30 Anos Da Constituicao Multiplos Olhare

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2018
Copyright © 2018 by Luiz Guilherme Arcaro Conci, Marcelo Figueiredo

Categoria: Direito Constitucional

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Diagramação: Rômulo Lentini

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Todos os direitos desta edição reservados à


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Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

30 anos da Constituição : múltiplos olhares sobre as suas promessas / Luiz


Guilherme Arcaro Conci, Marcelo Figueiredo (coordenadores). – Rio de Janeiro
: Lumen Juris, 2018.
484 p. ; il.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-519-0982-9

1. Direito Constitucional. 2. Direitos Fundamentais. 3. Constituição


Federal de 1988. 4. Separação de Poderes. I. Conci, Luiz Guilherme Arcaro.
II. Figueiredo, Marcelo. III. Título.

CDD 342

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Apresentação

Não sabemos ao certo se coordenar um livro que tente apontar questões


quando do aniversário de comemoração dos 30 anos da Constituição Fede-
ral Brasileira é, efetivamente, uma atividade que pretende ser de regozijo. Os
atentados contra a Constituição que temos visto nos últimos tempos, seja por
autoridades públicas, seja por propostas políticas, algumas delas com a bene-
volência de estudiosos do Direito tem-nos feito refletir sobre o futuro da nossa
Constituição. E as expectativas não nos parecem positivas...
Mas, em perspectiva histórica, estamos a apresentar uma obra que somente
foi possível, anteriormente, em dois momentos de nossa história constitucional.
Isto porque, apesar de nossas 7 Constituições anteriores (1824, 1891, 1934, 1937,
1946, 1967 e a “Emenda no. 1” de 1969), duas delas alcançaram os 30 anos: a
Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Republicana de 1891. Todas
as demais não sobreviveram a este tempo. Acrescendo que uma das razões da
longevidade da primeira delas é devida à sua flexibilidade e à ausência de força
normativa, somente a de 1891 pode se comparar à atual. Ou seja, é segunda
vez em nossa história constitucional que é possível “comemorar” tal passagem.
No que se refere à Constituição Federal de 1988, o processo de erosão
democrática em que vivemos, que acaba por abalar os seus alicerces, seja no
que se refere ao funcionamento problemático das instituições ou à proteção
insuficiente dos direitos fundamentais, faz com que, a nosso sentir, seja mais
imprescindível ainda aprofundar a memória e a análise em perspectiva histórica
e crítica desta que nasceu para ser uma Constituição transformadora, mas em
sentido positivo, ou seja, mais inclusiva e democrática.
Para tanto, a organização do presente livro levou em conta, primeiro, que
tais reflexões fossem feitas no âmbito do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Fun-
damentais sobre Direitos Fundamentais (PUC-SP/ CNPq), que lideramos, e
no qual depositamos esforços para fortalecer um debate plural sobre temas que
afetam a proteção da pessoa humana. Trata-se, aliás, do terceiro livro em um
período de 3 anos, em que, consecutivamente, temos produzido material que
pretende transbordar os muros da PUC-SP e ganhar outros terrenos. Ademais,
além dos nossos pesquisadores - professores e alunos da PUC-SP - convidamos
renomados constitucionalistas brasileiros para participar deste momento tão
ímpar e tão provocativo para nós, constitucionalistas e democratas.
Nossa estratégia, para que o trabalho de cada um se tornasse mais impor-
tante de forma a maximizar a qualidade acadêmica de cada contribuição, foi
pedir que cada autor, no seu campo de pesquisa e produção, com os temas que
estivessem a realizar suas pesquisas, trabalhassem em perspectiva histórica e
crítica, é dizer, que pudessem fazer um apanhado deste período tão renovado e
conturbado da vida nacional e da nossa história constitucional. Assim, dividi-
mos a obra em duas partes. A primeira, em que os artigos se dedicam mormente
a analisar as instituições e o seu funcionamento. A segunda, para os que se
dedicam a analisar os direitos fundamentais centralmente.
E foram muitos os que responderam afirmativamente à nossa proposta, de diver-
sas instituições e regiões do Brasil, do nordeste, do centro-oeste, do sul e do sudeste,
de modo a permitir uma participação diversificada e representativa, de variadas ins-
tituições. Além da PUC-SP, participaram colegas da PUC-PR, da UNIBRASIL, da
USP, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, da Universidade Católica
de Salvador, da UFMS, da UFPE e da Universidade Católica de Pernambuco.
Os trabalhos falam por si, mas, a nós, coordenadores, é uma satisfação contar
com tantos pesquisadores de renome em uma obra que muito nos orgulha.
Importa, ainda, dizer, que o presente livro conta com a apoio da PIPEQ-
-PUC-SP, que financia a sua publicação.
Neste momento, resta-nos, esperar, por um lado, que a Constituição re-
sista ao momento em que vivemos e que, em nossa próxima empreitada para
analisá-la criticamente, daqui a 5, 10, 15 ou 40 anos, quem sabe, possamos ser
mais otimistas quanto ao que esperar do futuro desta que nasceu para ser a mais
democrática das Constituições brasileiras.
São Paulo, inverno de 2018.

Luiz Guilherme Arcaro Conci e Marcelo Figueiredo


Sumário

Parte I – Constituição, Instituições e o seu Funcionamento


Democracia, Participação e Recall ................................................................... 3
Rubens Beçak
Um Olhar para trás 30 Anos Depois: a Participação Extraparlamentar
no Processo de Construção da Ideia de Soberania no Texto
Constitucional Durante a Constituinte. ........................................................ 21
Leonam Baesso da Silva Liziero
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo
Cláusulas Pétreas e seu Controle de Constitucionalidade
nos 30 Anos da Constituição ......................................................................... 39
Bruno Meneses Lorenzetto
Paulo Ricardo Schier
O Presidencialismo Brasileiro nos
Trinta Anos da Constituição Federal de 1988 ............................................... 65
Helder Felipe Oliveira Correia
João Paulo Allain Teixeira
Limites à Autonomia Funcional e Organizacional dos
Partidos Políticos no Brasil: a Obrigatoriedade de Mecanismos
Democráticos Intrapartidários........................................................................ 81
Carlos Gonçalves Junior
O Conhecimento da Constituição na América Latina ................................101
Marcelo Figueiredo
A Dificuldade em Ser Contramajoritário:
Três Décadas de Jurisdição Constitucional Oscilante .................................. 133
Glauco Salomão Leite
Parte II – Os Direitos em Perspectiva
Democracia Direta na Constituição de 1988: entre as intenções
e a experiência do Estatuto do Desarmamento .............................................161
Igor Gomes Duarte Gomide dos Santos
Luciani Coimbra de Carvalho
A Questão Constitucional em Face da Institucionalização da
(In)Segurança - Novos Modelos Econômicos e os Direitos Fundamentais ......183
Claudio José Langroiva Pereira
Dhyelson Almeida
Moradia e Saúde no Judiciário Brasileiro: Afinidades
e Discrepâncias nos 30 Anos da Constituição ..............................................211
Adriana Ancona de Faria
Roberto Dias
Por uma Constituição não só Cidadã, mas Humanitária: uma Abordagem
dos Direitos Humanos Constitucionais e sua Concretização ...............................239
Ana Claudia Santano
Controle de Convencionalidade e Terras Indígenas:
uma Análise a Partir de 1988 ...................................................................... 265
Konstantin Gerber
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Direito Brasileiro ...... 281
Mariana Pompilio Leonel Ferreira
A Constituição como Sistema Normativo Aberto: a Cooperação
Entre Instituições Internacionais e Domésticas na Aplicação
da Dignidade Humana e do Critério Pro Persona ......................................... 305
Luiz Guilherme Arcaro Conci
Thais Novaes Cavalcanti
Ensino Religioso Confessional nas Escolas Públicas:
a Leitura da Laicidade Estatal pelo STF na ADI 4439
e o Desafio dos Sistemas de Ensino .............................................................. 323
Marisa Vilarino
Mônica de Melo
A Mutação Constitucional e o Artigo 5º, LVII da Constituição
Federal de 1988 nos 30 Anos da sua Promulgação ....................................... 345
Luís Fernando de Souza Pastana
A Influência das Decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos na Interpretação da Constituição de
1988 pelo Supremo Tribunal Federal.............................................................375
Marina Faraco
Susana Barbery
Educação em Direitos Humanos: “A Gente Espera
do Mundo e o Mundo Espera de Nós” ......................................................... 407
Valquíria Ortiz Tavares Costa
Solange de Oliveira
A Obsolescência da Perspectiva da Hierarquia dos Tratados
Internacionais para a Coordenação Entre o Direito Doméstico
e o Direito Internacional em Matéria de Direitos Humanos .......................435
Luiz Guilherme Arcaro Conci
Falta Água na Periferia: Estudo de Caso sobre Necessidades Jurídicas
Insatisfeitas Durante a Crise Hídrica na Cidade de São Paulo ..................... 459
João Vitor Cardoso
Alvaro Bartolotti Tomas
Konstantin Gerber
Ana Luiza do Couto Montenegro
Rafaela Mendes
Parte I
Constituição, Instituições e
o seu Funcionamento
Democracia, Participação e Recall

Rubens Beçak
professor de graduação e pós-graduação
da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo (USP). É mestre e
doutor em Direito Constitucional e Livre-docente
em Teoria Geral do Estado pela Universidade de
São Paulo USP. Coordenador do Curso de Pós-
-Graduação em Direito da Faculdade de Direito
da USP (Ribeirão Preto). Entre 2010 e 2014, foi
Secretário Geral da USP. É professor visitante da
Universidade de Salamanca vinculado ao progra-
ma de Máster en Estudios Brasileños. É co-editor
da Revista de Estudios Brasileños-Revista de Es-
tudos Brasileiros. Entre 2014 e 2018. foi Coorde-
nador do Núcleo dos Direitos da Pró-Reitoria de
Cultura e Extensão Universitária da USP.

Introdução
Preliminarmente, em linhas gerais, é possível asseverar como ponto de par-
tida que, em meio a debates sobre o fim ou anacronismo de certas instituições,
mormente o modelo democrático, o evolver dos debates vai se dar, comumente,
no sentido de apontar necessário aprofundamento dos meios de participação.
Certo ainda que a globalização1 vai apresentar desafios cada vez maiores
às sociedades democráticas para assim se afirmarem, na exata medida dos ques-
tionamentos advindos pela rápida expansão do capitalismo internacional, em
qualquer de seus vieses, somado às demandas por mais e mais especialização
nos direitos humanos, a ampliação da conectividade mundial num nível jamais

1 É claro que aqui, particularmente, estamos a nos referir à última “onda” de globalização, aquela
experimentada desde o derradeiro quartel do século XX, sem desconhecer que a mundialização é
fenômeno que, em outras velocidades, vêm sendo experimentado desde a Antiguidade.

3
30 anos da Constituição

antes experimentado e a revalorização do “caldo” de diversidade cultural; tudo


isto com reflexos diretos na discussão sobre a forma de exercício do poder.2
Não se trata, por óbvio, de preconizar a supressão ou mesmo alterações
estruturais nos alicerces do modelo de democracia, o que poderia sugerir hiatos
no sistema de tripartição de poderes formalmente adotado. Tampouco se advo-
ga a supressão dos partidos políticos, mas eventualmente sua convivência com
outras esferas de representatividade presentes na sociedade civil. Ainda, e não
menos importante, questionar o processo de criação da norma jurídica.3
Como se vê, são muitas as considerações acerca do princípio democrático
na contemporaneidade. Sabe-se que, mesmo em análise na perspectiva evolu-
tiva, é possível demonstrar que o princípio democrático na Teoria do Estado
deve ser compreendido de modo a abarcar os avanços científicos obtidos espe-
cialmente pela ciência política em diálogo com a filosofia política. Daí porque
asseverar-se que, entre os modelos democráticos direto, semidireto e represen-
tativo, assim como as compreensões aprofundadas dos modelos participativo e
deliberativo, “não há como prescindir-se da democracia representativa (realiza-
da pelos partidos políticos) pois, mesmo com todas as críticas, não se inventou
sistema que a substituísse satisfatoriamente (...)”4
Não obstante, salienta-se também que o processo de evolução democrática
vai no sentido da necessidade de construção de um modelo teórico unificado
que abarque experiências de alhures que propiciam maior participação: “na me-
dida em que uma série de mecanismos surgidos nos últimos anos procura apro-
ximar o polo da tomada de decisões daquele diretamente aonde ele aproveita.”5
Nesta senda, é possível elencar algumas das premissas acerca do princípio
democrático na contemporaneidade, tais como o fortalecimento de meios de
verificação da vontade popular por mecanismos semidiretos (vindo a caracteri-

2 Isidoro Cheresky trabalha o fenômeno no seu El nuevo rostro de la democracia. México: Fondo de
Cultura Económica, 2015. Cf. passim e sobretudo p. 16-17.
3 Este poderia ter sido um dos possíveis indicativos de rumo das inúmeras tentativas de reforma política
já tentadas em nosso país. Nesse sentido, Fábio Konder Comparato: “Infelizmente, continuamos a crer
que uma simples reforma do sistema político brasileiro bastaria para colocá-lo nos eixos, quando, na
verdade, são esses próprios eixos que necessitam ser mudados.” Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Sobre
a mudança do regime politico no Brasil. In: ARANTES, Aldo; LAVENÈRE, Marcello; SOUZA NETO,
Cláudio (Org.). A OAB e a reforma política democrática. Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014. p. 113.
4 BEÇAK, Rubens. Democracia: hegemonia e aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 83.
5 Idem. p. 84.

4
30 anos da Constituição

zar, segundo alguns, a presença de outro modelo democrático), uma vez que o
atual não tem sido suficiente para colmatar déficit reclamado.

Democracia e Parlamento – Participação


De acordo com Canotilho e Moreira “(...) a ‘democracia política’ é um bem
adquirido a defender, a democracia-participação é um bem a cultivar, isto é, a
promover e a desenvolver.” 6
Na passagem, realçada fica a importância do fortalecimento das instituições de-
mocráticas e da necessidade de adaptarem-se as estruturas institucionais às demandas
contemporâneas. Dessa forma, feitas algumas asseverações acerca do princípio demo-
crático, avança-se na análise de alguns pontos atinentes à sua estrutura normativa.
Trata-se, assim, de se expor brevemente conceitos chaves da Teoria Geral
do Estado e do Direito Constitucional, com destaque em dois pontos: o sistema
de governo – e a compreensão do papel atual dos parlamentos; e o conceito,
papel e perfil da representação política contemporânea, perquirindo-se qual o
papel dos grupos de interesse nesse processo.
Acerca do primeiro, sabe-se que o Parlamento é tradicionalmente conhe-
cido por ser o locus de representação política. Ainda que muitos questionem
hoje este primado, mesmo os mais moderados, que reconheçam um certo “can-
saço” do Parlamento,7 o Legislativo é ainda um elemento chave na sistemática
de tomada de decisão política, gozando de todo um arcabouço normativo que
historicamente tenha tido o parlamento como ponto de partida.
Nesta esteira, o exercício do sufrágio, os sistemas eleitorais, que, embora por si
só não sejam sinônimo de democracia sejam um forte indício de sua existência. 8 Con-

6 CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa


anotada. Arts. 1º a 107º. 4. ed. rev. v. I. Coimbra: Coimbra Ed., 2007. p. 278.
7 Expressão usada por Hans Kelsen: “Hoje – não se pode esconder – há um certo cansaço do
parlamento, embora ainda não seja o caso de falar atualmente - como fazem alguns autores – de uma
“crise”, de uma “falência” ou, diretamente, de uma “agonia” do parlamentarismo.” KELSEN, Hans.
A democracia. 2. ed. Trad. Vera Barkow, Jefferson Luis Camargo, Marcelo Brandão Cipolla e Ivone
Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 45.
8 Sinteticamente, são requisitos da poliarquia de Dahl: 1. Funcionários eleitos e investidos
constitucionalmente; 2. eleições livres e justas; 3. Sufrágio inclusivo; 4. Direito de concorrer a cargos
eletivos; 5. liberdade de expressão; 6. fontes de informação alternativa; 7. autonomia associativa. Cf.

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30 anos da Constituição

tudo, desgastado ou não, pressionado pelo papel hipertrófico do Executivo,9 o Parla-


mento é ainda um ponto importante na compreensão do princípio democrático hoje,
o qual, embora ante a necessidade de aggiornamento, nem sempre ruma nesse sentido.
Avançando-se, é possível afirmar que a disciplina constitucional que dá
base à democracia representativa aloca-se na normativa sobre os direitos políti-
cos, ainda que a Constituição lhes atribua capítulos diversos.10 Ao passo que a
Carta Magna da República atribui o poder ao povo, dispõe que seu exercício se
dá através de seus representantes eleitos, estruturando o poder estatal em “dois
locus ou esferas distintas da vida política, mas que guardam um alto grau de in-
teração: uma esfera de origem do poder, que, a princípio, funciona como potên-
cia, o povo, e outra de exercício contínuo do poder, os representantes eleitos.”11
Sendo assim, o instituto jurídico do mandato tem sua gênese relacionada a
essa distinção. Por isso, conclui que no sistema representativo os representados
estão condenados a ser (meras) “potência do poder, uma vez que as decisões po-
líticas concretas realizadas no cotidiano são de competência de representantes
eleitos. “Não seria absurdo dizer, nesse caso, que de fato a Constituição com
uma mão atribui o poder ao povo e com a outra o retira.”12
Maurice Duverger, por sua vez, destaca a diferença entre as duas teorias
da soberania dos cidadãos que embasam o sistema político constitucional fran-

DAHL, Robert. A. A democracia e seus críticos. Trad. Patrícia de Freitas Ribeiro; rev. de trad. Aníbal
Mari. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 360-361. O autor é um importante baluarte da teoria
democrática contemporânea, indicando que, se não há democracia perfeita, há os requisitos acima
que denotam maior ou menor grau de evolução das instituições.
9 Cf. BEÇAK, Rubens. A hipertrofia do executivo brasileiro: o impacto da Constituição de 1988.
Campinas: Millenium, 2008. passim.
10 A Constituição de 1988 divide os direitos e garantias fundamentais em cinco capítulos: I. Direitos
individuais e coletivos (art. 5º); II. Direitos sociais (arts. 6º a 11); III. Nacionalidade (arts. 12 e 13); IV.
Direitos Políticos (arts. 14 a 16); V. Partidos Políticos (art. 17). Acerca, leciona André Ramos Tavares:
“Os direitos políticos perfazem o conjunto de regras destinadas a regulamentar o exercício da soberania
popular. Com isso quer-se significar que a expressão “direitos políticos” é utilizada em sentido amplo,
para designar: A) o direito de todos participarem e tomarem conhecimento das decisões e atividades
desenvolvidas pelo governo; B) o Direito Eleitoral; e C) a regulamentação dos partidos políticos. Em
síntese, pode-se afirmar que é o conjunto de normas que disciplinam a intervenção, direta ou indireta,
no poder.” TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 814.
11 SOARES, Alessandro. Processo de cassação do mandato parlamentar por quebra de decoro. São
Paulo: Saraiva, 2014. p. 23.
12 Id. p. 24.

6
30 anos da Constituição

cês (e por sua clara influência, também o brasileiro). Trata-se da distinção entre
soberania popular e soberania nacional.
A primeira, fruto do desenvolvimento teórico refletido na obra de Jean-
-Jacques Rousseau justifica a titularidade do poder pelo povo. Como o cidadão
não pode exercer individualmente sua parcela no poder, elege representantes
com mandato imperativo. Por seu turno, a segunda é fruto da desconfiança dos
“revolucionários moderados” da revolução francesa quanto ao sufrágio universal
já que a massa era analfabeta. Daí porque atribuir a soberania à França e não ao
francês tendo por consequência a restrição do sufrágio.
A conciliação entre ambas veio meio século depois, desdobrando-se na ideia
de representação da nação ao parlamento e de soberania popular aos mecanismos
jurídicos de limitação do poder parlamentar como o recall americano – fruto de
análise mais detida a posteriori – e, já na V República, com o recurso ao referendo.13
Hoje, por sua vez, é possível asseverar que o princípio fundante da soberania
popular se revela na disciplina jurídica dos direitos políticos e os instrumentos consti-
tucionalmente eleitos para estruturá-los normativamente. No que concerne à Cons-
tituição brasileira, afirma-se que o modelo democrático adotado é o da democracia
semidireta ou semi-representativa, com base no disposto no art. 14 e incisos. Porém,
a soberania popular é exercida através de sufrágio universal; voto universal, secreto,
periódico e igualitário e; os instrumentos da iniciativa popular, referendo e plebiscito.
Entretanto, destaca-se que o recurso aos meios de participação direta é tão dimi-
nuto na história recente do Brasil que é possível questionar até que ponto se trata de
uma democracia semidireta ou participativa e não de um regime tipicamente repre-
sentativo. O que se pode afirmar com clareza é que desde a redemocratização, o ponto
marcante vem sendo a realização de eleições periódicas para Executivo e Legislativo.
Portanto, a restrição constitucional da participação política do cidadão ao
sufrágio e, por seu turno, a redução do seu papel ao voto em períodos eleitorais
caracteriza um ambiente de quase nenhuma participatividade.14

13 Cf. DUVERGER, Maurice. Le système politique français: droit constitutionnel et système politique. Paris:
Presses Universitaire de France, 1990. p. 193-194.
14 “O questionamento encontrou campo fértil particularmente nos EUA, onde, sobretudo após a
emblemática convenção democrática de 1968, plantou-se a máxima “a cura para os males da democracia
é mais democracia.” Papel importante neste processo todo é o do incremento do pluralismo, com toda
gama de diversidades dos mais variados aspectos sendo cada vez mais valorizada. Numa sociedade
em que tudo assume o valor de importante, com a exacerbação exponencial dos individualismos e

7
30 anos da Constituição

Como salientado, o veículo jurídico da representação é o mandato, que aban-


donou sua raiz do direito privado e suas origens imperativas para constituir a justi-
ficativa normativa que dá autonomia ao representante com relação aos interesses
do representado. A limitação ao poder dos representantes como asseverado deve ser
exercido no âmbito da própria representação. Tanto que os mecanismos de perda
de mandato no Brasil não são atribuídos à soberania popular, mas ao poder dos
representantes. É o caso dos crimes de responsabilidade do chefe do Executivo e da
perda de mandato parlamentar, além das hipóteses decorrentes de decisão judicial.
Entretanto, identifica a doutrina que o papel de limitação do poder dos
representantes não está somente nos mecanismos jurídicos previstos na Cons-
tituição. Conforme leciona Duverger esta é uma das funções contemporâneas
dos partidos políticos que compõem a oposição nos sistemas multipartidários.
A oposição exercida dentro do Parlamento tem o papel de frear os anseios da
maioria, exercendo um papel fiscalizador. Contudo, no que concerne aos regi-
mes presidencialistas e multipartidários, o autor faz duas ressalvas. A primeira
diz respeito à tendência de aumento do poder nas mãos do Executivo, personi-
ficando-o em seu líder. 15 A segunda diz respeito ao fato de que as coalisões de
partidos podem exercer juntos o papel de oposição e sua coesão pode aproxima-
-la do formato existente nos sistemas bipartidários, onde detêm mais força.16
No sistema brasileiro, presidencialista e multipartidário, é possível notar
que foram dados instrumentos jurídicos de atuação à oposição, verbi gratia, as
Comissões Parlamentares de Inquérito. Não obstante, são diversas as críticas à
atuação dos partidos políticos na contemporaneidade e, no que concerne à opo-
sição, ao menos em âmbito federal, nosso chamado presidencialismo de coalisão
acaba por sufocá-la em sua atuação hipertrófica.17
Revelando outro ponto sensível na crítica aos partidos políticos e ao regime
multipartidário atual, no que tange àqueles que compõem a situação, popularmente
conhecida por base governista, é cada vez mais crescente a afirmação sobre sua falta

idiossincrasias, natural a percepção de que um sistema fundado na verificação do bem comum pelo
critério da maioria seria contestado.” BEÇAK, Rubens. Democracia (cit.). p. 72.
15 Cf. DUVERGER, Maurice. Los partidos políticos. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 438.
16 Cf. DUVERGER, Maurice. Los partidos políticos (op. cit.). p. 444.
17 Cf. BEÇAK, Rubens. Governability and government systems: the Brazilian presidencial experience
after 1988. In: 2009 Joint Meetings of the Law and Society Association and The Research Committee on
Sociology of Law, 2009. Law, Power, and Inequality in the 21st Century, 2009. passim.

8
30 anos da Constituição

de coesão, tendo o governo que compor interesses muiltifacetados que levam sua
atuação a se distanciar profundamente do plano traçado previamente às eleições.
Este é um dos exemplos que ilustra o perfil da representação no Brasil
ou, mais precisamente, a distância entre a função em abstrato dos institutos
normativos elegidos para compor o modelo democrático nacional e o caminho
percorrido pelos partidos na prática.
Assim sendo, se o partido outrora foi (e ainda vem sendo) o veículo para
a definição dos interesses em cena no jogo político, hoje se busca compreender
em que medida os agentes que formulam essas demandas se agrupam e agem
para concretizá-la. Em uma perspectiva multiculturalista procura-se compreen-
der como os agentes coletivos, agora sujeitos de direitos, influenciam no poder.
Eis o (possível) papel da sociedade civil, a ser analisado a seguir.
Em linhas gerais, Bonavides define oposição política e indica sua função
primordial: “O que é oposição? Conceito histórico-político, (...) a Oposição re-
presentou em distintas épocas um esforço ou ação dirigida contra determinado
sistema de autoridade. Busca o acesso ao poder ou procura, de certo modo,
exercitar sobre ele alguma parcela de controle ou influência.”18
Nos regimes representativos contemporâneos, especialmente os presidencia-
listas como o Brasil, a oposição exerce papel relevante de manutenção do equilíbrio
entre o poder governista e dever de atribuição de responsabilidade política, posição
em grande parte atribuída ao Parlamento, dentre suas outras funções. Algo que
não ocorre apenas dentro dos parlamentos – algo intermediado pelas chamadas
bancadas – ou outras instituições constituídas, mas também parte de fora dela por
intermédio da atuação de grupos de interesses, os quais muitas vezes se valem da
advocacia de interesses por intermédio da pressão política. Ou também do lobby,
prática inclusive regulamentada em diversos países, à distinção do Brasil, onde a
questão ainda gere controvérsias, malgrado seja prática corriqueira.19

18 BONAVIDES, Paulo. Constituinte e constituição: a democracia, o federalismo e a crise


contemporânea. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2010. p. 149.
19 Acerca, Alexandre Sanson destaca, entretanto, que não somente dentro do Parlamento se realiza
a função de oposição. Trata-se da distinção entre oposição parlamentar e extraparlamentar. (Cf.
SANSON, Alexandre; MAZOTTI, Marcelo; FAGUNDES, Tatiana Penharrubia. A Oposição na
Política. In: TORRES, Vivian de Almeida Gregori; CAGGIANO, Álvaro Theodor Herman Salem
(Org.). Estudos de Direito Constitucional: homenagem à Professora Monica Herman Salem Caggiano.
São Paulo: IELD, 2014. p. 60-61.) Sobre a atuação de tais grupos, o autor salienta de antemão que
expressões como “grupos de interesses”, “grupos de pressão”, “lobby” têm cada qual seu significado

9
30 anos da Constituição

Ao traçar uma tipologia dos modelos normativos de democracia, J. J. Go-


mes Canotilho elenca como “democracia corporativista” aquela que “pretende
recortar um modelo pluralista-cooperativo ou negociador”. Assim, o passo que
o modelo representativo se centraria na figura do parlamento e outros órgãos
de representação, o modelo corporativista reconhece no Estado o papel de me-
diador ou árbitro entre grupos de interesses econômicos. E, embora se saiba
que os interesses em jogo não são apenas os econômicos, é válida a menção de
Canotilho, que vê no modelo corporativista um indicativo do papel dos grupos
de pressão hoje.20 Em igual medida, Jorge Miranda, que vê como desdobramento
do princípio constitucional da democracia participativa as regras que preveem
a necessidade de participação de determinados grupos e organizações da socie-
dade civil na elaboração de certas normas, sob pena de inconstitucionalidade.21

distinto. Para o autor, grupo de interesse é aquele correspondente ao aspecto subjetivo, ou seja, que
o agrupamento se fortalece de acordo com a natureza e intensidade do interesse que advoga. Cf.
SANSON, Alexandre. Dos grupos de pressão na democracia representativa: limites jurídicos. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 93.). há aqueles
de interesse público e os de interesse privado, segundo relata. Ao recorrer à pressão política, deixam de
ser “grupos de interesse” para se tornarem “grupos de pressão” com o objetivo “proteger ou promover”
seus interesses pleiteando “uma decisão ou medida estatal específica.” (Cf. Idem. p. 112-113.) Já a
a expressão “lobby”, embora semelhante não se confunde com a simples advocacia de interesses.
Oriunda da língua inglesa, significa antessala, corredor, e sugere se tratar de um “caminho” mais
curto para a consecução de um interesse específico. Nesse sentido, Cláudio Lembo, que considera
se tratar de uma decorrência do direito de petição. (Cf. LEMBO, Cláudio. A pessoa: seus direitos.
Barueri: Manole, 2007. p. 206.) O “lobby” é, assim, apenas uma das possíveis formas de exercício da
pressão política e seu exercício pressupõe uma série de estratégias ostensivas que dependem, em sua
maioria, do fator humano, ou seja, dos lobistas. (Cf. SANSON, Alexandre. op. cit. p. 202.) Embora
o tema seja controverso, diversos países que contemporaneamente regulamentam práticas de lobby.
(Cf. Idem. p. 259 e ss.). Não obstante, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tem opinião diversa: “por ser
não oficial, e geralmente clandestina, a ação de grupos pode ser daninha e é sempre perigosa para a
comunidade”. A clandestinidade, conforme destaca, facilita o emprego de meios condenáveis e leva
a vantagens desproporcionais. (Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo.
São Paulo: Saraiva, 2012. p. 119-121.). Mesmo assim, embora não seja o objeto deste excerto, o lobby
é um tema intimamente ligado aos mecanismos de democracia semiparticipativa como o recall, razão
pela qual parece que sua regulamentação pareça ser uma saída viável. (Nesse sentido, cf. LEMBO,
Cláudio. op. cit. p. 207.) Embora deva-se salientar que, nos EUA, exemplo sempre lembrado haja vista
seu modelo político de aceitação e regulamentação do lobby, este por si só não seria o único fator de
tomada de decisão política pelos órgãos constituídos. (Cf. TUSHNET, Mark. The constitution of the
United States of America: a contextual analysis. Hart Publishing: Portland, 2009. p. 68-69.).
20 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2003. 7. ed. p. 1.417.
21 O autor elenca vários dispositivos constitucionais que decorrem do princípio da democracia participativa,
presente expressamente na parte final do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa. São

10
30 anos da Constituição

Portanto, ainda que criticada a atuação de determinados na disputa por


maior influência frente ao poder estatal, sua presença é inegável. Seja oficial-
mente ou não, na caracterização de agrupamentos ocasionais inclusive dentro
dos Parlamentos, como nas bancadas parlamentares (cujos interesses geralmen-
te se sobrepõem aos partidos), e outras formas de atuação, a democracia con-
temporânea deve aprender a conviver com eles. Daí porque regulamentar sua
atuação, impondo transparência na gestão de recursos como lçaforma de rastre-
ar os interesses reais em jogo no cenário político parece ser a saída para a com-
preensão da real dimensão e complexidade da democracia deliberativa hoje.22
Isto parece encontrar supedâneo na lição de Nussbaum, ao advertir sobre
o papel da democracia na construção do desenvolvimento humano. Cf., literis: 23
The Human Development model is committed to democracy, since having a
voice in the choice of the policies that govern one’s life is a key ingredient of a
life worthy of human dignity. The sort of democracy it favors will, however,
be one with a strong role for fundamental rights that cannot be taken away
from people by majority whim.

exemplos: as comissões de trabalhadores e das associações sindicais na legislação do trabalho (art. 54º,
n. 5, alínea “d” e 56º, n. 1, alínea “a”); organizações representativas de trabalhadores na elaboração de
planos, através do Conselho Econômico e Social (art. 92º, n. 2); participação de consumidores (art.
60º, n. 3); organizações representativas de trabalhadores das associações de beneficiários da segurança
social (art. 63º, n. 2); associações representativas das famílias (art. 67º, n. 2, alínea “f”), associações de
professores, pais e alunos, das comunidades e das instituições de caráter científico (art. 77º, n. 2) em
definições e políticas públicas setoriais. Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. v.
III t. V. Coimbra: Coimbra Ed., 2014. p. 205-206. Embora ressalte que a democracia participativa no
sistema constitucional português seja setorial e que somente o sufrágio universal seja capaz possa atribuir
legitimamente aos representantes o papel de tomada de decisões, pois “o princípio da maioria não é
absoluto, mas, em último termo, deve prevalecer”, ressalta o autor sobre o papel dos grupos de pressão
na democracia contemporânea: “A democracia participativa imbrica-se, aliás, com determinados
dados das sociedades contemporâneas: a inelutabilidade dos grupos de interesses; a necessidade de lhe
dar voz e de os conciliar, a irrupção de formas ditas corporativas ou neocorporativas; a consequente
inserção no processo legislativo, formal ou informalmente, de elementos de concertação, negociação e
auxiliariedade, o diálogo dentro e fora do parlamento.” Idem. p. 206.
22 Tais são os fatores que, pensamos, deveriam ter sido levados em conta na “última” das reformas políticas
intentadas em nosso país, aquela que comtemplasse a diversidade e complexidade da democracia
brasileira contemporânea. Entretanto, os rumos foram em outro sentido, mais preocupados com
questões internas ao funcionamento dos parlamentos, das eleições e, claro, reforçando elementos
criticados por muitos, como a doação privada por pessoas jurídicas etc.
23 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Not for profit – why democracy needs the humanities. Princeton: Princeton
University Press, 2010, p. 24-25.

11
30 anos da Constituição

A participação como condição da melhoria democrática realça-se mais


especificamente nesta outra passagem da Autora citada: 24
If a nation wants to promote this type of humane, people-sensitive democracy
dedicated to promoting opportunities for “life, liberty and the pursuit of happi-
ness” to each and every person, what abilities will it need to produce in its citi-
zens? (…) The ability to think well about political issues affecting the nation, to
examine, reflect, argue, and debate, deferring to neither tradition nor authority

Incremento da Participação Democrática e Recall


Preliminarmente, salienta-se em linhas gerais que recall, também conheci-
do como revogação de mandato, é o instrumento pelo qual, individualmente, um
mandato público concedido a um representante é revogado por iniciativa popular e
deliberação popular. No plano coletivo, seu correspondente é o Abberunfungsrecht.25
Sabe-se que a ideia de representação inicialmente é importada do direito pri-
vado, especialmente do direito contratual, materializada no conceito de mandato.26
Entretanto, há significativas diferenças hoje entre o mandato privado e o público.
Sinteticamente, Bonavides enumera quatro características do mandato públi-
co que: generalidade, liberdade, irrevogabilidade e independência.27 As duas últimas
interessam diretamente à questão do recall. Para que seja garantida a liberdade do
representante em relação ao representado, o mandato é tido por irrevogável. Logo,
leciona o autor “no sistema político que o adota [princípio da irrevogabilidade] não
há lugar para aqueles instrumentos do regime representativo semidireto, como o
recall dos americanos ou o Abberufungsrecht dos suíços.”28 Igualmente no caso da

24 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Not for profit – why democracy needs the humanities. Princeton: Princeton
University Press, 2010, p. 25.
25 O primeiro tem origem norte-americana e o segundo suíça. Cf. BEÇAK, Rubens. Democracia
(cit.). p. 33. Para análise mais detida do tema, v. BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti.
Instrumentos de implementação da democracia participativa e o uso das tecnologias da informação e
da comunicação para sua realização. In: Anais do XX Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. (Belo Horizonte, 22-25. jun. 2011).
26 Para uma análise mais detida acerca da questão, cf. BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti.
Tendências da democracia participativa: a influência da Internet no perfil da representação e evento
do orçamento participativo. In: Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. (Vitória, 16-19. nov. 2011). p. 3550-3574.
27 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 338 e ss.
28 Id. p. 339.

12
30 anos da Constituição

independência, que impede a vinculação do mandatário a qualquer conteúdo, ou


seja, fazendo que, uma vez investido, não se vincule a quaisquer outras vontades
mas somente à sua. Nem tampouco a programas partidários ou políticos. Logo, a
independência é a que gera a vedação do chamado mandato imperativo.
Entretanto, nos sistemas onde se adota os mecanismos analisados, segundo
ressalta Bonavides, o mandato não é totalmente independente, já que o mandatá-
rio está vinculado à vontade popular, que pode destitui-lo da função que exerce.29
Nula ou não, a possibilidade de revogação do mandato pela vontade popu-
lar, conforme conceituado, tem fundamento na soberania popular e origem fá-
tica na iniciativa popular. Ligada ao exercício dos direitos políticos, a soberania
não se exaure pelo sufrágio. Nesse sentido a doutrina de Jorge Miranda, quem
enumera uma série do que denomina de direitos políticos “menores”, ou seja, di-
versos direito de do sufrágio. Dentre eles o “direito político de iniciativa”, que se
subdivide, por seu turno, nos direitos de ação popular, de iniciativa em sentido
estrito, ou seja, perante o parlamento, e iniciativa referendária, seja com vista à
sujeição de proposta ou projeto de lei de referendo, à não entrada em vigor ou
cessação de vigência de lei, ou à revogação de titular de cargo eletivo (recall).30
No que toca à origem fática, a revogação, portanto, nasce como um proje-
to de lei de iniciativa popular. Embora não tenha consagrado o recall, a Cons-
tituição brasileira de 1988 elenca a iniciativa popular de leis nos incisos do art.
14. Entretanto, é consabido que se trata de um instituto de diminuta incidência
prática, 31 levando Ferreira Filho a adjetivá-lo de “instituto decorativo.”32

29 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política (cit.). p. 341.


30 Além do direito de sufrágio, são os direitos de: petição; informação política; participação em atividades
subordinadas de Estado; iniciativa, com várias subespécies, acima analisadas; candidatura; acesso a cargos
políticos, direito de eleger ou ser eleitos; participação em assembleia popular ou de governo direto – art. 169º,
CRP – pequenas freguesias, menos de 150 eleitores. Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional.
v. III. Coimbra: Coimbra Ed., 2014. t. VII. Estrutura Constitucional da Democracia. 2007. p. 108-09. Também
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional. 5. ed. v. I. Coimbra: Almedina, 2013. p. 212.
31 Neste sentido, Maria Garcia: “Pode-se deduzir da sua dicção que se demonstra dispositivo destinado
a parco uso, francamente impossibilitador do exercício desse direito de iniciativa popular, proclamado
já no art. 14, da CF/1988, entre os direitos políticos. É um texto que merece integral reforma, para
permitir, tão-somente, que um grupo determinado de cidadãos, como único requisito exigível,
possa detonar o processo legislativo perante o Congresso Nacional, concretizando a vontade
constitucional.” GARCIA, Maria. O processo legislativo e os sentidos da liberdade. Participação
exercício da cidadania. In: Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos. v. 2. Ago-2011. p. 869 – 872.
32 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo (cit.). p. 230.

13
30 anos da Constituição

A iniciativa popular no Brasil tem sua regulamentação, em nível federal,


nos artigos 12 e 13 da Lei n. 9.709/98, os quais se limitam a facilitar seu trâmite
no parlamento, desconsiderando-se aspectos formais. Nada consta sob qualquer
prioridade de tramitação nem tampouco limitação à promoção de emendas du-
rante o processo legislativo. Daí porque há críticas ferrenhas, além do plano
fático, à estrutura normativa da iniciativa popular.33 Isto sem considerar o fato
de que, hoje, mesmo com todo o apelo cidadão, nada impede que um projeto de
iniciativa popular, seja “engavetado”.34
Mesmo assim, nascido em um projeto de iniciativa popular, o próximo passo
na convocação do recall é a realização de uma consulta popular. Vieira e Souza, ao
analisarem o instituto, lembram que tal fato gera uma riqueza grande de terminolo-
gias adotas para o instituto do recall. São exemplos: “direito de revogação individual
e coletivo”, “plebiscito de confirmação de mandato”, “referendo revocatório”, e “ple-
biscito destituinte”. Os autores enumeram, no Brasil, diversas Propostas de Emenda
Constitucional que procuram consagrar o instituto. Embora na visão dos autores
todas contenham pontos a serem aprimorados, na esteira do que fora dito anterior-
mente, não foram retomadas nos clamores pela reforma política.35

33 Assim, o projeto de lei trazido à lume por Comparato, que veda emendas e dá prioridade de tramitação
aos projetos de lei de iniciativa popular. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Sobre a mudança do
regime politico no Brasil. In: ARANTES, Aldo; LAVENÈRE, Marcello; SOUZA NETO, Cláudio
(Org.). A OAB e a reforma política democrática. Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014. p. 120.
Outrossim, retornando-se à iniciativa popular, a dificuldade se dá especialmente pelo número de
assinaturas e pela necessidade de que sua verificação se dê em cruzamento de dados com a justiça
eleitoral, já que se exige a assinatura física de eleitores. Algo que, em tempos de Internet, soa
anacrônico. Algo recentemente superado no plano estadual (V. SANTA CATARINA (Estado). Lei
estadual n. 16.585/15. Disponível em: <http://200.192.66.20/alesc/docs/2015/16585_2015_Lei.doc.
Acesso em: 5 mar. 2016.). Mas que, no plano federal, ainda não goza de previsão de recurso eletrônico
na colheita de assinaturas. Há, contudo, projetos de lei que visam alterar a Lei n. 9.709/98, (Cf.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 2024/2011 – Autor: Dep. Felipe Maia DEM/
RN. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=9087
14&filename=PL+2024/201. Acesso em: 1 mar. 2016.) bem como do regimento interno da Câmara,
visando propiciar tal possibilidade. (BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Resolução n. 1/2015
– Autora: Dep. Carmen Zanotto PPS/SC. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=1296782&filename=PRC+1/2015. Acesso em: 1 mar. 2016.
34 Daí porque ser necessário um repensar no sentido de se contar com mecanismos que promovam não
só a iniciativa legislativa mas o que a doutrina portuguesa denomina de impulso legisferante. Cf.
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional. v. II. 5. ed. Almedina: Coimbra, 2013. p.
1.143. O autor se vale das lições de Canotilho e Jorge Miranda. Cf. Idem. p. 1.144.
35 Cf. VIEIRA, José Ribas; SOUZA, Raphael Monteiro de. Recall, democracia direta e estabilidade
institucional. in SENADO FEDERAL. Revista de informação legislativa. Ano 51 n. 202 abr./jun.

14
30 anos da Constituição

Em língua espanhola, é recorrente a expressão “revocatoria de mandato”. Recor-


rendo-se brevemente ao direito estrangeiro, as constituições latino-americanas, dentre
outros, de Colômbia, Bolívia, Equador e Venezuela são exemplos de consagração de
recall, havendo inúmeras tentativas de implementação também em outros países.36
Já os Estados Unidos são o local ao qual se atribui a origem do recall individual,
que remonta aos primórdios do surgimento do país. Entretanto, salienta Marc Stears
que na primeira metade do século XX houve uma grande demanda por participação
democrática no país.37 Razão pela qual, dentre outras, é possível notar a presença
de inúmeras iniciativas das chamadas “recall elections” em planos constitucionais
estaduais.38 Fora dos Estados Unidos, há exemplos, mas são mais pontuais.39

2014 Disponível em: Acesso em 25 fev. 2016. p. 51. Os autores ainda elencam as PECs sobre o recall,
sendo algumas arquivadas e outras, à ocasião do texto, pendentes de análise pela CCJ: PEC n. 80/2003
(Sen. Antônio Carlos Valadares - PSB/ SE); PEC nº 82/2003 (Sen. Jefferson Peres - PDT/AM); PEC
n. 73/2005 (Sen. Eduardo Suplicy - PT/SP); PEC n. 477/2010 (Dep. Rodrigo Rollemberg - PPS/DF).
36 É o que consta do quadro comparativo traçado por José Ribas Vieira e Raphael Monteiro de Souza, que
elencam os procedimentos, quóruns e limites formais e materiais para a realização do Recall. Cita-se também
como exemplo a Argentina, onde se provocou movimento social de derrocada do prefeito de Córdoba, porém
sem sucesso. Cf. Idem. p. 50. Cf. ASTARIA, Martín (et alli). Gobierno local, transparencia y participación
ciudadana: seguimiento del cumplimiento de los acuerdos de discrecionalidad cero en los municipios de Córdoba
Buenos Aires : Fund. Poder Ciudadano., 2006. p. 41. Outro exemplo é o do México, que prevê o instituto no
plano regional. Nesse sentido V. CAMPOS, Alán García. La revocación del mandato: Un breve acercamiento
teórico. Biblioteca Jurídica de Universidad Autónoma de México (UNAM). Disponível em: http://www.
juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/qdiuris/cont/1/cnt/cnt3.pdf. Acesso em: 25 fev. 2016.
37 Cf. STEARS, Marc. Demanding democracy: American radicals in search of a new politics. Princeton:
Princeton University Press, 2010. p. 45.
38 Exemplificativamente, no Estado da Califórnia, por exemplo, o recall é previsto nas seções 13 a 15
do art. II da Constituição Estadual Cf. CALIFORNIA (State). Leginfo. Constitution of the State of
California. Disponível em: http://www.leginfo.ca.gov/.const/.article_2. Acesso em: 25 fev. 2016. A última
experiência recente de recall de um governador no Estado foi a que culminou na convocação simultânea
de eleições, onde fora eleito o Governador Arnold Schwazenegger. Cf. ZIMMERMAN, Joseph. Recall
(verbete) in KURIAN, George Thomas (Ed. Chf). Encyclopedia of political Science. Washington: CQ
Press, 2011. p. 1.430. Mas, conforme salientado, o recall está presente em diversos textos normativos
estaduais. É o que ocorre também no estados da Lousiana (Art. X, § 26.) Cf. LOUISIANA (State).
Luisiana State Senate. Constitution of the State of Louisiana. Disponível em: http://senate.legis.state.
la.us/documents/constitution/. Acesso em: 26 fev. 2016. Em igual medida no art. 8, Seções 1 a 5, da
Constituicão do Estado do Arizona. ARIZONA (State). Arizona State Constitution. Disponível em:
http://www.azleg.gov/FormatDocument.asp?inDoc=/const/8/1.p1.htm. Acesso em: 26 fev. 2016. Para
visualizar todos os estados que prevêm o Recall, V. Ballotpedia: the encyclopedia of american politics.
Recall. Disponível em: https://ballotpedia.org/Recall#cite_note-ncsl-1. Acesso em: 26 fev. 2016.
39 Cf. ÁVILA, Caio Márcio Brito. Recall: a revogação do mandato político pelos eleitores: uma proposta
para o sistema jurídico brasileiro. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2009. p. 123 e ss. Na Europa, lembra o autor apenas da Bielorrússia. Entretanto,

15
30 anos da Constituição

Sem a pretensão de exaurir o tema, alguns questionamentos ainda são


possíveis como problematização no plano das regras.
No tocante ao mandatário, relevante salientar que alguns sistemas estran-
geiros proporcionam a possibilidade de destituição não só de membros do Execu-
tivo e Legislativo mas também de outros agentes públicos, como juízes, membros
do Parquet e outros servidores ocupantes de funções administrativas de liderança
– diretores de empresas públicas, escolas, conselhos tutelares e posições análogas.
Passada a fase de convocação via iniciativa popular, o Parlamento faz verifi-
cação dos requisitos formais e materiais – quando houver – e convoca a consulta
popular. No que concerne aos formais, vai-se desde a verificação da autenticidade
das assinaturas - o que, frise-se poderia contar com o auxílio de meios tecnológi-
cos, economizando esforços – até a distribuição adequada do eleitorado de acordo
com as regras constitucionais. Além disso, no concernente aos materiais, frise-se
que o recall pode ter como condições a demonstração da prática de determinados
atos, dentre outras possibilidades. Embora deva ser salientado que, quanto mais
requisitos deste jaez, a importância da participação popular é diminuída.
Outros pontos dizem respeito à possibilidade ou não de reconvocação da
consulta em caso de rejeição, bem como eventual prazo para sua realização, seja
inicialmente ou após a rejeição. Bem como aos requisitos para convocação, ge-
ralmente importados ou análogos à iniciativa popular, bem como o coeficiente
para a aprovação em caso de realização da consulta.
Por último, algumas indagações acerca do cabimento do instituto em todas
as esferas da federação, restringindo-se hipoteticamente ao caso brasileiro, e a
quais agentes públicos deveria se aplicar. Em tese e a priori, o Brasil adota a regra
do concurso público para a ocupação da maioria esmagadora das funções públi-
cas. Mesmo assim, há cargos que são considerados de natureza política e gozam
de garantias diversas das dos demais servidores públicos, tais como vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Resta saber se o problema reside
em poderem ou não ser destituídos por recall ou se, na verdade, não deveriam ser
investidos pelo voto popular e, aí sim, passarem a exercer a função pública através
do meio mais tradicional e imediato de exercício da soberania popular, o voto.

sabe-se da previsão em vários cantões suíços, além do recente caso romeno, em que o presidente foi
alvo de uma consulta popular de revogação de mandato, a qual restou infrutífera. Acerca da Suíça, v.
KAUFMANN, Bruno; BÜCHI, Rolf; BRAUN, Nadja. The IRI guidebook to direct democracy initiative
& referendum. 4. ed. Berna: Institute Europe, 2010. passim. Por último, elenca o autor também a
província canadense de British Columbia. Cf. ÁVILA, Caio Márcio Brito. Op. cit. p. 130 e ss.

16
30 anos da Constituição

Conclusão
Aqui, neste trabalho, procurou-se, para além de evidente homenagem à
democracia representativa, aquela que “tendo em vista o dizer coletivo de que,
apesar de todas as suas imperfeições, até hoje não se inventou regime de gover-
no melhor (...)”,40 trabalhar a perspectiva da necessidade de ampliação do deba-
te com a eventual mudança de paradigma, uma vez considerada a insuficiência
(mas não a superação...) da representação.
A percepção de que, por mais importantes que se façam as reformas políticas
usualmente propostas em nosso Legislativo de tempos em tempos, mormente as que
foram objeto da última leva examinada naquele foro privilegiado, somente uma dis-
cussão mais profunda, aquela que possibilite a alteração do vetor em análise, conside-
rando a necessidade de alargamento da participação, possibilitará um incremento da
legitimidade. Esta, tão necessária à certeza de que os destinatários das deliberações -
os representados - poderão ter peso real não somente na escolha dos seus governantes
como na própria governabilidade, trará frescor ao sistema, incrementando a própria
aceitação do sistema, tão atacado e desacreditado nos dias atuais.
Assim, a retomada do debate sobre a necessidade do adensamento da participati-
vidade, no qual o reexame do instituto do recall, como aqui proposto, afigura-se como
muito importante. Para tal, procuraram o estudo da doutrina a justificar a sua utilização
e discutir, mesmo que em breve relato, as experiências no direito comparado.
Certamente assim, pretendemos, verdadeiro gap de legitimidade do mo-
delo democrático restará superado; podendo, eventualmente, esta proposição
contribuir para o aperfeiçoamento de uma forma de exercício do poder que tem
se mostrado boa alternativa à proposições menos conhecidas, sem deixar de
fornecer as necessárias respostas aos questionamentos advindos.

Referências

ASTARIA, Martín (et alli). Gobierno local, transparencia y participación ciuda-


dana: seguimiento del cumplimiento de los acuerdos de discrecionalidad cero en los
municipios de Córdoba. Buenos Aires: Fund. Poder Ciudadano, 2006.

40 Cf. BEÇAK, Rubens. Democracia: hegemonia e aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 13-14.

17
30 anos da Constituição

ÁVILA, Caio Márcio Brito. Recall: a revogação do mandato político pelos elei-
tores: uma proposta para o sistema jurídico brasileiro. Tese (Doutorado) – Fa-
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BEÇAK, Rubens. A hipertrofia do executivo brasileiro: o impacto da Constitui-


ção de 1988. Campinas: Millenium, 2008.

______. Democracia: hegemonia e aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2014.

______. Governability and government systems: the Brazilian presidencial ex-


perience after 1988. In: 2009 Joint Meetings of the Law and Society Association
and The Research Committee on Sociology of Law, 2009. Law, Power, and Inequa-
lity in the 21st Century, 2009.

BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos de implemen-


tação da democracia participativa e o uso das tecnologias da informação e
da comunicação para sua realização. In: Anais do XX Encontro Nacional do
CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. (Belo
Horizonte, 22-25. jun. 2011).

______; ______. Tendências da democracia participativa: a influência da In-


ternet no perfil da representação e evento do orçamento participativo. In: Anais
do XX Congresso Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e
Pós-graduação em Direito. (Vitória, 16-19. nov. 2011). p. 3550-3574.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2000.

______. Constituinte e constituição: a democracia, o federalismo e a crise con-


temporânea. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2010.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.


ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da Repúbli-


ca portuguesa anotada. Arts. 1º a 107º. 4. ed rev. v. I. Coimbra: Coimbra Ed., 2007.

18
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Um Olhar para trás 30 Anos Depois: a
Participação Extraparlamentar no Processo
de Construção da Ideia de Soberania no
Texto Constitucional Durante a Constituinte.

Leonam Baesso da Silva Liziero41


Marcelo Labanca Corrêa de Araújo42

Introdução
O presente trabalho tenta demonstrar as evidências históricas da forma-
ção da parte inicial da Constituição de 1988, mais precisamente do Título I. O
pressuposto, no aniversário dos 30 anos, é mostrar que a (re)interpretação do
texto não pode prescindir do estudo da história em relação ao(s) processo(s) de
produção desse texto. Partindo dessa premissa, aborda-se, neste trabalho, os
influxos extraparlamentares de cidadãos convidados a falar no Congresso e em
que medida essas falas influenciaram os parlamentares na tarefa da construção
do texto de 1988. Um esforço de demonstrar que a redação atual decorreu ou
foi influenciada a partir da abertura do parlamento à sociedade, nas interações
com especialistas, ouvindo-os por ocasião das reuniões parlamentares.
De fato, o texto constitucional é fragmentado em títulos e também assim
se fez em relação às comissões e subcomissões que se encarregaram de elabo-
rar, de forma fatiada, a constituição de 1988. O primeiro desses títulos trata
sobre os princípios fundamentais, dentre os quais está a questão da soberania.
Fala-se que o Brasil seria uma república soberana. Mas esse conceito, da forma

41 Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – FND/UFRJ. Doutor e Mestre
em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pesquisador
do Letaci/PPGD/FND/UFRJ
42 Mestre e Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutorado com bolsa CAPES na
Universidade de Pisa, Itália. Professor de Direito Constitucional e Coordenador do Programa de Mestrado
e Doutorado da Universidade Católica de Pernambuco. Procurador-Chefe da Procuradoria Regional do
Banco Central para a 5 Região. Vice Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PE.

21
30 anos da Constituição

que foi entronizado na CF, possui reflexos em outros diversos assuntos que se
complementam, como, por exemplo, direito de guerra e pacificidade e relação
do Executivo e Legislativo quanto à celebração e aprovação interna de atos in-
ternacionais; também, não se pode deixar de examinar a construção histórica
do texto. O sentido de soberania, portanto, termina condicionando o sistema
constitucional e desaguando em diversos dispositivos normativos.
A participação de extraparlamentares é demonstrada nesse estudo como
uma efetiva evidência de que o texto escrito em 88 não foi um resultado ex-
clusivo dos legisladores. Antes decorreu de reflexões travadas com a sociedade
civil, perfazendo uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição também
quanto ao momento de produção e construção do texto, e não apenas quanto
ao momento de aplicação da Carta.
O estudo histórico, portanto, pode ser útil para cotejar os sentidos in-
terpretativos que foram utilizados no momento inicial da construção do texto
com o sentido que é dado ao texto no momento da aplicação da constituição,
principalmente pelo Supremo Tribunal Federal.

1. Soberania no Brasil: fundamento


do Século XX para o Século XXI
A soberania, como é de amplo conhecimento, era um elemento consa-
grado do Estado moderno. Uma consulta a qualquer manual de Teoria Geral
do Estado – que reverberam e parafraseiam de certa forma a clássica obra de
Jellinek – é o suficiente para constatar que sem soberania Estado não há. Este
é um conceito de um Estado moderno que está em crise desde a metade do Sé-
culo XX e que assume novas estruturas. Em diversas obras, entre as quais as de
Ferrajoli (2003), Chevallier (2006), Neves (2009) e Liziero (2017), demonstram
que a contemporaneidade exige uma nova forma de pensar o Estado. Esta nova
de pensar, por sua vez, necessita de outra concepção de soberania.
No Brasil, a questão da soberania sempre foi discussão de ampla noto-
riedade, não apenas na construção gradual de uma identidade nacional (e a
consequente reafirmação do nacionalismo), como também no modo como deve
o governo se portar nas relações exteriores. A soberania professada em muitos
momentos é a westphaliana, de caráter político e antagônica ao direito, já no-
tadamente obsoleta a partir da segunda metade do Século XX (FERRAJOLI,

22
30 anos da Constituição

2003). Em vários escritos e momentos é possível constatar isso. Não é aqui o


objetivo traçar uma historiografia do conceito de soberania no Brasil, mas ain-
da assim é possível demonstrar, para as finalidades aqui pretendidas, o uso do
conceito na história constitucional brasileira.
Veja-se o discurso de Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, no qual
explica as razões do Golpe que originou o Estado Novo. Percebe-se em vários
momentos esta concepção de soberania como força no campo da política que
instrumentaliza o direito e a ele não se submete: “considerando de frente e acima
dos formalismos jurídicos a lição dos acontecimentos, chega-se a uma conclusão
iniludível a respeito da gênese política das nossas instituições: elas não correspon-
deram, desde 1889, aos fins para que se destinavam” (VARGAS, 2011, p.366).
E continua Vargas (2011, p.367) no mesmo discurso:
Restauremos a nação na sua autoridade e liberdade de ação: na sua auto-
ridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa
sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua li-
berdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins
do governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino.

Anos depois, em seu discurso de posse como Presidente da República, em


31 de janeiro de 1951, Vargas demonstra novamente a noção de soberania que
permeava o pensamento político brasileiro:
O governo não é uma entidade abstrata, um instrumento de coerção ou
uma força extrínseca da comunidade nacional. Não é um agente de par-
tidos, grupos, classes ou interesses. É a própria imagem refletida da pátria
na soma das suas aspirações e no conjunto das suas afinidades e lealdades.
É a emanação do povo e, como tal, o servo da sua vontade, o provedor das
suas necessidades, a força humanizada e sensível que preside às relações
e ao desenvolvimento da sua vida social no sentido da cooperação e da
harmonia das classes e dos interesses (VARGAS, 2011, p. 675).

E encerra esse discurso, conclamando a nação a unir forças:


Temos diante de nós uma imensa tarefa de recuperação e consolidação a
realizar, e para ela, sem exclusões partidárias, convoco a boa vontade, a
inteligência e o patriotismo dos brasileiros. Estou certo da vossa ajuda e
conto com a vossa cooperação, porque assim estaremos servindo não ao
efêmero dum governo, mas à perenidade, à perpetuidade e à grandeza da
nação brasileira (VARGAS, 2011, p. 675).

23
30 anos da Constituição

É perceptível, dentro desta breve demonstração, a concepção de soberania


como conceito político que de certo modo seria negado pelo direito. Nova-
mente, é o resultado da tradição de se pensar a soberania como consolidação
e reafirmação dos Estados nacionais a partir da modernidade (Ferrajoli, 2003).
O recorte aqui proposto é pensar a concepção de soberania durante a última
manifestação do Poder Constituinte Originário no Brasil, durante a Constituinte
de 1987/1988. Na verdade, é preciso ainda ampliar um pouco este espectro para
uns anos anteriores. Até aquela primeira quarta-feira de outubro de 1988, quando
o Presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, declarou promulgada a nova
Constituição, um sucedâneo de fatos ocorreu preexistentes à própria Assembleia
Nacional Constituinte iniciada em 2 de fevereiro de 1987. O modo de se inves-
tigar uma concepção na época, que fomentaram a Constituição de 1988, requer
uma revisita ao Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos.
Na Constituinte de 1987/1988 a questão da soberania foi discutida sobretu-
do na Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacio-
nais, contida na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem
e da Mulher. Esta comissão foi justamente a responsável por pensar e redigir o
anteprojeto referente aos atuais dois primeiros títulos da Constituição. Especial-
mente a citada subcomissão elaborou o anteprojeto dos artigos iniciais do texto.
A Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacio-
nais teve como Presidente Roberto D’Ávila (PDT-RJ) e como Relator João Herr-
mann Netto (PMDB-SP). Em seus debates sobre soberania, o foco dado daqui,
além dos discursos de Constituintes, foram convidados a realizar exposições sobre
o tema nomes como Celso D. de Albuquerque Mello, Vicente Marotta Rangel,
Carlos Roberto Siqueira Castro, José Francisco Rezek e Leonel Brizola.
A proposta aqui é analisar a ideia destes expositores sobre soberania, que
serve como recurso interpretativo para o sentido do conceito em 1988 e em suas
possíveis vicissitudes em 30 anos.

24
30 anos da Constituição

2. Soberania e relações internacionais:


Marotta Rangel e Celso Mello
Marotta Rangel e Celso Mello foram convidados a fazer suas exposições
na 3ª Reunião Ordinária da subcomissão, cujos assuntos da audiência pública
eram Normas de Relações Internacionais no texto Constitucional e Soberania e
Relações Internacionais, ocorrida em 28/4/1987.
Inicia Marotta Rangel dizendo ser a soberania uma característica inerente ao
Estado, não sendo tema necessário de ser explicito no texto constitucional. Segundo
ele, “soberania, dizia um professor da minha universidade, é um poder incontrastá-
vel de querer coercitivamente competências. E este poder o Brasil possui” (BRASIL,
1988, p.24). Todavia, com a integração crescente dos países, não se pode entender
mais a soberania brasileira com uma soberania absoluta, “tal como existia nos albores
da nossa independência. É uma soberania que continua a existir, mas não pode igno-
rar a realidade concreta dos tempos atuais e aquele direito de guerra, jus belic, como
corolário que emergia do conceito de soberania” (BRASIL,1988, p.24).
Marotta Rangel de imediato reconhece a alteração da mudança de paradig-
ma da soberania com a perda do direito jus ad bellum no sistema Nações Unidas
inaugurado em 1945. A partir de então, o conceito novecentista de soberania
perde força em face de uma nova noção que acompanha as mudanças estruturais
do Estado moderno no Século XX. O que ainda permanece aos Estados, ainda
que vinculados à ordem internacional é o poder de fixar competências.
Ao mesmo tempo em que o novo paradigma das relações internacionais
relativiza a soberania dos Estados, vem para salvaguardá-la. Marotta Rangel
exemplifica com o fenômeno da proliferação e fortalecimento das organizações
internacionais. Segundo o professor, “o aparecimento de organizações interna-
cionais diminuiu, é certo, limitou, disciplinou o poder absoluto dos Estados, em
razão de um bem comum internacional” (BRASIL, 1988, p.24).
A noção de bem comum internacional, segundo Marotta Rangel, tornou-
-se imprescindível para a proteção da soberania dos Estados mais fracos e vulne-
ráveis, sendo a absolutização uma verdadeira ameaça, uma vez que tais Estados
teriam que se curvar à vontade da força armada dos Estados mais poderosos.
Dessa forma, não seria necessário que a então futura Constituição decla-
rasse o Brasil como soberano, ou que o termo soberania aparecesse na Cons-

25
30 anos da Constituição

tituição, uma vez que a soberania é uma consequência da existência do país.


Todavia, Marotta Rangel não descarta que seria interessante equacionar princí-
pios no Preâmbulo da Constituição, referentes à ordem internacional.
Em seguida, Marotta Rangel passa a tecer comentários sobre as relações
entre o direito interno e o direito internacional, especialmente no que se refere
ao direito dos tratados. Eram, segundo lembra o professor, tratados pela Consti-
tuição de 1967 (após a Emenda Constitucional nº1 de 1969) em seus art. 44, I e
art. 85, X, na qual houve significativo avanço, ainda que insuficiente, em incluir
a figura dos atos internacionais ao lado de tratados e convenções, uma vez que
o direito internacional não se restringe somente à estas fontes.
Defendendo uma maior maleabilidade das relações entre o direito interno e o
direito internacional, a solução seria reconhecer constitucionalmente ou ainda, não
proibir constitucionalmente, os self executing agreements. Assim, “é indispensável
que a Constituição estabeleça, com clareza, em que casos o Poder Executivo pode e
deve atuar independentemente do Congresso” (BRASIL, 1988, p.25).
Outro dispositivo comentado por Marotta Rangel, usando de base o Antepro-
jeto da Comissão Afonso Arinos, é a proibição da guerra de conquista, ao qual de-
veria ser também acrescentada a guerra de agressão. Em todo caos, a não-agressão
está de acordo com as determinações presentes na Carta das Nações Unidas de
1945, que proíbe o uso das forças nas relações internacionais. Deste modo, percebe-
-se a modificação no conceito de soberania do Século XIX para o Século XX, uma
vez que a ideia de soberania deste não é absoluta, não permitindo, portanto, sanções
bélicas a outro Estado. Verifica-se a supremacia da norma internacional que passa a
influenciar a disposição nas Constituições. Desta forma, como discursou, “o prima-
do de soberania, na vida do país, é essencial, não é incompatível com os princípios
que regem a ordem internacional (BRASIL, 1988, p.27).
Celso Mello, por sua vez, destacou outras questões bem pertinentes ao
tema da soberania no Brasil. Incialmente questiona o quanto o Poder Legislati-
vo deve intervir nas decisões relacionadas às relações exteriores do Executivo.
Esta é uma questão que atinge o âmago da percepção democrática da soberania,
uma vez que na teia cada vez mais complexa das relações internacionais (e
consequentemente do direito internacional, é preciso pensar o quão o controle
do Legislativo influencia negativamente a celeridade do Brasil na sociedade in-
ternacional. Ainda com tal questionamento, Celso Mello deixa claro seu enten-
dimento de que é sim possível que o Poder Legislativo participe como instância
de decisão referente às relações exteriores.

26
30 anos da Constituição

Os acordos do Executivo, segundo Celso Mello, deveriam ter restrições.


Um modelo mais coerente seria que, à exemplo dos Estados Unidos, todos es-
tes acordos fossem também submetidos ao Congresso para seu conhecimento
e possível controle. Deste modo, ainda que não com a mesma formalidade dos
tratados, estes acordos do Executivo seriam suscetíveis a maior controle.
Outra questão de grande relevância levantada por Celso Mello, naquele mo-
mento em abril de 1987, se refere aos tratados internacionais sobre direitos huma-
nos. Muito antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, Mello tinha uma percep-
ção visionária da força material dos direitos humanos, de modo que tratados de
tal importância não ficassem à mercê da discricionariedade do Poder Executivo:
“Não seria válido que as convenções de direitos do homem – apenas as de direitos
do homem, direito humanitário, e convenções internacionais de trabalho – fossem
enviadas obrigatoriamente ao Legislativo?” (BRASIL, 1988, p. 20). E continuando
suas reflexões: “E se o Legislativo as aprovasse, haveria obrigatoriedade de ratifica-
ção por parte do Executivo [...] Aqui haveria outra proposta: de que não se pudesse
denunciar estes tratados sem aprovação do Legislativo” (BRASIL, 1988, p. 20).
Verifica-se que a concepção de soberania no contexto daquele momento, se-
gundo Mello, já era relativizada e acompanhava a tendência a partir da segunda
metade do Século XX: “proponho que os direitos do homem não sejam simplesmen-
te objeto da política do momento, mas algo que seja inserido na política global do
Brasil” (BRASIL, 1988, p. 21). Ser soberano em 1987 já deveria ser entendido estar
inserido numa nova ordem de valores trazidos pela globalização. E nisso esta nova
concepção de soberania se diferente daquela tradicional weberiana.
Entre outras questões expostas por Mello, dentre as quais contratos inter-
nacionais e os conflitos entre direito interno e direito internacional, a questão do
controle do exercício da soberania surge como ponto central do seu argumento.
O encerramento de sua exposição reafirma esta problemática: “confesso que a
minha ideia é sempre de valorização do Legislativo e creio que valeria a pena ten-
tar isto, sem obviamente entravar a ação do Poder Executivo”. (BRASIL, 1988,
p. 21). Sua exposição mostra-se coerente com seu pensamento sobre soberania,
exposto em um capítulo publicado doze anos depois (MELLO, 1999, p.12).
Ao responder a um questionamento do Constituinte Sarney Filho (PFL-MA)
sobre o uso da força nas relações internacionais, Celso Mello fez importante suges-
tão, o que é possível perceber que influenciou a redação do Anteprojeto daquela
subcomissão: “eu faria uma contra-proposta ao eminente Deputado Sarney Filho,

27
30 anos da Constituição

para aproveitar a ideia de S. Ex.ª Por que não se incluir na Constituição, entre
os princípios de política externa, o princípio da coexistência pacífica?” (BRASIL,
1988, p. 22). A sugestão de Mello provocou reação positiva no Constituinte, que
assim o respondeu: “levarei em conta a sugestão de V. Sª com muito prazer. É uma
porta que se irá abrir sobre a questão que abordei” (BRASIL, 1988, p. 22).
Isso pode ser verificado ao se comparar o Anteprojeto Afonso Arinos –
que apesar de não ter sido diretamente utilizado, influenciou bastante a redação
dos anteprojetos das subcomissões – e o Anteprojeto da Subcomissão da Nacio-
nalidade, da Soberania e das Relações Internacionais.
No Anteprojeto Afonso Arinos, entre os princípios do Brasil nas relações in-
ternacionais (art. 5º) não estava o da coexistência pacífica, apesar de constar no
inciso III a defesa da paz e repúdio à guerra. Por sua vez, no Anteprojeto da Subco-
missão constava no art. 19 uma redação semelhante ao que fora sugerido por Celso
Mello: “nas relações internacionais, o Brasil adotará atitude de coexistência pacífica
e se regerá pelos princípios constantes da Carta da Organização das Nações Unidas,
tal como explicitados na Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral”.
Na redação do Anteprojeto da Comissão da Soberania e dos Direitos dos
Homens e das Mulheres, a coexistência pacífica foi substituída pela noção de
solução pacífica dos conflitos internacionais, constante no art. 26, VI e que
originou o art. 4º, VII, da Constituição de 1988. Outra ideia de Celso Mello (e
que acabou não entrando no texto final em 1988) foi o controle dos acordos
do Executivo presente no Anteprojeto da Comissão. Com redação semelhante
ao que Mello propôs, o art. 28 dispunha: “Os tratados e compromissos inter-
nacionais dependem da aprovação do Congresso Nacional, excetuados os que
visem simplesmente a executar, aperfeiçoar, interpretar ou prorrogar tratados
pré-existentes e os de natureza meramente administrativa”. E continuava em
seu § 1º: “Os tratados a que se refere a parte final deste artigo serão levados,
dentro de trinta dias, ao conhecimento do Congresso Nacional”.

28
30 anos da Constituição

3. Siqueira Castro: O âmbito interno da soberania e o


Estado Social e Democrático de Direito
Carlos Roberto de Siqueira Castro foi convidado a realizar uma exposição
sobre soberania na 5º Reunião da Subcomissão da Nacionalidade, Soberania e
Relações Internacionais, no dia 30 de abril de 1987. Em suas palavras iniciais
apresentou uma reflexão sobre constar no texto constitucional um capítulo à
parte para tratar dos princípios da soberania do Brasil, algo que não era da tra-
dição constitucional nacional.
Segundo esse professor,
Acredito que poderíamos, nesta oportunidade ímpar que se abre para a
Assembleia Nacional Constituinte, repensar esta tradição constitucio-
nal brasileira tornando até mesmo, não por modelo, mas por referências,
constituições sociais e democráticas sobretudo da Europa, editadas por
países que tiveram, política e historicamente, uma experiência seme-
lhante à do Brasil (BRASIL, 1988, p. 37).

Siqueira Castro estava se inspirando nas Constituições de Portugal e Espa-


nha, nações europeias que a exemplo do Brasil haviam reencontrado a democra-
cia após um longo período de ditaduras. Assim como estes países, o projeto cons-
titucional a ser desenhado para esta nova era brasileira era de um Estado Social e
Democrático de Direito. De fato, por sugestão de Siqueira Castro ao Presidente da
Subcomissão, Roberto D’Ávila (PDT-RJ), o texto do artigo 1º da nova Constitui-
ção seria: “O Brasil é uma República Federativa livre e independente, constituída
sob o regime representativo em um Estado social e democrático”.
Ao sugerir os adjetivos “livre” e “independente” para a República Fede-
rativa do Brasil, Siqueira Castro queria reafirmar os pressupostos de soberania
nacional. Deste modo, ser soberano é não se submeter a nenhuma outra ordem
internacional acima de si; ao mesmo tempo, ser soberano significa o reconhe-
cimento de outras soberanias em situações de limite. Assim, conforme este ex-
positor, o Brasil “não pode subjugar-se a uma ordem internacional econômica
inóspita contrária aos interesses nacionais e que mitiga, de muito, a amplitude
de nossa própria soberania” (BRASIL, 1988, p. 37).
Nesse ponto, Siqueira Castro apresenta interessante concepção de soberania
para aquele momento. Reconhece que em pleno Século XX, a concepção de sobe-

29
30 anos da Constituição

rania não deveria ser aquela da modernidade, teorizada por Bodin, mas um concei-
to popular, na qual o poder emana e reside no povo. Deste modo, tem-se hodier-
namente a concepção em diversos Estados, desde nos mais desenvolvidos quanto
nos do Terceiro Mundo, que nenhuma soberania é superior à outra. Porém, com
chega em outra reflexão: “porque os Estados Unidos da América por certo são mais
soberanos do que o Paraguai ou uma nação mais pobre da África. Por quê? Porque
têm uma independência e um poder econômico maiores” (BRASIL, 1988, p. 37).
O raciocínio de Siqueira Castro é bastante semelhante às críticas o processo
globalizante do Século XX escritas por Milton Santos (2000) e reafirmadas por
outros autores, como Liziero (2017). Segundo Santos, em Por uma outra globalização,
as nações mais desenvolvidas no Século XX propagam formas de violência mais
eficazes que o belicismo: a violência do dinheiro e a violência da informação: “o
dinheiro se torna um equivalente realmente universal, ao mesmo tempo em que
ganha uma existência praticamente autônoma em relação ao resto da economia [...]
sob a influência do dinheiro, o conteúdo do território escapa a toda regulação inter-
na, objeto que ele é de uma permanente instabilidade, da qual os diversos agentes
apenas constituem testemunhas passivas” (SANTOS, 2000, p. 101).
Em inspiração pelas ideias de Milton Santos, também Liziero (2017, p. 113)
tece tal crítica à dominação provocada pela globalização, o que afeta a con-
cepção de soberania, a depender do Estado: “ainda que repercuta em diversas
esferas, o processo afeta a relação do Estado com sua soberania, afetando dessa
forma a ontologia da soberania na criação de desigualdades de poder”.
Assim, em conformidade com a ideia defendida por Siqueira Castro no
momento da Constituinte de 1987/1988, a soberania nacional enquanto in-
dependência de Estados mais desenvolvidos deveria ser reafirmada no texto
constitucional. Além desta questão, outro aspecto de soberania destacado por
Siqueira Castro é a finalidade do Estado brasileiro, de se constituir como um
Estado Social e Democrático de Direito.
Nesse ponto, Siqueira Castro faz algumas considerações sobre o conceito
de Estado de Direito, o que demonstra que naquela época, havia uma evidente
polissemia desta expressão. Apesar da resistência democrática, com menções na
exposição do autor do MDB, da Igreja Católica e a OAB, propugnar a restaura-
ção do Estado de Direito no Brasil, a ideia de Estado de Direito apresentava-se
até certo ponto reacionária. “Eu explico por quê. Porque prega tão-somente a
submissão do Estado a uma ordem jurídica, cria a ordem jurídica e se submete

30
30 anos da Constituição

a essa própria ordem” (BRASIL, 1988, p. 37). E continua adiante: “Regimes


autoritários consubstanciam também um Estado de Direito, porque, desde logo,
jurisdicizam o poder violento, transformam o poder em competência jurídica e
se subordinam à ordem jurídica autoritária, ditatorial” (BRASIL, 1988, p. 37).
Essa questão suscitada por Siqueira Castro é bem interessante e de grande
relevância para a compreensão do sentido de certa uma ordem jurídica. O que
Siqueira Castro denuncia nesta exposição é o mesmo problema que Jorge Reis
Novais se depara no primeiro capítulo de Contributo para uma Teoria do Estado
de Direito, publicada originalmente em 1986, um ano antes do início dos traba-
lhos da Constituinte. Segundo Novais, a expressão “Estado de Direito”, surgida
na época da emergência do liberalismo, havia perdido seu significado de limi-
tação do poder político e, diante das transformações trazidas pelos valores do
Século XX, deve ser ressignificada para uma ideia de integração entre Estado e
sociedade, não mais a separação preconizada por autores do liberalismo clássico
como Locke, Smith, Kant e Humboldt.
O grande fundamento e fim do Estado de Direito são os direitos funda-
mentais. Constituem seu núcleo essencial (NOVAIS, 2013). Sem o reconheci-
mento de uma categoria de direitos subjetivos de uma categoria diferente da-
queles que podem ser disponíveis ordinariamente pelo legislador, de modo que
possa proteger a autonomia individual de cada sujeito da vontade soberana, não
se pode falar em qualquer variação de Estado de Direito.
O Estado de Direito não é um termo unívoco: cada um dos conhecidos mo-
delos se desenvolveu de modo diferente e tem conotações diferentes de suas ex-
pressões, em seus idiomas originais (COSTA; ZOLO, 2007, p. ix). Em obras que
desenvolvem bem sobre o desenvolvimento do termo no pensamento jurídico – com
destaque para a obra The Rule of Law: History, Theory and Criticism, organizada por
Pietro Costa e Danilo Zolo – são distinguidos quatro modelos europeu de desenvol-
vimento que de certa forma influenciaram os demais em outros continentes: o Rule
of Law na Inglaterra, a versão norte-americana do Rule of Law, o Etat Constitutionel
na França e o Rechtsstaat na Alemanha novecentista (ZOLO, 2007, p. 7).
Conforme a hipótese de Jorge Reis Novais (2013, p. 26), “Estado de Direi-
to será, então, o Estado vinculado e limitado juridicamente em ordem à protec-
ção, garantia e realização efectiva dos direitos fundamentais, que surgem como
indisponíveis perante os detentores do poder e o próprio Estado”. De acordo
com o autor, os direitos fundamentais são suscetíveis de uma revisita conceitual

31
30 anos da Constituição

no Século XX com o advento da socialização, permitindo de tal forma que os


direitos sociais em um regime democrático tenham importância fundamental
no desenvolvimento pessoal. Neste caso, atualmente o Estado de Direito, de-
vido à ressignificação dos direitos fundamentais, necessita ser compreendido
como um Estado Social e Democrático.
No sentido de um Estado Social e Democrático de Direito, a contem-
porânea acepção do ideário do Estado de Direito, Siqueira Castro deixa bem
evidente porque seria importante tal evidência no texto da nova Constituição:
Por que Estado social e democrático de Direito? Porque esta alocução
sugere de forma muito veemente, muito candente, a ideia de que a le-
galidade estatal deve estar associada aos propósitos do avanço social e
democrático. Isto, mais do que nunca, é necessário em nosso País, na
quadra de evolução histórica que estamos a viver (BRASIL, 1988, p. 38).

Também é possível verificar a influência das ideias sugeridas por Siqueira


Castro sobre soberania no Anteprojeto desta subcomissão. Constava no Ante-
projeto um primeiro título chamado “Da Soberania”, do qual a Nova Consti-
tuição se abriria. Este primeiro título teve dez artigos e em todo ele é possível
verificar a afirmação e a reafirmação da noção de que a soberania da República
Federativa do Brasil é popular. Vejam-se os quatro primeiros artigos deste pro-
jeto, nos quais é possível verificar a evidente influência das ideias de Siqueira
Castro na redação proposta pelo Relator:
Art. 1º O Brasil é uma República democrática, representativa, constitu-
ída pela vontade popular numa Federação indissolúvel dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territórios.
Art. 2º A soberania pertence ao povo e dele emanam os poderes do Estado.
Art. 3º São poderes do Estado e órgãos da soberania popular, harmôni-
cos interdependentes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 4º Os poderes do Estado são exercidos pelo povo através de repre-
sentantes ou, diretamente, pelos meios previstos nesta Constituição.

Outra questão interesse de ser notada é o sentido de Estado Democrático


e Social de Direito, no qual o Estado possui grande ingerência nas relações
econômicas, conforme professado por Siqueira Castro. Nota-se em especial tal
mandamento, ainda no título sobre a Soberania, no art. 7º:

32
30 anos da Constituição

O Estado brasileiro exercerá soberania política e econômica permanente


sobre todos os recursos naturais que se encontram no seu território e
sobre os bens criados pelo empenho e pelo trabalho de seu povo.

Verifica-se, deste modo, que a questão da soberania interna, conforme os


sentidos revelados na Constituinte de 1987/1988 não se bastam numa obsole-
ta concepção weberiana; a soberania, enquanto elemento essencial do Estado
brasileiro, deve ser interpretada em harmonia com sua finalidade, que é a ins-
tituição de um Estado Democrático e Social de Direito, livre e independente
dos mandamentos de outras soberanias, ainda que necessariamente aberta a
algumas diretrizes emanadas pelo direito internacional.

4. Leonel Brizola: soberania e trabalhismo


Leonel Brizola, convidado a falar sobre soberania na subcomissão durante a 10º
Reunião, em 8 de maio de 1987, inicia seu discurso relatando como o Itamaraty, no
geral, submeteu-se ao Regime Militar e agiu como um agente de repressão fora do País
com os políticos exilados, entre os quais o próprio Brizola. Isso reflete diretamente
no primeiro ponto em relação à soberania que Brizola destaca: a garantia de direitos.
Em ruptura com o pensamento tradicional de que a soberania é o exercício do
poder político supremo do Estado, a soberania em uma perspectiva contemporânea
se encontra no direito, mais precisamente na Constituição. E é evidente aspecto
do poder soberano o reconhecimento e zelo pelos direitos de seus nacionais. Ao
discursar sobre seus problemas no exílio e o tratamento de criminosos aos que os
exilados pela Ditadura Militar eram submetidos, Brizola deixa claro que o desejável
politicamente era que a nova Constituição protegesse os brasileiros do banimento:
“acho que este é um campo em que precisamos estabelecer algumas garantias. Sob
circunstância alguma podemos permitir que brasileiros, em função de problemas
políticos, sejam jogados desta forma no exterior” (BRASIL, 1988, p. 94).
Brizola, após alguns relatos sobre sua experiência no exílio e como Gover-
nador do Estado do Rio Grande do Sul, entra na questão chave de seu discurso:
o trabalhismo, que em suas palavras, “é um movimento social muito autêntico
da vida brasileira. Surgiu aqui esse movimento social que as nossas elites mal-
sinam, chamam de populismo, de movimento demagógico” (BRASIL, 1988,

33
30 anos da Constituição

p. 96). O trabalhismo, como vai reafirmar Brizola, é um movimento específico


brasileiro, diferente do laborismo dos latino-americanos de língua espanhola.
Tal movimento contém uma natureza de democracia social. Conforme
Brizola, “as ideias sociais democratas não querem dizer outra coisa senão o so-
cialismo democrático, ou seja, o socialismo de verdade, a busca do social, um
movimento democrático impregnado do social. Essencialmente era isto: um
movimento que se desenvolveu aqui empiricamente” (BRASIL, 1988, p. 96).
A visão do trabalhismo requer como primordial ponto, conforme Brizola, a
visão própria de Nação e de nacionalidade e, consequentemente, de soberania na-
cional: “verificamos o seguinte: a soberania do nosso País, os seus valores, a sua
expressão perante o mundo haveriam de depender essencialmente do seu povo. As
nossas próprias relações com os demais povos, da mesma forma” (BRASIL, 1988,
p. 96). E complemente a ideia de que a noção de soberania brasileira está vinculada
à independência em relação à outras nações e sentido profundo de identificação
com a realidade social: “insisto em afirmar que a expressão do nosso País perante
o mundo e perante nós próprios, em relação ao que desejamos para o nosso próprio
povo, depende da nossa realidade social. Então, há um vínculo profundo, em nossa
percepção, entre soberania e realidade social (BRASIL, 1988, p. 96).
Portanto, o trabalhismo professado por Brizola requer o pensamento de uma
concepção específica de soberania para o Brasil. E aí vem a questão da identificação
entre os componentes do povo brasileiro e a relação de solidariedade entre eles, em
um componente biológico inclusive: “porque nenhum povo atinge um nível cultural
aceitável se não tiver uma situação biológica correspondente, a começar pela rea-
lidade de que as crianças não aprendem com fome, os deficientes, não aprendem,
nem os doentes” (BRASIL, 1988, p. 96). Verifica-se que há nesta ideia o dever de o
Estado em prestar direitos sociais à população: o desenvolvimento do povo requer
que o Poder Público ofereça condições necessárias para que os mais necessitados
possam atingir tal nível de autonomia.
Brizola toca num ponto interessante, que remete às reflexões em autores
como Amartya Sen: uma pessoa somente pode exercer plenamente sua liberda-
de se tiver condições de se nutrir para um desenvolvimento biológico saudável.
Não há pleno exercício das liberdades, inclusive as políticas, com um povo no
geral deficiente de nutrientes.

34
30 anos da Constituição

Não tenho outra alternativa se não a de afirmar que o nosso País, de-
vido principalmente aos problemas, agravados nos últimos decênios, de
autoritarismo, está caindo em uma situação muito delicada e perigosa,
lesionando, por conseguinte, a sua própria soberania, dada a situação
injustificável em que se encontra o seu povo (BRASIL, 1988, p. 96).

Sem o pleno desenvolvimento nutricional da pessoa, não há como ela no


futuro exercer plenamente seus direitos. E isto impacta diretamente na demo-
cracia; logo na soberania nacional. Um povo no geral sem a nutrição adequada
desde a infância tem sérios problemas de desenvolvimento cultural e político.
Portanto, a soberania no geral é lesada quando o povo te fracas possibilidades
de exercício político. E tais fracas possiblidades são geradas também pelas de-
ficiências nutricionais. Neste aspecto biológico destacado por Brizola, o traba-
lhismo seria uma alternativa para fomentar a adequada distribuição de renda e,
portanto, oportunidade de nutrição adequada a todos.
Assim, Brizola não via nada que justificasse, uma vez que o Brasil é dotado de
diversas riquezas naturais, que o povo se encontrasse na desdita que historicamente
o acompanha. Conforme Brizola, “é exatamente pelo atraso cultural, pelo estado
biológico, físico de nosso povo, que é doente, carente – e como todos sabemos e te-
mos consciência – que sofremos lesões em nossa soberania” (BRASIL, 1988, p. 97).
E continua:
Se nosso povo não estivesse nessa situação as categorias governantes
jamais fariam os convênios que têm, efeito, pois o povo não permitiria
tal coisa. Porém, ele nem toma conhecimento, porque não sabe que es-
tão negociando a sua própria sorte, estão entregando os frutos do seu
trabalho. Este povo não está sequer produzindo o que pode porque não
tem como. E o pouco que produz está sendo entregue vilmente lá fora,
enquanto o seu futuro está comprometido (BRASIL, 1988, p. 97).

E se relaciona diretamente à entrega dos recursos naturais do Brasil ao


mercado internacional, como hoje é defendido amplamente por algumas le-
gendas políticas e grupos de interesse. No sentido de soberania ali discutido,
a soberania requer também protecionismo do patrimônio nacional; ou ainda,
um protecionismo em razão da falta de possiblidade do povo em ter consciência
para debater e refletir acerca das transações feitas pelas elites políticas em nome
de tais grupos de interesse com propósitos estranhos à melhoria da qualidade de

35
30 anos da Constituição

vida da população: “Quer dizer, estamos decidindo interesses mais sagrados do


nosso povo, no que diz respeito à sua morte, ao seu destino, sem dar-lhe audiên-
cia, sem ouvi-lo sequer, sem que ele participe. Ligamos a questão da soberania
essencialmente à situação do nosso povo” (BRASIL, 1988, p. 97).
E, em conclusão, Brizola evidencia mais o sentido de soberania ali reve-
lado para a nova Constituição a ser promulgada em 1988: “soberania não é
apenas a intangibilidade das nossas fronteiras; soberania não é a presença aqui
de uma força estrangeira, violando os nossos direitos: soberania não é uma
independência formal do nosso País, nem mesmo uma independência real em
relação a outras nações (BRASIL, 1988, p. 98). E continua: “a soberania, ver-
dadeiramente, reflete a situação social de nosso povo. Só modificando-a nos
será permitido alcançar níveis de desenvolvimento que poderão garantir a nossa
projeção, no futuro, como Nação realmente soberana (BRASIL, 1988, p. 98).

Conclusões
Se, por um lado, sabe-se que o texto constitucional não se prende à vonta-
de de quem o produziu, por outro lado, conhecer o passado e as conjunturas que
influenciaram a sua construção são elementos que não podem ser desconsidera-
dos pelos estudiosos do constitucionalismo. Por isso mesmo, uma constituição
não pode ser adequadamente compreendida sem levar em conta os elementos
históricos de formação de seu texto.
No caso específico do presente trabalho, demonstrou-se as concepções
de soberania que foram adotadas pelo constituinte foram influenciadas por
extraparlamentares convidados a falar na Subcomissão da Nacionalidade, da
Soberania e das Relações Internacionais, no bojo do processo constituinte de
1987/1988. A referida Subcomissão estava encarregada de elaborar o anteproje-
to dos artigos iniciais do texto constitucional.
Assim como ocorreu com o tema da soberania, os princípios que regem
a república brasileira na ordem internacional também receberam influxo de
pessoas que não eram parlamentares. A sistemática de convocar pessoas da
sociedade civil atingiu os objetivos. Citou-se o caso de Marotta Rangel e Celso
Mello, que falaram na terceira reunião ordinária da subcomissão sobre o tema
Normas de Relações Internacionais no texto Constitucional e Soberania e Relações
Internacionais. Do mesmo modo, Carlos Roberto de Siqueira Castro foi convida-

36
30 anos da Constituição

do a realizar uma exposição sobre soberania na 5º Reunião da Subcomissão da


Nacionalidade, Soberania e Relações Internacionais, no dia 30 de abril de 1987.
Esses casos são ilustrativos para reforçar a velha máxima segundo a qual o
conhecimento do passado é importante condição para saber sobre o futuro. Muito
em razão disso, devemos concordar que os estudos de história não podem ser me-
nosprezados para a teoria do direito constitucional, ou mesmo colocado em segundo
plano, principalmente em datas festivas, como a que ora está passando o texto de
1988. A Constituição, portanto, nos seus 30 anos, tem muito a nos contar.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988). Diários da Subcomis-


são da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais. Brasília:
Senado Federal. Centro Gráfico, 1988, 125 pp.

COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. Preface. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo.
The Rule of Law: History, Theory and Criticism. Dordrecht: Springer, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2003.

LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. A soberania no Estado contemporâneo. Porto


Alegre: Fi, 2017.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. A Soberania através da História. In:


MELLO, Celso D. de Albuquerque. (org.) Anuário: Direito e Globalização 1: A
Soberania. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra:
Almedina, 2013.

SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização. São Paulo: Record, 2000.

37
30 anos da Constituição

VARGAS, Getúlio. Getúlio Vargas. Organização de Maria Celina D’Araújo.


Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.

ZOLO, Danilo. The Rule Of Law: A Critical Reappraisal. In: COSTA, Pietro; ZOLO,
Danilo. The Rule of Law: History, Theory and Criticism. Dordrecht: Springer, 2007.

38
Cláusulas Pétreas e seu Controle
de Constitucionalidade nos
30 Anos da Constituição

Bruno Meneses Lorenzetto43*


Paulo Ricardo Schier44**

Sumário: Introdução. 1 – Emendas constitucionais e cláusulas pétreas. 2


– O controle de constitucionalidade de emendas e seu paradoxo. 3 – A compre-
ensão do Supremo Tribunal Federal das cláusulas pétreas. Considerações finais.

O que a Inglaterra de 1940 pode ter em comum


com a Inglaterra de 1840? Mas, também, o que você
tem em comum com aquela criança de cinco anos
cuja fotografia sua mãe deixa acima da lareira? Nada,
a não ser que por acaso vocês sejam a mesma pessoa.
(ORWELL, George. England Your England:
Socialism and the English Genius. 1941)

Introdução
O objeto central do presente artigo recai sobre o tema das cláusulas pétreas
e seu desenvolvimento no contexto do Supremo Tribunal Federal. Embora não se
proponha a uma abordagem analítica completa de todas as decisões, mas sim um

*
43 Professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Coordenador do Programa de
Mestrado em Direito (Direitos Fundamentais e Democracia) e Professor da Graduação do Centro
Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Visiting Scholar na Columbia Law School, Columbia
University, New York. Doutor em Direito pela UFPR.
**
44 Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Estágio pós-doutoral pela Universidade de Coimbra
(IGC). Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro
Universitário Autônomo do Brasil (Unibrasil). Pesquisador do NUPECONST – Núcleo de Pesquisas
em Direito Constitucional (CNPq).

39
30 anos da Constituição

desenvolvimento por amostragem, pretende-se demonstrar que no âmbito do Su-


premo Tribunal Federal a compreensão sobre o sentido e extensão das barreiras
contramajoritárias tem oscilado com frequência. Nesse movimento, mais recente-
mente, tem prevalecido um entendimento dúbio no sentido de que (i) as cláusulas
pétreas alcançam todos os direitos fundamentais, localizados dentro ou fora do ca-
tálogo do Título II, inclusive os decorrentes de tratados internacionais de direitos
humanos, sejam eles individuais, coletivos, sociais ou difusos e sejam explícitos ou
implícitos – compreensão expansiva do rol de cláusulas pétreas –, mas em contra-
partida (ii) essa proteção não é absoluta, sendo capaz de comportar restrições desde
que não atinjam o núcleo essencial dos direitos fundamentais ou dos bens constitu-
cionalmente protegidos pelo art. 60, § 4º, da Constituição Federal.
A consolidação desse entendimento tem conferido uma discricionarieda-
de maior ao Supremo Tribunal Federal no plano do controle de constituciona-
lidade, o que pode se mostrar uma situação problemática.
Para o desenvolvimento do tema em questão, o artigo discute inicialmen-
te o conceito de emendas constitucionais e de cláusulas pétreas, indicando
possíveis paradoxos que podem decorrer a designação do controle de consti-
tucionalidade do núcleo central de uma constituição. Para tanto, é abordado o
questionamento democrático da capacidade de um povo definir suas próprias
leis e a convivência destas com um conjunto de dispositivos voltados para a
preservação de uma identidade constitucional, estabelecida pelos constituintes.
Na sequência, o texto passa a tratar de modo específico da realidade dos
referidos conceitos no plano nacional, demonstrando que o Supremo Tribunal Fe-
deral realiza o controle de emendas constitucionais, porém, ao longo dos últimos
30 anos o papel (auto)definido por este de guardião de nossas cláusulas de eterni-
dade não é unívoco e, como era de se esperar, diferentes intepretações e ênfases
em sentidos constitucionais acabaram por (re)modelar o lugar discursivo e deci-
sório do Supremo na sua função de intérprete e aplicador de nossa Constituição.

1 – Emendas constitucionais e cláusulas pétreas


Uma constituição pode ser modificada por meio de diferentes mecanismos:
um processo formal de emenda constitucional, uma revisão advinda do Legislativo,
pela substituição periódica da integralidade da Carta por uma nova constituição e

40
30 anos da Constituição

pela interpretação realizada pelo Judiciário,45 com especial relevo para as ocasiões
em que este realiza controle de constitucionalidade. Em termos práticos, o meio
pelo qual cada País utiliza para efetuar tais mudanças constitucionais acaba por di-
zer bastante sobre suas estruturas e o funcionamento de suas principais instituições.
As alterações em uma constituição também são aberturas para compreensão
dos mecanismos políticos e de sua respectiva operação em cada Estado. Logo, mes-
mo nos lugares em que a constituição é respeitada e estimada como documento que
organiza a vida da comunidade política, há aspectos do funcionamento da polis que
escapam do seu domínio. Porém, de acordo com Donald Lutz, mesmo que as cons-
tituições não descrevam toda a realidade do sistema político elas podem funcionar,
quando lidas cuidadosamente, como janelas para a realidade subjacente.46 O mesmo
pode ser dito no que tange ao processo de emenda das constituições.
Em seus primórdios, a ideia de soberania popular foi importante para le-
gitimar a fundação das constituições, deste modo, estas seriam o resultado da
manifestação do consentimento popular (ainda que implícito ou mediado por
representantes) no momento constituinte e sua posterior estabilização com a
definição dos poderes constituídos. O poder de criar e mudar a constituição
demandavam, em um nascente mundo moderno, mecanismos para sua legi-
timação e operação. Em 1776 a constituição do estado de Nova Jérsei previa
uma noção implícita de emenda, mas a constituição da Pensilvânia, datada do
mesmo ano, cotinha o primeiro processo explícito de emenda constitucional.47
Para Lutz, além do elemento da soberania popular o processo de emenda
estava baseado em premissas vigentes no fim do século XVIII: uma natureza
humana imperfeita porém educável, a eficácia do processo deliberativo e a dis-
tinção entre a legislação normal e assuntos constitucionais.48
Assim, entendia-se que os seres humanos eram falhos, porém, capazes de
aprender com novas experiências, fator que levava o processo de emenda a fun-
cionar tanto no sentido da adaptação da realidade, ou seja, em sua dimensão

45 Ver: CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Mutação constitucional e


segurança jurídica: entre mudança e permanência. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e
Teoria do Direito, v. 7, n.2, maio-agosto, 2015.
46 LUTZ, Donald S. Toward a Theory of Constitutional Amendment. American Political Science Review.
v. 88, n. 2, 1994. p. 355.
47 LUTZ, Donald S. Op. Cit. p. 356.
48 LUTZ, Donald S. Op. Cit. p. 356.

41
30 anos da Constituição

sociológica das transformações na sociedade, mas, igualmente no plano antro-


pológico no sentido da compensação dos limites das virtudes humanas e sua
respectiva capacidade de compreensão.
A dimensão deliberativa refletia a soberania popular e a busca por decisões
otimizadas com vistas ao bem comum, ao passo que quanto maior a importância
da decisão, respectivamente proporcional deveria ser o processo deliberativo, de
maneira que isso permitia, inclusive, a distinção entre temas ordinários e constitu-
cionais que seriam alocados em diferentes níveis de relevância e que o processo de
emenda constitucional fosse mais gravoso em comparação com a legislação normal.
Carl Schmitt, ao tratar dos limites da autoridade para emendar a constitui-
ção afirma que se o processo de emenda constitucional é regulado constitucio-
nalmente isso acaba por estabelecer uma competência que não é autoevidente.
Ou seja, não se coloca nos termos comuns do poder constitucionalmente regra-
do do Legislativo de produzir leis de acordo com a Constituição, pois, tal fun-
ção, de maneira isolada, não satisfaria as condições para promover a alteração
da base de sua própria competência legislativa. Para tanto, a edição de emendas
à constituição não seria uma atividade regulatória normal, a mudança de nor-
mas constitucionais distanciaria o Estado do funcionamento de suas atividades
padrão, eis que, este refletiria o exercício de uma autoridade extraordinária.49
Como tal, contudo, ela não é ilimitada pois resguarda uma autoridade que é
compartilhada constitucionalmente. Além disso, o processo de emenda é restrin-
gido pelo fato de não poder existir autoridade constitucional sem limites no con-
texto da regulação constitucional e por conformar um dos processos de mudan-
ça constitucional. Para Schmitt, a autoridade para emendar a constituição deve
pressupor a preservação da identidade e da continuidade constitucional como
uma integralidade, já que não se trata de uma autoridade para estabelecer uma
nova constituição ou realizar uma revisão constitucional, bem como o poder de
emendar a constituição não pode se tornar o poder de aniquilar a constituição.50

49 SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. Durham: Duke University Press, 2008. p. 150.
50 SCHMITT, Carl. Op. Cit. p. 150. “It is useful to keep Carl Schmitt´s key thesis in mind: Whatever
the formal limits of the amendment process, its procedures cannot be used, either for logical or
fundamental political reasons, to amend a constitution out of existence, or to create a new one. If
this proves possible, it will only be because the old constitution is already politically dead.” (ARATO,
Andrew. Dilemmas arising from the power to create constitutions in Eastern Europe. ROSENFELD,
Michel. Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: theoretical perspectives. Durham:
Duke University Press, 1994. p. 179).

42
30 anos da Constituição

Também é preciso considerar que o poder de emendar a constituição não


conduz à eliminação da constituição. Mesmo considerando que o poder cons-
tituinte originário continue existindo de maneira latente no meio social,51 a
emenda constitucional não poderia se tornar uma decisão política que viesse a
substituir os pilares fundamentais que constituíram a constituição de um país. 52
Se o poder de emenda possui limites, por óbvio ele não poderá conduzir
à eliminação da própria constituição,53 isso levou à formulação de cláusulas
explícitas nas constituições que passaram a proibir, de maneira expressa, deter-
minadas alterações na constituição, em especial no que diz respeito aos valores
fundamentais resguardados por esta que permitem a arquitetura das institui-
ções basilares que organizam o Estado e a comunidade política.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, as Cortes Constitucionais dos es-
tados da Alemanha passaram a reconhecer a existência da inconstitucionalida-
de de dispositivos constitucionais e, na década de 1950, a Corte Constitucional
Federal alemã passou também a reconhecer a inconstitucionalidade de normas
constitucionais.54 Isso se dá pelo fato de a Constituição alemã possuir cláusulas
pétreas ou cláusulas de eternidade, ou seja, há uma parte da Constituição que não
poderá ser objeto de emenda constitucional. Em específico, no que diz respeito
à divisão da federação em estados, a dignidade humana e em seu artigo 20, que
define a Alemanha como uma República Federativa social e democrática.
É interessante notar que estados democráticos acabam por adotar cláu-
sulas pétreas por motivos de preservação e tanto o Brasil quanto a Alemanha
retiraram a possibilidade de emenda constitucional que atingisse o federalismo

51 PREUSS, Ulrich K. Constitutional powermaking for the new polity: some deliberations on the relations
between constituent power and the constitution. In: ROSENFELD, Michel. Constitutionalism, Identity,
Difference, and Legitimacy: theoretical perspectives. Durham: Duke University Press, 1994. p. 156.
52 SCHMITT, Carl. Op. Cit. p. 151-152. “Formal unamendability may also be deployed for a second
purpose: to preserve a core feature of the self-identity of the state. This preservative function of
unamendability privileges one or more constitutional principles, rules, values, structures or
institutions as fundamentally constitutive of the regime.” (ALBERT, Richard. The unamendable core
of the United States Constitution. In: KOLTAY, András. Comparative Perspectives on the Fundamental
Freedom of Expression. Budapest: Wolters Kluwer, 2015. p. 16)
53 “Constitutions can be revised fundamentally, but the revisions are subject to the rules of the
constitution itself. In contrast, no constitution can contain rules which allow its abolishment
altogether; this would permit revolution, whereas it is the very meaning of constitutions to avoid
revolutions and to make them dispensable.” (PREUSS, Ulrich K. Op. Cit. p. 157).
54 BARAK, Aharon. Unconstitutional Constitutional Amendments. Israel Law Review, v. 44, 2011. p. 328-329.

43
30 anos da Constituição

como forma de salvaguardar uma estrutura de governo, ao reconhecer seu papel


central para a vida política, que se fez necessária para a solução de conflitos e
desacordos entre seus estados membros.55
Em tese, os constituintes podem blindar qualquer aspecto de uma futura cons-
tituição com uma cláusula de eternidade como por exemplo: a própria estrutura es-
tatal, a separação de poderes, um símbolo ou mesmo a religião oficial. Isso significa
que os dispositivos pétreos diferem do resto da constituição por sua impossibilidade
de alteração formal, igualmente, costuma se tratar de uma sinalização de que a
matéria protegida possui importância exponencial para a sociedade (ou sua elite)
no momento constituinte. Para Richard Albert, elas seriam uma declaração signifi-
cativa sobre o valor, objetivo ou subjetivo, do dispositivo e a expressão última de sua
relevância que pode vir a ser comunicada por um texto constitucional.56

2 – O controle de constitucionalidade
de emendas e seu paradoxo
As cláusulas pétreas, defende Aharon Barak, são planejadas para fortalecer
a constituição contra emendas impróprias de modo que o controle de constitucio-
nalidade acaba por se tornar um mecanismo para a sua proteção. Este fornece os
“dentes” necessários para a defesa do núcleo duro da constituição.57 Disso decorre
tanto a autoridade para as Cortes realizarem a fiscalização da constitucionalidade
de emendas, mas também, o parâmetro de avaliação a ser realizado no controle,
qual seja, aquele fixado pelas próprias cláusulas de eternidade.
Auxilia na compreensão deste ponto a distinção entre os conceitos formal
de constituição, que se traduz na soma de dispositivos do texto de uma consti-
tuição e o conceito positivo de constituição que, para Schmitt, seria resultado
de uma decisão tomada pelo poder constituinte originário e abrangeria apenas
as determinações conscientes da unidade política.58

55 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 17.


56 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 18
57 BARAK, Aharon. Op. Cit. p. 333.
58 SCHMITT, Carl. Op. Cit. p. 75.

44
30 anos da Constituição

Esta, por sua vez, seria anterior ao próprio poder constituinte originário
e está relacionada com a identidade política nacional. De modo que, enquanto
o sentido formal estaria aberto para mudanças sucessivas, o Estado pode con-
tinuar existindo mesmo com novas formas, a unidade política seria aquilo que
daria continuidade, permanência a este corpo social conformando um núcleo
fundamental de sentido da constituição.
Sabe-se que as cláusulas pétreas não se sustentam diante de uma real campa-
nha no sentido da criação de um novo regime constitucional, contudo, os limites
à emenda constitucional podem ser aplicados por um regime em que seus atores
políticos respeitam os limites explícitos e implícitos de alteração constitucional.
Logo, um parâmetro para a verificação da constitucionalidade de uma
emenda estaria na própria análise dos requisitos necessários para a sua realiza-
ção, eis que, uma emenda constitucional apenas pode ser considerada válida,
em um primeiro nível de análise, se estiver de acordo com o rito previsto na
própria constituição para a sua edição. Tais aspectos estão direcionados para
elementos eminentemente formais da emenda como a definição das entidades
competentes para emendar a constituição e a maioria necessária para tanto.59
O problema emerge quando se trata dos aspectos substantivos ou dos va-
lores centrais que não podem ser objeto de emenda, em especial nos casos de
constituições que possuem pouca rigidez formal e podem facilmente ultrapassar
a etapa procedimental do processo de emenda.
Uma corte constitucional pode realizar o controle de constitucionalidade de
uma emenda tanto no plano formal como substantivo. Em face disto a emenda
pode ser inconstitucional por não respeitar os procedimentos previstos expressa-
mente na constituição para a sua confecção, como as maiorias ou ritos como a
ordem de votação em cada uma das casas do Legislativo ou outros requerimen-
tos no processo de sua proposição, ratificação ou promulgação. De outra sorte,
a emenda pode ser tratada como inconstitucional na dimensão substantiva nos
casos em que seu conteúdo é julgado como oposto a aspectos que são tratados

59 “Como resultado do que fica dito, deve por consequência assentar-se em que aos tribunais
constitucionais também compete o controlo da constitucionalidade de normas da Constituição, e da
constitucionalidade no mais amplo sentido da ‘validade’ (Geltung) das normas constitucionais à luz
de todo o direito incorporado na Constituição (Lei Fundamental ou Constituição de um Estado
federado) ou por ela pressuposto.” (BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais?
Coimbra: Almedina, 2007. p. 86).

45
30 anos da Constituição

como pétreos na constituição, seja de forma explícita em seu texto ou de forma


implícita, decorrente de interpretações da integralidade sistêmica constitucional.
Para Barak, sem a determinação de standards substantivos, sem cláusulas
pétreas, a própria dimensão semântica da “emenda” poderia deixar de fazer
sentido eis que, está implícito no termo que o documento emendado continua
a existir. Observa-se, com isso, que há uma demanda substantiva no sentido da
manutenção da estrutura básica da constituição, impedindo sua mudança com-
pleta via emenda, tal perspectiva define o termo “emenda” como o “gancho” no
qual o teste substantivo fica apoiado.60
Aquilo que se busca evitar é justamente a remoção do próprio “gancho”,
ou seja, obstar uma emenda constitucional que viesse a reformular os dispositi-
vos constitucionais que tratam do próprio processo de emenda61 e impedir que
tal procedimento abra uma porta que possibilite a substituição, “formalmente
adequada” após a retirada do “gancho”, de toda a constituição.
No que diz respeito ao poder do Judiciário buscar limitar manobras como essa,
parece ser inevitável o questionamento se caberia a este poder a função de guardar
a constituição não tendo seus membros sido, via de regra, derivados de um processo
eleitoral. A problematização da falta de legitimidade de uma Corte constitucional
para realizar o controle de constitucionalidade das emendas constitucionais poderia
ser vista como uma versão anabolizada do debate que se coloca, via de regra, no
plano da constitucionalidade de leis infraconstitucionais.
Não obstante, uma resposta rápida para o caso seria a de que as Cortes, e isso
parece relativamente pacífico, não poderiam ir tão longe em práticas ativistas ao pon-
to de estabelecer discricionariamente as cláusulas pétreas e usurpar o lugar do poder
constituinte originário. Não se nega, com isso, a dimensão interpretativa e política
das Cortes, porém, entende-se que o controle de emendas deveria ocupar um lugar
eminentemente defensivo e ser um remédio para ocasiões muito específicas.
Neste contexto, entende-se que as cláusulas pétreas podem ser definidas de ma-
neira informal pela interpretação judicial. Nos casos em que uma constituição não ve-

60 BARAK, Aharon. Op. Cit. p. 334-335.


61 “This fact seems to confirm Schmitt´s claim that it would be highly implausible to use the method
of amendment to essentially alter the amendment procedure itself. If using the existing procedure to
replace the constitution only disguises a very real break, the survival of the procedure points to the
incompleteness of this break in a fundamental area, which helps produce a form of parliamentary
sovereignty rather than democratic constitutionalism.” (ARATO, Andrew. Op. Cit. p. 181).

46
30 anos da Constituição

nha a dispor de maneira expressa quais são suas cláusulas inalteráveis uma corte pode,
na realização da interpretação constitucional, identificar tanto um artigo positivado
ou um princípio não expresso como implicitamente pétreo, ou seja, imunizado contra
alterações via emenda constitucional. A ideia de defesa da identidade constitucional
e o caráter democrático do Estado acabam por se colocar nesta questão.
Embora as formas de “petrificação” venham a diferir em sua origem, uma é
derivada do constituinte e outra da Corte, o resultado deveria ser indiferente em
termos práticos, pois, o limite da cláusula deve vincular todos os atores políticos
da comunidade política, sob pena de eventual dissolução do regime constitucio-
nal e irrupção de um momento constituinte. Em casos extremos, não se descarta
cenários nos quais as normas constitucionais deixam de fazer sentido para um
povo e este busca uma nova constituição, mas isto não deveria ocorrer via a es-
trutura conceitual da emenda, mas pelo acesso ao poder constituinte originário.
Se a autoridade para emendar a constituição não possibilita a criação de
uma nova constituição, o papel da Corte de guardar a constituição não pode-
ria, de maneira bastante paradoxal, violar o documento que ela própria deveria
proteger – tal proteção foi considerada a partir das ameaças de excesso de poder
de outras entidades. Nesse sentido, Barak argumenta a favor do controle de
constitucionalidade da emendas constitucionais, considerando que a dimensão
política da fiscalização constitucional não deveria ser tratada como uma amarra
para as Cortes, eis que, a função a ser exercida pelo Judiciário, neste campo, não
seria a defesa direta de seus próprios interesses mas a proteção da democracia.62
As cláusulas pétreas, em sua própria definição de limites imunes à alte-
ração ao longo das futuras gerações acaba por estabelecer um desafio para o
núcleo conceitual do constitucionalismo democrático, pois, a este cabe a não
simples conciliação entre um conjunto de valores projetados pelos constituin-
tes, no momento inicial da formação (ou reforma) da comunidade política, so-
bre os quais eles não terão mais controle, mas que irão configurar a identidade
da comunidade política, ao mesmo tempo que deve garantir uma abertura sis-
têmica para o imprevisível, para os novos fenômenos derivados das interações
sociais por vir que não podem ser previstas nem pela melhor constituinte ou
pessoa fundadora de um país.63 Trata-se da dimensão democrática que precisa

62 BARAK, Aharon. Op. Cit. p. 336.


63 LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a democracia. Belo
Horizonte: Arraes, 2017.

47
30 anos da Constituição

acompanhar de modo procedimental e substantivo a própria comunidade po-


lítica ao longo das gerações, ou seja, a ideia de que um povo é capaz de definir
suas próprias leis, de autogoverno.
Para Albert as cláusulas pétreas, debilitariam a promessa básica do consti-
tucionalismo pois limitariam o universo de possibilidades constitucionais aber-
tas pelos governados pela constituição, não se trataria apenas de um limite
procedimental aos cidadãos mas de um sequestro dos seus direitos democráticos
mais básicos, assim, questiona a legitimidade das cláusulas e entende que es-
tas conformam mais uma declaração de importância do que de referências a
serem observadas na aplicação das leis pelo Judiciário.64 No mesmo sentido, a
rigidez constitucional pode se tornar uma armadilha, eis que nos países em que
as emendas se tornam impossíveis ou muito difíceis pelo Legislativo ou pela
coordenação entre os poderes, acaba-se por delegar um grande poder para o
Judiciário no papel da fixação do seu sentido.
Com base na democracia participativa, o direito à formulação de emendas
acaba por irradiar aspectos do constitucionalismo democrático como a igualdade
de voto, a participação dos cidadãos nos procedimentos deliberativos informados,
a igualdade de oportunidade na participação do debate bem como o direito à re-
presentação.65 A determinação de cláusulas pétreas acaba por desabilitar todos os
referidos aspectos, pois, o discurso público sobre estas fica desarticulado, o direito ao
voto das gerações presentes e futuras passa a valer menos do que o dos fundadores, é
negada aos cidadãos informados a possibilidade de deliberação sobre temas centrais
da sua vida política bem como fica restrita a representação da geração dos vivos, que
está sendo guiada pela constituição no presente.66
Há, ainda, outro problema relacionado à estrutura de controle das cláusulas
pétreas eis que, no plano prático, elas potencializariam o dilema relacionado com a
palavra final advinda das Cortes para questões constitucionais,67 afastando atores
políticos e cidadãos do seu poder de disputar o sentido da constituição na arena de-
mocrática, correndo o risco de congelar sentidos estabelecidos no texto, ainda que a

64 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 13-14.


65 PITKIN, H. The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, 1972.
66 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 23.
67 CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Diálogos institucionais: estrutura e
legitimidade. Revista de Investigações Constitucionais, v. 2, n. 3, 2015.

48
30 anos da Constituição

interpretação de determinados termos positivados em uma constituição possa levar


a plurais interpretações, como é o caso da dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, Albert afirma que as duas falhas relacionadas com as cláu-
sulas pétreas estão na sua descompromissada orientação do passado e suas res-
trições nas manifestações democráticas, ao negligenciar a importância do pro-
cesso político presente como uma proteção básica do exercício do autogoverno,
para tanto, as cláusulas pétreas podem promover o desligamento entre os valo-
res fundadores entrincheirados e os valores da comunidade política dos vivos.68
O próprio papel do controle de constitucionalidade das emendas pode
ser alvo de críticas em razão dos paradoxos que este acaba por suscitar, já que
caberá à Corte o papel de invalidar a emenda inconstitucional para defender a
democracia, ao passo que a defesa da democracia conduz à reflexão da impor-
tância do papel do povo nos processos decisórios fundamentais do Estado e da
proteção de tais processos como direitos protegidos pela própria Carta.
O paradoxo que decorre desta reflexão é o seguinte: a Corte precisa in-
terpretar e aplicar a constituição e colocar o próprio valor de escolha e auto-
determinação dos vivos como pétreo, imune à alteração pelas vias constitu-
cionais estabelecidas. Se o controle de constitucionalidade busca ser democrá-
tico, ele acaba por ironicamente autorizar que a Corte invalide uma emenda
constitucional,69 algo que parece ser distante de uma perspectiva de democracia
no sentido de autogoverno pelo povo.
Este paradoxo descortina uma face do problema, que está relacionado justa-
mente com a dimensão “viva” de uma constituição, mobilizada pela democracia.
Porém, há algo de ambíguo e não resolvido por definitivo que diz respeito à di-
mensão estabilizadora, limitadora da constituição, que se exibe no próprio caráter
ambíguo do poder de emenda, como explica Ulrich Preuss, em que este precisa
preservar a flexibilidade e a sustentabilidade da ordem constitucional, mas este não
pode destruir a constituição com uma emenda constitucional inconstitucional.70
Ademais, a ideia de um governo que é guiado exclusivamente pela vontade
dos “vivos” pode se tornar uma armadilha, eis que, todas as decisões tomadas pela

68 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 24.


69 ALBERT, Richard. Op. Cit. p. 36.
70 PREUSS, Ulrich K. The Implications of “Eternity Clauses”: the German experience. Israel Law
Review, v. 44, 2011. p. 430.

49
30 anos da Constituição

geração presente estão condenadas a envelhecer e se tornar itens no rol das decisões
tomadas no passado, mesmo que tenham sido planejadas para a construção de ins-
tituições com prazo ad aeternum. Por isso, nem os constituintes podem ser elevados
à condição de “anjos onipotentes”71 que continuam a definir a continuidade do fun-
cionamento do mundo desde uma posição externa, nem os juízes constitucionais
podem se arrogar o papel de únicos guardiões da constituição.
Stephen Holmes defende a inversão dos vetores quando se trata do tema cons-
titucionalismo e democracia, assim, a liberdade se tornaria uma prisão enquanto a
prisão seria uma liberdade, eis que, os defensores de formas puras de autogoverno
acabam por olvidar a “economia” realizada pelo passado. Pelas decisões tomadas
pelos “mortos” e por todos os problemas que estes tiveram que enfrentar para chegar
a sínteses que continuam a organizar a vida presente. Por isso, as batalhas travadas
pelos “mortos” não precisam ser reencenadas a todo momento, os grilhões forneci-
dos pelo passado, no caso em questão, pelas cláusulas pétreas, podem ser libertado-
res para que outros problemas e novos questionamentos constitucionais venham a
ser resolvidos pelos “vivos”. Portanto, uma visão expandida do funcionamento das
constituições habilita a compreensão de que as restrições constitucionais podem ser
habilitadoras, elas podem abrir espaços para novas criações.72
Ainda que existam críticas sobre constituições que sofrem um número muito
elevado de emendas, entende-se que o constitucionalismo e a soberania popular são
conceitos que vão além de medidas a respeito de sua objetividade ou simplicidade,
de modo que, qualquer povo que acredite nos valores do constitucionalismo irá
realizar emendas em sua constituição quando necessário, não lançando mão de

71 HOLMES, S. Passions and constraint: on the theory of liberal democracy. Chicago: University of
Chicago Press, 1995. p. 160.
72 “As I explained in the last chapter, constitutions may be usefully compared to the rules of a game and
even to the rules of grammar. While regulative rule (for instance, ‘no smoking’) govern preexistent
activities, constitutive rules (for instance, ‘bishops move diagonally’) make a practice possible for
the first time.” (HOLMES, Stephen. Op. Cit. p. 163). “Constitutions must do more than merely set
down the bargains of faction. They must express our best selves – but they must express our selves,
not someone else´s. It is always a danger sign when a constitution´s ideal project drifts too far from
the nexus of practical political action, as it did in France in the 1790´s, and in Weimar in 1919. A
new constitution cannot wipe out an old order by provisions. The ancient regime, the endless series
of dependencies and hopes accumulated over generations, will not disappear even in a Madisonian
moment. These hopes and dependencies have to be patiently worked through, in a practical politics
informed by constitutional vision.” (JACOBSON, Arthur A. Transitional Constitutions. In:
ROSENFELD, Michel. Constitutionalism, Identity, Difference, and Legitimacy: theoretical perspectives.
Durham: Duke University Press, 1994.p. 422).

50
30 anos da Constituição

mecanismos extra-constitucionais. Para tanto, o uso regular de emendas constitu-


cionais pode indicar que as pessoas que vivem em determinada comunidade políti-
ca prezam por seus valores constitucionais, ou seja, levam sua Constituição a sério.

3 – A compreensão do Supremo Tribunal Federal


das cláusulas pétreas
Há uma forte tradição, no constitucionalismo, que sustenta que as consti-
tuições não se reduzem a uma dimensão meramente documental, escrita, mas
englobam também a construção de sentidos a partir de contextos sociais e prá-
ticas culturais e políticas complexas73. E nessa linha a experiência constitu-
cional brasileira é bastante rica em exemplos que demostram a transformação
do sentido de institutos jurídicos. A construção do significado e extensão da
proteção das cláusulas pétreas é um desses exemplos74.
O tema das cláusulas pétreas está inserido, no contexto da Constituição
Federal de 1988, na disciplina do processo legislativo, especialmente nas dispo-
sições que tratam do procedimento das emendas constitucionais – artigo 60.
De acordo com este dispositivo a constituição somente pode ser emen-
dada mediante proposta (i) de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara
dos Deputados ou do Senado Federal, (ii) do Presidente da República ou (iii)
de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação,
manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
No que tange à sua discussão e aprovação, a proposta de emenda deve
ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
separadamente, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos de

73 JR FALLON, Richard H. The dynamic constitution. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 1-27.
74 Oscar Vilhena Vieira, já em 1999, chamava a atenção para as diferentes nuances na percepção do
Supremo Tribunal Federal em relação à compreensão do papel das cláusulas pétreas (VIEIRA, Oscar
Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 160-183). Em termos
de análise quantitativa, estudo de Fernando Bernardi Gallacci também reconhece a existência de
diferentes usos do discurso das cláusulas pétreas desde a promulgação da Constituição de 1988 até o
ano de 2011 (período de abrangência da pesquisa). Nesse sentido consultar: GALLACCI, Fernando
Bernardi. O STF e as cláusulas pétreas – o ônus argumentativo em prol da governabilidade? Sociedade
Brasileira de Direito Público: São Paulo, 2011. Acessível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/
monografia/193_Fernando%20Gallacci.pdf.

51
30 anos da Constituição

cada casa parlamentar, três quintos dos votos dos respectivos membros. Logo,
trata-se de procedimento mais difícil que aquele empregado para as normas in-
fraconstitucionais: seu quórum de aprovação é superior ao das leis complemen-
tares (que demandam maioria absoluta - metade mais um em razão do número
absoluto dos membros das Casas) e das leis ordinárias (que demandam maioria
simples ou relativa - metade mais um em proporção ao quórum dos presentes),
e isso caracteriza a rigidez da Constituição de 198875.
Peculiaridade do processo da reforma, no Brasil, é o fato da aprovação de emen-
das não exigir sanção presidencial, que é uma fase do processo legislativo, quase sem-
pre presente na produção de leis infraconstitucionais, em que o Chefe do Poder Exe-
cutivo pode aquiescer com a aprovação de projetos já aprovados no parlamento ou
discordar com fundamento na ausência de interesse público ou inconstitucionalidade.
Em se tratando de emendas à constituição, ocorre a promulgação do texto
aprovado diretamente pela mesa da Câmara dos Deputados, pois reputa-se que
o titular desse poder constituinte derivado é o próprio Poder Legislativo.
Há ainda, no mecanismo de rigidez constitucional brasileiro, a previsão de limi-
tações circunstanciais, que impedem a aprovação de emendas constitucionais durante
estado de sítio, estado de defesa ou intervenção federal. Com efeito, diante da gravi-
dade de uma reforma constitucional, demanda-se, para sua atuação, um quadro de
normalidade, de estabilidade, o que não se encontra em tais circunstâncias.
Ao contrário de alguns sistemas constitucionais, é de se registrar que ine-
xiste, na Constituição Federal de 1988, qualquer limitação de ordem temporal.
Finalmente, no plano das limitações ao poder constituinte derivado, encontra-se
a cláusula implícita de proibição do duplo grau de revisão76, aceita pela maioria da
doutrina nacional e com abrigo em algumas decisões do Supremo Tribunal Fede-
ral. Consiste, o duplo grau de revisão, em alteração do próprio procedimento da
reforma, de acordo com as exigências atuais, para torná-lo mais flexível e simples.
De modo que, em um segundo momento, poder-se-ia operar reformas mediante
procedimento facilitado. Logo, reforma-se em primeiro grau para mudar o proce-

75 Essa rigidez é a responsável por conferir a supremacia formal da constituição. É preciso lembrar que essa
distinção procedimental caracteriza a rigidez constitucional, o que é algo diverso das cláusulas pétreas,
que são verdadeiras cláusulas de eternidade que tipificam uma espécie de superconstitucionalidade
(VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit. p. 26-28). No mesmo sentido: BRANDÃO, Rodrigo. Direitos
fundamentais, democracia e cláusulas pétreas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 231-232.
76 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II, 3ª ed., Coimbra: Coimbra, 1991. p. 206.

52
30 anos da Constituição

dimento e em segundo grau, com o procedimento mais simples, para modificar


mais singelamente o conteúdo77. Evidentemente a proibição do duplo grau de
revisão é compreendida como limitação implícita ao poder reformador eis que sua
admissão representaria verdadeira fraude constitucional78.
As cláusulas pétreas, dentro desse quadro, são apresentadas como limites ma-
teriais ao poder de emenda. O artigo 60, § 4º, enuncia tais cláusulas superconstitu-
cionais da seguinte forma: “- Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir (I) a forma federativa de estado, (II) o voto direto, secreto, universal
e periódico, (III) a separação dos poderes e (IV) os direitos e garantias individuais”.
O quadro normativo das cláusulas pétreas, apesar de relativamente sim-
ples, sempre apresentou sérios problemas de fundamentação no campo da le-
gitimidade constitucional79. Afinal, na prática, a existência de cláusulas super-
constitucionais, especialmente quando contemplam a tutela dos direitos funda-
mentais, retiram substancial parcela de matérias do campo deliberativo e possi-
bilitam a emergência de uma tensão potencial entre tais direitos e a democracia.
Deveras, na contemporaneidade o reconhecimento constitucional de um
rol mais ou menos extenso de direitos fundamentais é fenômeno facilmente
constatável80, podendo-se afirmar o mesmo em relação à democracia, invocada
em não poucas constituições, mesmo antidemocráticas, como elemento de legi-
timação do poder81. Não sem razão, pensadores de tradições teóricas distintas
sustentam que os direitos fundamentais integram o cerne do constitucionalis-
mo82. Os direitos fundamentais, não raro, são apontados como integrantes do

77 Idem, p. 207.
78 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1991. p. 1138.
79 Nesse sentido consultar: MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação dos poderes e
deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.
80 DIPPEL, Horst. História do constitucionalismo moderno – novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007. p. 23-35.
81 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1976. p. 218-222.
82 Hans Peter Schneider assinala que “a lei fundamental pode ser considerada como a Constituição dos
direitos fundamentais, e interpretada e desenvolvida sempre em função destes direitos fundamentais;
e o Estado existe para servir aos indivíduos e o não o indivíduo para servir o Estado” (SCHNEIDER,
Hans Peter. Democracia y constitucion. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1991. p. 17).

53
30 anos da Constituição

núcleo principal das atuais constituições83, que teriam se desenvolvido exata-


mente como instrumentos de tutela desses direitos84.
Ao mesmo tempo em que não há grande divergência na afirmação de que
direitos fundamentais e democracia assumiram uma dimensão mundial85, parece tam-
bém existir um concerto generalizado no sentido de se reconhecer uma relação
necessária entre esses valores. Carlos Bernal Pulido, neste sentido, leciona que
“(...) os direitos fundamentais representam, sem lugar para dúvidas, a coluna
vertebral do estado constitucional. Igualmente ao seu antecessor, o estado
liberal, o estado constitucional não se propõe como um fim em si mesmo,
mas como um instrumento para que os indivíduos desfrutem de seus direitos
na maior medida possível. Por isso os direitos fundamentais são a base do
estado constitucional, o motor de sua ação e também o seu freio”86.

Hans Peter Schneider, de modo mais incisivo, chega ao ponto de sustentar


que sem uma tutela adequada dos direitos fundamentais não existe democracia.
Para este autor, “a democracia pressupõe os direitos fundamentais da mesma
forma que, ao contrário, os direitos fundamentais só podem adquirir sua plena
efetividade em condições democráticas”87.
Se a correlação entre direitos fundamentais e democracia é um dado ina-
fastável, por certo não se pode daí concluir que o diálogo entre eles seja sempre
harmônico. Existe nesta relação também um campo conflitual.

83 SCHIER, Paulo Ricardo. Comissões parlamentares de inquérito e o conceito de fato determinado. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 11-14.
84 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito – do estado de direito liberal ao
estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 16-17.
85 Ao menos discursivamente, reitere-se, pois não se desconhece a existência de uma enorme gama de
estados autoritários. Mas mesmo no contexto desses estados, grande parte lança mão do discurso da
democracia como meio de legitimação. Nesse sentido: FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e a
restauração da legitimidade. Porto Alegre: SAFe, 1985. p. 20.
86 PULIDO, Carlos Bernal. Prefácio à obra Três escritos sobre los derechos Fundamentales, In: ALEXY,
Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoria de los principios. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2006. p. 13.
87 SCHNEIDER, Hans Peter. Op. Cit. p. 19.

54
30 anos da Constituição

Nos países em que se admite a supremacia da constituição escrita88, onde


existem mecanismos de controle de constitucionalidade e nos quais este con-
trole pode se desenvolver numa perspectiva substancial, tomando-se como pa-
radigma algum núcleo axiológico mais ou menos rígido, é comum a emergência
de tensões entre direitos fundamentais e democracia. Observe-se que Robert
Alexy, ao admitir a existência de três formas de contemplar as relações entre
direitos fundamentais e democracia, fazendo referência às concepções que ele
designa como realistas, afirma que a existência de proteção aos direitos fun-
damentais é uma experiência ao mesmo tempo profundamente democrática e
antidemocrática. Democrática porque asseguram o desenvolvimento da demo-
cracia e de suas condições de deliberação e, antidemocrática, porque desconfia
do processo democrático ao retirar, do plano deliberativo das maiorias, a possi-
bilidade de algumas decisões ou ações89.
Nesse cenário, portanto, o modo como se compreende a proteção das
cláusulas pétreas é de extrema relevância. Se o intérprete constitucional esta-
belece uma leitura mais alargada das cláusulas pétreas, isso pode representar
uma diminuição do espaço deliberativo no parlamento ou na sociedade, propor-
cionando ao Poder Judiciário um nível de protagonismo mais elevado. De outro
lado uma compreensão mais restrita das cláusulas pétreas pode representar uma
deferência maior em favor da democracia.
A experiência do Supremo Tribunal Federal, em tal quadrante, tem se-
guido caminhos aparentemente contraditórios. Por um lado, decisões como as
proferidas na ADI 939/DF90 (inconstitucionalidade do IOMF) e ADI 1946 MC/
DF91 (inconstitucionalidade de ementa restritiva de direitos da gestante no gozo
de licença maternidade) têm assumido uma linha ampliativa da extensão da
tutela das cláusulas pétreas. Em referidas decisões o Supremo Tribunal Federal
reconheceu que as cláusulas pétreas não protegem apenas os direitos funda-

88 Há quem sustente que toda constituição escrita é necessariamente rígida. Neste sentido conferir:
PACE, Alessandro; VARELA, Joaquin. La rigidez de las constituciones escritas. Madrid: Centro de
Estúdios Constitucionales, 1995. p. 115-129.
89 ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales em el estado constitucional. In: CARBONELL,
Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Torino: Editorial Trotta, 2003. p. 37-38. Na mesma linha:
SANCHÍS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: CARBONELL, Miguel.
Neoconstitucionalismo(s). Torino: Editorial Trotta, 2003. p. 124.
90 STF, ADI 939/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15 dez. 1993, DJ 18 mar. 1994.
91 STF, ADI 1946 MC/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 29 abr. 1999, DJ 14 set. 2001.

55
30 anos da Constituição

mentais do catálogo do Título II mas, também, protegem aqueles fora do catálo-


go, presentes no próprio texto constitucional ou nos tratados internacionais de
direitos humanos dos quais a República Federativa do Brasil seja parte92.
Interessante notar, no contexto do julgamento da ADI 1949, que embora
tenha prevalecido a tese ampliativa, diversos votos demonstraram preocupação
com as consequências da decisão, como foi o caso do Ministro Moreira Alves
que afirmou o perigo de se petrificar toda a Constituição com um parâmetro
interpretativo muito amplo.
A compreensão ampliativa das cláusulas pétreas se consolidou no STF.
Atualmente, no contexto global das decisões do Supremo, a leitura ampliativa
da extensão do catálogo dos direitos fundamentais praticamente dispensa um
ônus argumentativo forte pois é tomada como pressuposta93.
Em contrapartida, e de certo modo impedindo que ocorresse o risco de
engessamento do sistema mediante o congelamento de quaisquer atividades
restritivas do legislador, o Supremo Tribunal Federal adotou uma válvula de
escape ao afirmar que as cláusulas pétreas tutelam não a integralidade dos direi-
tos fundamentais ou dos bens superconstitucionalmente protegidos mas apenas
o seu núcleo essencial. Referida construção permite uma calibragem. Embora
o rol de cláusulas pétreas seja amplo, isso não retiraria plenamente as matérias
protegidas do campo deliberativo, eis que restaria para a sociedade uma mar-
gem de apreciação sobre a definição do conteúdo e os limites dos direitos (desde
que os limites não afetem, reitere-se, o núcleo essencial do direito restringido).
Essa construção de sentido, em princípio “pro democracia”, em relação ao
alcance das cláusulas pétreas, foi possível graças à utilização da locução “ten-
dente a abolir” no § 4º, do art. 60.
Oscar Vilhena Vieira, analisando de forma comparativa as redações da Cons-
tituição brasileira e da Lei Fundamental alemã, expressa bem essa ideia. Na Lei
Fundamental da Alemanha a locução utilizada é “afetação” e no Brasil é “tendente
a abolir””. De acordo com autor, “o art. 60, § 4º, da Constituição brasileira, foi

92 Sobre o problema da recepção dos tratados internacionais de direitos humanos, consultar: SCHIER,
Paulo Ricardo. Hierarquia Constitucional dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e EC 45 -
tese em favor da incidência do tempus regit actum. In: Anais do XIV Conpedi. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2006, p. 161-163. Acessível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/
anais/XIVCongresso/063.pdf
93 GALLACCI, Fernando Bernardi. Op. Cit. p. 38.

56
30 anos da Constituição

escrito de forma menos restritiva em relação ao escopo da proteção especial, proi-


bindo apenas aquelas emendas tendentes a abolir os direitos e princípios protegidos
como cláusulas super-rígidas. Em princípio o uso da expressão tendente a abolir deixa
mais espaço de ação ao poder constituinte reformador do que a expressão afetar,
empregado pelos redatores da Lei Fundamental. Por outro lado, abolir limita mais
o intérprete do que afetar. Portanto, a princípio o Judiciário alemão deveria ter mais
discricionariedade do que o brasileiro para pôr limites ao poder de reforma”94.
O Supremo Tribunal Federal, de modo mais direto, preocupou-se em tentar
compreender o alcance na expressão tendente a abolir no julgamento conjuntos das
ADI 82995, 830 e 833 (inconstitucionalidade de norma do ADCT que previa o ple-
biscito sobre a forma de governo). A questão da imutabilidade das cláusulas pétreas
aparece de maneira clara na síntese dos argumentos dos demandantes feita pelo
Ministro relator Moreira Alves. Segundo o Magistrado a pergunta era se o ADCT
seria “imune ao poder de reforma”. A palavra “imune” é o reflexo da dúvida sobre
a abrangência da proibição dos dispositivos pétreos, pois, conforme utilizada nesse
caso, ela significava toda e qualquer mudança nos dispositivos petrificados96.
De acordo com voto do relator nesse caso
“No Brasil, em que se adota uma fórmula mais mitigada – a de não se
admitir proposta de emenda tendente a abolir (o que implica dizer que
não há imutabilidade absoluta, mas proibição de alteração que demons-
tre tendência à abolição dos princípios previstos nos quatro incisos do §
4o do artigo 60 da Constituição), - tem-se que admitir, no mínimo, que
as cláusulas pétreas, por serem princípios excepcionais, são normas de
interpretação restritiva (...)”97.

Nesse primeiro momento prevaleceu, em relação à compreensão das cláu-


sulas pétreas, uma construção que deu ênfase à palavra “abolir”, como sendo
proibição de extinguir completamente98. Curioso, desse modo, que essa compre-
ensão permitiria menor interferência do Judiciário.

94 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit. p. 179.


95 STF, ADI 829. Rel. Min. Moreira Alves, julgada em 14.04.93.
96 GALLACCI, Fernando Bernardi. Op. Cit. p. 23.
97 STF. ADI 829, p. 77 do acórdão.
98 GALLACCI, Fernando Bernardi. Idem, p. 24.

57
30 anos da Constituição

Contudo esse entendimento não perdurou. No julgamento das ADIs 3105


e 3128 (inconstitucionalidade da EC 41), o relator (Min. Eros Roberto Grau)
iniciou movimento em que atenção se deslocaria da palavra abolir para a ex-
pressão tendente a abolir. Isso impôs a necessidade de realizar a distinção entre
abolição e simples violação: “Cuida-se de alegada violação a direito, não de sua
abolição (=exclusão) do texto da Constituição, no sentido acima indicado”99.
Ou seja, de forma coerente a expressão tendente a abolir é tomada mesmo em
um contexto linguístico adequado, significando a atribuição de um poder mais
fluido ao Judiciário, como se demonstrou anteriormente.
Mas essa construção sofreu uma forte virada com o julgamento da ADI
3685100 e da ADI-MC 4307101. Em ambas o Ministro Gilmar Mendes confere es-
pecial ênfase à palavra tendente, atribuindo a ela sentido próprio. Nessa última
ADI citada o ministro, textualmente, assim se manifesta: “Mas ficando na ex-
pressão tendente a abolir. Tal expressão não significa que nós podemos conviver
com uma alteração tópica que não suprime, que não é supressiva. A doutrina
que dimana do texto constitucional é que nós não devemos aceitar qualquer
proposta que leve à erosão do sistema”102.
Fernando Bernardi Gallaci sintetiza da seguinte forma essa mudança:
“Depois de tal afirmativa começa um debate entre os Ministros. Nessa
discussão é possível observar a concordância da Corte com o posiciona-
mento adotado quanto à expressão. O Ministro Dias Toffoli resume o pen-
samento como ‘O tendente aí é, na versão popular, onde há fumaça há
fogo’. O Ministro Carlos Britto também colabora ao afirmar ‘O tendente
é que tem inclinação, vocação, potencialidade para corroer a substância
(...)’. A seguir, o Ministro Gilmar Mendes conclui que a expressão ‘ten-
dente a abolir’ é ‘(...) quebrar a força, a eficácia do sistema protetivo’ e que
‘isso já significa uma emenda, ou um projeto de emenda inconstitucional’.
Para consolidar o entendimento, a Ministra Cármen Lúcia, nesse mesmo
debate, vai mais longe. A Magistrada afirma que o legislador reformador
não poderia sequer deliberar sobre EC tendente a abolir qualquer cláusula
pétrea. Dessa forma, percebe-se que o Tribunal apresenta o entendimento
de que é inconstitucional toda e qualquer deliberação de emenda consti-

99 Acórdão, p. 253.
100 STF. ADI 3685; relatora Ellen Gracie, julgada em 22.03.06
101 STF. ADI-MC 4307; relatora Cármen Lúcia, julgada em 11.11.09
102 Idem, p. 200.

58
30 anos da Constituição

tucional que tenda à abolição de uma das cláusulas pétreas. Tal entendi-
mento favorece um aumento de poder de revisão da Corte”.

Como se percebe, ocorreu um fenômeno curioso. A expressão tendente


a abolir passou a ser interpretada como se fosse equivalente à expressão afetar,
utilizada na Constituição da Alemanha103.
A partir de então o Supremo Tribunal Federal assume maior amplitude
discricionária no campo do controle de constitucionalidade. E é a partir desse
período (o marco inicial no novo entendimento é 2006) que o STF passa a as-
sumir postura mais protagonista.
É preciso registrar, por fim, nesse esforço descritivo, que esse processo de
construção de sentido das cláusulas pétreas no STF não é – e nunca foi – linear.
Sempre existem e existiram argumentos e votos divergentes. Apesar de não
ser possível encontrar, no Brasil, um entendimento da Corte – nesse aspecto o
sistema per curiam parece ser qualitativamente melhor que o seriático – é pos-
sível identificar a prevalência de determinados argumentos que se tornam mais
presentes no processo de justificação das decisões.

Considerações finais
Não poucos são os desafios decorrentes do (re)arranjo e da (re)definição
do papel dos Poderes em um Estado que preza pelos valores do constitucionalis-
mo e da democracia. Como observado ao longo do texto, a tensão constitutiva
entre o governo dos “vivos” e os limites estabelecidos pelos “mortos” acaba por
refletir nas várias camadas da organização das relações da comunidade política.
A sedimentação de um núcleo normativo imune a alterações nas consti-
tuições democráticas se deve, dentre outros motivos, ao receio decorrente da
desconfiguração, da perda da identidade constitucional que define a dimensão
substantiva pétrea a (com)unidade política de Schmitt. Tal núcleo cria um pa-

103 Isso já tinha sido observado por Oscar Vilhena Vieira que, inclusive, demonstra que o Tribunal
Constitucional Alemão, de outro lado, interpreta afetar como se fosse tendente a abolir. Ou seja, a
impressão de que o Tribunal da Alemanha busca maior autocontenção e o brasileiro passa a buscar
mais expansividade (VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit. p. 180).

59
30 anos da Constituição

drão de dispositivos superconstitucionais, os quais permitem a identificação via


controle de constitucionalidade de emendas constitucionais inconstitucionais.
Porém, a própria possiblidade de controle constitucional das emendas não
é pacífico, pode levar a questionamentos e fazer emergir paradoxos. Uma das
respostas para tais problemas é que os limites podem ser habilitadores, ao invés
de apenas sequestradores do autogoverno pelo povo.
No que diz respeito ao Brasil, o Supremo Tribunal Federal acabou por
criar um parâmetro substantivo próprio para a leitura constitucional quando o
tópico diz respeito às cláusulas pétreas e os limites ao poder de emenda consti-
tucional. Para tanto, de acordo com o STF, as cláusulas pétreas resguardam não
os direitos fundamentais ou bens superconstitucionais em sua totalidade, tão
somente, o seu núcleo essencial.
Por fim, pode-se recordar que as cláusulas de eternidade em uma cons-
tituição perfazem uma tentativa de manter viva uma narrativa, sem que isso
signifique eliminar a capacidade de cada geração de adaptar o sentido constitu-
cional para as demandas de sua época.
A defesa da identidade constitucional, de seu núcleo duro parece ainda
fazer sentido no Brasil nos 30 anos da Constituição de 1988 em tempos que se
descortinam como de esquecimento das narrativas constituintes e baixo apreço
pelos valores fundantes do constitucionalismo e da democracia. O ato de cele-
brar a fundação, de comemorar o (re)nascimento pode, como evento comuni-
cacional, recordar (re-cordis), fazer voltar a passar pelo coração as memórias que
nos levaram a afirmar de maneira destemida pela democracia e pelos direitos
fundamentais, mesmo que estranhas forças se levantem para destruir o impor-
tante legado deixado por nossa Constituição Cidadã.

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63
O Presidencialismo Brasileiro nos
Trinta Anos da Constituição Federal de 1988

Helder Felipe Oliveira Correia104


João Paulo Allain Teixeira105

Sumário: Introdução; 1. O debate sobre os sistemas de governo na Amé-


rica Latina; 2. O surgimento do termo presidencialismo de coalizão; 3. Crítica
ao presidencialismo de coalizão brasileiro; 4. Considrações Finais; Referências.

Introdução.
Com a chegada dos 30 anos da Constituição Federal de 1988 lembramos da
promessa de renovação para o país trazida pelo projeto da “Nova República”. Os
anos de ditadura que antecederam a promulgação do novo texto potencializaram
em grande medida as expectativas em torno da nova dinâmica inaugurada no país.
Desde a sua promulgação, a Constituição de 1988 tem estado em evi-
dência, notadamente diante dos últimos acontecimentos político-jurídicos que
aconteceram no contexto político e jurídico nacionais. Dentre aqueles eventos
que mais chamam a atenção, destacamos o perfil adotado pela articulação entre
os poderes, notadamente no que se refere ao exercício do Poder Executivo. Den-
tre as práticas de sustentação política do Poder Executivo no Brasil, destacamos
o chamado presidencialismo de coalizão.
Muitos dizem que a instabilidade política no Brasil é decorrência do
seu sistema de governo. Para além, alguns enxergam em uma eventual mudança

104 Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Bacharel em direito pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor de Direito Constitucional da Faculdade
Osman Lins – FACOL. Advogado.
105 Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Pernambuco (CCJ-UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Pernambuco (PPGD-UFPE), Professor da Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco
(PPGD-UNICAP), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

65
30 anos da Constituição

para o parlamentarismo, objeto de plebiscito em 1992 e de algumas Propostas de


Emenda à Constituição (PEC), a panaceia para resolver os problemas do país. Em
verdade, toda essa movimentação de mudanças do sistema e as críticas ao atual
modelo confirmam a relevância das reflexões e debates sobre o tema. Não por
acaso o Brasil passou, durante a vigência da Constituição de 1988, por dois pro-
cessos de impedimento presidencial, o primeiro em 1992 e o segundo, em 2016.
O presente trabalho tem como objetivo discutir, a partir dos 30 anos da
Constituição de 1988, o perfil do Poder Executivo enquanto modelo normativo
ali inscrito e enquanto prática política e juridicamente estabelecidas. O trabalho
inicialmente procura contextualizar as transformações no presidencialismo bra-
sileiro no cenário das relações políticas no continente latino-americano. Em um
segundo momento, discutimos os efeitos do modelo de coalizão, tal como configu-
rado na experiência brasileira. Este percurso é assim, voltado a compreensão dos
diferentes arranjos institucionais decorrentes do relacionamento entre os poderes.

1. O debate sobre os sistemas de governo na América Latina


Palco da primeira expansão do presidencialismo após os processos de colo-
nização promovidos pela Espanha e Portugal, a América Latina recebeu grande
influência do sistema de governo vigente nos EUA.
A declaração de independência dos Estados latino-americanos, ocorridas
entre os anos de 1809 e 1830, despertou um sistema de forte carga personalista,
possibilitando a existência de grandes líderes nacionais. A época, os Parlamen-
tos eram tidos como representantes das oligarquias e fiadores de interesses in-
dividuais, razão pela qual os Presidentes da América Latina passaram a exercer
papel fundamental nos rumos da política de seus respectivos países, utilizando-
-se dos instrumentos institucionais ou do próprio prestígio pessoal para con-
trolar os demais poderes e executar a sua vontade. O desenvolvimento de uma
cultura presidencial de matriz personalista, forte e centralizadora levou Símon
Bolivar a sugerir a adoção de um presidente vitalício a ser inserido no texto
constitucional da Bolívia em 1826 (PINTO, 2018, p. 50-51).
Todavia, com o fim da 2º Guerra Mundial, os países latino-americanos mer-
gulharam em ditaduras militares que governaram quase todos os países da região na
segunda metade do século XX. Relembre-se que uma das críticas de parte da doutri-

66
30 anos da Constituição

na ao presidencialismo é a ausência de estabilidade, por isso tais regimes de exceção


existentes em nossa região são usados como fundamento dos argumentos contrários.
Com o fim das ditaduras no final da década de 70 e início da década de 80,
os países latinos passaram por um período de restabelecimento da democracia.
Computando os Presidentes eleitos na América Latina com o fim dos regimes
ditatoriais, 40% foram contestados por civis, que tentaram fazê-los deixar o car-
go antes do tempo. Com a deflagração de impeachments e mediante renúncias,
23% caíram (HOCHSTETLER, 2007, p. 11).
Segundo Aníbal Pérez-Liñán, em estudo sobre as relações entre Legisla-
tivo e Executivo em nosso continente, o presidencialismo sofreu na América
Latina algumas mutações. Viu-se que aquela perspectiva tradicional e histórica
de responsabilidade presidencial foi deixada de lado, sobretudo de que os Pre-
sidentes só poderiam ser destituídos quando da prática de crime de responsa-
bilidade. O que se buscou com a possibilidade de responsabilizar o Presidente
seria resguardar a ordem constitucional, a moralidade pública e os interesses da
coletividade, quando, eventualmente, existente a prática de alguma conduta
contrária à Constituição. Todavia, a forma de responsabilização na América
Latina tomou novo corpo, ao invés de termos como postulado básico hipóteses
restritas de destituição do Presidente da República, passou-se a estabelecer des-
tituições nos moldes do sistema parlamentarista (PÉREZ-LIÑÁN, 2009, p. 21).
Giovanni Sartori (1996, p. 109) reconhece que os Presidentes na América
Latina possuem poderes mais amplos do que o Presidente norte-americano. Al-
gumas Constituições latino-americanas possibilitam aos seus Chefes a compe-
tência para vetar projetos de leis aprovados pelo Parlamento, como é o caso do
Brasil, fato que vem sendo negado à Casa Branca. Para além, o uso de decretos,
Medidas Provisórias e possibilidade de dissolução do Parlamento, este último
previsto no art. 32.5 da Constituição chilena, são exemplos dos passos dados no
sentido de ampliar os poderes presidenciais no continente. De forma acertada
ou não, atribui-se ao próprio presidencialismo, notadamente diante dos amplos
poderes presidenciais, a responsabilidade pela instabilidade política na América
Latina, razão pela qual há tentativas de impor freios à atuação do Executivo. O
maior exemplo vem sendo os julgamentos políticos realizados pelo Legislativo.
Se por um lado as crises em nosso continente desaguaram tempos atrás em
golpes militares, por outro, de forma mais recente, o juicio político tornou-se o meio
pelo qual Presidentes indesejados foram destituídos. Para tanto, desde 1978 os Par-

67
30 anos da Constituição

lamentos, aliados com movimentos sociais, ao menos, em dezesseis oportunidades,


atuaram no sentido de pôr fim aos mandatos de determinados Presidentes.
Ao menos, três razões são levantadas para explicar os motivos das crises e
posteriores destituições: (I) As diretrizes econômicas neoliberais do Presidente;
(II) seu envolvimento pessoal ou indireto em escândalos; (III) e seu status mi-
noritário no Poder Legislativo (HOCHSTETLER, 2007, p. 16).
É verdade que os movimentos sociais tornaram-se protagonistas em muitos
desses casos. O papel é de destaque para a sociedade civil que muitas vezes é
deixada de lado nos estudos sobre o presidencialismo, principalmente devido ao
fato do mandato presidencial ser fixo, não havendo mecanismos diretos para que
o povo destitua o Presidente, assim como o elegeu. Portanto, a sociedade também
passou a ter papel importante nessa virada (HOCHSTETLER, 2007, p. 18).
Demais disso, a sociedade civil insurgiu-se, principalmente, levando em
consideração a insatisfação com as diretrizes econômicas e seus resultados. Tal
razão foi mais comum para as contestações. Some-se a isso, no mesmo contexto,
as acusações de corrupção implicando o próprio Presidente. Decorrência direta
foi o fato de os legisladores agirem contra diante da ausência de maioria no
Congresso em apoio aos Presidentes (HOCHSTETLER, 2007, p. 20).
As novas dinâmicas ilustram a ascensão da responsabilidade política de
Presidente que dispunham de grande poder político em nosso continente. É de
se observar, portanto, que o Legislativo tornou-se mais forte na prática do que
seria, normalmente, em momentos de política diária dentro do presidencialismo
(HOCHSTETLER, 2007, p. 39).
Com efeito, a América Latina tem criado a sua própria versão do pre-
sidencialismo, notadamente quanto aos meios de destituição presidencial,
aproximando-se do parlamentarismo. A partir da flexível visão do sistema de
governo existente, quer seja dos mecanismos de juízo políticos e declarações de
incapacidade, quer seja das renúncias antecipadas, criou-se um ambiente em
que os mandatos vivem sobre pressão, existindo riscos iminentes de queda ao
perderem a maioria no Parlamento, além dos protestos de rua.
Nesse contexto, os abusos com o uso do impeachment ocorreram, em ge-
ral, através de: (I) Juízo de conveniência e oportunidade quanto à configuração
de crime de responsabilidade; (II) violação sistemática das garantias inerentes
ao devido processo legal (TAVARES; PRADO, 2015, p. 18).

68
30 anos da Constituição

Aníbal Pérez-Liñán (2007, p. 325) destaca que os impeachments ocorridos


por aqui foram causados em razão de escândalos de corrupção nos governos,
não necessariamente implicando diretamente o Presidente da república; em
outros casos, baixa popularidade do Presidente motivado, especialmente, por
não conseguir controlar a economia, ou ainda, o início de muitos protestos
populares contra o governo. Embora presidencialista, levando em consideração
tais razões, a prática de destituições tem sido nos moldes parlamentarista. Apro-
veitando a situação de fragilidade presidencial, os Parlamentos deflagraram pro-
cessos de inabilitação com a consequente destituição de alguns Presidentes.
Observa-se, com isso, uma mudança de paradigma no qual o Brasil está
inserido, razão pela qual importa o seu conhecimento para as reflexões sobre o
nosso sistema de governo.

2. O Surgimento do termo presidencialismo de coalizão


É de fundamental importância compreender o fenômeno brasileiro do
chamado presidencialismo de coalizão. Objetiva-se, aqui, analisar em que con-
siste tal derivação do presidencialismo clássico, qual o contexto histórico e os
pressupostos em que se deu o seu desenvolvimento, além dos elementos institu-
cionais que possibilitam o seu funcionamento.
A necessidade de reflexões a respeito do tema, devido à capacidade de que
tal arranjo institucional tem de influenciar condutas de cidadãos e a relação dos
governantes entre si, destaca-se, porque a análise do presidencialismo de coalizão
implica saber que “não é apenas um modo de “fazer política” ou de “governar” [...] é
um sistema que gera estímulos capazes de determinar ou influenciar de modo bas-
tante significativo a conduta dos cidadãos e governantes” (SHCIER, 2016, p. 254).
Quem primeiro tratou sobre o tema foi o cientista político Sérgio Abran-
ches (1988, p. 6) em texto publicado já na fase final dos trabalhos da Assem-
bleia Nacional Constituinte que deu origem à CF/88. Inicialmente, analisara a
complexidade social existente no país, abordando que cada vez mais setores da
sociedade organizavam-se com o fito de terem as suas demandas levadas aos Po-
deres da República. A defesa de interesses de determinadas classes se originaria
de um modelo clientelista e patrimonialista. O autor desenvolveu raciocínio no
sentido de apontar como pressuposto social para existência do presidencialismo
de coalizão a complexidade da sociedade brasileira, à pluralidade, ao cresci-

69
30 anos da Constituição

mento de tensões e à necessidade de tutela dessas mesmas relações sociais. Tais


razões invocadas demandaram do estado o seu crescimento e burocratização,
por conseguinte, a necessidade de dar respostas a essas novas dinâmicas sociais.
Nota-se que a adoção do presidencialismo é um fator institucional básico
para existência do presidencialismo de coalizão no Brasil. Embora tenhamos
adotado em duas oportunidades o parlamentarismo, a saber, no curso do segun-
do reinado e, de 1961 a 1963, no período que antecedeu a ditadura militar, a
tradição presidencialista vem de longa data em nosso país.
Um ponto de aproximação entre o presidencialismo aqui tratado e o parla-
mentarismo pode ser notado quando, neste último, as crises são resolvidas de forma
muito mais flexível e rápida, considerando o fato de que a estabilidade institucional
depende de um alinhamento entre Legislativo e Executivo, que existe, como regra,
afinal de contas o Chefe de Governo sem a confiança do Parlamento certamente
não terá vida longa em seu governo. Portanto, caso haja a retirada da confiança, o
Chefe de Governo será destituído do cargo, alçando outro ao lugar do destituído.
O Presidente possui amplos poderes que vão desde a expedição de medi-
das provisórias, passando pela possibilidade de requerer urgência em relação à
análise dos projetos por ele apresentados, além do tradicional veto, devendo,
para afastamento deste último, o Parlamento deliberar e alcançar o quórum de
maioria absoluta em sessão conjunta das duas casas do Congresso Nacional.
Há outras características que demonstram a potência de atuação do Presi-
dente no Brasil, uma delas é o poder de agenda manifestado a partir da grande
quantidade de matérias que podem ser propostas pelo Presidente ao debate,
através de proposições legislativas, denominadas de competências reservadas
descritas no art. 61 da CF/88.
Duas outras peculiaridades do sistema brasileiro colaboram para presiden-
cialismo de coalizão. Temos um sistema multipartidário, isto é, são vários parti-
dos políticos, dos mais variados espectros ideológicos, criando os mais diversos
blocos parlamentares e coligações, sobretudo para fins de eleição. O que ocorre
na prática é que há ampla diversidade de interesses e, muitas vezes, certa pulve-
rização de debates sobre os mais variados temas.
Ilustrativamente, o sistema proporcional de lista aberta possibilita não só a
eleição do Parlamentar que tenha o maior número de votos, entretanto, devido
à coligação ou partido, outros candidatos podem ser eleitos a partir dos votos

70
30 anos da Constituição

recebidos pela coligação ou partido. Muitos candidatos são eleitos com número
mínimo de votos, em variados casos, número inferior ao de outros não eleitos.
Para Sérgio Abranches (1988, p. 8) as coalizões começam a se formar antes
do pleito eleitoral. Sem um agrupamento de legendas, dificilmente determinados
partidos poderiam alcançar cadeiras no Parlamento. Por essa razão, desde antes
do pleito, há a necessidade dessas coligações serem formadas. Não sem outra razão
é que se busca também o maior tempo de televisão, uma maior oportunidade de
falar, de comunicação ao eleitorado. Demais disso, a adoção do sistema presiden-
cialista com a representação proporcional, por ser esta combinação de difícil com-
patibilidade, uma vez que impossibilitaria a construção de maiorias estáveis no
Parlamento, é outro fator propulsor dessa peculiaridade brasileira, especialmente
no que diz respeito às barganhas entre membros do Legislativo e do Executivo.
Sobre a dificuldade de compatibilização entre o presidencialismo e a repre-
sentação a partir do sistema proporcional na busca pela construção e manutenção
de maiorias estáveis no Parlamento, Sérgio Antônio Ferreira Victor afirmou que:
As consequências que se podem esperar da combinação de sistema pre-
sidencialista com representação proporcional são a dificuldade de cons-
trução e manutenção de maiorias estáveis no parlamento, a ocorrência
de barganhas sucessivas entre membros do Poder Legislativo e o Poder
Executivo, o que gera a dificuldade sistêmica de o Estado responder aos
anseios do eleitorado no que concerne a produção de políticas públicas, e,
por fim, põe em risco o próprio democrático, ameaçado pela instabilidade,
inoperância e patronagem [...] o certo é que o presidencialismo combinado
com a representação majoritária tende a evitar a presença dos principais
problemas relacionados ao sistema presidencialista com representação
proporcional, especialmente os que concernem à construção de maiorias
estáveis e aos mecanismos utilizados para tanto (2015, p. 90-91).

De fato, há uma combinação de fatores contributivos ao modelo. Tem-se


um sistema multipartidário com eleições para o Parlamento, regra geral, através
do sistema proporcional. Decorre daí, com isso, que as eleições acabam por
permitir a representação de vários partidos durante aquela Legislatura. Por-
tanto, em verdade, “tratar-se-ia de um presidencialismo compromissório com
equilíbrios variáveis entre o Presidente e o Congresso e entre os parceiros da
coligação que no congresso sustentam o executivo” (MORAIS, 2017, p. 407).

71
30 anos da Constituição

Sem maioria no Legislativo, necessitando de apoio para desenvolver polí-


ticas que dizem respeito ao seu plano de governo, o Presidente estaria diante de
uma situação conflituosa que demandaria a necessidade de formar coalizões,
caso contrário, enfrentaria sérios problemas de governabilidade. Essa dinâmica
de arranjos institucionais poderá apresentar grande instabilidade devido à au-
sência de apoio do Parlamento.
Não há, por assim dizer, governos genuinamente de um único espectro
político, porque a fragmentariedade partidária, consequentemente, de repre-
sentação, atesta a existência dessa pulverização ideológica. Embora, diante das
críticas apresentadas, o presidencialismo de coalizão pode ser visto com bons
olhos levando em consideração tratar-se de dinâmica democrática apta a pos-
sibilitar soluções para crises, tomada de decisões que atendam aos interesses
da coletividade. A afinidade nos planos de governo possibilitaria as coligações
dos partidos, já que devem falar basicamente a mesma linguagem, não podendo
haver maiores distâncias em relação a seus objetivos políticos.
Outra fase ocorreria após o pleito, dado que o Presidente necessitaria distri-
buir cargos em ministérios e secretarias para formar as coalizões. Os partidos com
maior êxito nas eleições, obviamente serão contemplados com maior parcela. O
critério federativo também é levado em consideração, dado que os cargos, normal-
mente, são distribuídos entre os Estados mais ricos economicamente falando.
A terceira fase (ABRANCHES, 1988, p. 27-28) é vista efetivamente com a
prática das coalizões firmadas anteriormente, estabelecendo as votações na defesa
de interesses do Presidente e dando maior função as políticas públicas defendidas
pelo governo. Com tudo isso, a principal ferramenta de formação das coalizões diz
respeito às liberações de emendas parlamentares ao orçamento. A parte financeira
é a que mais repercute na dinâmica de formação e aperfeiçoamento das coalizões.
Essa formação faz-nos reportar à dinâmica parlamentarista, todavia há
diferenças que são explicadas a seguir:
No parlamentarismo o interesse e controle da coalizão é do parlamento.
No presidencialismo o interesse e controle da coalizão é do presidente
[...] os presidentes são constitucionalmente responsáveis pela promoção
de políticas públicas de alcance nacional, mas essas políticas só podem
ser decretadas em um ambiente institucional minimamente estável.
Além do mais, os chefes do Executivo são os únicos políticos eleitos por
um eleitorado nacional e por isso têm incentivos eleitorais para levar a
efeito políticas de impacto mais amplo (SHCIER, 2016, p. 290).

72
30 anos da Constituição

É preciso considerar que dentro de uma normalidade pressuposta o Exe-


cutivo, pertencente ao sistema parlamentarista, desenvolve as suas funções go-
vernativas dentro de um quadro de estabilidade política.
Destacou-se anteriormente que a ausência de alinhamento entre Legisla-
tivo e Executivo torna curto o trabalho do Chefe de Governo. Lado outro, não
necessariamente, haverá estabilidade no presidencialismo atrelado apenas ao
apoio do Parlamento, conquanto este seja crucial dentro do presidencialismo
de coalizão, alguns fatores devem ser levados em consideração: (I) o fato do
partido político do Presidente da República possuir maioria no Parlamento, so-
zinho ou através de coalizões, (II) o desempenho político, social e econômico
do governo ou (III) o prestígio pessoal do Presidente.
Por fim, Paulo Ricardo Schier (2016, p. 273) defende que não existe crise
no sistema presidencial de coalizão, mas crises nas coalizões que são formadas.
O sistema propõe de forma democrática e plural a solução de questões oriundas
das sociedades complexas. Portanto, não é um sistema que é infalível, mas seria
o melhor sistema para solução dos principais problemas da sociedade brasileira.
Quando se escolhe juntamente o Parlamento e o Presidente, é dizer, em
uma mesma eleição, o candidato eleito corre o risco de não formar as suas maio-
rias que ofereceriam sustentáculo para o mandato. Nesse sentido, para além
das lições clássicas do parlamentarismo, a escolha do Chefe de Governo ocorre
após a formação do Parlamento, hipótese na qual se espera maior estabilidade
quanto ao cumprimento do plano de governo.
Diante dos debates envolvendo a crise pela qual o Brasil vem atravessan-
do, há quem se arrisque alguma definição em relação ao sistema de governo
hoje existente no país: “Sistema Misto indefinido, que se coloca em permanente
relação teleológica com os fatos políticos e as crises sucessivas. E tal Sistema
não é Parlamentarismo nem Presidencialismo” (PASOLD; CRUZ, 2016, p. 75).
É de fácil percepção que o Presidente possui do ponto de vista jurídico uma
gama de mecanismos para formar as coalizões de apoio. A iniciativa legislativa,
tanto de leis quanto de Emendas à Constituição, poder de veto, expedição de
medidas provisórias, leis delegadas, nomeação de Ministros. O embaraço, por-
tanto, não é de formar o apoio, mas mantê-lo.
Devido à fragmentariedade do sistema político, muitos membros do Le-
gislativo são infiéis ao programa estabelecido pelo Presidente, quando não, em
situações muito piores, são oportunistas mesmo. Estão em busca de defender

73
30 anos da Constituição

interesses escusos em lado oposto às promessas constitucionais, de perspectivas


de boa governança e valores reitores da Administração Pública. Em suma, o
fisiologismo da política brasileira implode “todos os esforços para melhoria da
gestão pública ficam comprometidos pela lógica política perversa que contami-
na o que devia constituir trabalho planejado, racional, impessoal, transparente,
probo e eficiente” (CLÈVE, 2014, p. 494-495).
Definitivamente, as análises que vem sendo apresentadas demonstram as mu-
tações que o presidencialismo sofreu no Brasil. Há quem veja no presidencialismo
de coalizão, características que o aproximam de um sistema semiparlamentarista.
De toda sorte, o sistema não é muito diferente do parlamentarismo. Para lembrar,
basta resgatar que o Presidente “forma governo” como ocorre com os primeiros-
-ministros em sistemas multipartidários (MORAES, SOBRINHO, 2016, p. 49).

3. Crítica ao presidencialismo de coalizão brasileiro


Sérgio Abranches quando desenvolveu o conceito de presidencialismo
de coalizão não estabeleceu um novo sistema de governo, mas apontou carac-
terísticas institucionais do nosso presidencialismo. O grande destaque foi para o
fato do modelo de presidencialismo ter adotado elementos que somados poderiam
causar o caos institucional e a ingovernabilidade. Se, por um lado, na esteira do
que propôs Sérgio Abranches, o Brasil estava caminhando para o caos, por outro
lado, nem mesmo, em um primeiro momento, o impeachment de Collor ainda
nos primeiros anos da democracia, foi capaz de implodir as instituições do país.
Pedro Duarte Pinto (2018, p. 105) destaca que a formação de coalizões e
blocos partidários não é exclusividade do arranjo institucional brasileiro, mas
a tônica das democracias atuais por serem instrumentos de governabilidade e
desenvolvimento de planos de governo e demais necessidade políticas. Demais
disso, a possibilidade de instabilidade decorrente da adoção de um modelo pe-
culiar de sistema de governo é equivocada. Para o autor, é preciso levar em
consideração aspectos geográficos, políticos, econômicos e sociais, para apontar
os motivos de eventuais instabilidades, não sendo apenas o presidencialismo o
responsável por si só das dificuldades políticas.

74
30 anos da Constituição

Além do citado autor, há vozes que defendem a normalidade do nosso sistema:


O governo controla a produção legislativa e esse controle é resultado da
interação entre poder de agenda e apoio da maioria. Maioria reunida
por uma coalizão partidária pura e simples. Nada muito diverso do que
se passa nos governos parlamentaristas. Ou seja, não há bases para tratar
o sistema político brasileiro como singular. Muito menos, para dizer que
estaríamos diante de uma democracia com sérios problemas, ameaçada
por alguma síndrome ou patologia causada quer pela separação de pode-
res, quer pela fragilidade de seus partidos.
Ainda assim, impera a desconfiança e a visão negativa. Há enormes di-
ficuldades em aceitar que vivamos sob uma democracia normal. O nosso
sistema político simplesmente não poderia ser equiparado às demais de-
mocracias (LIMONGI, 2006, p. 25).

De se destacar que Fernando Limongi e Argelina Figueiredo (1998, p. 94)


asseveram que as bases institucionais do nosso presidencialismo de coalizão não
possibilitam teses individuais ou antipartidárias. Em rigor, há certa disciplina
partidária, na medida em que as votações desenvolvidas no âmbito da Câmara
dos Deputados e do Senado Federal mostram que os votos dados pelos par-
lamentares são decorrentes de orientações das lideranças partidárias. Diante
de emendas individuais em desconformidade com a liderança, decorrerá o seu
arquivamento. Parlamentares possuem grandes chances de obterem vantagens
políticas, caso atuem de forma alinhada com o partido do qual fazem parte.
Por outro lado, criou-se uma imagem de que o Legislativo é ator principal
nas barganhas feitas com o Executivo. Em verdade, colou-se no presidencialis-
mo de coalizão a ideia de que o sistema move-se através de negociatas. Não se
pode afirmar categoricamente que o único a fazer isso é o Legislativo, sobretudo
devido ao poder de barganha de que dispõe o Presidente. Para além, o Execu-
tivo poderá administrar estrategicamente os elementos que possui para obter
apoio do Legislativo (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1998, p. 96).
No caminho inverso, há posicionamento no sentido de estabelecer mu-
danças no poder de agenda do Presidente, sobretudo diante de algumas deci-
sões do STF sobre variados assuntos (VIEIRA, 2017, p. 128).
Por exemplo, o caso do trancamento de pauta através de não votação de
Medidas Provisórias (MP) e a extensão desse travamento dos trabalhos da res-
pectiva casa. Para o STF (Plenário. MS 27931/DF, Rel. Min. Celso de Mello,

75
30 anos da Constituição

julgado em 29/6/2017), o art. 62, § 6º da CF/88 ao dizer que “se a medida pro-
visória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publi-
cação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das
Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação,
todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando”,
deve ser visto a partir de uma interpretação não literal. Com isso, tem-se que as
deliberações sobrestadas são aquelas que envolvem leis ordinárias cujas matérias
também podem ser tratadas mediante MP, tornando possíveis as deliberações
sobre Emendas à Constituição, Leis Complementares e demais diplomas nor-
mativos que tratam sobre temas estranhos às MP’s. Percebe-se que o legislador
constituinte tratou do tema objetivando que o Congresso Nacional fosse força-
do a votar as MP’s, sob pena de causar insegurança jurídica, dada as relações
tuteladas durante a sua vigência.
Apesar de certa diminuição da capacidade de agenda do Presidente, Gus-
tavo Afonso Sabóia Vieira vai além e destaca a necessidade de direcionar as li-
mitações não apenas a tramitação dos instrumentos à disposição do Presidente,
mas impor-lhe restrições objetivas:
Muito se tem escrito acerca dos abusos cometidos por chefes do Poder
Executivo no exercício dessa prerrogativa, mas as soluções propostas, a
nosso ver, não se podem restringir tão somente à tramitação dos referi-
dos instrumentos; devem, antes, concentrar-se no mérito das propostas
a serem encaminhadas ao Parlamento. Nesse sentido, nossa proposta vai
pelo caminho de inverter a lógica atual: ao invés de ser possível a edição
de MPs sobre quaisquer assuntos, ressalvadas as matérias constantes do
primeiro parágrafo do art. 62 da CRFB (BRASIL, 1988), deveria ser es-
tipulado um rol taxativo de situações, com bom grau de concretude, em
que seria possível a edição de MPs (VIEIRA, 2017, p. 133).

O que se percebe todos esses anos em termos de estudos sobre as relações


entre Executivo e Legislativo no Brasil é uma clara diferença entre os que tra-
tam o presidencialismo de coalizão como uma mola propulsora das crises polí-
ticas, no entanto, em outro giro, outros que asseveram ser o nosso sistema co-
mum e com características encontradas em variadas democracias mudo a fora.
Nesse sentido, levando em conta que o Executivo tem caminhado em di-
reção a formar o apoio necessário para conseguir concretizar as suas vontades

76
30 anos da Constituição

políticas, deve ser observado também o índice de aprovações no curso dos pro-
cessos legislativos sobre matéria de iniciativa privativa do Presidente:
O sucesso do Executivo para o período pós-promulgação da Constituição
de 1988 é de 70,7%11. Cabe notar que a definição de sucesso adotada é
exigente, pois pede que a matéria seja aprovada ao longo do mandato do
presidente que submeteu a medida. As variações por presidentes são pe-
quenas e independem da sua base de apoio. É certo que Fernando Collor,
o único presidente do período a formar coalizões minoritárias, teve o pior
desempenho nesse quesito entre todos os presidentes, aprovando 65% dos
projetos que submeteu. Mas a variação é menor que a estabilidade. A taxa
de sucesso para Itamar foi um ponto superior à de Collor e os demais
presidentes ficaram um pouco acima dos 70% (LIMONGI, 2006, p. 23).

Decerto, o tema está longe de gerar consenso, mas desperta bons debates,
sobretudo porque envolve tema que está na ordem do dia da sociedade brasileira.
Ao completar 30 anos de promulgação da Constituição, a população tem observado
cotidianamente os desdobramentos envolvendo a governabilidade e os arranjos no
cenário político-jurídico do país envolvendo-se cada vez mais nas discussões rela-
tivas aos limites e possibilidades de afirmação do poder no âmbito do Executivo.

4. Considerações Finais
A CF 88 atribuiu ao Presidente da República amplos poderes institucio-
nais, conferindo para ele desde imunidades relativas à prisão e ao processo judi-
cial, passando por muitas possibilidades para a deflagração do processo legisla-
tivo. São variados os temas que a CF 88 reservou ao Presidente a competência
privativa para propor projetos de leis. No mesmo caminho, no processo legis-
lativo, a possibilidade do Presidente vetar total ou parcialmente um projeto de
lei considerado por ele inconstitucional ou inconveniente do ponto de vista
político. Some-se, no mesmo cenário, o fato do Presidente expedir MP’s e poder
solicitar regime de urgência nos projetos por ele apresentado.
Temos assim, uma ampla possibilidade de estabelecimento de relações ins-
titucionais entre o Executivo e o Legislativo. No cenário exposto ao longo do
texto é que se apresentam as reflexões sobre o nosso sistema de governo. Efeti-
vamente, o texto magno de 1988 potencializou a interação entre os poderes a
partir do arranjo institucional por ele configurado.

77
30 anos da Constituição

O sistema político brasileiro tem como traço marcante a indisciplina par-


tidária dos seus membros. O multipartidarismo somado ao arranjo federativo
denota um forte regionalismo promovendo a fortalecimento de figuras indivi-
duais em detrimento do partido ou legenda. Ao fim e ao cabo, o partido político
é importante, muitas vezes, apenas na contagem do coeficiente eleitoral ou na
possibilidade de vantagens que podem ser obtidas pelos seus membros. De seu
turno, muitos parlamentares acabam por alimentar relações em âmbito local,
sendo estes os seus redutos eleitorais, surgindo com essa dinâmica a impor-
tância dos diretórios estaduais dos partidos políticos. É como esse cenário de
regionalização, forma federativa de Estado e multipartidarismo que o Presidente
precisará formar a sua base de apoio.
Sendo benéfico ou não, as reflexões sobre o presidencialismo brasileiro
cingem-se no passo de descrever e melhor entender as relações entre os poderes.
Percebe-se que há vozes tratando o sistema como meio eficaz para programas de
governo, melhor desenvolvimento das relações entre os poderes. Por outro lado,
escritos dando conta de que o sistema é falho e responsável por certa ingover-
nabilidade com tempero de caos no Brasil.
É certo que se cuida de tema sensível e importante dentre tantos temas de
índole constitucional e que merecem a nossa atenção, pois a dinâmica estabelecida
no Brasil repercute diretamente nas esfera da realizabilidade da democracia no país.

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79
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80
Limites à Autonomia Funcional e
Organizacional dos Partidos Políticos no
Brasil: a Obrigatoriedade de Mecanismos
Democráticos Intrapartidários

Carlos Gonçalves Junior106


Se em um Estado sem partidos não há demo-
cracia, sem democracia dos partidos não há Estado
democrático. (SALGADO:2013, p. 163)

Resumos
O Brasil é uma democracia representativa, tendo os partidos políticos como
seu instrumento fundamental. Para que o processo democrático tenha um resul-
tado legitimo e efetivo, é necessário que todas as etapas do processo funcionem
democraticamente. A carência de democracia em qualquer etapa do processo irá
maculá-lo por completo. Vislumbramos que no Brasil os procedimentos de esco-
lha dos dirigentes partidários e dos candidatos eleitorais são realizados de maneira
a não envolver o povo – e nem mesmo todos os filiados dos partidos –, reservando
a decisão às cúpulas partidárias. Embora nossa constituição garanta expressa-
mente autonomia organizacional e funcional aos partidos políticos, esta não pode
ser compreendida em absoluto, permitindo que se coloque em risco a integrida-
de do sistema democrático. Considerando que os membros do Poder Legislativo

106 Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-
doutorando em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae - Centro de
Direitos Humanos da Universidade de Coimbra (Portugal). Professor de Direito Constitucional e
Direito Eleitoral da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sócio
fundador do escritório Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados - GBSA. Membro da Comissão
de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo. Membro da Comissão
de Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo. Membro da Comissão
de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo. Co-fundador da
Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral – ABRADEP. Membro da Associação Brasileira
de Constitucionalistas Democratas. Advogado atuante em temas relacionados ao Direito Público.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais (PUC-SP/CNPq).

81
30 anos da Constituição

são os principais destinatários de uma eventual e necessária legislação restritiva


da autonomia partidária, e, portanto, desinteressado em elaborá-la, é imperativa
a atuação do Poder Judiciário, em especial a Justiça Eleitoral, para explicitar as
condições mínimas de funcionamento interno dos partidos para preservação e
desenvolvimento da nossa democracia constitucional.

I - Da Patologia do Funcionamento Partidário Brasileiro


O modelo de eleições pelo sistema proporcional é a forma mais adequada
para se viabilizar uma democracia representativa. É o único sistema que garante
uma representação plena e justa das ideologias presentes em determinada socie-
dade, viabilizando o convívio das posições majoritárias e minoritárias na exata
proporção em que recebem apoio popular.
No entanto, para que o sistema proporcional se mostre minimamente efi-
ciente, demanda-se a manutenção de um sistema de partidos que funcionem
como aglutinadores das ideologias e propostas de programas governamentais.
Os partidos políticos institucionalizam as posições politicas e elevam os deba-
tes para o plano ideológico, afastando a vida política do personalismo e fisiologismo,
características mais comumente encontradas no sistema eleitoral majoritário:
O fenômeno partidário surgiu e desenvolveu-se em correspondência com
o fenômeno eleitoral: os modernos partidos são indissociáveis do sufrágio
universal, para efeitos do qual canalizam opiniões, enquadram militantes
e simplificam as opções políticas e ideológicas. (MIRANDA:2003, p. 387)

Portanto, para que o sistema proporcional funcione a contento, o sistema


partidário deve ser capaz de garantir que as legendas atendam sua finalidade on-
tológica primordial, qual seja: o de efetivamente representar os anseios ideológicos
da parcela da sociedade que representa, inclusive, mediante a abertura dos seus
canais de informações e decisões para um debate amplo e participativo. É, tam-
bém, pressuposto do modelo proporcional que as candidaturas sejam apresentadas
exclusivamente pelos partidos políticos. Porém, tal prerrogativa não lhes podem
reduzir a meros veículos eleitorais. As candidaturas apresentadas devem ser uma
consequência da posição política e programática do partido, associada à história
dos personagens dos seus quadros que melhor as representem em cada momento.

82
30 anos da Constituição

As candidaturas devem emergir naturalmente da posição ideológica dos


partidos com respaldo da parcela popular que a apoia, e não ao contrário, serem
as posições programáticas (ou pragmáticas) do partido consequência das vonta-
des dos candidatos e dirigentes que manejam suas vidas institucionais, de modo
dissociado das bases populares que os legitimam.
Nesse sentido, afirma Pateman (2003, PP. 28-29), fazendo referência às
teorias de Dahl, Berelson, Sartori e Ecksein:
Nessa teoria, a “democracia” vincula-se a um método político ou uma
série de arranjos institucionais a nível nacional. O elemento democráti-
co característico do método é a competição entre os líderes (elite) pelos
votos do povo, em eleições periódicas e livres. As eleições são cruciais
para o método democrático, pois é principalmente através delas que a
maioria pode exercer controle sobre os líderes. A reação dos líderes às
reivindicações dos que não pertencem à elite é segurada em primeiro
lugar pela sanção da perda do mandato nas eleições; as decisões dos
líderes também podem sofrer influências de grupos ativos, que pres-
sionam nos períodos entre as eleições. (destacamos)

Se não houver um mínimo de envolvimento da sociedade na gestão e no


processo de decisões dos partidos políticos, teremos uma democracia altamente
deficiente. Reservado aos dirigentes partidários as escolhas dos candidatos, as
escolhas eleitorais pelo povo no momento do voto recairão sobre opções de
candidaturas ilegítimas. Contaminada o gênesis do processo eleitoral, o fruto
eleitoral que o sucederá será também imprestável. É exatamente esta a mais
relevante patologia da democracia brasileira.
A crise de legitimidade, que faz o povo não se veja representado na classe
política governante está intimamente relacionada a não identificação dos ci-
dadãos com os programas e candidatos oferecidos pelo pelos partidos políticos,
desencadeando-se um processo de descrença na própria política.
O informe Latinobarometro107, de 2016, mostra que, dentre os brasileiros,
46% acreditam que a perda da legitimidade dos políticos e da política não é
recuperável. Na América Latina, a média é de 42%. Em outros países as médias
são: Uruguai 34%, Argentina 36%, Bolívia 40%.

107 Informe Latinobarometro 2016. Disponível em http://www.latinobarometro.org/latContents.jsp.


Acessado em 05 de setembro de 2017.

83
30 anos da Constituição

Esse descrédito, por óbvio, também decorre da deficiência do processo de


escolha dos candidatos eleitos, que obtém o acesso às candidaturas no apoio dos
dirigentes partidários, em vez de emergirem do apoio da parcela da sociedade
que legitimam a existência dos partidos108.
Não se verifica no Brasil um envolvimento relevante do povo nas decisões
partidárias. Seja na criação dos partidos, seja no apoio das suas ideologias e pro-
gramas de governo. Os movimentos de criação de partidos políticos no Brasil,
em geral ocorrem da classe política para o povo. Na maioria das vezes a criação
de uma nova legenda fecunda da dissidência de eleitos em busca de maior inge-
rência na vida partidária, egressam da legenda pela qual se elegeram para uma
nova cuja direção permaneça nas mãos do seu grupo político.
Nosso sistema partidário se apresenta patrimonialista, os partidos servem
aos interesses das elites direcionais, absolutamente dissociados dos interesses
da sociedade ou de grupos de cidadão que compactuem com suas propostas de
projetos governamentais.
Ao tratar das organizações, tais os partidos políticos, Ribeiro (2012, p.3)
faz uma interessante e pertinente leitura:
ao atingir certa dimensão toda organização passa a enfrentar dificulda-
des insuperáveis, de ordem prática, para envolver seus membros pessoal
e diretamente nos processos decisórios; surge, assim, a necessidade de

108 “A democracia representativa talvez seja, antes de tudo, um sistema de governo apropriado àquelas
situações nas quais por algum motivo é impraticável que os cidadãos participem diretamente do
processo legislativo. Mas o Conceito de representação, tal como nossos precursores o compreenderam,
era mais profundo que isso. A retórica pré-revolucionária postulava um conflito contínuo entre os
interesses dos “governantes”, de um lado, e os dos “governados” (ou do “povo”), de outro. Buscou- seu
uma solução ao incorporar ao conceito de representação a ideia de uma associação dos interesses dos
dois grupos. Assim, os representantes no novo governo eram concebidos como “cidadãos”, pessoas de
grande caráter e capacidade, certamente, mas também “do povo”. Segundo a crença dos que assim
os concebiam, terminado o seu serviço eles voltariam ao povo e, assim, ao grupo dos “governados”.
Além disso, mesmo enquanto estivessem ocupando o cargo, a ideia é que eles vivessem sob o regime
das leis que aprovassem, e não se isentassem delas: essa obrigação de incluir a si mesmos no grupo dos
governados asseguraria uma comunhão de interesses e nos resguardaria de uma legislação opressiva.
Os constituintes deram-se conta de que mesmo imagens ideais precisam de mecanismos que garantam
sua aplicação: era necessária “ alguma força que se oponha à tendência insidiosa do poder de separar...
os governantes dos governados”. A principal força concebida para esse fim foi o voto: as pessoas
do povo, em nome de seus próprios interesses, escolheriam os representantes cujos interesses se
harmonizassem com os seus e, mediante a decisão crítica de reelegê-los ou não, assegurariam que os
representantes lhes permanecessem fiéis e sobretudo que não se esquivassem dos rigores das leis que
eles mesmos aprovassem.” (ELY, pp. 103-104)

84
30 anos da Constituição

delegar poderes a representantes. (2) Ao mesmo tempo em que cresce,


a organização passa a desempenhar tarefas cada vez mais numerosas e
complexas, em prol dos objetivos organizacionais, impulsionando a di-
visão do trabalho, a especialização de funções e a profissionalização dos
dirigentes (remunerados para se dedicarem exclusivamente à organiza-
ção); conforma-se, assim, uma burocracia hierarquizada. (3) Ocupando
cargos especializados, os dirigentes adquirem expertise crescente em
suas áreas de atuação, tornando-se cada vez mais indispensáveis para
uma atuação eficaz da organização; com isso, passam a gozar de ampla
estabilidade em seus postos. No caso da democracia intrapartidária, isso
decorre, ainda, da ausência de normas jurídicas que condicionem a exis-
tência e o funcionamento dos partidos a uma conexão com a parcela de
povo que o legitime. A ampla autonomia funcional e organizacional dos
partidos permite a criação de mecanismos de gestão que aniquila sua
imperativa conexão com a sociedade.

É certo, também, que a intervenção do Estado na regulamentação dos


partidos políticos deve ser a mínima possível. Porém, suficiente para garantir
que o sistema funcione minimamente adequado para garantir que as institui-
ções partidárias atinjam a razão da sua existência, a de efetivamente aglutinar
e representar uma posição política e programática assente em uma parcela do
povo. Para tanto, faz-se necessário que a legislação de regência dos partidos
políticos fomente e condicione o seu funcionamento para que se garanta a ade-
quação da sua existência às finalidades fundamentais do instituto. Ou seja, a
ampla autonomia organizacional e funcional dos partidos está condicionada à
garantia de que se apresente como um efetivo instrumento de representação de
determinada ideologia e proposta de programa de governo.
O modelo partidário hoje vigente no Brasil, ao contrário de garantir a
função democrática constitucionalmente prevista dos partidos, contribuiu para
uma dissociação entre entidade partidária e sociedade, reduzindo os partidos a
meros veículos de candidaturas à disposição das direções partidárias.
Este modelo desestimula que os partidos busquem apoio popular no de-
senvolver de sua vida cotidiana, pois quanto menos filiados, e quanto menos
ingerência os filiados tiverem na gestão do partido, mais poder e disponibilidade
restará às suas elites direcionais. A inexistência de normas que imponham me-
didas afirmativas à democracia interna dos partidos e o diálogo com a socieda-
de perpetua esta indesejável realidade.

85
30 anos da Constituição

A interação dos partidos com a sociedade tem-se limitado ao momento


eleitoral, quando as decisões definidoras dos pleitos – escolha de candidatos
e formação de coligações – já foram tomadas pelas elites direcionais com a
mínima interferência da sociedade. As eleições ficam circunscritas às decisões
preconcebidas por uma extrema minoria composta pelos dirigentes e influen-
tes das legendas. Os eleitores, universalmente reconhecidos, embora livres para
vota, têm suas escolhas restritas aos quadros definidos pelos partidos políticos,
que nem sempre coincidem com os seus anseios.
Daí decorre uma das principais causas da patológica democracia brasi-
109
leira , é dizer, a carência de legitimidade popular na gênesis do processo de-
mocrático, que coincide com o regular funcionamento dos partidos políticos, e
desencadeia uma inevitável “crise de representatividade”.
Não obstante, os recentes debates estabelecidos no plano do Poder Le-
gislativo para sanar a crise de representatividade da democracia brasileira, em
geral estão circunscritos a reformas do sistema eleitoral, propondo alterações na
forma do computo dos votos, ou mais radicalmente, no abandono do sistema
proporcional, em evidente afronta à qualidade da representação.
Não verificamos no cenário reformador nacional qualquer proposta que
implique em tentativa de correção dos problemas dos quais padecem nosso sis-
tema partidário, salvo no que concerne à introdução de cláusulas de desempe-
nho, sempre vinculadas ao resultado eleitoral, sem nenhuma espécie de fomen-
to ao funcionamento qualitativo dos partidos110.

109 Essa carência também é percebida em outros sistemas. Nesse sentido, o jornal El País, em interessante
editorial mostrava a carência dessa realidade também na Espanha: Todas las organizaciones políticas
deben romper con los procedimientos que permiten a sus dirigentes actuar prácticamente sin frenos
ni límites. Celebrar los congresos con intervalos de hasta cuatro años favorece el mantenimiento
del statu quo y de los intereses creados. Reservar la designación de candidatos electorales a la decisión
de comités muy reducidos da a estos todo el poder sobre sus correligionarios, que dependen más de los
jefes del partido que de los votantes. Estos métodos han provocado una selección inversa del personal
político: solo los más leales a los jefes o sus redes clientelares son capaces de mantenerse en la vida
pública. La gente valiosa no debería verse asfixiada por una disciplina demasiado estrecha respecto de
las oligarquías partidistas” cf. https://elpais.com/elpais/2015/05/17/opinion/1431885488_758051.html,
acessado em 03 de setembro de 2017. .
110 Jorge Miranda, ao analisar o cenário português de 1995 assim analisava: “Fala-se hoje muito da
reforma do sistema político, ligando-a, sobretudo, à reforma do sistema eleitoral com vista a uma
relação mais estreita entre eleitores e eleitos. E não se pode negar que o sistema eleitoral para a eleição
do Parlamento pode ser aperfeiçoado nesse sentido, sem quebra do princípio proporcional (através do

86
30 anos da Constituição

Ressalta-se que as criticas aqui trazidas ao nosso sistema partidário, não


têm como objetivo a extinção ou amesquinhamento das legendas, mas, ao con-
trário, extrair dos princípios constitucionais vigentes a necessidade da criação
de uma legislação regulamentadora dos partidos políticos que imponha que sua
organização e funcionamento atendem às suas finalidades constitucionais.
Reconhecemos uma parcial omissão do legislador em estabelecer parâme-
tros mínimos para que os partidos políticos fixem mecanismos e procedimentos
internos capazes de garantir sua legitimação democrática.
É certo que a inércia do legislador em adentrar aos temas pertinentes à regula-
ção da organização e funcionamento dos partidos, decorre do caráter reflexivo das
normas desta natureza, que produzidas pelo legislativo eleito têm como destinatá-
rios as direções partidárias cooptadas por aqueles que acenderam ao poder por meio
de candidaturas definidas no mesmo contexto. Portanto, um caminhar proativo
nesta seara dependerá, invariavelmente, do impulso do Poder Judiciário, para reco-
nhecer a inconstitucionalidade por omissão do legislador em estabelecer condições
que imponham mecanismos de democracia interna nos partidos políticos.
A seguir, reconheceremos os valores fundamentais marcados pelo nosso
constituinte na definição do modelo democrático, em especial naquilo que é
pertinente à função dos partidos políticos, e confrontaremos com a sua regu-
lação vigente. Em paralelo, verificaremos como a legislação vigente implica no
funcionamento deficiente dos principais partidos brasileiros. Por fim, verifica-
remos a posição da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo
Tribunal Federal sobre o tema e apresentaremos nossa conclusão de como o Po-
der Judiciário pode contribuir para garantir que os partidos políticos brasileiros
atendam suas finalidades constitucionais.

método de Hare acolhido na Irlanda, ou na representação proporcional ´personalizado´ à alemã, ou


de círculos de candidatura, um pouco como na Dinamarca).
Porém, a reforma do sistema político tem de começar pelos partidos políticos. Tem que começar
pela renovação dos métodos de actuação e da mentalidade dos seus militantes e dirigentes; e passa
pela democraticidade das suas práticas, a qual, por seu turno, implica normas eleitorais plenamente
democrática.” (2003, p. 390)

87
30 anos da Constituição

II - Do Contexto Normativo dos


Partidos Políticos no Brasil
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) ele-
geu como sistema eleitoral brasileiro o proporcional e partidário. O seu art. 14,
§ 3º estabelece a filiação partidária como condição de elegibilidade. E o art.
45, estabelece que “A Câmara dos Deputados se compõe de representantes do
povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território
e no Distrito Federal”. Esse modelo, por simetria constitucional se impõe aos
legislativos estaduais, distrital e municipais.
Além destes dispositivos que revelam expressamente a opção pelo sistema
proporcional partidário, outros corroboram a importância que o constituinte
atribuiu aos partidos políticos: i) o art. 5º, LXX legitima os partidos com repre-
sentação no Congresso Nacional a impetrar mandado de segurança coletivo;
ii) o art. 17, IV estabelece aos Partidos Políticos “funcionamento parlamentar”,
reconhecendo-os como forças políticas que transcendem o momento eleitoral;
iii) o art. 17, § 3º garanti-lhes recursos do Fundo Partidário e acesso gratuito
ao rádio e a televisão; iv) o art. 53, § 3º, atribui-lhes a iniciativa para sustar
ação penal em que deputado ou senador tenha sido denunciado; v) o art. 55, §
3º atribui-lhes a prerrogativa de provocar as mesas da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal para declarar ou decidir sobre a perda de mandato dos
parlamentares que incorrerem nos incisos do mesmo artigo; vi) o art. 58, § 1º
garante representação proporcional dos partidos políticos na composição das
mesas diretoras e comissões das respectivas casas; vii) o art. 74, §2º atribui-lhes
poderes para denunciar irregularidades do poder público perante os Tribunais
de Contas; viii) o art. 103, VIII atribui-lhes legitimidade ativa para propor Ação
Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade;
ix) o art. 150, VI, “c” garanti-lhes imunidade tributária.
Não obstante as características públicas atribuídas aos partidos políticos
conforme elencadas, os §§ 1º e 2º do art. 17 da CRFB reconheceram os partidos
políticos como pessoas jurídicas de direito privado, bem como lhes asseguraram
“autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento”.
É certo que autonomia assegurada pelo constituinte – à luz das responsabi-
lidades públicas atribuídas aos partidos, bem como diante da sua relevância como
entidade viabilizadora da democracia – não pode ser interpretada de forma abso-

88
30 anos da Constituição

luta, cabendo ao legislador estabelecer limites para que em sua estrutura interna,
organização e funcionamento funcionem de modo a garantir o cumprimento das
finalidades constitucionais do instituto. Embora dotados de personalidade jurídica
de direito privado, pois são constituídos na forma da lei civil, devem ser considera-
dos como entidades públicas, em razão das funções públicas que desempenham111.
Por sua vez, o legislador infraconstitucional, ao regulamentar o sistema
partidário brasileiro por meio da Lei n. 9.096/1995, já em seu art. 1º reconhece
expressamente a dualidade de caráter privado e público que envolve os partidos
políticos, ao declarar que “O partido político, pessoa jurídica de direito privado,
destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do
sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Cons-
tituição Federal” (sublinhamos).
No entanto, a lei regulamentadora, em seu art. 3º reafirma a dicção consti-
tucional de que “é assegurada, ao partido político, autonomia para definir sua es-
trutura interna, organização e funcionamento”, sendo silente no que concerne ao
estabelecimento da obrigatoriedade de se definir mecanismos democracia interna
nos partidos. Da mesma forma, a Lei das Eleições, n.º 9.504/1997, ao dispor sobre
o procedimento de escolha de candidatos em convenções partidárias, em seu art.
7º112 remete às normas contidas nos respectivos estatutos dos partidos.
A ausência de regulamentação impondo limites à estrutura interna, orga-
nização e funcionamento dos partidos, tem permitido a convivência com pro-
cedimentos partidários absolutamente discrepantes dos padrões democráticos.
Da análise dos 4 (quatro) maiores partidos brasileiros: PMDB, PT, PSDB e PR113
– considerando as bancadas na Câmara dos Deputados – verifica-se que em nenhum
deles se pode reconhecer procedimentos verdadeiramente democráticos quanto a dois
pontos essenciais e relevantes para identificação de critérios de democracia interna,
quais sejam: critérios para escolha dos dirigentes partidários e critérios para escolha
dos candidatos a serem apresentados pelos partidos. O modelo adotado pelos partidos
analisados se replica na maioria dos demais partidos brasileiros.

111 Trata-se de clara necessidade de que, apesar de a deter personalidade de direito privado, respeitem aos
direitos fundamentais dos seus filiado. Nesse sentido, está-se a falar em eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, tal qual já afirmada pelo STF em alguns julgados. Sobre o tema, ver CONCI, 2008. p. 32).
112 Art. 7º As normas para a escolha e substituição dos candidatos e para a formação de coligações serão
estabelecidas no estatuto do partido, observadas as disposições desta Lei.
113 Conforme: http://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa/bancadas/bancada-atual.

89
30 anos da Constituição

Os 4 (quatro) estatutos analisados preveem que nas convenções partidá-


rias – oportunidades em que se elegem os dirigentes partidários e os candidatos
nas respectivas eleições – as deliberações se dão de forma indireta, ou seja, sem
participação direta de todos os filiados do partido. A possibilidade da realização
de eleições prévias para a escolha dos candidatos do partido para as eleições
vindouras é de caráter discricionário da direção partidária nos casos do PMDB,
PSDB e PR, e obrigatória no PT114, e, em todos os casos as eleições prévias são
restritas aos cargos majoritários:
“No Brasil a decisão sobre os candidatos se faz de maneira fechada, inter-
namente. Embora alguns partidos prevejam a realização de prévias para
disputas internas, o mais comum é a indicação pelos dirigentes (real ou apa-
rentemente) dos candidatos que concorrerão. (SALGADO: 2013, P. 160)”

E, em todos os casos, além da escolha dos dirigentes partidários ocorrerem


por eleições indiretas, não há previsão de limites à recondução aos cargos de
direção partidária.
Além das convenções partidárias serem restritas a uma pequena elite par-
tidária, em todos os casos analisados os estatutos preveem reserva de acento
entre os convencionais aos próprios dirigentes em exercício e aos filiados deten-
tores de cargos eletivos, o que dificulta renovação tanto dos quadros partidários,
quanto das listas de candidatos apresentados à população.
A realização de eleições gerais prévias para a escolha dos seus candidatos e
eleições gerais para escolha dos seus dirigentes atribuiria aos partidos exposição
social e legitimidade democrática, uma vez que fomenta a participação do povo
nas decisões que irão desembocar na conformação dos pleitos eleitorais. Ade-
mais, não se pode considerar democrático o procedimento eleitoral se a decisão
primeira do processo, que concerne na escolha dos candidatos, é realizada por
procedimento restrito a poucos representantes partidários.
No Brasil, como afirmado, não há comando legislativo impondo a de-
mocracia partidária. A autonomia garantida pela Constituição de 1988
tende a contar com uma interpretação ampla por parte da doutrina e

114 Embora o estatuto do PT estabeleça a obrigatoriedade de realização de prévias (art. 147) sempre que
houver mais de um pré-candidato para um mesmo cargo majoritário, impõem condições estritas para
a o recebimento das pré-candidaturas (art. 142)., bem como o resultado das prévias só será vinculante
caso se obtenha uma participação mínima de filiados com votação válida (arts. 152 e 153).

90
30 anos da Constituição

da jurisprudência, por força da resposta às “amarras de antipartidarismo


inserido nas Constituições anteriores e nas legislações que regulamenta-
vam a vida política dos partidos políticos”.
Parece, no entanto, que a leitura que mais harmoniza com o sistema
constitucional é a de uma autonomia mitigada dos partidos políticos,
em face da posição que estes ocupam no Estado brasileiro. Os valores
constitucionais recortam a capacidade de auto-organização e funciona-
mento dos partidos, impondo uma atuação condizente com os princípios
republicanos e democráticos. Os estatutos dos partidos políticos e, de
maneira mais enfática, sua prática cotidiana devem fazer eco aos co-
mandos constitucionais, exigências do Estado Democrático de Direito
que empresta aos partidos políticos papel protagonista na democracia
representativa. (SALGADO:2015, p. 78)

O modelo partidário brasileiro carece de legitimidade democrática, tam-


bém, no que concerne à adesão popular à vida institucional dos partidos. Sendo
o papel dos filiados demasiadamente coadjuvante, bem como, sendo irrelevante
para o partido o número de eleitores filiados, desenrola-se um processo vicioso
por meio do qual os partidos não têm interesse em investir na arregimentação
de filiados, e estes por sua vez, não tendo participação relevante na vida par-
tidária se desinteressam em estabelecer um vínculo associativo com a legenda.
Assim, os partidos se reduzem ao ambiente dos políticos em sentido estrito,
considerados aqueles que têm interesse na participação dos cargos de governo,
sejam eletivos ou comissionados.
Conforme divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 2016 os 36 (trin-
ta e seis) partidos registrados contavam com um total de 16.623.411115 (dezesseis
milhões seiscentos e vinte e três mil quatrocentos e onze) eleitores filiados em
todo o Brasil, representando apenas 11,53% (onze vírgula cinquenta e três por
cento) do eleitorado nacional116. Ressalte-se ainda que, considerando os esta-
tutos partidários não impõem obrigações relevantes aos seus filiados, não se
pode dizer que o número de filiado representa o número de efetivos militantes
do partido, pois em sua grande maioria, em algum momento histórico optaram

115 http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/filiados.
116 Equivalente a 144.088.912 (cento e quarenta e quatro milhões oitenta e oito mil novecentos e
doze) eleitores, conforme http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2016/
eleicoes-2016.

91
30 anos da Constituição

pela filiação e desde então permaneceram inertes sem participação em qualquer


ato da vida civil e política da agremiação.
Ainda que se considere que de fato o número corresponderia ao número
de militantes efetivamente ativos e participativos, o dado mais grave é que dos
36 (trinta e seis) partidos, apenas 7 (sete) possuem mais de um milhão de filia-
dos, enquanto outros 9 (nove) têm menos de cem mil filiados, dentre os quais 2
(dois) possuem menos de dez mil filiados117.
É, portanto, evidente, que o sistema partidário brasileiro funciona de for-
ma deficiente, corrompendo o processo eleitoral e a integridade democrática.
Esta deficiência decorre de uma interpretação, absoluta e indevida, da autono-
mia constitucionalmente atribuída aos partidos políticos, que nela embasados
fomentam e contribuem com a manutenção de um partidarismo patrimonialis-
ta que colocam as legendas a serviço de suas elites direcionais e cada vez mais
afastas do povo a quem devem servir.
Para tanto, considerando que a alteração dos dispositivos normativos ca-
pazes de transformar esta indesejável realidade está nas mãos dos legisladores
que se beneficiam da patologia do sistema, fazendo-se imperativa a atuação do
Poder Judiciário para exigir a evolução da regulação do nosso sistema partidário.

III - Da Jurisprudência sobre a Autonomia Partidária


Como visto, o legislador tem sido muito tímido no que implica em estabelecer
limitações ou condições para funcionamento interno dos Partidos Políticos nos pa-
râmetros democráticos. Tanto a Lei dos Partidos Políticos como a Lei das Eleições,
ao serem tímidas na imposição de regras mínimas de organização e funcionamento
dos partidos, garantem quase que absoluta liberdade a estas instituições.
Em 1994 a jurisprudência brasileira tendia a reconhecer que a autonomia
garantida pelo constituinte
“além de repelir qualquer possibilidade de controle ideológico do Estado
sobre os partidos políticos – cria, em favor desses corpos intermediários,
sempre que se tratar da definição de sua estrutura, de sua organização
ou de seu interno funcionamento, uma área de reserva estatutária ab-

117 http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2016/eleicoes-2016.

92
30 anos da Constituição

solutamente indevassável pela ação normativa do Poder Público, a este


plenamente oponível toda vez que se esboçar, nesse domínio, qualquer
ensaio de ingerência legislativa do aparelho estatal”.118

118 ADI 1063MC/DF. Relator Min. Celso de Mello. Ementa: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 8.713/93 (ART. 8º, § 1º, E ART. 9º) - PROCESSO
ELEITORAL DE 1994 - SUSPENSÃO SELETIVA DE EXPRESSÕES CONSTANTES DA NORMA
LEGAL - CONSEQÜENTE ALTERAÇÃO DO SENTIDO DA LEI - IMPOSSIBILIDADE DE O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AGIR COMO LEGISLADOR POSITIVO - DEFINIÇÃO LEGAL
DO ÓRGÃO PARTIDÁRIO COMPETENTE PARA EFEITO DE RECUSA DA CANDIDATURA
NATA (ART. 8º, § 1º) - INGERÊNCIA INDEVIDA NA ESFERA DE AUTONOMIA PARTIDÁRIA -
A DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS PARTIDOS POLÍTICOS - SIGNIFICADO - FILIAÇÃO
PARTIDÁRIA E DOMICÍLIO ELEITORAL (ART. 9º) - PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE
- MATÉRIA A SER VEICULADA MEDIANTE LEI ORDINÁRIA - DISTINÇÃO ENTRE
PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE E HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE - ATIVIDADE
LEGISLATIVA E OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF
LAW - CONHECIMENTO PARCIAL DA AÇÃO - MEDIDA LIMINAR DEFERIDA EM PARTE.
AUTONOMIA PARTIDÁRIA: A Constituição Federal, ao proclamar os postulados básicos que
informam o regime democrático, consagrou, em seu texto, o estatuto jurídico dos partidos políticos. O
princípio constitucional da autonomia partidária - além de repelir qualquer possibilidade de controle
ideológico do Estado sobre os partidos políticos - cria, em favor desses corpos intermediários, sempre
que se tratar da definição de sua estrutura, de sua organização ou de seu interno funcionamento, uma
área de reserva estatutária absolutamente indevassável pela ação normativa do Poder Público, vedando,
nesse domínio jurídico, qualquer ensaio de ingerência legislativa do aparelho estatal. Ofende o princípio
consagrado pelo art. 17, § 1º, da Constituição a regra legal que, interferindo na esfera de autonomia
partidária, estabelece, mediante específica designação, o órgão do Partido Político competente para
recusar as candidaturas parlamentares natas. O STF COMO LEGISLADOR NEGATIVO: A ação
direta de inconstitucionalidade não pode ser utilizada com o objetivo de transformar o Supremo
Tribunal Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema normativo,
em caráter inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar. Não se revela lícito pretender,
em sede de controle normativo abstrato, que o Supremo Tribunal Federal, a partir da supressão seletiva
de fragmentos do discurso normativo inscrito no ato estatal impugnado, proceda à virtual criação de
outra regra legal, substancialmente divorciada do conteúdo material que lhe deu o próprio legislador.
PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE: O domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária,
constituindo condições de elegibilidade (CF, art. 14, § 3º), revelam-se passíveis de válida disciplinação
mediante simples lei ordinária. Os requisitos de elegibilidade não se confundem, no plano jurídico-
conceitual, com as hipóteses de inelegibilidade, cuja definição - além das situações já previstas
diretamente pelo próprio texto constitucional (CF, art. 14, §§ 5º a 8º) - só pode derivar de norma inscrita
em lei complementar (CF, art. 14, § 9º). SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO
LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV,
da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto
meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo,
em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo
arbitr ário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e
as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída
do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria
do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência
para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento

93
30 anos da Constituição

Na oportunidade do julgamento referido (ADI 1.063-8/DF) o STF enfrentava


a o tema das chamadas “candidaturas natas”. A lei impugnada estabelecia que os
detentores de mandato de Deputado Federal, Estadual e Distrital tinham:
“Assegurado o registro de candidatura para o mesmo cargo pelo partido
a que estejam filiados na data da sua convenção, independentemente de sua
escolha nesta, salvo deliberação em contrário do órgão de direção nacional
do partido”. (destacamos)
O STF entendeu ser inconstitucional a expressão final do dispositivo (des-
tacada), por representar violação à autonomia organizacional do partido..
Ao voltar a tratar do tema da autonomia partidária em 2006, na oportu-
nidade do julgamento da ADI n.º 1407/2006, de relatoria do mesmo Ministro
Celso de Mello, reforçou-se o posicionamento de que:
“o postulado constitucional da autonomia partidária criou, em favor dos
Partidos Políticos – sempre que se tratar da definição de sua estrutu-
ra, de sua organização ou de seu interno funcionamento – uma área
de reserva estatutária absolutamente indevassável pela ação normativa
do Poder Público. Há, portanto, um domínio constitucionalmente deli-
mitado, que pré-exclui, - por efeito de expressa cláusula constitucional
(CF, art. 17, § 1º) – qualquer possibilidade de intervenção legislativa
em tudo o que disser respeito à intimidade estrutural, organizacional e
operacional dos Partidos Políticos”.

Porém, não obstante o STF tenha declarado seu prestígio ao princípio da au-
tonomia organizacional e funcional dos partidos, in casu entendeu que a norma
questionada (art. 6º da Lei n.º 9.100/95119) que impunha limites para que os partidos
estabelecessem suas coligações não padecia de vício de inconstitucionalidade. Pois:
“o princípio da autonomia partidária não é oponível ao Estado, que
dispõe de poder constitucional para, em sede legislativa, estabelecer a
regulação normativa concernente ao processo eleitoral.

institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem
o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário de CAIO TÁCITO. Observância, pelas
normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do substantive due process of law.
119 Art. 6º Serão admitidas coligações se celebradas conjuntamente para as eleições majoritárias e
proporcional, e integradas pelos mesmos partidos, ou se celebradas apenas para as eleições majoritárias.

94
30 anos da Constituição

O postulado da autonomia partidária não pode ser invocado para excluir


os Partidos Políticos – como se estes fossem entidades infensas e imunes
à ação legislativa do Estado – da situação de necessária observância das
regras legais que disciplinam o processo eleitoral em todas as suas fases”.

Daí se conclui que o STF reconhece como um limite à autonomia dos


partidos os atos que integram o “processo eleitoral”, considerados aqueles que
têm influência direta nas eleições, ou seja, as decisões partidárias realizadas em
convenções que correspondem à escolha dos candidatos e regime de suas coli-
gações podem ser limitadas por lei.
No mesmo sentido, considerando que as decisões convencionais são de in-
teresse público, a jurisprudência consolidou posicionamento no sentido de que
“Justiça Eleitoral possui competência para apreciar as controvérsias internas de
partido político, sempre que delas advierem reflexos no processo eleitoral” (Re-
curso Especial Eleitoral nº 11228/PA).
Considerando ainda que a atividade legislativa é capitaneada pelos parti-
dos políticos que pouco interesse tem em se autolimitarem, pouco se tem avan-
çado nessa seara por parte do legislativo.
A inércia do legislador, tem provocado a Justiça Eleitoral, no exercício
de sua função normativa a estabelecer limites mínimos à autonomia organiza-
cional e funcional dos partidos para a preservação da integridade do processo
democrático constitucional, foi o que ocorreu quando da edição da Resolução
21.002/2002120 pelo TSE que disciplinou o regime de coligações, impedindo os
partidos de realizarem coligações contraditórias em nível federal e estadual.
Em 2005, ao apreciar a Consulta processo n.º 1.135/DF o TSE vedou que os esta-
tutos dos partidos políticos estabelecessem a obrigatoriedade dos filiados detentores de
cargos públicos que fizessem contribuições aos partidos calculadas com base nos seus
rendimentos, bem com, vedou esta espécie de contribuição, mesmo que realizada de
forma voluntário pelo filiado. Tratou-se, portanto, da imposição de um limite desejável
e aceitável à autonomia partidária pelo Poder Judiciário.
O art. 39 da Resolução TSE n.º 23.465/2015 é também um adequado
exemplo positivo da atividade normativa da Justiça Eleitoral para delimitar a

120 Ressalte-se que o entendimento do TSE que impôs a “verticalização” das coligações foi superado com
a edição da Emenda Constitucional n.º 52/2006 que alterou a redação do § 1º do art. 17 da CRFB para
fazer constar expressamente a possibilidade dos partidos realizarem coligações com absoluta liberdade.

95
30 anos da Constituição

autonomia organizacional e funcional dos partidos políticos, ao estabelecer que


os órgãos provisórios dos partidos não possam perdurar por mais de 120 (cento
e vinte) dias. Impedindo o que os partidos tivessem órgãos provisórios “eternos”,
em que em geral as decisões são tomadas diretamente pelas cúpulas partidárias.
Infelizmente, esse dispositivo, que em principio teria consequências concretas
já nas eleições de 2016, teve sua vigência adiada para março de 2017 por força
da Resolução TSE n.º 23.471/2016.
Em reação e desafio do legislador frente o posicionamento do TSE, em 04
de outubro de 2017 foi aprovada a Emenda Constitucional n.º 97 que ao alterar
o §1º do art. 17 da CRFB para, expressamente, reconhecer a autonomia dos
partidos para definirem “duração de seus órgãos permanentes e provisórios”,
superando-se, assim, o acertado entendimento da Justiça Eleitoral. Embora não
tenha produzido efeitos concretos, é uma sinalização da Justiça Eleitoral de que
deve exercer seu papel normativo no sentido de estabelecer regras que contribu-
am para o estabelecimento de mecanismos democráticos nos partidos políticos.
Mais recentemente, em 26 de abril de 2018, ao julgar o pedido de registro
de alterações estatutárias do Partido NOVO (RPP n.º 843-68)121, o TSE in-
deferiu o registro de cláusula que criava um processo seletivo prévio à escolha

121 REQUERIMENTO. PARTIDO NOVO. REGISTRO DE ALTERAÇÕES ESTATUTÁRIAS.


PARECER. MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL. ADEQUAÇÃO. DISPOSITIVOS.
1. O Partido Novo requer o registro de alterações promovidas em seu estatuto, aprovadas em reunião
do Diretório Nacional ocorrida em 28.6.2017.
2. Parecer da d. Procuradoria-Geral Eleitoral pelo deferimento parcial, excluindo-se, porém,
dispositivos que criam a Comissão de Seleção de Candidatos, etapa prévia à convenção partidária.
COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ELEITORAL EXAME. ATOS INTERNA CORPORIS. PARTIDOS
POLÍTICOS. POTENCIAL AMEAÇA. REGIME DEMOCRÁTICO. CASO DOS AUTOS.
COMISSÃO PRÉVIA DE SELEÇÃO DE CANDIDATOS. INADMISSIBILIDADE. MOMENTO
PRÓPRIO. CONVENÇÕES PARTIDÁRIAS.
3. Cabe à Justiça Eleitoral, no exercício de suas funções jurisdicionais e administrativas, o controle de atos
interna corporis editados pelos partidos políticos que revelem potenciais ameaças ao regime democrático.
4. O regime democrático manifesta-se pela livre escolha de candidatos, mediante voto universal e
secreto, e também é intrínseco ao próprio funcionamento dos partidos, cujos filiados detêm legítimas
pretensões políticas.
5. Os novos dispositivos do estatuto do Partido Novo, na parte em que criam comissão prévia de seleção
de candidaturas, representam grave risco de escolha antidemocrática entre seus filiados, haja vista
a possibilidade de exigência de requisitos arbitrários e não previstos na legislação eleitoral, o que
culminaria no afastamento, de plano, antes mesmo das convenções partidárias, de pré-candidatos
que desejam disputar o pleito.

96
30 anos da Constituição

das candidaturas pelas convenções partidárias, por entendê-la antidemocrática.


Afirmando-se, assim, como competente para exercer controle sobre a organiza-
ção dos partidos diante dos imperativos democráticos.

IV - Da Legitimidade do Poder Judiciário para Impor a


Criação de Regras de Democracia Interna nos Partidos
Diante do exposto, concluímos que sendo os partidos políticos as peças
fundamentas das democracias representativas, que para que o sistema se apre-
sente como efetivamente democrático, os valores da democracia devem imperar
também no interior dos partidos políticos. Do contrário, estaria maculada a
gênese do processo democrático, que não se resgada pela submissão ao voto
universal de sobre candidatos cuja escolha não foi participada ao povo.
Reconhecemos ainda, que a Justiça Eleitoral brasileira tem assumido um
papel de integrar a legislação política e eleitoral de modo a compatibilizá-la com
o princípio democrático:
É missão da Justiça Eleitoral expedir normas para garantir a realização
do Direito Eleitoral, dos valores decorrentes da escolha por um Estado
Democrático, seja para a consecução dos valores constitucionais consa-
grados, como também para garantir a concretização do sistema eleitoral
conforme a legislação. (GONÇALVES JUNIOR, P. 81).

6. O processo seletivo prévio, ademais, esvaziaria sobremaneira o poder deliberativo das convenções
partidárias, expressamente previstas na legislação de regência como o procedimento de escolha de
aspirantes a cargos eletivos.
7. Em suma, embora em âmbito interno as legendas sejam livres para deliberar acerca dos nomes que
melhor representem seus ideais e objetivos políticos, o meio próprio para consolidar tal escolha é a
convenção partidária, sendo incabível, com base em processo seletivo prévio, restringir o acesso de
filiados que almejem se candidatar.
CONCLUSÃO. DEFERIMENTO PARCIAL.
8. Pedido deferido parcialmente, excluídos os arts. 65, 67, 68, 97, VI, 98, XIX, e 103, caput, do estatuto
do Partido Novo, conforme a fundamentação acima.
Rel. Min. Jorge Mussi

97
30 anos da Constituição

Desta forma, concluímos que o Justiça Eleitoral, mais do que a prerrogati-


va, tem o dever constitucional em estabelecer regras que condicionem os par-
tidos políticos a adotarem procedimentos internos de democracia, em especial
no que concerne ao momento de escolha dos candidatos, decisão partidária que
tem efeitos direito no processo eleitoral.
É necessário que a Justiça Eleitoral determine que condição para os regis-
tros de candidatura, os candidatos tenham sido escolhidos em ampla disputa
prévia, com a possibilidade da participação direta de todos os filiados do parti-
do, com voto de peso igual para todos.
Respeitados tais valores, indissociáveis do padrão democrático, restará
ainda aos partidos ampla autonomia para regulamentarem, em seus estatutos, a
criação dos seus procedimentos próprios
O estabelecimento desta condicionante, não implica em uma violação ao prin-
cípio da autonomia dos partidos, mas apenas a imposição de uma natural e impositiva
limitação para garantir que eles se prestem a cumprir a sua função de ser o principal
instrumento da democracia representativo. Ressalte-se que os procedimentos para a
escolha dos candidatos deverão permanecer regidos pelos estatutos partidários, que
definirão as datas, locais, forma de apresentação dos votos etc. Apenas deverão ade-
quar-se às condicionantes imperativas garantidoras da democracia interna.
Por fim, a introdução de tais normas, por meio da atividade normativa da
Justiça Eleitoral, não implica em violação da separação dos poderes, pois diante
da inércia do Poder Legislativo, nesse caso por serem os seus os principais in-
teressados na ausência de norma destinada ao funcionamento dos partidos, é
fundamental que o Poder Judiciário garanta a efetividade dos valores consagra-
dos pelo texto constitucional.
Ainda que a primazia na conformação dos direitos fundamentais políticos
seja do legislador, como se afirma(SARLET, 2009, p. 141) , a omissão existentes
faz perdurar uma situação fática de ausência de concretização da participação
política cidadã, de modo a excluir dos legitimados para as decisões políticas efe-
tiva participação nas instituições que carregam consigo a gênese da democracia
representativa: os candidatos.
A necessidade de se estabelecer procedimentos de democracia interna aos
partidos políticos, é um valor inerente à democracia representativa, é condição
inquestionável para o funcionamento da democracia brasileira, portanto implí-

98
30 anos da Constituição

cito nosso texto constitucional. Não se trata de criação inovadora da Justiça


Eleitoral, mas apenas na explicitação e a integração de tais valores.
Ressalte-se, ademais, que a atividade normativa da Justiça Eleitoral per-
manecerá sujeita ao controle jurídico e político. Se ao estabelecer as condições
a Justiça Eleitoral ir além do que a Constituição lhe permite integrar, caberá ao
STF fazer controle de Constitucionalidade.
Da mesma forma que, entendendo que a Justiça Eleitoral estabeleceu cri-
térios inconvenientes, caberá ao legislador corrigi-los ou substituí-los por meio
da elabora de lei formal sobre o tema.
Só o impulso do Justiça Eleitoral será capaz de resgatar – ou, melhor di-
zendo, implantar – um sistema partidário capaz de garantir uma democracia
efetivamente representativa.

V – Referências Bibliográficas Consultadas:

CAMPO NETO, Raymundo. A democracia interna nos partidos políticos brasilei-


ros. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Informe nº 26/88, Caso 10.109


(Argentina), de 13 de setembro de 1988.

CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Colisões de direitos fundamentais nas rela-


ções jurídicas travadas entre particulares e a regra da proporcionalidade: po-
tencialidades e limites da sua utilização a partir da análise de dois casos. In:
ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; MEYER-PFLUG, Samantha
Ribeiro (coord.). Lições de Direito Constitucional: em homenagem ao professor
Jorge Miranda. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 17-55.

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Preliminares, Fundo, Raparações e custas. Sentença de 23 de junho de 2005.

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Federación. 2011,disponível em http://www.corteidh.or.cr/tablas/r30080.pdf.

99
30 anos da Constituição

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nion/1431885488_758051.html, acessado em 03 de setembro de 2017.

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na dos partidos políticos como premissa da autenticidade democrática. A&C
– Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Instituto Paranaense de Di-
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SALGADO, Eneida Desiree; DANTAS, Ivo (Coord.). Partidos políticos e seu
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SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª. Ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009.

100
O Conhecimento da Constituição
na América Latina

Marcelo Figueiredo122

O homem é um animal amarrado a teias de


significados que ele mesmo teceu (Clifford Geertz)

Sumário
I) Introdução
II) Uma necessária contextualização – o constitucionalismo latino-americano
III) A pedagogia constitucional e os valores orientados
IV) A cultura constitucional
V) A cultura constitucional na América Latina – as pesquisas realizadas
no México, na Argentina, na Costa Rica e no Brasil
VI) As causas da erosão da consciência constitucional
VII) O ensino e a divulgação do direito constitucional na América Latina
VIII)Pensar a Educação Cidadã
IX) Conclusões
Referências

122 Advogado. Consultor Jurídico em São Paulo, Brasil. Professor Associado de Direito Constitucional
da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vice-Presidente da
Associação Internacional de Direito Constitucional IACL-AIDC. Líder do Grupo de Pesquisa em
Direitos Fundamentais (PUC-SP/CNPq). E-mail: [email protected] . Artigo apresentado no
evento Shanghai/China Roundtable of the IACL em abril de 2018 nos dias 13 a 15.

101
30 anos da Constituição

Resumo:
Palavras-chave: Constituição- Conhecimento- Cultura Constitucional-

Abstract:
Keywords:

I) Introdução
Inicialmente quero agradecer profundamente o convite do Prof. Mo
Jihong, nosso colega na IACL-AIDC Associação Internacional de Direito
Constitucional para falar sobre o tema: Constitutional Literacy in Latin America,
e cumprimentar a todos.
No convite, o Professor Mo já nos envia um panorama do tema a ser tra-
tado nesta mesa redonda.
Afirmou: “Constitutional literacy has been defined as “knowledge of the
Constitution, sufficient to invoke it properly”, either verbally or by implication
through specific behavior, such as voting. For a constitution to be able to per-
form its legal and political roles, familiarity with its central tenets and (some of)
its substance is required across a wide range of people.
These include judges, attorneys and other legal practitioners, politicians,
law enforcement personnel, and public servants in general. As the Constitution
includes the institutional framework for the functioning of public authorities,
these people´s knowledge of the Constitution is a precondition to its being ge-
nerally respected. At the same time, as most constitutions include individual
rights, awareness of these rights among the population at large, is essential for
rights protection and accountability.
Additionally, many constitutions contains messages for the population at
large, serving purposes such as national building, breaking with the past, and
strengthening cohesion. In that perspective, constitutions can be seen as car-
ries of national narratives that presuppose the wildest dissemination in order to
generate the broadest possible ownership and support.

102
30 anos da Constituição

As a result, constitutional education may include both the transfer of know-


ledge and the sensitization about central constitutional principles and values, and
may address both specific categories of (future) professionals, and the public at large.
The Shanghai Roundtable of the IACL-AIDC will provide a forum for the
comparative analysis of constitutional literacy and of practices of constitutional
education in China and around the world”.
Pois bem, cabe-nos falar sobre esse tema na América Latina e evidente-
mente em nosso país, o Brasil, inserido nesse contexto e nesse continente.

II) Uma necessária contextualização –


o constitucionalismo latino-americano
Para compreender os avanços, riscos, perigos e desafios do constitucio-
nalismo latino-americano é necessário fazer uma breve referência ao contexto
social, econômico e político dos Estados que integram a América Latina
O desenvolvimento do constitucionalismo latino-americano foi afetado
por constantes e reiterados conflitos de ordem social e política, originados por
causas diversas, que se constituíram em fatores de instabilidade institucional e
democrática nos Estados da região.
Uma delas foi a determinação das elites de construir um novo Estado Re-
publicano123 sob a visão uninacional e a homogeneização racial, étnica, cultural
e religiosa; o que deu lugar à exclusão e à marginalização social dos povos indí-
genas originários na configuração do Estado e do sistema constitucional.
Nossos povos se emanciparam da Espanha violentamente, e de Portugal,
de forma menos traumática, como é o caso do Brasil, que passou de Império à
República, em 1891.
Os demais povos declararam sua independência e nasceram como tais ou lu-
tando contra a Espanha, outros lutando contra seus vizinhos, como é o caso do
Uruguai – nascido por mediação da Inglaterra, outros nasceram resolvendo pro-
blemas com seus vizinhos, países limítrofes – como é o caso do Equador, que se
desmembrou da Grande Colômbia (Gran Colombia), para liberar-se de Bolívar. No

123 No Brasil após sua fase imperial.

103
30 anos da Constituição

outro extremo temos o Panamá, cujo nascimento em 1903 obedece a interesses


muito próximos ao canal do mesmo nome, em especial dos Estados Unidos124.
Com o tempo reconhecemos nosso legado hispânico (espanhol e português) e,
portanto, também europeu, além do indígena presente em muitos países da região.
Há, ainda, alguns ingredientes orientais (oriundos da China e do Japão) como o
Brasil e o Peru, frutos da imigração desses povos na América Latina e, também dos
africanos, com forte influência no Brasil e em alguns países do Caribe.
Ocorre que ao construir as novas Repúblicas com uma visão muito ape-
gada à realidade europeia e norte-americana, as elites políticas deixaram nova-
mente de lado vários segmentos importantes da população local como os indí-
genas, a população negra do Brasil, e outros segmentos minoritários igualmente
presentes em vários países da região. Esse resgate só foi possível muito tempo
depois, com as Constituições advindas após longos períodos ditatoriais, entre
as décadas de 1970 e 1980.
É dizer, não havia uma sociedade homogênea na América Latina por oca-
sião da independência dos países latino-americanos de seus Estados centrais
colonizadores. O chamado “povo latino-americano” era constituído de diversas
raças, etnias e culturas. Em uma sociedade heterogênea não havia lugar para
um sistema constitucional homogêneo. O resultado foi a marginalização ou a ex-
ploração desses segmentos sociais durante séculos (como é o caso da escravidão
dos negros que somente foi abolida no Brasil em 1888).
Por outro lado, a exclusão e a marginalização dos povos indígenas originários
do sistema constitucional do Estado deram lugar a que estes protagonizassem re-
beliões e lutas constantes em busca de reconhecimento de seus direitos inclusive a
formar parte da estrutura social, econômica, jurídica e política do Estado com pleno
reconhecimento de seu direito à autodeterminação e à identidade cultural. Essas
ações de reivindicação geraram conflitos sociais e políticos constantes.
Outro fator que contribuiu para gerar crises sociais e políticas na região ao
longo dos séculos foi a desigualdade e a não equitativa distribuição de renda (da
riqueza social) nos Estados latino-americanos. Quase 80% da renda nacional ficou
concentrada nas mãos de poucos, é dizer, com aproximadamente 15% da popula-

124 GARCÍA BELAUNDE, Domingo. Los vaivenes del constitucionalismo LatinoAmericano en las últimas
décadas. In: Derecho constitucional y instituciones políticas, derechos humanos y justicia constitucional.
Ensayos en honor del Prof. Dr. Hernán Salgado Pesantes. Quito, Equador: CEP, 2015, p.65.

104
30 anos da Constituição

ção. Esta desigual distribuição da riqueza social reflete altos índices de pobreza e
consideráveis níveis de indigência. Diversas e majoritárias camadas da população
não têm acesso aos serviços públicos como saúde, educação, saneamento básico,
moradia, seguridade social, que, para agravar a situação, não costumam ser de boa
qualidade. Além disso, sofrem com o desemprego e a instabilidade social.
É dizer, a desigual distribuição de renda e da riqueza social gerou altos
índices de marginalidade, de violência, transformando-se num dos fatores prin-
cipais da crise social e política que afetaram o desenvolvimento do constitucio-
nalismo latino-americano.
Em consequência, durante o século XIX e boa parte do século XX, na
maioria dos países latino-americanos, a democracia vigorou por pouco tem-
po e impediu o desenvolvimento social mais consistente. Em alguns Estados
instalou-se uma democracia formal representativa, que reduziu o papel dos ci-
dadãos a uma atividade passiva de votar a cada período determinado sem uma
maior participação efetiva na tomada de decisões políticas fundamentais, ou a
controlar e fiscalizar os governantes.
Esse quadro só começou a mudar recentemente com o rompimento do ciclo au-
toritário e a restauração dos regimes democráticos, o que só ocorreu no final de 1980.
Com a restauração dos regimes democráticos, paulatinamente os Estados latino-
-americanos conseguiram consolidar a democracia, aprovando novas Constituições
com maiores e melhores instrumentos de participação política, econômica e social.
A maioria dos Estados latino-americanos envolveu-se em processos cons-
tituintes democráticos, iniciando-se pelo Brasil (1988), seguindo-se novas re-
formas na década de 1990, Colômbia (1991), México e Paraguai (1992), Peru
(1993), Equador (1998-2008), Venezuela (1999) e Bolívia (2009).
Fala-se em grandes três ciclos de reformas na região. O primeiro deles
(1982-1988) é denominado de “constitucionalismo multicultural” e tem como
características a abertura das Constituições para a diversidade cultural e o reco-
nhecimento de várias línguas oficiais. São exemplos desse ciclo a Constituição
da Guatemala (1985), que reconhece a configuração multiétnica e multicultural
do país – e a da Nicarágua (1987), que declara a “natureza multiétnica” do povo
e seus direitos culturais, linguísticos e territoriais. Não há, entretanto, maiores
avanços no reconhecimento dos direitos indígenas nem do pluralismo jurídico.

105
30 anos da Constituição

O segundo ciclo (1989-2005) foi fortemente influenciado pela Convenção


169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1989. O documento,
dentre outras providências, positivou a necessidade de consulta prévia aos indí-
genas – e tem como principal característica a introdução de fórmulas de pluralis-
mo jurídico que rompem com a ideia de monismo jurídico e, consequentemente,
passam a reconhecer as tradições, os costumes e as autoridades indígenas. Este
sistema foi uma grande conquista para a população indígena, tanto para reafirmar
seus direitos territoriais, quanto para frear a criminalização de suas lideranças.
Foram determinantes para o desenvolvimento desse segundo ciclo: i) as
lutas indígenas; ii) o desenvolvimento do direito internacional dos povos indí-
genas; iii) a expansão do multiculturalismo e as reformas do Estado e da justiça.
São exemplos desse novo ciclo as Constituições da Colômbia (1991), México e
Paraguai (1992), Peru (1993), Equador (1998) e Venezuela (1999).
Essas Constituições reconheceram às comunidades indígenas os seguintes
direitos: i) constituição de autoridades e instituições próprias e legítimas; ii)
organização jurídica de acordo com suas tradições e costumes; iii) possibilidade
de exercer funções jurisdicionais (jurisdição autônoma). Todos esses reconhe-
cimentos produziram a superação do Estado monista do século XIX, que foi
substituído por uma espécie de pluralismo jurídico interno, ainda que de forma
inorgânica e desorganizada no corpo constitucional.
Por fim, o terceiro ciclo (2006-2009), denominado constitucionalismo
plurinacional, é marcado pelo giro paradigmático na teoria da Constituição,
pois não se caracteriza somente pela ampla positivação dos direitos indígenas,
mas pela internalização do conhecimento e da cosmovisão indígena nesse
processo. É representado pelas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia
(2009), que buscam refundar esses Estados, com base na plurinacionalidade e
no protagonismo indígena.
Essas Constituições têm um claro projeto descolonizador e intercultural, es-
tabelecendo a jurisdição autônoma indígena igualitária com a ordinária e, no caso
boliviano, o Tribunal Constitucional Plurinacional – com representantes paritários
da jurisdição indígena e ordinária – e, na Constituição equatoriana, com igualdade
de gênero, de maneira a garantir a igualdade étnica e de gênero, respectivamente.
Ademais, foram implementadas por esses textos – além da clássica demo-
cracia representativa – novas e diversas formas de participação política, como
a democracia comunitária, os referendos, as consultas e o reconhecimento das

106
30 anos da Constituição

eleições e da autoridade indígena, de acordo com o seu próprio direito e proce-


dimento, que antes era monopólio do Estado125.
Por fim importante sublinhar que os direitos humanos na América Latina
passam a apresentar, como importante característica, uma progressiva aplicação
dos instrumentos internacionais de sua proteção seja nos tribunais nacionais,
seja nos tribunais regionais em um processo de interamericanização do direito
internacional dos direitos humanos.
O constitucionalismo latino-americano iniciou esse processo de abertura ao
direito internacional dos direitos humanos a partir de 1979 por meio de sucessivas
reformas nas constituições de diversos países da região. A Constituição peruana
de 1979 foi a primeira a consagrar tal abertura e diversas outras posteriormente126.
A constitucionalização do direito internacional dos direitos humanos por
meio de princípios e critérios hermenêuticos vem materializando nas consti-
tuições nacionais os princípios pro homine e pro libertatis reconhecidos, por
exemplo, no artigo 29 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, ou ao
menos, sendo utilizados pela jurisprudência nacional.

III) A pedagogia constitucional e os valores orientados


Não é nova a ideia da teoria constitucional como ciência cultural. Pablo
Lucas Verdú127 afirma que a compreensão da Constituição requer referências
obrigatórias à cultura e aos valores. Dessa forma, compreende por fórmula polí-
tica da Constituição “uma expressão ideológica fundada em valores, normativa
e institucionalmente organizada, que descansa em uma estrutura socioeconô-
mica. De acordo com o autor, o direito é um setor da cultura e isso é o que o
separa das ciências da natureza”.

125 BRANDÃO, Pedro. O novo constitucionalismo pluralista latino-americano. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015; ANTONIO RIVERA, José. Constitucionalismo latinoamericano, avances, amenazas y
desafios. In: Derecho constitucional y instituciones políticas, derechos humanos y justicia constitucional.
Ensayos en honor del Prof. Dr. Hernán Salgado Pesantes. Quito, Equador: CEP, 2015.
126 Peru (1979), Guatemala (1985), Nicarágua (1987), Brasil (1988), Chile (1989), Costa Rica (1989),
Colômbia (1991), Paraguai (1992), Argentina (1994), Venezuela (1999), República Dominicana
(2003), Equador (2008), Bolívia (2009), México (2011).
127 LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constituição como ciência cultural. 2.ed. Madrid: Dykinson, 1998.

107
30 anos da Constituição

Em seus valiosos trabalhos, Peter Häberle insistiu no caráter cultural do


direito constitucional e em assinalar a dimensão cultural de toda Constituição.
Isto é, que o direito constitucional como disciplina que estuda o Estado cons-
titucional é uma ciência com “conexões, tanto de história social e das ideias
como histórico-culturais”.
De fato, uma parte de uma concepção geral do direito, e do direito consti-
tucional em particular está integrada nas ciências sociais. As ciências sociais es-
tão em constante modificação incorporando novos elementos. O direito cons-
titucional está inserido nas ciências sociais e Häberle compreende a teoria da
Constituição como “ciência cultural”. Assim, a Constituição do Estado se apoia
sobre a dignidade humana como premissa antropológica-cultural.
Desse modo, cultura e Constituição são termos intimamente conectados
porque o Estado constitucional é uma evolução jurídica de um tipo de Estado
que se caracteriza por estar a serviço da dignidade das pessoas, que precisa de-
senvolver a cultura e a liberdade.
A Constituição estabelece normas de atuação e de decisão destinadas aos
poderes públicos, mas só proporciona diretrizes políticas, não pode nem deve
substituir-se a política.
Nesse sentido, a Constituição é um elemento resultante e determinante da
realidade. Desta forma, a Constituição resulta de uma determinada realidade
política, mas aquela pretende incidir na realidade com olhos para o futuro.
Constituição e sociedade são entidades distintas, mas não absolutamen-
te inseparáveis, estão em constante relação que explica alguns dos limites das
Constituições, por exemplo, se elas são democráticas e se pretendem cumprir
com a função normativa que as define.
A análise do direito constitucional não pode ignorar os limites de seu objeto. A
Constituição não pode desvincular-se da realidade, porque é parte dela. Do mesmo
modo, a Constituição deve estar de acordo com a consciência jurídica geral e com
os conceitos incorporados ao acervo político e cultural de cada povo ou sociedade.
Uma Constituição atual não pode, por exemplo, de maneira alguma incor-
porar a escravidão, a tirania ou a tortura. O poder constituinte não é completa-
mente livre para regular tais situações a não ser para proibi-las.
O poder constituinte deve conduzir a aprovação da Constituição confor-
me os cânones atuais da dignidade humana, como premissa, como nos relata

108
30 anos da Constituição

Peter Häberle128. Caso contrário, o resultado desse processo não aprovaria uma
verdadeira Constituição no sentido contemporâneo.
Desse modo, nas palavras do professor alemão, “A Constituição constitui
o poder e o limita. Não só é um texto jurídico, mas também um contexto cul-
tural. Comentários, textos, instituições e procedimentos simplesmente jurídicos
não chegam a abarcar toda a complexidade da Constituição.
A Constituição não é só um texto jurídico para os juristas e para a sua in-
terpretação. Ela atua essencialmente também como guia para toda a sociedade:
para os cidadãos e os grupos sociais. Não é a Constituição somente uma rede de
regras normativas mas também a expressão de uma situação cultural dinâmica,
meio de representação cultural de um povo, espelho de seu legado cultural e
fundamento de suas esperanças.
As Constituições vivas como obra de todos os intérpretes da Constituição
em uma sociedade aberta, são bem mais, de acordo com sua forma e conteúdo,
expressão e mediação de cultura, marcos para a recepção e reprodução cultural,
assim como o arquivo cultural para as informações, as experiências, as vivências
e o saber popular recebidos. Sua concepção cultural – de vigência encontra-se
em uma maior profundidade”.
Desta forma, as Constituições, tanto como expressão cultural (da cultura
de um povo), contextualizam a sociedade que pretendem orientar, como reci-
procamente esta sociedade é também o contexto onde a Constituição deve ser
aplicada. Quando o Estado constitucional contemporâneo a faz efetiva, desen-
volve e garante a proteção da cultura, o faz a serviço de sua identidade cultural.
Ademais, a cultura se forma segundo variantes coordenadas. Não é unidi-
recional, nem fechada, mas como as constituições, é um espaço aberto, mesmo
que não inteiramente.
A Constituição como uma norma aberta consiste na norma mais aberta do
ordenamento jurídico, talvez porque também integre distintas culturas e tradições
presentes na sociedade a que se dirige. Mas isso não significa que seja uma norma
completamente aberta. Não se pode esquecer que a Constituição tem por intermé-
dio do pacto constituinte um reflexo do momento histórico, por isso se introduz
nela uma certa ideia de mudança do período ou do regime jurídico precedente.

128 HÄBERLE, Peter. Liberdade, igualdade e fraternidade – 1789 como história, atualidade e futuro do
Estado Constitucional. Madrid: Trota, 1998.

109
30 anos da Constituição

A dialética às vezes contraditória, mas necessariamente confluente entre


as prescrições constitucionais e a realidade social e política, deve encontrar um
ponto de equilíbrio dinâmico se não quiser que a Constituição deixe de ser uma
norma suprema para converter-se em um mero documento ideológico encobri-
dor de políticas concretas.
Com razão ensina Chaim Perelman129 que estudou os princípios consti-
tucionais como uma sorte de “sentimento comum do direito”, influenciados
pelo contexto cultural em que se desenvolvem. Esses princípios comuns devem
evitar as margens de arbitrariedade, o que descansa não na verdade, mas na
aceitação generalizada de um “acordo universal”.
A cultura constitucional implica o respeito dos cidadãos pela Constituição
e vai além, requer de seus cidadãos o acatamento vivencial dos seus comandos
o que implica necessariamente no conhecimento da Constituição por todos os
integrantes da sociedade.
Paulo Ferreira da Cunha130, com razão, afirma: “Cultura constitucional
significa também conhecimento da Constituição. Esse é o seu grau mínimo. Era
importante que ela fosse obrigatoriamente ensinada desde cedo131. Estudada
mesma e de forma dinâmica. Porque a Constituição é a resposta jurídica básica,
mais geral e mais consensual aos grandes problemas coletivos. Não resolve os
nossos dramas filosóficos, nem as nossas angústias psicológicas, nem as nossas
questões familiares ou sentimentais. Mas é a resposta coletiva que a nossa socie-
dade deu (e continua a dar – porque em certo sentido a Constituição se atualiza
diariamente) aos seus problemas comuns, ou seja, políticos”.

129 PERELMAN, Chaim. La lógica jurídica. Madrid: Civitas, 1979.


130 CUNHA, Paulo Ferreira da. Cultura constitucional & revisões constitucionais. International
Studies on Law and Education. Coimbra: Universidade do Porto. Disponível em: <www.hottopos.
com>. Acesso em: dez.2017.
131 A esse respeito temos o projeto “Constituição na Escola”, iniciativa de jovens advogados de São
Paulo. O projeto recebeu o prêmio da “Young Leaders of The Americas Init iative”, lançado pelo
então Presidente Barak Obama. (Vide “O Estado de São Paulo, de 3/3 2018, página A 19). O mesmo
grupo desenvolveu o projeto “Olimpíada Constitucional”, uma competição que propõe aos estudantes
do ensino médio elaborar uma redação. Em 2017, 700 alunos participaram- para a segunda edição,
espera-se 10 mil inscritos.

110
30 anos da Constituição

Meirelles Teixeira132 também apresenta a concepção culturalista da Cons-


tituição como a mais exata e preferível ao unilateralismo das concepções jurídi-
cas, sociológicas e políticas.
Nas palavras do autor, trata-se de concepção que verifica “no fenômeno
constitucional e na norma jurídica em geral, algo que é ao mesmo tempo, pro-
duzido pela sociedade, mas que se apresenta capaz também de influir sobre ela,
modificando-a, disciplinando-lhe as forças em luta”.
Parece também intuitivo e lógico que a cultura constitucional de um país não
emerge apenas do texto constitucional, da Constituição, mas vai muito além dele.
Seus intérpretes, em última análise, o interpretam e reinterpretam diariamente. To-
dos os poderes e agentes do Estado são obrigados a seguir os comandos constitucio-
nais, mas para tanto devem interpretá-los, vivenciá-los e compreendê-los.
É natural que o Poder Judiciário tenha um papel especialmente destacado
na interpretação constitucional, sobretudo os Tribunais, Salas ou Cortes Cons-
titucionais que têm por missão dar às vezes a primeira, ou a “última palavra” a
respeito do conteúdo de suas disposições.

IV) A cultura constitucional


A ordem jurídica deve atender aos âmbitos cultural, político, social, eco-
nômico, dentre outros imperativos da sociedade atual; necessita, portanto, a
aceitação coletiva, a qual encontra assento no cumprimento dos conteúdos
postos na própria ordem jurídica, dando-lhe caráter o mais duradouro possível.
A ordem jurídica e a Constituição devem respeitar à realidade histórica
“viva”, um pressuposto para que a Constituição possa cumprir suas finalidades.
Konrad Hesse133 afirma que uma Constituição “quando tenta apegar-se as
às formas historicamente superadas ou quando, pelo contrário, se proponha a
uma utopia, fracassará inevitavelmente ante a realidade”.

132 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. 2.ed. (Org.) Maria Garcia. São Paulo:
Conceito Editorial, 2011.
133 HESSE, Konrad. Conceito e peculiaridade da Constituição. Tradução de Inocêncio Mártires
Coelho. In: Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

111
30 anos da Constituição

Desse modo, quanto mais a Constituição estiver em sintonia com a rea-


lidade e quanto melhor assumir as forças e tendências de cada época, melhor
poderá expor seus efeitos.
A Constituição é expressão de certo grau de desenvolvimento cultural de
um povo e não apenas um conjunto de textos jurídicos ou de um compêndio de
regras normativas.
Nesse sentido, distancia-se de uma visão de mera folha de papel escrita
(Lassalle), e aproxima-se de uma visão de cultura, que expressa, em seus princí-
pios e valores, a identidade social de um povo.
João Paulo Pessoa134, em trabalho de doutorado, destaca que a Constitui-
ção se relaciona com a ideia de cultura sob dois aspectos: A Constituição como
objeto da cultura; e a cultura como objeto da Constituição.
Em termos teóricos, a cultura constitucional pertence à área da sociolo-
gia constitucional, mas, como ocorre classicamente nas relações das matérias
jurídicas com as sociológicas, a sociologia que, no final do percurso, teremos
será uma sociologia axiologizada. E a cultura constitucional pertence, também,
assim, de pleno direito, à filosofia constitucional, especificamente ao domínio
da filosofia prática, e especificamente ética.
Cultura constitucional é, pois, sociologia constitucional e ética constitucional135.
E cultura significa também o conhecimento da Constituição. Somente
pode respeitar o cidadão sua Constituição se a conhece e a vivencia.
Para isso é importante saber como os participantes de determinado país ou
comunidade percebem a própria Constituição, como a avaliam, como a experi-
mentam, se conhecem seus direitos e deveres.
Desse modo, para além dos poderes do Estado, da estatalidade, os indivíduos
e grupos sociais devem conhecer e vivenciar a Constituição para melhor aplicá-la.

134 PESSOA, João Paulo. A promoção da cultura constitucional como obrigação do Estado brasileiro.
São Paulo: PUC-SP, 2017.
135 CUNHA, Paulo Ferreira da. Cultura constitucional & revisões constitucionais. International
Studies on Law and Education. Coimbra: Universidade do Porto. Disponível em: <www.hottopos.
com>. Acesso em: dez. 2017.

112
30 anos da Constituição

V) A cultura constitucional na América Latina –


as pesquisas realizadas no México, na Argentina,
na Costa Rica e no Brasil
O conhecimento da Constituição é fundamental para o efetivo exercício
dos direitos e deveres que nela se contém. Ninguém imagina que uma pessoa
fará uso de algo que não conhece.
É preciso que as pessoas estejam inseridas no processo constitucional. É
preciso que a Constituição faça parte do cotidiano da vida social.
Nesse sentido, Häberle tem razão. É necessário transcender a condição
normal de documento para inserir a Constituição como um processo público
sempre aberto e participativo que influencia diretamente tanto a política quan-
to o direito reduzindo o campo da prevalência de vontade individual para a
concretização da vontade coletiva.
Importantes pesquisas sobre a cultura da Constituição foram realizadas no
México, na Argentina e na Costa Rica. Todas elas objetivando aferir se há ou
não conhecimento da Constituição naqueles respectivos países e, quando existe
esse conhecimento, em qual nível ele se encontra.
No México, a Pesquisa Nacional de Cultura da Constituição, desenvolvida
por especialistas do Instituto de Investigações legais da Universidade Nacional
do México (UNAM) desenvolveu-se em três etapas136.
Realizada em 2003, 2011 e 2016, teve por objetivo gerar informações so-
bre percepções, atitudes e valores sobre a Constituição, como também sobre as
práticas da população em relação aos conceitos de legalidade e justiça. Assim,
possibilitaria a análise da evolução do conhecimento, das opiniões e das percep-
ções dos mexicanos sobre questões constitucionais.

136 DIRECCIÓN geral de comunicación social. Los mexicanos e su Constitución. Tercera Encuesta
Nacional de Cultura Constitucional. Disponível em: <http: dint.unam.mx/blog/index.php/
item/3210-los-mexicanos-y-su-constitucion>. Acesso em: 23 dez. 2017; CANTÚ, Hugo. A. Concha;
FIX-FIERRO, Héctor; FLORES, Julia; VALADÉS, Diego. Cultura de la Constitución en México
– una encuesta nacional de actitudes, percepciones y valores. México: UNAM, 2004; LÓPEZ
AYLLÓN, Sérgio; FIX-FIERRO, Héctor; FLORES, Julia; VALADÉS, Diego. Segunda encuesta
nacional de cultura constitucional: legalidad, legitimidad de las Instituciones e Rediseño del Estado.
Mexico: UNAM, 2012; FIX-FIERRO, Héctor; FLORES, Julia; VALADÉS, Diego. Los mexicanos y
su Constitución. Tercera Encuesta Nacional de Cultura Constitucional. México: UNAM, 2017.

113
30 anos da Constituição

A Primeira Pesquisa Nacional de Cultura da Constituição do México


(2003) procurou principalmente colecionar percepções de desempenho institu-
cional no âmbito da cultura jurídica e da política da sociedade mexicana.
A Segunda Pesquisa de Cultura Constitucional (2011), além de responder
a perguntas da primeira pesquisa, enfocou a legitimidade política das institui-
ções que criam e aplicam leis.
Já a terceira pesquisa (2016) replicou algumas das questões levantadas nos
dois primeiros inquéritos (cadernos de questões) e, ao mesmo tempo, incorporou
novas questões e novas preocupações, ampliando o campo de estudo da cultura
constitucional, como também a exploração de questões surgidas nos últimos anos.
Para realizar a pesquisa, a metodologia valeu-se de uma amostra nacional
composta de 1200 pessoas com idade a partir de 15 anos que vivem no país. Os
entrevistados responderam a alguns questionamentos que possibilitaram aferir
tanto o conhecimento a respeito da Constituição Mexicana, como também pro-
piciou inferir o mecanismo que tornou a Constituição conhecida.
A metodologia da pesquisa para este estudo envolveu ainda o uso de méto-
dos de análise quantitativa provenientes de diversas disciplinas, como estatísti-
ca, sociologia e psicologia social. Do mesmo modo, utilizou-se uma combinação
de diferentes técnicas, como pesquisas probabilísticas para colecionar percep-
ções e atitudes em relação à Constituição e ao design institucional.
A pesquisa mexicana trouxe respostas interessantes para a cultura cons-
titucional:
a. Sobre o conhecimento da Constituição: a maioria dos entrevistados
(52,7%) disse não conhecer o ano em que a Constituição que os governa
foi aprovada. Dos que disseram conhecer (40,7%), pouco mais de sete
em dez (74,7%) responderam corretamente, que foi aprovada em 1917.
b. Os entrevistados foram convidados a apontar o movimento histórico
que se deveu à criação da Constituição atual. A maioria dos entrevista-
dos não conseguiu relacioná-lo com a Revolução Mexicana. Apenas 24%
responderam corretamente.
c. Pouco mais de um terço (34,9%) mencionou a independência do México
e 11,4% referiram-se à Guerra das Reformas. A quarta parte dos entre-
vistados (25,1%) não sabia ou não respondeu a à pergunta.

114
30 anos da Constituição

Um dado relevante. Somente 4% da população mexicana conhece a sua


Constituição. Em outra pesquisa, um pouco mais de oito em cada dez entrevis-
tados apontaram que a Constituição é cumprida pouco ou nada.
Na Argentina, realizou-se em 2005 a primeira pesquisa de cultura consti-
tucional denominada “Encuesta de Cultura Constitucional”, desenvolvida pela
Associação Argentina de Direito Constitucional e IDEA Internacional, publi-
cada pela UNAM e organizada pelos especialistas Antonio María Hernández,
Daniel Zovatto e Manuel Mora Araujo137.
Os resultados apontam como positiva e alta a avaliação que a maioria dos
entrevistados tem sobre a Constituição e o fato de que o respeito pela lei apare-
ce como a conquista mais desejada para a sociedade argentina.
Entretanto, o ocorrido no México se repete na Argentina. Há baixo grau
de conhecimento da Constituição, além de muito desrespeito pela legalidade.
Da população entrevistada, 86% das pessoas consideram que a Argen-
tina138 vive a maior parte do tempo fora da lei, enquanto que para 88% dos
entrevistados os argentinos são desobedientes e transgressores – embora a
maioria não se coloque nessa categoria.

137 MARÍA HERNÁNDEZ, Antonio; ZOVATTO, Daniel; ARAÚJO, Manuel Mora. Encuesta de
cultura constitucional. Argentina: una sociedad anómica. México: UNAM, AADC e IDEA,
2005; MARÍA HERNÁNDEZ, Antonio; ZOVATTO, Daniel; ARAÚJO, Manuel Mora; FRAGA,
Rosenda; FIDANZA, Eduardo. Encuesta de cultura constitucional. Argentina: una sociedad
anómica. México: Eudeba, 2016.
138 MARÍA HERNÁNDEZ, Antonio. Cumplir el programa constitucional. Buenos Aires: IML, 2012,
p.182 e seguintes ao comentar a pesquisa feita em seu país sobre a cultura constitucional e a ampla
percentagem da população da Argentina (85%) que percebe o seu descumprimento, apresenta dez
propostas para enfrentar esse problema. Em síntese: a) fortalecer o Congresso e seu papel legislativo
e fiscalizador; b) garantir a independência judicial e dos grupos de pressão visando a reforma do
Judiciário; c) impulsionar e aprofundar a educação cívica e democrática através do processo
educacional; d) criar comissões mistas nas câmaras do congresso para controlar o cumprimento das
leis no país; e) assegurar o direito ao acesso à informação para um governo mais transparente e
uma sociedade mais participativa e informada; f) avançar na reforma política reformando o sistema
eleitoral, a democratização do país, a modernização e fortalecimento dos partidos políticos; g)
fortalecer a liberdade de imprensa, de expressão e de comunicação social, com campanhas sobre a
importância da Constituição, das leis e das Instituições; h) criar um Centro da Constituição Nacional
para conservação, difusão e estudo da Constituição, como existe nos EUA; i) exigir conhecimentos
da Constituição nos exames para empregos e cargos públicos bem como para a outorga da cidadania
argentina; j) modificar os currículos (grades) das faculdades de direito para incluir o ensino do Direito
Constitucional, Público Provincial e Municipal importantes no federalismo argentino.

115
30 anos da Constituição

Por fim, na Costa Rica139, a pesquisa realizada pela IDEA International, a


Fundação Arias para a Paz e o Instituto Jurídico de Pesquisa da UNAM, com
base em uma pesquisa de atitudes, percepções e valores sobre a legalidade e
os valores de coexistência social da Costa Rica, evidencia uma sociedade com
um alto grau de apego à democracia e grande demanda de legalidade, que, no
entanto, conhece e não cumpre sua Constituição, se qualifica propensa à trans-
gressão, e tem pouca credibilidade nas instituições.
O estudo revelou ainda um grau aceitável de conhecimento das principais
instituições do sistema político. Quanto à validade e ao respeito dos direitos
individuais, os costarriquenhos percebem que o país tem direitos amplos e que,
em geral, estes são respeitados.
Da mesma forma, com uma compreensão clara da convivência de viver de
acordo com a legalidade, as principais aspirações dos costarriquenses são viver
juntos em uma sociedade onde a lei é cumprida e tratar todos igualmente.
Em relação ao conhecimento da Constituição, o resultado é o seguinte:
apenas 2% da população afirmam saber muito, 9% o suficiente, e os 88% restan-
tes dizem que sabem pouco ou quase nada sobre a Constituição da Costa Rica.
O resultado mostra que 71% dos estudantes universitários do país são ig-
norantes quanto à Constituição, uma cifra que aumenta para 90% na popula-
ção com estudos secundários.
No caso mexicano, a Constituição está completando seu centenário (1917-
2017). Há uma tendência crescente entre os entrevistados para considerar que
a Constituição já não responde às necessidades do país.
Os mexicanos entrevistados demonstraram maior conhecimento da Cons-
tituição e seu conteúdo, reiterando a ideia de que a cultura constitucional está
em fase de consolidação.
Na Costa Rica, 88% da população conhece a Constituição, mas se estabele-
ce um paradoxo, pois, muito embora os entrevistados afirmem conhecê-la e con-
siderá-la muito importante, apenas 2% afirmam saber muito sobre a Constituição,
9% o suficiente e os 88% restantes dizem saber pouco ou nada sobre o texto.

139 CORDERO, Luis; HERNÁNDEZ, Rubén; MORALES, Carla; ZOVATTO, Daniel. Cultura
de la Constitución en Costa Rica – una encuesta nacional de actitudes, percepciones y valores.
International IDEA, 2009. Disponível em: <www.idea.int/publications/catalogue/cultura-de-la-
constituci%C3%B3n-en-costa-rica-una-encuesta-naiconal-de-actitudes>. Acesso em: 23 dez. 2017.

116
30 anos da Constituição

No Brasil, poucas pesquisas foram realizadas com o objetivo de estudar a


cultura constitucional. Encontramos três delas. Uma realizada pelo Instituto
LatinoBarômetro (2005); outra pelo Senado Federal (Data Senado 2013) e, a
terceira, mais restrita, solicitada pela Associação Brasileira de Constituciona-
listas Democratas (ABCD), Seção Brasileira do Instituto Ibero-Americano de
Direito Constitucional140 junto ao IBOPE (2017), tomando como parâmetro as
pesquisas do México e da Costa Rica.
O conhecimento dos brasileiros a respeito da Constituição foi medido em
2005 pelo IBOPE por encomenda do LatinoBarômetro. Indagou-se aos 1.200
entrevistados quanto cada um considerava conhecer a Constituição brasileira.
Tendo por opções as respostas “muito”, “algo”, “pouco” e “nada”, apenas 25%
dos brasileiros entrevistados responderam “muito” ou “algo”.
Vê-se que o baixo conhecimento da Constituição está longe de ser um
problema apenas brasileiro. A partir das pesquisas realizadas em outros países
da América-Latina, constatou-se que o conhecimento dos latino-americanos
sobre a Constituição é baixo: somente 30% afirmou conhecer muito ou algo a
respeito da Constituição de seu país, enquanto 67% dos entrevistados disseram
conhecer pouco ou nada dela141.
As percepções sobre o cumprimento da Constituição na América Latina são
pessimistas conforme assinalaram Concha, Fix-Fierro, Flores e Valadés142. Os cida-
dãos percebem um distanciamento claro entre a norma e sua aplicação na realida-
de. Daí surge uma perda de confiança nas instituições, nos atores políticos e sociais,
além de, algumas vezes, dar ensejo (pretexto) à violação da norma143.
De acordo com o Instituto Latinobarômetro, os países onde há mais conheci-
mento da Constituição são Argentina, com 46%, seguido do Uruguai e do México,
com 45% cada um. Já os países com menor nível de conhecimento da Constituição
são Honduras, Paraguai, El Salvador, Nicarágua e Guatemala, com menos de 20%.

140 Que temos a honra de presidir.


141 LATINOBARÓMETRO. Opinión pública lationoamericana. Disponível em: <www.latinobarometro.
org>. Acesso em: 23 dez. 2017.
142 CANTÚ, Hugo. A. Concha; FIX-FIERRO, Héctor; FLORES, Julia; VALADÉS, Diego. Cultura de
la Constitución en México – una encuesta nacional de actitudes, percepciones y valores. México:
UNAM, 2004, p.56.
143 Na pesquisa realizada no México, a maioria dos entrevistados (68,1%), quase sete em cada dez pessoas, considerou
que a Constituição se cumpre pouco, para 19,3% não se cumpre nada e somente para 5,2% se cumpre muito.

117
30 anos da Constituição

A Venezuela, onde ocorreu uma Assembleia Constituinte em 1999, está


entre os países que mais manifesta conhecimento de sua Constituição. São cer-
ca de 44% das pessoas se manifestando desta forma. Também o Equador, onde
houve recentemente uma Constituinte (2000), apenas 24% da população ma-
nifestou conhecimento da Constituição.
Apesar de ter havido uma reforma constitucional no Chile em 2005, ape-
nas 31% da população declara conhecer ao menos algo da Constituição.
Curiosamente, ao considerar a média latino-americana, a pesquisa consta-
tou que, apesar de haver um estado de baixo conhecimento da Constituição, há
uma maioria de (59% da população) opinando que esta se cumpre pouco ou nada.
De acordo com o Latinobarômetro, considerando que apenas 13% das
pessoas não responderam à pergunta sobre o nível de cumprimento da Consti-
tuição, demonstra-se que uma quantidade considerável de habitantes da região
julga a Constituição em total desconhecimento dela.
No Brasil, ao comemorar os 25 anos da Constituição brasileira de 1988,
o Senado Federal realizou, em 2013, uma pesquisa com o intuito de verificar o
pensamento dos brasileiros sobre sua Constituição.
Foram entrevistadas aleatoriamente em todo país, 811 pessoas distribuídas
por todas as unidades da federação.
Segundo a pesquisa, quase 8% dos entrevistados não possuem qualquer
conhecimento sobre a Constituição, enquanto 35,1% disseram pouco conhecê-
-la. Verificou-se ainda que a declaração de “nenhum conhecimento” é mais
comum entre os jovens de 16 a 19 anos”.
“Os resultados da pesquisa demonstraram que direitos, deveres e normas
constitucionais precisam de mais divulgação entre os brasileiros. Isso porque
pouco mais da metade dos entrevistados (50,8%) avalia ter conhecimento mé-
dio da Constituição, outros 35,1% disseram ter baixo conhecimento, enquanto
7,8% julgam não ter conhecimento algum. Apenas 5,3% dos participantes de-
clararam possuir elevado conhecimento do texto constitucional”.
Por fim, na terceira pesquisa realizada pelo IBOPE a pedido da ABCD,
foram entrevistadas 2002 pessoas em 142 diferentes municípios brasileiros.
Em relação ao conhecimento da Constituição: 35% dos entrevistados res-
pondeu responderam nada conhecer sobre a Constituição, e 41% sabem pouco.

118
30 anos da Constituição

Com 30 anos de vigência a da Constituição de 1988, apenas 13% da po-


pulação entrevistada conhece a Constituição; e acredita que ela é cumprida.
Apenas 4 em cada 10 brasileiros conhecem um pouco a Constituição.
Apesar da maioria não saber definir Constituição Federal, dois terços dos en-
trevistados reconhecem a sua importância.
A maioria dos brasileiros tem a percepção de que a Constituição é pouco
ou nada cumprida e forma sua opinião influenciada pela mídia televisiva.
Em qualquer país, e na América Latina não é diferente, quando a Consti-
tuição deixa de ser respeitada e perde sua autoridade, os limites constitucionais
para a ação dos governantes se fragilizam e o governo passa a agir arbitraria-
mente. A corrupção logo se instala, com grande risco de chegar-se à ditadura.

VI) As causas da erosão da consciência constitucional


De acordo com o filósofo Karl Loewenstein144, a erosão da consciência consti-
tucional deve-se a várias causas. A Constituição escrita teria sofrido uma importante
desvalorização funcional e uma perda de prestígio devido a dois grandes problemas.
O primeiro deles é a inobservância consciente da Constituição pelos detento-
res do poder. Não se trata de divergência de interpretação, mas de uma negativa de
aplicação a fim de que a Constituição permaneça como letra morta ou lex imperfeita.
O segundo problema é a alarmante indiferença dos destinatários do poder
em relação à Constituição, atitude psicológica que, segundo o autor, pode con-
duzir a uma atrofia da consciência constitucional.
Afirma:
“La triste verdad es que la constitución se ha distanciado emocional e in-
telectualmente de los destinatarios del poder. Para “el hombre de la calle”
la constitución significa muy poco. Solamente una fracción microscópica
de la población en todos los países está lo suficientemente interesada para
leerla, por no hablar de aquellos que la pueden realmente asimilar.
El derecho constitucional se ha convertido para el lego en una ciencia
oculta; su conocimiento está reservado a una minoría de juristas profe-
sionales en la práctica y en la burocracia gubernamental. Y esto no puede

144 LOWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constituición. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1979.

119
30 anos da Constituição

ser de otra manera. Las constituciones son cada vez más complicadas.
Las decisiones políticas conformadoras son dominio de los políticos; para
su ejecución están llamados tan sólo los técnicos constitucionales y espe-
cialistas. La masa de la población ha perdido su interés en constitución,
y ésta, por tanto, su valor afectivo para el Pueblo. Esto es un hecho in-
discutible y alarmante. Los documentos constitucionales, bien pensados
y articulados, fueron considerados en la época de su primera aparición
como la llave mágica para la ordenación feliz de una sociedad estatal. Hoy,
manipulada por los políticos profesionales, la constitución ha cesado de
ser una realidad viva para la masa de los destinatarios del poder”.

Para Loewenstein, há graus diferentes de apego e de indiferença de um


povo à sua Constituição. Para ele, o fator tempo é algo importante , pois é
durante o período de sua vigência que o povo aprenderá a viver com suas van-
tagens e desvantagens. Em suas palavras: “Apenas pelo fato de estar em vigor
um longo tempo uma Constituição exerce uma poderosa influência educativa”.
Ressalta também que a forma de adaptação da Constituição às transfor-
mações sociais refletirá na consciência constitucional do povo. Para o autor,
“frequentes emendas podem chegar a produzir o estado de indiferença”.
Não analisaremos neste artigo outros fatores que impactam as Constitui-
ções por fugir aos objetivos propostos. Apenas registramos que as Constituições
supranacionalizaram-se ou internacionalizaram-se a partir do momento em que
os Estados se integraram a comunidades políticas supranacionais ou a sistemas
políticos internacionais globalmente considerados.
Nesse sentido, os problemas do Estado e da Constituição só lograrão reco-
nhecimento jurídico e político se integrados no direito constitucional interna-
cional. A globalização inaugura a era da independência, uma era marcada pelo
pluralismo normativo145.

145 Cada vez mais, problemas de direitos humanos ou fundamentais e de controle e limitação do
poder tornam-se concomitantemente relevantes para mais de uma ordem jurídica, muitas vezes
não estatais, que são chamadas ou instadas a oferecer respostas para a sua solução. Isto implica
uma relação transversal entre ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns. É
preciso compreender que as sociedades atuais são complexas, plurais, diversas, e essa diversidade e
complexidade se projeta em seus ordenamentos jurídicos. Neste cenário é natural que a Constituição
seja incapaz de conter em suas normas toda a complexidade social e toda a dinâmica que o Estado deve
operar, em face da sociedade cada dia mais exigente e integrada na esfera internacional. Ademais,
em decorrência dessa profunda metamorfose experimentada pelo universo jurídico evidencia-se a
cada dia a interdependência entre os ordenamentos jurídicos nacionais e o direito internacional, em

120
30 anos da Constituição

VII) O ensino e a divulgação do direito


constitucional na América Latina
A cidadania e o desenvolvimento democrático têm como um de seus fato-
res-chave a educação. É preciso transmitir valores e competências aos indivídu-
os para agirem como cidadãos em suas vidas.
A educação é um ‘santo remédio’ para o combate de várias doenças so-
ciais, inclusive a corrupção. Veja-se o caso de Cingapura, país que saiu de altos
níveis de pobreza e se transformou num dos países de maior desenvolvimento
econômico e social do mundo. O mesmo pode-se dizer da Coréia do Sul, que em
20 anos, utilizando os métodos de ensino do grande educador brasileiro Anísio
Teixeira (primeira metade do século XX), se transformou pela educação inten-
siva de sua população de camponeses em uma potência tecnológica e social de
primeira grandeza. E, por último, recorde-se a Geórgia, um dos países mais cor-
ruptos do mundo, atualmente entre os que superaram sua corrupção sistêmica.
Em dois estudos sobre a democracia na região realizados pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, e pelo PNUD em con-
junto com a Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2010, verificou-se
que o grande desafio democrático contemporâneo da América Latina é dar o passo
de uma democracia de eleitores para uma democracia de cidadania civil e social.
A escola e a família são instituições fundamentais nesse processo146. É
evidente que o ensino e a divulgação do direito constitucional é são parte desse
amplo e complexo processo de aprendizagem.
Nas Constituições latino-americanas é possível observar uma tendência
a regular o direito à educação de maneira extensa e prolixa; usualmente ele é
inserido num título ou capítulo dedicado aos direitos sociais, mas as às vezes
de maneira específica. Existem também alguns textos que fazem referência à
educação de forma muito tímida147.

especial no campo dos direitos humanos, onde devido à crescente interação entre juízes nacionais e
internacionais, tornou-se possível a identificação não apenas de sistemas nacionais ou internacionais
de proteção, mas também de modelos multiníveis de tutela (de proteção), cujo êxito está condicionado
à articulação entre o direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos.
146 IBE. Unesco International Bureau of Education. Educación ciudadana en América Latina –
prioridades de los currículos escolares. Geneva, Switzerland, jun. 2014.
147 CARMONA VALENCIA, Salvador. Derecho, autonomia y educación superior. México: UNAM, 2003.

121
30 anos da Constituição

O ensino ou a aprendizagem do direito constitucional na América Latina é uma


preocupação antiga. A Constituição de Cádiz de 1812, em seu artigo 368, assim dispõe:
“El plan general de enseñanza será uniforme en todo el reino, debíendose
explicar la Constitución..... en todas las universidades.”
Algumas Constituições da América Latina148 têm essa preocupação:
1. A Constituição da Venezuela menciona que a educação e o trabalho são
os processos fundamentais para se alcançar a defesa e o desenvolvimento
da pessoa e o respeito à sua dignidade, a garantia do cumprimento dos
princípios, direitos e deveres reconhecidos e consagrados na Constituição;
2. A Constituição do Paraguai menciona que toda pessoa tem direito a à
educação integral e permanente. Seus fins, entre outros, são o desenvolvi-
mento pleno da personalidade humana e o respeito aos direitos humanos;
3. A Constituição do México assinala que a educação oferecida pelo Estado
fomentará o respeito aos direitos humanos e a solidariedade internacional;
4. A Constituição do Equador menciona que a educação se centrará no
ser humano, entre outros. Assegura que a educação é indispensável ao
conhecimento, ao exercício dos direitos e a à construção do país;
5. A Constituição da Bolívia afirma que a educação fomentará o civismo e
a vigência plena dos direitos humanos. Ressalta que são deveres conhe-
cer, cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis, e conhecer, respei-
tar e promover os direitos reconhecidos na Constituição;
6. A Constituição da Guatemala menciona que a educação tem como fim
primordial, entre outros, o desenvolvimento integral da pessoa , o co-
nhecimento da realidade e da cultura nacional e universal, e que é de
interesse nacional a educação, a instrução, a formação social e o ensino
sistemático da Constituição e dos direitos humanos;
7. Ademais, em um artigo transitório (disposições transitórias) menciona
que são direitos e deveres dos guatemaltecos, cumprir e observar para
que se cumpra a Constituição e as leis, e que a Constituição será divul-
gada em diversas línguas após um ano de sua vigência.

148 PEDROZA DE LA LlAVE, Susana Thalía. Los derechos humanos en América Latina. In: (Coords.)
GONZÁLEZ PÉREZ, Luis Raúl; VALADÉS, Diego. El constitucionalismo contemporâneo –
hmenaje a Jorge Carpizo. México: UNAM, 2013.

122
30 anos da Constituição

8. A Constituição do Peru assinala que a formação ética e cívica e o ensino


da Constituição e dos direitos humanos são obrigatórios em todo o processo
educativo civil ou militar; que os meios de comunicação social devem cola-
borar com o Estado na educação e na formação moral e cultural, e que todos
os peruanos têm o dever de respeitar, cumprir e defender a Constituição.
9. A Constituição da Colômbia determina em seu artigo 41 que em todas as
instituições de educação, oficiais ou privadas, serão obrigatórios o estudo da
Constituição e da instrução cívica; que se fomentará práticas democráticas
para a aprendizagem dos princípios e dos valores da participação cidadã; que
o Estado divulgará a Constituição, além de estabelecer claros e importantes
fins e objetivos da educação e formação das pessoas naquele país 149.
10. A Constituição brasileira em seu artigo 205150 assegura que a educação
é direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-
volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
11. Do mesmo modo, a Constituição brasileira, em seu artigo 64 das Dis-
posições Transitórias, dispõe: “A Imprensa Nacional e demais gráficas
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da Admi-
nistração Direta ou Indireta, inclusive fundações instituídas e manti-
das pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da
Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos
sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representati-
vas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro
possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”151.

149 Seu artigo 7º afirma: “El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación
colombiana”. O artigo 68, inciso 5º establece: “los integrantes de los grupos étnicos tienen derecho
a una formación que respete y desarrolle su identidad cultural”. Já o artigo 55: “se entende por
educación para grupos étnicos la que se oferece a grupos o comunidades que integran la nacionalidad
y que poseen una cultura, una lengua, unas tradiciones y unos fueros propios y autócnos”.
150 Artigos 205 a 214 tratam da educação; artigos 215 e 216, da cultura.
151 Do mesmo modo, verifica-se um amplo programa de ensino (educação e cultura) em direitos humanos.
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos. PNDH 3 no Brasil. Decreto n.7.037, de 21 de
dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/programas/
programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-3>. Acesso em: 23 dez. 2017.

123
30 anos da Constituição

A ideia geral com essas normas constitucionais era popularizar a Constituição


desses países e cultivar o que os europeus chamam de “patriotismo constitucional”.
Além disso, divulgar, ensinar o direito constitucional às crianças, aos
jovens, aos servidores, enfim, a todo o povo latino-americano a fim de que o
Estado Constitucional fosse um conhecido do povo.
Lamentavelmente isso não ocorreu como previsto nessas normas. Eviden-
temente a formação da cidadania é um processo, mas é preciso energia e dispo-
sição do Estado e da sociedade para divulgar e cultivar o projeto constitucional,
os princípios, direitos e deveres da pessoa. É um projeto contínuo e progressivo
e requer mobilização social e do Estado.
Conforme revelaram as pesquisas comentadas no presente artigo, há um
déficit de popularização da Constituição na América Latina, como também
e, principalmente, pouco conhecimento do povo acerca de seu conteúdo. Isso
dificulta popularizar e formar uma cultura constitucional na região, o que de
resto ocorre com todo o processo educacional.
De fato, a ausência de consciência sobre os seus direitos e os instrumentos
de fiscalização e de participação permitem que o povo fique de certo modo
anestesiado politicamente.
A primeira forma de defesa dos direitos consiste no seu conhecimento.
Só quem tem consciência dos seus direitos consegue usufruir os bens a que eles
correspondem e sabe avaliar as desvantagens e os prejuízos sofridos quando os
pode exercer ou efetivar ou quando eles são violados ou restringidos.
É imperioso ao Estado promover os direitos (inclusive os constitucionais)
de maneira que a democratização do direito seja algo realizável, factível e con-
creto. É preciso aproveitar as vantagens da sociedade de informação e a tecnolo-
gia disponível para divulgar, educar e informar a população sobre seus direitos.

VIII) Pensar a Educação Cidadã


Quando pensamos na cidadania devemos considerar os novos desafios que
se apresentam em nosso continente. Conquanto os países da região possam ser
considerados democracias eleitorais a permitir legitimar o acesso ao poder, os
procedimentos institucionais conservam em boa medida formas autoritárias de

124
30 anos da Constituição

exercício do poder. A pobreza e a carência dos direitos mais básicos afetam essa
realidade e dificultam a formação de uma cidadania mais ativa e participativa.
Não resta a menor dúvida que a população jovem se constitui em um gru-
po chave para a transformação dessa realidade. Os desafios e obstáculos para
o desenvolvimento econômico, a consolidação de uma sociedade intercultural,
a aquisição de novas formas de vinculação próprias de uma sociedade global
estão presentes na maioria dos países de nossa região.
Em países em que temos um número enorme da população entre 15 e 29
anos em situação de pobreza (32%) e indigência (10%), todos são muito vulne-
ráveis. Esse contingente de pessoas, na maioria jovens não consegue estudar ou
trabalhar o que dizer participar da vida política e social de forma mais efetiva.
Nesse quadro desafiador é que devemos pensar de que maneira podemos
incrementar a educação para a cidadania. Enfim o desafio constante é fazer da
cidadania um exercício permanente, com inclusão e coesão social.
O cidadão, definido como membro da comunidade política organizada
tem uma larga tradição na cultura ocidental que remonta à Antiguidade. En-
tretanto, a cidadania concebida como um processo histórico de aquisição de
direitos é uma ideia mais recente (recorde-se da Declaração dos Direitos do
Homem e do cidadão de 1789 aprovada pela Assembleia Nacional Francesa),
em cujo texto se positivaram os direitos e obrigações da cidadania.
O sufrágio, que implica em direito político de eleger mediante o voto, é
um direito central desta cidadania que começa a construir-se somente no final
do século XVIII. A partir do Estado-Nação a formação política é concebida
e estruturada por meio do sufrágio, criando um sistema de direito. É a partir
dessas ideias chave, que os direitos cidadãos e a ideia de uma pertença (ou per-
tencimento) a uma Nação, se formula a noção tradicional de cidadania.
Hoje, quando se fala em cidadania pensamos em novos componentes
que modificam a ideia anterior. Esses novos componentes têm relação com a
transformação nas instituições e com a emergência de novos atores e de novos
espaços de atuação da cidadania.
A educação cidadã é vista como um processo contínuo que ultrapassa o espa-
ço de educação formal (escola) e a família, para também levar em conta os meios
de comunicação de massa (rádio, televisão, imprensa, meios da mídia social, etc).

125
30 anos da Constituição

A cidadania ultrapassa os partidos políticos, o espaço público oficial para


atingir também os diversos meios de comunicação e da tecnologia hoje disponí-
veis e usufruídos pela sociedade.
As redes sociais e a internet, por exemplo, deslocam a cidadania para no-
vos e diferentes espaços. Utilizada sobretudo pelos mais jovens, possibilita a
interação e a participação rápida de vários segmentos sociais, inclusive para o
controle eventual de políticas públicas.
Recorde-se ainda os movimentos e associações sem fins lucrativos, organiza-
ções sociais e ONGs que também influenciam neste complexo cenário educacional.
A população, sobretudo mais jovem em uma sociedade multicultural e glo-
balizada clama por mais espaços de identificação de seus problemas, angústias e
necessidades influindo e alterando o conceito tradicional de cidadania apoiado
em uma perspectiva de identidade nacional.
A escola, amplamente considerada, hoje tem diante de si um enorme de-
safio de encontrar meios e caminhos que atraiam os jovens para uma maior
participação e integração política a partir de seus interesses mais imediatos.
Não há uma fórmula mágica para conseguir uma melhor educação para a cida-
dania, mas é preciso acrescentar ao curriculum formal, um curriculum real que ex-
presse as diversas, inevitáveis e necessárias interpretações do universo cultural global.
Como assinalam María Inés Castro López e Azucena Rodríguez Ousset152:
“Si bien reconocemos, como señala Schemelkes, la presencia de un cambio de
valores a nível internacional que implica la pérdida de los valores anteriores y la
ausencia de nuevos valores o, peor aún, la construcción de nuevos valores más
individualistas, esto no conlleva a una nostálgica respuesta de retorno a anti-
guos valores. Las actuales circunstancias requieren de nuevos marcos axiológi-
cos” (….) “ Así, se programa una semana, o mes, o cierto período, para el valor
honestidad, para justicia o para cualquier otro. Los valores no se generan auto-
máticamente, pero tampoco se transmiten en forma catequista y dogmática”.

152 “Pensar la educación ciudadana em el México de hoy”, Perfiles Educativos, Volume XXXIV, 2012, ISUE-
UNAM. Vide também “Educación y Ciudadania en América Latina: Sugerencias para el Análisis y
Compreensíon”, de Víctor San Martín Ramírez, Revista de Educación, número extraordinário, 2003,
Chile, Universidad Católica del Maule; “Políticas Nacionales sobre Educación para Una Ciudadanía
Democrática en Las Américas” de Jo-Ann Amadeo y Adriana Cepeda, Departamento de Educación
y Cultura- OEA- 2008, Secretaria General de la Organización de los Estados Americanos.

126
30 anos da Constituição

A educação cidadã necessita colocar-se como um processo permanente


que envolva toda a sociedade não somente na perspectiva escolar-curricular,
mas como uma tarefa de formação política e democrática, a realizar por inter-
médio de todos os meios massivos de comunicação e por intermédio do funcio-
namento democrático e transparente das instituições formais e das organiza-
ções e movimentos da sociedade civil.

IX) Conclusões
Já é possível fazer uma síntese das principais ideias, conceitos e problemas
apresentados neste artigo.
O desenvolvimento do constitucionalismo latino-americano foi afetado
por constantes e reiterados conflitos de ordem social e política, originados por
causas diversas, que se constituíram em fatores de instabilidade institucional e
democrática nos Estados da região.
Com o tempo reconhecemos nosso legado hispânico (espanhol e português) e,
portanto, também europeu, além do indígena presente em muitos países da região.
Há, ainda, alguns ingredientes orientais (oriundos da China e do Japão) como o
Brasil e o Peru, frutos da imigração desses povos na América Latina e, também dos
africanos, com forte influência no Brasil e em alguns países do Caribe.
É dizer, não havia uma sociedade homogênea na América Latina por oca-
sião da independência dos países latino-americanos de seus Estados centrais
colonizadores. O chamado “povo latino-americano” era constituído de diversas
raças, etnias e culturas. Em uma sociedade heterogênea não havia lugar para
um sistema constitucional homogêneo. O resultado foi a marginalização ou a ex-
ploração desses segmentos sociais durante séculos (como é o caso da escravidão
dos negros que somente foi abolida no Brasil em 1888).
Outro fator que contribuiu para gerar crises sociais e políticas na região ao
longo dos séculos foi a desigualdade e a não equitativa distribuição de renda (da
riqueza social) nos Estados latino-americanos.
Fala-se em grandes três ciclos de reformas na região. O primeiro deles
(1982-1988) é denominado de “constitucionalismo multicultural” e tem como
características a abertura das Constituições para a diversidade cultural e o re-
conhecimento de várias línguas oficiais.

127
30 anos da Constituição

O segundo ciclo (1989-2005) foi fortemente influenciado pela Convenção


169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1989.
Por fim, o terceiro ciclo (2006-2009), denominado constitucionalismo plu-
rinacional, é marcado pelo giro paradigmático na teoria da Constituição, pois não
se caracteriza somente pela ampla positivação dos direitos indígenas, mas pela
internalização do conhecimento e da cosmovisão indígena nesse processo.
O constitucionalismo latino-americano iniciou esse processo de abertura
ao direito internacional dos direitos humanos em 1979 por meio de sucessivas
reformas nas constituições de diversos países da região. A Constituição peruana
de 1979 foi a primeira a consagrar tal abertura e diversas outras posteriormente.
Desse modo, cultura e Constituição são termos intimamente conectados
porque o Estado constitucional é uma evolução jurídica e constitucional de um
tipo de Estado que se caracteriza por estar a serviço da dignidade das pessoas,
que precisa desenvolver a cultura e a liberdade.
A Constituição não é só um texto jurídico para os juristas e para a sua inter-
pretação. Ela atua essencialmente também como guia à sociedade: aos cidadãos e
aos grupos sociais. Não é a Constituição somente uma rede de regras normativas,
mas também, a expressão de uma situação cultural dinâmica, meio de representação
cultural de um povo, espelho de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças.
Desta forma, as Constituições, tanto como expressão cultural (da cultura
de um povo), contextualizam a sociedade que pretendem orientar, como reci-
procamente esta sociedade é também o contexto onde a Constituição deve ser
aplicada. Quando o Estado constitucional contemporâneo a faz efetiva, desen-
volve e garante a proteção da cultura, o faz a serviço de sua identidade cultural.
A cultura constitucional implica o respeito dos cidadãos pela Constituição e vai
além, requer de seus cidadãos o acatamento vivencial dos seus comandos o que implica
necessariamente no conhecimento da Constituição por todos os integrantes da sociedade.
Parece também intuitivo e lógico que a cultura constitucional de um país não
emerge apenas do texto constitucional, da Constituição, mas vai muito além dele.
Seus intérpretes, em última análise, o interpretam e reinterpretam diariamente. To-
dos os poderes e agentes do Estado são obrigados a seguir os comandos constitucio-
nais, mas para tanto, devem interpretá-los, vivenciá-los e compreendê-los.

128
30 anos da Constituição

Desse modo, quanto mais a Constituição estiver em sintonia com a rea-


lidade e quanto melhor assumir as forças e tendências de cada época, melhor
poderá expor seus efeitos.
Cultura constitucional significa também conhecer a Constituição. O cida-
dão somente pode respeitar sua Constituição se a conhece e vivencia.
Conhecer a Constituição é fundamental para o efetivo exercício dos di-
reitos e deveres que nela se contém. Ninguém imagina que uma pessoa usará
algo que não conhece.
Há baixo grau de conhecimento da Constituição, e muito desrespeito pela
legalidade nos países da América Latina. Nas pesquisas realizadas em vários países
da região, somente 30% disseram conhecer muito ou algo a da Constituição de seu
país, enquanto 67% dos entrevistados afirmaram conhecer pouco ou nada sobre ela.
Com 30 anos de vigência, a Constituição brasileira de 1988, é apenas co-
nhecida por 13% da população entrevistada; o mesmo percentual acredita que
a Constituição é cumprida.
Há um déficit de popularização da Constituição na América Latina, além
de pouco conhecimento do povo acerca de seu conteúdo. Isso dificulta popula-
rizar e formar uma cultura constitucional na região, o que de resto ocorre com
todo o processo educacional.
Os problemas do Estado e da Constituição só lograrão reconhecimento jurí-
dico e político se integrados no direito constitucional internacional. A globalização
inaugura a era da independência, uma era marcada pelo pluralismo normativo.
A educação é um ‘santo remédio’ para o combate de várias doenças so-
ciais, inclusive a corrupção. Em dois estudos sobre a democracia na região reali-
zados pelo PNUD em 2004, e a OEA em 2010, verificou-se que o grande desafio
democrático contemporâneo da América Latina é saltar de uma democracia de
eleitores para uma democracia de cidadania civil e social.

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132
A Dificuldade em Ser Contramajoritário: Três
Décadas de Jurisdição Constitucional Oscilante

Glauco Salomão Leite


Professor de Direito Constitucional da
Graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade
Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor
de Direito Constitucional da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade de
Pernambuco (UPE). Membro do grupo de pesquisa
REC -Recife Estudos Constitucionais (REC/
CNPq). E-mail: [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Olhando o novo com as lentes do passado: o


paradigma do Estado Constitucional e seus reflexos no papel dos Tribunais; 2.
Autoritarismo e independência judicial: o Poder Judiciário como o “mais fraco”
dos três poderes; 3. Constitucionalismo progressista e passividade judicial: ex-
pectativas e frustrações pós-88; 4. O movimento juristocrático do STF e seu pa-
pel contramajoritário.; 5. Desafios para a jurisdição contarmajoritária no Brasil:
provincianismo, punitivismo e austeridade; 5.1 Provincianismo constitucional;
5.2 Punitivismo e opinião pública; Reformas neoliberais e desmembramento
constitucional; 6. Conclusões: um Poder Judiciário iluminista? 6. Referências

Introdução
Em outubro de 2017, diversos juízes trabalhistas, advogados e membros do
Ministério Público do Trabalho reuniram-se em um seminário para discutir a po-
lêmica Reforma Trabalhista. Teses que apontavam aspectos ilegítimos da Reforma
contaram com considerável respaldo dos participantes, o que preocupou alguns se-
tores tendo em vista que tais juízes seriam os responsáveis pela aplicação da nova
lei. Como a existência do controle difuso-incidental torna cada membro do Poder

133
30 anos da Constituição

Judiciário um juiz constitucional, esse episódio foi visto como uma potencial e inu-
sitada reação em cadeia contra a Reforma Trabalhista. Afinal, estava-se diante de
uma “desobediência judicial” à Reforma Trabalhista? Tal atitude não ofenderia os
pilares de uma democracia, subvertendo-a no tão temido “governo dos juízes”?
Essa situação nos remete ao conhecido debate em torno da adequação da
jurisdição constitucional com o regime democrático, o que, no limite, diz res-
peito à relação entre constitucionalismo e democracia. A teoria constitucional
o enfrenta há muito tempo e vem discutindo a chamada “dificuldade contrama-
joritária” do controle de constitucionalidade. No Brasil, em um cenário marca-
do por severas críticas a ativismos judiciais excessivos, sobretudo no âmbito do
STF, a atuação articulada dos magistrados trabalhistas parece ter elevado o tom
da juristocracia, suscitando questionamentos sobre a legitimidade democrática
do Poder Judiciário em interferir nas escolhas políticas do legislador democráti-
co. O presente texto cuida exatamente desta problemática, tendo como objetivo
lançar algumas reflexões sobre a trajetória da jurisdição constitucional brasi-
leira ao longo dos trinta anos de vigência da Constituição-Cidadã, com ênfase
para a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é deslocar a dis-
cussão centrada na dificuldade contramajoritária, que insiste na ilegitimidade
da judicial review, para a dificuldade em ser contramajoritário, o que aponta para
obstáculos e limites institucionais da função jurisdicional.

1. Olhando o novo com as lentes do passado:


o paradigma do Estado Constitucional e
seus reflexos no papel dos Tribunais
Em diversas democracias contemporâneas, como o Brasil, tem-se verifi-
cado uma substancial modificação do papel que os juízes e Tribunais desempe-
nham na ordem constitucional, situando-os em uma nova posição no espaço
político e na relação com os demais atores institucionais (VALINDER; TATE,
1995). De um segmento técnico, responsável pela aplicação neutra e impar-
cial da lei e distante das disputas políticas, os Tribunais passaram a ser vistos
como instituições políticas que decidem temas cruciais para a sociedade. Esse
novo cenário contrasta com as categorias e representações típicas do paradig-
ma liberal do Estado de Direito, oriundas das revoluções burguesas do final do

134
30 anos da Constituição

século XVIII. De fato, a separação funcional entre direito e política, verificada


com a modernidade, projetou a noção segundo a qual as deliberações sobre
temas controvertidos, dissensos e disputas entre grupos e partidos deveriam se
desenrolar nas instâncias próprias de representação, sobretudo no Parlamento
(LUHMANN, 2002). É no ambiente da política onde as relações entre governo
e oposição, maioria e minoria se estabelecem e se desenrolam.
O direito, por outro lado, lida com uma complexidade reduzida. A legislação
se apresenta como fruto da superação do dissenso político mediante a adoção do
princípio majoritário. Saliente-se, porém, que a formação do Estado de Direito
liberal, especialmente nos casos onde a influência do modelo francês foi mais
intensa, se conecta com a hegemonia política do Poder Legislativo, o que é com-
preensível diante da derrocada do Ancien Régime e da necessidade de submeter os
agentes públicos a rigorosos limites previstos em lei. Como consequência, consolida-se
o primado do direito legislado como a principal, senão única, fonte de direito. Em
tal contexto, ao intérprete judicial compete solucionar os litígios, deduzindo de
preceitos legais abstratos a solução adequada ao caso concreto. Para atender ao
ideal de segurança jurídica, a interpretação deveria se prender a um texto preciso
de lei. E isso garantiria previsibilidade das decisões judiciais e neutralidade diante
da política, valores caros ao liberalismo oitocentista (BOBBIO,1995).
Não obstante, o paradigma do Estado Constitucional que emerge na segun-
da metade do século XX provocou uma reformulação no papel do Estado e de
suas instituições. Em razão dos regimes totalitários do século passado, a ideia de
democracia é revista na medida em que não mais convence o dogma de que os
Parlamentos refletem uma suposta vontade geral rousseuaniana que se traduziria
na infalibilidade das leis. Os direitos de participação política, as eleições periódi-
cas, consultas populares, leis gerais e abstratas não simbolizam mais a garantia
absoluta de proteção dos direitos e liberdades individuais, garantia esta nunca
concretizada, tendo em vista que cada época apresenta a sua própria assimetria
de forças entre os grupos representados ou não representados pela política formal.
Lembra Luigi Ferrajoli que o nazismo e o fascismo se “apropriaram do poder por
intermédio de formas legais e depois o consignaram ´democraticamente´ e tra-
gicamente a um líder que suprimiu a democracia.” (FERRAJOLI, 20014, p.20).
A desconfiança em relação à tradicional representatividade política veio
acompanhada do advento e ascensão da jurisdição constitucional, especialmente
com a criação dos Tribunais Constitucionais: na Alemanha a partir de 1949, na

135
30 anos da Constituição

Itália a partir de 1948, na República de Chipre desde 1960, na Turquia desde


1961, na Iugoslávia a partir de 1963, na Grécia desde 1975, em Portugal desde
1976 e na Espanha desde 1978 (FAVOREU, 1994; ENTERRÍA, 1994). A França,
como se sabe, apresentou forte resistência a essa tendência, limitando-se a atribuir
ao Conselho Constitucional um controle preventivo de constitucionalidade das
leis. No entanto, mesmo tardiamente, o sistema francês introduziu o controle re-
pressivo através da reforma constitucional de 2008, que criou a questão prioritária
de constitucionalidade (question prioritaire de constitutionnalité-QPC).
A ascensão institucional dos Tribunais tem sido uma realidade em vários
países europeus no pós-guerra, bem como na América Latina a partir do mo-
mento em que as ditaduras militares que por muito tempo governaram a região
começaram a se enfraquecer, abrindo o caminho para uma desejável renovação
democrática dos governos e das instituições políticas. Ainda que se verifiquem
distinções entre os modelos adotados nos dois continentes, o denominador co-
mum nesses países é que, com a superação de regimes autoritários, os processos
de redemocratização culminaram na aprovação de novos documentos constitu-
cionais, com ampla constitucionalização de direitos e fortalecimento do sistema
de justiça. As Cortes se tornaram o novo lócus de proteção de direitos, devendo,
em nome de constituições democráticas, impôr freios à vontade do governo e
das maiorias parlamentares, especialmente quando atingirem dirieitos das mi-
norias. Como resultado, testemunhamos o crescente papel político e institu-
cional dos Tribunais nas democracias constitucionais e uma transfência sem
precedentes de poderes decisórios das instâncias representativas para os juízes,
configurando o que Ran Hirschl denominou juristocracia (HIRSCHL, 2004).
O empoderamento das Cortes atraiu o debate acerca de sua legitimidade
democrática e da conhecida crítica quanto à dificuldade contramajoritária (BI-
CKEL, 1962). Afinal, como juízes não eleitos e submetidos a frágeis mecanis-
mos de controle social podem decidir sobre a “mega-política” e polêmicas ques-
tões morais, econômicas e sociais, inclusive invalidando decisões tomadas pela
maioria dos representantes eleitos? Percebe-se, então, que o modelo de Estado
Constitucional ou Estado Democrático de Direito teve na jurisdição constitu-
cional um de seus mais relevantes desdobramentos institucionais. As relações
entre direito e política se tornaram mais complexas e desafiadoras. Desse modo,
os Tribunais Constitucionais passaram a simbolizar o ponto alto das tensões en-
tre constitucionalismo e democracia, exigindo uma nova demarcação de fron-
teiras entre as instituições representativas e a jurisdição constitucional.

136
30 anos da Constituição

Essa mudança de paradigmas, que também repercutiu na doutrina brasi-


leira pós-88 e nas práticas institucionais, está a apontar para uma transformação
constitucional ao longo dos tempos (FIORAVANTI, 2012). Sem essa perspecti-
va, continuamos herdeiros de uma tradição iluminista e codicista que nos faz
enxergar o novo papel dos juízes sempre como uma anomalia.

2. Autoritarismo e independência judicial: o Poder


Judiciário como o “mais fraco” dos três poderes
Não é por acaso que a jurisdição constitucional tem encontrado nos siste-
mas democráticos um ambiente frutífero para a sua maior projeção política. Sob
governos autoritários, a tendência é que juízes se mostrem mais passivos ou se
alienhem politicamente com as forças dominantes. Por isso, é difícil imaginar,
por exemplo, que a magistratura germânica possuísse condições político-insti-
tucionais para exercer seu papel contramajoritário, barrando a ascensão do na-
zismo e a tragédia do holocausto. Mesmo que o nazismo não tenha formalmente
revogado a constituição de Weimar, de 1919, pode-se dizer que ela foi deturpada
e instrumentalizada em nome dos objetivos políticos do regime. Práticas autori-
tárias generalizadas se desenvolveram sob as vestes de uma constituição formal
e, nesse cenário, o Poder Judiciário se mostrou como o “mais fraco” dos poderes.
Algo semelhante pode ser percebido em relação ao Poder Judiciário no Bra-
sil durante os governos de exceção. Com o golpe civil-militar de 1964, teve iní-
cio um longo período de autoritarismo, de centralização de poder, supressão do
pluralismo político-partidário, negação da soberania popular e violação massiva
de direitos fundamentais. Embora não se falasse propriamente em “golpe de Es-
tado” ou “ditadura militar”, preferindo-se o uso retórico da expressão “revolução”,
houve vários episódios de tensão institucional que resultaram em graves ataques
à magistratura, comprometendo sua independência. Em um primeiro momento,
o STF proferiu importantes decisões com considerável impacto político sobre o
governo. Numa delas, cuidava-se de analisar o HC n. 40.910/PE, impetrado por
Sérgio de Cidade Rezende, Professor de Economia da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP). O docente fora preso após ter distribuído a vintes e seis
alunos um manifesto contra a repressão instaurada no país, acusando os militares
de terem gorilarizado a nação. Preso por ter cometido ato de subversão, sua con-
duta foi enquadrada na Lei n. 1.802/53, que definia os crimes contra o Estado e a

137
30 anos da Constituição

Ordem Política e Social. A Corte, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas


corpus com fundamento na liberdade de cátedra (ZAIDAN, 2017, pp. 133 e ss.).
A partir daí, o Tribunal teria que enfrentar delicadas questões do ponto de
vista de uma sua relação não tão equilibrada com o Poder Executivo. Concedeu
inúmeras decisões favoráveis a pessoas submetidas à perseguição política do go-
verno, dentre elas o ex-governador Miguel Arraes (PE), o ex-governador goiano
Mauro Borges, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o jornalista Carlos Hei-
tor Cony, estudantes, sindicalistas e tantos outros que foram vítimas de algum
abuso estatal. Cada habeas corpus concedido passou a ser interpretado como
um acinte pela linha mais radical dos militares. Numa entrevista publicada
em outubro de 1965, o Min. Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, presidente do
STF, teceu severas críticas ao autoritarismo do Poder Executivo, condenando
qualquer ato do Governo que interferisse no âmbito do Poder Judiciário. Essa
declaração foi o acontecimento-impacto que desencadeou um processo com o
fim de perpetrar uma incisiva interferência na estrutura e funcionamento do
STF (COSTA, p. 168). Na sequência, o Presidente Castello Branco decretou
o Ato Institucional n. 2, atingindo em cheio o Poder Judiciário. O AI-2 pre-
via o aumento do número de ministros do STF, do Superior Tribunal Militar
(STM) e do Tribunal Federal de Recursos (TFR). Além disso, recriou a Justiça
Federal de primeira instância, transferindo-lhe a competência, antes da Justiça
Estadual, das causas de interesse da União. No entanto, caberia ao Presiden-
te da República a nomeação dos magistrados federais. Além disso, excluiu da
apreciação judicial os atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução” e
pelo Governo Federal e ampliou a competência da Justiça Militar, permitindo o
julgamento de civis por atos contra a segurança nacional.
Por fim, o Governo logrou aprovar no Congresso Nacional uma reforma
do Poder Judiciário, criando exceções às garantias de independência da ma-
gistratura na medida em que autorizava que juízes fossem removidos e postos
em disponibilidade por “interesse público” (BARBOSA, 2012, pp. 77 e ss.).
Em 1965, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 16, criando a representa-
ção de inconstitucionalidade perante o STF, o que significava a introdução do
controle abstrato de constitucionalidade das leis no país. No entanto, o único
legitimado ativo para propor a ação era o Procurador-Geral da República, cargo
de livre nomeação do Presidente, fazendo deste um braço do governo perante
o STF. O discurso, portanto, de que o controle de constitucionalidade das leis
se volta contra uma “ditadura da maioria” e é orientada para a proteção de

138
30 anos da Constituição

direitos fundamentais das minorias não correspondeu à realidade dos fatos em


nosso país, antes servindo aos propósitos de centralização de poder do Governo
Federal, que buscava, ele próprio, domesticar o Poder Judiciário, neutralizando
qualquer forma de resistência à “revolução”.
Com o AI-5, responsável pelo recrudescimento da ditadura militar, o Poder
Judiciário sofreu novo ataque. Foram aposentados compulsoriamente os Min. Vic-
tor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, vistos como juízes contrá-
rios aos abusos praticados pelo Governo. Sob pressão do então Presidente Costa
e Silva, também aposentaram-se Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada,
presidente e vice-presidente da Corte respectivamente. Além disso, o AI-5 sus-
pendeu a garantia do habeas corpus nos casos de prisões baseadas na manutenção
da ordem e da segurança nacional, permitiu a aposentadoria e demissões de juízes
e autorizou uma série de medidas restritivas de direitos sem autorização judicial.
Numa perspectiva mais abrangente, tais fatos revelam a relação entre in-
dependência judicial e o exercício de poder político. De uma maneira geral,
quando o poder político é exercido em ambientes com homogeneidade, baixa
fragmentação de poder, e, especialmente, quando se identifica algum ator ins-
titucionalmente forte e com capacidade de retaliação, é comum a diminuição
da independência judicial. Cortes dificilmente teriam ferramentas para se con-
trapor às forças políticas dominantes, o que explica uma postura de passividade
judicial ou de conivência nessas situações. Inversamente, na medida em que
há uma maior fragmentação e porosidade no jogo de poder, maior o campo
de atuação judicial, de tal modo que Tribunais podem, de fato, agir como um
“julgador com veto” (veto player) às decisões tomadas pelo Governo e pelo Par-
lamento (TSEBELIS, 2006, p. 285 e ss). Isso ajuda a explicar que nos anos
que antecederam o processo constituinte de 1987 a postura do STF combinava
elementos de altivez episódica, ainda que isso tenha lhe custado caro, com uma
atitude predominantemente complacente com as forças políticas da época.
Após o período de transição “lenta, gradual e segura” até a redemocratiza-
ção, culminando na aprovação da Constituição de 1988, o Poder Judiciário re-
cuperou as garantias básicas de independência funcional e, aos poucos, passou
a ocupar um lugar de destaque no sistema constitucional brasileiro. Percebe-se,
portanto, que independência judicial e ativismo estão relacionados, na medida
em que apenas mediante a satisfação das condições institucionais que asse-
guram independência dos magistrados é que se torna mais viável sua atuação

139
30 anos da Constituição

mais expansiva. Em suma, a independência é condição necessária, embora não


suficiente, para o protagonismo das Cortes (GRIJALVA, 2017, p. 125). E essa
tendência tem sido observada na realidade brasileira.

3. Constitucionalismo progressista e passividade judicial:


expectativas e frustrações pós-88.
Os anos que sucederam à promulgação da CF/88 iriam testemunhar um
complexo processo de empoderamento da jurisdição constitucional. Vários fato-
res contribuíram para este fenômeno. Em primeiro lugar, como próprio das demo-
cracias pós-autoritarismo, a CF/88 trouxe um largo rol de direitos fundamentais
e de instrumentos processuais para garantir a proteção desses direitos. Em seus
contornos, verificou-se a positivação de direitos fundamentais de diversos mati-
zes. Além dos tradicionais direitos individuais e das liberdades públicas, a Consti-
tuição também assegurou inúmeros direitos sociais, econômicos e culturais, bem
como direitos difusos e coletivos. Ao incorporar vários direitos prestacionais e
tantas metas e programas a serem implementadas pelo Estado (assegurar o pleno
emprego, a erradicação da pobreza e das desigualdades regionais e sociais, dentre
outras), assumiu inegavelmente o modelo de constituição dirigente. Esse modelo
corresponde, em linhas gerais, ao movimento denominado constitucionalismo
aspiracional (aspirational constitutionalism), de que são exemplos várias constitui-
ções recentes da América Latina e que se caracterizam pelo extenso catálogo
de direitos fundamentais e por almejarem objetivos sociais bastante ambiciosos,
revelando, com isso, um viés utópico (SCHEPPELE, 2003; VILLEGAS, 2012).
Esse amplo compromisso constitucional com os direitos humanos e fundamentais
pode ser visto como o outro lado da moeda de um passado marcado pela inten-
sa violência estatal e massivas violações de direitos humanos (GARGARELLA,
2017, p. 50). Sob essa ótica, observe-se que a ampla constitucionalização de direi-
tos, de finalidades políticas e de programas sociais aponta para uma considerável
desconfiança em relação às elites políticas, restringindo o leque das possíveis es-
colhas das instituições majoritárias. Ao mesmo tempo, tal fato aumenta o raio de
atuação do Poder Judiciário, já que essas matérias tornam-se potencialmente judi-
cializáveis. Diante de um documento constitucional democrático, compromissório
e pródigo em direitos, estreitamente vinculado à justiça social e igualdade mate-
rial, o discurso jurídico emergente passou a exigir uma maior intervenção judicial.

140
30 anos da Constituição

Considerando que no Brasil as promessas da modernidade nunca foram cumpridas


e o Estado Social, aqui, não passou de um simulacro (STRECK, 2004, p. 84 e ss.),
adveio a proposta de renovação da dogmática jurídica a partir da constituição,
discutindo-se as possibilidades de concretização dos conteúdos constitucionais.
(BARROSO, 1996; CLÉVE, 2012).
Por outro lado, a CF/88 ampliou consideravelmente o controle concentra-
do de constitucionalidade no STF. A primeira prova desse movimento consistiu
no alargamento dos legitimados ativos para a propositura das ações diretas de
inconstitucionalidade (ADI), rompendo o antigo monopólio do Procurador-Ge-
ral da República. Com isso, importantes atores institucionais e sociais (partidos
políticos, Conselho Federal da OAB, Governadores de Estado, entidades de
classe de âmbito nacional, confederações sindicais, etc) passaram a ter a real
possibilidade de canalizar seus pleitos de forma rápida para o STF, sobretudo
aqueles que não são discutidos na arena política.
Ao longo dos anos, outros instrumentos foram criados. Com a EC n
03/1993, foi introduzida a ação declaratória de constitucionalidade, permitindo
à Corte ratificar a validade de leis e atos normativos federais, cuja constitucio-
nalidade suscitava dúvidas em outras esferas do Poder Judiciário. Em 1999, foi
a provada a Lei n. 9882, que regulamentou a arguição de descumprimento de
preceito fundamental, ação que passou a ser utilizada como um instrumento
subsidiário no processo constitucional objetivo. Destaque-se, ainda, que, além
dessas ações, que possibilitam o controle de constitucionalidade de basicamente
qualquer lei ou ato do poder público no país (federal, estadual e municipal) e
que produzem decisões com efeito vinculante e eficácia erga omnes, o sistema
constitucional brasileiro ainda brindou o STF com a ação direta por omissão e o
mandado de injunção, por meio dos quais se fiscaliza a própria inércia e omissão
do legislador. Tais competências estão mais ligadas ao papel do STF como uma
Corte Constitucional, já que são destinadas à própria defesa da ordem consti-
tucional e dos direitos fundamentais. No entanto, o Tribunal também possui
inúmeras outras competências relacionadas à jurisdição ordinária, bem com a
atribuição de agir como última instância recursal, tendo a responsabilidade de
estabilizar a jurisprudência e a interpretação judicial do direito. Nesse contexto,
o Tribunal ainda dispõe da súmula vinculante, introduzida pela Reforma do
Poder Judiciário (EC 45/2004). Fácil observar, desse modo, os vários estímulos à
judicialização da política e dos grandes temas da vida pública nacional.

141
30 anos da Constituição

Sob tais circunstâncias, formava-se uma narrativa que apostava nas po-
tencialidades da jurisdição constitucional para a ampla realização dos direitos
fundamentais e das promessas constitucionais, inclusive para que houvesse uma
maior participação do Poder Judiciário no controle de políticas públicas e go-
vernamentais (COMPARATO, 1998). Apesar do entusiasmo inicial e das ele-
vadas expectativas quanto à postura que deveria ser assumida pelos Tribunais,
especialmente o STF, o que se viu ao longo da década de 90 foi uma atitude de
comedimento e pouca disposição para assumir o papel de um ator político re-
levante. Em certa medida, esse comportamento esteve relacionado a uma forte
tradição formalista que marcou, e ainda marca, a formação dos juristas e, con-
sequentemente, o modo de agir do Poder Judiciário, mais habituado a enfrentar
conflitos de cunho liberal-individual a partir de uma argumentação jurídica
predominantemente lógico-formal (KRELL, 2002, p.72.). Com isso, tem-se uma
ordem constitucional nova e progressista diante de uma magistratura ainda
conservadora e que encontra enormes dificuldades em compreender os impac-
tos de uma constituição transformadora em suas rotinas decisórias.
Essa timidez pode ser observada através de três situações. Em primeiro
lugar, o STF incorporou o dogma do legislador negativo kelseniano, revelando
uma equivocada atitude de autocontenção. Isso acabou comprometendo por
muito tempo sua função no controle da inércia legislativa. De fato, quando pro-
vocado para decidir em sede de mandado de injunção e ação direta por omissão,
mesmo constatando a inércia legislativa, a Corte relutava em suprir a ausência
de norma já que não deveria agir como um legislador positivo (LEITE, 2014).
Essa jurisprudência vigorou por muito tempo e recebeu contundentes críticas
da doutrina, cujo sentimento de frustração pode ser exemplificado no artigo de
Luís Roberto Barroso com o sugestivo título “Mandado de injunção: o que foi
sem nunca ter sido: proposta de reformulação”. (BARROSO, 1997).
O segundo exemplo diz respeito à (má) compreensão das normas que asse-
guram direitos sociais, econômicos e culturais como normas programáticas, com-
preendidas como disposições de eficácia meramente indireta e mediata. Com isso,
por não terem densidade normativa suficiente, tais normas estariam sempre a
exigir uma intermediação legislativa para que, só então, os direitos nela previstos
fossem exercidos. Apenas posteriormente, o STF passou a dizer que a interpreta-
ção de normas programáticas não poderia “transformá-las em promessas consti-
tucionais inconsequentes” (RE 271286, rel. Min. Celso de Mello).

142
30 anos da Constituição

O terceiro exemplo diz respeito ao controle jurisdicional da edição de me-


didas provisórias. Tal instrumento passou a ser utilizado no país quase que como
uma política ordinária dos Governos, interferindo gravemente nas funções do
Poder Legislativo. Em levantamento feito por Friedrich Müller, a frequência de
medidas provisórias durante o mandato do presidente José Sarney foi de 8,4 ao
mês, de 5,07 ao mês durante o Governo Collor e de 11,7 durante o Governo Ita-
mar Franco. Surpreendia o jurista germânico a intensidade com que o presidente
Fernando Henrique Cardoso se valia dessa ferramenta, chegando, em meados de
maio de 1999, a atingir o número de 3000 medidas provisórias, o que significava
2,7 dessas medidas por dia útil desde o início de seu mandato (MÜLLER, 2001,
p.345). Isso causou uma verdadeira deturpação no sistema de divisão de poderes,
de modo que o Poder Executivo arrogou para si o papel de legislador solitário da
República. Sob a perspectiva da Corte, a avaliação dos requisitos de “relevância”
e “urgência” estava envolta a uma discricionariedade do Poder Executivo, sendo,
por tal razão, uma “questão política” insuscetível de controle jurisdicional.
Tais situações revelam um STF que se valia do argumento da separação
dos poderes para não interferir nas esferas do Poder Legislativo e do Poder Exe-
cutivo, mesmo diante de atuações (ou omissões) ilegítimas que justificariam o
controle jurisdicional. Percebe-se, aqui, a opção pela filosofia da autocontenção,
que, no final das contas, apontava para uma omissão judicial e enfraquecimento
de sua função contramajoritária.

4. O Movimento Juristocrático do STF


e seu Papel Contramajoritário
Aos poucos, importantes temas passaram a integrar a pauta do STF, expri-
mindo um movimento em que a reivindicação por direitos também se faz em um
circuito externo ao modelo clássico “sociedade civil-partidos-representação-forma-
ção da vontade geral”, reforçando o contramajoritarismo do Tribunal (VIANNA,
1999, p. 22). No que diz respeito à proteção de direitos individuais e liberdades
públicas, destacam-se as decisões que reforçaram a liberdade de expressão (caso
da “Marcha da Maconha”), a condenação de discursos de ódio (caso “Ellwanger”)
e a possibilidade de publicação de obras biográficas sem a licença prévia da pessoa
biografada (ou de seus familiares), o que caracterizaria censura (ADI n. 4815).

143
30 anos da Constituição

A Corte também teve papel relevante na tutela de direitos fundamentais


de minorais, sendo importante rememorar a decisão que reconheceu a legi-
timidade de interrupção da gravidez de fetos anencefálicos (ADPF n. 54), a
que estendeu o conceito constitucional de união estável para abarcar as uniões
homoafetivas (ADI n. 4277 e ADPF n. 132), a que estabeleceu a demarcação
de terras indígenas (PET n. 3388), a que confirmou a legitimidade da política
quotas nas universidades públicas (RE n. 597285), a que manteve a constitucio-
nalidade da Lei de Cotas (Lei n. 12.990/2014) no serviço público federal (ADC
n. 41) e, mais recentemente, a que assegurou o direito das pessoas transgênero
à mudança de nome e gênero em registro civil sem necessidade de cirurgia de
mudança de sexo ou autorização judicial (ADI 4.275 e RE 670.422).
Vale registrar a posição do Tribunal na controvérsia sobre o ensino religioso
nas escolas públicas (ADI n. 4439). A maioria entendeu que o ensino confessional
não violava a laicidade do Estado desde que a disciplina fosse facultativa aos es-
tudantes. A interpretação adequada com a CF/88 foi sustentada pela minoria do
Tribunal, que bem compreendeu que o ensino confessional, mesmo facultativo,
transmite uma identidade institucional entre a religião escolhida para ser objeto
da disciplina e o próprio Poder Público. Além disso, dificilmente seriam abarcadas
todas as religiosidades nas disciplinas, havendo, aí, um nítido favorecimento das
religiões majoritárias em detrimento de outros cultos e credos.
No campo dos direitos prestacionais, o Tribunal tem abandonado a visão
tradicional de que tais direitos se resumem às normas de cunho programáti-
co, como dito anteriormente. No entanto, mostra-se mais cauteloso quando há
impactos econômicos ou “efeito cascata” decorrente de suas decisões, não raro
utilizando-se o argumento da “reserva do possível” para não assegurar a efeti-
vidade de algum direito prestacional (TORRES, 2008, p. 82). Neste particular,
a jurisprudência da Corte indica que ela se mostra mais vigilante em relação
à violação de direitos e liberdades individuais do que ela relação aos direitos
prestacionais, já que, aparentemente, os primeiros não implicam em gastos para
o Poder Público ou, pelo menos, não na mesma forma e intensidade do que é
demandado em relação aos direitos sociais, econômicos e culturais. Porém, essa
forma fragmentada de compreender o sistema de direitos fundamentais pode
produzir resultados equivocados, submetendo os direitos sociais, que, muitas
vezes, estão ligados diretamente à necessidade de proteção mínima de direitos
existenciais, a um regime de proteção judicial insuficiente.

144
30 anos da Constituição

Por outro lado, o Tribunal acenou para uma postura ativista no controle de
políticas públicas deficitárias quando reconheceu o chamado “estado de coisas
inconstitucional” em relação ao sistema carcerário brasileiro. Nesta situação,
constata-se uma violação massiva e sistêmica de direitos humanos, resultante
de graves falhas estruturais e omissões imputadas a várias esferas de governo
e a múltiplas instituições estatais (CAMPOS, 2016). Além disso, a população
carcerária também deve ser vista como grupo vulnerável na medida em que não
possui voz nem vez nas esferas representativas. A decisão, inspirada na jurispru-
dência da Corte Constitucional colombiana, precisa ser observada consideran-
do as capacidades institucionais de um Tribunal. Dificilmente, em casos que
envolvem uma evidente complexidade como este, uma Corte terá condições
de, sozinha, implementar transformações sociais mais robustas, o que sugere o
exercício de uma jurisdição constitucional que desencadeia diálogos institucio-
nais com outros atores, de sorte que o papel do Tribunal está mais próximo a de
uma instância de coordenação e moderação das ações a serem executadas pelos
atores envolvidos (LEITE, 2017). Do contrário, corre-se o risco de a decisão
expressar muito mais um caráter político-simbólico do que jurídico-normativo,
de modo que não terá a eficácia desejada.
Além de importantes intervenções em matéria de direitos fundamentais, o
STF igualmente foi responsável por decisões que tiveram impactos significativos
nas regras do jogo democrático, no processo eleitoral e no exercício de poder. A
primeira delas diz respeito à declaração de inconstitucionalidade de dispositivos
da Lei n. 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos) que estabeleciam a chamada “cláu-
sula de barreira”, restringindo o direito ao funcionamento parlamentar, o acesso
ao horário gratuito de rádio e televisão e a distribuição dos recursos do Fundo
Partidário (ADIs ns. 1351 e 1354). Como tese central, prevaleceu, por unanimi-
dade, o argumento de que tal cláusula prejudicaria os partidos pequenos, o que
representaria uma violação ao direito das minorias políticas. A posição da Corte
acabou sendo alvo de severas críticas por ter estimulado a criação de novos par-
tidos em um sistema que já beira à exaustão, além de ter invalidado uma opção
legítima do legislador democrático. Em 2017, o Congresso Nacional, em meio às
discussões sobre reforma política, aprovou a EC n. 97, que estabeleceu um novo
modelo de cláusula de desempenho eleitoral a ser adotado a partir das eleições do
ano seguinte, de modo que as legendas terão que alcançar um número mínimo
de votos pare terem acesso ao fundo partidário e ao tempo de rádio e televisão.

145
30 anos da Constituição

Em outra manifestação, e revendo posição anterior, o Tribunal reconhe-


ceu a infidelidade partidária como nova hipótese de perda de mandato eletivo
para coibir a conhecida prática de “troca-troca” de legendas, embora tal res-
trição não se aplique às eleições majoritárias. Para contornar o impedimento
estipulado pelo STF, o Congresso Nacional aprovou a EC n. 91/2016, por meio
da qual se criou uma “janela partidária”, permitindo, por um curto período
de tempo, que parlamentares mudassem de partidos sem que isso implicasse a
perda do mandato. Ao final, vários parlamentares se valeram da nova regra e
mudaram de partidos, contrariando a posição do STF.
Em outra questão polêmica, a Corte declarou inconstitucional o financia-
mento privado de campanhas eleitorais, buscando atenuar a influência do poder
econômico no processo político, o que tem sido apontado como uma das causas de
relações promíscuas envolvendo o empresariado e agentes públicos em esquemas de
corrupção (ADI n. 4650). Porém, o Tribunal não se limitou a declarar a inconstitu-
cionalidade das normas legais que serviram inclusive para regular as eleições ocor-
ridas até aquele momento. Ele passou a sugerir, em sua fundamentação, um novo
modelo de financiamento de partidos em substituição ao que se estava consideran-
do ilegítimo, afastando-se, claramente, do ortodoxo papel de legislador negativo.
Mais recentemente, e em meio a uma série de turbulências relacionadas à
Operação Lava Jato, o Tribunal enfrentou o delicado tema do afastamento de
parlamentares de suas cadeiras. Assim, o STF determinou o afastamento do en-
tão Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do próprio mandato
eletivo, haja vista a existência de fortes indícios de que referido parlamentar se
valia da função pública para interferir nas investigações criminais da Opera-
ção Lava Jato (AC n. 4070). Por não existir previsão expressa na CF/88 para
afastamento de parlamentares por ordem judicial, a Corte advertiu cuidar-se de
situação “excepcional” diante da robustez do contexto fático-probatório. Pouco
tempo depois, o Tribunal voltaria a decidir controvérsia semelhante diante da
aceitação da denúncia contra o Senador Renan Calheiros, então Presidente
do Senado Federal. Desta feita, o Min. Marco Aurélio proferiu decisão mono-
crática determinando a saída do Senador da Presidência da Casa Legislativa,
o que provocou intensas críticas por parte dos demais senadores. O Senador
Renan Calheiros se recusou a receber a notificação da decisão, contando com
apoio da Mesa Diretora do Senado que declarou que só iriam cumprir a deci-
são caso esta fosse confirmada pelo Plenário do STF. O impasse institucional
para a Corte estava formado. De um lado, havia a preocupação em preservar a

146
30 anos da Constituição

decisão de um dos seus integrantes e, de outro, era crucial manter a própria in-
tegridade e autoridade do Tribunal. Ao se reunir em colegiado, a Corte adotou
solução intermediária, determinando a exclusão do Senador da linha sucessó-
ria da Presidência da República, embora tenha autorizado sua permanência na
função parlamentar (ADPF n. 402). Tal episódio provocou danos ao Tribunal,
na medida em que foi vista pela opinião pública como um acordo político para
preservar Renan Calheiros, evitando um supremo constrangimento decorrente
do descumprimento de suas próprias decisões (RECONDO, 2017, p.32).
Outra decisão relevante diz respeito à possibilidade de aplicação de medi-
das cautelas diversas da prisão a parlamentares no curso do mandato (AgR no
Terceiro AgR na AC n. 4327). O assunto foi discutido no caso envolvendo o
Senador Aécio Neves. O Tribunal concluiu que o Estatuto dos Congressistas ape-
nas restringe as possibilidades de prisão contra parlamentares, não impedindo
a decretação de outras medidas cautelares. No entanto, a decisão sofreu forte
resistência no meio político, ensaiando-se um constrangendor descumprimento
da ordem judicial. Na sequência, o Tribunal, em difícil decisão (6x5), entendeu
que, mesmo adotando medidas cautelares contra parlamentares, sua decisão de-
veria ser submetida à apreciação da Casa Legislativa respectiva (ADI n. 4070).
Procedendo dessa maneira, o Senado Federal revogou as medidas cautelares
impostas contra o Senador Aécio Neves.
De uma maneira geral, pode-se afirmar que a atuação do Tribunal em ma-
téria de proteção de direitos fundamentais, especialmente de minorias, tem-se
modificado significativamente. Um dos parâmetros de legitimação das Cortes é
justamente sua atuação orientada à garantia de direitos, evitando as “ditaduras
das maiorias”. Neste particular, avulta a função contramajoritária da jurisdição
constitucional. Curiosamente, o tradicional argumento da ilegitimidade demo-
crática dos Tribunais Constitucionais para se contrapor às maiorias eleitas ou
ao clamor social pode receber outra leitura. A circunstância de juízes não serem
eleitos e de poderem proferir decisões impopulares possuindo a segurança da
permanência em seus cargos faz com que Bickel (1962, p.21), referindo-se à Su-
prema Corte americana, afirme que esta é uma instituição diferente no regime
democrático. Nisso ele está certo. Porém, ser diferente não é uma maldição que
recai sobre Cortes Constitucionais em geral. O Estado Constitucional reflete
a delicada combinação entre instituições representativas e majoritárias, res-
ponsáveis por decisões políticas de largo alcance, e respeito aos direitos funda-
mentais, enquanto trunfos contra essas mesmas maiorias, cabendo à jurisdição

147
30 anos da Constituição

constitucional atuar como uma autêntica fortaleza na tutela de tais direitos. O


contramajoritarismo serve, portanto, ao fomento de relações institucionais mais
equilibradas, evitando que a política atropele o (s) direito (s).
Por outro lado, as situações em que Corte teve que enfrentar atores e gru-
pos políticos relevantes no cenário institucional expuseram momentos de embate
entre poderes com chances reais de descumprimento de ordens judiciais ou, para
evitar essa indesejável situação, de temperamentos nas interpretações do Tribu-
nal. De um lado, isso pode revelar apenas um episódio isolado de ousadia de um
grupo político que se encontra no poder, buscando a todo custo ofertar demons-
trações de autoridade (ou autoritarismo) para intimidar os membros da Corte.
De outro, porém, talvez indique precisamente que em situações mais drásticas
em que a independência judicial e a força dos Tribunais são postos à prova, razão
assiste a Alexander Hamilton, que destacou, séculos atrás, ser o Poder Judiciário
o mais fraco dos três poderes (HAMILTON; JAY; MADISON; 1993, p.479).

5. Desafios Institucionais para Jurisdição


Contramajoritária no Brasil: Provincianismo,
Punitivismo e Austeridade
O cientista político norte-americano Robert Dahl, em importante estudo
empírico, revelou inexistir uma atuação contramajoritária mais intensa por parte
da Suprema Corte de seu país, de sorte que, em muitas questões constitucionais
importantes, tal instituição desenvolveu um entendimento que se alinhava ide-
ologicamente às maiorias políticas e ao governo do momento, evitando qualquer
forma de conflito ou acirramento entre poderes. A partir deste dado, concluiu
Dahl que a jurisdição constitucional nem representava uma ameaça à democra-
cia, como temiam seus mais contundentes críticos, mas também não demons-
trava uma atuação plenamente independente da política, como idealizavam seus
defensores (DAHL, 1957). Essa assertiva pode refletir a realidade institucional
de várias Cortes Constitucionais da atualidade, inclusive podendo aplicar-se ao
caso brasileiro. No entanto, apesar dos estudos empíricos sobre jurisdição consti-
tucional possuírem enorme relevância na medida em que apresentam um retrato
das práticas decisórias dos Tribunais e traduzem em dados concretos como os
Tribunais decidem, eles não devem excluir uma construção jurídico-normativa

148
30 anos da Constituição

sobre como as Cortes devem decidir à luz do paradigma do Estado Constitucional,


sobretudo no que tange ao seu papel contramajoritário. Esta ainda é uma temá-
tica aberta e bastante desafiadora. Aqui, destacamos algumas inconsistências e
incertezas a partir da práxis do STF e que merecem atenção.

5.1 Provincianismo constitucional


Uma primeira observação necessária refere-se à posição do STF diante do
Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) e de sua interpretação
no plano supranacional. Ao longo de vários anos, a doutrina brasileira, seguin-
do tendência global, tem defendido uma necessária conexão entre o Direito
Constitucional e o Direito Internacional, surgindo daí uma espécie de Direito
Constitucional Internacional a fim de reforçar a rede de proteção dos direitos
humanos/fundamentais. Trata-se de inegável avanço civilizatório que conse-
guiu institucionalizar para além das fronteiras dos Estados nacionais uma nova
trincheira de proteção de direitos. Os problemas decorrentes desse novo mo-
mento de internacionalização do Direito Constitucional e constitucionalização
do Direito Internacional ainda precisam de melhor equacionamento.
Por muito tempo, a discussão brasileira enfatizou o debate sobre a posição
hierárquica dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos no sis-
tema jurídico brasileiro. Esse fato representou um considerável avanço nessa ma-
téria, especialmente por fazer despertar na consciência jurídica nacional a discus-
são sobre aplicação dos direitos humanos no âmbito doméstico. Por outro lado, o
apego exagerado à discussão sobre conflito entre normas (locais e internacionais)
acabou deixando de lado problemas mais substantivos sobre o conteúdo e alcance
desses direitos no país, bem como sobre a utilização da jurisprudência interna-
cional e comparada como fonte de direito por parte dos Tribunais locais. Mais
recentemente, o centro do debate tem se deslocado, de questões técnico-formais
para materiais-jurisdicionais, envolvendo a problemática da tutela multinível de
direitos e os diálogos entre Cortes (CONCI, 2017, p. 381).
Sob tal perspectiva, o STF ainda se mostra pouco aberto ao diálogo en-
tre Cortes e a um modelo de tutela multinível de direitos, na medida em que
tem contribuído para a própria ineficácia de importantes decisões advindas da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O caso mais emblemáti-
co diz respeito à confirmação da validade da Lei de Anistia por parte do STF

149
30 anos da Constituição

(ADPF n. 153), mesmo diante da posição contrária da CIDH, firmada no caso


Gomes Lund vs. Brasil, no sentido de que os crimes de lesa humanidade (como
tortura, desaparecimento forçado, estupro, genocídio e tantos outros cometidos
em regimes autoritários, como a ditadura civil-militar no Brasil) são imprescri-
tíveis, tornando as leis de anistia incompatíveis com o sistema interamericano
de direitos humanos. Ao ignorar o precedente da CIDH, o STF alimenta um
provincianismo constitucional, criando uma espécie de bloqueio no movimento
de ampliação do bloco de constitucionalidade/convencionalidade e deixando
de exercer sua função contramajoritária em temática de enorme relevância.
Além disso, ainda é preciso avançar no fortalecimento de um constitucio-
nalismo transversal de modo a viabilizar comunicações recíprocas entre ordens
jurídicas diversas, especialmente através do diálogo entre Cortes. Isso não sig-
nifica defender uma posição de subserviência ao que foi construído por Cortes
estrangeiras e supranacionais, mas sim de se engajar numa dialética argumenta-
tiva sincera, evitando tanto o desprezo pelo que vem de fora, quanto uma ido-
latria cega. No campo dos direitos humanos, apesar das particularidades locais,
certamente existem problemas globais que gravitam em torno de proteção de
minorias, ações afirmativas, abuso policial, intolerância religiosa, hate speech
e tantos outros temas que são enfrentados pelos sistemas de justiça de vários
países. O diálogo entre Tribunas propiciaria uma frutífera troca de experiências
jurisprudenciais fortalecendo um constitucionalismo cosmopolita.
Não é demasiado destacar que a mera alusão a precedentes estrangeiros
e supranacionais como simples topos retórico a fim de reforçar a própria posi-
ção já assumida pelo STF pouco acrescentará nesse processo. O diálogo entre
Cortes está a permitir que o Tribunal se utilize de precedente estrangeiro como
ratio decidendi em seus julgados, mas também o de rejeitá-lo, assumindo o ônus
argumentativo dessa posição. A esse respeito, pesquisa recente destaca o fato de
o STF inclinar-se muito mais para a referência em seus julgados de precedentes
da Suprema Corte americana e de Tribunais europeus, pouco se referindo a
decisões de Tribunais da América Latina, reforçando a crítica decolonial no
pensamento jurídico (ANDRADE, 2018). Portanto, é fundamental fomentar
a construção de uma jurisprudência em matéria de direitos humanos e funda-
mentais que, sem negligenciar as importantes construções do “Norte”, também
sejam consideradas as peculiaridades regionais do “Sul”.

150
30 anos da Constituição

5.2 punitivismo e opinião pública


Some-se a tal fato uma circunstância que tem marcado a realidade política
nacional dos últimos anos, que diz respeito à notória visibilidade da Operação
Lava Jato, vista por muitos como um verdadeiro divisor de águas no combate à
macro-corrupção no país. Apoiada pelos principais segmentos da mídia brasilei-
ra, a Operação Lava Jato exerceu importante papel no protagonismo assumido
por integrantes da Magistratura e do Ministério Público, os quais passaram a se
apresentar perante o público como incansáveis combatentes da criminalidade
de colarinho branco, construindo-se uma verdadeira agenda contra a impu-
nidade de integrantes da elite política e econômica do país. Nesse contexto,
desenvolveu-se um discurso punitivista e moralizador, que exige rápida respon-
sabilização dos acusados. O problema é que, no limite, isto tem comprometi-
do as próprias condições de possibilidade de um processo judicial democrático
orientado por direitos e garantias constitucionais, que passam a ser vistos como
obstáculos no combate à corrupção ou simples detalhes que podem ser relativi-
zados no curso do processo. Os fins estariam a justificar os meios.
Ilustrativo desse movimento foi a divulgação, por parte do juiz Sérgio
Moro, de conversas entre os ex-Presidentes Lula e Dilma Rousseff obtidas me-
diante interceptação telefônica. Ao tornar público o teor do diálogo, o magis-
trado violou a Lei 9.296/96, que expressamente impõe o dever de preservação
do sigilo do conteúdo obtido (art. 8º). É inquestionável que tal medida teve
forte impacto na opinião pública e na imprensa, servindo de combustível ao já
conturbado ambiente de crise política e à deflagração do processo de impeach-
ment da então Presidente Dilma Rousseff. Não bastasse isso, o conteúdo divul-
gado pelo magistrado federal foi utilizado como fundamento da decisão do Min.
Gilmar Mendes consistente em suspender, monocraticamente, a nomeação do
ex-Presidente Lula para o cargo de Chefe da Casa Civil. De acordo com o Mi-
nistro, essa nomeação apresentava desvio de finalidade, pois pretendia retirar
a competência do Juiz Sergio Moro no processamento da ação penal contra o
ex-Presidente, deslocando-a para o STF em razão da prerrogativa de foro que
passaria a ter no novo cargo. Com o impeachment, a ação em que se discutia a
nomeação do ex-Presidente Lula perdeu o objeto, não tendo sido apreciada pelo

151
30 anos da Constituição

plenário do Tribunal153. O juiz Sérgio Moro enviou comunicado ao STF em que


pediu “escusas” pela divulgação do aúdio e que não teve intuito político-parti-
dário154. A atuação contra legem do magistrado federal e a decisão monocrática
do Min. Gilmar Mendes, que, sob tais circunstâncias, poderia ter submetido a
questão ao plenário do Tribunal, apresentam não apenas contornos de ativismo
judicial, como provocaram inegáveis reflexos na política.
Convém destacar, ainda, a oscilante posição do STF sobre a garantia da
presunção de inocência prevista na CF/88, que, literalmente, exige o trânsito em
julgado da condenação como requisito inafastável para o cumprimento da pena
(HC n. 126.292). O Tribunal, por decisão tomada em 6x5, tem entendido que
é possível a execução provisória da pena a partir de condenação proferida por
decisão de segunda instância. Todavia, o papel de defensor da Constituição e
das garantias fundamentais, que legitima seu viés contramajoritário, faz com
que argumentos como o da morosidade do Poder Judiciário, número elevado de
recursos e sentimento de impunidade da “sociedade” não devem ser juridica-
mente válidos para relativizar uma garantia constitucional.
Nos dois casos antes referidos, nota-se que os direitos e garantias indivi-
duais foram negligenciados enquanto escudos do indivíduo em face do próprio
Estado, de modo que a persecução penal só poderia ser legitimamente conduzi-
da se realizada dentro das regras do jogo fixadas constitucionalmente. O Poder
Judiciário acabou cedendo às pressões advindas de setores da opinião pública
e parte da classe política, frustrando os que dele esperavam agir como uma
barreira contra clamores sociais moralistas e contrários ao pacto constitucional.

5.3 Reformas neoliberais e desmembramento constitucional


Por fim, a função contramajoritária da jurisdição constitucional brasileira
será colocada novamente à prova em um ambiente marcado por uma intensa
reorientação da agenda política a partir do início do governo do Presidente Mi-
chel Temer. Sob o argumento de uma profunda crise financeira do Estado, o

153 Em seguida, o STF enfrentaria situação semelhante quando da nomeação de Moreira Franco, investigado
na Operação Lava Jato, para o cargo de Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República do
governo Michel Temer. A Corte, no entanto, não vislumbrou qualquer desvio de finalidade na nomeação.
154 “Moro pede desculpas ao Supremo por divulgação de áudios de Lula e nega motivação política”. In: O
Estadão, 29 de março de 2016.

152
30 anos da Constituição

atual governo tem encampado uma política de austeridade para justificar medidas
que podem comprometer direitos sociais e grupos vulneráveis. Nesse contexto,
destacam-se três medidas. A primeira delas consiste na Emenda Constitucional
n. 95/2016, que fixou um congelamento de gastos públicos pelos próximos vintes
anos, atingindo setores sociais como os serviços públicos de saúde e ações no
campo da educação. A segunda se refere à proposta de Reforma da Previdência,
que eleva os requisitos de aposentadoria, diminui a proteção estatal e impulsiona
a procura por previdência complementar privada. A terceira diz respeito à já em
vigor Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017), que tem diminuído a proteção
dos trabalhadores nas relações de emprego, além de ter promovido uma diminui-
ção no papel da Justiça do Trabalho na tutela de direitos trabalhistas.
Tais medidas exigirão do STF uma detida análise, já que tocam o próprio
modelo dirigente da CF/88. Parece-nos que o argumento de crise financeira não
deve ser fator para legitimar retrocessos sociais em áreas que ainda não atingi-
ram sequer patamares minimamente razoáveis de proteção adequada. De fato,
o próprio Tribunal tem proferido decisões incoerentes quando são vislumbradas
consequências econômicas de seus julgados, provendo uma curiosa seletividade
e inversão de prioridades155. Ao legitimar tais medidas, o STF estaria a endossar
um modelo de “constituição dirigente invertida” (BERCOVICI; MASSONETO,
2006), isto é, há um novo programa governamental, mas em sentido oposto às
diretrizes preconizadas inicialmente pelo constituinte. Nesse sentido, promove-
-se uma blindagem da “constituição financeira” em detrimento da “constituição
social”, que teria que se manter com “sobras orçamentárias”. Ao nosso ver, cuida-
-se da situação descrita por Richard Albert ao analisar o fenômeno do “desmem-
bramento constitucional”: em vez de se aprovar uma simples alteração constitu-
cional, está-se diante de um deliberado esforço em repudiar as as características
principais da constituição e destruir seus valores fundantes. Assim, atinge-se a
estrutura básica da constituição ao mesmo tempo em que se ergue um novo mo-

155 Em fevereiro de 2018, a Presidente da Corte, Min. Carmén Lúcia, suspendeu a nomeação de professores
aprovados em concursos público no Estado do Rio de Janeiro, alegando a crise financeira vivenciada nesta
unidade federativa (https://www.conjur.com.br/2018-fev-15/citando-crise-rj-carmen-suspende-nomeacao-
900-professores). No entanto, a mesma magistrada relevou as dificuldades financeiras deste Estado ao apoiar
o pagamento de adicional aos juízes cariocas pela realização de audiências de custódia, como se a condução
de uma audiência fosse atividade extraordinária da Magistratura. (https://www.conjur.com.br/2018-mar-06/
cnj-valida-adicional-audiencias-custodia-juizes-rio). Tal posição não surpreende se considerarmos que a Corte
não se constrangeu diante de liminar proferida pelo Min. Luiz Fux desde 2014 determinando o pagamento do
esdrúxulo auxílio-moradia aos magistrados, custando milhões aos cofres públicos.

153
30 anos da Constituição

delo apoiado em valores diferentes da anterior. (ALBERT, 2018, p.02). Com isso,
o modelo de constitição compromissária com forte dimensão social passa por um
gradual e rápido processo de erosão que atinge suas bases de sustentação.

6. Conclusões: um Poder Judiciário Iluminista?


Umas das características centrais do constitucionalismo contemporâneo tem
sido a consolidação dos Tribunais Constitucionais nos sistemas políticos após a Se-
gunda Guerra Mundial. Desde então, essas Cortes têm desempenhado importante
papel referente à proteção dos direitos fundamentais e à preservação das regras do jogo
democrático. Aos poucos, foi criado um cenário marcado pela juristocracia, onde se
constata deslocamento sem precedentes de poderes decisórios da esfera política para
os Tribunais. Esse fato tem suscitado questionamentos sobre a autoridade, capacida-
de institucional e legitimidade das Cortes. A experiência brasileira acompanha essa
tendência global inaugurada a partir da segunda metade do século passado, quando
emergiu o paradigma do constitucionalismo democrático. Países que experimentaram
regimes autoritários passaram por um processo de redemocratização, que parecia exi-
gir robustas cartas de direitos e um Poder Judiciário forte e independente. No entanto,
com ascensão política das Cortes, de um lado, passou-se a discutir o risco democrático
decorrente da ampliação do poder judicial. Isso tem elevado a crescentes tensões insti-
tucionais entre juízes e legisladores. Desse modo, no lugar de persistir na eterna discus-
são sobre a legitimidade democrática da judicial review, é crucial compreender como
funcionam as arquiteturas constitucionais que incluem instituições políticas majori-
tárias e contramajoritárias. A discussão deixa de ser em torno da compatibilidade da
judicial review com a democracia, deslocando-se para a análise concreta dos juízes e
Tribunais na promoção dos valores e direitos fundamentais e dos obstáculos que se
apresentam no efetivo exercício da jurisdição. Tendo isso em vista, foram destacados
alguns momentos no processo de consolidação da jurisdição constitucional no Brasil,
especialmente na afirmação do STF como instituição contramajoritária.
Essa trajetória revela avanços e retrocessos e está envolta por um complexo
ambiente político-institucional cujos elementos são determinantes para a atuação
independente da Corte. Nessa perspectiva, não obstante o inegável percurso que
conduziu ao empoderamento dos juízes e Tribunais no país, é recomendável cau-
tela para evitar cair no discurso fácil e sedutor de que temos um Poder Judiciário
convertido em vanguarda iluminista. Isso acarretaria o deslocamento da tradicio-

154
30 anos da Constituição

nal infalibilidade das leis para a infalibilidade judicial. Seria a troca de uma ilusão
por outra. Em um breve olhar na prática judicial brasileira, percebe-se que há
várias disfunções que precisam ser corrigidas e que arranham a legitimidade dos
juízes. Podemos ilustrar com alguns exemplos: voluntarismos judiciais, distorções
semânticas da linguagem jurídica, desconsideração da doutrina, instabilidade da
jurisprudência, politização da Justiça, atuações ativistas quando o adequado seria
prudência, omissões quando o necessário seria o protagonismo e, não menos im-
portante, os traços oligárquicos que ainda fortemente marcam o Poder Judiciário.
O novo arranjo institucional não deve significar uma ilegitimidade a priori
das instâncias representativas, abrindo o perigoso caminho da demonização da
política, nem uma romantizada concepção do Poder Judiciário. Desse modo,
faz-se necessário estabelecer parâmetros que, razoavelmente, demarquem até
onde é legítima intervenção judicial, sem comprometer o espaço, também le-
gítimo, da política. Disso decorre um desejável equilíbrio nas relações institu-
cionais, mas que não é fácil de alcançar e depende de inúmeras variáveis. Os
desajustes desta complexa relação Parlamento-Judiciário podem, como parece
ser o caso brasileiro atual, onde a tradição democrática é débil, fomentar atores
que se apresentam como salvadores das relações institucionais mediante o uso
de discursos de força, sejam eles civis ou militares.

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158
Parte II
Os Direitos em Perspectiva
Democracia Direta na Constituição de
1988: entre as intenções e a experiência
do Estatuto do Desarmamento

Igor Gomes Duarte Gomide dos Santos156


Luciani Coimbra de Carvalho157

I. Considerações Iniciais
A Constituição brasileira de 1988 ao adotar a democracia como um se
seus valores propiciou o desenvolvimento de vários instrumentos de participa-
ção popular, todavia ainda há um distanciamento entre a participação formal e
a substancial, em virtude de uma série de situações que obstaculizam a partici-
pação consciente e voluntária dos cidadãos.
Identifica-se que a participação não tem sido parte de um projeto de cons-
cientização e emancipação popular, sendo comum a sua ocorrência de forma
inconsciente ou decorrente do uso de estratégias que fazem parte dos jogos de
poder, demandando a adoção de políticas publicas que objetivem a educação
emancipadora dos integrantes da sociedade.
Partindo-se do cenário atual de fragilidade da democracia brasileira, o
presente trabalho tem por objetivo discutir as ferramentas de autonomia indi-
vidual e ocupação de espaços sociais com base nas teorias de Adorno e Freire,
utilizando-se como estudo de caso, o referendo do desarmamento de 2005.

II A frustração com a democracia e a importância da conscientização


A revista britânica The Economist organiza anualmente um relatório glo-
bal acerca da democracia em todo o mundo, no qual analisa 60 indicadores

156 Mestrando em Direito pelo PPGD-UFMS. Contato: <[email protected]>.


157 Mestra e Doutora em Direito pela PUC-SP. Professora adjunta da UFMS, onde leciona no Mestrado
Acadêmico em Direito.

161
30 anos da Constituição

trinários cujas respostas são sim (1), um pouco (0,5) e não (0), classificando os
Estados em democracias completas, democracias falhas (ou incompletas), regi-
mes híbridos e regimes autoritários, sendo que os itens avaliados vão do número
de mulheres eleitas até o interesse de adultos em noticiários políticos.
Os indicadores do Democracy Index são agrupados em cinco categorias:
processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo,
participação política e cultura política. Por mais que o elemento subjetivo (prin-
cipalmente relacionado à autopercepção popular) esteja em todas estas catego-
rias, a cultura política tem seus indicadores fundamentados em consensos e per-
cepções populares158. Nesse ponto, o relatório acerca da América Latina é claro:
Latin America’s average score is only slightly ahead of the global average for
functioning of government as well as for political participation, reflecting the
region’s issues with corruption, organised crime (with the already high murder
rate related to drug trafficking rising throughout the region in 2017), and
low levels of political engagement. The region falls below the global average
for political culture, reflecting relatively low levels of popular confidence in
democracy. (The Economist, 2018, p. 23)159

No mesmo sentido, o relatório de 2017 do LatinoBarómetro, uma organiza-


ção não-governamental sediada no Chile, acerca do momento das democracias
na região, abaladas em diversos fronts (2017, n/p):
Es una democracia diabética que no alarma, con un lento y paulatino de-
clive de múltiples indicadores, distintos según el país, y el momento, que

158 São oito os indicadores de cultura popular utilizados no Democracy Index 2017 (The Economist, 2017):
(a) se existe um grau suficiente de consenso e coesão social para sustentar um governo democrático; (b)
percepções de liderança, a proporção da população que deseja um líder forte que ignora o parlamento
e eleições; (c) percepções de um governo militar, a proporção da população que preferiria um regime
militar; (d) percepções de governo por especialistas, ou governo tecnocrático, proporção da população
que preferiria ser governada por especialistas ou tecnocratas; (e) percepções da democracia e ordem
pública, a proporção da população que acredita que as democracias não são boas em manter a ordem
pública; (f) percepção da democracia e sistema econômico, a proporção da população que acredita
que a democracia beneficia o desempenho econômico; (g) nível do suporte popular à democracia; (h)
se há uma tradição forte de separação entre Estado e Religião.
159 Tradução livre: “O escore médio da América Latina está apenas um pouco acima da média global tanto
em funcionamento do governo como em participação política, refletindo os problemas da região com
corrupção, crime organizado (com as já altas taxas de assassinatos relacionados ao tráfico de drogas
crescendo na região durante 2017), e baixos níveis de engajamento político. A região está abaixo da
média global em cultura política, refletindo o baixo nível de confiança popular na democracia.”

162
30 anos da Constituição

permite de alguna manera ignorarlos como fenómeno social. Sin embar-


go, vistos en conjunto, esos indicadores revelan el deterioro sistemático y
creciente de las democracias de la región. No se observan indicadores de
consolidación, sino, acaso, indicadores de des-consolidación.160

Essa desconstrução da democracia provoca um resultado fortíssimo. O mes-


mo relatório mostra que “uno de cada cuatro latinoamericanos es indiferente al
tipo de régimen. El desencanto con la política está teniendo consecuencias para la
democracia”161 (LATINOBARÓMETRO, 2017, p. 11). A democracia, portanto, é
apenas mais um dentre os possíveis regime de governo, um meio para alcançar seu
fim. É o que também concluem Coffé & Michels (2014, p. 03): “it seems reasonable
to assume that those who are dissatisfied with politics and distrustful of political
institution are more likely to prefer any alternative to representative democracy”.162
No Brasil esse desencanto, segundo o Democracy Index é devido às inves-
tigações de corrupção (The Economist, 2018) que expuseram a profundidade
vários escândalos que atingiram o governo.
A questão que se apresenta é a necessidade de reversão deste quadro de desen-
canto, adotando-se medidas que estimulem o indivíduo a se apropriar de seu espaço
de poder para que cumpra o seu papel de protagonista no processo democrático.
O alcance da autonomia e da conscientização depende do percurso ado-
tado para a educação dos atores sociais, e que podem ter objetivos diferentes
conforme Bittar (in SILVA; GEDIEL & TRAUCZYNSKI, 2014, p. 67-68):
O mito de que educar é formar deve ser desfeito. A educação como Aus-
bildung (treinamento) deve ser diferenciada da educação como Bildung
(formação) (…) educar pode significar também a preparação que di-
reciona o desenvolvimento destas ou daquelas qualidades, habilidades
e competências, podendo atrofiar dados importantes da personalidade
humana, significando apenas treinamento.

160 Tradução livre: “É uma democracia diabética que não assusta, com um lento e paulatino declive em
vários indicadores, distintos por país e o momento, que não permite ignorá-los como fenônemo social.
Sem embargo, quando vistos em conjunto, esses indicadores revelam a deterioração sistemática e
crescente das democracias na região. Não se observam indicadores de consolidação, mas, na verdade,
indicadores de desconstrução.”
161 Tradução livre: “um a cada quatro latino-americanos é indiferente ao tipo de regime. O desencanto
com a política está tendo consequências para a democracia”.
162 Tradução livre: “parece razoável assumir que aqueles que estão insatisfeitos com a política e desconfiam
das instituições estão mais próximos de preferir qualquer alternativa à democracia representativa.”

163
30 anos da Constituição

Como afirma Freire (2011, p.10), “formar é muito mais do que puramente trei-
nar o educando no desempenho de destrezas” (grifos do autor), na mesma linha do
conceito de formação apresentado por Bittar, e assim também o deve ser entendido
no âmbito da participação política, de formação (e não treinamento) de cidadãos.
Maar (apud Adorno, 2010, p. 10) afirma: “A educação não é necessariamente
um fator de emancipação. Numa época em que educação, ciência e tecnologia se
apresentam — agora ‘globalmente’, conforme a moda em voga — como passaportes
para um mundo ‘moderno’ conforme os ideais de humanização”. Não se trata, no
educar, de apenas inserir novas metodologias ou tecnologias em sala de aula, mas
de se questionar como as relações sociais que envolvem todos os aspectos da vida
do cidadão são de um caráter formador ou de treinamento.
O cidadão que é simplesmente treinado a participar, indo votar perio-
dicamente, a escolher um candidato que lhe seja pessoalmente favorável ou
que tenha um ideal valorizado socialmente não é necessariamente um cidadão
politicamente formado, e possivelmente não terá a capacidade de identificar e
se solidarizar com as reivindicações de outros atores sociais que alterem o seu
cotidiano ou lhe tragam algum tipo de empecilho.
Para Freire (1979, p. 11):
[...] de acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia
não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicio-
nando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educa-
ção deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas
propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho.

Na concepção de Freire (2011), a pessoa que foi treinada praticará somen-


te a repetição dos atos que lhe foram passados, mas a pessoa que foi formada
desenvolverá uma curiosidade epistemológica, atos questionadores e reflexivos
contínuos que levarão a pessoa a começar a procurar e aprender por si mesma.
Esse aprendizado é essencial para a confiança na própria democracia, como
aponta Karp et al. (2018, p. 12):
Friends, family, neighbors and colleagues have an incentive to act in a trus-
tworthy manner, so that they act to protect our best interests, to preserve
relationships. When it comes to a broader array of social relationships, and
government institutions, however, it can no longer be assumed that there

164
30 anos da Constituição

are shared norms and bonds of social relationships to promote trustwor-


thiness. In this context, Hardin theorizes that we have to rely more heavily
upon formal procedural rules and laws to protect our interests. Understan-
ding how institutions work and what procedures are in place to protect our
interests makes greater demand for information and therefore the cognitive
skills which come from formal education and prior experience. The more
transparent the safeguards and regulations, the easier it is to understand –
and therefore trust-the workings of political institutions.163

Numa ótica política, o cidadão formado, com esta curiosidade epistemológica


de Freire, não apenas participaria das eleições como obrigação civil, mas teria um
papel maior, aprofundando nas estatísticas e questionamentos levantados durante
as campanhas e acompanhando de perto o planejamento e execução de políticas
públicas, bem como seus resultados, propondo melhorias e ressaltando falhas.
A conscientização:
[...] implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da re-
alidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como
objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica.
A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais
conscientização, mais se “desvela” a realidade, mais se penetra na essência
fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por
esta mesma razão, a conscientização não consiste em “estar frente a rea-
lidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização
não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação – reflexão. Esta
unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de
transformar o mundo que caracteriza os homens. (FREIRE, 1979, p. 14).

Segundo Adorno (2010, p. 35), a falha se dá exatamente quando a demo-


cracia não se estabelece “a ponto de constar da experiência das pessoas como se

163 Tradução livre: “Amigos, família, vizinhos e colegas tem um incentivo para agir de uma maneira
confiável, portanto eles agem para proteger nossos interesses, para preservar relacionamentos.
Quando se fala em um círculo social mais amplo e instituições governamentais, porém, não pode
se assumir que há normas comuns e laços sociais que provocam confiança. Nesse contexto, Hardin
teoriza que nós temos que contar com normas procedimentais e leis para proteger nossos interesses.
Entender como funcionam as instituições e quais os procedimentos aplicáveis para proteger nossos
interesses faz crescer o número de demandas por informação e, portanto, as habilidades advindas de
uma educação formal e experiência de vida. Quanto mais transparentes as barreiras e regulações,
mais fácil é para endender – e portanto confiar – no funcionamento das instituições.”

165
30 anos da Constituição

fosse um assunto próprio delas, de modo que elas compreendessem a si mesmas


como sendo sujeitos dos processos políticos”. As pessoas se veem como um ob-
jeto do processo democrático, sem dar valor ao seu voto ou às instâncias de sua
agência. E enquanto a democracia é ensinada como se fosse apenas mais “um
regime entre outros, como se num cardápio fosse escolhido entre autocracia,
plutocracia, democracia; ela não é apreendida como identificando-se ao próprio
povo, como expressão de sua emancipação” (ADORNO, 2010, p. 35).
Tal compreensão seria resultado de um programa de manutenção no po-
der com vistas atingir as massas em suas emoções, por meio de um marketing
político criado para convencer o cidadão de sua necessidade e não para debater
determinada política pública.
A grosso modo, o marketing político é um conjunto de ações cujo obje-
tivo, conforme Gomes & Oliveira Jr (2007, p. 5) é: “vencer a eleição e manter
o poder pelo maior número de dias possível” ou segundo Kotler e Armstrong
(2006, p. 4) atrair novos eleitores com promessas eleitorais e manter os antigos
pela satisfação de seus interesses. E nisto, tem-se uma:
[…] democracia peculiar em que a esfera poliárquica se sobrepõe a gran-
des vazios institucionais, nos quais o que prevalece é a ausência de di-
reitos e a falta de acesso à ordem legal, o que reduz, se não inviabiliza, o
exercício da cidadania (DINIZ, 2000, p. 131)

Os riscos causados por políticas populistas que visam à aclamação das


massas reflete a preocupação de Rosseau (2006, p. 48) com a vontade popular:
“o povo, por si, quer sempre o bem, mas nem sempre o reconhece por si só. A
vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre é escla-
recido”, ao qual se acrescentam as preocupações de Sartori (2001, p. 119), que
afirma ser um erro “tentar atribuir poder a um povo despreparado, cada vez
mais isolado e alienado de sua competência cognitiva para a política”.
Para ele, a simples instrumentalização da participação popular não traria
ares mais democráticos ao sistema político, mas, ao contrário, poderia torná-
-lo ainda mais despótico. Nesse entendimento, a utilização de Mecanismos de
Democracia Direta não tornaria o Estado mais democrático como teria efeito
reverso, tendo em vista que as decisões seriam tomadas cada vez mais com base
nas emoções populares incentivadas por propagandas.

166
30 anos da Constituição

Dessa forma, o governo populista se apresenta por meio de marketing po-


lítico e alianças com elites econômicas com objetivo de perpetuar-se no poder,
não se filiando a uma ideologia social como fez o populismo clássico, porém
ainda assim atingindo emocionalmente as massas populares, como maneira de
legitimar a si mesmo e as decisões tomadas, por mais retrógradas e prejudiciais
que essas possam ser – e mais distantes do ideal de uma democracia substancial.
A democracia então se torna uma opção, e como opção pode ser substi-
tuída sem qualquer prejuízo por qualquer outra que prometa atingir melhores
objetivos. A partir daí propostas como de fechar congressos nacionais em nome
de um progresso mais célere, clamar por intervenções de forças armadas para
reestabelecer a ordem e a lisura das instituições ou até mesmo incentivar um
protagonismo do Judiciário suplantando o Legislativo e o Executivo em torno
de figuras fortes – quase populistas – torna-se uma escolha possível.
Quando os sistemas políticos são vistos apenas como meios, com suas qualida-
des e defeitos, os efeitos colaterais tornam-se aceitáveis pela população, propiciando
a tortura, violação das garantias constitucionais, aplicação desmedida da força os-
tensiva estatal, corrupção e desvio de poder. Todavia, o processo de conscientização
da autonomia reduz o impacto das influências exteriores e do marketing político.
Não se nega as influências do meio, decorrentes de grupos familiares, religio-
sos e outros agrupamentos sociais que auxiliarão ou criarão barreiras ao processo
de desenvolvimento de conscientização, todavia, conforme Freire a pedagogia da
autonomia propiciará que o indivíduo seja sujeito da história (2011, p. 37):
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado,
mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta
é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A
diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que
histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado.
Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção
de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da
influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre
o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historica-
mente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência
de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da
impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença.
Não posso me perceber como uma presença no mundo, mas, ao mesmo
tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a
mim. […] Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se

167
30 anos da Constituição

adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não
ser apenas objeto, mas sujeito também da história.

Assim, o importante na conscientização popular e na formação de uma


cultura política democrática não é simplesmente libertar as pessoas de suas
amarras, mas fazê-las conscientes de seu estado. Libertar alguém (enquanto
essa pessoa permanece passiva, apenas objeto de uma libertação) é um processo
messiânico, que acaba por prender as pessoas em um diferente cativeiro, presas
ao seu libertador – conforme aponta Freire (1979), num processo desumaniza-
dor e domesticador, tais quais as estratégias populistas. Já conscientizar é um
processo educativo, que visa dar autonomia para que as pessoas se libertem das
amarras de seus senhores. É nesta lógica que deve operar a conscientização
política com vistas à emancipação popular.

III. Os Mecanismos de Democracia Direta


numa sociedade apolítica
Os Mecanismos de Democracia Direta (MDDs) são formas de participação
direta do povo nas discussões sensíveis para o Estado, independente do nível organi-
zacional em que eles se inserem. Menezes (2016, p. 03) os define como instrumentos
que “concedem aos cidadãos a oportunidade de decidir sobre assuntos em vez de
apenas sobre quem será o candidato eleito, tendo a palavra final sobre questões es-
pecíficas, continuando a ser proativos no processo democrático e/ou tendo o poder
de veto depois do período eleitoral”. Nos MDDs os cidadãos se tornam os agentes de
uma modificação e não meros influenciadores sobre quem tomará a decisão.
É difícil mensurar a importância legitimatória dos MDDs em uma região
como a América Latina, e, em específico o Brasil, onde a democracia é um interstí-
cio entre diversas tomadas de poder (de maneira civil ou militar) autoritárias.
Nobre (in COELHO & NOBRE, 2004) divide a disputa política na de-
mocracia em duas grandes arenas: a primeira, definidora de macroestruturas
de quadros institucionais, gira em torno das eleições periódicas, regimes de
governo, arranjos diplomáticos, entre outros; a segunda é a da criação (e ma-
nutenção) de espaços de participação e deliberação que desafiem (de uma ma-
neira positiva) as macroestruturas da primeira arena, de modo que estas possam
aceitar e conviver pacificamente com a segunda arena. Enquanto na primeira

168
30 anos da Constituição

arena são escolhidos alguns para representarem o todo, dando-lhes poderes, na


segunda, esses poderes são colocados à prova, balizados e, caso contrapostos,
ilegitimados – é nessa segunda arena que se encontram os MDDs.
Coffé & Michels afirmam (2014) que os problemas de representatividade resul-
taram numa busca por novos caminhos para aproximar o público da política, e que
os mecanismos de democracia direta foram, por muitas vezes, o caminho apontado:
In recent decades, many Western countries have gained experience with va-
rious forms of direct democracy to complement the existing forms of repre-
sentative democracy. These forms include various electoral and non-electoral
mechanisms of citizen involvement in the political process, such as the use of
national and local (binding or consultative) referendums, the direct election
of local officials, and the use of different forms of collaborative governance or
citizens’ assemblies.164 (COFFÉ & MICHELS, 2014, p. 02)

O problema é que, conforme apontam Coffé & Michels (2014, p. 02), “ci-
tizens are unhappy with the processes characteristic of representative democracy,
including debating, compromising, and slowness, and would prefer not to knowall
the details about the decisionmaking process.”165. Simplesmente criar e formatar
novos espaços de participação não resolve a crise de representatividade atual
porque não se trata apenas da ausência de possibilidade da agência: mas da falta
de vontade. O problema não se concentra, portanto, apenas na esfera objetiva
(criação de normas), mas também na subjetiva (da noção do indivíduo de seu
papel como cidadão nos processos democráticos).
Assim sendo, os cidadãos não querem participar ativamente da constru-
ção política, preferindo o que a autora chama de stealth arrangement, um arranjo
silencioso, por trás dos panos e, que em momentos específicos, o processo de
tomada de decisão seja feito de maneira transparente: ou seja, menos debate e
mais eficiência. Sendo assim, os MDDs tornam-se objeto de um dualismo, en-

164 Tradução livre: “Nas décadas recentes, muitos países ocidentais construíram experiências com várias
formas de democracia direta com objetivo de complementar as já existentes formas de democracia
representativa. Essas formas incluem vários mecanismos eleitorais e não eleitorais de envolvimento
do cidadão no processo político, como referendos nacionais e locais (tanto vinculantes quanto
consultivos), a eleição direta de funcionários locais e o uso de diferentes formas de governança
colaborativa ou assembleias de cidadãos.”
165 Tradução livre: “cidadãos estão infelizes com os processos característicos da democracia representativa,
incluindo debater, comprometer-se e a sua própria lentidão, então preferem não conhecer todos os
detalhes do processo de tomada de decisões.”

169
30 anos da Constituição

tre uma democracia efetivamente democrática e uma democracia manipulada,


como aponta Setälä (1999, p. 01):
There are some examples of the successful practice of direct democracy in
stable democracies but also many examples of the manipulative abuse of re-
ferendums by authoritarian rulers. The political calculations behind the re-
ferendums initiated by democratic governments are also often too obvious to
avoid cynicism about the institution. Furthermore, the referendum seems to
represent a purely majoritarian form of democracy and thus can be perceived
as a threat to minorities. On the other hand, the referendum has been seen
as an excellent way of increasing citizens’ participation and deliberation on
public issues, and the increase of popular participation due to referendums
and other directdemocratic institutions has been seen as a step towards the
further democratisation of societies.166

Setälä (1999) aponta que os referendos167, como MDDs, se tornaram parte


importante da política mundial após o estabelecimento da Organização das Na-
ções Unidas (ONU) principalmente a partir de dois eventos: a descolonização
e o desmantelamento da União Soviética – nestes casos, foram parte das solu-
ções para disputas territoriais e promulgação de constituições, bem como para
legitimar participações em organizações internacionais (como no caso da União
Europeia, na qual há transferência de poderes do Estado para a organização).
A visão, porém do referendo como revelatória da vontade popular é, para
Setälä, não apenas simplista, mas equivocada. Ela cita Kenneth Arrow, o qual
provara que “all social choice procedures which satisfy a few minimal criteria of
fairness and logicality are potentially dictatorial”168 (SETÄLÄ, 1999, p. 05), o que

166 Tradução livre: “Há alguns exemplos de sucesso na prática da democracia direta em democracias
estáveis, mas também muitos exemplos de usos manipuladores de referendos por líderes autoritários.
Os cálculos políticos por trás dos referendos iniciados por governos democráticos geralmente são muito
óbvios para escapar da sensação de cinismo em relação à instituição. Além disso, o referendo representa
uma forma de democracia majoritária que pode significar uma ameaça às minorias. Por outro lado, o
referendo é visto como uma excelente maneira de incentivar a participação e deliberação dos cidadãos
em assuntos públicos, e o aumento da participação popular através de referendos e outros mecanismos
de democracia direta é visto como um passo para a maior democratização das sociedades.”
167 Em sua obra Referendums and democratic government: normative theory and the analysis of institutions,
Setälä utiliza o vocábulo referendum (referendo) para todas instituições nas quais os cidadãos votam
sobre questões políticas, independente da motivação e das diferenças de procedimento entre eles.
168 Tradução livre: “todos procedimentos de escolha popular que satisfaçam um mínimo critério de
justiça é potencialmente ditatorial”.

170
30 anos da Constituição

vai ao encontro das afirmações (e receios) de Tocqueville acerca da ditadura


da maioria. A previsão de que uma maioria poderia sufocar minorias ao deter o
poder em um governo que não tivesse limites ao exercício do poder se verifica,
com muito mais intensidade em mecanismos de democracia direta. Como afir-
ma a Setälä (1999, p. 05-06) logo após:
Democracy does not need to be perceived narrowly in terms of certain decision-
-making methods, but rather in terms of some external values witch the deci-
sion-making procedures are expected to promote (…) the value of democracy is
in its outcome: a limited government which, to a certain extent, acts according
to the wishes of the public. In the participatory theory of democracy,on the
other hand, participation in the democratic process is seen as a value in itself.169

Tal compreensão, porém, não deve provocar a visão de que tais mecanismos
sejam nocivos per si, pelo contrário: sua adoção por critérios sólidos e balizas defi-
nidas previamente pode ser positiva para uma democratização do poder e um me-
canismo de incentivo à criação de uma cultura política, influenciando direta (por
meio das decisões tomadas pela sua aplicação) e indiretamente (em plataformas
de discussão abertas, bem como no interesse popular por questões políticas e suas
consequências) na formação política de uma população até então apolitizada.

IV. Os MDDs na Constituição Brasileira de 1988:


Análise de Caso do Estatuto do Desarmamento
A Constituição Brasileira de 1988 apresenta em seu art. 14, o reconheci-
mento de três mecanismos de participação popular: o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular. Apesar disso, Fleury (in AVRITZER & ANASTASIA, 2007,
p. 96) aponta que “a legislação que regulamentou os instrumentos constitucio-
nais de participação popular tardou uma década a ser promulgada (Lei 9.709 de
18/11/1998), sendo que praticamente repetiu o que estava no texto constitucio-

169 Tradução livre: “A democracia não precisa ser percebida limitadamente em termos de certos métodos
de tomada de dcisão, mas em termos dos valores esternos que os processos de tomada de decisão
deveriam promover (…) O valor da democracia está em sua consequência: um governo limitado, que,
em certa extensão, atua de acordo com a vontade popular. Na teoria da participação democrática, por
outro lado, a participação no processo democrático é vista como um valor em si mesma.

171
30 anos da Constituição

nal”, há de se notar que o primeiro plebiscito nesta ordem constitucional fora


realizado cinco anos antes da promulgação da lei, em 1993.
A autora ainda define o plebiscito como uma forma de consulta sobre
legislação futura, com efeitos meramente avaliativos acerca da repercussão da
medida ainda a ser tomada; o referendo como um ato normativo, vinculando
a positivação de uma norma (já redigida ou a redigir) à aprovação pública; en-
quanto a iniciativa popular seria uma proposição de norma realizada no seio da
sociedade, com massivo apoio da população.
Menezes (2016), afirma ainda na introdução da sua obra que a experiência
da América Latina em geral com os MDDs é positiva, sinalizando não apenas
uma boa aderência da população, com expressiva participação, mas que tam-
bém as modificações propostas por meio deles tendem a ser democráticas em
seu conteúdo e, conforme aponta “de 1996 a 2011 foram utilizados 30 MDDs
em dez países latino-americanos” (MENEZES, 2016, p. 09).
Porém, de acordo com uma perspectiva democrática substancial, a mera
participação formal por si não leva a uma sociedade mais democrática, sendo
necessário que ela seja feita de forma consciente e produza um resultado demo-
cratizante. Para tanto, utiliza-se neste trabalho, os critérios estabelecidos por Dahl
(1961) para considerar o procedimento democrático efetivo, não apenas formal,
sendo eles: participação efetiva, igualdade de voto, entendimento esclarecido,
controle do programa de planejamento e inclusão dos adultos – ideais esses que
devem ser observados também nos Mecanismos de Democracia Direta.
O Brasil teve uma experiência de MDD na vigência da atual Constituição,
especificamente em relação ao Estatuto do Desarmamento, cujo artigo 35 foi
submetido a um referendo popular em 2005 para sua aprovação ou não, con-
forme procedimento estabelecido pelo próprio Estatuto, como pode ser visto:
Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo
o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.
§ 1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação me-
diante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
§ 2o Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo
entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal
Superior Eleitoral.

172
30 anos da Constituição

O Estatuto do Desarmamento recebeu uma atenção especial por causa da


forte insegurança social no Brasil, com dados de homicídio anuais superiores a
muitos conflitos internacionais. Como afirma Esteves (2007, p. 29):
Embora suscite muitas divergências, tornou-se consenso que o assunto
é prioritário na agenda política nacional. A partir desta constatação,
governos, parlamentares, partidos políticos, organizações não-governa-
mentais, igrejas, instituições de interesse público e diversos grupos so-
ciais vêm se mobilizando na proposição de medidas de enfrentamento
do problema. Disputando corações e mentes, essas propostas, bastante
heterogêneas e muitas vezes conflitantes entre si, vão desde a redução
da maioridade penal, passando pelos debates em torno da utilização do
Exército no combate ao crime organizado nas grandes cidades, até a
remodelação das polícias e do sistema penitenciário.

Tantos conflitos ideológicos levaram a travar o andamento de vários pro-


jetos de lei, inclusive o Projeto de Lei nº 1.073, de autoria do então Ministro
da Justiça, Renan Calheiros, que viria, posteriormente, a se tornar a base do
Estatuto do Desarmamento. Para impedir que o projeto naufragasse:
[…] as lideranças e as ONGs que foram aderindo ao movimento começa-
ram, então, a articular atos públicos e a divulgar estatísticas com o intuito
de sensibilizar a sociedade para o problema. Entre janeiro de 2000 e julho
de 2002, só a ONG Viva Rio realizou (ou co-realizou) pelo menos seis mo-
bilizações em prol do desarmamento18, entre elas as campanhas “Arma
Não! Ela ou Eu”, dedicada às mulheres, e “Mãe, Desarme seu Filho”, em
parceria com o Grupo Cultural Afro Reggae e o rapper MV Bill. Em São
Paulo, o Instituto Sou da Paz, por sua vez, desenvolveu durante todo o ano
de 2002 o projeto Brasil sem Armas, que realizou seminários, elaborou
cartilhas que ensinavam o passo-a-passo de uma campanha de recolhi-
mento de armas e produziu um grande ato público no dia 9 de julho, com
shows, culto ecumênico, destruição de armas e passeata. As ONGs tam-
bém começaram a mobilizar os parlamentares e, em decorrência de toda
essa movimentação, houve um aumento do número de proposições sobre
o tema no Congresso (ESTEVES, 2007, p. 31).

Em 2003, com um novo governo, foi instituída uma Comissão Especial


Mista (com cinco senadores e cinco deputados) para apresentar um consenso
entre os projetos que tramitavam no Congresso Nacional. O substitutivo apre-

173
30 anos da Constituição

sentado condensou 8 projetos de lei do Senado Federal e 70 da Câmara dos


Deputados (Esteves, 2007).
Para a realização da consulta popular, foram estabelecidos critérios seme-
lhantes aos das campanhas eleitorais para que as frentes parlamentares, com
membros do Legislativo Nacional, realizassem propagandas e conscientizassem
a população geral de seu posicionamento: a Frente Parlamentar por um Brasil
sem Armas (favorável à manutenção do art. 35) e a Frente Parlamentar pelo
Direito da Legítima Defesa (contrária à manutenção do art. 35).
As Frentes Parlamentares tiveram 20 dias de propaganda gratuita em rá-
dio e televisão, além de poderem arrecadar recursos para realização de suas
campanhas publicitárias, conforme demonstra Teixeira (2005, n/p):
A Frente do “sim” batia na tecla de que muitas pessoas morrem vitima-
das por armas de fogo no Brasil e de que a arma de fogo só foi feita para
matar. A campanha do “não”, basicamente, defendia que todos têm o
direito de se defender, ainda mais em um país que não investe, como
deveria, em segurança pública.

Embora o financiamento para construção das campanhas publicitárias


tenha sido privado, apenas para a realização da consulta popular, o Governo
Federal desembolsou pouco mais de R$ 600 milhões, conforme informações
de Teixeira. Tais ações, porém, demonstraram ser infrutíferas para que uma
discussão profunda e conscientizadora se realizasse como demonstra Spitz, em
reportagem para a Folha de São Paulo (2005, n/p):
Santa Rita [coordenador responsável pelo marketing da campanha do
‘não’ ao art. 35] apelou para imagens como a de Nelson Mandela na luta
contra o “apartheid” na África do Sul e a do ministro da Justiça, Mar-
cio Thomaz Bastos. Nem Mandela nem Thomaz Bastos gostaram. Eles
reclamaram, mas era tarde demais, as imagens superaram as palavras.

Ao se analisar a Resolução do Tribunal Superior Eleitoral n. 22.033 de


2005, que regulamentava a realização de campanha, verifica-se que a norma
cerceava bastante a liberdade de divulgação das campanhas, visando manter
um equilíbrio entre os pontos defendidos por cada Frente Parlamentar. Tal cer-
ceamento foi objeto de várias petições ao TSE, conforme recorda o então Mi-

174
30 anos da Constituição

nistro Presidente Carlos Velloso, que em suas memórias do Tribunal, cita um


caso em específico (2017, p.71):
Com receio de que a veiculação de propaganda eleitoral se tornasse ex-
cessiva e provocasse o desinteresse do eleitorado, o TSE reduziu em 20%
o tempo dos blocos de programas e das inserções nos veículos de comu-
nicação. Questionando tal decisão, a frente parlamentar Pelo Direito da
Legítima Defesa apresentou, em 19 de setembro de 2005, a petição nº
10.279, que foi indeferida pelo Plenário do TSE no âmbito da Instrução
nº 90, de 20 de setembro de 2005. O relator, Ministro Carlos Madeira,
entendeu que a propaganda do referendo, “considerada a manutenção
da propaganda partidária, sobrecarrega o eleitor/espectador/ouvinte. Isso
poderá prejudicar a consulta de 23 de outubro”.

Em meio a inúmeros procedimentos judiciais, o que se viu nas campanhas


de ambas Frentes Parlamentares, foi uma repetição das campanhas eleitorais
convencionais. Não se operou uma educação ou conscientização popular, como
demonstra Esteves (2007, p. 42-43):
Por não contar com o apoio de artistas, a campanha do Não, desde o
início, buscou descredenciar os seus depoimentos […].
A propaganda do Não também soube explorar muito bem a desconfian-
ça e a aversão da população em relação aos políticos e aos governos de
um modo geral. Colocou-se do lado do povo e elegeu “os políticos” como
o seu adversário, reforçando um antagonismo já existente.
[…].
Em relação aos principais argumentos utilizados pelas campanhas, con-
figurou-se uma guerra em torno de princípios, diagnósticos, prognósti-
cos e da própria credibilidade dos programas, com ataques de ambas as
partes e acusações de distorção de informações.

O que se viu, portanto, apesar da forte regulamentação prevista pelo TSE,


foi o mesmo modus operandi populista: a contraposição entre o bem e o mal feita
por ambos os lados, polarizando a sociedade em vez de gerar um debate amplo
e sadio. Porém, há de se ter em mente que a regulamentação da campanha
da consulta popular sobre o Estatuto do Desarmamento obedeceu à mesma

175
30 anos da Constituição

lógica das campanhas eleitorais. Por exemplo, em relação à programação das


emissoras de rádio e televisão mesmo fora do âmbito das propagandas gratuitas.
Dispunha a Resolução 22.033 do TSE:
DA PROGRAMAÇÃO NORMAL E NOTICIÁRIO NO RÁDIO E
NA TELEVISÃO
Art. 18. A partir de 1º de agosto de 2005, é vedado às emissoras de rádio
e televisão, em sua programação normal e noticiário:
I - transmitir, ainda que sob a forma de entrevista jornalística, imagens de
realização de pesquisa ou qualquer outro tipo de consulta popular em que
seja possível identificar o entrevistado ou em que haja manipulação de dados;
II - usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de
qualquer forma, degradem ou ridicularizem pessoas ou frente parlamen-
tar, bem como veicular programa com esse efeito;
III - veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou con-
trária a qualquer das propostas do referendo;
IV - dar tratamento privilegiado a qualquer das frentes parlamentares;
V - veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro pro-
grama com alusão ou crítica às frentes parlamentares, mesmo que dissimula-
damente, exceto programas jornalísticos ou debates sobre o referendo.
[…]
§ 3º Poderá a Justiça Eleitoral, por representação de frente parlamentar
ou do Ministério Público, fazer cessar a propaganda em desconformida-
de com este artigo.
§ 4º As disposições deste artigo aplicam-se às páginas mantidas pelas
empresas de comunicação social na Internet e demais redes destinadas à
prestação de serviços de telecomunicações de valor adicionado, inclusi-
ve provedores da Internet.

Tal compreensão foi baseada no disposto na Lei Eleitoral (Lei nº 9.504),


sendo uma cópia quase idêntica do que afirmava, à época, o artigo 45, antes de
interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade170:

170 Na ADIn 4451 a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), dentre outros
pontos, questionou o cerceamento à liberdade de expressão, já que o inciso II do art. 45 iria, segundo
entendimento, contra o art. 220 da Constituição Federal, impedindo manifestações de humor nas
rádios e TVs durante os meses pré-eleitorais. Tal entendimento prosperou, sendo considerado em 2010
inconstitucional o inciso.

176
30 anos da Constituição

Art. 45. A partir de 1º de julho do ano da eleição, é vedado às emissoras


de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário:
I - transmitir, ainda que sob a forma de entrevista jornalísti-
ca, imagens de realização de pesquisa ou qualquer outro tipo de
consulta popular de natureza eleitoral em que seja possível iden-
tificar o entrevistado ou em que haja manipulação de dados;
II - usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que,
de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou co-
ligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito;
III - veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou con-
trária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes;
IV - dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação;
V - veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro pro-
grama com alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que
dissimuladamente, exceto programas jornalísticos ou debates políticos;
VI - divulgar nome de programa que se refira a candidato escolhido em
convenção, ainda quando preexistente, inclusive se coincidente com o
nome do candidato ou com a variação nominal por ele adotada. Sendo
o nome do programa o mesmo que o do candidato, fica proibida a sua
divulgação, sob pena de cancelamento do respectivo registro.

As semelhanças, porém, não são apenas por ordem da regulamentação.


Lissovsky (2006, p. 36) demonstra que o recurso populista, da espetacularização
e do medo também foi visto nas campanhas:
Um novo comercial para mulheres [da campanha contra a proibição]
é criado e lançado em 07/10. Rememora e exalta suas “conquistas” – o
direito ao voto, ao trabalho – e conclui: “Mulher, não deixe que tirem
um direito seu”. O filme não faz qualquer referência a armas ou à vio-
lência, nem que é a isso que o referendo está relacionado. Em 09/10 é
lançado o comercial “jovem”. Neste caso, o ator interpela diretamente o
espectador: “Minha vida só está começando e já querem mexer nos meus
direitos… Que papo é esse de proibir?”. De novo, nenhuma referência a
armas e à violência. Finalmente, em 13/10 (mantido do no ar até 17/10),
um spot claramente dirigido aos “pais” (exibido simultaneamente com
aquele outro “pai” que “mudava de opinião” e retirava da frente de sua
casa o cartaz informando que não tinha armas). Um sujeito amável, com
jeito de apresentador de telecurso, diante de uma caixa cheia de objetos
“perigosos para as crianças”, perguntava: “Você já notou que o cidadão
tem direitos e obrigações, mesmo dentro de casa?” E seguia: direito de ter

177
30 anos da Constituição

remédios, produtos de limpeza, facas… mas “obrigação de guardar em


lugar seguro, longe do alcance das crianças.” Nesta série de três comer-
ciais, o direito específico de comprar uma arma desaparece e valoriza-se
apenas o atributo idealizado de cada membro da família moderna (mu-
lher/igualdade; jovem/ liberdade; homem/responsabilidade).

Porém Fuks & Paiva (2006, p. 23), mostram que apesar de terem disputas que
foram permeadas de tergiversações, a consulta popular realizada teve seus méritos
ao não se fundamentar nas pessoas envolvidas, e sim nos argumentos: “O embate
televisivo […] gerou um ambiente de debate, no qual o eleitor esteve exposto às
visões alternativas sobre o tema da proibição do comércio de armas e munições no
Brasil”, embora seja primordial considerar o nível da argumentação utilizada e o
conteúdo que foi repassado aos cidadãos para que discutissem esse tema e formas-
sem suas próprias opiniões. Há, portanto, potencial, embora a forma de realização
precise ser refinada para atender às premissas desenvolvidas por Dahl.
É preciso notar três premissas importantes: (a) os atores políticos das cam-
panhas eram os próprios parlamentares, que participam das campanhas eleito-
rais convencionais; (b) a lógica de campanha das frentes seguia a mesma regra
das campanhas eleitorais (e tinha como destino os mesmos atores políticos); e
(c) as ‘regras do jogo’ eram as mesmas das campanhas eleitorais.
Com as três premissas em vista, seria inesperado que a consulta popu-
lar sobre o Estatuto do Desarmamento tivesse um resultado distinto sobre a
percepção popular do que o processo eleitoral bienal. É possível modificar o
paradigma político e incentivar a participação popular, e os Mecanismos de
Democracia Direta são uma das possibilidades de realizá-lo. Porém, é necessário
realizar mudanças pontuais na execução destes mecanismos, para que eles não
sejam reféns da forma atual de se fazer política.

Considerações finais
O diagnóstico acerca da democracia brasileira é antigo. Os problemas enfren-
tados pela população para poder construir e expressar suas vontades não são tão
recentes quanto a Constituição de 1988. A redemocratização, bem como a promul-
gação da Constituição conhecida pelo seu caráter social, deram um novo fôlego aos
ímpetos populares, porém, não suficientes para desmantelar uma rede de poder que

178
30 anos da Constituição

é mais antiga que o próprio Brasil171, e que encontrou respaldo em técnicas populis-
tas de manutenção do poder. Reaproximar a população do cotidiano democrático,
não apenas ocupando espaços institucionais, mas também criando novas estruturas
é um processo longo e que independe de apenas pura legislação.
Essa reaproximação não pode ser um movimento que parta do Estado em
direção à sociedade, mas deve partir de ambos, um em direção ao outro. Para
isso, é necessário que se trabalhe uma educação formativa, conscientizadora
e autonomizadora, capacitando a população para reconhecer e lutar por seus
direitos, bem como para influenciar os seus representantes cotidianamente.
Dessa forma, impor e realizar consultas populares ou mesmo ativar outros
mecanismos de democracia direta enquanto se mantém a mesma lógica responsável
por manter o afastamento da população dos centros de decisão, distanciará ainda
mais a população dos seus representantes escolhidos. A aceitação dos stealth arran-
gements como algo natural do poder torna a democracia cada vez mais descartável.
É necessário realizar experiências, pois existem vários MDDs utilizados
de diferentes formas ao redor do mundo, com resultados de curto e longo prazo
que podem ser comparados com a realidade brasileira e aprimorados para que
se revertam em instrumento de democracia substancial.

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182
A Questão Constitucional em Face da
Institucionalização da (In)Segurança
- Novos Modelos Econômicos e
os Direitos Fundamentais

Claudio José Langroiva Pereira


Professor Doutor em Direito
Processual Penal da PUC/SP
Professor dos Cursos de Graduação e Pós-
-Graduação em Direito da PUC/SP
Advogado Criminal

Dhyelson Almeida
Especialista em Direito Penal e Direito Pro-
cessual Penal pela PUC/SP
Mestrando em História Econômica pela USP
Advogado Criminal

1. Princípios e valores instrumentalizados.


A Constituição Federal cumpre um papel essencial à ordem democrática e
republicana, e por tanto deve ser reconhecida, servindo como base de valores
eleitos pelo Estado Democrático de Direito172, onde os princípios orientadores
são permeados por previsões explícitas e implícitas, de forma a considerarmos,
de maneira mais ampla, valores culturais, sociais, políticos, econômicos, jurídi-
cos, administrativos, bem como interdisciplinares e transindividuais.

172 Artigo 1°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.

183
30 anos da Constituição

Assim, todo o sistema jurídico acaba alimentado por princípios nortea-


dores de garantias e condutas, sem um rol taxativo, mas que expressamente
determinam a proteção jurídica a ser exercida em cada situação ou dinâmica.
Podemos considerar, assim, que os princípios surgem como normas determi-
nantes da realização de um projeto maior, que constitui a imagem e personalidade
de um Estado, e que envolvem possibilidades jurídicas e fáticas, em uma constitui-
ção reconhecida por Robert Alexy173 como verdadeiros “mandados de otimização”,
que podem ser identificados por serem cumpridos por critérios de ponderação, em
diversos graus, sendo incluídos como orientadores e fundamentadores de decisões.
Desta forma, decorrentes de todo um sistema jurídico-político, identifica-
dor do Estado Republicano e Democrático de Direito, os princípios constituem
verdadeira orientação motivadora de valores fundamentais, que acabam previs-
tos, direta ou indiretamente, no âmbito da Constituição Federal.

2. Democracia e valores constitucionais.


O modelo de Estado Democrático de Direito ficou delimitado na Cons-
tituição Federal Brasileira por meio da identificação de princípios orientadores
de soberania popular, cidadania, garantia da dignidade da pessoa humana, que
reconhecem valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e acolhem o plu-
ralismo político, na busca por justiça social através da defesa da liberdade e da
igualdade174. Tais valores, por sua vez, foram adequadamente instrumentaliza-
dos por meio do debate legislativo, que serviu para relativizá-los dentro das suas
devidas proporções e sistematicamente, de modo que pudessem ser encaixados
em um ordenamento constituinte, servindo ao projeto de Estado, bem como
estipulando os pilares da Ordem Pública.
A partir disso, podemos destacar a cidadania como valor jurídico-político
de cada integrante do Estado brasileiro, e o direito à vida, à liberdade, à igual-
dade, à segurança e à propriedade como mecanismos disponíveis para a con-
cretização da independência de uma sociedade e do Estado em relação a outros

173 ALEXY, Robert. Problemas de la teoria del discurso. Atas do “Congreso Internacional de Filosofia”,
Córdoba: Universidade de Córdoba, 1988, pp. 59/70.
174 Artigos 1o. e 3o., da Constituição da República Federativa do Brasil.

184
30 anos da Constituição

Estados175. Assim, constrói-se uma individualidade cultural, política e social,


que, quando somados, acabam por expressar todo um conteúdo social e demo-
crático dos preceitos constitucionalmente adotados no Brasil176.
De outro lado, decorrente da soberania e realização popular177, apresen-
tando a própria democracia como princípio informativo178 de caráter social,
participativo e pluralista do Estado brasileiro, surge a legalidade democrática
como princípio de ordem, exigindo a subordinação dos integrantes do Estado
ao regime regulador fundamental, expresso na Constituição.
Destaca-se ainda todo o sistema garantidor dos direitos fundamentais de na-
tureza individual, coletiva, social e cultural179; o princípio da justiça social180, em um
exercício da democracia econômica, social e cultural181; os princípios da legalidade
e da igualdade182; o princípio da segurança jurídica183; o princípio da independência
de poderes184; todos integrantes e submetidos a esta organização democrática.
Não se afastando da adaptação aos reclamos da sociedade que soberana-
mente mantém sua existência, o princípio da justiça social possibilita a reali-
zação da democracia social e cultural, através dos valores sociais dominantes
atingindo seus objetivos, sob a égide da legalidade.
Como condição pré-existente da própria natureza do homem185, a dignida-
de assume forma com o reconhecimento do valor da pessoa humana, imposto
no artigo 1o, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, como
fundamento do Estado Democrático de Direito.

175 BARRETO, Vicente. Interpretação Constitucional e Estado Democrático de Direito..., p. 19 e ss.


176 REALE, Miguel. O Estado Democrático..., p. 3.
177 SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 121 e ss.
178 Artigo 1o. da Constituição da República Federativa do Brasil.
179 Títulos II, VII e VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
180 Artigos 3o., 170, caput, e 193, da Constituição da República Federativa do Brasil.
181 J.J. Gomes Canotilho, em sua obra Direito Constitucional - 5a. ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 373 e ss.
182 Artigo 5o., caput, I e II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
183 Artigo 5o., XXXVI e LXXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
184 Artigo 2o. da Constituição da República Federativa do Brasil.
185 REALE, Miguel. O Estado Democrático..., p. 106.

185
30 anos da Constituição

Surgindo como base de todos os direitos humanos previstos, a dignidade


humana estabelece a conexão entre o ser humano e suas ações como integran-
te da sociedade, independentemente de quaisquer atributos de ordem pessoal,
como função, título ou cargo186, concretizando-se através do inter-relaciona-
mento que a sociedade proporciona aos seus integrantes, pautado pela ética
comportamental e pela intervenção do Estado somente como última opção.
Considerado como supra-princípio187, e assim destacando-se como valor ine-
rente à própria natureza do ser humano, em um caráter absoluto e informador
de todos os demais princípios instrutores do Estado, a dignidade humana não
permite seu afastamento em favor de outro direito constitucionalmente previsto.
Como princípio orientador, exige um reconhecimento mútuo de direitos e de-
veres dos cidadãos e do Estado, fruto das experiências históricas do ser humano, que
conduziram à segregação de seus direitos fundamentais e, via de conseqüência, à di-
mensão dos valores essenciais à concretização destes direitos na sociedade188 e, assim,
como limite de esfera de proteção e intervenção do Estado na vida do cidadão189.
A Constituição que deve assumir em sua redação a existência dos direitos e
garantias fundamentais, que estão acima de quaisquer ideologias políticas190.
Importante, ainda, reiterar que, como limite de interferência que o próprio ser
permite ao outro e em seu inter-relacionamento social, figura a dignidade como valor
supremo, que assimila o conteúdo de todos os denominados direitos fundamentais de
ordem pessoal, física e moral, social e econômica, definindo-se por características de
autonomia e especificidade, sendo fonte de todos os direitos humanos.
Exigindo a participação efetiva e concreta para um desenvolvimento social, de
acordo com os valores definidos pelo próprio grupo191, aparece a dignidade como pa-

186 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. “Direitos Humanos e Direito Penal: limites da intervenção
estatal no Estado Democrático de Direito”. In: Estudos Criminais em Homenagem a Evandro
Lins e Silva (criminalista do século), São Paulo: Editora Método, 2001, p. 74.
187 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional..., p.50
188 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São
Paulo: Editora Saraiva, 2.002, p. 48 e ss.
189 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. IV, 2a. edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 89.
190 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Poder Constituinte, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
191 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. “Direitos Humanos e Direito Penal: limites da intervenção
estatal no Estado Democrático de Direito”..., p. 74.

186
30 anos da Constituição

râmetro social que prioriza seu cumprimento através da responsabilidade pessoal de


cada integrante da sociedade, com base no seu mundo de vida.
Considerada como respeito mútuo em uma comunidade jurídica de con-
vivência192, possui um conteúdo de personalismo ético, de forma a possibilitar
que cada ser humano possa atribuir um valor a si mesmo, a ser respeitado por
todos os outros na sociedade.
Mediante o reconhecimento pleno do Princípio da Dignidade Humana,
podemos concluir que toda a Constituição exige um método de interpretação
próprio, que leve em conta normas positivamente definidas, mas analisadas sob
a ótica dos valores democráticos defendidos neste Estado, estabelecendo uma
relação entre seus princípios orientadores e as práticas constitucionais que pos-
sibilitam sua materialização193. Só esta interpretação se justifica.

3. Institucionalização e seus aspectos


Uma vez analisada o papel das garantias individuais em um contexto de-
mocrático e republicano, focando na forma como suas diretrizes influenciam a
construção de instituições, ao mesmo tempo em que determinam os caminhos
para as suas atividades.
Em sua conceituação clássica (Primeira Fase), Douglass North194, um
dos fundadores da Teoria Econômica Institucional, afirma que as instituições
podem ser interpretadas como sendo regras dentro de um contexto, um jogo,
um modelo de relações e comportamentos em uma seara político-econômica
e social, que determinam o que os jogadores, agentes econômicos e cidadãos,
podem e não podem realizar.
Para esta conceituação, Douglass North se utiliza do poder da lei, e seus
meios de coerção. Conclui que, a estabilidade das regras é de suma importância
para que uma instituição possa permanecer em funcionamento, pois um conjun-
to de regras que sofrem alterações frequentes não podem ser consideradas insti-

192 LARENZ, Karl. Derecho Civil parte general, tradução Miguel Izquierdo y Macías-Picave, Madrid:
Ed. Edersa, 1978, p. 44/46.
193 BARRETO, Vicente. “Interpretação Constitucional e Estado Democrático de Direito”..., p. 14 e ss.
194 North, Douglass C. Structure and Change in Economic History. Norton, 1981.

187
30 anos da Constituição

tuições, vez que não garantem a estabilidade necessária para reduzir a graus de
incerteza e os custos de transação inerentes a dinâmicas sociais e econômicas.
Todavia Douglass North não ignora que existem fatores de alteração de
tais “regras”. A principal fonte (fatores) das mudanças reside no campo político-
-econômico, onde ocorrem as oscilações nos Preços Relativos195 que, como a
própria terminologia diz, é o quanto vale uma mercadoria em relação à outra.
Segundo esta lógica, os Preços Relativos alterariam os incentivos dos
agentes econômicos no processo de interação e, em especial, alterariam as pre-
ferências dos indivíduos196.
Agora, passemos então a melhor analisar essa harmonização e suas dinâmicas.
Para se determinar a eficácia e licitude de eventuais medidas e, principal-
mente, sua possibilidade de resultado, há de prezar pela adequada harmoniza-
ção entre as disposições legais e constitucionais, as dinâmicas contratuais e de
mercado, os bens jurídicos constitucionalmente previstos e a adequada instru-
mentalização de imputações e exigibilidade de responsabilidades sobre todos os
agentes envolvidos, nesse contexto de oscilação de valores e regras.
Tomando-se por referência o conceito de instituição como sendo um agre-
gado de regras dentro de um modelo dinâmico de relações e comportamen-
tos em uma seara político-econômica e social, Douglass North e Robert Paul
Thomas conseguiram desenvolver um modelo institucional capaz de atingir o
crescimento de longo prazo, mantendo certo grau de sustentabilidade por igual
período ou mais, refletindo assim na manutenção da funcionalidade em diver-
sas outras áreas não relacionadas diretamente com o setor público e econômico,
mas que exercem valor ímpar na manutenção de todo o cenário civilizatório197.

195 Preços Relativos é uma expressão cunhada para descrever a dinâmica dos preços de um bem em
relação aos demais, do que os preços absolutos (isolados) das mercadorias.
196 North, Douglass C. Institutions. 1991.
197 North, Douglass C.; Robert Paul Thomas. The Rise of the Western World: A New Economic History.
New York. Cambridge University Press, 1973. As propostas de Douglass North e Robert Paul Thomas
tem sido destaque nos projetos de administração pública e econômica do Ocidente, exemplificadas
principalmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Segundo os autores, o processo histórico do
surgimento do capitalismo no mundo ocidental é o escopo de seu trabalho em The Rise of the Western
World: A New Economic History. Sua obra, em suma, procura mostrar como a Holanda e a Inglaterra
foram capazes de superar com sucesso as dificuldades impostas pela transição do modelo político-
econômico feudal de produção e alocação de riquezas para o capitalismo, em sua forma mais crua.

188
30 anos da Constituição

Outrossim, os autores fazem referência ainda à influência conservadora


exercida pelas instituições já estabelecidas em um contexto social e político-
-econômico, que, novamente, visando os seus próprios interesses, impedem ou
dificultam as mudanças desejadas pelos mais diversos segmentos da sociedade,
afetando a integridade das relações, pois influenciam na oscilação de valores e
regras de acordo com o seu melhor interesse.
O que se pode observar, nos levando por esta linha argumentativa, é que o
estabelecimento de premissas no sentido de que se as alterações nos preços rela-
tivos trarão perdas para grupos de interesse e influência já estabelecidos, parece
claro que estes irão se posicionar contra as mudanças propostas por conta do
surgimento de novas instituições e arranjos oriundos destas.
Assim, em um cenário próximo àquele em que vimos, formas de corrup-
ção hão de se alojar intrinsecamente em nossa sociedade, pois possibilitam que
instituições ineficientes, mas sustentadas por grupos de interesse relativamente
poderosos ou amplamente difundidos dentro de um sistema político-econômi-
co, podem ter vida longa, independente da sua real funcionalidade ou efetivida-
de, até que um evento disruptivo ocorra e modifique o equilíbrio entre as forças.
Sobre este aspecto, seguindo o pensamento de Douglass North e Robert
Paul Thomas, uma solução institucional para os problemas e para as crises en-
frentadas está antes nas regras e nos arranjos institucionais que inibem ou esti-

Em tempo, mister se faz a ressalva de que a obra de Douglass North foi sofrendo modificações
ao longo do tempo, e que isso afetou a direção das conclusões tomadas por ele após os primeiros
anos das suas publicações. Especificamente na sua obra The Rise of the Western World, escrita em
conjunto com Robert Paul Thomas, os autores concluíram que a mudança nos preços relativos daria
origem a instituições eficientes, outrossim, em suas obras posteriores, North abandona o princípio da
racionalidade estrita e seus trabalhos passam a seguir outro caminho.
Apenas a título de exemplo, em 1981, Douglass North passa a considerar que a trajetória de
desenvolvimento econômico das nações depende mais da forma como os direitos de propriedade
são definidos por força de lei, aplicados e mantidos pelas instituições públicas e agentes econômicos,
tomando como exemplos casos de direitos mal ou insuficientemente definidos ao longo da trajetória
histórica, e que prevaleceram por longos períodos. A evolução do seu pensamento a respeito do papel
das instituições e do Estado alcançou seu ápice em sua terceira fase, na sua obra de 1990 Institutions,
Institutional Change and Economic Performance, quando ele se afastou da noção de Estado construída
em seu livro anterior, Structure and Change in Economic History (segunda fase em 1981). Já nos anos
90, há uma preocupação evidente no aprofundamento da inter-relação entre o político e o econômico,
anteriormente reduzida a simples relação entre o governante em busca de receita fiscal e a sociedade
que demanda a definição de direitos, seu adequado cumprimento, e a oferta de bens públicos.

189
30 anos da Constituição

mulam atividades desta natureza (corrupção), do que em qualquer processo de


acumulação de capital ou de progresso tecnológico.
O inverso também é assim concebido. No limite, o segredo para o crescimento
de instituições fortes e integras, está na construção de uma matriz que estimule a
acumulação de capital físico e humano a longo prazo e de forma ininterrupta ou
vinculada aos interesses de grupos de pressão, ou mesmo demais grupos políticos.
A grande distância observada ainda hoje entre países pobres e ricos en-
contra-se muito mais em diferenças entre matrizes institucionais do que em
problemas de corrupção ou crimes contra a administração pública.
Sociedades pobres (institucionalmente fracas) encontram-se nessa situação
justamente por não terem desenvolvido uma base de regras aplicáveis plenamente
e efetivamente, leis e costumes capazes de estimular atividades economicamente
produtivas, especificamente acumulação de capital e de conhecimento.

4. Os direitos sociais em face da incursão econômica


Após as grandes guerras mundiais, a sociedade mundial adotou princípios
modeladores, verdadeiros mandados de otimização198, que proporcionaram a
preservação da ordem social e da ordem econômica, considerados assim como
meios de produção de condições dignas de vida, buscando a integração e a
sustentabilidade dos direitos fundamentais, e consequentemente afastando as
desigualdades do modelo de estado democrático de direito199.
Com a adequada difusão de tais mandados de otimização, ocorreu tam-
bém um aumento drástico da relevância na divulgação e promoção dos institu-
tos do direito e da economia e suas metodologias, resultando em inovações nas
estruturas e aparatos técnicos que fomentavam a metodologia de análise.
Isso permitiu uma miscigenação entre temas interdisciplinares não somen-
te entre as matérias da economia e do direito, mas também do direito em si.
Tal fenômeno reduziu drasticamente a abstração do “transindividual”, refi-
nando e direcionando sua abordagem, trazendo também elementos de horizon-

198 ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, princípios jurídicos y razón práctica, Buenos Aires: Doxa, 1988, p. 143 e ss.
199 SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito, São
Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 5 e ss.

190
30 anos da Constituição

talização da eficácia de direitos fundamentais nas relações interpessoais privadas,


harmonizando a autonomia de vontade das partes com as características de in-
disponibilidade e inalienabilidade dos seus direitos mais básicos, garantindo de
forma efetiva e funcional a primazia do núcleo do ordenamento jurídico-constitu-
cional das relações intersociais dos particulares, resultando em um cenário onde
poderá ocorrer, de maneira democrática, a publicização do Direito Privado e a
privatização do Direito Público, no sentido em que, “em breve, teremos um único
ordenamento para reger as relações jurídicas, sejam elas do Poder Público ou do cida-
dão comum. Isto porque a responsabilidade pela realização dos objetivos fundamentais
da República do Brasil (art. 3º da Constituição) não é tarefa exclusiva do Poder Pú-
blico, mas responsabilidade de toda a sociedade que compõem a Nação brasileira”200.
A ascensão dos modelos de Parceria Público-Privada (PPP) e de tutela
arbitral, antes tida como equivalente jurisdicional e agora ascendendo como
jurisdição, são bons exemplos desse cenário de transição.
Outrossim, sustentada pelas ideias iniciais de supressão de barreiras al-
fandegárias e custos variados, instalou-se uma expansão econômica que pro-
porcionou a internacionalização, e acabou por concorrer com a ampliação das
relações comerciais e dos mercados de trabalho, estabelecendo uma verdadeira
integração regional que, por outro lado, levou à instabilidade nas relações so-
ciais, em especial de trabalho.
A nova ordem mundial reconheceu que a globalização surge como caminho
evolutivo, incluindo características eminentemente econômicas201, acenando
para a possibilidade de uma globalização das relações sociais de caráter econô-
mico, em uma ordem comunitária ou supranacional, com uma multiplicidade de
sistemas normativos reguladores (anglo-saxão/common law; legalista de influência
francesa ou tradicional ítalo-germânico), buscando um resultado satisfatório e
eficaz, que deve manter as bases constitucionais do estado democrático de direi-
to202, conduzindo esta nova ordem econômica para um patamar de valorização

200 FIGUEIREDO. Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 7ª Edição. Ed. Forense, Rio de
Janeiro/RJ, 2014. Fls. 58.
201 PETERMANN, Rolf. Conceito jurídico de constituição econômica. Dissertação de mestrado,
Biblioteca de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: Editoração do autor, 1990.
202 Artigos 170 a 192, da Constituição da República Federativa do Brasil.

191
30 anos da Constituição

do trabalho humano, superando contradições históricas entre trabalho e capital,


em busca de uma revalidação dos princípios de dignidade da pessoa humana203.
Por sua vez, a nova realidade econômica globalizada estabeleceu critérios de mo-
dificação da aplicação da lei no espaço, pondo em crise o princípio da territorialida-
de, flexibilizando princípios de proteção e segurança jurídico sociais, justificada pelos
mandatos de soberania que os Estados exercem quando das relações econômicas.
A sociedade de consumo, em uma recomposição social dirigida ao respei-
to às organizações transnacionais, empresariais, diretamente constituídas sobre
severas previsões orçamentárias, planejamentos estratégicos e regulamentações
objetivas dos limites de atuação, adaptou-se ao desenvolvimento técnico-cien-
tífico, atribuindo valores significativos aos bens jurídicos de caráter econômico.

5. A constituição de uma teoria do bem jurídico


segundo parâmetros democráticos
Como princípio e valor máximo, orientador do modelo de Estado Demo-
crático de Direito, a dignidade humana precipita uma leitura de que tudo aquilo
que, em um sentido amplo de conceituação doutrinária, possuir importância
para o ser humano como objeto útil, apto para satisfazer suas necessidades, em
um contexto de valoração pessoal, estabelecendo uma relação entre um indiví-
duo e um objeto, deve ser considerado como bem.
Tendo como titular tanto o particular como a própria coletividade, o bem
jurídico pode ser entendido como um valor ideal, proveniente da ordem social
em vigor, juridicamente estabelecido e protegido, em relação ao qual a socieda-
de tem interesse na segurança e manutenção.
O bem jurídico submete-se a comandos e proibições elencadas no Direi-
to, que têm sua origem nas denominadas normas de valoração, decorrentes de
aprovações e desaprovações sociais.
Envolvendo tanto objetos físicos como qualidades de uma pessoa, tanto di-
reitos como garantias, materiais e imateriais, em uma constituição de interesses
e objetos vinculados por um conceito de valores sociais, que os destaca como de

203 Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

192
30 anos da Constituição

grande ou significante valia, o bem jurídico dá preferência a determinados interes-


ses considerados sagrados ou intocáveis, até que um novo conceito social surja204.
O conceito de bem jurídico é obra da ilustração, do iluminismo, decorren-
te do pensamento de Paul Johann Anselm Feuerbach205, que passou pela dis-
cussão jurídica de Karl Binding206 e Franz von Liszt207, até sua negação durante
o domínio da escola nazista alemã de Kiel208, que reduziu sua contextualização
às lesões ao dever, estas como conteúdo ou sentido do próprio delito209, o que
foi facilmente aplicado pelo pensamento nazista, através da utilização de uma
noção neokantiana de bem jurídico perfilada com a dependência normativa210.
A recuperação das características sociais do conceito de bem jurídico, só
acabou por ocorrer parcialmente com Hanz Welzel211, que retoma o bem jurí-
dico como “bem da vida”, um verdadeiro estado social, sem natureza jurídico-
-positiva, mas sócio-política, apesar de manter um caráter abstrato212.
Em um caráter funcional de sistema, podendo qualquer coisa adquirir o
caráter de bem jurídico, temos o conceito de Knut Amelung213, que apresenta
um posicionamento sobre os bens jurídicos como produtos da vida social.

204 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 7ª edição, tradução de J. Baptista Machado,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.46 e ss.
205 A doutrina jurídica, em geral, praticamente de forma unânime, atribui a Paul Johann Anselm
Feuerbach a limitação do Direito Penal à proteção de direitos ou interesses subjetivos, afetos a
determinado sujeito. Neste sentido, dentre inúmeros outros: HASSEMER, Winfried. Fundamentos...;
ROXIN, Claus. Problemas..., p. 27 e ss.; MIR PUIG, Santiago, El Derecho Penal...; SILVA SÁNCHEZ,
Jesús-María, Aproximación...; PRADO, Luiz Régis, Bem-Jurídico Penal..., p. 28 e ss.
206 BINDING, Carlo. Compendio de diritto penale – parte generale, tradução de Adelmo Borettini,
Roma: Atheneum, 1927, p. 197 e ss.
207 Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal allemão. Tradução e comentários de José Hygino Duarte
Pereira, Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, tomo I, p. 94 e ss.
208 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p.25
209 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 26, nota 108.
210 R. Honig e a Escola de Marburgo, representada por E. Schwinge e L. Zimmerl, via no bem jurídico
e seu conceito um princípio motriz para toda interpretação e constituição de conceitos, dentro do
Direito Penal. Uma dialética de conceitos pré-estabelecidos, segundo uma ordem normativa orientada
pelos bens jurídicos eleitos. Vide: BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 25/26 e nota 107.
211 WELZEL, Hanz. Derecho Penal alemán. 11ª edição, tradução de Juan Bustos Ramirez y S. Yáñez,
Santiago: Editora Jurídica de Chile, 1976, p. 15 e ss.
212 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Op. cit., p. 26.
213 Ibid., mesma página.

193
30 anos da Constituição

Já Günther Jakobs214, em uma representação da própria validação fática da nor-


ma, considera o bem jurídico como residente na garantia de expectativas de bom fun-
cionamento da vida social, dentro de conjunturas exigidas e estabelecidas legalmente.
Tendo como base a posição de cada indivíduo em relações sociais esta-
belecidas, segundo valores e objetos tutelados e, por conseqüência, a interação
que se opera entre eles, Juan Bustos Ramirez215 define o bem jurídico como
conseqüência de uma formulação normativa sintética concreta, decorrente de
uma relação social dinâmica determinada.
De outro lado, Claus Roxin define o bem jurídico como um conjunto de
pressupostos imprescindíveis para a existência e convivência, concretizado em
condições de valor, como vida, liberdade, propriedade, indispensáveis para a
manutenção da vida em sociedade216.
Os bens jurídicos têm um caráter eminentemente pessoal, ligados às pró-
prias condições de existência individuada de cada ser humano em uma socieda-
de217, devendo se posicionar segundo a realidade social, formada dos conflitos
estabelecidos entre as pessoas, decorrente de necessidades particulares de satis-
fação de interesses diversos.
Assim o bem jurídico acaba no campo dos valores sociais, traduzindo-se
em uma concreta possibilidade de tutela dos interesses individuais, alinhado
com um sistema jurídico social e democrático218.
Neste sentido, para justificar a identificação do bem jurídico no atual
modelo de Estado Democrático de Direito, alguns princípios orientadores de
sua contextualização devem ser destacados, de forma a compor seu conceito,
segundo os valores orientadores deste mesmo modelo: a dignidade da pessoa

214 JAKOBS, Günther. Derecho Penal- Parte general; fundamentos y teoria de la imputación. Tradução
Joaquim Cuello Contreras, José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p.
44 e ss; Fundamentos del Derecho Penal. Tradução de Manuel Cancio Meliá e Enrique Peñaranda
Ramos (Universidad Autónoma de Madrid), Buenos Aires: Ad-Hoc S.R.L., 1996, p. 179 e ss.
215 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción..., p. 28.
216 ROXIN, Claus. Problemas..., p. 27 e 28.
217 PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., pp. 49 e 50.
218 MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 161.

194
30 anos da Constituição

humana219; a inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da segurança


e da propriedade220; a legalidade221.
Estes princípios compõem um chamado constitucional para impor limites e
garantias ao cidadão, satisfazendo a consciência jurídica geral, através de uma re-
-afirmação de valores sociais222, em uma diretiva restritiva constitucional, através
de um quadro de referenciais jurídico-constitucionais, explicita ou implicitamente
consagrados pela Constituição, em um exercício de proporcionalidade de bens223.
Um conceito de bem jurídico, por isto mesmo, vem pautado em uma apre-
ciação dos elementos fundamentais para uma vida digna do ser humano224, e
assim referendado por teorias constitucionalistas preenchidas por conceitos
sociológico-funcionalistas.
De outro lado encontramos, também, a danosidade social225 como teoria de
concepção de bens jurídicos, considerada no critério de correção de condutas, segun-
do uma potencialidade lesiva ou ofensiva, em uma visão participativa dos princípios
orientadores das práticas de reconhecimento e proteção da dignidade e da liberdade
do ser humano, que surgem como elemento orientador e legitimador desta teoria.

6. O trabalho como bem jurídico


Em razão da explosão demográfica das relações econômicas transnacio-
nais, da produção e do consumo de massas, dos meios de comunicação, dentre
outras atividades que escaparam ao controle individual do ser humano, a or-
ganização do homem em sociedade consolidou a existência de certos interesses
que não pertenciam a indivíduos determinados, mas a toda a coletividade.

219 Artigo 1o, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.


220 Artigo 5°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
221 Artigo 5°, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
222 MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal..., p. 37 e 38.
223 AGUADO CORREA, Teresa. El principio de proporcionalidade en derecho penal. Madrid:
Editorial Edersa, 1999, p. 178 e ss.
224 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 267.
225 HASSEMER, Winfried. Fundamentos..., p. 38.

195
30 anos da Constituição

Estes interesses atingem a qualidade de vida e precipitam a necessidade de uma


proteção jurídica diferenciada. Uma definição inicial destes novos interesses, não pos-
sibilita divergências quanto a serem sinônimos, mas encerra-se na problemática da
definição dos interesses difusos e coletivos, segundo a doutrina civil, como um todo.
Os interesses difusos podem ser considerados como aqueles que envolvem
um número indeterminado de pessoas em razão de um mesmo fato em comum.
Já os interesses coletivos são aqueles que se referem aos grupos ou categorias de
pessoas determinadas, individualizadas, segundo determinada categorização ou
projeção corporativa. Assim, apesar de possuírem diferenças como, por exem-
plo, de ordem quantitativa e qualitativa, permanecem como espécies do gênero
“meta-individual, supra-individual, universal”226.
Os interesses públicos, ou do Estado, nesta perspectiva clássica de conflito
de interesses entre o Estado e os cidadãos, também compõe este mesmo grupo227.
Os interesses jurídicos substanciais não subjetivados; que não se indivi-
dualizam; que não se situam numa determinada pessoa, apenas reflexamente
protegidos, escapam a essa esfera de subjetivação.
Embora pertinentes a uma cadeia indeterminada de indivíduos (o que lhes
confere a conotação de metaindividualidade), alguns deles são passíveis de se-
rem atraídos por atos da administração pública, e simultaneamente mantêm
características de interesse individual, assim denominados de interesses difusos.
Identificados como coletivos, não envolvendo o homem-unidade, mas tão
só como órgão integrante de associações ou corporações, temos outros inte-
resses ou bens que incidem sobre o homem socialmente engajado, membro de
comunidades menores ou grupos que se perfilam entre o indivíduo e o Estado,
sujeitando-se a regime jurídico portador de características peculiares228.
Por mera identidade de situações e não por vínculos associativos e corpo-
rativos, como nos interesses coletivos, os interesses difusos abraçam uma série
indeterminada e aberta de indivíduos, sem se limitar a certos segmentos, com
titulares que se ligam apenas mediante vínculos essencialmente fáticos.

226 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos – Conceito e legitimação para agir. 5ª edição,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.000, p. 74 e ss..
227 GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. A tutela dos interesses difusos.
São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1984, p. 30.
228 PRADE, Péricles. Conceito..., p. 41.

196
30 anos da Constituição

Não podemos deixar de considerar como natural a condução à potencia-


lização do indivíduo perante a sociedade, valorizando direitos pessoais, bem
como direitos perante os grupos sociais aos quais ele se integra, ou mesmo em
relação à própria estrutura social a que pertence229.
Compondo assim um grupo homogêneo, que acaba sendo protegido “uni-
versalmente” da mesma forma, a expansão do âmbito de proteção do indivíduo,
de forma progressiva, eleva o diâmetro de proteção até obter uma sobreposição
de direitos individuais de mesma espécie e natureza.
Assim, a funcionalização de interesses generalizados e do próprio Estado
deve ser sempre dirigida ao indivíduo, reconhecido de forma singular ou coleti-
va, onde a prioridade deve ser dada aos bens jurídicos individuais230.
Da necessidade de posicionamento sobre a atuação do direito, a própria
segurança ao trabalho, em todo este contexto, acaba por se destacar.
Assim, o trabalho e a segurança ao trabalho, podem ser considerados
como conjuntos de valores e direitos interpretados segundo a Constituição, que
reconhecem o ser humano como centro dos interesses do ordenamento.
O individuo coletivamente conduz a uma consideração de bens jurídicos
quando estes correspondem a interesses conciliados, assegurando as necessida-
des vitais do ser humano231.
Considerando o indivíduo como um ser social, temos que a real função das
instituições e do próprio sistema é atender às necessidades sociais e, assim, por con-
sequência, as necessidades individuais de cada componente esta mesma sociedade.

6.1. Da proteção, do direito ao trabalho


e seu histórico-evolutivo
O trabalho, assim considerado como bem jurídico, pressupõe o respeito ao
princípio da proteção do trabalhador, como orientador de todo o sistema.

229 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción..., p. 103 e ss.


230 PÉREZ ALVAREZ, Fernando. Protección penal del consumidor. Salud pública y alimentación.
Barcelona: Práxis, 1991, p. 51.
231 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., pp. 269/271.

197
30 anos da Constituição

A defesa do trabalhador em razão, em regra, da hipossuficiência desen-


volvida na relação contratual com o empregador, prevalece como forma de re-
presentação da intervenção do Estado, para assegurar o equilíbrio das relações
sociais, em verdadeiro respeito ao princípio da igualdade.
A relação estrutural do direito ao trabalho tem por base a retificação, no plano
jurídico, do desequilíbrio existente no contrato de trabalho, propugnando pela igual-
dade na propositura de regras protetivas da vontade e dos interesses dos trabalhadores.
A criação de derivações desta orientação principiológica envolve o reco-
nhecimento da prevalência da norma favorável, da imperatividade das normas
e da indisponibilidade dos direitos trabalhistas.
A orientação histórico-evolutiva deste princípio evidencia uma relação de so-
breposição das diretivas protetoras dos trabalhadores em relação às demais normas.
Conceitos de equilíbrio social, perseguidos por séculos pela sociedade or-
ganizada, observaram na Revolução Francesa de 1789, que estabeleceu princí-
pios abstratos de igualdade e liberdade, na busca de melhores condições de vida,
um importante momento político, todavia onde a liberdade foi estabelecida em
todos os níveis em igualdade de condições.
Em virtude disto, os parâmetros impostos pela Revolução Francesa não
foram satisfatórios, pois marcados pelo desequilíbrio no tratamento de desiguais
de forma igual, em uma verdadeira violação ao princípio ideal da igualdade,
falhando no campo social ao manter a desigualdade como realidade232.
De outro lado, o valor da Revolução Francesa, para a evolução histórica
dos direitos sociais, se concretiza com o impulso na discussão da necessidade do
estabelecimento de direitos sociais nas constituições, em um equilíbrio entre os
deveres e os direitos inerentes a trabalhadores e empregadores.
Tal situação de equilíbrio e justiça social se vê finalmente materializada
na Constituição Federal do México, 1917233, que serviu de inspiração às demais
constituições latino-americanas. A Constituição Mexicana, em seu conteúdo
normativo, amplia o campo das relações sociais, estabelecendo direitos e deve-
res do cidadão trabalhador.

232 SUSSEKIND, ARNALDO L., Direito Constitucional do Trabalho, Editora Renovar, 2ª edição, 2001.
233 O artigo 123 da Constituição Federal do México estabelece direitos sociais dos trabalhadores.

198
30 anos da Constituição

Seguindo os mesmos passos nas relações sociais, a Constituição de Weimar


de 1919, na Alemanha, de outro lado, foi a base dos conceitos de democracia so-
cial, servindo de paradigma e inspiração para as demais constituições européias
da época, e, neste contexto, assegurando direitos e garantias dos trabalhadores.
Em 1927, o regime fascista estabeleceu na Constituição italiana234, um
modelo corporativista de direitos e garantias trabalhistas, com a significativa
intervenção estatal como marca.
No Brasil, somente na Constituição de 1934 os direitos do trabalhador começam
a ser considerados, em especial sob a inspiração da Constituição Alemã de Weimar.
A Carta Constitucional brasileira de 1937, agora sob a influência da Constitui-
ção italiana de 1927, adota posicionamentos corporativistas, com a intervenção do
Estado como regra, quando da questão dos direitos e das garantias trabalhistas.
Seguindo a ordem evolutiva mundial, pautada pelo fim da Segunda Guer-
ra, a Constituição brasileira de 1946 acolhe ideais democráticos como sustento
das previsões sobre direitos e garantias sociais.
Em linhas gerais, a legislação trabalhista começou a ser elaborada no Bra-
sil a partir da Revolução de 1930, quando o Governo Provisório, sob a chefia do
Presidente Getúlio Vargas, criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comér-
cio e promulgou a Consolidação das Leis do Trabalho, através do Decreto-lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943.
A Constituição brasileira de 1967, mesmo com a emenda constitucional
de 1969, manteve estes mesmos direitos sociais do trabalhador, apesar da limi-
tação decorrente da intervenção militar na época.
Finalmente a Constituição Federal de 1988, estabelecendo o modelo de
Estado Democrático de Direito no país, trouxe os direitos sociais como caracte-
rística marcante do texto constitucional, apesar de não se tratar de uma cons-
tituição que os tem como sua principal base de sua sustentação, daí porque o
questionamento sobre suas características social-democráticas235.

234 A denominada Carta Del Lavoro


235 SUSSEKIND, ARNALDO L., Direito Constitucional do Trabalho, Editora Renovar, 2ª edição, 2001.

199
30 anos da Constituição

A Constituição Federal de 1988 apresentou ao Brasil um avanço signifi-


cativo, quando destacou os direitos trabalhistas, atribuindo-lhes a condição de
direito alienável, que independe da vontade e da política a ser impressa pelo
Estado, deslocando estes direitos formalmente para o título “Dos Direito Sociais”.

7. Pós-modernidade, globalização e flexisegurança


Com a globalização das relações sociais, um novo modelo de relação de
trabalho surgiu. Envolvendo rápidas mudanças estruturais, com a individuali-
zação nas relações de emprego, a flexibilidade dos contratos de trabalho, a am-
pliação do trabalho autônomo, terceirizado e do trabalho informal, uma rápida
redução da segurança empregatícia se estabeleceu.
Ao contrário de toda a história dos direitos e garantias sociais é possível
observar, como decorrência da globalização das relações sociais, em especial
econômicas, um crescimento e a uma valorização de um princípio de proteção
capitalista do empregador, em prejuízo do trabalhador.
Aparecendo como uma espécie de terceira via, a flexisegurança se coloca
como uma construção situada entre o modelo americano de total desregulamen-
tação e o direito à segurança do trabalho, este último que emergiu dos modelos
constitucionais que se sustentam através de bases e garantias a direitos indivi-
duais e sociais, historicamente iniciados com a Constituição do México de 1917.
Assim, de um lado encontramos empregados com direitos individuais as-
segurados e, em contrapartida, estes mesmos direitos impedindo a ampliação e
a conquista de outros direitos, em uma verdadeira troca de grandes concessões
por pequenas conquistas, principalmente de caráter individual.
Temos, por exemplo, os casos onde o salário, abaixo das expectativas e
do próprio mercado, acaba por possibilitar jornadas mais longas de trabalho,
através de seu complemento por meio de horas extraordinárias, que são incor-
poradas ao pagamento.
No mesmo sentido vemos adicionais de insalubridade e periculosidade, que
acabam por equilibrar economicamente os ambientes insalubres de trabalho, mas
mantém legal a falta de medidas de segurança necessárias à diminuição dos riscos e
dos prejuízos ao trabalhado, em verdadeira precariedade das condições de trabalho.

200
30 anos da Constituição

Neste contexto se identifica a flexibilização das relações de trabalho ou a


flexisegurança.
Trata-se da perda da aplicabilidade jurídica do princípio da proteção do trabalha-
dor e, assim, de uma possível deterioração da dignidade humana nas relações sociais.
Através da flexibilização dos mercados de trabalho e de sua desregula-
mentação, a flexisegurança resta sustentada por um modelo tecnocentrico de
teorias ortodoxas, onde o homem é identificado como um produto no centro
das relações de produção, distribuição e redistribuição.
A flexisegurança concilia dois valores sensivelmente antagônicos, ali-
nhando a flexibilidade do mercado de trabalho com a segurança dos traba-
lhadores, de forma a flexibilizar ao máximo a mobilidade do emprego, facilitar
as formas flexíveis de contratação, como a contratação temporária, e as dis-
pensas sem ônus, os contratos de trabalho vinculados ao resultado e a fixação
de horários de trabalho flexíveis que atendam à demanda de produção. Como
compensação aos trabalhadores, propõe um significativo impulso à quotas do
seguro-desemprego e a uma política de recolocação de trabalho.
Todavia a compensação aos trabalhadores representa prejuízos indiretos
como, por exemplo, o ônus aos cofres públicos decorrente dos aumentos das
quotas do seguro-desemprego e assim, conseqüentemente, levando a um au-
mento de impostos, a ser suportado pela sociedade. Também duvidosa resta a
eficácia e a vantagem da recolocação de novo posto de trabalho.
A flexisegurança tem sua origem nos países nórdicos, Holanda, Suécia e
Dinamarca.
Destaca-se neste grupo a Dinamarca, onde a flexisegurança teve sua origem
com a chamada Lei de Jante (denominada “Lei Invisível” ou “lei não escrita”) um
conjunto de regras que cuidam da flexibilização das relações de trabalho.
Um Estado onde a competitividade internacional, a segurança e a satisfação
com o emprego, aliadas à qualidade de vida e sustentabilidade econômica, colocam
o país entre os primeiros em qualidade de vida na União Européia. Os trabalhado-
res na Dinamarca recebem seguro-desemprego até a obtenção de uma recolocação
no mercado, restando proibido ao trabalhador negar a empregar-se, restando carac-
terizada uma proteção individual, distante da segurança de postos de trabalho, em
uma efetiva política de cooperação entre empregadores e empregados.

201
30 anos da Constituição

Dotada de um PIB (produto interno bruto) de cerca de 30.000 (trinta mil)


euros per capita ano, e assim baseada a remuneração média anual do trabalha-
dor neste valor, ainda mantém um salário mínimo nacional de cerca de 1.000
(mil) euros para trabalhadores com pouca formação, em uma população média
de 5,5 (cinco e meio) milhões de habitantes.
A flexisegurança nasceu em um país onde o trabalho identifica-se com o pró-
prio ser humano como parte de uma sociedade, que considera o desemprego como
uma situação de vida precária, já que o trabalho lhes dá esta identificação social.
Podemos destacar a flexisegurança, através dos parâmetros dinamarqueses,
dentre algumas características, por prever uma maior agilidade na dispensa do em-
pregado, pela possibilidade da exigência de um número de 10 ou mais horas por
dia quando de uma contratação e, ainda, pela possibilidade de pagamento de horas
extraordinárias por preço ajustado individualmente entre empregador e empregado,
que poderá trocá-las por um preço simbólico, por exemplo, pela isenção de horário
fixo de trabalho, mantida sempre a impossibilidade de dispensa sem justa causa.
Desta forma, a Dinamarca apresenta um sistema laboral baseado em uma ele-
vada mobilidade no emprego, com muitos novos empregos, com trinta por cento de
trabalhadores mudando de emprego por ano e a criação de dez por cento de novos
empregos, também anualmente. Ainda conta com um regime de apoio e subsídio
aos trabalhadores desempregados, pagos até encontrarem um novo emprego, uma
política ativa de qualificação e formação de trabalhadores, flexibilização dos horá-
rios de trabalho, por meio de acordos individuais, com partilhas de postos de tra-
balho de forma proporcional ao cálculo anual do tempo de trabalho, flexibilização
salarial segundo os parâmetros de cada empresa.
Em defesa da flexisegurança sustentada no modelo dinamarquês, apresen-
ta-se uma re-leitura de alguns elementos deste modelo de sistema.
O interesse dos empregadores na manutenção de relações de trabalho estáveis
e seguras, com trabalhadores motivados, deve ser considerada. De outro lado surge o
interesse do trabalhador em manter a flexibilidade de seus horários de trabalho, de
sua organização e das condições salariais conseqüentes, em uma geração de novos
modelos de mercado de trabalho, que interagem com a flexibilidade e segurança.
O dinamismo econômico do mercado liberal destaca-se ao lado de uma seguran-
ça decorrente do serviço público universal, participando de uma distribuição equita-
tiva de rendimentos, que é muito conhecida nos “Estados-Providência” escandinavos.

202
30 anos da Constituição

Os empregadores e os empregados participam de um novo pacto social de


colaboração total.
Surgem, então, parâmetros de elevada carga fiscal para empregados e empre-
sas, à qual todos satisfeitos propõem-se ao pagamento, pois esta resta direcionada a
manter os seguros-desemprego em quotas elevadas e permanentes, até recolocação
no mercado de trabalho, com uma política social de conscientização da obrigação
de encontrar um novo emprego, com empregadores e trabalhadores cooperando
para o interesse geral, de forma a proteger os indivíduos e não os postos de trabalho.
Desta maneira a elevação da flexibilidade na demissão e na admissão de em-
pregados, alia-se ao crescimento econômico sustentado por finanças públicas saudá-
veis e estruturas sociais sólidas diante de um funcionalismo público qualificado pela
formação constante, aliado ao funcionamento favorável e positivo das empresas.
Este difícil caminho buscaram trilhar outros países da União Européia,
mesmo com contradições oriundas de sociedades significativamente diferentes
em suas economias e culturas. Neste sentido a impressão do “Livro Verde sobre
Relações Laborais da União Européia”, em 2006, que defende uma “moderniza-
ção” das relações de trabalho e, no mesmo sentido, a Diretiva n.º 21, da União
Européia, buscando a promoção de relações de trabalho sustentadas pela “flexi-
bilidade combinada com segurança”.
Essas tendências oriundas dos membros da União Européia, também per-
meiam posicionamentos sobre as relações de trabalho no Brasil, Índia, China,
Austrália e Japão, dentre outros.

8. Uma crise na identidade globalizada


A nova ordem global imprimiu ao campo jurídico reflexos significativos liga-
dos a um recuo dos direitos humanos, uma administrativização das competências do
judiciário, de forma a levar ao seu descrédito e enfraquecimento, relegando apenas à
“ultima ratio”, o direito penal, a capacidade de solucionar conflitos sociais, em uma
diminuição da soberania, com a criação e a adesão a organismos supranacionais,
em franca diminuição dos espaços de independência e de prevalência do Estado.
É neste cenário que a flexibilização de direitos sociais, em prol de direitos
individuais, se sustenta.

203
30 anos da Constituição

Um processo de desconstitucionalização e desregulamentação, caracterís-


tico do instituto ou do sistema da flexisegurança, aponta para o enfraquecimen-
to do poder do Estado e, assim, para um recuo na tutela dos direitos humanos.
O enfraquecimento do poder normativo do Estado nas relações sociais,
leva à consideração de que, com o avanço do processo de desemprego, cria-se
uma classe de subempregados, destinados a fomentar a economia informal, sem
meios seguros de sobrevivência, de forma a contribuir para seu encaminhamen-
to à criminalidade. Assim apóia-se na expansão do direito penal como solução
de todos os problemas de ordem social.
Estruturas políticas ligadas ao poderio econômico e à criação e sustentabi-
lidade de conglomerados multinacionais, em um processo de globalização econô-
mica, criam espaços para sistemas normativos internacionais, que regulam o in-
vestimento financeiro e as atividades econômicas, estendendo suas necessidades
para a criação de órgãos legislativos e judiciários supranacionais, com uma glo-
balização econômica que se expande para todos os demais setores da sociedade.
Neste cenário o que sempre resta enfraquecido são os direitos sociais e in-
dividuais, com os excluídos economicamente tornando-se “associais”, verdadeiros
“párias”, em um novo contexto social baseado na economia e na sustentabilidade.
Assim quando surgem novas teorias para sustentar bases sistêmicas que
afastam a função social do Estado, em direção ao aproveitamento extremo
da sociedade em prol da economia, o comportamento social que se busca
impor utiliza, inclusive, de teorias de comunicação como a “espiral do silêncio”,
defendendo uma produção de informações voltadas a um retorno à “força da co-
municação de massa”, inspiradora da teoria do “estímulo-resposta”, com a suposição
fundamental de que a própria opinião pública é conseqüência da busca de juízos
e consensos comuns daqueles que vivem em um determinado grupo social236.
Diante do medo, do desprezo, do isolamento, do ridículo e da falta de acei-
tação, a política que se tenta implantar busca que os integrantes da sociedade
encontrem recompensas no conformismo e na repressão a quaisquer posições
antagônicas a este juízo de valor.
Neste contexto surge uma pressão constante para que os integrantes da
sociedade acolham e compartilhem uma mesma opinião, em acordos sociais –
dogmas e costumes – que deveriam ser expostos publicamente quando o tema

236 KUNCZIK, pp. 332 e ss.

204
30 anos da Constituição

discutido aparecer, em uma verdadeira busca do estabelecimento de uma opinião


pública favorável ao interesse dos economicamente e politicamente dominantes.
É sob a égide desta crise que se estabelece a discussão sobre a flexisegurança.

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209
Moradia e Saúde no Judiciário
Brasileiro: Afinidades e Discrepâncias
nos 30 Anos da Constituição

Adriana Ancona de Faria


Doutora em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Professora de Direito Constitucional
da PUC-SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
sobre Direitos Fundamentais (PUC-SP/CNPq)

Roberto Dias
Doutor em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Professor de Direito Constitucional da
PUC-SP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre
Direitos Fundamentais (PUC-SP/CNPq)

Resumo: O artigo analisa a maneira como o Judiciário brasileiro, a partir


da Constituição Federal de 1988, enfrenta a realização dos direitos fundamentais
à moradia e à saúde para entender se há uma abordagem diferente da atuação
judicial em relação à efetivação desses direitos fundamentais, apesar da equiva-
lência do status constitucional deles. Para a análise pretendida, trabalharemos
com os marcos normativos que os sustentam e o percurso jurisprudencial que vem
definindo o papel do Judiciário na efetivação de cada um. Como resultado dessa
análise, procuraremos demarcar as confluências e divergências da atuação juris-
dicional e verificar se é possível demandar uma atuação judicial mais consistente,
tendo em vista a garantia da efetivação e da fundamentalidade desses direitos.
Palavras-chaves: Constituição Federal de 1988; Direito à Moradia; Direito
à Saúde, Poder Judiciário

211
30 anos da Constituição

Introdução
O presente artigo buscará analisar a maneira como o Judiciário brasileiro,
a partir da Constituição Federal de 1988, enfrenta a realização dos direitos fun-
damentais à moradia e à saúde para entender se há uma abordagem diferente
da atuação judicial em relação à efetivação desses direitos fundamentais, apesar
da equivalência do status constitucional deles.
Para a análise pretendida, trabalharemos com os marcos normativos que
os sustentam e o percurso jurisprudencial que vem definindo o papel do Judici-
ário na efetivação de cada um.
Como resultado dessa análise, procuraremos demarcar as confluências e
divergências da atuação jurisdicional e verificar se é possível demandar uma
atuação judicial mais consistente, tendo em vista a garantia da efetivação e da
fundamentalidade desses direitos.

2. Ordem econômica, direitos sociais e liberdades públicas:


o déficit social do Brasil nas áreas da habitação e da saúde
O pressuposto de que a garantia das liberdades civis e políticas não se realiza
se não forem asseguradas as condições materiais necessárias ao exercício efetivo
dessas liberdades, inclusive na aplicação de políticas específicas que possam minorar
as diferenças a que as pessoas estejam arbitrariamente submetidas, constitui valor
das sociedades democráticas que se pretendem socialmente justas.
Com base nesse critério, direitos sociais que condicionam a existência de dig-
nidade às pessoas têm sido eleitos em diversas ordens constitucionais como direitos
fundamentais, cuja regulação e aplicação merecem destaque, seja na elaboração de
políticas públicas que os alcancem, seja na atuação jurisdicional que garanta sua
implantação e efetivação. Nessa chave, encontram-se o direito à moradia e à saúde.
Em artigo sobre democracia e cultura no planejamento do desenvolvimen-
to urbano, Aline Virgínia Medeiros Nelson e Sérgio Alexandre de Morais Bra-
ga Junior237, assumindo o entendimento da exigência do Estado na realização

237 NELSON, Aline Virgínia Medeiros; BRAGA JUNIOR, Sérgio Alexandre de Morais. Democracia e Cultura
no Planejamento do Desenvolvimento Urbano. Revista DIREITO GV. São Paulo 8(2), p. 407-426, jul-dez 2012.

212
30 anos da Constituição

da promoção da igualdade aos hipossuficientes, articulam com precisão a in-


terdependência desses direitos em uma ordem democrática, ao afirmarem que,
“mantendo o foco no Estado Democrático de Direito, consolida-se na doutrina
a ideia de direitos fundamentais operacionais e condicionantes, onde os primei-
ros representam os direitos de liberdades e exercício de poder político, inerentes
à democracia, e os últimos, um aspecto indireto desta” (2012, p. 420).
Apesar dessas considerações, e da ordem constitucional positivada em
1988, a realidade social brasileira mostra-se altamente deficitária no atendi-
mento de condições sociais mínimas para o conjunto de sua população.
Ao recuperar a história do Estado brasileiro, verificamos que, apesar do seu
processo de industrialização tardio, o Brasil, a partir do início do século XX, teve
um processo intenso e desgovernado de urbanização sem qualquer política habi-
tacional responsável, situação que se aprofundaria na segunda metade desse sé-
culo. Nesse diapasão, verifica-se a constituição de uma realidade urbana irregular
e ilegal, expressa em uma gama impactante de moradias subnormais, decorrente
da falta de políticas públicas para o setor e atrelada a uma prática intensiva de
especulação imobiliária. Essa realidade impôs a expulsão de uma população des-
provida de recursos para as periferias com suas “habitações informais”238.
Diante desse quadro histórico, o direito à moradia articula-se com a ne-
cessidade de gastos vultuosos no processo de regularização fundiária e da neces-
sidade de urbanização das áreas públicas no enfrentamento da questão.
Em pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas e divulgada no jornal
o Valor Econômico, em outubro 2014, aponta-se que o Brasil precisaria de R$
76 bilhões ao ano para zerar o déficit habitacional.239
Na área da saúde, o déficit de proteção não é menos preocupante. Em
2013, o Ministério da Saúde estimava que o Brasil tinha um déficit de 54 mil

238 HOLZ, Sheila; MONTEIRO, Tatiana Villela de Andrade. Política de Habitação social e o Direito de
Moradia no Brasil. X Coloquio Internacional de Geocrítica. Barcelona, 26-30 de maio de 2008. http://
www.ub.edu/geocrit/-xcol/158.htm. Acesso em: 21 jul. 2018.
239 ELIAS, Juliana. FGV: Brasil precisa de R$ 76 bi ao ano para zerar déficit habitacional. Valor Econômico,
São Paulo, 13 out. 2014. Disponível em http://www.valor.com.br/brasil/3733244/fgv-brasil-precisa-de-
r-76-bi-ao-ano-para-zerar-deficit-habitacional. Acesso em: 21 jul. 2018.

213
30 anos da Constituição

médicos,240 mas superar o problema poderia levar anos.241 Basta notar que, em
2014, o país tinha 1,8 médico para cada mil habitantes, enquanto outros países
sul-americanos ou alguns europeus tinham médias acima de 3 médicos para
cada mil pessoas.242 O problema da falta de médicos se agrava ao constatar que
a distribuição de profissionais no amplo território brasileiro é muito desigual.243
Vale lembrar, também, que, apesar da melhoria da expectativa de vida do
brasileiro nas últimas décadas244 e o elevado percentual do PIB destinado à área
de saúde,245 menos da metade do gasto da população com a saúde era suportada,
em 2013, pelo Poder Público (48,2%),246 enquanto, na média mundial, 57,7%
dos custos eram arcados pelo Governo e menor parte era paga pelo cidadão.247

240 FAGUNDES, Ezequiel. Ministério da Saúde estima que Brasil tenha déficit de 54 mil médicos. O
Globo, Rio de Janeiro, 23 jun. 2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-da-
saude-estima-que-brasil-tenha-deficit-de-54-mil-medicos-8477395. Acesso em: 21 jul. 2018.
241 FOREQUE, Flávia; NUBLAT, Johanna. Acabar com falta de médicos no Brasil levará anos, diz
ministro da Saúde. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br/cotidiano/2013/08/1328464-acabar-com-falta-de-medicos-no-brasil-levara-anos-diz-ministro-
da-saude.shtml. Acesso em: 21 jul. 2018.
242 MINISTÉRIO da Saúde apresenta estratégias para falta de médicos em municípios carentes. http://
www.portalfederativo.gov.br/noticias/destaques/ministerio-da-saude-apresenta-estrategias-para-
falta-de-medicos-em-municipios-carentes. Acesso em: 21 jul. 2018. Em países como Argentina (3,2),
Alemanha (3,6), Uruguai (3,7) e Portugal (3,9), as médias são superiores a 3 médicos por habitante.
243 CFM; CREMESP. Demografia Médica no Brasil – Estudo de Projeção: Concentração de médicos no Brasil em
2020”. http://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/estudo_demografia_junho.pdf. Acesso em: 21 jul. 2018.
244 World Health Organization. http://apps.who.int/gho/data/node.main.3?lang=en. Acesso em: 21 jul. 2018.
245 Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil, em 2013, gastou 9,7% do PIB na área da saúde, enquanto a
média mundial foi de 8,7 (http://apps.who.int/gho/data/view.main.HEALTHEXPRATIOGLOBAL?lang=en.
Acesso em: 21 jul. 2018). Conferir, também, a análise dos gastos governamentais feita pelo Conselho Federal
de Medicina em parceria com a ONG Contas Abertas: CFM. Governo gasta R$ 3,89 ao dia na saúde de
cada brasileiro. 29 fev. 2016, http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&
id=25985:2016-02-18-12-31-38&catid=3. Acesso em: 21 jul. 2018.
246 World Health Organization. http://apps.who.int/gho/data/view.main.HEALTHEXPRATIOBRA?lang=en.
Acesso em: 21 jul. 2018.
247 WorldHealthOrganization.http://apps.who.int/gho/data/view.main.HEALTHEXPRATIOGLOBAL?lang=en.
Acesso em: 21 jul. 2018.

214
30 anos da Constituição

3. Direito à moradia

3.1 Marco regulatório


O direito à moradia foi incorporado expressamente no rol dos direitos sociais,
que compõe o Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, na Constituição Bra-
sileira, por meio da Emenda Constitucional n° 26 de 14 de fevereiro de 2000.
Dois aspectos merecem reflexão nesse sentido: o fato de a moradia não
ter sido incorporada explicitamente na Carta Constitucional originária, já em
1988, e o fato de ela ter ganhado explicitação, como direito social fundamental,
a partir do ano 2000.
Independentemente das leituras possíveis em relação ao porquê do direito
à moradia não se encontrar no rol original dos direitos elencados no artigo 6°
da CF,248 é preciso constatar que, o fato de ter sido encampado expressamente a
partir de um dado momento traduziu uma demanda de reconhecimento, ou de
necessidade de fortalecimento de seu atendimento, pela ordem positiva.
Apesar da defasagem temporal na incorporação expressa do direito de mo-
radia no rol de direitos encampados pelo artigo 6°da CF, é importante ressaltar
o quanto a ordem jurídica brasileira já previa a proteção do direito à moradia
por meio de outros dispositivos constitucionais e de tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário.249
Independente da previsão expressa no artigo 6° da CF, diversos dispositivos
constitucionais já dialogavam com a defesa do direito à moradia, destacando-se:
a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III CF); os objetivos fundamentais da
República de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais (art. 2º, III CF); a previsão de que a propriedade atenderá sua

248 O art. 6° da CF em 1988 previa que: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição A partir da Emenda n° 26 passou a ter a seguinte redação: “são direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
249 Nesse sentido, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição:
algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre
a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 20, dezembro,
janeiro, fevereiro, 2009, 2010, especialmente p. 9 e seguintes. Disponível na internet: http://www.
direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=413. Acesso em: 21 jul. 2018.

215
30 anos da Constituição

função social (art. 5º, XXIII CF); a competência comum dos entes federados
de promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico (art. 23º, IX CF); o princípio da função
social da propriedade e da redução das desigualdades sociais e regionais como
vetores da ordem econômica (art. 170, III CF); a política de desenvolvimento
urbano com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182 CF); o condicio-
namento do atendimento da função social da propriedade urbana ao respeito
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor
(art.182, § 2º CF); mecanismos de sanção ao proprietário do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado (art. 182,§ 4º CF); usucapião pró-mora-
dia (art. 183 e 191 CF); além de previsões de desapropriação por interesse social
para fins de reforma agrária e planejamento de política agrícola que considere a
habitação para o trabalhador rural (art.184 e 187 CF).
Agregue-se aos preceitos constitucionais apontados o amparo ao direito à
moradia consubstanciado em tratados internacionais como a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos (1945), o Pacto Internacional de Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais (1966) e as Recomendações nº 4 e nº 7 da ONU, de
1991 e 1997, respectivamente.
Apesar de defendermos que o direito à moradia, por todo esse arcabouço nor-
mativo apontado, já estava implícito no rol dos direitos fundamentais – até mesmo
por força do disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição –, é preciso reconhecer que
sua inserção expressa, a partir da Emenda Constitucional nº 26, foi um marco de
alta relevância, gerando legislações infraconstitucionais importantes, que densifica-
ram os preceitos constitucionais de forma significativa na proteção à moradia.
Nesse sentido merecem destaques, dado seu caráter geral, a Lei 10.257/2001,
conhecida como Estatuto da Cidade; a Medida Provisória 2.220/2001, que pre-
vê requisitos para concessão de uso especial para fins de moradia aos possuido-
res de imóveis públicos até a data de 30 de junho de 2001; e a inclusão do direito
real de uso para fins de moradia no Código Civil brasileiro, no ano de 2007.
O Estatuto da Cidade previu novos institutos jurídicos e instrumentos urbanísti-
cos que direta ou indiretamente buscaram fortalecer o direito à moradia. Entre outros,
destacam-se a permissão de adoção pelos Municípios de instrumentos de urbanização
e combate à especulação imobiliária, que deve se consubstanciar no Plano Diretor

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30 anos da Constituição

municipal; os mecanismos de uma gestão urbana democrática; além dos institutos


tributários de distribuição de benefícios e ônus da urbanização realizado250.
Tendo como base esse marco regulatório, cada vez mais explícito em re-
lação ao direito à moradia como um direito fundamental, é que passaremos a
analisar a atuação judicial no assunto, a partir da Constituição Federal de 1988.

3.2 O Judiciário e o direito à moradia


Ainda que reconheçamos que o direito à moradia, enquanto direito fun-
damental, já se apresentava de forma implícita na ordem jurídica-constitucional
brasileira, desde 1988, são perceptíveis os influxos decorrentes de sua explici-
tação a partir da Emenda Constitucional n° 26 e da produção legislativa que a
acompanhou, como demonstraremos na análise de algumas decisões judiciais.
É importante destacar que a defesa do direito de moradia não representa
simplesmente o reconhecimento de que qualquer pessoa deva ter um teto para
se acolher, mas consiste no entendimento de que a condição de vida digna de
todo o ser humano pressupõe o direito de ocupar um lugar no qual possa se es-
tabelecer, manter relações e criar vínculos. A moradia é um espaço necessário
à constituição e desenvolvimento da própria identidade da pessoa, espaço de
inserção e estabelecimento de vínculos sociais que irão interagir com o desen-
volvimento da personalidade de cada um.251
Essa compreensão reforça o entendimento da imposição desse direito de
forma originária pela ordem constitucional brasileira, em decorrência dos di-
versos dispositivos constitucionais encampados no ordenamento brasileiro.
Condição que será reforçada do ponto de vista jurídico-formal pela ratificação
do Estado Brasileiro, em janeiro de 1992, por meio do decreto n° 591, do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.252

250 Nesse sentido destacam-se: IPTU progressivo, desapropriação sanção, outorga onerosa do direito de
construir, contribuição de melhorias, operações consorciadas, entre outros.
251 Não é à toa que já no artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos encontramos a habitação
como uma das condições necessárias ao estabelecimento de uma vida digna de qualquer cidadão.
252 “Art. 11. Os estados signatários do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível
de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia
adequadas, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida.”

217
30 anos da Constituição

Apesar dessa constatação e dos preceitos constitucionais previstos na or-


dem jurídica brasileira, desde sua constituição, verificamos na prática jurispru-
dencial prevalente, a realidade descrita a seguir.

3.2.1 Despejos forçados de assentamentos informais


Apesar da presença significativa da habitação informal no processo de urbani-
zação das cidades brasileiras e, consequentemente, a necessidade de entendimento
de que a proteção ao direito de moradia pressupõe o acolhimento dessa realidade
histórica como pressuposto obrigatório da análise jurídica, o que se verifica é o des-
taque para um entendimento de valorização da irregularidade como fator decisório,
a partir de uma leitura formal e restritiva da legislação civil. Esse posicionamento
constitui prejuízo à proteção da moradia, apesar de toda a sustentação dogmática
constitucional que a ampara e do valor da função social da propriedade.
São constantes os processos de desalojamento de famílias, muitas vezes de
maneira forçada, a mano militari, sem qualquer solução eficaz para a remoção
dessas famílias a novas condições habitacionais, mesmo diante de ocupações
antigas e em propriedades desocupadas e sem qualquer tipo de utilização.
Como bem explicita João Maurício Martins Abreu, a “justiça brasileira é um
dos agentes mais acionados para promover, com aparência de legitimidade jurídica,
os despejos forçados de assentamentos informais – e costuma aceitar o encargo.”253
Nessa realidade de inúmeras configurações de despejos forçados, conta-
tam-se situações de ordem jurídicas diferenciadas, ou seja, apresentam-se de-
mandas de particulares que querem ser reintegrados na posse de seus imóveis,
apesar da questionável condição de legalidade pretérita de tais bens em razão
do descumprimento do preceito da função social da propriedade. Também es-
tão presentes, de forma significativa, ações promovidas por instituições estatais,
dentre elas o Ministério Público, invocando argumentos de ordem ambiental e
urbana para obtenção do despejo.
É evidente que argumentos de ordem pública, como a proteção urbana
e ambiental, não podem ser menosprezados, nem minimizados, seja em razão
da mesma estatura jurídica constitucional que possuem, seja em razão da im-

253 ABREU, João Maurício Martins. A Moradia Informal no Banco dos Réus: discurso normativo e prática
judicial. 399 REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 7(2), p. 391-416, jul-dez 2011.

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30 anos da Constituição

portância de que um grupo de pessoa (ou seja, o interesse habitacional de uma


comunidade restrita) não se sobreponha ao interesse público coletivo ou difuso.
Todavia, é importante perceber que a proteção ao direito à moradia deve pos-
suir força equivalente, na medida em que se condiciona à proteção de uma liber-
dade pública fundamental. É frágil a suposição da “ilegalidade formal da habitação
alcançada” como argumento satisfativo da decisão254 que determina o despejo for-
çado, sem considerar que a ausência de políticas efetivas de habitação e a omissão
dos Poderes Públicos na atuação urbana e ambiental concorrem para a constituição
dessa alegada irregularidade. Ademais, a solução não pode prescindir da corres-
ponsabilização de todos na elaboração do melhor caminho possível, garantida a
proteção máxima das previsões constitucionais e de todos os direitos em colisão.
Alguns casos são paradigmáticos para exemplificar essas situações, como o co-
nhecido caso Pinheirinho255, iniciado com uma ação judicial promovida pela massa
falida da empresa Selecta. O desfecho de um longo processo iniciado em 2005, com
amplos questionamentos sobre a procedência da decisão judicial, que determinou
o despejo forçado, apesar da intervenção de diversos atores públicos buscando solu-
ções de pacificação do conflito, terminou num episódio de extrema violência.
No que concerne à atuação de instituições públicas na propositura das
ações, valemo-nos da seleção organizada por João Maurício Martins Abreu, que
relata, dentre outros, os despejos forçados de pessoas que viviam na Favela Real
Parque, em dezembro de 2007, em São Paulo, e de moradores de comunidades
pobres do Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, em 2006.256
As decisões apontadas demonstram uma prática jurisprudencial de bas-
tante descompromisso com o fato de que o despejo forçado irá destituir as pes-
soas assentadas de suas moradias, sem apresentar alguma previsão alternativa
de proteção mínima desse direito fundamental.
No mesmo sentido, verificamos uma leitura protetiva e tradicional do di-
reito de propriedade, a partir de uma atuação judicial que exclui a proteção da
moradia mesmo nos casos em que a propriedade não cumpre a sua função so-

254 Nesse sentido, conferir o Relatório de pesquisa do IBDU: CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique;
LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do
Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa, São Paulo: IBDU, 2016.
255 Processo n° 0273059-82.2005.8.26.0577, 6° Vara Cível de São José dos Campos.
256 ABREU, João Maurício Martins. A Moradia Informal no Banco dos Réus: discurso normativo e
prática judicial. Revista DIREITO GV, SÃO PAULO 7(2), p. 391-416, jul-dez 2011.

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30 anos da Constituição

cial. A nosso ver, não é razoável que o conceito de função social da propriedade
desconsidere o exercício do direito de propriedade consubstanciado na posse,
baseada nos valores definidos na ordem constitucional, no Estatuto da Cidade
e nos Planos Diretores. Ademais, uma posse que não cumpre sua função social
não pode ser entendida como uma posse efetiva para efeitos justificadores de
um processo de reintegração que custa a moradia de várias pessoas.257

3.2.2 Dinâmica processual exclusiva dos moradores ocupantes


Outro fator que merece efetiva consideração da forma que se desenrola a
prática judicial em processos que afetam a condição de moradia diz respeito a
práticas processuais que excluem, em grande parte dos conflitos, os moradores
ocupantes do processo decisório.
O que se verifica é que muitas vezes o litígio se dá no campo das ações
civis públicas e isso permite ao Ministério Público escolher com quem deman-
dar, dando-lhe, dessa maneira, a possibilidade de entender o Município como
violador da legislação urbanística, ao não garantir a proteção ambiental devida
e, assim, excluir a população moradora do debate judicial.
Outra hipótese decorre do fato de não ser obrigatória a realização da au-
diência de justificação para a concessão de liminar em ações de reintegração de
posse e a constatação de que os magistrados, em nome da celeridade processual,
em geral não as realizam258.
Ora, considerando que uma decisão liminar em sede de reintegração de
posse atinge de maneira praticamente irreversível a proteção à moradia em ra-
zão da desocupação efetivada, a prevalência do valor da celeridade processual,
com a falta de escuta das famílias assentadas, reforça o entendimento de uma
prática judicial que desconsidera a fundamentalidade do direito em pauta.

257 Nesse sentido: DANTAS, Marcus Eduardo de Carvalho. Função Social na tutela possessória em
conflitos fundiários. Revista DIREITO GV . São Paulo. 9(2), p. 465-488, jul-dez 2013.
258 Nesse sentido destacam-se as previsões do art. 928 do antigo Código de Processo Civil de 1973 e do
art. 526 do atual Código, em vigência desde 2016.

220
30 anos da Constituição

No mesmo sentido, essa prática decisória, que será reforçada em segunda


instância, demonstra um baixo comprometimento do Judiciário no exercício do
seu papel pacificador na resolução de conflitos.259
Não é outra a conclusão obtida na pesquisa jurisprudencial realizada junto ao
TJ/SP, pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico260: “Em menos de 13% dos acór-
dãos houve alguma reflexão por parte do Desembargador Relator sobre a função do
Poder Judiciário na solução da lide. Destes, em 7% dos casos fez-se menção à função
pacificadora da Jurisdição, e em 5% destacou-se o seu papel na segurança das relações
jurídicas ou outro argumento calcado na primazia do formalismo processual”.
Há que se destacar, todavia, o avanço em decisões do próprio TJ/SP que, a partir
do novo marco regulatório após a Emenda Constitucional n° 26, combate o entendi-
mento citado, em favor do direito material da moradia, como apontado no mesmo
relatório de pesquisa do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.261
Apesar do avanço iniciado, com o auxílio das inovações legislativas no tema, o
que se verifica do ponto de vista histórico e ainda na realidade presente é uma ativi-
dade jurisprudencial que não assumiu o marco constitucional de defesa da moradia
como o referencial central de proteção, uma vez que acolhe, com muita tranquilidade,
o pressuposto da irregularidade como satisfativo para o processamento da decisão de
desalojamento. Está-se diante de uma atuação que elege a celeridade processual como
referencial da sua prática decisória, sem se preocupar em conhecer com mais profun-
didade a realidade conflituosa que irá desamparar inúmeras famílias da proteção de
um direito constitucionalmente garantido.

259 São significativas as observações alcançadas no relatório de pesquisa do IBDU sobre essa questão:
CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito
Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa,
São Paulo: IBDU, 2016.
260 CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito
Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa,
São Paulo: IBDU, 2016.
261 CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito
Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa,
São Paulo: IBDU, 2016.

221
30 anos da Constituição

3.2.3 Confusão e falta de efetivação de políticas em relação


aos artigos 182, § 4°, e 183 da Constituição Federal
Uma das importantes inovações da Constituição Federal de 1988 foi esta-
belecer no capítulo da política urbana mecanismos de sanção a práticas especu-
lativas, que se contrapõem aos valores da política de desenvolvimento urbano
que deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e ga-
rantir o bem-estar de seus habitantes.
Nesse sentido, o § 4° do art. 182 da Constituição Federal262 prevê um percurso
de punições que passa pela aplicação do IPTU progressivo e culmina na possibilida-
de de desapropriação com indenização paga com títulos da dívida pública. E o artigo
183 da Carta Constitucional263 define a usucapião especial urbana (pró-moradia).
A redação do artigo 182 impõe a aplicação gradual de punições para o
proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado.
Essa exigência de atuação sucessiva por parte do Poder Público tem gerado
um número significativo de demandas judiciais alegando a cobrança irregular
de IPTU progressivo por parte dos Municípios, como demonstra a pesquisa
junto ao TJ/SP. A maior incidência nos acórdãos estudados é de litígios sobre o
uso e ocupação do solo, litígios decorrentes da aplicação do IPTU progressivo
em imóveis vazios ou subutilizados, regularização fundiária por usucapião ou
reintegrações de posse (IBDU, 2016).

262 “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...] § 4º É facultado ao Poder Público municipal,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário
do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; II – imposto sobre a propriedade predial e
territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em
parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
263 “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º
O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos,
independentemente do estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais
de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”

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30 anos da Constituição

Essa realidade demonstra o quanto esta previsão constitucional, quase três


décadas após a sua promulgação, não está sendo efetivada nos termos devidos
por grande parte dos Municípios do Estado mais rico do país, o que constitui
uma fragilidade bastante significativa na proteção do direito à moradia.
Outro ponto relevante decorre do fato preocupante de se verificar deci-
sões em segunda instância que restringem indevidamente a aquisição de mo-
radia nos termos do artigo 183 Constituição Federal, articulando as exigências
sucessivas para o processo de desapropriação do imóvel não utilizado adequada-
mente, ao direito de moradia adquirido pela posse ininterrupta de cinco anos.
Ilustra referida preocupação a decisão proferida no TJ/SP abaixo citada e
analisada pelo IBDU:264
Recursos nº 0004193-15.2005.8.26.0477– Relator Desembargador Ro-
berto Mac Cracken – 37ª Câmara de Direito Privado. Ementa do Acór-
dão: “REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Réu que não comprova o exercí-
cio da posse e que alega que, por estar o imóvel abandonado, passou a
possuí-lo e, assim, a cumprir com sua função social. Eventual abandono
do imóvel não legitima terceiro a exercer sua posse, mesmo porque, para
se atingir a função social do imóvel urbano, necessário se faz o cumpri-
mento das regras estabelecidas em plano diretor municipal, e, somente
em caso de descumprimento, o Município é que poderá promover atos
visando compelir o seu proprietário a cumprir com a respectiva função
social, conforme disposto no artigo 182 e §§ da CF/88, bem como no
Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001), mas, tal situação não autoriza
o terceiro ao exercício da posse, ainda que o imóvel seja não edificado,
não utilizado ou subutilizado. Recurso não provido.”
Neste acórdão chama atenção o entendimento de aplicação o art. 182
CF/88 a imóvel urbano ocupado para fins de moradia. Vez que o pará-
grafo 4º deste dispositivo constitucional trata do imóvel urbano ‘não
edificado, subutilizado ou não utilizado’ e das sanções que podem ser
aplicadas aos proprietários destes imóveis pelo Município. Nas áreas
ocupadas para fins de moradia, caso do acórdão mencionado, a Consti-
tuição prevê o direito à regularização fundiária nos termos do art. 183
CF/88 c/c Lei 10.257/2001 pela usucapião, no caso de imóveis privados.
Desconhecer os efeitos jurídicos da posse para fins de moradia é desco-
nhecer que a função social da propriedade urbana decorre da utilização

264 CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito
Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa,
São Paulo: IBDU, 2016.

223
30 anos da Constituição

efetiva da propriedade urbana. A posse de fato para fins de moradia gera


direitos, incluindo a prescrição aquisitiva da usucapião e da concessão
de uso, dado que é ela que efetiva a função social.

Por outro lado, há que se destacar a importante decisão tomada pelo TJ/SP, que
entendeu pela constitucionalidade da usucapião em caráter de defesa, frente a uma
ação de reintegração de posse. Esse entendimento minimiza os efeitos perversos da
dificuldade de acesso à Justiça por boa parte da população despossuída do país.265

3.2.4 A Emenda Constitucional n° 26, o Estatuto da Cidade


e a Medida Provisória 2.220/2001: impactos relevantes e
novos desafios para a prática jurisdicional
A análise das decisões judiciais no campo dos conflitos possessórios e das
habitações informais demonstra de forma reiterada uma concepção de direito
que supervaloriza os regramentos legais de ordem civil, seja no campo material
ou processual, e aponta para uma fragilidade na implementação das previsões
constitucionais que sustentam o direito à moradia. Nesse sentido, o Estatuto
da Cidade e os Planos Diretores de cada Município, a MP 2.220/01266 e a men-
ção expressa do direito à moradia na Constituição Federal como um direito
fundamental podem tensionar o entendimento prevalente que vem protegendo
o direito do proprietário à desocupação e à manutenção sem maiores ônus da
propriedade que descumpre a função social, uma vez que essas normatizações
articulam o comprometimento da função social da propriedade de forma mais
explícita com os vetores da política urbana.
O reconhecimento dado pela MP 2.220/01 de imóveis públicos poderem
ser impactados na concessão de uso especial para moradia, confirmado pelo TJ/

265 Decisões relevantes sobre a constitucionalidade do Estatuto da Cidade foram proferidas pelo Órgão
Especial do TJSP, referente à aplicação da concessão de uso especial para fins de moradia a imóveis
públicos estaduais e municipais (art. 3º da MP 2.220/2001) e ao registro no Cartório de Imóveis
da sentença declaratória do direito à usucapião alegado como matéria de defesa (art. 13 da Lei
10.257/2001). Nesse sentido, conferir: CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela;
MAESTRO, Irene. “Direito Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São
Paulo”, Relatório de Pesquisa, São Paulo: IBDU, 2016.
266 Dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1o do art. 183 da Constituição, cria o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU e dá outras providências.

224
30 anos da Constituição

SP em análise de constitucionalidade, constitui marco importante no fortaleci-


mento do direito à moradia, em contraposição à tradição jurídica brasileira de
não autorizar nenhum tipo de comprometimento dessas áreas.
No mesmo sentido, passamos a encontrar avanços em medidas judiciais
que rechaçam posições açodadas em favor de despejos forçados, embasadas no
enfraquecimento do conceito de função social da propriedade e na exacerba-
ção de previsões próprias do direito civil, que favorecem a proteção formal da
propriedade sem articular o direito de posse à proteção do direito de moradia.267
Na ordem de novos desafios a serem enfrentados vale considerar a con-
cepção de planejamento público descentralizado, fundado em um conceito de
gestão democrática e participativa prevista no Estatuto da Cidade, para atender
aos desafios urbanos, onde se insere também a moradia.
Essa concepção positivada exige do próprio Judiciário uma reflexão sobre
o melhor percurso na aplicação da Justiça para resolução de conflitos que abar-
cam essa lógica decisória.
No mesmo sentido, é fundamental que a jurisdição brasileira se reorganize
para decidir sobre essas demandas a partir dos novos paradigmas de direito
defendidos pelo ordenamento jurídico.

4. O Direito à Saúde

4.1 Marco regulatório


Se, como vimos, a Constituição positivou explicitamente o direito à mo-
radia no ano 2000, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 26, o
mesmo não se deu com o direito à saúde, que já veio expressamente previsto
quando da promulgação do texto original, em 1988.
E não era – como não é – apenas uma previsão no art. 6º da Constituição. O
direito à saúde vem contemplado de forma bastante ampla por todo o texto consti-
tucional, passando pelas necessidades básicas a serem abarcadas pelo salário míni-

267 Destacam-se, nesse sentido, os seguintes recursos: TJ-SP, Agravo de Instrumento 2005658-
83.2014.8.26.0000, Relator Desembargador Marcelo Semer, 10ª Câmara de Direito Público, j.
19/05/2014; STJ, Recurso em Mandado de Segurança nº 48.316-MG, Relator Ministro Og Fernandes,
2ª Turma, j. 17/09/2015.

225
30 anos da Constituição

mo (art. 7º, IV) e pela determinação para a criação de normas de redução de riscos
inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII) para chegar às previsões sobre as competências
de todos os entes da Federação, que devem cuidar da saúde (arts. 23, II; 24, XII e 30,
VII). E, buscando evitar previsões de proteção do direito sem consequências prá-
ticas, a Constituição impôs gastos mínimos do Poder Público com a área da saúde
(arts. 34, VII, “e”; 35, III; 166, §§ 9º e 10; 167, IV; 198, § 2º).
Como se não bastasse, uma das seções do capítulo sobre a seguridade social,
que compõe o título da ordem social, foi inteiramente dedicada à saúde, criando o
Sistema Único de Saúde (arts. 198 e 200) e prevendo que ela é “um direito de todos
e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196).
Portanto, há uma profusão de previsões constitucionais explícitas voltadas
a garantir o exercício do direito à saúde.
Do ponto de vista infraconstitucional, tendo em vista que todos os entes
federativos têm competência para cuidar da saúde, a produção legislativa é vastís-
sima. Mas, no âmbito federal, a principal lei sobre o tema foi produzida logo após
a promulgação da Constituição Federal de 1988. Trata-se da Lei nº 8.080, de 19
de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, e organiza o funcionamento do Sistema Único de Saúde.

4.2 O direito à saúde no Judiciário268


No campo dos embates judiciais relacionados ao direito à saúde, nota-se
que a insuficiência das políticas públicas implantadas pelo Governo brasileiro
ao longo da história e a generosidade da Constituição de 1988 no campo desse
direito social geraram “a simples transposição de uma racionalidade da tradição
liberal, baseada quase que exclusivamente em relações bilaterais — normal-
mente entre um credor e um devedor — para a área dos direitos sociais.”269

268 Sobre este ponto, conferir: DIAS, Roberto. “O que os juristas e o Judiciário têm a dizer sobre saúde
pública?” In: SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André (Orgs.). Direito da regulação e políticas
públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 296-313, especialmente p. 302 e seguintes.
269 SILVA, Virgílio Afonso da, “O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo
à realização dos direitos sociais”. Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em
espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 588.

226
30 anos da Constituição

As questões relativas à efetivação do direito à saúde se deslocam, em grande


medida, da esfera política para o âmbito judicial.
Isso fica bastante evidente na emblemática decisão proferida pela Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental no Recurso Extra-
ordinário nº 271.286/RS, julgado em 12 de setembro de 2000, e relatado pelo
Ministro Celso se Mello. Parte da ementa tem a seguinte redação:
“– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Consti-
tuição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmen-
te tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o
Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas
sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclu-
sive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. [...]
– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política
– que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no
plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não
pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena
de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu im-
postergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governa-
mental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.”

O argumento de que a saúde faz parte do mínimo existencial também


passou a reforçar a tese de que tal direito pode ser exigido judicialmente. Como
argumenta Ana Paula de Barcellos,270 em relação ao mínimo existencial, “o
Judiciário pode praticar um ato específico: determinar concretamente o forne-
cimento da prestação de saúde com fundamento na Constituição e indepen-
dentemente de existir uma ação específica da Administração ou do Legislativo
nesse sentido”. E ao definir a saúde básica como componente do mínimo exis-
tencial, a autora afirma que o Judiciário deverá “determinar o fornecimento das
prestações de saúde que compõem o mínimo, mas não poderá fazê-lo em relação
a outras, que estejam fora desse conjunto.” Segundo ela, compete “ao Judiciário,
portanto, determinar o fornecimento do mínimo existencial independentemen-

270 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 274.

227
30 anos da Constituição

te de qualquer outra coisa, como decorrência das normas constitucionais sobre


a dignidade humana e sobre a saúde”. Esse entendimento doutrinário também
encontrou ressonância na jurisprudência, como se pode notar da seguinte deci-
são do Superior Tribunal de Justiça:
O direito à saúde, expressamente previsto na Constituição Federal de
1988 e em legislação especial, é garantia subjetiva do cidadão, exigível
de imediato, em oposição a omissões do Poder Público. O legislador or-
dinário, ao disciplinar a matéria, impôs obrigações positivas ao Estado,
de maneira que está compelido a cumprir o dever legal. A falta de vagas
em Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs no único hospital local
viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população
local, tratando-se, pois, de direito difuso a ser protegido.” (Segunda Tur-
ma, Recurso Especial 1068731/RS, Relator Ministro Herman Benjamin,
julgamento em 17 de fevereiro de 2011).

Refutando o argumento de que a atuação do Judiciário na implantação da


política pública de saúde poderia caracterizar a violação à Separação dos Pode-
res, o Superior Tribunal de Justiça reforça a ideia de que a violação ao mínimo
existencial – por mais impreciso que seja este conceito – autoriza a intervenção
do Poder Judiciário até mesmo para determinar a inclusão de certa política pú-
blica nos planos orçamentários do ente político.271
Em outras decisões, o Superior Tribunal de Justiça, para garantir o forne-
cimento de remédios pelo Poder Público, tem admitido até mesmo o bloqueio
de verbas públicas, sob o argumento de que a omissão do Estado viola a Cons-
tituição ao gerar risco à vida e à saúde. Além disso, a “decisão que determina
o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou
seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos”.272 E diante
do conflito entre o “direito fundamento à saúde e o regime de impenhorabili-
dade dos bens públicos, prevalece o primeiro sobre o segundo. Sendo urgente e
impostergável a aquisição do medicamento, sob pena de grave comprometimen-
to da saúde do demandante, não se pode ter por ilegítima, ante a omissão do

271 Nesse sentido, verificar STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1136549/RS, relator Ministro
Humberto Martins, 2ª Turma, j. 08/06/2010.
272 STJ, Recurso Especial nº 887.844/RS, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, j. 24/10/2006.

228
30 anos da Constituição

agente estatal responsável, a determinação do bloqueio de verbas públicas como


meio de efetivação do direito prevalente”.273
Essas decisões passaram a ser questionadas principalmente pela doutrina
com o intuito de conciliar as posições extremadas, refutando, de um lado, a ine-
ficácia dos direitos sociais, mas, ao mesmo tempo, desenvolvendo argumentos
tendentes a evitar que eles sejam judicializados com base numa racionalidade
liberal de solução de litígios que, do ponto de vista prático, pode causar mais
problemas do que soluções, como o desequilíbrio dos orçamentos públicos, a de-
sorganização da Administração Pública e o acirramento a desigualdade social.
Nesse sentido, especificamente sobre a questão do fornecimento gratuito
de medicamentos pelo poder público e a atividade do Poder Judiciário, Luis
Roberto Barroso274 — em estudo desenvolvido por solicitação da Procuradoria-
-Geral do Estado do Rio de Janeiro, quando ainda não era, obviamente, Minis-
tro do Supremo Tribunal Federal — sugere parâmetros de atuação judicial nas
hipóteses de ações individuais e coletivas. Naquelas, as pessoas necessitadas
poderiam pleitear os remédios “constantes das listas elaboradas pelo Poder Pú-
blico”, exigindo-os do ente federado — União, Estado ou Município — que
incluiu “em sua lista o medicamento solicitado. Trata-se aqui de efetivar uma
decisão política específica do Estado, a rigor já tornada jurídica”.275 No âmbito
do controle abstrato da constitucionalidade ou de ações coletivas, “seria pos-
sível discutir a inclusão de novos medicamentos nas referidas listas”. Mas isso
seria excepcional, pois as avaliações técnicas sobre o tema “competem prima-
riamente aos Poderes Legislativo e Executivo”.276 Por fim, ainda no campo das
ações coletivas ou abstratas para modificação das listas, o Judiciário só deve

273 STJ, Recurso Especial nº 851.760/RS, relator ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, j. 22/08/20016.
274 BARROSO, Luis Roberto. “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”. Direitos sociais:
fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 902 e
903. Sobre o tema, conferir, também, Cláudio Pereira de Souza Neto. “A justiciabilidade dos direitos
sociais: críticas e parâmetros”. Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em
espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 515 a 551.
275 BARROSO, Luis Roberto. “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, p. 902.
276 BARROSO, Luis Roberto. “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, p. 903.

229
30 anos da Constituição

impor o fornecimento de medicamentos de eficácia comprovada, optando por


aqueles disponíveis no Brasil e de menor custo.277
Em síntese, nas últimas décadas, a efetividade do direito à saúde se deu
com uma intensa judicialização, gerando uma grande influência do Judiciário
nas políticas públicas de saúde, mas produzindo, também, uma série de desafios
relacionados ao equilíbrio dos orçamentos públicos e à organização da Admi-
nistração Pública e do próprio Judiciário.278

5. Conclusão

5.1 A aquisição do direito subjetivo via


judicialização e a diferença de posturas
no enfrentamento dessas demandas
O entendimento da caracterização dos direitos sociais como direitos fun-
damentais e a compreensão de interdependência entre esses e as liberdades
públicas não impede a existência de posições divergentes na doutrina sobre
vantagens e desvantagens de sua efetivação por meio de um processo de judi-
cialização de suas demandas.
Se por um lado uma atuação ativa do Judiciário na implantação desses direitos
acolhe a ideia de real efetivação deles, frente a uma constatação de baixo compro-
metimento na sua realização pelos demais Poderes da República, por outro lado,
inúmeros outros aspectos questionam as vantagens desse processo de judicialização.
A compreensão do caráter distributivo sobre bens coletivos que os caracteriza, atre-
lada à percepção da necessidade de uma solução com base na racionalidade política,
bem como a constatação de que a efetivação judicial dos direitos sociais reforça de

277 BARROSO, Luis Roberto. “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, p. 903.
278 Para uma análise recente sobre a judicialização da saúde e alguns desafios gerados por ela, conferir estudo
feito a pedido do CNJ – Conselho Nacional de Justiça por pesquisadores da UERJ – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro: CNJ. “Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência”. ASENSI, Felipe
Dutra; PINHEIRO, Roseni (Coords). Brasília: 2015. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/
destaques/arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf. Acesso em: 21 jul. 2018.

230
30 anos da Constituição

alguma maneira os desníveis existentes na sociedade, em face do acesso desigual ao


sistema de justiça, expressam contrapontos nesse sentido.
As observações trazidas por José Reinaldo de Lima Lopes demonstram essa
nova realidade que se instala como estratégia de aquisição de alguns direitos sociais:
A grande mudança no quadro institucional brasileiro, portanto, não está
nem no controle de constitucionalidade, nem na existência de uma carta
de direitos sociais. O que mudou realmente na cultura jurídica brasileira
talvez tenha sido a canalização crescente de demandas ‘políticas’ para o
Judiciário. Chamo de políticas as demandas de caráter distributivo (obje-
to de reinvindicação de partilha e não de troca) sobre bens coletivos (ou
indivisíveis) já existentes ou que deveriam ser criados. Estas caracterís-
ticas são bastante objetivas para se ter uma ideia do que está em jogo no
caso dos direitos sociais. A canalização também se deveu ao fato de que
o parlamento e a disputa eleitoral ficaram amputados em muito de seus
aspectos pela ditadura militar (1964-1985), de modo que a efetividade da
discussão política foi colocada sob suspeita.279

Ao observarmos o percurso da atuação jurisprudencial no que concerne


ao direito de moradia e à proteção da saúde pela via judicial, como buscamos
fazer neste estudo, concluímos que não é razoável reconhecer que o Judiciário
tenha um entendimento equivalente do papel concretizador que deve assumir
frente aos diversos direitos fundamentais de caráter social. Se podemos acolher
a oportunidade dos questionamentos apresentados em razão de um ativismo
judicial no campo da saúde, parece-nos pouco sustentável o reconhecimento
dessa realidade no que concerne à proteção judicial do direito de moradia.
No campo da moradia verificamos uma presença muito maior de avanços
jurídicos em favor da sua efetivação por meio da criação legal de novos institu-
tos jurídicos que buscam coibir práticas descompromissadas com a efetivação
do conceito de função social da propriedade, do que de uma atuação judicial
ativa para sua concretização.
A persistência de decisões em favor da ocorrência de despejos forçados, sem
grande comprometimento de soluções alternativas adequadas que imponham
qualquer proteção à moradia dos desalojados, acompanhada de um processo ju-
dicial de exclusão dos assentados e de fundamentações que desconsideram prer-

279 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006, p. 224.

231
30 anos da Constituição

rogativas constitucionais em favor de uma concepção formalista de propriedade


e do entendimento de ilegalidade da posse, sem qualquer sopesamento com o
direito de moradia, demonstram que, mesmo compondo o rol dos direitos funda-
mentais, a moradia não é acolhida judicialmente, de forma geral, no campo do
“mínimo existencial” que merece proteção jurídica efetiva de nossos Tribunais.
Por outro lado, a experiência judicial no campo da saúde pode ensinar as
vantagens e desvantagens de um processo de judicialização que encampou uma
atitude ativista do sistema de Justiça na realização de direitos. É possível perceber
que o aprimoramento das soluções em relação a qualquer direito social funda-
mental depende de uma atuação equilibrada e criteriosa dos Poderes da Repú-
blica, para que a judicialização da política e o descompromisso na efetivação de
direitos por parte dos Poderes que se omitem no seu processo de realização não
enfraqueçam os pressupostos democráticos constitutivos do Estado brasileiro.

5.2 A importância da política


e da responsabilização judicial
A política é o espaço por excelência da composição de interesses e do
desenvolvimento dos pactos sociais que irão se traduzir em direitos e deveres
dentro de uma determinada ordem jurídica democrática. Por outro lado, a con-
cepção de um Estado de Direito pressupõe o respeito aos direitos consagrados
juridicamente, cabendo ao Poder Judiciário atuar no sentido da garantia e ma-
nutenção desses valores que se positivaram.
Um Legislativo que não constrói instrumentos legais com o fim de concretizar
direitos constitucionalmente estabelecidos, um Executivo que não implementa po-
líticas públicas que visem garantir a efetividade de direitos e um Judiciário que na
aplicação da Justiça prioriza a defesa de alguns direitos de forma a desconstituir ou-
tros direitos estabelecidos, pervertem o funcionamento democrático e o sentido da
força normativa como caminho de composição dos interesses sociais conflitantes.
Por outro lado, um Judiciário excessivamente ativo, que invade a área de
atuação dos demais Poderes, ainda que em nome da efetividade de direitos e
como suposto mecanismo de pressão frente a omissões indevidas, socorre-se
de atalhos que tendem a acomodar o comprometimento das instituições na
realização de seus deveres, além dos riscos de uma atuação pouco eficiente aos

232
30 anos da Constituição

propósitos pretendidos, uma vez que não é estruturado para a construção de


políticas institucionais. Apontam-se, ainda, os riscos desse Poder ao regular,
julgar e aplicar o direito pleiteado transformar-se em um superpoder, com baixa
capacidade institucional de controle dos seus atos.
Dessa maneira, parece-nos que o caminho democrático para a implemen-
tação efetiva de direitos sociais deve trabalhar com a ideia de responsabilização
judicial frente ao descumprimento da ordem jurídica sem, contudo, destituir a
política de seu espaço de decisão.
Em uma sociedade complexa, é preciso redesenhar mecanismos de diálogo
entre os Poderes. O Judiciário não deve ser resistente em comprometer poderes
públicos e particulares no atendimento de novos paradigmas. No caso da mora-
dia, os estudos demonstram uma frágil atuação judicial na imposição de ônus,
especialmente aos particulares, frente ao descumprimento da função social da
propriedade e proteção da moradia. Por outro lado, ao comprometer a decisão de
gastos de verbas públicas sobre demandas de caráter distributivo sobre bens cole-
tivos, a omissão dos Poderes Legislativo e Executivo deve ser coibida pelo Judici-
ário, não na substituição da decisão política que não lhe cabe, mas em uma atu-
ação de mediação das forças políticas sociais e de constrangimento desses atores
na composição do conflito de forma intermediada pela Justiça, se necessário for.
Soluções judiciais nesse sentido de organização e comprometimento dos
diversos atores envolvidos – embora de baixa tradição no que se entende pela
atuação jurisdicional – podem ser um caminho de efetivação dos direitos e de
respeito às práticas democráticas de forma mais consistente.280

5.3 O aperfeiçoamento de estruturas judiciais


e o papel de mediador do Judiciário
A perspectiva de uma atuação que considere um papel de mediação do
Judiciário que envolva os diversos atores em conflito exige o aprimoramento das
estruturas judiciais para essa atuação.

280 Vale lembrar a reflexão sobre o paradigma do planejamento democrático e sua articulação com o
direito feita por NELSON, Aline Virgínia Medeiros; BRAGA JUNIOR, Sérgio Alexandre de Morais.
Democracia e Cultura no Planejamento do Desenvolvimento Urbano. Revista DIREITO GV. São Paulo
8(2), p. 407-426, Jul-Dez 2012, especialmente p. 415-417.

233
30 anos da Constituição

É fundamental um processo de capacitação da Justiça nesse sentido, além


de uma organização judicial que dê conta da estruturação de informações e da
preocupação de construção de decisões consistentes com os valores prestigiados
na ordem jurídica política e social.
No caso do direito à moradia, a premissa de uma gestão urbana democrá-
tica tem que ser encampada no processo decisório que alcança a Justiça. Essa
é uma transformação cultural relevante para o bom andamento das demandas.
No estudo realizado pelo IBDU, é interessante constatar como as decisões
judiciais do TJ/SP se apropriaram pouco dos novos paradigmas do direito urbanís-
tico positivado, quando da construção de suas decisões. “De cerca de 200 acór-
dãos estudados, que citam expressões relevantes para a disciplina urbanística em
sua ementa, nenhum foi classificado com os assuntos ‘ordem urbanística’, ‘moradia’,
‘conflito fundiário coletivo urbano’, apesar de existirem diversos processos judiciais
e recursos impetrados tratando desta matéria. Outras diversas categorias de assun-
tos já existentes na classificação do TJSP como ‘Parcelamento do solo urbano’ são
pouco utilizadas mesmo havendo grande número de recursos sobre o assunto.”281
No que tange ao campo da saúde, as pesquisas realizadas apontam para o
reforço de um caminho liberal e individual em decorrência da prática judicial
encampada, o que já provocou, inclusive, mudança no percurso jurisprudencial
que passa em um segundo momento a articular decisões da Justiça com base
nas políticas públicas estabelecidas, quando falamos da concessão gratuita de
remédios.282 Parece-nos fundamental aprofundarmos esse caminho.
O redesenho de estruturas e a capacitação dos magistrados para uma nova
prática da intervenção judicial pode ser o próximo e, quem sabe, o melhor ca-
minho a ser percorrido por uma ordem democrática comprometida com a efeti-
vação responsável de seus direitos.

281 Em relação à necessidade de aprimoramento das estruturas judiciais para enfrentamento adequado
das questões que debatem o direito à moradia, conferir as conclusões apontadas pela pesquisa do
IBDU: CARDOSO, Patrícia; FROTA, Henrique; LIBÓRIO, Daniela; MAESTRO, Irene. “Direito
Urbanístico em juízo: estudo de acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo”, Relatório de Pesquisa,
São Paulo: IBDU, 2016.
282 WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de recursos, custo dos direitos e reserva do possível na jurisprudência
do STF. Revista DIREITO GV, São Paulo 4(2), p. 539-568, jul-dez 2008.

234
30 anos da Constituição

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237
Por uma Constituição não só
Cidadã, mas Humanitária: uma
Abordagem dos Direitos Humanos
Constitucionais e sua Concretização

Ana Claudia Santano283

Introdução
O projeto constitucional de 1988 foi muito desejado. E não era para menos.
Havia, de fato, toda uma mobilização popular que vinha desde o movimento das
Diretas Já, clamando por uma nova ordem constitucional que rompesse definiti-
vamente as amarras do regime ditatorial,284 resultando, assim, na elaboração da
Constituição Federal de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”.285
Foi nesse momento que se viu no Brasil uma intensa inclusão de direitos
e garantias fundamentais. Ainda que muitos deles já estivessem presentes na
história constitucional brasileira, o fato é que em muitas ocasiões, a sua mera
previsão legal camuflava a realidade, como ocorreu na Constituição de 1824 e
os direitos civis e políticos – algo que caracterizada o momento devido à era das
revoluções, mas que mascarava a existência da escravidão e a do voto censitário
-; na Constituição de 1937, que continha um conjunto formal de direitos, a fim
de disfarçar a ditadura do Estado Novo; e na Constituição de 1967 e a Emenda

283 Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro


Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Pós-doutora em Direito Público Econômico pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas
pela Universidad de Salamanca, Espanha. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6241908411721255
E-mail: [email protected]
284 SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e democracia – tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico:
vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 201.
285 Alcunha dada por Ulisses Guimarães no momento da promulgação do texto, em 5 de outubro de
1988, sendo amplamente repetido por toda a doutrina. Nesse sentido, cf. CHUEIRI, Vera Karam de.
Fundamentos do Direito Constitucional. Curitiba: IESDE, 2009. p. 33.

239
30 anos da Constituição

n° 1 de 1969, que manteve o perfil apenas formal dos direitos, mas que se sujei-
tavam a outros decorrentes do regime militar.286
Assim, a opção do constituinte de 1988 foi pela introdução da mais exten-
sa e abrangente lista de direitos de distintas espécies, como os civis; os políti-
cos; os econômicos; os sociais; os culturais; os ambientais, dentre outros. Além
disso, este bloco de direitos não é exaustivo, uma vez que há uma abertura da
Constituição para a inclusão de outros decorrentes do (i) regime; (ii) princípios
da Carta; (iii) tratados internacionais de direitos humanos287 celebrados pelo
Brasil, tal como consta no art. 5, §2.288
No entanto, os 30 anos da Constituição de 1988 testemunharam um mo-
mento de plena ascensão no reconhecimento dos direitos humanos na ordem
constitucional brasileira, mas também uma crise, que não vem só dessa recogni-
ção, mas da própria noção de direitos humanos, comprometendo a frágil conso-
lidação desses valores. Diante disso, e considerando que a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem também completam 70 anos, por meio de uma breve revisão doutri-
nária e de análise de dados da jurisprudência do STF e do Tribunal de Justiça
do estado do Paraná, este comentário irá abordar como caminha a abertura
constitucional para os direitos humanos internacionais. Ao final, traça-se um
panorama do que se espera para os próximos 30 anos, considerando que ainda
há um longo caminho a ser percorrido.

286 RAMOS, André de Carvalho de. Curso de Direitos Humanos. 4° ed., 2017. p. 447-448.
287 Apenas a título de explanação, neste trabalho a expressão “direitos humanos” terá sentido distinto
quando escrito com letras minúsculas e maiúsculas. Quando minúsculas, referir-se-á ao que André de
Carvalho Ramos menciona como “um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida
humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade”, ou seja, aqueles indispensáveis à vida digna
(cf. RAMOS, André de Carvalho de. Curso de Direitos Humanos. 4° ed., 2017. p. 29). Por outro lado,
quando escrito com letras maiúsculas, fará alusão ao ramo do Direito.
288 Art. 5, §2°: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”. Esta abertura já constava em outras Cartas constitucionais, como a
de 1891 (“Art 78 - A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras
garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos
princípios que consigna”), mas é a primeira vez que a abertura da Constituição se baseia também nos
tratados internacionais de Direitos Humanos nos que o Brasil faz parte.

240
30 anos da Constituição

1. A recepção e interpretação dos tratados internacionais


de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro
A ordem constitucional de 1988 se preocupou muito em adotar medidas que
pudessem incorporar os instrumentos internacionais voltados à proteção dos di-
reitos humanos, e foi a partir da promulgação do texto constitucional que muitos
tratados importantes foram ratificados. De fato, entre 1988 e 2004 houve uma
série de ratificações por parte do Brasil em tratados vinculados à temática de Di-
reitos Humanos, transferindo a principiologia desses instrumentos internacionais
à realidade constitucional.289 É nessa esteira que vem o art. 5°, §2° da Constitui-
ção Federal, quando inclui os tratados internacionais de Direitos Humanos no rol

289 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 260. Desde 1988, foram ratificados as seguintes declarações e tratados: Declarações de
Direitos Humanos aprovadas pelo Brasil: 1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);
2. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986); 3. Declaração e Programa de Ação de
Viena (1993); 4. Declaração de Pequim adotada pela quarta conferência sobre as mulheres: ação
para igualdade, desenvolvimento e paz (1995); 5. Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem (1948); 6. Convenção para Prevenção e a Repressão do crime de genocídio (1948); 7.
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951); 8. Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados
(1966); 9. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); 10 Protocolo Facultativo
relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); 11. Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); 12. Convenção Internacional sobre Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial (1965); 13. Convenção Internacional sobre Eliminação de
todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979); 14. Protocolo Facultativo à Convenção
Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1999); 15.
Convenção contra a tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanas ou degradantes (1984);
16. Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989); 17. Protocolo Facultativo à Convenção sobre
os Direitos da Criança referente à venda de criança, à prostituição infantil e à pornografia infantil
(2000); 18. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento
de crianças em conflitos armados (2000); 19. Convenção das Nações Unidas contra corrupção (2000)
– Convenção de Mérida; 20. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San
José da Costa Rica; 21. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1979); 22. Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos ,
sociais e culturais (1988) – Protocolo de San Salvador; 23. Protocolo à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos referentes à abolição da pena de morte (1990); 24. Convenção Interamericana para
prevenir e punir a Tortura (1985); 25. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a
violência contra a Mulher (1994) – Convenção de Belém do Pará; 26. Convenção Interamericana
sobre Tráfico Internacional de Menores (1994); 27. Convenção Interamericana para a Eliminação de
todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência (1999). (Lista extraída
do Observatório de Relações Internacionais, do Núcleo de Estudos sobre Cooperação e Conflitos
Internacionais da Universidade Federal de Ouro Preto (NECCINT) <https://neccint.wordpress.com/
legislacao-internaciona/> Acesso em 22 jun. 2018).

241
30 anos da Constituição

de direitos e garantias, conferindo hierarquia constitucional a esses instrumentos


internacionais, formando o que se denomina de bloco de constitucionalidade.290
Contudo, o debate sobre o encaixe da ordem jurídica interna e internacio-
nal, além de não ser exclusivamente brasileiro, impõe aos jusinternacionalistas um
grande desafio, uma vez que as normas protetivas de direitos humanos possuem
natureza jus cogens291, tendo como base axiológica a dignidade da pessoa huma-
na, o que faz com que o Direito Internacional deva ser reconhecido a todos os
seres humanos, em qualquer parte do mundo e em qualquer época, atendendo
à universalidade desses direitos.292 Nesse sentido, ainda que seja uma realidade
a intensa comunicação entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional
dos Estados, podendo, inclusive, superar as visões monista e dualista293 devido à
prevalência da norma mais favorável ao indivíduo294, quer nacional, quer inter-
nacional295, o fato é que, no Brasil, a questão não vem sendo tratada com tanta
objetividade. Pelo menos, não ao longo dos 30 anos da Constituição.
Contudo, mesmo nessa direção, permanecia entre os tratados e a realidade
brasileira uma distância de internalização prática do conteúdo e de disposições.
Há autores que afirmam a existência de um descompasso entre os compromis-

290 Cf. CARVALHO, Feliciano de. Teoria do bloco de constitucionalidade. Anais do XXIII Congresso
Nacional do CONPEDI/UFPB. Florianópolis, 2015, p. 418-444.
291 Por força do art. 53 da Convenção de Viena de 1969: “É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão,
conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção,
uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade
internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só
pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”.
292 GUERRA, Sidney. Controle de convencionalidade. Revista Jurídica. vol. 01, n°. 46, Curitiba, 2017. p. 4.
293 Devido aos limites desse trabalho, não se abordará o “embate” entre monistas e dualistas. Para
tanto, sugere-se a leitura de: AVELAR, Daniel; PRONER, Carol. A natureza jurídica dos tratados
internacionais de direitos humanos e sua harmonização e aplicabilidade no ordenamento jurídico
brasileiro. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 38-87, jul./dez. 2011.
294 Sobre o princípio pro homine, cf. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Constituição e Direito
Intergentium: a ductibilidade pro homine e o possível ius commune para os desafios jurídicos
contemporâneos. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (coord.). Direito
constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 49-72.
295 Segundo Cançado Trindade, “no presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia
do direito internacional ou do direito interno, como ocorria na polêmica clássica e superada entre
monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é da norma mais favorável às vítimas, que
melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno.” (Cf. TRINDADE,
Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 1997. v. 1, p. 434).

242
30 anos da Constituição

sos assumidos pelo Brasil no plano internacional e a sua aplicabilidade.296 E isso,


de certa forma, é devido à recepção tanto pelo Poder Legislativo como pelo
Poder Judiciário dos tratados internacionais de direitos humanos.
A análise sobre a receptividade dos tratados de direitos humanos deve ser feita
conjugando a atuação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. No que tange ao
Poder Legislativo – mais especificamente ao constituinte -, a opção foi feita por meio
do art. 5°, §2, deixando em evidência que o bloco de constitucionalidade incluía tais
documentos. Nesse sentido, muitos autores defendiam o seu status constitucional,
seguindo uma estrita interpretação do texto constitucional.297
Contudo, a interpretação da posição hierárquica dos tratados de direitos hu-
manos pelo STF não correspondia a isso, levando a Corte a definir o caráter infra-
constitucional desses diplomas legais,298 o que gerou muitos debates e críticas, justa-
mente porque afetava a eficácia dos direitos humanos na ordem interna brasileira.299
Ocorre que, anos mais tarde, foi aprovada a EC n° 45/2004, que acres-
centou o §3°ao art. 5° do texto constitucional, estabelecendo que os tratados
internacionais de Direitos Humanos somente teriam status constitucional se
fossem internalizados por meio de um trâmite de emenda constitucional, ou
seja, a sua aprovação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros. Isso, para alguns, seria uma
forma de sanar a problemática da internalização dos tratados internacionais de
Direitos Humanos, dando unicidade e alçando um novo patamar hierárquico

296 Nesse sentido, cf. FACHIN, Luiz Edson. Notas para um ensaio sobre a posição jurídica dos tratados
internacionais de direitos humanos no Brasil após a reforma constitucional. In: PRONER, Carol;
CORREAS, Óscar (coord.). Teoria crítica dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 157.
297 Nesse sentido, cf. a posição favorável ao status constitucional dos tratados internacionais de direitos
humanos nesse período de VELLOSO, Carlos Mario da Silva. Os tratados na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Revista de informação legislativa, v. 41, n. 162, abr./jun. 2004. p. 39; bem
como o seu voto no HC n. 82.424-RS, STF. Assim ele se pronunciava à época: “Nesse caso, no caso de
tratar-se de direito e garantia decorrente de Tratado firmado pelo Brasil, a incorporação desse direito
e garantia, ao direito interno, dá-se com status constitucional, assim com primazia sobre o direito
comum. É o que deflui, claramente, do disposto no mencionado § 2º do art. 5º da Constituição da
República. O Supremo Tribunal Federal, todavia, não acolheu essa tese [citando, aqui, os precedentes
de então: ADI 1.480-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.01 e HC 76.561/SP, Rel. Min.
Nelson Jobim, Plenário, 27.05.98, DJ de 02.02.01]”.
298 STF, HC 72.131. Rel. Min. Moreira Alves. Julg. 23.11.1995. Caso que envolve a prisão do depositário infiel.
299 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A internacionalização do Direito Constitucional brasileiro.
In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (coord.). Direito constitucional e
internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 284.

243
30 anos da Constituição

a estes instrumentos.300 Porém, o debate somente se intensificou, justamente


porque limitou a efetividade dos tratados de direitos humanos no plano interno.
Novamente a posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos
humanos foi posta em pauta no STF.301 Em outro julgado302, o Min. Sepúlveda
Pertence, no momento de fundamentar o seu voto, sustentou que se deveria
aceitar a força supralegal aos tratados de direitos humanos, de modo a dar apli-
cação imediata às suas normas, inclusive contra lei ordinária interna sempre
que isso não fira a Constituição. Assim, os instrumentos internacionais de di-
reitos humanos ficariam acima das leis e abaixo da Constituição, tese esta que
somente após a sua aposentadoria ganharia força.303
O certo é que, na época, havia uma variedade de posições sobre a hierarquia
dos tratados de direitos humanos que só foram revistas após a EC 45/2004. As de
maior destaque eram: (i) natureza supraconstitucional, considerando a sua origem
internacional; (ii) natureza constitucional, com forte apoio doutrinário; (iii) natu-
reza equiparada à lei ordinária, entendimento do STF; e (iv) natureza supralegal,
que viria com o posicionamento isolado do Min. Sepúlveda Pertence.304
Com a EC nº 45/2004, o impasse na posição do STF encerrou-se pela via
legislativa, conferindo status constitucional somente àqueles tratados de direi-
tos humanos que fossem internalizados por meio do procedimento de aprovação
de emendas constitucionais. Porém, restava ainda o dissenso para a situação
anterior, até 2004. A inserção do art. 5° §3° motivou uma nova revisão do po-
sicionamento do STF sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos que
permanece até os dias de hoje. No julgamento do RE nº 466.343, que trouxe

300 FACHIN, Luiz Edson. Notas para um ensaio sobre a posição jurídica dos tratados internacionais de
direitos humanos no Brasil após a reforma constitucional. In: PRONER, Carol; CORREAS, Óscar
(coord.). Teoria crítica dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 157.
301 Sobre as diversas interpretações, cf. SCHIER, Paulo Ricardo. Hierarquia constitucional dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos e Emenda Constitucional 45 – Tese em favor da incidência do
tempus regit actum. 2008. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/
arquivos/anais/XIVCongresso/06 3.pdf> Acesso em: 28 nov. 2017.
302 STF, HC 79.785. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Julg. 29.03.2000.
303 O STF julgou o caso por maioria dos votos, negando provimento ao recurso.
304 Sobre o tema, cf. MESSA, Ana Flávia; FRANCISCO, José Carlos. Tratados internacionais sobre
direitos humanos e poder constituinte. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri
(coord.). Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
241-276.

244
30 anos da Constituição

novamente a questão do depositário infiel, a maioria dos ministros defendeu a


posição antes adotada pelo Min. Sepúlveda Pertence, ou seja, os tratados inter-
nacionais de direitos humanos possuem natureza supralegal, estando abaixo da
Constituição, mas acima de toda e qualquer lei.305
Essa virada de entendimento partiu do Min. Gilmar Mendes, que, resga-
tando o voto do Min. Pertence, entendeu que, já que o Brasil não fez nenhuma
reserva ao Pacto Civil, ao Pacto de San Jose e à Convenção Americana, ambos
no ano de 1992, não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel
(então objeto do debate), “pois o caráter especial desses diplomas internacionais
sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico,
estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna”.306 Diante
disso, a Corte passou a adotar a teoria do duplo estatuto dos tratados de di-
reitos humanos, conferindo natureza constitucional aos que forem aprovados
pelo procedimento especial do art. 5°, §3°, bem como considerando de caráter
supralegal para os demais, sejam anteriores ou posteriores à EC nº 45/2004 e
que tenham sido aprovados pelo rito comum.307
Nesse sentido, tem-se que o §3° do art. 5° mantém a existência de um
bloco de constitucionalidade, porém mais restrito, algo que foi muito criticado
pela doutrina mais garantista justamente devido a esse menor espaço para a
recepção de tratados internacionais de direitos humanos.308 Exemplo disso foi
a manifestação feita por Cançado Trindade, em seu voto em separado no Caso
Damião Ximenes vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse voto, ele expressou sua indignação com a aprovação do §3º do art. 5° da

305 Para uma análise dos fundamentos dessa decisão, cf. MAUÉS, Antônio Moreira. Supralegalidade
dos tratados internacionais de direitos humanos e interpretação constitucional. In: SOARES, Mário
Lúcio Quintão; SOUZA, Mércia Cardoso de (coord.). A interface dos direitos humanos com o direito
internacional. Tomo I, Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 137-162.
306 Vd. voto Min. Gilmar Mendes, RE nº 466.343.
307 Cf. LOPES, Dalliana Vilar; LOPES, Gills Vilar. A internalização dos tratados sobre Direitos
Humanos na ordem jurídica brasileira e a problemática da ordem internacional. Universitas Relações
Internacionais, Brasília, v. 14, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2016.
308 Nesse sentido, cf. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A internacionalização do Direito
Constitucional brasileiro. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (coord.).
Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 283;
e CARVALHO, Feliciano. A natureza jurídica constitucional de todos os tratados internacionais
de direitos humanos: análise da supralegalidade e da inconsciência do Supremo Tribunal Federal
brasileiro. In: Anais do XXII encontro nacional do CONPEDI, 2013, p. 137-157.

245
30 anos da Constituição

Constituição de 1988, afirmando que o dispositivo busca outorgar, de forma


“bisonha”, status constitucional somente aos tratados que se submetam ao rito
especial descrito. Diante disso, critica essa modificação constitucional, classifi-
cando-a de “mal concebido, mal redigido e mal formulado [o dispositivo legal]”,
e que representa um “lamentável retrocesso em relação ao modelo aberto con-
sagrado pela Constituição Federal de 1988”, o qual ele teve uma participação
ativa por meio de uma proposta à Assembleia Nacional Constituinte de 1988.309
Ainda que o STF tenha se pronunciado a respeito e que a celeuma jurídica
— ao menos aparentemente — tenha sido resolvida, o fato é que, para autores
como Ingo Sarlet, não há como dissociar o §3° do §2°, ambos do art. 5º da Consti-
tuição de 1988, porque um complementa o outro, exigindo uma exegese conjunta.
Assim, o autor, desde um primeiro momento, afasta a recepção constitucional dos
tratados internacionais de direitos humanos anteriores à EC n° 45/2004 devido a
sua clara incompatibilidade de rito para isso. Por outro lado, Sarlet aplica a técni-
ca da interpretação conforme, entendendo que o §3° do art. 5° será constitucional
quando for compreendido para assegurar hierarquia constitucional (ao menos em
sentido material) aos tratados em matéria de direitos humanos já incorporados
antes da EC n° 45/2004, bem como hierarquia formal e material aos tratados

309 Cançado Trindade continua com sua contundente crítica nos seguintes termos: “No tocante aos
tratados anteriormente aprovados, cria um imbróglio tão a gosto de publicistas estatocêntricos,
insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos tratados a aprovar, cria a
possibilidade de uma diferenciação tão a gosto de publicistas autistas e míopes, tão pouco familiarizados,
— assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, — com as conquistas do Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos
direitos protegidos no Estado demandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de
fragmentação ou atomização, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados
de obscurantismo. A nova disposição é vista com complacência e simpatia pelos assim chamados
“constitucionalistas internacionalistas”, que se arvoram em jusinternacionalistas sem chegar nem de
longe a sê-lo, porquanto só conseguem vislumbrar o sistema jurídico internacional através da ótica da
Constituição nacional. Não está sequer demonstrada a constitucionalidade do lamentável parágrafo 3
do artigo 5, sem que seja minha intenção pronunciar-me aqui a respeito; o que sim, afirmo no presente
Voto, — tal como o afirmei em conferência que ministrei em 31.03.2006 no auditório repleto do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília, ao final de audiências públicas perante esta Corte que
tiveram lugar na histórica Sessão Externa da mesma recentemente realizada no Brasil, — é que, na
medida em que o novo parágrafo 3 do artigo 5 da Constituição Federal brasileira abre a possibilidade
de restrições indevidas na aplicabilidade direta da normativa de proteção de determinados tratados
de direitos humanos no direito interno brasileiro (podendo inclusive inviabilizá-la), mostra-se
manifestamente incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigos 1(1),
2 e 29)” (Voto em separado, Caso Damião Ximenes vs. Brasil, parágrafos 30 e 31. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf> Acesso em: 20 jun. 2018).

246
30 anos da Constituição

eventualmente incorporados pelo rito constante no §3° do art. 5°. Já os tratados


anteriores à EC n° 45/2004, para terem hierarquia constitucional formal, devem
ser aprovados pelo rito previsto no §3° do art. 5° de todos modos.310
A noção de bloco de constitucionalidade já vinha sendo usada antes da
EC nº 45/2004 como uma ideia de “constituição total” a partir da ordem expres-
sa e positivada, bem como todos os seus princípios orientadores e inerentes.311
No entanto, negou-se reiteradas vezes a sua hierarquia constitucional, algo que,
pelo menos, ficou mais objetivo após a EC nº 45/2004. Desde então, o bloco de
constitucionalidade no sistema brasileiro adquiriu uma nova dimensão, fazendo
com que o ordenamento constitucional em sentido formal, material e hierár-
quico represente a reunião de diplomas normativos diversos e não consolidados
organicamente em um único documento. Isso diretamente impacta sobre o con-
trole de constitucionalidade312 e no controle de convencionalidade, algo ainda
pouco aventado na doutrina, e menos ainda na jurisprudência.313
Diante de tanta polêmica, Piovesan traz uma visão que compatibiliza o deci-
dido pelo STF e a doutrina, afirmando que nem o art. 5° §3° seria inconstitucional,
nem os tratados de direitos humanos aprovados pelo rito simples seriam como uma
lei ordinária. Para a autora, não importa se o instrumento foi incorporado ao orde-
namento antes ou depois da EC nº 45/2004, o que efetivamente deve ser levado em
consideração é o seu conteúdo, pois todos seriam materialmente constitucionais.
No entanto, nos casos de tratados aprovados pelo rito especial, eles seriam material
e formalmente constitucionais e, sendo assim, não poderiam ser denunciados e se-

310 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas normas sobre a incorporação e a hierarquia dos tratados
internacionais em matéria de Direitos Humanos na ordem jurídica brasileira, especialmente em face
do novo §3° do art. 5° da Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo. v. 245, 2007. p. 74;
SARLET, Ingo Wolfgang. Considerações a respeito das relações entre a Constituição Federal de 1988
e os tratados internacionais de direitos humanos. Revista TST. v. 77, n° 4, out./dez., 2011. p. 166.
311 Nesse sentido, vd. ADI n° 595/ES, Rel. Min. Celso de Mello.
312 MESSA, Ana Flávia; FRANCISCO, José Carlos. Tratados internacionais sobre direitos humanos e
poder constituinte. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (coord.). Direito
constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 263.
313 Sobre o tema, cf. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade
das leis no Brasil. In: SOUSA, Marcelo Rebelo, et. al. (coords.). Estudos em homenagem ao Prof.
Doutor Jorge Miranda, v. III (Direito constitucional e justiça constitucional). Coimbra: Coimbra
Editora, 2012, p. 759-776; e MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Podem os tratados de direitos humanos
não “equivalentes” às emendas constitucionais servir de paradigma ao controle concentrado de
convencionalidade? RDU. v. 12, n° 64, p. 222-229, jul./ago., 2015.

247
30 anos da Constituição

riam incluídos no rol de cláusulas pétreas, conformando a petrificação dos tratados


que se submetessem a esse procedimento qualificado.314
Entretanto, é inegável que o atual tratamento constitucional dos tratados in-
ternacionais (§3 do art. 5°), aliado à posição do STF, debilita a consolidação e a
realização dos direitos humanos no plano interno, criando um efeito-dominó que
atinge boa parte do Poder Judiciário – com magistrados que ainda não reconhe-
cem os direitos humanos como regras a serem aplicadas no plano interno -, dos
governantes – que continuam violando sistematicamente diversos direitos objeto de
documentos internacionais e que se recusam a cumprir integralmente as sentenças
proferidas por tribunais internacionais315, como é o caso da Corte Interamericana, e
também da sociedade, que julga que os direitos humanos, além de “não existirem”,
só serviriam para “os bandidos”316, deslegitimando os valores neles inculcados.

2. Diálogos entre cortes e a retroalimentação da ordem


jurídica internacional e interna: algo ainda a conquistar
A doutrina estrangeira aborda já há algum tempo que a ordem internacio-
nal dos direitos humanos se sobrepõe à interna dos países, isso porque, atendendo
à pretensão de universalidade dos direitos humanos para todas as pessoas, inde-
pendentemente dos países em que estejam, a partir do momento que Estados ade-
rem a tratados internacionais que disponham sobre esses direitos, eles adquirem
obrigações erga omnes, submetendo-se à normativa internacional, incluindo, aqui,
as suas constituições.317 É nessa linha que Peter Häberle afirma que, se antes a
interpretação se fazia de acordo com a Constituição, agora essa interpretação se

314 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 77.
315 Sobre o tema, cf. PEREIRA, Taís Mariana Lima. O cumprimento das decisões da corte interamericana
de direitos humanos pelo Brasil. EJJL. Chapecó, v. 14, n. 2, p. 315-348, jul./dez. 2013.
316 Cf. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Direitos Humanos ou “Privilégios de Bandidos฀? Desventuras da
Democratização Brasileira. Novos Estudos CEBRAP – SP, nº. 30, p. 162-174. julho/91. Disponível em:
<http://novosestudos.org.br/v1/files/uploads/contents/64/20080624_direitos_humanos_ou_privilegios_
de_bandidos.pdf> Acesso em 10 jun. 2018.
317 CANTOR, Ernesto Rey. Controles de convencionalidad de las leyes. Biblioteca Jurídica del Instituto
de Investigaciones Jurídicas de la UNAM. 2011. p. 226. Disponível em: < https://archivos.juridicas.
unam.mx/www/bjv/libros/6/2562/16.pdf> Acesso e 22 jun. 2018.

248
30 anos da Constituição

pauta nos direitos humanos, ou seja, o direito interno – a Constituição -, deve ser
interpretada segundo o Direito Internacional dos direitos humanos.318
Nesse sentido, adere-se à ideia de Marcelo Neves de que os direitos hu-
manos têm o objetivo de se afirmar não só perante no âmbito internacional,
mas principalmente nas diversas ordens estatais, assim como diante da plura-
lidade de ordens extra-estatais em que expectativas normativas têm relevância
estrutural. Para tanto, os direitos humanos exigem uma institucionalização de
procedimentos abertos à heterogeneidade cultural, complexidade sistêmica e
pluralidade discursiva da sociedade mundial, que possam garanti-los.319
Ocorre que há Estados que sequer aderiram aos princípios do Estado demo-
crático de Direito, negando amplamente os direitos humanos mediante exclusão
jurídica de boa parte desses direitos, ou mesmo reconhecendo-os como direitos
fundamentais, mas sem que a Constituição possua força normativa.320 No caso
brasileiro, isso também é relevante, pois o país não ofereceu, em seu momento,
um ambiente propício para a implantação do positivismo tal como idealizado,
que consequentemente impactou na construção do Estado de Direito.321 Nesse
sentido, sendo o positivismo filosófico algo social, coletivo, que se ampara no
fato social e nas suas relações empíricas322, e o positivismo jurídico como algo da
esfera do “dever ser”, com validade e vigência de normas (com forte conotação

318 HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional. México: UNAM, 2001. p. 185.


319 NEVES, Marcelo. A Força Simbólica dos Direitos Humanos. Revista Brasileira de Direito Público
RBDP. Belo Horizonte, n. 3, ano 1 Outubro/Dezembro, 2003. Disponível em: <http://www.bidforum.
com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=12542>. Acesso em 26 jun. 2018.
320 NEVES, Marcelo. A Força Simbólica dos Direitos Humanos. Revista Brasileira de Direito Público
RBDP. Belo Horizonte, n. 3, ano 1 Outubro/Dezembro, 2003. Disponível em: <http://www.bidforum.
com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=12542>. Acesso em 26 jun. 2018. O autor também destaca que
pode haver Constituições em Estados democráticos de Direito com força normativa, e que isso pode
causar a cristalização de práticas de agentes estatais contrários aos direitos humanos assegurados como
fundamentais. Nesse sentido, ele se utiliza das lições de Luhmann para afirmar que os direitos humanos
são tanto mais conhecidos e afirmados quando são mais graves e frequentes as violações contra eles.
321 Admite-se que esse debate poderia ser objeto de um longo trabalho que ultrapassa muito a proposta
aqui constante. Dessa forma, mesmo arriscando-se ser muito breve nas fundamentações dos
argumentos, optou-se ainda assim por fazer constar esse detalhe por entender que é importante para
as conclusões que serão expostas.
322 Cf. COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo. [s.d.]. p. 40-41. Disponível em: < http://www.
ebooksbrasil.org/adobeebook/comte.pdf> Acesso em 22 jun. 2018; HESPANHA, Antônio Manuel.
Cultura jurídica europeia – Síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012. p. 398 e ss.

249
30 anos da Constituição

ao formalismo)323, tem-se que o Brasil, nas palavras de Emerson Gabardo, “nunca


possuiu as circunstâncias adequadas para a implantação de um ideário tão exato,
coerente e equitativo como é o positivista [em suas vertentes filosófica e jurídica]”,
uma vez que a sociedade brasileira não tinha – e ainda carece -, de uma menta-
lidade coletiva, fazendo com que o individual prevaleça sobre o público, e muito
menos impessoal, o que causou o apego ao formalismo, mas somente quando o
estabelecido esteja de acordo com os seus interesses.324
Nessa linha, o Estado de Direito é tido aqui como a visão formal do Direi-
to, preocupado em afirmar um sistema jurídico que seja formalmente garantidor
da previsibilidade jurídica a partir da ideia de uma lei que também submeta aos
seus governantes, mas que também estabelece direitos para além do aspecto
formal-negativo, atraindo uma atuação estatal garantista, não se limitando à
sua versão liberal. Em sendo assim, o Brasil tardou para se tornar um Estado
de Direito, justamente porque a sua realidade sempre caminhou em sentido
contrário ao de sua legislação, pois desde a Constituição de 1824 já havia a
previsão de direitos, tal como já descrito nesse ensaio, mas isso não foi suficien-
te para diminuir a distancia entre a teoria e a prática. Ou seja, as ideias mais
fundamentais de um Estado de Direito já estavam se solidificando, mas a sua
aplicação ainda – até os dias de hoje -, permanece muito seletiva. 325
É essa aplicação seletiva do Direito interno, principalmente no que tange
aos direitos fundamentais, que enfraquece o discurso e prejudica o sistema bra-
sileiro em sua comunicação com o Direito Internacional, principalmente com
os direitos humanos. Isso pode ser ilustrado com o paradoxo atual da cada vez
maior procura dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos
pelos cidadãos brasileiros326, mas ainda da baixa adesão a essa ordem jurídica
internacional de direitos pelas Cortes e magistrados nacionais.

323 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6° ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998. p. 79 e ss.
324 GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do
bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 78-85.
325 GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do
bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 84-90.
326 Segundo levantamento feito por Flávia Piovesan, até julho de 2016, dezesseis casos haviam sido
encaminhados à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro, e mais de 130
casos haviam sido submetidos à Comissão Interamericana (Cf. PIOVESAN, Flavia. Brasil e o Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: _____. Temas de Direitos Humanos. 10° ed. São
Paulo: Saraiva, 2017. p. 109. Além disso, Eduardo Szazi aponta para uma tendência de crescimento dessa

250
30 anos da Constituição

Como forma de ilustrar o que está sendo aventado, optou-se por fazer uma
pesquisa jurisprudencial no sitio web do STF com alguns vocábulos referentes ao
objeto em estudo.327 No caso da expressão “sistema interamericano”, houve 36
resultados, sendo que 26 faziam menção à ausência do Min. Toffoli no julgamento
do caso devido a um evento sobre o sistema interamericano; outro versou sobre
extradição (caso Cesare Batisti) e outros 9 sobre prisões cautelares e excesso de
prazo, em que se invoca a Convenção Americana. Já com a expressão “Conven-
ção Americana”, o resultado aumenta para 279 acórdãos e 2 repercussões gerais,
tendo temas variados, que vão desde extradição; prisões cautelares; violência
em estabelecimentos prisionais (invocando o sistema onusiano também, no RE
580252, em que se fixou a indenização de um preso devido à situação degradante
durante o cumprimento de sua pena); crimes ambientais (com ampla menção a
tratados internacionais); o caso do depositário infiel de valor da Fazenda Nacio-
nal (ADI 1055), em que o STF traz o precedente da Corte Interamericana; casos
sobre tortura e outros que invocam a Convenção para amparar o direito à ampla
defesa, não exatamente na ementa do acórdão; dentre outros casos.
Já quando pesquisado “Corte Interamericana”, há 44 acórdãos. Quando
realmente há a abordagem de jurisprudência interamericana (porque em alguns
casos o resultado “corte” e “interamericana” aparecem separadamente, não in-
dicando algo que seja o foco aqui), há alguns interessantes, como o HC 124.306,
Rel. Min. Marco Aurélio, em que se aborda o tema do aborto e a prisão oriunda
dessa prática.328 Há também a ADPF 347, Rel. também do Min. Marco Aurélio,
em que se debateu a aplicação do que se chama de “estado das coisas inconsti-
tucional” sobre o sistema prisional, mas que não aborda jurisprudência intera-
mericana especificamente, senão o Pacto Civil e a Convenção Interamericana.

procura pelos sistemas internacionais de proteção pelos brasileiros (cf. SZAZI, Eduardo. A violência
estatal perante os sistemas internacionais de Direitos Humanos. Artigo não publicado, 2017. p. 8).
327 Pesquisa realizada em 15 de setembro de 2017. Decidiu-se manter os resultados e as conclusões devido
à utilização de dados também de 2016 e 2017 referentes à procura dos sistemas internacionais de
proteção dos direitos humanos pelos cidadãos brasileiros. Assume-se que podem haver imprecisões
nos dados, considerando que a pesquisa foi feita simplesmente pelo sistema do STF, podendo este
fornecer informações parciais.
328 Aqui o STF declarou que o aborto praticado até o 3° mês não deveria ser considerado crime, o que
gerou grande repercussão e que, inclusive, a estátua da Lex na frente da Corte foi vandalizada com
tinta vermelha, representando sangue.

251
30 anos da Constituição

Outro caso que resultou da pesquisa é o RE 592.581, em que se trata o


tortuoso tema dos estabelecimentos de correção de adolescentes, citando o caso
em que o Brasil respondeu na Corte Interamericana que envolveu o completo do
Tatuapé – FEBEM. Há a ADI 4815 que versa sobre as biografias não autorizadas,
em que há também menção à jurisprudência da Corte Interamericana; e o HC
115.539 que discute justamente um caso em que o Brasil foi condenado na Corte
junto ao estado de Rondônia, envolvendo a penitenciária Urso Branco.329 Outro
resultado que cita jurisprudência da Corte Interamericana é o HC 110.185, que
discute a prática de crimes militares em tempos de paz e o direito ao juiz natural,
havendo outras decisões sobre essa temática; bem como o RE 511.961, em que se
declarou a não obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da pro-
fissão, amparando-se em decisões da Corte Interamericana nesse sentido, além de
uma opinião consultiva (5-85, de 13 de novembro de 1985).
Portanto, é possível verificar que ainda não se percebe tanto impacto das
decisões da Corte Interamericana no STF ou da legislação internacional de
direitos humanos, mesmo considerando que muitos julgamentos emblemáticos
não constaram do levantamento, como é a ADPF 153 (referente à aplicação
da Lei da Anistia), ocasião em que o STF, além de não se alinhar com a juris-
prudência interamericana e de atender à sentença proferida pela Corte contra
o Estado brasileiro, também – no entendimento defendido nesse ensaio -, não
observou o princípio pro homine, privilegiando uma norma que vai de encontro
com muitos direitos humanos, inclusive fundamentais.330
Já no que se refere à legislação internacional, os sistemas internacionais de
proteção dos direitos humanos e as Cortes estaduais, a distância é ainda maior.
Como exemplo, realizou-se a mesma pesquisa acima, mas no sistema de busca de
jurisprudência do Tribunal de Justiça do estado do Paraná.331 Com a consulta da
expressão “Convenção Americana”, há 36 resultados. Entre eles, temáticas trazidas
pelas partes, como a prática do crime de desacato e diversos Habeas Corpus que

329 Aqui vale lembrar que o Brasil foi novamente denunciado à Comissão Interamericana no ano passado
por más condições em presídios, também em Rondônia, mas agora na Casa de Detenção de Ariquemes.
330 Sobre essa polêmica decisão, cf., por todos, ROTHEMBURG, Walter Claudius. Controle de
constitucionalidade e controle de convencionalidade: o caso brasileiro da lei da anistia. In:
PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (coord.). Direito constitucional e
internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 333-359.
331 Os esclarecimentos feitos sobre a pesquisa realizada no sistema do STF e sobre a abrangência temporal
também são aplicáveis aqui.

252
30 anos da Constituição

pedem a ordem com base na Convenção, art. 13.332 Em todos os casos pesquisados,
a ordem não é concedida, porque se entende que a legislação nacional mantém o
crime de desacato no ordenamento jurídico, não decidindo que a Convenção deva
prevalecer sobre o disposto no Código Penal. Há ainda casos de conflito de compe-
tência em situações abordando a violência doméstica – se é do juízo criminal ou do
juizado criminal -, e nesses casos somente há a menção tanto da Convenção Ame-
ricana como a de Belém do Pará, específica sobre a temática desse tipo de violência;
bem como outros casos versando sobre a não realização da audiência de custódia no
prazo de 90 dias, em que as decisões, inclusive, estabelecem que, segundo o art. 312
do Código de Processo Penal, já existem garantias ao preso provisório, o que “supre”
a necessidade de apresentação do preso à autoridade judicial.333
Já pesquisando, ainda no âmbito do TJ-PR, a expressão “Corte Interameri-
cana”, há 22 resultados, sendo um deles sobre a condenação do Brasil por realizar
interceptações telefônicas ilegais de integrantes do Movimento Sem Terra, envol-
vendo o Governo do Paraná.334 Nessa decisão, o TJ-PR declarou que não havia
direito de indenização perante o Governo do Paraná, considerando que os autores
já haviam recebido indenização por conta da condenação na Corte Interameri-
cana, sendo que não havia fatos novos que motivassem uma nova indenização.
Nesse sentido, o TJ-PR entendeu que não havia interesse legítimo na solução da
demanda por parte dos autores, condenando-os ao ônus da sucumbência.
As decisões restantes versam somente sobre conflitos de competência en-
tre juízo criminal e juizado criminal em casos de violência doméstica, limitan-
do-se à menção da Corte Interamericana.
Diante desse cenário, não se pode afirmar que há diálogo entre o Sistema
Interamericano e a legislação internacional de direitos humanos e a jurisdição
constitucional brasileira, nem mesmo com outro sistema internacional, eviden-
ciando, inclusive, uma resistência a essa maior interação entre a ordem interna
e internacional, o que dificulta muito a proteção multinível desses direitos.

332 Artigo referente à liberdade de expressão.


333 Portanto, nas linhas desse ensaio, há aqui uma possível violação da Convenção, com a chancela do
Poder Judiciário estadual paranaense. Trata-se de um julgamento de 2016, o que denota a postura
pouco aberta dessa corte ao Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos. Pode-se,
inclusive, extrair desse caso que há a direta elevação do CPP diante da Convenção, o que não poderia
ser, se for pensar segundo a hierarquia normativa aplicada pelo STF.
334 Caso Escher e otros vs. Brasil,.

253
30 anos da Constituição

3. Alguns fatores que influenciam no


diálogo das Cortes internas e internacionais
Em um trabalho muito interessante, José Ricardo Cunha et al realizam
uma pesquisa empírica com magistrados de primeira instancia da Comarca da
Capital do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro para investigar o
grau de justiciabilidade (efetividade) dos direitos humanos na tutela jurisdicio-
nal.335 Ainda que seja um estudo de 2005, é um indicativo de alguns fatores
que podem influenciar sobre o diálogo [ou a falta dele] entre cortes internas e
internacionais, bem como com a legislação de direitos humanos.336
Para realizar a pesquisa, os autores optaram por duas vertentes, sendo uma
teórica e outra prática. Na teórica, utilizou-se um estudo sistemático dos fun-
damentos jurídicos, filosóficos e políticos dos direitos humanos, a partir das
obras de Carlos Santiago Nino, Antonio Enrique Pérez Luño, Chaïm Perelman
e Robert Alexy. Já na vertente empírica, foi feito um levantamento em 225 das
244 varas em funcionamento de primeira instância do Tribunal de Justiça na
cidade do Rio de Janeiro, e logo foi aplicado um questionário, a fim de investigar
o modo de cada magistrado responsável pela prestação jurisdicional naquela
vara concebe e aplica os direitos humanos. O questionário também procurou
levantar o nível de formação dos juízes na área de direitos humanos.337
Em apertada síntese dos resultados, foi apurado que 84% dos magistrados res-
ponderam que não tiveram a disciplina de Direitos Humanos na graduação. Dentre
as respostas afirmativas, apenas 4% dos juízes tiveram a disciplina como obrigatória,
enquanto para 12% ela havia sido opcional. Assim, mesmo diante da escassa oferta
da disciplina nas faculdades, mas considerando a relevância do tema, foi perguntado

335 CUNHA, José Ricardo. Direitos humanos e justiciabilidade: pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro. Sur. Revista internacional de direitos humanos, v. 2, n. 3, p. 138-172, dez. 2005. Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000200009&lng=pt
&nrm=iso>. Acesso em 06 jun. 2018.
336 Não se deve, no entanto, olvidar que nesse período a jurisprudência do STF sobre os tratados
internacionais de direitos humanos não é a mesma de agora, o que pode influenciar em futuras
pesquisas para a busca desses obstáculos na efetividade de direitos.
337 É interessante destacar que os autores se depararam com certa resistência dos magistrados no momento
de responder os questionários. Cerca de 40% das varas se abstiveram de fazê-lo, alegando principalmente
três motivos: (i) a recusa não justificada do juiz; (ii) a recusa do juiz devido ao entendimento de que os
direitos humanos não faziam parte de seu trabalho; (iii) não recebimento do pesquisador pelo juiz.

254
30 anos da Constituição

aos juízes sobre o seu interesse pelos estudos relacionados aos direitos humanos. Boa
parte dos juízes demonstrou interesse em fazê-lo (cerca de 73%).
Já sobre algum tipo de vivência pessoal que pudesse fornecer uma experi-
ência prática em relação aos direitos humanos, foi constatado que somente 6%
dos magistrados revelaram já ter tido algum tipo de engajamento nessa área.
Por outro lado, sobre a concepção dos juízes sobre os direitos humanos, ao
serem questionados sobre a natureza dos direitos humanos, 7,6% afirmaram serem
“valores sem aplicabilidade efetiva”; para 34,3%, os direitos humanos constituiriam
“princípios aplicados na falta de regra específica”; e para 54,3% seriam “regras plena-
mente aplicáveis”. Isso reflete – ou dá indícios de que -, os esforços para o reconhe-
cimento e consolidação dos direitos humanos ainda eram insuficientes em 2005.
Também foi verificado se os juízes reconheciam a presença de normas de di-
reitos humanos nos casos em que atuavam, a partir de uma noção de que estes
direitos possuem uma proteção multinível. Nesse sentido, 24% dos magistrados
responderam negativamente, outros 24% disseram haver atuado em vários feitos
com aplicabilidade de normas dessa natureza; outros 30% informaram ter atuado
em alguns processos em que normas de direitos humanos eram aplicáveis, e outros
24% afirmaram ter atuado em poucos casos. Se for considerar que o julgador deve
ter uma visão sistêmica de todo o Direito, torna-se difícil assumir que há casos em
que os direitos humanos não incidam, o que faz com que os autores se perguntem
sobre o conhecimento dos magistrados sobre os direitos humanos, uma vez que “em
razão de sua pouca intimidade com o conceito geral e com as normas de direitos
humanos, os entrevistados teriam velada sua percepção e isso dificultaria o reco-
nhecimento dos casos afeitos à matéria em menção.”338
Especificamente sobre se os juízes possuem conhecimento a respeito do
funcionamento dos Sistemas Internacionais de Proteção dos direitos humanos,
59% alegaram ter um conhecimento superficial; e 20% não sabem como funcio-
nam os Sistemas de Proteção, o que pode, eventualmente, fornecer uma direção
na busca das razões para que a já mencionada falta de diálogo entre as cortes
internacionais e nacionais permaneça, constituindo-se em uma barreira para a
efetivação dos direitos humanos. Por outro lado, sobre o conhecimento das de-

338 CUNHA, José Ricardo. Direitos humanos e justiciabilidade: pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro. Sur. Revista internacional de direitos humanos, v. 2, n. 3, p. 148, dez. 2005. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000200009&lng=pt&nr
m=iso>. Acesso em 06 jun. 2018.

255
30 anos da Constituição

cisões das cortes internacionais de proteção dos direitos humanos, 56% dos juí-
zes responderam que eventualmente possuem tais informações; 21% afirmaram
que raramente têm; e 10% nunca obtiveram informações sobre elas; e apenas
13% disseram que frequentemente têm alguma informação. Já quando foram
questionados sobre a possibilidade de o conhecimento dessas decisões colaborar
e enriquecer suas sentenças, a resposta de 50% dos juízes entrevistados foi que
sim; 41% disseram que talvez; e 9% responderam não.339
O estudo é muito mais detalhado do que foi aqui exposto, principalmen-
te se reportando à aplicação de documentos específicos dos direitos humanos
pelos magistrados, como o Pacto Civil, Econômico, a Convenção Americana,
dentre outros. No entanto, os dados aqui apresentados já mostram alguns in-
dícios de gargalos que devem ser trabalhados para uma maior efetividade dos
direitos humanos no Brasil, que não passa somente pela atuação do STF e o
seu reconhecimento da importância dos Sistemas Internacionais de proteção a
esses direitos, mas é algo mais amplo e estrutural, que também envolve valores
a serem inseridos na sociedade e uma mudança de mentalidade. É aqui que a
Constituição de 1988 tem um protagonismo relevantíssimo, mas que, nesses 30
anos, também se presenciou um movimento contra essa sua posição.

Considerações finais
Este artigo procurou realizar uma breve avaliação dos 30 anos da Consti-
tuição Federal de 1988 diante dos direitos humanos, que também completam
70 anos de internacionalização por meio da Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
aprovadas em 1948. A partir disso, verificou-se como vem sendo tratado o tema
da recepção dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem consti-
tucional brasileira, tanto desde a perspectiva legislativa, quanto da judiciária.
Logo, também se buscou aportar outros elementos mais objetivos como forma
de examinar os gargalos existentes no diálogo entre as cortes internacionais e
nacionais, dados estes que permitem, ao menos, indicar possíveis fatores que
influenciam no ainda baixo reconhecimento dos direitos humanos no Brasil,
mesmo diante da crescente procura dos sistemas internacionais de proteção

339 Ibidem. p. 151.

256
30 anos da Constituição

pelos cidadãos. Nesse ponto, deve-se consignar que pesquisas futuras devem
aprofundar e atualizar os dados aqui apresentados.
O fato é que o Brasil, , ao menos é o que parece, vai à contra-mão de uma
tendência muito presente na América Latina, que é o da construção e consolidação
de um Ius Constitutionale Commune, diante dos graves problemas em comum e que
são fortes violadores de direitos humanos, como a pobreza, a profunda desigualdade
social, a violência (muitas vezes institucionalizada), a segregação de minorias, e tan-
tos outros. Segundo Rodolfo Arango, a noção de um Ius Constitutionale Commune
aponta para uma da realidade política e social da América Latina, com o objetivo
de criar as condições sociais e políticas necessárias para a consolidação da democra-
cia, do estado de direito e dos direitos humanos.340
Nesse sentido, o conceito de um Ius Constitutionale Commune na América
Latina se refere tanto ao direito positivo quanto ao seu discurso jurídico sobre ele.
Trata-se da construção de um direito comum que se justifica por dois aspectos, sen-
do o primeiro pela abertura dos sistemas jurídicos estatais latino-americanos para
um denominador comum em direito internacional público, sobretudo em relação à
Convenção Americana (uma relação de mútuo fortalecimento por meio do “bloco
de constitucionalidade”), e o segundo por um discurso comum de direito compara-
do, com estudo, pesquisa, desenvolvimento de uma verdadeira doutrina voltada a
essa conjunção entre o Direito Constitucional e os direitos humanos.341
Evidencia-se, assim, a inclusão do Brasil no rol de países que já adotam cláusu-
las de abertura em suas constituições, que há toda uma doutrina desenvolvida em
torno de um maior diálogo entre o direito internacional e o interno referente aos
direitos humanos, mas que, a despeito disso, suas instituições ainda resistem a essa
transformação, muito mais visível nos países vizinhos do que aqui.
Se o que se visa para o futuro é uma maior concretização dos direitos
humanos para a solução dos complexos problemas que alcançam o Brasil – e os
países latino-americanos como um todo -, impõe-se a formação de uma nova

340 ARANGO, Rodolfo. Fundamentos del Ius Constitutionale Commune en América Latina: derechos
fundamentales, democracia y justicia constitucional. In: BOGDANDY, Armin von; FIX-FIERRO, Hector;
MORALES ANTONIAZZI, Mariela. (Coord.). Ius Constitutionale Commune en América Latina.
Rasgos, potencialidades y desafíos. México: Unam, 2014. p. 25 e ss.
341 BOGDANDY, Armin von. Ius Constitutionale Commune na América Latina. Uma reflexão sobre
um constitucionalismo transformador. RDA – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
269, p. 13-66, mai./ago. 2015. p. 21-22.

257
30 anos da Constituição

cultura jurídica a partir da dignidade da pessoa humana; o fortalecimento dos


sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos com o apoio da so-
ciedade civil e o avanço na afirmação da democracia e do Estado de Direito.342
Para tanto, é indispensável que o Poder Judiciário tenha um maior engajamento
na realização desse diálogo multinível, não se limitando aqui à uma revisão
da posição jurisprudencial do STF sobre o tema, mas por outros canais vitais,
como ações diretas sobre os magistrados para a aplicação desse conjunto de
direitos. Isso, logicamente, passa por outras instituições que se envolvem com a
formação jurídica de futuros juristas, com a opção por integrar cada vez mais os
conhecimentos técnicos em Direitos Humanos nos concursos públicos para dis-
tintas carreiras jurídicas e, principalmente, no empoderamento cidadão sobre a
utilização dos sistemas de proteção dos direitos humanos.
Nessa linha, opta-se por um Direito Constitucional Humanitário, que não
deve estar somente escrito, mas também materializado, porque as constituições
são feitas para as pessoas, ou melhor, para nós, “aqui y ahora, en la exígua tempora-
lidade de la vida biográfica de cada hombre que forma parte de nuestra sociedade”.343
Se é assim, deve-se reconhecer que a constituição escrita tem uma textu-
ra aberta e que não se fecha nem se esgota em seu texto. A explicação de um
sistema de direitos não pode mais se limitar às fronteiras do direito interno. A
completude de um sistema de direitos em um Estado democrático requer que
este sistema se abasteça também do direito internacional. Só dessa forma have-
rá uma retroalimentação na busca de uma solução mais benéfica para os seres
humanos, tal como se preconiza desde os direitos humanos.344
É dessa maneira que se deseja que sejam os próximos 30 anos da Consti-
tuição de 1988, bem como os próximos 70 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

342 PIOVESAN, Flávia. Ius constitutionale commune latino-americano em Direitos Humanos e o


Sistema Interamericano: perspectivas e desafios. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro , v. 8, n.
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343 BIDART CAMPOS, Germán J. El derecho constitucional humanitario. Buenos Aires: Ediar, 1996. p. 21.
344 BIDART CAMPOS, Germán J. El derecho constitucional humanitario. Buenos Aires: Ediar, 1996. p.131 e ss.

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30 anos da Constituição

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263
Controle de Convencionalidade e Terras
Indígenas: uma Análise a Partir de 1988

Konstantin Gerber345

“Indigenous peoples have the right to maintain


and strengthen their distinctive spiritual, cultural, and
material relationship to their lands, territories, and re-
sources and to assume their responsibilities to preserve
them for themselves and for future generations”
Art. 25, Declaração Americana dos Direitos
dos Povos Indígenas
“I´ll take you to a place, where we shall find
our roots, bloody roots”
Sepultura

1. Comunidades originárias na Constituição de 1988


O trecho da redação do art. 231 da Constituição de que “são reconhecidos
aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, com exceção
da expressão “usos”, corresponde à redação do Anteprojeto da Subcomissão dos
Negros, Populações Indígenas, Pessoas com deficiência e minorias da Comissão
de Ordem Social aprovado em 25/5-87346.
A especificação do parágrafo primeiro de que são “terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas

345 Konstantin Gerber, advogado consultor em Direitos Humanos, mestre e doutorando em filosofia do
direito, PUC SP, onde integra os grupos de pesquisa direitos fundamentais.
346 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte. Anteprojeto da Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas com deficiência e minorias da Comissão de Ordem Social aprovado em 25/5-87
Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-200.pdf

265
30 anos da Constituição

para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos


ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” corresponde em parte tam-
bém à redação do Anteprojeto, posto que a expressão “incluídas as necessárias
à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural” foi retirada.
Importante dizer que a Constituição veicula as noções de: ocupação, utili-
zação, usos, posse permanente e usufruto exclusivo (art. 231, parágrafo 2º). Por
ocupação entende-se não somente as terras habitadas em caráter permanente,
mas também as necessárias para atividades produtivas e reprodutivas (física e
culturalmente). O desafio permanece em termos de interpretação sistemática
dos capítulos dos índios, meio ambiente e cultura da Constituição em integra-
ção com as convenções e tratados internacionais de direitos humanos.
No caso “Raposa Serra do Sol” (STF), entendeu-se que existe compati-
bilidade entre terras indígenas e unidades de conservação, a chamada “dupla
afetação”, porém isso não elimina o direito de consulta prévia, livre e informada
ou a possibilidade de gestão compartilhada, daí porque ser importante a imple-
mentação dos planos de gestão territorial e ambiental em Terras Indígenas, nos
termos da política nacional (Decreto 7.747 de 2012).
De acordo com os parâmetros interamericanos dos casos “Pueblo Sara-
maka” e “Pueblo Sarayaku” é dever do Estado brasileiro em respeitar os direitos
dos povos indígenas em serem consultados, segundo seus costumes e tradições,
por meio de procedimento adequado e acessível, em diálogo contínuo, confiá-
vel, de boa fé, em todas as fases de planejamento e desenvolvimento de projetos
que afetem terras indígenas, devendo-se chegar a um acordo sobre as medi-
das propostas (art. 6.2, Convenção 169 da OIT), sendo que os estudos prévios
devem considerar impactos de ordem ambiental, social, cultural e, inclusive,
espiritual, o que é uma exigência do art.7.3 da Convenção 169 da OIT347. Para
fins de consulta prévia, o projeto não necessariamente tem que estar milimetri-
camente dentro de terra indígena, basta afetar a vida das comunidades.
Se a prisão do depositário infiel prevista constitucionalmente (art. 5º, LXVII,
CF) não foi revogada pela Convenção Americana (art. 7º, 7), “mas deixou de ter

347 IIDH. El derecho a la consulta previa, libre e informada: una mirada crítica desde los pueblos
indígenas. IIDH, San Jose: 2016, pp.111-125

266
30 anos da Constituição

aplicabilidade diante do efeito paralisante”348 dos tratados de direitos humanos em


relação à legislação infraconstitucional, o mesmo poder-se-ia dizer com relação ao
art. 231, parágrafo terceiro (referente à autorização do Congresso Nacional sobre
aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesqui-
sa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas), pois onde se lê a expressão
“ouvidas as comunidades afetadas” deve-se ler por “consulta prévia, livre e informa-
da” em exercício de diálogo de fontes entre o art. 5º, parágrafo segundo e o art. 231,
parágrafo terceiro, ambos da Constituição Federal e que, neste exercício, de diálogo
de fontes, se possa conferir máxima eficácia aos tratados internacionais, em prestí-
gio ao princípio pro persona (art. 29, Convenção Americana).
Quem protege, em grande parte, o patrimônio da União (que é uma atribui-
ção da Advocacia Geral da União)? As comunidades tradicionais e os povos origi-
nários. As reservas extrativistas e as terras indígenas protegem o meio ambiente, daí
porque se advogar pelos conceitos de floresta cultural, etnoconservação e etnode-
senvolvimento em defesa dos conhecimentos associados à agrobiodiversidade, ainda
que se saiba que é crescente o desmatamento nestas terras por falta de fiscalização.
O que dizer da denominada integridade territorial, pois o exército e as ope-
rações militares não podem prescindir do conhecimento dos indígenas sobre a flo-
resta. A noção de desenvolvimento - objetivo fundamental da República, art.3º, II,
CF - deve constituir não um ponto de partida, mas sim um ponto de chegada, com
diálogo intercultural, sob pena de se descumprir outro objetivo fundamental, qual
seja, a promoção do bem de todos sem discriminação, art. 3º, IV, CF.
Em termos de soft law, o princípio 22 da Declaração do Rio de Janeiro
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento reconheceu que comunidades indíge-
nas e locais tem papel vital no gerenciamento ambiental e no desenvolvimento
em virtude de suas práticas e conhecimentos tradicionais.
A relatora especial para povos indígenas da ONU depois de visita ao
Brasil deixou consignado em relatório de que há falta de reconhecimento de
compatibilidade entre unidades de conservação e terras indígenas, da falta de
reconhecimento que estas tem para a conservação, bem como um constante
ciclo de atrasos administrativos nos processos de demarcação349.

348 BRASIL, STF, HC 91.361/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/09/2008, p.23
349 ONU. A/HRC/33/42/Add.1 8 de agosto de 2016, Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre
os direitos dos povos indígenas, págs. 7-8, disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/
documentos-e-publicacoes/docs/relatorio-onu-povos-indigenas/relatorio-onu-2016_pt.pdf

267
30 anos da Constituição

Nos casos de demora em demasia nos processos de demarcação de terras


indígenas, de se apontar a violação ao art. 21 da Convenção Americana, na
interpretação que lhe confere de propriedade comunal a Corte Interamericana.
Ademais, o Brasil reconheceu a competência do Comitê sobre Elimina-
ção de Todas as Formas de Discriminação Étnico-racial da ONU (Decreto n.
4.738 de 2003), que na Recomendação Geral n. 23 sobre direitos indígenas (51ª
sessão, 1997)350, exortou aos Estados que nos casos em que tenha havido pri-
vação de uso de terras de uso tradicional para fins de utilização sem o devido
consentimento prévio, livre e informado, que estas terras sejam devolvidas e
que somente em casos de impossibilidade que se possa substituir o direito de
restituição pelo direito de indenização.

2. O caso Raposa Serra do Sol não é precedente vinculante


Estabeleceram-se dezenove “salvaguardas institucionais” relacionadas a
terras indígenas na parte dispositiva da sentença do caso “Raposa Serra do Sol”
(Petição 3.388 de 2009 e Pet 3.388 ED de 2013, STF), ainda que não vinculan-
te, mas com uma tal “força moral”.
Em sede de Embargos de Declaração351, esclareceu o Min. Luis Roberto
Barroso que a “(...) decisão proferida em ação popular é desprovida de força vin-
culante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Cor-
te não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta
matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral
e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um ele-
vado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões.”
Uma das salvaguardas institucionais relaciona-se com a tese do marco temporal:
“(...) A Constituição Federal trabalhou com data certa - a data da promul-
gação dela própria (5 de outubro de 1988) - como insubstituível referencial para o

350 ONU. Committee on the Elimination of Racial Discrimination, General Recommendation 23, Rights
of indigenous peoples (Fifty-first session, 1997), U.N. Doc. A/52/18, annex V at 122 (1997), reprinted
in Compilation of General Comments and General Recommendations Adopted by Human Rights
Treaty Bodies, U.N. Doc. HRI\GEN\1\Rev.6 at 212 (2003).
351 STF. Embargo de Declaração na Petição 3.388 Roraima, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 23 de
outubro de 2013

268
30 anos da Constituição

dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia


aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam. (...) A tradicionalidade da posse nativa,
no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a
reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-
-índios. Caso das ´fazendas´ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja
ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da
sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ´Raposa Serra do Sol´ (...)”
Há discussão sobre o valor de tal decisão judicial, se sua força seria per-
suasiva ou vinculante, pois em virtude desta decisão foi emitido o parecer de
caráter vinculante da Advocacia Geral da União (“AGU”) com condições para
os processos de demarcação (Parecer Normativo 01/2017).
Para a AGU, trata-se de “entendimento jurisprudencial solidificado”352 a
impossibilidade de ampliação de terra indígena demarcada e o marco temporal
em 05 de outubro de 1988. Refere a Reclamação n. 4.355 do STF, em que se
entendeu que pela possibilidade de atribuição de efeitos erga omnes deste em
decisões de inconstitucionalidade em controle difuso, operando-se mutação
constitucional no art. 52, X, da Constituição. Invoca também o Recurso em
Mandado de Segurança 29.087/DF. Note que neste caso, o Supremo Tribunal
Federal (STF) anulou a Portaria 3.219 do MJ, que havia reconhecido a terra
indígena Guyraroká, com base na Súmula 650 que afirma que os incisos I e XI
do art. 20 da Constituição Federal não alcançam “terras de aldeamentos extin-
tos”, adotando-se como parâmetros interpretativos a tese do “marco temporal”.
Em sede de embargos de declaração, foi indeferido o requerimento de in-
gresso da Comunidade Indígena Guyraroká na condição de litisconsorte por
meio de Embargos de Declaração no bojo dos Embargos de Declaração em Re-
curso Ordinário em Mandado de Segurança. O STF julgou que a represen-
tação da comunidade indígena devia ser feita pela FUNAI, o que violou os
parâmetros dos parágrafos 171 a 174 do Caso del Pueblo Saramaka vs. Surina-
me de proteção judicial (leia-se acesso à justiça) contra as violações ao direito
reconhecido no art. 21 da Convenção Americana. A tese do marco temporal
ignora o direito de recuperar terras em igual extensão e qualidade conforme

352 BRASIL. Parecer n. GMF-05, Processo n. 00400.002203/2016-01, Advocacia Geral da União, p. 33

269
30 anos da Constituição

os parâmetros interamericanos dos parágrafos 128 e 135 do Caso Comunidad


Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay353.
Por precedente entende-se decisão racionalmente vinculante354 veiculada pelo
plenário. É diferente do conceito de jurisprudência, como decisão exemplificativa de
uma de várias decisões exemplificativas das decisões proferidas por turmas do STF.
Aludido parecer normativo está sendo questionado por meio de recomen-
dação feita em nota técnica emitida pelo Ministério Público Federal e deve ser
anulado por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade ou ação declaratória
com fundamento na inconvencionalidade.

3. A tese do “marco temporal”


Persiste a ameaça da tese do “marco temporal” da ocupação de povos originá-
rios na data de 05 de outubro de 1988 que vem gerando entendimentos jurispruden-
ciais e administrativos, quando para a Corte Interamericana de Direito Humanos
o que se afigura determinante: os laços espirituais e a relação ancestral com a terra.
Quanto ao critério, válido somente para “Raposa Serra do Sol” – com
efeitos entre partes (Petição 3.388 de 2009 e Pet 3.388 ED de 2013, STF), de
que uma reocupação somente seria válida se esta não se deu por conta de “reni-
tente esbulho” por não-indígenas, é de se colocar em dúvida se todos os povos
indígenas contavam com meios processuais antes de “05 de outubro de 1988”
para defesa de sua posse tradicional - atualmente usufruto constitucional - para
fins de comprovação do tal “renitente esbulho”, pois em caso de massacres ou
expulsões, pode-se dizer com tranqüilidade que existe um direito internacional
de voltar à terra tradicional ou de ser assegurada terra em igual qualidade e
extensão, em caso de inundação ou dano irreversível, bem como garantias de
acesso à justiça (Casos “YakyeAxa”; “Sawhoyamaxa” e “Moiwana”, CIDH c.c.

353 GERBER, Konstantin & MENDES, Rafaela Paula Ribeiro. Morosidade na demarcação, violência
decorrente e o direito à terra dos guarani Kaiowá.Aracê, Direitos Humanos em revista, n. 5, São
Paulo: 2017, p. 333 e p. 335, disponível em: https://arace.emnuvens.com.br/arace/article/view/147/88
354 ZANETI JUNIOR, Hermes. Precedentes (Treat like cases alike) e o novo Código de Processo Civil;
universalização e vinculação horizontal como critérios de racionalidade e a negação da ´jurisprudencia
persuasiva’ como base para uma teoria e dogmática dos precedentes no Brasil. Revista de Processo vol.
235, São Paulo: 2014. Agradeço a João Vitor Cardoso (Grupo de Pesquisas em Direitos Fundamentais,
PUC-SP) pela indicação de leitura.

270
30 anos da Constituição

Recomendação Geral n. 23 sobre direitos indígenas do Comitê pela Eliminação


da Discriminação Racial da ONU).
O desafio está em enfrentar a questão nos tribunais nacionais, para se con-
ferir “eficácia derrogatória ou inibitória” das convenções internacionais de direi-
tos humanos no entendimento do Min. Celso de Mello do STF (HC 91.361)355.
Há também o entendimento do critério hierárquico do que se chama de
controle de supralegalidade (RE 466.343, STF), o que pode ser sustentado para
afastar aplicação de lei ou ato administrativo ou lhes dar interpretação confor-
me à Convenção 169 da OIT no Brasil.
Deve-se aguardar o chamado esgotamento das instancias nacionais (art. 31
Regulamento da Comissão Interamericana c.c. art. 46,a, Convenção America-
na), se existem casos em que o STF deu a palavra final ou se existem casos que
já tramitam por um prazo desarrazoado sem julgamento ou se há demonstração
de casos de demora excessiva de demarcação de terras indígenas, para se aceder
diretamente ao sistema interamericano de direitos humanos (art. 31.2, a, c, Re-
gulamento da Comissão Interamericana c.c. art. 46.2, Convenção Americana).
O prazo estabelecido pelo Decreto nº 1.775/96 é letra morta pelo reiterado
descumprimento. De se analisar por quanto tempo perduram os processos de-
marcatórios de modo a identificar se desafiam os precedentes interamericanos
em termos de demora desarrazoada ou de atuação precária (casos “Yakye Axa”
e “Sawhoyamaxa”, as tardanças de 11 anos e oito meses e 13 anos, respectiva-
mente, no processo de reivindicação demarcação).

4. É urgente a aplicação do controle de convencionalidade


(interno e internacional) na questão indígena356
O controle de convencionalidade pode ser concebido como um procedi-
mento por meio do qual o juiz nacional discute o sentido de um dispositivo con-

355 BRASIL, STF, HC 91.361/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23/09/2008, p. 38


356 Cf. GERBER, Konstantin. É urgente a aplicação do controle de convencionalidade na questão
indígena. Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2016, disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-
fev-20/konstantin-gerber-controle-convencionalidade-questao-indigena

271
30 anos da Constituição

vencional357. Quando se estuda o Direito a partir do ordenamento, sabe-se que


este é mais do que a mera soma de normas jurídicas, sendo este ordenamento
composto de regras, princípios, procedimentos, direitos e garantias fundamen-
tais, a chamada “ordem jurídica objetiva”358, a ser revelada fenomenologicamente
por meio do processo com solução de problemas concretos.
O controle de convencionalidade é exercido por cada órgão estatal e pelos
juízes dentro de suas competências e procedimentos. Os juízes estão obrigados
a exercer ex officio o controle de convencionalidade entre normas internas e
normas da Convenção Americana, levando-se em conta as disposições dos tra-
tados internacionais de direitos humanos, bem como a interpretação conferida
pela Corte Interamericana359.
Com base em dito controle, as interpretações judiciais e administrativas,
bem como as garantias judiciais devem ser aplicadas em adequação aos princípios
da Convenção Americana e a seus princípios de interpretação, como o favor per-
sona (art. 29, CADH)360. Trata-se da possibilidade de aplicar-se preferencialmente
os direitos contidos no direito convencional como parâmetro mínimo, obrigação
derivada do art. 1º da CADH, bem como de adequar a interpretação do direito
interno a uma interpretação conforme, para efeito do art. 2º da CADH361.
André de Carvalho Ramos alerta para a necessidade de que o Supremo
Tribunal Federal não faça somente a citação do texto da Convenção America-
na ou do tratado internacional, mas que exercite um “controle de convenciona-
lidade aplicado”, valendo-se da interpretação da jurisprudência internacional,
analisando-se “apenas se a norma internacional foi violada por meio da própria
aplicação da norma constitucional”362.

357 SUXE, HERVÉ, 2007, p. 158 apud ALCALÁ, Humberto Nogueira. Diálogo interjurisdiccional entre
tribunales nacionales y Corte Interamericana de Derechos Humanos. In: ALCALÁ, Humberto
Nogueira. Diálogo judicial multinivel y princípios interpretativos favor persona y de proporcionalidad.
Librotecnia, Santiago de Chile: 2013, p. 28
358 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. RCS, São Paulo: 2007, pp. 107 e 108.
359 Cf. CIDH, Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 26 de noviembre de 2010, parágrafo 225 cf. OEA, Control de Convencionalidad.
Cuadernillo de jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos n. 7, p. 9
360 ALCALÁ, 2013, Op. Cit, p. 26.
361 Idem, p. 22
362 CARVALHO RAMOS, André de. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de
Convencionalidade: levando a sério os tratados internacionais de direitos humanos. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 104, FDUSP, São Paulo: 2009, pp. 245 e 258-259

272
30 anos da Constituição

Não se pode dizer que o STF aplique a doutrina do controle de convencio-


nalidade, ainda que o Min. Celso de Mello tenha neste sentido se expressado,
em caso envolvendo depositário infiel:
“Devemos interpretar a convenção internacional e promover, se for o caso, o
controle de convencionalidade dos atos estatais internos ou domésticos, em ordem
a impedir que a legislação nacional transgrida as cláusulas transcritas em tratados
internacionais de direitos humanos”363.
Para exemplo de interpretação francamente discordante de tribunal na-
cional, o STF, desde o julgado da Raposa Serra do Sol (Petição 3.388 – Rorai-
ma), veicula as noções de “renitente esbulho por parte de não-índios” e do “fato
indígena em 5 de outubro de 1988” - a tese do marco temporal desde a promulga-
ção da Constituição para ocupações indígenas - entendimento que vem sendo
repetido em ações de reintegração de posse.
Há um direito de retornar à terra, quando se tratar de casos em que houve
deslocamento forçado em decorrência de massacres, pois no caso da Comunidad
Moiwana Vs. Suriname Sentencia de 15 de junio de 2005, em caso de massacre
de uma aldeia no Suriname, determinou-se não só a investigação e a punição
pelas execuções extrajudiciais, mas também, no parágrafo 209, que o Estado
deve “asegurar a los miembros de la comunidad su derecho de propiedad sobre los
territórios tradicionales de los que fueron expulsados”.
Em caso envolvendo massacre de yanomami (massacre de Haximu), o Su-
premo Tribunal Federal já se pronunciou, no RE 351.487-3, sobre o conceito de
crime de genocídio; da mesma forma, o STJ, ao decidir que este crime não é
submetido ao julgamento do tribunal do júri (REsp 222653).
O Min. Lewandowski (RMS 29087) reitera haver um novo genocídio dos
povos originários:
“Nós sabemos que o que está havendo, hoje, em todo o Brasil, lamentavel-
mente, é um novo genocídio de indígenas, em várias partes do país, em que os
fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que eram dos índios, e posse dos
índios, os expulsam manu militari (...)”364

363 STF, HC 87.585-TO, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 3.12.2008, p. 362


364 STF. Recurso Ord. Em Mandado de Segurança n. 29.087, DF, Relator Min. Ricardo Lewandowski,
Redator para Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 16 de outubro de 2014, p. 30

273
30 anos da Constituição

Mas sabemos que de outro lado figura o Min. Gilmar Mendes, represen-
tante, por assim dizer, da “jurisdição patrimonial”, como se diz em Filosofia do
Direito365, em caso em que os guarani Kaiowá foram expulsos na década de
1940 da terra indígena Guyraroká.
Nestas hipóteses de perda de terra em decorrência de massacres, o STF
deve corrigir sua interpretação, o que não exclui a possibilidade de denúncia na
OEA pelo retardamento injustificado de todas as demarcações de terras indíge-
nas por parte do Ministério da Justiça.
Com a recente a tradução dos julgados interamericanos para o português,
bem como a profusão de publicações de comentários à Convenção Americana,
com referência aos julgados, acreditamos que isso facilitará a vida dos assessores
dos ministros de nosso mais elevado tribunal de modo a se orientar pelo ratio
decidendi interamericano, ou, ao revés, a dificultará, na medida em que mais
munidos estarão os que advogam pelos direitos humanos no país.

5. Reparações às comunidades originárias ocupantes


tradicionais no Brasil: o que pedir no sistema
interamericano366
Em havendo violação de direito protegido pela Convenção Americana,
cabe ao Estado brasileiro reparar as consequências da situação configuradora
de vulneração e pagar indenização. Dita reparação deve contemplar o fortale-
cimento da identidade cultural do povo originário, com garantia de controle de
suas instituições, tradições, territórios e definição de prioridades para o proces-
so de desenvolvimento como etnia367.

365 Cf. GARBELLINI CARNIO, Henrique. Direito e ideologia: o direito como fenômeno ideológico.
Panóptica. Revista Eletrônica Acadêmica de Direito, p. 104.
366 Cf. GERBER, Konstantin. Reparações aos povos originários ocupantes tradicionais no Brasil: o
que pedir no sistema interamericano. Justificando, 10 de março de 2017, Justificando, disponível
em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/10/reparacoes-aos-povos-originarios-ocupantes-
tradicionais-no-brasil/
367 CIDH, Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Surinam, Sentença de 25 de novembro de 2015 (Fondo,
Reparaciones y Costas), páragrafo 272, p. 75

274
30 anos da Constituição

Esta reparação pode derivar de um acordo amigável com a Comissão In-


teramericana de Direitos Humanos. Em não havendo acordo, pode a comissão
remeter à Corte de Costa Rica.
Para os casos de ocupação tradicional, deve haver devolução de terras, com
delimitação, demarcação e entrega de título coletivo de propriedade, com revisão,
desapropriação ou compra dos títulos de terras adquiridos por terceiros. Deve-se
estipular prazo (de um ano) ao Estado brasileiro para que a devolução de terras
ocorra (para não seguirem vivendo em beira de estrada, mesmo com a conde-
nação internacional do Estado brasileiro). Devem estar asseguradas formas de
proteger os recursos naturais368 (por exemplo contra a contaminação de rios).
Para que este processo não tarde, o território deve estar suficientemente bem
descrito, devendo-se juntar documentos legíveis, laudo antropológico, mapas, vídeos
e depoimentos a comprovar a ocupação tradicional e o vínculo espiritual com a terra.
Quando da devolução de terras, deve-se solicitar política de reparação no
sentido de recuperação de flora e fauna, com designação de prazo. Para tanto,
deve ser instituído fundo de desenvolvimento comunitário com comitê gestor
composto por originário da comunidade, outro pelo Estado e outro em comum
acordo de ambos, para desenvolvimento de agricultura de subsistência susten-
tável, com recuperação de nascentes e florestas (no prazo de dois anos). Na
implementação do acordo amigável ou da sentença interamericana, é a União
Federal que deve encontrar por meio de decreto ou convenio meios de coope-
ração com os demais entes federativos, até que sobrevenha lei que discipline o
cumprimento de decisões de organismos internacionais.
O processo de devolução de terras deve seguir o tramite de demarcação,
sem delonga, pois a Corte Interamericana considerou que onze anos e oito me-
ses para o processo de reivindicação de terras comunais (caso Caso Comunidad
YakyeAxa vs. Paraguay) e que o prazo de treze anos (caso Caso Comunidad
indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay) ambos não são razoáveis e violam as ga-
rantias judiciais dos membros das comunidades.
É o Estado brasileiro que deve encontrar os meios de direito interno para con-
ferir eficácia aos parâmetros interamericanos. Na impossibilidade de demarcação
de terras, o vetusto Estatuto do Índio prevê terras inalienáveis da União (Reserva

368 BERISTAIN, Carlos Martín. Diálogos sobre reparación. Qué reparar enlos casos de violaciones de
derechos humanos. IIDH, San Jose: 2010, p. 433

275
30 anos da Constituição

Indígena, Parque Indígena, Colonia Agrícola Indígena e Território Federal Indíge-


na), mas estas, ressalte-se, não se confundem com terras tradicionalmente ocupadas
nos termos do art. 231 da Constituição Federal. Ademais, existe a possibilidade de
propriedade comunitária indígena, esta sim alienável e arrendável.
Se inúmeras foram as viagens de lideranças a Brasília, deve-se solicitar repara-
ção pecuniária de danos materiais às lideranças das comunidades. Para reparação
de danos imateriais pela demora e sofrimento decorrente da falta de demarcação,
deve-se solicitar quantia de dinheiro para fins de reparação a cada membro da co-
munidade, devendo esta ser ouvida para a melhor distribuição dos recursos confor-
me costumes e tradições. A indenização deve ocorrer no prazo de um ano369.
Em caso de massacres, muito comuns, pode ser solicitada perícia psicológi-
ca, pois o crime de genocídio é tipificado pelo grave dano à integridade psíquica
de grupo. Ainda que a Corte Interamericana não julgue crimes de genocídio,
cabe a esta determinar reparações, bem como obrigar a investigar e punir. Nes-
tes casos envolvendo o direito à terra tradicional, pode ser solicitada reparação
psicológica em respeito a costumes e tradições para lidar com traumas. Isso se
o caso chegar à Corte Interamericana, pois pode ser resolvido antes no âmbito
da Comissão por meio de acordo amigável com o Estado brasileiro. A Corte
pode determinar diligências de ofício, bem como realizar diligencias in situ e
recolher provas documentais, testemunhais, periciais, declarações das vítimas,
demais declarações a título informativo e ainda provas indiciárias, como notas
de imprensa que contenham declarações de funcionários do Estado370. Para os
casos em que houve expulsão da terra combinada de massacre, existe um direito
de voltar à terra, com os correspondentes deveres estatais de garantir a segu-
rança dos retornados, bem como de delimitar, demarcar e atribuir titularidade
sobre territórios tradicionais, com participação e consentimento informado das
vítimas371. Nestes casos de expulsão com massacre, deve-se pedir reparação por
danos materiais, pelo deslocamento forçado e as conseqüentes situação de po-

369 CIDH, Caso comunidad indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay, parágrafo 244 In: RAMÍREZ, Sergio
Garcia (Coord.) La jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Vol. IV,
UNAM, Mexico: 2008, p. 241
370 CHAVARRÍA, Ana Belem García. La prueba em la función jurisdiccional de la Corte Interamericana
de Derechos Humanos. CNDH, México: 2016, pp. 32-35
371 CIDH, Caso de la comunidad moiwana vs. Suriname In: RAMÍREZ, Sergio Garcia (Coord.) La
jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Vol. III, UNAM, Mexico: 2008,
págrafo 212, P. 169; parágrafo 19, p. 180.

276
30 anos da Constituição

breza e privação de acesso a recursos naturais. E sempre que possível, deve-se


arrolar as vítimas que serão beneficiárias da indenização.
Em caráter subsidiário, em caso de inundação por hidrelétrica, em que a
demarcação se mostra impossível, pode ocorrer a restituição de terras de igual
qualidade e extensão, sempre com a obtenção do consentimento prévio, confor-
me tradição de deliberação dos povos originários. A restituição de terras deve
ocorrer para assinalar respeito do Estado para com sua identidade e forma de
organização social. Até que sobrevenha a aprovação do projeto de lei que versa
sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas, deve-se contar com os mecanismos
existentes no direito interno. Repita-se: é o Estado que deverá adotar medidas
legislativas, administrativas ou de outra índole para tornar efetivo o exercício de
direitos previstos na Convenção Americana.
Este pedido de restituição de terras de igual qualidade e extensão deve
ocorrer somente se inviável o pedido de demarcação de terras, como no caso
de inundação. É dizer, se por motivos objetivos e fundamentados, a devolução
de terras por meio do procedimento de demarcação de terras não for possível,
o Estado deve entregar terras alternativas, escolhidas de modo consensual com
a comunidade afetada, conforme seus meios de consulta e decisão. A extensão
e a qualidade destas terras alternativas devem ser suficientes para garantir a
manutenção e desenvolvimento da forma de vida da comunidade372.
Juntamente com o fundo de desenvolvimento comunitário, deve ser solicitado
construção e manutenção de centro cultural do povo originário para salvaguarda de
seus saberes ancestrais, para gestão de seu patrimônio cultural imaterial.
Ademais, é urgente um pedido de políticas de educação intercultural nas cida-
des das proximidades da comunidade com a finalidade de combater o preconceito e
o racismo (um pedido de políticas específicas de combate ao ódio racial nas escolas).
Enfim, deve-se dar cumprimento à lei brasileira que estabelece obrigatoriedade no
ensino de conteúdo afro-indígena e, se possível, em diálogo com o entorno.
Para casos em que se vive situação de vulnerabilidade, devem ser também
garantidos posto de saúde com respeito a tradições, escola bilíngue e provisão
de água potável e atenção médica em favor dos membros da comunidade, em
especial, crianças e anciões373.

372 CIDH, parágrafo 212, 2008, Op. Cit.p. 232


373 CIDH, parágrafos 229 e 230, 2008, Op. Cit. Pp. 236-237

277
30 anos da Constituição

A depender da gravidade da situação sobre um direito convencional decor-


rente de ação ou omissão estatal, se constatada ameaça iminente apta a ocasionar
dano irreparável, normalmente em casos de risco à vida, pode ser solicitada a
medida cautelar na Comissão Interamericana para beneficiários identificados ou
identificáveis pela localização geográfica ou pertencimento à comunidade374.
Existem precedentes de medidas cautelares concedidas para impedir in-
vasão de terceiros (MC 105 de 2011, povos Kuna de Madungandí e Emberá de
Bayano vs. Panamá) e para garantir assistência integral durante o processo de
reivindicação de terras (MC 204-01, Caso 12.313, Comunidad Indígena Yakye
Axa del Pueblo Enxet-Lengua vs. Paraguai). O que dizer em casos de iminência
de despejo em terras tradicionalmente ocupadas.
Quanto ao acordo amigável ou à sentença interamericana, deve-se pedir
além da publicação no Diário Oficial, divulgação pública, inclusive na imprensa
local dos pontos resolutivos e, inclusive, no idioma da comunidade reparada em
rádio a que tenham acesso.
Por fim, para garantias de não repetição, deve-se: solicitar a imediata
conclusão de todos os processos demarcatórios no Brasil; garantir o direito de
consulta sobre projetos de desenvolvimento ou unidades de conservação que
os afetem; e determinar a realização de cursos de capacitação para a magis-
tratura brasileira sobre direito internacional dos direitos humanos dos povos
originários. Para os casos em que o Brasil será condenado, deverá haver um ato
público de desculpas com reconhecimento da responsabilidade internacional,
bem como construção de monumentos em memória das vítimas de massacres.

6. Síntese conclusiva
A consagração de direitos indígenas na Constituição pode não significar
muito se inexiste a prática administrativa demarcatória ou mesmo o reconheci-
mento judicial para tanto. Pelo art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, o Brasil deveria ter concluído os processos de demarcação em 5
anos a partir de 05 de outubro de 1988, o que foi considerado como norma

374 GERBER, Konstantin & CONCI, Luiz Guilherme Arcaro & PEGORARI, Bruno. Medidas
cautelares internacionais: todos podem pedir. 26 de agosto de 2016, disponível em: http://justificando.
cartacapital.com.br/2016/08/26/medidas-cautelares-internacionais-todos-podem-pedir/

278
30 anos da Constituição

meramente “programática” pelo STF (RMS 26212/DF), o que não exclui o de-
ver de demarcação em prazo razoável. A Corte Interamericana entendeu que
as tardanças de 11 anos e oito meses (caso “Yakye Axa”) e 13 anos (caso “Sa-
whoyamaxa”) para o reconhecimento de terras indígenas violam direitos.
O pedido de restituição de terras de igual qualidade e extensão deve ocor-
rer somente se inviável o pedido de demarcação de terras. O Estado deve en-
tregar terras alternativas, escolhidas de modo consensual com a comunidade
afetada, conforme seus meios de consulta e decisão, somente se a devolução de
terras por meio do procedimento de demarcação de terras não for comprova-
damente possível. Como o próprio parecer normativo da AGU reconhece em
menção ao voto aclaratório do Min. Roberto Barroso: a União Federal pode
“obter o domínio de outras áreas, seja pelos meios negociais tradicionais (como
a compra e venda ou a doação), seja pela desapropriação”375.
Para pensar com Joaquim Herrera Flores propõe-se uma prática que não seja
nem universalista, nem multicultural, mas intercultural376. O desenvolvimento na-
cional deve ser perseguido em conjunto da gestão em terras indígenas, em busca de
uma democracia intercultural e pluriétnica, sob pena do Estado brasileiro continuar
a praticar políticas reiteradamente discriminatórias, para não dizer etnocidas.

375 BRASIL, 2017, Op. Cit. P. 36


376 FLORES, Joaquín Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência. In:
WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Lumen
Juris, Rio de Janeiro: 2004, p. 377

279
Os Tratados Internacionais de Direitos
Humanos no Direito Brasileiro

A inserção do §3º ao artigo 5º da Constituição Federal


de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2005 expandiu a
proteção dos direitos humanos?
Mariana Pompilio Leonel Ferreira377

Resumo: Os tratados internacionais, mais especificamente de direitos huma-


nos, ganharam notoriedade e força principalmente depois das duas Guerras Mun-
diais, com o movimento da redemocratização e da globalização. O Brasil, não diferen-
te dos outros países busca sua identidade internacional através da solidificação de sua
soberania e suas relações com as mais variadas e diversificadas nações. Os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, desse modo, estão no rol de prioridades em que
o Brasil vislumbra concretizar. Um exemplo disso é a inserção do §3º ao artigo 5º
da Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2005 que desponta
a possibilidade de um tratado internacional de direitos humanos tornar-se equiva-
lente ao status de emenda constitucional. Mas esse dispositivo realmente ampliou a
proteção dos direitos humanos no âmbito nacional ou ele simplesmente esclareceu
o que já havia no texto constitucional? O presente artigo tem por escopo o exame
desse dispositivo tão polêmico, de modo a procurar compreender os impactos reais
dessa “inovação” legislativa. Para tanto, é importante entender como funciona um
dos instrumentos que auxilia a comunicação entre o direito internacional e o direito
interno: os tratados internacionais. Em um segundo momento é importante analisar
as especificidades dos tratados internacionais de direitos humanos e a relação do Bra-
sil com eles. Para por fim, analisar se a inserção do §3º ao artigo 5º da Constituição

377 Mestranda em Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012). Cursando Especialização em
Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora no grupo de
pesquisa Direitos Fundamentais, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

281
30 anos da Constituição

Federal de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2005 trouxe mudanças efetivas para
os indivíduos ou se a dúvida sobre sua força normativa ainda continua.
Palavras-Chaves: Tratados Internacionais. Constituição Federal de 1988. Tra-
tados Internacionais de Direitos Humanos com status de Emenda Constitucional.
Sumário: 1. Introdução. 2.Tratados Internacionais. 2.1. Origem e especi-
ficidades na ordem internacional. 2.3. Origem e especificidades na ordem jurí-
dica brasileira. 3. Tratados Internacionais de Direitos Humanos. 3.1. Singulari-
dades na ordem internacional 3.2. Singularidades na ordem nacional brasileira.
4. Incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pelo Direito
Brasileiro. 4.1. Antes da EC n.45/2004. 4.2. Após a EC n.45/2004 5. Conclusão.

1. Introdução
A sistematização universal de proteção dos direitos humanos foi instituída
aos poucos, na medida em que os direitos humanos foram adquirindo impor-
tância e tratamento internacional. Segundo o professor André de Carvalho
Ramos378, os direitos humanos começaram a entrar no cenário internacional
em meados do século XIX e início do século XX através de normas esparsas que
se preocupavam com direitos essenciais dos indivíduos nessa época.
Segundo o autor:
“Se a existência das normas internacionais esparsas referentes a certos
direitos auxiliou a sensibilizar os Estados sobre essa temática, consti-
tuindo-se em causa remota para a contemporânea proteção internacio-
nal dos direitos humanos, as causas próximas estão relacionadas à nova
organização da sociedade internacional no pós- 2ª Guerra Mundial”379.

Assim, após a 2ª Guerra Mundial surgiu um novo movimento na história: o


Direito Internacional dos Direitos Humanos. Movimento este que veio como res-
posta às barbaridades desempenhadas pelos nazistas no período de guerra. A grande
questão então suscitada era: como proteger os direitos dos indivíduos quando as leis

378 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional – 6. Ed –
São Paulo: Saraiva, 2016. p. 60.
379 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional – 6. Ed –
São Paulo: Saraiva, 2016. p. 62.

282
30 anos da Constituição

e as Constituições locais eram ignoradas? Constatou-se à vista disso a necessidade


do relacionamento pacífico da comunidade internacional. A cooperação da comu-
nidade internacional deveria ser alicerçado na reconstrução dos direitos humanos,
como paradigma a orientar a ordem internacional contemporânea.
Os Estados, dessa maneira, vislumbraram que a proteção dos direitos hu-
manos não pode ser concebida como integrante do domínio interno de um
Estado, visto que os deslizes na proteção local tinham propiciado o nazismo. A
soberania dos Estados foi gradativamente sendo reformulada, permitindo que a
proteção dos direitos humanos deixasse de ser um assunto exclusivo da jurisdi-
ção local e passasse a ganhar destaque e força no cenário internacional380.
Segundo a professora Flávia Piovesan381 “esse processo de universalização de
direitos humanos permitiu a formação de um sistema normativo internacional de
proteção de direitos humanos”. Esse sistema, por sua vez, apresenta instrumentos
de âmbito global e regional. Mas como esses sistemas coexistem? O direito inter-
nacional e o direito interno convivem, de forma integrada ou isolada?
Segundo o professor Marcelo Figueiredo382, o direito internacional integra-
-se de tal maneira no direito nacional atualmente que os desígnios desses não
poderiam ser alcançados sem a atuação do Estado nas organizações internacio-
nais mais reconhecidas.
Ao efetiva-lo, em grandes proporções passam a incorporar direitos e deve-
res oponíveis por seus cidadãos em várias perspectivas, quer por força da própria
Constituição, quer por força de vinculação a tratados internacionais, quer pela
mera associação a tais organizações.
Com a criação dos diversos sistemas internacionais, acaba-se vislumbrando
muitas normas jurídicas como os tratados e pactos de direitos humanos. O problema
jurídico eclode a partir do momento em que o Estado necessita estabelecer a premissa
a partir de qual devem ser os critérios internacionais em seu direito constitucional383.

380 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional – 6. Ed –
São Paulo: Saraiva, 2016. p. 68.
381 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p. 90.
382 FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões.
Trabalho inédito. p. 21.
383 FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões.
Trabalho inédito. p. 22

283
30 anos da Constituição

Aparentemente hoje há um consenso entre os Estados democráticos no sen-


tido das Constituições solidificarem a supremacia dos tratados internacionais de
direitos humanos em relação ao direito interno. Mas isso realmente acontece?
Infelizmente não é o que se vê na prática. Um exemplo disso é a xenofobia
que vem se alastrando nos Estados Unidos e pela Europa em decorrência dos
ataques terroristas. No século XX, o mundo assistiu a proliferação do terro-
rismo, principalmente após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Esta-
dos Unidos. Os países se mobilizaram na busca do combate a tal ameaça. Essa
mobilização em vez de fortificar a proteção dos direitos humanos no âmbito
da comunidade internacional, intensificou cada vez mais as barreiras impostas
pelos Estados. Uma mobilização que deveria unir as nações acentuou o distan-
ciamento entre elas. A supremacia dos tratados internacionais de direitos hu-
manos foi deixada de lado para acentuar a soberania do Estado mais uma vez.
A situação lamentável e precária dos presídios brasileiros é um outro
exemplo disso. Mesmo sendo signatário de inúmeros tratados internacionais
de direitos humanos, o Estado brasileiro se fechou para a comunidade interna-
cional, ignorando as recomendações e a condenação da Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Abrindo o velho problema de sempre: a prioridade de
manutenção do Estado soberano em face da proteção mais ampla do indivíduo.
Isso significa que o Direito Internacional de Direitos Humanos está des-
moronando no cenário atual? Não se deve esquecer que grandes mudanças re-
quererem um longo período para se adaptar. Sem dúvida esses direitos estão
enfrentando sérios problemas, mas ainda são significativos os avanços que essa
proteção tem feito pelo indivíduo. Avanços esses que tem impulsionado os paí-
ses a buscarem cada vez mais seu espaço no cenário internacional.
O Brasil, não diferente dos outros países busca sua identidade interna-
cional através de suas relações com as mais variadas e diversificadas nações.
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, desse modo, estão no rol de
prioridades em que o Brasil vislumbra concretizar.
Um exemplo disso é a inserção do §3º ao artigo 5º da Constituição Federal
de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2005 que desponta a possibilidade de
um tratado internacional de direitos humanos tornar-se equivalente ao status
de emenda constitucional. Mas esse dispositivo realmente ampliou a proteção
dos direitos humanos no âmbito nacional ou ele simplesmente esclareceu o que
já havia no texto constitucional?

284
30 anos da Constituição

O presente artigo tem por escopo o exame desse dispositivo tão polêmico,
de modo a procurar compreender os impactos reais dessa novidade legislativa.
Para tanto, é importante entender como funciona um dos instrumentos que au-
xilia a comunicação entre o direito internacional e o direito interno: os tratados
internacionais. Em um segundo momento é importante analisar as especificida-
des dos tratados internacionais de direitos humanos e a relação do Brasil com
eles. Para por fim, analisar se a inserção do §3º ao artigo 5º da Constituição
Federal de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2005 trouxe mudanças efetivas
para os indivíduos ou se a dúvida sobre sua força normativa ainda continua.
Esse artigo não tem a pretensão de abordar todo o tema - o que seria impos-
sível. Mas o foco é entender as relações entre direito nacional e direito internacio-
nal dos direitos fundamentais no cenário brasileiro e em que medida um indivíduo
pode alegar, perante autoridades brasileiras, a violação de um direito humano ba-
seado direito internacional. Isso não significa que serão analisadas aqui as formas
de responsabilização internacional do Estado brasileiro em casos que envolvam des-
respeito a direitos humanos internacionais por motivos jurídicos ou fáticos, mas tão
somente a relevância do direito internacional em âmbito interno.

2. Tratados Internacionais

2.1. Origem e especificidades na ordem internacional


Os tratados surgiram em uma época muito remota, calculam-se mais ou
menos doze séculos antes de Cristo. O “jus tractuum” ou o direito de celebrar
contratos vem sendo gradativamente desenvolvido e aprimorado, porém ainda
mantém o processo de conclusão bem semelhante aos modos primitivos de ce-
lebração dos contratos. Os tratados tiveram início de forma costumeira, desde
a antiguidade até mais ou menos o século XX, não existindo nesse meio tempo
nenhum rastro de onde realmente começou nas civilizações esse costume.
O ponto inicial comprovado sobre a celebração de um tratado internacional,
de natureza bilateral, diz respeito àquele instrumento firmado entre o Rei dos Hititas,
Hattusil III, e o Faraó egípcio da XIX dinastia, Ramsés II, por volta de 1280 e 1272
a.C., e que pôs fim à guerra nas terras sírias (conhecida como batalha de Kadesh).

285
30 anos da Constituição

K.A. Kitchen dispõe sobre um trecho do acordo de paz entre os dois povos:
“No ano 21, primeiro mês do inverno, dia 21, sob a Majestade de Ramsés
II. Neste dia, eis que sua Majestade estava na cidade de Pi-Ramesse,
satisfazendo (os deuses...). Chegaram os (três Enviados Reais do Egito...)
juntos com o primeiro e segundo enviados Reais dos Hititas, Tili-Teshub
e Ramose, e o Enviado de Carchemish, Yapusili, carregando uma barra
de prata a qual o Grande Soberano dos Hititas, Hattusil III envia ao
Faraó, para pedir paz à Majestade de Ramsés.”384

Regras de igualdade eterna foram concretizadas nesse tratado, onde os


reinos eram considerados iguais, assim como seus reis e seus sucessores. Foram
instituídas normas específicas a respeito dos interesses particulares de cada uma
das soberanias, a posse de certas terras e outros domínios são bons exemplos
disso. Além disso, os tratados dispunham sobre as regras relativas às alianças
contra inimigos comuns, normas de comércio e também de extradição. Assim
pode-se afirmar que o tratado firmado entre egípcios e hititas trouxe caracterís-
ticas expressivas de tratados modernos. Sua eficácia e exatidão podem ser vistas
ao longo da história pela paz e efetiva cooperação, ainda que essas duas civili-
zações entrassem em decadência o tratado foi fielmente cumprido até o fim385.
Uma das primeiras tentativas para a regulamentação das formas primiti-
vas dos tratados foi a Convenção de Havana de 1929. Referido tratado dispunha
apenas dos tratados celebrados pelos Estados (não incluía organizações inter-
nacionais), instituía o requisito de validade; da cartularidade, além de impor a
obrigatoriedade dos tratados após a ratificação pelos Estados Contratantes.
Os tratados celebrados não poderiam atingir terceiros, além de produzir
seus efeitos mesmo que se modifique a Constituição interna dos Estados que
firmaram o contrato. No caso da impossibilidade, a norma convencional seria
readequada. Uma vez descumprido as obrigações decorrentes dos tratados, o
país inadimplente teria consequências internacionais.
Um tratado muito importante para a história dessas relações entre povos
foi o Tratado de Versalhes, instituído em 1919 com o objetivo de celebrar a paz
entre as potências europeias e o término definitivo da I Guerra Mundial. De-

384 KITCHEN, K.A. Pharaoh Triumphant: the life and times of Ramesses II, 2.ed.Cairo, Egypt: American
University in Cairo Press (et all.), 1997,p.75
385 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito dos Tratados – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2011.

286
30 anos da Constituição

terminou que a Alemanha fosse responsabilizada pela guerra e que esta fizesse
reparações. Essa solução não foi muito bem aceita pelos alemães, o que acarre-
tou posteriormente a ascensão do nazismo.
Apesar de um resultado não muito promissor para a Alemanha, o tratado
criou a Liga das Nações, instituição pela qual eram arbitradas as disputas inter-
nacionais para evitar as possíveis guerras. Porém, a II Guerra Mundial chegou
e a Liga não conseguiu concretizar seu maior objetivo: manter a paz. Foi assim
que sua sucessora Organização das Nações Unidas – ONU, foi criada em 1945,
com o objetivo de deter guerras entre os países e fornecer um ambiente de diá-
logo para as controvérsias internacionais.
Após sua estruturação, a ONU que sempre objetivou a cooperação em maté-
ria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico,
progresso social, direitos humanos e paz mundial, passou a criar comissões específi-
cas para o estudo e desenvolvimento do Direito Internacional, e desses estudos veio
o projeto que se tornou a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969.
A Convenção de Viena de 1969, também conhecida como a Lei dos Tratados,
Tratados dos Tratados, é um dos mais importantes documentos da história do Di-
reito Internacional Público. A Convenção tratou tanto da codificação do conjunto
de regras gerais referentes aos tratados concluídos entre Estados, quanto à regula-
mentação de todo tipo de desenvolvimento progressivo daquelas matérias ainda
não consolidadas no âmbito internacional. A Convenção regula desde questões pré-
-negociais, até o processo de formação dos tratados, sua entrada em vigor, aplicação
provisória, nulidade, extinção e execução de sua execução386.
O importante, a saber, por ora é que a Convenção de Viena foi um ponto
marcante na história dos tratados. A partir desse tratado a valorização dessa cele-
bração ganhou mais espaço e reconhecimento entre as nações. Motivo pelo qual
o conceito de “tratado “mais utilizado atualmente é o dessa convenção: “tratado”
significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido
pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou
mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica(...)387”.

386 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011.Cit.p33.
387 Decreto nº 7.030, de 14 de Dezembro de 2009. Artigo 2. 1a.

287
30 anos da Constituição

Em decorrência da época em que foi criada a Convenção de Viena de


1969, esta não previa a existência de Organizações Internacionais como pesso-
as de Direito Público Internacional, razão pela qual a Convenção de Viena de
1986 veio posteriormente regulamentar a questão.
O Brasil ratificou formalmente a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados quarenta anos depois que esta foi instituída (de maio de1969 a setem-
bro de 2009). Mas a dúvida que paira: por que o Brasil demorou tanto tempo
para ratificar a Convenção? As Constituições brasileiras sempre disciplinaram
o tema da celebração de tratados em seus dispositivos, ou isso foi inovação da
Constituição Federal de 1988? Tal tema já possuiu dispositivo próprio ou sem-
pre esteve inserido nas competências dos Poderes Executivo e Legislativo?

2.2. Origem e especificidades no


ordenamento jurídico brasileiro
Saber ao certo o motivo pelo qual o Brasil demorou tanto tempo para
ratificar referida Convenção não é possível, mas o que se pode saber é que a
abertura para a celebração de tratados internacionais não foi inovação da Cons-
tituição Federal de 1988.
A Constituição de 1824, por exemplo, em seu artigo 102, já conferia ao Im-
perador a chefia do Poder Executivo e, em decorrência disso as prerrogativas de
dirigir as relações exteriores com os Estados estrangeiros388 e de “fazer Tratados
de Aliança ofensiva, e defensiva, de Subsídio, e Comércio, levando-os depois de
concluídos ao conhecimento da Assembléa Geral, quando o interesse, e seguran-
ça do Estado permitirem. Se os Tratados concluídos em tempo de paz envolverem
cessão, ou troca de Território do Império, ou de Possessões, a que o Império tenha
direito, não serão ratificados, sem terem sido aprovados pela Assembléa Geral”389.
Interessante notar dessa forma que os juristas da época, mesmo que impli-
citamente, já discutiam a natureza jurídica dos tratados e consequentemente a
competência das atribuições para sua celebração.

388 Brasil, Constituição Política do Império, art. 102, item 7º.


389 Ibid, art.102, item 8º.

288
30 anos da Constituição

Outro exemplo significativo sobre esse tema é a Constituição de 1891.


Nessa Constituição não se vislumbra uma sistematização dos princípios do Es-
tado brasileiro nas suas interações internacionais, mas se comparado com a
Constituição anterior há um grande desenvolvimento do tema.
Neste sentido, a mudança do Estado unitário para o Estado federado, dei-
xou evidente a detenção da soberania nas mãos da União, significando que so-
mente este ente de direito público interno tem atribuição privativa para celebrar
tratados internacionais.
Interessante destacar que a Constituição de 1891 consagrou uma fórmula
que foi utilizada por todas as demais Constituições Federais e é até hoje se-
guida no que respeita ao processo decisório interno de vinculação a tratados,
ao escolher disciplinar o tema nos dispositivos referentes às competências dos
Poderes Legislativo e Executivo. O Presidente da República recebeu a alçada
privativa de celebrar acordos. Ao Congresso Nacional competiu a prerrogativa
de apreciar o ato convencional, em princípio, após a assinatura e decidir pela
sua aprovação, prévia à ratificação, ou pela sua rejeição390. Como regra, portan-
to, o Estado brasileiro somente pode vincular-se a tratado internacional com o
concurso dos Poderes Executivo e Legislativo.
Como visto acima, essa fórmula foi adotada pela Constituição de 1988,
com algumas alterações de redação. Essa forma de recepção de tratados inter-
nacionais continuou sendo bem recepcionada pelo direito brasileiro?
Dissolvida a Assembleia Constituinte, não tardaram as críticas à reda-
ção dos dispositivos da Constituição de 1988, visto que esta preferiu repetir,
com algumas alterações, a tradicional fórmula de 1891, ao tratar do tema da
incorporação dos compromissos convencionais apenas de modo tangencial, no
concernente às competências do Congresso Nacional e do Presidente da Re-
pública. Outra crítica apontada foi a insistência no uso da expressão “resolver
definitivamente” para descrever a competência legislativa acerca dos tratados,
mantida na Carta de 1988. Visto que a expressão é tecnicamente imprecisa,
pois o Congresso Nacional somente decide em definitivo caso rejeite o tratado.
Na hipótese de aprova-lo, quem decide vincular o País é o Poder Executivo, por

390 Art.48.º Compete privativamente ao Presidente da República: 16º. Entabular negociações


internacionais, celebrar ajustes, convenções e tratados, sempre “ad referendum” do Congresso, e
aprovar os que os Estados celebrarem na conformidade do art.65.º, submettendo-os, quando cumprir,
á autoridade do Congresso.

289
30 anos da Constituição

meio da ratificação ou ação similar, que se constitui em ato discricionário, da


alçada do Presidente da República.
Se a grande inovação da Constituição Federal de 1988 não foi no campo
relativo ao poder de celebrar tratados, visto que já está previsto desde a primei-
ra Constituição brasileira em 1824, qual foi o grande diferencial Constituição
Federal de 1988 em relação a tratados internacionais em face as demais consti-
tuições? Sem dúvida são os tratados internacionais de direitos humanos.

3. Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

3.1. Singularidades na ordem internacional


Os tratados internacionais de direitos humanos emergiram em um âmbito do
Direito muito recente: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Mas o que se-
ria esse direito? Como vimos logo na introdução, esse Direito surgiu após a Segunda
Guerra Mundial como resposta aos horrores cometidos pelos nazistas.
Mas no que consiste o Direito Internacional de Direitos Humanos? É um siste-
ma de normas internacionais, procedimentos e instituições desenvolvidas para imple-
mentar a concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países.
Os indivíduos e os Estados perceberam que muitas dessas violações po-
deriam ter sido evitadas se um efetivo sistema de proteção internacional de
direitos humanos existisse391. Assim, o movimento do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, segundo Richard B. Bilder392, traz a concepção de que toda
nação tem o dever de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que
todas as nações e a comunidade internacional tem o direito de fiscalizar e res-
ponsabilizar quem descumprir com as obrigações.
Esse cenário permite vislumbrar com mais clareza que a proteção dos di-
reitos humanos não deve se resumir a proteção de um único Estado. Esse pen-

391 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p. 58.
392 BILDER, Richard B. Na overview of international human rights law. In: HANNUM, Hurst (Editor).
Guide to international human rights practice. 2. Ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.

290
30 anos da Constituição

samento acarreta inicialmente duas consequências393: (i) o indivíduo passa a


ser sujeito de Direito no âmbito internacional (como visto logo na introdução
do artigo) e (ii) revisão do sentido tradicional de soberania absoluta do Estado.
Mas porque é necessário uma revisão do sentido tradicional de soberania
absoluta do Estado? A Soberania, sempre foi, segundo Santi Romano, um con-
ceito “obscuro e controvertido”394. Doutrinadores vêm tentando instituir um
conceito definitivo e extensivo, mas nenhum obteve sucesso absoluto. Muitos
acreditam que se trata da qualidade pela qual o Estado se torna supremo inter-
namente e igual e independente externamente.
A temática é importante para uma análise mais aprofundada das bases do
Estado, este que necessita de uma estrutura interna fortificada para tirar seus
objetivos do plano abstrato e aplicá-lo no plano real. Além disso, o Estado foi
instituído para satisfazer as necessidades de sua população a fim de organizar
uma sociedade equilibrada onde os princípios básicos de sobrevivência devem
ser absolutamente respeitados e saciados.
O conceito “soberania” surgiu na Idade Moderna, visto que na Antigui-
dade e na Idade Média tal característica era desconhecida pois o Estado não
se insurgia perante aos demais poderes. Jean Bodin, foi o primeiro a utilizar o
termo “soberania” para identificar os Estados independentes que se formaram a
partir do século XIII395. Este jurista francês então a definiu como sendo o poder
absoluto e perpétuo de uma república, vinculado, todavia, ao direito natural e
ao direito das gentes396. Esse conceito posteriormente foi desenvolvido por auto-
res alemães discípulos de Hegel, os quais firmaram a denominação de soberania
absoluta onde defendem não haver ordenamento jurídico superior apto a limitar
o ordenamento jurídico estatal397.

393 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p. 559
394 ROMANO,Santi.Princípios de Direito Constitucional Geral.São Paulo: RT, 1977.p.86
395 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Soberania.Revista Brasileira de Estudos
Políticos da UFMG, Belo Horizonte,nº63/64,jul.1986/já.1987.pp.32-33.VERDROSS,Alfred.Derecho
Internacional Público.Trad.de Antonio Truyol y Serra. 6ª ed.Madrid,1978,p.9; MELLO,Celso D. de
Albuquerque.Curso de Direito Internacional Público.4ªed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974.p.200.
396 MELLO, Celso D.de Albuquerque. Curso de Direito Internacional.p.200.
397 VERDROSS,Alfred. Op.cit.pp.10 e 92: e MELLO, Celso D.de Albuquerque. Curso de Direito
Internacional.p.200.

291
30 anos da Constituição

Segundo, Betina Treiger Grupenmacher398:


“a soberania é o poder de autodeterminação de um dado Estado, a po-
sição particular de independência que a pessoa jurídica estatal assume
perante as demais pessoas jurídicas com as quais se relacionam e de total
independência diante de qualquer outra pessoa jurídica soberana”.

Das diversas pessoas jurídicas de direito público externo, os Estados são os


únicos a possuírem soberania.
A vida internacional organizada deveria inicialmente ser livre e igual a
todos, porém devido à dependência de uns países em relação aos outros, essa
igualdade não é tão equilibrada quanto todos gostariam que fosse. Infelizmente
a forte atuação soberana de um país acaba desestabilizando as relações com os
Estados que possuem soberanias menos marcantes.
Jorge Miranda identifica três direitos do Estado em relação à sua soberania: a)
“o jus tractum” ou direito de celebrar contratos, b) o “jus legationes” ou de receber e
enviar representantes diplomáticos e; c) “jus belli” ou de fazer a guerra, sem esque-
cer dos direitos de reclamação internacional destinados a defesa dos interesses dos
Estados perante os órgãos políticos e jurisdicionais da comunidade internacional e
o de participação em organizações internacionais de caráter político399.
Com o preceito de sua soberania, o Estado pode exercer seu poder interna-
mente sobre todos que se encontrarem em seu território, estrangeiros ou nacio-
nais, sempre visando o interesse comum. Por outro lado, no contexto interna-
cional, os Estados não podem desconsiderar o fato de que todos são igualmente
soberanos de modo que um não pode interferir na competência e a soberania do
outro. Deve-se sempre levar em conta o respeito mútuo para que as disposições
internacionais sejam eficientes e não desestabilize nenhum Estado soberano.
Atualmente não se pode afirmar que existe um isolamento entre os países,
não é conhecida nenhuma soberania absoluta. Os países não podem agir livre-
mente conforme seu próprio entendimento. A soberania passou a ser definida
e utilizada para o fortalecimento da política interna e a expansão das relações
políticas externas e deve ser exercida de forma equilibrada.

398 GRUPENMACHER,Betina Treiger.Tratados Internacionais em matéria tributária e ordem interna.


São Paulo: Dialética, 1999.Cit.p11.
399 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional.2ªedição.Coimbra:1988.Op.cit.p.159.

292
30 anos da Constituição

A harmonização natural de poderes resultou na hierarquia de um Estado


sobre outro, porém o que ocorre atualmente é o “pacto entre as soberanias”,
onde nenhum Estado deixa de ser mais ou menos soberano ao permitir que as
decisões estrangeiras produzam efeitos em seus territórios.
O que ocorre na prática é que o poder econômico acaba sendo um fator
determinante para a relação entre as demais nações. O Estado acaba impondo
a sua soberania proporcionalmente a sua força no comércio internacional de
modo que para aqueles que não possuem tal força acabam de certa forma coo-
perando com outras nações na elaboração de acordos internacionais para não
se prejudicarem política e economicamente.
A globalização, a crescente comercialização, intercâmbios culturais, nos
faz crer que a evolução cultural, política e econômica está se desenvolvendo
numa velocidade superior à que todos imaginavam. O conceito de soberania
vai sendo aos poucos dissipado uma vez que o Estado vem se preocupando cada
vez mais no seu perfil internacional do que na sua autodeterminação interna.
Não se pode afirmar que a soberania dos Estados vai desaparecer, porém
tal soberania não pode ser mais considerada absoluta, mas sim relativa. Os Esta-
dos entendem que para um desenvolvimento mais eficaz é necessário alianças e
cooperação entre nações. Porém isso não significa que os países estão perdendo
suas barreiras rumo à unificação de todas as nações em um único bloco econô-
mico. A globalização veio para ampliar e aperfeiçoar essa cooperação entre os
Estados soberanos, mas é claro, sem inviabilizar a independência das nações.
Inspirado por essas concepções, surge depois da Segunda Guerra Mundial
(como mencionado várias vezes nesse artigo) em 1945 a Organização das Na-
ções Unidas e em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagrou o con-
senso sobre valores universais para serem seguidos pelos Estados. O diferen-
cial dessa declaração é que consagrou não apenas direitos civis e políticos, mas
também direitos econômicos, sociais e culturais como o direito ao trabalho e
à educação. Todos esses direitos humanos constituem um complexo integral,
único e indivisível, em que os diferentes direitos estão necessariamente inter-
-relacionados e interdependentes entre si400.

400 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. P.60.

293
30 anos da Constituição

Foi a partir dessa Declaração de 1948 que a concepção de direitos humanos tra-
zida por ela começa a desenvolver o Direito Internacional de Direitos Humanos, atra-
vés de inúmeros tratados internacionais destinado a proteção dos direitos humanos.
Os instrumentos internacionais refletem a consciência ética compartilhada pe-
los Estados em favor da proteção dos indivíduos e forma-se assim o sistema normativo
global de proteção dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas.
Ao lado desse sistema global, surge o sistema regional de proteção que busca
internacionalizar os direitos humanos no plano regional. Esses sistemas são comple-
mentares não se excluem, permitem que o indivíduo escolha qual o aparato que mais
o protege. E como o Brasil vê essa proteção internacional dos direitos humanos?

3.2. Singularidades na ordem nacional brasileira


Em relação ao posicionamento do Brasil em relação ao sistema interna-
cional de proteção dos direitos humanos, verifica-se que somente a partir do
processo de democratização do País, em 1985, é que o Estado brasileiro passou
a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos401.
A referência preliminar do processo de incorporação de tratados interna-
cionais de direitos humanos pelo Direito brasileiro foi a ratificação, em 1989,
da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes. A partir dessa ratificação, inúmeros outros importantes instru-
mentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incor-
porados pelo Direito brasileiro, sob o amparo da Constituição Federal de 1988.
Então quais foram as inovações introduzidas pela Constituição de 1988?
Entre as inúmeras inovações podemos citar com destaque o primado da preva-
lência dos direitos humanos, como princípio orientador das relações interna-
cionais. Essa e outras inovações foram fundamentais para a ratificação desses
importantes instrumentos de proteção dos direitos humanos402.
Mas não foram apenas as inovações constitucionais que auxiliaram a for-
tificar os tratados internacionais, acrescenta-se também que a necessidade do

401 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p. 66.
402 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p 68.

294
30 anos da Constituição

Estado brasileiro de reorganizar sua agenda internacional, de modo mais ade-


quado com as transformações internas decorrentes do processo de democrati-
zação também foi muito importante. Esse esforço se concilia com o objetivo de
compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacio-
nal, como pais respeitador e garantidor de direitos humanos403.
Além disso, a adesão aos tratados internacionais de direitos humanos mos-
tra que o Brasil está aberto para a ideia contemporânea de globalização dos
direitos humanos, bem como para a idéia da legitimidade das preocupações da
comunidade internacional, no tocante à matéria. Há ainda que se acrescer o
elevado grau de universalidade desses instrumentos, que contam com significa-
tiva adesão dos demais Estados integrantes da ordem internacional404.
Por fim questiona-se: como é o aparato jurídico brasileiro para receber
esses tratados internacionais de Direitos Humanos? O Brasil segue o consenso
entre os Estados democráticos no sentido das Constituições solidificarem a su-
premacia dos tratados internacionais de direitos humanos em relação ao direito
interno? Isso é o que veremos no próximo tópico.

4. Incorporação dos Tratados Internacionais


de Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro
Inicialmente é necessário destacar que a Constituição de 1988 constitui
o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos
humanos no Brasil405. O valor da dignidade humana passou a ser o núcleo bási-
co e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro
de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucio-
nal instaurado em 1988406. O que o legislador constituinte parece não ter se

403 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p.66.
404 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. p.67
405 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. P 68 -69.
406 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. – 9.ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016. P.69

295
30 anos da Constituição

preocupado é que o cenário em que se encontrava o processo de internacionali-


zação dos direitos humanos, já em grande expansão, exigia a elaboração de um
sistema jurídico apto a regular as tensões que surgiriam entre o direito interno e
o direito internacional no campo de proteção dos direitos humanos407.
A Constituição que resultou disso, desse modo, na questão da internacionali-
zação da proteção dos direitos humanos, mais especificamente em relação aos trata-
dos internacionais de direitos humanos, não apresenta dispositivos claros e precisos
o suficiente para resolver as diversas controvérsias que a matéria possibilita.
A Constituição de 1988 não estabeleceu expressamente qualquer espécie de
distinção entre os tratados (embora grande parte da doutrina discorde), especial-
mente de caráter hierárquico, situação que durou de sua promulgação até a entrada
em vigor da Emenda Constitucional n.45, de 08 de dezembro de 2004, que acres-
centou ao art. 5º da CF um §3º, estabelecendo que tratados internacionais de di-
reitos humanos passariam a ter status equivalente à das emendas constitucionais408.
Se na elaboração da emenda constitucional o objetivo do constituinte era
acabar com os intensos debates que surgiram sobre a hierarquia dos tratados
internacionais de direitos humanos no Brasil, a tática mostrou-se plenamen-
te desastrosa. A questão não apenas não foi pacificada, como as discussões se
tornaram mais instigadas. Mas para entender essa grande polêmica, é mister
entender o tema antes e depois da EC n.45/2004.

4.1. Antes da EC n.45/2004.


Os tratados de direitos humanos, antes da EC 45/2004, seguiam o proce-
dimento de aprovação dos demais tratados, independentemente de seu objeto e
conteúdo. As fundamentações constitucionais são o artigo 84, inciso VIII, que
estabelece que compete ao Presidente da República celebrar tratados, convenções
e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional e ainda, o artigo
49, inciso I, que dispõe que é da competência exclusiva do Congresso Nacional

407 JUNIOR, René Zamlutti. A hierarquia dos Tratados Internacionais de direitos humanos no
ordenamento jurídico brasileiro. Mestrado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo. 2011. p.138.
408 JUNIOR, René Zamlutti. A hierarquia dos Tratados Internacionais de direitos humanos no
ordenamento jurídico brasileiro. Mestrado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo. 2011. p.138.

296
30 anos da Constituição

resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acar-


retem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Apesar da
ausência de previsão constitucional, há também a necessidade da edição de um
Decreto presidencial após a ratificação pelo Congresso Nacional409.
Essa forma de aprovação esclarecia que todos os tratados internacionais
dispunham posição hierárquica semelhante à das leis ordinárias410. Esse posi-
cionamento foi bem recebido pela comunidade jurídica brasileira? De forma
alguma, inclusive, essa controvérsia doutrinária e jurisprudencial pode ser bre-
vemente sistematizada em quatro vertentes.
A primeira corrente era justamente a que o Supremo Tribunal Federal
adotava desde 1977, segundo o qual o tratado tem o mesmo status de lei ordiná-
ria, conforme vimos anteriormente.
O Supremo Tribunal Federal411, através de sua jurisprudência confirmou
essa posição, isso representa na prática, que, em casos de incompatibilidade en-
tre lei e tratado, devem ser aplicadas regras de solução das antinomias jurídicas
entre normas do mesmo nível, prevalecendo a norma mais nova, pelo menos
quando estabelece expressamente a modificação da anterior412.
A segunda corrente defende o status supraconstitucional dos tratados de
direitos humanos em face à Constituição Federal, visto que tem como objetivo
o avanço das relações internacionais e o cumprimento das normas interna-
cionais compactuadas. No Brasil, podemos citar Celso Albuquerque de Melo
como defensor da idéia de que nem mesmo emenda constitucional seria capaz
de revogar tratados internacionais de direitos humanos413.

409 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional – 6. Ed –
São Paulo: Saraiva, 2016. P. 308.
410 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014.
411 ADIn 1.480 (medida cautelar), rel. Min. Celso de Mello, j. 4.9.1997; HC 72.131, rel. Min. Marco
Aurélio, j. 23.11.1995; Recurso em HC 79.785, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.3.2000. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br>.
412 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014.
413 QUEIROGA, Vitória dos Santos Lima. A Emenda Constitucional n.45∕ 2004 e os Tratados de
Direitos Humanos: será o fim da controvérsia. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site
/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9329

297
30 anos da Constituição

A terceira corrente, defendida por doutrinadores como Flávia Piovesan e


Cançado Trindade, defende a tese de que o art. 5°, § 2° era o fundamento legal
para equiparar os tratados de direitos humanos as normas constitucionais, no
que se refere ao nível hierárquico. Nesse nível, numa interpretação conjunta
com o § 1° do referido artigo, o procedimento de aprovação dos tratados de di-
reitos humanos diferiria dos demais tratados, pois teriam aplicabilidade imedia-
ta no plano nacional e internacional, a partir do ato de ratificação, dispensando
qualquer intervenção legislativa, desde que o Brasil fosse signatário414.
E a quarta corrente defendida por Gilmar Mendes que propôs o status de supra-
legalidade, situando, os tratados de direitos humanos acima de uma lei infraconstitu-
cional, sendo, contudo, sujeitos ao controle de constitucionalidade415.
Essa última corrente da doutrina foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Em
decisões de 2008, afirmou que os tratados internacionais que garantem direitos hu-
manos são sempre superiores às leis ordinárias brasileiras (tese da supralegalidade dos
tratados internacionais). Nesses acórdãos houve votos de Ministros a favor do reco-
nhecimento de status constitucional (e não somente supralegal) a tais tratados416.
Em favor a essa proposta, o principal argumento pode ser encontrado no art. 5o,
§ 2o, da CF, exposto como proibição de limitar os direitos garantidos em tratados in-
ternacionais mediante normas infraconstitucionais417. O argumento decorre de uma
interpretação extensiva da referida disposição que não convence.
O artigo só determina que o rol dos direitos explicitamente garantidos na Cons-
tituição não deve ser interpretado no sentido de presunção de competência a favor do
Estado, excluindo direitos decorrentes de fontes além do próprio texto constitucional.
Nesse sentido, a falta de garantia explícita de um direito na Constituição não permite
ao intérprete recorrer ao argumento a contrário, pois a enumeração dos direitos fun-

414 QUEIROGA, Vitória dos Santos Lima. A Emenda Constitucional n.45∕ 2004 e os Tratados de
Direitos Humanos: será o fim da controvérsia. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site
/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9329
415 MENDES, Gilmar F., COELHO, Inocêncio M. BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de Direito
Constitucional. 2.ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 702-703.
416 HC 87.585, rel. Min. Marco Aurélio, j. 3.12.2008; RE 466.343, rel. Min. Cezar Peluso, j. 3.12.2008; RE
349.703, rel. Min. Carlos Britto, j. 3.12.2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.
417 RE 349.703, rel. Min. Carlos Britto, j. 3.12.2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>

298
30 anos da Constituição

damentais na Constituição é indicativa e não limitativa. Tem-se aqui uma clássica


presunção a favor da liberdade do indivíduo e contra o poder estatal418.
Dessa forma a Constituição não estabeleceu, categoricamente e em disposi-
tivo específico a relação hierárquica entre as leis brasileiras e os tratados interna-
cionais. Através de uma interpretação sistemática, a resposta a essa adversidade é
cedida pelos artigos 102, III, b, e 105, III, a, os quais estabelecem o tratado e a lei
na mesma posição hierárquica, visto que com os referidos dispositivos o Supremo
Tribunal Federal resolve, mediante recurso extraordinário, problemas de incons-
titucionalidade “de tratado ou lei federal” e o Superior Tribunal de Justiça resolve,
mediante recurso especial, os problemas de violação “de tratado ou lei federal”.
Então, como o constituinte brasileiro de 1988 situou os tratados interna-
cionais? No mesmo patamar da lei ordinária, considerando tanto o objeto do
controle normativo de constitucionalidade (art.102, III, b, da CF), como parâ-
metro do controle normativo de legalidade/ convencionalidade de atos norma-
tivos infralegais e de decisões judiciais (art. 105, III, a, da CF).
A clássica ponderação entre lei interna e tratado internacional é confir-
mada pelo fato de nenhuma outra norma constitucional prever a competência
do Poder Judiciário para avaliar a violação de tratado por lei ou vice-versa. Isso
mostra que o constituinte não tinha a intenção de instituir uma hierarquia en-
tre ambos. Assim sendo, quais foram as mudanças trazidas pela EC 45 de 2004?

4.2. Após a EC n.45/2004


A EC 45 de 2004 inseriu o § 3º ao art. 5º da CF. Em virtude desse dis-
positivo, os tratados internacionais relacionados a direitos humanos que forem
aprovados com o procedimento determinado nesse dispositivo adquirem status
de emendas constitucionais. É interessante notar que o referido procedimento e
a exigência de quorum são iguais aos previstos no art. 60 da CF para as emen-
das constitucionais. O que nos leva a deduzir que Emendas constitucionais são
promulgadas sem a edição de decreto do Presidente da República419.

418 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014.
419 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 35

299
30 anos da Constituição

O tratado internacional torna-se internamente superior às leis e a todas as


demais fontes infraconstitucionais, a contar da promulgação da norma ratifica-
dora, modificando-se a situação jurídica descrita e anterior à EC 45, de 2004.
Dessa maneira, o tratado internacional de direitos humanos ratificado com
esse procedimento passa a integrar ao chamado bloco de constitucionalidade. Mes-
mo nesse caso o tratado ainda permanece em posição de inferioridade em relação
ao texto da Constituição, visto que deve observar as limitações materiais do poder
de reforma constitucional (“cláusulas pétreas”) dispostas no art. 60, § 4o, da CF420.
É possível a aprovação de um tratado internacional em temas de direitos
humanos com o procedimento ordinário de aprovação de tratados (conforme o
art. 49, I, da CF)? Na doutrina há aqueles que julgam que isso seja possível, sem
realizar, contudo, uma análise específica da questão. Há outros doutrinadores
ainda que pensam de outra forma, no sentido de não ser mais possível a apro-
vação de tratado internacional de direitos humanos mediante ato do Congresso
Nacional editado com a costumeira maioria simples de seus membros.
Essa interpretação evidencia duas vantagens. Inicialmente, resolve definitiva-
mente as questões sobre a posição dos tratados internacionais de direitos humanos,
elucubrando no sentido de “tudo ou nada”, isto é, ou serão ratificados com status
constitucional ou serão rejeitados. Segundo, ela possibilita que todos os tratados
promulgados antes da entrada em vigor da EC 45 de 2004 sejam automaticamente
constitucionalizados, de acordo com a teoria da recepção aceita no Brasil421.
Segundo o professor Dimitri Dimoulis422 os problemas dessa proposta po-
dem ser resumidos em três aspectos:
“O primeiro aspecto gira em torno da dificuldade em saber com segurança
quais tratados se referem a direitos humanos e quais não, para decidir
sobre o procedimento a ser adotado. Até mesmo um tratado sobre impor-
tação de cadeira de rodas para deficientes físicos diz respeito a direitos fun-
damentais, e um acordo de cooperação econômica pode afetar as liberda-
des profissionais empresariais e econômicas de incontáveis pessoas. Assim

420 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 32
421 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. p. 34
422 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. p. 36-37

300
30 anos da Constituição

sendo, haveria a necessidade de aprovação com o quórum das emendas


constitucionais para praticamente todos os tratados internacionais.
Um segundo aspecto para ter em mente seria a necessidade de desmem-
brar tratados internacionais que eventualmente regulamentem matérias
consideradas não pertinentes aos direitos humanos, complicando o pro-
cedimento de adoção e aumentando o risco de sua aceitação parcial em
virtude da diferença no quórum exigido.
E uma terceira perspectiva é que a proposta anterior pode ser interpre-
tada de duas maneiras. Inicialmente com um argumento de ordem ge-
nético-sistemática. A EC 45 de 2004 teve um estimulo “internacionalis-
ta”, buscando atribuir valor constitucional a tratados internacionais de
direitos humanos e proclamando, com uma norma de intensidade e de
formulação inusitada, que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal
Penal Internacional” (art. 5o, § 4o, da CF). Como entender que a mesma
reforma que se submeteu a jurisdição do Tribunal Penal Internacional
dificulta através de um procedimento complexo de aprovação a incorpo-
ração dos tratados internacionais?”

Há também um argumento textual-gramatical. O referido § 3o do art. 5o da CF


dispõe que terão status de emenda constitucional os tratados “que forem aprovados”
segundo o procedimento da emenda. O mais razoável é considerar que o artigo com
esse texto permitiu a eventualidade de ratificação de tratados que “não forem aprova-
dos” com esse procedimento, concebendo a ativação do procedimento comum.
Dessa forma, a EC 45 de 2004, ao adicionar o § 3º ao art. 5º da CF, possi-
bilitou a ratificação de tratados internacionais relacionados a direitos humanos
conforme o procedimento do art. 49, I, da CF. Em função disso, o cenário atual
brasileiro possui duas espécies de tratados internacionais que incorporam ao
direito brasileiro normas de direitos humanos423.
A primeira espécie abrange os tratados que vão ser aprovados de acordo
com o procedimento das emendas constitucionais, equiparando-se formalmente a
estas. Esses tratados vão integrar o bloco de constitucionalidade, submetendo-se à
exigência de respeitar as cláusulas pétreas. Estes só podem ser modificados ou po-
deriam ser retirados do ordenamento mediante emenda constitucional posterior.
Porém, no que se refere a possibilidade em tese de ab-rogação, tais tratados passa-

423 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 37

301
30 anos da Constituição

rão, em razão de sua constitucionalização, a não admitir emenda constitucional


tendente a abolir suas normas, protegidas que são como cláusulas pétreas424.
A segunda espécie abrange os tratados aprovados por maioria simples do
Congresso Nacional. Esses tratados possuem força jurídica de lei ordinária e
podem ser derrogados ou ab-rogados por meio de lei posterior. E quais seriam os
tratados pertencentes a essa categoria? Ocorreu uma modificação completa do
procedimento de ratificação?
Todos os tratados internacionais aprovados antes da entrada em vigor da EC
45 de 2004, pertenceriam a essa categoria. Não ocorreu uma modificação completa
do procedimento de ratificação dos tratados, assim não se aplica o argumento a fa-
vor de sua constitucionalização oferecido pela teoria da recepção. Cabe ao Congres-
so Nacional avaliar, futuramente, a oportunidade de proceder a uma nova discussão
e eventual aprovação desses tratados, com status de emenda constitucional425.

5. Conclusão.
Em suma, esse dispositivo realmente ampliou a proteção dos direitos hu-
manos no âmbito nacional ou ele simplesmente esclareceu o que já havia no
texto constitucional? De tudo o que foi exposto podemos afirmar que a inserção
do § 3º do art. 5º da CF/88 não serviu efetivamente para nada, visto não é ne-
cessário um novo parágrafo na Constituição, bastaria apenas a jurisprudência
dos Tribunais Superiores para esclarecer o que já tinha no texto constitucional.
Dimitri Dimoulis426 também entende dessa maneira. Para o autor, o novo
§ 3o do art. 5o da CF revela-se juridicamente inócuo. Antes da EC 45/2004, o
Congresso Nacional poderia atribuir força jurídica de emenda constitucional a
qualquer tratado internacional com base na previsão do art. 60 da CF. Hoje,
pode fazer o mesmo em virtude do art. 5o, § 3o, da CF. Em paralelo, tanto antes

424 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 37
425 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 37
426 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014. P. 40.

302
30 anos da Constituição

como após a EC 45/2004 cabe ao Congresso Nacional incorporar um tratado


internacional, atribuindo-lhe valor de lei ordinária.
Uma última questão trazida pelo autor diz respeito às colisões de direitos
que envolvem titulares de direitos fundamentais, garantidos no texto constitucio-
nal, e titulares de direitos fundamentais garantidos em tratados internacionais.
A resposta é dada pelo referido § 2o do art. 5º da CF. O constituinte reconhece
os direitos decorrentes de tratados internacionais independentemente da forma
de ratificação, isto é, independentemente do valor jurídico do tratado. Ora, di-
reitos humanos constitucionalmente reconhecidos não perdem sua validade se
colidirem, in concreto, com direitos fundamentais diretamente garantidos pela
Constituição. Se afirmássemos o contrário, o art. 5o, § 2o, perderia seu sentido.
Colisões concretas devem ser resolvidas aplicando-se as regras da dogmá-
tica dos direitos fundamentais. A única diferença é que, se o tratado interna-
cional tiver força jurídica de lei ordinária, o titular do direito não pode alegar
inconstitucionalidade de lei posterior limitadora de seu direito, pois, conforme
já dissemos, a lei pode livremente limitar ou mesmo ab-rogar tais direitos. A di-
ferença se observa, portanto, na precariedade desse novo parâmetro de controle
das ações estatais inserido por tratado ratificado por maioria simples (art. 49, I,
da CF), uma vez que o legislador ordinário poderá revogá-lo. Vinculados estão,
nesse caso, somente os órgãos estatais das funções executiva e jurisdicional427.

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427 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. – 5. ed. rev.,
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303
30 anos da Constituição

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304
A Constituição como Sistema Normativo
Aberto: a Cooperação Entre Instituições
Internacionais e Domésticas na Aplicação da
Dignidade Humana e do Critério Pro Persona

Luiz Guilherme Arcaro Conci428


Thais Novaes Cavalcanti429

1. Introdução
A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil uma nova ordem jurídica, rom-
pendo com o Estado anterior sob o regime ditatorial e estabelecendo as bases
para a formação de um novo Estado Democrático de Direito. Um dos pontos,
sem dúvida, que deve ser destacado nessa nova ordem é a recepção e afirmação
do conceito moderno de direitos fundamentais. Pela primeira vez, uma Constitui-
ção brasileira utilizou o termo Direitos e Garantias fundamentais para expressar
várias espécies de direitos e deveres, sendo eles classificados de individuais, cole-
tivos, sociais, do trabalhador, da nacionalidade, políticos e dos partidos políticos.
Essa é a gama de direitos prevista no Titulo II, artigos 5º ao 17.
A proposta originária constitucional proporcionou o desenvolvimento de
um regime próprio dos direitos fundamentais, que possui relação com as de-

428 Professor da Faculdade de Direito e Coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP, com
estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri (2013-2014). Professor Titular da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo – Autarquia Municipal. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa sobre
Direitos Fundamentais (PUC-SP/CNPq). Professor colaborador do Mestrado em Direitos Humanos da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Professor Visitante das Universidades de Bolonha (2016) e
da Buenos Aires (2011-2014), dentre outras. E-mail: [email protected]/[email protected]
429 Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Pós doutoranda em Direito Internacional pela Universidade Nova de Lisboa, Mestre em
Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, professora do programa de Mestrado da
Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e da graduação a Faculdade de Direito de São Bernardo
do Campo –Autarquia Municipal. Email: [email protected]/[email protected]

305
30 anos da Constituição

mais normas do sistema e possui fundamento explícito na dignidade da pessoa


humana, erguida como princípio constitucional no artigo 1º, III. A supremacia
constitucional se estende a todo o ordenamento jurídico, tornando assim uma
realidade marcante a influência desses direitos em todas as áreas legislativas,
nos poderes e nas decisões judiciais.
É possível identificar na Constituição certa unidade sistêmica, marcada
essencialmente pela existência de regras e princípios, com aplicação imediata
e presunção de eficácia plena, cujo eixo fundamental é a dignidade da pes-
soa. Trata-se de um sistema aberto, de um catálogo de direitos materialmente
aberto, possibilitando assim o diálogo com o direito internacional dos direitos
humanos, tanto no âmbito legislativo (Tratados internacionais) como no judici-
ário (decisões das Cortes Internacionais de direitos humanos).
O objetivo do presente artigo é evidenciar os efeitos do princípio da digni-
dade humana e consequentemente o princípio pro persona, são utilizados como
critério de aplicação tanto dos direitos fundamentais como dos direitos humanos
incorporados no sistema. São eles que possibilitam o resguardo jurídico da pessoa,
como fundamento para consolidar o Estado Democrático fundado em 1988.
Desta forma, pretende-se expor aspectos da dogmática constitucional que
surgiram ao longo desses anos, como a concepção da Constituição como sis-
tema normativo aberto de regras e princípios, que possibilitou dar à dignidade
humana densidade normativa suficiente para ser a base da interpretação de
máxima efetividade dos direitos humanos fundamentais.
Já no segundo tópico será desenvolvido o aspecto da abertura constitu-
cional para os Tratados internacionais de direitos humanos, que inauguram
uma importante fase de interligação entre o direito internacional e o direito
doméstico. Neste capítulo se pretende evidenciar que o critério pro persona é
mais importante do que o debate sobre a hierarquia dos Tratados internacionais
no sistema jurídico brasileiro430.

430 Sobre o tema ver também CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. A obsolescência da perspectiva da
hierarquia dos tratados internacionais para a coordenação entre o direito doméstico e o direito
internacional em matéria de direitos humanos. In: ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; LEITE,
Glauco Salomão; SANTOS, Gustavo Ferreira; TEIXEIRA, João Paulo Allain. 30 anos da Constituição
brasileira – balanço crítico e desafios à (re) constitucionalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018,
que também se publica nesta obra.

306
30 anos da Constituição

O próximo passo a ser dado é aplicar esse critério também para resolver con-
flitos interpretativos entre Tratados internacionais e normas constitucionais, para
que o juiz nacional possa aplicar o direito convencional. A Corte Interamericana
de Direitos Humanos estabeleceu alguns critérios para essa aplicação, que serão
evidenciados. Trata-se também de um modo outro de se rotular a questão da limi-
tação ou alteração da soberania do Estado, pois não há que se falar em soberania
quando o centro do sistema protetivo está no indivíduo e não no próprio Estado.
Essas discussões se tornam possíveis a partir do texto constitucional de
1988, que propiciou a contínua evolução no reconhecimento dos direitos fun-
damentais, sejam aqueles já previstos em que se busca concede-los máxima
efetividade, sejam aqueles incorporados do direito internacional dos direitos
humanos. Esse é um dos pontos importantes estabelecidos pela Constituição
brasileira, que precisa ainda ser trabalhado e melhor aprofundado.
Essa é uma mudança de paradigma em que a Constituição se torna perme-
ável a valores jurídicos suprapositivos, em que as ideias de justiça e de realização
de direitos desempenha um papel central na realização do Estado democrático de
Direito brasileiro, no entanto, há ainda muito o que ser feito no que diz respeito
a integração brasileira a sistemas internacionais de proteção de direitos humanos.

2. A Unidade Sistêmica e Princípio da Dignidade Humana


A Constituição de 1988, vista como um marco de mudança no direito
constitucional brasileiro, possibilitou a reconstitucionalização do ordenamento
jurídico. É a primeira Constituição verdadeiramente normativa e, a despeito da
compulsão reformadora que abala a integridade de seu texto, vem consolidando
um inédito sentimento constitucional431, que influencia o tratamento jurídico
constitucional de todas as situações sociais e institucionais do País.

431 VERDÚ, Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como
modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 53. “(...) o sentimento jurídico supõe
a implicação com o ordenamento jurídico e com a ideia de justiça que o inspira e ilumina. Sentir
juridicamente é implicar com o Direito vigente, com o todo ou com parte dele, dando-lhe apoio.
Às vezes, a não implicação indica que se prefere um Direito distinto, o Direito anterior ou outro
melhor e/ou mais justo. Desse modo, o sentimento jurídico aparece como afeto mais ou menos intenso
pelo justo e equitativo na convivência. Quando tal afeto versa sobre a ordem fundamental daquela
convivência, temos o sentimento constitucional.”

307
30 anos da Constituição

Canotilho define a Constituição como estatuto jurídico do fenômeno políti-


432
co , em que se estabelece o comprometimento com a efetividade das normas e
com o desenvolvimento de uma dogmática de interpretação constitucional. A
normatividade constitucional tornou-se a base do fortalecimento da sociedade
e de suas instituições, cujo fundamento de validade e legitimidade está no texto
da Lei Fundamental. Por outro lado, as diversas formas de metodologia de in-
terpretação possibilitaram a abertura do texto constitucional para a concepção
principiológica do ordenamento jurídico e o desenvolvimento da máxima efeti-
vidade das normas constitucionais, sejam elas regras ou princípios.
No Brasil, foi a partir de 1988 que a doutrina começou a utilizar a ex-
pressão de filtragem constitucional, ou seja, a análise das situações fáticas, das
instituições e das demais áreas da Ciência Jurídica sob a ótica constitucional.
Há uma mudança de paradigma que a Constituição passa a ser tida como um
sistema normativo aberto de regras e princípios. Os princípios tornam-se o princi-
pal canal de comunicação entre o sistema de valores sociais e o sistema jurídico.
Esses valores são captados pelos três níveis de racionalidade da Constituição, como
ensina Canotilho433 – níveis estes componentes do consenso geral da comunidade
sobre o que seja razoável em termos de proteção dos direitos humanos: o nível de
racionalidade ética; o da racionalidade política; o da racionalidade jurídica.
O primeiro – da racionalidade ética – consagra os principais valores éticos
da convivência humana, como a vida, a dignidade da pessoa humana etc. O
segundo nível – o da racionalidade política -, nos revela quem pode exercer o
poder, como poderá conquistá-lo, como deverá exercê-lo e que fins deverá per-
seguir no desencadear de seus instrumentos e formas. O terceiro – o da raciona-
lidade jurídica -, estabelece os instrumentos de proteção dos direitos e interesses
das pessoas humanas, assegurando o acesso à jurisdição através do processo
judicial, e o acesso aos outros direitos via processo administrativo, ou a realiza-
ção de atos negociais pela preservação da autonomia negocial dos indivíduos.
Essa racionalidade estabelece a lógica da unidade do sistema e a compre-
ensão da Constituição como sistema, que para a dogmática jurídica é um con-

432 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 13. O autor
nesta mesma obra, p. 12, conceitua Constituição, como “uma ordenação sistemática e racional da
comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos
fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político.
433 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1982.

308
30 anos da Constituição

junto integrado de princípios e regras, carregados de normatividade, dispostos


de forma hierárquica de acordo com a valoração que lhes é atribuída, onde
necessitam de outras normas superiores para obter seus efeitos e sua validade.
Mas, a hierarquia das normas constitucionais vai além, não só na estrutura es-
calonada entre princípios e regras, ou como sistema jurídico em que as normas
constitucionais são fundamento de validade para as demais normas do sistema.
Como sistema possibilita que todas suas normas tenham interrelação, as-
sim os Direitos Fundamentais devem ser aplicados em relação com os funda-
mentos do Estado Brasileiro (art. 1°), com os objetivos (art. 3°) e com as demais
disposições constitucionais. A dignidade humana estabelecida como funda-
mento do Estado (art. 1°, III) torna-se essencial na concretização e aplicação
dos direitos, como a solidariedade (art. 3°, I) , a não discriminação (art. 3°, IV)
e outros princípios estabelecidos na Constituição.
O princípio da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informa-
dor do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração
a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado
em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os
princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores
éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na
ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expan-
siva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério
interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.434
A dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito
Brasileiro, é um valor jurídico estabelecido desde a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, que, após duas Guerras Mundiais, determinou, pa-
radigmaticamente, que a pessoa deve ser protegida, respeitada e promovida por
todas as Constituições e Estados.
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta,
sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da
pessoa humana, [...]

434 CAVALCANTI, Thais N. Direitos Fundamentais e o princípio da subsidiariedade. Osasco: EDIFIEO,


2015. p. 102

309
30 anos da Constituição

Artigo I – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direi-


tos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às
outras com espírito de fraternidade.435

Jorge Miranda436, a partir desta determinação feita pela Declaração Universal


sintetiza algumas diretrizes básicas necessárias à formação da “consciência jurídica
mundial”, que devem servir de base para a aplicação da dignidade humana como
princípio constitucional. Vale a pena citar essas diretrizes enumeradas por ele:
a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das
pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta;
b) a dignidade da pessoa humana refere-se à pessoa desde a concepção,
e não só desde o nascimento;
c) a dignidade é da pessoa enquanto homem e enquanto mulher;
d) cada pessoa vive em relação comunitária, o que implica o reconheci-
mento por cada pessoa da igual dignidade das demais pessoas;
e) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui
é dela mesma, e não da situação em si;
f) o primado da pessoa é o do ser, não o do ter, a liberdade prevalece
sobre a propriedade;
g) só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida;
h) a proteção da dignidade das pessoas está para além da cidadania por-
tuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos;
i) a dignidade pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação
relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas.

Assim, a afirmação da dignidade humana como fundamento do Estado no


texto constitucional, implica em assumir a pessoa como princípio geral de todo
o sistema, com todas as consequências normativas que isto traz consigo.

435 MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sessenta anos. São
Paulo: EDUSP, 2008. p.9
436 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3 ed. Coimbra: Coimbra editora,
2000. p. 183-184.

310
30 anos da Constituição

A dignidade humana na Constituição de 1988 possui densidade norma-


tiva, determina critérios para interpretação e integração das demais normas
do sistema, serve de base normativa para a atividade dos Poderes constituídos,
Legislativo, Judiciário e Executivo.
Os objetivos da República previstos no art. 3º da Constituição podem ser
entendidos como verdadeiras premissas necessárias ao pleno respeito à dignidade
humana. Todos eles - construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar
a pobreza e a marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; a
promoção de todos, sem preconceitos e discriminação; garantindo o desenvolvi-
mento nacional - estão intrinsecamente vinculados à dignidade humana.
A pessoa em sua dignidade é um “valor supremo”437 que dá unidade a todo
sistema. Em primeiro lugar, aos ‘Direitos e Garantias Fundamentais’, tratados
assim especificamente no Título II da Constituição. Dentre eles, a Constituição
enumera os direitos individuais e coletivos (art. 5º), os direitos sociais (arts. 6º
ao 11), os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13) e os direitos políticos e parti-
dos políticos (arts. 14 a 17), todos com influência direta da dignidade da pessoa.
Assim também, os direitos constantes da no Título VIII – Da Ordem
Social – da Constituição: Saúde (arts. 196 e ss), Assistência Social (art. 203),
Educação (art. 205), direitos da Criança e do Adolescente (art. 227), direito
dos Idosos (art. 230), direito dos Índios (art. 231). Estes, mesmo não estando
formalmente no Título II designado para os Direitos Fundamentais, podem ser
considerados como tal. Significa também que todos possuem fundamento na
dignidade humana e com ela estão relacionados. O art. 227, por exemplo, de-
termina como dever da família, sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à dignidade.
A inovação do constituinte originário de 1988 foi estabelecer um rol dos
direitos fundamentais materialmente aberto, ou seja, que não excluem outros
direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos Tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, como estabelece
o artigo 5º, § 2°. Isso significa afirmar que existem três tipos de direitos funda-
mentais no texto constitucional brasileiro: a) os expressos na Constituição; b)
os implícitos que decorrem do regime e dos princípios adotados pela Constitui-

437 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 34 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 105

311
30 anos da Constituição

ção; e c) os firmados em tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.438.


A esses também se aplica o princípio do não retrocesso, com base na dignidade
humana, fundamento do Estado Brasileiro.
A Constituição concede, assim, primazia a dignidade da pessoa e deter-
mina que este seja o critério para a aplicação e interpretação dos direitos fun-
damentais. E por ser princípio geral jurídico deve ser observado pelas demais
normas constitucionais e do direito positivo, mas também pela esfera gover-
namental e pela ação individual e coletiva de todos que compõem o Estado. A
busca pela efetivação da dignidade humana deve permear todos os âmbitos: o
governo, o mercado e a sociedade civil.
A primazia da dignidade humana e os direitos fundamentais previstos na Cons-
tituição formam juntamente com os direitos humanos, incorporados através do artigo
5º, § 2°, a unidade sistêmica da Constituição que permitem a ocorrência de um fenô-
meno que restringe a centralidade do poder constituinte, por um lado, e da própria
Constituição. Ambos passam, ao mesmo tempo, a estar condicionados pelo direito in-
ternacional dos direitos humanos, dado que as soluções constitucionais internas “não
podem contrariar os parâmetros de garantia dos direitos humanos fixados pelo direito
internacional geral ou comum439”, pois não “são os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana que estão subordinados à Constituição, antes é a Constituição que
está subordinada ao respeito devido aos direitos humanos440”.
O Brasil é hoje signatário dos principais tratados internacionais de direi-
tos humanos tanto no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA)
quanto da Organização das Nações Unidas (ONU), traduzindo-se isto, em am-
biente nacional, na exigência de acomodação de sua normatividade mediante
a adequação do ordenamento jurídico domésticos aos compromissos assumidos
internacionalmente. Com este fortalecimento da normatividade internacional
dos direitos humanos, o Estado brasileiro e seus agentes, passam, mais e mais, a
ter o dever de cumprir com obrigações internacionalmente assumidas, sob pena
de estar o Estado nacional brasileiro a praticar ilícitos internacionais sancioná-
veis nos dois sistemas de proteção acima mencionados.

438 PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de proteção dos direitos humanos: jurisprudência do
STF. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Vinte anos da Constituição de
1988. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009. p. 465
439 OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. Volume I. Coimbra: Almedina, 2.007, p. 377.
440 Idem, p. 377.

312
30 anos da Constituição

3. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos em


Âmbito Interno: Forma, Substância e o Critério Pro Persona
O reconhecimento da normatividade dos Tratados Internacionais, es-
pecialmente de direitos humanos trouxe uma nova consciência jurídica sobre
os critérios de aplicação dessas normas no ordenamento jurídico brasileiro. A
abertura constitucional produzida principalmente a partir da Constituição de
1.988, especialmente, em seus artigos 4º e 5º par. 2º foi reforçada por trabalhos
de relevante qualidade de juristas que merecem ser citados: Cançado Trinda-
de441, Flávia Piovesan442 e Clèmerson Cleve443, dentre outros.
Isso porque esse relacionamento entre direito internacional dos direitos
humanos e direito interno exige que se concretize alguns critérios hermenêu-
ticos como pacta sunt servanda444, efeito útil e, especialmente, o princípio pro
persona, a respeito do qual Monica Pinto445 afirma:
El principio pro homine es un criterio hermenéutico que informa todo el
derecho de los derechos humanos, en virtud del cual se debe acudir a la
norma más amplia, o a la interpretación más extensiva, cuando se trata
de reconocer derechos protegidos e, inversamente, a la norma o a la in-
terpretación más restringida cuando “se trata de establecer restricciones
permanentes al ejercicio de los derechos o su suspensión extraordinaria.

O paradigma instaurado pelo princípio pro persona, ao se impor, exige que se


reforce a necessidade do debate aprofundado, caso a caso, a respeito de qual a norma
mais protetiva ou menos restritiva à pessoa humana, seja ela nacional ou internacio-

441 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. I. Porto Alegre: SAFE, 2.003, PP. 513-514.
442 Principalmente, a partir da sua tese de doutoramento publicada pela editoria Max Limonad, de São
Paulo, em 1.996.
443 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Contribuições previdenciárias. Não recolhimento. Art. 95, d, da Lei
8.212/91. Inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, n. 736, p. 527.
444 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. I. Porto Alegre: SAFE, 2.003, PP. 551-552.
445 PINTO, Monica. El principio pro homine. Criterios de hermenêutica y pautas para La regulación
de lós derechos humanos. In: La aplicación de lós tratados de derechos humanos por lós tribunales
locales: Buenos Aires: Ediar, Centro de Estudios Legales y Sociales- Editorial del Puerto, 1997, p. 163.

313
30 anos da Constituição

nal, devendo prevalecer aquela que for mais expansiva, independentemente do status
hierárquico interno que adquirem tratados internacionais de direitos humanos446.
Trata-se de norma jurídica que decorre do artigo 29 da Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos, que diz respeito tanto ao conflito de interpretações
que pode decorrer dos tratados e instrumentos internacionais447 (conflitos entre
tratados), ou tratados ou instrumentos e dos direitos fundamentais previstos
nacionalmente (conflitos entre tratados e direito doméstico), nos estados partes
do sistema interamericano de proteção de direitos humanos.
Assim, faz-se necessária uma análise aprofundada de conteúdo do que de-
cidiu a Corte IDH ou do que contém um tratado ou instrumento internacional
de direitos humanos para que o juiz nacional possa aplicar o direito convencio-
nal. Trata-se de um diálogo crítico448_449 necessário, em que haja reciprocidade,
pois caso a proteção a um direito seja mais efetiva em âmbito nacional, esta
deve prevalecer, ainda que existam precedentes da Corte IDH ou normas jurí-

446 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. II. Porto Alegre: SAFE, 1999, p. 435.
447 Corte Interamericana de Direitos Humanos. La colegiación obligatoria de periodistas (arts. 13 y 29 de
la Convención Americana sobre Derechos Humanos), Opinión Consultiva OC/5, 13 de noviembre de
1985, par. 52: “En consecuencia, si a una misma situación son aplicables la Convención Americana y
otro tratado internacional, debe prevalecer la norma más favorable a la persona humana. Si la propia
Convención establece que sus regulaciones no tienen efecto restrictivo sobre otros instrumentos
internacionales, menos aún podrán traerse restricciones presentes en esos otros instrumentos, pero
no en la Convención, para limitar el ejercicio de los derechos y libertades que ésta reconoce”.
448 “Sin embargo, en un plan general de discusión, ello no nos impide advertir la conveniencia de que
se profundice un diálogo jurisprudencial entre la Corte IDH y los respectivos órganos de cierre de
la jurisdicción constitucional de los Estados que conforman el sistema interamericano, a los fines
de que aquélla tenga presente las observaciones o discordancias que los mismos formulen a los
criterios jurisprudenciales trazados por el Tribunal interamericano para coadyuvar al mejoramiento
de su labor jurisdiccional. Naturalmente, todo ello en aras de optimizar el modelo tuitivo de los
derechos fundamentales sobre la base de un adecuado funcionamiento de las piezas que lo componen,
precisamente para hacer más efectiva y eficiente la protección de aquéllos en nuestro espacio regional,
cf. ABRAMOVICH, Víctor, “Introducción: Una nueva institucionalidad pública. Los tratados de
derechos humanos en el orden constitucional argentino”, en ABRAMOVICH, Víctor, BOVINO,
Alberto y COURTIS, Christian (comps.), La aplicación de los tratados de derechos humanos en el
ámbito local. La experiencia de una década, CELS - Canadian International Development Agency,
Editores del Puerto, Buenos Aires, 2007, pp. VI/VII.
449 Slaughter, citando a juíza da Suprema Corte Americana Ruth Ginsburg, afirma que em “matéria
de direitos humanos(…) as experiências de uma nação ou região devem inspirer ou informar outras
nações ou regiões”, cf. SLAUGHTER, Anne-Marie. A Global Community of Courts. Harvard
International Law Journal. v. 44, n. 1, 2003, p. 199.

314
30 anos da Constituição

dicas derivadas de tratados ou outros instrumentos internacionais450. Por outro


lado, caso a Corte IDH esteja a decidir um caso em que se analisa a proteção
de um direito em âmbito nacional se dá de modo mais eficiente que aquele de-
rivado do sistema americano de direitos humanos, ela deve se abster de declarar
inconvencional o ato nacional em análise.
Esse paradigma se constrói por sobre a perspectiva de que é a pessoa huma-
na, e não o Estado parte, que suporta como fundamento e para onde confluem
como destinatários os objetivos de tutela do direito internacional dos direitos hu-
manos451 e, nesse sentido, sendo a tutela das liberdades das pessoas o fim último
de qualquer sistema jurídico, importa mais o como se protege, a intensidade da
proteção, do que o locus ou a fonte de onde deriva a proteção. O princípio pro
persona exige que se interpretem os direitos humanos de modo mais extensivo,
quando a se falar em proteção, participação ou provisão, e, de outro lado, de
modo mais restritivo, quando se trate de eventuais restrições a direitos.
Neste sentido, Monica Pinto afirma que “este principio coincide con el
rasgo fundamental del derecho de los derechos humanos, esto es, estar siempre
a favor de la persona”452.

450 Nesse sentido, RAMIREZ, Sergio Garcia. El control judicial interno de convencionalidad, Revista IUS
– Revista Cientifica del Instituto de Ciencias Juridicas de Puebla, no 28, julho-dezembro de 2011, p. 139:
“...corresponde aclarar – como se ha hecho em otro lugar de este trabajo – que las interpretaciones del
tribunal interamericano pueden verse superadas por actos – instrumentos internacionales, disposiciones
nacionales, actos de jurisdicción interna – que reconozcan a lós indivíduos mayores o mejores derechos
y libertades. El derecho internacional de lós derechos humanos es el ‘piso’de los derechos, no el ‘techo’.
Esta conclusión, que deriva inmediatamente del principio pro homine , tiene soporte em las normas de
interpretación contenidas en el artículo 29 de la Convención Americana”.
451 A Corte IDH desde há muito assim decidiu em Corte Interamericana de Derechos Humanos.
Opinión Consultiva OC-1/82 del 24 de setiembre de 1982: “los tratados modernos sobre derechos
humanos, en general, y, en particular, la Convención Americana, no son tratados multilaterales del
tipo tradicional, concluidos en función de un intercambio recíproco de derechos, para el beneficio
mutuo de los Estados contratantes. Su objeto y fin son la protección de los derechos fundamentales
de los seres humanos, independientemente de su nacionalidad, tanto frente a su propio Estado, como
frente a los otros contratantes. Al aprobar estos tratados sobre derechos humanos, los Estados se
someten a un orden legal dentro del cual ellos, por el bien común asumen varias obligaciones, no en
relación con otros Estados, sino hacia los individuos bajo su jurisdicción”. Também apontando essa
mudança de perspectiva, MacGregor, Eduardo. el control difuso de convencionalidad en el estado
constitucional, p.159, disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/6/2873/9.pdf.
452 PINTO, Monica. El principio pro homine. Criterios de hermenêutica y pautas para La regulación
de lós derechos humanos. In: La aplicación de lós tratados de derechos humanos por lós tribunales
locales: Buenos Aires: Ediar, Centro de Estudios Legales y Sociales- Editorial del Puerto, 1997, p. 163.

315
30 anos da Constituição

Esse posicionamento, como se vê, respeita a perspectiva de que inexis-


te relação vertical entre a Corte IDH e os tribunais nacionais, pois parte do
pressuposto de que não existe supremacia hierárquica automática das decisões
tomadas pela Corte IDH em detrimento daquelas nacionais453.
Deve prevalecer, assim, uma perspectiva substancialista dos direitos hu-
manos, não mais bastando a separação entre monismo e dualismo, visto que
também aqui se parte de uma perspectiva formal ou estrutural. Isso porque não
se trata da necessidade de intermediação estatal para a imposição de tal ou qual
norma jurídica derivada do direito internacional ou, de outro lado, da pura ou
simples imposição da norma jurídica de direito internacional.
Nessa perspectiva material, prevalecem as normas jurídicas de direitos hu-
manos que sejam mais protetivas dos indivíduos, ou menos restritivas dos seus
direitos, derivem elas de tratados ou outros instrumentos internacionais que não
recebam essa denominação, ou de constituições, leis, sentenças, entre outros.
Cabe, assim, tanto ao juiz nacional quanto ao juiz da Corte IDH, em diálo-
go constante454, buscar se é a normatividade interna ou internacional que deve
prevalecer, não cabendo ao juiz nacional se utilizar do direito nacional menos
protetivo ou do direito internacional dos direitos humanos menos protetivo,
devendo a Corte IDH respeitar esse pressuposto455.

453 Tal qual decidido pelo Tribunal Constitucional do Peru no caso EXP. N2730-2006-PA/CT — 21 de
julho de 2006 - Caso De Arturo Castillo Chirinos: “15. Lo ex pues to, des de lue go, no alu de a una
re la ción de je rarquización formalizada entre los tribunales internaciones de derechos humanos y
los tribunales internos, sino a una relación de cooperación en la interpretación pro homine de los
derechos fundamentales. No pue de ol vi dar se que el ar tícu lo 29.b de la Convención proscribe a
todo tribunal, inclu yendo a la propia Corte, “li mi tar el goce y ejer ci cio de cual quier de re cho o li
ber tad que pueda estar reconocido de acuer do con las leyes de cualquiera de los Esta dos par tes o de
acuer do con otra con ven ción en que sea par te uno de di chos Esta dos”. Ello sig ni fi ca, por ejem
plo, que los derechos reconocidos en el ordena miento inter no y la inter preta -ción optimi zadora que
de ellos realice la jurisprudencia de este Tribunal, también es observada por la Corte”.
454 Também BAZAN, Victor. “Corte Interamericana de Derechos Humanos y Cortes Supremas o
Tribunales Constitucionales latinoamericanos: el control de convencionalidad y la necesidad de un
diálogo interjurisdiccional crítico”, Revista Europea de Derechos Fundamentales, N° 16, 2° Semestre
de 2010, Fundación Profesor Manuel Broseta e Instituto de Derecho Público Universidad Rey
Juan Carlos, Valencia, España, 2011 : “En el fondo, y como se adelantaba, la cooperación entre los
tribunales internos y los tribunales internacionales no apunta a generar una relación de jerarquización
formalizada entre éstos y aquéllos, sino a trazar una vinculación de cooperación en la interpretación
„pro homine” de los derechos humanos”.
455 ESCALANTE, Rodolfo E. Piza. El valor del derecho y la jurisprudencia internacionales de derechos
humanos en el derecho y la justicia internos el ejemplo de costa rica, in Liber amicorum : Héctor

316
30 anos da Constituição

Este juiz nacional e o juiz da Corte IDH, todos eles juízes interamericanos,
devem verificar, no caso concreto, o nível de proteção que se produz tanto em
âmbito nacional quanto em âmbito internacional e, desse modo, aplicar as nor-
mas jurídicas mais protetivas, não sendo a mera contrariedade entre a normas
nacionais e as internacionais que as torna inconvencionais, mas, sim, o déficit
de proteção em sede nacional que causar tal resultado.
Ao juiz da Corte IDH, verificando que a proteção dada pelo direito na-
cional é mais intensa, cabe deixar de sancionar ao estado nacional que, em um
caso concreto, está sob julgamento. No caso do juiz nacional, verificando que o
direito nacional é mais protetivo cabe dar prevalência ao direito interno.
A própria Corte IDH demonstra ser também função do direito internacio-
nal dos direitos humanos a de aperfeiçoar o direito interno. Em sentido contrá-
rio, não se prestigia a possibilidade de produzir, o direito internacional dos di-
reitos humanos, um retrocesso na proteção aos direitos produzida pelos estados
nacionais em seu direito nacional:
“[l]a Convención Americana, además de otros tratados de derechos
humanos, buscan, a contrario sensu, tener en el derecho interno de los
Estados Parte el efecto de perfeccionarlo, para maximizar la protección
de los derechos consagrados, acarreando, en este propósito, siempre que
necesario, la revisión o revocación de leyes nacionales [...] que no se
conformen con sus estándares de protección.”456
O labor de promover a progressividade dos direitos humanos, previsto no
artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos, nesse sentido, deve

Fix Zamudio : volume I. Sao José, CIDH, 1998, p. 183;”Esto mismo, unido a la naturaleza universal e
indivisible de los derechos humanos, caracterizados precisamente por su atribución a todo ser humano por
el sólo hecho de serlo, sin distinción de sexo, edad, color, riqueza, origen nacional o social, nacionalidad
o ninguna otra condición social, impone definitivamente la superación de toda pretensión dualista
para explicar la relación entre el Derecho interno y el Derecho Internacional. Porque, efectivamente,
la coexistencia de dos órdenes jurídicos distintos sobre un mismo objeto resulta lógicamente imposible;
con lo cual va perdiendo a su vez, todo sentido, no sólo la clásica alternativa ‘monismo’ y ‘dualismo’ en
la consideración de las relaciones entre el Derecho interno y el Internacional, sino incluso la discusión
sobre la prevalencia de uno u otro, en caso de conflicto, por lo menos en lo que se refiere a los derechos
humanos; con la consecuencia absolutamente obligada de que, o en esta matéria prevalece el Derecho
Internacional, o bien, como debe, a mi juicio, decirse mejor, em realidad no prevalece ni uno ni otro, sino,
en cada caso, aquél que mejor proteja y garantice al ser humano, en aplicación, además, del ‘principio pro
homine’ propio del Derecho de los Derechos Humanos”
456 Corte IDH: Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de febrero de 2001. Serie C No. 73. Voto concurrente del juez
A. A. Cançado Trindade, par. 14.

317
30 anos da Constituição

ser promovido mediante a cooperação entre as instituições domésticas e in-


ternacionais de modo a concretizar de forma ótima as previsões advindas não
somente dos documentos nacionais e internacionais, mas, também, da jurispru-
dência, no caso interamericano, da Corte IDH.

4. Conclusões
A Constituição brasileira de 1988 foi um marco para o desenvolvimento
da dogmática dos direitos fundamentais, criando as bases para um regime ju-
rídico diferenciado para sua aplicação e interpretação. O reconhecimento do
princípio da dignidade humana tornou-se um marco balizador para interpreta-
ção das questões relacionadas aos direitos em âmbito interno. Neste sentido, o
Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a força normativa deste princípio.
De acordo com a previsão do artigo 5º., §2º, o catálogo de direitos funda-
mentais da Constituição é considerado materialmente aberto, possibilitando desta
forma a incorporação de novos direitos oriundos do regime e dos princípios por ela
adotados, e dos Tratados Internacionais que a República federativa do Brasil faça parte.
É necessário continuar evoluindo no sentido de promover o entendimento da
progressividade dos direitos humanos e extensão da aplicação do princípio da digni-
dade humana. A Constituição, como sistema aberto, precisa dar o passo de dialogar
mais profundamente com as Cortes Internacionais, em especial, a Interamericana.
Diversamente da quase totalidade das cortes e tribunais constitucionais dos estados
partes do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Fede-
ral ainda não fixou o poder de obrigação advindo das decisões proferidas pela Corte
IDH, é dizer, não decidiu qual o poder jurídico de tais decisões. Não há uma única
manifestação do Supremo Tribunal Federal afirmando se os precedentes advindos
dos casos em que o Brasil não é parte, ou mesmo, naqueles em que é parte, ou das
opiniões consultivas da Corte IDH, são ou não vinculantes.
Esses 30 anos da vigência da Constituição foram necessários para a sedi-
mentação da dogmática dos direitos fundamentais, dando a importância cen-
tral que a eles se impõe em âmbito interno. Mesmo que lentamente, tem sido
dado a eles a interpretação com sua máxima efetividade. No entanto, no que diz
respeito a integração brasileira a sistemas internacionais de proteção de direitos
humanos, ainda temos um caminho a percorrer.

318
30 anos da Constituição

Bibliografia

Jurisprudência

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322
Ensino Religioso Confessional nas
Escolas Públicas: a Leitura da Laicidade
Estatal pelo STF na ADI 4439 e o
Desafio dos Sistemas de Ensino

Confessional religious teaching in public schools: the reading


of state secularism by the Supreme Federal Court in ADI 4439
and the challenge of Teaching Systems
Marisa Vilarino457
Mônica de Melo458

Resumo: A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionali-


dade do ensino religioso confessional em escolas públicas e por representantes das
confissões religiosas, com apenas um voto de diferença e argumentos semelhantes
favoráveis e contrários, cria desafios na implementação e compatibilização com a
liberdade religiosa, o Estado laico e os sistemas de ensino a exigir profunda reflexão.
Palavras-chave: Ensino Religioso. Ensino Confessional. Educação. Reli-
gião. Estado laico. Sistemas de Ensino.
Abstract: The decision of the Federal Supreme Court on the constitutionality
of confessional religious teaching in public schools and by representatives of religious
confessions, with only one vote of difference and similar favorable and contrary ar-
guments, creates challenges in the implementation and compatibility with religious
freedom, the secular state and education systems to require deep reflection.
Keywords: Religious Teaching. Confessional Teaching. Education. Reli-
gion. Laic State. Teaching Systems.

457 Procuradora da Universidade de São Paulo, Mestre e Doutoranda da PUC-SP.


458 Defensora Pública do Estado de São Paulo, Mestre e professora de Direito Constitucional da PUC-SP, onde
cursa o doutorado. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade.

323
30 anos da Constituição

Sumário:
1. Introdução. 2. Estado laico e a previsão do ensino religioso na Cons-
tituição Federal de 1988: compatibilidade. Desafios dos sistemas de ensino na
concretização da decisão. 2.1. A Lei de Diretrizes de Bases da Educação: regu-
lamentação infraconstitucional. 3. Ensino religioso nos Tratados Internacionais
e a convencionalidade da decisão do STF. 4. A ADI 4439 e o ensino religioso
confessional e por autoridades religiosas nas escolas públicas pelo Supremo Tri-
bunal Federal. 5. Considerações Finais.

1. Introdução
O oferecimento do ensino religioso confessional, ministrado por professo-
res representantes das confissões religiosas, nas escolas públicas tem sido objeto
de muitas controvérsias em nosso país, considerando, entre outras, a necessida-
de de compatibilização entre dois princípios fundamentais da República Fede-
rativa do Brasil: Estado Laico e Liberdade. O objetivo do nosso artigo é, a partir
da análise do sistema jurídico brasileiro, convenções e tratados internacionais,
dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, doutrina e da decisão do Su-
premo Tribunal Federal, proferida na Ação Direita de Inconstitucionalidade
-ADI nº 4.439 – Distrito Federal, que tratou da questão, oferecer aportes para
que o direito fundamental à educação, não obstante garantido não seja violado.
Como afirmou Bobbio (1992), o problema grave de nosso tempo, com relação
aos direitos do homem não é mais o de fundamentá-lo, e sim o de protegê-los,
procurando um “modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar
das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”.
Como é sabido, a Procuradoria Geral da República ajuizou Ação Direita
de Inconstitucionalidade – ADI nº 4439, requerendo ao Supremo Tribunal Fe-
deral que: “i) realize interpretação conforme a Constituição do art. 33, caput,
e §§1º e 2º, da Lei nº 9.394/96, para assentar que o ensino religioso em esco-
las públicas só pode ser de natureza não-confessional, com a proibição de ad-
missão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas;
(ii) profira decisão de interpretação conforme a Constituição do art. 11,§1º, do
“Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Esta-
tuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, aprovado pelo Congresso Nacional

324
30 anos da Constituição

através do Decreto Legislativo nº 698/2009 e promulgado pelo Presidente da


República através do Decreto nº 7.107/2010, para assentar que o ensino religioso
em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional; (iii) caso se tenha
por incabível o pedido formulado no item imediatamente acima, seja declarada
a inconstitucionalidade do trecho “católico e de outras confissões religiosas”,
constante no art. 11, §1º, do Acordo Brasil – Santa Sé acima referido.”
A Procuradoria-Geral da República defendeu a tese de que a única forma
de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso
nas escolas públicas consistiria na adoção de modelo não confessional, em que
a disciplina tivesse como conteúdo programático a exposição das doutrinas,
práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões, incluindo posições
não religiosas, “sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”, e
deveria ser ministrada por professores regulares da rede pública de ensino, e não
por “pessoas vinculadas às igrejas ou confissões religiosas”.
A ação foi distribuída em agosto de 2010 e, após intenso debate, em aper-
tados 6 votos a 5, o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 27/09/2017, jul-
gou improcedente a ação. Observe-se que tantos os argumentos favoráveis à
procedência da ação como os argumentos vencedores contrários, sob diversos
fundamentos, reafirmaram categoricamente que o Brasil é um Estado Laico e o
princípio da laicidade do Estado deve ser sempre preservado, assegurando-se a
neutralidade estatal em relação às diferentes concepções religiosas, assim como
o respeito à liberdade e igualdade de religião.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal teve margem de apenas
um voto pelo indeferimento. O julgamento empatou em 5 a 5 e a Ministra Presiden-
te do Supremo Tribunal Federal proferiu o voto de desempate. Percebe-se, então, a
nítida divergência entre os Ministros do STF, 5 dentre os 11 concordavam com a
interpretação conforme a constituição a fim de que o ensino religioso nas escolas
públicas não fosse confessional e não ministrado pelas confissões religiosas.
Com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, aparentemente,
resolveria a pendência, restou a questão da concretização da norma nos diversos
sistemas de ensino, Federal, Estaduais e Municipais, os quais, como se sabe,
detém a competência para regulamentar os procedimentos para a definição
dos conteúdos do ensino religioso. Desafio que merecerá, ainda, amplo debate
social, considerando que o tema é complexo e polêmico. Muitos pontos ain-
da precisam ser alinhados, para que os projetos pedagógicos sejam elaborados,

325
30 anos da Constituição

garantindo-se ensino público de qualidade, sem que haja violação aos princípios
fundamentais e quebra do sistema legal brasileiro, o qual, não se poder ouvidar,
está inserido no sistema global e regional de proteção de direitos humanos,
evitando-se confusão entre Estado e Religião, como ocorre nos Estados teocrá-
ticos, como é o caso, por exemplo, dos Estados Islâmicos.

2. Estado laico e a previsão do ensino religioso na


Constituição Federal de 1988: compatibilidade. Desafios
dos sistemas de ensino na concretização da decisão
Obedecer às convenções internacionais e cumprir as normas constitucio-
nais e infraconstitucionais para implementar o ensino religioso nas escolas, nos
termos do entendimento do Supremo Tribunal Federal, é o grande desafio dos
sistemas de ensino na execução da norma de decisão.
A garantia da manutenção da separação entre Estado e Religião foi men-
cionada em todos os votos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, na ação
em comento, inclusive nos votos vencedores, como sendo fundamental e um
dos mais importantes temas estruturais do Estado democrático de direito, de-
vendo ser observada a inviolabilidade de crença e culto religioso, protegendo o
indivíduo e as diversas confissões religiosas de intervenções estatais e, do outro
lado, a ampla liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios
religiosos. E, nesse aspecto, não podia ser diferente.
Então, o primeiro ponto a observar é que o ensino religioso confessional,
com representante da respectiva confissão religiosa, na forma entendida pelo
Supremo Tribunal Federal, não poderá ser oferecido por servidor público, em
cumprimento às regras Constitucionais de concurso público, que regem a admi-
nistração pública e, posteriormente as regras a que deve se submeter o servidor
no exercício da sua função. Como agente público restaria caraterizado a intro-
missão do Estado nos negócios da fé.
Por outro lado, tratando-se a educação de um direito fundamental, a sua ga-
rantia sem qualquer prejuízo, constrangimentos ou embaraços aos alunos deve ser
assegurada pelos respectivos sistemas de ensino, em igualdade de condições e com
a mais ampla liberdade, consoante artigos 205 e seguintes da Constituição Federal.

326
30 anos da Constituição

Nesse caso, não bastará uma ação negativa do Estado, exige-se uma ação positiva,
um fazer, para assegurar que esse direito não seja, de qualquer modo, violado.
O discutido artigo 210, §1º, da Constituição Federal, estabelece que:
“ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Tratando-se de norma
excepcional, dentro da unidade constitucional a regulamentação, de compe-
tência dos sistemas de ensino, deve se restringir aos termos constitucionais,
observadas as normas de caráter geral estabelecidas pela União.
De todo modo, o inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal ao esta-
belecer a liberdade de consciência e de crença e o fato de ninguém poder ser
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política (inciso VIII do artigo 5º) coloca entraves suficientes à adoção de quais-
quer confissões religiosas por parte do Estado.
Alarcon (1996) ressalta que vivemos em sociedades muito diversificadas
do ponto de vista religioso e ideológico e que o Estado se desconfessionalizou
para atuar de forma laica, de modo que as crenças e práticas religiosas tendam
a se desvincular do institucional e que, portanto, a consequência primária da
secularização é o pluralismo, que abarca todos os campos (religioso, ideológico,
político, ético, científico, cultural etc.) e que constitui, mais que um princípio,
a nova realidade do mundo moderno459.
Continuando, o autor destaca que viver em pluralismo religioso e ideoló-
gico constitui uma experiência que requer uma constante prática da tolerância,
uma vigilância permanente para impedir que exclusivismos religiosos ou ideoló-
gicos desemboquem em posições monistas ou fundamentalistas que seriam in-
constitucionais. Decorre daí a existência de mecanismos jurídicos de obstrução
de monismos, inclusive a proibição de confessionalização do Estado.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5o, inciso VI, estabelece que
é inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegura o livre exercício
dos cultos religiosos, protegendo os locais de culto bem como as suas liturgias.
No inciso VIII, do mesmo artigo 5º, diz que ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.
Ao tratar da organização do Estado do ponto de vista político e admi-
nistrativo veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a

459 Tradução nossa.

327
30 anos da Constituição

possibilidade de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, de subvencioná-los,


embargar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes,
relações de dependência ou aliança. Ressalva que, na forma da lei, poderá haver
colaboração de interesse público (art. 19, I, CF).
Portanto, a relação Estado-Religião, na Constituição se assenta de um
lado no reconhecimento de um direito fundamental à liberdade de crença e
consciência, liberdade de convicção filosófica ou política, ou seja:
“Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a li-
berdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de
mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir
a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de
ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade
de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença,
pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a
liberdade dos outros” (Silva, 2010)

Assim, além de respeitar essas liberdades ensejadoras de direitos fundamen-


tais, a Constituição quis que o próprio Estado se abstivesse de patrocinar qual-
quer religião, ou seja, que fosse um Estado Laico. E assim deve permanecer para
garantia dos demais princípios constitucionais e da unidade e coesão do sistema.
A liberdade religiosa, ainda, compreende três liberdades: a liberdade de
crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. Bastos (1999)
estabelece a mesma distinção e diz que a liberdade de consciência não se con-
funde com a de crença, uma vez que uma consciência livre pode determinar-se
no sentido de não ter crença alguma, ou seja, protege-se os ateus e agnósticos
e por outro lado a liberdade de consciência pode apontar para uma adesão a
certos valores morais e espirituais que não passam por sistema religioso algum.
A respeito da relação Estado-Igreja, Silva (2014) observa a existência de
três sistemas: a confusão, a união e a separação, cada qual com gradações e
cooperação460. Afirma o autor que “na “confusão”, o Estado se confunde com

460 Miranda (1993) também estabelece um quadro esquemático das relações entre Estado e confissões
religiosas, tal como as revelam a história e o Direito Comparado. Vislumbra o autor a possibilidade
de identificação entre Estado e religião, é o Estado confessional no qual pode haver domínio do
poder religioso sobre o poder político (teocracia) ou domínio do poder político sobre o poder religioso
(cesaropapismo); não identificação (Estado laico) e nessa hipótese com união entre o Estado e uma
confissão religiosa (religião de Estado) e com separação, sendo que a separação pode ser relativa

328
30 anos da Constituição

determinada religião; é o Estado teocrático, como o Vaticano e os Estados islâ-


micos. Na hipótese da “união” verificam-se relações jurídicas entre o Estado e
determinada Igreja no concernente à sua organização e funcionamento, como,
por exemplo, a participação daquele na designação dos ministros religiosos e
sua remuneração. Foi o sistema do Brasil Império.”
Vale lembrar que na Constituição Política do Império a Religião Católica
Apostólica Romana era a Religião Oficial do Império (art.5º), e, ainda con-
forme Silva (2014) “com todas as consequências derivantes dessa qualidade de
Estado confessional,” tais como o de que o único culto permitido livremente era
o católico, as demais religiões eram apenas toleradas. O Imperador antes de ser
aclamado teria que jurar manter a religião católica e a competência para no-
mear os Bispos e prover os benefícios eclesiásticos era do Poder Executivo. Ou
seja, era um Estado Confessional. Somente com a proclamação da República e
a Constituição de 1891 é que o Brasil se torna um Estado Laico, admitindo e
respeitando todas as vocações religiosas.
O sistema da “separação e colaboração” é o adotado pela Constituição de
1988. O campo da separação está melhor delineado já que o texto constitucional
menciona que as unidades federadas não podem estabelecer cultos religiosos, crian-
do religiões ou seitas, bem como subvencionar, ou seja, concorrer com dinheiro
ou com outros bens públicos ou ainda embaraçar o exercício dos cultos religiosos,
dificultando, limitando ou restringindo a sua prática. Nesse sentido é que se insere
a imunidade dos templos de qualquer culto. Também no tocante à separação não
se admitem as relações de dependência ou de aliança com qualquer culto, igreja ou
seus representantes, o que não impede, naturalmente, as relações diplomáticas com
Estados Confessionais, nas quais ocorre uma relação de Direito Internacional.
Quanto ao tema da “colaboração de interesse público” poderíamos dizer que
nessa parte o inciso I, do artigo 19, da Constituição traz uma norma de eficácia
limitada, a depender da edição de legislação infraconstitucional, para ter eficácia..
Nota Técnica da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados orienta a
todos os parlamentares que “nos termos da Constituição Federal (art. 19, I), o Brasil
adota o histórico princípio republicano da laicidade – princípio da separação entre
Estado e Igreja, entre instituições governamentais e religiosas. Portanto, proposições

(com tratamento especial, privilegiado de uma religião) ou separação absoluta (com igualdade das
confissões religiosas) e por fim oposição do Estado à religião, oposição relativa (Estado laicista) ou
oposição absoluta (Estado ateu (ou de confessionalidade negativa).

329
30 anos da Constituição

ou outros trabalhos parlamentares de caráter religioso ferem esse princípio constitu-


cional”. Continua o consultor ALMEIDA JR. (2003) “O princípio do Estado Laico
é, portanto, típico das nações que vivem sob a égide do Estado Democrático de
Direito. Só não é observado hoje nas teocracias, como as que existem em algumas
nações, sobretudo do mundo islâmico, e em nações e sociedades tribais. E é sobeja-
mente sabido o preço que se paga nos regimes teocráticos pela mistura das razões de
Estado com as de crença e culto religioso”.
A Constituição Federal de 1988 ao optar por um Estado Laico escolheu o
regime da tolerância e do respeito à diversidade. Conforme pontua Miranda (1999):
“sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões – compatível,
com diversos tipos de relações das confissões religiosas com o Estado
– não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política. Assim
como, em contrapartida, aí onde falta a liberdade política, a normal ex-
pansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada”.

O tratamento da liberdade de crença e consciência como um direito cons-


titucional fundamental proporciona também uma proteção para as minorias,
além de configurar respeito ao princípio democrático e plural no ordenamento
constitucional brasileiro.
Como assinala Canotilho (1997) o Estado Constitucional Democrático de
Direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de
Direito. No caso da Constituição Federal do Brasil, seu preâmbulo e claro ao
prescrever a instituição de:
“um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-
mento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífi-
ca das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
Constituição da República Federativa do Brasil”

Ao comentar o preâmbulo da Constituição, acima referido, Silva (2010)


deixa assentado o que segue sobre um Estado Democrático de Direito:
“Vê-se que a Assembleia Nacional Constituinte se propôs a instituir
(criar) não “o” Estado Democrático, mas “um” Estado Democrático.

330
30 anos da Constituição

Quer-se, com isso, dizer que não se cogitava de adotar o Estado Demo-
crático clássico, como mero Estado de Direito como Estado contraposto
ao Estado gendarme e ao Estado despótico. O artigo indefinido “um”
tem, no contexto, função diretiva importante, conotativa da ideia de
que o objetivo era instituir um tipo diferente de Estado Democrático,
com nova destinação – qual seja, a de assegurar os valores supremos
(infra) de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”

E continua, “Os valores supremos, expressamente enunciados, são: os di-


reitos sociais, os direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça”.
É neste contexto que devemos analisar o direito fundamental a educação
e o modo como o ensino religioso está estabelecido na Constituição Federal.

2.1. A Lei de Diretrizes de Bases da Educação:


regulamentação infraconstitucional.
A constituição federal estabelece no art. 210 que os conteúdos mínimos
para o ensino fundamental serão fixados, de maneira a assegurar formação bá-
sica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
No parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, prescreve que “o ensino religioso,
de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental”.
Ao disciplinar o ensino religioso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei 9394/96, o artigo 33 recebeu redação original, que previa:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo
oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferên-
cias manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:
I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu
responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos prepa-
rados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou
II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades re-
ligiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.

331
30 anos da Constituição

A redação do artigo 33 foi alterada pela lei 9.475/1997 para estabelecer que:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversida-
de cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a
definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas
para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas
diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do
ensino religioso.

O Supremo Tribunal Federal, como mencionamos, julgou improcedente


a ADI 4439 em 27 de setembro para declarar a constitucionalidade do ensino
religioso confessional nas escolas públicas e ministrado por representantes das
religiões. Estava em análise dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (caput e parágrafos 1º e 2º, do artigo 33, da Lei 9.394/1996 com
a redação dada pela lei 9475/97), bem como o Acordo firmado pelo Governo
Brasileiro com a Santa Sé (artigo 11, parágrafo 1º).
A Procuradoria-Geral da República (PGR) pretendia, no que concorda-
mos, que o ensino fosse voltado para a história e a doutrina de várias religiões e
por um professor concursado, e não um representante de uma religião específi-
ca, ensinadas sob uma perspectiva laica (neutra).
A educação deve ser livre, preservando-se o pluralismo de ideias, cabendo
ao Estado mantê-la independente e guardada contra o predomínio de qualquer
grupo social ou corrente parcial de ideias, como já afirmava Teixeira (2007):
“Com efeito, desde que a Igreja ou o Estado deixam de resumir ou con-
substanciar a sociedade, o que só é possível em períodos de homoge-
neidade espiritual e política, livre ou imposta, desvia-se, naturalmente,
o governo da educação dessas instituições para o conjugado de forças
sociais, que caracteriza as sociedades pluralistas e heterogêneas”.

E continua o autor:
“No momento atual do mundo, salvo as exceções conhecidas de estados
totalitários, eufemismo em que se encobre o caráter absolutista dos mes-

332
30 anos da Constituição

mos, a educação está claramente guardada contra o predomínio exclu-


sivo de qualquer grupo social ou de qualquer corrente parcial de ideias.
Uma das formas, pois, de se conservar a independência da educação está
em defende-la do absolutismo do Estado ou da intolerância de outras
instituições, em qualquer dos seus aspectos.
O Estado democrático é, por excelência, o Estado que toma a si próprio
a tarefa de manter essa liberdade, essencial ao desenvolvimento e pro-
gresso da sociedade e da educação”
Além dos ditames constitucionais e para garantia do direito fundamental
à educação, a decisão do Supremo Tribunal Federal, deve ser analisada em con-
sonância, também, com as Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil,
que preveem a liberdade religiosa dentre seus direitos. Esse direito está direta-
mente atrelado a laicidade, que deve ser respeitada pelos Estados, a fim de que
possam garantir o exercício dessa liberdade.

3. Ensino religioso nos Tratados Internacionais e a


convencionalidade da decisão do STF
Do ponto de vista da proteção internacional dos direitos humanos, o Bra-
sil, insere-se em duas comunidades internacionais: a Organização das Nações
Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Daí decorre
sua adesão a um sistema normativo internacional que vincula os países partes,
e que, consequentemente, gera obrigações multilaterais. Em ambos os sistemas
o Brasil ratificou uma série de tratados internacionais que se somam aos direitos
fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, além de outros decor-
rentes do regime, conforme previsão expressa.
Na medida em que o Brasil se insere nos referidos sistemas de proteção,
nos interessa analisar a compatibilização do ensino religioso confessional e por
representantes das denominações religiosas no ensino público no Brasil com
os referidos tratados internacionais. Ou seja, a decisão do STF em considerar
constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas e por repre-
sentantes das religiões pode estar a violar compromissos internacionais que o
Brasil tenha assumido ao ratificar os referidos tratados e não passar pelo que se
costumou denominar “controle de convencionalidade”.

333
30 anos da Constituição

O controle de convencionalidade surgiu na jurisprudência da Corte Intera-


mericana de Direitos Humanos (OEA) como uma ferramenta que permite aos Es-
tados concretizar a obrigação de garantia dos direitos humanos no âmbito interno
através da verificação da conformidade das normas e práticas nacionais com a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos e sua jurisprudência. Aparece
pela primeira vez com essa denominação na jurisprudência contenciosa da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano vs. Chile.461
Costuma-se se dizer que o Supremo Tribunal Federal (STF) em seu papel
de guardião da Constituição Federal diz a última palavra sobre a interpretação
constitucional. Porém, a adesão do Brasil a esses sistemas internacionais de
proteção de direitos humanos não torna as decisões proferidas pelo STF imunes
ao controle de convencionalidade. Ou seja, é possível a apreciação da questão
pelos organismos internacionais de proteção, nos sistemas global e regional, se
houver violação dos tratados internacionais que o Brasil ratificou.
Desse modo, a controvérsia posta a termo no âmbito do controle abstrato
de constitucionalidade pela decisão do STF no tocante ao entendimento de que
seria constitucional o ensino religioso confessional por autoridades das religiões nas
escolas públicas pode, ainda, vir a ser discutida no âmbito da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, caso haja a provocação no sistema e se defenda a violação da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos pela decisão do Supremo.
De forma que é possível acessar o sistema internacional alegando-se vio-
lação dos tratados internacionais no que diz respeito à interpretação que tornou
constitucional o ensino religioso confessional e ministrado por autoridades re-
ligiosas nas escolas públicas.
Aliás, realizar o controle de convencionalidade também é tarefa do Supre-
mo Tribunal Federal.
Mas o que preveem os tratados internacionais que o Brasil ratificou nessa
matéria? Lembrando aqui que alguns ministros, em seus votos, fizeram referên-
cia ao sistema internacional, mas chegando a conclusões antagônicas.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 ratificado
pelo Brasil (Decreto n. 592 de 06/07/1992) dispõe que:

461 A criação e toda a evolução do controle de convencionalidade ao longo da jurisprudência da Corte


Interamericana de Direitos Humanos pode ser consultado no Caderno de Jurisprudência n. 7 que é
inteiramente dedicado ao tema.

334
30 anos da Constituição

ARTIGO 18
1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e
de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma reli-
gião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião
ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privada-
mente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir
sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita
apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para
proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos
e as liberdades das demais pessoas.
4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a
liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais - de assegurar
a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas
próprias convicções.

A ótica sobre a qual o tema é tratado é de se assegurar a liberdade reli-


giosa. O entendimento prevalente é que somente um Estado laico pode efeti-
vamente assegurar a liberdade religiosa, já que um Estado confessional estaria
comprometido com o respeito e defesa de uma religião específica em detrimento
das demais ou mesmo da posição de não se ter nenhuma. Portanto laicidade e
liberdade religiosa teriam que, inexoravelmente, caminhar juntas.
O Pacto reconhece como parte da liberdade religiosa o ensino da religião
(18.1), já que o exercício dessa liberdade envolve as práticas, os ritos, as celebra-
ções. A manutenção das religiões para a comunidade de seus adeptos envolve,
obviamente, o ensino de seus preceitos para as presentes e futuras gerações,
além da conquista de novos adeptos.
Porém, respeitar esse direito de ensino da religião não significa dizer que
esse ensino teria que ser nas escolas públicas, no horário normal de aulas, de
forma confessional e por representantes dos respectivos credos. O Pacto não
estabelece um direito neste sentido.
O Pacto estabelece, ainda, que o Estado estaria obrigado a respeitar a li-
berdade dos pais e tutores de assegurar que a educação religiosa e moral dos
filhos esteja de acordo com suas próprias convicções (18.4).

335
30 anos da Constituição

Mais uma vez não se estabelece no Pacto que a escola pública seria o es-
paço apropriado para a garantia dessa educação religiosa e moral dos filhos de
acordo com as convicções dos pais.
No debate do tema é importante ressaltar que o Pacto também assegura que
ninguém pode ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liber-
dade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha (18.2). Nesse ponto
convém destacar que a Constituição Federal de 1988 estabelece a matrícula faculta-
tiva para o ensino religioso. Porém há estados da federação que ao regulamentarem
a matéria em seus respectivos sistemas de ensino criaram um mecanismo de matrí-
cula automática, cabendo aos pais cancelar posteriormente essa matrícula, ou mes-
mo que tal opção pelo não ensino religioso constará do currículo, ou estabelecem
avaliação, atribuição de notas, criando uma série de constrangimentos e embaraços
para os alunos que não desejam ter o ensino religioso confessional, resvalando, a
nosso ver, no artigo 18.2 do Pacto. (Ação Educativa, et al., 2012).
Segundo interpretação do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Co-
mitê) do artigo 18.4 do Pacto, expressa no Comentário Geral 22/93, seria com-
patível na escola pública a instrução em temas e assuntos tais como história
geral das religiões e ética, se ministrada de uma forma objetiva e neutra. Segue
ainda afirmando que a educação pública que inclua instrução de uma religião
ou credo, em particular, seria inconsistente com o artigo 18.4 a menos que haja
possibilidade não-discriminatória de dispensa ou alternativas para acomodar os
desejos dos pais ou responsáveis.
O Comitê entendeu, à luz do Pacto, que o artigo 18.4 permitiria o ensino
em escola pública de temas como a história geral das religiões e ética lecionadas
de um modo neutro e objetivo. Essa seria a interpretação adequada, segundo o
próprio Comitê. Em outras palavras, o melhor entendimento do artigo 18.4 é
que o ensino público não seja confessional. Este seria o ideal. Este seria o norte
dado pelo Comitê de Direitos Humanos, pois um ensino confessional não é
compatível com um modo neutro e objetivo ou mesmo com ensinar ética ou
história das religiões. Um ensino confessional ensinará uma religião específica,
seus ritos, seus dogmas, seus preceitos e sua ética particular.
Destarte, a garantia de ensino confessional, por representantes das confis-
sões religiosas, nas escolas públicas no Brasil, não parece estar em sintonia com
o que se garante no Pacto de Direitos Civis e Políticos, imiscuindo o Estado no
ensino de determinadas religiões, fragilizando a laicidade, enquanto princípio

336
30 anos da Constituição

constitucional, e criando constrangimentos ao exercício da liberdade religiosa,


diante das inúmeras dificuldades, senão verdadeiras impossibilidades operacio-
nais, de se garantir aos alunos o ensino de todas as confissões religiosas presen-
tes, contemplando, ainda, quem não professa nenhuma religião.
Vários ministros do STF que votaram adotando o entendimento de ser com-
patível com a Constituição o ensino religioso confessional nas escolas públicas o
fizeram citando Tratados Internacionais e os entendimentos dos órgãos a respeito
dos mesmos. O Ministro Ricardo Lewandowski ao analisar em seu voto o Comen-
tário Geral 22 do Comitê de Direitos Humanos da ONU ressaltou que:
“Também para o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, o ensino
de determinada religião ou crença é compatível com o direito internacio-
nal dos direitos humanos, desde que existam alternativas que acomodem
os desejos e inclinações dos pais ou guardiães dos alunos e a possibilidade
de dispensa de forma não discriminatória. Por outro lado, o mesmo Comitê
já assentou que o ensino sobre as religiões, desde que ministrado de forma
objetiva e neutra, pode perfeitamente constar da grade curricular”.

Veja que o Ministro ressalta do documento do Comitê apenas a parte que


mais se adequaria à sua defesa do ensino confessional nas escolas públicas. A
parte em que o Comitê faz referência de não ser compatível com o artigo 18.4 a
educação pública que inclua instrução de uma religião ou credo, em particular,
ou a que afirma ser consistente com o artigo 18.4 na escola pública a instrução
em temas e assuntos tais como história geral das religiões e ética, se ministrada
de uma forma objetiva e neutra, é mencionada para extrair a conclusão de que
o ensino de determinada crença ou religião é compatível com os direitos huma-
nos462. Ou seja, a interpretação do Comitê além de não ter sido citada em sua
íntegra foi distorcida para fundamentar o contrário do que afirmou.

462 No mesmo sentido o Min. Edson Fachin ao afirmar que o seu voto está alinhado à jurisprudência
dos órgãos internacionais ao citar expressamente o Comentário Geral 22/93 do Comitê de Direitos
Humanos da ONU. Que em tradução livre diz, segundo o Ministro, que a liberdade dos pais e guardiães
legais de assegurar que suas crianças recebam uma educação moral e religiosa em conformidade com
suas convicções estabelecida no artigo 18.4 está relacionada com as garantias da liberdade de ensinar
uma religião ou crença especificadas no artigo 18.1. Ou seja, em sua tradução livre esqueceu-se o
Ministro de traduzir a frase que diz que a educação pública que inclua instrução de uma religião
ou credo, em particular, seria inconsistente com o artigo 18.4 a menos que haja possibilidade não-
discriminatória de dispensa ou alternativas para acomodar os desejos dos pais ou responsáveis.

337
30 anos da Constituição

O Ministro Relator Roberto Barroso que votou em sentido contrário (voto


vencido), não admitindo a confessionalidade do ensino religioso nas escolas pú-
blicas, citou em seu voto jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos.
Em relação ao sistema interamericano (OEA) a Convenção Americana de Direi-
tos Humanos de 1969 ratificada pelo Brasil (Decreto n. 678 de 06/11/1992) dispõe que:
Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse
direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou
de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e
divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto
em público como em privado.
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar
sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de
religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está
sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessá-
rias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou
os direitos ou liberdades das demais pessoas.
4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos
ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com
suas próprias convicções.

Nota-se que a Convenção Americana tem redação similar ao Pacto de


Direitos Civis e Políticos.
Aqui embora o artigo 12.4 também faça referência ao direito dos pais e
responsáveis de que os filhos tenham educação religiosa e moral que esteja de
acordo com suas próprias convicções, também não se garante que tal ocorra
nas escolas públicas, no horário regular de aulas, com professores das represen-
tações religiosas e a expensas do Poder Público.
No sistema interamericano há um único caso relacionado à liberdade reli-
giosa e se refere à proibição da exibição do filme “A Última Tentação de Cristo”
no Chile. Embora a Comissão de Direitos Humanos ao levar o caso à Corte
Interamericano tenha alegado violação ao artigo 12, a Corte em sua decisão
acabou por entender que não teria havido violação à liberdade religiosa, mas
tão somente à liberdade de pensamento e expressão (artigo 13). Não há, ainda,

338
30 anos da Constituição

no âmbito do sistema interamericano manifestação a respeito do ensino religio-


so confessional nas escolas públicas.
Nota-se que a questão ainda pende de análise pelo sistema interamericano
e em relação ao sistema da ONU não nos parece que a decisão do STF atendeu
a melhor interpretação dos tratados internacionais incluindo sua interpretação
pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU. Ou seja, a questão da não conven-
cionalidade da interpretação proferida pelo STF poderá ser suscitada.

4. A ADI 4439 e o ensino religioso confessional


e por autoridades religiosas nas escolas públicas
pelo Supremo Tribunal Federal
A pesquisa Religião e Política (Vital e Lopes, 2012) analisa de forma muito
interessante a existência de ambiguidade entre laico e confessional no Brasil,
ao afirmar que do ponto de vista estritamente legal, o Brasil é um Estado lai-
co desde a primeira Constituição republicana (1891), como é exaustivamente
lembrado em diferentes trabalhos que abordam a problemática da religião no
espaço público no país. Contudo, no cotidiano, nos deparamos com fatos que
colidem com esse princípio. Como, por exemplo, o financiamento de atividades
religiosas com recursos públicos (shows, caminhadas etc.,), presença nos Pode-
res Legislativo, Executivo e Judiciário de símbolos religiosos e de cultos, contra-
tação de professores de ensino religioso confessional dentre outros.
É o que identificamos na decisão do Supremo Tribunal Federal ao admitir
a constitucionalidade, por diferença de um voto, do ensino religioso confessio-
nal nas escolas públicas brasileiras.
A decisão proferida, a nosso ver, optou por uma “laicidade mitigada”, não
tendo adotado o melhor caminho no sentido da garantia de um Estado Laico
e do exercício da liberdade religiosa. Tanto é assim que a votação se deu por 6
a 5, com voto de desempate da Presidência do Supremo Tribunal Federal. Tal
votação apertada, com diferença de um voto apenas, demonstra o quanto é
controversa a questão posta em julgamento.
Se essa foi a última palavra, podemos dizer que foi pronunciada de forma débil,
insegura, titubeante. Ou seja, não sanou o dissenso e a conflituosidade permanece
latente. Não apaziguou os intérpretes da Constituição e o debate deve permanecer.

339
30 anos da Constituição

Votaram a favor do ensino confessional por representantes das confissões


religiosas nas escolas públicas os Ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli,
Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e a Presidente do Tribu-
nal. Votaram contra: os Ministros Roberto Barroso (Relator), Luiz Fux, Celso
de Mello, Marco Aurélio de Melo e Rosa Weber.463
Todos os Ministros partem da afirmação de que o Brasil é um Estado Lai-
co (art. 19, I, da CF/88). A laicidade estatal não se encontra questionada nem
pelos Ministros que votaram a favor ou contra o ensino confessional nas escolas
públicas. Também não se discute que o artigo 210, parágrafo 1º da CF/88 admite
o ensino religioso nas escolas públicas, de matrícula facultativa.
A “facultatividade” é utilizada pelos Ministros que votaram a favor da
confessionalidade do ensino público como argumento que garantiria a laicidade
do Estado e a liberdade religiosa. Também no entendimento destes Ministros
a laicidade estatal tem significado de “neutralidade” e de não de “oposição” ou
“beligerância” às religiões.
Tanto é assim, afirma o Min. Ricardo Lewandowski que se admite a men-
ção explícita a Deus no preâmbulo de nossa Constituição, os feriados religiosos,
o descanso dominical e muitas outras manifestações religiosas institucionaliza-
das pelo Poder Público, como por exemplo, a aposição do crucifixo no plenário
da mais alta Corte do País. No mesmo sentido o Min. Fachin quando afirma
que a separação entre Igreja e Estado não pode, portanto, implicar isolamento
daqueles que guardam uma religião à sua esfera privada. O princípio da laicida-
de não se confunde com laicismo.
O Ministro Alexandre de Moraes defende o ensino religioso confessional
como um direito público subjetivo constitucional. E que não se pode confun-
dir a proibição de um Estado Confessional com a determinação constitucional
para que o nosso Estado Laico garanta, em igualdade de condições, o ensino
religioso no ensino fundamental das escolas públicas somente para aqueles que
queiram. E que a laicidade não pode ser vista de uma forma absoluta, já que o
Estado laico não é o Estado anticlerical.
O Ministro Toffoli também afirma que laicidade não se confunde com
laicismo e que o Estado brasileiro não é inimigo da fé, tampouco rejeita o sen-
timento religioso que permeia a sociedade brasileira. Que a separação Estado

463 Inteiro teor do acórdão, publicado em 21/06/2018, consta na página do STF.

340
30 anos da Constituição

Brasileiro e a Igreja não é uma separação absoluta e que a neutralidade diante


das religiões que a laicidade estatal impõe encontra ressalvas em razão de pre-
ceitos constantes da própria Constituição Federal.
O Ministro Relator Roberto Barroso votou no sentido do ensino religioso
ministrado em escolas públicas ser de matrícula efetivamente facultativa e ter
caráter não confessional, vedada a admissão de professores na qualidade de repre-
sentantes das religiões para ministrá-lo. Usa como fundamentos o princípio cons-
titucional da laicidade que apresentaria três conteúdos: separação formal entre
Estado e Igrejas, neutralidade estatal em matéria religiosa e garantia de liberdade
religiosa. E somente o ensino não confessional seria compatível com a laicidade.
O Ministro Celso de Mello que votou contra o ensino confessional tam-
bém argumentou a partir da laicidade como condição essencial à prática da
liberdade religiosa, a neutralidade axiológica do Estado em matéria confessional
e que o Estado laico não tem e nem pode ter preferências de ordem confessional
e não pode interferir na esfera das escolhas religiosas.
O Ministro Marco Aurélio afirmou em seu voto que o ensino religioso
confessional em escolas públicas abre campo para o estabelecimento de relações
indevidas, sob o ângulo da laicidade, entre Estado e religião. E que a discipli-
na pode abranger a transmissão de conhecimentos gerais sobre ideias, regras
e práticas das diversas correntes religiosas, conteúdos ausentes nos currículos
de História e Filosofia. Implementar o ensino religioso nesses termos significa
valorizar a dimensão religiosa sem vincular o Estado crenças específicas.
Sob a égide da laicidade e de sua defesa os Ministros chegaram a conclusões
diversas e antagônica, nos permitindo afirmar que há diversas concepções e inter-
pretações a respeito da laicidade estatal. Michelangelo Bovero (2015) ressalta que
ele e Bobbio estariam de acordo ao afirmar que não existe uma única concepção
laica, assim como não existe uma única religião. No texto “O que é laicidade,
uma pergunta sobre Bobbio e para Bobbio”, Bovero (2015) faz uma extensa e
profunda análise dos termos “laicidade” e “laicismo” relatando que Bobbio teria
se recusado a assinar um Manifesto Laico em 1998 dizendo que seria laicista ao
fazer defesa intransigente dos supostos valores laicos contrapostos aos religiosos.
Bovero (2015) assinala que muitas vezes o laicismo é utilizado como forma
de desqualificar o que, na verdade, se apresenta como laico. E que a expressão
“laicismo” teria sido cunhada depois da Segunda Guerra Mundial pelo Papa Pio

341
30 anos da Constituição

XII com o propósito de defender frente aos adversários do confessionalismo, o


suposto direito da igreja católica de intervir na vida pública.
Entretanto procura o autor estabelecer determinados pontos que seriam
da essência do “ser laico”:
a. Não existe uma única teoria laica no mundo, porém um genuíno pensamen-
to laico somente pode ser conjectural e hipotético, falível, fundado sob o
par galileano de razão e experiência, enquanto que, seguramente, não pode
ser chamado laico um pensamento fundado sob uma presumida revelação;
b. Não existe uma única ética laica, porém laica é somente aquela ética
que se funda sobre o princípio da autonomia individual e consequen-
temente reivindica o direito à liberdade de consciência, enquanto que,
seguramente, não pode ser chamada laica uma ética de obediência as
autoridades sacerdotais sagradas;
c. Não existe uma única política laica, mas laica somente pode ser uma orien-
tação política que reconhece o pluralismo como um valor irrenunciável,
enquanto que não pode, com certeza, ser chamada laica uma orientação
que quer impor a todos suas leis de comportamento, conforme suas pró-
prias e exclusivas convicções, sobre as quais pretenda proibir o dissenso.

No Brasil, se vê há muito tempo uma certa relativização da laicidade sob


os mais diversos argumentos, inclusive o de não ser laicista.
A decisão do STF, proferida na ADI nº 4439, ainda que com estreita mar-
gem de votação, parece admitir uma certa mitigação da laicidade em nome de
valores da maioria, pela facultatividade do ensino religioso, pela necessidade de
afastar o suposto laicismo enveredando por um caminho que tende a fortalecer
a presença da confessionalidade no espaço público.

5. Considerações Finais.
A interferência de grupos religiosos na educação pública, já debilitada, cau-
sa grande preocupação. Analisadas as normas internas e internacionais, não nos
parece acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal. De qualquer modo, cabe
agora aos Sistemas de Ensino, ao concretizar a norma, observar os valores supremos

342
30 anos da Constituição

da Constituição Federal, assim como os tratados internacionais que integram a or-


dem jurídica, considerando, ainda, que o Estado Democrático de Direito tem por
obrigação, de um lado, manter a educação pública de qualidade e independente,
defendendo-a da intolerância de qualquer instituição ou grupo, garantindo a plura-
lidade de ideias e, de outro lado, manter a liberdade religiosa e o Estado laico.
A garantia da manutenção da separação entre Estado e Religião foi mencionada
em todos os votos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, na ação em comento,
inclusive nos votos vencedores, como sendo fundamental e um dos mais importantes
temas estruturais do Estado. E assim deve ser para garantia do Estado Democrático

6. Referências bibliográficas

Livros:

BOBBIO, N. 2004. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.


Rio de Janeiro. Elsevier, p. 25.

BOVERO, M. 2015. Qué laicidade? Una pregunta sobre Bobbio y para Bobbio.
In P. UGARTE e P. CAPDEVIELLE (org.), Cuatro visiones sobre la laicidad.
Vol. 6. D.F. México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, Universidad Autó-
noma de México, p. 1-85.

CANOTILHO, J.J.G. 1997. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.


Coimbra. Livraria Almedina, p. 86.

MIRANDA. J. 1993. Manual de Direito Constitucional. Coimbra. Coimbra


Editora Ltda. p. 355.

SILVA, J. A. 2014. Comentários Contextual à Constituição. São Paulo. Malhei-


ros Editores, p. 254-255.

___________.2010. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ma-


lheiros Editores, p. 248-253.

343
30 anos da Constituição

TEIXEIRA, A. 2007. Educação para a democracia: introdução à administração


educacional. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, p.55-57

VITAL C., LOPES P. V. 2012. Religião e Política: uma análise da atuação dos
parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e LGBTs no Brasil, Rio
de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, p.1-232.

Citações de Sites e Textos eletrônicos:

AÇÃO EDUCATIVA, CONECTAS, ECOS E CLADEM, amicus curiae na


ADI 4439, disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 16/07/2018

Almeida Jr. J. M. G. 2003. Inconstitucionalidade de proposições e outros traba-


lhos parlamentares de caráter religioso (princípio da laicidade). Nota Técnica
da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, Brasília, disponível em:
http://www2.camara.leg.br/a-camara/documentos-e-pesquisa/estudos-e-notas-
-tecnicas/arquivos-pdf/pdf/300836.pdf. Acesso em 13/10/2017.

COSTA RICA, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Cuardenillo de


Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos n. 7, Control
de Convencionalidad, disponível em http://www.corteidh.or.cr/tablas/r33825.
pdf, 24 p. Acesso em 21/08/2017

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA), Corte Interame-


ricana de Direitos Humanos, Caso “A Última Tentação de Cristo” (Olmedo
Bustos e outros) vs. Chile, 2001. Disponível em http://corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/Seriec_73_esp.pdf. Acesso em 13/09/2017.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), CCPR General Com-


ment n. 22: Article 18 (Freedom of thought, conscience or religion, 1993. Dis-
ponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/2_1/IIPAG2_1_2_2_2.htm. Acesso
em 06/12/2017

344
A Mutação Constitucional e o Artigo 5º,
LVII da Constituição Federal de 1988
nos 30 Anos da sua Promulgação

Luís Fernando de Souza Pastana464

Introdução: o Tempo e a Constituição


Qual a influência do tempo sobre a norma constitucional? Nesses 30 anos
da CF/88, seu texto, em grande extensão, permanece idêntico ao que foi pro-
mulgado em 5 de outubro de 1988, não obstante as diversas emendas que a Car-
ta sofreu. Por conta disso, pode-se dizer que a Constituição é a mesma daquela
apresentada na sua promulgação? A resposta é negativa, pois o tempo é um
elemento que atua de alguma maneira na formação da norma constitucional.
Para compreender a influência do tempo sobre a norma constitucional é
preciso observar, antes, que a norma não se confunde com o seu texto. A norma
é o resultado do texto interpretado e é aqui, na interpretação, que o tempo atua.
Ensina Gilmar Ferreira Mendes que
Häberle menciona, por seu turno, que não existe norma jurídica, senão
norma jurídica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur in-
terpretierte Rechtsnormen), ressaltando que interpretar um ato normativo
nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade públi-
ca (Einen Rechssatz “auslegen” bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentli-
che Wirlichkeit stellen – um seiner Wirksamkeit willen)465.

Com o desenrolar do tempo, portanto, ocorre mudança na realidade social,


alteração do sein, alteração dos valores sociais, o que acaba por determinar a in-

464 Mestrando em direito constitucional pela PUC/SP. Procurador do Município de São Paulo.
465 MENDES, Gilmar Ferreira. Pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Fundamentais (PUC-
SP/CNPq). Limite entre interpretação e mutação: análise sob a ótica da jurisdição constitucional
brasileira. In: MENDES, Gilmar Ferreira; MORAIS, Carlos Blanco de (org.). Mutações
Constitucionais – São Paulo: Saraiva, 2016, p. 177.

345
30 anos da Constituição

terpretação que o sujeito faz do texto: a norma, resultado dessa interpretação, é


alterada com o simples passar do tempo, sem a necessidade de se alterar o suporte
textual (programa normativo, para utilizar um vocábulo de Friedrich Müller).
Desta maneira, ao lado da alteração formal da Constituição, seja pelo pro-
cedimento de emenda, seja pelo de revisão constitucional, há a possibilidade de
alteração informal, marcada pela mudança ocorrida dentro do tempo do processo
histórico. Essa alteração informal é denominada de mutação constitucional.
Nas palavras de José Afonso da Silva,
quando, no entanto, se fala em mudança constitucional, na teoria do
direito constitucional, quer-se referir os processos de acomodação das
normas constitucionais à realidade, não se incluindo aí as formas de
rompimento ou de esvaziamento da constituição. Assim, só há duas ma-
neiras de realizar essa acomodação: a reforma constitucional e a mutação
constitucional, que revelam, respectivamente, processos formais e proces-
sos informais de modificação da constituição466.

O presente artigo pretende estudar o instituto da mutação constitucional,


fenômeno que trata da alteração informal da norma constitucional por mudan-
ças verificadas na realidade fática ou axiológica, assim, fenômeno que indica
mudança da norma pela simples passagem do tempo.
Selecionou-se o artigo 5º, LVII da CF/88 para o estudo proposto. O referido
inciso não sofreu emendas ou alterações textuais, tendo, no entanto, recebido di-
versas interpretações do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual, expressamente,
reconheceu a ocorrência da mutação constitucional da norma apresentada.
Antes, porém, um corte se faz necessário: a mutação constitucional a ser
estudada é somente aquela realizada pelo Poder Judiciário, descartando-se aná-
lises sobre a prática deste fenômeno pelo Executivo e Legislativo.
O que se pretende, portanto, é fazer uma análise desse período de 30 anos
da Constituição e, observando a jurisprudência do STF sobre o artigo 5º, LVII,
concluir pela ocorrência ou inocorrência de mutação constitucional.

466 SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional – São Paulo: Malheiros, 2014, p. 293.

346
30 anos da Constituição

O Texto e as Normas do Artigo 5º, LVII da CF/88


A redação conferida ao artigo 5º, LVII foi inaugurada pela CF/88, não encon-
trando correspondente em nenhuma outra Constituição brasileira, desde a Consti-
tuição do Império de 1824 até a Constituição de 1964 com a emenda nº 1/69.
O referido inciso LVII possui a seguinte redação: “ninguém será considera-
do culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Este texto constitucionalizado foi apresentado ao STF em 05 de Outubro
de 1988. Como o texto não apresentou qualquer emenda ou alteração, o STF
lida com o mesmo texto há 30 anos. Porém, como texto não se confunde com
norma, neste mesmo lapso temporal, pode-se dizer que o tribunal já observou
três normas diversas que desse mesmo texto emanaram.
Podemos analisar a trajetória do STF em relação ao tema proposto ob-
servando os seguintes julgados: HC 68.726 (julgamento em 28/06/1991), HC
84.078/MG (julgamento em 05/02/2009) e HC 126.292/SP (julgamento em
17/02/2016); a partir de agora, para facilitar a leitura, entendidos, respectiva-
mente, como primeiro, segundo e terceiro julgamento.
Estes julgados foram selecionados pelo marco interpretativo que representam, servin-
do de referência, cada qual ao seu tempo, como entendimento da matéria pelo STF.
Nestes 30 anos da CF/88, então, pode ser dito que o seu artigo 5º, LVII,
cuja redação textual permaneceu inalterada, suportou já três momentos norma-
tivos diversos, cujas teses são por vezes inconciliáveis e contraditórias.
No primeiro julgamento, interpretou-se o referido inciso LVII para enten-
der que a norma constitucional permitia o início do cumprimento de pena de
prisão ainda antes do trânsito em julgado do acórdão penal condenatório. Ou
seja, entendeu o tribunal que a execução provisória de acórdão penal condena-
tório não ofende ao artigo 5º, LVII da CF/88.
Já no segundo julgamento, interpretou-se o referido inciso em sentido
oposto: a norma constitucional não permitiria o início do cumprimento de pena
de prisão antes do trânsito em julgado do acórdão penal condenatório. Em ou-
tras palavras, entendeu o tribunal que a execução de acórdão penal condenató-
rio somente pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão, proibindo-se a
execução provisória de pena de prisão.

347
30 anos da Constituição

Por fim, no terceiro julgamento, interpretou-se o inciso LVII de acordo com


o primeiro entendimento, voltando a entender que a norma constitucional per-
mite o início do cumprimento de pena de prisão antes do trânsito em julgado do
acórdão penal condenatório, entendimento que prevalece até os dias atuais467.
Se verificado o fenômeno da mutação constitucional, então o STF, no
período de 30 anos, apontou que o Brasil teve, em concreto, três diferentes
normas constitucionais, não obstante um único texto.
Como é possível, neste lapso temporal de 30 anos, o STF observar, sobre
o mesmo texto constitucional (artigo 5º, LVII da CF/88), normas diferentes?
Terá ocorrido o fenômeno da mutação constitucional ou trata-se de mera mu-
dança de interpretação dos Ministros? Ou, ainda, trata-se de mera alteração da
composição da Corte? Em outras palavras, o Brasil teve, realmente, três normas
constitucionais diversas nesse período ou trata-se de uma única norma consti-
tucional que foi, em algum momento, mal interpretada?

A Mutação Constitucional
Foi na Alemanha do final do século XIX que, com a doutrina publicista
e os juristas da Escola Alemã de Direito Público, iniciou-se o estudo sobre a
mutação constitucional. São os autores dessa escola, entre eles, Paul Laband e
Georg Jellinek, os responsáveis pelas primeiras linhas sobre o tema.
Afirma Denise Soares Vargas que
a expressão mutação constitucional foi cunhada, em 1895, por Paul Laband,
em sua obra Mutações na Constituição do Reich Alemão, ao analisar as
mudanças empreendidas na Constituição do Reich alemão de 1871, já que
havia uma discrepância entre o texto constitucional e a realidade política468.

A doutrina ainda costuma citar como referências para o estudo da evolução


histórica do tema, autores como Hermann Heller, Rudolf Smend e Hsü Dau-Lin.

467 Finalizado este artigo em Julho de 2018. Há de se salientar a existência de diversas tentativas de se
levar novamente a julgamento do STF a matéria neste ano de 2018.
468 VARGAS, Denise Soares. Mutação constitucional via decisões aditivas – São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 33.

348
30 anos da Constituição

A mutação constitucional, justamente por ser um processo informal de


mudança à Constituição, não encontra regulamentação ou previsão normativa,
sendo que seu conceito e delineamento jurídico foram exclusivamente elabora-
dos pela doutrina e pela prática jurisprudencial.
Nestes termos, na visão de Luís Roberto Barroso,
é possível dizer que a mutação constitucional consiste em uma alteração
do significado de determinada norma da Constituição, sem observância
do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, além
disso, sem que tenha havido qualquer modificação de seu texto469.

Na lição de Adriano Sant’Ana Pedra,


a mutação constitucional constitui um processo informal de alteração
da Constituição, que cuida de sua atualização e concretização. Tal fenô-
meno possui a particularidade de não se encontrar expressamente pre-
visto no próprio texto constitucional, diversamente do que ocorre com a
reforma (e a revisão) constitucional, que está prevista e há de processar-
-se nos exatos termos e limites expressos na Constituição470.

Para Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo


Gonet Branco,
as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas
dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma
histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação471.

Desses conceitos podem ser observados os seguintes elementos que com-


põem a natureza da mutação constitucional: (i) trata-se de uma alteração infor-
mal da norma constitucional; (ii) altera-se o sentido da norma constitucional
sem ser alterado o texto da Constituição; (iii) a nova interpretação constitu-

469 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos


fundamentais e a construção do novo modelo – 4ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 148.
470 PEDRA, Adriano Sant’Ana. Mutação constitucional: interpretação evolutiva da Constituição na
democracia constitucional – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 129.
471 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional – 4ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 152.

349
30 anos da Constituição

cional surge de uma alteração dos aspectos fáticos ou valorativos emanados do


meio social (a influência do tempo na Constituição).
Iniciando a análise dos elementos que compõem a natureza conceitual da
mutação constitucional, observar-se-á, em primeiro lugar, o seu caráter informal.
A mutação constitucional é tida como uma alteração informal da Cons-
tituição porque, ao contrário do que ocorre com o processo de alteração por
emenda à Constituição, não há previsão de formalidades para que se concretize.
Assim, enquanto que para se alterar a Constituição através do procedi-
mento de emenda se faz necessário seguir todo o trâmite previsto pelo artigo
60 da CF/88, a alteração pela via da mutação passa ao largo (de parte) dessas
formalidades, justamente por não encontrar o seu processo de concretização
regulamentado pelo texto constitucional.
É preciso deixar claro, no entanto, que há limites estabelecidos às altera-
ções formais que também se aplicam às alterações informais da Constituição.
Afirma-se que, apesar de não ser regulamentado, existem limites ao processo
informal da mutação constitucional, os quais devem ser observados sob pena de
se ofender e esvaziar a própria Constituição.
Portanto, a informalidade que marca a mutação constitucional mais é pela
não previsão de sua regulamentação normativa do que pela ausência completa
de regras que apontam seus limites.
Em continuidade à análise dos elementos que compõem o conceito de
mutação constitucional, será observado como se altera o sentido da norma sem
se alterar o seu texto.
A mutação constitucional não reescreve o texto da Constituição, mas so-
mente altera sua norma, o que é possível quando não se confundem texto e
norma. Como já afirmado, a norma é o resultado da interpretação textual.
Aponta Gilmar Ferreira Mendes que
Ao final de sua análise, Hesse cita o ensinamento de Friedrich Müller, que
afirma que a norma não pode ser isolada da realidade, distinguindo o pro-
grama normativo do âmbito normativo. No primeiro estaria a formulação
linguística ou textual da norma, enquanto no segundo estaria o elemento
pressuposto factual, local em que se encontraria o espaço para alteração.
Essa abordagem, que traz o elemento da realidade para dentro do conceito

350
30 anos da Constituição

normativo, permite teorizar uma alteração no conteúdo da norma sem que


ocorra, no elemento textual, alteração correspondente472.
A interpretação observa a realidade e o texto, resultando em uma norma.
Alterada a realidade, ou alterado o texto, o resultado interpretativo irá também
se modificar. Como a mutação não é uma alteração formal da Constituição,
o seu texto permanece intacto, sendo, necessariamente, a realidade (fática ou
axiológica) que apresenta alteração.
São nestes termos que a alteração da Constituição pelo processo de mutação
constitucional altera a norma constitucional sem, no entanto, alterar seu texto.
Finalizando a análise sobre os elementos que compõem o conceito de mu-
tação constitucional, observar-se-á como os fatores axiológicos ou os fatores
histórico-sociais devem ser os responsáveis por desencadear uma alteração na
interpretação do texto constitucional, levando à sua mutação.
Não é qualquer reinterpretação da norma que pode ser considerada como
caso de mutação constitucional. Luís Roberto Barroso ensina que
a mutação constitucional é um fenômeno mais profundo do que a simples
mudança de jurisprudência, que pode dar-se por mera alteração do ponto
de vista do julgador ou por mudanças na composição do Tribunal473.

Assim, não será considerado caso de mutação constitucional a simples


correção jurisprudencial, quando o julgador percebe que a antiga jurisprudência
estava sendo aplicada de modo equivocado474.
Isso porque a mutação constitucional deve sempre indicar uma mudança
na própria Constituição. Portanto, se for reconhecido que estava ocorrendo
interpretação equivocada sobre o significado de uma norma constitucional, en-

472 MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., p. 176.


473 BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 153.
474 Afirma Adriano Sant’Ana Pedra que “Para Soraya Regina Gasparetto Lunari e Dimitri Dimoulis,
“não temos mutação constitucional quando um órgão decide mudar seu entendimento”, mas “só é
razoável falar em mutação constitucional quando o intérprete reconhece que o anterior entendimento
estava correto, mas deixou de sê-lo em virtude de mudanças ocorridas na sociedade.
A mutação constitucional modifica o conteúdo da Constituição em virtude de uma mudança do
entendimento da sociedade em geral sobre um determinado assunto. Em outros termos, a mutação
constitucional nada mais é do que uma decorrência da harmonia que deve existir entre a Constituição
vigente e a sociedade vivente” (PEDRA, Adriano Sant’Ana, op. cit., p. 136-137).

351
30 anos da Constituição

tão, ao fundo, o que se está dizendo, é que aquela norma nunca representou,
realmente, a Constituição e, em conclusão, quando a nova interpretação cor-
rige a anterior demonstrando o real significado da norma, não está apontando
uma mudança na própria Constituição, mas simples correção de interpretação.
Nestes termos, não se sustenta, também, a posição de Georg Jellinek sobre
a questão. Citando Konrad Hesse, Gilmar Ferreira Mendes aponta que
Diferentemente de Laband, G. Jellinek agrupa os casos de mutação
constitucional por ele tratados (que não se limitam ao Direito alemão)
segundo tipos sob os quais subsumem-se os mais diferentes fatos. Uma
mutação constitucional pode resultar de uma interpretação incorreta da
norma constitucional na prática dos parlamentos, dos governos e dos
tribunais de justiça, podendo essa atuação inconstitucional original –
quando reiteradamente efetuada e se impõe na prática – uma modifi-
cação da Constituição mesma. A necessidade política desempenha um
papel relevante como motor das mutações constitucionais475.

Pelo conceito de mutação adotado no presente artigo, uma interpretação


incorreta não poderia levar a uma mutação constitucional, simplesmente por-
que ela é uma leitura falsa da realidade constitucional e não uma mudança
dessa mesma realidade.
A mutação pressupõe a existência de dois momentos: o primeiro momen-
to será composto por uma norma constitucional e o segundo momento será
composto por outra norma constitucional diversa, sendo que ambas decorrem
do mesmo texto constitucional e a segunda é a superação da primeira por uma
evolução temporal em que ocorra uma mudança fática ou valorativa.
As normas constitucionais que compõem essa análise devem ser fruto de uma
interpretação legítima da Constituição, nunca de uma interpretação incorreta, pois,
como já dito, caso seja reconhecida uma interpretação incorreta, então se reconhe-
ce que a norma dela resultante nunca quis dizer aquilo que disse e, portanto, como
é possível, neste cenário, apontar uma mudança da própria Constituição?
Na prática, a norma resultante da interpretação incorreta pode até mesmo
ser aplicada como Constituição, no entanto, o que se aplica será qualquer outra
coisa, menos a Constituição: se a norma foi fruto de uma interpretação incor-
reta voluntária, a verdadeira norma constitucional permanece encoberta pela

475 MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., p. 179.

352
30 anos da Constituição

má-fé, e se foi fruto de uma involuntariedade, a verdadeira norma permanece


desconhecida. Em ambos os casos, a Constituição deixa de ser aplicada.
O conceito de mutação adotado no presente estudo, portanto, necessita
de interpretações corretas realizadas em dois momentos distintos em que seja
possível se verificar uma alteração fática ou axiológica.
Ensina Luís Roberto Barroso que “a mutação constitucional em razão de
uma nova percepção do Direito ocorrerá quando se alterarem os valores de de-
terminada sociedade. A ideia do bem, do justo, do ético varia com o tempo”476.
É desta forma que se tem a mutação constitucional em razão da alteração
axiológica: caso o texto da Constituição expresse um valor, com a alteração deste
no seio social, deve a Constituição ser adaptada à atualização desse mesmo valor.
Continua Luís Roberto Barroso para apontar que “a mutação constitucio-
nal dar-se-á, também, em razão do impacto de alterações da realidade sobre o
sentido, o alcance ou a validade de uma norma”477.
É desta forma que ocorre a mutação constitucional em razão da alteração
de fatores histórico-sociais: em razão da realidade fática, de acordo com um de-
terminado momento histórico, pode ocorrer de uma norma constitucional ser
interpretada como acolhedora daquela realidade e, em razão de uma alteração
do mundo fático, a mesma norma constitucional pode ser entendida como não
mais acolhedora daquela realidade ou como acolhedora de realidade diversa.
Não é, portanto, qualquer tipo de alteração na interpretação de um dispositivo
constitucional que é considerado caso de mutação constitucional, mas apenas as al-
terações com base nas mudanças fáticas ou nas mudanças axiológicas da sociedade.
Em conclusão, toma-se a mutação constitucional como um processo in-
formal de mudança da Constituição, alterando-se a norma constitucional sem
alterar, no entanto, o seu texto, e tendo como base uma alteração da realidade
fática ou uma alteração axiológica ocorrida no corpo social.

476 BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 159.


477 BARROSO, Luís Roberto, ibidem, p. 160.

353
30 anos da Constituição

Dos Limites à Mutação Constitucional


Com base na verificação desses elementos (realidade fática e alteração axio-
lógica) pode o julgador proceder a qualquer alteração da Constituição? Questio-
na-se, assim, se há limites à mutação constitucional e, se existirem, quais são eles.
Aponta Adriano Sant’Ana Pedra que
inexiste tratamento sistemático no tocante às limitações em que os pro-
cessos indiretos de mudança da Constituição podem ocorrer, e a maioria
da doutrina não enfrentou o tema especificamente. Como escreve Wal-
ber de Moura Agra, “a doutrina não definiu, com parâmetros claros, o
limite para a concretização das mutações”478.

O referido autor indica, inclusive, que Uadi Lammêgo Bulos afirma não
ser possível apontar limites para a mutação constitucional479.
Apesar de ser um meio informal de alteração da Constituição, é preciso
encontrar limites à mutação constitucional, sob pena de se autorizar o intérpre-
te a, através da aplicação do Direito Constitucional, criar uma nova Constitui-
ção sem qualquer forma de controle.
Em um Estado Democrático de Direito, dentro dos parâmetros do consti-
tucionalismo, não é possível se imaginar um poder exercido, ao mesmo tempo,
com base na Constituição e, também, acima e fora desta mesma Constituição.
Se prevalecesse a ideia de que não é possível se estabelecer limites à mu-
tação constitucional, estaria sendo criado um poder constituinte difuso com
força de verdadeiro poder constituinte originário que, sob a falácia de aplicar a
Constituição, atuaria contra ela própria.
Corrobora com esta argumentação Denise Soares Vargas, para quem
a adoção de poderes ilimitados conduz à tirania, e, aceitar uma mutação
constitucional, via interpretação judicial ilimitada, é aceitar, num Estado
Democrático de Direito, a ideia de algo acima de qualquer soberania popu-

478 PEDRA, Adriano Sant’Ana, op. cit., p. 194.


479 “Para Uadi Lammêgo Bulos, “não é possível delimitar os limites da mutação constitucional, porque o
fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis”,
que variam conforme os acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e
situações sempre novas, em constante transformação” (idem).

354
30 anos da Constituição

lar e da própria Constituição. Ora, se os próprios parlamentares eleitos têm


limitações materiais expressas e implícitas, com maior razão deve tê-los o
Judiciário que, no caso brasileiro, é alçado ao cargo por concurso público ou
nomeações políticas circunstanciais, sem legitimação democrática480.

Parte-se da ideia, portanto, que dentro de um Estado Democrático de Di-


reito Constitucional, todos os atos, e a mutação constitucional inclusive, são
praticados com base na Constituição, respeitando-a. A questão é encontrar,
pois, os limites à mutação constitucional.
Ao tratar especificamente sobre esses limites, José Afonso da Silva aponta que
a doutrina contemporânea das mutações constitucionais aceita-as com
as limitações indispensáveis para sua conformação com a ordem consti-
tucional. Admitir o triunfo do fato sobre a norma, como queria Jellinek,
como forma de mutação constitucional, seria destruir o próprio conceito
jurídico de constituição, pelo aniquilamento de sua força normativa 481.

Para o referido doutrinador, a força normativa da Constituição é, assim,


um limite claro à mutação constitucional.
Denise Soares Vargas, ao dizer que o conteúdo material da Constituição é
o limite imposto à mutação constitucional, aprofunda a análise ao destrinchar
a referida expressão.
Portanto, a atividade criativa, que importe em mutação constitucional
deve estar dentro de uma limitação material da Constituição.
Embora de difícil fixação, é mister identificar quais seriam essas limitações na
atividade criativa do Judiciário, no âmbito da hermenêutica constitucional.
Há quem sustente que as limitações à mutação constitucional estão con-
densadas em três ordens de ideias: ela deve se circunscrever aos sentidos
possíveis do texto; decorrer de genuína mudança na sociedade e não
avançar no campo próprio da reforma constitucional482.

480 VARGAS, Denise Soares, op. cit., p. 68.


481 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 309.
482 VARGAS, Denise Soares, op. cit., p. 69.

355
30 anos da Constituição

Assim, na visão da autora, a mutação constitucional encontraria limites no


texto da Constituição, na veracidade e autenticidade da mudança social e somen-
te poderia atuar se não fosse exigida a atuação do poder constituinte reformador.
Ideias semelhantes de limites podem ser encontradas no pensamento de
Adriano Sant’Ana Pedra, para quem, sendo a mutação uma expressão do poder
constituinte, encontraria então limites como os encontra o poder constituinte de-
rivado. Entretanto, há, além desses, outros limites para este fenômeno informal483.
Para o referido autor, além dos limites impostos à reforma pelo procedi-
mento formal (emendas à Constituição), a mutação constitucional terá seus
limites determinados pela necessidade de respeito à supremacia da Constituição
e à sua força normativa.
Não obstante regulamentar a realidade social, a Constituição também é
por esta realidade influenciada. É a tensão entre normatividade e facticidade,
entre Constituição e realidade, que deverá apontar para um resultado adequado
de mutação constitucional, não devendo a realidade se sobrepor à Constituição
e, da mesma forma, não devendo a Constituição ignorar a realidade.
Ensina Adriano Sant’Ana Pedra que
a ideia de Constituição normativa exige que as normas constitucionais
sejam responsáveis por conformar a realidade. Nesse sentido, é indispen-
sável aproximar o mundo fático e o mundo normativo a fim de que não
haja qualquer mitigação à supremacia da Constituição, tendo em vista
que o fático não pode sobrepujar o normativo. Dessa forma, torna-se ne-
cessário que a mutação constitucional atenha-se aos limites normativos
estabelecidos pela própria Constituição 484.

Pode-se apontar que a mutação constitucional feita através da interpreta-


ção judicial encontra limites nas possibilidades do texto constitucional (possi-
bilidades de interpretação) e no respeito aos limites impostos ao poder consti-
tuinte derivado (reforma formal da Constituição).
Caso o intérprete, no intuito de proceder à mutação constitucional, acabe
por violar quaisquer desses limites, violando a própria Constituição, promoverá
a prática do fenômeno da mutação inconstitucional.

483 PEDRA, Adriano Sant’Ana, op. cit., p. 193.


484 ibidem, p. 199.

356
30 anos da Constituição

A doutrina aponta que a mutação inconstitucional tem o aspecto de falsea-


mento ou quebramento da Constituição. Nas palavras de Adriano Sant’Ana Pedra
(...) a mutação inconstitucional assume uma dimensão que abrange o
que a doutrina chama de falseamento da Constituição ou quebranta-
mento (ou quebramento) da Constituição. Pedro de Vega conceitua
falseamento da Constituição como o fenômeno em virtude do qual se
outorga a certas normas constitucionais uma interpretação e um sentido
distintos dos que realmente têm485.

Portanto, da mesma forma que a mudança formal da Constituição pode ultra-


passar os parâmetros constitucionais de alteração, a mudança informal também o
pode. No entanto, e aqui surge a problemática a ser levantada, o que ocorre quando o
limite da constitucionalidade é ultrapassado pelo guardião máximo da Constituição?
Ensina Adriano Sant’Ana Pedra que “quando é o próprio Tribunal Constitucio-
nal que promove ou confirma uma mutação da Constituição que desrespeita os seus
parâmetros normativos estruturantes, o que se tem neste caso é uma anomalia 486”.
Nesta hipótese de uma interpretação realizada pelo tribunal de modo inconsti-
tucional, apenas caberia um controle realizado por grupos de pressão, como a opinião
pública, os partidos políticos, as universidades, os professores, os jornalistas, etc, não
havendo um controle jurídico desse ato que implementa a mutação inconstitucional.
Com o objetivo de se permitir uma análise sobre a interpretação realizada pela
Corte Constitucional, facilitando a constatação de inconstitucionalidades, parte da
doutrina elenca meios de se identificar casos de mutação inconstitucional.
Neste sentido, observando a experiência constitucional, Adriano Sant’Ana Pe-
dra, citando Néstor Pedro Sagüés, enumera as formas de se implementar uma mutação
inconstitucional, ou seja, viciada por ultrapassar os parâmetros de constitucionalidade.
Cita o referido autor que
a experiência constitucional permite verificar a ocorrência de manipulação
da Constituição naquelas situações em que ela é utilizada com interesses
particulares. Nestas hipóteses, o manipulador, ao invés de servir à Consti-
tuição, serve-se dela. Os mecanismos manipuladores são muitos, dentre os
quais Néstor Pedro Sagüés menciona: (i) dar às palavras da Constituição um

485 PEDRA, Adriano Sant’Ana, op. cit., p. 301.


486 ibidem, p. 303.

357
30 anos da Constituição

sentido absurdo; (ii) interpretar isoladamente um artigo da Constituição;


(iii) realizar afirmações infalíveis e sem necessidade de demonstração; (iv)
praticar analogias improcedentes; (v) postular algo como regra, mas não
aplicá-la sempre; (vi) criar exceções que a Constituição não prevê487.

Estabelecidos os limites impostos à mutação constitucional e as formas de


se identificar a ocorrência de uma mutação inconstitucional, passa-se a analisar
a prática do Supremo Tribunal Federal nestes 30 anos da CF/88, tendo como
objeto o seu artigo 5º, LVII.

Os Julgamentos do Supremo Tribunal Federal


No intuito de se estudar o fenômeno do tempo sobre a Constituição, ob-
servando a ocorrência ou não da mutação constitucional, estabelece-se a tese
do julgamento do HC 68.726 (primeiro julgamento) como ponto de partida e,
então, analisar-se-ão as alterações provocadas pelos outros dois julgamentos.
Percebe-se que o tribunal, no segundo julgamento, pelo voto do Ministro
Gilmar Ferreira Mendes, faz referência à superação do primeiro julgamento por
conta da ocorrência de mutação constitucional.
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que à época (2009) entendeu pela
proibição constitucional do cumprimento de pena de prisão antes do trânsito
em julgado, utiliza o argumento da mutação para apontar que houve uma mu-
dança na abordagem aos direitos fundamentais e que, por isso, o entendimento
do STF dado no primeiro julgamento deveria ser revisto.
No entanto, o Ministro não aponta em que sentido a abordagem aos direitos
fundamentais se apresentou de forma diferente nos momentos dos dois julgamen-
tos, razão pela qual se inviabiliza uma análise crítica mais profunda sobre o voto.
Para configurar, no entanto, a mutação constitucional, o Ministro teria
que demonstrar que no primeiro julgamento estava correta a decisão que per-
mitia a prisão como cumprimento de pena antes do trânsito e que, depois dele,
houve uma alteração na abordagem dos direitos fundamentais a ponto de se
mudar a própria norma emanada do texto do artigo 5º, LVII.

487 ibidem, p. 307.

358
30 anos da Constituição

Além disso, há outro fundamento encontrado no voto do Ministro Gilmar


Ferreira Mendes e que, por si só, já seria capaz de sustentar seu posicionamento
no segundo julgamento.
Aponta o Ministro na página 10 de seu voto:
Parece evidente, outrossim, que uma execução antecipada em matéria
penal configuraria grave atentado contra a própria ideia de dignidade
humana. Se se entender, como enfaticamente destacam a doutrina e a
jurisprudência, que o princípio da dignidade humana não permite que o
ser humano se convole em objeto da ação estatal, não há como compati-
bilizar semelhante ideia com a execução penal antecipada.

Como a proteção à dignidade da pessoa humana já estava prevista cons-


titucionalmente quando se deu o primeiro julgamento, o fundamento utilizado
pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes no segundo julgamento já poderia ter
sido utilizado para decidir aquele primeiro no mesmo sentido deste segundo
(não haveria mudança fática ou axiológica, neste aspecto).
Portanto, não se trata de verdadeiro caso de mutação constitucional, ten-
do em vista que não houve (ou não foi demonstrada, ao menos) mudança fática
ou axiológica entre os dois julgamentos analisados.
Estudando o voto do Ministro Relator do segundo julgamento, Ministro Eros
Grau, constata-se que foi uma simples mudança na interpretação que ensejou a supe-
ração do primeiro julgamento. Entendeu-se que o primeiro julgamento não observou
os limites textuais impostos ao artigo 5º, LVII, ou seja, mesmo que o segundo julga-
mento não tivesse ocorrido em 2009, mas tivesse ocorrido em outra época histórica,
o seu resultado já deveria ter sido o mesmo: a proibição do início do cumprimento de
pena de prisão antes do trânsito em julgado de acórdão penal condenatório.
Aponta o Ministro Eros Grau à página 8 de seu voto no segundo julga-
mento: “a execução da sentença antes de transitada em julgado é incompatível
com o texto do artigo 5º, inciso LVII da Constituição do Brasil”.
Portanto, conclui-se que o segundo julgamento, apesar de ter alterado a in-
terpretação do artigo 5º, LVII da CF/88, não caracteriza a ocorrência de mutação
constitucional, pois a mudança da interpretação não é pautada na mudança fática
ou axiológica, tendo em vista que a base de julgamento já existia, e poderia ter sido
utilizada, para sustentar decisão idêntica já no momento do primeiro julgamento.

359
30 anos da Constituição

O tema da mutação constitucional volta como fundamento do terceiro


julgamento, e neste ele se encontra melhor analisado, o que permite um apro-
fundamento na pesquisa.
O Ministro Luís Roberto Barroso, neste terceiro julgamento, aponta em
seu voto, expressamente, a ocorrência de mutação constitucional. Para o Mi-
nistro Barroso, houve uma alteração fática ou axiológica na sociedade brasileira
entre o tempo histórico do segundo julgamento (HC 84.078/MG, julgado em
05/02/2009) e do terceiro julgamento (HC 126.292/SP, julgado em 17/02/2016).
Inicialmente, identifica-se que, diante da composição do STF à época488 do
terceiro julgamento, os seguintes ministros votaram pela alteração da interpreta-
ção do artigo 5º, LVII da CF/88, acolhendo a tese de que seria constitucional o
cumprimento da sentença penal condenatória (pena de prisão) sem ainda existir
o trânsito em julgado da decisão: Teori Zavascki (relator), Gilmar Ferreira Men-
des, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.
Como o conceito de mutação constitucional tem em sua base a mudança
da interpretação constitucional por conta de uma alteração fática ou uma alte-
ração axiológica ocorrida no corpo social, uma primeira análise irá identificar
nos votos essa alteração fática ou valorativa do Direito.
Após, uma segunda análise irá observar se a mudança da Constituição,
ocorrida possivelmente por motivo da mutação constitucional, respeitou os li-
mites desta alteração informal, aqui apontados como o “limite da possibilidade
textual” e os “limites impostos ao poder constituinte derivado”.

Análise dos pressupostos para a mutação constitucional:


uma alteração fática ou axiológica do direito
Inicia-se o estudo do terceiro julgamento apontando que não há, conforme
leitura dos votos, desenvolvimento argumentativo que tome como base uma
alteração axiológica do Direito, razão pela qual a análise irá se concentrar na
hipótese, esta sim levantada nos votos, de uma possível alteração fática ter oca-
sionado, ou não, a mutação constitucional.

488 A presidência do Tribunal era ocupada pelo ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão os
ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux,
Rosa Weber, Teori Zavascki, Roberto Barroso e Edson Fachin.

360
30 anos da Constituição

Na maior parte dos votos analisados, uma questão fática é colocada em


pauta489, a saber: dentro de uma realidade estabelecida pelo segundo julgamen-
to, em que a execução penal da pena de prisão somente se inicia após o trânsito
em julgado, os recursos são utilizados de maneira protelatória, evitando-se o
trânsito em julgado e o início da execução da decisão, aguardando-se a ocor-
rência inevitável da prescrição.
Pode ser lido no voto do Ministro Relator Teori Zavascki:
(...) E não se pode desconhecer que a jurisprudência que assegura, em
grau absoluto, o princípio da presunção da inocência – a ponto de negar
executividade a qualquer condenação enquanto não esgotado definiti-
vamente o julgamento de todos os recursos, ordinários e extraordinários
- ter permitido e incentivado, em boa medida, a indevida e sucessiva
interposição de recursos das mais variadas espécies, com indisfarçados
propósitos protelatórios visando, não raro, à configuração da prescrição
da pretensão punitiva ou executória490.

Deve ser investigado, no entanto, se essa questão fática (interposição de


recursos protelatórios) é pertinente para ser considerada como meio capaz de
levar a uma alteração na interpretação da Constituição com força de mutação
da norma constitucional, matéria desenvolvida mais à frente.
É preciso deixar claro que essa questão fática deve ser tomada pelos Mi-
nistros como fundamental para a alteração da interpretação da norma consti-
tucional. Deve ser concluído que tal realidade fática não existia quando se deu
o segundo julgamento e passou a existir quando se deu o terceiro julgamento,
sendo sua razão fundamental de decisão.
Observando-se os votos, no entanto, percebe-se que a referida matéria
fática (infinidade da interposição recursal) foi utilizada, pela maioria dos jul-
gadores, como simples matéria argumentativa a reforçar o posicionamento per-
filhado por cada Ministro. Portanto, mesmo sem ela, seria possível manter a
mesma conclusão adotada. O aspecto fático levantado não foi determinante no
resultado da interpretação e na alteração de entendimento.

489 Como será observado adiante, o ministro Roberto Barroso aponta, além desta questão fática, outras duas
surgidas com o julgamento do HC nº 84.078/MG e capazes de levarem à ocorrência da mutação constitucional.
490 Página 16 do acórdão proferido no HC nº 126.292/SP.

361
30 anos da Constituição

Isso significa dizer que, mesmo que os Ministros entendessem pela inexistência
do fato levantado (infinidade da interposição recursal objetivando provocar a pres-
crição), a conclusão encontrada no terceiro julgamento ainda seria possível, pois tem
base em um entendimento jurídico autônomo, desvinculado deste aspecto fático.
Se a questão fática é irrelevante para a formação normativa, então não se
pode considerá-la como elemento formador desta norma e, em consequência,
não é capaz de permitir a mutação constitucional.
O posicionamento do Ministro Teori Zavascki, por exemplo, poderia ser
mantido mesmo que ele dissesse que não houve mudança fática entre o primei-
ro e o segundo julgamento. O Ministro aponta que o princípio da presunção de
inocência se encontra vinculado à produção de provas e distribuição do ônus
probatório, portanto, conforme vai se caminhando nas instâncias recursais, me-
nor a presença da presunção de inocência e,
tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado,
fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extra-
ordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo
a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de
inocência até então observado491.

Tal voto se mantém, portanto, sobre uma autônoma interpretação jurídica da


Constituição e, não obstante aspectos fáticos serem levantados nas decisões, a inter-
pretação da norma consegue se manter mesmo que excluídos tais fatos de sua análise.
Constata-se que em diversos votos é possível observar que a decisão se mantém
sobre argumentos jurídicos que não dependem dos fatos levantados, então, possível é
observar que a superação do antigo entendimento (surgido no segundo julgamento)
deu-se por se considerar este último simplesmente equivocado.
Apesar de não existir tal afirmação expressa em quaisquer dos votos, muitos
Ministros tomaram o resultado do segundo julgamento como equivocado, sendo que
já seria possível, naquela época, a adoção do entendimento pela constitucionalidade
da execução provisória de acórdão penal condenatório.

491 Página 10 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.

362
30 anos da Constituição

Marcante, neste aspecto, é o voto do Ministro Luiz Fux, no seguinte sentido:


Senhor Presidente, aqui, em muitas ocasiões, nós aduzimos ao silêncio elo-
quente do constituinte originário em determinadas matérias. Mas, no meu
modo de ver, aqui houve uma deformação eloquente da presunção de não
culpabilidade. A presunção de inocência, desde as suas raízes históricas,
está calcada exatamente na regra mater de que uma pessoa é inocente
até que seja considerada culpada. E, fazendo um paralelismo entre essa
afirmação e a realidade prática, e a jurisdição em sendo uma função po-
pular, ninguém consegue entender a seguinte equação: o cidadão tem a
denúncia recebida, ele é condenado em primeiro grau, é condenado no
juízo de apelação, condenado no STJ e ingressa presumidamente inocente
no Supremo Tribunal Federal. Isso efetivamente não corresponde à expec-
tativa da sociedade em relação ao que seja uma presunção de inocência. E
a presunção de inocência é o que está escrito na Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso
tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha
sido provada”. Não há necessidade do trânsito em julgado492.

Portanto, a matéria fática levantada serviu como mero reforço argumentativo


para justificar uma decisão que conseguiria já se manter pelos aspectos jurídicos, razão
pela qual, não sendo a questão fática considerada como decisiva na virada interpre-
tativa da Constituição, não se está diante do fenômeno da mutação constitucional.
O voto proferido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no entanto, deve ser
analisado de forma mais profunda, pois aponta expressamente a ocorrência de
mutação constitucional e, segundo ele, foi a alteração provocada por questões
fáticas, uma delas relativa à interposição reiterada de recursos protelatórios, que
possibilitou uma alteração na própria norma constitucional.
De acordo com o Ministro, o segundo julgamento, quando se proibiu que a
execução penal se iniciasse antes do trânsito em julgado, acabou por dar ensejo à
ocorrência de três realidades, as quais, com o passar do tempo, acabaram por permi-
tir a alteração da própria norma constitucional pela via da mutação constitucional.
Em outras palavras, foi a realidade implementada pelo segundo julgamen-
to que serviu de mote para a mutação constitucional. Nas palavras do Ministro,
na matéria aqui versada, houve uma primeira mutação constitucional
em 2009, quando o STF alterou seu entendimento original sobre o mo-

492 Página 58 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.

363
30 anos da Constituição

mento a partir do qual era legítimo o início da execução da pena. Já


agora encaminha-se para nova mudança, sob o impacto traumático da
própria realidade que se criou após a primeira mudança de orientação493.

Como se observa no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, o segundo


julgamento produziu três consequências fáticas, a saber, (i) incentivou a utili-
zação de recursos protelatórios com finalidade de obstaculizar o trânsito em
julgado, (ii) agravou a seletividade do sistema penal, já que os mais ricos têm
maior força financeira para interposição infindável de recursos protelatórios e
(iii) fez aumentar o descrédito da sociedade no sistema penal494.
Havia, portanto, na visão do Ministro, uma realidade fática que permitia,
durante o segundo julgamento, uma leitura do artigo 5º, LVII da CF/88 no sen-
tido de ser inconstitucional o início do cumprimento de pena de prisão antes
do trânsito em julgado e, diante deste julgamento, permeou-se na realidade
brasileira o desenvolvimento dos três fatos acima expostos, os quais alteraram a
leitura que o julgador deveria fazer do mesmo texto constitucional, ocasionando
a alteração de posicionamento observada no terceiro julgamento.

493 Página 32 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.


494 Aponta o ministro Roberto Barroso à página 32 do acórdão proferido no HC 126.292/SP: “Com efeito,
a impossibilidade de execução da pena após o julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu três
consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal. Em primeiro lugar, funcionou como um
poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios. Tais impugnações movimentam a
máquina do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real proveito
para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos réus. No mundo real,
o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5%. ;mais
relevante: de 1.01.2009 a 19.04.2016, em 25.707 decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo
STF (Res e agravos), as decisões absolutórias não chegam a representar 0,1% do total de decisões.
Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase irrestrita) possibilidade de
recorrer e liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores
advogados para defende-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro
(nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação. Não por acaso, na prática,
torna-se mais fácil prender um jovem de periferia que porta 100g de maconha do que um agente ou
empresário que comete uma fraude milionária.
Em terceiro lugar, o novo entendimento contribuiu significativamente para agravar o descrédito do
sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar o trânsito em julgado do Resp
e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido massivamente à prescrição da pretensão
punitiva ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. Em
ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos
da pena, de prevenção especial e geral. Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário,
à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados”.

364
30 anos da Constituição

Há de se questionar, para se constatar a ocorrência de mutação constitu-


cional, se os três fatos apontados pelo Ministro Luís Roberto Barroso realmente
passaram a existir por conta do segundo julgamento. Isso porque, caso tais fatos
já existissem no momento do segundo julgamento, eles não poderiam ser consi-
derados como fatos novos que alteraram a realidade.
Analisa-se, então, a primeira consequência fática apontada pelo Ministro
Luís Roberto Barroso, qual seja, “o incentivo à infindável interposição de recur-
sos protelatórios” 495.
Para que “o incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios”
seja considerado um fato, devem existir dados da realidade que apontem para
essa conclusão, isto é, dados estatísticos que demonstrem a quantidade de re-
cursos interpostos antes e depois da decisão do segundo julgamento.
O Ministro, no entanto, não apresenta dados técnicos para que se possa
comparar a quantidade de recursos utilizados pelas partes antes e depois do
segundo julgamento, assim, não há como se concluir, com a certeza que a mu-
tação constitucional requer para que seja caracterizada uma alteração fática,
que por conta do referido julgamento houve um incentivo real (concreto) à
interposição de recursos protelatórios.
Há de se levar em conta, ainda, a seguinte informação fornecida pelo Mi-
nistro Edson Fachin:
É certo que a jurisprudência desta Suprema Corte, em recursos crimi-
nais, firmou-se no sentido de determinar a certificação do trânsito em
julgado com baixa imediata dos autos, independentemente de publica-
ção do acórdão, sempre que os segundos embargos de declaração forem
desprovidos, por considera-los protelatórios496.

Como se observa, a tese de que o réu irá se utilizar de infindáveis recursos


protelatórios não procede em seu todo, tendo em vista que a jurisprudência
do STF já determinava o trânsito em julgado e, com isso, a permissão para se
executar a pena, quando os segundos embargos de declaração, se protelatórios,
fossem desprovidos. A prática do Tribunal, desta forma, já tornava impossível a
utilização infindável de recursos.

495 Página 32 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.


496 Página 25 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.

365
30 anos da Constituição

Há, ainda, outra informação que fragiliza o primeiro aspecto fático levan-
tado pelo Ministro Luís Roberto Barroso.
Analisando-se, mesmo que de modo superficial, os índices fornecidos pelo
STF referentes aos processos autuados por ramos do direito497 (levando-se em
consideração a interposição de RE e ARE e a oposição de embargos de declara-
ção perante o STF), percebe-se que o segundo julgamento (ocorrido em 2009)
não teve, aparentemente, força para fazer aumentar a interposição de recursos
com base no direito processual penal (em 2009, a contagem foi de 5.807 recursos,
contra 5.444 em 2010 e 4.863 em 2012), apesar de ter aumentada a interposição
dos recursos com temas em direito penal (em 2009, a contagem foi de 1.539 re-
cursos, contra 1.820 em 2010 e 2.590 em 2012, tendo diminuída a interposição
se forem levados em consideração os anos de 2013 e 2014).
Em relação ao terceiro julgamento, com conclusão de tese contrária ao se-
gundo julgamento, o mesmo não teve força de fazer diminuir a interposição de
recursos perante o STF com temas de direito penal ou de direito processual penal
(em 2015, foram interpostos 4.170 recursos com temas de direito penal e 6.930
com temas de direito processual penal, contra 5.275 com temas de direito penal
no ano de 2016 e 7.474 com temas de direito processual penal para o mesmo
ano, sendo que, em meados de 2017, 4.720 recursos com tema de direito penal
e 8.749 com temas de direito processual penal já tinham sido interpostos498).
Portanto, conclui-se que não é possível se afirmar, dando ao evento uma
conotação de fato, que o segundo julgamento implantou uma realidade em que
ocorre uma interposição infindável de recursos protelatórios capazes de levar à
prescrição (não se apontou, no voto do Ministro, se essa realidade recursal já
existia antes do julgamento ou de que maneira e em qual potência esse julga-
mento intensificou tal realidade).
Passa-se à análise, assim, da segunda consequência fática apontada pelo Mi-
nistro Luís Roberto Barroso como nascida do segundo julgamento e capaz de le-
var à mutação constitucional, qual seja, o reforço da seletividade do direito penal.

497 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=pesquisaRamoDireito –
Pesquisa realizada em 03 de Setembro de 2017.
498 Dados de Setembro de 2017.

366
30 anos da Constituição

Aponta o Ministro Luís Roberto Barroso que


a execução provisória da pena permitirá reduzir o grau de seletividade do
sistema punitivo brasileiro. Atualmente, como já demonstrado, permite-se
que as pessoas com mais recursos financeiros, mesmo que condenadas,
não cumpram a pena ou possam procrastinar a sua execução por mais de
20 anos. Como é intuitivo, as pessoas que hoje superlotam as prisões bra-
sileiras (muitas vezes, sem qualquer condenação de primeiro ou segundo
graus) não têm condições de manter advogado para interpor um recurso
atrás do outro. Boa parte desses indivíduos encontra-se presa preventiva-
mente por força do art. 312 do Código de Processo Penal. A alteração da
compreensão do STF acerca do momento de início de cumprimento da
pena deverá ter impacto positivo sobre o número de pessoas presas tempo-
rariamente – a maior eficiência do sistema diminuirá a tentação de juízes e
tribunais de prenderem ainda durante a instrução –, bem como produzirá
um efeito republicano e igualitário sobre o sistema499.

Como se observa, não há dados científicos que apontem, com a certeza da


constatação da ocorrência de um fato, que houve um aumento da seletividade
do sistema criminal com o segundo julgamento.
Percebe-se pela leitura do trecho citado que mais parece que há uma má
aplicação pelo Poder Judiciário do artigo 312 do Código de Processo Penal500 do
que a operação de uma seletividade por conta da necessidade de se aguardar o
trânsito em julgado para se executar o acórdão penal condenatório.
No entanto, como já dito, não há dados suficientes expostos no voto do
Ministro Luís Roberto Barroso que possam ser utilizados para uma conclusão
segura de que o entendimento de inconstitucionalidade do cumprimento pro-
visório do acórdão penal leve ao aumento da seletividade do sistema criminal.
Por fim, analisa-se a terceira consequência fática apontada pelo Minis-
tro Luís Roberto Barroso: o agravamento do descrédito do sistema de justiça
penal junto à sociedade.

499 Página 52 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.


500 Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem
econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei
nº 12.403, de 2011). Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de
descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art.
282, § 4o). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

367
30 anos da Constituição

Mais uma vez, não há apresentação de dados estatísticos que demonstrem o


posicionamento do Ministro, não havendo apontamento de que, por conta de se en-
tender pela inconstitucionalidade do cumprimento provisório de acórdão penal con-
denatório, aumentou-se o descrédito do sistema de justiça criminal junto à sociedade.
Observando-se relatório produzido pela Faculdade de Direito da Fundação
Getúlio Vargas, chamado de Relatório do Índice de Confiança na Justiça (ICJ
Brasil), percebe-se que a obtenção de dados sobre a confiança ou o descrédito
no sistema de justiça exige um processo complexo e de difícil precisão objetiva.
No caso brasileiro, a crise no sistema de Justiça não é um fenômeno recente.
As pesquisas mostram que, ao menos quanto à eficiência do Judiciário, no
que diz respeito ao tempo e a burocratização de seus serviços, a sua legitimi-
dade vem sendo questionada desde o início da década de 1980. De lá para
cá, e com maior intensidade a partir de 2000, alguns trabalhos levantaram
dados sobre as atividades do Judiciário, como o número de processos novos
e em andamento a cada ano. Com a reforma do Judiciário aprovada em
dezembro de 2004 e a criação do Conselho Nacional de Justiça em 2005, ti-
vemos alguns avanços na produção e publicação de dados sobre o Judiciário
brasileiro, nas suas mais diversas organizações e instâncias. Exemplo disso é
o relatório Justiça em Números, publicado anualmente pelo Conselho Na-
cional de Justiça e disponibilizado em sua página na internet.
Apesar desses avanços, nenhuma dessas informações disponibilizadas
mostram dados objetivos sobre a forma pela qual o Judiciário brasilei-
ro aparece como uma instituição confiável em termos de eficiência,
imparcialidade e honestidade. Essas informações também não são ca-
pazes de indicar as motivações do cidadão na utilização do Judiciário
como forma de solução de conflitos501.

Não há dados suficientes no voto do Ministro Luís Roberto Barroso para


se apontar, com precisão, que o segundo julgamento contribuiu para agravar o
descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade.
Não é possível afirmar que os três aspectos fáticos utilizados pelo Minis-
tro para fundamentar a ocorrência da mutação constitucional são válidos para
tanto, isso porque não há dados que (i) demonstrem que essa realidade já não
existia quando se deu o segundo julgamento, caso em que não se pode dizer que

501 http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/17204/RelatorioICJBrasil_1_sem_2016.
pdf?sequence=1&isAllowed=y

368
30 anos da Constituição

houve uma mudança na realidade para o terceiro julgamento, ou porque não há


dados que (ii) demonstrem a real ocorrência de parte desta realidade.
Diante do que foi apresentado, conclui-se que a mudança de posicionamento
do STF ocorrida com o terceiro julgamento não representa um caso de verdadeira
mutação constitucional, pois não foram encontrados os seus pressupostos necessá-
rios, seja uma mudança na realidade fática, seja uma alteração valorativa do Direito.
Trata-se, portanto, de simples mudança de posicionamento, compreenden-
do o tribunal que a leitura feita da norma do artigo 5º, LVII da CF/88 no segun-
do julgamento encontrava-se incorreta, seja pela mudança de posicionamento
de seus Ministros ou seja pela própria mudança de composição da Corte .
No entanto, apenas para desenvolver a análise acadêmica que este trabalho pre-
tende, passa-se a considerar como verdadeira a assertiva que aponta ter havido uma
mudança fática que levou à mutação constitucional do artigo 5º, LVII da CF/88.

Análise dos limites para a mutação constitucional


Considerando encontrarem-se presentes os pressupostos para a alteração
da interpretação ser considerada uma mutação constitucional, passa-se à análi-
se dos limites desta mutação. Irá se observar se a interpretação realizada respeita
os (i) limites textuais e os (ii) limites impostos ao poder constituinte derivado.
Serão observados dois raciocínios diferentes que foram utilizados pelos
Ministros para se concluir pela constitucionalidade da execução provisória de
acórdão penal, um relacionado com a classificação da norma em comento como
um princípio e outro relacionado com o próprio texto constitucional.
A interpretação dada ao artigo 5º, LVII da CF/88, na linha dos votos ven-
cedores, aponta que a norma que espelha a presunção de inocência ou não-
-culpabilidade é um princípio, e não uma regra.
Como princípio, a norma não se aplicaria pelo critério “tudo ou nada”,
podendo ter seu âmbito de proteção ampliado ou diminuído a fim de que seja
conformada com outros princípios.
Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, “enquanto princípio, tal pre-
sunção pode ser restringida por outras normas de estatura constitucional (desde

369
30 anos da Constituição

que não se atinja o seu núcleo essencial), sendo necessário ponderá-la com os
outros objetivos e interesses em jogo” 502.
Já nas palavras do Ministro Edson Fachin,
tenho por indispensável compreender o princípio da presunção de não
culpabilidade, insculpido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, em
harmonia com outras normas constitucionais que impõem ao intérprete
a consideração do sistema constitucional como um todo503.

Um primeiro raciocínio se desenvolve no sentido de reconhecer a norma


como um princípio e, a partir daí, tentar observar qual a sua medida em relação
aos demais princípios constitucionais.
Com isso, alguns Ministros concluem que a proteção oferecida pelo princí-
pio da presunção de inocência tem maior força e intensidade nas primeiras fases
processuais, perdendo sua energia com o decorrer do processo até não mais
impedir a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado.
Outro raciocínio para se chegar à mesma conclusão, agora não relacionado
ao fato da norma ser um princípio ou uma regra, mas tomando por conta o próprio
texto constitucional, é observar que, quando a Constituição apontou que somente
após o trânsito em julgado se é possível considerar alguém culpado, não quis dizer
“trânsito em julgado do direito”, mas “trânsito em julgado da discussão dos fatos”.
Com isso, alguns Ministros entenderam que a discussão sobre os fatos cessa
com o julgamento de segunda instância e, a partir da interposição do recurso extra-
ordinário e/ou especial, apenas se discute direito, podendo a pena de prisão ser exe-
cutada provisoriamente, pois já ocorrido o “trânsito em julgado da matéria fática”.
Passa-se a analisar, portanto, se estes raciocínios utilizados para a constru-
ção da tese vencedora no terceiro julgamento agridem, de qualquer maneira, os
limites impostos à mutação constitucional.
Utilizando a diferenciação entre princípios e regras elaborada por Robert
Alexy, deve o artigo 5º, LVII da CF/88 ser lido como uma regra, e não como um
princípio, pois sua aplicação é possível no modelo “tudo ou nada”.

502 Página 39 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.


503 Página 22 do acórdão proferido no HC 126.292/SP.

370
30 anos da Constituição

Estabelece o referido inciso que “ninguém será considerado culpado até o


trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Portanto, tal norma pode
ser lida neste modelo de aplicação: havendo o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória, uma pessoa será considerada culpada, não havendo, não
será. Não há margem para ponderação, característica dos princípios.
Por tal razão, apesar de ser chamada de princípio da presunção de inocên-
cia ou da não-culpabilidade, a norma do artigo 5º, LVII da CF/88 é uma regra.
Assim, constata-se a violação de um primeiro limite imposto às mutações
constitucionais, qual seja, o limite textual. Ao tomar a norma do artigo 5º, LVII
da CF/88 como um princípio, ultrapassa-se o limite de interpretação que o texto
permite, tendo em vista a baliza que o texto traz ao intérprete: sem o trânsito
em julgado, não se pode considerar alguém como culpado.
Ao se tratar a referida norma como um princípio, modela-se a regra, fle-
xibilizando a proteção. É permitir que alguém seja tomado como culpado antes
da ocorrência do trânsito em julgado ou permitir que um não-culpado sofra
consequências que somente um culpado sofreria após o trânsito em julgado: isso
é ultrapassar os limites textuais da Constituição.
É preciso que fique claro que prisão não se confunde com pena, assim,
possível é a prisão antes do trânsito em julgado (prisão preventiva, por exem-
plo), proibindo a Constituição, somente, que antes do trânsito em julgado ocor-
ra a prisão com a finalidade de cumprimento de pena.
Uma leitura, portanto, que observe a norma como princípio, permitindo
que, diante de outros princípios (como a efetividade da justiça, a razoável dura-
ção do processo, etc) uma regra seja flexibilizada para permitir o cumprimento
de pena por alguém ainda não considerado culpado, ultrapassa o limite textual
e, por consequência, um dos limites impostos à mutação constitucional.
Trata-se de mutação inconstitucional, portanto.
A mesma conclusão se chega quando observado o outro raciocínio para
fundamentar a tese vencedora do terceiro julgamento, qual seja, a leitura da
regra exposta no artigo 5º, LVII da CF/88 que enxerga o trânsito em julgado
como sendo restrito trânsito em julgado da matéria fática.
Esse, no entanto, não ultrapassa o limite textual, mas sim o limite imposto
ao poder constituinte derivado. Tal interpretação não respeita a norma limita-
dora do poder constituinte exposta no artigo 60, § 4º, IV da CF/88.

371
30 anos da Constituição

Pelo citado artigo, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda


tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. Através deste limite, não
pode o poder constituinte derivado reformar a Constituição para diminuir a
proteção dada a um direito fundamental individual.
Ao tentar fracionar o “trânsito em julgado” em “trânsito em julgado dos
fatos” e “trânsito em julgado do direito”, houve uma violação à garantia funda-
mental exposta no artigo 5º, LVII da CF/88, pois seu texto não realiza qualquer
restrição à proteção, apenas diz “trânsito em julgado”, não qualificando ou clas-
sificando o mesmo em “trânsito dos fatos” ou “trânsito dos direitos”.
Por tal razão, ao tentar fracionar uma garantia que a Constituição não
fracionou, conclui-se que se trata de implementar uma verdadeira diminuição
na proteção conferida pela norma constitucional, razão pela qual não poderia
sequer o poder constituinte derivado, através de emenda à Constituição, imple-
mentar tal restrição à garantia fundamental.
Assim, como tal interpretação encontra limite nos “limites impostos ao poder
constituinte derivado”, a mesma não pode ser implementada sob pena de se violar a
própria Constituição, configurando-se como verdadeira mutação inconstitucional.
Portanto, a pretensa mudança da Constituição pela via da interpretação
judicial não respeitou os limites “textuais” e os limites “impostos ao poder cons-
tituinte derivado”, razão pela qual a alteração da norma constitucional pela
via informal implementada pelo terceiro julgamento deve ser tida como uma
mutação inconstitucional.

Conclusão
Observou-se que nesses 30 anos de CF/88 o STF realizou três diferentes
leituras do texto do artigo 5º, LVII, no entanto, ao contrário do que entendeu o
tribunal, não se verificou o fenômeno da mutação constitucional.
Constatou-se que a mutação constitucional exigiria uma alteração da rea-
lidade fática ou axiológica que levasse, por sua vez, à alteração da própria norma
exposta no artigo 5º, LVII, sem mudança, no entanto, de seu suporte textual.
Este fenômeno não se verificou.
Ao aprofundar a análise sobre o instituto da mutação, percebeu-se que,
mesmo que tivesse ocorrido alteração no plano fático e axiológico, a mudança

372
30 anos da Constituição

que se pretendeu da norma do artigo 5º, LVII ultrapassava os limites possíveis


da própria mutação, o que acarretaria uma mutação inconstitucional.
Se a passagem do tempo é capaz de alterar a realidade social ou valorativa
de uma sociedade, ainda não houve tempo suficiente para se mudar a norma
emanada do artigo 5º, LVII, sendo as diversas interpretações que recebeu ape-
nas fruto da mudança de entendimento do tribunal sobre o tema, mas não fruto
de uma verdadeira mudança informal da Constituição.

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ceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013.

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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo


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PEDRA, Adriano Sant’Ana. Mutação constitucional: interpretação evolutiva da Cons-


tituição na democracia constitucional. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

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lo: Saraiva, 2014.

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amoDireito

373
A Influência das Decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos
na Interpretação da Constituição de
1988 pelo Supremo Tribunal Federal
The Influence of the Decisions of the Inter-American Court
of Human Rights in the Interpretation of the Constitution of
1988 by the Brazilian Supreme Court

Marina Faraco
Doutora e Mestre em Direito do Estado
pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. Professora da Facul-
dade de Direito da PUC/SP e da
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
E-mail: <[email protected]>

Susana Barbery
Bacharela em Direito pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
Mestranda em Direitos Humanos pela Uni-
versidade Sciences Po em Paris.
Ex-estagiária da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos.
E-mail:<[email protected]>

375
30 anos da Constituição

Resumo: O objetivo deste artigo é examinar a influência das decisões da


Corte Interamericana de Direitos Humanos na interpretação da Constituição
Federal de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal em seus 30 anos de vigência.
Partindo da premissa de que a jurisprudência da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos é parâmetro obrigatório da hermêneutica constitucional, foram
examinadas todas as decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas desde o
reconhecimento da competência da Corte que fazem expressa referência a ela,
para investigar o impacto da sua jurispruência na fixação do alcance e senti-
do das normas constitucionais. Para além da quantidade ínfima de menções,
constatou-se que, mesmo passados 20 anos da adesão à sua jurisdição, o diálogo
entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos é ainda muito deficitário e fragmentado, a despeito de vinculante.
PalavRas-chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos; Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos; Supremo Tribunal Federal; Diálogos Interjuris-
dicionais; Interpretação Constitucional; 30 anos da Constituição Federal de 1988.
abstRact: The goal of this article is to examine the influence of the
decisions of the Inter-American Court on Human Rights in the interpretation
of the Brazilian Federal Constitution of 1988 given by the Brazilian Supreme
Court during its 30 years of existence. Considering that the jurisprudence of
the Inter-American Court on Human Rights is a mandatory parameter of the
constitutional hermeneutics, we examined all the decisions expressed by the
Supreme Court since the recognition of the jurisdiction of the Inter-American
Court that have clear references to it, in order to investigate the impact of its
jurisprudence in the fixation of the reach and meaning of the constitutional
norms. Beyond the insignificant amount of mentions, it was determined that,
even though 20 years have gone by since the admission of its jurisdiction, the
dialogue between the Brazilian Supreme Court and the Inter-American Court
on Human Rights is still very scarce and fragmented, despite it being binding.
KeywoRds: International Law on Human Rights; Inter-American Court on
Human Rigts; Brazilian Supreme Court; Interjurisdictional Dialogues; Constitu-
tional Interpretation; 30 years of the Brazilian Federal Constitution of 1988.
sumáRio: Introdução. 1. A jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos como parâmetro vinculante de interpretação da Constitui-
ção. 2. Como as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos têm
influenciado a interpretação da Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal

376
30 anos da Constituição

Federal? 2.1. Anti-influência: decisões contrárias à jurisprudência da CorteI-


DH. 2.2. Influência reflexa: decisões compatíveis com a jurisprudência da
CorteIDH, sem diálogo eficaz. 2.3. Efetiva influência: a Constituição de 1988
conforme à jurisprudência da CorteIDH. 2.3.1. Artigos 5º, IX e XIV, e 220:
liberdade de expressão e informação versus exigência de diploma de jornalismo
para exercício da profissão (RE n.º 511.961). 2.3.2. Artigo 5º, §2º: duplo grau de
jurisdição (Ação Penal n.º 470). 2.3.3. Artigo 5º, LVII: presunção de inocência
(RE n.º 591.054). 2.3.4. Artigo 5º, XLIX: competência do Judiciário para de-
terminar a realização de obras em presídios (RE n.º 592.581). 2.3.5. Artigos 5º,
IX; 21, XVI e 220, §3º, I: censura prévia de programas televisivos pelo Estatuto
da Criança (ADI n.º 2.404). 3. Conclusões. Referências.

Introdução
Por ocasião dos 30 anos de vigência da Constituição de 1988 e tendo
em vista os atuais paradigmas do transconstitucionalismo (nEvEs, 2009, passim),
entre os quais a busca por soluções comuns a problemas constitucionais envol-
vendo direitos assegurados nos tratados internacionais que conectam os orde-
namentos estatais em suas relações transversais504, mostra-se oportuno o exame
da influência que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem exercido
sobre a interpretação da Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal.
Isto porque a adesão505 do Brasil à jurisdição da Corte traz, entre suas
consequências, o necessário diálogo do Supremo Tribunal Federal com o Siste-
ma Interamericano de Direitos Humanos, vinculando a própria interpretação

504 Como explica nEvEs (2014, p. 211): “Uma transformação profunda tem ocorrido, nas condições
hodiernas da sociedade mundial, no sentido da superação do constitucionalismo provinciano ou
paroquial pelo transconstitucionalismo. (...) [Contra essas tendências], o transconstitucionalismo
implica o reconhecimento de que as diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de um problema-
caso constitucional – a saber, de direitos fundamentais ou humanos e de organização legítima do
poder –, que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar formas transversais de articulação
para a solução do problema, cada uma delas observando a outra, para compreender os seus próprios
limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo.”.
505 Preferimos a expressão “adesão” ao invés de “submissão”, utilizada pelo constituinte reformador de
2004 no §4º do Artigo 5º relativamente ao Tribunal Penal Internacional, por se tratar do voluntário
reconhecimento da jurisdição da CorteIDH pelo Estado brasileiro, e não, propriamente, de sua
submissão a ela, como explica tavarEs (2017, p. 419).

377
30 anos da Constituição

da Constituição brasileira às decisões por ela proferidas a respeito dos direitos


consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Assim, o objetivo deste artigo é examinar a evolução da jurisprudência do Su-
premo Tribunal Federal (STF) relativamente à influência que as decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) exerceram sobre a fixação do
alcance e do sentido das normas constitucionais em seus 30 anos de vigência, ve-
rificando a abertura e a receptividade do STF a tais diretrizes interpretativas, vin-
culantes por força de compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro.
Para tanto, abordaremos, em primeiro lugar, as consequências da vincu-
lação do Brasil à jurisdição da CorteIDH, justificando o recorte realizado nes-
ta pesquisa, para, então, analisar os acórdãos proferidos pelo STF que fazem
expressa menção às decisões da Corte, verificando se a sua jurisprudência foi
determinante para a interpretação da Constiuição fixada nestes julgados e em
que medida tal influência se verificou.

1. A jurisprudência da Corte Interamericana


de Direitos Humanos como parâmetro vinculante
de interpretação da Constiuição
A Corte Interamericana de Direitos Humanos se estabeleceu em 1979 na
cidade de São José, na Costa Rica, após a entrada em vigor da Convenção Ame-
ricana de Direitos Humanos. Ela apresentou sua primeira opinião consultiva
em 1982 e sua primeira decisão contenciosa em 1987.
Embora o Brasil tenha promulgado o Pacto de São José da Costa Rica em
1992, por meio do Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992506, somente aderiu à
jurisdição da CorteIDH em 10 de dezembro de 1998 e para fatos posteriores a esta
data, quando foi depositada a correspondente declaração junto à Secretaria Geral

506 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018.

378
30 anos da Constituição

da Organização dos Estados Americanos, nos termos do artigo 62507 da Convenção


Americana de Direitos Humanos e do artigo 1º do Decreto nº 4.463/2002508:
Art. 1º É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo
indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Con-
venção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de
novembro de 1969, de acordo com art. 62 da citada Convenção, sob re-
serva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.

Reconhecer como obrigatória a competência da Corte em todos os casos en-


volvendo a interpretação e a aplicação da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos significa, em última instância, que qualquer decisão proferida pelos órgãos
brasileiros a respeito dos direitos consagrados naquele tratato internacional deve,
necessariamente, estar de acordo com a sua jurisprudência (PiovEsan, 2012, p. 90).
Trata-se, então, de um diálogo vinculado, como define saLdanha (2015, p.
314), por força de expressa previsão normativa, constante do tratado ratificado
pelo Estado brasileiro e do Decreto de adesão à Corte, acima citados.
Consequentemente, também a interpretação da Constituição de 1988
pelo Supremo Tribunal Federal deve guardar consonância com as decisões da
CorteIDH, na medida em que os direitos fundamentais consagrados naquela
Convenção integram materialmente o texto constitucional, como determina a
cláusula de abertura ou de não tipicidade de direitos fundamentais, nas palavras de
miranda (2000, p. 162)509, constante do §2º de seu artigo 5º:

507 “Artigo 62. 1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação
desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como
obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos
à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou
sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada
ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma aos outros Estados membros da
Organização e ao Secretário da Corte.” Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.
convencao_americana.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018.
508 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018.
509 A exemplo da Constituição Portuguesa e de outras Constituições latino-americanas, a Constituição
de 1988 também contém uma cláusula constitucional aberta que “(...) permite a integração entre
a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitos humanos,
ampliando e expandido o bloco de constitucionalidade.”, nas palavras de PiovEsan (2017, p. 40).
Com isso, integram-se ao rol do artigo 5º todos os direitos fundamentais assegurados nos tratados

379
30 anos da Constituição

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros


decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Deste modo, tendo o Brasil reconhecido como obrigatória a competência da


Corte para fixar a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos,
cujas normas consagram direitos fundamentais integrados à própria Constituição
brasileira, tem-se que a sua jurisprudência, em tais matérias, é também determi-
nante para a hermenêutica constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
É certo que o STF reconheceu o caráter supralegal da Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos510, o que a colocaria num patamar hierarquicamente
abaixo da Constituição, mas acima da legislação comum, embora tal enten-
dimento não esteja expresso em qualquer dispositivo normativo em vigor no
direito brasileiro (Faraco, 2017, p. 64).
Nada obstante, a própria Constituição determina que os direitos funda-
mentais expressos em tratados internacionais de que seja parte a República
Federativa do Brasil integram o seu texto, conduzindo à necessária conclusão
de que se trata, na verdade, de normas materialmente constitucionais, embora,
do ponto de vista formal, assumam caráter supralegal, como decidiu o STF, já
que não aprovadas com a maioria qualificada exigida pelo §3º do artigo 5º511.
Como resultado da adesão do Brasil à jurisdição CorteIDH, impôs-se ao
Supremo Tribunal Federal, portanto, uma dúplice vinculação, na medida em
que deve observar a sua jurisuprudência não apenas no que diz respeito à apli-
cação da Convenção Americana de Direitos Humanos, como manda o Decreto
n.º 4.463/2002, mas também quanto à própria interpretação da Constituição de
1988, relativamente aos direitos convencionais a ela integrados.

ratificados pelo Estado brasileiro, reconhecidos como autêntica fonte nesta matéria pelo texto
constitucional, como explica miranda (2000, p. 162).
510 Conforme decidido no Recurso Extraordinário n.º 466.343, Relator Ministro Cezar Peluso, julgamento
em 03/12/2008, e no Habeas Corpus n.º 87.585, Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em
03/12/2008. Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 04 abr. 2011.
511 “Assim, os tratados sobre direitos humanos que não tenham sido recebidos com status de norma
constitucional formal, embora sejam materialmente constitucionais (conforme a regra do §2° do
Artigo 5°), têm hierarquia supralegal. Posicionam-se, portanto, abaixo da Constituição, já que não
têm aptidão para lhe modificar (BarBosa, 2010, p. 36), mas acima da legislação infraconstitucional,
sujeitando-a aos seus ditames.” (Faraco, 2017, p. 64).

380
30 anos da Constituição

O que justifica o recorte realizado nesta pesquisa, para analisar a influ-


ência que a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem
exercido sobre a interpretação da Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal
Federal em seus 30 anos de vigência.
Busca-se então, de forma específica, examinar se a jurisprudência da
CorteIDH efetivamente influenciou a determinação do sentido das normas da
Constituição de 1988 pelo STF, direcionando a escolha de uma dada opção
hermenêutica de forma vinculada ao entendimento por ela manifestado.

2. Como as decisões da Corte Interamericana de


Direitos Humanos têm influenciado a interpretação da
Constituição de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal?
Na base de dados do Supremo Tribunal Federal foram encontradas 43 deci-
sões em que há referência expressa à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A análise individual destes julgados demonstrou que em apenas 28 destes acór-
dãos há menção expressa a decisões ou a opiniões consultivas da CorteIDH.
A primeira decisão do Supremo Tribunal Federal que cita, ainda que in-
diretamente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi proferida na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 144512 em
2008, ou seja, 10 anos depois de reconhecida a sua competência e 16 anos após
a promulgação do Pacto de São José da Costa Rica.
Fala-se em referência indireta porque, embora haja menção à jurispruência de
diversos países, a única citação à CorteIDH consta da transcrição de trecho de obra
doutrinária que menciona uma de suas decisões, não representando, pois, qualquer
influência para o julgamento ou para a interpretação das normas constitucionais.
Até esta data, a CorteIDH, contudo, já havia publicado 192 decisões em
julgamentos, 329 decisões em medidas cautelares e 19 opiniões consultivas, que,
juntas, formavam a sua jurisprudência, sendo que, em 19 delas, o Brasil, inclu-
sive, era parte nos casos.

512 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 06/08/2008. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/
process os/detalhe.asp?incidente=2626865>. Acesso em: 27 mar. 2018.

381
30 anos da Constituição

Não restam dúvidas, portanto, de que em 2008, quando se deu a primeira


citação, a Corte já havia proferido um número significativo de decisões capaz de
servir de referência ao Supremo Tribunal Federal na tomada de decisões envol-
vendo os direitos consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos.
No entanto, entre 2008 e 2017, dos 56.886 acórdãos513 publicados pelo
Supremo Tribunal Federal, em apenas 5 dos 28 julgados que fazem referência
expressa à CorteIDH houve efetiva influência de suas decisões na interpreta-
ção da Constituição. Em outras 20 decisões, a Corte foi citada de maneira não
vinculante, isto é, sem o estabelecimento de um verdadeiro diálogo com a sua
jurisprudência, tendo, em 3 julgados, o STF decidido de forma contrária a ela.
Como o objetivo específico deste trabalho é examinar de que maneira a
jurisprudência da CorteIDH tem influenciado a interpretação da Constituição
de 1988 pelo STF, tais decisões foram analisadas sob as seguintes categorias:
(i) decisões do STF contrárias à jurisprudência da CorteIDH (item 2.1.); (ii)
julgados em que o STF menciona decisões da Corte de forma fragmentada, a
título argumentativo, sem estabelecer um verdadeiro diálogo com a sua juris-
prudência, embora decida em consonância com ela (item 2.2), e (iii) casos em
que a interpretação de dispositivos da Constiutição 1988 foi realizada segundo a
jurisprudência da CorteIDH, revelando uma efetiva influência (item 2.3).

2.1. Anti-influência: decisões contrárias à


jurisprudência da CorteIDH
No julgamento da ADPF n.º 153514, em 2010, em que se questionava a
não recepção da Lei de Anistia (Lei Federal n.º 6.683/79) pela Constituição
de 1988, mencionou-se, num pequeno trecho, a decisão da CorteIDH no caso
Arellano vs. Chile515, em que se declarou carecer de efeitos jurídicos a norma

513 Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%40JULG+%3


E%3D+20080101%29%28%40JULG+%3C%3D+20171231%29&base=baseAcordaos&url=http://
tinyurl.com/y7eokx6c >. Acesso em: 28 mar. 2018.
514 Relator Ministro Eros Grau, julgamento em 29/04/2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginador pub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960>. Acesso em: 20 mar. 2018.
515 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/7172fb59c130058bc5a96
931e41d04e2.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2018.

382
30 anos da Constituição

chilena que anistiava crimes cometidos durante a ditadura, dada a sua incom-
patibildiade com a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Nada obstante, a ADPF foi julgada procedente, declarando a validade da
norma brasileira, apesar de já haver, à época, além do precedente da CorteIDH
citado no acórdão, expresso pronunciamento da Comissão Americana de Direi-
tos Humanos em sentido contrário relativamente à norma brasileira.
Como se sabe, no mesmo ano, houve o julgamento do caso Gomes Lund
vs. Brasil516, em que a CorteIDH reconheceu a inconvencionalidade da Lei de
Anistia. Aguarda-se, agora, a decisão do STF na ADPF n.° 320517, que retomou
a questão, em trâmite desde 2014.
Igualmente, nas Extradições n.º 1.362518 e n.º 1.327519, julgadas respectivamente
em novembro de 2016 e junho de 2017, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que
havia um entendimento da CorteIDH, decidindo, contudo, em sentido oposto a ele.
Os dois casos tratavam do pedido de extradição pelo Estado argentino
de nacionais que respondiam a crimes considerados de lesa-humanidade. No
primeiro caso, a discussão girou em torno da prescrição da pretensão punitiva,
sob a perspectiva da lei penal brasileira e, no segundo caso, discutiu-se a aplica-
bilidade da Lei brasileira de Anistia.
Na Extradição n.º 1.362, a Corte Interamericana foi citada diversas vezes
nas argumentações dos Ministros. Fez-se uso da sua jurisprudência sobre os
direitos do extraditando e a possível prescrição do crime. Também foi discutida
a extensão do compromisso do país quanto à observância das decisões da Cor-
teIDH e a vinculação do STF à sua jurisprudência.
Nessa discussão, o Ministro Teori Zavascki posicionou-se no sentido de
que a autoridade dos julgados da CorteIDH foi reconhecida plenamente pelo

516 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016.


517 Relator Ministro Luiz Fux, aguardando julgamento. Processo eletrônico disponível em <http://redir.
stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=4574695>. Acesso em: 20 mar. 2018.
518 Relator Ministro Edson Fachin, julgamento em 09/11/2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13525350>. Acesso em: 20 mar. 2018.
519 Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 27/06/2017. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13504101>. Acesso em: 20 mar. 2018.

383
30 anos da Constituição

Brasil em 2002, por meio do Decreto n.º 4.463/2002, embora apenas “para fatos
posteriores a 10 de dezembro de 1998”.
Já o Ministro Gilmar Mendes se posicionou no sentido que o STF não
deve se preocupar com as decisões anteriores da Corte Interamericana, que não
o vinculam, já que não tratam do caso específico em discussão. Para ele, embora
relevantes, os precedentes não apresentam identidade quanto à causa de pedir e
ao pedido da extradição em julgamento, sendo apenas semelhantes a ele.
Decidiu-se, ao final, de forma contrária à jurisprudência da CorteIDH,
sobre a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade e sobre políticas de
memória, verdade e justiça.
Na Extradição n.º 1.327, o Relator, Ministro Marco Aurélio, votou pelo
não provimento da ação, argumentando que:
Ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento
do caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) versus Brasil, de
24 de novembro de 2010, tenha assentado, no tocante à Lei de Anistia, a
violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pleno do Su-
premo, na apreciação da arguição de descumprimento de preceito fun-
damental nº 153, relator o ministro Eros Grau, em 29 de abril de 2010,
com acórdão publicado no Diário da Justiça de 8 de agosto seguinte,
declarou a constitucionalidade do referido diploma legal, decisão ainda
não suplantada por pronunciamento posterior deste Tribunal.

A decisão do Tribunal, pela aplicação da Lei brasileira de Anistia ao caso


e, consequentemente, pela não extradição e revogação da prisão preventiva do
extraditando, foi na contramão da jurisprudência da CorteIDH, que condenou
o Estado brasileiro a reconhecer a invalidade daquela norma.
Estas três decisões demostram que ainda há muita divergência entre os
sistemas interno e regional, em especial quanto à harmonia que se pretende no
âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Afinal, o Brasil reconheceu como obrigatória a competência da Corte In-
teramericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação
ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos, conforme o ar-
tigo 1º do Decreto nº 4.463/2002, o que impõe, como dissemos, a todos os seus
órgãos o dever de decidir em consonância com a sua jurisprudência. Decidir de

384
30 anos da Constituição

maneira contrária a ela representa a violação de um compromisso internacio-


nalmente assumido e, por consequência, da própria Constituição.
Vale ressaltar que esses são casos em que o Tribunal faz expressa referên-
cia a decisões da Corte e explica os motivos pelos quais não as está aplicando.
Há, ainda, muitas decisões em que se ignora completamente a existência de
jurisprudência interamericana sobre o tema discutido, omitindo-se, portanto,
quanto à própria obrigação do STF perante a CorteIDH.

2.2. Influência reflexa: decisões compatíveis com a


jurisprudência da CorteIDH, sem diálogo eficaz
Na maioria dos julgados do STF que fazem referência expressa à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, verificou-se que sua influência se deu
de maneira indireta, já que, embora decidindo no mesmo sentido daqueles pre-
cedentes, o Tribunal não discorreu sobre esta vinculação ou mesmo sobre a
importância de se decidir em harmonia com eles.
Nestes casos, a referência à jurisprudência da CorteIDH se deu de forma
pontual, com o intuito de reforçar certos argumentos, sem que fosse estabe-
lecida uma efetiva correlação entre aqueles julgados e a decisão tomada pelo
Tribunal, caracterizando, assim, uma influência reflexa.
Tais acórdãos do STF têm em comum o fato de que, mesmo decidindo
conforme à CorteIDH, as citações à sua jurisprudência, geralmente feitas de
forma individual por alguns Ministros, ao contrário de buscar estabelecer um
verdadeiro diálogo com aquele sistema, se deu de forma seletiva e fragmentada,
como se estivesse a citar mais uma fonte comum do direito comparado, e não
uma Corte de jurisidção obrigatória.
Foi o que se verificou na Ação Popular n.º 3.388520, julgada em 19 de
março de 2009, que tratava da demarcação de terras indígenas. Nesta decisão,
o Ministro Menezes Direito citou o caso Awas Tigni vs. Nicaragua, no qual a
CorteIDH aplicou sanções à Nicarágua em razão da violação do direito de pro-
priedade dos indígenas sobre suas terras:

520 Relator Ministro Carlos Britto, julgamento em 19/03/2009. Disponível em: <http://redir.stf. jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133>. Acesso em: 20 mar. 2018.

385
30 anos da Constituição

Veja-se recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos


no caso Awas Tingni que aplicou sanções à Nicarágua por entender que
houve violação do direito de propriedade dos indígenas sobre suas ter-
ras, bem como ao seu bem-estar e integridade cultural. Isso revela que
a comunidade internacional não medirá esforços para tentar aplicar aos
Estados-Membros suas posições quanto a esses direitos. Pouco importa
que no caso brasileiro a propriedade das terras indígenas seja da União
(art. 21, XI, CR/88). E assim é porque, segundo a decisão, o art. 21 da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Direito à Proprieda-
de Privada, que garante a “toda pessoa o uso e gozo de seus bens”), que
pode ser subordinado pela lei ao interesse social, deve ser interpretado
como abrangente dos direitos dos índios às suas terras, na forma de sua
ocupação tradicional e seu enfoque coletivo.

Embora o STF tenha declarado constitucional a demarcação contínua de ter-


ras indígenas, produzindo decisão conforme à jurisprudência da CorteIDH, ficou
claro, na leitura do acórdão, que o Tribunal não firmou o seu entendimento em
função daqueles precedentes, citados muito mais com o objetivo de dar suporte à
argumentação levada a efeito do que como orientação determinante para a decisão.
Da mesma forma, na Extradição n.º 1.126521, julgada pelo STF em 22 de ou-
tubro de 2009, o Ministro Celso de Mello ressaltou que o Brasil cumpriu com o seu
dever de comunicar a prisão de um súdito estrangeiro aos respectivos agentes con-
sulares, como prevê a Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Ressaltou a
importância do direito básico da pessoa à notificação consular imediata, citando a
Opinião Consultiva 16522 da CorteIDH para reforçar tal argumento.
Apesar disso, tal referência não serviu para orientar, especificamente, o posi-
cionamento do STF, ou mesmo para interpretar a Constituição, senão para reafir-
mar a relevância do instrumento da notificação consular imediata, não sendo, pois,
determinante para a decisão do Tribunal, pelo deferimento do pedido.
Igualmente, na ADPF nº 130523, que apreciou a constitucionalidade da Lei de
Imprensa, o Ministro Celso de Mello citou em seu voto a Opinião Consultiva nº 7, de

521 Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgamento em 22/10/2009. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606649>. Acesso em: 28 mar. 2018.
522 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_16_esp.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2018.
523 Relator Ministro Carlos Britto, julgamento em 30/04/2009. Disponível em: <http://redir.stf. jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em: 21 mar. 2018.

386
30 anos da Constituição

1986, da CorteIDH, em que se discutiu a essencialidade do direito à personalidade e a


obrigatória aplicação do direito de resposta em todos os países signatários.
O Tribunal decidiu no mesmo sentido do precedente da Corte, embora o
acórdao não tenha enfrentado a necessidade de seguir tal orientação.
Em 2010, no Habeas Corpus nº 105.348524, que tinha por paciente um civil
julgado por Tribunais Militares, o Ministro Celso de Mello citou a decisão da
Corte Interamericana no caso Palamara Iribarne vs. Chile525, de 2005:
(...) caso o país entenda necessária a existência de uma jurisdição mili-
tar, esta deve limitar-se somente ao conhecimento de delitos de função
cometidos por militares em serviço ativo. Agregou que o Estado deve
criar limites materiais e pessoais de tal forma que em nenhuma circuns-
tância um civil se veja submetido à jurisdição dos direitos militares.

A partir de então, o Ministro passou a citar reiteradamenre a mesma de-


cisão da CorteIDH como fundamento de seus votos em ações envolvendo o
julgamento de civis perante Cortes Militares. Isto se deu em 2011, nos HCs de
n.º 106.171526, 109.544527 e 107.731528; em 2012, no HC n.º 105.256529, e em 2013,
nos HCs de n.º 112.936530, 110.237531 e 110.185532.

524 Relator Ministro Ayres Britto, julgamento em 19/10/2010. Disponível em: <http://redir.stf. jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=960532>. Acesso em: 21 mar. 2018.
525 Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_135_esp.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2018.
526 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 01/03/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1099369>. Acesso em: 22 mar. 2018.
527 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 09/08/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1411117>. Acesso em: 22 mar. 2018.
528 Relator Ministro Ayres Britto, julgamento em 17/05/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1786599>. Acesso em: 22 mar. 2018.
529 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 12/06/2012. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3390982>. Acesso em: 22 mar. 2018.
530 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 05/02/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3805159>. Acesso em: 22 mar. 2018.
531 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 19/02/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3456276>. Acesso em: 22 mar. 2018.
532 Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 14/05/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7046328>. Acesso em: 22 mar. 2018.

387
30 anos da Constituição

Em todos eles, os processos foram deferidos, total ou parcialmente, com


fundamento na incompetência absoluta da Justiça Militar da União, de acordo,
portanto, com a jurisprudência interamericana, mas sem reconhecer esta vin-
culação de forma expressa.
As decisões nos habeas corpus acima revelam, ainda, o caráter pessoal do
uso da jurisprudência da CorteIDH como referência para osjulgamentos do
STF, já que em outros acórdãos do Tribunal sobre o mesmo tema não se fez esta
menção. Vê-se, portanto, que não se trata de uma prática orgânica do Tribunal,
senão de cada um de seus integrantes, isoladamente.
A influência reflexa também se deu na ADPF n.° 132533, julgada em 2011
em conjunto com a ADI n.º 4.277534, que tratavam da união estável homoafe-
tiva. Nesta decisão histórica, o Tribunal decidiu pela validade da interpretação
que igualava o regime da união estável heteroafetiva à de natureza homoafetiva.
O Ministro Marco Aurélio citou a jurisprudência da CorteIDH ao argu-
mentar sobre o direito ao projeto de vida como conteúdo essencial da dignidade
da pessoa humana. O Tribunal decidiu no mesmo sentido do precedente Corte,
sem, contudo, firmar a necessária correlação entre ambos.
Da mesma forma, no Habeas Corpus n.º 115.539535, julgado em 2013, a
condenação do Brasil pela Corte Interamericana em razão da violação de di-
versos direitos fundamentais nos presídios brasileiros foi usada para justificar a
necessidade de transferir um detento que apresentava ameaça aos outros pre-
sidiários. O HC foi indeferido, mantendo-se a ordem de transferência para um
presídio de segurança máxima então determinada pelo Superior Tribunal de
Justiça. Utilizou-se, assim, a decisão da CorteIDH para reforçar o argumento de
que a transferência do preso seria imprescindivel à garantia de segurança nos
presídios, sem reconhecer a vinculação do Tribunal a ela.

533 Relator Ministro Ayres Britto, julgamento em 05/05/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/


paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 22 mar. 2018.
534 Relator Ministro Ayres Britto, julgamento em 05/05/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 22 mar. 2018.
535 Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 03/09/2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4531406>. Acesso em: 28 mar. 2018.

388
30 anos da Constituição

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.815536, julgada em 10 de maio


de 2015, o Supremo Tribunal Federal discutiu se seria possível se exigir autorização
prévia para a publicação de obras biográficas, ou se isso caracterizaria censura.
A Relatora, Ministra Cármen Lúcia, mencionou a decisão da Corte Inte-
ramericana no Caso Palamara Iribarne vs. Chile, em que se considerou a censura
prévia de um filme contrária à liberdade de expressão e ao direito de informa-
ção dos cidadãos chilenos.
Citou também o caso Olmedo Bustos versus Chile, no qual a CorteIDH entendeu
que a liberdade de expressão congrega o direito de expressar o próprio pensamento
bem como o de buscar e difundir informações sobre qualquer matéria.
A ADI foi julgada procedente, por unanimidade, declarando inexigível o con-
sentimento da pessoa biografada bem como a autorização de pessoas retratadas como
coadjuvantes nas obras biográficas literárias ou audiovisuais. Houve, sem dúvida, in-
fluência da jurisprudência da CorteIDH, citada, porém, muito mais para justificar
uma determinada posição do que enquanto precedente vinculante para o STF.
O STF também citou a CorteIDH no julgamento da ADPF n.º 378537, em 17
de dezembro de 2015, que tinha como objeto a análise da compatibilidade do rito do
impeachment, previsto na Lei Federal nº 1.079/1950, com a Constituição de 1988.
O Ministro Relator à época do julgamento, Edson Fachin, citou a decisão da
CorteIDH no caso Tribunal Constitucional vs. Peru (sentença de 31 de janeiro de
2001), no qual se decidiu que as garantias constantes do Artigo 8º da Convenção
Americana de Direitos Humanos deveriam ser observadas não apenas em processos
judiciais, mas em todo e qualquer procedimento sancionatório promovido pelo Estado
por órgãos que exerçam funções de caráter materialmente jurisdicional.
O Ministro Luís Roberto Barroso divergiu deste posicionamento. Para ele,
a jurisprudência da CorteIDH sobre o referido Artigo 8º não conduz à obri-
gatoriedade da defesa prévia no impeachment, mas, tão-somente, da extensão
de garantias próprias dos procedimentos criminais àquele processo, concluindo
pela não aplicação do precedente da Corte ao caso concreto.

536 Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgamento em 10/06/2015. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/
processos/detalhe.asp?incidente=4271057>. Acesso em: 28 mar. 2018.
537 Relator Ministro Roberto Barroso, julgamento em 17/12/2015. Disponível em: <http://portal.stf.jus.
br/processos/detalhe.asp?incidente=4899156>. Acesso em: 27 mar. 2018.

389
30 anos da Constituição

Os argumentos levantados pelo Ministro Relator não foram aceitos e ele foi
um dos 5 votos vencidos. Houve, assim, influência reflexa da jurisprudência da
Corte, citada para embasar ambos os votos, mas com distintas interpretações.
O Habeas Corpus n.º 124.306538, julgado em 09 de agosto de 2016, teve
por objeto a liberdade de pacientes e corréus presos em flagrante pela prática
do crime de aborto.
Em seu voto, a Ministra Rosa Weber citou o caso o Artavia Murillo y otros
vs. Costa Rica, de 2012, embora nele não se tratrasse, propriamente, da ques-
tão do aborto, e sim da possibilidade de fecundação in vitro pelas mulheres. O
precedente foi invocado para discutir o alcance interpretativo do Artigo 4.1 da
Convenção Americana de Direitos Humanos dado pela Corte.
O Tribunal decidiu pela inconstitucionalidade da imputação penal por
aborto anterior aos 3 meses de gestação, considerando os argumentos da Corte
Interamericana. A influência reflexa ficou clara sobretudo porque se utilizou,
como fundamento para a decisão, argumentos da Corte exarados em caso com
objeto distinto do discutido pelo STF, citados, portanto, de forma descontextu-
alizada, apenas para fundamentar uma dada opção hermêutica.
No julgamento do Habeas Corpus n.º 126.292539, a CorteIDH foi citada
pelo Ministro Celso de Mello para reforçar seu argumento sobre a presunção
de inocência. No Recurso Extraordinário n.º 646.721540, julgado em maio de
2017, em que se discutiu a distinção entre união estável e casamento, o Rela-
tor, Ministro Marco Aurélio, citou uma decisão da CorteIDH para argumentar
sobre o direito ao projeto de vida. E, no Recurso Extraordinário n.º 580.252541,
demanda movida por um detento visando ao pagamento de indenização por
dano moral causado pelas condições sub-humanas da penitenciária, o Relator,
Ministro Gilmar Mendes, citou rapidamente as diversas vezes em que o Brasil
foi condenado pela CorteIDH por conta de sua situação carcerária.

538 Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 09/08/2016. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/


paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345>. Acesso em: 29 mar. 2018.
539 Relator Ministro Teori Zavascki, julgamento em 17/02/2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246>. Acesso em: 29 mar. 2018.
540 Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 10/05/2017. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13579050>. Acesso em: 29 mar. 2018.
541 Relator Ministro Teori Zavascki, julgamento em 16/02/2017. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13578623>. Acesso em: 29 mar. 2018.

390
30 anos da Constituição

Nestes três casos, como nos anteriores, a referência às decisões da CorteI-


DH foram feitas para reforçar uma determinada tese, como se tratasse de uma
fonte comum de direito comparado, não sendo estabelecido um efetivo diálogo
entre ambas as jurisdições, apesar da congruência das decisões do STF com a
jurisprudência interamericana.

2.3. Efetiva influência: a Constituição de 1988


conforme à jurisprudência da Corte IDH
Dos 28 acórdãos do STF em que há referência à CorteIDH, identificou-se
5 em que a sua jurisprudência foi determinante para a própria hermenêutica de
dispositivos da Constituição de 1988, revelando um diálogo construtivo entre
os sistemas interno e regional, apto a produzir soluções harmônicas em matéria
de direitos humanos, como se pretende no âmbito do Sistema Interamericano.

2.3.1. Artigos 5º, IX e XIV, e 220: liberdade de expressão e


informação versus exigência de diploma de jornalismo para
exercício da profissão (RE n.º 511.961)
O Recurso Extraordinário n.º 511.961542, julgado em 17 de junho de 2009, foi
interposto pelo Ministério Público em sede Ação Civil Pública e tinha por causa
de pedir a não-recepção do artigo 4º, V, do Decreto-Lei nº 972/1969543, que exigia
o diploma de curso superior de jornalismo para o exercício da profissão.
A Ação Civil Pública foi proposta visando essencialmente à proteção dos interes-
ses individuais e homogêneos dos profissionais de jornalismo que atuam sem diploma

542 Relator Ministro Gilmar Mendes, julgamento em 17/06/2009. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/


paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605643> Acesso em: 29 mar. 2018.
543 “Art. 4º. O exercício da profissão de jornalista requer prévio registro no órgão regional competente do
Ministério do Trabalho e Previdência Social que se fará mediante a apresentação de: (...) V - diploma de
curso superior de jornalismo, oficial ou reconhecido registrado no Ministério da Educação e Cultura ou
em instituição por este credenciada, para as funções relacionadas de “a” a “g” no artigo 6º.”. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0972.htm>. Acesso em: 29 mar. 2018.

391
30 anos da Constituição

e dos direitos fundamentais de toda a sociedade à plena liberdade de expressão e de


informação, assegurados nos artigos 5º, IX e XIV544, e 220545 da Constituição de 1988.
O Relator do recurso, Ministro Gilmar Mendes, citou em seu voto o Pa-
recer Consultivo OC-5/85 da Corte Interamericana de Direitos Humanos546,
exarado em 1985, que tratava justamente desta matéria. A CorteIDH entendeu
que a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de
jornalista viola o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos,
que protege a liberdade de expressão em sentido amplo:
A corte expressa o parecer, primeiro, por unanimidade que o registro
profissional obrigatório de jornalistas, na medida em que impeça o acesso
de qualquer pessoa ao uso pleno dos meios de comunicação social como
veículo para se expressar ou para transmitir informação, é incompatível
com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Embora não tenha adentrado no mérito da vinculação do Supremo Tri-


bunal Federal às decisões da CorteIDH, o Relator deu grande ênfase à Opinião
Consultiva em seu voto, tendo sido acompanhado pela maioria do Tribunal,
que deu provimento ao Recurso e declarou a não recepção do dispositivo em
questão pela ordem constitucional de 1988.
Observa-se, neste acórdão, a clara influência do entendimento anterior da
CorteIDH para a construção da decisão do STF, em especial quanto à deter-
minação do alcance dos dispositivos constitucionas que tutelam a liberdade de
expressão e informação.
Dois fatores contribuiram para isso: primeiro porque o parecer da CorteI-
DH tratava exatamente do tema objeto do recurso analisado pelo Supremo Tri-
bunal Federal, o que deixou muito evidente a necessidade de o Estado brasileiro

544 “Art. 5° (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença; (...) XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e
resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...).”.
545 “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. §1°.
Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII
e XIV. §2°.É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
546 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/5a3794bc4994e81fd534219e
2d57e3aa.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.

392
30 anos da Constituição

respeitá-lo; segundo, por se tratar de uma opinião consultiva, não envolvendo


a condenação de um Estado específico, o que reforça a ideia de que o entendi-
mento deve ser seguido indistintamente por todos os países547.

2.3.2. Artigo 5º, §2º: duplo grau de


jurisdição (Ação Penal n.º 470)
Na Ação Penal n.º 470548, julgada em 18 de setembro de 2013, foram pro-
feridas duas decisões, nos agravos regimentais vigésimo quinto e vigésimo sexto,
nas quais se identificou o forte impacto da jurisprudência da CorteIDH na to-
mada de decisão. Em ambos os casos, houve discussão entre os Ministros sobre
a aplicação da decisão da Corte Interamericana.
O “Mensalão”, como ficou conhecida a Ação Penal n.º 470, julgou acusa-
dos de participar em esquema de compra de votos. Os agravos foram interpostos
pelos réus após o Relator, Ministro Joaquim Barbosa, indeferir o pedido de um
dos réus de prazo em dobro para a interposição de embargos infringentes e negar
seguimento aos embargos infringentes de outro acusado. O Ministro alegou que
os embargos infringentes não eram cabíveis nos casos de ações penais originárias.
A discussão passou a girar em torno do direito ao duplo grau de jurisdição
e da possibilidade de interposição desse recurso. Embora este direito não esteja
assegurado formalmente na Constituição de 1988, integra materialmente o seu
rol de garantias fundamentais por força da abertura do artigo 5º, §2º, já que
consta do artigo 8º, 2, ‘h’ do Pacto de São José da Costa Rica549.
O Relator sustentou que a jurisprudência da CorteIDH prevê que o pro-
cesso instaurado perante a Corte Máxima de cada país é uma exceção ao direi-
to ao duplo grau de jurisdição.

547 É certo, como dissemos, que todos os Estados que aceitaram a jurisdição da CorteIDH têm a obrigação
de decidir de acordo com a sua jurisprudência, independentemente de ser ou não parte no caso; contudo,
alguns Ministros do STF já manifestaram o equivocado entendimento de que o Brasil só está obrigado a
seguir tais decisões nos casos em que foi condenado, como se deu, por exemplo, na Extradição n.º 1.362.
548 Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgamento em 18/09/2013. Disponível em: <ftp://ftp.stf.jus.br/
ap470/InteiroTeor_AP470.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.
549 “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes
garantias mínimas: (...) h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior; (...)”.

393
30 anos da Constituição

O Ministro Luiz Fux compartilhou do entendimento do Relator, citando, ainda,


a jurisprudência da Espanha, da Colômbia e da Corte Europeia de Direitos Humanos.
Para ele, “não procede o argumento de que a admissibilidade dos embargos infringen-
tes não seria indispensável para o cumprimento do Pacto de San José da Costa Rica”.
Para justificar seu entendimento, o Ministro se valeu da decisão da Cor-
teIDH no caso Barreto Leiva contra Venezuela550, no sentido de que, se o jul-
gamento ocorrer de forma originária pela Corte Suprema do país, o primeiro
grau deve ficar a cargo de um órgão fracionário, sendo a impugnação conhecida
pelo Plenário, excluídos os juízes que já se pronunciaram. Paradoxalmente, o
Ministro afirmou não ser a decisão aplicável à Ação Penal n.º 470, já que reco-
nhecidas, no caso julgado pela CorteIDH, uma série de violações à Convenção
Americana, diferentemente do que se deu no Mensalão.
É fácil perceber, aqui, que o Ministro extraiu da decisão apenas a parte
que mais lhe interessava, realizando o denominado “cherry piking” a que alude
saLdanha (2015, p. 312), ao interpretá-la da maneira mais coerente com o seu
ponto de vista, de forma descontextualizada.
Isto porque a CorteIDH claramente entendeu que o direito ao duplo grau
de jurisdição não pode ser violado, indicando uma das maneiras pelas quais um
Estado poderia garanti-lo. E, apesar de se argumentar sobre a forma pela qual a
decisão se aplicaria ao caso em discussão, o capítulo em que a decisão foi citada
intitula-se “O caso Barreto Leiva contra Venezuela – não aplicabilidade” (grifos

550 “88. A jurisprudência desta Corte foi enfática ao indicar que o direito de impugnar a decisão busca
proteger o direito de defesa, na medida em que concede a possibilidade de interpor um recurso para
evitar que se torne definitiva uma decisão adotada em um procedimento viciado e que contém
erros que ocasionarão um prejuízo indevido aos interesses do indivíduo submetido à justiça. 89. A
dupla apreciação judicial (ou dupla conformidade judicial), expressada por meio da revisão integral
da decisão condenatória, confirma o fundamento, concede maior credibilidade ao ato jurisdicional
do Estado e, ao mesmo tempo, oferece maior segurança e proteção aos direitos do condenado. 90.
Embora os Estados tenham uma margem de apreciação para regular o exercício desse recurso, não
podem estabelecer restrições ou requisitos que infrinjam a própria essência do direito a recorrer da
decisão. O Estado pode estabelecer foros especiais para o julgamento de altos funcionários públicos, e
estes foros são compatíveis, em princípio, com a Convenção Americana (par. 74 supra). No entanto,
ainda nestas hipóteses, o Estado deve permitir que o indivíduo submetido à justiça conte com a
possibilidade de recorrer da decisão condenatória. Assim aconteceria, por exemplo, se fosse disposto
que o julgamento em primeira instância estaria a cargo do Presidente ou de uma câmara do órgão
colegiado superior e o conhecimento da impugnação corresponderia ao plenário deste órgão, com
exclusão dos que já se pronunciaram sobre o caso.” Barreto Leiva vs. Venezuela, Corte Interamericana
de Direitos Humanos, julgamento em 17 de novembro de 2009. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/
files/conteudo/arquivo/2016/04/5523cf3ae7f45bc966b18b150e1378d8.pdf.>. Acesso em: 29 mar. 2018.

394
30 anos da Constituição

nossos). Estabeleceu-se, assim, um “falso diálogo”, reduzido à instrumentalida-


de, como explica saLdanha (2015, p. 312).
Já o Ministro Celso de Mello, além de trazer uma decisão da CorteIDH
para reforçar o argumento de que o direito à dupla jurisdição deve ser garantido
também no caso de condenações penais decretadas de forma originária por
Cortes Superiores, relembrou a obrigatoriedade de o STF observar a sua juris-
prudência, já que o Brasil:
(...) apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se à jurisdição con-
tenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa
– considerado o formal reconhecimento da obrigatoriedade de observân-
cia e respeito da competência da Corte (Decreto nº 4.463/2002) – que
o Estado brasileiro comprometeu-se, por efeito de sua própria vontade
político-jurídica, “a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é
parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68).

Embora somente os três Ministros tenham citado a jurisprudência da Cor-


teIDH em seus votos, isto levantou o debate sobre a aplicação ou não daquele
precedente à interpretação do §2º do artigo 5º da Constituição, uma parte fun-
damental do acórdão.
O Tribunal decidiu por maioria dar provimento ao agravo regimental e admi-
tir os embargos infringentes, acolhendo o pedido de duplicação do prazo de inter-
posição do recurso. Os Ministros Joaquim Barbosa e Luiz Fux foram votos vencidos.
Deste modo, houve o reconhecimento, ainda que implícito, da obrigatoriedade da
jurisprudência da Corte, que foi determinante para a decisão final do STF.

2.3.3. Artigo, 5º, LVII: presunção de


inocência (RE n.º 591.054)
No Recurso Extraordinário n.º 591.054551, julgado em 17 de dezembro de
2014, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina pleiteava não fossem
considerados como maus antecedentes, no cálculo da pena-base, processos em

551 Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 17/12/2014. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/


paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7866690>. Acesso em: 29 mar. 2018.

395
30 anos da Constituição

curso ou decisões não definitivas contra o réu, com amparo no princípio da


presunção de inocência, assegurado no artigo 5º, LVII552, da Constituição.
O Relator do recurso, Ministro Marco Aurélio, fundamentou seu voto na ju-
risprudência da CorteIDH, citando diversos precedentes sobre esta garantia fun-
damental, também prevista no artigo 8º, parágrafo 2º, da Convenção Americana
de Direitos Humanos553, como os casos Ricardo Canese x Paraguay554, Cabrera
García e Montiel Flores x México555, Tibi x Equador556 e Cantoral Benavides x Peru557.
Como ressaltou o Ministro, nessas decisões, a CorteIDH firmou o enten-
dimento de que a presunção de inocência é elemento essencial para a efetiva
realização do direito à ampla defesa, que acompanha o acusado até o trânsito
em julgado da decisão condenatória. Assim, a decisão judicial que considera o
acusado culpado antes mesmo de seu reconhecimento como tal viola aquela
garantia. Daí porque o Estado não pode condenar uma pessoa ou emitir juízo
de valor à sociedade, moldando a opinião pública, enquanto não firmar, em
definitivo, sua responsabilidade penal.
O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso, firmando a tese de
que a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado
não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena.
Com isso, o STF deu ao artigo 5º, LVII, da Constiuição de 1988, interpre-
tação conforme à jurisprudência da Corte Interamericana, estabelecendo um
profícuo diálogo com este sistema regional.

552 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LVII - ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (...).”
553 “Art. 8º (...) §2º. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto
não se comprove legalmente sua culpa.”
554 Corte Interamericana, julgamento em 31/08/2004. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_111_ing.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.
555 Corte Interamericana, julgamento em 26/11/2010. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_220_ing.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.
556 Corte Interamericana, julgamento em 07/09/2004. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_114_esp.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.
557 Corte Interamericana, julgamento em 18/08/2000. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_69_ing.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.

396
30 anos da Constituição

2.3.4. Artigo 5º, XLIX: competência do Judiciário para


determinar a realização de obras em presídios (RE n.º 592.581)
O Recurso Extraordinário com repercussão geral nº 592.281558, julgado em
13 de agosto de 2015, foi interposto contra acórdão em que se decidiu não ser
da competência do Judiciário determinar ao Executivo a realização de obras em
estabelecimento prisional, com fundamento na separação de poderes.
O Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, citou em seu voto todos os
casos em que o Brasil foi condenado pela CorteIDH em razão das más condi-
ções de seus presídios: o Urso Branco, em Rondônia; o Complexo do Tatuapé
– FEBEM, em São Paulo/SP; a penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, em
Araraquara/SP e a Unidade de Internação Socioeducativa, em Cariacica/ES.
Segundo o Ministro, ao aderir a um tratado ou convenção internacional,
sobretudo os que versam sobre direitos humanos, além do dever de cumprir as
obrigações neles pactuados, o Brasil também fica sujeito à supervisão dos órgãos
internacionais de controle.
Ficou assentada no julgamento a tese segundo a qual:
É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer,
consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergen-
ciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado
da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua
integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX,
da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da
reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes.

Constatou-se a efetiva influência da jurisprudência da Corte Interameri-


cana na interpretação do artigo 5º, XLIX da Constituição de 1988 pelo STF,
que considerou os diversos precedentes nos quais o Estado brasileiro foi conde-
nado pelas más condições das penitenciárias.

558 Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgamento em 13/08/2015. Disponível em: <http://redir.stf.
jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10166964>. Acesso em: 29 mar. 2018.

397
30 anos da Constituição

A orientação anterior da Corte foi determinante para que o STF firmasse o en-
tendimento segundo o qual o Judiciário pode determinar tais obras diante da inércia
da Administração Pública. As referências às tais condenações revelou a urgência e a
necessidade de o Tribunal adotar uma posição uniforme à da Corte nesta matéria.

2.3.5. Artigos 5º, IX; 21, XVI e 220, § 3º, I:


censura prévia de programas televisivos pelo
Estatuto da Criança (ADI n.º 2.404)

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.404559, julgada em 13 de


agosto de 2016, teve por objeto a constitucionalidade da expressão “em horário
diverso do autorizado”, contida no artigo 254 da Lei Federal nº 8.069/90 (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente) em relação aos artigos 5º, IX (liberdade de
expressão); 21, XVI (competência da União) e 220, §3º, I (competência de Lei
Federal), da Constituição de 1988.
Quanto à discussão da constitucionalidade do Estatuto perante o artigo
5º, IX, o Ministro Edson Fachin fez diversas referências às decisões da Corte
Interamericana sobre o tema. Citou o caso Olmedo Bustos e outros vs. Chile560,
de 2001, no qual se discutiu a censura prévia e a sua proibição, estabelecendo
um paralelo entre o entendimento da CorteIDH e a norma constitucional:
É preciso advertir, novamente, que, nos estritos limites da restrição admi-
tida pelo Pacto, a classificação prévia tem a finalidade exclusiva de indicar
as faixas etárias a que se destinam os espetáculos públicos para regular o
acesso, jamais autorizando que, em nome dessa restrição, seja proibida sua
exibição, conforme indicou a Corte no parágrafo 71 do decisum.

Citou também o caso Ricardo Canese vc. Paraguai, no qual a Corte reco-
nheceu que a tipificação legal das sanções aplicáveis às emissoras de radiodifu-
são é, também, exigência do Pacto de São José da Costa Rica, concluindo que:

559 Relator Ministro Dias Toffoli, julgamento em 21/08/2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docI=13259339>. Acesso em: 29 mar. 2018.
560 Corte Interamericana de Direitos Humanos, julgamento em 05/02/2001. Disponível em <http://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.

398
30 anos da Constituição

Informar não pode ser, jamais, censurar. Assim, a expressão “autoriza-


do”, constante do art. 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
conquanto remeta à classificação prévia, deve fazê-lo nos termos admiti-
dos pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

O Ministro Teori Zavascki comentou as citações feitas e mostrou o seu


apoio ao posicionamento apresentado:
Após uma esmerada análise do contexto internacional em que a maté-
ria se insere, o Min. Edson Fachin lembrou que, de um modo geral, os
órgãos de proteção dos direitos humanos – dentre eles a Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos – condenam medidas estatais de proibição
de exibição de conteúdo, entendimento que deveria ser prestigiado neste
julgamento. (grifos nossos).

A ação foi julgada procedente e o termo “em horário diverso do autorizado”


foi considerado inconstitucional. Nesse caso, dado que há uma identidade entre os
casos discutidos pela Corte e o analisado pelo STF, nota-se que o Tribunal não teve
dificuldade de aplicar à sua decisão a jurisprudência da CorteIDH, fixando o en-
tendimento de que é proibida a censura prévia e quais são as exceções a essa regra.

3. conclusões
Ao analisar todas estas decisões, foi possível verificar que a influência
exercida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a interpretação
da Constituição Federal de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal é ainda muito
pontual e fragmentada, a despeito de vinculante e mesmo passados quase 20
anos do seu reconhecimento como obrigatória nas matérias envolvendo o Pacto
de São José da Costa Rica, norma materialmente constitucional.
Além dos acórdãos examinados neste artigo, existem ainda várias outras
decisões em que o STF enfrenta temas a respeito dos quais há jurisprudência
consolidada da CorteIDH, ignorada pelo Tribunal, que sequer a menciona.
Não há dúvidas de que o STF está vinculado a toda e qualquer inter-
pretação dada pela Corte à Convenção Americana de Direitos Humanos. No
entanto, como visto, são poucos os casos em que o Tribunal se pauta na sua

399
30 anos da Constituição

jurisprudência para a tomada de decisão, e menos ainda os que reconhecem a


obrigatoriedade deste diálogo.
Ao contrário, observou-se que, na maioria dos casos, os Ministros somen-
te citam a Corte Interamericana quando lhes convém, ou seja, quando a decisão
reforça o seu entendimento. Molda-se, assim, a sua jurisprudência para que ela
se encaixe perfeitamente à decisão pretendida.
Nota-se, assim, que a Corte ainda não é vista como uma instância regional obri-
gatória, mas como mais uma fonte de direito comparado para fortalecer argumentos
ou mesmo para demonstar erudição, quando citadas decisões de forma descontex-
tualizada, que, por tal razão, nada contribuem para o deslinde do caso em discussão.
Também se constatou que atualmente o uso da jurisprudência da CorteIDH
decorre muito mais de uma postura pessoal de cada julgador do que orgânica, do
próprio Tribunal. Isto porque existem Ministros que consideram necessário ob-
servar tais decisões e frequentemente as utilizam como razão de decidir, ao passo
que outros a ignoram completamente ou mesmo decidem em sentido contrário a
elas, sustentando a sua não obrigatoriedade. Não é possível, portanto, identificar
um padrão ou uma postura unívoca do Tribunal sobre o tema.
O julgamento da ADPF 320, em que se discute a invalidade da Lei de Anistia
em face da decisão da CorteIDH no caso Gomes Lund, poderá ser decisivo a este
respeito, já que os Ministros serão obrigados a enfrentar a matéria, considerando o
expresso posicionamento da Corte quanto à nulidade daquela norma, com a conde-
nação do Brasil à adoção das medidas necessárias à sua invalidação.
Espera-se, com isso, o fortalecimento dos dialógos interjurisdicionais enquanto
mecanismo apto à construção de uma gramática comum aos diversos ordenamentos
estatais em matéria de direitos humanos nas suas relações recíprocas.

RefeRências

BRASIL.SupremoTribunalFederal.AçãoDiretadeInconstitucionalidaden.º2.404,
Relator Ministro Dias Toffoli, julgamento em 21/08/2016. Disponível em: <http://
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400
30 anos da Constituição

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________. Ação Popular n.º 3.388, Relator Ministro Carlos Britto, julgamento
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lator Ministro Ayres Britto, julgamento em 05/05/2011. Disponível em <http://
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27 mar. 2018

________. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153,


Relator Ministro Eros Grau, julgamento em 29/04/2010. Disponível em: <http://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960>.
Acesso em: 20 mar. 2018.

________. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 320, Relator


Ministro Luiz Fux, aguardando julgamento. Processo eletrônico disponível em
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/Consul
tarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4574695>. Acesso em: 20 mar. 2018.

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________. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 378, Relator


Ministro Roberto Barroso, julgamento em 17/12/2015. Disponível em: <http://portal.
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________. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, Re-


lator Ministro Carlos Britto, julgamento em 30/04/2009. Disponível em: <http://
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30 anos da Constituição

________. Habeas Corpus n.º 109.544, Relator Ministro Celso de Mello, jul-
gamento em 09/08/2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
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________. Habeas Corpus n.º 110.185, Relator Ministro Celso de Mello, jul-
gamento em 14/05/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=7046328>. Acesso em: 22 mar. 2018.

________. Habeas Corpus n.º 110.237, Relator Ministro Celso de Mello, jul-
gamento em 19/02/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=3456276>. Acesso em: 22 mar. 2018.

________. Habeas Corpus n.º 112.936, Relator Ministro Celso de Mello, jul-
gamento em 05/02/2013. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
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________. Habeas Corpus n.º 115.539, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento
em 03/09/2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
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________. Habeas Corpus n.º 124.306, Relator Ministro Marco Aurélio, jul-
gamento em 09/08/2016. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
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________. Habeas Corpus n.º 126.292, Relator Ministro Teori Zavascki, jul-
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julgamento em 10/05/2017. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
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Lewandowski, julgamento em 13/08/2015. Disponível em: <http://redir.stf.
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30 anos da Constituição

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405
30 anos da Constituição

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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. rev. e atual.
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406
Educação em Direitos Humanos:
“A Gente Espera do Mundo e o
Mundo Espera de Nós”

Valquíria Ortiz Tavares Costa


Mestre em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Especialista em Direito Processual
Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa sobre Direitos Fundamentais (PUC-SP/
CNPq) e certificado pela PUC-SP. Professora
de Direito Constitucional. Advogada. Criadora
e administradora da página virtual “Direto ao
Ponto em Constitucional” (Facebook e Youtube).

Solange de Oliveira
Mestre em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Especialista em História da Educação
de Mato Grosso pela Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT) e em Direito Constitucional pela
Escola Superior de Advocacia (ESA-OABSP).
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Hermenêutica
e Justiça Constitucional vinculado ao CNPq e
certificado pela PUC-SP. Advogada e Pedagoga.

Sumário
Introdução. 1. Conceito de educação em direitos humanos. 2. Sede cons-
titucional da educação em direitos humanos. 3. Passo a passo na evolução do

407
30 anos da Constituição

plano normativo. 4. O principal alicerce normativo: O Plano Nacional de Edu-


cação em Direitos Humanos (PNEDH). 5. Analfabetismo: legado de atraso. 6.
Conclusão: avanços e retrocessos nos trinta anos da Constituição. Referências.
RESUMO: O presente estudo analisa a implantação da educação em di-
reitos humanos no Brasil, seus avanços no âmbito legal e problemas na erradica-
ção do analfabetismo como caminho para o exercício da cidadania nesses trinta
anos da promulgação da Constituição de 1988.
Palavras-chave: Educação. Educação em Direitos Humanos. Analfabe-
tismo. Cidadania.
EDUCATION IN HUMAN RIGHTS: “WE ARE COUNTING ON
THE WORLD AND THE WORLD IS COUNTING ON US”
ABSTRACT: The present study analyzes the implementation of human
rights education in Brazil, its advances in the legal sphere and problems in the
eradication of illiteracy as a way to exercise citizenship in these thirty years of
the promulgation of the Constitution of 1988.
Keywords: Education. Education in human rights. Illiteracy. Citizenship.

Introdução
O tema educação provoca diferentes emoções nas pessoas. Para uns, é
assunto já batido e debatido. Para outros, é desafiante justamente porque, su-
postamente, têm-se todas as respostas.
O fato é que a Organização das Nações Unidas (ONU) atribui à educação
o papel para criar uma sociedade que promove, defende e respeita os direitos
humanos. Isso significa construir uma sociedade inclusiva que repele a violência.
O primeiro passo foi o lançamento do projeto “Década das Nações Unidas
para a Educação em Direitos Humanos”, realizado no período de 1995-2004.
No entanto, percebeu-se que a transformação da sociedade requer tempo para
alterar costumes já estabelecidos e propagar uma nova visão, por isso foi desen-
volvido o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, constituído
de três etapas que alcançam vários segmentos da sociedade.
O Brasil comprometeu-se a implantar e a promover o programa mundial
em educação em direitos humanos, e o presente artigo se propõe a analisar o seu

408
30 anos da Constituição

conceito, qual o mecanismo legal adotado para seu estabelecimento, bem como
se existem dados para avaliar a sua implantação e o seu progresso.
Considerando que a Constituição Federal atribui à educação o status de
direito fundamental e coloca como objetivo o “preparo para o exercício da cida-
dania”, ao final pretende-se responder à pergunta: nesses trinta anos de Consti-
tuição, seu mandamento está sendo cumprido?

1. Conceito de educação em direitos humanos


“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante
para assumirmos a responsabilidade por ele” (Hannah Arendt).
A educação em direitos, também conhecida como educação jurídica po-
pular ou educação em direitos humanos, constitui uma modalidade de educa-
ção específica e seu conceito é dado pelo próprio Plano de Ação da Primeira
Fase do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos:
A educação em direitos humanos pode ser definida como um conjunto de
atividades de educação, de capacitação e de difusão de informação, orienta-
do para a criação de uma cultura universal de direitos humanos. Uma edu-
cação integral em direitos humanos não somente proporciona conhecimen-
tos sobre os direitos humanos e os mecanismos para protegê-los, mas, além
disso, transmite as aptidões necessárias para promover, defender e aplicar
os direitos humanos na vida cotidiana das pessoas. A educação em direitos
humanos promove as atitudes e o comportamento necessários para que os
direitos humanos para todos os membros da sociedade sejam respeitados.561

A educação em direitos humanos promove o enfoque holístico na medida


em que busca,
[...] por um lado, os “direitos humanos pela educação” – isto é, conseguir que
todos os componentes e processos de aprendizagem, incluindo os planos de
estudo, o material didático, os métodos pedagógicos e a capacitação, condu-
zam ao aprendizado dos direitos humanos – e, por outro lado, a “realização

561 Plano de Ação da Primeira Fase (2005-2007) do Programa Mundial para Educação em Direitos
Humanos. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001478/147853por.pdf>. Acesso
em: 26 mar. 2016, p. 6.

409
30 anos da Constituição

dos direitos humanos na educação” – que consiste em fazer valer o respeito


aos direitos humanos de todos os membros da comunidade escolar.562

A educação em direitos humanos diferencia-se do modelo tradicional, pre-


ocupado apenas em transmitir informação, transformando o aluno num mero
repositório de dados, a “educação bancária”, conforme Paulo Freire, para propor
uma metodologia participativa que privilegia a interdisciplinaridade e a partici-
pação do aluno na construção do conhecimento.
É essencial que a educação em direitos seja contextualizada com os pro-
blemas enfrentados no dia a dia pelos educandos, respeitando as diversidades e
as diferenças para escapar à hegemonia, favorecendo as iniciativas locais para
estimular a efetiva participação de toda a sociedade na consecução desse obje-
tivo comum, que é o de promover os direitos humanos.
Portanto, a metodologia a ser empregada na educação em direitos huma-
nos coloca o educando no centro do processo educativo e alia teoria e prática,
utilizando de recursos, tais como dramatização, desenhos, jogos, enfim, todo
instrumento que contribua para o efetivo aprendizado.
É importante que o professor se liberte da tradicional hierarquia para entender
que o aprendizado envolve tanto o educador quanto o aluno e, portanto, desenvolve-se
num esforço conjunto,563 transformando educador e educando em sujeitos do saber.

562 Plano de Ação da Primeira Fase (2005-2007) do Programa Mundial para Educação em Direitos
Humanos. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001478/147853por.pdf>. Acesso
em: 26 mar. 2016, p. 5.
563 “Por isso, as técnicas pedagógicas devem orientar-se no sentido de uma geral recuperação da
capacidade de sentir e de pensar. Isso implica uma prática pedagógica capaz de penetrar através
dos sentidos e que, portanto, deve espelhar a capacidade de tocar os sentidos nas dimensões do ver
(uso do filme, da imagem, da foto na prática pedagógica), do fazer (tornar o aluno produtor, capaz
de reagir na prática pedagógica), do sentir (vivenciar situações em que se imagina o protagonista
ou a vítima da história), do falar (interação que aproxima a importância de sua opinião), do ouvir
(palavras, músicas, sons, ruídos, efeitos sonoros que repercutem na ênfase de uma informação, de uma
análise, de um momento, de uma situação). Esse arcabouço de formas de fomentar a aproximação do
sentir e do pensar crítico dá-se pelo fato de penetrar pelos poros, gerando angústia, medo, dúvida,
revolta, mobilização, reflexão, interação, opiniões exaltadas, espanto, descoberta, curiosidade,
anseios, esperança... Quando isso está em movimento, a sala de aula foi tornada um laboratório de
experiências significativas, do ponto de vista pedagógico. O educando precisa, sobretudo, sentir-se
tocado em diversas dimensões e de diversas formas, assim como ter despertados os próprios sentidos
à percepção do real, o que permite recuperar a possibilidade de aproximação da prática educativa,
numa correção de rumos, em direção à reconquista da subjetividade autônoma. Para isso, práticas
pedagógicas sincréticas podem colaborar acerbamente para a produção de resultados, humanidades,

410
30 anos da Constituição

Além disso, o ensino dos direitos humanos encontra na história uma im-
portante fonte de aprendizado, pois permite que as pessoas compreendam a sua
responsabilidade na construção do destino coletivo futuro.
Por isso, a educação em direitos humanos tem por meta transformar a
sociedade a partir da própria sociedade.564 O objetivo é criar indivíduos que
não esperem que todas as medidas sejam tomadas pelo Poder Público, mas en-
tendam seu próprio papel na promoção da mudança da sociedade. Enfim, cabe
à educação em direitos o papel de criar indivíduos aptos ao exercício da cida-
dania, ou ao menos preparar as condições para que essa transformação ocorra
futuramente como fruto do amadurecimento da sociedade.565
A missão da educação em direitos humanos também tem por objetivo rea-
firmar os direitos e o respeito às minorias e aos grupos vulneráveis, construindo
um diálogo entre todos os grupos sociais.566

ou seja, explorando-se poesia, literatura, pintura, cinema, teatro, aproveitando-se o potencial criativo
para tornar a sala de aula um laboratório de ideias. Essa experiência ético-estética reabilita o potencial
transformador da educação e, portanto, do ensino jurídico” (BITTAR, Eduardo C. B. Democracia,
justiça e direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 48-49).
564 Sobre o assunto, Valmir Flores Pinto, referindo-se ao pensamento de José Ortega y Gasset, explica
que a “Educação e cidadania não são coniventes com qualquer forma de totalitarismo e autoritarismo,
seja em nível de governos, de educadores, de gestores ou progenitores. Quando em Ortega y Gasset
se afirma que o Homem é um eu e a circunstância, isso significa mencionar a acomodação imposta às
massas por muitos meios, e um dos principais é a educação formal (ORTEGA; GASSET, 1971). Os
sistemas políticos coletivistas não incentivam as pessoas a saírem das suas circunstâncias. Esta ideia
promove uma incultura no homem. Por educação entende-se o conduzir o educando para fora do lugar
em que se encontra. O sair do lugar, aqui, é criar meios para que o homem saia da sua menoridade.
É uma espécie de dilatação da vida para fora do meio em que ela está situada, tornando-se cidadão”
(PINTO, Valmir Flores. Filosofia e formação para cidadania. Revista EducAmazônia – Educação,
Sociedade e Meio Ambiente, Manaus, v. 2, n. 1-2, p. 14, 2011).
565 Nesse sentido: “Compreender a democracia e os direitos humanos como uma construção que se faz ao
longo da história e que tem diante de si o futuro pressupõe atribuir à educação um lugar indispensável
de formação em e para os direitos humanos, na medida em que, através do ato educativo, pode-
se, senão transformar a sociedade, construir uma cultura indispensável para essa transformação.
Ou, como ensinava Freire (1995), se a educação por si não muda o mundo, sem educação não se
pode mudar a sociedade” (VIOLA, Solon Eduardo Annes; BARREIRA, Claranda; PIRES, Thiago
Vieira. Direitos humanos: de movimento social à proposta educativa. In: VIOLA, Solon Eduardo
Annes; ALBUQUERQUE, Marina Z. de (Org.). Fundamentos para educação em direitos humanos. São
Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 149-150).
566 CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educação em direitos humanos: caminhos para a efetivação da democracia
e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pública. 2014. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 110.

411
30 anos da Constituição

Em sentido amplo, a finalidade da educação em direitos humanos acaba


compatibilizando-se com os fins próprios da educação, por exemplo, a busca pela
formação integral do indivíduo, tanto no campo individual quanto moral e social,
para o pleno desenvolvimento de sua personalidade, autonomia e emancipação.
A educação em direitos humanos deve ser, portanto, aquela que desperta a
curiosidade no educando e lhe confere instrumentos para desafiar a sua própria
realidade e transformá-la.

2. Sede constitucional da educação em direitos humanos


A educação como direito humano é considerada um direito social inte-
grante da denominada segunda geração de direitos, formulados e afirmados a
partir do século XIX.567
Maria Garcia lembra-nos que se trata de um direito fundamental à vida,
pois, “assim vinculados diretamente ao direito à vida, os direitos sociais constantes
do art. 6.º (‘a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados’)”.568
Rememorando o painel de influências presentes na elaboração da Consti-
tuição, Mônica Herman retrata:
[...] em verdade, a elaboração do documento constitucional de 1988 resultou
de influências de grupos e facções políticas representativas dos mais diferen-
tes e diversificados setores da sociedade e o quadro decorrente dessa espiral
de ações de interveniência configura a radiografia exata do espírito ávido
por garantias à liberdade reinante naquele momento histórico. Daí, embora,
própria a vocação do nosso Direito Constitucional em acolher e oferecer o
superior status da Lei Maior ao tópico “direitos e garantias fundamentais”, o
modelo atual oferece peculiaridades, a começar pelas figuras introduzidas e
pela singular topografia, vez que, como acima apontado, estreia o posiciona-
mento dessa matéria logo no começo do texto, no seu título II.569

567 CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direito à educação, diversidade e educação em direitos humanos.
Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 720, jul.-set. 2012.
568 GARCIA, Maria. Mas quais são os direitos fundamentais? Revista de Direito Constitucional e
Internacional, São Paulo, v. 39, p. 7, abr.-jun. 2002.
569 CAGGIANO, Mônica Herman S. A educação. Direito fundamental. In: RANIERI, Nina Beatriz
Stocco (Coord.); RIGHETTI Sabine (Org.). Direito à educação. São Paulo: Editora da Universidade
São Paulo, 2009. p. 30.

412
30 anos da Constituição

A referida autora explica ainda que:


[...] o tratamento do tópico educação é identificado ao longo de toda a tex-
tura constitucional. De forma sucinta e sistematizada, o analista vai se de-
parar com a seguinte lista de preceitos abordando a questão educacional:
Art. 5.º, IV e XIV;
Art. 6.º, caput (D. Sociais) – Cap. II do Tít. II;
Art. 7.º, XXV – assistência a dependentes e filhos de 0 a 5 anos;
Art. 23, V – competência comum – promoção da educação;
Art. 24, IX e XV – competência concorrente. Normas gerais e específicas;
Art. 30, VI (competência comum envolvendo obrigação do município),
Art. 205 (Séc. I, Cap. III, Tít. VIII – Da Ordem Social);
Art. 206 – princípios de regência do ensino;
Art. 207 – universidades – a autonomia universitária;
Art. 208 – educação dever do Estado;
Art. 209 – ensino privado – regras de atendimento
Art. 210 – formação básica comum e respeito aos valores culturais e ar-
tísticos, nacionais e regionais; ensino religioso e língua portuguesa (§ 1.º);
Art. 211 – organização do sistema federal de ensino;
Art. 212 – 18% União e 25% Estados e municípios;
Art 213 – direção dos recursos públicos.570

Para José Afonso da Silva,


[...] o art. 205 contém uma declaração fundamental que, combinada
com o art. 6.º, eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do
homem. Aí se afirma que a educação é direito de todos, com o que esse
direito é informado pelo princípio da universalidade.571

570 CAGGIANO, Mônica Herman S. A educação. Direito fundamental. In: RANIERI, Nina Beatriz
Stocco (Coord.); RIGHETTI Sabine (Org.). Direito à educação. São Paulo: Editora da Universidade
São Paulo, 2009. p. 30.
571 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 40. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 316-317.

413
30 anos da Constituição

Gilmar Ferreira Mendes572 esclarece:


[...] além da previsão geral do art. 6.º da Constituição, que consagra
o direito à educação como direito de todos e dever do Estado, o texto
constitucional detalhou seu conteúdo mínimo, nos arts. 205 a 214. Nesse
sentido, estabeleceu uma série de princípios norteadores da atividade do
Estado com vistas a efetivar esse direito, tais como a igualdade de condi-
ções para o acesso e permanência na escola, assim como o pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas e a autonomia universitária. Dispôs,
ainda, que União, Estados, Distrito Federal e Municípios deverão orga-
nizar seus sistemas de ensino em regime de colaboração.

O art. 205 da Constituição Federal lega-nos um direito subjetivo, pois


“nota-se, ademais, que o claro objetivo do dispositivo constitucional foi o de
atribuir justiciabilidade ao direito à educação. Em outras palavras, caso o Poder
Público peque no seu dever de prestar educação, tal direito pode, e deve, ser
reivindicado judicialmente”.573
Além disso, “o direito à educação beneficia-se das garantias constitucio-
nais próprias aos direitos e garantias fundamentais, expressas no § 1.º do art. 5.º
e do § 4.º, inciso IV, do art. 60, e também das normas internacionais relativas a
direitos humanos, conforme assegura o § 2.º do art. 5.º”.574
E conclui Nina Ranieri:
[...] de todas as disposições constitucionais apontadas resultam, inequi-
vocamente, avanços relevantes na promoção, proteção e exercício do
direito à educação, em benefício da ampliação das possibilidades de par-
ticipação do indivíduo na elaboração dos valores da sociedade a que
pertence, como já indicado.575

572 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed.
São Paulo: Saraiva. 2014. p. 675.
573 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 18.
ed. São Paulo: Verbatim, 2014. p. 589.
574 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Os Estados e o direito à educação na Constituição de 1988:
comentários acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: ______ (Coord.); RIGHETTI
Sabine (Org.). Direito à educação. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2009. p. 45.
575 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Os Estados e o direito à educação na Constituição de 1988:
comentários acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: ______ (Coord.); RIGHETTI
Sabine (Org.). Direito à educação. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2009. p. 45.

414
30 anos da Constituição

A educação em direitos humanos, considerada um dos eixos fundamentais


do direito à educação,576 cujo principal objetivo é promover a cidadania, missão
constitucional atribuída à educação, é, portanto, um direito fundamental.

3. Passo a passo na evolução do plano normativo


O Brasil possui importantes elementos normativos para tratar da educa-
ção em direitos humanos, cuja evolução será analisada passo a passo.
Primeiramente, é preciso destacar o Programa Nacional de Direitos Huma-
nos (PNDH). Sobre a sua evolução temos que o PNDH I de 1996 era voltado
para a proteção dos direitos civis e políticos, contendo (I) Políticas Públicas
para Proteção e Promoção dos Direitos Humanos (incluindo a proteção do di-
reito à vida, liberdade e igualdade perante a lei); (II) Educação e Cidadania: Ba-
ses para uma Cultura dos Direitos Humanos; (III) Políticas Internacionais para
Promoção dos Direitos Humanos; e (IV) Implementação e Monitoramento do
Programa Nacional de Direitos Humanos.
O PNDH I sofreu ampla revisão para a inclusão dos direitos econômicos, sociais
e culturais em razão da indivisibilidade e da interdependência dos direitos humanos.
O PNDH II, de 2002, agregou novas temáticas, a exemplo da necessidade
de conscientização da sociedade brasileira para a construção de uma cultura de
respeito aos direitos humanos, tais como cultura, lazer, saúde, educação, pre-
vidência social, trabalho, moradia, alimentação, um meio ambiente saudável.
O PNDH III, lançado em 2009 e atualmente vigente, preocupa-se com a
implantação dos direitos humanos como política pública, prevendo em seu eixo
V – Educação e Cultura em Direitos Humanos:
[...] o desenvolvimento de processos educativos permanentes voltados à for-
mação de uma consciência centrada no respeito ao outro, na tolerância, na
solidariedade e no compromisso contra todas as formas de discriminação,
opressão e violência, com base no respeito integral à dignidade humana.577

576 Resolução n.º 1, de 30 de maio de 2012, que estabelece as Diretrizes Nacionais da Educação.
577 Sobre o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, instituído pelo Decreto n.º 7.037/2009 e
atualizado pelo Decreto n.º 7.177/2010, consulte o site: <http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/
sobre-o-pndh3>. Acesso em: 21 jun. 2018.

415
30 anos da Constituição

Com o PNDH III, “o Brasil avançou na materialização das orientações que


possibilitam a concretização e a promoção dos Direitos Humanos. Configura-se
como amplo avanço a interministerialidade de suas diretrizes, de seus objetivos
estratégicos e de suas ações programáticas”.578
Passa-se agora a tratar do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,
demonstrando-se sua criação e reservando tópico próprio para seu aprofundamento.
O caminho para se chegar à implementação do Plano Nacional de Educa-
ção em Direitos Humanos começa na década de 1980 com o início do processo
de redemocratização política. Nesse período, os movimentos sociais libertos da
repressão política passaram a lutar para o fim das violações aos direitos huma-
nos, e as principais atividades promovidas por organizações não governamentais
tinham como objetivo a afirmação dos direitos civis e políticos e a construção
de uma cidadania democrática, ativa e participativa.
O Governo Federal, a partir da década de 1990, em decorrência de com-
promissos firmados internacionalmente, torna-se um agente ativo na elabora-
ção de políticas públicas voltadas à educação em direitos humanos, com a reali-
zação de parcerias entre o Governo Federal e a sociedade civil. Novas temáticas
foram incorporadas posteriormente, acrescentando-se, por exemplo, os direitos
econômicos, sociais e culturais, com questões relativas à diversidade. No âmbito
da educação, é acrescentado o tema transversal referente à “pluralidade cultu-
ral” nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Básico (1995), o que
constitui um importante marco.
Vera Maria Ferrão Candau explica:
[...] na última década, a educação em direitos humanos vem se conso-
lidando cada vez mais no Brasil, tanto no âmbito das políticas públi-
cas como das organizações da sociedade civil, especialmente a partir
do lançamento do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(primeira edição em 2003 e segunda em 2006), elaborado pelo Comitê
Nacional de Educação em Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos
Humanos, órgão vinculado à Presidência da República.579

578 Caderno de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais.
Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção
e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. p. 23.
579 CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direito à educação, diversidade e educação em direitos humanos.
Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 723, jul.-set. 2012.

416
30 anos da Constituição

De acordo com a referida autora,580 a Secretaria de Direitos Humanos e


o Ministério da Educação, comumente em trabalho conjunto, buscam promo-
ver atividades como seminários, cursos, palestras, realizados por universidades,
secretarias de Educação e outros órgãos públicos estaduais e municipais, bem
como por movimentos sociais em todo o País. Também é incentivada a publi-
cação de textos e materiais didáticos, constituindo a formação de educadores a
principal preocupação dessas ações.
Em 2012, foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação e homolo-
gadas pelo Ministro da Educação as Diretrizes Nacionais para a Educação em Di-
reitos Humanos,581 passo importante em direção à implementação e normatização
da educação em direitos humanos no País, tendo como princípios: a dignidade
humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento e a valorização das diferenças
e das diversidades, a laicidade do Estado, a democracia na educação, a transversa-
lidade, a vivência, a globalidade e a sustentabilidade socioambiental.
“Esse documento objetiva orientar a comunidade escolar e todos os que são
responsáveis pela educação, atendendo aos objetivos de promover a inclusão e a
prática da educação em direitos em todos os níveis de ensino.”582
Nas Diretrizes Nacionais para a educação em direitos humanos, ficou es-
tabelecido que a inserção da educação em direitos humanos nos currículos da
educação básica e superior pode ser (I) de forma transversal e interdisciplinar (II),
como conteúdo específico de uma disciplina já existente (III), de maneira mista
combinando transversalidade e disciplinaridade. Prevê, ainda, que a educação em
direitos humanos deve fazer parte da formação inicial e continuada não só dos
professores, mas de todos os profissionais das diferentes áreas do conhecimento.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação583 prevê em seu § 9.º do art.
26584 a inserção do ensino dos direitos humanos como tema transversal nos

580 CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direito à educação, diversidade e educação em direitos humanos.
Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 723, jul.-set. 2012.
581 Resolução n.º 1, de 30 de maio de 2012.
582 Caderno de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. :
Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção
e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. p. 4.
583 Lei n.º 9.394/1996m com alteração dada pela Lei n.º 13.666/2018.
584 “Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a
criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares de que trata

417
30 anos da Constituição

currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, e o


Plano Nacional de Educação (Lei n.º 13.005/2014) estabelece em seu art. 2.º, X,
a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à
sustentabilidade socioambiental.
Demarcada a linha de evolução da criação das principais leis que regem a
educação em direitos humanos, dada a sua peculiar importância, passa-se a analisar
com maior profundidade o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos.

4. O principal alicerce normativo: O Plano Nacional de


Educação em Direitos Humanos (PNEDH)
O Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos foi aprovado em
10.12.2004, pela ONU, por meio da Resolução n.º 59/113-A, com o objetivo de
fomentar o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos, promovendo o
entendimento comum com base em instrumentos internacionais, com a adoção de
princípios e metodologias básicas para a educação em direitos humanos.
Também visa assegurar que a educação em direitos humanos receba a devida
atenção nos planos nacional, regional e internacional, proporcionando um marco
coletivo comum para a adoção de medidas a cargo de todos os agentes pertinentes.
Pretende ampliar as oportunidades de cooperação e de associação em to-
dos os níveis, aproveitando e apoiando os programas de educação em direitos
humanos existentes, ilustrando as práticas satisfatórias a fim de incentivar sua
continuação ou ampliação, assim como criar novas práticas.
A implementação do Programa Mundial de Educação em Direitos Hu-
manos no Brasil se deu por meio do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (PNEDH), que apresenta a educação como um direito em si mesmo,
mas também como um meio indispensável para o acesso a outros direitos.
Os objetivos gerais do PNEDH são compostos de treze metas que podem ser
agrupadas em dois grandes grupos: o primeiro relacionado com ações práticas e ob-
jetivas e o segundo de ações com caráter de posicionamento de políticas do Estado.

o caput deste artigo, tendo como diretriz a Lei n.o 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança
e do Adolescente), observada a produção e distribuição de material didático adequado.”

418
30 anos da Constituição

São propostas sete linhas gerais de ação:585


(I) desenvolvimento normativo e institucional; (II) produção de infor-
mação e conhecimento; (III) realização de parcerias e intercâmbios in-
ternacionais; (IV) produção e divulgação de materiais; (V) formação e
capacitação de profissionais; (VI) gestão de programas e projetos; (VII)
avaliação e monitoramento.

O Plano divide-se em cinco eixos (capítulos) propondo concepções, prin-


cípios e ações programáticas em todos os níveis de educação.
1. Educação Básica: a criação de uma sociedade que respeita e cultiva os
direitos humanos começa na escola, pois:
[...] não é apenas na escola que se produz e reproduz o conhecimento, mas
é nela que esse saber aparece sistematizado e codificado. Ela é um espaço
social privilegiado onde se definem a ação institucional pedagógica e a
prática e vivência dos direitos humanos. Nas sociedades contemporâneas,
a escola é local de estruturação de concepções de mundo e de consciência
social, de circulação e de consolidação de valores, de promoção da diver-
sidade cultural, da formação para a cidadania, de constituição de sujeitos
sociais e de desenvolvimento de práticas pedagógicas.586

A educação em direitos humanos alia a aprendizagem cognitiva com o


desenvolvimento social e emocional de quem se envolve no processo ensino-
-aprendizagem (Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos – PME-
DH/2005). A educação ocorre na comunidade escolar em interação com a co-
munidade local, numa metodologia pedagógica conscientizadora e libertadora
buscando a formação da cidadania ativa.
A educação em direitos humanos deverá promover o desenvolvimento em
três dimensões: (I) conhecimentos e habilidades; (II) valores, atitudes e com-

585 BARBOSA, Janaina Pires. Educação em direitos humanos: um estudo do curso “interseccionando
as diferenças: formação em educação, gênero, raça/etnia, sexualidade e pessoas com deficiência em
Goiás. 2003. Dissertação (Mestrado Educação: História, Política, Sociedade) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, p. 52.
586 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 31.

419
30 anos da Constituição

portamentos; (III) ações de promoção, defesa e reparação das violações aos


direitos humanos.
O Plano Nacional prevê seis princípios norteadores dos quais destaca-se
que a educação em direitos humanos deve ser o eixo fundamental da educação
básica, por isso permeará desde o currículo até a formação inicial e continua-
da dos profissionais da educação, incluindo o Projeto Político Pedagógico da
escola, os materiais didático-pedagógicos, bem como o modelo de gestão e a
avaliação, ressaltando-se o seu caráter transversal.
São previstas ainda vinte e sete ações programáticas para implantação e
desenvolvimento da educação em direitos humanos na educação básica.
2. As universidades brasileiras desempenham um importante papel na
criação e difusão de uma cultura de respeito aos direitos humanos, pois são
permeáveis à adoção de novas práticas e, comumente, têm por objetivo formar
o pensamento autônomo, constituindo o terreno ideal para a construção da
capacidade crítica do aluno e de uma postura democratizante e emancipadora,
a fim de servir de norte para a sociedade.
“No ensino, a educação em direitos humanos pode ser incluída por meio
de diferentes modalidades, tais como disciplinas obrigatórias e optativas, linhas
de pesquisa e áreas de concentração, transversalização no projeto político-pe-
dagógico, entre outros.”587
Finalmente, no que tange à extensão universitária, ao incluir os direitos
humanos no plano nacional de extensão universitária, fortaleceu o compromis-
so assumido pelas universidades na promoção dos direitos humanos.
Para nortear a atuação das universidades, são propostos oito princípios e
vinte e uma ações programáticas.

587 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/


index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 31.

420
30 anos da Constituição

3. A educação não formal: conforme previsto no PNEDH,588


[os] movimentos sociais, entidades civis e partidos políticos praticam edu-
cação não formal quando estimulam os grupos sociais a refletirem sobre
as suas próprias condições de vida, os processos históricos em que estão
inseridos e o papel que desempenham na sociedade contemporânea. Mui-
tas práticas educativas não formais enfatizam a reflexão e o conhecimento
das pessoas e grupos sobre os direitos civis, políticos, econômicos, sociais
e culturais. Também estimulam os grupos e as comunidades a se organiza-
rem e proporem interlocução com as autoridades públicas, principalmente
no que se refere ao encaminhamento das suas principais reivindicações e
à formulação de propostas para as políticas públicas.

O fomento da educação não formal em direitos humanos conta com a


orientação de sete princípios e quatorze ações programáticas para concretizá-la.
4. Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança:
A educação em direitos humanos constitui um instrumento estratégico
no interior das políticas de segurança e justiça para respaldar a conso-
nância entre uma cultura de promoção e defesa dos direitos humanos e
os princípios democráticos. A formulação de políticas públicas de segu-
rança e de administração da justiça, em uma sociedade democrática, re-
quer a formação de agentes policiais, guardas municipais, bombeiros(as)
e de profissionais da justiça com base nos princípios e valores dos direitos
humanos, previstos na legislação nacional e nos dispositivos normativos
internacionais firmados pelo Brasil.589

Para alcançar esse objetivo, o Plano Nacional estabelece quatorze princí-


pios norteadores e vinte e seis ações programáticas fixando as políticas públicas
que serão implementadas.

588 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/


index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 43.
589 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 48.

421
30 anos da Constituição

5. Educação e Mídia: os meios de comunicação compreendem as insti-


tuições, aparatos, organismos e mecanismos voltados para produzir, divulgar e
avaliar as informações destinadas a diversos públicos.
A mídia pode tanto cumprir um papel de reprodução ideológica que re-
força o modelo de uma sociedade individualista, não solidária e não de-
mocrática, quanto exercer um papel fundamental na educação crítica em
direitos humanos, em razão do seu enorme potencial para atingir todos os
setores da sociedade com linguagens diferentes na divulgação de infor-
mações, na reprodução de valores e na propagação de ideias e saberes.590

Por isso, o PNEDH591 aponta cinco princípios e vinte e três ações progra-
máticas para implementá-la na sociedade.
Conclui-se que o Brasil, por meio do PNEDH, implementa a educação
em direitos humanos prevista no programa mundial de educação em direitos
humanos, seguindo sua linha mestra.
Uma vez analisado o plano normativo, parte-se agora para um olhar par-
ticular sobre uma questão que o Brasil precisa resolver se quiser ter efetividade
na implantação da educação em direitos humanos: o analfabetismo.

5. Analfabetismo: legado de atraso


Apesar do período de trevas que a humanidade enfrentou durante a Pri-
meira e a Segunda Guerra Mundial, em especial esta última, que fez crescer
sentimentos de intolerância entre as pessoas, com o seu término, a ONU, em
10 de dezembro de 1948, em Conferência realizada em Paris, promulga a De-
claração Universal dos Direitos Humanos,592 cujo objetivo era combater todas

590 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/


index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 53.
591 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 nov. 2017, p. 31.
592 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), adotada e proclamada pela Resolução n.º 217
(III) da Assembleia Geral, em seu preâmbulo “proclama a presente Declaração Universal dos Direitos
Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de
que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem,

422
30 anos da Constituição

as atrocidades geradas pela xenofobia, racismo, antissemitismo e desrespeito


pelos direitos das pessoas. Por meio dessa Declaração, reconhece-se a demo-
cracia como o único regime político eficaz para assegurar os direitos humanos
e a dignidade humana, que são fundamentos da liberdade, justiça e paz para
o mundo.593 O legado de tão importante documento, do qual resultam muitos
sistemas de proteção da pessoa humana, ainda está longe do ideal. Tomemos
como exemplo inicial a educação, reconhecida no art. 205 da Constituição Fe-
deral como direito social, portanto, indispensável para o crescimento não só do
indivíduo, mas também de uma coletividade e, por que não afirmar, do planeta.
O que parece utopia enxerga-se neste artigo como possibilidade de construção
da cidadania. Assim, não se pode falar em cidadania, se a escolarização é ne-
gada a cada pessoa individual e coletivamente. Dessarte, compreende-se que a
educação precisa avançar em qualidade e, principalmente, diminuir os índices
de analfabetismo.594 Para Vera Masagão Ribeiro, a definição de alfabetização
que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) propôs em 1958 limitava-se à capacidade de ler compreensivamente
ou escrever um enunciado curto e simples relacionado à sua vida diária.595 E
é justamente nesse ponto que este artigo enfrenta o analfabetismo como um
grave problema capaz de comprometer o exercício pleno da cidadania e o de-
senvolvimento socioeconômico do País. Portanto, a nossa opção neste texto é
demonstrar, por meio do recorte da taxa de analfabetismo por faixa etária/por
região entre a federação, o agravamento da situação educacional no que se refe-
re às análises comparativas das regiões brasileiras, o comprometimento do direi-
to de todos à educação e a sua repercussão de forma dissonante com a política
educacional trazida pelo PNEDH, uma vez que se entende que, pela educação,

através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção
de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a
sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros quanto entre
os povos dos territórios sob sua jurisdição”. Trata-se de um documento incomparável na história da
humanidade, que consagrou o ser humano como sujeito de direitos.
593 OLIVEIRA, Solange de. O direito à saúde na Constituição brasileira: complexidades de uma relação
público-privada no SUS. 2017. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, p. 36.
594 Analfabetismo é uma palavra utilizada no português para designar a condição daqueles que não
sabem ler e escrever; seu antônimo, alfabetismo, embora dicionarizado, designa a condição daqueles
que sabem ler e escrever.
595 RIBEIRO, Vera Masagão. Alfabetismo funcional: referências conceituais e metodológicas para a
pesquisa. Educação & Sociedade, Campinas, ano XVIII, n. 60, dez. 1997.

423
30 anos da Constituição

é um bom começo para a transformação. Mesmo conscientes de que as ações


sustentadas até o momento ainda não foram suficientes para a mudança do ce-
nário no Brasil, em que, segundo os dados596 obtidos a partir da Pesquisa Nacio-
nal por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE),597 no Brasil, em 2016, a taxa de analfabetismo
das pessoas de 15 anos ou mais de idade foi estimada em 7,2% (11,8 milhões de
analfabetos). Na faixa de 60 anos ou mais de idade, a taxa atingiu 20,4%.
Conforme apresentado no Gráfico 1, ao agregar ao recorte etário outra vari-
ável, amplia-se demasiadamente o índice de analfabetismo entre o primeiro e o se-
gundo grupo etário. Por exemplo, a incidência do analfabetismo entre pessoas com
60 anos ou mais de idade com a população de 15 anos ou mais, o índice é quase três
vezes maior, o que revela que, por meio desse retrato, o analfabetismo ainda é uma
questão estrutural no País e a sua presença é muito mais visível entre a população
idosa. Portanto, esse índice será erradicado ou diminuído se à população mais jovem
forem assegurados o acesso e a permanência na escola, sem perder de vista a opor-
tunidade aos adultos que não tiveram a chance em idade própria.

596 Os dados fazem parte da pesquisa Educação 2017, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) divulgou no dia 18 de maio de 2018, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio Contínua. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-05/
ibge-taxa-de-analfabetismo-no-pais-cai-02-ponto-percentual-em-2017>. Acesso em: 17 jun. 2018.
597 Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-
de-noticias/releases/18992-pnad-continua-2016-51-da-populacao-com-25-anos-ou-mais-do-brasil-
possuiam-apenas-o-ensino-fundamental-completo.html>. Acesso em: 17 jun. 2018.

424
30 anos da Constituição

Gráfico 1: Taxa de analfabetismo entre grupo etário

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Na-


cional por Amostra de Domicílios Contínua (2016).

Tais informações sobre jovens que não frequentam a escola, que é, a nosso
ver, um grupo muito importante para as políticas educacionais, em particular
para políticas de redução de desigualdades, devem ser atacadas se o País quiser
resolver em médio prazo a sua sustentabilidade global. Ao analisar o Gráfico 2,
em que se examina mais detidamente a taxa de analfabetismo entre o grupo
das pessoas de 15 anos ou mais por região no Brasil, verifica-se que o Nordeste
apresenta a maior taxa de analfabetismo no País (14,8%), seguido pelo Nor-
te (8,5%), Centro-Oeste (5,7%), Sudeste (3,8%) e Sul (3,6%), que corrobora
que a desigualdade tem caráter inter-regional no País. Por exemplo, o índice de
analfabetismo no Nordeste é cerca de quatro vezes maior do que no Sul. Daí a
importância de rever no PNEDH como é expressa a desigualdade:
[...] um modelo de Estado em que muitas políticas públicas deixam em segundo
plano os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Ainda há muito

425
30 anos da Constituição

para ser conquistado em termos de respeito à dignidade da pessoa humana, sem


distinção de raça, nacionalidade, etnia, gênero, classe social, região [...].598

Gráfico 2: Taxa de analfabetismo das pessoas


de 15 anos ou mais por região

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Na-


cional por Amostra de Domicílios Contínua (2016).

Pelos dados referenciados supra constatamos que ainda há muito para se


alcançar pela educação em uma perspectiva mais humana, conforme proposta
no referido PNEDH, que trata a educação como um direito humano, compre-
endida, portanto, como um meio que deve possibilitar a formação do sujeito de
direitos. E, neste ponto, em que se analisa a taxa de analfabetismo, percebe-se
que ela continua persistente no País.

598 Plano Nacional de Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-
pdf&category_slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 16. jun. 2018, p. 21.

426
30 anos da Constituição

Observa-se que o PNEDH vê a educação, em especial, a educação em direi-


tos humanos, como um meio indispensável para o acesso a outros direitos.599 Deve
ser implementada ao lado de reformas institucionais e de políticas que promovam
direitos, alterando significativamente as constantes práticas violadoras dos direitos
humanos que inviabilizam a consolidação da democracia no País. No entanto, o
que se identifica são tímidos recursos financeiros e humanos sendo disponibilizados
para a formação de docentes que atuam diretamente nos sistemas de ensino, além
da falta de incentivos que promovam campanhas de conscientização da população
para busca dos seus direitos fundamentais e de como podem acessá-los.
A alta taxa de analfabetismo no Brasil, conforme apresentada neste artigo, re-
presenta, por meio desses números, um legado de atraso que contribuiu e contribui
para o aprofundamento das desigualdades sociais e de renda, ampliando a exclusão,
razão pela qual se reafirma que a incidência do analfabetismo é bem maior entre
os mais velhos, pobres e residentes no Nordeste. Assim, a educação em direitos
humanos significa viabilizar, por meio do acesso à informação e ao conhecimento,
requisitos essenciais para a concretização da cidadania plena, que poderão assegurar
a todas as pessoas, jovens e adultos um mínimo de escolarização.

6. Conclusão: avanços e retrocessos


nos trinta anos da Constituição
Para Meirelles Teixeira, cidadania “consiste na prerrogativa que se con-
cede a brasileiros, mediante preenchimento de certos requisitos legais, de pode-
rem exercer direitos políticos e cumprirem deveres cívicos”.600
Esclarece ainda o referido autor que direitos políticos são
[...] os que a Constituição e as leis ordinárias atribuem a brasileiros, e es-
pecialmente votar e ser votado. Acrescentando algo a essa conceituação

599 Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/


index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_
slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 16 jun. 2018.
600 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Organizadora Maria Garcia. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2011. p. 516.

427
30 anos da Constituição

legal, poderíamos assinalar, como conteúdo dos direitos políticos, a par-


ticipação potencial na vida política, administrativa e cívica do país...601
Maria Garcia, inspirando-se nas lições de Manuel Ramirez, explica que a
democracia possui dois pilares, a participação e a responsabilidade,602 conside-
rados o verso e o anverso de uma mesma medalha.
A autora observa:
[...] e, mais ainda, de acordo com a concepção arendtiana da pessoa e da
liberdade, “o direito a ter direitos” compreende o pleno acesso ao espaço
público, o efetivo exercício do poder político, das “prerrogativas ineren-
tes à cidadania”, conforme explicita a Constituição, no art. 5.º, LXXI, da
CF/1988 (LGL\1988\3), [...].603

Mas como sair da utopia e efetivamente alcançar a cidadania ativa?


“A educação é o problema básico da democracia”,604 responde-nos Maria
Garcia. Acrescentamos apenas que a educação em direitos humanos se propõe
justamente a empoderar o indivíduo no âmbito individual, tornando-o livre e
capaz de romper o ciclo de violações e preconceitos que permeiam seu ambiente,
a exemplo da desigualdade, violência e discriminação, ao mesmo tempo que, no
âmbito coletivo, cria cidadãos capazes de promover a transformação social.605

601 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Organizadora Maria Garcia. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2011. p. 517.
602 GARCIA, Maria. O cidadão, intérprete da Constituição. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, São Paulo, v. 48, p. 102-113, jul.-set. 2004.
603 Deixando à margem a variedade de acepções do democrático, explicita: “temos poucas dúvidas
que, enquanto adjetivo de um regime político, a democracia como princípio (não mero método)
inspirador da organização política contém, inexplicavelmente, duas premissas básicas: participação
e responsabilidade. Verso e anverso de uma mesma medalha que incide sobre o povo feito cidadão”
(GARCIA, Maria. O cidadão, intérprete da Constituição. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, São Paulo, v. 48, p. 102-113, jul.-set. 2004).
604 GARCIA, Maria. Educação, problema básico da democracia: o Estado Federal e a atuação dos Conselhos
Educacionais. Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos, São Paulo, v. 3, p. 999-1009, ago. 2011.
605 “Essa transformação deverá ser um processo construído a partir da leitura crítica do mundo e dos
espaços com que se relaciona, reconhecendo-se como sujeito de direitos e deveres e exercendo a
solidariedade com o outro” (Caderno de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos
Humanos: Diretrizes Nacionais. Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos,
Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. p. 43).

428
30 anos da Constituição

Entretanto, para alcançar o resultado almejado


[...] não basta incluir nos programas escolares uma disciplina de “edu-
cação para a cidadania” como ocorre com frequência, se o aluno não
estiver preparado para construir os conhecimentos e competências ne-
cessárias para entender a complexidade do mundo e da sociedade que o
cerca, para formar uma opinião sua e poder defendê-la; para aprender a
respeitar a opinião do outro e fazer das informações recebidas não um
depósito inútil delas, mas um arquivo que alimente a reflexão, a compre-
ensão, capacitando-o a resolver problemas.606

Por isso, o Brasil adotou a educação em direitos humanos na esperança


de construir uma sociedade que respeita e promove os direitos humanos, tendo
encontrado, a nosso sentir, um caminho para fomentar a cidadania. Não é o
único, mas com certeza é um bom caminho e um bom começo.
Respondamos à pergunta inicial: considerando que a Constituição Federal
atribui à educação o status de direito fundamental e coloca como objetivo o
“preparo para o exercício da cidadania”, nesses trinta anos de Constituição, seu
mandamento está sendo cumprido?
Partindo do pressuposto de que a educação em direitos humanos é essen-
cial para a construção da cidadania, no tocante ao âmbito normativo, vemos
importante esforço na regulamentação da educação em direitos humanos, via-
bilizando no plano legal a sua implementação social.607
Todavia, há ainda um desafio a ser enfrentado: o de erradicação do analfa-
betismo, pois não se pode falar em cidadania, se a escolarização é negada a cada
pessoa individual e coletivamente.
Nesses trinta anos da promulgação da Constituição houve, portanto, im-
portante progresso no âmbito normativo, porém, em termos de implementação

606 LAZZARINI, Luci Leme Brandão; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. A educação na sociedade
contemporânea: o fenômeno do bullying e uma proposta de seu enfrentamento através da TCI
(Terapia Comunitária Integrativa). Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, ano
23, v. 91, p. 319, abr.-jun. 2015.
607 No mesmo sentido: “nota-se, assim, que, em consonância com o sistema da OEA e da ONU, o Brasil já
produziu farta normatização que fundamenta e regulamenta a educação em direitos humanos no País,
fornecendo importantes bases para a sua efetivação” (CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educação em direitos
humanos: caminhos para a efetivação da democracia e dos direitos humanos e o papel da Defensoria
Pública. 2014. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 160).

429
30 anos da Constituição

da educação em direitos humanos, há, ainda, muito trabalho a se fazer para


atingir o objetivo traçado pelo mandamento constitucional de construção da
cidadania. Como diz a canção: “O mundo vai girando cada vez mais veloz. A
gente espera do mundo e o mundo espera de nós”.608

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608 Trecho da música Paciência, do cantor Lenine, álbum Na pressão, lançado em 1999.

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30 anos da Constituição

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433
A Obsolescência da Perspectiva da
Hierarquia dos Tratados Internacionais
para a Coordenação Entre o Direito
Doméstico e o Direito Internacional
em Matéria de Direitos Humanos609

Luiz Guilherme Arcaro Conci610

Sumário: 1) Introdução; 2) Abertura rumo aos direitos humanos inter-


nacionais em outras constituições na América Latina; 3) O Brasil e o proces-
so de abertura tardia e incompleta para o Direito Internacional dos Direito
Humanos; 4) A questão da hierarquia dos tratados internacionais de direitos
humanos no Brasil; 5) A questão da hierarquia dos tratados internacionais de
direitos humanos em âmbito interno: forma, substância e o critério pro persona;
6) A título de conclusão: os blocos de constitucionalidade e convencionalidade
como parâmetros para se descobrir a função atual da discussão a respeito da
hierarquia dos tratados internacionais; 7) Bibliografia

1. Introdução
Perquirir a respeito dos avanços e retrocessos do constitucionalismo brasi-
leiro, no que toca ao direito internacional dos direitos humanos exige que se ob-

609 Dedico o presente artigo ao meu seleto amigo, Prof. Boguslaw Banaszak, Catedrático da Universidade
de Wroclaw e, mais recentemente, da Universidade de Zielona Gora, Polônia, falecido na data de hoje,
10 de janeiro de 2018, precocemente. Ficam os ensinamentos e a sorte da convivência por tantos anos
em diversos sítios e momentos.
610 Professor da Faculdade de Direito e Coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP, com
estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri (2013-2014). Professor Titular da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo – Autarquia Municipal. Professor colaborador do Mestrado em
Direitos Humanos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Professor Visitante das Universidades
de Bolonha (2016) e de Buenos Aires (2011-2014). E-mal: [email protected]/[email protected]

435
30 anos da Constituição

serve um processo que se inicia mesmo antes da promulgação da Constituição


Federal, em 05 de outubro de 1988, e perpassa pelas agruras e felicidades de um
modelo de abertura ao que está para além de nossas fronteiras, mas, também,
internamente, nas instituições estatais, na academia e na cultura isolacionista
do Brasil na América Latina, especialmente. Sendo assim, os campos que se
abrem para tal análise são muito amplos e os riscos de falta de objetivo especí-
fico e bem definido são patentes e perigosos.
A meu sentir, a Constituição brasileira de 1988 é uma daquelas que abre o
que prefiro definir como “novo constitucionalismo latino-americano”, em con-
traste com a expressão que ganhou força a partir da década passada com os
processos constituintes boliviano, equatoriano, venezuelano, etc.
Dentre as características deste processo, além do alargamento dos catálo-
gos de direitos fundamentais, do fortalecimento das instâncias de representação
descentralizadas, dentre outros, está a abertura para o direito internacional dos
direitos humanos ou para o “constitucionalismo internacional”, como se prefe-
rir, que diz respeito ao processo de ampliação da integração por via de direitos
que vem ocorrendo na América Latina e é fruto da expansão do Sistema Inte-
ramericano de Proteção de Direitos Humanos(SIDH)611.
No caso brasileiro, como veremos, a Constituição se “abre” para essa realidade
integracionista, pela primeira vez em nossa história constitucional, mas os resultados
são pouco alentadores, se comparamos à maioria dos outros estados partes do SIDH.
Muito disso tem relação com o excesso de tempo que despendemos para
analisar a questão da hierarquia dos tratados internacionais, negligenciando
outras questões tão ou mais prementes, que discutirei.
Afinal, para que serve dar hierarquia constitucional a tratados interna-
cionais de direitos humanos, atualmente? Essa pergunta conduzirá o presente
trabalho para que, ao final, vejamos o quanto é importante na atualidade.

611 Esse processo não se resume ao caráter inter-regional, mas nele me focarei.

436
30 anos da Constituição

2. A abertura rumo aos direitos humanos internacionais


em outras constituições na América Latina
O tratamento dado aos tratados internacionais de direitos humanos pelas
constituições latino-americanas passou por um processo de aproximação, pois apa-
rece no constitucionalismo dos países latino americanos desde a década de 1980.
Essa “abertura constitucional” para o direito internacional dos direitos humanos
vem em um momento em que uma onda de democracia e de majoração da impor-
tância da proteção da pessoa humana se fortalece nos sistemas constitucionais.
É o caso da Constituição argentina que, desde a reforma de 1994, inscre-
veu em seu texto novidades generosas. Primeiro, o artigo 75, inciso 22, afirma
que os tratados internacionais têm hierarquia supralegal, ou superior às leis, e,
além disso, deu hierarquia constitucional a uma porção de tratados ao trazê-los
para dentro do texto constitucional. Além disto, passou a exigir que também a
denúncia a tais tratados ocorreria unicamente se aprovada por dois terços dos
membros das Câmaras do Parlamento Federal.
A constituição venezuelana, em seu artigo 23, prevê disposição que atribui
hierarquia constitucional aos tratados, pactos e convenções de direitos humanos e,
ademais, que prevalecem sobre o direito interno se forem mais favoráveis à pessoa
humana que as disposições da Constituição e leis nacionais, desde que ratificados.
Na Colômbia, a Constituição de 1991, em seu artigo 93, acentua que “os
tratados e convênios internacionais ratificados pelo Congresso, que reconhe-
cem os direitos humanos e que proíbem sua limitação nos estados de exceção,
prevalecem na ordem interna. Os direitos e deveres consagrados nesta Carta se
interpretarão em conformidade com os tratados internacionais sobre direitos
humanos ratificados pela Colômbia”.
No México, desde a reforma de 2011, a qual alterou o artigo 1º da Cons-
tituição Federal, afirma-se que o princípio pro persona regula a relação entre
tratados internacionais e direito interno, ou seja, surgindo eventual conflito
prevalecerá a norma mais favorável à pessoa humana independentemente de a
fonte ser doméstica ou internacional.
No Brasil, o artigo 5º, parágrafo 2º, gerou dúvidas e conflitos tanto na dou-
trina quanto na jurisprudência, mas, o Supremo Tribunal Federal acabou por
entender que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados antes de

437
30 anos da Constituição

2004, têm hierarquia supralegal, porém ainda estão abaixo da constituição. Na-
quele ano, com a emenda constitucional 45/2004, ao se incluir o §3º ao artigo
5º, instituiu-se um novo procedimento para que alguns deles obtivessem hierar-
quia formalmente constitucional, instituindo um procedimento equivocado612 e
inconstitucional, em clara afronta ao previsto no artigo 4º, inciso II, ao prever um
trâmite mais exigente para que tratados internacionais adquiram hierarquia cons-
titucional, se comparado à própria reforma da Constituição, pois se exige, além da
assinatura e da aprovação do tratado em dois turnos em cada casa do Congresso
Nacional, a participação do Presidente da República com a expedição de decre-
to. Deste ponto, se inicia um novo debate sobre normas formal e materialmente
constitucionais ou unicamente materialmente constitucionais613.

612 Antônio Augusto Cançado Trindade, em seu voto em separado no caso Damião Ximenes Lopez vs.
Brasil apontou que (proferido em 4 de julho de 2006, parágrafos 30, 31, 34 e 35 de seu Voto em Separado):
“30. [...] Mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamentável retrocesso em relação
ao modelo aberto consagrado pelo parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal de 1988 [...]
No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbróglio tão a gosto de publicistas
estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos tratados a
aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciação tão a gosto de publicistas autistas e míopes, tão
pouco familiarizados, - assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, - com as conquistas do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
31. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos
no Estado demandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação
ou atomização, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos gravados de
obscurantismo. [...]
34. Os triunfalistas da recente inserção do parágrafo 3 no artigo 5 da Constituição Federal brasileira, reféns
de um direito formalista e esquecidos do Direito material, não parecem se dar conta de que, do prisma do
Direito Internacional, um tratado como a Convenção Americana ratificado por um Estado o vincula ipso
jure, aplicando-se de imediato e diretamente, quer tenha ele previamente obtido aprovação parlamentar
por maioria simples ou qualificada. Tais providências de ordem interna, - ou, ainda menos, de interna
corporis, - são simples fatos do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional, ou seja, são, do prisma
jurídico-internacional e da responsabilidade internacional do Estado, inteiramente irrelevantes.
35. A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanos
permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas
(como a criação de distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados tratados
com pretendidas consequências jurídicas, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta
de tratados humanitários no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer
subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser
humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em definitivo, a proteção
internacional dos direitos humanos constitui uma conquista humana irreversível, e nãos e deixará
abalar por melancólicos acidentes de percurso do gênero”.
613 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 135.

438
30 anos da Constituição

Como se vê, as Constituições se inserem em um novo ciclo também no tema


dos direitos humanos, o que as permite contemplar um renovado ambiente inter-
nacional para os direitos humanos e novos afazeres para os estados internamente.
A seguir, analisarei, unicamente, alguns pontos a respeito da relação entre
o Brasil e o SIDH de forma a fundamentar as conclusões a que chegarei.

3. O Brasil e o processo de abertura tardia e incompleta


para o Direito Internacional dos Direito Humanos
O constitucionalismo brasileiro, principalmente, a partir do processo de re-
democratização havido com o fim do último regime militar e, mais intensamente,
com a Constituição de 1.988, recebeu tanto em nível regional, no continente
americano, quanto em nível global, influxos que merecem ser devidamente anali-
sados, mas que, para o que se pretende neste espaço, devem ser enfrentados, prin-
cipalmente, segundo a questão dos tratados internacionais de direitos humanos e
os efeitos que produzem no ordenamento jurídico nacional614.
Trata-se de um fenômeno que restringe a centralidade do poder consti-
tuinte, por um lado, e da própria Constituição, que passam, ao mesmo tempo, a
estar condicionados pelo direito internacional dos direitos humanos, dado que
as soluções constitucionais internas “não podem contrariar os parâmetros de
garantia dos direitos humanos fixados pelo direito internacional geral ou co-
mum615”, pois não “são os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana que
estão subordinados à Constituição, antes é a Constituição que está subordinada
ao respeito devido aos direitos humanos616”.
O Brasil é hoje signatário dos principais tratados internacionais de direi-
tos humanos tanto no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA)
quanto da Organização das Nações Unidas (ONU), traduzindo-se isto, em am-
biente nacional, na exigência de acomodação de sua normatividade mediante
a adequação do ordenamento jurídico domésticos aos compromissos assumidos

614 O sistema regional atua em caráter subsidiário ao global. V. Nesse sentido: TANCREDO, Fabrizio
Grandi Monteiro de. O princípio da subsidiariedade: as origens e algumas manifestações. In: Revista
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 46, n. 1, 2005, pg. 186.
615 OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. Volume I. Coimbra: Almedina, 2.007, p. 377.
616 Idem, p. 377.

439
30 anos da Constituição

internacionalmente. Com este fortalecimento da normatividade internacional


dos direitos humanos, o Estado brasileiro e seus agentes, passam, mais e mais, a
ter o dever de cumprir com obrigações internacionalmente assumidas, sob pena
de estar o Estado nacional brasileiro a praticar ilícitos internacionais sancioná-
veis nos dois sistemas de proteção acima mencionados.
Nesse processo de “abertura”, é com a Emenda 45/2004, ademais da rati-
ficação do Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional, ainda, que o
Brasil passou a se submeter à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (art.5º,
§4 da Constituição Federal) e, com a mesma, de modo equivocado, como vere-
mos, inscreveu, no artigo 5º, §3º, mecanismo de atribuição de hierarquia cons-
titucional aos tratados internacionais de direitos humanos617.
Não seria possível mencionar todos os tratados internacionais de direitos
humanos dos quais o Brasil é signatário, mas se exige que mencione alguns
instrumentos para o enfrentamento da questão que se colocou mais acima. O
Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1.992, que promulgou a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e, me-
diante o Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2.002, reconheceu o Brasil, a
jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE
IDH). Nesse sentido, tanto as decisões proferidas pela CORTE IDH em proces-
sos litigiosos quanto em consultas618 passaram a vincular ao Estado brasileiro.

4. A questão da hierarquia dos tratados internacionais de


direitos humanos no Brasil
No direito brasileiro, a discussão a respeito da hierarquia dos tratados in-
ternacionais de direitos humanos, constituiu – e talvez ainda constitua – o as-

617 Com isso, a vetusta figura da pirâmide passa a ser trocada pela de um trapézio, em que no ápice no
ordenamento jurídico também há outras normas jurídicas que não somente as constitucionais. É o caso
da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, internalizada com hierarquia
constitucional. A figura do trapézio foi retirada de BAZÁN, Victor. El derecho internacional de
los derechos humanos em la percepción de la Corte Suprema de Justicia Argentina, In: Revista da
Faculdade de Direito de São Bernardo de Campo, v.13.
618 Vf. ARAÚJO, Nádia. A influência das Opiniões Consultivas da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes et alli. Novas
Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2.008, pp. 575-592.

440
30 anos da Constituição

sunto mais versado em tema de direito internacional dos direitos humanos e os


conflitos no âmbito da doutrina e da jurisprudência ainda são muitos e estamos
longe de uma solução minimamente racional e objetivamente controlável.
De modo sintético, dividiram-se as posições sobre o tema em quatro segmentos:
a) a primeira, capitaneada pelo STF, a partir de decisão tomada em 1977,
no RE 80.004619, assumiu que os tratados, independentemente da sua temática,
teriam hierarquia legal, de leis ordinárias no plano federal.
b) a segunda, agora assumida pelo STF, no RE 466.343, aponta que os
tratados internacionais de direitos humanos detêm hierarquia supralegal, mas
infraconstitucional.
c) a terceira corrente620 capitaneada, na doutrina, por Cançado Trindade
e Flávia Piovesan621, entendeu que os tratados teriam hierarquia constitucional
desde a promulgação da Constituição de 1988.
d) a última, tendo à sua testa Celso Albuquerque de Mello622, dava hierar-
quia supraconstitucional aos tratados internacionais de direitos humanos.

619 “De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se no plenário do Supremo Tribunal Federal, o
julgamento do Recurso Extraordinário 80.004, em que assentada, por maioria, a tese de que, ante
a realidade do conflito entre o tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do
legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela Justiça – sem embargo das consequências
do descumprimento do tratado, no plano internacional. (...). Admitiram as vozes majoritárias que,
faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre
as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das
normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico.” In, REZEK, José Francisco. Direito
internacional público: curso elementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 106-107.
620 “A disposição do artigo 5º, §2º, da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos
e garantias nesta expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o
Brasil é Parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em
nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos
humanos em que o Brasil seja Parte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente
consagrados.” In, GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos
Humanos e Constituição Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, prefácio de Antônio Augusto
Cançado Trindade, p. XX-XXIII.
621 Tema esse presente já em sua tese de doutorado defendida na PUC-SP no ano de 1.996.
622 Celso de Albuquerque Mello se posiciona em sentido que “a norma internacional prevalece sobre a
norma constitucional”. E, tece comentários ao artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição da República:
“a Constituição incorporou ao direito interno os tratados internacionais sobre direitos humanos. Esta
incorporação é uma redundância e, na verdade, supérflua, tendo em vista que os tratados dos quais o
Brasil faz ‘parte’ já são obrigatórios com ou sem o dispositivo acima. Ele é um verdadeiro pleonasmo.
Entretanto, algo realizado com o intuito que reconhecemos humanitário, pode se transformar em

441
30 anos da Constituição

Com a aprovação da Emenda 45/2003 e a inscrição do parágrafo 3º no


artigo 5º da Constituição Federal, renovou-se, parcialmente, o debate, para que
a partir daí se passasse a discutir qual seria a posição hierárquica dos tratados
aprovados anteriormente à sua promulgação e se haveria uma diferenciação
entre tratados formal e/ou materialmente constitucionais623.
Importa fincar posição no sentido de que tal alteração seria inconstitucio-
nal porque entre outras razões, produz um retrocesso inconstitucional visto que
no Brasil, a partir da Emenda 45/2004, atribuir status formal de normas consti-
tucional àquelas derivadas de tratados de direitos humanos é uma tarefa muito
mais árdua do que reformar a própria Constituição – uma vez que demanda a
participação, em algumas de suas fases, do próprio Presidente da República.
Ora, em sistemas constitucionais de constituições rígidas, como a nossa, não se
pode prever qualquer intervenção legislativa mais exigente que a própria refor-
ma da Constituição. Além do mais, se a prevalência dos direitos humanos é um
dos princípios fundamentais da nossa Constituição (art, 4º., II), o processo, tal
qual formulado, afronta cláusula pétrea.

5. A questão da hierarquia dos tratados internacionais


de direitos humanos em âmbito interno: forma,
substância e o critério pro persona
O tema da hierarquia dos tratados internacionais tomou quase que a tota-
lidade da bibliografia do Direito Internacional dos Direitos Humanos durante

algo perigoso. É que em países onde há uma incorporação pura e simples o tratado é equiparado à lei
e, erroneamente, se afirma que a lei posterior pode revogar o tratado que seria uma lei anterior. Na
verdade, os direitos humanos têm a nosso ver um status especial na ordem jurídica internacional e
deve predominar sempre» cf. MELLO, Celso de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional.
Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 188.
623 Nesse sentido, Sylvia Helena F. Steiner assenta que “temos por certo possuírem as normas de proteção
aos direitos do homem, formalmente, status diferenciado dentro do ordenamento jurídico interno
brasileiro, eis que expressamente incorporadas ao rol de direitos e garantias fundamentais previsto na
Constituição Federal, nos exatos termos do art. 5.º, § 2.º, da lei maior. Ainda que não estivesse expresso
o dispositivo, prevaleceria o entendimento de serem, as normas de proteção aos direitos humanos,
normas materialmente constitucionais, e, portanto, oponíveis às da legislação infraconstitucional.”
STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A convenção americana sobre direitos humanos e sua
integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 90.

442
30 anos da Constituição

largo espaço de tempo, no Brasil, por decorrência de trabalhos de relevante


qualidade lançados ao mercado das ideias jurídicas por Cançado Trindade624,
Flávia Piovesan625 e Clèmerson Cleve626, dentre outros. Tais autores acabaram
por divulgar temas até então pouco explorados no nosso ordenamento jurídico,
especialmente, fora do círculo dos internacionalistas, alcançando os temas mais
variados. Fez-se, assim, com que a normatividade dos tratados internacionais,
especialmente de direitos humanos, se alastrasse pela consciência jurídica brasi-
leira, de modo que os acadêmicos e os aplicadores do direito prestassem atenção
para uma abertura constitucional produzida principalmente a partir da Consti-
tuição de 1.988, especialmente, em seus artigos 4º e 5 par. 2º.
Esse trabalho hercúleo produziu talvez uma nova consciência jurídica nacio-
nal em sede de direitos humanos e, sem essa evolução, não seria possível discutir-se
a necessidade de se fortalecer o debate substancial firmando critério para tanto.
Como se verá mais adiante, ao adentrar no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos (SIDH), e, especialmente aceitar a jurisdição da Corte IDH,
ocorreu que o estado nacional brasileiro aceitou, expressamente, se submeter às
decisões dessa corte. E as decisões dessa corte, consolidadas, têm avançado não
somente em matéria processual, mas também em matéria substancial, valendo
dizer que para a Corte IDH, a questão da hierarquia dos tratados internacionais
em espaço nacional, seja qual for, em nada impede que seus precedentes sejam
obrigatórios para os estados nacionais627.
Isso porque esse relacionamento entre direito internacional dos direitos
humanos e direito interno exige que se concretize alguns critérios hermenêu-
ticos como pacta sunt servanda628, efeito útil e, especialmente, o princípio pro
persona, a respeito do qual Monica Pinto629 afirma:

624 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. I. Porto Alegre: SAFE, 2.003, PP. 513-514.
625 Principalmente, a partir da sua tese de doutoramento publicada pela editoria Max Limonad, de São
Paulo, em 1.996.
626 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Contribuições previdenciárias. Não recolhimento. Art. 95, d, da Lei
8.212/91. Inconstitucionalidade. Revista dos Tribunais, n. 736, p. 527.
627 É verdade que em nada distoa do mode de decidir dos tribunais internacionais.
628 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. I. Porto Alegre: SAFE, 2.003, PP. 551-552.
629 PINTO, Monica. El principio pro homine. Criterios de hermenêutica y pautas para La regulación
de lós derechos humanos. In: La aplicación de lós tratados de derechos humanos por lós tribunales

443
30 anos da Constituição

“El principio pro homine es un criterio hermenéutico que informa todo el


derecho de los derechos humanos, en virtud del cual se debe acudir a la nor-
ma más amplia, o a la interpretación más extensiva, cuando se trata de reco-
nocer derechos protegidos e, inversamente, a la norma o a la interpretación
más restringida cuando “se trata de establecer restricciones permanentes al
ejercicio de los derechos o su suspensión extraordinaria”.

Por decorrência disto, produziu-se uma obsolescência, ainda que parcial,


no tema da hierarquia dos tratados internacionais, pois o paradigma instaurado
pela princípio pro persona, ao se impor, exige que se reforce a necessidade do
debate aprofundado, caso a caso, a respeito de qual a norma mais protetiva ou
menos restritiva à pessoa humana, seja ela nacional ou internacional, devendo
prevalecer aquela que for mais expansiva, independentemente do status hie-
rárquico interno que adquirem tratados internacionais de direitos humanos630.
Trata-se de norma jurídica que decorre do artigo 29 da Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos, que diz respeito tanto ao conflito de interpretações
que pode decorrer dos tratados e instrumentos internacionais631(conflitos entre
tratados), ou tratados ou instrumentos e dos direitos fundamentais previstos
nacionalmente(conflitos entre tratados e direito doméstico), nos estados partes
do sistema interamericano de proteção de direitos humanos.
Assim, faz-se necessária uma análise aprofundada de conteúdo do que de-
cidiu a Corte IDH ou do que contém um tratado ou instrumento internacional
de direitos humanos para que o juiz nacional possa aplicar o direito convencio-

locales: Buenos Aires: Ediar, Centro de Estudios Legales y Sociales- Editorial del Puerto, 1997, p. 163.
630 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vol. II. Porto Alegre: SAFE, 1999, p. 435.
631 Corte Interamericana de Direitos Humanos. La colegiación obligatoria de periodistas (arts. 13 y 29 de
la Convención Americana sobre Derechos Humanos), Opinión Consultiva OC/5, 13 de noviembre de
1985, par. 52: “En consecuencia, si a una misma situación son aplicables la Convención Americana y
otro tratado internacional, debe prevalecer la norma más favorable a la persona humana. Si la propia
Convención establece que sus regulaciones no tienen efecto restrictivo sobre otros instrumentos
internacionales, menos aún podrán traerse restricciones presentes en esos otros instrumentos, pero
no en la Convención, para limitar el ejercicio de los derechos y libertades que ésta reconoce”.

444
30 anos da Constituição

nal. Trata-se de um diálogo crítico632_633 necessário, em que haja reciprocidade,


pois caso a proteção a um direito seja mais efetiva em âmbito nacional, esta
deve prevalecer, ainda que existam precedentes da Corte IDH ou normas jurí-
dicas derivadas de tratados ou outros instrumentos internacionais634. Por outro
lado, caso a Corte IDH esteja a decidir um caso em que se analisa a proteção
de um direito em âmbito nacional se dá de modo mais eficiente que aquele de-
rivado do sistema americano de direitos humanos, ela deve se abster de declarar
inconvencional o ato nacional em análise.
Esse paradigma se constrói por sobre a perspectiva de que é a pessoa huma-
na, e não o Estado parte, que suporta como fundamento e para onde confluem
como destinatários os objetivos de tutela do direito internacional dos direitos hu-
manos635 e, nesse sentido, sendo a tutela das liberdades das pessoas o fim último

632 “Sin embargo, en un plan general de discusión, ello no nos impide advertir la conveniencia de que
se profundice un diálogo jurisprudencial entre la Corte IDH y los respectivos órganos de cierre de
la jurisdicción constitucional de los Estados que conforman el sistema interamericano, a los fines
de que aquélla tenga presente las observaciones o discordancias que los mismos formulen a los
criterios jurisprudenciales trazados por el Tribunal interamericano para coadyuvar al mejoramiento
de su labor jurisdiccional. Naturalmente, todo ello en aras de optimizar el modelo tuitivo de los
derechos fundamentales sobre la base de un adecuado funcionamiento de las piezas que lo componen,
precisamente para hacer más efectiva y eficiente la protección de aquéllos en nuestro espacio regional,
cf. ABRAMOVICH, Víctor, “Introducción: Una nueva institucionalidad pública. Los tratados de
derechos humanos en el orden constitucional argentino”, en ABRAMOVICH, Víctor, BOVINO,
Alberto y COURTIS, Christian (comps.), La aplicación de los tratados de derechos humanos en el
ámbito local. La experiencia de una década, CELS - Canadian International Development Agency,
Editores del Puerto, Buenos Aires, 2007, pp. VI/VII.
633 Slaughter, citando a juíza da Suprema Corte Americana Ruth Ginsburg, afirma que em “matéria
de direitos humanos(…) as experiências de uma nação ou região devem inspirer ou informar outras
nações ou regiões”, cf. SLAUGHTER, Anne-Marie. A Global Community of Courts. Harvard
International Law Journal. v. 44, n. 1, 2003, p. 199.
634 Nesse sentido, RAMIREZ, Sergio Garcia. El control judicial interno de convencionalidad, Revista IUS
– Revista Cientifica del Instituto de Ciencias Juridicas de Puebla, no 28, julho-dezembro de 2011, p. 139:
“...corresponde aclarar – como se ha hecho em otro lugar de este trabajo – que las interpretaciones del
tribunal interamericano pueden verse superadas por actos – instrumentos internacionales, disposiciones
nacionales, actos de jurisdicción interna – que reconozcan a lós indivíduos mayores o mejores derechos
y libertades. El derecho internacional de lós derechos humanos es el ‘piso’de los derechos, no el ‘techo’.
Esta conclusión, que deriva inmediatamente del principio pro homine , tiene soporte em las normas de
interpretación contenidas en el artículo 29 de la Convención Americana”.
635 A Corte IDH desde há muito assim decidiu em Corte Interamericana de Derechos Humanos.
Opinión Consultiva OC-1/82 del 24 de setiembre de 1982: “los tratados modernos sobre derechos
humanos, en general, y, en particular, la Convención Americana, no son tratados multilaterales del
tipo tradicional, concluidos en función de un intercambio recíproco de derechos, para el beneficio
mutuo de los Estados contratantes. Su objeto y fin son la protección de los derechos fundamentales

445
30 anos da Constituição

de qualquer sistema jurídico, importa mais o como se protege, a intensidade da


proteção, do que o locus ou a fonte de onde deriva a proteção. O princípio pro
persona exige que se interpretem os direitos humanos de modo mais extensivo,
quando a se falar em proteção, participação ou provisão, e, de outro lado, de
modo mais restritivo, quando se trate de eventuais restrições a direitos.
Neste sentido, Monica Pinto afirma que “este principio coincide con el
rasgo fundamental del derecho de los derechos humanos, esto es, estar siempre
a favor de la persona”636.
Esse posicionamento, como se vê, respeita a perspectiva de que inexiste rela-
ção vertical entre a Corte IDH e os tribunais nacionais, pois parte do pressuposto
de que não existe supremacia hierárquica automática das decisões tomadas pela
Corte IDH em detrimento daquelas nacionais637. Trata-se também de um modo
outro de se rotular a questão da limitação ou alteração da soberania do Estado,
pois não há que se falar em soberania quando o centro do sistema protetivo está

de los seres humanos, independientemente de su nacionalidad, tanto frente a su propio Estado, como
frente a los otros contratantes. Al aprobar estos tratados sobre derechos humanos, los Estados se
someten a un orden legal dentro del cual ellos, por el bien común asumen varias obligaciones, no en
relación con otros Estados, sino hacia los individuos bajo su jurisdicción”. Também apontando essa
mudança de perspectiva, MacGregor, Eduardo. el control difuso de convencionalidad en el estado
constitucional, p.159, disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/6/2873/9.pdf.
636 PINTO, Monica. El principio pro homine. Criterios de hermenêutica y pautas para La regulación
de lós derechos humanos. In: La aplicación de lós tratados de derechos humanos por lós tribunales
locales: Buenos Aires: Ediar, Centro de Estudios Legales y Sociales- Editorial del Puerto, 1997, p. 163.
637 Tal qual decidido pelo Tribunal Constitucional do Peru no caso EXP. N2730-2006-PA/CT — 21 de
julho de 2006 - Caso De Arturo Castillo Chirinos: “15. Lo ex pues to, des de lue go, no alu de a una
re la ción de je rarquización formalizada entre los tribunales internaciones de derechos humanos y los
tribunales internos, sino a una relación de cooperación en la interpretación pro homine de los derechos
fundamentales. No pue de ol vi dar se que el ar tícu lo 29.b de la Convención proscribe a todo tribunal,
inclu yendo a la propia Corte, “li mi tar el goce y ejer ci cio de cual quier de re cho o li ber tad que
pueda estar reconocido de acuer do con las leyes de cualquiera de los Esta dos par tes o de acuer do
con otra con ven ción en que sea par te uno de di chos Esta dos”. Ello sig ni fi ca, por ejem plo, que
los derechos reconocidos en el ordena miento inter no y la inter preta -ción optimi zadora que de ellos
realice la jurisprudencia de este Tribunal, también es observada por la Corte”.

446
30 anos da Constituição

no indivíduo e não no próprio Estado. Não há soberania bastante para proteger


com déficit os direitos fundamentais ou humanos da pessoa humana638_639.
Há, sim, prevalência daquela norma jurídica, nacional ou internacional,
que visa a proteger a pessoa humana de modo mais eficaz, tanto sob as normas
jurídicas derivadas de textos normativos quanto, em caso de conflito de deci-
sões de tribunais, sob aqueles mais protetivos.
Sobre esse tema Monica Pinto, ainda que a respeito do direito argentino, mas
totalmente aplicável nesse sentido ao direito brasileiro, afirma que nada obsta que no:
“ámbito interno puedan consagrarse derechos protegidos con un alcance
mayor que el establecido por las normas internacionales. Aún las sentencias
judiciales que reconozcan un alcance de protección más amplio deberían pre-
valecer, especialmente las de la Corte Suprema de Justicia de la Nación cuando
se refieren al contenido de las normas de derechos humanos”640.
Deve prevalecer, assim, uma perspectiva substancialista dos direitos hu-
manos, não mais bastando a separação entre monismo e dualismo, visto que

638 Nesse sentido, também, LANDA, César, “Sentencias fundamentales del Tribunal Constitucional
Peruano”, in BAZÁN, Víctor e NASH, Claudio (eds.), Justicia Constitucional y Derechos
Fundamentales. Aportes de Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Perú, Uruguay y Venezuela – 2009.
Montevideu: Programa Estado de Derecho de la Fundación Konrad Adenauer y Centro de Derechos
Humanos de la Facultad de Derecho de la Universidad de Chile, 2010, p. 77.
639 El deber de garantía del derecho a la salud a través de la prestación de servicios de salud. Extracto de la
Sentencia de la Corte Constitucional, Colombia, 5 de junio de 2008, in Revista Diálogos Jurisprudenciales, Núm.
7 Julio-Diciembre de 2009, Corte Interamericana de Derechos Humanos, Instituto Interamericano de
Derechos Humanos, Instituto de Investigaciones Jurídicas Universidad Nacional Autónoma de México,
Fundación Konrad Adenauer, México, 2010, p. 117: “Abarca, también, la posibilidad de complementar las
garantías establecidas en el ordenamiento jurídico interno a favor de los derechos constitucionales con
aquellas previstas en los Tratados Internacionales sobre Derechos Humanos. Lo anterior supone, desde
luego, la aplicación del principio pro homine, esto es, las normas han de complementarse de manera tal, que
siempre se amplíe la protección prevista en el orden jurídico interno y no se disminuya. En el evento en
que la norma que se desprende del Tratado internacional sea más restrictiva, se aplicará de preferencia la
norma de derecho interno. Por otro lado, en virtud de los dispuesto por el artículo 94 superior, así como
de ló consignado en el artículo 44 de la Constitución Nacional —sobre los derechos de los niños y de las
niñas— la obligación de interpretar los derechos constitucionales de conformidad con lo dispuesto en
los Pactos internacionales sobre Derechos Humanos aprobados por Colombia contiene, de igual modo,
la posibilidad de adicionar el ordenamiento jurídico interno con nuevos derechos siempre, claro está,
bajo aplicación del principio pro homine mencionado atrás”.
640 PINTO, Monica. El principio pro homine. Criterios de hermenêutica y pautas para La regulación
de lós derechos humanos. In: La aplicación de lós tratados de derechos humanos por lós tribunales
locales: Buenos Aires: Ediar, Centro de Estudios Legales y Sociales- Editorial del Puerto, 1997p. 166.

447
30 anos da Constituição

também aqui se parte de uma perspectiva formal ou estrutural641. Isso porque


não se trata da necessidade de intermediação estatal para a imposição de tal ou
qual norma jurídica derivada do direito internacional ou, de outro lado, da pura
ou simples imposição da norma jurídica de direito internacional.
Nessa perspectiva material, prevalecem as normas jurídicas de direitos hu-
manos que sejam mais protetivas dos indivíduos, ou menos restritivas dos seus
direitos, derivem elas de tratados ou outros instrumentos internacionais que não
recebam essa denominação, ou de constituições, leis, sentenças, entre outros.
Cabe, assim, tanto ao juiz nacional quanto ao juiz da Corte IDH, em diálo-
go constante642, buscar se é a normatividade interna ou internacional que deve

641 Cf. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal de 1948 e o futuro da
proteção internacional dos direitos humanos. In: FIX-ZAMUDIO, Hector. México y las declaraciones de
derechos humanos. Cidade do México: UNAM, 1.999, p. 45: “(...) no contexto da proteção dos direitos
humanos a polêmica clássica entre monistas e dualistas revela-se baseada em falsas premissas e superada:
verifica-se aqui uma interação entre os direito internacional e o direito interno, e os próprios tratados
de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável aos
seres humanos protegidos, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno”. Do mesmo
autor, também Las relaciones entre el derecho internacional y el derecho interno han sido enfocadas ad
nauseam a la luz de la polémica clásica, estéril y ociosa, entre dualistas y monistas, erigida sobre falsas
premisas. En la protección de sus derechos, el ser humano es sujeto tanto del derecho interno como del
derecho internacional, dotado en ambos de personalidad y capacidad jurídicas propias. Como se desprende
de disposiciones expresas de los propios tratados de derechos humanos, y de la apertura del derecho
constitucional contemporáneo a los derechos internacionalmente consagrados, no más cabe insistir en
la primacía de las normas del derecho internacional o del derecho interno, por cuanto el primado es
siempre de la norma –de origen internacional o interna- que mejor proteja los derechos humanos, de
la norma más favorable a las víctimas. Constátase hoy, en efecto, la coincidencia de objetivos entre el
derecho internacional y el derecho interno en cuanto a la protección de la persona humana, cabiendo,pues,
desarrollar esta alentadora coincidencia hasta sus últimas consecuencias”, CF. TRINDADE, Antonio
Augusto Cançado. Desafíos de la protección internacional de los derechos humanos al final del siglo xx.
In Seminario sobre Derechos Humanos, San José, Costa Rica, IIDH,1997, p. 71. Também, . com alguma
diferença, César Landa diz que “frente a los inconvenientes dogmáticos y prácticos derivados de las tesis
monistas y dualistas, la posición constitucional de los tratados viene asumiendo una opción mixta, a
través de la tesis de coordinación. Esta última caracteriza al derecho internacional como un derecho de
integración, sobre la base de la responsabilidad internacional. Así en función de dicha responsabilidad ya
no se postula la derogación automática de las normas internas, en caso de conflicto con sus obligaciones
en el plano internacional, sino su armonización fundamentándose en un neoiusnaturalismo integrador” cf.
LANDA ARROYO, César. Constitución y fuentes del derecho. Lima: Palestra, 2006, pp. 118-119.
642 Também BAZAN, Victor. “Corte Interamericana de Derechos Humanos y Cortes Supremas o Tribunales
Constitucionales latinoamericanos: el control de convencionalidad y la necesidad de un diálogo
interjurisdiccional crítico”, Revista Europea de Derechos Fundamentales, N° 16, 2° Semestre de 2010,
Fundación Profesor Manuel Broseta e Instituto de Derecho Público Universidad Rey Juan Carlos, Valencia,
España, 2011 : “En el fondo, y como se adelantaba, la cooperación entre los tribunales internos y los tribunales

448
30 anos da Constituição

prevalecer, não cabendo ao juiz nacional se utilizar do direito nacional menos


protetivo ou do direito internacional dos direitos humanos menos protetivo,
devendo a Corte IDH respeitar esse pressuposto643.
Este juiz nacional e o juiz da Corte IDH, todos eles juízes interamericanos,
devem verificar, no caso concreto, o nível de proteção que se produz tanto em
âmbito nacional quanto em âmbito internacional e, desse modo, aplicar as nor-
mas jurídicas mais protetivas, não sendo a mera contrariedade entre a normas
nacionais e as internacionais que as torna inconvencionais, mas, sim, o déficit
de proteção em sede nacional que causar tal resultado.
Ao juiz da Corte IDH, verificando que a proteção dada pelo direito na-
cional é mais intensa, cabe deixar de sancionar ao estado nacional que, em um
caso concreto, está sob julgamento. No caso do juiz nacional, verificando que o
direito nacional é mais protetivo cabe dar prevalência ao direito interno.
A própria Corte IDH demonstra ser também função do direito internacio-
nal dos direitos humanos a de aperfeiçoar o direito interno. Em sentido contrá-
rio, não se prestigia a possibilidade de produzir, o direito internacional dos di-
reitos humanos, um retrocesso na proteção aos direitos produzida pelos estados
nacionais em seu direito nacional:
“[l]a Convención Americana, además de otros tratados de derechos
humanos, buscan, a contrario sensu, tener en el derecho interno de los
Estados Parte el efecto de perfeccionarlo, para maximizar la protección

internacionales no apunta a generar una relación de jerarquización formalizada entre éstos y aquéllos, sino a
trazar una vinculación de cooperación en la interpretación “pro homine” de los derechos humanos”.
643 ESCALANTE, Rodolfo E. Piza. El valor del derecho y la jurisprudencia internacionales de derechos
humanos en el derecho y la justicia internos el ejemplo de costa rica, in Liber amicorum : Héctor
Fix Zamudio : volume I. Sao José, CIDH, 1998, p. 183;”Esto mismo, unido a la naturaleza universal e
indivisible de los derechos humanos, caracterizados precisamente por su atribución a todo ser humano por
el sólo hecho de serlo, sin distinción de sexo, edad, color, riqueza, origen nacional o social, nacionalidad
o ninguna otra condición social, impone definitivamente la superación de toda pretensión dualista
para explicar la relación entre el Derecho interno y el Derecho Internacional. Porque, efectivamente,
la coexistencia de dos órdenes jurídicos distintos sobre un mismo objeto resulta lógicamente imposible;
con lo cual va perdiendo a su vez, todo sentido, no sólo la clásica alternativa ‘monismo’ y ‘dualismo’ en
la consideración de las relaciones entre el Derecho interno y el Internacional, sino incluso la discusión
sobre la prevalencia de uno u otro, en caso de conflicto, por lo menos en lo que se refiere a los derechos
humanos; con la consecuencia absolutamente obligada de que, o en esta matéria prevalece el Derecho
Internacional, o bien, como debe, a mi juicio, decirse mejor, em realidad no prevalece ni uno ni otro, sino,
en cada caso, aquél que mejor proteja y garantice al ser humano, en aplicación, además, del ‘principio pro
homine’ propio del Derecho de los Derechos Humanos”

449
30 anos da Constituição

de los derechos consagrados, acarreando, en este propósito, siempre que


necesario, la revisión o revocación de leyes nacionales [...] que no se
conformen con sus estándares de protección.”644
O labor de promover a progressividade dos direitos humanos, previsto no
artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos, nesse sentido, deve
ser promovido mediante a cooperação entre as instituições domésticas e in-
ternacionais de modo a concretizar de forma ótima as previsões advindas não
somente dos documentos nacionais e internacionais, mas, também, da jurispru-
dência, no caso interamericano, da Corte IDH.

6. A título de conclusão: os blocos de constitucionalidade


e convencionalidade como parâmetros para se
descobrir a função atual da discussão a respeito
da hierarquia dos tratados internacionais
Como se verifica a partir do que afirmei, o tema da hierarquia dos tratados
internacionais não somente vem perdendo força atualmente na doutrina e nas
jurisprudência nacional e comparada – pena que os tribunais ainda se apeguem
tanto a este aspecto formalista e sem conteúdo – e merece ser revisitado.
Ao se apontar uma exigência de relacionamento substancial e não mera-
mente formal entre as ordens domésticas e internacionais, verifica-se que focar
o discurso jurídico na hierarquia dos tratados não resolve os problemas que nos
são oferecidos a contento, de forma a se buscar a melhor proteção para a pessoa
humana, fundamento de toda a ordem internacional dos direitos humanos e
prevista em diversas constituições, como a brasileira, que, em seu artigo 1º,
aponta a dignidade da pessoa humana como centro do sistema constitucional.
A um, porque a regra, especialmente em constituições dirigentes como a
brasileira, é que os catálogos de direitos previstos em seu texto sejam uma re-
produção, também, do que preveem os tratados, ou seja, tais catálogos são, em
regra, idênticos ou semelhantes ao previsto em tratados internacionais. Com
isso, o tema somente pode ajudar a resolver questões simples, como a da prisão

644 Corte IDH: Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de febrero de 2001. Serie C No. 73. Voto concurrente del juez
A. A. Cançado Trindade, par. 14.

450
30 anos da Constituição

do depositário infiel, por exemplo, em que há contraste textual entre tratado


(Convenção Americana de Direitos Humanos, que somente prevê a prisão civil
por alimentos) e a Constituição brasileira (que também prevê a prisão do depo-
sitário infiel). Ou seja, diagnosticar o problema a partir dos textos em confronto
não resolve questões difíceis de ordem substancial.
A dois porque os órgãos judiciais ou quase-judiciais que se dedicam a in-
terpretar tais tratados internacionalmente, produzindo uma jurisprudência evo-
lutiva, são desprezados em tal circunstância. Nada significa discutir textos idên-
ticos ou parecidos, colocando-os em uma dinâmica piramidal ou trapezoidal,
quando a “sintonia fina” advinda da interpretação dos tratados internacionais,
vem da sua interpretação por tais órgãos, corriqueiramente desprezada.
Nesse sentido, verifica a relação entre o bloco de convencionalidade e o de
constitucionalidade nos serve muito mais.
No caso interamericano, significa que tanto a Convenção Americana de
Direitos Humanos, protocolos e sua interpretação derivada das decisões da Corte
IDH (bloco de convencionalidade) quanto a Constituição, os tratados interna-
cionais com hierarquia constitucional e a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (bloco de constitucionalidade) precisam ser coordenadas e, por essa ra-
zão, afirmei que tanto os juízes da Corte IDH quanto as autoridades públicas na-
cionais são parte de um grupo de atores coeso: são autoridades interamericanas645.
O bloco de constitucionalidade, do qual são parte não somente as normas
constitucionais (ou seja, não o texto constitucional mas a interpretação que dele
deriva) mas também dos tratados que detenham hierarquia constitucional no pla-
no interno, além da jurisprudência vinculante criada e desenvolvida especialmente
pelo Supremo Tribunal Federal, é fonte de interpretação jurídica para os operadores
do direito tal qual o bloco de convencionalidade646, do qual fazem parte a CADH e
seus protocolos, além das sentenças da Corte IDH e opiniões consultivas.

645 cf. Voto razonado do juiz Eduardo Mac-Gregor, em Corte Interamericana de Derechos Humanos.
Caso Cabrera García y Montiel Flores vs. México Sentencia de 26 de noviembre de 2010 (Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas), parágrafo 51: “El juez nacional, por consiguiente, debe
aplicar la jurisprudencia convencional incluso la que se crea en aquellos asuntos donde no sea parte el
Estado nacional al que pertenece, ya que lo que define la integración de la jurisprudencia de la Corte
IDH es la interpretación que ese Tribunal Interamericano realiza del corpus juris interamericano con
la finalidad de crear un estándar en la región sobre su aplicabilidad y efectividad”.
646 FERRER-MAC GREGOR, Eduardo, Interpretación conforme y control difuso de convencionalidad, El
nuevo paradigma para el juez mexicano, Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/7/3033/14.pdf

451
30 anos da Constituição

Ao se propor essa coordenação647, prevê-se a possibilidade de conflitos


entre o controle de constitucionalidade, baseado na dinâmica hierárquica da
supremacia da constituição (e dos tratados com hierarquia constitucional) e o
controle de convencionalidade, baseado na dinâmica substancial do pacta sunt
servanda, boa fá e critério pro persona.
Decorrência do que afirmo é que se exige uma releitura do artigo 5º., §2º,
de modo a promover entendimento no sentido de que se respeite o princípio
da progressividade dos direitos humanos, não autorizando que sejam inseridas
normas jurídicas de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro que
venham a promover retrocesso em matéria de proteção da pessoa humana648, é
dizer, nos moldes do artigo 1º. Da Constituição Mexicana, deve-se verificar, de
modo inclusivo, que o catálogo de direitos existente no direito brasileiro, inde-
pendendentemente de a fonte ser nacional ou internacional, as previsões mais
protetivas ou menos restritivas para compor tal catálogo.
Esse é o ponto nevrálgico da discussão que se propõe. O tema da hie-
rarquia dos tratados internacionais, excetuando os casos simples de confronto
textual entre tratados e constituições ou leis, não tem capacidade de informar
a necessidade de uma coordenação substancial entre o direito internacional
dos direitos humanos e o direito doméstico. Trata-se, isto sim, de tema margi-
nal que afronta a exigência de coordenação substancial entre o doméstico e o
internacional.
Em âmbito doméstico, a abertura a que faço referência é tão incompleta
que, com quase 30 anos da promulgação da Constituição, diversamente da qua-
se totalidade das cortes e tribunais constitucionais dos estados partes do SIDH,
o Supremo Tribunal Federal ainda não fixou o poder de obrigação advindo das
decisões proferidas pela Corte IDH (para não falar da Comissão IDH, que seria
demais nesta quadra), é dizer, não decidiu qual o poder jurídico de tais decisões.
Não há uma única manifestação do STF afirmando se os precedentes advindos

647 Sobre o tema, dentre outros, ver CONCI, Luiz Guilherme Arcaro e Gerber, Konstantin. Diálogo
entre la Corte Interamericana de Derechos Humanos y el Supremo Tribunal Federal: el control
de convencionalidade actúa conjuntamente al control de constitucionalidad? In: CONCI, Luiz
Guilherme Arcaro e Mezzetti, Luca(editores). Diálogo entre Cortes. Bogotá: Universidade Externado
de Colombia, 2016, pp. 109-144.
648 Conforme definido nos artigos 2.1. do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da
ONU e no artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário.

452
30 anos da Constituição

dos casos em que o Brasil não é parte, ou mesmo, naqueles em que é parte, ou
das opiniões consultivas da Corte IDH, são ou não vinculantes.
Percebe-se, assim, que há muito o que se esperar das instituições brasi-
leiras, especialmente as judiciais, a respeito da integração brasileira a sistemas
internacionais de proteção de direitos humanos. Há pouco o que comemorar a
esse respeito, especialmente, se o tema da hierarquia dos tratados internacionais
de direitos humanos continuar a povoar a mente daqueles de quem se exige de-
finir tal coordenação entre ordens jurídicas o que, verdadeiramente, abre portas
para mais condenações internacionais do Brasil em âmbito internacional.

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Mac-Gregor, em Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Cabrera
García y Montiel Flores vs. México Sentencia de 26 de noviembre de 2010 (Ex-
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457
Falta Água na Periferia: Estudo de
Caso sobre Necessidades Jurídicas
Insatisfeitas Durante a Crise Hídrica
na Cidade de São Paulo

João Vitor Cardoso


Advogado em São Paulo. Bacharel em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), onde integra o Grupo de Pesquisa em
Direitos Fundamentais. Mestrando pela Universi-
dade de São Paulo (USP). Foi Pesquisador Visi-
tante no Institut Droit et Santé, da Universidade
Paris Descartes. Coordenador do Observatório de
Conflitualidade Civil e Acesso à Justiça no Brasil.
Alvaro Bartolotti Tomas
Mestre em Sociologia pela Universidade de Ne-
vada, Reno (UNR), Bacharel em Ciências Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo. Foi Pesquisador Assistente da Social Psychology
School da UNR, é membro do Grupo de Pesquisa
em Direitos Fundamentais da PUC-SP e Metodólo-
go e Co-coordenador do Observatório de Conflitua-
lidade Civil e Acesso à Justiça no Brasil.
Konstantin Gerber
Advogado consultor em São Paulo, mestre e
doutorando em Filosofia do Direito, PUC-SP, onde
integra o grupo de pesquisas em direitos fundamen-
tais. É professor convidado do curso de especializa-
ção em direito constitucional.

459
30 anos da Constituição

Ana Luiza do Couto Montenegro


Advogada e consultora em São Paulo. Gradua-
da em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Pós-graduada em Direitos Humanos
pela Universidade de Coimbra. Graduanda em
Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.
É pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direitos
Fundamentais da PUC-SP e do Observatório de
Conflitualidade Civil e Acesso à Justiça no Brasil.
Rafaela Mendes
Advogada em São Paulo, graduada em Di-
reito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e graduanda em Ciências Sociais pela Uni-
versidade de São Paulo.

Resumo
O presente estudo busca identificar necessidades jurídicas insatisfeitas du-
rante a crise hídrica em São Paulo, enfrentando desafios como a falta de confia-
bilidade dos dados oficiais quanto ao real alcance e tempo dos rodízios de água
na cidade. Apesar de ser difícil precisar quantas pessoas sofreram violações ao
direito à água com desabastecimentos, é possível observar no período uma que-
da na demanda judicial pela violação deste direito fundamental, além de certa
estabilidade no número de casos no âmbito de meios alternativos de solução de
conflitos que albergam o tema, o que permite inferir que os cortes no forneci-
mento de água não acompanharam um aumento nos litígios por força disso. Em
conclusão, a população em situação de extrema vulnerabilidade tende a não
buscar o sistema de justiça, ainda que sofra com o racionamento de água e em
que pese seu direito fundamental à água estar assegurado.

460
30 anos da Constituição

Introdução
A regulação da água como bem público é uma questão em aberto no mundo
atual. A crise hídrica em curso na cidade de São Paulo traz novos e graves desa-
fios que se somam àqueles tradicionalmente enfrentados pelo Código de Defesa
do Consumidor (CDC). Em que pese este possua força normativa em favor dos
hipossuficientes e vulneráveis, as evidências empíricas demonstram que este có-
digo ainda está longe de atingir os resultados esperados em relação ao problema
apontado acima. Para chegar a tais conclusões, foram pesquisadas e analisadas as
normas jurídicas nacionais que tratam diretamente do serviço público de forne-
cimento de água, com enfoque na identificação de barreiras de acesso à justiça,
tomando-se em conta os seguintes elementos: i) grau de reconhecimento jurídico
formal da água como um direito humano fundamental no Brasil; ii) natureza
jurídica das águas como bem público de uso comum e; iii) garantias jurídicas
para a proteção do direito à água como bem de consumo. Assim, as três nuances
do regime jurídico da água – vale dizer, como direito fundamental, como bem
público de uso comum e como serviço essencial sujeito às regras do CDC – estão
impregnadas neste objeto que destarte não pode ser explicado a não ser a partir de
um desenlace de seus aspectos mais críticos. Neste contexto, o acesso ao serviço
público de fornecimento de água via Justiça é um problema instigante.

1. Método
Há duas correntes metodológicas contemporâneas dignas de referência:
a neorealista, que enxerga o direito como um conjunto de regras que definem
a conduta humana, com a necessidade de se aplicar um teste de causalidade
para se medir o impacto da intervenção judicial; e a construtivista, que alarga
o campo de análise para empreender o uso de ferramentas metodológicas como
entrevistas qualitativas junto a autoridades públicas, ativistas e membros da
população beneficiária. A metodologia adotada no presente estudo é a constru-
tivista, que combina análises quantitativas com qualitativas, abordando o modo
como a opinião pública passa a perceber e reconhecer a violação a um direito
fundamental (Garavito, 2011, p.1677-9).
Vale dizer, desde 2014, o Portal Justiça em Números divulga a realidade dos
tribunais brasileiros, detalhando a litigiosidade no país, de acordo com os indica-

461
30 anos da Constituição

dores de “classe” e/ou “assunto”. Tornou-se, assim, a principal fonte das estatísticas
oficiais para o planejamento da gestão judiciária brasileira. No que se refere aos cál-
culos/estatísticas realizados no presente estudo de caso, quando não for indicada ou-
tra fonte, este é o banco de dados de onde se extraíram os números originalmente.
As normas selecionadas e analisadas foram aquelas vigentes e que apre-
sentam conteúdo relevante para a construção teórica do direito à água. A pes-
quisa qualitativa foi realizada através de coleta de dados nas páginas oficiais do
governo e de entrevista qualitativa. Desse modo, foi realizada uma entrevista
junto ao Coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (“Nudecon”), órgão
da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

2. O Regime Jurídico da Água no Brasil


O Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990), previsto na Consti-
tuição Federal, regra toda relação em que uma pessoa física ou jurídica adquire
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. A característica desse
conjunto legal é o reconhecimento de assimetrias nas relações civis consume-
ristas, sendo o consumidor a parte vulnerável, hipossuficiente.
O Código se destina a promover isonomia processual nas relações de con-
sumo, estabelecendo instrumentos de direito material e processual. Nesse sen-
tido, dispõe o artigo 4º do CDC:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo
o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dig-
nidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmo-
nia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios; I - reco-
nhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

No Brasil, a proteção jurídica das águas tem suas bases estabelecidas pela
Constituição Federal de 1988 (CF 88), que tratou da matéria em dispositivos
esparsos ao longo de seu texto (Brasil, 1988). Nesse sentido, o regime jurídico
das águas no Brasil abrange, de um lado, a proteção dos direitos humanos e,
de outro, a proteção do meio ambiente e dos recursos hídricos e naturais. Para
Fernando Aith (AITH, 2015, p. 166):

462
30 anos da Constituição

“[é] evidente a relação jurídica indivisível da água com alguns dos mais
relevantes direitos fundamentais reconhecidos pela CF 88, como a vida,
a saúde ou o meio ambiente equilibrado: não há que falar em direito à
vida digna sem água potável e meio ambiente equilibrado; não há como
garantir a saúde das pessoas sem acesso à água potável e ao tratamento
de esgotos; não há como garantir a segurança sanitária sem um abaste-
cimento adequado de água potável à população.”

Assim, ao tutelar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, o artigo


225 da CF 88 prevê o direito de todos à água, como parte integrante daquele,
que passa a ser considerado “bem de uso comum do povo essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de de-
fendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (Brasil, 1988). Sendo
a titularidade das águas da União ou dos estados-membros, a natureza jurídica
das águas no Brasil é a de bem público (Brasil, Código de Águas, Decreto Nº
24.643/1934). De acordo com o Código Civil brasileiro de 2002 (CC/2002), são
públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direi-
to público interno, como é o caso das águas (Brasil, 2002, artigos 99 a 103). Os
bens públicos, incluindo as águas, podem ter três diferentes tipos de uso, con-
forme a sua relevância: I - de uso comum do povo, tais como rios, mares, estra-
das, ruas e praças; II - de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados
a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou
municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem
o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito
pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Os bens públicos de uso co-
mum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a
sua qualificação, na forma que a lei determinar. Em conclusão, filiamo-nos ao
entendimento de Adede y Castro (2010, p. 31), segundo o qual, ao referir que o
meio ambiente é um bem de uso comum, o artigo 225 da Constituição Federal
nada mais faz do que retirar a ideia de apropriação privada da água.
Se, por um lado, a água integra o direito das relações de consumo, é inte-
ressante notar que, por ser um bem público constitucionalmente garantido, ela
está sujeita também ao regime jurídico administrativo. Assim, sua distribuição
à população se dá através de concessões de serviço público, que se definem
como “ajuste pelo qual o poder concedente, mediante licitação, na modalidade
de concorrência, delega a sua prestação à pessoa jurídica ou consórcio de em-
presas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco

463
30 anos da Constituição

e por prazo determinado” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Instrução


Normativa nº 10, de 22 de novembro de 1995).

3. Coleta de Dados
Segundo a Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Am-
biente, o território brasileiro contém cerca de 12% de toda a água doce do
planeta. Entretanto, essa abundância não significa que o recurso seja a todos
acessível. Como muito bem coloca Édison Carlos (2018), presidente executivo
do Instituto Trata Brasil:
“Acreditamos que a água sempre estará disponível, mas sabemos hoje que
isso não é verdade (...) Um dos problemas é que a disponibilidade de água
é muito desigual: a região Norte tem 6% da população e 70% da água
doce; já o Sudeste tem 40% da população e 6% da água doce, enquanto
o Nordeste possui pouco mais de 3% da água doce e 29% da população”.

De acordo com o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2016, 35 milhões


de brasileiros não têm acesso à rede de abastecimento de água em suas residências,
estando, portanto, em situação de vulnerabilidade. Essa situação se agrava quando há
racionamentos de água e interrupções frequentes no abastecimento, como as que o
Estado de São Paulo sofreu em 2014 e sobre o que passamos a discorrer.
Em 2014, após um pedido administrativo realizado com base na Lei de
Acesso à Informação649, o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) consti-
tuiu um banco de dados, que demonstra que havia áreas consideradas críticas
pela SABESP, nas quais poderia vir a faltar água. Em outras palavras, trata-se
das denominadas “coroas críticas”650.
Não é possível ter certeza que o racionamento imposto pela Sabesp, quan-
do da crise hídrica, correspondia exatamente às referidas coroas críticas. Além
do mais, ainda que a Sabesp tenha divulgado horários para o racionamento,
conforme notícias veiculadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Câ-

649 Vale referir que a associação Artigo 19 também realizou pedido de informação junto à SABESP
quanto à publicização dos maiores consumidores de água no Estado.
650 Os mapas obtidos pelo IDEC podem ser acessados em “http://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/
conheca-o-mapa-de-racionamento-de-agua-em-sp/”

464
30 anos da Constituição

mara Municipal da cidade de São Paulo (CPI) houve lapsos temporais muito
maiores do que oficialmente anunciado. Ainda, são discrepantes os dados apre-
sentados tanto pelo estudo do Datafolha, quanto da CPI, em face dos dados
oficiais da Sabesp. Conforme o Relatório Final da CPI:
“O que a CPI tem averiguado é um descaso com a população paulistana, e
em grande parte por responsabilidade da SABESP, que poderia ter iniciado
um real racionamento de água e informado aos moradores de São Paulo
que se tratava de um problema extremamente sério e que estaria por vir
a pior crise hídrica que a cidade já havia enfrentado. A CPI recebeu em
outubro a então presidente da SABESP, Dilma Pena, que não deu respostas
convincentes sobre a crise hídrica. Diante da pergunta do Relator sobre se
havia racionamento de água em São Paulo, a Sra. Dilma Pena negou: “o
que há é falta d’água em lugares pontuais, principalmente em áreas muito
altas, muito longe dos reservatórios, em residências com muitos moradores
ou onde o armazenamento está incorreto”. Foi então exibido o vídeo de uma
reportagem que mostrava a falta de água generalizada em São Paulo. (http://
globotv.globo.com/redeglobo/bom-dia-brasil/t/edicoes/v/sistema-cantareira-
-esta-com-o-pior-nivel-dahistoria/3678951/) A Presidente Dilma Pena con-
tinuou negando o racionamento, e afirmou que ocorria uma diminuição da
pressão da água, que atinge apenas 1% ou 2% dos moradores, em horário no-
turno. Mesmo que esse número de 2% estivesse correto, o problema atinge
250 mil pessoas. Mas, como se constatou através da imprensa e também por
manifestações da população, esse número era muito maior. Bairros como
Jardim Pantanal, na Zona Leste, ficaram seis dias sem abastecimento, fato
ocorrido entre os dias 09/10 e 15/10 de 2014. Já um conjunto habitacional do
Campo Limpo, na Zona Sul, ficou sem água por 15 dias, na mesma época
do Jardim Pantanal. (http://globotv.globo.com/rede-globo/sptv-1a-edicao/v/
moradoresreclamam-da-falta-de-agua-em-bairro-da-zona-sul/3697924/) Se
fosse antecipado, o racionamento poderia evitar a penalização de bairros
mais distantes, que sofrem com a redução da pressão da rede.(...)”

No estudo realizado pelo Instituto Datafolha (2015), que entrevistou 1.092


pessoas de todas as regiões de São Paulo, os dados indicaram uma tendência que in-
dicava que a falta de água ocorria em maior frequência com pessoas de baixa renda.

465
30 anos da Constituição

Fonte: Datafolha 2015

Ao analisar a tabela, o que pode ser notado é uma tendência a uma exclu-
são social no fornecimento do serviço de água. Inclusive, e possível notar que há
uma contradição explicita entre os dados oficias da Sabesp, que declarava que
os rodízios eram diários, provocando uma dificuldade para uma compreensão
clara da real dimensão do problema.
Ainda, a pesquisa documental (Brasil, CNJ, 2018) apontou que no perí-
odo de 2014 a 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) registrou, no
tocante ao assunto “contratos de consumo”, o seguinte quantitativo de proces-
sos mais frequentes, em escala decrescente: (i) processos relativos a contratos
bancários, 400.027 (quatrocentos mil e vinte e sete); (ii) processos relativos a
planos de saúde, 203.932 (duzentos e três mil novecentos e trinta e dois); (iii)
processos relativos a serviços de telefonia, 110.514 (cento e dez mil e quinhentos
e quatorze); (iv) processos relativos a fornecimento de água, 71.316 (setenta e
um mil trezentos e dezesseis); (v) processos relativos a fornecimento de energia
elétrica, 28.910 (vinte e oito mil novecentos e dez)651.
Por outro lado, a pesquisa do Datafolha (2015) estima que, apenas na ci-
dade de São Paulo, houve um crescimento vertiginoso das pessoas que sofreram
com a falta de água, visto que em junho de 2014, 35% das pessoas declararam
sofrer com a interrupção da água em suas residências, contra 49% em outubro
de 2015, com uma margem de erro de 3 pontos percentuais, para mais ou para
menos. Assim, é possível estimar que o número de paulistanos que sofreram
com o corte de água aumentou de aproximadamente 4 milhões em 2014 para
cerca de 6 milhões em 2015. Desta forma, apesar de não ser possível afirmar

651 Por oportuno, registre-se, os dados acima anunciados não discernem os litígios individuais dos coletivos.

466
30 anos da Constituição

com uma dose razoável de segurança a extensão do índice de conflitualidade


relativo ao fornecimento de água no período, houve diminuição dos casos no-
vos (Tabela 1.), o que indica que os tribunais não foram procurados com maior
frequência no período da crise. Observa-se, assim, uma distância abissal entre
necessidades jurídicas e a procura do poder judiciário.

Tabela 1. Número de demandas judiciais por fornecimento


de água ajuizadas anualmente.

Vale dizer, houve um aumento marginal (14%) de reclamações perante o


PROCON-SP, que, ainda assim, foram menores que em 2011, o que indica que
a procura foi pouca. Ademais, os números chamam a atenção, visto que variam
entre 1.000 e 1.500 reclamações, estimando-se que cerca de 4 milhões de pau-
listanos ficaram sem água em 2014 e 6 milhões em 2015 (IDEC, 2018). Portan-
to, apesar de ser difícil dizer com precisão quantas pessoas ficaram sem água,
é possível observar uma queda na demanda judicial pela violação deste direito
fundamental, além de certa estabilidade no número de reclamações perante os
MASC que albergam o tema, o que permite inferir que os cortes no forneci-
mento de água não acompanharam um aumento nos litígios por força disso. Em
conclusão, a população em situação de extrema vulnerabilidade tende a não
buscar o sistema de justiça, ainda que sofra com o racionamento de água e em
que pese seu direito fundamental à água estar assegurado.
É de se situar na jurisprudência do TJSP casos mais recorrentes em matéria
de ações coletivas, que envolvem o direito à água. Constatou-se também a abusivi-
dade da cobrança de valor em casos de fraude no medidor de consumidores adim-
plentes. No caso jurisprudencial abordado, uma concessionária de serviço público
teve seu recurso negado, pois o TJ-SP reconheceu por abusiva a notificação de
consumidores em dia com o pagamento das prestações, não se justificando o corte
de serviço com base na alegação de ocorrência de fraude no medidor de consu-
mo, entendendo-se que não era a forma adequada de se cobrar a quantia devida
e confirmando a sentença de juiz de primeiro grau, em que se entendeu violado

467
30 anos da Constituição

o artigo 42 do CDC (Apelação numero 0003524-31.2008.8.26.0032: Companhia


Paulista de Forca e Luz x Defensoria Publica do Estado de SP 13/05/2014).
A despeito de haver jurisprudências favoráveis ao consumidor em casos de
fraude no medidor, há porem reversão no Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
por meio de dispositivo processual da suspensão de liminar, sob alegação de
grave lesão à ordem e à economia. Na ação número 0251986-97.2009.8.26.0000
foi conferida uma medida de urgência no TJ-SP para determinar o religamento
de energia, que, ao cabo, foi suspensa no STJ.
Note que a inadimplência configura motivo suficiente para corte de ser-
viços básicos, bastando que haja aviso prévio, segundo a Lei 8.987/1995 art. 6,
parágrafo 3, II (Lei Federal de Concessões). Não costuma oscilar a jurisprudên-
cia do TJSP, conforme a Apelação 1000713-89.2017.8.26.0283, dentre outras,
mormente nos casos de inadimplência.

4. Discussão
O Código de Defesa do Consumidor, conforme Nery (NERY JÚNIOR,
2011, p. 101), estabeleceu o regime jurídico da relação de consumo, com a fa-
cilitação da defesa do consumidor em juízo, em sendo verossímil a alegação de
hipossuficiência, para a inversão do ônus da prova (art. 6º, inc. VIII), bem como
o acesso à justiça na forma individual ou coletiva (art. 81, caput). Em outras
palavras, identificou sujeitos de direitos duplamente vulneráveis: vulneráveis
financeiramente e quanto ao conhecimento de seus direitos. É a esta vulnerabi-
lidade, de um ponto de vista jurídico, que o CDC visa sanar, ao adotar critérios
diferentes no que tange o conceito de “consumidor” e à teoria da prova.
Ao averiguar o acesso à justiça nas relações consumeristas, a presente pes-
quisa selecionou a barreira econômica como chave de análise, o que, por sua
vez, revelou a existência de consumidores hiper-vulneráveis. Cumpre notar que,
para além da vulnerabilidade inerente ao consumidor, aos hiper-vulneráveis so-
mam-se características tais como a vulnerabilidade econômica, realidade social
evidentemente majoritária no país, etc. Como forma de imergir nesta realidade,
o OCCA Brasil entrevistou um dos coordenadores do Núcleo de Defesa do
Consumidor da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

468
30 anos da Constituição

Importante esclarecer que a Defensoria Publica é um órgão de competência


federal e estadual, cujo objetivo é oferecer, de forma integral e gratuita, aos cidadãos
necessitados a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em to-
dos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos (Brasil, 2018).
Em relação ao acesso à Justiça de pobres e vulneráveis, a Lei Complementar 80/94
prevê a sua orientação jurídica e defesa em todos os graus (DE MELO et. al, 2017). No
estado de São Paulo, o critério principal para fazer jus à Defensoria Publica, é possuir
renda familiar de até três salários mínimos.
Em entrevista, o representante do Nudecon chamou a atenção para a relevância
de uma unidade especializada que tutele judicial ou extrajudicialmente o consumidor
e priorize, com especial destaque, o cidadão hiper-vulnerável. Isso por que, segundo
ele, “em uma sociedade capitalista grande número das relações civis tem caráter con-
sumerista e atingem a todos, inclusive àqueles com menor poder aquisitivo”.
Em sentido amplo, para além deste estudo de caso, os dados disponíveis confir-
mam tal assertiva, pois, realmente, nas relações de consumo estão imbricadas muitas
outras esferas do OCCA, tais como as esferas bancária, de moradia, da saúde privada
e até mesmo uma esfera mais ampla ligada a direitos fundamentais.
É interessante notar que, de acordo com o Coordenador do Nudecon, as mais
recorrentes demandas trazidas pelos assistidos versam sobre: i) contratos bancários,
geralmente por razão de endividamento ou super endividamento com as instituições
bancarias; ii) planos de saúde, principalmente por negativa de cobertura de tratamen-
to ou procedimentos médicos; iii) serviços públicos essenciais, especialmente os que
dizem respeito ao fornecimento de água, energia elétrica e transporte público.
Portanto, o conflito eleito como estudo de caso é menos recorrente que conflitos
bancários e de planos de saúde. Com relação à demanda judicial pelo fornecimento de
água, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem atuado tanto para discutir cor-
tes de serviços, quanto para questionar valores cobrados pelas concessionárias, como
para demandar o fornecimento de água para comunidades periféricas, argumentando
pelo viés do serviço público essencial e do direito ao mínimo existencial.
No ponto, é possível estabelecer conexões com o estudo de caso da esfera
anterior, pois a demanda pelo fornecimento de águas para comunidades periféri-
cas está normalmente associada ao direito à moradia e à ocupação ordenada do
solo. Por outro lado, nesta imbricação está a promessa constitucional de acesso
ao mínimo existencial, que inclui o direito à moradia e o direito à água. Nesse

469
30 anos da Constituição

contexto, deve ser analisada a complexa questão do direito ao fornecimento de


água em áreas “ocupadas irregularmente”. De acordo com Cambi (et. al, 2014):
“A supressão do direito fundamental ao acesso a melhoramentos básicos
(como fornecimento de serviços públicos de energia elétrica e água tra-
tada) para ‘inibir’ a ocupação irregular do solo urbano é constitucional-
mente indefensável (...) porque a restrição retira dos excluídos a única
salvaguarda que detém: o acesso a uma ordem jurídica inclusiva, fazendo
respeitar o seu status civitatis.”

Este estudo de caso identificou uma relação entre cortes no fornecimento


de água, o baixo consumo deste bem e a vulnerabilidade econômica. Os dados
divulgados pelo Datafolha, revelam que o racionamento se deu em regiões pe-
riféricas e houve relutância da Sabesp em disponibilizar os dados públicos de
quais eram os maiores consumidores de água.
Ao cruzarmos os dados da realidade de cortes de fornecimento na cidade,
comparados com a baixa demanda judicial por serviços de água, principalmente
se considerado o caso proporcionalmente em relação à esfera bancária, podemos
observar que há uma questão da hipervulnerabilidade, econômica e jurídica. Em
entrevista com o Defensor do Núcleo de Defesa do Consumidor do Estado de São
Paulo, este afirmou que quando uma pessoa em situação de hipervulnerabilida-
de recorre a defensoria por conta de um contrato bancário, normalmente ela se
encontra em uma situação na qual juros abusivos transformaram uma divida em
algo que se torna uma escolha entre pagar a divida ou comer.
Desta forma, é possível observar que há uma barreira econômica no sentido
de que outras esferas do direito do consumidor, se colocam como mais urgentes
para uma pessoa hipervulneráveis, do que o direito a um serviço essencial básico.
A falta de acesso a este serviço se torna algo corriqueiro, mundano, assim tornan-
do-se uma barreira econômica de acesso à justiça civil quase intransponível. Em
que pese o fato de que o CDC traz consigo progressos normativos, as barreiras,
principalmente as de caráter econômico, acabam por colocar o consumidor em
uma situação na qual ele precisa escolher que direito ele pode priorizar ao acessar
a justiça, assim deixando lacunas constantes na defesa destes direitos.

470
30 anos da Constituição

5. Considerações finais
Inicialmente, houve um esforço desta pesquisa em cruzar os dados do
Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) produzidos pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e cruzá-los com os dados de abastecimento du-
rante a crise hídrica em São Paulo, para estabelecer um paralelo entre esta vul-
nerabilidade e o desabastecimento de água. No entanto, a pesquisa encontrou
dificuldades em dois sentidos. Primeiramente, a porcentagem da população sem
acesso a serviços de saneamento básico na cidade era muito pequena (media
0,38%), o que tornaria insignificante a correlação. O segundo sentido trata da
falta de confiabilidade nos dados oficiais da Sabesp, que, conforme explicitado
no estudo, foi contestada diversas vezes por órgãos autônomos e veículos de
imprensa quanto ao real alcance e tempo dos rodízios de água na região. Sendo
assim, foi preferível excluir esta análise do estudo, visto que os dados disponíveis
eram pouco confiáveis e poderiam trazer equívocos.
Tentativas de democratização do acesso à água seguem incompletas, reve-
lando dificuldades na articulação entre o debate democrático e a decisão pú-
blica. Neste sentido, além da falta de transparência, a Sabesp ainda foi alvo de
críticas por um lapso de accountability652, sob alegações de uma postura corpo-
rativista da empresa, que teria favorecido setores de atividade lucrativa durante
o período de racionamento em detrimento dos hipervulneráveis.
Em conclusão, apesar de não ser possível afirmar com uma dose razoável
de segurança a extensão do aumento no índice de conflitualidade relativo ao
fornecimento de água no período estudado, houve diminuição dos casos novos
ajuizados, o que indica que os tribunais não foram procurados com maior fre-
quência no período da crise. Pode-se inferir, assim, a existência de necessidades
jurídicas insatisfeitas, donde a conclusão de que a população em situação de ex-
trema vulnerabilidade tende a não buscar o sistema de justiça, ainda que sofra
uma violação a um direito fundamental.

652 Na definição de Elinor Ostrom (2007, p. 34): “Em uma política democrática, os servidores devem
prestar contas aos cidadãos sobre o desenvolvimento e uso de instalações públicas e recursos naturais.
A preocupação com accountability não necessariamente conflita com os objetivos de eficiência e
equidade redistributiva”.

471
30 anos da Constituição

Nota.
*Uma versão anterior deste texto foi originalmente escrita para fins de de-
senho do estudo de caso da esfera de consumo apresentado ao Observatório de
Conflitualidade Civil e Acesso à Justiça (OCCA), mecanismo de monitoração da
justiça civil na América Latina, coordenado pelo Centro de Estudo da Justiça das
Américas (CEJA) e conformado por organizações da sociedade civil e centros de
estudos de vários países na região. Nossos agradecimentos ao CEJA, na pessoa de
Marco Fandiño, pelo apoio irrestrito e pela assistência metodológica.

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