, cinco
na qual ele coordena um programa de meses depois de assumir a direção-geral,
combate à violência institucional. Vasques fechou novo contrato com a
O incremento em inteligência come- Cognyte pelo mesmo valor de 5 milhões
çou pouco antes do governo de Bolsona- de reais para “migração do sistema Verint
ro. Em março de 2018, ainda sob Michel Web Intelligence”. De acordo com o con-
Temer, a superintendência da PRF em trato obtido pela piauí com base na Lei de
Goiás contratou a TechBiz Forense Di- Acesso à Informação, entre as “atividades
gital, que representa no Brasil a empresa de inteligência” do sistema está “coletar
israelense Cellebrite, conhecida por de- dados nos aplicativos de trocas de mensa-
senvolver programas de espionagem. gem WhatsApp e Telegram, de forma
Entre os produtos adquiridos por 791 mil não intrusiva”. O contrato diz que a PRF
reais, conforme o contrato obtido pela precisa do software para cumprir dois ob-
piauí, está um software que extrai conteú- jetivos: ficar no encalço de organizações
do armazenado em nuvem (UFED Cloud criminosas, cujos integrantes usam as pla-
Analyzer), algo que só pode ser feito taformas, e dos movimentos sociais, cujas
com aval da Justiça. Procurada pela re- mobilizações de rua podem “afetar a livre
vista para explicar a compra do softwa- circulação nas rodovias federais”.
re, a PRF informou que usa a ferramenta O software é semelhante ao Cellebrite,
para “prestar apoio técnico, mediante que organiza as informações que apare-
expressa autorização judicial, às polícias cem nos aplicativos de mensagem, como
judiciárias e ao Ministério Público”. conversas, áudios e vídeos. O problema é
A piauí quis saber se alguma vez, de 2018 que, para obter tais informações, é preciso
para cá, a Justiça autorizou a PRF a ex- introduzir um aplicativo espião no celular
trair conteúdo das nuvens. A corporação do investigado, o que só pode ser feito
disse que não pode revelar essa infor- com autorização da Justiça. Por isso, o
mação, pois “o inquérito policial é sigi- Ministério Público Federal considera
loso por natureza e, como a PRF atua o contrato da PRF ilegal. “Não se trata de
em apoio, as informações sobre eles investigação com o objetivo de instaurar
devem ser fornecidas pela autoridade um inquérito policial, mas de atividade
policial responsável”. de inteligência, de coleta e análise de in-
Em dezembro, um mês antes do co- formações, algo que pode ou não se tor-
meço do governo Bolsonaro, a Superin- nar um inquérito”, diz um procurador
tendência Regional da PRF no Rio de especializado no assunto, que pede o

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anonimato para não se indispor com as a atirar com seus fuzis M-15 e 7.62. No to- infração que Bolsonaro comete nas suas certeza que será feita a justiça e todos
polícias. “E quebrar sigilo sem ordem ju- tal, os policiais fizeram 1,4 mil disparos. motociatas diante dos olhos dos homens nós queremos isso aí. Sem exageros e
dicial no trabalho de inteligência é cri- Depois de uma manhã inteira de tiro- da PRF. Santos foi revistado, espirraram sem pressa por parte da mídia que sem-
me.” Indagada sobre esse aspecto, a PRF teio, a operação resultou na segunda mais gás de pimenta no seu rosto, aplicaram pre tem lado, o lado da bandidagem.”
disse apenas que “por não ser intrusiva, [a letal da história do Rio. Entre os 23 mor- um “mata-leão”, jogaram o rapaz na tra- O inquérito da Polícia Federal que in-
tecnologia] está em conformidade com a tos, havia cinco foragidos da Justiça e uma seira de uma viatura, atiraram uma bom- vestiga o caso não havia sido concluído até
legislação pátria”. Um dos proprietários moradora da comunidade da Chatuba, ba de gás lacrimogêneo e fecharam a o fechamento desta edição da piauí. Os
da representante brasileira da Cognyte, que morreu atingida por uma bala perdi- porta. Santos, que fazia tratamento psi- três policiais rodoviários envolvidos na
Lincoln Egydio Lopes, não quis se mani- da. Do lado da polícia, houve um perito da quiátrico, morreu em pouco mais de um morte por asfixia de Santos também são
festar, alegando sigilo contratual. Polícia Civil ferido sem gravidade. De minuto, no que ficou conhecido como alvo de uma sindicância da PRF. Recente-
novo, há suspeitas de execução. Segundo “câmara de gás” da PRF. Em nota divulga- mente, em reunião com integrantes da

S
ete meses depois da chacina de Var- o laudo do IML, ao qual piauí teve aces- da no mesmo dia, a corporação disse que 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do
ginha, as tropas de elite da PRF vol- so, um dos corpos levou um tiro na nuca. usou “instrumentos de menor potencial MPF, responsável pelo controle externo das
taram suas atenções para a Vila A exemplo do que ocorreu em Varginha, ofensivo” para conter Santos e que “o polícias, o diretor-geral Silvinei Vasques
Cruzeiro, uma comunidade carioca ocu- boa parte dos cadáveres foi levada ao Hos- abordado veio a passar mal” na viatura prometeu suspender temporariamente as
pada pela facção criminosa Comando pital Getúlio Vargas, na Penha. “durante o deslocamento” até a delega- ações das tropas de elite da PRF, mas sem
Vermelho (CV). Oficialmente, a chacina Ainda naquela terça-feira, dia 24, Bol- cia, sendo “socorrido de imediato”. se comprometer com prazos. (No dia 21
que resultou da operação, com a morte sonaro elogiou a operação no Twitter. Era uma nota inteiramente mentirosa de julho, a PRF emprestou oito caminho-
de pelo menos 23 pessoas, foi comanda- “Parabéns aos guerreiros do Bope e da – e mentirosa diante dos olhos do país netes blindadas para a PM numa ação no
da pelo Bope. No mesmo dia, a entrevis- Polícia Militar do Rio de Janeiro, que inteiro, que viu as imagens gravadas por Complexo do Alemão, que terminou em
ta à imprensa para falar da matança na neutralizaram pelo menos vinte margi- testemunhas. Mesmo assim, a PRF levou outra chacina: dezoito mortos, entre eles
Vila Cruzeiro foi conduzida pelo secre- nais ligados ao narcotráfico em confron- quatro dias para mudar o discurso por uma moradora que estava dentro do seu
tário da Polícia Militar, Luiz Henrique to, após serem atacados a tiros durante completo. Em nova nota à imprensa, carro. Dessa vez, a corporação não parti-
Marinho Pires, e, para todos os efeitos, a operação contra líderes de facção crimi- sem pedir desculpas pelo que dissera an- cipou diretamente do confronto.) Com a
PRF teve uma participação lateral. Só que nosa”, escreveu, acrescentando em se- tes, afirmou que assistia “com indigna- bênção de Vasques, Alexandre Silva, o
foi o contrário. O Bope atuou como co- guida: “A ação contou com apoio da ção os fatos ocorridos” em Sergipe e que policial rodoviário que coordenou a ope-
adjuvante e quem comandou a operação Polícia Federal e da Polícia Rodoviária “não compactua” com as medidas adota- ração na Vila Cruzeiro e, sozinho, deu 63
foi a própria PRF. “A tropa de elite da Po- Federal.” Na entrevista, o comandante das na abordagem, nem com “qualquer tiros naquela manhã, virou superinten-
lícia Rodoviária foi protagonista o tempo do Bope, Uirá do Nascimento Ferreira, afronta aos direitos humanos”. O presi- dente da PRF no Rio de Janeiro em 23 de
todo. O Bope só assumiu a bronca por- fez questão de responsabilizar o STF pelo dente Bolsonaro levou cinco dias para junho, na véspera do aniversário de um
que a legislação impede essa liderança da fato de criminosos de outros estados se falar do episódio – e sem qualquer indig- mês da matança. Dias depois, recebeu do
PRF”, disse à piauí uma fonte que partici- refugiarem no Rio. Isso porque em 2020, nação. “Não podemos generalizar tudo Bope o diploma informal de “soldado
pou da operação policial. em razão da pandemia e da multiplicação o que acontece no nosso Brasil. A PRF faz cruel”, tradicionalmente dado a policiais
A liderança da PRF afronta o Ministério de chacinas promovidas pelas forças po- um trabalho excepcional para todos nós. com dedo leve no gatilho. Procurado pela
da Justiça que, em janeiro de 2021, deter- liciais, o STF restringiu as operações poli- A Justiça vai decidir esse caso. Tenho piauí, ele não quis se pronunciar. J
minou que a corporação poderia apenas ciais no estado.
“prestar apoio logístico” a outras polícias O Ministério Público Federal abriu
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nesse tipo de operação. Nos primeiros investigação sobre o caso. “Não cabe à PRF
dias de maio, a Polícia Federal soube que fazer uma operação policial em um local
havia líderes do CV do Pará escondidos na longe de estradas federais, como é o caso
Vila Cruzeiro, entre eles Marlon da Silva da Vila Cruzeiro”, afirmou à piauí o procu-
Costa, o Déo, suspeito de participar de rador Eduardo Santos de Oliveira Beno-
ataques a policiais paraenses. Embora o nes. Em 8 de junho, a pedido de Benones,
caso não tivesse qualquer conexão com as a Justiça Federal, em decisão liminar,
rodovias federais, a PRF foi informada da proibiu a participação da PRF em opera-
suspeita e acionou, novamente, o GRR e o ções policiais fora das rodovias. Para a juíza
COE, cujo chefe, Alexandre Carlos de Frana Elizabeth Mendes, a PRF tem a re-
Souza e Silva, encarregou-se de coorde- ponsabilidade de fazer o patrulhamento
nar a operação na Vila Cruzeiro, com ostensivo, fiscalizar e controlar as rodo-
aval do diretor Vasques. vias federais, “não havendo nenhuma
Na noite de 23 de maio, uma segun- norma que atribua ao aludido órgão o
da-feira, a PRF acompanhou, não se sabe exercício de atividades de polícia judiciá-
como, uma reunião de integrantes do ria e administrativa fora dos limites esta-
CV na Vila Cruzeiro na qual ficou deci- belecidos na Constituição Federal, quais
dido que, entre o fim da madrugada e o sejam e repita-se, nas rodovias federais”.
início da manhã do dia seguinte, o gru- A liminar seria cassada dias depois pelo
po seria reforçado com outros integran- Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
tes do CV do vizinho Complexo do Até o fim de julho, a investigação do MPF
Alemão e tentaria tomar duas comuni- sobre as mortes não havia sido concluída.
dades da facção rival Terceiro Comando Ao contrário do que ocorreu em Vargi-
Puro (TCP): Timbau, no Complexo da nha, o Instituto Nacional de Criminalís-
Maré, e São Carlos, no Estácio. tica não foi acionado pela Polícia Civil
Como sabiam que, para chegar ao para periciar o local do crime e reconsti-
Complexo do Alemão, os criminosos pas- tuir o suposto confronto. Procurado, o de-
sariam por um pequeno morro coberto de legado Alexandre Herdy Barros Silva,
mata nos arredores, 41 policiais do GRR e titular da Delegacia de Homicídios da
do COE (dos quais cinco haviam partici- Capital, não quis se pronunciar.
pado da chacina em Varginha), posiciona- Um dia depois da chacina no Rio de
ram-se ali na madrugada do dia 24, com Janeiro, às onze da manhã do dia 25, Ge-
o apoio de dez caminhonetes blindadas. nivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi
Outros quarenta policiais do Bope esta- parado por uma equipe de policiais rodo-
vam na retaguarda. Quando os crimino- viários porque dirigia uma moto sem
sos do CV entraram na mata, por volta das capacete na rodovia BR-101, em Umbaú-
4h30, os policiais rodoviários começaram ba, no interior de Sergipe. Era a mesma Temporada 2022 Reconstrução
Parceiro de mídia

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submundos da política

O NINHO DA
SERPENTE
O sistema de comunicação que levou
Bolsonaro a vencer as eleições de 2018

CONSUELO DIEGUEZ

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Jair Bolsonaro no Aeroporto Afonso Pena, em Curitiba,

O
WhatsApp de Alex Melo, um que o deputado Jair Bolsonaro havia se de cara, estranhou a ausência de lideran- res da família”, contrário ao comunis-
pequeno fabricante cearense dirigido diretamente a ele. Católico, viu ças guiando a multidão. Deu-se conta de mo e a favor da ordem, dos militares e
de painéis de sinalização, exi- no recado algo maior: no seu entendimen- que a maioria das pessoas, como ele, da propriedade privada. Se pensar as-
biu uma notificação de men- to, “aquilo era mão do Divino, mesmo”. estava ali apenas por causa da sensação sim era ser de direita, então ele se orgu-
sagem. Por alguns instantes, Bolsonaro participava dos quatrocentos de que “tinha algo errado no Brasil”, e lhava de seu posicionamento político
ele desconfiou da autenticidade do re- grupos de direita nos quais Melo também percebeu que aquela onda ganhava – e mais ainda de não estar sozinho,
metente, mas ainda assim resolveu abrir atuava – um universo de cerca de 40 mil cada vez mais força. pois, afinal, lá fora havia uma multidão
o áudio. Ao ouvir a voz, a dúvida desa- pessoas, considerando que, à época, cada O que no início parecia um bando que enxergava o mundo da mesma
pareceu, e ele sentiu o coração acelerar: grupo no WhatsApp podia ter até cem de insatisfeitos sem comando logo se forma que ele. Trocar ideias nas redes
Ô, Alex, tudo bom? Aqui é Jair Bolso- participantes. Ao ouvir a voz do deputado, organizou em grupos de WhatsApp, sociais o fez começar “a conectar as
naro. Eu tô te acompanhando aqui nos o empresário teve certeza de que estava que em pouco tempo se desdobrariam coisas”. Pelas informações que recebia
grupos. Peguei três áudios teus aqui. Es- “predestinado pelos céus a ajudar Bolso- no movimento Brasil Indignado, com nos grupos, entendeu que “o proble-
tou vendo que você tá com o coração naro a mudar o Brasil”. milhares de cearenses culpando os go- ma no Brasil era a esquerda, que ridi-
aberto para o Brasil. É o meu caso. Des- Alex Melo, então com 43 anos, nunca vernos do PT e a esquerda por todo o cularizava tudo o que eles mais
culpe a modéstia, mas eu tenho quinze se interessara por política. Sua vida era seu descontentamento. Essa turma, ao prezavam”. E a esquerda não era só o
anos de Exército, dois mandatos de verea- dedicada a tocar a empresa, cuidar da lado de outros movimentos de direita sur- PT: havia também o PCdoB, o Psol, o
dor, 25 anos de deputado federal. É isso, família e sair com os amigos. Nas mani- gidos da mesma forma país afora, não PSB. Até o centro-direitista PSDB inte-
Alex. Tamo construindo. Estou vendo aí festações de 2013, contudo, começou a deixaria as ruas até o impeachment de grava o rol dos “comunistas”.
a possibilidade de mudar em 2018. Que- achar que não podia mais ignorar o que Dilma Rousseff. E esse seria o principal Nessas conversas, ele era alertado de
ro vir pra presidente. Eu não posso dizer estava acontecendo no Brasil. Embora os combustível para a campanha de Jair que a esquerda queria transformar o
mais do que isso aqui, porque a multa da primeiros protestos tivessem sido organi- Bolsonaro à Presidência. Brasil numa grande Cuba ou numa Ve-
esquerda é pesada. Eu tenho vários pro- zados por movimentos de esquerda, dos Antes de participar das conversas nezuela. Também acabou convencido
cessos. Não é brincadeira não, cara. Mas quais sempre estivera apartado, Melo se nos grupos, Melo não tinha ideia de de que a ditadura militar tinha sido
vamos lá lutar. Vou continuar te ouvindo deu conta de que “milhares de pessoas que, no espectro ideológico, seria ca- uma coisa boa para o país e de que os
aqui. Um dia a gente pode se conhecer. estavam desgostosas com alguma coisa, rimbado como um sujeito de direita. relatos de tortura de presos políticos, de
Era julho de 2015. Superado o espanto, por algum motivo”. Mesmo sem enxer- Assim como seus companheiros do censura e de cassação de parlamentares
Melo entrou em êxtase. Ouviu o áudio gar o cenário político com muita clare- Brasil Indignado, ele era conservador, depois de 1964 eram uma “invenção da
repetidas vezes, encantado com o fato de za, ele também foi para a rua protestar e, religioso, defensor dos chamados “valo- esquerda para desmoralizar o Exército”.

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FRANKLIN DE FREITAS_2018
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em março de 2018: como um cadete entusiasmado, ele achava o máximo a ideia de, apenas com um celular na mão, conseguir se comunicar com seus milhões de seguidores Brasil afora

Aos poucos, Melo se sentiu seguro tou indo praí.” O deputado fora convidado ligou para Bolsonaro e foi só então que verde-amarelas. Ficou animado. Faltando
para opinar, e nessas trocas de mensa- para dar uma palestra sobre porte de arma revelou seu plano: uma hora para o avião pousar, mais gente
gens nos grupos descobriu o deputado em uma cidade do interior. Desde que – Estou juntando umas pessoas para começou a chegar. Por volta das dez e
Jair Bolsonaro, que verbalizava da forma vira os vídeos, Alex matutava sobre uma receber o senhor no aeroporto. meia, havia cerca de 150 pessoas. No mo-
“mais simples e clara possível” tudo o ideia que considerava “uma iluminação”: A reação de Bolsonaro o deixou co- mento em que Bolsonaro apareceu no
que ele acreditava. Sua admiração pelo – Bolsonaro, é o seguinte: o senhor movido: portão de desembarque, foi recebido com
parlamentar “autêntico” aumentava a tá com uma energia enorme, mas não tá – Rapaz, será que vai ter pelo menos festa. “A turma gritava ‘Bolsonaro, Bolso-
cada dia. O que ele não sabia era que sabendo usar essa energia. Eu soube umas cem pessoas lá? Porque você sabe, naro!’, ‘Mito, mito!’. Tocavam corneta,
Bolsonaro também prestava atenção que o senhor tá vindo para cá, e eu tô eu sou muito odiado. batiam palmas”, contou o empresário.
aos debates dessas redes – e foi assim com uma ideia que vai amplificar o seu Melo se compadeceu e, depois de Melo registrou o momento com o ce-
que o deputado chegou até o empresário. discurso pelo Brasil. desligar o celular, chorou. “Fiquei com lular, filmando a si mesmo e ao grupo. Os
O que se seguiu àquele primeiro conta- Naquele momento, Melo não contou a muita pena dele na hora que ele me presentes não chegavam a encher o sa-
to Alex jamais poderia imaginar: uma Bolsonaro que sua intenção era fazer uma disse aquilo”, contou, tempos depois. guão do aeroporto, mas o ângulo do vídeo
ideia sua acabaria por revolucionar a recepção para ele no aeroporto de Fortale- Por volta das oito da noite, foi para o dava a impressão de haver ali um público
campanha presidencial do candidato. za. Por conta própria, ligou para o gabinete aeroporto com as bandeiras, acompa- muito maior. Durante a filmagem, ele
Numa tarde de sábado, menos de um do parlamentar em Brasília e descobriu o nhado de uma prima. Como não viu alternou entre a câmera frontal e a tra-
mês depois da primeira troca de mensa- dia e a hora do desembarque na capital ninguém no saguão, ficou preocupado. seira, e capturou Bolsonaro cumprimen-
gens, Melo assistia à tevê quando seu cearense: 13 de agosto de 2015, quinta-fei- Duas horas antes da chegada do voo tando os apoiadores. Depois, editou as
celular começou a vibrar. Ao olhar para ra, às onze da noite. “A energia em torno havia apenas cinco pessoas. Ele subiu imagens e as colocou nas redes sociais.
a tela, quase foi ao chão. Era Bolsonaro: de Bolsonaro já existia. Ele precisava de até o primeiro andar para comer um A gravação viralizou imediatamente.
– Ô Alex, tudo tranquilo, cara? Estou um mecanismo para explodir, para acen- sanduíche e, enquanto fazia o pedido, Melo, porém, só se daria conta do impac-
na estrada. Meu carro quebrou e eu re- der essa bomba. E a recepção nos aeropor- alguém bateu a mão em suas costas. to causado pelo evento no dia seguinte,
solvi te ligar pra gente falar de política. tos foi esse mecanismo”, explicou Melo. Era Carlos Bolsonaro, que o vira com as ao ler os jornais locais e assistir aos noti-
– Pois não, deputado, é um prazer. Definida a estratégia, Melo come- bandeiras e quis saber do que se tratava ciários cearenses. “Deputado carioca é
A conversa ganhou corpo, e Alex co- çou a convidar apoiadores pelas redes aquilo. O empresário contou o que es- ovacionado no aeroporto de Fortaleza”,
mentou sobre a ida de Bolsonaro ao Cea- sociais. No dia da chegada, tirou a tarde tava planejando, e os dois se abraçaram. anunciou a manchete de um deles. Dali,
rá, porque tinha visto uns vídeos em que para confeccionar bandeiras com o Quando Melo voltou ao saguão, já ha- a notícia saltou para a imprensa nacional.
ele anunciava: “Pessoal de Fortaleza, es- nome do deputado. Perto das 17 horas, via quinze pessoas, vestidas com camisetas Eufórico com a visibilidade que ganhou,

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ANGELI
da e de que a direitização da sociedade barcar grande parte da sociedade no
era coisa do passado.” discurso salvacionista de Bolsonaro.
Outra razão para esses grupos se ma- O mais difícil de entender, contudo,
nifestarem, conforme Reis Filho, tinha a era a adesão à sua fala agressiva. Afirma-
ver com o fracasso de algumas políticas ções como “Vagabundo tem que ser
de esquerda. “Ao abandonar as perspecti- morto” e “É preciso armar a população”
vas reformistas, em particular a ideia de chamavam a atenção em suas redes so-
reforma política, ao longo de catorze ciais. Entusiasmavam sobretudo os mais
anos de poder, o PT e as esquerdas não jovens, que “de um modo geral, desa-
ganharam a respeitabilidade almejada creditam mais dos canais tradicionais de
junto às elites sociais e políticas.” Ao mes- participação política”, disse Alessandro
mo tempo, disse ele, as esquerdas não Janoni em 2016, quando era diretor do
implementaram mudanças profundas instituto Datafolha. Ao mesmo tempo,
em áreas centrais, como saúde e educa- explicou ele, os jovens são os mais vul-
ção. Na visão do historiador, o PT perdeu neráveis a temas como direito à posse de
a perspectiva reformista e se acomodou arma e ações intempestivas contra a cri-
ao velho padrão da política corrupta. minalidade, como Bolsonaro defende.
Bolsonaro se aproveitou desse senti- “Eles acabam se agregando por meio de
Bolsonaro fez um agradecimento públi- Bolsonaro. Uma das líderes do movi- mento de desencanto para vender a ima- afinidades temáticas, e as redes sociais
co a Melo e passou a se referir a ele nas mento Revoltados On Line no Rio, ela gem de outsider em relação ao mundo da potencializam isso”, concluiu Janoni.
redes como “Alex Ceará”. se dizia anti-PT e contou ter ajudado na política, embora estivesse na vida públi- Não à toa, uma das imagens mais repe-
Um mês depois, alguns seguidores de convocação de apoiadores do impeach- ca desde 1988 e praticasse havia décadas tidas pelos jovens naquela época foi o
Bolsonaro pediram a ajuda de Melo para ment de Dilma. Durante as manifesta- uma modalidade da mesma política cor- gesto de Bolsonaro que simulava a em-
organizar uma recepção semelhante no ções de 2013, Ferreson participou do rupta, depois adotada por dois de seus punhadura de uma arma.
aeroporto Val-de-Cans, em Belém (PA). movimento Ocupa Cabral, que acam- filhos. Mas o seu eleitor não via as coisas Mas o público bolsonarista não via
O empresário topou no ato. No dia acer- pou em frente ao prédio onde morava o dessa maneira. No discurso que fez em problema em certos comportamentos do
tado, faltando uma hora para a chegada então governador do Rio, Sérgio Cabral 2016 no Bangu Atlético Clube, o então deputado, considerados por eles “brinca-
de Bolsonaro, havia apenas trinta pes- Filho, para protestar contra a sua gestão. deputado gritou ao microfone: “A es- deiras inocentes”, molecagem sem con-
soas para recepcionar o deputado. Melo, Em 2016, ela e seu grupo passaram a querda pode me acusar de tudo, menos sequência. Acusavam a esquerda de não
mais uma vez, ficou tenso. Olhava para divulgar as viagens de Bolsonaro pelo de...” E a plateia respondeu: “Corrupto!” ter senso de humor, ser professoral e co-
os organizadores de Belém e se pergun- Brasil, ajudando a encher de apoiadores O escândalo das “rachadinhas” viria piar valores de fora para impô-los aos
tava se o ato seria um fracasso. Perto da o saguão dos aeroportos. Ferreson con- à tona somente em 2018, após a eleição. brasileiros. As redes sociais viraram um
hora da chegada, contudo, os apoiadores siderava o deputado a voz da direita, Antes disso, porém, foram ignoradas termômetro da polarização dos brasilei-
começaram a aparecer. Quando Bolso- alguém que defendia os valores do tra- pela Justiça e por parte da sociedade as ros e um desaguadouro de ódio que
naro desembarcou, o saguão estava in- balho e do empreendedorismo, tudo que, evidências de que o patrimônio imobi- transformou a comunicação virtual em
transitável: mais de oitocentas pessoas o na sua visão, a esquerda renegava. “A es- liário da família era incompatível com guerra. Em função disso, a fúria e o res-
receberam aos gritos de “Mito, mito!”. querda nos olha com preconceito. Nos
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS os seus ganhos, conforme denunciou a sentimento entre direita e esquerda – ou
A partir de então, não houve aero- rotula de conservadores e despreza os nos- Folha de S.Paulo em 2018. O que ocor- “coxinhas” e “mortadelas”, como passa-
porto em que o deputado chegasse que sos valores, como se só eles tivessem ra- reu porque, até 2016, Bolsonaro era trata- ram a se atacar os dois espectros políticos
não estivesse lotado de seguidores. zão em tudo”, reclamou. Além disso, assim do com indiferença pela grande imprensa – atingiram níveis impensáveis.
como Bolsonaro, Ferreson acusava o e visto como uma figura caricata que Em maio de 2016, quando a discus-

B
alões verdes e brancos enfeitavam Bolsa Família de sustentar “vagabun- atraía apenas um bando de fanáticos. são sobre o impeachment de Dilma mo-
o salão e o palco do Bangu Atlé- dos”. Eleito presidente, ele não apenas Já naquela época o economista e en- bilizava o Senado, Bolsonaro viajou para
tico Clube num sábado do final manteve o programa (que depois trocou saísta Eduardo Giannetti da Fonseca, Israel com três filhos – Flávio, Eduardo
de julho de 2016. Eram as cores do Par- de nome) como aumentou o valor do autor do livro Trópicos Utópicos, chamou e Carlos –, além do pastor Everaldo Pe-
tido Social Cristão (PSC) que fazia ali benefício, num movimento para atrair a a atenção para o discurso do medo en- reira, presidente do PSC, legenda à qual
sua convenção para referendar a indi- simpatia dos mais pobres. campado por políticos de direita em todo estava ligado. Era uma viagem com o
cação de Flávio Bolsonaro à Prefeitura o mundo. Ao incutir nas pessoas a sensa- intuito de atrair apoio dos evangélicos

O
do Rio de Janeiro e de alguns candida- que levou milhões de brasileiros a ção de que os valores familiares andam para a sua campanha presidencial. Os
tos a vereador, nas eleições daquele ano. se identificarem com a direita e por um fio, que a segurança está amea- Bolsonaro levaram com eles uma equipe
Os candidatos se revezavam no palco, com a extrema direita, e dar sus- çada e a propriedade sofre risco, esses de jornalistas e cinegrafistas para regis-
evocando Deus quase o tempo todo e tentação ao discurso raivoso de Bolso- políticos se apresentam como os líderes trar toda a agenda e postar nas redes
fazendo apelos em nome da família e da naro contra a esquerda? Como um país salvadores que evitarão o esfacelamento sociais. O deputado e os filhos foram
segurança pública. que durante catorze anos apoiou gover- do mundo. Era o caso de Donald Trump, batizados pelo pastor no Rio Jordão, em
Quando Bolsonaro chegou ao clube, nos de esquerda deu tamanha guinada nos Estados Unidos, e de Bolsonaro, no Yardenit (Israel), onde os cristãos acredi-
a plateia ficou extasiada e o recebeu aos ideológica? Como foi possível a criação Brasil. “Quanto mais ameaçador o candi- tam que Jesus tenha sido batizado (o
gritos de “mito” e “Bolsomito”. Enquan- desse batalhão de seguidores que leva- dato pinta o futuro, mais fácil fica vender batismo, na verdade, se deu em uma re-
to caminhava até o palco, era agarrado ram Bolsonaro à vitória em 2018? a ideia da ordem, da rigidez, da seguran- gião situada na Cisjordânia). No dia 12
pelas pessoas. O candidato a vereador Dois anos antes do pleito de 2018, o ça, da polícia”, avaliou Gianetti em en- de maio, Bolsonaro – que é católico –,
Anderson Bourner, um rapaz sorriden- historiador Daniel Aarão Reis Filho ex- trevista concedida a mim em 2016. vestido de camisolão branco, se deitou
te, estava atento aos movimentos do de- plicou assim o crescimento da direita no As redes sociais se mostraram um nos braços do pastor e mergulhou nas
putado. Como a maioria das pessoas no país: “A sociedade brasileira foi sempre terreno fértil para a propagação do águas do Jordão. O evento, claro, virali-
local, ele se considerava de direita e re- muito conservadora, embora o pensa- medo, em posts que pintavam a realida- zou na internet. Foi depois dessa viagem
clamava do “autoritarismo” de seus ri- mento da direita estivesse relativamente de com cores muito sombrias. Os pro- que alguns jornalistas se deram conta da
vais políticos. “A esquerda quer dividir oculto”, me disse em uma entrevista blemas econômicos – como a inflação organização da família Bolsonaro nas
as pessoas entre pobres e ricos, brancos publicada na piauí_120 (Direita volver, e o desemprego –, as invasões de terra redes – movimentação que se agiganta-
e negros, gays e héteros”, me disse Bour- setembro 2016). A razão desse oculta- pelo Movimento dos Trabalhadores Ru- ria em 2018. “Ninguém no Brasil perce-
ner, na época, em uma entrevista para a mento era, em parte, a associação que se rais Sem Terra (MST), a criminalidade e beu o que eles estavam fazendo”, me
piauí. E completou: “Eu tenho amigos faz no Brasil da direita com a ditadura. os escândalos de corrupção eram am- disse um ex-assessor do deputado.
gays de direita que apoiam Bolsonaro. “As direitas, por aqui, sempre recusa- plificados incessantemente na internet,

A
Essa história de homofobia é invenção ram esse rótulo. Essa negação distorcia dando a impressão de que o país estava s manifestações de Junho de 2013
para desmoralizá-lo.” a realidade e gerou, em muita gente, uma mergulhado na desordem, na violência haviam alertado o clã Bolsonaro so-
A cabeleireira Charlo Ferreson tam- espécie de autossatisfação, a ideia de que e na miséria. O temor de que o Brasil bre a força da comunicação virtual.
bém estava impactada pela presença de a democracia no Brasil estava consolida- pudesse entrar em convulsão fez em- Foi Carlos Bolsonaro, então com 30 anos,

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quem primeiro vislumbrou o potencial da tava ao lado das vítimas dos criminosos. Mas àquela altura os smartphones já re- Henrique guarda até hoje um áudio do
rede para a difusão de ideias que não cir- Foi a partir daí que os movimentos de presentavam mais de 90% das vendas de deputado federal chamando-a pelo no-
culavam na mídia tradicional. As pessoas direita abraçaram de vez o slogan “Direi- novos celulares no país e passariam a ser me: “Boa noite, Dai, eu te amo.” Amigos
já haviam organizado comunidades na tos humanos para humanos direitos” – o principal meio de conexão à internet. deles fazem o mesmo com mensagens
internet para compartilhar sua insatisfa- que em 2018 se tornou um dos alicerces Três anos antes das eleições presi- de voz enviadas por Bolsonaro. “Esse é
ção com a ordem social e política quando do programa de governo de Bolsonaro: denciais, Carlos Bolsonaro já usava o o estopim dele: quando Bolsonaro che-
Jair Bolsonaro se apresentou como porta- segurança pública com mão de ferro. WhatsApp para distribuir missões aos ga aos grupos de direita dos estados”, me
voz daquelas bandeiras. Em 2016, os Bolsonaro passaram a agir apoiadores do pai. Verdadeiros soldados disse Henrique.
O pernambucano Mateus Henrique com método e habilidade, tirando o má- digitais, os seguidores de Bolsonaro se Pernambuco foi o primeiro estado em
tinha 17 anos quando fundou com alguns ximo proveito do Facebook e do Insta- espalhavam pela rede em grupos auto- que os conservadores se organizaram
amigos o Direita Pernambuco, o primeiro gram, as principais redes sociais na época. declarados de direita. Carlos e outras em um grupo fechado. Com o tempo,
movimento do estado a abraçar bandeiras Em breve se valeriam com muita força do forças próximas a Bolsonaro eram os passaram a ganhar subgrupos conforme
conservadoras – e por vezes de extrema WhatsApp, que, em razão do aumento da responsáveis por direcionar as missões, a profissão, o gênero, o bairro e os inte-
direita, inspiradas nas ideias do polemista venda de celulares com acesso à internet, fosse o ataque a um opositor, fosse a resses mais específicos dos participantes.
Olavo de Carvalho. “Bolsonaro represen- começou a despontar como a maior pla- reação a um projeto progressista em tra- Mesmo quando a demanda cresceu, Bol-
ta a nossa voz”, explicou o rapaz, que taforma de comunicação, além de ter a mitação no Congresso. As mensagens sonaro dedicou tempo na agenda para
mesmo antes de conhecer a atuação in- vantagem de dispor da mensagem de voz, ganhavam vida própria tão logo caíam interagir com os seguidores. Todos os
tempestiva do deputado em Brasília já que facilitava a comunicação com um pú- no fértil terreno virtual bolsonarista. dias, por volta da meia-noite, Henrique e
planejava comemorar numa praça cen- blico pouco instruído, com baixa capaci- Não havia controle centralizado nem os colegas conservadores percebiam, pe-
tral do Recife o dia do golpe militar. Para dade de leitura e escrita. limites, apenas foco total no objetivo los dados das mensagens que o Whats-
Henrique, os militares haviam tomado o Foram vendidos em 2013, no Brasil, que unia os integrantes do circuito, em App permite acessar, que Bolsonaro tinha
poder em 1964 a fim de salvar o Brasil de 35,6 milhões de smartphones, uma alta seus diversos escalões: destruir o PT. visualizado as conversas. De quando em
uma iminente ameaça comunista. de 123% em relação ao ano anterior, se- Antes da campanha declarada no quando, eles usavam outro recurso do
A célula-mãe do Direita Pernambuco gundo um estudo da consultoria IDC WhatsApp, durante anos Bolsonaro se aplicativo para chamar a atenção do par-
foi uma comunidade do Facebook cha- Brasil, especializada em telecomunica- limitou a se relacionar com apoiadores lamentar: marcavam diretamente o con-
mada “Panelinha da Direita”, que em ção. Em 2014, a venda subiu 55%, che- nas redes sem pedir voto. Nenhum ou- tato de Bolsonaro nas mensagens e o
dezembro de 2014 se viu inundada por gando a 54,5 milhões de aparelhos – e a tro candidato havia usado esse recurso saudavam. “Boa noite, deputado”, diziam
memes do bate-boca entre Bolsonaro e a densidade de telefones (fixos, móveis com tanta habilidade para se comunicar repetidas vezes, e ele aparecia para cum-
deputada Maria do Rosário (PT-RS) – o sem acesso à internet e smartphones) no com os eleitores. Depois que o Direita primentar os integrantes do grupo, que
ex-capitão decidira repetir, no plenário Brasil ultrapassou a dos Estados Unidos. Pernambuco surgiu, Bolsonaro não de- passaram a considerá-lo um amigo.
da Câmara dos Deputados, os insultos Os dados da IDC Brasil mostravam que, morou a ser incluído no grupo do Whats-

O
que havia disparado contra ela em 2003. aqui, havia mais de três telefones para App dos rapazes, no qual postava áudios, próximo passo dos Bolsonaro foi
Nessa época, Bolsonaro passou a vender cada dois habitantes. Em 2015, o merca- dava opinião, conversava com o pessoal. integrar o WhatsApp a todas as
nas redes sociais a ideia de que, enquan- do de celulares retraiu, acompanhando Eduardo Bolsonaro também fazia suas plataformas disponíveis, multipli-
to a esquerda defendia bandidos, ele es- a economia brasileira como um todo. aparições por lá – uma amiga de Mateus cando o alcance das mensagens. No

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ANGELI
pico de Golfe, um clube no Rio de
A estratégia, muito bem calculada,
Janeiro, se deu em 2017, quando fez as
foi posta em prática por blogueiros que
primeiras reuniões com o núcleo duro
se aglutinavam em torno de Carlos Bol-
sonaro, como José Matheus Sales Go- da campanha de Jair Bolsonaro, ainda
mes, Mateus Matos Diniz e Tércio sem Gustavo Bebianno, futuro presi-
Arnaud Tomaz – este último um dos dente do PSL . Carvalho já percebera
administradores das páginas Bolsonaroque havia muita força do ex-capitão nas
Opressor 2.0 (suspensa pelo Facebook redes sociais. “Era o único pré-candi-
em abril de 2018 por divulgar fake news)
dato à Presidência que tinha torcida”,
e Bolsonaro Opressor. disse. Dentro e fora das plataformas, as
Depois da vitória de Bolsonaro, o trio
pessoas buscavam Bolsonaro e seus as-
passou a cuidar da comunicação digital
sessores espontaneamente, perguntan-
do presidente, atuando no que foi cha-
do como poderiam ajudar a pavimentar
mado de “gabinete do ódio”, de onde o caminho do então deputado federal
saíam ataques aos adversários. Desde até o Planalto.
que se instalou no Palácio do Planalto, Foi a partir dessa devoção espon-
o “gabinete” já se envolveu em váriastânea, combinada ao fato de que Bol-
polêmicas, inclusive com figurões do sonaro teria míseros oito segundos de
Facebook, que já era um terreno domi- gadores, esses blogueiros faziam a defesa governo que acabaram deixando seus propaganda eleitoral na tevê e no rádio,
nado pelos conservadores, Carlos Bolso- de Lula e alardeavam seus feitos, atacan- postos depois de sofrerem agressões nas
que surgiu a ideia de fazer a campanha
naro e companhia haviam criado as do com virulência os opositores, motivo redes. Um que acabou limado pelo grupo
online em esquema de voluntariado.
páginas Bolsonaro Opressor e Bolsona- pelo qual suas páginas ficaram conheci- foi o general Carlos Alberto dos Santos
Os ávidos seguidores bolsonaristas rece-
ro Opressor 2.0, em 29 de junho de 2015 das como “blogs sujos”. Cruz, ex-ministro-chefe da Secretariaberiam já pronto o conteúdo que deve-
e 20 de julho de 2016, respectivamente. Com os apoiadores de Bolsonaro, a de Governo, que deixou o posto apenasriam (e desejavam) distribuir.
Nesse processo, o núcleo Bolsonaro história não era muito diferente: eles seis meses após assumi-lo. E saiu de lá A experiência de Carvalho na política
passou a contar com a ajuda de seguido- também atuavam em defesa do candi- atirando: denunciou a existência de um
era quase nula. No entanto, a engrena-
res dispostos a trabalhar para a causa, dato e de suas ideias conservadoras, sem- grupo de extremistas fanáticos dentrogem oculta que ele enxergava entre os
inclusive de maneira voluntária. Um pre atacando aqueles que os criticavam. do governo que plantava notícias falsas
apoiadores do “mito” era perfeitamente
deles era Allan dos Santos, criador do Mas a infantaria virtual bolsonarista ia com o objetivo de destruir reputações.
compatível com uma técnica publicitá-
site Terça Livre, que defendia ideias muito além do que faziam os blogs pe- Gomes, Diniz e Tomaz foram investiga-ria moderna que dominava: personali-
conservadoras já em 2014 no YouTube e tistas. A estratégia escolhida por Car- dos na CPI das Fake News, instalada em
zar o conteúdo de acordo com o rastro
no Twitter. Anos depois, ele se tornaria los Bolsonaro consistia em dar formatos digital deixado pelos usuários de redes
2019. Já Allan dos Santos, depois de ter
um dos soldados mais célebres do bolso- diferentes a uma mesma mensagem, a sociais. Com uma base de seguidores tão
a prisão decretada em 2021 por seus ata-
narismo. O conteúdo gerado por canais depender da rede em que era comparti- apaixonados e dispostos a participar da
ques à democracia, fugiu para os Esta-
como o de Santos era distribuído nas lhada. Assim, de acordo com um ex-as- dos Unidos. Um levantamento informal campanha, a ideia era criar caminhos
redes sociais por outros apoiadores e sessor da família, enquanto a página feito pelo PSC em 2016, quando Carlospara que os entusiastas de Bolsonaro for-
compartilhado por milhões de pessoas. Bolsonaro Opressor, no Facebook, trata-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Bolsonaro ainda era filiado à legendanecessem, de bom grado, mais dados
O Terça Livre ganhou notoriedade va de um assunto de certo jeito, a página sobre seu comportamento e suas prefe-
(hoje ele está no Republicanos), apurou
por ser um dos primeiros canais a atacar Bolsonaro 2.0, na mesma plataforma, o que o financiamento de blogs e redes rências. Seria possível montar, assim,
a exposição Queermuseu – Cartografias abordava por outro viés, deixando para perfis psicológicos e sociais complexos e
bolsonaristas vinha da verba de cerca de
da Diferença na Arte Brasileira, montada o Terça Livre, no YouTube, uma tercei- 6 milhões de reais por mês do própriocompletos, e entregar, a cada um desses
em 2017 em Porto Alegre. Em 9 de se- ra visão do mesmo tópico. A crítica à gabinete do vereador na Câmara Muni- eleitores, conteúdo personalizado.
tembro, o canal publicou um vídeo inti- Queermuseu, por exemplo, foi redigida cipal do Rio de Janeiro. Apesar do projeto ambicioso, a rela-
tulado “Exposição criminosa no de várias formas, replicadas ao mes- ção entre Carvalho e o núcleo duro da
O primeiro grande teste eleitoral da
Santander Cultural”, cuja legenda dizia: mo tempo, com o objetivo de atingir campanha quase azedou três meses
infantaria digital da família Bolsonaro
“DENÚNCIA: pedofilia, zoofilia, pornogra- públicos diferentes. Foi com esse modus após ele ter se juntado ao grupo. Era
foi feito durante a campanha de Flávio
fia e profanação sendo promovidos pelo operandi que, entre 2015 e 2018, as redes um sábado ensolarado de agosto no Rio
Bolsonaro à Prefeitura do Rio, em 2016.
Ministério da Cultura aos olhos de criadas ou ampliadas com a supervisão de Janeiro quando Carvalho chegou à
O pai era contra a candidatura e se en-
crianças! Avaliem o Santander Cultural de Carlos Bolsonaro fidelizaram um ba- gajou muito discretamente na campa- conclusão de que estava de “saco cheio”
com 1 estrela, compartilhem o vídeo e talhão de seguidores simpáticos aos mi- nha do Zero Um. Temia que o filho da “zona” que era a organização da
ajudem a denunciar esses crimes. ABSUR- litares, à defesa da família e à ampliação campanha, até então liderada por Flá-
viesse a ser um mau prefeito, o que atra-
DO!” O vídeo estourou nas redes, conta- do porte de armas. vio Bolsonaro. A engrenagem não gi-
palharia a sua campanha à Presidência.
bilizando cerca de 1,6 milhão de Outra particularidade das redes so- Os dois acabaram se desentendendo, e rava, e o marqueteiro, acostumado a
visualizações e milhares de comentários, ciais explorada pelo clã era a facilidade Carlos e Eduardo, que ficaram do ladoassumir projetos de grandes empresas
até ser removido. Potencializada por ro- com que destruíam reputações dos que do pai, quase romperam com o irmão. privadas, estava perdendo a paciência.
bôs projetados para aumentar a visibilida- atrapalhavam os planos de Bolsonaro. Durante mais uma reunião improduti-
Para evitar que Flávio crescesse entre o
de nas redes sociais (cerca de 13% das Não havia pudor em postar notícias fal- va, ele comunicou a Flávio e ao presi-
eleitorado, a família confiscou suas re-
contas foram identificadas como automá- sas ou, no mínimo, distorcidas. Quando dente do Campo Olímpico de Golfe,
des duas semanas após o início da cam-
ticas), a publicação teve grande repercus- o PSC se coligou a algumas prefeituras do Carlos Ruffato Favoreto, apoiador de
panha, negando o acesso às senhas, que
são, chegando a prejudicar a página do PCdoB do Maranhão, começaram a ser estavam em poder de Carlos. Mesmo Bolsonaro, sua desistência de emplacar
Santander Cultural no Facebook. De- difundidas fotos em que o pastor Everal- o projeto de voluntariado que sua agên-
impossibilitado de fazer postagens, Flá-
pois de receber avaliações e comentários do Pereira, presidente do partido, e o vio terminou a eleição com 14% dos cia, a AM4, havia pensado para aprovei-
negativos durante quatro dias, o centro governador do estado, Flávio Dino, apa- votos – um resultado surpreendente. tar o potencial das redes bolsonaristas.
cultural decidiu encerrar a exposição. reciam juntos, acompanhadas de um Encerrado o pleito municipal, a fa- A situação foi revertida duas semanas
Especialistas em redes sociais dizem texto afirmando que os dois haviam se mília continuou desunida. Mas, a partir
depois, quando Bebianno entrou no cir-
que quem primeiro utilizou o esquema aproximado e, por essa razão, o PSC esta- de 2017, por determinação do pai, Flá-
cuito e telefonou para Carvalho. “Agora
de comunicação virtual segmentada foi va virando comunista. Era uma foto tira- vio passou a cuidar da campanha à Pre-
é comigo”, disse o recém-chegado ho-
o PT, em 2006, na campanha de Lula à da ao acaso, meses antes das eleições, sidência, enquanto Carlos continuou àmem forte de Bolsonaro. “Já combinei
reeleição. A prática de colocar blogueiros numa feira de gado, não num evento frente das redes. Até o segundo turno,
com o capitão, e sou eu que vou coorde-
trabalhando indiretamente para políticos político, mas foi usada para enfraquecer os irmãos não trocaram palavra. nar. Vou organizar essa bagunça.” Para
foi utilizada por apoiadores do presidente a imagem do pastor e justificar a saída de Bebianno, eleger Bolsonaro como presi-

A
e do PT, chegando a ser financiada pelo Bolsonaro do PSC – em 2018, ele se aliou aproximação entre o marqueteiro dente da República era uma missão. Ele
governo. Compromissados não com os ao Partido Social Liberal (PSL), pelo qual Marcos Aurélio Carvalho e Flá- se tornara um híbrido de segurança, leão
fatos, mas com a ideologia dos seus divul- concorreu à Presidência. vio Bolsonaro no Campo Olím- de chácara, enfermeiro, psicólogo, orien-

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E
tador de campanha, anjo da guarda e o Essa era a parte divertida da campa- m abril de 2018, somando seguido- se desvencilharia da impressão carica-
que mais fosse necessário para trazer tran- nha. A peculiaridade nada alegre eram res do Instagram, Facebook, Twitter ta que tinham dele. Na época, Carva-
quilidade a Bolsonaro. Com tanta influ- os acessos de pânico noturnos de Bol- e YouTube, Jair Bolsonaro falava lho negou à imprensa que sua empresa
ência sobre o candidato, Bebianno tratou sonaro, que obrigavam Bebianno a dor- com quase 8 milhões de usuários desses fazia segmentação de usuários ou ajus-
de jogar para escanteio todas as pessoas mir no mesmo quarto que ele nas aplicativos, de acordo com um relatório te de conteúdos.
que considerava nocivas à campanha, viagens. Mais do que isso, o advogado, da agência de Marcos Carvalho, que pas- Em julho daquele ano, marqueteiro
como o ex-policial Fabrício Queiroz, segundo os assessores que os acompa- sara a monitorar as redes do presidenciá- e equipe lançaram as redes sociais do
amigo da família Bolsonaro e assessor no nhavam, tinha poder total sobre o can- vel. Mas esse número não mostrava quem PSL. Àquela altura, Bolsonaro tinha ul-
gabinete de Flávio; Waldir Ferraz, co- didato: decidia desde a roupa que de fato estava sendo alcançado pelas pu- trapassado a soma de 8,6 milhões de
nhecido como “Jacaré”, funcionário apo- Bolsonaro vestiria até a que horas acor- blicações, compartilhadas a perder de seguidores nas quatro redes sociais mais
sentado da Marinha Mercante e assessor daria e com quem conversaria. À noite, vista. Era necessário decupar os dados. importantes, mas a agência acreditava
informal do presidenciável, bem como agia como enfermeiro e lhe dava os re- Assim, a agência detectou que, na- que o conteúdo do candidato vinha sendo
Favoreto e o próprio Flávio Bolsonaro. médios. Por questão de segurança, pas- quele mês, 90% das menções a Bolsona- penalizado pelo algoritmo das platafor-
Bebianno montou um pequeno time sou a carregar Bolsonaro nos ombros ro nas redes vinham de homens. Isso mas. A página de Bolsonaro no Face-
de sua confiança, com Marcos Carva- nas recepções, nos aeroportos e chegou apontava para a necessidade de, no book, por exemplo, existia desde junho
lho, Julian Lemos, sócio de uma empre- a ponto de provar a comida do candida- mundo real, fazê-lo crescer entre o elei- de 2013 e oferecera conteúdo irregular
sa de segurança em João Pessoa, e Luiz to antes que ele a comesse, a fim de se torado feminino. Organizando as intera- ao longo dos anos. Com 5,4 milhões de
Medeiros, sócio de Favoreto, além do certificar de que não estava envenena- ções pela natureza do conteúdo – isto é, seguidores em julho de 2018, o marque-
empresário Paulo Marinho, que em- da. Também interferia nos vídeos para menções negativas, positivas ou neutras teiro não estava satisfeito com a “taxa
prestou sua casa para servir de quartel- as redes sociais, gravados na casa de – e ao mesmo tempo por rede social, de entrega” dos posts realizada pela pla-
general da campanha. A turma era Marinho. Como Bolsonaro tinha difi- região e estado, foi possível visualizar taforma. O frenesi em torno do candi-
inseparável, e Bolsonaro gostava de tê-la culdade de memorizar os textos, era os tipos de “sentimentos” que o candi- dato indicava que ele poderia ter muito
por perto. Para economizar com hotel, comum ter crises de pânico durante as dato despertava e definir estratégias mais engajamento. Era necessário higie-
costumava levar os camaradas para dor- gravações. Nesses momentos, Bebian- para cada grupo e universo digital. nizar as redes de Bolsonaro, oferecen-
mir no seu apartamento em Brasília. Às no saía com ele do estúdio, o levava Num ambiente eleitoral tão polari- do conteúdo mais regular e assertivo a
cinco e meia da manhã, Bolsonaro gos- para o jardim e o acalmava. zado, as citações neutras eram vistas seu público.
tava de despertar aqueles que dormiam Apesar de toda a lealdade, Bolsonaro como vantajosas. Além disso, como Bolsonaro não entendia bem as ne-
nos colchonetes ao som de uma corneta dava mostras constantes de que não ainda faltavam quatro meses até o iní- cessidades que Carvalho e sua equipe
de quartel gravado em seu celular. Ou- confiava inteiramente em Bebianno. cio oficial da campanha, a agência colocavam à mesa. Como um cadete en-
tra de suas manias era passar laquê no Certa vez, no apartamento de Brasília, queria apresentar aos eleitores, sobretu- tusiasmado, achava o máximo a ideia de
cabelo, muito fino e liso, para evitar que perguntou ao advogado e a Julian Le- do aos neutros, um Bolsonaro diferente que, apenas com um celular na mão,
caísse no rosto. “Ele tinha tubos de la- mos se confiavam no presidente do PSL. do conhecido pela maioria. Em pouco conseguia se comunicar com seus mi-
quê espalhados pelo apartamento e pelo Os dois, de pronto, responderam que tempo, recorrendo a uma série de pe- lhões de seguidores Brasil afora. O mar-
gabinete para manter o cabelo arruma- sim. Bolsonaro retrucou: “Pois não de- ças virtuais intitulada Desmitificando queteiro explicava ao presidenciável que
do”, contou um ex-assessor. veriam. Confiar só se confia em Deus.” o Mito, acreditavam que o candidato não bastava “ter um grande número de

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Ministério do Turismo apresenta

HISTÓRIAS
BRASILEIRAS
Realização

piauí_agosto 26.8 — 30.10.2022 37


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ANGELI
e, para isso, é preciso que os seguidores in- período, o candidato do PT à Presidência,
terajam com as redes. E não se interage Fernando Haddad, teve apenas 76 mi-
com robôs. Não adianta você ter 300 mil lhões de interações. A internet já tinha se
seguidores se não há interação. Se fosse as- estabelecido como espaço formador de
sim, ganhava a eleição quem tivesse mais opiniões, e a máquina bolsonarista con-
robôs. Por mais que seja difícil aceitar, a seguiu dar escala à onda anti-PT. Foi nes-
verdade é que eles tinham milhões de segui- se ambiente que Bolsonaro encontrou os
dores que os apoiavam apaixonadamente. conservadores brasileiros e os reuniu em
Ele criou uma máquina de comunicação torno de ideias que, até pouco tempo an-
que não precisava de nada. Por que iria tes, eram inconfessáveis. Para os especia-
para debate? Não precisava. Criou a má- listas em análise política das redes sociais,
quina dele. O “Sistema de Comunicação ficou claro que as forças tradicionais ha-
de Bolsonaro”, como eu chamo. viam menosprezado a internet e os dese-
O que movimentava as redes bolso- jos do eleitorado conservador.
naristas não eram só as curtidas e o Em 2018, Bolsonaro surfou sozinho
compartilhamento. Aqueles seguidores a onda da internet. Os outros partidos
significavam votos. “Não estavam lá só ainda estavam preocupados com o tem-
como audiência. Eles eram de fato um po de televisão, demonstrando um total
apoiadores, um discurso na cabeça e fa- forma arrecadou cerca de 3,5 milhões de exército digital de eleitores”, continuou descolamento da realidade. O PSDB, por
zer uma live”. Isso podia ser suficiente reais de 25 mil doadores. A contribuição o ex-assessor. “Bolsonaro teve 57,8 mi- exemplo, fez uma coligação com oito
para eleger um deputado ou um senador, média foi de 140 reais por doador. lhões de votos. Se as redes atingiam partidos para garantir 12 minutos e 30
mas não um presidente da República. A equipe do marqueteiro explorava a 45 milhões de pessoas, isso significa que, segundos de televisão, contra os 8 se-
Carvalho pretendia levar a base con- disposição dos seguidores bolsonaristas nesse universo de eleitores, tinha a ga- gundos de Bolsonaro. Em 6 de abril de
sistente de seguidores bolsonaristas para para produzir conteúdo digital, identifi- lera dele e mais os que acabaram votan- 2018, dia em que renunciou ao cargo de
um novo ambiente, livre do vício dos cada por Carvalho desde muito antes de do nele sem serem seguidores.” governador de São Paulo para concor-
algoritmos. A intenção era construir do assumir a campanha. A partir dessas A rede bolsonarista teve tanta força rer à Presidência da República, Geraldo
zero as redes do PSL, entregando conteú- colaborações, a equipe fazia um traba- que acabou elegendo em 2018 o desco- Alckmin, enquanto encaixotava seus
do que se adequasse às necessidades de lho extenso de curadoria, não só do nhecido juiz Wilson Witzel para o go- pertences no Palácio dos Bandeirantes,
cada tipo de eleitor: os simpatizantes material gerado pelos apoiadores, mas verno do Rio de Janeiro. “Quem elegeu debruçou-se sobre um mapa do Brasil e
de Bolsonaro; os neutros, propensos a pelo também dos desejos intrínsecos ao con- o Witzel foi o Flávio Bolsonaro, que apontou para um ponto ao acaso. Era a
menos discutir algumas ideias bolsona- teúdo que produziam. concorria ao Senado e deixou Witzel cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre. Ba-
ristas; e os opositores, que expressavam Outra plataforma, batizada de Mar- colar nas redes dele”, disse o ex-assessor. teu repetidamente o dedo sobre o local
nas redes sentimentos negativos em rela- queteiros do Jair, surgiu depois que a agên- Só nesse estado, com 17 milhões de ha- e, como um guardador de relíquias, pa-
ção ao candidato. Entre meados de agos- cia foi surpreendida com uma denúncia bitantes, a rede alcançava 2 milhões de rado no passado, comentou: “Precisa ter
to e o fim do primeiro turno, em outubro, publicada pela Folha de S.Paulo às véspe- pessoas. “O Flávio colocou a rede para alguém aqui que vai votar em você,
o Facebook do PSL alcançou em média ras do segundo turno. A matéria contava funcionar para o Witzel. Enquanto era distribuindo santinho.” Naquela época,
45 milhões de pessoas por semana, de como empresários, entre eles Luciano
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS só o Witzel, a mensagem chegava por Bolsonaro já tinha uma extensa rede de
acordo com relatórios da plataforma. Hang, da Havan, compravam pacotes de meio de disparos de robôs, mas ninguém apoio na internet, inclusive no Acre,
Mas entregar conteúdo, pura e sim- mensagens disparadas em massa pelo reagia, porque o que faz a mensagem ser bem mais eficaz do que os ultrapassa-
plesmente, ainda não bastava. Na con- WhatsApp. Se comprovada, a prática seria compartilhada é o ativismo. Ele entrou dos panfleteiros. Alckmin teve na elei-
cepção da campanha, a palavra-chave considerada ilegal, porque configuraria na corrente sanguínea do Flávio quando ção presidencial apenas 5 milhões de
era colaboração, e a equipe de Carvalho doação de campanha por empresas, proi- começou a ser postado ao lado dele.” votos, ou 4,8% do total.
focou em desenvolver projetos que con- bida pelas leis eleitorais. O bolsonarismo Em 2018, os “robôs”, na verdade, eram A avaliação de Marcos Carvalho é
tassem com a participação ativa dos reagiu nas redes: um movimento espontâ- chips, incinerados depois de serem usa- que, fora do bolsonarismo, os candidatos
apoiadores. De abril a outubro de 2018, neo dos apoiadores deu à luz a hashtag dos. Por esse motivo, é quase impossível até tentaram penetrar nas redes sociais,
foram criadas doze plataformas. Uma #EuSouMarqueteiroDoJair. rastreá-los. Ex-assessores estimam que mas pensavam as ferramentas com uma
das primeiras, a Mais que Voto, concen- As publicações inscritas sob a hashtag na campanha de Bolsonaro tenham usa- mentalidade ultrapassada. Essa também
trou todas as doações para a campanha debochavam da denúncia de impulsiona- dos pelo menos 200 mil deles. foi a autocrítica feita por Bruno Montei-
e automatizou a prestação de contas ao mento. “Sou Marqueteiro do Bolsonaro e Chip da Ucrânia, de não sei onde, de ro, que nas eleições de 2018 cuidou das
Tribunal Superior Eleitoral. Enquanto não cobro nada para fazer isso”, diziam os tudo que era país, porque com o chip eles redes locais de Fernando Haddad na
era deputado, Bolsonaro tinha votado tuítes. Para o eleitorado, era óbvio que o conseguiam fazer chegar as informações a Bahia. Não só o PT, mas as esquerdas
contra o novo Fundo Especial de Finan- candidato jamais precisaria recorrer a um número grande de pessoas. Mas isso como um todo, não entenderam a tática
ciamento de Campanha, apelidado de mensagens automáticas para falsear apoio. importava pouco. Porque para fazer repli- de mobilização que fez o bolsonarismo
“fundão eleitoral”, durante a tramitação A equipe de Carvalho surfou na onda, car as mensagens dele, para conquistar prosperar na internet. “A minha avó foi
da reforma política aprovada pelo Con- transformando o movimento espontâneo aqueles 45 milhões de pessoas, era neces- impactada por essas coisas a partir de
gresso em 2017. Para se manter coerente, em ação oficial da campanha do PSL. Na sária a força da ideia. E eles trabalhavam um grupo criado no posto de saúde em
o candidato dispensou a verba de cerca conta do partido, tuitou: “Os #Marketei- a ideia desde 2013, mas o pessoal não quer que ela era atendida. O grande erro da
de 3 milhões de reais a que tinha direito. rosDoJair não se cansam. São milhões, reconhecer isso. É burrice. “Ah, o Carlos esquerda, além de não avaliar os riscos
A Mais que Voto foi pensada para ir espalhados pelos quatro cantos do país, Bolsonaro é burro.” Burro onde? Ele tra- de Bolsonaro, foi ser ingênua. Porque
além da vaquinha virtual. Não bastasse demonstrando a nossa força, provando balhou desde 2013 com essa comunicação. focou a comunicação nos grupos de po-
a ferramenta embutida que enviava reci- que o Capitão não está sozinho e que jun- Bolsonaro ganhou as redes porque ha- lítica”, disse Monteiro. “A galera bolsona-
bos automáticos à Justiça Eleitoral, eco- tos vamos mudar o futuro do Brasil. O nos- via um campo fértil para as suas ideias. rista não estava fazendo isso. Eles
nomizando carga de trabalho à equipe so muito obrigado! Vocês são demais!” As pessoas acreditavam no que ele dizia. estavam fazendo campanha em grupos
da agência, a plataforma era integrada a Anos mais tarde, um ex-assessor de de academia, de escola, de igreja, de

O
outros serviços que chamavam os apoia- Bolsonaro, especialista em redes sociais s esquemas e as estruturas tradicio- condomínio, de saúde. Foi por aí que a
dores para a campanha – por exemplo, e rompido com a família, diria: nais dos partidos políticos foram coisa se deu. Um negócio completamen-
um serviço de e-mail que enviava instru- A esquerda se ilude achando que os se- atropelados pelo domínio que os te fora do controle mesmo. Aí, quando a
ções a cada 48 horas, como se fosse um guidores eram robôs. Não eram, pelo menos apoiadores de Bolsonaro mostraram ter gente percebeu, já era tarde.” J
dever de casa bolsonarista. Carvalho não naquela época. Os robôs até existiam, das redes sociais. Entre maio e novembro
partia do seguinte conceito: “No mo- mas era para simular número de seguido- de 2018, Bolsonaro fez quase 3 mil publi- Trecho adaptado do livro O Ovo da Serpen-
mento em que damos uma tarefa de par- res. O que muitos críticos dos Bolsonaro cações nas suas diferentes redes. Com te – Nova Direita e Bolsonarismo: Seus Bas-
ticipação ao apoiador, ele passa a ter não entendiam é que robô não gera ativis- elas, atingiu 300 milhões de interações, tidores, Personagens e a Chegada ao Poder,
outro tipo de comportamento frente ao mo digital. O robô só manda a informação. que incluem cliques, curtidas, comentá- a ser lançado neste mês pela Companhia
projeto.” Ao final de seis meses, a plata- O que gera ativismo é o compartilhamento rios e compartilhamentos. No mesmo das Letras.

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REMO
VEMOS
vídeos que violam
nossas políticas.

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Com este texto, a piauí dá início à publicação de um conjunto de reportagens


e portfólios fotográficos que integram o projeto Querino, uma parceria entre
a revista, o Instituto Ibirapitanga e a Rádio Novelo. A iniciativa pretende rever a
história brasileira sob uma ótica afrocentrada, no ano do bicentenário da
Independência, e inclui um site, que já está no ar, e um podcast com oito
episódios, que estreia em 6 de agosto.
O projeto é liderado pelo jornalista mineiro Tiago Rogero, com consultoria
da historiadora Ynaê Lopes dos Santos e a participação de 42 profissionais,
dos quais 28 são negros. Seu nome homenageia o intelectual e abolicionista
baiano Manuel Querino (1851-1923), que realizou estudos pioneiros sobre
o papel dos africanos e seus descendentes no desenvolvimento do Brasil.

PARTE I_ A DEPENDÊNCIA
As histórias de mulheres e seus filhos que lutaram para sair do quarto de empregada
TIAGO COELHO

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N
o período colonial, havia dois tipos de senzala para os escravizados no os patrões manterem os empregados em casa sem horário para ir embora, pois isso
Brasil. Uma, longe da casa-grande, destinada aos que trabalhavam na passou a significar o pagamento de horas extras e outros encargos. “Pesou no bolso.
lavoura. A outra, mais próxima, ocupada pelos negros que cuidavam Assim, os quartinhos foram se revertendo a outros usos, seja depósito, seja escritório,
dos serviços domésticos. Após a abolição da escravatura, uma variação como ocorreu em muitas casas durante a pandemia”, afirma o arquiteto.
da senzala permaneceu na arquitetura das casas brasileiras, na forma Apesar disso, o quartinho, também chamado “dependência de empregada” e que
de edículas onde dormiam os empregados fixos de uma família, desprovidos de normalmente inclui um banheiro, não sumiu dos novos prédios. Havendo espaço,
qualquer amparo legal, recebendo salários exíguos, quando havia. Como a sen- ele reaparece nas plantas e costuma ser um atrativo para os compradores. Se não for
zala, a edícula ficava do lado de fora da moradia principal. possível, que haja pelo menos o banheiro, um cômodo que nunca deixa de constar
O país se modernizou, as cidades cresceram, com edifícios brotando em todo dos apartamentos, mesmo os mais simples. “Até escritórios de arquitetura renomados
canto nas metrópoles. A senzala, porém, continuou fazendo parte do Brasil: os cons- ainda projetam os quartinhos, mas com a possibilidade de o comprador reverter o
trutores e arquitetos jamais se esqueciam de acrescentar aos apartamentos, grandes ou espaço para outra função”, diz Trevisan. “O que não muda nunca nos projetos é a
modestos, o “quartinho de empregada”. “São quartos que, em média, têm 6 m2 e onde disponibilidade de um banheiro de serviço exclusivo para os trabalhadores.”
cabe no máximo uma cama de solteiro, um pequeno armário e, quando muito, algum Durante décadas, milhões de mulheres, sobretudo negras, viveram nos quartos
eletrodoméstico. É quase uma cela, uma herança do período escravocrata”, afirma o de empregadas no Brasil, às vezes com um filho ou uma filha. Muitas ainda vivem.
arquiteto e urbanista Ricardo Trevisan, professor da Faculdade de Arquitetura e Ur- A piauí conta a história de quatro delas. Os relatos descrevem mais que a vida
banismo da Universidade de Brasília e um dos autores, com Maíra Boratto Xavier no espaço apertado do quartinho: eles falam sobre o cotidiano opressivo dessas
Viana, do ensaio O “Quartinho de Empregada” e o Seu Lugar na Morada Brasileira. empregadas, as insidiosas maneiras com que foram exploradas em âmbito domés-
Além do espaço apertado e do mobiliário básico, há outros elementos que apro- tico, a dependência emocional que os patrões e seus filhos produziram nessas
ximam o “quartinho” de seu ancestral escravocrata. “A falta de ventilação e a pouca mulheres, que, a duras penas, um dia conquistaram sua liberdade.
iluminação são parecidas, e esses quartos reproduzem o mesmo esquema de alcovas
voltadas para a área de serviço, como nas senzalas”, explica Trevisan. A procurado-
ra Silvana da Silva, do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ), O QUARTO DA REVOLTA
ressalta a precariedade em que vivem as empregadas: “As condições de conforto e

N
higiene são muito inferiores a qualquer outra parte da moradia. É um padrão que uma folha de papel branco sobre a mesa da sala de uma casa simples na Bai-
a gente vê ainda em muitos apartamentos e casas.” xada Fluminense, João Miguel Araújo, de 41 anos, desenha de memória o
Nessa modalidade de servidão, as empregadas domésticas moram na casa dos quartinho de empregada em que viveu por quase vinte anos com a mãe. “De-
patrões e estão disponíveis de forma quase permanente para o serviço, de dia e de via ter 1,80 por 2 metros. Dá o quê? Pouco mais de 3,5 m2”, ele calcula, enquanto
noite. Embora vivam no fundo dos apartamentos, distanciadas da família que as risca o papel. “Cabia um beliche, um armário pequeno e a máquina de lavar da fa-
emprega, elas têm sua privacidade sempre devassada e sua liberdade restrita às opres- mília. E não tinha janela, só um basculante”, conta, agora desenhando o mobiliário.
sivas paredes do quartinho. “Com esses cômodos no interior dos apartamentos, o “Vai lá dentro, meu filho, e pegue as fotografias”, diz Vera Leide da Silva, de
empregado fica sob a égide do que o patrão permite ou não”, diz Trevisan. 69 anos. Ele retorna com uma caixa, de onde seleciona algumas fotos. Em uma de-
Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 478, aprovada em 2015, os las, Araújo está diante de uma mesa de aniversário. A festa é para ele: um garotinho
empregados domésticos passaram a ter os mesmos direitos que os demais trabalha- negro que comemora seus 6 anos cercado de crianças brancas na casa dos patrões.
dores urbanos e rurais – sob protestos de uma parte da classe média urbana, que Sua mãe, vestindo roupas simples e uma touca de cozinheira, o ajuda a cortar o bolo.
achava que a nova situação iria tornar financeiramente inviável a contratação de Araújo apanha outra fotografia, em que uma mulher branca está sentada na
empregadas. Chamada PEC das Domésticas, a lei, de fato, criou dificuldades para cabeceira de uma mesa de jantar, cercada de filhos e netos. Atrás dela, está o

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Planta de apartamento com quartos de empregada: “Quando me lembro do quartinho, penso como eu era uma criança sozinha. Era eu, minha mãe e a nossa solidão”, diz Ana Paula Pereira

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menino João Miguel, com cerca de 8 anos, e a mãe, de uniforme preto de golas com a leitura ou o tricô. Quando os netos dela chegavam, Araújo se juntava a eles
e barras brancas. para ver televisão em qualquer horário. Também comia as mesmas guloseimas
As fotos dentro da caixa são lembranças de família em dias de festa. Mas a que eram dadas aos netos. Assim, aos poucos, Araújo foi se integrando à família.
touca na cabeça e o uniforme de Leide da Silva mostram que são também me- “A dona da casa me ensinou as regras de etiqueta, para não causar vergonha a ela
mórias da rotina de trabalho de uma empregada doméstica. quando chegasse uma visita: não podia comer muito, não podia falar alto nem de
Ela nasceu em Ipojuca, no litoral de Pernambuco. Em 1968, ainda adolescente, boca cheia. Em resumo, eu não podia ser criança.”
foi trabalhar no Recife como babá de duas meninas gêmeas. Um dia, passava com Leide da Silva diz, com orgulho: “João era muito bem-educado. Quando os
as crianças por uma praça quando foi abordada por uma carioca, cujo marido tra- netos da patroa arrotavam ou não se comportavam à mesa, a avó deles dizia: ‘O filho
balhava temporariamente no Recife. A mulher a chamou para cuidar de seus filhos. da empregada não faz esse tipo de coisa.’” Araújo ouvia a família dizer às visitas:
Leide da Silva aceitou. Um ano depois, o casal precisou voltar para o Rio de Janeiro “Ele é pretinho, mas é muito bonzinho, educado.” Ou: “É filho da empregada, mas
e convidou a babá para ir com eles. Ela sonhava em conhecer a cidade, e aceitou. é como se fosse da família.” Ele comenta: “Quando eu ouvia isso, achava legal,
No Rio, o casal e a empregada foram morar em Copacabana, no apartamento achava que era de verdade. Mas eles diziam isso apenas pra se exibir aos outros.
da mãe da mulher que contratara Leide da Silva. O imóvel tinha três quartos e, Nunca fui da família. Não tive acesso às mesmas escolas. Usava as roupas velhas dos
enquanto trabalhou como babá, a pernambucana dormia no quarto das crianças. netos. Se eu era da família, era bastardo. Tive um ensino muito ruim: fim da dita-
Quando o casal se mudou com os filhos para o bairro do Grajaú, ela passou a dura, educação destroçada. Não tinha nem noção do que fazer para entrar numa
trabalhar para a dona da casa e mudou-se para o quartinho na área de serviço. faculdade. Minha mãe não sabia me dar direcionamento nesse sentido.”
Dormia na cama de baixo de um beliche. A de cima era ocupada pela cozinheira. As festas de Natal são as piores lembranças de Araújo, como quando foram
Aos domingos, de quinze em quinze dias, Leide da Silva tirava uma folga. Em passar o fim de ano na casa de férias da família da patroa em Arraial do Cabo, no
uma delas, conheceu o mordomo de uma família rica da Zona Sul carioca, e os litoral fluminense. Araújo tinha 7 anos e ficou no quarto das crianças, Leide da
dois começaram a namorar. Ela engravidou. Mesmo assim, Leide da Silva não Silva dormiu no quartinho, com a empregada que se ocupava da casa. Pela pri-
parou de trabalhar, apesar dos enjoos contínuos, das dores nas costas e do cansaço. meira vez, a mãe estimulou Araújo a escrever uma cartinha para o Papai Noel
“Eu não podia reclamar porque a patroa dizia: ‘Ficou grávida porque quis. Podia pedindo um brinquedo. Ela achava que não deixariam seu filho de fora.
ter evitado’”, recorda. Até a véspera de ter o bebê, em dezembro de 1980, ela evitou Na hora da distribuição dos presentes, os netos ganharam os brinquedos mais dispu-
se queixar dos incômodos, tanto mais porque a cozinheira havia sido demitida. tados da época. Araújo ainda se lembra de alguns deles, como Pula Pirata e Pega Pulga.
Quase todo o trabalho da casa estava agora em suas mãos. Ele desembrulhou o seu. “Ganhei uma fazendinha feita com tocos de madeira e va-
Quando João Miguel Araújo nasceu, o quartinho passou a ser dela e do bebê. quinhas em miniatura de plástico. Foi decepcionante”, conta. “Lembro que eu chorei
Leide da Silva havia terminado o relacionamento com o mordomo e não tinha muito. Por que Papai Noel tinha dado presentes bons para uns e para mim não?” A mãe
para onde ir. Ela deixava o menino em um moisés enquanto trabalhava. Não teve também se lembra desse Natal: “Eu jamais poderia imaginar que eles não fossem dar
licença maternidade. A criança chorava muito, berrava. “A vizinha de cima uma o carrinho que o João tinha pedido. Tive que explicar pra ele que Papai Noel não existe.”
vez gritou: ‘Vou te denunciar pra polícia por maus-tratos, esse menino chora o dia Na véspera do Natal, Vera Leide da Silva sempre acordava bem cedo para
inteiro.’ Eu não estava maltratando ele. Era colo que ele queria, peito, atenção, mas preparar o almoço que recepcionaria os parentes da matriarca. Depois, passava o
eu tinha que fazer o serviço”, justifica. Até que uma amiga, também empregada, dia ocupada com a preparação da ceia, enquanto seu filho se juntava à família da
deu uma ideia: comprar um canguru usado na feira de Acari, na Zona Norte do patroa. Ainda assim, ele se sentia sozinho, porque a mãe nunca estava com ele:
Rio. Canguru é uma espécie de mochila na qual a mãe coloca o bebê. Leide da continuava na cozinha. “Enquanto moramos lá, não me lembro de um Natal que
Silva passou a cuidar da casa com o menino agarrado ao peito ou preso às costas. eu tenha ficado o tempo todo junto da minha mãe. Ela sempre estava trabalhan-
Ele se aquietou, mas o cansaço dela aumentou, carregando aquele peso.
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS do. No Réveillon, quando dava meia-noite, todo mundo se abraçava e confrater-
Araújo nasceu com alguns problemas de saúde. Na primeira infância, precisou nizava na sala. Eu ia na cozinha e dava um abraço nela, desejando feliz
ser hospitalizado para operar a garganta e o nariz, e Leide da Silva avisou aos Ano-Novo.” Já maior de idade, depois da ceia de Natal, Araújo ia aos bailes funk
patrões que ficaria com o filho até ele receber alta. “A patroa falou para eu voltar das favelas próximas encontrar os amigos, beber e esquecer das tristezas.
para o serviço e ainda disse: ‘Nenhuma criança internada no hospital morre por Depois da festa, Leide da Silva devia limpar a cozinha. Era norma da casa não ir para
ficar longe da mãe.’ Mas eu bati o pé. Nunca que ia deixar meu menino sozinho.” a cama sem que o local estivesse completamente limpo, sempre, e não apenas nas festas
À medida que o garoto crescia, o quartinho ficava menor. Ainda hoje, Araújo de fim de ano. Sobre o horário de trabalho, só havia uma certeza: a empregada preci-
se lembra de quando ficava sentado entre a cozinha e a área de serviço, vendo a sava acordar cedo e não tinha hora para dormir. “Eu lembro que, na hora da novela
mãe trabalhar. “Sempre que sinto cheiro de água sanitária, eu me lembro de das nove, minha mãe ainda estava na ativa e só ia dormir por volta das dez da noite.”
minha mãe. Ela estava sempre com esse cheirinho.” No pedaço de chão que so- Certa vez, ela foi trabalhar na casa de uma das filhas da matriarca em Brasília.
brava para circular no quartinho, ele se divertia com os brinquedos que tinha: Ela e o filho se mudaram para uma casa no Lago Sul, de construção mais nova, onde
pedaços de madeira, caixas de fósforo vazias e outros materiais descartados na o quarto de empregada era um pouco mais espaçoso, com duas camas e banheiro.
casa. “Minha mãe ajudava financeiramente alguns parentes no interior de Per- Os dois viveram cerca de três anos nessa casa. “Eu ouvia os patrões dizerem: ‘Vou
nambuco, por isso eu não tinha muitos brinquedos”, diz. passar a Leide para minha filha em Brasília. Agora vou mandar a Vera lá para minha
O menino entrou para a escola pública e começou a fazer amigos. Mas não podia outra filha, no Grajaú.’ Como se fosse um escravo que se passa como herança.”
levá-los para brincar no prédio em Copacabana. “Não era a minha casa, eu não era De volta ao Rio, a empregada se dividia entre o apartamento da matriarca em
autorizado. Mas, ao mesmo tempo, era a única casa que eu tinha.” Ele insistia com Copacabana e o da filha dela no bairro do Grajaú. Duas vezes por semana, Leide
a mãe para que o deixasse brincar na rua ou na praia, mas ela explicava que tinha da Silva deixava o almoço pronto em Copacabana e seguia para o Grajaú, levando
muitas tarefas para fazer e não podia acompanhá-lo. Tampouco podia deixá-lo sair Araújo. Fazia faxina na casa da filha da patroa e voltava para Copacabana a tem-
sozinho, pois eles moravam numa área de comércio muito movimentada. po de preparar o jantar. Uma jornada dupla de trabalho, sem acréscimo no salário.
Certa vez, Araújo inventou de brincar com um palito de fósforo perto do aquecedor Às sextas-feiras, a matriarca recebia as amigas para jogarem cartas. Adolescen-
a gás. A mãe correu para impedir e, assustado, o menino deu um pulo e quebrou o pé. te, Araújo acompanhava o desenrolar do carteado e, quando as senhoras iam
A partir de então, a empregada autorizou que ele brincasse na área comum do prédio embora, era ele que as acompanhava até suas casas, tarde da noite. Uma delas
e nas escadas. Seu melhor amigo era Daniel, filho de outra empregada do edifício. costumava dizer: “Esse pretinho é tão bonito. Um dia vou me casar com ele.”
Quando se lembra do quartinho, Araújo tem de imediato uma sensação de Araújo também acompanhava a patroa em lojas, bancos e consultas médicas.
desconforto e claustrofobia. No verão, o lugar era um forno. Nos dias frios, gelava. “Eu era praticamente o segurança dela.” Quando Leide da Silva permitiu que ele
“Mas eu detestava mais ainda aquele banheiro.” O vaso sanitário do banheiro de saísse para ir à praia em Copacabana, foi um alívio para o adolescente. “Eu pude
empregada ficava bem embaixo do chuveiro. A máquina de lavar dentro do quar- ter a rua como quintal”, diz ele, que para amenizar a rotina extenuante da mãe,
tinho também irritava o menino. Aos sábados, quando podia dormir até mais tarde ajudava em algumas tarefas domésticas, como levar o cachorro para passear e fazer
porque não tinha aula, ele era despertado bem cedo pelo sacolejo metálico do as compras de supermercado. “Minha mãe ralava muito”, ele diz, e vira-se para ela:
aparelho, batendo as roupas. “Se as máquinas modernas fazem barulho, aquele “Conta, mãe, como a senhora limpava a janela.” Ela conta: “Eu me pendurava pelo
trambolho de aço dos anos 1980 sacudia que era um inferno”, relembra. lado de fora para limpar o vidro. O porteiro lá embaixo gritava: ‘Você ainda cai daí
Na sua folga quinzenal aos domingos, Leide da Silva sempre dava um jeito de e deixa seu filho órfão.’ Mas se eu não fizesse isso, quem limparia a janela?”
sair de casa com o filho. “Se ficasse em casa, a patroa dizia que eu tinha que Aos 14 anos, João se inscreveu num programa de jovem aprendiz do governo
limpar a cozinha”, ela conta. Os dois iam para a casa de parentes na Baixada do estado e arrumou um emprego. “Fui trabalhar cedo porque me revoltei. Não
Fluminense e retornavam à noite. queria ficar ali servindo de graça.”
O garoto podia circular pela casa dos patrões e ver televisão em certos horários. No início dos anos 2000, a família demitiu Leide da Silva, após discordâncias
Pela manhã, assistia a desenhos animados enquanto a dona da casa se ocupava entre a empregada e a filha da patroa sobre a melhor maneira de cuidar da matriar-

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ca, que estava doente. Naquela época, empregadas ainda não tinham direito a in- De segunda a sexta, Ana Paula brincava no minúsculo espaço de circulação
denização trabalhista ou fundo de garantia – o que só ocorreria depois de do quartinho. Quando se entediava, ia para a cozinha. Desenvolveu um compor-
promulgada a PEC das Domésticas, em 2015. Ela havia servido a família por trinta tamento falante nos momentos em que estava ao lado das outras empregadas, as
anos. Vinte deles com o filho ao seu lado. Deixou a casa com o salário do último suas únicas companhias. À noite, enquanto sua mãe circulava entre a cozinha e
mês de trabalho. A família autorizou que levasse o beliche. a sala de jantar, escapulia para a sala onde os patrões assistiam à tevê. A mãe
Mãe e filho se separaram pela primeira vez. Ela foi morar na casa de uma prima alertava: “Não toque em nada, não faça barulho.”
na Rocinha, e ele, na casa de um amigo, em outro ponto da mesma favela. “Ficamos Duas vezes por semana, Costa Pereira era deslocada da mansão por algumas
perdidos. Aquela era a única referência de casa que nós tínhamos. Achei que mi- horas para limpar o apartamento, também em Copacabana, de um dos filhos
nha mãe ficaria lá até se aposentar”, diz Araújo. Com o pouco dinheiro que ganha- da família, um diplomata que passava a maior parte do ano no exterior. No dia da
va, ele alugou uma quitinete na Rocinha para ele e a mãe. Nessa época, Leide da limpeza, a empregada levava a filha junto. Numa de suas idas ao apartamento, o
Silva teve complicações de saúde e se aposentou por invalidez. Hoje eles vivem diplomata estava em casa. Ao ver a garota de 6 anos, ele chamou Costa Pereira e
juntos, numa casa no município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. disse: “Vou conseguir vaga para ela num excelente internato católico. Tenho con-
Leide da Silva interrompe nossa conversa, se levanta e serve um café para mim tatos lá.” Sem que a mãe de Ana Paula tivesse tempo de opinar, ele pegou e tele-
e o filho. “Me desculpe trazer no copo”, diz ela. “É que tem dias em que estou fone e ligou para o internato. “Está resolvido. Sua filha tem vaga garantida.”
irritada com a vida e para aliviar a tristeza eu jogo a louça no chão. E não sobrou Quando terminou aquele dia de trabalho, a empregada foi com Ana Paula para
mais nenhuma xícara.” sua casa em Jacarepaguá – e nunca mais retornou ao emprego.
Araújo bebe um longo gole de café e comenta: “Hoje, adulto, vejo tudo com mais Costa Pereira era uma funcionária de confiança da família. Como o diploma-
clareza. O quarto de empregada é um espaço de senzala, onde você fica confinado ta sabia que seu marido estava trabalhando numa fábrica de tecidos na Gávea, foi
para servir 24 horas. Quando a dona da casa teve um problema de saúde, minha mãe até lá saber o que tinha acontecido. Ouviu que a mulher estava irredutível: não
e eu chegamos a dormir no chão, no quarto dela, para o caso de ser preciso ajudá-la. voltaria a trabalhar para a família e dizia que ninguém tinha o direito de tomar
Às vezes eu falo que seria melhor se minha mãe tivesse me deixado pra ser criado no qualquer decisão sobre sua filha. “Minha mãe sempre contou essa história com
Nordeste, com a minha avó. Teria tido uma vida com mais espaço, mais liberdade.” muita indignação. Viu aquilo como uma tentativa de me tirar dela, sua única fi-
A mãe se explica: “Eu não podia deixar ele sozinho. Era muito doentinho. lha, que ela demorou tanto tempo para ter”, diz Ana Paula.
Tinha um monte de alergia. Não iam saber cuidar dele direito. Antes de ter o João, Alguns meses depois, Costa Pereira arrumou um trabalho no apartamento de
fiz quatro abortos porque não dava pra ter filho sendo empregada doméstica. um casal de jornalistas no Leblon, sem filhos, onde passou a viver com Ana Pau-
Quando vi que estava esperando ele, não quis mais abrir mão.” la. Como a patroa avisou que não queria a criança circulando pela casa, a mãe
Araújo fecha a caixa de fotografias. Ele é taxista e me leva da Baixada até Ipanema, sempre lembrava a filha para nunca ir além da cozinha. Quando o casal viajava,
onde fica a redação da piauí. Ao chegarmos à Zona Sul, ele me diz: “Vi muito filho de a menina tinha a chance de conhecer um pouco da casa, auxiliando nos afazeres
porteiro e empregada desses prédios se perdendo. Uma garotada como eu que, revoltada, domésticos: ajudava a tirar o pó dos móveis, passar o aspirador, recolher o lixo e
se envolveu em pequenos crimes no asfalto ou subiu o morro para trabalhar no tráfico. alimentar o cão e o gato que ficavam na área de serviço.
Nunca fui pra esses lados porque sempre tive medo da minha mãe. Ela marcava junto.” Era um apartamento grande, com três quartos e decoração moderna, tapete azul-
Já estávamos chegando à revista quando ele acrescentou: “Conhece a música royal na sala, cadeiras de vime, quadros abstratos nas paredes, uma cama de tatame no
Negro Drama, dos Racionais? Tem um trecho que diz: Família brasileira,/dois quarto e livros espalhados por todo canto. O quartinho de empregada tinha um armá-
contra o mundo/Mãe solteira/de um promissor,/vagabundo. Essa música é muito rio de solteiro embutido de quatro portas e um beliche que ocupava toda a extensão
sobre mim e dona Vera. Só que não virei vagabundo.” de uma das paredes. Costa Pereira dormia na cama de cima, e a menina, na de baixo.
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS O local não tinha janela. Para que circulasse um pouco de ar no quarto, haviam colo-
cado uma porta com basculante no alto. Nas noites frias, a mãe recolhia jornais velhos,
O QUARTO DA SOLIDÃO dobrava e enfiava nas frestas da porta para evitar que a friagem entrasse.
Costa Pereira trabalhava o tempo todo durante a semana. Limpava, lavava e cozinha-

E
m 1946, uma tia que morava no Rio de Janeiro sugeriu a Arlete da Costa Pereira, va. Ana Paula matava o tempo brincando nos fundos da casa. O restante do apartamen-
então com 13 anos, que se mudasse do distrito de Anta, em Sapucaia, no interior to era um território proibido. Quando o pai sentia saudades da família, ele ia até o Leblon
fluminense, para a capital, a fim de conseguir um bom emprego. Foi o que ela fez. e levava a filha para tomar sorvete na praça. “Eu sentia muita falta dele”, diz Ana Paula.
No Rio, Costa Pereira arrumou trabalho na casa de uma família abastada da Na sexta-feira, a mãe corria contra o tempo para terminar todo o serviço. No final
Zona Sul, em cuja dependência de empregada passou a viver. Nos anos 1950, ela da tarde, as duas deixavam o apartamento, passavam no supermercado para comprar
se casou com um jovem comerciário, Celso Eduardo Pereira, e os dois se muda- algum mantimento e pegavam o ônibus para Jacarepaguá, onde o casal havia cons-
ram para o Morro do Cantagalo, em Copacabana. O casal juntou dinheiro e truído uma casa em 1973. “Eu percebia quanto nossa vida era triste observando
comprou um terreno em Jacarepaguá, um bairro afastado da Zona Sul e para minha mãe nos dois ambientes”, afirma Ana Paula. “No trabalho, era certinha,
onde, na época, havia pouca opção de transporte. A ideia de Costa Pereira e seu cumpria horários, morria de medo de fazer algo errado. Não demonstrava qualquer
marido era construir uma casa em Jacarepaguá e só então começar a pensar em alegria. Já em casa, cantava acompanhando a música no rádio, era feliz.”
filhos, pois ela enfrentava uma dura rotina como copeira de uma mansão em Co- Ana Paula foi matriculada em uma escola pública no Leblon. Quase todos os alunos
pacabana: saía de sua casa no Morro do Cantagalo às seis da manhã e não tinha eram filhos de porteiros ou empregadas das casas do bairro. A menina que ficava tran-
hora para voltar. Ela, porém, engravidou antes que pudessem fazer a casa. cafiada o dia inteiro na área de serviço, quando estava na escola se soltava. A mãe
Em 1970, quando tinha 38 anos, trabalhou em pé por longas horas no dia que chegou a ser chamada pela direção da escola porque Ana Paula falava demais. “Eu
antecedeu o parto de sua primeira e única filha, Ana Paula Pereira. Era aniversá- ficava muito confinada, tendo apenas minha mãe com quem falar. Quando ia para a
rio da patroa, e Costa Pereira serviu aos convidados com um barrigão enorme na escola, me libertava.” Depois que foi alfabetizada, ela tomou gosto pelos quadrinhos
festa que varou a madrugada. Voltou para casa no Cantagalo de manhãzinha, dos jornais. Gostava de ler Recruta Zero e Fantasma nos fundos do apartamento.
descansou um pouco as costas na cama e foi para a maternidade. Nos dias de semana, um momento feliz era quando ia com a mãe até uma praça
Depois do nascimento da menina, a família se mudou para o bairro Cordovil, do Leblon levar o cachorro para passear, à tardinha. Certa vez, quando voltavam para
no subúrbio do Rio. Os patrões da mansão em Copacabana, cientes da distância casa, o elevador de serviço estava quebrado. Costa Pereira pediu ao porteiro para su-
que a copeira iria enfrentar todo dia, com possíveis atrasos, sugeriram que ela birem no elevador social. Ele não autorizou. As duas foram pela escada até o quarto
morasse com a filha na edícula dos empregados, mas sem o marido. Costa Perei- andar. A dieta do cão consistia em pedaços diários de filé-mignon, passados levemen-
ra voltou à Zona Sul, agora com Ana Paula, de 3 meses. “Em minha memória de te na manteiga, além da ração. Costa Pereira era uma mulher incapaz de quebrar
menina, eu me lembro da casa muito imponente. Portões de ferro na entrada. regras, mas quando o casal estava viajando ela abria uma exceção e dizia à filha: “Só
Uma sala enorme. Lustres, móveis de madeira de lei e pratos nas paredes. E uma o cachorro tem direito de comer filé-mignon? Nós também vamos.” E dividia a re-
escadaria curva no canto da sala, muito alta. Minha mãe sempre dizia: ‘Não suba galia em três partes iguais: uma para Ana Paula, uma para ela e outra para o cão.
ali’”, recorda Ana Paula, que hoje tem 52 anos. Os alimentos da empregada e da filha eram de qualidade inferior aos que iam para
A edícula ficava nos fundos da mansão e era composta de um quartinho, um a mesa dos patrões, e os pratos, copos e talheres, diferentes dos usados por eles. À noite,
banheiro e a lavanderia. “Forço minha memória daquele quarto, mas não me lembro antes de dormir, a mãe pegava uma revista Manchete de semanas anteriores, e as duas
de ter janela”, diz ela. “Tinha um beliche e uma cama de solteiro e só, sem nenhum liam juntas. “Quando me lembro daquele quartinho, penso como eu era uma crian-
outro móvel.” Ali moravam quatro mulheres: uma cozinheira, uma arrumadeira, ça sozinha. Minha mãe também. Era ela, eu e a nossa solidão”, diz Ana Paula. “Vem
Costa Pereira e Ana Paula. As duas primeiras dividiam o beliche, mãe e filha se na minha memória a tristeza de minha mãe em criar uma filha nessas condições.”
aninhavam na cama de solteiro. Acima da dependência dos empregados, havia uma Certa vez, ela estava brincando com o gato na área de serviço e o bichano atra-
suíte que um dos filhos dos patrões usava como “apartamento de solteiro”. vessou a cozinha, passou sorrateiro pela sala e disparou pelo corredor. A menina

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foi atrás e, de repente, estava dentro do quarto da patroa. “O que você está fazendo ciam emprego de doméstica ou babá. Mas sua mãe falava: “Não estou te criando
aqui? Não pode andar por aqui”, disparou a mulher. Ana Paula saiu correndo e se pra ser empregada doméstica. Faça algum curso enquanto isso. Eu pago.”
atirou na cama do quarto de empregada, chorando. Aos 40 anos, Ana Paula se formou em letras e hoje é professora de educação in-
A patroa reclamou da presença da criança em seu quarto. A empregada disse fantil. A mãe a viu entrar na universidade, mas não teve tempo de vê-la formada.
que aquilo não se repetiria. Depois, foi para perto da filha e a consolou. “Ela “Rompi o ciclo, graças ao incentivo de minha mãe”, ela diz. O quartinho de empre-
dizia que eu não tinha feito nada de errado. Eu estava chorando de medo. Foi gada e a vida na casa dos patrões são memórias que nunca se desfizeram para ela:
traumático”, recorda Ana Paula. “Até hoje sou uma pessoa que sente muita ver- “Era uma senzala. O normal era que os filhos das empregadas fossem trabalhar para
gonha em diversas situações. De aparecer ou ser notada. Dependendo, sinto que os filhos dos patrões, seguindo a mesma lógica da escravidão, do negro como pro-
estou num lugar proibido para mim. Esse sentimento vem dessas restrições. A gen- priedade. Muitas mulheres da minha geração continuaram como empregadas das
te não rompe fácil com ele. Marca para sempre.” mesmas famílias para as quais suas mães trabalharam. Mas as filhas dessas mulheres
Meses depois, Costa Pereira trocou de emprego e foi trabalhar na casa de um mili- de minha geração agora estão entrando na universidade. Houve um avanço.”
tar e sua mulher, em Ipanema. Ela e a filha ocuparam o quarto de empregada.
O casal tinha três filhos: dois meninos quase adolescentes e uma menina de 6 anos.
Ana Paula estava com 10 anos e foi destacada informalmente para ser a babá da caçu- O QUARTO DA CONTESTAÇÃO
la, o que lhe dava acesso a todo o apartamento. Quando a família viajava para Petró-

A
polis ou ia até a casa de parentes na Barra da Tijuca, levava a filha da empregada junto. mãe de Joyce Teixeira1 trabalhava como cozinheira para um casal de idosos
Nesses passeios, Ana Paula dormia no quarto das crianças, mas sempre num num apartamento no bairro de Higienópolis, no Centro de São Paulo. Como
colchão improvisado, nunca nas camas. Na hora das refeições, as crianças se di- morava em Mauá, situada a mais de uma hora de ônibus do local do empre-
rigiam à mesa na sala de jantar e ela se sentava à mesa da cozinha com os outros go, ela contratou uma pessoa para, em sua ausência, cuidar dos dois filhos que
empregados. “Na minha cabeça, aquilo era normal. Era o lugar ao qual eu per- criava sozinha. Mas Joyce, de 4 anos, apanhou da babá, e a mãe não teve alterna-
tencia.” Um dia a família a levou à lanchonete Gordon, em Ipanema. Ela adorou tiva: mudou-se com os dois filhos para o quarto de empregada em Higienópolis.
o lanche, e numa sexta-feira arrastou a mãe até a Gordon para experimentar o Era um apartamento imenso, onde, além de sua mãe, trabalhavam três pessoas: sua
sorvete de que tanto gostara. “As experiências felizes só tinham graça quando eu tia, que era arrumadeira, e dois motoristas. No quarto de empregada, havia um beliche
estava com ela.” Além de olhar a filha caçula, Ana Paula, à medida que crescia, e um guarda-roupa de quatro portas, uma mesa baixa onde ficava a televisão em
passou a ajudar no trabalho doméstico. preto e branco e um banquinho de madeira. Joyce e o irmão, um ano mais velho, fa-
No apartamento de Ipanema, a área de serviço era um pouco maior e havia dois ziam as refeições e as lições da escola dentro do quarto, usando o banquinho como mesa.
quartos de empregada pequenos. Em um deles ficava a faxineira. No outro, com Como a mãe tinha medo de que os filhos caíssem da cama superior do beliche,
um beliche e armário, dormiam Costa Pereira e Ana Paula. O banheiro de serviço os três dormiam juntos, na parte de baixo – o menino só passou para a parte de cima
era dividido pelas três. Mas havia um elemento novo no quartinho: um radinho quando estava mais crescido. As próprias crianças cuidavam da limpeza do quarto,
de pilha adquirido por Costa Pereira. Perto das seis da tarde, ela colocava um copo que era desprovido de janela. Elas passavam boa parte do tempo ali, disputando jogos
d’água ao lado do aparelho, ligado na Rádio Tupi e, com a filha, acompanhava a de tabuleiro em cima da cama ou assistindo a desenhos animados depois da aula.
Ave-Maria. “Tenho a lembrança de uma melancolia muito forte quando anoitecia.” O prédio não tinha piscina, playground ou qualquer área para crianças. Explorando
Em todas as casas pelas quais passava, Costa Pereira tornava-se a funcionária o local, Joyce e o irmão descobriram um pequeno espaço para jogar bola, próximo à
de confiança, cuidando inclusive de serviços de banco. O que significava traba- casa do zelador. O homem não deixou que eles ficassem ali. “Mas meu irmão questio-
lho extra, mas nunca remuneração extra. A empregada confidenciou à filha que nou o zelador. Ele questionava tudo e até usava o elevador social, o que era proibido
mais de uma vez tinha ouvido os patrões dizerem que ela era uma “preta de alma
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS para os empregados”, conta Joyce. “Ele dizia que não tinha motivo para a gente não
branca”, expressão que a revoltava. usar o elevador. Eu insistia para subirmos pelo de serviço. Mas ele me encorajava.”
A experiência com o diplomata de Copacabana que quis matricular sua filha num Joyce passou a pensar como o irmão, e começou a “contestar tudo”. Ela queria
internato marcou a postura de trabalho de Costa Pereira para sempre. Ela dizia a Ana saber da mãe por que os três tinham que dormir naquele lugar apertado, se havia
Paula: “Nunca fale da nossa vida privada pros patrões.” Um dia, quando Ana Paula um quarto sobrando no apartamento. Queria entender por que não podia ver tevê
estudava na área de serviço, a patroa de Ipanema reparou no capricho dos cadernos da colorida, se havia uma na sala de visitas. “Mas também me batia um grande medo
menina e disse que iria conseguir uma bolsa para ela no Colégio Metodista Bennett, de ter que sair dali com meu irmão”, ela diz. “Por mais que fosse uma vida privada de
onde os filhos do casal estudavam. “Minha mãe agradeceu, mas recusou a oferta.” liberdade, estávamos juntos da nossa mãe.”
Costa Pereira viveu quase quarenta anos em quartos de empregada, uma parte As crianças quase não tinham contato com os donos do apartamento. Por isso
desse tempo com a filha. Depois, passou a trabalhar em casas de famílias ricas de ficaram surpresos quando, num fim de semana dos anos 1990, embarcaram com
Jacarepaguá, mais perto de onde morava. A mãe sempre evitou mencionar os malas no carro dos patrões, rumo à fazenda da família em Ribeirão Preto. “Eu
episódios que marcaram a vivência das duas dentro dos quartinhos. tinha 9 anos. Fomos no banco de trás com eles. Pensei: ‘Acho que agora perten-
Quando Ana Paula entrou na idade de prestar vestibular e não passou, pergun- cemos a essa família, somos próximos’”, conta Joyce. O motivo da viagem era a
tou à mãe por que não tinha aceitado a oferta para que estudasse numa boa esco- comemoração das bodas de ouro do casal.
la da Zona Sul. “Ela me respondeu que tinha medo de ficar presa a esse favor”, Os filhos da empregada ficaram impressionados quando chegaram à fazenda,
conta. “Disse que esses favores vinham sempre acompanhados de uma obrigação com sua casa gigantesca, típica construção da era de ouro do café no interior de
que a gente teria que cumprir e nos deixaria escravizadas. Ela queria ter sempre São Paulo. Joyce ficou animada ao ver a quantidade de janelas do casarão, pare-
a liberdade de ir embora da casa quando achasse que devia.” cido com o da novela O Rei do Gado, que ela gostava de assistir no quartinho.
Ela recorda que a mãe acrescentou: “Hoje me arrependo. A bolsa teria ajudado “Em qual desses tantos quartos vamos ficar?”, ela se perguntou. Depois de conhe-
no seu futuro.” Ao que a filha respondeu: “Não vamos pensar mais nisso. Já passou.” cer a casa, a empregada e seus filhos foram levados de volta ao térreo – e depois
Ana Paula diz que entende a mãe: “A liberdade era muito importante para ela.” até uma área mais embaixo, onde ficava a cozinha. Ao lado, uma porta dava para
A vida nos quartinhos privou Ana Paula do hábito de comemorar seu aniversário um cômodo. Era ali que eles iriam dormir durante a estadia. “Parecia uma sen-
com muitos convidados. Sua mãe estava sempre ocupada na data, trabalhando. Além zala de verdade”, recorda Joyce.
disso, a menina não podia receber nem amigos nem parentes nas casas. “Nossos O espaço era maior que o quarto em São Paulo, mas também não tinha janela
patrões jamais permitiriam.” Ela se habituou a festejar o aniversário apenas com a e o ar entrava pela porta com treliças de madeira. A família de Joyce dividiu o
mãe e o pai. “A gente passou a ficar muito fechada entre nós três. Quando fiz 50 anos, espaço com uma senhora idosa que trabalhava na fazenda havia muitos anos.
não comemorei. Sinto que é reflexo de uma infância com poucos amigos. Levamos Os parentes começaram a chegar para a comemoração. Na hora da festa, à noite,
isso para nossa vida.” Ela interrompe – e diz: “Bateu uma emoção.” as duas crianças se recolheram ao quartinho. De vez em quando, a mãe descia com
Depois, retoma: “Nossa rotina naqueles quartos era muito silenciosa. Não po- um pratinho de salgados e doces para os irmãos. Pela treliça, eles viam as crianças
dia fazer barulho, não podia gargalhar. Nos raros momentos de descontração, a da família brincando e correndo no jardim. “Eu via e pensava: por que não pode-
gente ria baixinho. A alegria tinha que ser contida. Mesmo depois que ficamos mos participar da festa? Foi quando a ficha caiu. Pertencíamos à classe dos que
livres do quartinho, a gente não se permitia ter uma alegria esfuziante. Como não trabalham. Não dos que festejam”, diz Joyce.
me casei nem tive filhos, vivo uma certa solidão. Às vezes, quando bate uma Os irmãos cresceram, e foi ficando desconfortável para mãe e filha dividirem a mes-
tristeza profunda, parece que nunca saí daquele quarto.” ma cama no beliche. Quando os três faziam algum passeio à noite, os donos da casa
Arlete Costa Pereira trabalhou até os 73 anos. Morreu aos 75 anos, em 2008. reclamavam do horário em que chegavam. Uma vez, Joyce recebeu uma ligação de uma
Como nunca assinaram sua carteira de trabalho, não teve aposentadoria. Seu ma- amiga no telefone da casa, e a patroa não gostou. A gota d’água foi uma falsa acusação:
rido morreu há poucos meses, aos 91 anos. Na juventude, Ana Paula tentou uma
vaga na universidade, enquanto também procurava trabalho. Em geral, lhe ofere- 1 A pedido da entrevistada, o nome de sua mãe foi omitido.

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a suspeita de que Joyce ou seu irmão teria furtado a calculadora científica de um neto mas não se tratou. Uma vez, quando fazia faxina, caiu da escada e fraturou o quadril.
do casal. Era demais. Havia chegado a hora de deixar o apartamento. Joyce tinha 15 Nunca se recuperou inteiramente. Alguns anos depois precisou recorrer a muletas e,
anos. Seu irmão, 16. Eles haviam passado mais de uma década morando no quartinho. até hoje, não consegue sentar ou ficar de pé por muito tempo sem sentir dor.
Pouco antes de decidirem ir embora, a patroa chamou Joyce para ajudar a organizar No ano passado, aos 50 anos, pegou Covid. Foi levada a um hospital e a deixa-
uma estante. A jovem aproveitou para contar à senhora que tinha desejo de fazer facul- ram lá. “A patroa disse que voltaria no dia seguinte e não voltou. Fiquei sozinha.
dade e ser professora. “Esperava dela uma palavra de encorajamento ou até uma bolsa Minhas irmãs não sabiam que eu estava internada. Do jeito que eu estava mal,
de estudo. Eles eram muito ricos. Mas ela desconversou, não deu a mínima importân- acharam que eu não ia sobreviver.”
cia para o que eu disse. Senti que, para ela, meu destino era continuar servindo.” Mas ela sobreviveu. O médico falou que deveria repousar por quinze dias. Po-
A volta para a cidade de Mauá, onde a mãe de Joyce tinha uma casa, foi estra- rém, Thawanna sabia que, se voltasse para a casa, não teria descanso. Ela contou
nha. “O apartamento de Higienópolis não era nosso. Mas a sensação foi de que a sua história para a equipe médica, que resolveu fazer um check-up na paciente:
casa em Mauá também não era”, afirma. “A gente não pertencia nem a um lugar constataram, além da trombose, que pontos de uma das cirurgias de hérnia esta-
nem a outro. Até hoje, independentemente de onde eu esteja, me sinto sempre vam abertos. Os médicos denunciaram o caso ao Ministério Público do Trabalho.
querendo voltar para algum lugar que entenda como sendo meu.” A mãe de Joyce Quando a empregada voltou para casa, a família já sabia da denúncia. Ela conta que
ainda hoje trabalha como babá. Ela não quis ser entrevistada, segundo a filha, os patrões disseram que ela era ingrata, pois sempre havia sido tratada como uma
porque não quer relembrar o passado no quarto de empregada. pessoa da família. “Demorou pra eu entender que eles nunca foram minha família.
Joyce se formou em história, tornou-se professora, se casou, tem um filho pe- Eles martelavam na minha cabeça que ninguém ia conseguir ficar comigo com as
queno e leva uma vida feliz aos 38 anos. “Aquele episódio da estante me marcou pernas debilitadas pela trombose. Diziam que queriam meu bem, que eu estava fican-
muito. A ponto de tomar para mim a responsabilidade de ser a primeira da minha do louca. Comecei a me furar, me machucar. Eu não tinha como sair daquela casa.”
família a ter um diploma. Foi o troco que dei pra elite desse país: me formando Uma noite, um oficial de Justiça e um terapeuta, com um mandado judicial,
como uma pessoa crítica, que contesta seu lugar nesse mundo.” Joyce tem orgulho bateram à porta da família e levaram Thawanna para um abrigo de mulheres. As
de sua mãe e de tudo o que ela fez por seus dois filhos. “Mas eu posso servir a so- filhas dos patrões a procuraram e disseram que a consideravam uma segunda mãe.
ciedade de outra maneira. Através da educação”, ela diz. “Tentaram mexer com minha cabeça. Mas eu já estava vacinada. No fundo, que-
riam que eu não processasse elas. Mas eu ouvi a equipe que cuidava de mim.
E botei na minha cabeça que não fazia parte daquela família de que tanto gostei.”
SEM QUARTO, SEM CHÃO Thawanna está livre há quase um ano, amparada por terapeutas, médicos e uma
educadora social. Aos poucos, tem conhecido a cidade em que nasceu. Visitou uma ex-

T
hawanna2 nasceu em São Paulo. Ainda bebê, foi deixada pela mãe em um posição e foi a uma livraria. “Parei de estudar na quinta série. Mas amo ler. Ganhei de
orfanato da capital paulista. Quando fez 10 anos, em 1981, uma irmã mais presente um livro da Carolina Maria de Jesus. Era uma batalhadora, feito eu”, diz,
velha apareceu para visitá-la. Foi o primeiro contato que teve com alguém da destacando a passagem favorita do livro Quarto de Despejo: “Gosto da parte em que
sua família. Aos 15 anos, foi morar e trabalhar na casa onde duas irmãs dela já es- ela diz que saía de cabeça erguida pra catar lixo pra sustentar os filhos. É muito bonito.”
tavam empregadas como domésticas. “A casa era grande, mas só tinha dois quartos. O trabalho análogo à escravidão, como o de Thawanna, produz uma situação
Eu e minhas irmãs dormíamos no quarto das três filhas do casal”, conta. Com isso, insidiosa. O próprio explorado leva tempo para se dar conta da exploração, pois
ela escapou do quartinho de empregada, mas não da humilhação: Thawanna e os vínculos estabelecidos com a família empregadora se mesclam ao afeto, como
suas irmãs dormiam no chão. Também não recebiam salário. diz a procuradora Alline Delena, do Ministério Público do Trabalho de São Pau-
Cinco anos depois que Thawanna deixou o orfanato, suas irmãs mais velhas deixa- lo (MPT-SP): “As pessoas submetidas não têm família. Foram deixadas por seus fa-
ram a casa para tentar um trabalho remunerado. Como ela era menor de idade e estava
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS miliares para que essa outra ‘família’ as criem. O trabalho muitas vezes envolve o
muito apegada às meninas da família, acabou ficando para trás, acumulando o trabalho cuidado de crianças, idosos e se estabelece uma relação afetiva. Gera uma difi-
das irmãs: limpava, cozinhava e cuidava das crianças – sempre sem remuneração. Ela culdade para a trabalhadora enxergar que quem a acolheu a explorou.”
não tinha nada e via como um gesto de bondade a doação que lhe faziam das roupas Delena diz que 90% dos casos de trabalho doméstico análogo à escravidão começam
descartadas pelas filhas do casal. Trabalhou para a família por mais de trinta anos. quando a explorada ainda é criança. Quanto mais camadas de vulnerabilidade ela
O chão do quarto das meninas foi seu quarto durante muito tempo. Depois que apresenta, maiores são as chances de exploração. “Ela tem dificuldades de se deslocar
elas cresceram, Thawanna passou a dormir no sofá da sala. Tinha que esperar todo pelo mundo, de mexer com dinheiro, que nunca recebeu. E essas famílias, quando são
mundo jantar, assistir à televisão e se recolher em seus quartos para só então arru- denunciadas, costumam dizer que tinham a trabalhadora como filha. Mas os filhos de
mar o sofá-cama. Se havia alguma festa na casa, ela dormia de madrugada, depois verdade receberam instrução e tiveram cuidados de saúde, ao contrário de Thawanna.”
de limpar toda a bagunça. O trabalho doméstico foi uma das categorias profissionais que mais tardiamen-
As filhas mais velhas ficaram adultas, se casaram, se mudaram e tiveram filhos. te tiveram seus direitos e garantias reconhecidos. Por isso, o acesso das empregadas
Thawanna ficou sozinha com o casal. “Era uma época em que eu chorava muito.” domésticas a uma base sindical ainda é insuficiente, o que contribui para que a
Como ela gosta de crianças, cada novo bebê das filhas dos patrões a ajudava a categoria fique mais vulnerável à exploração, segundo Delena. “Os poucos sindi-
superar um pouco a rotina de exploração. “As crianças tiravam um pouco o estres- catos que existem são instituições combativas, mas não existe imposto sindical e
se naquela casa. Elas me distraíam.” são escassas as fontes de custeio. É difícil para os sindicatos apertar a campainha
Mas não era o bastante. Por volta dos 21 anos, Thawanna começou a pensar em e verificar as condições de trabalho doméstico. Conseguir uma sindicalização
deixar a casa. “Mas eu não conhecia São Paulo, não sabia andar pela cidade. Não efetiva é um caminho”, afirma a procuradora. “É um trabalho que ocorre dentro
fazia ideia de onde estavam minhas irmãs”, diz. Ela só saía à rua quando precisava da casa das pessoas. É preciso ser denunciado por quem está próximo: um parente,
acompanhar alguém da família ou ir ao mercado ou à padaria, na vizinhança. um vizinho dessas famílias que exploram o trabalho doméstico.”
Certa vez, aos 24 anos, falou que queria arejar a cabeça e foi fazer uma ca- Para a psicóloga social Yasmin França, coordenadora do Projeto Ação Integrada:
minhada à noite. “Ficar dentro daquela casa estava me matando. Queria conhe- Resgatando a Cidadania, desenvolvido pelo MPT-RJ em parceria com a Cáritas-RJ,
cer qualquer lugar. Mas estava tudo fechado e fiquei perdida. Fui molestada por as mulheres que passaram suas vidas nos quartinhos de empregada têm a subjeti-
quatro homens.” Ela não sabia para onde ir e não tinha dinheiro. Foi um policial vidade fortemente afetada, a ponto de se dessexualizarem. “Elas nunca namora-
que a levou de volta para casa, a partir de indicações dadas por ela. “Fiquei ram, nem tiveram vínculos sexuais saudáveis. Muitas vezes a sexualidade veio
muito assustada. Nunca mais quis sair.” através da violência sexual.” Para essas mulheres, ter filhos é uma forma de resistir
A própria casa não era um lugar seguro. “Quando eu tinha 15 anos, o pai delas à subserviência. “Thawanna tinha com aquela família uma relação tão despessoa-
me...” Thawanna interrompe, e começa a chorar. “Esse é um assunto que me ma- lizada, como coisa, instrumento de trabalho, que seus patrões achavam que ela não
chuca muito. Eu tinha eles como minha família. Mas eles nunca me tiveram assim.” precisava nem mesmo de um quarto, por isso dormia na sala”, diz França.
Com a rotina de trabalho pesado, ela desenvolveu uma hérnia e precisou fazer uma No caso de mulheres que foram libertadas de uma situação análoga à escravidão,
cirurgia. Mas não pôde repousar em seguida, o que prejudicou a recuperação. Tempos são necessárias várias frentes de amparo, a começar por pessoas que verifiquem o
depois, desenvolveu outra hérnia, voltou ao hospital e acabou descobrindo um tumor estado de saúde delas, já que passaram a vida inteira sem ter cuidados médicos.
no útero. Fez outra cirurgia. O pós-operatório lhe provocava dores terríveis, acentuadas Depois é importante fortalecer vínculos de afeto comunitários e familiares. E cuidar
pelo desconforto do local onde dormia, no sofá. “Eu praticamente não dormia. Era da situação psicológica. “Observamos nelas um quadro de profunda tristeza e, em
uma dor muito forte. Os vizinhos me ouviam chorar, mas não faziam nada.” alguns casos, falas suicidas. Elas ficam sem chão, perdem a referência”, explica Fran-
Após a morte dos donos da casa, a filha do meio passou a ser a patroa de Thawanna. ça. “Mas, passado o choque inicial, pouco a pouco, conseguem reconstruir a vida.”
Seus problemas continuaram. A empregada desenvolveu trombose nas duas pernas, Thawanna nunca recebeu salário. Arlete Costa Pereira nunca teve carteira assinada.
A mãe de Joyce ganhava salário mínimo e Vera Leide da Silva, dois salários. Nenhuma
2 A pedido da entrevistada, neste relato foi usado um pseudônimo, escolhido por ela. delas jamais recebeu adicional noturno ou hora extra. J

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portfólio_TABA BENEDICTO

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QUARTO DE ESQUECER
A
o aceitar o convite da piauí para realizar um portfólio fotográfico sobre moradores, o quartinho é um arquivo de lembranças que se deseja preservar por um
os quartos de empregada não imaginei as dificuldades que iria encon- tempo, mas que pouco a pouco, como os papéis velhos, irão para o lixo.
trar. Foi simplesmente impossível fazer uma foto mostrando um quarti- Com a pandemia e o home office, em muitas casas a dependência de empregada
nho ainda habitado pela empregada. acabou virando um escritório, como se o morador relegasse aos fundos da casa essa
Os donos dos apartamentos em São Paulo apresentaram várias des- parte de sua vida que diz respeito ao trabalho. Em seu apartamento no bairro de
culpas para evitar que esse espaço de suas casas fosse fotografado. Alguns disseram Higienópolis, um jovem influenciador fez do quartinho o espaço onde cria suas
temer pela “segurança” deles e dos funcionários; outros afirmaram que a empre- postagens para as redes sociais e tenta enobrecer o local com livros e flores.
gada não dormia no local. Em outro apartamento nos Jardins, encontrei uma das funções mais comuns
Nos casos em que as fotos foram autorizadas, já não havia empregada fixa vi- reservadas atualmente à dependência de empregada e ao banheirinho, com a pia,
vendo na residência. Sendo assim, o local havia adquirido outras funções: às vezes o vaso e o chuveiro disputando a área minúscula: os dois espaços viraram um
um pequeno escritório; mais frequentemente um depósito de objetos. Foram mu- depósito de tudo (ferramentas, tranqueiras, mantimentos, materiais de limpeza).
danças pelas quais passaram as dependências de empregada, depois que o Estado O quarto e o banheiro se transfiguraram em “cantinhos da bagunça”, onde se
por fim resolveu se ater ao direito das trabalhadoras domésticas. junta tudo que não deve ser exposto ao olhar das visitas.
Em uma casa no bairro de Pinheiros, a dependência de empregados, com saleta, Os moradores se esforçam para se “reapropriar” do quarto da empregada, de
quarto e banheiro, tornou-se um pequeno museu doméstico, com sua coleção de repente vazio e disfuncional, deslocando para aquele anexo pouco valioso da casa
retratos e objetos, um lugar que garante à família o acesso a fragmentos do seu pas- todas as coisas menos importantes de suas vidas, ou aquelas que estão destinadas
sado (porém não há nada que recorde as trabalhadoras que viveram ali). Para esses ao futuro descarte e ao esquecimento. J

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Quarto de acumular:
no apartamento do Jardim
Paulista, em São Paulo, a
dependência de empregada
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virou despensa (fotos à esq.),
enquanto ao banheiro
minúsculo (com o chuveiro
alinhado à pia e ao vaso
sanitário) sobrou apenas
a função de cantinho
da bagunça

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Quarto de trabalhar: um influenciador digital instalou seu escritório no quartinho de empregada, com vista para a máquina de lavar, em seu apartamento em Higienópolis, em São Paulo

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Quarto de lembrar: em uma casa em Pinheiros, em São Paulo, a dependência de empregada se transformou numa espécie de museu familiar, com fotos, mobiliário antigo e objetos em desuso

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anais da floresta

OUVINDO OS
POVOS DO JAVARI
A Amazônia não é a periferia do Brasil, mas o centro de qualquer possibilidade de mundo

PEDRO CESARINO

epois do assassinato do indige- ter soado como novidade para muitos. dois peões.1 Foi a deixa para as pessoas dobro da média brasileira (34 em 1 mil).

D nista Bruno Pereira e do jor-


nalista Dom Phillips, em 5 de
junho passado, no Vale do Ja-
vari, uma série de notícias so-
bre a região espocou na imprensa. Elas
contaram sobre o avanço do narcotráfico
na área, a beligerância dos garimpeiros,
Mas não são. Já no início do século XX,
esses povos foram “objeto de correrias
organizadas, tanto por brasileiros quan-
to por peruanos, que atacavam suas ma-
locas para obter comida ou mulheres,
afugentando-os para outras regiões, es-
cravizando-os na atividade extrativa, ou
que haviam se instalado nas cidades
próximas iniciarem uma dura oposição
às organizações indígenas e à demarca-
ção de terras. Espalhou-se um clima
beligerante que só foi razoavelmente
controlado em 2001, com a homologa-
ção da Terra Indígena Vale do Javari,
Os números da região podiam ser com-
parados às piores taxas mundiais, como
as do Haiti. As estatísticas sobre a mor-
talidade de menores de 5 anos também
eram alarmantes: 135 em 1 mil, ou seja,
mais de duas vezes a média brasileira
nessa faixa etária (60 em 1 mil). Dados
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madeireiros e pescadores predatórios, a simplesmente exterminando-os”, como garantida por um sistema de proteção demográficos mostraram que, já naquele
constante ameaça que paira sobre os in- descreve o Relatório de Identificação e que colapsou no governo Bolsonaro. período, a base da pirâmide etária (os in-
dígenas e o ganancioso avanço dos que Delimitação da Terra Indígena Vale do Há ainda as doenças. No início deste dígenas mais novos) estava muito estreita
querem destruir a floresta. Javari, elaborado pela Funai em 1998. século, testemunhei um vertiginoso agra- – uma indicação de que a alta mortalida-
Foram relatos que ajudaram a aclarar Na segunda metade do século XX, re- vamento de casos de malária no Javari, de infantil na região ocorria provavel-
às pessoas de todo o país como o atual ligiosos fundamentalistas invadiram o quando trabalhei nas aldeias do Alto Rio mente havia anos.
governo se empenha em transformar o Javari e insistiram em evangelizar a po- Ituí como professor e pesquisador. Ao
Vale do Javari em um inferno. E não ape- pulação. Foi o que ocorreu com a criação chegar lá, em 2004, vivi em comunida- or que motivo o Javari e seus povos
nas essa região, mas várias outras da
Amazônia, levando ao ápice a negligên-
cia dos governos e a antiga indiferença da
da comunidade Vida Nova, no Alto Rio
Ituí, pela Missão Novas Tribos do Brasil,
que, apesar do nome, era comandada por
des dos marubos que tinham roças fartas
e caça abundante. A hospitalidade, a
tranquilidade e as belas paisagens me fi-
P importam para quem lê este texto?
Por tudo que eles têm a nos trans-
mitir, mesmo os indígenas isolados. Es-
sociedade brasileira em relação à floresta pregadores norte-americanos. Os Maru- zeram acreditar que eu estava em um dos sas pessoas afastadas de todo contato
e seus povos. Considerada uma periferia bo, um dos povos do Javari, passaram a lugares mais protegidos da Amazônia. com nossa cultura não são vultos do pas-
do país, a Amazônia sempre foi tratada conviver permanentemente com missio- A situação se inverteu no ano seguinte, sado pré-histórico que assombram a civi-
como uma fronteira de mato e de terras nários instalados no interior de suas ter- de maneira rápida e dramática. Vi quase lização. Elas trazem à nossa consciência
indígenas onde se vive ainda como no ras, à revelia de sua própria decisão. Aos toda a população adoecer com sucessivos a certeza de que é possível viver sem a
período Paleolítico, sendo um verdadeiro poucos a missão se confundiu com o as- contágios de malária, muitas vezes sem parafernália material e ecologicamente
entrave ao progresso da “civilização bra- sistencialismo social, praticado no vácuo que tivesse força suficiente para providen- insustentável que nos cerca, sem as per-
sileira”. Pouco se sabe, entretanto, sobre deixado pelo poder público, tornando-se ciar seus alimentos. O sistema público de versões e injustiças produzidas pela socie-
a complexidade das culturas da floresta e em certos momentos o único recurso saúde tardava a trazer remédios, e eu mes- dade dividida em classes, sem a miséria
suas formas de conhecimento. Menos para os indígenas, frequentemente afeta- mo me vi atuando como enfermeiro e que hoje se espalha pelo Brasil.
ainda sobre a maneira como pessoas in- dos por enfermidades. Mesmo assim, o operador de rádio. Daí em diante, os ca- Em outros termos, são pessoas com
dígenas compreendem a crise atual. proselitismo religioso, implantado de sos de malária se tornaram crônicos, mi- as quais deveríamos aprender se quiser-
Foi necessária essa tragédia – a mor- modo autoritário e em pleno desrespeito nando a saúde da população. mos lidar com os efeitos já presentes do
te de Pereira e Phillips – para que as à autonomia cultural indígena ainda per- Em 2010, com a antropóloga Barbara colapso da civilização global industria-
vozes dos povos que vivem no Javari fos- siste e se expande, enquanto as autorida- Arisi, a médica Deise Alves Francisco e a lizada. Pois elas, muito frequentemen-
sem ouvidas nas mídias brasileira e in- des fazem vista grossa. jornalista Maria Emília Coelho, elaborei te, precisaram se refugiar da destruição
ternacional, para que o descalabro que O Vale do Javari também é assedia- um relatório2 que indicou que o coeficien- que batia às suas portas, recusando se
tomou conta da região se tornasse visí- do há décadas por madeireiros, explora- te de mortalidade infantil de menores de envolver com aquela sociedade crimi-
vel e muitos se dessem conta de que ali dores de quelônios e caçadores, que 1 ano no Distrito Sanitário Especial In- nosa. Em outras partes do Brasil, essas
não é a antessala do inferno nem a estabeleceram uma relação intrincada dígena Vale do Javari era de 64 crianças pessoas estão cercadas por estradas, cam-
Amazônia uma periferia do mundo de- com a população dos municípios (espe- mortas por 1 mil nascidas vivas, quase o pos de soja ou fazendas de gado. No
senvolvido. Bem ao contrário, a floresta cialmente Benjamin Constant e Atalaia Javari, é a complexa rede – há muito in-
é o centro de qualquer possibilidade de do Norte). Em 1990, um grupo de ma- 1 Conforme notícia publicada no site Terras Indígenas ternacionalizada – dos cartéis e ramifi-
mundo, no presente e no futuro. deireiros e pescadores assassinou três do Brasil, em 4/5/2001. cações do narcotráfico que assedia os
2 Saúde na Terra Indígena Vale do Javari – Diagnóstico
As adversidades enfrentadas no Vale indígenas korubos, de recente contato. Médico-antropológico (Centro de Trabalho Indigenis- isolados e outras tantas populações in-
do Javari pelos povos indígenas podem No ano seguinte, os korubos mataram ta/Instituto Socioambiental, 2011). dígenas da região.

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JOSÉ SEBASTIÃO NASCIMENTO MARUBO_2022


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Manuel Sebastião Kanãpa, Robson e Mesenpapa Marubo, no Javari: os marubos cobriram o corpo com tintura de jenipapo em protesto contra o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips

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Do ponto de vista dos outros povos Shoma é o nome dado a um coletivo


do Javari – Marubo, Mayoruna (Mat- infinito de espíritos femininos espalhados
sés), Matis, Kanamari, Kulina, Tso- pela mata, dotados de diversas capacida-
hom-dyapa, Korubo –, os isolados são des extraordinárias, tais como provocar
como ancestrais que seguem vivendo ventanias imensas e incêndios, mobili-
O plural da mesma maneira que seus tataravós. zar furiosas onças-espírito e combater
de música Isto é, são pessoas que não têm o san- com lâminas afiadas a multidão de es-
gue estragado pelo consumo de frango, pectros de pessoas mortas e outros agen-
é gente de carne de boi e de cachaça, que não tes agressivos que invadem as pessoas e
têm a memória turvada pela escrita e as fazem adoecer.
pelas telas, nem os corpos adoecidos pela Capazes de limpar os corpos e restau-
malária, a hepatite, a Covid, o HIV. Como rar a saúde, as shoma são responsáveis
nunca pisam nas cidades, também não por chamar o espírito-dono da ayahuas-
são relegadas à subalternidade que, ne- ca (Oni Shãko, “Broto de Ayahuasca”)
las, se destina aos indígenas. para que, juntos, recobrem as forças do
Os marubos, entre outros tantos ha- doente, por meio de uma terapia poéti-
bitantes do Javari, não repetem os pres- ca, composta por versos como os seguin-
supostos racistas e evolucionistas que tes, cantados pelo falecido pajé Antonio
os impérios ocidentais usaram para Brasil Tekãpapa:
MC Tha devastar quase todos os povos do plane- Aí mesmo sentada
03.09 ta. A imagem do ancestral tipificada bela mulher da terra
pelos isolados aponta, bem ao contrá- vem da relva para cá
rio, para o futuro: eles são humanos de Shoma aí sentada
corpos belos e adornados, propagado- fresco orvalho estrelar
res de vínculos construídos pelo afeto e verte para refrescar
pela conexão com essas existências que bom frescor de Shoma
costumamos chamar de animais ou de da Shoma aí sentada
naturais. É exatamente essa imagem benfazejo Broto de Cipó
dos isolados que agrada aos inumerá- para o corpo de seu homem
veis espíritos, com os quais os viventes Shoma mesmo chama
Lenine formam relações que perdurarão após no corpo de seu homem
o abandono desta Terra – que os maru- desta droga mesmo
24.09 bos, tão sabiamente, chamam de Morada sente-se para cuidar
da Terra-Morte. guarde-o para si
“Espírito” é a palavra que nós, os an- na cabeça do homem
tropólogos, usamos por ainda não conse- Shoma vem sentar
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTASguir entender exatamente o significado e a droga afronta.
dos termos empregados pelos povos da Esses cantos, cuja versão completa,
floresta para se referir a experiências e com 1 358 versos, foi traduzida por mim
conhecimentos que nos escapam. no livro Oniska: Poética do Xamanismo
Johnny Braza O falecido pajé marubo Armando na Amazônia (Perspectiva), integram o
BK’ Hooker acústico Cherõpapa, um dos mais importantes do gênero das “falas soprocantadas” (shõki
05.08 13.08 20.08 Vale do Javari, me explicou certa vez vana). Eles podem variar indefinida-
o que era o gigantesco tapete de árvores mente e ser aplicados para os mais di-
que recobre a Amazônia. Do nosso pon- versos tratamentos e rituais protetivos.
to de vista, a floresta é uma infindável

A
sucessão de árvores que se perde no ho- delicadeza poética do xamanismo
rizonte. Ele, porém, me disse que tudo marubo, derivada de sua capaci-
aquilo que eu via como floresta era uma dade de transformar o maravi-
interminável sucessão de casas e aldeias, lhamento da floresta em sistema de
Alice Caymmi + com populações magníficas de huma- conhecimento e ação ritual, passa a ser
João Donato César Lacerda nos, configurados em várias formas, mes- afetada pela catástrofe política atual.
21.08 08.09 mo nas formas vegetal e animal. “É uma Com o recrudescimento da violência,
terra muito mais vasta e mais populosa as palavras poéticas empenhadas pelos
do que São Paulo”, afirmou o pajé, com cantos dos pajés precisam reverberar
quem trabalhei entre 2004 e 2009. para além da floresta, com a rede de
Esses espíritos, ou melhor, essas exis- alianças que se fortifica por meio da
tências humanas que configuram a flores- escrita e das mídias digitais. Nenhuma
ta têm os corpos recobertos por desenhos dessas duas formas de reverberação,
e adornos dos mais variados, são perfu- diga-se de passagem, é completamente
madas, fulgurantes e dedicam seu tem- alheia ao universo xamânico, que sem-
po a cantar e a festejar. Davi Kopenawa, pre foi uma tecnologia de acesso ao
Ingressos: o famoso pajé e ativista yanomami, e o virtual e com articulação em redes – a
casanaturamusical.com.br antropólogo Bruce Albert ofereceram mais antiga delas, talvez.
algumas belas imagens delas em seu Há alguns meses, os marubos con-
livro A Queda do Céu, no qual tradu- seguiram conexão de internet em suas
ziram o princípio que nós chamamos aldeias. Assim que as mortes de Bruno
CASA NOS ENCONTRAMOS
NATURA MUSICAL 5 ANOS NA MÚSICA “espírito” como “valor de fertilidade” Pereira e Dom Phillips foram confir-
da floresta. madas, alguns deles começaram a me
Uma palavra em marubo, shoma – enviar por WhatsApp fotos e vídeos de
que se pode traduzir por “seio” –, é usa- um ritual de protesto que fizeram em
da pelos indígenas para adicionar ainda homenagem aos dois homens assassi-
mais significado a essas formas infinite- nados. Nas imagens, os indígenas apa-
simais de personificação da floresta. reciam cobertos por uma tintura de
Patrocínio: Cia Aérea Oficial: Apoio:

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jenipapo, que mantiveram durante cantos”): são centenas de narrativas ver- va os antepassados, depois de retalhá-los de Robson se dedicam a construir um
dias, como manifestação política e me- sificadas e metrificadas que falam da com seus braços, parecidos com facões. novo caminho, para que esses espectros
dida de proteção. O termo “protesto”, formação do mundo, dos animais, da hu- A mulher fez isso até mesmo com os ne- saiam logo da Terra.
até então desconhecido pelos povos do manidade e de outros tantos eventos ocor- tos, até ser queimada em uma fogueira Os espectros das pessoas que morre-
Alto Rio Ituí, agora vai ganhando corpo ridos no começo dos tempos.3 por seu filho, que resolveu defender as ram sem ter aprendido a viver são perigo-
entre eles, que formaram uma associa- Uma dessas narrativas – que nosso crianças. No fogo, o corpo de Shoma sos. Carentes e agressivos, eles se postam
ção xamânica e estética empoderada eurocentrismo estrutural chama de mí- Wetsa explodiu, e seus ossos e vísceras, às costas dos viventes, causando-lhes os
pela fala-força da Shoma, ativada nos ticas – versa sobre a montagem do mun- espalhados pelo ar, se transformaram no mais diversos males, como o alcoolismo
corpos graças à tintura negra. do por um grupo de divindades que machado, no ferro e nos motores. Seus e a demência, o impulso de matar e o
O professor Robson Marubo foi surgiu de uma ventania primordial. Em dentes caíram pela floresta e viraram desejo de destruir. Robson e outros pajés
quem aglutinou o movimento. Ele é o uma espécie de reunião democrática, pepitas de ouro. Um de seus duplos foi me dizem que as cidades nos limites do
atual cacique geral desse povo e tam- muito diferente do ato solitário do Deus para onde o Sol se põe e deu origem ao Vale do Javari estão cheias de gente ma-
bém o seu pajé mais poderoso. Ao con- da Bíblia, as divindades decidem fabri- povo inca. Outro foi na direção de onde nipulada por esses espectros.
trário de outros pajés, como Armando car o céu a partir do couro e dos ossos o Sol nasce e se transformou nos brancos O protesto realizado depois da morte
Cherõpapa, que veem de longe o pano- das antas para, em seguida, formar as que vivem na cidade. Shoma Wetsa é de Bruno Pereira e Dom Phillips e em
rama infinitesimal das existências na estrelas, as nuvens e os matizes do pôr do uma explicação da origem dos brancos razão do progressivo desmantelamento da
floresta (pois a luminosidade que ema- sol com as partes de outros animais (que e de sua ânsia de destruição. estrutura de proteção da terra indígena foi
na delas ofusca o seu olhar), Robson é já existiam desde o início dos tempos). Robson Marubo comprovou a exis- o primeiro que o povo marubo do Alto
capaz de entrar nas casas desses seres, Outra narrativa trata da Terra já cons- tência dela – isto é, o sentido da disper- Rio Ituí organizou em seu território. Na
de estabelecer relações com eles e, por- tituída, que, tal como uma pessoa, se são daquele corpo primordial pelos ocasião, eles mesmos disseram estas pala-
tanto, receber os seus conhecimentos. comunicava constantemente com os vi- cantos da Terra – ao visitar as usinas da vras, tão distintas da poesia de seus cantos
Isso porque Robson foi gestado simulta- ventes. Mas alguns insensatos resolveram cidade de Cubatão, na Grande São Pau- originais, mas tão urgentes e necessárias:
neamente em seu mundo e nos domí- copular sobre ela e a contaminaram com lo. Verificou que ali se forma a “fumaça- Indígenas do Vale do Javari protesta-
nios da gente poraquê. O espírito do a catinga de seus corpos, e a Terra deci- morte” que adoece o mundo. Para os ram contra o Bolsonaro, em defesa de
peixe-elétrico poraquê teria fecundado o diu se silenciar – e continua em silêncio marubos, Robson é mais de uma pessoa Bruno e Dom, em defesa do nosso direito
espírito de sua mãe, fazendo com que até hoje, exceto para pessoas como Ar- e se desdobra em espíritos auxiliares que ao território do Vale do Javari. Primeira
o filho se tornasse, desde pequeno, fa- mando Cherõpapa e Robson Marubo, o ajudam no trabalho de ampliar o Ca- manifestação de Vida Nova. Queremos
miliar aos outros mundos. que conseguem escutar o que ela diz. minho dos Mortos – reservado aos de- fora presidente da Funai, fora Marco
Foi por isso que Robson pôde apren- Uma outra história fala sobre Shoma funtos que precisam comprovar o que Temporal! Nós lutamos pelo nosso direi-
der tão rapidamente todo o enciclopédi- Wetsa, uma mulher de ferro que devora- aprenderam na vida antes de continuar to, pelo nosso território do Vale do Java-
co conhecimento das “histórias cantadas”, a travessia. Como nosso tempo é o da ri, queremos isso. Resistimos para existir;
3 Para se ter ideia dessas narrativas, remeto ao livro
ou saiti, que seus colegas mais velhos Quando a Terra Deixou de Falar: Cantos da Mitolo-
insensatez, esse caminho está lotado de nenhuma gota de sangue a mais. Somos
levam a vida inteira para memorizar. gia Marubo (Editora 34), feito por mim em parceria mortos, que se multiplicam de maneira defensores do planeta. Somos defensores
com os pajés cantadores Antonio Brasil, Lauro Brasil,
Os saiti formam outra das tradições orais Paulino Joaquim, Armando Mariano e Robson Maru-
descontrolada e não conseguem chegar da floresta. Queremos direito ao nosso
desse povo (junto aos shõki, ou “sopro- bo. É um volume bilíngue com treze narrativas. ao fim do trajeto. Os espíritos auxiliares território. Respeitem as nossas terras! J

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do mundo para o umbigo

O ADVOGADO OSTENT
-E
u não roubei, não preciso de administrativa e conflito de interes-
ter vergonha – começa se, pois Wilians defendia clientes que
Nelson Wilians, o advo- processavam a prefeitura na Justiça.
gado de 51 anos, quando O que Wilians levava em troca do em-
responde aos que criti- préstimo? “Prestígio”, respondeu ele,
cam sua inclinação ao exibicionismo. prontamente, numa tarde de abril passa-
– Falam que eu ostento? Eu não mos- do, quando recebeu a piauí em sua casa,
tro nada que não seja meu – afirma, e sai sentado no sofá de uma das salas de vi-
enumerando: sita da mansão, aromatizada e com mú-
– O avião? É meu. O helicóptero? sica ambiente. Pois dois meses depois
É meu. Os carros são meus, a mulher é da posse de Doria no governo paulista,
minha, os filhos são meus. A casa é minha. Wilians conseguiu renovar o contrato
E que casa. São 2 mil m² de área cons- que tinha com a CDHU, a estatal paulis-
truída, com dezesseis quartos e uma ta que constrói moradias populares. En-
adega subterrânea com 4,6 mil rótulos. traram 43 milhões de reais.
Erguida em 1951, no estilo château fran- “Você há de convir”, justificou. “Hoje
cês, tem um pé-direito imenso e piso de não, hoje não podemos mais dizer isso,
mármore. Nas paredes, distribuem-se mas antigamente o João tinha um pres-
telas de Picasso, Portinari e Di Caval- tígio no meio empresarial que não tinha
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canti. Na decoração, há uma peça de nada igual. Ele punha o PIB aqui dentro.”
Brecheret, cômodas que o dono garan- Não era só o PIB que interessava, tanto
te terem pertencido a Napoleão – e es- que Bia Doria já sentou diversas vezes
culturas de Bia Doria, a mulher do numa das catorze poltronas de couro da
ex-governador paulista João Doria, que aeronave para viagens particulares, sem-
tentou ser o candidato tucano ao Palá- pre que o jatinho do casal Doria estava
cio do Planalto. Na garagem, entre os em manutenção. (Em 2020, os Doria
21 veículos da família, há três Bentleys venderam o jato.) “Vou falar ‘não’ para a
e um Rolls-Royce. A mansão – cuida- primeira-dama? Óbvio que não”, diz
da por quinze empregados, uma gover- Wilians, aos risos. Ele diz tanto “sim”
nanta e oito seguranças, todos de terno que já perdeu a conta de quantas peças
preto – fica encravada num terreno de comprou de Bia, artista plástica conhe-
4 mil m² no luxuoso bairro do Jardim cida por seu estilo muitíssimo similar ao
Europa, em São Paulo. de Frans Krajcberg, de quem foi aluna.
Tudo ali é feito para impressionar “Adoro”, diz ele. “Recebo muita gente
durante as recepções frequentes – e aqui, qual presente eu gosto de dar?
uma ou outra festa de arromba – que Bia Doria. Gringo adora.”
Anne, sua mulher há sete anos, conduz Wilians também adora clientes fa-
com destreza. Uma das festas aconte- mosos. Defende os Doria em diversas
ceu em 2018, para celebrar a vitória de ações judiciais. Na mais ruidosa delas,
Doria na eleição para o governo de São o ex-governador foi acusado pelo Mi-
Paulo. Custou 1 milhão de reais. Teve nistério Público de se apropriar de
uísque Blue Label, champanhe Veuve uma viela pública em Campos do Jor-
Clicquot, arroz de pato e decoração dão, o badalado retiro de inverno dos
com orquídeas híbridas intergenéticas, paulistas. Wilians perdeu. Trabalhou
como a Odontocidium catatante. Na como consultor para a Prevent Senior,
ocasião, Wilians celebrava também a a seguradora de saúde voltada para o
fama que adquirira um ano antes, quan- público idoso, que foi flagrada recei-
do o jornal Valor Econômico revelou tando remédios ineficazes para pacien-
que o advogado emprestava seu avião tes com Covid. Wilians também é
– um Legacy 650, fabricado pela Em- frequentador dos sites de fofoca porque
braer – para que o amigo Doria, então faz a defesa de Rose Miriam di Mat-
prefeito da capital paulista, viajasse in- teo, a mãe dos três filhos de Gugu Li-
clusive a trabalho. berato, morto em 2019. Ela pede parte
João e Nelsão, como eles se tratam, da herança do apresentador.
não negaram o empréstimo, e o prefeito Sua clientela célebre ajudou a trans-
se esquivou de acusações de improbida- formar seu escritório numa potência, Wilians, numa das salas da casa que negociou com um ex-senador de “porteira fechada”, ou

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NTAÇÃO A vida, a obra e todos os luxos de Nelson Wilians

THAIS BILENKY

EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃ FOTOGALERIA_2022


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seja, com móveis, obras de arte, artigos de decoração. Mas a escritura do imóvel ainda não está no seu nome: “Esta casa, em algum momento, será minha. Estou comprando toda a vizinhança”

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ANGELI
lidade é contratos. As pessoas perguntam ve o humor afiado. Quando a piauí pe-
se eu os redijo. Não, eu fecho contratos”, diu para gravar a entrevista, ele assentiu,
diz, dando uma de suas gargalhadas ba- sorriu e afirmou: “O máximo que você
rulhentas. “Eu uso muito essa expres- pode me causar é um pedido de prisão
são: Se há uma virtude do Nelson é o faro do Alexandre de Moraes.”
para o negócio. Sou um advogado empre- O marketing do escritório de Wilians
endedor, não um empreendedor advoga- tem uma estratégia diversificada. Ele cos-
do”, garante, preparando o terreno para tuma recorrer aos serviços do Estúdio
soltar a frase triunfal: Folha, uma divisão do jornal Folha de
– Minha especialidade é ser o líder S.Paulo que produz e publica conteú-
do maior escritório do Brasil. do patrocinado, devidamente identificado
O líder do maior escritório também já para que o leitor não confunda com ma-
causou dor de cabeça para a Ordem dos téria jornalística. O conteúdo patrocina-
Advogados do Brasil (OAB). Em agosto de do por Wilians é composto por artigos de
2021, a entidade foi acionada por advoga- opinião, quase sempre acompanhados
dos indignados com o uso despudorado de fotos do advogado. O escritório tam-
de publicidade por parte do escritório de bém patrocina eventos, como o Fórum
Wilians. A ira foi provocada por anúncios Empresarial Lide de 2019, realizado em
de página inteira na capa dos jornais Fo- Campos do Jordão, com a presença do
lha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, nos ministro Paulo Guedes, e gasta com en-
quais aparecia a imagem de Wilians e a gajamento em rede social, sobretudo no
logomarca do escritório. Também publi- Instagram. Em 2018, como patrocinador
cou, em página inteira do Estadão, tiras da revista Forbes, da qual é advogado e
desenhadas pela cartunista Laerte con- colunista, ajudou a bancar a festa ofereci-
tando a história da advocacia – e, ao lado, da pela publicação em Nova York. Sua
um QR Code que levava ao site institucio- contribuição? “Um valorzinho puxado,
nal. “O Código de Ética e Disciplina es- quase 1 milhão de reais”, disse. A festa
tabelece que a publicidade profissional do fez uma homenagem ao ex-juiz Sergio
advogado deve, acima de tudo, primar Moro, que recebera o título de “Homem
que faturou 450 milhões de reais no O “CEO” desse império tem 1,89 me- pela discrição e sobriedade, não podendo, do Ano”, concedido pela Câmara de Co-
ano passado, segundo informa o “CEO” tro de altura, pesa 93 kg (depois de per- de forma alguma, ter caráter mercantilis- mércio Brasil-Estados Unidos.
(como Wilians intitula a si próprio). der 32 kg ao abdicar do arroz, do suco ta ou induzir à captação de clientela”, Naquele tempo, acercar-se de Moro
São 450 mil ações nos tribunais brasilei- de laranja e do Yakult, suas tentações) e afirmou Carlos Kauffmann, presidente era sinônimo de prestígio – e dinheiro.
ros (a maioria trabalhista e de recupera- anda sempre na estica, sob orientação do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB Tanto que Wilians promoveu algumas
ção de créditos), 20 mil clientes, 1,5 mil do amigo Roberto Justus, o apresenta- paulista, ao notificar Wilians. “Não é o homenagens para o casal Moro e asso-
advogados e pelo menos uma filial em dor de tevê, que lhe faz as vezes de per- que se vislumbra, com o devido respeito, ciou-se em Curitiba com uma advogada,
cada estado brasileiro, além de sete fora sonal stylist. Os ternos do advogado são
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS com as imagens divulgadas.” Sandra Comodaro, que era “amicíssima”
do país: Chile, China, Colômbia, Ín- Alexander Wang, as gravatas são Stefa- No ano passado, o escritório de Wi- de Rosângela, a mulher do ex-juiz. Numa
dia, Paraguai, Peru e Portugal. Em seu no Ricci e os sapatos são Ferragamo. No lians investiu 3 milhões de reais em mar- ocasião, ele dividiu uma mesa de jantar
escritório, num prédio comercial de pulso, carrega um Parmigiani Bugatti, keting. Ao ser informado dessa cifra, com Moro. Ele conta: “Eu sou muito in-
alto padrão em São Paulo, exibe minia- cujo preço ele revela antes que alguém um medalhão da área criminal espan- formal. Veja bem, a pessoa que está na
turas de seus luxuosos meios de transpor- pergunte: 230 mil dólares – nada muito tou-se e não se segurou: “Caralho”, dis- minha frente não é o doutor Moro, é o
te: o Legacy 650, o helicóptero Agust além do custo de uma festa de arromba. se, em voz baixa. Os grandes escritórios Sergio. Então, a minha conversa come-
109 Power, duas lanchas vintage da ita- de advocacia não gostam de informar çou com uma zoação do time dele, que

A
liana Riva e um iate Azimut 76, batizado advocacia tradicional torce o nariz quanto gastam com propaganda – dois tinha perdido para o Corinthians. Meu
de Anne, em homenagem à sua mulher. para Nelson Wilians e diz que sua deles, que figuram entre os maiores do sócio era corintiano, arrancou o couro
Também tem duas garrafas de vinho ascensão se deve à adoção de práti- país, consultados pela piauí, não quise- dele, começou o bate-boca, ele falando
Petrus Pomerol, uma cachaça Weber cas desleais – como a de reduzir seu pre- ram informar os valores nem mesmo que ia dar voz de prisão para o cara. Eu
Haus e um busto de Napoleão. ço para roubar clientes, uma abordagem diante do benefício do anonimato –, falei ‘prende nada’, aquela brincadeira,
Entre pessoas jurídicas, Wilians de- repudiada pelas bancas de advogados. mas a publicidade que fazem geralmen- aquele clima descontraído.”
fende gigantes do varejo, como a Havan Ele se defende. “Nunca confundir Nel- te é de caráter mais institucional e cor- Estar perto do poder é parte do busi-
e a Riachuelo, multinacionais como AB son com advogado de massa, que não é porativo, adotando a sobriedade que os ness. No Amapá, Wilians foi levado por
InBev, do setor de bebidas, e grandes a minha praia. É uma expressão chula mandamentos éticos exigem. seu sócio local até a casa do senador
bancos, como Bradesco e o Banco do que o mercado usa. Somos full service. Um dos garotos-propaganda de Wi- Davi Alcolumbre (União-AP), quando
Brasil. Ele não diz qual o processo que O que é o full service? É a famosa frase: lians é o veterano Ives Gandra Martins, ele ainda presidia o Senado. “Qualquer
mais lhe rendeu dinheiro. Apesar do su- Dá-me o contrato que te dou a execu- 87 anos, que aparece num vídeo institu- um desses advogados de São Paulo e Rio
cesso, seu escritório acumula 76 mi- ção.” Traduzindo: se não tem equipe cional exibido nas redes sociais e nas iriam a Brasília. Já eu era recebido pelo
lhões de reais em dívidas tributárias e especializada no assunto de interesse do salas de espera do escritório do advoga- Davizinho, seu apelido de infância, de
previdenciárias com a União, segundo cliente, Wilians vai ao mercado, contrata do. No vídeo, Gandra Martins afirma: bermuda e camiseta, em Macapá”, ga-
informa a Fazenda Nacional. “Fizemos os especialistas e ganha o negócio. “Este velho advogado fica muito feliz de bou-se. Em outra ocasião, em São Luís,
acordo e parcelamos. Estão sendo pa- Quando Doria contou que concorreria à ver um jovem como Nelson fazer o que seu sócio no estado ofereceu-se para
gos”, respondeu. “A Nelson Wilians Ad- Prefeitura de São Paulo em 2016, Wi- ele está fazendo pela advocacia no Brasil apresentá-lo ao ex-presidente José Sar-
vogados e demais empresas pretendem lians disse que faria a assessoria jurídica e pelo Brasil.” Feliz e recompensado. ney. “Ele mostrou para mim uma meni-
faturar 1 bilhão de reais em 2022. Nossa da campanha. Não tinha nenhum advo- Martins já ganhou algumas centenas de na ali, uma advogada trabalhando na
legislação tributária é complexa e mui- gado eleitoral no escritório. Contratou milhares de reais – ele não revela o valor nossa filial, que era afilhada do Sarney.
tas vezes geram discussões se isso ou Anderson Pomini, que assumiu a tarefa – fazendo pareceres jurídicos encomen- Ela passou a mão no telefone e lá estava
aquilo é devido ou não.” Em seguida, e, com a vitória de Doria, acabou sendo dados por Wilians. Em conversa com a eu dentro da casa do Sarney, tomando
arrematou: “Não existe no país empresa indicado para ser secretário de Negócios piauí em seu escritório nos Jardins, ele um café. Um príncipe. Cheio de obras
grande que não tenha débito tributário.” Jurídicos da prefeitura. reforçou sua admiração pelo advogado. de arte sacra, casa chique, uma simpa-
(O Mattos Filho, único entre os grandes Assim que concluiu a explicação sobre Aliado de Bolsonaro, Martins acha que tia! Depois o encontrei várias vezes, a
escritórios brasileiros que divulga sua seu método de trabalho para a piauí, Wi- as grandes ameaças à democracia brasi- coisa sempre fluía. Existe algo mais ín-
receita bruta, informou que faturou em lians fez uma concessão aos críticos e leira vêm do Supremo Tribunal Federal, timo do que receber alguém em casa?”
2021 um valor superior ao almejado por admitiu que sua atuação não é exatamente e não do presidente. Martins pode ter O fundamental é que intimidade
Wilians: 1,2 bilhão de reais.) ortodoxa. “Eu falo que a minha especia- perdido o foco da realidade, mas mante- abre portas. Wilians dá um exemplo,

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evitando os nomes para não violar o si- ex-presidente Michel Temer, a quem Por isso impeachment elaborado pelo escritório
gilo na comunicação com seus clientes. chama de “professor” porque foi seu Andam mal de Wilians. Ele diz que a peça foi obra de
Há alguns anos, uma empresa foi puni- aluno em um curso em Bauru, no inte- Os meus escritos. sua sócia, Maristela Basso. Hoje, sem o
da por um órgão de controle com multa rior paulista, décadas atrás. Temer fre- “professor” Temer no horizonte, adap-

W
e proibição de fazer contratos com o quenta as recepções em sua mansão no ilians ama citações. Em de- tou-se novamente: confessa que o im-
poder público por dois anos. O cliente Jardim Europa. Em 2016, por pouco zembro passado, durante uma peachment foi um erro. Basta ver “o
aceitava pagar a multa, mas queria con- não conseguiu um contrato de 23 mi- conversa de duas horas em seu estrago” que causou ao país. Diz ele:
tinuar prestando serviços para o setor lhões de reais com a Codesp, a administra- escritório, com vista para a Ponte Es- “Quando se ataca a Presidência, desmo-
público. “Ligo para um senador. Ele dora do Porto de Santos hoje chamada taiada na Marginal Pinheiros, fez duas rona o sistema num efeito dominó.”
estava em Londres. Atendeu ofegante, Santos Port Authority, que estava sob dezenas de citações – Montesquieu, Sua conclusão não tem nada a ver
perguntei: ‘O que aconteceu? Tá tran- influência do MDB de Temer desde os Maquiavel, José de Alencar, Tom Jo- com as pesquisas, que mostram Lula na
sando?’ Ele deu risada. Falou, ‘não, tô anos 1990. “Ele me trata com uma re- bim –, e citou até a própria mãe, Bene- liderança da corrida presidencial, mas
na esteira, bufando’. Expliquei o caso. verência até exagerada”, disse Temer à dita Antonia. Ou assim pareceu: no Wilians gosta de lembrar que já teve
Em meia hora, o senador me retornou. piauí, numa conversa em seu escritório final da conversa, ele admitiu, às gar- contato com o petista. Foi em 2002, em
Seguinte: ‘O governador não pode te no Itaim Bibi, em São Paulo. “Ele elo- galhadas, que inventou a frase de sua Bauru, onde tinha um modesto escritó-
receber amanhã, pode te receber na gia meus livros de poemas. Ele é fã. mãe: “Não importa onde um homem rio, no início da carreira. Um vereador
segunda-feira.’ Peguei o avião e às nove Exatamente isso. Nos meus aniversá- nasce nem como ele vive, importa petista pediu que Wilians patrocinasse
da manhã da segunda-feira o governa- rios, manda telegrama.” Telegrama em como ele termina a vida.” Ela nunca a visita de Lula à cidade, pouco antes
dor me recebeu. Um típico coronel. pleno século XXI? Temer ri e se corrige: disse isso, mas atribuir à mãe, segundo do começo da campanha presidencial
Gosto muito porque é gente destravada, “É que eu ainda mando cartas.” Wilians, dá mais efeito. Seu bordão daquele ano. Wilians aceitou. “Eu ti-
que resolve. O pessoal do Sul é muito Numa coisa, de fato, o ex-presidente favorito é aquele: “Dá-me o contrato nha um cartão de visitas preto, tinha
metido, muita firula para pouca autori- tem razão: Wilians é fã de seus poe- que te dou a execução.” Diz que se ins- um brasão do escritório. Entrego pro
dade.” Resultado: o cliente pagou a mas. Gosta muito de Assintonia, cujos pirou em Arquimedes. “Ele não falou Lula. Ele comentou: ‘Cartão bonito,
multa e reverteu a proibição de assinar versos dizem assim: ‘me dê uma alavanca e eu movo o hein, doutor? No dia em que eu for pre-
contratos públicos. “Não me tenha por mundo’? Então, eu adapto.” sidente da República, vou ter um igual
soberbo”, diz. “A soberba é a visão equi- Falta-me tristeza. Adapta-se a tudo. Wilians fez campa- a esse.’” Depois da vitória, Wilians man-
vocada de si próprio e da realidade.” Instrumento mobilizador nha com fervor pelo impeachment de dou entregar um cartão com o mesmo
Wilians dá a receita: “Todas as vezes Dos meus escritos. Dilma Rousseff, emprestando seu jati- acabamento no Palácio do Planalto. Mas
que visito um estado, sou recebido pelo Não há tragédia nho para quem estivesse empenhado só recebeu um agradecimento protoco-
governador, o prefeito, o presidente da À vista. em algum ato contra a petista. Deu ca- lar meses depois.
Câmara, o presidente da Assembleia e Nem lembranças rona para Alexandre Frota, que ainda Wilians diz que se empenhou para
o presidente do Tribunal de Justiça. Ter De tragédias passadas. não era deputado e queria ir a Brasília aprender os códigos da política, sobre-
um bom relacionamento, se não ajuda, Nem dores no presente. para fazer um protesto contra Dilma na tudo depois de ter sido chamado de “po-
não atrapalha.” Mas às vezes parece que Lamentavelmente Esplanada dos Ministérios. Debaixo do liticamente ingênuo” pelo ex-deputado
ajuda e muito. Ele se considera amigo do Tudo anda bem. braço, Frota carregava um pedido de federal Indio da Costa, candidato a vi-

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piauí_agosto 59
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ANGELI
Wilians conta que teve uma ideia: nhos caros, charutos e mesa farta. Para
“Um empregado de férias está à disposi- Toron, a confraria, à qual ele mesmo só
ção do empregador? Não. A empresa não compareceu uma única vez, na verdade
paga 20% de INSS sobre as férias? Paga. não passa de um grupo de WhatsApp.
E a empregada afastada por licença-ma- “Eu o conheci anos atrás quando era
ternidade, a empresa paga? Paga. E auxí- um advogado do interior e o reencontrei
lio-doença e auxílio-acidente? Também. mais recentemente como um grande
Chamei um advogado nosso e falei: ‘Fa- advogado, o que muito me surpreen-
ça uma tese.’ Passou três dias, ele me deu”, diz Toron.
entrega um mandado de segurança. Im-

N
pecável. Agora precisamos de clientes.” a tarde de abril em que a piauí es-
Queria clientes interessados na tese de que tava no casarão do Jardim Europa,
o empregador devia estar isento de pa- o filho mais velho de Wilians,
gar o INSS de um empregado que não es- Ben, de 3 anos, disputava a atenção do
tivesse à sua disposição – em férias ou pai com a reportagem. Vestido de calça
em licença. Acionou sócios para cutu- social e camisa, o menino se aproxima-
car os departamentos jurídicos do Gru- va, pegava biscoitos que acompanha-
po Abril, do Pão de Açúcar e da TAM vam o café dos adultos e saía correndo.
(hoje Latam), que, segundo Wilians, Dali a alguns minutos, repetia a ousa-
concordaram em entrar na Justiça. Al- dia, sempre passando pelo pai para ofere-
guns processos foram frutíferos, outros cer um pedaço – que Wilians recusava
não. No fim, o STJ derrubou a tese, mas sem tirar os olhos da interlocutora. Co-
até que isso acontecesse o escritório de meu todos os biscoitos até que Anne,
Wilians recebeu alguns milhões de reais a mãe, com a filha caçula no colo,
em honorários advocatícios. Athina, apareceu na sala. “O danado
Em 2008, o Banco do Brasil abriu falou que comeu tudo que era doce que
concorrência para a maior terceiriza- tinha aqui e que não vai jantar”, disse.
ção de serviço jurídico do país, da qual Wilians se constrangeu. Falando bai-
só poderiam participar escritórios que xinho, avisou que estava sendo grava-
atuassem em todas as áreas e tivessem do. Anne pôs a mão na boca, pediu
ce-presidente na chapa do tucano José xou a roça e, dois anos depois, mudou-se representação em todas as capitais do desculpas e saiu.
Serra em 2010. Na época, Wilians esco- para Bauru. Empregou-se no departa- país. Sem a capilaridade e o tamanho Wilians tem três filhas do primeiro
lheu como seu orientador um político mento de recursos humanos da Santa exigidos pelo edital, o escritório de Wi- casamento, com as quais praticamente
do Paraná, seu estado natal. Era Ricardo Casa de Misericórdia de Jaú, nos arre- lians não tinha como participar da con- não tem mais contato. No ano passado,
Barros, deputado pelo PP e líder do go- dores de Bauru, e, à noite e nos fins de corrência. Mas aquilo lhe valeu como teve que pagar à ex-mulher, segundo ele,
verno de Jair Bolsonaro na Câmara. “Em semana, dava duro num posto de gaso- “um verdadeiro manual de como de- cerca de 1,6 milhão de reais em pensões
terra, ele não larga o telefone, mas du- lina. Conseguiu formar-se em direito
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS veria ser a Nelson Wilians”. Era uma que estavam em atraso. Em 2014, ele
rante um voo o sinal não pega”, diz Wi- pela Instituição Toledo de Ensino. Em bússola. “Naquela época, eu estava, con- conheceu Anne, que trabalhava na área
lians, que então pediu conselhos para 1999, montou um escritório com um fesso a você, meio desorientado, não institucional de seu escritório. Estão jun-
Barros durante as caronas que oferecia sócio, com o qual rompeu cinco anos tinha uma visão de futuro.” Com o edi- tos desde então. O casal tem três filhos:
em seu jatinho. Barros é um político de depois. Conta que, no fim da socieda- tal em mente, concluiu que não exis- além de Ben e Athina, são pais de Adam,
poucas palavras, poucos amigos e mui- de, não pôde nem pegar as fotos que tia “o maior escritório de advocacia do o filho do meio. Como diz Wilians, é
tas suspeitas. É réu em um processo por tirara com o então futuro presidente Brasil”, pelo menos não nesses termos. tudo dele – a mulher, os filhos, o café, os
recebimento de propina e suspeito de Lula. Começou, “com a roupa do cor- E resolveu que o título seria dele. biscoitos –, mas o casarão, pelo menos
envolvimento no escândalo da Cova- po”, como ele diz, uma carreira solo. Começou abrindo filiais, contratan- até agora, ainda não.
xin, a vacina da Índia que o governo Seu ex-sócio, Adirson de Oliveira, conta do advogados e ampliando o leque de Ele negociou a propriedade com o
queria trazer para o Brasil. que não foi bem assim. “Não é verdade. atuação. Seis anos depois, em 2014, ex-senador Gilberto Miranda, do Ama-
Eu jamais o impediria de entrar”, reba- quando o Banco do Brasil abriu nova zonas, de “porteira fechada”, ou seja, com

N
ascido em uma família pobre de te Oliveira. “Algumas coisas acontece- concorrência, a Nelson Wilians Advo- móveis, obras de arte, artigos de decora-
Cianorte, no interior do Paraná, ram que não eram necessárias, uma gados estava habilitada para disputar. ção, tudo. (Wilians conta que depois de-
Nelson Wilians Fratoni Rodri- coisa pessoal, já passou. Não guardo A licitação valia 1 bilhão de reais. O ven- volveu quase tudo, a pedido de Anne.)
gues não pode nem ouvir falar de roça. rancor. Se ele realmente quiser a foto cedor teria de cuidar de 230 mil ações A transação, porém, é tão tortuosa que
No dia em que conversou com a piauí, com o Lula, eu tenho aqui. Posso en- em diversas áreas, com potencial de pas- a escritura da casa, em vez de estar em
ele almoçara em Brasília com o gover- viar,”, encerrou, aos risos. sar de 1 milhão. Wilians ficou em pri- seu nome, ainda consta como proprie-
nador do Distrito Federal, Ibaneis Ro- Em menos de um ano, Wilians, com meiro lugar – e virou alvo. Concorrentes dade de uma empresa do ex-senador
cha, do MDB. Contou que o papo foi escritório instalado na capital paulista, acusaram seu escritório de contratar Miranda. Wilians se nega a explicar os
bom, mas azedou quando Rocha come- abriu “filiais” no Paraná, no Rio de Ja- advogados-fantasmas só para atingir o meandros da negociação e encerra o
çou a lhe contar sobre seu gosto pelo neiro e no Ceará – as tais filiais consis- número mínimo exigido pelo edital, en- assunto com uma afirmação: “Esta
campo. Wilians mudou de humor. De- tiam em um advogado local e uma quanto os advogados de verdade ganha- casa, em algum momento, será minha.”
testa o assunto. “A minha origem é mui- salinha num espaço de trabalho com- vam salários inferiores ao mínimo. O caso E completa: “Estou comprando toda a
to ruim. Meus pais são muito ignorantes. partilhado. O pulo do gato viria em chegou à polícia e ao Tribunal de Con- vizinhança.” Em Angra dos Reis (RJ),
Eles falam um dialeto, têm o segundo 2006. Um dia, sentado em sua mesa de tas da União, mas no fim, dois anos de- gostou de uma casa numa ilha, deu um
ano primário. Quando xinga alguém, trabalho em São Paulo, folheava uma pois, Wilians venceu em quase todos os sinal e testou a residência durante al-
meu pai não fala ‘desgraçado’, ele diz revista corporativa dirigida a agentes da pontos e levou a licitação. guns meses. Se não gostasse, desconta-
‘desgracido’”, conta. “Vivi uma vida des- Polícia Federal, quando viu uma notícia Quase que numa tacada só, seu es- ria do sinal como se fosse um aluguel.
graçada de restrições de todos os tipos, jurídica: numa ação no Superior Tribu- critório ficou gigante – mas o prestígio Se gostasse, pagaria o restante, como
ganhava salário de auxiliar de escritório, nal de Justiça (STJ), policiais federais nunca chegou na mesma proporção. diz ter feito. Mantém três barcos na
trabalhava de dia, fazia bico de tudo que tinham conseguido isenção no paga- O criminalista Alberto Zacharias To- casa da ilha. No caso do casarão em São
aparecia e ainda estudava à noite.” mento do INSS sobre os primeiros quinze ron, um dos mais renomados advogados Paulo, ele conta que fez diferente – mas
Para ascender, Wilians agiu com dias de afastamento por doença ou aci- do país, é considerado por Wilians um não explica como. E o que inspirou Wi-
agressividade. Primeiro, encurtou o dente de trabalho. O STJ entendeu que os amigo, porque fazem parte de uma mes- lians para ter um escritório gigante,
nome para “Nelson Wilians” para não policiais não estavam à disposição do ma confraria, que se reúne com alguma uma casa gigante?
ser confundido com o escritor e drama- serviço e, portanto, não deveriam arcar periodicidade na mansão do Jardim – Quero sentar na janelinha para ver
turgo Nelson Rodrigues. Em 1990, dei- com o ônus do pagamento ao INSS. Europa com o cardápio conhecido – vi- o circo. Quero estar no fervo. J

60
Pensadores
essenciais
para
entender
o nosso
tempo.

29/08 20h30

Reconhecido
pesquisador da
indústria criativa
e da cultura
digital, é um
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dos escritores
mais lidos da
atualidade.
Suas obras,
traduzidas para 20
idiomas, figuram
frequentemente em
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Obras publicadas no Brasil: 12 CONFERÊNCIAS


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do umbigo para o mundo

EM BUSCA DA MELHORIA
Um dia na vida de Luquinhas XV, skatista campeão e agitador cultural

DAMIAN PLATT

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E
stou em Santo Amaro, uma fa- castanhos e vívidos transmitem humor, Seu pai, Ademir, trabalhava como torno de uma rocha que separa os bair-
vela no coração do Rio de Ja- inteligência e charme. açougueiro. Era um sujeito simpático, ros do Catete e da Glória. Durante a
neiro, sobre uma laje de onde “A gente chama essa laje de Laje Ve- robusto, do tamanho de um armário. Em década de 1980, da mesma forma que
se avista um morro coberto gas”, diz o rapaz de 30 anos, com um sor- agosto de 2021, morreu de complicações outras comunidades, Santo Amaro se
pela mata tropical. Mais adian- riso. E começa a explicar que naquela da Covid. Tinha apenas 65 anos, e a mor- tornou território da facção criminosa
te ficam as deterioradas mansões do noite vai inaugurar junto com o irmão um te prematura foi um choque para a famí- Comando Vermelho, e segue assim até
bairro de Santa Teresa. Do outro lado, a restaurante de sushi bem ali onde estamos. lia. Logo depois, a avó materna, dona hoje. Contra o pano de fundo da cres-
uma pequena distância, o Palácio do “Inaugurar o quê?”, eu pergunto, pa- Francisca, também morreu de Covid. cente “guerra às drogas” no Rio, Socor-
Catete, que já foi sede do governo fede- ra garantir que não ouvi errado. Luquinhas desafia rótulos: é skatista, ro e Ademir construíram uma casa e
ral. Pela manhã, o Sol está fervendo, mas Ademar Lucas – Luquinhas XV para expert em tecnologia, produtor cultu- criaram os seis filhos. O nascimento do
a sombra e a brisa oferecem algum alívio os amigos – sorri. O apelido faz referên- ral, empreendedor social e ativista da fa- mais novo, Luquinhas, em 1991, não
do calor. Lá embaixo, o som das ruas se cia à Praça XV, a região onde ele nasceu vela. Em suas contas nas mídias sociais, foi planejado. “Eu sou a faixa bônus do
mescla com a acústica da favela: os rá- no Centro do Rio e que é seu lugar fa- com mais de 134 mil seguidores, ele se LP da família”, ele brinca.
dios, as motosserras, as conversas aos vorito para andar de skate. descreve como um “mau influencer”. Socorro, que até pouco tempo atrás
gritos e o ruído das motocicletas. “É isso aí, um restaurante de sushi. Mas Luquinhas é um exímio constru- trabalhava na lavanderia de um grande
Um antigo telefone público foi instala- Quando a dona Socorro ficou sabendo, tor de redes e equipes. Lidera um co- hotel, conta que Luquinhas era “muito,
do num canto da laje pintada de vermelho não acreditou. Ela falou: ‘E, depois, letivo de skatistas, grafiteiros e músicos muito levado, mas sempre foi uma óti-
e verde. Acima do teclado do aparelho, você vai fazer o quê?’ Eu disse: ‘Não que ele chama Ademafia – o mesmo no- ma pessoa”. A vida do menino girava
um adesivo com caligrafia de grafite diz: esquenta, mãe, vai dar tudo certo.’” me de sua empresa de produção de em torno da favela: pipa, escola, futebol
“Ademafia.” Um jovem de corpo atléti- Luquinhas gosta de fazer coisas difí- vídeos, material esportivo e vestuário. e festa. De vez em quando, a família ia
co com uma densa cabeleira negra, bigo- ceis. “Depois que meu pai morreu, no “É complicado explicar o que eu faço”, à praia. Mas o Rio de Janeiro “oficial”,
de e barba rala, está ao lado do telefone. ano passado, a família se aproximou até diz. “Então, quando alguém pergunta, para além de Santo Amaro, fazia parte
A impressão é de que ele espera uma bem mais do que antes. Uma coisa que eu falo que estou à procura de melho- de outro universo. Como o Palácio do
ligação. De bermuda e chinelo, ele é a gente queria fazer era achar um pro- rias. E é por isso que a gente vai chamar Catete, em frente do qual Luquinhas se
naturalmente elegante, trazendo no cor- jeto novo pro Cachorrão, meu irmão o restaurante novo de Melhoria Sushi.” deparou um dia com crianças e adoles-
po múltiplas tatuagens. Uma corrente de mais velho. O Cachorrão trabalhou de As origens da Ademafia remontam centes andando de skate.
prata, brincos de argola e uma pulseira motoboy por 25 anos. A gente queria aos anos 1970, quando os pais de Lu- A visão dos skatistas pulando, desli-
indígena de sementes completam o vi- que ele fizesse alguma coisa menos pe- quinhas chegaram ao Rio de Janeiro, zando e “flipando” cativou o menino.
sual, estiloso sem ser chamativo. Debai- rigosa. Por isso vamos abrir esse restau- vindos do Ceará, e se estabeleceram na Ele sabia que precisava fazer parte daqui-
xo das sobrancelhas grossas, seus olhos rante de sushi juntos.” favela de Santo Amaro, erguida no en- lo. Quando seu pai lhe deu o primeiro

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DAMIAN PLATT_2022
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Luquinhas na comunidade Santo Amaro, no Rio: suas conquistas nascem do mais brasileiro dos empreendimentos do século XX, a instalação de uma família do Nordeste numa favela do Sudeste

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ANGELI
inspirada em duas exposições que ele ças ao skate que ele e Luquinhas trava-
viu em 2021: OsGemeos: Segredos, na ram amizade. Quando membros da
Pinacoteca de São Paulo, sobre os ir- Ademafia viajaram a Barcelona para
mãos grafiteiros, e Pardo é Papel , com comemorar o aniversário de cinco anos
trabalhos do artista plástico Maxwell do coletivo, em 2019, Abu foi junto. Em
Alexandre – carioca que vive na fave- 2021, o artista montou um estande, o
la da Rocinha –, no Instituto Tomie RatRio, próximo de onde se realizava a
Ohtake, na capital paulista. ArtRio, a feira de negócios de arte, na
O dono do cabelo roxo é Gean San- Marina da Glória. A iniciativa chamou
tos Lopes, cria de Santo Amaro que vai a atenção de uma curadora de Brasília,
ajudar na galeria. Ele tem 22 anos, es- que não só comprou duas telas de Abu
tuda design de produtos na PUC-Rio e como o convidou para uma residência
coordena uma rede local de jovens artística na capital federal.
artistas e de produtores culturais cha- A janela da quitinete clara e arejada
mada On Santo Amaro. Também tra- de Abu dá para o lado Sul de Santo
balha com “criptoarte social”, fazendo Amaro, com sua confusão de casas de
NFTs (tokens não fungíveis, na sigla em tijolos aparentes. Numa parede do apar-
inglês) para gerar criptomoeda, que ele tamento estão encostadas várias telas
reinveste em atividades sociais. “O que que falam sobre a negritude e sobre o
a gente está tentando fazer é explorar a Rio, pintadas em cores vibrantes (roxo,
potência da periferia. Antes as pessoas laranja e rosa). Nas prateleiras, há de-
não cooperavam”, afirma Gean. “Agora zenas de livros, entre eles do poeta ca-
estamos tentando criar redes de apoio, ribenho Aimé Césaire e do sociólogo
compartilhando informação, projetos e paulista Reginaldo Prandi. Enquanto
plataformas. Temos consciência de que Abu e Gean falam sobre processos cria-
existe um antes, um agora e um de- tivos, Luquinhas escuta. Depois, ele
pois. Milhões de mudanças podem vir diz: “O que eu mais gosto de fazer é
de uma só.” conectar as pessoas e fazer com que
Luquinhas concorda. “A galeria vai elas conversem.” Gean e Abu integram
continuar esse processo. O Gean vai ser o pequeno exército de skatistas e criado-
skate, tudo mudou. Luquinhas ganhou a Na adolescência, seu plano era ser o curador. A gente vai convidar artistas res que recebem seu apoio e incentivo.
chance de pertencer àquele espaço, que skatista profissional. Queria ganhar di- de fora para trabalhar com artistas lo- Luquinhas pega um livro na pratelei-
até então era apenas um lugar de pas- nheiro para comprar uma casa no Rio, cais. Gosto de procurar caminhos alter- ra, O Planeta dos Macacos, escrito pelo
sagem. Ele deixou de ser um pivete de fora da favela de Santo Amaro, para os nativos.” E acrescenta: “Se eu vejo uma francês Pierre Boulle em 1963 e que
Santo Amaro: o Catete também era seu pais. O sonho quase se concretizou em rua que nunca peguei antes é sempre serviu de base para o filme homônimo.
lugar. Uma simples prancha de madeira 2012, quando ele conseguiu o patrocí- por ela que eu vou.” O enigmático Boulle era engenheiro e
com rodas, um brinquedo, tornou-se a nio de um fabricante de tênis. Mas com
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Ele decide visitar Matheus Mar- trabalhou como espião para os britâni-
ponte sobre o abismo social entre a fave- isso veio a exigência de fazer fotos e ví- ques, conhecido como Abu, outro artis- cos durante a Segunda Guerra Mun-
la e o asfalto. deos de manobras originais e difíceis, ta que vive ali. Gean e eu o seguimos dial. Escreveu mais de trinta romances
Com o skate debaixo dos pés, a vida que exigem o máximo dos skatistas, pela rua principal da favela. Um cami- e gostava de colocar seus heróis em situa-
passou a correr em alta velocidade. Lu- para serem exibidas na internet. Em nhão descarrega engradados de cerveja ções difíceis. “Esse é meu livro favorito.
quinhas aprendeu rápido, desenvolven- uma dessas sessões de fotos, Luquinhas perto de um Sacolão Volante, veículo Emprestei ao Abu”, conta Luquinhas,
do habilidades na pista do Aterro do lesionou o joelho. A lesão gerou uma que funciona como mercadinho de que é fascinado por certos primatas.
Flamengo. Um dia, chamou a atenção tendinite. E a tendinite tirou o jovem de frutas e legumes. Mototáxis deixam Há muito tempo ele gosta de fazer
do dono de uma loja de skate, Eduardo 21 anos do circuito profissional do skate. passageiros. Depois de uma padaria zoeira recorrendo a imagens de maca-
Duca Cavalcanti, um ex-surfista que bem abastecida, a rua acaba, e chega- cos. Para promover a festa que organiza

É
havia recebido um patrocínio na ado- raro Luquinhas permanecer quie- mos a uma praça que é o habitual ponto – o Baile do Ademar –, inventou um
lescência. Ele achou que, com algum to num lugar por muito tempo. de encontro das pessoas da comunidade. personagem chamado Homem Maca-
apoio, o menino poderia ir longe, e foi Numa entrevista recente para o Luquinhas sobe por outra rua, em dire- co, e várias vezes usa uma máscara do
conversar com os pais dele. Ofereceu Noir, podcast sobre assuntos pop, o apre- ção ao bairro de Santa Teresa. No cami- bicho no palco. “Começou com um
equipamento e dinheiro para Luqui- sentador Felipe Flip contou sobre uma nho, aponta para um mural que retrata menino na escola que ficava me cha-
nhas viajar para os campeonatos, mas viagem que fez de São Paulo ao Rio pa- um coração com veias e artérias que se mando de ‘cacoma’ porque eu estava
impôs duas condições: o garoto tinha ra se encontrar com o ex-skatista. Flip fundem a um skate. A pintura decora a sempre aprontando.” “Cacoma” quer
que continuar na escola e não podia visitou Santo Amaro, passeou com So- parede lateral da escola de artes mar- dizer “macaco” em uma gíria das ruas
usar drogas. Ademir e Socorro concor- corro e Ademir, e foi a um evento da ciais Morro dos Campeões. Foi lá que do Rio, o TTK (abreviatura invertida de
daram com tudo. Ademafia no bairro da Lapa. Mas só Dudu Dantas, o campeão de MMA, co- Catete, ou KTT), criada nos anos 1980.
Na primeira competição, em Juiz de conseguiu ver Luquinhas lá pelas cinco meçou seu treinamento. O TTK consiste na inversão das sílabas
Fora, Luquinhas teve um começo vaci- da manhã. Seu “anfitrião” apareceu ra- Descemos mais uma vez, seguindo das palavras – no que é muito parecido
lante e errou quase todas as manobras. pidamente para explicar onde Flip iria por uma rua curva em direção ao Ca- com uma gíria dos jovens parisienses, o
Nos últimos segundos, porém, comple- dormir e entregar as chaves do local. tete. À nossa esquerda, uma colcha de verlan (inversão sonora das sílabas da
tou a passagem final com um pulo radi- Depois, sumiu de novo. “Eu podia ter retalhos de lajes, blocos de apartamen- palavra l’envers, o inverso). No Rio, os
cal de uma plataforma muito alta, de feito um rebuliço por ter marcado a vi- tos, casas e árvores, pouco abaixo do pichadores usam a gíria para descrever
2,40 metros. Fascinados com a coragem sita e ele ter me dado o cano. Mas sei profundo céu azul. Mais além, a Baía o que fazem: “xarpi”. Luquinhas gosta
do pequeno skatista, os espectadores como é a vida dele”, diz Flip. “Mesmo de Guanabara e o Pão de Açúcar domi- tanto do TTK que tem essas letras tatua-
invadiram a área de competição para assim, a visita foi ótima. Melhor que ser nam a vista. No topo de uma rocha nua das em uma das pernas – na outra,
erguê-lo nos ombros. Segundo Duca, fã do cara, é ser fã do corre.” A gíria ao longe, flutua a favela Tavares Bastos, mandou desenhar o Palácio do Catete.
naquele momento Luquinhas entendeu “corre” (abreviação de “correria”) desig- outra peça deste imenso quebra-cabeça A reverência que tem pelos primatas
seu potencial – e não parou de acumu- na o esforço de alguém para realizar que é o Rio de Janeiro. também foi lembrada em seu corpo: no
lar prêmios nas competições, quase uma tarefa ou um projeto. A rua se transforma em uma via es- antebraço esquerdo ele mandou gravar
sempre de primeiro lugar, em várias ci- Um rapaz de cabelo roxo chega à treita de pedra portuguesa. Seguimos a cara de um chimpanzé.
dades do Brasil. Nas viagens, Ademir ou Laje Vegas. Há pouco tempo, Luqui- para o prédio onde mora Abu, que tem Luquinhas faz bem em admirar os
Socorro ia junto, às vezes os dois. O ska- nhas comprou um pequeno espaço na 25 anos, começou a pintar por causa símios, nossos primos frequentemente
te transportou Luquinhas para fora da casa sob a laje para abrir ali uma gale- do interesse em pichação e nos últimos desprezados. Acrobatas fenomenais, eles
favela e do Rio – e também sua família. ria e um ateliê de arte. A iniciativa foi anos viu a sua carreira decolar. Foi gra- são fortes, ágeis e graciosos. Para desen-

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volver essa destreza e confiança, fazem manal, o Adelife. Eram tempos tensos aspirante a DJ e produtor musical (que turnê pelo Brasil, fazendo do baile uma
um grande esforço. Jovens primatas mui- e imprevisíveis no Rio de Janeiro. Ha- hoje abre os shows de Gabriel O Pensa- plataforma importante para rappers
tas vezes quebram ossos durante as suas via muito nervosismo nas ruas, depois dor). Outro dia, voou para Berlim, na emergentes da cena da Lapa. “O Baile
estripulias na fase de crescimento e pre- de uma série de protestos políticos gi- Alemanha, com o sobrinho Bila. Tam- do Ademar começou no meu aniversá-
cisam brincar muito para aprimorar as gantescos. A eleição presidencial se bém visitou o skatista profissional Feli- rio de 18 anos. Tentei levar amigos da
habilidades. Boa forma física, vida so- aproximava. A Copa do Mundo também pe Gustavo em Los Angeles e registrou favela, meu grupo da escola e meus par-
cial e cooperação constituem a fonte estava próxima. A Força Nacional de em Belo Horizonte uma das primeiras ceiros do skate, todos juntos, para come-
de seu sucesso. Segurança Pública ocupou várias fave- apresentações de um músico até então morar em Santo Amaro. Mas saiu do
las no Rio, inclusive Santo Amaro. No desconhecido, Djonga, agora um astro controle. Deu tudo errado. Me proibi-

T
udo mudou para Luquinhas de- Aterro do Flamengo, passantes espan- do rap. As gravações do Adelife aconte- ram de fazer festa no morro. Um dia
pois que ele subiu num skate pela caram um suposto ladrão de bicicleta e cem sobretudo no Rio e em São Paulo, alguém veio e me perguntou: ‘E aí?
primeira vez. Quando lesionou o depois o acorrentaram a um poste. In- bancadas pelos próprios realizadores. Quando vai ser o próximo baile do Ade-
joelho, tudo mudou novamente. A con- comodados com todo esse contexto, Quando Luquinhas viaja a convite para mar?’ Daí eu peguei o nome e fiz as
tusão indesejada e a consequente ten- Luquinhas e Cochi tomaram a decisão outras capitais brasileiras ou para o ex- festas em outros lugares.” Embora fos-
dinite o levaram para novas direções. de fazer no Adelife uma narrativa brin- terior, ele aproveita e faz um novo epi- sem um sucesso, Luquinhas ganhava
A necessidade de se recuperar o liber- calhona e leve sobre a vida na cidade. sódio do programa. pouco dinheiro com elas. Só recente-
tou da pressão asfixiante dos patrocina- O Adelife permitiu que eles mostras- O Adelife é também um retrato de mente, depois de um acordo de patrocí-
dores e das competições. Com mais sem uma visão alternativa, não compe- família. No Dia das Mães de 2017, Lu- nio com a marca de tênis Converse, ele
tempo à disposição, ele se juntou a Fran- titiva, do skate como ferramenta para o quinhas levou sua mãe, Socorro, e a avó conseguiu certa estabilidade financei-
cisco Zaremba, o Cochi (Chico, na desenvolvimento pessoal, a mobilidade Francisca para um passeio de helicóp- ra. Mas boa parte do dinheiro que rece-
gíria TTK) – um amigo de infância do e a liberdade criativa. Apresentador e tero. Em 2019, transmitiu um especial be vai para a Ademafia.
Catete que sabe editar e fazer vídeos. protagonista do programa, Luquinhas em três episódios sobre uma viagem da Luquinhas acha que sua paixão por
A dupla começou a registrar suas brin- se tornou um flâneur do século XXI, um família ao Ceará, o estado natal de festas e música vem de uma experiên-
cadeiras diárias, e foi então que o grupo João do Rio sobre rodas. Mas havia seus pais. O nome da minissérie? Raí- cia decisiva. Em 2007, Marcelo D2 o
de amigos ganhou o nome Ademafia. uma gama enorme e variada de perso- zes da Ademafia. O Adelife conta atual- convidou para participar da série Apa-
“A gente estava conversando na Praça nagens, como sua avó, dona Francisca, mente com mais de trezentos episódios, relhagem, da MTV Brasil, filmada no
XV, quando um menino disse: ‘Você Bob Burnquist, o premiado skatista ca- formando uma enciclopédia online Sudeste e no Sul do país. O rapper que-
e os teus amigos parecem uma máfia. rioca, e Boquetof, um sorveteiro do Ca- diversa e inventiva da cultura de rua ria juntar música, grafite e skate na sé-
É isso!’ E o nome pegou”, conta Luqui- tete. Eram pessoas do mundo do skate, contemporânea, do skate à música e às rie, e seu filho Stephan, que morava na
nhas. Às vezes, os integrantes do cole- amigos, parentes e outras personalida- artes visuais. Rua Pedro Américo, na parte baixa de
tivo são chamados de “adelangos”, em des que participam do teatro favorito Em paralelo, Luquinhas organizava Santo Amaro, recomendou Luquinhas.
referência aos bonequinhos Lango-Lan- de Luquinhas: as ruas. o Baile do Ademar, promovendo DJs, “A gente foi do Rio pra Floripa pra de-
go, dos anos 1980. Um dia, ele pegou o trem para Aus- músicos e amigos do coletivo Ademafia zessete dias de música, arte e skate.
Em 2014, os dois começaram a trans- tin, bairro de Nova Iguaçu, a fim de em boates e espaços ao ar livre, inclusi- Essa viagem mudou minha vida”, diz
mitir pela internet um programa se- apresentar Dree Beatmaker, na época um ve na Praça XV. Chegou a realizar uma Luquinhas. “Eu já escutava rap, mas

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Ministério do turisMo e
Cultura artístiCa apresentaM

Cultura Em setembro terá início a


última fase das obras de
reconstrução do Teatro
Cultura Artística. Para que

Artística: ele possa ser reinaugurado


em 2024 na sua totalidade,
precisamos da ajuda de todos.
Seja parte desta história!

há 110 anos
tornando arte
parte da vida
das pessoas
Mais inforMações eM desenho de sandra Cinto realização
CulturaartistiCa.org/ para aMbientação da
teatro-Ca/ nova sala de ConCertos do
teatro Cultura artístiCa
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ANGELI
ção pessoal, constam mais de 80 NFTs. não percebi quando passei pela pri-
Mas comprar e vender no metaverso meira vez. Um beco escarpado desce
pode ter consequências imprevistas. Re- tortuoso, passando por portas abertas e
centemente, ladrões digitais surrupia- um bar, antes de desaguar numa qua-
ram dele 10 mil reais em criptomoeda. dra poliesportiva muito bonita. Grafi-
Luquinhas segura a nova camiseta tes brilhantes e ousados cobrem todas
que está produzindo. “Essa imagem re- as paredes. Casas construídas pelos
trata Santo Amaro. Não o lugar, mas próprios moradores, sem reboco e com
uma fantasia sobre o santo de verdade, até quatro ou cinco andares, circun-
chamado Amaro. Eu quero contar uma dam metade da área em torno da qua-
história que vai muito além de vender dra, criando uma espécie de anfiteatro.
uma peça de roupa.” A imagem estam- Do lado oposto, fica um bloco de apar-
pada em preto na camiseta branca de tamentos da Rua Santo Amaro cujas
algodão mostra um gorila exibindo os janelas dão para a quadra. Os univer-
dentes, como se grunhisse. O primata sos paralelos da favela e da cidade se
veste uma batina e, com uma das mãos, encontram ali – e tenho a impressão
segura um skate junto ao peito. Com a na quadra de estar navegando numa
outra, ergue um objeto, como se fosse embarcação pirata que flutua em meio
um crucifixo, mas é o logo da Adema- a um oceano de concreto.
fia. O preto e branco da imagem é que- Cheguei cedo. Luquinhas ainda não
brado por uma única cor: o tom laranja está lá. Mas as atividades seguem a pleno
do Sol abrasador atrás da cabeça do vapor. Desço até a quadra, onde grupos
gorila, igual a uma auréola. de crianças em skates passam zunindo
Gean e Alex Carvalho trocam ideias no piso brilhante, acelerando sobre círcu-
sobre como promover o novo conceito. los vermelhos, negros e amarelos pinta-
Luquinhas tem que voltar para a Laje dos no chão, transmitindo uma alegria
Vegas a fim de supervisionar os prepa- cinética e contagiante. Elas usam cami-
rativos da abertura oficial do restauran- setas coloridas com a inscrição “Tropi-
te de sushi. Eu preciso cortar o cabelo. nha do S.A.” e a imagem de um skate com
Combinamos de nos encontrar em traços humanos.
voltei pro Rio com 80 GB de música ço fixo. Ele pode ficar uma noite na uma quadra na extremidade Sul da fa- O Instituto Ademafia, projeto social
nova no meu iPod. Tinha 16 anos e es- casa de sua mãe, outra na de um ami- vela, lá onde o recém-fundado Instituto inaugurado por Luquinhas e sua famí-
tava me apresentando com esse cara pra go e depois em Santo Amaro. E agora, Ademafia está dando aulas grátis de lia em março de 2021, organiza toda
50 mil pessoas. A viagem acelerou tudo com a pandemia chegando ao fim, vol- skate para a molecada. aquela atividade. A Tropinha ocupa a
pra mim e descobri que a música é uni- tou a viajar. quadra dois dias por semana. Carol de

C
versal. Você não precisa gostar de skate Paramos para almoçar no topo da aminho pela via principal da Jesus, uma instrutora de 30 anos, expli-
pra curtir.” favela, ao lado de uma padaria. Vem
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS comunidade. É um beco longo ca que setenta crianças entre 6 e 17
A viagem com Marcelo D2 estabele- sentar em nossa mesa um fotógrafo e tortuoso, de cerca de 1 km de anos estão inscritas, divididas em três
ceu novos parâmetros para Luquinhas, grisalho de óculos, vestindo uma ca- extensão, que corta a crista do morro turmas (básico, intermediário e avan-
influenciando seus planos futuros. “As- miseta em estilo tie-dye da Thrasher, de Norte a Sul, em paralelo com a çado). Como é hora da aula do curso
sim como a Ademafia já nasceu com o revista norte-americana criada nos Rua Santo Amaro – que fica do lado básico, a turma está aprendendo a em-
intuito de colaborar, a Adelife surgiu pra anos 1980 que é a bíblia do skate. Alex do bairro da Glória e dá nome à co- purrar, virar, subir e descer rampas.
ser uma janela do nosso corre, de quem Carvalho, conhecido como Besouro, munidade. Como alguns trechos do Aprende também uma manobra cha-
está perto, da galera que está querendo encontrou Luquinhas pela primeira beco só têm meio metro de largura, às mada mata-barata, que consiste em
fazer. O primeiro Adelife sou eu saindo vez nos anos 2000, na Praça XV, e é um vezes preciso parar para dar passagem bater o pé em um lado da prancha para
do Catete, indo em direção à Zona Nor- colaborador antigo da Ademafia. Re- a outras pessoas. erguer o outro lado e conseguir movi-
te, para apresentar a skate shop de um centemente comemorou 50 anos e foi Passo por um bar chamado Whiscria mentá-la, em zigue-zague.
amigo. E já tinha o corre do Baile do homenageado no episódio nº 285 da e chego à Barbearia dos Cria. Tanto um Além do curso na quadra, o Institu-
Ademar, onde a galera que participava Adelife, que se chamou Um Galo do estabelecimento quanto o outro são de- to Ademafia oferece passeios e aulas
e se apresentava era de favela. Quando Besouro. Hoje, Carvalho veio a Santo corados com personagens de cores vivas, em pistas públicas de skate, em outras
fazia eventos na Praça XV, eu sempre Amaro para discutir planos para uma o que indica que pertencem ao coletivo áreas do Rio, como a Praça Duó, na
procurava promover arte e cultura tam- nova camiseta da Ademafia. On Santo Amaro, de Gean. A palavra Barra da Tijuca, e a Praça XV, ou mes-
bém, com artistas e pessoas que mere- Depois de uma refeição revigorante, “cria” assinala que ambos são adminis- mo em outras cidades, como Teresópolis
ciam o espaço.” Pergunto se o que ele subimos para a parte principal da fave- trados por pessoas da comunidade, que e São Paulo. Para o instituto, as viagens
gosta, no fundo, é de ajudar os outros. la, até o estúdio de produção de Gean. estão ali para atender seus vizinhos. são a chance de realizar o seu compro-
Ele diz que sim com a cabeça, e co- Tinta branca cobre as paredes da sala O barbeiro, com tranças sofisticadas, misso de alargar os horizontes. Recen-
menta: “Enfim, todo mundo que parou sem janelas. Um monitor de computa- faz questão de oferecer diversos cortes e temente, alguns participantes visitaram
do meu lado eu botei pra frente. Nunca dor, disposto na vertical, como um tinturas, incluindo uma roxa, como a em São Paulo a ONG Social Skate, a
atrasei ninguém. Gasto minha energia porta-retratos, exibe uma imagem digi- de Gean. Mas eu só preciso de um cor- primeira iniciativa social desse esporte
botando os outros para frente. Puxar pra tal impressionante: um jovem trafican- te básico, e dispenso a oferta. Ele termi- no Brasil, fundada por Sandro Soares,
trás? Jamais.” te de balaclava com um fuzil AK- 47, na o serviço rapidamente. Com meu mais conhecido como Sandro Testinha,
sobre um pedestal rosa fluorescente. corte novo, faço o caminho de volta. que também participou da criação do

D
epois de deixarmos a casa de Abu, Enquanto a plataforma gira, flores Chegar à quadra é fácil: basta conti- Instituto Ademafia.
seguimos a pé pela Rua Pedro emergem do corpo do rapaz, tornando nuar pelo beco principal e virar à es- Sandro começou a promover o skate
Américo, antes de chegar a uma a imagem melancólica e terna. Mas, querda. Mas eu erro a saída e acabo no como ferramenta de desenvolvimento
escadaria íngreme na encosta que leva quando a plataforma acaba de fazer a coração da comunidade. Desorientado, pessoal em São Paulo na extinta Fun-
a Santo Amaro. Estar em forma é pré- volta, as flores somem, e o combatente tenho que voltar. Uma moradora presu- dação Estadual do Bem-Estar do Me-
requisito para viver no morro. Passa- ameaçador encara o espectador nova- me que estou procurando a saída e co- nor (Febem), em 2001. Algum tempo
mos pela casa onde Luquinhas cresceu mente. Esse retrato espantoso é o pri- meça a me explicar o caminho até a depois, durante um campeonato no
e morou até 2020, ano em que se mu- meiro NFT que vi bem exposto. Rua Pedro Américo. “Não, estou aqui Rio, ele se entusiasmou com um me-
dou com os pais para um apartamento É um trabalho feito por Gean. Ele para visitar o projeto de skate”, explico. nino que competia com skatistas bem
alugado no bairro de Fátima, no Cen- vende cada NFT por até 800 reais em “Ah, a Ademafia? Bacana”, ela diz. mais velhos. “O pivetinho foi andando,
tro do Rio. Hoje, as irmãs dele moram criptomoeda. Também faz trocas com A moradora gentilmente me acom- foi andando, chegou à final com os ca-
na casa. Luquinhas não tem endere- outros artistas brasileiros. Na sua cole- panha até uma entrada minúscula que ras grandões e ganhou. E o pivetinho

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era o Luquinhas!”, recorda. Mais tar- com ele, e Luquinhas quica nela com sigo ter uma perspectiva para buscar to se o trabalho já começou. “Infeliz-
de, quando o episódio nº 15 da Adelife um dos pés, fazendo com que dê um mais oportunidades. Venho, partici- mente não”, diz Luquinhas. “Alguém
contou a história de Anderson Stevie, giro completo no ar – e ele aterrissa com po, mas não depende 100% de mim tem outros planos pra esse lugar.” De-
um menino de São Gonçalo, no esta- perfeição no piso da quadra, sobre o skate. para acontecer. Esse foi o maior ga- pois de uma pausa, acrescenta: “Na
do do Rio, que conseguiu se afastar do Parece um truque de mágica. Copiando nho para o instituto.” Apesar disso, ele favela, manda quem pode, obedece
mundo do crime ao se dedicar à práti- Luquinhas, algumas crianças fazem a diz que tem muito a agregar ao projeto quem tem juízo.”
ca do skate (hoje é um profissional do mesma manobra, chamada kickflip, que e que vai estar sempre ali, quando for

S
esporte e mora nos Estados Unidos), muitos skatistas experientes acham qua- necessário. “O instituto anda, eu cami- ão nove da noite, e a Laje Vegas
Sandro percebeu que Luquinhas com- se impossível de ser feita. nho em paralelo, e a gente anda junto.” está transformada. Agora é um
partilhava de sua visão. Eles então jun- Uma jovem se aproxima de Luqui- Enquanto Raquel e Carol assistem movimentado restaurante a céu
taram forças. nhas. É sua irmã Raquel de Oliveira à aula de skate, vou com Luquinhas a aberto, bem iluminado e com música.
Durante a aula de skate intermediá- Lopes, de 40 anos. Os dois irradiam uma casa minúscula, nova em folha, Pratos com motivos orientais estão pendu-
rio, chega Luquinhas. Vendo que os de- uma sensação de bem-estar. Todas as empoleirada numa subida perto da rados nas paredes. Clientes bem-vesti-
graus em torno da quadra estão cheios conquistas deles nascem do mais brasi- quadra. Ele bate palmas. Paulo César dos sentam-se nas mesas arrumadas. Com
de dejetos, entrega vassouras para que leiro dos empreendimentos do século Adão, o Paulinho, de 74 anos, abre a uma roupa em estilo japonês, Cachor-
todos ali façam a limpeza. Ele também XX : o estabelecimento de uma família porta e acena. rão, o irmão de Luquinhas, carrega um
entra em ação, varrendo o local, que do Nordeste numa favela do Sudeste. Em 2020, Luquinhas soube que o barco em miniatura cheio de sushi. Ele
fica com uma aparência bem melhor. Foi a partir dessa experiência que a teto da casa de Paulinho estava desa- o coloca na mesa de um grupo que se
“Queremos incentivar o desenvolvi- identidade e a força de Luquinhas bando e, incentivado por Ademir, seu reuniu para celebrar a inauguração do
mento de uma nova geração. Com cons- foram semeadas e nutridas. A estrutu- pai, ajudou o amigo a se mudar para restaurante Melhoria Sushi. Membros
ciência social e ambiental, queremos ra familiar e a Ademafia são uma úni- uma acomodação temporária. Volun- mais velhos da Tropinha do S.A. erguem
trazer transformação para a comuni- ca coisa. tários da rede Ademafia participaram seus copos cheios de refrigerante. Lu-
dade. Porque, no futuro, a gente vai co- Junto com a irmã mais velha, Teresa da demolição da casa e levaram os des- quinhas brinda com eles e depois senta
brar de quem?”, ele pergunta. Joara, de Quelma de Oliveira Lopes, de 41 anos, troços pela escada, até a rua. Depois, perto de Raquel.
14 anos, me conta que faz aula de skate Raquel dirige o Instituto Ademafia, subiram com todo o material de cons- “Pois é, ‘melhoria’ é o nome do peixe”,
há um ano. “Agora tenho uma família cuja sede fica num quarto lotado de trução, obtido graças a uma vaquinha ele diz, sobre um dos pratos oferecidos
com briga e diversão, um lugar para skates com vista para a quadra. Os re- online. A casa ficou pronta em sema- no restaurante. E repete, aumentando
aprender união e conviver com as dife- cursos para a manutenção do instituto nas – confirmando para Luquinhas a frase: “Se melhoria é o nome do pei-
renças do outro”, ela diz. são obtidos pela Ademafia, e a ONG So- que seria possível realizar um antigo xe, correria é o nome do pescador, e
A turma do avançado entra na qua- cial Skate também faz contribuições. sonho: construir dentro da favela San- compromisso é o nome do barco que
dra e, enquanto faz o aquecimento, Lu- A marca Converse fornece os tênis para to Amaro uma pista de skate. navega no mar da gratidão.” E depois
quinhas anda de skate no meio do os participantes. “Quando criamos o Seu plano era fazê-la num espaço ri. “Não fui eu que inventei tudo isso.
círculo. Num piscar de olhos, ele bate instituto, a minha família chegou junto aberto acima da quadra, a poucos me- Eu bolei a primeira parte. Uns amigos
com o pé em uma das extremidades da e assumiu o corre”, explica Luquinhas. tros da casa de Paulinho. Percebo que fizeram o resto.”
prancha de skate e pula. A prancha sobe “Agora, dentro dessa realidade eu con- o local tem escavações recentes e pergun- Trabalho em equipe é tudo. J

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vultos da matemática

O GÊNIO DESAPARECIDO
Alexander Grothendieck era reverenciado por seu trabalho revolucionário. Um dia, ele abandonou tudo e sumiu

RIVKA GALCHEN

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E
nquanto vivia num campo de matemático com o da construção de uma Aos 63, quase ninguém sabia de seu pa- dieck. Hanka era casada com outro ho-
concentração em Vichy, na casa, à diferença de outros matemáticos radeiro. Não se sabia nem sequer se ele mem e, assim, o sobrenome do menino
França, Alexander Grothendieck cujo trabalho consistia em introduzir me- seguia buscando soluções para os pro- ao nascer era Raddatz. Schapiro, que era
teve aulas de matemática com lhorias numa casa herdada ou construir blemas pelos quais viveu obcecado du- chamado de Sascha, vinha de uma famí-
outra prisioneira, uma menina um móvel. Nas palavras de Colin McLar- rante décadas. Circulavam rumores sobre lia de judeus hassídicos de classe média
chamada Maria. Ela ensinou a Grothen- ty, lógico e filósofo da Universidade Case um homem de barba trajando um robe contra a qual ele havia se rebelado. Hanka
dieck, que tinha então 12 anos, qual era Western Reserve, em Cleveland, no esta- comprido que vivia como um eremita deixara para trás uma abastada família
a definição de um círculo: é o conjunto do de Ohio, “muita gente vive hoje na em alguma parte dos Pirineus. protestante. Os dois eram anarquistas. Sas-
de todos os pontos que são equidistantes de casa de Grothendieck sem saber que é Grothendieck escreveu que seu tra- cha tinha sido encarcerado na Rússia por
um dado ponto. A definição o impressio- a casa dele”. Michael Artin, matemático balho principal havia sido cruelmente seu envolvimento na revolução de 1905.
nou por sua “simplicidade e clareza”, escre- do Instituto de Tecnologia de Massachu- abandonado por outros, mas isso não Perdeu um braço depois de levar um tiro
veu ele, anos mais tarde. Até o momento setts (MIT) que trabalhou com Grothen- era bem verdade. A pesquisa continuava em uma de suas tentativas de fuga.
em que ouviu aquelas palavras, Grothen- dieck no começo da década de 1960, deu sendo feita nos domínios matemáticos Em 1933, Sascha deixou Berlim e se
dieck achava que a redondeza perfeita era uma risada quando lhe perguntei sobre as chamados de “universos de Grothen- mudou para Paris, e Hanka o seguiu logo
uma propriedade “misteriosa, fora do al- contribuições do matemático e disse: dieck” e, embora sua contribuição nem depois. Deixaram Alexander em Ham-
cance das palavras”. “Bem, mudou tudo no campo da mate- sempre fosse citada, seus métodos eram burgo, com uma família que abrigava
Grothendieck tornou-se um matemá- mática. Ele chegou, e tudo mudou da empregados com tanta frequência que crianças. Maidi, sua meia-irmã por parte
tico reverenciado. Seu trabalho envolvia água para o vinho. Foi uma revolução.” citá-lo seria como mencionar Leibniz de mãe, foi posta numa instituição para
encontrar o posto de observação correto Mas, aos 42 anos de idade, Grothen- ou Newton a cada vez que se utilizasse crianças com deficiência, embora ela não
– a partir dele, as soluções para os demais dieck abruptamente abandonou a ma- cálculo. Em 1992, dois matemáticos, tivesse nenhuma deficiência. Sascha e
problemas seriam facilmente encontra- temática. Por um tempo, ele ainda fez Leila Schneps e Pierre Lochak, decidi- Hanka passaram algum tempo na Espa-
das. Ele reescreveu definições de coisas uns trabalhos eventuais na área – “para ram que iriam encontrá-lo. nha durante a guerra civil. Aos filhos, es-
tão básicas quanto um ponto. Suas re- minha própria surpresa”, escreveu ele, creveram apenas um punhado de cartas.

O
formulações revelaram conexões entre anos mais tarde, “e a despeito de minha matemático construtor de casas Ale- Por volta de 1939, a família que havia
domínios da matemática que, aparen- convicção de longa data de que jamais xander Grothendieck nasceu em abrigado Grothendieck estava preocu-
temente, não tinham relação entre si. voltaria a publicar uma única linha de março de 1928, em Berlim, filho pada. O menino parecia judeu. Locali-
Grothendieck comparava seu trabalho matemática pelo resto da minha vida”. de Alexander Schapiro e Hanka Grothen- zaram Sascha e Hanka, e o garoto foi

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TATA INSTITUTE OF FUNDAMENTAL RESEARCH


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Grothendieck (em pé, descalço), num colóquio de geometria algébrica em Mumbai, em 1968: ele sabia uma enormidade sobre matemática, mas pouco sobre si próprio e sobre todo o resto

embarcado num trem de Hamburgo para não conterem descrições “sérias” de com- ram se esconder dos nazistas. Alimenta- lebre problema: o teorema de Lebesgue.
Paris. Logo depois de o menino se juntar primento, área e volume. vam-se sobretudo de castanhas cozidas, Desse momento em diante, passou a se
aos pais – que não via fazia seis anos –, Por muitos anos, Grothendieck idea- servidas três vezes por dia. Cogumelos ou ver como um matemático.
Sascha foi mandado para um campo de lizou seus pais. Identificava-se muito frango eram acrescentados à dieta, quan- Depois, foi para Paris e estudou com
concentração nas cercanias da cidade com o pai, com quem havia passado do estavam disponíveis. Vez por outra, as os mais importantes matemáticos fran-
(morreria em Auschwitz, mais tarde). pouquíssimo tempo e cuja biografia às crianças eram enviadas para o bosque, ceses da época, inclusive com Laurent
Mãe e filho foram enviados para Rieucros, vezes combinava com a de outro Ale- para se esconder por uns poucos dias. Schwartz, que logo seria agraciado com
um campo no Sul da França. “A adminis- xander Schapiro, um famoso anarquista a Medalha Fields, o prêmio máximo no

S
tração do campo fazia vista grossa para da mesma época. Lembra que, quan- e a meninice de Grothendieck ca- campo da matemática. No final de um
as crianças, por mais indesejáveis que do criança, adorava rimas, sentindo que racterizou-se por essa atmosfera de artigo coassinado por Schwartz, havia
elas fossem”, escreveu Grothendieck em suas conexões sonoras apontavam para história infantil – um menino num uma lista de catorze perguntas. “Muitas
Récoltes et Semailles (Colheitas e semea- um mistério além das palavras. Duran- bosque escuro, sem os pais –, no começo delas, por si só, teriam bastado para um
duras), um manuscrito de mais de mil te um tempo, só falava por intermédio de sua vida adulta os obstáculos eram doutorado”, afirma o matemático Pierre
páginas recém-publicado pela Gallimard, de rimas. “Mas felizmente essa época pas- superados com uma facilidade quase Cartier. Em pouco tempo, Grothendieck
na França. “Entrávamos e saíamos à von- sou”, escreveu, cinquenta anos depois. mágica. Depois da guerra, ele voltou a se resolveu todas elas.
tade. Eu era o mais velho e o único a fre- Grothendieck já estava em Rieucros juntar à mãe e frequentou a Universidade Um problema mais prosaico era que
quentar a escola. Era uma caminhada de havia dois anos, quando uma organiza- de Montpellier. Trabalhava nos vinhe- Grothendieck era um apátrida. Tinha di-
4 ou 5 km, muitas vezes sob chuva e ven- ção de ativistas protestantes negociou dos para sustentar a si próprio e a Hanka, reito a pedir a cidadania francesa, mas não
to, calçando sapatos improvisados que com o governo de Vichy a libertação de debilitada em decorrência de uma tuber- o fez, porque poderia ser convocado pa-
sempre molhavam.” Grothendieck quase alguns dos detentos. Ele foi apartado da culose contraída em Rieucros. Enquan- ra o serviço militar. (Quando, mais tarde,
não faz nenhuma outra menção ao cam- mãe e abrigado como refugiado em Le to esteve na universidade – que não era foi convidado a visitar a Universidade Har-
po. Ele prossegue seu relato com um lon- Chambon-sur-Lignon, numa região alpi- um centro relevante de estudos matemá- vard, quase não conseguiu o visto norte-
go parágrafo sobre um professor que, na famosa por séculos de resistência a ticos –, pesquisou por conta própria americano, porque se recusou a prometer
injustamente, lhe deu uma nota ruim governos repressivos. Muitos dos residen- ideias relacionadas a medidas, um cam- que não tentaria derrubar o governo dos
numa prova de matemática que ele fez à tes do vilarejo dedicavam-se a cuidar das po que estudantes menos talentosos tal- Estados Unidos; disse que ficaria bem
sua maneira, ignorando o livro didático. vacas. Ali, cerca de 5 mil “indesejáveis” vez descartem por considerarem como numa prisão norte-americana, contanto
E condena seus livros de matemática por – em sua maioria, crianças – consegui- óbvio. Terminou por redescobrir um cé- que tivesse acesso a tantos livros quanto

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versas e conexões entre as pessoas. Quan- lização geométrica das soluções para as
do montava o IHES, Motchane entrou em equações, e que isso parecia se verificar
contato com Jean Dieudonné, matemá- tanto nas equações em 2, ou 17 ou 1 mi-
tico mais velho e experimentado, tão lhão de dimensões. Mas as conjecturas
reverenciado quanto seu sobrenome o de Weil eram apenas isso: conjecturas.
destinara a ser.1 Dieudonné havia sido Grothendieck, no entanto, viu uma ma-
membro fundador do Bourbaki, um gru- neira de prová-las usando os chamados
po de matemáticos na França que estava esquemas, feixes e motivos. Os feixes são
reescrevendo as bases da disciplina e usa- uma espécie de sistema matemático de
va o pseudônimo coletivo N. Bourbaki. colagem, de agrupamento, também desen-
(Certa vez, enviaram convites para o ca- volvido numa prisão: Jean Leray havia
samento da filha de N. Bourbaki, que tido a ideia desse sistema quando era pri-
estaria se casando com um caçador de sioneiro de guerra.
leões chamado Hector Pétard.)2 McLarty me narrou o seguinte:
Dieudonné aceitou um posto no “O que Grothendieck fazia era traba-
recém-fundado IHES e impôs uma con- lhar até tarde da noite, anotando seus
dição: que Motchane contratasse Gro- pensamentos, que, às cinco da manhã,
thendieck também. De início, os dois despejava para Dieudonné, que, por
formavam a equipe remunerada do IHES, sua vez, ficava até mais ou menos oito
e matemáticos vinham de Paris para as- da manhã esclarecendo e complemen-
sistir a seminários semanais. A contrata- tando o que Grothendieck havia escri-
ção de Grothendieck seguiu-se à morte to.” Vakil descreve a experiência de ler
materna, em 1957. No final de 1959, ele os textos dessa época como a da leitura
estava tendo um relacionamento com da Sagrada Escritura. “Cada uma das
Mireille Dufour, ex-cuidadora de sua frases é óbvia e baseia-se no que veio
mãe. No IHES, Dieudonné pôs de lado antes. Nesse sentido, é simples.”
aquilo em que estava trabalhando para Muitas pessoas que conheceram
se tornar uma espécie de escriba de Gro- Grothendieck durante o tempo em que
thendieck. Era como se Matisse depu- ele esteve no IHES falam de como ele era
sesse os pincéis para ajudar um jovem gentil e aberto a todo tipo de pergunta,
quisesse.) Sem a cidadania francesa, não Um functor é uma espécie de máquina Picasso. Seguiram-se quase doze anos bem como de seu humor afável. Com
podia ser contratado por universidades de traduzir que nos deixa ir de uma cate- dourados da matemática e milhares de frequência, andava descalço. Fazia je-
francesas. Durante dois anos, trabalhou goria a outra, mas levando conosco todas páginas de teoremas basilares. jum uma vez por semana contra a guer-
no Departamento de Matemática da Uni- as ferramentas relevantes. Isso é mais es- Os seminários de Grothendieck no ra no Vietnã. Mazur se lembra de que,
versidade de São Paulo (USP), onde dizia às pantoso do que parece. Imagine se fosse IHES aconteciam às terças-feiras. Às vezes, certa vez, Grothendieck encontrou na
pessoas que se alimentava apenas de ba- possível traduzir matemática em poesia, e ele pedia que alguma outra pessoa con- estação ferroviária uma família que não
nanas, pão e leite, “para não perder ne- se, de alguma forma, fizesse sentido ex-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS duzisse os trabalhos. “Ele tinha uma ca- tinha onde ficar e convidou todos a mo-
nhum tempo com isso”. Depois, passou trair a raiz quadrada de uma estrofe. pacidade incrível de pedir a coisa certa à rar na sua casa, ocupando o espaço que
um ano na Universidade do Kansas, onde A matemática Angela Gibney descre- pessoa certa”, diz Nick Katz, matemático ficava no porão. Mandou instalar ali
se dedicou ao que hoje ficou conhecido ve o posto de observação de Grothendieck de Princeton. Katz juntou-se ao IHES ain- uma máquina que ajudava a fazer tara-
como o “paper de Tohoku”, em referência de uma forma que acho particularmen- da jovem, no final da década de 1960. masalata – uma pasta feita de ovas de
ao jornal de matemática da Universidade te acessível: se você quer conhecer as “Grothendieck estava atuando naquele peixe – para que a família pudesse ven-
de Tohoku em que foi publicado. O artigo pessoas, não deve observá-las indivi- projeto maravilhoso, e ser convidado a der comida pronta no mercado.
expandia as sequências espectrais – uma dualmente – melhor examiná-las du- fazer parte dele era como ser chamado Para Grothendieck, solucionar proble-
ferramenta fundamental na topologia al- rante uma reunião familiar. Ravi Vakil, por Jesus para ser um apóstolo.” mas era como abrir a casca dura de uma
gébrica – e as tornava mais poderosas. As um matemático da Universidade Stan- O “projeto maravilhoso” consistia em noz. É possível abri-la com uma ferra-
contribuições de Grothendieck podem ford, acrescenta: “Ele também deu nome contemplar a geometria algébrica a par- menta pontuda e um martelo, mas não
soar como marciano para não matemáti- às coisas, e nomear as coisas é algo mui- tir de um ponto de vista novo. A moti- era assim que ele fazia. Dizia que era
cos, mas as conexões que seu trabalho re- to poderoso.” No mundo da matemáti- vação do projeto era, em parte, uma melhor mergulhar a noz num líquido,
velava eram dramáticas. “Sequências ca, de uma complexidade proibitiva, às tentativa de encontrar uma solução para esperar que ficasse encharcada e ainda
espectrais nem eram vistas como um vezes algo tão simples como uma lin- as conjecturas de Weil, ideia que o ma- afastar-se dela, até que a noz acabasse
tema capaz de parar em pé por si só”, guagem nova conduz a descobertas. temático André Weil (também ele um por se abrir sozinha. Falava também na
contou-me Barry Mazur, um matemático Nas palavras de Vakil: “É como quando bourbakista) descreveu numa carta a sua “maré alta”. Ou seja: quem precisa trans-
de Harvard que foi amigo de Grothen- Newton definiu peso e massa. Antes, irmã, a filósofa e mística Simone Weil por de barco uma praia rochosa e aci-
dieck na década de 1960. “São, antes, não se distinguia uma coisa da outra. – carta que foi escrita de uma prisão mi- dentada pode recorrer a toda uma gama
uma técnica. Mas Grothendieck não tra- E, de repente, foi possível entender o litar onde cumpria pena por não ter se de elaboradas criações da engenharia.
tava nada como se fosse mera técnica.” que antes era confuso.” apresentado ao Exército francês. (For- Mas outra solução é simplesmente es-
Barry Mazur sugere que é possível malmente, as conjecturas foram propos- perar que a maré suba e ofereça, assim,

Q
vislumbrar a essência de como Grothen- uando jovem, Léon Motchane es- tas num artigo de 1949.) As conjecturas uma superfície macia para que o barco
dieck via a matemática examinando-se tudou matemática e física na Rús- de Weil detalhavam correspondências atravesse sem nenhum esforço.
dois conceitos: as categorias e os functo- sia, mas, depois da Revolução de inesperadas entre os campos matemáti- O matemático e escritor Jordan El-
res. A categoria é como uma gramática: 1917, teve de abandonar os estudos para cos da teoria dos números e da topologia. lenberg, ao falar dos seus primeiros
pegue triângulos, digamos, e tente en- ajudar a família. Trabalhou com seguros Weil mostrou que o número de soluções encontros com o trabalho de Grothen-
tendê-los com base em sua relação com e no ramo bancário e morou na França. para certas equações polinomiais (talvez dieck sobre esquemas, disse o seguinte:
todos os demais triângulos. A categoria Em 1958, fundou o Instituto de Altos Es- você se lembre de, no ensino fundamen- “Quando você vê a coisa organizada
compõe-se de objetos e das relações en- tudos Científicos, em Bures-sur-Yvette, a tal, ter tentado encontrar a solução para dessa forma, não parece um estilo ou
tre eles. Os objetos são os substantivos e menos de uma hora de Paris. O IHES é si- x e y e deparado com mais de uma so- tendência. Parece inevitável, algo como:
as relações são os verbos, e a categoria milar ao Instituto de Estudos Avançados, lução possível) estava relacionado ao é assim que é.” A reformulação dos fun-
vem a ser todas as maneiras pelas quais da Universidade Princeton, que Motcha- número e aos tipos de buracos na visua- damentos feita por Grothendieck pode
eles podem interagir. As descobertas de ne visitara. Parte do princípio que orienta parecer complexa e difícil, mas isso
1 Em francês, o sobrenome Dieudonné significa “en-
Grothendieck abriram a matemática do as duas instituições é o fato de que o pen- viado por Deus”.
acontece apenas porque, antes, esses
modo como Ludwig Wittgenstein (e samento científico pode ser alimentado 2 Como o sobrenome “Pétard” também significa uma fundamentos foram descritos em termos
pistola pequena, ou uma bombinha, o comentário
também Ferdinand de Saussure) mu- dentro de uma comunidade, onde as carrega uma ironia, pois um “pétard” jamais conse-
inapropriados. Diz Ellenberg: “Nós te-
dou nossa ideia da linguagem. ideias são desenvolvidas a partir das con- guiria caçar um leão. mos uma palavra para ‘difícil’ e uma

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palavra para ‘fácil’, mas precisamos de zur acrescenta: “É claro que recaía sobre soas, mas outros chegaram e partiram e, mo todo mundo.” Na conclusão da can-
uma palavra para designar algo que é Mireille a carga e a responsabilidade de vez por outra, havia encontros tratando de didatura a pesquisador, que chamou de
difícil de compreender que é fácil.” cuidar de todas aquelas pessoas.” questões do movimento Survivre que che- “Esboço de um programa”, ele escre-
Grothendieck quase nunca traba- gavam a reunir até uma centena de pes- veu: “Hoje, ao contrário do que já fui,

E
lhava com exemplos específicos. Con- m 1970, Grothendieck de repente se soas. Grothendieck vendia sal marinho e não sou mais prisioneiro voluntário de
ta-se que, certa ocasião, quando lhe foi. Deixou o IHES, parou de pensar legumes orgânicos, mas outros o chama- tarefas intermináveis que com tanta fre-
pediram que usasse um número primo em matemática de 12 a 16 horas por vam de “o banco”, porque ele era a fonte quência me impediram de saltar para o
para demonstrar alguma coisa, ele res- dia, abandonou a mulher e os três filhos. de todo dinheiro vivo. A comuna desmoro- desconhecido, na matemática ou fora
pondeu: “Você quer dizer um número Seu trabalho com as conjecturas de Weil nou em um ano. Skalba teve um filho. dela. Esse tempo das tarefas terminou
real? Está bem, 57.” Cinquenta e sete ainda não estava terminado: sua teoria Quando o menino, John, completou 2 me- para mim. Se a idade me deu alguma
não é um número primo – é 19 vezes 3 resolvera apenas três das quatro conjectu- ses de vida, ela já havia deixado Grothen- coisa, foi leveza.”
– e é hoje conhecido como “o número ras. A razão que alegou para partir foi ter dieck. John cresceu quase sem nenhum

D
primo de Grothendieck”. descoberto que 5% do financiamento do contato com o pai e foi estudar matemáti- iz-se que Pitágoras, o antigo mate-
Ele costumava devolver os rascunhos IHES vinha do Ministério da Defesa fran- ca em Harvard – onde fez um curso com mático grego, fazia pronunciamen-
de seus estudantes com muitas marcas, cês. Mas quem conhecia Grothendieck Mazur –, antes de se tornar um cientista tos sobre os números atrás de uma
inclusive com comentários sobre a esco- diz que aquilo poderia ter sido resolvido e dedicado à inteligência artificial. cortina. Aqueles que seguiam o culto de
lha de palavras e sobre o lugar adequado não foi o motivo real de sua partida. Al- Grothendieck acabou por assumir Pitágoras faziam suas pesquisas com o
de uma vírgula. O matemático Luc Illusie guns lembram que, em 1968, quando ele um posto de professor na Universidade entusiasmo das buscas espirituais. Co-
conta que, depois de entregar páginas e pá- tentou conversar com os estudantes em de Montpellier, que ainda não era um miam pão, mel, verduras, legumes e se-
ginas, ia até a casa do mestre à tarde e os greve, ficou perturbado ao perceber que importante centro de estudo da mate- mentes, e evitavam carne. Quando um
dois, sentados lado a lado, ficavam horas identificavam nele a figura de um manda- mática. Ao candidatar-se a um posto de seguidor demonstrou pela lógica a exis-
discutindo cada comentário. Só paravam rim da instituição, e não o outsider que ele pesquisador nos anos 1980, que o dispen- tência de números irracionais – números
para o chá e para o jantar. “Isso era muito acreditava ser. Grothendieck sabia uma sava de dar aulas, ele escreveu: “Depois que não podem ser representados como
pesado para alguns estudantes, desestimu- enormidade sobre matemática, mas pou- de uns poucos anos de intensa campa- fração e que avançam indefinidamente
lava o pessoal, mas não para mim. Ele era co sobre si próprio e sobre todo o resto. nha antimilitar e ecológica ao estilo de quando expressos em decimais –, conta-
uma pessoa muito doce”, diz. Seu mentor, Jean-Pierre Serre – a uma ‘revolução cultural’, e disso os se- se que os pitagóricos levaram o infiel
Contudo, um lado mais cáustico de quem Grothendieck atribuiu a origem de nhores certamente ouviram ecos aqui e para um barco e o jogaram no mar. Ma-
Grothendieck tornava-se cada vez mais todas as suas mais profundas contribui- ali, eu basicamente desapareci de circu- temáticos levam muito a sério suas ideias
visível. Mazur, que trabalhava no IHES à ções à matemática –, escreveu-lhe mais lação, perdido em alguma universidade de beleza e pureza. O matemático Paul
época, explica que ele havia se tornado tarde: “Tenho a impressão de que, apesar de província Deus sabe onde.” Mais Erdős costumava dizer que demonstra-
um ardente ambientalista. Não deixava a de sua conhecida energia, você muito sim- adiante: “Diziam que eu passava meu ções particularmente elegantes eram
mulher, Mireille Dufour, andar de carro, plesmente se cansou do trabalho gigantes- tempo cuidando de ovelhas e cavando extraídas “diretamente do Livro”, referin-
“mas ele próprio tinha uma motocicleta co que assumiu [...] Afinal, você já não poços. Mas a verdade é que, à parte nu- do-se ao livro de Deus (embora duvidasse
para ir ao instituto e voltar”. Para ela, que tinha se dado conta, por volta de 1968- merosas outras atividades, atuei como de sua existência e só se referisse a Deus
cuidava das três crianças pequenas do 1970, de que o método da ‘maré alta’ era um valente professor universitário, co- como FS, Fascista Supremo).
casal, era difícil ir às compras sem carro. insuficiente para enfrentar esse tipo de
(Quando os filhos reclamavam da escola, problema” – resolver a quarta conjectura,
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Grothendieck dizia que fizessem o que por exemplo – “e de que seria necessário
fosse de seu interesse; nenhum deles ter- adotar um estilo diferente?” Qualquer que Ministério do Turismo apresenta
minou o ensino fundamental.) Mazur se tenha sido o motivo real, Grothendieck
lembra de um jantar que ele e a mulher, incentivou também os colegas a partir, di-
Gretchen, ofereceram em sua casa, perto zendo a eles que a matemática era um
do IHES, em maio de 1968. Antes do jan- canto da sereia que estava impedindo que
tar, ficaram sabendo que Grothendieck fossem fazer o que deveriam fazer – em-
tinha se tornado vegetariano. “Nunca tí- bora, como na sua matemática, tampouco
nhamos conhecido nenhum vegetariano aqui ele tenha dado maiores detalhes.
— era novidade para nós”, ele conta, rin- Dedicou-se, então, a um novo proje-
do. Então, foram até Paris para ir à Fau- to, o movimento Survivre et Vivre, cujo
chon, a cara loja de comidas. “Você objetivo era salvar o planeta e a espécie
podia comprar bulgur [trigo para quibe] humana. Ficou especialmente atraído
com uma etiqueta que atestava, assim pela linguagem de Arthur Koestler que
em inglês: ‘bulgur’. Era esse tipo de lu- falava sobre “o caminho dos sonâmbu-
gar.” Naquela época, as revoltas estudan- los em direção ao apocalipse”. Descre-
tis geravam tumultos, e era corriqueiro veu, então, os cientistas e os matemáticos
ver tropas de choque. Os Mazur tinham como as pessoas mais perigosas do pla-
consciência de que estavam se dirigindo neta, porque, descuidados, punham po-
para uma loja elitista – o que, presume- der tecnológico e destrutivo nas mãos
se, Grothendieck desaprovaria. “É prová- de políticos. Por cerca de dois anos, foi
vel que tenhamos gastado lá um terço do o principal colaborador de uma publica-
nosso salário”, conta Mazur. ção mensal chamada Bulletin de Liai-
Os Grothendieck chegaram. Mazur son, em que assinava alguns dos textos
conta: “Ele entrou, viu a comida sobre a com o pseudônimo Diógenes.
mesa, abriu um grande sorriso e disse: Grothendieck vislumbrava também
‘Isto é maravilhoso!’” Depois, voltou-se uma “comunidade” em uma casa de pelo
para Mireille e, num tom áspero, emen- menos doze quartos, que teria “o calor de
dou: “Está vendo como é fácil fazer uma um ambiente familiar”. Em 1972, essa
refeição vegetariana?” Mazur afirma que ideia concretizou-se na cidade de Châte-
“esse tipo de comportamento era muito nay-Malabry. Ele começou a sair com
característico de Grothendieck” e se ex- uma matemática, Justine Skalba, que ti-
Heitor dos Prazeres, Mulata, 1959 (detalhe)

plica: “É por isso que estou contando essa nha conhecido numa palestra na Univer-
história. Como posso dizer...? Isso acaba- sidade Rutgers. Logo em seguida, ela
va afetando todas as amizades dele. Todos concordou em abandonar os estudos e
Organização Patrocínio do Projeto Apoio do Projeto
os seus relacionamentos.” Sobre a família segui-lo. A comunidade, fundada com
que fazia taramasalata para vender, Ma- amigos, começou com apenas quatro pes-
Apoio Institucional do Projeto Patrocínio Estratégico Patrocínio Master Realização
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dieck era um pensador bastante genera- sa cara ou dizia que éramos mensageiros
lista. “Minha área é a teoria dos números, de Satanás”, diz Schneps. Lembra-se de
que é abstrata, mas gosto de trabalhar que, se uma folha caía de uma planta na
com objetos matemáticos, se é que isso casa dele, ele punha a folha caída num
faz sentido”, diz ela. “Assim, não fica tão copo com água. Disse para Schneps e
abstrato. Não acredito que a obra de Gro- Lochak que ele e as plantas se comunica-
thendieck teria me atraído.” vam. “Acho que era muito solitário”, afir-
Mas, quando ela leu o manuscrito, ma ela. Estava preocupado com o
achou-o de uma beleza incrível: “Uma problema do mal e sentia que, quando as
das ideias contidas ali é que escrevemos pessoas pusessem de lado o que estavam
matemática de um jeito que está todo fazendo e se concentrassem nisso, o mal
errado.” Grothendieck argumentava teria fim. “Não acho que fosse louco”, diz.
que os matemáticos escondem todo o “Veja a gente aqui, conversando sem pa-
processo da descoberta, fazendo com rar, com tudo o que está acontecendo na
que pareça tranquilo e dedutivo. “Se- Ucrânia.” Nossa conversa se deu no fim
gundo ele, por causa disso, o lado criati- de fevereiro passado. “Ele diria que nós é
vo da matemática é, todo ele, mal que somos loucos.” Schneps e Lochak
compreendido. Deveríamos escrever a tentavam visitá-lo todo ano. Às vezes, ele
matemática de um jeito inteiramente juntava um cesto de maçãs do quintal
diferente, que mostrasse todo o cami- para dar a eles. Outras vezes, acusava os
nho do pensamento, todos os equívocos. dois de espezinhá-lo. Nunca conversou
Ele queria escrevê-la de uma maneira com eles sobre matemática.
que enfatizasse o processo criativo.” Schneps e Lochak reuniram alguns
Schneps encantou-se também com ou- amigos e fundaram o Círculo Grothen-
tra contribuição tardia de Grothendieck, dieck, dedicado a preservar seu trabalho e
sobre os chamados dessins d’enfants (de- torná-lo o mais acessível possível. Schneps
senhos infantis): “É a ideia de que todo também organizou uma conferência so-
desenho simples, feito de vértices e seg- bre a obra de Grothendieck e colaborou
mentos – qualquer coisa que se pode de- com o matemático Winfried Scharlau,
senhar dessa forma –, tem uma conexão que publicou uma biografia escrita com
Por volta de 1985, matemáticos que com um sorriso maroto: não se valeu dos natural entre todos esses desenhos e uma base em uma pesquisa rigorosa.
haviam conhecido Grothendieck co- fundamentos que Grothendieck havia equação real, com coeficientes que são A obra de Grothendieck sobrevive
meçaram a receber fragmentos de um estabelecido. Ravi Vakil me contou que, números algébricos, e isso é muito estra- também como a estrutura dentro da
manuscrito acompanhados de cartas pes- às vezes, alguns matemáticos descrevem nho.” Trata-se aí de uma área da mate- qual se faz muito da matemática de
soais. Era Récoltes et Semailles, com o esse fato com uma analogia: “Foi como mática chamada teoria de Galois, na qual hoje. As contribuições de Grothendieck
subtítulo Reflexões e Testemunho sobre se, para ir de um pico a outro, Deligne Schneps também trabalhava. “Ele viu à geometria algébrica foram essenciais
um Passado de Matemático. Para uma tivesse atirado uma flecha até o outro
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS que o grupo absoluto de Galois atua nes- para que Andrew Wiles comprovasse o
outsider como eu, trata-se de um texto lado do vale, estendendo uma corda ses desenhos. E, então, fez algo que eu último teorema de Fermat, em 1994.
coerente e imaginativo e, ao mesmo bamba e caminhado até lá sobre ela.” acho muito tocante. Desenhou de fato. Ravi Vakil sustenta: “Campos inteiros
tempo, perturbador em sua obsessão. Grothendieck queria que o problema Fez aqueles desenhozinhos. Grothen- da matemática falam a língua que ele
Para quem conhecia Grothendieck, foi fosse resolvido de outro modo: enchen- dieck não usava exemplos, é claro, e, no desenvolveu. Vivemos em uma grande
mais angustiante. Um matemático disse do de pedras o vale inteiro. Ele escreveu entanto, lá estava ele, dando um exem- estrutura que ele construiu e que da-
que preferia lê-lo como um romance, sobre um sonho em que “o cortam pro- plo, algo concreto.” Schneps pensou con- mos de barato – o arquiteto se foi.”
tamanha a dor que o narrador parece fundamente em vários lugares”. Ao acor- sigo: “Está bem, isso tem a ver comigo.” Schneps lembra que, em uma de suas
sentir. Uma boa parte de Récoltes et Se- dar, ele percebeu que essa imagem de Ela e Lochak saíram, então, à procura visitas antes da morte de Grothendieck
mailles constitui-se em uma longa la- um “massacre” tornava clara a “realida- de Grothendieck. em 2014, ele falou da sua convicção de
múria descrevendo uma comunidade de das intenções e disposições de outros Nessa época, ele estava vivendo como que a experiência vivida pode nos desen-
matemática degradada que está deter- que eu percebera claramente”. um eremita, sobrevivendo por vezes caminhar intelectualmente. “Como eu
minada a enterrar Grothendieck. O tex- Récoltes et Semailles faz repetidas re- apenas à base de sopa de dentes-de- disse a você, ele nunca partia de exem-
to fala também de um número seleto de ferências à infância. Grothendieck cha- leão. Mantinha seu endereço em se- plos, e essa era sua maneira de pensar
visionários, chamados de “mutantes”. ma de “órfãs” as ideias matemáticas que, gredo, para que ninguém pudesse qualquer coisa, e não apenas matemáti-
Jean-Pierre Serre recebeu um tre- segundo ele, foram abandonadas. Entre encontrá-lo. Schneps e Lochak falaram ca”, diz ela. Assim, o exemplo de sua
cho do manuscrito e escreveu em res- os títulos dos diversos segmentos do livro com alguns homens magros e barbu- própria vida era algo que ele não deseja-
posta uma longa carta contendo a figuram “Rumo à descoberta da Mãe” e dos, um deles morando numa choupa- va levar a sério. Grothendieck se desven-
seguinte passagem: “A morte é meu berço (ou três crianças na no meio de um trigal. “Ele disse que cilhou de boa parte de suas míseras
Você está surpreso e indignado com para um moribundo)”. No entanto, ele deixaria a cargo de nossas almas a de- posses, ou então queimou o que tinha.
o fato de seus ex-estudantes não terem pouco fala de sua infância real, ou de cisão sobre se era ou não Alexander Mas, mesmo no fim da vida, ainda guar-
dado continuidade ao trabalho que você seus pais verdadeiros. O outro tema utili- Grothendieck”, conta ela. Não era. Pu- dou um retrato do pai que alguém havia
assumiu e, em grande parte, terminou. zado repetidas vezes nos subtítulos é o da seram-se, então, a caminho de uma ca- pintado no campo de concentração.
Mas não faz a pergunta mais óbvia, morte: “Um vento de enterro...”, “A gan- bana nas montanhas para encontrar Logo no começo de Récoltes et Se-
aquela para a qual todo leitor espera res- grena – ou o espírito de nosso tempo”, outro ermitão magro e barbudo. Tam- mailles, Grothendieck desenvolve a me-
posta: Por que você mesmo abandonou o “O aluno póstumo”, “O enterro”, “O cai- bém não era Grothendieck. A área, não táfora do título:
trabalho em questão? xão”, “Encontros de além-túmulo”, “O mas- muito longe de onde Grothendieck se Eu sei que existe uma substância nu-
Um ex-estudante que Grothendieck sacre” e “... e a motosserra”. escondera no bosque quando criança, triente em tudo que acontece comigo, te-
difamou com particular veemência seria era um ímã para pessoas vivendo fora nham sido as sementes plantadas por

E
Pierre Deligne, amplamente reconhe- m 1991, Leila Schneps, uma jovem dos sistemas tradicionais ou sem docu- mim ou por outros – cabe a mim comê-la
cido como o mais brilhante de todos. matemática norte-americana, rece- mentos oficiais. Por fim, encontraram e vê-la transformar-se em conhecimento.
Deligne, porém, deixou Grothendieck beu de outro matemático, Pierre mais um homem magro e barbudo, com- [...] Aprendi que, na colheita, por mais
injuriado ao elaborar uma engenhosa Lochak, uma cópia daquela candidatura prando verduras e legumes na feira – amarga que seja, há carne substancial da
saída matemática. Quatro anos depois de Grothendieck de 1984, “Esboço de era o Grothendieck verdadeiro. qual cabe a nós nos alimentarmos. Quan-
de Grothendieck ter deixado o IHES, De- um programa”. “Talvez tenha sido uma Teve início uma amizade tremenda, do comemos essa substância e ela se torna
ligne havia provado a quarta e última cantada típica de matemáticos”, ela diz, bastante exigente e tumultuada. “Às ve- parte de nossa carne, o amargor, que era
conjectura de Weil. “Mas ele a resolveu sorrindo. “Porque Pierre é hoje meu zes, ele era muito gentil. Outras vezes, apenas o sinal da nossa resistência à co-
da maneira errada”, diz Michael Artin, companheiro.” Ela sabia que Grothen- batíamos na porta, e ele a fechava na nos- mida destinada a nós, desaparece. J

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RÚSSIA
Textos de: Elif Batuman, Camila Chaves, Hélia Correia, Clara Drummond,
Orlando Figes, Reginaldo Pujol Filho, Masha Gessen, Ana Matoso, Pepetela,
José Pacheco Pereira, António Pescada, André Sant’Anna, Colin Thubron,
Tatiana Tolstaya, Amor Towles, Ludmila Ulitskaya
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Direção de imagem: Daniel Blaufuks WWW. TI NTA DACHINA .COM.B R
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anais da independência

DOM JOÃO ABRE OS COFRES


Como os gastos do monarca desorganizaram as finanças públicas do Brasil

RAFAEL CARIELLO E THALES ZAMBERLAN PEREIRA

N
a alvorada do dia 13 de maio de tarde em suas memórias. Acenando das nos da rainha, dona Maria I, sua mãe, nos acompanhavam, pouco atrás, a comitiva
1808, assim que “os primeiros janelas do palácio, o príncipe regente e a dos príncipes dom Pedro e dom Miguel, a da Câmara, alguns deles também em se-
resplendores do Sol alumiaram família real receberam as continências cada casamento dos integrantes da família las de cavalos, outros desmontados, con-
o horizonte”, o Rio de Janeiro militares e assistiram a novas salvas de real, e finalmente na aclamação de dom duzindo a pé seus animais “bem arreados,
foi acordado por estrondosos tiros, “a que seguiram os vivas de toda a
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS João VI, em 1818, como rei de Portugal, e ornados com fitas, e plumas para maior
tiros de canhão vindos do mar. É possível tropa, e do imenso povo, que cobria os Brasil e Algarves, numa sucessão de festi- realce desta pompa”. Duas bandas de mú-
que a intensidade das descargas naquele lugares adjacentes”. De alto a baixo, a so- vidades que não custaram pouco aos co- sica completavam a equipe de anúncio
horário inusitado tenha feito um ou outro ciedade fluminense tinha vindo assistir à fres públicos, mas eram da essência do das bodas reais, uma delas à frente do
carioca pular da cama, ou cair da rede, parada militar e celebrar o monarca. exercício de poder da realeza – e que só conjunto, a outra encerrando o desfile.
assustado. Não se tratava de guerra, contu- À tarde, o caráter sagrado da realeza foi chegariam ao fim com a ruína do regime Todo esse aparato percorreu as principais
do, nem de nenhum tipo de hostilidade. realçado, depois das demonstrações mun- e a volta do monarca a Lisboa. No tempo ruas da cidade, lendo e afixando nas es-
As próprias autoridades locais haviam or- danas de poder bélico, assim que o bispo do rei, enquanto houve dinheiro, o Rio de quinas o anúncio do casamento.
denado os disparos, apressando-se a come- da diocese entrou na cidade com pompa Janeiro foi uma festa. No dia da comemoração do aniversá-
morar, tão cedo quanto possível, o 41o e circunstância, liderando uma procis- Para se ter uma ideia da opulência – rio de dom João e das bodas, um “cami-
aniversário da “preciosa e inestimável exis- são que passou por ruas cobertas de fo- ou da extravagância – dessas cerimônias, nho estradado, levantado do chão quatro
tência” de dom João. As armas das fortale- lhas e flores, enquanto pendiam, das vale mencionar dois episódios marcantes, palmos”, foi montado em praça pública,
zas que guardavam a entrada da baía, bem janelas que ladeavam o desfile, “ricas do início do período joanino no Brasil, ligando o palácio à Capela Real. “Sobre
como as dos navios de guerra portugueses alcatifas de sedas”. Uma vez que a Coroa quando tudo ainda era novidade. Um de- ele se formou uma teia, ornada com toda
e ingleses ancorados no porto, faziam fogo e a Cruz haviam sido propriamente ce- les foi o terceiro aniversário de dom João a beleza, pois nela só se divisavam sedas,
em homenagem ao príncipe regente. lebradas, tratou-se, então, de estabelecer comemorado no Rio de Janeiro, em 13 de galões de ouro, e alcatifas da Pérsia, cujo
Não era para menos. Pela primeira os instrumentos mínimos para o funcio- maio de 1810, ao qual se associou a cele- comprimento, desde a porta principal do
vez, o aniversário de um monarca seria namento do poder estatal. A Impressão bração do casamento de dona Maria Te- palácio até à da Capela Real, era de
celebrado com a presença de sua majes- Régia foi inaugurada na cidade, “para resa de Bragança, sua filha, com dom 650 palmos, com 16 de largura; de espa-
tade na cidade, onde desembarcara havia nela se imprimirem exclusivamente toda Pedro Carlos de Bourbon, sobrinho espa- ço em espaço pendiam de 98 hastes ou-
apenas dois meses. As salvas de canhão, a legislação, e papéis diplomáticos, que nhol do monarca. Às atividades que já tros tantos lampiões de vidro com duas
parte das demonstrações de “obediência emanarem de qualquer repartição do real haviam se tornado costumeiras – as salvas velas de cera em cada um deles.”
e vassalagem” dos súditos sul-america- serviço”, e o príncipe ordenou que uma de canhão à alvorada e ao entardecer, e o Ao redor dessa espécie de passarela, “as
nos, eram, de toda forma, apenas o co- fábrica de pólvora fosse instalada às mar- desfile militar diante do palácio e do rei, janelas de toda a quadra da praça estavam
meço. Ao longo do dia, numa complexa gens da Lagoa Rodrigo de Freitas. No fim no fim da manhã –, acrescentou-se o es- guarnecidas de cortinados de seda, como
e exuberante cerimônia, a comemoração do dia, enquanto o Sol se punha, novas petáculo público das bodas reais. O even- também as portas, o que fazia uma muito
dos anos de dom João se confundiria salvas de tiros foram disparadas das forta- to foi anunciado dias antes na cidade, por agradável vista”. O conjunto transformava
com o teatro de instalação do Estado por- lezas e dos navios ancorados no porto. integrantes da Câmara Municipal. “Saí- o espaço público por completo. Segundo
tuguês no Brasil e a reafirmação de po- ram os almotacéis em grande estado, Gonçalves dos Santos, “todo esse recin-

E
der da Coroa, recém-fugida da Europa. ra assim que a política funcionava no montados em soberbos cavalos ricamente to” se assemelhava agora a um “magnífi-
“Pelas 11 horas, os três regimentos de Antigo Regime: o poder era disputa- ajaezados, com a comitiva de muitos ofi- co salão”. Era como se a própria cidade,
linha, como também o de artilharia e o do aos sussurros, nas intrigas da Cor- ciais da Câmara, levando todos capas a céu aberto, tivesse se tornado um largo
de cavalaria, e igualmente os quatro regi- te, e reafirmado com fogos de artifício, em bandadas de seda branca, e chapéus com e confortável aposento da realeza. “En-
mentos milicianos, entraram pelo Terrei- praça pública. De certa forma, aquela ce- plumas da mesma cor, e ricamente orna- fim tudo respirava grandeza e magnifi-
ro do Paço com toda a galhardia, e ali se rimônia do 13 de maio perdurou pelos dos de joias, igualmente montados em cência, como convinha a uma festividade
postaram em grande parada”, segundo a dias, meses e anos seguintes, nas ruas da cavalos das reais cavalariças”, descreve nupcial e real, a primeira que o Novo
descrição de Luís Gonçalves dos Santos, cidade, uma comemoração atrás da outra Gonçalves dos Santos. Criados da Casa Mundo viu realizar-se na Corte do Bra-
o padre Perereca, feita alguns anos mais – nos aniversários do príncipe, depois rei, Real – ou seja, funcionários do palácio – sil”, observou o memorialista.

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ROBERTO NEGREIROS_2022
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Dom João VI no Brasil: parte do seu poder se constituía graças à capacidade que tinha de dar festas, demonstrações de grandeza e títulos de nobreza, ou apenas distribuir privilégios

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Esses benefícios se estendiam a quem lução, os gastos palacianos, motivo de


ANGELI

não possuía título de nobreza, mas ser- escândalo – e contabilizados com a mes-
via ao palácio. O principal ministro de ma rubrica que no Brasil, Maison Royale
dom João VI no período final de sua es- (Casa Real) –, equivaliam a 5% do total
tada no Brasil, Tomás António de Vila- de receitas do país.
nova Portugal, recebera o direito, por O viajante inglês James Henderson,
exemplo, de recolher na Ucharia 1,5 al- que esteve no Brasil entre 1819 e 1820,
queire de cevada por dia. escreveu, ao analisar a situação das con-
Boa parte do poder de dom João se tas públicas locais com as poucas infor-
constituía, assim, a partir de sua capaci- mações de que dispunha, que lhe parecia
dade de dar – dar festas e demonstra- razoável concluir “que o item mais im-
ções de grandeza aos seus súditos, dar portante que desorganiza a roda finan-
títulos de nobreza a um círculo mais res- ceira tem sua origem não apenas no
trito de apoiadores, ou simplesmente distri- grande acúmulo de indivíduos na Cor-
buir favores, perdões, privilégios, dinheiro te, mas também em todos os órgãos do
e comida. “A liberalidade, o gesto de dar Estado”. Isso se devia, segundo ele, ao
era considerado, na cultura política do fato de o rei, sendo “um homem de dis-
Antigo Regime, como virtude própria dos posição fácil e cordial, pelo desejo de fa-
reis”, escreveu a historiadora portuguesa zer algo para todos”, ter permitido que
Maria Fernanda de Olival. Ou, como defi- se aumentasse a máquina pública a um
niram teóricos dos séculos XVII e XVIII, “em ponto que “supera o que é necessário”.
nenhuma cousa mais se parecem os mo- “Poucas cortes europeias, comparati-
narcas com Deus, que em dar”, e nenhu- vamente, têm tantas pessoas associadas a
ma outra “cousa prende mais os corações”. elas quanto a brasileira, que consiste em
Assim se compreende o constrangimento fidalgos, eclesiásticos e numerosos ser-
dos governadores do Reino quando, em vidores”, escreveu Henderson. “Poucos
1820, desesperados com a crise financeira governos têm um número tão prodigioso
em Portugal, pediram, cheios de mesura, de pessoas empregadas para dar conta
que dom João VI contivesse a sua liberali- dos assuntos públicos, comparados aos
dade e a distribuição de mercês pecuniá- que detêm cargos aqui. Além das trezen-

M
eses mais tarde, ainda em 1810, galope, trazendo suas mulheres na garu- rias. Conter os gastos, a distribuição de tas mulas e cavalos em São Cristóvão [ou
uma espécie de desfile carnava- pa. “Entre outras muitas danças”, notou empregos e de benefícios, embora tivesse seja, no palácio], há um número igual
lesco foi organizado para cele- o padre Perereca, “deu muito prazer a se tornado uma imposição incontornável de bestas nos estábulos da cidade, man-
brar o aniversário de 12 anos do príncipe dos macacos”, pelo “ridículo das suas fi- naquele momento de crise, ia contra o tidos não apenas para o uso da família
dom Pedro. Camarotes montados à vol- guras, saltos e trejeitos pantomímicos”. próprio fundamento do poder real. real, mas também para os fidalgos e nu-
ta do amplo Campo de Santana recebe- A festa continuou pelos dias seguintes, merosos indivíduos que compõem a co-

O
ram “o corpo diplomático, a Corte, e com apresentações no teatro, touradas,
Entre em nosso Canal no Telegram:sca,custos dessa liberalidade do monar-
t.me/BRASILREVISTAS mitiva da Corte; e mesmo assim, com
grande número de pessoas mais conde- distribuição de “doces e refrescos em
de suas festas e demonstrações todos esses dispêndios, [a Corte] não dá
coradas de todas as ordens do Estado”. abundância”, além de elaborados espetá- de grandeza apareciam sobretudo mostras de esplendor e elegância.”
A chegada de dom João e da família culos de fogos de artifício. numa das principais rubricas de gastos Certamente as despesas da Corte joa-
real ao local “foi anunciada por girân- De modo geral, cada um desses even- entre 1808 e 1820 no Brasil: os dispên- nina, como concluiu Henderson, con-
dolas de fogos do ar, que se desenvolve- tos era acompanhado de uma cerimônia dios com a Casa Real, ou seja, com o tribuíram para o aperto financeiro do
ram com grande estrondo”. A aparição mais restrita, no palácio, em que ao bei- palácio. Apenas a Ucharia, que fazia regime absolutista, às vésperas de sua
pública do monarca teve ares teatrais, já ja-mão do príncipe se seguia a distribui- o serviço à mesa nas residências reais e ruína. Autores recentes, como Jurandir
que o camarote real era protegido dos ção de títulos de nobreza, a concessão de distribuía víveres para cortesãos e funcio- Malerba, ajudaram a conferir maior cla-
olhos do público por um pano que, até comendas e de participação nas ordens nários – um subitem nos gastos palacia- reza à contribuição desses gastos para o
o último momento, se manteve estendi- militares. Estima-se que, ao longo dos nos –, despendeu 436 contos de réis em “descontrole das finanças” sob dom
do, fechado. Quando afinal “correram seus poucos anos de residência no Rio de 1820. É um valor com ordem de grande- João. “Era suntuoso, hoje talvez se dis-
as cortinas do real camarim, e aparece- Janeiro, dom João tenha criado mais za comparável à das transferências para sesse acintoso, o número dos que serviam
ram suas altezas, foram os augustos se- marqueses, condes, viscondes e barões a Corte, naquele mesmo ano, das mais ao rei”, observa Malerba, com razão.
nhores aplaudidos com muitos vivas pelos do que todos os sucessivos monarcas da importantes províncias do Brasil do ponto Mas os balanços disponíveis indicam
seus leais e amantes vassalos”. A seguir, Casa de Bragança, em Portugal, entre de vista econômico – Bahia, Pernambu- que, apesar de todo o fausto palaciano,
veio o desfile. meados do século XVII e o fim do XVIII. co e Maranhão, cada uma delas contri- esses dispêndios não chegaram a pesar
Uma orquestra forneceu o fundo mu- Era preciso, afinal, ganhar ou reforçar a buindo com cerca de 500 contos para os tanto para os cofres públicos quanto a
sical para a sucessão de carros alegóri- lealdade das elites locais para a Corte cofres fluminenses. O estábulo, de onde outra grande rubrica de gastos da época.
cos, cada um encarregado de apresentar recém-instalada. “A expectativa a cada provinham os cavalos ajaezados que fa- Como se não bastassem as alcatifas de
algum aspecto ou região do Império: no aniversário real, festividade pública ou ziam bela figura nas cerimônias pú- seda, os cavalos ricamente ajaezados ou
primeiro, um indígena – ou, quem sabe, vitória militar exaltava os ânimos, na es- blicas, desembolsou em 1820 outros os muitos alqueires diários de cevada,
um carioca com plumas e pinturas – re- perança de promoções”, escreveu o his- 274 contos. Havia também gastos com gastos ainda mais exorbitantes estavam
presentava a América, de arco em pu- toriador Jurandir Malerba. Não espanta prataria, com funcionários, com a cape- sendo feitos, naqueles mesmos anos de
nho; em seguida vinha um carro com que tantos ansiassem pelas graças reais, la e a guarda real, e com gratificações a governo joanino, com as Forças Arma-
chineses, vestidos com as “ricas sedas” pois, além de trazerem prestígio, muitas músicos e artistas, entre outros dispên- das, empenhadas na conquista da região
do Oriente. “Estes chinas, descendo do dessas posições conferiam vantagens dios. Tudo somado, no último ano que que mais tarde constituiria o território
carro, executaram no meio da praça dan- materiais: em geral, pensões e tenças, ou dom João passou integralmente no Bra- uruguaio. Somados, os dispêndios com
ças muito engraçadas, ao som de vários seja, remunerações em dinheiro provi- sil, a Casa Real fez despesas da ordem de as tropas e seus comandantes, de um
instrumentos, com geral satisfação.” Não das pelos cofres públicos, bem como 1 700 contos – quase quatro vezes mais, lado, e com o luxo do palácio, de outro,
é difícil imaginar a multidão rindo, de- uma cota de víveres distribuída pela nominalmente, do que os 456 contos selariam o destino de dom João VI, do
leitada, do que considerava estranho e Ucharia, a “despensa” da Casa Real, en- despendidos em 1808. Entre a chegada absolutismo luso-brasileiro e da união
exótico. Em terceiro, uma alegoria dos carregada de alimentar a família real e e a partida do rei, os montantes destina- entre Brasil e Portugal. J
“antigos portugueses”, seguida de um os cortesãos. Às boas-vindas dos brasi- dos ao palácio, à família real e aos corte-
carro que representava “uma ilha do leiros à Corte, observou a historiadora sãos subiram de 20% para 29% do total Trecho adaptado do livro Adeus, Senhor
Mar Pacífico”, depois um castelo sobre Kirsten Schultz, “o príncipe regente res- despendido pelo Estado na América Portugal: Crise do Absolutismo e a Inde-
rodas com a real bandeira portuguesa, e pondeu com a concessão prodigiosa de portuguesa. Vale notar que, na França pendência do Brasil, a ser publicado neste
por fim ciganos a cavalo, num apressado recompensas honoríficas e pecuniárias”. da década de 1780, às vésperas da Revo- mês pela Companhia das Letras.

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A TERRA É REDONDA (MESMO)
ESTREIA 16 DE AGOSTO

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O podcast de ciência e meio ambiente da revista piauí.


Segunda temporada às terças-feiras em todas as plataformas de áudio.
Uma parceria com o Instituto Talanoa e produção da Trovão Mídia.

Realização: Produção:
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vultos da dramaturgia

A MARATONA
A trajetória da atriz Isabel Teixeira, do teatro feito para poucos ao sucesso popular na novela Pantanal

DIRCEU ALVES JR.

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N
a última Corrida de São Silves- mo caipira com uma postura liberadora que requer dedicação exclusiva, jorna- pseudônimo de Virgínia Rey. Não são
tre, em 31 de dezembro passa- que a projetou, capítulo após capítulo, das de gravações de doze horas por dia e romances, ela avisa. “São exercícios de
do, a atriz Isabel Teixeira deu a ao estrelato da televisão. longos períodos fora de casa. Apesar dis- escrita expandida, como se fossem diários
largada ao lado da cantora Zé- Teixeira nunca correu atrás da fama, so, a atriz não colocou de lado nenhum fictícios, cadernos de rascunhos”, diz.
lia Duncan. As duas amigas mas abraçou de peito aberto a repercussão projeto pessoal, entre eles o de dar pros- Avelã é uma “peça gráfica” sobre a tenta-
percorreram 15 km de ruas do Centro de de Maria Bruaca na novela de Bruno Lu- seguimento ao seu trabalho de editora, tiva de compreender uma perda – a de
São Paulo, mas em toadas diferentes. Zé- peri para a Globo, uma recriação do folhe- no apartamento em São Paulo onde sua própria mãe, a atriz Alexandra Cor-
lia, de 57 anos, saiu à frente e se classifi- tim escrito por Benedito Ruy Barbosa em mora com a filha, Flora, de 11 anos – o rêa, que morreu em 2006, aos 56 anos.
cou entre as cem primeiras da sua faixa 1990 para a Rede Manchete. “Acho velho primogênito, Diego, de 18 anos, embar- Já H.Tel & Soul apresenta uma mulher
etária. Isabel, de 48 anos, cumpriu o tra- esse preconceito com relação às novelas”, cou no fim de julho para uma tempora- que escreve cartas de amor em quartos
jeto no mesmo tempo que a vencedora do diz a atriz paulista. “Se na década de 1970 da de estudos nos Estados Unidos. de hotéis. “Tenho obsessão por escrever.
grupo de corredores de 80 anos. Não foi era um símbolo de atitude do ator não ce- No imóvel de três quartos no bairro Desde a adolescência faço meus diários
pouca coisa, para quem nunca tinha par- der à televisão, hoje considero uma ação de Santa Cecília, na região central, a sala que guardo até hoje. É uma aventura que
ticipado de uma maratona. “Corro deva- política falar com milhões de pessoas atra- é chamada de “ateliê”. Ali, uma enorme agora resolvi trazer a público.” Ela é tam-
gar porque já tive pressa”, justifica a atriz, vés de uma personagem coerente com o mesa ocupa boa parte do espaço, com bém uma leitora exigente. Entre os escri-
brincando com um verso da canção To- meu discurso.” Ela garante que nunca computador, laptop, impressora, livros, tores que lhe serviram de referência para
cando em Frente, sucesso do compositor desprezou o entretenimento de massa – e folhas de papel e fios, muitos fios. São criar os livros estão os argentinos Julio
Renato Teixeira, seu pai, com Almir Sa- só não tinha engatado uma carreira nas os equipamentos da editora Fora de Es- Cortázar e Ricardo Piglia, o espanhol En-
ter. E completa: “Cada um no seu passo, novelas por falta de oportunidade. quadro, um projeto que Teixeira desen- rique Vila-Matas, o norte-americano Paul
o que importa é não ficar parada.” Antes de Pantanal, sua experiência volve desde 2009, quando começou a Auster e o brasileiro Dyonélio Machado.
Os passos de Isabel Teixeira têm cha- na tevê se restringia a um papel discreto na estudar design, e que ganhou fôlego A escolha do pseudônimo confere
mado atenção de muita gente desde que série Desalma (2020), que lhe abriu por- durante o isolamento da pandemia. certa teatralidade ao ato literário. Virgí-
ela começou a encantar os espectadores tas para uma participação na novela Amor É uma empresa de uma pessoa só. nia Rey, personagem criada por Teixei-
da novela Pantanal com sua interpreta- de Mãe (2019-21), na qual fez uma mé- À maneira de uma artesã, Teixeira res- ra, é uma escritora que morreu inédita
ção magnética e maliciosa da persona- dica, amiga e vítima dos crimes seriais ponde pelo processo completo de pro- e só agora, enfim, será conhecida pelos
gem Maria Bruaca, uma mulher que se praticados pela personagem interpreta- dução: edita, revisa, ilustra e encaderna. leitores. O pseudônimo homenageia
revolta contra os abusos do marido e da por Adriana Esteves. “Gravei também “O meu próximo passo é comprar uma duas atrizes centrais em sua vida: a avó
pratica ardentes traições. O sucesso pro- uma cena de uma novela das seis da qual guilhotina e uma prensa”, diz a atriz, materna, Maria de Lourdes Corrêa, que
vocou uma guinada na vida da atriz, nem lembro o nome, em que contrace- que vai imprimir quantidades peque- subiu aos palcos na década de 1940 com
conhecida até pouco tempo apenas por nei com a Malu Galli”, conta. Era Sete nas dos livros – talvez cinquenta exem- o pseudônimo de Virgínia Vanni, e a
seletas plateias em São Paulo, onde en- Vidas, folhetim de 2015. “Foi um frila plares de cada um –, para distribuir em tia-avó, Maria Margarida Lopes, que
cenou peças de dramaturgos canônicos, de um só dia que me ajudou a pagar o algumas livrarias e por demanda. adotou o nome de Margarida Rey para
como Shakespeare, Schiller e Beckett. aluguel porque só o teatro nunca susten- Além de publicar os livros, Teixeira é a longa carreira que a levou do teatro às
Correndo à margem do sex appeal das tou minha realidade.” autora de dois deles, que já estão no prelo: novelas, entre os anos 1940 e 1980.
jovens atrizes de Pantanal, ela reuniu em A fama trazida pela televisão costuma Avelã e H.Tel & Soul. Foram escritos nos Outra prioridade editorial da Fora de
sua personagem um buliçoso sensualis- ser exigente, como agora, com Pantanal, últimos dez anos e serão assinados com o Esquadro é publicar o que Teixeira chama

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FLAVIA VALSANI_2022
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Isabel Teixeira em seu apartamento em São Paulo: “Tenho pensado se nós não estamos fazendo peças demais que tratam sobre angústias particulares, como se fossem uma espécie de palestra”

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ANGELI
o ator recrie o texto, primeiro pelo im- diferente dentro de você, que é a sua”, ela
proviso e depois pela escrita. Esses exercí- explica. “Se eu ficasse limitada a um tex-
cios são todos gravados. Em seguida, as to no computador, talvez não achasse essa
falas são transcritas e se busca como ade- voz com facilidade e liberdade.”
quar a voz do ator à do personagem.

I
As primeiras experiências com o mé- sabel Teixeira sabe bem o que significa
todo tiveram algo de melodramático. a liberdade para a escrita de uma vida
Foram feitas por Teixeira e a atriz Geor- autônoma. Sua mãe, Alexandra Cor-
gette Fadel durante os ensaios de Rainha rêa, se separou de Renato Teixeira quando
[(s)] – Duas Atrizes em Busca de um Co- a filha tinha 1 ano e meio. O casal optou
ração. A montagem pretendia sintetizar pelo distanciamento, a menina ficou com
em uma dupla de atrizes a tragédia con- a mãe, mas em contato com o pai.
tada por Schiller com mais de vinte per- No dia a dia, era a mãe, com sua fir-
sonagens na peça Maria Stuart, sobre as meza característica, quem segurava a
disputas entre essa monarca escocesa e barra, garantindo o sustento dela e da
Elizabeth I, da Inglaterra. A diretora Ci- filha com trabalhos no teatro e na televi-
bele Forjaz deu o aval, e Teixeira e Fa- são. Não foram poucos. Alexandra Cor-
del, com o texto original na ponta da rêa atuou em dezenas de peças, as mais
de “atos gráficos”. São livros que reprodu- ta, os espectadores eram conduzidos a língua, partiram para improvisações diá- memoráveis dirigidas por Naum Alves de
zem diários pessoais, complementados pé por um produtor até o apartamento, rias de muitas horas, que foram gravadas Souza, como Depois do Arco-Íris (1978),
por imagens. O pai da atriz, Renato Tei- a duas quadras de distância. “A ideia foi em vídeo. O trabalho deu a Teixeira, que No Natal, a Gente Vem Te Buscar (1979)
xeira, será tema de um lançamento que da Isabel e, artisticamente, nos trouxe um fez Maria Stuart, o Prêmio Shell de Tea- e A Hora da Estrela (2002). Na televisão,
trará anotações dele, rascunhos de letras retorno maravilhoso, eu transportei o tea- tro de Melhor Atriz em 2008. participou das novelas Meus Filhos, Mi-
de músicas, correspondências e fotogra- tro para dentro da minha vida”, avalia Intérprete de Elizabeth I, Fadel co- nha Vida (1984) e Uma Esperança no Ar
fias. O ator Silvero Pereira, que trabalha Borghi. “Só que paguei multas e enfren- menta que, durante a aplicação do méto- (1985), no SBT, e da minissérie Moinhos
em Pantanal, ganhará um volume, com to até hoje problemas com os vizinhos, do nos ensaios, a colega provocava um de Vento (1983), da Globo.
a edição de seus escritos feitos durante a que me proibiram de fazer qualquer coi- clima perturbador para recriar os confli- O canal de comunicação entre a pe-
preparação do monólogo Bixa Viado sa e me olham torto se recebo meia dúzia tos da peça e torná-los identificáveis com quena Isabel e o pai era sempre o telefo-
Frango, apresentado em 2020. “Silvero é de amigos.” A sala da casa de Borghi e a realidade das duas. No caso, a rivalidade ne, principalmente depois do estouro da
um artista do tempo dele em todos os Seixas é grande, mas às vezes a plateia entre as rainhas foi o canal para estabe- canção Romaria, em 1978, que intensifi-
sentidos. Ele está na coerência de um chegava a quarenta pessoas. lecer um duelo artístico sobre quem bri- cou a agenda de shows dele, impedindo
discurso que é importante hoje, que rom- Pode parecer contraditório que, no lhava mais em cena. “Isabel, como Maria, que os dois se encontrassem com frequên-
pe barreiras, prega ideias, mas não escor- auge da popularidade obtida com Panta- acabava comigo”, conta Fadel, sobre sua cia. O músico se casou novamente, teve
rega no panfleto. Para o meu projeto da nal, a atriz queira colocar em prática pro- amiga desde os tempos da Escola de Arte outros filhos – Francisco, Antônia e João
editora, tudo se casa”, afirma a atriz-edi- jetos tão pessoais e intimistas. Para ela, no Dramática, da USP. “Ela não me dava tem- – e foi viver na Serra da Cantareira, na
tora, sobre o seu interesse em publicar os entanto, nada impede que um espetáculo po para improvisar, cortava minhas falas, Grande São Paulo. Nas férias, levava a
textos, que Silvero mostrou à amiga em feito inicialmente no apartamento se ex-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS foi ardilosa mesmo na intenção de esta- filha do primeiro casamento para Uba-
um intervalo das filmagens da novela. panda depois para outros palcos, atingin- belecer essa competição. Precisei ter um tuba, no litoral Norte, onde sua família
“Talvez eu tenha que alugar um apar- do uma plateia mais numerosa. Por ora, jogo de cintura para não criar inveja ou tem casa até hoje. Raros foram os dias
tamento maior”, diz Teixeira, ao calcular ela nem quer se preocupar se o Teatro levar para o lado pessoal.” em que Isabel e Renato deixaram de tro-
mentalmente o número de coisas que Domiciliar tende a entrar em conflito Mariana Lima, Cláudia Abreu e Mar- car uma ligação – hábito que agora se
ainda precisa incorporar ao ateliê-casa. com as regras dos condomínios. “Eu gos- tha Nowill são algumas das atrizes que adaptou às chamadas de vídeo. “Eu fui
Quando se mudar dali, ela pretende trans- to de enfrentar problemas, mas só penso fizeram o workshop do Escrita na Cena educada pela palavra dele no meu ouvi-
formar o local em um “Teatro Domi- neles quando aparecem”, assegura. com Isabel Teixeira. “Ela me mandava do”, ela diz. “Meu pai me ensinou poe-
ciliar”, com capacidade para receber Enquanto descreve os muitos projetos, cartas fictícias sobre temas delicados, que sia, me apresentou pelo telefone a obra
cerca de trinta pessoas. A atriz está can- Teixeira chama atenção pelos expressivos a gente chamava de cartas-bombas. Eu de Manuel Bandeira.”
sada de depender de leis de incentivo e olhos verdes, que parecem mirar algo abria essas cartas, sozinha na sala de en- Renato Teixeira confessa que, por mui-
de bater de porta em porta, buscando um invisível ao interlocutor, pelos gestos en- saios, e respondia diante de uma câmera”, to tempo, alimentou a esperança de ver
espaço para apresentar as suas peças. fáticos e a peculiar voz grave e meio rou- recorda Mariana Lima, sobre a prepara- a filha seguindo seus passos na música.
Um dos planos é encenar no aparta- ca. A fala agitada evidencia a vontade de ção do monólogo Cérebro Coração, escri- A expectativa não surgiu do nada, já que,
mento de Santa Cecília um monólogo querer fazer tudo ao mesmo tempo e não to por ela mesma e dirigido por Renato segundo ele, a garota estudou piano, flau-
inspirado na personagem Auxilio Lacou- se conformar com os empecilhos. Mas, Linhares e Enrique Diaz em 2018. ta e, aos 14 anos, decorava os improvisos
ture, que comparece em dois livros do por vezes, seu discurso desacelera, como Cláudia Abreu explica que tinha ex- jazzísticos de Ella Fitzgerald com faci-
escritor chileno Roberto Bolaño, Os De- se ela percebesse a ansiedade e puxasse periência em improvisação. Mas que lidade impressionante. “Mas o pessoal
tetives Selvagens e Amuleto. “É uma per- temporariamente o freio. “Acho que es- registrar e depois redigir o que improvi- da música é mais simples, fácil de lidar,
sonagem real, uma poeta que passou tou precisando correr um pouco, nem sou, como propôs Teixeira, foi diferente. enquanto o do teatro é complexo e aten-
treze dias presa no banheiro de uma uni- que seja na esteira”, diz, sorrindo. “Me fez confiar que o conteúdo que saía de melhor às necessidades intelectuais
versidade mexicana tomada por militares de mim era realmente o que eu queria dela”, afirma o pai. Ele revela que, na

C
em 1968 sem ter o que comer”, explica. omo diretora, Isabel Teixeira é tam- dizer.” Ela conheceu Teixeira nas grava- reta final de Pantanal, o público poderá
Ela mesma cuidará da adaptação, mas bém uma experimentadora incan- ções da série Desalma, e recorreu ao conferir os dotes da filha como cantora
ainda não obteve os direitos autorais. sável. Desde 2008, ela trabalha com método nos preparativos de Virginia, em algumas cenas de Maria Bruaca. “Sei
O protótipo do Teatro Domiciliar veio um método próprio de preparação de ato- peça solo baseada em Virginia Woolf e que a Bel já ensaiou umas canções com
à luz com uma montagem da peça Fim res, chamado Escrita na Cena. O método dirigida por Amir Haddad que estreou o Almir Sater”, conta. “O que me deixa
de Jogo, de Samuel Beckett, dirigida por estimula o ator a desenvolver, durante a em julho em São Paulo. feliz é que enxergo a carreira dela como
Teixeira e protagonizada por Renato Bor- construção do papel que vai interpretar, Martha Nowill gravou depoimentos uma escrita expandida, traçada sem radi-
ghi e Elcio Nogueira Seixas. A encenação improvisos narrativos nos quais mistura o sobre situações cotidianas – como um calismo e aberta ao público.”
aconteceu em 2016, na sala do aparta- texto original com a sua própria fala, em passeio com os filhos ou uma ida ao cabe- Se houve disputa quanto ao futuro da
mento da dupla de atores, na Alameda total liberdade, evocando memórias e leireiro – para criar a personagem-título garota, o teatro venceu com vantagem,
Santos, no bairro Jardim Paulista, em experiências pessoais. “Eu não sou uma da peça Pagu, Até Onde Chega a Son- tanto mais que tinha larga tradição na fa-
São Paulo. Funcionava assim: as pessoas encenadora de linguagem, o meu traba- da, a partir de textos da escritora Patrícia mília. Sua avó materna, Maria de Lourdes
faziam a reserva para o espetáculo e, no lho é revelar a autoria do intérprete”, diz. Galvão, antes de entregar a direção a Corrêa (1923-2005), teve carreira meteóri-
dia e hora marcados, se reuniam no Itaú Trocando em miúdos: a ela interessa não Elias Andreato. A estreia será em setem- ca como atriz, com aquele pseudônimo
Cultural, que apoiava o projeto. Do pré- tanto seguir à risca a peça original, mas bro. “A voz vem da palavra falada e depois de Virgínia Vanni. Ligou-se ao importan-
dio do centro cultural na Avenida Paulis- inventar um espaço de liberdade para que vira escrita. Então você encontra uma voz te grupo Os Comediantes, de Cacilda

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Becker e Ziembinski, mas, três anos de- César Saraceni, e Os Inconfidentes, de Joa- varava a madrugada. A turma se reunia dos Produtores de Espetáculos Teatrais
pois de pisar nos palcos pela primeira vez, quim Pedro de Andrade. Na televisão, se para papear, levando uma bebida debai- do Estado de São Paulo (Apetesp).
abandonou tudo. Teixeira, em um texto projetou sobretudo a partir dos anos 1970, xo do braço, e os projetos teatrais nasciam Renato Teixeira não apareceu para
memorialístico escrito para a Folha de em novelas como O Bofe (1972), de Bráu- ali mesmo, na sala da família, tendo Tei- aplaudir a estreante, com receio de en-
S.Paulo, em 27 de fevereiro de 2011, tem lio Pedroso, e Sem Lenço, Sem Documen- xeira como testemunha. Quando a me- contrar a ex-mulher. Ele só veria a filha
uma hipótese sobre a ruptura da avó: to (1977), de Mario Prata, ambas da Rede nina dizia que queria ser atriz, a mãe no palco dez anos mais tarde, quando ela
Conta a lenda familiar que Virgínia Globo. Em seu texto, Teixeira confidencia avisava: “Se quiser mesmo, precisa estu- já frequentava a Escola de Arte Dramáti-
havia se apaixonado por um homem belís- que veio a saber de colegas de Margarida dar sem parar, falar pelo menos dois idio- ca, na qual se matriculou após cursar le-
simo do meio teatral. Pouco tempo depois, Rey que ela “foi a primeira mulher ho- mas e ter aulas de dança.” Ela aprendeu tras, na mesma USP. É dessa época sua
descobriu que, além dela, ele namorava um mossexual assumida do teatro”. inglês e francês, que considera sua segun- lembrança mais remota de ver os pais
rapaz. Minha avó, ressentida, resolveu A avó e a tia-avó deixaram uma mar- da língua, e começou a estudar dança aos juntos, num mesmo ambiente: os dois na
abandonar o que havia vivido até ali e nun- ca forte na história de Teixeira, como 8 anos. Aos 12 anos, se dedicou ao balé fila da entrada de A Cozinha, peça do
ca retornou ao teatro. Casou-se em 1949 ela mesma conta: clássico e, no fim da adolescência, che- britânico Arnold Wesker que ela encenou
com o jornalista Moacyr Corrêa, que a Minha avó dançava para mim no gou a integrar o Ballet Stagium. na faculdade em 1996. “Eu sempre con-
presenteou com um piano Steinway de ar- quintal, leve e ainda linda, com gestos Em 1984, quando tinha 11 anos in- vidava ou meu pai ou minha mãe de cada
mário que agora descansa na minha sala. largos e uma altivez digna de estrela de completos, conseguiu o que queria. Ga- vez, mas o diretor e professor Iacov Hillel,
Moacyr Corrêa (1919-2007) foi o pri- cinema da década de 1950. Sempre que nhou um papel na peça infanto-juvenil amigo dos dois, achava isso tão absurdo
meiro editor do caderno Ilustrada, da estou prestes a entrar em cena, cumpro Uma Aventura a Caminho do Guarujá, que agiu por conta própria”, recorda.
Folha de S.Paulo e, de acordo com Isa- um pequeno ritual: falo para mim mes- sobre um casal que leva os filhos a uma Com o diploma na mão, a jovem encon-
bel, o único que continuou a chamar ma um trecho do poema de Dylan Tho- viagem no litoral. O casal era interpre- trou seu caminho junto às personagens
Maria de Lourdes pelo nome artístico mas, Em Meu Ofício ou Arte Taciturna, tado por Alexandra Corrêa e João Bour- dos grandes dramaturgos, de Shakespea-
– o que ele fez até o fim da vida. Do piso no palco com o pé direito e faço re- bonnais. Os filhos, por Isabel Teixeira re a Nelson Rodrigues, de Bertolt Brecht
avô, a neta herdou uma biblioteca de verência a Margarida e Virgínia, minhas e Beto Magnani. No dia da estreia, no a Tennessee Williams. “Isabel construiu
mais de 2 mil volumes. atrizes preferidas, que vivem e sobrevi- Centro Cultural São Paulo, pouco an- uma trajetória sólida porque não é o tipo
Como Maria de Lourdes, sua irmã vem no teatro da minha memória. tes do terceiro sinal, Corrêa avisou à de atriz que se limita a dizer o texto. Ela
Maria Margarida Lopes (1922-83) fez car- filha: “Bel, pensa bem se você quer fa- se apropria da personagem de todas as

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reira no teatro, mas bem mais longa. Ela omo se a ancestralidade não bastas- zer isso. Depois que cruzar a cena, formas e faz questão de cuidar direta-
também adotou pseudônimo – Margarida se, Isabel Teixeira cresceu tendo ao nada mais vai ser fácil, você não vai ter mente até do figurino e da maquiagem,
Rey – antes de pisar nos palcos e trabalhar redor de si uma penca de artistas noites livres, vai perder festas nos fins o que lhe garante um controle total”, afir-
na companhia de Ziembinski, no Teatro entusiasmados com seu ofício. Na casa de semana, sua vida vai ser diferente ma o encenador Roberto Lage, que a
Brasileiro de Comédia (TBC) e na Compa- onde vivia com a mãe e o padrasto, o ator da de todos os outros.” A garota lembra dirigiu em Baal (1997), de Brecht, e Ri-
nhia Tônia-Celi-Autran (de Tônia Car- Carlos Meceni – conhecido pelo espetá- até hoje o impacto que lhe causaram cardo III (2006), de Shakespeare.
rero, Adolfo Celi e Paulo Autran). No culo Zum ou Zois, sucesso da década de essas palavras. No fim do ano, ela rece- Teixeira foi uma das integrantes-fun-
cinema, atuou em três filmes, dois deles 1980, e pelo filme Ação entre Amigos, beu das mãos de Bibi Ferreira o prêmio dadoras da Cia. Livre, encabeçada pela
hoje clássicos: Porto das Caixas, de Paulo de Beto Brant –, era um entra e sai que de atriz revelação dado pela Associação diretora Cibele Forjaz, empreitada que

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Ministério do Turismo, Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria
Municipal de Cultura, Fundação Theatro Municipal e Sustenidos apresentam

ÓPERAS DE AGOSTO
NO COMPLEXO THEATRO MUNICIPAL

5 sexta 19H
7 domingo 17H
O CAVALEIRO DA ROSA 9 terça 19H ACTÉON 3 quarta 20H
DER ROSENKAVALIER 11 quinta 19H DE MARC-ANTOINE 4 quinta 20H
DE RICHARD STRAUSS 13 sábado 17H CHARPENTIER 5 sexta 20H

Ópera cômica em três atos com ROBERT MINCZUK


ROBERTO CARLA FILIPCIC Pequena tragédie en musique JULIANO BUOSI MARÍLIA VARGAS
libreto de Hugo von Hofmannsthal. DIREÇÃO
ÇÃO MUSI
MUSICAL
MU MARECHALA a partir de uma passagem de DIREÇÃO
ÇÃO MU
MUSICAL
MUSI DIANA
(Editora: Boosey & Hawkes) E REGÊNCIA Metamorfoses de Ovídio.
HERNÁN IITURR
ITURRALDE E REGÊNCIA
PABLO
ABLO MARIT
MARITANO BARÃO OCHS JABEZ LIMA
ORQUESTRA DIREÇÃO CÊNICA CORO LÍRICO MUNICIPAL LEONARDO VENTURA ACTÉON
SINFÔNICA MUNICIPAL LUISA FRANCESCONI DIREÇÃO CÊNICA
MAÍRA FERREIRA OCTAVIAN PRAÇA DAS
S ARTES
ARTE
CORAL PAULISTANO SALA DO CONSERVATÓRIO KEILA DE MORAES
REGENTE TITULAR DO
CORAL PAULISTANO LINA MENDES MÁRIO ZACCARO JUNON
THEATRO
TRO MUNI
MUNICIPAL SOPHIE REGENTE TITULAR
ALA DE ESPETÁCULOS DO CORO LÍRICO Projeto Ópera Fora da Caixa,
ATALLA AYAN selecionado através do
TENOR ITALIANO Chamamento Artístico.

SINTA-SE À VONTADE.
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O Cavaleiro da Rosa: realização:
Theatro Municipal Praça das Artes
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INFORMAÇÕES E INGRESSOS @municipalsp
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ANGELI
primeira vez no espetáculo Dúvida, diri- O fascínio do espectador por Bruaca se
gido por Bruno Barreto em 2006, mesmo torna ainda mais curioso porque ele se vê
ano em que a jovem atriz percebeu a der- diante de uma mulher que não atende a
rota iminente de sua mãe para o câncer. um padrão de beleza normativo. “Eu sou
A convivência entre elas foi se estreitando o que sou, com o corpo que tenho, e revo-
e gerou frutos. Teixeira foi assistente de lucionário seria aparecer nua, com meus
direção de Braga no show ToTatiando quilos a mais, com meu peito caído, e isso
(2012), da cantora Zélia Duncan, e a di- não se tornar uma questão”, diz Teixeira.
rigiu no solo Desarticulações (2013), no O autor da novela, Bruno Luperi, en-
musical Agora Eu Vou Ficar Bonita (2015) xerga Maria Bruaca como uma persona-
e em São Paulo, recital poético que es- gem que concilia o tom cômico com um
treou neste ano e volta ao cartaz neste olhar que expressa uma tristeza imensu-
mês de agosto na capital paulista. “Isabel rável. Neto de Benedito Ruy Barbosa, ele
é uma artista múltipla, focada. Ela pode- celebra a aposta em Isabel Teixeira para
ria ser minha filha de tanto que nos afi- o papel, que quase parou nas mãos de
namos na forma de acreditar na vida e Débora Bloch, o primeiro nome cogita-
lutar para colocar em prática as ideias do. “O sucesso da personagem não sur-
que inventamos”, diz Braga. preende porque temos com ela uma
lhe rendeu aplausos, frustrações e sacudi- ton. “Eu fui me acostumando e achan- Durante os quase dois meses em que discussão alinhada ao espírito da nossa
das para a realidade. Em 2001, sofreu por do graça disso.” Após selar a paz, os dois Teixeira esteve no Pantanal, sem pisar em época: a busca da mulher para se ressig-
ter sido obrigada pela diretora a entregar caíam na gargalhada por causa da cena. São Paulo, entre abril e junho deste ano, nificar na sociedade”, afirma Luperi.
o papel de Geni, em Toda Nudez Será O ex-casal tem uma guarda compar- Diego e Flora ficaram com o pai. Mais “Surpreendente foi a dimensão da leitu-
Castigada, para a atriz Leona Cavalli e se tilhada radical de Flora e Diego. Os fi- complicado foi a preparação da viagem do ra que Isabel deu à personagem.”
restringir a fazer uma das três tias, espécie lhos passam uma semana com cada um rapaz aos Estados Unidos. Ele ganhou “A Bruaca é uma consequência da fal-
de coro da peça de Nelson Rodrigues. dos pais, que dividem igualmente todas uma bolsa de estudos e deve permanecer ta de cultura”, reflete Teixeira. “É uma
No ano seguinte, contracenando de novo as despesas. “Nunca houve essa de caber por lá durante quatro anos. Diego quer ser mulher que não acessa a televisão, não lê,
com Cavalli, Teixeira interpretou Stella, isso ao homem e aquilo à mulher”, diz jornalista esportivo. “Nós já nos acostuma- nem sequer tem uma vizinha para con-
a irmã de Blanche Dubois em Um Bon- Setton. “Como Isabel sempre trabalhou mos com a distância”, diz a mãe. “Em versar. Então, como muitas mulheres que
de Chamado Desejo e recebeu a primei- e viajou bastante, muitas vezes a Maria 2007, quando fiz a Gaivota – Tema Para vivem no interior do Brasil, não tem chan-
ra indicação ao Prêmio Shell. “Tinha Bruaca da nossa relação fui eu.” Um Conto Curto, dirigida pelo Enrique ces de perceber o abuso que sofre.” Para
rompido com Cibele, mas Stella é uma Em 2018, a atriz morou um ano em Diaz, passei mais de um mês em turnê tentar entender o motivo da aceitação de
personagem que estudei a vida inteira. Paris, atuando no grupo teatral de Chris- pela Europa longe dele, que tinha 3 anos. Maria Bruaca, a atriz arrisca uma compa-
Não tinha como não fazer, até porque tiane Jatahy, diretora carioca que trabalha Era bater dez dias que eu tomava aquele ração política. “A identificação se dá pela
tenho consciência de que jamais seria a na Europa e neste ano ganhou o Leão de porre para sofrer menos com a ausência.” opressão, porque ninguém aguenta mais
Blanche. Então baixei a guarda e pedi o Ouro da Bienal de Veneza pelo conjunto ser cerceado por esse governo”, diz.

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papel para a Cibele”, confessa. de sua obra. A parceria das duas começou ormada pelas companhias de teatro Se a fictícia Bruaca precisou da filha,
O crítico de teatro Valmir Santos res- no Brasil, em 2014, com E Se Elas Fossem
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS estruturadas na criação coletiva, Guta (interpretada por Julia Dalavia),
salta que Teixeira é uma atriz que ousa para Moscou?, adaptação de As Três Irmãs, Isabel Teixeira garante que, ao con- para abrir seus olhos, a telenovela serve
interagir com repertórios de distintas gra- de Anton Tchekhov. Quatro anos depois, trário do que dizem muitos atores, ela de alerta para as mulheres. A Bruaca da
dações e com diferentes diretores. “Esse em Paris, Teixeira foi uma das Penélo- encontrou na televisão um ambiente primeira versão de Pantanal alimentou
acúmulo de experiências a fez seguir des- pes em Ítaca, montagem inspirada no aberto para a troca, que começa na imer- discussões sobre a situação feminina que
bravando caminhos e lançar mão de um épico de Homero, e representou em fran- são nas fazendas pantaneiras e se estreita foi desdobrada na Rede Globo em dife-
vocabulário próprio”, ele diz. Santos tam- cês e português – a mistura de línguas faz na convivência em grupo. Ela, por exem- rentes produções nos anos seguintes. Per-
bém destaca uma iniciativa da atriz, no parte do estilo de Jatahy. “Foi muito bo- plo, dividiu quartos com as atrizes Alanis sonagens como a Raquel (interpretada
começo dos anos 2000, com a Cia. Livre: nito ver Isabel descobrindo a sua atuação Guillen e Dira Paes por mais de um mês. por Helena Ranaldi), de Mulheres Apai-
o projeto documental Arena Conta Are- em outra linguagem, com outro ‘tama- Com Murilo Benício (que interpreta seu xonadas (2003), e a Domingas (Maeve
na – 50 Anos. “Ela foi uma das coordena- nho’ de interpretação, de relação viva ao marido), assistiu ao filme Uma Mulher Jinkings), de A Regra do Jogo (2015), co-
doras desse trabalho sobre o emblemático mesmo tempo com a cena e com a câme- sob Influência (1974), clássico do diretor locaram no horário nobre os abusos sofri-
Teatro de Arena. Entrevistou uma gama ra, e como ela podia transbordar nas duas norte-americano John Cassavetes sobre dos por mulheres. Helena Ranaldi diz
de artistas, entre eles Augusto Boal e Li- linguagens”, diz Jatahy, que utiliza recur- a crise vivida por um casal. “Essa novela que o conflito que ela protagonizou ser-
ma Duarte.” O projeto, que gerou um CD sos audiovisuais e de cinema no palco. é um imenso trabalho de equipe em que viu de encorajamento para muitas delas
e exposições, recebeu menções nos prê- Teixeira credita a essa experiência o todos contribuem para um resultado denunciarem seus abusadores. “O fato de
mios Shell e da Associação Paulista de seu entrosamento com o audiovisual, continental”, diz. a personagem ser uma professora de clas-
Críticos de Artes (APCA). que agora a popularizou em Pantanal. Foi a produtora de elenco Rosana se média alta estabeleceu um diferencial,
“A linguagem teatral da Christiane tra- Quintaes, da Rede Globo, quem sugeriu mostrou que a violência doméstica está

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eixeira foi casada com o fotógrafo Ro- balha com câmera o tempo inteiro, Isabel Teixeira para o papel de Maria em todas as camadas sociais.”
berto Setton, pai de seus dois filhos, como se fosse cinema ao vivo”, diz. “Es- Bruaca. A escolha foi endossada pelo di- Para a psicanalista Maria Homem, as
por catorze anos. Eles se conheceram ses trabalhos me fizeram entender todo retor de teledramaturgia da Rede Globo, novelas entram em dialética com o mo-
em 1999 em um curso de fotografia que o processo do cruzamento da imagem, José Luiz Villamarim, que havia traba- mento histórico – o que explica a identifi-
a atriz decidiu fazer, sempre disposta a tanto que eu praticamente me casei lhado com a atriz em Amor de Mãe. Ele cação com as tramas. Na primeira versão
saber mais. Uma festa na casa de Setton com a câmera”, brinca, aludindo ao di- mesmo se encarregou de fazer o convite. de Pantanal, Bruaca se separa do marido
em que ninguém apareceu, além dela, retor de fotografia da companhia de A diretora Noa Bressane, filha do cineas- e torna-se mulher do ex-amante, o peão
foi o início da relação e de uma socie- Jatahy, Paulo Camacho, com quem ela ta Julio Bressane e uma das responsáveis Alcides (interpretado, na época, por Ânge-
dade que está longe de ser rompida. viveu cinco anos, até o início de 2020. por Pantanal, ressalta que a composição lo Antônio e, agora, por Juliano Cazarré).
“Setton é meu parceiro em uma obra O período na Europa também deixou de Maria Bruaca por Teixeira trilhou ca- “Para a evolução se completar, a Bruaca
maior”, diz ela, referindo-se aos filhos. Setton contrariado porque a ex-mulher minhos nada óbvios que, no entanto, atin- de Isabel Teixeira deveria passar por um
O fotógrafo conta que a ex-mulher levou Flora para Paris. “Eu tinha que giram facilmente o público por causa do processo maior de emancipação, pois,
vive e respira arte e, embora seja uma botar minha filha para dormir todas as carisma da personagem. “Ela está no mes- nestes anos 2020, ela já não servirá de mo-
ótima mãe, o que ela gosta mesmo é de noites através do celular, lendo as revisti- mo diapasão da novela, não é fantasiosa delo caso se contente apenas com o amor
cuidar de suas atividades teatrais e cria- nhas da Turma da Mônica”, ele conta. ou realista, a sua Bruaca está conectada de um vaqueiro”, diz a psicanalista.
tivas. Até nas brigas, Teixeira recorria ao Quem se considera uma avó de Flora com a alma de um Brasil profundo e, nas A visibilidade na televisão rendeu a
drama. “Ela é impulso puro. Então gri- e Diego é a atriz Regina Braga, outra cenas de sexo, transmite sensualidade Teixeira a sua primeira campanha pu-
tava, chorava, se jogava no chão, como companheira de trabalho constante de sem tirar a roupa ou beijar o parceiro na blicitária, para a marca de cosméticos
se o mundo fosse acabar”, lembra Set- Teixeira. As duas contracenaram pela boca”, afirma. Vult. A atriz sugeriu a voz de Cida Mo-

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reira para gravar a música de fundo do Pouco antes do começo das gravações, bém é um autor da cena, participa da Depois desse dia, sempre que Teixei-
comercial, que dialoga com a nova fase ela maratonou os capítulos da primeira construção dramatúrgica, e eu crio meus ra entra na cozinha cenográfica, está ao
da personagem Maria Bruaca e a re- versão de Pantanal e esse foi o começo de papéis com essa consciência”, afirma. seu alcance o copo alto, coberto por um
descoberta da beleza na maturidade. sua preparação para o papel, antes da pri- Foi quando ela se recordou da histó- pires, com um limão dentro, mas que
“Tinha que ser uma voz vivida, que meira viagem a Mato Grosso do Sul, em ria de sua bisavó paterna. não contém cachaça, é claro. Serve ape-
transmitisse experiência, além de ser a novembro. Ela ficou encantada com as Descendente de imigrantes irlandeses, nas para insinuar, na ficção, o pequeno
voz de uma grande cantora, claro.” sutilezas da atriz Ângela Leal, a intérprete Paula Gracie (1887-1966) se casou com o vício de Bruaca. “E aí, dona Maria? Vai
Teixeira, ela mesma, nunca foi fã de de Maria Bruaca na versão de 1990 da funcionário público João Xavier Teixeira tomar o suquinho hoje?”, costuma brin-
maquiagem. Parou inclusive de se pintar novela. Percebeu também que a persona- (1888-1974), passou a assinar Paula da Gra- car um dos produtores.
para as peças de teatro no começo dos gem pitava um cigarro às escondidas. Para ça Teixeira e se tornou matriarca de um Ainda é cedo para saber se Teixeira
anos 2010, pois acredita que essa opção Teixeira, ávida por subtextos, aquilo era o rancho a dois quarteirões do mar de Uba- vai levar para sua atividade teatral algo
deixa os personagens mais verdadeiros. gesto de desobediência da dona de casa. tuba, onde educou oito filhos. Em meio do que descobriu na televisão. “Estou
O cabelo ficou em tons grisalhos nos úl- Ângela Leal, de 75 anos, conta que a à lida doméstica, frequentava a igreja, aprendendo como se trabalha nesse for-
timos cinco anos e só ganhou cor para a ideia do cigarro nasceu de forma espon- jogava víspora e dava muitas risadas. Atra- mato, principalmente com os colegas
caracterização de Maria Bruaca. “Eu gos- tânea, em uma das primeiras gravações, vessava cada dia de Sol ou de chuva bebe- experientes.” Mas vivenciar de tão perto
to da minha cara lavada, do meu corpo devido a uma câmera que não foi desli- ricando de um copo alto, que ela dizia o impacto que uma novela tem sobre os
do jeito que é, até porque estou amando gada. “Eu estava diante do fogão, perto ser sua limonada da saúde. O hábito espectadores já provocou na atriz algu-
a passagem do tempo e passei minha ju- do Antônio Petrin, que fazia o Tenório, despertava a curiosidade alheia, mas, de- mas reflexões sobre o teatro brasileiro e
ventude nos anos 1990 sufocada por meu marido, e me falava as maiores ofen- vido ao gênio bravo da dona de casa, a distância que o separa do público.
aquelas mulheres magérrimas de capa de sas na cena. Mexida, pasmada na frente ninguém experimentava o refresco, pro- “Tenho pensado se nós não estamos fa-
revista”, ela diz. “A minha beleza corres- do fogão, achei uma bituca no bolso do tegido por um pires na borda. zendo peças demais que tratam sobre o
ponde a mim mesma e, se ficar de bem avental e acendi. Dei uma tragada pro- Um dos netos adolescentes, Renato próprio teatro e sobre nossas angústias
com a gente mesmo for um padrão, toma- funda e tudo foi ao ar sem cortes.” Teixeira, porém, burlou a regra. Certo particulares, como se essas peças fos-
ra que eu vire um símbolo desse padrão”. Teixeira deixou de fumar em 2019 e dia encontrou na geladeira quase vazia sem uma espécie de palestra”, diz ela.
evitou arriscar uma recaída utilizando a a limonada da vovó Paula e sugou o lí- Uma coisa é certa: a novela tem

Q
uem acompanha Pantanal já sabe mesma válvula de escape de Leal. As pro- quido de uma vez só. Caiu desmaiado exigido dela uma resistência física se-
que, em algumas cenas, a persona- vas dos primeiros figurinos, assim que no chão da cozinha. Pinga, era pinga. melhante à de uma maratona. “Você
gem Maria Bruaca segura um copo chegou à fazenda depois de dezesseis A atriz contou a história da limonada grava, grava, grava e vai ficando can-
alto, no qual dá umas bicadas vez por ou- horas de viagem, e a interminável aplica- batizada da avó para a preparadora de sada, mas precisa dar conta até a última
tra, o que rende especulações nas redes ção do megahair, que durou mais doze elenco de Pantanal, Andrea Cavalcanti, cena do dia que, às vezes, está muito
sociais sobre o conteúdo do recipiente. horas, colaboraram para aproximá-la da que logo compartilhou a informação longe. O corpo ganha outra elastici-
“Todo mundo tem uma válvula de escape, personagem. Mas ela precisava encon- com a produtora de arte Miriam Saback. dade com esse pique e, se o coração está
então a pinga é o máximo de transgressão trar a própria marca, uma assinatura para “Você se lembra de como era esse co- envolvido no jogo, cria uma imensa
que aquela mulher pode acessar para re- a nova Bruaca, que fosse ainda uma ho- po? Vamos providenciar um pareci- comunicação”, diz. “Isso me deixou
fletir em sua solidão”, entrega Teixeira. menagem a Ângela Leal. “O ator tam- do?”, disse a produtora. apaixonada.” J

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ficção

HE-MAN Um cata-bagulho é sempre bem-vindo

ANTONIO MAMMI

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Uma tarde na areia: os homens são fortes e barrigudos, têm os braços cobertos por tatuagens imensas, e sob as lentes dos óculos escuros à policial rodoviário não é possível dizer se

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eso até o limite, o cadarço se se desvencilhar de um saco plástico que É para esses escombros comerciais que Os olhos secos custam a esquadri-
amarra num nó desesperado engancha no tornozelo, trazido pelo o vendedor está virado quando tenta em- nhar o ambiente. Poderia ziguezaguear
para a bermuda, esgarçada, vento que precede a chuva. purrar uma pulseira que seja a um casal pela faixa de areia, da espuma evanes-
não arriar. A bunda segura o Lagarteando na areia, os banhistas que, passada a repulsa inicial, deixa de cente do mar à mureta do jardim mori-
pano do lado traseiro, mas al- superaram uma prova de monotonia prestar atenção nele. Não tem o tino nem bundo que separa a praia do asfalto,
guns pelos púbicos são inescapáveis viária para chegar à praia: são dezenas a obstinação dos ambulantes, girando suas mas não tem uma estratégia – naqueles
ao olhar do potencial cliente que esti- de quilômetros de asfalto em planalto e grelhas de queijo coalho ou empurrando dois meses, sempre optou pelo percurso
ver sentado numa canga, sem dinhei- serra, seguidos por uma avenida triste seus carrinhos de milho verde. Logo ele menos trabalhoso possível.
ro (ou disposição) para pagar por sobre um córrego canalizado, até dar vai desistir, e a verdade é que se impôs uma Vê uma família numerosa, servida por
cadeira e guarda-sol. numa orla povoada por pousadas caras, meta – percorrer os 3 km da praia – só para um cooler do tamanho de uma mesa de
É arte, artesanato em ferro e madei- restaurantes ruins e caros, um estacio- poder se tranquilizar depois sob o argu- centro. Os homens são fortes e barrigu-
ra, explica o vendedor, enquanto tenta namento, alguns terrenos baldios. mento de que o movimento estava fraco. dos, têm os braços cobertos por tatuagens

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PEDRO FRANZ_2022
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dormem ou não – esparramam seus corpanzis nas cadeiras, tombam as cabeças nos ombros ou entrelaçam os dedos por trás da nuca. Ele não se ilude quanto à possibilidade de vender sua arte

imensas, e sob as lentes dos óculos escu- Um cata-bagulho é sempre bem- um vaivém sutil e contínuo da cabeça, zinho mal amarrado nos ganchos do
ros à policial rodoviário não é possível vindo, pensa, enquanto guarda alguma feito um limpador de para-brisa. quadrante inferior do suporte vai ficar
dizer se dormem ou não – esparramam sucata no saco de lixo que traz no bolso A chuva se materializa. Pingos gros- inutilizado, pensa, quando volta com
seus corpanzis nas cadeiras, tombam as de trás da bermuda. O conselho quem sos e quentes carimbam a areia, enquan- seu saco de sucata. Acha ruim, mas
cabeças nos ombros ou entrelaçam os deu foi um ambulante de mais idade, to adultos abandonam a água viscosa não vê sentido em discutir e ser humi-
dedos por trás da nuca; as mulheres, por um sujeito ruim da coluna que alterna- – as crianças seguem ali, risonhas, to- lhado pelo pasteleiro.
sua vez, se ocupam de impor ordem a va bons e maus dias – naqueles, passava mando caldos de ondas fracas. A chuva aperta. Não vendeu nada
uma massa amorfa de crianças. a impressão de ser o vereador da praia, São quatro da tarde e o pasteleiro e a sucata coletada dava pouco me-
Ele não se ilude quanto à possibilidade mesclando uma prosa agradável com os entorna o óleo do tacho, formando uma nos de meio quilo – mal valeria 1 real.
de vender sua arte: larga o expositor com banhistas a uma sabedoria altruísta com poça que escoa até o expositor do ven- Não completou a praia toda, mas ago-
o salva-vidas e se oferece para recolher os colegas mais jovens; nestes, denun- dedor de artesanato, encostado no pé ra não adianta. A cabeça trava ao pen-
as latas que a família consumiu. ciava um princípio de demência, com do cadeirão do salva-vidas. Um colar- sar no próximo passo: valeria ir até o

piauí_agosto 85
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enrolado de presunto e queijo com que deve ter sido digna no projeto, com
ANGELI

mais massa do que recheio e, apesar da um arco servindo de teto para um quios-
fome, sente-se cheio e joga fora a últi- que e um banheiro. O arco é de amian-
ma mordida. to, e ele suspeita que não deveria ser:
Ha-hai está passando do outro lado de dia, é melhor tomar o sol das onze
da rua, e ele se dá conta de que já não o na cabeça do que se proteger na som-
vê faz um tempo. Ha-hai é um mendigo bra daquela estufa retorcida de pé-direi-
de voz potente, que ganhou a simpatia de to alto, que deixa o ar espesso como gás
moradores e turistas pelas imitações que de isqueiro.
faz. Seu repertório inclui uma perfor- Quem manda no pavilhão é o salva-
mance perfeita da vinheta do serviço de vidas da tarde, que o vendedor acha que
chamada a cobrar, mas o grande sucesso não sabe nadar. A única vez que o viu
junto aos transeuntes é a gargalhada do na água foi para resgatar uma criança no
Silvio Santos. É por isso que o vendedor raso, e mesmo assim foi todo atabalhoa-
de artesanato o chama assim, porque as do, esquisito. Tropeçou, ensaiou um ca-
pessoas o interpelam com um sorriso chorrinho. Ele sempre dava expediente
aberto, tentando reproduzir um “ha-hai” com um rapaz de uns 14 anos, que dizia
tão sonoro quanto o seu, ansiosas pelo ser seu sobrinho e que era quem ia para
arremate com um “hi-hi”. o mar quando precisava.
Mas o grande trunfo de Ha-hai, na Mas o homem sabia se impor, escu-
opinião do vendedor de artesanato, é a lhambava até o pasteleiro. E era com
artimanha que usa na hora do almoço. ele que o vendedor tinha acertado de dei-
galpão para vender aquele alumínio fornecedores de sucata que estão no pe- É quando o mendigo costuma gritar xar o expositor antes de ir para o Gaúcho,
sujo? Ou era melhor recostar em algu- daço não têm um espírito muito mer- com seu timbre de locutor: “Pelos pode- no quiosque que o salva-vidas transfor-
ma sarjeta, entrar num transe, deixar cantil, dando ao lugar uma atmosfera res de Grayskull!” Toma ar e então, boca mou numa casa de penhor, extorquin-
perder o saco de lixo e tentar fazer as de confraternização. O funcionário do escancarada ao léu, sobe uma nota. “Eu do todo mundo que dependia daquele
horas passarem rápido? Gaúcho é um maranhense que tenta tenho a fôôôme!” Ao jargão do He-Man, cubículo desgraçado que nenhum co-
Vê dois meninos se engalfinhando não roubar na balança e gosta de conver- às vezes um gaiato se arrisca a responder. merciante queria mais. Disse que paga-
na grama rala do jardim e lembra que, sa – talvez para aplacar a solidão do quar- “Eu também!” Alguém acaba rindo, ele ria 10 reais, mesmo sabendo que não
um mundo atrás, numa época que já to dos fundos, onde dorme –, então ele ganha um marmitex de lambuja. levantaria o dinheiro com a sucata.
era quase sonho, tinha sido um bom não vem com aquela chatice de mandar Nessa noite Ha-hai está com pressa. A porta do quiosque foi arrombada
judoca. Federado e tal, o seu velho ti- circular depois de entregar a sucata, e até Carrega um saco de lixo, parece não há muito tempo. A segurança da casa
nha bastante orgulho. Aos domingos, deixa beber Corote lá dentro. estar com cabeça para os seus números, de penhor quem faz é o salva-vidas ou
desbravavam juntos a região metropoli- O atendimento não fica dos mais efi- e quem ainda está na rua não estranha o tal do sobrinho. Apesar de sempre ter
tana da capital, campeonato atrás de cientes, é verdade, porque se o sujeito a ausência dos anúncios engraçados. alguém por perto, o sistema não é
campeonato. O pai em silêncio, como conseguir articular duas palavras, o ma- E então o vendedor vê algo que lhe 100%. O salva-vidas vira e mexe dá
sempre, mas reverente nesses dias, qua- ranhense dá ouvidos, e tem paciência pa-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS chama a atenção. À frente da porta da uma sapeada na hora, dá um xaveco,
se um funcionário seu. Passava a im- ra contar as moedas, e explicar por que a academia da cidade, que ele acreditava namora encostado na moto. O sobri-
pressão de ruminar um futuro, mas o conta está certa se o sujeito não entender, funcionar só durante a semana, um nho sempre se bandeia para a mureta,
filho não saberia explicar isso. e se o cara engrossar ele nem precisa ti- menino de quimono digita uma men- fuma um baseado. E é nessa situação,
rar a barra de ferro de trás do balcão por- sagem no celular. cada qual para o seu lado, que o vende-

N
os fins de semana, o galpão de que o pessoal gosta do maranhense e se Ele estuda o garoto por alguns mo- dor de artesanato vê a oportunidade de
sucata do Gaúcho não abre o por- prontifica a enxotar o encrenqueiro para mentos e pensa que deve falar alguma pegar seu expositor de volta, depois
tão principal, e mesmo o Gaúcho depois seguir calculando o quanto ganha- coisa. Pensa em falar do campeonato de voltar do centrinho.
não se digna a dar expediente, encarre- ram, tomando Corote, ressentindo-se de metropolitano infantil, quando ganhou Ele faz uma tocaia do outro lado da
gando um funcionário de receber a alguém que tenha feito pouco-caso deles de um adversário 15 cm mais alto. Pen- avenida, escondido atrás da estátua de
clientela, que nos dias úteis inclui co- nos últimos dias ou compartilhando indi- sa em falar de uma competição nacional cabeça de leão da entrada da pousada,
merciantes e senhoras aposentadas. cações de bons lugares para cagar. que disputou, numa viagem acompa- esperando o salva-vidas bandear para a
O galpão do Gaúcho fica no pé da O vendedor de artesanato consegue nhado do pai. moto, o sobrinho para a mureta.
serra, do lado de lá da rodovia. São qua- 75 centavos com as latinhas, o que não O menino não levanta os olhos do Na praia mesmo não tem mais nin-
renta minutos a pé da praia quando não é muito mais nem muito menos do celular, a penumbra começa a tomar guém. Na mureta, uns gatos-pingados.
se tem dinheiro para tomar o ônibus, e que havia calculado. conta do ambiente e seu rosto é ilumi- Numa moto, ao longe, a silhueta do sal-
esse é o caso do vendedor de artesanato, Fica à toa durante uns minutos na nado pela luz fraca da tela. O vendedor va-vidas enroscada em outra. O vende-
que chega ali sem pensar muito, num sobreloja, mas num primeiro momen- de artesanato começa a andar reticente dor aperta o passo, atravessa a avenida
arroubo de perseverança. to se entedia; depois, se agonia com os em sua direção e, depois de definir o deserta. O cimento do chão do pavilhão
A porta corrediça da entrada princi- colegas, e então sente a barriga vazia. que falar, caminha mais decidido. cheira a mijo, uma areia grudenta se
pal está baixada. Quando é assim, o Desce a escadaria e vai para a rua em Está a uns cinco passos do menino acumula sob as pegadas de chinelos, o
Gaúcho deixa o fluxo subir para a so- direção ao asfalto, onde é mais fácil quando um instrutor, saindo da acade- vendedor dá um pique, descalço. Entra
breloja por uma porta lateral. Dali se arranjar comida. mia, presta atenção na movimentação. no quiosque, o expositor está debaixo da
acessa uma escadaria úmida e estreita “Vaza.” bancada de mármore falso. Cata rápido

E
que desemboca num escritório impro- stá no centrinho, já prestes a escu- Ele para, hesitante. Ameaça conti- e vai saindo, até tomar um socão na
visado em depósito quando o galpão do recer. Tem nas mãos um salgado nuar, projetando o torso pra frente. boca do estômago. O sobrinho.
térreo, mais amplo, está trancado. que uma senhora lhe comprou, “Vaza”, prossegue o instrutor, desta “Eeeei, Almir!”
Atrás de um balcão de madeira, o depois de ter comentado que ele ainda vez dando uma pisada forte no chão. O salva-vidas está a 200 metros, mas
funcionário do Gaúcho recebe a sucata, estava com a pele boa e que a dentição Ele vaza. pega a moto. Acelera e dá com o vende-
espremido entre a parede e uma prensa. tinha jeito, para então lhe passar um “Noia do caralho”, esbraveja o instrutor, dor no chão, as pulseiras e colares todos
A pouca circulação de ar e o fedor do breve sermão, dizendo que tinha que se tirando as chaves do carro do bolso. O me- espalhados no cimento sujo. Acerta uma
alumínio sujo afastam aqueles a quem cuidar melhor, do jeito que estava era nino não levantou os olhos do celular. bica na cabeça dele. Um pessoal que to-
o Gaúcho se digna cumprimentar. Só normal que as pessoas o evitassem, pre- mava cerveja no bar da avenida se apro-

À
aparece no galpão, quando a sobreloja cisava de um banho. s vezes o vendedor deixa suas tra- xima. Outros que esperavam o ônibus
está aberta, quem precisa levantar di- Mastiga o salgado frio, perambula lhas num pavilhão à beira-mar, mais à frente também.
nheiro rápido para o dia. um pouco, as pessoas estão voltando da circundado pelo mesmo jardim Do chão, o vendedor enxerga a pla-
Ainda há luz e é cedo para os catado- praia e ainda é cedo para os restauran- onde tinha visto os meninos brincarem teia. Toma um pouco de ar.
res de recicláveis voltarem da praia. Os tes começarem a servir o jantar. É um de lutinha horas antes. É uma estrutura “Pelos poderes de Grayskull!” J

86
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poesia_MARÍLIA GARCIA PERDER O CHÃO

você tem dedos


você é uma máquina
o polegar não deve se ouvir
CANÇÃO DA LINHA indicador médio anular dedo mínimo ou
auricular
num poema o corte a mãe avança pela água
pode ser só quero dizer as teclas vão num ritmo que varia
respiro como às vezes a mão avança pela água soltar os dedos os punhos engessados
o salto serve para e a outra segura o fluxo procurar aquela palavra que estava
seguir então é preciso trocar de pista: saltar uma linha colada na mão não encontra
onde ela caiu? caminhar num lugar
eu me levanto e começo a pular uma etapa sem chão
falar você se vira perder o chão
e liga a cafeteira de novo
a linha se corta era um ponto vermelho
um estrondo – tudo veio para partir – minúsculo escondido
é como termina e a respiração desiste um cisco
– você disse rima? – o pulso parou
as palavras suspensas foi o que disseram “Trinta dias sem ver você”
debaixo do som “Em silêncio sem saber nem ouvir nada”
diante da janela
assim são as coisas ele é alto e verde escrevi as duas frases
você tenta seguir a linha mas fincado num terreno de pedras a lápis num caderno
o corte pinho pinheiro estava no meio de um sonho
a pausa parece parado depois li e chorei pensando que
mas se olho bem sinto um leve tremor ela tinha acabado
por que você não escreve com metros de árvore tombando pro
emoção? lado é assim que o mundo saturno não tem superfície
alguém pergunta acaba: não tem chão é um planeta feito
e eu amarro a pergunta bang de gás com um pequeno núcleo de
na ponta desse poema deixo tombar rocha e metais
até o fundo entendo
do mar que chegou o fim não ter onde pisar é estarrecedor J
o que deve sobrar é a cor
meu coração ficou Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
ancorado
no mapa de uma cidade
antiga mapa de linhas
esmaecidas

aqui o poema para porque está sem


ar
tenta encontrar uma resposta TUDO VEIO PARA PARTIR
mas a âncora vai
descendo a chuva também é processo
tudo fica muito diz do alto do terraço quase tocando
escuro no céu e aos poucos vai embora sem
– já dá para fechar se despedir
os olhos depois de um dois dias
não está mais aqui
ao caminhar
deter os passos para poder continuar a memória entra
um dia ia pela rua do pelos olhos
sim
ARI HISAE_2022

mas chegou a hora do não será que lembro dela ou


corto a rota e olho da foto? as coisas se misturam
pra cima um pouco a mão congelada
– você viu o avião? o gesto a cabeça projetada pra frente
já passou mas vai voltar adiante
o calor da imagem vem de antes
agora preciso conter as palavras coladas no que o olho vê
o movimento da água: a memória entra pela fina
uma lágrima escorre pelo rosto segurar película e passa
a gota ou um volume de água pela tela de dentro
tão grande que encherá
todo o cômodo tudo veio para partir
num instante um caule um abraço ajeita
o xale na hora de ir

pelos meus olhos


aquilo que queima
e permanece

piauí_agosto 87
1 de 2 28/7/22 PROVA FINAL

cartas_agosto

que seus moradores fossem contempla- desgovernamental (Jair pelado e Trin-


1 de 1 30/6/22 PROVA FINAL V2

Longa Jornada Noite Adentro


piauí julho
190
_
dos com um melhor atendimento, como
ficou constatado nas diversas entrevis-
cando os dentes). Deixei tudo para de-
pois. Isso tem que ser lido com calma.
A VEZ DO SUS
Breno Pires revela as fraudes
tas com moradores ao longo da reporta- Porém, não pude deixar de me emo-
gem. Trabalho de fôlego, quase uma cionar com o texto de Djuena Tikuna
que o orçamento secreto está
patrocinando na saúde pública

Por dentro do TSE


Marina Dias conta como o tribunal
se prepara para enfrentar o golpe auditoria com a menção do valor das ver- na Despedida (Nha’ã i na i necü i torü
bas entregues às prefeituras totalmente ni’ĩ). Um frio na espinha. Uma vontade
Lavanderia de boi
Como os frigoríficos compram gado
de terra ilegal, por Allan de Abreu

Gatti, a inconformista
O trabalho inovador de uma cientista
desconectadas das necessidades reais da- de chorar, como diz na capa. Texto co-
Vermelho
sobre a Amazônia, por Giovana Girardi

Na aldeia de Gaules
Filipe Vilicic reconstitui a história
do gamer mais influente do país
queles municípios, o que demonstra a movente de um Brasil pouco notado
Desfile doidão
Erika Palomino apresenta as fotos
estonteantes de Vincent Rosenblatt
existência de desvios criminosos dos re- pelos urbanoides. É um Brasil que grita
Uma vontade de chorar
Djuena Tikuna se despede
de Bruno Pereira e Dom Phillips
cursos da saúde para os políticos corrup- para uma realidade que não se apaga.
E mais: tos que dominam essa região. A piauí, Também as imagens [de Vincent Rosen-

piauí_190_R$ 32,00_ano 16_julho_2022


Olhem para as baleias, por Amia Srinivasan

00190
12 A França no banco dos réus, por Madeleine Schwartz
Xangô na batalha, por Márcia Maria Cruz
A nova ficção de Ignácio de Loyola Brandão
Quatro poemas de Gianni Gianni
ao publicá-lo na edição de julho, sob blatt] e o texto da Erika Palomino sobre
o título mais do que apropriado, Farra os blocos de bate-bolas no Rio (Catarse
ilimitada, mais uma vez comprova a lisérgica). Genial. Precisamos mesmo
De Eugene O’Neill importância do jornalismo investigati- conhecer mais o Brasil.
Direção Sergio Módena
vo, divulgando para o grande público as GERALDO MAIA_BELO HORIZONTE/MG
Com Luciano Chirolli, Gustavo Wabner,
Bruno Sigrist e Mariana Rosa.
práticas lesivas praticadas pelos políti-
A FARRA DO SUS cos que envergonham os legislativos mu- NOTA AGRADECIDA E CHEIA DE CITAÇÕES
Sex e Sáb às 20h30 As reportagens da piauí_190, julho, ofe- nicipais, estaduais e federais. NÃO CHECADAS DA REDAÇÃO : Obrigado
e Dom às 18h30 | TUCARENA
recem ao leitor um puro suco do que Os auditores do SUS têm o mapa da por não nos abandonar, Geraldo. Lá
se tornou o Brasil: a despudorada festa mina para apurar tão escandalosas irre- pelos idos da década de 1930, alguém lá
do Centrão com o dinheiro público, a gularidades, caso realmente tenham o na Alemanha soltou a seguinte frase:
Improvável despeito do sucateamento do SUS, com poder de punir tais descalabros. “Quando ouço falar em cultura, saco o
a bênção do Ministério da Saúde e do DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ meu revólver” (talvez tenha sido Goeb-
governo federal (Farra ilimitada); o bels, talvez não, vamos deixar o abacaxi
acossamento às instituições democrá- A reportagem Farra ilimitada deveria pra turma da checagem).* Décadas de-
ticas por parte da extrema direita, in- ser lida por todos os brasileiros, devido pois, Godard parafraseou (se é que foi
flada por Jair Bolsonaro e com o apoio à sua importância e contribuição social. Godard mesmo...):** “Quando ouço
dos generais (Trincando os dentes); a Parabéns à revista, por fazer um jorna- falar em cultura, saco o meu talão de
destruição ambiental promovida pelo lismo independente, tão necessário ao cheques.” Infelizmente, cabe feito uma
agronegócio, com o incentivo do pró-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Brasil atual. luva para o jornalismo. Fazer direito é
prio presidente e a anuência dos órgãos ERIVAN SANTANA_TEIXEIRA DE FREITAS/BA caro. Se tem uma coisa que caracteriza
de fiscalização (A lavagem da boiada). a piauí é o fato de que aqui repórter não
Corrupção, aspirações golpistas, de- PASSA BOI, PASSA BOIADA apura (só) por telefone. Pega avião, fica
vastação do meio ambiente: o bolsona- A reportagem A lavagem da boiada em hotel, aluga carro, toma a estrada,
rismo escancarado em três de suas (piauí_190, julho) mostra uma triste rea- vai pro estrangeiro – às vezes, por se-
mais representativas facetas. Parabéns lidade da nossa pecuária, e o inferno do manas. Entendemos o elemento waal!
De Cia. Barbixas de Humor
aos repórteres Breno Pires, Marina efeito colateral do desmatamento sem (Paulo Francis, essa a gente acha que
Com Anderson Bizzocchi, Daniel Nascimento,
Elidio Sanna e convidados. Dias e Allan de Abreu pelo ótimo ser- fim. As áreas de grilagens são um em- acertou) e não estamos tentando aplicar
viço jornalístico. pecilho na pecuária dessas regiões. um analgésico na ferida, apenas explicá-
Dias 05/08 e 06/08 às 21h00, CLEBER GORDIANO DOS SANTOS_CAMPINA GRANDE/PB CÉLIO BORBA_CURITIBA/PR la. Uma boa solução é assinar a revista.
07/08 às 20h00 | TUCA
Em termos de responsabilidade fiscal, o
Depois de ler a reportagem Farra ilimita- JORNALISMO CARO desconto que damos é quase tão tres-
da (piauí_190, julho), já podemos cravar É inegável a qualidade da piauí. Jorna- loucado quanto os efeitos macroeconô-
MILTON sem nenhuma sombra de dúvida: esta- lismo investigativo, ficção, literatura, ima- micos da PEC Kamikaze.
mos diante do governo mais corrupto da gens. Nesse quesito, aliás, na seção Cartas
história. O Ministério da Saúde se trans- de julho, uma leitora pediu uma edição *NOTA 1 DA TURMA DA CHECAGEM : Não
formou no escoadouro de milhões em em áudio. Ganharia em sonoridade, mas foi Goebbels. A frase aparece numa
verbas que são distribuídas aos parças dos como ficariam as imagens, por exem- peça do dramaturgo Hanns Johst, sim-
componentes do Centrão, assim de rol- plo, na excelente reportagem sobre o patizante do regime nazista.
dão, sem nenhum critério, principalmen- Carnaval off Broadway na periferia do
te para cidades minúsculas do Maranhão, Rio de Janeiro? **NOTA 2 DA TURMA DA CHECAGEM: Sim,
onde a grana é desviada e não é utilizada Leio a revista mesmo e dou sempre foi Godard, no filme O Desprezo. Assis-
na área da saúde. E desviada pra onde? umas passadas pelo site. Mas está fican- tam, é bom.
É preciso que o índice de indignação do do cada vez mais difícil adquiri-la nas
povo brasileiro suba tanto ou mais que bancas: 32 reais (waal!). Não pensam GOLPE EM DISTOPIA
a inflação nos números de procedimen- numa edição mais econômica, não ne- Resolvida a questão da inexistente ofen-
tos proporcionados por essas prefeituras. cessariamente em papel pólen? Só não sa e sabendo que todas as cartas são lidas,
É hora de tomarmos as ruas pra dizer em vale diminuir a quantidade e a qualida- sigo na missão de missivista (Cartas,
Com Mônica Salmaso e André Mehmari
alto e bom som: Não estamos inertes es- de dos textos. Nem fazer como o Esta- piauí_190, julho). Faço isso no dia de
Dia 13/08 às 21h00 e perando o fim. dão, que diminuiu o papel no formato mais um dos pronunciamentos gover-
14/08 às 19h00 | TUCA
VALÉRIA BORDIN_FLORIANÓPOLIS/SC berliner, mas aumentou o preço de capa. namentais reafirmando que não aceita-
Mas sou tão fã da piauí que estou rá os resultados das urnas, caso perca as
ingresso online
Admirável o levantamento feito pelo sempre disposto a tê-la. Na citada edi- eleições, dessa vez com embaixadores.
repórter Breno Pires a respeito dos re- ção de julho fui primeiramente ao texto O golpe está em curso, soprado nas ruas
cursos do SUS distribuídos fartamente sobre a educação escrito por Antônio em 2013, efetivado em 2016, consolida-
Mais Informações:
pelos grotões maranhenses, cidades Gois (O longo atraso), mas confesso que do em 2018 e escancarado desde então,
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes com menos de 20 mil habitantes, sem pulei para os textos do nosso descalabro com ápice, ao que vemos, neste 2022.
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rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
FUNDADOR 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
João Moreira Salles tel [21] 3511 7400
rua Mateus Grou, 109 / 1º andar
CONSELHO EDITORIAL
Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira 05415-050 São Paulo / SP
Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery, e-mail: [email protected]
Marina Dias, em Trincando os dentes do que deu um defeito na bomba e não Simon Romero, Thiago Amparo
(piauí_190, julho), explicita os meandros haverá aula; é uma festa. Os professores DIRETOR DE REDAÇÃO
dos ataques ao TSE, mas a corte poderia também detestam a escola, pois dando André Petry
ter enfrentado os disparos em massa de o mesmo aviso na sala dos professores, Associação Nacional dos Editores de Revistas
EDITOR EXECUTIVO
mensagens falsas pelo WhatsApp e congê- a festa ainda é maior. Alcino Leite Neto

neres nas eleições de 2018, denunciadas O outro problema vê-se examinando PRODUTORA EXECUTIVA Instituto Verificador de Comunicação
Raquel Freire Zangrandi
aos borbotões e acomodadas na cegueira os diários de aula. A carga horária está
típica do órgão superior. “Era tarde de- toda cumprida, os tópicos todos minis- EDITORES
Armando Antenore,
PRÉ-IMPRESSÃO
Antonio Rhoden
mais para o TSE mudar sua abordagem” trados, as notas fartas de 8 para cima. Fernanda da Escóssia
é uma conclusão da reportagem ou frase Mas nas provas de avaliação externas o REPÓRTERES
pronunciada pelo Tribunal? É a ques- desempenho é fraquíssimo, notas em Alejandro Chacoff, Allan de Abreu, Ana Clara
Costa, Angélica Santa Cruz, Bernardo Esteves,
tão central entre os dois turnos da elei- torno de 2. Ao trazer esse fato, a expli- Breno Pires, Camille Lichotti, Consuelo Dieguez,
ção de 2018. A excelente reportagem cação é que o professor precisa dar nota Emily Almeida, Fernando de Barros e Silva, A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
João Batista Jr., Luigi Mazza, Marcos Amorozo, Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
explica por que o despresidente e sua corja e passar os alunos, porque “o sistema” Tatiane de Assis, Thais Bilenky, Tiago Coelho
e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
são contrários à ciência, pois, primeira- obriga. Ao transferir uma prática tão DIRETORA DE ARTE bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
mente, estipulam as conclusões – frau- nociva para uma entidade etérea, sal- Maria Cecilia Marra Papel e Celulose S/A.
de nas urnas eletrônicas – e, depois, vam-se todos, menos os alunos. EDITORA DE ARTE
Paula Cardoso TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 33 670 exemplares
forjam evidências. E quem diria que o O conhecimento, apesar de ser in-
homem de Michel Temer no STF, Ale- tangível, é o mais sólido insumo do pro- COORDENADORA DE CHECAGEM
PARA ANUNCIAR
Marcella Ramos
xandre de Moraes, se transformaria num gresso, por isso numa sociedade que [email protected]
dos guardiões do legítimo processo elei- não abre mão da sua condição de escra- CHECAGEM E REVISÃO
Ana Martini, Carlos Santos,
toral? A esclarecer, apenas, que livre- vagista o ensino é tratado assim. Érika Nogueira Vieira, Luiza Barbara PARA ASSINAR

docência é título, não cargo. Assim, o DJALMA ROSA_SÃO SIMÃO/SP


revistapiaui.com.br/assine
ESTAGIÁRIOS
WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
magistrado é livre-docente pela USP, não Amanda Gorziza, Eduardo Chaves,
Segunda a sexta, 9h às 17h30
João Felipe Carvalho, Thallys Braga, Vitória Pilar
da USP. Uma frase preocupante na ma- RELIGIÃO
COORDENADOR DIGITAL
téria é a de um dos servidores ao ques- Ganhei de presente uma assinatura da Pieter Zalis SAC [ATENDIMENTO AO CLIENTE]
tionar o que se pode fazer em estado piauí. A-DO -REI !!! Sinal de que tenho site: minhaabril.com.br
COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS [email protected]
de emergência, referindo-se a ataques ao “um parafuso a mais”, como vocês di- Mariana Faria
WhatsApp: [11] 3061 2122
processo eleitoral, sendo que foi exata- zem. A reportagem A nova batalha de DIRETOR FINANCEIRO SAC: [11] 3584 9200
mente isso que a Emenda Constitucio- Xangô (piauí_190, julho), excelente por Guilherme Terra Renovação: 0800 775 2112
nal nº 123 decretou para este ano. Com sinal, demonstra muito bem o que é o ADMINISTRAÇÃO Segunda a sexta, 9h às 17h30
a anuência das Forças Armadas, parece deplorável preconceito contra as reli-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Daniella de Amo, Elena Abramcheva,
Elisangela Prado, Leandro Arruda, COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
que nunca esteve tão ativo o desejo indô- giões de origem africana. O que não foi Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso
Abril Assinaturas
mito dela em chegar ao poder, tantas citado é o horário em que as manifesta- DIRETOR COMERCIAL [email protected]
vezes levado a êxito, relembrando os ções são realizadas. Algumas somente Lucio Del Ciello
[email protected]
desejos e ufanismos de Artur Jaceguai e nas sextas-feiras, outras nas quartas e DISTRIBUIÇÃO NACIONAL EM BANCAS
seu Reminiscências da Guerra do Para- sextas. Os rituais vão madrugada aden- COORDENADOR DE PUBLICIDADE Total Express
Tarcisio Perroni [email protected]
guai. Por fim, parece que estamos viven- tro e nos momentos mais sagrados, os [email protected]
do mais uma distopia daquelas relatadas gritos e tambores são tão altos que se MARKETING NÚMEROS ATRASADOS
por Ignácio de Loyola Brandão em Uma ouve bem distante. São muitas reclama- João Vinícius Saraiva [email protected]
fina esteira de gosma, na mesma edição, ções, principalmente de quem precisa DEPARTAMENTO COMERCIAL
não sabendo ao certo o que seu leitor lê, se levantar cedo. Nenhuma outra reli- [email protected]
Enio Santiago [RJ]: [email protected]
como revelou em recente evento literá- gião realiza seus rituais com esse tipo Valéria Alves [SP]: [email protected] www.revistapiaui.com.br
rio, e se a urna eletrônica se transforma- de barulho e até tão tarde. Isso aumenta
rá em urna funerária. ainda mais o preconceito.
ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP MARILIA MILANI_CURITIBA/PR

NOTA A TÍTULO DE SONDAGEM DA REDA- O TERRORISTA


ÇÃO : Correção precisa, perfeita – pela USP,
O governo dos Estados Unidos vive acu-
não da USP. Como punição, o pessoal da sando todo mundo de terrorista. Só que
o maior terrorista que já atuou dentro
revisão terá que ler toda a obra de Artur
Jaceguai. Enquanto fazem isso, pergunta-dos Estados Unidos esteve sentado na
mos: Adilson, você consideraria pegar cadeira presidencial do Salão Oval da
uns bicos de revisão aqui na revista? Casa Branca, como ficou provado ago-
ra, pelo inquérito sobre a invasão do
SEM-ESCOLA Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Do-
Excelente a matéria O longo atraso nald Trump é o inimigo número 1 da
(piauí_190, julho). Dá um panorama democracia e dos Estados Unidos.
bem abrangente da educação e mostra PAULO SERGIO CANFIELD ARISI_PORTO ALEGRE/RS
que através dos anos, mesmo aos tran-
cos e barrancos, ela vem cumprindo
muito bem sua função segregacionista.
Hoje, com meus nove anos em sala de Por questões de clareza e espaço, a piauí
aula, vejo que a educação tem dois pro- se reserva o direito de editar as cartas
blemas empatados em primeiro lugar e selecionadas para publicação. Solicitamos
que não são falados. que as cartas informem o nome e o endereço
Um é o fato de os alunos detestarem completo do remetente.
a escola. Podemos comprovar colocan- Cartas para a redação:
do a cabeça numa sala de aula e avisan- [email protected]

piauí_agosto 89
1 de 1 28/7/22 PROVA FINAL

despedida

BYE-BYE, COXINHA
De tão alta, a inflação está deixando o proletariado surdo

ANDRÉ GABEH

C
arla Créia acordou com uma cente se insinuasse no modo fosco com – É o famoso sobrecu – resumiu, pro- salgados de festas. Dos empadões.
vontade firme de comer coxi- que ela pronunciava as vogais fechadas. vocando um sorriso manso nos ouvintes. Dos salpicões.
nha. O desejo nasceu tão po- O funcionário do mercado riu, cho- Dulce, da Igreja Messiânica, revelou Os presentes choraram em mi me-
deroso e urgente que até as rando. Chorriu. Era notória a sua em-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS que plantava ora-pro-nóbis. nor e se abraçaram em dó maior. Cada
árvores projetavam sombras patia e o seu desespero. Uma senhora – Apareçam no culto que arranjo adeus era uma nota rouca, e ninguém
com o formato da iguaria. Os ventos atrás de Carla comentou: umas mudas pra vocês. Refogando di- conseguia dizer “até breve” diante da
abaloavam os vestidos das moças em – Tudo caríssimo, né? Se pombo reitinho, temperando bem, colocando inexorabilidade da pobreza metastática.
silhuetas coxiformes. O voo coletivo das não fosse um bicho tão sujo... A carne bastante cebola, sai um guisado muito Um quarto rapaz, com uma camise-
maritacas se organizava no desenho do é igual. Comi muito na infância. Mas, gostoso. Proteína pura, gente! ta em que se lia “Pareço vegano, mas só
salgado. Mesmo as lágrimas dos atores na minha época, pombo tinha dignida- Carla ficou de avaliar a sugestão. tô sem dinheiro pra comprar nuggets”,
nas novelas evocavam a sinuosidade de. Hoje o pombo é um bicho sem li- Magoada. Fracassada. Sucumbida. Mas apareceu de repente e também se apre-
erótica do petisco. mites, sem modos. era imperativo olhar nos olhos daquele sentou como membro da Sola. Fez uma
O único senão que impedia Carla de Um rapaz se juntou à conversa: naufrágio. Precisamos manter algumas “homilia da humilhação” e rezou um
se esbaldar num sururu de coxinhas eram – Rolinha é um bicho limpo. Talvez tristezas desembrulhadas para jamais Pai-Nosso, enunciando a parte do “pão
os preços cometidos pelas salgadeiras de tenha gosto de pombo... nos esquecer de suas feições. nosso de cada dia nos dai hoje” com
sua região, coisa de 65 reais o cento. Um Um senhorzinho parou para ouvir o pungente humildade.

T
aumento perverso, segundo o Banco papo e também deu sua contribuição: rês jovens recém-saídos da adolescên- Depois do amém sentido, os jovens
Central das Matriarcas Suburbanas. – Olha, a única proteína que entra lá cia se apresentaram como membros foram embora, introspectivos e ainda
Quando não nos dão a vara de pescar em casa é sardinha. Somos apenas eu, da Sola, a Sociedade dos Organiza- mais derrotados. Carla caminhou até o
nem nos ensinam a pescar, o que a gente minha mulher e dois gatos. A gente faz dores do Luto Alimentício. O mais calmo corredor das farinhas. Queria preparar
faz? Nada. E aqui nada é uma conjuga- um panelão de sardinha com arroz e do trio disse que, no dia anterior, ti- ao menos a massa da coxinha, que re-
ção verbal, não um substantivo macam- come a semana inteira. Sardinha é um nham providenciado uma roda para chearia com desilusão a granel. Mas a
búzio. Carla se transformou, então, em alimento da porra. carpir o falecimento da ideia de tomar farinha de trigo jazia – alva, pura e cí-
cineasta do seu desejo e bolou todo um Carla se manifestou, sentida: café. Contou que viúvos e viúvas chora- nica – atrás de uma placa que alardeava
plano gastronômico. Ela mesma iria fa- – Mas eu queria fazer coxinha. Não vam profundamente, mas sem forças. um preço apocalíptico. Coisa de 7 reais
zer aquilo que não podia comprar. dá pra fazer coxinha de sardinha. Por ironia, a falta de café lhes fez falta o quilo. Um lacrimejo de gordura trans
Foi ao mercado com “dinheiro so- O senhorzinho contou que dá para para vivenciarem o luto pela falta de despencou do olho esquerdo de Carla.
brando”, porque se lhe faltasse ousadia fazer, sim. Sua mulher, inclusive, já ha- café. Coisa de 48 reais o quilo. Uma garota com lindos cabelos afro
acabaria levando Catupiry genérico, via feito brigadeiro de sardinha com a O mais animado dos três rapazes lem- passou perto dela e se solidarizou:
daqueles fabricados com amido e cons- lata de leite condensado que ganhou brou que, na semana anterior, a dor pela – Troquei pão por aipim. Eu e minha
trangimento, para incrementar o lan- numa quermesse. despedida do leite não foi tão grande, mãe cultivamos no quintal. Faz isso, tia.
che. Andou direto até a gôndola ártica Dona Iracema, professora de artesa- porque produtos eufemísticos, denomi- A voz de Carla demorou a transpor
das aves congeladas. Os pacotes de peito nato, palpitou: nados “misturas lácteas”, vêm suprindo os soluços.
de frango se enfileiravam como dominós, – A sambiquira tá em conta. Mal ou as ausências dos laticínios verdadeiros. – Eu só queria comer coxinha...
prontos para desabar sobre a dignidade do bem é galinha... O terceiro jovem tentou discorrer sobre As duas se abraçaram em tão honesta
consumidor. Coisa de 18 reais. Um valor Carla perguntou se sambiquira seria a tarde em que um pessoal se juntou para desolação que a desgraça se fez bela.
tão alto que deixou Carla Créia surda. a porção final da ave, de onde saem as dar adeus à carne de boi, mas um soluço A elas juntaram-se outros órfãos, e o fluxo
– Moço, onde tem frango? Acho que penas do rabo. Coisa de 5 reais o quilo. cortou sua voz e o impediu de continuar. lacrimal dos desvalidos foi se avolumando
aqui só tem faisão... – perguntou ao O moço que narrava as promoções- Agora chegara o momento de todos e inundando tudo. Uma mosca varejeira
açougueiro com uma voz que vibrava relâmpago afastou o microfone da se desapegarem do frango. Das me- pairou sobre o desamparo abismal. Seu
confiança, embora um pânico subja- boca e confirmou. mórias dos almoços de domingo. Dos zumbido era uma nota de oboé. J

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DE DIOGO BERCITO

“Diogo Bercito escreve sobre a distância como quem


tem ânsia de estar sempre tão, tão perto. A distância
entre dois países. A distância entre dois mundos, o
real e o que paira sobre o real. E a distância entre dois
homens. Este romance é mel e sangue na mesma
medida. Saio dele apaixonado.”
C HICO F ELIT TI

“Bercito já demonstrou vasta compreensão de toda a


complexidade que envolve a imigração sírio-libanesa
para o Brasil no jornalismo. Agora, decidiu usar seu
conhecimento para a ficção, permitindo a invasão do
fantástico em um contraste do religioso com o secular.
Quem ganha somos nós, leitores, com essa estreia
literária singular e inventiva.”
A NTÔNIO X ERXENESKY JÁ NAS LIVRARIAS

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