2011 - USP - Ling Teórica - LA - EA de Línguas
2011 - USP - Ling Teórica - LA - EA de Línguas
2011 - USP - Ling Teórica - LA - EA de Línguas
CUNHA, José Carlos Chaves da; CUNHA, Myriam Crestian. Os campos da linguística
teórica, da linguística aplicada e do ensino-aprendizagem de línguas no Brasil.
DAHLET, Véronique Braun (coord.). Ciências da linguagem e didática das línguas.
São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2011. p. 223-242. ISBN 9788577321650.
Os campos da Linguística teórica, da Linguística Aplicada e do
Ensino/Aprendizagem de Línguas/Culturas no Brasil1
1
Este texto retoma ideias já publicadas nos artigos de Cunha M. (2003) e de Cunha J. (2008), além de
apresentar reflexões mais recentes de ambos os autores.
O título deste trabalho traz duas problemáticas embutidas. A primeira – que não
vamos explorar aqui – concerne à discussão, já antiga, mas recorrente, da existência de
uma ou mais linguísticas, de uma ou mais didáticas das línguas. A outra – que vai
constituir o objeto de nossa reflexão – é relativa às relações entre a Linguística (teórica
e aplicada) e o campo do ensino/aprendizagem de línguas/culturas que, no Brasil, é
quase que unanimemente abarcado pela Linguística Aplicada (doravante LA).
Apresentamos inicialmente os campos da Linguística teórica e da LA, expomos mais
detalhadamente nossa visão do campo do Ensino/Aprendizagem de Línguas/Culturas
(doravante EALC) e nos posicionamos quanto às relações entre esses diferentes campos.
os níveis estudados (palavra, frase, texto, enunciado, discurso), as áreas (fonética, fonologia,
morfologia, sintaxe, semântica, pragmática), as perspectivas de abordagem (linguística
diacrônica, sincrônica, comparada), assim como os pontos de encontro com outras áreas do
conhecimento (sociologia, psicologia, etnologia, informática...)2.
2
A tradução das citações do francês é nossa.
Na década seguinte, na área do ensino-aprendizagem de LE, tanto os objetos de
estudo quanto as disciplinas com as quais a área dialogava se diversificaram e o campo
de pesquisa se ampliou, favorecendo a reivindicação de autonomia em relação à
Linguística, bem como a transformação da LA em um campo interdisciplinar. O
processo, todavia, deu-se de forma muito mais lenta para o ensino-aprendizagem da
língua materna (doravante LM), até então não incluído no escopo da LA. Essa
constatação acabou forjando, em muitos linguistas aplicados, a convicção de que a LA
não podia mais ser concebida como "uma área de um único objeto, o ensino de língua
estrangeira" (Kleiman, 1992: 30). A percepção das limitações impostas pela focalização
na análise da linguagem também deixou claro, para esses pesquisadores, que a LA "não
pode ser compreendida como uma 'aplicação de teorias linguísticas'" (Passegi, 1998:
30). O ensino-aprendizagem de línguas (LE bem como LM) passou então a ser visto
apenas como uma das subáreas do campo aplicado.
A diversificação e a consequente ampliação desse campo aplicado levaram, a partir
dos anos 80, os linguistas aplicados a incluírem em suas preocupações todas as questões
relativas aos "problemas de uso da linguagem na sociedade", conforme expresso por
Moita Lopes (1996: 28). Desde então, essa definição do objeto de estudo da LA
permanece amplamente hegemônica no Brasil, como se percebe em diversas produções
bibliográficas. De fato, para Cavalcanti (1986: 5), a LA tem por objetivo "a
identificação, a análise de questões de uso da linguagem dentro ou fora do contexto
escolar e a sugestão de encaminhamentos para estas questões" ou, ainda, a
"identificação de questões de uso da linguagem e otimização de desempenho do
profissional, do usuário e do aprendiz" (Cavalcanti, 1986: 9). Kleiman (1998: 55)
aponta como "objeto abrangente" da LA "os problemas sociais de comunicação em
contextos específicos”. Já Signorini e Cavalcanti (1998: 7) vêem na LA um "campo de
interface não transparente e neutra entre diferentes áreas e disciplinas que se interessam
pelas questões relacionadas ao uso da linguagem". Segundo Meurer (1995: 29) a LA é
"centrada na resolução de problemas da prática do uso da linguagem" e investiga a
"construção do sentido relativamente ao uso de textos orais e escritos nas diferentes
interações sociais contemporâneas". De modo mais abrangente ainda, Crystal (apud
Cavalcanti, 1986: 9) considera que a LA tem como propósito "examinar de modo
sistemático as dificuldades encontradas pelos indivíduos no exercício de suas
profissões". A conclusão à qual chega Celani (1992: 21), retomando as palavras de
Kaplan, é a de que "não há atividade humana na qual o lingüista aplicado não tenha um
papel a desempenhar", na medida em que está "diretamente empenhado na solução de
problemas humanos que derivam dos vários usos da linguagem" (o grifo é da autora).
Essa ampliação desmedida do escopo da disciplina, que passa a abranger a quase
totalidade das atividades humanas, é reivindicada no âmbito da chamada LA crítica
(Pennycook, 2006), caracterizada por Lima (s.d.) como "uma articulação não-dogmática
de conhecimentos de diversas áreas adjacentes, sob a perspectiva crítica, para elucidar
questões no campo da aplicação do conhecimento lingüístico, sempre sob a perspectiva
da intervenção social". Nessa expansão, a LA acaba perdendo suas fronteiras e, por
conseguinte, sua natureza disciplinar, perda essa, aliás, reivindicada por Moita Lopes
(2006):
Trata-se, na verdade, de um campo muito antigo que foi tomando corpo em torno de
práticas sociais milenares (a do ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras e a do
ensino da escrita em língua materna) e se desenvolveu, ao longo dos séculos de forma
empírica, não sistematizada, independentemente tanto do que hoje se chama
Linguística, quanto da LA.
Com o advento do estruturalismo, iniciou-se um processo de disciplinarização do
EALC, à medida que os estudiosos saíram em busca de uma fundamentação científica
que seria, supunha-se, a chave para resolver os problemas das práticas de sala de aula.
Instalou-se um longo período sob a tutela da Linguística teórica e da própria LA, no
qual tem-se assistido a ‘mudanças’ periódicas e frequentes no campo do EALC,
mudanças essas geralmente ditadas pela teoria hegemônica do momento. Os mais
antigos certamente lembram-se das árvores de Chomsky, usadas para fazer análise
sintática (aplicação da teoria gerativo-transformacional), tanto em LM quanto em LE.
Mais recentemente, surgiram nos livros didáticos atividades que visavam levar os
alunos a encontrar nos textos modalidades de coesão (de remissão, de sequenciação...)
ou diferentes níveis de coerência (sintático, semântico, temático, estilístico, ilocucional)
em aplicação da Linguística textual como solução para os problemas da escrita (cf.
Koch, 1998: 36 e 41). Hoje, procura-se – notadamente nos livros de vulgarização teórica
e nos manuais (cf. Angelim e Silva, 2005: 168) – descrever e caracterizar gêneros
textuais, por acreditar que este conhecimento (aplicação do Sociointeracionismo) é
imprescindível ao desenvolvimento das capacidades textuais-discursivas dos alunos.
Linguistas (aplicados ou não) têm produzido uma abundante literatura de vulgarização
de teorias sobre língua/linguagem que tem sido utilizada para formar os professores e os
têm levado a repercutir essas concepções nas aulas de língua (materna ou estrangeira).
Nessas práticas, muda-se apenas de teoria de referência sem que haja clareza, por parte
dos professores, ou mesmo dos formadores, em relação ao fato de que uma coisa é usar
a teoria na formação do professor para ele compreender determinados funcionamentos e
orientar sua prática, outra, é aplicar essa teoria ao ensino de línguas ou, pior ainda,
ensiná-la pensando que se está ensinando a língua. Essas ‘mudanças’ são, na realidade,
menos frequentes do que se pensa e mais aparentes do que reais. Menos frequentes,
porque, pelo menos nos Estados do Pará e do Amapá (cf. Cunha J. 2009), ainda se
ensina mais a gramática tradicional do que a língua em uso. Mais aparentes do que
reais, porque mesmo aqueles que criticam a gramática tradicional transformam os novos
conceitos e as novas descrições produzidas pela academia em objeto de ensino, o que,
como a experiência do passado já demonstrou amplamente, tem pouquíssimas
repercussões nas competências visadas como objetivo da aprendizagem. A substituição
da teoria de referência acaba não alterando em nada a dicotomia entre teoria e prática ou
entre conhecimentos e competências.
Nesse contexto, parece-nos indispensável defender um EALC autônomo. Por um
lado, temos a convicção, apoiada em várias experiências concretas realizadas em turmas
de LM e de LE (cf. Cunha J. 2009), de que se pensarmos as questões relativas ao ensino
e à aprendizagem de línguas/culturas a partir de suas próprias problemáticas, estaremos
contribuindo para desenvolver mais e melhor esse campo, escapando dos vieses
aplicacionistas que o ameaçam constantemente. Desta forma, alcançaremos mais
efetivamente os objetivos de transformação das práticas que são os do EALC. Por outro
lado, essa autonomia não se apresenta como uma opção e sim como uma condição
decorrente das características do EALC, quais sejam:
3
Reuter (1995) lembra que a DDL contribuiu para promover objetos amplamente explorados, desde
então, em diferentes disciplinas, como a leitura, a escrita.
Gruca, 2002: 73) e o faz, segundo esses autores, apoiando-se nas tecnologias
disponíveis. Configura-se aí o nível técnico.
A tentação, para muitos, é considerar apenas essas últimas dimensões da disciplina e
fazer dela uma mera tecnologia, esquecendo que, enquanto disciplina de reflexão e
investigação, está incumbida da produção teórica oriunda de seus próprios
questionamentos.
Com efeito, é com o conjunto dos problemas de ensino-aprendizagem que são confrontados
os professores e os aprendentes em sua prática, e é o conjunto destes problemas que eles
devem necessariamente gerenciar em tempo real, contrariamente aos linguistas,
psicolinguistas e sociolinguistas, que podem perfeitamente, no que lhe diz respeito, se
especializar nos problemas de sua área limitada (e até mesmo de sua especialidade dentro
desta sua área) e tratá-los separada e sucessivamente (o grifo é do autor).
4
Na terminologia de Halté (1992: 18-19), essas problemáticas são as da "elaboração didática", da
"apropriação didática" e da "intervenção didática".
5
Tais práticas relacionam-se obviamente com as práticas investigativas de outras áreas, como também
remetem às práticas sociais de referência, particularmente prementes quando se trata de uso da
linguagem.
6
Embora desenhados com traçado contínuo, os círculos não representam um conjunto fechado de
disciplinas.
ética etc. Ele é ocupado principalmente pelas ciências da Educação e pelas ciências
políticas e filosóficas.
precisa, por definição, das ciências da linguagem, das descrições e teorizações das línguas
em presença e das constantes renovações efetuadas nesses planos; [que ele] não pode ser
7
"A transdisciplinaridade como o prefixo 'trans' indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo
entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina" (Nicolescu, 1999 –
os grifos são do autor).
reduzido à realização de gestos profissionais, ao respeito de metodologias gerais mais ou
menos esvaziadas de seus conteúdos de saberes linguísticos, à arte de dar aula (de língua).
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