GAGLIARDI, ROSA MARIA, CLARISSA. Turismo, Cidade e Patrimônio Na Contemporaneidade
GAGLIARDI, ROSA MARIA, CLARISSA. Turismo, Cidade e Patrimônio Na Contemporaneidade
GAGLIARDI, ROSA MARIA, CLARISSA. Turismo, Cidade e Patrimônio Na Contemporaneidade
Resumo | O texto busca identificar a transversalidade entre as políticas patrimoniais, urbanas e turís-
ticas no Brasil, tendo como referência a análise de programas de alcance nacional e experiências locais
de algumas cidades brasileiras que de alguma forma, embora articulem essas diferentes dimensões, evi-
denciam a dificuldade de conceber tais políticas de modo integrado, levando em conta as demandas dos
grupos envolvidos direta ou indiretamente com as operações mencionadas. Se nos anos 1930, quando
surgem as primeiras evidências de associação entre ações mercadológicas e de preservação do patrimônio,
estava em voga o projeto de construção de uma identidade nacional, hoje, o empreendimento avançou
em direção a grandes operações de mercado, introduzindo uma problemática contemporânea na conexão
turismo-cidade-patrimônio, chave a partir da qual o tema é analisado.
Abstract | The text attempts to identify the transversality between heritage, urban and tourist policies
in Brazil, based on the analysis of programs of national scope and local experiences in some of Brazilian
cities. Even when the different dimensions are coordinated, the cities demonstrate difficulties in concei-
ving such policies in an integrated manner, taking into account the demands of the groups directly or
indirectly involved with the aforementioned operations. If in the 1930s, when the first evidence of asso-
ciation between market actions and the preservation of heritage arose, the project of building a national
identity was in vogue, today the enterprise has advanced towards major market operations, introducing a
contemporary problem in the tourism-city-heritage connection, the key from which the theme is analyzed.
* Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) (2011), Turismóloga
pelo UNIBERO (1998), Master em Planejamento de Centros Históricos pela Universidade La Sapienza de Roma
(2007), Mestre em Turismo pelo UNIBERO (2003) e Mestre em Ciências Sociais pela PUC SP (2005). Professora do
Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA USP) e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia da USP (PPGMus – USP)
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Histórico e Artístico, promovida pela OEA em 1967, momento em que pela primeira vez se reconhece que os monumen-
tos constituem também recursos econômicos e devem integrar planos de desenvolvimento, pondo em produtividade uma
riqueza inexplorada e ampliando sua fruição e a fluência de visitantes. Não por acaso a reunião e tais recomendações se
dão no âmbito da América Latina, onde a ausência de recursos para a manutenção do patrimônio é mais sensível
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prevista para breve. Todos têm localização privile- obstante possamos hoje nos balizar pelas recomen-
giada e foram concebidos de modo a se tornarem dações internacionais; as cidades são únicas, cada
ícones da cidade em função dos arrojados projetos qual com uma dinâmica própria, níveis diversos de
3
arquitetônicos , a despeito de tratar-se de uma in- escala e complexidade; quanto ao turismo, varia-
vejável paisagem natural e de um disputado litoral. dos também podem ser seus enfoques, seus usos,
O reconhecimento do título de Patrimônio Mundial suas modalidades e finalidades. Não sendo ob-
como Paisagem Cultural Urbana pela UNESCO em jetivo aqui balizar conceitualmente cada um des-
20124 é ainda um ingrediente a mais no status da ses domínios, frisa-se a importância de levar-se em
cidade. conta o universo matizado no qual transcorrem as
O turismo contemporâneo evidencia essa diferentes relações aqui analisadas.
trama, sendo reproduzido a partir das singulari- Vale também frisar que quando se refere aqui
dades no campo das práticas culturais capazes de a turismo, cidade e patrimônio e como se relacio-
constituir marcos de distinção com grande poder nam, estamos a falar de pessoas, grupos e institui-
de atração (Harvey, 2005). Num cenário cada vez ções que os representam e que se articulam a par-
mais competitivo e no qual a oferta de turismo tir de certos objetivos. Desse modo, não se trata
cultural cresce rapidamente (Richards, 2009), a es- de fazer apologia ou condenar políticas turísticas,
tratégia tem sido gerar capital simbólico a partir urbanas ou patrimoniais, nem a figura dos gesto-
das histórias e tradições locais, ao mesmo tempo res públicos, agentes de mercado ou entidades da
em que se aposta em marcas culturais e referên- sociedade civil, mas busca-se analisar como expe-
5
cias de grife , não obstante a construção de ícones riências envolvendo a sinergia entre estes objetos
globais gerem ainda mais competição entre as ci- de estudo têm se manifestado no Brasil e quais são
dades. Cria-se assim, uma simbiose entre turismo- nossos desafios. Busca-se aqui identificar a trans-
cidade-patrimônio. versalidade entre as políticas patrimoniais, urba-
Contudo, ainda que essa associação estratégica nas e turísticas no país, tendo como referência a
se verifique nos diferentes cantos do mundo e mui- análise de programas de alcance nacional e expe-
tos analistas das questões urbanas se preocupem riências locais de algumas cidades brasileiras, que
em chamar a atenção para a reprodução de mo- de alguma forma, embora articulem essas diferen-
delos e para a recorrência de certos resultados, tes dimensões, evidenciam a dificuldade de conce-
cada intervenção acontece em um território car- ber tais políticas de modo integrado, levando em
regado de significado, de história, de uma cultura conta as demandas dos grupos envolvidos direta
que acaba servindo de mediação entre essas ten- ou indiretamente com as operações mencionadas.
dências globais e dinâmicas locais. Pois bem, tendo introduzido a problemática,
Ademais, o tipo de abordagem aqui proposta resta orientar o leitor quanto à estrutura adotada
para o tema implica lidar com um amplo espectro para o artigo, organizado em três tópicos. O pri-
de conceitos e definições, variações de escalas e de meiro, Políticas patrimoniais, urbanas e de tu-
tipologias de patrimônio, de cidade e de turismo. rismo: contexto brasileiro, baliza minimamente o
O conceito de patrimônio está em constante trans- leitor a respeito da cultura da participação política
formação e seus entendimentos são múltiplos, não e da representatividade das populações sobre as
3 Novos museus podem trazer mais de 1 milhão de turistas ao Rio. Disponível em http://riocomodestino.com.br,
consultado em 4 de setembro de 2016
4 “A candidatura do bem ‘Rio de Janeiro: Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar’ foi apresentada em 2009 pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sendo aprovada em 1o de Julho de 2012...”. Fonte:
http://www.rio.rj.gov.br/web/irph/sitio-unesco, consultado em 05 de setembro de 2016
5 De acordo com as pesquisas de Greg Richards, o mercado cultural está sendo dominado por marcas como Hermitage e
quais recaem os efeitos das ações em tela, tendo a ter maior participação nas políticas patrimoni-
em vista a centralidade destes aspectos nas proble- ais, especialmente no que se refere aos processos
máticas levantadas a longo do texto. Em turismo- de registro do patrimônio imaterial. No campo do
cidade-patrimônio: ações articuladoras, aborda- patrimônio material, as políticas de reabilitação ur-
se como políticas patrimoniais tem se confundido bana que emergiram no país a partir dos anos 90
com interesses do mercado de turismo, subver- do século passado ensejaram articulação não só en-
tendo a lógica de seleção de bens a serem preser- tre políticas de turismo, urbanas e de patrimônio,
vados (Leite, 2004) e de certa forma esvaziando o como também a parceria entre diferentes sujeitos,
patrimônio de seu sentido histórico-cultural, além grupos e instituições na sua concepção e gestão,
de expor as contradições da globalização no terri- ainda que seja muito questionada a eficácia de tais
tório no qual se dão essas conexões. No terceiro projetos para o desenvolvimento local, bem como
e último tópico operando com a seletividade e a a forma como cada ator vem sendo inserido e ob-
racionalidade do espaço, problematiza-se os efei- tendo benefícios oriundos dessas práticas.
tos de certas ações promovidas pelo mercado de No campo das políticas urbanas, a mesma
turismo ao apropriar-se do patrimônio, tanto sobre Constituição de 1988 tenta responder às deman-
os habitantes quanto sobre os visitantes. Reflexões das dos movimentos pela reforma urbana, ainda
finais sintetizam as questões analisadas. que, também aqui, tenha se passado mais de uma
década para que o Estatuto da Cidade, em 2001,
regulamentasse os instrumentos que irão efetiva-
mente ampliar as experiências participativas de
2. Políticas de turismo, urbanas e patrimoni- planejamento urbano. Contudo, um novo para-
ais: contexto brasileiro digma de planejamento e gestão das cidades passa
a orientar ações para torná-las mais competiti-
O reconhecimento institucional da plurali- vas aos investimentos estrangeiros, utilizam mar-
dade da cultura brasileira por meio das políti- cas identitárias, articulam recursos públicos e pri-
cas patrimoniais no Brasil é relativamente recente, vados e tem como sustentação o consenso entre os
associando-se aos avanços trazidos pela Constitui- diferentes atores urbanos envolvidos no processo.
ção de 1988, ainda que ações mais sistemáticas O chamado planejamento estratégico ou “empre-
nesse sentido só tenham vindo a ocorrer mais de endedorismo urbano”, como define David Harvey
uma década depois. A seleção de um padrão de (1994), tem em Barcelona sua experiência mais
arte e arquitetura como símbolo único da identi- emblemática e modelar e chega ao Brasil nos anos
dade nacional quando dos primeiros tombamentos 1990, com várias intervenções aí inspiradas.
no país trouxe algumas implicações na forma como Após anos de intervenções pontuais do Es-
muitas cidades brasileiras se reconhecem ou não tado em ações de regulamentação, financiamentos
como portadoras de história até hoje, além de defi- e subsídios para alguns ramos da atividade turís-
nir critérios de seleção e agentes imbuídos de legiti- tica, é também somente a partir dos anos 1990
midade para selecionar o que deveria figurar como que se iniciam esforços mais ordenados no sentido
patrimônio oficial e quem participaria deste pro- de se construir políticas nacionais de turismo para
cesso (Gagliardi, 2011, 2015). Por muito tempo qualificar a atividade e os destinos a partir de pro-
alijada das decisões a respeito do que, para quem cessos mais participativos. Inicialmente através de
e de que forma preservar, nas últimas décadas as um programa que buscava instrumentalizar e dar
comunidades produtoras de cultura e detentoras mais autonomia aos municípios brasileiros a pen-
do saber a respeito de sua reprodução, passaram sarem seu plano de desenvolvimento turístico nos
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anos 1990, passou-se nos anos 2000 a uma política 3. Turismo-cidade-patrimônio: ações articu-
de regionalização com vistas à distribuição mais ladoras
equilibrada dos fluxos turísticos no país, contando
com a criação de fóruns regionais que colaboras- Todas as regiões brasileiras têm vivenciado in-
sem para uma gestão mais descentralizada6 . Ao tervenções associando estratégias de marketing ur-
longo desse período, o PRODETUR – Programa bano, refuncionalização do patrimônio e mercado
de Desenvolvimento Turístico também criado nos turístico e que vieram à tona no referido contexto.
anos 1990 – voltou-se para a melhoria da infraes- Contudo, a gênese das práticas nas quais o tu-
trutura e a recuperação do patrimônio histórico. rismo aparece como aporte para a manutenção do
Agiu em sinergia com alguns projetos de reabi- patrimônio cultural no Brasil remonta o Programa
litação de áreas históricas com grande potencial de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH).
turístico, tendo grande impacto no incremento de Implementado no início da década de 1970 pelo
turistas no país, dobrando, por exemplo, o afluxo Miniplan – Ministério do Planejamento e Coorde-
de turistas no Nordeste do país entre 1995 e 2001. nação Geral - visava recuperar as cidades históri-
Coriolano relata que no início dos anos 1990 esta cas da região Nordeste do Brasil para fins turísticos
região vivia um crescimento do fluxo turístico de através da restauração dos monumentos tombados
4% e após a institucionalização do PRODETUR, e seu uso econômico, mirando na geração de renda
por volta de 1997, passa-se a 12% (BID apud Co- para dar sustentação à sua conservação7 . A trans-
riolano, 2006, p. 128). O Programa foi estendido ferência do Programa para o IPHAN - Instituto do
para outras regiões do Brasil e se realiza com recur- Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – signifi-
sos do Banco Interamericano de Desenvolvimento cou algumas mudanças, sobretudo relacionadas à
(BID), contrapartidas locais e estaduais, além de ampliação do conceito de patrimônio cultural e de
participação privada. certa forma à tentativa de se construir um con-
Diante da multissetorialidade que caracteriza a senso em torno dos benefícios do turismo para o
atividade turística, este recente acúmulo de expe- patrimônio, redundando em relativa ingerência dos
riência no setor não tem sido suficiente para arti- órgãos relacionados à gestão do turismo na defi-
cular satisfatoriamente sociedade civil, mercado e nição de investimentos voltados à preservação de
administração pública na construção do interesse monumentos e sítios. O Programa foi desenvolvido
público, com políticas realmente integradas que le- entre 1973 e 1983 conjugando ações do IPHAN,
vem em conta o turismo como oportunidade de de- Embratur e Sudene8 e teve como foco inicial cen-
senvolvimento local, tampouco tem elevado o sta- tros históricos de cidades nordestinas com maior
tus das populações locais a protagonistas desses capacidade de atração, a partir de investimentos
processos, pari passu às demais áreas aqui referi- na preservação de monumentos e infraestrutura tu-
das, uma vez que as políticas setoriais se espelham rística, subordinando assim, a recuperação do pa-
no contexto sociopolítico dos quais são parte. trimônio às possibilidades de desenvolvimento do
turismo (Aguiar, 2016).
6 Os principais programas aos quais me refiro são o PNMT – Programa Nacional de Municipalização do Turismo, desenvol-
vido e coordenado pela EMBRATUR de 1994 e 2002 e principal programa de turismo do governo de Fernando Henrique
Cardoso e o Programa Nacional de Regionalização do Turismo, central no Plano Nacional de Turismo a partir de 2003,
primeira gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
7 Programa de Cidades Históricas (PCH), disponível em portal.iphan.gov.br, consultado em 4 de setembro de 2016.
8 A SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - foi criada em 1959 para auxiliar no desenvolvimento
da região Nordeste e extinta em 2001. A EMBRATUR foi criada em 1966 com funções de empresa estatal responsável
pelo desenvolvimento, normalização e regulamentação do turismo no país. Em 2003, com a criação do Ministério do
Turismo, passou a ser responsável apenas pela promoção, marketing e apoio à comercialização dos destinos, serviços e
produtos turísticos brasileiros no mercado internacional
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Figura 1 | Destaque para a cidade de Salvador sobre mapa do Brasil. Fonte do mapa: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), disponível em http://7a12.ibge.gov.br/vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/divisao-territorial.html
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Figuras 2 | Ladeira do Pelourinho nos anos 1950. Figuras 3 | Pelourinho antes da reforma.
Autor da foto não identificado Autor da foto não identificado
Tem então início em 1991 o Programa de Re- etapa agregam-se recursos do governo federal e do
cuperação do Centro Histórico de Salvador, que BID, através do Programa Monumenta em 1999,
se mostraria um sucesso do ponto de vista turís- significando, inclusive um importante ponto de in-
tico, já que, conjuntamente com outras estratégias flexão, quando é implantado o Programa Habita-
para fortalecer o turismo no estado da Bahia, ele- cional do Centro Histórico, uma vez que as etapas
vou o número de turistas na cidade de cerca de anteriores que produziram um enclave comercial
1,14 milhão em 1991 (dos quais 10% estrangei- e turístico no Pelourinho não haviam sido capa-
ros) para 2.28 milhões em 2004 (dos quais 19% zes de “vencer a dinâmica real da área e muito
9
estrangeiros) . A requalificação da área esteve as- menos seus problemas estruturais, colocados em
sociada à “construção da imagem do governo an- compasso de espera” (Santa’anna, 2003, p. 49).
corada na valorização da identidade cultural e das As muitas críticas em torno dessa experiência en-
tradições da Bahia” e à retomada do crescimento volvem a falta de participação popular, a remoção
do turismo no estado, para os quais colaborava a da população local para que o centro histórico se
renovação de Salvador, com novos produtos turís- tornasse uma zona exclusiva de compras, lazer e
ticos baseados na cultura capazes de agregar valor cultura e o entendimento do patrimônio exclusiva-
ao “produto Bahia” e elevar sua competitividade mente na chave mercantil em detrimento de seu
nacional e internacional (Sant’anna, 2003, p. 46). sentido simbólico10 (figuras 4 e 5). De qualquer
Nas seis etapas iniciais do Programa os recursos modo, esta experiência consubstancia candentes
utilizados eram oriundos quase exclusivamente do questões ainda em pauta a respeito de práticas
Tesouro Estadual, enquanto que a partir da sétima deste gênero, além de ter sido exemplar para ou-
tras, mais ou menos pautadas pelos mesmos prin- presentes no território têm dado um desfecho di-
11
cípios , embora nem todas com os mesmos re- verso aos projetos.
sultados, já que em alguns casos as forças sociais
Perpassa boa parte da problemática, o con- (Gagliardi & Carvalho, 2015) para a classificação
fronto de interesses globais com especificidades das áreas metropolitanas. O bom posicionamento
locais. Na corrida em busca de inserção no mer- no ranking de cidades no plano internacional é
cado do turismo internacional, muitas cidades bra- parte da lição de casa das cidades que buscam
sileiras têm convivido com a incômoda permanên- atrair investimentos, de modo que antes mesmo de
cia de uma série de problemas socioeconômicos amadurecer políticas culturais ou de esporte, por
característicos na nossa condição histórica e que exemplo, aposta-se na captação de eventos como
12
contrastam com essa projeção global . Entre os Copa e Olimpíada e vale-se da cultura como estra-
indicadores do Global Cities Index, por exemplo, tégia de renovação urbana e projeção no circuito
destaca-se o item “experiência cultural”, dentro do de lazer internacional. Tais estratégias contras-
qual medem-se diversas atrações, incluindo o nú- tam com as precárias condições sob as quais vive
mero de grandes eventos esportivos, quantidade boa parte da população local, sem acesso à cul-
de museus, locais para espetáculos de arte, rede tura, educação ou moradia digna. A cidade de
gastronômica e número de turistas internacionais13 São Paulo é emblemática desse movimento.
12 Aeste respeito, ver, entre outros, Carvalho (2000), Koulioumba (2003) e Ferreira (2007).
13 Paraa lista completa dos critérios, ver http://www.atkearney.com/gbpc/global-cities-index/full-report/-/
asset_publisher/yAl1OgZpc1DO/content/2012-global-cities-index/10192
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Figura 6 | Organização cronológica das ações mencionadas e que articularam políticas de turismo, urbanas e de patrimônio.
Elaboração própria
4. Operando com a seletividade e a racionali- volvidos ao longo dos diferentes momentos históri-
dade do espaço cos na construção social dos lugares e dos acervos
culturais, renovamos as possibilidade de constru-
O turismo, como se verifica, esteve a serviço ção de narrativas plurais e de interpretação do pa-
de uma política urbano-patrimonial muitas vezes trimônio, seja ele material ou imaterial. Teremos
seletiva e excludente, vocacionando como destinos sempre uma possibilidade de compreender todos os
turísticos históricos ora aquelas cidades já eleitas segmentos sociais que concorrem para a atribuição
para representar a “nação brasileira” ora os cen- de diferentes sentidos aos objetos, às memórias,
tros urbanos capazes de capitanear investimentos. às manifestações culturais, aos monumentos cons-
A prática mercadológica de formatar produtos a truídos pelo homem ou pela natureza. Contudo,
partir do patrimônio institucionalmente reconhe- não raro nos deparamos com uma leitura única do
cido e sobre o qual é possível gerar renda, em ge- patrimônio a partir de guias, intérpretes, roteiros,
ral apoiando-se na história oficial como narrativa seleção de atrativos, quando a história não aparece
única sobre os lugares, não aproveita oportunida- apenas como um adorno que emoldura os espaços
des de diversificar vivências, promover interpreta- de consumo e contemplação acrítica da paisagem.
ções plurais dos destinos e explorar o potencial crí- O patrimônio aí é esvaziado de sentido, apropriado
tico inerente ao turismo. Embora em alguma me- pelo mercado e pelo visitante como fetiche da visu-
dida essa seletividade venha sendo superada em alidade (Ferrara, 2002). Essa apropriação parcial
escala local, ainda há, em certas comunidades, di- das capacidades presentes tanto na cultura quanto
ficuldade de se reconhecerem como portadoras de no turismo pode ser percebida em vários exemplos
algo de valor, como parte de uma história relevante de uso do patrimônio histórico para além dos já
(Gagliardi, 2011). expostos.
A lógica de reprodução do turismo exclusiva- Um exemplo emblemático desta problemática
mente como negócio apenas atrela a cultura às que merece reflexão é o caso das fazendas do pe-
estratégias de mercado, abrindo mão das possibi- ríodo cafeeiro localizadas no Vale do Rio Paraíba,
lidades de interpretação das localidades visitadas. entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro
Se considerarmos a diversidade de personagens en- (figura 7).
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Figura 7 | Destaque para a região do Vale do Paraíba sobre mapa do Brasil. Fonte do mapa: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), disponível em
http://7a12.ibge.gov.br/vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/divisao-territorial.html
A região e especialmente suas fazendas têm acerca da escravidão entre o grande público” (Reis,
grande valor no que se refere ao imaginário es- 2014, p. 8). Contudo, há uma certa hegemonia da
cravista, já que o cultivo do café no século XIX elite cafeeira nas narrativas sobre a história local
baseou-se no sistema escravocrata, com enorme que é reforçada pelo turismo. Algumas proprie-
concentração de negros. Estas estruturas arqui- dades valem-se daquilo que exerce fascínio sobre
tetônicas vêm sendo adaptadas para uso turístico o imaginário do visitante para construir seus pro-
a partir da conversão das casas de fazenda e ho- gramas turísticos, sem muitas vezes atentar para
téis, por meio da oferta de visitas guiadas e/ou o caráter científico ou historiográfico das informa-
encenações que buscam ambientar o turista no sé- ções reproduzidas, o que poderia qualificar muito
culo XIX. Esta é uma atividade econômica muito esse tipo de experiência. (Gagliardi, 2011; Reis,
bem-vinda, uma vez que vem se mostrando op- 2014). A crítica não invalida o recurso da drama-
ção de emprego e renda baseada na manutenção tização para o incremento no número de visitantes,
do patrimônio cultural, ao mesmo tempo em que a exemplo das mais de 53 mil pessoas que visita-
guarda uma dimensão política, já que constitui ram em 2015 o espetáculo Som e Luz e o Sarau
recurso para reinterpretações do passado, colabo- Imperial, promovidos pelo Setor de Educação do
rando para a “formação de uma cultura histórica Museu Imperial14 , contudo é da maior importân-
14 Museu Imperial tem recorde de visitação. Portal Brasil, 05/01/2016. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/>,
acessado em 25 de agosto de 2016
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cia que não se ignore certas passagens de nossa turísticos, míopes com relação ao sentimento que
história, como denuncia a recente reportagem in- a contemplação da ruína, do monumento, do pa-
titulada “Turistas podem ser escravocratas por um trimônio arquitetônico pode despertar quanto mais
15
dia em fazenda ‘sem racismo’ ” , ao discorrer so- profunda é a sua capacidade de sensibilizá-lo, de
bre a naturalização do racismo e da escravidão em despertá-lo para a história. Nesse contexto, perce-
ex-fazendas cafeeiras do Rio de Janeiro. bemos a educação patrimonial como recurso for-
Quando esse tipo de operação em que o mativo ainda distante das políticas de turismo, não
turismo se apropria de determinadas narrativas obstante seja fundamental para a qualificação dos
ocorre numa comunidade apossada de seu pa- destinos, dos agentes do desenvolvimento turístico
trimônio e consciente de seu lugar na construção e dos viajantes.
social de suas cidades, talvez emerja alguma cri- Assim, a produção de espaços que habituam o
ticidade e resistência na forma como se difunde turista a esperar sem surpresa ou comoção por cer-
o turismo no destino. Por outro lado, quando se tos tipos de cidade, ao invés de torná-lo um crítico
trata de localidades cuja população não se reco- do lugar, insere-se no que Milton Santos classifica
nhece como portadora de algo de valor, que não se como “produção de uma racionalidade do espaço”
apodera de seu acervo cultural como parte de sua e “um espaço tenderá tanto mais a se tornar um
trajetória, nem se posiciona como sujeito da cons- espaço racional quanto mais alto for nele o nível
trução social do lugar, qualquer agente pode fazer de artifício” (Santos, 2009, p. 296). Ao passo que
uso de sua materialidade e de sua dimensão simbó- “quanto mais instável e surpreendedor for o espaço,
lica da forma como lhe aprouver, da forma como tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto
lhe for mais útil, e, por que não, mais rentável. mais eficaz a operação de descoberta. A consciên-
Tem-se assim que seria bem-vindo se os sistemas cia pelo lugar se superpõe à consciência no lugar.
educacionais de localidades cuja perspectiva de de- A noção de espaço desconhecido perde a conota-
senvolvimento está irremediavelmente atrelada ao ção negativa e ganha um acento positivo...” (San-
turismo elevassem o status da história local e re- tos, 2009, p. 330), operação que pode ser mediada
gional em suas grades curriculares como forma de pelo turismo.
inclusão social e participação política, com possí-
veis rebatimentos nos planos de desenvolvimento
turístico local e na construção coletiva de oportu-
nidades de emprego e renda aí assentadas. 5. Reflexões finais
A questão tangencia ainda a formação de via-
jantes. Para ilustrar, recorro à análise de Fortuna A partir dos anos 2000 crescem estudos e pu-
(2012) sobre o contraste de sentimentos que um vi- blicações dedicados a investigar casos de requa-
sitante vivencia diante do patrimônio: mais afeito lificação e seus rebatimentos no espaço urbano,
à comoção à medida em que o viajante se aper- no significado do patrimônio e no uso do turismo
cebe mais próximo e se identifica de alguma forma como discurso legitimador dessas práticas, mas
com o objeto de sua contemplação, oposto à in- ainda tem sido raras reflexões no interior da área de
diferença com a qual um turista pode passar por estudo do turismo que questionam a partir de dife-
monumentos de grande relevância por desconhecer rentes perspectivas os resultados dessas operações,
sua importância histórica. Chama assim a atenção o que talvez revele a difícil tarefa de equacionar os
o emprego marginal do patrimônio nos circuitos interesses do mercado àqueles das comunidades lo-
15 https://theintercept.com/2016/12/06/turistas-podem-ser-escravocratas-por-um-dia-em-fazenda-sem-racismo/,
cotidianas. Essa problemática indica a necessidade Choay, F. (2001) A Alegoria d Patrimônio. São Paulo:
de se construir políticas integradas a partir de ou- Unesp.
tras referências de desenvolvimento, para as quais
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sões possa servir de bússola. Percebe-se que é pos- nablume.
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