MARTINS Linchamentos
MARTINS Linchamentos
MARTINS Linchamentos
A JUSTIÇA POPULAR
NO BRASIL
Conselho Editorial
Ataliba Teixeira de Castilho
Carlos Eduardo Lins da Silva
José Lu iz Fiorin
Magda Soares
Ped ro Paulo Funari
Rosângela Doin de Al meida
Tania Regina de Luca
cg
ed itoracontexto
Copyright© 20 15 do Autor
llwtração de capa
Linchamento de abolicionista
em Penha do Rio do Peixe, p rovíncia de São Paulo.
Gravura de Angelo Agostini,
Revista lllmtrada, n. 485, 18 fcv. 1888.
Montagem de capa e diagramação
Gustavo S. Vilas Boas
Preparação de textos
Lilian Aqui no
Revisão
Tomoe Moroizumi
Bibliografia.
ISBN 978-85-7244-891-8
EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9
PRIMEIRA PARTE:
A JUSTIÇA DO POVO
O estudo sociológico dos linchamentos ................................... 21
Linchamentos, a vida por um fio ... ....... . ........Lí 5
A recriação anômica da sociedade ............................................................63
O lado sombrio da mente conservadora .................71
Entre a justiça cega e a justiça cética ......................................................91
A justiça popular e os linchamentos..................... .............. 103
A ju stiça supressiva nos crimes de sa ngue ..........111
As lesões sociais do incesto ... ...............119
Os meandros da barbárie .... 121
Fúria coletiva ............................................................ .. .... 125
A chacina das instituições .............129
SEGUNDA PARTE:
REVELAÇÕES SOCIOLÓGICAS DA MORTE
A cultura funerária no Brasil... .. ........... 135
Tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça .............................. 151
A dialética do corpo no imaginário popular ............................... 165
TERCEIRA PARTE:
QUESTÃO DE MÉTODO
A notícia de jornal na pesquisa sociológica
sobre linchamentos ................................................................................ 173
O AUTOR .............................................................................................................................................207
Introdução
Notas
1
Esta pesqu isa fo i possível graças a um decisivo auxílio conced ido pela Fapesp - Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo, de 1995 a 1998 {Processos Fapesp n. 94/3202-0 e 96/09765-2).
Graças, também, a uma bolsa para treinamento de estudantes de grad uação em técnicas especializadas
e apoio técnico a grupos de pesqu isa concedida pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São
Paulo à aluna Claudia de Arruda Bueno. A essa pesq uisadora agradeço o exemplar desempenho na coleta
de dados nos arqu ivos históricos relativos ao período anterior ao início do monitoramento cotid iano
das ocorrências. O estudo so bre linc hamentos tem tido o apoio de uma bolsa de pesquisa do C NPq -
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2
"N a comunidade destituída de um verdadeiro e adequado sistema judiciário, um indivíduo considerado
perigoso, via de regra, será morro ou expulso, não por um gru po de pessoas, mas por roda a comu-
nidade." Cf. René Girard, Shakespeare: II teatro dell'invidia, trad. Giovanni Luciani, Milano, Adclphi
Edizio ni, 1998, p. 336. Nas constatações desta pesqu isa, mesmo que o linchamento seja praticado por
grupos relativamente meno res do que "a comunidade inteira", há muitos indícios imediatos de um cír-
culo extenso de coadjuvantes. Com os meios de comunicação que ampliaram a participação virtual em
atos desse tipo, como a internet, as evidências da coadjuvância se multiplicaram.
3
Cf. René Girard, fL Capro Espiatório, rrad. Christine Lcverd e F. Bovoli, Milano, Adelphi Edizioni, 1987,
p. 58; René G irard, A violência e o sagrado, trad. Marcha Conceição Gambini, 2. ed., São Paulo, Paz e
Terra, 1998, pp. 105 e 132-3.
• O mais antigo linchamento ocorrido no Brasil de que se tem noticia é de 1585, em Salvador, Bahia,
quando foi linchado o índio Antônio Tamandaré. Fugido de uma aldeia jesuítica, proclamou-se papa.
Lidero u um movimento religioso no sertão, conhecido como Santidade, q ue teve como adeptos índios
tupinambás, mamelucos, negros da Guiné e brancos, inclusive fidalgos. O s próprios índios fugidos das
aldeias queimaram-lhe o templo, prenderam-no, maltrataram-no, cortaram-lhe a língua e o estrangula-
INTRODUÇÃO 17
ram. Cf. Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 219 e ss. Três
paulistas foram linchados por portugueses no Arraial Novo, atual São João dei Rei, nas Minas Gerais, em
1707, fator do desencadeamento da Guerra dos Emboabas. Cf. Affonso d'E. Taunay, Relatos Sertanistas,
Belo Horizonte, Itatiaia, 198 1, p. 89; C. R . Boxer, A Idade de Ouro do Brasil, trad. Nair Lacerda, 2. ed. ,
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969, pp. 86 e 89.
5
O faro de a palavra "linchamento" ter surgido na América do Norte não significa que o fenô meno que
ela designa renha a mesma dara nem que seja o mesmo em rodas as partes, rodo o tempo. Os aros lá
definidos como linchamento eram, originalmente, atos de humilhação pública dos aurores de condutas
antissociais na frente pioneira do Oeste americano.
6
Sou imensamente agradecido a Vanuzia Rodrigues e sua família, que me acolheram cm Euclides da
C unha (BA), a antiga Cumbe, e me ajudaram nos contatos e nos deslocamentos na região. Agradeço
também a acolhida fraterna de Dom José Gomes, bispo de Chapecó, e dos padres de Maravilha (SC).
7 Warren Brced, num estudo sobre o noticiário de famoso linchamento nos EUA, assinala que por trás
da informação jornalística há outros interesses que não apenas aq ueles visíveis na notícia publicada, a
começar da decisão de publicar ou não determinada notícia. Cf. Warren Breed, "Compararive ncwspaper
handling of thc Emmett Till case", em Journalim, Quarterly, v. 35, 1958, pp. 29 1-8. Na realização de
m inha pesqu isa na Bahia, constatei q ue um dos dois grandes jornais do estado usava a palavra "lincha-
mento" para dassificar a violência da 1nulcidáo e outro não a usava no noticiário dos mesmos eventos,
definindo-os, antes, apenas como homicídio.
8
Cf. José de Souza Martins, Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano, 2. ed. rev. e atual,
São Paulo, Contexto, 20 12.
9
Cf. José de Souza Martins, Manual de códigos e critérios da pesquisa sobre linchamentos no Brasil 10'
versão, 30 jun. 1997, 129 páginas.
PRIMEIRA PARTE
A JUSTIÇA DO POVO
O estudo sociológico
dos linchamentos
dade, esta última está sendo julgada por aquela. A legitimidade desta está em
questão. Com seu ato, os linchadores indicam que há violações insuportáveis
de normas e valores, insuportáveis mesmo para um delinquente preso: no
período recente há vários casos de presos que lincham companheiros de cela
quando sobre eles pesa a acusação de estupro de crianças.
A questão central é esta: por que a população lincha? A partir do conhe-
cimento que se tem de diferentes modalidades de linchamento em diferentes
lugares do país, a hipótese mais provável é a de que a popu/,ação lincha para punir,
mas sobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudança social que
violam concepções, vawres e normas de conduta tradicionais, relativas a uma certa
concepção do humano. A vingança é uma forma de exclusão e de rejeição dos
indesejáveis e do que eles representam enquanto agentes de uma concepção de
sociedade que contraria a dominante e contraria direitos dos por ele vitimados.
Uma hipótese decorrente é a de que o linchamento é uma forma incipiente de
participação democrática na comtrução (ou reconstrução) da sociedade, de procla-
mação e afirmação de vawres sociais, incipiente e contraditória porque afirma a
soberania do povo, mas nega a racionalidade impessoal da justiça e do direito.
O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento
da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do poder e das institui-
ções que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriam assegurar a
manutenção dos valores e dos códigos. Se nos Estados Unidos as elites locais,
especialmente no Oeste, tomaram nas mãos a obediência à lei, através dos
vigilantes, no nosso caso as elices não têm demonstrado identificação com a
justiça de rua. Ao contrário, quando participam de linchamentos, como cem
acontecido nas grandes cidades do interior, fá-lo procurando ocultar sua parti-
cipação, limitando-se ao caráter punitivo do seu aro. Essa ambiguidade indica
que a tradição política do poder pessoal, no Brasil, está em crise. Ela tem sido
forte ao longo do tempo, dispensando, portanto, a prática da participação
coletiva na justiça de rua, pois, para isso, as elites dispunham e em algumas
regiões ainda dispõem de seus jagunços e pistoleiros.
Finalmente, no nosso caso, os linchamentos parecem estar associados à
precária constituição do urbano. Nesse sentido, se combinam situações e mo-
tivações que tanto existiram nos mob rynching quanto na ação dos vigilan-
tes, nos Estados Unidos. Aqui também os linchamentos se adensam nas áreas
periféricas de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. São onde
justamente se concentram os migrantes do campo, recentes ou não, privados
da terra e do trabalho regular, vivendo no limite da economia estável e da
sociedade organizada, como ocorria com os brancos empobrecidos no sul dos
28 LINCHAM ENTOS
lincharam e por quê. Mesmo tendo em conta que, no Brasil, uma significativa
proporção de linchamentos é praticada por grupos de vizinhança, é preciso
considerar, também, que ocorrem na maior parte das vezes em bairros de con-
centração de migrantes, marcados por grande mobilidade. Será difícil localizar
os participantes no futuro, quando certa distância no tempo supostamente
facilite o estudo retrospectivo das ocorrências.
Procurei testar a possibilidade de alguma previsão no comportamento de
possíveis grupos de linchadores, anotando e acompanhando casos que, no no-
ticiário da imprensa, se desenhavam nitidamente com os mesmos contornos e
possíveis motivações de ocorrências delituosas que culminaram em linchamen-
tos. Na maioria dos casos que acompanhei, o desenlace não foi o linchamento
nem mesmo a tentativa de linchamento. O que torna praticamente inútil o
uso desse recurso para identificação de possíveis ocorrências e eventualmente a
realização de um trabalho documental diverso do que se pode fazer através do
noticiário de jornais. Haveria aí sempre um problema ético, sobretudo para o
pesquisador: diante da previsibilidade de um linchamento, seria lícito não agir
para preveni-lo em vez de simplesmente agir para documentá-lo?
O uso do material jornalístico no estudo sociológico de linch amentos
nos Estados Unidos teve dois momentos distintos. Nos estudos iniciais
e mais antigos, era material colhido diretamente pelos pesquisadores, ao
acaso de circunstâncias e possibilidades. Num segundo momento, o mate-
rial foi retrospectivamente colhido e classificado sistematicam ente por ins-
titutos de pesquisa, interessados sobretudo em caracterizar o racismo que
estava na raiz das motivações para linchar. O m aterial dessas fontes, co-
lhido em jornais, passou a ser e é até hoje a base principal de realização de
estudos sociológicos e históricos sobre esse problema. No Brasil, o jornal
é a única fonte sistemática, mas, ainda assim, limitada pela casualidade do
acesso do pesquisador a publicações que tenham notícias sobre o assunto.
Além disso, ocasional e excepcionalmente, amigos me rem etem recortes de
diferentes regiões do Brasil. Porém, de modo algum é possível sem recur-
sos, ainda que modestos, ter um levantamento razoavelmente completo de
ocorrências em todo o país, sobretudo em pequenas localidades de regiões
remotas onde lincham entos estão aco ntecendo, mas que jamais chegam
aos jornais. 18 É desejável que se tenha aqui, no futuro , séries históricas,
como as que foram produzidas nos Estados Unidos, mediante pesquisa em
centenas de jornais de todo o país. 19
O arquivo que organizei até agora é criterioso. Embora haja limitações,
quanto à representatividade estatística dos casos noticiados, o material colhido
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DOS LINCHAMENTOS 35
textos arrolados, num total de 96 artigos e livros. Esse material já foi todo
lido e analisado e corresponde à maior parte da bibliografia já produzida
sobre o tem a. Em nova viagem ao exterior, pretendo fazer pesquisa e levan-
tamento bibliográfico especificamente com relação aos temas da vingança,
do castigo e dos ritos sacrificiais, já que essa característica dos linchamentos
adensaram-se acentuadamente a partir da maior amplitude dos registros de
ocorrências desde janeiro de 1995.
Defini e calculei índices d e participação e de atrocidade nos lincha-
mentos para um número expressivo de ocorrências. Foi possível fazer es-
ses cálculos para os dois índices nos mesmos casos, para um número que
ultrapassa consideravelm ente o número de casos em que se pôde fazer
cálculos similares nos linchamentos am ericanos. Nos Estados Unidos, foi
possível fazê-lo para 60 linchamentos, ocorridos entre 1899 e 1946. 22 Em
minha pesquisa, foi possível fazê- lo para 138 casos, ocorridos entre 1970 e
1994, mais do que o dobro. Essa disparidade se explica pela limitação do
número de variáveis considerad as quando se produziu o levantam ento bá-
sico de notícias de jornais até hoje utilizado pela maioria dos estudiosos do
tema nos Estados Unidos. Esses índices são importantes para determinar
alterações nos aspectos qualitativos da prática de lincham ento. O índice
de atrocidade, tendo como ponto mediano 0,25 (numa escala de zero a
cinco), sugere uma equilibrada distribuição dos casos em 49,6% de baixa
atrocidade e 50,4% de alta atrocidade. Agrupei os casos em dois períodos:
até 1984 (29,6%) e a partir de 1985 (70,4%). As mudanças de orientação
das multidões têm sido pequen as e também pequenas as variações em di-
versas situações, comparativamente.
Centro-Oeste 2, 2 2, 1
OBS.: Os 279 casos correspo ndem àq ueles cm relação aos quais foi possível calcular o índice de atrocidade.
LíO LINCHAM ENTOS
OBS.: As colu nas relativas aos índices de participação cobrem os dados até 1994. A coluna "Todos" inclui
os linchamentos e tentativas até junho de 1996.
*
* *
Os linchamentos são mais do que um problema social; são expressões trá-
gicas de complicados processos de desagregação social e, também, de busca
de um padrão de sociabilidade diferente daquele que se anuncia através das
tendências sociais desagregadoras. Seria pobre a interpretação que se limitasse
a vê-los como manifestação de conservadorismo ou que, ao contrário, se limi-
tasse a neles ver indicação de uma conduta cidadã e inovadora, ainda que equi-
vocada na forma. Antes, é necessário neles resgatar a dimensão propriamente
dramática do medo e da busca, ingredientes que muitas vezes acompan ham os
processos de mudança social.
É claro que esses ingredientes ganham sentido na tradição conservadora
relativa a certa visão de mundo centrada mais na categoria de pessoa do que na
categoria de indivíduo. Tradição, por sua vez, revigorada justamente, ao que
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DOS LINCHAMENTOS Líl
Notas
1
Versão revista e atualizada de artigo publicado originalmente com o título de "As condições do estudo
sociológico dos linchamentos", Estudos Avançados, v. 9, n. 25, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados
da U niversidade de São Paulo, sct.ldez. 1995, pp. 295-31 O.
2
Cf. Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 2 19.
3
Sobre linchamentos no Brasil, cf. Thalcs de Azevedo, "Linchamento no Brasil", cm Ciência e C11lt11ra, v.
26, n. 1O, Sociedade Brasileira para o Progresso da C iência, São Paulo, 1974, pp. 948-9; Maria Victoria
Benevides, "Linchamentos: violência e 'justiça' popular'', cm Roberto Da Marta ct ai., Violência brasileira,
São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 93-1O1; José Arrhur Rios, "Linchamentos: do arcaico ao moderno",
cm Revista de Informação Legislativa, v. 25, n. 100, Senado Federal, Brasília, 1988, pp. 207-35; Sergio
Adorno, "Linchamentos cm São Paulo", cm Paulo Sérgio Pinheiro (coord.), Continuidade autoritária e
constrtlçáo do democracia - Relatório Final N úcleo de Estudos da Violência - Universidade de São Paulo,
São Paulo, fevereiro de 1999, pp. 404-80; Jacquelinc Sinhorctto, Os justiçadores e S11a j ustiça: linchamentos,
costume e conflito, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2002; Helena Singer, Discursos
desconcertados: linchamentos, punições e direitos humanos, São Paulo, Humaniras, 2003; Rafael Torres de
C erqueira e Ceei Vilar Noronha, "Cenas de linchamento: Reconstruções dramáticas da violência coleti-
va'', PsicoÚJgiaemEstudo, Maringá, v. 9, n. 2, maio/ago. 2004, pp. 163-72. Em Mcnandro e Souza há um
Lí2 LINCHAM ENTOS
bom levan tamento comentado da modesta bibliografia b rasileira sob re o tema, caracterizad a pelo predo-
mín io de considerações jornalísticas (ai nda q ue escritos por cientistas sociais) e reduzido n úmero de textos
baseados em pesqu isa e arrolamento de dados. Cf. Paulo Rogério M. Menandro e Líd io de Sou za, Lincha-
mentos no Brasil: a justiça que não tarda, mas falha, Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Al meida, 199 1.
• Cf. Joseph R. Gusfield , "Thc study of social movcments", cm D avid C. Sills (ed. ), !nternational
EncycÚJpedia of the Social Sciences, v. 14, The M acM illan Company & The Free Press, s.l., 1968,
pp. 44 5-52. E m 196 1, n um con hecid o ensaio d e Blumcr, os movimentos sociais apareciam como u m
subcampo no estudo do comportamento coletivo. Cf. H erbert Blumer, "Comportamen to coletivo", op.
cit., pp. 207-72 .
' Menandro e Sou za, embora enfre n tando a mesma carência de dados que e nfrentei em m in ha pes-
quisa, consegu ira m q uantificar alguns casos e indicar que, pa ra u ma população negra d e 5,9%,
39,6% d as víti mas de linchamento eram negras. Cf. Paulo Rogério M . Mena ndro e Lídio d e Souza,
op. cit., pp. 1 12-3. H á, contudo, u m p roblema com essa comparação, pois os au rores estão consid eran-
do linchamentos ocorridos ao longo de largo períod o d e tempo, e os dados sobre a população negra do
Brasil se referem unicamen te ao ano d e 1980. Faço a ressalva d e q ue evidências q ue se torna ram d ocu-
mentáveis nos últimos anos, com o recurso ao YouTubc, mostram que há brancos li nchando negros, mas
também negros linchando negros e b rancos li nchando b rancos, e mesmo negros li nchando b rancos. Em
geral, os grupos são mesclados. H á uma incidência desigual d a cor nas víti mas, mas é forte a indicação
de que cor e raça não são fato r decisivo nesse tipo d e violência coletiva.
6
José Arthur Rios é cético em relação à in terpretação de Maria Victoria Benevides, cm entrevista à Folha
de S.PauÚJ ("Aumento d e casos de linchamen to p reocupa sociólogà', Folha de S.Pa11lo, 8 fev. 1987, p.
A 19), d e que "quase 100% d os linchados são pobres e na maioria d as vezes negros e inocentes". Cf. José
Arthur Rios, op. cit., p. 209 (nota) . E m minha pesq uisa, das 2.652 vítimas, em 2.028 casos de lincha-
mentos e tentativas, foi possível identificar a cor de apenas 497 delas (I 8,7%), das quais 48, 1o/o brancas,
47, 1o/o negras (inclu ídos os m ulatos e morenos), 4% pardos e 0,8% amarelo. Esses dados não permitem
concluir que há qualq uer p redomín io de cor en tre as vítimas d e linchamen to. A questão, portanto, con-
tinua em aberro. M eus d ados tampouco permitem concluir que apenas pob res são linchad os.
7
Cf. Jay Corzine, Lin Huff-Corzi ne e James C. Crecch, "T he tenant labor market and lynch ing in thc
south: a test of split labor market theory", Sociological lnq11iry, v. 58, n. 3, summer 1988, pp. 26 1-78;
Stewart E. Tolnay, E. M . Beck e James L. Masscy, " Black lynch ings: thc power rh reat hypothesis revisi-
ted", Social Forces, v. 67, n. 3, mar. 1989, p p. 605-40; E. M . Beck e Stewart E. Tolnay, "The killi ng field s
of thc decp sourh: thc market for cotton and thc lynch ing of blacks, 1882-1 930", A1nerican Sociological
Review, v. 55, n. 4, Washi ngton, Aug. 1990, pp. 526-39.
8
Cf. Ken Gonzalez-Day, Lynching in the ~st, 1850-1935, Durham, Duke University Press, 2006, p. 206.
Não obstante, a representação visual dos linchamentos, aparentc1ncntc, to1nou o negro co1no referência, 1nais
do que outros gru pos sociais, tanto na fotografia quanto na escultura e na pintura. Cf. Dora Apel, !magery of
Lynching, New Brunswick, Rutgers Universiry Press, 2004; e James Allen et ai., Without Sanctuary: Lynching
Photography in America, Sanca Fe, Twin Palms Publishers, 2000. Este segundo livro reú ne cartões-postais
com fotografias de linchamentos. Assim como ped aços dos corpos d os linchados, foros de sua execução
eram vend idas como afirmação imagi nária de poder e supremacia dos linchadores e dos que se identi-
ficavam com eles. Já as ob ras de arte do primeiro livro, em boa parte, documentam a formação de uma
consciência social do lugar dessa violência na sociedade americana, tanto por parte dos q ue com essa
modalidade de violência se identificavam quanto por parte dos que a ela se op unham. Na poesia e na
música, rornou·sc emblc1nático o poc1na ''Strange fntil', ["Árvores do sul produzem u n1a fruta estranha,/
Sangue nas fol has e sangue nas raízes"], de Abel Mecropol, professor judeu, que o musicou. Essa música
ganhou fama na expressiva interp retação da cantora negra Billie Holid ay.
9
Em ou tra perspectiva, José Arthu r Rios ressalta a característica ritual dos linchamentos e neles a função
do bode expiatório. Cf. José Arthur Rios, op. cit., p. 222.
10
O livro de Rodolp ho Tclarolli, Britos: reptÍblica de sangue, op. cit., [p ublicado, originalmente, com o título de
Poder ÚJcal na Repziblica Velha, São Pau lo, Companhia Editora Nacional, 1977], con tém ab undantes infor-
mações sobre um caso de du plo linchamento no interior de São Paulo, no século XIX. De cerro modo, é quase
um estudo de caso sobre linchamento, mais do que um estudo sobre o poder local. É um trabalho q ue mostra
claramente a viabilidade de detalhados estudos de caso sobre esse tipo de violência no Brasil do passado.
11
Os poucos casos de estudos brasileiros sobre linchamentos, baseados em pesq uisas empíricas, também
se apoiam em notícias pu blicadas pelos jornais. Cf. Paulo Rogério M . M enandro e Líd io de Souza, op.
cit., passim.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DOS LI NCHAMENTOS Lí3
12
C f. Floresran Fernandes, A fanção social da guerra na sociedade tupinambd, São Paulo, s.e., 1952. Cf.,
também, Floresran Fernandes, Organização social dos tupinambd, 2. ed., São Paulo, Difusão Europeia
do Livro, 1963.
13
C f. Floresran Fernandes, " Resultados de um balanço crítico sobre a contribu ição etnográfica dos cronis-
tas", em A Etnologia e a Sociologia no Brasil, São Paulo, Anhambi, 1958, pp. 79-1 76.
14
Cf. Floresran Fernandes, Fundamentos empíricos da explicação sociológica, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1959, pp. 16-22.
15
Cf. Gustave Le Bon, The crowd: a study ofthe popular mind, Harmondsworth, Pcnguin Books, 1977.
16
Entre outros, sobre o rema, cf. E. M. Beck e Srcward E. Tolnay, "The killing flelds of rhe decp South: rhe
markct for cotton and rhc lynching ofblacks, 1882-1930", op. cir.
17
Sobre a raça das vítimas de linchamento e a distribuição das ocorrências por Estado, cf. James Elbcrr
C urler, Linch-Law: An fnvestigation into the History of Lynching in the United States, Patterson Smith,
N cw Jersey, Montclair, 1969; e Hugh Davis Graham e Tcd Robert Gurr (cds.), The History ofViolence in
America, Ncw York, Frcdcrick A. Pracgcr Publishcrs, 1969.
18
Em S. Félix do Araguaia (MT), ocorreram pelo menos dois linchamentos, mas nenhum deles foi noticia-
do como tal nos jornais a que tive acesso.
19
Como já indiquei, a partir de 1995, com um auxílio financeiro da Fapcsp (Fundação de Amparo à Pes-
q uisa do Estado de São Paulo), tornou-se possível estabelecer o monitoramento diário da ocorrência de
linchamentos cm rodo o Brasil, mediante contrato com empresa especializada cm recortes de jornais sobre
assuntos determinados. Esse auxílio permitiu aumentar substancialmente o registro de ocorrências.
2
° Com o acréscimo de registros a partir de janeiro de 1995, foi possível ampliar o número de variáveis
consideradas de 72 para 79.
21
Cf. David Snydcr e William R. Kclly, "Conílict intcnsi ty, media scnsitivity and thc validiry of ncwspapcr
dara", em American Sociological Review, v. 42, n. 1, Fcb. 1977, pp. 105-23.
22
"A atrocidade foi operacionalizada c1n termos de um índice composto, que representa a ocorrência ou
a não ocorrência de enforcamento, tiro, queima, laceração ou desmembramento da vítima, b c1n como
a duração do linchamento." Cf. Brian Mullen, "Arrocity as a fu ncrion of lynch-mob composirion : A
sclf-attcnrion perspcctivc", cm Personality and Social Psychology B11lletin, v. 12, n. 2, Ju n. 1986, p. 191 .
No caso de minha pesq uisa, o número de itens de expressão e medição da crueldade é maior: 27 . O
cálculo foi feiro de maneira mais simples do que o adorado por Mullen, mediante atribuição de pontos
a cada irem. Assim, quanto maior o número de pontos, n1aior a dc1nora no linchamento e, portanto,
maior a atrocidade expressa nas minúcias da violência.
23
As informações deste quadro vão até 1994. O substancial acrésci mo de ocorrências a partir de janeiro de
1995 permitiu a ampliação do rol de variáveis consideradas na pesq uisa, inclusive as relativas à atrocida-
de, cujos índ ices estão sendo inteiramente redefi nidos e recalculados.
Linchamentos, a vida por um fio
uma legitimidade alternativa, que escapa das regras do direito e da razão. Pode-se
dizer que, de certo modo, o "contrato social" está sendo rompido. Nesse sentido,
os linchamentos são importantes, também, do ponto de vista político.
Esta pesquisa sobre linchamentos não tem por objetivo estabelecer uma
cronologia sequencial de ocorrências, nem seus dados constituem uma amos-
tra casual e probabilística. Os dados permitem fazer associações explicativas
entre componentes dos diferentes casos para identificar conexões entre eles
que permitam definir um perfil desse tipo de ocorrência, da vítima, dos lin-
chadores e das causas dos linchamentos.
Como já m encionei, o arquivo principal da pesquisa, do qual me valerei
neste livro, tem 2.028 casos, que vão de 1945 a 1998. Em separado, há mais
2. 505 casos ocorridos a partir de 2011, para um estudo comparativo de épo-
cas, um grupo de controle, cuja documentação foi lida e analisada mas não
foi transferida para uma ficha eletrônica. No geral, esses dados são reiterativos
do que está contido no arquivo principal. Algumas vezes, neste capítulo, para
detalhar a análise em relação a determinados tópicos, uso dados do arquivo
piloto da pesquisa, que cobre de 6 de fevereiro de 1945 até 31 de dezembro de
1988. São 272 casos. 3 Dos 2.028 casos do arquivo principal, 30,6% são de lin-
chamentos consumados, aqueles em que as vítimas foram mortas (620 casos,
782 mortos); 59,6% de tentativas de linchamento (1.208 casos), em que, no
entanto, 23,4% das vítimas ficaram feridas, não raro, gravemente, e 76,6% es-
caparam ou foram salvas; 6,3% de casos de possibilidade de linchamento (127
casos), aqueles em que houve indícios de formação da multidão e identificação
de uma vítima já escolhida; 2,9% de ameaça de linchamento (58 casos), aque-
les em que a multidão não se esboçou, mas circularam boatos de um possível
linchamento, primeiro passo da mobilização popular para linchar; e 0,6% de
linchamentos de cadáveres (13 casos), aqueles em que o destinatário do furor
popular morreu de outras causas antes de ser linchado, geralmente assassinato.
Ainda assim a multidão lincha o corpo, nele aplicando vários itens do que
chamarei neste livro de protocolo de linchamento, um roteiro de etapas e de
procedimentos em relação ao destinatário da violência.4
Neste texto, deixo de lado casos muito carregados de significação, como os
de lincham ento de cadáveres. Limito-me apenas aos linchamentos consuma-
dos e às tentativas de linchamento para uma primeira compreensão do que é
o linchamento entre nós.
Os estados em que, nos registros, ocorreu o maior número de linchamen-
tos e tentativas são, por ordem: São Paulo (904), Rio de Janeiro (299), Bahia
(289) e Pará (85). Essa tendência tem se mantido, com ligeiro influxo de ex-
pansão de ocorrências em direção a outros estados do Norte.
Lí8 LINCHAM ENTOS
assim, penso que não se deve juntar a ação desses indivíduos à dos esquadrões
da morte, no período anterior, sem conhecer melhor os liames e descontinui-
dades que podem ser reconhecidos entre um momento e outro. Mas eu não
deixaria de considerar a hipótese de que os esquadrões da morte contribuíram
p ara difundir a ideia da legitimidade da punição extralegal de crimes em rela-
ção aos quais as autoridades são lentas e complacentes.
Por outro lado, não se pode deixar de considerar que menor proporção de
linchamentos no período da ditadura militar não quer dizer que fosse menor
a ação violenta contra aquele tipo de pessoa que é hoje vítima do justiçamento
de grupos, grandes e pequenos. À primeira vista, parece haver uma relação en-
tre o fim da ação visível dos esquadrões da morte e a intensificação do número
de linchamentos. Mas esta primeira impressão depende de melhor verificação
dos fatores da disseminação dos justiçamentos.
A classificação regional e local dos casos ocorridos oferece, ao menos, uma
informação importante: linchamentos e tentativas ocorridos nas capitais e res-
pectivas periferias tendem a ser diferentes dos ocorridos em cidades do interior.
São diferentes quanto à motivação predominante, à participação e ao número
de participantes. Nos linchamentos das periferias urbanas, é clara a participa-
ção predominante de populações pobres, de trabalhadores, ainda que frequen-
temente se constate a presença semioculta da baixa classe média. Já nas cidades
do interior, linchamentos e tentativas são efetuados diretamente pela classe
média. No primeiro caso, n em sempre são visíveis a crítica e a contestação das
instituições judiciárias e policiais. No segundo caso, essa crítica e contestação
são diretas e se manifestam na invasão e no incêndio de delegacias, viaturas e
fóruns. Essa observação é necessária para que não se atribua, indiscriminada-
mente, uma motivação conservadora ou reacionária a todos os lincham entos.
Evidentemente, qualquer linchamento é um fato lastimável, porque sonega à
vítima o direito de se defender e o de ser julgada por um juiz imparcial, além
de sonegar o direito ao recurso e a novo julgamento em face de um juíw que,
de algum modo, possa ser parcial. O julgamento da vítima de linchamento é
definitivo e sem apelo. É produto da emoção e não da razão. Mesmo assim,
sociologicamente, é necessário distinguir um linchamento de outro.
A classificação que indico sugere justamente as diferentes implicações de
linchamentos ocorridos na periferia em relação aos ocorridos no interior. Na-
queles, a população pobre e trabalhadora começa a emergir como sujeito do-
tado de vontade relativamente própria, de juízos próprios, ainda que juíws
morais e não políticos, a respeito do que é certo e do que é errado. Proclama
uma opinião sobre os delitos de que é vítima e indica a importância de que
essa opinião seja recuperada na constituição da justiça formal. Enganam-se os
LINCHAM ENTOS, A VIDA POR UM FIO 51
que creem que os linchamentos nos bairros populares sugerem a m era afirma-
ção da vontade de implantação da pena de morte. Antes de tudo, são a pro-
clamação da vontade de justiça, de não ser vítim a inerte do roubo, do estupro,
do assassinato, do pouco caso. A ideia de que essa população reclama a pena
de morte já é produto da m ediação interpretativa da classe m édia urbana e
dos setores autoritários da opinião pública. Isso é revelado pelas características
assumidas por grande número de linchamentos, sobretudo nos casos em que
são precedidos por certa esp era pela ação policial, a ação do agente da lei e da
ordem. É revelado, também, pelos ataques às delegacias de polícia e fóruns,
decorrentes da suposta negligência de seus funcionários.
Nos casos do interior, a situação e as implicações são outras. A motivação
é nitidamente conservadora, de cunho moral e repressivo, defesa da própria
classe m édia, do caráter relativamente fechado das elites da sociedade local,
bloqueada ao estranho e ao de fora, em relação ao qual se manifesta de prefe-
rência a ira dos linchadores.6 É mais raro encontrar linchamentos no m esmo
bairro das periferias urbanas do que no m esmo município do interior. São
vários os casos em que um linchamento é seguido de outro ou em que a ocor-
rência de um linchamento predispõe a população local para outro, ainda que
anos depois: Ilhéus (Bahia), em agosto de 1980 e julho de 1986; Jequié (Bahia),
em fevereiro e em março de 1987 e em março de 1988; Vila Velha (Espírito
Santo), em m aio de 1987 e julho de 1988; Maracanã (Pará), em novembro de
1977 e em maio de 1982; Paragominas (Pará), em julho de 1986 e em m aio de
1987; Barrinha (São Paulo), em outubro de 1983 e fevereiro de 1984; Matão
(São Paulo), em janeiro e novembro de 1979 e janeiro de 1986; Sorocaba (São
Paulo), dois linchamentos no mesmo dia de janeiro de 1987; Sumaré (São Paulo),
em junho de 1984 e m arço de 1988 etc. Basicam ente um elo se rompe na
cadeia de relações e de respeito que sustenta a legitimidade das instituições.
Essas diferenças comparativas não eliminam as características comuns dos
linchamentos, tanto numa situação como em outra. São nelas que se pode en-
contrar o específico do linchamento como procedimento punitivo, que nega à
vítima o direito a uma pena relativa e restitutiva para o delito eventualmente
cometido: todos os delitos são igualados - tanto o pequeno roubo quanto o
assassinato. Embora difícil de aceitar, é compreensível que assim ocorra. Os lin-
chadores, em muitos casos, ainda que não em todos, são movidos pela emoção
de assumir o ponto de vista da vítima de um dano irreparável, diante do qual se
tornou ou é impotente: num extremo, o assassinato e o estupro, por exemplo.
A classificação dos motivos que levam um grupo a linchar uma pessoa é,
nesse sentido, esclarecedora. E aponta para os aspectos aparentemente contra-
ditórios dessas motivações. Agrupei os lincham entos e as tentativas de lincha-
52 LINCHAM ENTOS
não entregue à polícia, pois já era dinheiro dado como perdido. Além de ser
produto de crime contra o ter, que não havia sido praticado pelos favelados,
era dinheiro perdido e achado, dinheiro sem dono, que a própria família dera
por perdido, dinheiro sobrante e não dinheiro necessário à sobrevivência de
quem o perdera ou dera por perdido. Diferente de como o concebem os filhos
da sociedade de consumo, como equivalente geral, para os trabalhadores o
dinheiro não é quantitativo, mas qualitativo. Há dinheiro bom e dinheiro
ruim, dinheiro que é contrapartida bíblica do suor do trabalho e dinheiro que
é contrapartida do ganho fácil e imerecido, tido até mesmo como instrumento
de Satanás, como se vê na associação entre o dinheiro e a besta-fera em áreas ser-
tanejas. A honestidade de quem devolveu o dinheiro, fora interpretada como
falta de solidariedade em relação a seus iguais.
O linchamento não é uma violência original: é uma segunda violência. Está
fundamentalmente baseado num julgamento moral. É, sobretudo, indicativo de
que há um limite para o crime, para o delito e, por incrível que pareça, para a
própria violência - há o crime legítimo, embora ilegal, e o crime sem legitimidade.
Isso fica claro em casos de motivações que acarretam estranhos lincha-
mentos, em que alguém é linchado por seus iguais, também criminosos. É
o caso de autores de estupros de crianças, seguidos ou antecedidos de morte
das vítimas. Presos são linchados por companheiros de cela, que até mesmo
os estupram primeiro.8 É o caso dos linchamentos praticados contra os pró-
prios parentes de sangue, com auxílio de vizinhos ou por iniciativa destes. Um
caso, dentre outros, ocorrido na periferia de São Paulo, teve a participação
da própria mãe do linchado, que participou, ainda, da comemoração que os
linchadores fizeram em seguida à morte de seu ftlho. Justificou-se dizendo que
ele a maltratava muito - negação do vínculo sagrado de sangue entre o filho e
a mãe. É como se, por isso, ele já estivesse socialmente morto, por sua própria
decisão. Indício de uma concepção relacional da vida e da morte, a concepção
social prevalecendo sobre a concepção biológica. Sociologicamente, a morte
e o morrer são coisas distintas. No morrer, morre-se socialmente, antes e até
muito antes da morte propriamente dita, porque a temporalidade do morrer é
diversa da temporalidade da própria morte. 9
Pelo menos 22 linchamentos e tentativas que registrei dizem respeito a
ações da vítima que rompem com princípios morais fundamentais e que repre-
sentam, por isso, rompimento de relações sociais sem as quais, na concepção
dos participantes, a sociedade não pode existir, a vida social se torna impossí-
vel. É o caso, em primeiro lugar, da quebra do universal tabu do incesto, que
esta pesquisa revelou ser mais alargado do que o da concepção clássica. Em
nossa cultura popular, o tabu do incesto abrange, além do parentesco biológi-
LINCHAM ENTOS, A VIDA POR UM FIO 55
po. Nem por isso ocorreram casos de linchamentos de brancos com base nesse
motivo. O outro caso foi o de um delegado de polícia atacado em sua casa
porque abrigava e protegia escravos fugidos de seus senhores. Aqui, o delegado
branco perdia sua humanidade e, portanto, o direito de viver e morrer como
cristão, porque se deixara contaminar pela outra raça, pelo negro, negando
os interesses de seu próprio grupo racial e político. Identificando-se, além do
mais, com quem muitos não consideravam humano, o negro (e também o
índio, com as muitas persistentes dúvidas a ter ele alma ou não).
Nos casos mais recentes, que estou examinando, é possível conhecer as linhas
gerais do preconceito que move os linchadores ao linchamento. Mas também a
profundidade maior da exclusão que preside a eliminação do outro ser humano,
a partir de um tipo de delito que o lança a um universo que está aquém da con-
dição humana. Em primeiro lugar, muitas vezes, ainda não há um candidato a
linchamento, mas já se começa a desenhar os contornos de sua figura na mente
dos possíveis linchadores, no que na pesquisa registrei como possibilidade de lin-
chamento. Além disso, a qualificação para o linchamento e o próprio linchamento
se dão em cenários bem definidos. Fora daquele cenário, um delito não leva ao
linchamento de seu autor. Dentro daquele cenário, a possível vítima tanto culpa-
da quanto inocente tem sua vida por um fio. Ao cenário associam-se atributos.
Infelizmente, o noticiário da imprensa nem sempre menciona a cor da vítima. 11
Os poucos casos em que isso ocorre indicam um número expressivo de negros e
mestiços. Neste momento, porém, são insuficientes para uma generalização mini-
mamente segura. Mais importante que a cor, porém, é a idade da vítima.
Dos registros que mencionam a idade: 10,2% das vítimas são menores de ida-
de (184 pessoas); 43,8% são jovens de até 25 anos de idade (786 pessoas); 44,6%
são adultos (80 1 pessoas); e 1,4% são idosos (25 pessoas). Isso para um total de
1.796 vítimas com idade indicada. Esses dados mostram que o grupo dos jovens
vitimados por linchamentos ou tentativas é apenas ligeiramente maior do que o
dos adultos e idosos. No entanto, é quase duas vezes mais alta do que sua propor-
ção no conjunto da população brasileira, indício de provável maior vitimação dos
jovens pela justiça popular, o que pode ser apenas o resultado de que os jovens este-
jam "mais na ruà' do que em casa, mais expostos aos cenários da violência coletiva.
Analisei separadamente o que resultou da ação violenta da multidão nos
casos de linchamentos ou tentativas em que há infor mações ou indícios de que
suas 132 vítimas eram inocentes. No caso de maior agressividade contra os jo-
vens do que contra os adultos, os dados deveriam mostrar maior incidência de
casos de morte no grupo dos jovens em comparação com o grupo dos adultos.
Não foi isso o que aconteceu . Dos inocentes, 64,3% dos jovens foram mortos
ou feridos, e foram mortos ou feridos 72,6% dos adultos, enquanto a média
58 LINCHAM ENTOS
foi de 68,2%. Se, por outro lado, foram mortos ou feridos 58,8% dos menores
de idade inocentes, foi no grupo dos menores, geralmente adolescentes perto
da idade adulta, que houve maior proporção de mortos, 47% (contra 31 %
no grupo dos jovens, 41,1 % do grupo dos adultos e 38,7% na média), o que
parece envolver maior predisposição para satanizar e trucidar os menores de
idade do que as outras categorias etárias.
Isso, no entanto, não elimina a hipótese da prevenção e mesmo de precon-
ceito contra determinado tipo de jovem. Digo preconceito porque há tam-
bém dados sobre ocupação e trabalho, que em quase todas as notícias aparece
combinada com a ideia do vadio, do "jovem desocupado", em contraste com
uma geração que parece ter tido uma vida de trabalho duro, a dos linchadores.
Do total dos vitimados por atos de linchamento, não só os jovens, da fase
exploratória da pesquisa, quase metade dos que tinham uma ocupação indicada,
(98 sobre 225) aparece classificada no noticiário como marginal, assaltante, la-
drão, pistoleiro, traficante. Em um caso, a vítima é apontada como carpinteiro
e ladrão. Entre esses, há vários ex-presidiários. Em seguida, vem um pequeno
grupo de desempregados. Finalmente, há 127 casos de vítimas com emprego
indicado. Em quase todos os casos, as vítimas de linchamentos e tentativas estão
predominantemente em ocupações situadas nos estratos inferiores da estrutura
ocupacional e no limite do que a própria população parece classificar como
trabalho: estudante, entregador de supermercado, servente de pedreiro, vigia,
boia-fria, empregado de fazenda, catador de lixo, lavador de carros, biscateira,
ajudante geral, boiadeiro, braçal, capataz de fazenda, caseiro de chácara, em-
pregado de circo, faxineiro, grileiro, juiz de futebol, dona de bordel etc. Um
número não pequeno de vítimas é o dos militares, policiais militares e policiais
civis: 18, dos quais 12 soldados de polícias militares, além da mulher de um
soldado. No arquivo completo, esse cenário sofreu modificações. Das vítimas
de lincham entos e tentativas, 37,8% foram classificadas como delinquentes
contumazes - ladrões, assassinos, traficantes, estupradores etc. - , o que indica
que a maioria das vítimas de linchamentos não tem, em princípio, um perfil de
estigmatizados, podendo o ato violento recair sobre qualquer um.
As vítimas são na maioria do sexo masculino. Das 2.649 arroladas, em
relação às quais há a informação sobre o gênero, apenas 4,3% são do sexo
feminino (176 mulheres: 6 foram feridas, 9 foram mortas, 73 foram salvas,
88 escaparam; e para 20 não há informações) - geralmente porque estavam
acompanhadas de homens visados no processo de linchamento ou porque se
encontravam num cenário condenatório, como o de um bordel.
Um caso, pelo menos, confirma o que em outros é indício de que o "teatro"
do linchamento envolve a participação coletiva e a constituição de um corpo
LINCHAM ENTOS, A VIDA POR UM FIO 59
Penso que essa diferença não decorre apenas da dificuldade maior para efetuar
linchamentos durante o dia, devido a uma eventual vigilância policial mais
intensa. É de preferência na escuridão da noite que o linchador se oculta de
si mesmo, mais do que dos outros, na pedrada anônima, na paulada ao acaso,
no pontapé eventual, na facada ou no tiro que ninguém sabe de onde vem.
Se, claramente, no linchamento se contesta a legitimidade da justiça e da po-
lícia, dos códigos e dos tribunais, e a própria concepção oficial de crime e casti-
go, é nesse ambiente sem claridade, que compõe o cenário, que os participantes
negam, também, a dimensão política desse gesto potencialmente político: na
escuridão e no anonimato, o gesto de contestação perde o conteúdo e a direção
políticos e se perde na consciência de que se trata de um delito comum.
Notas
1
Versão revista de artigo publicado originalmente em Travessia - Revista do Migrante, ano 11, n. 4, Centro
de Estudos Migratórios, São Paulo, maio/ago. 1989, pp. 21-7. Versão cm inglês: "Lynchings - lifc by a
thrcad: srrcet justice in Brazil, 1979-1988", cm Marrha K. Huggins (ed.), Vigiúmtism and the State in
Modem Latin America (Essays on extralegal violence), New York, Praeger Publishers, 199 1, pp. 21-32.
2
Cf. Maria Victoria Benevides, op. cir.
3
Em separado, organizei, ainda, um arquivo de ocorrências anteriores a 1945, sendo uma do século XVI,
4 do século XVIII, 12 do século XIX e 3 da primeira metade do século XX.
• Linchamentos de cadáveres não são propriamente raros também cm outros países. Ourante a Guerra
Civil Espanhola (1936-39) ocorreram aros de iconoclastia contra igrejas católicas, exumação de corpos
de religiosas e de religiosos e seu linchamento na rua. Um linchamento céleb re, na Itália, foi o de Beniro
Mussolini e de sua amante, C lara Pctacci, além de hierarcas do Partido Fascista, capturados por guerri-
lheiros comunistas, cm 1945, fuzilados, seus corpos levados a Milão, pendurados de cabeça para baixo
num posto de gasolina da Piazzale Lorero, em frente à estação ferroviária, e ali linchados pela multidão.
São ritos de despojamento dos atributos propriamente humanos do corpo de quem, pelo que fez aos
outros, renunciou à sua humanidade. Uma indicação nesse sentido é o linchamento de presos por outros
presos, geralmente daquele q ue estuprou criança ou cometeu violência contra criança. Nesta pesq uisa,
foram arrolados os casos de 53 presos linchados na prisão, 42 dos quais foram morros (60%), entre eles
uma mulher, e 9 (12,9%) foram feridos.
' A censura prévia à imp rensa escrita perdurou de 13 dez. 1968 a jun. 1978, tendo alcançado mais intensa-
mente o jornal O Estado de S Paulo, fonte importante dos dados deste capítulo. No entanto, no período
aqu i considerado, a censura já estava suspensa.
6 Incidentes em ricas cidades do interior de São Paulo, q ue resultaram em espancamentos de forasteiros,
com graves consequências para as víti mas, foram assinalados nos dois primeiros meses de 1989. Um
jornalista constatou: " No entanto, o cenário transforma-se à noite, quando, principalmente nos fins de
semana e feriados, grupos de jovens, filhos de fàmílias tradicionais da classe média local, se reúnem e
respondem com agressividade aos 'forasteiros audaciosos' - rapazes de outras localidades. Pior ainda se o
visitante for visto na companhia de uma das moças da cidade". Cf Flávio Cordeiro, "Guerra entre jovens
no Interior", em O Estado de S Paulo, 19 fev. 1989, p. 28. Cf , também, José Maria Mayri nk, "Briga no
carnaval deixa rapaz cm estado de coma", cm O Estado de S Paulo, 15 fcv. 1989, p. 11.
7
Em Ourkhcim, a distinção entre anomia e foto patológico está numa relação de verso e reverso - a au-
sência da norma correspondente ao substrato social, de um lado, e a persistência da norma q ue já não
corresponde ao novo e modificado substrato das relações sociais, de outro. Aqu i, trata-se do segundo
caso. Cf. Émile Ourkheim, As regras do método sociológico, trad. de Maria Isaura Pereira de Queiroz, 2.
ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1960, p. 45 e ss. Sob re a anomia decorrente da transição
da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, cf Émile Ou rkheim, De la Division Du Travai/
Social 7. cd., Paris, Presscs Universitaires de France, 1960, p. 343 e ss. Merron, num retorno à concepção
62 LINCHAM ENTOS
de anom ia de Durkhei m, interpreta-a como conduta anômala: "minha hipótese central é q ue a conduta
anômala pode ser considerada do ponto de vista sociológico como um sintoma de dissociação entre as
aspirações culturalmente prescritas e os caminhos socialmente estruturais para chegar a essas aspirações".
Cf Robert K. Merton, Teoria y Estruct11ra Sociales, trad. Florentino M. Torncr, México- Buenos Aires,
Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 143.
8
Raschka o bservou, num cam po de prisioneiros, em q ue todos estão na mesma situação, algo parecido
no ataque a pessoas q ue atraem para si as tensões de um gru po. É o mesmo tema do bode exp iatório, cm
René Girard. Cf. L. B. Raschka, "Lynchi ng: a psych iatrist's vicw", em Canadian Psychiatric Arsociation
Journal, v. 2 1, n. 8, 1976, pp. 577-80.
9
É o que se infere da releitura sociológica das observações e análises, sobre pacientes termi nais, da médica
Elisabeth Kublcr-Ross, On Death and Dying, New York, MacMillan Publishing Co., 1970. Da mesma au-
tora, cf também Questions andAnswers on Death and Dying, New York, MacMillan Publishing Co., 1979.
0
' Na Guerra do Contestado, cm Santa Catarina ( 1912- 19 16), decorrente de um movi mento milenarista,
os seguidores do mo nge José Maria desenterravam os soldados do Exército, da polícia e das tropas de
vaq ueanos mortos em combate, para deixá-los insepultos, motivo de verdadeiro terror entre os soldados
das forças legais. Cf Maurício Vinhas de Q ueiroz, Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do
Contestado: 1912/1916, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
11
Com o avanço da pesq uisa, o aprimoramento das técnicas de difusão das nocícias, a maior frequência
no uso da imagem fotográfica e maior presença das ocorrências no YouTubc, há mais infor mação visual
sobre a cor da pele de linchadores e vítimas de linchamento.
12
Nessa direção vai, também, a crescente d ivulgação de atos de linchamento no YouTube, fil mados por
participantes da ocorrência. Mais do q ue linchar cm lugar visível e público, há aí, também, a intenção de
mostrar a ocorrência para um público mais amplo, a internet como meio de ampliação virtual do que é
prop riamente público, isto é, espaço de visibilidade.
A recriação anômica da sociedade
Notas
1
Vejo indicações nesse sentido cm outros estudos sobre linchamentos e ações coletivas: em James McGovcrn,
Anatomy of11 lynching: The lynching ofCLaude Neal, Baron Rougc and London, Lousiana Statc Univcrsiry
Press, 1982; na concepção de "psicose coletiva rransitórià', de L. B. Raschka, op. cit., esp. p. 577; em
George Rudé, "The Gordon Riors: a srud y of thc rioters and their victims", em Tramttctions ofthe Ruyal
Historical Society, Fifry Series, v. 6, 1956, pp. 93-1 14. Rudé assinala a mudança de motivos da multidão
du rante o próprio processo de sua ação.
2
Cf Émilc Durkheim, De La Division du Travai/ Social, cir.; Émilc Durkhcim, As regrm do método socio-
lógico, cir.
3 Em particular, cf. Erving Goffman, A representllçáo do e11 na vida cotidiana, rrad. Maria Célia Santos
Uma história dos linchamentos no Brasil recua até o século xv1, quando essa
palavra ainda não existia, pois só surgiria no século xv111, nos Estados Unidos.
Vários episódios de ação coletiva para punir alguém, em espaço aberto, podem
ser arrolados em diferentes ocasiões da história brasileira. Eles não têm grandes
diferenças formais em relação aos linchamentos dos dias de hoje. Entretanto, a
comparação das ocorrências de diferentes épocas mostra que os linchamentos, en-
tre nós, têm sido praticados por motivos que mudam ao longo do tempo. Hoje, de
modo algum se lincharia uma pessoa pelos mesmos motivos que justificam lincha-
mentos dos séculos xv1 ao xvm . E, embora os linchamentos do século XIX tivessem
clara motivação racial, praticados contra negros ou contra brancos que protegiam
negros, os linchamentos de hoje contra negros, ainda que conservando, aparen-
temente, a motivação racial, têm motivos imediatos completamente diferentes.
Naquela época, o negro motivava linchamento quando ultrapassava a barreira da
cor e invadia espaços, situações e concepções próprias do estamento branco; quan-
do, enfim, fazia coisas contra o branco que, se feitas pelo branco contra o negro,
não seriam crime. Hoje, um negro não é linchado por ser negro. Mas, os dados
desta pesquisa mostram que a prontidão para linchar um negro é, na maioria dos
casos, maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito.
A disposição para linchar um negro é maior do que para linchar um branco, como
motivação de segundo plano, não de primeiro plano.
Se há essa variação na relação entre o motivo e a forma do linchamento, há,
entretanto, uma constante: o que move a multidão à prática do linchamento
é a motivação conservadora, a tentativa de impor castigo exemplar e radical
a quem tenha, intencionalmente ou não, agido contra valores e normas que
sustentam o modo como as relações sociais estão estabelecidas e reconhecidas
ou os tenham posto em risco. H á, portanto, dois planos a serem considerados
na sua recíproca referência: de um lado, o que estou chamando de mente con-
servadora; de outro, as ações coletivas violentas que essa mente conservadora
informa e justifica. Esses planos se combinam e se explicam reciprocamente.
Penso que se pode estudar os linchamentos como ocorrências documentais
que constituem a ponta visível de processos sociais e da estrutura desta so-
ciedade que, de modo geral, têm sido negligenciados pelos estudiosos. Nas
décadas recentes, nossos juristas mais preocupados com as violações dos direi-
tos human os e nossos cientistas sociais mais interessados na identificação dos
eventuais bloqueios à modernização têm dedicado razoável atenção ao que se
poderia definir como processos de gestação da cidadania. A referência dessa
orientação tem sido, claramente, o regime ditatorial encerrado em 1985, e,
a partir dela, a busca, pelos pesquisadores, das evidências de um movimento
antagônico orientado em favor da democracia e do direito.
O LADO SOMBRIO DA MENTE CONSERVADORA 73
Notas
1
Trabalho apresentado no Painel &tra-legal violence in Brazil· PopularJustice, Vigilantism and Lynching, 3'
Conferência da Brazilian Studies Associarion, Cambridge (Reino Unido), 7-10 ser. 1996. Publicado em
Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 8, n. 2, our. 1996, pp. 11-26. Este capítulo é uma versão
revista, ampliad a e atualizada do texto original.
2
Sobre o vigilantismo, cf. Richard Maxwell Brown, "The American vigilant tradition", em H ugh Davis
Graham e Ted Robert Gurr {eds.), The History of Violence in America, New York, Frederick A. Praeger
Publishers, 1969, pp. 154-226; W Eugene H ollon, Frontier violence: another look, New York, Oxford
Universiry Press, 1974, passim; Peter C. Sederberg, "The phenomenology of vigilan tism in contemporary
America: an interpretation", Terrorism, v. 1, n. 3-4, London, Rourledge, 1978, pp. 287-305.
3 Com a devida cautela, q ue de fato se deve ter no uso dessa concepção, Benevides fala em "linchamentos
9
Dentre outros, cf. C harles David Phillips, "Exploring Relarions among Forms of Social Control: The
Lynching and Exccurion of Blacks in Norrh Carolina, 1889- 19 18", em úzw and Society Review, v. 2 1, n.
3, Fali 1987, pp. 361-74; E. M. Beck, L. James e Stewart e Tolnay, "The Gallows, rhe Mob, and rhe Vote:
Lethal Sancrioning of Blacks in North Carolina and Gcorgia, 1882 to 1930", cm úzw and Society Review,
v. 23, n. 2, Universiry of Gcorgia, Athens, May 1989, pp. 317-31; E. M. Bcck e Stewart E. Tolnay, "The
killing fields of the deep sourh: rhe market for cotton and d, e lynching of blacks, 1882-1930", American
Sociological Review, v. 55, n. 4, Washington, Aug. 1990, pp. 526-39. A dependência dos estudiosos do rema
cm relação ao noticiário dos jornais, nos Estados Unidos, tem motivado estudos sobre a confiabilidadc e
a abrangência dessa fonte de informação. Infelizmente, apesar da importância documental crescente do
noticiário jornalístico nos estudos sociológicos no Brasil, ainda não dispomos de avaliações do mesmo ripo.
Esses estudos são úteis, sobretudo, para determinar as limitações e deformações do dado jornalístico sobre
lincl,amentos. Cf. Warren Breed, "Comparative newspaper handling of the Emmerr Till Case", op. cit., pp.
291-98; Maurinc Beasley, "Thc muckrakers and lyncl,ing: a case study in Racism",Joumali.sm Hi.story, 9, n.
3-4, Autumn/Wintcr 1982, pp. 86-91; David Snyder e William R. Kelly, "ConAicr intensiry, media scnsiviry
and rhe validiry of newspaper datà', American Sociological Review, v. 42, n. 1, Feb. 1977, pp. 105-23; Jill
Goerz, "Losr in rl1c crowd", Psychology Today, n. 21 , June, 1987, p. 60.
10
Os dados mostram que os lincl,amenros se enquadram no que Foucaulr designa como aro de justiça
popular profundamente antijudiciário. Cf. Michel Foucaulr, Microfísica do poder, org. e trad. Roberto
Machado, 3. cd., Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 43.
11
Cerca de 90% das vítimas de tentativas de linchamento foram salvas, cm grande número de casos com
ferimentos. As polícias militar e civil foram responsáveis por 76,7% dos salvamentos.
12
Os cálculos foram feitos sobre um torai de 677 linchamentos e tentativas de linchamento e 952 vítimas,
entre morros, feridos e evadidos.
13 Cf. Elias Canerri, Crowds and power, trad. Carol Stewart, H armondsworrh, Penguin Books, 1973, p. 17.
14
Canerri destaca que é apenas na multidão que o homem se livra do medo de ser tocado (cf. Cancrri,
op. cir., p. 16). Esse medo só não existe nas situações familísricas e comunitárias.
15
Essa tipologia remonta a Tõnnies e foi também u tilizada por José Arrhur Rios, em seu escudo sobre
linchamentos, como dicotomia arcaico-moderno. Cf. José Arthur Rios, op. cir., passi m.
16
O dever, o encargo e a responsabilidade da vingança permanecem muito forres cm algumas regiões, so-
bretudo rurais, como observou Andrade, no sertão do Maranhão entre crianças, filhas de pais assassina-
dos, por isso mesmo, também elas sob risco de morte. Cf. Marisrela Andrade, "Violência contra crianças
camponesas na Amazônia", em José de Souza Martins (coord.), O massacre dos inocentes: a criança sem
infância no Brasil São Paulo, Hucitec, 199 1, pp. 37-50.
17
Sobre o impuro, o sacrifício e o rito, cf. Jean Cazencuve, Sociologia dei Rito, trad. Salvatore Veca, Milano,
li Saggiarorc, 1996.
18
José Arrl, ur Rios fala em "revivescência de uma forma arcaica de justiçà'. Cf. José Arrl, ur Rios, op. cir., p. 223.
19
Para minhas considerações críticas em relação ao uso equivocado e abusivo do pscudoconccito de exclu-
são social, cf. José de Souza Martins, Exclmão social e a nova desigualdade, São Paulo, Paulus, 20 12; José
de Souza Martins, A sociedade vi.sra do abi.smo: novos estudos sobre exclwão, pobreza e classes sociais, 4. ed.,
Petró polis, Vozes, 20 12.
2
° Cf. Marialicc Mencarini Foracchi, A participação social dos excluídos, São Paulo, Hucircc, 1982, pp. 11-7.
21
Cf. Michel Foucaulr, Microfísica do poder, cit., p. 45.
22
N ão só os linclrnmcnros são manifestações do que entre nós é desenvolvimento urbano anômalo e pa-
tológico, mas também o infanticíd io e o parricídio, dentre o utros ind ícios, cada vez mais comuns, cm
que há evidências do conflito entre valores afetivos da sociedade tradicional e sua ausência na sociedade
moderna. Cf. José de Souza Martins, "Perigoso vazio", O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, 23 fev. 20 14,
p. E9. Mesmo nos linchamentos, o persistente peso das injustiças da história social é evidente na forma
rirual que assumem, como indiquei antes. Cf. José de Souza Martins, "Eu, não, meu senhor", O Estado
de S. Paulo, Caderno Aliás, 9 fev. 20 14, p. E4.
23
Rudé, um especialista em história das multidões, chama a atenção para o faro de que "formas passadas
ou 'arcaicas' podem estender-se até o presente". Nos períodos de transição, esses arcaís1nos tendem a se
consti tuir numa solução transitória para as demandas sociais, não se con fundindo com fo rmas de ação
coletiva do passado nem com as modernas. (Cf. George Rudé, A multidão na História: estudo dos movi-
mentos populares na França e na Inglaterra, 173 0-1848), trad . Waltensir Outra, Rio de Janeiro, Campus,
1991 , pp. 3- 5.
Entre a justiça cega
e a justiça cética
combinem essas duas motivações, sem contar que muitas pessoas deles partici-
pam apenas porque se apresentou a oportunidade, pois se encontravam no local
quando da reação coletiva violenta a determinado delito. O mais comum é que,
uma vez desencadeada uma situação propícia ao linchamento, a diversidade das
motivações se combinem , sem que se possa distinguir o que é especificamente
expressão de ceticismo e o que é especificamente expressão de vingança, o outro
extremo da escala de motivos para linchar.
O ceticismo precisa, pois, ser compreendido também nas motivações adi-
cionais e complementares às quais se liga. Nos linchamentos ocorridos no
Brasil, é pouco provável que o ceticismo em relação à justiça e ao direito possa
isoladamente motivar a ação violenta.
Num âmbito bem diferente, mas que é também expressão da sobrevivência
de arcaísmos de conduta, e para efeito comparativo não pode ser definida como
expressão de ceticismo, é a persistente prática da escravidão por dívida no Brasil.
Ela recrudesceu a partir dos anos 1970, quando dezenas de milhares de traba-
lhadores foram incorporados à força de trabalho empregada na derrubada da
mata e na abertura de novas fazendas, sobretudo de criação de gado, na região
amazônica. O trabalho forçado tem decorrido da própria lógica da reprodução
ampliada do capital em áreas ou setores da economia em que não existe um
mercado de trabalho constituído, áreas cuja ocupação econômica só é possível
se os custos da força de trabalho forem competitivos com os dos setores mais
prósperos e mais modernos da economia.2 A escravização é um modo de reduzir
esses custos em regiões e situações de escassa oferta de mão de obra em face de
alta demanda. A facilidade na violação das leis trabalhistas em situação de isola-
mento territorial e a distância em relação aos órgãos do governo que fiscalizam
as relações de trabalho e podem aplicar penalidades aos transgressores da lei cer-
tamente induzem ao ceticismo quanto ao rigor da fiscalização. Mas a existência
no governo de um grupo especial de fiscalização e repressão ao trabalho forçado,
muito ativo e muito eficiente, reduziu apenas parcialmente o número de ocor-
rências. Portanto, dentre seus fatores há mais do que ceticismo quanto ao risco
de praticar com êxito um delito contra as leis trabalhistas do país. Do mesmo
modo, do lado das vítimas, não é raro que haja nas equipes de trabalhadores, lo-
calizadas na selva pelos fiscais do trabalho, quem recuse a libertação e o processo
judicial contra os patrões. Alegam sua obrigação moral de pagar a dívida que é
o meio de sua escravização num sistema que é conhecido internacionalmente
como debt-bondage. É aí evidente que não são céticos em relação à eficácia de
seus direitos. Sua sujeição se situa numa trama moral de valores sociais que nem
sequer lhes permite ter consciência de quais são seus direitos em face da lei. Na
verdade são pessoas socializadas numa cultura de direitos e deveres remanescen-
tes da escravidão negra abolida em 1888.
ENTRE A JUSTIÇA CEGA E A JUSTIÇA CÉTICA 93
tos de negros do que de brancos pode dever-se ao fato de que a situação social
anômica mais propícia a esse tipo de violência é característica de bairros e lugares
de constituição recente e/ou de concentração de migrantes. Aquilo que Lewis
Mumford define como deterioração urbana ou padronização da ruína,4 que nos
Estados Unidos se deu nas áreas decadentes das grandes cidades e que entre nós se
dá na própria expansão das grandes cidades, o urbano disponível para as popula-
ções pobres já nasce decadente, porque antiurbano desde o começo.
Mas, em boa parte, a reação diferencial dos linchadores em relação a ví-
timas negras e vítimas brancas ainda reflete a concepção difundida de que
direitos iguais para os negros são imerecidos, expressão da concepção antiga de
que transgredir é da índole do negro, o que é concepção característica do per-
sistente preconceito racial no Brasil. Os dados mostram que a probabilidade
de linchamento de um negro em face de um mesmo crime é duas vezes maior
do que a do linchamento de um branco. Portanto, o ceticismo em relação à
eficácia da interferência da justiça formal e legal é maior nesse caso, o que
indica que a postura cética não é a mesma nas mesmas pessoas, variando o
ceticismo de conformidade com outros fatores intervenientes nas relações so-
ciais em face da violência. O ceticismo não é um dado a priori e absoluto. Ao
contrário, esta pesquisa sobre linchamentos indica claramente que ele oscila
em função da circunstân cia, dos fatores e do destinatário.
O ceticismo varia, também, de acordo com o grupo que lincha. Agrupei os
dados relativos a 1.756 vítimas de linchamento e de tentativa de linchamen -
to conforme as características sociais do grupo de linchadores. Já indiquei as
definições antes e retomo-as agora para facilitar a leitura deste capítulo. Um
primeiro grupo, o grupo A, é constituído por pessoas que pertencem à família
da vítima do crime que motiva o linchamento e também amigos próximos.
Corresponde a 6,7% dos casos em que foram sociologicamente identificados.
O segundo grupo, o B, é constituído por amigos e vizinhos da vítima e repre-
senta 17, 1o/o dos casos. O terceiro grupo, o C, é constituído dos chamados
"populares" e moradores da localidade, espacialmente próximos mas não vizi-
nhos, no geral pessoas que não conhecem a vítima do crime. São 34,2% dos
casos. Finalmente, o quarto grupo, o D, 42% do total, é formado por pessoas
anônimas, transeuntes, passantes, que também não conhecem a vítima e no
geral estão apenas ocasionalmente no cenário da ocorrência, atraídas para o
100 LINCHAMENTOS
Notas
1
Versão revista de texto publicado originalmente como capítulo do livro de Sir Roy Calne e W illiam
O ' Reilly (eds.), Scepticim: Hero and Villain, New York, Nova Science Publichers, 20 12, pp. 329-42.
2
É o caso da indústria de confecções na cidade de São Paulo, cm que um trabalhador pode ser comprado
do traficante por US$ 500 para trabalhar 17 horas por dia. C f. "Polícia resgata dois bolivianos colocados
'à venda' no centro de sr", O Globo, 14 fcv. 20 14: dois trabalhadores estavam sendo vendidos na feira
do bairro do Pari.
3
Destaco dois escudos de caso. Um, relativo a um linchamen to ocorrido em Araraquara (Sr), em 1897.
O utro, relativo a um linchamento ocorrido em Chapccó (SC), em 1950. Respectivamente, Rodolpho
Tcllaroli, Britos: república de sangue, Araraquara, Edições Macunaíma, 1997; Monica H ass, O linchamen-
to que muitos querem esquecer, 3. ed., C hapecó, Argos/Unochapecó, 20 13.
4
Cf. Lewis Mumfo rd, A cultura das cidades, trad. Neil R. da Silva, Belo H orizonte, Itatiaia, 1961 , p. 262.
U m p ioneiro estudo de caso de linchamento na Bahia, de pesqu isa realizada em 1959, Thales de Azevedo
constara que o linchamento decorreu de tensas disputas entre antigos e novos moradores. C f. Thalcs de
Azevedo, op. cit. , pp. 948-9.
A justiça popular
e os linchamentos
gança. Pode-se dizer que os assassinatos praticados por justiceiros são "crimes
privados", enquanto os linchamentos são, ostensivamente, "crimes públicos".
Tenho procurado verificar se há uma motivação súbita na violência coleti-
va que me previna de limitar a busca de fatores a causas estruturais para expli-
car ações coletivas caracterizadas por alta dose de espontaneidade e, portanto,
por um estado excepcional de tensão, e mesmo de loucura coletiva. H á indi-
cações fortes de que essas causas existem. Uma delas diz respeito à distribuição
desigual dos linchamentos e tentativas pelos dias da semana. Durante certo
tempo, quarta-feira foi um dia de pico, entre, portanto, um fim de semana e
outro. À medida que dados relativos a um período mais amplo e a uma região
mais ampla foram sendo agregados, manifestou-se uma tendência à concen-
tração nas terças e quintas e, às vezes, no domingo. Isto é, um dia de tensão
seguido por um dia relativamente calmo. Isso, porém, é muito relativo. É pre-
ciso desagregar os dados, encontrar referências apropriadas de agrupamento e
considerar as variações nos costumes ao longo de mais de meio século.
A maior parte dos linchamentos e tentativas de linchamento que estou ana-
lisando ocorreu na região Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro. A
região metropolitana de São Paulo é a que mais lincha no país. Em segundo
lugar, a cidade de Salvador. Em terceiro, a cidade do Rio de Janeiro. A cidade
de São Paulo lincha quase quatro vezes mais do que a do Rio de Janeiro.
A maior parte dos linchamentos e tentativas foi motivada por agressão
contra a pessoa e nesse grupo uma pequena p arte por agressão a pessoa por
motivo de roubo. Nesse grupo, a tendência é a do aumento da proporção de
ocorrências. Em segundo lugar estão as ações motivadas por roubo ou tentati-
va, porém, em declínio. É significativa a participação, em aumento, de ações
de motivação fútil: 10% . Em São Paulo e no Rio predominam os lincha-
mentos motivados por violência contra a pessoa e em segundo lugar, contra
o patrimônio. Já em Salvador, é o inverso: mais da metade dos linchamentos
é motivada por roubo, eventualmente com agressões físicas contra a vítima.
Embora nossos linchamentos sejam predominantemente urbanos e ocor-
ram nas capitais, há também lincham entos em cidades do interior e lincha-
mentos rurais. O que chama a atenção é a característica comum aos lincha-
mentos e tentativas nesses três tipos de áreas: a violên cia da multidão tende
a se manifestar em áreas de constituição recente, como os bairros novos nas
áreas metropolitanas, ou em áreas antigas de atração recente de novos habitan-
tes. Portanto, as vítimas mais prováveis dessa modalidade de violência coletiva
são os estranhos e adventícios, mal integrados na convivência social local. Isto
é, são áreas de populações recentes e em transição do mundo rural para o ur-
bano, ou do interior para a capital, nas quais não se definiu ainda um padrão
A JUSTIÇA POPULAR E OS LINCHAMENTOS 105
René Girard, em seus estudos sobre o tema, chama a atenção para o tipo
de violência que gera a necessidade social do bode expiatório: o crime que
desordena as relações sociais.3 No caso brasileiro, as ocorrências que mais fa-
cilmente assumem essa característica são aquelas relativas ao crime de incesto.
A violação incestuosa (geralmente estupro da filha pelo próprio pai, mas tam-
bém outras formas de relacionamento incestuoso real ou simbólico) acarreta
invariavelmente o sacrifício do autor. A violação de uma interdição sagrada re-
presenta, como fica evidente nos linchamentos entre nós, uma ruptura simbó-
lica insuportável. Tanto que em casos assim, como já indiquei antes, quando
o autor é preso, acaba sendo linchado pelos presos junto aos quais é colocado.
Uma clara indicação de distinção popular das categorias dos diversos crimes.
Mesmo o homicida violento não quer ser confundido com o criminoso que
praticou incesto, para ele um verdadeiro criminoso. Isto é, não quer ser con -
taminado real e simbolicamente pelo autor de uma violação do sagrado que,
por isso mesmo, se desumaniza, escapa da condição propriamente humana e
se torna uma espécie de p estilento e contagioso cidadão do mundo do mal.
A vingança tem entre nós, tudo o indica, duas características, ao menos.
De um lado, a de vingança do crime de sangue por parte daqueles aos quais o
sangue pertence. Não raro, em casos assim, mesmo que a multidão participe da
perseguição e da captura do autor de um crime, ela mesma dá precedência ao
direito de vingança aos membros da família da vítima da vítima. Um caso exem-
plar desse tipo, que já citei antes, ocorreu em Campos, no Rio de Janeiro, em fe-
vereiro de 1996. Um adolescente, negro, apresentou-se no pequeno bar de uma
família negra e pobre um dia de manhã, no momento em que uma menina de
sua idade abria o estabelecimento em companhia de um irmão de quatro anos
de idade. Assaltou, matou e fugiu. Escondeu-se nos matos das proximidades.
Na tarde do mesmo dia, quando a família fazia o velório da filha, o menor foi
capturado pelos vizinhos, arrastado até as proximidades da casa, amarrado com
uma corrente a um poste. A família da garota foi, então, chamada para linchá-lo
e espancou-o. Só não se consumou a execução porque a polícia chegou, a cha-
mado de moradores, impedindo que fosse queimado vivo.
Um caso ocorrido no Oeste catarinense, que estou estudando em detalhe,
foi desse tipo. Havia dois crimes diferentes na motivação do linchamento.
De um lado, o assassinato de um jovem descendente de italianos numa festa
vicinal de fim de semana. No outro, o assassinato de um jovem descendente
de alemães em outra festa de fim de seman a, em outra ocasião. Em ambos os
casos a motivação foi fútil, e os homicídios foram praticados por diferentes
criminosos. Ambos foram presos e estavam na mesma cadeia quando houve o
ato de linchamento. Cada uma das comunidades de pertencimento das víti-
108 LINCHAMENTOS
mas preparou o linchamento dos criminosos para ser executado num mesmo
dia, conjuntamente, um dia de festa religiosa. Destruíram um transformador
de energia elétrica na área da cadeia, puseram a cidade às escuras e invadiram
a prisão. Na hora de linchar, um dos grupos, o mais motivado para a prática
da vingança, descobriu que o "seu" preso tinha sido removido na véspera, por
desconfiança da polícia de que o linchamento ocorreria. Chamaram, então,
os do outro grupo, porque quem estava lá era o "seu" preso, que de fato foi
linchado, morrendo poucos dias depois num hospital da região.
A outra característica diz respeito àqueles casos em que a comunidade se
considera "dona" do sangue derramado pela vítima da vítima e se sente no
direito de definir e punir o bode expiatório, praticando nele o rito de extermí-
nio. São nesses casos que tem lugar a queima do autor ainda vivo. No geral,
essa prática se baseia na concepção de que a ressurreição não será possível para
quem for mutilado porque tenha praticado crime de sangue ou violação dosa-
grado (no caso do estupro incestuoso, o derramamento do sangue virginal das
primícias). Um caso ocorrido em Monte Santo, na Bahia, é exemplar. O cri-
minoso, um jovem filho de fazendeiro, tentara estuprar sua própria professora,
que vivia com uma avó cega, na roça. A moça conseguiu fugir, ele a perseguiu
e acabou matando-a a facadas. Foi preso e levado para uma cidade próxima.
Os vizinhos da professora e também seus vizinhos se organizaram e, durante a
noite, atacaram a prisão, renderam a numerosa guarda, colocaram o criminoso
sobre um caminhão e o levaram para o exato local em que derramara o sangue
de sua vítima. No caminho, foi sendo cortado pedaço por pedaço e finalmente
queimado vivo no próprio local em que consumara seu crime. A incineração
como punição é o modo de impedir a reconstituição do corpo no dia do Juízo.
Punição eterna, portanto, em franco contraste com a pena restitutiva, própria
da justiça institucional e oficial.
O bode expiatório tem sentido como forma de expiar o pecado da morte
não natural. A imposição do castigo extremo é modo de obter para a vítima
da vítima a ressacralização do corpo violado e habilitá-la, assim, ao direiro dos
justos. É forma de acalmar a ira divina em relação à comunidade de pertenci-
mento da vítima da vítima, guardiã e responsável por sua pureza, seu sangue e
sua vida. A vida do inocente pertence à comunidade porque pertence a Deus.
A comunidade é considerada aí, por seus participantes, uma espécie de guar-
diã dos talentos e responde por eles, como na parábola bíblica dos talentos.
Ou como no caso de Caim e Abel: "Onde está teu irmão?". Nesses casos, o
limite entre o profano e o sagrado é muiro tênue.
Muitos defensores dos direitos humanos entendem que é preciso punir
exemplarmente os participantes de linchamentos para que prevaleça a justiça
A JUSTIÇA POPULAR E OS LINCHAMENTOS 109
Notas
1
Publicado anteriormente cm Isaura de Mcllo Castanho e Oliveira, Grazicla Acquaviva Pavez e Flávia
Schilling (orgs.), Reflexões sobre justiça e violência, São Paulo, Edudlmprensa Oficial-sr, 2002, pp. 139-57.
2
Holton menciona as diferenças de comportamento da multidão em relação ao corpo entre católicos e
p rotestantes. Para os católicos, há grande ênfase na dessacralização do corpo, portanto, uma postura ne-
cessariamente ritual. Para os protestantes, o interesse é concentrado no assassinato. A ooncepçáo religiosa
dos participantes é decisiva na forma que o justiçamcnto assume. Cf. Robert ]. Holron, "Thc crowd in
history: some problems of theory and mcthod", Social History, v. 3, n. 2, May 1978, pp. 2 19-33.
3
Cf. Rcné Girard, "Gencrative scapcgoating", em Walter Burkert, Rcné Girard e Jonathan Z. Smith,
Ritual Killing and Cultural Formation, Stanford, Stanford U nivcrsity Press, 1987, pp. 73- 105. Devo ao
Pe. Flávio Lazzarin e a Alessandro Gallazzi as primeiras indicações sobre a relevância da obra de René
Girard para a compreensão da dimensão sacrificial dos linchamentos, numa troca de ideias em Salvador,
cm 1996, q uando de um semi nário sobre exclusão social.
A justiça supressiva
nos crimes de sangue
e morte indigna, a morte como fato natural e a morte como castigo infligido
sobre o corpo do criminoso, de modo a destituí-lo das referências simbólicas
de sua humanidade. O senhorio da sociedade é exercido sobre a construção
cultural que humaniza o corpo e gera a pessoa. No linchamento, a sociedade
reclama de volta o seu direito sobre a trama simbólica que dá sentido à vida.
N em por isso deixa de haver diferenças importantes entre os diferentes
linchamentos ou tentativas de linchamento. O s linchamentos urbanos dife-
rem dos demais porque há neles maior número de procedimentos violentos
na ação do que se pode chamar de verdadeira multidão, a agregação de um
grande número de anônimos. Já os linchamentos urbanos de vizinhança e os
rurais se caracterizam como práticas de comunidades de justiçamento, pois os
participantes sempre se conhecem e não raro são até parentes entre si.
Num país que acumula registros de mais de dois mil linchamentos e ten -
tativas de linchamento no último meio século, como o nosso, o número de
ocorrências ainda não foi suficiente para nos fazer pensar sobre a diversida-
de dos modos de punir que atravessam silenciosamente nossa cultura. Ainda
preferimos simplificar o assunto, dele tratando como mera variante de uma
violência crônica e sem sentido. Não o é, pela carga simbólica que contém.
Valdemar Martins Bugança foi dos poucos que, de certo modo, tiveram a
indesejada oportunidade de pensar a esse respeito nos 25 dias em que morreu
lentamente entre um hospital de Chapecó, no Oeste catarinense, e um hospi-
tal de Florianópolis, para onde o removeram. Geralmente, num linchamento
a vítima morre depressa e de surpresa. Nada sugeria que, naquele domingo de
janeiro de 1987, fosse ele se defrontar com essa forma altamente simbólica de
justiçamento e experimentar a crueldade de um morrer lento e punitivo.
Bugança aguardava julgam ento por homicídio na cadeia de Maravilha, idí-
lico município bem próximo da fronteira com a Argentina. Ali, quase não há
descontinuidade entre roça e cidade. É um lugar calmo, de tradições familiares
fortes, povoado por descendentes de alemães e de italianos, muitos deles vin-
dos do Rio Grande do Sul na época da expansão da frente pioneira naquela
região de Santa Catarina, há pouco mais de meio século.
Quando, dez anos depois do linchamento de Bugança, um juiz finalmen-
te insistiu em levar os acusados a julgam ento, teve grande dificuldade para
formar o corpo de jurados. Era alta a incidência de parentesco entre os habi-
tantes. Praticamente teve que fazer pesquisas genealógicas para identificar as
parentelas. Não levou em conta a questão antropológica das redes paralelas
de parentesco simbólico e as relações de amizade e lealdade que costumam
prevalecer na sociabilidade de comunidades como aquela. O julgamento teria
sido impossível.
llLí LI NCHAMENTOS
a ter relações com ele. Enlouquecido pelo desejo quase incestuoso, quis forçá-la.
A avó da moça, em desespero, orientada pelo barulho, tentou defender a neta e
foi machucada. A professora pulou pela janela e tentou fugir, mas foi agarrada,
esfaqueada, o rosto cortado, e morta a pouca distância de sua casa. O desdo-
bramento imediato do caso faz supor que o assassinato era, para o Lagartixa, o
modo de acobertar a sedução frustrada e recusada.
Agora o fato estava consumado, embora ele não parecesse consciente da
trágica travessia que iniciara. Não sabia, mas cruzara o umbral da morte, o
terreno misterioso da lógica outra que não a dos viventes. Homem comum da
linguagem dos gestos e das falas, estava mergulhado agora no universo pode-
roso dos símbolos, de seus significados profundos, de seus enigmas. Logo veria
que abrira a clausura desse universo, em que o simbólico da escuridão preva-
lece sobre o factual da vigília e da luz. O universo das inversões simbólicas,
das desconstruções reveladoras das alteridades que nos presidem em silêncio.
Edvaldo mesmo procurou a polícia e contou ao sargento uma história, de
que a professora fora atacada por um desconhecido e estava morta. Ajudou o
policial a procurar o assassino. Mas o sargento começou a desconfiar das in-
coerências na conversa que entretinham enquanto davam a busca. Acabou por
dar-lhe voz de prisão e obteve a confissão de que o assassino era ele mesmo. O
sargento deve ter intuído que, em Monte Santo, Edvaldo seria linchado, pois
o levou para a cadeia de Euclides da Cunha, onde havia uma guarnição da
Polícia Militar. O preso estaria protegido até ser processado e julgado.
Porém, a chegada de um caminhão com os moradores dos dois povoados
próximos do local do crime, no meio da noite, logo mostrou que nem assim
o assassino tivera a proteção adequada. Os soldados foram rendidos, a porta
arrombada e Edvaldo, agarrado. Seus conhecidos já não o conheciam. A morte
da professora na tentativa de estupro o tornara para eles um desconhecido,
um estranho, um diferente, um outro ser. Nas concepções dessa cultura cheia
de interdições, perdera a condição humana: transgredira diversos valores da
complexa sacralidade que recobre a vida dos simples.
Esse era o segredo da arma branca que levara consigo na visita à professora.
A arma o colocara na linha limite do humano. Esse era o poder do objeto. Ao
usá-la, atravessara essa linha e se desfigurara como humano, na desfiguração
e morte de sua vítima. As intenções dos moradores eram claras: vieram arma-
dos com facões, facas, revólveres, paus. Foi agarrado, espancado, agredido a
murros, pontapés e pauladas e colocado sobre o caminhão. Se houve gemidos
e gritos de dor e sofrimento do assassino nessa viagem, agora subjugado pela
pequena multidão, não deu para ouvir no zumbido do vento, do ar atravessa-
do pelo caminhão em disparada.
A JUSTIÇA SUPRESSIVA NOS CRIMES DE SANGUE 117
Nota
1
Publicado originalmente em O Estado de S. PauÚJ, Caderno Aliás, 20 jun. 2010 , p. JG.
Os meandros da barbárie
Nota
1
Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Metrópole, 17 dez. 2006, p. )6.
Fúria coletiva
Ainda na mesma noite do dia 27, 300 camelôs ilegais, impedidos pela
polícia de montar suas barracas na chamada feirinha da madrugada, no Brás,
em São Paulo, enfrentaram a polícia, incendiaram um ônibus e dois carros,
insinuando estar armados, incendiaram uma loja e aterrorizaram moradores.
No Brasil, a emergência das multidões enfurecidas vem se dando de ma-
neira particularmente mais intensa desde o fim do regime autoritário, como
uma espécie de explosão libertária de tensões reprimidas durante a longa du-
ração da ditadura. Não quer isso dizer nostalgia pela ordem que o regime de
exceção, na verdade, alardeou e não teve. Mas exprime a não menos autoritária
concepção de liberdade que se difundiu na sequência da ditadura. Aberta ao
arbítrio das interpretações, em nome do princípio de que a liberalidade da lei
é melhor do que o seu contrário, estimula e secunda essas violências. Sobretu-
do porque nossa compreensão popular de democracia e de liberdade ainda se
enraíza em tradições autoritárias que remontam ao beco sem saída da lógica da
escravidão. A liberdade acabou sendo interpretada como direito de vingança.
O fenômeno das multidões ativas está muito associado a momentos de
transição social e de incerteza quanto aos valores que devem nortear os rumos
da sociedade. Está também associado a transições concluídas mas insuficien-
temente, em que os agentes sociais que a conduziram não tiveram comple-
ta e adequada consciência das tensões nela envolvidas e dos desencontrados
protagonismos de um novo e diferente querer social. G ustave Le Bon, pai da
psicologia das multidões e referência fundamental das interpretações que nas
ciências humanas procuram compreender a originalidade desses agrupamen-
tos anômalos, sublinhou o quanto a multidão é sujeito coletivo e temporário,
de orientação diversa da dos indivíduos que a compõem. Sobretudo porque
a multidão é irracional, coloca entre parênteses os valores da civilidade e a
compreensão de que o direito é a contrapartida do dever.
Em face de casos como os mencionados acima e de reiteradas ocorrências
do mesmo tipo, aqui no Brasil, todas as evidências sugerem que a multidão é
o refúgio dos amedrontados. Calados e acomodados na solidão do indivíduo,
seus participantes multiplicam várias vezes, no volume da multidão, a força
de seu descontentamento individual, de suas raivas ocultas e de seus ressenti-
mentos. A desproporção da fúria coletiva em relação aos fatores que a desen-
cadeiam, que se evidencia nos efeitos trágicos da violência descabida, é a mais
importante indicação da transfiguração a que Le Bon se refere.
As evidências colhidas em mais de dois mil casos de linchamento e tenta-
tivas, ocorridos no Brasil, nas últimas décadas, mostram que a covardia que se
esconde por trás do anonimato dos participantes da multidão nem por isso é
imune ao cálculo. Embora a conduta da multidão seja basicamente irracional,
FÚRIA COLITIVA 127
Nota
1
Publicado anteriormente cm O Esta{b) de S. Paulo, Caderno Aliás, 4 dez. 20 11, p. J3.
A chacina das instituições
Nota
1
Publicado originalmente em O Estado de S Paulo, Caderno Aliás, 3 abr. 200 5, p. J3. No fim da noite
de 3 1 mar. 2005, 30 pessoas foram assassinadas a tiros por homens forremcnte armados, que estavam
em dois carros e uma mo to, no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, no município de Queimados e nas
proximidades da Rodovia Presidente Ou tra, no Rio de Janei ro. Cf. "Chaci nas no Rio matam 30 pessoas;
PMs são suspeitos", UOL (Agência Reuters), Iº abr. 2005; "3 1 corpos são encontrados na Grande Rio",
Folha de S. Paulo, C otidiano, 1º abr. 2005.
SEGUNDA PARTE
REVELAÇÕES SOCIOLÓGICAS
DA MORTE
A cultura funerária no Brasil
certeza de que anos depois da morte alguém se lembrará de rezar por eles e
haverá sempre quem há de lembrar das lições que os antigos deixaram. Para
eles, a morte não é um esquecimento, como é para nós que vivemos do lado
de cá das muralhas da razão.
Um segundo ponto importante é o de que, para refletir sobre a morte no
Brasil, temos que levar em conta algumas características da cultura e da so-
ciedade brasileiras, mesmo que à primeira vista não tenham relação evidente
com o tema da morte. D e início, como sugestão de prudência interpretativa,
eu descartaria a já batida concepção das contribuições culturais das "três ra-
ças" e "das três culturas" para a formação da sociedade brasileira e dos nossos
modos de ser.
Nenhum desses "grupos de origem" é real e substantivo. A categoria
"branco" constitui aqui enorme diversidade de culturas. O m esmo se deve
dizer em relação ao "negro" e sua diversidade de tradições culturais e de
línguas. Coisa que também se repete em relação ao "índio". Convém não
esquecer de que a cultura portuguesa e católica da Contrarreforma tinha por
missão destruir as culturas nativas e as culturas dos ínfimos, dos subjugados,
dos cativos. E o fez com grande competência. Mesmo quem se pretende
"negro" e quem se pretende "índio" expõe apen as a máscara cultural de algo
cuja substância em boa parte se perdeu. Não é casual que as "três raças"
sejam, hoje, fundamentalmente desempenho teatral em desfile de Carnaval
colonizado pelos brancos e brancos ricos. Portanto, no essencial, nossa cul-
tura funerária é em boa dose uma cultura católica tradicionalista. É nesse
marco que se pode compreender nossas concepções sobre a morte e nossas
atitudes em relação a ela.
A sociedade dominante em nossa formação, a sociedade portuguesa,
era na nossa origem , e continuou sendo por vários séculos, uma sociedade
estamental. Cada estamento, cada camada social, era densam ente peculiar
em relação às outras, havendo entre elas poucas convergências, como se
fossem sociedades diferentes. Com a mestiçagem aqui no Brasil, essa dife-
renciação se complicou: uma estrutura social estamental se sobrepôs a uma
estrutura social étnica, o que tornou mais complexos ainda os mecanism os
sociais e culturais de afastamento e interdição de relacio namentos entre
diferentes grupos. A m estiçagem foi, no fundo, criação de uma numerosa
categoria de párias, de inclassificáveis, sem lugar social preciso e horizonte
cultural d efinido.
Essas diferentes categorias sociais e diferentes grupos sociais tinham con -
cepções e tradições próprias em relação à morte e em relação aos rituais que
deveriam ser praticados sempre que alguém falecesse. Os próprios brancos e
l<íO LI NCHAMENTOS
Exijo que se não faça anúncios nem convites para o enterro de meus
restos mortais, que desejo sejam conduzidos de casa ao carro e deste
à cova por meus irmãos em Jesus Cristo que hajam obtido o foro de
cidadãos pela lei de 13 de maio. Isto prescrevo como prova de consi-
deração a esta classe de cidadãos em reparação à falta de atenção que
com eles se teve pelo que sofreram durante o estado de escravidão,
e reverente homenagem à Grande Isabel Redentora, benemérita da
Pátria e da Humanidade, que se imortaliwu libertando-os. 4
dentro de casa, no m esmo lugar em que tinham sua rede. Já os bororo pra-
ticam o duplo sepultamento. Aparentemente, nos dois séculos iniciais da
Conquista, brancos e mestiços estavam informados por costumes tribais
no trato de seus mortos. Fernão Dias Paes, o "Caçador de Esm eraldas",
que era da vila de São Paulo, morreu de malária em território da futura
Minas Gerais, durante sua expedição, no século xv11 . Os que o acompa-
nhavam usaram técnicas indígenas parecidas com as dos bororo, relativas
ao duplo sepultamento, para descarná-lo e trazer seus restos mortais, seus
ossos, de volta e sepultá-lo junto ao altar-mor da igreja de São Bento, de
que era benfeitor. Os ianomami comem os seus mortos. Fazem uma pasta
de banana onde colocam as cinzas do morto e a comem. Enterram os mor-
tos dentro de si mesmos. São culturas fun erárias completamente diferentes
entre si. Fica impossível, portanto, falar de uma contribuição "indígena"
para a cultura fun erária brasileira da atualidade. Até porque tais costumes
foram rapidamente recobertos pelas formalidades de que se valeu o sincre-
tismo para impor a fé dominante.
Isso vale também para os africanos. Não há "o africano", mas uma va-
riedade de culturas e grupos étnicos africanos trazidos para o Brasil na trata
de escravos negros. Diferentes grupos animistas e grupos muçulmanos foram
trazidos para as grandes fazendas. Assim como ocorreu em relação aos povos
indígenas inimigos, cuja conflitividade foi compreendida e manipulada pelos
caçadores de escravos, também na África grupos tribais inimigos entre si, ou
povos de reinos diferentes, empenharam-se na captura e venda de seus contrá-
rios aos traficantes brancos. Os negros da África foram os principais auxiliares
da escravização dos próprios negros.
Essa diversidade conflitiva não parece ter criado um tipo étnico comum
nem uma cultura que se pudesse chamar de propriamente "negra", o que
também não impediu os brancos de dialogarem com as culturas africanas
na convivência entre senhores e escravos. No século xv111, um monge do
Mosteiro de São Bento, em São Paulo, pagou a um pai de santo da Fazenda
de São Bernardo para que removesse o quebranto, o banzo, dos escravos,
uma forma de doença e mesmo de morte para a qual os brancos não tinham
remédio. E, por via das dúvidas, no parto de cada escrava, o bebê recebia no
seu enxoval uma peça de baeta vermelha, para ser usada como fralda, um pre-
ventivo contra o mortal mau-olhado.
Num outro plano, e na m esm a linha do significado dessa persistência, a
resistên cia do n egro ao cativeiro foi mais significativa na recusa silen ciosa
da cisão de sua pessoa pela religião católica e, mais tarde, pelos valores
próprios da sociedad e capitalista, o que não quer dizer que todo negro
l<í2 LI NCHAMENTOS
o fez. Bastide, numa p esquisa sobre sonhos com três diferentes grupos
de negros e de graus de negritude, no Brasil, observou que apenas num
grupo m ajoritariamente feminino, de fiéis de seitas africanas de Xangô,
"pertencentes à classe baixa" do Recife, "a estrutura da percepção ou da
significação das imagen s", no teste de Rorschach, "permaneceu afri cana".
Para eles, "o sonho n ão constitui uma realidade à parte", n ão só porque
por meio deles se comunicam com o mundo mítico e as divindades, um
mundo que é também o dos mortos. N ão há aí separação entre o dia e a
noite, entre a luz e a sombra. 5
A diversidade de sujeitos do processo histórico brasileiro e das contribui-
ções que deram para a formação de uma cultura brasileira, que de faro não
é uma cultura harmônica e de convergências, teve influências variadas no
que podemos hoje, com menores relutâncias do que no passado, chamar de
cultura funerária.
O s missionários católicos, ao chegarem ao Brasil, não encontraram uma
sociedade organizada e abrangente. Encontraram diferentes sociedades tribais,
com uma razoável diversidade de costumes. O s portugueses não encontraram
uma sociedade que tivesse a organização social que eles conheciam e com a
qual sabiam lidar. A unidade territorial dessa diversidade social foi invenção
política de Portugal, construída com as sobras sociais e culturais do contato,
com aquilo que não foi destruído, com o que não foi filtrado e descartado,
pelos portugueses. Isso aconteceu não só no Brasil. As cartas de Cristóvão
Colombo aos reis da Espanha, narrando detalhes de seu encontro com as
populações indígenas da América e as "con versações" que com elas teve, são
cômicas narrativas de ingênuo desencontro entre sociedades e culturas.
Para ajustar a realidade humana que encon traram aos propósitos d a
Conquista, que eram propósiros econômicos e religiosos, os portugueses
tiveram que inventar uma sociedade, instituir um sistem a de exploração
econ ômica, introduzir o trabalho em grupos sociais que não conheciam o
trabalho como forma de exploração do ser humano pelo ser humano, dis-
seminar fo rmas físicas, mas também culturais, de dominação e disciplina.
Para isso, com o decisivo ap oio dos missionários, os portugueses adapta-
ram das culturas nativas o que puderam e destruíram repressivam ente o
que não puderam adap tar.
A repressão sistemática contra a antropofagia ritual dos índios da costa
foi apenas um dos episódios da criação de uma cultura da morte substitu-
tiva, constituída a partir da concepção de vida e pecado do carolicismo da
Contrarreforma. O s índios que eram antropófagos comiam o inimigo não
como alimento físico, mas como alimento ritual e simbólico, modo como o
A CULTURA FUNERÁRIA NO BRASIL 1Lí3
Notas
1
Palestra de abertu ra do XVIII Moirará, reu nião anual d a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica,
Camp os do Jordão (Sr), 26 nov. 2004 . Pub licad o originalmente sob o título de "Anotações do meu ca-
d erno de campo sob re a cultura funerária no Brasil", em Marcos Fleu ry de Oliveira e Marcos H . P. Callia
(orgs.), Reflexões sobre a morte no Brasil, São Paulo, Pau lu s, 2005 , p p. 73-9 1 (texto revisto e ampliado).
2
Já tive oportu nidade de participar de duas ceri mônias fu nerárias na Inglaterra e ob servar que ali se esra-
b clcccu um rito razoavelmente solene, no crc1natório, para a entrega do caixão para a crc1nação, seguida
sempre de uma recepção d a família aos acompanhantes em casa ou cm local cm que o morro teve fu nção
social relevante. A rapidez do qu e é p ropriamente o aro de cremar é contrabalançada por uma demora
ritual das duas cerimônias em seq uência e locais distintos, que reveste o funeral do decoro equ ivalente ao
que o sep ultamentc trad icional já teve.
3
Fu i organizador e coordenador d o Primeiro e do Segundo Seminário Interdiscip linar sob re "A Morre
e os Mortos na Sociedade Brasileira", realizados no Departamento d e Ciências Sociais da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidad e de São Paulo, respectivamente cm 22 e 23 nov.
1982 e em 3 e 4 d e nov. 1983 .
4
Testamento d o Almirante Tamandaré. Disponível em: <http://br.ask.com/wiki/Joaq uim_ Marques_ Li
sboa? lang=pt&o=280 1&ad=doubleDownan=ap nap =ask.com#Tcsramcn ro_ d o_ Al mirante_Ta mandar.
C3.A9>. Acesso cm: 17 ou r. 20 14 .
' Cf. Roger Basride, "Sociologia do sonho", em Roger Caillois e G . E. Bom Grunebau m (orgs.), O sonho
e as sociedades humanas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 197 8 , p p. 142-3 .
6
D u rante os anos cm que foi paciente do Hospital d o Câncer, cm São Pau lo, cm suas vindas d o Mato
Grosso e q uando não estava internato para exames ou tratamento, José Vieira Rodrigues foi hósp ed e de
m inha família, em minha casa. Encontramos no rema d a morte, que muito o preocupava, um dos raros
assu ntos comu ns de conversação. Preocupado com o risco de morrer longe de casa e da família, privado
d os ritos que no sertão cercam o moribu ndo, tratou d e me instruir para o caso de que o inesperado
acontecesse. Suas explanações completaram as informações q ue a vida me d era na roça e no subú rb io
num tempo cm q ue a doença e a morre eram cercad as de cuidad os extremos na observância de costumes
que faziam a ponte ritual e simbólica entre a vida e a morre e o dep ois da morte. Na elaboração dos
três capítulos q ue constituem esta segunda parte d o livro, as lições d e José Vieira Rod rigu es me foram
d ecisivas para o ap rop riado conhecimento da cultu ra da morre entre nós, em particular como referência
p ara comp reender sociologicamente os linchamentos, variante trágica do teneb roso transe. Sou a ele
imensamente agradecido pelo que me ensinou a esse respeito.
Tempo e espaço
nos ritos fúnebres da roça
da cidade de São Paulo, em nossos dias, é o culto das almas, que se realiza
todas as segundas-feiras na Igreja de Santa Cruz dos Enforcados, no Largo
da Liberdade, antigo Largo da Forca. Esse culto rememora a injustiça de que
foi vítima Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, envolvido numa rebelião
militar em Santos. Condenado à forca em 1821, foi executado naquele largo.
Embora por três vezes o baraço se rompesse, não atendeu o ouvidor o requeri-
mento do povo, determinando que o laço de um boiadeiro fosse usado para dar
fim à vida do réu. 4 Essa violação permaneceu na memória popular e deu lugar
à construção da capela e ao culto das almas. Todas as segundas-feiras, dia das
almas do Purgatório, centenas de velas são ali acesas para iluminar, justamente,
os que morreram antes do tempo ou os que morreram sem luz, ou os que não se
encontram no lugar definitivo dos mortos, perdidos no tenebroso transe.
Do mesmo modo, há ritos para impedir que as pessoas morram depois do
tempo. No sertão do Rio das Mortes, no Mato Grosso, existem os especialistas
na quebra da oração ou, quando há padre, é ele chamado para, com oração
muito forte, quebrar a oração do moribundo que, apegado a seu santo, se
recusa a morrer. H enry Koster, o viajante que também foi senhor de engenho
em Pernambuco e que conheceu diretamente nossos ritos fúnebres rurais, con-
ta um caso desse tipo. Um sacristão de igreja atendia, com os ritos próprios,
um agonizante inquieto e aflito. Às palavras rituais, juntava esta reprimenda:
"Morra, e deixe de bobagens!" .5
O momento da agonia pode se constituir, pois, num momento de grande
conflito entre o moribundo e os circunstantes - aquele resistindo à morte e
estes empenhados em fazê-lo morrer. Tais conflitos, enrretanto, constituem
uma anomalia. José Nascimento de Almeida Prado, que fez preciosos registros
sobre a morte na região caipira do sul do estado de São Paulo, muito facili-
tados por sua condição de médico de roça, menciona reiterados casos de pa-
cientes idosos que reagiam indignados à tentativa de fazê-los viver mais tempo
ou à insinuação de que ainda viveriam muito tempo.6 É comum enconrrar-se
informações sobre a serena aceitação da morte e o cumprimenro dos rituais
de "bem morrer". Koster menciona uma dessas práticas. Quem ajuda a bem
morrer diz conrinuamenre a palavra "Jesus", repetida, também continuamen -
te, pelo agonizante, enquanto possa fazê-lo. 7 Almeida Prado menciona mesmo
os casos de premonição da morte, às vezes até meses antes do desenlace. 8
Esses são casos em que o morto é cercado de grande respeito, como se ele
tivesse triunfado sobre a própria morte. Na verdade são casos em que o morto
assume uma dupla condição - de um lado a condição de morto, uma condi-
ção anragônica ao vivo, já que de fato os ritos para evitar a contaminação da
morte, para evitar morrer antes ou depois do tempo e para ajudar a bem mor-
15Lí LINCHAMENTOS
rer, são ritos dos vivos e não dos mortos. São os vivos que administram a mor-
te, que tentam submetê-la a seu controle. Mas o que prevê e aceita a própria
morte, de outro lado, se situa numa relação antagônica à morte, se situa na
ordem dos vivos e da vida, porque embora vítima da morte é, também, senhor
dela, senhorio que de fato pertence à sociedade. A premonição da morte reduz
a margem de incerteza e de indecisão do morrer, pois por meio dela o vivo
demarca previamente a certeza de seu próprio fim. Ele também se ajuda a bem
morrer, se compõe com aqueles que, ao tratarem da morte e dos moribundos,
ajudam a sociedade a controlar e domesticar a morte.
A hora da morte é um momento de grande tensão e muito conflito. É nela
que se trava a grande batalha entre D eus e o Diabo, entre o Bem e o Mal,
entre a salvação e a perdição. Assim, o empenho dos circunstantes em ajudar
a bem morrer e a resistência do moribundo constituem apenas um aspecto
secundário da batalha maior e decisiva, não vá a relutância de quem morre
pôr a perder sua alma.
As rezas dos que ajudam a morrer e do próprio moribundo parecem ter
a finalidade de ocupar os sentidos de quem morre durante esse momento
de perigo - os olhos, o ouvido, a boca, lugares por onde pode entrar a sal-
vação ou a danação. A prática, assinalada por Koster, do circunstante dizer
a palavra "Jesus", repetida pelo agonizante,9 enquanto pudesse, até morrer,
tinha por objetivo ocupar a boca e o ouvido de quem morria para que o
demônio não se aproveitasse desse momento de fragilidade para possuí-lo.
Almeida Prado assinala que os agonizantes da roça muitas vezes têm visões
nesse momento - alguns têm a visão do céu, outros têm a visão de Satanás. 10
O próprio moribundo, portanto, pode ver aspectos da guerra que se trava
ao seu redor entre aqueles poderes antagônicos que ali estão em busca de sua
alma. Esse momento é, pois, simbolicam ente denso tanto para os circuns-
tantes quanto para quem morre.
Em grande parte, a urgência para que a morte se consume no tempo cer-
ro, para que não se retarde, decorre da necessidade de selar os sentidos do
moribundo com as coisas de Deus. Durante séculos, a canonização do padre
Anchieta teria ficado pendente devido a um faro desses em que ele se envol-
veu. Frei Vicente do Salvador, o historiador franciscano do século xv11, que
teve contacto direto com pessoas que conviveram com Anchieta, conta como
este teria se envolvido na morte do herege calvinista Jean Cointa, Senhor des
Boulez (ou João de Bolés) . Depois de árduo esforço, o jesuíta teria conseguido
convencer o réu a abjurar a heresia e a confessar-se. Tendo, assim, reduzido-o
à eficácia da graça, teria se angustiado diante da ineficiência do carrasco que
executava mal o seu ofício e tardava em executar o réu. Ensinou-lhe, pois, a
TEMPO E ESPAÇO NOS RITOS FÚNEBRES DA ROÇA 155
manejar o baraço para que o réu morresse logo, antes que se arrependesse da
confissão feita. 11
É também por causa dessa batalha, que se trava na agonia, que na roça
é preceito não permitir que o moribundo fique só. Há sempre alguém para
acompanhá-lo, pelo menos duas pessoas. Os trabalhadores estrangeiros, de
origem camponesa, que vieram para o Brasil nas últimas décadas do século x1x,
que organizaram as primeiras sociedades de mútuo socorro, das quais nasceu
o sindicalismo brasileiro, também costumavam ter em seus estatutos deter-
minações expressas no sentido de que o enfermo, sobretudo o enfermo grave,
tivesse durante a noite a companhia de um outro trabalhador. 12 Essa também
parece ser a razão pela q uai a morte fora da casa de morada era e é vista com
muita apreensão, como se fosse um acontecimento fora de ordem, fora da
ordem natural das coisas.
A história que mencionarei mais adiante, de "seu" José Rodrigues, paciente
do Hospital do Câncer, que recusou a amputação da perna doente aqui, em
São Paulo, por temer estar sem ela no dia da ressurreição dos mortos, lá no
Mato Grosso, nos fala de duas coisas: de um lado, do vínculo da pessoa com
um lugar, aquele em que vive sua família, um lugar de referência no ponto de
desen contro/encontro de vida e morte, o lugar de sua vida e também o lugar
de seu morrer. De outro lado, nos fala da necessidade da integridade do corpo
no momento da morte. E nos fala, sobretudo, de que no momento do morrer
a alma se liberta do corpo ao qual pertencia, para inversamente submetê-lo no
momento da ressurreição. A morte é, portanto, o início de um processo de in-
versão de domínio, mais do que de um processo de separação de corpo e alma.
Tudo o que concorre para essa separação constitui um perigo. Os cuidados
com o morrer referem-se, pois, à necessidade de assegurar a salvação da alma,
exposta a extremo perigo no momento da morte, e de assegurar que o morto
ressuscitará dos mortos. Referem-se, também, à necessidade de assegurar a
integridade do corpo, para que a alma nele se reconheça no Dia do Juízo e se
restabeleça a unidade do ser rompida pela morte. Aparentemente, o pecado e
a perdição se expressam na falta desse reconhecimento, no desencontro entre
corpo e alma. A mutilação pela mão do homem conduz à perdição se não de-
sejada nem acompanhada ritualmente. E também o desenraizamento e a soli-
dão. A casa é, nesse sentido, mais do que habitação: ela é o lugar que assegura a
reprodução do vínculo do homem com o sagrado na unidade de corpo e alma.
Além disso, a morada é o lugar do morrer po rque é também, socialmen-
te, o lugar da família, dos vizinhos, dos amigos, daqueles que podem ajudar
uma pessoa a bem morrer e que podem pôr em prática os ritos funerários
indispensáveis à proteção da casa e da família. A solidão do agonizante o
156 LINCHAMENTOS
pria do velório e do funeral, ele pode contaminar os vivos, atrair a morte sobre
eles. Não são poucas as histórias na roça a respeito de mortos que retornam
para buscar seus parentes mais queridos e é desse modo que se explica a coinci-
dência da morte próxima de pessoas aparentadas, especialmente se de pessoas
que viviam na mesma casa. Daí um conjunto de práticas de purificação dos
lugares e das pessoas envolvidos nos riros fúnebres.
É crença comum que o que toca o morto ao morto pertence. 24 Como já
mencionei antes, numa região ainda de forte presença da cultura caipira, na
Bragantina, em Pinhalzinho, no estado de São Paulo, assisti certa vez a uma
disputa à beira da cova sobre o destino que se devia dar ao rosário que, seguindo
o costume, envolvia as mãos da morta, minha tia. Entendiam alguns que ele de-
via ser enterrado com ela. Já outros entendiam que o terço devia ficar enlaçado
na cruz do túmulo, entre os quais estava o coveiro, invocando sua experiência e
seu conhecimento do assunto. Foi uma discussão tensa, porque todos temiam
cometer um erro irreparável e danoso. A disputa se fazia entre os que achavam
que o terço pertencia à morta e os que achavam que o terço pertencia ao santo.
Verificou-se, finalmente, que no terço faltava o crucifixo, levando então à con-
clusão unânime de que o terço "era da morta" e que devia ser sepultado com
ela. "O terço é delà', foi a expressão que ouvi do coveiro, evitando-se claramente
empregar seu nome de batismo ou designá-la como morta, tratando-a como ter-
ceira pessoa, indício também de indefinição num momento claramente liminar.
O morto tem, portanto, o poder de contaminar aquilo que o toca e o poder
de se tornar dono das coisas que o tocam. Embora tenha ocorrido o desenlace e a
separação entre a alma e o corpo, a alma, que é de fato a representação da morte,
permanece no mesmo espaço, ainda que duplicado - o espaço físico do morto e
o espaço simbólico da morte. Por isso mesmo, toda pessoa que entra no recinto
do velório tem o cuidado de aspergir água benzida sobre o defunto, desenhando
uma cruz, com um galho de alecrim. O alecrim tem tradicionalmente o poder
de, com seu perfume, afastar as almas. Por meio dele, o visitante não "benze
o defunto"; simplesmente se benze a si mesmo, "prende" a alma no seu lugar,
junto ao corpo, para que ela também não contamine as outras pessoas. Estamos
em face, na verdade, de uma dupla e distinta possibilidade de contaminação: a
visível do corpo e a invisível da alma. Tudo é feito para atar o morto à sua morte.
Tirado o corpo de dentro da casa, com os pés para a frente, para que a alma
o acompanhe, para livrar a casa e a família da morte, é preciso varrer imedia-
tamente o cisco. Isso se faz enquanto a comitiva ainda está à vista. Mas o mais
importante é que o cisco deve ser varrido pela porta da frente e nunca pela porta
de trás, de dentro. 25 Essa varrição é oposta à varrição normal da casa, que se faz
da porta da frente para a porta do fundo. Para dentro se varre aquilo que se quer
160 LI NCHAMENTOS
que fique e supõe-se que agindo assim não se varre a sorte, a fortuna. Para fora
se varre aquilo que se quer que se vá, no caso a morte - restos de flores, terra,
pó, tudo que possa ter sido contaminado pelo corpo do morto. A casa caipira e
cabocla tem, portanto, dois desenhos superpostos - o da sua arquitetura real, das
p aredes, portas e janelas; e o da arquitetura simbólica das interdições e das dire-
ções de entradas e saídas. Nas regiões caipiras ainda é possível encontrar velhas
casas de pau a pique cuja porta da frente tem uma cruz pintada - uma porta que
só se abre para o bem, pois a cruz afasta as almas penadas, o coisa-ruim e o mal.
O sentido de direção oposto do morto em relação aos vivos, que se estabelece
na casa a partir do momento da morte, se completa com a abertura de portas e
janelas da sala onde se faz o velório, enquanto o resto da casa permanece fecha-
do, na penumbra. A luz indica a direção para a alma, a direção de saída.
Mesmo durante o féretro, há cuidados a serem tomados com o corpo, para
que ele não contamine quem o carrega. Quem tira o defunto de dentro da casa,
mesmo que substituído no caminho do cemitério por outra pessoa, é também
quem deve entrar com ele no cemitério. Por outro lado, os carregadores devem
revezar-se, segurando uma alça do caixão de cada vez. É para fechar o corpo
do defunto dentro de um quadro imaginário, de modo a definir o que é lado
de dentro e lado de fora, o que é o lado do morto e o lado do vivo. Qualquer
engano na observância dessa ordem pode incluir o vivo no interior do espaço
do morto, o que pode atrair a morte sobre ele. No cemitério, a terra deve ser
jogada primeiro do lado dos pés e depois do lado da cabeça, de modo que,
prendendo primeiro os pés, a alma não se afaste do lugar de sepultamento,
não vá assombrar os outros, isto é, fazer-lhes sombra, tirá-los da luz e da vida.
Na noite do mesmo dia em que ocorre o sepultam ento e no dia seguinte
à morte, começa uma novena na casa em que morreu a pessoa, no recinto em
que se fez o velório e de onde saiu o corpo. Cada noite se reza uma reza forte
em três dos quatro cantos da sala, de modo que fique aberto simbolicam ente
um dos cantos para que saia a tentação, para que a alma saia, se por acaso se
extraviou.26 Essa novena é, na verdade, um rito para completar a descontami-
nação da casa e da família e livrá-la da morte. Se o morto deixa viúva jovem e
sem filhos, esta não retorna à casa dos pais antes que se cumpra esse novenário
de purificação em relação à morte. É significativo que esse ritual de purifica-
ção da casa se estenda à viúva, ao corpo da viúva, tratado, assim, como parte
da casa. Essa é uma boa indicação de que no imaginário camponês a casa é
uma coisa viva, uterina, com o observou Luís da Câmara Cascudo, centrada
por isso no corpo e na pessoa da mulher.
Basicamente, a obediência a certa ordem no lidar com o corpo é uma for-
ma de lidar com a alma, de afastá-la da casa e da família, de fazer com que ela
TEMPO E ESPAÇO NOS RITOS FÚNEBRES DA ROÇA 161
Notas
1
Estas no ras constituem u n1a tentativa de sisten1atizar o bservações de campo, registros esparsos das mi-
nhas cadernetas de pesquisa, referências ocasio nais contidas cm livros de viajantes, cronistas, historiado-
res, soció logos, material, enfim, que não diz respeito especificamente à morte. Desde o meu tempo de
estudante do curso de Ciências Sociais, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da U niver-
sidade de São Paulo, tenho o hábito de visitar demoradamente os cemitérios das localidades que percorro
quando faço pesqu isa. O s monumentos fun erários são ainda o documento iconográfico mais importante
para se conhecer, num primeiro momento, a estrutura e a história d a sociedade local. O s seguintes traba-
lhos constituíram para mim uma referência fundamental: Philippe Aries, H istória da morte no Ociden te,
162 LI NCHAMENTOS
rrad. Priscila Vianna de Siqueira, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977; Philippe Arics, O homem diante
da morte, trad. Luiza Ribeiro, Rio de Janeiro, Francisco Alves, l 98 1/1982, v. 2; Jean Zicglcr, Os vivos e
a morte, trad. Áurea Weisscnbcrg, Rio de Janeiro, Zahar, 1977. Pela proximidade culrural maior com a
realidade camponesa do Brasil, considero imprescindível o livro de Luigi M. Lombardi Sarriani e Mariano
Mcligrana, li Ponte di San Giacomo - L'ideologia dei/a morte nella società contadina dei S11d, Mil ano, Rizzoli
Editore, 1982. Esta é uma versão revista e ampliada de trabalho publicado originalmente em José de
Souza Martins (org.), A morte e os mortos na sociedade brasileira, São Paulo, Hucitcc, 1983, pp. 258-69.
2
" •.• a morre é ou não é um acontecimento que encerra sentido' Sua resposta é a de que, para um homem
civilizado, aquele sentido não existe. E não pode existir, porque a vida individual do civilizado está imersa no
'progresso' e no infinito e, segundo seu sentido imanente, essa vida não deveria ter fim . Com efeito, há sempre
possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progresso: nenhum dos que morrem chega jamais
a atingir o pico, pois que o pico se põe no infinito. Abrão ou os camponeses de outrora morreram 'velhos e
plenos de vidà pois q ue estavam instalados no ciclo orgânico da vida, porque esta lhes havia ofertado, ao fim
de seus dias, rodo o sentido que podia proporcionar-lhes e po rque não subsistia enigma que eles ainda reriam
desejado resolver. Podiam, portanto, considerar-se satisfeitos com a vida. O homem civilizado, ao contrá-
rio, colocado cm meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuamente de pensamentos,
experiências e de problemas, pode sentir-se 'cansado' da vida, mas não 'pleno' dela. Com efeito, ele não pode
jamais apossar-se senão de uma parte ínfima do que a vida do espírito incessantemente produz, ele não pode
captar senão o provisório e nunca o definitivo. Por esse motivo a morte é, a seus olhos, un1 acontecimento
que não tem sentido. E porque a morre não tem sentido, a vida do civilizado também não tem, pois a 'pro-
gressividade' despojada de significação faz da vida um acontecimento igualmente sem significação." Cf. Max
Weber, Ciência e política: dlltl.S voCtJ.ções, rrad L. Hcgcnbcrg e O . S. da Mora, São Paulo, Culrrix, 1970, p. 31 .
3
Cf. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, 1500-1627, Belo Horizonte/São Paulo, lrariaia/Edusp,
1982, p. 168.
4
Cf. Paulo Cursino de Moura, São Pa11lode 011trom, 3. cd., São Paulo, Martins, 1954, pp. 9 1-7; Leonardo
Arroyo, Igrejas de São Pa11lo, 2. cd., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966, p. 295; Antonio
Egídio Martins, São Pa.11/o antigo, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1973, pp. 85-6.
' Cf. H enry Kosrcr, Viagens ao Nordeste do Brasil, 2. cd. , trad. Luís da Câmara Cascudo, Recife, Secretaria
de Educação e Culrura, 1978, p. 309.
6 Cf. José Nascimento de Almeida Prado, "Trabalhos füncbrcs na roçà', Revista do Arquivo Mttnicipa4 v. CXV,
15
Aluísio Azevedo, em O Cortiço, descreve uma cena de condução do Santíssimo Sacramento a um mori-
bundo, em que esse aspecto fica evidente.
16
Ainda hoje é forte a presença das Irmandades de Irmãos das Almas e seus densos ritos cm várias regiões
do Brasil, especialmente no Nordeste e no Centro-Oeste. Cf José de Souza Martins, "A noite dos peni-
tentes", Zttm - Revista de Fotogmfia, n. 3, Instituto Moreira Sallcs, out. 2012, pp. 124-8 .
17
Isso ocorreu no subúrbio de São Paulo, cm 1944, com minha prima, que estava muito doente. Esgotados
os recursos médicos, uma benzedeira, que foi trazida à casa, viu num espelho uma caveira, sinal, segundo
ela, da presença da Morte.
18
Penso que, no caso brasileiro, a figuração da morte como entidade neutra na relação entre o bem e o
mal está relacionada com o desenvolvimento de uma concepção romântica da vida e da morte. Essa
concepção está configurada cm cemitérios antigos, da segunda metade do século XIX, como o Cemitério
da Solcdadc, cm Belém (Pará), o Cemitério de Santo Amaro, cm Recife, o Cemitério da Consolação,
cm São Paulo, e o Cemitério da Santa Casa, cm Bananal, São Paulo. Sobre o Cemitério da Consolação e
seus monumentos funerários , cf José de Souza Martins, História e arte no Cemitério da ConsoÚlçdo , São
Paulo, Secretaria da Cultura/ Prefeitura de São Paulo, 2008.
19
Cf. José Nasci mento de Almeida Prado, op. cir. , p. 18.
2
° Cf. Frei Vicente do Salvador, op. cit., p. 301 .
21
C f. José Nasci mento de Almeida Prado, op. cir. , p. 18.
22
Cf. Alceu Maynard Araújo, FolckJre nacional, cit. , p. 60, v. 111; José Nascimento de Almeida Prado, op.
cir., pp. 20 e 63.
23
C f. Lu ís da Câmara Cascudo, Diciondrio do folckJre brmileiro, Brasília, Instituto Nacional do Livro,
1972, p. 199; Alceu Maynard Araújo, op. cit. , p. 58.
24
C f. Luís da Câmara Cascudo, op. cir. , p. 199.
25 Cf. Alceu Maynard Araújo, Medicina nística, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 196 1, p. 224;
Alceu Maynard Araújo, Folclore nacional, cir., p. 57, v. Ili; José Nascimento de Almeida Prado, op. cir. ,
p. 65; Alceu Maynard Araújo, "Alguns ritos mágicos", Revista do Arquivo Municipal, v. CLXI, São Paulo,
Departamento de Cultura, 1958, p. 87.
26
Cf. José Nasci mento de Almeida Prado, op. cit., pp. 68 e 71.
27
Cf. Duglas Teixeira Monteiro, Os errantes do novo século, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1974, p. 11;
José de Souza Martins, "Dominação e expropriação: o messianismo na resistência política do subalter-
no", Roteiro, ano li, n. 5, Fundação Educacional do Oeste Catarincnsc, Joaçaba, 1981 , pp. 7- 17 .
A dialética do corpo
no imaginário popular
mantiveram uma rede de apoio para assegurar a vida do paciente. O artigo era
um desabafo. Mas para "seu" Zé Rodrigues era incompreensível que alguém
pudesse não compreender a sacralidade do corpo: mais importante do que
a vida terrena era a vida eterna. E mais importante do que a saúde física do
corpo era a incolumidade eterna do corpo.
Meses depois, "seu" Zé Rodrigues foi levado de Santo Antônio para o pe-
queno hospital da Ilha do Bananal porque estava muito mal. Quando se deu
conta de que se avizinhava a hora derradeira, pediu para ser levado de volta
para casa. Várias vezes, em minha casa, pedira-me, se por acaso ficasse evidente
que poderia morrer, que o enviasse de volta ao Mato Grosso, pois queria mor-
rer em casa, no meio da família.
Colocado no pequeno barco que sua comunidade, com grandes sacrifícios,
havia comprado para emergências, o Nossa Senhora da Esperança, deslizou rio
acima com amigos e parentes que o acompanhavam de volta à família e à casa.
Navegou a noite toda e morreu de madrugada, minutos antes do barco atracar
no pequeno porto do povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes.
Para "seu" Zé Rodrigues, o corpo era um corpo carnal e simbólico ao mesmo
tempo, uma dádiva de D eus, um bem a ser zelado, o templo do Espírito Santo.
Nessa concepção, o corpo do homem não pertence ao homem. Na Eternidade
não há lugar para os corpos mutilados, para os corpos desfigurados pela mão
do homem. Com o tempo fui colhendo outras informações sobre esse mundo
complexo, imaterial, que define para o corpo vivo apenas a fração fragmentária
e terrena do tempo da vida, minúsculo momento de uma espera, a do gozo da
eternidade.3 Os suicidas e os assassinados ficarão apartados de Deus, porque
morrem antes do tempo, porque sua vida, obra do Criador, foi interrompida
por mão human a, uma espécie de profanação. Para expressar essa marginaliza-
ção, de muitos modos são também simbolicamente apartados no imaginário
das religiões populares. Os propositalmente mutilados também. Numa pesquisa
que faço sobre linchamentos no Brasil, encontrei um bom número de casos
de mutilação inflingida à vítima pelos linchadores como forma de impor-lhe
condenação eterna e irremediável, verdadeiros ritos sacrificiais cumpridos em
nossas ruas, supostamente apenas lugares de passagem de todos, todos os dias.
Duas práticas não são raras: furar ou arran car os olhos ou, então, queimar o
corpo ainda vivo da vítima. Ou o terror da escuridão eterna ou a consumação
eterna, a impossibilidade da reconstituição do corpo no dia do Juízo Final, o
dia da sentença definitiva. O morto ausente não receberá sua sentença, vagará
eternamente na escuridão da morte. O mundo simbólico em que o corpo realiza
sua eternidade e sua vitalidade é o mundo da luz, o que está vedado a quem não
tem os olhos e não necessariamente a quem não tem a visão.
A DIALÉTICA DO CORPO NO IMAG INÁRIO POPULAR 169
Notas
1
Versão revista de texto publicado na revista Sexta Feira - Antropologia, Artes, Humanidades, n. 4, São
Paulo, Hcdra, primavera 1999, pp. 46-54.
2
Cf Drauzio Varela, "A perna do sr. José Vieira Rodrigues", O Estado de S. Paulo, 3 1 mar. 1985, p. 53.
3
Além das significações ao corpo atribuídas na morre, há outras a ele associadas. Cf. Margo Glanrz, "Las
políticas dei cuerpo: el divino e el demoníaco", Historia y Grafia, n. 1, ano 1, México, Departamento de
H istoria de la Universidad l beroamericana, 1993, pp. 167-72.
4
Cf Luís da Câmara Cascudo, Diciondrio do folclore brasileiro, 3. ed. , Brasília, Instituto Nacional do
Livro, t. l , 1972, p. 29 5.
TERCEIRA PARTE
QUESTÃO DE MÉTODO
A notícia de jornal na pesquisa
sociológica sobre linchamentos
1Crítica das fontes dos dados)
Esse trabalho foi feito pela bolsista de iniciação científica Cláudia de Arruda
Bueno, então aluna do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Le-
tras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ela recebeu uma bolsa
para desenvolver um programa de treinamento em reciclagem de notícias de jor-
nal para uso na pesquisa sociológica, dada pela Pró-Reitoria de Pesquisa da usr.
Uma primeira bolsa foi concedida para o ano de 1996- 1997 e uma segunda para
1997-1998. A bolsista recolheu 580 notícias sobre 500 casos de linchamentos e
tentativas no período indicado, complementando as informações para a década
de 1970, quando o levantamento do próprio pesquisador foi aleatório.
Em consequência, o banco de dados foi substancialmente aumentado. No dia
3 1 de dezembro de 1997, ele era constituído de 1.593 casos, abrangendo conti-
nuadamente pouco mais de meio século dessas ocorrências no Brasil, de que pre-
sumivelmente participaram 543 mil pessoas. O quadro 5 mostra como o recurso
da internet e, sobretudo, do Lux Jornal, elevou substancialmente o número de
informações e de ocorrências registradas. Além disso, essas duas fontes elevaram o
número de notícias sobre cada caso. Entre 1991 e 1993, em que o banco de da-
dos foi alimentado quase que exclusivam ente por informações colhidas por mim,
a média foi de 1,22 recortes por caso. Entre 1994 e 1997, período em que usei
como fontes o Lux Jornal e a internet, a média de recorres por caso foi de 1,83. Ou
seja, além de triplicar o número de casos registrados a cada ano, esses novos meios
elevaram em 50% a quantidade de informações disponíveis para cada ocorrência.
Os quatro procedimentos adotados frequentemente se superpõem. Mesmo
assim, em 1997, 32% das notícias vieram exclusivamente através do Lux Jornal,
4,6% exclusivamente por meio da internet e 1,8% exclusivamente através da
minha coleta. Lux Jornal se superpôs a outras fontes em 48,1 o/o das notícias;
a internet se superpôs em 10,6% delas; e os meus recortes se superpuseram a
2,9% das notícias de outras fontes (vide quadro 8).
O quadro 9 nos mostra as proporções em que a superposição de notícias,
coletadas por meios entre si distintos, permitiu confrontar e avaliar a eficácia
desses meios na localização de informações sobre ocorrência de linchamentos.
Mais da metade dos casos noticiados e localizados por meio da internet não
teve notícias fornecidas pelo Lux Jornal. Em pequena parte porque na inter-
net acesso uma agência de notícias. Muitas vezes, a notícia é distribuída pela
agência para todo o Brasil, mas não é publicada pelos jornais. Porém, apenas
15,4% dos casos de linchamentos e tentativas cujas informações foram incor-
poradas ao banco de dados não foram recolhidos pelo Lux Jornal.
No conjunto, em 1997, foram colhidas informações em 34 diferentes pe-
riódicos (quadro 3). Com exceção do Diário do Grande ABC, todos os jornais
monitorados no período pelo Lux Jornal são jornais das capitais dos estados
A NOTÍCIA DE JORNA L NA PESQU ISA SOCIOLÓGICA SOBRE LINCHAMENTOS 177
35
30 +- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
/\, ,..
// '°',, ,,,',' \\
,,/
,,,,,,'
o + - - - - - - - - - - - - -_,.___- - - - - - - - - - - - ~
Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Domingo
O interesse pelo dia tinha e tem a ver com o caráter provavelmente ritual
de muitos linchamentos. Mas essas variações extremas sugerem que o dado é
instável e tem pouco valor na análise pretendida. Mesmo assim, a linha cheia e
negra da média desenha uma ondulação que é tendencialmente seguida pelas
linhas pontilhadas dos diferentes anos. Portanto, ao mesmo tempo que a de-
sigual distribuição das ocorrências sugere uma dificuldade, a tendência para a
A NOTÍCIA DE JORNA L NA PESQUISA SOCIOLÓGICA SOB RE LINCHAMENTOS 183
*
* *
Nas notícias publicadas em outros jornais, com base nessa matriz, houve
variáveis supressões da parte final. Todos os outros jornais eliminaram a parte
com a informação de que no terreiro de Caboto, dedicado a Oxóssi, a morte
do pai de santo interrompeu o ritual do "sacudimento" de que participam os
adeptos do candomblé no início de cada ano. Eliminaram, portanto, o alto
significado cerimonial da morte sacerdotal no candomblé e consequentemen-
te suprimiram o significado de uma hierarquia de valores sociais da mais alta
importância sociológica para definir o seu lugar social e para situar a grave
anomalia do modo como sua morte se deu. Limitaram-se, portanto, a utili-
zar o estereótipo de pai de santo no sentido depreciativo e, até certo tempo,
policial que desqualifica a vítima da violência e a insere num universo de
marginalidade suspeita. Aliás, na "Sequência pai de santo", mesmo com esse
complemento, é esse o estereótipo que prevalece. Em oposição à "Sequência
pedreiro", em que a vítima é definida por sua profissão e, portanto, pelos va-
lores positivos do trabalho na consciência dominante e branca. Nela tem voz
sua filha que, significativamente, destaca as qualidades éticas do pai:
"Ele não era marginal e nem viciado. Não bebia, não fumava e era
uma pessoa de bem. Pelo que tive conhecimento até o presente mo-
mento, meu pai foi agredido inicialmente com xingamentos. Quan-
do revidou, o vizinho tentou atingi-lo com uma foice. Ele se defen-
deu e com essa mesma arma lesionou as duas pessoas. Foi dominado
e espancado", contou em tom de indignação.
~ da
1940
Norte
-
Nordeste
-
Sudeste
12
SuL
-
Centro-
Oeste
-
Todas
12
1950 2 5 96 5 3 11 1
"s;;_ da
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
Todas
(N = 100)
1940 - - 100,0 - - 12
1950 1,8 4,5 86,5 4,5 2,7 111
1960 1,0 6,6 89,4 2,0 1,0 196
1970 4,5 11 ,9 75,1 7,0 1,5 201
Total 253
202 LINCHAMENTOS
Região Notícias %
Norre 23 9, 1
Nordeste 60 23,7
Sudeste 150 59,3
Sul 5 2,0
Centro-Oeste 15 5,9
Total 253 100
1990 50 87 1,74 1 2 32 52
1991 55 72 1,31 2 - 70 -
1992 47 51 1,09 1 - 50 -
1993 42 54 1,29 2 1 51 -
1994 41 76 1,85 6 40 30 -
1995 154 267 1,73 218 24 25 -
1996 224 427 1,91 389 22 16 -
1997 160 288 1,80 220 51 17 -
(*) Coleção de recorres de jornal relativos a linchamentos ocorridos no estado da Bahia em 1990, organi-
zada pela sucursal da revista Veja.
ANEXOS 203
~
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro- Total
Oeste
Norte 16 - 5 - 2 23
Nordeste 4 57 34 2 7 104
Sul 1 - 3 2 - 6
Centro-Oeste 1 1 7 - 7 16
~
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro- Total
Oeste
Fonte %
(N = 280)
Só internet 4,6
Só pesquisador 1,8
Fonte N %
Só internet 16 10,3
Só pesquisador 7 4,5
Notícias procedentes de N %
Internet 8 11 ,4 8 14,8 - -
Pesquisador 5 7,1 2 3,7 - -
Lux Jornal + internet 6 8,6 11 20,4 1 3, 1
N % N %
Só Lux Jornal 4 20 16 64
Só internet 4 20 3 12
Só pesquisador - - 1 4
Internet e p esquisador - - - -
N % N %
Lux Jornal 16 80 21 84
O utras fontes 4 20 4 16
Notas
1
Campo é um irem d o formulário a ser preenchido. Às vezes são necessários vários campos para definir
uma variável. É o caso da dara do linchamento. A data é uma variável, mas d ia, mês e ano são campos.
Campo é a designação de um item no programa computacional que está sendo utilizado, o DBase IV.
2
Cf José de Souza Martins, Manual de códigos e critérios da pesquisa sobre linchamentos no Brasil cit.
O Autor