Educação Matemática e Diversidades

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Educação Matemática e Diversidade(s)

Diretores da Série:

Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves


(Unesp/FEIS)

Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto


(Unesp/IBILCE)

Comitê Editorial Científico:

Prof. Dr. Adriano Vargas Freitas Prof. Dr. João Ricardo Viola dos Santos
Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

Prof. Dr. Alejandro Pimienta Betancur Prof. Dr. José Eustáquio Romão
Universidad de Antioquia (Colômbia) Universidade Nove de Julho e Instituto Paulo Freire (Uninove e IPF)

Prof. Dr. Alexandre Pacheco Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
Universidade Federal de Rondônia(UNIR) Universidade Federal do Pará (UFPA)

Prof. Dr. José Sávio Bicho de Oliveira


Prof.ª Dr.ª Ana Clédina Rodrigues Gomes
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Prof. Dr. Klinger Teodoro Ciriaco
Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Braz Dias Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Central Michigan University (CMU/EUA)
Prof.ª Dr.ª Lucélia Tavares Guimarães
Prof.ª Dr.ª Ana Maria de Andrade Caldeira Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba
Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof.ª Dr.ª Márcia Regina da Silva
Prof. Dr. Armando Traldi Júnior Universidade de São Paulo (USP)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
Prof.ª Dr.ª Maria Altina Silva Ramos
Prof. Dr. Daniel Fernando Johnson Mardones Universidade do Minho, Portugal
Universidad de Chile (UChile)
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Prof.ª Dr.ª Deise Aparecida Peralta
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof.ª Dr.ª Olga Maria Pombo Martins
Universidade de Lisboa (Portugal)
Prof. Dr. Eder Pires de Camargo
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Paulo Gabriel Franco dos Santos
Universidade de Brasília (UnB)
Prof. Dr. Elenilton Vieira Godoy
Universidade Federal do Paraná (UFPR) Prof. Dr. Ricardo Cantoral
Centro de Investigação e Estudos Avanços do Instituto Politécnico Naci-
Prof. Dr. Elison Paim onal (Cinvestav, México)
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Paziani
Prof. Dr. Fernando Seffner Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Prof. Dr. Vlademir Marim
Prof. Dr. George Gadanidis Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Western University, Canadá
Prof. Dr. Wagner Barbosa de Lima Palanch
Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL)
Prof. Dr. Gilson Bispo de Jesus
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
Educação Matemática e Diversidade(s)

Organizador:
Harryson Júnio Lessa Gonçalves
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

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estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Série Processos Formativos - 12

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Harryson Júnio Lessa Gonçalves (Org.)

Educação Matemática e Diversidade(s) [recurso eletrônico] / Harryson Júnio Lessa Gonçalves (Org.) -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2020.

297 p.

ISBN - 978-65-87340-30-2
DOI - 10.22350/9786587340302

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Educação; 2. Matemática; 3. Diversidade; 4. Sociedade; 5. Escola; I. Título.

CDD: 510
Índices para catálogo sistemático:
1. Matemáticas 510
Sumário

Prefácio......................................................................................................................11
Diversidade em Educação Matemática: da Complexidade à Estética
Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva

1 ................................................................................................................................ 15
História oral: diversidade, pluralidade e narratividade em educação matemática
Antonio Vicente Marafioti Garnica
Maria Laura Magalhães Gomes

2 ................................................................................................................................ 41
Decolonialidade, africanidade e matemática
Vanisio Luiz da Silva
Valdirene Rosa de Souza

3 ............................................................................................................................... 62
Aspectos culturais, sociais e etnomatemáticos no empoderamento de uma
comunidade quilombola
Romaro Antonio Silva
José Roberto Linhares de Mattos
Pedro Manuel Baptista Palhares
Fabrício de Souza dos Santos

4................................................................................................................................ 79
Rastros decoloniais em educação matemática: saberes tradicionais e saberes
escolares na prática docente indígena
José Sávio Bicho
José Roberto Linhares de Mattos
Sandra Maria Nascimento de Mattos

5 ............................................................................................................................... 98
A etnomatemática do sistema de numeração no cotidiano do povo indígena Parkatêjê
Iran Medrada da Silva
Ana Clédina Rodrigues Gomes
José Sávio Bicho
6...............................................................................................................................116
Terra de passagem: escola rural como espaço formativo de professores que ensinam
matemática
Maria Ednéia Martins-Salandim
Claudinéa Soto da Silva

7 .............................................................................................................................. 134
Nobreza e gueto fora das exatas: percepções de raça, gênero e orientação sexual
Fernanda Dartora Musha
Yasmin Cartaxo Lima
Elenilton Vieira Godoy

8 ..............................................................................................................................161
Pisando sobre brasas: contribuições de gênero e sexualidade para a educação
matemática
Harryson Júnio Lessa Gonçalves
Igor Micheletto Martins
Kedma Elisandra Zanetti

9.............................................................................................................................. 183
Género y raza y sexo y educación matemática: políticas de visibilidad de cuerpos
disidentes
Jeimy Marcela Cortés Suárez
Paola Amaris-Ruidiaz
Roger Miarka

10 ............................................................................................................................ 195
A (in)equidade de gênero em educação matemática: pesquisando as pesquisas
Vanessa Franco Neto
Paola Valero
11 ............................................................................................................................. 214
Governo dos corpos: aprendendo a ser menina e a ser menino em livros didáticos de
matemática
Marcio Antonio da Silva
Vanessa Franco Neto
Deise Maria Xavier de Barros Souza

12 ........................................................................................................................... 234
Diretrizes teóricas e metodológicas para o desenvolvimento de materiais didáticos
de matemática no contexto da economia solidária
Renata Cristina Geromel Meneghetti
Edinei de Oliveira Filho

13 ............................................................................................................................ 253
Perspectiva inclusiva a partir do olhar de uma professora de escola regular na qual
convivem as diferenças
Sofia Seixas Takinaga
Ana Lúcia Manrique

14 ............................................................................................................................ 272
Os desdobramentos da diversidade entre estudantes com cegueira e com baixa visão
para o ensino da matemática
Maria Inêz Vasconcelos da Silva
Ana Lúcia Braz Dias
Prefácio

Diversidade em Educação Matemática:


da Complexidade à Estética

Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva

A narrativa vinda do colonizador


Tingiu de branco nossa história
E sem escrúpulo omitiu e apagou
O outro lado da moeda
Mas cada dia mais
Janelas vão se abrir
E a diversidade vai brilhar ao Sol

A Inevitável Mudança, Dead Fish

O livro Educação Matemática e Diversidade(s) aborda importantes


questões sobre diversidade na Educação Matemática. Ao discutir temáticas
como relações étnico-raciais e etnomatemáticas, africanidades e decoloni-
alidades, gêneros, sexualidades e currículos de matemáticas, educação
matemática inclusiva, educação matemática em escolas rurais e história
oral como metodologia de pesquisa, o livro explicita a diversidade da Edu-
cação Matemática.
Ao menos dois aspectos são fundamentais nesse cenário. O primeiro
é que, se buscarmos o significado de diversidade em dicionários, verifica-
remos que o termo remete à qualidade do que é diferente; à multiplicidade.
É toda alteridade, diferença ou dessemelhança. É a negação pura e simples
da identidade. No entanto, como argumentado por Erwin Tegtmeier1, de

1
Ver https://apcz.umk.pl/czasopisma/index.php/LLP/article/view/LLP.1995.010/2134
12 | Educação Matemática e Diversidade(s)

um ponto de vista lógico-filosófico, é equivocado definir diversidade como


diferença qualitativa. Em alguns contextos, nesse sentido, os conceitos de
diversidade e diferença engendram-se. A filosofia da diferença é uma pers-
pectiva significativa para as diversidades.
O termo latim diversitas é utilizado para se referir à variedade de
opções, ideias, seres, objetos ou coisas que estejam, ou que deveriam estar,
integradas em um mesmo ambiente, cenário ou contexto. Podemos então
nos referir à diversidade cultural, étnica, sexual, de gênero, política, etc.
Os verbetes diversidade e diversitas nos levam também aos seguintes ter-
mos em grego: Polymorfía (πολυμορφία) e Poikilía (ποικιλία). Portanto,
além da noção de variedade, a ideia de polimorfismo nos oferece o enten-
dimento daquilo que se apresenta sob vários aspectos, formas e modos,
sendo uma concepção tratada em áreas diversas como a biologia, a mine-
ralogia e a informática. Celebremos a dimensão polimórfica das
diversidades!
O segundo aspecto fundamental se refere à emergência de duas di-
mensões acerca da diversidade: a complexidade e a estética. Em Diversity
and Complexity, Scott Page desenvolve uma abordagem interdisciplinar,
discutindo situações e modelos em biologia e em sistemas sociais como a
economia e a política. Page argumenta que a diversidade aprimora a ro-
bustez de sistemas complexos, ou seja, sistemas sem diversidade perdem
funcionalidade e a medição do nível de (bio)diversidade é relevante para
análise da complexidade de sistemas. Page também pontua que devemos
sempre preferir mais diversidade do que menos. No entanto, o excesso de
diversidade pode produzir catástrofe ou ineficiência.
De um ponto de vista estético, de acordo com Verena Delle Donne,
em How can we explain beauty?, um conceito recorrente para explicar a
beleza é o da unidade na diversidade. Essa concepção perpassa por filóso-
fos como Aristóteles, Leibniz e Kant. De acordo com a autora, “o conceito
de unidade na diversidade implica que, no decorrer da visão de um sujeito
caótico e desordenado, as estruturas são reconhecíveis. A descoberta de
uma ordem é vista como a causa da beleza. [E]ssas abordagens têm em
Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva | 13

comum a interação de ordem e complexidade como a causa da origem da


beleza.” Portanto, a atividade humana com foco na diversidade pode fo-
mentar o engajamento em experiências estéticas, no sentido proposto por
John Dewey em Arte como Experiência e Augusto Boal em A Estética do
Oprimido.
A título de curiosidade, notemos que, ao acessarmos a plataforma Go-
ogle Imagens e buscarmos a expressão “diversidade”, obtemos o seguinte
resultado (em março de 2020):

Nessas imagens identificamos significados, representações e metáfo-


ras relacionadas à diversidade racial, diversidade cultural, diversidade de
gênero, sexualidade, inclusão, coletividade, etc. Destacamos a diversidade
de cores, contextos e formas que compõem essas imagens. Também, as
imagens revelam a complexidade em se identificar unidade na diversidade.
É um desafio estético indicar uma obra de arte que engendre metaforica-
mente todas as dimensões das diversidades. Em contraste, realizamos
também uma busca no Google Imagens utilizando a expressão “diversi-
dade educação matemática”.
14 | Educação Matemática e Diversidade(s)

O resultado obtido foi consideravelmente diferente do anterior. É me-


nos colorido; possui menor número de tipos de diversidades
representadas. Daí a significância do livro Educação Matemática e Diver-
sidade(s), pois fomenta a robustez estética e conceitual à esse sistema de
imagens. Celebremos a diversidade em Educação Matemática!

Outono de 2020
1

História oral:
diversidade, pluralidade e narratividade
em educação matemática

Antonio Vicente Marafioti Garnica 1


Maria Laura Magalhães Gomes 2

“ ´Tell it like it was´, runs a common American phrase, echoing, no doubt


unconsciously, Leopold von Rankes´s famous injunction to write history ´wie
es eigentlich gewesen´ - how it really was. But this is neither as simple nor
easy as it sounds. What happened, what we recall, what we recover, what we
relate, are often sadly different, and the answers to our questions may be both
difficult to seek and painful to find.” (Bernard Lewis, 1975)

A História Oral, neste texto, é tratada como uma metodologia de pes-


quisa, e subjaz às suas argumentações o apelo para que ela seja cada vez
mais mobilizada posto que cabe às instituições de ensino e pesquisa não
apenas defender e respeitar a diversidade e a pluralidade – pontos focais
da História Oral – mas promovê-las. É importante, portanto, compreen-
der, antes, que concebemos metodologia não como um mero conjunto de

1
Livre-docente pela Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) –
Câmpus de Bauru e doutor em Educação Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da
UNESP – Câmpus de Rio Claro. Pós-doutorado na Indiana University Purdue University at Indianapolis, Estados
Unidos. Professor Associado do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus de
Bauru; credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência (UNESP-Bauru) e no Programa de
Pós-Graduação em Educação Matemática (UNESP-Rio Claro). É coordenador do Grupo de Pesquisa História Oral e
Educação Matemática (GHOEM). Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora titular aposentada do De-
partamento de Matemática e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected].
16 | Educação Matemática e Diversidade(s)

procedimentos, mas como um conjunto de procedimentos fundamenta-


dos.
A fundamentação que deve necessariamente subjazer a qualquer me-
todologia impede que, tomada como uma mera sequência de ações, ela
possa ser simplesmente replicada ou clonada para diferentes pesquisas. A
ausência de reflexão teórica sobre as metodologias – o que, em especial,
ocorre às metodologias tomadas como “clássicas”, como é o caso da pes-
quisa historiográfica – torna mecânica e, consequentemente, empobrece a
ação de pesquisar. Não se trata, obviamente, de desprezar um conjunto de
procedimentos que, de alguma forma, caracteriza as abordagens metodo-
lógicas. Trata-se, sim, de assumir uma postura qualitativa segundo a qual
são os objetos da pesquisa, em primeira instância, que indicam quais e
como os procedimentos serão mobilizados, e para atender a quais finali-
dades. Trata-se mesmo de assumir a necessidade contínua de uma
problematização sobre a opção metodológica com a qual conduzimos nos-
sos estudos e, assim, nunca uma metodologia deve ser tomada como dada,
como pronta-à-mão, posto que os objetos a serem investigados sempre
exigem adequações e flexibilizações que, por sua vez, devem ser também
problematizados e fundamentados. Por esse motivo, temos afirmado que
a História Oral é (e deve ser) uma metodologia em-trajetória: cada traba-
lho realizado segundo essa abordagem deve ter seus momentos
questionados de modo a entender seus sucessos e limitações de modo a
promover uma reflexão para que outras pesquisas possam apropriar-se do
método sabendo da necessidade de revê-lo e fundamentá-lo constante e
continuamente.
De modo bastante objetivo, podemos afirmar que a História Oral é
uma metodologia de pesquisa que tem a intenção de registrar perspectivas
subjetivas narradas por depoentes que o pesquisador julga serem funda-
mentais para compreender determinado tema. Essas narrativas são
criadas oralmente e registradas em momentos de entrevista. Assim, per-
cebe-se já por que o nascimento da História Oral contemporânea está
vinculado à invenção dos gravadores portáteis, embora saibamos de
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 17

pesquisas desenvolvidas a partir de registros orais muito antigos. Chega-


se a dizer, por exemplo, que os chamados historiadores originários, como
Heródoto e Tucídides, escreveram suas histórias a partir de perspectivas
subjetivas, captadas a partir de conversas com quem viveu ou esteve pró-
ximo de quem viveu as situações que se desejava registrar: nesse modo de
proceder está radicado um dos significados da palavra História, “o teste-
munho de quem viu”. Historiadores mais contemporâneos, como Jules
Michelet (1798-1874), também se valeram enormemente das fontes orais
em seus trabalhos, para não falarmos do uso da oralidade em outros cam-
pos do conhecimento, como a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia, por
exemplo, nos estudos da Escola de Chicago. Arbitra-se o surgimento do
que hoje nós chamamos de moderna História Oral – um conjunto de pro-
cedimentos cuidadosamente sistematizados e justificados, mobilizado para
pesquisas no campo das Ciências Sociais – nos anos de 1940, nos Estados
Unidos, a partir das iniciativas do historiador Allan Nevins (1890-1971)
que, aliás, recusa essa paternidade, afirmando que a História Oral nasceu
não dele, mas das necessidades, das circunstâncias e das inovações tecno-
lógicas próprias de um momento histórico específico.
Atualmente, a História Oral alcança áreas tão diversas quanto a His-
tória, a Sociologia, a Literatura, o Jornalismo e a Política, por exemplo. São
emblemáticos, nesse sentido – e fundamentais para os trabalhos que te-
mos realizado usando a História Oral em Educação Matemática – textos
como os de Philippe Joutard, Paul Thompson, Alessandro Portelli e
Svetlana Aleksiévitch.
Segundo Joutard, a inspiração original da História Oral consistia em
ouvir a voz dos excluídos, exibir as realidades que a escrita não conseguia
transmitir, e testemunhar situações de extremo abandono. Hoje, entre-
tanto, a História Oral volta-se mais às “vozes” das camadas médias da
sociedade, servindo tanto para a elaboração de obras artísticas – do que é
exemplo a literatura de Aleksiévitch – quanto para a Historiografia, a So-
ciologia e a defesa de posições políticas antifascistas, cada vez mais usuais
no mundo contemporâneo – os trabalhos do historiador Alessandro
18 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Portelli acerca do movimento antifascista italiano são, do nosso ponto de


vista, de relevância política e acadêmica singulares.
Como, então, se implementa História Oral, como se pratica História
Oral e como a História Oral se vincula à Educação Matemática e, particu-
larmente, à História da Educação Matemática, campos que
particularmente nos interessam neste ensaio?
A História Oral é um – dentre os muitos – modos de produzir e re-
gistrar narrativas. No caso, essas narrativas são criadas em momentos de
entrevista com um ou mais sujeitos. Atualmente, são inúmeras as aborda-
gens metodológicas disparadas a partir de fontes orais, e tem se
intensificado o número de pesquisas vinculadas às narrativas. O que dis-
tingue essas iniciativas da História Oral é que, no caso da História Oral,
tem-se como pressuposto que as narrativas produzidas são fontes histori-
ográficas (ou fontes historiográficas bastante singulares, que ressaltam,
pelo próprio modo de criação dessas fontes, a subjetividade dos que pro-
duzem essas fontes-narrativas). Produzir fontes-narrativas que são fontes
historiográficas: esse o diferencial das pesquisas que usam a História Oral
em relação àquelas que usam entrevistas, ou têm a oralidade como ponto
de partida ou, ainda, àquelas que criam e operam com narrativas.
Essa afirmação já traz ao menos dois pontos a serem problematiza-
dos. O primeiro deles diz respeito à vinculação orgânica entre História Oral
e Narrativas. Um segundo ponto diz respeito à vinculação entre História
Oral e Historiografia.

História Oral e Narrativas

Mais importante do que definir o que uma narrativa é, é saber o que


uma narrativa pode.
Alguns pensam a narrativa como uma forma da linguagem da qual
participam um ou mais personagens, vivendo alguma trama, em um dado
cenário costurado por uma temporalidade. Mesmo os resíduos a partir dos
quais se criam esses personagens, essa trama, esse cenário e essa
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 19

temporalidade podem, por extensão, ser tidos como narrativas (neste caso,
tanto as obras de arte, quanto os documentos escritos, as fotografias esco-
lares antigas e os selfies contemporâneos poderiam servir de exemplo).
Personagens podem ser fictícios ou reais, gente, animal ou coisa, manifes-
tação corporificada, manifestada ou nublada (ao modo dos fantasmas nos
filmes ou dos sentimentos que conduzem as paixões humanas, desumanas
e sobre-humanas); cenários podem ser oníricos ou concretos; a tempora-
lidade pode ser a da história (cronológica, contínua, direcionada) ou a da
memória (volátil, incontrolável, lacunar, plena de inícios e finais, cíclica).
Não estão equivocados os que dizem assim, mas, focados apenas no
que a narrativa é, talvez se esqueçam do que a narrativa pode: uma nar-
rativa pode criar mundos, reais ou fantásticos, verdadeiros ou falsos,
passados ou presentes, com ou sem o sentido que se espera ou se pressu-
põe. Narrativas implicam criação, permitem mesmo que os narradores
criem a si-próprios em suas narrativas.
Narrativas subvertem – e exemplos claros disso estão nos fascismos,
sejam antigos ou recentes, que se apoiam fortemente na criação de narra-
tivas com a intenção de substituir – à revelia de fontes, registros, relatos,
evidências – uma narrativa “antiga” (tida como falsa) por uma “nova” (tida
como correta e redentora) ao gosto das ideologias de plantão. Como disse
Pablo Neruda, em tempos escuros se escreve com tinta invisível...
Alessandro Portelli3 não cansa de nos dar exemplos de como, na Itália
contemporânea, tenta-se insistentemente reduzir a escombros a

3
Os trabalhos de Alessandro Portelli sobre o Massacre das Fossas Ardeatinas, realizados a partir de entrevistas com
antigos combatentes da resistência italiana, os partigianos, são muito significativos. Esse Massacre diz respeito ao
fuzilamento de 335 civis, ocorrido em 24 de março de 1944, em represália ao atentado que, no dia anterior, resultou
na morte de 33 oficiais nazistas (dez civis para cada oficial foi o slogan nazista). Quatro dias depois do fuzilamento
sumário, sem julgamento, as fossas, como ficaram conhecidas as antigas cavas da cidade de Roma, foram derrubadas
para que os escombros escondessem os corpos sem que fosse necessário enterrá-los. As narrativas atuais do Estado
Italiano ora negam esse massacre, ora relativizam sua violência. Há inúmeros exemplos de mesma natureza, como
o do genocídio dos armênios, ainda hoje não reconhecido pelo governo turco, ou a defesa das “verdades alternativas”
do governo Trump. No Brasil, têm-se tentado reverter e desqualificar a todo custo as determinações e os trabalhos
da Comissão da Verdade, criada para esclarecer, por exemplo, desaparecimentos e assassinatos ocorridos na época
da Ditadura Militar (1964-1985). A criação de narrativas ideologicamente vetorizadas e sem fundamento histórico –
bem ao contrário: são novas narrativas criadas à revelia de evidências e a partir da negação da História – é, portanto,
característica mais do que comprovada dos regimes fascistas.
20 | Educação Matemática e Diversidade(s)

resistência ao fascismo, e nos são muito familiares4 as tentativas de impor


os estados totalitários como fenômeno de esquerda, ou a ditadura brasi-
leira e o holocausto como ficções, e reduzir os contrafascistas italianos,
assim como os revolucionários brasileiros da época da Ditadura Militar, a
um grupo insano de baderneiros impermeáveis à lei. São inúmeros os fas-
cismos, como bem aponta, por exemplo, Umberto Eco, mas todos exibem,
mais cedo ou mais tarde, essa característica fundamental: sem preocupar-
se com evidências históricas, tentam constante e continuamente impor,
pela violência – tanto a violência simbólica quanto a violência física –, uma
narrativa favorável ao seu ideário. Narrativas, portanto, são chaves para
conhecermos as coisas e nós mesmos, e se passamos de uma narrativa a
outra é porque, sem narrativas, não ficaríamos em pé, como diz Lejeune.
Nós somos seres-narrativas vivendo em uma época em que está em guerra
o direito à memória.
Narrativas institucionais circulam num campo regulado por regras
específicas (instituições, aliás, nada mais são que um conjunto comparti-
lhado de normas) e, elaboradas por narradores específicos, permitem
compreender como o narrador controla a narração de modo a criar-se se-
gundo o viés com que ele, respeitando as normas que o cercam, quer se
dar a conhecer, quer ser lido e, em decorrência, criado pelo leitor. Narra-
tivas “científicas” são, espera-se, plausíveis, sustentadas por uma
gramática lógica, explícita e acordada por uma comunidade. Narrativas
institucionais permitem compreender aspectos da instituição que as pro-
move e as recebe, o quanto essas instituições são flexíveis ou inflexíveis,
como mantêm em funcionamento suas verdades, seus poderes-saberes,

4
Escrevemos este texto no Brasil, cujo governo atual é de extrema direita. As atuais lideranças políticas – sem se
preocupar minimamente com a coerência ou a consistência de suas afirmações – afirmam que o Nazismo foi um
movimento político de esquerda, bem como afirmam serem invenções a Ditadura Brasileira e o Holocausto. Interes-
sante notar que essas afirmações sobre o Nazismo e o Holocausto foram revitalizadas e tomaram corpo, no Brasil,
logo após a visita do atual Presidente brasileiro ao Museu do Holocausto, em Israel, o que mostra o descaso com as
evidências históricas. Infelizmente, defendem esses pontos de vista não só o atual presidente brasileiro, mas também
seus ministros, dentre os quais o das Relações Exteriores, um diplomata. Seguem a diretriz do momento: transformar
o ódio às oposições, o revanchismo, a violência e os ressentimentos em políticas de Estado, o que fazem com vulga-
ridade e destemperança.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 21

discernindo quem pode falar e sobre o que se pode falar, ao mesmo tempo
que estabelecem sobre o que se deve silenciar.
Assim, conhecer, registrar e divulgar narrativas de atores que viven-
ciaram determinada situação, em determinados espaços e tempos, é uma
das funções da História Oral. Em Educação Matemática há, certamente,
uma variedade quase inesgotável de campos nunca explorados por pesqui-
sadores. Vale dar alguns exemplos: embora sejamos profícuos na
elaboração de pesquisas sobre práticas de professores em sala de aula, com
observações muitas vezes meticulosas, é um pouco difícil encontrar regis-
tros de falas de professores sobre como planejam suas aulas, sobre como
acham que se saíram em suas aulas, sobre como preparam suas avaliações,
sobre como assumiram determinadas posições concordando ou subver-
tendo legislações vigentes… Uma das razões para que o número de
pesquisas que apresenta esse tipo de registro seja diminuto remete a uma
das discussões teóricas mais antigas e persistentes no percurso da História
Oral: – E se o entrevistado mentir? Outra razão que pode ser apontada
para a quase inexistência de registros dessa natureza é a negligência que
tanto pesquisadores quanto professores têm mostrado em relação a essas
práticas cotidianas, comuns, usuais, ordinárias, que apenas muito recen-
temente têm sido consideradas objeto de pesquisa legítimo, cujo estudo é
tão importante quanto necessário. A História Oral surge, então, como uma
das possibilidades de preencher essas lacunas. É preciso diversificar as
versões, considerando vários pontos de vista5. É preciso compreender que
o passado comportava mais futuros do que aquele que efetivamente se
mostra no presente.

5
Uma referência que temos usado para sensibilizar nossos alunos sobre a importância de considerar pontos de vista
variados e alternativos é a breve conferência de Chimamanda Addichie, escritora nigeriana, proferida no ciclo de
conferências TED (Technology, Entertainment, Design) – Ideas Worth Spreading, ocorrida em Julho de 2009. A au-
tora narra situações a partir das quais conclui que a redução de várias versões a uma única versão aniquila a vida.
Em seu caso particular, ela afirma que essa forma homogênea de contar histórias limitou seu modo de olhar seu
próprio país e seu próprio povo. Ela complementa contando que, quando se mudou para os Estados Unidos, sua
colega de quarto só conseguia vê-la a partir dos estereótipos criados socialmente a respeito de algo chamado “África”,
e mostra que ela própria, em vários momentos, cedeu à tentação dessas versões hegemônicas, concebendo a si pró-
pria a partir de estereótipos.
22 | Educação Matemática e Diversidade(s)

História Oral e Historiografia

Svetlana Aleksiévitch6 é a escritora bielo-russa ganhadora do prêmio


Nobel de Literatura de 2015. Foi premiada, segundo a Academia Sueca,
“por sua escrita polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na
nossa época”. Aleksiévitch escreveu A Guerra não tem rosto de Mulher,
sobre a participação feminina na Segunda Grande Guerra, e Vozes de
Tchernóbil, sobre as consequências do acidente nuclear. Tratam-se, am-
bos, de uma coletânea de relatos criados a partir de entrevistas que têm
como intenção sensibilizar os leitores em relação aos seus temas e a defesa
da necessidade de abordá-los polifonicamente, a partir de pontos de vista
distintos e subjetivos (ou: distintos por serem subjetivos). Ainda que as
perspectivas historiográfica e memorialista estejam explicitamente pre-
sentes nessas obras, o que Svetlana Aleksiévitch produz, mobilizando a
História Oral, é Literatura.
Por outro lado, têm sido cada vez mais comuns projetos de comuni-
dades que se reúnem com a intenção de registrar a história de seus lugares,
hábitos e produções7. Boa parte das vezes isso é feito tendo a História Oral
como método, e ainda que com isso se produza uma iniciativa historiográ-
fica nem sempre bem recebida pelos historiadores profissionais, não
podemos negar a importância afetiva e memorialista dessas empreitadas.
Além de autores de obras literárias e pessoas comuns que se envolvem em
iniciativas memorialísticas, usando a História Oral, há acadêmicos como
os já citados Paul Thompson, Phillippe Joutard e Alessandro Portelli, entre
tantos outros historiadores, sociólogos, antropólogos, geógrafos e filóso-
fos, reconhecidos academicamente por suas produções, que usam a
História Oral em suas práticas de pesquisa.

6
Ou Alexievitch, devido à transliteração do Cirílico.
7
É um exemplo disso o filme brasileiro Narradores de Javé, de Eliane Caffé, que conta a história de um grupo de
moradores da cidade de Javé, a ser extinta devido à construção de uma hidrelétrica. Dada a extinção iminente, é
preciso escrever a história de Javé, e esse é o projeto que une os habitantes e fica a cargo do único habitante alfabe-
tizado – um ex-funcionário dos Correios. Não se trata de um documentário, mas de um filme de ficção que, no
entanto, representa inúmeros projetos de mesma natureza desenvolvidos por populares em suas cidades e bairros.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 23

A intenção desses exemplos é mostrar que a História Oral, embora


produza, sempre, fontes historiográficas, nem sempre é usada em projetos
historiográficos, ou seja, ainda que partindo de fontes historiográficas cri-
adas a partir da oralidade, há projetos que não disparam, com essas fontes,
operações historiográficas específicas e/ou reconhecidas pelos historiado-
res profissionais como Historiografia. As fontes historiográficas são
produzidas e divulgadas, mas delas podem surgir trabalhos em vários
campos, como a literatura, o teatro, cinema, as teses e os estudos acadê-
micos, além de iniciativas populares e pragmáticas (como a constituição
de acervos de comunidades específicas). Assim, é um equívoco associar
naturalmente a História Oral ao campo acadêmico, do mesmo modo que
é equivocado associar, sempre, a História Oral à Historiografia.
É preciso ter em conta que a História Oral da qual falamos aqui, mo-
bilizada nas pesquisas em Educação Matemática, é uma prática acadêmica,
mas que há uma variedade imensa de práticas com a História Oral que
muitas vezes não são reconhecidas como válidas no interior da academia.
Exemplos disso são esforços de grupos de cidadãos, reunidos em comuni-
dades específicas, que gravam entrevistas com moradores antigos de
modo a ter registros sobre a história de bairros e cidades, bem como en-
trevistas com artesãos sobre seus modos de fazer, alguns desses modos,
hoje, quase extintos. No que diz respeito ao ambiente escolar, exemplos
mais comuns são as entrevistas realizadas com pais ou profissionais cha-
mados às escolas. Embora tais práticas não passem por um ritual de
validação acadêmica, elas não devem ser menosprezadas, sequer se deve
cogitar que o seu resultado também não gere fontes apropriadas para fu-
turas consultas. Entretanto, as práticas sobre as quais falaremos aqui
resultarão, sempre, de projetos desenvolvidos no interior de universidades
e acompanhados (controlados) institucionalmente.
Há uma grande diferença entre “praticar História Oral” e “usar a His-
tória Oral para compreender determinados temas em algumas áreas
específicas do conhecimento”. Um oralista (como usualmente são chama-
dos aqueles que trabalham com História Oral), resumidamente falando,
24 | Educação Matemática e Diversidade(s)

está interessado em criar e disponibilizar fontes. Há inúmeras iniciativas


desenvolvidas por oralistas em comunidades específicas, de mesmo modo
como há centros específicos para disponibilizar publicamente as fontes
orais geradas por essas iniciativas. No Brasil há, por exemplo, o Museu da
Pessoa, um projeto virtual e colaborativo de histórias de vida fundado na
cidade de São Paulo em 1991. O objetivo do Museu da Pessoa é registrar,
preservar e transformar em informação histórias de vida de toda e qual-
quer pessoa da sociedade. Seu acervo é constituído por registros orais de
indivíduos que se dispõem a contar experiências vividas que, gravadas,
podem ser acessadas por qualquer interessado. Entende-se que, com essa
iniciativa, revela-se, de forma pessoal e humana, uma enorme diversidade
de experiências que podem ser mobilizadas em projetos relativos a memó-
rias institucionais, à cultura, ao desenvolvimento de comunidades
específicas e à educação, ou podem ser simplesmente acessadas e ouvidas,
visando à sensibilização das pessoas em relação a uma pluralidade de te-
mas e situações. O oralista, nesse caso, cuida tanto de criar as condições
necessárias para que o registro oral ocorra quanto de promover amplo
acesso a esses registros.
Já os oralistas que mobilizam a História Oral como modo de criar
fontes para pesquisas específicas – ou seja, a modalidade em que se ins-
creve o que temos chamado de História Oral em Educação Matemática,
por exemplo – criam essas fontes visando a compreender um tema espe-
cífico em seu campo, ou seja, criam fontes visando a encontrar nelas apoio
para suas pesquisas. Nesse caso, torna-se natural analisar as fontes criadas
visando a atender, mais diretamente, seu objetivo de pesquisa, ainda que
criar as fontes seja, sempre, um dos objetivos das pesquisas que mobilizam
a História Oral.
Essa diversidade de usos da História Oral ocorre exatamente devido
à natureza ecumênica da História Oral. Exigindo recursos muito facil-
mente disponíveis (gravador e computador, se muito) e sendo a
sistematização de uma prática bastante usual (uma conversa entre pes-
soas), a História Oral pode ser (e vem sendo) praticada por uma variedade
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 25

enorme de agentes sociais, de diferentes modos e com diferentes resulta-


dos. No caso da História Oral mobilizada em pesquisas acadêmicas, há um
cuidado normatizado quanto às questões éticas, há um discurso específico
tanto para descrever a metodologia quanto para a apresentação dos resul-
tados das pesquisas que usam essa metodologia.
Mais particularmente no caso da História Oral mobilizada para traba-
lhos historiográficos, deve-se também apontar a diversidade de concepções
de História defendidas pelas mais distintas comunidades. São vários os his-
toriadores – dentre eles Le Goff, no seu História e Memória – que nos
alertam sobre a existência de diferentes práticas de escrever História e da
necessidade de não as concebermos como iguais ou mesmo similares. A his-
toriografia acadêmica segue normas específicas do discurso acadêmico e é
pautada por valores e ações acordadas no interior da academia, por mais
flexíveis que sejam ou possam ser esses valores e essas ações. A inscrição de
uma pesquisa no campo da historiografia acadêmica exige, por exemplo, que
as fontes narrativas geradas a partir do uso da História Oral (nesse caso,
mobilizadas para disparar uma operação historiográfica) tenham seu su-
porte alterado – das gravações orais aos registros escritos8 – visando a
facilitar o manuseio para o estudo a ser realizado. Exige-se, ainda, que a es-
sas fontes, já tornadas material escrito – sejam incorporadas informações –
as mais precisas possíveis – sobre nomes, datas, circunstâncias e situações
que aparecem nas narrativas. Essas são práticas usuais, canônicas, para
quem usa a História Oral para praticar a historiografia: não se trata, por-
tanto, apenas de criar e disponibilizar fontes, mas também de ter no
horizonte a possibilidade de outros agentes produzirem historiografia a par-
tir daquelas fontes geradas e disponibilizadas, de permitir que outras
leituras sejam feitas a partir de um conjunto comum de fontes.
Entretanto, esses modos de fazer tidos como “usuais” têm suas exce-
ções – daí a necessidade de avaliar constantemente o processo de geração
de narrativas, ou seja, daí a necessidade de respeitar os objetos e sujeitos

8
Esse movimento de alteração do oral para o escrito ocorre em momentos chamados transcrição e textualização,
que serão discutidos na sequência deste texto.
26 | Educação Matemática e Diversidade(s)

de cada investigação, exercitando o que chamamos de problematização


metodológica em-trajetória, à qual já nos referimos.
Imaginemos, por exemplo, um historiador interessado em inventa-
riar o conjunto de narrativas fantásticas de uma determinada comunidade,
visando – por exemplo – compreender a vinculação dessas narrativas “mí-
ticas” e os momentos políticos em que elas ocorrem e como, com o passar
do tempo, essas narrativas se modificam. Imaginemos – esse é outro
exemplo – um pesquisador do campo da História da Ciência interessado
em compreender as justificativas de determinada cultura sobre suas prá-
ticas de cura, os recursos e estratégias dos quais se valem e por quê. As
entrevistas com os sujeitos que participam dessas comunidades citadas
nos exemplos gerariam narrativas que dificilmente poderiam ser corrobo-
radas por outras fontes, tornando impossível tornar precisas, nos
registros, por exemplo, informações que usualmente seriam incluídas
como notas de rodapé no registro da narrativa, digamos, de um professor
que, tendo atuado nas décadas de 1960 e 1970 – esse é mais um exemplo
– fala sobre as dificuldades que enfrentou para ensinar segundo o Movi-
mento Matemática Moderna, sobre quais livros adotou, como atendia ou
subvertia as legislações e as normas internas da escola, ou sobre as resis-
tências que sentiu e provocou etc. No caso desse professor, os autores e
legislações citados, os nomes das instituições e algumas datas, por exem-
plo, que fazem parte de sua narrativa, são facilmente acessados em
arquivos e podem ser detalhados ou explicitados como notas de rodapé no
registro escrito de sua narrativa. O mesmo não ocorre, por exemplo, com
os nomes de integrantes de comunidades indígenas e os materiais e práti-
cas que eles produzem, dado que algumas comunidades não são
suficientemente registradas e estudadas pela historiografia ou pela ciência
tradicional, estando ausentes dos acervos referências mais detalhadas so-
bre essas comunidades e seus cotidianos.
Há, portanto, diferentes modos de pensar e praticar História Oral.
Neste texto, tratamos da História Oral desenvolvida na pesquisa acadê-
mica, mais particularmente na Educação Matemática e, mais
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 27

particularmente ainda, falamos de uma História Oral mobilizada academi-


camente, com intenções historiográficas, para produzir conhecimento no
campo da História da Educação Matemática.

Narrativas, interpretações, Histórias e plausibilidades

Ao contrário do que ocorre com a História Oral usada para produzir


obras e intervenções artísticas (que não se obrigam a, necessariamente,
analisar as narrativas geradas), quando usando a História Oral na pesquisa
historiográfica espera-se que as fontes criadas estejam aliadas a uma in-
terpretação que atribua significados às narrativas. Isso decorre da própria
concepção que defende a historiografia como indissociável de uma herme-
nêutica, ou seja, de um esforço interpretativo que plausivelmente gere
compreensões sobre determinadas situações.
Já se disse que as narrativas são criaturas selvagens, incontroláveis
quando disponíveis no mundo. Isso se deve precisamente à possibilidade
de diferentes leituras que nada mais são que as variadas atribuições de
significados que podem surgir (e usualmente surgem) do leitor, à revelia
do que o autor da narrativa9 tentou imprimir ao criá-la e disponibilizá-la.
A atribuição de significado está ligada ao modo como os diferentes leitores
sentem o mundo, está ligada às suas circunstâncias históricas, ao seu
tempo, seu espaço, suas referências, seus conceitos e pré-conceitos. Toda
atribuição de significado é, no limite, subjetiva, ainda que os esforços do
autor – de qualquer autor – estejam voltados a induzir, tanto quanto for
possível, uma determinada leitura dentre as muitas leituras possíveis. O
que torna confiável, então, a leitura do historiador? O cotejamento entre
várias e variadas fontes. Assim, o oralista, ao usar suas narrativas para
operar historiograficamente, deve pautar-se não apenas pela pluralidade

9
Caberia, aqui, questionar a autoria de uma narrativa que é o registro de uma história contada por um narrador a
um pesquisador que, por sua vez, faz efetivamente o registro e disponibiliza a narrativa. Isso implica perguntar qual
a parcela de autoria do pesquisador na produção dessa narrativa, já que os procedimentos de registro e disponibili-
zação funcionam como uma editoração que, de algum modo, altera indelevelmente a narrativa. Afirmaremos que as
narrativas tornadas texto escrito são uma colaboração entre narrador e pesquisador, sendo, assim, fontes produzidas
em coautoria.
28 | Educação Matemática e Diversidade(s)

de pontos de vista quando vai buscar seus depoentes, mas deve cuidar,
também, de pautar-se pela pluralidade de fontes que coloca em diálogo
com os depoimentos coletados, visando a atribuir significados plausíveis
ao seu conjunto de narrativas. Desse modo, fica reforçada a concepção de
que a história não trata de uma verdade singular10, mas de verdades plu-
rais, de plausibilidades. A diversidade das fontes é ponto essencial para
essa plausibilidade. Ainda assim, várias histórias plausíveis podem ser ela-
boradas a partir de um mesmo conjunto de narrativas... É exatamente esse
o sentido da afirmação de que a história é uma narrativa possível em uma
procissão de narrativas possíveis que, por sua vez, redimensiona – ou re-
futa – a afirmação de Jorge Luis Borges de que a História é o conjunto das
diferentes entonações de algumas poucas metáforas...
Sendo ou não mobilizada para disparar uma operação historiográ-
fica, a História Oral produz fontes historiográficas e, por isso, os
pesquisadores que se valem da História Oral devem defender claramente
uma concepção de História. Naturalmente a própria opção por ter a His-
tória Oral como metodologia implica descartar concepções como aquelas
que defendem a existência de uma verdade histórica única e indiscutível,
ou a que defende a priorização das chamadas fontes primárias e adjetiva
outras fontes como secundárias (e não poucas vezes assume as fontes orais
como fantasiosas, equivocadas ou tendenciosas). A concepção de História
que temos defendido está radicada na abordagem de Marc Bloch: a Histó-
ria é o estudo dos homens, vivendo em comunidade, no tempo. Assumindo
as consequências por alterar sentença tão conhecida e assumida, de um
modo ou outro, por todos os que se definem como herdeiros da historio-
grafia dos Annales e abraçam o que se tem chamado de História Cultural,
arriscaremos dizer que a História é o estudo dos homens, vivendo em co-
munidade, em determinado tempo e espaço. É importante acentuar,

10
O filme Rashomon, de 1950, dirigido por Akira Kurosawa, tem sido usado por nós como uma possibilidade de sensibi-
lizar pesquisadores iniciantes quanto a questões relativas à relatividade da verdade e ao limite de diferentes versões. O
filme traz as narrativas totalmente divergentes, contadas por quatro testemunhas, sobre um estupro seguido de assassi-
nato. Dentre as quatro testemunhas estão o assassino e a própria vítima (que fala através de um médium). Cada uma das
histórias contradiz as demais, problematizando a impossibilidade de uma única verdade. Assim, afirmamos que, mais do
que buscar uma versão verdadeira, é função da Historiografia buscar a verdade das versões.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 29

portanto, nessa nossa concepção de História, a vinculação entre História e


espacialidade, além, é claro, da vinculação desde sempre acentuada entre
História e temporalidade11. O passado não tem densidade ontológica, o que
descarta sumariamente a opção por uma concepção que assume a História
como o estudo do passado. Do mesmo modo, acreditando que o movi-
mento humano no tempo ocorre entre idas e vindas, entre alterações e
permanências, fica descartada a existência de um vínculo “natural” entre
História e progresso, ou seja, negamos a afirmação de que o presente é
resultado do aprimoramento de um passado sempre lacunar e imperfeito,
do mesmo modo que seria equivocado assumir o passado como mestre
indiscutível do presente e do futuro, como faziam os defensores de uma
Historia Magistra. Muito mais poderia ser dito sobre a necessidade de as-
sumir uma concepção de História compatível com a opção pela História
Oral, mas é necessário seguir adiante apresentando, ainda que breve-
mente, os procedimentos (e aspectos do que os fundamenta) mais usuais
na operacionalização da História Oral.

Sobre procedimentos

As fontes historiográficas criadas com a História Oral são disparadas


pela oralidade e começam a ser constituídas em momentos de entrevista.
Há a possibilidade de tratar alguns gêneros literários “próximos à orali-
dade”12 como componentes da História Oral. Isso, entretanto, demandaria

11
Essa afirmação abre novas questões, como, por exemplo, sobre a abordagem memorialista da História e a necessi-
dade de considerarmos, numa concepção mais contemporânea de História, distintas temporalidades: além da
temporalidade Chronos considera-se, por exemplo, a temporalidade Kairos, própria da memória e do modo como o
mundo nos afeta e que, desprezando a sequência cronológica clássica, se traduz, na linguagem, em uma sequenciação
narrativa não convencional. Nesse sentido é interessantíssimo o texto In search of sacred time: Jacopus de Voragine
and the Gold Legend, uma das últimas produções de Le Goff, na qual o tema central é a temporalidade na liturgia
cristã, analisada a partir da obra medieval do arcebispo de Gênova, publicada no século XIII. Os trabalhos de François
Hartog são também fundamentais para compreender o movimento do que ele chama Regimes de Historicidade, ou
seja, os modos como se dá a experiência do Tempo ou, de outro modo, como presente, passado e futuro se articulam
na escrita da História. Ainda que esse tema seja importante para nossa fundamentação, ele não será tratado mais
detalhadamente neste texto.
12
Exemplos disso são as cartas, muito comuns em acervos pessoais, e algumas biografias (mais especificamente,
algumas autobiografias). Têm sido mais frequentes, recentemente, no Brasil, estudos em Educação Matemática de-
senvolvidos a partir de autobiografias.
30 | Educação Matemática e Diversidade(s)

estudos específicos que ainda não foram realizados em quantidade sufici-


ente.
Como já dissemos, algumas pesquisas exigem, devido à sua especifi-
cidade, que o método seja flexibilizado. Um exemplo disso é quando nos
dispomos a ter como depoentes sujeitos com dificuldade de fala e até
mesmo usuários de linguagens exclusivamente gestuais. Obviamente, nes-
ses casos, a entrevista – a partir da qual o pesquisador constitui suas
fontes/narrativas – precisa ocorrer segundo procedimentos alternativos
como, por exemplo, tendo como auxiliar um intérprete da linguagem de
sinais (no caso brasileiro, a Língua Brasileira de Sinais, conhecida como
Libras). A narrativa escrita final ou sua tradução para a linguagem de si-
nais deve ser de conhecimento do depoente, que autoriza ou não seu uso
e divulgação. Como fazer no caso dos depoentes analfabetos? Nesse caso,
ele não lerá, mas ouvirá o texto resultante da entrevista lido pelo pesqui-
sador, e não assinará uma carta de cessão de direitos relativa à narrativa,
mas enunciará e deixará gravada sua disposição em ceder tais direitos.
Ainda que a própria gravação possa ser vista como uma fonte, em
nossas práticas de pesquisa temos optado por ter como suporte para nos-
sas análises o texto escrito que chamamos textualização, gerado como
resultado de uma série de movimentos de registro que se inicia a partir da
oralidade captada em gravações. A disponibilização das fontes é, sempre,
discutida entre pesquisadores e depoentes até que se chegue a um acordo
sobre qual (ou quais) registro(s) podem ser divulgados publicamente,
posto que o processo que leva da oralidade à escrita implica diferentes mo-
mentos de registro, cada um desses momentos gerando textos específicos,
conforme argumentaremos a seguir. Além disso, essa é uma opção não
negociável: os depoentes têm pleno direito às suas memórias e, por exten-
são, às fontes que foram geradas a partir dessas memórias13.

13
Os direitos dos colaboradores/depoentes terminam quando estiver decidido quais fontes e como essas fontes po-
dem ser divulgadas. Tendo as fontes em mãos, o pesquisador inicia a análise formal, que é de sua responsabilidade,
pois é uma atribuição de significados dele, pesquisador, coautor das narrativas escritas ou de qualquer outro pesqui-
sador que deseje questionar ou re-significar as fontes disponibilizadas.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 31

A opção por conduzir as análises a partir dos registros escritos deve-


se à dificuldade – seja por inabilidade, seja pela ausência de equipamentos
técnicos mais sofisticados e mais facilmente acessíveis – de elaborar as
análises diretamente da oralidade. No caminho entre a oralidade e a tex-
tualização ficam escondidas algumas cicatrizes do discurso? Certamente.
Como desvelá-las? Não sabemos. Ainda. Não se pode, entretanto, acreditar
que a oralidade gravada é um registro mais puro, ou mais confiável que os
registros escritos realizados posteriormente, pois definitivamente não há
como recuperar o que “realmente” ocorreu no momento da entrevista,
visto que, como qualquer experiência humana, a comunicação é evanes-
cente, o modo como a entrevista “realmente” ocorreu não pode, de modo
algum ser reproduzido ou recuperado. O que fica, então, seja do momento
da entrevista, da sua gravação ou dos registros escritos realizados a partir
das gravações, é um sentido. Como já nos alertava Ricoeur, a comunicação
humana é um mistério. As experiências humanas são incomunicáveis do
modo como foram vividas. Mas quando tento comunicar algo, alguma
coisa se mantém: o que se mantém é um sentido, significados possíveis
atribuídos segundo as experiências de quem toma contato com aquilo que
foi comunicado. No caso das experiências subjetivas que tentamos captar
no momento em que, na entrevista, elas nos são comunicadas, cada regis-
tro dessa comunicação nos permite algumas compreensões, e sabemos
que diferentes registros não são manifestações distintas de uma mesma
coisa: são coisas distintas e, portanto, sujeitas a instrumentos distintos de
análise. A oralidade, então, é nosso ponto de partida para a compreensão;
a escrita é nosso ponto de partida para a análise formal.
Quando trabalhando com História Oral não há – e pensamos já ter
explicitado isso suficientemente – procedimentos que podem ser mera-
mente copiados ou repetidos de uma pesquisa a outra. É preciso respeitar
os sujeitos, o tema da pesquisa, e os materiais que surgem das entrevistas
para, então, disparar um processo de registro (de criação da fonte a ser
usada) e de análise. Entretanto, ainda que nenhuma metodologia se re-
duza, sob nossa perspectiva, a um conjunto de ações, existem
32 | Educação Matemática e Diversidade(s)

procedimentos relativamente estáveis que temos seguido nas pesquisas


com História Oral:

(a) toda pesquisa tem como ponto de partida uma problematização que se manifesta
na forma de uma pergunta, a questão diretriz da investigação. Essa problematiza-
ção já indica os critérios para selecionar um grupo inicial de depoentes cuja
memória é julgada importante para compreender o tema em questão. Ao serem
convidados para participar da pesquisa, os depoentes usualmente indicam outros
depoentes – é o que se chama critério de rede – que formarão o conjunto de cola-
boradores do trabalho;
(b) roteiros de entrevistas são elaborados e devem estar à disposição dos depoentes
caso eles os solicitem previamente para organizar suas narrativas. Roteiros são
mais bem elaborados quando o pesquisador faz estudos preliminares para aproxi-
mar-se do tema a ser discutido e se esforça por ter à mão outras fontes14 sobre o
assunto que vai ser tratado na entrevista;
(c) as entrevistas podem estar direcionadas a compreender um tema específico, que
é parte das experiências vivenciais do depoente (nesse caso, seguimos uma pers-
pectiva conhecida como História Oral temática) ou, sem fixar-se num tema
específico, o pesquisador pode estar interessado em perspectivas vivenciais am-
plas, num conjunto de experiências de vida relatadas por determinados atores
sociais (nesse caso, a perspectiva é a que temos chamado de História Oral de vida);
(d) as entrevistas15 – realizadas em tantas sessões quantas forem necessárias, se-
guindo as disposições do pesquisador e do colaborador – são gravadas e/ou
filmadas para, posteriormente, serem transformadas em textos escritos, numa se-
quência de momentos aos quais chamamos transcrição (ou degravação) e

14
Essas fontes podem ser fotografias, músicas, documentos de arquivo, livros, informações de outras entrevistas etc
15
É importante ressaltar que a entrevista é o modo usual de captar a oralidade para iniciar uma pesquisa em História
Oral. Isso não significa que as entrevistas sigam um único protocolo (o protocolo usual é o entrevistador perguntar
e o depoente responder). Vários modos de conduzir uma entrevista são possíveis, como, por exemplo, o uso de fichas
temáticas previamente elaboradas pelo pesquisador e com as quais o depoente vai tomando contato de modo a or-
ganizar suas lembranças sobre o tema central da entrevista/pesquisa. Pode ocorrer que uma única entrevista seja
insuficiente, e nesse caso o pesquisador pode fazer quantas entrevistas julgar adequado, desde que o depoente aceite
participar de outras sessões. Obviamente o estado de saúde, a lucidez e a disposição dos depoentes são essenciais
para ser colaborador em um trabalho em que se usa a História Oral. No caso das pesquisas historiográficas que têm
como tema algo situado em um passado não muito recente, os entrevistados tendem a ser pessoas idosas. Nesse caso,
o contato prévio com algum familiar é adequado. Há ainda a possibilidade de realizar entrevistas coletivas, com duas
ou mais pessoas, desde que haja recursos técnicos para captar com nitidez diversas vozes de pessoas que podem estar
a uma certa distância uma das outras e/ou podem falar ao mesmo tempo. São comuns essas entrevistas que ocorrem
com mais de um entrevistado ao mesmo tempo. Não raro, o entrevistado convida (ou sugere que seja convidado)
algum outro interlocutor com quem conviveu, pedindo que este esteja junto a ele no momento da entrevista. Há
casos em que o próprio entrevistador opta por realizar entrevistas coletivas, ou mesmo entrevistas individuais que
posteriormente são refeitas com um conjunto dos entrevistados. Essas decisões cabem aos pesquisadores, mas em
comum acordo, sempre, com os entrevistados, e estão vinculadas ao modo como os interlocutores se relacionam
entre si e se relacionam com o objetivo e o tema de cada pesquisa.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 33

textualização: do registro da oralidade (em suportes digitais) passa-se à degrava-


ção bruta (a elaboração de um primeiro registro escrito do que se ouve na
gravação); dessa degravação bruta (ou transcrição, como temos chamado) passa-
se à primeira textualização (que implica uma editoração da transcrição) à qual se-
guem tantas textualizações quantas julgadas necessárias para apurar o texto,
sempre em negociações com o depoente16. Os trabalhos de textualização das trans-
crições colocam-se já como exercícios de análise posto que, com esses trabalhos, o
pesquisador se familiariza cada vez mais com o tema e com os modos de narrar do
entrevistado. O exercício de textualizar pode exigir, também, o contato direto com
o entrevistado, para que o pesquisador, ao produzir esse texto, possa discutir com
o depoente a adequação do que foi registrado em relação àquilo que o depoente
afirma ter dito ou gostaria de ter dito17. Não há regras fixas para textualizar e essa
operação depende, fundamentalmente, da sensibilidade e do estilo de redação do
pesquisador. Uma das disposições exigidas para essa dinâmica de elaborações tex-
tuais, por exemplo, é tentar manter, tanto quanto possível, o tom vital do depoente,
isto é, o pesquisador se esforça para construir as frases respeitando o modo de
falar de cada entrevistado, de modo que os colaboradores se reconheçam no texto
escrito. Usualmente, nas pesquisas que temos realizado, nossa opção tem sido por
reproduzir nos trabalhos apenas a textualização em sua forma final, aquela que o
pesquisador e o depoente julgaram adequada, e a qual o depoente nos permitiu
usar. Gravações e transcrições só são divulgadas se houver concordância explícita
do depoente. Essa concordância é registrada formalmente em uma carta de cessão
de direitos. Uma tal carta de cessão de direitos explicita todos os termos segundo
os quais a divulgação e o uso dos textos (escritos e orais) podem ocorrer. Trata-se
de um cuidado de natureza ética e jurídica. A carta de cessão de direitos é um ins-
trumento a ser elaborado segundo as decisões e possibilidades de todos os
envolvidos na criação da narrativa18.

16
Há níveis de textualização: o pesquisador pode optar apenas por excluir do texto da transcrição alguns registros pró-
prios da oralidade (usualmente chamados como “apoios”, “muletas” ou “vícios de linguagem”) e preencher algumas
poucas lacunas – no próprio corpo do texto ou em notas de rodapé – que tornarão a leitura mais fluente e mais esclare-
cedora. Frequentemente o próprio colaborador da pesquisa exige uma “limpeza” textual, pois não se reconhece na
transcrição, porque a oralidade e a escrita são modos muito diferentes de expressão. Mais além dessa textualização inicial,
o pesquisador pode optar por reordenar o fluxo discursivo do entrevistado, e essa reordenação pode ser feita temática ou
cronologicamente. Alguns pesquisadores optam não por reordenar, mas inserem subtítulos, realçando os subtemas na
ordem em que surgem. Há pesquisadores que mantêm as perguntas e as respostas, outros incluem as perguntas nas
respostas e constituem um texto único, sem que fiquem marcadas as intervenções do entrevistador.
17
A textualização é sempre conferida pelo colaborador, que pode acrescentar ou retirar informações. Dado o direito
irrestrito que o depoente tem em relação à sua memória, o entrevistador não pode se negar a atender essas solicita-
ções, embora possa negociá-las com o colaborador caso ele pretenda, por exemplo, retirar do registro uma
informação que o pesquisador julga importante para a pesquisa. De todo modo, a palavra final sobre o que fazer é
dada pelo depoente, de modo que ele possa reconhecer-se no texto e autorizar seu uso e sua divulgação.
18
É suficiente, por exemplo, que o colaborador, durante a entrevista, permita oralmente o uso da entrevista, estabe-
lecendo o que pode ou não ser divulgado. Alguns depoentes, porém, exigem um documento meticulosamente
34 | Educação Matemática e Diversidade(s)

É importante, por fim, afirmar que, embora os procedimentos não


sejam fixos e sempre devam ser reanalisados à luz do tema e das circuns-
tâncias da pesquisa – ou seja, que os procedimentos não definem nem
circunscrevem o método –, eles servem para caracterizar o método. O con-
junto dos procedimentos e dos modos como esses procedimentos são
usados e fundamentados caracterizam uma determinada visão de mundo
(nisso incluídas, obviamente, uma concepção de pesquisa, de História, de
Educação Matemática) daquele que abraça essas disposições. É exata-
mente isso que nos permite falar de uma História Oral DA Educação
Matemática. Os exercícios que, desde o ano 2000, temos realizado com
essa metodologia, caracterizam uma História Oral diferenciada em relação
à História Oral usada em outros campos do conhecimento como a Socio-
logia, a Psicologia Social, a História. Essa História Oral que tentamos
descrever em linhas gerais neste texto tem como intenção investigar temas
da Educação Matemática, um campo do conhecimento cujo objeto – as cir-
cunstâncias em que ocorrem o ensino e a aprendizagem de Matemática –
é interdisciplinar, o que constitui a Educação Matemática, ela própria,
como campo interdisciplinar.

Como conclusão

A História Oral que temos praticado é concebida como uma metodo-


logia de pesquisa qualitativa cuja intenção é estudar temas da Educação
Matemática, por sua vez concebida como campo interdisciplinar dada a
natureza interdisciplinar de seu objeto.

elaborado, alguns deles chegando a exigir uma redação mais formal, com jargões do Direito. Não há regras pré-
estipuladas a serem seguidas, a não ser aquelas que são decididas em comum acordo entre pesquisador e colaborador.
Nossa experiência com a metodologia da História Oral mostra que os mais velhos (principalmente aqueles que têm,
com a pesquisa, a primeira experiência como entrevistados, narrando suas experiências) demoram-se mais nos mo-
mentos de checagem. Alguns pesquisadores defendem que isso ocorre porque os entrevistados querem manter-se,
tanto quanto possível, na posição de personagens. Deve-se, por fim, considerar a necessidade de formas alternativas
de cartas de cessão: o trabalho com comunidades indígenas, por exemplo, ou com pessoas não alfabetizadas, ou com
deficientes auditivos ou visuais, com narradores-imigrantes etc, exigem formas alternativas, como as “cartas orais”,
as cartas em Braille, as gravadas em vídeo ou cartas elaboradas na língua materna do entrevistado.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 35

Sendo ou não usada em pesquisas relacionadas à Historiografia, a


mobilização da História Oral exige a defesa de uma concepção de História,
posto que a intenção principal dessa metodologia é criar fontes (ou narra-
tivas) historiográficas.
No caso específico do uso da História Oral em pesquisas no campo da
História da Educação Matemática, nossa intenção é registrar alterações e
permanências nos modos como a Matemática ocorre em situações de en-
sino e aprendizagem, seja na escola ou em ambientes não-escolares. É
importante ressaltar que, nas análises, as fontes criadas a partir da Histó-
ria Oral, para um trabalho historiográfico, não podem desprezar fontes de
outras naturezas. O cotejamento entre as várias fontes – as criadas pelo
pesquisador e as previamente disponíveis, que são buscadas em arquivos
e/ou outros acervos – não tem a intenção de desqualificar uma fonte em
detrimento de outras, mas de enriquecer e apoiar a criação de uma narra-
tiva histórica plausível, coesa, bem fundamentada e na qual a subjetividade
dos narradores também esteja claramente marcada. Por isso, a análise das
narrativas criadas a partir da oralidade é frequentemente realizada em
duas perspectivas: (a) uma análise individual de cada narrativa nos per-
mite tatear os modos de falar dos depoentes, como eles constroem seus
discursos sobre o que viveram e como viveram. Essa é pois, uma análise à
qual temos chamado “análise de singularidades”, posto que as narrativas
são estudadas individualmente; (b) uma outra perspectiva de análise – à
qual chamamos “análise de convergências” – implica considerar o con-
junto de todas as narrativas criadas para a pesquisa, sendo que o
pesquisador, para realizá-la, pode cotejar as narrativas entre si além de
valer-se de outras fontes. Trata-se, nesse caso, de uma análise de conjunto.
Na prática, o que temos feito ao usar a História Oral em pesquisas no
campo da História da Educação Matemática?
Com a História Oral temos criado um acervo de fontes historiográfi-
cas em que, de várias maneiras, referindo-se a diferentes momentos,
espaços e situações, nossos temas de pesquisa se revelam a partir de pon-
tos de vista subjetivos, de pessoas que viveram ou vivem experiências
36 | Educação Matemática e Diversidade(s)

relacionadas ao ensino de Matemática. Ainda que seja acentuada a impor-


tância da subjetividade nessas operações historiográficas desenvolvidas
com a História Oral, e ainda que seja essencial reconduzir a subjetividade
para dentro do discurso científico (do qual ela foi excluída por ser tomada
como insuficiente, parcial, não-confiável ou não-científica), o trabalho com
a História Oral na História da Educação Matemática, ao mesmo tempo,
considera e transcende essa subjetividade, gerando compreensões sem
desprezar a possibilidade de cotejamentos e contraposições.
No campo específico da história da formação de professores que en-
sinam/ensinaram Matemática, por exemplo, nossas pesquisas têm
permitido conhecermos os processos de criação e desenvolvimento de di-
versos cursos de formação docente em diferentes regiões brasileiras. Num
país de dimensões continentais como o Brasil, com uma distribuição de
renda tão desigual quanto injusta, e cujas culturas regionais são tão varia-
das e numerosas quanto distintas, é importante diferenciar situações tão
díspares como as que permitem que algumas regiões (os estados que com-
põem a região Sudeste, por exemplo) criem seus primeiros cursos
superiores de formação docente nas décadas iniciais do século XX, en-
quanto cursos dessa mesma natureza só passam a existir em outros
lugares (como nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo) no final do
mesmo século19. Independentemente dessas variações de espaço e tempo,
as análises feitas a partir das fontes que temos criado nos levam a perce-
ber, por exemplo, que a formação do professor de Matemática no Brasil
ocorre marcada pelos signos da carência, da urgência e da transitoriedade,
alguns desses signos marcando até hoje nossas escolas.
Ao considerar narrativas de antigos professores, alunos e adminis-
tradores escolares, ao mesmo tempo que consideramos as inúmeras

19
A Educação pública brasileira – pensada como um sistema orgânico, de alguma forma controlada pelo Estado e
voltada a um público mais amplo que não apenas a elite – só começa a existir, de forma mais nítida, a partir dos anos
de 1950. O ensino primário, cujas leis orgânicas são implementadas nacionalmente ao final do século XIX, atendia,
nessa época, majoritariamente à população urbana, sabendo-se que até os anos de 1920, 95% das pessoas viviam em
zonas rurais. O ensino secundário só foi sistematizado, ampliado consideravelmente e aberto às camadas médias da
população nos anos de 1950. A primeira universidade brasileira foi criada no Estado de São Paulo, sudeste brasileiro,
no ano de 1934, enquanto o primeiro curso superior para formação de professores de Matemática no estado do
Maranhão (região nordeste do país), por exemplo, surgiu apenas na década de 1980.
Antonio Vicente Marafioti Garnica; Maria Laura Magalhães Gomes | 37

outras fontes disponíveis em acervos escritos ou iconográficos, temos


compreendido o movimento de atuação docente nas salas de aula de Ma-
temática em escolas rurais e urbanas, em cursos técnicos e cursos
regulares, em cursos já extintos e cursos ainda em funcionamento, em
programas gerenciados pelo Estado e em intervenções específicas de cole-
tivos dos mais diversos. Temos também abordado diferentes graus de
escolaridade, do ensino primário até os centros de pós-graduação em Ma-
temática e Educação Matemática. Temos aprendido sobre as estratégias de
ensino e os materiais escolares usados para o ensino de Matemática em
diferentes instituições, buscando compreender como diferentes agentes
educacionais usam ou usaram, por exemplo, determinados livros, que
tanto podem ser simplesmente adotados ou, dispensando as diretrizes ofi-
ciais, podem ser subvertidos em exercícios de insubordinação docente.
Temos também conversado com autores de manuais didáticos com a in-
tenção de conhecer suas disposições quando elaboram suas obras, suas
dificuldades, seus discursos sobre o ensino de Matemática. Além disso, te-
mos formado acervos de narrativas que podem ser acessados ampla,
irrestrita e gratuitamente. Usando a História Oral para estudar a História
da Educação Matemática temos tentado conhecer os discursos que susten-
tam os modos de produzir e ensinar Matemática em diferentes contextos
e até mesmo os discursos que sustentaram/sustentam, no país, a criação
de Programas de Pós-graduação em Educação Matemática e como, nesses
Programas, a História Oral tem sido, em meio a críticas positivas e nega-
tivas, mobilizada para produzir conhecimento e defender que cabe a nós
não apenas respeitar ou defender a diversidade e a pluralidade, mas pro-
movê-las.

Referências20

ARENDT, H. (1997). Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva.

20
Foi uma opção dos autores não fazer citações textuais. Assim, esta listagem bibliográfica apresenta tanto as obras
incidentalmente referenciadas quanto obras que podem servir ao leitor que esteja interessado em aprofundar alguns
dos temas discutidos ou conhecer textos clássicos relacionados à história da História Oral.
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2

Decolonialidade, africanidade e matemática

Vanisio Luiz da Silva 1


Valdirene Rosa de Souza 2

Optamos pela modalidade de ensaio reflexivo, como orientadora, por


entender que a mesma atende satisfatoriamente ao nosso objetivo de de-
bruçar sobre temas como: colonialidade e decolonialidade, enquanto
fatores de organização de pensamento e; afetividade e cultura negra, en-
quanto fatores de aprendizagem da matemática escolar. Vale salientar, que
tais fatores são interpretados pelos pesquisadores envolvidos com a ques-
tão da inserção digna da população negra e seus conhecimentos ancestrais
na educação escolar, como essenciais aos propósitos e determinações da
Lei 10.639/03, que trata da história da África e dos Afro-brasileiros na edu-
cação escolar. Por isso, tomamos tais referências como centrais aos
estudos que vimos realizando ao longo do tempo.
É a partir desta perspectiva, que lançamos nossos olhares: sobre as-
pectos do colonialismo e da colonialidade brasileira, assim como as
repercussões destes processos na constituição da autoestima dos educan-
dos brasileiros e sobre algumas possibilidades de uma pedagogia
decolonizadora, no tocante a aprendizagem da matemática escolar. Para

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor substituto na licenciatura em Matemática da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)-CUA e professor aposentado da Rede Municipal de Ensino de São
Paulo. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática (GEPEm) da Faculdade de Educação da USP
(FE/USP) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemáticas Negras e Indígenas (GEPENI/UFMT).
E-mail: [email protected].
2 Doutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Pro-
fessora da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática
(GEPEm) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/ USP). E-mail: [email protected].
42 | Educação Matemática e Diversidade(s)

tanto, propomos revisitar e refletir sobre alguns casos de estudos e expe-


riências que envolvem abordagens sobre os temas e que podem contribuir
com o melhor entendimento de tais possibilidades.

1 O colonialismo e a educação escravista.

Em um estudo intitulado “A história da educação brasileira” (2006),


as lentes filosóficas de Paulo Ghiraldelli Jr analisaram fatores que influen-
ciam na organização do projeto educacional brasileiro, desde a colonização
até a atualidade. E, para refletir sobre os modelos pedagógicos aplicados
nas escolas do país, ele tomou como ponto de partida a trilha aberta pela
escolástica – orientação didático-pedagógica herdada dos jesuítas – justifi-
cando o predomínio do que denominou Educação Tradicionalista. O autor
recorreu a etimologia da palavra Educação para conceituar Educação Es-
colar no contexto da pedagogia moderna. De algum modo, colocando em
posições antagônicas pensamentos dos séculos XVIII e XIX, destacada-
mente o positivismo e o humanismo, orientadores importantes a
constituição do projeto educacional brasileiro, mesmo antes de serem ca-
racterizadas e formalizadas como tal. E, conforme o autor o termo oscila
entre “Educere” e “Educare”, sendo que:

a primeira tem o sentido de “conduzir de fora”, “dirigir exteriormente”, a se-


gunda tem o sentido de sustentar, alimentar, criar. [….] A derivação dupla da
palavra já deixa entrever dois grandes caminhos da filosofia da educação no
mundo ocidental; por um lado, o ensino baseado em regras exteriores em re-
lação àquele que é ensinado, por outro, o ensino baseado na busca de que o
aprendiz seja incentivado a forjar as regras.

Usamos tais referências para projetar um suposto “projeto educacio-


nal direcionado ao Ser escravizado no Brasil colônia” (SILVA, 2008), tendo
em vista que seus reflexos e influências são determinantes a configuração
de um sistema que faz distinção entre visões, ideias, grupos e pessoas. Atu-
almente ainda se percebe o predomínio de modelos que se impõe por
meios de regras estabelecidas de fora do Ser aprendente, naturalmente se
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 43

contrapondo aos modelos forjados junto a ele. Foram estes pressupostos


que nos permitiu debruçar sobre conflitos e tensões que afloram na nar-
rativa da historiadora Katia Mattoso (2001), ao dissertar sobre o cotidiano
do Brasil colônia. Ela narra fatos e situações cotidianas que permitem lan-
çar olhares sobre a inclusão do escravizado na produção colonial brasileira,
tendo como foco as repercussões psicoemocionais – Psicologia da Educa-
ção Matemática –, para a população. Para tanto, nos fundamentamos em
textos e autores nos permitiram versar sobre: colonialismo e coloniali-
dade; suas representações e repercussões na matemática escolar e;
ainda sobre autoestima e representações sobre o si mesmo. Ressal-
tando que buscamos alinhamento com a Lei 10.639/03. Ainda sobre
posicionamentos e escolhas, elencamos autores e obras que nos permitiu
estabelecer um diálogo entre a Educação Matemática e a Cultura Negra,
tema abordado por educadores envolvidos com os estudos sobre racismo
na Educação Escolar, especialmente Munanga (,2007); Silva (2008) e Ro-
sado (2019), entre outros. No tocante a inclusão do Ser negro no currículo
e nas práticas escolares temos um diálogo com a antropologia de Munanga
para quem a africanidade se caracteriza a partir das

numerosas semelhanças observadas em diversos aspectos da vida […] que


conferem ao continente africano uma fisionomia própria”, e “o Brasil é o maior
dos países beneficiados pelo tráfico transatlântico e também aquele que ofe-
rece diversas experiências de africanidade em todas as suas regiões (SILVA,
2008, p. 41).

Considerando ainda que a africanidade brasileira se manifesta prin-


cipalmente por meio dos usos e sentidos dados: a palavra e ao gesto; a arte
e a corporeidade; as estruturas de sociedade e poder e; as manifestações
da religiosidade, entre outras. Enquanto, do outro lado, o estudo de Mat-
toso (2001), registra procedimentos comuns na inclusão e na adaptação
do escravizado à sociedade, cujas consequências ainda repercutem no co-
tidiano da sala de aula – atingindo especialmente os estudantes negros e a
disciplina de matemática. A mesma narrativa revela como a africanidade
organizou a resistência negra, em relação: a produção, ao trabalho e ao
44 | Educação Matemática e Diversidade(s)

modelo educacional, especialmente ao tratar do processo de sociabilização


e acomodação do espírito deste. A autora descreve ainda – por meio de
uma minuciosa pesquisa documental – a organização da produção colo-
nial, partindo de um olhar mais próximo da realidade vivida pelos
escravizados. Seu estudo nos permitiu refletir sobre a educação colonial e:
suas repercussões no processo de afetividade; na reconstituição da
autoestima da população; nas diferenciações no desempenho em ma-
temática e; fazer incursões na Pedagogia Decolonizadora.
A descrição da trajetória do escravizado, conforme o estudo de Mat-
toso, inicia no cativeiro em solo africano, até a lida na produção escravista.
Mais especialmente, sobre a preparação e adaptação à produção assim
como suas condicionantes. Assim, os pressupostos educacionais de Ghiral-
delli Jr, os registros de Mattoso e as orientações da africanidade brasileira,
nos impulsionaram a constituição de um diálogo pela via da Etnomatemá-
tica, com o objetivo de perceber as diretrizes e configuração do projeto
educacional e da resistência assim como as repercussões e afetações para
a sociedade e para a população negra contemporânea.
Concluímos este primeiro tópico, convictos de que o diálogo com os
autores e obras, possibilitaram refletir sobre o projeto educacional e a pro-
dução colonial, bem como o processo de inclusão perversa do Ser
escravizado. Dele surgiu a percepção de: um projeto educacional especí-
fico; estratégias de sobrevivência e transcendência deste. Ele aponta
também para o entendimento da colonialidade brasileira, das representa-
ções sobre o si mesmo e para as diferenciações de desempenhos na
disciplina da matemática, contemporaneamente.

1.1 Sobre colonialidade, autoestima e aprendizagem.

O conceito de colonialidade defendido por Boaventura Souza Santos,


durante conferência proferida no VI Congresso Brasileiro de Pesquisado-
res Negros e Negras-COPENE de 2010, intensificou a busca por análises
acerca de produção de saber, de poder e domínio cultural nas análises
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 45

acerca de produção de saber, de poder e domínio cultural. Seguimos essa


trilha para refletir sobre as repercussões da colonialidade nos processos
inclusão a que foi submetido o africano escravizado e como eles interferem
na cognição e no ensino de matemática. Entretanto, as limitações de tempo
e espaço, impuseram que concentrássemos apenas em fragmentos dessa
narrativa, de onde selecionamos os mais significativos aos nossos propó-
sitos, especialmente as afecções psicológicas das práticas que, como regra
descrevem ações – sistêmicas – de adaptação do escravizado. Geralmente,
por meio da despersonificação e coisificação, que a autora sintetiza ao afir-
mar que o senso comum recomendava:

em primeiro lugar, sua despersonificação. Capturado – o africano podia ser


comprado, vendido, hipotecado, alugado, legado incapaz de diálogo e sem von-
tade própria – torna-se um animal de carga e gera dúvida sobre se ele possui
uma alma imortal, como a igreja lhe reconhece (MATTOSO, 2001, p.12).

Este fragmento resgata expressões como: despersonificação; incapaz


de diálogo; animal de carga e; dúvida sobre alma imortal. E, elas eviden-
ciam a mentalidade colonial e a distorção da narrativa de nação, também
revela fundamentos do projeto que caracterizam o escravizado como ser
irracional. Outro fragmento, revela que o processo supõe algo além da pre-
paração para o trabalho, pois deixa latente a intenção de tocar o espírito
do escravizado, de modo que ele aceite a condição social imposta pela pro-
dução colonial, propondo que se esmere por desempenho melhor,
inclusive com a promessa de ascensão social e até de liberdade. Segundo o
fragmento,

o horizonte é mais limitado para o escravo dos campos do que das minas ou
da cidade. Contudo, seja onde for, trata-se da única estratégia possível, pois o
negro para poder subir na hierarquia social e em seguida garantir sua liber-
dade, o escravo doméstico, mais do que qualquer outro devia praticar a
obediência, a submissão e a lealdade, virtudes essenciais do “bom escravo” da
maneira como o senhor o formou (MATTOSO, 2001, p.111).
46 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Percebe-se que as expressões: hierarquia; obediência; submissão e;


lealdade, são definidoras das qualidades desejáveis ao “bom escravo”, as-
sim como as práticas e as situações do senso comum que definem o que se
esperava da formação dada ao escravizado. Ela também destaca a respon-
sabilidade do senhor em cuidar da formação deste que era um patrimônio,
portanto um bem e um investimento a ser administrado segundo seu in-
teresse. Já outro fragmento problematiza as consequências da dinâmica
social para as representações sobre o si mesmo no Brasil colônia. O estudo
conclui que dado ao contexto, essa formatação do escravizado deve ser
analisada na perspectiva da psicologia, pois segundo a autora é:

inegável que a própria sobrevivência do homem preto depende absolutamente


de sua “repersonificação”, de uma certa aceitação de sua posição no corpo so-
cial; a pergunta torna-se então uma questão essencial e ganha um sentido todo
novo […]. Este ajustamento dependerá das relações que o escravo estabelecerá
com seu novo ambiente, onde as qualidades do senhor, se seus familiares e de
seus apaniguados terão papel igual ao das qualidades individuais do próprio
escravo e do grupo de escravos entre os quais passa a viver (MATTOSO, 2001,
p.102).

As expressões em destaque revelam os objetivos dessa conformação,


especialmente a afirmação acerca da sobrevivência do escravizado depen-
der dele aceitar sua posição no corpo social, as qualificações e os valores
impostos pelo senhor e seus familiares, dos apaniguados e do grupo entre
os quais passaria viver. O último fragmento descreve fundamentos da edu-
cação dos escravizados, mas também registra uma contrapartida que
permite vincular a resistência ao modelo imposto de fora. Elas descrevem
que os laços entre os cativos constituíam ações que se desembocaram no
surgimento de uma linguagem própria, ou seja, como parte de um movi-
mento educacional que se dá a partir de normas internas ao grupo,
conforme a autora é:

possível imaginar que o cativo fizesse amizade mesmo que timidamente com
os companheiros de infortúnio[…], de cativeiro ou de travessia. Ligações du-
radouras poderiam se estabelecer. Essa amizade representava para o escravo
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 47

o primeiro passo para uma forma de isenção social, mesmo que fosse fraca.
Aquele que era encontrado nas primeiras horas de cativeiro dava-se o nome
de amigo malambo. A amizade assim criava verdadeiros laços de solidarie-
dade, acarretando intensas obrigações de ajuda (MATTOSO, 2001, p. 100).

Concluímos daí que a narrativa ofereceu elementos acerca das práti-


cas e produção colonial que permitem interpretar o processo de inserção
e acomodação do escravizado como um movimento educacional específico.
Sendo assim, é possível concluir que as práticas sistêmicas de conformação
caracterizam o projeto, cujo objetivo era incutir nas mentes a condição de
inferioridade intelectual social e cultural do escravizado, o que justifica in-
corporar a dimensão psicológica da colonialidade na reflexão. Neste
contexto, o diálogo entre Silva e Munanga (SILVA, 2008) descreve as per-
cepções sob a perspectiva do aprendente para refletir sobre sociedade e
poder, política e intelectualidade, tendo em vista as consequências que re-
percutem na constituição, na representação e nas contribuições das
culturas africanas e afrodiaspórica para a narrativa de nação brasileira.
Ainda no mesmo sentido, o diálogo conclui que “todos os africanos
tinham uma civilização em comum” e “em segundo que todo africano deve
lutar em conjunto” (MUNANGA, 2007, p. 13), portanto a africanidade bra-
sileira é relevante às reflexões sobre colonização e colonialidade,
especialmente porque a solidariedade e as ações coletivas dialogam o
tempo todo com as pessoalidades, não só no processo de organização so-
cial, mas nos movimentos de sobrevivência, resistência e transcendência.
Segundo Oliveira (2003) tais movimentos ocorrem por meio do confronto,
da assimilação ou do sincretismo. Diante do que concluímos: o ambiente
colonial impôs ao africano escravizado e a seus descendentes dois modelos
educacionais, um nos moldes do Educere, e outro nos moldes do Educare.
Também concluímos que as culturas e os valores civilizatórios trazidos pe-
los africanos foram sistematicamente reprimidos, com o objetivo de
eliminar cosmovisões e representações sobre o si mesmo – do escravizado
e seus descendentes –, são ações sistematicamente usadas para reprimir
emoções e sentimentos ligados a identidade e ao pertencimento ancestral,
48 | Educação Matemática e Diversidade(s)

que ainda hoje repercutem na aprendizagem escolar das populações bra-


sileiras.
De outro ponto de vista, o sentimento de pertencimento, os vínculos
e o reconhecimento da identidade ancestral, foram novamente corrompi-
dos pelo projeto de higienização na virada do século XX, que objetivava o
clareamento da população. Nota-se que novamente a elite brasileira bus-
cou respaldos identitários em elementos exteriores ao seu DNA, na
tentativa de encaixar-se em ideal de sociedade que não condiz com sua
formação, trajetória e movimentação no espaço e tempo. Concluímos,
complementarmente que do ponto de vista das populações negras a colo-
nialidade trouxe como resultantes históricos: tensões, conflitos e
desarmonias que levam a condutas diferenciadas no âmbito da Educação
Básica. Destacadamente na disciplina de Matemática, onde todos os refe-
renciais acompanham uma linha de evolução que vai da Antiguidade da
Mesopotâmia até a Modernidade Eurocêntrica. Neste caso, cabe ao conti-
nente africano apenas afirmações acerca de: o rio Nilo ter dado vida a
geometria; as pirâmides do Egito e; algumas referências aos árabes que
muito contribuíram para a ciência moderna.
Concluirmos, por fim, que é factível pensar a omissão dos povos e
culturas africanas como um fator determinante ao desempenho escolar de
pessoas e grupos que não se veem como produtores de conhecimento, o
que lhes impõem bloqueios referenciais que arrastam ao longo da vida es-
colar, pois afetam a existência do Ser negro. No entender de D’Ambrósio
(2005, p. 42)

um indivíduo sem raízes é como uma árvore sem raízes ou uma casa sem ali-
cerces. Cai no primeiro vento! Indivíduos sem raízes sólidas estão fragilizados,
não resistem a assédios. O indivíduo necessita um referencial, que se situa não
nas raízes dos outros, mas, sim, nas suas próprias raízes. Se não tiver raízes,
ao cair, se agarra a outro e entra num processo de dependência, campo fértil
para a manifestação perversa de poder de um indivíduo sobre outro.
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 49

Entendemos que do ponto de vista da Educação Matemática, esta


afirmação por si, justifica as nossas incursões no campo da Pedagogia De-
colonizadora.

2 Por uma pedagogia decolonial e negra

Na obra “Afrotopia” (2019), Felwine Sarr reafirma a modernidade oci-


dental como resultante histórica que concebe a emancipação do indivíduo em
relação aos valores oriundos da sensibilidade e da tradição cultural em favor
da objetividade que se fundamenta na Razão instrumental para fazer leituras
e análises da sociedade, da política, das culturas e indivíduos. Suas teorias,
conhecimentos, saberes – científicos e tecnológicos – passam a ser paradig-
mas de uma verdade universal que, por sua vez, interpreta o humano como
parte de uma engrenagem a ser incorporada a máquina de produção capita-
lista que ascende ao mesmo patamar da ancestralidade, da tradição e de
Deus, dissociado o saber racional da natureza e do divino, inviabilizando e a
neutralizando os conhecimentos oriundos de “outros” povos e culturas.
Ainda sobre modernidade e educação, Sarr (2019) afirma que o filó-
sofo Jurgen Habermas, ao perceber que o sujeito de direitos e liberdades,
se tornou escravo das contradições sociais geradas por um desenvolvi-
mento alicerçado apenas na Razão instrumental, concluiu que ela é um
projeto inacabado, portanto, aos indivíduos retomar as rédeas do processo
para que não se perca a própria humanidade. No mesmo sentido, a crítica
de Sarr (2019, p. 30) reafirma que “a metanarrativa de um progresso da
humanidade movido pela Razão instrumental entrou em colapso após a
Grande Depressão, Auschwitz, Hiroshima e o Gulag”. Os filósofos filiados
à corrente pós-moderna, de modo geral, colocam a obrigação de pensar a
realidade desde outros pontos de vista, um fenômeno que se caracteriza
pela possibilidade de análises mais subjetivas acerca da realidade que en-
volve o mundo globalizado.
Como regra, eles propõem a reinterpretação das leituras; das afec-
ções políticas, sociais e psicológicas das formulações modernas; das
50 | Educação Matemática e Diversidade(s)

demandas sociais e de grupos tradicionais, na perspectiva de modelos que


incorpore as necessidades e anseios de pessoas e culturas oriundas dos
grupos de minorias políticas – especialmente os negros e os habitantes
primeiro da terra de Pindorama. Apesar dessa percepção, a Razão Instru-
mental continua como referencial de verdade e totalidade transcendente,
acentuando a crise civilizatória que fragiliza o indivíduo não reconhecendo
epistemes oriundas das tradições. Neste contexto surgem reflexões em
torno da necessidade de a educação incorporar formulações, saberes e fa-
zeres tradicionais não eurocêntricos, na perspectiva de reparar efeitos
políticos, sociais e psicológicos consequentes da modernidade. Assim, na
esteira dessas proposições e percepções enquanto educadores matemáti-
cos. Também buscando atender as determinações da Lei 10.639/03 e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais. Vale dizer complementarmente que esse conjunto define a trilha, os
modos e as maneiras de tratar a questão racial na sala de aula e na educa-
ção escolar.

2.1. Decolonialidade e aprendizagem matemática.

Os estudos sobre decolonialidade ganharam visibilidade entre os pes-


quisadores negros depois da conferência de Boaventura Souza Santos no
VI-COPENE, entretanto o tema já vinha sendo explorado na América La-
tina. Este é o caso da Professora Catherine Walsh que conceituou o termo,
segundo descreve o professor Telmo Adams (2013), em suas impressões
sobre “O pedagógico e o decolonial: caminhos entrelaçados”. A obra que é
composta por textos propositivos e diálogos entre a pedagogia libertadora
de Paulo Freire e os estudos coloniais de Frans Fanon, no primeiro caso
justificado pela interpretação de que o pedagógico:

significa o conjunto de práticas, de estratégias e de metodologias com as quais


se fortalece a construção das resistências e das insurgências. Para além dos
espaços escolarizados e do sentido instrumentalista de ensino e de transmissão
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 51

do saber, essas práticas colocam-se a serviço de lutas sociais, políticas, ontoló-


gicas e epistêmicas de libertação. (ADAMS, 2015, p. 586)

Quanto aos estudos coloniais, compreendido como um conjunto de


obras que versam sobre os efeitos do colonialismo – no corpo, na alma e
as representações sobre o si mesmo – nos povos colonizados, sobre as re-
sistências à opressão e sobre imposição cultural promovida pela sociedade
e produção. A autora afirma que o intuito de estudar a obra de Fanon ad-
vêm da possibilidade de investigar:

“uma epistemologia fanoniana que aponta para conhecer a forma em que o


sujeito colonizado interioriza seu processo de colonização criando assim as
condições de não-existência” a partir da “problemática de racialização e de de-
sumanização” […] para assim “descrever e narrar a situação de colonização e
impulsionar e revelar a luta anti e decolonial” (WALSH, 2013 apud ADAMS,
2015, p. 586).

Ainda sobre a conceituação, o professor Adams entende que ela se


justifica também pelo posicionamento crítico das obras e dos autores com
relação ao colonialismo e aos projetos educacionais modernos, além do
comprometimento deles com as lutas dos povos colonizados pela humani-
zação de seus corpos, alma e representações sobre o si mesmo, libertando-
se do monopólio do pensar eurocêntrico. Adams (2013, p. 586) descreve
ainda que a autora conceitua as Pedagogias Decoloniais como resultado
das convergências entre os autores e,

em função do seu sentir pedagógico e político, dois intelectuais comprometi-


dos com as lutas de libertação e de descolonização, apontando contribuições
importantes para a educação intercultural crítica e decolonial. Walsh sinaliza
dois pontos de partida complementares: o pedagógico em Freire e o problema
colonial em Fanon, ambos propondo a luta decolonial, de libertação e de hu-
manização.

Em seguida, o autor reafirma que Walsh busca definir decoloniali-


dade a partir da supressão do “s” na palavra descolonizar como forma de
distinguir,
52 | Educação Matemática e Diversidade(s)

o significado do “des” em castelhano, que poderia dar a entender um simples


“[…] desarmar, deshacer o revertir de lo colonial. […]. Con este juego lingüís-
tico, intento poner en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad,
sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistir, transgre-
dir, intervenir, insurgir, crear e incidir” (WALSH, 2013, p. 24-25 apud ADAMS,
2013, p. 585).

Sobre pensamento decolonial, Adams incorpora o conceito para pen-


sar modelos que tenham base na libertação e autonomia do indivíduo e o
expande para a Pedagogia Decolonial, um conjunto de práticas, estratégias
e metodologias “com as quais se fortalece a construção das resistências e
insurgências. Para além dos espaços escolarizados e do sentido instrumen-
talista de ensino e transmissão do saber, essas práticas colocam-se a
serviço de lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas de libertação”
(ADAMS, 2013, p. 585). Conduzindo a reflexão para a reparação dos efeitos
da colonialidade – por meio de mecanismos, estratégias, práticas e meto-
dologias de luta – e seu poder político sobre os povos subalternizados, seus
conhecimentos, seus corpos e suas almas.
Incorporamos o conceito, relacionando-o aos fundamentos e mani-
festações da africanidade brasileira e da etnomatemática para refletir com
a dignidade devida, o acento dos indígenas e negros na narrativa de nação
brasileira. Reafirmando a necessidade de a educação escolar assumir ati-
tudes que revertam os efeitos da colonialidade que insistem em negar a
Razão sensível, presente na cosmovisão indígena, na africana e na afro-
brasileira. Essa omissão sistemática gera traumas e mascaramento na nar-
rativa que interfere no desempenho escolar, na narrativa de nação e nas
representações sobre o si mesmo dos brasileiros. Objetivamos, com isso,
nos alinhar também aos movimentos de resistência cultural, na intenção
de continuar sendo, sentindo, fazendo, pensando e vivendo.

3 Pedagogia decolonizadora e africanidade: uma experiência.


Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 53

Uma educação promissora, eficiente, igualitária nas sociedades em


transição a nosso ver subentende a inserção da história, dos saberes e fa-
zeres culturais do povo, pois o: “indivíduo necessita de um referencial que
situa […] suas próprias raízes. Se não tiver raízes, ao cair, se agarra a outro
e entra num processo de dependência, campo fértil para a manifestação
perversa de poder de um indivíduo sobre o outro (D´AMBRÓSIO, 2005, p.
42). Desta afirmação buscamos consonância com as propostas de restau-
ração da dignidade dos povos colonizados, reconhecendo e respeitando
suas raízes e; restabelecendo os elos com a própria historicidade, o que
significa libertar-se da dependência e transferência do poder sobre suas
representações. Complementarmente, acompanhamos Oliveira e Candau
(2010) ao interpretarem o pensamento dominante como objeto de cons-
tantes questionamentos diante outras histórias e pensamentos que
demarcam os esforços – contra a não-existência, a existência dominada e
desumanizada – para tornar visíveis cosmovisões distintas da cosmovisão
e lógica hegemônica.
Nesta trilha, a Pedagogia Decolonial e a Etnomatemática deram vida
a uma vivência na Escola Municipal de Ensino de Fundamental – CEU Par-
que Anhanguera, locada no Bairro de Perus, Zona Oeste da cidade de São
Paulo, uma região que não conta com o devido aparelhamento público
para atender crianças e adolescentes. Esta percepção quanto a realidade e
o Projeto Político Pedagógico da unidade “Diversidade: A diferença nos
une”, que admite práticas diversificadas e emancipatórias além do tradici-
onal eurocentrismo, hegemônico e padronizado foram fundamentais ao
projeto. Assim, após ouvir inquietações de meninas e meninos – na maio-
ria negros – sobre a não existência de matemática africana ou produzida
por negros estar ligada a falta de inteligência que os impossibilita de atua-
rem na área, veio a percepção de uma falta de representatividade que
intervem no desempenho escolar deles, daí a importância de destacar as
culturas indígenas e africanas na formação da nação, pois ela também con-
tribui com a constituição das identidades e o respeito a nossa diversidade
cultural e fenotípica.
54 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Realmente, os anos de convívio com os modelos conversadores da


Educação Básica, suas aprendizagens sistematizadas, padronizadas e pau-
tadas na memorização; na repetição de procedimentos
descontextualizados, sem reflexão sobre perspectivas distintas a eurocên-
trica. Foi o que mobilizou a inclusão de saberes e produções africanas e
afro-brasileiras na disciplina, ou seja, para desconstruir a crença na infe-
rioridade intelectual dos negros, podendo assim contribuir com
(re)construção e a (re)significação da autoestima dos estudantes ao olhar
para a ciência, a arte e razão. Um prisma com potencial de atuar na supe-
ração do baixo rendimento e na ampliação do sucesso escolar dos
estudantes negros e não negros da região em debate. Entendido que tais
percepções e constatações foram desencadeadoras das vivências, como
parte de uma atuação decolonizadora. Sendo assim, resolvemos por bem,
reproduzir o texto a transcrição direta do relato que inicia do seguinte
modo:

Atividade – I: sobre identidade e autoestima

• A primeira atividade proposta aos alunos foi: desenhar o autorretrato e identificar


a cor do lápis que melhor se aproximava do tom da pele, teve aluno indeciso, cons-
trangido e um grupo, aparentemente, tranquilo quanto a escolha. As justificativas
para a escolha foram distintas, evidenciando certo incômodo3 de algumas crianças
que se perceberam “não brancas”.
• Na roda de conversas que se seguiu, percebeu-se declarações do tipo: “se pudesse
eu mudaria a cor da pele”, de onde constatou-se que realmente era necessário tra-
balhar mais profundamente a diversidade étnico-racial brasileira, para entender,
reconhecer e aceitar as raízes identitárias de cada um. Assim a abordagem da te-
mática “saberes acrescenta valores ao indivíduo” foi essencial para desconstruir a
crença que os africanos não produzem conhecimento e a percepção sobre África,
atuando no preconceito, considerando outras vertentes culturais e artísticas que
potencializam a identidade e o reconhecimento dos saberes e identidade do local
além da existência do “Outro”.
• Concluiu-se daí que antes da colonização, as nações africanas tinham tecnologia,
agricultura, mineração, construção, metalurgia e artes, entre outros

3 – A constatação dos dados apresenta-se no trabalho de doutorado em andamento de Souza


Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 55

conhecimentos técnicos relativamente avançados. E, que subsistiam nas socieda-


des africanas instituições, modelos de organização e ideias governamentais
próprias.

Atividade – II: sobre geometria e técnicas construtivas

• O exemplo, de Teodoro de Cirene e a passagem de Platão pelo norte da África foi


o movimento desencadeador de uma atividade com triângulos retângulos e a es-
piral de Teodoro. Eles também pesquisaram as construções do antigo Egito e
alguns conceitos geométricos básicos.
• Houve pouco envolvimento inicial, talvez por eles não perceberem relações com a
realidade da população brasileira. Então, compreendeu-se a necessidade incluir no
diálogo a formação da população brasileira. O estudo do mapa MÚNDI, ajudou na
problematização e questionamentos relacionados aos continentes e seus povos.
Também dialogou-se sobre a vinda dos africanos escravizados no Brasil, as razões
do processo e a crueldade sofrida. Também pesquisamos as regiões da África, as
diversidades culturais, os modos de vida, o trabalho, as técnicas construtivas e
imagens as moradias, em adobe, pau a pique e taipa de pilão no continente africano
e no Brasil.
• Após a vivência, fizemos a planta baixa (perímetro e área do espaço escolar); no
laboratório, construímos casas utilizando bambu, argila e palha, usando técnicas
construtivas do período colonial. Também visitamos a comunidade ao redor, para
registrar técnicas usadas nas distintas moradias, construções irregulares ou inaca-
badas, saneamento básico e coleta de lixo.
• A atividade, mobilizou professores que propuseram análises e interpretações dos
poemas “navio negreiro” e “periferias”, que em seguida foi representado no teatro
para as outras crianças, com discussão pautada na crítica a versão única dos relatos
sobre a abolição e acerca do que os libertos fizeram após 13 de maio de 1888. As
reflexões e posicionamentos pertinentes, que foram concluídos com a música “14
de maio”.

Atividade – III: sobre mulheres negras nas ciências e


representatividade

• Na segunda parte das vivências, foi pedido para que apontassem “um astronauta”
e “um cientista” entre várias imagens de pessoas. Neste caso as respostas repro-
duziram um pensamento e um comportamento social arraigado em preconceito
de gênero e raça, destacando os astronautas e cientistas, pois todos os escolhidos
56 | Educação Matemática e Diversidade(s)

eram homens brancos. As mulheres negras nunca eram associadas a profissões do


tipo: engenheira, astronauta, cientista ou médica.
• Depois das respostas, assistimos um vídeo de um banco que trata da representati-
vidade negra. Eles entenderam que responderam a profissão das pessoas pelas
características físicas. As indagações sobre representatividade negra, reafirmou a
ideia de que os descendentes de escravizado não aparecem na autoria das ativida-
des ou realizações as quais estão incumbidos, e por isso, pouco sabemos de obras
com autoria dos escravizados.
• O resgate histórico – investigado e analisado nos objetos de arte, imagens fotográ-
ficas, monumentos e produções arquitetônicas – possibilitaram detectar símbolos,
marcas, traços, próprios de povos africanos escravizados se revelando em produ-
ções arquitetônicas brasileiras.
• Concluímos que encontramos poucas pessoas negras ocupando espaços de desta-
que, pois o racismo impregnado na sociedade, retardou a participação do negro
em diversas áreas do conhecimento, principalmente nas ciências exatas. E, que
uma sociedade justa e igualitária necessita que todos tenham possibilidades. Por
isso, lutamos para desconstruir imagens negativas do negro na educação, no mer-
cado de trabalho e na sociedade. Também que é preciso respeitar o fato de sermos
a junção de três matrizes civilizatórias: africana, ameríndia e europeia. Por isso,
devemos conhecer e aceitar nossas raízes culturais, fortalecer nossa identidade e
potencializar a existência do país enquanto nação, mas a inserção do Ser precisa
estar em consonância com a aceitação da diversidade.
• Na sequência dialogamos sobre intelectualidade negra, profissões e espaços possí-
veis, independentemente da origem; sobre os efeitos da globalização e a
importância de acreditarmos em nossa potencialidade e capacidade de desenvol-
vimento; sobre a aceitação das identidades, estabelecendo vínculos com as raízes
culturais; sobre a aceitação da herança cultural africana, na formação do Brasil.
Ainda, assistimos os filmes, “O menino que descobriu o vento”, “Estrelas além do
tempo” e “Pantera negra”, obras que trazem no elenco, negras e negros, reconhe-
cidos pela potencialidade e intelectualidade, o que motivou, estimulou, incentivou
a reconstrução de outro olhar, não só das crianças negras, mas de todas as outras,
quanto aos valores desenvolvidos pelos povos de pele preta.

3.1. (Re)construir e (Re)significar conhecimentos

Os autorretratos, elaborados no início e no fim da vivência – com a


identificação do lápis que melhor aproximava da cor e tom da pele – cons-
tituiu um movimento que possibilitou observar transformações
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 57

significativas no comportamento dos estudantes. Eles, que no início de-


mostravam grandes dificuldades com a escolha da cor de pele, no final
mostraram um brilho no olhar que acompanhado de um discurso firme
sobre identidade racial, por meio do qual se colocavam sem receio. Tam-
bém demonstraram um interesse maior nas aulas e nas atividades, sem se
preocupar com comentários e reprovações. Consequentemente, eles tor-
naram mais fácil as análises acerca da vivência, visto que antes a maioria
demostrou ter uma imagem distorcida de si mesmo.
No que diz respeito as atividades, fazer da matemática algo vivo ao
lidar com situações reais no tempo [agora] e no espaço [aqui], refletindo
e questionando os acontecimentos presentes (D´AMBRÓSIO, 2005, 46).
Essa integração de saberes e fazeres, permitiu mergulhar nas raízes cultu-
rais dos estudantes, propiciando a possibilidade de fazer aflorar a
criatividade, de experienciar ideias sem regras, sem procedimentos prees-
tabelecidos e livre de julgamentos ou padrões estéticos sociais. Percebemos
também a importância de destacar a diversidade cultural e as tradições na
formação de uma civilização, transcultural.
Essa perspectiva, permitiu fugir de definições, regras e procedimen-
tos, desenvolvendo um olhar mais investigativo ao incorporar, por
exemplo, os jogos africanos às atividades. Também demonstramos alguns
padrões geométricos presentes em tecidos africanos, fizemos incursões
pela geometria fractal, pela arquitetura e técnicas construtivas do conti-
nente negro. Tudo isso, por meio elementos culturais que valorizam
saberes negros, objetivando restaurar e elevar a autoestima dos estudan-
tes, por meio de elementos que destacam a representatividade do povo a
qual pertencem.

4 Considerações

A experiência de elaborar estratégias, produzir conhecimentos e sa-


beres a partir do diálogo entre a Educação Matemática e as Culturas de
matriz africana, apreciar a inter-relações da cultura afro-brasileiras com a
58 | Educação Matemática e Diversidade(s)

arquitetura brasileira. Além de (re)conhecer e (re)elaborar a história dos


descendentes de escravizados, numa perspectiva positiva, possibilitou o
trabalho de (re)constituir a identidade do povo afrodescendente, além de
empoderar suas raízes e culturas, uma vez que a sua identidade ancestral
foi estigmatizada e oprimida. Ademais, foi possível perceber, mudanças no
comportamento e desempenho da criança, pois tese da afetividade que in-
fluência no processo de ensino-aprendizagem se mostrou satisfatória.
Dessas considerações entendemos que o docente deve incorporar as ques-
tões raciais, a diversidade, as diferentes culturas no ambiente escolar, para
que haja um desenvolvimento eficiente dos estudantes, principalmente os
estudantes negros. Um ambiente omisso, hostil e racista, promove defasa-
gem na criança negra, em relação a branca. O baixo desempenho e
rendimento, pode ser resultado de constrangimentos, de não se reconhe-
cer nas representações escolares.
A história de luta e resistência de mulheres e homens negros, reis e
rainhas africanos, se enquadram as propostas de aprendizagem significa-
tiva e comprometida com questões sociais, visto que problematizam
questões que desumaniza o Ser negro. Assim, nossa vivência demonstrou
que a Pedagogia Decolonial, tem o potencial de desenvolver seres autôno-
mos, críticos, eficientes e detentor de justiça social. Ainda sobre a vivência
pudemos concluir que a representatividade, e a inserção digna do povo
preto nos espaços sociais, além de fortalecer a autoestima, promove a des-
construção do estigma da inferioridade além de reconhece e reafirmar a
capacidade intelectualidade e honra a de existir.
Compreendemos como fundamentais as teóricas que buscam um
“projeto epistemológico novo”, uma “construção alternativa à moderni-
dade eurocêntrica”, restabelecendo elos com o passado histórico,
resgatando as raízes e os saberes ancestrais e ainda, reconstruindo a me-
mória coletiva. Nos remetendo a outra lógica, a outra racionalidade, a
racionalidade africana. Por isso, ao final da experiência, identificamos que
a aprendizagem do estudante brasileiro está associada a afetividade na
matemática. Aqueles que não se apropriam ou não assimilam conceitos
Vanisio Luiz da Silva; Valdirene Rosa de Souza | 59

matemáticos, eles são automaticamente excluídos desse universo, interio-


rizando o fracasso, a inadequação e o sentimento de culpa e desenvolvem
baixa autoestima. O sujeito passa de inadequação para invisibilidade, pois
sua presença não é notada. Se torna um alívio para escola e para si mesmo,
que se livra das cobranças que a matemática impõe, já que não lhe diz
respeito.
Sendo isto, consequências do colonialismo e da colonialidade in-
sistem em manter submissa e servil grande parte da população, negando
a estes um ensino de matemática que além de não valorizar suas raízes
culturais, lhes impõe a cultura do dominador. Deste modo, compreende-
mos que cabe ao professor de matemática voltar-se para o Ser aprendente,
pois aprendizagem da matemática está além da compreensão de conteú-
dos didáticos tradicionais. É preciso incluir outros saberes e práticas, que
garantam uma aprendizagem viva, como no exemplo da inclusão de ele-
mentos culturais, que façam sentidos ao estudante e que o ajude atuar em
questões que afetam a sociedade. Neste sentido, a pedagogia decoloniza-
dora, possibilita ampliar o olhar no que diz respeito a população negra.
Portanto, entendemos como satisfatórias as abordagens e práticas pauta-
das em representatividade e que elevam a autoestima do estudante,
negados pela colonialidade.

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ras: decolonização de saberes matemáticos. In: I conferência internacional sobre
educação matemática em Angola. Dundo, 2019.
3

Aspectos culturais, sociais e etnomatemáticos no


empoderamento de uma comunidade quilombola

Romaro Antonio Silva 1


José Roberto Linhares de Mattos 2
Pedro Manuel Baptista Palhares 3
Fabrício de Souza dos Santos 4

Introdução

No final do século passado, a Etnomatemática passou a ocupar um


cenário de destaque nas discussões que perpassam pela valorização socio-
cultural no ensino da matemática. Esta temática, surgiu especificamente
na década de 70 como uma das alternativas de viabilizar o ensino, con-
frontando-se com o ensino hegemônico.
Desta forma, abarca-se a ideia interdisciplinar com as ciências da
cognição, da história, da sociologia que leva em consideração a matemática
aplicada pelos grupos culturais e sociais e reafirma que a matemática não

1
Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e doutorando em Educação Mate-
mática no Instituto de Educação da Universidade do Minho (UMinho). Professor do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Amapá (IFAP). Macapá, Amapá, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Pós-doutor pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e doutor em Ciências pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (PPGEA/UFRRJ). Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].
3
Doutor em Estudos da Criança pelo Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho (UMinho). Professor
Associado da Universidade do Minho (UMinho). Braga, Portugal. E-mail: [email protected].
4
Especialista em Gestão e Docência no ensino superior pela Faculdade de Teologia e Ciências Humanas (FATECH) e
licenciado em matemática pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA-CE). Professor de Matemática em escola
quilombola da Secretaria Estadual de Educação do Amapá. Macapá, Amapá, Brasil. E-mail: fabricio.de.san-
[email protected].
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 63

é uma ciência fechada, é uma metodologia aberta e que se aplica de forma


distintas por todos os grupos sociais.
Nesta perspectiva, acreditamos que a matemática tem se assumido,
como exemplo em neutralidade, como sendo uma verdade científica e ins-
trumento de análise e discussão do mundo físico e social.
Esta matemática, disseminada nas escolas e universidades é encarada
como sendo a prova da humanidade e que transcende culturas. Entre-
tanto, cada grupo cultural possui uma formação empírica de relevantes
conceitos matemáticos que precisam ser observados como fonte potencial
de solução de problemas e, principalmente, pela colaboração que cada es-
tado da arte pode ter, no sentido de correlacionar a realidade com o saber
escolarizado.
Alinhando ao pensamento das especificidades e peculiaridades de
cada grupo, cada região, apontamos a realidade do estado do Amapá, uma
das 27 (vinte e sete) unidades federativas do Brasil, um dos estados mais
novos da federação brasileira e o segundo menor em índice populacional.
De acordo com Sarney e Costa (1999), em 1637, a região que é hoje o
estado de Amapá foi disponibilizada a um homem português, cujo nome
social é destacado como Bento Maciel Parente. Ainda em observação às
informações apresentadas por Sarney e Costa (1999), desde 1580 estavam
unidos os reinos de Espanha e Portugal, e, portanto, não havia a questão
do limite entre suas terras na América, não se examinou se este limite es-
tava aquém ou além da linha de Tordesilhas. Bento Maciel Parente logo
começa a fazer a ocupação efetiva de sua Capitania.
No século XVIII, os franceses reivindicaram também a possessão da
área e, em 1713, o Tratado de Utrecht estabeleceu as fronteiras entre o
Brasil e a Guiana francesa que, não obstante, não foi honrado pelos fran-
ceses. Os portugueses construíram então uma fortaleza cujo nome foi de
São José de Macapá, para proteger os limites de invasão francesa.
Determinado o território, começou a crescer no século XIX, devido
ambos pela descoberta de ouro na área e por ocasião do ciclo da Borracha,
que naquele momento, tinha alcançado preços internacionais altos. A
64 | Educação Matemática e Diversidade(s)

descoberta de recursos ricos, não obstante, causou as disputas territoriais


que deram lugar à invasão francesa, em maio de 1895.
Sarney e Costa (1999), nos informa que, em 1 de janeiro de 1900, a
Comissão de Arbitragem, em Genebra, deu possessão da região ao Brasil
e o território foi incorporado ao estado de Pará, sob o nome de Amapá. Em
1945, a descoberta de grandes jazidas de manganês em Serra do Navio
tremeu a economia local. Por uma divisão territorial nova, a porção de
norte de Amapá do Rio de Cassiporé se tornou a Municipalidade de Oiapo-
que. Foi desmembrado novamente em dezembro de 1957, com o
estabelecimento da municipalidade de Calçoene.
Segundo dados divulgados pela Fundação Cultural Palmares5 no seu
Relatório Anual, no estado do Amapá, existem atualmente mais de 138
(cento e trinta e oito) comunidades remanescentes de quilombolas. Os qui-
lombos ou comunidades quilombolas são conceitos que têm sido
discutidos na contemporaneidade e, consequentemente, abordam diferen-
tes interpretações. Contudo, segundo (SANTOS, 2010), esses termos
trazem definições de grupos étnicos constituídos por população eminen-
temente negra, neste sentido, estão, em linhas gerais, relacionados à
cultura e espaço territorial afro-brasileiro.
Paralelo a essa concepção, vale mencionar que, o quilombo que vem
do termo “ochilombo”, representa núcleos de resistência à escravidão.
Isso, em especial, pelo movimento contrário ao sistema escravocrata e uma
resistência de fuga e auto-organização em grupos quilombolas, e que ao
longo das últimas décadas tem ocupado um cenário primário nas pesqui-
sas que envolvem questões relacionadas à organização e cultura de grupos
sociais, especialmente as que refletem aspectos voltados à etnociências.
De acordo com Schmitt, Turatti e Carvalho (2002), os grupos consi-
derados remanescentes quilombolas foram constituídos por diversas
formas. Especificamente no caso do Amapá, este movimento se pautou na
fuga do trabalho escravo, com destaque na construção do Forte de São

5
http://www.palmares.gov.br/
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 65

José, na ocupação de terras livres e em sua maioria isoladas, e isso se dá


até os dias de hoje, especialmente em virtude dos programas da Reforma
Agrária, na perspectiva de resultados com a agricultura familiar.
Nesta imensidão de culturas afro-indígenas, destacamos a presença
da comunidade quilombola do Maruanum. Uma comunidade localizada
na região de Macapá, capital do estado, formado pela união de várias co-
munidades Ribeirinhas em torno do Rio Maruanum.
Na comunidade do Maruanum, nos chama atenção a atuação da As-
sociação de Mulheres Louceiras do Maruanum - ALOMA, uma associação
composta por 12 mulheres, todas anciãs, com pouca ou até sem nenhuma
escolaridade e que realizam a confecção de louças à base de cerâmica de
barro, totalmente de forma artesanal e sem o conhecimento técnico cien-
tífico da produção, este artesanto se constitui em importante fonte de
renda para a associação e chama atenção pela forma e método de elabora-
ção.
Motivados pelo processo de formação dos povos quilombolas no
Amapá e considerando a forma como se dá a troca de conhecimento social
e cultural entre indígenas e quilombolas, culminando numa proposta de
cultura afro-indígena, buscamos propor um ensino da matemática pau-
tado na valorização da cultura regional, fundamentados especialmente nas
contribuições de Ubiratan D’Ambrosio.
O objetivo desta pesquisa é relacionar o conhecimento empírico pre-
sente nas atividades das louceiras com conhecimentos matemáticos.
Esperamos contribuir com a produção e venda das louceiras, adotar exem-
plos diários das atividades das artesãs, como ferramenta para o ensino da
matemática nas escolas de nível fundamental da comunidade, além de
analisar os aspectos sociais e culturais presentes no dia a dia da comuni-
dade.
Os sujeitos da pesquisa foram 12 louceiras que constituem a ALOMA,
realizada como pesquisa de campo, conduzida de acordo com Marconi e
Lakatos (1996). Os resultados fortalecem a concepção de D’Ambrosio, con-
siderando que todo grupo social tem em sua forma de vida, nos hábitos,
66 | Educação Matemática e Diversidade(s)

na cultura, aspectos matemáticos que devem ser levados em consideração


como saber propriamente dito.
Por fim, esperamos que este trabalho possa colaborar com pesquisas
que discutam aspectos etnomatemáticos como forma de valorização social
e cultural das classes oprimidas no Brasil, que fortaleça ações que apoiem
as lutas de classes, que propicie reflexões sobre o ensino da matemática
escolarizado nas regiões quilombolas do país e divulgue o artesanato das
louceiras da ALOMA.

A presença quilombola no Amapá: Um espaço de alinhamento entre


o saber empírico e o escolarizado

Munanga e Gomes (2006) afirmam que o destaque da história escra-


vocrata se converte em momentos marcados por muita luta e organização,
atos de coragem que caracterizaram o que se convencionou chamar de
“resistência negra”, cujas formas variam de insubmissão às condições de
trabalho, revoltas, organizações religiosas, fugas, até aos chamados mo-
cambos ou quilombos. De inspiração africana, os quilombos brasileiros
constituíram-se em estratégias de oposição.
No Amapá, este movimento se pautou diretamente em dois grandes
movimentos, um deles é a organização da reforma agrária e o outro pela
própria organização após a fuga de trabalhos escravos. Diante desta aná-
lise, cabe salientar que nos aspectos sociais e culturais, esses grupos sociais
passaram a sofrer influência de aspectos indígenas culminando nos dias
atuais em grande presença de uma cultura denominada afro-indígena.
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 67

Figura 01 – Mapa do Estado do Amapá – AP


Fonte.: Google Maps – 2020.

Silva (2012), apresenta um panorama da situação do Amapá, acerca


especialmente do reconhecimento de terras quilombolas.

Até 2011, foram identificadas 138 comunidades remanescentes de quilombolas


no estado do Amapá, sendo que deste universo, 30 já tem a certidão de auto-
reconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares – FCP. Destas, 03
comunidades tiveram seus títulos emitidos: Curiaú, Mel da Pedreira e Concei-
ção do Macacoari, todas localizadas no município de Macapá. Os relatórios
técnicos de identificação e delimitação - RTID das comunidades do Rosa e São
Raimundo do Pirativa já foram publicados e estão aguardando o cumprimento
da fase de contestação. Outras 04 comunidades contam RTID parcialmente
elaborados, a saber: Ambé, São Pedro dos Bois, São José do Mata Fome, Cinco
Chagas do Matapi, Lagoa dos Índios, Cunani, Engenho do Matapi e Ilha Re-
donda. (SILVA, 2012, p. 3).

Neste sentido, observamos que esses povos possuem um modo de


luta contínuo, especialmente no que tange o reconhecimento das suas ter-
ras e a valorização da sua história de luta e reorganização social, o que
reforça a necessidade dos espaços educativos se apropriarem deste con-
texto e contribuir, de forma significativa, na preservação da história.
68 | Educação Matemática e Diversidade(s)

As louceiras do Maruanum: A mulher como liderança social atuando


na coletividade singular na região

Mafra (2003) descreve que o Distrito do Maruanum, através da sua


localização na região metropolitana da capital Amapaense, como uma co-
munidade quilombola, composta por mais de dez vilas, às margens do Rio
Maruanum. A maior comunidade é a de Nossa Senhora do Carmo, consi-
derada a sede do Distrito, localizada a 68 Km da cidade de Macapá. A
Comunidade possui uma Associação de Moradores que atende aos interes-
ses comunitários, com vistas ao desenvolvimento e implementação de
ações concretas para a região.
Muito embora a posse das terras seja destinada como área quilombo-
las, percebe-se a grande influência também de povos indígenas,
obviamente fruto da fuga da escravidão dos negros no século XVIII, oriun-
dos da construção da Fortaleza de São José. Neste processo de fuga para
regiões longínquas e às margens dos rios, houve a proximidade com os
povos indígenas, que fortalece nossa tese sobre a cultura tratada como
afro-indígena.
Costa (2011), destaca que o saber das louceiras é repassado de gera-
ção em geração. As louças de barro são produzidas apenas pelas artesãs
louceiras e por seus familiares, remontam técnicas oriundas dos quilom-
bos e geram.
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 69

Figura 02 – Peças de cerâmica produzidas pelas louceiras


Fonte: Acervo Agência Amapá, 2019.

É importante destacar que as louceiras têm modos de vida simples,


são as mesmas que saem em busca do barro branco (argila) que em muitos
casos podem ser extraídos do solo em uma profundidade de três metros
em relação a superfície. Posteriormente, esse material é modelado, de
acordo com as proporções encomendadas, com o auxílio de ferramentas
específicas e comuns da comunidade como a “cuia”, objeto comum ori-
undo de uma árvore chamada coité ou cuieté, utilizado para determinar
medidas absolutas, e “cuiapéua” objeto utilizado para determinar os rele-
vos e alisamento dos entornos das peças. Após este procedimento o mesmo
é levado a queima e consolidado em peças de cerâmicas, fogões de barro,
panelas e demais louças. Nesta perspectiva, destacamos os cânticos, sem-
pre presentes nas atividades diárias das louceiras, que fortalecem a
própria manifestação do Marabaixo e, na nossa visão, transforma aquele
momento em uma espécie de ritual.
70 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Figura 03: Louceiras realizando a extração da argila


Fonte: (COSTA FERREIRA, 2016).

Reforçando as questões culturais, destacamos que após a coleta da


argila, habitualmente as louceiras ofertam uma mini-caneca ou panelinha
para “A mãe de barro”, elas acreditam, não se sabe a origem, que abaixo
dos montes com argila, existe uma entidade, a quem elas pedem licenças
para retirar o barro e transformar em fonte de renda.

Figura 04: Peças de cerâmica utilizadas como oferenda para “A mãe de barro”.
Fonte: História antiga do Amapá
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 71

A maioria das louceiras possuem pouca escolaridade, e todo saber no


fazer do artesanato é de forma empírica, em entrevista às doze louceiras,
observamos que apenas uma declarou ter ensino fundamental completo,
as demais, declararam ensino fundamental incompleto. Neste sentido, to-
das as questões voltadas para a economia da associação são realizadas de
forma empírica.
No decorrer da pesquisa, foi possível verificar que as louceiras não
utilizam nenhuma relação com o conhecimento escolarizado, nem para a
confecção do material, tão pouco no cálculo do valor dos produtos que são
colocados à venda, a exemplo da venda de duas panelas, onde uma corres-
pondia a ¾ da outra e o seu valor de mercado era 50% do valor inicial.
Quando questionadas sobre o valor, elas responderam que uma era menor
e por isso a metade do preço.
Foi possível através da pesquisa, perceber que todas as 12 louceiras
compreendem seu papel social como memória viva dos antepassados, e
observamos na fala de uma das louceiras, ao lamentar que todas as mu-
lheres que estão na prática atual, são mais velhas e que atualmente os
jovens não encontram forças para aprender a fazer o artesanato, neste
ponto, acreditamos que os espaços de troca de conhecimento, escolas, cre-
ches etc, devem se constituir como espaço de valorização cultural, a fim de
mostrar aos jovens o valor histórico das práticas desempenhadas no arte-
sanato da comunidade.

Figura 05: Produção de peças artesanais


Fonte: Acervo dos autores
72 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Figura 06: Produção de peças artesanais


Fonte: Acervo dos autores

Para Silvani, (2012):

A modelagem da cerâmica é realizada de maneira solitária, geralmente em


casa. Algumas louceiras apontaram em seus relatos o prazer que sentem em
moldar a cerâmica e, talvez por isso, prefiram fazê-la a sós, em silêncio, sem a
interferência de outros que podem lhes tirar a concentração. A confecção da
peça tem início quando, apertando o barro entre as mãos, a louceira faz uma
base plana e circular, que, disposta em uma superfície lisa, passa a receber os
roletes de barro, sobrepostos uns aos outros, dando forma à peça. (SILVANI,
2012, p. 10).

Diante do exposto, observamos um espaço com forte relação com a


África que se mistura com as práticas indígenas. Através desta pesquisa,
foi possível entender que a existência dessas louceiras, se constitui no si-
nônimo de uma economia solidária, da importância de políticas públicas
que possibilitem a correção de erros históricos com as classes oprimidas
deste país, especialmente no que tange aos aspectos de acesso à educação.
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 73

Questões etnomatemáticas presentes no artesanato da cerâmica

Clarificamos que etno, em uma análise etnomatemática de cultura, é


o espaço onde o sujeito encontra-se inserido. Sendo assim, em linhas ge-
rais, Etnomatemática pode ser vista como um ensino de matemática
pautado na valorização dos aspectos socioculturais dos sujeitos precepto-
res desses conhecimentos, ou seja, um ensino pautado na valorização dos
saberes, dos conhecimentos empíricos de determinados grupos sociais.
Observamos que, obrigatoriamente, esse ensino precisa ter um elo com os
saberes do dia a dia ou do cotidiano, em sala de aula. A proposta foi lan-
çada, inicialmente, por Ubiratan D’Ambrosio em meados da década de
1970.
No livro, Da realidade à ação: reflexões sobre educação e matemática
o autor escreve: “a incorporação de etnomatemática à prática de educação
matemática exige, naturalmente, a liberação de alguns preconceitos sobre
a própria matemática” (D’AMBROSIO, 1986, p. 42).
Quanto ao conceito de Etnomatemática, D’Ambrosio (2018) diz que:

Ao conceituar Etnomatemática, no sentido amplo, pratiquei um abuso etimo-


lógico com a apropriação “livre” de raízes gregas: techné [tica] significando
maneiras, estilos, artes e técnicas; matema significando fazer e saber, as expli-
cações, os entendimentos, o ensinar e apreender para lidar com situações e
resolver problemas de seu próprio etno, que significa o meio ambiente natural,
socioculturais e imaginário. Assim, usando essas raízes gregas, as maneiras,
estilos, artes e técnicas [ticas] para fazer e saber, explicar, entender, ensinar e
apreender [matema] no meio ambiente natural, sociocultural e imaginário
[etno], podem ser sintetizados em uma palavra composta: ticas de matema
em distintos etnos ou tica+matema+ etno ou, reorganizando a frase,
etno+matema+tica ou simplesmente Etnomatemática. (D’AMBROSIO, 2018,
p. 192).

Segundo D’Ambrósio (2003, p. 80), ”o novo papel do professor será


o de gerenciar, de facilitar o processo de aprendizagem e, naturalmente,
de interagir com o aluno na produção e crítica de novos conhecimentos, e
isso é essencialmente o que justifica a pesquisa”. Nesse encaminhamento
74 | Educação Matemática e Diversidade(s)

metodológico, requer um professor reflexivo e pesquisador, que saiba in-


cluir em sua prática pedagógica o debate sobre a diversidade cultural.
Para Mendes, (2009).

A noção de etnomatemática tem implicações claras e evidentes para a Educa-


ção Matemática, visto que pessoas diferentes produzem diversas formas de
matemáticas, o que se contrapõe ao princípio da uniformidade processual de
ensino-aprendizagem para diversos grupos socioculturais. As experiências dos
alunos muitas vezes são despercebidas pela visão formalista que o rigor mate-
mático impõe a esta disciplina. Quando o aluno é estimulado a manifestar as
suas experiências proporcionadas pela sua cultura, pela diversidade de histó-
rias que são encontradas na sala de aula, os preconceitos matemáticos são
deixados de lado e identificamos em suas culturas a riqueza de idéias que po-
dem ser exploradas. (MENDES, 2009, p. 68).

Para Mattos e Polegatti, (2012 p. 05), a percepção de D´Ambrosio e


Gerdes, descrevem a Etnomatemática, como um subconjunto da Educa-
ção, que contém a Matemática como subconjunto, conforme se pode
verificar na Figura 07.

Todos os povos têm capacidade de abstração, partindo do que lhes é útil para
sua vida cotidiana, essa abstração de conhecer em toda sua plenitude, (…), com
capacidade intelectual que constrói visões de mundo próprias de cada povo,
com conhecimentos matemáticos empíricos típicos de cada povo, geralmente
não considerados abstratos aos nossos condicionados olhares ocidentalizados.
(MATTOS; POLEGATTI, 2012, p. 05).

Figura 07: Concepção de D’Ambrosio e de Gerdes


Fonte.: Mattos e Polegatti (2012, p. 05)
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 75

Desta forma, afirmamos que a Etnomatemática, assim como outras


linhas de pesquisa de Educação Matemática, não deve ser deixada de lado,
ou encarada como aspecto inovador, pelo contrário, as mesmas devem
compor o planejamento educacional, a fim de que se perceba que é uma
ferramenta que auxilia na relação de ensinagem em sala de aula, de forma
a valorizar os aspectos presentes no dia a dia dos educandos.
Se os educandos percebem a presença da Matemática em objetos, na
natureza ou situações comuns do dia a dia, passam a vê-la como algo in-
teressante e útil, e não apenas como contas sem sentido algum para suas
vidas. Eles começam a fazer uma ponte com situações problemas presen-
tes diariamente em sua trajetória.
Vale ressaltar que as adaptações podem ser realizada dentro desse
contexto, com vista à melhorias na relação ensino aprendizagem da mate-
mática, como por exemplo, usar questões que valorizem a realidade de
cada sujeito e reforce a importância das lutas de classes, especialmente em
grupos que sempre foram oprimidos pela educação para o mercado, con-
denada por Paulo Freire. .
Brasil (2012), apresenta a Educação Escolar Quilombola como aquela
que é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e
cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade ét-
nico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro
docente, observados os princípios constitucionais. Na estruturação e no
funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada
sua diversidade cultural.
Apesar de haver certa resistência relacionada à crenças por parte das
louceiras quando se diz respeito à aprendizagem da modelagem do barro,
que para muitos é dado como um “dom” ou ensinamento passado através
de gerações, estes ensinamentos podem ser explorados dentro das salas de
aula por meio do conhecimento técnico-científico respeitando as tradições
ali existentes.
Especialmente na realidade social das louceiras, várias situações co-
tidianas podem ser incorporadas ao currículo para o ensino da
76 | Educação Matemática e Diversidade(s)

matemática, a exemplo da exploração da “cuia” como unidade de medida,


as questões que envolvem o valor dos produtos, a geometria presente nas
peças, os cânticos entoados quando estão na busca do barro, as dimensões
das “oferendas” realizadas à “Mãe de Barro”.
Ainda em análise às contribuições de Silvani, (2012):

O estudo da trajetória social das coisas revela que o sentido dos objetos não
está restrito ao âmbito da produção, mas é também determinado pela circula-
ção e pelo consumo. A análise da trajetória social da cerâmica do Maruanum
mostra que, primeiramente, a louça possui valor de uso, associada a uma fi-
nalidade prática e a um valor simbólico; em um segundo momento, a
vinculação à identidade regional e o apelo ao pitoresco agregam a ela valor de
troca no mercado; e finalmente, ela adquire valor de signo ao ser inserida no
sistema simbólico do consumidor. (SILVANI, 2012, p. 64).

De acordo com essa percepção, acreditamos que a produção das lou-


ças é uma atividade exclusivamente cultural, ou seja, sempre foram
realizadas sem um viés comercial, e apenas bem recentemente tornou-se
uma fonte de renda para as comunidades ribeirinhas no Maruanum, por
meio da ALOMA, e, neste sentido, ganhou destaque regional.

Considerações finais

O desenvolvimento desta pesquisa, propiciou a compreensão da Et-


nomatemática como uma área da educação matemática que valoriza as
diferenças, fortalece a solidez para a construção do conhecimento mate-
mático que está intimamente vinculado às tradições que, nesta
comunidade especificamente, se norteiam em especial pelo potencial das
louceiras e das tradições que coadunam as questões indígenas e quilom-
bolas.
Vale mencionar que essa pesquisa, nos mostra que é necessário opor-
tunizar compreensão por apropriação do saber dito não escolarizado, num
diálogo constante com os conhecimentos escolares, a fim de que propicie
às futuras gerações uma reflexão sobre suas origens, o contexto de luta
Romaro A. Silva; José Roberto L. de Mattos; Pedro M. B. Palhares; Fabrício de S. dos Santos | 77

onde estão inseridos, a fim de fortalecer as lutas de classes, conforme


aponta D’Ambrosio (2011), e neste contexto não se pode obstruir ou negar
a história de um educando.
Além disso, considerando, em especial, que existem poucas produ-
ções científicas que contextualizam as características do estado do Amapá
– AP, esperamos que esta pesquisa possa contribuírem e incentivar novas
pesquisas sobre etnomatemática, trazendo como foco a cultura das comu-
nidades quilombolas do Amapá. Ao mesmo tempo, divulgar os espaços
destinados à história de luta e guerra pelo qual os principais monumentos
do estado foram construídos, que fortalecem a história dos negros na cons-
trução da identidade do Brasil.
Por fim, esperamos que esta pesquisa venha somar com trabalhos
futuros nesta área e junto a isso divulgar as ações das comunidades qui-
lombolas do Amapá e reforce as concepções etnomatemáticas para um
ensino de matemática cada vez mais significativo.

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4

Rastros decoloniais em educação matemática:


saberes tradicionais e saberes escolares na prática
docente indígena

José Sávio Bicho 1


José Roberto Linhares de Mattos 2
Sandra Maria Nascimento de Mattos 3

1. Introdução

Este texto orienta-se nas relações entre saberes escolares e saberes


tradicionais no ensino de matemática na educação escolar indígena. De-
vido a isso, está inserido no campo de estudos e pesquisas em
Etnomatemática. As relações que se tem estabelecido entre Etnomatemá-
tica e Educação Escolar Indígena perpassam por diferentes referenciais
teóricos sobre a importância do respeito e da valorização aos diversos mo-
dos de explicar e conhecer na construção da escolarização indígena. Dessa
forma, o ensino e a aprendizagem de matemática na escola indígena po-
dem ser pautados pela promoção de possíveis diálogos entre distintas
formas de conhecimentos.

1
Doutor em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Rede Amazônica
de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(UNIFESSPA). Marabá, Pará, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Pós-doutor pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e doutor em Ciências pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (PPGEA/UFRRJ). Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].
3
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) / Universidade Católica Portu-
guesa. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (PPGEA/UFRRJ). Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].
80 | Educação Matemática e Diversidade(s)

O foco está em discutir contributos teóricos e práticos sobre esses di-


álogos e para discuti-los consideramos importante apresentar o que
assumimos como saberes científicos e saberes tradicionais. Almeida (2010)
traz essa discussão, na qual nos embasamos e na qual direcionamos nossos
olhares. Para Almeida (2010), a ciência é um saber particular, pautado por
métodos, regras e critérios, os quais lhes são próprios. Esses saberes evo-
luem cientificamente e com o passar da história, distanciaram-se da
história da humanidade. Isso ocorre devido aqueles conhecimentos desig-
nados ciência terem sofrido um distanciamento de outras maneiras de
conhecer, tais como os saberes oriundos dos povos tradicionais.
Esse tipo de ciência instaura-se por um método de pesquisa experi-
mental definido por parâmetros estabelecidos pela comunidade científica.
Os conhecimentos que não se enquadram nesses parâmetros são avaliados
como não científicos, e acabam não sendo tomados como corpo de conhe-
cimento válido. Essa hierarquização das ciências, estabelecida pela ciência
moderna, pauta-se por uma linguagem universal (a linguagem matemá-
tica como tradução do conhecimento validado e tomado como único e
verdadeiro), um método absoluto, uma maneira de conhecimento que
toma para si a realidade objetiva.
O questionamento ao domínio absoluto do paradigma da ciência mo-
derna leva-nos a pensar em outras tendências na maneira do tratamento
dado a dinâmica cultural tais como a interculturalidade e transculturali-
dade; e a abordagem, direcionando para o interdisciplinar na tentativa de
chegar ao transdisciplinar, como proposição de revisão da modernidade.
Estamos falando da abertura de caminhos para outras/novas construções
de saberes, negados e marginalizados. Essa crítica ao eurocentrismo re-
mete-nos a pensar em modernidades alternativas, pois de acordo com
Velho (2013) ser moderno tem várias maneiras e, ao sê-lo, não estamos
nos apartando definitivamente do modelo ocidental imposto em um pa-
cote hegemônico e absoluto, o qual não poderia desfazer-se.
O recorte apresentado neste artigo tem como objetivo investigar ras-
tros decoloniais na prática docente indígena a partir de relações entre
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 81

saberes matemáticos escolares e saberes tradicionais indígenas. Tomando


como cenário de pesquisa, a Escola Indígena Estadual Jorge Iaparrá, loca-
lizada na aldeia Manga, do povo Karipuna, no município de Oiapoque-AP.
A pesquisa, de cunho qualitativo, foi desenvolvida com a colaboração de
três professores que ensinam matemática nos anos finais do ensino fun-
damental, os quais concederam entrevistas com perguntas
semiestruturadas acerca de suas práticas pedagógicas. Partimos desses da-
dos, para analisar as relações entre saberes para construirmos reflexões
centradas na Etnomatemática e na decolonialidade.

2. Etnomatemática: para pensar o ensino da(s) matemática(s)

A Etnomatemática d’ambrosiana, a qual nos apropriamos, expressa


a relação entre matemática e cultura, por isso assume uma postura deco-
lonial, de lutas, de resistências, de insurgências contra o que está posto na
sociedade e de reafirmação de identidades, no que diz respeito aos grupos
marginalizados, discriminados ou oprimidos, como é o caso dos povos in-
dígenas. A posteriori, a Etnomatemática foi abordada por D’Ambrosio
como um programa de pesquisa, chamado Programa Etnomatemática.
Atualmente, esse programa caracteriza-se pela busca de uma teoria geral
do conhecimento (D’AMBROSIO, 2019).
D’Ambrosio (2008) utilizou três radicais gregos como recurso didá-
tico para sua explicação sobre o termo Etnomatemática. Para ele, a palavra
concebida compõe-se de etno – representando os diversos ambientes tais
como o social, o cultural e outros; matema – significando as maneiras de
explicar, entender, ensinar, lidar com, e tica (tecné) – representada pelas
formas estéticas e técnicas de lidar com o mundo. A síntese desses termos
nos dá a sua concepção, portanto, Etnomatemática “[...] significa o con-
junto de artes, técnicas de explicar e de entender, de lidar com o ambiente
social, cultural e natural, desenvolvido por distintos grupos culturais”
(D’AMBROSIO, 2008, p. 8).
82 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Com essa compreensão entendemos que os grupos socioculturais de-


senvolvem ideias, procedimentos e práticas matemáticas na relação com o
ambiente, na busca por respostas às demandas do cotidiano, na compre-
ensão e manuseio da natureza, nas suas relações materiais e imateriais, e
nas interações com outros grupos. “O grande motivador do programa de
pesquisa que denomino Etnomatemática é procurar entender o saber/fa-
zer matemático ao longo da humanidade, contextualizado em diferentes
grupos de interesse, comunidades, povos e nações” (D’AMBROSIO, 2011,
p. 17). Consequentemente, o Programa Etnomatemática está interessado
no ciclo de geração, organização e difusão do conhecimento matemático.
D’Ambrosio (2008) afirma que qualquer pesquisa, sobre grupos cul-
turais diferenciados, que utilize a Etnomatemática deve assumir como
metodologia principal a observação para analisar os saberes e fazeres des-
ses grupos. Segundo o autor, essa medida é um exemplo de utilização da
Etnomatemática, mas não é única. Assim, o professor que ensina matemá-
tica em contextos específicos pode aguçar seu olhar para observar, analisar
e compreender as práticas do grupo para o qual ensina. Mais ainda, im-
plica a compreensão dos saberes, buscando verificar o porquê da
elaboração e utilização daquele conhecimento. Essas medidas possibilitam
ao docente promover o reconhecimento, o respeito e a valorização do co-
nhecimento (matemático) produzido e utilizado pelo grupo.
Uma proposta pedagógica baseada na Etnomatemática age como dis-
positivo contra-hegemônico ao modelo tradicional de educação. Nesse
modelo o conhecimento matemático é ensinado por meio de definições,
teorias e situações expressas em livros, de forma estanque, por meio da
repetição e da memorização de conceitos e fórmulas. Nessa perspectiva, a
apropriação do conhecimento eurocêntrico forja modos de exclusão, uma
vez que seleciona os conteúdos os quais consideram apropriados para
compor o currículo escolar. A escola acaba pronunciando discursos de ver-
dades, do que se deve saber, do conhecimento tido como válido.
É possível que este contexto dominante e hegemônico, característico
da instituição escolar, esboce segregação entre os saberes ditos científicos
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 83

e os saberes produzidos e praticados por diferentes grupos socioculturais.


Mais ainda, é possível que a matemática própria de cada grupo seja vista
como conhecimento “inferior”, o qual é entendido como do senso comum,
sem cientificidade lógica e apenas utilitário. O saber matemático tradicio-
nal é resultado de longa experiência, de uma lógica pautada no sensível,
de diferentes formulações práticas que surgem das necessidades locais e
cotidianas e que demandam a produção de ideias e formas de matematizar
o ambiente. Essa matematização é geração de conhecimento, mesmo que
seja empírico.
D’Ambrosio (2011) alerta que não é intencionalidade da Etnomate-
mática rejeitar a matemática acadêmica, pois não se trata de ignorar
conhecimentos e comportamentos que influenciaram o avanço técnico-ci-
entífico da humanidade, mas sim aperfeiçoar e incorporar valores para
uma ética de respeito, solidariedade e cooperação mútuos. Para o autor, a
Etnomatemática assume como proposta pedagógica fazer da matemática
algo vivo, que utiliza situações reais para questionar o aqui e o agora pela
imersão nas raízes culturais, provocando a dinâmica cultural do encontro.
D’Ambrosio (2011, p. 47) ressalta que “[...] estamos, efetivamente, reco-
nhecendo na educação a importância das várias culturas e tradições na
formação de uma nova civilização, transcultural e transdisciplinar.
Nessa perspectiva, a Etnomatemática é fruto de aproximações entre
diversas áreas de conhecimentos, tais como História da Matemática; Edu-
cação Matemática; Antropologia; Ciências da Educação (D’AMBROSIO,
2011) e outras. O que comporta o viés interdisciplinar e o diálogo entre as
diferentes culturas. De fato, ao trabalhar com a perspectiva etnomatemá-
tica o professor deve pautar-se pela contextualização da matemática no
tempo presente, ou seja, buscar olhar para a matemática no seu momento
cultural e histórico. Com esse pensamento, entendemos as manifestações
matemáticas como um instrumento de reflexão e entendimento da reali-
dade, com atribuições de significados do dia a dia.
84 | Educação Matemática e Diversidade(s)

3. O conhecimento a partir da decolonialidade: narrativas outras para


a educação

No Brasil, as primeiras práticas após a invasão vieram sob o estigma


do poder, a colonialidade do poder. As práticas colonizadoras infligiram a
colonialidade do saber, impondo a cultura do opressor sobre às demais.
Com isso, houve o enfraquecimento da identidade, provocando a perda
dos conhecimentos tradicionais originários dos povos indígenas. Além
disso, e talvez uma das piores, constatou-se a imposição da colonialidade
do ser que invisibiliza os sujeitos, subalternizando-os, desumanizando-os.
É, por assim dizer, o apagamento da existência do ser, dos povos e grupos
socioculturais considerados inferiores. Ocorre, ainda, a colonialidade da
mãe natureza em que são retiradas as perspectivas do mundo espiritual e
ancestral desses povos, determinando a ausência de seus mitos, rituais e
de sua cosmogonia.
De acordo com Walsh (2008) toda essa dominação exige uma trans-
cendência dessa colonialidade, momento esse de promover práticas
decoloniais. Cabe aos professores e alunos pronunciarem o mundo
(FREIRE, 2019). Ao pronunciá-lo, subverte-o em atos de insubordinação
criativa (D’AMBROSIO, B.; LOPES, 2015), desvelando as culturas que fo-
ram invisibilizadas. A luta de alguns professores reverte-se em um ato
amoroso para com a educação e para com os alunos. Essa luta, centrada
na cultura, traz os modos de vida dos povos indígenas, as formas de ma-
nejo do ambiente, a própria organização interna da comunidade
tradicional, principalmente no que diz respeito à política, ao simbólico e
ao espiritual da dimensão identitária das etnias.
A modificação do olhar com a utilização da Etnomatemática, no que
diz respeito às práticas pedagógicas de professores indígenas atuantes na
educação escolar indígena, ressalta as possíveis relações entre conheci-
mentos matemáticos escolares e conhecimentos tradicionais indígenas
nessas práticas. Assim sendo, observamos a necessidade de buscar outras
reflexões teóricas que nos dessem base para novos olhares. Uma delas é a
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 85

abordagem da decolonialidade, como reconfiguração epistêmica, para um


pensar mais ampliado sobre a construção da educação escolar e dos sabe-
res no meio indígena, não como modo de operar outras verdades, mas de
conceber outra opção para que os paradigmas hegemônicos deixem de ser
referência da legitimidade epistêmica (MIGNOLO, 2017).
Embora na literatura sobre a colonialidade do poder, do saber, do ser
e da mãe natureza, apareçam tanto os termos descolonialidade e descolo-
nial como decolonialidade e decolonial, nos baseamos em Walsh (2013)
que optou pela supressão do “s” como forma de desmarcar o significado
em castelhano do “des”, para que não recaiamos no simples entendimento
de desfazer ou reverter o projeto do colonialismo. A decolonialidade pensa
o conhecimento de um modo inverso, ou seja, de reconstruir a ordem epis-
têmica na constituição do saber no pensamento colonial. Mignolo (2017)
afirma que os argumentos decoloniais tem compromisso com a busca da
igualdade global e da justiça econômica, reorientando nosso pensamento
não apenas pelos modelos da democracia e do socialismo.
Nestes termos, estamos a favor de um pensamento decolonial que
possa ressoar outras formas de conhecer, interpretar e ver o mundo. Com
efeito, entendemos a decolonialidade como um desmantelamento das re-
lações de poder e das próprias concepções de conhecimento, instauradas
durante o processo de colonização das Américas, que reproduzem hierar-
quias no mundo moderno, quer seja de raça, gênero e geopolíticas
(NDLOVU, 2017). Desse modo, a decolonialidade age como uma crítica
para pensarmos os lugares epistêmicos da produção do conhecimento pe-
los povos.
Ndlovu (2017) descortina os saberes indígenas como outra forma de
imaginar o mundo. O autor argumenta que as falhas/limites dos modos
de ver, imaginar e conhecer o mundo abriu espaço para outras formas de
saberes como tentativa de superar os problemas globais. Embora a visão
epistêmica ocidental tenha sufocado, suprimido, silenciado e relegado a
periferia, há grande potencial nesses conhecimentos tradicionais. Neste
contexto, entendemos como Ndlovu (2017) que a visão de mundo ocidental
86 | Educação Matemática e Diversidade(s)

já se configura como falsa visão de ser única e universal, tendo em vista os


discursos constituídos que consideram obsoleta a hegemonia do mundo
ocidental. Consequentemente, cabe a luta para um movimento decolonial
do saber, por outros modos de produção de conhecimento.
O que Ndlovu (2017) argumenta é que o processo de colonização se-
parou o sujeito ocidental do sujeito não ocidental, a partir da formatação
da organização do conhecimento no Novo Mundo. Então, devido a impo-
sição de poder e de saber, a produção de conhecimento dos povos
dominados passou a ser controlada pelos projetos coloniais. Nessa pers-
pectiva, Walsh (2013) assinala que uma pedagogia tomada pelo molde
decolonial torna-se parte de práticas de combate, de perseverança, de re-
sistência, de conscientização, de humanização e de desalienação. Assim, a
interculturalidade é um exercício de transgressão dos modelos inaugura-
dos pela modernidade, conduzindo outras configurações epistêmicas para
a educação e gerando espaços para outras sensibilidades de mundo e de
promover diálogos entre saberes.

4. Relações entre saberes: rastros decoloniais na prática docente


indígena em uma visão etnomatemática

Na literatura na área da Educação Matemática, nos últimos anos, di-


versos autores têm problematizado teoricamente em defesa de uma
brecha epistemológica, que possibilite o reconhecimento dos saberes ma-
temáticos próprios dos grupos socioculturais. No que converge a discussão
sobre decolonialidade no campo da Educação Matemática, é possível en-
contrarmos trabalhos como de Oliveira e Mendes (2018), Santos et al.
(2019), Tamayo-Osorio (2018), Nery, Nery e Freitas (2018), Matos e Quin-
taneiro (2019) e Giraldo e Fernandes (2019). Ainda podemos identificar
outras pesquisas no âmbito da educação escolar indígena e da formação
indígena discutidos a partir da decolonialidade, como Calderoni e Nasci-
mento (2012) e Valadares e Pernambuco (2018). A pesquisa de Bicho
(2018) investigou relações entre saberes matemáticos escolares e
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 87

tradicionais a partir da prática pedagógica de professores indígenas, cuja


reflexão teórica pautou-se na Etnomatemática e na Decolonialidade.
No sentido de enfatizar a discussão sobre o ensino da matemática na
educação escolar indígena e a formação de professores indígenas, nossa
análise aborda a valorização dos saberes tradicionais nas aulas de mate-
mática, nos baseando nos relatos dos próprios indígenas, participantes da
pesquisa. Entendemos esta valorização no sentido de um ensino da mate-
mática escolar que leve em consideração as experiências de vida, a história
e a cultura dos povos tradicionais, a partir de práticas pedagógicas pauta-
das na relação de ensino com os saberes tradicionais utilizados em sala de
aula. Corrêa (2004) afirma que tais ações pedagógicas configura a escola
indígena como espaço de pesquisa e de reflexão, de reafirmação e revitali-
zação da identidade cultural desses povos, reestruturando as relações com
outras culturas.
Ao tratar a Educação Escolar Indígena como um processo educativo
intercultural, bilíngue, específico e diferenciado, deparamo-nos com a pro-
posição que sugere o encontro entre os saberes tradicionais oriundos do
grupo indígena e os saberes científicos produzidos e disseminados pelo
eurocentrismo. Todavia, ainda se verifica que na maioria das escolas indí-
genas essa relação dá-se a partir de um projeto de dominação colonial,
quer seja pelo currículo proposto pelas secretarias de educação, quer seja
pela formação docente.
O diálogo é assimétrico e ainda vislumbra uma hegemonia dos sabe-
res. Contudo, a prática escolar de professores indígenas na escola da aldeia
Manga, formados em licenciatura intercultural, falantes da língua e faze-
dores da própria cultura, indica uma postura epistêmica que desvela as
tensões que se ancoram no domínio do saber ocidental em direção ao diá-
logo entre diferentes saberes. Essa perspectiva anuncia a equidade entre
saberes, uma vez que toma a lógica dos conhecimentos indígenas a partir
das possibilidades de inserção na escola indígena.
Com efeito, é importante pensar a prática pedagógica dos professores
indígenas como espaço de diálogo intercultural, a partir das relações entre
88 | Educação Matemática e Diversidade(s)

conhecimentos matemáticos escolares e os conhecimentos tradicionais in-


dígenas. Esses professores precisam ter em vista a reafirmação identitária
e os projetos de futuro do seu povo, mantendo as tradições e a cultura
indígena, bem como, facilitar a apropriação de conhecimentos escolares
para desenvolverem relações com a sociedade envolvente de maneira me-
nos desigual. Além disso, essa apropriação facilita-os reivindicarem seus
direitos junto aos governantes. Desse modo, essas práticas pedagógicas
transformam-se em práticas insurgentes de resistência e de conscientiza-
ção.
Diante do exposto, apresentaremos relatos de docentes indígenas, fo-
cando nossa análise no sentido atribuído às relações desenvolvidas entre
conhecimentos matemáticos escolares e saberes tradicionais Karipuna.
Relações essas, que são mediadas nas práticas pedagógicas utilizadas com
os alunos dos anos finais do ensino fundamental da Escola Indígena Esta-
dual Jorge Iaparrá. Ressaltamos que o conceito de sentido, do qual esse
trabalho se utiliza passa pelas relações desenvolvidas dentro e fora da es-
cola; entre professor, alunos e o saber e aquilo que mobiliza o aluno a
querer aprender. Portanto, tem relação com o saber e passa pela necessi-
dade de transformar qualquer atividade em atividade intelectualmente
eficaz, motivadora e significativa, despertando ou confrontando esse aluno
com a necessidade de aprender (MATTOS, 2016).
Iniciamos os diálogos, com um roteiro de entrevista, indagando se
cada professor indígena percebia haver relações entre a cultura da aldeia
Manga e os saberes matemáticos escolares. O professor PI-1 nos relatou:

PI-1: Por exemplo, metro, né? Eles usavam muito. Por exemplo, têm pessoas
que ela tem o conhecimento, ela não usa... Ela usava muito, por exemplo, coi-
sas... Não sei, que antigamente o pessoal usava muito o negócio de palmo, de
braças, no caso só o metro, mas eles tinham o conhecimento matemático. Nesse
sentido que você está falando assim? Medida mais, né? Por exemplo, usa e usa-
mos no quilo por exemplo, a saca, a farinha, os temperos, naquele tempo não,
eles usavam empalhação, eles sabiam a quantidade que eles tinham pra empa-
lhar uma farinha, eles usavam uma medida de paneiro, que eu não lembro, mas
a minha mãe falou que eles usavam muito isso, então era só isso, eles já tinham
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 89

aquela noção de... não tinha um peso adequado como hoje, né, usavam paneiro,
usavam cuias, muitas coisas, né?

Em nossa análise, ao buscarmos identificar os significados atribuídos


pelos professores, destacamos no relato de PI-1 a referência feita aos siste-
mas de medidas. Ele recorre às práticas de seus antepassados, presentes
em sua memória e em seu repertório de conhecimentos adquiridos no con-
vívio da aldeia e com os sabedores anciãos. Assim sendo, ele utiliza
elementos do cotidiano para explicar a maneira de medir, constituída pelo
seu povo socioculturalmente. Outra lembrança, é a prática de “empalha-
ção” da farinha que se constitui demarcação do saber-fazer tradicional.
Esse modo de pesar/armazenar necessitava de artefatos presentes no co-
tidiano, empregando para inferência de medida o paneiro. Essa prática de
embalagem/armazenamento da farinha caracteriza-se como uma noção
quantitativa, além da medida da cuia.
Conforme trecho da entrevista, o professor indígena elencou medidas
do Sistema Métrico Decimal do conteúdo escolar, como unidades de com-
primento e massa e fez a relação com medidas tradicionais da aldeia. No
que se refere a medidas de comprimento, indicou o metro e relatou que os
mais antigos usavam partes do corpo para realizar atividades de medições
tais como o palmo e braças. O quilograma foi a medida de massa do con-
texto escolar que o professor relacionou com a saca, a empalhação, a
medida do paneiro e a cuia para realizar práticas de medições na tradição
indígena.
A interação apresentada pelo professor PI-1 nos permite destacar co-
nhecimentos matemáticos escolares (o metro) e conhecimentos
matemáticos tradicionais (o palmo e a braça) utilizados como sistemas de
medidas. Podemos perceber a relação entre essas formas de medidas, uma
vez que a significação da matemática escolar, por este professor, é demar-
cada por saberes no contexto da escola e na aldeia. “Dessa forma, a prática
docente indígena tem uma especificidade que é ser conhecedora da própria
cultura, de suas raízes ancestrais, não só conhecer, mas fazer conhecer
90 | Educação Matemática e Diversidade(s)

para proporcionar uma educação escolar indígena libertadora”.


(MATTOS; MATTOS, 2018, p. 6).
PI-2 exemplifica uma prática de ensino de matemática pautada na
interculturalidade. Relata a experiência que relacionou o metro e a braça
marítima, ou seja, o padrão de medida de comprimento universal e a me-
dida utilizada pelos mais velhos. Em seu relato afirma que:

PI-2: A gente teve um exemplo que a gente fez de matemática aqui, por exem-
plo, medir a roça, matemática. Hoje ele já consegue medir através do metro,
que é um metro, um metro e meio, antes não, antes era altura e mais um braço
pra cima, então a gente fez essa comparação pros alunos.

PI-2 identifica práticas cotidianas em que o fazer matemático é pos-


sível de ser observado, como a pesca, a produção de farinha e a fabricação
de canoa. Em seu relato sobre a produção de farinha, ele diz: “por exemplo,
pra fazer a farinha, eu quero fazer, digamos, cinco sacas de farinha, aí eu
vou ter que colocar cinco, só um exemplo, vou ter que colocar cinco panei-
ros de mandioca na água e arrancar 10 pra terra, vai dar cinco sacas de
farinha”. E continua dizendo que se quiser fazer apenas um saco de fari-
nha, usa uma proporção de um paneiro de mandioca na água para dois.
O professor PI-2 também identificou relações entre a matemática es-
colar e a cultura indígena:

PI-2: Por exemplo, pra fazer a farinha, eu quero fazer, digamos, cinco sacas de
farinha, aí eu vou ter que colocar cinco, só um exemplo, vou ter que colocar
cinco paneiros de mandioca na água e arrancar 10 pra terra, vai dar cinco sacas
de farinha, “ah eu quero fazer só um”, põe um paneiro na água e duas pra terra,
dá uma saca de farinha. Então tudo isso tá relacionada e isso é usado ainda
hoje, tanto por quem tipo aprendeu daquela maneira e por alguns que frequen-
tam a roça junto com os pais, eles vão aprendendo dessa maneira aí. Tipo
canoa, a canoa ela é medida na polegada, então eles praticam ainda hoje.

PI-2 exemplifica que é preciso uma medida de mandioca submersa


na água para cada duas medidas de mandioca ralada para a produção de
farinha. Este preparo da farinha pode ser utilizado em sala de aula, no
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 91

ensino de razão, proporção e regra de três, contextualizando-os com as


práticas produtivas indígenas do cotidiano. O professor ressalta que os sa-
beres tradicionais são utilizados principalmente pelos mais velhos e por
quem participa das atividades de plantio, colheita e fabricação da farinha,
pela transferência de conhecimentos entre as gerações. Outro saber tradi-
cional utilizado como prática de medida é a polegada, mais uma forma de
empregar o corpo como ideia matemática no cotidiano do povo, neste caso
para medir canoa.
O professor indígena ainda relata que:

PI-2: Na roça ela é medida com braça como eu falei, né, pra demarcar, pra
roçar, ela é medida com a altura da pessoa... Depende, tem uns que coloca só
mão, tem uns que coloca mais terçado, aí isso aí, essa medida daqui até lá é
chamada de braça, é como se fosse um abraço, aí “ah não, fiz 40 por 50”, então
aí o cara já sabe tipo vai dar tantos feixes de maniva4.

Em seu relato, constatamos que para preparar a roça eles usam a


braça como sistema de medida para demarcar a área a ser utilizada. Os
Karipuna empregam duas formas para fazer a medida da braça: uma é a
braça “como se fosse um abraço”, medida da ponta de uma mão à outra
com os braços estirados na horizontal; outra é a braça marítima, que é a
altura da pessoa mais o comprimento do terçado. Assim, não tem um valor
exato para esta medida tradicional, pois depende muito das dimensões (al-
tura e comprimento do braço) da pessoa e do terçado. Esse saber indígena
é decorrente de estimativas com instrumentos de medição utilizados pelos
indígenas para o fazer cotidiano.
Diante da mesma pergunta orientada pelo roteiro de entrevista semi-
estruturada, o professor PI-3 responde:

PI-3: Questão de tecelagem, fazer paneiro, fazer esses materiais que a gente
utiliza na roça, tipiti, essas coisas. É muito. Utiliza-se muito, né? que quando
a pessoa vai fazer tem a quantidade certa de utilizar pra fazer, se colocar menos

4
Feixes de maniva, referido pelo professor indígena, trata-se de um conjunto de três a cinco galhos de mandioca
(Manihot esculenta Crantz), como forma de cultivar o plantio.
92 | Educação Matemática e Diversidade(s)

vai ficar ruim, pode até começar bem, por exemplo, o paneiro, lá na frente vai
faltar, o espaço vai ficar muito grande, vai ficar... pode ficar pequeno. Então,
tem que prestar muita atenção nisso, porque aqueles que sabem fazer, eles fa-
zem... tem uma certa quantidade que eles colocam. Não só isso, tem canoa, tem
roça. São inúmeras coisas que é utilizada a Matemática, mas muitos não per-
cebem.

Este professor relata sobre o saber-fazer do cotidiano Karipuna pos-


sível de ser relacionado com saberes matemáticos escolares,
especificamente sobre artefatos feitos por meio da tecelagem como pa-
neiro e tipiti5. Em seu relato, também chama atenção para outras práticas
que envolve matemática no dia a dia, como na canoa e na roça.
O professor indígena PI-3 ressalta que os conhecimentos dos mais
velhos devem ser preservados, reconhecendo o papel destes na educação
indígena, o que pode ser trabalhado pela disciplina Matemática.

PI-3: É na questão de, posso dizer, preservar, né, a cultura, pra os conhecimen-
tos que as pessoas têm. Porque é difícil, hoje tem algumas coisas que as pessoas
tentam inventar, mas chega uma pessoa mais... como posso dizer? Mais vivida
assim, fala, “não, a questão não é assim. Tem a questão da quantidade, tem
que fazer isso...”. Tem muitas coisas que a gente pode usar a Matemática, que
eu creio que a gente pode... a gente pode não, a gente deve preservar, né, a
questão dos conhecimentos mais antigos. Hoje não, a gente tenta meio que fa-
cilitar as coisas, modificar.

Carneiro da Cunha (2007) afirma que conhecimentos indígenas e co-


nhecimentos científicos são incomensuráveis, uma vez que estes últimos
são tomados como verdade absoluta, ao passo que este caráter universal
não se aplica aos saberes tradicionais. Mas, “Se estamos de acordo em que
saberes tradicionais e saber científico são diferentes, o passo seguinte é se
perguntar sobre quais são as pontes entre eles” (CARNEIRO DA CUNHA,
2007, p. 79). Na busca de discutir essa problemática, continua:

5
Tipiti é um artefato utilizado para extrair o tucupi, que é um sumo extraído da mandioca usado como molho na
culinária amazônica.
José Sávio Bicho; José Roberto Linhares de Mattos; Sandra Maria Nascimento de Mattos | 93

[...] Há várias maneiras, novamente, de se colocar essa questão. Uma é per-


guntar se as operações lógicas que sustentam cada um deles são as mesmas
ou não e, caso sejam, de onde provêm suas diferenças. [...] No conhecimento
científico, em contraste, acabaram por imperar definitivamente unidades con-
ceituais. A ciência moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional
usa percepções. É a lógica do conceito em contraste com a lógica das qualida-
des sensíveis. Enquanto a primeira levou a grandes conquistas tecnológicas e
científicas, a lógica das percepções, do sensível, também levou, afirma Lévi-
Strauss, a descobertas e invenções notáveis e a associações cujo fundamento
ainda talvez não entendamos completamente. [...] (CARNEIRO DA CUNHA,
2007, p. 79).

Não se trata de negarmos as contribuições da ciência ocidental para


o desenvolvimento da humanidade, mas abrir espaço para outros tipos de
ciência. Assim, D’Ambrosio (2011) diz que a Etnomatemática não tem in-
teresse em rejeitar nem ignorar a matemática acadêmica/escolar, mas
incorporar valores de humanidade, como respeito, solidariedade e coope-
ração.

5. Considerações finais

Neste artigo mostramos rastros decoloniais no ensino de matemática


a partir da prática docente indígena, no cenário intercultural que nossa
pesquisa foi desenvolvida, e revela que a coexistência de diferentes saberes
está em constante processo de interação, ou seja, provocamos o diálogo
intercultural como possibilidade de dirimir as relações de poder do conhe-
cimento não indígena em relação aos conhecimentos indígenas. Isto
implica que a escola indígena está de frente a uma demanda cada vez mais
latente, de reorganização curricular e de estratégias pedagógicas, para as
relações dos conhecimentos escolares e acadêmicos com os conhecimentos
produzidos, presentes na cultura da comunidade.
A nossa provocação está em pensar os saberes indígenas como co-
nhecimentos autênticos, uma vez que o próprio conhecimento não
indígena por si só pode não responder aos anseios dos povos indígenas.
94 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Assim, justificamos que na escola indígena, os conhecimentos da ciência


podem ser ressignificados considerando a produção de conhecimentos lo-
cais, e, neste diálogo, novos conhecimentos podem ser gerados.
Dito isto, é possível argumentar com mais intensidade sobre o papel
das várias interações entre conhecimentos, possíveis de serem defendidas
para os diálogos de saberes no ensino de matemática a partir das práticas
dos professores indígenas na escola da aldeia, uma vez que a vida social
dos Karipuna tem sido transformada cada vez mais pelas mediações e di-
nâmicas interculturais em que os mesmos estão inseridos.
Dadas: a) a relação com o município de Oiapoque, quer seja nas inte-
rações comerciais, por exemplo, quer seja nas novas relações com a
Universidade; e b) a relação com a sociedade para além da Terra Indígena
Uaçá, que os meios de transporte e os meios de comunicação tem oportuni-
zado para o intercâmbio de comportamentos, valores, atitudes, artefatos e
conhecimentos; temos que as relações a) e b) tencionam a negociação e
apropriação de saberes matemáticos como fundamentais ao processo de de-
finição do lugar dos Karipuna em um mundo globalizado, como sujeitos
locais e globais.
Dessa forma, conhecimentos da matemática escolar podem ser obser-
vados, negociados, integrados e utilizados na aldeia Manga, uma vez que
esses conhecimentos são pautados como fundamentais para os projetos de
escolarização dos jovens indígenas, já que eles precisam desses conhecimen-
tos para participarem de forma menos desigual dos exames externos e na
busca por uma vaga na universidade e no mercado de trabalho.

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5

A etnomatemática do sistema de numeração


no cotidiano do povo indígena Parkatêjê

Iran Medrada da Silva 1


Ana Clédina Rodrigues Gomes 2
José Sávio Bicho 3

1 Introdução

Ao que hoje corresponde ao território brasileiro, muito antes da che-


gada dos exploradores europeus, diversas civilizações nativas
desenvolviam hábitos e culturas próprias. O Referencial Curricular Nacio-
nal para as Escolas Indígenas – RCNEI (BRASIL, 1998) afirma que quando
os europeus chegaram ao Brasil essa população, denominada de índios pe-
los europeus, variava entre 6 e 10 milhões de habitantes. Era uma
população heterogênea, uma vez que existiam variados povos falantes de
aproximadamente 1.300 línguas. É importante que se faça esse destaque
devido a carência de estudos existentes no Brasil em relação à história in-
dígena, o que se constata pela ideia que muitos ainda têm sobre os
indígenas, como se todos fossem apenas “índios”, como se cada povo

1
Mestrando em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
Professor da rede pública do Estado do Pará (SEDUC). Marabá, Pará, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Doutora em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutorado na
Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Câmpus de Ilha
Solteira. Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Marabá, Pará, Brasil. E-
mail: [email protected].
3
Doutor em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Rede Amazô-
nica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (Unifesspa). Marabá, Pará, Brasil. E-mail: [email protected].
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 99

indígena não possuísse cultura própria, sua língua, seus costumes, seus
saberes.
Foi com o avanço da sociedade capitalista, trazida pelos exploradores
europeus, que se tornou imprescindível para os indígenas compreender o
mundo na forma como ele é operado pelos não indígenas. Com o passar
dos séculos a imposição dessa cultura externa sobre a dos indígenas pro-
vocou necessidades que não existiam para esses povos, como a realização
de atividades administrativas, de proteção ambiental e territorial, de aten-
ção à saúde, por exemplo (BRASIL, 1998), passando a exigir desses sujeitos
o apropriação de saberes como os relacionados à Matemática escolar/aca-
dêmica.
A observação sobre tal contexto motivou a realização de uma investi-
gação sobre a matemática praticada por um determinado povo e como as
relações com a sociedade externa passaram a demandar saberes ociden-
tais, e no caso desta pesquisa foi escolhido o Povo Parkatêjê, e assim
estabelecer relações entre a matemática utilizada por indígenas e a mate-
mática escolar. Assim, o objetivo da pesquisa foi identificar, através de
uma abordagem etnomatemática, o sistema de numeração presente no co-
tidiano do povo indígena Parkatêjê. A pesquisa de campo, com técnicas e
instrumentos de cunho etnográfico, foi desenvolvida a partir de conversas
com lideranças indígenas e anciãos da aldeia Parkatêjê, além da análise das
anotações realizadas nos diários de campo e relatórios de pesquisa.

2 Povo indígena Parkatejê e sua inserção comercial

Os Parkatêjê habitam a Terra Indígena Mãe Maria (TIMM)4, locali-


zada no Km 30 da BR-222, no município de Bom Jesus do Tocantins, no
sudeste do Estado do Pará. Nesta terra indígena existem 16 aldeias, nas

4
A demarcação da TIMM foi homologada pelo Decreto Presidencial n. 93.148, de 20 de agosto de 1986. Se constitui
em uma área de 62.488 hectares, na floresta de terra firme, na margem direita do rio Tocantins, entre os Igarapés
Flecheiras e Jacundá. Seu território possui limites com os municípios de Bom Jesus do Tocantins, Nova Ipixuna do
Pará, Marabá e São João do Araguaia, todos no Estado do Pará. O território é atravessado pela Rodovia BR-222, pela
linha de transmissão de energia da Eletronorte e pela estrada de ferro Carajás, de domínio da Mineradora Vale S.A.
100 | Educação Matemática e Diversidade(s)

quais vivem três povos indígenas, das etnias Akrãtikatêjê, Kỳikatêjê e Par-
katêjê, classificados pelo etnólogo Curt Nimuendajú como povo Gavião,
como ficaram também conhecidos na região pelos não indígenas. A TIMM
abriga ainda indígenas de outras etnias, como: Guarani, Karajá, Krahô,
Tembé, Kayapó, dentre outras, além de abrigar também não indígenas que
trabalham nas aldeias ou têm relações de parentesco com os Gavião. A
língua original dos Parkatêjê é um dialeto da língua Timbira, da família
linguística Jê, do tronco macro-jê (MIRANDA, 2015). Com a intensificação
das relações com a sociedade externa, o uso da Língua Portuguesa também
passou ser frequente no cotidiano deste povo.
De acordo com Ferraz (1984), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
na época chamada de Serviço de Proteção ao Índio (SPI), construiu na área
da TIMM um posto para dar suporte aos indígenas. Estes deveriam desen-
volver atividades agrícolas, caça e pesca para o seu sustento de
sobrevivência e também coletar a castanha-do-Pará, que seria comerciali-
zada pelo SPI.
Assim, os Parkatêjê logo passaram a ser usados como mão de obra
para a coleta da castanha-do-Pará, e aos poucos tiveram que se apropriar
de conhecimentos matemáticos externos a sua cultura, e dessa maneira
foram se subordinando ao sistema econômico capitalista. Segundo Ferraz
(1984), os Parkatêjê passaram a ter a necessidade de manusear os elemen-
tos matemáticos financeiros presentes nesse modelo econômico,
principalmente após perceberem que estavam sendo enganados pelos fun-
cionários do SPI e então começaram a se articular para ter liberdade para
a coleta e comercialização da castanha extraída em seu próprio território,
já que os funcionários do SPI lhes davam em troca pela castanha apenas
mantimentos como café, açúcar e alguns outros.
O depoimento abaixo, citado por um dos indígenas, sujeitos da pes-
quisa, descreve a situação e o sentimento diante de representantes de um
órgão do Estado que deveria zelar pela proteção e integridades dos indíge-
nas.
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 101

É... rapá! eles enganavam a gente! Nós entregava pra eles muitas castanhas e
eles dizia que ia vender pra nós, mas entregava pouco pra comunidade. Não
davam dinheiro, só rancho: café, açúcar, óleo, arroz e feijão. Ah! Dava facão e
foice, e dizia que era pra gente ir fazer roça, porque só tinha aquilo mesmo.
(Conversa realizada em 15/02/2019)

A percepção lógico-matemática de lideranças da aldeia permitiu-lhes


observar que os preços praticados eram mais altos do que os do mercado
regional, o saldo quase sempre era desfavorável ao castanheiro, que ficava
sempre devendo para o comprador, sendo obrigado a trabalhar mais e no-
vamente se endividar. Nas palavras do cacique Krôhôkrenhũm, captadas
por Ferraz (1984), evidencia-se como se deu a percepção dos indígenas
sobre a importância do conhecimento matemático a partir das relações de
comercialização da castanha, se referindo a forma como se dava essa rela-
ção: “Ele troca trabalho da castanha. Ele dá açúcar, medicamento, mas
coitado, nós não entendíamos” (FERRAZ, 1984, p. 50).
Depois de muitos confrontos com os coordenadores locais do SPI, os
indígenas resolveram ir até a sede da instituição em Brasília, e com várias
argumentações conseguiram depois de muitas reuniões, assumir as nego-
ciações do comércio da castanha-do-Pará, sendo que na década de 70
chegaram a ser a região de maior produção do Estado. Período em que os
Gavião foram colocados sob o sistema econômico local, passando a conhe-
cer e se apropriar de cálculos aritméticos, o que passara a ser uma
realidade para esses povos.
Apropriar-se de conhecimentos matemáticos praticados nas transa-
ções comerciais a que estavam envolvidos se fazia muito importante para
os Parkatêjê, além do domínio dos códigos linguísticos utilizados pelas co-
munidades regionais (maranhenses, paraenses, cearenses e de outros
estados).
Os processos de contato dos indígenas com os kupẽ (não indígenas)
modificaram a realidade em que viviam. Elementos da cultura ocidental
foram levados para as aldeias, muitas vezes impostos pelo governo, atra-
vés do SPI e posteriormente pela FUNAI, que interferiu drasticamente no
102 | Educação Matemática e Diversidade(s)

dia a dia dos indígenas. O dinheiro começou a fazer parte das relações de
troca dentro das aldeias.
Os Parkatêjê tinham o costume de coletar frutos na floresta e/ou cul-
tivar alimentos em seus roçados, além das práticas da caça e pesca, as
quais eram realizadas frequentemente nessa comunidade. Porém esses
costumes e seus hábitos alimentares foram se modificando a partir do con-
tato com o kupẽ e com o dinheiro ganho inicialmente com o trabalho
escravo imposto aos Parkatêjê pelos funcionários do SPI na coleta da cas-
tanha-do-Pará. Tais práticas proporcionaram ainda a realização de
compras nos supermercados da cidade de Marabá, o que exemplifica que
as situações vivenciadas pelos Parkatêjê passaram a exigir o conhecimento
sobre valor monetário e suas relações.

3 Percurso metodológico para o desenvolvimento da pesquisa

Por se tratar de uma pesquisa de cunho etnográfico, convém ressaltar


que a etnografia, conforme afirma D’Ambrosio (2008), é um método de
trabalho da Etnomatemática, que tem a observação de práticas de grupos
culturais diferenciados, o que possibilita seguir com a análise do que fazem
e o porquê eles fazem, dependendo muito, além da observação, de uma
análise do discurso, e de instrumentos de construção de dados como en-
trevistas, questionário aberto ou conversas informais para reafirmar as
observações. Diz ainda que:

A pesquisa no Programa Etnomatemática recorre a muitos métodos da etno-


grafia, etnologia e antropologia. É necessário identificar o conhecimento
matemático das comunidades e, em seguida, sistematizar esse conhecimento.
Há muitas dificuldades, de natureza epistemológica, para organizar esse co-
nhecimento. (D’AMBROSIO, 2008, p. 12).

Assim, a pesquisa de campo começou a ser realizada a partir da au-


torização do Cacique Akroarere e posteriormente com o apoio da
comunidade, principalmente dos anciãos Parkatêjê, que conhecem e ainda
praticam os saberes matemáticos próprios deste povo indígena. O
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 103

pesquisador foi muito bem recebido e conseguiu articular alguns parceiros


para o desenvolvimento da pesquisa. Convêm ressaltar que pesquisas fei-
tas em comunidades indígenas exigem, de modo rigoroso, a aprovação das
lideranças da aldeia e do povo que pertence à mesma, o que condiz com a
organização política dos indígenas.
Nesse ínterim foi realizado um levantamento bibliográfico sobre as
investigações já realizadas sobre o povo Parkatêjê, obtendo-se de certa
forma um importante acervo para a compreensão da história do povo Par-
katêjê. Na segunda fase do trabalho realizou-se a pesquisa de campo,
proporcionada pela inserção de um dos autores na aldeia Parkatêjê, uma
vez que este exercia docência em escolas indígenas há mais de uma década,
o que proporcionou vivência no campo de pesquisa e possibilitou compre-
ender e questionar, o que por sua vez possibilitou compreender e
questionar muitas situações que foram surgindo durante o desenvolvi-
mento da pesquisa. Nessa fase ocorreram as conversas e observações as
quais promoveram um entendimento mais significativo sobre a realidade
da comunidade Parkatêjê, o universo de conhecimentos desse povo a par-
tir de diálogos.
Para identificação dos saberes etnomatemáticos apresentados pelo
povo Parkatêjê, tornou-se imprescindível a contribuição dos peigreti (an-
ciões) da comunidade, velhos e velhas, além de lideranças que conhecem
e valorizam os saberes etnomatemáticos presentes na cultura Parkatêjê.
Assim, fizeram parte da pesquisa 5 indígenas anciões da comunidade. Vale
ressaltar que as conversas foram registradas utilizando-se um caderno de
anotações, considerando-se que os indígenas demonstram certo acanha-
mento junto ao gravador sonoro ou filmagem.

4 Sobre os conhecimentos etnomatemáticos no cotidiano dos


Parkatêjê

Segundo D’Ambrosio (2005), em função de sua sobrevivência, as so-


ciedades constroem estratégias e métodos que são usados para obtenção
104 | Educação Matemática e Diversidade(s)

de alimentos, moradia, dentre outros os saberes, ditos na atualidade, de


matemática se fazem presentes no sustento e desenvolvimento de todas as
sociedades. O conhecimento matemático ou técnica de explicar, de conhe-
cer, de entender nos diversos contextos culturais são chamados de
Etnomatemática.
A Etnomatemática estabelece, enquanto campo de pesquisa, como o
conhecimento é gerado, organizado e difundido social e intelectualmente
na sociedade. Com relação a esta proposta de pesquisa, a Etnomatemática
pode ser de grande importância, porque é possível entender que existem
várias técnicas, formas, habilidades (ticas) de explicar, de entender, de li-
dar e de conviver (matema) nos diferentes contextos naturais e
socioeconômicos da realidade (etno) (D’AMBROSIO, 2005). Ou seja, a Et-
nomatemática, além de relacionar com a matemática praticada por
diferentes grupos culturais, pode possibilitar, efetivamente, a relação da
matemática escolar com os conhecimentos que fazem parte da comuni-
dade indígena, no nosso caso o povo Parkatêjê.
Se por um lado, a apropriação do conhecimento matemático ociden-
tal pelos Parkatêjê foi fundamental para a sua sobrevivência ao longo do
tempo, vale dizer que depois dos contados com os kupẽ e, sobretudo, de-
pois da implantação de alguns grandes projetos econômicos em suas
terras, grande parte dessa comunidade indígena acabou deixando um
pouco de lado os saberes tradicionais, certos conhecimentos que na maio-
ria das vezes só os anciãos detêm. Ou seja, esse é um grande desafio posto
aos povos indígenas, mas também àqueles que apoiam a luta desses povos
pelos seus direitos. Se o saber matemático ocidental contribuiu na con-
quista da autonomia desse povo, possibilitando, inclusive, o
estabelecimento de relações mais igualitárias com a sociedade envolvente,
esse saber se impôs sobre elementos da cultura indígena.
Considerando a diversidade das práticas culturais dos Parkatêjê e os
conhecimentos tradicionais por eles praticados, desenvolvidos e represen-
tados em seus artefatos, evidenciam-se nitidamente alguns conceitos
matemáticos.
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 105

Os saberes e as práticas Parkatêjê constituem-se em um amplo


aprendizado, iniciando-se na infância, onde os kraré (crianças) aprendem
por meio da observação, permanecendo assim até o estágio da velhice.
Desse modo, de acordo com Maher (2006, p. 17), “A escola é todo espaço
físico da comunidade. Ensina-se a pescar no rio evidentemente. Ensina-se
a plantar no roçado. Para aprender, para ensinar, qualquer lugar é lugar,
qualquer hora é hora...” de ensinar e de aprender.
Neste texto destacamos o sistema numérico observado no cotidiano
Parkatêjê, como em pares e ímpares, sendo essa uma característica desta
comunidade, regida pelo princípio da reciprocidade. Outro ponto rele-
vante na constituição desse sistema se refere aos seus usuários, que
contam levantando os dedos das mãos de modo a formar os pares, o que
expressa a produção de um conhecimento que é gerado de forma tão sin-
gular, natural e ao mesmo tempo cultural para as pessoas que o vivenciam
cotidianamente, porém tão complexo aos olhos de quem os observa e em
suas práticas tradicionais e distintas culturalmente.
Considerando a construção desses saberes e que os mesmos se rela-
cionam com as práticas culturais dos Parkatêjê e os conhecimentos
tradicionais por eles praticados, desenvolvidos e representados em seus
artefatos, evidenciam-se nitidamente alguns conceitos matemáticos.
Para o povo Parkatêjê, nota-se que a matemática está no seu raciocínio
lógico, desde sua cosmologia, rituais, em suas relações de aferições de ani-
mais capturados em suas caçadas, peixes obtidos nas pescarias, na contagem
do tempo, na contagem dos membros da aldeia e em suas atividades diárias.
Desse modo, a matemática apresenta uma pluralidade de saberes, estando
presentes na pescaria, na caçada, na dança, na pintura corporal dentre várias
outras situações dispostas no cotidiano de uma comunidade indígena.

5 Mito de origem do povo Parkatêjê: Pyt, a unidade

Os resultados obtidos pela pesquisa partiram dos conhecimentos et-


nomatemáticos observados na comunidade indígena Parkatêjê, nos relatos
106 | Educação Matemática e Diversidade(s)

dos anciões e de lideranças deste povo. Assim, inicialmente, o estudo bus-


cou fazer uma análise das narrativas Parkatêjê, sobre sua cosmogonia,
que abordada sobre o entendimento de Japiassú e Marcondes (2001), se
refere a mitologia como fundamentação para uma teoria do surgi-
mento/nascimento do universo, pautada em mitos ligadas a metafísica
que demostra a origem do universo.
A cultura do povo Parkatêjê pode ser observada a partir de suas pró-
prias histórias, as quais são fortemente expostas em seus rituais e mitos.
Como por exemplo, no mito de origem do povo indígena Parkatêjê, no qual
o Pyt e Kaxêr conta sobre a criação dos primeiros indígenas e sua organi-
zação social e cultural dos Parkatêjê.

Os antigos contavam, todos contavam assim: me disseram que nós não tínha-
mos ainda nascido, nosso avô, nossa avó, aí aconteceu. Sol e lua, era todos
dois, começaram a fazer serviço (como sócio). Eles moravam os dois numa
casa só, aí começaram a aumentar gente. Me disseram que era só eles dois
quem aumentava gente, me disseram que o rio era pequeno, não era grota era
só pocinho. Eles moravam nesse igarapezinho. Aí diz que jabuti grande estava
no poço, ficava tomando conta. Sol matou capivara, matou dois: sol ficou mais
gordo, deu o magro para a lua. Ai sol chama mandando: jê, faz fogo! Aí fizeram
fogo, e começaram a trabalhar. Lua não queria provar o magro: jê, me dá um
pedacinho mais gordo! Então sol falou assim: espera aí. Sol disse: fica com
esse mesmo que eu já dei! Cala a boca, fica com esse mesmo. Aí ele falou de
novo; fala mais uma vez e tu vais ver, eu vou te queimar! Lua pediu de novo,
então sol pegou e jogou na barriga dele. Jogou gordura quente nele. Lua gritou,
gritou por causa do quente, correu em rumo do rio, aí caiu na água (ARAÚJO,
1997, p. 14).

As narrativas do povo Gavião, especificamente da etnia Parkatêjê, de-


mostra as suas teorias para as explicações do mundo, tendo como
resultado as suas cosmologias, que lhes dão explicações para o surgimento
do mundo e dos seres vivos, inclusive do próprio indígena e também dos
não indígenas, que na maioria das cosmologias indígenas são vistas como
uma criação ruim. Na cosmologia Parkatêjê a Lua é vista como a mulher,
e que faz ou insiste para o deus Sol cometer algum erro.
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 107

Jabuti grande estava no igarapé, tomando conta, pra não deixar a água crescer.
A lua viu o jabuti grande e pediu de novo para o sol: jê aumenta mais fogo pra
nós dois cozinhamos o jabuti e provar. Aí o sol falou :jê, deixar ficar lá, pra que
tu queres isso? Ele está lá pra água não crescer, o que tu queres com ele? Lua
teimou, viraram jabuti, aí o rio começa a correr, derrubando pau, quebrando
pau, aumentando. Então sol gritou pra lua: jê, toma! Assim que tu teimas de-
mais! É isso aí que eu falo, tu não me obedeces! Lua gritava pro sol ajudar ele,
mas o sol nem ligava. Jê, vem buscar, pra me atravessar! Sol não quis nem
ligar, foi deixando: era pra não mexer. Pinica-pau estava picando pau ligeiro e
mostrou pra lua pegar e segura, pra ele atravessar, mas não deu jeito não. Aí
o jacaré-açu apareceu nadando e concordou de atravessar lua. A lua estava
com medo: tu estás me enganando para me comer. Ai o jacaré falou: Soprinho,
eu não vou te comer não, eu vou te atravessar. Lua diz pro jacaré: Eu vou,
mas tu vais me enganar pra me comer. Kaxêre estava com medo, mas subiu
na costa do jacaré. Jacaré perguntou pra lua: Sobrinho, a minha nuca é bonita?
Lua mentindo pra ele: Vovó, teu pescoço é bem feito! Aí foi mentindo e subindo
e encostou (chegou na beira). Aí disse: jacaré, tu me atravessaste, mas tua ca-
beça é cheio de espinho! Aí danou. Sol subiu, foi atrás da lua e encontrou
jacaré, que falou: Onde está aquele meu sobrinho? Não está aqui, correu pra
lá mesmo, fugiu, não apareceu. Aí jacaré continuou procurando. Sol mentiu
pra ele: Jacaré, tua cabeça é bonita! Aí lua voltou pra encontrar o sol (ARAÚJO,
1997, p. 14).

A Kaxêre (Lua) era que sempre cometia as tolices e os erros, era vista
como uma mulher que levava o Pyt (Sol) a errar, era ela que induzia, co-
metia e ou produzia várias catástrofes no meio ambiente, e que
terminavam impactando na comunidade Parkatêjê. Sendo a Kaxêre, a cul-
pada por tudo que era ou vinha a ser de errado. Na narrativa anterior o
Kaxêre conseguiu retirar o jabuti grande dos rios, sendo que ele era quem
controlava o rio e evitava as enchentes, mas quando a lua o fez sair do rio,
iniciou a partir dali as inundações de partes das florestas.
O sistema de numeração Parkatêjê, conforme as narrativas dos Par-
katêjê, presentes e relatadas no quotidiano dessa comunidade, onde
consideram o Sol (Pyt) uma personagem responsável e de confiança. En-
tretanto a Lua, Kaxêre, é a origem de tudo que é ruim. Surgindo a partir
daí, o Pyt, o primeiro, e em seguida a primeira nomenclatura para o
108 | Educação Matemática e Diversidade(s)

numeral 1. O pyxitere, que indica um só, algo que é só uma unidade, po-
dendo ser simbolizado por um dedo, ou risco no chão, ou animal, ou uma
pessoa ou outra coisa desde que esteja só.
Devido a ordenação Pyt, que é o único, surge a nomenclatura para os
numerais diversos, presentes na vida e nas relações sociais, em seu manejo
de roçados, nas caçadas, nas pescarias, na construção de aldeia/casas, na
cultura. De um modo geral, podemos concluir que a matemática está li-
gada intrinsecamente à vida da comunidade indígena Parkatêjê.
Verifica-se que eles têm uma matemática própria e específica e que é
usada em suas relações diárias, e que eles possuem elementos da matemá-
tica envolvido em suas práticas diárias e que estão presentes nas
construções das casas e aldeias, marcação do roçado, contagem das pes-
soas, em suas festas e rituais (corrida de torras, cantorias, danças, dentre
outros).
Segundo D’Ambrosio (1986), a etnomatemática praticada pelo
branco serve para outras coisas que são igualmente muito importantes,
não podendo ser ignoradas, assim a pretensão de que uma seja mais efici-
ente, mais rigorosa ou melhor que a outra, se removida do contexto, torna-
se uma questão falsa ou falsificadora. Assim, o domínio das duas etnoma-
temáticas pode oferecer maiores entendimentos/explicações de situações
novas e de resolução de problemas.

6 Sistema numérico do povo Parkatêjê

Para Tassanari (1995), os conhecimentos dos povos indígenas estão


presentes em suas práticas diárias, podendo ser analisadas em várias es-
feras da vida social, encontra-se imbricadas de tal forma que nunca
podemos analisá-las isoladamente. Assim, o que convencionarmos chamar
de saberes ou conhecimentos matemáticos Parkatêjê são produzidos e pra-
ticados a partir de suas relações sociais diárias deste grupo e, portanto, é
uma construção social que, é modificada e ressignificadas de acordo com
o seu contexto histórico. Tais saberes estão presentes na fabricação dos
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 109

arcos e flechas, nas produções e corridas de toras (kroapei ou amjpei), na


definição do território que serão utilizados para a plantação ou constru-
ções das casas e aldeia, na pintura corporal usadas nos rituais ou festas
(brincadeiras).
Estes conhecimentos são utilizados nas atividades diárias deste povo
indígena, e mesmo não tendo termos específicos que os identifiquem, são
reconhecidos como essenciais a constituição de fazeres quotidianos dos
Parkatêjê. Sendo que esses saberes não estão nos livros didáticos que são
utilizados na escola indígena, mas fazem parte do rol daqueles que nin-
guém escreveu.
Pode-se ver a matemática presente e contextualizada nas práticas so-
ciais dos Parkatêjê, como por exemplo no cântico da aranha, Paipyxit:

Paipyxit – Paipyxit
Paikut – Paikut
Pajitô – Pajitô
Pahõtô – Pahõtô
Paikrê – Paikrê
Paikê – Paikê
Pajike – Pajike
Paitewô – Paitewô
(Letra de uma das músicas cantadas pelos Parkatêjê)

Esse cântico se refere às patas de uma aranha, onde está se quantifi-


cando as oito patas desse aracnídeo, fazendo a contagem do um até oito.
Assim, a matemática também se fez e faz presente no cotidiano do povo
indígena Parkatêjê, esta é uma situação rotineira em que podemos obser-
var a utilização de elementos matemáticos. A partir desse canto, podemos
perceber que os indígenas desenvolveram um sistema de numeração, que
podemos observar na Tabela 01, a qual demonstra o sistema de numeração
deste povo em relação ao sistema de numeração decimal.
110 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Tabela 01 – Números nos sistemas de numeração Parkatêjê e decimal


Sistema Parkatêjê Sistema decimal
Amrῖare 0
Pyxitere 1
Aikrut 2
Hitô 3
Hõtô 4
Aikrê 5

Mẽ areteti ...
Fonte: produzida pelos autores

Os saberes matemáticos estão presentes no cotidiano de todas as so-


ciedades, seja ela indígena ou não, uma vez que os números são tão
essenciais como saber ler e escrever, e que estão em quase tudo o que fa-
zemos, implícita ou explicitamente. Saber quantificar, calcular, medir e
fazer operações é instrumento bastante usado pelos membros de uma so-
ciedade. Segundo D’Ambrosio (2002, p. 22):

O cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. A todo


instante, os indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, me-
dindo, explicando, generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando,
usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios à sua cul-
tura.

Assim, o cotidiano é impregnado de saberes e fazeres próprios da cul-


tura indígena, visto que os Parkatêjê constroem sua etnociência a partir de
sua própria maneira de ler o mundo. Os indígenas realizavam suas conta-
gens usando o pyxitere, o aikrut e ou o hitô. Que se modificavam de acordo
com o que se estivesse aferindo. Ou seja, conforme o que se desejava con-
tar, fossem objetos, pessoas, animais ou outros.

O Pyxitere

Os Parkatêjê representam simbolicamente seus números através dos


dedos, gestos, gravetos ou riscos no chão, variando conforme a situação de
aferição. Antes do contato com o kupẽ, pyxitere no cotidiano indígena era
usado como: só, sozinho, a representação de um único elemento. Depois
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 111

de ter contato com a sociedade não indígena pyxitere passou a ser usado
como: só, uma, um, e ficou definido como o número 1 (um).
Então em sua relação matemática pyxitere é referência de uma uni-
dade. O numeral 1 (um), surge para definir algo que está só, sem
companheiro, como o Jê que está lá no céu sozinho, sem parceiro. Desse
modo surge a nomenclatura para o numeral 1 (um), o pyxitere.

O Aikrut

O numeral aikrut surge e passa a ser utilizado no cotidiano indígena


Gavião para aferir objetos, animais etc. Mas também são aplicados em: tu
e eu, o par como kwvê (arco) e krwa (flecha).
É importante, dizer que o par arco e flecha não tem finalidade sepa-
rados, os dois se completam e formam um par perfeito que também pode
ser contado como um par. Depois de ter contato com a sociedade não in-
dígena o aikrut passou a ser usado como: eu e tu, mais de uma pessoa
acompanhada. Sendo que agora aikrut ficou definido como o número 2
(dois). Então na relação matemática aikrut são duas unidades de um de-
terminado elemento.

O Hitô

Hitô no cotidiano indígena do povo Parkatêjê é usado pelo mais ve-


lhos da comunidade como: muitos elementos ou muitas coisas, e até
mesmo designar um grupo de pessoas. Depois de ter contato com a socie-
dade não indígena, hitô passou a ser usado como: muito, nós, mais de duas
pessoas. Sendo, no contexto rotineiro dos Parkatêjê o hitô ficou definido
como o número 3 (três). Então sua relação matemática é definida como
três unidades.
O sistema apresentado na Tabela 02, em se tratando do sistema de
números Parkatêjê, estes não utilizam os números de uma forma univer-
sal, ou seja, para aferição comum, mas utilizam para contar os animais, as
112 | Educação Matemática e Diversidade(s)

comidas. Todavia há variações na palavra de acordo com e o que se vai


contar. Primeiramente acontece uma classificação do objeto, animal ou
pessoa que se vai contar.
A professora indígena Takwyiti Hompruti Valdenilson, do povo Ga-
vião, produziu um trabalho (VALDENILSON, 2015), em sua graduação em
Licenciatura Intercultural Indígena ênfase em Ciências da Natureza e Ma-
temática na Universidade do Estado do Pará. Sendo que ela desenvolveu e
organizou uma sistematização para os numerais Parkatêjê, do um ao dez,
conforme segue:

1 – PYXIT – UM
2 – AIKRUT – DOIS
3 – HITÔ – TRÊS
4 – HÕTÔ – QUATRO
5 – AIKRÊ – CINCO
6 – AIKÊ – SEIS
7 – HIKÊ – SETE
8 – TEWÔ – OITO
9 – HUATI – NOVE
10 – ATUI – DEZ

A escola indígena passou a utilizar essa contagem como material, que


envolve a Etnomatemática Parkatêjê e que passou a ser utilizado como
subsídio para o desenvolvimento das práticas pedagógicas de Matemática.
Os saberes presentes na comunidade indígena Parkatêjê estão em suas
práticas diárias, que têm origem em suas lendas e rituais. Como por exem-
plo a lenda da origem da vida, história do Sol e da Lua, mito muito presente
para este povo, formando as regras ou normas da cultura Parkatêjê.
Para a comunidade Parkatêjê os números surgem a partir de sua or-
ganização social e necessidades, principalmente em: inferir, quantificar,
comparar, classificar, representar e medir, juntamente com os contornos
geométricos praticados por eles em suas pinturas corporais. Desse modo,
com os sistemas lógicos de pensamento, o grupo social produz objetos ma-
nipuláveis capazes de criar, modificar e re(modificar) suas produções. Esse
Iran Medrada da Silva; Ana Clédina Rodrigues Gomes; José Sávio Bicho | 113

conhecimento, a partir de informações proporcionadas pela realidade, de


acordo com sua necessidade histórica, é necessário ser repassado a outros
membros da comunidade. Assim, esse processo cumulativo compreende
estágios de geração, organização intelectual, organização social e difusão
do conhecimento (D’AMBROSIO, 2005).

5 Considerações finais

Esta pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de identificar, através


de uma abordagem etnomatemática, o sistema de numeração presente no
cotidiano do povo indígena Parkatêjê. Diante dessa proposta e com a meta
de fazer uma pesquisa de nível de mestrado referente aos saberes mate-
máticos aprendidos e praticados pelos Parkatêjê no decorrer de sua
história, ou seja, desde antes do contato com os kupẽ.
O povo indígena Parkatêjê desenvolveu saberes lógicos, chamados
pela sociedade não indígena de matemática, que foram pesquisados e de-
mostrados neste estudo. Para investigar a aquisição de saberes
matemáticos dos Parkatêjê, no contexto da sua realidade, descrevendo o
modo como a matemática é aplicada se constituiu entre esses indígenas, e
como esses conhecimentos se articula ao contexto temporal vivenciado por
esses indígenas, verificando as relações entre as apropriações de conheci-
mentos dos kupẽ e as transformações sociais produzidas, principalmente
com o contato com o não indígena, culturalmente com o aprendizado de
português os indígenas usam esta linguagem para se relacionar com a so-
ciedade envolvente e buscar seus direitos.
Com esta concepção, contextualizada neste estudo, podemos concluir
que o povo indígena Parkatêjê possuem saberes matemáticos criados, de-
senvolvidos e transmitidos entre seus membros, conhecimentos
praticados por eles em função de sua sobrevivência. Este estudo buscou e
se evidenciou como necessário para que pudesse compreender esses pro-
cessos de aprendizagem. Os Parkatêjê possuem seus processos próprios de
114 | Educação Matemática e Diversidade(s)

educação/transmissão, de seus saberes e fazeres culturais utilizados no co-


tidiano, são transmitidos por meio da oralidade e da prática.
Durante a pesquisa de cunho etnográfico, sobre os conhecimentos et-
nomatemáticos no cotidiano Parkatêjê, emergiram diversos exemplos de
situações e de saberes e fazeres – que constituem formas de lidar e agir no
mundo, próprias dos Parkatêjê, em que esses conhecimentos Etnomate-
máticos são utilizados. Os conhecimentos, aprendidos através da
observação e da experiência, são constituídos pela história, cosmologia e
modos de ser e agir no mundo próprio da cultura indígena desse grupo.
São saberes que fazem parte das vivências das crianças, estando intima-
mente relacionados ao contexto social, cultural e com o ambiente que estão
inseridas.

Referências

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katêjê. – Brasília: Ministério da Educação e Desportos; Belém: Secretaria de Estado
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Dissertação de Mestrado, Antropologia, Departamento de Ciências Sociais. São
Paulo, USP, 1984.
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JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. revis. e


ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Disponível em: <http://raycydio.yo-
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MAHER, Terezinha Machado. A formação de professores indígenas: uma discussão intro-


dutória. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Org.). Formação de professores
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MIRANDA, Adenilson Barcelos de. Os “Gaviões da Mata”: uma história de resistência Tim-
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Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História, 2015.

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VALDENILSON, Takwyiti Hompruti. Entender o saber matemático do povo Parkatêjê.


Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Intercultural Indígena) - Universidade
do Estado do Pará, Marabá, 2015.
6

Terra de passagem:
escola rural como espaço formativo de
professores que ensinam matemática

Maria Ednéia Martins-Salandim 1


Claudinéa Soto da Silva 2

Introdução

Este artigo toma como base a pesquisa de mestrado “Escolas Rurais


como Espaços Formativos: vozes de professores que atuaram na região de
Borebi/SP” (SILVA, 2018), cujo objetivo foi tecer compreensões sobre es-
colas rurais como espaços formativos de professores, a partir de narrativas
de seis professores que atuaram nessas escolas na região de Borebi- SP
entre os anos 1980 a 2000. A pesquisa em tela compõe um amplo Projeto
de Mapeamento da Formação e Atuação de Professores de Matemática no
Brasil, do grupo de pesquisa História Oral e Educação Matemática,
GHOEM. Nesse Projeto amplo visa-se mapear como vem ocorrendo a for-
mação e a atuação de professores de Matemática no Brasil em diferentes
regiões geográficas, períodos, níveis, modalidades e espaços de

1
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Rio Claro. Professora do Departamento de Matemática e no Programa de Pós-
Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus de Bauru. É membro do grupo
de Pesquisa História Oral e Educação Matemática (GHOEM). Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: maria.ed-
[email protected].
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus
de Bauru. Professora da rede municipal de Agudos (SP) e Borebi (SP). Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: claudinea-
[email protected].
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 117

escolarização – urbanos, rurais, grupos escolares, escolas isoladas, cursos


de Graduação e de formação em serviço dentre outros.

O mapeamento – ao fim e ao cabo, é um conjunto de narrativas que permitem


outras narrativas, num processo constante de criação de narrativas – que pro-
pomos é aberto, fluido, de difícil configuração, amplo, dinâmico... e, ainda
assim, nos permite compreensões, nos permite elaborar discursos sobre um
tema – a formação de professores de Matemática no Brasil – que é mais dire-
ção que ponto de partida. É um mapeamento (em sentido amplo) que não se
permite a ilusão de mapear (em sentido estrito). (GARNICA, 2013, p.44)

Nesse projeto têm sido consideradas as diferenças, diversidades e di-


mensões históricas da formação e da atuação desses professores e, de
acordo com Gomes (2014, p. 16), “Esse projeto investiga os modos como
se vem dando a formação desses professores, como eles se vêm apropri-
ando dos materiais didáticos, como vêm seguindo ou subvertendo as
orientações legais em vigor”. É na esteira dessas problematizações que
Silva (2018) tematizou as escolas rurais como espaços também de forma-
ção de professores que nelas atuaram, com foco na região de Borebi (SP).
Figura 1: Mapa do Estado de São Paulo com recorte destacando o município de Borebi.

Fonte: (SILVA, 2018, p. 14)


118 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Borebi foi municipalizado em 1990, está 300 km distante da capital


São Paulo e 40 km da cidade de Bauru (SP) – uma das maiores da região
central do Estado. Tem sua economia baseada no plantio e cultivo de cana-
de-açúcar, laranja e eucalipto em grandes fazendas e grandes empresas do
agronegócio. Embora tenha uma extensão territorial média, é um dos me-
nos populosos no Estado, tendo essa característa contribuído para que a
cidade recebesse o destaque, em 2013, como uma das menos violentas do
Brasil, com taxa de homicídio zero. Contrasta com essa ideia de região bu-
cólica os conflitos rurais relativos à reforma agrária na região, mais
intensos a partir dos anos 1990, com a presença de assentamentos e acam-
pamentos resultantes de conquistas de redistribuições de terras, sendo que
em 1985 foi instalado o Assentamento Rural Zumbi dos Palmares na re-
gião, o qual, em 1991, passou a pertencer ao munícipio de Iaras (SP). Além
do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, MST, um dos movimentos
mais ativos na região de Borebi-SP, outros movimentos como a Pastoral
da Terra, a Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), a Federação
da Agricultura Familiar do Estado de São Paulo (FAF), a Federação dos
Empregados Rurais do Estado de São Paulo (Feraesp) e lideranças de co-
munidades quilombolas, têm disparado e acompanhado processos de
reforma agrária na região. No município de Borebi-SP os assentamentos
estão organizados por lotes e embora a luta pela terra configure-se na ban-
deira desses movimentos, os assentamentos ainda são muito precários,
com infraestrutura inadequada para as famílias se estabelecerem e não há
escolas. Os alunos, atualmente, deslocam-se até a cidade para estudar,
tendo que percorrer longas distâncias.

Vozes de professores de escolas rurais de Borebi (SP)

Para compreendermos essa região e a escola rural na qual professo-


res atuaram ensinando matemática nas cercanias dos anos 1990,
consultamos fontes escritas disponíveis em escolas e na Prefeitura
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 119

Municipal de Borebi e realizamos entrevistas com seis professores que ne-


las atuaram nesse período.
Para a realização das entrevistas mobilizamos o referencial da Histó-
ria Oral, que é uma metodologia de pesquisa que envolve a criação de
fontes a partir da oralidade. Ouvimos professores que aturam em escolas
rurais, por diferentes períodos e em diferentes escolas desta região. Os
contatos iniciaram-se a partir da escola da cidade de Borebi – à qual as
escolas rurais isoladas eram vinculadas - e em conversas com pessoas mais
velhas. Encontramos poucos documentos nos arquivos da escola, uma vez
que nos foi relatado que devido a fortes chuvas o local de arquivo de docu-
mentos foi atingido e quase nada restou. A partir de um livro de ponto dos
docentes do ano de 1995, localizamos o nome de uma primeira professora,
e partir do contato com ela e de outros contatos, fomos constituindo uma
lista de nomes de possíveis entrevistados. Dentre esses nomes, os profes-
sores que melhor atendiam o perfil inicial ou que foram sendo indicados
pelos já entrevistados foram: Marisa Bueno, Maria Célia Gallo, Aparecida
de Fátima Pinto, Cleonice de Fátima Pereira Carlos, Marilene Marques
Prado e Antônio Carlos Vaca.
A professora Marisa Bueno atuou na escola rural multisseriada, 1ª à
4ª série, da Fazenda Turvinho II entre 1993 a 1998, distante 45 km da
cidade de Borebi. Sua saída se deveu à municipalização do ensino no mu-
nicípio em 1999, culminando com fechamento de salas de aula e
aumentando a concorrência no processo de atribuição de aulas, inclusive
em escolas rurais. Ela havia estudado até a 3ª série do Primário também
em escolas rurais dessa mesma região, concluiu o Magistério em uma es-
cola particular na cidade de Bauru na qual também trabalhou como
secretária a partir de 1985. No ano de 2000 atuou em outra escola rural
na Fazenda Santo Antônio do Caçador, no mesmo município e em 2001
substituiu outra professora nessa mesma escola. Em 2002 foi para a escola
da fazenda São José no município vizinho, Piratininga (SP). Enquanto atu-
ava na escola rural, iniciou o curso de Pedagogia. Sua opção por aulas na
escola rural deveu-se ao início da sua carreira, quando ainda tinha pouca
120 | Educação Matemática e Diversidade(s)

pontuação para fins de classificação na lista de professores para atribuição


de aulas, e porque nessas escolas a sala livre, não finalizando o vínculo nos
períodos de recesso. Maria Célia Gallo concluiu o Magistério em 1989, co-
meçando a estagiar no ano de 1991 e em 1992 conseguiu, durante a
atribuição do Estado, uma sala na escola da Fazenda Água do Segredo.
Atuou também como professora nas escolas da Fazenda Santo Antônio do
Caçador de Borebi e nas Fazendas Geada e Espadilha do município vizinho
de Agudos/ SP. Em 1999 formou-se em Pedagogia. A professora Aparecida
de Fátima Pinto concluiu o Magistério em 1983 no município de Cabrália
Paulista, também na região. Inicialmente não trabalhou como professora,
depois assumiu aulas na escola rural da Fazenda Santo Antônio nesse
mesmo muncípio, distante 40 km da cidade. Em 2003 assumiu a escola da
Fazenda Turvinho II em Borebi, para a qual ia junto com a perua que le-
vava as crianças do MST para a escola. A professora Cleonice de Fátima
Pereira Carlos começou a lecionar em 1976, como professora eventual no
Estado. Trabalhou por aproximadamente 10 anos na escola rural da Fa-
zenda Globo ou Sobar, com salas multisseriadas, em Agudos (SP).
Posteriormente cursou Pedagogia. A professora Marilene Marques Prado,
formou-se no Magitéiro em 1986. Iniciou a carreira docente assumindo
aulas eventuais na cidade de Agudos (SP). Assumiu uma licença na escola
rural da Fazenda Globo, também em Agudos, mas não permaneceu até o
final devido ao abandono da escola. Posteriormente, já atuando em escola
urbana em Borebi, ficou sem aulas e foi atuar na escola da Fazenda Turvi-
nho II, a qual era multisseriada de 1a à 4a série, nos anos 1999 e 2000. O
professor Antônio Carlos Vaca atuou como professor em escolas rurais nas
décadas de 1970 e 1980, nas Fazendas Aripa e Santo Antônio do Caçador,
em Borebi. Formou-se Técnico em Contabilidade e em Pedagogia, Admi-
nistração, Orientação e Supervisão escolar. Foi eleito, em 1993, como o
primeiro prefeito do município e exerce esse cargo novamente na gestão
2017 a 2020.
Visando melhor compreender e situar as escolas rurais nas quais nos-
sos entrevisados atuaram, criamos um mapa com localizações dessas
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 121

escolas, uma vez que localizações rurais nem sempre são indicadas em
mapas institucionais disponíveis e, em muitos casos, esses prédios escola-
res não existem mais. Para a criação desse mapa nos baseamos tanto nas
informações contidas nas entrevistas e em mapas do transporte escolar
disponíveis nas escolas de educaçaço básica no ano de 2017. Assim, esse
exercício cartográfico tanto nos ajuda a situar essas escolas quanto eviden-
ciar aspectos de marginalidade na relação campo-cidade3.
Figura 2: Mapa Ilustrativo com localização de Fazendas na região de Borebi-SP

1- Fazenda Turvinho II
2- Fazenda Santo Antônio do Caçador
3- Fazenda Luna (** Divisa Borebi/ Iaras)
4- Fazenda Capim (** Divisa Borebi/ Iaras)
5- Fazenda Santo Henrique
6- Fazenda São José (* Não identificada a localização correta no município).
7- Fazenda Santa Izabel
8- Fazenda Geada
9- Fazenda Água do segredo
10- Fazenda Santa Rita de Cássia
11- Fazenda Espadilha
12- Fazenda Santo Antônio (* Não identificada a localização correta no município).
13- Fazenda Jiboia (* Não identificada a localização correta no município).
14- Fazenda Globo ou Sobar
15- Fazenda Aripa (* Não identificada a localização correta no município).

Fonte: Adaptado de Silva (2018, p. 33) e baseado em Martins-Salandim (2012).

3
Outras discussões e aprofundamentos sobre outros aspectos de marginalização podem ser vistos em Martins (2003)
e em Martins-Salandim (2007 e 2016).
122 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Com e a partir das narrativas desses seis professores sobre suas ex-
periências em escolas rurais pudemos melhor compreender a estrutura e
funcionamento dessas instituições entre aos anos 1980 e 2000, seu pú-
blico, dificuldades e enfrentamentos cotidianos desses professores e
modos como se constituíam e se formavam professores nesses espaços
singulares. É com essas narrativas que pudemos conhecer e compreender
o movimento dessas escolas e das atuações e formações de professores
dessas escolas rurais.
Conhecemos e compreendemos como o projeto de municipalização
do ensino no Estado de São Paulo, cujas ações foram intensificadas na dé-
cada de 1980, impactaram sobre essas escolas rurais, culminando com o
fechamento de todas elas no município de Borebi até o ano de 2005. A
professora Maria Célia destacou que antes dela ingressar como professora
havia 22 escolas rurais na região de Borebi, quando começou a lecionar,
em 1992, havia 19, e, posteriormente, havia cerca de 8 apenas. A escola da
Fazenda Turvinho II, na qual muitos deles atuaram, foi a última a ser fe-
chada na região, devido à demanda discente ter diminuído
consideravelmente. Os alunos que eram atendidos nessa unidade escolar
passaram a ser transportados diariamente para a escola urbana, mas os
alunos de escolas rurais que foram fechadas antes de 2004, como narrou
o professor Antônio, iam a pé até escolas urbanas, uma vez que o trans-
porte escolar só passou a ser oferecido a partir daquele ano.
A educação no meio rural em Borebi, como apontaram as narrativas
de nossos entrevistados, sempre foi marcada por escolas isoladas, salas
multisseriadas com um professor regente, com infraestrutura inapropri-
ada para um ambiente escolar, rotatividade de professores que acabavam
realizando diversas funções: zelador, diretor, secretário e merendeiro4. A
educação ofertada às populações rurais teve seus métodos e conteúdos
predominantemente urbanos, desconsiderando a cultura, as formas de

4
Condições e estruturas similares são apontadas por Martins (2003) sobre escolas rurais do interior paulista dos
anos 1960.
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 123

vida, diversidade e relações do meio rural, ainda que as discussões sobre


Educação no Campo, para o Campo e do Campo já estivessem se consoli-
dando nos anos de 1990, tanto nos movimentos sociais quanto nas
pesquisas acadêmicas. Conforme as narrativas nos revelaram, embora a
educação rural na região de Borebi tenha traços de urbanização, os pro-
fessores que lá atuavam, formavam-se na prática, uma vez que muitas
dessas escolas, por suas singularidades, marcas de abandono, isolamento
dos professores e as demandas dos estudantes, exigiam uma releitura des-
ses professores sobre aspectos de sua formação para que pudessem atuar.

Escolas rurais como espaços formativos de professores

A formação docente de que trataremos não se consolidou apenas em


instituições, mas a partir da prática pedagógica exercida diante da neces-
sidade observada nos contextos de atuação possibilitando a
profissionalização. Os professores que entrevistamos e que atuaram em
escolas rurais na região de Borebi iniciaram suas carreiras como professo-
res durante ou assim que concluíram o curso de Magistério, sendo que
alguns cursaram, posteriormente, Pedagogia. É preciso apontar que não
se trata aqui de desvalorizar a formação acadêmica, mas pontuar que a
formação docente não é apenas teórica, mas que comporta situações nas
quais o professor deve agir e enfrentar de forma competente, investigativa
e reflexiva se constituindo num processo permanente. Essas ideias nos le-
vam a considerar a ampliação do conceito de formação de professores
proposto por Morais (2017):

Contudo, caberá ressaltar neste ponto que não estamos propondo considerar
não haver a possibilidade de uma formação institucional e intencional, que
diga de modos de agir, de posturas, de métodos e técnicas de ensino, ou, tam-
pouco, negar a possibilidade de existir um processo de profissionalização dos
sujeitos que se tornam (ou já são) professores. Salientamos que o que propo-
mos é compreender como esses outros espaços de formação, essas outras
vivências e experiências podem atravessar e ser atravessadas por esses movi-
mentos de formação institucional, esses processos que efetivam uma
124 | Educação Matemática e Diversidade(s)

profissionalização dos professores, reconfigurando suas crenças, suas concep-


ções, expectativas etc., redimensionando e possibilitando compreensões
outras para entender os complexos processos de formação e atuação docentes
em nosso país (p. 162-163).

Essas outras dimensões apontadas por Morais (2017) certamente es-


tão presentes nas narrativas dos professores que atuaram em escolas
rurais em Borebi-SP. Problematizamos aqui aspectos de formação de pro-
fessores que ocorrem em sua trajetória de atuação profissional, que não
são prescritos, não fazem parte de uma proposta curricular. Assim, ao te-
matizarmos a formação na prática, nos aproximamos de uma leitura sobre
formação proposta por Martins-Salandim (2007), quando tematizou a for-
mação de professores de Matemática que atuaram em escolas agrícolas
paulistas entre 1950 e 1970:

A diferença na formação do professor que lecionou Matemática nas escolas


agrícolas deveu-se, basicamente, a sua formação na prática, principalmente
para aqueles que se depararam com a necessidade de adequação ou aplicação
dos conteúdos matemáticos às necessidades da área técnica. Nesse sentido,
esses professores fogem a uma tendência dentre os professores em início de
carreira – a de reproduzir práticas de seus antigos professores. E essa é uma
das faces da marginalidade: ao mesmo tempo em que o isolamento é forçado,
surgem as possibilidades e os exercícios de superação. Se por um lado não
contavam, nessas escolas, com apoio externo para sua organização pedagó-
gica, tal situação era revertida em autonomia e construção de um modo
próprio, ou pelo menos diferenciado, de se tornar professor de Matemática
(MARTINS-SALANDIM, 2007, p. 229-230).

Nossos entrevistados assumiram aulas em escolas rurais (todas mul-


tisseriadas) no início de suas carreiras ou mesmo ao longo dela, como foi
o caso da professora Cleonice, que se manteve como professora eventual,
passando a ter estabilidade no cargo bem posteriormente. Os professores
Antônio, Marisa, Maria Célia e Cleonice, por exemplo, aturam por cerca de
10 anos em escola rural. A movimentação dos professores de uma escola
rural estadual para outra era determinada quando da atribuição de aulas
da rede e depois da municipalização do ensino, embora assumissem aulas
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 125

por concurso, ocorria o fechamento de salas de escolas urbanas ou mesmo


rurais, fazendo com que professores efetivos ou que tivessem maior pon-
tuação escolhessem aulas em escolas rurais, ocorriam também
substituição devido a uma licença, vínculo que se encerrava quando do re-
torno do professor – que foi o caso da professora Aparecida. Já a professora
Marisa não teve substituta durante sua licença e foi contratada para subs-
tituir suas próprias aulas, aos sábados, quando retornou da licença. Ela
também destacou gostar de assumir escolas rurais, uma vez que as aulas
eram livres, isso é, não eram aulas por substituição, porque assim não ge-
rava quebra de vínculo profissional no final do ano. Esse aspecto também
foi destacado por Garnica e Martins (2007), referindo-se à década de 1960:

Um discurso corrente de que muitos sacrifícios foram necessários para tornar


possível a atuação em escolas rurais acaba por não revelar que tais sacrifícios
eram necessários para se conseguir ingressar no Magistério Público, profissão
almejada em virtude da falta de opções, do status social e dos bons salários. A
zona rural servia, nesse sentido, a aspirações individuais de desenvolvimento
profissional, configurando-se como uma “terra de passagem” (p. 60).

O cenário que tematizamos não envolve tanto a busca, pelos profes-


sores, por escolas mais acessíveis. Com o fechamento de salas e escolas nas
décadas de 1980 e 1990, nossos depoentes destacam mais as movimenta-
ções entre escolas na busca de um vínculo ou para não o perder.
Conseguido esse vínculo com uma escola rural, era o momento de situá-
la. Muitas dessas escolas eram bem distantes das cidades (algumas cerca
de 50 km, outras ainda mais distantes) o que exigia que o professor resi-
disse na localidade da escola ou usasse um veículo próprio ou mesmo o
serviço de táxi. Algumas escolas ficavam próximas a rodovias – o que faci-
litava o uso de ônibus ou mesmo para se conseguir uma carona.
Acrescente-se a isso as dificuldades quando dos dias chuvosos e de frio, o
que também é um desafio para as condições estruturais dos prédios das
escolas, que em algumas vezes contemplava uma casa para o professor
residir sozinho ou com sua família – como foi o caso da professora Cleonice
– ou o próprio espaço da escola no turno oposto transformava-se em uma
126 | Educação Matemática e Diversidade(s)

casa, como narra a professora Aparecida. Para a professora Marisa, que


havia estudado em escola rural, essa dinâmica não era tão estranha, como
pode ter sido para outros. As estruturas das escolas rurais não seguiam
padrão algum, a não ser o fato de disporem de uma única sala para os
alunos de quatro ou três séries diferentes. Algumas escolas, como a da fa-
zenda Turvinho II, conforme narram as professoras Marisa e Marilene, foi
reformada e o prédio ficou bastante adequado contendo uma sala de aula,
banheiros, cozinha, refeitório e um pátio. Outras, por outro lado, funcio-
navam em casas disponíveis nas fazendas ou mesmo na casa de algum
funcionário, sem adaptação alguma, o que exigia, por exemplo, que as pro-
fessoras montassem fogões com tijolos para a preparação da merenda,
como narrou a professora Aparecida. Isso nos remete ao tema das múlti-
plas funções do professor da escola rural.
Em relação à merenda, em alguns casos havia contribuição voluntá-
ria de uma mãe ou de algum funcionário da fazenda quanto ao preparo,
ou mesmo do motorista do transporte escolar que lá permanecia ou de
algum familiar. Os ingredientes para o preparo da merenda eram levados
pelo próprio professor, com ajuda dos motoristas das peruas escolares ou
do ônibus de passageiros, e alguns professores criavam e mantinham uma
horta na escola da qual retiravam alimentos tanto para a merenda quanto
para os alunos consumirem na escola ou mesmo em suas casas. Com o
passar dos anos a merenda passou a ser pré-cozida, cabendo ao professor
apenas a sua preparação final. Mas também eram responsáveis pela ma-
nutenção da louça, da limpeza da escola e em alguns casos, da horta, e, em
geral, contavam com o apoio dos alunos. Outras funções também cabiam
ao professor, como a organização e manutenção de toda a documentação
relativas às matrículas, faltas e notas. Zelavam pela integridade física e pela
saúde dos alunos, como nos narra a professora Marilene sobre a existência
de bichos peçonhentos nas imediações e no próprio prédio da escola e so-
bre preparar um café, às próprias expensas, principalmente na época de
frio, porque os alunos chegavam muito cedo à escola. No entanto, o exer-
cício dessas múltiplas tarefas não lhes concedia vencimentos compatíveis
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 127

com as funções executadas e tudo deveria estar sempre em ordem, pois a


supervisão monitorava o andamento da escola e documentações quando
de suas visitas. Essas múltiplas funções nem sempre eram realizadas em
horários diferentes, muitas delas ocorriam em concomitância com o horá-
rio em que atuavam na docência, atividade na qual já acumulavam
diferentes papeis, já que as salas eram multisseriadas: o desafio e a ênfase
estava na alfabetização dos alunos da primeira série, os quais inclusive,
não tinham frequentado a pré-escola; acompanhavam as demais séries em
atividades, em geral, mimeografadas ou de livros, com cada turma traba-
lhando em uma matéria diferente. As salas multisseriadas aumentavam as
dificuldades de atuação docente, com alunos de diferentes faixas etárias e
com necessidades de aprendizagem peculiares. Era necessário criar estra-
tégias que viabilizassem o andamento da turma possibilitando que todos
pudessem desenvolver-se.
As salas multisseriadas, disponibilizadas nas escolas rurais, por
muito tempo foram responsáveis pela iniciação escolar de vários brasilei-
ros, porém, foi alvo de críticas do ponto de vista pedagógico, pois não
apresentaria resultados positivos. Essa faceta das salas multisseriadas
também foi destacada por Garnica e Martins (2007):

Aventa-se a possibilidade de, devido às particularidades das escolas rurais e,


especificamente devido ao seu regime de classes multisseriadas, os alunos te-
rem desenvolvido certa autonomia – ainda que forçada, dadas as condições –
que pode ser concebida como potencialmente produtiva. Se, por um lado, as
escolas urbanas – sem salas multisseriadas – eram, para muitos, um “modelo”,
as escolas rurais permitiram ao aluno essa experiência de compartilhar conhe-
cimentos para que todos, em seus ritmos, pudessem ser atendidos. O trabalho
com classes multisseriadas não foi caracterizado como elemento negativo por
nenhum de nossos depoentes. Estratégias de ensino que motivavam a autono-
mia do aluno rural, porém, eram aplicadas num contexto que fortalecia os
modelos urbanos. O ponto de estrangulamento, mais uma vez, parece estar no
desejo de adaptar o modelo de ensino urbano às condições rurais, com o que
se contribuiu significativamente para a perda da identidade do homem rural
e de suas formas de viver em comunidade (p.60).
128 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Conforme apontado nas narrativas de nossos depoentes e mencio-


nado por nossos autores de referência, as classes multisseriadas, eram
organizadas em uma única sala, com alunos de faixa etárias diferentes que
eram agrupadas a fim de se desenvolverem as aulas, tendo um professor
regente (unidocente) que acabava sendo responsável e exercendo outras
funções diante da necessidade local. Além disso, em sua maioria, os pro-
fessores eram temporários, havendo rotatividade de profissionais o que se
constitui em fator negativo para o desempenho dos alunos – o que também
foi destacado na narrativa da professora Cleonice. Visando organizar as
atividades na sala com várias séries, nossos entrevistados narram que di-
vidiam as turmas em fileiras e dividiam a lousa em partes. Em geral,
organizavam roteiros ou atividades que os alunos das séries mais adianta-
das pudessem desenvolver sozinhos e dedicavam mais atenção aos alunos
das séries mais iniciais, particularmente quanto à alfabetização dos alunos
da 1ª série. A preparação das atividades em mimeógrafos, em geral, ocor-
ria aos finais de semana ou à noite, na sede da escola urbana, uma vez que
nem sempre havia esse aparelho disponível na escola rural. Nossos depo-
entes dizem terem usado, às vezes, arcando com a compra, de alguns
materiais como flanelógrafo, cartaz de pregas, materiais prontos para re-
presentar números etc. Além da falta de recursos materiais básicos, a
infraestrutura mostrava-se inadequada, sem energia elétrica, água enca-
nada, rede de esgoto e funcionamento da escola em local improvisado,
desrespeitando o direito do campesino de ter acesso à educação do modo
como era previsto legalmente. Neste sentido, “qualquer lugar” poderia ser
uma escola, não era preciso um espaço específico, equipado e com condi-
ções favoráveis.
Diante de tantos entraves, ao docente das escolas rurais restava ainda
garantir que todos os alunos estivessem alfabetizados. Mas como alfabeti-
zar executando múltiplas tarefas no espaço escolar? Para isso, era preciso
considerar que os alunos já alfabetizados poderiam dar continuidade nos
estudos sem tanto auxílio do professor. Assim, a fim de não prejudicar o
andamento da turma, a solução encontrada seria utilizar livros didáticos
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 129

que apresentavam passo a passo do conteúdo possibilitando aos alunos


que tivessem “autonomia” para prosseguir nos estudos. A presença dos
livros e cartilhas é marcante nas narrativas. É importante ressaltar que a
escolha do livro didático, nesse caso, não ocorria a partir de uma avaliação
sobre a relevância de sua abordagem relativa à aprendizagem: a escolha
era pelo que sobrava na escola urbana, e, dentre esses, aqueles que ofere-
ciam guias para os alunos executarem atividades sem o auxílio do
professor. Nossos depoentes falam da utilização da Cartilha Caminho Su-
ave e do Livro Mundo Mágico- Matemática, sendo que esse último
possibilitava aos alunos acompanhar o “passo a passo” dos conteúdos e
assim, ao docente caberia sanar apenas algumas dificuldades encontradas
por esses alunos, dedicando-se mais aos alunos em processo de alfabetiza-
ção. Diante do fato de exercer múltiplas funções no espaço escolar,
organizando e atendendo turmas multisseriadas os docentes acreditavam
que essa prática em sala de aula possibilitaria garantir a aprendizagem e
foi se perpetuando entre um ano e outro, entre um professor e outro, pois
como as escolas rurais dificilmente recebiam novos livros os materiais dis-
poníveis eram reutilizados. Martins (2003) destaca que isso, por outro
lado, gerava certa autonomia dos estudantes em relação aos estudos.
De acordo com as narrativas a formação acadêmica dos nossos depo-
entes não possibilitou conhecer ou discutir as especificidades do ensino
rural. Porém, essa formação ocorreu da necessidade de atuação docente
em um contexto desconhecido, o que podemos concluir que os conheci-
mentos adquiridos com a prática pedagógica são fundamentais para a
formação profissional. Uma formação em trajetória.
A formação docente para atuar na educação rural é algo recente. Nos-
sos professores, que atuaram em um outro tempo e cenário – a região de
Borebi-SP nas cercanias dos anos 1990 – e, que, portanto, não vivenciaram
uma formação inicial específica. Em suas narrativas, inclusive, não tema-
tizam suas formações nos cursos de Magistério e Pedagogia. Eles narram
suas experiências em escolas rurais como professores, trazendo para a
narrativa muitos mais elementos da escola como um espaço em
130 | Educação Matemática e Diversidade(s)

movimento, vivo, do que das atividades específicas relativas aos conteúdos


e temas que deveriam ensinar. E como reconhece a professora Maria Célia,
os alunos a ensinavam sobre a vida rural, eles detinham muitos conheci-
mentos sobre a dinâmica do mundo e da vida rural.

Conclusão

Os professores que entrevistamos narraram suas experiências como


professores em escolas rurais da região de Borebi, nas proximidades dos
anos 1990 – período que envolve conflitos agrários na região, fechamento
de escolas rurais e municipalização do ensino. O processo de municipali-
zação acabou extinguindo as escolas rurais da região de Borebi- SP no final
dos anos 1990, o que impôs o deslocamento dos estudantes desses espaços
para escolas urbanas. Percebemos as dificuldades encontradas pelos do-
centes durante a trajetória profissional e que o trabalho em escolas rurais
possibilitou compreendermos a formação docente que é construída ao
longo de sua trajetória. Suas atuações como docentes envolveram mobili-
zar elementos que não constituem apenas saberes que devem ser
ensinados (conteúdos), mas, em trajetória, mobilizaram toda uma gama
de saberes. Esses saberes envolvem a organização de uma sala multisseri-
ada, o planejamento e escolha de atividades adequadas à série e à
necessidade de condução das atividades autonomamente. Nas condições
que tinham, decidiram pela ênfase na alfabetização dos alunos das primei-
ras séries. Organizaram aulas que possibilitavam a concomitância com o
preparo da merenda e manutenção da escola. No cenário que estavam, fo-
ram sensíveis às necessidades básicas dos alunos, as quais nem sempre
envolviam aprender algum conteúdo curricular. Em seus enfrentamentos,
acabavam por constituir uma interessante rede de apoio paralelo, que en-
volvia os perueiros, pais, funcionários das fazendas, familiares e os
próprios alunos.
Dessa forma, todos os elementos que problematizamos permitiram
também sentir, perceber e construir nossos saberes visto que nos
Maria Ednéia Martins-Salandim; Claudinéa Soto da Silva | 131

mobilizamos no aprofundamento de leituras e na compreensão de que a


educação rural na região de Borebi-SP teve seus protagonistas envolvidos
neste processo de construção e luta pela igualdade de oportunidades. Per-
cebemos que diante das circunstâncias as quais lecionavam, os docentes
buscavam conciliar tempo, conteúdo, organização e espaço, visto que atu-
avam em meio às condições que lhes eram impostas e mesmo assim,
buscavam alternativas e formas diversificadas de exercer funções no in-
tervalo de tempo que dispunham, lecionando, zelando, cuidando e sendo
merendeiros junto ao desempenho da função de professor, em turmas
multisseriadas, nas quais utilizavam estratégias que viabilizavam e garan-
tiam o processo de ensino e aprendizagem dos alunos. Nos sensibilizamos
quanto aos espaços de atuação docente, onde um simples cômodo se trans-
formava em sala de aula e dois tijolos no chão viravam o fogão onde a
refeição, talvez a única do dia, seria feita. Os docentes utilizavam livros
velhos, já desgastados pelo tempo ou quando novos, porque sobravam nas
escolas urbanas, sendo esse um dos únicos recursos didáticos disponíveis
e um material impresso considerado essencial tanto na organização das
turmas multisseriadas – quando os alunos das séries mais adiantadas se-
guiam as instruções dos livros para que o professor pudesse atuar mais de
perto com aqueles que estavam sendo alfabetizados – quanto para a orga-
nização do conteúdo. Mesmo diante de tantos impasses e adversidades os
nossos depoentes puderam se perceber não apenas como formadores, mas
aprendizes em formação, sendo que as escolas se constituíram como espa-
ços formativos vivos, dinâmicos, e, tomara, continuem a serem percebidos
assim. Os professores que entrevistamos e que atuaram em escolas rurais
na região de Borebi iniciaram suas carreiras como professores durante ou
assim que concluíram o curso Magistério, sendo que alguns cursaram,
posteriormente, cursos de Graduação, o que é apenas citado nas entrevis-
tas com esses professores. Suas narrativas nos remetem a pensar a
formação desses professores para além dos conteúdos prescritos nos cur-
sos de formação institucionalizados, sejam de graduação sejam os de
formação em serviço: a formação desses professores dá-se em trajetória e
132 | Educação Matemática e Diversidade(s)

é afetada por diversos e diferentes elementos - o modo como as aulas eram


atribuídas, o fechamento de escolas, o que as crianças sabiam sobre o
mundo rural, a estrutura física da escola com as classes multisseriadas,
falta de materiais, produção de materiais, uso de materiais do espaço rural,
isolamento profissional, as distâncias, papel de outras pessoas como o pe-
rueiro, o supervisor, o administrador, papel dos livros didáticos, o
exercício das várias funções...
É preciso ressaltar que não se trata de desvalorizar a formação aca-
dêmica, mas problematizar que a formação docente não é apenas teórica,
comportando situações nas quais o professor deve agir e enfrentar de
forma competente, investigativa e reflexiva se constituindo num processo
permanente. Em trajetória, constituindo- se professores. Se a escola rural
é percebida como um exemplo de subversão necessária (e mesmo espe-
rada) para sua existência e sobrevivência, dadas as condições de sua
implantação, conforme destacado em Martins-Salandim (2016), podemos
dizer que, dadas suas condições de existência, ainda nos anos 1990, ela
também é um exemplo de subversão da formação de professores que en-
sinam matemática no Brasil.

Referências

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para a pesquisa sobre a formação de professores de matemática. Alexandria Revista
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GOMES, M.L.M. Formação e atuação de professores de matemática, testemunhos e mapas.


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da Educação Matemática, 2016, p. 58-67. [Mesa redonda: nvestigações acerca de três
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São Paulo: um exame da década de 1960. 2012. 379 f. Tese (Doutorado em Educação
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Rio Claro, 2012.

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MORAIS, M. B. Se um viajante... percursos e histórias sobre a formação de professores de


Matemática no Rio Grande do Norte. Tese (Doutorado em Educação Matemática).
Universidade Estadual Paulista, Rio Claro- SP. 1006 p., 2017. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/149971. Acesso em: 02/04/2018.

SILVA, C. S da. Escolas rurais como espaços formativos: vozes de professores que atua-
ram na região de Borebi/SP. Dissertação (Mestrado em Educação para a Ciência)–
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências, Bauru, 2018.
7

Nobreza e gueto fora das exatas:


percepções de raça, gênero e orientação sexual

Fernanda Dartora Musha 1


Yasmin Cartaxo Lima 2
Elenilton Vieira Godoy 3

1. Introdução

No tempo-presente de ataque à educação e às disciplinas escolares da


área de ciências humanas e do desejo-vontade de uma parte da sociedade
brasileira de promover uma educação sem partido, caberia à física, à ma-
temática e à química escolares darem uma resposta, contra-atacarem e
ajudarem na dissolução-enfraquecimento desse desejo-vontade, ou seja,
nenhuma disciplina solta a mão de nenhuma disciplina.
Já se tornou lugar-comum a frase de que as disciplinas escolares da
área de ciências exatas sugerem um ar de neutralidade, todavia, esse lu-
gar-comum é visto com desconfiança, uma vez que ainda acredita-se no
mito da neutralidade do conhecimento físico-matemático-químico. A des-
construção dos enunciados a respeito desse mito poderia ser reverberada

1
Licenciada em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE) da UFPR. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]
2
Licenciada em Biologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE) da UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]
3
Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Docente do departa-
mento de Matemática, do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática (PPGECM) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná,
Brasil. E-mail: [email protected]
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 135

nos intramuros escolares a partir de discussões não banalizadas, mas sim


fundamentadas envolvendo questões sociais por docentes dessas três dis-
ciplinas, questões sociais essas relacionadas à, dentre outras temáticas
sociais, justiça social, equidade de gênero e respeito às diferenças.
Posto isso, neste texto movimentamos algumas dessas temáticas com
relação às três disciplinas escolares, desejando compreender como se dão
as relações de poder no tocante a gênero, orientação sexual e raça nas aulas
de física, matemática e química na educação básica. Para tanto, tomamos
o ponto de vista de discentes da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
que buscaram uma graduação em licenciatura fora da área de ciências exa-
tas. Além disso, ambicionamos atestar violências simbólicas - instauradas
com a aquiescência da pessoa dominada com relação à pessoa dominante,
uma vez que aquela se utiliza da estrutura proveniente da incorporação de
classificações que produzem seres sociais para ver e avaliar a outras pes-
soas, dominadas e dominantes, e a si mesma (BOURDIEU, 2019) -
ocorridas nas aulas de física, matemática e química em relação a gênero,
orientação sexual e raça. Interessa-nos, ainda, compreender a responsabi-
lidade dessas três disciplinas a respeito da ausência-presença dessas
violências simbólicas.
Pensando a sociedade como um espaço social, em que diferentes pes-
soas ocupam diferentes posições relativas em termos de poder e
legitimação, também pretendemos delimitar quais grupos se constituem
com o que chamaremos de nobreza e gueto, sendo o primeiro grupo cons-
tituído por pessoas inteligíveis quanto a gênero, orientação sexual e raça,
enquanto o segundo formado pelas representações que fogem à norma.
De acordo com bell hooks (2019a, n. p.), “estar na margem é fazer parte
de um todo, mas fora do corpo principal”; aqui, “estar na margem” é re-
presentado pelo gueto, por quem conhece o ensino de física, matemática e
química, mas não tem representação e inclusão, a quem falta a sensação
de pertencimento em um currículo majoritariamente branco, heterosse-
xista e masculinista. Dessa forma, a nobreza faz referência a quem está no
136 | Educação Matemática e Diversidade(s)

núcleo de todas as discussões, a quem não conhece a margem, simples-


mente, por não precisar sair do centro.

2. Excerto teórico

O desejo neste texto é movimentar algumas ideias relacionadas a gê-


nero, orientação sexual e raça dialogando-as com a escola, o currículo e o
livro didático.
A noção de gênero opera na estrutura binária (feminino-masculino)
socialmente inventada, e está intimamente ligada aos embates sociais e
culturais em que se dão sua produção e manutenção, com uma autonatu-
ralização hegemônica dos “gêneros inteligíveis”, isto é, dos que estão em
conformidade e coerência em relação a sexo, gênero, prática sexual e de-
sejo (BUTLER, 2019). Assim, pessoas com expressão de gênero distintas
dos gêneros inteligíveis - outros que não homens e mulheres cisgêneros
brancos (as) e heterossexuais - têm sua existência questionada a partir da
norma cultural imposta (BUTLER, 2019).
As pessoas que se identificam com o gênero feminino têm o seu lugar
continuamente questionado dentro das ciências exatas, principalmente
por tal área do conhecimento ser considerada objetiva, lógica e racional,
características socialmente atribuídas ao gênero masculino. A pesquisa
“Barreiras que impedem a opção das meninas pelas ciências exatas e com-
putação: percepção de alunas do Ensino Médio” (Josilene AIRES; et al.,
2018) nos mostra que existem muitos obstáculos para seguir a carreira
acadêmica na área de ciências exatas quando a pessoa se identifica com o
gênero feminino, dentre elas o machismo e a crença social de que essa é
uma área masculina são as mais levantadas pelas alunas.
No Brasil, em que a expressão de gênero e papéis sexuais são muito
marcados, há uma conformidade de gênero quanto a homossexuais que
“parecem” heterossexuais, implicando em uma maior aceitação à sua se-
xualidade (COSTA, et al. 2015). Para os autores, o sistema heterossexista
faz com que a discriminação contra a população LGBTI+ passe
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 137

despercebida para boa parte das pessoas estudantes que participaram da


pesquisa. Elas aventam a possibilidade de existirem preconceitos anterio-
res à entrada na universidade, reforçados quando o curso não possui
disciplinas obrigatórias acerca de gênero e sexualidade, como ocorre com
as pessoas que estudam engenharia, e reiteram a relevância desse tipo de
estudo no currículo da educação básica.
As escolas podem se constituir como ambientes extremamente hostis
para a população LGBTI+, visto que as discussões sobre gênero e orienta-
ção sexual são invisibilizadas na maioria das disciplinas escolares.
Consideramos que a falta de conhecimento, o medo, o receio, a insegu-
rança e os tabus, provavelmente, contribuem para que docentes sintam-se
intimidados (as) para lidarem com essas questões. Dentre os muitos dados
da “Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016 – As
experiências dos adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais em nossos ambientes educacionais” realizada pela Associa-
ção Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(ABGLT) destacamos que, em relação à entrevista com discentes, 60% re-
lataram um sentimento de insegurança devido à sua orientação sexual, o
que pode levar à desistência dos estudos por parte de tais estudantes.
Para a população trans no Brasil, a questão da passabilidade, ou seja,
pessoas transexuais que possuem características muito semelhantes com
as das pessoas cis do mesmo gênero, é de extrema relevância. Homens
trans costumam ter uma passabilidade maior do que as mulheres trans e
travestis, o que os faz ter mais oportunidades de emprego, por “nem pa-
recerem trans” (cabe ressaltar que essa expressão é de cunho
extremamente transfóbico e que “não parecer trans” não é um elogio). Na
pesquisa “As fronteiras da educação: a realidade dxs estudantes trans no
Brasil”, realizada pelo IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação) em
2019, observamos dados alarmantes: pouco mais da metade da população
trans trabalha e estuda, sendo que boa parte da população trans inserida
no mercado de trabalho é constituída por homens trans, enquanto que
muitas das mulheres trans e travestis comentaram que mantém o seu
138 | Educação Matemática e Diversidade(s)

ensino por meio da prostituição. Além disso, 50% das pessoas pesquisadas
disseram que em algum momento de suas vidas já abandonaram os estu-
dos, sendo a principal razão para isso a transfobia.
A noção de raça, do ponto de vista de Joaze Bernardino Costa, Nelson
Maldonado Torres e Ramón Grosfoguel (2018, n. p.), assume o protago-
nismo ao ser tratada como “dimensão estruturante do sistema-mundo
moderno/colonial”. Segundo Hall (2006), essa noção é uma construção
sociopolítica, que discursivamente atua na organização de “um sistema de
poder socioeconômico, de exploração e exclusão” (p. 66) denominada ra-
cismo. O racismo é uma prática discursiva de logicidade per se, que
procura fundamentar as diferenças socioculturais que perpetuam “exclu-
são racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na
natureza” (IDEM, p. 66).
De acordo com Grosfoguel (2018, n. p.) o racismo “é um princípio
constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de domina-
ção da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as
hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas”. Esse princípio
constitutivo é tão potente que acaba por estabelecer uma linha que separa
as pessoas que têm o direito de viver e as que não têm.
Raça e racismo, de acordo com Quijano (1993 apud GROSFOGUEL,
2013) tornam-se princípios organizadores estruturantes do conjunto das
múltiplas hierarquias presentes no sistema-mundo.

A ideia de raça organiza a população mundial segunda uma ordem hierárquica


de povos superiores e inferiores que passa a ser um princípio organizador da
divisão internacional do trabalho e do sistema patriarcal global. Contraria-
mente ao que afirma a perspectiva eurocêntrica, a raça, a diferença sexual, a
sexualidade, a espiritualidade e a epistemologia não são elementos que acres-
cem às estruturas econômicas e políticas do sistema-mundo capitalista, mas
sim uma parte integrante, entretecida e constitutiva desse amplo ‘pacote en-
redado’ a que se chama sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/
moderno europeu (GROSFOGUEL, 2002 apud GROSFOGUEL, 2013, n. p.),
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 139

Para Dijk (2018), o uso do vocábulo racismo foi tratado como desa-
propriado pelas pessoas que desejavam “escondê-lo sob o fenômeno da
pobreza ou outras formas de desigualdade social” (IBIDEM, n. p.).

No entanto, se quisermos analisar criticamente e entender o racismo, precisa-


mos encará-lo como um comportamento indesejável e nomeá-lo,
principalmente porque hoje existem formas mais sutis e indiretas de se referir
a ele: dominação sistemática dos Outros (os não europeus) sobre etnias e raças
em todos os domínios da sociedade.

O racismo não é inato às pessoas humanas, mas sim adquirido-re-


produzido pelo discurso que circula nos diferentes espaços sociais. “As
pessoas aprendem a ser racistas com seus pais, seus pares (que também
aprendem com seus pais), na escola, com a comunicação de massa, do
mesmo modo que com a observação diária e a interação nas sociedades
multiétnicas” (IBIDEM, n. p.).

Esse processo de aprendizagem é amplamente discursivo, isto é, baseado na


conversação e no contar de histórias diárias, nos livros, na literatura, no ci-
nema, nos artigos de jornal, nos programas de Tv, nos estudos científicos,
entre outros. Muitas práticas de racismo cotidiano, tais como as formas de
discriminação, podem até certo ponto ser aprendidas pela observação e imita-
ção, mas até mesmo estas precisam ser explicadas, legitimadas ou sustentadas
discursivamente de outro modo. Em outras palavras, a maioria dos membros
dos grupos dominantes aprende a ser racista devido às formas de texto e de
fala numa ampla variedade de eventos comunicativos (IBIDEM, n. p.).

Esses eventos comunicativos acabam contribuindo para naturalizar


o racismo e, consequentemente, pouco ou quase nada de estranhamento é
movimentado nas pessoas quando, por exemplo, na Tv e no cinema, este-
reótipos são reforçados. Neste sentido “as imagens desempenham um
papel crucial na definição e no controle do poder político e social a que têm
acesso indivíduos e grupos sociais marginalizados (PRATIBHA PARMAR,
1990 apud bell hooks, 2019, n. p.).
140 | Educação Matemática e Diversidade(s)

A maior parte do que os grupos dominantes brancos “sabem” ou acreditam


sobre a etnia dos Outros foi, portanto, formulada, mais ou menos explicita-
mente, em inúmeras conversações, histórias, reportagens de jornais, livros
didáticos e discurso político. É também sobre essa base que as pessoas formam
suas próprias opiniões e atitudes, e, a menos que haja boas razões para desviar
do consenso do grupo, a maior parte dos membros reproduzirá o status quo
étnico e adquirirá as ideologias dominantes que os legitime (DIJK, 2018, n. p.).

A condição demasiadamente ideológica das imagens em livros didá-


ticos, na literatura, no cinema, na Tv etc. estabelece não apenas com as
demais pessoas pensam a respeito da etnia dos Outros, mas também como
os Outros pensam-percebem a si mesmos (bell hooks, 2019).
Para Hall (2006), a “etnicidade” pode gerar um discurso de diferen-
ças culturais, configurando um registro de racismo. Para além da
sociedade multicultural, Hall (2006) considera que não basta reafirmar li-
berdades individuais, é necessário contestar o que está posto e expandir
práticas democráticas da vida social.
A escola, como instância constituinte de uma pedagogia cultural, le-
gitima ideologias sociais e culturais; isso, contudo, ocorre decorosamente,
dando à sociedade uma aparente sensação de justiça e naturalidade
(LOURO, 2019; APPLE, 1989). Ao reproduzir relações de poder centradas
e retratadas pelo homem cisgênero, branco, heterossexual, pertencente à
classe média urbana e cristão, a escola ratifica padrões de comportamento
socialmente construídos (LOURO, 2008; LOURO, 2019).
Nesse sentido, tem-se os livros didáticos operando na formação de
valores, concepção de mundo e identidades (FRISON et al., 2009). As re-
presentações neles contidas são um reflexo do que é socialmente aceito e
podem ter influência no processo de formação de identidade docente
(CASAGRANDE & CARVALHO, 2006). O edital do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) de 2018 apresentava em suas diretrizes a tolerância
e o respeito às diversidades, trazendo questões étnico-raciais, de cultura e
gênero para debates e valorização em sala de aula (BRASIL, 2018); em edi-
ções anteriores, salvo reformulações ao longo dos anos para melhor
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 141

especificação, o edital estabelecia que os livros didáticos não poderiam ex-


pressar preconceitos de cor, raça, sexo, origem etc. (BATISTA, 2001).
Apesar disso, análises de livros didáticos indicam a separação de pa-
péis masculinos e femininos, com arquétipos de interesses, atividades,
profissões e famílias tradicionais (LOURO, 1997). Em muitos casos, rejeita-
se ou omite-se a pluralidade de homens, mulheres e famílias, bem como o
conflito existente nessas questões (LOURO, 1997). As diferenças étnico-ra-
ciais, sociais e de gênero, quando retratadas, aparecem de forma
celebrativa, sem questionar o que produz de fato tais distinções - as rela-
ções de poder vigentes (SILVA, 2009). Isso gera novas concepções quando
se pensa nas relações de poder: a da pessoa dominante tolerante e da pes-
soa dominada tolerada (IBIDEM).
Tendo em vista então questões de gênero - em relação à mulher cis,
à mulher trans e ao homem trans -, orientação sexual e raça, o conflito
emocional decorrente da reprodução de discriminações se expande na área
de educação em ciências e em para outros níveis: a ausência de discussões
acerca da construção dos padrões adotados como corretos na sociedade e
os motivos para tanto no ambiente escolar acarreta na consequente repro-
dução e manutenção de desigualdades e preconceitos (ALMEIDA; LUZ,
2014). Essas então podem constituir fatores determinantes para o distan-
ciamento da área de ciências exatas, considerando que discentes podem
ser afetados com tais violências em três aspectos diferentes - gênero, ori-
entação sexual e raça.
A cultura escolar é homogeneizada, ritualizada e rotinizada, de forma
a criar a falsa ilusão de escola democrática e para todas as pessoas. Porém,
a cultural escolar, reflexo da cultura dominante – masculina, cis, heteros-
sexual e branca -, transforma essa cultura particular em cultura universal
(BOURDIEU; PASSERON, 2014), fazendo com que todas as expressões cul-
turais que fogem à regra dominante sejam avaliadas negativamente
(SILVA, 2016). A escola e a universidade configuram dois destes instru-
mentos, segregando interesses e experiências em masculinas e femininas,
criando distinções de disciplinas e profissões para homens e mulheres.
142 | Educação Matemática e Diversidade(s)

O multiculturalismo configura um instrumento de luta política, e é


com ele que surgem, nos Estados Unidos, críticas ao chamado cânone lite-
rário, estético e científico do currículo universitário tradicional (SILVA,
2016). Os grupos culturais subalternizados, isto é, mulheres, pessoas ne-
gras e homossexuais, questionaram esta expressão do privilégio da cultura
masculina, heterossexual, branca e europeia, em que a considerada “cul-
tura comum” coincide com a de quem tem a hegemonia social e cultural.
Quando se considera um currículo multiculturalista crítico, coloca-se
permanentemente em questão a diferença, indo além de apenas tolerância
e respeito: a igualdade não advém da igualdade de acesso ao currículo vi-
gente, pois é necessária uma expressiva mudança neste (SILVA, 2016). Tal
mudança deve acontecer no sentido de refletir as relações sociais de assime-
tria e desigualdade em que se dão os processos de produção de diferença.
Em se falando de pesquisa educacional, a demanda por linguagens
que abordam os saberes, experiências e lutas de grupos que se encontram
no fim da hierarquia cultural e social é eminente, pretendendo uma mu-
dança estrutural na maneira em que se pesquisa (PARAÍSO, 2014). Isso
advém de mudanças substanciais na educação em consequência das mo-
dificações das relações culturais, condições sociais e racionalidades,
alterando visões de mundo, identidades e forma de dominação. Para a au-
tora, o reconhecimento da existência de diferentes relações de poder -
gênero, sexualidade, raça, etnia, classe - requer aplicação no campo na
pesquisa com fins de descrição, mapeamento e desconstrução.
Considerando a análise do gênero no currículo percebe-se que o cur-
rículo é um artefato do gênero, produzindo e corporificando suas relações
(SILVA, 2016). Nesse sentido, o currículo existente valoriza características
associadas ao masculino, como racionalidade e lógica, refletindo a episte-
mologia dominante. Assim, as instituições e formas de conhecimento
passariam então por uma transformação a fim de refletir interesses e ex-
periências femininas, fora da cosmovisão masculina.
As características valorizadas no currículo oficial, contudo, não são
necessariamente vistas como positivas: a necessidade de domínio e
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 143

controle, por exemplo, são associadas ao masculino como questões natu-


rais, mas negativas (SILVA, 2016). A formação da masculinidade está
conectada com a forma que o currículo reproduz masculinidade e à posi-
ção de poder privilegiada do homem, então pode-se pensar nas relações
que ocorrem com a violência, controle e domínio na sociedade.
Assim, um currículo que leva em conta a pedagogia queer - do inglês
“estranho”, utilizado para se referir a LGBTI+ - traz, para além da infor-
mação, uma metodologia de análise e compreensão de identidades sexuais
e conhecimentos acerca disso. Já a partir da segunda fase do currículo
como narrativa étnica racial, passa-se a problematizar o viés racial do cur-
rículo, que carrega marcas do colonialismo (SILVA, 2016). Para o autor,
um currículo crítico deve se afastar de abordagens essencialistas da ques-
tão de identidade étnica e racial.
Por fim, ao pensarmos nas relações de poder que circulam quando as
noções de gênero, orientação sexual, raça e classe são movimentadas, Ball
(2007 apud MAINARDES; MARCONDES, 2009) sugere que o conceito de
justiça social pode ser um importante elemento-dialógico para os estudos
(pesquisa social crítica) envolvendo essas noções.

(...) a vantagem do conceito de justiça social é de que é um conceito inclusivo,


que não é específico à raça, classe, deficiência ou sexualidade; abarca uma con-
cepção ampla de questões de equidade, oportunidade e justiça. É maleável, tem
uma gama ampla de aplicação. Alerta o pesquisador para as variadas maneiras
em que a opressão pode funcionar em uma variedade de formas e pode atuar
sobre as pessoas de diversas maneiras através de seu gênero, posição de classe,
sexualidade ou seus graus de habilidade, bem como através de interrelações
complexas entre esses fatores (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 6-7).

A partir das noções movimentadas no excerto teórico, na sequência,


por meio de uma pesquisa de campo, procuraremos reverberá-las.
144 | Educação Matemática e Diversidade(s)

3. Percurso metodológico

A proposta metodológica consistiu em uma pesquisa de campo4, com


o desenvolvimento e aplicação de questionários com questões objetivas e
discursivas relacionando gênero, orientação sexual e raça às disciplinas es-
colares física, matemática e química.
Buscando apresentar o ponto de vista de discentes dos cursos de li-
cenciatura na Universidade Federal do Paraná (UFPR) fora da área de
ciências exatas (considerando as graduações realizadas em Curitiba), foi
elaborado um questionário contendo vinte e seis perguntas para serem
respondidas anonimamente, sendo vinte e três questões objetivas e três
discursivas. O público-alvo foi composto por discentes dos cursos de licen-
ciaturas – artes visuais, biologia, ciências sociais, educação física, filosofia,
geografia, história, letras e música –.
O questionário (Anexo 1), intitulado “Gênero, orientação sexual e
raça nas disciplinas escolares Física, Matemática e Química”, foi desenvol-
vido na plataforma Formulários Google, fornecida gratuitamente pela
Google, com aplicação online e anônima. Ele foi dividido em 5 seções,
sendo elas Seção 1: Escolha da área de graduação; Seção 2: Sentimentos
em relação às disciplinas escolares física, química e matemática; Seção 3:
Questões de gênero, orientação sexual, raça e as disciplinas escolares física,
matemática e química; Seção 4: Democracia, justiça social e as disciplina-
res escolares física, matemática e química e Seção 5: Identificação da
pessoa respondente. O link para preenchimento do formulário foi dispo-
nibilizado pela coordenação de cada curso via e-mail, e também
direcionado em grupos de WhatsApp de discentes, e todas as questões
eram obrigatórias.
Com o questionário aberto de julho de 2019 a outubro de 2019 foram
obtidas 82 respostas. A concentração de respostas entre os cursos de

4
A presente pesquisa fez parte do projeto Meninas nas Exatas – Procuram-se Arletes, do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela professora doutora Elizabeth Wegner Karas, do
departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 145

licenciatura em biologia (31) e letras (21), com um baixo número ou até


nulo em outros cursos, fez com que a variável ‘curso’ não fosse conside-
rada durante a análise. A análise das questões objetivas, todas com 5
alternativas, foi construída a partir da escala de Likert - com cada questão
tendo pontuação de 1 a 5, sendo 5 pontos o aspecto mais positivo.
As seções foram organizadas de forma a conseguir identificar o perfil
socioeconômico da pessoa respondente, sua motivação para a escolha de
seu curso e o consequente afastamento da área de ciências exatas, sua re-
lação com as ciências exatas na educação básica, sua perspectiva a respeito
da contribuição (positiva ou negativa) das disciplinas de matemática, quí-
mica e física para justiça social, seu sentimento (de acolhimento, coerção
e desrespeito) nessas disciplinas, por qual canal o acolhimento ou coerção
sucedeu e sua interpretação das atribuições dessas disciplinas no tocante
às questões de gênero, orientação sexual e raça.
A análise do questionário foi dividida em duas etapas, a saber, análise
estatística (para as questões objetivas) e análise de discurso (para as ques-
tões discursivas). Neste texto, optamos por privilegiar a etapa envolvendo
à análise de discurso, todavia, apenas para duas questões discursivas – “In-
dique o(s) fator(es) que te fizeram não escolher um curso das áreas de
Ciências Exatas, Engenharias e Computação” e “Para você, qual é o papel
das disciplinas de Matemática, Química e Física em relação a questões de
raça, gênero e orientação sexual?”.

3.1 Caracterização do perfil socioeconômico da pessoa respondente

As pessoas respondentes se concentraram entre os cursos de licenci-


atura em biologia e licenciatura em letras, sem respostas expressivas dos
cursos de licenciatura em geografia e licenciatura em filosofia. O público
respondente tem idade média inferior a 25 anos e se autodeclarou branco
(72%). Em relação à identidade de gênero, pode-se perceber que se tem
uma divisão maior entre mulheres cis (62,2%) e homens cis (31,7%), com
alguns respondentes não-binários (6,1%), e a respeito da orientação
146 | Educação Matemática e Diversidade(s)

sexual, verificou-se uma divisão quase igualitária entre heterossexuais e


bissexuais (aproximadamente 40% cada). Ainda assim, foram 13,4% de
respostas de homossexuais e 3,7% de pansexuais.
No que diz respeito à renda, tem-se que a concentração de respon-
dentes se dá em até 6 salários mínimos, sendo 12,2% até 1 salário mínimo
e aproximadamente 30% de 1 a 3 salários mínimos e também de 3 a 6
salários mínimos.
Por fim, tem-se uma divisão um tanto equilibrada entre responden-
tes que cursaram ensino básico apenas em colégios públicos (42,7%),
apenas em colégios privados (30,6%) e ambos (26,8%), sendo mais ex-
pressivo o número de estudantes de colégios públicos apenas.
O perfil da pessoa respondente foi de mulheres cis e homens cis,
brancas e brancos, heterossexuais e bissexuais, com idade abaixo de 25
anos e renda de até seis salários mínimos mensais. É importante ressaltar
que o coletivo respondente é caracterizado por um grupo privilegiado
(sentido de nobreza) quando se considera cor de pele e orientação sexual.

3.2 Analisando o discurso

O conceito-análise presente nos textos-resposta analisados na per-


gunta “Indique o(s) fator(es) que te fizeram não escolher um curso das
áreas de Ciências Exatas, Engenharias e Computação” é a motivação da
não escolha pelas áreas de ciências exatas, engenharias e computação.
Dentro da amostra tem-se textos que constroem o conceito-análise a partir
do discurso da afetividade positiva (ou negativa) em relação às outras
áreas do conhecimento.
Considerando o discurso da afetividade negativa, algumas marcas
textuais se repetem na amostra: “não me identifico com essas áreas”;
“nunca tive interesse nessas áreas”; “não me identifico com o pensamento
e a postura geral de pessoas dos cursos de exatas”; “os professores de exa-
tas, de maneira geral, não sentem que sua responsabilidade é estimular os
alunos”; “ cursos sem graça”; “repetitividade nos estudos”; “muitas contas,
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 147

gente escrota e muitos homens na sala”; “muito chato”; “medo do ambi-


ente dos cursos”; “biológicas me parecia menos sério e metódico”; “esses
cursos não levam em conta o lado mais "humano" das coisas”. As marcas
textuais levam a um conceito de ciências exatas como ciências frias e du-
ras, de alto rigor metodológico, sem espaço a pensamento crítico,
conservadora e estática, sendo as pessoas da área marcadas pelo estereó-
tipo homem “nerd”, pela racionalidade e frigidez. Esse é um discurso das
ciências exatas como ciências neutras, que não perpassam outras áreas do
conhecimento, principalmente a área de ciências humanas.
As marcas textuais do discurso da afetividade positiva foram: “amor
pelas Letras”; “mais facilidade com as ciências humanas”; “Ciências Bioló-
gicas sempre foi minha primeira opção”; “me identifico com Humanas”.
Essas marcas pertencem ao discurso de profissão por vocação, ou seja, fa-
zer a graduação em uma área de seu interesse. Esse discurso não coloca as
ciências exatas na mesma posição de “ciências duras”, como o discurso
anterior, saindo da polarização das áreas do conhecimento.
Além do discurso de afetividade, percebe-se também o discurso de
obscuridade, a saber, que apresentam como motivação principal a com-
plexidade associada à área de ciências exatas. Entre as marcas desse
discurso, estão: “preciso me esforçar o triplo para aprender conteúdos ma-
temáticos e não tenho muita paciência para cálculos”; “nunca tirei notas
boas em matérias de Exatas”; “nunca compreendi como funciona, não con-
sigo decorar fórmulas matemáticas”; “ falta de entendimento em
princípios básicos da disciplina”; “dificuldade em compreender a lingua-
gem matemática”; “minhas habilidades não são para áreas como essas”;
“abstrato”. Tais marcas textuais fazem parte do discurso das ciências exa-
tas como ciências tecnicistas e de alto grau de dificuldade, colocando-as
em uma posição de nobreza, por admitir apenas pessoas que correspon-
dam a um perfil extremamente racional e disciplinado. Percebe-se uma
convergência entre o discurso de obscuridade e o discurso de afetividade
negativa, isto é, o discurso da compartimentalização do conhecimento em
148 | Educação Matemática e Diversidade(s)

soft sciences e hard sciences, em tradução livre “ciências brandas” e “ciên-


cias duras”.
O estudo da pergunta “Para você, qual é o papel das disciplinas de
Matemática, Química e Física em relação a questões de raça, gênero e ori-
entação sexual?” aventou, a partir dos textos-resposta, o conceito-análise
das atribuições das disciplinas da área de ciências exatas na educação bá-
sica no tocante à raça, gênero e orientação sexual. Após a leitura flutuante,
foram identificados dois tipos de discursos, opostos, um de proximidade e
outro de distanciamento em relação à abordagem das respostas dadas.
As seguintes marcas textuais dizem respeito ao discurso de distanci-
amento: “nenhum”; “indiferente”: “a abordagem requer uma base sólida
proporcionada por outras ciências (como a sociologia e história)”; “são dis-
ciplinas instrumentais que precisam ser repensada para a formação do
sujeito”; “em relação à raça, não vejo nenhuma relação”; “nessas discipli-
nas fica um pouco forçado a situação”; “nem tudo se baseia em apenas
números, há além disso, uma complexidade de histórias, de vivências, de
influências, aspectos que a área das exatas não mede”; “não são questões
que fazem parte dos conteúdos a serem trabalhados nestas disciplinas”; “é
difícil encontrar pontos de convergência entre os temas”; “não acredito
que elas tenham um papel protagonista nesse tipo de discussão”; “essas
disciplinas em específico, ao meu ver, deveriam servir para desenvolver
capacidades de pensamento e raciocínio abstrato/complexo”; “não consigo
perceber como relacioná-las a essas questões sociais”; “não tem papel sig-
nificante, já que essas questões eram abordadas em matérias como
Sociologia, História, Artes”. Essas marcas indicam o conceito das ciências
exatas como ciências neutras, em um discurso que ressalta a comparti-
mentalização do conhecimento, tirando das ciências exatas a
responsabilidade de abordar temáticas sociais, distanciando-as da trans-
versalidade proposta nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Percebe-se
que o discurso vai ao encontro dos discursos de afetividade negativa e obs-
curidade da questão anterior.
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 149

O outro discurso que surge na análise destes textos-resposta é o dis-


curso de proximidade, cujas marcas textuais são: “papel de apoio para o
entendimento das realidades sociais abordadas”; “por que apenas as hu-
manas devem tratar dessas questões?”; “tão importantes quanto as
demais, todas as matérias deveriam abordar tais temas”; “temas relacio-
nados à sociedade devem ser tratados em todas as matérias, [...]
proporcionando ao aluno essa temática de modo constante e natural, não
somente pontual e isolado”; “nenhum conhecimento científico é neutro e
por isso não podemos permitir que a ciência permaneça uma ferramenta
de poder e dominação”; “de extrema importância”; “proporcionar questi-
onamentos e reflexões”; “mostrar diversidade na disciplina”. Tais marcas
pertencem a um discurso de transversalidade das questões de gênero, ori-
entação sexual e raça, aproximando as ciências exatas de outras áreas de
conhecimento e questionando a neutralidade dessas disciplinas. Esse dis-
curso não isenta a matemática, física e química da formação crítica de
estudantes, destacando a importância da abordagem das temáticas sociais
em todas as disciplinas da educação básica.
Nos textos-resposta analisados, as disciplinas escolares física, mate-
mática e química foram percebidas pelas pessoas discentes respondentes
como disciplinas que podem ou não contribuir para as discussões envol-
vendo gênero-orientação sexual-raça. Contribui para essa dubiedade o
modo como as disciplinas escolares são organizadas na maioria das escolas
brasileiras, visto que as disciplinas são encaixotadas e pouco experienciam
voos para além de suas gaiolas ‘epistemológicas’. (D’AMBROSIO, 2016)
É possível fazer diferente, mas para isso a educação em ciências e
matemática necessita pulsar insubordinação criativa e coragem. A educa-
ção é um ato político, mas também corajoso.

4. Considerações finais

A naturalização do discurso das ciências exatas como ciências duras,


neutras e distantes das discussões de gênero, orientação sexual e raça,
150 | Educação Matemática e Diversidade(s)

legitima a presença do que, aqui, chamamos de nobreza, ao passo que ex-


clui de suas discussões e trata de maneira hostil aquelas pessoas
pertencentes ao gueto. A abordagem desses temas dentro das ciências exa-
tas funciona como uma estratégia de contra-ataque ao cerceamento dessas
discussões, considerando a compartimentalização do conhecimento em
que tais tópicos são apenas discutidos dentro das ciências humanas.
Reforça-se aqui a importância da discussão de gênero, orientação se-
xual e raça nos cursos de licenciatura na área de ciências exatas, para que
futuramente docentes não reverberem preconceitos em sua sala de aula,
levando em conta o próprio comportamento, comportamentos de discen-
tes, livro didático, materiais de apoio, currículo e escola. Essa discussão
durante a graduação potencializa o acolhimento das minorias e o senti-
mento positivo em relação às ciências exatas para as mais diversas pessoas
- e não apenas para homens brancos e heterossexuais.
É importante ainda salientar os desafios no percurso metodológico
escolhido quanto à obtenção de respostas, que geraram um questiona-
mento acerca da participação universitária na pesquisa da própria
universidade. A dificuldade em aumentar o número de respostas ao ques-
tionário aqui desenvolvido acarreta em reflexões acerca dos fatores
fundamentais para se ter engajamento nesse tipo de pesquisa, como for-
mulação, conteúdo e divulgação.
Ressalta-se aqui que as respostas obtidas com esta pesquisa engen-
dram mais trabalhos a partir da riqueza do material das perguntas
discursivas, podendo ainda contribuir para auxiliar nas discussões envol-
vendo o distanciamento das pessoas egressas da educação básica da área de
ciências exatas e sua relação com as questões movimentadas neste texto.

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154 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Anexo 1

Questionário “Gênero, orientação sexual e raça nas disciplinas esco-


lares Física, Matemática e Química”

Bloco 1: Escolha da área de graduação

A1 - Escolha a opção que melhor descreve o motivo pelo qual você escolheu
seu curso.

1. Sempre pensei em fazer este curso.


2. Não era exatamente o que eu queria fazer, mas me pareceu a melhor opção dentre
as que eu tinha.
3. Escolhi o curso pensando no mercado de trabalho. Influência familiar.
4. Influência de um profissional da área.
5. Outro:____________________

A2 - Indique o(s) fator(es) que te fizeram não escolher um curso das áreas
de Ciências Exatas, Engenharias e Computação.

Bloco 2: Sentimentos em relação às disciplinas escolares Física, Quí-


mica e Matemática

B1 - Como você classifica sua relação com Matemática?

1. Amo Matemática.
2. Gosto de Matemática.
3. Sou indiferente.
4. Não gosto de Matemática.
5. Tenho pavor de Matemática.

B2 - Como você classifica sua relação com Física?

1. Amo Física.
2. Gosto de Física.
3. Sou indiferente.
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 155

4. Não gosto de Física.


5. Tenho pavor de Física.

B3 - Como você classifica sua relação com Química? (Marcar apenas uma
opção).

1. Amo Química.
2. Gosto de Química.
3. Sou indiferente.
4. Não gosto de Química.
5. Tenho pavor de Química.

Bloco 3: Questões de Gênero, Orientação Sexual, Raça e as disciplinas


escolares Física, Matemática e Química

C1 - Selecione em que medida as questões de gênero foram tratadas nas


aulas de Física Matemática e Química.

Nunca Raramente Às vezes Com frequência Sempre


Física
Matemática
Química

C2 - Selecione em que medida você se sentiu desrepeitadx nas aulas de Fí-


sica, Matemática e Química em relação aos seguintes tópicos:

Nunca Raramente Às vezes Com frequência Sempre


Física
Matemática
Química

C3 - Assinale as opções que você considera que, durante seu ensino básico,
desempenharam papel de acolhimento em relação à sua identidade de gê-
nero, orientação sexual e cor de pele nas disciplinas de Matemática, Física
e Química.

Livro di- Docente Colegas Ambiente Não ocorreu acolhimento em relação às


dático escolar disciplinas de Matemática, Física e Quí-
mica em meu ensino básico.
156 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Identidade
de gênero
Orientação
sexual
Cor de pele

C4 - Assinale as opções que você considera que, durante seu ensino básico,
desempenharam papel de coerção em relação à sua identidade de gênero,
orientação sexual e cor de pele nas disciplinas de Matemática, Física e Quí-
mica.

Livro di- Docente Colegas Ambiente Não ocorreu acolhimento em relação às


dático escolar disciplinas de Matemática, Física e Quí-
mica em meu ensino básico.
Identidade
de gênero
Orientação
sexual
Cor de pele

C5 - Para você, qual é o papel da escola em relação a questões de raça,


gênero e orientação sexual?
C6 - Para você, qual é o papel das disciplinas de Matemática, Química e
Física em relação a questões de raça, gênero e orientação sexual?

Bloco 4: Democracia, Justiça Social e as disciplinares escolares Física,


Matemática e Química

D1 - A educação matemática deve se desenvolver como suporte da demo-


cracia, e as micros-sociedades de salas de aulas de matemática devem
também mostrar aspectos de democracia. A matemática não é somente um
assunto a ser ensinado e aprendido.

1. Concordo plenamente.
2. Concordo.
3. Não concordo nem discordo.
4. Discordo.
5. Discordo plenamente.
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 157

D2 - Considerando a questão anterior, em que medida você sentiu que a


educação matemática de seu ensino básico refletiu isso?

1. Nunca.
2. Raramente.
3. Às vezes.
4. Com frequência.
5. Sempre.

D3 - O ensino de ciências deve se desenvolver como suporte da democracia,


e as micros- sociedades de salas de aulas de física devem também mostrar
aspectos de democracia. A física não é somente um assunto a ser ensinado
e aprendido.

1. Concordo plenamente.
2. Concordo.
3. Não concordo nem discordo.
4. Discordo.
5. Discordo plenamente.

D4 - Considerando a questão anterior, em que medida você sentiu que o


ensino de ciências da sua educação básica, em especial de física, refletiu
isso?

1. Nunca.
2. Raramente.
3. Às vezes.
4. Com frequência.
5. Sempre.

D5 - O ensino de ciências deve se desenvolver como suporte da democracia,


e as micros- sociedades de salas de aulas de química devem também mos-
trar aspectos de democracia. A química não é somente um assunto a ser
ensinado e aprendido.

1. Concordo plenamente.
2. Concordo.
158 | Educação Matemática e Diversidade(s)

3. Não concordo nem discordo.


4. Discordo.
5. Discordo plenamente.

D6 - Considerando a questão anterior, em que medida você sentiu que o


ensino de ciências da sua educação básica, em especial de química, refletiu
isso?

1. Nunca.
2. Raramente.
3. Às vezes.
4. Com frequência.
5. Sempre.

D7 - Selecione em que medida as aulas de Física, Matemática e Química


contribuíram negativamente para equidade de gênero, justiça social e res-
peito às diferenças.

Nunca Raramente Às vezes Com frequência Sempre


Equidade de gênero
Justiça social
Respeito às diferenças

D8 - Selecione em que medida as aulas de Física, Matemática e Química


contribuíram positivamente para equidade de gênero, justiça social e res-
peito às diferenças.

Nunca Raramente Às vezes Com frequência Sempre


Equidade de gênero
Justiça social
Respeito às diferenças

Bloco 5 - Identificação da pessoa respondente

E1 - Qual é o seu curso? Licenciatura em

1. Artes Visuais
2. Biologia
3. Ciências Sociais
Fernanda Dartora Musha; Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy | 159

4. Educação Física
5. Filosofia
6. Geografia
7. História
8. Letras
9. Música

E2 - Qual é a sua idade? _________________


E3 - Em relação à cor da sua pele, você se declara uma pessoa:

1. Preta
2. Parda
3. Amarela
4. Indígena
5. Branca
6. Prefiro não declarar

E4 - Em relação à identidade de gênero, você se declara:

1. Mulher Cis
2. Mulher Trans
3. Homem Cis
4. Homem Trans
5. Não-binário

E5 - Em relação à orientação sexual, você se declara:

1. Homossexual
2. Heterossexual
3. Bissexual
4. Pansexual
5.Outro:____________

E6 - Somando a sua renda com a renda das pessoas que moram com você,
quanto é, aproximadamente, a renda familiar mensal?

1. Até 1 salário mínimo.


2. De 1 a 3 salários mínimos
160 | Educação Matemática e Diversidade(s)

3. De 3 a 6 salários mínimos
4. De 6 a 9 salários mínimos
5. De 9 a 12 salários mínimos
6. De 12 a 15 salários mínimos
7. Mais de 15 salários mínimos

E7 - Você cursou a Educação Básica:

1. Integralmente em escolas públicas.


2.Integralmente em escolas particulares.
3. Parte em escolas públicas e parte em escolas particulares.
8

Pisando sobre brasas:


contribuições de gênero e
sexualidade para a educação matemática

Harryson Júnio Lessa Gonçalves 1


Igor Micheletto Martins 2
Kedma Elisandra Zanetti 3

Estabelecendo diálogo(s)...

Neste capítulo, traçaremos algumas discussões de teorias de gênero


e da sexualidade, em especial aquelas que problematizam a partir do coti-
diano escolar, com o intuito de contribuir para o avanço dessa temática no
contexto da Educação Matemática. Significa que, considerando a Educação
Matemática uma prática social interdisciplinar, aberta ao diálogo com as
demais práticas sociais (MIGUEL et al., 2004), o nosso objetivo é

1
Livre-docente em Didática e Currículo pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e
doutor em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Associado
da Faculdade de Engenharia da UNESP – Câmpus de Ilha Solteira (FEIS/UNESP); credenciado no Programa de Pós-
Graduação em Educação para a Ciência (Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus de Bauru) e no Programa de
Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos (FEIS/UNESP). É coordenador do Grupo de Pesquisa em Currí-
culo: Estudos, Práticas e Avaliação (GEPAC). Ilha Solteira, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Mestre em Ensino e Processos Formativos pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da UNESP –
Câmpus de Bauru (FC/UNESP). É membro do Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação
(GEPAC). Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
3
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Especialista em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela Faculdade de Medicina
de São José do Rio Preto (FAMERP) e pedagoga pela UNESP. Professora de educação básica da Prefeitura Municipal
de São José do Rio Preto. É membro do Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação (GEPAC). São
José do Rio Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
162 | Educação Matemática e Diversidade(s)

apresentar discussões sobre identidades, sobre gênero e sobre sexuali-


dade, provocando um entrelaçamento desses conceitos com o campo de
conhecimento da Educação Matemática.
Pensar essa possibilidade de entrelaçamento é visualizar a Matemá-
tica para além da resolução de problemas envolvendo números e contas,
compreendendo-a como uma maneira de ver o mundo, como uma ferra-
menta poderosa na formatação da sociedade, que pode perpetuar
desigualdades ou, então, contribuir para a mitigação de discriminações, de
preconceitos e de disparidades em nossa sociedade (LERMAN, 2019).
A sexualidade, muitas vezes, é concebida como assunto proibido e que
deve ficar por conta da família. Também pode relacionar-se, com interpre-
tações equivocadas sobre os conceitos, à desinformação e ao preconceito.
Na escola “[...] é tópico polêmico, considerando a multiplicidade de visões,
crenças e valores dos diversos atores [...], assim como os tabus e interditos
que social e historicamente cercam temas que lhe são relacionados”
(CASTRO, ABRAMOVAY; SILVA, 2005, p. 33).
A presença/ausência da diversidade sexual e da identidade de gênero
no ambiente escolar tornou-se tema recorrente em debates públicos e pri-
vados, corporificando-se após discursos inflamados de setores mais
conservadores da política brasileira. Discursos esses que podem ser carac-
terizados como discursos de ódio, pautados, muita vezes, na moral e no
fundamentalismo religioso, trazendo à tona preconceitos acobertados.
Seffner (2013) indica que as questões de gênero e de sexualidade são acom-
panhadas dos valores morais e religiosos, tanto na escola, como na
sociedade.
Guacira Louro aponta-nos que essa não é uma discussão recente.

Na verdade, desde os anos sessenta, o debate sobre as identidades e as práticas


sexuais e de gênero vem se tornando cada vez mais acalorado, especialmente
provocado pelo movimento feminista, pelos movimentos de gays e de lésbicas
e sustentado, também, por todos aqueles e aquelas que se sentem ameaçados
por essas manifestações (LOURO, 2000, p. 15).
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 163

No tocante à escola, Altmann (2013) traça um panorama histórico de


como a temática vem sendo abordada ao longo dos anos e como foram
criadas estratégias pedagógicas a fim de administrar a sexualidade. A au-
tora exemplifica que a masturbação já chegou a ser considerada uma
doença e, posteriormente, sexo seguro, principalmente, quando as Infec-
ções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e a gravidez na adolescência
passaram a estar em evidência e a fazer parte das políticas públicas e da
intervenção escolar.
A epidemia da Síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA; em
inglês, acquired immunodeficiency syndrome, AIDS) e o aumento do nú-
mero de adolescentes grávidas na década de 1980 contribuíram para que
a temática da sexualidade estivesse na escola.

O caráter preventivo da prática educativa consolidou-se a partir dessa epide-


mia [HIV/AIDS], ainda que a sexualidade de crianças e adolescentes já fosse
objeto de atenção das instituições pedagógicas desde a modernidade
(ALTMANN, 2013, p. 72).

É valido destacar que essa estratégia pedagógica de desenvolver te-


máticas de gênero e de sexualidade na escola pautada em ISTs possui uma
perspectiva biologizante, que acaba perpetuando preconceitos e discrimi-
nações e, ainda, excluindo outras dimensões da temática.
No que se refere ao currículo, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) são o marco para a educação brasileira. Nos PCNs, o tema Orien-
tação Sexual é tratado de forma transversal. De acordo com Figueiró
(2001), o título desse material é considerado um tanto confuso visto que
“[...] a expressão ‘orientação sexual’ diz respeito à direção do desejo sexual
do indivíduo, que pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual”
(FIGUEIRÓ, 2001, p. 44). No documento é dada a seguinte justificativa
para utilização do termo orientação sexual: “[...] não substitui nem con-
corre com a função da família, mas antes a complementa” (BRASIL, 1996,
p. 83). Contudo, o autora argumenta, ainda, que o termo mais adequado
deveria ser Educação Sexual, “[...] porque é coerente com a concepção do
164 | Educação Matemática e Diversidade(s)

processo de educação, no qual o educando participa da aprendizagem


como sujeito ativo e não como mero receptor de conhecimentos, informa-
ções e/ou orientações” (FIGUEIRÓ, 2001, p. 44).
Posteriormente, em 2004, a Secretaria Especial de Direitos Humanos
lançou o Programa Brasil sem Homofobia. Dentre suas ações, encontra-
mos o Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra pessoas
LGBT e de Promoção à Cidadania de Homossexuais, cujo objetivo era pro-
mover a cidadania e os direitos humanos às pessoas que rompem com a
heteronormatividade, a partir da equiparação de direitos e do combate à
violência e à discriminação (BRASIL, 2004). Conforme relatam Oliveira
Júnior e Maio (2017), um dos objetivos para efetivar o programa foi a ela-
boração e a publicação do material didático a ser distribuído, que recebeu
vários apelidos, dentre eles, o mais famoso, foi “Kit Gay”.
A elaboração e a discussão do material didático apelidado de Kit Gay,
segundo Oliveira Júnior e Maio (2017), causou algumas reações contrárias
e foi mal recebida pelos setores conservadores, especialmente, daqueles
ligados ao fundamentalismo religioso. Em 2011, a então presidenta da re-
pública Dilma Rousseff, sentindo-se pressionada, suspendeu a produção
do material que estava sendo editado pelo Ministério da Educação (MEC).
Recentemente, em 2017, foi promulgada a Base Nacional Curricular
Comum (BNCC)4 para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental
sucedendo os PCNs. Ao analisarem o documento, Silva, Brancaleoni e Oli-
veira (2019) observaram que a sexualidade é abordada apenas em sua
dimensão biológica e que o documento não dá suporte para o professor
trabalhar com as múltiplas dimensões da sexualidade, enfatizando-se, ape-
nas, os aspectos biológicos. Também constataram que a BNCC silencia as
discussões sobre gênero e trata com superficialidade os direitos humanos.
Para os autores, a BNCC apresenta retrocessos, quando comparada aos
PCNs, principalmente, no que tange à sexualidade, visto que o documento

4
O acesso à BNCC está disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>.
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 165

da década de 1990 contempla a temática e sugere que seja trabalhada nas


diversas áreas do conhecimento.
Afinal, por que é necessário falar sobre sexualidade na escola? Por
que é tão importante que se discuta sobre diversidade sexual e de gênero?
Amparados em Altmann (2013), entendemos que as mulheres são agredi-
das ou mortas dentro de casa – lugar que deveria ser de proteção e de
segurança –, porque “[...] de modo semelhante, os casos de violência con-
tra pessoas homossexuais são, na sua maioria, cometidos por pessoas
conhecidas, como familiares e vizinhos [...]” (ALTMANN, 2013, p. 71). A
escola, como colocam Oliveira Júnior e Maio (2017), é um espaço demo-
crático e um bom lugar para o desenvolvimento de políticas públicas que
promovam o reconhecimento das diferenças e que reconheçam homens e
mulheres como sujeitos de direitos, incluindo o direito à diversidade se-
xual e de gênero.
A escola é, também, um espaço de socialização, pois as pessoas pas-
sam boa parte da vida no ambiente escolar. É, pois, o local onde os
problemas presentes na sociedade aparecem também. Nesse sentido, é um
espaço privilegiado para a discussão da temática, visto que

[...] muitos alunos experimentam boa parte da vida afetiva na escola [...] a
escola é um terreno de experimentação dos modos de ser homem e de ser
mulher, e cada vez mais é um terreno de expressão da diversidade de orienta-
ção sexual (SEFFNER, 2013, p. 154).

Assim, é importante desenvolver esse tema de grande impacto e re-


levância social com o intuito de diminuir as desigualdades e as opressões
relativas ao gênero e à orientação sexual.

Identificando e diferenciando: conceitos sobre identidade e diferença

A ascensão das questões identitárias é característica marcante da con-


temporaneidade, por vivermos em uma época de crise de identidade. Crise
essa que, para Hall (2015), nada mais é do que o declínio das velhas
166 | Educação Matemática e Diversidade(s)

identidades que estabilizavam o mundo social e o surgimento de novas


identidades. Assim, a crise de identidade caracteriza-se em um duplo des-
locamento5, que ocorre nos indivíduos, descentrando-os tanto de seus
lugares no mundo social, como de si mesmos.
Todavia, quais conhecimentos permeiam as discussões identitárias?
Inicialmente, Woodward (2014) sinaliza uma tensão na raiz das discussões
identitárias entre duas perspectivas de identidade: essencialistas e não-es-
sencialistas. A definição, com base na perspectiva essencialista, tem como
princípio a existência da autenticidade e de um conjunto cristalino e imu-
tável de características, portanto, a identidade não sofre alterações no
decorrer do tempo, e pode fundamentar-se em um passado, que, possivel-
mente, foi obscurecido e/ou reprimido, fixando uma verdade e revelando
a identidade como um produto da história ou em explicações amparadas
na Biologia, revelando a identidade como uma categoria supostamente na-
tural.
Enquanto a definição da identidade, com base na perspectiva não-
essencialista, tem um enfoque nas diferenças, com a atenção voltada para
as possíveis definições que caracterizam aquela identidade (WOODWARD,
2014). Sendo assim, o conjunto cristalino imutável do essencialismo é es-
tilhaçado e fragmentado e a diferença é colocada como o cerne das
explicações.
Para Silva (2014), na perspectiva não-essencialista, a linguagem tem
um papel parcial nas definições de identidade e de diferença. Assim, a iden-
tidade segue a tendência de fixação da linguagem. Contudo, o autor aponta
que a fixação é, ao mesmo tempo, uma tendência e uma impossibilidade.
A identidade e a diferença, assim como a linguagem, são instáveis e inde-
terminadas e estão sempre escapando das fixações.
Neste capítulo, defendemos a perspectiva não-essencialista existente
na raiz das discussões identitárias. Também acreditamos, substanciados

5
Hall (2015) apoia-se em Laclau (1990) para desenvolver o conceito de deslocamento. Para o Hall (2015), “[...] uma
estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma pluralidade de
centros de poder” (HALL, 2015, p. 13).
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 167

por Silva (2014), que a identidade e a diferença são resultados de atos de


criação linguística. Significa que não são elementos naturais e desconheci-
dos, como se estivessem à mercê de serem revelados, descobertos,
respeitados e tolerados; a identidade, assim como a diferença, são criações
sociais e culturais.
Assumimos, consubstanciados em Hall (2014), que o termo identi-
dade é um ponto de encontro ou de sutura, no qual, por um lado, os
discursos e as práticas convocam-se a assumir os nossos lugares de sujei-
tos sociais que possuem discursos particulares e que, por outro lado, há os
processos que produzem subjetividades e acabam por nos construir como
sujeitos dignos de fala.
Em Woodward (2014), observamos que a identidade é relacional. Isto
é: a existência de uma certa identidade depende de algo fora dela, que ela
não seja, que difere e que, assim, fornece condições existenciais. Para
tanto, entendemos que essa identidade surge em uma relação de afirma-
ção-negação. Por exemplo, por detrás da afirmação ‘eu sou homossexual’
existe uma negação implícita e subliminar enunciando que ‘eu não sou he-
terossexual’. Logo, “[...] toda identidade tem necessidade daquilo que lhe
falta – mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inar-
ticulado” (HALL, 2014, p. 110).
Ao mencionarmos que a identidade precisa de algo que difere dela
para sua existência, deixamos claro que a “[...] a identidade depende da
diferença” (WOODWARD, 2014, p. 40). Uma forma bem simples de enten-
der essa dependência está na obra de Woodward.

Assim, o pão que é comido em casa é visto simplesmente como um elemento


da vida cotidiana, mas, quando especialmente preparado e partido na mesa da
comunhão, torna-se sagrado, podendo simbolizar o corpo de Cristo
(WOODWARD, 2014, p. 41).

Woodward (2014) usa esse exemplo para argumentar sobre a dife-


rença reproduzida por meio de sistemas simbólicos, os quais compõem a
representação. Em suma, a representação, compreendida como processo
168 | Educação Matemática e Diversidade(s)

cultural, inclui esses sistemas simbólicos supracitados e as práticas de sig-


nificação. A representação6, em conjunto com os discursos, constrói
lugares por meio dos quais os sujeitos podem falar e posicionar-se, ou seja,
identidades individuais e coletivas.
Desse modo, a diferença estabelece-se nas distinções entre uma iden-
tidade e outra, isto é, aquilo que se opõe e que separa. Essa diferença pode
ser construída de forma negativa ou de forma positiva. A forma negativa
da diferença dá-se a partir da exclusão ou da marginalização das pessoas
que são definidas como ‘outras’, transgressoras, forasteiras e desviantes.
A forma positiva da diferença, por sua vez, dá-se quando essa diferença é
celebrada como enriquecedora e fonte de diversidade, característica co-
mum ao comportamento dos movimentos sociais ao afirmar suas
identidades, antes relegadas, com felicidade (WOORDWARD, 2014).
Apesar disso, Silva (2014) sinaliza o cuidado a ser tomado com a pers-
pectiva da diversidade e do multiculturalismo, pois, ao se apoiar com
benevolência em apelos direcionados a tolerância e ao respeito da dife-
rença, essa perspectiva acaba por essencializar e por naturalizar as
identidades. Para o autor, a identidade e a diferença possuem estreita de-
pendência com a representação, pois é por meio desse processo cultural
que elas existem e adquirem sentido.
Além disso, esses sistemas simbólicos produzem significados que
possibilitam a atribuição de sentido a nossa experiência e ao que nós so-
mos, bem como àquilo que nós podemos nos tornar. Entretanto, essas
práticas de significação acabam produzindo significados permeados por
relações de poder, em que um significado tem uma preferência em relação
a outros, caracterizando um dualismo com pesos desiguais. Isto é, o poder
definirá qual identidade deve ser incluída e qual deve ser excluída
(WOODWARD, 2014).
De acordo com Silva (2014), as relações de identidade e de diferença
são ordenadas sempre em oposições binárias, determinando o que é

6
Silva (2014) afirma que representar significa basicamente dizer “essa é a identidade”.
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 169

normal e o que é anormal. Para o autor, normalizar é eleger, arbitraria-


mente, uma identidade como o parâmetro e avaliar, bem como
hierarquizar, as demais identidades. Atribui-se a essa identidade ‘normal’
todas as características positivas, enquanto, para as demais, restam apenas
características negativas.
A normalização, além de ser a manifestação mais sutil do poder no
campo da identidade e da diferença, também desencadeia uma força ho-
mogeneizadora nas identidades classificadas como normais a ponto dessas
se tornarem invisíveis (SILVA, 2014). Tomando como pressuposto que em
nossa sociedade a heterossexualidade é classificada como o parâmetro,
pessoas heterossexuais não precisam afirmar a sua identidade a todo mo-
mento, diferentemente das pessoas que fogem dessa norma: para elas,
afirmar sua identidade é uma questão de existência.
Essa invisibilidade da identidade, posta no topo da hierarquia, direci-
ona-se como uma resposta para o escrito de Hall (2014) intitulado “Quem
precisa da identidade?”. Acreditamos que, se a identidade normal possui
uma força homogeneizadora, que a torna invisível, são as identidades postas
como anormais que se tornam visíveis. Desse modo, quem precisa da iden-
tidade são as pessoas que assumem ‘outras’ identidades marginalizadas,
afinal essas precisam demarcar a bandeira identitária para existir e persistir.

Elas [as identidades] têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos
recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo
que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com
as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com
as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido represen-
tados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos
representar a nós próprios” (HALL, 2014, p. 109).

Em se considerando a relação interdependente entre identidade e di-


ferença encontram-se as relações de poder, Silva (2014) aponta para uma
necessidade constante de criação e recriação da identidade e da diferença,
pois essas não são entidades preexistentes e nem elementos passivos da
cultura.
170 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Uma das possibilidades para fomentar essa constante transformação


encontra-se na Pedagogia e, especificamente, no currículo. Para Silva
(2014), a questão da identidade e da diferença é um problema pedagógico
e curricular, pois o espaço da escola, assim como a nossa sociedade, é atra-
vessado pela diferença. As crianças e os jovens não escapam da interação
com o ‘outro’ no espaço da escola. Também é um problema social, pois o
mundo é heterogêneo e o encontro com o diferente é inevitável.
Nesse sentido, a Pedagogia7 (e o currículo) deveriam ser estruturados
a fim de desenvolverem um estranhamento e um questionamento dos sis-
temas dominantes de representação. Assim, há a necessidade de explicar
como essa diferença é ativamente produzida, antes de desenvolver ativi-
dades que ensinem o respeito e a tolerância (SILVA, 2014).

Conexões entre gênero, sexualidade e escola

Para começo de conversa, gênero e sexualidade possuem uma forte


relação com as diferenças. Diferenças essas que não preexistem nos corpos
dos indivíduos, mas, sim, são atribuídas em um sentido relacional. A dife-
rença é, portanto, atribuída a um corpo e compreendida em relação a um
outro corpo, classificado como referência. Em nossa sociedade, a referên-
cia construída historicamente é o homem, branco, heterossexual, da classe
média urbana, o corpo que não possui algum desses requisitos pode ser
classificado como anormal, ser excluído e marginalizado, visto que a refe-
rência é parâmetro de normalidade (LOURO, 2008).
Para Scott (1995), o gênero é construído social e historicamente, seu
uso rejeita explicações biológicas e indica as construções culturais nas de-
terminações das práticas e dos papéis sexuais exercidos pelo homem e pela
mulher. Gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta
sobre um corpo sexuado. Para Butler (2015), tão limitante quanto

7
Em certo sentido, “pedagogia” significa precisamente “diferença”: “educar” seria, portanto, introduzir a cunha da
diferença em um mundo que sem ela se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo parado, um mundo
morto (SILVA, 2014, p. 101).
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 171

acreditar na definição de gênero como sendo meramente biológica, é de-


fini-lo somente como construção cultural, pois “[...] tem-se a impressão
de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que
a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o
destino” (BUTLER, 2015, p. 29). Para ela, gênero está relacionado ao dis-
curso cultural hegemônico, ou seja, é construído pelo discurso de poder
vigente baseado nas estruturas binárias, o qual entende como gêneros in-
teligíveis, aqueles que obedecem à lógica entre sexo biológico, gênero e
orientação sexual.
Já a sexualidade, segundo Oliveira, Brancaleoni e Souza (2013), está
relacionada com a busca do prazer. Para as autoras, trata-se de um aspecto
fundamental no processo de construção da identidade e pode manifestar-
se de diversas maneiras, do nascimento até a morte, perpassando pelas
dimensões biológicas, psíquicas e socioculturais. Constitui-se pelo sujeito,
a partir das possibilidades culturalmente estabelecidas, dos valores e cren-
ças estabelecidos socialmente.
A sexualidade é “[...] uma das dimensões do ser humano que envolve
gênero, identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento
emocional, amor e reprodução” e que pode ser “[...] experimentada ou ex-
pressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores,
atividades, práticas, papéis e relacionamentos.” (CASTRO; ABRAMOVAY;
SILVA, 2004, p. 29). Como os autores colocam, a sexualidade não se refere
apenas à capacidade de reprodução, mas, também, ao prazer, que envolve
o corpo, a história, os costumes, as relações afetivas e a cultura.
Indo ao encontro de Louro (2008), compreendemos que o gênero e a
sexualidade não são produtos findados e demarcados apenas no momento
do nascimento de um corpo, mas que ocorrem ao longo de toda a vida, de
modo infindável e contínuo. São inúmeros os processos de aprendizagem,
as práticas e as situações que proporcionam a construção dos gêneros e
das sexualidades, que, também, são processos sutis e minuciosos.
Bento (2011) exemplifica a sutileza desses processos quando comenta
sobre as tecnologias que fazem o gênero. Para autora, a descoberta e o
172 | Educação Matemática e Diversidade(s)

anúncio do sexo do feto são uma espécie de batismo para que o corpo entre
na categoria humanidade, gerando expectativas sobre esse corpo ao esco-
lher o brinquedo, os modelos de roupas e as cores para o filho que nem
nasceu ainda. Essas atitudes e essas expectativas produzem masculinida-
des e feminilidades, além de estruturarem os pilares das normativas de
gênero.
A escola é uma instância importante e influenciadora nesses proces-
sos, assim como a família, as igrejas, as instituições legais e médicas. Louro
(2018) aponta que a escola exerce pedagogias da sexualidade e pedagogias
do gênero, as quais são compostas por práticas e por linguagens, desenca-
deadas em proposições, em imposições e em proibições, que constituem
sujeitos femininos e masculinos e produzem marcas que tem efeitos de
verdade. As pedagogias do gênero e da sexualidade utilizam a lógica da
diferença, marginalizando os corpos que destoam da referência e classifi-
cando-os como desviantes.
Para Bento (2011), a escola não tem capacidade para compreender a
diferença e a pluralidade. Por conta disso, a escola constitui-se como a
principal instituição que afirma e que reitera as normas de gênero e de
sexualidade. A autora avança, indicando que a instituição pode ser consi-
derada como produtora da heterossexualidade compulsória, ou como ela
mesmo coloca, ocorre um heteroterrorismo.
Para além da forte relação que o gênero e que a sexualidade têm com
a diferença, compreendemos também haver um regime que reitera a todo
momento as normas/os parâmetros do gênero e da sexualidade. Esse re-
gime é denominado, por alguns autores, como heteronormatividade.
Seffner (2013) aponta que a heteronormatividade estabelece como natural
a coerência entre sexo biológico, gênero e orientação sexual. Na concepção
do regime heteronormativo, sexo biológico quer dizer macho/fêmea e/ou
pênis/vagina, excluindo as pessoas intersexuais deste hall de inteligibili-
dade. O gênero define-se como o papel social de homem e mulher,
excluindo, assim, pessoas que se entendem em outros papéis. Enquanto
para a orientação sexual só existe a heterossexualidade, visto a estratégia
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 173

compulsória de reprodução, entre outros aspectos. Esse regime materia-


liza-se nos seguintes moldes: se uma pessoa nasceu macho, deve
identificar-se, obrigatoriamente, como homem e orientar seu desejo se-
xual para pessoas que nasceram fêmeas, estas se identificam
obrigatoriamente como mulheres e orientam o seu desejo para ho-
mens/machos.
Em suma, a instituição escola influencia e colabora para o desenvol-
vimento da compreensão de seus alunos e de suas alunas sobre as questões
de gênero e de sexualidade. A escola reitera as normas de gênero e de se-
xualidade, colocando em funcionamento o regime da heteronormatividade
e criando espaços para que os alunos compreendam-se sob parâmetros
heteronormativos. O que acontece com quem escapa das heteronormas?
Quais as consequências para quem existe e resiste nas fronteiras/margens?
Bento (2011) orienta-nos para a resolução dessas dúvidas, apontando
que a escola identifica o corpo marginalizado/fronteiriço como poluente
do espaço escolar e, para tanto, tenta eliminar a todo custo esse corpo tido
como sujo. Ao limpar e ao higienizar o espaço escolar, a instituição desen-
volve práticas, por meio das quais organiza as relações sociais, regulando
os comportamentos e distribuindo o poder. O que resta para esse corpo
estranho? A expulsão, a transferência de uma escola para a outra, a com-
preensão que esse corpo não tem o direito de estudar.
Nesse sentido, indo ao encontro de Louro (1997), admitimos que a
escola não é apenas uma instituição de transmissão e de produção de co-
nhecimentos, mas, também, uma instituição que fabrica sujeitos e que
produz identidades, na maioria das vezes, em relações de desigualdades e
compromete-se, com a nossa participação ou omissão, com a manutenção
de uma sociedade dividida. Assim, a prática escolar é, também, uma prá-
tica política que pode ser transformada e subvertida, cabendo a nós,
profissionais da educação, intervir diante dessas desigualdades e não nos
acomodando perante a essa problemática.
174 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Quem pode discutir sexualidade na escola?

A sexualidade é um tema emergente na escola e, segundo Macedo


(2017), não pode ficar no seu portão, devendo adentrá-la. Ou seja, a autora
lembra que ao adentrarmos à escola, passamos pelo seu portão e não dei-
xamos quem somos para fora da instituição. Nesse sentido, assim como o
portão, não conseguimos deixar alguns assuntos de fora do currículo es-
colar, mesmo que esse assunto não esteja expressamente escrito no
documento oficial. A sexualidade é um desses assuntos que não podem ser
excluídos do currículo.
Oliveira, Brancaleoni e Souza (2013) ressaltam que a escola é um am-
biente permeado pela sexualidade e, também, um local de informação e de
formação. Justamente por isso, quando aparecem os temas ou os proble-
mas sociais, a escola é chamada para ‘resolvê-los’. Ainda, segundo as
autoras, como a temática é permeada por valores morais, torna-se difícil
o diálogo sobre o assunto na comunidade escolar sem disseminar suas
próprias visões reducionistas. Assim, a sexualidade é vista como tema pe-
rigoso, cercada de preconceitos e reduzida à biologia, com o enfoque dado
às ISTs, à gravidez precoce, aos sistemas genitais ou quando é trabalhada
apenas nos componentes curriculares “Ciências” e “Ciências Biológicas.
Para Altmann (2013), quando as práticas educativas da sexualidade
estão pautadas apenas em sua dimensão biológica, concebendo as relações
sexuais a partir de uma lógica reprodutora, tais práticas não contemplam
outras dimensões da sexualidade e nem sua diversidade, o que acaba por
não ter o efeito desejado.
Para além do trabalho de respeito com a diversidade, a educação se-
xual visa, também, o conhecimento do próprio corpo, contribuindo para a
prevenção e para o incentivo de denúncias de abusos. Nesse sentido, a edu-
cação sexual tem “[...] um compromisso com a transformação social,
conduzindo as discussões para as questões que envolvem relações de po-
der, aceitação das diferenças e respeito pelas minorias” (FIGUEIRÓ, 2006,
p. 83). Figueiró (2006) considera a educação sexual importante para que
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 175

o indivíduo viva de forma positiva e de forma saudável (do ponto de vista


médico) sua sexualidade, além de resgatar o erotismo e a discussão sobre
as questões de gênero e sobre os papéis sexuais com foco no social, no
histórico e no cultural.
Entretanto, de acordo com Soares e Monteiro (2019), a literatura
aponta que muitos/as professores/as não se sentem preparados/as para
abordarem os diversos aspectos da sexualidade. Devido a isso, prevalece,
na escola, a perspectiva biológica restrita, vinculada aos sistemas genitais
masculino e feminino, às doenças e às infecções relacionadas aos órgãos
sexuais.
Araújo, Rossi e Teixeira (2019) investigaram em duas escolas públi-
cas de Piracicaba (São Paulo/Brasil) e em duas escolas públicas de Coimbra
(Portugal) a forma como os professores de Ciências Humanas, de Ciências
Exatas e de Ciências Biológicas trabalhavam com a educação para a sexu-
alidade nos dois países. Os pesquisadores perceberam que os/as
professores/as da área das Ciências Humanas, nos dois países, concorda-
ram com a importância da educação para a sexualidade na escola e
consideraram-na um assunto a ser abordado por todos na sala de aula,
conforme forem surgindo as oportunidades. Contudo, alguns docentes,
apesar da resposta positiva, ainda carregavam falas de preconceito e de
exclusão. Já os professores das disciplinas das Ciências Exatas e Biológicas,
apesar de concordarem com a importância da temática, afirmaram não ter
preparo suficiente para lidar com o tema e que poderia haver mais forma-
ção para isso. Alguns ainda disseram que os/as professores/as de Ciências
Biológicas poderiam ficar com o assunto. Todavia, todos os professores
pesquisados consideraram a temática muito relevante, mas nenhum pro-
fessor investigado das Ciências Exatas afirmou trabalhar com as questões
de gênero.
Vianna e Umbehaum (2004) apontam que as relações de gênero não
ganham muita relevância entre os/as docentes e nem nos cursos de for-
mação de professores/as. Além disso, as desigualdades de gênero são
pouco contempladas pelas políticas públicas de educação no Brasil. Então,
176 | Educação Matemática e Diversidade(s)

para que seja possível realizar essa difícil tarefa de trabalhar com a temá-
tica da sexualidade na escola, Figueiró (2001) afirma ser necessário,
inicialmente, que o/a educador/a tenha consciência de que educação se-
xual é uma das funções da escola. Nesse sentido, a educação sexual deve
materializar-se nas políticas públicas de formação (inicial e continuada) de
professores, visto que tratar dessas temáticas é um direito de aprendiza-
gem do/a educando/a nos desafios impostos na contemporaneidade.
A autora aponta ainda que é imprescindível que o/a educador/a olhe
para dentro de si, conheça sua história, seus limites e, assim, compreenda
melhor o processo de construção sócio-histórico-cultural das relações de
gênero, contribuindo com um processo de (re)educação a si mesmo pri-
meiro. Assim, o/a professor/a deve estudar, por meio da formação
continuada, sobre as desigualdades de gêneros na escola e na sociedade,
sobre as múltiplas formas de masculinidades e de feminilidades, sobre a
desconstrução da polarização entre o feminino e o masculino, entre outros
temas relevantes. Se mesmo estudando, o/a professor/a não atingir o nível
de conscientização necessário, o aprendizado não se reverterá em benefí-
cio para o/a aluno/a.
Para Figueiró (2001), o desenvolvimento da temática durante as au-
las não pode estar reduzido apenas a aulas expositivas, devendo, então,
haver a abertura para diálogo, permitindo que os/as alunos/as se expres-
sem e participem da discussão. Também é de extrema importância que as
aulas sempre tenham foco no respeito às diversidades e que o trabalho
ajude-nos a repensar nossas atitudes em relação aos grupos minoritários.
“Se o professor não sentir a tarefa como sendo sua, de nada adianta co-
nhecer estratégias de ensino, ou mesmo tentar colocá-las em prática”
(FIGUEIRÓ, 2009, p. 167).
Conforme nos alerta Louro (1997), é importante também que nos
questionemos sobre a ‘naturalidade’ de algumas coisas que acontecem no
ambiente escolar, como a separação de meninos e de meninas nas filas ou
as escolhas de brinquedos/jogos tendo o gênero como ponto de partida.
Não menos importante é “[...] questionar não apenas o que ensinamos,
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 177

mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao


que aprendem” (LOURO, 1997, p. 64). Precisamos atentar-nos a nossa lin-
guagem, a fim de não reproduzirmos falas sexistas, racistas ou
etnocêntricas, pois a linguagem nos atravessa e constitui a maioria de nos-
sas práticas, naturalizando muitas expressões sem questionar seu uso. “A
linguagem é um turbilhão e nos usa muito mais do que nós a usamos. Ela
nos carrega, molda, fixa, modifica, esmaga [...]” (LOURO, 1997, p. 65). A
autora exemplifica o uso feito dos substantivos no masculino para refe-
rirmo-nos ao coletivo, mesmo que meninas façam parte desse coletivo, ela
questiona se isso é um fator de acolhimento ou de exclusão.
Figueiró (2009) afirma que educamos sexualmente, mesmo que in-
conscientemente, ao lidarmos com as situações do dia a dia. A postura do/a
educador/a diante das situações que acontecem na escola, contribui para
que o/a aluno/a forme imagens positivas ou negativas do corpo, da sexu-
alidade e do relacionamento sexual; ao não falar ou escolher não trabalhar
a temática na escola, “[...] mesmo assim está acontecendo o ensino da se-
xualidade, pois, o silêncio é também uma forma de educar. Com ele, os
alunos aprendem que este é um assunto tabu” (FIGUEIRÓ, 2009, p. 168).
Quando são ensinadas atitudes de respeito e de empatia para com o
outro, também estamos educando sexualmente, mas “[...] não basta ensi-
nar; é preciso viver e reaprender, constantemente, o respeito à diversidade
[...]” (FIGUEIRÓ, 2009, p. 167), pois ao assumir o papel de formador, é
necessário libertar-se dos seus valores, dos seus preconceitos e dos seus
tabus.

Ficamos por aqui, mas a discussão ainda não terminou...

A discussão sobre gênero e sexualidade não é recente. Contudo, ainda


há muito o que se discutir sobre ela, uma vez que vivenciamos tempos de
ascensão de uma política conservadora, em um país no qual ainda preci-
samos lutar pelo óbvio, pelo direito de igualdade e, muitas vezes, pelo
direito fundamental de existir. Essa discussão é importante e um direito
178 | Educação Matemática e Diversidade(s)

do/a educando/a. Cabe, então, a todos/as os/as educadores/as discutirem


a questão, sejam em aulas planejadas ou em intervenções pontuais.
É relevante que as aulas e que as ações não estejam focadas apenas
no corpo, mas, também, em outras dimensões da sexualidade e que haja
abertura para o diálogo e para a reflexão. Nessa perspectiva, falar sobre
sexualidade não precisa necessariamente ser um conteúdo ou uma disci-
plina. Contudo, assumimos que o/a educador/a precisa saber intervir,
pontualmente, quando presenciar alguma situação de injustiça e de pre-
conceito e aproveitar, esse momento, para exercer sua efetiva função de
educador sexual. Assim, o/a educador/a utilizaria os espaços e os momen-
tos oportunos para desnaturalizar atitudes, situações, falas
preconceituosas ou violentas, naturalizadas, muitas vezes, para os atores
escolares. Para tanto, é essencial que o/a professor/a que ensina matemá-
tica permita-se estudar e sensibilizar-se sobre o tema para não agir de
maneira preconceituosa ou, então, fundamentada em seus próprios valo-
res morais.
Defendemos, neste capítulo, uma postura vigilante de nosso próprio
comportamento, para que nossa prática docente não seja hipócrita. Para
que haja uma verdadeira transformação da sociedade frente a essas ques-
tões, substanciados em teóricos da área de Gênero e de Sexualidade,
propomos, no contexto da Educação Matemática, a problematização da he-
teronormatividade. Dessa maneira, por meio da formação de educadores
matemáticos comprometidos com os dilemas enfrentados por pessoas que
rompam com a heteronormatividade e, consequentemente, com os Direi-
tos Fundamentais e Humanos, poderemos minimizar as injustiças sociais
que, por vezes, têm suas raízes na sala de aula.
Ainda, o/a professor/a que ensina matemática na escola, conside-
rando sua cátedra docente da autoridade (cf. FREIRE, 1996) no processo
de gestão do trabalho pedagógico, deve promover o respeito entre os dife-
rentes, favorecendo o fim da cultura de violência na escola e estabelecndo
o diálogo sobre a desigualdade de gêneros.
Harryson Júnio Lessa Gonçalves; Igor Micheletto Martins; Kedma Elisandra Zanetti | 179

Acautelamos, neste capítulo, inicialmente dirigido aos educadores


matemáticos, que não problematizar questões de gênero e de sexualidade
nas aulas implica em contribuir para o silenciamento, para a invisibilidade
e para a exclusão das pessoas que não correspondem às expectativas cria-
das aos sujeitos em uma perspectiva heteronormativa.
Defendemos, à guisa de conclusão, que a escola deva ser um espaço
de afeto(s), de cultura(s) e de diálogo(s), espaço democrático de liberdade
para expressar às diversidades de gênero e de sexualidade.

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WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:


SILVA, Tomaz Tadeu da; WOODWARD, Kathryn; HALL, Stuart. (org.). Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15. ed. Petropólis: Vozes, 2014. p.
7-72.
9

Género y raza y sexo y educación matemática:


políticas de visibilidad de cuerpos disidentes

Jeimy Marcela Cortés Suárez 1


Paola Amaris-Ruidiaz 2
Roger Miarka 3

“La música nunca es trágica, la música es alegria.”

(DELEUZE; GUATTARI, 1988, p. 298)

♫ No te preocupes cuando
Te parece verme mal
Nada más estoy pensando ♫4

¿ Cuándo pensamos entramos en estados de fragilidad de un sentir vulnerable?

Jeimy Cortés

1
Estudiante de Maestría en Educación Matemática en la Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Profesora de Matemática, egresada de la Universidad Distrital Francisco José de Caldas (UFJC) Bogotá
Colombia, interesada en profundizarse en estudios culturales, militante de una justicia social, cuestiones de género
y de luchas colectivas. Rio Claro, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Pós-doctoranda en el Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEDUMAT) en la Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Becaria CAPES. Doctora en Educación Matemática por la Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Educadora Matemática. Campo Grande, Mato Grosso do Sul,
Brasil. E-mail: [email protected].
3
Livre-Docente y doutor en Educación Matemática por la Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Professor Associado en la UNESP. Rio Claro, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
4
Perota Chingo, Seres extraños. In: Perota Chigo. Buenos Aires: álbum Independiente, 2014. Disponible en:
<https://www.youtube.com/watch?v=dVGVvEBu1P4>.
184 | Educação Matemática e Diversidade(s)

La Propuesta

Sin pretensión de imponer condicionamientos ante la lectura del si-


guiente ensayo, deseamos reiterar su disposición, de hacer circular
pensamientos, discusiones y sensaciones. Nos encontramos ante mundos
extraños, nuevos desafíos y búsquedas de resistencias ante los mecanis-
mos de dominación y opresión en los diferentes campos de investigación.
El siguiente texto se plantea desde la reflexión académica, producto
de la elaboración de un trabajo de investigación de Maestría, que sirvió
como potenciador para pensar en cuerpos marginalizados, en la categoría
de Género articulada con distintos componentes como Raza, Color y Clase.
Es así que surge a partir de nuestro campo reflexionar posibles prácticas
de empoderamiento de género y como ellas pueden transversalizar la Edu-
cación Matemática. Visibilizando de esa manera discursos, prácticas y
espacios en la diversidad, que con la voluntad de no encajar en la norma
sino de cuestionarla, lo sexual aparece como espacio de activación política.
A partir de ese contexto se buscará dar una abertura a un tema de
visibilidad de cuerpos disidentes, marginalizados en función de su sexo,
género, sexualidad, raza, y de su situación vital de falta de recursos econó-
micos, sanitarios, educativos y legales. Esa visibilidad se hará por médio
de lo que Judith Butler (2017) llama “el derecho a aparecer”, o sea, cuando
los cuerpos se reúnen como ejercicio – que se puede llamar performativo
–, buscando una reivindicación corporeizada de una vida más visible. Cu-
erpos que solicitan que se les reconozcan, que los valoren, al tiempo que
ejercen su derecho a la aparición, a su libertad y a reclamar por una vida
vivible.
Por esa vida vivible se acompañó un grupo de mujeres llamado In-
foPreta, que se autodenomina “una empresa de servicios de manutención
de computadores compuesto por mujeres negras y LGBTQI+”. Un grupo
que asume un empoderamiento por medio de la tecnología como forma de
aparecer y luchar por una reivindicación de vida.
Jeimy Marcela Cortés Suárez; Paola Amaris-Ruidiaz; Roger Miarka | 185

Tratase de un grupo de “mujeres”, incluindo cis y transgénero, que


trabajan con servicios técnicos para computadores, un emprendimiento
que nace por cuenta de la discriminación que sufrían por motivos de raza,
de orientación sexual y de género. Varias de esas mujeres después de
graduadas en Ciencias Exactas o formadas en distintos cursos técnicos no
consiguieron oportunidades de empleo, ni mismo posibilidades sencillas
de prácticas temporarias, como sus otros colegas. Sintiéndose marginali-
zadas, crearon un proyecto para cambiar su situación y la de otras mujeres
en condición similar y así combatir los prejuicios existentes. De esa ma-
nera es una empresa donde en su mayoría mujeres negras trabajan
prestando servicios y talleres de formación sobre tecnología y las ciencias
exactas.
Con esa abertura esperamos que entren en sintonía con la música de
esos seres extraños y disidentes, que buscan cómo cambiar el mundo, por
medio de un texto dividido en tres pasajes diferentes, donde en el primero
buscaremos mostrar las prácticas excluyentes a cuerpos disidentes que di-
eron origen a InfoPreta. En el segundo, cómo la empresa asumió el
empoderamiento tecnológico como forma de visibilidad para que sus par-
ticipantes se tornasen actores políticos. En el tercer y último pasaje,
buscaremos contestar la pregunta ¿Qué la Educación Matemática puede
aprender con InfoPreta? discutiendo diferentes expresiones de género
como derecho de visibilidad en la Educación Matemática y como una
forma de transgresión a la Educación.
Este texto se costuró a partir de diferentes narrativas creadas en el
trabajo de campo de la investigación. Por lo tanto las voces presentes están
acentuadas con su propio color y las narrativas se dejarán en portugués
como una forma de visibilidad de sus propias voces, sin intermediarios.

“Nada más estoy pensando en


como cambiar el mundo
Y cuando duermo boca abajo sueño
Y la mente se va a jugar por allá
Dejando el cuerpo acá no lo puedo alcanzar
186 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Cuando me acuesto miro el techo y pienso


En la cosa de mí que no soporto mas
Pero no importa el tiempo está por cambiar
Y empezar a dar amor de nuevo”

(PEROTÁ, 2014)

Pasaje 1 – Un colectivo de seres disidentes

La siguiente narración hace parte de un fragmento de la tesis de ma-


estría en la que se evidencia cómo operan algunas prácticas del grupo
InfoPreta que asume el empoderamiento como un camino vinculado con
la noción de poder, como un colectivo que se crea para resistir e incluso
para subvertir las condiciones de su opresión.

Narrativa #1
Encontros, corpos visíveis operando en seus espaços

10 de setembro de 2018

A InfoPreta se compõe de uma casa com dois andares, com as janelas pintadas
por elas mesmas de roxo e de amarelo. Pagam um aluguel da casa, que é antiga. O
primeiro andar tem uma sala, uma cozinha e um banheiro. No segundo andar há dois
quartos, que são onde as participantes da InfoPreta passam seus dias arrumando note-
books, recebem pessoas e usuarixs. Há vários móveis com muitos computadores, cabos,
peças de notebook e ferramentas para desmontar os equipamentos.
Eram 11 da manhã. Elas abrem a essa hora de segunda a sábado. Nesse dia, encon-
trei três mulheres, Buh D’Angelo, Daniele Esli e Monica. Buh D´angelo, que
posteriormente realizou uma transição de gênero e passou a se chamar Akin Bakari5, com
25 anos de idade, é da cidade de Guarulhos e é formada em eletrônica, automação indus-
trial, manutenção, tecnologia da informação (TI) e robótica, certificados de cursos técnicos
que lhe ajudaram a preparar-se para sua profissão. Mesmo com tantos diplomas e prepa-
ração, não era aceita em lugar algum para estagiar. Cansada de respostas negativas,
começou, em seu quarto de faculdade, a arrumar os notebooks de amigos e de algumas

5
Los dos nombres aparecen en nuestras narraciones, con el criterio de mantener el nombre utilizado a la época en
que fueron escritas o el tiempo a que se refieren.
Jeimy Marcela Cortés Suárez; Paola Amaris-Ruidiaz; Roger Miarka | 187

pessoas que sabiam que ela entendia muito de TI. Logo se juntou a uma menina, que pas-
sou a ser sua sócia, e formou a empresa com a proposta de acolher pessoas de diferentes
partes do Brasil para propiciar-lhes uma formação na área e a possibilidade de emprego.
A empresa sempre está em constante mudança, com idas e vindas de diferentes
pessoas, que por ali transitam e aprendem. Com exceção de Daniele, Akin e Monica, as
demais funcionárias não têm um horário fixo a ser cumprido. A quantidade de máqui-
nas que podem ser consertadas depende desse número de pessoas.

Pasaje 2 – El empoderamiento por medio de la tecnología

InfoPreta es una empresa ubicada en la ciudad de São Paulo, Brasil,


localizada en Pinheiros, que se mantiene después de cuatro años por me-
dio de fuerzas colectivas. Allá tienen un laboratório que, con apoyo del
Serviço Social do Comério (SESC), realizan programas de formación para
diferentes públicos. Esa es una de las tantas maneras de apoyo, ya que
esta empresa asume el empoderamiento como parte de su propuesta de
empoderar jóvenes y personas de periferia, ganando en el 2017 un premio
con la participación de Buh promovido por el Grupo de los 20 (G20)6 en
Berlín, por incentivar el empoderamiento de jóvenes de bajos recursos por
medio de la tecnología. Actualmente se llama Akin y continúa realizando
el acogimiento de personas de diferentes grupos subrepresentados, para
lidiar contra las actitudes discriminatorias que vivenciaron en sus vidas.
Destáquese que uno de los grandes aciertos de aprendizaje fue consi-
derar las diferencias como uno de los pilares en sus prácticas de formación
para el público que frecuenta la empresa, sea para trabajar o para hacer
uso de los servicios que realizan. También es importante destacar con res-
pecto a la confianza y habilidades de los integrantes que llegaron a
InfoPreta, que unos tenían conocimiento en tecnología, pero otros llega-
ron a esa empresa como un lugar de acogimiento y de aprendizaje. Al no
tener oportunidades de empleo, e incluso sin bases tecnológicas, el

6
O G20 é um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do
mundo mais a União Europeia.
188 | Educação Matemática e Diversidade(s)

colectivo se fue constituyendo también como un grupo de formación tec-


nológica.

Narrativa #2
Práticas de empoderamento: o acolhimento em um lugar para pertencer e aprender.

Daniela Lemes é uma integrante agora sócia do projeto. Ela tem formação em
Sociologia e, portanto, não tinha conhecimento em reparação de computadores. Foi lá
que aprendeu sobre manutenção e arrumou um emprego na Infopreta, após ficar um
tempo formada sem receber respostas aos currículo enviados para emprego. Com isso,
não conseguia estagiar e ganhar experiência. Conheceu Buh (posteriormente Akin), que
confiou em seu potencial e integrou-a à Infopreta, ajudando na parte de apoio social da
empresa. Junto com Akin, é uma mente emocional, afetiva e de trabalho colaborativo. É
precursor de vários projetos que acontecem no interior da empresa. Um deles se chama
Notebook Solidário, que consiste em dar a algumas pessoas um notebook para que con-
tinuem seus estudos após passarem por um filtro de necessidade e participarem de um
curso gratuito. O projeto não termina com a doação: o aproveitamento dos estudos das
pessoas beneficiadas são acompanhados pela InfoPreta.

Esa es una forma de cómo, en medio de las relaciones de poder, el


conocimiento de una práctica puede tornarse altruista de ayuda al otro
como una fuerza de colectividad de posibilidades. De esa misma forma,
genera empleo, ya que cuanto más personas sepan arreglar o reparar com-
putadores, más se incrementa la posibilidad de tener más manos y así
incentivar la mano de obra laboral. Por eso las participantes de InfoPreta
sacan un tiempo de su dia laboral para realizar esas capacitaciones.

Narrativa #3
Conhecimento como prática de oportunidades

Daniela conserta computadores também, mas o faz desde sua vocação, tentando
trazer uma iniciativa social para a empresa, ao oferecer oportunidades e treinamentos.
Um exemplo disso foi o modo como o grupo ajudou Thais, que fez parte de outro projeto
que a InfoPreta chamou de Mulheres Ex-Presidiárias. Thais Martins, 27 anos, funcio-
nária da unidade de Pinheiros é ex-presidiária e moradora de rua. Teve seu currículo
Jeimy Marcela Cortés Suárez; Paola Amaris-Ruidiaz; Roger Miarka | 189

enviado à InfoPreta por uma assistente social que a conhecia do viaduto onde morava.
“Cheguei aqui atrasada, dizendo que morava no Brás, contando um monte de mentira.
Tinha medo de falar a verdade”, disse Thais quando tive a oportunidade de conhecê-la.
“Também achei que ia trabalhar como faxineira, que era a única coisa com a qual já
tinha trabalhado. Não sabia nem ligar um computador”.

Esas prácticas ayudan a los que sin ninguna formación en tecnología


puedan adquirir habilidades a partir de sus cursos de reparación de com-
putadores y también aproximarse a la tecnología. Prácticas de
empoderamiento que generan habilidades y descubrimiento del aprendizaje
desde la experimentación. También se descubre la planificación, diseño y
ejecución por actividades en trabajos grupales, colectivos desde sus necesi-
dades, incorporando una perspectiva de género como elemento central de
igualdad y de justicia social.
Es así como InfoPreta se ha constituido como un colectivo, visibili-
zándose por medio de sus prácticas. Permitiendo que su empoderamiento
continúe siendo un gesticulador de transformaciones sociales para otros,
ya que desde lo vivido y aprendido en InfoPreta, ellas han conseguido
analizar cómo los límites sociales restringen su capacidad para definir
cómo quieren vivir y para llegar a disfrutar de las condiciones para vivir
como desean. Con eso, identifican críticamente cómo funcionan estas res-
tricciones a su libertad, hasta llegar a definir estrategias para cambiarlas.

Pasaje 3: ¿Qué la Educación Matemática puede aprender con


InfoPreta?

“Eu sou Akin. Antes de me reconhecer e me aceitar, era Buh, uma mulher lés-
bica, preta, moradora de Osasco em São Paulo. Em 2018, passou muita coisa
pela cabeça de Buh D´Ângelo. Foi quando assumi minha identidade sexual
trans. Ainda tenho muita coisa. Sou maravilhosa, mas depende do dia. Nasci
190 | Educação Matemática e Diversidade(s)

em Guarulhos, São Paulo. Nasci entre livros. Acredito que por isso gosto de
ler.”7

¿Cómo denominamos a los que no aparecen como sujetos en el dis-


curso hegemónico? A esta cuestión podríamos responder con otras
preguntas: ¿Cómo se refieren a sí mismos los que son excluidos?, ¿De qué
modo aparecen?, ¿de qué convenciones se valen? y ¿qué efecto tienen so-
bre los discursos dominantes que operan a través de la lógica aceptada?
Son preguntas que hacemos junto a Judith Butler (2017). Según esta
autora, el género no puede funcionar como un paradigma de todas las for-
mas de existencia que luchan contra la construcción normativa de lo
humano, sino que puede ser un punto de partida para pensar el poder, sus
prácticas y resistencias.
Si aceptamos que hay normas sexuales y de género que determinan
quiénes van a ser reconocibles y “legítimos” para los demás, entonces ve-
remos cómo lo “ilegítimo” puede llegar a constituirse como grupo y, en ese
proceso, desarrollar a la vez formas de hacerse inteligibles entre ellos, lo
cual también nos hace preguntarnos cómo estas personas se ven expuestas
a la violencia de género y cómo esta experiencia común puede llegar a
transformarse en la base de su resistencia y de afirmación de su legitimi-
dad y, luego, de su propia existencia.

“Sou eu, inicialmente uma mulher, que justamente por estar inserida em um
dos mercados com maior taxa de desigualdade racial de gênero do mundo,
senti a necessidade de criar o que hoje se conhece como InfoPreta, que nasceu
em 2012 como um laboratório experimental de aprendizagem por meio de tro-
cas de conhecimentos na diversidade, onde sentimos que cada dia nos
aceitamos e nos ressignificamos como uma agência digital que incentiva, treina
e contrata integrantes de outras minorias, com preferência para mulheres ne-
gras, mas também de nordestin@s, LGTBs e pessoas com problemas
psicológicos, como dislexia e problemas de atenção, já que a sociedade insiste
em deixar essas pessoas fora do mercado. A maioria são mulheres, mas

7
Fragmento de entrevista de participante de InfoPreta concedida a la primera autora de este artículo. En algunos
de los fragmentos utilizados en este artículo, no se destacará la identificación del hablante por entender que lo im-
portante no es el sujeto que habla sino que lo que se puede producir con el fragmento.
Jeimy Marcela Cortés Suárez; Paola Amaris-Ruidiaz; Roger Miarka | 191

também há homens que foram excluídos de sua liberdade e estão aprendendo


para logo sustentar-se.”

Para el reconocimiento, tenemos que entender sus maneras de vivir


– y sobrevivir en los límites de las normas establecidas para el pensami-
ento, la corporeidad y la persona. Akin se reconoce y reivindica una vida
que desea ser vivida. Cuando esto sucede, nos reconocemos como actores
políticos, al asumir sus derechos y su búsqueda por el derecho a ser escu-
chado, a ser visible, o sea, a ser reconocido no solo como posible sino que
también legítimo.
“Cuando aparecemos para alguien, nuestro aparecimiento tiene que
ser registrado por los sentidos, no apenas los nuestros, mas los de alguien,
constituye una forma de acción política” (BUTLER, 2017, p, 40). InfoPreta
fue creada para aparecer, para ser visible y los que la habitan reivindican
su lucha por una vida que desean ser vivida, visibilizando también como
puede ser excluida en una sociedad que los borra entre sus márgenes.
Una lucha por establecer alianzas, “uma agência digital que incentiva,
treina e contrata integrantes de outras minorias, já que a sociedade insiste
em deixar essas pessoas fora do mercado” reclamando el lugar que han de
ocupar aquellos que antes eran menospreciados y mantenidos en condici-
ones precarias en la esfera de aparición.
Lo que en realidad buscan es la ruptura de esta misma esfera, expo-
niendo la contradicción en que incurre esa reclamación de universalidad
cuando se plantea y se anula por si sola. Según Butler (2017, p. 35), no
puede haber acceso alguno a la esfera de aparición si no hay una crítica a
las formas diferenciadas que el poder imprime en ella, y si no existe una
alianza entre los “descartados”, los que no son elegidos –los disidentes–,
no es posible establecer formas nuevas de aparición con las cuales se pueda
superar esa operación del poder.
Es muy posible que toda forma de aparición se constituya desde el
afuera, pero esa no es razón para cesar en la lucha. De hecho es solo una
de las razones por las que se debe continuar luchando. Aunque nuestras
vidas hayan sido precarizadas, somos exigentes. Aunque hayamos sido
192 | Educação Matemática e Diversidade(s)

abandonados, juntos siempre tendremos potencia para reclamar la impor-


tancia de nuestras vidas. Como cuerpos aliados podemos tener la fuerza y
la movilidad necesaria para luchar por reivindicaciones colectivas.
InfoPreta puede ser entendida como una acción política conjunta y
colectiva, “en ocasiones mucho más efectiva [pues] se plantea desde las
márgenes o desde la misma sombra, y este es un aspecto importante que
no debe olvidarse” (BUTLER, 2017, p. 41). La aparición es fundamental en
cualquier lucha por la democracia, y esto significa que, para entender lo
que pueda ser esa visibilidad y las intervenciones que requiere, es necesa-
rio plantear una crítica de las formas políticas en que se presenta, incluidas
las formas a través de las cuales se constriñe y se limita su presencia.
Es a partir de esas márgenes que nos cuestionamos ¿Qué tanto de
sombra necesita habitar la educación matemática para que estos discursos
cotidianos sean más visibles en sus investigaciones? y ¿Qué puede apren-
der la Educación Matemática con Infopreta?

Eu faço parte do grupo, mas somos um todo porque aqui trabalhamos tod@s.
Dá-se um treinamento e um salário digno, consertamos computadores de ma-
neira presencial. Também criamos plataformas e aplicativos e oferecemos
palestras sobre gênero, diversidade e sobre a mulher, manutenção, assim como
cursos em TI.
Eu não fui para universidade pública porque o ingresso é difícil, ainda mais
para pessoas como nós, mas eu me formei em vários cursos técnicos. Sou da
área de hardware da indústria e fui para a área de software. É uma área es-
cassa de emprego, principalmente para a pessoa negra, pior ainda se for
mulher, e eu não sou nada padrão. Sou uma pessoa bem diferentinha. E aí
nunca me contrataram.

Segundo Ubiratan D’Ambrosio, “procuramos entender o conheci-


mento e o comportamento humano nas várias regiões do planeta ao longo
da evolução da humanidade, naturalmente reconhecendo que o conheci-
mento se dá de maneira diferente em culturas diferentes e em épocas
diferentes” (D'AMBROSIO, 2005, p. 103).
Esta afirmación de Ubiratan D’Ambrosio, una de las personas más
visibles en Educación Matemática, asume una preocupación en cuanto a
Jeimy Marcela Cortés Suárez; Paola Amaris-Ruidiaz; Roger Miarka | 193

educadores, demuestrando la multiplicidad que existe cuando se asume


investigaciones, sobre todo en lo contemporáneo.
El mundo está cambiando, quizás a ritmos que salen de nuestro con-
trol. Lo que el sistema quiere hacer es dejar invisible los gritos, que muchas
veces están siendo silenciados, los cuales buscan escapes entre sus ecos. La
escuela también hace parte de esos ecos, de esa multiplicidad de colores, y
si esa rueda no para ¿por qué aún algunos están preocupados por escon-
derla? ¿Qué dicen sus currículos sobre eso? ¿Qué dicen los gobiernos?
¿Por qué algunos se preocupan más por mantener el status quo que escu-
char a esos seres extraños, los disidentes?
Los discursos homofóbicos, xenofóbicos y de odio están extrapolando
sus fuerzas, donde cada día desaparecen voces. ¿La educación matemática
está preparándose para eso? ¿Cuántas líneas de investigación de género
existen dentro de la educación matemática?
A Ubiratan D’Ambrósio le hicieron una pregunta alguna vez:
“Quando se fala em uma Educação para a Paz, a maioria vem com o ques-
tionamento: Mas o que tem isso a ver com a Educação Matemática?. E eu
respondo: Tem tudo a ver”. (D’AMBROSIO, 2005, p.104) ¿Y si nos pregun-
táramos sobre género? Imaginamos que dirian: “Mas o que tem isso a ver
com a Educação Matemática?”. Nosotros responderíamos, como D’Am-
brosio: “Tem tudo a ver”. Y eso no tiene nada que ver con hablar de quien
es mejor en la matemática ¿Los hombres o las mujeres? El trabajo de
género en la educación matemática implica posicionarse y presumir un
campo de aparición, de estudio y una problematización necesaria.
La perspectiva de género en educación matemática es fundamental
para comprender la intensidad del pensamiento, no buscando un valor de
verdad y de especulación, sino mirarlo como un campo visible que genera
problemáticas actuales. Al reivindicar esas vidas, esos disidentes permiten
identificar la necesidad de plantear revisiones que materializan la trans-
versalidad de la dimensión de género, ayudando en los diferentes
desdoblamientos en el campo de investigación de la educación
194 | Educação Matemática e Diversidade(s)

matemática. ¿Cómo? Promoviendo visibilidad al establecer vínculos cohe-


rentes en el que se deben incluir formación específica en materia de
género.
Las prácticas de formación docente también se podrían ir planteando
en términos de perspectiva de género, como una búsqueda de compren-
sión de otros mundos no subyugados y dóciles ante lo que nos impusieron.
Un impulso transgresor que en la educación grita es un “estar atento a”
como una postura profesional y ética llena de desafíos complejos en donde
podamos disipar las formas de libertad posibles en este mundo contempo-
ráneo, donde la clave del pensamiento sea la acción política.
Es así que diferentes horizontes se pueden caracterizar y crear en la
educación matemática, así como generar alianzas donde llevemos en cu-
enta todo lo que es posible en las condiciones sociales y culturales actuales.
Reconocer el trabajo de género como una perspectiva actual urgente im-
plica salir de la norma y crear otras aberturas que hagan de ese campo un
lugar de ¡experimentación!
¡Experimentar en vez de interpretar!
¡Afirmar vidas en vez de aceptar exclusiones docilmente!
Así enseña InfoPreta a nosotr@s y a la Educación Matemática...

Operantes

BUTLER, Judith. Cuerpos Aliados y Lucha política. Hacia una teoría performativa de
la asamblea. Barcelona: Editorial Paidós, 2017.

D’AMBROSIO, Ubiratan. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino. Educação e Pes-


quisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 99-120, jan./abr. 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto
Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1988.
10

A (in)equidade de gênero em educação matemática:


pesquisando as pesquisas

Vanessa Franco Neto 1


Paola Valero 2

Introdução

No cenário global, vários relatórios da UNESCO3 têm anunciado a ur-


gência em compreender o impacto da ausência de equidade de acesso,
participação e êxito em educação na vida de meninas e em seu potencial
para atuação futura na sociedade enquanto cidadãs (UNESCO, 2015). Em-
bora, em geral, o mundo tenha avançado na educação de meninas e
mulheres, ainda há muito o que fazer. De fato, atualmente, um dos objeti-
vos da Agenda 2030 da ONU para transformar nosso mundo em um lugar
sustentável tem a equidade de gênero e o empoderamento das meninas e
das mulheres como alvo.
Nesse âmbito, a escolarização é considerada um espaço para atingir
os propósitos da atualidade. Em primeiro lugar porque a escola é um ins-
trumento por excelência da sociedade moderna para tratar qualquer tipo
de problemas sociais. Isto é o que os historiadores em educação chamam
de “educacionalização” da sociedade (TRÖHLER, 2013) ou a tendência de

1
Doutora em Educação Matemática pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora Adjunta
da Faculdade de Educação da UFMS. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Doutora em Educação Matemática. Professor at Department of Mathematics and Science Education in Stockholm
University. Estocolmo, Suécia. E-mail: [email protected].
3
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
196 | Educação Matemática e Diversidade(s)

fazer dos problemas sociais uma questão educativa que têm que ser abor-
dados e solucionados por meio da educação da população. Em segundo
lugar porque é robusta a ideia de que o espaço escolar é um ambiente pro-
pício para suscitar essa discussão, afinal “todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos,
com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2004,
p. 44). A escola é um espaço onde se formam as subjetividades por meio
da articulação entre o conhecimento que se considera relevante para a so-
ciedade e as moralidades que se constituem como base para o
comportamento social desejável, tal como discutido no trabalho seminal
nesta área de Walkerdine (1988) e, mais recentemente, em Neto e Valero
(2018). Desse modo, o currículo escolar (incluindo-se o de matemáticas)
amalgama o conhecimento com moralidades particulares do que significa
tratar gênero como um problema. Isto implica que a escola é o espaço onde
cotidianamente se atualizam as tensões da in(equidade) de gênero na so-
ciedade, em relação ao conhecimento, e, em nosso caso, com o
conhecimento matemático escolar. Importante destacar que o uso da ex-
pressão “in(equidade)” se dá para explorar a dicotomia proporcionada por
ações como a chamada a equidade, dicotomia essa expressa num processo
que produz duplamente inclusões e exclusões.
Tratar o assunto da equidade de acesso e possibilidades para homens
e mulheres na educação é parte do debate acerca das maneiras como, na
sociedade, se produzem classificações e ordenamentos para distribuir o
acesso de recursos e posições de vantagem e poder na sociedade (PAIS;
VALERO, 2011). A questão é a relação entre os sistemas legais dos quais os
organismos têm acesso a quais bens e o conhecimento que é avaliado como
aquele que permite gerenciar e ter acesso a esses bens. Isso ocorre porque
as sociedades modernas são baseadas em sistemas de poder/conhecimento.
Portanto, as diferenciações de gênero existentes na sociedade são instancia-
das e promulgadas no campo do conhecimento escolar matemático.
Para ilustrar como essa temática vem sendo abordada na educação
matemática, buscamos Leder (2019), em que é possível encontrar um
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 197

panorama histórico da problemática de gênero no cenário da perquisa in-


ternacional. O argumento central da investigação é o fato de que a pouca
presença de mulheres na produção acadêmica de matemáticas se relaciona
com o efeito da escolarização em gerar resultados diferentes entre meni-
nos e meninas. A partir dos anos 1970, essa problemática começou a ser
tratada como um assunto de preocupação para a prática e a pesquisa. En-
tão o uso do termo “diferenças de sexo” indica que essa temática
inicialmente se formulou como um problema do tipo biológico pois se as-
sumiu que a essência dos comportamentos entre os corpos masculinos e
femininos eram sua base nas configurações biológicas dos seres humanos.
A partir dos anos 1980 o uso do termo “gênero” indica o desloca-
mento do campo do biológico para o campo cultural. Se demonstra ainda
que há um tipo de diferença na maneira como os corpos masculino e fe-
minino se relacionam com as matemáticas. As diferenças entres tais se
geram e reproduzem como parte das estruturas sociais, culturais e econô-
micas de distintas sociedades num tempo e espaço determinados. Um dos
resultados da pesquisa é que os problemas com os resultados diferenciais
em matemática a favor dos corpos masculinos são quase inexistentes no
início do ensino fundamental, enquanto são evidentes no ensino médio e
acentuam-se à medida que avançam os níveis de estudo em determinadas
áreas de atividade matemática. Embora, em geral, a tendência tenha sido
que a diferença claramente observada na década de 1970 quase desapare-
ceu e, pelo menos em alguns dos países mais desenvolvidos, ela foi
revertida em favor dos corpos que performam o feminino.
A crescente investigação nesses assuntos desde a década de 1980
mostrou a conexão entre essas diferenças e a maneira como a cultura es-
colar e a aprendizagem de matemática na instituição escolar incorporam
suposições sobre a capacidade, status e possibilidades de diferentes corpos.
Nesse caso, o binário homem/mulher e seu valor e significância cultu-
ral/social/econômico foram considerados a “essência” das diferenças nos
resultados escolares em matemática.
198 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Leder (2019) afirma que a adoção de diferentes perspectivas teóricas


de gênero e a existência de informações quantitativas mais detalhadas so-
bre as diferenças de resultados entre os tipos de estudantes, diversificaram
as pesquisas e intervenções na prática. A autora ainda identifica várias
áreas de atenção, tais como monitorar diferenças nos resultados escolares
e padrões de participação de corpos masculinos/femininos em áreas de
ciência, tecnologia e matemática em nível avançado. Essa última preocu-
pação está relacionada à questão de quais corpos participam do mercado
de trabalho em ciência e tecnologia, por serem considerados um desperdí-
cio de capital humano.
A revisão de literatura internacional que Leder (2019) apresenta, per-
mite identificar a mudança nas noções de “gênero”: gênero como uma
característica biológica dos sexos, gênero como um atributo cultural dos
corpos no binário homem/mulher e, mais recentemente, o gênero como
um atributo dos corpos em uma ordem econômico/produtiva.
Desse panorama internacional, a pergunta que surge é que tipo de
noções de gênero estão presentes nas pesquisas brasileiras em educação
matemática e quais são as relações que se estabelecem entre estas e os
argumentos por uma equidade. Nosso propósito é, portanto, descrever e
analisar os modos pelos quais a problemática da equidade de gênero em
pesquisas do campo da educação matemática se alinham/articulam a uma
chamada ao engajamento cada vez mais especializado de meninas e mu-
lheres a uma racionalidade econômica neoliberal que busca
constantemente o aperfeiçoamento e a consolidação de corpos produtivos
para o exercício das demandas próprias do mundo do trabalho. Assim, se
problematiza a relação entre a temática de gênero, a matemática escolar e
a racionalidade econômica vigente que sustenta as ideias presentes sobre
o que é e como abordar a equidade de gênero como tema na educação
matemática.
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 199

Tornar-se a pesquisar a pesquisa

No campo de pesquisas da educação matemática, as questões relati-


vas à equidade e a justiça social são consideradas como problemas a serem
resolvidos a fim de que sejam construídas oportunidades para que todos
os indivíduos aprendam matemática (YOLCU, 2019). De acordo com Yolcu
(2019), o termo equidade no referido campo de investigações, diz respeito
a problemática acerca de como e por quais razões determinados conheci-
mentos matemáticos estão presentes nos currículos oficiais, além de
investigar as formas como cada estudante aprende seus conteúdos. É re-
corrente pensar que a investigação em educação tem a função de melhorar
a sociedade ao identificar problemas, descrever em que consistem e como
se apresentam na realidade social das escolas e das aulas, bem como pro-
por linhas de ação, baseadas nos resultados gerados a fim de que
melhorem as práticas escolares. Nesta concepção, a investigação é uma
atividade que ou supera ou diagnostisca e corrige as deficiências sociais.
A investigação crítica do currículo escolar propõe uma alternativa di-
ferente, que é reconhecer como a investigação não é uma atividade neutra,
nem diagnóstica, muito menos corretiva, senão uma atividade política que
define as maneiras mesmas de pensar e de atuar sobre os objetos dos quais
se ocupa. Disso que a investigação, também na educação matemática, é
uma das forças que atuam sobre a construção do sujeito. Seguindo a linha
de investigação da política cultural e da educação matemática (VALERO,
2018), buscamos problematizar as noções e categorias de gênero que estão
presentes na investigação em educação matemática no Brasil.
É preciso salientar que, amparadas por Butler (2010), as autoras
deste artigo entendem tanto gênero como sexo e corpo como produções
discursivas, elaboradas nas relações sociais que constituem práticas peda-
gogizadas, oferecidas ininterruptamente aos sujeitos sociais. Mais
especificamente, gênero não se refere a diferença nem biológica, nem cul-
tural entre corpos marcados como masculinos ou femininos, mas sim uma
categoria cultural de subjetivação. Gênero como “(...) significados culturais
200 | Educação Matemática e Diversidade(s)

assumidos pelo corpo sexuado (...)” (BUTLER, 2003, p. 24) é produção nas
e pelas relações sociais. O sujeito é uma matéria atravessada e composta
por práticas sociais, moldado dicotomicamente por meio do masculino e
do feminino como tecnologias de diferenciação que devem ser facilmente
reconhecidas e que acabam por organizar as relações humanas como um
todo. Importante destacar que, denota-se que práticas de subjetivação
atravessam toda a vida humana: sem que haja coerção, o “(...) sujeito se
liga à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si”
(FOUCAULT, 2014, p. 123), ou seja, essas práticas são fixadas por táticas
de condução de condutas, por um exercício de simetria, em que o indiví-
duo necessita se enxergar e se reconhecer para se posicionar no mundo,
um mundo que só é possível habitar com determinados corpos (BUTLER,
2010). Portanto, as noções de gênero são uma das categorias constituintes
do sujeito (BUTLER, 2010), em que os corpos são posicionados para “per-
formarem” de acordo com um suposto sexo biológico, replicando práticas
estilizadas de gestos, atos e atuações.
Faz-se pertinente perquirir as pesquisas no campo da educação ma-
temática a partir das narrativas que produzem sobre a problemática de
gênero, a fim de entender o tratamento que o campo dá a essa temática.
Para isso será usada a estratégia de “pesquisa de pesquisas” (PAIS;
VALERO, 2012) como uma abordagem qualitativa buscando as regularida-
des que emergirem das enunciações catalogadas ao longo da leitura dos
textos selecionados. O objetivo é descrever e analisar os modos pelos quais
as pesquisas da referida área constroem a temática de gênero como objeto
dos quais falam. Compreende-se que as pesquisas realizadas em determi-
nada época por determinado campo de investigações nos contam muito
sobre as problemáticas, as demandas e as contingências de um determi-
nado período.
Nesse sentido, perquirir o trabalho do campo em relação a temática
de gênero, permite admitir que “a pesquisa produz linguagens e ferramen-
tas que moldam o que vemos e dizemos sobre o mesmo mundo da
educação matemática” (PAIS; VALERO, 2012, p. 11). Entendemos que as
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 201

pesquisas em educação matemática operam como um tipo de currículo da


área no sentido em que diagnosticam supostos problemas e prescrevem
acerca destes por meio do discurso (OLIVEIRA; SILVA, 2019). O exercício
é, portanto, percorrer uma prática discursiva por meio da catalogação de
enunciações que produzem e replicam verdades no campo social. Isso per-
mite que o foco da análise do autor seja deslocado para o discurso, uma
vez que o objetivo não é enfatizar quem afirma o quê, mas tratar os textos
de pesquisa como peças de uma rede discursiva de onde emerge o que é
possível enunciar em um determinado momento. A questão não é quem
escreveu ou por que está escrito o que está escrito, mas sim analisar os
textos de modo a compreender os modos como o que está escrito gera co-
nhecimento para pensar o mundo.
A primeira tentativa de buscar investigações que tratassem da temá-
tica de gênero em periódicos nacionais se deu pelos mais bem avaliados
pela Capes considerando um período determinado: os últimos dez anos
(2009 a 2019). A pesquisa foi feita utilizando os buscadores em cada um
dos periódicos. Usamos termos como “gênero”, “mulher” (no singular e
no plural), “menina” (também no singular e no plural), “feminino”, “femi-
nização”. No entanto, a busca no período definido e com os termos
mencionados, retornou somente dois artigos. Dessa maneira, decidimos
selecionar os artigos publicados em anais dos dois maiores eventos da área
de Educação Matemática no Brasil (o Encontro Nacional de Educação Ma-
temática – ENEM - e o Seminário Internacional de Pesquisa em Educação
Matemática - SIPEM) dos últimos dez anos, 2009 até 2019. Além disso se-
lecionamos um artigo publicado em um periódico do ano de 2003 que
aparece como referência recorrente nas investigações selecionadas. Com a
ampliação das fontes, foram encontrados um total de 18 artigos que tratam
da temática investigada. Cada um destes 18 artigos recebeu uma codifica-
ção, composta por uma letra (que indica se o arquivo é proveniente de um
periódico “P” ou um evento “E”), um número que indica a ordem de codi-
ficação e o ano de publicação. Desse modo, por exemplo, uma pesquisa
proveniente de um periódico, que foi o segundo arquivo encontrado no
202 | Educação Matemática e Diversidade(s)

processo de busca e foi publicado no ano de 2014, recebeu o código


“E2_2014”. Outra opção adotada, foi por apresentar os excertos sempre
em itálico, com o intuito de dar o destaque necessário em meio ao processo
analítico.
Com o auxílio de um software de análise qualitativa, codificamos os
textos buscando como as enunciações sobre a equidade de gênero têm mo-
bilizado o campo de pesquisa em educação matemática. Ao definirmos
como as enunciações mobilizam o campo de pesquisas, é importante res-
saltar que o próprio Foucault (2007) anuncia a impossibilidade de
delimitar critérios estruturais para definir um enunciado, afinal, estes ope-
ram como “função que cruza um domínio de estruturas e de unidades
possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo
e no espaço” (p. 98) e, sendo imprescindível que “sejam tomados como
manifestações de um saber e que, por isso, sejam aceitos, repetidos e trans-
mitidos (VEIGA-NETO, 2003, p. 94). Nesse movimento, as enunciações
perpassam as práticas discursivas e, descrevê-las e analisá-las, permite-
nos compreender o funcionamento do discurso numa perspectiva macro
acerca do espaço das discussões de gênero na educação matemática.

A lógica de gênero na matemática escolar

Nos trabalhos analisados é frequente o argumento de que meninas


apresentam baixos resultados em avaliações de rendimento escolar de ma-
temática:
[...] a Educação Matemática é atravessada por diferentes discursos
generificados, construindo-se papéis diferenciados para alunos e alunas;
como saberes e verdades sobre eles e elas são disponibilizados de modo que
tais sujeitos sejam convidados/as a posicionarem-se como sujeitos de tais
discursos. Discursos generificados que são históricos e produzem os sujei-
tos que somos hoje. (E8_2012, p. 02). Nesse sentido, [...] se admite [...] que
a escola, enquanto instituição social e fonte de ação educacional desta, além
de ser um local privilegiado para se avaliar, discutir e refletir as diferenças
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 203

e as relações entre homens e mulheres, mostra-se também como sendo uma


das principais responsáveis pela produção e reprodução das desigualdades
entre eles (E9_2010, p. 03)
A escola é o lócus fundamental das investigações aqui analisadas,
visto que ela é entendida como espaço físico profícuo de produção e repro-
dução de práticas que orientam e normatizam a vida em sociedade e acaba
por replicar práticas generificadas.
Importante destacar que hoje, os corpos vivem em uma sociedade
governada por uma racionalidade neoliberal, onde o capital serve como
moeda e as desigualdades são produzidas por esse sistema. Nele, a noção
de equidade incorpora robustas práticas discursivas que definem o termo
como uma possibilidade de dar aos corpos subrepresentados pelo sistema,
o suporte necessário para ascender na estrutura social.
Um problema, também da escola, são os resultados menos relevantes
meninas em avaliações externas. Nesse contexto, quando o gênero passa a
ser entendido como unidade analítica de desempenho, as justificativas pas-
sam pelas expectativas mais baixas de docentes e familiares em relação a
elas e a suas performances escolares nas áreas das ciências exatas e tecno-
logias: Nas aulas de matemática, os meninos participam muito mais que
as meninas, a professora os chama para ir responder as atividades no qua-
dro e os mesmos gostam já as meninas não gostam de participar das aulas
de matemática (E8_2012, p. 15).
E como resolver isso? Afnal, dominar o conhecimento matemático
tem sido compreendido como peça motriz das relações de poder na atua-
lidade. D’Ambrósio (2002) afirma que “[...] a Matemática, com seu caráter
de infalibilidade, de rigor, de precisão e de ser um instrumento essencial e
poderoso no mundo moderno, teve sua presença firmada excluindo outras
formas de pensamento. “[...] ser racional é identificado com dominar a
Matemática” (p. 17). E, ao longo da história, esse conhecimento tem sido
identificado como relativo ao masculino, tornando-se

“[...] uma fantasia de masculinidade na qual esta tem que ser constantemente
provada, assim como a exclusão das mulheres dela. A prova da superioridade
204 | Educação Matemática e Diversidade(s)

masculina e o fracasso feminino têm constantemente sido refeita e desespera-


damente reafirmada” (WALKERDINE, 1988, p. 200)

Esse entendimento encontra ressonância no movimento ocorrido nos


anos 1970 descrito por Leder:

Pressupostos de que as diferenças de gênero na aprendizagem de matemática


foram, pelo menos em parte, o resultado de estruturas sociais, oportunidades
educacionais inadequadas e métodos e materiais instrucionais tendenciosos
que moldaram grande parte do trabalho realizado (LEDER, 2019, p. 292)

Isso denota que há ainda uma tendência de entender que a matemática,


como ciência masculina, precisa se adequar as demandas específicas dos
corpos femininos a fim de que sejam acessíveis a esses últimos sujeitos.
Desse modo, garantir o acesso e assimilação por parte das garotas desse tipo
de conhecimento é visto como a chave para que elas superem as limitações
impostas devido a diferença de expectativas e oportunidades.
Sendo a matemática um instrumento de poder, pela sua própria ca-
racterística e pelos privilégios a ela conferidos sobre as outras áreas de
conhecimento, particularmente quando se considera o espaço a ela dedi-
cado no conjunto de saberes necessários à profissão técnica, o
“empoderamento matemático” para as meninas viria a ser uma forma de
fortalecer as suas raízes, permitindo-lhes conhecer e assimilar uma cultura
dominante e masculina, sem se deixar dominar por esta cultura (E1_2019,
p. 07; E14_2016, p. 06). E esse movimento é relevante pois, na atualidade,
“O fato é que, a matemática é a ciência mais importante no mundo mo-
derno, ela nos dá o conhecimento para diversas áreas.” (E4_2019, p. 04) e
é fundamental para ter êxito afinal “É dito que quem sabe manipular a
matemática sabe entender quando se está levando vantagem ou sendo en-
ganado, não há chances de ser lesado quando se sabe administrar o seu
rendimento” (E4_2019, p. 03). O conhecimento matemático, além da pos-
sibilidade de assumir uma posição mais favorácel nas relações de poder,
instrumentalizaria o sujeito feminino para se defender em um mundo
cada vez mais corporativista e competitivo.
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 205

A este conhecimento, altamente valorizado como explicitado no ex-


certo anterior, as mulheres não podem ser restringidas do acesso
adequado, considerando suas especificidades e peculiaridades, afinal elas
precisam fazer parte do projeto de ascensão no qual devem desejar estar
inseridas e por isso necessitam performar de maneira eficaz, “o sujeito
que é o capital humano para si e para o Estado está em permanente risco
de se tornar obsoleto e abandonado” (BROWN, 2017, p. 110), ou seja, elas
precisam se adaptar as novas demandas do mundo do trabalho, afinal, se-
ria um desperdício de mão de obra especializada e científica deixá-las de
fora dessa arena
Não é possível ignorar que os princípios econômicos organizam, ra-
cionalizam e limitam as práticas sociais (FOUCAULT, 2008) e a educação
(bem como a educação matemática) é uma maneira de investir nas pessoas
a fim de produzir capital humano (BECKER, 1995).
Neste contexto, a nova racionalidade do trabalho implica uma nova
onda de feminização das atividades remuneradas. E o acesso ao conheci-
mento matemático, uma nova maneira de participar e usufruir das
vantagens econômicas, ao mesmo tempo que uma maneira de inserir-se
no mercado de compra e venda da capacidade produtiva e de valor. Isto é,
ser um corpo feminino matematicamente competente significa, também,
valorizar o corpo como força de trabalho e como produtor de capital.
Quando a racionalidade neoliberal se transforma em senso comum
(BROWN, 2019) o que se deseja é a maior expansão da força de trabalho,
independentemente das características dos corpos que cumprem a função
produtiva. Na lógica neoliberal de mercado e otimização do capital hu-
mano, a diferença mesma é percebida como uma vantagem na
possibilidade de produzir outras formas de conhecimento que possam ser
benéficas para a inovação e a produtividade.
Não esquecendo, claro, que, para performar no atual mundo do tra-
balho, as mulheres precisam ambicionar estar inseridas nessa
racionalidade.
206 | Educação Matemática e Diversidade(s)

As mulheres também passaram a ser vistas, e a se verem, cada vez mais como
sujeitos neoliberais – sujeitos egoístas de interesse fazendo escolhas livres ba-
seadas no cálculo econômico racional [...]. As mulheres não apenas querem
um lar feliz, elas também querem dinheiro, poder e sucesso. Elas são sujeito
de interesse atomizados e autônomos, competindo pelas oportunidades eco-
nômicas disponíveis. (OKSALA, 2019, p. 127)

Importante destacar que, neste cenário, a mulher não deixa de ser


demandada pelo exercício de sua feminilidade, ao contrário, ela só acu-
mula ainda mais funções que a ela são atribuídas para que possa ter acesso
as referidas oportunidades.
Os excertos catalogados, funcionam como diagnóstico das diferenças
generificadas de demandas e performances. As narrativas trazidas com-
põem enunciações que acabam por justificar a necessidade de engajar
todos os indivíduos no projeto de empoderamento matemático devido a
necessidade destes de exercerem e replicarem práticas como deles se es-
pera numa sociedade que, provavelmente, os explorará.

A lógica de gênero na produção da matemática

A invisibilidade da participação de mulheres na produção de conhe-


cimento matemático é um dos fatores que contribui para que meninas não
se vejam representadas e, consequentemente, não desenvolvam empatia e
interesse por esse campo de estudos. Este é o argumento central em mui-
tas das investigações que buscam compreender a ausência de mulheres
nas atividades ciêntificas ligadas a área de matemáticas.
Desse modo, muitos trabalhos se preocupam em “Discutir como a de-
sigualdade de gênero afeta o desenvolvimento acadêmico e profissional das
mulheres no eixo de ciências exatas. (E5_2019, p. 01) a fim de enfrentar “Esse
discurso [que] torna quase invisíveis as contribuições femininas à área no
passado e, ao mesmo tempo, na atualidade, também pode afastar as mulhe-
res dos espaços de desenvolvimento matemático”. (E2_2019, p. 01)
Além disso, o reconhecimento daquelas que já produzem esse tipo de
conhecimento, também é destacado frente a ausência de status entre os
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 207

cientistas renomados: [...] os bolsistas de produtividade em pesquisa do


CNPq em matemática, menos de 15% são mulheres. (E6_2019, p. 03)
E qual a importância dessa inserção tão proclamada e requerida? A
lacuna de participação feminina nesse processo de produção do conheci-
mento vem sendo alardeada como uma problema de debate e resolução
urgente: [Em parte, essa preocupação se deve ao fato de que] não há como
desenvolver tecnologicamente de forma consistente uma Nação sem envol-
ver um contingente imenso da sua população” (E2_2019, p. 05), ou seja, a
ausência da participação das mulheres na dinâmica produtiva tem conse-
quência no desenvolvimento econômico das nações.
E isso coaduna com um ponto de vista social, no qual argumenta-se
que a ausência de equidade de expectativas e oportunidades refletem na
constituição de indivíduos com baixa escolaridade o que acaba resvalando
no desenvolvimento e na prosperidade da sociedade. Portanto, a chamada
a equidade de gênero é/pode ser entendida como uma maneira de mini-
mizar os custos e o impacto em problemas sociais. Em uma racionalidade
neoliberal as necessidades individuais tornam-se um pequeno negócio
com “o objetivo constante e onipresente do capital humano, seja estudar,
estagiar, trabalhar, planejar a aposentadoria ou se reinventar em uma
nova vida, é empreender seus esforços, apreciar seu valor e aumentar sua
posição ou classificação” (BROWN, 2015, p. 36).
Uma saída apresentada em alguns trabalhos (E2_2019, E11_2010,
E13_2016) é o desenvolvimento de atividades com histórias de mulheres
que se destacaram nesse campo do conhecimento, mas não tiveram/têm
o destaque merecido: o conhecimento sobre a história das mulheres na ma-
temática pode contribuir de maneira significativa para a desmistificação
da matemática como uma construção estritamente masculina (E11_2010,
p. 01)
A questão da identificação como propulsora de um engajamento de
meninas no processo de produção do conhecimento matemático é uma
estratégia de ligá-las a uma racionalidade governamental que gera tipos
distintos de sujeitos, de formas de conduta e de ordens de sentido e valor
208 | Educação Matemática e Diversidade(s)

social. A liberdade aqui é disposta num campo de possibilidades bastante


funcional no qual o sujeito pode exercê-la desde que aja de modo a ocupar
espaços de produção.
Esse resultado coaduna com as aspirações da economia de mercado:
“Existe uma percepção global de que uma força de trabalho com uma pro-
porção substancial e treinada em Matemática, Engenharia e Ciência (MES)
é essencial para a prosperidade futura” (MARGINSON et al., 2013, p. 6). E
mobilizar enunciações que conduzam a necessidade de recrutamento de
mulheres para compor essa força de trabalho encontra respaldo “[n]a ra-
cionalidade neoliberal [que] é produtiva, formadora do mundo: ela coloca
sob um viés econômico cada esfera e empenho humano [...]” (BROWN,
2019, p. 20). Brown ainda afirma que, atualmente uma racionalidade bio-
lógica tem se adequado a uma racionalidade neoliberal e se apropriado
dessa pauta, tornando necessária a problematização das práticas estereo-
tipadas de gênero e suas consequências na vida de meninas e mulheres
como uma possibilidade de inserir esse grupo numa lógica que as tornaria
mais adaptadas e a disposição das demandas próprias do mundo do tra-
balho. Isto gera a necessidade de problematizar a ideia ingênua de que há
uma bondade intrínseca e desejável no empenho em dar as mulheres e
meninas oportunidades de acesso ao conhecimento especializado em ma-
temática e estimulá-las a desenvolverem suas habilidades nestas áreas de
atuação, e que tal ação poderia conduzir a uma solução plausível para a
melhora sustentável das condições de vida de meninas e mulheres. Tal
questionamento encontra respaldo em feministas que entendem o movi-
mento a partir de uma perspectiva marxista, como Federici (2019), e se
recusam a vislumbrar a conciliação entre os valores próprios do movi-
mento e o capitalismo.

Gênero e educação matemática na racionalidade capitalista atual

Os resultados evidenciaram que a noção sobre equidade de gênero no


campo da educação matemática é entendida como uma maneira de superar
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 209

a carência da participação feminina nas áreas pura e aplicada da matemá-


tica. Como as habilidades matemáticas e de tecnologia têm ganhado um
papel fundamental na sociedade, o desejo de solucionar esse problema pode
ser visto atrelado a um robusto conjunto de enunciações comumente encon-
trado no campo de investigações da educação matemática.
No entanto, apesar da inegável necessidade de debater essas questões,
é possível encontrar um alinhamento entre as enunciações sobre equidade
de gênero como um assunto da atualidade, que acabam engajando as mu-
lheres em uma racionalidade neoliberal a fim de viabilizar o crescimento
econômico por meio da exploração de sua força de trabalho. Em outras pa-
lavras, é não somente sobre a mulher como um sujeito humano, é sobre
engajar a mulher como homo oeconomicus (FOUCAULT, 2008).
Neste sentido, analisar como a chamada a superação desses supostos
entraves para o desenvolvimento de meninas na racionalidade econômica
em voga é tratada no âmbito das pesquisas em educação matemática no
Brasil, se alinha a uma demanda mundial já proclamada pela OCDE (2009)
ao anunciar que existem, pelo menos, três razões principais para o estudo
das diferenças de gênero no desempenho em matemática: “(i) entender a
fonte de quaisquer desigualdades; (ii) melhorar o desempenho médio; e
(iii) melhorar nossa compreensão de como os alunos aprendem ” (p. 8).
Portanto, dessa investigação, a primeira conclusão é, de fato, a desta-
cável carência de investigações que tratem a problemática de gênero como
unidade analítica nas pesquisas em educação matemática no Brasil.
Em segundo lugar, as duas enunciações foram construídas e operam
como um mapeamento acerca das noções sobre equidade de gênero como
pauta urgente ao campo de investigações e aos trabalhos, especialmente,
sobre a matemática escolar. Cada uma dessas duas acaba por fazer emer-
gir temáticas concernentes ao campo e usa a unidade analítica de gênero
como forma de produzir a noção de equidade e acesso aos meios de quali-
ficação e, posteriormente, postos de trabalho. Analisá-las fez parte de um
exercício de captar as diferenças discursivas em sua dispersão a fim de
compor uma descrição de práticas enunciativas que encorajem, estimulem
210 | Educação Matemática e Diversidade(s)

e conduzam meninas a se engajarem na operacionalização da racionali-


dade vigente.
Todas as enunciações levam ao entendimento de que empoderar ma-
tematicamente as mulheres se configura como um exercício de lhes
conceder oportunidades e liberdade de escolha. Contudo, é importante
ressaltar que Foucault destaca que o poder só se exerce sobre sujeitos li-
vres, neste sentido, a liberdade é condição de existência para o poder.
Portanto, governar os sujeitos seria “estruturar o eventual campo de atu-
ação dos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 244).
Os resultados de nossa análise, então, conduzem a compreender que
há três momentos - não necessariamente num sentido cronológico como
identificado por Leder (2019) mas que acabam por se misturar em meio
ao tratamento das enunciações construídas – que esboçam um panorama
da temática de gênero no campo de investigações da educação matemática
no Brasil. Num primeiro momento, essa temática foi pautada e problema-
tizada por uma questão biológica: meninas, em geral, não tem as
habilidades necessárias para se desenvolverem com atividades que tratem
matemática de alto nível. Já em um segundo momento, o que ocorre é uma
guinada à compreensão de que as meninas não se engajam tanto nas ati-
vidades matemática, em geral, pois não são estimuladas em seus
ambientes sociais, familiares e escolares, principalmente. Deste modo, a
questão é de ordem social e cultural, e a controvérsia seria solucionada
desde que essas práticas fossem combatidas e sanadas. Finalmente, o ter-
ceiro momento que, aliás, é o que tentamos demonstrar nesta pesquisa,
diz respeito a questão econômica mobilizada pela racionalidade neoliberal
que identifica, diagnostica e requere dos campos de investigação ligados a
educação a solução dessa lacuna de participação de meninas em carreiras
altamente especializadas de tecnologias, incluindo de matemáticas.
Desse modo, a investigação mapeou a abordagem conferida à temá-
tica de gênero no país e mostrou que o problema, para a educação
matemática, coaduna com o que Yolcu (2019) descreve como a compreen-
são sobre a necessidade de equidade defendida pelo campo: para que todos
Vanessa Franco Neto; Paola Valero | 211

aprendam matemática. Contudo, o que se demonstrou é que essa intenção


se alinha a uma racionalidade que atenderia a inserção mais efetiva, eficaz
e especializada de mulheres no mercado de trabalho, servindo as deman-
das de criação de contingente significativo e altamente especializado de
mão de obra.
Ao final, é importante destacar que não se posicionou nesta investi-
gação contrariamente a necessidade de superação da participação de
meninas e mulheres tanto no consumo quanto na produção de conheci-
mento matemático, o que se quis descrever foram os argumentos
elaborados pelo campo de pesquisas para dar valor e sentido a esse movi-
mento. Esses dois últimos elementos sim, receberam uma análise crítica,
pois entende-se que a chamada a inclusão desses indivíduos, meninas e
mulheres, não vem dissociado de referências a um tempo e a uma cultura
específicas, o que se quis demonstrar.

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11

Governo dos corpos:


aprendendo a ser menina e
a ser menino em livros didáticos de matemática

Marcio Antonio da Silva 1


Vanessa Franco Neto 2
Deise Maria Xavier de Barros Souza (in memorian)

Neste capítulo, trazemos alguns resultados de duas pesquisas de dou-


torado realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa Currículo e Educação
Matemática (GPCEM) do Programa de Pós-Graduação em Educação Ma-
temática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Ambas tratam
do tema “gênero”, em diferentes contextos, mas defendendo uma mesma
linha argumentativa: imagens e textos do currículo de matemática não são
utilizados em uma perspectiva que busca somente ensinar conhecimentos
matemáticos. As imagens e textos movimentam um cenário sedutor do
currículo de matemática para captar a atenção das crianças, encantando-
as para o aprendizado, por intermédio de uma suposta contextualização
que tem, pelo menos hipoteticamente, uma relação direta com as ativida-
des cotidianas, no caso, as brincadeiras.

1
Doutor em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Associado
do Instituto de Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Doutora em Educação Matemática pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora Adjunta
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, Brasil. E-mail: [email protected].
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 215

Desde o início de 2015, o GPCEM desenvolve o projeto de pesquisa


“redes discursivas construídas em livros didáticos de matemática do en-
sino médio3”, partindo do pressuposto que há várias influências sobre a
construção dos discursos presentes nos livros didáticos de matemática do
ensino médio. Essas influências constituem, na metáfora que optamos por
utilizar, fios que tecerão uma rede discursiva que se materializará no livro
didático.
As descrições desses discursos de constituição de sujeitos (no caso
deste capítulo, como são constituídos meninos e meninas) foram realiza-
das utilizando como perspectiva teórico-metodológica a análise do
discurso, numa perspectiva foucaultiana. Para Foucault (2013), o discurso
ultrapassa a simples referência e descrição das “coisas”, vislumbrando a
possibilidade de definir como essas “coisas” foram constituídas a partir de
relações de poder e verdades construídas socialmente.
Nas próximas seções, traremos excertos catalogados em livros didá-
ticos de matemática produzidos para os anos iniciais de escolas do ensino
regular e da educação do campo, os quais replicam práticas estilizadas que
descrevem e inscrevem o que escolhemos nomear: (i) currículo-brin-
quedo, e (ii) sujeito-mãe; produzindo e movimentando discursividades
direcionadas a corpos com marcas de gênero específicas, construindo mas-
culinidades e feminilidades; meninos e meninas.

O currículo-brinquedo

No campo da Educação há um forte discurso de que os brinquedos,


as brincadeiras, os jogos, a ludicidade e o lúdico têm um papel importante
para tornar o ambiente escolar mais envolvente e fascinante, a fim de me-
lhorar o ensino e a aprendizagem das crianças. Grando (2000), por
exemplo, desenvolve uma tese, muito citada no campo da Educação Mate-
mática, defendendo que o trabalho pedagógico baseado em jogos pode

3
Projeto aprovado na Chamada Universal MCTI/CNPQ Nº 14/2014.
216 | Educação Matemática e Diversidade(s)

minimizar “o hiato existente entre as atividades lúdicas cotidianas realiza-


das pelas crianças, espontaneamente, e o trabalho desencadeado em sala
de aula” (p. 6). Em contrapartida, ainda no campo da Educação Matemá-
tica, há trabalhos (SARTORI; DUARTE, 2015; 2017) que problematizam
marcas discursivas que envolvem o lúdico, indicando, entre outras ques-
tões, que “no discurso lúdico o sujeito está sendo produzido em
consonância com o dispositivo neoliberal” (SARTORI; DUARTE, 2017, p.
66-67).
A partir desse cenário, nesta seção, trazemos alguns exemplos da pes-
quisa de doutorado de Deise Souza, nas quais ela problematizou imagens
dos livros didáticos de matemática dos anos iniciais do ensino regular, os
quais têm algum tipo de interação criança-brinquedo, utilizadas para a
produção e normatização do que chamamos de currículo-brinquedo.
As representações lúdicas, naturalizadas do mundo de meninos e me-
ninas no currículo-brinquedo, são pedagogizadas como algo que se pode
aprender a fazer, externa aos sujeitos da ação, definindo as posições e as
funções que cada um pode ocupar no currículo de matemática ou na vida
cotidiana. Essas representações são como saberes que indicam o domínio
de cada brinquedo e brincadeira, delimitando o espaço em que cada cri-
ança “pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa”
(FOUCAULT, 2013, p. 220) ou ainda, indicam a coordenação e a subordi-
nação dos conceitos do currículo-brinquedo, pois eles “aparecem, se
definem, se aplicam e se transformam” (id. ib., p. 220). Enfim, problema-
tizar um saber que articula o currículo de matemática às representações
da cultura dos brinquedos e brincadeiras naquilo que produzem na forma-
ção de subjetividades infantis, um saber que se constitui por possibilidades
de utilização e de apropriação de uma vida fora da escola.
Consideramos que as imagens e textos do currículo-brinquedo, mar-
cados pela dimensão de gênero, funcionam dentro do sistema discursivo
do conhecimento matemático, reivindicando o status de verdade,

os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verda-


deiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 217

procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto da-


queles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(FOUCAULT, 2015, p. 52).

Em nosso tempo, a verdade sobre os sujeitos marcados pela dimen-


são de gênero é regida por uma economia política com características
historicamente construídas. A verdade sobre ser menino ou menina no
currículo de matemática está

[...] centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produ-


zem; está submetida a uma constante incitação econômica e política
(necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o po-
der político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um
imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja
extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limi-
tações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas
dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universi-
dade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate
político e de confronto social (as lutas "ideológicas") (FOUCAULT, 2015, p. 52).

As normatizações que qualificam os corpos de meninos e meninas no


currículo de matemática, por meio de um sistema discursivo de gênero
normativo, nas representações de brinquedos e brincadeiras, pressupõem
e impõem a restrição do gênero preso a um par binário (BUTLER, 2016).
Circula como verdade possível de ser articulada ao conhecimento científico
da matemática escolar, onde são definidas regras, segundo as quais são
induzidas certas formas de subjetividades no marcador de gênero. Assim,
o currículo de matemática multiplica efeitos de subjetividades.
Problematizamos o currículo-brinquedo, suspendendo as relações da
linguagem do ponto de vista do significado e do significante – uma relação
direta entre imagens e significados, para descrever e analisar práticas dis-
cursivas de gênero no currículo de matemática. Práticas discursivas
compreendidas como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sem-
pre determinadas no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2013, p. 144). Um
tempo histórico que define as regras e as condições de estereótipos de
218 | Educação Matemática e Diversidade(s)

gênero no currículo-brinquedo, como uma prática cultural discursiva con-


siderada, no contexto dos Estudos Culturais, como um processo de
significação, um “artefato social submetido a permanentes tensões e con-
flitos de poder” (VEIGA-NETO, 2000, p. 40). Com isso, os estereótipos de
gênero são problematizados nas relações conflituosas de poder do currí-
culo dos anos iniciais, no centro das significações e identidades culturais,
articulando o pensamento de Michel Foucault aos Estudos Culturais.
Nesse contexto, o movimento de análises de práticas discursivas de
gênero no currículo de matemática implica uma dupla tarefa: a de consi-
derar que o currículo de matemática pode mobilizar um conjunto de
estratégias que fazem parte de práticas sociais produtoras de subjetivida-
des, como nas representações de brinquedos e brincadeiras que são
articuladas ao currículo. E, ainda, a de que o currículo de matemática pro-
duz uma verdade sobre o jogo das representações de gênero, o lugar onde
se formam certo número de regras desse jogo, onde “se vê surgirem certas
formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber”
(FOUCAULT, 2014, p. 133) nas brincadeiras possíveis. Essa dupla tarefa
nos movimenta por diferentes territórios de pesquisa, problematizando as
fronteiras das áreas de pesquisa (SILVA; MIARKA, 2017) e possibilitando a
nós um livre trânsito pelas áreas dos [E]estudos [C]culturais, da [E]edu-
cação [M]matemática, da [E]educação, da [F]filosofia, do [C]currículo,
entre outras.
Trata-se de um combate contra o estatuto da verdade movimentada
no currículo de matemática sobre os sujeitos marcados pela dimensão de
gênero e sobre o outro não representado. Um combate local e específico,
mas que pode acarretar efeitos em regimes de verdade de como podemos
ser e agir e como deixamos o currículo de matemática agir sobre nossos
corpos e, quem sabe, pensarmos novas formas de ser e estar no mundo.
Questionar o currículo de matemática na produção de subjetividades ex-
cludentes é um movimento de recusa a produção de individualidades
heterossexuais oposicionais que a muito nos foi imposta e o currículo de
matemática se mantém discursivamente, na margem dessa discussão, pois
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 219

se firma como conhecimento neutro, desarticulado da produção de subje-


tividades.
Em Fonseca e Souza (2010) encontramos um indicativo do que as
pesquisadoras chamam de silenciamento de estudos que problematizam
questões de gênero na produção acadêmica da Educação Matemática bra-
sileira. De fato, apesar de as pesquisadoras considerarem a “fertilidade
desse conceito para analisar fenômenos e questionar posições e procedi-
mentos que se forjam no reconhecimento de que nossas práticas pessoais
e profissionais são sempre produtoras de gênero” (FONSECA; SOUZA,
2010, p. 27).
Em contrapartida, no campo da Educação Matemática internacional,
pesquisas que tomam gênero como objeto de análise têm crescido subs-
tancialmente. Na década de 1990, pesquisadoras como Gilah Leder
desenvolveram investigações tendo as reivindicações feministas como re-
ferência. Em um número especial da revista Educational Studies in
Mathematics, Leder (1995) menciona a influência de movimentos da ter-
ceira onda feminista nas pesquisas desenvolvidas naquela época. Alguns
anos antes, em 1993, ocorreu, na cidade de Höör (Suécia) um evento or-
ganizado pelo ICMI (International Commission on Mathematical
Instruction), intitulado “Gênero e Educação Matemática”. Esse evento his-
tórico gera a publicação de um livro, editado por Gila Hanna (HANNA,
1996), que se tornou referência na área e que, definitivamente, inseriu a
temática de gênero na pauta de discussão de eventos da área.
Desde então, as pesquisas mudaram muito, passando das reivindica-
ções por igualdade de gênero, sobretudo feitas por intermédio de estudos
que apontavam as desvantagens das mulheres em relação aos homens, até
as mais recentes pesquisas que problematizam os binarismos daquela
época e tomam o gênero como uma construção que “leva em consideração
maneiras de pensar e atuar disponibilizadas e geradas nas práticas físicas,
sociais, culturais, discursivas e históricas das comunidades organizadas
em torno de categorias fixas de identidade” (WALSHAW, et al., 2017, p.
185, tradução nossa).
220 | Educação Matemática e Diversidade(s)

A pesquisa realizada por Deise Souza analisou 103 livros didáticos de


matemática dos anos iniciais das coleções aprovadas no Plano Nacional do
Livro Didático (PNLD) de 2016, sendo 69 de alfabetização matemática (1º;
2º e 3º anos) e 34 de matemática (4º e 5º anos).
Em uma análise específica sobre como os livros de matemática apre-
sentam brinquedos como tema atrativo para se ensinar matemática, Deise
Souza identificou uma regularidade discursiva do que poderíamos classi-
ficar como brinquedos e brincadeiras “de menino” e “de menina”.
Foram 528 figuras que apresentavam alguma forma de interação cri-
ança-brinquedo ou criança-brincadeira. O Quadro 2 a seguir mostra um
importante resultado da pesquisa:
Quadro 1: Interação criança-brinquedo ou criança-brincadeira
Tipos de brinquedos Nº de imagens com Nº de imagens com Nº de imagens com meni-
meninas meninos nas e meninos
Bonecas 83 0 3

Bichos de pelúcia 35 0 0

Bolas 35 155 1

Boliche 14 11 0

Bolhas de sabão 2 0 0

Carrinhos 3 117 0

Jogo (figurinhas, dardos) 0 5 0

Bolinha de gude 8 34 1
Pião 0 4 0
Super-heróis 0 16 1
Videogame 2 4 0
Fonte: adaptado de (VALERO; SILVA; SOUZA, 2019)

Além do que é evidenciado pelo Quadro 1, por exemplo, brincar de


bola é atividade de menino e brincar de boneca é de menina, essas brinca-
deiras constroem e normalizam práticas sociais do que é esperado de um
homem e de uma mulher.
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 221

Figura 1: Crianças brincando de boneca

Fonte: Silveira (2014, p. 244)

O brincar de boneca está ligado, em geral, ao cuidado, à atenção e à


generosidade. Assim, ao ver Ana dando um terço de suas bonecas, a ma-
temática da divisão e do cálculo com frações se relaciona com valores
feminilizados, como o cuidado com o outro.
Ainda encontramos exceções, como no exemplo: “Sofia, irmã de Lu-
cas, coleciona carrinhos, ela tinha 20 carrinhos e ganhou 5 em seu
aniversário. Quantos carrinhos ela tem agora?” (MATRICARDI, 2014, p.
110).
No entanto, “Sofia” é apresentada como “irmã de Lucas” (o que nos
parece uma justificativa para o fato de uma menina poder colecionar car-
rinhos: ter um irmão!). Essa parece uma estratégia discursiva para
mostrar que existe uma certa pluralidade, e não regularidade, nas ações
legitimadas como sendo de meninas e meninos. A nosso ver, exemplos
como esse são o que Paul Dowling chamou de “ritual de genuflexão [ajoe-
lhar, reverenciar] para o discurso da igualdade de oportunidades e para
desarmar bombas antissexistas” (DOWLING, 1991, p. 4, tradução nossa),
reforçando não as lutas sociais por igualdade, mas a própria diferenciação.
O currículo de matemática opera por intermédio de uma técnica
muito refinada: dá uma suposta liberdade, mas, ao mesmo tempo, mostra
modos específicos de ser. É o caso do exemplo a seguir, no qual o livro
apresenta:
222 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Figura 2: Vestindo boneco e boneca

Fonte: Fonte: Nani (2014, p. 143 e 173)

A atividade convida o(a) estudante a vestir o boneco e a boneca “como


preferir”. Interessante notar que, mesmo com roupas íntimas, os bonecos
já reproduzem modos de ser menino e menina (cueca azul e calcinha rosa).
A partir dessa pretensa liberdade, o livro propõe algumas soluções:
FIGURA 3: modos de vestir o boneco e a boneca

Fonte: Nani (2014, p. 143)

O livro propõe, sim, outras formas de se vestir o boneco, além das


apresentadas. Mas o dispositivo que propõe, também exige a confissão:
“conte aos colegas e ao professor”. Essa técnica constrange e inibe, sepa-
rando o que pode ser dito do que não pode ser dito.
A matemática das combinações não aceita todas as combinações. Há
combinações idealizadas, combinações esperadas, combinações normali-
zadas para meninos e combinações normalizadas para meninas.
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 223

As pesquisas, descritas até aqui, movimentam um currículo-matemá-


tica-gênero que opera um modo muito específico de ser menina e ser
menino no mundo contemporâneo.

O sujeito-mãe

Nesta seção, traremos os resultados da pesquisa de Neto (2019) que


analisou dez livros didáticos de matemática, produzidos para os anos ini-
ciais de escolas do campo no Brasil. Esse material compôs duas coleções
aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático Campo, o PNLD
Campo. Durante a elaboração da tese, a temática de gênero saltou aos
olhos da pesquisadora e, a fim de produzir resultados sobre o tema no
contexto da educação do campo e de toda a base que liga o aparecimento
dessas coleções aos movimentos de luta pela Terra no Brasil, optou-se por
construir duas codificações principais. A primeira, denominada “mãe”,
marca as referências explícitas a esse papel do feminino – todas as vezes
em que havia a palavra “mãe” nos livros didáticos (a frequência com que
esse termo apareceu foi de 52 menções ao longo do material), as posições
e marcas ligadas a essa representação foram indagadas junto ao referên-
cial adotado. A segunda codificação, foi nomeada “maternal” (com 111
excertos associados a esse código). Neste último, foram selecionadas atri-
buições e práticas estilizadas e remetidas sempre a corpos femininos.
Foram, ainda, sistematizadas algumas marcas, tais como: afeto, segu-
rança, gestão, justiça, entre outras. Destaca-se que nem todas as
referências ao “maternal” estavam explicitamente anunciadas com uma
referência a “mãe”, todavia, elas sempre foram destacadas, pois remetiam
ao feminino.
Entender o currículo como práticas subjetivantes (KROEF, 2001) im-
plica assumir sua potência para produzir, moldar e fortalecer as marcas
identitárias de gênero, fortemente atreladas a um discurso biológico que
clama pelo natural e instintivo para circunscrever acerca do ser feminino.
Para as análises não houve uma intenção primeira de construir um tipo de
224 | Educação Matemática e Diversidade(s)

exercício comparativo, a partir do entendimento do ser masculino e do ser


feminino, todavia, por vezes, o contraste proporcionado pelas atribuições
sociais binárias e heteronormativas foi destacado para que se pudesse fo-
mentar as argumentações acerca desse sujeito-mãe, considerando que
“não podemos compreender a maternidade sem abordar a paternidade, a
mãe sem o pai, no sentido biológico e social do termo” (SCANOVE, 2001,
p. 142).
Nesse mesmo sentido, Paechter (2009) realizou uma importante
análise acerca da construção das feminilidades no ambiente escolar, sendo
este, de acordo com a autora, um lugar fundamental na construção dessa
identidade que incide sobre a infância. Afinal, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental também se ensinam feminilidades, o que implica aprender,
também, a ser maternal. “Ajudar a mamãe”, por exemplo, aparece como
uma enunciação ligada recorrentemente ao uso da atribuição do ser
“mãe”:
Figura 4 – Atividade de administração do tempo

Fonte: Gomes et al. (2014a, p. 135).

Na figura 4, para abordar o conteúdo de grandeza de tempo, Aninha


descreve sua rotina. A partir deste exemplo, os estudantes são convidados
a “fazer como Aninha” e elencar suas atividades ao longo do dia condu-
zindo-os à reflexão acerca da administração do tempo ao “reconhecer
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 225

hábitos comuns ao modo de vida (...) humano, de acordo com o momento


do dia.” (GOMES et al., 2014a, p. 265).
É certo que as condutas estão sendo ajustadas a uma lógica de vida e
trabalho em que o enquadramento dos indivíduos é regido por noções de
controle e de eficiência, tal como já identificaram Souza e Oliveira (2018),
ao problematizar “(...) a grandeza de medida de tempo como uma tecno-
logia política do corpo” (p. 11). Além disso, entre as atividades realizadas
por Aninha, “ajudar a mãe com a louça do almoço” é uma tarefa que me-
rece ser lembrada. Neste excerto, as noções de cooperação com as
obrigações domésticas fornecem um indicativo de que os valores que atra-
vessam o material contribuem para fortalecer no estudante (feminino)
noções de uma justa relação e atribuições no âmbito familiar: ‘seja presta-
tiva, ajude sua mãe’. Ao mesmo tempo, seja organizada, elabore um
cronograma de atividades e seja produtiva e eficiente dentro dele.
Todavia, é necessário destacar que Aninha, corpo feminino, ajuda a
mãe, outro corpo feminino, sendo esta a real e efetiva responsável por exe-
cutar a atividade doméstica. A mensagem edificadora para a formação
sólida do caráter e compreensão de mundo na infância acaba por ocultar
uma marca profunda da tradicional divisão sexual do trabalho, que atribui,
mais enfaticamente, ao feminino as responsabilidades domésticas. Nesse
sentido, o conteúdo de grandeza de tempo age de modo a distribuir as
subjetividades aos corpos, por exemplo, as responsabilidades domésticas,
entre outras, como ilustrado na Figura 4.
É recorrente nesses materiais a incumbência da gestão doméstica e
familiar (especialmente no que concerne aos cuidados com a infância) a
um único corpo: o feminino. Já enquanto exercendo atividades remunera-
das, os personagens femininos (fora do circunscrito doméstico/familiar)
são posicionados como costureira, professora, atendente, médica, entre
outras majoritariamente relacionadas a cuidados com o outro. Como agri-
cultoras, são classificadas, por exemplo, em poucas situações (há sete
menções a essa atividade se referindo ao feminino, enquanto há outras 34
referências a homens agricultores). Tal disparidade de representação vai
226 | Educação Matemática e Diversidade(s)

de encontro com a forjada proposta de justiça social da qual emanam as


coleções analisadas:

(...) questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos


camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas
de agricultura têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concep-
ções de política pública, de educação e de formação humana. (GOMES et al.
2014a, p. 226).

Significa dizer que as práticas de agricultura familiar (mais igualitá-


rias na divisão sexual e organização social do trabalho) são fundadas em
contraposição à lógica do agronegócio, abertamente apregoada nos livros
didáticos (menos igualitária). Tal contraposição, contudo, não é explicitada
no cenário dos materiais didáticos produzidos para essa população. Essa
disparidade de atribuições de trabalho às mulheres foi abordada nos re-
sultados obtidos pelas pesquisas de Hall (2003) e Hall e Mogyorody
(2007), no Canadá. De acordo com este estudo, em famílias nas quais havia
uma consciência de classe e produção agroecológica, as posições e os es-
paços ocupados pelas mulheres tendiam a ser mais igualitários em relação
às decisões tanto no contexto do trabalho no campo quanto no interior dos
lares – o que não é adequadamente explorado pelos livros didáticos de ma-
temática (importante destacar que essa análise foi realizada com
produtores heterossexuais), em contraste com o que ocorreu quando a in-
vestigação foi realizada com produtores que trabalhavam com a lógica do
agronegócio.
A disciplina e a divisão de tarefas, na análise de Foucault acerca do
poder disciplinar, ainda têm implicação sobre as relações de poder que in-
cidem sobre os corpos, pois elas os tornam mais produtivos e dóceis. Tanto
que o trabalho doméstico, ao ser considerado de natureza fundamental-
mente feminina (ROMITO, 1997), é ignorado em suas onerações sociais,
ocultando os custos físicos e mentais que acarretam para os corpos femi-
ninos, afinal, “o trabalho doméstico é entendido como parte do ser
mulher” (HILLESHEIM, 2004, p. 46).
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 227

Em relação às características ligadas ao materno, a afetuosidade é ou-


tra atribuição marcada reiteradamente como intrínseca ao feminino: as
mães são a corporificação da devoção para com o próximo. São fonte de
cuidado, atenção e segurança inabalável em relação ao outro, tal como
pode ser exemplificado na Figura 5 em que “a conexão com a matemática
é feita a partir da proposta de uso atento dos sentidos na modelagem”
(GOMES et al., 2014a, p. 269).

Figura 5 – Atividade de localização

Fonte: Gomes et al. (2014a, p. 143).

Note-se que há dois homens adultos em volta da fogueira: um deles


anima a festa junina ao som de uma sanfona, enquanto o outro se delicia
com o que parece ser um cachorro-quente, ambos com aparência despre-
ocupada, numa cena que sugere a movimentação característica dessas
festividades. O segundo indivíduo está posicionado precisamente ao lado
de uma criança que executa as mesmas ações: alimenta-se e observa a agi-
tação pitoresca.
Com um comportamento marcadamente oposto, as personagens fe-
mininas aparentam estar mais atentas, até mesmo preocupadas. Embora
uma delas, supostamente, aprecie a fogueira, garante, ao mesmo tempo,
228 | Educação Matemática e Diversidade(s)

que a criança que a acompanha se mantenha ao seu lado, pois a segura


firmemente pelas mãos. A outra se posiciona de modo a escoltar a criança
dos perigos impostos pela fogueira. Esta última, aliás, sugere sequer estar
usufruindo das festividades devido aos necessários cuidados para com a
criança sob sua responsabilidade. Afinal, o sujeito-mãe precisa estar sem-
pre alerta, gerindo e se antecipando a possíveis rompantes da infância.
Além disso, também necessita ter uma noção apurada de localização espa-
cial, afinal, ela deve ter condições de avaliar e de antever as possíveis
situações de perigo. Os posicionamentos dos indivíduos marcadamente
opostos sugerem que ao masculino é concedida a possibilidade de usufruir
tranquila e despreocupadamente as festividades.
Já na figura 6, lança-se mão de atividades que, manifestadamente,
buscam abordar o desenvolvimento da “leitura de números”. Para tanto,
faz-se uso de uma famosa cantiga infantil:
Figura 6– Atividade de classificação

Fonte: Gomes et al. (2014b, p. 40).

A “pombinha branca” antropomorfizada na parlenda já foi objeto de


análise no que concerne aos endereçamentos heteronormativos, a exem-
plo de Pacheco (2008). Na atividade exposta na Figura 6, um tipo de
prática tende a significar, inscrever e prescrever a maternidade e o matri-
mônio sobre o corpo feminino.
O dispositivo da maternidade (MARCELLO, 2004) é um elemento
imaginário essencial que projeta o sujeito-mãe. A questão colocada para
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 229

estudantes do terceiro ano do Ensino Fundamental é: qual seria a idade


adequada para que uma mulher se envolva em um matrimônio e se repro-
duza? Por ser mencionada no diminutivo, a espécie “Columba Livia” – seu
nome científico – é posicionada subalternamente ao mesmo tempo em que
se apresenta engajada a um espectro de possibilidades maternais: casar-
se (com um representante masculino da espécie) e gerar descendentes.
Somente a parlenda possibilitaria a problematização de uma série de
enunciados que disparam; todavia, a intenção é fixar o olhar analítico so-
bre os conteúdos do currículo (de matemática) que mobiliza: o uso de
leitura de números para normalizar uma prática sociocultural de relacio-
namento entre humanos. Ao estudante, cabe tomar a decisão da resposta
correta com base nessa norma sociocultural somada ao seu conhecimento
do conteúdo.
Como prática do feminino, os estudantes aprendem que, para se ca-
sar e ter filhos, precisam ser delicadas (o que sugere o sufixo “inha”, em
consonância com as características afetivas e comportamentais atribuídas
ao feminino), executar práticas domésticas (lavar a roupa, que aqui se ali-
nha às categorias do trabalho e da gestão do lar) e ter uma idade
“adequada” (vinte e cinco anos). E a última afirmação é tomada exata-
mente para explorar um elemento (conteúdo) compulsório do currículo
escolar.
O sujeito-mãe, além de estar ligado a um conjunto de características
denominadas “maternais”, necessita sacar conhecimentos relacionados à
matemática escolar para que possa exercer sua função social de forma efe-
tiva. As operações aritméticas, por exemplo, são essenciais para a gestão
do lar e da família, atribuições do corpo feminino, como pode ser obser-
vado. Simultaneamente, a grandeza de tempo se associa ao sujeito da
mesma forma: garantindo a administração das tarefas diuturnamente
atribuídas a esse corpo. A precisão e a localização espacial também são
tipos de conhecimentos fundamentais para que se possa manter a ordem,
a justiça e a segurança de todos. Todos esses conhecimentos são mobiliza-
dos e permitem que o sujeito-mãe tome decisões assertivas e eficientes,
230 | Educação Matemática e Diversidade(s)

sem que deixe de exercer suas qualidades intrínsecas de competente ges-


tora do lar, incansável cuidadora e facilitadora das atividades cotidianas da
família, visionária acerca dos riscos potenciais, ajustada às regulações so-
ciais, entre outras características.
Para este trabalho, apenas alguns exemplos foram destacados a fim
de que pudessem amparar a argumentação empreendida. Muitos outros
elementos, mesmo não sendo aqui expostos, ratificam as interpretações
apresentadas. Fundamentalmente, o sujeito-mãe é um corpo que recebe
atribuições necessariamente relacionadas à família e ao cuidado com o ou-
tro e é, irrevogavelmente, relacionado ao feminino.

Considerações finais

Foi evidenciado por meio dos excertos destacados que estes se ligam
a um conjunto de práticas que se fixam como construção de noções acerca
do que é ser “menino” e “menina”, seja por intermédio da sedução dos
brinquedos, seja pela constituição do sujeito-mãe que molda e configura
os corpos. Portanto, afirma-se que a educação é uma forma de governo e
de fabricação de tipos específicos de pessoas, que se vinculam inexoravel-
mente à lógica neoliberal vigente, visto que “(...) os princípios do mercado
enquadram todas as esperas e atividades, desde a maternidade até o aca-
salamento (...)” (BROWN, 2015, p. 67).
Nesse sentido, lançar luz sobre as tecnologias de diferenciação ope-
radas por meio desses livros didáticos sobre o masculino e o feminino
permite destacar práticas discursivas de estilização que acabam por obje-
tivar esses corpos e nelas inscrevê-los a partir de táticas de poder que
normalizam condutas.
Tais condutas atribuem a corpos todo um grande propósito e um
ininterrupto investimento em modos de ser e agir como homens e mulhe-
res, que o compõe como sujeitos de visibilidade e enunciação, em que o
indivíduo constitui-se a partir de um conjunto de regras, de gramáticas
específicas. Assim, aprende-se a governar seus corpos, seus gestos, suas
Marcio Antonio da Silva; Vanessa Franco Neto; Deise Maria Xavier de Barros Souza | 231

ações dentro de um espectro restrito de possibilidades, ratificadas por co-


nhecimentos específicos.

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12

Diretrizes teóricas e metodológicas para


o desenvolvimento de materiais didáticos de
matemática no contexto da economia solidária 1

Renata Cristina Geromel Meneghetti 2


Edinei de Oliveira Filho 3

Introdução

O objetivo principal deste trabalho é apresentar uma proposta de di-


retrizes teóricas e metodológicas para o desenvolvimento de materiais
didáticos de apoio a práticas educativas de matemática para a educação de
adultos no contexto da Economia Solidária (ES) ou em contextos similares.
Para tal, apresentaremos o processo de produção de materiais didáticos
elaborados a partir da sistematização de intervenções de Educação Mate-
mática realizadas pelo grupo de pesquisa Educação Matemática e
Economia Solidária (EduMatEcoSol) junto a Empreendimentos Econômi-
cos Solidários (EES). O trabalho deste grupo tem ocorrido em parceria

1
Uma versão preliminar e parcial deste trabalho foi apresentada no II Congresso de Pesquisadores de Economia
Solidária (CONPES) apresentado em setembro de 2018. Disponível em: <http://www.conpes.ufscar.br/anais-ii-con-
pes/>.
2
Livre-docente pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e Doutora em Educação Mate-
mática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Professora associada do Instituto de
Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Paulo (USP), credenciada no Programa de
Pós-Graduação em Educação para a Ciência (Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus de Bauru). E-mail:
[email protected].
3
Licenciado em Matemática pelo Instituto de Ciências Matemática e de Computação (ICMC) da Universidade de São
Paulo (USP) e mestrando no Programa de Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da Universidade Esta-
dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Câmpus de Bauru. Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail:
[email protected].
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 235

com o NuMI-EcoSol (Núcleo Multidisciplinar e Integrados de Estudos, For-


mação e Intervenção em Economia Solidária da Universidade Federal de
São Carlos/SP (UFSCar)), responsável pela implantação e acompanha-
mento de alguns EES da localidade.
As ações educativas desenvolvidas pelo grupo EduMatEcoSol junto a
esses EES focalizaram conteúdos de matemática da Educação Básica (tais
como: operações elementares envolvendo números naturais e decimais,
razão, proporção, porcentagem, sistema de medidas, entre outros), cuja
não compreensão implicava dificuldades no desenvolvimento de ativida-
des do cotidiano de trabalho dos membros dos EES.
Tais conteúdos foram levantados e considerados como pertinentes a
partir do convívio entre os membros do grupo de pesquisa e os do EES.
Posteriormente, foram planejadas e executadas ações pedagógicas para o
ensino e aprendizagem de matemática, com o intuito de amenizar e sanar
as dificuldades dos membros dos referidos EES na direção da emancipação
dessas pessoas quanto ao uso desses conhecimentos nos mais variados
contextos de vida e de trabalho. Cabe ressaltar também que tais conteúdos
foram contextualizados de acordo com as situações vivenciadas junto a
cada um dos EES acompanhados.
Como forma de ampliar o processo educativo, foram elaboradas, por
alguns dos integrantes do grupo EduMatEcoSol, apostilas de matemática
a fim de sistematizar o conteúdo abordado nas intervenções pedagógicas
ocorridas neste contexto visando fornecer aos membros dos EES um ma-
terial de consulta e estudo para suas atividades cotidianas posteriores às
intervenções. Com isso objetivou-se alcançar maior autonomia dessas pes-
soas quanto a utilização dos conhecimentos matemáticos indispensáveis
em suas cadeias produtivas sem depender da ajuda de outros (como por
exemplo, de técnicos ou pesquisadores que acompanham o grupo para im-
plantação e implementação dos EES).
O material tem também por objetivo divulgar algumas práticas edu-
cativas de matemática para a educação de adultos no contexto da ES e
poderão, ainda, inspirar educadores na elaboração de outras propostas
236 | Educação Matemática e Diversidade(s)

pedagógicas em contextos similares, que levem em consideração situa-


ções-problema que sejam mais significativas para esse público alvo, por
considerar a prática do trabalho e os problemas do cotidiano dessas pes-
soas.
As diretrizes teóricas que deram suporte a esta investigação, e que
serão apresentadas no que segue, consideram aspectos da ES, da Etnoma-
temática, da Resolução de Problemas (RP) e da Educação de Jovens e
Adultos (EJA). Após apresentarmos a parte teórica, abordaremos os aspec-
tos metodológicos da pesquisa como um todo, bem como aqueles
empregados no processo de elaboração dos materiais didáticos tratados
neste trabalho. Em seguida, apresentaremos uma ilustração deste pro-
cesso focalizando a produção de materiais didáticos advindos de
intervenções realizadas junto a um dos EES acompanhados. Por fim, serão
traçadas as considerações finais à luz do objetivo deste trabalho.

Diretrizes teóricas

Economia Solidária

O capitalismo é o modo de produção vigente no Brasil há bastante


tempo, e tem como uma suas principais características a competição e a
liberdade individual em vários sentidos, por exemplo, um mesmo produto
pode ser vendido por várias empresas em diversos locais, cada emprego
deve ser concorrido por muitos pretendentes, cada vaga em universidade
deve ser disputada por diversos estudantes, entre outros. A competição no
capitalismo, permite ao consumidor escolher entre o produto que mais o
agrada, tanto em termos de qualidade quanto de preço. Essa característica
é o que é considerada a liberdade individual neste sistema (SINGER,
2002).
Quem consegue vender mais, isto é, quem tem um produto de maior
qualidade ou que consegue vender por um preço mais baixo são conside-
rados os vencedores e as empresas concorrentes que não conseguem
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 237

vender o mesmo tipo de produto acabam tendo prejuízos e por vezes fe-
chando. Essa competição demasiada pode causar efeitos sociais negativos.
Uma vez que ela enaltece sempre os vencedores em detrimento dos per-
dedores. Esses que acabam perdendo são incentivados a continuar
competindo, e numa próxima vez podem tentar melhorar ou conseguir
outra oportunidade de emprego, tentar outro vestibular, entre outras.
Surge então uma dificuldade, uma vez que os vencedores estarão
sempre acumulando vantagens e os perdedores desvantagens. Um empre-
sário que declarou falência não terá mais o capital para abrir uma nova
empresa, terá menos crédito no banco. Pessoas que estão desempregadas
há muito tempo, ou que tem a idade avançada têm extrema dificuldade em
conseguir um novo emprego. Os reprovados em vestibulares têm que se
preparar melhor, mas muitas vezes, sem perspectiva, buscam um em-
prego, têm menos tempo para os estudos, às vezes gastaram todo o
dinheiro em um ano de cursinho. Todos esses, então, acumulam desvan-
tagens para a próxima tentativa (SINGER, 2002).
É nesse sentido que o capitalismo vem gerando desigualdade na so-
ciedade em que vivemos. Essas vantagens e desvantagens vão sendo
passadas de pais para filhos durante as gerações, os descendentes dos ven-
cedores acumulam vantagens e os descendentes dos perdedores
acumulam desvantagens. Em síntese, a liberdade individual preconizada
pelo capitalismo pode torna-se na verdade um mecanismo de produção e
reprodução de desigualdades que vão sendo estabelecidas pelo funciona-
mento baseado em competições.
Dentro do sistema capitalista, mas na direção de amenizar esse pro-
blema é necessária uma economia que seja solidária, pautada na
cooperação entre os participantes ao invés da competição. A Economia So-
lidária (ES) luta para que a classe excluída pelo capitalismo possa ter
condições dignas, buscando a igualdade entre os participantes, a proprie-
dade coletiva do capital, tendo como resultado a solidariedade e a
igualdade (SINGER, 2002). Trata-se, portanto de uma economia
238 | Educação Matemática e Diversidade(s)

alternativa que busca a inclusão no mercado de trabalho daqueles que fo-


ram (de alguma forma) excluídos pelo sistema vigente.
A ES pode ser entendida de forma sintética, como: “[…] o conjunto
de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança
e crédito – organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e
trabalhadoras sob forma coletiva e autogestionária” (BRASIL, 2006, p.11)
e pauta-se em quatro princípios: cooperação, autogestão, viabilidade eco-
nômica e solidariedade. A cooperação é compreendida como a existência
de objetivos e interesses comuns dos participantes de um EES; a autoges-
tão trata-se da participação de todos os trabalhadores no processo
produtivo; a viabilidade econômica é a mobilização de esforços conjuntos
para a funcionalidade do EES; por fim, a solidariedade diz respeito a pro-
porcionar o bem-estar aos trabalhadores (BRASIL, 2006).
Empreendimentos que adotam como alicerce este tipo de economia
são denominados de Empreendimentos Econômicos Solidários (EES). Tais
empreendimentos são caracterizados por algum tipo de atividade econô-
mica e também podem ser organizados em forma de cooperativas,
associações, clubes de troca, empresas recuperadas autogeridas, organiza-
ções de finanças solidárias, grupos informais, etc. (SINGER, 2002).
A ES objetiva proporcionar aos seus participantes a busca pela auto-
nomia na atividade produtiva, na participação direta das decisões que
afetam suas vidas e na aceitação da sociedade sobre suas condições. Dessa
forma, tal economia tem como aspiração a superação de tensões advindas
de um sistema competitivo e busca unir a forma industrial de produção
com uma organização comunitária da sociedade, isto é, uma forma solidá-
ria de economia.
Nesse contexto, o grupo EduMatEcoSol, através de práticas educati-
vas, tem buscado contribuir para que os membros dos EES possam ter
maior autonomia quanto ao uso de conhecimentos matemáticos necessá-
rios em suas cadeias produtivas, isto é, esses trabalhadores, por meio de
uma processo de ensino e aprendizagem podem tornar-se aptos a utiliza-
rem, sem depender de terceiros, (ou seja de pessoas externas aos EES)
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 239

conhecimentos matemáticos inerentes a suas práticas de trabalho, na pro-


dução, no processo de compra e venda e nas tomadas de decisões, visto
que em toda essa cadeia produtiva a matemática está, de alguma forma,
presente. Isso tem sido feito considerando além dos pressupostos teóricos
da ES mencionados neste item, também os da Etnomatemática, da RP e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA), como segue.

Algumas considerações sobre a Etnomatemática e a Educação de


Jovens e Adultos

De forma simplificada, etimologicamente, a Etnomatemática surge


como a junção dos três seguintes termos: etno, que diz respeito àquilo que
é próprio de um grupo; matema, que se refere à cultura ou o conjunto de
conhecimentos e comportamentos sobre a realidade e ticas que são as ma-
neiras e técnicas. Portanto, Etnomatemática refere-se às maneiras e/ou
técnicas de entender a realidade dentro de um contexto cultural próprio
(D'AMBROSIO, 2001).
Segundo D’Ambrosio (1996), ensinar é preparar o sujeito para que
este consiga viver no mundo real. Alguns dos meios mais importantes que
existem para lidar com a realidade são de natureza matemática, relaciona-
das às práticas de comparar, classificar, quantificar, medir, explicar,
generalizar, que são saberes matemáticos necessários no cotidiano das
pessoas nos mais variados contextos, incluindo o do capitalismo.
Ainda, segundo este autor, o capitalismo tem como objetivo principal
a obtenção de lucro, o que implica uma economia competitiva, na qual o
capital que é acumulado por empresários e bancos rendem juros; já os
trabalhadores, agentes de produção, recebem salários. Dessa forma, o ins-
trumento de suporte para essa economia, principalmente no que diz
respeito ao cálculo dos lucros e dos juros, é a matemática advinda dos ára-
bes. Já a ES é baseada em um sistema cooperativo de produção e de
comercialização cuja gestão é coletiva, onde o excedente é compartilhado.
240 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Assim como no capitalismo o instrumento fundamental é a matemática,


na ES esse instrumento é a Etnomatemática (D’AMBROSIO, 2016).
De acordo com Meneghetti (2013), a Etnomatemática nos possibilita
olhar para os EES e buscar, em primeiro lugar, identificar o saber mate-
mático utilizado pelos seus integrantes em seus afazeres do cotidiano de
trabalho do qual fazem parte; e a partir dessa contextualização, por meio
de um trabalho educacional em conjunto entre pesquisadores e membros
dos EES, busca-se a autogestão dos EES. Assim, nas práticas educativas de
matemática do grupo EduMatEcoSol realizadas junto aos EES utilizamos
uma abordagem Etnomatemática, pois entendemos a matemática, como
uma disciplina diretamente implicada na produção de subjetividades dos
sujeitos, que dão valor às suas vivências, experiências e conhecimentos do
mundo, conforme afirmam Knijnik et al. (2012).
Isso vai ao encontro também do que é preconizado na EJA, pois, para
Coelho e Fiamenghi Jr. (2012), nessa modalidade de ensino é necessário
que o educador considere as especificidades dos aprendizes, isto é, respeite
as suas experiências e seu papel na sociedade. Além disso, neste âmbito,
Corôa (2006) adverte que é importante que se conheça o educando nos
aspectos sociais e econômicos para que, assim, possa se ensinar de forma
mais significativa, contextualizando os conhecimentos matemáticos. Com-
preendemos que, para o ensino de matemática na EJA, é necessário que
existam conhecimentos matemáticos advindos da vivência do aprendiz, ou
seja, que o educador se utilize dos conhecimentos prévios e das experiên-
cias do educando para construir o conhecimento matemático pretendido.
Dessa forma, faz-se importante que sejam consideradas as particula-
ridades do sujeito envolvido no processo de ensino/aprendizagem. No
contexto focalizado neste trabalho, utilizamos o conhecimento e as práti-
cas matemáticas que os membros dos EES trazem nas suas bagagens de
vida e das práticas de seu cotidiano de trabalho para desenvolver as inter-
venções pedagógicas, que foram planejadas de acordo com o que é
pertinente a realidade desses grupos, de forma a contribuir com a auto-
gestão do EES.
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 241

Como forma de se realizar um trabalho educativo nessa direção e


ainda aliado ao que já foi exposto, empregamos também a abordagem de
RP, uma vez que o processo de ensino e aprendizagem se inicia por meio
de um ou mais problemas contextualizados e que emergem da realidade
do grupo.

Resolução de Problemas

De acordo com Allevato e Onuchic (2014), podemos identificar três


abordagens para a utilização da RP no processo de ensino e aprendizagem
de matemática, a saber: i) o ensino sobre RP busca orientar o aluno/apren-
diz para os conhecimentos de técnicas e habilidades de como resolver um
problema; ii) o ensino para RP, que considera a matemática como utilitária
na resolução de problemas advindos de outras ciências, isto é, aprende-se
matemática com um fim em resolver problemas e, embora o aprendizado
de matemática seja de grande importância, não é o primordial nessa abor-
dagem; e iii) o ensino de matemática através da RP, o termo “através” tem
sentido de ao longo, ou seja, essa abordagem trata do ensino e aprendiza-
gem de matemática ao longo da resolução de um problema, nela o
problema (ou um conjunto de problemas) é o ponto de partida para que
sejam construídos os conhecimentos matemáticos. Em nossa pesquisa e
atuação pedagógica em matemática junto aos EES nós assumimos esta úl-
tima abordagem de RP.
Segundo essas autoras, um problema pode ser entendido como
aquilo que não se sabe fazer, mas pretende-se consegui-lo e pode ser visto
como um ponto de partida para se ensinar matemática, isto é, algo que
não seja sabido pelos alunos, mas que desperte o interesse de ser apren-
dido (ONUCHIC; ALLEVATO, 2004). Ademais, entendemos, tal como
coloca Ponte (2003), que tanto problemas como exercícios são tarefas fe-
chadas (ou seja, levam a um único resultado), mas um exercício é diferente
de um problema, pois sua resolução é de caráter fácil, ou seja, exige apenas
a aplicação direta e imediata de conceitos. Já um problema requer para sua
242 | Educação Matemática e Diversidade(s)

resolução que sejam mobilizados diferentes conceitos e habilidades de


forma não imediata.
Adotamos a metodologia de ensino através da RP que visa a partir de
um problema (ou conjunto de problemas) desenvolver os conceitos e pro-
cedimentos de um conteúdo matemático, em um movimento que vai do
concreto (que é o problema) para o abstrato (que se refere propriamente
ao conteúdo matemático). É uma metodologia significativa, pois faz com
que o aluno relacione os conceitos matemáticos com as aplicações desses,
dando sentido ao aprendizado dos conceitos. Além disso, o aluno desmis-
tifica a matemática, pois consegue, a partir dela, resolver um problema,
gerando confiança e motivação para o aprendizado dessa disciplina
(ONUCHIC; ALLEVATO, 2004). O objetivo de se ensinar através da RP é
que esse tipo de ensino pode ajudar o aluno/aprendiz a compreender que
os conceitos e as técnicas matemáticas são necessários em diversas situa-
ções (ONUCHIC, 1999).
Além de utilizarmos a metodologia de ensino através da RP nas atu-
ações do grupo EduMatEcoSol junto aos EES, também a usamos como
metodologia para a produção dos materiais didáticos; no entanto ela foi
emprega considerando concomitantemente os princípios da Etnomatemá-
tica, como será melhor descrito no que segue.

Metodologia geral da pesquisa e aspectos da metodologia de ensino


empregada na elaboração dos materiais didáticos

As pesquisas do grupo EduMatEcoSol seguem uma abordagem qua-


litativa, que tem como características o ambiente natural para a produção
dos dados, que são preponderantemente descritivos, notando-se maior
preocupação com o percurso da pesquisa e não com os resultados
(BOGDAN; BIKLEN, 2004).
Enquadra-se, ainda, na metodologia de pesquisa-ação (THIOLLENT,
1986) que tem por objetivo permitir uma maior interação entre pesquisa-
dor e sujeito, tendo como um dos seus principais pressupostos a
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 243

transformação social do grupo pesquisado e a solução de problemas ine-


rentes ao grupo. Além disso, a pesquisa-ação contribui em termos de
conhecimento científico e entre os objetivos alcançáveis dessas metodolo-
gias estão: produção de guias ou regras práticas para resolução dos
problemas; ensinamentos positivos ou negativos quanto à conduta da
ação; possíveis generalizações estabelecidas para situações semelhantes.
Nesse contexto a metodologia foi utilizada observando-se as princi-
pais dificuldades dos membros dos EES quanto à utilização da matemática
em seus cotidianos de trabalho, o que caracteriza um problema do grupo
e, portanto, buscamos proporcionar aos grupos um aprendizado significa-
tivo por meio de intervenções pedagógicas de ensino de matemática. Além
disso, a partir da sistematização das intervenções realizadas é que os ma-
teriais didáticos foram elaborados, de acordo com os pressupostos da
pesquisa-ação no que se refere à produção de guias para a resolução dos
problemas.
As intervenções pedagógicas propostas pelo grupo EduMatEcoSol,
têm sempre como ponto de partida, para se iniciar um processo de ensino
e aprendizagem, um problema relacionado às práticas matemáticas inse-
ridas na cadeia produtiva de um EES (nesse sentido são considerados os
pressupostos da Etnomatemática).
Um exemplo de problema seria: “Uma determinada cooperativa de
produção de sabão caseiro precisa realizar uma encomenda de 10 caixas
de sabão e os trabalhadores da cooperativa sabem que conseguem produ-
zir duas caixas em um dia. Então, quantos dias seriam necessários para
realizar a encomenda?”
Nesse caso, seguindo a metodologia de RP, a partir deste problema
inicial (exemplificado), oficinas pedagógicas poderiam ser realizadas com
o objetivo de se ensinar o conteúdo de razão e proporção para que mem-
bros do EES até que esses cheguem à conclusão que com cinco dias é
possível entregar tal encomenda. Ainda de acordo com esta metodologia
de RP seria incentivado que se formassem grupos, que os mesmos se de-
bruçassem em resolver este problema podendo consultar materiais tais
244 | Educação Matemática e Diversidade(s)

como o que aqui focalizados, ou mesmo solicitando o auxílio do educador.


Depois ter-se-ia um momento de apresentação e discussão das soluções de
maneira a se chegarem por si próprios, num processo de construção de
conhecimento, à resolução do problema apresentado e, por fim, seria feita
a sistematização do conceito por parte do educador.
Durante este processo é necessário que sejam respeitadas as práticas
matemáticas próprias desse grupo (que são elementos da Etnomatemática
do mesmo), por exemplo, tal como destacado em (SHINKAWA;
MENEGHETTI, 2013) a medida utilizada para que o sabão saia sempre
igual, no caso de um empreendimento de sabão caseiro, não era uma me-
dida padrão convencional como centímetros por exemplo, mas sim a
medida de uma caixa de leite. Nesse sentido, o grupo EduMatEcoSol, como
diretriz metodológica, busca aliar os princípios teóricos da Etnomatemá-
tica com a RP nas intervenções pedagógicas propostas junto ao EES que
acompanha em suas pesquisas. E os materiais didáticos focalizados nesse
trabalho tem como intuito sistematizar tais intervenções, ou seja, utilizar
as mesmas bases teóricas e metodológicas das intervenções pedagógicas;
e disponibilizar tais materiais como guias ou regras práticas visando con-
solidar a superação de dificuldades do grupo, tal como preconizado na
pesquisa-ação.
A título de ilustração, no que segue, apresentaremos o processo de
elaboração de materiais didáticos advindos da sistematização das inter-
venções realizadas com um dos EES, a saber, um Banco comunitário (BC).

Sobre o processo de elaboração de materiais didáticos para o caso do


BC

O BC (aqui não identificado por seu nome real), no qual algumas in-
tervenções pedagógicas foram focalizadas em Meneghetti e Barrofaldi
(2015), era, em tal ocasião, constituído por três mulheres residentes em
um bairro carente da cidade de São Carlos, estado de São Paulo, Brasil.
Tais integrantes saíram da escola há muito tempo e possuíam graus de
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 245

escolaridade diferentes (ensino médio completo há bastante tempo ou in-


completo) e foram beneficiárias das intervenções pedagógicas de
matemática realizadas pelo grupo EduMatEcoSol. Este banco tem poten-
cial para apoiar e promover o desenvolvimento de outros EES localizados
em sua região de atuação, além de estimular a economia do bairro, fomen-
tando outras iniciativas, tais como: feira de trocas, feira do bairro em que
está localizado o BC, empréstimos produtivos e outras linhas de crédito.
Neste banco são utilizadas planilhas de empréstimo como ferramenta de
controle de fluxos de capital e o correto uso deste instrumento requer co-
nhecimentos matemáticos.
O projeto de acompanhamento do BC teve início em agosto de 2013,
por meio da elaboração de um diagnóstico inicial referente aos conteúdos
matemáticos necessários no cotidiano de suas integrantes. Para isso, em
um primeiro momento, foi realizada uma pesquisa de campo, através da
qual foram levantados dados específicos do grupo (por meio de observa-
ções participantes e entrevistas) a fim de diagnosticar e compreender as
dificuldades enfrentadas pelas integrantes do BC acerca dos conhecimen-
tos matemáticos inerentes aos seus cotidianos de trabalho
(MENEGHETTI; BARROFALDI, 2015).
Essas autoras concluem que a maior dificuldade que as integrantes
enfrentavam era com relação à utilização e preenchimento de planilhas de
análise e controle de crédito produtivo. Tal planilha possuía campos em
que era possível preencher os dados de um EES, tais como gastos e ganhos
familiares, gastos com o empreendimento, compra de matéria-prima, va-
lor de venda das mercadorias, média de venda mensal, lucros, etc.
Posteriormente, esses dados eram utilizados para efetuar alguns cálculos,
resultando em uma análise para a concessão do crédito ao EES ou pessoa
física que o solicitou. Meneghetti e Barrofaldi (2015) observaram que exis-
tia grande dificuldade no manuseio de tal planilha pelas integrantes do
banco quanto aos conceitos matemáticos (operações básicas com números
decimais, cálculo de médias, razões e proporções, conversões de unidades
de medida, cálculo de porcentagens e juros simples) utilizados durante os
246 | Educação Matemática e Diversidade(s)

cálculos acima citados. Com intuito de sanar essas dificuldades, foram ofe-
recidas a esse EES oficinas pedagógicas com o propósito de trabalhar os
conceitos matemáticos que compunham as planilhas de análise e controle
de crédito produtivo, favorecendo também o processo de tomada de deci-
sões.
Posteriormente, as autoras constataram também que, para a análise
de empréstimo, as integrantes do banco também precisavam analisar todo
o ciclo produtivo do empreendimento que desejava realizá-lo e uma das
dificuldades nesse contexto foi o processo de precificação dos produtos dos
empreendimentos. Então, algumas práticas educativas de matemática fo-
caram também essas necessidades.
Atualmente, o BC tem apoiado a feira de bairro, da qual participam
diversos EES de moradores locais, e o grupo EduMatEcoSol começou a
atuar junto a essa iniciativa. O material didático, em forma de apostila,
confeccionado para este EES foi pensado com base nos conteúdos mate-
máticos relacionados às dificuldades de análise de crédito para
empréstimos, ao processo de precificação de determinado produto e ao
processo produtivo dos EES que constituem a feira, a saber,4: Sistema de
Numeração Decimal; Adição e Uso da Calculadora; Subtração; Multiplica-
ção; Divisão; Razão e Proporção; Precificação; Porcentagem; Matemática
Financeira.
Em tal material, esses conteúdos foram apresentados utilizando a
metodologia de ensino e aprendizagem através da RP, no qual primeiro se
apresentou um problema do cotidiano do BC e a partir da resolução deste
foram abordados os conceitos matemáticos envolvidos. Abaixo, apresen-
tamos um exemplo dessa abordagem, recorte do material elaborado:
O problema abaixo exemplifica como foi tratado na apostila o conte-
údo de multiplicação. Tal conteúdo se refere ao contexto de uma

4
A produção deste material tem em sua autoria além dos autores deste trabalho, a aluna Rita de Cássia Zacheo Bar-
rofaldi (que atuou junto a este banco em projeto de iniciação científica, durante o período de Março de 2013 a Julho
de 2014) e também contamos com o auxílio de outra integrante do grupo, a aluna Bruna Gargarella, que na época
era membro do grupo, mas atuava junto a outro EES.
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 247

cooperativa de fabricação de produtos de limpeza, um EES que é assistido


pelo BC.
Quadro 01: Problema 01 BC
Problema: Se a cooperativa de limpeza produz 2 litros de sabão líquido em um dia, considerando que é produzida
a mesma quantidade de sabão por dia, quantos litros de sabão serão produzidos pela cooperativa em 8 dias?
Resolução: Como são produzidos 2 litros de sabão em um dia, em dois dias serão 2+2 = 4 litros, com o mesmo
raciocínio teremos em oito dias:
2+2+2+2+2+2+2+2 = 16
Ou seja, em 8 dias são produzidos 16 litros de sabão líquido. Mas, existe uma forma mais simples de resolver o
problema acima? A resposta é sim. Fazer uma soma com parcelas iguais é o que chamamos de multiplicação,
representada pelo símbolo “x”. Assim:
2+2+2+2+2+2+2+2
pode ser representado por 8 x 2 = 16.
Ou
8 Fator
X 2 Fator
16 Produto
Os números 8 e 2 são chamados de fatores e o número 16 é chamado de produto
Fonte: Oliveira Filho; Barrofaldi; Gargarella; Meneghetti, 2018.

Esse problema teve como principal objetivo apresentar a definição de


multiplicação e, para isso, foi utilizado o contexto desta cooperativa de fa-
bricação de produtos de limpeza. Além de apresentar essa definição, o
problema tem um contexto interessante, já que tal cooperativa pode se
deparar com uma situação em que se precisa saber quantos dias o EES
levará para entregar uma encomenda. Situações semelhantes podem tam-
bém fazer parte do contexto de outros EES.
Abaixo segue um problema no qual é discutido o conceito de porcen-
tagem, muito utilizado no cotidiano do trabalho do BC além dos conceitos
de acréscimo e de desconto, conhecimentos estes pertinentes às questões
financeiras de um banco, ou seja, que são próprias da Etnomatemática do
grupo.
Quadro 02: Problema 02 BC
Problema: O custo do aluguel de um EES aumentou 18% este mês. Considerando que o valor do aluguel, antes
do aumento era de R$ 300,00, qual deverá ser o novo valor destinado para o pagamento desse aluguel?
Resolução: Primeiro, devemos saber que um acréscimo ou aumento é o valor inicial somado a uma porcenta-
gem desse valor e que o desconto é uma porcentagem do valor inicial subtraída desse valor.
18% (dezoito por cento) de um valor nada mais é do que a razão 18/100 ou 0,18. Sendo assim, 18% são 18 partes
em 100 de alguma coisa ou valor. No nosso problema o aluguel de R$300,00 teve um aumento de 18%, portanto
teremos que calcular 18% de R$300,00 mais R$300,00 (valor inicial). Vamos à resolução do problema:
248 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Inicialmente, vejamos quanto é 18 % do valor do aluguel antes do aumento, ou seja, 18% de 300 reais, o que é
equivalente a:
18
× 300
100
Fazendo os cálculos da multiplicação e da divisão, temos: 0,18 × 300 = 54.
Daí, concluímos que, o aumento no aluguel foi de R$ 54,00.
Assim, o novo valor destinado ao pagamento do aluguel do EES é 300+54=
354. Portanto, o valor do aluguel passou a ser R$ 354,00.
Fonte: Oliveira Filho; Barrofaldi; Gargarella; Meneghetti, 2018.

Nesse sentido, é pretendida na nossa pesquisa a inclusão social dos


membros dos EES por meio da Educação Matemática, considerando as
particularidades do trabalho dos adultos que os compõem. Assim, propo-
mos um ensino que busque a emancipação dessas pessoas, caminhando
para a autogestão do empreendimento, que é uma das características da
ES. Tal ensino deve ocorrer de forma contextualizada utilizando, para
tanto, elementos da Etnomatemática do grupo, isto é, levando em conta as
particularidades matemáticas desse grupo e de seus fazeres matemáticos
cotidianos. Em termos de metodologia de ensino isso foi concretizado atra-
vés da RP.
Enfatizamos mais uma vez que o material didático proposto foi de-
senvolvido de forma a utilizar situações-problema do cotidiano dos EES
com uma abordagem contextualizada, que vai ao encontro de uma possi-
bilidade de aprendizagem significativa e ao indicado para a EJA.
Os materiais elaborados pelo grupo EduMatEcoSol até o presente
momento focalizaram o EES ilustrado neste artigo e um outro EES que
tem como ocupação a produção de artesanato a partir da reciclagem. Ver-
sões físicas de tais materiais foram disponibilizadas para uso interno dos
referidos EES; para divulgação e consulta junto à biblioteca do Instituto de
Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo,
campus de São Carlos, no Laboratório de Ensino de Matemática (LEM) do
mesmo instituto e na biblioteca do NuMI-EcoSol. Versões digitais estão
disponibilizadas no site do LEM/ICMC5.

5
Site do Laboratório de Ensino de Matemática do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação:
<http://lem.icmc.usp.br/Producoes/Index>.
Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 249

Considerações Finais

Este artigo teve por objetivo apresentar uma proposta de diretrizes


teóricas e metodológicas para o desenvolvimento de materiais didáticos de
apoio a práticas educativas de matemática para a educação de adultos no
contexto da Economia Solidária ou em contextos similares. As diretrizes
teóricas dizem respeito ao próprio referencial teórico que dá suporte a esta
investigação, o qual considera aspectos da ES, da Etnomatemática, da RP
e da EJA. No que concerne às diretrizes metodológicas para elaboração dos
materiais propriamente ditos, as mesmas se referem à utilização da meto-
dologia de RP acoplada aos princípios da Etnomatemática neste contexto,
uma vez que toda atividade se inicia através de situações-problema con-
textualizadas à realidade de cada EES. Além disso, a produção de tais
materiais didáticos visou sistematizar as atuações do grupo EduMatEcoSol
junto a EES, o que é também considerado como parte da metodologia de
pesquisa-ação, que enfatiza a importância da criação de guias ou regras
práticas para que seja consolidada superações de dificuldades do grupo
pesquisado.
No processo de elaboração dos materiais didáticos consideramos,
num primeiro momento, princípios da Etnomatemática e da ES, já que
buscamos garantir que os princípios econômicos próprios da cultura dos
EES fossem respeitados, isto é, a Etnomatemática teve como finalidade
compreender as maneiras próprias de como a ES realiza práticas de com-
parar, classificar, quantificar, medir, explicar e generalizar. Ademais,
levamos em conta as dificuldades relacionadas à matemática dos membros
destes EES, para isso, foi utilizada preponderantemente a metodologia de
ensino através da RP, porém desenvolvida a partir de problemas do con-
texto de trabalho dos EES, com o intuito de fazer com que seus membros
pudessem dar significado aos conceitos e procedimentos matemáticos en-
volvidos e perceber aplicação dos mesmos em suas realidades. Além disso,
a utilização de situações-problema contextualizadas advindas do cotidiano
de trabalho do EES está de acordo com o que preconiza a EJA, auxiliando
250 | Educação Matemática e Diversidade(s)

na aprendizagem dessas pessoas, que percebem a aplicação do conteúdo


matemático em problemas úteis em seus cotidianos.
No âmbito da ES buscamos também colaborar com a autogestão dos
EES, uma vez que com tais práticas essas pessoas adquirem maior auto-
nomia no uso de conhecimentos matemáticos necessários nos processos
produtivos desses empreendimentos. Os materiais didáticos focalizados
neste trabalho sistematizam tais práticas e podem servir de consulta para
apoiar atividades inerentes à cadeia produtiva dos EES e também como
objeto de aprendizagem para futuros membros dos EES.
Desta forma, compreendemos que o direcionamento do grupo Edu-
MatEcoSol de aliar, em suas intervenções pedagógicas no contexto da ES
e da EJA, a metodologia de RP aos princípios da Etnomatemática tem se
mostrado bastante eficiente tanto no que diz respeito ao ensino e aprendi-
zagem de matemática quanto na direção de contribuir de forma
significativa no fortalecimento dos pilares da ES, principalmente no que se
refere à autogestão, como podemos ver em (MENEGHETTI;
BARROFALDI, 2015; MENEGHETTI, 2013), e à cooperação
(MENEGHETTI; OLIVEIRA FILHO, 2019).
Ademais, entendemos que tais materiais poderão inspirar e/ou res-
paldar outras práticas educativas de matemática em contextos culturais
que tenham alguma similaridade com os tratados neste trabalho.
Agradecimentos: à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
da Universidade de São Paulo e ao Santander (2o edital: de Fomento às
Iniciativas de Cultura e Extensão); Pró-Reitoria de Graduação (Programa
Unificado de Bolsas de Estudo para Apoio e Formação de Estudantes de
Graduação).

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Renata Cristina Geromel Meneghetti; Edinei de Oliveira Filho | 251

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2002.

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez: Autores Associados,


1986.
13

Perspectiva inclusiva a partir do olhar de uma professora


de escola regular na qual convivem as diferenças

Sofia Seixas Takinaga 1


Ana Lúcia Manrique 2

Introdução

No cenário educacional atual, no qual se instaura desafios referentes


à realidade inclusiva, o conceito de diversidade está fortemente enraizado.
Promover um avanço nesta direção implica em uma ressignificação das
concepções acerca de uma educação para todos em uma perspectiva inclu-
siva.
Sabemos que este processo demanda o envolvimento de diferentes
agentes que atuam na esfera educacional ou em sua periferia, seria uma
tarefa complexa contemplar todos os envolvidos neste cenário, diríamos
até uma ousadia dada à dimensão social acerca da repercussão deste tema.
Com a intenção de tecermos reflexões pontuais que permitam desen-
cadear questões mais abrangentes, escolhemos voltar o nosso olhar para
o papel desempenhado por professores em promover a aprendizagem de
todos os alunos a partir do princípio da diversidade.

1
Mestra em Educação Matemática e doutoranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação Matemática
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua como professora da Educação Básica em escola
particular. São Paulo, São Paulo, Brasil. [email protected]
2
Doutora em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora no Pro-
grama de Estudos Pós-graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP). São Paulo, São Paulo, Brasil. [email protected].
254 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Justificamos o trabalho do professor como decisivo no ensino inclu-


sivo, o que requer um olhar crítico para sua qualificação, atitudes e
habilidades sociais frente à inclusão. Além dos conteúdos acadêmicos, os
professores estão imersos em atribuições, as quais “demandam práticas e
formas de se relacionar diversas, que se ancoram em fatores culturais, ét-
nicos, morais, sociais e relativos à diversidade” (FERREIRA; VIANA;
MANRIQUE, 2019, p. 52).
Neste sentido, o presente capítulo tem como objetivo promover dis-
cussões acerca dos elementos que caracterizam uma perspectiva inclusiva
a partir do olhar de uma professora de matemática de escola regular na
qual convivem, além dos alunos típicos, alunos com Transtorno do Espec-
tro Autista (TEA).
Para alcançarmos este objetivo, julgamos necessário dedicarmos um
tópico deste capítulo para apresentarmos as concepções por nós adotadas
de educação matemática na perspectiva inclusiva que irá fomentar nossas
análises e servirão de lente para identificarmos, a partir do olhar da pro-
fessora, os elementos consonantes com esta compreensão.
Prosseguimos com a apresentação de parte dos dados coletados no
âmbito da pesquisa de Takinaga (2015) em que consta a entrevista, cedida
pela professora, por meio da qual faremos nossas análises.
Julgamos importante destacar que não é nosso foco de discussão a
problemática do aluno com TEA em escola regular, mas sim imersos neste
cenário, buscar compreender a partir do relato da professora elementos
que caracterizem, com base nas concepções apresentadas, sua prática pe-
rante a condição de atuar como professora em ambiente onde convivem
as diferenças.
Por fim, encerramos com nossas considerações, cuja intenção não é
esgotar o tema, mas propor reflexões e avanços para um campo que ainda
demanda pesquisas e propostas que orientem práticas didático-pedagógi-
cas, legais e institucionais que suplantem o direito ao acesso, a
permanência e a participação de todos no ambiente escolar (MANRIQUE;
MOREIRA, 2018).
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 255

Educação matemática na perspectiva inclusiva

Tecer reflexões acerca da educação matemática na perspectiva inclu-


siva requer como ponto de partida um debruçar sobre o entendimento de
sua conceituação atual. Com esta intenção, nos apoiamos em um estudo
conduzido por Viana e Manrique (2018) cujo objetivo foi definir a atual
concepção de educação matemática na perspectiva inclusiva a partir do
movimento de educação inclusiva, historicamente consolidado no sistema
educacional brasileiro a partir do modelo educacional de integração, onde
identificou duas concepções: uma entendida a partir de propostas divul-
gadas na década de 1990 e a outra gerada por pesquisas investigadas pelos
autores e reflexões adotadas na atual conjuntura do sistema educacional.
Para os autores, a primeira concepção de educação matemática na
perspectiva inclusiva é constituída com base no princípio de normalização
consolidada a partir de práticas integracionistas. A este princípio está atre-
lada a ideia de permitir que a pessoa com deficiência possa dispor de
condições de vida o mais próximo possível das de pessoas comuns.
Nesta primeira concepção, a educação matemática na perspectiva in-
clusiva, como campo de pesquisa, se ocupa em promover a normalização
de elementos por meio de adaptações e adequações que permitam o acesso
de estudantes com necessidades específicas ao contexto educacional.

Os estudantes que não necessitam de tal adaptação curricular, estão enqua-


drados em nossa análise, no que denominamos como o campo da
normalidade. Já aqueles que apresentam necessidades específicas no contexto
educacional acessam um currículo adaptado, ou seja, que passou por um pro-
cesso de normalização. (VIANA; MANRIQUE, 2018, p. 659).

Compreendemos que tal concepção, em um primeiro momento,


atenderia o propósito emergente de recepcionar àqueles alunos cujas ca-
racterísticas particulares não se enquadrariam aos padrões pré-
estabelecidos pelo ambiente escolar. Na prática não havia a intenção em se
reestruturar o sistema escolar para atender a esta nova demanda, e sim,
256 | Educação Matemática e Diversidade(s)

criar uma via de acesso para estes estudantes se ‘integrarem’ a um con-


texto já consolidado.
De forma análoga, segundo Mittler e Mittler (2001), integração, como
entendida tradicionalmente,

[...] envolve a preparação da criança para que ela possa se adaptar acadêmica
e socialmente a um ambiente com crianças normais, mas sem pressupor que
deva haver qualquer mudança na organização ou no currículo da escola. Para
ser integrado com sucesso, espera-se que o aluno se adapte à escola, em vez
de a escola se adaptar a ele. (MITTLER; MITTLER, 2001, p. 60).

De acordo com Omote (1999), na medida em que a integração não


avançou além do plano de discussões e intenções, em algumas situações, e
as tentativas de estabelecimento de políticas integracionistas resultaram
em ações equivocadas, em outras situações, assim, o próprio conceito de
integração passou a ser revisto criticamente.

Algumas dessas análises criticam o fato de o conceito de integração supor a


existência preliminar do seu oposto, a segregação, e de a ação integracionista
confundir-se com a mera colocação ou, na melhor das hipóteses, direcionar o
foco de atenção ao deficiente e capacitá-lo a enfrentar as demandas do meio
ao qual se pretende integrar. (OMOTE, 1999, p. 8-9).

Nesta perspectiva, uma educação integracionista se mostra oposta a


ideia de uma educação inclusiva, já que esta última tem como pressuposto
de que todos os alunos frequentem as salas do ensino regular e tenham
acesso às mesmas oportunidades de aprendizagem e participação, diferen-
ciando apenas as estratégias didático-pedagógicas que possibilitem acessar
um mesmo currículo.
É neste sentido que Viana e Manrique (2018) assinalam um despon-
tar para uma nova concepção que aos poucos está substituindo a anterior,
uma tendência para o surgimento da segunda concepção de educação ma-
temática na perspectiva inclusiva. Nesta concepção, de acordo com os
autores, a educação matemática na perspectiva inclusiva passa de uma via
de acesso a alguns estudantes, “para uma perspectiva da educação
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 257

matemática para viabilizar a construção do conhecimento por todos os es-


tudantes, considerando que cada um tem especificidades dignas de
atenção em meio à diversidade humana”. (VIANA; MANRIQUE, 2018, p.
662).
Identificamos nesta segunda concepção um avanço ao considerar
cada aluno, não só os alunos classificados como público-alvo da educação
inclusiva, como um ser individual, com características próprias, quando o
grande desafio se volta para a necessidade de mudança no ambiente e não
mais no aluno, indicando assim, uma tendência para a construção de uma
educação voltada a uma perspectiva inclusiva.
Desta forma, julgamos importante explicitar dois aspectos, por nós
adotados, referentes às duas concepções que nos serviram para nossas
análises: o primeiro voltado à adaptação e adequação de recurso para que
alunos com necessidades específicas tenham acesso a uma estrutura edu-
cacional já consolidada; e o segundo preocupado com a adequação de
estratégias e ambientes de aprendizagem para atender as particularidades
determinadas pela diversidade dos alunos.
Apoiadas nas duas concepções, as quais por hora adotamos como re-
ferenciais para identificarmos os elementos que caracterizam uma
perspectiva inclusiva a partir do olhar de uma professora de matemática
de sala regular, pretendemos atingir o objetivo traçado para este capítulo.

A entrevista

Para identificarmos elementos consonantes com a concepção atual de


educação matemática na perspectiva inclusiva por nós adotada, em um
contexto de diferenças, colocamos em discussão parte da entrevista cedida
no âmbito da pesquisa de mestrado de Takinaga (2015), por uma profes-
sora de matemática de escola particular de ensino regular, localizada na
Zona Oeste de São Paulo, onde são oferecidas as modalidades de ensino
desde o ensino infantil.
258 | Educação Matemática e Diversidade(s)

A professora em questão concluiu o curso normal superior3, sua for-


mação profissional4foi voltada para a área de didática, com bases
construtivistas. Durante um período atuou como professora de educação
infantil, posteriormente do ensino fundamental I, quando num dado mo-
mento decidiu contribuir para a educação de crianças que demandam de
uma atenção maior. Na ocasião da entrevista, a professora estava à frente
de um projeto de educação inclusiva voltado ao atendimento a estes alu-
nos, aos seus familiares e aos profissionais envolvidos.
Sua participação na pesquisa de Takinaga (2015) se deu pelo fato de
na época a professora estar envolvida no ensino de habilidades matemáti-
cas de um aluno com o diagnóstico de TEA matriculado no 3° ano do
Ensino Médio na instituição onde ela atuava.
Passamos, então, para a análise de parte da entrevista cedida pela
professora, onde procuramos destacar, por meio de seu relato, aspectos
consonantes com as concepções por nós adotadas como categorias.
Em relação à primeira questão, procuramos identificar qual conteúdo
matemático estava sendo trabalhado com o aluno o qual possibilitaria inves-
tigarmos, posteriormente, as estratégias didático-pedagógicas adotadas pela
professora para o desenvolvimento de habilidades e competências a serem
desenvolvidas pelo aluno no contexto do saber matemático abordado.

Questão 1

Pesquisadora: Qual conteúdo matemático é trabalhado?

Professora: [...] O conteúdo que nós trabalhamos com esse aluno, nós supomos que
seja o mesmo que estivermos trabalhando com outros alunos. A partir do que eu
conheço dele, da trajetória dele na matemática [...].

3
Curso superior de graduação com a finalidade de formar professores aptos a lecionar na Educação Infantil e nos
anos iniciais do Ensino Fundamental. Em 2006 o Ministério da Educação (MEC) extinguiu esta modalidade de for-
mação substituindo-a pela formação em Licenciatura em Pedagogia. A Resolução CNE/CP Nº 1, de 15 de maio de
2006, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura.
4
Dedica-se às questões da escola inclusiva, assumindo a coordenação do Núcleo de Práticas Inclusivas de uma escola
privada de São Paulo, atuando, ao mesmo tempo, como formadora de educadores nesta área em São Paulo e diversas
cidades e estados do Brasil.
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 259

A resposta da professora, para a primeira questão, revela que o con-


teúdo trabalhado com o aluno com autismo mantém conexão com os
conteúdos conceituais normativos explorados por todos os alunos em sala
de aula, mas selecionados a partir dos conhecimentos prévios do aluno,
com base em sua trajetória em relação ao saber matemático e respeitando
suas singularidades.
Desse modo, consideramos a resposta da professora adequada à se-
gunda concepção, quando ela afirma que o mesmo conteúdo é trabalhado
por todos, havendo um distanciamento da ideia de adaptação ou adequa-
ção curricular. Ao contrário, identificamos como intenção da professora
oferecer acesso a um mesmo conteúdo por todos os alunos e, ao mesmo
tempo, atender às necessidades de cada um.
Neste sentido, a postura da professora revela seu foco na equidade,
aspecto destacado por Viana e Manrique (2018, p. 657), como sendo ca-
racterístico de uma atual perspectiva inclusiva, ou seja, “O reconhecimento
das diferentes necessidades existentes em um determinado grupo de estu-
dantes é atualmente o que se deve inicialmente considerar no
planejamento pedagógico, tanto no âmbito da sala de aula como no âmbito
da comunidade escolar”.
Na segunda questão, procuramos reconhecer quais recursos foram
empregados pela professora para atingir o objetivo de desenvolver o co-
nhecimento matemático requerido, incluindo recursos técnicos,
tecnológicos ou materiais especializados.

Questão 2

Pesquisadora: Que tipo de material é utilizado?

Professora: O mesmo material que as outras crianças, não têm nenhum material
específico, são atividades que preparamos, nunca a partir do tipo de deficiência ou
questão que esse aluno apresenta, mas sempre a partir do que ele já sabe, assim como
todas as crianças [...].
260 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Em referência à segunda questão, a resposta da professora revela não


haver a necessidade de prover nenhum recurso específico para o aluno por
ela acompanhado. Voltamos nossa atenção ao fato de a professora destacar
que as atividades nunca são concebidas e/ou planejadas a partir da defici-
ência do aluno, mas a partir de suas potencialidades.
Nesse aspecto, a professora ao pautar seu planejamento no que o
aluno já sabe, em suas potencialidades, em detrimento à sua deficiência,
acaba por ressaltar as possibilidades de seu desenvolvimento e não suas
incapacidades.
Entendemos ser esta percepção da professora condizente com a se-
gunda concepção, uma vez que Viana e Manrique (2018, p. 664) afirmam:
“Atualmente, é necessária uma atenção da educação matemática para o
estudante na sua integralidade, observando não apenas suas necessidades,
mas também as suas potencialidades”.
Na terceira questão, nos interessou identificar a existência de uma
fundamentação metodológica norteadora do trabalho da professora com o
aluno com TEA, que nos possibilitaria uma melhor compreensão de suas
escolhas didático-pedagógicas.

Questão 3

Pesquisadora: A atividade foi desenvolvida com base em alguma metodologia?

Professora: Aqui é uma escola socioconstrutivista e é isso que tentamos para todos.
Para nós todo sujeito é dono de uma ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal), é
dono de um processo de porte de conhecimento singular e alguns deles mostram um
caminho muito singular. É um caminho que assim como os outros temos que perse-
guir, partilhar de algumas certezas que ele tem para desafiá-lo para entrar em
situação de desequilíbrio, é isso que fazemos com ele, assim como fazemos com todos.

A resposta da professora retrata, pelo fato de pautar a sua prática em


fundamentos teóricos socioconstrutivistas, seu entendimento de que a
aprendizagem e o desenvolvimento do aluno são frutos da interação social,
sendo o conhecimento adquirido por meio das relações interpessoais.
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 261

Podemos de forma análoga considerar este aspecto consoante com o


que afirma Viana e Manrique (2018, p. 661), “uma possibilidade diante da
diversidade em uma sala de aula de matemática, é entendermos as salas
de aula como comunidades de aprendizes [...]”. Segundo o autor essa pos-
sibilidade se constitui por meio de três aspectos, “(1) foco na aprendizagem
intencional, (2) alunos aprendendo uns com os outros e ajudando uns aos
outros e (3) alunos motivados a aprenderem consigo mesmos, fazendo es-
colhas e sendo responsáveis”.
O segundo aspecto, destacado por Manrique e Viana (2018, p.661),
como “essencial para que a educação matemática na perspectiva inclusiva
se consolide na atual conjuntura educacional do nosso país, tendo em vista
a diversidade facilmente observada entre os estudantes”, entendemos es-
tar de acordo com as escolhas teórico-metodológicas que orientam a
prática da professora.
O intuito da quarta questão foi o de verificar se as escolhas didático-
pedagógicas da professora, para elaboração e/ou planejamento das ativi-
dades, eram pautadas em pressupostos relacionados às especificidades de
alunos com autismo.

Questão 4

Pesquisadora: Existe alguma exigência que deverá ser seguida para a elaboração de
uma atividade para alunos com autismo?

Professora: Especificamente com autismo não, o aluno com autismo é o aluno que
nós precisamos, bom, todos né, conhecer as portas de entrada que ele oferece para
nós e provocá-lo e elaborar as atividades a partir daí. Acredito que não tenha nada
que se diferencie muito, estamos trabalhando aqui no campo da educação, não no
campo do tratamento.

O ponto que nos chama a atenção, a partir da resposta concedida pela


professora à quarta questão, é quando enfatiza seu posicionamento em re-
lação ao seu campo de atuação como sendo o campo da educação e não o
do tratamento. Esta convicção aponta com clareza uma prática não
262 | Educação Matemática e Diversidade(s)

pautada em estratégias pré-concebidas a partir da deficiência do aluno,


mas sim na busca de novas propostas pedagógicas capazes de atingir o
potencial de cada aluno, possibilitando seu desenvolvimento cognitivo
para o alcance de objetivos maiores.
Neste sentido, problematizamos o posicionamento da professora, por
voltar seu olhar para o campo da educação, como favorável a uma tendên-
cia atual observada no estudo de Viana e Manrique (2018, p. 663), na qual
é necessário “reavaliarmos as atividades, os recursos, os ambientes de
aprendizagem e o planejamento pedagógico de forma a considerar as par-
ticularidades determinadas pela diversidade dos estudantes [...]”.
Procuramos com a quinta questão, identificar aspectos considerados
pela professora como relevantes para sua formação que atendam as de-
mandas exigidas no âmbito da educação inclusiva.

Questão 5

Pesquisadora: Como um profissional da educação pode se preparar para atender


crianças e jovens em idade escolar com autismo?

Professora: Atendendo crianças e jovens em idade escolar com autismo, é o único


jeito. A escola só se prepara, o professor só se prepara – é claro que ele tem que ter
um apoio, talvez aqui na escola esse apoio seja eu. Ele tem que ter uma interlocução
constante com alguém, às vezes nos deparamos com situações difíceis, mas também
nos deparamos com situações difíceis com crianças que não tem autismo, às vezes o
professor tem muito medo, mas eu acredito que professor deva continuar sua for-
mação, fazer um curso de inclusão legal, acho importantíssimo pensar sobre a
inclusão, pensar sobre o autismo, o importante é se informar, mas isso não faz cur-
rículo. A única coisa que eu vejo que forma o professor é a criança na escola. Se as
crianças não invadem a escola o professor não se forma de jeito nenhum, ela tem
sujeitos como alunos e não autistas. Ela tem sujeitos, então tem muitas situações que
vamos receber alunos novos, alguns com quadros mais severos, então é muito comum
a professora perguntar “[...], você não vai me falar sobre esse aluno, o que esse aluno
tem?”. Eu falo, eu não posso esconder nada, eu vou lá e falo, mas eu não falo muito,
não tenho muito diálogo. Posso falar, [...] o diagnóstico, o laudo, [...]. Mas o processo
de formação do professor para atender esses alunos só tem início quando o aluno
entra dentro da sala de aula. Deu uma semana, quinze dias que ele está lá se precisar
de ajuda estou sempre por perto. Dando quinze dias de trabalho com o aluno, de
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 263

contato, aí eu tenho assunto para conversar com ela. Ela vai me falar se o sujeito que
está com ela fala ou não fala, brinca ou não brinca, se sabe escrever, conhece as letras,
ele se alimenta sozinho, tem autonomia para ir ao banheiro. Então terei sobre quem
falar, [...]. Não dá para eu falar sobre um laudo, sobre a família, não. Aí tem início o
processo de formação do professor. [...], um processo de ação, reflexão, ação, mas
tem que começar na ação. Não tem material de trabalho se não começar por aí.

Quanto ao processo de formação de professores para atender alunos


com deficiência, a professora revela em resposta à quinta questão, que o
mesmo tem início na prática que é vivenciada a partir da experiência diária
com estes alunos, o que corrobora para uma visão favorável ao ingresso
do aluno com diferentes especificidades na escola regular.
A resposta da professora ressalta que além das experiências vivenci-
adas na prática, é significativa a participação em cursos voltados a uma
perspectiva inclusiva bem como a interação com outros profissionais es-
pecialistas de forma colaborativa, que por sua vez devem estar pautadas
na adoção de uma postura de ação e reflexão para que tenha início e se
efetive o processo de formação.
Neste sentido, Lima (2016, p.68) observa a importância em se consi-
derar no processo de formação continuada de professores a iniciativa de
propiciar um ambiente no qual “os professores se sintam confortáveis e
confiáveis, para que possam externar seus problemas e práticas com a in-
tenção de fomentar as discussões e promover uma aproximação entre
prática e teoria”.
Viana e Manrique (2018) consideram de grande importância para a
área de educação matemática a continuidade no empreendimento de es-
forços no campo investigativo no sentido do desenvolvimento de práticas
cada vez mais inclusivas, evoluindo na compreensão da construção do co-
nhecimento diante da diversidade humana.
Entendemos aqui, nesta perspectiva, que este convite perpassa a área
de pesquisa e suas contribuições são para além do campo teórico. A adoção
de uma postura crítica reflexiva, acerca desta iniciativa, passa a ser uma
premissa para o processo de formação de professores que se constrói na
sua vivência prática, e tem início, de acordo com a arguição da professora,
264 | Educação Matemática e Diversidade(s)

na ação. Corrobora com esta ideia, o discurso de Comelli e Silva (2018, p.


287-288), quando afirmam, “é preciso investir na formação reflexiva e
continuada, tanto da equipe formadora de professores quanto do corpo
docente”.
Com a sexta questão, buscamos pontuar o significado atribuído pela
professora em relação ao seu papel diante do saber matemático a ser cons-
truído pelo aluno com autismo, por meio da atividade.

Questão 6

Pesquisadora: Descreva o papel que você desempenha ao aplicar uma atividade.

Professora: Papel de professor, acho que temos que ter certa sensibilidade, é impor-
tante conhecermos o aluno em situação de aprendizagem. Se eu tenho um aluno novo
eu vou demorar mais para acessar as zonas de potência dele, para saber como eu
provoco ele, como ele vai responder melhor. Eu tenho que ter uma didática na mão,
tenho que ter, não uma didática terapêutica, [...], pode ser um monte de coisas, mas
eu tenho que me preparar didaticamente, que é a minha missão para ensinar esse
aluno. [...] é um trabalho que você deve saber fazer, a maioria dos professores tem
que saber fazer. Essa é a questão. O professor fala “eu não sei trabalhar com au-
tismo”, “mas você estudou matemática?”, tudo bem, se a pessoa tiver ali uma crise
pode acontecer uma vez ou outra, o outro também tem crise, todo mundo tem crise.
Nós ajudamos, mas o professor tem que entrar em sala de aula seguro do que ele vai
ensinar e de que forma ele irá ensinar. E não qual patologia ou quantos cromossomos
tem, qual tratamento faz que tipo de autismo, é superdotado, para mim essas coisas
não interessam, não interessa, interessa a muita gente, mas a mim não interessa por-
que quero conhecer cada um.

A professora, em relação à sexta questão, define sua atuação como


uma garantia para que seja estabelecida uma relação didática entre o en-
sino e a aprendizagem no decorrer do processo de construção do
conhecimento acerca do saber matemático por parte do aluno.
Pensamos que ao definir o seu papel de atuação perante o aluno a
professora esteja explicitando sua compreensão sobre o que é ‘ser estu-
dante’ partindo de sua concepção. De acordo com Ferreira, Viana e
Manrique (2019, p. 62), a importância desta compreensão irá
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 265

“potencializar os processos pedagógicos e didáticos que subjazem no en-


sino e na aprendizagem do saber matemático”.
Em uma perspectiva inclusiva, a professora afasta qualquer parâme-
tro de comparação entre o aluno com autismo e os outros alunos. Suas
motivações estão pautadas em uma compreensão de que todos os estudan-
tes precisam ser desafiados, respeitando suas diferenças, para que nesta
medida participem de situações criadas pelo professor que promovam in-
terações didáticas favoráveis a construção do conhecimento visado.
Na sétima questão, buscamos identificar como a professora reco-
nhece as contribuições de uma área acadêmica, no caso da matemática,
para o desenvolvimento de habilidades e competências no ambiente esco-
lar e para além dele por parte do aluno.

Questão 7

Pesquisadora: A atividade contribui para o desenvolvimento de habilidades escola-


res do aluno?

Professora: Eu acredito que o fato de nós exigirmos que faça, nós temos uma coisa
que espera por ele, nós esperamos dele que ele aprenda matemática e ele sabe. O fazer,
a ação de fazer a atividade, o obriga a trazer a atividade, a sentar no lugar, a abrir a
mochila, a se comportar, nessa coisa de aprendizagem de determinada forma e não
de outra, a compor um grupo que às vezes esse grupo é pequeno. A função da escola
está muito clara para ele, para ele e para todos. Ele não é diferente, ele não vem à
escola para fazer amigos, nem para socializar, ele vem para aprender e é isso que
coloca ele no mesmo patamar dos outros, é compatível sendo um mesmo objetivo.
Não vai aprender a mesma coisa, ao mesmo tempo ou do mesmo jeito, mas nós temos
aqui que disparar os processos de condução de conhecimento dele. Ele sabe disso e
isso requer procedimentos específicos, atitudes específicas, conhecimentos prévios,
ele sabe que o “sete é sete”, que o “um é um”, que o “sete vem antes do oito”, nos
esforçamos para ele usar isso do melhor jeito possível. Costumo dizer que a primeira
coisa que uma criança autista tem que fazer quando vem para a escola é pendurar
uma lancheira no ombro dele, colocar a blusa da escola, “sou aluno, vou entrar”, isso
acaba sendo muito obscuro para eles, mas são marcas que contribuem para a cons-
trução de um sujeito estudante, vamos dizer. A hora que o outro vê o outro colega,
acaba vendo-o como um aluno. É igual a mim, tem a escola [...] na camiseta, tem a
266 | Educação Matemática e Diversidade(s)

lancheira pendurada, o nome dele está aí no cabideiro, isso faz de um sujeito um


aluno.

No olhar da professora, as exigências perante a relação do estudante


com o conhecimento acadêmico, impostas no ambiente escolar, proporci-
onará uma referência para o aluno no desenvolvimento de suas
habilidades, posturas e competências esperadas para sua convivência e
constituição de sua identidade no ambiente escolar.
Entendemos, em uma perspectiva inclusiva, ao responder a pergunta
sete, a professora compreende que o papel do espaço escolar para todos os
alunos é proporcionar um ambiente de aprendizagem e não primordial-
mente servir de recurso para ampliar o espaço social de interações
pessoais dos mesmos.
Neste sentido, Corbett (2015, prefácio, tradução nossa) orienta, “[...]
chegou a hora de focar em pedagogia e como a comunidade escolar pode
proporcionar um ambiente para todos. É uma preocupação fundamental
para todas as escolas que procuram ser sensível às necessidades de apren-
dizagem”.5
Passamos para a oitava e última questão aqui apresentada, na qual
nossa proposta foi obter um relato da professora que justificaria a relevân-
cia do ensino de matemática para o aluno.

Questão 8:

Pesquisadora: Como você descreve a importância da matemática para o aluno com


autismo?

Professora: Para uns será uma coisa que ele irá precisar o resto da vida, vai usar
muita matemática, vai ser arquiteto, para mim, por exemplo, basta que eu saiba tirar
meu saldo ali e está ótimo. A importância da matemática para todo mundo está ali
no desenvolvimento da capacidade de resolver problemas e para eles isso é muito
importante, resolver problemas, usar os problemas que sabe resolver para resolver
outros mais difíceis, você caminhar em busca de um conhecimento que é um

5 “[...] the time has come for a focus on pedagogy and on how the school community can be a supportive environment
for all. It is a key concern for all schools that seek to be responsive to learning needs.”
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 267

conhecimento, o conhecimento por si só já é importante, acho que para ele é igual


para os outros, nós ainda temos um desafio onde temos que perseverar, ver até onde
ele vai. Nunca podemos falar até onde ele vai, sei lá até onde ele vai, não sei nem até
onde eu vou, não dá pra saber. Mas a matemática é tão importante quanto ciências
naturais, quanto filosofia.

Em sua resposta a professora revela reconhecer o papel da matemá-


tica como promotora da autonomia do aluno, ressaltando a resolução de
problemas como estratégia para o desenvolvimento desta habilidade. O
aumento da complexidade dos problemas apresentados para o aluno é
visto pela professora como estratégia para atingir objetivos sempre mais
desafiadores.
Por meio da resposta da professora, reconhecemos que para ela o co-
nhecimento é um caminho que propicia aos alunos situações de
aprendizagem significativas que culminam no desenvolvimento de habili-
dades e competências à medida que lhe são oportunizadas tais
experiências.
Nesta perspectiva, o professor desempenha um papel ímpar, e con-
cordamos com Corbett (2015, p. 59, tradução nossa) quando afirma: “É
preciso um professor comprometido e reflexivo para experimentar novos
métodos que convidem às crianças a avaliar seu potencial.”6

Considerações finais

Este capítulo teve como proposta fomentar reflexões acerca da pers-


pectiva inclusiva que emerge a partir do olhar de uma professora de
matemática de escola regular onde convivem alunos com TEA. Neste sen-
tido, nosso objetivo foi identificar os elementos que caracterizam um
direcionamento atual para esta temática, por meio da análise da entrevista
por ela cedida no âmbito da pesquisa de Takinaga (2015).
Em nossa análise, concluímos que as respostas da professora concor-
dam com a atual perspectiva inclusiva apontada pelos pesquisadores Viana

6 “It takes a reflective and committed teacher to try out new methods and to ask the children to assess their value.”
268 | Educação Matemática e Diversidade(s)

e Manrique (2018), como a segunda concepção de educação matemática


em uma perspectiva inclusiva gerada pelas pesquisas e reflexões adotadas
na atual conjuntura do sistema educacional.
Justificamos nosso posicionamento mediante os elementos identifi-
cados na arguição da professora. Os quais, passamos a descrevê-los.
O primeiro elemento identificado foi foco na equidade, quando a
professora relata que os conteúdos abordados emergem do que ela co-
nhece sobre o aluno, o que acaba por revelar o reconhecimento das
diferentes necessidades existentes dos estudantes como primícias para de-
finir o planejamento pedagógico.
Outro elemento identificado foi atenção para o estudante em sua
integralidade, para justificar este elemento destacamos o relato da pro-
fessora: “são atividades que preparamos, nunca a partir do tipo de
deficiência ou questão que esse aluno apresenta, mas sempre a partir do
que ele já sabe”. A atenção voltada para o estudante em sua integralidade
pressupõe observar não apenas suas necessidades, mas também as suas
potencialidades.
O próximo elemento, entender as salas de aula como comunidades
de aprendizes, significa dizer que todos participam na construção de um
ambiente onde convivem as diferenças. Neste sentido, entendemos que
este elemento emerge das escolhas teórico-metodológicas orientadoras da
prática da professora.
Voltar o olhar para o campo da educação, destacamos este ele-
mento da fala da professora quando afirma: “estamos trabalhando aqui no
campo da educação, não no campo do tratamento”. Para avançarmos é pre-
ciso voltar nosso olhar no que é realmente necessário, e buscar novas
estratégias didático-pedagógicas que potencializem a aprendizagem do
aluno.
Investimento na formação reflexiva com foco na ação, nesse sen-
tido, a professora explicita: para que o processo de formação tenha início
é preciso ação e sua manutenção por meio da reflexão, aliado a este ele-
mento identificamos outro ímpar, uma formação para a diferença se dá
Sofia Seixas Takinaga; Ana Lúcia Manrique | 269

em um ambiente de diversidade, ou seja, é imprescindível que todos os


alunos estejam na escola para que o professor evolua na compreensão da
construção do conhecimento diante da diversidade humana.
Outro elemento que caracteriza uma perspectiva inclusiva atual iden-
tificada é clareza do que é ‘ser estudante’ em uma perspectiva
inclusiva. Destacamos este elemento por meio da seguinte afirmação da
professora: “o professor tem que entrar em sala de aula seguro do que ele
vai ensinar e de que forma ele irá ensinar”, entendemos que esta segurança
se consolida à medida que o professor conhece quem é seu aluno em sua
integridade, este conhecimento é o ponto de partida para suas escolhas
didáticas e pedagógicas que visam o desenvolvimento do aluno.
Reconhecer o ambiente escolar com um espaço de aprendizagem,
este elemento, em nosso entendimento reflete a principal esfera de atua-
ção da escola. Identificamos esta compreensão e destacamos aqui como
um elemento característico de uma perspectiva inclusiva a partir da per-
cepção da professora, quando afirma: “ele não vem à escola para fazer
amigos, nem para socializar, ele vem para aprender e é isso que coloca ele
no mesmo patamar dos outros”.
Todo conhecimento é um caminho para propiciar aprendizagens
significativas, este último elemento que destacamos se refere ao conheci-
mento escolar como promotor do desenvolvimento de habilidades e
competências dos alunos. Neste sentido, como declara a professora: “o co-
nhecimento por si só já é importante, acho que para ele é igual para os
outros, nós ainda temos um desafio onde temos que perseverar, ver até
onde ele vai. Nunca podemos falar até onde ele vai, sei lá até onde ele vai,
não sei nem até onde eu vou, não dá pra saber”.
Mudar a visão da homogeneidade para a diversidade, acreditar que
todos podem aprender e reconstruir a escola de forma que seja, de fato,
para todos, são os primeiros passos para a inclusão. Sem paradigmas, sem
receitas e sem esperar de seres humanos desiguais resultados homogêneos
(ADIRON, 2016).
270 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Finalizamos com um convite a pensarmos neste desafio, o de aban-


donarmos a ideia de ‘homogeneidade’, que tanto nos acomoda, por aquela
que nos desafia a mudar, a ‘diversidade’.

Referências

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riodicos.ufms.br/index.php/pedmat/article/view/7298>. Acesso em 18 fev. 2020.
14

Os desdobramentos da diversidade entre estudantes com


cegueira e com baixa visão para o ensino da matemática

Maria Inêz Vasconcelos da Silva 1


Ana Lúcia Braz Dias 2

Introdução

Enquanto nos esforçamos para desenvolver habilidades profissionais


que garantam que todos os estudantes sejam atendidos em suas especifi-
cidades e necessidades, percebemos “a diversidade que há na diversidade”.
A complexidade que se esconde por trás de um rótulo como “pessoa com
deficiência visual” é ofuscada pelo contraste que o rótulo estabelece com
outras categorias (como as de pessoas com outros tipos de deficiência) ou
mesmo com o rótulo “normal”. Neste capítulo vamos ressaltar a diversi-
dade existente entre as pessoas com deficiência visual e fazer
considerações sobre o que isso representa para o ensino de matemática
para essas pessoas.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Especialista em Educação Especial pelas Faculdades Integradas de Paranaíba
(FIPAR) e em Neuropedagogia pelo Centro Universitário de Jales (UNIJALES). Pedagoga pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS) com habilitação em Educação Especial com ênfase na deficiência visual pela Faculdade
de Filosofia e Ciências da UNESP – Câmpus de Marília. Professora de educação básica da Prefeitura Municipal de Ilha
Solteira. Ilha Solteira, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
2
Doutora em Educação Matemática pela Indiana University (EUA). Professora titular (full professor) da Central
Michigan University (CMU). Mount Pleasant, Michigan, Estados Unidos da América. E-mail: [email protected].
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 273

Histórico das autoras com relação com à visão

Eu, Maria Inêz, a primeira autora

A minha história de vida serve para informar e sensibilizar como é


difícil compreender e diagnosticar uma deficiência e como o conhecimento
e a acessibilidade nos proporcionam possibilidades de estar e de sonhar.
Lembro que em 1979, já na terceira série, meus pais foram chamados na
escola porque eu não copiava e só ficava conversando. A professora orien-
tou meus pais a que me levassem a um médico oftalmologista, pois
acreditava que eu poderia ter problemas visuais. E qual não foi a surpresa
de todos, eu não tinha só um problema de acuidade visual, eu tinha uma
doença degenerativa da mácula (retinose pigmentar), ou seja, ouvi meu
médico dizer que eu tinha uma doença grave na visão, que era progressiva
e que aos 48 anos eu não enxergaria mais nada. Bom, como toda criança
guardei aquelas palavras no meu coração, porém sem saber da gravidade
que isso significaria e só “caiu a ficha” no dia que trombei de bicicleta num
carro parado (já estava com uns 12 anos).
Passei por grandes centros especializados e a informação foi sempre
a mesma, de que ainda não havia tratamento para essa doença.
Após o diagnóstico em 1979, a única coisa que a professora fez foi me
aproximar do quadro negro (lousa).
Olho para mim... sou mulher, sou negra, sou deficiente. Sou de cor, e
ser de cor neste país é ter a cor da luta, a cor que gera preconceito, a cor
da superação, a cor da minha família, a cor da minha história, a cor de
tantos que com sua força levantaram esse país. Carrego em mim quantas
minorias... E tenho a plena consciência que não passei indiferente à vida,
deixo marcas na história. E com certeza vivo a história de tantos em mim...
Ser deficiente é um desafio constante entre o querer e o não poder, entre
o ver e o não ver, entre olhares desconfiados e direitos conquistados. A
retinose pigmentar é uma degeneração macular, onde as células morrem
e deixam manchas que tampam a entrada da imagem. E em cada olho, a
274 | Educação Matemática e Diversidade(s)

doença se manifesta de uma forma: hoje tenho cegueira no olho direito e


baixa visão no olho esquerdo (H54.1, na lei considerado cegueira legal).
Teve momentos de revolta, momentos de questionamentos (“por que co-
migo?”) e hoje aceitação, pois compreendi que não seria eu, se enxergasse;
com a deficiência aprendi a enxergar as pessoas com a alma. Com a defi-
ciência me tornei forte, aprendi a voar mesmo com as asas quebradas.
Aprendi que voar alto só depende do esforço e quando o corpo não puder
ir, uso minha imaginação e busco novos sonhos. Dessa forma vou cami-
nhando, e ao caminhar sou acarinhada por muitos. E esse sentimento de
afeto, gratidão, compaixão me faz ser melhor a cada dia.
As marcas que carrego enquanto estudante com deficiência molda-
ram toda a minha história. Aprendi com o tempo que as oportunidades
recebidas do ambiente e muitas ações dependem de nossa postura diante
da vida, bem como da adoção de responsabilidades políticas e sociais que
eliminem as barreiras atitudinais. As garantias de direitos precisam sair
do papel, ou seja, há um lindo discurso democrático e inclusivo, porém na
prática muitas pessoas não enxergam as potencialidades e focam na defi-
ciência, fortalecendo ainda mais o preconceito e a discriminação. A nossa
história é assim: ora marcamos vidas, ora marcam nossas vidas. Passamos
por momentos singulares, momentos juntos, construímos sonhos e edifi-
camos vida. E assim, sigo lutando e não desisto de ser, de estar e de sonhar.
Dentro desse contexto de vida (pessoa com deficiência), passei a
maior parte da minha vida em ambiente escolar/acadêmico e pude vis-
lumbrar que a escola é um grande laboratório interacional, onde pessoas
se relacionam num processo de trocas de experiências. Nessa sistematiza-
ção de saberes fica evidente a necessidade de um processo de ensino e
aprendizagem que respeite as especificidades dos indivíduos e suas expe-
riências na construção de uma identidade maior – o seu eu social,
acadêmico e profissional, com suas marcas, com suas dores, mas também
com todos os seus sabores quando atingimos o ápice das realizações.
Ainda bem que a história se refaz e atualmente o paradigma adotado
pela educação brasileira é inclusivo. Cabe à literatura específica e à escola
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 275

atuarem juntas para adequar os espaços, o currículo e adaptar os recursos


metodológicos às necessidades de seus estudantes.

Eu, Ana Lúcia, a segunda autora

Tenho o privilégio de ser vidente, necessitando apenas de correção


com óculos para atingir funcionalidade sem maiores obstáculos. No en-
tanto, meus cuidados com a visão começaram cedo. Aos seis anos de idade,
sentava na primeira fileira da sala, mas ficava levantando para ir até o
quadro ler o que estava escrito e voltando para minha carteira para escre-
ver. Interessante é que eu nem achava isso estranho, nem constrangedor,
nem pedia a permissão da professora para me levantar. Era apenas uma
criança se adaptando a suas condições. A professora, sim, notou que isso
não era usual e se engajou nos procedimentos necessários para que meus
pais fossem notificados de que eu precisava de um exame de visão. Feito o
exame, comecei a usar óculos para miopia. A cada ano, a miopia aumen-
tava, o grau das minhas lentes também, e minha raiva em ter que usar
óculos também. Mas nem vou me adentrar neste assunto.
Aos quatorze anos, ao fazer o exame rotineiro de visão, o oftalmologista
teve a feliz ideia de medir minha pressão intraocular. Estava altíssima. Ele
mesmo ficou muito admirado por ter tido esta iniciativa, pois não era roti-
neiro, explicou ele, fazer esse exame em pessoas tão jovens. A partir dessa
constatação, chamou todos os membros da minha família para fazer o
mesmo exame, e descobriu assim que meu pai e três de seus quatro filhos
tinham pressão intraocular alta. Glaucoma congênito, disse ele. A partir daí
foram muitas idas a especialistas, a um centro de excelência em Belo Hori-
zonte, muitas promessas de minha mãe a Santa Luzia, muitos exames... E
isso continua até hoje, quarenta anos depois. Se é glaucoma ou não, quanto
a isso há médicos que discordam. Dizem que para se caracterizar como glau-
coma o nervo óptico tem que estar comprometido. O meu vai bem, obrigada.
De seis em seis meses, no mínimo, tenho que tê-lo examinado, campo visual
medido, fundo de olho fotografado... todo acompanhamento necessário para
276 | Educação Matemática e Diversidade(s)

evitar uma eventual cegueira. Onde moro atualmente, em uma cidade pe-
quena dos Estados Unidos, não há um bom especialista em glaucoma, o que
significa viagens frequentes a outra cidade para a bateria de exames rotineira
e para acompanhamento.
Enquanto a pressão ocular dos meus irmãos e pai era facilmente con-
trolada com remédios, a minha era teimosamente sempre alta. Isso me levou
a ter que usar certas medicações que os médicos geralmente evitam passar
por terem muitos efeitos colaterais. Durante o ensino médio, eu usava um
medicamento que como efeito colateral provocava a contração da pupila (mi-
ose) e turvava minha visão. Nem óculos adiantavam. Então, como a Maria
Inêz, não tomava notas (a diferença é que não conversava). Nem levava ca-
dernos para a escola. Felizmente eu aprendo muito ouvindo e tinha memória
muito boa (ênfase no pretérito), então não tinha dificuldades nas disciplinas.
Mas por algum motivo que até hoje desconheço, uma professora de biologia
tomou ofensa com isso e durante uma reunião de professores se referiu a
mim como “a falsa ceguinha”. Fiquei sabendo disso porque o professor de
física achou por certo me contar.
Eu não sei o que a fez se incomodar comigo. E que fique registrado
que eu nunca pleiteei a condição de cega, para justificar o adjetivo “falsa”.
Será que se ofendeu por eu não copiar o que ela escrevia no quadro? Nunca
vou entender.
Em suma, passei por um pouquinho de injustiça e bullying (“quatro
olhos!”), mas relativamente mínimos. Tenho minha visão, mas não a
“tomo por garantida”. Sou grata por isso, e me lembro todos os dias, de 12
em 12 horas, de que se eu não pingar meu colírio posso vir a ficar sem ela.

Deficiência como diversidade

Teóricos contemporâneos dos estudos sobre deficiência rejeitam a


ideia de que uma deficiência individual deve ser vista como um déficit, si-
tuando as condições incapacitantes do sistema educacional e de suas
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 277

instituições relacionadas como o que dificulta as realizações das pessoas


“deficientes”.
No decorrer da história, anterior a todos os movimentos sociais e de
aquisição dos direitos humanos, as pessoas com deficiência já estavam pre-
sentes na sociedade, em períodos marcados por distintas concepções, mas
de forma geral todas estigmatizando essas pessoas com a marca da exclu-
são.
Há por volta de cinquenta anos, o campo dos estudos sobre deficiên-
cia (disability studies) emergiu do ativismo político de pessoas com
deficiências (SHAKESPEARE, 2014). Apesar dos benefícios que essa ali-
ança entre ativismo político e teorização acadêmica traz, a tradução das
ideias e ideologias do ativismo para a academia apresenta falta de rigor em
alguns pontos. Outras vezes, o resultado é de modelos ultrateóricos que
pouco contribuem para o entendimento da experiência vivida por pessoas
com deficiências, quanto menos para a melhoria dessas experiências.
Na busca de um referencial teórico que seja coerente, mas que ao
mesmo tempo inspire as mudanças sociais, vários modelos de deficiência
têm sido propostos. Em linhas gerais muitas vezes se apresenta a dicoto-
mia modelo médico versus modelo social. Nesse tipo de apresentação o
modelo médico é muitas vezes visto pejorativamente.

Essa foi a revolução dos estudos sobre deficiência surgidos no Reino Unido e
nos Estados Unidos nos anos 1970. De um campo estritamente biomédico con-
finado aos saberes médicos, psicológicos e de reabilitação, a deficiência passou
a ser também um campo das humanidades. Nessa guinada acadêmica, defici-
ência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à
participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que
reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social
que oprime a pessoa deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo
corpo, como o sexismo ou o racismo, os estudos sobre deficiência descortina-
ram uma das ideologias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha
e segrega o corpo deficiente (DINIZ, 2007, p. 6)

No entanto, o modelo social também não é sem críticas. Uma delas é


que ele pode apagar as diferenças individuais e desvalorizar a experiência
278 | Educação Matemática e Diversidade(s)

individual incorporada. Além disso, é importante salientar que na verdade


há vários tipos de modelos sociais: o modelo materialista social britânico,
influenciado pela teoria marxista, o modelo estadunidense de minorias so-
ciais, a abordagem socioconstrucionista, o modelo relacional escandinavo,
estudos críticos da deficiência e estudos culturais da deficiência, dentre ou-
tros (SHAKESPEARE, 2014).
Isso sem contar que modelos já historicamente refutados em termos
teóricos ainda podem ser encontrados no ideário da população leiga, como
os modelos de caridade e prescindência, onde à deficiência é atribuída uma
natureza religiosa ou espiritual. Havia quem acreditasse (e ainda há quem
acredite) que a deficiência de uma pessoa advinha dos pecados de seus
pais, de feitiçaria ou praga rogada, de maldições de família, ou de pecados
da própria pessoa cometidos em outras encarnações. Nesta última concep-
ção a deficiência atual pode ser vista tanto quanto punição ou como forma
de evolução pelo sofrimento.
Nós, as autoras, somos simpáticas à concepção de deficiência como
diversidade, que pode ser representada pela seguinte colocação do escritor
argentino Jorge Luis Borges (que é cego): “a cegueira deve ser vista como
um modo de vida: é um dos estilos de vida dos homens” (BORGES, 1995).
Debora Diniz expande essa ideia:

Afirmar a cegueira como um modo de vida é reconhecer seu caráter trivial


para a vida humana. Ser cego é apenas uma das muitas formas corporais de
estar no mundo. Mas, como qualquer estilo de vida, um ego necessita de con-
dições sociais favoráveis para levar adiante seu modo de viver a vida. A
deficiência visual não significa isolamento ou sofrimento, pois não há sentença
biológica de fracasso por alguém não enxergar. O que existe são contextos so-
ciais pouco sensíveis à compreensão da diversidade corporal como diferentes
estilos de vida. (DINIZ, 2007, p. 5)

Quanto a modelos teóricos sobre a deficiência, favorecemos o modelo


relacional nórdico adotado por Shakespeare (2014), que se baseia em evi-
dência de estudos empíricos para propor que a deficiência se origina de
uma interação complexa de fatores: tanto sociais quanto atitudinais.
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 279

Terminologia relacionada a deficiências

Os estudos sobre deficiência vieram também denunciar a violência e


os eufemismos discriminatórios de que estão carregadas certas expressões
ainda vigentes em nossa linguagem referente ao tema, como “aleijado”,
“pessoa portadora de necessidades especiais” e “pessoa especial”. Diniz
(2007) explica que os primeiros teóricos optaram pelos termos “pessoa
deficiente” e “deficiente” para demonstrar que a deficiência era uma ca-
racterística individual na interação social. No entanto, nós autoras não
consideramos que esses termos alcancem esse resultado, pois só percebe-
mos uma ênfase no indivíduo. Além disso funcionam muito como rótulos.
“Pessoa com deficiência” é a expressão equivalente à usada no debate es-
tadunidense. No entanto, o movimento crítico mais recente quis encaixar
os estudos sobre deficiência no campo dos estudos culturais e de identi-
dade. Com isso, voltaram a advogar o uso do termo “deficiente”. Diniz
(2007) explica que “[a]ssim como os estudos sobre raça não mais adotam
o conceito de ‘pessoa de cor’, mas ‘negro’ ou ‘indígena’, os estudos sobre
deficiência assumiram a categoria ‘deficiente’” (p. 8). Quanto a isso, res-
saltamos que nada garante que os termos “negro” ou “indígena” sejam
melhores para o que querem expressar. Tudo é muito relativo e muda em
termos espaciais e temporais. Nos Estados Unidos ainda se considera o
termo “pessoa de cor” politicamente correto. Já o termo “negro” foi usado
no passado e hoje é evitado. Podemos contra-argumentar que termos que
enfatizam a pessoa primeiro (“pessoa negra”, “pessoa deficiente”), ao in-
vés de enfatizar sua cor ou sua deficiência, permitem uma noção muito
mais ampla de identidade.
O termo “pessoas portadoras de deficiência” é criticado por dar a im-
pressão de que a deficiência é algo que se pode escolher “portar” ou não,
como quando se porta um item de vestuário.
Neste artigo, damos preferência à utilização da expressão “pessoa
com deficiência visual”, apesar de reconhecermos que esta expressão não
280 | Educação Matemática e Diversidade(s)

segue o modelo social, apenas o médico, já que, no modelo social, alguém


que tem deficiência em certo contexto social poderia não ter em outro con-
texto que oferecesse menos ou nenhuma barreira. Nosso uso se justifica
por acharmos a alternativa “deficiente”, com ênfase em identidade, um
rótulo que singulariza e enfatiza um aspecto da identidade de uma pessoa.
Os termos que se iniciam com a palavra “pessoa” enfatizam sua humani-
dade como sua identidade social primária (ao invés de escolher e enfatizar
um aspecto identitário, como raça, etnia, gênero ou deficiência.

Quem produz as estatísticas?

De acordo com estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde,


há no mundo pelo menos 2,2 bilhões de pessoas com algum problema de
visão, dentre as quais pelo menos 1 bilhão de pessoas têm deficiência visual
que poderia ter sido impedida ou que ainda não foi tratada (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2019).
A investigação do tema pessoas com deficiência sofreu modificações
ao longo dos levantamentos censitários brasileiros para se adequar a essa
evolução do conceito de deficiência (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012). Além de no Censo Demográfico 2010,
o tema esteve presente no primeiro levantamento censitário brasileiro, em
1872, e nos Censos Demográficos 1890, 1900, 1920, 1940, 1991 e 2000. As
mudanças nos conceitos utilizados ou na formulação das perguntas não
permitem a comparabilidade direta entre esses levantamentos.
A formulação das perguntas para a coleta de dados sobre deficiência
é bastante discutida na academia (DINIZ, 2007; DINIZ et al., 2009;
QUEIROZ, 2011). O debate é quanto a se as perguntas e categorias usadas
nas pesquisas refletem o uso do modelo médico ou do modelo social de
deficiência. Para Diniz, Barbosa e Santos (2009), apesar de o Brasil ter ra-
tificado a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em
2008, que adota uma definição de deficiência que combina uma matriz
biomédica, que cataloga os impedimentos corporais, e uma matriz de
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 281

direitos humanos, que denuncia a opressão e a restrição à participação


plena provocada pelas barreiras sociais,3

[o]s critérios utilizados pelo Censo 2000 para recuperar a magnitude da po-
pulação com impedimentos corporais no país foram marcadamente
biomédicos, tais como a gradação de dificuldades para enxergar, ouvir ou se
locomover. Isso se deve não apenas ao modelo biomédico vigente na elabora-
ção e gestão das políticas públicas para essa população no Brasil, mas
principalmente à dificuldade de mensuração de o que vem a ser restrição de
participação pela interação do corpo com o ambiente social. (DINIZ et al.,
2009, p. 66)

No censo demográfico brasileiro de 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO


DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012), foi pesquisado se a pessoa tinha
dificuldade permanente de enxergar (avaliada com o uso de óculos ou len-
tes de contato, no caso de a pessoa utilizá-los), e foi atribuída a seguinte
classificação:

a) Não consegue de modo algum (para a pessoa que declarou ser permanente-
mente incapaz de enxergar);
b) Grande dificuldade (para a pessoa que declarou ter grande dificuldade perma-
nente de enxergar, ainda que usando óculos ou lentes de contato);
c) Alguma dificuldade (para a pessoa que declarou ter alguma dificuldade perma-
nente de enxergar, ainda que usando óculos ou lentes de contato);
d) Nenhuma dificuldade (para a pessoa que declarou não ter qualquer dificuldade
permanente de enxergar, ainda que precisando usar óculos ou lentes de con-
tato).

O resultado da pesquisa encontra-se na Tabela 1.

A formulação das perguntas sobre pessoas com deficiência no Censo Demo-


gráfico 2010 envolveu estudos realizados pelo IBGE, em conjunto com os
países do MERCOSUL, para avaliar o conjunto de perguntas propostas pelo
Grupo de Washington sobre Estatísticas das Pessoas com Deficiência

3
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na soci-
edade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2006, art. 1º)
282 | Educação Matemática e Diversidade(s)

(Washington Group on Disability Statistics - GW). Esses estudos se dividiram


em um Teste Cognitivo e uma Prova-piloto Conjunta. (...) Os resultados do
Teste Cognitivo e da Prova-piloto Conjunta sobre Pessoas com Deficiência for-
neceram subsídios para a elaboração definitiva das perguntas no Questionário
da Amostra do Censo Demográfico 2010. Simplificaram-se as perguntas dos
domínios visual, auditivo e motor, ficando sua redação como “Tem dificuldade
permanente de...?”. Essa redação permitiu uma melhor captação da percepção
do informante acerca de sua deficiência e respectivo grau de severidade.
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012, p. 72)

Tabela 1: População residente por tipo de deficiência permanente, 2010


Deficiência visual - alguma dificul- Deficiência visual - grande dificul- Deficiência visual - não consegue
dade dade de modo algum
29.211.482 6.056.533 506.377
Fonte: Adaptada de Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010).

Uma outra forma de se obter estatísticas é usando inferências e esti-


mativas. As estatísticas mundiais mostram que o nível de desenvolvimento
socioeconômico está diretamente relacionado com as condições de saúde
ocular. As estimativas da OMS sobre a relação entre cegueira, deficiência
visual e condições econômicas permitem estabelecer estimativas sobre a
cegueira no Brasil (ÁVILA et al., 2015).
Para educadores é importante também considerar a faixa etária da
população para um quadro da deficiência visual no Brasil. Afinal de contas,
como diz a primeira autora deste artigo, “quem nunca foi deficiente, um
dia vai ser”, se chegar à velhice. A Organização Mundial de Saúde tem uma
frase parecida, se bem que de conotação mais leve: “Todos, se viverem a
uma idade suficiente, vão experienciar pelo menos uma condição ocu-
lar em suas vidas que requererá cuidado apropriado” (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2019, p. xiv). Sobre a prevalência de ce-
gueira na velhice, Ávila et al. colocam que:

Independente da classe social, a estimativa de cegueira cresce em função da


idade, chegando a ser de 15 a 30 vezes maior em pessoas com mais de 80 anos
do que na população com até 40 anos de idade. (ÁVILA et al., 2015, p. 20)
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 283

No entanto, entre crianças a deficiência visual é particularmente pre-


ocupante. Portanto a distribuição por faixa etária dessas deficiências deve
ser levada em consideração. Ao desconsiderarmos a distribuição por faixa
etária, podemos também ter a impressão de que o Brasil tem melhores
condições de saúde ocular (em comparação a outros países) do que na re-
alidade tem. Isso porque é grande o número de crianças e jovens com
deficiência visual que poderia ser evitada.

Apesar da importância das estimativas com base nas condições econômicas,


elas sozinhas são capazes de mascarar outros aspectos importantes. Se olhar-
mos exclusivamente para a evolução econômica do Brasil e a prevalência
estimada de cegueira, diremos que temos melhoria nas condições de saúde
ocular do povo brasileiro, mas tal afirmativa seria precipitada, sem considerar
as mudanças demográficas da população. (ÁVILA et al., 2015, p. 20)

Seguindo a estimativa da Agência Internacional de Prevenção à Ce-


gueira, é possível considerar que no Brasil tenhamos cerca de 29 mil
crianças cegas por doenças oculares que poderiam ter sido evitadas ou tra-
tadas precocemente. A diversidade regional brasileira e os diferentes níveis
de desenvolvimento socioeconômico sugerem a estimativa de um valor
médio de prevalência de cegueira infantil para o Brasil entre 0,5 e 0,6 por
mil crianças (Tabela 2).
Tabela 2 Estimativa da distribuição de casos de cegueira por faixa etária no Brasil
Até 15 anos Entre 15 e 49 anos Acima de 50 anos
30 mil 165 mil 551 mil
Fonte: Adaptado de Ávila et al. (2015)

Com base em que definições se produzem as estatísticas?

Obviamente a definição das categorias utilizadas, bem como que ca-


tegorias serão utilizadas (deficientes visuais, cegos, portadores de visão
subnormal, pessoas com baixa visão, etc.) influencia as estatísticas, a sua
comparabilidade e a conotação que elas passam. Em 1966, a Organização
Mundial de Saúde (OMS) registrou 66 definições de cegueira diferentes
nos levantamentos estatísticos de diversos países. Desde então vem
284 | Educação Matemática e Diversidade(s)

propondo modos de uniformizar as anotações dos valores de acuidade vi-


sual e definições de lesões, graus de funcionalidade e de incapacidade com
finalidades estatísticas. Como já mencionamos, a OMS sofreu em vários
momentos críticas por priorizar as definições médicas das lesões como
forma de caracterizar deficiências. Com isso em mente, e não querendo
fazer a mesma ênfase, colocamos abaixo alguns esclarecimentos do ponto
de vista oftalmológico.
A quantificação da visão se dá por duas escalas oftalmológicas: acui-
dade visual e o campo visual. O campo visual é a extensão do espaço que o
olho vê quando está parado e olha em frente. Em pessoas cujo o campo
visual é normal, este cobre cerca de 180°, mas devido a diversas causas
este campo pode se estreitar, provocando uma das várias formas de defi-
ciência visual.
As deficiências visuais incluem tanto a cegueira quanto a visão sub-
normal, mas também a deficiência de visão cromática, estrabismo,
diplopia e outras condições.
Os termos visão subnormal ou baixa visão são utilizados para descre-
ver pessoas com deficiência visual leve ou moderada nos dois olhos.
Considera-se visão subnormal quando a acuidade visual corrigida no me-
lhor olho é menor do que 0,3 e maior ou igual a 0,05 ou seu campo visual
é menor do que 20º no melhor olho, com a melhor correção óptica. O
termo visão monocular é utilizado para portadores de cegueira legal em
um dos olhos com visão normal no outro.
Os esclarecimentos a seguir são de (CONDE, [20--?]), professor do
Instituto Benjamin Constant:

Uma pessoa é considerada cega se corresponde a um dos critérios seguintes:


a visão corrigida do melhor dos seus olhos é de 20/200 ou menos, isto é, se
ela pode ver a 20 pés (6 metros) o que uma pessoa de visão normal pode ver
a 200 pés (60 metros), ou se o diâmetro mais largo do seu campo visual su-
bentende um arco não maior de 20°, ainda que sua acuidade visual nesse
estreito campo possa ser superior a 20/200. Esse campo visual restrito é mui-
tas vezes chamado "visão em túnel" ou "em ponta de alfinete", e a essas
definições chamam alguns "cegueira legal" ou "cegueira econômica".
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 285

Nesse contexto, caracteriza-se como portador de visão subnormal ou baixa vi-


são aquele que possui acuidade visual de 6/60 e 18/60 (escala métrica) e/ou
um campo visual entre 20° e 50°.
Pedagogicamente, define-se como cego aquele que, mesmo possuindo visão
subnormal, necessita de instrução em Braille (sistema de escrita por pontos
em relevo) e como portador de visão subnormal aquele que lê tipos impressos
ampliados ou com o auxílio de potentes recursos ópticos. (CONDE, [20--?], p.
1-2)

Interessante notar a definição pedagógica oferecida por Conde acima,


pois esta também não é sem dificuldades. Basta notar que há estudantes
sem tato háptico que não podem usar Braille. Há outros ainda para os
quais impressos ampliados não favorecem a leitura, como discutiremos
mais adiante.
Na área legal, definições também não são sem disputa. A portaria nº
3.128/2008, em seu art. 1º, define:

§ 1º Considera-se pessoa com deficiência visual aquela que apresenta baixa


visão ou cegueira.
§ 2º Considera-se baixa visão ou visão subnormal, quando o valor da acuidade
visual corrigida no melhor olho é menor do que 0,3 e maior ou igual a 0,05 ou
seu campo visual é menor do que 20º no melhor olho com a melhor correção
óptica (categorias 1 e 2 de graus de comprometimento visual do CID 10) e con-
sidera-se cegueira quando esses valores encontram-se abaixo de 0,05 ou o
campo visual menor do que 10º (categorias 3, 4 e 5 do CID 10). (BRASIL, 2008)

Um dos fatos de destaque no debate contemporâneo sobre deficiên-


cia, saúde e justiça social foi a edição de um enunciado do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) dando o direito a pessoas com visão monocular
de concorrer a vagas reservadas a deficientes visuais em concurso público.
Em sua dissertação de mestrado, Arryanne Queiroz investiga o processo,
concluindo que a cultura da normalidade e o modelo médico da deficiência
dominaram a fundamentação judicial, que os estudos sobre deficiência fo-
ram ignorados no processo decisório e que a decisão vai contra o modelo
social de deficiência.
286 | Educação Matemática e Diversidade(s)

O estudo dos casos julgados pelo STJ descortina sutilezas sobre como o dis-
curso sobre deficiência, saúde e justiça social, no campo jurisdicional, é repleto
de vieses ancorados no padrão da normalidade: pelo que se extraiu dos argu-
mentos dos julgadores, a presença de impedimento corporal seria o bastante
para identificar o fenômeno da deficiência. (...)
O caso da visão monocular mostra que a Justiça brasileira, representada pelo
STJ e pelo STF, não enfrentou a controvérsia de que a visão monocular é um
caso-limite para a deficiência; (...) Mas a judicialização do debate sobre visão
monocular teve vantagens: a de dar um tratamento de justiça à questão; a de
revelar que essa é uma disputa da elite de pessoas deficientes; a de provocar o
questionamento sobre quem é o sujeito deficiente que a sociedade almeja pro-
teger; e a de desnudar como o fenômeno da deficiência foi analisado pela
Justiça, algo tão importante para a reavaliação de políticas públicas sociais.
(QUEIROZ, 2011, p. 86-87)

Com a decisão do STJ, uma pessoa com visão monocular, que tem um
dos olhos com visão perfeita e pode até tirar carteira de motorista, pode
concorrer a uma vaga de emprego reservada a pessoas cegas ou com baixa
visão.
Este caso nos fez querer compartilhar uma experiência pessoal da
Maria Inêz, primeira autora, o que fazemos a seguir.

As brechas que as legislações abrem: tecnicalidades, direitos e


deveres na prática

Quando fazia Habilitação em Educação Especial na UNESP de Marília


(2008/2009), uma colega de turma também deficiente pensou em arru-
mar um emprego de meio período, já que nossas aulas eram apenas pela
manhã. Fui com ela a um local que anunciava “Cadastramento de Pessoas
Deficientes para o Mercado de Trabalho”. Ambas deficientes visuais, mas
com suas diferenças: ela não lê nada de perto e eu não enxergo nada de
longe. Ela foi me guiando e eu fui para ajudá-la a ler, pois ela só lê em
Braille, e já desconfiávamos que não haveria nada em Braille disponível no
local. Mas não podíamos imaginar que ia ser tão chocante a situação: logo
de início tivemos que subir dois róis de escada super estreitos. Não havia
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 287

cuidado com a acessibilidade, ou seja, uma pessoa cadeirante ou com mo-


bilidade reduzida não conseguiria ter acesso ao espaço de atendimento. Ao
adentrarmos o espaço, nos identificamos e minha amiga perguntou sobre
a vaga para pessoas com deficiência. E eles simplesmente explicaram que
a vaga era para pessoas que tinham deficiência bem leve, e pelo que eles já
tinham observado o nosso perfil não preenchia a vaga, não dando chance
nem para minha amiga entregar o currículo. Saímos de lá desapontadas e
com a certeza de que a inclusão social está muito distante da realidade.
Casos como este nos fazem pensar que essas brechas são construídas
justamente para eliminar os que mais necessitam. Se não são formuladas
com esse motivo ulterior, com certeza são toleradas e usadas com este fim.
Empregadores querem poder se vangloriar de que estão empregando pes-
soas com deficiência, mas ao mesmo tempo querem que isto não “os
atrapalhe em nada”. Não querem fazer nenhuma modificação ou nenhuma
adaptação a seus ambientes para torná-los acessíveis a todos. E a diversi-
dade de deficiências existentes, tanto em tipo quanto em severidade,
juntamente com a legislação que ofusca esta diversidade, permite a pes-
soas como aqueles empregadores de Marília a cometerem injustiças
estando dentro da lei.

O processo de ensino da matemática para estudantes com deficiência


visual

Com a atual propositura de uma educação inclusiva, as escolas e uni-


versidades públicas e privadas vêm recebendo cada vez mais estudantes
com deficiência visual, pois, em sua maioria, apresentam somente restri-
ções visuais que podem ser minimizadas ou superadas com a quebra de
barreiras culturais, atitudinais e procedimentais.
Encontramos no Brasil dois tipos de atendimento a estudantes com
deficiência visual: o atendimento “exclusivo” de instituições especializa-
das, como por exemplo o Instituto Benjamim Constant (IBC), e de escolas
regulares pautadas na Política Nacional na Perspectiva da Educação
288 | Educação Matemática e Diversidade(s)

Especial e Inclusiva. Esta estabelece diretrizes e ações que reorganizam os


serviços de Atendimento Educacional Especializado (AEE) oferecidos aos
estudantes com deficiência visando a complementação da sua formação e
não mais a substituição do ensino regular.
A educação especial e inclusiva traz, em suas estratégias de ação, a
tecnologia assistiva (TA) para que todos tenham acesso ao currículo, e para
que os docentes possam mediar o processo de aprendizagem e auxiliar os
estudantes com deficiências na construção de conhecimento e habilidades
e na resolução de problemas em geral.

Tecnologia assistiva: uma contextualização

Tecnologias educacionais são chamadas tecnologia assistiva quando


elas são utilizadas por estudantes com deficiência de forma a romper bar-
reiras sensoriais, motoras ou cognitivas que limitam ou impedem seu
acesso à educação. De forma literal, todas as tecnologias educacionais são
assistivas, já que têm o objetivo de ajudar estudantes na aprendizagem.
Mas o uso do termo “tecnologia assistiva” tem sido reservado ao âmbito
da educação especial:

Um aluno com deficiência física nos membros inferiores e que faz uso de ca-
deira de rodas, utilizará o computador com o mesmo objetivo que seus colegas:
pesquisar na web, construir textos, tabular informações, organizar suas apre-
sentações etc. O computador é para este aluno, como para seus colegas, uma
ferramenta tecnológica aplicada no contexto educacional e, neste caso, não se
trata de Tecnologia Assistiva. São exemplos de TA no contexto educacional os
mouses diferenciados, teclados virtuais com varreduras e acionadores, softwa-
res de comunicação alternativa, leitores de texto, textos ampliados, textos em
Braille, textos com símbolos, mobiliário acessível, recursos de mobilidade pes-
soal etc. (...) [E]u ouso chamar a ferramenta utilizada pelo aluno de Tecnologia
Assistiva, mesmo quando ela também se refere à tecnologia educacional co-
mum. Podemos afirmar então que a tecnologia educacional comum nem
sempre será assistiva, mas também poderá exercer a função assistiva quando
favorecer de forma significativa a participação do aluno com deficiência no
desempenho de uma tarefa escolar proposta a ele (BERSCH, 2017, p. 12)
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 289

Há uma variedade de tecnologias disponíveis para facilitar o acesso de


estudantes com deficiência visual à matemática. No entanto, nem sempre
estas são úteis a todos os estudantes. A utilidade de uma tecnologia depende
das características individuais de cada estudante. Elaborando nossa pro-
posta neste capítulo, de que se considerar a diversidade da população com
deficiência é de extrema importância na educação, vamos discutir a seguir a
relação entre a tecnologia assistiva e a educação matemática.

Tecnologia Assistiva na educação matemática

A mediação e a intervenção junto aos estudantes com deficiência vi-


sual na categoria de cegueira e na categoria de baixa visão é
completamente diferente. Se a cegueira é congênita ou adquirida, ou me-
lhor, se há ou não memória visual, as mediações também vão ter diferentes
graus de utilidade ou assistividade. Há diferenças também na tecnologia
assistiva que vai ser útil a um ou outro caso de deficiência visual.
Por exemplo, no meu caso (Maria Inêz, primeira autora), minha visão
é tubular. Meu campo visual é estreito. Não adianta o professor querer
aumentar um texto para mim. Tem gente que me manda mensagem de e-
mail com uma fonte enorme, tamanho 30+, pensando estar ajudando. Só
que isso na verdade vai me atrapalhar, pois eu já só consigo, com minha
visão focal e tubular, normalmente acessar uma palavra de cada vez, com
uma fonte aumentada vou poder captar a imagem só de uma letra de cada
vez! Se o texto for muito ampliado, eu vou ler letra por letra, ficando quase
impossível interpretar um texto. Para mim o importante é o contraste. A
utilização de um fundo preto com letras brancas já me ajuda a captar a
informação do texto, mesmo que uma palavra de cada vez.
Tem a questão da luminosidade, do contraste, tem a questão de se a
pessoa desenvolveu o tato háptico para utilizar o sistema Braille de leitura.
Há pessoas que, por diversos fatores, não desenvolvem a sensibilidade na
290 | Educação Matemática e Diversidade(s)

ponta dos dedos necessária para a utilização do Braille. Isso se dá frequen-


temente com pessoas com diabetes, que é uma das causas de cegueira.
Pautando-nos no trabalho de Ahmed e Chao (2018) vamos descrever
a seguir o modelo “substitution, augmentation, modification, and redefini-
tion (SAMR)” de tecnologia para categorizar os recursos de tecnologia
assistiva disponíveis atualmente para estudantes com deficiência visual.
A substituição, como categoria, implica a substituição de informações
visuais por informações auditivas, tácteis, ou de ambos os tipos. A substi-
tuição é a maneira mais básica de integrar a tecnologia, porque substitui
uma forma de interação por outra, sem tentar criar novas maneiras de
aprender através da tecnologia ou utilizar a tecnologia para capacitar o
estudante. A categoria aumento envolve melhorias funcionais, por meio da
tecnologia, nas tarefas matemáticas originais, currículo ou interface. O au-
mento é um uso mais substancial da tecnologia do que a substituição,
porque altera as tarefas ou a interface para ficar mais acessível a estudan-
tes em todo o espectro da visão, não apenas aqueles com deficiência visual.
Na modificação ocorre uma reformulação significativa das tarefas, currí-
culo ou interface através da tecnologia assistiva. Para ser categorizado
como modificação, a tecnologia deve reconhecer que os estudantes com
deficiência visual podem criar seu próprio conhecimento matemático atra-
vés da exploração matemática, conectando-se com as maneiras próprias
que os estudantes com deficiência visual possuem para compreender a
matemática. A redefinição envolve refazer e repensar as atividades mate-
máticas ou até mesmo a abordagem da aprendizagem da matemática
usando uma perspectiva não-visual anteriormente inconcebível. As tecno-
logias de redefinição permitem que todos os alunos no espectro da visão
reconheçam o rico conhecimento matemático que os estudantes com defi-
ciência visual são capazes de produzir, permitindo que estes colaborem e
se comuniquem sobre a matemática em maneiras que ultrapassam as for-
mas tradicionais e dominadas visualmente de entendimento matemático.
(AHMED; CHAO, 2018)
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 291

Ahmed e Chao (2018) utilizaram o modelo SAMR para analisar 14 tipos


de recursos de tecnologia assistiva recentemente apresentados em congres-
sos e publicações de programadores, tendo classificado seis deles como de
substituição, cinco como de aumento, dois como de modificação e um como
de redefinição, o Graph Sketching Tool (GSK). Procuramos o artigo original
dos criadores do GSK, na esperança de conhecer uma tecnologia para a cons-
trução de gráficos, mas ao encontrá-lo percebemos que o programa é para a
construção de grafos (em inglês, tanto gráficos como grafos são graphs). Isto
não diminui o mérito da tecnologia, apenas significa que ela não aborda um
conceito do currículo da educação básica. O GSK utiliza vários mecanismos
de entrada não-visuais, como teclados, telas sensíveis ao toque e voz, para
criação e manipulação de grafos. Os criadores da tecnologia explicam que o
GSK foi criado com base nos princípios de universalidade e equivalência com-
putacional, com o intuito de ser usado por pessoas em todo o espectro de
visão (de videntes a cegos), de uma forma que “nivele o campo de jogo” para
todos (BALIK et al., 2013). Para Ahmed e Chao (2018) a ferramenta está re-
definindo porque permite que os alunos criem, manipulem e discutam grafos
de um ponto de vista completamente não visual.

O papel da informação visual na aprendizagem matemática: algo


natural ou uma criação cultural?

O trabalho de Ahmed e Chao nos foi interessante porque, além de


fazer um apanhado e classificação de várias tecnologias com o modelo
SAMR, chama a atenção para o fato de a matemática ter sido tradicional-
mente associada à visualização e à visão. Os autores clamam por uma
mudança nessa cultura de hipervalorização da visão na matemática. Res-
saltam também que no imaginário popular o trabalho matemático é
muitas vezes considerado individual, enquanto que a comunidade da edu-
cação matemática como disciplina enfatiza a importância da comunicação,
argumentação e da explicação (para outros pelo sujeito da aprendizagem)
no desenvolvimento do pensamento matemático.
292 | Educação Matemática e Diversidade(s)

A importância das várias modalidades sensoriais na cognição mate-


mática de crianças cegas e videntes é ressaltada também por Radford
(2013), que em sua investigação empírica observou o que chamou de uma
transformação perceptiva complexa mediada pela atividade intercorpórea
do professor e dos alunos (RADFORD, 2013). A premissa de que a cognição
matemática é corporificada por meio da exploração coordenada de recur-
sos multimodais é explorada também por Fernandes e Healy (2013). As
autoras adotam uma perspectiva corporificada da cognição matemática
com base na Fenomenologia de Merleau-Ponty e ilustram como os corpos
de dois alunos cegos foram afetados por suas atividades matemáticas en-
quanto trabalhavam em uma série de tarefas envolvendo figuras
simétricas e transformações geométricas, exemplificando como as práticas
de aprendizes que não têm memória visual diferem daqueles que perde-
ram a visão mais recentemente.
As consequências da deficiência visual (congênita ou adquirida) sobre
o desenvolvimento individual e psicológico varia muito entre os indiví-
duos; depende da idade em que ocorre, do grau da deficiência, da dinâmica
geral da família, das intervenções que forem tentadas, da personalidade da
pessoa - enfim, de uma variedade de fatores (SÁ et al., 2007). Quando uma
pessoa guarda memórias visuais, consegue se lembrar das imagens, luzes
e cores que conheceu, e isso é muito útil para sua readaptação. Por outro
lado, quem nasce sem a capacidade da visão ou se torna cega nos dois pri-
meiros anos de vida não consegue formar uma memória visual (não
possuindo lembranças visuais). No entanto, muitos dos conceitos mate-
máticos também não são experienciados no mundo físico, nem por aqueles
que enxergam bem. Quem já viu um conjunto infinito, uma estrutura al-
gébrica abstrata, um vetor em espaço complexo ou mesmo um número?
Enquanto nos esforçamos para criar materiais concretos que possibili-
tem a construção de uma imagem mental ou um concept image (TALL;
VINNER, 1981) de certos objetos matemáticos, muitos insistem na crença de
que a visão é o sentido mais importante para a aprendizagem matemática.
É de se lamentar que 70% a 80% das atividades em currículos de
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 293

matemática consistam de atividades visuais (LI, 2004). Se a interpretação


de imagens pela visão e o uso destas na construção de conceitos matemáti-
cos fossem sem problemas, não haveria tantas pesquisas para investigar as
dificuldades de aprendizes videntes com tarefas visuais (por exemplo,
PRESMEG, 2006, GAL; LINCHEVSKI, 2010). A construção de imagens men-
tais vai muito além da intepretação de informação figural. Sem contar a
maravilhosa notação algébrica, apesar de ter proporcionado possibilidades
para o desenvolvimento matemático que eram sem ela inimagináveis, não é
de fácil aprendizagem por alunos videntes. Muitos se atrapalham ou mesmo
têm ansiedade quando se deparam com uma expressão algébrica, necessi-
tando de recurso auxiliares para o aprendizado daquela nova linguagem
(HEWITT, 2012). Pensamos que ao invés de usar tecnologia assistiva de
substituição ou de aumento (categorias do modelo SAMR), poderíamos ex-
plorar outras formas de construir conceitos, pensamentos e imagens
mentais que não por meio do processamento de informação visual. Antes da
consolidação de informação algébrica, matemáticos que deram grande con-
tribuição à matemática, até mesmo nos séculos XVII e XVIII, utilizavam-se
de linguagem retórica para seus trabalhos em matemática (BERLINGHOFF;
GOUVÊA, 2004). Um entendimento histórico sobre o papel dos diagramas
na matemática euclideana (KNORR, 2012) também expande nossos hori-
zontes e nos faz relativizar o ponto a que chegamos atualmente, com tanta
ênfase em diagramas e notações padronizadas como se elas constituíssem o
único meio de realização do pensamento matemático.

Considerações finais

É fundamental compreendermos que os recursos de tecnologia assis-


tiva vão desde uma fita crepe até a mais alta tecnologia digital, porém o
que irá definir o seu uso são os objetivos traçados observando-se as espe-
cificidades do estudante com deficiência visual. Quando o professor
compreende sua realidade, enxerga sua clientela, adequa conteúdos e
294 | Educação Matemática e Diversidade(s)

adapta recursos, podemos afirmar que esse professor compreende o real


papel inclusivo nos contextos do aprender e do ensinar.
O processo educativo vai muito além do ato de transmitir conteúdo,
mas compreende fazer da escola uma ferramenta política de participação
social e de transformação de vidas e realidades. Precisamos enxergar no
outro as marcas de suas histórias e compreender que todos nós, indepen-
dentemente de nossa condição física, sensorial ou de saúde, ajudamos a
construir diariamente a realidade que nos cerca e que, querendo ou não,
nossas ações atingem a todos. Que saibamos olhar as potencialidades que
cada um tem, pois somos mais quando somos juntos, independente de
nossas limitações e diferenças. Uma das atribuições do professor especia-
lista do Atendimento Educacional Especializado é fazer uma anamnese
junto ao estudante com deficiência visual e sua família (podendo ser feito
um estudo de caso, um plano de atendimento individual) para, com base
nas especificidades do estudante, estabelecer linhas de ação pedagógica.
Daí a importância também da inclusão escolar: só na proximidade profes-
sor, estudante e colegas de sala, só no convívio mútuo, atento e respeitoso,
vai se construir esse conhecimento da especificidade de cada discente.
O sistema educacional precisa rever seus conceitos, necessita cons-
truir novos saberes, se adequando às novas exigências de uma sociedade
inclusiva, democrática e aberta à diversidade, pois a inclusão tem que sair
do papel, deve ser assumida com responsabilidade, em todo e qualquer
espaço social.
Para que haja uma transformação social é necessário compreender,
conhecer e aceitar o outro em suas diferenças, proporcionando um ambi-
ente que favoreça o desenvolvimento de todos. É preciso entender que
incluir não é meramente matricular um estudante em um ambiente esco-
lar e considerar que ele esteja realmente incluído. Ele até poderá estar
inserido, mas a inclusão real passa por processos bastante complexos, de-
safiantes, que dependem de cada sujeito que compõe a equipe acadêmica
e do sistema escolar como instituição.
Maria Inêz Vasconcelos da Silva; Ana Lúcia Braz Dias | 295

O importante mesmo está no conviver com as diferenças, e desse con-


vívio tirarmos reflexões críticas para juntos chegarmos a consensos,
mesmo que parciais e temporários, e ações que possibilitem o acesso dos
estudantes com deficiência visual ao currículo. Não deixemos que precon-
ceitos, falta de conhecimento e generalizações limitem a uma pedagogia
técnica e homogeneizadora que não atende à diversidade do corpo estu-
dantil. Afinal, o termo conhecer vem do latim e é composto por COM,
“junto” e GNOSCERE, “obter conhecimento”. A etimologia do nosso ideal
já nos dá a pista de como alcançá-lo.

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