Sermão de Santo António Aos Peixes-2
Sermão de Santo António Aos Peixes-2
Sermão de Santo António Aos Peixes-2
1. Contextualização da obra
Vida e Obra
O Padre António Vieira nasceu em 1608. Com cerca de 6 anos de idade acompanhou a
família para o Brasil e começou os seus estudos na Companhia de Jesus, da qual não mais saiu.
Professor, político, teólogo, conselheiro de reis, confessor de rainhas, precetor de príncipes,
diplomata, escritor, pregador e missionário, defensor e lutador persistente de grandes causas,
foi sobretudo a dos Índios aquela a que se dedicou com maior paixão.
É considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII pela sua
personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.
Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a
exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da
independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração.
É marcante, também, o seu anti convencionalismo e ousadia ao combater a organização
social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas
anticristãs denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais
atitudes lhe causaram.
Deixou-nos uma variadíssima obra que se divide em Sermões (cerca de 200), Cartas (cerca
de 700), A História do Futuro, Clavis Prophetharum e textos esparsos.
Barroco
Funções do sermão
O sermão:
tem uma missão social, isto é, salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é,
salvá-los da antropofagia que era a prática comum entre os homens na sociedade;
é instrumento de intervenção na vida política do país;
tem uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de
santos como exemplos de condutas a imitar.
A estrutura do sermão
Segundo a retórica clássica, a estrutura do texto argumentativo organiza-se de acordo com
as seguintes partes:
Exórdio – apresentação do tema e captação da atenção do auditório;
Exposição e confirmação – apresentação dos factos e defesa da tese com argumentos
e exemplos;
Peroração – síntese do que foi dito e apelo à adesão dos ouvintes.
O Exórdio ou Introdução
Capítulo I
É uma parte importante porque é através dela que o pregador capta a atenção dos
ouvintes, logo, tem que prender e agradar.
O conceito predicável está inserido na 1ª parte do sermão – o Exórdio, que corresponde
ao capítulo I. Neste, o pregador apresenta o tema do sermão: a necessidade dos colonos do
Maranhão alterarem a sua conduta desumana.
Resumidamente: no exórdio, Vieira diz que, se as palavras do pregador (o sal) não
cumprem a sua função de impedir a corrupção entre os homens, duas questões devem ser
analisadas:
Será que o defeito está nos pregadores cujas palavras não convencem porque dizem
uma coisa e fazem o contrário do que pregam? A solução para este caso consiste em
deitar fora o sal porque não presta: “é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado
de todos.” (cap. I)
Será que o pregador ou sal seja bom e a terra ou colonos o desprezem? – “E à terra
que não se deixa salgar, que se lhe há-de fazer?” (cap. I). Para este problema, não há
solução: “Este ponto não resolveu Cristo Nosso Senhor no Evangelho; mas temos a
sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António.”.
Assim sendo, Vieira opta por imitar Santo António, que deixou os homens e se virou para
melhores ouvintes: os peixes.
O Exórdio termina com uma invocação à Virgem Maria ou Domina Maris (Senhora do
mar) para obter a inspiração necessária à pregação convincente que deseja.
A Exposição e Confirmação
Capítulo II
As 2 qualidades dos peixes mencionadas no início deste capítulo estabelecem um
contraste com 2 defeitos humanos:
“os peixes ouvem e não falam”, donde se depreende que os homens falam demais e
não ouvem os bons conselhos do pregador.
foram os primeiros animais criados por Deus, são os animais mais numerosos e com
maiores dimensões, são ordeiros, tranquilos e ouviram com atenção e devoção a
mensagem de Santo António, contrariamente aos homens que a desprezaram “tão
furiosos e obstinados”.
Vieira informa ainda que quer pregar com a mesma imparcialidade que Santo António
usou nas suas pregações porque essa é a atitude que deve manifestar qualquer pregador
1
Alegoria – figura de estilo através da qual se refere ideias abstratas recorrendo a exemplos comuns do
mundo material; os vários peixes elogiados e repreendidos são alegorias da maldade e bondade
humanas.
digno desse nome: “Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o
conservar e repreender o mal para preservar dele.”, isto é, o louvor das virtudes humanas
influencia a continuidade das mesmas e a crítica aos vícios (humanos) leva a que quem os
pratica se consciencialize dessa prática errada.
Capítulo III
Neste capítulo, o pregador passa louvar os peixes em particular e enumera as razões que
levam a esses elogios.
Peixe de Tobias – Tobias, personagem do Antigo Testamento é surpreendido por “um grande
peixe com a boca aberta em ação de que o queria tragar (…)” no momento em que ia lavar os
pés ao rio. Acontece que as entranhas deste peixe assustador iam, afinal, ajudar Tobias com as
suas entranhas: “o fel era bom para salvar da cegueira e o coração para lançar fora os
demónios.”. O fel iria curar a cegueira do pai de Tobias e o coração iria afastar os demónios de
sua casa, permitindo o casamento com Sara.
Santo António fazia o mesmo com as suas pregações.
Rémora – “peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder”, ela prende-se
às naus e impede que elas se mexam.
A rémora é alegoria da energia e força de vontade que devem ser o “leme” / a orientação das
ações humanas. A rémora representa todos os que são imunes, como Santo António, à “fúria
das paixões”, guiando-se na vida pela racionalidade. Ela representa também a língua de Santo
António que domou a fúria das “paixões humanas”.
À alegoria da rémora seguem-se outras alegorias: as “naus” soberba, vingança, cobiça e
sensualidade. Estes são vícios humanos decorrentes da falta de racionalidade que arrastam o
homem para comportamentos indevidos.
Torpedo – “aquele outro peixezinho, a que os latinos chamam torpedo”. Este peixe produz
uma descarga elétrica que passa para a mão do pescador, fazendo-lhe tremer o braço.
Isto quer dizer que a virtude deste peixe contagia o ser humano, sendo essa virtude a energia
para lutar contra a atração pelo mal. Com esta nova alegoria, Vieira critica os padres
pregadores que se interessam apenas por falar sem atender à qualidade das suas mensagens
evidenciando ausência de espírito crítico e descuido relativamente aos fiéis que “pescam” com
os respetivos discursos. Isto nunca acontecia com os sermões de Santo António visto que
aqueles que os ouviam “tremiam” de tanta emoção que, “tremendo, confessaram seus furtos;
(…) todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.”. O sermão proferido a vinte e
dois pescadores fê-los confessar os seus pecados e converterem-se à verdadeira doutrina.
O capítulo III termina com um elogio a todos os peixes que alimentam os pobres (as
solhas); já os salmões alimentam os ricos. Devido a esta boa ação dos peixes, o pregador
deseja que se reproduzam em abundância: “Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos
confirme a sua bênção.”
Capítulo IV
Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral porque os peixes grandes comem os
pequenos.
Alegoricamente, é referida a antropofagia social, isto é, os homens poderosos aniquilam os
mais frágeis, os marginalizados da sociedade: os ameríndios e negros do Brasil. Assim sendo, a
terra parece “um açougue”, isto é, um matadouro, já que os marginalizados vão morrendo de
cansaço, fome e doença, diante da indiferença dos colonos.
Mas os homens também se comem uns aos outros mesmo dentro da mesma classe social,
porque cobiçam os bens uns dos outros, são interesseiros: “Pois tudo aquilo é andarem
buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer. Morreu algum deles, vereis
logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e a comê-lo. Comem-nos os herdeiros, comem-no
(…) ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.”. Os homens
deviam preocupar-se em lutar pela independência da sua terra atacada pelos piratas ingleses e
holandeses em vez de se perderem em lutas por bens menores sem objetivo que as justifique.
Os peixes comem-se uns aos outros no mar por razões de sobrevivência, mas os seres
humanos aniquilam-se e desprezam-se por amor excessivo ao dinheiro. Esta constatação leva
a uma segunda repreensão geral aos peixes, alegoria dos homens: estes dão a vida por
insignificâncias, “um retalho de pano”. Os bens terrenos são ilusórios e fonte de discórdias; o
costume de se aproveitarem dos bens dos naufragados é condenável: “Pode haver maior
ignorância e mais rematada cegueira que esta?”. Deviam seguir o exemplo de Santo António
que, tendo nascido rico, abandonou tudo para imitar Jesus Cristo.
Capítulo V
Neste capítulo, Vieira repreende alguns peixes em particular: “Descendo ao particular,
direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós”. Os peixes criticados são alegorias dos
piores vícios humanos, ainda que haja uma gradação nesta enumeração porque o polvo será o
“peixe” mais criticado.
Roncador – peixes pequenos no tamanho que roncam muito. Estes são criticados por
roncarem demais, serem vaidosos e exibicionistas, isto é, vangloriarem-se sem razão.
São a alegoria dos homens arrogantes e vaidosos que prometem e não cumprem porque “o
muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela”. Condena os soberbos e exibicionistas
que, apesar da sua insignificância, gostam de se fazer notar, sobressair. (“Deus não quer
Roncadores, e tem particular cuidado de abater, e humilhar aos que muito roncam”).
Como argumento, o pregador menciona as seguintes histórias:
S. Pedro vangloriou-se que se todos fraquejassem, só ele havia de ser constante até
morrer; no entanto, ele fraquejou mais que todos e tremeu perante a voz de uma
mulherzinha e negou conhecer Cristo;
Antes, já S. Pedro tinha fraquejado, pois adormeceu Horto das Oliveiras e negou a
Cristo no pretório de Pilatos;
David venceu o gigante Golias apenas com uma fisga.
Santo António era detentor do saber e do poder e não se vangloriava por isso, tornando-se
célebre pela sua discrição. “Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e
imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens que os costumam fazer roncadores,
porque ambas incham: o saber e o poder.”.
Pegadores – peixes pequenos que se pegam aos costados dos peixes maiores e não os largam.
Assim, são criticados por se juntarem aos “grandes”, aos seus hospedeiros e viverem à mercê
destes, aproveitando-se dos seus benefícios, não tendo a capacidade de sobreviver sozinhos.
São a alegoria da adulação, do parasitismo e do oportunismo, vícios da alta nobreza e classe
política, gostam de receber favores e da adulação daqueles que deles dependem. Estes peixes
nadam presos a um “tubarão”, membro mais importante na escala social que eles vão
explorando como podem: “porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que
não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de
que lá |em Portugal continental| não tinham remédio.”. Vivem à custa dos grandes, mas
quando esses morrem, também eles morrem: “morre o Tubarão, e morrem com ele os
pegadores.”.
Como argumento, o pregador menciona as seguintes história:
Morto Herodes, apareceu o Anjo a José no Egito e disse-lhe que já poderia tornar à
pátria, porque estavam mortos todos aqueles que queriam tirar a vida a Cristo
menino;
Adão – funciona como o tubarão de que a humanidade é pegadora, e por isso paga
pelo seu pecado.
Santo António, tal como David, pegou-se somente a Deus. Por outro lado, o Senhor fez-se
pequeno para se pegar a Santo António, mas S. António fez-se menor para se pegar a Deus.
Voadores – peixes com grandes barbatanas que querem ser aves. São criticados por
ambicionarem ter uma condição que não a sua original, sendo presunçosos e vaidosos (“Mata-
vos a vossa presunção, e o vosso capricho”; ”Ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca
é no vento”).
São a alegoria dos sempre insatisfeitos com a vida e ambiciosos porque não se contentando
em nadar no mar, querem voar como os pássaros, deixando-se levar pela presunção e
capricho: “Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser
aves? (…) Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. (…) À vista deste exemplo, peixes,
tomai todos na memória esta sentença: quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer
e o que tem.”.
Para apelar a que cada um se contente com o que tem, o pregador serve-.se das seguintes
histórias como argumentos:
Simão Mago quis passar-se por filho de Deus e ao precipitar-se para voar, Deus não
quis que ele morresse logo, assim, partiu-lhe os pés. Simão «pode andar e quer voar;
pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande.»
Ícaro: símbolo da ambição humana e do seu castigo.
Santo António tinha “asas” (sabedoria) e não as usou para subir (exibir o seu valor), mas
encolheu-as para descer (respeitar Cristo).
Polvo – o maior traidor do mar por ser dissimulado, fingido, astuto e enganoso, “vestir ou
pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado” e “escurecendo-se a si,
tira a vista aos outros”. Contra o polvo ergueram-se as vozes de dois santos importantes: S.
Basílio e Santo Ambrósio porque o polvo aparenta ser aquilo que não é: “com aquele seu
capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão.”
Assim, é a alegoria da hipocrisia, da falsidade e da traição, os vícios piores entre todos. Com a
frase “com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos
parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a
mesma mansidão.” percebemos o alcance da crítica ao polvo: como ele, também os monges
enganam os fiéis, passando por homens piedosos quando não passam de homens imorais e
interesseiros que utilizam a palavra de Deus para melhor conseguirem os seus verdadeiros
intentos.
O pregador argumenta através de anáforas, frases paralelísticas e comparações, descrevendo
a aparência enganadora o polvo que, devido ao mimetismo, se disfarça para melhor enganar
os inocentes. Refere ainda que o ele é um maior traidor do que Judas, que apesar de ter
abraçado Cristo, não o prendeu: “Se está nos limos faz-se verde, se está na areia, faz-se
branco, se está no lodo, faz-se pardo (…) E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente
da traição, vai passando desacautelado (…) Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez
tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que
prende.”. Para além das razões já invocadas contra o polvo, Vieira refere o contraste entre a
“sujidade” moral do polvo e a transparência do elemento natural em que habita – o mar: “Oh
que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino
como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu!”
Vieira intui os argumentos que os peixes/homens empregariam, se pudessem falar, para
rebater as acusações contra o polvo: “Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das
terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas
há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas
traições. (…) Mas ponde os olhos António, vosso pregador, e vereis nele o mais ouro exemplar
da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano.”. Isto
é, é verdade que a terra está infestada de traidores e não apenas o mar onde vivem os peixes
acusados, sobretudo o polvo, pior entre os piores. Mas também é verdade que há habitantes
da terra que se destacam pela pureza de coração e amor, como é o caso de Santo António a
quem Vieira imita e cita frequentemente no seu sermão. Ele esteve sempre afastado da
traição, sempre houve candura, verdade e sinceridade nos seus atos e palavras. Que se há de
então fazer, já que Santo António é inimitável? Para Vieira, basta que os portugueses do seu
tempo se mantenham fiéis aos valores morais e éticos que outrora existiam em Portugal e que
agora parecem estar arredados das intenções dos colonos do Maranhão: “E sabei também que
para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era
necessário ser santo.”
O capítulo V termina com uma censura àqueles que roubam os bens dos náufragos que
dão à costa e avisa: “Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio
atravessado na garganta.”
A Peroração ou Conclusão
Capítulo VI
No último capítulo, Vieira quer “consolar” os peixes, eles que para além de terem sido alvo
de duras críticas, também foram excluídos do terceiro livro da Bíblia – O Levítico. Esta
desconsideração feita aos animais marinhos num livro sagrado deve-se a esta razão: “(…) foi
porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício [tratava de uma oferenda a Deus que
passava por sacrificar animais, tal como era habitual nas práticas religiosas ancestrais] e os
peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem
chegue aos seus altares.”. Ora, tal como os peixes que morrem antes de chegar a Deus,
também “quantas almas chegam àquele altar mortas (…) estando em pecado mortal!”
Assim, os peixes estão em vantagem relativamente aos humanos já que nem chegam a
aproximar-se de Deus, não o podendo ofender. Por oposição, os homens chegam a Deus
cheios de pecados, facto que leva o pregador a exclamar: “Peixes, dai muitas graças a Deus de
vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto.”
Mas as vantagens dos peixes não se resumem apenas ao que foi referido antes: o pregador
também é humano e dotado de razão, contrariamente aos peixes que agem segundo as leis da
natureza. Assim sendo, o pregador inveja “a bruteza” dos peixes porque estes não ofendem a
Deus já que nem pensam nem têm vontade própria.
Vieira termina reconhecendo, numa atitude humilde, as fraquezas inerentes aos seres
humanos que falham perante Deus porque a inteligência destrói a inocência e pureza que os
peixes, seres irracionais, conservam, e que o livre-arbítrio, que falta aos peixes, nem sempre o
conduz à prática mais cristã: “Vós fostes criados por Deus para servir ao homem, e conseguis o
fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que
me criou.”. Acrescenta a esta confissão da sua indignidade face a Deus, o pedido aos peixes
para que louvem a Deus, criador da vida e a quem tudo se deve.
O estilo do Padre António Vieira
O Padre António Vieira escrevia e pregava o que escrevia em público, nas igrejas, a partir
do púlpito ou lugar destinado na igreja aos pregadores. Para que a sua pregação produzisse o
efeito pretendido pelo orador, tornava-se necessário agradar aos ouvintes e conseguir prender
a atenção destes durante o tempo da pregação. Assim, nenhuma parte dos longos discursos
era deixada ao acaso, mas, pelo contrário, minuciosamente trabalhada previamente.
Vieira conseguia seduzir os ouvintes à custa dos seus dons oratórios ou capacidade para se
expressar oralmente com convicção, através do recurso a figuras de estilo ou de retórica, do
encadeamento lógico dos raciocínios e das imagens sugeridas, através das associações de
vocábulos selecionados para esse efeito, e do recurso a argumentos difíceis de contestar
pelos ouvintes.
Para ter sucesso na pregação e convencer os ouvintes a alterar a mentalidade e modos de
agir, Vieira serve-se de variados recursos; para além da argumentação, emprega largamente
citações bíblicas, normalmente em latim, faz referências à vida de Santos e Doutores da Igreja
(Santo António, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Mateus), refere passagens
conhecidas do Antigo Testamento (o episódio de Jonas, no capítulo I; o episódio do Dilúvio e a
arca de Noé, no cap. I; o episódio de Tobias a quem apareceu o Arcanjo Rafael, no capítulo II;
passagens da vida do rei David, capítulo II; o episódio vivido por Jesus Cristo no Horto, capítulo
V; a fuga de Jesus para o Egipto, capítulo V;…); referências a filósofos e pensadores
(Aristóteles, por exemplo); referências à mitologia greco-latina; referências à variedade da
fauna marítima e terrestre, a zonas geográficas, à sabedoria popular, …
O recurso a abundantes referências bíblicas confere seriedade e credibilidade à pregação
já que não há argumentos de peso que se oponham às narrações bíblicas. Como foram escritos
para serem ouvidos, os sermões têm um ritmo facilmente captável pela audição. Para além
disto, os conceitos mais importantes são acentuados através da repetição e as palavras são
escolhidas criteriosamente porque deviam ser, segundo o pregador, “distintas e claras como
estrelas”.
Alegoria: todo o sermão é alegórico ou uma extensa alegoria, a partir do cap. II (os
peixes são alegorias dos homens e das virtudes e vícios destes).