Capítulo 4, Versículo 3: Uma Teologia Dos Racionais MC'S: December 2011
Capítulo 4, Versículo 3: Uma Teologia Dos Racionais MC'S: December 2011
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SÃO CARLOS
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
SÃO CARLOS
2012
2
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO:..................................................................................................4
PARTE 1:.......................................................................................................13
PARTE 2:..........................................................................................................23
PARTE 3:.......................................................................................................32
CONCLUSÃO:...............................................................................................39
3
INTRODUÇÃO:
“Vendeu 500 mil cópia e 500 mil pirata [risadas]. Um milhão de cópia”
(KL Jay). Essa foi à vendagem do álbum Sobrevivendo no inferno de 1997,
pelo grupo de rap paulistano Racionais MC’s. Até então, nenhum grupo de rap
ou mesmo um grupo musical que produzia os próprios CDs, atingiram tal
marca. Os Racionais possuíam essas duas características. Esse álbum foi o
ponto de inflexão do rap no Brasil, pois antes era escutado somente nas
periferias urbanas, passou a ser reconhecido amplamente pelas mídias
(televisão, jornal, rádio, entre outros) num espectro nacional. No ano de 1998,
houve o show antológico no VMB (Video Music Brasil) pela MTV com a música
Capítulo 4, Versículo 3. Mas qual seria a importância dessa produção artística
desses sujeitos?
O rap (rhythm and poetry) é um estilo musical, que surge como forma de
expressividade política, dos jovens das periferias urbanas. Com um viés crítico,
as temáticas seriam os problemas existentes nesses territórios, como:
opressão policial, racismo, criminalidade, dependência química, família,
pobreza, evangélicos, entre outros. Assim, a ampliação da expressividade do
rap no Brasil, significaria expor de modo amplificado essas questões – muitas
vezes tidas como “problemas” – vivenciados por esses jovens. Além disso, o
rap possui o estatuto de ser feito por quem é da periferia e para a periferia,
como diz Mano Brown no início desse show na MTV: “a voz da favela e faz
parte dela”.
Assim, esse álbum gravado no ano de 1997 seria um catalisador de
várias questões políticas, que ocorreriam contextualmente nas periferias
urbanas. Isso não significa que as músicas, seriam meros retratos produzidos
por uma delimitação cronológica do contexto. Tanto o rap, quanto os Racionais
e suas músicas, possuíam uma característica de conflito em relação a algumas
questões políticas, principalmente, aquelas que envolviam modos de
“opressão” e “injustiça” social.
4
Das 12 faixas presentes nesse álbum, as várias temáticas referem-se a:
a trajetória da “vida no crime”, o homicídio cotidiano de jovens da periferia, a
história de um presidiário que “viveu” o massacre do Carandiru, as relações de
racismo cotidiano, as opressões policiais, a história de um “menino de rua”, a
reflexão de um sujeito a respeito da violência urbana, entre outros. Essas são
questões contemporâneas, sobre as periferias urbanas, localizadas na cidade
de São Paulo que são desdobramentos de questões políticas no período dos
anos oitenta até os noventa (a época do surgimento do rap no Brasil e o
lançamento do Sobrevivendo no inferno).
Nos anos oitenta, os atores políticos de destaque nas periferias urbanas,
através da figura do trabalhador, pertenciam a: movimentos sociais, partidos
políticos e sindicalistas. Segundo Sader (1988), esses eram os “novos atores
políticos”, que produziram formas populares para a expressão política. No final
da década há o processo de redemocratização brasileira, com a participação
de movimentos sociais, e a institucionalização do Partido dos Trabalhadores
(um dos partidos mais populares). É nesse período que surge o rap no Brasil,
imerso dentro de uma “cultura política” e, na qual, as “camadas populares”
ganhavam expressividade política. Exemplo dessa relação entre periferia e a
política é a relação de Mano Brown com o PT:
5
Eles cantaram uma música só. [E ninguém aqui conhecia nada!].
Ninguém conhecia. E quando eu vi, o Run DMC, eles tinham aquele
ritual né. De gestos, eles se cumprimentavam na mão no alto, usavam
aquelas correntes. Bem grossa mesmo. Bem estilo, uns Adidas bem
louco, com as roupa de couro bem loco. Eu falei: Pô, esses negrão aí,
nóis queria, a gente tinha que ser igual eles mano! Esses negrão é o
poder! O poder negro. Pô nóis tem que ser igual os negro americano.
Nóis é muito oprimido aqui meu. Aqui no Brasil o negro não fala, não
protesta. O negro não se impõe. Ó o negro americano como é, corrente
de ouro. E aquilo motivou a gente. A parte estético, primeira coisa que
a gente viu foi o estético. Roupa, visual né? Aquilo é poder também,
entendeu? Visual é poder também né? Eu posso falar isso, porque eu
fui pego pelo visual. Quando a gente viu aquilo: Pô, esses negro aí era
o que a gente tinha que ser meu. Desse jeito aí ó! Forte. Foi isso que
incentivou. Aí eu achei: Pô é isso aí meu. Eu quero ser isso aí. (Mano
Brown em entrevista na radio 89 FM, 2011)
1
Era de 7% em 1986 para 20% nos anos 2000 (Feltran, 2009).
6
família, porque não se sabe bem o que fazer com um filho “na droga”,
ou com outro que traz R$ 500 por semana para casa, obtidos “da
droga”; tensiona a escola, porque os meninos “do crime” são mal vistos
pelos professores, mas muito bem vistos pelas alunas mais bonitas.
(Feltran, 2009:15)
2
Ver em Almeida (2004).
7
desemprego, a luta política para afirmação de uma “identidade negra” e o
crescimento em conversões nas igrejas pentecostais.
8
ocorre em duas partes: a primeira é o rapper gospel Pregador Luo – do grupo
Apocalipse 16 – que interpreta um “pregador”. Essa “pregação” consiste numa
interpretação teológica na visão cristã, da dominação na chave racial. A
segunda é a introdução da música Capítulo 4, Versículo 3, na qual, Mano
Brown cita várias taxas exemplificando um efeito de sujeição, desde o período
bíblico citado pelo Pregador Luo.
Depois, adentraremos na análise estético-discursiva da estrutura da
música em si. A divisão estrutural se dá na seguinte maneira, são ao todo 14
cenas selecionadas a partir de uma coesão discursiva, desses trechos.
Agrupando, essas cenas em três partes: parte 1 (cena 1 a 4), parte 2 (cena 5 a
9) e parte 3 (cena 10 a 14). Esse agrupamento se dá na própria estrutura da
música, porque essa está construída como se fosse um cântico religioso. Pois
entre as partes, há um refrão que se canta: “Aleluia”, repetidamente como se
fosse uma “benção”.
Assim, essas “partes” que estruturam o Capítulo 4, Versículo 3 –
também possuindo uma semântica estrutural de “prece” – se dariam da
seguinte forma: parte 1 – Mano Brown (figurativamente representando os
Racionais MC’s) se apresenta como um sujeito “revoltado” devido a essas
formas de sujeição. Entretanto, propõe uma ruptura contra um “sistema”
(caracterizado por sua imoralidade hegemônica) através da “violência”
metafórica e poética. Atribuindo aos Racionais MC’s um estatuto de “profeta
dos ‘pretos’ da periferia” (“e a profecia se fez como previsto/a fúria negra
ressuscita outra vez”). Na parte 2 – é a construção das polaridades morais, na
perspectiva da moralidade marginal, através do exemplo do preto tipo A que
virou neguinho. Produz-se uma série de polarizações entre “moral” e “imoral” a
partir das categorizações de “preto” e “branco”, “mano” e “sistema”, mano-
“nóis” e mano-“outro”, “preta” e “puta butique”, entre outros. Na parte 3 - há
uma constituição política-moral do pólo “nóis”-periferia, demonstrando que
quanto mais próximo a polaridade “sistema”-“branco”-“demônio” mais se
tornam assujeitados. Assim, enfatiza-se a moralidade marginal como um modo
de romper com as técnicas de assujeitamento do “sistema”, na perspectiva de
uma teologia dos Racionais MC’s.
9
Prólogo (show dos Racionais MC’s no VMB de 1998):
A câmera focaliza numa cruz feita de velas, uma cruz grande com as
chamas das velas tremulando. Você! Você se considera um homem livre? –
grita um homem. Diminui-se o zoom e amplia a imagem para o palco. Está
pouco iluminado, há um efeito de luz na fumaça que percorre pelo chão.
Enquanto isso, alguém canta uns efeitos de gospel acompanhado por violão
dedilhando, compondo um fundo musical, que caracterizaria uma sacralização
do ambiente. Você pensa que é um homem livre, mas é um escravo! – continua
o homem. Esse homem está centralizado no palco, a iluminação principal está
sob ele. Vestido de terno preto, camisa branca e gravata roxa. Careca, de
óculos e “negro”. Mesmo podendo andar pelas ruas, você não passa de um
prisioneiro! – fala alto e gesticula intensamente. Outros homens aparecem
também para escutar sua fala, são “iguais também”, “negros”, porém não
vestidos com terno. Esse homem é um pregador e começa a “bater” na bíblia
enquanto continua: A bíblia conta a história de um povo, que durante
quatrocentos anos foram escravizados! Que durante quarenta anos vagou pelo
deserto, a história do povo de Israel. [Aleluia!]. Envolta do pregador, há outro
homem, vestido de camisa por dentro da calça, andando “para lá” e “para cá”.
Com as mãos para cima grita: Aleluia!
O pregador continua gesticulando: Assim como vocês! Esse povo estava
desvalorizado, humilhado, sem moral e sem esperança. Alguns começam
escutar o pregador, homens vestidos com jaquetas e calças largas, utilizando
bonés. Um desses homens começa a “beber” enquanto escuta a pregação:
Mas um dia Deus – aponta para cima fervorosamente – apareceu na vida
desse povo! E prometeu levá-los para a terra da liberdade! Uma terra que
emana leite e mel chamada Canaã! Uma terra onde eles seriam verdadeiros
homens livres [“Aleluia!” e palmas]. A câmera mostra o palco inteiro, o pregador
continua falando e gesticulando, há aproximadamente 10 homens em volta
dele.
Sabe irmãos, eu também já fui como vocês – apontando para os outros
–, envolvido com várias mulheres, com vários vícios e com vários bebedices.
Achava ali a segurança poderia ser feita por um revólver e com um revólver eu
poderia impor a minha moral [Aleluia! Aleluia!]. Mas eu estava errado! Eu era
10
um simples escravo. A imagem foca no perfil do pregador, que aumenta seu
êxtase: Até que um dia o Senhor, glória Deus, apareceu em minha vida. Me fez
um homem negro livre! Um homem livre como vocês podem ser! Livre da dor e
do sofrimento. E continuando sua pregação, o pregador começa a dizer mais
compassadamente: Mas ouçam irmãos, o mesmo sistema que humilhou e
escravizou no passado. O pregador aponta para todos, um deles bate palmas e
grita “aleluia!”. O mesmo sistema que humilhou e escravizou o povo de Deus
no passado. Todos, estaticamente, prestam atenção e o pregador aponta ao
chão. Humilha vocês, hoje!
Toca-se uma batida semelhante ao de um sino de igreja, uma batida
contínua e “anestesiante”. Aparecem na tela ao fundo: fotos 3x4 de presidiários
com tarja nos olhos e imagens de impressões digitais. A câmera retoma o
zoom na cruz feita de velas. Uma voz masculina soa pelo auto-falante: 60 por
certo dos jovens de periferia sofrem violência policial. É a voz de Mano Brown.
Toca-se novamente o sino. A quatro pessoas mortas pela polícia, três são
negras. Toca o sino, mas com um timbre mais agudo. Nas universidades
brasileiras apenas 0,5% dos alunos são negros. Continuamente toca-se o sino
num espaço menor de tempo. A cada quatro horas, um jovem negro é morto
violentamente em São Paulo. Toca o último “badalar” do sino. Aqui é Racionais
[ecoa “Racionais”], a voz da favela! Tchí!
Começa a tocar a introdução da música Capítulo 4, Versículo 3. A
platéia vibra e bate palmas. Inicia os beats que compõem as batidas “graves”
que são “ritmadas” e as batidas “agudas” que são sampleadas5 de notas
musicais do piano. Essa combinação entre os “graves” e “agudos” – que gera
uma sensação de “extremidades” – dá um tom “sombrio”, “dramático” e
“cabuloso” (termo nativo) à música. Mano Brown adentra ao palco com uma
camisa preta escrita “Santos”, calça larga, um “chapéu” e uma corrente grossa
prateada. Um segurança “bombado” e sem camisa o segue atrás. Com a feição
“fechada”, Brown diz: É nóis na fita ladrão! Edy Rock faz uma “base” com a
voz: Ahn... ahn... ahn, dando continuidade junto com Ice Blue: Ih... ih. Brown
continua: Pode acreditar, Racionais no ar. Chegando devagar pra revolucionar.
A voz da favela e faz parte dela. A voz da favela [Blue: filha da puta], pode crê.
11
Brown entra na parte principal do palco apontando para o público: Racionais no
ar, chegando devagar [Blue: filha da puta, pá, pá, pá!], ao mesmo tempo,
Brown faz gesto de tiros usando o microfone como “arma”. E começa cantando
“agressivamente” a música batendo no peito e com a feição “dura”: Minha
intenção é ruim...
12
estão oprimindo. Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o
meu povo, os filhos de Israel do Egito. (Êxodo 3:7-8-9-10)
PARTE 1
13
Este primeiro trecho representaria uma anunciação de um sujeito
“revoltoso”, “agressivo” e que está “armado”, realizada através da figura de
Mano Brown. A primeira impressão possível é de um assalto armado com ele
invadindo algum estabelecimento, pronto para atirar a qualquer momento e
deixando as suas vítimas submissas: “minha intenção é ruim, esvazia o lugar/
eu tô em cima, eu tô afim/um, dois pra atirar”. Entretanto, na análise da música,
esta cena poderia ser considerada também como analogia de um assalto
metafórico. Haveria simultaneamente, dois modos para a compreensão deste
conflito armado, pois ao mesmo tempo em que alguns versos possuem
conotação de que está realmente havendo um assalto, por outro lado este
conflito se consiste apenas no âmbito poético e metafórico do crime: “eu tô em
cima, eu tô afim/ um dois pra atirar” e “minha palavra vale um tiro e tenho muita
munição”. Isso caracterizaria essa música não somente como uma simples
canção, mas analogamente faria do rap uma arma e os versos seus tiros,
agredindo de tal forma que se assemelha ao efeito real de um assalto.
Mas por que Mano Brown está “revoltado”? Por que este possui a
intenção de realizar este assalto, metafórico ou não? Em um assalto “comum”,
o objetivo principal seria o ganho econômico e também a obtenção de um
status social. Entretanto, essa “cena de assalto” metaforicamente introduziria o
Capítulo 4, Versículo 3 como expressão crítica e violenta composta num
manifesto político. Essa característica política é oriunda também do modo
expressivo do rap no Brasil. Pois esse gênero musical/expressão política inicia
dentro do universo movimento hip-hop, na passagem dos anos de 1980 para
1990, na qual se vivia um contexto de redemocratização política. Assim, muitas
músicas de rap tinham como objetivo transmitir mensagens em combate à
opressão policial, racismo, desigualdade social, entre outros. Contudo, nessa
música agrega-se outro aspecto além da crítica política, atribui-se um valor de
missão: “eu tenho uma missão e não vou parar/meu estilo é pesado e faz
tremer o chão”.
Essa missão se constitui, simbioticamente, a partir dos aspectos
políticos e teológicos: o primeiro se constituiria pela sua expressividade
combativa na relação de poder entre “manos”6 e “sistema”, entretanto não seria
14
política no sentido “institucionalizante” como: movimentos sociais, partidos
políticos, parlamentaristas, entre outros, que teriam como objetivo a busca de
“direitos iguais” na construção de uma democracia liberal e cidadã. Mas sim,
uma resolução de conflito que teria a ruptura do poder hegemônico contra o
“sistema”. O segundo aspecto se explicita no título da música “Capítulo 4,
Versículo 3” que faz analogia com a estruturação normativa de escrita bíblica7.
Se essa missão se constitui pela simbiose entre os aspectos políticos e
teológicos, portanto, as características políticas anteriormente citadas são
expressas na ótica teológica.
Assim a música que se constitui como uma expressão de combate entre
os “manos” e “sistema”, logo teologicamente, a resolução desse conflito seria
uma ruptura desse “sistema” que é produtora da maldade. Assim, além da
leitura política da hegemonia como é tida comumente8, esta será lida
simultaneamente, a partir de concepções morais e éticas como: “bem” e “mal”,
“certo” e “errado”, “justo” e “injusto” oriundas dessa perspectiva teológica. A
constituição dessa teologia é de matriz cristã, isto porque, além de nos anos
noventa ocorrer um crescimento considerável de praticantes das igrejas
pentecostais/neopentecostais9. Durante fase da vida de alguns integrantes dos
Racionais MC’s (como por exemplo: Mano Brown) vieram a praticar religião de
denominação “evangélica”10:
7
A bíblia se separa em “livros” (Gênesis, Êxodo, Salmos, Provérbios, etc), capítulos e versículos. Capítulo
4, Versículo 3 pode ser interpretada como: 4º álbum e 3ª música do grupo.
8
Principalmente a partir da perspectiva marxista, tendo Gramsci como expoente desse discurso.
9
Mostrar biblio referente a iso.
10
A terminologia mais correta seria no plural: as religiões “evangélicas”. Porque, o termo “evangélico”
atribui-se às múltiplas segmentações do protestantismo, pentecostalismo, neopentecostalismo, entre
outros.
11
Termo nativo de quem pratica a religião “evangélica”.
15
Essa relação entre política e teologia se expressaria na estética
discursiva do Capítulo 4, Versículo 3, como no verso: “minha palavra vale um
tiro e eu tenho muita munição”. O sentido do termo “palavra” se expressa
duplamente: uma, seria a semântica “evangelizadora” da “palavra”, pois se
aproxima do sentido cognitivo de “palavra de Deus”. O que caracterizaria um
missionarismo teológico, de ensinamento moral e ético, no combate contra a
maldade. A outra seria a semântica “criminal” que teria atribuição políticas, isto
porque a “cena de assalto” representaria uma metáfora ao conflito contra o
“sistema”, destruindo-o através da violência. É por esse motivo que Mano
Brown possui os seguintes atributos: “intenção ruim”, “ser bem pior”, “preto sem
dó”, “100% veneno” e “estilo pesado”.
16
(figurado no sujeito de Mano Brown). Como demonstrado na estética da “cena
do crime”, as atribuições a essa missão são “violentas”, por isso que as suas
múltiplas ontologias também o são: “fronteira do céu com o inferno”, “bandido
do céu” e “padre sanguinário”. Haveria, portanto, um choque de moralidades,
pois na música a relação entre os pólos “bom” e “mau” ocorrem sem gerar uma
“contradição” inteligível. Desse modo, iremos analisar a produção de
moralidades nesse trecho, compreendendo como se opera essa “contradição”
moral nas múltiplas ontologias subjetivas.
Inicialmente, podemos fazer uma análise dessa “contradição” moral a
partir da oposição entre “imoralidade” e “moralidade” que atravessa as
ontologias. O aspecto da “imoralidade” é atribuído as características “más” que
Mano Brown faz de si mesmo: “sádico”, “malandro”, “bandido”, “sanguinário” e
“franco atirador” (no trecho anterior: “minha intenção ruim”, “ser bem pior”,
“preto sem dó”, “100% veneno” e “estilo pesado”). Assim, essas atribuições
caracterizariam a produção de ações “agressivas” e “violentadoras” ao “outro” –
interlocutor da música, que no decorrer do texto será caracterizado pelo:
“sistema”, “branco”, “playboy”, entre outros.
Entretanto, essa atribuição “má” ocorre na relação perspectiva com o
interlocutor, que nesse caso seria o “outro” (em poucas palavras: o “sistema”).
É por esse motivo, que o verso “e tenho disposição pro mal e pro bem” adquire
importância analítica. Porque o “mal” e o “bem” não são atribuições
essencializadas, mas sim produzidos a partir de “atitudes”12 que dependem do
contexto situacional e dos interlocutores (tanto no sentido de intralocutores
quanto de extralocutores em relação a música). A categoria de “disposição”
significaria justamente essa não-essencialização ontológica, um a priori de não-
fixação das polaridades morais que se constituiriam relacionalmente e
perspectivamente. Além dessa categoria, a própria estruturação discursiva
apresenta essa característica: “e tenho disposição pro mal e pro bem/talvez eu
seja um sádico, um anjo, um mágico/ou juiz, ou réu/um bandido do céu”,
através das palavras “e”, “talvez” e “ou”.
Dessa maneira, a “contradição” moral entre as “atitudes” “imorais” e
“morais” e sua respectiva resolução, poderia ser compreendida a partir de uma
12
Termo utilizado na própria música: “(...) minha atitude vai além”.
17
lógica dialética. Porém, essa resolução não se daria do mesmo modo que o
hegeliano, em que as polaridades opostas (tese e antítese) se tornariam uma
síntese na qual “resolveria” as polaridades opostas. Nesse caso, essa síntese
seria o próprio paradoxo moral que produziria ontologias – simultaneamente e
potencialmente – “imorais” e “morais”, como os exemplos de “padre
sanguinário” e “bandido do céu” que relacionam os respectivos substantivos e
adjetivos com sentidos morais opostos (ex. ser ao mesmo tempo “padre” e
“sanguinário”). A possibilidade dessa lógica paradoxal compor essas
ontologias, é porque, a própria existência ontológica desse sujeito permeiam
essa “contradição moral”, como dito no verso: “fronteira do céu com o inferno”.
Esse paradoxo seria, portanto, a composição de uma moralidade
específica produzida no Capítulo 4, Versículo 3, que poderia ser denominada
de moralidade marginal. Na qual possuiria um caráter de subversão contra as
moralidades hegemônicas tais como: a teologia cristã, o humanismo iluminista
e a democracia liberal e cidadã. Entretanto, esse atributo de “marginal” não se
caracterizaria por ser uma sub-moralidade, mas uma contra-moralidade em
relação às hegemônicas. Assim, essa relação “imoral-moral” é fundamental
analiticamente para a compreensão do modo como se opera o Capítulo 4,
Versículo 3. Isso porque, a sua missão é de combate ao “sistema”, invertendo a
moralidade hegemônica para uma imoralidade hegemônica explicitando as
suas operações de poder. De modo que, a moralidade marginal – mesmo que
“aparentemente” seja imoral – componha as “atitudes” dos “manos” para uma
ruptura contra a imoralidade hegemônica.
Cena 3 –
13
Ver qual arma.
18
Nesse trecho Mano Brown refere-se constantemente a si mesmo no
decorrer dos versos, de modo a explicitar a sua “ontologia missionária” de
combate à imoralidade hegemônica. Aqui Brown se refere na 1ª pessoa: “Vim
pra sabotar seu raciocínio/Vim pra abalar o seu sistema nervoso e
sanguíneo/Pra mim ainda é pouco/ (...) O que eu tenho pra você/Um rap
venenoso ou uma rajada de PT”. Esclarecendo as suas “atitudes” e
caracterizando toda essa primeira parte da música, como as ações “violentas”
desse sujeito missionário frente ao “sistema”.
Entre os vocabulários de “violência”: “ataque cardíaco”, “violentamente
pacífico”, “sabotar seu raciocínio”, “abalar seu sistema nervoso e sanguíneo”,
“cachorro louco”, “terrorista da periferia”, “rap venenoso” e “rajada de PT”,
iremos destacar o verso “violentamente pacífico, verídico”. Isso porque,
retomamos a relação de paradoxo moral, que neste caso, seria entre “ser
violento” e “ser pacífico” – que se constituiriam de maneira simbiótica – uma
ontologia de Mano Brown, atribuindo a este à produção, compreensão e
propagação desta “veridicidade” orientado pelo seu missionarismo.
Essa compreensão do verídico seria a respeito do modo, como são
operadas as relações de poder a partir das moralidades. De modo que, no caso
da imoralidade hegemônica, seria relacionada com a compreensão das
operações político-morais de sujeição. Essa “verdade” está estreitamente
relacionada com perspectiva teológica no Capítulo 4, Versículo, é por esse
motivo que a propagação dessa “verdade” se dá a partir da teologia dos
Racionais MC’s.
Assim, como a compreensão e propagação dessa “verdade” se dá de
maneira disruptiva, porque o desmantelamento dessa imoralidade hegemônica
se daria apenas por conflitos violentos. Isso se caracteriza nas “atitudes” de
Brown em relação a este conflito, se utilizando de analogias biológicas,
médicas e psicológicas expressando-as em forma poética: “como um ataque
cardíaco no verso/ (...) vim pra sabotar seu raciocínio/ vim pra abalar seu
sistema nervoso e sanguíneo”. Assim como na cena 1 (“o assalto metafórico”),
a “agressão” deste trecho não é literalmente física, mas a sua expressividade
faz com que o efeito da música seja violenta tal como a violência física. Isto
demonstra o caráter bélico das letras deste rap, que seria exemplificado no
verso: “o que eu tenho pra você/ um rap venenoso ou uma rajada de PT”.
19
Cena 4 – O profeta dos “pretos” da periferia:
14
A utilização do termo “sobrevivência” ao invés de “vivência” indica que essas relações de conflitos
existentes em relação à periferia, dão condições não de “viver”, mas sim de “sobreviver”. Por isso o
título do álbum de Sobrevivendo no inferno.
15
20
Há, portanto, um incremento no estatuto dos Racionais de grupo de rap
com expressões políticas críticas para profeta-messias da periferia. Poderia
haver aproximações com personagens bíblicos que se caracterizavam como
“salvadores do povo”, como por exemplo: Jesus Cristo realizou o martírio com
sentimento de benevolência e respeito em relação ao “homem”, pois sofreu em
nome de todo o “povo” contra as maldades realizadas pela “humanidade”. Isto
ocorreria a partir da noção de que todos são filhos de Deus, inclusive Cristo, o
que os classificaria como irmãos. Em relação a Moisés, este, não foi um
“salvador do povo” no sentido de “humanidade”, mas era “salvador” de um
único povo, o hebreu. Libertando assim, este povo escravizado pelos egípcios.
Contemporaneamente, a interpretação do Capítulo 4, Versículo 3 possibilita a
caracterização dos Racionais MC’s também como um “salvador do povo”, mas
do “povo-periferia”. De modo a serem “libertadores” dos “manos” oprimidos
pelo “sistema”.
Entretanto, apesar de suas semelhanças em relação à “salvação do
povo”, há entre Jesus Cristo, Moisés e Racionais diferentes maneiras de
combate contra os seus “opressores”. Pois, para a compreensão da produção
de uma teologia dos Racionais, a partir dessa música, seria fundamental. No
caso de Jesus, seu confronto se dava contra os romanos na qual resultou em
seu martírio. Sua morte representaria metaforicamente, um “combate” contra
os romanos, ou no sentido mais amplo, os “homens” que possuem o mal. De
maneira que, ao sofrer no lugar de toda a “humanidade”, estaria agindo com
“benevolência” e respeito ao próximo. Fazendo com que os “homens” que
começassem a seguir a palavra de Deus, seriam considerados teologicamente
e cosmologicamente, como irmãos. Como no caso de Jesus dialogando com
“Deus” sobre os “irmãos”:
21
Na bíblia, Moisés liderou os hebreus escravizados para a sua libertação
em relação aos egípcios. Neste caso, o “confronto” contra os egípcios se dava
a partir do julgamento de Deus. Assim, este era apenas um intermediário de
Deus (lei) entre os “homens” (réus): hebreus e egípcios. Haveria, portanto, a
figura de um Deus temeroso e que exerce o poder de julgamento nos
“homens”:
Aconteceu que, à meia-noite, feriu o Senhor todos os primogênitos na
terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se assentava no seu
trono, até ao primogênito do cativo que estava na enxovia, e todos os
primogênitos dos animais. (...) E o Senhor fez que seu povo
encontrasse favor da parte dos egípcios, de maneira que estes lhes
davam o que pediam. E despojaram os egípcios. (Êxodo 12:29-36)
(...) Depois o barato ficou sério de mais, sério de mais. O baguio ficou
louco. Tudo mundo sério de mais. Ficou um clima Al Qaeda [risos da
platéia], nós reunido era foda. O clima pesava até entre nós mesmo, o
clima pesava [risos da platéia]. Nós trilhamos esse caminho aí.
Vivemos intensamente, nós foi fazer também arte marcial, foi comprar
revólver. Nós fizemos toda a trilha do Black Panther, a gente fez.
Aprendemos lutar, aprendemos dá tiro. Aprendemos falar, ler muito.
(Mano Brown em palestra no Rio de Janeiro, grifo meu)
22
Malcolm X foi um dos principais líderes de defesa à supremacia negra e
a criação de um Estado autônomo. Sua liderança em relação às questões
raciais inicia, quando o ser nome era Malcolm Little16 e se converte ao
islamismo em sua passagem na prisão. Ao conhecer a organização
denominada de Nação do Islã, liderada por Elijah Muhammad, se torna
“pregador” do Templo Número Um em Detroit no ano de 1953. Os
ensinamentos da Nação defendiam que Alá viera para os Estados Unidos em
forma de um homem, chamado Elijah Muhammad, afirmando que o homem
branco seria o “demônio”. Assim, haveria uma compreensão sobre a questão
do racismo nos Estados Unidos, através do embasamento teológico (assim
como Martin Luther King17), que culminaram nos movimentos políticos em prol
dos Direitos Civis e no Black Panther Party. Mano Brown, em entrevista à
Fundação Perseu Abramo, diz sua experiência ao ler a autobiografia de
Malcolm X:
O bagulho de cor, né, mano? Raça, preto, branco, uns baratos que ele
dizia que acontecem lá e você vê acontecer aqui igualzinho. Você
pensa: “Pô, o cara tá falando a verdade. Ele não tá contando mentira”.
Abracei com as dez, né? Estava quase virando terrorista. Eu não gosto
mais ou menos das coisas. Tudo que eu gosto eu sou fanático, tá
ligado? Tipo fanático religioso. Se sou santista, ou se gosto de rap, sou
fanático. Se sou preto, sou fanático pela minha cor. Quando eu li o
Malcolm X eu fiquei louco, fiquei fanático. Virei uma bomba ambulante.
Quase fiz umas merdas. (Mano Brown em entrevista a Fundação
Perseu Abramo, 2001)
PARTE 2
(Racionais no ar/Filha da puta, pá, pá, pá) Faz frio em São Paulo/Pra
mim tá sempre bom/Eu tô na rua de bombeta e moletom/Dim dim dom,
rap é o som/Que emana no opala marrom/E aí, chama o
16
“Little” seria um sobrenome “branco” dado aos escravos “negros”. Apagando o nome africano
original, por isso a troca pelo “X”.
17
Falar sobre a vida de King.
23
Guilherme/Chama o Vander/Chama o Dinho e o Gui/Marquinho chama
o Éder, vamo aí/Se os outros manos vem, pelas ordi tudo bem
melhor/Quem é quem no bilhar, no dominó.
Colô dois mano, um acenou pra mim/De jaco de cetim, de tênis, calça
jeans/Ei Brown, sai fora/nem vai, nem cola/Não vale a pena dar idéia
nesses tipo aí/Ontem à noite eu vi na beira do asfalto/Tragando a
morte, soprando a vida pro alto/Ó os cara só o pó, pele e osso/No
fundo do poço, mó flagrante no bolso/Veja bem, ninguém é mais que
ninguém/Veja bem, veja bem, eles são nosso irmãos também/Mas de
cocaína e crack/whisky e conhaque/os manos morrem rapidinho sem
lugar de destaque/Mas quem sou eu pra falar/De quem cheira ou quem
fuma?/Nem dá, nunca te dei porra nenhuma. (grifo em itálico: fala de
Ice Blue)
Depois de Ice Blue estar “colando junto” com os “manos” (cena 5), esta
cena 6 apresenta a vinda de dois “manos”18 que não possuem a mesma
valoração anterior. Pois antes, Ice Blue os conheciam pelos nomes: “E aí,
chama o Guilherme/chama o Vander/chama o Dinho e o Gi”. Depois,
18
Explicar a utilização de “manos” em aspas.
24
apareceram outros “manos” sem os conhecer pessoalmente, possuindo um
maior distanciamento: “Colô dois manos, uma acenou pra mim/de jaco de
cetim, de tênis, calça jeans”. Assim, na primeira parte da música (cena 1 ao 5)
a noção de “mano” era utilizada como um marcador de homogeneização dos
pares, pois a sua interlocução representava um conflito entre “manos” e
“playboys”/”sistema”. Mas, nessa segunda parte da música, o marcador “mano”
opera numa gradação de “aproximação” e “distanciação” produzindo o mano-
“nóis” e o mano-“outro”, a partir da perspectiva moral – dos também “manos” –
Ice Blue e Mano Brown.
Essa cena é um debate entre Ice Blue e Mano Brown, discutindo as
ações entre dois manos19 que vieram “de jaco de cetim e tênis calça jeans”. Há
um embate de valoração (debate) entre os dois rappers. Enquanto Ice Blue se
“distancia” desses manos, justificando que esses são nóias20: “morrem
rapidinho sem lugar de destaque”. Mano Brown se “aproxima” desses manos
dizendo que eles são “nossos irmãos também”, justificando que “quem sou eu
pra falar de quem cheira ou quem fuma?/nem dá, nunca te dei porra nenhuma”.
Esses dois manos são simultaneamente, manos-“nóis” e manos-“outro”, pois
essa classificação se daria de maneira perspectiva e situacional.
Esse debate operaria as valorações morais que estão sendo
constituídas no Capítulo 4, Versículo 3, para a produção de uma moralidade
marginal. Essa disputa de valorações se daria, por Ice Blue, através da
capacidade ou incapacidade de um “mano” se destacar socialmente,
caracterizando uma ética individual. Enquanto Mano Brown atribui valoração à
ideia de “irmandade”, que seria o respeito dos que partilham de experiências
comuns, indicando uma ética holística nomeando esses “pares” como irmãos.
Isso demonstraria que o debate em torno das valorações dos “manos” se daria
na relação entre ética individual e ética holística.
Você fuma o que vem, entope o nariz/Bebe tudo o que vê, faça o diabo
feliz/Você vai terminar tipo o outro mano lá/Que era um preto tipo A,
19
Explicar a utilização de manos em itálico.
20
Explicar o que é nóia, utilizar uma fala de alguém.
25
ninguém tava numa/Mó estilo de calça Calvin Klein e tênis Puma/Um
jeito humilde de ser/No trampo e no rolê/Curtia um funk, jogava uma
bola/Buscava a preta dele no portão da escola/Exemplo pra nós, mó
moral, mó Ibope/Mas começou colar com os branquinhos do
shopping/("Aí já era") Ih mano outra vida, outro pique/Só mina de elite,
balada, vários drink/Puta de butique, toda aquela porra/Sexo sem
limite, Sodoma e Gomorra.
26
morais atribuídos a esse se origina de uma categoria racial: preto tipo A e
neguinho. Discursivamente, no Capítulo 4, Versículo 3, não se trata de uma
moralidade que permeia qualquer “mano”, mas um “mano” que sua
categorização é sinômino ao de “preto”.
De modo que há uma racialização moralizada, há também uma
produção de um gênero (estatuto “mulher”) moralizado. Pois, enquanto no
mundo do preto tipo A, a mulher é associada à escola, a “preta” e pela
monogamia. No mundo dos branquinhos do shopping, essa mulher é associada
a “balada”, “vários drink” e “puta de butique”. Esse exemplo do estatuto
“mulher” demonstraria como uma mesma categoria possui atribuições morais
distintas, de acordo com o mundo sensível vigente. Nesse caso, o conceito
chave para a construção “moral-imoral” é o discurso do sexo. Enquanto que,
não se atribui a “preta” uma ideia sexual, a “mina de elite” é constituído
inteiramente nesse discurso, como no verso: “puta de butique”.
É por esse motivo que se utiliza a analogia bíblica de “Sodoma e
Gomorra”, pois essas seriam cidades “imorais” frente à construção de uma
nação “moral” de “Deus”. Essas cidades eram habitadas por “pecadores”, no
qual eram “perversos” nas relações carnais: “Ora, os homens de Sodoma eram
maus e grandes pecadores contra o Senhor” (Gênesis 13:13). Assim, quando
“Deus” anuncia a destruição de Sodoma e Gomorra, Abraão – sido escolhido
para ser rei da “grande” nação do Senhor – questiona essa destruição:
27
anjos que vieram, foram enviados de Deus para a destruição de Sodoma, visto
que não havia “justos” na cidade, assim a fizeram: “Então, fez o Senhor chover
enxofre e fogo, da parte do Senhor, sobre Sodoma e Gomorra” (Idem 19:24).
Esse exemplo explicita ainda mais o recorte desses mundos sensíveis,
caracterizados como “moral” ou “imoral”. Na história bíblica de Sodoma e
Gomorra, Deus perdoaria seus habitantes “perversos” se, ao menos, houvesse
alguns “justos”. Entretanto os destruiu por não haver ao menos “um justo”.
Essa analogia – de Sodoma e Gomorra – com o mundo sensível dos
braquinhos do shopping demonstra que, esse mundo não possui, ao menos,
sujeitos “morais”. Ou seja, não haveria uma solução, somente a destruição, tal
como realizado por “Deus” em Sodoma e Gomorra. É por este motivo que,
quando o preto tipo A se insere no mundo dos branquinhos do shopping, o
rapper Edy Rock diz: “Aí já era”.
Faz uns nove anos/Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano/Cê tem
que vê/pedindo cigarro pros tiozinho no ponto/dente tudo zuado, bolso
sem nenhum conto/O cara cheira mal, as tia sente medo/muito louco
de sei lá o que logo cedo/Agora não oferece mais perigo/Viciado,
doente, fudido, inofensivo/Um dia um PM negro veio embaçar/E disse
pra eu me pôr no meu lugar/Eu vejo um mano nessas condições, não
dá/Será assim que eu deveria estar?
28
Na continuação da música, Brown descreve quando se encontra com um
PM negro: “Um dia um PM negro veio me embaçar/e me disse pra me por no
meu lugar/eu vejo um mano nessas condições não dá/Será assim que eu
deveria estar?”. A escolha pela figura do “PM negro” não se dá aleatoriamente,
pois nesse trecho da música são apresentados dois tipos de “pretos” – o preto
tipo A que virou “nóia” e o PM negro – que não fazem parte do mano-“nóis”,
mas sim do mano-“outro”. Continua-se, nesse trecho, o exercício de
“aproximação” e “distanciação” perspectiva que ocorre durante a música. É por
esse motivo que Brown diz, reflexivamente, no verso: “Eu vejo uma mano
nessas condições, não dá/Será assim que eu deveria estar?”, dando uma
noção de “distancia” entre esses pares.
Seria possível a partir dessas descrições até então realizadas na
música, uma construção das formas de delimitação da diferença, por
categorizações morais produzidas pelos mundos sensíveis, entre os sujeitos.
Primordialmente, a delimitação da diferença se dá pelas noções de “nóis” e de
“outro”, que na música seria classificada como “manos” e “playboy/sistema”.
Contudo, durante a música delimitamos mais uma produção da diferença,
através das noções de “aproximação” e “distanciação” na perspectiva interna
do “nóis”: Racionais MC’s e os “manos”. Essa relação de proximidade-distância
ocorre pelo intercâmbio periferia-“sistema”21, que produz uma polarização – na
perspectiva do Capítulo 4, Versículo 3 – entre um “nóis”-periférico e um “outro”-
“sistema”, sem serem dicotomizados.
É justamente nesse intercâmbio que se produz a existência de sujeitos
como: o “nóia” e o PM negro. Ambos são frutos da intersecção e fronteira entre
o “nóis” e do “sistema”, porque o “nóia” que era um preto tipo A (“nóis”) se
relacionou com os branquinhos do shopping (“sistema”) e o PM negro que
compartilha o ser “preto” dos “manos” (“nóis”) ingressou na Polícia Militar
(“sistema”). Quando ocorre essa relação “nóis”-“sistema” compartilhando dois
mundos sensíveis opostos – que invisibilizam o outro – produz um não-
partilhamento ontológico tanto pelo “nóis”-periferia quanto o “outro”-sistema.
21
Poderia ser utilizada a noção de “centro”, mas esse termo dá uma noção de “presença” no centro e
uma “ausência” na periferia, de legalismo. A utilização da noção de “sistema” possibilita compreender
que a relação centro-periferia não são dicotômicas, mas sim realizadas de modos diferentes.
29
Para exemplificarmos isso, retomaremos a descrição biográfica do preto
tipo A que pertencia ao mundo sensível “nóis”-periferia, mas que começa a se
inserir com os branquinhos do shopping pertencentes ao mundo sensível
“outro”-sistema perdendo o seu estatuto de preto tipo A. Isso ocorre, pois são
mundos morais diametralmente opostos e somente se pode possuir tal estatuto
no mundo “nóis”-periferia. Assim, este vai em direção do mundo “nóis”-periferia
para o mundo “outro”-sistema, partilhando de ambos os mundos sensíveis.
Porém, não há uma possibilidade de partilhar um mundo “nóis”-“outro”, porque
o pressuposto ontológico de um mundo é a invisibilização do outro.
Exemplo desse pressuposto é a conclusão da história do preto tipo A.
Quando este, do mundo do preto tipo A (“manos”) foi em direção ao mundo dos
branquinhos do shopping (“sistema”), se tornou “partilhado” de ambos os
mundos sensíveis. Se ontologicamente, um mundo invisibiliza o “outro”, esse
preto tipo A se tornou duplamente invisibilizado, o que seria exemplificado pela
sua mudança de estatuto para neguinho/“nóia”.
Assim, para haver uma condição de existência “sensível” do sujeito é
necessário partilhar somente de um dos mundos sensíveis. Todo sujeito que
partilha do mundo “preto” e mundo “branco”, mundo “moral” e mundo “imoral”,
mundo dos “manos” e mundo do “sistema”, “nóis”-periférico e “outro”-sistema,
esses são moralmente invisibilizados. Isso demonstra uma lógica bipolarizada
dessa moralidade de influência teológica cristã, pois para esta, não há
possibilidade de coexistência entre “bom” e “mau”, “justo” e “injusto”, “certo” e
“errado”.
Cena 9 – O “sistema”-“branco”-“demônio”:
30
Essa segunda parte (cena 5 ao 9) se caracteriza pelas descrições do
que seria o “nóis” e o “outro” (que possuem valorações morais: “bom” e “mau”,
respectivamente); e as descrições biográficas de como a polaridade “outro”-
“sistema”-“mau” seria a causa das maldades nas experiências cotidianas
desses sujeitos. Assim, esse último trecho da segunda parte, finaliza com uma
visão teológica dos Racionais sobre como são operadas e relacionadas às
polaridades “bom” e “mau”.
Dividindo em dois esse trecho, a primeira parte: “Irmão, o demônio fode
tudo ao seu redor/pelo rádio, jornal, revista e outdoor/te oferece dinheiro,
conversa com calma/contamina seu caráter, rouba a sua alma/depois te joga
na merda sozinho/transforma um preto tipo A num neguinho”, seria a descrição
teológica do pólo “mau”. Há uma associação do “demônio” ao “sistema”
(capitalista), tendo a maldade em forma de “dinheiro” que “contamina seu
caráter, rouba a sua alma”. Retomando as cenas 7 e 8, a causa do preto tipo A
se tornar neguinho, foi a sua inserção no mundo dos branquinhos do shopping.
Assim, haveria uma relação entre “branquinhos do shopping”-“sistema”-
“demônio” que comporiam o mundo sensível da maldade, que se caracterizaria
pelo declínio do sujeito moral “mano” (“transforma um preto tipo A num
neguinho”). Ou seja, numa leitura racial da teologia, haveria a noção de
“branco”-“demônio”.
Enquanto isso, na segunda parte: “Minha palavra alivia a sua dor/ilumina
a minha alma/louvado seja o meu Senhor/que não deixa nenhum mano
desandar/e nem sentar um dedo em nenhum pilantra/mas que nenhum filha da
puta ignore a minha lei/Racionais capítulo 4, versículo 3”, seria a descrição
teológica do pólo “bom”, como modo de “salvação” contra o pólo “mau”. Aqui
retoma a noção de “palavra” (cena 1: “minha palavra vale um tiro e tenho muita
munição”). No entanto, a “palavra” não possui a intenção de agredir, mas sim
de “aliviar a sua dor”, isto porque os interlocutores são diferentes: no primeiro é
o “playboy” (cena 1) e no segundo (cena 9), o “mano”. Essa mudança
semântica ocorre, porque o objetivo da música é a “salvação” do “mano” em
relação às maldades do “sistema”, não entrando em contato ou se inserindo
neste. Por isso a relação “palavra-tiro” da cena 1, como sentido de “agredir” o
“sistema”, pois essa seria a produtora das maldades e “opressões”.
31
Nos versos “louvado seja o meu Senhor/que não deixa nenhum mano
desandar/e nem sentar um dedo em nenhum pilantra” possui o sentido moral
do fazer “certo”. Esses versos representaria o objetivo do Capítulo 4, Versículo
3 a partir de uma descrição de experiências de vida, indicando o modo “correto”
de existência sem se “corromper” (de preto tipo A se transformar num
neguinho). Produzindo, assim, uma moralidade a ser seguida nas periferias
urbanas, com o intuito, como no título do álbum, sobreviver no inferno.
Entretanto, por mais que esses versos se referem ao “Senhor” como
indutor do “bom”, a “palavra” não é “Dele”, mas sim dos Racionais MC’s. Ou
seja, os Racionais não são meramente instrumentos divinos, como ocorrem
com os profetas bíblicos. Estes possuem sua parcela de autonomia e é por
esse motivo que se torna possível, produzir uma moralidade específica (“que
nenhum filha da puta ignore a minha lei”). Contudo, essa influência da teologia
cristã, é somente uma das matrizes discursivas que são catalisadas pelo grupo.
Como analisado na música até o momento, poderíamos selecionar três
matrizes discursivas, na produção de uma moralidade no Capítulo 4, Versículo
3: a) a teologia cristã produtora de diferenciações morais, b) o “crime” como
ação política e ética, e c) a demarcação a partir diferenças racial-moral como
efeito político.
PARTE 3
32
Essa terceira – e última – parte da música, cantada por Edy Rock e
Mano Brown é a descrição dos potenciais e múltiplos “nóis”-periféricos, e os
seus efeitos práticos de sobrevivência no inferno. Esse trecho (cena 10) é
cantado por Edy Rock, nomeando os potenciais e múltiplos “nóis”: o mecânico,
o bandido, o carteiro, o ambulante de farol, o advogado que defende o pobre, o
ex-presidiário, o estudante, o “crente”, o presidiário e o Edinho, representando
a figura do jogador de futebol (os termos “família real” e “príncipe” é devido a
Edinho ser filho de Pelé, o “rei do futebol”).
Se comumente, esses sujeitos são diferenciados a partir de níveis
econômicos, status social ou moralmente aceitos. Há uma construção de um
“nós” de implicação política, porque apesar de todas essas diferenciações,
esse denominador comum representa um compartilhamento de experiências
cotidianas que possibilitam delimitá-los conjuntamente. Essas experiências
compartilhadas seriam os marcadores ontológicos: da periferia, do
“evangélico”, do “preto” e do “crime”. As combinações entre essas quatro
ontologias – em diferentes graus – formulam um sujeito político e moral (não no
sentido de indivíduo, mas de múltiplos sujeitos), um “nóis” que compõe uma
moralidade contra o mundo sensível do “sistema”.
33
o “mano que rebola e usa até batom” “pra ver branquinho aplaudir”. Esse
“mano” se sujeitaria ao “branquinho” para adquirir status econômico, a partir de
sujeições da sexualidade (colocando em cheque a sua “masculinidade”) e
sujeições raciais. O segundo é o “mano que te aponta uma pistola e fala
sério/explode a sua cara por um toca-fita velho” que entra no “crime” para o
consumo de drogas (“pegar 50 conto, trocar por cocaína”). Nesse caso, a
sujeição ocorreria no âmbito da dependência no consumo de psicoativos, uma
sujeição psico-química que teria como efeito político, um crime por “neurose”22:
“Click, plá plau plau e acabou/sem dó e sem dor/foda-se sua cor/limpa o
sangue com a camisa e manda se fuder”.
As justificativas, tanto da elevação do status econômico quanto do ato
“criminal” na compra de drogas – na perspectiva teológica dos Racionais MC’s
– seriam oriundas da relação do “mano” se sujeitando ao “sistema”-“demônio”.
Porém essa sujeição não se daria por uma simples estrutura dominante, ou
seja, não seria uma sujeição sistêmica. Isso se daria a partir de uma ética
individual que possibilitaria múltiplos caminhos de escolha: “cada um, cada um,
você se sente só”. É por esse motivo que Mano Brown inicia o trecho com os
versos: “e eu não mudo, mas eu não me iludo”, demonstrando que a não-
sujeição ou a sujeição depende de uma decisão individual.
Esse processo de (não-)sujeição se daria, intrinsecamente, pela relação
de “continuidade” e “mudança” a partir de um marcador primeiro (o “nóis”-
periférico). Porque, nesse contexto discursivo, há uma dicotomização que se
origina pelo marcador ontológico de “nóis”-periférico, entre os “manos”, que se
bifurcaria entre os que “continuam” e os que “mudaram”. Que na perspectiva do
Capítulo 4, Versículo 3 seria valorada moralmente como: os “iludidos” e os “não
iludidos” por esse “sistema-demônio”. Isto porque, as sujeições masculinizadas,
racializadas e de constituição psico-químicas são oriundas da “ilusão da
potência de consumo”.
Enfim, o filme acabou pra você/A bala não é de festim, aqui não tem
dublê/Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia/Eu sei, as
22
Explicar o termo “neurose”.
34
ruas não são como a Disneylândia/De Guaianases ao extremo sul de
Santo Amaro/Ser um preto tipo A custa caro/É foda, foda é assistir a
propaganda e ver/Não dá pra ter aquilo pra você.
23
Ambas são regiões na cidade de São Paulo: Guaianases é um distrito no extremo leste e Santo Amaro
um distrito da Zona Sul. Esse verso reitera à territorialidade do preto tipo A nas periferias urbanas.
35
econômica seria pelo “crime”, o que se constituiria numa relação “mano”-
“sistema”.
Entretanto, a produção do estatuto preto tipo A não se limita à
capacidade econômica para a constituição do “estilo”. Além do aspecto
econômico – que possui sua importância – a moralidade que atravessa o
mundo sensível dos “manos” é fundamental para a constituição do estatuto do
preto tipo A. Poderíamos compreender a estruturação do Capítulo 4, Versículo
3 a partir de valorações morais como: “certo” e “errado”, “bom” e “mau”, “justo”
e “injusto” que se relacionariam internamente de modo situacional e
perspectivo. Poderíamos exemplificar essas valorações a partir do discurso de
Mano Brown a respeito da política:
Não sou socialista. Eu gosto de relógio, carro... Porque acho que todo
mundo tem que ter. Socialismo é outra fita. Todo mundo comer, beber,
ter escola, é o justo. Agora, se eu disser que sou socialista, depois
você me vê com carro, com uma pá de cara, curtindo, tomando... Foge
um pouco do barato da política, né? Eu gosto das coisas certas,
justiça. (Entrevista à Fundação Perseu Abramo por Spensy Pimentel,
2001, grifos meus)
Na cena anterior os últimos versos são: “ser um preto tipo A custa caro/é
foda, foda é assistir a propaganda e ver/não dá pra ter, aquilo pra você”, que dá
continuidade à descrição de um assalto: “playboy forgado, de brinco, um
trouxa/roubado dentro do carro na avenida Rebouças/correntinha das moça, as
madames de bolsa/dinheiro, não tive pai não sou herdeiro”. Essa descrição
24
Da ponte pra cá
36
relacionaria uma “impossibilidade” de obtenção do estatuto de preto tipo A, a
ausência de uma herança econômica e o assalto nos sujeitos que constituem o
“sistema”, caracterizando-os como possuidores de herança.
Numa análise histórica no Brasil, a hereditariedade econômica se
relaciona com a reprodução do poder hegemônico, que se desenrola desde o
período colonialista. No processo da transição do trabalho escravo negro para
o trabalho remunerado, há uma política “embraquecimento” na qual há um
incentivo estatal na imigração de populações “brancas” (de países como Itália,
Alemanha, Espanha e Japão). Assim, aproximadamente no final desse período
imigratório entre os séculos XIX e XX, há uma “troca” da mão-de-obra escrava
negra para a mão-de-obra remunerada branca, engendrando uma
desqualificação no aspecto do trabalho para essa população negra “ex-
escrava”, o que produziria essas “não-heranças”.
Com o projeto na cidade de São Paulo para a transformação em
“moderna cidade européia”, há uma redefinição na malha urbana paulistana.
Os antigos “ex-escravos” habitavam nos locais denominados de “cortiços”
(local habitado por várias famílias em condições de infra-estrutura precárias),
localizados no centro urbano. Com a “modernização” da cidade, há uma
remoção desses habitantes dos “cortiços” no centro, para a construção de
edifícios mais valorizados e a ampliação das vias urbanas. O relocamento
dessa população se daria em direção às “periferias”, onde nos aspectos infra-
estruturais se daria de modo precário. Isso seria uma política governamental de
regulação de populações econômico-raciais, a partir de tecnologias políticas de
sujeição como: polícia, assistência social, o “crime”, o mercado “ilegal”, infra-
estrutura, sistema educacional, desemprego, entre outros.
É nesse contexto que são descritas dois prováveis “destinos” desses
sujeitos “sem herança”. O primeiro seria a “vida de pedinte”: “se eu fosse
aquele cara que se humilha no sinal/por menos de um real/minha chance era
pouca” e o segundo seria a “vida do ‘crime’”: “mas se eu fosse aquele moleque
de touca/que engatilha o cano e enfia dentro da sua boca/de quebrada, sem
roupa/você e sua mina/um, dois, nem me viu/já sumi na neblina”. Esses dois
modos de ganhos econômicos (que na lógica do trabalho formal seriam
categorizados como “informais”, “ilegais” – e no limite – “ilícito”, por causa do
“crime”) são situados discursivamente pelos Racionais MC’s como as formas
37
de “trabalho” desses sujeitos “sem herança”. Essas relações econômicas
seriam a operação da gestão dos ilegalismos25, na chave histórico-econômico-
racial, que produziria de um lado os “herdeiros brancos com trabalho
legalizado” e de outro os “não-herdeiros ‘pretos’ com trabalho ilegalizado/ilícito”.
No entanto, discursivamente no Capítulo 4, Versículo 3, o aspecto do
ilegalismo é sobreposto pela moralidade, neste caso, marginal em relação à
esses não-herdeiros. Porque a elevação do status, a partir do ganho
econômico, não se atribui à sua “formalidade/legalidade”, mas sim à sua
“moralidade”. Isso é exemplificada na música, pela “vida de pedinte” e “vida do
‘crime’”: ambas são “informais” (“ilegal” e “ilícito” no caso do “crime”), entretanto
a primeira se caracteriza pela “humilhação” e “pouca chance”, enquanto a
segunda se caracteriza por obter “sucesso” (após o assalto, este “some na
neblina”, o que representaria o seu sucesso). Esses exemplos demonstram
como essa moralidade marginal opera em outra lógica em relação à moralidade
hegemônica. Isto porque, a moralidade não opera pelo ilegalismo, mas sim
pelo ganho econômico e de status social que se adquire.
25
Pego emprestado o termo gestão de ilegalismos de Michel Foucault. Ilegalismo substituiria a noção de
“legalidade” e “ilegalidade”. Sendo, portanto, uma gestão do que é “legal” e do que é “ilegal”.
38
comuns, numa estutura sócio-econômica dominada pelo “sistema”. (“efeito
colateral que o seu sistema fez”). Isto porque, os outros modos, seriam pela
inserção no mundo do “outro”-sistema.
Entretanto, Mano Brown – a partir da noção de ética individual – não
escolhe nenhum desses modos de vida, ele rejeita esse mundo sensível do
“sistema”-“branco”-“demônio”: “Seu comercial de TV não me engana/Eu não
preciso de status nem fama/Seu carro e sua grana já não me seduz/E nem a
sua puta de olhos azuis”. Ou seja, toda aquela lógica de obtenção de consumo
é rejeitada, porque é por esse motivo que ocorre o assujeitamento dos
“manos”. Ao tomar essa decisão, Brown contraria a “estatística” permancendo
vivo26, porque ao invés de se assujeitar a esse “sistema” ele reforçaria a
polarização do “nóis”-periferia como forma para sobreviver no inferno.
Conclusão:
26
O bairro Capão Redondo de São Paulo, onde Mano Brown é originário, nos anos de 1990 foi
considerado o bairro mais violento do mundo pela ONU/UNESCO.
39
40