Tese Deambulação
Tese Deambulação
Tese Deambulação
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA
Niterói
2019
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Niterói
2019
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BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
Essa tese é fruto de um trabalho coletivo. Foram várias as vozes que o compuseram,
tendo sido a minha singularidade o instrumento de transmissão. Meu corpo se misturou a
outros, minhas bordas se refizeram a cada momento, minha voz em tom uníssono ecoou na
multiplicidade de cantos, coros, ladainhas, corridos, rimas, poesias. Iniciar os agradecimentos
torna-se uma tarefa difícil. Por onde começá-los?
Pensei em iniciá-los lembrando-me de meus ancestrais, de meus avós, bisavós, pais e
toda família, mas haveria de ter muita memória para descrevê-los. Então, me atenho a dizer
que sou fruto das marcas afetivas que ressoaram, transcorreram, se mesclaram. Dentre tantos
ancestrais, não apenas aqueles presentes na árvore genealógica, haveria de mencionar o
quanto muitos deles foram importantes para a composição de nossa história, pensamentos,
expressões. Tupi, guarani, Dandara e Zumbi. Haveria de mencionar também Pastinha, Gato
Preto, Waldemar e tantos outros cujas existências fizeram e transmitiram a capoeira.
Não poderia me esquecer de agradecer a Deus, o Deus da imanência, da vida, dos
acontecimentos, da natureza completa e múltipla. Assim, agradeceria à minha vida, a tudo o
que já me ocorreu e também ao que não ocorreu, aos encontros, mas também aos
desencontros, às alegrias e tristezas, aos caminhos e aos desvios.
Como, em poucas páginas, citar tantos nomes, histórias, vidas e acontecimentos
importantes na minha, na sua e na nossa existência? Como descrever as marcas que não se
veem apenas se sente e se expressam?
Agradeço aos mistérios, ao que não se narra, ao que nunca se finda, tampouco se
inicia. Agradeço à mandinga, à ânsia de liberdade, à ginga.
Sou grata à loucura, que me mostrou que a razão não é onisciente, pois há
conhecimento que passa pelo corpo, além da memória, nos afetos indescritíveis e
incapturáveis. Sou grata à arte da loucura, seus devaneios e criações, que mesmo
institucionalizada, me ensinou que furos, brechas e fugas são possíveis.
Agradeço aos desviantes, nômades, deambuladores, todos que se encontram nas
fronteiras, que me animam, me fazendo pensar no porvir, nas mudanças, nas transformações,
na multiplicidade que nunca tem fim.
Sou grata à força, à coragem, à resistência e à vida daqueles que não encabeçam a
reprodução do sistema opressor, mas sim, lutam, combatem e até morrem anunciando um
novo jeito de viver.
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RESUMO
Esse trabalho traz construções teóricas, narrativas e poéticas a partir dos encontros com
moradores de rua e pacientes de um hospital psiquiátrico. Com uma atuação
profissional/psicológica não pautada na prática padrão, nesses encontros foram incluídos
movimentos, gingas, músicas, mandingas, capoeira. Os movimentos presentes nesta
construção vão desde deambulações territoriais, de Salvador ao Rio de Janeiro, percorridas
pela autora, que culminaram nos encontros narrados, nos deslocamentos profissionais,
identitários e teóricos, na criação constante presente na parte prática e escrita que compõem
este trabalho. Com rodopios, esquivas e gingas, os encontros e a escrita foram se tecendo,
abrindo espaço para a coletividade e multiplicidade. Como metodologia, o próprio
movimento; verbo no infinitivo, fazer, criar, recortar, colar, degustar, temperar, gingar, rimar,
mandingar, aproximados dos passos da capoeira e do movimento antropofágico. Ao percorrer
as ruas, a instituição psiquiátrica e a história do Brasil e da capoeira, diversos devires
germinaram, demonstrando que apesar da normatização social e violência, furos,
deslocamentos, mandingas e gingas podem surgir como máquinas de guerra. Esta tese,
temperada com ervas brasileiras capoeirísticas, deu origem a uma criação híbrida, crioula,
miscigenada. Nela foram mastigados os valores, constructos, conceitos e diagnósticos
construídos e estabelecidos como padrão pela elite social, acadêmica, psiquiátrica, dando
origem a um devir-tese que, em um movimento cíclico temporal, se fez e se fará criando um
produto também aberto a ser engolido.
ABSTRACT
This work brings theoretical, narrative and poetic constructions from the encounters with
homeless people and patients in a psychiatric hospital. With a professional/psychological
procedure not guided by standard practice, in these encounters movements, gingas, songs,
mandingas, capoeira were included. The movements present in this construct include
territorial roamings undertaken by the author from Salvador to Rio de Janeiro, which
culminated in professional, identity and theoretical displacements in the narrated encounters,
in the constant creation present in the practical and written parts which compose this work.
Withwhirls, dodgesandgingas, the encounters and the writing wove themselves, making way
for collectivity and multiplicity. As a methodology, the movement itself; infinitive verb, do,
create, cut, paste, taste, season, gingar, rhyme, mandingar, close to the capoeira steps and the
anthropophagic movement. When roaming the streets, the psychiatric institution and the
History of Brazil andofcapoeira, several developments germinated, demonstrating that,
despite social standardization and violence, holes, displacements, mandingas and gingas can
arise as war machines. This dissertation, seasoned with Brazilian herbs related to capoeira,
led to a hybrid, creole, mixed creation. In it the values, constructs, concepts as well as the
constructed and established diagnostics as patterns to the social, academic and psychiatric
elite were chewed, giving origin to a thesis-development which, in a temporal cyclic
movement, made and will make itself by creating a product that is also open to be swallowed.
RÉSUMÉ
Le présent travail apporte des constructions théoriques, narratives et poétiques à partir des
rencontres avec des sans domicile fixe (SDF) et avec des patients d’un hôpital psychiatrique.
Relevant d’une pratique professionnelle qui n’est pas guidée par des pratiques standard, dans
ces rencontres ont été inclus des mouvements, des gingas , des chansons, des mandingas , de
la capoeira. Les mouvements qui sont présents dans cette construction partent de
déambulations territoriales, de Salvador de Bahia à Rio de Janeiro, des chemin parcourus par
l’auteur, qui ont culminé dans des rencontres dont on trouve ici les récits, à travers un
déplacement professionnel, identitaire et théorique, et par la permanente création inscrite dans
les parties pratique et théorique qui composent ce travail.Avec des tourbillons, des gestes qui
esquivent et des gingas, les rencontres et l’écriture se sont tressés, tout en donnant lieu à la
colectivité et à la multiplicité. En tant que méthodologie, le mouvement même ; verbes à
l’infinitif : faire, créer, couper, coller, déguster, assaisonner, gingar, rymer, mandingar, qu’on
rapproche aux pas de capoeira et du mouvement anthropophage. En flânant dans les rues,
dans l’institution psychiatrique et l’histoire du Brésil et de la capoeira, de différents devenirs
ont germiné, ce qui témoigne qu’en dépit de la standardisation sociale et la violence, on peut
trouver des déplacements, des mandingas et gingas de capoeira qui surgissent en tant que
machines de guerre. Cette thèse, assaisonnée d’herbes brésiliennes de capoeira, donne lieu à
une création hybride, créole, métissée. On y a digéré les valeurs, les concepts et diagnostics
construits et établis en tant que norme par l’élite sociale, académique, psychiatrique, en
originant un devenir-thèse, qui, dans un mouvement cyclique temporel se fait et se refait
concrétisant ainsi un produit que l’on peut aussi avaler.
SUMÁRIO
5 NA SENZALA DA MEDICAÇÃO............................................................................111
7 É POSSÍVEL CONCLUIR?........................................................................................180
8 REFERÊNCIAS..........................................................................................................190
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1-INTRODUÇÃO:
DEVIR-ZEBRA
Contam em Uganda, país localizado na região leste da África, que há muito tempo não
existiam zebras, somente burros. Os burros trabalhavam pesado, dia e noite, não tinham
descanso, não podiam brincar nem sequer espreguiçar. Os burros sentiam-se desvalorizados,
pois apesar de tanto esforço e trabalho nunca eram agradecidos. Descontentes com esta
situação, um grupo de burros resolveu procurar um velho sábio para ajudá-los. Este, então,
ouviu a história, se compadeceu com o sofrimento deles e teve uma grande ideia. Iria pintá-los
para que não mais fossem reconhecidos como burros e, assim, não mais seriam obrigados a
trabalhar. O sábio os pintou de branco e preto e passou a chamá-los de zebras. As zebras,
então, puderam se refrescar nas sombras e espreguiçar. Os demais burros, tendo tomado
conhecimento desta artimanha, foram correndo até o sábio solicitar as pinturas. E assim
aconteceu, um por um os burros se transformavam em zebras. O número de burros aumentava
a cada dia à porta da casa do sábio e assomavam as filas. Os que estavam à espera ficaram
impacientes, começaram a esbravejar, dando coices pelo ar, batendo no chão, até que a tinta
do velho sábio se derramou1.
*****
[...] costumava ser aterrorizado em sonho por uma enorme onça. Ela seguia minhas
pegadas na floresta e se acercava cada vez mais. Eu corria o mais rápido possível,
mas não conseguia despistá-la. Acabava tropeçando na vegetação emaranhada e caía
diante dela, que então pulava sobre mim. Mas bem no instante em que ela ia me
comer eu acordava, chorando. Às vezes, eu tentava fugir dela trepando numa árvore.
Mas ela vinha atrás de mim, subindo pelo tronco com suas garras afiadas.
Amedrontado, eu me escondia nos galhos mais altos. Não tinha para onde escapar. A
única coisa que eu podia fazer para me salvar era me jogar do alto da árvore na qual
eu tinha me refugiado. Desesperado, eu agitava os braços no vazio, como asas, e, de
repente, conseguia voar! Planava em círculos, bem alto acima da floresta, como um
urubu. No final, me via de pé, numa outra floresta, noutra margem, e a onça temida
não podia mais me alcançar (KOPENAWA, 2015, p. 91).
Os xapiris2 estão por toda a parte, na floresta, nos rios, nos ventos, entre os
yanomamis. Também estão nos sonhos, em forma de onças, de antas, de jabutis e até mesmo
1
História contada em um canal infantil ZigZag, “As Riscas das zebras”, podendo ser acessado em:
https://www.youtube.com/watch?v=MaBYLCpmZMk
2
Para os yanomamis, são os ancestrais místicos, os espíritos, ou deuses.
13
de homens. O céu e a floresta, os indígenas e os espíritos fazem parte de uma única natureza.
As imagens dos xapiris são as de todos os habitantes da floresta.
Conta-nos Davi Kopenawa, xamã yanomami, que há muito tempo, quando a floresta
ainda era jovem, nossos antepassados, que eram humanos com nomes de animais, se
transformaram em caça. Humanos-cutia viraram cutias, humanos-veado se metamorfosearam
em veados, humanos-queixada em queixadas, e assim por diante. Nesse momento, as peles
desses ancestrais se tornaram animais de caça e suas imagens espíritos xapiris. Por isso,
xapiris consideram os animais como seus antepassados, assim como os próprios humanos.
[...] Nós também, por mais que comamos carne de caça, bem sabemos que se trata
de ancestrais humanos tornados animais. São habitantes da floresta, tanto quanto
nós. Tomaram a aparência de animais de caça e vivem na floresta porque foi lá que
se tornaram outros. Contudo, no primeiro tempo, eram tão humanos quanto nós
(KOPENAWA, 2015, p.117).
*****
*****
3
História fictícia baseada na descrição do n’golo, sendo esta feita por Assunção e Cobra Mansa (2008).
14
[...] Ficou parado olhando Pirulito que rezava concentrado. No rosto do que rezava
ia uma exaltação, qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem Pernas pensou
que fosse alegria ou felicidade. Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma
expressão que ele não sabia definir. E pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que
talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar, em se voltar para o ceu de que
tanto falava o padre José Pedro quando vinha ve-los. O que ele queria era felicidade,
era alegria, era fugir de toda aquela miseria, de toda aquela desgraça que os cercava
e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia tambem
o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava
isso no ceu, nos quadros de santo, nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora
das Sete Dores como um namorado romântico dos bairros chics da cidade traz para
aquela a quem ama com intenção de casamento. Mas o Sem Pernas não compreendia
que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que puzesse seu
rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de
tudo. Que o livrasse tambem daquela angustia, daquela vontade de chorar que o
tomava nas noites de inverno. Não queria o que tinha Pirulito: o rosto cheio de uma
exaltação. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguem que com muito amor
o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas
mezes ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sosinho nas
ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas,
surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera uma familia. Vivera na casa de um
padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que poude
compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele
quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se
esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bebedos o fizeram correr com
sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha
comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro
dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal
perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajuda-lo. E a borracha
zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A principio chorou muito,
depois, não sabe como, as lagrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se
no chão. Sangrava e ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele
homem de colete cinzento que fumava um charuto. Depois encontrou os Capitães da
Areia (foi o Professor quem o trouxe, haviam feito camaradagem num bando de
jardim) e ficou com eles (JORGE AMADO, 1937, p. 49-50).
*****
tem “th” porque vim de Marthe. Porque Marthe está na therra, em Jerusalém. Lá tem camelo,
tem areia. Vivi em Marthe, mas também na matha, por isso também sou macaco”.4
*****
4
Diálogos no hospital psiquiátrico.
5
Refiro-me aos padrões necessários para construção de uma tese e participação de uma pós-graduação. Como
mencionado nos agradecimentos, a Universidade proporcionou-me encontros potentes. O ambiente propiciado
pelo Instituto de Psicologia permite devires, escritas em primeira pessoa e construções poéticas e múltiplas.
16
policial, científica e institucional. No entanto, como nos conta a origem da capoeira, todo esse
aparato sedentário-institucional é abalado pelos desvios, pela ginga, pela resistência, pelo
coletivo, pela arte. A capoeira ainda se oferece nesse trabalho como uma alternativa à prática
profissional. Se ela mesma, por sua história, nos mostra os eleitos a objetos passivos da
ciência e das instituições e surge como luta e subversão a esta condição, como manter-me
como psicóloga que reproduz a passividade, a submissão e o enquadramento institucional?
Ela, então, me impulsionou a criar, a movimentar, a romper. Com a capoeira foi possível
abordar as mazelas sociais, como a escravidão, a exclusão, a institucionalização da loucura, o
racismo e a miséria da vida nas ruas, tocando em suas potências, observando a transformação
do individualismo em coletividade e solidariedade, acessando a loucura pela arte, rima e
ginga.
Ainda com o intuito de estremecer as estruturas estáticas, sejam elas as rotinas, os
padrões, a burocracia, o funcionamento institucional, a identidade do ser ou até mesmo a
linearidade temporal prevista num trabalho acadêmico é que me amparo na atualização dos
conceitos devir e na metodologia antropofágica. Digo atualização no sentido de utilização
desses conceitos seja na elaboração da escrita, na provocação de furos em minha borda
identitária, ou na atuação prática junto a loucura e aos moradores de rua. Para a compreensão
da metodologia antropofágica, foram incluídos estudos sobre a metafísica yanomami
completando a brasilidade desta tese. Seguem, então, alguns trajetos feitos pelos pensamentos,
que percorreram ideias como multiplicidade, fronteiras, dessubjetivação, território,
crioulização.
Cabe considerar alguns nós analisados neste escopo. Normalmente, espera-se que em
um trabalho acadêmico haja a definição clara e objetiva de um tema, mas proponho
movimentos nesta perspectiva, seja o movimento de rotação, de translação, ou mesmo a
ginga, a esquiva, meia-lua-de frente ou de costas. Ora o tema enaltecido passa pela loucura,
ora pela capoeira, ora pela vida nas ruas, ora pela viagem deambulatória. O que ocorre é a
tentativa de demonstrar um punhado da vida e de transmitir os cheiros e sabores desta
experiência antropofágica, que não tem início, tampouco fim, não há formas, nem sujeito. Um
ensaio na dança de definir, escolher, territorializar em palavras as passagens, as nuances, a
vida6.
A vida está por toda a parte e se atualiza nos acontecimentos. Ela é ritmo que se
compõe em tempos e entretempos, movimentos e paradas, fluxos e cortes. É potência absoluta
6
Com Nietzsche e Spinoza, o conhecimento a partir da vida será abordado no capítulo 2.
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que não contém falta, que abrange a extensão, como também a intensão. É multiplicidade que
está no universo, no indivíduo, nos acontecimentos, no invisível. A vida é uma infinidade de
relações, composições, partículas. Não há forma ou figura que a defina, nem método ou
projeto que a impulsione. Ela simplesmente acontece em movimentos, lentidões, dimensões,
se expande em multiplicidades, fluxos e intensões. Os traços, as retas, as curvas que compõem
as passagens, em movimentos podem se desfazer, reconstruir, mudar de direção. Dessa
maneira, nesse ensaio de tematizar a vida seria necessário encenar movimentos, teatralizar a
multiplicidade. Seria viver os embalos dos acontecimentos e relatá-los com o mínimo de
deâmbulos possíveis, reconhecendo que a vida é uma teia de fluxos contínuos que se originam
e produzem tantos outros, que ela não tem início nem fim.
Além disso, a vida não pode ser compreendida como um acontecimento individual,
pois ela ocorre nos inter-agenciamentos, nas relações de movimento e repouso, no poder de
afetar e ser afetado. O meu, o seu, o nosso nome próprio nada mais são do que movimentos
que nos compõem e afetos que nos preenchem. Somos multiplicidade, somos matilha, somos
bando. O “eu” é apenas um limiar, uma porta aberta na borda entre as multiplicidades. Nesse
balanço é que compreendo que apesar do uso da primeira pessoa no singular, no plural ou
sujeito indeterminado, presto-me como instrumento de tantas outras vozes, corpos e sentidos,
degustando e descrevendo os inter-agencimentos da vida, das passagens percorridas, dos
encontros, das intenções, dos sons tribais e coletivos que ressoam, transbordam, vazam. Esta
experimentação acadêmica, margeando os movimentos da vida, traz dela alguns elementos,
multiplicidade, mudanças de direção, atravessamentos e um constante devir nos três tempos,
passado, presente e futuro.
Os acontecimentos e agenciamentos manifestados em ritmos, sons e em tudo o que
mobiliza as estruturas sensoriais foram agrupados em páginas, palavras, ideias e teorias,
dando origem a uma territorialização. Dentre tantos agenciamentos, alguns transbordaram e se
deslocaram para este trabalho. Fato é que surge, em um território previamente definido, a
Psicologia, mas como toda criação de território este trabalho também teve como ovo
originário o indeterminado, o descodificado. Território também se caracteriza por seu
distanciamento de outros territórios, marcado pelo “entre”, uma singularidade na
multiplicidade, portanto, em sua formação, há aberturas, possibilidades de modificações,
limiares que se expandem, recuam, abrem e fecham. Na experimentação rítmica da ginga da
capoeira, da marcação repetitiva da loucura institucionalizada ou da deambulação entre ruas e
calçadas, o ritmo tomou cor com os sabores da filosofia, poesia e literatura. Por vezes, era o
território definido do trabalho acadêmico, do doutorado e sua duração, da prescrição para
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atuação psicológica que tomavam força e impulsionavam. Outras vezes era o movimento
descompassado da arte e da vida. Este é o resultado da expressividade do movimento contínuo
de contração e expansão, de paradas e velocidades, territorialização e desterritorialização,
entre nômades e sedentários. Neste experimento, são considerados nômades aqueles que
vivem nas ruas e a manifestação livre da loucura. Sedentários, aqueles que reproduzem
valores, padrões, definições e seguem o enquadramento institucional, estando presos em
cárceres contemporâneos.
Entre nós (substantivo e pronome pessoal), nômades e sedentários, o território
apresentado nessas linhas se compõe por idas e vindas, travessias, afetos, risos, tristezas,
mudanças, olhares, sensações, falas, rimas. Recortes, bricolagens, costuras, nós, pontos
fechados, abertos, fissuras, retalhos, entretempos. Parte múltipla, múltipla parte. Ponto cheio,
cheios de pontos.
Ao agenciar as palavras em território podemos seguir a linha da busca por um centro
de verdade, pela resposta a uma pergunta e se pautar na reprodução de produções existentes.
Ou, então, explodir o centro da verdade e expandir a pluralidade e multiplicidade. Pelos
autores escolhidos para a composição desta tese, fui impulsionada a quebrar o verídico,
deslocar a verdade de seu centro, assim, não nos projetando (palavras, escrita, prática,
atuação) a buscar algo escondido ou uma interpretação, mas dialogando com o vazio, como
numa criação artística, que permite que as cores, tons, toques e formas surjam
espontaneamente. É fato que para discorrer sobre temas sociais faz-se necessário trazer
questões históricas e culturais, para tanto, me utilizo de artifícios que me deslocam da
perspectiva padrão. Tudo isso é um exercício, portanto, devido aos meus próprios
movimentos de contração, expansão e aos nós amarrados por sedentarismos e nomadismos,
este trabalho pode conter traços rizomáticos, com criações e performances, como também
apresentar segmentos arborescentes, de reprodução e significação.
A escrita também surgiu como ato espontâneo, numa permissão do desabrochar e
brotar das palavras, frases, conexões, voltas, curvas e linhas. Escrever é verbo no infinitivo 7,
que não apresenta tempo passado, presente ou futuro, que se faz em ato. Ao escrever essas
páginas, o passado das histórias e encontros, sejam eles nas ruas de Salvador ou Rio de
Janeiro ou no hospital psiquiátrico8, se transformam em narrativas presentes no ato da escrita,
7
Deleuze; Guattari (1997).
Sobre o tempo, ver capítulo metodologia.
8
Este será denominado famigerado ao longo do trabalho.
19
podendo ser futuras quando da leitura dessas laudas. Um embolamento temporal de um ato
que esteve, está e estará sempre aberto à criação.
Ser escritor é ser feiticeiro, ser atravessado por estranhos devires, por isso é que
surgem nesse trabalho devir-besouro, devir-tatu, devir-zebra e tantos outros, num processo
ético, estético e político.
Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor
em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um
campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o
rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a
partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim
como as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e
exigidas pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo
já dado (campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna
as marcas no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este
rigor é o de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir
(ROLNIK, 1993, p. 6 e7).
A história, inicialmente contada, sobre a origem das zebras é uma dentre tantas outras
que narram seu nascimento. Há, portanto, uma infinidade de formas e perspectivas para contar
sobre um tema. A história escolhida, as palavras elencadas e suas amarrações representam
uma seleção entre tantas possibilidades e caminhos. O conto apresentado sobre as zebras foi
trazido por mostrara artimanha, a sagacidade e um recorte com transmutação de direção que
germina outros caminhos. O que escapa, camufla, se esconde e atravessa fazendo brotar um
novo acontecimento, é a linha de fuga que faz surgir as zebras. Zebra guerreira que se
transforma por uma artimanha de sobrevivência. Zebra-morador de rua, que se desloca pelos
becos, mangueia9, perseverando em sua vida. Zebra-loucura que cria personagens, que se
expressa na arte, na rima, na ginga, sobrevivendo apesar das mordaças sociais a ela
direcionadas. Zebra-negro-escravo-índio que fazem da resistência a luta pela vida e liberdade.
Para os filósofos Deleuze e Guattari (1997), todo animal, tomado em sua matilha, tem
seu anômalo, que representa a ponta da desterritorialização, compreendido na borda. O
anômalo representa o porvir da transformação em zebra. A borda na multiplicidade envolve a
linha que pode fugir, transformar-se, mudar de direção e se conectar a outras, podendo, dessa
maneira, mudar de natureza. Com esse movimento a multiplicidade continua múltipla e não
apenas centrada em sua identidade e características. O anômalo é o representante da borda, da
mudança de direção, da multiplicidade que não se define por um centro. É o que corre, que
escapa, demonstrando que a multiplicidade nunca se finda, não caracterizada pelo que se é,
mas também pelo que pode vir a ser, um porvir. Nesse sentido, trago a loucura e a vida nas
9
Uso de artifícios para se obter o que deseja.
20
ruas como fronteiriças, ocupantes das bordas, que mobilizam as estruturas sociais e
institucionais sedentárias, representando a multiplicidade e indicando possibilidades de
mudanças pela criação de artimanhas de sobrevivência, pelos personagens que se pintam em
cada passagem e por serem excluídas do roteiro quadriculado e sedentário estabelecido
socialmente.
As linhas sedentárias e nômades se cruzam, se atravessam, se contagiam, se
reconfiguram. Nós. Enquanto ocorrem as mobilizações, as mudanças de direção, a fuga e o
escape das linhas, ocorre também o movimento de organização, de tapar os furos e a tentativa
de bloquear as zebras em transformação. Nos nós entre as linhas sedentárias e nômades
existem aprisionamentos, violência, exclusão, normatização, institucionalização. O plano de
organização não para de trabalhar, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou
interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir
formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, as linhas de fuga não param de se extrair do
plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as
formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de
microagenciamentos. As sementes enterradas brotam, criam rizomas, contagiam; é a loucura
que se manifesta em arte e colore as paredes cinzentas; é a vida nas ruas, relegadas e
mortificadas pela sociedade em forma de miséria e fome, que sobrevive, cria laços de
solidariedade e ocupa os centros da cidade; é a capoeira em maltas, em quilombos, que faz da
luta a vida; é índio que resiste e se manifesta.
A história dos yanomamis e xapiris vem para esboçar a multiplicidade de perspectivas
e a criação dos devires, zebra, tatu, besouro, louco, entre outros tangenciados neste trabalho.
Ela também servirá para possibilitar a compreensão da metodologia antropofágica, na qual,
com temperos brasileiros, o outro é saboreado para a construção da singularidade, do ser
coletivo que se compõe pelos acontecimentos, encontros e afetos. Sob a perspectiva dos
yanomamis, a natureza é completa e inclui os homens e suas produções. Diferentemente da
perspectiva padrão ocidental, antropocêntrica, em que o ser se estabelece como estrutura
identitária e em que o eu está no centro da compreensão da vida, os yanomamis entendem a
existência como imanente. Ao invés de centralizar as ideias e pensamentos sob o olhar do eu,
abrem-se para a multiplicidade de perspectivas, bem como para a multiplicidade de imagens
dos homens. Se os animais foram humanos, por que se mostram com imagens de animais?
Como os humanos são vistos pelos animais? Em rituais e festa, enfeitam-se com diversos
elementos da natureza, penas, tintas, sementes, aproximando a imagem de seus corpos aos
animais. Ou seria dos próprios humanos ancestrais? Para os yanomamis, os seres se
21
10
A metafísica canibal será explanada no capítulo 2.
22
11
Orientadora, professores do curso e aqueles que contribuíram com esta construção a partir da qualificação.
24
12
A capoeira será abordada nos capítulos 2 e 3.
25
resistir e lutar. É criação que atravessa o sistema molar instituído pelo homem branco e senhor
dos escravos, reconfigurando-o. É crioulização. É transformação zebra, é devir-animal. Passos
de zebra em ato, em coices, que incorpora a poética do mufico, o ritmo das palmas e dos
cantos, a potência do movimento coletivo, recompondo-os em guerra, artimanha, mandinga.
aproxima com o que ocorre nos dias de hoje. Sendo incluídos como temas deste trabalho os
encontros com moradores de rua, seja nas ruas de Salvador ou do Rio de Janeiro, serão
apresentadas algumas manobras sociais que deram origem à miséria e à não inclusão de
alguns no mercado de trabalho formal e nos espaços telhados. Como objetos dessas manobras,
encontramos moradores de rua, capoeiras e loucos, anômalos da matilha humana social. Mas,
como anunciado desde o início desta introdução, apesar do constante trabalho do plano de
organização do sistema molar, sempre surgirão Capitães de Areia, maltas, quilombos,
capoeiras e arte.
Como representantes do sistema molar, serão trazidas discussões sobre a ciência, a
igreja, o Estado, o capitalismo, o manicômio, diferentes cárceres que se mantêm
contemporâneos. São cárceres que aprisionam a subjetividade, que restringem as
possibilidades antropofágicas, que dificultam o processo de criação do inconsciente. O que
ocorre pela edificação de paredes e grades, pela concepção de um objeto transcendente e
arranjos sociais que nos fazem crer na assepsia, no que é bom e ruim e na culpa. Dessa
maneira, o desejo, representante da natureza plena e da essência do ser, passa a ser
compreendido como algo que falha, que falta, incompleto13.
O desejo é brincante, deambulante, nômade. É fluxo, intensidade, vibração, ginga. Não
tem coisas nem pessoas como objeto. Está por toda parte, manifestando-se inclusive na
distribuição da justiça, nas negociações, na forma como se faz circular o dinheiro e até mesmo
em atos fascistas. A escolha de sua manifestação remete ao conjunto de fluxos da vida, na
sociedade em que a pessoa está mergulhada, no campo biológico, histórico e social. Dessa
maneira, o desejo tanto pode se manifestar em ações que ampliem a potência coletiva do
homem, quanto pode se manifestar em ações que diminuam ou rebaixem sua potência. Na era
do capital, o fluxo livre do desejo é capturado e conduzido a determinados caminhos. E
consideremos que o capital define-se por uma crueldade sem igual (DELEUZE; GUATTARI,
2011).
O inverso também é verdadeiro: no próprio capitalismo fluxos se libertam, se
descodificam, dando origem à arte e às manifestações coletivas. Os sujeitos, então,
assujeitados aos ordenamentos do capital, tendo tido seus desejos capturados, podem se tornar
grupos sujeitos, ativos, que se movimentam libertando seus desejos.
A captura do desejo pelo capital e os ordenamentos sociais contemporâneos são
apresentados para que possamos compreender a vida nas ruas, a loucura institucionalizada e o
13
Tema abordado no capítulo 4.
27
racismo atual como incluídos em um contexto determinado. Neste trabalho pincelo sobre a
marginalização de índios, negros, escravos, pobres, provocada pela elite social, do período
colonial até os dias atuais. É desta elite que provém a predominância de homens brancos
ocupantes de cargos públicos, acadêmicos, religiosos que atuam na captura do desejo e seu
direcionamento.
Em constante movimento, a sociedade também se atualiza frequentemente, da
colonização14, ao que hoje conhecemos, a era do capital. Entre as produções do capital,
podemos incluir os excessos, os descartáveis, os que são expulsos da lógica de consumo
padrão, os miseráveis, os despossuídos, os pobres, os que vivem nas ruas. Surge um novo
pobre, segundo Bursztyn (2003); um racismo camuflado pela “democracia racial”
(NASCIMENTO, 1978); uma modificação na prática psiquiátrica, mas que mantém seus
torniquetes e a manutenção da mortificação da cultura indígena, justificada pelo avanço
capitalista.
Para os criadores da esquizoanálise, o grande vilão do capitalismo seria a
esquizofrenia. Não aquela esmagada pelo “torniquete psiquiátrico”, moldada ao ser
classificada pelos diagnósticos (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 362). Referem-se à
esquizofrenia que vive as fronteiras, afasta-se do social enquadrado, que faz buracos no fluxo
do capital, com cargas moleculares que explodem em força revolucionária, que expressam
multiplicidade. “Pois quem é o esquizo senão aquele que já não pode suportar “tudo isso”, o
dinheiro, a bolsa, as forças da morte, como dizia Nijinsky – valores, morais, pátrias, religiões
e certezas privadas?” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 452).
A esquizofrenia é o contrário, a diferença, o desvio e a morte do capitalismo. Os
fluxos monetários são perfeitamente esquizofrênicos, como podemos ver na linguagem de um
general, de um industrial, de um ministro, de um banqueiro, no entanto, essa linguagem se
presta a uma axiomática uniformizadora, que se coloca a serviço do capitalismo, portanto
repele todo e qualquer sentido próximo à esquizofrenia. Tal linguagem se estabelece pela
lógica criada pelo capital. Há nesse sistema a oposição entre aqueles que servem a máquina
social e outros que as interrompem e as lançam pelos ares. Nesse contexto, a coragem da
guerra está em fugir dos falsos refúgios, dos valores, das religiões, das morais, das certezas
privadas. As máquinas revolucionárias, as máquinas de guerra, fazem explodir as engrenagens
da máquina social (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
14
Será evidente neste trabalho que a história contada pela elite do Brasil se origina deste período devido ao
descarte e silenciamento, provocados pela elite mencionada, aos povos originários do território nacional.
28
*****
Fuga, camuflagem, quilombo, capoeira, arte, criação, devir, coices, poesias, dança,
contágio, devir, multiplicidade, negros, índios, loucura, esquizos, nômades, deambulação,
moradores de rua, modos de ser fronteiriços, tudo isso é o que inspira este trabalho. O que a
boca come com temperos, cores e ritmos brasileiros. Com tendências antropofágicas,
experimentando daqui e dali os sabores da vida. Viajando por território nacional, visitando
nossa ancestralidade, plainando sobre contos da nossa história, navegando pelas margens
entre infames, aterrissando nas encruzilhadas de ruas e avenidas, pernoitando em manicômios,
peregrinando em bando, cruzando caminhos com artistas, poetas, feiticeiros.
Corpo xamânico, instrumento de vozes, visões e incorporações. Nesse processo
criativo empresto-me, transformo-me e transbordo-me em afetos e intensidades. Caminho
com a matilha, na zona entre multiplicidades. Sigo de mãos dadas ao deus da caravana, da
potência coletiva, da circularidade, imanente. Desfaço o pacto, que até mim chegou através de
gerações, com o deus da caravela, do colonizador, transcendente. Lançada nas bordas, nas
fronteiras relegadas, campo da criação, da fuga, da camuflagem. Abandono do que é certo,
mas também do que é errado. Abandono de princípios, mas também de fins. Seguindo os
15
Termo utilizado por Escorel (2003).
29
passos da zebra, ritmados por movimentos e paradas, toques e cantos. O que começa no entre,
sem início ou término. Um pequeno território construído, com a codificação de um caos,
tornado legível, agenciado por palavras, citações, ideias. Território expressivo. Vida
imanente, plural, múltipla e impessoal, neste trabalho inscrita, codificada, localizada. Corpo
que segue atravessado, que dá passagens, que afeta e é afetado, que se multiplica e se
transforma. Devir-capoeira, devir-louco, devir-tatu, devir-planta.16
Vivendo em tempos de guerra, contra a política do Estado, do capital, contra a
alienação e predeterminação dos diagnósticos e da moralidade que nos rodeia, acionemos
nossa potência coletiva, nossa máquina de guerra, nossa coletividade tribal, animal, canibal.
Em tempos de tristeza e medo, vamos disparar nossa alegria, nossas rimas, nossas poesias.
Em tempos de individualismo, egoísmo, vamos desenvolver nossa coletividade e
solidariedade. Em tempos de neofascismo, racismo e xenofobia, vamos resgatar nossas armas
da multiplicidade, da diversidade, da criação. Em tempos de artificialismo e de
desmatamento, vamos nos conectar aos nossos ancestrais, aos homens animais, às moléculas-
planta, ao homem-natureza. Este é um manifesto da negaça, da mandinga, da capoeira, da
loucura, dos infames, de todos aqueles que resistem para a vida com seus corpos e suas almas.
16
A função psicóloga foi transportada pelos devires capoeira, louco, tatu e planta. Isso ocorria quando da
realização das atividades na horta do hospital psiquiátrico.
30
2- METODOLOGIA:
MUNDOS QUE A BOCA COME
“Na volta que o mundo deu na volta que o mundo dá, quem viaja pelo
mundo tem história pra contar”17
17
Cantiga entoada nas rodas de capoeira.
18
Trecheiros são moradores de ruas que deambulam por várias cidades.
31
cada sujeito, a força do próprio objeto a ser conhecido, as palavras escolhidas para sua
descrição, tudo isso e muito mais faz com que cada narrativa seja única para seus
personagens, para o leitor e aquele que a produz. Acrescenta-se a esse arcabouço o tempo, já
que sabemos que não nos banhamos no mesmo rio por duas vezes19. Logo, cada história
possui variações e pluralidades de sentidos. “Uma coisa tem tantos sentidos quantas forem as
forças capazes de se apoderarem dela” (DELEUZE, 1976, p.4).
Com base nessas reflexões é que intermedio essa construção-tese, compondo sua
escrita com viagens deambulatórias, nós que me laçam e me lançam em movimentos e
paradas. Assim, rendo-me à proposta de aprender pela vida, nas passagens, nas fronteiras,
caminhando por lugares, entre pessoas por mim desconhecidas. Fazendo dessa viagem o
trabalho que nessas páginas se apresentam.
Viagem que desassossega, em que o território existencial se encontra aberto para
múltiplas passagens, nas quais os caminhos são criados, transformados. Viagem com um
mapa aberto, desmontável, voltado para a experimentação. Mapa que contribui para a conexão
de campos afetivos, para o desbloqueio da subjetivação adestrada, desintensificada e
anestesiada. O mapa dessa viagem pode ser entendido como uma questão de performance:
19
Menção ao pensador Heráclito.
20
Música cantada em rodas de capoeira.
33
Junto àqueles que vivem nas bordas sociais, cuja representatividade na construção de
valores apreciados pela maioria social encontra-se alheia, busquei alojar-me, eu também, nas
fronteiras, tentando como na mandinga da capoeira estar entre os turistas sem ser um deles,
estar entre moradores de ruas, mas sem compreender na carne suas alegrias e sofrimentos.
Como num ato de estrangeirar, construído na própria viagem, pelos (des)encontros de valores
e das realidades vividas, no estado de fronteira, no qual se é capaz de capturar os
descompassos, apreender o que desacomoda, “desfiar os dispositivos que modulam os
espaços e tempos chamados nossos” (MIZOGUCHI, 2013, p.47).
Foi também com o verbo estrangeirar, embalada pelas ondas da vida, que da Bahia
cheguei ao Rio de Janeiro, entre aqueles ditos “loucos” e “normais”, me encontrando num
lugar que passei a chamar de famigerado21. Amado por alguns, odiado por outros. Nele
também estive como estrangeira, nas bordas, nas fronteiras. Não sabia ao certo qual seria
minha função, pesquisadora, psicóloga ou assistente da direção. Não conhecia aquele
universo, tampouco os jogos de poder existentes entre médicos, psicólogos, juristas,
acadêmicos, entre “loucos” e “normais”. Fui sendo embriagada pelo famigerado, sem ao
menos tomar um gole de vinho ou qualquer anestésico. Meras coincidências? Encontrava no
famigerado quem antes encontrava nas ruas cariocas, surpreendia nas ruas quem antes estivera
institucionalizado. Além disso, uma semelhança: a cor da pele.
Pela ginga da capoeira, como aquela que dança, desvia, ataca, combate, realizei minha
atuação no famigerado. Fui contratada para atuar como assistente de direção, a fim de realizar
atividades como o levantamento dos encaminhamentos institucionais ao famigerado ou
acompanhar a direção em reuniões e palestras, no entanto, como o passar do tempo, fui me
abdicando de tais tarefas e encontrando brechas, bordas nas quais pude me inserir. Foi como
estrangeira no famigerado que passei a duvidar de algumas certezas e verdades, da
consciência de meus pensamentos e afetos. De repente, dúvidas me atravessaram, o que era
certo pareceu fosco, as palavras tornaram-se cores e as certezas, bananas. Na horta surgiam
mudas de lasanha22; os corredores tinham cheiro, de manjericão, cozidos, banhos de cheiros;
meus pés começaram a rodopiar e minhas pernas a trançar. Foi assim que fui tomada pela
poética que aqui se faz.
Vivia tudo com minha suposta razão
Travestida de psicóloga
21
Trata-se de um hospital psiquiátrico. Propositalmente, tal palavra é utilizada no contexto por seu sentido
dúbio.
22
Mudas de lasanha foi a sugestão de um paciente do hospital para o projeto da horta, do qual fazia parte como
organizadora. A palavra paciente, por vezes, poderá ser substituída por interno.
34
Narro uma dança, luta ou jogo, nas ruas e no famigerado, com vários passos, vários
dançarinos, vários pensamentos, embalados por músicas dissonantes e harmonias complexas.
Nessa dança diversos encontros ocorrem pelo acaso da vida, dos movimentos deambulatórios.
Harmonias complexas porque somos múltiplos, por isso, eu mesma, pela multiplicidade que
me compõe, desloco-me a cada momento, transformando-me e refazendo-me, como parte
integrante desse processo. Somos coletivos de partes vivas, que a todo momento se compõem,
decompõem e recompõem infinitamente segundo leis complexas, mas somos capazes apenas
de recolher os efeitos dessas composições e decomposições da natureza (DELEUZE, 2002).
Como apresentado por Deleuze (1974), os corpos não são individualidades, são
multiplicidades. Somos efeitos dos acontecimentos. Somos como verbos, que se atualizam em
cada ato, deslocamo-nos, transformamo-nos. Somos, ao mesmo tempo, singulares e coletivos,
pois nos conectamos e nos construímos ligados num só e mesmo acontecimento. Há uma
conexão de todos os acontecimentos que ocorrem num presente infinito, uma unidade na
extensão do presente cósmico.
Todos os corpos, nessa rede harmônica complexa, estão conectados pelos
acontecimentos e ainda por efeitos incorporais, de superfície, contágios de moléculas,
energias, ou qualquer outra denominação atribuída ao que não tem forma, nem se define.
Todos os corpos são causas uns com relação aos outros. O que surge dessa relação é o próprio
acaso.
O amor fati descrito por Nietzsche nada mais é do que a entrega ao acaso, à vida, aos
acontecimentos que nos ligam no tempo infinito, afirmando a vida com todos os elementos
que a compõem. Para tanto, é necessária a compreensão de que os acontecimentos apenas se
efetuam em nós, sendo eles impessoais e pré-individuais. Tudo isso representa a
desmontagem do livre-arbítrio, da certeza individual e da identidade pessoal. O amor fati é a
paixão à vida, ao acaso, à necessidade.
23
Decidi destacar em itálico, ao longo do texto, certos trechos que fazem parte de um caderno de bordo, com
relatos, poesias e divagações da viagem deambulatória que realizei.
35
Estou inserida nesse processo complexo do acaso, não em individualidade, mas como
“eu” coletivo, como instrumento de histórias e vozes que passam por mim e somam-se às
minhas. Instrumento das narrativas, que não são o relato de um acontecimento, mas o próprio
acontecimento ainda porvir. Narrativa que se presentifica no momento dos encontros, desta
escrita e de sua leitura. Narrativa na qual a individualidade cede lugar à multiplicidade, aos
agenciamentos coletivos. “[...] A narrativa que já perdida daquilo que se chama autor, faz com
que, afinal, o estrangeiro seja estrangeiro àquilo mesmo que lhe faz narrador: a vida”
(MIZOGUCHI, 2013, p.56).
Como transmitido por Ferreira, a narrativa traz uma suspensão do tempo, do nexo
causal temporal hegemônico, promovendo sua interrupção. Para o autor, “narrar é abrigar o
inacabamento do tempo histórico” (FERREIRA, 2011, p. 130). Segundo Hampâté Bâ (2010),
de acordo com a tradição oral africana, fala é força, gera movimento e ritmo, podendo até
mesmo suscitar forças estáticas. É também pela narrativa que podem ser revelados
agenciamentos institucionais e históricos, tornando-se atos políticos, de escolhas e
posicionamentos.
Ferreira (2011) alerta para a existência das narrativas hegemônicas, dominantes, de
discursos padronizados, de modismos inférteis. Compreendendo o sentido histórico dessas
narrativas é possível interromper com as versões dominantes, compondo um novo presente,
que questiona a objetividade da história e empreende metodologicamente e politicamente
pelos desvios, desconfiando-se das versões oficiais da história, das narrativas dominantes e
das evidências do presente.
Trago narrativas menores, não por serem pequenas, mas por advirem daqueles que o
discurso e ideologia dominante tentam silenciar. Aqueles que ocupam as bordas, as fronteiras,
que por vezes são alvos do poder da polícia, da medicina, da justiça. Empresto-me a eles
como porta-voz. Para tanto, devo constantemente, questionar meus pensamentos e as forças
que me movem.
*****
padrão, em que o acontecimento se cristaliza num sentido identificatório. O tempo aberto aos
acontecimentos, ao devir, às transformações, aos agenciamentos.
Pensemos tanto o tempo Aion quanto Cronos em suas aberturas ao devir, ao
acontecimento atualizado no presente. Ambos são complementares, enquanto este é o tempo
do presente do eterno agora, da profundidade dos corpos em sua composição, Aion é o tempo
dos paradoxos, das multiplicidades. Em Cronos, só o presente existe no tempo, sendo o
passado e futuro duas dimensões relativas ao presente. É no presente que a ação dos corpos é
medida, enquanto o futuro e o passado são o que resta de paixão em um corpo. Cronos
apresenta um movimento circular, que engloba o presente e recomeça em um novo período
cósmico, em um presente mais vasto. É um tempo profundo, inseparável dos corpos e das
matérias (DELEUZE, 197424).
Enquanto Cronos exprime a ação dos corpos e criação das qualidades corporais, Aion
é o lugar dos acontecimentos incorporais. Este é um acontecimento puro, um presente vazio.
Ele é percorrido pela linha do instante, que não para de se deslocar. É passado e futuro
simultaneamente, é devir puro. É o tempo dos múltiplos acontecimentos, mesmo que
paradoxais. É um instante sem espessura nem extensão, que subdivide cada presente em
passado e futuro, um em relação ao outro; é o instante que perverte o presente em passado e
futuro. Aion é o movimento que se faz na superfície, apenas efeitos dos corpos, da relação dos
corpos, sem nunca preenchê-los. O presente do Aion é o presente do ator, do dançarino, da
operação pura e não da incorporação.
Cronos não é somente o tempo de paradas e repousos, mas também o tempo da
diferenciação, pois há nele um devir-louco que impede as identificações, que desestabiliza.
Quando um corpo efetua o acontecimento ele também se diferencia. É a superfície de Cronos
que Aion habita, fazendo aparecer o puro acontecimento. O presente que se regula em um
sistema individual é movimentado pela linha Aion que traz as singularidades pré-individuais.
A linguagem pertence ao tempo Aion, pois é ele que traça uma fronteira entre o estado
das coisas e as proposições. É nessa fronteira entre o estado das coisas e as proposições que a
linguagem se estabelece, pois ela não pertence aos corpos, apenas os significam. A linguagem
é possível pela atualização constante da relação entre o estado de coisas e as proposições,
ocorrida devido a linha reta do tempo Aion. Sendo assim, a linguagem como pertencente a
Aion, pode extrair do presente a singularidade.
24
As reflexões seguintes seguem a mesma referência.
37
profunda das coisas, pautada na regularidade do ser, e outra que se pauta nos efeitos, no devir,
nos estados de coisas.
Tanto Nietzsche quanto Spinoza também apresentam uma crítica à epistemologia que
se estabelece pela busca de uma verdade, sustentada pela ideia da identidade pessoal regular.
Para eles, essa epistemologia se organiza a partir de um pensamento finalista em que os
corpos estão em relação contingencial de causa e efeito, apontando para um resultado
específico diante de determinada ação. Para tanto, tem como primazia o ser do conhecimento
enquanto absoluto em sua regularidade e individualidade. Contrariamente, os dois filósofos
abarcam ideias acerca do acaso, da inexistência de uma essência individual e do ser enquanto
existência, dessa maneira, tem-se como consequência a compreensão de que tudo o que
acontece, acontece necessariamente. Assim, jogam por terra o livre-arbítrio e a neutralidade
científica.
Nietzsche em Assim falou Zaratustra (2011) aponta que a vida, o acaso, o devir, são
como um jogo de dados, lembrando que a vida é o meio para o conhecimento, então, o pensar
também é um lance de dados. Tendo a terra como tabuleiro, os dados lançados representam o
acaso e a combinação dos dados representa a necessidade. Ele transmite a ideia de que a
necessidade deve ser afirmada em contraponto ao livre-arbítrio e à concepção de finalidade.
A afirmação do acaso, da necessidade, acompanha a afirmação do devir,
compreendemo-lo como os dados que caem. Outras combinações poderiam ser dispostas, mas
foi aquela que caiu e por isso deve ser afirmada. Nesse jogo, há então dois tempos, a
afirmação dos dados caídos, do devir, e a afirmação de que o ser se compõe pelo eterno devir.
Não é o retorno de algo que é, não é o retorno do mesmo, mas o próprio retorno. Nesse
sentido, o mau jogador é aquele que busca realizar a combinação que ele deseja, ao invés de
afirmar o acaso. Ele se apoia na crença do livre-arbítrio e do ser em sua regularidade, e se
utiliza da probabilidade e da finalidade na tentativa de alcançar o resultado esperado.
Empregar a metáfora do lance de dados ao devir e ao conhecimento é afirmar o acaso
e sua complexa rede de singularidades que se conectam nos acontecimentos, sendo assim, não
há resultado a ser atingido ou esperado, ao invés disso, há criação. “Só há criação
propriamente dita à medida que, longe de separarmos a vida do que ela pode, servimo-nos do
excedente para inventar novas formas de vida” (DELEUZE,1976, p.154).
Na tentativa de manter a finalidade, com o resultado esperado, a ciência que se pauta
nesta crença, participa da concepção de um ideal ascético, pois nega e busca eliminar do saber
o que ocorre nas fronteiras, o devir e tudo o que escapa ao ser e sua consciência.
39
Nietzsche também aponta para o fato de que a ciência finalista tem como princípio
uma força reativa. Ele diferencia dois tipos de forças existentes, ativa e reativa, sendo a
primeira relacionada à criação e afirmação do devir e a segunda relaciona à reprodução e
reação. Para ele, existem em nós ambas as forças, que estão sempre em transformação, ora
tornando-se ativas, ora reativas. Elas fazem parte de uma vontade de poder interna. Quando
uma força se sobrepõe a outra, nos tornamos mais ativos ou reativos, podendo dizer, mais
criativos ou ressentidos. Para ele, mais ativos, alegres e criativos seremos se formos tomados
por forças ativas.
Os filósofos que me acompanham nesta experimentação entendem que o
conhecimento não resulta de uma atitude neutra, objetiva, desinteressada. Há impulsos e
afetos diferentes e conflitantes que direcionam nosso conhecimento.
No apêndice da Ética I, Spinoza apresenta que não há na mente nenhuma vontade e
intelecto absolutos ou livres. Para ele, os homens, apesar de assim acreditarem, não são livres,
pois agem em função de um fim, daquilo que os apetece e são ignorantes quanto a esta
volição. A vontade não é livre, isso porque ignoramos as causas do que leva a nos apetecer
algo ou nos afastarmos de algo (E II, 48). Também é afirmado, por esta ótica spinozista, que
estamos conectados num único plano e nele somos atravessados por diversas forças, afetos,
acontecimentos que constituem nossa singularidade, escamoteando a ideia de um ser em sua
integridade individual, que se supunha capaz de se dirigir ao mundo com seu livre-arbítrio.
O filósofo ainda acrescenta: nós chamamos uma coisa de boa porque tendemos para
ela, e de má quando nos causa desconforto e dela fugimos (E I, apêndice), o que significa que
julgamos determinadas coisas movidos por nossos afetos. Para Spinoza, o que ocorre em
nossa mente são imaginações, efeitos de generalizações e assimilações a partir de afetos já
sentidos.
Historicamente, desde o período moderno, a ciência da busca pela verdade, do livre-
arbítrio, da neutralidade, se presta como fundamento das instituições e do funcionamento
social. O discurso científico foi dirigido pelos valores dos detentores de poder e assim
contribui com a manutenção das relações hierárquicas, das relações de poder, de determinados
valores e da dualidade que estabelece o bem, o mal, o normal, o louco, o certo, o errado, a
vítima, o vilão, o inocente e o culpado. No que concerne à saúde mental, temos uma longa
história de fundamentação de formas de tratamento constituídas por este saber. Num discurso
elaborado, pautado em conhecimentos empíricos e na busca por uma verdade absoluta, vimos
surgir hospícios que serviam à exclusão, tratamentos a base de choque e medicamentosos.
Vemos a justiça e sua forma de julgamento, pautada na ideia de livre-arbítrio, aprisionar,
40
“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido”
(E I, 15). Ele denomina Deus tudo o que ocorre na existência, que de sua natureza seguem
infinitas coisas, de infinitas maneiras.
“Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas” (E I, 18). Tudo o que
existe, existe em Deus, nesse único plano de existência. Não existe nenhuma substância,
nenhuma coisa além de Deus. Ou seja, tudo o que ocorre, ocorre necessariamente, sendo o
acontecimento a própria substância infinita, a existência.
O corpo sem órgãos pode ser lido como o plano infinito de existência. Traduzido por
Deleuze e Guattari (1996) como um enorme objeto indiferenciado, sobre o qual existimos.
Uma matéria intensa não dividida, não finita, não estratificada. Como um ovo pleno, uma
energia vital, contemporâneo à organização de um organismo, de um indivíduo,
contemporâneo, pois ocorre num mesmo tempo. É nesse fluido amorfo e indiferenciado que
os fluxos são ligados, recortados, conectados, onde os órgãos se organizam, onde a linguagem
se estabelece, onde o eu é estratificado. Nesse sentido, o que se opõe ao corpo sem órgãos é o
organismo articulado, organizado. É no corpo sem órgãos, improdutivo e estéril que o
indivíduo é engendrado. São as máquinas desejantes que fazem de nós organismo, mas o
corpo sofre em seu processo de produção ao ser organizado.
É possível a criação de um corpo sem órgãos, que nada mais é do que abrir o corpo às
conexões intensivas, abrir passagens no corpo estratificado, desenhado, articulado, fazendo
vazar alguns fluxos deste corpo sem órgãos. É também nesse plano, em que os organismos se
encontram e se agenciam, e nele será composta a singularidade. Esta, como analisada
anteriormente, desfaz os contornos do organismo, transborda no coletivo o individual e desfaz
a certeza do eu regular, estratificado (DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Ao corpo sem órgãos, aberto às figuras pré-individuais, às singularidades, que devora
as figuras identitárias do eu, podemos aproximar a ideia da antropofagia.
Consideremos o Movimento Antropofágico, ocorrido no Brasil no final da década de
20. Inspirado no ritual dos índios tupis, no qual o inimigo eleito era devorado, o Movimento
Antropofágico desloca a ideia do ritual canibalístico para a cultura nacional. A antropofagia
cultural tem como princípio a criação de um território de existência no país, tendo como
referências as mais variadas etnias aqui presentes. Propõe o rompimento com a austeridade da
cultura europeia e a criação de um modo de existir baseado no desejo que é nômade. Como
proposta, a criação de um território cultural nômade composto pela multiplicidade étnica,
construída a partir da devoração simbólica do outro (ROLNIK, 1998).
42
Por isso, para ele, as palavras e os pensamentos se distanciam deles, “homens brancos”.
Somente sonham consigo mesmo e se perdem em uma existência apressada, pautada no
tempo que não pode ser desperdiçado, que tem como território o barulho das cidades, que
impede a conexão das pessoas e dos pensamentos.
[...] passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos
pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império, vindos nas caravelas,
com a cabeça cada vez mais “cheia de esquecimento”, imersa em um tenebroso
vazio existencial (Prefácio-Castro25).
25
Prefácio do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (KOPENAWA, 2015).
44
Para os ameríndios, a relação com outras espécies nas suas mais variadas formas corporais,
ocorre num ritual xamânico (CASTRO, 2016).
O xamã desempenha a função de “relator” real, passando de um ponto de vista a outro,
transformando-se em animal para transformar o animal em humano reciprocamente. Ele
encarna, relaciona e narra as diferentes perspectivas que constituem o universo, apreendido
pelos mais diferentes corpos (CASTRO, 2016, p.173).
Além dessa relação canibalística entre presas e predadores, diferenciados por seus
corpos, o autor se utiliza da análise antropofágica para construir essa metafísica. Ele analisa a
cultura araweté, na qual identifica um canibalismo póstumo, em que os deuses devoram as
almas dos homens quando estes ascendem ao céu, para que se transformem também em
deuses.
Analisa também a cultura tupinambá, em que o canibalismo é praticado entre as
diferentes tribos. Neste, o que se devora é o inimigo, não havendo nesse banquete uma
explicação simplista, já que ele faz parte de um ritual. Não é simplesmente uma vingança do
inimigo. O inimigo a ser devorado era muito bem tratado, havendo com ele uma relação de
afinidade, pois lhe ofereciam, inclusive, as irmãs do capturador para satisfação sexual do
capturado. O que se devorava era a condição do inimigo, os signos do outro para se fazer. O
que ocorre neste ritual é uma transformação, a criação de uma zona de indiscernibilidade entre
matadores e vítimas, devoradores e devorado.
nos transbordam, nos lançam, nos projetam, nos transformam. Ele não surge por uma relação
de filiação, mas sim por aliança. Filiação se vincula ao padrão, ao parentesco, ao Estado, à
identidade individual, ao aprisionamento do desejo. Ao contrário, o devir ocorre por aliança,
por contágio, em que o desejo dá passagem (DELEUZE; GUATTARI, 1997).
Dessa forma, para Castro, a cultura ameríndia da Amazônia, do ponto de vista
etnográfico, rompe com a imagem da filiação. Pela antropofagia, ela traz a noção de aliança, a
potência da afinidade, o canibalismo com seu devir-inimigo, devir-outro.
O autor ainda considera que na metafísica ocidental, o que ocorre é uma interpretação
do sujeito estudado como um objeto insuficientemente analisado. Ao contrário, na metafísica
canibal o que ele propõe, comparativamente ao que fazem os xamãs, é uma personificação
para saber, para conhecer. Uma experimentação. Brincar com o conceito de ciência a partir da
imaginação. Ao invés de buscar saber sobre nós mesmos, ou tentar explicar e racionalizar o
mundo do outro, a tarefa é multiplicar o nosso mundo.
Assim, não há um sentido a ser encontrado, ou algo a ser descoberto. Há um sentido a
ser produzido e algo a ser criado (DELEUZE, 1974).
*****
26
A história da capoeira será detalhadamente descrita em capítulo posterior.
27
Utilizo a palavra no plural para marcar a imensa diversidade cultural dos africanos que ao Brasil foram
trazidos. Assim como utilizo a palavras indígenas para marcar a diversidade étnica e cultural dos ameríndios.
46
Para Melício (2016), o percurso pela capoeiragem não possui um começo ou final
definido. Há diversos estudos, que, como em qualquer construção histórica, partem de
múltiplos pontos de interesses. Histórias orais, transmitidas por mestres da capoeira, se
contrastam às historiografias de pesquisadores acadêmicos, assim como a eleição e a direção
das escolhas dos acontecimentos narrados ou descritos nos livros didáticos. Além disso,
salienta que a capoeira é uma cultura viva, em constante transformação.
Entrar no universo simbólico da capoeira é entrar no universo da história brasileira. O
capoeira foi se compondo, se refazendo, se transformando nos diversos contextos históricos
sociais. Passou por figuras como malandro, criminoso, vadio à mestre e herói nacional. Fora
preso, recebeu chibatadas, mas também condecorações honrosas (MELICIO, 2016).
Escrever sobre a capoeira é entender sobre a possibilidade inventiva do humano,
mesmo diante das adversidades como a escravidão, a exclusão, a violência. A capoeira
representa a metamorfose, a possibilidade de sair na esquiva e dar uma volta e meia vendo o
mundo de cabeça para baixo.
Como dizia mestre Pastinha, a capoeira “é mandinga de escravo em ânsia de
liberdade. Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível ao mais sábio
capoeirista”. É heterogênese brasileira, aberta ao devir e às passagens da potência do desejo,
da caravana, em sua singularidade e coletividade. Seu princípio não tem método assim como
seu fim é inconcebível por estar em constante movimento. É nômade, por vezes é capturada
pelas normativas vigentes, outras vezes delas escapa e novamente se reconfigura, num eterno
movimento de desterritorialização e reterritorialização. Mas o que nela se exalta é a ânsia de
liberdade, ou seja, o desejo que se atualiza em acontecimento, em ginga, em dança, em luta.
Para muitos continua sendo luta, brincadeira, política, dança, ritual, religião. É
múltipla, nas suas mais diversificadas modalidades e considerada única para cada um que dela
participa. Existem múltiplas formas de fazer, sentir e entender a capoeira, e mesmo que
encontremos tentativas de definições e modelos, eles não passam de suposições.
A experiência da capoeiragem é a prática de uma reinvenção de si. Para Melicio
(2016), “vivenciar esse universo significa vivenciar outros modos de ser que, por muitas
vezes, concorrem com reproduções representacionais duras que só a negaça é capaz de
saracotear” (MELICIO, 2016, p.143).
Utilizando as palavras de mestre Pastinha, a capoeira é tudo o que a boca come, a
capoeiragem pode ser compreendida como uma experiência de degustação de realidades
cozidas “com os ingredientes dos antigos mestres, com a malícia da ginga, com o bambear
47
28
Trapaceiro, fanfarrão, malandro.
48
ações como transgressões ao sistema vigente e seus valores. Certa vez, provocou uma grande
algazarra em um posto policial, ao buscar um berimbau apreendido. Insultou policiais e,
armando uma grande confusão, convidou à participação do enfrentamento seus amigos do
exército, o que gerou, no final, sua expulsão. Sua passagem pelo exército exemplifica um
tempo histórico em que negros e pobres da cidade eram convidados a assumir cargos militares
para não mais ocuparem a cidade como malandros desocupados (PIRES, 2001; PIRES, 2007;
SILVA, 2010).
Também contam que certa vez, por provocar um policial, outros tantos seguiram em
busca de Besouro, nele atiraram, mas malandramente se fez de morto e assim escapou da
cilada. Outra vez, fugiu de oito policiais, negaceando e zombando destes, se jogou em uma
cachoeira e nunca mais apareceu. Sobre sua morte há muitos mistérios e histórias. O que é
compartilhado entre muitos capoeiristas é que morreu com um golpe de faca de tucum. Tendo
o corpo fechado e sendo filho de Ogum, não poderia morrer por armas de metal. A mando de
um coronel, Besouro foi entregar uma carta em outro engenho, sem saber ler ou escrever,
entregou a carta que continha a ordenação de sua morte (PIRES, 2001; PIRES, 2007; SILVA,
2010).
*****
29
Esta palavra pode significar ideia ou expressividade. Foi incluída em meu vocabulário após ouvi-la de um
mestre de capoeira.
49
3- EM BRASA ARDENTE:
BRASIL
O estranho é que mesmo pensando ter chegado às Índias, logo denominaram essa
terra de Monte Pascoal. Ao perceber que não era um monte, chamaram-na Terra de
Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, por último, Brasil. Mais estranho ainda é que os
povos aqui encontrados como, por exemplo, os povos de língua tupi que chamavam
essa terra de Pindorama (Terra das Palmeiras), continuam sendo chamados de índios
(SANTOS, 2015, p.27).
30
Termo utilizado por Lilia Lobo (2015).
51
Santos não se encontra sozinho nessa análise, Wandeloir Rego (1968) também
identifica essa passagem na história brasileira, acrescentando que pela cobertura da igreja, os
portugueses, “repletos de benevolência”, colonizariam pela fé cristã, alegando para tanto que
transformariam os povos ditos bárbaros, índios e negros, em adeptos da fé de Cristo(REGO,
1968, p. 8).
Abdias do Nascimento (1978) em sua compreensão sobre o genocídio do povo negro
no Brasil, também traz indicativos do poder da Igreja Católica nesse processo de colonização
e escravidão. A igreja, integrante da metafísica ocidental, branca e europeia, se dirigiu aos
povos colonizados como seres selvagens e infiéis, e em nome de deus, participou das grandes
barbáries da história brasileira, que ainda hoje se fazem presentes nesse território.
Em verdade, o papel exercido pela igreja católica tem sido aquele de principal
ideólogo e pedra angular para a instituição da escravidão em toda sua brutalidade. O
papel ativo desempenhado pelos missionários cristãos na colonização da África não
se satisfez com a conversão dos "infiéis", mas prosseguiu, efetivo e entusiástico,
dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do desumano tráfico negreiro
(NASCIMENTO, 1978, p. 52).
Fogo!...Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!...Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!...Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!...Queimaram Pau de Colher...
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades
que os vão cansar se continuarem queimando
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
53
*****
31
SANTOS, 2015, p.45.
54
aqueles que servirão, os ricos e os pobres, os que devem viver e os que podem ser
exterminados.
O ponto de partida dessa história: a “descoberta” do Brasil, cuja exploração das terras
coincide com o simultâneo aparecimento da raça negra fertilizando o solo brasileiro com suas
lágrimas, suor, sangue. “Por volta de 1530, os africanos, trazidos sob correntes, já aparecem
exercendo seu papel de "força de trabalho"; em 1535 o comércio escravo para o Brasil estava
regularmente constituído e organizado, e rapidamente aumentaria em proporções enormes”
(NASCIMENTO, 1978, p.48).
Marcados a ferro, sujeitos à fome, à sede, ao calor, à falta de ventilação, chegavam à
costa brasileira milhares de negros vindos da África. Nos navios negreiros, para garantir a
maior lucratividade, os negros eram confinados e submetidos a todo tipo de privação,
chegando, muitos deles, sem vida ao Brasil. Como mercadorias, eram exibidos, analisados e
apalpados pelos compradores. Para dificultar o contato entre os negros e para evitar o
encontro entre africanos de mesma origem, privilegiava-se a venda e a compra de etnias
diferentes. Todo esse processo de comércio de peças humanas para trabalho escravo era
legalizado pela legislação nacional e internacional, que protegia, com o direito à propriedade
privada, os donos de escravos. Sob o domínio do poder incondicional de seu senhor, eram
submetidos aos mais violentos castigos corporais, chibatadas, estupros, castrações,
amputações, fraturas de dentes, desfigurações da face, entre tantos outros.
Foi com a construção desse discurso que os negros passaram de sujeitos cativos, máquinas da
engrenagem econômica do país a delinquentes e objetos da ciência. Um fardo social inútil e
perigoso.
[...] Versão republicana ainda pior para o “inferno dos negros” da colônia. Dessa
vez, à semelhança de Dante, o inferno sem esperança na porta de entrada: o negro se
torna, mais do que um objeto de estudo, um objeto privilegiado de domesticação
pela ciência (LOBO, 2015, p.193).
corrigido pelos castigos corporais, mas sim pela aquisição de hábitos, um eterno devedor,
pagando com seu trabalho pela segurança, liberdade, direitos.
Nesse momento, os dirigentes passam a utilizar como ferramenta de opressão e
controle desses corpos, caracterizados como ociosos, perigosos e amorais, os meios policiais e
o asilo institucional. Surgem técnicas de disciplina, prevenção e recuperação para o trabalho.
Os anormais, indisciplinados, vadios, inúteis para o trabalho passam a ocupar as ruas, sendo
submetidos às ações policiais ou incluídos em estabelecimentos com mistas funções de
albergue, prisão e hospital. É dessa maneira, que tupis, degredados, escravos africanos,
deficientes e anormais são condenados ao poder policial, à ciência enquanto objetos ou à
ocupação de instituições religiosas de caridade.
Assim sendo, nasce no século XX o novo “tribunal” contra a degeneração da raça,
respaldado pelo poder médico eugenista, “valendo-se de uma verdade decálogo patriótica de
salvação nacional”. Esse “tribunal” vai aos poucos penetrando na vida urbana, nas famílias,
nas escolas, espalhando-se por toda a sociedade (LOBO, 2015, p.73).
Com seus corpos inúteis ao trabalho, após anos de tortura e inacessibilidade às novas
condições de vida, que incluíam o país no mundo industrial, letrado e científico europeu,
restava aos negros a negaça32 para sobreviver.
*****
32
Este termo foi incluído na introdução e no capítulo anterior para me referir às artimanhas de sobrevivência dos
negros, Besouro, moradores de rua e loucos.
58
tradições africanas ancestrais, com invenções culturais crioulas. Tendo sido germinada em
continente americano, tem diversos pais espalhados pela África (SOARES, 1998).
A capoeira é considerada uma cultura escrava de rua, pois é do período da formação
das cidades no Brasil que temos os primeiros registros sobre os capoeiras, sendo ela realizada
nas ruas e nas praças. Como descrito anteriormente, negros escravos de ganho, alforriados ou
descartados por seus senhores se aglomeravam nas cidades e sobreviviam das mais variadas
formas. Um grande número de negros que não eram incluídos nos avanços industriais e nas
condições da polis que se formava, se reuniam em coletivos de sobrevivência, como, por
exemplo, a capoeira.
Assim, pode-se considerar que ela surgiu como uma resistência contra os valores
excludentes e ante as condições de vida precárias. Era uma prática cultural “que municiava os
escravos e iguais de fortes instrumentos para lutar diretamente com o agente da opressão,
fosse um senhor brutal ou um guarda truculento” (SOARES, 1998, p. 476). Com traços de
brincadeira, ludicidade e religiosidade, foi estratégia de luta contra o poder dos brancos e seus
aparatos de poder.
Com seus trapos e farrapos, navalhas e berimbaus, os negros assombravam a elite e os
dirigentes da época, tão voltados aos modos de vida europeus. Aos negros das cidades, a
construção da representação de vadios, vagabundos, desordeiros, representação legitimada
pelos discursos normativos. E assim, a capoeira, juntamente a tudo que se associava aos
negros, se insere no código penal de 1890.
e seu sinistro tronco; e o dos brancos poderosos, expresso nas entrelinhas de seus
manuscritos, cartas, ofícios, relatos, e que poucas vezes era confesso (SOARES,
1998, p.477).
Juntos nesse balaio, tomados como objetos da ciência, do poder policial, institucional,
com suas passagens por cadeias, abrigos, como flagelos das cidades, como viventes das ruas
da polis que surge desordenadamente, encontramos anormais, capoeiristas, infratores,
infames.
*****
Desde o período colonial, pode-se afirmar que o Brasil nascia com as separações:
nobres, brancos, pobres, índios, crioulos. Vários mecanismos sociais propiciaram a
sedimentação de uma pequena casta no poder, que se arrasta por gerações. Apesar das
mudanças que vêm ocorrendo no país, de ocupação de espaços de poder por grupos
minoritários, o que ainda se observa é a continuidade dessas separações com a manutenção
daqueles que detêm o poder.
Da colônia à escravidão, a economia circulava na mão da nobreza e dos senhores de
engenho. Aqueles que não tivessem acesso a ela permaneciam em situações de miséria e
pobreza. No início tudo era importado e pouco ou quase nada restava para os pobres. Nas
ações e discursos dos dirigentes não havia a preocupação com a desigualdade social,
contrariamente, a pobreza era vista como um perigo social, a ser coibido, controlado e
marginalizado.
Para alguns da classe dominante, movidos pelo espírito de solidariedade cristã, o pobre
ou deficiente era aquele que, pela condição em que se encontrava, estava submetido à
expiação dos pecados, portanto deveria ser cuidado por ações caridosas. Assim são
62
33
Neste trecho, utilizo a referência de Lobo (2015) por se tratar de um contexto nacional. No capítulo adiante,
será utilizado Foucault para respaldar discussão semelhante.
63
Nos anos 20 e 30, seguindo as relações de poder da época, nos discursos médico,
científico e jurídico encontramos indícios da moralidade e adestramento dos comportamentos
evidentemente dirigidos às classes populares, negros e mestiços. Discursos, teorias e estudos,
embasados na biologia, mas com cunhos políticos de exclusão e até mesmo de extermínio
desses sujeitos.
Em 1822 nosso país obtivera uma independência apenas formal, pois nossa cultura,
mentalidade e economia permaneciam dependentes e colonizadas. A Europa era ponto de
referência obrigatório, principalmente no que se referia às produções de pensamento, padrões
e julgamento estético, chegando ao Brasil até mesmo os conceitos racistas do ideal ariano
(NASCIMENTO, 1978; SCHWARCZ, 1993).
Como exemplo, podemos considerar a importação dos estudos da frenologia e da
antropometria, que pautada na análise do cérebro humano, acreditava em caracteres físicos
como indicativos de tendência criminosa e na composição da personalidade do sujeito,
interpretando a capacidade humana a partir deles. Esse paradigma de conhecimento, pautado
no biologicismo e no conceito de raça, compunha o cenário político de discriminação e
exclusão (SCHWARCZ, 1993).
Os discursos científicos selecionados pelos estudiosos brasileiros, não eram da
filosofia de Marx ou de Hegel, mas sim uma vertente evolucionista, positivista, darwinista,
um germanismo de segunda ordem (CRUZ COSTA apud SCHWARCZ, 1993). Nessa
vertente, a análise social é pautada numa evolução que se desenvolve em estados sucessivos,
únicos e obrigatórios, pela qual os povos considerados selvagens eram menos evoluídos do
que aqueles da civilização europeia.
Segundo Schwarcz (1993), esse conhecimento produzido acerca das raças e culturas
implicava num ideal político, trazendo como consequências diagnósticos, estigmas e até
mesmo a possível eliminação das raças consideradas inferiores, que se converteu na eugenia,
cuja meta era o controle racial dos povos.
64
Que a cada phase da evolução social de um povo, e ainda melhor, a cada phase da
evolução da humanidade, se comparam raças anthropologicamente distinctas,
corresponde uma criminalidade propria, em harmonia e de acordo com o gráo do seu
desenvolvimento intellectual e moral (1894, p. 60).
Que, por seu desenvolvimento intellectual e por sua civilisação, os negros africanos
sejam inferiores á massa das populações européas, ninguem evidentemente pode pôr
em duvida. Ninguem pode duvidar tão pouco de que anatomicamente o negro esteja
menos adiantado em evolução do que o branco. Os negros africanos são o que são:
nem melhores nem piores que os brancos; simplesmente elles pertencem a uma outra
phase do desenvolvimento intellectual e moral. Essas populações infantis não
puderam chegar a uma mentalidade muito adiantada e para esta lentidão de evolução
tem havido causas complexas. Entre essas causas, umas podem ser procuradas na
organisação mesma das raças negriticas, as outras podem selo na natureza do habitat
onde essas raças estão confinadas (1894, p.120).
Alguns anos se passaram após as décadas de 20 e 30, mas muitas práticas, discursos e
produções de conhecimento, mantêm e reproduzem o funcionamento social dessa época
remota. A mesma seletividade policial, jurídica, a desigualdade social evidente na cor da pele,
o saber/poder voltado às classes privilegiadas, etc. Na psiquiatria os diagnósticos continuam
se pautando no biologicismo, com a sonegação dos contingentes sociais e culturais e na
tentativa de promover um controle social. Formatações e normatizações que utilizam outras
roupagens, mas, talvez, cujo propósito político e social permanece o mesmo. Permanecemos
com a velha fórmula lombrosiana e racista e as mesmas práticas de violência, subjugação,
expropriação e etnocídio (LOBO, 2015; SANTOS, 2015).
Um racismo eficazmente institucionalizado e difuso se encontra no tecido social,
psicológico, econômico, político e cultural do Brasil. Nos órgãos de poder das classes
dominantes brancas estão as leis, o capital, a psiquiatria, a polícia e vários outros dispositivos
de controle social e cultural, assim como os meios de informação e o sistema educacional, que
invadem a subjetividade e cotidiano dos negros em território nacional e repetem o seu
genocídio:
Se os negros vivem nas favelas porque não possuem meios para alugar ou comprar
residência nas áreas habitáveis, por sua vez a falta de dinheiro resulta da
discriminação no emprego. Se a falta de emprego é por causa de carência de preparo
técnico e de instrução adequada, a falta desta aptidão se deve à ausência de recurso
financeiro. Nesta teia o afro-brasileiro se vê tolhido de todos os lados, prisioneiro de
um círculo vicioso de discriminação - no emprego, na escola- e trancadas as
oportunidades que permitiriam a ele melhorar suas condições de vida, sua moradia
inclusive. Alegações de que esta estratificação é "não-racial" ou "puramente social e
econômica" são slogans que se repetem e racionalizações basicamente racistas: pois
a raça determina a posição social e econômica na sociedade brasileira
(NASCIMENTO, 1978, p. 85).
34
Termo destacado em itálico por ser expressão em latim.
68
caridade que permitisse a expressividade negra em nosso cenário. No entanto, pela história do
negro no Brasil, identifica-se a violência brutal e seu genocídio, camuflados pela ciência, pela
ordem social e pela religiosidade. O racismo e a exclusão travestidos de caridade religiosa,
conversão dos fiéis e cuidados, mantendo-se assim a crença na inferioridade do africano e
seus descendentes. Conclui que não é pelas concessões da classe dominante que a vitalidade
cultural africana se expande pelo território brasileiro, mas sim pela resistência e luta.
*****
No famigerado, nas ruas, semelhança na cor da pele negra e parda. A elucidação dessa
constatação se torna possível ao analisar a história da sociedade brasileira e o funcionamento
de suas instituições. São notórias a seletividade da justiça, da polícia, da produção de
conhecimento e teorias voltadas para a ampliação dos cuidados com a saúde da elite, a
35
Poesia de meu companheiro e parceiro de capoeiragem, Leonardo Torres Mourão.
69
precarização do ensino público brasileiro, entre tantas outras evidências que aqui poderiam ser
mencionadas para demonstrar a existência do racismo, presente em nossa sociedade. O
racismo autorizado pela ciência da metafísica ocidental, o racismo institucional.
No livro O Papalagui (SCHEURMANN, 1998),o chefe da tribo tuiavii faz um apelo
ao seu povo para romper com os povos esclarecidos da Europa. Para ele, na cultura europeia
há um afastamento do homem de si mesmo com a dissociação entre corpo e mente, ocorrendo
a supervalorização das ideias, da cabeça e da instrução, com a desvalorização do corpo, da
alegria, do natural. Há um fardo do pensamento que fadiga o corpo e que nos distancia de
nossa natura.
Como analisado por Santos, o colonizador desterritorializado, atemorizado pelo seu
Deus, reterritorializa-se em um território sintético obtido pela invasão e pela
descaracterização do outro, de sua cultura e existência. O colonizador espraiou-se pelo mundo
afora com “o intuito de invadir os territórios dos povos pagãos politeístas e descaracterizá-los
através dos processos de manufaturamento, para a satisfação das suas artificialidades”
(SANTOS, 2015, p.96).
Assim, estamos presos ao tempo, à lógica de trabalho estabelecida, aos conhecimentos
elaborados, às ideias, à cabeça, às instituições cujo funcionamento nós mesmos inventamos.
Há um constante combate entre sentido e espírito. Combate que travamos quando seguimos as
receitas médicas e os modos de viver, de existir. Estamos amarrados em uma assepsia médica
que prediz como se alimentar, quantas horas dormir, como se movimentar, como se cuidar.
Um asceticismo dirigido pela cultura branca, pelo corpo branco, pela regularização do corpo e
sua submissão ao pensamento/consciência.
Como contraponto a tais imposições e formatações, o decolonialismo, rompimento
com as ideias pré-estabelecidas, produção de conhecimento contra hegemônico e restituição
da fala das minorias silenciadas. Como afirma Santos (2015), a guerra da colonização é uma
guerra territorial, territorialidades culturais e subjetivas, diante da qual os contra-
colonizadores tem se reinventado, se readaptado.
Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras não são somente este espaço onde
as diferenças são reinventadas, são também loci enunciativos de onde são
formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências
dos sujeitos subalternos. O que está implícito nessa afirmação é uma conexão entre o
lugar e o pensamento (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 19).
Nesse sentido, a capoeira, sua prática e história, também se insere numa vertente
decolonial. A voz de tantos negros, pardos, mestiços e africanos é entoada nos cânticos da
capoeira. Neles, a história de um povo marginalizado e excluído se torna central, como sua
70
Traço nessa história o que há de comum entre a vida nas ruas, a capoeira e a loucura.
Analisando o percurso feito no capítulo anterior, destacando o processo de colonização e
posteriormente a formação das cidades no país, fica evidente a linha convergente que capturo
em minhas andanças deambulatórias. Localizo os estados fronteiriços daqueles que eram
rotulados, estigmatizados e interrompidos no processo de ocupações territoriais, científicas e
de poder, selecionados como objetos da ciência, das ações policiais e políticas. Como já
referido, era o temor da elite branca frente à massa de negros pobres, maltrapilhos, vadios e
capoeiras que impulsionava as ações de controle, de repressão, policiamento e
institucionalização.
Apesar da observação de alguns traços comuns na história, utilizo aqui uma concepção
da sociedade como um processo em constante movimento, com rupturas e atravessamentos,
como a própria origem da capoeira e os movimentos de contra-colonização nos indicam. Se
ao queimarem Palmares surge Canudos, se ao queimarem a escrita mantém-se a oralidade é
porque são encontradas brechas e criadas fissuras.
A sociedade e seus processos não ocorrem necessariamente por dualismos,
contradições e oposições, mas sim por diferentes atravessamentos transversais. Diante do
ordenamento estabelecido pelos dirigentes, pela codificação social normativa dos costumes e
da moral, algo escapa, vaza e foge. Esses são os movimentos constantes do campo social, com
fugas, descodificações, desterritorializações frente ao estabelecido, codificado, territorializado
(DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Isso não quer dizer que as contradições e dualismos não existem. Como analisado, há
contrastes, elite versus pobre, branco versus negro, médicos versus pacientes. Há também o
que é projetado como normativa e estabelecido como padrão. Mas se temos acontecimento,
verbo, devir, Besouro, maltas, é porque em cada ato algo se movimenta e modifica a
identidade do ser, do saber, do codificado, do territorializado. Na história brasileira não há
como passar a largo das contradições, como também não há como não identificar os
movimentos que resistem e existem enquanto verbo de luta.
Pela abordagem da micropolítica, entre os fluxos e linhas que atravessam o
acontecimento social encontramos conexões e conjunções. A primeira se dá quando os fluxos
que rompem o que é codificado se somam, fazendo precipitar a linha de fuga, a decodificação,
a desterritorialização. A conjunção, por outro lado, se caracteriza como um ponto de
acumulação que passa a obstruir as linhas de fuga e opera uma reterritorialização. É um
movimento constante presente no cenário social. De um fluxo desterritorializado pode se ter
uma reterritorizaliação, que pode ser rompida e se transformar em um novo movimento de
73
desterritorialização, e assim por diante. Pensemos esses processos como um mapa, as linhas
se cruzam, se conectam, se encontram, mudam a direção, se transformam, podendo ser
encontradas linhas flexíveis, linhas duras e linhas de fuga. No roteiro social, encontramos o
aparelho de Estado, que sustenta os personagens e o status previamente estabelecidos; como
também encontramos o que rompe, o que fura, que faz fronteira, atravessa (DELEUZE;
GUATTARI, 1996).
Dessa maneira, podemos compreender a capoeira, assim como outros acontecimentos,
como uma cultura viva, que se movimenta, se modifica, é atravessada pelas linhas duras e
flexíveis, que irrompe em linha de fuga, desterritorializa, reterritorializa. O cenário modifica-
se constantemente. Na contemporaneidade não mais encontramos maltas, mas sim grupos de
capoeira em academias, em escolas, praticada nas universidades, nos bairros da zona sul36. A
capoeira sai do código penal e da subjugação policial. Novos discursos são produzidos, novos
personagens se incluem nesse roteiro. Há quem diga que as ações policiais contra as maltas
em muito se assemelha ao que ocorre hoje nos territórios periféricos da favela, nos quais
encontramos grupos organizados, distintos pela localização geográfica, por códigos e cores. A
violência se transforma, somem as navalhas, surgem as metralhadoras. O discurso político e
científico eugenista dá lugar à proposta da “democracia social”. Os 300 açoites se modificam
em prisão provisória, por tempo indeterminado, nos presídios abarrotados. Os modos de
sobrevivência nas ruas se alteram, dando passagem à subsistência pelo lixo, pelo reciclado,
pelos garimpos37. Os que vivem nas ruas seguem rumos, sendo depositados em delegacias,
internados em hospitais psiquiátricos, vítimas das operações cata-tralhas, vítimas da violência
arbitrária policial ou de qualquer outro cidadão38. Da mão de obra escrava aos imigrantes,
temos hoje os avanços tecnológicos, a economia do capital internacional, a pequena classe
que se insere nesse mercado devido ao privilégio do estudo, aviões e laranjas 39que participam
do tráfico de drogas, vendedores de bala, flanelinhas, mascates, catadores de lixo.
O ponto comum traçado da colonização à atualidade é a eleição daqueles que devem
ser controlados, boicotados, violentados. Os privilegiados persistem por gerações, ditam as
regras, mantêm-se no poder, nas universidades, na política. Os que estão em sua mira
continuam tendo cor e classe social, são negros, pardos e pobres. Como peças humanas,
36
Referindo-me ao Rio de Janeiro.
37
Ação de se buscar no lixo objetos que ainda tenham valor de troca, de compra e venda.
38
“Tender a segregar é um processo em andamento, alimentado pela estigmatização do “estar na rua” e por uma
neo-satanização da pobreza em geral e da população de rua em especial. Por isso, fraturas patológicas de
comportamento podem prosperar, como no caso dos jovens da elite que queimaram mendigos em Brasília”
(LESSA, 2003, p. 17).
39
Termos que se referem aos pequenos traficantes.
74
40
Nome popular de uma região comercial no centro do Rio de Janeiro.
41
Ação de contar uma história, criar um personagem, utilizando artimanhas possíveis para conseguir dinheiro,
comida ou qualquer outra coisa.
78
*****
Nós que vivemos a formatação, compondo nossos corpos com a rotina, seguindo
horas, seguindo fluxos de carros, gentes, amontoadas nos ônibus, atordoadas com o tempo.
Nesse mapa social complexo de linhas e intensidades, podemos encontrar variados
movimentos que dão passagem às mudanças, às rupturas, ao desejo, mas há também o que é
sedentário, controlado, que faz barreira às transformações. Nesse sentido, mesmo
compreendendo que nesse mapa há processos que se desterritorializam e reterritorializam
constantemente, identificamos nomadismo e deambulações em contraste com sedentarismo e
congelamento. Movimentos e paradas, quadrados e encruzilhadas, linhas duras e linhas de
fuga, territórios e desterritórios.
Na sociedade contemporânea, a grande maioria vive a formatação dirigida pelo
paradigma prevalente, no qual o trabalho é compreendido como indispensável, a livre
concorrência do mercado e o individualismo induzem à meritocracia, as famílias seguem um
padrão de funcionamento e os horários são regulados. Seguem as horas, os dias, as semanas.
O tempo é sinônimo de lucro. O trabalho é sinônimo de sucesso, de aquisições, de consumo.
42
Conceito que será abordado adiante.
80
Nas casas as novelas e as regras. Nesse contexto, o deslocamento das pessoas segue circuitos
bem estabelecidos, vão do trabalho para a casa, da casa para academia, da academia para o
supermercado, etc.“Vá para lá, vem para cá, pare, olhe o sinal vermelho, agora passe, mais
lento, mais rápido, cuidado... cruzamento!.” (PEIXOTO, 2013, p. 68).
Nesse cenário, o movimento despretensioso, o flâneur43, o vagar sem destino definido
é considerado um movimento ocioso e improdutivo. Diante disso, no tempo em que o que se
valoriza é a produção, fixam-se os trajetos, definem-se, demarcam-se, delineiam-se. A
errância se transforma em trajeto certo, institucionalizado, com ponto de partida e de chegada.
A travessia é objetivada e valoriza-se o ponto de chegada. O percurso, a travessia não valem
mais como uma experiência de acontecimentos, de tensões, de aprendizagem deambulatória.
Transformam-se em vetores instituídos que não dão passagem para os fluxos tensionais, para
o improviso, para as incertezas. O trajeto enquanto instituição não permite os fluxos
paradoxais, tensionais que nos retiram da certeza da conformidade. É assim que o “trajeto
institucionalizado assassina o trajeto-devir” (PEIXOTO, 2013, p.68).
Com o trajeto instituído as conexões humanas se tornam artificiais, ocupadas por
formas determinadas de ser, sentir, ver e consumir, com espaços predestinados, separados.
Para os errantes, vadios, vagabundos, excluídos da lógica de consumo e de vida estabelecidos
os dirigentes criam “fábricas de limpeza humana”, “fábricas de assepsia social”, pois rompem
com a máquina social estabelecida, com o trajeto instituído e institucionalizado. Com esse
mecanismo tentam eliminar os contratempos e os desvios (PEIXOTO, 2013).
43
Passear pelas ruas sem ponto de chegada.
81
Apesar de não se referir aos tempos atuais, com Spinoza podemos ampliar essa
compreensão. Para o filósofo, a tentativa de cristalização e absolutização do modo de existir
do homem artificializa os processos naturais da vida. Como se a existência humana, nas suas
mais variadas formas, não fizesse parte da natureza. Seus movimentos e inconstâncias, assim,
definiriam os processos naturais, suas oscilações e voluptuosidades como defeitos e falhas.
Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua
maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza,
mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na
natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a
ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre
suas próprias ações, e que não é determinado por nada mais além de si próprio.
Além disso, atribuem a causa da impotência e da inconstância não à potência
comum da natureza, mas a não sei qual defeito da natureza humana, a qual, assim,
deploram, ridicularizam, desprezam, ou, mais frequentemente, abominam (E III,
Prefácio).
Simplesmente por imaginarmos que uma coisa tem algo semelhante com um
objeto que habitualmente afeta a mente de alegria ou de tristeza, ainda que aquilo
pelo qual a coisa se assemelha ao objeto não seja a causa eficiente desses afetos,
amaremos, ainda assim, aquela coisa ou a odiaremos. (E III, 16)
83
Se imaginamos que uma coisa que habitualmente nos afeta de um afeto de tristeza
tem algo de semelhante com outra que habitualmente nos afeta de um afeto de
alegria igualmente grande, nós a odiaremos e, ao mesmo tempo, a amaremos. (E
III, 17)
Quem imagina que aquilo que ama é destruído se entristecerá; se, por outro lado,
imagina que aquilo que ama é conservado, se alegrará. (E III, 19)
Se imaginamos que alguém afeta de alegria a coisa que amamos, seremos afetados
de amor para com ele. Se, contrariamente, imaginamos que a afeta de tristeza,
seremos contrariamente, afetados de ódio contra ele. (E III, 22)
Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a
causa adequada, isto é (pela def.prec.), quando de nossa natureza se segue, em nós
ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só.
Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial.
Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e
que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela
coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e
determinada.
Para ele somos uma expressão da substância divina, perfeitíssima. O Deus ao qual se
refere é toda a natureza, que existe necessariamente, como um acaso e não como uma
finalidade que deva ser alcançada. A natureza como um todo é dotada de uma potência, sendo
assim, sua essência completa em sua potência é possuidora de uma positividade própria. Nas
preposições 11 e 15 da parte 1, Spinoza apresenta sua concepção de Deus enquanto substância
infinita, que existe necessariamente. “Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente”
(E I, 11); “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser
concebido” (E I, 15).
Contrariamente à ideia da natureza operada enquanto necessidade, o ser humano toma
todas as coisas naturais como tendo uma função de finalidade. Como por exemplo, se Deus
existe é para nos julgar ou cuidar; se a flora existe é para nos fornecer oxigênio, e assim por
diante. No entanto, tudo o que existe na natureza, existe necessariamente e não por um fim
determinado. Com esse pensamento o homem inverte a natureza ao considerar como efeito
aquilo que é realmente causa e imperfeito aquilo que é perfeitíssimo. Nessa perspectiva até
mesmo Deus se torna imperfeito, pois se ele age em função de um fim é porque algo lhe falta.
Spinoza continua sua reflexão trazendo à tona um questionamento que poderíamos levantar:
Por esse paradigma a fatalidade do ser não pode ser desconectada de tudo o que se é,
da fatalidade do todo, da natureza única. Cada um é necessário e faz parte do todo, da
natureza e da perfeição divina. O ser não é consequência de uma finalidade. Não cabe querer
empurrar ao ser uma finalidade qualquer. Com ele não é possível alcançar um ideal de
moralidade, ou de felicidade, ou de ser humano. Fomos nós mesmos que construímos o
conceito inadequado de finalidade, que não se encontra na realidade. Cada um é necessário,
pertence ao todo, está no todo, nada existe fora do todo. Não há nada que possa ser julgado,
medido, comparado, condenado, pois isso seria o mesmo que julgar, medir e comparar o todo
(MARTINS, 2009). Portanto, a natureza de cada um deve ser afirmada e considerada em sua
potência de existir. E o que consideramos imperfeição, fora da normalidade, nada mais é do
que um pensamento pautado na finalidade e no preconceito. Também consideramos as coisas
somente em parte e ignoramos a ligação entre as coisas da natureza inteira, analisando e
compreendendo tudo com as lentes de nossa restrita consciência.
Em Tratado Político, Spinoza apresenta uma diferenciação entre direito natural,
relacionado à natureza perfeita, à potência de existência do ser incluído na natureza
perfeitíssima de Deus, em contraposição ao direito comum, que são as convenções humanas,
necessárias para a conservação dos homens. No estado natural tudo acontece pelas leis da
natureza, sendo cada um senhor de si próprio. No entanto, para perseverar em sua existência,
tendo em vista que podemos ser destruídos por forças maiores que as nossas, construímos
convenções, leis e regras. Em Tratado Político ele afirma “[...] os homens são feitos de uma
tal maneira que não podem viver sem uma lei comum” (T. P., Cap. I, 3).
44
Grifo do autor.
86
Num Estado que visa unicamente a conduzir os homens pelo temor, é mais a
ausência de vício do que a virtude que reina. Mas é preciso levar os homens de tal
maneira que não creiam ser levados, mas para viver segundo o seu livre decreto e
conforme o seu próprio feitio; é preciso, portanto, dominá-los unicamente pelo
amor da liberdade, o desejo de aumentar a sua fortuna e a esperança de se
elevarem às honrarias (Tratado Político, Cap. X, 8).
nessa engrenagem do controle pelo medo, que captura nossa potência e dificulta os laços
horizontais entre os indivíduos. Na vida contemporânea aponta que o medo e a esperança
estão presentes na submissão alegre e ingênua ao consumo e no medo da violência e do crime.
O medo e a esperança são uma arma política de controle e submissão.
Na sociedade contemporânea, pode-se dizer ainda que houve uma despolitização dos
fenômenos do crime.A invenção da figura do delinquente, transformado em expressão de uma
doença ou anormalidade, provoca o silenciamento das questões políticas e dos
questionamentos das leis vigentes que a problemática da criminalização abarca (RAUTER,
2017).
Tomados pelo medo e pela esperança, submetidos ao controle de um Estado que não
se funda no objetivo da concórdia e do direito comum, induzidos pela ciência, mídia e toda a
rede de instituições que nos cercam, temos nossa potência capturada. Aponta-se aos
criminosos, delinquentes, anormais a causa da instabilidade e violência sociais, sem trazer à
tona os questionamentos necessários sobre essa complexa questão. Ainda influenciados pelos
afetos que nos compõem, rodeados por discursos que transmitem medo e esperança, pelo
controle social e segurança, formamos ideias inadequadas sobre o mundo em que habitamos.
Portanto, padecemos e temos nossa potência de agir diminuída.
Ao dizer sobre a necessidade de criação de um direito comum, Spinoza se refere à
concepção de um Estado com concórdia e paz, para as quais o sujeito se submete a fim de
perseverar seu ser. Entrega-se ao Estado para que reine a concórdia e tenha sua existência
preservada. No entanto, afirma que quando esta submissão não se pauta em ideias adequadas,
mas ocorre pelo uso da força, temos uma população vencida e um falso direito comum: “É
preciso notá-lo ainda, o Estado que refiro como instituído com o fim de fazer reinar a
concórdia, deve ser entendido como instituído por uma população livre, e não como
estabelecido por direito de conquista sobre uma população vencida” (T. P., Cap. V, 6).
Apesar do nítido cerceamento de nossos corpos e da artificialização de nossas vidas
provocados pelos discursos prevalentes na sociedade, a era do capital e da livre concorrência
se respalda na noção de liberdade, na crença de que cada sujeito pode realizar suas escolhas e
traçar seus caminhos. A cidade propõe a seus cidadãos “o amor da liberdade de preferência à
esperança das recompensas ou mesmo à segurança dos bens; pois ‘é aos escravos, não aos
homens livres, que damos recompensas por boa conduta’”45 (DELEUZE, 2002, p.32).
45
Tratado Político Cap. X, 8: “Num Estado que visa unicamente a conduzir os homens pelo temor, é mais a
ausência de vício do que a virtude que reina. Mas é preciso levar os homens de tal maneira que não creiam-se
levados, mas para viver segundo o seu livre decreto e conforme o seu próprio feitio; é preciso, portanto dominá-
88
los unicamente pelo amor da liberdade, o desejo de aumentar a sua fortuna e a esperança de se elevarem às
honrarias. Aliás, as estátuas, os cortejos triunfais e outras incitações à virtude são mais sinais de servidão do que
de liberdade. É aos escravos, não aos homens livres que se dá recompensa pela sua boa conduta”.
89
um novo produto, numa fusão sem limites da antiprodução com a produção (DELEUZE;
GUATTARI, 2011).
Com Spinoza, compreendemos o processo no qual nossa imaginação se forma, e, a
partir dela, nossas concepções e ideias, conduzidas por tudo o que nos rodeia. No apêndice da
Ética I, Spinoza postula que os homens se crêem livres por acreditarem que suas escolhas são
orientadas por suas próprias volições. No entanto, conforme discorrido acima, desconhecemos
as causas que nos dispõem a assumir determinadas escolhas, sendo induzidos a pensar sob o
paradigma da finalidade e pelas regras do capital. Constantemente, nos associamos
afetivamente e inadequadamente às ideias daqueles com os quais nos identificamos, tendo
sido orientados a seguir as tendências e regras do capital, da classe dominante, da burguesia,
que foram divulgadas e espalhadas pelas redes sociais e midiáticas. Para complementar essa
ideia, de acordo com Spinoza, chamamos uma coisa de boa porque tendemos para ela, e de
má quando nos causa desconforto e dela fugimos (E I, apêndice). Estas construções, boas ou
ruins, acabam seguindo as generalizações construídas socialmente. Assim se tornam claros os
motivos pelos quais socialmente são eleitos os que devem ser excluídos, boicotados e até
mesmo exterminados.
Consideramos que toda a sociedade, o funcionamento das instituições, a formatação
das cidades, a configuração das relações sociais são ditados pelos discursos políticos,
jurídicos, como também científicos, saber médico, da psicologia, do direito, da antropologia,
da economia, etc. Há de se destacar novamente que produções do campo de saber também se
utilizam do paradigma da finalidade e, como abordado, da metafísica ocidental. Nesse
sentido, a ciência contribui com a assepsia urbana, colabora com projetos de revitalização e
urbanização, fundamenta o funcionamento das instituições e mantém e reproduz os valores
sociais vigentes, ressalto, da classe privilegiada. Podemos acrescentar que a ciência da
finalidade reproduz discursos dualistas e maniqueístas, rotula o que é bom e o que é ruim,
estabelece diagnósticos e sustenta a invenção discursiva acerca do delinquente, do criminoso e
daqueles que devem ser capturados. É com um discurso elaborado, pautado em
conhecimentos empíricos e na busca por uma verdade absoluta, que vimos médicos e juristas
selecionarem a melhor raça e estabelecer um padrão físico de um criminoso. Foi pelo saber
médico que surgiram hospícios que serviam à exclusão, tratamentos a base de choque e
medicamentosos. No campo da justiça, vimos a produção de um saber que julga, aprisiona e
exclui. No campo da educação, a reprodução do que é certo ou errado, o silenciamento da
criação subjetiva e a repetição. Tudo isso, representa a produção do saber atrelada ao poder,
com a manutenção das classes dominantes.
90
Chamais “vontade de verdade”, ó mais sábios entre todos, aquilo que vos impele e
inflama?
Vontade de tornar pensável tudo o que existe: assim chamo eu a vossa vontade!
Tudo o que existe quereis primeiramente fazer pensável: pois duvidais, com justa
desconfiança, de que já seja pensável.
Mas deve se adequar e se dobrar a vós! Assim quer vossa vontade. Liso deve se
tornar, e submisso ao espírito, como seu espelho e reflexo. Esta é toda a vossa
vontade, ó mais sábios entre todos, uma vontade de poder; e também quando falais
de bem e mal e das valorações (NIETZSCHE, 2011, p.108).
A todo esse poder estamos submetidos, sendo conduzidos nossos olhares, nossas
ações, percepções, inseguranças, desconfiança, esperança. Por tudo isso padecemos, tendo
ideias inadequadas, nos distanciamos de nossa natureza, de nossa potência e do que nos
compõe. Tendemos a enquadrar nossos pensamentos e nossa vida ao que não é o real da vida:
a multidão em sua potência, a natureza perfeitíssima em sua integralidade, a pluralidade, o
acaso, a tragicidade, os fluxos.
O termo cunhado por Peixoto (2013), CroniCidades, exemplifica as produções
crônicas provocadas pelo tempo em que vivemos. Acrescento a compreensão apresentada por
Arêas (2017), o sujeito pode se identificar a determinado sentido e ao estado das coisas que
caracterizam seu corpo, enraizando-se nesta identificação, assim tende a reviver o acontecido,
fechando-se aos novos sentidos dos acontecimentos. Ocorre uma cristalização e uma
cronificação ao que é dado ou suposto. Negamos o devir ilimitado dos acontecimentos,
padecendo, ressentindo e perdendo nossa potência ativa. O senso comum, os valores
padronizados e as generalizações universais transformam os tempos Aion e Cronos em tempo
cronológico. Mas há tantos sentidos nos acontecimentos...Para além dos dualismos podemos
encontrar a pluralidade, a criação a invenção.
estremas, podemos encontrar estratégias e saídas. Para Rauter (2017), sob a ótica de Spinoza,
há uma impossibilidade ontológica de que tudo esteja dominado.
Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser (E III, 6).
O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é
do que a sua essência atual (EIII, 7).
O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não envolve
nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido (E III, 8).
A perseverança no ser coincide com sua essência e existência, sendo assim, para
Spinoza, um corpo somente pode ser destruído por uma causa exterior (E III, 4). Enquanto
houver existência haverá perseverança no ser.
A democracia a que Spinoza se refere no Tratado Político, segundo Rauter (2017),
corresponde à democracia da multidão, na qual há uma potência de pensar comum, não sendo
a democracia que vivemos hoje. Por essa perspectiva a autora continua dizendo que podemos
encontrar possibilidades de superação a partir da potência coletiva. É nos agenciamentos
coletivos que podemos ampliar nossa capacidade de perceber e ser afetados e de encontrar o
que é útil à perseverança em nossa existência, tornando-nos mais potentes. A partir da
potência germinada no coletivo podemos superar o medo, pois é no coletivo que ganhamos
mais domínio sobre nossa vida afetiva e ampliamos a potência de nosso ser. Apesar da
ameaça de destruição por alguém ou algo que tenha potência maior do que a nossa é possível
resistir e suplantar nossa potência individual no coletivo.
Retomo que, para Spinoza, mais ativos e potentes seremos se nos guiarmos por ideias
adequadas e, contrariamente, podemos padecer tomados por ideias inadequadas. Ideias
adequadas são construídas a partir de um discernimento de que nossas percepções e
imaginação são construídas tendo como base nossos afetos, podendo assim optar e não nos
submeter às coisas e ideias que nos são úteis e nos compõem, tornando-nos mais ativos.
Conforme E III, definição 2:
Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós sucede algo de que somos a
causa adequada, isto é (pela def.prec.), quando de nossa natureza se segue, em nós
ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só.
Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial.
Somente atualizando nossas forças ativas é que podemos compor o coletivo potente,
caso contrário, continuaremos controlados, submetidos, escravizados. De acordo com Ética
92
III, postulado 1, nossa potência de agir pode ser aumentada ou diminuída a partir das
afetações que ocorrem em nosso corpo: “O corpo humano pode ser afetado de muitas
maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas
não tornam sua potência de agir nem maior nem menor”. Acrescenta que quanto maior forem
nossas experiências de afetar e ser afetados, maior será nossa capacidade de discernimento:
É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas
maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores;
e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de
afetar os outros corpos de muitas maneiras. E inversamente, é nocivo aquilo que
torna o corpo menos capaz disso (E. IV, 38).
Não é o desejo que se apoia nas necessidades; ao contrário, são as necessidades que
derivam do desejo: elas são contraproduzidas no real que o desejo produz. A falta é
um contra efeito do desejo, depositada, arrumada, vacuolizada no real natural e
social. O desejo está sempre próximo das condições de existência objetiva, une-se a
elas, segue-as, não lhes sobrevive, desloca-se com elas[...]o desejo só tem
“necessidade” de poucas coisas, não dessas coisas que lhes são deixadas, mas das
próprias coisas que lhes são incessantemente tiradas, e que não constituem uma
falta no coração do sujeito, mas sobretudo a objetividade do homem, o ser objetivo
do homem para quem desejar é produzir, produzir na realidade [...]Não é o desejo
que exprime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que destitui o desejo
do seu ser objetivo (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.44).
A falta não é primeira, mas sim organizada pela produção social, aloja-se de acordo
com a organização prévia da sociedade, alinha-se à abundância da produção de mercado atual
e provoca a ilusão da necessidade de objeto, gerando sensação de vazio. O sujeito torna-se
estranho à sua essência, errando sobre o corpo sem órgãos, sendo definido artificialmente pelo
produto induzido a desejar, compondo-se pelas sensações provocadas pelos gadgets e
renascendo em cada estado.
Para Spinoza, o desejo é a essência do homem quando ele é determinado a agir por
uma afecção sua. Desejo é a expansão do próprio ser. “O desejo é a própria essência do
homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção
qualquer de si própria, a agir de alguma maneira” (E III, def. 1). Sendo assim, para ele, nossa
essência, que é o próprio desejo, coincide com a potência de existir.
É nos tornando ativos, num processo de diferenciação contrária ao que nos é imposto,
aos afetos tristes e à diminuição de potência, que encontraremos saídas ao que nos limita, nos
subjuga, nos escraviza. É nos aproximando ao real da vida, à essência desejante à qual nada
falta, discernindo nossas percepções e buscando o que nos é útil que nos tornaremos mais
potentes e poderemos romper a cronificação que nos paralisa. É ampliando nossas
possibilidades de afetar e sermos afetados que construiremos novas formas de existência. É
compondo-nos no coletivo autônomo e ativo que poderemos experimentar a democracia. É
rompendo com estereótipos e com o entorpecimento do medo que poderemos vislumbrar
outras soluções. É movimentando-nos, deslocando-nos, deambulando que poderemos sair do
lugar e ver outras perspectivas. É com o nomadismo que poderemos alterar o sedentarismo da
ciência, dos valores, dos padrões, do poder. É com dança, com ginga, com mandinga. É
vivendo a vida que se dá passagem às intensidades. É saindo do comodismo que podemos
95
O autor traz as cenas urbanas como metáforas de uma partitura, feitas com tensões,
contrapontos, misturas. Nas paisagens sonoras é possível permitir-se viver o inusitado, o
inesperado encontro com a multidão. Misturas de corpos, de imagens, de cheiros, que indicam
que a vida não é linear. É na tessitura das composições urbanas e na partitura poética coletiva,
que se sente as viscosidades, o indeterminado e o caoticamente organizado. Através da
composição poética musical na multidão, nos ruídos, nas constantes composições e
decomposições, na efervescência dos afetos, das tensões, no ser enquanto acontecimento, é
possível destituir o ser enraizado da identificação, da verdade, do conhecimento aprendido,
das formatações sociais.
Somos ontologicamente constituídos pela potência, que mesmo nas mais extremas
situações de seu rebaixamento por agentes externos, somos capazes de nos recompor e recriar
nossas subjetividades na existência que se faz no verbo, no acontecimento, no ato político.
Político no sentido de produção subjetiva enquanto ser diferenciado e autônomo, podendo
compor com outros corpos uma multidão potente. Político no que se refere à liberação das
amarras do medo, das afetações tristes, da vida vazia e estática. Corpo político do conatus
individual à composição do conatus coletivo, tribal social, multidão de sujeitos potentes,
96
alegres, ativos que compõem outras paisagens, outros caminhos, outras partituras, desvios
(PEIXOTO, 2013).
A potência da multidão ao mesmo tempo em que pode ser extraída pelas instituições,
pelo medo e pela cartilha social, é também nosso quinhão de resistência à dominação. A
própria resistência à dominação, algo natural ao ser humano, compõe o corpo comum. É pela
diversidade e complexidade da multidão que novas combinações de ideias, de possibilidades,
de trocas podem surgir. É pelos encontros e potência da multidão que novas paisagens podem
se formar, novos territórios se compor, novas sinfonias se ouvir.
Para complementar a ideia de conatus coletivo tribal social trago a observação
realizada pelo xamã Kopenawa. Para ele, os homens brancos, que se utilizam da metafísica
ocidental e agem de acordo com um fim, somente sonham consigo mesmos. São ignorantes
porque devastam sua própria fonte de vida, a floresta, e porque estabelecem relações com as
mercadorias por eles mesmos criadas e sentem pavor com a possibilidade de não mais as tê-
las. São avarentos e não possuem o cuidado com a coletividade. Têm pressa, medo de perder
tempo e com o barulho das cidades não conseguem conectar seus pensamentos ou se
comunicarem. Sua política são falas emaranhadas. Não valorizam a tradição oral e, como suas
palavras são gravadas nos papéis, “peles de imagens”, elas se distanciam das pessoas e, por
isso, seus pensamentos não vão muito longe. São eles os bárbaros do além-mar, que não
compreendem o mundo como um super organismo.
[...] passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos
pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império, vindos nas caravelas,
com a cabeça cada vez mais “cheia de esquecimento”, imersa em um tenebroso
vazio existencial (Prefácio-Castro).
diversos e mais diferentes devires, que podem ocorrer na natureza infinita. Somos múltiplos e
conectados, infinitos. Devir-yanomami, devir-negro, devir-louco, devir-besouro, devir-tatu.
*****
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
98
46
Poema Cântico Negro, 1955. Encontrado em: http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/jose-regio-cantico-
negro/
99
A autora passa a ver potência nessas “convulsões corporais citadinas”, que somente foi
possível de ser compreendida após abandonar as interpretações comuns acerca dos moradores
de rua. Apesar das linhas segmentárias da injustiça e da exploração estarem presentes, a fim
de construir sua interpretação, foi necessário se embrenhar em outras aventuras perceptivas,
abandonar conceitos, alterar a consciência, produzir novas metáforas, avizinhar-se da “aura
ébria dos miseráveis”. Foi assim que pôde compreender que a miserabilidade se colocava
como signo de ameaça, como se os corpos-despachos fossem um prenúncio à humanidade
incluída na lógica civilizatória da condição dentro da qual se encontrariam caso
interrompessem com o sistema de produção da “megamáquina megalômana” (BORGES,
2010, p. 9-10).
A performance-pesquisa-acadêmica produzida por Borges e seu coletivo, não tem
como intuito um elogio à vida nas ruas, mas sim abrir buracos no nosso umbigo ordinário,
fazendo-nos repensar a rua, reviver o espaço e o tempo públicos, ampliando nossos sentidos
sobre a vida na rua.
Baptista (2010) apresenta sobre a potência do desassossego, sobre o movimento que
nos transporta, sobre o ato cortante e o estranhamento que podem fazer surgir outros sentidos
até mesmo inomináveis, que interpelam a imobilidade do hábito:
47
Trecheiros e pardais são termos próprios dos moradores de rua e foram incluídos na obra “Andarilhos e
Cangaceiros: a arte de produzir territórios em movimento” (MARQUES; BROGNOLI; VILLELA, 1999).O
primeiro representa aqueles que estão em constante mudança de cidade. O segundo representa os moradores de
ruas que se estabelecem em determinada cidade.
100
jogavam contra os templos suas excreções, praticavam furtos. Sobre os moradores de rua ela
escreve:
Nas escadarias das igrejas, nas calçadas das secretarias de justiças, em frente aos
Bancos eletrônicos, os moribundos se instalam, e afrontam com suas peles e tecidos
podres os imponentes edifícios, como se fossem pragas urbanas carcomendo os
pilares dos tempos religiosos, econômicos e ministeriais. Com suas poses mórbidas,
seus fedores, mijanças e caganças em frente aos edifícios, ousam alterar os projetos
urbanistas da cidade, construídos com fins bem diferentes do que suportar suas
guerrilhas escatológicas (BORGES, 2010, p. 11).
A encruzilhada invoca a máxima parida nos terreiros: Exu é o que quiser. Assim, ele
é aquele que nega toda e qualquer condição de verdade para se manifestar como
possibilidade. É Elegbara, o dono do poder, o andarilho que caminha na direção do
rei, decepa-lhe a cabeça, mete-a no bornal e desaparece na curva a gargalhar! Exu é
assim, perambula pelo mundo, reinventando-o, a partir de travessuras (RUFINO,
2018, p. 76).
*****
Era logo após o almoço, nas ruas quentes do Pelourinho, em uma de suas vias
principais, entre turistas e ambulantes, evidentemente distintos pelo tom de pele, trajes e
modo de caminhar, ali ou perto dali, encontrava várias pessoas que dormiam nas ruas, onde
faziam suas higienes, onde conseguiam seus bicos e se embriagavam. Saindo uma ou duas
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quadras das vias principais, presenciei um deles, no ato animalístico natural, defecando
sobre um papelão. Deveria estar ali ou não, era o que me perguntava, no entanto, esse era
um de meus trajetos rotineiros. Meus pensamentos foram interrompidos quando, após a
evacuação, aquele cara corria atrás de mim com suas fezes no papelão.
Foi assim que iniciei minha aproximação junto aos moradores de rua de Salvador.
Pelourinho representava para mim a capoeira, seguia seus rastros, sem, no entanto, perder de
vista a complexidade da história social brasileira que ela carrega. Sabia que nesse território
iriam pulsar em mim intensidades que me remetiam à escravidão. E ela estava lá, evidente na
condição social de muitos, mas também nas reviravoltas, gingas e cruzas que o corpo dá.
Vibrando a entidade Exu, Dioniso ou o que quer que seja; representados nos corpos que iam
para além do bem ou do mal, do positivo ou do negativo. Avessos às concepções dualistas,
confundia-me quando pensava ser alegria o que era tristeza, ou tristeza o que era alegria.
Existia entusiasmo no cotidiano sob o sol, das vendas, do carregamento, do ônibus lotado,
mas podia ver um sorriso irônico, o suor que corria e as mãos calejadas.
Fui tomada por um misto de sensações quando vi um dos moleques, que comumente
percorriam aquelas ladeiras, deitado em uma estreita marquise, sob a luz direta do sol, em
uma das ruas principais do bairro, ser furtado por um senhor de idade, catador de latinhas e
bugigangas. O garoto, provavelmente sob efeitos de drogas, ou talvez, simplesmente por não
ter dormido à noite, escolheu um local movimentado para dormir e se sentir protegido. Mas
não teve jeito, seu pequeno patuá, que carregava no pescoço acabava de ser esvaziado.
Parecia que tudo acontecia no Pelourinho, capoeira, festas, manifestações religiosas,
brigas, trabalho, cuidados à higiene, sexo. A vida vivida a céu aberto, que parecia extrapolar
as quatro paredes tão fechadas do privado, do individualismo. No Pelô, museus, casas de arte
e oficinas, lojas, mas também, o Movimento Nacional de População de Rua e o Centro de
Atenção Psicossocial- álcool e outras drogas.
Deslocando-me do Pelourinho ao bairro São João do Cabrito, por onde passa a avenida
suburbana, cujo nome denuncia um recorte territorial e social, continuei próxima de histórias
que vinham das ruas. Estava num abrigo por onde passavam ou eram acolhidos moradores de
rua. No bairro era comum o cheiro de esgoto vindo da baía, exalado pelo calor das ruas
estreitas e do asfalto da avenida. Na baía era comum ver crianças brincando nas águas
poluídas sem se preocuparem com as ratazanas que ali também corriam.
Dormia em um dos quartos destinados para as mulheres. Na primeira noite não
preguei os olhos pelo calor infernal, pelas muriçocas que me picavam, pelo cheiro estranho,
mistura de naftalina, com alho e esgoto, pelos olhares curiosos que não paravam de me
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cercar. Era uma das poucas pessoas brancas que ocupava aquele lugar. Uma das acolhidas
havia fugido do hospital porque iriam amputar seu pé necrosado pela diabetes. Sabia que o
cheiro exalado também vinha dos seus pés. Percebi que me olhava com desconfiança, falava
de matar todos aqueles que fossem atrás dela pelas cotas que tinha na Petrobrás. Suas
viagens alucinatórias esquizofrênicas se assomavam ao meu medo. Com o passar do tempo
ela abria algumas brechas que me permitiam aproximar. Ajudava-a a encher seu balde para
o banho diário, buscava na farmácia seus esparadrapos e óleo de girassol e já me
acostumava com o cheiro do alho que ela usava para afastar o mal olhado. Nenhuma
abertura mais, seu machucado eu jamais poderia ver, sugerir atendimento médico tampouco.
Via-a sorrir e contar suas histórias para apenas um dos acolhidos, um homem jovem,
morador de rua acolhido naquela casa e, pelo abuso do álcool, disse ter chegado a tal ponto
que sua pele vivia aberta por feridas. As feridas na pele não mais existiam, mas sabia como
tratá-las, por isso, via-o diariamente, com muita paciência, limpar e cuidar das feridas de
minha companheira de quarto.
Por mais extremas que fossem as situações daquelas pessoas identificava um laço de
solidariedade que entre elas era estabelecido. De fato, vivenciava uma manifestação
antiantropocêntrica, no sentido de que o homem social contemporâneo se estabeleceu tendo
como base relações verticais, de dominação e subjugação, de manutenção de interesses
individuais, de aquisição de bens e mercadorias. Nesse contexto, solidariedade sincera e
despretensiosa e o desprendimento parecem não pertencer ao homem social contemporâneo
urbano.
Em terras niteroienses, em uma das principais avenidas do centro da cidade, no início
da noite, com a diminuição do fluxo de pessoas, muitos começavam a se alojar, estendendo
seus papelões e mantas pelas calçadas. Nesse cenário foi que conheci Robert e Albert, ratos
que perambulavam por entre as pessoas no chão e eram tratados por alguns como bichos de
estimação. “Sai Robert, sai Albert. Vão assustar a moça”. Naquele grupo, diversas eram as
histórias na tentativa de criar uma identidade, um personagem através do qual pudessem se
apresentar. Com isso, respondiam o imaginário comum criado pelas pessoas inclusas àqueles
que habitavam as ruas, famílias fraturadas, vícios, decepções amorosas, desemprego,
violência doméstica entre tantos outros fatos, contados por eles como histórias místicas-
fantasiosas. Entre eles, exemplos de solidariedade: compartilhavam a cachaça, pertences
garimpados e até mesmo mercadorias que eram frutos de pequenos furtos. Em suas rotinas,
incluíam passagens pelos CREPOPS, para um banho ou para um lanche, encontravam
diversas formas de adquirir alguns trocados, vendas dos garimpos, dos objetos furtados, de
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balas e doces, mendicância, mangueios, reciclagem. Também havia aqueles que tinham
casas, mas dormiam nas ruas pelo custo do translado de suas residências ao centro da
cidade, onde conseguiam o ganho. Constantemente passavam por ali policiais e funcionários
do serviço social da prefeitura.
Diziam não andar com os documentos. Deixavam guardados no CAPS, na casa de
familiares ou com os amigos. Contavam que dormindo nas ruas os documentos eram
roubados ou apreendidos, assim como seus pertences. No meu entendimento, a apreensão dos
documentos não servia apenas como um controle social, mas também uma subjugação. Pelo
poder, a destituição do outro, sua identidade, sua possibilidade de acesso à saúde ou acesso
aos lugares inclusos da sociedade urbana.
Estranhei quando os vi sem mantas ou papelões. Disseram terem sido levados pela
operação cata-tralhas da prefeitura. Do grupo, outros estavam ausentes porque foram pegos
pela “carrocinha”, “zoonoses”. Aqueles que conseguiram escapar, vieram sem os
documentos pessoais. Contavam como um procedimento rotineiro, somente eu me espantava
com tal funcionamento social. E continuaram com nossa conversa, falavam dos diversos
grupos existentes entre os que viviam nas ruas, “cracudos”, “alcoólatras”, “cheiradores” e
“ladrões”. Mas a curiosidade estava mesmo ante a minha pessoa, era católica? De onde
vinha? Qual a origem do sotaque? Mas o diálogo parecia não ter início nem fim e era
recheado de atravessamentos. Um deles foram as risadas de todo o grupo, e disseram se
espantar com o fato de que a perua do serviço social da prefeitura desviara o caminho ao me
ver no bando. Era evidente nossa diferença na pele, nos gestos, na roupa. Meus
questionamentos sobre os motivos que fizeram a perua dar meia volta se dispersaram no ar.
Em outro canto da cidade, bem debaixo de um viaduto. A história se repetia...
Em um dia estavam alegres, sorridentes, cheios de histórias e cantorias “Senhor
prefeito está vendo aquela lua! Olha pro povo que vive aqui na rua”. No outro, a alegria
estava murcha, não havia sorrisos, sequer cantoria, nem mantas, nem papelões, nem roupas,
nem sacolas, nem carrinhos. O dente doía, o esqueleto doía de frio e a barriga de fome.
Estavam sentados no cimento gelado. Era noite de muito frio na cidade devido a uma massa
polar que se aproximara. Também tiveram seus pertences e documentos levados e ficaram
reclusos na delegacia até as 2 da manhã. Liberados na madrugada, voltaram ao local de
costume, sem qualquer esperança. Um deles fora para o abrigo. Os outros dois se recusaram
e disseram preferir morrer no frio a se humilharem novamente nesta instituição (“também
não perdemos nosso orgulho”, me disseram outra vez). Um deles, portador de HIV se
resfriou, o outro não parava de urgir a dor da fome. Pensavam em estratégias de
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Era no bueiro que morava o senhor baiano. Sem muitas palavras, conheci-o quando
viera caminhando até a comunidade de São João do Cabrito. Era conhecido e muito querido
por todos os que estavam lá. Passaria apenas um dia e continuaria seu trecho. Seu destino
era incerto, na travessia, supus que eram muitas as bagagens, as histórias, a vida. Após sua
partida um conto era a mim apresentado por aqueles que ficaram, era um senhor aposentado,
sem família, que a ele já lhe havia sido dada casa e a escolha era o bueiro. Em sua rotina,
incluía a ida ao banco para a retirada de seu dinheiro que ficava consigo no esgoto.
Como explicar Exu pela metafísica ocidental, pela via da finalidade ou da busca pela
verdade? O senhor da terceira cabaça, do desequilíbrio, do inusitado, do inexplicável. No
caminho com duas vias, ele cria uma terceira, e da vida, um fim em si mesma. A vida que se
faz verbo nos acontecimentos, no devir que abre passagens, que desestabiliza, que se faz e faz
contágio, que rompe com a filiação e estabelece outras alianças. A identidade certa do ser do
saber que se esvai e se multiplica ao infinito. Devir-tatu. Devir-rato. Devir-lobo da noite, da
caça, do caçador, da vida em que se bobear cachimbo cai e quem não sabe andar, pisa no
massapê e escorrega48.
Algo místico-religioso também pairava no ar. Era no Bonfim que muitos deles se
encontravam pela cachaça, pela droga, pelo pedido de proteção. Foi lá que conheci um grupo
que vivia nos arredores da igreja, uma das pessoas, minha conhecida de São João do Cabrito,
fez questão de me apresentar a todos me chamando de “minha bonequinha”, me abraçava e
me apertava como se fosse sua boneca. Era também no Bonfim que eu e alguns camaradas de
São João buscávamos parafina de velas para a confecção de uma vela artesanal que fazíamos
para vender. Eram tantos pedidos e preces em Bonfim que as parafinas tomavam o chão,
pedidos de milagres, de ajuda, porque viver “não está fácil não”.
Foi nas ruas do Rio de Janeiro que encontrei um conhecido, tinha sido atendido por
mim há alguns anos, quando eu trabalhava em Minas com aqueles que saiam da prisão.
Avistei-o e me surpreendi pela coincidência, da Bahia fora para Minas e agora estava em
terras cariocas. Via-o mangueando entre as pessoas e, pelos seus gestos, lembrei-me de sua
sagacidade, malícia e inteligência. Era para mim um exemplo de esperteza à sobrevivência,
de ginga com o corpo que desvia, se esquiva, que dança daqui e dali contra os ataques. Era
também a corporificação da traquinagem, da malandragem, dos risos, do inexplicável. Era um
pouco da loucura, da criação, da atuação de um personagem, impossível de ser definido,
categorizado ou padronizado.
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Trecho de uma música de capoeira.
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Em uma das praças de Niterói conheci um maluco. As pessoas que estavam ao meu
lado disseram que ele era um grande candidato ao manicômio. Cantava, gesticulava, se
exaltava. Sua arte louca, louca arte nas ruas. Contou sua história passada, era engenheiro
metalúrgico. Hoje era um artista. As pessoas indignadas diziam sobre a invisibilidade e
silenciamento da vida nas ruas. No entanto, ao invés de concordar, eu pensava no incômodo
que ele provocava às pessoas inclusas e concluía, invisível seria se estivesse no meio de nós
como metalúrgico ou quadriculado nas instituições.
Usava apenas um pseudônimo
Um artista encantado
Que não era candidato
Ao lugar chamado manicômio
Já viveu no manicômio
Dizia ter um segredo
Que não podia ser revelado
Pois era um polinômio
Artista exímio
Nunca silenciado
Pois mantinha seu verbo cantado
Com amor nímio
5- NA SENZALA DA MEDICAÇÃO
Ora como mensageiros de deus ora como monstros, era assim estabelecida a relação
com a loucura na Idade Média e Renascença. Associado a um ser místico que possuía os
segredos da natureza, um ser que mantinha a animalidade natural e que seria capaz de revelar
ao homem sua própria verdade. Um animal que escapara da domesticação dos valores
humanos, que fascinava o homem com sua desordem e com sua riqueza de monstruosas
impossibilidades. Imaginário que circulava em encenações e produções literárias:
Em tempos remotos, a loucura era detentora dos segredos do saber, quando a desrazão
era considerada a sabedoria da luz eterna e a razão era desdobrada e desapossada de si mesma.
Mas sua história revela diversos meandros, entre os quais a caça aos monstros. Os loucos já
foram considerados como aqueles destituídos da condição humana, submetidos a atrocidades,
como bestas insensíveis ao frio, ao calor, à fome e à dor. Ocupara antigos asilos de leprosos,
como também foram lançados à deriva no mar. Nesta história, as grades da exclusão era o mar
sem fim. Em naus, eram exilados de seus territórios, por vezes naufragando na imensidão do
mar, por vezes se atracando em terras desconhecidas. Como um estrangeiro sem opção de
escolha da viagem ou de seu destino, sua viagem era sustentada pelo discurso católico da
época em que a água do mar era a representação da purificação dos males humanos. Nas naus,
os loucos passam a ocupar o lugar de fronteira, de estrangeiros acorrentados à infinita
encruzilhada (FOUCAULT, 1972).
No século XVII a loucura se torna sinônimo de exclusão, alojada em estabelecimentos
para internação juntamente a tantos outros excluídos da sociedade, pobres inválidos,
mendigos, desempregados, portadores de doenças venéreas, libertinos, todos aqueles que
davam mostras de alteração da ordem moral imposta. Nas internações havia trabalhos
forçados, que serviam também como controle moral.
112
que a psicologia da loucura que visa o domínio da doença mental e seu desaparecimento,
veria nesse fim o seu próprio desaparecimento enquanto instituição do saber.
Há uma boa razão para que a psicologia não possa jamais dominar a loucura; é que
ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do
drama. E quando, através de clarões e gritos, ela reaparece como em Nerval ou
Artaud, em Nietzsche ou Roussel, é a psicologia que se cala e permanece sem
palavras diante desta linguagem que toma o sentido das suas palavras desta
dilaceração trágica e desta liberdade de que somente a existência dos “psicólogos”
sanciona para o homem contemporâneo o pesado esquecimento (FOUCAULT,
1984, p.98).
toda a malha institucional de determinada cultura e época, faziam parte do dispositivo que
visava a manutenção dos valores estabelecidos, dos privilégios da elite, da exclusão dos
despossuídos das riquezas sociais.
No século XIX a medicina ampliou seu poder na sociedade. Acompanhando e
construindo a cultura da época, participou de movimentos higienistas e da eugenia. Visando a
‘proteção’ da sociedade do que se considerava o perigo social (criminoso, loucos, pobres e
negros), propondo um controle das falhas hereditárias, expandindo sua vigilância a partir dos
diversos agentes sociais e ampliando a técnica interventiva de culpabilização individual, a
medicina psiquiátrica provocou o que Foucault denomina racismo contra o anormal. Pela
criação da noção de degeneração, a psiquiatria aliou-se ao “racismo étnico”. Assim, surge
nessa época, o racismo contra o anormal, contra os indivíduos que acreditava-se serem
portadores de qualquer doença ou anomalia possível de ser transmitida hereditariamente. Esse
racismo filtrava todos os indivíduos na sociedade. Na Europa ocidental manifestou-se um
racismo antissemita, culminando na violência do nazismo, cuja efetivação contou com a
participação da psiquiatria alemã. O racismo próprio do século XX, em que a sociedade se
defendia internamente dos anormais, nasceu da psiquiatria “e o nazismo nada mais fez que
conectar esse novo racismo ao racismo étnico que era endêmico ao século XIX”
(FOUCAULT, 2010, p.277).
Como já analisado, podemos dizer que no Brasil o racismo do anormal andou de mãos
dadas com o racismo étnico racial. A eugenia, transportada ao nosso território, se fazia com a
eleição da raça branca em detrimento dos negros. Com Lobo (2015) fica evidente a exclusão
da maioria ex-escrava e mestiços no período da escravidão e pós-abolicionismo. Na era que
compreende a revolução industrial, com o crescimento das cidades, os investimentos em
saúde e sociais mantiveram-se escassos entre os desvalidos, irrecuperáveis, aleijados,
anormais. Não muito diferentes das instituições europeias de abrigamento, que a princípio se
destinaram à caridade e exclusão, lugar comum de criminosos, doentes, loucos, inválidos, e
posteriormente se transformaram em lugares de ensino e ‘cura’, os hospitais mais pareciam
cárceres do que lugares para cuidado. Os asilos vão se tornando cada vez mais lotados,
mantendo a concepção da Idade Média sobre os anormais, monstros, abomináveis, feras
humanas, criaturas brutas não suscetíveis a dor, frio, calor, fome.
*****
118
De resto, os filhos de loucos são gerados por pais que estão loucos, mas tarde é que
a sandice aparece; como é então que ele herdou? Tinha a loucura incubada, em
gérmen, etc.? A explicação é acomodada, mas não é leal, antes traduz o desejo de
119
não invalidar uma sentença. Há homens que, durante uma existência inteira, não
demonstram o mínimo sinal de loucura e, ao fim da vida, perdem o juízo. As
maravilhas que a ciência tem conseguido realizar, por intermédio das artes técnicas,
no campo da mecânica e da indústria, têm dado aos homens uma crença de que é
possível realizá-las iguais nos outros departamentos da atividade intelectual; daí,o
orgulho médico, que, não contente de se exercer no âmbito da medicina
propriamente, se estende a esse vago e nebuloso céu da loucura humana
(BARRETO,1920, p.77).
Em sua internação relata a vigilância dos pavilhões por guardas e, na seção dos mais
pobres, o tratamento como sujeitos sem direitos, seres inferiores os quais médicos e guardas
tratavam com descaso e violência. Casos de morte e suicídio pareciam ser comuns: “Suicidou-
se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo.
Queira Deus que seja o dia tão belo como o de hoje” (BARRETO, 1920, p.14).
Dizia que, apesar das divisões dos pavilhões ou de classes, ele só via um lugar, o
cemitério: “assim e assado, a Loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no
insondável mar de seus caprichos incompreensíveis” (BARRETO, 1920, p.16 e 17). Contava
sobre seu medo de ser abandonado naquele cemitério como tantos outros, que envelheceram
sem roupa e sem cigarros, arranjando-os das formas mais cínicas possíveis, trocando por pão
ou roubando objetos e depois barganhando. Os cigarros eram fumados um atrás do outro,
guardavam-se as pontas para fabricar novos com papel de jornal, era o meio de afastar o tédio.
Dividia o quarto com mais 19 pessoas, em que todos só viviam pensando na hora
das refeições. Acabava o café, esperava-se o almoço, mal se ia este e serviam um café com
pão, logo o jantar às quatro da tarde. Daí para frente dizia serem as piores horas.
As pessoas viviam encurraladas num terreiro todo o dia. Era um vazio, um ócio e as
horas eram monótonas. Muitos andavam nus. Ver a população do manicômio era um dos
espetáculos mais tristes e dolorosos. Um espetáculo da humilhação social da carne negra:
Na Seção Pinel, num pátio em que ficavam os mais insuportáveis, dez por cento
deles andava nu ou seminu. Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar.
Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a
imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais
impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as
outras se ofusquem no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na
suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa (BARRETO,
1920, p.63).
Pelas grades avistava o mar de Botafogo, e sua beleza pouco podia consolar o
jornalista. Pelo contrário, a beleza da enseada trazia mais tristeza para aquele que tinha
consciência do lugar em que se encontrava. Não podia mais sonhar felicidade mesmo diante
da mais bela paisagem.
Não sentia mais proteção ou qualquer direito sobre o seu próprio corpo, como um
cadáver de anfiteatro dos estudos de anatomia. Não podia escolher qual médico iria
acompanhá-lo, sua fome era controlada pelas horas das refeições ou, à noite, pela falta delas e
não podia sequer escolher estar ali ou não. Como um náufrago ou um rebotalho da sociedade,
sua infelicidade e desgraça eram submetidos aos serviços médicos, podendo inclusive ter seus
corpos úteis para a salvação de outros. Estava à mercê do vício mental dos métodos da
medicina. “A Constituição é lá para você?” (BARRETO, 1920, p.77).
*****
[...] se com a doença entre parênteses nos deparamos com o sujeito, com suas
vicissitudes, seus problemas concretos do cotidiano, seu trabalho, sua família, seus
parentes e vizinhos, seus projetos e anseios, isto possibilita uma ampliação da noção
de integralidade no campo da saúde mental e atenção psicossocial (AMARANTE,
2007, p.69).
“[...] mesmo quando ‘maquiado’, o hospital psiquiátrico permanece como ‘gaiola de ouro’,
onde não há cidadania, liberdade e autonomia” (BASAGLIA, 1985, p.104).
Ao invés de estancar as contradições existentes no cenário da loucura, a inexistência
de direitos, a desigualdade e até a morte cotidiana do louco, camufladas pelas técnicas
médicas e pelo discurso científico de cuidado e cura, Basaglia (1985) propunha que os atores
deste cenário resistissem a este silenciamento, expondo e atuando no combate às contradições.
Para ele, a norma, a sanção e a ideologia científica estavam intrinsecamente ligadas, sendo
que através da psiquiatria e sua pretensa ação terapêutica produzia-se uma aceitação
silenciosa desse sistema. Segundo Basaglia, os profissionais inseridos nesse cenário deveriam
resistir às armadilhas ideológicas e científicas que os aprisionavam e direcionavam, pois estas
ideologias, com o suporte dos princípios legislativos, camuflavam o não-direito, a
desigualdade e até a morte cotidiana.
Os apontamentos e reivindicações de Basaglia ainda se fazem atuais. As contradições,
as armadilhas ideológicas e o assujeitamento do doente mental continuam presentes. O
diagnóstico rotula e codifica o sujeito a uma passividade irreversível, provocando sua
separação, exclusão e estigmatização. Por meio desta categorização, definição e
gerenciamento, o doente mental é tutelado pela ação médica. Tudo isso é capaz de provocar a
perda do valor social do indivíduo. A comunicação através do filtro do diagnóstico não deixa
abertura para outro tipo de apelo: “[...] o médico necessita de uma objetividade sobre a qual
afirmar a própria subjetividade, exatamente como nossa sociedade necessita de áreas de
descarga e compensação [...]” (BASAGLIA, 1985, p.109).
Nesse sentido, o próprio diagnóstico e o tratamento são compreendidos como mais
uma agressão sofrida pelo “doente” mental, além daquelas sofridas na família, pela pobreza,
no trabalho e na sociedade como um todo. A defesa que poderia ser projetada a ele se
transforma em rotulação e exclusão, sob o véu da necessidade de cura e terapia. A violência é
mistificada pelo tecnicismo e os atos terapêuticos prestam-se para adaptar o sujeito à condição
de objeto da violência (BASAGLIA, 1985).
O hospital reproduz a hierarquização existente na sociedade com a divisão daqueles
que têm poder e daqueles que não o têm, confirmando a relação de opressão e violência que
provocam a exclusão. A subdivisão de funções demonstra uma relação de opressão e
violência entre os que tem poder e o que não o tem, provocando uma exclusão daqueles que
não tem poder. Em nossa sociedade a violência e a exclusão estão na base de todas as relações
(BASAGLIA, 1985).
124
[...] negar o ato terapêutico como ato de violência mistificada com o objetivo de unir
nossa consciência de sermos simples prepostos da violência (portanto, excluídos) à
consciência que devemos estimular nos excluídos, a de o serem, sem contribuir de
nenhuma maneira para sua adaptação a essa exclusão (BASAGLIA p.103).
liberdade é vivida como um ato proibido, impossível de ser experimentada numa realidade
que se propõe a negá-la. Nega-se a possibilidade de construir um corpo que seja capaz de
dialetizar o mundo.
Por tudo isso, a proposta da antipsiquiatria é a refutação do manicômio, trazendo à
tona questionamentos do sistema institucional psiquiátrico e das estruturas sociais que o
sustentam. Trata-se também de levantar uma crítica ao modelo da neutralidade científica,
atrás do qual estão os valores dominantes. Da crítica e da refutação promover uma ação
política-social. É negar a doença e o mandado social dos profissionais da psiquiatria. É negar
a classificação nosográfica que legitima o poder do médico e a coisificação do doente. É
reconhecer que o mundo da violência e da exclusão somos nós. Fazemos parte da violência
social e institucional por sermos a reprodução das regras, das normas, das organizações. É
negar o mandado e rechaçar a ideologia que nos autoriza a “cuidar” do doente mental, que
assim perde suas possibilidades de ações pela submissão ao diagnóstico, ao tratamento, à
instituição, ao saber médico.
O movimento da antipsiquiatria propõe a promoção de uma reflexão de que os agentes
institucionais são meras peças que fazem rodar a engrenagem social, tendo como base a
consideração do sujeito composto na complexa relação social, sem o rótulo ou diagnóstico
que o defina; como premissa, a liberdade de escolha, com a qual o sujeito amplia suas
possibilidades subjetivas; como perspectiva, o desmantelamento das relações hierárquicas;
como propostas, a descaracterização das técnicas científicas utilizadas e a criação de
diferentes atuações, construídas coletivamente e auto-gestivamente; como ação, a oposição
das relações de poder com a construção de alternativas antes preestabelecidas; como objetivo,
a expansão espontânea e pessoas em contraposição à tutela; e como compreensão de que a
loucura faz parte da nossa realidade e não deve ser vista apenas pela ótica da ciência.
Para tanto, coloca em debate a abertura dos hospitais. As portas abertas como um ato
revolucionário e expansão subjetiva diante das normas, das técnicas, do silenciamento, da
exclusão.
A porta aberta torna-se, então, uma indicação para uma tomada de consciência
sobre o significado da porta, da separação, da exclusão de que os doentes são
vítimas nesta sociedade. Ela assume um valor simbólico além do qual o doente se
reconhece como “não perigoso para si e para os outros”, e essa descoberta só pode
incitá-lo a se perguntar por que o obrigam a ficar numa condição tão infame: por que
o excluem (BASAGLIA, 1985, p. 311).
Dessa maneira é que o sujeito poderá desempenhar seu papel na sociedade e expandir
suas possibilidades de escolha. Sua existência na sociedade pode ser um ato contestatório, sua
126
Difícil descrever em poucas palavras uma pessoa que foi capaz de sobreviver à
própria destruição e que purgou e ainda purga, a todo momento, sua própria história.
Em sua dureza e seu cinismo reconhecemos um constante desafio ao nosso desejo de
má fé: joga no rosto de todos sua destruição e sua sobrevivência, sabe que foi
excluída e de muitas maneiras, mas se recusa a aceitar isso como seu destino
(PAULA apud COMBA, 1985, p.213).
vida imanente. Pela perspectiva “re” a inclinação clínica na saúde mental torna-se “um
artifício por convenção, é uma inclinação artificializada para lidar com os fenômenos que
escapam às médias dos comportamentos sociais” (PEIXOTO, 2013, p.136), impondo-se como
barreiras às possibilidades criativas. Na repetição e cronificação do “re”, na clínica do saber-
verdade, na formação dos profissionais que seguem esta cartilha, tudo se torna sacralizado por
uma liturgia: as temporalidades, os encontros, as palavras, os olhares, os gestos e a disposição
dos corpos; professores se tornam especialistas e os alunos não contestam o saber sagrado;
catequizam-se futuros profissionais através de “livrotópos das tristezas (CID, DSMs e os
livros de psicopatologia) (PEIXOTO, 2013, p. 138).
Sendo assim, Peixoto (2013) afirma que a saúde mental é a fábrica da ideia do doente,
das disfunções psíquicas, dos transtornos mentais, que por esta concepção é o que desordena a
vida social. A produção desta ideia pela saúde mental não ocorre isoladamente, atuando em
conjunto com práticas jurídicas e com a “lógica providencial da Ciência que promete a cura
dos males” (PEIXOTO, 2013, p. 126). Portanto, é urgente romper com os espaços e
temporalidades dos dispositivos de saúde mental que reinscrevem a paisagem estática da
doença.
Romper com os espaços institucionalizados, com a construção do saber verdade e suas
técnicas, com a cronificação das ações e atuações profissionais é um movimento que se auto-
produz pela potência coletiva. Quando o corpo coletivo, a multidão, se esforça para construir
um espaço de exercício da liberdade verdadeiramente democrático e não pautado nas relações
de poder e subjugação do outro, participamos da construção de heterotopias de liberdade. As
heterotopias de liberdade ocorrem nas práticas coletivas e são pautadas na ética que deseja a
potência comum e não o poder, o que somente se torna possível quando, nas instituições
normativas, encontramos brechas que dão vazão à potência coletiva (PEIXOTO, 2013).
Como descrito anteriormente, as instituições somente podem funcionar utilizando-se
como alimento das forças dos sujeitos, no entanto, essas forças são direcionadas pela
finalidade das instituições. Como por exemplo, no hospital psiquiátrico, o psiquiatra, o
psicólogo, o enfermeiro dispõem sua força de trabalho para cumprir a finalidade de “cura”,
que na rede social culmina no direcionamento dos corpos, no adestramento e na exclusão. Na
construção das heterotopias, a potência individual capturada é desligada da finalidade da
instituição e composta no coletivo que se dirige não mais à finalidade preestabelecida, mas
sim à construção de uma ética comum.
Ao responder os questionamentos sobre os motivos que o levaram a se interessar pelos
jogos de poder em torno da loucura, da medicina, da doença, da prisão e da penalidade,
128
Foucault (1978/2006) responde que tais jogos fazem parte de nossa vida cotidiana a partir da
qual os homens criam seus discursos. Esses jogos de poder implicam nos status razão e
desrazão, vida e morte, crime e lei, alinhados à nossa existência, a partir dos discursos que nos
compõem e que compomos.
Trazendo as heterotopias descritas por Peixoto (2013) é possível associá-las ao que
Foucault (1978) denomina lutas imediatas, que nesses jogos de poder estão ligadas às
instâncias de poder mais próximas, aquelas que se exercem imediatamente sobre os
indivíduos. Não são necessariamente lutas de classes contra o Estado, podendo ser descritas
como lutas anárquicas, inscritas no interior de uma história imediata. Foucault compreende a
importância dessas lutas, que, por vezes, foram tidas como marginais.
[...] podemos dizer que essas lutas são anárquicas; elas se inscrevem no interior de
uma história imediata, que se aceita e se reconhece como perpetuamente
aberta[...]avaliar a importância dessas lutas e desses fenômenos, aos quais, até agora,
apenas se atribuiu um valor marginal. Seria necessário mostrar o quanto esses
processos, agitações, lutas obscuras, medíocres, frequentemente pequenas, o quanto
essas lutas são diferentes das formas de luta que foram tão intensamente valorizadas
no Ocidente sob a bandeira da revolução (FOUCAULT, 1978/2006, p.50).
Nos jogos de poder os indivíduos são submetidos a uma prática ascética, prescrita,
principalmente pelo saber médico. Tendo como semelhança a confissão promovida pela
igreja, os sujeitos passaram a direcionar suas preocupações, seus cuidados à saúde e até
mesmo seus desejos aos especialistas, que passam a ter a chave para decifrar a subjetividade e
a interioridade de cada um, tornando-se também um objeto de conhecimento que se expande
ao coletivo e cria-se um arquivo científico com fins utilitaristas, de produção de verdades e
morais (FOUCAULT, 1978/2006; PEIXOTO, 2013). A confissão, o auto exame e a
orientação dos especialistas também direcionam nossa subjetividade, nossos sentidos e
percepções.
Como já mencionado, nossos sentidos e percepção estão relacionados com a cultura da
sociedade em que vivemos, sendo os afetos e as sensações conseqüências de determinadas
condições históricas. “[...] Daí a forma como nos vemos, de como nos compreendemos, de
como nos ocupamos conosco, de como nos relacionamos com o mundo, com as pessoas, com
o desejo, mantém relações com o que vemos, escutamos, sentimos, tocamos, cheiramos,
compreendemos”. O espaço das percepções, dos sentidos torna-se um espaço a ser
culturalizado, espaço que é “catequizado pelos hábitos, costumes, pela dinâmica de que somos
obrigados a participar em diversas instituições” (PEIXOTO, 2013, p.105).
Nesse contexto, o cuidado de si tornou-se uma prática moral e de renúncia de si
mesmo, de bloqueios e cristalizações das possibilidades expansivas subjetivas, por estar
ligado às regras, princípios, verdades e prescrições. No entanto, o exercício da liberdade
somente pode existir na construção ética e não moral. Ética por não estar pautada,
necessariamente, nas verdades dualistas: bem e mal, anormal e normal, criminosos e “homens
de bem”. Ética por romper com os desejos direcionados e dar vazão aos desejos autênticos.
Ética que compreende a vida para além dos maniqueísmos estabelecidos, abrindo-se para a
criação de saídas e possibilidades múltiplas. Ética que rompe com a lógica da subjugação. “A
liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela
liberdade” (FOUCAULT, 1984/ 2006, p.267).
Em toda e qualquer relação humana há forças de poder atuando, quer se trate de
relações institucionais, econômicas ou amorosas. Há inúmeros casos em que a relação de
poder está fixada de tal forma que é dissimétrica e a margem de liberdade é extremamente
limitada. No entanto, sempre há possibilidade de resistência e perseveração no ser.
No hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, com o uniforme azul, há um
homem com o suposto diagnóstico de esquizofrenia catatônica e déficit relacional irreversível,
na paisagem congelada pelas grades do hospício, no lugar que nada passa. Imóvel, inerte e
130
O cão retorna. A parede coberta pela hera silenciosa sombreia a existência vegetal
do interno de uniforme azul. A instituição entranhada no espaço sentencia que ali
nada acontece, aconteceu ou acontecerá. No espaço institucional do manicômio, hera
é hera, nuvem é nuvem, bicho é bicho, morte é morte, e as metáforas inexistem
como meio de transporte. A mobilidade do vira-lata continua subvertendo o tempo e
o espaço da lógica manicomial. O movimento descontínuo do ziguezague anuncia
que algo sucederá, interrompendo o silêncio e o tempo contínuo dos vegetais. No
hospital do Engenho de Dentro, o vai e vem do animal ao lado do homem duro
como o muro prenuncia que a vida se desinstitucionaliza através do desdobrar do
gesto que recusa o fardo da sua natureza (BAPTISTA, 2010, p.76).
Homem do uniforme azul que resiste, insiste em perseverar em seu ser, que apesar de
ser entendido como uma negação, com falhas e deficiências, age, move-se e cuida daquele
que lhe transmite afeto. Rompe com a estagnação identitária, nuvem, cão, catatonia. Luta
imediata, demonstrando que mesmo com a captura da potência pela instituição, enquanto há
vida, há possibilidades diversas.
Como já discorrido, pelas concepções teóricas da psiquiatria tradicional as alterações
subjetivas de qualquer natureza, quando comparadas à normalidade, são compreendidas como
uma falha; o sujeito como ser passivo diante de seus sintomas e sofrimento. No caso da
psicose, ainda o analisam como ser desconectado das representações simbólicas sociais.
Como foi possível figurar o esquizo como esse farrapo autista, separado do real e
cortado da vida? Pior ainda: como pode a psiquiatria fazer dele, na prática, esse
farrapo, reduzi-lo a esse estado de um corpo sem órgãos tornado morto? — ele, que
se instalava nesse ponto insuportável em que o espírito toca a matéria, e dela vive
cada intensidade, consumindo-a? (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 34 e 35).
Em sua obra A Gaia Ciência, Nietzsche acrescenta que a consciência é o último e mais
tardio desenvolvimento do corpo, mais fraco e incompleto, por isso, originando-se da
consciência inúmeros erros.
O filósofo sugere aos homens da consciência e da moralidade, que carregam consigo o
fardo de manter em vão o controle de seus atos e pensamentos, de enquadrar-se sempre ao
modelo estabelecido e de preservar a moralidade: “Superai, ó homens superiores, as pequenas
virtudes, as pequenas prudências, as considerações de grãos de areia, o rebuliço de formigas,
o deplorável bem-estar, a “felicidade da maioria”” (NIETZSCHE, 2011, p.273). E continua,
discutindo sobre a importância do caos e do descontrole no processo de criação e superação:
“Pois ainda prefiro barulho, trovão e maldições do tempo a essa ponderada, vacilante quietude
felina; e entre os homens também odeio mais que tudo os pisa-mansinho, meio-isso, meio-
aquilo e duvidosas, vacilantes nuvens que passam” (p. 157).
Ao descrever o que sentimos por aquele que por toda a vida se enquadrou nos
protocolos sociais de trabalho e relação, Nietzsche (2016) diz: veneramos e sentimos pena,
pois somos conduzidos a pensar que é necessário o sacrifício individual para o bom
funcionamento social. Para as construções sociais, seria grave se pensássemos nossa
sobrevivência e desenvolvimento mais importantes do que o trabalho e o serviço da
sociedade. “E assim, lamentamos a perda desse jovem, não por ele mesmo, mas porque um
instrumento resignado e sem consideração por si mesmo – um assim chamado ‘ser humano
bonzinho’ –foi, com a sua morte, perdido para a sociedade” (NIETZSCHE, 2016, p. 85).
Retomo as reflexões de Spinoza sobre o que consideramos perfeito, imperfeito, normal
ou fora da normalidade. O homem pressupõe a ideia de finalidade para cada existência,
criando, assim, uma forma preconceituosa de compreender a natureza. Seus julgamentos e
avaliação se devem à sua criação imaginária originada em suas afetações. No entanto, somos
expressão da substância divina perfeitíssima. Nossa existência, assim como tudo o que está na
natureza opera necessariamente e não por uma finalidade. Contrariando o pensamento
preconceituoso da finalidade, Spinoza sugere que compreendamos a perfeição das coisas
avaliada, exclusivamente, por sua natureza e potência de agir/existir e de perseverança no seu
ser. A perfeição está imanentemente na própria existência, na potência do ser, podendo sim
49
Grifos do autor.
133
passar de uma perfeição menor para outra maior quando ampliada sua potência de agir. A
natureza de cada um deve ser afirmada e considerada na potência de existir.
Este entendimento coincide com a ideia de normatividade biológica analisada por
Canguilhem (1982). Diferencia a norma da vida de um organismo, que nada mais é do que
sua existência, imanente. Como contraposto, existe a norma social que contém o julgamento
de valor das ideias dominantes. Na normativa biológica, a doença não é compreendida como
um desequilíbrio, mas sim como um esforço da natureza para a modificação do estado
presente. Já para a norma social, a noção de doença é um conceito negativo, nocivo,
indesejável e socialmente desvalorizado, interessando apenas seu diagnóstico e cura. O
conceito de norma social está pautado na finalidade e como consequência promove a
unificação do diverso, sua absorção ou sua exclusão. Dessa forma, a norma é um conceito
antropológico, variando de acordo com as percepções de cada cultura e época, obtido por um
anteposto, o anormal.
Apresento essas reflexões para considerarmos a loucura em seu valor em si, não
comparando-a com os ideais construídos pela sociedade. Retomando Spinoza, podemos
considerá-la como incluída na natureza perfeita, ela tem sua potência de existir, de
perseverança no próprio ser que a torna perfeita. Apenas podemos considerá-la em sua
possibilidade de ampliação dessa potência a partir de sua capacidade de afetar e ser afetada
por afetos alegres.
Certa vez, em uma longa conversa com um paciente do famigerado, contou-me sobre
um diálogo que tivera ainda criança com seu avô. Perguntou sobre a vida. Ele então lhe
respondeu: “está vendo aquela árvore? Ela simplesmente existe. Está ali. E todos se
relacionam com ela, seja desviando dela para passar, seja se refrescando em sua sombra,
seja apreciando-a, seja brincando nela, seja...” Um longo silêncio e os pensamentos em mim
que não paravam de correr. A existência enquanto necessária, simplesmente porque se é. A
perfeição máxima da natureza, é assim e assim nos relacionamos, sendo ela. O devir, nos
compomos na relação natural, somos, devir-árvore, devir-água, devir-ar.
Devir-árvore, devir-água, devir-ar
Viver, amar, se apaixonar
Devir-árvore, devir-água, devir-ar
Compor, ousar, desejar
*****
134
Parece ser tão difícil assumir e intensificar a multiplicidade pelo receio de se tornar
uma proliferação sem forma, finalidade, contorno. É na ciência normativa, no paradigma
dualista que o homem mantém o controle, se assegura nas suas hipóteses e prevê o resultado
esperado. No entanto, falamos de subjetividade, de loucura, daquilo que escapa a esse modelo
padrão de ciência e comportamento.
“Há infinitos modos de voar”, não precisaríamos escolher o de Ícaro ou de Santos
Dumont, tendo nossa modernidade reduzido os infinitos modos de voar a apenas dois. Ou
estamos de um lado ou de outro, ou somos normais ou anormais, ou somos loucos ou aqueles
135
que oferecem tratamento. “É preciso muito senso estético, político, ético, clínico, demiúrgico
até, para desmontar essa disjuntiva infernal. Necessitamos de muito espírito aventureiro para
ir forjando asas, tanto no interior de uma instituição como fora dela”. Tanto nós quanto
aqueles submetidos à rede de saúde mental, devemos nos abrir para escapar da violência
binária que nos projeta num precipício abissal, no "suave paraíso asséptico de uma estranha
saúde, saúde sem desejo de asas nem um devir-anjo” (PELBART, 1996, p.27).
Compreendendo ainda mais os direcionamentos e as formatações sociais, Deleuze e
Guattari (1995) apresentam-nos o que denominam raiz-árvore. Esta possuiu uma raiz
pivotante da qual se originam e reproduzem as ideias; existe um centro de onde advêm as
demais produções. Nesse centro está a metafísica ocidental, o dualismo e o pensamento
finalista, todos eles compõem e induzem nossas produções, reflexões, comportamentos.
Alinham-se como uma raiz pivotante da qual surgem todos os pensamentos e instituições.
Nesta lógica as produções acabam sendo reproduções no sentido de que sempre farão
referência à raiz pivotante. Como saída deste aprisionamento e amarração, os autores
propõem a criação do que denominam rizoma-canal. Nele não há uma raiz pivotante, são
rizomas que se produzem em um enraizamento horizontal, num emaranhado de criações que
se conectam e podem originar zonas de intensidade, de devires, de transformações. Ao invés
da reprodução tendo como base a raiz pivotante, o que ocorre no rizoma-canal são criações,
originadas de movimentos expansivos que rompem com o universal e padrão, que não se
alinham por familiaridade, mas por contágio, por um movimento antropofágico dos mundos
que a boca pode comer. A criação abarca a multiplicidade e a desconstrução da raiz pivotante
(DELEUZE; GUATTARI, 1995).
Agregam a este pensamento a operação dos mecanismos molares e moleculares
presentes em nós e em nossa realidade social. Eles se atravessam, se modificam, se compõem
e recompõem. Os primeiros reproduzem a norma, o padrão, o discurso, a ideologia; os demais
operam no nível da mudança, da instabilidade, das escapadas. No nível molar, podem surgir
movimentos moleculares, assim como movimentos moleculares podem se constituir em algo
molar, num ato contínuo de desterritorialização e reterritorialização. As linhas molares e
moleculares se entrelaçam e se cruzam numa realidade imanente. As linhas molares
participam do processo de territorialização, mas elas mesmas podem escapar e se
desterritorializar, passando a ser conduzidas como linhas moleculares. Estas também podem
posteriormente se reencontrar em organização, fascismos, normas.
Difusas no contexto social, as linhas molares podem se expandir, materializando-se
em diversos agentes. Como, por exemplo, no hospital, o médico representante da norma, da
136
reprodução do saber também pode ser representado pelos enfermeiros, pelos técnicos e até
mesmo pelos pacientes. Os centros de poder atuam no “tecido micrológico”, disperso, difuso,
sendo constantemente descolado em operações finas, mínimas, detalhistas. Difundem-se na
hierarquia, do professor ao inspetor, ao aluno, ao zelador; do general aos oficiais e aos
soldados (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 97). Isso explica a difusão do racismo, do
preconceito, da violência contra pobres e negros desde as que estão impregnadas na grande
mídia, até as das relações cotidianas.
Por isso, pode-se afirmar que microfascismos se encontram em grupos e indivíduos
sempre à espera de cristalização. Em contrapartida, também podemos encontrar possibilidades
disruptivas de movimentos moleculares, que se expandem e se ampliam pelo contágio, que
fazem devir, que dão passagem aos desejos, que rompem com a necessidade da norma.
Portanto, em espaços instituídos, aparentemente molares em toda a sua constituição, podem
ocorrer movimentos moleculares. Na sociedade como um todo, das normas, das burocracias,
dos espaços quadriculados, do tempo marcado e do corpo cronificado, existem devires
revolucionários, o tempo da loucura, do Aion, do Chronos-louco, das criações múltiplas, da
cor que brota na cidade cinzenta. No manicômio, marcado pela hierarquização, subjugação,
coerção e controle, é possível surgir a criação, a construção de um saber horizontal, a
potencialização do coletivo em comunidade que se manifesta, que se impõe e resiste, a arte e
a expressão desejante da loucura. É possível encontrar profissionais que tenham como
princípio a normatividade biológica, que não seguem receitas, diagnósticos e prognósticos.
Como afirma Spinoza, mesmo nas situações mais precárias e adversas, enquanto houver
existência haverá sempre resistência, perseverança.
De repente um cheiro
Um cheiro vadio,
Um cheiro de cio,
Cheiro de tesão
De repente um cheiro
Um cheiro úmido De
corpos fecundos
Choveu no Sertão
Nego Bispo
137
50
Minha observação.
138
ao que é considerado normal e padrão. Os especialismos são centros de poder que produzem
corpos-objetos que circularão “em meio aos saberes-práticas-discursos sacralizados e
legitimados como universais” (RAUTER; PEIXOTO, 2009, p. 271). Desse modo, os autores
acreditam que esta lógica se espalha como a lógica do capitalismo, operando sobre o desejo
não mais por meio da disciplina que modela e dociliza, mas através da produção de novas
modulações, sintonizando as subjetividades à frequência de uma sociedade produtiva, acética
e livre de tudo o que possa dela diferir.
Novas estratégias de controle surgem no mundo contemporâneo, não mais pautadas
apenas na disciplinarização por trás dos muros do aliso, escolas e prisões. Um falso fora
indica o quanto a lógica de aprisionamento permanece mesmo nos extras-muros:
Num trabalho que escrevi, apontei que existia, do lado de fora do manicômio, um
falso fora, quando relatei a estória de um interno que ali permaneceu cinco anos por
uma questão burocrática: faltava-lhe a guia de internação. Mas o mais interessante
foi constatar que a lógica manicomial continuou a funcionar, mesmo depois da
chegada da tão esperada guia, mesmo do outro lado dos muros, através da irmã que
não queria hospedar o irmão em casa, dos guardas que não queriam recebê-lo
quando procurava ajuda, dos que não queriam lhe dar emprego por ser egresso de
manicômio, etc. (RAUTER, 1997, p. 6)
Uma vez que se considera a natureza como viva e animada pelas forças, todo ato que
a perturba deve ser acompanhado de um “comportamento ritual” destinado a
140
Os papalaguis, assim chamados os homens brancos pelo chefe de uma tribo tuiavii da
Polinésia, parecem ter perdido a alegria. Trabalho e alegria não coincidem, trabalham a vida
toda em uma mesma função; não realizam ações coletivas, com trocas afetivas, pois cada qual
se mantém em sua área por toda a vida. O chefe tuiavii, então, propõe uma reflexão:
imaginem se vivêssemos toda a nossa vida na função de buscar água no rio, este trabalhador
ficaria cansado do sol e de tanto despender energia em recolher água e transportá-la; não
participando de outras atividades, ficaria preso e formatado àquela única função. Ele
evidencia, então, nossa tristeza e nosso aprisionamento, característicos da nossa sociedade
capitalista (SCHEURMANN, 1998).
Nesse sentido Rauter (2000) acrescenta que o trabalho alienado, impessoal e
individualizado não pode funcionar como vetor de existencialização. O trabalho alienado
exclui a inserção no coletivo, o prazer e a alegria, visando a competição e a individualização.
Inserir usuários da rede de saúde mental a partir do trabalho ou da arte,deve ocorrer
priorizando a criação e a produção de vida, rompendo com a adequação à ordem estabelecida.
Nas relações sociais contemporâneas, com a robotização e alienação do trabalho, com
a valorização da rapidez e a molecularização do poder, a luta a favor da loucura não deve
visar apenas o combate aos manicômios anacrônicos ainda existentes, mas também se faz
necessário um combate à homogeneização, ao enquadramento e ao silenciamento da loucura.
Como anunciado por Pelbart (1996), as naus dos loucos não mais estão escondidas em mar
aberto, podem estar em qualquer parte onde a loucura se enclausura em si mesma e se disfarça
de normalidade.
Até quando devo me refugiar no não-ser para ter o direito de ser quem eu realmente
sou?51
Mesmo tendo sido recortada, diagnosticada e medicalizada pelo saber médico, algo
não se atinge, não se alcança e se foge. Assim, a loucura assumiu o papel da transgressão, da
estranheza, de tudo o que escapa à racionalidade hegemônica. Ela simboliza o caos, a rede
conectiva subjetiva, o devir, a fugacidade, o tempo Aion, o não enquadramento ao
neoliberalismo, ao quadriculamento, à normatividade, ao modus operandi do trabalho.
51
Frase de um paciente internado na enfermaria do famigerado.
141
*****
Em meio ao caos próprio da loucura que ali circulava, havia também o caos de uma
possível destruição. Convivíamos com barulhos de bombas, estrondos, escombros. O
famigerado se tornara alvo de reconstruções e adaptações devido a uma obra pública, para a
realização da qual fazia-se necessária a convivência da loucura com barulhos, cimentos,
redução de espaços, remanejamentos de dormitórios, cinzas, poeiras, tintas, goteiras,
alagamentos e homens trabalhando. No caos, as vozes que nele e fora dele percorriam:
“Acaba-se com o famigerado” ou “Não devemos deixá-lo ser destruído”. Sem muito pensar
nessas questões, junto a outros funcionários, eu tapava buracos, enxugava goteiras, acalmava
alguns, desesperava-me com outros, corria para cá e para lá, sem direção nem sentido.
Quando, às vezes, olhava para o lado e via a face serena de alguns internos que sorriam e
pareciam me dizer: nada disso adianta; ou ainda: deixa acontecer e venha comigo sentir a
brisa, acalmar os estrondos e apreciar o silêncio.
Como no conto “Só vim telefonar” de Gabriel García Márquez, cheguei ao hospital
psiquiátrico como quem cai de paraquedas, só queria telefonar, pois recebera uma proposta de
trabalho que poderia contribuir com meu sustento durante minha permanência na cidade, até
que retornasse à cidade natal. Acreditava que permaneceria por poucos meses até que
encontrasse outro trabalho, mas fui ficando, ficando, ficando. No conto, Maria, que tivera uma
pane no carro no meio do deserto, pega carona com um ônibus, que a deixaria em um destino
qualquer onde pudesse telefonar para seu companheiro. Chegada ao destino final, um
hospício, Maria crente que iria apenas telefonar, foi confundida com outras pacientes, foi
internada e foi ficando, ficando, ficando.
Quando cheguei ao famigerado não sabia ao certo aqueles que eram pacientes, ou
aqueles que eram funcionários. No pátio percorriam pessoas de uniforme azul e outros
internos que, no início, confundia com os funcionários. Aos poucos o que era obscuro se
tornou mais nítido. Os movimentos lentos ou catatônicos da loucura passaram a ser por mim
reconhecidos, enquanto que a loucura dos profissionais passou a ser por mim diferenciada.
Olhos desconfiados chegavam de toda parte, quem seria aquela que não fazia parte do círculo
dos profissionais da saúde mental e já se instalava como assessora de direção? Seria uma nova
residente ou funcionária? Perguntas que não foram respondidas, assim como o mistério da
lâmpada da santa.
Imaginava como seria aquele lugar à noite, sem o trânsito contínuo dos médicos, dos
estudantes e da comunidade. Como seria o famigerado no final de semana, sem o movimento
da rotina dos dias úteis? Poucas vezes o adentrei nesses dias. Era um silêncio monótono, um
calor sem vento e os internos nos seus aposentos. Um ou outro que insistia em romper a
143
monotonia. Parecia um cenário congelado, interrompido, às vezes, por gritos. Olhava para a
santa, cuja lâmpada que compunha o seu altar, disseram-me estar sempre acesa e nunca ter
sido trocada. Sentia medo e vontade de logo sair dali.
Misto de lenda e história, século VI, Irlanda: Princesa Dynfna refugia-se no interior da
Bélgica para esconder-se de seu pai viúvo que queria desposá-la. Mas o diabo denuncia o
paradeiro da princesa ao rei. Ela, ao ser descoberta, recusa-se a entregar-se ao seu pai e é
decapitada por ele em praça pública. Este seria apenas mais um caso de filicídio, não fosse um
alienado assistir à cena e recuperar a razão. Dynfna foi, então, canonizada como Santa
Protetora dos Insanos. A partir dessa história, um misto de lenda e mistério, muitos passaram
a acreditar nos milagres da Santa e saíam em peregrinações, a pedir milagres para a cura da
desrazão. No local surgiram as primeiras colônias, pois os peregrinos passavam a fazer parte
da aldeia, contribuindo nas atividades para sua manutenção. Segundo consta, seu pedido de
cura acabava sendo concedido alcançado por meio da vida rotineira na aldeia e pelo próprio
trabalho (AMARANTE, 2007).
Os alienistas do século XX no Brasil foram adeptos das colônias dos alienados,
acreditavam que o trabalho era a maneira mais precisa para a cura da alienação. Após a
Proclamação da República, muitas colônias foram criadas, mas acabaram tornando-se
instituições asilares convencionais. Das primeiras colônias, de pessoas livres e peregrinas,
contraditoriamente, surgiram as instituições asilares (AMARANTE, 2007).
Dos internos eu ouvira histórias do famigerado de tempos remotos, mortes, suicídios,
camisa de força. Também contavam histórias de gratidão, casos “bem sucedidos” na atenção à
loucura, internos acalmados, encaminhados para residências terapêuticas ou para
atendimentos nos ambulatórios. Casos de amor, de violência, de abusos, de destruição e
reconstrução dos laços familiares, de abandono e ressignificação de histórias. Apesar de
mortas, pensava vivas as paredes que sustentavam o famigerado. Entre elas muitas histórias,
devaneios, acontecimentos. Mesmo que eu me aprofundasse numa possível investigação
histórica, encontraria não ditos, fantasias, mistérios. Soubera também de um caso de amor
entre dois internos, um deles já falecido. Tiveram uma filha, que hoje se encontra sob os
cuidados de outra família. Sua mãe, ali, residente da ala denominada albergue, apresenta sua
personalidade, gosta de se divertir, dançar, é bastante vaidosa e quando percebe uma
oportunidade, libera seus galanteios aos jovens estudantes ou outros profissionais. Expressam
amor, carinho, demandam atenção a todo e qualquer transeunte que resolva adentrar o
hospital. Quando chega um desconhecido, muitos se aproximam pedem café, dinheiro, lanche,
cigarro, brincos ou qualquer outra coisa que seja.
144
Era uma confusão. Os devaneios de alguns profissionais, nas reuniões das equipes,
eram sempre interrompidos pelos pacientes que demandavam café, ou anunciavam qualquer
notícia. “UFF”, você sabe o que significa, Natália?”. “Não”. “União da fofocagem e da
fudelância”, alertava-me um dos internos, que já trabalhara na instituição universitária.
Refletia e refleti muito sobre seu pronunciamento. Parecia querer desmascarar estudantes e
professores que se escondiam por trás dos cadernos, jalecos, diagnósticos, conceitos e
teorias que receitavam a cura. Falava com ar soberano, com seu porte alto e forte, com
ideias firmemente entoadas, de alguém que muito já vivera e muito sabia sobre bastidores,
sobre relações de poder e sobre as artimanhas da sobrevivência. Solicitava sempre jornais
para sua leitura diária, seus cabelos e barba sempre penteados e na aproximação de
qualquer pessoa desconhecida ou indesejada, reagia com afastamento e negação. Via-o
constantemente numa discussão sem fim com o diretor, pois este insistia para que ele tirasse
seus documentos e entrasse com a aposentadoria. Ele negava e se esquivava. Muito atento
aos meus movimentos e sentimentos conseguia decifrá-los sem que eu mesma soubesse deles.
Certa vez, sentou-se ao meu lado e perguntou se eu estava feliz. Respondi que sim. Ao longo
do dia ele continuou com sua pergunta e eu sempre respondendo sim. Até que no final da
tarde, estava tomada por um desgaste mental e físico e uma grande tristeza. Respondi que
não e chorei. Ele também conseguia decifrar as pessoas que trabalhavam no famigerado que
tinham algum interesse por mim. Falava em alto e bom tom desafiando aqueles que, para ele
poderiam ser concorrentes. “Quero ver quem consegue dar o salto mortal da capoeira mais
alto e mostrar a maior agilidade corporal e destreza”. Acho que sentíamo-nos seguros um ao
lado do outro. Ele insistia em me alertar para que entendesse e agisse com mais sagacidade
nas relações do famigerado. Foi aos trancos e barrancos que captei sua mensagem.
O famigerado apesar de ser apenas uma instituição, parecia ser um universo,
atravessado por divergentes questões políticas e teóricas. Quando da construção da obra
pública que atravessaria suas estruturas, borbulharam muitos questionamentos. Deparando-o
com a lei 10216/2001, qual era o funcionamento do hospital? Por que centralizava o
recebimento e encaminhamento de medicamento para a rede? Quantos pacientes haviam sido
encaminhados para residências terapêuticas? Por que CAPS e ambulatórios continuavam a
encaminhar pacientes? Como seria a reconstrução do seu prédio? Qual seria o financiamento?
Como se daria a redução no número de internos? Para onde seriam encaminhados? E
continuávamos a receber encaminhamentos de internação por ordem judicial; a emergência
continuava lotada, chegando pessoas de ambulância, encaminhadas por policiais, familiares, e
outros serviços públicos; as enfermarias continuavam com reduzido número de roupa de
145
descartadas por seus colegas e ficou muito injuriado com seus terapeutas, deduzindo que
tudo ocorrera como uma retaliação por ter saído. Eu mesma, não sabia o que fazer diante da
situação, mas passaram alguns dias e tudo estava como antes, alguns dias mais e ele havia
sido encaminhado para o setor aberto.
Muito aprendi com este paciente, principalmente a liberar-me das verdades supostas e
construídas pela psicologia. Apesar de seu sofrimento, contado pelos anos de internação e
ausência de vínculo familiar, em sua arte, expressa em telas e desenhos, ele transmitia afetos
que ampliavam minha potência. Certa vez, teve uma de suas peças comentada por seu antigo
psicólogo, que havia dito que o círculo amarelo representava o eu, a composição, a
ressignificação. O paciente despediu do psicólogo em silêncio e, em seguida, me disse que o
círculo nada significava e não estava aberto para qualquer categorização. Sua criação, dizia
ele, era um diálogo com o vazio, era um processo sem fim, com formas inacabadas abertas
para serem completadas pelo observador-participante. Ele tinha um projeto de animação,
baseado nas histórias de um amigo: um garoto que viajava em sua bicicleta, tinha na garupa
um baú com diversos livros que eram distribuídos; o baú era mágico e sempre que era aberto
coisas inusitadas aconteciam.
“Que tipo de relação poderia haver entre loucura e arte?”. Há um parentesco entre a
loucura e a arte, muitas vezes expresso por figuras como Bispo do Rosário. “Podemos dizer
que há vida na loucura, assim como há vida na arte. E a vida é criação contínua de novas
formas, de novos territórios. É a vida que há na loucura, enquanto força disruptiva, que cria
constantemente esse parentesco entre loucura e arte” (RAUTER, 2000, p.272).
Ambos apresentam um modo de ser fronteiriço, o que escapa ao que é regulado,
premeditado, estabelecido. Representam a saída do círculo protetivo, identitário, formatado,
regulamentado. Direcionam-se aos caos, às forças disruptivas, à criação de novos territórios.
Revolução era o tema de uma das composições de um paciente acompanhado no
ambulatório. Aprendeu de “ouvido” a tocar o violão e fazer composições. Todas as suas
músicas traziam uma voz rouca, rasgada, crítica, cantando poesias ricas e suaves. Percebia-se
que, por trás das flores, lá estava um espírito de luta. Anos de passagens por vários
manicômios. Gostava de me contar a história em que na colônia jogavam futebol de tamancos
de madeira. Já viajara para Bahia, conhecia Xuxa e Ivete Sangalo. A primeira foi responsável
pela criação de seu filho, no projeto de acolhimento Xuxa Meneguel. Disse nunca tê-lo visto
ou conhecido, mas acreditava em sua existência. Pedia para que eu assistisse ao programa The
Voice, pois lá poderia ver seu filho. Nos tempos de colônia tivera uma namorada, e acredita
tê-la engravidado, no entanto, foram separados pela instituição manicomial. Não sabe sequer
dizer se ela sobrevivera às violências institucionais. “Enquanto o sol descansa acorda a noite.
Uma estrela linda me ilumina52”.
“Está tudo bem?” Perguntava para um interno. “Não, não está tudo bem. Olha a
minha barriga, ela é grande. Minha mãe sofre do mesmo problema. Sempre que vou à
consulta ou terapia falo isso, mas não se importam. Acho que estou grávido ou com uma
melancia. Não sei o que fazer. O que você acha?”. “Acho que uma dieta poderia ajudar”.
“Não, não é dieta, minha mãe faz dieta e continua com a barriga. Comer também é gostoso”.
Falava-me dos astros, das galáxias, dos planetas, fazia traços e desenhos para me explicar
sobre eles. Nas atividades coletivas, os sons dos instrumentos eram tirados de outra forma, o
pequeno atabaque era invertido e se transformado em um instrumento de sopro e o berimbau
era tocado com os dedos.
Assim como a arte, a loucura causa um desarranjo. O diálogo provoca desconcertos, te
conduz para outros universos, galáxias e planetas. Como as máquinas desejantes que só
funcionam desarranjadas. “[...] A arte utiliza frequentemente essa propriedade, criando
52
Trecho de uma de suas músicas.
148
verdadeiros fantasmas de grupo que curto-circuitam a produção social com uma produção
desejante, e introduzem uma função de desarranjo na reprodução de máquinas técnicas [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 49).
O pecado, portanto, não se pode conceber senão num Estado, isto é, se decorre
do exercício do direito de decidir o que é bom e o que é mau (TP, cap. 1, art. 19).
Em Ética Spinoza afirma: somos o que existimos, parte da natureza perfeita de Deus.
Em Tratado Político, ele conclui: o pecado somente pode ser concebido no plano do direito
comum, em que leis e regras são estabelecidas. No plano natural, não há erro ou pecado, pois
fazem parte de sua essência/existência. Conduzidos por nossa imaginação, concebida pelas
afetações em determinado contexto social, é que julgamos pelo bem ou pelo mal, enquanto no
direito natural não há qualquer tipo de valoração, mas sim a essência/existência.
Constantemente a loucura me desafiava a romper meus próprios padrões, as técnicas e
teorias. Projetava-me a outros campos, com outros sentidos, em outras perspectivas de tempo,
de valores, de metafísica. No famigerado ou encarnava a metafísica canibal ou me enquadrava
às hierarquias e à suposição de um saber. A existência poderia ser os diversos mundos que a
boca come. Como no movimento de um ritornelo, ía do círculo, experimentava o caos e a ele
retornava agregando outras experimentações. Finalmente, estava localizada em um setor
149
composto por profissionais de várias áreas. Nessa localização tentava utilizar a roupagem de
psicóloga e me alinhar ao que na instituição se estabelecia como padrão, preencher
formulários, conversar acerca dos projetos terapêuticos dos pacientes, relacionar-me com eles
tendo como suporte o saber da área. Mas continuava na fronteira, entre a loucura e o saber-
teoria, numa linha de tensão entre pacientes e profissionais. Percebia que provocava
incômodos, intrometia-me onde não era chamada, gerava “expectativas e demandas” junto aos
pacientes, como algumas vezes fui informada por profissionais, e estabelecia relações com os
pacientes que não se restringiam ao território do famigerado.
Semanalmente, era acompanhada por um paciente do ambulatório na atividade da
horta. Tanto eu quanto ele gostávamos das plantas, conversávamos com elas, cuidávamos de
seu crescimento, vigiávamos para que ninguém apontasse o dedo para nenhum broto ou fruto
morrer, regávamos. Essa rotina aproximou-nos, preocupava-me com ele e ele comigo. Pouco
sabia sobre seu projeto terapêutico ou sua história no famigerado. Acolhia alguns respingos de
acontecimentos que, por vezes, ele causava, como discussões com um ou outro paciente. Sua
primeira casa era o famigerado, pois lá passava a maior parte do seu tempo, chegava por volta
das 6 horas da manhã e saía somente à noite. Era ali que conseguia um troquinho para
complementar sua aposentadoria, pois sempre que saía para comprar algo para alguém, ele
ficava com o troco. Em alguns dias da semana tinha direito à marmita do hospital, nos outros
dias se virava com bolachas, salgados, lanches. Estava sempre animado e agitado, conversava
com outros pacientes, percorria a comunidade ao redor do famigerado, num movimento de ida
e vinda à horta. Com o passar do tempo, percebi que não havia mais motivação e animação
nas palavras e nos gestos dele. Assim, recorri ao seu terapeuta. Tendo passado algumas
semanas, recebi a notícia de sua internação, em outro hospital, por motivos clínicos.
Cheguei no hospital em que estava internado e ele estava sozinho. Pediu para que eu
ficasse até a chegada de sua irmã, o que demorou algumas horas. Estava com muito frio e
reclamando de dor. Providenciei uma manta e apenas fiquei ali, ouvindo suas dores. Nas
próximas visitas, algumas melhoras, mas continuava sozinho, pedindo para que eu ficasse até
a chegada da sua irmã, que trabalhava. Assim, conheci um pouco de sua história. Contou-me
que tinha uma filha, mas estava muito distante e se sentia triste por isso e falou sobre suas
internações, que começaram quando sua esposa resolvera terminar o relacionamento.
Nada disso estava no protocolo. Mas foi assim que conheci o outro lado da loucura,
apesar de ter família e ser acompanhado por ela, parecia ser bastante solitário. Relatou-me
alguns acontecimentos em que, ao final das histórias, eu reconhecia o quanto era
incompreendido. Na ocasião de sua internação, também pude aprender sobre a dificuldade
150
vivenciada pela pobreza e pela discriminação da loucura. No primeiro dia em que estava no
hospital, vi um enorme descaso da médica, que não se prestava a dar qualquer informação.
Ainda não tinham um diagnóstico e, por isso, os enfermeiros não poderiam oferecer qualquer
tipo de alimento ao paciente, que estava com muita fome. Passadas algumas horas, fui
informar-me sobre o seu caso, aguardavam o resultado de um exame cujo encaminhamento,
por insistência minha, foram verificar e constaram que não havia sido sequer encaminhado.
Fizeram o exame, aguardaram o resultado e assim o paciente pôde comer. A manta dada pelo
hospital no dia em que reclamava de frio, era a “manta pobre”, a mesma descrita por Lima
Barreto. Na marmita um feijão ralo, um punhado de carne e bastante arroz. Seus pertences
cabiam numa sacola de plástico, uma muda de roupa, um desodorante e um creme.
Famigerados hospitais. Burocracia. Gente coberta com manta pobre. Médicos em
pedestais. Falta toalha, falta lençol, falta uniforme. Quando não há frio, há muito calor, sem
vento, sem ar. Os pertences cabem numa sacola. A comida tem hora e é a hora mais
esperada. Formam-se filas. Espera ansiosa. Para a janta, ainda é cedo, mas tudo tem sua
hora. O tempo não passa. O que fazer? O que há para fazer? O que se pode fazer? Olhos
pedintes. Não, não, não sei o que fazer. Têm medo, medo dos outros, medo do delírio, medo
da força. Têm medo, medo da rua, medo de sair de casa, de abrir as portas.
Há os pacientes que podem fumar seu cigarro até o fim, há aqueles que fumam as
guimbas deixadas pelos outros, representando uma hierarquização da guimba como um
resíduo de uma situação institucional. Tal hierarquização deriva “da fragilidade da
personalidade de certos pacientes, os quais sentem, por isso, com maior intensidade a pressão
da instituição fechada, a violência dessa clausura, e, de outro lado, de um aspecto que eu
chamaria sócio-econômico” (PIRELLA apud BASAGLIA, 1985).
A fumaça e o cheiro do cigarro eram abundantes. Quando chegava visita no
famigerado muitos corriam para pedir cigarro ou até mesmo um trago. Tinha aqueles que
fumavam as guimbas deixadas por outros. Outros podiam financiar seu próprio vício ou seus
familiares. O vício era tanto que, entre eles, havia até brigas e trocas de favores pelo cigarro.
Muitas vezes essas trocas aconteciam veladamente, sem que os profissionais soubessem, pois
muitas iam contra a organização. Nunca presenciei tais trocas “ilícitas”, mas ouvia suas
histórias, que incluíam relatos sexuais. Ouvi também sobre uso de drogas53 no famigerado,
quando um ou outro paciente saia, corria até a comunidade e trazia às escondidas as drogas
53
Ouvi sobre o caso quando ainda atuava como assistente de direção. Pó, maconha, crack? Não soube ao certo,
mas relatos como este, de pacientes que escapuliam do famigerado e voltavam com ares entorpecidos, eram
recorrentes.
151
para a instituição. O famigerado se localizava bem próximo a uma comunidade, com tráfico e
facção, a algumas ruas perto dele podia se ver jovens, na entrada da comunidade, com suas
barraquinhas de “produtos”, o que facilitava a entrada de drogas no hospital. Quando isso
acontecia, parecia que o caos se instalava, era notícia de brigas, de desespero dos
profissionais para apaziguar, compreender e acalmar as consequências do ocorrido. Muitos
pacientes eram residentes da comunidade e mesmo quando recebiam alta, retornavam
frequentemente ao hospital, estes e outros, por tantas vezes internados, sabiam os esquemas
da quebrada ali perto.
Um bolo para comemorar o aniversário de um interno. Ele estava todo animado,
convidara as pessoas duas semanas antes de sua comemoração. O parabéns ocorreu no
refeitório da enfermaria, como convidada especial estava sua mãe. Ele fez discurso, contou e
repetiu várias vezes sobre seu irmão que trabalhava como bombeiro, sobre seu tio e outros
familiares que moravam na comunidade ao lado. Em seguida, pediu para que sua mãe
falasse, ela então, repetiu a história do filho bombeiro, apontou o dedo para o paciente e
disse que só ele estava ficando. Senti um aperto no peito e um contágio de um misto de
alegria e tristeza. Seu histórico no famigerado era grande, várias internações. Lá também
parecia ser sua segunda casa ou mesmo primeira, pois mesmo sem estar internado,
frequentava o hospital todos os dias. Não sei qual motivo, mas certa vez machucou um
profissional e por isso foi impedido de retornar, mas nem isso fazia com que ele se
desconectasse, algumas vezes tentou entrar escondido.
O que fazia aquelas pessoas voltarem ao famigerado? Era um questionamento que eu
levantava constantemente. Algumas suspeitas... Em suas vidas parecia haver uma pobreza
afetiva e relacional. Pelos relatos que chegavam até mim, imaginava uma vida solitária e de
escassez de recursos materiais. Vários diziam ir ao hospital passar o dia, já que em suas casas
ou bairro não havia com quem conversar ou o que fazer. Demonstravam uma grande
dificuldade em estabelecer novos pontos de referência, criar novos circuitos, novos ciclos, sair
do círculo, ir de encontro ao mundo.
Traçamos um círculo em torno de um centro frágil e incerto, tentamos organizar um
espaço limitado, como se estivéssemos em casa. Nesse círculo incluímos componentes que
servem como referências e marcas. “Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto
quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser
cumprida, de uma obra a ser feita”. Selecionamos, eliminações, extraímos, “para que as forças
íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam
152
resistir, ou até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.101).
A construção do nosso ethos é territorial, num movimento que ocorre da organização
do caos em agenciamento, organização do agenciamento e um componente constante de
passagem. Nosso território existencial é codificado, com a definição de um código para sua
repetição, no entanto, cada código pode se transcodificar. O território é nossa marca
expressiva, uma construção da qual mantemos à distância as forças do caos. “Um território
lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil
frente a intrusões). Ele é construído com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si
mesmo um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um anexado”. Nele há um
interior de domicílio ou de abrigo, com peles limítrofes que delimitam o exterior; há nele,
ainda, zonas intermediárias. Marcado por índices componentes de todos os meios: “materiais,
produtos orgânicos, estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados
percepção-ação” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.105).
Nossa existência, então, se dá num movimento constante de variabilidade e fixidez,
sendo nossa consistência, ou seja, a expressão identitária do ser, a maneira pela qual os
componentes de um agenciamento territorial se mantêm juntos. Há uma marcação rítmica do
ethos dos pacientes que circulam no famigerado, nesse ritmo há uma repetição que pode se
abrir para a diferença, para a conexão com novos agenciamentos, para a criação de novos
modos de existir.
No entanto, para a ampliação dessas conexões e transposição para a diferença, faz-se
necessária a ampliação das possibilidades de encontros entre agenciamentos, ou seja, uma
ampliação do repertório cultural e relacional, muitas vezes lentificado pela restrição na
apresentação de elementos variados ou até mesmo pelo uso do medicamento. Dizem alguns
pacientes que os remédios são pílulas do esquecimento, são pastilhas sedativas que estragam o
estômago e os dentes. Sedados, acabam recorrendo ao campo protetivo, do círculo delimitado
que mantém as forças do caos no exterior, de mais fácil acesso: “[...] um interagenciamento
poderia comportar linhas de empobrecimento e de fixação, que conduzem a um buraco negro,
com a possibilidade de serem substituídas por uma linha de desterritorialização” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 129).
No que tange à agressividade de alguns pacientes no famigerado, muitas vezes
expressa em brigas, palavrões, xingamentos e gritos, utilizo-me novamente de Basaglia
(1985). Ele reconhece a agressividade como sendo um ponto de apoio possível para a
reabilitação do paciente que por meses ou até mesmo anos esteve no ciclo asilar, de alta e
153
reinternações. A agressividade, como força de reação e de conflito, pode ser entendida como
uma oposição ao poder que o determinou e o institucionalizou, também podendo ser uma
tentativa de reconquistar o corpo próprio, recusando-se a identificar com a instituição.
Na construção de nosso ethos, com a codificação de nosso território, marcamos
distância entre mim e o outro. Trata-se de manter à distância as forças do caos que podem nos
desconfigurar. “Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem em meu território, coloco
placas”. Se preciso, tomamos nosso território em nosso próprio corpo, territorializando-o “a
casa da tartaruga, o eremitério do crustáceo, mas também todas as tatuagens que fazem do
corpo um território” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.111 e 112).
efeitos terapêuticos das plantas ou criavam outras histórias, como por exemplo, a história
dos reptilianos que chegaram ao Brasil. Outros gostavam de deitar na grama e ficavam ali
quase todo o tempo. Com a luz do sol e com a proximidade com os pacientes proporcionada
pela atividade na horta era possível ver os dentes amarelados e podres, a pele áspera e
ressecada e os piolhos nas cabeças de alguns. Para o desenvolvimento da atividade na horta
usávamos pá, enxada, serrote. Certa vez levei um grande susto, um dos pacientes estava
deitado na grama e outro senhor se aproximava dele com a enxada na mão. Antes que
pudesse abordá-lo, acreditando que ele pudesse agredir seu colega, ele se aproximou do
outro e começou a roçar o mato que estava ali próximo.
“Nessa situação de coação, onde tudo é controlado e previsto em função daquilo que
não deve acontecer, mais do que em função de uma finalidade positiva em relação ao doente,
a liberdade não pode ser vivida senão como um ato proibido, negado”. Essa realidade existe
exclusivamente para evitar a liberdade. “Uma porta mal fechada, um quarto não vigiado, uma
janela entreaberta, uma faca esquecida, são convites explícitos para uma ação destrutiva que a
instituição existe para prevenir”. Na instituição psiquiátrica o doente não pode viver a
liberdade, permitida apenas em atos de “auto ou hetero destruição”. Não tendo alternativas,
onde não há possibilidades de escolha e de responsabilização, o futuro possível é a morte, pela
recusa de uma condição de vida invisível, “como protesto contra o nível de coisificação a que
se foi reduzido, como a única ilusão possível de liberdade”. E a psiquiatria nos ensinou que
tais ações são motivadas pela natureza da doença (BASAGLIA, 1985, p. 309).
Morte. Durante o ano em que estive no famigerado vivenciei a morte de dois
pacientes, um deles já senhor de idade, bem magrinho e debilitado. Como era paciente do
setor aberto, o albergue, estava sempre perambulando pela orla da praia, à frente do hospital.
Pedia dinheiro, ia até a comunidade e voltava de lá, suspeitava eu, com ares de embriaguez ou
sob efeito de qualquer outra substância que eu não saberia dizer qual. Teve pneumonia, foi
internado num hospital clínico e lá mesmo faleceu. O outro paciente, conheci-o ainda no
gabinete do diretor. Estava sempre apresentando suas teorias filosóficas ou projetos para a
melhoria do hospital, como por exemplo, o projeto de criação de um lava-jato, que visava a
inserção dos pacientes no mercado de trabalho ou outro que tinha como propósito a ampliação
da horta transformando-a numa horta comunitária. Quando não estava no hospital, vivia com
seu pai, que segundo ele, era um acumulador, tinha coisas velhas e garrafas espalhadas pela
casa toda, o que gerava nele uma alergia que era possível ver em sua pele. A princípio, ele era
acompanhado pelo ambulatório, mas sempre circulava no hospital, apresentando cada dia
mais tristeza e falta de esperança. Foi internado. Em sua internação, dizia-me que não fazia
155
uso dos medicamentos indicados e incentivava os outros aterem essa mesma prática. Dias
após receber alta tivemos a notícia de seu suicídio, que, paradoxalmente, se deu pelo consumo
de todo seu medicamento receitado.
Sempre que chegava ao famigerado ele me recebida com sorrisos. Era um senhor de
idade, com grande histórico de internação. Sua comunicação era limitada a poucas palavras,
“Porto Novo”, “cigarro”, “casa” e “vá para a puta que te pariu”. Respondia poucas
perguntas, com uma ou outra palavra do seu repertório. Muitas vezes, chegava até mim e
dizia “Porto Novo”. Após alguns meses descobri que se referia ao local onde morava. Por
outras pessoas, descobri também que ele fora um peregrino, andava pelas ruas e por várias
cidades. Demonstrava gostar quando ia com ele passear na orla da praia e, quando eu não
podia ir, ou era contrariado, ele mandava o “puta que te pariu”. Ele havia perdido todo o
vínculo familiar, era daqueles que fumava as guimbas e andava com algumas roupas furadas
e calças largas, recebidas de doação. Parecia ter resignação quanto à sua condição asilar.
Simplesmente estava ali. No entanto, minha percepção era refutada quando noticiavam suas
fugas, numa delas foi encontrado em um bairro distante. Buscaria um Novo Porto?
Em entrevista com Furio um dos internos que participou da transformação da
instituição asilar em comunidade, publicada no livro de Basaglia (1985), ele narra sobre a
abertura do hospital, das pequenas saídas dos pacientes em grupinhos, dos novos desafios que
são lançados, do sentido de fuga e resignação de alguns pacientes. Apesar de alguns
parecerem resignados pelos anos de institucionalização, ele acredita que, em qualquer um há o
desejo de saída. Incluiu ainda a observação de que, quando os setores eram todos fechados, o
índice de fugas era alto, havendo uma cessação das fugas quando da abertura dos setores.
Portanto, conclui que não faz sentido fugir de um lugar aberto.
Foi assim, com várias cautelas para coibir as fugas que organizamos a festa junina
que ocorreu no famigerado. Seria um grande evento, com convidados e atrações culturais.
Para sua organização contamos com a colaboração voluntária de algumas entidades. Os
pacientes estavam a caráter, mas por cautela ante às fugas, havia nas vestimentas dos
internos da enfermaria masculina algo para discriminá-los. Os pacientes dançaram
quadrilha e apresentaram músicas e danças. Com a colaboração voluntária e do restaurante
do hospital foram oferecidos comes e bebes. Estava estampada, no rosto de cada um, a
alegria por participar daquele evento. “Seria bom se aqui fosse assim todos os dias!”.
Também seria bom se sempre houvesse uma luta com toda a rede de saúde e sociedade
contra a exclusão, o asilamento e a hierarquização da lógica hospitalocêntrica. Entre os
profissionais havia uma tensão, uma apreensão de que qualquer coisa pudesse desviar a
156
A crise do doente é a nossa própria crise. A crise de uma sociedade que produz
regulamentações, estabelece as normas, provoca a desigualdade de classes e cria suas próprias
instituições para combater os que se alojam nas bordas, nas fronteiras das demarcações
sociais. Loucos, anormais, delinquentes, moradores de rua, desabrigados, andarilhos
percorrem instituições, cada um com seu nome anotado no sistema institucional, em
delegacias, abrigos e hospitais que prometem oferecer cuidados sociais, saúde e
ressocialização. Mas, ao que parece, a instituição padece do mal que tenta combater, gerando
exclusão e violência. Basaglia (1985) é categórico ao reconhecer que fazemos parte dessa
crise: cabe a nós, profissionais, refutar o mandado social que nos foi delegado pela sociedade.
Se a ação terapêutica impede o doente de tomar consciência de sua exclusão, a solução é
refutar esta prática que tem como objetivo atenuar as reações do excluído. Romper com o
mandado social da psiquiatrização, da contenção da reação do ser excluído diante da violência
e das relações de poder é abrir-se para a criação de práticas, práticas coletivas, produzidas por
um saber-comum, saber não opressor. É ampliar sua capacidade de afetar e ser afetado. É
contribuir com a multidão ativa, não dominada necessariamente por medo, mas sim pela
potência da vida. Gorizia é um exemplo de um combate dentro:
157
Abro a porta da enfermaria para contar uma fofoca. Como sabemos, a fofoca não conta
necessariamente uma única verdade, pois a verdade tem um lugar e um tempo. A fofoca nada
mais é do que um conto, transmitido por alguém que se interessou pelo assunto, se afetou por
ele e o conta com toda essa emoção, aumenta um ponto, faz rodopios, escorrega daqui e de lá,
usa diferentes entonações e vai cantando conforme a reação de quem escuta. É assim,
envolvida na minha própria narrativa, que apresento essa criação na loucura, o projeto de
capoeira na enfermaria masculina do famigerado. Para construir essa história colhi as
impressões de meus camaradas da capoeira que participaram do projeto, as minhas e as dos
pacientes.
Em cada encontro semanal, eu e meus camaradas da capoeira, após realizar a atividade
na enfermaria, saíamos do famigerado com uma sensação distinta, às vezes de alegria, às
vezes de tristeza e angústia. Mas sempre saíamos com a reflexão de que enquanto nós íamos
embora, eles ficavam. Havia sim uma rotatividade dos pacientes, que participavam por alguns
meses enquanto estavam internados e recebiam alta, enquanto novos internos eram
apresentados. No entanto, durante a realização da atividade, com duração de
aproximadamente um ano, muitos não estavam incluídos nesta rotatividade, iam ficando,
ficando. Estes por vezes participavam da atividade e deixavam de se interessar por ela. Para
os que chegavam, a capoeira era sempre uma novidade atrativa. Era um movimento constante,
movimento e repouso, atração e repulsão, força centrífuga e centrípeta, como as intensidades
que preenchem e atravessam o corpo sem órgãos, podendo mantê-lo inerte ou construindo
desvios e novas direções.
Cada encontro com sua particularidade, nunca houve possibilidade de previsão ou até
mesmo de programação do que seria feito. Às vezes, percebíamos que estavam mais
interessados em movimentar o corpo; às vezes, mais interessados em tocar e cantar; às vezes,
54
Trecho de um samba chula de Manteiguinha, também cantado nas rodas de capoeira. Maroca, no dito popular,
significa fofoca.
160
mais introspectivos, outros mais expansivos. Com essas mudanças rotativas, também
observávamos que, enquanto alguns grupos se interessavam mais por rimas, na ocasião
seguinte, com novos integrantes, o interesse maior era na conversa, ou então, nos
movimentos, na roda, na interação. Ainda havia aqueles que participavam do projeto por um
tempo, recebiam alta, mas poucos meses depois retornavam ao famigerado. Foi o caso de um
deles, que se enchia de marra para falar que era integrante do Comando Vermelho, dançando
passinhos e mandando rimas, mas ao retornar para nova internação estava no “colo de sua
mãe”, não sabia explicar ao médico o que havia acontecido, tinha nas mãos um brinquedo, o
peito estufado murchara e se transformara num corpo sem armadura.
Tentávamos incentivar a participação da equipe técnica da enfermaria, mas não
tivemos muito sucesso. Alguns demonstravam não gostar de nossas algazarras, barulhos e
batuques, enquanto outros demonstravam carinho, elogiavam nossa disposição e se
arriscavam nos passos de samba que geralmente fazíamos antes de encerrar. Daqueles
pacientes não internos da enfermaria masculina, que eram do albergue ou do ambulatório,
brilhavam os olhos quando passávamos pelos corredores cantando e tocando nossos
instrumentos, alguns queriam participar até ameaçando entrar na enfermaria, mas era contra
os regulamentos da “casa”. Brincávamos, então, de outra forma: cantávamos e tocávamos
com eles antes de entrarmos ou ao sairmos. Era assim, um constante improviso, uma batalha
de mandingas, com rimas e risos, com rasteiras e defesas, com banzo e capoeira.
Como diz Basaglia, (1985) é necessário colocar entre parêntese todos os modelos para
ter a possibilidade de agir em território não codificado, ou seja, romper as técnicas e esquemas
que fomos formatados a seguir em nosso território de trabalho, nas relações afetivas, na
família, entre outros. Agir em território não codificado é criar novas maneiras de atuar, de se
relacionar, de existir.
Na linguagem nietzschiana, são forças ativas e reativas que nos movem. Romper com
os fascismos em nós somente é possível pela sobreposição das formas ativas. Enquanto as
forças ativas impulsionam a criação, as forças reativas produzem a adaptação, o ressentimento
e a resignação. Nietzsche (2011) nos convida a pensar a criação como um ato brincante de
esquecimento de nossas formatações, teorias, verdades.Contrariamente, as forças reativas são
aquelas que mantêm os valores morais sociais, por isso estão vinculadas à memória, o que
permite sua reprodução e transmissão. Como acrescentam Deleuze e Guattari (2011), o socius
registra, tatua, recorta, mutila, cerca. Portanto, acionar as forças ativas é dar início a um novo
movimento, é agir em prol da vida e da ampliação de nossa potência. É ato brincante de
161
Estou no Jurujuba
Porque briguei com satanás
E na minha mãe
Eu não bato mais
Eu como pão com manteiga
E não tomo suco
É por tudo isso
que me chamam de maluco
A loucura também luta com resistência e contra a coerção, seja em gritos que
protestam ou na multiplicidade que se expressa. Contrariando a lógica dualista, muitos
pacientes resistem às formatações morais e seguem a pluralidade de cantos e caminhos. Como
na poesia de José Regio, também aos loucos, quando lhes dizem “vêm por aqui” respondem
“não vou por aí”, preferem não ter definições, redemoinhar os ventos e os becos lamacentos.
Nesse sentido, Deus pode não ser apenas bom, tampouco satanás somente ruim. Deus e o
diabo é que os guiam, mais ninguém! O desenho pode ser um disco voador, karatê o que eu
ou você quiser. A definição de maluco, ou seja, o diagnóstico, é apresentado como uma lógica
inconsistente:“porque como pão com manteiga e não tomo suco”. Seguindo a linha de
pensamento aqui apresentada, é possível afirmar que a lógica da psiquiatrização, com seus
diagnósticos e promessas de cura é incoerente, pois o discurso do cuidado esconde a exclusão
social que ele reproduz. Marca e rotula aqueles que foram eleitos pela sociedade para serem
controlados e subjugados.
Pela criação da norma, a ciência médica, com seu controle medicamentoso e com suas
categorizações patológicas, segue o caminho da moralidade, propondo a purificação e
adequação ao que é moral. Como analisado, o caminho da moral é o caminho traçado pelos
discursos evidentes da elite, é o caminho que elege o que é bom eo que éruim, que se faz pela
oposição a e negação do outro. É o caminho do certo e do errado, mas por trás dessa escolha
temos a manutenção dos privilégios e do status quo da sociedade. A proposta de cura e o
162
55
Refiro-me às demais instituições inseridas na rede de saúde mental, que podem ter lógicas manicomiais.
163
como já analisadas, bem como sua delimitação espacial e, consequentemente, subjetiva, são
capazes de diminuir sua potência de agir, mas, conforme Spinoza, onde há vida há
perseverança, há resistência em prol da existência.
No projeto de capoeira, buscamos aumentar a potência de afetar e ser afetado,
exaltando aquilo que rompe, que se desarticula, incentivando o aumento da potência de agir, a
brincadeira, as palavras rimadas, cantadas, o corpo que sai da vagarosidade rítmica, que
ginga, sobe e desce, rodopia, ri e samba. “Rir é afirmar a vida e, na vida, até mesmo o
sofrimento. Brincar é afirmar o acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é afirmar o devir e,
do devir, o ser” (DELEUZE, 1976, p.142).
ela atravessa a natureza, e todos os seus elementos, animais e vegetais. A natureza é musical,
é rítmica (DELEUZE; GUATTARI, 1997).
Nas atividades realizadas abríamos para a possibilidade de construções musicais
heterogêneas, para as quais, mesmo já tendo a marcação das músicas de capoeira e os
instrumentos que nessa prática se fazem presentes, os pacientes criavam suas próprias rimas,
traziam sambas que eles mesmos haviam composto, faziam raps com contestação política e
tocavam os instrumentos de variadas formas. A música abria passagem para os devires, para
uma construção coletiva. Nos encontros com capoeira criaram corridos56 que pularam os
muros do famigerado e percorreram rodas de capoeira na cidade. Capoeira de Ioiô, de Ioiô, de
Ioiô. Alguns sambas também se transformavam, afrontando e zombando a psiquiatria e sua
medicalização. Ai dotô da psiquiatria, vê se me dá um remédio para curar esse menino. Tá
doendo onde? É aqui dotô. Ao cantar “aqui”, apontavam para os pés, para a barriga, para o
joelho, brincando com dança e música.
Com a ginga e a movimentação, o objetivo não era a transmissão dos movimentos
utilizados na roda, mas sim a criação de movimentos singulares, a partir do que o corpo podia
naquele momento. Ao sugerir a mão no chão, enquanto alguns se agachavam e colocavam
uma das mãos, outro colocava as duas mãos e andava pelo chão imitando leão, zebra, siri. Ao
sugerir caminhar em um pé só, imitávamos saci ou pulávamos. Ao alongar os braços, alguns
pegavam as estrelas e outros pegavam a nuvem. Enquanto alguns gingavam levando os pés
para trás, outros os movimentavam para frente ou para o lado.
A ginga é considerada um dos principais movimentos da capoeira. Ela também
simboliza o paradoxal do jogo, da roda, da vida. Com ela se ludibria, dança, brinca, mantendo
uma circularidade em que não há início nem fim. Ela não tem definições, pode ser isso e
aquilo, ataque e defesa, dança e jogo, movimento ou parada. Com ela o jogador se expressa,
faz encenações, finge, falseia, vai e não vai, quase como os passos de um bêbado. Dela diz-se
um equilíbrio precário, movimentos de uma dança síncope, de uma música dissonante, com
paradas, hesitações, com atenção flutuante (ALVAREZ, 2007).
56
Nome que se dá às músicas de capoeira com refrãos cantados pelo coro.
165
Durante a atividade buscávamos estabelecer outra relação com o corpo, não pautada na
padronização do movimento. Assim, rompia-se o modo rotineiro de caminhar, de interagir
com o outro, de demandar cigarros, de ocupar o pátio. Na brincadeira, alguns traziam
elementos de seus territórios, externos ao hospital, encenavam o funk, o hip hop, a
religiosidade, o rap. Para alguns, a ansiedade em entrar no jogo ia aos poucos se
tranquilizando no coletivo, para outros a timidez ia aos poucos sendo rompida pelo contágio
da alegria.
Para muitos capoeiristas a capoeira se aprende sentindo. Uma correlação do
aprendizado com o corpo. O que o corpo sente a mente aprende. Essa ideia vai ao encontro da
afirmação de Spinoza, de que o corpo existe tal como sentimos (E II, 13, corolário), não
havendo a dualidade corpo e mente, pois para o filósofo a substância pensante e a substância
extensa, ou seja, mente e corpo, são uma mesma substância, compreendida por um atributo ou
por outro (EII, 7). Spinoza, então, contribui com a compreensão da relação do corpo e da
mente na capoeira, sua expressividade a partir do que sentimos.
Para o mestre Jaime de Mar Grande, “A padronização do movimento é a prisão do
pensamento. Ser livre é pensar e movimentar-se livremente”. Corpo que se expressa
livremente, porque a mente se liberta de padrões. Por sermos compostos por uma única e
mesma substância, da qual apenas diferenciamos atributos, corpo e pensamento, é a partir de
um mesmo movimento que podemos captar a potência de um corpo e da mente. O corpo
humano existe tal como sentimos e o objeto da ideia da mente é o próprio corpo e as afecções
que lhe ocorrem, como apresentado na E II, 13: “O objeto da ideia que constitui a mente
humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra
coisa”. Além disso, quanto maior for o número de maneiras pelas quais o corpo age e se
arranja, maior a capacidade da mente humana em perceber as coisas (E II, 14). Dessa maneira,
as palavras de mestre Jaime de Mar Grande junto com as ideias de Spinoza, ensinam sobre a
vida, sua expansão, sobre a movimentação livre do corpo, sobre a ampliação da percepção das
coisas pela mente a partir do que nos afeta.
Spinoza ainda identifica que não sabemos o que pode o corpo, considerando a
consciência restrita diante dele. Dessa forma, é a partir de um mesmo movimento que
podemos captar a potência de um corpo e do espírito para além das condições dadas da nossa
consciência. Indo além do que pode captar a consciência encontramos um inconsciente do
pensamento e o desconhecido do corpo. Esse além pode ser o devir, as possibilidades de
contágio com todos os seres, que nos lançam, nos projetam, nos transformam.
166
Esse único e mesmo movimento que pode expandir corpo e mente ocorre a partir das
afetações às quais o sujeito é submetido. É na relação com os corpos exteriores que ele pode
ampliar sua capacidade de afetar e ser afetado, tornando-se mais ativo. Assim, caminham lado
a lado a sensibilidade afetiva e a potência de pensar da mente, o que um corpo pode
experimentar é correlato ao que uma mente pode conhecer.
Tornar-se cada vez mais afetado não é padecer cada vez mais, mas ser cada vez mais
capaz de formar imagens, e ideias dessas imagens [...] É na conveniência com os
corpos e mentes exteriores que se dá o tornar-se ativo; isto equivale, portanto, a uma
abertura da sensibilidade humana, a um aumento de sua aptidão a ser afetado e afetar
(MARTINS, 2009, p.24).
Nietzsche também denuncia o dualismo corpo e mente. Não acredita que mente seja
superior ao corpo, tampouco que ela possa controlá-lo. Ao contrário, nos incentiva a resgatar
o corpo, que fora esquecido. Incentiva-nos a viver o que pode o corpo, o que é real, o que é
necessariamente humano. “Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e esse desdém
era o que havia de maior: -ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar
ao corpo e à terra” (NIETZSCHE, 2011, p.14)/ “Trazei, como eu, a virtude extraviada de
volta para a terra-sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido – um sentido
humano!” (NIETZSCHE, 2011, p.74).
Com tais reflexões, como poderia propor aos sujeitos serem ativos no espaço que
restringe, que controla, que direciona? Como poderia pensar a ampliação da percepção da
mente controlada por anestésicos, analgésicos, antipsicóticos, antidepressivos? Somente pela
mandinga, pela ginga, pelo disfarce, pela rasteira, pela esquiva. Buscando brechas e furos,
portas entreabertas, cadeados destrancados. Fugas ante a atuação padrão da psicologia,
boicotes ao silêncio da enfermaria, cantos e rimas de pacientes não silenciados, extravio do
que lá acontecia para as páginas desta tese. Um exercício de liberdade, de atividade, de
criação brincante, de capoeira, de batuque e samba ante a senzala da medicação, ante a nova
roupagem da escravidão.
No projeto de capoeira do famigerado, eu e meus camaradas incentivávamos a
movimentação, a experimentação, já que mesmo em um lugar restrito, o corpo podia
apresentar sua expansão. Uma revolução que se fazia nos micro agenciamentos, na enfermaria
desorganizada em dias de capoeira, nos técnicos de enfermagem que deixavam seus postos
para sorrirem e sambarem, nos pacientes que rompiam o silencio e a catatonia. Além disso,
pensando no inconsciente do corpo, no corpo sem órgãos, nos devires, não priorizávamos a
fala ou a busca por um sentido do que era dito.
167
Incentivava o jogar
Enquanto um deles dizia
Não consigo me lançar
Tinha um anel na barriga
Que não o deixava avançar
Na mente o anel
E o corpo a se aprisionar57
Nada representado, mas sim vivido. Corpo sem órgãos atravessado pelas intensidades,
pela música que vibra, pelo toque do berimbau, pelo samba que pulsa, pelas pernas que se
deslocam, pela forma que cai no chão, provocando mudanças, rearranjos, deslocamentos,
movimentos. Foi interessante constatar que, mesmo que alguns nunca tivessem praticado a
capoeira, sabiam bem sobre seu devir-luta, conheciam alguns passos e cantos, afirmados por
serem afro-brasileiros, como a maioria, se não todos os pacientes. Devir-capoeira; devir-
Lampião; devir-Besouro; devir-zebra.
Capoeira que acolhe o caos, que permite a brincadeira com palavras desconexas, que
inclui a pura expressão orgânica do ser, do corpo caósmico da psicose. Prática que acontece
nos furos por não ser incentivada e suportada no manicômio, porque o corpo caósmico deixou
se ser cultivado no hospício tradicional, tendo sido indexado, protocolado, diagnosticado58.
Assim seguia a proposta de acolher e permitir a expressão do caos daqueles que não se
enquadram no padrão, que não seguem a linearidade forçada e imposta pela sociedade. São
sujeitos que apresentam diferentes formas de manifestação, de relação familiar, de fala, de
pensamento, de ocupação, de espaços.
57
Essa poesia foi construída tomando como consideração um acontecimento na enfermaria durante a atividade
de capoeira. Um paciente se esforçava para realizar um movimento conhecido como aú, no qual as duas mãos
são colocadas no chão e as pernas se deslocam de um lado para o outro. Estava com dificuldade na execução do
movimento, que segundo ele ocorria por estar com um anel na barriga e por sentir suas pernas amarradas no
chão. Mas ele se divertia, se arriscava, sorria e ria com os parceiros que o incentivavam a se lançar.
58
A ideia de indexação do corpo caósmico da psicose pode ser encontrada em Guattari (2012).
168
e valores morais. Arte que toma a força ativa, mesmo diante de situações de suposto controle
e submissão. Poética construída diariamente. Arte que apresenta uma pluralidade de visões e
concepções, em que um movimento pode ser de ataque, mas também de defesa, em que bom
ou mau se faz nas composições. Arte dúbia, de cuja origem pouco sabemos: apenas
suposições, crenças ou mitos. Poética transmitida pela oralidade, em que a cada conto se
aumenta um ponto. Em que a verdade não é absoluta. Em que o riso e a encenação enganam,
mentem, brincam. Expressam a dissonância, a falta da sequência linear, a síncope, o caos, a
encenação e a representação de qualquer personagem que eu ou ele queira escolher.
Da mesma forma como os internos, eu mesma buscava minha perseverança no ser,
estando inserida no famigerado, encontrando estratégias, saídas, rupturas. Nesse sentido, a
capoeira também pode ser entendida como uma fuga pessoal. Brincando com a
institucionalização, ora sendo capturada, ora resistindo, ora me deixando levar, ora
mandingando e gingando. Também como a rainha Jinga.
A palavra ginga, supostamente pode ter se originado do nome da rainha, que no
período da colonização, resistiu à colonização portuguesa de Angola. Foi conhecida por
negociar e ludibriar os portugueses, ora resistindo, ora rendendo-se, ora reagindo
(ALVAREZ, 2007). Como a loucura, a Jinga, a ginga e a própria palavra capoeira59 não é isto
ou aquilo, mas sim isto e aquilo, heterogeneidade, cultura tradicional viva, em constante
movimento e atravessamentos que a inclinam para diferentes concepções, modos de jogar e de
com ela se relacionar. Além disso, loucura e capoeira são impossíveis de serem categorizadas
ou classificadas numa única definição, forma de cuidado, de jogo. Ambas apresentam um
mistério, aquilo que não se capta pela consciência, transborda-a; suplantam a verdade e a
sequência linear. É mandinga, são vozes, visões, mostrar-se escondendo-se, personagens,
Maria Bonita, Maria do Camboatá, Riachão, Besouro60. A loucura em sua criação, força ativa,
resistência, agenciamentos, potência e perseverança no ser.
Para alguns participantes do projeto de capoeira, ela não apenas se prestava ao cuidado
corporal e mental, mas também ao cuidado terapêutico espiritual, ou seja, àquilo que não se
explica, que não se compreende, que não se diz. Tratamento corporal-mental e espiritual, foi
assim, a capoeira, caracterizada por um paciente. Enquanto outro fazia algumas rezas em
círculos antes de iniciarmos as atividades, jogava água no chão e pedia proteção.Dizia
também, capoeira é mãe, África mãe de todos. É o oculto, o mistério, o invisível que Pelbart
reconhece como matéria-prima da clínica psiquiátrica. O que é virtual está iminente e à espera
59
Que pode significar cesto, mato rasteiro, escavação, luta, dança, jogo.
60
Nomes que são cantados na capoeira. Referem-se a pessoas reais de um tempo histórico da capoeira.
169
*****
Para Spinoza, “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser
nada mais é do que a sua essência atual” (E III, 7). Lembro-me de um paciente que após a
atividade de musicalidade do projeto, começa uma brincadeira com dois reco-recos. Sozinho
ele começa a percorrer todo o pátio, joga os instrumentos para cima, bate-os contra a
parede, tenta arrancar um galho de uma árvore com um deles e os coloca pendurados no
pescoço se direcionando para a fila do refeitório. Sua viagem é interrompida, quando peço a
ele os instrumentos. Assim ele me diz: “Quero viver. Eles vão me ajudar a suportar”. Seja no
manicômio ou em qualquer outra instituição social, diante da violência, das restrições, tensões
e tristezas às quais somos constantemente submetidos, buscamos modos de perseverar no
nosso ser, formas de singularização dionisíaca, linhas de fuga que nos deslocam, nos
movimentam. E quanto mais nos esforçamos por conservar nosso ser, buscando o que nos é
útil, mais somos dotados de virtude e potência; inversamente, quanto menos nos esforçamos
em buscar o que nos é útil, mais impotentes nos tornamos (E IV, 20).
A todo instante pude observar a máxima de Spinoza, o homem se esforça o quanto
pode para perseverar no seu ser. Cada ser persevera de sua própria maneira, seja com reco-
recos, seja capoeirando, seja escrevendo uma tese, seja dormindo, rimando, compondo,
disfarçando, fugindo, encontrando as mais diferentes estratégias de sobrevivência. Naquele
contexto, via pequenas e grandes rupturas do corpo boicotado, controlado, diminuído em sua
potência.
Contrapondo-se à moral, a ética proposta por Spinoza destitui os dualismos tais como,
certo ou errado, verdadeiro ou falso. Pois tudo depende das composições dos corpos, do que
convém ou não para cada um. Depende da relação, da composição, da afecção.
Compreendemos por bem o que nos é útil e por mal aquilo que sabemos que nos impede de
desfrutar de algum bem (E IV, def. 1 e 2). Além do mais, diferentes afecções podem ocorrer
170
no mesmo corpo, tendo sido provocadas por um só e mesmo corpo, como descrito no axioma
da Ética III:
Todas as maneiras pelas quais um corpo qualquer é afetado por outro seguem-se
da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que o
afeta. Assim, um só e mesmo corpo, em razão da diferença de natureza dos corpos
que o movem, é movido de diferentes maneiras, e, inversamente, corpos
diferentes são movidos de diferentes maneiras por um só e mesmo corpo.
61
Como referido anteriormente, o famigerado passava por uma reestruturação devido a uma obra pública que
demoliria parte de seu prédio.
171
62
Ladainha de Marina Luar Duvidovich, amiga camarada de capoeira, que rima, brinca e joga. Contribuiu com o
projeto semanalmente.
63
Além do Estado governamental simbolicamente representado como “capeta que veste terno” na poesia, incluo
a consciência, as forças reativas, as definições, etc..
173
Nesse contexto, a máquina de guerra não surge como outro modelo, mas sim como um
agenciamento que se desacopla da máquina molar, saindo da inércia e viajando em
movimentos, rizomas, platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
Na poesia, minha amiga também traz uma reflexão sobre a composição dos corpos, da
vida, a constituição do ser na relação, o constante devir na rede social. Como afirmado,
fazemos parte de uma complexa natureza, em que afetamos e somos afetados constantemente.
Na parte II da Ética, postulado 4, Spinoza diz “O corpo humano tem necessidade, para
conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente
regenerado”. E continua na Ética IV, 2, “Padecemos à medida que somos uma parte da
natureza, parte que não pode ser concebida por si mesma, sem as demais”.
É nas trocas afetivas que um corpo é afetado por outro, podendo se deslocar, se
movimentar, se constituir, tendo afetos de alegria ou tristeza. Na multiplicidade de afetações,
se estendermos ao infinito, iremos perceber que a natureza inteira é um só indivíduo, em que
todos os corpos variam das mais infinitas maneiras (E II, escólio).
Somos compostos na e pela multiplicidade rizomática, fluxos que se encontram,
mudam de direção, se combinam, se agenciam. Um agenciamento é o crescimento das
dimensões numa multiplicidade, que aumenta suas conexões e muda necessariamente de
natureza. Nesse plano, homem e natureza não se diferenciam, são integrantes de um processo
que se acopla, um no outro, eu e não-eu, exterior e interior. Não há um Uno do qual deriva a
multiplicidade, tornando-se dois, três ou quatro. A multiplicidade não é feita de unidades, mas
de intensidades, direções. Ela não tem começo nem fim, mas apenas meio pelo qual cresce e
transborda. Constitui-se num plano de imanência, sem sujeito ou objeto. É como um rizoma
composto por linhas duras e flexíveis, linhas de segmentaridade e linhas de fuga, variando sua
natureza, se metamorfoseando no encontro com outros fluxos (DELEUZE, GUATTARI,
1995).
É dessa maneira que vamos nos constituindo, nos criando, nossa existência se dando a
partir dos agenciamentos, encontros, afetos; gingando juntos. Seres pertencentes à mesma
natureza, produtos e produtores dela. Nesses agenciamentos, homens e natureza se combinam,
se compõem, se modificam, podendo nessa combinação ter sua potência aumentada ou
diminuída. A potência pode ser aumentada quando combinamos com o que nos é útil, que
dispõe nosso corpo às múltiplas afetações, fazendo-nos também ser capazes de afetar de
muitas maneiras corpos exteriores. Quanto mais nosso corpo é capaz de ser afetado e afetar de
muitas maneiras outros corpos, mais potentes nos tornamos. Inversamente, é nocivo aquilo
174
que diminui nossa potência, fazendo-nos ser menos capazes de afetar e sermos afetados (E IV,
38).
Portanto, quanto mais estabelecemos trocas que aumentem nossa potência e nossos
afetos alegres, mais ativos nos tornamos e mais nos aproximamos da nossa essência, da
perseverança no ser e no desejo de ser feliz. “O desejo de ser feliz é a própria essência do
homem” (E IV, 21).
Ser ativo, para Spinoza, é o correspondente da nossa liberdade. É dado que padecemos
por necessitarmos dos demais para nossa sobrevivência na natureza, e por fazermos parte de
um campo social, com modelos universais já determinados. Como disposto na E IV, 68 “Se os
homens nascessem livres, não formariam, enquanto fossem livres, qualquer conceito do bem e
do mal”. Então, como menciona minha camarada, se resistência e liberdade são coisas sérias,
sendo ainda nossa maior luta, em qual liberdade acreditamos? Por qual liberdade lutamos?
Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a
causa adequada, isto é (pela def.prec.), quando de nossa natureza se segue, em nós
ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só.
Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial.
64
Corrido de capoeira muitas vezes entoado durante a atividade no famigerado.
175
Ora, tal prevalência dos aspectos técnicoeconômicos ou dos aspectos jurídicos sobre
aqueles referentes à produção desejante é o que está condenando nosso mundo à
desertificação – desertificação das relações amorosas e do sexo, esvaziamento do
campo coletivo, produção de um número cada vez maior de excluídos, não apenas
do mercado de trabalho, mas de um cotidiano, já que muitos modos de ser não se
adequam a um mundo que coloca em primeiro plano os aspectos ligados à
produtividade técnico-econômica (RAUTER, 2000, p. 271 e 272).
Nessa conjuntura em que a mente é como um presídio, ser louco é ter prestígio. Nosso
exercício de liberdade também se coloca na ação de afirmação dessa natureza humana e da
loucura. Está na compreensão de que nos tornamos mais ativos conforme ampliamos nossas
trocas afetivas com aqueles que compõem com nossa natureza. Afetos alegres que contagiam.
No famigerado, nos deparávamos com sujeitos que viviam uma diminuição da
possibilidade de expansão, de trocas, de autonomia, de exercício de liberdade, restritos sob a
égide da ciência. A prática da capoeira nesse espaço pôde servir como um exercício que incita
a liberdade, provoca diferentes trocas e novas conexões, permite a fala, a expressão livre e
ações, movimentações, reflexões.
Enquanto realizávamos as atividades, ouvimos de profissionais da enfermaria que ela
causava tumultos, agitação e desconserto, isso porque a capoeira rompia com a proposta
hospitalocêntrica tradicional de apaziguamento, passividade, assepsia, silêncio. Com ela havia
176
espaço para manifestação das diferenças, dos desconsertos, agitações, surtos, gritos, pois ela
se abre e se constitui na diversidade, na multiplicidade, no combate.
Retomo que a loucura não é sinônimo de doença:o caos, a música, a encenação, a
dança podem se tornar “remédio”. Num exercício de liberdade é que um dos pacientes conta
sobre sua história em forma de rima; que outro canta sua música preferida; que um deles
aproveita a ocasião para dizer que não mais vai tomar a medicação que lhe fazia tão mal; que
tantos outros escolhem simplesmente não participar da atividade.
É nessa perspectiva de pensar no que rompe, no acontecimento espontâneo, que se faz
em fuga e não é inserido em uma lógica linear, que Perlbart escreve:
Poderia pautar todo o projeto e essa escrita na crítica passiva ao modelo de cuidado
ainda presente no famigerado, o que corresponderia a uma representação uniforme,
homogênea, conforme as palavras de Pelbart. No entanto, inserida na lógica hospitalocêntrica,
tentando me libertar das formatações e mandados, impossibilitada de sozinha abrir as portas,
escolhi o caminho da mandinga, da negaça, rastreando e provocando criações, movimentos,
fugas, detectando por debaixo da homogeneização os espaços-tempos distintos.Identificar
qualidades, encontrar movimentos alternativos, de arte, de coletividade, de afeto.
O que importa é a imanência do devir revolucionário, as tensões, as alterações de
estado, a criação de outros espaços-tempos. Acontecimentos que nos liberam da mesmice, da
identidade formatada, da artificialidade de nosso regime tecnocientífico (PELBART, 1996).
Entendo a capoeira, e outros projetos desenvolvidos no famigerado, como uma
proposta de ampliação de potência pelo e no coletivo. Como máquina de guerra no sistema
manicomial. Fissuras que vão criando passagens, promovendo conexões,
microagenciamentos. Acontecimentos que, quando não capturados, são devires
revolucionários. São práticas em que – apesar das diversas restrições encontradas no
famigerado, tais como a valorização da lógica medicamentosa, a escassez de recursos
(materiais de trabalho, insumo, manutenção) e a restrição da liberdade – há movimentos,
resistências, arte, criações, formas de manifestação e expressão de si. Nisto se deu a invenção
de novas formas de atuação profissional, de atenção à loucura, de subjetivação; criação que se
estabelece na insubordinação, na construção de um inconsciente que não é dado, nem pode ser
177
interpretado. Agenciamentos que se abrem para o encontro das multiplicidades, das diferentes
histórias, personagens e sensações.
Segundo Rauter (2000), no contexto de saúde mental, oficinas podem funcionar como
vetores de existencialização, caso consigam estabelecer outras conexões entre produção
desejante e produção material. Acrescenta que elas não tratam apenas de questões
relacionadas à terapêutica da doença mental, mas também de questões políticas, que se
referem ao desejo como produtor de real, de expansão da vida, de devires.
Também podem ser políticas quando nos fazem perceber nosso estado, a lógica das
relações, a sujeição, o desejo capturado, projetando-nos para um devir, uma revolução,
insubordinação, expressão natural do desejo. Quando reconhecemos o mandado social da
psiquiatria, quando pacientes entendem a exclusão à qual estão submetidos, quando
percebemos o quanto somos direcionados a agir e viver de determinadas formas, aí sim
podemos fazer da tensão uma invenção e criação. Foi durante a escravidão que brotou a
capoeira, e, apesar da violência, das correntes e grades, pôde surgir um devir revolucionário,
um coletivo potente.
Não necessariamente os devires são ruidosos e nem sempre são visíveis, segundo as
palavras de Perbalt (1996). Muitas vezes são discretos, silenciosos, nos tempos ocos, na fresta
da visibilidade, na iminência prolongada de uma lentidão ou espera. Dou voz ao projeto de
capoeira, que pela proposta causa ruídos, sons, gritos, mas há tantos outros que
silenciosamente rompem com a lógica de tratamento medicamentosa.
Os devires também ocorrem nos processos subjetivos de cada um. Para alguns podem
se manifestar no silêncio, para outros no barulho, ou mesmo no barulho e no silêncio.
Bater as cadeiras
Foi uma forma de se rebelar
Ficou revoltado
E não queria mais gingar
As cadeiras continuaram batendo
Mas no ritmo da capoeira a tocar
Seus amigos compreenderam
Que assim ele poderia se acalmar
As cadeiras se acalmaram
E ele depressa veio dançar
exaltado com minha intervenção e começou a bater as cadeiras no muro do pátio. Os demais
pacientes sugeriram que déssemos continuidade à atividade que assim ele se acalmaria. Foi o
que fizemos. Em seguida, ele se acalmou, se reaproximou e reiniciou as atividades, incluindo-
se, ao final, na roda de coco proposta por um dos pacientes. Com a mesma intempestuosidade
que começou a bater as cadeiras, o barulho e a confusão, ele silenciosamente se reaproximou,
algo aconteceu e o deslocou. Acontecimento em que não necessariamente encontraríamos
uma lógica linear e encadeamento. É dessa maneira que a loucura parece estar alheia ao
encadeamento temporal, à coerência e ao cuidado na sucessão dos atos. “Anjos um pouco
psicóticos: alheios à história, à sucessão cronológica, ao encadeamento temporal, à
continuidade individual, sujeitos a transformações bruscas, deslocamentos repentinos,
mudanças de estado inusitadas.” (PELBART, 1996, p.74).
Pelbart também compreende o tempo da loucura como o tempo Aion, como já
apresentado, o tempo sem medida, indefinido, que abarca o imemorial, o inédito, o tempo
futuro e passado simultaneamente, que não é métrico, não é pulsado, tempo flutuante, pura
velocidade. Para ele, é o tempo Aion que observamos na psicose, no sonho, na poesia, na arte
“[...] tempo do devir não é o tempo, nem o tempo irregular, nem mesmo o tempo efêmero
contraposto a uma suposta eternidade, nem a finitude travestida de castração, porém outra
coisa, algo como a produção de velocidades e lentidões...” (PELBART, 1996, p.81).
Novamente, me valho das informações dadas pelo chefe tuiavii ao seu povo: os
papalaguis, que realizam uma divisão de tempo, segundos, minutos, horas, dias, semanas,
anos, controlam e moldam seus corpos ao tempo dividido; valorizam o tempo como dinheiro;
vivem correndo contra o tempo e dizem nunca ter tempo. Para ele, essa é uma doença do
tempo, adoecemos com ele e por ele.
Na sociedade que valoriza o tempo regulado, da produção, e o corpo tecnológico,
corremos o risco de ver desvanecido o rosto estranho da loucura e sua aura lírica. A política
de inclusão da loucura na sociedade pode cair nas armadilhas neoliberais e no modo de vida
padrão, pois sutilmente, a proposta de inclusão pode provocar o enquadramento da loucura no
modelo de normalidade estabelecido. Vemos constantemente a domesticação do estranho,
próprio da loucura (PELBART, 1996).
Nessa mesma perspectiva, Guattari (2004) conclui que os defensores da normalidade a
qualquer preço, com as melhores intenções, morais e políticas, podem servir como guardiões
da ordem normativa, ao invés de proporcionar ao louco o direito de ser louco.
Portanto, uma verdadeira política junto a loucura consistiria em desfazer a
reterritorialização que inscreveu a loucura como doença mental, incluindo-a como pertencente
179
aos processos da natureza humana. Liberando ainda seus fluxos, não mais qualificados como
particulares da loucura, para afetarem os fluxos da produção de conhecimento, de trabalho, de
desejo, de criação de tendência (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Consequentemente, esses
fluxos desterritorializados da categorização “loucura”, inseridos nos mais distintos espaços
sociais, poderiam promover uma sociedade menos normatizada, enquadrada e sedentária,
portanto, mais alegre e potente.
A produção social da loucura como doença, impõe ao esquizo uma parada forçada de
seu processo, direcionando a continuação desse processo a uma meta e ao vazio. O esquizo
não está doente de sua esquizofrenia como processo. Foi rotulado doente ao mesmo tempo em
que a sociedade manejou sua loucura como doença. Seus fluxos livres foram direcionados,
alocados, destinados a uma finalidade (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Dirigindo-nos não apenas para a loucura, mas para todos da sociedade, apostamos que
a partir do momento em que o ser humano agir com seus fluxos mais livres, com mais
comportamentos desprovidos de intenção, mais próximo estará de sua natureza e dos
encontros que aumentem sua potência. A dança, a ginga, a rima, a música, a arte em geral
pode ser um exemplo de insurgência ante a cristalização e fixidez sociais, pois no ato de
criação artístico genuíno não há metas, fins ou intenções.
A ciência, assim como a arte, quando movida por forças ativas, criativas,
desprendidas, também é capaz de provocar fissuras nas instituições e nos meios de produção.
A arte e a ciência podem ter uma potencialidade revolucionária quando cada vez mais se
distanciarem da codificação de significados, interpretações ou especialismos. Quanto mais
fizerem vazar no socius fluxos descodificados e desterritorializantes, mais potentes e
revolucionárias serão (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
180
7- É POSSÍVEL CONCLUIR?
Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semi toam sem malícia as rezas bem nascidas...
Brasil amado não porquê seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Como é possível concluir o que se encontra inacabado e nunca terá fim? Como dizer
“fim” a uma história que não se inicia nem se acaba? É com mais alguns nós e tensões que
faço uma possível conclusão. Todo este território foi marcado pelos nós: como capturar o
181
movimento; como fazer um combate às linhas molares de uma instituição estando nela
inserida; como narrar histórias de vidas fronteiriças sem estar nessas fronteiras; como viajar
por essas bordas e rompê-las, entre tantos outros nós que compuseram este trabalho. Na
conclusão não seria diferente, nós que não se desatam, que às vezes se afrouxam, abrindo
passagens para reflexões.
Sobre as telas que coloriam as paredes do famigerado, o artista dizia-me estarem todas
inacabadas, detalhe ou outro, ou até mesmo braços, pernas, orelhas ficavam sem o traçado
contínuo do pincel e da cor. Acreditava assim fazer de sua obra uma arte coletiva em que
outros pudessem dela participar através da imaginação, imaginando cores, tons, formas e até
mesmo pensando nos motivos pelos quais estaria inacabada. A imaginação fluía para além das
telas, dos formatos, dos muros, do pronome possessivo no singular. Em boa parte da minha
trajetória profissional, acreditava serem minhas as escolhas, os caminhos, a vida. Com tal
pretensão egóica pensava tudo com determinado fim, finalidade, resultado. Se não coubesse
uma resposta positiva às atuações psicológicas, lá estava eu arranjando uma possível
interpretação ou explicação à minha intervenção prática, sem tampouco perceber que era uma
entre as variadas intensidades que atravessavam as vidas. Há resquícios neste território/tese
desta pretensão e tantos outros paradigmas que me acompanharam em minha formação. Por
vezes, acreditava que com minha intervenção poderia provocar uma grande revolução,
chegando a um grande resultado e conclusão, o que foi se dissolvendo ao me conectar no
coletivo, seja o da capoeira, o de profissionais que também propunham furos no famigerado,
seja nos grupos de estudo e orientação ou até mesmo com as vidas nas ruas. Portanto, a maior
tensão existente nesse percurso, o traçado nessas linhas, foi o movimento de perfurar minhas
linhas identitárias, me projetando numa matilha coletiva tribal, ancestral, animal, profissional.
Deixei minha singularidade se aventurar pelo Brasil mastigado na gostosura quente do
amendoim. Amendoim, palavra que não apenas remete aos ameríndios da América do Sul,
povos que originalmente cultivavam esse alimento, mas também ao que é afrodisíaco, que
aguça a sensualidade. É comer e degustar o outro. A vida é sensualidade, pois nos conectamos
para sobreviver, fazendo-nos pelas mais variadas formas de contágio. As matilhas e a
ancestralidade que atravessam a singularidade nacional percorrem rios, matas, como também
os engenhos de açúcar e as cidades. Abarcam referências deleuzianas, foucaultianas, como
também rosarianas65, lobianas66, bispianas67 entre tantas outras que compõem nosso jeito de
pensar. Foi e ainda é um longo exercício romper determinados padrões, formas, formatos.
65
Referência a Bispo do Rosário.
66
Referência a Lilia Lobo.
182
67
Referência a Nego Bispo.
68
Sejam os meus, de acadêmicos, de individualistas, de tantos outros encarcerados no próprio umbigo.
69
Termo em destaque por ter sido utilizado de forma irônica, já que a palavra, comumente utilizada para
caracterizar a mulher negra, tem em sua etimologia relação com a palavra mula, animal utilizado para o
transporte de carga.
183
70
Referência ao corrido da capoeira, “tira daqui põe dali, Dalila.Tira de cá bota lá, Dalila”.
71
Referência ao livro Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade.
184
artificiais, visam o lucro, o avanço tecnológico, as produções e não têm a perspectiva global
da natureza, na qual estão inseridos. Tudo isso gera a barbárie, a violência, a discriminação.
A partir do contraste do modo de vida estabelecido como padrão e das vidas nas ruas,
e aquele da valorização da ciência dualista em contraposição à loucura orgânica 72, nessa
escrita, tive como propósito evidenciar os descompassos da sociedade. Mesmo que o Brasil
possa ser compreendido como a terra das belezas naturais, da criatividade, do movimento
antropofágico e da alegria, seus conflitos são reais e não devem ser camuflados. Há violência,
há relações de poder e de classe, há racismo, há extermínio.
A apresentação do paradigma da cultura afro-brasileira, através da capoeira, e da
cultura yanomami, através da metodologia antropofágica, teve como intenção evidenciar os
distintos modos de existir e de pensar o mundo. Ao nos aproximar de Exu, do deus da
caravana, da capoeira, do ritual antropofágico, dos xapiris, é possível compreender as
consequências sociais da valorização do deus da caravela, do dualismo e do pensamento
finalista. Portanto, a brasilidade foi destacada nesta tese para mostrar que apesar da
colonização é possível criar um jeito nosso, reinventar, mesmo que tenhamos que ingerir o
outro em um ritual canibalístico, buscando estratégias de camuflagem, de luta, de guerra.
“Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso [...] Porque é o meu jeito de
ganhar dinheiro, de comer e de dormir”.
Retomando a introdução, este é um manifesto da negaça, da mandinga, da ginga.
Acionemos nossa potência coletiva, nossas armas artísticas e capoeirísticas, para furar as
paredes da individualidade, do racismo, do machismo, do trabalho alienado, do desejo
direcionado; ocupar as universidades, as praças públicas, provocar desconsertos na
psiquiatria, fazendo da nossa existência um ato político. “Estou com desejos de desastres.
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas”. É preciso o contágio com as moléculas
das plantas, da água, da zebra, das antas, dos tatus, dos índios, das mulheres, dos negros,
todos eles enterrados pelo sistema molar. “Pense quantos Zumbis e Dandaras morrem todos
os dias”. Mas as sementes podem brotar: Que vivam Marielles! Que vivam mestres Moa do
Katendê! Que vivam Bispos do Rosário! Que vivam Dandaras! Que vivam Zumbis!!
Faço das denúncias de Kopenawa as denúncias anunciadas neste trabalho. O meu
grito, ressoado nessas linhas, é o grito de muita gente. Utilizando-me das narrativas da loucura
institucionalizada e dos encontros nas ruas, identifico a crise da sociedade, à qual
pertencemos. Não faço deste manifesto somente uma luta contra manicômios e contra
72
Utilizei este termo para diferenciar a loucura em manifestação genuína daquela moldada pelo torniquete
psiquiátrico.
185
desigualdade social, mas contra tudo aquilo que bloqueia a expansão de nossa potência, contra
o desmatamento, contra o extermínio cultural africano e indígena, contra tudo aquilo que se
opõe à vida.
Retomo que chegar a essa possível conclusão foi um longo trabalho. A luta contra
tudo o que nos captura é árdua. É possível identificar neste texto esses movimentos e
negociações. No início, a partir de algumas narrativas colhidas, evidenciava a vida nas ruas
como uma escolha, da mesma forma que ouvia e reproduzia as falas de pacientes sobre a
importância do famigerado. Foi com suor, com calor, com dor, com choro, provocados pelos
alertas da matilha, por crises subjetivas e pelo terror político que atravessa nosso país no
momento desta escrita, que percebi o quanto estava capturada pela rede das relações de poder
e o quanto, por engano, vamos entrando nos cárceres e nos abismos. Somente entendendo
meu aprisionamento, a partir de experiências encarnadas com moradores de rua e com a
loucura, é que pude identificar nas falas e comportamentos, os encarceramentos sociais e as
estratégias de sobrevivência diante das relações de poder. Como nos alerta Foucault, nossa
subjetividade foi moldada, interiorizamos os valores e as regras, o que dificulta a
compreensão das forças de poder e dissolve a problemática social. Assim, pensamos a vida
como uma escolha individual. Chegando ao psicólogo para ajudar na adequação da vida à
sociedade. Mas nossa atuação política culmina na pergunta: a qual mundo queremos nos
adaptar? Por qual liberdade lutamos? Esse questionamento trazido por Rauter nos ajuda a
sustentar a negação de nossa atuação. Podemos responder a esta pergunta aprendendo com a
loucura orgânica e com as vidas nas ruas, pois denunciam os descompassos, as barbaridades e
o distanciamento da nossa natureza pela sociedade que criamos. Nossa atuação, então, deve se
ocupar da ética, da multiplicidade, do devir, para que aos poucos desmoronem estruturas,
abram-se janelas, portas, buracos, fendas e haja criação.
Na criação de uma maneira alternativa de fazer clínica, a capoeira surge como uma
importante ferramenta, arrastando minha individualidade e minha crença no saber. Estamos de
mãos dadas faz alguns anos, mas um novo jogo, uma nova ginga ocorreu nesse processo. Foi
ela, com seu coletivo e ancestralidade, que me lançou às ruas e me aproximou do mundo dos
negros, da história dos quilombos, das maltas, dos caxinguelês. Foi por meio dela que chegou
até mim a expressão senzala da medicação, as rimas desconexas e alguns malucos que comem
pão com manteiga e não tomam suco73. Como mencionado, há formas de se fazer capoeira,
dentre as quais algumas foram capturadas pelo sistema e se encontram presas a formatos,
73
Expressão em destaque por fazer referência à rima, já apresentada, de um paciente internado.
186
padrões de ginga e movimentos. Sendo assim, destaco a capoeira que se mantém livre, que
valoriza o coletivo, que combate os aprisionamentos, que pensa o racismo, permite a
espontaneidade do corpo e a manifestação da diversidade. Por meio dela, o individual é
transbordado, assumindo um corpo atravessado por coletivos, por besouros, lagartixas,
calangos. Com ela, aquilo que se acreditava ser a verdade se desfaz. Primeiramente, a história
contada pelos livros didáticos, em seguida o que se contava sobre Deus e, logo, outras
infinitas desconstruções, a cada roda, a cada jogo um novo saber. Com mistérios, com devir.
Como explicar o pulo do gato? Ela nos faz pensar sob outro paradigma. Não é possível
explicar o inexplicável e nem tudo cabe nas lentes da racionalidade ocidental decapitada74.
Não há uma verdade, como se prega, da qual se originam os demais pensamentos. Não cabe a
explicação do pulo do gato75, porque para cada um, em cada momento e situação haverá um
pulo. Ela é Exu das três cabaças, que ao invés de optar por uma ou outra, escolhe uma
terceira. Ela é uma invenção descolonizada, que nos transporta a outros modos de viver no
mundo. Ela é verbo, é acontecimento. Sendo assim, na brincadeira da ginga, com a malícia
das esquivas e rasteiras, ela contribui com uma nova maneira de existir, de atuar, de fazer
clínica. Uma clínica com o corpo, encarnada, que vai tateando o que é possível, onde há
brechas, onde há entradas e saídas. Contribui com uma prática não pautada nos diagnósticos e
verdades, mas sim nos ritmos, nos movimentos, na roda, na multiplicidade, na guerra. Assim,
com ela e seu coletivo, que adentraram no famigerado, foi construída uma nova forma de estar
com a loucura, não pautada nos diagnósticos ou na cura. Relação que extrapolou até mesmo
os muros do famigerado76.
Capoeira que também esteve e está nas ruas. Onde quer que eu estivesse, nas ruas de
Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo ou Minas, lá estavam os passos da ginga, a meia-lua-de-
frente, a esquiva. A capoeira parece atravessar o corpo do brasileiro, como se em cada um
houvesse uma potência de guerra afro-brasileira. Seja nas ruas, nas calçadas, nas escolas, nas
brincadeiras de adultos e crianças, ela surge como um movimento espontâneo e
expressividade. Uma marca nacional de luta, de criatividade, de malícia, de ataque e esquiva.
Como nos apresenta Soares (1998), a capoeira é uma cultura escrava de rua. Surge nas ruas
como luta para sobrevivência. Na atualidade, entre aqueles que vivem nas ruas, a capoeira se
faz presente, seja na malícia para conseguir um trocado ou um prato de comida, seja nas
traquinagens para se livrar da polícia ou da operação cata-tralhas, seja no movimento de
74
Conforme nos mostra Rufino (2018).
75
Expressão utilizada para se referir a um truque ou segredo.
76
Menção à história contada neste trabalho sobre o Natal compartilhado entre integrantes do grupo de capoeira e
pacientes.
187
deslocamento pela cidade onde se consiga vender bugigangas ou outras mercadorias, seja no
coletivo malta dos Capitães de Areia, ou qualquer outro bando em que as pessoas se juntam
para resistir à opressão.
É o movimento, o nomadismo, que luta contra o sedentarismo do encarceramento.
Apesar de vivermos a era da fluidez, dos corpos rápidos, da velocidade, das relações líquidas,
nos mantemos sedentários aos padrões estabelecidos. O caminho percorrido em alta
velocidade tem um ponto de partida e outro de chegada; as tendências de comportamentos,
linguagens e vestimentas estão em constante modificação, mas continuam sendo tendência,
direcionando a expressão dos corpos; variadas são as pessoas com as quais podemos nos
conectar, interagir, mas mantemos a artificialidade pela mediação tecnológica; é possível que
mudemos nosso trabalho, nossas funções, a empresa, mas o trabalho continua alienado. Um
movimento artificial que culmina em corpos direcionados, coagidos, normatizados,
enraizados. Portanto, o movimento que este trabalho propõe não necessariamente se relaciona
com velocidade, mas sim com deslocamentos, mudanças, rotações, experimentos, ver a vida e
seus agenciamentos com outras lentes, com olhos de tatu, de camaleão, de onças. A metafísica
canibal foi apresentada com o intuito de mostrar a existência de modos de pensar, e,
consequentemente, de viver, tão distintos daqueles com os quais somos acostumados. Com
ela, uma maneira particular de se relacionar com a natureza, animais, homens e plantas, capaz
de provocar uma explosão no antropocentrismo. Olhando o plano imanente pela metafísica
canibal, há uma reaproximação com a natureza, onde não há espaço para artificialismos, onde
os seres se conectam com uma única e mesma substância, diferenciada na expressividade do
corpo, onde o trabalho se relaciona com a existência, onde cada um contribui com o coletivo.
Olhar a loucura, a vida nas ruas e toda a existência por esse prisma nos faz compreender que a
crise da loucura é nossa própria crise, que a vida nas ruas ocorre por um descompasso da era
do capital e que nossa vida se distanciou da coletividade, do contágio, dos rizomas, do devir.
A viagem canibalística é também uma viagem sensória, passa por visões, sensações e vozes,
por uma sinestesia que pode ser comparada às experiências esquizos. “Noites pesadas de
cheiros e calores amontoados”, “De palavras incertas num remeleixo melado melancólico”,
“Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons”. Na horta poderiam existir mudas de
lasanha; na barriga tinha um anel; você pode ser quem você quiser, e assim se manifesta a
loucura nas fissuras do famigerado.
Mas a sociedade pede a linearidade, o ser do conhecimento único; manda que nos
escondamos por trás dos véus da identidade fixa; liga nosso desejo aos gadgets/mercadorias;
nos distancia da nossa essência, desejo, natureza. “Até quando devo me refugiar no não-ser
188
para ter o direito de ser quem eu realmente sou?”. Desse modo, como dizia Basaglia (1985),
com as diferenciações de classe e cultural marcadas na sociedade e com seu sistema
competitivo, a própria sociedade cria áreas de compensação para suas contradições. O
racismo, a existência dos manicômios, as prisões, as favelas são áreas de compensação,
representando a vontade de exclusão daquilo que é estabelecido como temido. Vontade esta
justificada pela ciência, justiça e poder executivo.
A senzala da medicação está por toda a parte, nos manicômios, nas prisões, nas ruas,
nas relações hierárquicas do trabalho, nas construções urbanas, na distribuição dos
investimentos às regiões do território nacional, na distribuição da renda. Pensar na igualdade
social, no Brasil como terra coletiva, propor que compreendamos o genocídio dos negros e
índios como a violência contra todos, se tornaria um ponto utópico deste trabalho, que poderia
inclusive mascarar as desigualdades com o discurso da democracia racial. Por todos os lados
há privilégios estabelecidos pela cor da pele e classe social, e ainda é uma maioria branca e
privilegiada que ocupa cargos públicos, cadeiras nas universidades, os melhores cargos nas
empresas, etc. Reconhecer o privilégio e sair da posição de quem detém o poder somente é
possível através de um exercício que requer o furo do umbigo, como já mencionado. Além
disso, esse processo somente se torna possível quando provocado pela minoria, que grita, luta,
combate com seus corpos e vidas. A luta se torna desleal por estarem esses corpos
institucionalizados, desarmados da justiça, dos saberes acadêmicos, dos discursos de poder.
Quantos corpos ainda haverão de morrer na luta contra a senzala da medicação? Mesmo que
todo o sistema molar insista em nos capturar, sempre haverá a possibilidade de causar
explosões, furos, desarranjos, de gingar, mandingar, esquivar e atacar. Como nos diz
Foucault, existem as lutas que se inscrevem no interior de uma história imediata, que não são
como lutas com bandeiras da revolução, tão valorizadas no Ocidente. São lutas anárquicas,
sempre abertas. Essas lutas são as da multiplicidade, do devir, da criação. É possível deixar
vazar poesias no território acadêmico, é possível movimentar nossa perspectiva saindo do
antropocentrismo embranquecido. É possível fazer aliança com o coletivo tribal, é possível
negar a instituição e nosso mandado social. É possível o aumento do número de negros e
189
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