Erika Fischer-Lichte - Estética Do Performativo - Capítulos 4, 5 e 6
Erika Fischer-Lichte - Estética Do Performativo - Capítulos 4, 5 e 6
Erika Fischer-Lichte - Estética Do Performativo - Capítulos 4, 5 e 6
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ORFEU
Tradução Manuela Gomes NEGRO
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A TRADUÇÃO DESTA OBRA FOI APO IADA POR UMA BOLSA DO GOETHE-INSTITUT. #
• Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a01ftu, trad. José Miranda Justo, Lisboa,
Relógio d'Água, 2005, p. 89. (N. T.)
•
174 ERIKA FISCHER-L1CHTE
Todas as tentativas de o fixar num artefacto, seja uma gra- descrições, etc. Também a análise que se segue deve reme-
vação áudio ou a captação em filme, estão destinadas ao ter para documentos deste tipo, mesmo que sejam apenas
fracasso, realçam de modo ainda mais evidente o fosso os meus apontamentos e a minha memória. A materiali-
intransponível entre o espectáculo e um artefacto passível dade específica do espectáculo esquiva-se a toda e qual-
de se fixar ou reproduzir. Qualquer tentativa de reproduzir quer captação: é o espectáculo que, no processo da sua
um espectáculo transforma-se numa tentativa de o docu- execução, a produz no presente e que, no momento em que
mentar. Sob este ponto de vista, contudo, impõe-se refutar a cria, a destrói de novo.
a afirmação de Phelan, segundo a qual os espectáculos tea- A partir da viragem performativa na década de 60 do
trais não podem ser documentados. Uma documentação século passado, o teatro, as acções e a performance art desen-
deste género representa, pelo contrário, a condição que volveram uma série de procedimentos que dirigem expres-
possibilita falar dos espectáculos. Neste contexto, é a pró- samente a atenção para a produção performativa da
pria tensão reflectida entre a sua fugacidade e a tentativa materialidade no interior do espectáculo e que, à seme-
incessante de os documentar por meio de vídeos, filmes, lhança do que acontece num laboratório experimental,
fotografias e descrições a remeter para o seu carácter efé- põem propositadamente em evidência cada um dos facto-
, . res que a condicionam, bem como as modalidades da sua
mero eumco.
realização, concentrando-se neles. Isto aplica-se quer à
o discurso sobre a performance marca uma ausência, uma perda. dimensão corpórea do espectáculo, quer à sua dimensão
Ela existe apenas como objecto acessível - ao qual podemos espacial e sonora. Tais procedimentos permitem-nos uma
referir-nos, que podemos discutir e avaliar - àcusta do seu desapa- visão quase microscópica dos processos criativos que
recimento' e esta experiência pressupõe reconhecer condições de geram a sua materialidade, constituindo a directriz e o fio
•
não-acessibilidade. [... ] Não deveria analisar-se a arte da per- condutor da análise objecto do presente capítulo.
formance com base num projecto artístico, ou na experiência sub -
jectiva feita pelo corpo do artista, mas com base na distância ,
entre a apresentação e a percepção, uma distância que se articula 1. CORPOREIDADE
nos documentos e nos testemunhos dos observadores.'
Para os espectáculos, vigora a regra segundo a qual o artista
No fim do espectáculo, os documentos realizados sobre «produtor» não pode ser separado do seu material. Ele
ele e para ele permanecem acessíveis, mas a materialidade produz a sua «obra» - para preliminarmente empregar mais
específica do próprio espectáculo não; esta, para ficar dis- uma vez esta expressão - num material e com um material
ponível' tem de assumir outras formas - vídeos, fotografias, extremamente singular e original: o próprio corpo ou, como
178 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 179
afirma Helmuth Plessner, «O material da própria existên- A natureza humana tende para a liberdade; por isso, o homem
cia»", As diversas teorias do teatro e da arte dramática traz na sua própria pessoa a prova de que, como material para o
remetem permanentemente para esta peculiaridade. Regra teatro, ele éinútil. Porquanto, no teatro moderno, o corpo humano
,
geral, atribui-se especial importância à tensão entre o é utilizado como material, tudo o que nele se representa tem carac-
corpo fenoménico do intérprete, o seu ser-no-mundo cor- ter acidental. [...] A arte, como dissemos, não pode tolerar factos
, -
poreo, e a sua representaçao de uma personagem. Nesta acidentais. Daí que o que o actor nos dá não seja uma obra de
singularidade está patente, segundo Plessner, a distância arte)
fundamental do ser humano em relação a si próprio, razão
pela qual ele vê simbolizada no actor, de modo especial- Sem pretender atribuir, como faz Plessner, um signifi-
mente eficaz, a conduio humana. O homem tem um corpo que cado simbólico à tensão entre o «estar no mundo» corpó-
pode manipular e instrumentalizar como tudo o resto. reo do actor e a sua representação de uma personagem, nem
Porém, ao mesmo tempo, ele é esse corpo, é um corpo- tão-pouco pretender bani-lo da esfera da arte em virtude
-sujeito. Ao sair de si próprio para representar uma perso- da sua não-disponibilidade, como Craig, centrar-rne-ei
nagem com «o material da sua própria existência», o actor nessa tensão como ponto de partida para as reflexões sobre
remete expressamente para a duplicação inerente à distân- a produção de corporeidade no espectáculo. Com efeito,
cia de si. Segundo Plessner, a tensão entre o corpo feno- nesta tensão, identifico, por um lado, a condição da possi-
ménico do intérprete e a sua representação de uma é
·- ~i bilidade para a produção performativa de corporeidade e,
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personagem confere ao espectáculo uma significação por outro, a condição da possibilidade para a sua percepção
antropológica mais profunda e especial dignidade. específica por parte dos espectadores. A produção e a per-
Edward Craig, em contrapartida, vê nessa tensão entre cepção de corporeidade dependem de dois fenómenos em
actor e personagem o motivo principal pelo qual os actores particular: os processos de encarnaçãolembodiment.
deveriam ser banidos do teatro e substituídos por uma sur- ,
ocasionalmente, que a representava, a desempenhava ou, o seu «ser no mundo» corpóreo, o seu corpo fenoménico,
até, era a personagem (<<Cenie é Madame Hensel», como e transformá-lo o mais possível num «texto», feito de
diz Lessing no 20. fascículo da Dramaturgia de Hamburgo),
0 signos que expressassem sentimentos, estados de espírito
a partir daí começou a dizer-se que o actor «encarnava» e tudo o mais que caracterizasse uma personagem. Devia,
uma personagem. Que significava este conceito? pois, anular-se a tensão entre o corpo fenoménico do actor
Na segunda metade do século XVIII, o teatro alemão e a sua representação de uma personagem em prol da
testemunhou dois importantes desenvolvimentos, estrei- representação.
tamente ligados entre si: a formação de um teatro literário E é assim que, na sua Mimik (1785-86), [ohann [akob
e o desenvolvimento de uma nova arte dramática de tipo Engel censurava os actores por fazerem um uso do corpo
realista e psicológico. que chamava a atenção do espectador para o seu corpo
. ,
A tentativa de alguns intelectuais burgueses de enfra- fenoménico, impedindo-o de o percepcIOnar como SIm-
quecer a preponderância do actor no teatro tinha como bolo de uma personagem:
objectivo elevar o texto do dramaturgo a instância de con-
trolo do próprio teatro. O actor tinha de deixar de actuar Não sei que demónio hostil possui os nossos actores, em especial
como lhe sugeria o seu entusiasmo, o seu talento para os do sexo feminino, que fazem do facto de caírem - ou será que
improvisar, a sua comicidade, os seus dotes artísticos ou, devo dizer atirarem-se para o chão? - uma grande arte. Vemos
simplesmente, a sua vaidade e o seu desejo de agradar. uma Ariadne que, depois de ouvir a deusa da montanha ditar-lhe
A sua tarefa devia limitar-se a transmitir ao público os sig- o seu triste destino, se estatela ao comprido no chão - mais
nificados que o autor, servindo-se de meios linguísticos, depressa do que se tivesse sido atingida por um raio e com uma
expressara no seu texto. Na sua performatividade, a arte •
• força tal que dir-se-ia querer abrir o crânio. Se a um episódio
,•
•
dramática devia exprimir apenas os significados que o r-• destes, tão contranatura e tão repugnante, se segue um forte
•
autor encontrara ou inventara e confiara ao seu texto, e não aplauso, este virá por certo das mãos de ignorantes, incapazes de
• • vibrarem com o verdadeiro interesse de uma peça, que compram
cnar outros, pessoais. , fi .
Para preencher esta função, a arte dramática devia os seus bilhetes para ficarem a olhar pasmados e que pre en-
sofrer uma mudança decisiva: ser tal que preparasse o actor riam assistir a um espectáculo de circo ou a uma corrida de
• • touros. O entendido, se também aplaude, fá-lo-á provavelmente
para expnrmr, no seu corpo e com o seu corpo, os signifi-
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cados que o autor expressara com palavras - sobretudo os . com um sentimento de alegria compassiva pelo facto de a pobre
sentimentos, os estados de espírito, os raciocínios e os criatura, que até pode ser uma excelente rapariga, mas é uma má
traços de carácter da dramatis personae. A arte de repre- actriz, sair dali sã e salva. Tais habilidades temerárias [.. .] per-
sentar devia ajudar o actor a fazer desaparecer de cena tencem apenas à tenda de feira, onde todo o interesse incide no
182 ERIKA FISCHER-L1CHTE
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 183
ser humano real que as pratica, na sua agilidade física, e que é quase ideal, no qual as entidades espirituais, isto é, os sig-
tanto maior quanto maior for o risco a que o audaz se expõe.r nificados, podem exprimir-se de modo «puro», não falsi-
ficado, o corpo humano apresenta-se como um medium
No teatro, pelo contrário, o espectador deveria ter apenas assinalavelmente menos digno de confiança para a desco-
a percepção da personagem, emocionar-se apenas com ela. dificação dos signos. Daí que Schiller alertasse para a «tão
Se a sua atenção se dirige para o corpo do actor enquanto duvidosa vantagem da encarnação teatral>". Antes de
corpo fenoménico e para o seu «ser no mundo», ao ponto poder ser utilizado para este fim, o corpo tem, pois, de ser
de o levar a ter uma percepção diferente da disposição inte- despojado, enquanto tal, dos seus atributos corpóreos:
rior ou do estado de espírito da personagem, ele começa a A •
tudo o que remete para o corpo orgamco~ para o «ser no
ter sentimentos «por ele» ou «por ela», e isto «rasga ine- mundo» corpóreo do actor, deve ser rechaçado, de modo a
vitavelmente o véu da ilusão»>, levando-o a abandonar o que apenas permaneça um corpo semiótico «puro». Com
universo fictício da peça e a regressar ao universo da cor- efeito, só um corpo semiótico «puro» tem condições para
poreidade real.
fazer com que os significados consagrados no texto se
Da discussão conduzida por Engel, torna-se evidente manifestem de modo perceptível pelos sentidos e sejam
qual o entendimento sobre o novo conceito de «encarna- transmitidos ao espectador. Assim, a encarnação postula
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ção». O actor devia transformar o seu corpo fenoménico ')l ' uma descorporização enquanto obliteração do corpo e, ao
num corpo semiótica que pudesse ser utilizado como novo II, '
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mesmo tempo, oferece uma resistência à fugacidade do
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portador de signos, como signo material dos sentidos ,
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espectáculo. Os gestos, os movimentos e as palavras do
expressos linguisticamente no texto. Os significados que ," I
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I actor podem, de facto, ser transitórios, mas os significados
,
o autor expressara no texto deviam encontrar no corpo do I, que veiculam existem para lá desses signos efémeros.
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actor um novo signo sensorialmente perceptível, do qual f..
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..' . Embora o conceito de significado subjacente a esta teo-
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era eliminado tudo o que não dissesse respeito à transmis- ria se tenha tornado obsoleto há já algum tempo, e nin-
são desses significados e pudesse influenciá-los, falseá- guém defenda, realmente, que seja possível determinar os
-los, conspurcá-los, contaminá-los ou, de algum modo, «verdad'eiros» significados de um texto dramático por meio
prejudicá-los.
de uma leitura aprofundada? o conceito de encarnação,
Na origem desta concepção está um conceito de signi- I quando aplicado à actividade do actor, ainda hoje é utili-
,
ficado que assenta na teoria dos dois mundos. Os significa- zado e concebido no sentido de uma descorporização deste
dos são entendidos como entidades mentais, «espirituais», género. Em 1983, o estudioso de literatura Wolfgang Iser
que só podem manifestar-se com a ajuda de signos adequa- escrevia o seguinte:
dos. Enquanto a língua representa um sistema de signos
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 185
184 ERIKA FISCHER-L1CHTE •
Para criar a determinabilidade de uma personagem irreal, o actor inequívocas para tal. Pelo contrário, ele transferiu o destino, a apa-
deve tornar-se ele próprio irreal, processo pelo qual a realidade rência' a alma desta figura para os processos simplesmente uni-
do seu corpo é reconfigurada num analogon; deste modo, a uma dimensionais do espírito. Encarado como obra poética. o drama
forma irreal pode ser concedida a possibilidade de aparência é um todo que se basta a si próprio; do ponto de vista da totalidade
do que acontece em cena, ele permanece um símbolo, a partir do
real."
qual essa totalidade não pode desenvolver-se logicamente."
predeterminar a voz nem a entoação, o ritardando ou o accelerando 1· o actor empírico se aproxima mais ou menos. Isto é desde logo
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elas dotadas do mesmo valor e sem que nenhuma seja «mais significados, manifestam-se numa nova concepção da arte
correcta» do que a outra; [... ] Hamlet não pode pois ser interpre- de representar, concebida agora como actividade corpórea
tado retirando-o simplesmente da obra poética, porquanto esta e, ao mesmo tempo, criativa. Dir-se-ia, quando Meyerhold
,•
legitima a interpretação de Moissi, do mesmo modo que legiti- se refere expressamente à tenda dos saltimbancos, à tenda
•
mara as de Kainz ou de Salviati [sic] .'o de feira, ao balagan, tratar-se de uma contestação directa de
Engel; do mesmo modo, dir-se-ia tratar-se de um eco dis-
Simmel fala das «interpretações» diferentes do papel tante o modo como os críticos procuram oferecer resis-
de Hamlet pelos actores Moissi, Kainz e Salvini. No entanto, tência à nova utilização do corpo baseada no carácter
•
se tivermos presente o que afirmou a propósito da diferença acentuadamente sensorial da encenação do Rei Édipo e da
entre língua e corpo, as diferentes versões dadas pelos três Trilogia Oresteia, da autoria de Reinhardt, com o argumento
actores devem-se não apenas a três «interpretações» dife- , de ser de natureza «circense, no sentido mais vulgar do
I
rentes, mas também à sua diferente physis: a «voz», a «en- .• '
termo» e apenas adequada a um público que «cresceu com
toação», os «gestos» e a «aura especial» das suas «figuras as touradasv''.
••
cheias de vida». Por outras palavras, o Hamlet de Moissi, •
•
A reflexão sobre o carácter material do corpo humano
1
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Kainz e Salvini não representa uma encarnação do papel :'. L
ocupa um lugar de primeiro plano no desenvolvimento de
tal como ele é traçado no texto com signos linguísticos. ",.
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,
, uma nova arte de representar. Enquanto Craig, a este pro-
O Hamlet a que Moissi dá corpo não existe senão na inter- pósito, considerava o corpo insuficiente, em virtude da sua
pretação de Moissi, do mesmo modo que o de Salvini só , imprevisibilidade, preferindo, por isso, bani-lo do palco,
existe na sua maneira de o interpretar e através dela. São Meyerhold, Eisenstein, Tairov e muitos outros vêem-no
os seus corpos, com as suas especificidades, e os actos per- como um material infinitamente moldável e controlável,
formativos executados por e com eles que criam a perso- -i -
determinada intenção e que dá indicações para a concretização diferença determinante: enquanto o conceito de encarna-
dessa intenção -, A2 o corpo do actor, o executor, que realiza a ção não considerava a corporeidade em termos de mate-
intenção do construtor (o primeiro A). O actor deve treinar o rialidade, mas de sernioticidade, ou seja, como expressão
seu material - o corpo -, de tal modo que ele execute instan- dos significados contidos no texto literário, Meyerhold e
taneamente as ordens recebidas do exterior (do actor ou do outros vanguardistas, pelo contrário, acentuavam a ideia
encenador) . 12 da materialidade. Os diversos exercícios da biomecânica
não são pensados como signos por meio dos quais devem
O actor vê-se, assim, liberto da dependência da litera- ser transmitidos significados; eles focam e evidenciam deter-
tura. Contudo, o conceito de corpo que está subjacente minadas possibilidades de movimento do corpo, chamam
revela notáveis semelhanças com o conceito de encarna- a atenção para a sua mobilidade, para a sua «excitabilidade
ção. Em ambos os casos, desaparece a tensão entre «ser reflexa», que «contagia os espectadores-", A materialidade
um corpo» e «ter um corpo»: ao sujeito, que dificilmente específica do corpo móvel e dinâmico do actor interage
pode ser concebido como corpo-sujeito, é atribuído um directamente com o corpo do espectador e «contagia-ov",
controlo total sobre o seu corpo-objecto. Enquanto os teó- isto é, transporta-o também para um estado de excitabili-
ricos do século XVII I esperavam fazer desaparecer do corpo dade. Tal não exclui, de modo nenhum, um processo gerador
todos os aspectos sensoriais, decrépitos e defeituosos exis- de sentido, pelo contrário: a ênfase posta na materialidade
tentes na natureza humana no decurso da sua semiotização ..
• do corpo do actor permite ao espectador atribuir significa-
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- ainda que alguns, como Schiller, manifestassem dúvidas ,II
dos completamente novos a essa percepção e, através dela,
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a tal respeito -, em Meyerhold e noutros vanguardistas,
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transformar-se no «criador de um novo sentido-», O actor
o corpo humano aparece como uma máquina susceptível - i'
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produz a sua corporeidade com um potencial capaz de agir
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condicionado pelo próprio corpo nem é determinado por )~
) -. mentos do actor, no de Meyerhold, pelo contrário, parte-se
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ele, antes dispõe dele livremente, como se de qualquer ", do princípio de que é o próprio corpo do actor que, com a sua
outro material moldável se tratasse. Há, todavia, uma dinâmica, influencia directamente o corpo do espectador.
190 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 191
,
Se antes os movimentos do actor deviam traduzir signifi- das limitações do corpo (do intérprete) ; 4) cross-casting. Não
cados contidos no texto literário, agora eles são pensados raro, dois ou mais destes procedimentos são combinados
como uma espécie de estímulo, destinado a induzir exci- entre si.
tação no espectador e/ou a impeli-lo a gerar, ele próprio, 1) Jerzy Grotowski definiu a relação do intérprete com
novos significados. Enquanto antes a performatividade o seu papel de um modo radicalmente novo. No seu enten-
estava ao serviço da expressividade, agora ela é entendida der, o actor não existe apenas para representar uma perso-
como um potencial energético, capaz de suscitar um efeito. nagem e, neste sentido, para a encarnar. Pelo contrário, ele
Num certo sentido, o conceito de uma nova arte dramática concebe o papel definido no texto do dramaturgo como um
proposto por Meyerhold surge como uma inversão do con- instrumento: «[ ... ] o actor deve aprender a usar o seu papel
ceito de encarnação - vira-o do avesso, por assim dizer. como se do bisturi de um cirurgião se tratasse, para se dis-
Dos anos 60 do século passado em diante, nos espectá- secar a si próprio»". O papel deixou de ser o objectivo da
culos teatrais e depeifàrmanceart, testam-se e desenvolvem- actividade do actor, para passar a ser, isso sim, apenas um
-se modos de usar o corpo que, no que se refere à focalização meio para atingir outro fim: deixar o próprio corpo emergir
e à apresentação da sua materialidade, se ligam a con- como algo espiritual, deixá-lo emergir como espírito encar-
ceitos da vanguarda histórica e lhes dão continuidade. nado. A teoria dos dois mundos, sobre a qual assentava o
Distinguem-se deles, contudo, na medida em que não velho conceito de encarnação, tornou-se obsoleta. O actor
pressupõem o corpo como um material totalmente mol- não empresta o seu corpo a uma entidade espiritual, encar-
dável e controlável; consequentemente, partem da dupli- nando assim algo espiritual- no caso concreto, significa-
cação «ser um corpo» e «ter um corpo», da coexistência do dos previamente estabelecidos; leva, sim, o «espírito» a
corpo fenoménica e do corpo semiótica. As utilizações do manifestar-se no seu corpo, conferindo a este agency.
corpo encontram no «ser no mundo» corpóreo dos actores/ Assim, na formação do actor, Grotowski renuncia a
performers o seu fundamento e a sua justificação. Abre-se,
assim, a possibilidade de reintroduzir o conceito de encar- ensinar-lhe o que quer que seja [sic]; procuramos eliminar do seu
,
nação, numa definição completa e radicalmente nova. organismo as resistências ao dito processo psíquico. O resultado
Neste contexto, revelaram-se muito produtivos e fe- é uma libertação do lapso de tempo entre impulso interior e reac-
cundos, sobretudo, quatro procedimentos, que foram e ção exterior, de tal maneira que o impulso já é uma reacção exte-
continuam a ser utilizados nos mais diversos tipos de espec- rior. Impulso e acção coincidem: o corpo desaparece, arde, e o
táculos: 1) inversão da relação do intérprete com o papel espectador não vê senão uma série de impulsos visíveis. O nosso
que desempenha; 2) ênfase e exibição (do corpo) individual caminho é, pois, uma via negativa - não um acumular de aptidões,
do intérprete; 3) realce da fragilidade, da vulnerabilidade e mas a destruição de bloqueios.'?
192 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 193
Para Grotowski, não é possível separar o «ser um corpo quase nu para esculpir formas móveis de surpreendente
corpo» do «ter um corpo». O corpo, para ele, não é um ins- expressividade; nem reside no modo como a técnica do corpo e
trumento, nem um meio de expressão ou um material de da voz formam um todo único nos longos e extenuantes monó-
criação de signos. Pelo contrário, a sua «matéria» é «quei- logos que, seja do ponto de vista vocal, seja do ponto de vista
mada» na actividade do actor e através dela, e transfor- físico, raiam a acrobacia. Trata-se de algo muito diverso. [... ] Até
mada em energia. O actor não domina o seu corpo - nem hoje, tenho aceitado com reserva expressões como «santidade
no sentido proposto por Engel, nem no proposto por secularizada», «acto de humildade» ou «purificação» usados por
Meyerhold; fá-lo, sim, tornar-se o próprio actor: o corpo Grotowski. Hoje, reconheço que elas assentam na perfeição na
age como espírito encarnado (embodied mindi, personagem do Príncipe Constante. Do actor, emana como que
Grotowski descrevia o actor capaz desta prestação uma luz psíquica. Não consigo encontrar nenhuma outra defini-
-
como um «santo»: «E um acto de revelação grave e solene. ção. Nos momentos culminantes do papel, toda a técnica emerge
-
[... ] E como um passo em direcção ao cume do organismo como que iluminada a partir de dentro [.. .]. Dir-se-ia que a qual-
do actor, no qual consciência e instinto se conjugam.v" quer momento o actor vai levitar... Ele está num estado de graça.
O vocabulário religioso relaciona implicitamente o actor E o «teatro cruel» que o circunda, com as suas heresias e os seus
com a figura do Cristo ressuscitado, que, através do seu excessos, transforma-se num teatro em estado de graça. '9
sofrimento, adquire um corpo que é simultaneamente
espírito e carne. O Cristo ressuscitado figura aqui como O próprio léxico escolhido pelo crítico sugere que o
símbolo de um novo entendimento do ser humano, sobre- espectáculo O Príncipe Constante transcendeu, de facto,
tudo um novo entendimento do corpo, no qual é abolida a a teoria dos dois mundos, ao apresentar o corpo do actor
tradicional separação entre corpo e espírito - o espírito é como espírito encarnado (embodied mind). Os paralelos
inteiramente encarnado, e o corpo completamente «espi- entre a praxis teatral de Grotowski e a filosofia tardia de
ritualizado ». Merleau-Ponty são verdadeiramente impressionantes.
Ryszard Cieslak terá sido, porventura, quem mais se A filosofia
, da carne (chair) deste representa uma tentativa
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aproximou da concepção do actor «santo» de Grotowski, ambiciosa de fazer a mediação, de modo não dualista nem
em O Príncipe Constante (1965). A seu respeito, escreve o ,. transcendental, entre corpo e alma, entre sensorial e não
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crítico [ózef Kelera, na revista polaca ODRA XI (1965), sensorial. A relação entre as duas grandezas é pensada
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o seguinte: de modo absolutamente assimétrico, isto é, em prol do
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corpo sensível. E através da «carne» que o corpo se liga ao
o essencial [000] na realidade não reside no facto de o actor fazer t' )':,. mundo. Qualquer intervenção humana no mundo se faz
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um uso surpreendente da sua voz, nem no modo como usa o seu com o corpo, tem de ser encarnada. Daí que, com a sua
•
194 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 195
carnalidade, o corpo transcenda as suas funções instru- específica de cada actor: «Observo o actor, analiso-lhe o
mentais e semióticas." corpo, ouço-lhe a voz, e então, em conjunto com ele, pro-
A filosofia de Merleau- Ponty abriu, pois, o caminho a curo fazer a peça.»>' Desde o início da sua actividade, em
uma nova utilização do termo «encarnação», tal como é finais dos anos 60, que Wilson se concentrou nas carac-
hoje usado pela antropologia cultural, pelas ciências cog- terísticas individuais de cada actor amador, pessoa com
nitivas e pela teatrologia. O que Merleau- Ponty fez para deficiência, estudante de arte dramática, performer ou
a filosofia, fez Grotowski, de modo absolutamente aná- actor com quem estivesse a trabalhar. Acerca de Christine
logo, para o teatro. Com Ryszard Cieslak, surgiu em palco Oesterlein, por exemplo, dizia ele, por ocasião do seu tra-
um actor que superava o dualismo entre corpo e espírito balho em Death, Destruction &- Detroit II [Morte, destruição
- o corpo aparece «iluminado» e o espírito manifesta-se e Detroit II] (1987):
encarnado. Invertendo, de certo modo, a relação entre o
actor e o papel desempenhado, Grotowski criou a premissa Bem vêem, numa actriz como Christine Oesterlein, os olhos são
para uma nova definição do conceito de encarnação. extremamente expressivos, mesmo quando quase não se mexe.
Encarnar significa, aqui, levar a que se manifeste, com e É tão fascinante e penetrante! [... ] Às vezes, está cheia de energia,
através do corpo, algo que apenas existe por meio do corpo. mesmo estando simplesmente sentada. São poucos os que têm
Quer isto dizer que, quando uma personagem - neste caso, esta força em palco [... ]. A maioria dos actores pareceriam está-
o príncipe constante Fernando - se manifesta com e atra- tuas, mas ela é sempre muito viva e perigosa, misteriosa. [...] Há
vés do corpo de Ryszard Cieslak, ela fá -lo apenas na sua nela algo de muito especial que só muito poucos conseguiriam.
unicidade ligada a este corpo específico. O seu fundamento Sei logo que aquilo foi feito para ela."
existencial e a condição da sua possibilidade residem no
«ser no mundo» corpóreo do actor. Ela existe apenas na Se observados segundo critérios convencionais, os
prestação física do actor, e é criada quer pelos actos per- actores cujo «génio específico» foi libertado por Wilson -
formativos, quer pela corporeidade específica deste. nas palavras de Ivan Nagel - fazem muito pouco em cena:
2) O segundo procedimento, a ênfase e exibição do entram' e atravessam o palco, permanecem de pé ou
(corpo do) intérprete/performer individual, explicita esta sentam-se, ficam sentados imóveis numa cadeira ou estão
nova definição, buscando e pondo em evidência os elemen- presos a uma corda que pende da teia; levantam uma mão,
tos básicos da encarnação, com base na premissa do pri- , •,• . um braço, uma perna, e/ou esboçam um esgar sorridente.
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meiro procedimento. Este procedimento é praticado de .' "
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Ou seja, por um lado, executam movimentos que, num
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estar sentado, deitar-se, estar deitado, levantar-se, ir-se rasgo as fotografias dos homens que amei.» A luz, vinda de
embora. Por outro, assumem posições manifestamente cima, incidia sobre a primeira mulher. Em Parzifàl (Thalia
inusitadas: estão pendurados numa corda (Golden Windows, Theater, Hamburgo, 1987), Christopher Knowles entrava
Munique, 1982), ficam em equilíbrio em cima de uma em cena a cantar (uma canção de uma nota só) e, ao mesmo
escada (the CIVIL warS, Colónia, 1984). Todos os movimen- tempo que mantinha em equilíbrio sobre a cabeça um
tos são executados segundo padrões geométricos e rítmicos, tabuleiro, girava sobre si mesmo. E onde quer que cantasse
quase,
sempre em câmara lenta e repetidos várias vezes. e girasse em torno de si mesmo, acendia-se uma luz vinda
E sobretudo este tipo de movimento que atrai a atenção do chão. Em Lear (Schauspielhaus Frankfurt, Bockenhei-
dos espectadores para afisicalidade individual de cada um mer Depot, 1990), no momento em que Marianne Hoppe
dos actores. Poder-se-ia objectar que estes movimentos, parava de falar e de se movimentar, acendia-se uma luz
executados mecanicamente e obedecendo a um rígido clara, ofuscante. O contre-jour, o contraluz - a iluminação
esquema geométrico e rítmico, acabam por apagar a espe- preferida de Wilson -, permite que os corpos dos actores
cificidade individual do corpo e levar a que todos os corpos ou dos performers, os seus gestos e os seus movimentos
se assemelhem uns aos outros. Impõe-se reconhecer, no surjam inundados pela luz, fazendo-os resplandecer na sua
entanto, que a execução aparentemente mecânica e repe- individualidade específica.
titiva do movimento por cada um dos corpos a seu bel- Para tal, contribui um outro procedimento. Habitual-
-prazer permite pôr em evidência, de modo mais eficaz do mente, Wilson trabalha com um fundo de cena plano, fre-
que a chamada expressão individual, a verdadeira especi- quentemente uma tela que serve de superfície para a
ficidade de cada corpo. No teatro de Wilson, os corpos dos projecção de filmes e dos reflexos de luz, ou para a apresen-
actores, movendo-se no palco e atravessando-o, quase se tação de pinturas abstractas. Em regra, Wilson prefere pôr
tornam o tema mais importante e o objecto do espectáculo. os actores/performers a executar os seus movimentos
A apresentação do seu ser específico concretiza aquilo a numa posição paralela ao fundo de cena, pelo que se tem a
que Arthur Danto chamou a «transfiguração do banalv", impressão , de que a corporeidade do actor se dilui na
Mediante o seu ser presente no palco, os corpos dos actores dimensão plana da imagem, sempre que a sua tridimen-
sofrem uma transfiguração. sionalidade não é expressamente realçada pela utilização
O acto de transfiguração é mais acentuado graças ao uso simultânea de contraluz e de overhead liqht. Nos espectá-
da luz. Na encenação de Hamletmaschine (Thalia Theater, culos de Wilson, é frequente o momento em que o corpo
Hamburgo, 1986), por exemplo, uma mulher, sentada a uma do actor parece transpor o palco e converter-se na imagem
mesa, coçava a cabeça e ria, enquanto outra declamava as plana, o momento em que a tridimensionalidade daquele
falas de Ofélia: «Com as minhas mãos ensanguentadas, corpo absolutamente especial e individual ameaça
198 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 199
desaparecer na superfície plana, sem que tal de facto uma personagem surge, pois, como acidental, não sendo
aconteça. utilizada nunca como pretexto para a entrada em cena de
Interpretaram-se os procedimentos adoptados por um performer. Ele pode, inclusive, entrar em cena com o
I •
Wilson para fazer surgir a individualidade do corpo do per- seu propno nome.
former - em particular, a lentidão dos movimentos e a sua Contudo, não deve concluir-se daqui que os seus movi-
repetição, segundo um esquema geométrico e rítmico - mentos sejam totalmente dessemantizados. Eles signifi-
como destinando-se a dessemantizar e a desconstruir a cam, sim, aquilo que executam - por exemplo, levantar a
categoria da personagem dramática. A slow motion e as mão da altura da cintura à altura dos olhos em 45 segun-
repetições, mas também o desempenho dos mesmos dos - e, neste sentido, são auto-referenciais e constituem
esquemas por diferentes performers, levariam os espec- uma realidade específica. Simultaneamente, o processo de
tadores a deixarem de ter a percepção dos gestos e dos intensificação da performatividade é muitas vezes acom-
movimentos do performer enquanto sinais de gestos e panhado por uma pluralização da oferta de significados: os
movimentos de uma personagem, ou do seu estado de movimentos podem despertar no espectador as mais
espírito, mesmo no caso em que o performer, em virtude diversas associações, lembranças e fantasias."
do traje ou das indicações constantes do programa, seja Do mesmo modo, também não se pode concluir que a
identificado com uma personagem. A atenção dos espec- categoria de personagem se tenha tornado aqui obsoleta
tadores orientar-se-ia, pois, para a cadência, a intensidade, - ela é tão-só sujeita a uma redefinição, se bem que radical.
a força, a energia, a direcção, etc., dos movimentos e, deste A personagem deixa de ser definida pelo estado de espírito
modo, para a materialidade específica do corpo do perfor- que o actor/performer deve exprimir com o próprio corpo,
mer e para a sua corporeidade específica, individual. para passar a ser o que é criado e se manifesta através dos
Pode concordar-se com este argumento, no sentido em actos performativos com que o performer produz e mani-
que, de facto, o corpo do performer e a personagem não festa a sua corporeidade. Se a atenção do espectador é
constituem uma unidade em que o corpo individual do per- orientada , para a physis individual do performer, na sua
former se anula na personagem - pelo contrário, ambos '~ ..
materialidade específica, tal significa tão-só que ela é diri-
(~
estão claramente separados. Também aqui, à semelhança ,
;1,.
• gida para a única condição de possibilidade para o apare-
do que acontece em Grotowski, a tarefa do performer não \1
• cimento de algo de semelhante a uma personagem. Para lá
,
é, manifestamente, representar uma personagem. O actor ,. <
, ' da physis individual do actor/performer, não existe perso-
realça a sua própria corporeidade como indivíduo, desta- nagem. É o distanciamento evidente entre performer e per-
cando-a literalmente como corpo artístico por si criado, sonagem, precisamente, que, nos trabalhos de Wilson,
com a ajuda da roupa e da maquilhagem. A referência a realça essa circunstância.
200 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 201
3) Enquanto Wilson obtém muitas vezes este efeito incapazes de estabelecer qualquer tipo de relação com as
mediante a transfiguração do corpo do performer, o grupo personagens que deveriam ser representadas - o que não
Societas Raffaello Sanzio obtém-no pondo em cena corpos exclui que, num caso ou noutro, se pudesse interpretar
monstruosos, desfigurados, «m alditos», corpos que pare- retrospectivamente os seus corpos em conformidade com
cem ter escapado de um inferno bruegheliano. Vêem-se as personagens retratadas. Durante o espectáculo, a fisi-
em cena actores cujos corpos se desviam manifestamente calidade dos actores não era percepcionada como sinal
da «norma», decrépitos, degradados, e simultaneamente identificativo de uma personagem, e sim na sua materia-
uma fisicalidade excessiva, de tal modo que os especta- lidade específica.
dores começam a ter suores frios , as mãos tremem-lhes, Mas o facto de ser difícil, se não mesmo impossível, ter
a respiração abranda ou acelera, sentem-se assustados, a percepção do corpo do actor e interpretá-lo como sím-
repugnados, amedrontados e envergonhados. Em Giulio bolo de uma personagem não significa que o acto de per-
Cesare (Hebbel-Theater, Berlim, 1998), por exemplo, havia cepção se realizasse sem uma atribuição de significado.
um velho inválido, frágil, que mal conseguia manter-se de Com efeito, a corporeidade ali criada surgia marcada pela
pé, e a sua debilidade era, ao mesmo tempo, comovente e idade, pela doença, pela degradação e pela morte ou pelo
assustadora (César). Outro dos actores/performers já fora excesso. Daí, precisamente, que tivesse um efeito tão devas-
submetido a uma operação às cordas vocais. Tinha um tador nos espectadores, daí que desencadeasse de imediato
microfone na laringe para tornar audíveis as suas tormen- reacções fisiológicas e afectivas. O facto de, no final do
tosas e afónicas tentativas de articular o que quer que fosse, espectáculo, ser possível estabelecer um nexo interpreta-
recordando constantemente aos espectadores a sua ferida, tivo entre as physis individuais dos actores e as personagens
a sua enfermidade, a sua deficiência (António). Cícero era a elas associadas pode entender-se como um processo de
um gigante obeso, seminu, com as dimensões de um luta- distanciação, por meio do qual se procurava remover ou
dor de sumo, e parecia afogar-se na gordura do próprio dominar a ameaça imediata que parecia emanar daqueles
corpo; o gorro que lhe cobria a cara reforçava a impressão corpos. ,Durante o espectáculo, o corpo fenoménica do
de se estar perante um monstro sem rosto nem identidade. actor só era corpo semiótica na sua fenomenalidade espe-
Da companhia faziam ainda parte duas actrizes anorécticas, cífica, ou seja, na medida em que apresentava os sinais da
que pareciam estar entre a vida e a morte (uma delas mor- velhice, da doença, da morte, do apagamento da individua-
reu pouco antes da apresentação do espectáculo em Berlim lidade, induzindo, por isso, o medo."
e foi substituída por uma bailarina magríssima). A fisica- Aos olhos do espectador, o corpo do actor e a persona-
lidade individual dos actores tinha um efeito tão imediato gem dissociavam-se, não em virtude de procedimentos
e perturbador nos espectadores, que estes se sentiam performativos específicos, como a slow motion, a repetição
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 203
202 ERIKA FISCHER-L1CHTE
ou a execução de um esquema rítmico e geométrico, mas vestia uma farda de general alemão da Luftwaffe da
em virtude do «ser no mundo» corpóreo dos actores que Segunda Guerra Mundial. Por baixo do boné, tinha a cabeça
se encarna no próprio acto de aparecer e se reforça depois rapada. Interpretava as falas acentuadamente masculinas
em todos os outros actos de encarnação. De certo modo, do general Harras com uma voz feminina, se bem que num
criava-se um círculo vicioso: o «ser no mundo» corpóreo tom rouco e áspero. Em contrapartida, os gestos e os movi-
do actor, o seu corpo fenoménico, tinha um efeito tão cho- mentos eram marcadamente «masculinos». Para o público,
cante no espectador que lhe tornava difícil, se não mesmo era evidente que o papel de Harras estava a ser «desempe-
impossível, interpretá-lo simultaneamente como signo nhado» por uma mulher; desde o início que ele tinha difi-
semiótico em relação a uma personagem. Porém, com isto, culdades em ver na actriz Corinna Harfouch a personagem
o espectador perdia a capacidade de instituir e de manter do general Harras.
uma distância entre o próprio corpo e o do actor, o que o As dificuldades e frustrações do público foram aumen-
expunha novamente, deixando-o quase indefeso perante tando ao longo do espectáculo - por exemplo, quando
o efeito exercido pelo corpo fenoménico do actor. O efeito Corinna Harfouch começou a desabotoar a farda e a despir-
originado pelos actores não tinha, pois, que ver com a per- -se; por baixo, a actriz trazia um body com múltiplos bura-
sonagem que representavam, nem era causado por proce- cos que permitia reconhecer o seu corpo, sem margem para
dimentos específicos relacionados com técnicas de dúvidas, como um corpo feminino. Sentou-se ao colo do
interpretação; dependiam, sim, antes de mais, da singula- parceiro, Kurt Naumann (Hartmann), que acabara de con-
ridade do seu corpo fenoménico individual, que aparecia, fessar ao general ter-se apaixonado por Pützchen, mas que
de um modo especial, como presente. esta o rejeitara em virtude da sua genealogia «racialmente»
4) Antes de analisar estes procedimentos em relação à duvidosa. As mãos de Harfouch tocavam na cintura e nas
performance art e à arte- acção, gostaria de abordar o·cross- ancas de Naumann, descendo depois lentamente para as
-casting como mais um método capaz de chamar a atenção coxas. Durante todo esse tempo, ia dizendo o discurso do
dos espectadores para o corpo fenoménico dos actores, e general ,em que este falava da proveniência da Renânia
de separar o intérprete e o seu corpo da personagem. como o melhor «certificado racial» possível, ao que o inter-
Na sua encenação de O General do Diabo, de Carl Zuck- locutor respondia invariavelmente: «Sim, meu general.»
mayer (Volksbühne da Rosa-Luxemburg-Platz, Berlim, A cena era profundamente incomodativa. O aspecto exte-
1996), Frank Castorf atribuíra o papel do general Harras a rior da actriz apresentava poucos traços que remetessem
dois actores distintos: na primeira parte do espectáculo, até para uma personagem masculina. Tratava-se, inequivo-
ao intervalo, a Corinna Harfouch e, na segunda, a Bernhard camente, de uma mulher sentada ao colo de um homem.
Schütz. Na sua primeira aparição em cena, Corinna Harfouch No entanto, ela não se comportava como uma mulher que
204 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 205
procura seduzir um homem, mas como alguém prestes a seu corpo fenoménico era outro - coisa que a feminilidade
cometer uma violação. A fala de Corinna Harfouch, con- e a masculinidade do corpo realçavam de modo ainda mais
tudo, contradizia os dois pontos de vista. Pergunta-se: drástico.
a actriz agia como a personagem do general Harras, como
a actriz Corinna Harfouch ou como a actriz que interpre-
tava outro papel? Uma personagem masculina fictícia ten- Os procedimentos descritos até agora, pesem embora algu-
tava violar outra personagem masculina fictícia? Estaria mas diferenças notórias, têm em comum a capacidade de
Corinna Harfouch a procurar seduzir uma personagem mas- chamarem enfaticamente a atenção para o carácter espe-
culina fictícia, ou o seu colega Kurt Naumann? Ou estaria cífico e para a individualidade do corpo fenoménico do
a interpretar um papel totalmente diferente, em que ten- performer/actor. Pode acontecer que a personagem desa-
tava seduzir ou violar outro qualquerj'" Os espectadores não pareça temporariamente, como acontece em Giulio Cesare,
estavam em posição de tomar uma decisão clara. O corpo mas, em geral, tais procedimentos não representam uma
inegavelmente feminino e o comportamento inegavel- tentativa de fazer desaparecer a personagem, destinando-
mente masculino, remetendo para a personagem mas- -se, sim, a perturbar profundamente a nossa percepção,
culina do general Harras, divergiam irremediavelmente.'7 que oscila entre a percepção do corpo fenoménico do intér-
Também aqui se tratava das condições em que se pode prete e a focalização na personagem. Enquanto as técnicas
criar uma personagem. A feminilidade do corpo de Corinna de encenação e de interpretação - ou, no caso da Societas
Harfouch remetia para o seu «ser no mundo» corpóreo. Raffaello Sanzio, a iniludível «anormalidade» dos corpos
O seu corpo fenoménico não podia ser separado do corpo dos actores - procuram não só dirigir a atenção para o
., . . .
sermotíco artisticamente criado, o general Harras, nem corpo fenoménico do/da intérprete, mas também fixá-la
diluir-se nele. Mas, por outro lado, isto não quer diz~r que nele, a dramaturgia proporciona à percepção a possibili-
a personagem não podia separar-se desse corpo fenomé- dade de, de vez em quando, se deslocar para a personagem,
nico: ela era, precisamente, esse corpo particular em que com maior ou menor frequência, consoante a situação e o
. "
aparecia: existia em cena graças, apenas, a essa corporei- , •
1'.
tipo de espectáculo. Tal significa que a exibição da corpo-
dade específica, não tendo existência fora dela.
(f.'
reidade individual específica do actor/performer provoca
Depois do intervalo, quando Bernhard Schütz assumiu uma multi-estabilidade perceptiva do género da que
o papel do general Harras, tudo isto se tornou por de mais conhecemos há muito como multi -estabilidade perspec-
evidente. A personagem a que deu vida nada tinha que ver tiva, paradoxos visuais (por exemplo, rosto ou vaso/orna-
com a anterior, não porque ele e Corinna Harfouch tives- mento) e ambiguidade de referencialidade (por exemplo,
sem «concepções» diferentes acerca dela, mas porque o cabeça de coelho ou bico de ganso, rosto ou personagem
206 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 207
com casaco de peles)." As causas desta oscilação da per- contemporâneo joga-se com a multi-estabilidade percep-
cepção ainda não são claras. Que acontece quando um tiva; no foco do interesse está o momento em que a percep-
espectador começa por percepcionar e experienciar um ção salta do corpo fenoménico do actor para a personagem
certo movimento de um actor na sua específica energia, e vice-versa, o momento em que o corpo real do actor, ou a
intensidade, plasticidade, direcção e ritmo, e o capta depois, personagem fictícia, é posta em primeiro plano e focalizada
de repente, como um apelo, uma ameaça ou qualquer outra uma vez por outra, o momento em que o sujeito que percep-
coisa proveniente de uma personagem e, em simultâneo, ciona se encontra no limiar entre estes dois tipos de percep-
o experiencia, porque a corporeidade específica do actor o ção. Mais à frente, analisaremos em pormenor este oscilar
impressiona de um modo particular? Deve-se tal processo da percepção enquanto fenómeno estético, sobretudo no
exclusivamente, ou, pelo menos, principalmente, aos pro- que concerne uma estética do performativo."
cedimentos dramatúrgicos e cénicos que procuram induzir O facto de designarmos com o mesmo nome - Hamlet,
a percepção do espectador a mudar de direcção? Ou será Fernando, Cícero, general Harras - personagens constituí-
que, neste caso, também está em jogo - e, se sim, em que das de modo diverso - pelo leitor, através da linguagem do
medida - a disposição específica do sujeito que percep- texto; pelos vários actores, através da representação; e pelo
ciona, o qual, consciente ou inconscientemente, de quando espectador, através da sua percepção - sugere que a teoria
em vez «sintoniza» diferentemente a própria percepção? dos dois mundos continua a ser válida. A personagem
Ou será que a deslocação ocorre independentemente dos existe, em primeiro lugar, no texto, onde o leitor a encontra
procedimentos cénicos e dramatúrgicos e sem qualquer como fictícia, e esta personagem fictícia é encarnada pelos
intenção por parte do sujeito percipiente? Seja como for, vários corpos reais dos actores; ela simplesmente assume
a percepção estética realiza-se, aqui, como uma oscilação uma forma diferente nos vários espectáculos. Admitamos
entre a focalização no corpo fenoménico e a focalização no agora que estas personagens que designamos com o
corpo semiótico do actor/performer. Neste sentido, ela põe mesmo nome possam ter uma certa parecença de família
o sujeito percipiente numa situação de «nem cá nem lá», - para usar
, uma expressão de Wittgenstein -, exactamente
de «betwixt and between». como designamos por «jogos» os mais diversos tipos de
Enquanto no teatro realista e psicológico se postula jogos. No entanto, para contrariar a força sugestiva contida
recorrentemente, a partir do século XVIII, que o espectador no facto de designarmos com o mesmo nome personagens
tenha a percepção do corpo do intérprete meramente como constituídas de maneiras diferentes, impõe-se realçar que
corpo da personagem - o que, como as reflexões de Simmel o corpo fenoménico do actor não funciona como medium e
já haviam mostrado, tem necessariamente de permanecer signo da personagem constituída textualmente; a persona-
como um postulado que não pode ser satisfeito -, no teatro gem que aparece em cena, enquanto personagem específica,
208 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 209
não pode ser pensada sem o «ser no mundo» específico do Trata-se, pois, de pôr o corpo numa posição paradig-
actor/performer, nem tem existência própria fora do seu mática comparável à que é ocupada pelo texto, em vez de
corpo fenoménico individual, que não pode eliminar. o subsumir no paradigma textual. Para isto mesmo deve-
,
E isto, precisamente, que se encontra subjacente à ria servir o conceito de embodimentlencarnação; este abre
radical redefinição do conceito de encarnação. Ao acentuar um novo campo metodológico em que o corpo fenoménico,
o «ser no mundo» físico dos seres humanos, a encarnação o «ser no mundo» corpóreo do homem, constitui a condi-
cria a possibilidade de o corpo funcionar e ser concebido, ção de possibilidade de toda e qualquer produção cultural.
entre outras coisas, como objecto, sujeito, fonte de cons- O conceito de encarnação deve, pois, funcionar como uma
truções simbólicas, suporte material para a codificação de instância de correcção metodológica relativamente ao
signos e produto de inscrições culturais. Há muito que este poder explicativo dos conceitos de «texto» ou de «repre-
facto óbvio é descurado e, consequentemente, excluído não sentação». Isto é igualmente válido para as ciências cog-
apenas do âmbito teórico dos estudos literários e da tea- nitivas, que tomam cada vez mais em consideração o corpo
trologia, mas também da antropologia cultural. Até recen- no seu todo e não apenas os dados neurofisiológicos. Hoje
temente, esta privilegiou o corpo como tema e objecto da em dia, as correntes mais importantes de investigação,
sua análise, ou examinou-o como fonte da construção de como o enactivism" e o experientialism», partem do pressu-
símbolos em contextos discursivos referentes a domínios posto de que a cognição deve ser entendida e investigada
culturais diversos, como por exemplo o da religião e o das como embodied activity, e que o espírito é sempre encarnado.
estruturas sociais. Consequentemente, a metáfora explica- Este conceito de embodimentlencarnação, como se mos-
tiva da «cultura como texto» dominou a antropologia cul- trou nos argumentos expostos neste capítulo, também é
tural. Thomas Csórdas opôs-lhe o conceito de embodimentl central para uma estética do performativo: os actos perfor-
encarnação, que ele define como «fundamento existencial mativos mediante os quais se produz a corporeidade cons-
da cultura e do si-mesmo»!", contrapondo ao conceito da tituem processos de encarnação que ocorrem no sentido
representação o conceito da «experiência vivida», do «expe- indicado, por este conceito, independentemente do facto
rienciado», Apoiando-se em Merleau-Ponty, Csórdas cen- de com eles se criar uma personagem - como em quase
sura às definições do conceito de cultura elaboradas no todos os exemplos atrás citados - ou não - como acontece
âmbito dos estudos culturais o facto de «nunca terem com frequência na arte-acção e na perfàrmance art.
tomado seriamente em consideração a ideia de que a cul- O grande poder explicativo do conceito de encarnação,
tura se funda no corpo humano»>. Este ponto de vista cons- tendo em vista a arte-acção e a perjOrmance art, surge clara-
titui, em sua opinião, a premissa fundamental que confere mente nas performances em que os artistas se envenenam,
sentido à discussão acerca da cultura e do corpo. se ferem, violentam os próprios corpos das maneiras mais
210 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 211
diversas ou, como no caso de Marina Abramovié em Lips Night Softly, realizado na Main Street de Los Angeles em
ofThomas ou Rhythm o, se expõem a um perigo de morte. Setembro de 1973, caminhou nu e com as mãos atrás das
O que quer que seja que os artistas produzam com o pró- costas uns bons 15 metros, por cima de estilhaços de vidro,
prio corpo deixa nele vestígios visíveis, que remetem para respirando com dificuldade e sangrando de múltiplas feri-
um processo de transformação. Ao produzirem a própria das causadas pelos vidros. Quase não havia espectadores,
corporeidade, específica e individual, eles executam acti- apenas alguns transeuntes ocasionais (a acção foi filmada).
vidades através das quais encarnam a fragilidade do seu Trans-Fixed (Venice, Califórnia, 1974) foi apresentada den-
corpo, o seu estar à mercê da violência, a sua vitalidade e tro e fora de uma pequena oficina na Speedway Avenue, em
a exposição ao perigo que daí resulta. As feridas que se Venice. Burden pôs-se de pé em cima do pára-choques tra-
auto-infligem ou que deixam que outros lhes inflijam evi- seiro do seu Volkswagen, flectiu as costas para trás e esten-
denciam e ampliam a contínua transformação a que os deu os braços sobre o tejadilho do carro. As suas mãos
organismos vivos estão sujeitos, tornando-a acessível à foram fixadas ao tejadilho com pregos, que as atravessavam
-
percepçao. de um lado ao outro. A porta da oficina foi depois aberta,
O performer americano Chris Burden realizou, à seme- e o automóvel empurrado para a rua. Ao mesmo tempo que
lhança de Marina Abramovié, uma série de performances se apresentava assim crucificado aos espectadores, o motor
em que se feria ou punha em perigo a própria vida. Em Five- da viatura roncava no máximo. Dois minutos depois, Bur-
-Day-Locker-Piece (1971), depois de ter jejuado vários dias, den foi retirado, o carro foi de novo empurrado para dentro
fechou-se durante cinco dias num armário com 60 centí- da oficina e a porta fechada."
metros de altura, 60 centímetros de largura e 90 centíme- Os elementos rituais presentes nas performances
tros de profundidade, na Universidade de Irvine. Noutro de Abramovié e de Burden são por de mais evidentes,
armário colocado por cima deste, havia um contentor de encontrando-se também noutros artistas que deram vida
15 litros cheio de água. Um tubo transportava a água do e desenvolveram o «género» de performance de automu-
contentor superior para o contentor onde Chris Burden se tilação. Michel Journiac, por exemplo, em Messe pour un
encontrava fechado e por baixo do qual havia um contentor
•
corps (1969), fez jorrar o próprio sangue diante dos espec-
vazio, também com 15 litros de capacidade. Mal Burden tadores para depois fazer com ele um pudim que lhes ofe-
ficasse fechado à chave dentro do armário, o público deve- recia (<<Tomem, este é o meu sangue ... »). Em Rituel pour
ria abandonar a sala, que foi também fechada à chave e só un mort (1976), infligia queimaduras em si próprio com um
seria reaberta cinco dias depois. Na sua peça Shoot, do mesmo cigarro. Ainda mais radical era o modo como Gina Pane
ano, Burden mandou que disparassem sobre o seu braço lidava com o próprio corpo. Desde o primeiro trabalho,
esquerdo de uma distância de cinco passos. Em Through the Projetsdesilence (1970), e sobretudo nos que se seguiram a
212 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 213
Escalade Sanglante (1971) - onde, descalça e sem qualquer culturais e até, talvez, evocar o seu contexto, mas não eram
protecção nas mãos, trepava por uma estrutura semelhan- executadas nem percepcionadas como se lhes pertencessem.
te a uma escada, com arestas pontiagudas e cortantes -, As performances conseguiam desenvolver a sua eficá-
a artista expôs-se reiteradamente a graves perigos para o cia específica precisamente por lhes faltar esse contexto.
corpo e para a própria vida, como em Sanq, lait chaud (1972), Expunham os espectadores a acções mediante as quais os
Transfert (1973), Psyché (1974) eLe cas n. 2 surle ring. Assim, actores rompiam os limites do próprio corpo e exerciam
engoliu cerca de 300 gramas de carne picada podre enquanto violência sobre ele - fazendo o que os espectadores temiam
via o telejornal numa posição extremamente incómoda; e procuravam evitar -, sem mitigarem a brutalidade dessa
fez vários ferimentos em si própria com uma lâmina de violência, remetendo para uma realidade que conferisse
barbear; gargarejou com leite durante horas a fio, até o san- um sentido superior e transcendente a tais acções ou que,
gue se misturar com o líquido que era cuspido; partiu vidro como por magia, poupasse os espectadores. Pelo contrário,
com a boca, e uma placa de vidro com o corpo; caminhou estes eram confrontados com essa brutalidade completa-
sobre uma grelha com uma fogueira por baixo, com as cha- mente desprotegidos, e entregues ao horror ou ao prazer
mas a lamberem-lhe continuamente os pés descalços, sado-voyeurista. Pode, pois, supor-se que, com a percepção,
como num ordálio medieval... 35 tenham sido desencadeadas fortes reacções fisiológicas,
Os ferimentos que estes artistas se auto-infligiram e afectivas, energéticas e motrizes, ameaçando apoderar-se
. , , . 36
os pengos a que se expuseram trazem -nos a memona, em dos espectadores.
certa medida, as práticas culturais com que freiras, monges, Um tal efeito deve-se ao facto de os artistas, com os feri-
mártires, santos - e loucos - procuravam reproduzir o auto- mentos que se auto-infligiam, não expressarem um qual-
-sacrifício de Cristo. Contudo, seria enganador pretender quer significado, no sentido da teoria dos dois mundos, mas
equiparar as performances a essas práticas, ou avaliá-las encarnarem a violência exercida contra eles próprios no
com base nelas. No caso dos ritos auto-sacrificiais, o hor- sentido mais verdadeiro da palavra. Se o novo conceito de
ror e o prazer sado-voyeurista era atenuado e transformado encamqção se refere a tudo o que é gerado através dos actos
pelo facto de, no contexto de uma cultura cristã, o sacrifício performativos com os quais o performer produz, antes de
de si próprio ser percepcionado e interpretado como uma mais, a própria corporeidade, então ele revela-se especial-
imitação do sacrifício de Cristo, e parecia garantir aos espec- mente adequado para abarcar o que os artistas executavam
tadores, de modo mágico, a própria integridade física e o nas performances de automutilação.
próprio bem-estar corporal. As performances em causa,
pelo contrário, prescindiam de um tal contexto. Como *
performances artísticas, podiam aludir a essas práticas
214 ERIKA FISCHER-UCHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 215
Grotowski definia como «santo» o actor capaz de empres- um estado permanente, que, contudo, apenas se mantém
tar agency ao seu corpo, encarnando-o quer no sentido de mediante um embalsamamento, que impeça a sua decom-
«ser um corpo», quer no de «ter um corpo», e definia esta posição. Uma vez nesse estado, ele pode ser trabalhado, tra-
encarnação como um «acto de revelação». O crítico Kelera tado e modelado não só no âmbito de processos rituais, mas
utilizou, em relação a Ryszard Cieslak, as expressões «ilu- também em processos artísticos - como mostrou cabal-
minação» e «estado de graça». A propósito do teatro de mente Gunther von Hagen na sua exposição Kiirper-welten.
Wilson, falei de corpos «transfigurados» e de processos de Enquanto corpo vivo, contudo, ele opõe-se obstinadamente
«transfiguração»; relativamente ao Giulio Cesare da Societas a toda e qualquer tentativa de o qualificar como obra de arte
Raffaello Sanzio, falei de corpos «malditos», que pareciam ou de fazer dele uma obra de arte. O actor/performer não
saídos de um inferno bruegheliano, e, relativamente às per- transforma o seu corpo vivo numa obra de arte; submete-se,
formances de automutilação, falei de «violência ritual». sim, a processos de encarnação, nos quais o corpo vivo se
Há boas razões para usar esta terminologia religiosa ou, torna outro, transforma-se, recria-se - e acontece.
pelo menos, com conotação religiosa. Com ela, não se pre- Não é, pois, por acaso que, com a ênfase que põem na
tende sacralizar o corpo do actor/performer, nem tão-pouco corporeidade, os espectáculos de teatro, de arte-acção e de
sugerir essa sacralização. Pelo contrário, este vocabulário performance art não podem ser descritos nem apreendidos
deveria remeter explicitamente para o facto de o corpo como obras de arte, são incomensuráveis com a ideia de
humano - como já fora reconhecido por Craig - não repre- obra de arte. Tal pode também ser entendido, entre outras
sentar um material semelhante a qualquer outro, passível coisas, como uma reacção à crescente mediatização da cul-
de ser trabalhado e modelado como muito bem se queira, tura. Norbert Elias descreveu o processo civilizacional
. "
mas SIm um orgamsmo VlVO, em permanente devir, num como um processo de abstracção progressiva, no qual a
•
processo de constante e persistente transformação. Para ele distância do ser humano relativamente ao seu próprio corpo
não existe uma condição do Ser; ele conhece o Ser apenas e ao corpo dos outros seres humanos é cada vez maior.'?
como Devir, como processo, como mudança. Com cada No século, xx, este processo alcançou o zénite com a inven-
batimento de pálpebras, cada inspiração, cada movimento, ção e a difusão dos novos media: os corpos volatilizam-se
o corpo recria-se, fica diferente, encarna-se novamente. em representações mediáticas que, apesar da aparente pro-
Por este motivo, ele mantém-se não disponível. O ser-no- ximidade, se entrincheiram e se subtraem a todo o tipo de
•
-mundo próprio do corpo, que não é, devém, contradiz vee- contacto. As fantasias do corpo virtual, do corpo astral tec-
mentemente todo e qualquer conceito de obra. O corpo nologicamente reproduzível que daí resultam, o teatro e a
toma-se obra apenas através da sua mortificação, como perjõrmance art contrapõem resolutamente o ser-na-mundo
cadáver. Só assim alcança, pelo menos transitoriamente, corpóreo do actor/performer e o conceito de embodied mind
216 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 217
resume o estado da polémica na época, quando, a título de com carácter eminentemente valorativo, destinado a fim-
introdução, compara pintura e teatro: «O pintor limita-se damentar as vantagens e as desvantagens do teatro, bem
a representar os acontecimentos. O actor, em certa medida, como a sua posição de superioridade ou de inferioridade
fá-los acontecer de novo.»38 Dois séculos e meio depois, relativamente às outras artes. Assim, sejam os Padres da
o encenador Peter Stein chega a uma conclusão idêntica Igreja, sejam os participantes na Quere/h:40, todos atribuem
quando - continuando a estabelecer uma comparação com ao teatro, em virtude dessa presença aqui e agora, a capa-
a pintura - exalta o «milagre» do teatro, que permite ao cidade de produzir nos espectadores um efeito imediato ao
actor «poder dizer, ainda hoje: sou Prometeu. [... ] Se hoje nível dos sentidos, suscitando emoções fortes, assombro-
alguém pintar como Piero della Francesca e disser: uso cores sas. A atmosfera num teatro é sentida e descrita como peri-
feitas de casca de ovo, trata-se, na melhor das hipóteses, de gosamente contagiosa". Os actores, no palco, executam
um imitador. O actor, pelo contrário, não imita, encarna o acções envoltas em paixões, que os espectadores tomam
papel como há 2500 anos».39 como verdadeiras, deixando-se contagiar por elas - tam-
Sainte-Albine e Stein insistem ambos no facto de, em bém neles elas provocam paixões. O contágio ocorre por via
teatro, os acontecimentos se referirem sempre a um aqui da percepção, que transfere a infecção do corpo presente do
e agora, directamente diante dos olhos e dos ouvidos dos actor para o corpo presente do espectador, e só é possível
espectadores, que deles têm a percepção e se tornam tes- graças à presença aqui e agora dos actores e dos aconteci-
temunhas. Os dois insistem na legitimidade do topos da mentos, ou seja, graças à co-presença corpórea de actores
presença aqui e agora do teatro. e espectadores. Sob este ponto de vista, quer os defensores,
Este topos indica, antes de mais, que o teatro, ao contrá- quer os detractores do teatro estão de acordo, indepen-
rio da epos, do romance ou de uma sequência de imagens, dentemente do facto de interpretarem a excitação das pai-
não conta uma história que se desenrole noutro lugar e'nou- xões como uma catarse terapêutica ou - como sustentava
tro tempo, antes apresenta directamente diante dos nossos Rousseau na segunda metade do século XVIII 42 - como uma
olhos acontecimentos que ocorrem hic et hunc e dos quais perturbação profundamente nociva, que afasta o homem
o espectador tem uma percepção hicethunc. Neste sentido, de si próprio e de Deus. Quer os defensores, quer os detrac-
o que os espectadores vêem e ouvem num espectáculo está tores do teatro realçam o facto de a presença aqui e agora do
sempre efectivamente presente. O espectáculo é sempre teatro ter como consequência uma transformação do espec-
vivido como completude, apresentação e, ao mesmo tador: ela «cura-o» da «doença» das paixões, mas condu-
tempo, decurso do presente. -lo a uma perda ou, pelo menos, a uma mudança da própria
Nos debates sobre teatro, o conceito de presença aqui identidade. A presença aqui e agora do teatro encerra, pois,
e agora, que usamos numa acepção descritiva, é utilizado um potencial transformador profundamente eficaz.
220 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 221
Na Querelle, os detractores do teatro identificaram, além poder de atracção, directamente exercido sobre o corpo do
da presença aqui e agora dos acontecimentos representados, espectador. Pelo contrário, o espectador devia ter a per-
uma outra fonte de eficácia do espectáculo que localizam cepção do carisma da personagem, da sua força de atrac-
directamente no corpo do actor, seja qual for a personagem ção específica - também ela erótica -, de modo a que o seu
que ele representa ou as acções que executa. Em sua opi- desejo se orientasse no sentido da personagem e não do
nião' os atributos físicos de uma actriz ou de um actor exer- seu intérprete.
ciam uma atracção erótica nos espectadores do sexo Como já amplamente explanado, os esforços tendentes
oposto, seduzindo-os e despertando neles desejos lascivos a fazer desaparecer por completo o corpo fenoménico do
ou até adúlteros. actor no seu corpo semiótica estavam, por toda uma série
Os detractores do teatro distinguiam, pois, dois tipos de razões, destinados ao fracasso. Com o posterior desen-
de presença no teatro: a presença aqui e agora, possibili- volvimento do conceito de encarnação, no século XIX e tam-
tada e realizada pelo corpo semiótico do actor através da bém' em parte, no século xx (ainda hoje tem apoiantes),
representação das acções envoltas em paixões de uma per- esta incongruência levou a que a distinção entre a presença
,•
sonagem; e a presença aqui e agora que é dada com o corpo ,
, aqui e agora da personagem e do actor se fosse transfor-
1, mando, pouco a pouco e quase sem se dar por isso, numa
fenoménico do actor, simplesmente com o seu estar pre-
sente. Enquanto o corpo semiótica age no espectador por distinção entre diferentes estratégias artísticas utilizadas
via do contágiov, o corpo fenoménico está em condições pelo intérprete: as que realçam a presença aqui e agora da
de agir no espectador mediante o poder de atracção erótica personagem representada, e as que apresentam especifi-
que lhe conferem os seus atributos físicos específicos. camente o actor, pondo em evidência o seu «carisma», que
,
Designarei por conceitofiaco de presença o tipo de presença supera o da personagem.
aqui e agora dado pela mera presença do corpo fenoménico ,~ "
Se passarmos em revista, por exemplo, as críticas
,
do actor. . redigidas entre 1922 e 1962 a interpretações de Gustaf
,,.
Ao fazerem esta distinção, os detractores do teatro ,,'. Gründgens (1899-1963) - um actor que apoiava firme-
,
revelavam-se muito mais perspicazes do que os seus opo- mente os conceitos de teatro literário e de encarnação, na
sitores. Os argumentos que utilizaram foram grandemente sua acepção no século XVI I I -, encontramos uma série de
responsáveis pelas tentativas, no século XVI I I, de fazer desa- elementos que demonstram que a atenção dos espectado-
parecer o corpo fenoménico do actor no seu corpo semió- res não se voltava apenas para a personagem representada,
tica. O «contágio» pelo corpo semiótico, pela personagem mas também para a presença aqui e agora do intérprete.
por ele representada, devia permitir conservar, se bem que Tal acontecia, sobretudo, em resultado de dois tipos de
modificado, o carisma do actor, mas não devia actuar como procedimentos: em primeiro lugar, a ocupação, melhor
222 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 223
dizendo, o domínio do espaço. Numa das primeiras críticas tornava presente aos olhos do espectador. Herbert Ihering,
dedicadas à sua interpretação de Marinelli, na peça Emitia na crítica que fez à sua interpretação de Mefistófeles, na
Galotti (Stadttheater, Kiel, 1922), afirmava-se: «Que domí- encenação de Fausto da autoria de Lothar Müthel (Staats-
nio do espaço, o seu - com uma liberdade de movimentos theater, Schauspielhaus am Gendarmenmarkt, Berlim,
quase de bailarino! Sim, foi isto, acima de tudo, que nos 1932), escrevia:
ficou gravado na memória. Era de tal modo extraordinário
que logo nos esquecemos de pensar no que estava a repre- Não é fácil penetrar na atitude reservada da plateia de um Staats-
,
sentar. »44 E quando da encenação de Rei Edipo de Sófocles theater. Trata-se de um público que já deixou muitos exaustos.
(Schauspielhaus, Düsseldorf 1947), que ele próprio reali- Gründgens desassossega-o. Impõe-se. Provoca. Mas obriga as
zou e onde interpretava o papel de Édipo, Gerd Vielhaber pessoas a ouvi-lo. [oo.] A ruptura do tédio, no Staatstheater, é por
escrevia: «Como explicar a corrente mágica que se estabe- si só um acontecimento.s"
lece com a plateia quando Gründgens aparece? Quando
percorre o espaço e lhe dá forma [... ] » 45 Ambos os críticos, Em Gründgens, esta capacidade de gerar presença não
com um intervalo de vinte e cinco anos, destacam o facto estava em contradição com a representação nem com a
de Gründgens dominar o espaço a partir do momento em interpretação de uma personagem, mas também não podia
que pisa o palco, e de ser esse domínio do espaço, precisa- ser-lhe atribuída. Ela resultava de processos de encarnação,
mente, a exercer um efeito tremendo nos espectadores, mediante os quais o actor exibia, de um modo específico,
antes mesmo que estes consigam ter uma ideia da repre- o seu corpo fenoménico em vez do seu corpo semiótico.
sentação da personagem. O actor torna-se presente para Partindo desta base, é possível tentar uma outra defini-
os espectadores, surge-lhes irrefutavelmente presente gra- ção do conceito de presença, referido não ao corpo semió-
ças à sua peculiar capacidade de dominar o espaço antes tico do intérprete, mas ao seu corpo fenoménico. A presença
mesmo de ter oportunidade de exibir as suas capacidades é uma qualidade puramente performativa, e não expres-
expressivas na interpretação de uma personagem - capa- siva. Ela é gerada por processos de encarnação específicos,
cidade que demonstrava em todos os papéis, independen- mediante'os quais o intérprete apresenta o seu corpo feno-
temente da personagem. ménico de um modo que lhe permite não só dominar o espa-
• •
O intérprete conseguia, pois, não só dominar o espaço ço, mas também forçar o espectador a prestar-lhe atenção.
cénico, como todo o espaço teatral. Dominava-o, agindo Pode então pressupor-se que a capacidade do intérprete
sobre o espectador de um modo misterioso e «mágico», ' II
;> '
para gerar presença se deve ao domínio de determinadas
1'1
I r-
,.
,
obrigando-o a concentrar em si toda a atenção. Este parece técnicas e práticas, às quais os espectadores reagem - seja
ser o segundo traço característico com o qual Gründgens se ". imediatamente quando da sua primeira entrada em cena,
_i
224 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 225
prosseguindo depois ao longo de todo o espectáculo, seja estar muito próximo, ele esquiva-se a qualquer aproxima-
apenas em momentos especiais. Para o espectador, que ção, surgindo como afastamento. A presença, pelo contrá-
sente esta presença, melhor dizendo, é por ela atingido rio, constitui-se como uma modalidade particularmente
como por um raio - como uma «corrente de magia» -, ela intensa de presença aqui e agora. Benjamin, por outro lado,
surge imprevisivelmente; o seu aparecimento, inexplicável, prossegue: «O homem que, numa tarde de Verão, se aban-
está fora do seu controlo. Ele sente o poder que emana do dona a seguir com o olhar o perfil de um horizonte de mon-
actor e o constrange a concentrar nele toda a sua atenção, tanhas ou a linha de um ramo que sobre ele deita a sua
sem contudo sentir que se trata de uma violência, e sim, sombra - esse homem respira a aura dessas montanhas,
pelo contrário, de uma fonte de energia. Os espectadores desse ramo.» A aura «respira-se», ou seja, é fisicamente
sentem, com inusitada intensidade, que o actor está pre- absorvida, tal como acontece com a presença quando o
sente, o que lhes permite, por seu lado, sentirem-se tam- espectador experiencia fisicamente a força que emana do
bém presentes de um modo especialmente intenso. Para actor. A relação entre aura e presença permanece, pois, por
eles, a presença acontece como uma experiência intensa esclarecer.
,
de presença aqui e agora. A capacidade do actor de domi- A razão pela qual a presença pode cumprir, uma pro-
nar o espaço e de prender a atenção chamarei conceito fone messa de felicidade continua a ser um enigma. E certo que
de presença. não podemos deixar de concordar com Martin Seel, quando
Esta definição de presença, ainda muito provisória e afirma que «ansiamos por experienciar a presença das nos-
largamente baseada em considerações tecidas a propó- sas vidas», e que «queremos viver os presentes em que
sito do modo como Gustaf Gründgens aparecia em palco existimos como presenças sensoríaís--": mas daqui resulta,
- logo, sem tomar em consideração o pajbrmative tum dos simplesmente, uma necessidade de experienciar presença
anos 60 do século passado, nem os desenvolvimentos em certos momentos, e não que a satisfação desta neces-
ocorridos posteriormente -, só em parte consegue dar uma sidade cumpra uma promessa de felicidade.
resposta exaustiva às perguntas feitas anteriormente. A definição
, dada até agora do conceito de presença não
,
E certo que a presença resulta de processos de encarnação só responde de modo rudimentar às perguntas que come-
específicos; contudo, não é claro o modo como ela se com- çámos por fazer, como suscita outras. Que deve entender-
porta relativamente à reauratização a que se fez referência. -se por «corrente de magia», que por ora descrevi como
Benjamin, como se sabe, define a aura como «a aparição «força»? Mas, sobretudo, o que é que se manifesta quando
única de um longínquo, por mais próximo que esteja»:". Tal o intérprete nos aparece presente? Estamos perante a pre-
significa que a auratização implica um certo afastamento; sença do seu corpo fenoménico, ou de uma qualidade
mesmo quando um fenómeno associado à aura parece muito específica deste corpo fenoménico?
226 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 227
A partir dos anos 60 do século passado, artistas do pois, importantes contributos para o esclarecimento das
teatro, da arte da acção e da performance tentaram repeti- duas últimas perguntas formuladas.
damente encontrar respostas para estas perguntas. Basea- Eugenio Barba interessou-se pela primeira pergunta
ram as suas experiências performativas numa oposição de uma maneira quase obsessiva, e não apenas com ence-
radical entre presença e representação/interpretação que nações como Omitojilene (1965-66), Kaspariana (19 67-68),
lhes permitia isolar o fenómeno da presença e «ampliá -lo», Ii Milion (1978; quarta versão 1982-84), Le Ceneri di Brecht
A arte-acção e a performance art, mais recentes, lutavam, (19 82 - 84), Il Vangeio di Oxyrhinco (1985), realizadas com o
como tem sido realçado, não apenas contra a comerciali- seu Odin Teatret em Holstebro (o «Nordisk Teaterlabora-
zação da arte e o carácter de mercadoria da obra de arte, torium for Skuespillerkunst») e apresentadas a públicos
mas também, com igual veemência, contra a convenção diferentes, em diversas partes do mundo, mas também
vigente no teatro segundo a qual se apresentavam como através das International Schools ofTheatre Anthropology,
presentes universos fictícios, com personagens fictícias, de que foi fundador e organizador, as quais efectuam regu-
retirados de um texto literário já existente. Este tipo de tea- larmente conferências em várias cidades europeias desde
tro era considerado o ponto culminante da representação, 19 80. Barba estabelece uma distinção entre um nível pré-
a sua presença aqui e agora como simplesmente represen- -expressivo e um nível expressivo da arte de representar.
tada, um mero «como se». A isso, os artistas da arte-acção Enquanto ao nível expressivo se representa alguma coisa,
, . .
e da performance contrapuseram uma presença «efectiva». o pre-expressivo serve apenas para expor a presença aqui
O que se passava numa acção ou numa performance acon- e agora do intérprete, e é nele que Barba localiza a presença.
tecia realmente, em espaços reais e em tempo real, sempre Tendo observado que a «corrente de magia», de que falava
hic et hunc. Gert Viehaber ao referir- se a Gründgens, se transmitia com
O teatro completou a oposição entre representação e especial intensidade nos espectáculos de certas formas de
presença quebrando a unidade do actor com a personagem teatro indiano e do Extremo Oriente, Barba investigou as
- até então, com excepção das vanguardas históricas, técnicas,e práticas utilizadas pelos mestres desse tipo de
amplamente consensual -, separando, de modo sempre teatro e, nas discussões mantidas com eles, chegou à con-
inovador, o actor da personagem e levando mesmo, em clusão de que o objectivo de tais técnicas e práticas é pro-
certos casos, ao desaparecimento desta. Com isto, não só duzir no intérprete uma energia capaz de ser transmitida
se redefinia o conceito de encarnação, como se mostrou no aos espectadores."
parágrafo anterior, como também, ao mesmo tempo, se Se acompanharmos o ponto de vista de Barba, não basta
submetia o fenómeno da presença a uma análise minu- qualificar os processos de encarnação que o actor executa
ciosa. Quer a arte da acção, quer a performance deram, para gerar presença como produção de uma corporeidade
•
ESTETlCA DO PERFORMATIVO 229
228 ERIKA FISCHER-L1CHTE
capaz de dominar o espaço e de magnetizar a atenção do - como Barba sublinha - não apenas se opõem às práticas
espectador. Nesses processos, em causa está antes de mais corporais do dia-a-dia, como provocam, ao mesmo tempo,
a criação de energia, ou seja, eles requerem que o próprio uma fractura na percepção do espectador, produzindo
corpo surja como energético. O intérprete utiliza certas novas tensões.
técnicas e práticas de encarnação para produzir a energia As técnicas e práticas adoptadas pelos coros de Schleef
que circula entre ele e os espectadores, actuando directa- para criarem o seu corpo fenoménica como energético con-
mente sobre estes. sistiam em movimentos e falas rítmicas, produzindo,
A «magia» da presença consiste, pois, na capacidade assim, uma enorme energia, que era sentida pelos espec-
peculiar do actor de produzir energia de modo a permitir tadores e os induzia a criarem-se como corpo energético.
que esta circule no espaço, toque o espectador e se impregne Também aqui o ritmo provocava uma fractura na percepção
nele. Esta energia é a força que emana do actor." Na me- do espectador, transportando-o para um limiar em que
dida em que consegue induzir o espectador a produzir constantemente surgiam novas tensões.
energia, este também sente o intérprete como fonte de Enquanto em Grotowski era a coincidência do estímulo
energia - uma fonte de energia que brota repentina e ines- com a reacção que criava no espectador a impressão de
peradamente e que flui entre actor e espectador, transfor- uma presença especial, possibilitando que também ele se
mando ambos. tornasse energético, em Wilson, tal era possível graças às
Barba descreve e define como um jogo de opostos as técnicas da slow motion, da ritmização e da repetição. Quer
técnicas e práticas com que os mestres indianos e do isto dizer que as técnicas e as práticas visando separar o
Extremo Oriente produzem a energia que os faz surgir intérprete da personagem, bem como exibir a fisicalidade
vivos, presentes, aos espectadores. As posições-base dos individual do intérprete - de que tratámos anteriormente
• -, podem também ser descritas como ferramentas gera-
actores/bailarinos orientais, por exemplo, nascem de uma
alteração do equilíbrio que caracteriza a técnica diária de doras de presença. Com efeito, são elas que permitem ao
utilização do corpo. Procura-se um novo equilíbrio que intérprete fazer surgir o seu corpo fenoménica como corpo
•
energético, induzindo o espectador a sentir-se, também
exige maior esforço e utiliza novas tensões para manter o
corpo na vertical. Além disso, não raro, os actores orientais ele, energético.
iniciam as suas acções indo na direcção contrária à que O debate em torno do conceito de presença levado a
realmente pretendem: se querem ir para a esquerda, come- cabo pelo teatro, pela arte da acção, pela performance e
çam por dar um passo para a direita e só depois, com uma pela teoria estética desde a viragem performativa está rela-
súbita mudança de percurso, vão para a esquerda." Trata- danado, de modo muito acentuado, com a dicotomia corpo-
-se de técnicas e de práticas de utilização do corpo que -espírito dominante na tradição ocidental. Com efeito, o que
230 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 231
fascina no fenómeno da presença é o facto de componentes como força vital. A isto, gostaria eu de chamar conceito radi-
físicas e espirituais conviverem e interagirem de um modo cal de presença.
específico. Por conseguinte, a presença - como é frequen- Este conceito esclarece de imediato por que razão a
temente realçado - não é, «antes de mais, um fenómeno promesse de bonheur do processo civilizacional se pode cum-
físico real, mas mental». «A presença é um processo da prir na presença do intérprete. O processo civilizacional no
consciência "alheio ao tempo" - instalado simultanea- Ocidente assenta na dicotomia espírito/corpo, e a eficácia
-
mente dentro e fora do passar do tempo. »5 E certo que não
2
com que progride é tanto maior quanto melhor o homem
podemos deixar de concordar com Lehmann quanto ao for capaz de submeter o seu corpo ao controlo do espírito,
facto de a presença dever ser entendida como um processo de abstrair-se do próprio corpo e libertar-se dos vínculos
da consciência. No entanto, este processo articula-se atra- impostos pela sua existência física. No final deste pro-
vés do corpo e é sentido pelo espectador no próprio corpo. cesso, a dicotomia é superada e o corpo é transformado em
Por isso, do meu ponto de vista, a presença representa um «espírito». A presença cumpre, de facto, a promessa - faz
fenómeno que a dicotomia corpo/espírito ou consciência desaparecer a dicotomia corpo/espírito -, mas não como
não pode abarcar; de facto, a presença desfaz essa dicoto- Elias imagina: ao anular a dicotomia, a presença permite
mia. Quando exibe o seu corpo fenoménica como corpo ao intérprete manifestar-se como embodied mind, propor-
energético e produz presença, o actor surge como embodied cionando assim ao espectador a possibilidade de, além
mind, ou seja, como um ser em que corpo e espírito/cons- de o experienciar, se experienciar a si próprio como embo-
ciência não são separáveis, pelo contrário: um implica diedmind.
sempre o outro. Em vez de ser relegada para o fim do processo civiliza-
Tal não é válido apenas para os actores/bailarinos cional, a promessa de felicidade cumpre-se na presença do
•
orientais que Eugenio Barba sentiu especialmente presen- actor, aqui e agora. Mais: ao permitir que o espectador
tes, ou para Ryszard Cieslak, o actor «santo». Embora a sua tenha a percepção de si como embodied mind, a presença
presença particularmente forte e intensa possa apagar, de do intérprete está a cumprir instantaneamente a promessa.
modo mais visível, a oposição entre corpo e espírito/cons- O homem é embodied mind, não pode ser reduzido nem ao
ciência, este apagamento é válido para todos os intérpretes seu corpo, nem ao seu espírito, e muito menos se pode
,
em quem reconhecemos presença. Mediante a presença do definir como um campo de batalha em que corpo e espírito
actor, o espectador experiencia-o, mas experiencia-se se batem pela supremacia. O espírito não existe sem o
também, simultaneamente, a si próprio como embodied corpo e articula-se por meio da fisicalidade.
mind, em permanente devir, captando a energia que circula Em virtude da sua tradição cultural, o espectador oci-
entre ambos como força transformadora - e, neste sentido, dental está habituado a conceber- se com base na postulada
232 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 233
dicotomia entre espírito e corpo, e a projectar num futuro Contudo, enquanto o conceito de aura se aplica tam-
longínquo a superação dessa dicotomia, ou a considerá-Ia bém aos objectos, o de presença apenas o consente nas
uma felicidade rara, só concedida, aqui e agora, a um punha- duas primeiras variantes. Com efeito, os objectos também
do de eleitos, em resultado de modos de vida definidos, podem dominar o espaço e comandar a atenção, satisfa-
as mais das vezes, pela religião. Ao sentir a presença do zendo assim o conceito forte de presença, desde que se
actor e ao percepcioná-lo como embodied mind, e ao sentir- considerem estas características separadas dos processos
-se e percepcionar-se, simultaneamente, a si mesmo como de encarnação. Já o conceito radical, pelo contrário, não se
embodied mind, ele experiencia um momento de felicidade aplica a objectos. Os objectos são frequentemente percep-
que não é possível transpor para o dia-a-dia. Recriá-lo exi- cionados como presentes, sobretudo nos espectáculos tea-
giria que ele experienciasse de novo a presença. O especta- trais e nas performances. No entanto, torna-se desde logo
dor pode, assim, ficar dependente destes raros momentos de claro por que razão não se pode descrever a sua presença
felicidade, que só a presença do intérprete lhe proporciona. aqui e agora como um modo de manifestar-se como embo-
Nada de extraordinário se manifesta, pois, na presença; died mind. Se esta característica oferece os parâmetros mais
ela assinala, isso sim, o surgimento de algo absolutamente importantes para a definição do conceito radical de pre-
vulgar que se transforma em acontecimento: o carácter sença, é evidente que este deve referir-se exclusivamente
particular do ser humano como embodiedmind. Experienciar à presença dos seres humanos. A expressão «êxtase das
.. .,. . coisas» seria, segundo Gernot Bõhme, mais apropriada
o outro e experienciar-se a SI propno como presentes SIg-
nifica experienciá-Ios como embodied minds e, desse modo, para descrever a presença dos objectos. Do mesmo modo
experienciar a sua existência vulgar como extraordinária que na presença o ser humano se manifesta como o que
- transformada e, até, transfigurada. sempre foi, isto é, como embodied mind, também as coisas
Enquanto o conceito de aura põe a tónica no momento se manifestam como aquilo que já são e que, contudo, não
do arrebatamento, do noli me tangere - que ainda é absor- é percepcionado no dia-a-dia do ser humano, que lhes atri-
vido fisicamente e «respirado» -, o conceito de presença bui uma tunção e as instrumentaliza." Impõe-se, pois, que
enfatiza a circunstância de o vulgar se tornar conspícuo, reflictamos acerca da correlação entre o conceito de pre-
tornar-se manifesto, sendo isso experienciado fisicamente sença (do actor) e o conceito de êxtase (das coisas).
como um acontecimento. Reauratização e presença não Porém, nenhum destes conceitos se pode aplicar aos pro-
podem, pois, ser equiparadas, mas também não se excluem dutos tecnológicos e electrónicos dos media. Estes podem
mutuamente, pelo contrário: elas visam aspectos e produzir efeitos de presença, mas são incapazes de gerar
momentos diferentes do mesmo processo em que também presença. Enquanto o conceito de presença anula a dico-
o espectador é transformado. tomia entre ser e parecer - fundamental e indispensável
234 ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 235
ERIKA FISCHER-L1CHTE
nos debates estéticos dos séculos anteriores -, os chama- causada pela aparência da sua presença. Com esta aparên-
dos efeitos de presença dos media electrónicos e tecnoló- cia, os seus produtos conseguem comover o espectador,
gicos dependem desta dicotomia. Eles criam a aparência de assustá-lo e aterrorizá-lo, parar-lhe a respiração, fazê-lo
uma presença aqui e agora, sem que corpos - e objectos suar ou aumentar-lhe drasticamente o número de pul-
- estejam, de facto, presentes. Recorrendo a determinados sações - à semelhança do que acontecia com o teatro do
procedimentos, eles conseguem fazer a promessa de pre- século XVII 1. 54 A ilusão que criam suscita no espectador
sença. Corpos humanos, partes do corpo humano, coisas reacções fisiológicas, emocionais, energéticas e motoras
•
e paisagens parecem estar presentes aqui e agora de um muito fortes, e, não raro, mais eficazes do que as suscitadas
modo particularmente intenso, embora se trate, na reali- pelo teatro da ilusão. No entanto, essa ilusão não permite
dade, de jogos de luzes projectados num ecrã, ou de uma que o corpo fenoménica do intérprete se manifeste como
combinação de pixels: os corpos humanos, as coisas e as presente, nem como embodied mind. Os efeitos de presença,
paisagens permanecem ausentes quer no grande ecrã, quer a aparência de presença, mantêm a promessa de felicidade
na televisão ou no computador. É uma aparência especial- do processo civilizacional no sentido, sobretudo, em que,
mente feliz do seu estar presente que provoca os ditos efei- seguindo a lógica deste processo, desmaterializam a efec-
tos de presença. Os corpos, os objectos e as paisagens-reais tiva fisicalidade do intérprete, despojam -no do corpo, tor-
dissolveram-se em jogos de luzes e de pixels; são estes que nando a sua presença tangível exclusivamente como
estão presentes aqui e agora, e não o que neles ou com eles aparência estética, desligada por completo da sua corpo-
parece estar presente. reidade real e material.
,
E por esta via que os media tecnológicos e electrónicos Presença e efeitos de presença podem, pois, considerar-
procuram cumprir a promessede bohneur do processo civiliza- -se uma tentativa de cumprimento da promessa de feli-
cional. Também eles se esforçam por eliminar a dicotomia cidade implícita no processo civilizacional. No entanto,
entre corpo e consciência, matéria e espírito. No entanto, enquanto os efeitos de presença dos media tecnológicos
o caminho seguido é diametralmente oposto ao da presença. e electrópicos seguem a lógica do processo civilizacional,
Enquanto nesta o corpo humano se manifesta também na
"
a presença, no espectaculo - precisamente porque nao -
sua materialidade, como corpo energético e organismo reconhece essa lógica -, é capaz de a subverter, de a que-
vivo, os meios tecnológicos e electrónicos produzem a apa- brar, revelando o seu carácter enganador.
rência da presença humana por via da desmaterialização e Neste sentido, uma estética do performativo é uma
da descorporização. Quanto melhor conseguirem dissolver estética da presença", e não dos efeitos da presença; uma
e tomar irreal a materialidade de corpos humanos, coisas e «estética do aparecera", e não do parecer.
. _. .
paisagens, mo mais mtensa e assombrosa será a impressão
236 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 237
simbólico-emblemáticos e, a partir do século XVIII, pas- ter encontrado uma possibilidade de comunicar com eles,
saram a ter uma função dramatúrgica, que conservaram comunicação concebida como uma troca de energia. A pri--
até ao período do naturalismo e depois dele; eram usados meira vista, estas afirmações parecerão enigmáticas; ten-
para representar certos ambientes ou criar determinadas taremos clarificar o que elas possam querer significar,
atmosferas, como na Trilogia Oresteia de Reinhardt - na qual usando como exemplo a acção do Coyote de Beuys.
a entrada em cena dos cavalos emAgamémnon mereceu do Minuciosamente documentada pela fotógrafa Caroline
crítico Jacobsohn o comentário de que era «própria do Tisdall a pedido do artista, a acção desenrolou-se entre 23
circo, no sentido mais vulgar do termo» e, em virtude da e 25 de Maio de 1974 na René Block Gallery de Nova Iorque,
sua sensualidade animalesca, apropriada para massas de entre as 10 horas e as 18 horas de cada um dos dias. Uma vez
espectadores «criados com as corridas de touroS».58 A par- chegado ao aeroporto John F. Kennedy, Beuys embrulhou-
tir dos anos 70, é praticamente impossível referenciar este -se em feltro e fez-se transportar de ambulância até à gale-
tipo de significados e de funções nos espectáculos.» Certas ria - aliás, deixaria o país do mesmo modo. Durante os
afirmações feitas por alguns artistas levam a concluir que cinco dias da sua permanência nos EUA, Beuys nunca saiu
se trata, neste caso, de uma nova forma de comunicação da galeria. A acção desenrolava-se num compartimento
entre os homens e os animais. Com efeito, a respeito das suas bastante comprido, com três janelas possibilitando a
acções com o coiote, Beuys fala de um «diálogo de ener- entrada da luz e dividido em duas partes por uma grade que
gia»60, e Marina Abramovié, a propósito da sua interacção separava o artista e o coiote dos espectadores. No canto
com os pítones, declarou: mais ao fundo havia palha, para ali levada juntamente com
o coiote. Beuys levava consigo outros objectos: duas exten-
Fico sentada na cadeira, imóvel, com cinco pítones enrolados ao sas tiras de feltro, um cajado, luvas, uma lanterna de bolso
corpo. Têm entre três e quatro metros e meio de comprimento e, e cinquenta exemplares do Wall StreetJournal, a que se jun-
durante as duas semanas que antecederam a performance, não tavam diariamente novos exemplares. Beuys mostrava-os
foram alimentados. Estou rodeada por um circulo de blocos de ao coiote, que os cheirava e urinava em cima deles.
gelo. Durante a performance, as serpentes movem-se em torno O artista colocou as duas tiras de feltro no meio do com-
do meu corpo conforme as minhas linhas de energia." partimento, dispondo uma delas ao alto e pondo-lhe em
cima, virada para o público, a lanterna acesa. Em seguida,
Trata-se, em ambos os casos, de animais selvagens, formou dois montes com os jornais e pô-los na parte da
não amestrados, cujo comportamento era impossível pre- frente do compartimento. Com o cajado castanho sobre o
ver, planear ou sequer orientar. Os animais seguiam os seus braço, Beuys encaminhou-se para a segunda tira de feltro,
próprios instintos. Contudo, ambos os artistas pensavam calçou as luvas castanhas, enrolou-se completamente no
240 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 241
feltro, deixando visível apenas a pega do cajado. A figura estava deitada no chão, o coiote cheirava-a, empurrava-a
assim criada sofria uma série de transformações: em pé, com as patas, arranhava-a. Uma vez, aninhando-se junto
com a pega do cajado voltada para cima; com o corpo flec- dela, procurou enfiar-se por baixo do feltro, mas em geral
tido para a frente, em ângulo recto, e o cajado virado para mantinha-se afastado, embora sem nunca a perder de
o chão; de joelhos, encolhido, com o cajado sempre apoiado vista. Só quando Beuys se deitava na palha a fumar, des-
no chão. Enquanto isto, movia-se em tomo do próprio eixo, contraído, ele procurava a sua companhia. Quando aca-
acompanhando os movimentos e a direcção do coiote. Em bava de fumar, Beuys levantava-se, preparava a tira de
seguida, deixava-se cair de lado e ficava estendido no chão, feltro e voltava a esconder-se debaixo dela. Durante aque-
para de repente se levantar bruscamente, deixar o feltro les três dias, homem e animal criaram uma proximidade
deslizar e bater três vezes num triângulo que usava ao pes- •
cada vez maior. No final da performance, Beuys, com movi-
coço. Quando se fazia de novo silêncio, Beuys punha uma mentos lentos, espalhou a palha por todo o comparti-
cassete áudio num gravador, colocado atrás da grade, e mento, despediu-se do coiote com um abraço e abandonou
durante vinte segundos ouvia-se o ruído de turbinas em a galeria do mesmo modo que lá chegara.
movimento. Quando se fazia de novo silêncio, tirava as Que se passara entre o homem e o animal nesses três
luvas e atirava-as ao coiote, que as rasgava com os dentes. dias?
Então, Beuys dirigia-se para os montes de jornais que o Os objectos utilizados por Beuys nas suas acções
coiote espalhara e parte dos quais já rasgara, formava provinham, predominantemente, da vida do' dia-a-dia -
novamente duas pilhas e, mal acabava, estendia-se na jornais, cigarros, lanterna de bolso, luvas, cajado, palha,
palha a fumar um cigarro. Então, o coiote costumava ir audiocassete, triângulo -, como do dia-a-dia eram as
juntar-se a ele. Habitualmente, o animal preferia descansar acções por ele executadas: ordenava os jornais, fumava,
em cima do monte de feltro, olhando na direcção do "raio ligava o gravador. No entanto, todos estes objectos e acções
de luz projectado pela lanterna e sem nunca voltar as costas podiam ser associados a processos de produção, manuten-
aos espectadores. Não raro, ia e vinha nervosamente pelo ção, tran.smissão ou bloqueio de energia. Beuys usava o
compartimento, aproximava-se da janela, olhava para fora feltro como «isolador e para aquecer»: «isolador da América
e voltava para os jornais, que mordia, arrastava pelo com- e transmissão de calor para o coiotev". A lanterna, para
partimento ou fazia as necessidades em cima deles. Beuys, era o exemplo perfeito da energia: «Antes de mais,
O coiote mantinha-se a uma certa distância da figura conserva a energia acumulada, e depois, ao longo do dia,
envolta no feltro; de vez em quando, rondava- a e, excitado, vai -se consumindo, até ser preciso mudar-lhe a bateria. »63
investia contra o cajado ou ferrava-lhe os dentes, masti- A lanterna estava envolvida no feltro porque não devia ser
gava o feltro e desfazia-o em pedaços. Quando a figura mostrada como um objecto tecnológico: «Ela devia ser uma
242 ERIKA FISCHER-lICHTE
ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 243
fonte de luz, uma lareira, a luz de um pôr-do-sol [... ] em Durante a acção, assumi realmente a figura do xamã ... Mas
cima daquela massa cinzenta. »64O cajado com pega curva, não, em todo o caso, para retroceder, no sentido de devermos
que Beuys usara pela primeira vez na sua acção Eurasia voltar [ ] ao momento em que a existência do xamã se justi-
(19 65), expressava, no seu entender, os fluxos de energia ficava Usei esta antiga figura para expressar algo acerca do
entre o Leste e o Oeste. Quanto aos dois únicos sons audí- futuro, na medida em que digo que o xamã representava algo
veis - o produzido pelo triângulo e o ruído vociferante das capaz de acolher numa entidade única contextos materiais e
turbinas -, Beuys usava-os pelo seu potencial energético, espirituais."
que não era usado ou mobilizado numa direcção precisa.
Segundo o artista, o estridor das turbinas representava «o Com a execução das acções aqui descritas, deviam
eco da tecnologia dominante: a energia que não é usada», libertar-se, no artista e no coiote, energias capazes de ini-
enquanto o tinir do triângulo deveria relembrar «a unidade ciar as transformações. A acção passava-se num contexto
e a unicidade» e estava concebido como «um impulso de de tipo mitológico. Segundo os mitos e as lendas índias, o
consciência dirigido ao coiote».65O importante era que estes coiote representava uma das divindades mais poderosas":
objectos não só significavam esses fluxos de energia, como encarnava a força da transformação e podia mudar o seu
também os produziam e transmitiam efectivamente. estado de corpóreo para espiritual e vice-versa. O coiote
As energias que estes objectos ocultavam, ou que eram entendia todas as línguas e também conseguia falar com
por eles transmitidas - quando o coiote se estendia sobre as vedações para convencê-las a deixarem-no passar.
a capa de feltro, mordia o cajado ou ouvia o som do triân- Quando enraivecido, podia fazer abater calamidades sobre
gulo - eram concebidas como um suporte das energias os homens, mas quando calmo, podia curar doenças. Nos
que emanavam do artista. Nestas acções, Beuys não se rituais de cura, os xamãs navajos usavam máscaras de
apresentava simplesmente em cena como um xamã, alu- coiote para evocarem a força deste animal e utilizá-la na
dindo explicitamente ao xarnã navajo - o chapéu, a capa cura dos doentes." A chegada do homem branco mudou o
ampla, o pedaço de pele de coelho preso no colete, bem status do coiote. As suas capacidades de adaptação e de
como o triângulo pendurado ao pescoço, que substituía o inventiv; - qualidades que anteriormente suscitavam a
tambor e as baquetas habitualmente usados pelos Nava- admiração e a veneração dos índios, como símbolo de uma
jos; de facto, ele via-se a si próprio como um xamã, como força subversiva, eram agora vistas como uma forma de
uma figura dotada de forças espirituais especiais, graças r
astúcia. O coiote tomava-se, assim, o mean coyote, uma espe-
às quais consegue agir sobre o mundo humano e sobre o cie de bode expiatório destinado a ser caçado e morto.
mundo animal, se não mesmo sobre todo o cosmo, Segundo Beuys, esta acção visava precisamente este
transformando -os:
«ponto traumático» da história americana: «Poder-se-ia
244 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 245
dizer que devemos saldar as contas com o coiote. Só depois No entanto, é mais do que duvidoso que quem assistiu
a ferida ficará sarada.e'? Quer isto dizer que a acção devia, à acção tenha tido a percepção desse «diálogo energético».
também ela, funcionar como uma espécie de ritual tera- Beuys e o coiote estavam separados dos espectadores por
pêutico, capaz de desencadear, quer no artista quer no uma grade metálica, como os animais ferozes num número
coiote, as forças que levariam à cura. de circo ou no jardim zoológico. Beuys eliminava esta
Para alcançar este objectivo, Beuys agia, sob certos separação - ainda que apenas parcialmente - sempre que
pontos de vista, como um xamã. Através da troca perma- um amigo ou conhecido visitava a galeria e ele se aproxi-
nente de posições e de relações, ele procurava criar uma mava da grade para o cumprimentar. No conjunto, porém,
situação liminar, em que fosse possível produzir-se uma a separação representava um elemento constitutivo da
metamorfose do coiote e o seu status «originário» ser res- acção, ainda que, de modo pragmático, se possa interpre-
taurado. De facto, ele deitava-se na palha que fora levada tar como um dispositivo de protecção dos espectadores.
ao mesmo tempo que o coiote, enquanto este, para repou- A estes, atribuía-se, pois, a posição de voyeurs, que, a uma
sar' escolhia o feltro que Beuys levara, ajeitara de maneira distância segura, observavam o artista numa operação
especial e dotara de uma fonte de energia: a lanterna de perigosa e, para ele, muito arriscada. O potencial de ener-
bolso. Por um lado, Beuys deixava que o coiote rasgasse e gia contido na acção era-lhes inacessível? Os fluxos de
fizesse as necessidades em cima do Wall Street [aumal, no energia libertados por Beuys e pelo coiote e que circulavam
qual ele via encarnada «a fossilizada rigidez cadavérica da entre eles atingiam-nos? A estranheza entre Beuys, che-
noção de CAPITAL»70; por outro, deixava-o cheirar e agar- gado da Europa e agindo como um xamã índio autóctone,
rar com a boca as luvas, alusão simbólica às mãos do e o público americano não só não desapareceu, como se
,.
homem e ao seu potencial criativo para moldar e transfor- consolidou em virtude da disposição espacial.
f
mar as coisas. Expunha-o tanto ao barulho das turbinas, Apesar disso, é possível supor que a acção tenha tido
ao «eco da tecnologia dominante», quanto ao som do
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um efeito inusitado nos espectadores, causado pelas acções
triângulo, que devia visar imediatamente a «consciência» •
•
•
•
• do artista e pelo comportamento do animal. Beuys lidava
do coiote. Com estes procedimentos, Beuys evocava as com o coiote como com um parceiro em pé de igualdade.
forças ocultas nos objectos utilizados, libertando em si É certo que procurava influenciá-lo, levando-o a agir, mas
próprio e no coiote o «poder curativo» capaz de provocar sem nunca recorrer a qualquer tipo de violência - descon-
uma transformação no homem e no animal. O «diálogo tando o facto de o coiote ter sido previamente capturado.
energético» entre Beuys e o coiote tinha por objectivo Dentro dos limites por ele estabelecidos e válidos para
libertar energias em ambos e dar origem a forças espiri- ambos, Beuys dava ao animal toda a liberdade que se possa
tuais que induzissem uma metamorfose. imaginar. Embora não soubesse nem notasse que Beuys
246 ER/KA FISCHER-L1CHTE 247
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO
atribuía uma consciência ao coiote, o espectador tinha a Sean Kelly Gallery de Nova Iorque em 1995; sentada num
percepção de que a relação entre o homem e o animal não escabelo e rodeada de uma enorme montanha de ossos
obedecia a uma ordem hierárquica - como acontece com frescos de bovino, agarrava neles um por um, raspava-lhes
as feras num número de circo -, antes se regia por proces- a carne e lavava-os. A artista trabalhava os ossos, libertava-
sos de intercâmbio, e que, além disso, o homem reconhecia -os dos resquícios de carne que ainda lembravam o animal
o animal, na sua natureza não disposicional de princípio, vivo e, deste modo, transformava-os em objectos, em
como um parceiro dotado dos mesmos direitos - facto que, materiais, em artefactos.
para muitos espectadores, terá sido extremamente des- O corpo-animal vivo, pelo contrário, permanece não
concertante. disponível. Como acontece com o corpo humano, não se lhe
Durante a acção, o espectador era permanentemente adequa o carácter de obra de arte, mas de acontecimento.
confrontado com a não-disposicionalidade do animal, Sob este ponto de vista, homem e animal não diferem - facto
coisa que, a partir dos anos 60 do século xx, se tomou cada que o público das acções de Beuys e dos restantes espectá-
vez mais o centro da atenção em espectáculos teatrais e culos mencionados foram forçados a reconhecer. Quanto à
performances em que participem animais. Esta não- questão de saber até que ponto esta não-diferenciação entre
-disposicionalidade diz respeito, por um lado, à materia- animal e homem não só levava o espectador a reconhecer a
lidade dos espectáculos e, por outro, ao seu desenrolar, ao comparabilidade, ou, se quisermos, a semelhança entre
circuito de retroacção autopoiético. organismos vivos, como produzia nele reacções físicas, afec-
Na acção de Beuys, o corpo-animal emerge como corpo tivas e energéticas imediatas, apenas se pode especular.
energético, como organismo vivo, como corpo-em-devir. Neste caso, não é certo se do confronto directo com o orga-
Sob o ponto de vista da materialidade, não existe, pois, nismo vivo do animal resultou, para o espectador, aquele
diferença entre o corpo humano e o corpo animal. Nenhum devir-animal de que falam Deleuze e Guattari", se o espec-
dos dois se deixa utilizar como material moldável e con- tador se sentiu confrontado com a sua própria animalidade
trolável,
,
a partir do qual é possível criar uma obra de arte. e reagiu,com as correspondentes manifestações físicas.
A semelhança do que acontece com o corpo humano, tam- Pode supor-se, no entanto, que uma tal não-diferenciação
bém o corpo animal só se toma material na sua mortifica- entre homem e animal - que só a genética modema, sob
ção. Estão neste caso acções como as de Hermann Nitsch, certos aspectos, veio confirmar - não terá deixado os espec-
nas quais ele «trabalhava» com o esqueleto de um cordeiro, tadores indiferentes, contrariando hábitos de pensamento
irrigando-o de sangue, enchendo-o de vísceras e atando-o e de acção do homem ocidental com séculos de existência.
a um ser humano, ou como Cleaning the House [Limpando a A não-disposicionalidade dos animais, aliás, sem-
casa], a performance que Marina Abramovié apresentou na pre exerceu, num outro sentido, um fascínio especial nos
•
espectadores. Com efeito, sempre que entram em cena, têm cansado de procurar desde a década de 60 do século
os animais manifestam uma «presença» inquietante (no passado, centrando nela continuamente a sua atenção.
sentido forte de presença): parece que enchem o palco, Os animais que aparecem nas performances não cumprem,
atraindo sobre si todas as atenções. Roubam o número aos na maioria dos casos, nenhuma função específica; basta
, .
actores. Isto acontece, sobretudo, nos espectáculos em que que se encontrem presentes no espaço cemco e que mos-
os animais têm uma função dramatúrgica claramente tra- trem a sua não-disposicionalidade. Tudo o que eles façam
çada. Com a entrada em cena do animal, emerge uma natu- representa um elemento do espectáculo, contribuindo para
. . , . . . . . ,
reza «ongmana», «misteriosa», «imprevisível», mesmo a sua constituição. Os animais reforçam, pois, a não-
quando se trata de um animal doméstico, como o cão, ou de -disposicionalidade de fundo do espectáculo, tornando-a
um caniche amestrado. Em relação ao actor, o espectador evidente para os espectadores e até para os actores. Apesar
parte do princípio de que ele age em conformidade com um de a interacção entre actores e espectadores - indepen-
plano; no caso do animal, pelo contrário, fascina-o a pos- dentemente do modo como se faça - levar a que, em cada
sibilidade de a acção não se desenrolar conforme o que está espectáculo, se verifiquem viragens imprevisíveis do cir-
planeado, e de algo imprevisto acontecer. A presença de um cuito de retroacção autopoiético, tais viragens, na maioria
animal em palco é percepcionada como uma incursão do das vezes, não são percepcionadas como emergências, por-
real na ficção, do acaso na ordem pré-estabelecida, da natu- quanto envolvem quer os actores, quer os espectadores.
reza na cultura. Com a sua subida ao palco, o animal evoca Pelo contrário, os animais, com o seu comportamento,
um momento crítico, em que tudo é posto em causa e em estão sempre a gerar emergências", chamando sobre si as
que a natureza ameaça submergir o ordenamento humano, atenções de uns e dos outros, e sensibilizando-os, assim,
à semelhança do que acontece com os furacões e as cheias para o fenómeno. Os espectáculos em que participam ani-
•
- um momento em que, ao contrário do que se passa com mais, sobretudo, podem surgir aos olhos do espectador
os furacões e as cheias, a esperança de que o ordenamento neles envolvido como um daqueles sistemas naturais em
humano seja destruído, isto é, de que o animal mande a ence- relação aos, quais não se pode presumir que apenas funcio-
nação pelos ares, causa um prazer significativamente maior nam em conformidade com um «plano» maduramente
do que a expectativa de que tudo se processe como planeado. pensado, pois - como acontece com o sistema imunitário
A entrada de animais em cena introduz um momento sub- - ~ .
- estao constantemente expostos a emergencias a que se
versivo na encenação que, embora a possa comprometer,
- reagir,
.impoe .
também exerce um grande fascínio no espectador.
-E a tão receada não-disposicionalidade dos animais
que encenadores de teatro e artistas-performers não se
250 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 251
que se vai alterando com o passar do tempo, poder deixar Quando, na estreia da peça Vor SonnenauJiJang, de Hauptmann,
o olhar vaguear por todo o espaço teatral e pela paisagem no Freie Bühne de Berlim (1889), um espectador se levantou
•
circundante, para depois o fazer incidir de novo sobre os na plateia às escuras e, brandindo um fórceps, se ofereceu
actores em cena, os coreutas da orquestra ou até os outros para subir ao palco e ajudar, como ginecologista, a fazer o
espectadores; ou se encontrar sentado num espaço interior parto, aparentemente difícil, que se estava a realizar nos
iluminado por velas, diante de um palco à italiana obede- bastidores, ele estava a redefinir, de modo radicalmente
cendo aos princípios da perspectiva centralizada; ou estar novo, a relação entre actores e espectadores. E não foi o
sentado num lugar de onde tem uma visibilidade ideal, ou único. Segundo a imprensa da época, o público propor-
num lugar que lhe dá uma percepção distorcida da pers- o
Clonou um
pectiva mas, em compensação, lhe permite uma melhor
visibilidade sobre os camarotes no lado oposto - tudo isto espectáculo dentro do espectáculo [. o o ] o A luta entre o entusiasmo
abre ao espectador diferentes possibilidades de percepção. e a rejeição, os «bravo» e os «tenham vergonha», os assobios e os
Constatar que o espaço cénico organiza e estrutura o aplausos, as interrupções, as manifestações, a agitação e a exci-
movimento, a percepção e a relação entre actores e espec- tação que se seguiam a cada acto, quando não explodiam durante
tadores não nos permite concluir, contudo, que possa a representação, transformaram o Lessing-Theater num local de
determinar tudo isto. O espaço performativo abre possi- reuniões repleto de uma multidão apaixonada, impetuosa."
bilidades, mas não estabelece a maneira de as explorar e
concretizar. Além disso, pode ser utilizado de modos não O espaço performativo distingue-se,precisamente, por
previstos nem planificados. Por contrariar costumes e opi- poder ser utilizado de modo diferente do previsto, mesmo
niões preconcebidas, tal utilização, por vezes, é mencio- que muitos dos participantes tenham a impressão de que
nada como um acontecimento extraordinário em narrativas essa utilização é inconveniente, se não mesmo revoltante
de viagem, diários, apontamentos autobiográficos, cartas - como aconteceu com Claus Peymann em 1965, quando
e notícias de jornal. Assim, ficamos a saber que, no teatro vários esppctadores se precipitaram para o palco por oca-
francês do século XVII, havia espectadores da nobreza que, sião da segunda apresentação de Insulto ao Público; cada
não raro, ocupavam o palco e falavam entre si em voz alta utilização constitui o espaço performativo e dá origem a
e com o maior dos à-vontades. Deste modo, modificavam uma espacialidade específica.
.não apenas a relação entre actores e espectadores prevista As vanguardas históricas tiveram em conta isto
pela disposição do espaço, mas também as possibilidades mesmo, ao romperem radicalmente com as convenções
de movimentação e de percepção. Os escândalos teatrais que previam a supremacia do teatro à italiana, com pros-
dos séculos XVIII e XIX tiveram idênticas consequências. cénio e plateia às escuras. Em vez disso, experimentaram
,
254 ERIKA FISCHER-LlCHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 255
vários tipos de espaços teatrais que organizavam e estru- utilizando também as suas janelas, e Sergei M. Eisenstein
turavam a relação entre actores e espectadores, o movi- escolheu uma fábrica de gás em Moscovo para a sua ence-
mento e a percepção de modo diverso. Por um lado, nação de Gasmasken [Máscaras de gás], de Tretyakov (1923).
retomaram determinados modelos históricos, como o Todos estes espaços ofereciam possibilidades específicas
palco-orquestra, o teatro de rua medieval ou a hanamichi do de movimento, de percepção e de negociação das relações
teatro kabuki, e modificaram-nos. Quando Reinhardt rea- entre actores e espectadores, além de a sua configuração
,
lizou Rei Edipo no circo Schumann de Berlim, experimen- permitir o surgimento de possibilidades completamente
tando as possibilidades oferecidas pelo palco-orquestra, novas.
não tinha em mente fazer reviver o teatro grego; procurava, Mais tarde, foram projectados novos edifícios que ofe-
sim, espaços teatrais que possibilitassem a constituição de reciam uma utilização flexível do espaço, como por exem-
uma comunidade de actores e espectadores, oferecendo pIo o Circo Schumann, que Reinhardttransformou no Groíse
aos primeiros, habituados ao teatro à italiana, um novo Schauspielhaus, e o Totaltheater, concebido conjuntamente
espaço para se movimentarem, e aos segundos, novas por Piscator e Gropius.
modalidades e perspectivas de percepção - o que mereceu Os reformadores da viragem do século e os represen-
fortes ataques por parte de alguns críticos. Assim, Alfred tantes das vanguardas históricas tinham consciência da
Klaar lamentou «a partição da cena no espaço em frente, performatividade do espaço. Investigaram as possibilida-
atrás, debaixo e no meio de nós, a eterna imposição da des que os diferentes tipos de espaço ofereciam no respei-
mudança de ponto de vista»?", tante ao movimento, à percepção e à relação entre actores
Por outro lado, os reformadores do teatro e os van- e espectadores, e tentaram potenciá-las por meio de uma
guardistas realizaram espectáculos em espaços e em locais ,, remodelação específica, conforme às suas ideias e aos seus
•
que tinham uma relação temática com o texto que era objectivos, provocando nos espectadores, tanto quanto
encenado - espaços e lugares, por assim dizer, «originais». possível, determinadas percepções e incitando-os a agir
Reinhardt, por exemplo, levou à cena o Sonho de Uma Noite de um determinado
, modo. Como já assinalámos por diver-
de Verão num pinhal do Nikolassee em Berlim (1910), Das sas vezes, os encenadores das vanguardas tentavam, assim,
Salzburger Grofle Welttheater [O grande teatro do mundo de controlar o circuito de retroacção autopoiético.
Salzburgo] na Kollegienkirche de Salzburgo (1922), O Mer- Após a Segunda Guerra Mundial - e, em parte, já nos
cador de Veneza no Campo San Trovaso em Veneza (1934). finais dos anos 30 -, o teatro à italiana com boca de cena vol-
Quanto a Nikolai Evreinov, realizou o espectáculo de mas- tou a ser o modelo dominante. Nos anos 50, na Alemanha,
sas Die Erstürmung des Winterpalais [A tomada do Palácio de adoptou-se este modelo na construção de muitos edifí-
Inverno] na praça do Palácio de Inverno (Petrogrado, 19 20), cios teatrais, mas não foi erigido nenhum com espaços
256 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 257
variáveis. O primeiro exemplo que conheço de um edifício de maneira variável, permitindo aos actores e aos espec-
construído com espaços variáveis, ou reestruturado de tadores movimentarem-se como preferirem; 2) a criação
modo a acolhê-los, é o Schaubühne da Lehniner Platz, em de uma disposição espacial específica, que proporciona
Berlim, inaugurado em 1980 e que se pode considerar um possibilidades de movimentação, de percepção e de nego-
resultado da viragem performativa dos anos 60 do século ciação da relação entre actores e espectadores até então
passado. desconhecidas ou nunca utilizadas.j] a utilização de espa-
Um novo êxodo dos edifícios teatrais ocorre nos anos ços já existentes, usados apenas para outros fins, cujas pos-
60, desta vez maciço e radical. Procuraram-se novos espa- sibilidades específicas são estudadas e experimentadas.
ços cénicos em fábricas desactivadas, matadouros, bunhers, 1) Em Celtic + - - - , por exemplo, não havia no bunher,
terminais rodoviários, mercados cobertos, centros comer- apesar das bancadas de madeira, nenhuma organização do
ciais, salas de exposições e estádios, ruas e largos, estações espaço que impusesse aos participantes qualquer tipo de
de metropolitano e jardins públicos, tendas de cervejeiras, orientação; Beuys e os espectadores movimentavam-se
depósitos de lixo, garagens e oficinas de automóveis, ruí- através de todo o espaço. A relação entre o artista e o público
nas, cemitérios. Optou-se, predominantemente, por espa- era determinada apenas pelas acções de Beuys e pelas reac-
ços que não tinham sido concebidos nem construídos para ções que estas provocavam no público. O que era percepcio-
a realização de espectáculos, que serviam ou tinham ser- nado e o modo como o era dependiam da posição ocupada
vido para fins completamente diferentes e não implicavam por cada espectador, a qual se alterava permanentemente:
uma relação preestabelecida entre actores e espectadores. ele ora estava sentado numa das bancadas, ora se mistu-
Na maioria dos casos, tratava-se de espaços que permitiam rava na multidão, ora a ladeava, ora se encontrava directa-
uma redefinição contínua desta relação, que não atribuíam mente em frente do performer, ora era empurrado para o
a nenhum dos dois grupos um posicionamento estável e lado ... Eram o performer e os espectadores que, com as
que, como tal, permitiam a ambos vastas possibilidades suas acções, criavam a espacialidade como algo em contí-
de movimentação e de percepção. A escolha deste tipo de nua mutação.
espaços tornou visível que é o espectáculo, e apenas o É certo que, em Dionysus in 69, havia uma determinada
espectáculo, que rege a relação entre actores e espectado- disposição espacial. No meio da antiga oficina, tinham sido
res, criando as possibilidades de movimentação e de per- colocados colchões de borracha que pareciam assinalar o
cepção, e que é o espectáculo que gera a espacialidade. espaço reservado aos actores; ao longo das paredes, tinham-
São três, sobretudo, os procedimentos mediante os -se disposto estruturas de vários andares, ligados entre si
quais a performatividade do espaço se reforça: 1) a utiliza- por escadas, e no meio havia uma construção muito alta, que
ção de um espaço (quase) vazio, que pode ser organizado quase chegava ao tecto: a chamada torre. Os espectadores
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 259
258 ERIKA FISCHER-L1CHTE
podiam sentar-se na carpete em volta dos colchões, enfiar- suas encenações, tinha a preocupação de criar uma situa-
-se por baixo da estrutura ou sentar-se no andar da estru- ção de grande proximidade entre actores e espectadores,
tura que lhes aprouvesse. Deste modo, podiam ser eles a ao ponto de estes sentirem a respiração daqueles e o cheiro
definir a distância a que queriam estar do centro, bem do seu suor. Na sua encenação de Kordian, da autoria de
como o ângulo visual específico para observarem o que Slowacki, datada de 1961, mandou colocar camas de ferro
estava a acontecer. As possibilidades oferecidas pela repar- sobrepostas em três pontos da sala, nas quais os espec-
tição do espaço foram consideravelmente ampliadas tadores - não mais de 65 - tinham de se sentar; simulta-
durante o espectáculo. Os performers não se contentavam neamente, as camas funcionavam como pódios, onde se
com a zona central e movimentavam-se por todo o espaço. desenrolavam os principais acontecimentos do espectá-
O intérprete de Penteu subiu ao andar mais alto da torre culo. Actores e espectadores partilhavam, energicamente,
para se dirigir aos cidadãos de Tebas. Na «caress-scene», o mesmo espaço. Os próprios espectadores eram tratados
os/as performers espalharam-se por todo o espaço, che- como doentes de um hospital psiquiátrico. Assim, por
gando até aos espectadores «escondidos» debaixo da estru- exemplo, quando pedia aos actores e aos espectadores
tura. Os espectadores, por seu lado, tinham o direito e a que cantassem uma canção, o médico precipitava-se para
possibilidade, durante o espectáculo, de se movimenta- os espectadores que se recusavam a fazê-lo, postava-se
rem por todo o espaço para procurarem uma nova posição, diante deles e ordenava-lhes que obedecessem, apontando-
um novo ângulo de visão, regularem a seu bel-prazer a dis- -lhes ameaçadoramente o seu bastão ao nariz. Os actores
••
tância em relação aos actores e, também, aos restantes · movimentavam-se por todo o espaço, enquanto os espec-
•,
• tadores estavam pregados, por assim dizer, às camas. As suas
espectadores, ou ocuparem a zona central, «to join the Oe '
"
story». Quer isto dizer que as especificações que aparen- possibilidades de percepção eram influenciadas pela posi-
temente eram propostas não limitavam as possibilidades ção' no espaço, da cama respectiva, bem como pelo facto
de movimento e de percepção de espectadores e actores, de ocuparem a cama superior ou a inferior. Criava-se, pois,
antes as multiplicavam. Neste procedimento, a performa- uma espacialidade
, que proporcionava aos espectadores
tividade do espaço é especialmente forte, porquanto experiências específicas.
nenhuma possibilidade é privilegiada ou excluída à partida. O mesmo aconteceu com a encenação de Grotowski
A espacialidade é produzida, de modo absolutamente evi- para O Príncipe Constante, de Calderón, na adaptação feita
dente, pelos movimentos e pelas percepções de actores e por Slowacki (1965). Neste caso, o teatro estava configu-
espectadores. rado como um theatrum anatomicum: os espectadores - não
2) O segundo procedimento privilegia, de facto , algu- mais de 30, 40 - dispunham-se em filas que formavam cír-
mas possibilidades e parece excluir outras. Grotowski, nas culos concêntricos e ascendentes em tomo da cena; as filas
.. i ,I
i ,
260 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 261
,
estavam separadas por paredes tão altas que só a cabeça Além disso, as filas da frente estavam tão próximas da pista
(e talvez o peito) dos espectadores era visível acima delas. que os espectadores sentiam o cheiro do suor dos actores
Isto, além de imobilizar os espectadores, forçava -os a assu- quando estes se precipitavam sobre eles. Eram os movimen-
mir o papel de voyeurs em face dos acontecimentos terrífi- tos sobre e sob a pista que continuamente redefiniam a
cos a que assistiam. Em ambos os casos, a disposição do relação entre actores e espectadores, abrindo ou restringindo
espaço e as especificações que ela implicava tinham por determinadas possibilidades perceptivas. A espacialidade
função canalizar a energia circulante no espaço performa- do espectáculo assim criada alterava-se permanentemente:
tivo, de modo a permitir que a espacialidade accionasse um se, num dado momento, parecia favorecer a constituição
potencial específico, capaz de exercer um efeito. de uma comunidade de actores e espectadores, logo a con-
Isto é igualmente válido, ainda que de um modo com- trariava no momento seguinte.
pletamente diferente, para a disposição espacial criada 3) O terceiro procedimento serve-se, para a criação de
por Einar Schleef para Mütter, no espaço significativa- espacialidade, das possibilidades que um espaço habitual
mente maior da Frankfurter Schauspielhaus, ou para Gõtz ou simultaneamente usado para outros fins oferece. Klaus
von Berlichingen, no Bockenheimer Depot, um velho depó- Michael Grüber utilizou esta estratégia amiúde. Em 1975,
sito de carros eléctricos. Nesta última produção, Schleef realizou Faust Salpêtriêre (a partir de Goethe) na Chapelle
construiu, ao longo do eixo longitudinal do depósito, uma Saint Louis, H ôpital de la Salpêtriere, em Paris; em 1977,
ampla pista «com cave» no centro do espaço; a pista tinha Winterreise [Viagem de Inverno], no Berliner Olympia-
uma saída que dava directamente para uma das portas tra- stadion; em 1979, Rudi, nas ruínas do Hotel Esplanade de
.
I seiras, as quais se abriam várias vezes durante o espec- Berlim; em 1995, Bleiche Mutter, zarteSchwester [Mãe pálida,
táculo. Os actores, que calçavam botas com saltos de ferro, irmã frágil], no cemitério soviético de Oberweimar, situado
movimentavam-se sobre e sob a pista, misturando-secom na ala norte do castelo Belvedere, residência de Verão do
o público e distribuindo batatas cozidas. Os espectadores duque Carl August, mecenas de Goethe. Grüber não utili-
estavam sentados em filas ascendentes de ambos os lados zava estes, espaços sem os alterar: os seus cenógrafos
da pista, de frente uns para os outros. Os que se encontra- (Gilles Aillaud, Eduardo Arroyo, Antonio Recalcati) asso-
vam nas filas superiores tinham uma visibilidade limitada ciavam pormenores isolados que lhes reforçavam a perfor-
da acção que se desenrolava sob a pista, mas viam perfei- matividade e modificavam ou ampliavam os possíveis
tamente os espectadores sentados à sua frente. Em con- significados. .
trapartida, a acção que se desenrolava sob a pista impedia Para Rudi, Antonio Recalcati dispusera algumas insta-
os que se encontravam nas filas da frente e do meio de lações nos espaços não destruídos, ou apenas ligeiramente
verem os espectadores sentados no lado oposto ao seu. danificados pelas bombas, do antigo Grand Hotel Esplanade
262 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 263
- O átrio de entrada, o pátio das palmeiras, a sala do pequeno- seus movimentos com especial atenção, fosse por se querer
-almoço e a chamada «sala do imperador»." Até à cons- saber quais as suas impressões, as suas sensações, a sua per-
trução do Muro de Berlim, que vedou a parte do hotel que cepção, ou simplesmente para perguntar as horas. Em Rudi,
dava para o Tiergarten com tijolos e arame farpado, estes quem criava a espacialidade eram, sobretudo, os especta-
espaços eram regularmente palco de galas de ópera, de dores, com a sua movimentação e as suas percepções, mas
imprensa e de cinema, bem como desfiles de moda e elei- também através dos significados que cada um dos objectos
ção de misses. Depois da construção do Muro e até aos presentes nas salas assumia para si, ou passaya a assumir
anos 70, ainda ali se realizaram, ocasionalmente, algumas quando relacionado com o excerto do texto que estava a ser
cerimónias, mas as ruínas foram sendo visivelmente vota- lido. Eram esses significados que influenciavam a sua per-
das ao abandono. Foi neste lugar que Grüber e Recalcati cepção, motivando movimentações e acções que, por sua
realizaram Rudi. Na sala do pequeno-almoço, estava sen- vez, davam origem a uma espacialidade sempre nova e
tado o actor Paul Burian, que, em voz alta e num tom mono- diferente. Percepção, associação, lembrança e imaginação
córdico, lia a novela de Bernard von Brentano Rudi (de 1934). sobrepunham-se. Deste modo, os espaços do Grand Hotel
A leitura era transmitida em diferido nos restantes com- Esplanade tomavam-se, ao mesmo tempo, espaços ima-
partimentos, através de altifalantes. Os outros intérpretes ginários e de memória.
•·
camisa com um colarinho maior do que o normal e um pul ô- este mesmo procedimento de um modo completamente
,
ver, e se encontrava noutro compartimento; uma mulher •• diferente em FootlMouth (2001) - uma colagem de textos
já idosa, gorda e grisalha, com um vestido e um casaco de de Beckett e Pirandello realizada no centro comercial de
malha pretos, fazia-lhe companhia, sentada numa cadeira • Santa Monica. No piso inferior, um elemento do grupo
de rodas. O espectador podia circular pelas diversas salas acolhia os espectadores, fornecia-lhes auscultadores e
e parar em cada uma delas à sua vontade, escutar a voz conduzia-os até uma galeria superior, de onde tinham boa
difundida pelos altifalantes, sentar-se ou prosseguir e vol- visibilidade para os pisos inferiores. Os espectadores, con-
tar, se lhe aprouvesse, às salas já visitadas." Se, em relação tudo, não' eram obrigados a permanecer na galeria,
a Paul Burian, o espectador podia ter a certeza de que se podendo circular livremente por todo o centro comercial se
tratava de um actor, o mesmo não acontecia com a idosa e isso lhes agradasse. Os actores moviam-se por todo o com-
o jovem, nem com os outros espectadores presentes na plexo, se bem que actuassem, sobretudo, no piso inferior
sala. Qualquer outro que circulasse naquele espaço podia - percorrido também por clientes do centro -, em posição
ser considerado actor ou espectador, com o qual se estabe- quase frontal relativamente aos espectadores. A partir do
lecia uma relação específica - fosse por se ter observado os momento em que estes não sabiam quem eram os actores,
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 265
264 ERIKA FISCHER-L1CHTE
nem de onde vinham, cada cliente passava a ser, para eles, azáfama do centro comercial e as acções dos actores se
um actor. Mesmo quando se tornava claro que eram ele- sobrepunham e se confundiam de um modo sempre novo.
mentos do grupo teatral, os clientes continuavam presen- Este princípio de produção de espacialidade foi utili-
tes como uma espécie particular de actores, sobre os quais zado, ainda que de maneira profundamente alterada, nos
os espectadores, uma vez por outra, concentravam a sua audiotours concebidos pelo grupo Hygiene Heute e realiza-
atenção. Alguns clientes passeavam, outros caminhavam dos em GieBen (Verweis Kirchner, 2000), Frankfurt (System
apressados, outros, ainda, paravam longamente defronte Kirchner, 2000), Munique (Canal Kirchner, 2001) e Graz
das montras das lojas, observavam a mercadoria exposta, (Kirchners Schwester, 2002). À semelhança do que acon-
entravam no estabelecimento e, após um lapso de tempo tece nos audiotours de museus, castelos e outros monumen-
mais ou menos breve, saíam, na maior parte dos casos com tos históricos, também aqui era entregue ao espectador um
(novos) sacos na mão. Alguns paravam, aflitos, ao verem walkman para ser utilizado como guia numa volta pela
uma senhora idosa (uma actriz) debruçar-se de tal maneira cidade com a duração de cerca de uma hora. Cada espec-
do parapeito que dir-se-ia querer lançar-se no vazio. Outros, tador iniciava a visita sozinho, 15 minutos depois do que o
pelo contrário, ao cruzarem-se com os espectadores muni- antecedera. A fita magnética reproduzida pelo walkman
dos de auscultadores, ficavam a olhá-los com curiosidade. representava, supostamente, um dos poucos sinais de vida
Nestas condições, era praticamente impossível distin- do bibliotecário Kirchner, misteriosamente desaparecido
guir um actor de um espectador. Quem quer que andasse em 199 8 (segundo a gravação, a fita fora encontrada numa
no centro podia tornar-se actor e/ou espectador. O tipo casa de banho pública de Munique, onde, consequente-
de relação que se criava entre actor e espectador variava de mente, a visita à cidade se iniciava). A voz que se ouvia na
caso para caso, dependendo de quem via quem e em que fita começava por contar a história do desaparecimento do
papel. Eram múltiplas as possibilidades de movimentação bibliotecário, envolvendo o ouvinte, pouco a pouco, na his-
e de percepção que se ofereciam a cada um - o que era tória - como perseguidor e simultaneamente como per-
sobretudo válido para quem comprara bilhete e que assim seguido correndo o risco de cair na armadilha e de ser
( .
adquirira o status de espectador. Para onde quer que se apanhado pelo «caracol». Ele tornava-se, assim, o actor
movimentassem ou olhassem - fosse com os auscultado- principal do espectáculo, o protagonista da história. Num
res postos, através dos quais as vozes dos actores lhes res- enorme parque subterrâneo, ouvia a voz incitá-lo insis-
soavam nos ouvidos, fosse tirando-os de vez em quando, tentemente, com respiração acelerada: «Corre! Abre a
passando a ouvir o burburinho em redor, ao ponto de já porta! O caracol está muito perto, não lhe sentes o cheiro?
quase não distinguirem as vozes dos actores das dos tran- Despacha-te, abre a porta ao fim do corredor!» Numa
seuntes - , criava-se uma nova espacialidade, em que a paragem de eléctrico, a voz instruía-o: «Observa bem as
ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 267
266 ERIKA FISCHER-L1CHTE
'"
'-'"
:
·•,'- uma atmosfera especial própria. A espacialidade não é pro-
lhes servia de guia, criavam a espacialidade da cidade como
duzida apenas pela utilização específica do espaço feito pelos
uma estranha fusão de espaços reais e imaginários, de pes-
- . . .,.
soas e acçoes reais e imagmanas. actores e pelos espectadores, mas também pela atmosfera
,
268 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 269
particular que esse espaço parece irradiar. No caso do grupo por cima da porta corrediça havia uma espécie de relógio
Cornerstone Theatre, estes dois elementos estavam intrin- de estação ferroviária que estava parado e ao lado do qual
secamente ligados. O que fazia sobressair a atmosfera se podia ler o seguinte: «Para que o tempo não pare»; na
específica do centro comercial de um modo singular, ao parede da direita, caloríferos enferrujados e dois fogões a
ponto de envolver emocionalmente os espectadores que a carvão enormes. Na parte da frente, à esquerda, um piano e,
vivenciavam, era a possibilidade que lhes era oferecida de no meio, duas filas de mesas de plástico quadradas, dispos-
se movimentarem como j/âneurs no seu interior, pararem tas em linha recta, e cadeiras, igualmente de plástico, onde
na galeria para observar o que se passava: a actividade fre- estavam sentadas, imóveis, onze figuras completamente
nética de sexta-feira à tarde num centro comercial, bem diferentes umas das outras. Uma atmosfera tão singular
como os actores que, utilizando textos de Beckett e de não era reconduzÍvel a um único desses elementos - ainda
Pirandello, criavam situações que, naquele ambiente, osci- que alguns objectos isolados, como o relógio e os fogões a
lavam permanentemente entre a realidade e a ficção, ou, carvão, chamassem especialmente a atenção; ela resultava,
ainda, as diferentes reacções dos utilizadores do centro. sobretudo, da impressão de conjunto. Foi esta atmosfera
Também numa partição do espaço convencional, pre- que primeiro me tocou como espectadora, influenciando a
vendo uma clara separação entre o palco, reservado aos minha percepção ao longo da performance.
actores, e o espaço reservado aos espectadores, a atmosfera Como explica Gernot Bõhme, embora não estejam asso-
contribui para a produção de uma espacialidade específica. ciadas a um lugar, as atmosferas, ainda assim, derramam-
Quando, uma bela tarde, por ocasião de uma apresentação -se no espaço. Não pertencem exclusivamente aos objectos
do espectáculo de Marthaler Murx den Europiier! Murx ihn! f , ou às pessoas que parecem irradiá-las, nem aos que entram
1tt ..
Murx ihn! Murx ihnl Murx ihn ab! (Volksbühne da Rosa- • •
;f ' num espaço e as sentem fisicamente. Elas são, em regra,
~,
•,}
- Luxemburg- Platz, Berlim, 1993, cenografia de Ãnna •
aquilo que primeiro impressiona os espectadores, «tin-
'li'
Viebrock), entrei na plateia, senti-me logo envolvida por j
,, gindo» a sua percepção ao entrarem num espaço teatral e
J.
uma atmosfera muito característica, que se pode descrever •
possibilitando-lhes uma experiência muito particular de
,
como a atmosfera de uma sala de espera: desconfortável, espacialidade. Esta experiência não é explicável recorrendo
mas também inquietante, sinistra, irreal. No palco, via-se apenas aos elementos individuais presentes no espaço.
,
um espaço forrado com painéis sintéticos até ao tecto, •:;.• Com efeito, não são estes que criam a atmosfera, e sim a
dando continuidade, de modo horroroso, ao acolhedor .--',
,• interacção de todos eles, a qual é, em geral, uma parte meti-
s;"
revestimento de madeira da plateia; no meio, havia uma -',
-; :
'
culosamente calculada das produções teatrais. Bõhme,
•
porta corrediça que parecia dar para um corredor e, à a quem cabe o mérito de ter introduzido o conceito de
direita e à esquerda, viam-se portas de casas de banho; atmosfera na estética e de o ter desenvolvido, embora com
270 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 271
significativas alterações, a partir do conceito de aura de presença» é claramente entendido como uma modalidade
Benjamin, define atmosferas como «espaços, na medida específica da presença própria das coisas. Bôhme interpre-
em que são "tingidos" pela presença de coisas, de pessoas ta-o como «êxtase das coisas», como o modo específico de
ou das constelações que as rodeiam, ou seja, os seus êxta- uma coisa aparecer ao sujeito que a percepciona como pre-
ses. Estes êxtases são, eles próprios, esferas da presença sente. Não são apenas as cores, os cheiros ou os sons que
de algo, a sua realidade no espaço»:", As atmosferas per- são emitidos, as chamadas propriedades secundárias da
tencem, pois, ao espaço performativo e não ao geométrico. coisa, que são pensadas como êxtase, mas também pro-
Elas não são priedades primárias como a forma. «A forma de uma coisa
age [...] também sobre o exterior. Ela irradia para o ambiente
pensadas como livremente flutuantes, mas, pelo contrário, como circundante, retira a sua homogeneidade ao espaço que
algo que emana e é criado pelas coisas, pelos seres humanos ou rodeia a coisa, enche-o de tensões e de sugestões de movi-
pelas suas constelações. Assim concebidas, as atmosferas não mentr»-" e, deste modo, transforma-o. O mesmo é válido
são qualquer coisa de objectivo, como certas propriedades que para a dimensão e o volume, que não são considerados
as coisas possuem, e no entanto são algo de tangível, pertencente apenas como a propriedade de uma coisa de ocupar um
às coisas na medida em que as próprias coisas articulam as esfe- determinado espaço. «A dimensão de uma coisa e o seu
ras da sua presença através das suas propriedades - pensadas volume são [... ] perceptíveis também no exterior, conferem
- . tá t
peso e orientaçao ao espaço em que a COIsa es a presen e». 81
como êxtase. As atmosferas também não são algo de subjectivo,
determinações de um estado de espírito. No entanto, elas são do O êxtase das coisas implica que estas, ao exercerem uma
sujeito, constituem uma parte dele, na medida em que são sen- •
acção para o exterior, se imponham de um modo muito
',,. :
~ .
sujeitos no espaço,»
. '.
~
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• !,.-
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exactamente idêntico ao conceito de presença. E certo que
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fisicamente vendo e ouvindo o objecto, mas que flui entre a espaços fechados e até à descoberta da iluminação a gás,
• • • • •
COIsa e o sujeito percipiente no espaço performativo: uma nos anos 20 do século XIX, era o odor das velas acesas ou
atmosfera específica. dos candeeiros a óleo, bem como o cheiro da maquilhagem,
Algo de semelhante é válido para o espaço. Quando o do talco, do perfume e do suor dos actores e dos especta-
, .
espaço geometnco se torna espaço performativo, as suas dores que produziam a atmosfera.
•
qualidades primárias, assim chamadas, como a dimensão A partir do naturalismo, os cheiros passaram a ser utí-
e o volume, tornam-se perceptíveis no exterior, podendo lizados conscientemente para criar determinadas atmos-
produzir uma sugestão no sujeito percipiente. feras. O mau cheiro que emanava do monte de estrume no
Num espectáculo, a atmosfera está para a criação de palco, o qual pouco tempo depois se transformava, literal-
espacialidade como a presença está para a produção de cor- mente, em «cheiro a couve», contribuía sobretudo para
poreidade. Na atmosfera, que o espaço e as coisas parecem transportar os espectadores para a atmosfera de um meio
irradiar, estes tornam-se, para o sujeito que penetra no camponês ou de gente pobre, e pô-los em contacto com
espaço, presentes num sentido quase enfático. Não só se esse meio. Max Reinhardt usava os cheiros para criar
lhe mostram nas suas chamadas propriedades primárias e atmosferas diversas. Em Sonho de Uma Noítede Verão (Neues
secundárias, no seu modo de ser-assim, como se infiltram, Theater Berlin, 1904), o seu bosque não fez furor apenas
penetram no corpo do sujeito percipiente de um determi- porque girava - era a primeira vez que se usava um palco
nado modo. Com efeito, ele não se encontra defronte da giratório, inventado em 1898, segundo o modelo do teatro
atmosfera, nem a uma certa distância dela; é, sim, rodeado kabukí; com efeito, o musgo que Reinhardt mandara espa-
e abraçado por ela, está mergulhado nela. lhar pelo chão do palco exalava um cheiro enfeitiçante, que
Tudo isto se torna particularmente evidente no que se permitia aos espectadores sentirem a presença do bosque
refere aos cheiros, que também contribuem para produzir de um modo intenso. Os simbolistas, por seu lado, utiliza-
a atmosfera. Nos espaços teatrais, abundam os cheiros, vam os cheiros no teatro para despertarem determinadas
independentemente de nascerem como um fenómeno '-, ;
,"
,
experiências sinestésicas nos espectadores.
involuntário, mas que não pode ser eliminado, por estar Ao fazer-se uma utilização deliberada dos cheiros,
associado a certas circunstâncias, ou de resultarem de partia-se do pressuposto de que eles se difundiam por todo
.. o espaço e induziam fortes reacções físicas no espectador.
determinadas estratégias de encenação. Daí que a pouca .i
,
.
'
atenção que até hoje lhes tem sido dada seja tão surpreen- "
. Tal deve-se, sobretudo, ao facto de os espaços, os objec-
~<
', 1.-.
dente. Enquanto no teatro ao ar livre são os perfumes da tos, as pessoas penetrarem, através do cheiro que deles se
,.
natureza envolvente ou os cheiros citadinos que contri- liberta, no corpo do sujeito que o sente. Georg Simmel
buem para a criação da atmosfera, com a transferência para refere-se a esta característica do cheiro quando escreve:
274 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 275
Quando cheiramos qualquer coisa, inalamos essa impressão, e a progressiva carbonização do peixe, ele passou a susci-
,
!
ou o objecto que exala o cheiro, até ao centro do nosso ser, I tar nojo e repulsa. Algo semelhante se passou com os
assimilamo-lo ao mais íntimo de nós, como se fosse, por assim espectadores da encenação de Castorf Endstation Arnerika
dizer, o processo vital de respirar, o que não é possível com (Volksbühne da Rosa-Luxemburg-Platz, Berlim, 2000).
nenhum outro sentido em relação a um objecto - a menos que o Neste caso, Kathrin Angerer cozinhava ovos, que foi dei-
comamos. Cheirarmos a atmosfera de alguém é a percepção mais xando fritar cada vez mais até o típico cheiro a clara de ovo
íntima que temos desse alguém, ele impregna o nosso âmago em esturrada começar a empestar o ar. Na produção De Metsiers,
forma gasosa." do grupo Hollandia (em digressão, Schaubühne de Berlim,
200 3), uma das actrizes pegava numa garrafa de cerveja
A partir dos anos 60 do século xx, os cheiros não mais grande, abria-a e, com o líquido, salpicava um colega da
deixaram de ser utilizados no teatro e na petformance art. No cabeça aos pés. No chão do palco, iam-se formando peque-
teatro das orgias e dos mistérios de Nitsch, era precisa- nas poças de cerveja. Um cheiro penetrante e desagradável
mente o cheiro da carcaça do cordeiro, do seu sangue e das a cerveja libertava-se do actor e do palco, espalhando-se
suas entranhas que levava os espectadores a mergulhar rapidamente por todo o espaço. No intervalo, o chão foi
numa atmosfera específica, e que suscitava neles uma forte lavado, mas o cheiro continuou a pairar e a impregnar a
repugnância ou também, em parte, sensações de prazer. atmosfera até ao final do espectáculo.
Grotowski comprimia actores e espectadores num espaço ; -". Como observou Simmel, só a comer assimilamos os
, ,'
(II
tão acanhado que os espectadores sentiam o cheiro a suor ;'i, objectos de modo mais intenso do que com o olfacto.
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dos actores; deste modo, os espectadores sentiam a cor- '1,1
'""
I!: I .' Os cheiros da comida e das bebidas, ao penetrarem no
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poreidade dos actores presente de um modo muito par- interior do corpo através da respiração, estimulam a pro-
ticular, ao mesmo tempo que experienciavam de modo dução de saliva na cavidade bucal e actuam também, em
muito vívido a atmosfera que irradiava deles e dominava o •,, parte, nos órgãos internos, provocando sensações muito
'
espaço. "
ar tif ic ia l co nt in ua a pa ir ar so br e os es pe ct ad or es m es m o co m o o en or m e fu ni l do qu al es co rr ia ar ei a, na en ce na çã o
de po is de se te r di ss ip ad o. Do m es m o m od o, o ch ei ro do s de H ei ne r G oe bb el s de Die glücklose Landung [A te rr ag em
ovos es tu rr ad os pe rm an ec e m es m o de po is de el es te re m de sa fo rt un ad a] (1993, TAT, Fr an kf ur t; 19 94 , H eb be l-
sa íd o de ce na , e o ch ei ro da ce rv ej a en tr an ha -s e no na ri z -T he at er . B er lim ), ou o co nt en to r m et ál ic o qu e oc up av a o
do s es pe ct ad or es - se nã o de to do s, pe lo m en os no s qu e ce nt ro do pa lc o na pr im ei ra en ce na çã o do Hamlet de Za de k
es tã o se nt ad os na s pr im ei ra s filas - m es m o qu e as po ci - (e st re ia no V ol ks th ea te r de V ie na , M ai o de 1999 e, de po is ,
nh as de ce rv ej a no ch ão do pa lc o já te nh am si do lim pa s. no Sc ha ub üh ne da Le hn in er Platz, em B er lim , Se te m br o
O s ch ei ro s as se m el ha m -s e ao gé ni o da ga rr af a, que, um a
de 19 99 )·
vez à so lta no m un do , ni ng ué m m ai s co nt ro la . C om efeito, Sã o as lu ze s e a so no ri da de , so br et ud o, qu e co nt ri bu em
el es es qu iv am -s e ao po de r di sp os ic io na l do s ac to re s e do s pa ra a cr ia çã o de um a at m os fe ra e pe rm ite m al te rá -l a em
es pe ct ad or es , op on do -s e ob st in ad am en te a qu al qu er te n- po uc os se gu nd os . R ob er t W ils on , na s su as en ce na çõ es ,
ta tiv a de m ud an ça pr of un da da at m os fe ra . tr ab al ha co m si st em as co m pu to ri za do s ca pa ze s de realizar
-
E po r es te m ot iv o, pr ec is am en te , qu e a pa rt ir do s an os m ai s de tr ez en to s tip os de ilu m in aç ão di fe re nt es em ce nt o
60 do sé cu lo pa ss ad o se pa ss ou a tr ab al ha r tã o fr eq ue nt e- e vi nt e m in ut os , e de variar, as si m , in in te rr up ta m en te , lu ze s
m en te co m os ch ei ro s no te at ro e na pe rf or m an ce . A lé m e co re s. En qu an to is so , a at m os fe ra m od if ic a- se , se be m
di ss o, im põ e- se co ns ta ta r o as si na lá ve l fo rt al ec im en to que, em vi rt ud e da ve lo ci da de a qu e as lu ze s m ud am , ta l se
do s ou tr os co m po ne nt es qu e in te rv êm na pr od uç ão de pa ss e ab ai xo do lim ia r da pe rc ep çã o co ns ci en te . O s se re s
at m os fe ra s, o qu al po ss ib ili ta um a in te ns id ad e pa rt ic ul ar hu m an os ca pt am a lu z nã o só at ra vé s do s ol ho s, m as ta m -
do êx ta se da s co is as , se ja no qu e se re fe re às su as qu al i- bé m at ra vé s da pele. A luz pe ne tra , po r as si m dizer, no co rp o
da de s «p ri m ár ia s» ou às su as qu al id ad es «s ec un dá ri as ». do sujeito pe rc ip ie nt e através da pele. O or ga ni sm o hu m an o
O s es pa ço s sã o ut ili za do s de m an ei ra a pe rm iti r qu e ta m - re ag e de m od o pa rt ic ul ar m en te se ns ív el à luz. O es ta do de
bé m a su a di m en sã o, o se u vo lu m e e a su a co ns tit ui çã o es pí ri to de um es pe ct ad or su bm et id o a co nt ín ua s m ud an -
m at er ia l se m an if es te m in si st en te m en te , co m o no ca so do ça s de 1l\Z po de al te ra r- se , fr eq ue nt e e re pe nt in am en te , se m
bunker em Celtic + - - -, do B oc ke nh ei m er St ra ís en ba hn de - que ele o re gi st e de m od o co ns ci en te e m ui to m en os o po ss a
po t em to da s as en ce na çõ es de Ei na r Sc hl ee f ou da ab si de co nt ro la r. R ef or ça -s e, as si m , a te nd ên ci a do es pe ct ad or
de be tã o no ed if íc io M en de ls so hn da Sc ha ub üh ne de pa ra , du ra nt e os es pe ct ác ul os de W ils on , se deixar levar, em
B er lim no Hamlet de G rü be r (1981), ou em Kiirper, de Sa sh a vi rt ud e da le nt id ão do s m ov im en to s do s actores, ac en tu ad a
.: -;
W al tz (2000). Em ce rt os ca so s, ut ili za m -s e ob je ct os que, "
"
,
e pe rc ep ci on ad a de m od o co ns ci en te , pa ra um a atmosf~ra
em vi rt ud e da su a di m en sã o, do se u vo lu m e e da su a co n- co m um gr an de ef ei to su ge st iv o. O es pa ço pe rf or m at iv e
si st ên ci a' ac ab am po r do m in ar o es pa ço e a at m os fe ra , su rg e aq ui , so br et ud o, co m o um es pa ço at m os fé ri co .
278 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 279
Também os sons, os ruídos, os tons e a música são actores formam um coro e entoam uma canção. O canto
potencialmente capazes de exercer um forte efeito atmos- deles faz desaparecer o ambiente sórdido e deprimente do
férico. Wilson, cuja capacidade para criar imagens é cons- espaço, semelhante a uma sala de espera, a mesquinhez, e
tantemente elogiada pela crítica, colabora, nas suas a maldade com que as personagens se tratam umas as
encenações, com músicos e compositores do calibre de um outras. Dir-se-ia que o canto os retira, juntamente com os
Philip Glass, de um David Byrne, de um Tom Waits e, sobre- espectadores, do ramerrame opressor e cria uma atmosfera
tudo, de um Hans Peter Kuhn, que se preocupam em tornar de abundância, concórdia e harmonia, fazendo surgir a uto-
os efeitos de sons, ruídos, tons e música - desde o som de pia de uma libertação das contrariedades opressoras de
uma gota de água que cai ao entoar de canções -tão deter- uma vida miserável e mesquinha. Quando o canto se extin-
minantes para a atmosfera como a luz. gue e já nem o seu eco paira no espaço, a atmosfera de
Os sons assemelham-se aos cheiros, pois também eles melancolia difunde-se de novo pelo teatro, envolvendo,
circundam, envolvem e penetram o corpo do sujeito perci- mais uma vez, os espectadores.
piente: o corpo pode tomar-se caixa de ressonância dos sons A partir dos anos 60 do século xx, o teatro e a perfor-
que se ouvem e vibrar em uníssono com eles; determinados mance fazem emergir, de modo quase enfático, o espaço
ruídos podem provocar sensações de dor localizáveis; o performativo como espaço simultaneamente atmosférico.
espectador só pode defender- se dos sons se tapar os ouvi- No que respeita a uma estética do performativo através
dos e, tal como para os cheiros, fica, em regra, inerme deste processo, são três os resultados a realçar. Em pri-
perante eles. Os limites do corpo dissolvem-se: quando os meiro lugar, torna-se claro, de modo irrefutável, que a
sons, os ruídos e a música fazem do corpo do espectador! espacialidade do espectáculo não possui um carácter de '
ouvinte a sua caixa de ressonância, quando ressoam no seu obra de arte, mas de acontecimento, dada a sua natureza
tórax, provocando-lhe dor física ou pele de galinha, ou fugaz e transitória. Em segundo lugar, no espaço atmosfé-
revolvendo-lhe as entranhas, ele deixa de os captar como rico, o espectador experiencia a sua própria corporeidade
algo que lhe penetra nos ouvidos a partir do exterior, para de um !V0do muito particular. Experiencia-se a si mesmo
,
, ,
passar a senti-los como um processo intracorpóreo, que, não \', como um organismo vivo, num intercâmbio com o
raro, desencadeia um sentimento «oceânico». Graças aos ambiente. A atmosfera penetra-lhe no corpo e infringe-lhe
sons, a atmosfera abre o corpo do espectador e penetra nele. os limites. Com isso, o espaço performativo revela-se um
Além de Wilson, Heiner Goebbels e Christoph Marthaler espaço liminar, onde se verificam mudanças e ocorrem
são exemplos relevantes da experimentação sonora. Em transformações.
Murx, por exemplo, a atmosfera de miséria e de desolação
cómico-grotesca dissipa-se subitamente sempre que os *
', ,
j
"
,
' ,
280 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 281
Bõhme desenvolveu a sua estética da atmosfera como antí- conseguem produzir. O modo como a materialidade das
tese de uma estética semiótica. Enquanto esta parte do coisas, que se manifesta no seu êxtase e contribui para a
pressuposto de que deve considerar-se a arte como lingua- atmosfera, interage com os significados que possam reves-
gem, concentrando-se, por isso, nos processos de geração tir para o sujeito percipiente será ainda objecto de uma
do significado, a estética da atmosfera desvia a atenção discussão pormenorizada.v
para a experiência física. No que se refere a este desvio do
centro de gravidade dos significados para a experiência
física, estou plenamente de acordo com Bõhme. Interrogo- 3. SONORIDADE
-me, contudo, se será possível excluir por completo da expe-
riência física e, em particular, da experiência da atmosfera A sonoridade é paradigmática do carácter efémero das
a dimensão do significado. O efeito das atmosferas não é performances. Que coisa poderia ser mais fugaz do que o
explicável como reflexo fisiológico, como mecanismo de (re)tinir de um som? Emergindo do silêncio do espaço,
estímulo-resposta automaticamente desencadeado em propaga-se nele, enche-o, para no momento seguinte come-
cada sujeito percipiente. Não experienciamos uma atmos- çar a dissipar-se, extinguir-se e desaparecer. No entanto,
fera do mesmo modo que, por exemplo, todos fechamos os por muito fugaz que seja, ele age de imediato em quem o
olhos quando um corpo estranho lhes toca. As coisas _ ouve, e não raro de modo duradouro. Não só lhe transmite
como o contentor no Hamlet ou os fogões a carvão em Murx um sentido de espaço (não nos esqueçamos, a este propó-
- podem ser portadoras de tanto significado para o sujeito sito, de que o nosso centro de equilíbrio se situa no ouvido),
percipiente quanto os cheiros e os sons que se soltam delas como penetra no seu corpo, desencadeando muitas vezes
- o cheiro a peixe queimado em Antonin Nalpas, ou a gota reacções fisiológicas e afectivas. O ouvinte pode ser per-
de chuva no Lear de Wilson (Schauspielhaus de Frankfurt, corrido por um arrepio, ficar com pele de galinha, com o
Bockenheimer Depot, 1990) - ou os jogos de luzes - a luz pulso acelerado, a respiração curta e ofegante, pode ter um
resplandecente e encadeante no Lear de Wilson depois da • assomo ,de melancolia ou, pelo contrário, ficar eufórico, ser
cegueira de Gloucester. Cada um destes elementos pode .' acometido por um sentimento de nostalgia de je ne sais quoi,
trazer à memória contextos e situações, ou despertar recor- mergulhar em recordações, e assim por diante. A sonori -
dações :mocionalmente muito intensas no sujeito perci- ".;
grego se trabalhava com efeitos sonoros especiais; o baru- transmissão da linguagem, se torna responsável pela espe-
lho do trovão era produzido com o bronteion, uma pele esti- cial atracção que tais géneros exercem e pela sua grande
cada sobre a qual se deixavam cair esferas de chumbo de popularidade junto de um vasto público. Nem mesmo no
um recipiente de metal, ou com seixos atirados para uma teatro tradicional a hegemonia da fala é incontestável. Além
bacia metálica. da particularidade de, até ao final do século XVIII, os espec-
Ainda hoje, seja nosfluilletons', seja entre os literatos, táculos consistirem num programa de atracções que habi-
está difundida a opinião de que o teatro europeu se distin- tualmente incluía uma peça musical - quase sempre como
gue do teatro de outras culturas pelo facto de a sua sonori- acompanhamento do bailado com que o espectáculo se con-
dade equivaler, em larga medida, à linguagem falada. Daí cluÍa -, a peça propriamente dita também incluía vários
a convicção de que a sonoridade, enquanto tal, não seja interlúdios. Nos intervalos entre os diversos actos, enquanto
relevante para o espectáculo, e que seja simplesmente um o responsável pela iluminação executava o seu trabalho e
medium através do qual a linguagem se manifesta. Sabe- diminuía as torcidas dos candeeiros para manter o fumo em
mos, no entanto, que já no teatro grego não se declamava níveis suportáveis, era executado o chamado entreacto. Até
apenas um texto: aflauta acompanhava, na tragédia, o reci- quase ao final de meados do século XVIII, esse entreacto
tativo nos tetrâmetros trocaicos e, na parábase da comédia nada tinha em comum com a peça que intervalava. Em finais
antiga, os versos longos jâmbicos e anapésticos. Todas as dos anos 30, a colaboração entre a artista e directora de
partes líricas do texto eram cantadas, umas vezes alterna- companhia Friedericke Caroline Neuber e o compositor
damente com o coro (como, por exemplo, nos lamentos Johann Adolph Scheibe levou a uma nova concepção do
fúnebres rituais da tragédia, os kommoi), outras vezes como intervalo musical. Scheibe era de opinião que a música deve-
virtuosas árias a solo. Logo, dificilmente se pode falar de ria relacionar- se com a acção da peça, as suas personagens
um domínio da linguagem falada. . ·. e afectos." A música adquiriu, pois, uma função drama-
,
Isto é válido, sobretudo, a partir da invenção da ópera, P
,;.l'
."
.s
túrgica que visava, acima de tudo, «transportar o especta-
resultante dos esforços da Camerata Fiorentina para, em "; dor de um estado de espírito para outro sem que disso ele
finais do século XVI, fazer reviver a tragédia grega. Desde tenha c~nsciência»86. Foi observando estes princípios que
então, é sobretudo nos diferentes géneros do teatro musi- Scheibe compôs para Neuber as músicas para Polyeuctus
cal - além da ópera, o Sinqspiel, o bailado e, mais tarde, a e para Mithridates, apresentadas em Hamburgo, em 30 de
opereta e o musical - que a sonoridade, além de veículo de Abril e 2 de Junho de 1738, respectivamente. Nos finais do
século XVI I I e no século XIX, a música deixou de estar con-
• finada ao entreacto e passou a ser também composta para
Nome por que são desígnadzs as páginas de um jornal diário alemão
dedicadas a temas de âmbito cultural. (N. 7:) certas partes e sequências da representação."
284 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 285
Nos espectáculos em que apareciam personagens seguidos de gritos isolados dos gondolieri, aos quais se
cómicas como Hanswurst [literalmente, João Salsicha] ou juntavam novas vozes, que iam engrossando até repro-
Arlequim e, mais tarde, também Bernardon (Felix von Kurz, duzirem o barulho de uma multidão - a cidade acordara.
1717-1784), bem como nos espectáculos do teatro popular Ao longe, soavam canções e notas de violino que, primeiro
vienense, até às peças de Raimund e Nestroy, a música quase imperceptíveis, depressa se transformavam em
acompanhava abundantemente o canto - primeiro tratou- marcha. A propósito desta composição, escreve Bruno
-se apenas de «árias», mais tarde também de «couplets». Foi Walter: «Um ritmo de marcha rígido [... ], de que o ouvinte
Nestroy quem introduziu em Viena o novo género teatral da não tem consciência e que, contudo, aumenta - incons-
opereta, que, de certo modo, devia substituir o teatro popu- cientemente - a atmosfera mais festiva e mais descon-
lar. A 16 de Outubro de 1858, estreava-se no Carltheater traída do lugar. »89
Hochzeit hei Laternenschein [Matrimónio à luz da lanterna], Como mostra esta breve visão de conjunto, no teatro
de Jacques Offenbach, dirigida por Nestroy, iniciando-se europeu, a sonoridade não é produzida exclusivamente,
assim a marcha triunfal da opereta na capital austríaca. nem sequer predominantemente, por vozes que falam, ou
,
Para a opereta Orphée aux Enfers [Orfeu no Inferno], levada seja, por uma linguagem falada. O teatro como espaço acus-
à cena no Carltheater em 1860, Nestroy adaptou a tradução tico é constituído sobretudo por música, vozes - que falam,
de Ludwig Kalisch para o espectáculo de Breslávia em 1859, cantam, riem, soluçam, gritam - e diferentes tipos de ruídos,
desempenhando ele próprio o papel de Pan: «O Pan de elementos cujo peso varia segundo o género e as épocas.
I a'" •
Nestroy enriqueceu a galeria das suas criações cómicas com Em tudo isto, a voz do interprete assume uma ímportancta
golpe de mestre. Na actuação, na fala e no canto, Nestroy muito especial. Desta análise, resultam sobretudo duas
revelou-se um cómico irresistível.v" questões no que se refere à sonoridade nos espectáculos a
Na viragem do século XIX para o século xx, a música con- partir dos anos 60: 1) Que tipo de espaços acústicos se pro-
tinuou presente no teatro, por vezes até de modo excessivo. duz com eles? 2) Sobre que aspectos da vocalidade se cen-
Reinhardt mandava compor uma música própria para cada ,
tra a atenção?
uma das suas encenações, e não apenas para as pantomi-
nas como Sumurun. Trabalhou especificamente, além disso,
os ruídos, sobretudo para criar determinadas atmosferas. Espaços acústicos
O Mercador de Veneza (Deutches Theater, Berlim, 1905) abria
com um prelúdio composto por Engelbert Humperdinck a Como é visível à luz dos exemplos históricos a partir do
partir de diferentes ruídos. Primeiro, ouviam-se vozes de século XVIII, só os sons criados pelos profissionais de tea-
animais, depois um crepitar, um tilintar e um chocalhar, tro durante o espectáculo - actores, músicos, técnicos -
28 6 ES TÉ TI CA DO PER FO RM AT IV O 28 7
ERIKA FISCHER-L1CHTE
ns tit ut iv os do es pa ço ac ús tic o te a- m ai s po ss ív el po r nã o fa ze r ba ru lh o, ap es ar de nã o se co i-
er am co ns id er ad os co
tr al . A pe sa r de se es ta r co ns ci en te - e co m cr es ce nt e bi r de to ss ir ou de ar ra st ar de pé s.
m bé m o pú bl ic o pr od uz ia co ns ta n- No di a 29 de A br il de 19 52 , no M av er ic k H al l de W oo d-
am ar gu ra - de qu e ta
s er am co ns id er ad os ap en as el em en - stock, Nova Io rq ue , es tr eo u- se a pr im ei ra sil en tp ie ce de Jo hn
te m en te ru íd os , es te
e, co m o ta l, er am co m ba tid os . A ss im , Cage, in tit ul ad a 43 3" . A pe ça er a co m po st a po r tr ês an da -
to s pe rt ur ba do re s
Th ea ter -I< .al en de r de G ot ha , qu ei xa va -s e, m en to s. a pi an is ta D av id Tu do r, ve st in do um fr aq ue pr et o,
Reichard, ed ito r do
rte s ru íd os ca us ad os pe lo pú bl ic o: en tr ou em ce na e se nt ou -s e ao pi an o. A br iu o pi an o e pe r-
na edição de 1781 , do s fo
es pe ct ad or es at en to s, é um to r- m an ec eu se nt ad o se m to ca r. D ep oi s, vo lto u a fe ch á- lo .
«P ar a os ou vi nt es e os
el qu an do os re st an te s fa ze m ta nt o ba ru - Volvidos 33 se gu nd os , re ab ri u- o. Po uc o de po is , fe ch ou -o
m en to indescrit ív
s, os ba st õe s, qu e m ui ta s ve ze s nã o de novo, pa ra m ai s um a ve z o ab ri r 2 m in ut os e 40 se gu n-
lh o co m a bo ca , os pé
eb er o qu e o ac to r di z» ?", «A ba ra fu nd a e do s de po is . Em se gu id a, re ab ri u- o um a úl tim a ve z. Fi m da
se co ns eg ue pe rc
o de ta l m an ei ra qu e R ei ch ar d pr o- obra. Dav id Tu do r, qu e nã o to ca ra um a ún ic a no ta , le va nt ou -
o ba ru lh o» ir ri ta va m -n
bl ic as se no s ca rt az es a se gu in te am ea ça : -s e e cu rv ou -s e di an te do pú bl ic o pa ra ag ra de ce r.
pô s qu e se pu
rt ur ba r os ou tr os es pe ct ad or es , a ar tis ta co nt ri bu ír a pa ra a pr od uç ão do es pa ço ac ús -
f «T od o aq ue le qu e pe
te nd o co m po rt am en to s in ap ro pr ia - tico ap en as co m o ba ru lh o do s se us pa ss os e co m o so m pr o-
ru lh o ou
II' fa ze nd o ba
do te at ro . »9 1
A in da é po ss ív el en co nt ra r du zi do pe la ta m pa do pi an o ao fe ch ar -s e. Q ue r is to di ze r
do s, se rá ex pu ls o
ha nt es ao lo ng o de to do o sé cu lo XI X. qu e o es pa ço ac ús tic o nã o fo i pr ed om in an te m en te cr ia do
qu ei xa s m ui to se m el
dw ig pe lo s ru íd os qu e pe ne tr av am na sa la ,
a di re ct or do te at ro de H am bu rg o, Fr ie dr ic h Lu pe lo ar tis ta , e si m
ct ad or es .
r ex em pl o, la m en ta va -s e do fa ct o de «c he ga r pr ov en ie nt es do ex te rio r ou pr od uz id os pe lo s es pe
Sc hm id t, po
as se nt os , fa ze r re st ol ha r os ve st i- N ão re su lta va , po is , da in te nç ão de cr ia r a so no ri da de do
at ra sa do , ba te r co m os
ac çõ es na or de m do di a pa ra a m ai or ia es pe ct ác ul o. Em er gi a, si m , da co ns on ân ci a, ou m el ho r, da
do s, etc., [s er em ]
is se ad m ir a - um a ve z qu e nã o ou vi u se qu ên ci a de so ns qu e ch eg av am ao ou vi do po r m er o ac as o,
do públic o, qu e de po
ia l do es pe ct ác ul o - de te r pe rd id o o co m o po r ex em pl o o ba ru lh o do ve nt o ou da ch uv a, ou as
um a pa rt e su bs ta nc
ct ad or es . Es se s so ns ,
fio à m ea da », w a pú bl ic o de vi a se r di sc ip lin ad o, fic ar se n- m an if es ta çõ es de en fa do do s es pe
si lê nc io , no se u lu ga r, co nc en tr ar to da co nt ud o, nã o er am ca pt ad os pe lo es pe ct ad or /o uv in te
ta do , im óv el e em
st ra cç õe s, no s ac on te ci m en to s qu e co m o pe rt en ce nd o ao es pe ct ác ul o. U m a ve z qu e o pi an is ta
a at en çã o, se m di
s so ns pr od uz id os pe lo s ac to re s. nã o to ca ra , os es pe ct ad or es es ta va m co nv en ci do s de qu e
de co rr ia m no pa lc o e no
al ca nç ou co m pl et am en te es sa di s- nã o ti nh am ou vi do na da , ap en as se ha vi am ap er ce bi do de
N a ve rd ad e, nu nc a se
sé cu lo co nt ud o, o pú bl ic o in te - um si lê nc io de ve ra s ir ri ta nt e. Em to do o ca so , nã o se se n-
ciplina. N os an os 50 do XX ,
ên ci as a ta l po nt o qu e se es fo rç av a o tia m es tim ul ad os a pa rti ci pa r, ou se ja , a es cu ta r no si lê nc io
ri or iz ar a es ta s ex ig
288 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 289
os sons que lhes chegavam ao ouvido e/ou a integrá-los planos e maquinações individuais e acontece de maneira
conscientemente com os que eles próprios produziam. imprevisível. Os diferentes sons emergem no espaço,
Segundo a observação de Cage, propagam-se nele durante um certo lapso de tempo, criam
padrões sonoros diversos e voltam a desaparecer. A sono-
[aJ maioria das pessoas não captou o essencial. O silêncio não ridade modifica-se, pois, continuamente, em permanente
existe. O que pensavam ser silêncio - porque não sabiam ouvir _ transformação. É evidente que não possui um carácter de
estava repleto de barulhos fortuitos. Podia ouvir-se o barulho do obra de arte, mas sim de acontecimento.v-
vento lá fora durante o primeiro andamento [na estreia). Durante No espectáculo de Cage, além disso, assistia-se a uma
o segundo, gotas de chuva começaram a tamborilar no telhado e, dissolução dos limites do espaço performativo como
durante o terceiro, as próprias pessoas faziam todo o tipo de baru- espaço acústico. Este expande-se para lá do espaço geo-
lhos interessantes enquanto falavam ou se iam embora.» métrico em que o espectáculo se realiza; o espaço perfor-
mativo perde, assim, a sua delimitação, abrindo- se a outros
Neste caso, o espaço acústico do espectáculo e a sua que se situam «fora» dele. As barreiras entre o interior e o
sonoridade eram criados através dos elementos que até exterior tornam-se permeáveis. O espaço circundante
aquele momento se tentara o mais possível eliminar _ penetra no espaço performativo através de sons e ruídos,
desde os sons vindos de fora que penetravam na sala aos ampliando-o de um modo surpreendente: tudo aquilo que
ruídos provocados pelo público com os seus acessos de é ouvido casualmente passa a ser um elemento do espec-
tosse, ao arrastar dos pés, às conversas, ao pôr-se de pé e táculo e pode modificar o espaço performativo.
ao abrir e fechar das portas de acesso à sala. A sonoridade Cage caracteriza explicitamente esta experiência como
não era planeada, nem previsível, nem ao dispor de cada uma experiência teatral: «Penso que o que distinguiu o meu
um. Ela devia-se, por um lado, ao circuito autopoiéfico de espectáculo dos outros" [... ] foi o facto de ele ter sido mais
retroacção, ou seja, era produzida pelas acções do actor e teatral. As minhas experiências são teatrais. »96 São preci-
dos espectadores, as quais, na sua maioria, não eram pla- samente a ausência de intencionalidade, a falta de planifi-
nificáveis nem previsíveis. Por outro, contudo, também era cação' a ~bertura ao que pode acontecer, o carácter não
produzida por sons não imputáveis aos participantes no disposicional, o acaso, a transitoriedade e o estar em per-
espectáculo, sons trazidos por acontecimentos exteriores manente mutação, sem qualquer intervenção externa, que
à sala onde aquele se realizava, como rajadas de vento e definem o conceito de teatro de Cage. E daí que o espectá-
pingos de chuva, e que não eram calculáveis nem influen- culo 433"lhe parecesse o arquétipo do teatral: «Que coisa
ciáveis. Manifestava-se assim, de modo acentuado, o carác- poderia ser mais teatral do que as peças silenciosas -
ter não planeável da sonoridade, que se esquiva a intenções, alguém entra no palco e não faz rigorosamente nada.s'?
290 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 291
Limita-se a deixar que aconteça o que se passa sem a sua elementos da orquestra e os lugares para os cenários eram
interferência. atribuídos segundo programas de escolha aleatória gerados
Embora, sob certos aspectos, se possa considerar a por computadores e desenvolvidos pelo compositor Andrew
silent piece de Cage um caso extremo, os princípios que lhe Culver. Os instrumentistas distribuíam-se portado o espa-
estão na base constituíram um guia para todo o posterior ço cénico, incluindo o fosso de orquestra. Quatro grupos,
trabalho teatral do artista. A fim de garantir a sua validade cada um dos quais composto por quatro instrumentistas
e eficácia também nos casos em que os actores executam das secções de madeiras, metais e cordas, estavam dispos-
uma acção - ainda por cima preparada e planeada -, Cage tos segundo a ordem habitual na música de câmara: nos
introduziu operações aleatórias e time brackets. Em Europeras quatro ângulos do espaço cénico. Os percussionistas, sen-
18'II (Frankfurt, 1987), por exemplo, escolheu 64 óperas, tados ou de pé, ocupavam o fosso de orquestra. No espaço
de entre as que constavam da lista da Metropolitan Opera cénico e no espaço reservado aos espectadores estavam
e já não estavam protegidas pelo direito de autor, por meio instalados altifalantes que transmitiam, segundo um plano
de operações aleatórias com base no I-Ching ou Livro das temporal definido por operações aleatórias, um mix de 101
Mutações chinês. Com este procedimento, estabelecia-se extractos de ópera produzidos e gravados em Nova Iorque.
quais as óperas que forneceriam a fonte para as partes a O recurso às operações aleatórias assegurava que
tocar por cada instrumento. Mediante operações aleatórias nenhum dos materiais utilizados no espectáculo seria esco-
ainda mais precisas, determinava-se quais os fragmentos lhido com base num plano ou com uma determinada inten-
que deviam ser efectivamente tocados. Os time brackets assi- ção. Resultava daí que os extractos escolhidos nada tinham
nalavam o primeiro início e o último fim possíveis de um que ver uns com os outros - não apresentavam nenhuma
fragmento. Cada elemento da orquestra experimentava a sua relação, nem nenhuma ligação intencional entre eles. Além
parte, independentemente de todos os outros. Os 19 can- disso, os «assistentes» estavam incumbidos de explorar o
tores, homens e mulheres, provenientes dos diferentes géne- espaço teatral com microfones de contacto, em busca de
ros operáticos (dramático, lírico, ópera bufa) e abarcando eventuais sons e ruídos, a fim de tornarem audíveis, quer
, .
todos os tipos de registo vocal, executavam, no âmbito dos aos actores, quer aos espectadores, os barulhos provemen-
time brackets que o previam, árias do seu repertório que eles tes da plateia ou que penetravam do exterior. Deste modo,
próprios tinham escolhido. os espectadores viam serem-lhes devolvidos, mas ampli-
O espaço cénico subdividia-se em 64 espaços, com base ficados, os barulhos que eles próprios tinham produzido,
na superfície do palco e em conformidade com o I-Chinq. tornando-se assim conscientes do facto de também eles
As posições dos cantores e dos seus «assistentes» - bai- participarem na criação do espaço acústico e da sonoridade
larinos e técnicos de palco - e as suas acções, a posição dos do espectáculo.
292 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 293
Uma vez que os time brackets apenas indicavam o pri- no grito, no suspiro, no gemido, no soluço e no riso. Estes
meiro momento inicial e o último momento final possíveis são produzidos num processo que envolve intensamente
das acções, e dado que o comprimento dos materiais musi- todo o corpo, o qual se curva, se contorce ou se distende ao
cais escolhidos mediante operações aleatórias, bem como máximo. Ao mesmo tempo, estas manifestações vocais
o das árias escolhidas pelos cantores, nunca correspondia inarticuladas conseguem apoderar-se profundamente, ao
exactamente à duração máxima possível, havia em cada nível corpóreo, de quem as ouve. Quem ouve o grito de um
espectáculo deslocações que não tinham sido planeadas ser humano, o seu suspiro, o seu gemido, o seu soluçar ou
nem combinadas. O espaço acústico criado em cada espec- o seu riso, tem a percepção destes fenómenos como pro-
táculo era sempre diferente - tanto mais que os ruídos cessos específicos de encarnação, logo, como processos
exteriores e os provenientes da plateia diferiam de noite através dos quais se produz uma corporeidade singular.
para noite. A casualidade, a fugacidade e o carácter não Quem ouve terá, assim, a percepção da pessoa em causa
planeável da sonoridade, a natureza de acontecimento que no seu ser-no-mundo corpóreo, o que afecta de imediato
lhe é inerente, manifestavam-se, pois, de modo acentuado. o seu próprio ser-na-mundo, porquanto, ao ouvir o grito,
Como espaço acústico, também o espaço performativo se o soluço ou o riso, a voz que grita, soluça ou ri penetra no
transformava permanentemente, perdia os seus limites e seu corpo, ressoa nele e é por ele absorvida." Durante o
expandia-se muito para lá do espaço geométrico onde o espectáculo, os momentos em que um actor grita, suspira,
espectáculo se realizava. geme, soluça ou ri podem, pois, ser interpretados e viven-
ciados como momentos em que a sua voz se torna audível
na sua fisicalidade específica e na sua própria sensibili-
Vozes dade material."
•
As vozes que se ouvem nos espectáculos são, predomi-
A sonoridade produz sempre, ao mesmo tempo, espacia- nantemente, vozes que cantam ou falam, por conseguinte,
lidade e, como já vimos, não apenas no sentido de espaço vozes com, uma ligação aparentemente indissolúvel com a
atmosférico. Além disso, a vocalidade também produz sem- linguagem. Na retórica e nas teorias da declamação que,
pre, simultaneamente, corporeidade. Na voz e com a voz, desde finais do século XVII, dela derivam, considerava-se
constituem-se os três tipos de materialidade: corporei- que tal ligação era dominada pela linguagem. O actor deve
dade, espacialidade e sonoridade. A voz ressoa, soltando- usar a sua voz de um modo tal que ela possa assumir uma
-se do corpo e vibrando no espaço de modo a ser audível função parassintáctica, parassemântica e parapragmática
quer por quem canta ou fala, quer por outros. A estreita em relação ao que é dito. Ou seja, em primeiro lugar, ela deve
relação que existe entre corpo e voz manifesta-se, sobretudo, clarificar a estrutura sintáctica do que é dito; em segundo
294 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 295
lugar, deve destacar e sublinhar o significado pretendido e, a sua tarefa consiste em facilitar a compreensão do que
finalmente, deve reforçar o efeito do que é dito em quem é dito.
ouve. Assim, Goethe, nas suas RegelnfürSchauspieler [Regras Com o naturalismo, assiste-se a uma importante
para actores] (1803), afirma: mudança: a relação entre voz e linguagem, até então apa-
rentemente indissolúvel, toma-se mais fluida. A voz passa
Depois de ter compreendido bem o sentido das palavras e de a poder ser usada - seja na entoação, no tom, na altura ou
estar completamente na sua posse, devo tentar acompanhá-las no volume - de modo a já não concordar com as palavras
com o tom de voz adequado e pronunciá-las com a força ou a ditas. Enquanto as palavras parecem exprimir uma sauda-
debilidade, a velocidade ou a lentidão que o sentido de cada frase ção amigável, com a voz - bem como, eventualmente, com
exige. Veja-se, por exemplo, como devem pronunciar-se os as expressões do rosto, os gestos e os movimentos -, pode
[seguintes1versos: ser-se levado a pensar em medo ou em agressão. Cria-se
uma brecha que remete para a contradição entre o compor-
Os povos apagam-se - num tom a meia-voz, sussurrado tamento deliberado, consciente, e uma atitude real e por-
Os nomes desvanecem-se - num tom mais claro, mais ventura inconsciente: enquanto a linguagem pode enganar,
sonante o corpo é considerado verdadeiro e autêntico. O corpo e as
O sombrio olvido} deve ser pronunciado outras manifestações físicas revelam o «verdadeiro» estado
Estende as escuras asas, } de modo surdo de espírito da personagem, mesmo quando esta não está
negras como a noite, } profundo consciente dele. Neste caso, voz e linguagem cindem-se.
Sobre gerações inteiras} com horror Contudo, esta cisão deve ser interpretada e compreendida
tendo em conta a personagem.
•
Bem assim, deve-se, para o passo seguinte: Completamente diferente, em contrapartida, é a tensão
entre voz e linguagem que parece existir na ópera desde a
Descendo velozmente do meu cavalo, sua criação.
, Os slogans mudam continuamente: «Prima la
Precipito-me no seu encalço ... musical la voce, poi le parole» e «Prima le parole, poi la
musical la voce». Ainda que, quando da invenção da ópera,
escolher uma cadência muito mais rápida do que no passo ante- as palavras tivessem o primado sobre a voz através do parlar
rior, pois é o próprio conteúdo das palavras que o requer,'?" cantando ou recitativo, esta relação depressa se inverte -
apesar das repetidas exigências em contrário - com a evo-
A voz deve, pois, colocar-se inteiramente ao serviço lução posterior da ópera, cujas composições obrigam a tons
das palavras pronunciadas. Segundo este entendimento, cada vez mais altos: quanto mais a voz se eleva, mais se
296 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 297
liberta da sua relação com a linguagem. Se os tons são No seu ensaio Bürgerliche Oper [Ópera burguesa] (1955),
muito altos, as palavras deixam de poder ser articuladas de Adorno destaca esta característica do canto operático:
modo inteligível:
A ópera [... ] tem que ver com seres humanos empíricos, nomea-
Um cantor tem uma maior probabilidade de ser compreendido damente com aqueles que estão reduzidos à sua simples essência
pelo público quando a maior parte da sua tessitura (a gama de natural. Isto está na base do seu peculiar carácter de máscara: os
frequências que pode ser executada sem dificuldade) recai na mortais estão disfarçados de heróis ou de deuses, e este disfarce
zona de inteligibilidade óptima, por outras palavras, abaixo dos é já do mesmo género daquilo que cantam. Através do canto, eles
312 Hz. O facto de ser mais fácil compreender um baixo do que são exaltados e transfigurados. [... ] O gesto de cantar das perso-
um soprano não deve surpreender-nos, se considerarmos que . nagens dramáticas engana quanto ao facto de, embora estilizadas,
toda a tessitura do baixo se situa na zona de inteligibilidade terem poucas razões para cantar, e talvez nem a possibilidade de
óptima, ao passo que só um quarto da tessitura de uma soprano o fazerem. Mas ressoa neste gesto a esperança na reconciliação
e um quinto da tessitura de uma soprano de coloratura (a voz com a natureza: o acto de cantar, utopia da existência prosaica, é
feminina mais alta) recaem naquela zona.'?' ao mesmo tempo lembrança do estado pré-linguístico e indiviso
da criação [... ]. O canto da ópera é a linguagem da paixão: não
São estas, precisamente, as alturas em que a palavra apenas estilização exagerada da existência, mas também expres-
cantada deixa de ser compreensível e em que a voz da são do facto de a natureza se impor no homem contra toda e qual-
cantora provoca um arrepio de prazer a quem a ouve, quer convenção e mediação - evocação da pura imediatitude.'?'
transformando-se num arrepio de terror à medida que o
canto se aproxima do grito. A tal propósito, não nos esque- No canto, sobretudo quando se alcançam os tons mais
çamos, no entanto, que não é a incompreensibilidade das altos, a cantora adquire aquilo que caracterizei como pre-
' J
mesmo tempo, ela dirige-se ao ser-no-mundo corpóreo trabalhar com o pano, mesmo nos casos de utilização da
daquele que a ouve, preenchendo o espaço entre ambos e cena à italiana, e são muitos os espectáculos teatrais que se
estabelecendo uma relação entre eles. Aquele que dá a realizam sem intervalos. Wilson, nos anos 70 - período em
ouvir a sua voz toca com ela aquele que a ouve. que preparou encenações que duravam horas ou mesmo dias,
ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 305
304
cesso a sua materialidade se realiza e se exterioriza como poucas acções se desenrolavam, funcionando sobretudo
fenómeno emergente, é evidente que o cair do pano e os como espaço de passagem. Entre os triângulos, tinham sido
intervalos se revelam contraproducentes. Estes elementos deixados corredores largos, que se interceptavam ao centro,
não procedem dos efeitos do circuito retroactivo e inter- como duas diagonais. Em cima de cada cadeira fora colo-
rompem o processo, em permanente devir, da emergên- cada uma chávena branca, acerca da qual nenhuma indi-
cia, da estabilização e do desaparecimento de materiais cação fora dada aos espectadores, acabando por ser usada
- a menos que eles próprios sejam partes desse processo, como cinzeiro por alguns deles. Do tecto pendiam quadros
como na encenação de Salame, de Schleef.':" de Robert Rauschenberg, os famosos white paintings.
Se a atenção se deve dirigir para o fenómeno da emer- Participavam na performance, além de Cage e de Raus-
gência, então os procedimentos de estruturação temporal chenberg, David Tudor, o compositor Jay Watts, o baila-
são postos de parte. Pretende-se, com estes procedimen- rino Merce Cunningham e os poetas Charles Olsen e Mary
tos, reconduzir o aparecimento de um certo elemento a Caroline Richards. Cage, de fato preto e gravata, de pé em
uma causa precisa: o elemento é identificado como elo de cima de um escadote, lia um texto sobre a relação entre a
uma cadeia causal e é relacionado com o desenrolar da acção música ~ o budismo zen, e excertos dos escritos de Mestre
ou com a psicologia da personagem. Já falámos de dois Eckhart. Em seguida, interpretou uma composição com
procedimentos que procuram evitar essa eventualidade, rádio. Em simultâneo, Rauschenberg punha a tocar velhos
sem contudo termos examinado a sua capacidade para discos de vinil num gramofone, junto ao qual estava sen-
sensibilizar o espectador/ouvinte para a emergência da tado um cão. David Tudor, por sua vez, elaborava uma pre-
materialidade: os time brackets (secção seguinte) e o ritmo pared radio; depois, pôs-se a deitar água de um balde para
(secção sobre «Comunidade»), outro, enquanto Olsen e Richards liam as próprias poesias
306 ERIKA FISCHER-lICHTE
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 307
- ora no meio dos espectadores, ora de uma escada que se o qual podiam executar as acções, e em caso algum devia
encontrava apoiada a uma das paredes de menor compri- ser ultrapassado, razão pela qual a duração era controlada
mento. Cunningham dançava com outros bailarinos ao com relógio. Como esta restrição respeitava tanto ao início
, longo dos corredores e por entre os espectadores, seguido como ao fim da acção, o artista devia estar atento ao reló-
! pelo cão que, entretanto, já estava completamente fora gio, a fim de não começar muito cedo nem terminar muito
dele. Rauschenberg projectava, no tecto e numa das pare- tarde. Em relação a tudo o resto, o artista era completa-
des mais compridas, diapositivos abstractos (realizados mente livre de fazer o que muito bem quisesse, sem se
esfregando gelatina colorida entre duas placas de vidro) preocupar com o que os outros estariam a fazer. Não tinha
e extractos de filmes que começavam por mostrar o cozi- de baixar o volume do gramofone, para permitir aos espec-
nheiro da instituição e, em seguida, depois de gradualmente tadores ouvirem o que os outros estivessem a ler; nem
se deslocarem do tecto para a outra parede mais comprida, tinha de acordar com os outros a roupa ou os objectos que
o pôr-do-sol. Sentado num dos cantos da sala, o compo- usaria, nem de escolhê-los subordinando-se a uma «ideia»
sitor Jay Watts tocava diversos instrumentos. O espectá- ou a uma «intenção» pré-estabelecidas.
culo terminava com quatro rapazes vestidos de branco a O que acontecia e era transmitido ao ouvido e à vista
deitarem café nas chávenas dos espectadores, quer tives- parecia absolutamente injustificado ao espectador; nenhuma
sem servido como cinzeiros ou não. das acções decorria de outra e, sempre que era possível
Cage iniciara os preparativos do espectáculo entre- estabelecer uma relação entre algumas delas. tal era fruto
gando a cada um dos participantes uma espécie de parti- do acaso ou de condições subjectivas particulares. Cada
tura onde estavam inscritos time brackets. Deste modo, acção respondia por si. Emergia num determinado momen-
ficava estabelecido quantas vezes cada um dos participan- to, não previsível, estabilizava-se por instantes no seu per-
tes deveria repetir uma acção e qual seria a sua duração manente devir, para depois se concluir e desaparecer, num
máxima. Cada artista, por seu turno, tinha plena liber- momento também ele imprevisível. O espectador podia
dade de escolher o tipo de acção a executar, bem como o dirigir a atenção para a acção que preferisse; ao mesmo
momento do seu início e o do seu fim, dentro do tempo tempo, porém, sons ou movimentos surgidos repentina-
previsto pelos time brackets para a acção. Os artistas tinham mente podiam desviá-la para outra acção. Seguir um enredo
acordado não falarem antecipadamente das acções esco- em que as acções se articulam - mesmo não se desenro-
lhidas por cada um, nem chegarem a qualquer espécie de lando segundo o modelo clássico: exposição, trama, clímax,
entendimento a tal respeito. Para eles, os time brackets sig- reviravolta e catástrofelresolução - e seguir a evolução psi-
nificavam, pois, quer um limite, quer uma forma de liber- cológica das personagens torna o tempo apreensível como
dade. O limite tinha que ver com o lapso de tempo durante uma duração estruturada e com sentido, em que cada coisa
308 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 309
que acontece deriva de outra de um modo compreensível, às acções dos cantores e dos seus «assistentes», ao mate-
de tal maneira que o princípio e o fim dessa duração sur- rial musical para cada instrumento, foram seleccionados
, .
gem fundamentados. Untitled Event, pelo contrário, pro- mediante operações aleatórias; exceptuaram-se as anas,
duz uma temporalidade completamente diferente. Nem deixadas ao critério dos cantores. Os quadros, escolhidos
o início nem o fim do espectáculo eram justificados pelo de entre os que faziam parte de um acervo da biblioteca
decorrer da acção, mas postos como cesuras arbitrárias e universitária de Frankfurt, mostravam imagens de diferen-
• •
pensáveis de outro modo. Tudo isto evocava uma atempo- tes séculos, representando compOSItores, cantores, am-
ralidade específica; por outras palavras, tinha-se a per- mais e paisagens. O passo seguinte consistia em escolher,
cepção do tempo através da emergência de algo capaz de mais uma vez recorrendo a operações aleatórias, as partes
absorver a atenção enquanto durava o seu aparecimento e, do quadro que seriam utilizadas e o seu tamanho defini-
logo depois, o seu desaparecimento. Não se produzia uma tivo. Um plano espácio-temporal previamente estabele-
sensação de continuidade; o tempo não progredia inexo- cido regulava os movimentos que executariam no espaço,
rável, como nas produções teatrais naturalistas, nas quais, desde que apareciam até que desapareciam. Os trajes dos
contudo, o tempo difere do tempo mensurável na cadência, cantores, por seu lado, tinham sido escolhidos por Cage,
no ritmo e na intensidade. Recorrendo ao tempo mensu- com recurso a operações aleatórias, de entre uma quanti-
rável- a fim de manter os time brackets - , produzia-se, sim, dade infinda de requintados figurinos de época, de épocas
uma sensação de ilhas temporais, cada uma das quais e países diversos, constantes de uma volumosa enciclopé-
seguia o seu próprio ritmo, cadência e intensidade, sem dia do traje do Fashion Institute de Nova Iorque. As acções
que nenhuma dessas ilhas temporais que sucessivamente atribuídas aos cantores - que podiam ser executadas por
emergiam originasse uma sensação de continuidade. Pelo bailarinos e também, em parte, por assistentes de palco,
I
contrário, elas geravam uma experiência de descontinui- no caso de se lhes afigurarem muito difíceis - foram esco-
dade, de fragmentação, de descontextualização. lhidas mediante um procedimento aleatório, com base no
Num certo sentido, poder-se-ia afirmar que as ilhas Websters,Dictionary of the English Language, e incluíam, por
temporais se justapunham, que com elas o tempo se tor- exemplo, dançar passos de step, tricotar, montar e desmon-
nava espacial. A ilha temporal emergia quando alguma tar um jogo de construções para crianças, nadar pelo palco
coisa se manifestava, isto é, se espalhava pelo espaço, e como um «linguado». O tempo reservado a cada actividade
sumia-se quando o que se manifestara desaparecia do era, também ele, definido com operações aleatórias,
espaço e da percepção. EuroperasI $' II suscitou umaimpres- enquanto os time brackets estabeleciam o primeiro momento
são ainda mais forte: neste caso, todos os materiais utili- possível para o seu início e o último momento possível
zados' desde os quadros (como «cenários») ao vestuário, para o seu fim.
310 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 311
Radicalizava-se, assim, o princípio da descontextuali- o ritmo, contrariamente aos time brackets, não corresponde
-
zaçao: ,
a uma invenção recente. E impossível imaginar um espec-
táculo em que o ritmo não participe, de uma maneira ou de
Tudo está separado, precisamente tudo de tudo o resto. O palco outra, na estruturação do tempo. Mesmo quando o princí-
não é concebido de modo a que os diversos elementos teatrais se pio estruturante é representado pelo decurso da acção ou
apoiem ou se suportem ou até se relacionem uns com os outros: pela evolução de uma personagem, o ritmo assume - não
cada um tem o seu próprio status, as suas condições de actividade apenas no teatro musical ou no teatro-dança - uma grande
completamente independentes. 10'] importância, que se revela sobretudo na sucessão das cenas
e na sua organização interna, na fala, no movimento. Nes-
Cada um dos elementos formava uma ilha temporal tes casos, contudo, o ritmo está subordinado aos outros
separada das outras e tinha uma temporalidade própria. princípios orientadores, apoiando a estruturação por eles
Do mesmo modo que os organismos unicelulares, o ser prevista. A partir dos anos 60 do século xx, pelo contrário,
humano, os maciços montanhosos e o universo, também nos espectáculos de teatro e de performance art, o ritmo
os quadros, os trajes, as acções, as árias e as sequências de passa a ser, no que respeita à organização e à estruturação
sons dos diferentes instrumentos em Europeras I & II pos- do tempo, o princípio orientador supremo, se não mesmo
suem uma temporalidade peculiar própria. Os time brackets, exclusivo.
sobretudo se combinados com as operações aleatórias, . ,
Por ritmo, entendo eu, no presente contexto, um prmci-
criam ilhas temporais, fazem-nas emergir de um modo pio organizador que, diferentemente da medida e do metro,
específico, não se limitando a evidenciá-las, mas expondo- não visa a uniformidade, e sim a regularidade. Como
-as, permitindo ao espectador apreendê-las com maior explica Hanno Helbling, trata-se de um princípio dinâmico,
intensidade. . «que é e permanece em trânsito: sempre ocupado com a
produção e a apresentação de determinadas relações e sem-
pre em p'osição de redesenhar essas relaçõese'?", No ritmo,
Ritmo }"
.1 o previsível e o imprevisível agem conjuntamente. Ele é
~ ..'
V"
•
produzido pela repetição e pelo desvio do que é repetido,
Em muitos espectáculos, o ritmo adquiriu, nos nossos dias, pois da repetição, por si só, não resultaria nenhum ritmo.
um significado particular, no que respeita à organização Neste sentido, pode definir-se o ritmo como um princípio
e estruturação do tempo. É ele que relaciona a corporei _ ·
,/ organizador que pressupõe a sua permanente transforma-
t .
supõe-se que se criem, entre a corporeidade, a espaciali- Schleef, pelo contrário, utilizava o ritmo de modo com-
dade e a sonoridade, relações em constante mutação, e que pletamente diferente. Os seus coros podiam dar uma pri-
o seu aparecer e desaparecer seja regulado ou determinado meira impressão de sincronização entre corporeidade,
pela repetição e pelo desvio. espacialidade e sonoridade. Contudo, como rapidamente
Robert Wilson - sobretudo nos trabalhos realizados evidenciavam uma análise mais rigorosa e uma escuta mais
até meados dos anos 80 - visava, com o uso do ritmo, obter atenta, tratava-se de uma impressão enganadora. Eram
efeitos muito semelhantes aos de Cage com os time brackets. precisamente as variações contínuas do ritmo dos movi-
Cada sistema de elementos teatrais seguia o seu próprio mentos e da fala que faziam do coro um campo de batalha
ritmo: a luz, que se transformava numa fracção de segundo; - e não apenas entre indivíduo e comunidade, mas tam-
os movimentos do actor, executados em slow motion; vozes, bém entre corpo e palavra. O ritmo das frases pronunciadas
ruídos, música e sons entrecruzavam-se numa colagem procurava impor-se ao corpo, obrigando-o a mover-se ao
sonora que produzia um ritmo muito próprio. O ritmo eli- mesmo ritmo e, deste modo, a subsumi-lo e a submeter-se
minava a hierarquia entre os elementos, isolava-os uns dos à ordem simbólica da linguagem. Por seu lado, os corpos
outros, fazia-os aparecer descontextualizados, porquanto não só se defendiam de tais tentativas, como aspiravam a
atribuía a cada um deles uma estruturação temporal que transmitir à linguagem, através da voz, o ritmo dos seus
diferia sensivelmente da dos outros. Sob este ponto de próprios movimentos - um ritmo que rompia a ordem sin-
vista, o espectador experienciava, no mesmo tempo, dife- táctica da linguagem, distorcendo-a, ao ponto de as frases
rentes formas de temporalidade. A sua percepção era des- perderem o seu significado e tornarem-se ininteligíveis.
sincronizada e sensibilizada para a prestação específica do A voz libertava-se da linguagem, a ordem simbólica desta
elemento em causa. O ritmo diferente tornava-lhe difícil era destruída pelo ritmo dos movimentos do corpo que a
estabelecer uma relação imediata entre corporeidade, voz assumia. Ora a voz se vergava ao ritmo prescrito pela
espacialidade e sonoridade, e instituir entre elas relações ordem sintáctica e semântica do que era dito, transmitin-
de prioridade ou de subordinação, bem como nexos de sig- do-o aos, movimentos do corpo, ora, logo em seguida, o
nificado. A temporalidade própria criada pelo ritmo não corpo impunha à voz o próprio ritmo, destruindo o ritmo da
proporciona nenhuma ligação entre os elementos; linguagem e, com isso, o seu significado, o seu sentido.
permite-lhes, sim, existirem lado a lado com iguallegiti- ., ,., Não havia, nesta luta, vencidos nem vencedores, tal como
midade, exibindo e valorizando a sua própria dinâmica. Se, na luta travada entre indivíduo e comunidade. O ritmo
para o espectador, resultam relações entre aqueles elemen- mostrava língua e corpo como forças oponentes que têm de
tos, tal significa - precisamente como nos trabalhos de cooperar e, no entanto, se combatem irreconciliavelmente.
Cage - que é ele próprio quem as estabelece. Os coros de Schleef recordavam, assim, a ideia central de
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 315
314 ERIKA FISCHER-L1CHTE
Nietzsche sobre o nascimento da tragédia a partir do espí- o momento do seu aparecimento, bem como a duração
rito da música. Nestes coros, o princípio dionisíaco - con- deste - tudo depende, essencialmente, do ritmo do espec-
cretizado nos corpos estáticos que se precipitavam e caíam táculo em causa. Daí que se trabalhe amiúde com repeti-
- e o princípio apolíneo combatiam-se mutuamente. O des- ções, nas quais o elemento que aparece se desvia daquele
fecho do combate nunca era previsível. Nos coros de Schleef que se repete - ainda que, em parte, de modo minimal.
era o ritmo que punha a corporeidade, a espacialidade e a Assim, algumas encenações de Marthaler, como Murx, Die
sonoridade a relacionarem-se entre si, uma relação tensa, Stunde Null oderdie Kunst des Servierens (A hora zero ou a arte
raramente harmónica. O ritmo procurava constantemente de servir] (Deutsches Spielhaus, Hamburgo, 1995) ou Die
estabelecer uma hierarquização entre elas, mas provocava schõne Müllerin (A bela moleira] (Schauspielhaus, Zurique,
permanentemente uma des-hierarquização. Cada ele- 2002) parecem consistir apenas - permita-se-nos um
mento dispunha de uma temporalidade própria e, através certo exagero - de repetições: é introduzido um elemento
do ritmo, conseguia transmiti-la, apenas temporaria- para ser repetido, com variações sempre novas, ao longo
mente, a outro elemento. do serão. A esse, junta-se depois um segundo elemento,
Podem considerar-se os trabalhos de Wilson e Schleef que é desenvolvido do mesmo modo, em seguida um ter-
os dois extremos de uma escala que vai da completa des- ceiro e assim por diante. As variações vão desde desvios
contextualização dos elementos teatrais (os movimentos ínfimos a coups de théâtre assombrosos .
. - .. ,. ....,
do corpo, as luzes, os sons) ao permanente instituir de uma Entre as repetiçoes com uma vanaçao rrumma no
-
relação entre eles. E sempre o ritmo que estabelece as rela- âmbito do espectáculo Murx - que permanece na progra-
ções ou a ausência delas. Ao mesmo tempo, ele realiza uma mação da Volksbühne de Berlim' - conta-se a ida de
outra coisa que, apesar de todas as diferenças, liga os traba- Susanne Düllmann à casa de banho dos homens, sempre
lhos de Wilson e Schleef: não permite a existência de relações impedida por Jürgen Rothert com um vocabulário, uma
hierárquicas entre os vários elementos. Estes manifestam- estrutura da frase e um tom de voz sempre diferentes; ou a
-se, todos, como tendo importância e valor iguais. Deste história de Deli [âggis, que, tendo falhado o curso «Fazer
modo, a atenção desloca-se para a sua materialidade espe- bolos s;m farinha», acabou por ir parar ao curso «Poder
cífica e para o seu particular aparecimento no espaço. sem mulher». Trata-se de repetições que, ao longo do
O ritmo, além disso, surge como o princípio constitu- serão, são acolhidas apenas com um sorriso forçado.
tivo da dramaturgia dos espectáculos - não apenas em ,
Wilson e Schleef mas também em [an Fabre, [an Lauwers, {"
" • Esta informação refere-se ao momento da publicação da primeira
,. :
~
no Wooster Group, em Heiner Goebbels, Christoph Mar-
edição alemã do presente livro (2004). Hoje em dia, o espectáculo já
thaler e muitos outros. Os elementos usados, a sua forma, não faz parte do repertório do Volksbühne. (N. T.)
316 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 317
Extraordinário, pelo contrário, era o efeito produzido pelas se sucedem de modo arbitrário. Os diferentes elementos
16 estrofes do cântico religioso Danhe:", entoadas com que aparecem no espectáculo começam por se suceder ou
acompanhamento ao piano de Jürg Kienberger. Cada por serem postos lado a lado sem que exista qualquer tipo
estrofe era executada meio-tom acima. o que, nas últimas de conexão entre eles; durante o espectáculo, porém, eles
estrofes, quando as cordas vocais dos cantores ameaçavam
\ . -- . .
cruzam-se, graças a sua repetição, que vana cont ínua-
dilacerar-se, costumava provocar uma gargalhada convul- mente, podendo deste modo relacionar-se através do
siva do público, que deixava de conseguir conter-se. ritmo. A primeira aparição dos elementos que constituem
A intervalos regulares, Ruedi Hâusermann dirige-se o material do espectáculo ocorre não apenas de modo
até junto dos grandes fogões de sala, abre-os e ateia o lume infundado e gratuito, mas também sem qualquer interde-
com a tenaz. De cada vez que o faz, os seus movimentos ape- pendência. Cada elemento emerge inesperadamente num
nas variam ligeiramente. Na terceira parte do espectáculo, determinado momento das duas horas e meia de espectá-
porém, assiste-se a uma grande mudança: através da porta culo. Mas depois de ter aparecido uma vez, ele expande-se
aberta do fogão, ouvem-se os acordes do hino da antiga e transforma-se incessantemente - de um modo mais ou
RDA - o que produz um efeito avassalador. menos claramente perceptível. Contudo, isto não acontece
No decorrer do espectáculo, por várias vezes e sem de maneira ininterrupta - só a presença dos onze actores
razão aparente nem motivo compreensível, os actores cria e representa continuidade. Em contrapartida, as acções
encontram-se todos juntos e começam a cantar. O ritmo, deles, que não apresentam nenhuma ligação, são de tal
isto é, a sequência temporal com que o canto coral é repe- modo fugazes que dir-se-ia desaparecerem sem deixarem
"
tido, motiva o seu aparecimento. As variações, mesmo as rasto ao serem executadas. Mais tarde, porém, reemergem,
grandes, ocorrem, de vez em quando, na escolha da canção, embora com ligeiras mudanças. O que se presumia inverte-
para a qual também não são dadas razões. O repertório -se: nenhuma acção parece desaparecer sem deixar rasto.
vai desde ln einem kühlen Grunde [Num vale fresco], de Uma vez vinda ao mundo, ela reaparece, embora nunca
Eichendorff, e o coral Waeh aufdu deutsehes Reieh [Ó império exactamente
, com a mesma forma. O que causou a sua
alemão, desperta], ao Glühwürmehenidyll [Idílio de um piri - transformação é tão pouco claro e tão inexplicável como o
lampo], de Paul Lincke, e à canção em vogaleh laflmirmei- seu primeiro aparecimento. A variação parece dever-se
nen Kõrper schwarz bepinseln [Mando pintar o meu corpo de apenas ao ritmo - o que, por seu lado, leva o público a
preto], passando por Siehres Deutsehland schltifst du noeh tomar consciência do próprio ritmo. As repetições criam
[Alemanha segura, ainda dormes] (datada de 1650). uma espécie de circuito retroactivo que torna obsoleta a
O ritmo do espectáculo assim gerado não é o caracte- questão da causa e efeito. O ritmo revela-se, pois, como o
rístico de um alinhamento em que os diversos «números» princípio organizador que, sem recorrer a outros princípios
318 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 319
ou sistemas, regula o aparecimento e o desaparecimento qual este processo se realiza em cada caso individual,
dos elementos e da materialidade. Uma vez posto em podemos partir do princípio de que o circuito de retroacção
acção, fica -se com a impressão de ser ele quem faz emergir autopoiético se organiza, em grande medida, segundo des-
de si os elementos e os faz desaparecer de novo. O tempo- locações, variações e mudanças rítmicas. O circuito de
rizador que regula o aparecimento e o desaparecimento das retroacção autopoiético baseia-se numa sintonia rítmica
materialidades do espectáculo é, aqui, o ritmo.?' alternada, também realizada na interacção física, directa e
Como já foi observado quando tratámos da «Comuni- recíproca, de actores e espectadores. Tal sugere que uma
dade»' o ritmo representa um princípio que se baseia no estruturação rítmica fornece premissas especialmente favo-
corpo humano. O batimento do coração, a circulação do ráveis ao circuito de retroacção autopoiético para que este
• ,.,. I ••
sangue e a respiraçao seguem o seu propno ritmo, aSSIm
•
se cumpra. Ao mesmo tempo, chama a atenção do espec-
como são rítmicos os movimentos do nosso corpo quando tador, precisamente, para este processo.
andamos, corremos, dançamos, nadamos, escrevemos, etc. Uma vez que organiza e estrutura a produção perfor-
Rítmicos são também os sons que produzimos quando mativa de materialidade, o ritmo permite que esta se mani-
falamos, cantamos, rimos e choramos. E igualmente rít- feste como um agente na autopoiese do circuito retroactivo.
micos são os movimentos produzidos no interior do nosso Através do ritmo, a criação performativa de materialidade
corpo e dos quais nem temos a percepçâo.!" e a autopoiese do circuito retroactivo estão fecunda e reci-
Temos, pois, a capacidade de percepcionar de modo procamente envolvidas de um modo perceptível para o
particular os ritmos e de nos «sintonizarmos» com eles. público.
Nos espectáculos em que a temporalidade se organiza e
estrutura essencialmente com base no ritmo, entrechocam-
-se diferentes «sistemas rítmicos»: o ritmo do espectáculo
colide com os ritmos variados de cada um dos espectado-
res. Nestes casos, é especialmente importante uma análise
da sintonia rítmica, porque o circuito de retroacção auto- ,. .,
da intérprete que sai do seu papel e comenta o comportamento da 35 CL François Pluchart, «Risk as Practice of'Thought», em G. Battock,
personagem (por exemplo, Helene Weigel) . Não é o que aqui está em R. Nickas (org.) , TheArt ofPerformance. A Criticai Anthology, op. cit.,
causa. pp. 125-134. Lamentavelmente, a documentação respeitante a estas
28 No que respeita a este fenómeno, CL Michael Stadler e Peter Kruse, performances não nos informa acerca das reacções dos espectadores.
«Visuelles Gedãchtnís für Formen und das Problem der Bedeutun- 36 CL nota 35.
gszuweisung in kognitiven Systemen», em Siegfried J. Schmidt
37 Cf. Norbert Elias, über den ProztfS der Zivilization. Soziogenetische und
(org.), Gedãchtnis.Probleme und Perspektiven der interdisziplinãren Gedã-
psychogenetische Untersuchunqen, 2 vols. , Frankfurt, Suhrkamp, 1976
chtnisforschunq, Suhrkamp, Frankfurt, 1991, pp. 250-266.
[O Processo Civilizacional: Investigações Socioqeneticas e Psicogenéticas,
29 A este propósito, cf. o Quinto Capítulo. trad. Lídia Campos Rodrigues, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
30 Thomas J. Csórdas (org.), Embodiment and Experience. The Existential 2006).
Ground of Culture and Se/f. Cambridge, Cambridge University Press, 38 «Auszug aus dem Schauspieler des Herm Remond von Sainte-Albine»,
1994, p. 6. No que respeita à situação na antropologia cultural, CL a em Robert Boxberger (org.) , Lessings Werke, Berlim- Estugarda, Spe-
introdução ao trabalho The Bodyas Representation and Being in the World, mann, 1883-90, voI. v, TheatralischeBibliothek, tomo I, passagem 1754,
pp. 1- 2 4. pp. 128-59, em especial p. 129.
31 Ibid. 39 Cito por Peter von Becker, Die Sehnsucht nach dem Vollkommenen. Über
32 CL, a este propósito, Francisco J. Varela, Évan Thompson, Eleanor Peter Stein, den Reqisseur und sein Stück Theaterqeschichte - zum sechziqsten
Rosch, Der mittlere Weg der Erkenntnis - Der Briichenschlaq zwischen wis- Geburtstag, em Der Tagesspiegel, 1 de Outubro de 1997.
senschaftlicher Theorie und menschlicher Erfàhrung, Munique, Goldmann, 40 A este propósito, cf. a recolha de textos da Querelle da autoria de
199 6. Laurent Thirouin: Pierre Nicole, Trait édela com édieetautres piêces d'un
33 Cf. Mark [ohnson, George Lakoff Metaphors We Live By, Chicago- proc ês du théâtre, Paris, Champion, 1998.
- Londres, University of Chicago Press, 1980; Mark Johnson, The Body A metáfora do contágio, que descreve a experiência estética no teatro
in the Mind. The Bodily Basis of Meaninq, lmaqination, and Reason , como um processo somático, é muitas vezes utilizada nestes debates.
Chicago- Londres, University of Chicago Press, 1992; George Lakoff, No discurso estético contemporâneo, por seu lado, ela ganha actua-
Woman, Fire and Dangerous Things - What Categories Reveal abou: the idade. CL, a propósito, Erika Fischer-Lichte, «Zuschauen aIs Anste-
Mind, Chicago-Londres, University ofChicago Press,1987. ckung», em Nicola Suthor, Miriam Schaub (org.), Ansteckung. Zur
34 No que respeita às performances de Burden, CL Chris Burden, [an Kõrperlichkeit eines dsthetischen Ptinzips, Munique, Fink, 2004, pp. 35-50.
Butterfield, «Through the Night Soft1y», em Gregory Battock, Robert ,
Rousseau condena o teatro porque «o s constantes tumultos de
Nickas (org.), TheArt ofPeifOrmance.A CriticalAnthology, Nova Iorque, sentimentos a que se é sujeito» durante o espectáculo «en ervam e
Dutton.uçêz. pp. 222-39; Chris Burden, ChrisBurden.A TwenO' Years enfraquecem» o espectador, tomando-o «incapaz» de «resistir às
Survey, catálogo da exposição no Newport Harbor Art Museum, paixões » e, por conseguinte, ameaçando-o com a perda de identi-
Newport Beach, 1988; id., Documentation ofSelected Works 1971 -1974, dade. Jean-Jacques Rousseau, «Brief an Herrn d'Alembertüber sei-
vídeo VHS 34 mino (EUA, 1975), org. A. Wirths em colaboração com nen Artikel "Genf", im VII Band der Encyclopãdie und insbesondere
F. Malsch e a Kõln Kunst Verein, Colónia, 1990; id., Chris Burden. über seinen Plan, ein Schauspielhaus in dieser Stadt zu errichten»,
Beyond theLimitslJenseitsder Grenzen, org. P. Noever, catálogo da expo- em id., Schriften, voI. I, org. Henning Ritter, Munique-Viena, Hanser-
sição no Museum für Angewandte Kunst, Viena, 1996. -Biblíothek, 1978, pp. 333-474, em especial p. 391.
324 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 325
43 Cf. Erika Fischer-Lichte, «Der Kõrper als Zeichen und als Erfahmng», 51 Enquanto Barba parte do princípio de que estas práticas se baseiam
em id., Theater im Prozefi der Zivilisation, op. cit., pp. 67-80. em leis universais, eu considero-as práticas culturalmente determi-
nadas.
44 Florian Kienzl, Gustafmit «fi>. Wie GustafGründgens entdecktwurde, cito
por Dagmar Walach, «Aber ich habe nicht mein Gesicht». GustafGründ- 52 Hans-Thies Lehmann, «Die Gegenwart des Theaters», em Erika
gens - eine deutsche Karriere, Berlim, Henschel, 1999, p. 29, livro que Fischer-Lichte, Doris Kolesch, Christel Weiler (org.), TRANSFOR-
acompanhou a exposição homónima da Staatsbibliothek de Berlim MAIIONEN. Theater der neunziger[ahre, Berlim, Theater der Zeit, 1999,
- Preufsischer Kulturbesitz, realizada entre 9 de Dezembro de 1999 pp. 13-26, em especial p. 13.
e 12 de Fevereiro de 2000. 53 Cf. Gernot Bõhrne, Atmosphiire. Essays zur neuen Asthetik, Frankfurt,
45 Gerd Vielhaber, Oedipus Komplex aufder Buhne, em DieZeit, 2 de Outu- Suhrkamp, em especial pp. 31-34, bem como, na parte relativa a
bro de 1947. «Atmosferas», 2. «Espacialidade».
46 Herbert Ihering, em Berliner Bõrsen-Courier, 3 de Dezembro de 1932. 54 Cf. Hermann Kappelhoff, Matrix der Gefühle. Das Kino, das Melodrama
und das Theater der Empfindsamkeit, Habilitationschrift, Berlim, Freie
47 Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reprodu-
Universitât, 2002.
zierbarkeit, Frankfurt, Suhrkamp, 1963, p. 18 [A Obra de Arte na Época
da Sua Reprodução Mecanizada, trad. João Maria Mendes, a partir da 55 Cf. Hans-Thies Lehmann, Die Gegenwart des Theaters, p. 22.
primeira versão da obra, redigida em francês por Walter Benjamin e 56 Martin Seel, Asthetik des Erscheinens, Munique, Hanser, 2000.
Pierre Klossowski, Amadora, Escola Superior de Teatro e Cinema,
Junho de 2010; os excertos aqui referidos são reproduzidos a partir 57 No século XIX, foram levados à cena, portoda a Europa, os chamados
desta tradução - https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21!l94!l/ «dramas caninos», que, tendo os cães por «protagonistas», rapida-
obra.iarte.pdf], mente se tornaram uma verdadeira atracção. Cf. M. Dobson, «A Dog
at all Things. Renaissance Dogs: The Transformation ofthe Onstage
48 Martin Seel, «Inszenieren als Erscheinenlassen. Thesen über die Canine, 1550-1859», emA. Read (org.),PerjOrmanceResearch. On Ani-
Reichweite eines Begriffs», em Josef Früchtl e [õrg Zimmermann mais, vol. v, n." 2, Londres, 2000, pp. n6-24.
(org.) ,Asthetik der lnszenierunq, Frankfurt, Suhrkamp, 2001, pp. 48-62,
em especial p. 53. 58 [acobsohn, DasJahr der Bühne, vol. I, op. cit., p. 49.
49 Cf. Eugenio Barba, [enseits der schwimmenden Inseln. Reflexionen mitdem 59 Tal não significa que hoje em dia não se utilizem animais com uma
Odin Teatret. Theorie und Praxis des Freien Theaters, com um posfácio de função dramatúrgica nos espectáculos. Isso aconteceu, por exemplo,
Ferdinando Taviani, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, 1985, sobretudo com o caniche do rei na encenação de Fausto por Peter Stein (Hanô-
pp. 51-174; cf. a entrada «Pre-expressivity», emADictionary ofTheatre ver, Berlim e Viena, 2000-2001), ou com o píton usado em Parasitas,
Anthropology. The Secret Art of the Performer, Eugenio Barba e Nicola de Marais von Mayenburg, na encenação de Thomas Ostermeier
Savarese (org.), Londres- Nova Iorque, Routledge, 1991, pp. 186-204, (Deutsches Schauspielhaus de Hamburgo/Schaubühne de Berlim,
bem como a entrada «Energy», ibid., pp. 74-94. 2000).
50 Não raro, são as técnicas específicas de treino que permitem ao actor 60 Cito segundo Caroline Tisdall, Joseph Beuys Coyote, Munique, Schirmel/
produzir energia por meio das suas acções. Cf. Christel Weiler, «Has- Mosel, 3." ed., 1988, p. 13.
chen nach dem Vogelschwanz. Überlegungen zu den Grundlagen 61 Cito segundo Toni Stoos (org.), Marina Abramovié:Artist Body, Perjor-
schauspielerischer Praxis», em Christa Weiler, Hans-Thies Lehmann mances 1969-1997, Milão, Charta, 1998, p. 326. A performance
(org.), Szenarien von Theater (und) Wissenschaft, Berlim, Theater der realizou-se em 1992, na Mediale Deichtorhalle de Hamburgo, e teve
Zeit, 2003, pp. 204-14. a duração de 60 minutos.
326 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 327
62 Tisdall, Joseph Beuys Coyote, op. cit., p. 14. 75 Alfred Klaar, Vossische Zeitunq, 513, 14 de Outubro de 1911.
63 Ibid. 76 Estes espaços são ainda hoje visitáveis no Sony-Center de Postdamer
Platz, em Berlim, para onde foram transportados graças à utilização
64 Ibid. , p. 15.
de técnicas complicadas.
65 Ibid.
77 Cf., a propósito deste espectáculo, as esclarecedoras considerações
66 Cito segundo Schneede,Joseph Beuys. Die Aktionen, op. cit., p. 336. de Friedemann Kreuder, em id.; Formen des Erinnems im Theater Klaus
67 Beuys segue aqui, amplamente, as explicações de Frank J. Doble no Michael Griiber, Berlim, A1exander Verlag, 2002, sobretudo pp. 43-70.
seu livro The Voice oj' the Coyote, Boston, Little Brown, 1949. 78 Gernot Bõhme, Atmosphiire. Essays zur neuen Ãsthetih, op. cit., p. 33.
68 Cf. Karl W. Luckert, Coyoteway. A navajo Holyway Healing Cerimonial, lbid., p. 33-4·
79
University of Arizona Press, Tucson-Flagstaff 1997.
80 Ibid., p. 33.
69 Cito segundo Tisdall, Joseph Beuys Coyote, op. cit., p. 10.
81 Ibid.
70 Ibid. , p. 16.
82 Georg Simmel, Soziologie. Untersuchungen über die Form der Vergesells-
71 Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Was ist Philosophie?, trad. Bernd chaftunq, 2.' edição, Munique-Leipzig, Duncker & Humblot, 1922,
Schwibs e Joseph Vogl, Frankfurt, Suhrkamp, 1996, p. 199 [O Que É a P·490.
Filosofia?, trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Lisboa,
Presença, 1992].
83 Cf. °Quinto Capítulo, «Emergência de sentido».
,
I
72 °
Com conceito de «emergência», refiro-me ao emergir, imprevisível
84 Cf. Erika Fischer-Lichte, «Berliner Antikenprojekte, em id., Doris
Kolesch, Christel Weiler (org.), Berliner Theater in 20. [ahrhundert,
i, e sem motivo, de fenómenos que, em parte, aparecem a posteriori
Berlim, Fannei und Walz, 1998, pp. 77-100, sobretudo pp. 93-6.
completamente plausíveis. Acerca do conceito de emergência, cf.
Achim Stephan, Emergenz. Von der Unvorhersagbarkeit zur Selbstorgani- 85 No número 67 da revista de que era editor, Der Critische Musicus,
sation, Dresden - Munique, Dresden University Press, 1999; id., Scheibe formula os princípios fundamentais desta nova concepção:
«Emergenz in kognitionsfãhigen Systernen», em Michael Pauen, «A sinfonia inicial de uma peça teatral [... ] deve [... ] relacionar-se
Gerhard Roth (org.), Neurowissenschaften und Philosophie, Munique, com todo o drama, mas deve, ao mesmo tempo, preparar o seu início
Fink, 2001, pp. 123 - 54; Thomas Wagenbaur (org.) , Blinde Einergenz? e, consequentemente, harmonizar-se com a primeira cena. [...] As
lnterdiszipliniire Beitriige zu Fragen Kultureller Evolution, Heidelberg, sinfonias entre as diversas cenas devem ligar-se no final da cena que
Synchron, 2000. as precedeu e no início da seguinte. Devem, pois, juntar ambas as
; , cenas" transportar o espectador de um estado de espírito para outro
73 Relativamente às diferentes perspectivas acerca do espaço como
"
sem que disso ele tenha consciência. É, pois, aconselhável utilizar
espaço arquitectónico-geométrico e, simultaneamente, performa-
• duas frases musicais. Na primeira, pode fazer-se referência ao que
tivo, cf. também [ens Roselt, «Wo die Gefühle wohnen - zur Perfor-
°
o; , -
_"
-~ l antecede, na segunda, antecipar que se segue. Contudo, tal só é
mativitãt von Rãumen», em Hajo Kurzenberger e Annemarie Matzke ,
'"-.,
~
modo, também se pode utilizar uma única frase, sem dúvida, con-
74 Curt Baake, em Berliner Volksblatt de 22 de Outubro de 1889, cito por quanto que o seu comprimento abranja o tempo necessário para a
Norbert [aron etaI. (org.), Berlin-Theater derJahrhundertwende.Biihnen- limpeza dos candeeiros, ou para que uma personagem mude de
geschichte der Reichshauptstadt im Spiegel der Kritik (1889-1914), Tübingen, roupa. Quando se chega ao fim do espectáculo, a sinfonia final deve
Niemeyer, 1986, p. 96. estar em estrita consonância com ele, para inculcar o mais possível
328 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 329
no espectador a atmosfera da peça. Haverá algo mais ridículo, depois «Bilderloses Licht. "Mythos Europa" von [õrg Laue», em Theaterder
de o herói ter acabado de perder a vida de maneira trágica, do que Zeit, Maio-Junho, 1999, pp. 48-9.
seguir-se uma sinfonia vivace e alegre? E haverá algo revelador de Cage refere-se a Earl Brown, Morton Feldman, Christian Wolff,
95
maior falta de gosto, numa comédia com um final feliz, do que David Tudor, com os quais trabalhou em estreita colaboração nos
seguir-se uma sinfonia triste e cornovente?» (Johann Adolph anos 50 do século passado.
Scheibe, Der Critische Musicus, Leipzig, Beneke, 1745, p. 616-7).
96 John Cage, cito segundo William Furlong, AudioArts, Leipzig, Reclam,
86 Ibid. 1992 , p. 91.
87 A música para teatro, considerada uma espécie de música «utilitá- 97 John Cage, em Kostelanetz, Cage im Gesprdch, op. cit., p. 95·
ria», foi ignorada pelos musicólogos durante muito tempo. A inves-
98 Cf. Helmuth Plessner, «Lachen und Weinen», em Günter Dux, Phi-
tigação neste domínio só se iniciou nos últimos anos. Cf. Detlef
Altenburg, «Das Phantom des Theaters. Zur Schauspielmusik im
losophischeAnthropologie, Frankfurt, S. Fischer Verlag, 1970, pp. 11-171.
spâten 18. und frühen 19. [ahrhundert», em Hans-Peter Bayerdiirfer 99 Cf. Clernens Risi, «Die bewegende Sãngerin, Zu stimmlichen und
(org.), Stimmen - Kliinge - wne.Synergien im szenischen Spiel, Tübingen, kõrpelichen Austauschprozessen in Opernauffurungen», em Christa
Narr, 2002, pp. 183-208; id., <<Von denSchubladen der Wissenschaft. Brüstle, Albrecht Riethmüller (org.), Klang und Bewegung. Beitriige zu
Zur Schauspielmusik im klassisch-romantischen Zeitalter», em einer Grundkonstellation, Aachen, Shaker, 20°3, pp. 135-43·
Helen Geyer, Michael Berg, Mathias Tischer (org.), Denn in jenen
100 Johann Wolfgang von Goethe, « Regeln für Schauspieler», em id.,
Tr ànen lebt es. Festschrift Wolf9ang Marggraf, Weimar, Hochschule für S ãmtliche Werke in 18 Bdnden, vol. XIV, Schriften zur Literatur, Zurique,
Musik Franz Lizt, 1999, pp. 425-49; id., «Schauspielmusik», em
Artemis & Winkler, 1977, pp. 72-9°, em especial pp. 77- 8.
Ludwig Finscher (org.), Die Musik in Geschichte und Geqenwart, 2." ed.
revista, vol. VIII, Kassel, Bãrenreiter, 1998, pp. 1046-9. 101 Nicole Scotto di Carlo, «Travaux de l'lnstitut de Phonétique d'Aix-
-en- Provence», em La Recherche, Maio de 1978, cito segundo Michel
88 Bl ãtter für Theater, Musik und Kunst, Viena, 5 de Março de 1861, p. 75. ,
· I; Poizat, TheAngel's Cry. Beyond thePleasurePrincipie in Opera, trad. Arthur
89 Bruno Walter, «Cesprâch über Reinhardt mit Hugo von Hofmanns- i Denner, Ithaca-Londres, Cornell University Press, 199 2, p. 4 2.
thal, Alfred Roller und Bruno Walter (1910)>>, em Max Reinhardt, ,
1<'
•
I' 102 Theodor W. Adorno, «Bürgerliche Oper». em id., Gesammelte Schriften,
Schriften. Briefe, Reden, Aufsiitze. Interviews. Gespriiche undAuszüge aus den 'í' org. R. Tiedemann com a colaboração de Gretel Adorno, Susan Buck-
Regiebüchern, org. Hugo Fetting, Henschel, Berlim, 1974, p. 383. .~>.,,, -Morss e Klaus Schultz, vol. XVI, Musikalische Schriften I-III, Frankfurt,
•
90 Heinrich August Ottokar Reichard (org.), Theater-Kalender aufdas[ahr Suhrkamp, 1978, pp. 24-39, em especial pp. 34-5·
V'
1781, Gotha, Bey Carl Wilhelm Ettinger, 1781, pp. 57-8.
1°3 Rolf Michaelis, « Die Geburt des Rechtsstaates im Regem>, em Die
: '.
91 Ibid., p. 58. •
",
• Zeit 35: Outubro de 1980.
, .
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330 ERIKA FISCHER-L1CHTE
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:f altura de exprimir «adequadamente» os sentidos «cer-
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·r'".. tos», e de os transmitir ao público. Em contrapartida, Max
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Herrmann considerava a co-presença física de actores e
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não lhe interessava, porquanto era deduzida e avaliada a
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partir do texto literário.
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O distanciamento em relação ao teatro literário por
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tornasse obsoleta. Além do mais, reiterava-se a pretensão encenação da comédia Eine Dummheit machtauch der Geschei-
de que o teatro deixasse por completo de veicular significa- terste [Até o mais sábio se engana], de Ostrovskij. Com efeito,
dos e passasse a preocupar-se com a produção de um efeito. como sublinha no seu ensaio Methode (1943-47), surgido
Evocavam-se o circo e o teatro de variedades como mode- vinte anos depois, Eisenstein considera que
los opostos aos do teatro literário e do teatro realístico-
-psicológico. Nos seus manifestos II Teatro di Varietà, de 1913, o espectáculo circense [... ] é um daqueles casos em que estamos
e Ii Teatro Sintetico Futurista, de 1915, os futuristas italianos perante uma subespécie de arte, na qual apenas se conservam,
proclamavam a necessidade de transformar o teatro em na sua forma mais pura, os componentes sensíveis ... , que em
«teatro do espanto, do recorde e da loucura física»', fun- todos os outros casos são uma forma de encarnação de uns quais-
dado nos cânones do teatro de variedades e do espectáculo quer conteúdos temáticos ou ideais. Por este motivo, o circo fim-
circense. Na então recém-criada União Soviética, foram ciona obrigatoriamente como um banho tonificante para os
numerosas as tentativas de criar, com recurso ao circo, um sentidos muito particular. [... ] Por este motivo, o circo não con-
novo teatro que não se orientasse para a transmissão de sente qualquer tipo de esperança no que respeita a uma «atribui-
significados. Em 1920, Sergei Radlov, que entre 1913 e 1916 ção de sentido», ou ao seu uso visando uma transmissão de
colaborara nas actividades do estúdio de Meyerhold, deu sentido.'
vida a um teatro circense, onde acrobatas, malabaristas e
palhaços se exibiam em palco como actores e ao lado de Se bem que estivessem de acordo quanto ao facto de o
actores (em 1922, porém, o teatro teve de fechar as suas carácter sensorial do circo não ter com objectivo veicular
portas, pois o público, que inicialmente acorrera em massa, significados, e sim provocar um efeito imediato - razão
deixara de o frequentar). Entre 1922 e 1923, também o cha- pela qual se afigurava como um modelo especialmente
I mado FEKS (Fabrik des exzentrischen SchauspÍelers adequado a um novo teatro -, Meyerhold e Eisenstein reti-
1
J [Fábrica do actor excêntrico]) experimentou fórmulas com ravam conclusões diferentes. Segundo Meyerhold, um dos
ligações às variedades e ao circo. efeitos do, teatro deveria consistir em o espectador se defi-
Sob este ponto de vista, foram especialmente impor- nir, ele próprio, como «cc-agente e criador de um novo signi-
tantes as tentativas de Meyerhold no sentido de tornar o ficado». Se, por um lado, os actores deveriam renunciar a
circo frutífero para o teatro. O resultado mais célebre, e transmitir significados ao espectador, limitando a sua acti-
também com maior êxito, foi a grotesca encenação de vidade à produção de algo sensorial e material, por outro,
Tarelhins Tod [A morte de Tarelkin] (1922), de Suchovo- o espectador individual deveria, em relação com essa
- Kobylin; nela participou Sergei M. Eisenstein, que, um materialidade, gerar novos significados e tornar-se criador
ano depois, também basearia no modelo circense a sua de um novo sentido.
I
334 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 335
,
1., :
A partir dos anos 60 do século passado, os artistas de diferente em cada espectáculo. Deste modo, analisam
teatro e da peifOrmance art, bem como os já mencionados como se formam, o que fazem e como agem os significados
representantes das vanguardas históricas, partem do pres- nos espectáculos. Tentarei, neste capítulo, explicitar as res-
suposto de que não cabe aos espectáculos transmitirem postas a estas questões, implicitamente formuladas pelos
significados gerados por um grupo de participantes neles espectáculos examinados até agora, para depois as discutir
- actores, encenador, cenógrafo, compositor ou mesmo o no contexto de uma estética do performativo no que res-
autor da peça - a outro grupo, o dos espectadores. Não é peita à semioticidade específica daqueles.
função dos espectáculos veicularem significados ou, para
usar as palavras de Eisenstein, transmitirem sentido. Decor-
rem daqui problemas análogos aos que as vanguardas his- ; 1. MATERIALIDADE, SIGNIFICANTE, SIGNIFICADO
tóricas tiveram de enfrentar, entre os quais, sobretudo, a
,
questão da relação entre materialidade e semioticidade, e ji'
, -.
,
A partir dos anos 60 do século xx, os espectáculos passam
,',
entre efeito e significado. A resposta a esta questão por .'.t
'-'; cada vez mais a retirar os meios teatrais utilizados dos
parte dos membros das vanguardas históricas que defen- seus contextos mais vastos: não só deixam de os subordi-
diam a nova estética do efeito fora clara: reduzir os meios nar à lógica da acção e à lógica psicológica, como pro-
teatrais à sua materialidade/sensorialidade impede a cons- curam libertá-los de todo e qualquer encadeamento causal.
tituição do significado por parte dos actores, mas possibi- Seguindo padrões geométricos ou rítmicos específicos, ou
lita a sua criação por parte dos espectadores. A constituição determinados por meio de operações aleatórias, os ele-
do significado pelos actores impede a produção de um mentos surgem no espaço, ficam estabilizados por perío-
efeito nos espectadores. Uma estética do efeito exige, pois, dos de tempo variáveis, sofrendo, em parte, contínuas
que os actores renunciem a constituir o significado. . transformações e acabando por desaparecer, sem que haja
Os artistas de teatro e de perfbrmance art dos últimos 30, uma razão plausível ou uma motivação específica quer
40 anos, em contrapartida, ainda não encontraram respos- para o seu aparecimento, quer para o seu desapareci-
tas inequívocas para tais questões e, como já ficou patente •
menta. Ao que tudo indica, na esmagadora maioria dos
pelas descrições apresentadas neste trabalho, não parecem casos, se não mesmo em todos, os elementos que surgem
sequer interessados em fazê-lo. Não partem de uma exclu- são fenómenos emergentes.
são recíproca de materialidade e semioticidade, efeito e A emergência conduz a um processo que, podendo
significado, e com ela, de relações dicotómicas per se. Eles parecer contraditório à primeira vista, tem muitíssimas
interrogam-se, sim, sobretudo acerca do modo como estas repercussões no que respeita ao carácter semiótica dos
grandezas se relacionam entre si, percorrendo um caminho espectáculos. Por um lado, os elementos que emergem
.I,.".'
~\
336 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 337
isoladamente apresentam-se, num certo sentido, desse- nível dos olhos. A argumentação desenvolvida para este
,
I mantizados, isto é, são percepcionados na sua materiali- caso em particular é também válida para todos os outros a
I dade específica e não como portadores de um significado; que a teoria da dessemantização é aplicável: se o gesto de
I Marina Abramovié, ao gravar na pele uma estrela de cinco
não são postos em relação com outros elementos, nem com
I
!, nenhum outro contexto. Sob este ponto de vista, perma- pontas, é recebido como tal- e não como uma acção sim-
necem insignificantes, desprovidos de significado. bólica, aludindo à inscrição do símbolo do Estado no corpo
Por outro lado, porém, os fenómenos emergentes, iso- do cidadão individual -, tal não significa que seja desti-
lados e percepcionados na sua materialidade, podem tuído de sentido, e sim que é recebido como aquilo que
desencadear no sujeito percipiente uma série de associa- executa. Se os espectadores não percepcionam o corpo
,
I
•
ções, de imagens, de pensamentos, de recordações e de excessivamente gordo de Giancarlo Paludi como símbolo
,•
"
I
sentimentos, proporcionando-lhe a possibilidade de esta- do corpo da personagem de Cícero, mas apenas como um
belecer uma relação destes com outros fenómenos. São, corpo obeso, tal significa que o percepcionam como ele se
pois, percepcionados como significantes, podendo referir- manifesta, ou seja, no seu ser fenoménica.
-se aos mais diversos fenómenos, aos mais variados con- Aquilo que expus relativamente ao corpo e aos gestos
textos, e serem associados aos mais diversos significados, aplica-se igualmente aos espaços, objectos, cores, sons,
daí resultando uma imensa pluralização de sentidos etc. Percepcionar os elementos teatrais na sua materiali-
, .
paSSIveIS. dade específica significa, por conseguinte, captar-lhes a
Como explicar esta contradição? sua auto-referencialidade, o seu ser fenoménica. Mas sig-
No capítulo anterior, detive-me brevemente na tese da nifica tudo isto, necessariamente, percepcioná-los como
dessemantização e procurei mostrar até que ponto ela tem destituídos de significado? A percepção dos objectos na
legitimidade - sobretudo se considerada no âmbito de'uma sua materialidade específica deve coincidir com a percep-
lógica da acção, ou da psicologia, mais vasta e em condições
,
" ..-
'
ção de um fenómeno destituído de significado e puramente
de atribuir a cada um dos elementos um ou mais sentidos «sensorial»?
,
específicos - e, ao mesmo tempo, se revela insuficiente. Quando percepciono o corpo do actor como esse corpo
Relativamente à técnica da slow motion utilizada por Wilson, específico, ou observo o vermelho peculiar do sangue que
expliquei como ela não dessemantiza o gesto, levando, pelo esguicha do cadáver do cordeiro para os espectadores e os
contrário, ao surgimento da sua auto-referencialidade. "
, ,
'
actores nas acções de Nitsch, e provo o seu sabor estranha-
O gesto significa exactamente aquilo que executa e, no mente adocicado, ou, ainda, quando sinto a consistência
exemplo citado, é percepcionado como o movimento de ,
•
viscosa e a elasticidade das entranhas do animal debaixo
um braço flectido que se desloca do nível da cintura para o ~ .
dos meus pés, estou a percepcionar todos estes fenómenos
338 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 339
como uma coisa. Não se trata de um estímulo não específico, constituição de sentido. Neste processo, a percepção capta
mas da percepção de uma coisa como uma coisa. As coisas . . . .
uma COIsa como uma coisa. Por consegumte, a COIsa nao e
....,
significam o que são e o que parecem ser. Ter a percepção percepcionada como uma coisa a que depois se atribui sen-
de uma coisa como uma coisa significa, pois, percepcioná- tido: este é gerado no acto da percepção e como acto de
-la como fonte de sentido. Materialidade, significante e -
percepçao.
significado coincidem na auto-referencialidade. A materia- O aparecimento súbito e sem motivo de um fenómeno
lidade não funciona como significante ao qual se pode atri- chama a atenção do espectador para um gesto, um objecto,
buir este ou aquele significado. A materialidade deve, sim, uma certa sequência de sons. Neste processo, a sua per-
ser vista como o significado já dado na materialidade per- cepção assume uma qualidade muito particular e exclui a
cepcionada pelo sujeito. Para usar uma tautologia, a mate- questão de outros sentidos possíveis, de outras potenciais
rialidade da coisa adopta o sentido da sua materialidade, funções ou utilizações, e também de outros contextos para
ou seja, do seu ser fenoménica. O objecto percepcionado o emergir do fenómeno. A percepção efectua uma espécie
como uma coisa significa aquilo por que é percepcionado. de imersão contemplativa nesse gesto, nessa coisa, nessa
Isto é válido apenas para as percepções conscientes. sequência de sons em que as coisas percepcionadas se
Percepcionar conscientemente uma coisa significa percep- mostram ao sujeito percipiente como são - revelam o seu
cioná-la, de facto, como uma coisa. Contudo, devemos «sentido intrínseco». Isto ocorre quando o sujeito perci-
também considerar as percepções que, embora não trans- piente experiencia a presença de um actor ou o êxtase de
ponham o limiar da consciência, conseguem mesmo assim uma coisa. É o momento em que, aparentemente, lhe é
influenciar o nosso comportamento.s Dado que não se nos contado um segredo: o sentido secreto «dado» no ser feno-
. ,,
tomam conscientes, tais percepções subconscientes per- ~; ménica do objecto percepcionado é «revelado», melhor
manecem, de facto, sem sentido para o sujeito percipiente i~
.
i. I .
,.
" I,
dizendo, é gerado.
e, dado que nada se pode afirmar acerca delas, não podem ,
,
;,~ '
Não se trata, pois, de um processo de dessemantização,
ser tidas em consideração. Porém, o mesmo não sucede mas de auto-referencialidade. Esta elimina, assim, uma
I
com o comportamento visível que desencadeiam, o qual, ,,'
distinção com uma importância fundamental para as van-
por seu lado, é parte integrante do circuito de retroacção guardas históricas e da qual também decorrem muitas teo-
., .
autopoíético, 'I' ;
, rias estéticas: a distinção entre a percepção sensorial de
Uma vez que o fenómeno de que a teoria da desseman- um objecto, entendida como um processo físico, e a atribui-
tização procura dar conta é, em sentido estrito, a auto- ção de sentido, considerada uma actividade mental.
-referencialidade, é possível defini-lo, de modo mais Mais uma vez, gostaria de clarificar tudo isto com um
convincente, como um processo muito específico de exemplo muito do meu agrado: quando, num dia de chuva,
';',.
,,
j
340 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 341
percepciono o vermelho muito particular de um semáforo Ao mesmo tempo, porém, o aparecimento súbito e
e me sinto fascinada pelos seus cambiantes reluzentes, em infundado de um fenómeno representa o pressuposto para
constante mutação, ao ponto de me perder a contemplá-lo, o percepcionar de outro modo. O fenómeno é percepcio-
a percepção que tenho dele difere, sem dúvida, da que tenho nado, antes de mais, no seu ser fenoménico, mas se a aten-
quando o interpreto como um sinal de trânsito que me ção deixa de estar concentrada no que é percepcionado e
•
obriga a parar. Em ambos os casos, a percepção cria um começa, por assim dizer, a divagar, ele passa a ser percep-
sentido específico: no primeiro, o de uma impressão sen- cionado como um significante, ao qual se associam, como
sorial especialmente fascinante; no segundo, o de uma ins- significados, ideias, lembranças, emoções, sentimentos,
trução a seguir. Dito de um modo mais incisivo - e para pensamentos. Segundo que regras emergem tais associa-
alguns provocatório: a percepção consciente gera sempre ções? O que é que as suscita?
sentido; as «impressões sensoriais» podem, por isso, ser Se um espectador sofre de uma qualquer fobia, como o
descritas mais rigorosamente como o tipo de sentidos de medo de cavalos - como o pequeno Hans de Freud -, ou
que me torno consciente através de impressões sensoriais de aranhas, ou de serpentes, há uma certa probabilidade
específicas. Daqui, porém, não decorre que elas se deixem de, nas Bacantes de Grüber, em Eile était et elle est même de
traduzir linguisticamente de imediato. De facto, posso ter Fabre ou em Dragon Heads de Abramovié, ele reviver essa
dificuldade em expressá-las por palavras, e chegar mesmo fobia, ainda que não possamos garantir que tal aconteça.
à conclusão de que são absolutamente irredutíveis à lin- Se excluirmos estes casos excepcionais, contudo, afigura-
guagem, e só de modo muito insuficiente seja possível -se absolutamente impossível prever que tipo de associa-
descrevê-las ou perifraseá-las. Esta circunstância mostra ções a percepção de um objecto pode suscitar, se bem que
categoricamente que os sentidos poderão equiparar-se a ,
, , o sujeito percipiente possa, em retrospectiva, encontrar
estados de consciência, mas não a sentidos linguístícos. \ "
,
,
conexões que sejam, para si, convincentes.
Nos últimos trinta anos, os espectáculos têm vindo a Como mostra aquele que é, neste contexto, o mais céle-
libertar cada vez mais os elementos teatrais de todo o tipo bre exemplo literário, a madalena de Proust ensopada no
t , .
de contextos mais vastos, fazendo-os aparecer e desapa- {:• chá, cujo cheiro e sabor desencadeava no escntor um cau-
,.,;
I.
recer, sem referência ou ligação a qualquer encadeamento dal de recordações, é possível, sem dúvida, estabelecer uma
"• ,
causal- não raro com muitas repetições -, e levando-os , ligação entre um cheiro ou um sabor e as recordações que
'.
cij'
a manifestar-se como fenómenos emergentes, auto- ~.
suscitam, mas estas não podem de modo algum ser deduzi-
-referenciais, que apenas remetem para eles próprios, o t ".' '
das necessariamente, nem mesmo com uma certa probabi-
1.
que sensibiliza para a ideia de que percepção e produção lidade. Elas emergem na consciência do sujeito percipiente
de sentido são um e o mesmo processo. sem que exista nenhum mecanismo que a tal obrigue.
342 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 343
Quer isto dizer que o cheiro e o sabor de uma madalena Em ambos os casos, os sentidos emergem indepen-
mergulhada no chá não conseguirão despertar as mesmas dentemente da vontade do sujeito percipiente. Não surgem
recordações sempre que percepcionados por Proust, nem como consequência de um rígido nexo causal, nem em vir-
mesmo no caso em que o sujeito percipiente as tenha pro- tude de uma intenção do sujeito em causa. O seu apareci-
curado e evocado de modo consciente e intencional. mento ocorre sem motivação nem justificação. Sob este
A separação dos fenómenos emergentes de contextos ponto de vista, o processo da produção de sentido ligado à
predeterminados constitui, manifestamente, uma pre- dinâmica das associações distingue-se notoriamente de
missa válida para que o espectador seja posto numa con- um processo interpretativo deliberado. Enquanto a inter-
dição idêntica àquela em que se encontra Proust com a sua pretação depende da procura de sentidos que se «ajustem»
madalena. Estes fenómenos podem estar ligados a quase em função de determinados critérios (se bem que, também
. ,....,
todos os contextos espontâneos ou associados. Esta ligação neste caso, eles nem sempre sejam acessrveis ao inter-
só raramente se estabelece de modo consciente e delibe- prete), os sentidos obtidos por associação surgem inde-
rado, como acontece, por exemplo, quando um espectador pendentemente da vontade e do esforço do sujeito em causa
percepciona os fogões em Murx e, procurando lembrar-se e até, por vezes, contra a sua vontade. Os sentidos produ-
onde já terá visto um semelhante, acaba, nessa procura, por zidos neste processo podem considerar-se emergências.
ir ao encontro de experiências autobiográficas específicas. Na medida em que são constituídas por pensamentos,
As associações, em contrapartida, ocorrem sem que sejam as associações permanecem, em ambos os casos, na cons-
procuradas ou evocadas. Elas surgem espontaneamente na ciência, seja como recordações, seja como novos sentidos,
consciência do sujeito percipiente perante um objecto a menos que, perante a novidade dos próprios pensamen-
específico. tos, o sujeito em causa fique num estado de excitação tal
Tais associações reportam-se - enquanto recordações que esta se articule fisicamente e se torne perceptível pelos
- ao que foi vivido, aprendido, experienciado, a experiên- outros. Isto sucede quando o batimento cardíaco acelera,
cias subjectivas específicas e irrepetíveis, assim como a ou se verifica
, um acesso de transpiração ou uma agitação
códigos culturais intersubjectivamente válidos. Além disso, •
motora, ou ainda quando o sujeito se sente compelido a
as associações podem também surgir como intuições anotar os seus pensamentos, o que conduz a uma acção
repentinas, como ideias novas nunca antes consideradas, também ela perceptível. As sensações e as emoções que
capazes, por isso, de surpreender mais intensamente o emergem neste processo tendem a articular-se fisicamente
sujeito percipiente, que não consegue captar qual a relação e, não raro, de modo perceptível, seja através de tremores,
entre o pensamento surgido subitamente e a percepção do de soluços ou, na maioria das vezes, de agitação motora.
objecto em causa. Na medida em que podem ser vistas, ouvidas, cheiradas ou
344 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 345
sentidas pelos outros espectadores e/ou pelos actores, Entre estes dois tipos de percepção e de constituição
tornam-se parte integrante do circuito de retroacção auto- . do sentido e os conceitos de «símbolo» e de «alegoria» con-
poiético. Os conteúdos que afloram à consciência do sagrados por Benjamin, parece haver um paralelismo
sujeito como significados do objecto percepcionado impressionante. Se é certo que este paralelismo é dissimu-
enquanto significante podem, assim, fazer parte do circuito lado pelo facto de a teoria da arte de Benjamin se fundar na
de retroacção autopoiético, seja porque se articulam fisi- sua teoria da linguagem, e se desenvolver no quadro de
camente e de modo perceptível para os outros, seja porque uma concepção particular da filosofia da história, impõe-se,
estimulam reacções físicas perceptíveis pelos outros. contudo, estabelecer aqui uma relação. Benjamin constrói
A separação dos elementos teatrais de contextos pre- o seu conceito de símbolo a partir da teoria do símbolo de
determinados, o seu isolamento, implica, pois, dois tipos Garre, «a qual acentua a dimensão natural- o mundo das
de percepção e de produção de sentido muito diferentes. montanhas e das plantas - na constituição do sÍmbolo»4,
A relação entre materialidade, significante e significado é recorrendo, por outro lado, à Mythologie de Creuzer, onde
diferente em cada um dos casos. No primeiro, o fenómeno os símbolos são caracterizados pelo «momentâneo, o total,
é percepcionado tal como aparece, isto é, no seu ser feno- o insondável da sua origem, o necessários". «A medida
ménica. Ou seja, materialidade, significante e significado temporal da experiência simbólica é o instante místico em
coincidem. No segundo caso, em contrapartida, estão cla- que o símbolo acolhe o sentido no seu interior oculto e, se
ramente separados. O fenómeno é percepcionado como nos é permitido dizê-lo, arborizado.v" O símbolo é, pois,
um significante que se pode ligar aos mais variados signi- concebido de modo a excluir o concurso de um sujeito gera-
ficados. Os sentidos que lhe são atribuídos neste processo dor de sentidos, porque acolheu o seu sentido no seu «inte-
não dependem da vontade do sujeito; afloram, sim, à sua rior»; refere-se a um (ao seu) sentido intrínseco. Mesmo
consciência sem justificação nem motivo, ainda que', não quando é criado por um sujeito - como no caso de um sím-
raro, possam ser clarificados mais tarde, de modo plausí- bolo artístico -, a subjectividade tende a apagar nele o seu
vel. Enquanto os sentidos que primeiro emergem podem rasto, a anular-se e a desaparecer. O símbolo artístico
ser relacionados, pelo menos retrospectivamente, com o parece s'ubtrair-se a todo e qualquer acto de atribuição de
objecto percepcionado, os que emergem depois já quase sentido - tanto ao do artista criador quanto ao do intér-
não têm nenhuma relação com ele. Neste caso, são os prete que o explica. Ele pode simplesmente ser percepcio-
~entidos produzidos que, por seu turno, geram outros. nado. O símbolo criado por um sujeito deve conter e revelar
E comum aos dois tipos de produção de sentido o facto de o seu sentido do mesmo modo que as coisas o fizeram com
não se realizarem com base num código intersubjectivo os sentidos que Deus, antes do início da história, lhes atri-
nem com base numa atribuição convencionalmente aceite. buÍra no paraíso: materialidade, significante e significado
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 347
346 ERIKA FISCHER-L1CHTE
coincidem. Logo, o sentido do símbolo não parece ser nem semelhante ao que Benjamin entendia por símbolo - seja
arbitrário, nem fruto de uma relação estabelecida subjec- no que respeita ao emergir das coisas no espaço, seja no
tivamente, mas sim dado no próprio símbolo. que se refere ao acto de as percepcionar.
O símbolo contraria a efectiva participação da subjec- Benjamin contrapõe ao símbolo assim concebido a ale-
tividade e procura excluí-la da sua esfera de sentido. Daí goria como «história originária do significar». A alegoria
que, na filosofia da história de Benjamin, ele também ante- associa ao fenómeno o sentido como ele é dado no mundo
cipe o futuro. Com efeito, do mesmo modo que o símbolo histórico, isto é, depois do pecado original e antes da reden-
oculta e revela, também a natureza, no dia da redenção, reve- ção. Ela parte, pois, do princípio de que natureza e lingua-
lará «instantaneamente» o seu sentido oculto. O símbolo gem se separaram e que, perante o silêncio da natureza,
aponta, pois, para o fim da história e, simultaneamente, o homem tenha sido forçado a atribuir-lhe sempre novos
simboliza-o, porque nele, «com a transfiguração do declí- sentidos. O sentido alegórico resulta de uma atribuição
nio, o rosto transfigurado da natureza manifesta-se fugaz- subjectiva que é, em última instância, arbitrária.
mente à luz da redençãos". Benjamin descreve a alegoria como um processo de
A semelhança entre ambas as concepções - símbolo produção de sentido que remete expressamente para essa
e auto-referencialidade - salta à vista. Numa como nou- arbitrariedade e, assim, simultaneamente, para o papel da
tra, materialidade, significante e significado coincidem, subjectividade. «Cada personagem, cada objecto, cada
e em ambos os casos se pode falar, com toda a razão, de relação pode significar outra coisa qualquer>" No mundo
sentido intrínseco. Contudo, não podemos ignorar as dife- histórico, os objectos deixaram de ter em si um sentido.
renças profundas resultantes da concepção de filosofia da Um objecto pode ser utilizado como signo de qualquer
história de Benjamin. Com efeito, no que respeita à auto- outro, independentemente da sua materialidade específica.
-referencialidade, o contributo do sujeito percipiente éine- Materialidade, significante e significado divergem.
gável; é, sobretudo, a sua percepção das coisas no seu ser As coisas de que o alegorista se apropria já não têm
fenoménico que nos permite falar de um sentido intrín- nenhum significado, são insignificantes. Qualquer signi-
- .
seco. E o acto de percepção de um sujeito que, antes de ficado q~e se lhes atribua deriva de um pôr subjectivo efec-
mais, cria o sentido do objecto percepcionado como seu tuado pelo alegorista. O objecto encontra-se
ser fenoménico.
Apesar destas diferenças, é possível concluir, em minha perante o alegorista, está incondicionalmente nas suas mãos. Ou
opinião, que os artistas do teatro e da perjormance art, ao seja: esse objecto é incapaz de emanar um significado, um sentido;
separarem os fenómenos emergentes de contextos dados, o seu significado será aquele que o alegoristalhe atribuir. Ele insere-o
criaram a condição para o aparecimento de algo muito no objecto [... ]. Nas suas mãos a coisa torna-se algo diferente."
Ii ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 349
348 ERIKA FISCHER-L1CHTE
I
A intervenção do alegorista torna as coisas simulta- as coisas serão novamente capazes de expressar o seu sen-
neamente desprovidas de significado e significantes: des- tido intrínseco."
providas de significado, porque a subjectividade A separação de contextos dados é, pois, o pressuposto
intencional dele lhes retira a possibilidade residual de reve- quer para a atribuição alegórica de sentido, quer para a
lar o sentido imanente originariamente atribuído por Deus; produção associativa de sentido descrita no nosso segundo
significantes, porque essa subjectividade intencional as caso. Seja na alegoria, seja na associação, qualquer atri-
investe novamente de significado. buição e produção de sentido ocorre em condições que
Ao transformar as coisas, isto é, o que originariamente dependem exclusivamente da subjectividade do sujeito
é dotado de sentido naquilo que deve passar a assumir um percipiente. Também aqui deparamos com uma concor-
determinado sentido, o significado em significante, no dância assinalável. A diferença fundamental reside no facto
mundo histórico o alegorista oferece-lhes a possibilidade de, no caso do sentido alegórico, apenas a intenção do ale-
de serem novamente dotadas de sentido, de se tornarem gorista ser determinante: é ele quem intencionalmente
significados. As coisas que assim se tornam significantes atribui um sentido à coisa percepcionada. No caso da asso-
podem, com efeito, remeter umas para as outras, num pro- ciação, pelo contrário, os sentidos afloram ao consciente
cesso teoricamente infinito. do sujeito percipiente sem que este controle o processo
A contemplação alegórica de um objecto isolado ape- nem tenha qualquer poder para dispor dos sentidos a
nas pode pretender concebê-lo enquanto fragmento, como atribuir.
uma coisa extirpada de um contexto e que remete para o Símbolo e alegoria formam uma oposição e parecem
facto de ter sido extirpada. Só enquanto fragmento ela excluir-se mutuamente. Estão separados pelo abismo da
pode, no acto alegórico, ser investida de um novo sentido história, ainda que ambos remetam, em última análise,
em virtude do arbítrio subjectivo. Benjamin considera este para o estado da redenção messiânica, em que é restituída
processo de atribuição de sentido às coisas isoladas e às coisas a capacidade de exprimir de imediato o sentido
reduzidas a fragmentos a «salvação» delas. Com efeito, que originariamente
, lhes foi atribuído por Deus. Nos espec-
de outro modo, elas permaneceriam mudas e desprovidas táculos até agora analisados, os dois tipos de percepção e
de sentido, sucumbindo à sua transitoriedade. O sentido de produção de sentido, possibilitados pela separação
que o alegorista atribui a uma coisa já nada tem em dos elementos teatrais de contextos preestabelecidos,
comum, claro está, com o sentido que exprimia imediata- encontram-se, pelo contrário, por via da emergência, numa
mente antes do pecado original. Mas, na medida em que relação muito diferente. Um pode tornar-se o outro a qual-
. . ,.
é um sentido, o processo alegórico remete então, alegori- quer instante: o que num primeiro momento e percepcio-
camente, para o estado messiânico da redenção, no qual nado como o ser fenoménico de uma coisa pode, logo em
, 11'1
,
350 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 351
seguida, ser percepcionado como um significante, ao qual Neste contexto, quero mais uma vez sublinhar que,
se podem atribuir os mais diversos significados: a per- ao contrário de Benjamin, os sentidos aqui produzidos
cepção de uma coisa como «símbolo» pode, em qualquer não são sentidos linguísticos. Pelo contrário, não raro eles
momento, transformar-se na percepção dessa mesma esquivam-se obstinadamente à formulação linguística.
coisa como «alegoria». Também relativamente a este pro- O processo mediante o qual procuramos «traduzi-los»
cesso se encontra, contudo, uma correspondência no para linguagem só se dá num momento posterior, quando
âmbito da filosofia da história de Benjamin. Com efeito, reflectimos sobre eles e/ou procuramos comunicá-los aos
na alegoria,
outros.
porque a sua semioticidade apenas garantia um acesso me- - no texto teatral-, mas sim a criar algo de completamente
diato ao mundo. No que concerne os espectáculos, tal sig- novo, algo de único, que se pode dar deste modo apenas
nificava, precisamente nos anos 60, princípios dos anos 70, através da sua corporeidade individual. Se quisermos man-
considerar o corpo do actor - e, não raro, apenas o corpo ter o conceito de «representação» para o processo de cria-
nu -lugar e modelo da presença. A personagem dramática, ção de uma personagem, teremos de redefini -lo de modo
em contrapartida, surgia como o arquétipo da representa- radical. A representação e a presença são o resultado, que
ção. A personagem em palco, predeterminada pela «ins- se forma na percepção, de processos específicos de encar-
tância de poder e controlo» do texto literário e reproduzida nação. Contudo, não decorre daqui, de modo nenhum, que
pelo actor através do próprio corpo como representação de se anule toda e qualquer diferença entre os conceitos de
tudo o que estava «prescrito» no texto, era testemunho da «presença» e de «representação». Com efeito, mesmo se
repressão que o texto exercia sobre o actor e, sobretudo, os processos específicos de encarnação forem os mesmos
sobre o seu corpo. Tornava-se, pois, necessário libertar o °
- é caso sempre que o actor, ao «interpretar» uma per-
corpo do actor das correntes da representação, do seu sonagem, surge permanentemente presente -, a percepçao -
estrangulamento, e assim contribuir para deixar vir à tona resultante é significativamente diferente. Tal diferença
a espontaneidade e a autenticidade da sua existência física. deriva, por conseguinte, da percepção e é visível, sobre-
Como ficou demonstrado na secção sobre a encarna- tudo, no fenómeno da multi-estabilidade perceptiva.
- - , I
çao, nao e sustentavel uma tal acepção de «presença» e de Como já foi exposto, a percepção pode mudar no acto
«representação», nem a ideia de uma relação dicotómica de percepcionar: o que primeiramente é percepcionado
entre elas. Quer a presença, quer a personagem dramática como presença do actor no momento seguinte é percep-
são criadas através de processos específicos de encarnação. cionado como personagem dramática e vice-versa. Não
A personagem dramática não é gerada como reprodução cabe, no nosso contexto procurar uma explicação psicoló-
ou como cópia de algo predefinido, mas por um processo gica para tal fenómeno." Contudo, é possível afirmar que,
que implica procedimentos de encarnação precisos. A per- também neste caso, se trata de emergências, uma vez que
sonagem criada está indissoluvelmente ligada à corporei_ não se pôde fornecer nenhuma razão para a mudança ope-
dade específica do actor que a cria. O corpo fenoménico do rada pela percepção. Até agora, todas as nossas tentativas
actor, o seu ser-no-mundo corpóreo constitui o funda- de relacionar este fenómeno com técnicas dramatúrgicas
mento existencial para o surgimento da personagem - esta ou cénicas fracassaram. Mesmo quando, num espectáculo,
não existe para lá deste corpo individual. não se estabelece nenhuma ligação perceptível entre as per-
•
Assim sendo, quando representa uma personagem, sonagens mencionadas no programa e os actores que as
o actor não está a reproduzir algo que já exista algures interpretam, haverá espectadores que continuarão sempre
I,
354 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 355
a ver os actores como personagens. Do mesmo modo, com o conceito fraco de presença, e a segunda por ordem
haverá sempre espectadores que, num espectáculo coeren- da representação.
temente psico-realista, sentirão sempre a presença do Que acontece, então, no momento da mudança, quando
actor. No estado actual do nosso conhecimento, teremos, a ordem da percepção que vigorava até então é perturbada,
pois, de contentar-nos com a conclusão de que a mudança mas ainda não se estabeleceu uma outra ordem, no mo-
da percepção é um fenómeno emergente. mento da transição da ordem da presença para a ordem da
Muito mais interessante, no nosso contexto, é a ques- representação e vice-versa? Cria-se um estado de instabi-
tão de saber qual o efeito da multi-estabilidade perceptiva lidade que leva o percipiente a oscilar entre duas ordens,
num espectáculo. Como já tínhamos visto, a partir dos num estado de «betwixt and between», nem cá nem lá. Ele
anos 60 do século xx, os espectáculos passam a usar uma encontra-se no limiar que caracteriza a passagem de uma
série de estratégias que parecem possibilitar, com uma ordem à outra e, neste sentido, num estado liminar.
frequência muito maior do que nos espectáculos psico- Quando, durante um espectáculo, a percepção muda
-realistas, a ocorrência da multi-estabilidade perceptiva. continuamente de direcção e o espectador é posto amiúde
As encenações de Wilson, Castorf e Fabre, entre outros, entre duas ordens de percepção, a diferença entre elas vai-
parecem mesmo provocar o seu aparecimento. Interessa- -se tornando cada vez menos importante, e a atenção do
-lhes, manifestamente, possibilitar as mudanças de per- espectador foca-se no momento da transição, na pertur-
cepção; após o momento em que esta se dá, ocorre uma bação da estabilidade, no estado de instabilidade e na pro-
fractura, uma descontinuidade. A anterior ordem vigente dução de uma nova estabilidade. Quanto mais frequente
da percepção é perturbada e abandonada, para se estabe- for a mudança, mais o espectador se torna um viajante
lecer uma nova. Percepcionar o corpo do actor no seu ser- errante entre dois mundos e duas ordens de percepção,
-no-mundo corpóreo estabelece uma ordem específica da tornando-se progressivamente mais consciente do facto
percepção; em contrapartida, percepcionar o corpo do actor de não ser senhor dessa transição. Apesar de poder sempre
como símbolo de uma personagem estabelece uma outra. voltar a tentar «sintonizar-se» intencionalmente na ordem
Enquanto o primeiro tipo de ordem produz sentido como
•
da presença ou na ordem da representação, depressa toma
ser fenoménico de tudo o que é percepcionado, podendo ,,
: '/
consciência do facto de que a mudança ocorre indepen-
,
.- ,-
este sentido produzir depois toda uma série de outros que, ,
-l •.
dentemente da sua vontade, e, sem que o queira e o possa
li'
, ,>
na sua maioria, nada têm que ver com a própria percepção, :-1'
,,, evitar, oscila entre as duas ordens. Nesse momento, ele
,
L·
no seu conjunto, constituem a personagem. Podemos desig- margem da sua vontade e do seu controlo, não completa-
nar a primeira por ordem da presença, em conformidade mente ao seu dispor, mas ao mesmo tempo consciente.
,
i
356 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 357
Trata-se de percepções que, embora conscientes, não Cada uma das duas ordens produz sentidos segundo
são voluntariamente produzidas. Os sentidos gerados por princípios próprios, que se tomam dominantes quando uma
estas percepções não podem, pois, considerar-se intencio- delas se estabiliza. Na ordem da representação, por exem-
nais. Pelo contrário, eles afloram repentinamente à cons-
,
plo, o que se percepciona é elaborado tendo em conta a
ciência no acto da percepção. personagem, um certo universo fictício ou uma certa ordem
Surge, então, a pergunta: os sentidos produzidos den- simbólica. O processo de percepção é claramente guiado
tro das duas ordens - primeiro os produzidos no acto da pelo objectivo de criar uma personagem. Os elementos
percepção e, em seguida, os relativos a esses - diferem percepcionados que não podem ser considerados válidos
substancialmente? Por exemplo, a ordem perceptiva da para a constituição da personagem são ignorados na pro-
presença produz como sentidos, predominantemente, dução de sentidos que se segue. Os sentidos gerados que
sensações, ideias e emoções que se articulam fisicamente criam a personagem afectam a dinâmica do processo per-
e podem ser percepcionadas pelos outros como reacções ceptivo: o sujeito percipiente em causa selecciona apenas
fisiológicas, afectivas, energéticas e motoras? E dentro da os elementos importantes em vista da personagem. O pro-
ordem perceptiva da representação, surgem predominan- cesso tem, pois, um propósito e é, pelo menos em certa
temente pensamentos, ideias e emoções que se articulam medida, previsível.
internamente, mas sem força bastante para arrebatar o Esta é a ordem da percepção a que aspiravam os teóri-
espectador, que mantém, por isso, uma certa distância cos do século XVIII. Contudo, como eles próprios se deram
do objecto da percepção? Os espectáculos a que me tenho conta, não é possível estabilizar a ordem da percepção deste
referido deixam supor esta conclusão. Parece, pois, plau- modo. Num certo ponto, a percepção muda, a ordem da
sível interpretar os sentidos produzidos no primeiro caso representação é perturbada, ainda que temporariamente,
como constituintes de uma realidade, e os que se' pro- e cria-se outra: a ordem da presença.
duzem no segundo caso como sentidos que constroem Na ordem perceptiva da presença, os princípios são
um mundo fictício ou uma esfera simbólica. No entanto, completamente
, diferentes. O sentido do ser fenoménico
sabemos, através da história do teatro, que, sobretudo nos do corpo ou da coisa percepcionados gera, por seu lado,
séculos XVII e XVIII, este tipo de sentidos gerava fortes uma cadeia de sentidos que se associam entre si e não estão
emoções. No que respeita a esta problemática, não se necessariamente relacionados com o que se percepciona.
podem pois retirar conclusões universalmente válidas. Se a ordem da presença se estabiliza, o processo da percep-
Porém, se nos cingirmos simplesmente aos espectáculos ção e da produção de sentido ocorre de modo completa-
examinados até agora, tal conclusão parece perfeitamente mente imprevisível- e, podemos dizê-lo, «caótico». Deixa
admissível. de ser possível prever quais os sentidos produzidos por
358 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 359
associação; deixa-se de saber para que elementos teatrais a maior será o grau de imprevisibilidade e tanto maior será
percepção os orientará, e quais. Neste caso, a estabilidade da a atenção que o percipiente prestará ao processo perceptivo
ordem rege-se por um grau extremo de imprevisibilidade." enquanto tal. O sujeito vai-se tomando cada vez mais cons-
Sob este ponto de vista, o processo perceptivo desenrola- ciente de que os sentidos não lhe são transmitidos, que é
-se como um processo emergente. A ordem da presença, a ele próprio quem os produz, e que poderia ter produzido
auto-referencialidade, produz os sentidos apenas como outros, diferentes, se a mudança de uma ordem para a outra,
emergências de que o sujeito percipiente não pode dispor por exemplo, tivesse ocorrido mais tarde, ou sido menos
livremente. frequente.
A multi-estabilidade perceptiva, que provoca a mudança Se é certo que os processos perceptivos geradores de
de direcção da percepção de uma ordem para a outra, pro- sentido devem ser considerados subjectivos, eles não são,
videncia para que nenhuma das duas ordens se estabeleça contudo, solipsísticos. Pelo contrário, eles tomam parte
duradouramente. A dinâmica do processo perceptivo toma activa na autopoiese do circuito retroactivo. Com efeito,
uma nova direcção sempre que ocorre uma mudança, sem- eles comunicam-se aos actores e aos espectadores, seja no
pre que se verifique instabilidade. O processo perceptivo caso em que se articulam fisicamente de modo visível -
perde, assim, o carácter casual, assumindo uma orienta- como, por exemplo, certas emoções e certos sentimentos
ção precisa, ou, pelo contrário, deixa de ter um propósito e -, seja no caso em que dele resultam acções perceptíveis.
começa a desviar-se. Cada viragem conduz, com grande É, pois, inegável que produzem um efeito. Mas de que
probabilidade, a um conteúdo perceptivo diferente, que modo se constitui a relação entre sentido e efeito, elemen-
contribui para a estabilização da nova ordem estabelecida tos que os representantes das vanguardas históricas con-
e ajuda a criar novos sentidos. sideravam e postulavam como inconciliáveis?
Ao mesmo tempo, a mudança de direcção, tal como a
descrevemos antes, dirige a atenção do sujeito percipiente
para o processo perceptivo e para a sua dinâmica. O perci- 3. SENTIDO E EFEITO
•
piente começa, assim, a percepcionar-se como percipiente
que cria sentidos capazes, por sua vez, de produzir outros, Os vanguardistas indicavam dois métodos para alcançar
que interferem na dinâmica do processo perceptivo. os efeitos desejados: os choques e outras emoções e acções
Quanto maior a frequência da mudança perceptiva empolgantes. No que se refere ao primeiro tipo de efeitos,
entre a ordem da presença e a ordem da representação, e os representantes das vanguardas davam continuidade a
entre processos predominantemente «casuais» e proces- uma longa e venerável tradição, ainda que raramente o
sos predominantemente imbuídos de um propósito, tanto admitissem. Desde a Poética de Aristóteles até ao fim da
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 361
360 ERIKA FISCHER-L1CHTE
estética do efeito, nos finais do século XVIII, a excitação mensagem na qual se formulava uma determinada ideolo-
das paixões, dos sentimentos, dos afectos e das emoções gia - a ideologia burguesa -, que eles rejeitavam. Conside-
representava o efeito postulado para o espectáculo teatral. ravam que, entre os efeitos que não podiam ser suscitados
Era sobre esse efeito emocional que se baseava o seu valor por este tipo de sentidos, estavam fortes reacções físicas de
ou o seu perigo. Supunha-se que a representação das pai- que os outros podiam ter percepção, como as que Marinetti
xões pelos actores - isto é, o modo específico de as signi- descreve e reclama no Teatro di Varietà. Tais reacções, segundo
ficar - suscitava paixões no espectador, ainda que não os vanguardistas, só podiam ser produzidas por intermédio
necessariamente idênticas às representadas e até, muitas de acções de ataque ao corpo do espectador e a que era
vezes, completamente diferentes. Neste caso, o sentido estranho qualquer sentido do tipo do acima mencionado.
encontrava-se ao serviço do efeito. Partia-se da ideia de Conceber sentido e efeito como opostos ou como con-
que os sentidos só podiam suscitar no espectador os efeitos dições recíprocas depende, antes de mais, da concepção de
desejados quando lhe eram transmitidos de um modo espe- base de «sentido» e de «efeito», bem como das teorias psi-
cífico, prescrito pelas regras da arte dramática. Considerava- cológicas de que se parta. A problemática da relação entre
-se que a possibilidade de reconhecer de imediato e com um e o outro só pode, pois, ser discutida no contexto dos
exactidão as emoções representadas era a condição mais pressupostos adoptados.
importante para estimular emoções. Baseavam-se nesta Classifiquei sensações e emoções como sentidos ,
condição não só o código gestual do teatro barroco, tal como porquanto defini os sentidos em geral como estados de
foi descrito pelo padre Franciscus Lang na sua Dissertatio de consciência.15 No que respeita às sensações e às emoções,
actionescenica (1727), mas também o código de uma arte dra- trata-se, pois, de sentidos que se articulam fisicamente e
mática «natural», cujo estado de desenvolvimento Johann que só se tornam conscientes através dessa articulação.
Jakob Engel resumiu na sua Mimik (1784-85).14A transmis- Significa isto que articulações físicas como suster a respi-
são precisa de um sentido específico era, pois, entendida ração, ter suores frios ou ficar com pele de galinha não
como condição da possibilidade de uma efectiva estimu- devem ser , vistas como sintomas ou sinais que remeteriam
lação de afectos no espectador. para uma emoção localizada em qualquer outra parte - no
Em contrapartida, os representantes das vanguardas «Íntimo» de alguém, na sua alma - e que apenas se expri-
históricas, que atacavam a estética representativa do teatro mem ao nível físico, como supunham os teóricos do século
psico-realista do século XIX e proclamavam uma nova XVI I I. Eu parto do princípio de que as emoções são produ-
estética do efeito, concebiam o sentido, por um lado, como zidas fisicamente, e apenas podem tornar-se conscientes
um fenómeno puramente intelectual, capaz de activar enquanto articulações físicas. As emoções são, pois, sen-
. . - -
processos racionais mas nao emoçoes, e, por outro, como tidos perceptíveis por outros em virtude das articulações
362 ERIKA FISCHER-lICHTE
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 363
físicas, e podem, como tal, transmitir-se aos outros sem exemplo sobre as fobias, quem tem fobia de serpentes per-
serem «traduzidas» em palavras.
cepciona uma serpente como algo que lhe causa medo. Neste
Para melhor esclarecer a relação entre sentido e efeito, caso, a fobia é parte integrante do sentido que o objecto,
parece-me profícuo que nos concentremos, primeiro, num a serpente, assume para o sujeito. Não é a percepção da ser-
determinado tipo de sentidos, a saber: as emoções. Com pente que gera, em primeiro lugar, o medo. O medo surge,
efeito, na medida em que se articulam fisicamente de modo no momento da percepção, porque a fobia já faz parte do
visível, elas podem também ser registadas pelos outros e, sentido atribuído ao objecto percepcionado, a serpente, e
assim, repercutirem-se na autopoiese do circuito retroac- constitui o sentido que a percepção produz como tal.
tivo. Se por efeito entendermos uma interferência no pro- Trata-se, no caso das fobias, de sentidos absoluta-
cesso de auto-organização do circuito retroactivo, decorre mente subjectivos, com as suas raízes na história de vida
daí que se podem considerar efeitos os sentidos capazes de de cada um. No entanto, há certos objectos e processos cuja
intervir no circuito retroactivo. A pergunta agora é: como percepção consegue evocar emoções muito semelhantes e
conseguem os sentidos interferir na autopoiese do circuito extremamente afectivas num grande número de membros
retroactivo?
pertencentes a uma mesma cultura. Nos espectáculos até
No início deste capítulo, mostrou-se que, se definir- agora considerados, o facto de os elementos teatrais esta-
mos as percepções, enquanto estados de consciência, como rem desligados de contextos específicos dados, capazes de
sentidos, podemos concluir que os sentidos produzem, em influenciar a percepção ao ponto de enfraquecer, ou mesmo
geral, novos sentidos. Num segundo passo da argumenta- neutralizar, a componente emocional do seu significado,
ção, fica claro de que modo os novos sentidos afectam a cria premissas favoráveis a que a carga emocional even-
percepção. Quando vai a um espectáculo, o sujeito perci-
. - , tualmente associada a um elemento teatral se possa reper-
pi ente nao e uma tabula rasa, mas um sujeito que durante cutir no acto da percepção e evoque uma emoção forte.
toda a sua vida produziu uma série de sentidos de que se São evocadas emoções comparáveis em muitos espec-
recorda. Por conseguinte, podemos admitir que a «pri- tadores '!uando, por exemplo, um tabu forte é violado, como
meira» percepção tida no espectáculo é resultado dos sen- parece ter acontecido em Lips ofThomas ou em Giulio Cesare,
tidos produzidos anteriormente, sejam eles puramente para citar apenas dois exemplos especialmente marcantes.
subjectivos ou baseados em códigos culturais. Domina, na nossa cultura, uma busca obsessiva da
No que se refere às emoções suscitadas durante o espec- juventude, da magreza e da boa forma física. Os corpos que
táculo, resulta que, se a percepção de um elemento teatral manifestamente a contrariam são estigmatizados e bani-
gera emoções, pode partir-se do princípio de que elas dos, tanto quanto possível, da esfera pública. A doença e a
remetem para sentidos produzidos antes. Como mostra o morte, na nossa cultura, representam, se não um tabu,
364 ERIKA FISCHER -L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 365
seguramente um anátema. Os corpos que nos reportam Enquanto a violência sobre os outros membros da própria
para elas suscitam rejeição, nojo, horror, medo ou também comunidade se afigura um tabu em todos os tipos de socie-
vergonha. A Societas Raffaello Sanzio, ao pôr em cena cor- dade - facto para o qual Girard, sobretudo, chama a atenção
pos destes, sem fundamentar especificamente a sua con- na sua teoria do sacrifício -, a violência contra si próprio,
dição anómala relativamente ao que se exige que seja a na cultura cristã, não era algo que fosse rejeitado em geral,
normalidade - mediante, por exemplo, as características em especial nos casos em que era exercida como uma imi-
de um determinado papel-, deixava os espectadores lite- tação do sacrifício de Cristo - era o caso, por exemplo, da
ralmente desarmados diante desses corpos. Os sentidos autoflagelação praticada por monges e freiras a partir do
que, na nossa sociedade e, consequentemente, na maioria século XI, ou o dos movimentos de massa de flageladores
dos seus membros, são associados a tais corpos geravam surgidos por volta do século XVI. Para a sociedade de hoje,
nos sujeitos percipientes as emoções, que se articulavam também estas práticas constituem um tabu. No que res-
ao nível físico de modo claramente perceptível. Neste caso, peita aos tabus, verifica-se que, para os membros da socie-
sem dúvida, eram os sentidos culturais partilhados por dade em causa, eles têm uma forte carga afectiva e de
cada um dos membros de uma cultura que determinavam ambivalência. Em regra, o desejo de os quebrar é tão forte
-
a percepçao e provocavam emoções fortes. como o de ver ser marginalizado da sociedade e severa-
Verificaram-se processos análogos em muitas perfor- mente castigado quem os infrinja.
mances de Abramovié, nomeadamente em Lips ofThomas Em Lips ofThomas e Rhythm o, Marina Abramovié infrin-
e em Rhythm o. Em ambos os casos, infringia-se um pesado giu ambos os tabus. Os espectadores aparentavam expe-
tabu. Na nossa cultura, considera-se a vida individual e a rienciar emoções muito intensas ao testemunharem o
sua integridade um bem supremo. Aquele que fere o corpo modo como a artista, em Lips ofThomas, se feria, gravando
de outrem, ameaça a sua vida ou o mata torna-se culpado a estrela de cinco pontas na pele, chicoteando as costas e
do mais grave crime que se possa imaginar - um crime que estendendo-se em cima da cruz de blocos de gelo, ou como,
só pode ser punido com a pena máxima e a exclusão da em Rhythm o, outros a feriam, torturavam, atormentavam,
,
sociedade. Mas quem se fere a si próprio ou tenta matar-se violentavam. Essas emoções não surgiam como um reflexo
também se coloca à margem da sociedade; é considerado psicológico, semelhante ao de se fechar os olhos quando
doente, passa a estar sob vigilância e é impedido de fazer um corpo estranho lhes toca, ou à dor física provocada por
mal a si próprio. Estes dois tipos de pessoas são afasta- determinados ruídos. Eram produzidas, sobretudo, porque
das da sociedade e postas fora do alcance da vista e do con- já antes do espectáculo os espectadores conotavam o exer-
tacto com os,
outros. A violência contra si próprio e contra cício da violência sobre si próprio e sobre os outros com
os outros e, na nossa sociedade, um tabu muito forte. emoções intensas, atribuindo-lhes o respectivo sentido.
366 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 367
Eram estes sentidos adquiridos anteriormente que incitavam à acção. Em Lips of Thomas, os espectadores
intervinham na dinâmica do processo de percepção: no aproximavam-se da artista enregelada sobre os blocos
acto de percepção, produziam-se sentidos que se articula- de gelo, tiravam-na de lá e levavam-na dali para fora. Em
vam fisicamente em forma de emoções fortes. Por um lado, Rhythm o, alguns dos espectadores impediam outros de
tais emoções demonstram claramente que não se pode continuarem a torturar a artista. Mas mesmo nos casos em
entender os sentidos apenas como fenómenos «mentais», que as emoções dos espectadores não punham fim ao espec-
para cuja explicação é necessário recorrer a uma teoria dos táculo, elas agiam sobre a autopoiese do circuito de retroac-
dois mundos. Em conformidade com o conceito de ser tivo. Quando, nas encenações de Schleef, por exemplo,
humano como embodied mind, consideram-se os sentidos os espectadores abandonavam a sala, fazendo comentários
como encarnados, como algo que se articula fisicamente, em voz alta e batendo com as portas, eles estavam a impri-
ainda que de maneira nem sempre perceptível pelos outros. mir uma outra orientação ao circuito retroactivo. Como se
No exemplo das emoções que se articulam fisicamente, fica mostrou no terceiro capítulo, isto é válido para toda e qual-
também claro em que medida os sentidos produzidos pelo quer acção mediante a qual se verifique uma inversão de
espectador agem na autopoiese do circuito retroactivo e papéis entre actores e espectadores. No âmbito da reflexão
em que medida os sentidos geram efeitos. Com efeito, as acerca da semioticidade dos espectáculos, o que interessa
articulações físicas vistas, ouvidas, cheiradas ou simples- é a questão de saber em que medida acções deste tipo são
mente experienciadas por outros espectadores, ou também desencadeadas por significados. Como ficou demonstrado
pelos actores, podem evocar em quem as percepciona com o exemplo das emoções, são os sentidos que fornecem
padrões comportamentais e acções que são, por sua vez, os impulsos para as acções. Se estes impulsos forem repri-
perceptíveis, e assim por diante. midos - e as emoções que deles resultam não encontra-
As emoções conseguem, além disso, intervir de outro rem articulação física perceptível-, os sentidos deixam de
modo na autopoiese do circuito retroactivo. Como mos- ser importantes para a autopoiese do circuito retroactivo.
traram, de modo convincente, os trabalhos de investigação Se, pelo, contrário, seguirem esses impulsos, o prossegui-
mais recentes, as nossas acções só raramente são desen- mento do espectáculo é co-determinado, no essencial, pelos
cadeadas por reflexões calmas, convicções ou princípios sentidos produzidos pelos espectadores. Apesar de cada
fundamentais acerca da natureza do mundo. Pelo contrá- espectador produzir sentidos para si e em função de condi-
rio, são sobretudo as emoções que fornecem a motivação ções subjectivas, no que se refere à produção de sentido, é
que decisivamente nos impele a agir. 16 válido, em geral, o mesmo que para a autopoiese do circuito
Como observámos nas performances de Marina retroactivo: cada um determina esta produção e é determi-
Abramovié, as emoções produzidas durante a percepção nado por ela, sem que nenhum a controle plenamente.
368 ERIKA FISCHER-L1CHTE 369
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO
o efeito não pode, pois, ser concebido de modo unilate- semelhanças com o circuito de retroacção autopoiético.
ral, como acontecia quer com a «velha» estética do efeito Quem participa num espectáculo não só oco-determina,
(válida até ao final do século XVIII), quer com a «nova»' como é determinado por ele; o mesmo acontece também ao
(vanguardas históricas). Nestes casos, para uns, eram os sujeito no seu processo de produção de sentido. Ele deter-
sentidos transmitidos pelo espectáculo que desencadea- mina sempre esta produção quando , por exemplo, segue a
vam nos espectadores determinados efeitos, como pena e ordem da representação e, deliberadamente, selecciona as
terror, admiração, horror e compaixão; para os outros, percepções e produz os sentidos correspondentes. Pelo
eram os «ataques» físicos a que os espectadores eram sub- contrário, ele deixa-se determinar pelos sentidos quando
metidos que deviam incitá-los a agir, ou serem portadores se entrega às associações, sensações, ideias e pensamen-
de uma transformação. Eram os actores quem, em cena ou tos que subitamente afloram à sua consciência sem que
nos bastidores, utilizava determinados meios para obter ele o consiga impedir. No processo de produção de sentido,
certos efeitos. o sujeito experiencia-se a si próprio activa e passivamente
A partir dos anos 60 do século passado, o efeito passa - nem como sujeito completamente autónomo, nem total-
a ser concebido como um processo recíproco. Os actores mente à mercê de forças imperscrutáveis. Esta oposição
fazem surgir uma coisa que os espectadores percepcio- deixou de convencer.
nam como uma coisa. Os sentidos produzidos no acto da Chegados a este ponto, irrompe uma pergunta irrefu-
percepção ou na sua sequência podem, articulando -se fisi- tável, que tem estado à espreita desde o início do presente
camente de modo perceptível, actuar sobre os outros capítulo: este sujeito é um sujeito hermenêutico, isto é, um
espectadores e sobre os actores e assim por diante até ao sujeito que gera sentidos para perceber o espectáculo, inde-
fim do espectáculo. São, pois, os sentidos produzidos pelo pendentemente do facto de conseguir realmente percebê-
espectador que estão em condições de intervir na auto- -lo, ou de, no decorrer do processo, concluir que qualquer
poiese do circuito retroactivo e de produzir efeitos. tentativa para o perceber está condenada ao fracasso? Para
Não só aqui - embora aqui seja especialmente evidente responder a esta pergunta, temos de reexaminar os pro-
- se vê que a semioticidade do espectáculo não pode ser
•
cessas de produção de sentido de que me ocupei neste
captada adequadamente se posta em oposição ou, pior, em capítulo, a fim de compreender se podem ser incorporados
contradição com a sua performatividade, e sim, tão-só, se no paradigma de uma estética hermenêutica.'?
considerada no âmbito de uma estética do performativo.
A emergência de sentido revela-se de particular importância
neste contexto. O processo de produção de sentidos ao longo
do espectáculo apresenta um conjunto de significativas
370 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PER FORMATIVO 371
. -
4. E POSSIVEL COMPREENDER OS ESPECTÁCULOS? ele próprio participar na criação do processo que quer
compreender.
No que se refere aos processos de produção de sentido nos Esta condição só deixa de funcionar com o fim do
espectáculos - e não apenas a partir dos anos 60 do século espectáculo. Então, o espectador pode tentar, retrospecti-
passado -, o espectador não está distanciado, antes está vamente' relacionar cada pormenor que percepcionou e de
envolvido neles como participante. Mesmo quando se dis- que se lembre com o todo, ligar tudo ao todo e procurar,
tancia «interiormente», recostado na cadeira, entediado, deste modo, compreender o espectáculo - ou fracassar
ou até de olhos fechados, ou quando manifesta o seu dis- nesta sua tentativa. Mas esta tentativa aposteriori já não faz
tanciamento tecendo comentários trocistas em voz alta, parte do processo estético, que, de facto, termina com o
ele continua a participar, intervindo na autopoiese do cir- espectáculo; ela não pode ser integrada na efectiva expe-
cuito retroactivo. Enquanto permanecer naquele espaço, riência estética, só possível durante o espectáculo, mas
ele não pode deixar de participar. A distância que lhe é pos- tão-só servir como pré-requisito para outra experiência
sível manter quando observa um quadro ou ouve ler uma estética num espectáculo posterior. Logo, a questão que se
poesia, neste caso, está-lhe vedada. põe é a de compreender se os processos de produção de
O espectador não pode, em nenhum momento do sentido descritos neste capítulo podem ser considerados
espectáculo, captá-lo como um todo, como uma imagem, e explicados como processos hermenêuticos.
e relacionar cada um dos elementos teatrais que são O que há para compreender, por exemplo, na oscilação
objecto da sua percepção com esse todo. Não pode sequer entre «símbolo» e «alegoria»? Que processos interpreta-
saltar ou reler páginas. Consegue tão-só associar os tivos ocorrem aqui? A percepção de um objecto (ou de um
novos elementos que vão emergindo com os que já apa- corpo, de um movimento, de uma coisa, de uma cor, de um
receram e ainda estão presentes na memória. O mesmo som) como aquilo que se manifesta no acto de percepção
sucede quando vai ver a mesma encenação várias vezes. produz uma curiosa «fusão» do objecto percepcionado com
Dado que cada espectáculo se constitui de modo sempre o sujeito percipiente, a qual, no entanto, não deve ser con-
novo e diferente através da autopoiese do circuito retroac- fundida ~om a fusão de horizontes de Gadamer. O olhar do
tivo, ele nunca assiste ao mesmo espectáculo, ainda que sujeito percipiente palpa o objecto, para usar a terminolo-
se trate da mesma encenação. Sob este ponto de vista, gia de Merleau- Ponty, toca-o, ou então verifica-se um con-
afigura-se de novo necessário estabelecer a diferença tacto físico entre um corpo e o outro, como nos espectáculos
entre espectáculo e encenação. No entanto, a condição de Felix Ruckert. No acto de percepção, sons, luzes e chei-
mais importante a que o espectador é sujeito ao produ- ros penetram no corpo do sujeito percipiente, agindo sobre
zir sentido no espectáculo consiste no facto peculiar de ele e transformando-o. Podemos então afirmar que o
ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 373
372 ERIKA FISCHER-L1CHTE
sujeito percipiente compreende a expansão no espaço da A percepção não conduz, pois, à tentativa de compreender
coisa que observa, os cheiros que respira, os sons que res- o espectáculo teatral, mas à tentativa de compreender-se
soam na sua caixa torácica, a luz ofuscante que o encan- a si mesmo e à própria vida." Todavia, muito provavel-
deia? Dificilmente. Ele experiencia-os, sobretudo, no seu mente, tal tentativa é rapidamente interrompida, porquanto
ser fenoménico, que, para ele, ocorre no acto da percepção." aparecem novos objectos no espaço que são percepciona-
O espectador é tocado ao nível físico pela sua percepção, dos - ainda que, inicialmente, talvez apenas ao nível subli-
isto é, pelo que é percepcionado. Não o «compreende». Tal minar -, chamando sobre si a atenção do espectador que
não depende apenas do facto, que a teoria estética não se reflecte sobre si mesmo e sobre a própria vida.
cansa de acentuar, de toda a compreensão encontrar o seu Não se pode, pois, qualificar os processos de signifi-
limite, ou ser mesmo posta em causa, sempre que a mate- cação que se realizam na oscilação entre «símbolo» e «ale-
rialidade surge em primeiro plano, como neste caso, e pren- goria», entre auto-referencialidade e associação, como
der a atenção do sujeito percipiente. ' 9 O principal motivo processos hermenêuticos, cujo fim é a compreensão do
reside no facto de, neste caso, materialidade, significante e espectáculo. Pelo contrário, eles surgem como processos
significado coincidirem e, como tal, excluírem toda e qual- que, como já foi explicado, se inserem na autopoiese do
quer possibilidade de «descodificação» do sentido. O sig- circuito retroactivo, fazendo assim parte da construção
nificado não pode ser separado da materialidade, nem do espectáculo.
entendido como um conceito; pelo contrário, ele coincide De natureza completamente diversa são os proble-
com o aparecimento material do objecto. mas suscitados pelo fenómeno da multi-estabilidade per-
As muitas e variadas associações que a percepção do ceptiva, o súbito e inesperado salto da percepção da ordem
objecto desencadeia no sujeito percipiente devem ser enten- da representação para a ordem da presença e vice-versa.
didas como uma reacção de resposta. Elas respondem ao É certo que se pode assumir que, enquanto segue a ordem
desafio posto pelo aparecimento do objecto, e não tanto a da representação, o sujeito percipiente produz sentidos
uma tentativa de o compreender. O sujeito em que tais asso- com os ,quais executa processos hermenêuticos. Quando,
ciações emergem pode, em todo o caso, procurar compreen- com os sentidos produzidos, ele constitui uma persona-
der por que razão essas associações, e não outras, surgem gem' criando um universo fictício ou uma ordem simbólica,
naquele preciso momento. Neste sentido, é perfeitamente podemos descrever tal processo, com algumas limitações,
plausível que o espectador em causa ligue determinadas como uma tentativa de compreender a personagem em
associações a uma compreensão de si hermenêutica e se causa, o universo fictício em que se move e a ordem sim-
esforce por descobrir o papel daquele objecto no desen- bólica. Uma vez que lhe é vedada a visão do todo, ele pode,
volvimento da sua identidade e na sua história pessoal. enquanto constitui a personagem, compreendê-la apenas
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 375
374 ERIKA FISCHER-L1CHTE
no que dela conseguiu constituir até àquele momento. Esta de realizar a produção de sentido como um processo her-
sua compreensão provisória funciona sempre como uma menêutico revela-se uma verdadeira tarefa de Sísifo.
hipótese que o guia na constituição que vai fazendo da per- O salto ocorre e lança o sujeito percipiente num estado
sonagem ao longo de todo o espectáculo. Se o actor enve- de instabilidade. A experiência estética fica assim marcada
redar por processos de encarnação que contradigam a pela experiência da instabilidade, pela experiência de se
hipótese provisória do espectador, esta é reformulada. encontrar «betwixt and between» entre duas ordens de
A partir deste momento, a reconstrução da personagem percepção, sem poder determinar intencionalmente a esta-
referir-se-á à nova hipótese, e assim por diante até ao fim bilização permanente de uma nem de outra. O sujeito per-
do espectáculo." O mesmo é válido para a construção do cipiente pode modificar esta experiência mediante uma
universo fictício e da ordem simbólica. Até certo ponto, reflexão sobre o estado de instabilidade e sobre a experiên-
podemos falar de processos hermenêuticos que são parte cia de liminaridade que dela resulta, antes de ser de novo
da experiência estética e a co-constituem. atraído e tocado fisicamente por um fenómeno que surja
A minha descrição destes processos, no entanto, des- no espaço. Os processos hermenêuticos que ele, em linhas
curou um aspecto importante, a saber: os saltos percepti- gerais, consegue realizar sempre que a sua percepção
vos da ordem da representação para a ordem da presença. acompanha a ordem da representação permanecem, pois,
Subitamente, a percepção dá um salto da ordem da repre- marginais à experiência estética. O que determina a expe-
sentação para a ordem da presença. O elemento teatral que riência estética é não tanto a tentativa de compreender,
emerge é captado no seu ser fenoménico e toca fisicamente quanto a vivência de estar «entre», da liminaridade, da
o sujeito percipiente. De repente, o processo de constituição instabilidade, do carácter não disposicional do que acon-
da personagem, do universo fictício e da ordem simbólica tece. Neste contexto, deve-se também entrar em linha de
é interrompido. Em vez dele, dá-se a «fusão» do sujeito per- conta com a disposição do espectador. Quando a tentativa
cipiente com o objecto percepcionado, da qual resulta o de compreender é vivida como uma experiência frustrante,
abandono do sujeito ao caudal de associações que emer- a instabilidade
, é experienciada como uma crise.
gem nele ou, também, a uma reflexão sobre a sua própria O carácter específico da experiência estética revela-se
história pessoal. Quando, em qualquer outro momento do também se examinarmos os sentimentos que podem surgir
espectáculo, a percepção executar um novo salto para a durante e através do acto de percepção. Eles constituem
ordem da representação, o sujeito percipiente já não será sentidos que, como já vimos, muitas vezes intervêm - e até,
capaz de retomar a constituição da personagem no ponto em parte, de modo decisivo - na autopoiese do circuito
em que a deixara. Nolensvolens, ele terá de recomeçar a partir retroactivo, seja por se articularem de maneira perceptível
de um ponto qualquer de que se recorde, pelo que a tentativa para os outros, seja por constituírem um estímulo para a
376 ERIKA FlSCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 377
acção ou acabarem por provocá-la. Expliquei isto a propó- o que parecia ser o seu plano e a sua intenção? Não se esta-
sito do caso, que dei como exemplo, dos sentimentos que ria a correr o risco, intervindo, de lhe destruir a «obra»?
nascem durante a percepção de actos, comportamentos e Por outro lado, era conciliável com as leis do homem ficar
modos de se apresentar que infringem um tabu. O espec- a vê-la, tranquilamente, infligir sofrimento a si própria?
tador vive a violação de um tabu como um momento de Seria intenção de Abramovié pressionar o público a assu-
crise. Como foi descrito no início do primeiro capítulo, mir o papel de voyeur? Ou, pelo contrário, quereria ela pô-lo
de repente, como no caso de Lips ofThomas, o espectador à prova? Quereria descobrir até quando tinha de continuar
encontra-se numa situação em que as normas, as regras, a autoflagelar-se para que os espectadores se dispusessem
as molduras de referência e as certezas válidas até então a pôr fim ao seu martírio? Quais as regras que vigoravam
são anuladas. Até esse momento, ele partira do pressu- neste caso?
posto de que o seu papel, no teatro ou numa galeria de arte, A situação criada pela artista ao violar o tabu lançou o
consistia em ver e em observar, mesmo quando uma das espectador numa condição radical de «betwixt and bet-
personagens em cena (por exemplo, Otelo) se dispõe a ween» e, neste sentido, precipitou-o numa crise. Aparen-
matar outra (no caso, Desdémona). Ele tem a certeza de temente, o espectador não pode vencer uma crise deste tipo
que o homicídio é «fictício», e que nada acontecerá à actriz fazendo as perguntas acima formuladas, ou procurando
que desempenha o papel de Desdémona, do mesmo modo compreender, através da reflexão, a situação em que se
que nada acontecerá ao actor que faz o papel de Otelo quan- encontra. Ele reage a ela, sobretudo, com um sentimento
do este morre, e que ambos regressarão ao palco no final que pode ser de tal modo forte que ultrapassa qualquer
do espectáculo para receberem os aplausos e agradecerem reflexão e não deixa que se manifeste qualquer tentativa de
ao público. No dia-a-dia, pelo contrário, vigora a regra perceber a situação. Neste caso, a experiência estética é
segundo a qual se deve intervir de imediato quando alguém vivida como a experiência de uma crise, que não pode ser
ameaça fazer mal a si próprio ou aos outros - a menos que, dominada com uma reflexão calma e ponderada. ou pura
ao fazê-lo, se ponha em risco a própria vida. contem~lação.
Qual das regras devia o espectador adoptar na perfor- Como pode, então, o espectador sair desta situação de
mance de Abramovié? Era manifesto que a artista estava a liminaridade - nem que seja para voltar a encontrar-se
submeter-se voluntariamente a uma tortura, mostrando- noutra? O sentimento é, como dissemos, tão forte que pode
-se determinada em levá-la por diante. Se o tivesse feito constituir um impulso para a acção. Se o sujeito que o expe-
num lugar público, o espectador decerto não teria hesitado rimenta decidir não o seguir, fica refém da situação e per-
em intervir de imediato. Neste caso, porém, não exigia o manece no limiar, sem utilizar os espaços de liberdade e
respeito pela arte que se deixasse a artista levar até ao fim de acção que lhe permitem enfrentar a crise e instaurar
378 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 379
uma nova ordem. Os espectadores que, pelo contrário, compreender o espectáculo retrospectivamente, eles põem
decidindo segui-lo, retiram a artista da cruz de gelo criam o sujeito que as empreende perante problemas de outra
a tal nova ordem. Esses superam a dicotomia entre o natureza, dois dos quais especialmente sérios. O primeiro
campo da ética e o campo da estética, estabelecendo uma reside no facto de essas tentativas estarem dependentes
nova relação entre eles. O campo estético deixa de estar da lembrança, da memória. Quem quiser compreender
desvinculado da acção e acaba por requerê-la. A acção dos um espectáculo a posteriori tem de lembrar-se do que viu.
espectadores, motivada por um sentimento, redefine a O segundo resulta, sobretudo, do facto de um tal processo
situação e permite superar a crise, ainda que tal implique se desenrolar ao nível da linguagem, enquanto os sentidos
pôr fim à performance contra a vontade da artista, cujas produzidos durante o espectáculo são, numa grande parte,
intenções eles desconheciam até àquele momento. Neste não verbais. Quem quiser compreender o espectáculo apos-
caso, não é a reflexão sobre a situação nem a tentativa de a teriori deve, pois, traduzir em palavras os sentidos não ver-
compreender que levam à solução da crise - talvez abrindo bais de que ainda se recorda - o que ola põe perante uma
simultaneamente outra -, mas uma acção que nasce do dificuldade insuperável.
impulso produzido por um sentimento. Os processos her- Para a compreensão retrospectiva de um espectáculo
menêuticos não tiveram, pois, qualquer participação. são relevantes, acima de tudo, a memória episódica e a
Os processos de produção de significado que descrevi memória semântica." A memória episódica permite-me
neste capítulo não são, na sua maioria, executados como recordar os pormenores do espaço cénico, a posição dos
,
processos hermenêuticos. E evidente que, neles, não se actores em cena, os seus movimentos no momento em
trata de compreender o espectáculo, mas de tomar certas que se inicia a música, bem como a melodia e o ritmo desta,
experiências possíveis. Sem dúvida que os processos her- o modo como a iluminação, ao incidir sobre eles, lhes
menêuticos podem ser incorporados, pelo menos em'parte, imprime progressivamente uma cor azul, a correspondên-
O". , • •
na expenencia est ética, mas, mternamente, permanecem cia ou a fractura entre o ritmo da fala e o ritmo dos movi-
marginais. Os espectáculos a que fiz referência até agora mentos, e não só. A memória episódica é, pois, aquela que
não pretendiam ser compreendidos, e sim ser experiencia- •
permite recordar os inúmeros fenómenos concretos que se
dos, não podendo, por isso, estar subordinados ao para- manifestaram durante o espectáculo.
digma de uma estética hermenêutica. A memória semântica, em contrapartida, recorda
Só depois de o espectáculo terminar, podem iniciar-se todos os sentidos linguísticos - ou seja, quer as palavras
os esforços para, retrospectivamente, o compreender. Tais pronunciadas durante o espectáculo, quer os meus pensa-
esforços, contudo, estão fora da experiência estética: não mentos e interpretações durante o seu desenrolar. Disto
estão à altura de a co-constituir. Enquanto tentativas de fazem também parte as traduções efectuadas no decorrer
380 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 381
do espectáculo, como a identificação de uma determinada é mesmo capaz de criar recordações vívidas, mas não exac-
cor como sendo o vermelho, de um movimento como sendo tas, de acontecimentos que nunca se deram." Além disso,
brusco, de uma atmosfera como sendo inquietante. A memó- não raro, ela recusa-se a trazer à lembrança certas recor-
ria episódica, pelo contrário, recorda a tonalidade do ver- dações - um «defeito» que é impossível evitar, nem mesmo
melho, a execução específica de um movimento e a emoção voltando a ver a encenação. De facto, por um lado, cada vez
muito particular de que tive consciência no momento em que revir a encenação, o espectador percepcionará fenó-
que entrei naquele espaço, ou ainda o espaço concreto, com menos que até então lhe tinham escapado e que vai ter de
todos os seus pormenores, que parecia irradiar esta atmos- recordar. Por outro, a recordação da primeira vez conflui
fera. Em geral, a memória semântica e a memória episódica na percepção da segunda, modificando-a. O que é per-
interagem e apoiam- se mutuamente. Assim, por exemplo, cepcionado age, pois, no espectador de maneira diferente
as recordações ligadas ao decurso da acção e aos sentidos relativamente à primeira vez. Por último, mas não menos
linguísticos constituídos durante o seu desenrolar estimu- importante, trata-se, em cada uma das vezes, de um espec-
Iam a memória episódica e trazem à lembrança os aconte- táculo novo e diferente, ou seja, em princípio, o que depois
cimentos concretos e os respectivos pormenores. Uma vez tiver de ser recordado poderá ser percepcionado de maneira
que a maior parte dos espectáculos a que me referi não sempre diferente,"
seguem a lógica de um enredo nem nenhum outro tipo de A primeira condição para uma compreensão aposteriori,
nexo causal, a memória episódica tem um peso particular o recurso às próprias recordações, revela-se, assim, pro-
na tentativa de os compreender retroactivamente. Para os blemática, se bem que o que está em jogo não possa ser uma
fenómenos singulares e isolados do espectáculo objecto da compreensão «certa» ou «errada». Quanto à segunda con-
recordação, podem então procurar-se novas conexões, e dição, o processo de verbalização, não difere muito. Como já
criar-se novas relações que os ponham num contexto total- tivemos ocasião de ver por várias vezes, muitos dos senti-
mente novo. dos que o sujeito percipiente produz durante o espectáculo,
Porém, persiste um outro problema a ter em conside- e que depois recorda em parte, não podem equiparar-se a
•
ração. A investigação científica sobre a memória realizada sentidos linguísticos. Só muito dificilmente é possível
nos últimos anos veio confirmar a convicção generalizada «traduzir» para linguagem representações não verbais,
de que, sob múltiplos aspectos, a nossa memória «não é imagens, fantasias e lembranças ou estados de espírito,
confiável». Ela não funciona como um armazém onde são emoções e sentimentos, que se articulam ao nível físico e
depositados e fielmente conservados todos os fragmen- se tornam conscientes nesta sua específica articulação
tos do nosso passado, antes reconstrói de modo diverso, física. Com efeito, os signos da linguagem possuem sempre
segundo a situação e o contexto, esse passado. E não só: uma certa abstracção que os torna capazes de criar relações
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 383
382 ERIKA FISCHER-L1CHTE
NOTAS
14 CL Erika Fischer-Lichte, Semiotik des Theaters, vol. II, «Vom "künstli-
chen" zum "n atü rlich en " Zeichen. Theater der Barock und der
Aufklãrung», T übingen, Narr, 1983, 3" edição, 1985.
1 F. T. Marinetti, Das Varietétheater, p. 175. Na tradução alemã, refere-se
erradamente «loucura psíquica» em vez de «loucura física ». 15 CL as minhas considerações na secção 1 do presente capítulo. Desta
acepção de sentido decorrem importantes consequências para a
2 Cito segundo V. V. Ivanov, Einführung in die allgemeine Problematik der
semiótica que não podem ser examinadas em pormenor neste
Semiotik, Tübingen, Narr, 1985, p. 248.
contexto.
3 CL Gerhard Roth, Fühlen, Denhen,Handeln. Wiedas Gehim unserVerhalten 16 CL, entre outros, Luc Ciompi, Die emotionalen Grundlagen des Denkens.
steuert, Frankfurt, Suhrkamp, 2001, pp. 21 7- 8. EntwurfeinerfraktalenAffektlogik, Gõttingen, Vandenhoeck & Rupre-
4 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, RolfTiedemann cht, 2" edição, 1999; António R. Damásio, lch fiihle, also bin ich. Die
(org.), Frankfurt, 1972, p.182 [Origem do Drama Trágico Alemão, trad. Entschlüsselung des Bewufitseins, Munique, 2000; Gerhard Roth, Fühlen,
João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 200 4]. Denken, Handeln, Frankfurt, Suhrkamp, 2001; Ronald de Sousa, Die
Rationalitãt des Gefiihls, Frankfurt, Suhrkamp, 1997.
5 Citopor Walter Benjamin, Ursprung..., op. cit., p. 340.
17 No que se refere ao conceito de estética hermenêutica, CL Erika
6 Walter Benjamin, Ursprung..., op. cit., p. 182.
Fischer-Lichte, Bedeutung - Probleme einer semiotischen Hermeneutik und
7 Ibid. Asthetik, op. cito
8 lbid., p. 193. 18 O reconhecimento da auto-referencialidade, pelo contrário, pode
constituir um acto de compreensão.
9 Ibid., pp. 204- 5.
19 Acerca desta problemática, CL, entre outros, Jacques Derrida, «Res-
10 Para uma comparação pormenorizada com a teoria da arte de Ben-
titutionen», em id., Die Wahrheitin der Malerei, Viena, Passagen Verlag,
jamin' CL Erika Fischer-Lichte, Bedeutung - Probleme einer semiotischen
1992, pp, 301-442; Christoph. Menke, Die Souverãnitdt der Kunst,
Hermeneutik und Âsthetik, Munique, Beck, 1979, sobretudo as pp. 180-
Frankfurt, Athenãum, 1988.
-206; id., «Die Allegorie als Paradigma einer Âsthetik der Avantgarde.
Eine semiotischen re-lecture von Walter Benjamins "Ursp rung des 20 Acerca da hermenêutica da compreensão de si, cf., entre outros,
deutschen Trauerspiels?», em id.,AsthetischeErjàhrung. Das Semiotische Alfred Lorenzer, Kritik des psychoanalystischen Symbolbegrijf, Frankfurt,
und das Perfbrmative, Tübingen- Basileia, Francke, 2001, pp. 121-37. Suhrkamp, 1970; id.,ZurBegründung einermaterialistischen Sozialisations-
theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1972.
11 lbid., pp. 263-4.
21 CL, a propósito deste processo, Erika Fischer-Lichte, Semiotik des
12 Para uma explicação deste tipo, cf Michael Stadler, Peter Kruse, «Zur Theat;"s, vol. m, DieAufführung ais Text, Tübingen, Gunter Narr, 1983,
Emergenz psyschicher Qualitãten. Das Psychophysische Problem 4.' ed., 1999, sobretudo 1.4, «Hermeneutik des theatralischen Tex-
im Lichte der Selbstorganisationstheorie », em Wolfgang Krohn, tes », pp. 54-68, e 2., «Verfahren der Bedeutungs- und Sinnkonsti-
Günter Küppers, Emergenz:Die Entstehunq von Ordnunq, Organisation tution», pp. 69-118.
und Bedeutunq, Frankfurt, Suhrkamp, 1992, pp. 134- 60.
22 CL Daniel L. Schacter, WirsindErrinerung. GedãchtnisundPersonlichkeit,
13 Esta problemática tem consequências importantes ao nível da teoria Reinbek, Rowohlt Verlag, 1999. Schacter distingue três tipos de
da ciência, as quais devem ser tidas em consideração no que se ref~re memória: «A memória episódica, que permite evocar determinados
às possibilidades e aos métodos de análise do espectáculo. episódios do nosso passado; a memória semântica, a vasta rede de
386 ERIKA FISCHER-L1CHTE
pelo seu esforço. O mais tardar, a partir do culto do génio, à mesma obra ao longo da vida, descobrir-lhe sempre novas
por volta de finais do século XVIII, o artista surge como um características e encontrar sempre novas possibilidades de
sujeito autónomo, que cria uma obra autónoma, na qual relacionar os seus elementos entre si ou com estruturas
está encerrada a verdade. A assunção de que a obra de arte extratextuais, gerando assim sentidos da obra sempre
é o esconderijo da verdade e que, segundo a formulação novos. Em suma, ele pode manter com ela um diálogo que
de Heidegger, «a arte é o pôr-se-em-obra da verdade», dura a vida toda.
é também válida para toda a estética filosófica, de Hegel a Perante a longa e gloriosa história do conceito de obra
Adorno, com a assinalável excepção de Nietzsche. Ela carac- de arte, pode até parecer um sacrilégio que Behrens, Fuchs
teriza a concepção da obra clássica de Gadamer, embora a e Herrmann o tenham implicitamente renegado e, em vez
hermenêutica por ele elaborada não admita, de facto, tal dele, tenham postulado o conceito de acontecimento (se
-
assunçao. bem que, como vimos, não se tenham desligado coerente-
Apesar de uma tal exigência de verdade da obra ter sido mente do conceito de obra de arte no que se refere ao teatro
não apenas relativizada, mas categoricamente rejeitada e, pelo contrário, até se tenham servido dele). Um sacrilé-
pela estética estruturalista e pela estética da recepção, isso gio na medida em que continuaram a defender, sem admi-
não afectou a sua posição central no âmbito da reflexão tirem compromissos, que o teatro era uma obra de arte,
estética. Com efeito, mesmo atribuindo-se ao receptor o embora negando a persistência, nele, de dois dos pressu-
papel de cc-criador, ou sendo ele concebido como aquele postos a satisfazer para que seja possível falar de obra e,
que produz os significados, o sentido da obra, durante o por conseguinte, de arte: a existência do artefacto, que eles
processo de recepção, o ponto de referência para a reflexão substituíram por processos transitórios, únicos e irrepetÍ-
estética continua a ser a obra sobre a qual o receptor exerce veis, e a separação fundamental entre produtor e receptor,
a sua actividade hermenêutica. Ela é criada como uma que relativizaram, se não aboliram mesmo. No entanto,
«coisa», cujo ser-coisa nunca desaparece; existe como é nestes pressupostos, precisamente, que se fundam a esté-
artefacto que, independentemente da presença do receptor tica da obra, a estética da produção e a estética da recepção,
ou de variações que possam ocorrer ao longo do tempo, deixando'assim de fazer sentido que se aplicassem os seus
permanece igual a si próprio: as cores desvanecem-se, os parâmetros e categorias a um espectáculo. Assim, o carác-
recortes de jornal amarelecem, e assim por diante. Seja ter artístico do espectáculo e a sua esteticidade específica
uma escultura, um monumento ou uma partitura, o arte- deveriam resultar, exclusivamente, do seu carácter de
•
facto é acessível aos receptores em tempos diferentes e, no acontecimento.
caso do texto e da partitura, em espaços também diferen- Aquilo que certos teóricos postularam individualmente
tes. O receptor, em princípio, pode voltar continuamente na viragem do século XIX para o século xx, visando fundar
390 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 391
.1\. . .
um novo teatro e uma nova ciencia, constituí, para os espec- De modo a descrevê-la e a defini-la com maior rigor,
táculos teatrais e de performance art, a partir dos anos 60 do em conformidade com o procedimento por mim adoptado
século passado, uma conditio sine qua non evidente. Um dos até agora, abster-rne-ei de tomar como ponto partida con-
factores que incentivam o nascimento da arte- acção e da ceitos de acontecimento já dados - por exemplo, os de
performance art é, precisamente, a firme determinação de Heidegger, de Derrida ou de Lyotard -, para aplicá-los
artistas isolados de deixarem de produzir obras de arte, que depois aos espectáculos em análise. Em vez disso, referir-
o mesmo é dizer artefactos comercializáveis ou mercado- -me-ei aos resultados da análise do carácter mediático, da
rias, e, em vez deles, produzirem acontecimentos fugazes, materialidade e da semioticidade efectuada até agora e,
que ninguém possa depois comprar e fechar num cofre ou com base neles, procurarei captar a esteticidade específica
pendurar na sala. A fugacidade do acontecimento, o seu dos espectáculos a partir dos anos sessenta. Destacaram-
carácter único e irrepetível, tornou-se um factor central. -se sobretudo três aspectos, que têm uma ligação directa
Como ficou demonstrado na análise do carácter com o carácter de acontecimento dos espectáculos e que
mediático, da materialidade e da semioticidade dos espec- são, sem dúvida, importantes para a sua esteticidade espe-
táculos, estes caracterizam-se, nos mínimos pormenores, cífica. São eles: a autopoiese do circuito retroactivo, que gera
pelo seu carácter de acontecimento. No circuito de retroac- o espectáculo, e o fenómeno da emergência; uma desesta-
ção autopoiético, acontece não apenas o espectáculo no seu bilização, se não mesmo uma eliminação de oposições; e,
todo, mas também cada um dos seus elementos. A mate- por fim, as situações de liminaridade, que transformam os
rialidade do espectáculo não é dada como artefacto, ou num participantes do espectáculo. Estou certa de que uma obser-
artefacto, mas, na medida em que a corporeidade, a espa- vação atenta destes três aspectos contribuirá para uma maior
cialidade e a sonoridade se produzem performativamente, clareza acerca da esteticidade específica do espectáculo.
acontece. A presença dos actores, o êxtase das coisas, as •
atmosferas e a circulação de energias acontecem, do mesmo
modo que acontecem os sentidos produzidos como per- 1. AUTOPOIESE
, E EMERGÊNCIA
cepções ou como emoções, representações e pensamentos.
Por seu lado, as acções dos espectadores acontecem como Como vimos no terceiro capítulo, a autopoiese do circuito
resposta ao que é percepcionado, assim como as dos acto- retroactivo, gerada pelo comportamento de actores e espec-
-
res acontecem como reacçao aos comportamentos e as
,
tadores, dá origem ao espectáculo. A ideia de que o artista é
acções dos espectadores que eles percepcionam, vêem, um sujeito autónomo, criador de uma obra que cada recep-
ouvem, sentem. A esteticidade dos espectáculos é consti- tor interpreta diferentemente mas não pode modificar na
tuída, inegavelmente, pelo seu carácter de acontecimento. sua materialidade, deixou manifestamente de se aplicar,
392 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 393
ainda que uma grande parte do público não tenha cons- Quer isto dizer que, na situação por eles criada, os artistas
ciência disso. se expunham não apenas a si próprios, mas também os
Uma tal conclusão suscita uma série de perguntas. outros. Pedia-se, pois, aos espectadores que deixassem de
,
E legítimo pôr actores e espectadores ao mesmo nível? se considerar simples observadores, cujo comportamento
O papel dos artistas que projectam a encenação não deverá não influenciava em nada o desenrolar do espectáculo;
antes ser entendido como uma predeterminação do desen- deste modo, eles tornavam-se conscientes da sua respon-
rolar do espectáculo, à qual os espectadores poderão, na sabilidade em relação a esse desenrolar. Um comporta-
melhor das hipóteses, reagir? Como conciliar a mencio- mento que tivesse influenciado negativamente o coiote ou
nada despedida do artista, enquanto sujeito autónomo, as serpentes poderia ter tido consequências catastróficas
com as queixas, insistentemente repetidas desde finais dos para ola artista. Consentir ao grupo de passeantes seleccio-
anos 60 do século xx, contra a arbitrariedade dos directores nados que prosseguissem não teria sido menos irrespon-
teatrais e o seu comportamento omnipotente? sável. No que respeita aos animais, o seu comportamento
Para responder a estas perguntas, começarei, antes de permanecia imprevisível. Todos os restantes participan-
mais, por fazer a distinção entre os espectáculos de perjor- tes - antes de mais, os artistas - tinham de adaptar-se à
mance art, habitualmente iniciados por um único artista, e situação.
os espectáculos teatrais, realizados mediante a colaboração Se é certo que aquela situação particular é criada pelo
• A •
de director, cenógrafo, compositor, actores e músicos, entre artista, deve ser ele a suportar eventuais consequenctas
outros. gravosas, decorrentes de um comportamento errado por
Na sua performance e com ela, o performer cria uma parte dos espectadores. Mas estes casos ilustram clara-
. -- ..... , .
situação em que se expoe a SI propno e os outros - os espec- mente como ola artista está dependente dos outros, como
tadores. Quando Beuys vive com um coiote durante três elelela confiam no sentido de responsabilidade dos espec-
dias, e Abramovié se expõe à violência de estranhos, ou tadores por uma situação que, não tendo sido criada por
deixa que pítones se lhe enrolem no corpo, ambos desistem , por os envolver em virtude da sua participação
eles , acaba
voluntariamente de controlar o espectáculo, pelo menos no espectáculo.
na medida do possível. Nestes casos, os dois artistas cria- Pode, pois, argumentar-se que são estas performances,
vam situações cujas características tornavam difícil, se não precisamente, aquelas em que se articula uma nova com-
impossível, uma qualquer previsão acerca do se seguiria. preensão de si próprios por parte dos artistas. Estes deixam
Com efeito, o desenrolar do espectáculo não dependia ape- de ser criadores, à semelhança de Deus, de uma obra e, tal
nas doIa artista, mas também, e de modo determinante, de como o responsável por uma experiência laboratorial, esta-
outros, principalmente espectadores, mas também animais. belecem uma situação experimental específica, à qual se
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 395
394 ERIKA FISCHER-lICHTE
, .
expõem e expõem OS outros. O artista apenas pode reservar- o próprio espectáculo. Enquanto os actores, os tecmcos
-se o direito de pôr fim ao espectáculo no momento esco- e os assistentes de cena fazem permanentemente parte
lhido por si, sem contudo estar seguro de que ele de facto da autopoiese do circuito retroactivo - e podem fazê-lo de
acabe, como ficou demonstrado no caso de Schlingensief. maneira não discutida nem planeada antes -, o director,
Deve fazer-se a distinção entre o intenso trabalho de que não participa no espectáculo como actor nem como
preparação de um espectáculo teatral, que em regra se pro- espectador, não pode. O que significa que ele não está em
longa por semanas ou até meses, e o espectáculo propria- condições de influenciar o acontecimento do espectáculo
mente dito. O trabalho de preparação desempenha um teatral enquanto ele se realiza.
importante papel no desenrolar do espectáculo, na medida Podemos comparar os espectáculos teatrais a que fiz,
em que é ele que determina os elementos teatrais que referência com as performances, porquanto, neste caso, e
devem entrar em cena, de que forma, em que momento e em a encenação que cria uma situação particular, em que todos
que ponto do espaço cénico, estabelecendo linhas orien- os participantes são expostos e com a qual estes podem
tadores precisas para a percepção dos espectadores durante lidar de diferentes maneiras. Também neste caso, trata-se
o espectáculo. Se bem que a decisão final caiba ao director, de dispositivos experimentais. às quais se pode reagir sem-
ele não pode ser comparado com o autor de uma poesia, pre de maneira diferente, sejam elas as linhas orientado~as
que cria a sua obra autonomamente. Pelo contrário, no tra- para a participação dos espectadores de Schechner, a dis-
balho global de preparação da encenação e no decorrer dos posição espacial do Frankfurter Depot projectada por
ensaios, participam outros artistas e também, em parte, Schleef ou a utilização da tecnologia vídeo em Castorf.
técnicos e artesãos, que desenvolvem ideias e apresentam Ao chamarem a atenção, a partir dos anos 60 . do século
,
propostas.' Contudo, em geral, para a autopoiese do circuito passado, para a autopoiese do circuito retroacnvo. atraves
retroactivo, só é relevante o que se manifesta dur~nte o da inversão de papéis, da construção de comunidades e de
espectáculo, independentemente do que havia sido deba- outras estratégias, os espectáculos chamavam também a
tido, estabelecido e planificado. . atenção para o facto de, no seu seio, se estar a articular uma
•
Como o director, regra geral, não participa no espectá- nova imagem do artista - se não mesmo uma nova imagem
culo' ao contrário do que acontece com actores, técnicos do homem e da sociedade -, ainda que subsista a dúvida
ou assistentes de cena, ele apenas pode influenciar o cir- de que essa imagem tenha chegado à sociedade em geral.
cuito de retroacção autopoiético enquanto espectador. Pode, O efeito do circuito de retroacção autopoiético nega a ideia
com base na experiência como espectador e no final do de sujeito autónomo, partindo do princípio de que o a~sta
espectáculo, proceder a alterações e introduzir novos objec- e todos os participantes são sujeitos capazes de determmar
tivos para o espectáculo seguinte, mas não pode controlar os outros e de se deixarem determinar por eles; ele contraria,
396 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 397
pois, a ideia de um sujeito que, graças ao seu livre-arbítrio, acontecimentos imprevistos que ocorram no palco, como
está à altura de soberanamente decidir o que fazer e aquilo um tropeção repentino, a queda de um projector, a falta
a que renunciar, e de traçar livremente o que quer ser, inde- de um adereço ou o comportamento dos animais que to-
pendentemente dos outros e das «directivas para a acção» mam parte no espectáculo - o macaco que morde Kathrin
vindas do exterior. O efeito do circuito de retroacção auto- Angerer, o cavalo que defeca em cena, um cão que, ladrando
poiético, contudo, opõe-se com igual veemência à ideia de furiosamente, salta subitamente para o espaço reservado
um ser humano exclusivamente determinado por forças aos espectadores. Do ponto de vista dos espectadores, em
externas e ao qual, em virtude dessa determinação externa, contrapartida, todos os elementos que entram na auto-
não possa ser imputada nenhuma responsabilidade pelas poiese do circuito retroactivo são fenómenos emergentes.
suas acções. A autopoiese do circuito retroactivo percep- Nos espectáculos em causa, o aparecimento e o desapare-
cionada, que emerge com manifesta evidência em todas as cimento de fenómenos emergentes não segue uma lógica
formas de inversão de papéis entre actores e espectadores, inteligível da acção ou psicológica, de algum modo previ-
abre a todos os participantes a possibilidade de, durante o sível, nem outros nexos causais, dependendo, pelo contrá-
espectáculo, se experienciarem como sujeitos capazes de rio, de padrões rítmicos, time brackets, operações aleatórias,
co-determinar as acções e os comportamentos dos outros e por aí fora; daí que tais fenómenos sejam tão pouco pre-
e, simultaneamente, de se submeter, no que respeita às
J. _ ,
visíveis para os espectadores, o mesmo se passando com
propnas acçoes e ao proprio comportamento, à cc-deter- o comportamento dos outros espectadores ou as próprias
minação dos outros - sujeitos não autónomos nem exter- reacções. Para eles, tudo tinha de parecer emergente.
namente determinados, responsáveis pelas situações que Esta circunstância tem profundas consequências no
- . .
nao cnaram e nas quais, no entanto, se encontram envolvi- modo como um espectáculo é percepcionado. Enquanto for
dos. Esta experiência representa uma componente e'ssen- possível contar com a lógica de um determinado - even-
cial da experiência estética, possibilitada pela autopoiese tualmente conhecido - evoluir da acção e da psicologia das
do circuito retroactivo. personagens, a percepção tem critérios precisos de selecção.
. Este circuito
.,. funciona como um sistema que se orga- Ou seja, a atenção do espectador não se distribui igual-
mza a SI propno e no qual devem ser permanentemente mente por tudo o que está presente em cena, dirigindo-se
integrados os novos elementos emergentes, que não foram apenas para aquilo que o ajuda a acompanhar o desenrolar
planeados nem previstos. No que se refere aos actores, tais da acção e a perceber o comportamento das personagens.
elementos incluem, sobretudo, o comportamento e as Quando estes critérios de selecção falham, no espectá-
acções dos espectadores, as suas próprias reacções ou as culo como no dia-a-dia, a economia da atenção" - tão dis-
dos colegas relativamente àqueles, mas também, em parte, cutida hoje em dia - tem de organizar- se segundo critérios
398 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 399
diferentes. Deles fazem parte, por exemplo, o grau de inten- a produção de atmosferas densas. Tal significa que a expe-
sidade com que o fenómeno se manifesta, o desvio, a sur- riência intensa que elas possibilitam não é apenas pontual,
presa, a conspicuidade) pelo contrário, pode persistir durante todo o espectáculo.
Se aplicarmos estes critérios aos espectáculos até agora Exemplo disso é a encenação de Schleef para Sportstück:
,
analisados, enfrentaremos grandes dificuldades, por- o espectáculo iniciava-se com uma cena coral de 45 minu-
quanto os fenómenos que neles emergem correspondem, tos, de grande intensidade; esta não só se mantinha, como
em regra, a pelo menos um desses critérios, ou até a mais do ia aumentando ao longo de todo o espectáculo. Por conse-
que um. Tomemos, por exemplo, o grau de intensidade com guinte, é possível deduzir, tendo em conta apenas o critério
que o fenómeno se manifesta: ele abrange a presença do da intensidade, que os espectáculos exigem dos especta-
actor, o êxtase das coisas e também as atmosferas, e nestas dores um elevado nível de atenção por um longo período
participam, em larga medida, a presença e o êxtase. O con- de tempo, se não mesmo durante toda a sua duração.
ceito forte de presença pressupõe que o aparecimento Também o critério do desvio/da surpresa é aplicado
físico do actor domine o espaço, obrigando os espectadores quase permanentemente. Uma vez que os espectáculos
a concentrarem nele a sua atenção. O actor assim presente organizam as suas sequências temporais com time brackets
liberta, em si e nos espectadores, energias que circulam no ou ritmo, o desvio é um princípio dominante. A cada time
espaço e são sentidas fisicamente por todos. No êxtase das brachet, o princípio e o fim da actividade podem ocorrer de
coisas, estas não se dão como objectos contidos em si pró- modo diferente. O ritmo é, pois, definido pelo desvio, por-
•
pnos, mas mostrando-se e manifestando-se como presen- quanto nenhuma repetição repete exactamente da mesma
tes de um modo tão intenso que atraem sobre si a atenção maneira aquilo a que se refere, como demonstraram, por
do espectador. Tal acontece, sobretudo, em relação às cha- exemplo, os nô-walks em Knee plays de Wilson, as diversas
•
madas qualidades secundárias das coisas: cores, cheiros; cenas corais de Murx ou, ainda, a subida de meio-tom em
sons. Como quer a presença do actor quer o êxtase das coi- cada nova estrofe de Danke. É característico dos espectá-
sas contribuem para criar as atmosferas, estas manifestam- culos em , discussão chamar a atenção do espectador para
-se ao sujeito percipiente com particular intensidade: os menores desvios, «imperceptíveis», que, em regra, pas-
abraçam-no, imergem-no, penetrando no seu corpo sob a sariam despercebidos no dia-a-dia. Aqui, eles tornam-se
forma de luzes, sons e odores. o centro da atenção. Os espectáculos adquirem o seu ritmo
Como já tive ocasião de mostrar, a partir dos anos 60 com a introdução de qualquer coisa que, pouco depois, rea-
do século xx, desenvolveu-se, no teatro e na peifórmance parece numa variação, e assim por diante. Ou seja, o espec-
art, uma série de procedimentos visando permitir que seja tador que está à espera de uma variação e fica continuamente
captada a presença do actor e o êxtase das coisas, bem como alerta para não a deixar escapar acaba, contudo, por se
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 401
400 ERIKA FISCHER-L1CHTE
, . -
atenção do espectador para a sua propna percepçao, por
deixar surpreender pela variação de que não está à espera.
O princípio do desvio/da surpresa é válido para todo o exemplo, com as repetidas mudanças das ordens da pre-
espectáculo e representa um desafio especial à atenção do sença e da representação e vice-versa. A arte do espectá-
espectador. culo consiste, manifestamente, em tornar conspícuo tudo
Utilizemos agora o último dos critérios da atenção, o da o que nele aparece. Uma vez que tudo o que acontece no
conspicuidade. Por um lado, nestes espectáculos, obser- espectáculo é imprevisível, isso manifesta-se como sur-
vamos uma série de fenómenos que saltariam à vista mesmo preendente e, simultaneamente, conspícuo.
no dia-a-dia, como, por exemplo, as performances em que Nos espectáculos até agora analisados, os três critérios
os artistas se automutilam. Estas performances baseiam- de captação da atenção são satisfeitos de modo não apenas
-se, precisamente, no facto de os artistas executarem acções pontual, mas também continuado. Tal significa que está
que provocariam grande sensação não apenas no dia-a- fora de questão falar de uma economia da atenção, no sen-
-dia, mas também no âmbito das realizações que procuram tido próprio da palavra economia. Pelo contrário, estamos
prender a atenção dos espectadores com factos sensacio- perante um excesso de atenção, um «desperdício» de tão
,
nalistas. E inegável que acções deste tipo, em performances precioso recurso. Isto é válido para os actores, em relação
e em espectáculos teatrais, são especialmente conspícuas. aos quais tomamos como garantido um nível permanen-
Como já vimos, também os animais que participam estão temente elevado de atenção, dirigida quer ao seu próprio
sempre conspicuamente presentes, quer se trate de ani- agir, quer às acções e comportamentos dos outros, actores
mais selvagens, como serpentes, coiotes, macacos, corujas- e espectadores. Mas é igualmente válido para os especta-
-africanas ou tarântulas - e que no zoo também chamam dores, cuja atenção é solicitada por tudo o que acontece em
a atenção -, quer se trate de animais domésticos, como palco. Refira-se, a este propósito, que cada espectador tem
cães, gatos, cavalos, canários ou peixes, que quase passam uma economia da atenção própria, que não lhe permite
despercebidos no dia-a-dia. Por outro lado, os espectá- estar permanentemente alerta. Manter a atenção num
culos conseguem sempre tomar conspícuo o que é comum. nível elevado só é possível de modo intermitente. Actores
.
e espectadores dirigem a sua atenção quer para o seu pro-
'
Quando o actor surge ao espectador como embodied mind,
ou quando um normalíssimo fogão a carvão requer toda a prio corpo, quer para o dos outros.
sua atenção, ou o som de uma melodia em voga o absorve Se não nos ativermos apenas ao que Seitter define como
por completo, ocorre uma situação a que Arthur Danto atenção - «uma inclinação especialmente forte da cons-
chamou transfiguração do banal: o que é banal aparece ciência para um qualquer objecto ou conteúdo>" - e, em vez
transfigurado e toma-se particularmente conspícuo. Sem disso, com Csórdas, partirmos do pressuposto de que a
esquecer que os espectáculos chamam insistentemente a atenção engloba «uma entrega mais física e multi-sensorial
403
402 ERIKA FISCHER-LICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO
•
do que tudo quanto normalmente se depreende das defi- humanos que parecem irradiar uma força que se transmite
nições psicológicas da atenção», de que «os estados somá- aos outros; quando esses homens ou mulheres ocupam um
ticos da atenção são meios culturalmente elaborados de cargo político importante ou detêm uma posição social
estar presente no e com o próprio corpo em ambientes que notória, referimo-nos a eles como personalidades caris-
incluem a presença corpórea de outros»>, então o sentido máticas, embora não consigamos explicar o seu carisma.
mais profundo de «desperdício» torna-se claro. O estado de Para dar um último exemplo: também podemos experien-
nível da atenção elevado e permanente permite ao sujeito ciar o êxtase das coisas no nosso dia-a-dia, inclusive com
percipiente experienciar-se como embodied mind de um aquelas que aparentemente são mais insignificantes e que,
modo especial - o que representa, sem dúvida, mais uma por uma qualquer razão, adquirem, para quem as percep-
componente essencial da experiência estética na esfera do ciona, um valor especial, uma aura.
espectáculo. Embora se trate de experiências que cada um de nós já
O estado de um nível de atenção permanentemente viveu, pelo menos, uma vez na vida, elas estão largamente
elevado, que pode ser induzido, ou pelo menos estimu- excluídas do discurso público. Na medida em que é deter-
lado, pela emergência dos fenómenos, representa, de facto, minado por teorias iluministas, este discurso não as pode
um estado inusitado na vida do dia-a-dia. Pelo contrário, acolher no seu seio, tem de as combater onde quer que elas
as experiências que a emergência e a autopoiese do circuito se articulem, declarando que assentam sobre falsas pre-
retroactivo proporcionam correspondem, não raro, a expe- missas: o ser humano, enquanto sujeito autónomo, é senhor
riências da nossa vida quotidiana que nada têm de invul- do seu destino, e está à altura de determinar racional-
gar. A impossibilidade de dominar por completo processos mente os processos em que está envolvido e de concretizar
e acontecimentos em que estamos envolvidos, poder os seus planos em conformidade. Quando um fenómeno
determiná-los até um certo ponto, mas, ao mesmo tempo, novo emerge, no cosmos ou na cultura, há sempre uma
sermos determinados por eles, constitui uma experiência explicação plausível para ele. Quando algo de novo surge
comum, se não trivial. No nosso dia-a-dia, em contextos no mundo, tal resulta, por norma, de uma acção planeada.
políticos e sociais, e no curso da história, somos perma- Uma vez que todos os seres humanos são iguais, não pode
nentemente confrontados com o facto de aquilo que acon- haver personalidades carismáticas; dão essa impressão
, .
tece não ter sido planeado nem estar previsto, e com a porque, à semelhança dos actores, conhecem tecmcas e
possibilidade de os acontecimentos terem tomado outro práticas - truques - que lhes permitem parecer que têm
rumo. A razão por que tomaram esse rumo permanece, em carisma. No que respeita à aura das coisas, ela é produto
última análise, inexplicável, ainda que nunca deixemos de um temperamento doentio. As coisas estão ao serviço de
de a procurar. Também no dia-a-dia, encontramos seres determinados fins e, consoante os satisfaçam ou não, assim
ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 405
404 ERIKA FISCHER-L1CHTE
serão estimadas ou destruídas. Para lá desta sua função, fazendo-os surgir como carismáticos ou, no caso das coisas,
, .
contudo, não têm qualquer influência sobre as pessoas. como auràticas.
O discurso iluminista não é o único a negar tais expe- O pensamento pós-moderno, por seu lado, denuncia
riências; o discurso pós-moderno também, embora a partir as experiências do dia-a-dia como ilusões e elucubrações,
de uma perspectiva diferente. Uma vez que o sujeito deve nas quais se repercutem, por um lado, conceitos iluminis-
ser pensado como totalmente descentralizado, a ideia de tas, como o do sujeito autónomo, e, por outro, a ideia
que possa co-determinar alguma coisa surge como mera romântica de um mundo encantado.
ilusão. Em vez disso, ele surge como objecto da acção de Ambos os discursos desvalorizam as experiências quo-
entidades abstractas, como a linguagem ou inscrições cul- tidianas. A partir dos anos 60 do século xx, o teatro e a
turais: não é o sujeito que fala, que utiliza a linguagem; ele performance art, pelo contrário, procuram reabilitá-las, se
é falado pela linguagem. A dialéctica entre «ser corpo» e não mesmo enobrecê-las, por meio da emergência e da
«ter corpo» é uma elucubração. O corpo deve, sim, ser pen- autopoiese do circuito retroactivo. O estado inusitado de
sado como superfície passiva para as inscrições culturais. permanente intensificação da atenção transforma-a em
Dado que tudo é arbitrário e cada experiência representa, componente da experiência estética, dando também lugar,
em última análise, uma construção subjectiva, não se pode deste modo, a uma transfiguração do banal.
excluir que haja sujeitos que constroem a experiência de
carisma noutros seres humanos, e a de aura nas coisas.
O discurso iluminista denuncia estas experiências 2. O DESMORONAR DAS OPOSiÇÕES
como resíduos, como vestígios de um pensamento pré-
-iluminista, considerando-as características de um pensa- Recordemos mais uma vez: depois de ter introduzido o
•
menta religioso ou, até, mágico - porventura considerado par conceptual de constatativo e performativo, e demons-
natural para uma mentalidade religiosa ou mesmo mágica. trado, por via dele, que o conceito de performativo - ao
Com efeito, esta visão pré-iluminista pressupõe forças e contrário do conceito de constatativo - se refere a actos da
poderes misteriosos, não domináveis, sobre os quais o fala auto-referenciais e constitutivos da realidade, Austin
homem não tem qualquer influência, vendo-se por isso deixou fracassar a distinção que estabelecera. O seu pro-
constrangido a deixar- se determinar por eles, sempre que cedimento alimenta a suspeita de que o performativo seja
façam parte de processos em que esteja envolvido. Além capaz de accionar uma dinâmica que conduz ao desmoro-
disso, estas forças misteriosas seriam a causa da repentina nar das dicotomias conceptuais e que, como escreve Sybille
emergência de fenómenos novos e inexplicáveis, conse- Krâmer, «leva à desestabilização do esquema conceptual
guindo agir, através de seres humanos ou de coisas, e dicotómico>".
•
Tal suspeita foi -se adensando com a minha análise dos percepção. A obra de arte distingue-se, contudo, de todas
vár~os espectáculos. Como vimos, os pares conceptuais as outras coisas produzidas pelo homem por não ter sido
entendidos como dicotómicos e centrais para a nossa cul- criada para o uso diário. Enquanto eu vivo numa casa, me
tura - como arte e realidade, sujeito e objecto, corpo e espí- sento à mesa e posso comer uma sopa com uma colher,
rito, animal e ser humano, significante e significado _ as obras de arte nunca são utilizadas no dia- a-dia com uma
perdem o seu carácter unívoco, são accionados e começam função precisa, a não ser com fins decorativos. Se, em épo-
a oscilar, quando não implodem. Em que medida pode esta cas anteriores e noutras culturas, se destinavam a ser usadas
dinâmica ser constitutiva do carácter de acontecimento dos em contextos de culto religioso e político-representativos,
espectáculos? Como se repercute ela na sua esteticidade? com a proclamação da autonomia da arte, elas foram-se
Desde a Antiguidade que a distinção entre arte e rea- libertando progressivamente dos seus contextos munda-
lidade tem sido uma peça fundamental para a teoria da nos, se bem que tenham permanecido sujeitas a vínculos
arte, que, na sua longa história, nunca desistiu completa- económicos. Os artistas, à semelhança dos produtores de
mente de conceber e definir a obra de arte a partir desta porcelana ou de máquinas a vapor, são pagos pelo seu tra-
diferença. Ela é a base de qualquer juízo de valor e é tida balho. Até ao final do século XVIII, o valor da mercadoria-
em linha de conta, predefinida e utilizada como critério de -obra de arte era definido, antes de mais, pelo cliente; a partir
avaliação da esteticidade de uma obra. A diferença funda- do século XIX, contudo, esta função transferiu-se para o
mental entre arte e realidade é considerada, sem qualquer mercado.
dúvida, uma premissa, um dado de facto, quer a arte seja O reconhecimento público generalizado da separação
entendida como mimese de uma dada realidade, quer, pelo entre obra de arte e realidade protegeu os artistas de per-
contrário, seja considerada criação de uma realidade autó- seguições, em virtude de obras malvistas, poupando tam-
noma, suigeneris, só possível de encontrar como tal na obra bém as próprias obras à intervenção da censura. Com
de arte. Trata-se de um facto tanto mais surpreendente efeito, autonomia não significava apenas que a obra de arte,
quanto a obra de arte representa uma «coisa» entre as coi- liberta de todos os seus contextos de utilização quotidiana,
•
sas - ainda que de tipo muito particular -, pertencendo, transformada num precioso recipiente da verdade e trans-
como tal, à chamada realidade objectiva, como todos os figurada numa espécie de Graal, fosse elevada à condição de
outros objectos produzidos pelo homem - por exemplo, objecto de veneração quase cultual, e que à arte fosse sendo
uma colher, uma mesa ou uma casa. Isto é válido indepen- reconhecido, cada vez mais, o status de sucedâneo religioso,
dentemente do facto de se considerar a realidade como adorado em templos próprios. Autonomia significava,
conjunto daquilo que é dado, como aquilo que eu percep- -• também e sobretudo, que a verdade da obra não reside
'I'
ciono ou, ainda, como uma construção subjectiva da minha nunca no que ela diz ou apresenta e está, sim, escondida,
•
408 ERIKA FISCHER-UCHTE ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 409
por assim dizer, nas suas profundezas. As obras de arte não atravessa o palco, tal significa, antes de mais, a travessia do
significam nunca o que mostram ou dizem. Elas não podem palco pelo actor e constitui a realidade do seu movimento.
nunca ser confundidas com declarações políticas ou morais, O actor não faz de conta que atravessa o palco, atravessa-o
como blasfémia ou pornografia, mesmo quando, à primeira de facto, e com isto modifica a realidade. Esta circunstância
vista, possam dar a impressão de incitar à subversão ou à representa a primeira premissa para que o movimento
revolução, exaltar o homicídio, o adultério, o roubo, blasfe- possa ser interpretado de outro modo, como, por exemplo,
mar contra Deus, ou quando mostrem seres humanos nus. estar a dirigir-se para o quarto de Gertrude. Como observa
Com efeito, elas significam algo profundamente diferente, Max Herrmann, e bem, nos espectáculos teatrais estamos
porquanto existe um fosso intransponível a separá-las da sempre a lidar com «seres humanos reais» em «espaços
realidade em que o incitamento à rebelião, o crime, a blas- reais». Quando se movem no espaço e através dele, os
fémia e a pornografia estão na ordem do dia. A autonomia actores estão a mudar, de facto, a posição do seu corpo no
da arte pressupõe uma diferença fundamental entre arte e espaço, bem como o espaço performativo. Da produção
realidade e, simultaneamente, postula-a e afirma-a. performativa da materialidade do espectáculo resulta que
Desde os anos 60 do século passado, os espectáculos tudo aquilo que nele se manifesta acontece realmente,
teatrais e de perjàrmance art contradizem, decidida e vee- mesmo que seja possível atribuir-lhe outros sentidos.
mentemente, tal afirmação. Não se lhes aplica - ou só se A oposição entre arte e realidade gerou uma série de
lhes aplica em parte - o postulado de que não significam outros pares conceptuais dicotómicos, como o estético/
o que mostram e o que dizem, porque neles se executam social, o estético/político e o estético/ético. Como pude-
permanentemente acções auto-referenciais e constitutivas mos observar, a partir dos anos 60, estas oposições, nos
da realidade. Quando Marina Abramovié partiu o copo de espectáculos, desmoronam-se. A inversão de papéis e a
vinho e a mão começou a sangrar, o seu acto significa que construção de comunidades tomam visível o facto de, nos
o copo foi partido e que a mão começou a sangrar. Esta espectáculos, estar sempre em causa, também, uma situa-
acção constituiu a realidade de um copo partido e de uma ção social e uma forma de sociabilização. Tudo quanto,
mão ensanguentada. Sob este ponto de vista, não é possível num espectáculo, acontece entre actores e espectadores, ou
identificar no espectáculo nenhuma diferença decisiva entre espectadores, acontece também como um processo
entre arte e realidade. Tudo o que nele foi feito e apresen- social específico, constitui uma realidade social específica.
tado significou o que fora feito e apresentado, constituindo Tais processos tomam-se depois políticos, quando entra em
a correspondente realidade. jogo a negociação das posições e a afirmação das relações
Todos os espectáculos são auto-referenciais e constitu- de poder. Estamos perante processos políticos sempre que
tivos da realidade. Quando um actor que interpreta Hamlet um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, procura impor
410 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 411
aos outros certas posições, comportamentos, acções e, em para os problemas apresentados em cena - «Vá, honorável
última análise, determinadas convicções. Em Commune, público, pensai vós mesmos num finall/ Tem de haver um
sempre que James Griffith convidava os espectadores a inte- melhor, tem de haver, tem de haver! »8 -, ambos conside-
grarem o círculo para representarem os habitantes de My Lai, ravam o teatro um espaço desprovido de qualquer pressão
tratava-se de um acto político. Sempre que Schlingensief, sobre o espectador que o obrigasse a agir. O espectador não
em Chance zooo, ameaçava expulsar do espectáculo alguns devia intervir no espectáculo, e sim nas relações políticas
espectadores, em virtude de um certo tipo de comporta- e sociais fora dele. O espectáculo devia apetrechá-lo com
mento, tratava-se de um acto político. Quando, em Two imagens que o tirassem da sua letargia, o instruíssem e o
Undiscovered Amerindians..., os non-believers troçavam dos levassem a uma reflexão sobre a situação social e política,
believers, procurando fazer compreender o absurdo das suas reflexão a partir da qual devia intervir na realidade polí-
ideias, tratava-se de um acto político. Tal tornava-se ainda tica e social. Também neste caso se concebia o estético
mais evidente quando parecia que alguma coisa saía fora de como opondo-se ao ético. No que se refere a muitos espec-
controlo ou corria mal, porque alguns participantes já não táculos teatrais e de perjormance art a partir dos anos 60 do
estavam no togo: por exemplo, quando se recusavam a século xx, também esta oposição deixa de poder manter-
entrar no círculo, ou se solidarizavam com os espectadores -se. O espectador é canalizado para uma situação em que
ameaçados por Schlingensief ou ofereciam resistência aos se vê forçado a tomar decisões e a agir. Também ele, e não
non-believers, Nestes como noutros espectáculos, a oposição apenas o artista, passa a ser responsável pela situação criada.
entre o estético e o político não podia manter-se. A situa- Dir-se-ia que, nos últimos anos, as relações como que
ção criada pelos artistas, à qual se tinham exposto e tinham sofreram uma reviravolta. Enquanto na «vida real» os seres
exposto outros, revelava-se, simultaneamente, estética e humanos se comportam cada vez mais como espectadores
política. Separar o estético do político, ou mesmo opor um quando testemunham actos de violência, não se sentindo
ao outro, afigurava-se impossível. obrigados a intervir nem a agir - mesmo quando tal signi-
Se bem que Schiller, no famoso discurso proferido na fica tão-só pegar no telemóvel para chamar a polícia -, os
Kurfürstliche Deutsche Gesellschaft de Mannheim, tivesse artistas, durante os espectáculos, empenham-se em
definido o teatro como uma instituição moral, porque o envolvê-los em situações nas quais deixa de lhes ser per-
palco «é, mais do que qualquer outro instituto público [... ], mitido observarem e comportarem-se exclusivamente
uma escola de sabedoria prática, um guia para a vida em como espectadores, sentindo-se chamados a intervir e a
sociedade e uma chave infalível para os mais secretos recan- agir. Impondo a si mesmos situações extremas, estando
tos da alma humanae", e se bem que Brecht tivesse sugerido prontos a transpor a fronteira entre a vida e a morte, os
ao público que fosse ele próprio a encontrar uma solução artistas envolvem os espectadores e fazem-nos sentir-se,
41 2 ER IK A FI SC HE R- L1 CH TE
ES TÉ TI CA DO PE RF OR MA Tl VO 41 3
imprimindo uma nova viragem ao seu desenrolar, deter- afectados pelo que é percepcionado; somos sujeitos e
minando o que deve manifestar-se aos outros e, ao mesmo objectos ao mesmo tempo.
tempo, sendo determinados pelas viragens que os outros Os espectáculos procedem de um modo ainda mais
imprimem. Esta dinâmica torna-se evidente sobretudo radical em relação à dicotomia espírito/corpo: não só deses-
na inversão de papéis e em todas as formas de participa- tabilizam a oposição binária, como a eliminam sem con-
ção do espectador, e é válida também para a sua percep- templações. Os espectáculos surgem mediante processos
ção. Tudo o que se manifesta torna-se objecto de percepção de encarnação que geram quer o corpo de quem age, quer
por parte do espectador; sob este ponto de vista, ele é significados. Defini a encarnação - por contraposição com
sujeito da percepção e objecto percepcionado. O que é per- a utilização convencional do termo, consagrada a partir de
cepcionado, contudo, afecta o sujeito percipiente de varia- finais do século XVIII - não como expressão de algo pre-
díssimas maneiras: atravessa os limites do seu corpo, viamente dado, como sugere a teoria dos dois mundos, mas
penetrando-lhe no interior em forma de cheiro, de luz ou como um processo criativo. Nesta acepção, não é possível
de som. O espectador respira o cheiro; queira ou não, a voz pensar-se o espírito como o oposto do corpo, ou sequer em
dos outros, dos actores ou dos cantores, ressoa-lhe na caixa contraposição a ele. O espírito encontra no corpo o seu
torácica. Entre o sujeito percipiente e o objecto percepcio- fundamento existencial, é produzido por ele e manifesta-se
nado, ocorre uma troca. Tal significa que a diferença entre como embodied mind. Tal surge com clareza, sobretudo, no
sujeito e objecto não surge aqui como a oposição funda- fenómeno da presença: o par dicotómico espírito/corpo é
mental identificada e apontada pela filosofia e pela história rejeitado como instrumento absolutamente desadequado
das ideias durante muito tempo. O circuito de retroacção para descrever o ser humano.
autopoiético, do mesmo modo que a percepção, oscila Para Schiller, o homem comum podia ser descrito, de
continuamente entre a posição de sujeito e a de objecto, facto, através da oposição entre espírito e corpo, natureza
deslizando permanentemente entre as duas. «Sujeito» e e razão. Ao homem comum, ele contrapunha o homem
, .
«objecto» deixam de constituir uma oposição, definindo ideal, no qual essas duas forças eternamente contranas se
tão-só estados ou posições diferentes do percipiente e encontrariam, reconciliadas e em equilíbrio. No mundo
do percepcionado, que podem ser assumidos um após o histórico, tal só é possível através da arte, onde a pulsão
outro e, em parte, também simultaneamente. O mesmo material e a pulsão formal se fundem na pulsão do jogo.
acontece no dia-a-dia, embora só nos tornemos conscientes No famoso e frequentemente citado excerto de Briife über
disso através da atenção que prestamos aos espectáculos. die âsthetische Erziehung des Menschen 9 , ele enfatiza o facto de
No acto de percepção, experienciamo-nos activamente esta oposição apenas poder ser superada por meio da arte:
como sujeitos percipientes e, em simultâneo, somos «com a beleza, o homem deve apenas jogar, e deve jogar
416 ERIKA FISCHER-L1CHTE
I ESTÉTICA DO PERFORMATlVO 417
I
I
apenas com aheleza. Pois [... ] o homem joga apenas quan- , Como vimos ao longo deste ensaio, há muitos outros
do é homem na plena acepção da palavra, e é plenamente I• pares conceptuais dicotómicos que os espectáculos der-
homem apenas quando joga». Por este motivo, a arte assume rubam. Debruçar-rne-ei tão-só sobre um deles, o par sig-
um valor fundamental: só ela é capaz de pôr o ser huma- nificante/significado. Os espectáculos lidam com ele de
no, pelo menos transitoriamente, num estado em que o duas maneiras radicalmente diferentes: por um lado,
«conceito» de ser humano é plenamente satisfeito - um negam a existência de qualquer diferença ou oposição entre
estado estético. Aqui, o corpo e o espírito, a natureza sen- significante e significado, evocando o fenómeno da auto-
sorial do homem e a sua razão, o instinto formal e o mate- -referencialidade, que figura neles de modo especialmente
rial reconciliam-se. evidente. O que é percepcionado significa exactamente o que
Este breve excursus mostra que o conceito de ser humano se manifesta no acto da percepção. Por outro, aparente-
como embodied mind não coincide com a reconciliação dos mente, a oposição reforça-se - como acontece com as asso-
opostos de que fala Schiller, nem com o conceito hegeliano ciações - quando a um significante se atribuem múltiplos
de superação. O conceito de encarnação, pelo contrário, significados, e cada significante pode significar qualquer
estabelece que o espírito é sempre dado no corpo humano objecto e qualquer outro significante. Não esqueçamos,
enquanto organismo vivo. O embodied mind não descreve um contudo, que este «reforçar» da oposição entre significante
ideal longínquo, mas sim o homem comum. Assim, é o ser e significado se baseia na sua negação. Também neste caso,
humano comum que aparece nos espectáculos, se bem que não se aplica um «ou, ou», mas um «tanto quanto». Preci-
transfigurado graças ao fenómeno da presença. É a presen- samente porque o fenómeno percepcionado significa o que
ça que dá visibilidade ao «comum» e o leva à consciência. se manifesta no acto da percepção, ele pode também sig-
O conceito de ser humano como embodiedmind também nificar qualquer outra coisa. Com isto, nega-se quer a opo-
relativiza uma outra oposição: a que existe entre o hómem sição entre significante e significado, quer toda e qualquer
e o animal. Quando Beuys estabelece um diálogo energé- possibilidade de atribuir, de modo biunívoco e estável, um
tico com o coiote, e Abramovié comunica com as serpentes significado a um significante.
•
seguindo as suas trajectórias energéticas, ambos pres- Os espectáculos que abandonam estes pares concep-
supõem que quer o homem, quer o animal são fontes de tuais dicotómicos, que minam as oposições, constituem
energia, o que transforma a oposição de princípio entre uma realidade em que uma coisa pode simultaneamente
eles, na melhor das hipóteses, numa diferenciação gradual. manifestar-se como outra, uma realidade instável, fluida,
Decerto que existem diferenças, mas não há uma oposição ambígua, transitória, que elimina fronteiras. A realidade
,
de princípio. E também isto que os espectáculos fazem do espectáculo não é alcançável com uma elaboração de
notar, e com grande força. , . conceitos dicotómica. Na medida em que os espectáculos
418 ERIKA FISCHER-lICHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 419
entram em linha de conta com vivências do dia-a-dia e possível descrever a experiência estética proporcionada
dirigem a atenção para o que é banal, transfigurando-o, pelos espectáculos, antes de mais, como experiência limi-
levanta-se a questão de saber se, rejeitando as oposições nar, capaz de transformar quem a vive. Este tipo de expe-
binárias como inadequadas para os descreverem, estas riência estética assume uma importância primordial para
serão instrumentos heurísticos apropriados para descrever a estética do performativo, porquanto se liga directamente
a realidade extra-estética." Ao desestabilizarem a estru- ao carácter de acontecimento do espectáculo.
tura das elaborações conceptuais dicotómicas, com as O termo liminaridade não provém da teoria da arte nem
quais estamos habituados a descrever e a compreender a da estética filosófica, mas do estudo dos rituais. Foi cunhado
realidade, os espectáculos alimentam a suspeita de que tais por Victor Turner - com quem Schechner desenvolveu uma
pares conceptuais dicotómicos servem para construir uma estreita colaboração -, ao referir- se aos trabalhos de Arnold
realidade que contraria a nossa experiência quotidiana. Com van Gennep. Este, no seu estudo Lesritesde passage (1909),
efeito, eles postulam e afirmam um «ou, ou», quando um demonstrara, com base num vasto conjunto de materiais
«tanto quanto» seria muito mais apropriado. Daí que não etnológicos, como os rituais estão intimamente ligados a
se afigurem válidos como instrumento heurístico para o experiências liminares e de transição com uma elevadís-
conhecimento e a descrição da realidade, nem como normas sima carga simbólica. Os rituais de passagem dividem-se
reguladoras do nosso comportamento e do nosso agir. em três fases:
Se os espectáculos teatrais se aproximam da vida, no sentido
em que, como ela, se tornam imprevisíveis e imponderá- 1) A fase da separação, na qual o sujeito que participa
veis, então existe uma certa probabilidade de os parâmetros no ritual é retirado da sua vida quotidiana e do seu
que não lhes são aplicáveis também não o serem ao conhe- ambiente social.
cimento e à descrição da vida. . 2) A fase do limiar ou da transformação, na qual o
sujeito que participa no ritual se encontra num
estado de transição «entre» todos os campos pos-
,
3. L1MINARIDADE E TRANSFORMAÇÃO síveis, o que lhe possibilita experiências inteira-
mente novas e, em parte, perturbadoras.
Quando as oposições se desmoronam, quando um dos ter- 3) A fase da incorporação, na qual o sujeito que par-
mos pode tornar-se simultaneamente o outro, a atenção ticipa no ritual - agora já transformado - ingressa
concentra-se no momento da transição de um estado para de novo na sociedade e é aceite no seu novo esta-
o outro. Abre-se o espaço entre os opostos; o espaço limi- tuto, na sua nova identidade.
nar torna-se uma categoria privilegiada. Já vimos que é
420 ERIKA FISCHER-L1CHTE ESTÉTICA DO PERFORMATIVO 421
Segundo Van Gennep, esta estrutura é observável nas Prosseguindo e, simultaneamente, criticando a abor-
mais diversas culturas, apenas se diferenciando os conteú- dagem de Turner, Rao e Kõpping acentuam, por um lado,
dos. Victor Turner caracterizou o estado induzido na a ambiguidade dos rituais e, por outro, a sua performativi-
segunda fase como estado de liminaridade (do latim limen, dade específica, o seu carácter de espectáculo. Definem o
limiar) e definiu-o como o estado de uma existência lábil, seu carácter de acontecimento como «actos de transfor-
«um espaço intermédio entre [betwixt and between] as mação», aos quais «é atribuído o poder de transjormar, sob
posições atribuídas e distribuídas pela lei, pela tradição, todos os pontos de vista possíveis, os contextos de acção e
pelas convenções e pelo cerimoniab-". Explica Turner que a de sentido, bem como as molduras e os elementos e as pes-
fase liminar abre um espaço de experimentação e de inova- soas que as constituem, imprimindo a pessoas e símbolos
ção, na medida em que, «na liminaridade, experimentam- um novo status-». Por conseguinte, pressupõem que a fase
-se novos modos de agir, novas combinações de símbolos, liminar não só leva à transformação do status social dos
que depois são rejeitados ou aceites»". Segundo Turner, as participantes, como transforma a sua percepção da reali-
transformações a que a fase liminar conduz relacionam-se, dade, «sob todos os pontos de vista possíveis».
em regra, Com o status social de quem se submete ao ritual, Quando descrevo a experiência estética proporcionada
estendendo-se a toda a sociedade. No que respeita aos pelos espectáculos teatrais e pela performance art como
indivíduos, tal significa que os rapazes se transformam em experiência liminar, tal não significa que ponha em pé de
•
guerreiros, uma mulher e um homem solteiros em marido igualdade os espectáculos artísticos e os rituais. No entanto,
e mulher, um doente numa pessoa saudável, e assim por é difícil encontrar critérios que permitam estabelecer uma
diante. No que se refere à sociedade no seu todo, Turner distinção clara entre eles. Tudo indica, também, que o mais
define o ritual como instrumento de renovação e de esta- provável é os próprios espectáculos artísticos, como os de
belecimento de grupos enquanto comunidades. Nestecon- Abramovié, Beuys, Nitsch, Schechner ou Schleef, porem
texto, identifica sobretudo dois mecanismos em acção: em causa e tornearem continuamente distinções deste
• •
pnrneiro, os momentos de communitas criados pelo ritual, género. Tanto os espectáculos artísticos quanto os ritua-
que descreve como sentimento reforçado de pertença à listas se desenvolvem a partir de encenações cuidadas; uns
comunidade, capaz de abolir as fronteiras que separam e outros podem seguir um guião e fazer ensaios ou optar
os indivíduos uns dos outros; em segundo lugar, uma uti- pela improvisação; uns e outros conseguem constituir uma
Iização específica dos símbolos que os transforma em realidade e entreter os respectivos públicos; uns e outros
portadores de sentido densos e ambíguos, permitindo a prevêem a possibilidade de actores e espectadores inver-
actores e espectadores constituírem várias molduras terem os papéis. Além do mais, o quadro de referência geral
interpretativas. que estatui que «isto é um espectáculo teatral» ou que «isto
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é um ritual» dificilmente se aplica, porquanto, como vimos, geralmente reconhecidos. Os padrões até então vigentes
os participantes singulares - actores como espectadores deixavam de ser aceitáveis, mas não havia outros novos.
- podem torneá-lo. Todavia, persiste uma diferença. O espectador encontrava-se numa situação liminar, numa
Enquanto a experiência liminar do participante no ritual fase de liminaridade. A crise só poderia ter solução pro-
pode conduzir à transformação do seu status social, da sua curando e experimentando novos modelos de compor-
identidade reconhecida publicamente, na experiência esté- tamento - apesar do perigo iminente de um possível
tica dos espectáculos artísticos é por demais duvidoso que fracasso.
tal aconteça. Nas encenações de Schechner, Castorf e Schlingensief,
Ao longo deste meu trabalho, fui mostrando, com exem- ou na performance de Coco Fusco e Gomez-Pena, isto é, em
plos, quando e como surge um estado de liminaridade e, espectáculos que derrubavam a oposição entre estético e
com ele, a possibilidade de uma transformação para todos social, e entre estético e político, era recorrente uma situa-
os que o experienciam. É possível, a posteriori, identificar ção deste género. Enquanto o espectador de Schechner
dois factores que criam, reiteradamente, experiências limi- oscilava permanentemente entre o status de espectador e o
nares: a autopoiese e a emergência, e o desmoronar das de participante no play, o de Castorf quase nunca sabe ao
dicotomias. Estes factores possibilitam experiências que certo se age como espectador ou como actor, se acompanha
têm sempre uma dimensão liminar. o acontecimento como observador não observado ou se é
O desmoronar da oposição entre arte e realidade, em objecto da observação de outrem, se vê diante de si uma per-
especial, bem como o das oposições que daí derivam, trans- sonagem ou um actor que se separa do papel que desem-
põe os participantes para um estado de liminaridade. Isto penha e fala em nome próprio; se o ameaça e o insulta
torna-se particularmente evidente nas performances em como Frank ou como HendrikArnst, como Puntila ou como
que os artistas se automutilam. Nessas performances, todas Michael Wittenborn; se está na presença de um mundo
as normas e regras até então aceites sem discussão foram «fictício» ou se se move na «realidade», ou se é, ele pró-
anuladas, proporcionando a todos os participantes - inclu- prio, um~ personagem fictícia de um mundo fictício. Aqui,
sive aos artistas que se automutilavam - um estado de jogava-se com o espectador um jogo que o punha numa
radical «betwixt and between». Nesta situação, um compor- situação liminar, com a qual, contudo, ele podia lidar de
tamento puramente «estético» teria redundado em voyeu- maneira lúdica.
rismo e sadismo, enquanto uma reacção ética implicaria o Schlingensief faz um jogo semelhante, se bem que
risco de violar a intenção doIda artista. Tais performances muito menos lúdico, em parte até brutal. Ele retira ao espec-
mergulhavam o espectador numa crise, que ele não con- tador toda e qualquer base que lhe permita decidir, com
seguia dominar recorrendo a modelos de comportamento alguma segurança, em que tipo de cultural performance está
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a participar, qual o quadro de referência, quais as regras, as frustrados com as reacções do público, tentaram, na pro-
normas e os padrões de comportamento a que deve ater- dução de Schlingensief Bitte liebt Õsterreich', libertá-lo desse
-se. O espectador é lançado num estado da mais profunda estado, distribuindo pelos participantes folhetos em que se
insegurança e é obrigado a encontrar, por si, uma maneira lia: «Isto é arte!» Devia traçar-se uma fronteira clara, que
de sair dele. Seja como for, Schlingensiefnão age como um possibilitasse uma reacção «apropriada» e um comporta-
«xamã» bem-intencionado, capaz de o guiar, incólume, mento «estético» de não interferência. Mas qual é a reac-
através de todas as turbulências e perturbações, e de o ajudar ção «apropriada» a este tipo de acontecimentos? Trata-se
a encontrar uma orientação que lhe permita percepcionar- aqui de uma concepção experimental, destinada a realizar,
." .
-se e percepcionar o mundo de uma maneira nova. O espec- com espectadores e transeuntes, uma expenencla que se
tador tem de encontrar sozinho uma saída, mesmo quando, prende, precisamente, com a linha de demarcação entre
no decorrer do espectáculo, a sua tentativa de dominar a comportamentos esteticamente motivados e comporta-
crise leva, em última análise, ao surgimento de uma nova mentos eticamente motivados. Escusado será acrescentar
situação liminar e a uma nova crise. que Schlingensief recolheu todos os folhetos.
Uma vez que os pares conceptuais dicotómicos não ser- O estado do «betwixt and between», a vivência da
vem apenas para descrever o mundo, mas também como crise, é experienciado, antes de mais, como uma transfor-
instrumentos reguladores da nossa acção e do nosso com- mação física, como uma mudança do estado fisiológico,
portamento, a sua desestabilização, o seu desmoronar, não energético, afectivo e motor. A consciência da transforma-
significa tão-só uma desestabilização do mundo, de nós ção, por sua vez, pode ser o factor capaz de provocar um
mesmos e dos outros, mas também a destruição das regras estado liminar que, por vezes, se manifesta na forma de
e normas que norteiam o nosso comportamento. Das dico- crise. Tal acontece sobretudo quando, no acto de percepção
tomias conceptuais, podem deduzir-se diferentes quadros de um fenómeno que emerge repentinamente no espaço,
de referência, como, por exemplo: «isto é teatro/arte» ou o sujeito percipiente experimenta sensações e emoções
«esta é uma situação social/política». Estes quadros con- muito fortes, como o sentimento de compaixão, medo, hor-
têm directivas para um comportamento adequado numa ror que ;oderá ter-se apossado dos espectadores de Giulio
situação por eles abrangida. Ao fazerem colidir quadros de Cesare, ao verem corpos frágeis, condenados, ou o riso con-
referência aparentemente contrários ou simplesmente vulsivo provocado pela subida de meio-tom no início de
diferentes, os espectáculos deixam os espectadores em cada nova estrofe de Danke. Como tivemos ocasião de ver,
suspenso entre as regras, as normas e as ordens prescritas. os sentimentos intensos desencadeiam um impulso para
Alguns tomarão este estado como «não conforme» à arte. a acção, que pode desembocar numa intervenção activa,
Assim, os responsáveis pelas Wiener Festwochen de 2000, através da qual se adquire um novo status - o de agente;
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simultaneamente, põem-se e experimentam-se novas nor- o espectáculo - a separação, por parte do espectador, do
mas de comportamento. Na estética do performativo, não ambiente que lhe era familiar, bem como a sua entrada no
é possível pensar em separado a produção de emoções e a espectáculo, a transformação do cidadão comum em
indução de um estado liminar. espectador - afigura-se problemática. Esta transição é ela-
Num espectáculo, a experiência estética como expe- ramente posta em evidência, bem como a que ocorre no
riência liminar é, em última instância, reconduzida à acti- final, com a saída do espectador do espectáculo.
vidade e aos efeitos do circuito de retroacção autopoiético. Schechner, por analogia com os rituais de separação e
A situação liminar não resulta apenas da experiência de de reintegração descritos por Van Genepp, concebeu, para
não-disposicionalidade e das recíprocas e permanentes ambas as transições, uma cerimónia de ingresso especial
transições entre as posições de sujeito e de objecto. Pelo (cada espectador devia entrar sozinho no espaço teatral,
contrário, cada viragem que ela assume deve ser entendida percorrendo um corredor mal iluminado) e um ritual espe-
como uma transição e, por conseguinte, como uma situa- cífico de incorporação (a procissão colectiva pelas ruas de
ção liminar. Cada passagem, cada transposição de um Nova Iorque). Cada um dos rituais destinava-se a garantir
«limiar», cria um estado de instabilidade, do qual pode uma transição segura para fases particularmente perigo-
surgir algo imprevisível, portador quer de um risco de fra- sas: a transformação dos visitantes em participantes e a
casso, quer da possibilidade de uma transformação bem- sua incorporação na sociedade depois de transformados
-sucedida. Tudo isto é evidente nos espectáculos até agora pelas experiências vividas durante o espectáculo. Deste
analisados, porque as transições estiveram longe de se modo, todo o espectáculo se revelava, simultaneamente,
fazer de um modo suave, quase imperceptível; não raro, como uma fase liminar e uma fase de transformação.
irrompiam abruptamente, o que as acentuava ainda mais. Em Secret Service, de Ruckert, a separação da vida do dia-
Neste sentido, é possível entender e descrever o processo -a-dia e a transição para o espectáculo fazia-se mediante
do circuito de retroacção autopoiético como uma sequência a colocação de uma venda nos olhos do espectador por um
de transições com um elevado potencial para criar limina- elemento da companhia, que depois lhe pegava na mão e o
ridade ao longo do espectáculo. guiava até ao espaço onde o espectáculo se realizava, trans-
O começo e o fim do espectáculo representam um tipo pondo com ele o limiar. Na segunda parte, os espectado-
especial de transição, o princípio e a interrupção do circuito res despiam-se - um procedimento frequente nos rituais.
de retroacção autopoiético. Como os espectáculos consi- O despir-se e o voltar a vestir-se simbolizam a separação
derados raramente se efectuavam em teatros tradicionais do ambiente quotidiano e a reintegração nele. A passagem
- e, mesmo quando tal acontecia, não seguiam as regras e do espectáculo para o dia-a-dia fazia-se ao contrário: o par-
convenções vigentes -, a passagem da vida quotidiana para ticipante eralevado para fora do espectáculo, era-lhe retirada
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a venda e voltava a vestir-se. Também neste caso se dava embora, entabulando conversa sobre o espectáculo, para
grande importância a que a transição fosse segura. Com logo depois se despedirem, de modo absolutamente formal
efeito, tudo o que acontecia durante o espectáculo tinha por - com um beija-mão, no caso de algumas espectadoras-,
objectivo proporcionar ao espectador, transformado em o público não tinha a certeza de que o espectáculo já tivesse
participante «cego», experiências fora do comum e, de facto, terminado; este, aliás, prosseguiu assim até o último espec-
extremamente desconcertantes. Uma vez mais, as transi- tador abandonar a sala. Tudo o que se passava desde que o
ções, claramente executadas e apresentadas como trans- espectador entrava nojOyer até que ali regressava, era, pois,
posição, marcavam o próprio espectáculo como uma fase vivido como uma fase de liminaridade e de transformação.
liminar e de transformação. Em Imponderabilia, Abramovié e Ulay foram particular-
Em Trainspottinq, Castorfprocedeu de modo completa- mente radicais. Toda a performance consistia em os espec-
mente diferente. Um trabalhador do teatro recebia o espec- tadores terem de passar por entre os corpos nus dos dois
tador no jOyer e pedia-lhe que esperasse em frente de uma performers para transporem - um por um - a porta de
determinada porta. Mal se formava um grupo, os especta- acesso ao museu. Aceder ao limiar, transpô-lo e sair, vol-
dores eram conduzidos por corredores labirínticos, escadas tando a transpô-lo: toda a performance era constituída pela
acima e abaixo, até ao espaço onde o espectáculo se reali- transição. Será certamente difícil encontrar exemplo mais
zava' ao qual acediam, um a um, por uma porta estreita. expressivo do que está em jogo nos espectáculos: a transi-
Depois de os seus olhos se habituarem à luz frouxa da sala ção, através de uma fase de liminaridade e de transformação.
e de identificarem a estrutura onde deveriam sentar-se, no É, pois, a autopoiese do circuito retroactivo que, ao
fundo de cena, iam ocupar os seus lugares. Durante um mesmo tempo que cria o espectáculo, produz liminaridade.
lapso de tempo relativamente longo, os que já estavam sen- Esta está intimamente ligada à autopoiese e tem origem
•
tados e observavam os recém-chegados, que atravessavam no seu carácter de acontecimento. O circuito autopoiético
o palco aos tropeções, não podiam ter a certeza se a tran- de retroacção põe o espectador numa situação que o alheia
sição se completara, isto é, se o espectáculo já começara, do seu ,dia-a-dia, das regras e normas nele vigentes -
ou se ainda se encontravam no limiar. A incerteza que em mesmo que certas experiências vividas durante o espectá-
geral caracteriza os momentos de transição tornava-se, culo coincidam com certas experiências desse dia-a-dia>,
assim, maior. A transição era percepcionada como uma sem lhe indicar um caminho que lhe permita encontrar
fase de desorientação, como uma situação verdadeira- uma nova orientação. Para o espectador, esta condição
mente liminar. O mesmo acontecia com a transição de pode proporcionar prazer ou ser torturante.
saída do espectáculo. Como os actores continuavam a ir ao As transformações que ocorrem no seu íntimo são, na
palco e tentavam entreter os que faziam menção de ir-se maioria, transitórias, podendo manter-se durante todo o
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