Os Lusiadas
Os Lusiadas
Os Lusiadas
As Lusíadas
Luís de Camões e a representação da instrumentalização feminina na corte medieval
portuguesa: comparando os casos de Maria de Portugal e Inês de Castro
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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As Lusíadas
Luís de Camões e a representação da instrumentalização feminina na corte medieval
portuguesa: comparando os casos de Maria de Portugal e Inês de Castro
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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FICHA CATALOGRÁFICA
HOFFMANN, Raquel.
As Lusíadas
Luís de Camões e a representação da instrumentalização feminina na corte
medieval portuguesa: comparando os casos de Maria de Portugal e Inês de
Castro / Raquel Hoffmann Monteiro - 2014. 180pp.
Dissertação (Mestrado em História Comparada), Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de História, Rio de Janeiro, 2014.
Orientador: Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Jr
Co-Orientadora: Profª Drª Gracilda Alves.
1. Idade Média; 2. Realeza; 3. Luís de Camões.
4
As Lusíadas
Luís de Camões e a representação da instrumentalização feminina na corte medieval
portuguesa: comparando os casos de Maria de Portugal e Inês de Castro
____________________________________________________________
Professor Doutor Álvaro Alfredo Bragança Jr. (PPGHC-IH/UFRJ)
_____________________________________________________________
Professora Doutora Gracilda Alves. (IH/UFRJ)
_____________________________________________________________
Professor Doutor José D’Assunção Barros. (PPGHC-IH/UFRJ)
_____________________________________________________________
Professora Doutora Denise da Silva Menezes do Nascimento (PPGH-ICH/UFJF)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
5
AGRADECIMENTOS
DEDICATÓRIA
RESUMO
Esta dissertação versa sobre a representação camoniana da instrumentalização
feminina tardomedieval ibérica, a partir da análise das únicas personagens da obra Os
Lusíadas que são mulheres históricas e protagonistas de seu poema: D. Maria de
Portugal e D. Inês de Castro. O épico de Luís Vaz de Camões, composto na segunda
metade do século XVI, realiza uma exaltação do reino de Portugal, da empreitada
ultramarina portuguesa e da Dinastia de Avis, e pertence a um projeto político de
moralização da sociedade exercido pelo poder régio durante toda a vigência da
Dinastia de Avis. Neste trabalho, analisamos o papel d’Os Lusíadas neste projeto
político e comparamos a participação das representações de ambas as personagens
dentro da lógica da literatura moralizante avisina, atravessando temas tais quais: o
que era a instrumentalização feminina e como ela ocorria no tardomedievo, qual era a
participação política feminina na alta diplomacia tardomedieval, qual era o impacto
da representação de tais dinâmicas instrumentalizadoras num processo político que
visava a exaltação da Dinastia de Avis.
ABSTRACT
This dissertation focus on the Camonian representation of female
instrumentalisation in the Iberian Late Middle Ages, from the analysis of the only
characters of the work The Lusiads, which are historical women and protagonists of
the poem: D. Maria de Portugal and Inês de Castro. The epic by Luís Vaz de Camões,
composed in the second half of the sixteenth century, conducts an exaltation of the
kingdom of Portugal, the Portuguese overseas enterprise and Aviz Dynasty, and
belongs to a political project of moralization of the society exercised by royal power
throughout the ruling of the Aviz dynasty. We hereby explore the role of The Lusiads
in this political project and compare the participation of representations of both
characters within the Aviz's moralizing literature logic, going through subjects such
as: what was the female instrumentalisation and how it occurred in the Late Middle
Ages, what was the women's political participation in high diplomacy in the Late
Middle Ages, what was the impact of the representation of such instrumentalisation
dynamics in a political process, which aimed at the elation of the Aviz dynasty.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO __________________________________________________ 12
CAPÍTULO I ___________________________________________________ 24
CAPÍTULO II ___________________________________________________ 48
I. Maria _______________________________________________ 74
I. Exórdio ______________________________________________ 93
INTRODUÇÃO
Creio que a grande questão que habita os pensamentos de quem trilha a vereda
da História das Mulheres é: como decodificar o murmurar feminino dentre a
cacofonia masculina nas nossas fontes históricas? Decerto que temos nos saído muito
bem, há trabalhos acerca do feminino em diversas áreas da ciência histórica e que
abrangem os mais variados recortes temporais, espaciais e metodológicos.
Historiograficamente, o campo da História das Mulheres é profícuo, fértil e, ao que
nos parece, ainda nem riscamos a superfície da questão, o que muito agrada, já que o
desejo de saber sempre mais é a única maneira de continuarmos levantando o – talvez
– mais pesado dos véus da História.
Encontramos a problemática desta dissertação justamente no meio de uma
imensa cacofonia masculina: uma obra que possui dez cantos, compostos de um total
de 1102 estrofes em oitava decassílaba, a magnum opus de toda a literatura em língua
portuguesa existente: Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, obra que constitui nossa
principal fonte histórica. Esta dissertação, desta maneira, tem por objetivo analisar a
representação camoniana da instrumentalização política feminina na corte
tardomedieval portuguesa, através da comparação de dois episódios presentes n’ Os
Lusíadas, além do papel dessas representações no cenário político-cultural de seu
tempo. Entretanto, para compreender como esta análise pôde se realizar, é necessário
que tenhamos domínio do contexto no qual Os Lusíadas foi composto, suas
peculiaridades narrativas e a tendência política que influenciou sua composição.
Escrito durante a segunda metade do século XVI, o poema épico Os Lusíadas é
célebre por possuir teores exaltadores: do reino de Portugal, da empreitada
expansionista lusitana e, consequentemente, de seu vasto império. À altura da
publicação da obra – durante o reinado de D. Sebastião I – o Portugal do autor Luís
de Camões estava no auge de extensão de seu Império Ultramarino; a presença
portuguesa estendia-se pelo globo, dominando uma boa parcela do comércio marítimo
13
As estrofes citadas são aquelas que abrem o poema. Camões escolhe falar
sobre aqueles que “edificaram Novo Reino” – ou seja, aqueles que foram
responsáveis ou contribuíram para o Expansionismo Português; os reis que dilataram
“a Fé, o Império” e devastaram as “terras viciosas de África e Ásia”; e por fim,
aqueles que se libertaram do esquecimento (a “Lei da Morte”) através de “obras
valerosas”. É desta forma que Camões define quem serão os personagens de sua obra,
um rol de representantes da tenacidade lusitana e da densidade de sua história.
Pessoas como o próprio Vasco da Gama; o primeiro rei de Portugal, Afonso
Henriques; D. João I, que inaugurou a Dinastia de Avis; Bartolomeu Dias, que dobrou
pela primeira vez a passagem do Cabo das Tormentas 2 e atingiu o Oceano Índico;
Martim Afonso de Sousa governador da Índia e do Brasil; entre diversos outros.
É possível afirmar que os lusíadas do título do poema são os integrantes deste
grupo definido que Camões escolhe para representar as virtudes – e também alguns
vícios – dos lusitanos. As glórias de Portugal que Camões quis tornar indeléveis
estavam repletas de uma plêiade de homens que protagonizam os episódios
camonianos sobre a história de Portugal. Contudo, nem todos os protagonistas d’ Os
Lusíadas são homens. Em meio ao tropel dos reis, príncipes, condestáveis, duques,
soldados, senhores da guerra, ministros, navegadores e aventureiros, há o farfalhar
das saias de duas rainhas camonianas: D. Maria de Portugal e D. Inês de Castro,
protagonistas dos episódios que são o cerne de nossa análise.
1
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, 1995 (fac-símile de 1572), p. 1.
2
Este feito de Bartolomeu Dias está presente numa das passagens mais famosas d’Os
Lusíadas, o Episódio do Gigante Adamastor. O personagem mítico representa no poema as
intempéries da região do Cabo das Tormentas – hoje Cabo da Boa Esperança – e aborrece-se
gravemente com a passagem do navegador por suas águas.
15
apresenta diretamente, fora do intertexto. Para acessar as informações que Cam ões
não nos disponibiliza diretamente, é preciso que acessemos sua fonte para apreender a
melhor maneira de estabelecer questionamentos ao texto d’Os Lusíadas. Para esta
tarefa, recorremos à Crônica de D. Afonso IV e identificamos que D. Maria de
Portugal fora casada com o rei de Castela nos primeiros anos do reinado de seu pai,
D. Afonso IV, num movimento diplomático que tinha por intenção estreitar as
alianças entre os dois reinos. O contrato matrimonial, celebrado em 1328, tinha como
princípio fundamental a cooperação e a paz entre Portugal e Castela, o que não
ocorreu: diversas querelas entre os dois reinos, muitas delas orbitando o casamento de
D. Maria e D. Afonso XI, assolaram o território com combates, batalhas e
escaramuças entre portugueses e castelhanos. O rei castelhano quebrara o contrato
matrimonial ao receber uma concubina na corte – D. Leonor de Gúzman – e dar a ela
não apenas terras e riquezas, mas posição política de conselheira em Castela. D.
Maria afasta-se da corte e itinera pelo reino, buscando asilo ora em Portugal, ora em
Sevilha.
A questão apazigua-se em 1340, meses antes da Batalha do Salado: entre
vários outros termos do novo contrato de paz, D. Maria recupera seu status na corte,
sob imposição de Portugal, D. Leonor é exilada com os filhos – mas nunca deixa de
perder contato com o rei, mas não podemos digressionar sobre isto agora – e a
concórdia é acertada, o que acontece convenientemente, para Castela, poucos meses
antes da Batalha do Salado. O território ibérico sofria incursões sazonais de invasores
mouros do Norte da África e, então, aproveitando-se da fragilidade de relações entre
Portugal e Castela, mouros granadinos e marroquinos invadem e sitiam a vila de
Tarifa. É neste momento que D. Maria, n’Os Lusíadas, surge na narrativa. De acordo
com a Crônica de D. Afonso XI de Castela, enviar D. Maria fora um estratagema
político para relembrar D. Afonso IV de que, devido ao recém-assinado acordo de paz
e às suas dívidas como rei cristão para com Castela, ele deveria aceitar o pedido de
socorro. Enviar D. Maria fora enviar não apenas a filha, mas a fiel depositária, o
símbolo vivo da concórdia Portugal-Castela, e, como poderemos acompanhar ao
longo desta dissertação, da leitura de trechos das Crônicas e d’Os Lusíadas, o
estratagema fora muitíssimo bem sucedido.
Nossa outra personagem, por outro lado, tem uma trilha avessa: da concórdia
para a discórdia, tanto no poema, quanto nas Crônicas Régias. Inês de Castro chega
17
Camões siga a narrativa cronística e nos transmita que Inês estava afastada quando foi
morta. Todos esses elementos podem ser encontrados no intertexto do Episódio da
Morte de Inês e são indispensáveis para compreensão do papel político desta
representação numa obra de literatura moralizante avisina.
Observando o contexto dos dois momentos da narrativa protagonizados por
estas duas personagens – conhecidos como “O Episódio da Batalha do Salado” e “O
Episódio da Morte de Inês” – pudemos detectar similaridades e diferenças que
envolvem as representações de Maria de Portugal e Inês de Castro n’Os Lusíadas. Os
episódios que destacamos como fontes nos falam da relação entre os reinos de
Portugal e Castela. Estes reinos possuíam fortes ligações entre si, tanto em conexões
geográficas quanto nos elos de política e diplomacia. 3 As dinâmicas luso-castelhanas
fundiam-se nos caminhos entre um reino e outro, movimentos pacíficos ou bélicos,
processos que se desenrolaram ao longo dos séculos, promovendo a formação não
apenas de fronteiras geográficas sólidas entre os reinos, mas consciências de
identidade, lugar e lealdades senhoriais.
As interações político-diplomáticas entre Portugal e Castela aconteciam no
âmbito das nobrezas dos dois reinos. Agindo como engrenagens do poder régio, as
famílias da nobreza movem-se incessantemente, disputando entre si favores dos reis,
como, por exemplo, no tocante ao poder na administração pública, status entre seus
pares, títulos nobiliárquicos, posições na corte régia, terras, domínios, papéis bélicos
e alianças de poder. A estruturação destes mecanismos de manutenção expansão de
poder estabelecia-se através das alianças – matrimoniais ou não – entre membros da
nobreza e membros da realeza entre os reinos ibéricos. 4
Camões, em seu poema, tratou destas disputas de poder entre realeza e nobreza
em diversos episódios, inclusive naqueles em que se dedica a narrar as histórias de
Maria de Portugal e Inês de Castro, representando-as como personagens atuantes
dentro do jogo político luso-castelhano. Ao comparar estas representações em nossa
fonte, poderemos analisar quais os posicionamentos tomados por Camões, e
compreender como estas representações fazem parte do projeto político avisino n’ Os
Lusíadas.
3
FERNANDES, Fátima Regina; FRIGHETTO, Renan. Cultura e poder na Península
Ibérica. Curitiba: Juruá, 2001.
4
MATTOSO, José. A nobreza medieval portuguesa no contexto peninsular. Revista da
Faculdade de Letras: História, série II, v. 15, n. 2, 1998, p. 1038.
19
dupla, dialogando constantemente durante a análise, uma vez que Camões representa
as dinâmicas de instrumentalização feminina tardomedieval em seu trabalho a partir
de uma postura política de poder simbólico de sua época. O mesmo ocorre com as
nossas fontes complementares, as Crônicas Régias. Por outro lado, dentro do contexto
do Portugal Tardomedieval, para compreender a instrumentalização em si, a dupla
ferramenta orienta-nos ao longo das análises de como se representa este fenômeno
nas Crônicas Régias e de que maneira esta é uma postura de poder simbólico dentro
deste recorte temporal.
Ouvir o farfalhar das saias e saber de onde partem os sons femininos em nossa
fonte é uma tarefa que procuramos cumprir através do alinhamento com a História
das Mulheres e, como nossas personagens e nossas fontes são fortemente
influenciadas por dinâmicas régias e diplomáticas, também valemo-nos da História
Política. Tencionamos compreender o papel da mulher em tais dinâmicas de
instrumentalização e a reverberação deste processo na representação camoniana do
fenômeno, a partir das personagens de D. Maria e D. Inês. Ora, a análise da
participação e do papel político feminino (e do que concerne ao feminino) em nossos
recortes temporais e temáticos exige que o trabalho preze pelo diálogo entre estas
duas áreas, com a finalidade de ressaltar a posição feminina nos processos históricos
analisados. Adotamos esta postura dialética por todo o trabalho, mas esta tônica se
imprime fortemente nos Capítulos III e IV, que são dedicados a analisar profunda e
comparativamente nossos objetos de pesquisa nos textos cronísticos e na narrativa
camoniana, segundo os conceitos que compõem o eixo de nosso estudo. A
personagem de Maria de Portugal será analisada no Capítulo III e a personagem de
Inês de Castro no Capítulo IV e em seguida, partimos para a análise do papel político
da representação de ambas n’Os Lusíadas.
Finalmente, é certo que todos estes nossos alinhamentos e ferramentas
necessitam de um espaço teórico-metodológico no qual possam dialogar. É desta
maneira que somos capazes de construir uma análise fortemente fundamentada sobre
a representação camoniana da instrumentalização feminina medieval, partindo de
nossa problemática inicial acerca das duas únicas mulheres protagonistas d’Os
Lusíadas. Encontramos este espaço na História Comparada e no método comparativo,
tais como sintetizados por Marc Bloch, constantemente confrontando nossos recortes
e objetos de estudo. Comparamos, deste modo, o processo da instrumentalização
24
feminina e suas representações nas nossas fontes, o discurso das fontes sobre esta
dinâmica em relação à política régia avisina de moralização e legitimação e a função
de tais representações dentro da literatura moralizante avisina – de acordo com o
conceito de poder simbólico. O método comparativo atravessa o trabalho como um
todo, mas encontra-se enfatizado nos Capítulos III, IV e – sobretudo – no Capítulo V.
Neste último, comparamos as representações camonianas de ambas as p ersonagens
entre si e através de um elemento comum aos dois episódios, o contexto do reinado de
D. Afonso IV, buscando assim compreender o papel político de tais representações
n’Os Lusíadas, de que forma se relacionam com o propósito avisino de legitimação
dinástica e criação de tradição através da construção de memória histórica.
Ontem, como hoje, as mulheres sempre estiveram presentes nas dinâmicas do
tempo: assumindo papeis, responsabilidades, adotando modelos, dinamizando
relações. Os silêncios – ou, melhor dizendo, os murmúrios – femininos na História
são o resultado de muitos anos de não-problematização da presença das mulheres no
decurso dos processos históricos. A fonte só fala quando perguntamos a ela e só
perguntamos se temos uma problematização que nos permita formular as questões
adequadas aos anseios de nossas pesquisas. Não podemos afirmar que foi apenas dos
anos 1970 até os dias atuais que a História começou a encostar seus ouvidos nas
paredes de alcova para tentar escutar as mulheres históricas – toda generalização tem
um preço, quase sempre desagradável de se pagar e pelo qual não vale a pena arriscar
a pesquisa histórica, qualquer que seja. Não se pode afirmar nem que ficamos
ignorantes ao feminino na história e nem que sempre lhe demos espaço. Entretanto,
podemos afirmar que são relativamente recentes – e cada vez mais frutíferas – as
pesquisas que se dedicam a observar e problematizar a presença feminina no curso da
História. Esta é a nossa intenção: problematizar a presença feminina nos p rocessos
históricos e assim ajudar a levantar os véus, colaborar com a abertura das portas,
desabafar as vozes e ajudar a transformar os murmúrios e o farfalhar das saias em
uma sinfonia impossível de se ignorar.
25
CAPÍTULO I
Cantando espalharey por toda parte / Se a tanto me ajudar o engenho & arte.
– Os Lusíadas, Canto I, Estrofe II
8
Utilizamos o conceito de memória histórica tal como formulado por Jacques Le Goff, em sua
obra História e Memória. Este autor defende que a criação e a conservação da memória ocorre na
humanidade desde as sociedades ágrafas até os dias atuais. De acordo com Le Goff, a memória é a
ferramenta de decodificação social que permite a coletivização de experiências, algo que por sua vez
viabiliza a geração de identidades comuns e coletivas numa sociedade, seja ela ágrafa ou
contemporânea.
Le Goff também divide seu conceito numa lógica cronológica dos modos de criação e
conservação da memória – grosso modo: memória oral, memória híbrida, memória escrita. A
concepção do conceito que utilizamos aqui corresponde àquela que Jacques Le Goff associa ao
período do Renascimento até os dias de hoje, à criação de memória escrita, de memória
institucionalizada, memória coletiva e que se pode transformar em objeto de poder. Ver mais em: LE
GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2003, p. 419–476.
26
Desta forma, mesmo que existam nas duas disciplinas particularidades que as
situam em pontos diferentes do saber, História e Literatura não são estanques: estão
em contínuo diálogo por diversas vias possíveis de análise e apreciação. A partir da
citação de Chartier, podemos verificar que no caso do contato da História com a
Literatura, um historiador deverá valer-se de historicização para trabalhar com obras
literárias e os demais elementos que compõem o universo literário – autoria,
publicação, recepção, contexto, estilo, entre outros. Deverá, portanto, analisar o que
lhe for de interesse e seus demais aspectos de acordo com perspectivas, métodos,
técnicas e teorias historiográficas.
Chartier também versa na citação anterior sobre a construção do sentido em
um discurso e, para compreender a importância da construção de sentido e como o
historiador deve acessar esta peculiaridade do discurso, recorremos a Ciro Flamarion
Santana Cardoso, que trata deste assunto ao estabelecer que é útil ao historiador
analisar a Literatura através de duas vias: a narrativa e o sentido, uma vez que são
elementos comuns à História e à Literatura. Em sua obra, intitulada Narrativa,
Sentido, História, este autor esclarece-nos como é possível que o historiador se
dedique ao estudo da Literatura em seu trabalho, através de tais vias:
9
CHARTIER, Roger. Debate: Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, p. 197, Dez-
Jan. 2000.
27
10
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997, p.
20.
11
FLORENCIO, Ana Maria Gama [et al]. Análise de discurso: fundamentos & práticas.
Maceió: EdUFAL, 2009. p. 25 – 26.
28
Então, concluímos que é a partir destes pressupostos que podemos afirmar que
o historiador pode abordar a Literatura de diversas maneiras, desde que o faça não só
com o suporte do conhecimento das formulações teóricas literárias e semiotistas a
respeito do texto ou da obra escolhida, como e também levando em consideração sua
construção de sentido durante o discurso e a experiência humana coletiva implícita
neste discurso. Dois métodos de abordagem que atendem a estes critérios são, a saber,
os mais comuns.
A primeira abordagem mais comum que um historiador pode realizar em seu
trabalho conjunto com a Literatura é a historicização da obra literária, ou seja, a
obra literária é, diretamente, o objeto de estudo do historiador. Por esta perspectiva
pode-se pesquisar e analisar, por exemplo, seu impacto, sua recepção, o processo de
escrita, o contexto da escrita, o discurso que abriga em seu texto; entre outros
aspectos que se referem à obra.
A segunda abordagem mais comum – e que é realizada na presente dissertação
– é a análise da obra literária enquanto fonte histórica. Neste caso, isso significa que
o texto da obra literária – ou um excerto deste texto – quando questionado, quando
historicizado, dialogará de acordo com as indagações propostas pelo historiador
durante sua pesquisa. Através dessa perspectiva, pode-se analisar na fonte literária,
por exemplo: o discurso contido no texto, a narrativa (o que narra, quem são os
narradores, quem são os narratários), de que maneira o texto se posiciona d e acordo
com a política vigente – se apoia, se critica, de que maneira o texto representa
eventos e personagens históricos, de que modo a obra representa a sociedade através
de seu texto, e de que modo interage com ela.
A necessidade da decodificação do sentido e do discurso do texto da fonte
literária, como nos propõe Ciro Flamarion, é o primeiro passo indispensável para a
análise de uma obra literária como fonte histórica. Esta decodificação baseia -se na
12
SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto
Editora, 1989. p. 8.
29
singularidade apresentada por este tipo de fonte: a obra literária reúne em si diversas
camadas, diversas parcelas constituintes. É preciso que o historiador separe cada uma
destas parcelas para, em seguida, hermeneuticamente decodificá-las.
Por exemplo: uma de nossas fontes literárias, o épico Os Lusíadas, de Luís de
Camões, apresenta diversos contextos que se intercalam: o contexto da escrita do
poema – no qual o próprio Camões é o narrador; o contexto da viagem de Vasco da
Gama – no qual o navegador é o narrador, o contexto da memória histórica de
Portugal, o contexto do ambiente mitológico da Ilha dos Amores, que também possui
seu quinhão de memória histórica lusitana. Em outras palavras, uma obra literária
pode-se utilizar como fonte histórica, mas é preciso que o historiador analise o grande
número de nuances que possui e aplique as técnicas necessárias para realizar um
trabalho que não seja anacrônico.
A compreensão da particularidade do uso de uma obra literária como fonte
histórica, então, subordina-se ao entendimento do modo que se aborda tal tipologia de
fonte. Voltamos a Chartier para introduzir este debate:
A prática do diálogo entre História e Literatura, através do uso de uma obra literária
como fonte histórica, exige do historiador não apenas a historicização desta obra, seu
texto e seu discurso, mas a utilização do suporte teórico e metodológico da própria
Literatura voltado para a pesquisa historiográfica. Se esse aspecto do trabalho entre
História e Literatura não for levado em consideração, o historiador corre o risco de
realizar um trabalho parcial e incompleto.
É preciso, na prática da História na Literatura, respeitar a condição literária da
fonte histórica. Desta forma, quaisquer que sejam as abordagens escolhidas para o
ofício do historiador que se propõe a pesquisar e analisar a Literatura – e seus
elementos, é necessário ressaltar que o respeito à condição literária da obra é
imprescindível. O diálogo com a Literatura deverá estar sempre pautado pelas
particularidades da fonte (ou do objeto de estudo) enquanto obra literária. Isso
13
CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 197.
30
significa, por exemplo, que o historiador não pode adotar o discurso da obra, não
pode “reduzir-se não-criticamente à opinião que faziam de si mesmos os próprios
homens de uma época ou de um contexto histórico” 14.
Ademais, quando lançamos mão do texto literário como fonte histórica, o
compromisso com este critério metodológico precisa ser renovado durante o decorrer
da pesquisa para que saibamos distanciar o discurso literário direto do subjacente
discurso ideológico, contextual e conceitual indireto. Esta prerrogativa é expressada
por João Adolfo Hansen, em diálogo com Roger Chartier para a revista Topoi:
Desta maneira, o uso de uma obra literária como fonte histórica não se vê
restrito ao historiador, desde que sejam respeitadas as particularidades de História e
14
BARROS, José D'Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. Cadernos de
Pesquisa do CDHIS, Universidade Federal de Uberlândia, v. 25, n. 02, Jul./Dez. 2012, p. 427.
Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/15209/11834>; Acesso em: 06
Fev. 2014.
15
HANSEN, João Adolfo. Fala em Debate: Literatura e História. Topoi. Rio de Janeiro, n. 1. p.
209 – 210, Dez-Jan. 2000.
16
Ibid.
31
17
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1976, p. 169.
18
Ibid.
32
historiador supere o problema inicial que se impõe àqueles que se dedicam a utilizar
uma obra literária em uma investigação historiográfica: a adoção do discurso da fonte
e a contradição de desconsiderar a estrutura original e o contexto do discurso e do
texto da obra escolhida, lançando uma suspeita sobre a pretensa veracidade da
mesma.
Compreender que a obra literária deriva de seu contexto de produção, que está
dependente de sua função histórica e que seu discurso é composto de representações19
de diversos outros discursos, absorvidos e reinterpretados, é imprescindível. Nesse
sentido, Nicolau Sevcenko elucida-nos que, ao mesmo passo em que há um elo
dialógico entre História e Literatura, também existe o conflito que diferencia es tas
duas disciplinas. Este conflito é, exatamente, o que torna possível a sua aliança
analítica:
19
A discussão sobre o conceito de Representação e sua aplicação à fonte é realizada no
Capítulo II desta dissertação.
20
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 20 – 21.
21
O conceito de literariedade refere-se ao que torna determinado texto um texto literário o que
confere ao texto o caráter literário, através de certas características narrativas, como o discurso, a
representação do mundo, a interpretação de fatores sociais e a ressignificação de símbolos. Estas
33
(...) o discurso não se confunde com a língua, nem com a fala, nem
com o texto; não é a mesma coisa que transmissão de informações,
23
FLORÊNCIO, Ana Maria Gama. [et. al.] Op. Cit. p. 24 – 26.
35
24
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal v. 2 –
A Monarquia Feudal. Lisboa: Estampa, 1997. p. 414.
25
Ibid., p. 415 – 416.
36
26
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In: MATTOSO, José. (Dir.) Op. Cit., p. 416. [Grifos
nossos.]
27
Ibid., p. 419.
37
seu reinado, sob os fins de legitimar o rei, seus sucessores e toda a Dinastia no trono
português.
A construção de memória legitimadora ao redor da entidade dinástica avisina
tem fundações solidamente fincadas no que chamamos de literatura moralizante
avisina. Ela consiste em uma série de obras literárias, de diversos tipos, que
obedecem a propósitos comuns: preservar a memória histórica de Portugal, criar
continuidade entre as Dinastias de Avis e de Borgonha, gerar legitimidade acerca da
linhagem avisina. Esta necessidade, como já pudemos verificar, é procedente da
origem bastarda de D. João I, que poderia gerar uma onda de dissidência por parte da
nobreza, especificamente dos outros concorrentes ao trono nas Cortes de Coimbra e
seus partidários. Após a morte de D. João, a necessidade não arrefece: D. Duarte
alcança o trono através de sucessão hereditária e todos os seus sucessores, até o
Cardeal D. Henrique, chegaram ao trono lusitano por vias jurídicas inquestionáveis.
Entretanto, a atividade moralizante – sobretudo a literária e a jurídica – ocorre ao
longo de toda a Dinastia.
Esta empreitada avisina para a disseminação da ideia de sua genuinidade deu
origem a diversas obras literárias que exploravam a legitimidade real e a continuidade
entre as dinastias de Avis e de Borgonha. Citamos como exemplos as Crônicas
Régias, mencionadas por José Mattoso e escritas durante toda a Dinastia de Avis; o
Livro da Virtuosa Benfeitoria (de Frei João Verba, com base no texto do Infante D.
Pedro, do qual era confessor) datado de cerca de 1418; o Leal Conselheiro e o Livro
da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, compostos por D. Duarte e impressos em
1438; a compilação de poesia medieval cortesã, O Conselheiro Geral, de Garcia de
Resende, datado de 1512; a coleção de livros de viagens de Fernão Lopes de
Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses ,
impresso ao longo da década de 1550; e finalmente, Os Lusíadas, de Luís Vaz de
Camões, impresso pela primeira vez no ano de 1572. 28
A exaltação é o elemento comum entre estas obras que exemplificamos.
Elogiam Portugal e sua realeza através de diversas vias: sua história, seus reinados,
sua cultura, a virtude e o costume de sua gente, sua aristocracia, a proteção do reino,
sua relação com os reinos vizinhos, sua expansão em império ultramarino, entre
outras. A linhagem avisina, ao produzir – por si ou por encomendas – determinadas
28
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In: MATTOSO, José. (Dir.) Op. Cit., p. 420.
38
29
Os conceitos de Poder Simbólico, de Pierre Bourdieu, e Representação, de Roger Chartier,
aplicados ao corpo do teórico da pesquisa são discutidos detalhadamente no Capítulo II desta
dissertação.
30
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 01.
39
31
LOPES, Fernão. Op. Cit.
32
PINA, Rui de. Op. Cit.
33
É preciso esclarecer que utilizamos dois outros textos cronísticos como recursos colaterais ao
nosso tema: a Cronica de D. Alfonso El Onceno de este nombre, de los Reyes que reynaron en
Castilla y en Leon, de autoria discutida e reimpressa em Madrid por Francisco Cerdá y Rico; e a
Crónica del Rey Don Pedro, de autoria de Pero Lopez da Ayala. As crônicas castelhanas não entram
no corpus documental de nossa pesquisa, uma vez que não atendem aos nossos critérios de análise –
exaltar o reino e a realeza de Portugal e pertencer à literatura moralizante avisina.
Entretanto, estas crônicas castelhanas oferecem informações valiosas sobre eventos narrados
paralelamente nas crônicas lusitanas, principalmente quando tratamos do matrimônio
internobiliárquico e da Batalha do Salado.
34
A influência cronística sobre a composição d’Os Lusíadas, será discutida mais adiante neste
Capítulo I.
40
35
LEMOS, Ester de. Vertentes da prosa medieval. (excerto) In: MAGALHÃES, Isabel Alleg ro
de. (Coord.) História e Antologia da Literatura Portuguesa – séculos XIII – XIV. Fundação
Calouste Gulbenkian – Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, Série HALP, n°4, Dez. 1997. p. 11.
36
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In: MATTOSO, José. Op. Cit., p. 454.
37
Ibid.
38
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Op. Cit., p.21 – 22.
39
Ibid.
41
muy uertoso E de grãdes uertudes ElRey meu Senhor e padre cuja alma deus aja” .40
A carta exibe claramente a intenção de compor a memória dos reis de Portugal,
incluindo a de D. João I. Fernão Lopes receberia pagamento condizente à tarefa à
qual fora encomendado: Para tanto, recebia uma tença anual de 14.000 reais
brancos, sendo que nesse cargo seria confirmado em 1439 por Afonso V, através da
rainha regente; e em 1449 a tença ser-lhe-ia aumentada para 20.000 reais. 41
De acordo com esta citação, podemos constatar não apenas a trajetória lopeana
no ofício cronístico, mas a grande importância que três reis da Dinastia de Avis
deram à empreitada de escrita das Crônicas Régias, empregando um de seus mais
altos funcionários em letras, aquele que tinha acesso a todos os documentos e
arquivos que o reino detinha, para poder escrever as crônicas de todos os reis de
Portugal, incluindo D. João I.
Entretanto, das obras que chegaram até nós, sabemos seguramente que t rês são
de autoria de Fernão Lopes: as crônicas de D. Pedro I, D. Fernando I e D. João I –
partes primeira e segunda, sendo a terceira parte a chamada Crônica da Tomada de
Ceuta, finalizada por Gomes Eanes de Zurara. 42 Se a atividade cronística antes era
corrente em Portugal para a preservação da memória do reino, podemos afirmar que a
partir de Avis ela se tornou institucionalizada.
Fernão Lopes ocupou o ofício de cronista-mor do reino até idade avançada,
especula-se que até cerca de setenta anos de idade. Após sua dispensa – concedida
por D. Afonso V – o posto não ficou vacante, assim como a tarefa de “poer em
caronyca a estoria dos Reys que antygamente em portugal forom” também não se
deixou abandonar. Gomes Eanes de Zurara o substituiu 43 e alguns outros o seguiram,
mais uma vez demonstrando a importância do croniciado no Portugal avisino.
Dos sucessores de Fernão Lopes, aquele para quem diretamente nos interessa
direcionar o olhar é Rui de Pina. Este cronista também usufruiu de valimento junto à
realeza: segundo Joaquim Veríssimo Serrão, Pina fora valido e secretário do rei D.
40
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V. Livro 19°, fl. 22. In: FREIRE, Anselmo Braamcamp.
Introdução a LOPES, Fernão. Crônica de D. João I – Primeira parte. Ed. do Arquivo Histórico
Português, 1915. Fác-símile Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1977, p. V – XLIV. Apud:
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Op. Cit., p. 22.
41
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Op. Cit., p. 22.
42
Há discussão sobre outras que teriam sido, de certa forma, absorvidas pela atividade de
outros cronistas – como a Crônica de Afonso IV, de qual conhecemos a versão de Rui de Pina, mas
que se discute que a autoria de fato teria sido de Fernão Lopes. Para mais, ver: MALEVAL, Maria do
Amparo Tavares. Op. Cit., p. 48.
43
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. Cit., p. 9.
42
João II quando este ainda era Infante. A pedido do rei, exercera o ofício do croniciado
de forma particular e, à morte de D. João, seu sucessor D. Manuel I lhe concedeu
licença para exercer oficialmente a atividade cronística. Compôs a Crônica de Afonso
V e a Crônica de D. Duarte. Após concluir estes trabalhos, dedicou-se às crônicas dos
primeiros reis, de Afonso Henriques a Afonso IV. Deixou ainda em vida o material
necessário para que, futuramente, se compusesse a Crônica de D. Manuel, além de
outros escritos sobre a expansão marítima. 44 As acusações sobre a existência de
“manifesta usurpação da obra alheia” 45 que recaem sobre o trabalho de Rui de Pina,
ou seus méritos enquanto cronista e historiador, não serão discutidas nesta pesquisa,
sob o risco de desviarmo-nos de nosso assunto nuclear. O que nos interessa destacar,
a partir da observação da sucessiva ocupação do cargo de cronista, é que a atividade
cronística no Portugal avisino fora intensa e ininterrupta, iniciando-se em Fernão
Lopes e ultrapassando Rui de Pina, que trabalhou sob D. João II, D. Manuel I e
chegando a Damião de Góis, até a segunda metade do século XVI.
É importante observarmos que, mesmo após a consolidação dinástica avisina
no trono, a literatura moralizante não perdeu espaço: ao inverso, intensificou -se. Para
um exemplo prático, basta que lancemos um olhar para a cronologia de trabalho de
Rui de Pina: dedicou-se às crônicas de D. Afonso V e D. Duarte para, após isto,
concentrar-se nas crônicas dos primeiros reis de Portugal. Sendo Rui de Pina um
plagiador de Fernão Lopes ou não, este empenho às origens da realeza avisina indica
uma preocupação, uma atenção especial a este tema. Mesmo que a necessidade de
legitimação tenha cedido, após tantos reinados de Avis, o impulso em direção à
representação da imagem de continuidade é detectável ao longo da vigência da
linhagem ao trono.
A necessidade de representação avisina também encontra resposta na obra de
Luís de Camões, ainda que suas condições de produção sejam diferentes das Crônicas
Régias. Não há indicação, por exemplo, que tenha sido uma obra encomendada ao
poeta, como D. Duarte encomendara a escrita das crônicas a Fernão Lopes. Ao que
tudo nos indica, Camões escreveu a obra por iniciativa própria, durante o serviço
militar na Ásia. Entretanto, segundo António José Saraiva e Oscar Lopes, a ideia
44
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. Cit., p. 53 – 54.
45
Ibid., p. 56.
43
humanista de escrever um poema nos moldes d’A Eneida de Virgílio já corria na corte
lusitana há pelo menos um século:
46
SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. Luís de Camões. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro
de. (Coord.) História e Antologia da Literatura Portuguesa – século XVI. Fundação Calouste
Gulbenkian – Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, Série HALP, n°16, Mar. 2000. p. 11.
47
CIDADE, Hernani. Luís de Camões – O Épico. Lisboa: Presença, 1995. p. 15.
48
Ibid.
44
49
RAMALHO, Américo da Costa. Prefácio da 2ª edição. In: RODRIGUES, José Maria. Fontes
dos Lusíadas. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1979, p. VIII.
45
história oficial, como hoje diríamos, de todos esses reinados.”50 Quando Camões se
utiliza dessa produção cronística ocorre, como pudemos observar no livro de Ana
Maria Gama Florêncio, um diálogo entre os discursos, uma reapropriação, uma
reinterpretação do discurso cronístico por Camões, reproduzindo a experiênci a das
crônicas e produzindo novas experiências ideológicas e de memória histórica através
desse diálogo entre estes discursos. 51 Ao utilizar-se das Crônicas Régias como fonte,
Camões não apenas se vale dos fatos históricos ali narrados, mas introduz um novo
olhar e imprime um novo sentido interpretativo quando os aplica em sua narrativa.
Esta narrativa camoniana, no entanto, precisava da aprovação régia para
circular, uma vez que, ao contrário das crônicas, fora composta por iniciativa
particular de Camões. O poeta realiza, logo no início do poema, um ofertório de sua
obra a D. Sebastião, um distinto elogio no qual ele dedica o poema ao rei e à
Dinastia.52 O ofertório, ao que tudo nos indica, deu resultado: Os Lusíadas foi
autorizado, através de carta régia de setembro de 1571, para impressão de sua
primeira edição em 1572, apenas após o manuscrito ter sido revisado e liberado pela
Santa Inquisição. Tendo em vista isto, lancemos primeiramente um olhar à liberação
inquisitorial e, posteriormente, o alvará régio. O parecer do Frei Bartolomeu Ferreira
esclarece-nos as condições de liberação do poema:
VI por mandado da santa & geral Inquisição estes dez Cantos dos
Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os
portuguezes fizeraõ em Asia, & Europa, & não achey nelles cousa
alguuma escandalosa, nem contraria â fe & boons custumes,
somente me pareceo que era necessario aduertir os Lectores que o
Autor pera encarecer a difficuldade da nauegação & entrada dos
Portuguezes na lndia, vsa de uuma fição dos Deoses dos Gentios. E
ainda que Sancto Augustinho nas suas Retractações se retracte de
ter chamado nos livros que compos de Ordine aas Musas Deosas
Toda via como isto he Poesia, & fingimento, & o Autor como poeta
não pretenda mais que ornar o estilo Poetico, não tiuemos por
inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por
tal, & ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fe, que todos
os Deoses dos Geentios são Demonios. E por isso me pareceo o liuro
digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho, &
muita erudição nas sciencias humanas. Em fe do qual assiney aqui.
Frey Bertholameu Ferreira. 53
50
RODRIGUES, José Maria. Fontes dos Lusíadas. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa,
1979, p. 85.
51
FLORENCIO, Ana Maria Gama. [et al] Op. Cit., p. 25 – 27.
52
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 2 – 2v.
53
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. II.
46
EV el Rey faço saber aos que este Aluara virem que eu ey por bem &
me praz dar licença a Luis de Camões pera que possa fazer
imprimir, nesta cidade de Lisboa, huuma obra em Octaua rima
chamada Os Lusiadas que contem dez cantos perfeitos, na qual per
ordem poetica em versos se declaraõ os principaes feitos dos
Portugueses nas partes da India depois que se descobre a nauegação
pera ellas por maandado del Rey dom Manoel, meu viauo, que
sancta gloria aja, (...) 54
54
Ibid., p. I.
47
CAPÍTULO II
Mandas me, o Rei, que conte declarando, / De minha gente a grão genealogia
Não me manda contar estranha historia: / Mas mandas me louuar dos meus a gloria.
sociais; ou, da maneira que o autor especifica, sistemas simbólicos – como a arte, o
mito, a religião, a legislação, a comunicação, entre outros – para servir ao intuito de
inculcar ideologicamente conhecimentos, ideias, atitudes e filosofias que lhes sejam
vantajosas na manutenção de sua dominação e posição social superior. Bourdieu
explica-nos então que o exercício do poder simbólico por uma camada dominante da
sociedade é realizado por intermédio de violência simbólica, ou seja, a imposição dos
símbolos56 ideologicamente impregnados à sociedade. Sobre a dinâmica do poder
simbólico numa sociedade, Bourdieu afirma:
56
Compreendemos serem os símbolos, no mesmo raciocínio de Bourdieu, “os instrumentos por
excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação (...) eles
tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para
a reprodução da ordem social (...)” Para mais, ver: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa:
Difel, 1989, p. 10.
57
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p.14.
51
60
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.02.
53
seja, D. Sebastião faz parte de Cristo, do corpo do Messias que se estende e abarca os
reinos que existem em terra, o espaço terreno que deve ser preservado, assim como
aqueles cristãos que nele habitam e que precisam ser guiados no caminho da retidão
64
para o reino dos céus. A associação das figuras do rei e do messias é uma
imposição simbólica: a partir da associação das imagens de Cristo e D. Sebastião,
impondo a ideologia do caráter divino do poder régio e assegurando a positividade à
imagem do rei de Portugal. Em seguida, Camões continua seu ofertório e passa a
tratar de temas mais mundanos:
64
FRYE, Northrop. Código dos Códigos – A Bíblia na Literatura. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 184.
65
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.02 – 02v.
55
66
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.03v – 04.
57
67
As protagonistas, Maria de Portugal e Inês de Castro, serão aborda das nos mesmos episódios,
mas à luz do conceito de Representação – como formulado por Roger Chartier – mais a frente neste
mesmo capítulo.
68
Aqui recuperamos assunto que mencionamos mais cedo neste mesmo capítulo e não
exploramos antes, por crer ser mais proveitoso trabalhar este tema neste momento da dissertação.
69
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 02v.
58
70
SOUSA, Armindo de. Op. Cit., p. 405 – 407.
71
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.54v.
59
relação diplomática com Castela – que foi particularmente inquieta durante a vigência
deste rei no trono. O poeta menciona “soberbas Castelhanas” que D. Afonso IV não
teria temido, mas não se alonga por demais na questão da rivalidade entre os dois
reinos, uma vez que o episódio da Batalha do Salado canta a união bélica de Portugal
e Castela contra um inimigo comum, os mouros.
Camões limita-se a apontar que existia uma tensão que, ao sinal do perigo da
entrada mourisca no território ibérico, é suspensa para dar lugar ao amparo
necessário. As próximas estrofes detalham o cenário anterior da Batalha do Salado:
versam sobre o tamanho e as características do exército mourisco, sobre o apelo de D.
Afonso XI de Castela ao rei de Portugal, o estratagema castelhano de enviar D. Maria
– rainha de Castela e infanta de Portugal – para pedir o socorro de D. Afonso IV, que
lhe atende. Logo após o monólogo de D. Maria, Camões narra o aceite do rei de
Portugal e, então, a Batalha do Salado:
Não de outra sorte a tímida Maria
Fallando está, que a triste Venus, quando
A Iupiter seu pay fauor pedia,
Pera Eneas seu filho, navegando,
Que a tanta piedade o comouia,
Que caido das mãos o rayo infando:
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesandolhe do pouco que lhe pede.
Mas ja cos esquadrões da gente armada,
Os Eborenses campos vão qualhados,
Lustra co Sol o arnes, a lança, a espada,
Vão rinchando os cauallos jazeados:
A canora trombeta embandeirada
Os corações aa paz acostumados:
Vay às fulgentes armas incitando
Polas concauidades retumbando.
em acudir o genro, rei de Castela, no combate aos mouros que invadiram seu
território. Já no cenário do campo de batalha, Camões narra que D. Afonso IV leva
consigo os símbolos reais e “leua o collo aleuantado”, uma postura altiva que
constitui num gesto de demonstração de autoridade e, dentro da narrativa, poderíamos
chamar de uma espécie de mise en abyme de Poder Simbólico, ou o conceito dentro
do conceito.
Explicamos: sendo Os Lusíadas uma obra de literatura moralizante, portanto
simbólica como instrumento de dominação, que se utiliza de uma adoção do mito
legitimatório avisino como ferramenta de imposição ideológica, aquela deve ser em
sua completude analisada através do conceito de Poder Simbólico. Uma vez que esta
obra contém uma passagem de uma demonstração específica de símbolos
designatórios de poderio, dentro de uma certa lógica narrada (e narrativa) de
imposição de autoridade, ocorre um reforço do peso do conceito de Poder Simbólico
na análise do discurso d’Os Lusíadas, uma nova instância de demonstração. Encontra-
se Avis em Borgonha através da exibição dos atos de guerra e diplomacia de D.
Afonso IV, não havendo rompimento: existe o reforço incessante de uma
continuidade interdinástica.
Na crítica interna, ou seja na análise isolada do episódio da Batalha do Salado
na narrativa d’Os Lusíadas, Camões destaca o exemplo do rei que vai à batalha e leva
consigo todo o aparato que o destaca entre seus súditos e o localiza como
hierarquicamente superior a todos eles. O capital simbólico 73 da passagem que narra a
chegada de D. Afonso IV à batalha compreende a descrição e personalização de D.
Maria de Portugal como símbolo personificado da aliança Portugal-Castela. A
chegada de D. Afonso IV e sua comitiva motiva os “corações aa paz acostumados” a
lutar por seu reino e por seu rei.
Numa crítica externa, na análise deste episódio e da construção do modelo
régio de D. Afonso IV que nele ocorre, o rei que luta na Batalha do Salado é aquele
no qual D. Sebastião deve mirar-se para absorver o exemplo de um rei cristão que se
impõe aos seus pares – os castelhanos – e aos seus opositores – os mouros – através
de seus atos de governança e suas decisões diplomáticas. D. Sebastião deve buscar
73
Bourdieu nos explica que o que chama de capital simbólico é o conjunto de recursos
disponíveis nos sistemas simbólicos (arte, literatura, língua, religião) para a manipulação das camadas
dominantes e para a produção da ideologia sobre a qual se constrói a dominação social. Ver:
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p. 9 – 12.
61
74
A alusão camoniana à devoção militar dos lusitanos a Cristo e a São Tiago “el Matamoros”,
em oposição à devoção muçulmana ao Profeta Mohammed, surge quando o poeta descreve o auge da
Batalha do Salado: Desta arte o Mouro pérfido despreza, / O poder dos Christãos, & não entende, /
que esta ajudado da alta fortaleza, / A quem o Inferno horrífico se rende / Co ella o Castelhano, &
com destreza, / De Marrocos o Rei comete & ofende, / O Portugues que tudo estima e m nada, / Se faz
temer ao Reino de Granada.
Eis as lanças & espadas retenião, / Por cima dos arneses, brauo estrago, / Chamão (segundo
as leis que ali seguião,) / Huums Mafamede, & os outros Sanctiago, / Os feridos com grita o Ceo
ferião, / Fazendo de seu sangue bruto lago / Onde outros meio mortos se afogauão, / Quando do
ferro as vidas escapauão. Ver: CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 56v.
62
75
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.58 – 58v.
76
“(...) Por semelhante amor, qual ElRey D. Pedro houve a Dona Ignez, raramente se há
achado em alguma pessoa, porem disseraõ os antigos, que nenhum he taõ verdadeiramente achado,
como aquelle, cuja morte naõ tira da memoria (...)” em LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 392 – 393.
77
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal vol. I – Estado, Pátria e Nação (1080
– 1415). Lisboa: Editorial Verbo, 1979, p. 275.
63
viveram em situação amásia. Desta união nasceram quatro crianças, das quais três
chegaram à idade adulta como herdeiros legitimados de D. Pedro.
Camões, no poema, questiona a determinação que leva D. Afonso IV a
executar D. Inês de Castro, mas não expõe claramente o problema político que ela
representava para o reinado de D. Afonso IV e numa posterior sucessão ao trono de
Portugal. Entretanto, o poeta expõe mais uma vez um exemplo de conduta real através
da figura do antepassado de D. Sebastião, desta vez acerca do dilema que se apresenta
a D. Afonso IV quando a decisão de executar D. Inês de Castro esmorece:
78
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59v.
64
antes e depois da dama implorar por sua vida. Ela alega não ter cometido erro (“Sabe
tambem dar vida com clemencia / A quem pera perdela não fez erro:”) e implora por
um novo exílio, ainda mais distante do anterior (“Poem me em perpetuo & misero
desterro, / Na Scitia fria, ou na Lybia ardente,”)79, o que causa ondas de piedade em
D. Afonso IV, que deseja perdoá-la. Todavia, há neste episódio a presença abstrata e,
ainda assim influente, do pertinaz povo. Esta generalização, essa abstração, da
entidade que persuade D. Afonso IV a prosseguir com a sentença não se desvenda em
Camões, mas nas Crônicas – que serviram de fonte a’Os Lusíadas: quando o rei
reconsidera a decisão de executar Inês de Castro, Rui de Pina exibe-nos quem
Camões chama de pertinaz povo:
“(...) & consentido na morte da dita Dona Ines acompanhado de
muyta gente armada, & seveo a Coimbra onde ella estava nas cazas
do Mosteyro de Santa Clara, a qual sendo avizada da hida de elRey,
& da iroza, & mortal tenção que contra ella levava achandosse
salteada pera senão poder já saluar per alguma maneyra, o veo
receber à porta, onde com o rosto trãsfigurado, & por escudo de sua
vida, & pera sua innocencia achar na ira de elRey alguma mais
piedade, trouxe ante si os três innocentes Infantes seus filhos netos
de elRey, com cuja apresentação, & com tantas lagrimas, & com
palavras assi piadozas pedio misericordia & perdao a elRey que elle
vencido della se dis que se volvia, & a leyxava já pera nõ morrer
como levava determinado, & alguns Cavaleyros que com elRey hiaõ
pera a morte della que loguo entrarão, & principalmente Dioguo
Lopes Pacheco filho de Lopo Fernandes Pacheco senhor de
Ferreyra, & Alvaro Goncalues meirinho mor, & Pero Coelho
quando assi viraõ sahir elRey como quem já revocava sua tença
agravados dele pella publica determinação com que os ally
trouxera, & pelo grande odio, & mortal perigo que daly em diante
com ella, & com o Infante D. Pedro os leyxava, lhe fizeraõ dizer, &
consentir que elles tornassem a matar Dona ines se quizessem, a
qual por isso loguo mataraõ (...)”80
79
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59v.
80
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71v. [Grifo nosso.]
65
“porque ella tinha seus irmãos Dom Fernando de Castro, & Dom
Aluaro Pires de Castro, que eraõ em Castella grandes senhores, &
asi por respeito, dela começauaõ ter muita parte em Portugal, &
ouuesse deles por isso grande receyo à vida, & sucessão do Infante
Dom Fernando filho primogênito, & erdeyro que era do Infante Dom
Pedro, que pera alguma maneyra poderiam ordenar sua morte por
tal que cada huum dos outros filhos de Dona Ines por morte do dito
Dom Fernando seu irmão pudesse succeder os Reynos de Portugal,
& dos Algarues, & consultavasse que pera este grande inconviniente
cessar naõ avia outro melhor remedio, (...) & quando isto por seu
bem, & honrra nõ quisesse fazer que elRey pera segurança da vida
de seu neto o Infante Dom Fernando, & por asesego, & conservação
de seus Reynos, & das couzas de sua coroa que que por respeyto da
dita Donna Ines se poderiaõ enlhear a mandasse matar por tal
(...)”81
O exemplo de governança apresentado por Camões no episódio da Morte de
Inês de Castro é baseado nas decisões que D. Afonso IV deve tomar a favor do reino
e a despeito de seus envolvimentos pessoais com a situação. O poeta traz o elemento
do parentesco bastante arraigado na narrativa do episódio, ressaltando que há uma
ligação entre o rei e a dama galega, através do infante e dos filhos que o casal gerara
juntos. O rei pondera e desiste, mas é relembrado – pelo “pertinaz povo” – de seu
dever para com o reino, decidindo então pela morte de D. Inês.
É neste episódio que a mensagem passada através da figura de D. Afonso IV se
completa: a política régia da Europa do tardomedievo e da modernidade possuía
dinâmicas movimentadas pelos relacionamentos interpessoais de reis e infantes, isto
é, a governança poderia ser afetada por assuntos de foro íntimo daqueles envo lvidos
nos exercícios de governabilidade dos reinos. Quando observamos os episódios da
Batalha do Salado e da Morte de Inês focalizando nossa análise na figura de D.
81
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71.
66
A corrente narrativa do Canto III d’Os Lusíadas sofre uma alteração entre as
estrofes XCVIII e CXXXVII: os episódios da Batalha do Salado e da Morte de Inês
de Castro não são protagonizados apenas pelo rei que governara Portugal dentro da
janela temporal que abriga estas duas passagens (de 1340 a 1355), D. Maria de
Portugal e D. Inês de Castro dividem com o rei este posto narrativo. Esta parte d o
poema afasta-se um pouco da proposta camoniana que demonstrada no Canto III ao
entregar a dinâmica dos episódios às personagens femininas e do poema num geral,
ao ter Maria e Inês como protagonistas ao lado de D. Afonso IV. Nos dois momentos
em que Camões se dedica ao seu reinado e aos exemplos de conduta régia que dele
deveriam ser retirados, são Maria e Inês que detêm a maior parte do discurso dos
episódios e este é um fator fundamental dos nossos questionamentos acerca de nossa
fonte principal, Os Lusíadas.
Ao analisarmos o contexto de produção do poema, suas características
narrativas e a especificidade de seu alinhamento com as tendências da literatura
moralizante avisina, pudemos concluir as inclinações políticas d’Os Lusíadas e o
papel do personagem de D. Afonso IV no poema, segundo o conceito de Poder
Simbólico formulado por Pierre Bourdieu. É a partir do respaldo obtido na análise
anterior que podemos acessar a investigação da função das personagens de Maria de
Portugal e Inês de Castro dentro do contexto político do épico camoniano, concluindo
assim a discussão sobre o lugar ocupado por nossa fonte dentro do projeto políti co da
Dinastia de Avis.
Como observamos, o autor versa sobre as camadas dominantes da sociedade
utilizando-se de sistemas simbólicos para, através de violência simbólica, realizar a
imposição das ideologias que lhes interessa inculcar na sociedade. Ora, cr emos que
esta postura não cabe na análise das personagens de Maria de Portugal e Inês de
Castro, uma vez que, no contexto do poema, ambas não fazem uso deste tipo de
artifício político, apesar de estarem envolvidas no movimento camoniano e fazerem
parte do projeto político avisino, os quais se valem deste expediente.
A compreensão do papel de Maria de Portugal e Inês de Castro, então, passa
pela análise de suas funções dentro do exercício de poder simbólico camoniano -
avisino. A mudança do arcabouço conceitual direciona-se para o conceito de
68
Representação, tal como formulado por Roger Chartier, uma vez que estas
personagens são protagonistas da narrativa camoniana e nela possuem uma atribuição
dinamizadora específica n’Os Lusíadas. Discutimos no Capítulo I desta dissertação a
função da Literatura como um dos veículos de percepção do mundo social,
produzindo discursos que não são neutros, reproduzindo ou contestando as ideologias
e práticas de uma dita autoridade em determinada sociedade, interpretando realida des
sociais, incorporando e produzindo estratégias para a decodificação dos debates
vigentes, entre outras atribuições. Para que a percepção do mundo social estabelecida
pela Literatura seja interpretada e reinterpretada pelo público que lhe acessa, é
necessário que os mecanismos de poder se valham de representações deste dito
mundo social. Recorremos a Roger Chartier e sua concepção sobre o que é a
representação. Segundo este autor, há duas maneiras de encarar este conceito:
82
CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 20–21.
69
83
CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 23.
70
84
L’HERMITE-LECLERCQ, Paulette. The Feudal Order. In: DUBY, G; PERROT, M. Writing
the History of Women. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane (ed.) A History of Women in the West:
vol. II – Silences of Middle Ages. Cambridge: Harvard University Press, 1998; p. 214.
71
85
COELHO, Maria Helena da Cruz; VENTURA, Leontina. A mulher como um bem e os bens
da mulher. In: A mulher na sociedade portuguesa – Visão histórica e perspectivas actuais.
Colóqui de 20 a 22 de Março de 1985. Actas. Coimbra: Instituto de História Económica e Social,
Faculdade de Letras, 1986, p. 53.
72
86
COELHO, Maria Helena da Cruz; VENTURA, Leontina. Op. Cit., p. 64. [Grifos originais].
87
Ibid., p. 54.
88
Ibid., p. 51.
73
89
COELHO, Maria Helena da Cruz; VENTURA, Leontina. Op. Cit., p. 56.
90
Ibid., p. 58.
74
91
BRAGA, Paulo Drummond. Casamentos Reais Portugueses – um aspecto do relacionamento
ibérico e europeu (séculos XII-XIV). In: IV Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval. As
Relações de Fronteira no Século de Alcañices. Actas, vol. II, p. 1532 – 1534.
75
I. Maria.
92
BRAGA, Paulo Drummond. Op. Cit., p. 1532.
76
93
CERDÁ Y RICO, Francisco (Ed.). Cronica de D. Alfonso El Onceno de este nombre, de
los Reyes que reynaron en Castilla y en Leon. Madrid: Imprenta de D. Antonio de Sancha, 1787.
Disponível em: <http://books.google.es/books?id=hLmXlZMfnDgC> Acessado em: 23 Ago. 2014 p.
113 – 115.
94
“Et otrosí firmaron los Reyes entre sí pleytos et posturas de amistad, aquellos que entendian
que les convenian á firmar, porque se guardasen amistad para adelante. Et para esto el Rey de
Castiella el de Leon puso em rehenes algunos castiellos et alcázares del su señorío em poder de omes
naturales del regno de Portogal. Et otrosí el Rey de Portogal puso castiellos et alcázares del su
señorío em poder de omes naturales del regno de Castiella: et avianlos á tener, porque fuesen
guardados entre los Reyes los pleytos et posturas que avian puesto de consuno .” In: CERDÁ Y
RICO, Francisco. Op. Cit., p. 140 – 141.
95
PINA, Rui de. Op. Cit., p 11 – 11v.
96
Rui de Pina narra na Crônica de D. Afonso IV, que a rainha de Castela, passados dois anos de
casamento com D. Afonso XI, ainda não teria conseguido gerar criança viva. Ainda neste mesmo
tema, o cronista narra a dificuldade que D. Maria sofreu no longo trabalho de parto de D. Pedro I de
Castela, e que a rainha só fora coroada após a certificação de que a gravidez estaria segura. Ver:
Ibid., p. 7v – 8v.
77
97
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 11 – 11v.
98
Agressões epistolares já andavam em curso entre Portugal e Castela, tanto por ocasião do
repúdio de D. Maria quanto por razão do repúdio de D. Branca de Castela por D. Pedro de Portugal.
Outra questão matrimonial também tinha sua influência no quadro diplomático: D. Pedro de Por tugal
acertara casamento com D. Constança de Peñafiel, primeira esposa de D. Afonso XI (que por este fora
repudiada para que pudesse se casar com D. Maria). Esta fora aprisionada pelo rei castelhano em
Toro, impossibilitada de ser enviada a Portugal para a consumação de seu casamento com D. Pedro.
78
101
“(...) & assim sabendo que Abomelich filho de elRey Aliboacem de Marrocos que ja tomara
Gibraltar aparelhava de passar de Africa muyto poderoso em Espanha, & que o primeyro seu
cometimento auia de ser em sua terra, com que lhe recresceriam tais afrontas, & necessidades a que
naõ poderia resistir, ouve por melhor & mais seguro conselho fazer per si, & sem dilaçam o assento
das pazes com elRey de Portugal, antes que pelo Papa, nem por outros estranhos arbit ros nem juízes,
& pera isso sem mostrança destas necessidades lhe escreveo que inviasse a elle seus Embayxadores,
& que a paz com a graça de Deos antre elles se faria com toda a honra, & contentamento delle Rey
de Portugal.” PINA, Rui de. Op. Cit., p. 44v – 45.
102
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 54v.
80
103
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 55 – 55v.
82
processo político que lhe se impôs, a domina e dela se vale no momento de pedir o
socorro de guerra a seu pai, rei vizinho.
Abordamos, no início deste capítulo, como os atos de D. Afonso IV tratam
destes dois temas – abnegação das emoções pessoais e tomada de decisões visando o
bem do reino – e com a personagem de D. Maria o quadro não se exibe diferente. Esta
rainha, ainda que reine em Castela, é oriunda da Dinastia de Borgonha, a dos
antepassados de D. Sebastião. Ela é um fruto da árvore lusitana que Ca mões evoca
em seu ofertório, e se D. Afonso IV é o rei que põe de lado o orgulho e vai ao socorro
da terra, pois esta seria a atitude régia esperada de um bom regente, D. Maria é a
representação da honra da união diplomática, do esforço de guerra lusitano de
batalhar ao lado do castelhano pela defesa da terra e da fé, apesar das tensões que
ocorriam entre um texto e outro – as quais Camões menciona quando versa sobre as
“soberbas Castelhanas”. Este posicionamento de D. Maria (e dos dois reinos) em
relação ao conflito que resulta na Batalha do Salado só é possibilitado através da
aliança entre Portugal e Castela que alicerçava-se em grande parte em seu contrato
matrimonial – e em sua posterior manutenção.
Roger Chartier elucida-nos – como citamos no início do capítulo – que a
representação pode ser “a apresentação pública de algo ou alguém” e, no episódio da
Batalha do Salado, D. Maria de Portugal e seu processo de instrumentalização
política através do matrimônio são a representação do relacionamento diplomát ico
lusitano em uma situação de guerra. D. Maria apresenta publicamente a honra
lusitana, especialmente quando a análise do episódio da Batalha do Salado é feita sob
a luz do conteúdo acerca do assunto que consta nas Crônicas Régias (que serviram de
fonte a Camões para que escrevesse Os Lusíadas). Na última estrofe que possui a
participação da personagem de D. Maria, Camões completa a ação da personagem no
contexto da Batalha do Salado:
104
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 56.
83
II. Inês.
Se, por um lado, n’Os Lusíadas a personagem de D. Maria representa a
retidão, a honra, o cumprimento de contratos, a manutenção de alian ças e, como
consequência disto, a concórdia entre os reinos de Portugal e Castela e a
independência política lusitana em relação aos mouros e castelhanos, a personagem
de D. Inês representa dinâmicas opostas. Entretanto, para compreendermos estas
representações dentro da lógica narrativa d’Os Lusíadas no projeto político de
literatura moralizante avisina, é necessário que conheçamos o contexto da presença de
D. Inês de Castro na corte lusitana entre os anos de 1340, quando chega a Portugal, a
1355, data de sua execução.
84
D. Inês Pires de Castro, uma dama galega, filha natural de Pedro Fernandes de
Castro, um alto nobre castelhano que era senhor de Lemos e Sarriá. Sua trajetória nos
círculos nobiliárquicos ibéricos lhe angariou poder e influência política por todo o
território. Era camareiro-mor do rei Afonso XI de Castela e detentor de enorme
poderio bélico, carregando por isso o epíteto de “o da Guerra.” Pedro Fernandes de
Castro também exercia influência em Portugal, orbitando entre as nobrezas de ambos
dos reinos e estabelecendo uma eficiente rede de alianças políticas. D. Inês possuía
ainda três irmãos: o irmão D. Álvaro Pires de Castro e os meios-irmãos D. Fernando
Rodrigues de Castro e D. Joana de Castro, todos proeminentes dinamizadores dos
processos políticos da Península Ibérica do século XIV. 105 Segundo Rui de Pina, em
sua Crônica de D. Afonso IV, a presença de D. Inês na comitiva matrimonial da
esposa de D. Pedro era privilegiada:
Dona Ines Pires de Castro, foy comadre de elRey Dom Pedro sendo
Infante, & da Infanta Dona Costança, & isto se fez por quanto esta
Dona Ines andava em casa da dita Infanta por sua donzela, &
parenta (...)106
“e se algum quiser dizer, que muitos foraõ já, que tanto, e mais que
elle amáraõ, assim como elle em suas Epistolas, (...) tratamos
daquelles amores que se contaõ, e lem nas Historias, que seu
fundamento tem sobre verdade. E este verdadeiro amor houve em
105
Dos irmãos de D. Inês de Castro, D. Álvaro Pires de Castro (que era seu irmão de mãe e pai)
fora Condestável de Portugal, primeiro Conde de Arraiolos e Alcaide-mor de Lisboa, graças ao
favorecimento de sua irmã para com D. Pedro, além de ter recebido o senhorio de diversas terras (ver:
BAYÃO, Jozé Pereyra. Supplemento a esta cronica. In: LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 429.) Já D.
Joana de Castro fora rainha de Castela e conhecida pelo epíteto “A Desamada”, por ter sido rejeitada
por D. Pedro I de Castela pouco tempo depois de seu casamento. (ver: AYALA, Pedro Lopez. Op.
Cit., p. 127 – 128.) Finalmente, D. Fernando Rodrigues de Castro, que fora imensamente poderoso
em Castela, detentor dos senhorios que foram de seu pai (Lemos e Sarriá) e um dos mais fieis
partidários de D. Pedro I de Castela até o momento da desonra de sua irmã D. Joana – quando passou
ao lado dos Trastâmara. (ver: AYALA, Pedro Lopez. Op. Cit., 170 – 171.)
106
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 67v – 68.
85
ElRey D. Pedro para com Dona Ignez, como della se namorou sendo
cazado, e ainda Infante,”107
Os amores de Pedro e Inês progrediram a ponto de chamar a atenção de D.
Constança: pelo que diz a crônica, o infante não se furtava a exibir seus sentimentos
pela dama de companhia da esposa. D. Constança então recolhe D. Inês do convívio
cortesão o máximo que pode, para evitar que o relacionamento com D. Pedro se
aprofundasse. Rui de Pina nos exibe outro estratagema utilizado pela infanta:
O Infante Dom Pedro filho primogenito erdeyro de elRey Dom
Affonso de Portugal, foy cazado com a Infamta Dona Costança
Manoel, como atrás he declarado, & della em vida de elRey Dom
Affonso seu pau, ouve dous filhos, & huma filha a saber, o Infante
Dom Luis, que foy o primeyro, & este em moço faleceo ao baptismo,
do qual Dona Ines Pires de Castro foy comadre, de elRey Dom
Pedro sendo Infante, & da Infanta Dona Costança, & isto se fez por
quanto esta Dona Ines andava em casa da dita Infanta por sua
donzella & parenta, & sentiasse ja que o Infante Dom Pedro lhe
queria bem, & por se evitar antre elles outra affeyçam (...)108
Os contratos matrimoniais aristocráticos ibéricos, como nos elucidaram Maria
Helena da Cruz Coelho e Leontina Ventura, estavam sujeitos a repúdios e rejeições, o
que poderia resultar em consequências negativas para as partes envolvidas em caso de
quebra de contrato. Tomar D. Inês como madrinha do seu filho primogênito era, desta
forma, um ato político de D. Constança: o romance de seu marido com uma de suas
damas, sobretudo uma de família tão influente, poderia pôr em xeque todo o seu
processo matrimonial e as alianças que dele provinham. O risco de um novo repúdio
era grande – visto que D. Pedro já repudiara Branca de Castela para casar-se com ela
e que a família de Inês de Castro possuía significante relevância no panorama
109
diplomático luso-castelhano.
As Crônicas Régias não esclarecem de quem partiu o estratagema do
sacramento do batizado – se da própria Constança, se do rei D. Afonso IV, se de
algum conselheiro real – mas relatam a manobra com a qual D. Constança atacara o
problema por várias frentes: pelas leis da Igreja, o batismo de uma criança criava um
laço parental entre a criança e a madrinha, além de estabelecer uma ligação análoga à
fraternal entre os pais e os padrinhos. Desta maneira, os amores de Pedro e Inês, que
107
LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 393.
108
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 67v. – 68.
109
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Amor de Perdição: as mulheres entre a
monarquia e o poder aristocrático no Portugal do século XIV. In: MEGIANI, Ana Paula Torres;
SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro – a época e a memória. São Paulo: Alameda, 2008, p.
53.
86
110
MONTEIRO, Miguel Corrêa. Razões de Estado e Razões do Coração. In: SOUSA, Maria
Leonor Machado de. Colóquio Inês de Castro. Actas. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2005,
p. 41.
111
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Op. Cit., p. 54.
112
SALES, Mariana. Vínculos políticos luso-castelhanos no século XIV. In: MEGIANI, Ana
Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro – a época e a memória. São Paulo:
Alameda, 2008, p. 23.
113
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71v.
87
114
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., 58.
115
E aqui dissemos “publicamente” pois não há uma confirmação sólida de q ue D. Pedro e D.
Inês se casaram, ainda que clandestinamente. Viviam os dois em situação marital e, depois de sua
morte, ele afirmou ter se casado com ela em segredo, mas a historiografia ainda vê a questão como
nebulosa.
88
saciar. Ainda assim, Camões questiona as razões pelas quais o rei exigira a cabeça de
D. Inês:
(...)
Que furor consentio, que a espada fina,
Que pode sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse aleuantada,
Contra huuma fraca dama delicada? 116
Camões não explora os motivos pelos quais D. Afonso IV sentencia D. Inês à
morte, sendo estes só expostos quando analisamos as Crônicas Régias, fontes do
poema. É na Crônica de D. Afonso IV, de Rui de Pina, que encontramos o “furor” que
“consentio, / que a espada fina / que pode sustentar o grande peso / do furor Mauro,
fosse aleuantada / contra huuma fraca dama delicada”:
(...) porque ella tinha seus irmãos Dom Fernando de Castro, & Dom
Aluaro Pires de Castro, que eraõ em Castella grandes senhores, &
asi por respeito, dela começauaõ ter muita parte em Portugal, &
ouuesse deles por isso grande receyo à vida, & sucessão do Infante
Dom Fernando filho primogênito,& erdeyro que era do Infante Dom
Pedro, que pera alguma maneyra poderiam ordenar sua morte por
tal que cada huum dos outros filhos de Dona Ines por morte do dito
Infante Dom Fernando seu irmão pudesse suceder os Reynos de
Portugal, & dos Algarues (...) e quando isto por seu bem, & honrra
nom quisesse fazer que elRey pera segurança da vida de seu neto o
Infante Dom Fernando, & por asesego, & conservação de seus
Reynos, & das couzas de sua coroa (...) 117
É na Crônica de D. Afonso IV que encontramos a resposta aos
questionamentos de Camões: além da questão prática da firmação de um contrato de
casamento, – com, de fato, quem quer que fosse – os filhos que D. Pedro teve com D.
Inês configuravam outro problema aos olhos de D. Afonso IV. As três crianças eram
fortes concorrentes ao trono de Portugal, rivalizando com D. Fernando, filho do
casamento legítimo de D. Pedro com D. Constança de Peñafiel, e o rei temia pela vida
do neto, que poderia ser eliminado pelos Castro para ceder lugar na linha de sucessão
a um dos filhos de D. Inês e D. Pedro. A oposição entre o rei e a amante de seu filho é
exposta nas estrofes seguintes:
(...)
Inês alega que não tem culpa pelo que lhe acontecera, que apenas se rendera ao
sentimento que a subjugou ao Infante, apelando ao rei que tivesse piedade, senão
dela, das “criancinhas”, seus três netos. Neste momento do discurso camoniano
podemos observar um paralelo entre os episódios da Batalha do Salado e da Morte de
Inês: ambas as personagens apelam para a misericórdia do rei; D. Maria intercede
pela “miseranda gente de Castela”, já D. Inês pede que o rei lhe poupe por compaixão
dos pequenos infantes que eram, apesar de naturais, seus netos. No primeiro episódio,
D. Maria faz a D. Afonso IV uma previsão de seu futuro. D. Inês também segue por
uma vereda semelhante:
E se vencendo a Maura resistencia,
A morte sabes dar com fogo & ferro,
Sabe tambem dar vida com clemencia,
A quem pera perdela não fez erro:
Mas se to assi merece esta inocencia,
Poem me em perpetuo & misero desterro,
Na Scitia fria, ou la na Lybia ardente,
Onde em lagrimas viva eternamente.
118
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 58v – 59.
90
Inês de Castro realiza um apelo ao rei: que não a mate, mas a envie outra vez
para o exílio, desta vez a um lugar muito mais distante que Albuquerque onde ela
possa criar os filhos dela e de D. Pedro. Ou seja, até este momento a estrutura dos
dois episódios segue a mesma ordem: a personagem é introduzida, o problema se
apresentado e a personagem apela aos sentimentos familiares e pessoais do rei D.
Afonso IV. A reação inicial do rei no episódio da Morte de Inês de Castro também é
similar àquela do episódio da Batalha do Salado, mas, como já observamos na análise
do conceito de poder simbólico n’Os Lusíadas, Camões desvia-se:
Queria perdoarlhe o Rei benigno,
Mouido das palavras que o magoão:
Mas o pertinaz pouo, & seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoão,
Arrancão das espadas de aço fino,
Os que por bom tal feito ali apregoão,
Contra huuma fama, ô peitos carniceiros
Feros vos amostrais, & caualleiros? 120
119
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59v.
120
Ibid.
91
sociais que condiziam com sua posição. É a mulher que enlouquece o príncipe – em
contraste com D. Maria, a mulher que dá apoio ao marido numa situação de perigo
para o reino. Por outro lado, D. Inês é o pivô de uma circunstância perigosa para
Portugal. Observemos um excerto de uma estrofe d’Os Lusíadas para uma melhor
articulação desta análise:
sentimentos de D. Afonso, mas ele não pode reconsiderá-lo, já que era de opinião que
sua existência era nociva a Portugal e sua morte poderia interromper a influência dos
Castro (e castelhana) no núcleo da aristocracia lusitana.
Ao analisar o episódio da Morte de Inês sob a luz do contexto do envolvimento
entre a dama galega e o infante português – o amasiamento público, a subversão da
lógica instrumentalizadora do feminino, a geração de quatro filhos naturais, a atração
de diversos nobres castelhanos aos altos círculos aristocráticos lusitanos, a influência
crescente dos irmãos de D. Inês na nobreza de Portugal e a ameaça sucessória –
podemos compreender o papel da personagem protagonista e sua representação dentro
do poema. Inês de Castro representa a insubordinação ao sistema sociopolítico
português e todas as consequências que tal postura causava à dinâmica de Portugal.
Dentro da lógica narrativa d’Os Lusíadas, que se vale de modelos positivos e
negativos para estabelecer o discurso do projeto político camoniano de construção de
memória, estabelecimento de continuidade interdinástica e exaltação da legitimidade
da Dinastia de Avis, o exemplo de governança deste episódio está atrelado ao ato de
execução de Inês de Castro: ainda que o rei se comova com o apelo da suposta nora,
crê – após as insistências da nobreza autóctone – que o reino necessita que ela morra,
então prossegue com a sentença, ainda que o desagrade. D. Inês é a representação do
quão daninhos podem ser os envolvimentos amorosos e emocionais quando
interferem nos assuntos do reino e quão nefastas podem ser suas consequências.
93
CAPÍTULO III
122
COSER, Miriam Cabral. Modelo mariano e relações de poder na Dinastia de Avis. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011, p. 01.
123
DALARUN, Jacques. The Clerical Gaze. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT,
M. (Org.) A History of Women in the West – Silences of Middle Ages. Cambridge: Harvard
University Press, 2005, p. 37.
124
Chiara Frugoni, em “The imagined woman”, realiza um extenso panorama sobre os modelos
bíblicos que eram utilizados pela Igreja medieval como instrumentos de regulação comportamental da
mulher. A autora divide-os em cinco categorias: a Mulher na Companhia do Diabo (In the Devil’s
Company), a Maldita Mulher em Casa (The Damned Woman at Home), o Corpo Sedutor (The
94
Esta postura social alastra-se, decerto, para a produção cultural desta época, inclusive
a literária, tornando-se o fundamento sobre o qual se estabeleceram os modelos de rainhas,
princesas e senhoras na literatura tardomedieval. Desta maneira, tanto nas Crônicas Régias,
quanto n’Os Lusíadas, existe esta oposição de modelos positivos, negativos e transicionais
de mulher, aos quais as representações de D. Maria e D. Inês se adequam. Sendo assim,
compreender as similaridades e detectar os afastamentos entre as representações de ambas
as personagens atravessa a análise do modelo literário construído sobre sua figura histórica
vigente como tendência literária cultural e sociopolítica na Dinastia de Avis. Esta atitude
ante aos modelos exige que comparemos, nos dois tipos de fontes históricas de que
dispomos, os fatores determinantes da construção de um modelo: o exórdio, o conjunto de
informações preliminares apresentadas da figura abordada (de que forma são dispostos,
quais existem numa fonte e inexistem na outra); as características, físicas ou psicológicas,
particulares à personagem; o discurso, aquele atribuído à personagem e aquele acerca dela;
as ações e reações da personagem na narrativa; e, finalmente, o processo de alinhamento
do modelo construído com um exemplo bíblico equivalente.
I.Exórdio
Saber a origem de algo auxilia-nos a perceber melhor a sua estrutura. Muito do
processo de construção de modelo a partir de uma personagem histórica – ou acerca dela –
é baseado em seus antecedentes: quem é a personagem, quem é sua família, de onde veio,
para onde foi, qual sua trajetória social e o que fez para que as pessoas devessem se
espelhar em seu exemplo.
D. Maria, infanta e rainha, possui origens férteis e sólidas para que seu modelo se
estabeleça sobre eles. Acerca de D. Maria de Portugal, estes questionamentos são
atendidos pela Crônica de D. Afonso IV e pela Crônica de D. Afonso XI. Filha mais velha
do rei D. Afonso IV de Portugal e da rainha D. Beatriz a sobreviver a infância125, apenas
por nascer neste seio familiar, tinha potencial para ser uma catalisadora política:
Seductive Body), a Face da Morte (The Face of Death) e A Grande Exceção (The Great Exception).
Cada uma dessas categorias é ilustrada com uma ou diversas personagens bíblicas sobre as quais tais
modelos foram construídos e propagados. Para mais, ver: FRUGONI, Chiara. The Imagined Woman.
In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT, M. (Org.) A History of Women in the West –
Silences of Middle Ages. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 336 – 422.
125
A Crônica de D. Afonso IV cita três infantes nascidos antes de D. Maria que não
sobreviveram à infância ou foram natimortos. Na ordem de citação, o Infante D. Afonso , falecido em
Penela e sepultado no mosteiro S. Domingos de Santarém; o Infante D. Dinis, nascido e falecido (com
a idade de um ano) em Santarém, sepultado no mosteiro de Alcobaça; e o Infante D. João, sepultado
no mosteiro de Odivelas. Para mais, ver: PINA, Rui de. Op. Cit., p. 1v.
95
lembremos que é a partir de suas filhas e parentas solteiras que as famílias reais e
aristocráticas medievais estabeleciam seus vínculos e suas alianças entre si. Uma infanta
jovem, virginal, nunca antes casada e filha de um rei de vasta autoridade no contexto era,
nas dinâmicas que regiam os processos matrimoniais, um elemento de grande poder de
articulação política, uma noiva valiosa, apta a tornar-se consorte do rei que melhor acordo
matrimonial oferecesse a Portugal. A condição de rainha, no Medievo, impunha a estas
mulheres o papel social de exemplo: ela deveria ser pura, casta, cristã; compreensiva, boa
esposa, caridosa; vigilante da honra e da moral daquelas mulheres que a cercavam,
condutora das almas de suas súditas à salvação:
126
Em tradução livre: “Algumas famílias eram mais importantes do que outras.
Consequentemente, algumas esposas, mães e filhas eram mais importantes, e atraíam mais atenção
que outras. Rainhas, princesas, damas da corte e aristoc ratas eram as principais interlocutoras das
obras pastorais e pedagógicas (...) quão mais universalmente efetivos os valores e modelos
propostos, mais mulheres da nobreza serviam como exemplos. Na perspectiva de pregadores e
moralistas, rainhas, princesas e damas poderiam tornar-se modelos concretos e vivos para todas as
mulheres, precisamente por conta de seu status social superior concedido por Deus, que as obrigava,
escreve Humberto de Romanis, a observar regras morais ainda mais estritamente. (...) Na v isão de
Durandus de Champagne, uma rainha era objeto da curiosidade de um reino inteiro. Uma vez que
súditos de todos os cantos do território convergiam para vê-la, ela não poderia ser mais
simplesmente ‘uma mulher, mas um exemplo de santidade, uma incorpo ração de boas maneiras, um
espelho de honestidade.’ Francesco de Barberino pensara que rainhas e princesas, obrigadas por seu
status social a adotar ‘hábitos nobres’, eram um modelo perfeito para que mulheres nobres, da
classe-média, e camponesas pudessem emular, cada uma em proporção a sua própria inferioridade.
Quando observavam-se os estratos mais baixos da organização social, as regras poderiam ser
restritas, a disciplina afrouxada, e os valores erodidos, mas todas as mulheres eram instadas a
espelhar-se na mulher de hábitos perfeitos que apenas uma rainha poderia personificar
96
E por isso eram bem pera estimar, que elle dito Dom Ioam, & outros, que
elRey quizessem desservir, nem se liassem com Portugal, que seria sem
embargo das promessas do primeyro cazamento com Dona Costança,
que cazasse com a Infanta Dona Maria, filha delRey de Portugal, que era
donzela, & a mandasse pedir (...) E al elRey de Castella aprouve de isso;
& sobre apontamentos secretos, que ouve de huuma parte. & da outra, El
Rey de Castella enviou a Coymbra por seus Embayxadores a tratar os
ditos cazamentos (...) & por eles com elRey Dom Afonso de Portugal, que
era prezente; foy em nome delRey de Castela concordado, que elle
cazasse com a dita Infanta Dona Maria (...) E pera segurança disto poz
elRey de Castella em poder de Fidalgos Portugueses Trugilho, Prazença,
Feria, Burgilhos. E elRey de Portugal, em poder doutros Castelhanos
Filhos dalgo Arronches, Castello davide, Portalegre & Monforte, (...)127
Através de Rui de Pina, podemos perceber, além das características gerais que se
aplicam a uma aliança matrimonial, o caráter estratégico específico deste casamento: não
permitir que os inimigos de D. Afonso XI – o pai de sua primeira esposa e seus partidários
no reino – construam aliança com Portugal antes que o próprio rei de Castela. Na mesma
ocasião, como já soubemos, o infante D. Pedro, irmão de D. Maria, casa-se com a prima do
rei D. Afonso XI, D. Branca de Castela, o que só reforça a aliança entre os dois reinos.
Esta aliança, no contexto da Batalha do Salado, transforma-se no melhor trunfo à
disposição de Castela diante da crescente ameaça mourisca. Entretanto, nos anos entre a
completamente.” Ver: CASAGRANDE, Carla. The Protected Woman. In: DUBY, G.; KLAPISCH-
ZUBER, C.; PERROT, M. (Org.) Op. Cit., p. 78 – 79.
127
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 4 – 4v.
97
(...) do tempo que lhe elRey comesoo a ter afeyçaõ ate sua morte delle
sempre deu poder a ella [D. Leonor] sobre sy, & sobre todas as cousas
do Reyno, que se faziam, & ordenavam todas a sua vontade, &
disposição de qualquer importancia, & sustancia, que fossem de
maneyra, que a Rainha Dona Maria, & o Infante Dom Pedro seu filho
heredeyro nam tinham nem lhes ficavam mays, que os nomes de suas
128
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p.54v.
129
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In: MATTOSO, José. (Dir.) Op. Cit., p. 407.
98
Reaes dignidades, nus, & singelos com muyto pouco de que a sua Real
preeminencia se devia.130
Segundo Rui de Pina, D. Maria e seu filho pequeno, destituídos de todas as posses às
quais teriam direito enquanto rainha e infante herdeiro, sofrem o descaso de D. Afonso XI
e os caprichos de D. Leonor de Guzmán. Esta é uma faceta dos antecedentes do episódio
da Batalha do Salado que é de extrema importância: ainda que Camões não se valha destes
pormenores, a personagem de D. Maria n’Os Lusíadas é representada como a boa esposa, a
boa mãe, a boa rainha e esta representação, por sua vez, é fundamentada naquela que a
Crônica realiza, que enaltece D. Maria como um exemplo de rainha que “com muyta
mansidam, & grande paciencia sofria, sem disto aos do Reyno nem a elRey seu padre
numqua se querer agravar, nem querelar, como de muytos era requerida e aconselhada
(...)”131, e que punha as questões políticas à frente de seu próprio sofrimento – uma questão
recorrente, tanto nas Crônicas quanto n’Os Lusíadas.
O suplício matrimonial de D. Maria estende-se por anos. Ao mesmo tempo que seu
marido a humilhava através de todos os gestos de favorecimento que cometia na direção de
D. Leonor de Guzmán, D. Afonso XI desafiava Portugal com o encarceramento de D.
Constança, sua repudiada primeira esposa e noiva do infante D. Pedro. A crônica relata as
tentativas de concórdia, realizada através de mensageiros que transitavam entre os reinos,
com missivas e notificações que buscavam um acordo. A via epistolar não funcionou como
o esperado e, logo, o rei português inicia as represálias diretas: primeiro, reunindo os
alcaides portugueses para ajudá-lo a destituir os fidalgos castelhanos instalados em suas
terras132 e depois partindo para o combate armado, optando por escaramuças de devastação
de povoados e vilas.133 Castela devolve na mesma moeda e esta fase do conflito perdura até
que o rei de França e o Papa em Avignon enviam mensageiros e intercessores para
conciliar os reinos,134 posto que ao mesmo tempo em que Portugal e Castela se
desgastavam nesta querela, mouros granadinos e marroquinos praticavam pequenas
incursões no território ibérico, uma ameaça que se provou bastante concreta na invasão que
deu origem à Batalha do Salado. Partindo da intromissão estrangeira na querela e com a
crescente ameaça fervilhando no Norte de África, Portugal e Castela decidem encerrar as
hostilidades e, sobretudo, unir-se contra os mouros. Rui de Pina detalha a questão:
130
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 11v.
131
Ibid., p. 11v.
132
Ibid., p. 32v.
133
Ibid., p. 34v.
134
Ibid., p. 40v.
99
(...) elle pedio à Raynha D. Maria sua molher, que sobre isso viesse a
elRey seu Padre porque em caso que a isso se demovesse como se delle
esperava, por ser Rey Christão, & taõ catholico, & ter com elle tam
estreitos devidos, & por saber que este mal a todolos Reys de Espanha
igualmente se podia estender porem cria que sua vista della com sua
intercessam, & assi com a representaçam destas necessidades em sua
pessoa aproueitaria muyto (...)139
137
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit. p. 54v.
138
A Crônica de D. Afonso IV dá conta da ação das rainhas de Portugal e Castela nas
deliberações com intuito de resolver querelas internas ou diplomáticas. A Rainha Santa Isabel, por
exemplo, deixa a reclusão do mosteiro de Santa Clara para ter com o neto, D. Afonso XI, uma
audiência sobre o mau tratamento que ele dispensa à sua nova esposa, a Rainha D. Maria e de que
maneira isso poderia lhe prejudicar politicamente. A Rainha D. Maria, como est amos acompanhando
ao longo desta dissertação, envolve-se nas negociações de participação de Portugal na Batalha do
Salado e, anos mais tarde, a Rainha D. Beatriz, esposa de D. Afonso IV, negocia em Canavezes a paz
entre seu marido e seu filho, D. Pedro de Portugal por ocasião do assassinato de D. Inês de Castro. A
ação política das rainhas e infantas está pontualmente documentada nas Crônicas Régias, mas é
através destes registros que são pouco mais que citações que podemos compreender um pouco das
funções políticas e sociais das mulheres da realeza e da nobreza no tardomedievo. Para mais, ver,
respectivamente: PINA, Rui de. Op. Cit., p. 7 – 7v.; p. 55 – 56; p. 72.
139
Ibid., p. 55v.
101
horrendo” e que possuíam o “(...) poder excessivo de Granada”; 140 estes são indícios do
contexto do qual se propõe a tratar, das informações que podem ser encontradas em seu
intertexto. Camões focaliza a ação em D. Maria e D. Afonso IV, mas não descontextualiza
seus envolvimentos no episódio, não os destaca da ação. A base do modelo de D. Maria no
poema camoniano está, justamente, na construção desse exórdio, deste leito de
informações preliminares que podemos encontrar no entrelaçamento das referências do
intertexto camoniano e do discurso direto da fonte utilizada pelo poeta, a Crônica de D.
Afonso IV. Conhecemos a trajetória desta rainha, suas origens e os processos que a
localizaram no centro da ação narrada durante o Episódio da Batalha do Salado, mas o
modelo só será inteiramente decodificado com a soma deste aos outros fatores
constituintes, no caso, as caraterísticas físicas e psicológicas atribuída à personagem em
suas representações cronística e camoniana.
140
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit. p. 54v.
102
141
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 55 – 55v.
142
Ibid., p. 55 – 55v.
103
144
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 55 – 55v.
106
Nestas três estrofes, Luís de Camões atribui à rainha D. Maria não apenas uma vaga
noção do perigo, mas o conhecimento político e prático da situação que se impõe à
Península Ibérica como uma mensageira diplomática certeira – podemos afirmar a partir de
três versos “De Africa toda gente fera & estranha / O grão Rei de Marrocos conduzio /
Pera vir possuir a nobre Espanha” uma vez que a noção de “Espanha” se misturava à de
Península Ibérica, devido ao fato de que o território era conhecido à época, e desde os
romanos, como Hispania. A partir destas estrofes, sabemos que a D. Maria camoniana está
ciente de onde vêm os mouros (Marrocos), de que maneira alcançaram o território ibérico
(via marítima), o tamanho e o poderio de seus exércitos (“Poder tamanho junto naõ se
vio”), as prospecções sobre a situação de Castela (um exército menor do que o mourisco,
uma cidade sitiada, a provável queda do rei e do reino), as prospecções sobre sua própria
situação (com a queda de Castela, D. Maria não ficaria apenas viúva: seria a viúva pobre
de um rei deposto. Perderia suas posses, de arras e dotes, perderia seu status na realeza
local, perderia em valor de negociação para um novo casamento, portanto, sem marido,
sem reino, e sobretudo sem ventura.) A D. Maria cronística aborda os mesmos pontos em
seu discurso:
145
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 55v. [Grifos nossos.]
107
exércitos, frotas e dinheiro para o esforço de auxílio ao rei de Castela, D. Afonso XI (“(...)
gentes darmas, & Frotas, & tizouros, de seus Reynos (...)”); alude à faceta cruzadística que
dava o tom do embate (“(...) ajudar Dom Affonso seu marido, contra os Mouros imigos da
Fee, & da Cruz (...)”) de maneira muito similar ao argumento que poderia ter sido utilizado
pelo rei de Castela e que podemos observar no texto da Crônica de D. Afonso XI – e
também na de D. Afonso IV. Por fim, a D. Maria cronística encerra seu apelo de forma
semelhante à sua representação camoniana, recorrendo à lembrança do poderio lusitano em
confrontos passados com os mouros – demonstrado pelos seus antepassados – e atribuindo
“certa, & desejada victoria” à vontade de Deus.
Ambas as obras, poema e crônica, apresentam-nos D. Maria na mesma situação – em
audiência com D. Afonso IV, suplicando por ajuda – e atribuem a ela a mesma postura e o
mesmo discurso, no qual ela solicita que a cristandade da terra da Espanha ofereça guerra
ao mouro invasor. D. Maria vai até Portugal como filha e esposa, mas argumenta como
infanta de Portugal, rainha de Castela e diplomata da causa cristã: ela expõe o perigo,
informa as circunstâncias, leva a mensagem de seu marido e soberano e solicita a ajuda em
termos militares, alegando os riscos práticos para Portugal e Castela de uma derrota de tal
magnitude.
Tanto a Crônica de D. Afonso IV quanto Os Lusíadas seguem suas narrativas na
mesma direção: após ouvir o apelo de D. Maria, o rei de Portugal toma a sua decisão
acerca de uma participação na batalha que se aproxima contra os mouros. Há diferença,
entretanto, na apresentação do personagem. N’Os Lusíadas, D. Afonso IV não profere as
palavras de concessão, de atendimento ao apelo da filha. Camões representa a aceitação da
empreitada através do gesto do rei:
146
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 56v.
108
N’Os Lusíadas, D. Afonso IV marchar para a guerra ao lado de D. Maria não é uma
descrição de um pai que é acompanhado por uma filha: é uma representação do reino de
Portugal avançando para ajudar a Castela, é a cristandade seguindo para a luta contra o
mouro infiel. Camões descreve os descendentes de D. Afonso Henriques caminhando para
a vitória da Batalha do Salado, o próprio espírito cristão lusitano que serve de alavanca
para o processo de aplicação do projeto político de legitimação, construção de memória e
continuidade da Dinastia de Avis.
Na Crônica de D. Afonso IV, Rui de Pina trata do mesmo assunto – a aceitação do
pedido de ajuda, a ida de D. Afonso IV e D. Maria a Castela – por uma perspectiva
sensivelmente diferente, ainda que tanto a cronística lusitana quanto o épico obedeçam aos
mesmos princípios legitimadores avisinos. A diferença crucial é que o cronista concede
voz ao rei de Portugal:
147
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 56.
148
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 55.
109
Ainda que a narrativa cronística acerca da ida de D. Maria soe menos épica que a d’Os
Lusíadas, tal fato não diminui a importância da volta ao reino da rainha de Castela
acompanhada do exército português às suas costas. D. Maria cumpre o dever que lhe fora
dado, não apenas o de retornar com ajuda, mas aquele que lhe fora imputado no momento
do matrimônio que fundamentara a aliança Portugal-Castela, o papel de rainha, de
advogada, de intercessora e de mãe do reino castelhano.
Analisamos que a partir do momento em que o discurso é atribuído à D. Maria –
direta ou indiretamente – é a Rainha de Castela que ocupa o lugar de fala. É a mulher que
149
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 56.
150
Ibid., p. 56.
110
assume uma miríade de papeis políticos ao longo dos dois textos. D. Maria é a advogada
do povo castelhano contra os invasores mouriscos, embaixadora de Castela em Portugal,
rainha de um rei que se vê sob um perigo real de destituição, e símbolo físico de um acordo
de paz que obriga a colaboração mútua entre os reinos por ocasião de uma guerra. É uma
mulher que faz o caminho de volta para a casa, cumpridora dos papeis que lhe foram
imputados por ocasião de seu matrimônio com o rei de Castela. Tais qualidades impostas à
representação de D. Maria dialogam com um modelo bíblico de mulher, tal como
abordamos no início deste capítulo e detalhamos a partir deste ponto.
151
COZER, Miriam Cabral. Op. Cit., p. 1.
152
CASAGRANDE, Carla. The Protected Woman. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.;
PERROT, M. (Org.) Op. Cit., p. 78 – 79.
111
153
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 54v. – 56.
112
despois foy Rey [...]”154, no capítulo V); “coroada” (cap. V), “com a graça de Deos e
saude” (cap. V, na ocasião do parto do Infante D. Pedro de Castela),155 “com gramde dor,
& muyta tristeza”, por conta da traição do rei com D. Leonor de Guzmán (cap. VII); “ella
com muyta mansidam, & grande paciencia sofria” (cap. VII);156 virtuosa (“[...] com mais
temperança [...] esta virtude antre às outras teve sempre á Rainha Dona Maria[...]”; cap.
XXXIII)157; detentora de “grande humildade”, “Senhora” e “mesageira”(cap. LVI).158
Os textos, camoniano e cronístico, representam D. Maria em termos que, além de
muito similares entre si, pertencem ao mesmo eixo de atributos valorizados pela Igreja:
honestidade, humildade, caridade, devoção – a Deus, ao reino, ao rei, ao marido, ao pai;
honradez, paciência, diligência nos deveres de mulher, modéstia, gentileza e virtude.
Mesmo quando se descreve a beleza de D. Maria n’Os Lusíadas, no momento em que a
rainha vai ao encontro do rei para pedir ajuda, esta beleza não se versa num contexto de
vaidade, languidez ou luxúria, mas de contemplação da aparência de uma mulher bela em
sofrimento.
Ora, estes termos de qualificação, aliados com o contexto político dos antecedentes
de D. Maria, somados aos papeis que ela exerce no contexto da Batalha do Salado – rainha,
esposa, filha, mãe, mensageira, intercessora, advogada, redentora – dão a esta personagem
as atribuições do exemplo de mulher supremo para a Cristandade, alinham a representação
da rainha de Castela ao modelo da Virgem Maria – filha nascida sem pecado, esposa
mística de Deus, mãe de Jesus Cristo, intercessora e advogada dos cristãos junto ao Filho,
receptora e propagadora da Boa Nova, Rainha dos Céus, origem da vida.159 Como expõe
Jacques Dalarun, a Virgem Maria era a mãe dos homens por excelência, de poder
intercessor e protetora dos pecadores, os quais encontram alento em sua piedade maternal.
A Mãe de Cristo é a esperança da salvação, e esta característica se pode atribuir à Maria de
Portugal no contexto do episódio da Batalha do Salado.
Still, they were firmly within the tradition (...) one of poetic exaltation of
the “always precious virgin,” (…) of filial piety for the Mother of Christ,
of confidence in the intercessory powers of Mary, “the sinner’s refuge”
154
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 7v.
155
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 7v. – 8v.
156
Ibid., 11v.
157
Ibid., p. 34.
158
Ibid., p. 55v.
159
DALARUN, Jacques. The Clerical Gaze. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT,
M. (Org.) Op. Cit., p. 23.
113
and “man’s hope”. (…) Mary was the mother par excellence, in whose
bosom the unworthy son could bury his shame. 160
Estas características marianas estão intrinsecamente imbuídas nas representações de
D. Maria de Portugal, como analisamos através da forma como o modelo fora construído
ao longo da vigência da literatura moralizante avisina. A representação de D. Maria, tanto
no épico quanto na crônica, não está direcionada para uma santificação da personagem
através da associação da rainha de Castela com a Virgem Maria – afinal de contas, a
Virgem Maria era um modelo que nenhuma mulher poderia atingir, mas de quem todas
deveriam tentar se aproximar.161 O protagonismo de D. Maria de Portugal conecta-se aos
movimentos diplomáticos existentes entre os dois reinos e que se sustentavam, em boa
parte, nos acordos matrimoniais realizados por conveniência política. Trata-se de construir
um panorama harmonioso com a totalidade do projeto político avisino. N’Os Lusíadas, o
episódio da Batalha do Salado é um momento de estabelecimento de legitimação por
exibição de um sustentáculo da continuidade entre as dinastias de Borgonha e Avis,
enredando as trajetórias destas duas dinastias através da elaboração de um mito fundador
que estabelece elos inquebrantáveis entre elas.
Tal mito fundador camoniano faz parte da estruturação do poder simbólico avisino
que, neste episódio, tem por núcleo a honradez e o virtuosismo da realeza lusitana em
relação aos acordos diplomáticos, características essenciais para que a imagem dos
primeiros reis de Portugal fosse moralmente positiva.162 A representação de D. Maria de
Portugal associada ao modelo mariano no épico camoniano significa, portanto, que esta é
uma rainha portuguesa que alcança grande virtude ao aproximar-se, através de seus atos
enquanto filha, esposa, rainha e mãe, das características exemplares da Virgem Maria; um
elemento fundamental para a exaltação de Portugal.
160
Em tradução livre: Ainda assim, eles eram firmes dentro da tradição (...) uma das exaltações
poéticas da ‘sempre preciosa virgem’ (...) e de piedade filial pela Mãe de Cristo, de confiança nos
poderes intercessores de Maria, [era] ‘o refúgio dos pecadores’ e ‘a esperança do homem’. (...)
Maria era a mãe por excelência, em cujo seio o filho indigno poderia enterrar sua vergonha. Ver em:
DALARUN, Jacques. The clerical gaze. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT, M. (Org.)
Op. Cit., p. 25.
161
FRUGONI, Chiara. The imagined woman. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT,
M. (Org.) Op. Cit., p. 368.
162
SOUSA, Armindo de. 1325 – 1480. In:MATTOSO, José. (Dir.) Op. Cit., p. 454 – 455.
114
CAPÍTULO IV
do Fruto da Árvore do Bem e do Mal e incita Adão a fazer o mesmo, atos que
ocasionaram a Queda do homem e da mulher e o Pecado Original. Ambos estes
modelos bíblicos 164 encontram-se na margem oposta dos valores que o modelo de
mulher bíblica da Virgem Maria transmite. Servem ao propósito pedagógico de
instruir mulheres nas características e atributos que não deveriam possuir:
curiosidade, rebeldia, insubordinação, pró-atividade, vaidade, loquacidade, liberdade
sexual, desonestidade, indiferença a Deus, entre outros. Resumidamente, a mulher
demoníaca e a mulher tentadora eram os modelos sobre os quais a mulher deveria
refletir acerca de suas más atitudes e posturas, e Lilith e Eva correspondem aos graus
mais altos destes modelos.
Entretanto, não é possível atribuir qualquer modelo à personagem de D. Inês de
Castro – estes dois ou quaisquer outros – sem que percorramos o mesmo caminho de
conhecimento que trilhamos para compreender o processo de atribuição de modelo a
D. Maria de Portugal. É preciso que tornemos a observar os antecedentes de D. Inês
de Castro, suas características particulares, sua apresentação, seu discurso e suas
ações n’Os Lusíadas e nas Crônicas Régias. Analisar a personagem para desvendar se
o seu exemplo alinha-se ao modelo de Lilith, de Eva ou de outra mulher bíblica é
imprescindível. E isto exige a compreensão da construção da personagem nas fontes e
também a análise de quais foram os atributos a ela cedidos para que se alinhasse com
este ou aquele modelo, sem nos prestarmos a um maniqueísmo que não seria de
grande contribuição para o nosso trabalho.
I. Exórdio.
O episódio de D. Inês de Castro n’Os Lusíadas inicia-se em 1355, no dia, no
momento e no local em que ocorre a execução da dama galego-castelhana que era
amásia do Infante D. Pedro. Sua história em Portugal, contudo, inicia-se um pouco
antes da Batalha do Salado, em 1340, após a negociação de paz que possibilitou a
aliança entre Portugal e Castela. Um dos termos deste acordo era a libertação de D.
Constança de Peñafiel do cativeiro imposto pelo rei castelhano em Toro, para
164
No caso de Lilith, seria mais exato dizer que seu modelo é baseado num folclore medieval
concebido através da interpretação do Livro de Isaías e de evangelhos apócrifos que não teriam sido
selecionados, ao longo dos séculos, para fazer parte do conjunto de tex tos que hoje conhecemos com
Bíblia. Tudo isto, contudo, não reduz a importância do modelo da mulher demoníaca que Lilith
representa no tardomedievo. Para mais, ver: FRYE, Northrop. Op. Cit., p. 173 – 175.
116
consumar seu matrimônio, já que já era casada, por procuração, com o infante D.
Pedro de Portugal.
165
BAYÃO, Jozé Pereyra. Supplemento a esta chronica. In: LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 416 –
418.
166
Ibid., p. 428 – 430. [Grifos nossos.]
117
fora casada com D. Fernando de Castro, nobre castelhano e Senhor de Lemos e Sarriá
– terras em Castela que transmitiria ao primogénito, D. Pedro Fernandes de Castro,
pai de D. Inês. Significa que, não apenas o pai de Inês de Castro era detentor de
terras, títulos e cargos de confiança em Castela, mas era um senhor influente o
suficiente para casar-se com uma filha de rei, tornando seus filhos parentalmente
relacionados à realeza portuguesa por via colateral (através da mãe, que era meia -
irmã da rainha de Portugal à época, D. Beatriz). O respaldo de uma família
politicamente influente, de considerável fortuna e tão próxima do poder régio, faz de
D. Inês de Castro uma noiva elegível a qualquer família aristocrática do cenário
nobiliárquico ibérico, ainda que ela fosse uma filha natural de D. Pedro Fernandes de
Castro. Sobre a posição de D. Inês de Castro no círculo da comitiva de D. Constança
de Peñafiel, o padre Jozé Pereyra Bayão acrescenta à Crônica de D. Pedro I:
167
BAYÃO, Jozé Pereyra. Supplemento a esta chronica. In: LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 430 –
431.
118
(...) e se algum quiser dizer, que muitos foraõ já, que tanto, e mais,
que elle amárão, assim como elle em suas Epistolas, respondesse,
que não falemos em amores compostos, os quaes alguns Authores
abastados de eloquência, e florecentes em bem ditar ordenaraõ,
segundo lhes aprouve, dizendo em nome de taes pessoas razões que
nunca nenhuma dellas cuidou, mas tratamos daqueles amores que se
contaõ, e lem nas Historias, que seu fundamento tem sobre verdade.
E este verdadeiro amor houve ElRey D. Pedro para com Dona Ignez,
como della se namorou sendo cazado, e ainda Infante de sorte que
posto que della no começo perdesse vista, e falla, estando apartada,
como ouvistes * que he o principal meyo de se perder o amor, nunca
cessava de lhe enviar recados(...).171
168
LOPES, Fernão. Op. Cit, p. 392 – 393.
169
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 68.
170
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 57v.
171
LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 393 – 394.
172
Ibid., p. 431 – 433.
119
173
TOLEDO, Maria Emília Miranda de. Razão de Estado x Razão de Amor na tragédia A Castro
de António Ferreira. In: MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. (Org.) Op. cit.,
p. 118.
174
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 68.
175
BAYÃO, Jozé Pereyra. Supplemento a esta chronica. In: LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 433.
[Grifos nossos.]
176
O outro irmão de D. Inês, D. Fernando de Castro, hesita em envolv er-se diretamente nas
questões que o meio-irmão D. Álvaro de Castro levanta em Portugal. Provavelmente por ser o
herdeiro legítimo de D. Pedro Fernandes de Castro, não poria em risco sua posição social da forma
que D. Álvaro o fez ao aproveitar-se da posição social da irmã no reino português. Contudo, D.
Fernando não se opõe a nenhum dos movimentos ousados do irmão em relação ao Infante de Portugal
– como por exemplo, a conspiração acerca da coroa de Castela. Para mais, ver: FERNANDES, Fátima
Regina; FRIGHETTO, Renan. Op. Cit., p. 151 – 154.
120
177
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 69. [Grifos nossos.]
121
literariamente os dois exemplos, 178 as duas personagens, e adota uma posição que será
a linha-guia de toda a extensão desta parte de nossa fonte principal: o poeta atribui a
D. Inês o título de “Rainha”:
(...) E sendo lembrado de honrar seus ossos, pois lhe não podia mais
fazer, mandou obrar hum muymento, (ou tumulo) de alva pedra, todo
muy sutilmemte lavrado, pondo elevada sobre a tampa de cima a
imagem della com coroa na cabeça, como se fora Rainha (...) 180
181
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 58. [Grifos nossos.]
182
A estrofe seguinte, CXXI, também dedica-se à exploração do amor de D. Pedro e D. Inês,
mas não possui mais informações de grande peso historiográfico, dedicando -se ao versar lírico acerca
da relação harmoniosa entre o infante e a aristocrata, valendo-se de descrições que também existem
em outros momentos e que poderemos analisar em conjunto com outros fatores. A saber: Do teu
Principe ali te respondião, / As lembranças que na alma lhe morauão, / Que sempre ante seu s olhos
te trazião, / Quando dos teus fermosos se apartauão / De noite em doçes sonhos, que mentião, / De
dia em pensamentos que voauão. / E quanto em fim cuidaua, & quanto via, / Eram tudo memorias de
alegria. Ver: Ibid., p. 58.
183
Ibid., p. 58. [Grifos nossos.]
123
184
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 70v. – 71. [Grifos nossos.]
185
CAMÕES, Luís Vaz de. Op Cit., p. 58.
124
pensa em seus filhos e em seu parceiro no momento de encarar o ordálio com o rei,
pensamentos que seriam típicos de boa esposa e uma boa mãe, que apenas teriam a
advogar em seu pleito pela vida, se ela não representasse para D. Afonso IV o grande
escândalo de um futuro rei incestuoso e adúltero. D. Inês não teme a morte, mas se
entristece e enternece ao pensar em D. Pedro e nos infantes que deixaria caso
morresse naquele momento. A postura de D. Inês de Castro, segundo a perspectiva
camoniana, é a de um cordeiro consciente de sua imolação. A Crônica de D. Afonso
IV não descreve esse tipo de pensamento tão íntimo – nem poderia, de acordo com
seu tipo de texto e discurso – mas narra que D. Inês teria tentado comover D. Afonso
IV através de seus filhos:
Enquanto Camões a descreve nos tons dramáticos da mulher (e mãe) que vai,
subjugada, ao encontro da morte e ainda assim tem firmeza para erguer um apel o por
189
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71v.
190
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., 58v.
126
sua vida, Rui de Pina opta por representa-la altiva nos momentos que lhe antecedem o
fenecer. A coragem, entretanto, é uma constante nos dois discursos e o motivo pode
não ser tão claro à primeira vista, mas Rui de Pina colabora com nossa interpretação
ao elucidar um detalhe importante acerca da descendência de D. Inês e D. Pedro:
(...) & a Infanta Dona Beatris, que despois da morte de elRey Dom
Pedro & em tempo de elRey Dom Fernando de Portugal, seu irmaõ,
foy cazada em Sanctarem com Dom Sancho de Albuquerque filho
bastardo deste Rey Dom Affonso de Castella, & de Leanor Nunes de
Gusmam, de que já disse, & irmaõ de elRey D.Pedro, & de elRey D.
Anrique (...) & pario D. Leanor que foy molher do Infamte D.
Fernando de Castella, que despois foy deste nome o primeyro Reu de
Aragam, & esta D. Leanor, foy mãy da Raynha Dona Leanor, molher
de elRey Dom Duarte de Portugal, madre de elRey D. Afonso o
Quinto, de maneyra que desta Dona Ines de Castro vem tambem os
Reys de Portugal, da parte de molheres, porque de Dona Beatris dua
filha molher do Conde Dom Sancho Dalbuquerque tresavò de elRey
Dom Manoel, que hora he nosso senhor, a saber mãy de Dona
Leanor Raynha de Aragam, a qual foy mãy de D. Leanor Raynha de
Portugal, mãy de elRey D. Affomso o quinto, & do Infamte D.
Fernamdo pay do dito Rey D. Manoel. 191
191
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 68v.
192
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59v.
193
“Bonina” é um nome popularmente dado a vários tipos de flor, entre elas: margaridas,
calêndulas e uma espécie conhecida no Brasil como “maravilha”. Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/bonina> Acesso em: 21 Out. 2014.
194
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 60.
127
atribuído a esta personagem quando ela apela pela sua vida e pelo bem de seus filhos
a D. Afonso IV.
Todos estes não se aplicam a um modelo negativo de mulher, exceto se os
pusermos em colação com os dois primeiros adjetivos que Camões utiliza para
descrever D. Inês: “misera, & mezquinha”. Estes são os termos que desequilibram a
balança e, entretanto, entre a coleção de vocábulos e apresentações positivas, só é
possível compreender tal disparidade através da análise do discurso e das ações
atribuídos à D. Inês no poema camoniano.
(...) & posto que por elRey, & a Rainha Donna Breatis, & pelo
Arcebispo de Braga Dom Gonçallo Pereyra, & por outros prelados,
& senhores isto fosse aconselhado ao dito Infante Dom Pedro, & a
inda dito com certa declaração, & comsultas que avia continuas da
morte de Dona Ines pera que se a saluasse, ou segurasse em tal
lugar que sua vida naõ corresse risco, elle dito Infante avendo que
tudo eraõ meaças, terrores, que se naõ aviaõ assim de executar,
como se praticauaõ (...) numqua quis a isso obedecer (...) [elRey] Se
veo a Coimbra onde ella estava nas cazas do Mosteyro de Santa
Clara, a qual sendo avizada da hida de elRey, & da iroza, & mortal
128
195
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71v.
196
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 58v.
129
Camões narra que, num último ato de ousadia e desespero, D. Inês propõe
exílio, em qualquer terra que seja distante, inóspita ou selvagem, que ainda assim
seria melhor do que morrer e deixar os infantes sozinhos. Ela propõe afastá-los da
corte, leva-los com ela. O poeta não explicita os motivos de pedido tão inusitado –
levar crianças para o exílio cruel (“Na Scitia fria, ou la na Lybia ardente / (...) onde
se vse toda a feridade, / Entre Liões, & Tigres, (...)”), infantes, seria arriscado.
Contudo, quando recordamos o contexto dos eventos que envolvem os motivos para a
morte de D. Inês de Castro podemos entender a implicação camoniana sobre o
afastamento dos infantes inesianos:
198
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59v.
199
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71.
131
200
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 60v.
201
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71v.
202
Ibid., p. 71v.
203
Citamos Silvana Vecchio sobre a tipologia do amor medieval e tardomedieval tal como
pregado pela Igreja. Ainda que o texto faça referência ao amor entre marido e mulher, é possível
dialogar o tema com o relacionamento de D. Inês e D. Pedro, uma vez que em tudo eles possuíam
uma vida conjugal nos moldes do que seria comum à época, exceto na legitimidade da existência de
um compromisso matrimonial de fato. Citamos, em tradução livre: O dever primordial de uma esposa
era o de amar seu marido. A exortação ao amor (dilectio) era uma recomendação constante (...) O
pregador Gilberto de Tournai (...) distinguia dois tipos de amor. O primeiro era o carnal, alimentado
pela luxúria e caracterizado pelo excesso. Era comparável ao adultério no tocante da causa das
mesmas consequências desastrosas – lascívia, ciúme, desvario. Em contraste, Gilberto descreveu o
132
One day, a girl named Dinah stepped out of her house to see
the ‘daughters of the land’ in the foreign country to which her family
had brought her. She was curious, she wanted to see everything, find
verdadeiro amor conjugal, (...) Fora Gilberto outra vez quem retratou uma imagem idílica da vida
conjugal, na qual a reciprocidade do amor garantia serenidade, honestidade e paz doméstica, que
por sua vez, originavam fidelidade mútua e apoio e, finalmente, salvação. VECCHIO, Silvana. The
good wife. In: In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER, C.; PERROT, M. (Org.) Op. Cit., p. 109 – 110.
133
out, learn. But she was immediately seen: the king’s son fell in love
with her, ‘lay with her, and defiled her’. He wanted to marry her, but
Dinah’s family would not forgive the insult. Her brothers took arms,
sacked the town and slayed all its men, including the king and his
rash son.
Dinah, the daughter of Jacob and Leah, was a biblical
character. Her story, told in Genesis, chapter 34, harks back to
faraway times and places. Yet Dinah became a familiar figure for
western women in Middle Ages, present in their everyday life; a
young, unwary, unlucky friend one had better not be friendly with
and certainly not imitate. 204
204
Em tradução livre: Um dia, uma menina chamada Diná saiu de sua casa para ver ‘as filhas
da terra’ no país estrangeiro para o qual sua família a tivera levado. Ela era curiosa, ela queria ver
tudo, descobrir, aprender. Mas ela foi imediatamente avistada: o filho do rei apaixonou-se por ela,
‘deita-se com ela e a deflora.’ Ele tencionava casar-se com ela, mas a família de Diná jamais
perdoaria o insulto. Seus irmãos pegaram em armas, saquearam a cidade e assassinaram todos os
homens, incluindo o rei e seu imprudente filho.
Diná, a filha de Jacó e Lia, fora uma personagem bíblica. Sua história, narrada em Gênesis,
capítulo 34, remonta a lugares e tempos longínquos. Ainda assim, Diná transformou -se numa figura
familiar para mulheres medievais ocidentais na Idade Média, presente em suas vidas cotidianas; uma
jovem, inadvertida e desafortunada amiga que seria melhor não cultivar amizade e certamente não se
deveria imitar. CASAGRANDE, Carla. The protected woman. In: DUBY, G.; KLAPISCH-ZUBER,
C.; PERROT, M. (Org.) Op. Cit., p. 84. [Grifos nossos.]
134
D. Inês peca e sabe que o faz: ela rende-se ao amor e a todos os artifícios necessários
para continuar levando adiante seu romance com D. Pedro – a correspondência no
exílio, o contentamento em permanecer dez anos em situação marital clandestina, os
filhos, nascidos fora de um laço matrimonial público e religiosa e juridicamente
reconhecido. Quando chega o seu Dia do Juízo particular, ela pede perdão, implora
por uma penitência mais branda, pela remissão, e quase consegue, mas acaba punida
pelos seus pecados, por ser “misera & mezquinha”. Ou seja, não só a consumação de
um ato pecaminoso, mas o conhecimento de tal ato, de suas consequências, e o
arrependimento deste ato é a questão capaz de alinhar a representação de D. Inês de
Castro a um modelo bíblico.
N’Os Lusíadas e nas Crônicas Régias, D. Inês busca o perdão do rei. Ela diz-se
inocente e pede clemência e misericórdia enquanto mulher – de D. Pedro – e mãe –
dos infantes D. João, D. Dinis e D. Beatriz. “Que despois de ser morta foy
Rainha”205. Ora, em tudo D. Inês fora esposa de D. Pedro: viveram por dez anos uma
vida marital pública, tiveram quatro filhos – dos quais três chegaram à idade adulta e
tiveram descendência – todos reconhecidos pelo pai e por ele legitimados. Depois de
morta D. Inês, D. Pedro alega nas Cortes que foram casados sob os olhos da Igreja e
de Deus. E ela fora postumamente coroada. Ora, todos estes fatores, narrados por
Fernão Lopes, Rui de Pina e Camões, incontestes no discurso de nossas fontes,
indicam que é possível atribuir à representação de D. Inês um modelo imensamente
popular na pedagogia pastoral tardomedieval e que se aplica, majoritariamente, às
mulheres casadas: o de Maria Madalena.
Segundo Jacques Delarun, Maria Madalena era o caminho do meio dos clérigos
católicos ao realizar a pregação para a salvação das mulheres casadas, uma vez que
estas pecam ao atender ao chamado procriativo de Deus (“crescei e multiplicai-vos”),
pecam ao cumprir seus papeis de esposas. Estas mulheres renunciam à santidade da
virgindade mas buscam e precisam da salvação. Era um dilema. A mulher casada não
poderia ser admoestada com o modelo de Eva, pois não seria uma mulher tentadora
que pecava por vontade, mas tampouco se poderia admoesta-la com o modelo da
Virgem Maria, cuja virgindade imaculada é o cerne de sua sacralidade perante Deus e
205
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 57v.
135
209
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 59.
210
Ibid., p. 58v.
137
CAPÍTULO V
Que assi dos Vates foy profetizado / E despois por IESV certificado.
– Os Lusíadas, Canto III, Estrofe CXVII
211
O Espelho Antagônico pode ser entendido como um instrumento alegórico para a comparação
dos episódios camonianos. Camões utiliza-se de uma fórmula para narrar exemplos de governança:
apresenta um episódio imbuído de significado positivo ou negativo para marcar como exemplo de
governança e; logo após, um episódio muito semelhante ao anterior, impregnado, contudo, de um
significado diametralmente oposto, realizando contrapontos em seus modelos de governação. O
Espelho Antagônico é, portanto, uma alegoria que ressalta as semelhanças e as diferenças entre esses
episódios, possibilitando sua comparação e, desta forma, a compreensão do modelo de governança de
Camões.
212
Entendemos o conceito de Poder Régio tal como José Mattoso o formulou: um poder oriundo
da noção de primus inter pares, mas que suplanta esta noção e que atribui ao rei “a manutenção da
justiça e da paz, acima das que os senhores e os concelhos podiam assegurar”, outorgado por acordos
de vassalagem e fidelidade dos senhores ao redor da figura do rei, hereditariamente transmissível,
além da autoridade de cobrar tributos, criar e estabelecer um aparelho estatal que lhe permitisse
realizar a administração do território e das finanças. Este movimento de consolidação do poder régio
significou a transferência da esfera de poder: o enfraquecimento gradual do poder senhorial, o
cerceamento do poder da clerezia e a geração de dinâmicas políticas que giravam em torno do rei, de
suas privanças e seus favorecidos. Para mais, ver: TENGARRINHA, José (Org.). História de
Portugal. São Paulo: UNESP, 2000, p. 13-15.
138
estado, uma condição que apenas a este rei era atribuída e que consta, nas Ordenações
Afonsinas, nas Ordenações de Dom Duarte e no Livro das Leis e Posturas. 213 O estado
real, portanto, é a consciência da condição do rei enquanto fiel do poder régio que lhe
foi outorgado, e que o legitimava – através das leis divinas e terrenas – para o trono e
suas obrigações para com a gente do reino. 214 Segundo Carvalho Homem, esta noção
da consciência baseia-se em três aspectos principais:
213
CARVALHO HOMEM, Armando Luís de. Rei e «estado real» nos textos legislativos da
Idade Média. En la España Medieval. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1999, n°22. p.
179. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=122364> Acesso em: 21 Jan.
2014.
214
Ibid. p. 180 – 181.
215
Ibid. p. 179 – 180.
216
Ibid. p. 182. (Adaptação: duas citações das Ordenações Afonsinas são feitas e si nalizadas por
aspas portuguesas no original: a primeira foi retirada pelo autor de OA, abertura do liv. I, p. 2 – 6; e
liv. V. Tits. I e XXV, p. 3 e 94 – 95; a segunda foi retirada pelo autor de OA, V, LXVII, 272.)
139
Kantorowicz, 217 que associa a pessoa do Rei à cabeça da entidade do reino, ao seu
corpus mysticum, o “corpo místico” que integrava o rei e o reino numa só entidade,
já se exibe na documentação ibérica da época do Baixo Medievo – inclusive
relacionando o rei não apenas à cabeça do reino, mas ao seu coração e sua alma.
220
COSTA, Ricardo da. A mentalidade de cruzada em Portugal (sécs. XII -XIV). In: Estudos
sobre a Idade Média Peninsular. Anos 90 – Revista do Programa de Pós-Graduação em História
da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n. 16, 2001-2002, p. 143 – 178. Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/artigo/mentalidade-de-cruzada-em-portugal-secs-xii-xiv> Acesso em:
11 Abr. 2014.
221
MATTOSO, José (Dir.). Op. Cit., p. 416.
141
225
COELHO, Maria Helena da Cruz; VENTURA, Leontina. A mulher como um bem e os bens
da mulher. In: A Mulher na sociedade portuguesa – Visão histórica e perspectivas actuais.
Colóquio de 20 a 22 de Março de 1985. Actas. Coimbra: Instituto de História Económica e Social,
Faculdade de Letras, 1986, p. 55-57.
226
Não afirmamos com este termo que estes movimentos de instrume ntalização eram sempre
realizados à revelia das mulheres, ou que estas não possuíam participação direta no que dizia respeito
aos seus próprios matrimônios. O que afirmamos aqui é que as mulheres, particularmente aquelas que
faziam parte da nobreza e da realeza, eram tidas politicamente como moeda de troca diplomática em
várias esferas políticas. Ver: COELHO, Maria Helena da Cruz; VENTURA, Leontina. A mulher como
um bem e os bens da mulher. In: A Mulher na sociedade portuguesa – Visão histórica e
perspectivas actuais. Colóquio de 20 a 22 de Março de 1985. Actas. Coimbra: Instituto de História
Económica e Social, Faculdade de Letras, 1986, p. 51-90.
143
castelhano fora convenientemente exilada. Esta paz fora crucial para que existisse a
parceria entre Portugal e Castela numa das mais importantes batalhas da guerra contra
os mouros: a Batalha do Salado. 227
Quando tratamos da instrumentalização feminina, é fundamental
compreendermos como é que funciona a dinâmica matrimonial no jogo diplomático
ibérico. Da mesma forma, necessitamos compreender como a representação desta
instrumentalização funciona no processo de criação de memória na Dinastia de Avis.
Portanto, temos dois eixos de análise para cruzar: por um lado, a exaltação dinástica
avisina como método de construção de memória e legitimidade para o trono português
e, por outro lado, a instrumentalização política feminina ocorrida por todo o medievo
e o consequente papel da mulher nas dinâmicas diplomáticas entre os reinos. É
através da comparação destes dois eixos de análise que podemos compreender de que
forma os episódios de Maria de Portugal e Inês de Castro n’Os Lusíadas se adéquam
ao projeto político avisino e ao contexto camoniano de abordagem das políticas
ibéricas e das relações luso-castelhanas. De maneiras diferentes – uma vez que cada
uma destas personagens tem papeis e posições distintos na política luso -castelhana e
na dinâmica matrimonial entre a nobreza e a realeza – Luís de Camões representa
estas personagens como atuantes no jogo diplomático ibérico 228, utilizando-o como
pano de fundo dos episódios do poema dos quais estas damas são protagonistas e
tratando-os como determinantes no processo histórico lusitano.
Para analisar as representações de D. Maria e D. Inês n’Os Lusíadas, devemos
levar em consideração dois contextos do poema que nos são relevantes: o contexto
interno, ou seja, o Portugal tardomedieval, de meados do século XIV, quando
ocorrem as ações de D. Maria e D. Inês narradas no poema; e o contexto externo, o
cenário do Portugal de Quinhentos, a conjuntura de produção d’Os Lusíadas, suas
exigências políticas e especificidades de governo.
A partir da observação deste aspecto de análise, podemos verificar que a
narrativa de Camões estabelecera entre elas um espelho antagônico, ou seja:
personagens de um mesmo contexto e universo que participam das mesmas
dinâmicas, porém sendo utilizadas para diferentes fins políticos dentro da narrativa
camoniana, dando amplitude e profundidade ao caráter político-exaltador do poema.
227
MATTOSO, José. (Dir.) Op. Cit., p. 406 – 408.
228
MACEDO, Jorge Borges de. Op. Cit., p. 124.
144
229
SILVA DIAS, José Sebastião da. Op. Cit., p. 55 – 72.
230
“Os cronistas e historiadores são usados como fontes históricas e como informadores do
vocabulário, semântica e sintaxe do Português Antigo.” Ver: RAMALHO, Américo da Costa.
Prefácio da 2ª edição. In: RODRIGUES, José Maria. Op. Cit., VIII.
145
231
MACEDO, Jorge Borges de. Op. Cit., p. 67 – 73.
232
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 62.
146
esperança e salvamento do reino que, por descuido remisso do rei morto, passara por
uma tempestade. Através desta passagem, podemos verificar que o discurso
camoniano, apesar de pertencer a um intuito exaltador, não é composto apenas de
louros de glória que Camões deita sobre as cabeças coroadas de Portugal. Os
Lusíadas é, também, uma obra de crítica e admoestação.
Durante os Cantos que dedica à memória histórica do poema, Camões realiza
uma narração em contraponto, trazendo à luz aspectos bons e ruins dos reinados,
conquistas e derrotas enfrentadas pelos reis portugueses. A todo momento Camões
estabelece uma comparação através de elementos avessos, antagônicos, e esta
comparação baseada em contrapontos está no cerne da proposta do poema: Camões
dedica sua obra a D. Sebastião e o aconselha a bem reger. Assim como s eus
ancestrais – lembremos sempre que há o levantamento constante da questão da
continuidade inquebrantável entre Borgonha e Avis – D. Sebastião deve ser um bom
rei, deve cuidar para que a fortaleza consanguínea da realeza lusitana não se rompa e
não se dê o capricho das paixões individuais. Camões exige que o rei tenha uma certa
postura para fazer jus ao seu trono, para que o povo esteja bem amparado e o reino
em segurança. Para isto, o poeta realiza comparações em contraponto durante a
narrativa, antagonizando situações para que sirvam de exemplo de governança. Sobre
este aspecto da epopeia camoniana, prosseguimos com Jorge Borges de Macedo, que
discorre:
233
MACEDO, Jorge Borges de. Op. Cit., p. 67 – 73.
147
ilustrar a necessidade de boa governança para Portugal, iniciaremos a discus são sobre
as semelhanças e diferenças entre os episódios de D. Maria de Portugal e D. Inês de
Castro, buscando o espelho antagônico que há entre eles. Em ambos os episódios são
representados atos da realeza e da nobreza em conflitos de governança versus
interesses pessoais. Para reis, famílias reais e os ramos mais próximos da nobreza,
este conflito significava afinar os limites que separavam os relacionamentos
particulares e as políticas mantenedoras do poder. Uma vez que os reis eram os
responsáveis pela continuidade do reino, pela permanência do status quo geral, não
poderiam pôr em risco a segurança do território em nome de suas emoções ou das
emoções de pessoas mais próximas. Esta mensagem é clara em Camões: o poder régio
sempre deve suplantar o poder das afeições humanas, e o poeta exemplifica isto
quando apresenta o episódio de D. Fernando, no Canto III:
Durante o Canto III, Camões expõe situações nas quais se exemplifica como os
sentimentos podem afetar os reinados e os episódios de D. Maria e D. Inês n’Os
Lusíadas têm a função de explorar este contraste entre os assuntos pessoais e a
governança de Portugal: enquanto o episódio da Formosíssima Maria seria uma
representação da abnegação real, no qual o rei une suas vontades pessoais à
administração de uma crise diplomática, o episódio da Linda Inês seria uma
exemplificação do que ocorre quando as paixões são toleradamente postas à frente
dos assuntos do reino.
234
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 61.
148
235
MATTOSO, José (Dir.). Op. Cit., p. 408.
236
Ibid., p. 408.
237
Rui de Pina fala-nos sobre um dito encontro de embaixadores portugueses e castelhanos para
resolver a querela da liberação de D. Constança, datando tal reunião em Maio de 1340 e dizendo que
pouco depois disso, a princesa castelhana e seu séquito – com Inês de Castro entre ele – chegou a
Portugal. O mesmo cronista data a Batalha do Salado em Outubro de 1340. Para mais detalhes, ver:
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 102, p. 132.
149
238
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit. p. 54 – 55.
239
“Os reinados de D. Afonso IV (1325-1357), D. Pedro (1357-1367) e D. Fernando (1367-
1383) foram dominados pela questão castelhana. Nessa época as relações entre Portugal e Castela
foram muito intensas e marcadas por casamentos, ingerências mútuas, escaramuças e guerras. D.
Pedro e D. Fernando beneficiaram famílias castelhanas a tal ponto que nas Cortes de 1371 e 1372 se
encontram protestos.” SALES, Mariana. Vínculos políticos luso-castelhanos no século XIV. In:
MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de. Inês de Castro – a época e a memória.
São Paulo: Alameda, 2008, p. 17.
240
RODRIGUES, José Maria. Op. Cit., p. 118.
150
Portugal,241 tornando-a cara ao rei e ao reino, porém não no âmbito amoroso e sim
político.
D. Maria é apresentada no épico como enviada de Castela em Portugal, como
embaixadora em meio à crise. Camões descreve a chegada de Maria à corte do pai em
termos dramáticos: entrada triunfal, postura dramática, cabelos em desalinho, face
molhada de lágrimas, um apelo emocionado, a previsão desastrosa do futuro instável
de uma Rainha viúva.
Por outro lado, ao analisarmos a Crônica de Afonso IV, composta por Rui de
Pina, podemos observar que o poema camoniano é corroborado pelo texto do cronista,
no trecho em que este aborda as vésperas da Batalha do Salado, seus planejamentos e
preparativos. Além disto, logo no início poderemos acompanhar como o cronista nos
conta que o Rei de Castela diz que “quizera ser por si o mesageiro a elRey de
Portugal” e, para isto, envia a rainha D. Maria, sua esposa, como se ele mesmo fosse
a tratar assuntos de Reino. Não se pode ignorar o estratagema de Afonso XI e a
função diplomática de D. Maria nos dias que precederam o embate ibérico com os
mouros em Tarifa. Observemos:
241
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 77.
242
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 55.
151
Observamos que há muita consonância entre o que diz a crônica e o que nos
conta Camões. A crônica apresenta-nos o seguinte cenário, ecoado por Luís de
Camões: Afonso XI envia a Rainha D. Maria a Portugal por querer “ser por si” o
mensageiro de toda a questão da invasão moura a Tarifa. Uma missão especial,
delicada e realizada por uma portadora que teria uma alta probabilidade de sucesso.
Camões e Rui de Pina também concordam sobre a maneira como D. Maria aborda o
assunto: o poeta diz que ela trazia os olhos “banhados de lágrimas” e “chorando”
apelou ao pai por Castela. Por outro lado, o cronista diz-nos que Maria solicita a
ajuda paterna com “grande humildade e muytas lagrimas”. Como podemos verificar, a
fronteira entre os assuntos públicos e os assuntos privados mistura-se às questões de
reinos, basta relembrar o viés político dos matrimônios e dar atenção especial para o
momento do texto supracitado em que o cronista Rui de Pina nos diz que o rei de
Portugal tinha “estreitos devidos” com o rei de Castela.
O panorama político ibérico – e europeu – era, como já mencionamos,
muitíssimo dependente de tais dinâmicas de acordos e uniões: conforme os
matrimônios entre as casas reais se estabeleciam, os reinos entremeavam-se numa
rede muito complexa de alianças e parentelas. Os assuntos de reino sobrepunham -se
aos de família – ou deveriam sobrepôr-se – porém, era nos âmbitos familiares que boa
parte da política régio-nobiliárquica se construía. 244 Ora, existia entre estes Afonsos –
o quarto de Portugal e o décimo primeiro de Castela – um contrato que os ligava em
colaboração na guerra, um tratado estabelecido por ocasião do matrimônio da infanta
com o rei castelhano, um débito, uma aliança política construída em âmbitos
familiares, como tantas outras vigentes e extintas àquela altura.
243
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 121 – 122. [Grifos nossos]
244
Para observar um exemplo de intrínseco quadro de parentescos que unia as casas reais
ibéricas – e algumas de além-Pirineus – ver: BRAGA, Paulo Drumond. Op.Cit. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4072.pdf> Acessado em: 6 Out. 2014.
152
(...) [D. Pedro] assi por elRey seu padre requerido, & admoestado
que cazase, ou dissesse se D. Ines hera sua molher pera ser por isso
honrada & tratada de todos como merecia, elle em vida, sempre
negoou que o cazamento entre elles era feyto, nem tam pouco queis
com outra molher cazar, para que daua escusas, & pejos que a sò
sua vontade, & affeyçam sem mais razoens favoreciam, & isto tudo
era sò por nam leixar Dona Ines de Castro, a que queria grande bem
& de que tinha os tres filhos, & huma filha (...) porque ella tinha
seus irmãos Dom Fernando de Castro, & Dom Aluaro Pires de
Castro, que eraon em Castella grandes senhores, & asi por respeito
dela começauam a ter muita parte em Portugal, & ouuesse delles
por isso grande receyo à vida, & successam do Infante Dom
245
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 58.
246
RODRIGUES, José Maria. Op. Cit., p. 367 – 368.
153
247
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 70v–71v.
248
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 71.
249
(...) Mas ella os olhos com que o ar serena / (Bem como paciente, e mansa ouelha) / Na
misera mãy postos, que endoudeçe / Ao duro sacrificio se offerece. In: CAMÕES, Luís Vaz de. Op.
Cit. p. 59.
154
250
CAMÕES, Luis Vaz de. Op. Cit., p. 54v.
251
Ibid., p. 55.
155
questões que exploraremos a seguir. Para Camões, o estado marital de Inês não lhe
impõe culpa, e é irrelevante no desenrolar de seu “caso triste e dino da memoria” 252, o
que também pode por nós ser observado nas Crônicas Régias. Fernão Lopes, ao tratar
deste assunto, abstém-se da controvérsia sobre o estado conjugal 253 de D. Inês e D.
Pedro quando, após descrever os argumentos do rei, de seus aliados e de seus
inimigos nesta questão, narra desta maneira:
E assim porque o entender he disposto sempre para obedecer à
razaõ, muitos que entonces isto ouviraõ, deixaraõ de crer o que
dantes criaõ, e apegaraõ-se a este rasoado, mas nós, que não por
determinar se foy assim, ou não, como elles disseraõ; mas sómente
por ajuntar em breve o que os antigos notarão em escrito, (...)
puzemos aqui parte do seu razoado deixando cargo ao que isto ler,
que destas oppiniões escolha qual quizer.254
252
Ibid., p. 57v.
253
A discussão sobre a plausibilidade do casamento de D. Pedro e D. Inês de Castro é realizada
por nós em trabalho monográfico. Cita-se: “(...) a legislação lusitana da época do episódio inesiano
nos diz que se um homem e uma mulher viviam juntos e realizam demandas domésticas juntos, se são
publicamente vistos como um casal – e se o público assim os souber e reconhecer, não se pode negar
o casamento, ainda que não sejam casados através dos processos religiosos da Igreja. A isto, o
Direito lusitano medieval chama de Casamento por Fama. (...) ainda no Livro de Leis e Posturas, há
uma lei sobre o casamento na qual se determina sua validade, quer este seja efetuado pública ou
clandestinamente (...) o Direito reconhece que pessoas que tenham se casado religiosamente na
clandestinidade tem seu matrimônio – e seu estado marital – considerados como válidos e legítimos,
sem pecado, desde que assim seja provado. Estes dois trechos de legislação podem nos ajudar a
compreender que D. Pedro e D. Inês, apesar de aparentemente manterem uma relação amásia,
poderiam ter sido legitimamente casados.” HOFFMANN, Raquel. O Grande Desvairo – a visão
camoniana sobre o episódio de Inês de Castro [monografia]. Rio de Janeiro: Universidade Gama
Filho, 2011, p. 48 – 49. Disponível em: <https://ufrj.academia.edu/RaquelHoffmann/Papers> Acesso
em: 21 Jan. 2014.
254
LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 287
156
poeta a adjetiva de “mísera” e “mesquinha” para, logo em seguida, dar -lhe o título de
“Rainha”. Como pudemos acompanhar, em apenas um verso, Camões transforma Inês
de Castro em Rainha póstuma de Portugal. Ao atribuir a esta mulher um lugar na
realeza portuguesa, o poeta estabelece um fio conector não apenas entre as
personagens, mas, sobretudo, entre os episódios e os propósitos políticos d’ Os
Lusíadas em si.
É conhecido o fato de que D. Pedro – já rei – mandou que se lavrasse um
túmulo régio para D. Inês, com efígie que portasse coroa e outros símbolos de realeza
e que se pusesse este túmulo num mausoléu real e ao lado do túmulo que o próprio
Pedro ocuparia quando morto. Também é sabido sobre o evento da grande trasladação
que fora feita dos restos mortais de D. Inês e sobre como os Infantes seus filhos
foram juridicamente legitimados, em vida do pai, como herdeiros do paterno trono de
Portugal, o que se confirma no testamento de D. Pedro.258 A imposição do título de
Rainha à D. Inês fora, portanto, um ato simbólico que partira do próprio rei D. Pedro
I e ecoara culturalmente ao longo dos anos, até alcançar Luís de Camões. Não é neste
aspecto do mito inesiano que devemos nos deter, e sim no contraponto feito pelo
poeta entre Inês e Maria: ao corroborar a tradição – como chama Fernão Lopes 259 –
Camões equipara Inês e Maria em seus stati sociais, criando um ponto de contato
entre as duas personagens e seus respectivos episódios, um elemento que utilizamos
em nossa análise, uma vez que a ameaça inesiana ao trono português já estaria
superada por completo. É preciso relembrar: os episódios de Maria de Portugal e Inês
de Castro dizem respeito a como o poder régio reage quando toca as paixões
individuais do rei, enquanto pessoa, ou das pessoas que o rodeiam e são peças do jogo
político entre os reinos.
Compreender como estas duas personagens são elementos de representação do
poder régio lusitano e quais são os lugares que estes episódios tomam n as
prerrogativas políticas d’Os Lusíadas, significa que precisamos analisar de quem esta
manifestação emana nos dois episódios. Camões deixa claro que as considera como
iguais – mesmo que no contexto do poema, alimentado pela crônica, Inês tenha sido
rainha postumamente – que ambas faziam parte da realeza e que os episódios tratam
sobre paixões da realeza. Entretanto, o poder régio, nestes casos, não emana delas:
258
LOPES, Fernão. Op. Cit., p. 272 – 276.
259
Ibid., p. 272.
158
Maria e Inês não o detêm, são satélites que refletem e dinamizam esta manifestação e
servem como catalisadores da ação do poder régio.
A fonte destas emanações é um elemento comum entre os dois episódios, um
personagem determinante para o desenrolar da narrativa e da coerência do projeto
político camoniano: D. Afonso IV de Portugal. Os dois episódios tratam de eventos
ocorridos durante o reinado deste rei e exploram como é que este rei lidou com tais
questões que marcaram o seu governo e como ele fez uso de seu poder para enfrentar
os desafios que estes episódios apresentam ao seu governo, através dos pontos de
vista das protagonistas, D. Maria e D. Inês. Instrumentos de uma política diplomática
fortemente apoiada em dinâmicas matrimoniais, Maria de Portugal e Inês de Castro
transformam-se, no poema camoniano, em símbolos representativos do projeto
exaltador camoniano e dos desígnios legitimadores avisinos de construção de
memória tradicional.
Se Maria lhe pedisse muito, D. Afonso não a socorreria, é o que diz o poema.
Contudo, como D. Afonso é sabedor de que, caso aquiescesse ao apelo da filha, as
forças somadas de Portugal e Castela poderiam resolver o problema castelhano e
também proteger Portugal da invasão mourisca, o pedido é concedido, nos termos de
reino e governança. A crônica nos esclarecerá a decisão de D. Afonso IV em favor da
filha e em favor de Castela.
(...) elle pedio à Raynha D. Maria sua molher que sobre isso viesse a
elRey seu Padre porque em cazo que a isso se demovesse como se
delle esperava, por ser Rey Christão, & taõ catholico, & ter com elle
tam estreitos devidos, & por saber que este mal a todolos Reys de
Espanha igualmente se podia estender porem cria que sua vista
della com sua intercessam, & assi com arrepresentaçam destas
necessidades em sua pessoa aproueitaria nellas muyto (...) 262
Quando Rui de Pina nos diz que entre os reis há “estreitos devidos”, isso quer
dizer que D. Afonso XI de Castela apela para as cláusulas do contrato de casamento
260
CAMÕES, Luís Vaz de. Op Cit., p. 54.
261
Ibid., p. 55v.
262
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 121-122.
160
com D. Maria, que dizem que os reis deveriam colaborar entre si em caso de
guerra.263 Em seguida, Camões narra que Portugal vai a caminho da batalha,
representado pelo rei e por Maria:
Entre todos no meio se sublima,
Das insignias Reais acompanhado,
O valeroso Affonso, que por cima
De todos, leua o collo alevantado,
E somente co gesto esforça & anima,
A qualquer coração amedrontado,
Assi entra nas terras de Castella,
Com a filha gentil Rainha della. 264
263
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 122.
264
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 56.
265
Como verificamos na citação seguinte, a Crônica nos diz que o Rei D. Afonso IV, a Rainha
D. Beatriz, o Infante D. Pedro e a Rainha D. Maria foram juntos pelo menos até Badajoz,
arrebanhando os exércitos portugueses para a batalha. Depois, D. Beatriz e D. Pedro partiram de
Badajoz para Estremoz, enquanto o rei D. Afonso IV e sua filha, rainha D. Maria, seguiram juntos
para encontrar o rei D. Afonso XI de Castela em Sevilha. Nada é dito acerca da rainha de Castela os
ter acompanhado além deste ponto. Ver: PINA, Rui de. Op. Cit., p. 56.
266
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 56.
161
267
CAMÕES, Luís Vaz de. Op Cit., p. 58.
268
PINA, Rui de. Op. Cit., p. 59.
162
Mais uma vez, a crônica e o épico harmonizam suas narrativas: ambas as obras
demonstram que D. Afonso IV teria se comovido pelos apelos de Inês – embora os
apelos do poema sejam ligeiramente diferentes dos do texto croníst ico – e desistido
de executá-la. Entretanto, o dever para com o trono e Portugal levam a cabo a
primeira decisão: Inês tem de morrer para que o trono não seja ameaçado por Castela,
através dos três filhos bastardos que a dama castelhana deu ao Infante port uguês. É
269
PINA, Rui de, Op. Cit., p. 154.
163
importante ressaltar que tanto o poema quanto a crônica são obras ligadas ao projeto
político avisino, então as posições políticas sobre o imbróglio de Inês de Castro são
parecidas pois, para legitimar a tradição e a memória sobre o trono de Avis é preciso
que a origem desta dinastia seja incontestável. Ao representar o rei D. Afonso IV, avô
do fundador da Dinastia de Avis, como um rei cumpridor de seu dever com o reino,
ambos os autores fundamentam a tradição avisina e exaltam a ancestralidade da
dinastia.
Ao longo da construção da narrativa camoniana sobre os episódios de D. Maria
e D. Inês e seu impacto no reinado de D. Afonso IV, podemos verificar que há a
intenção de representar que o poder régio tem o poder de vida e morte sobre os
súditos de um reino, seja na guerra ou em casos mais específicos. Consubstanciado na
pessoa do rei, o poder régio exige que o reino seja posto à frente das questões
pessoais de quaisquer indivíduos que estejam envolvidos com a governança. Em
nossa fonte, Camões representa nestes dois episódios o poder régio através dos atos
do rei Afonso IV nestes dois episódios, utilizando-se de modelos de representação:
quando o rei vai à guerra ao lado do rei castelhano e quando determina que Inês de
Castro seja executada, é possível identificar que o rei faz decisões salomônicas por
seu reino, decidindo aquilo que, para ele, seria o mais adequado para Portugal.
Por outro lado, este quadro só se completa quando observamos o segundo
aspecto desta representação da realeza: quando Camões demonstra que o detentor do
poder régio também tem suas decisões influenciadas por emoções mundanas. O
estado real, por mais que conceda consciência do ofício régio ao rei, também
compõe-se de humanidade. Isto torna-se evidente nas passagens, nas quais Camões
nos mostra D. Afonso IV atendendo à súplica desesperada de D. Maria; nos dizendo
que, enquanto pai, o rei não poderia negar ajuda a Castela; e posteriormente, quando
Camões demonstra que o rei teria se apiedado de Inês de Castro e tencionado voltar
atrás em sua determinação – impedido apenas por seus conselheiros. Ora, se o poder
régio emana do ser transcendental do rei e nele está concretizado, questiona -se como
é que esta exposição da condição humana de Afonso IV poderia ser benéfica ao
projeto político d’Os Lusíadas.
Podemos identificar que Camões, ao longo do mise en abyme de Vasco da
Gama e do Rei de Melinde, utiliza-se de um modelo régio muito claro: os reis de
Portugal seriam exemplos de conduta real – conduta de governança – e, ao mesmo
164
270
CAMÕES, Luís Vaz de. Op Cit., p. 61.
165
CONCLUSÃO
Pera seruiruos braço aas armas feito / Pera cantaruos mente aas Musas dada,(...)
– Os Lusíadas, Canto X, Estrofe CLV
Vozes de Rainhas
271
LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 525.
167
por Luís de Camões n’Os Lusíadas de Maria de Portugal e Inês de Castro com os
papéis político-diplomáticos a elas atribuídos enquanto mulheres da alta aristocracia
ibérica do século XIV para compreender qual é o papel de tais representações no
projeto político da literatura moralizante avisina.
No Capítulo I, intitulado História & Literatura, analisamos a relação entre
estes dois campos do conhecimento em nossa comparação. Destacamos suas
similaridades enquanto ferramentas intelectuais de percepção, interpretação e
representação do mundo, ao mesmo tempo que ressaltamos a necessidade de reservar
a cada uma suas metodologias e teorias neste âmbito. O diálogo entre História e
Literatura é imprescindível para esta dissertação, por conta da origem literária de
nossas fontes. Sem a análise do discurso das Crônicas Régias e d’Os Lusíadas e uma
historicização das informações adquiridas das fontes – através de um processo de
questionamento e problematização que respeite a experiência humana coletiva
representada, promovida e abordada em uma obra literária – não teria sido possível
sequer iniciar este trabalho. Identificar qual a característica comum entre nossas
fontes que as alinha ao projeto político da literatura moralizante avisina foi resultado
da análise efetuada no Capítulo I, que observa a obra literária como fonte histórica,
na qual destacamos fatores tais quais o discurso contido nos textos das fontes, a
narrativa e seus atributos, a perspectiva social imbuída nas obras e a interação destas
em sua sociedade.
Assim, pudemos concluir que o discurso das Crônicas Régias e d’Os Lusíadas
obedece ao propósito tripartite de construir a memória de Avis, estabelecer
continuidade entre Borgonha e Avis, e exaltar a legitimidade avisina. Também
observamos que esta tripartição forma a base da ideologia de moralização acerca da
genuinidade da Casa Régia de Portugal após a Crise de 1383-1385 contida nos textos
e que estes se dirigiam num movimento social descendente, da realeza para as
camadas que lhe eram inferiores – sobretudo a alta nobreza ibérica, que continha em
seus círculos aristocratas com pretensão ao trono português, e que precisava ser
contida para que não se fomentasse a ideia de um golpe de deposição da realeza
avisina, principalmente nos primeiros anos da Dinastia de Avis.
Discutimos, no Capítulo II, intitulado Poder Simbólico & Representação, a
aplicação destes conceitos na análise de nossas fontes e na subsequente composição
dos argumentos desta dissertação. Através deste quadro teórico, pudemos nos
170
273
RODRIGUES, José Maria. Op. Cit.
171
D. Maria e D. Inês nas Crônicas Régias e no épico camoniano, mas nos respalda para
compreender o papel destas duas personagens na narrativa do poema e na lógica da
literatura moralizante avisina. Alinhadas aos modelos bíblicos de, respectivamente,
Maria e Maria Madalena, D. Maria e D. Inês funcionam n’Os Lusíadas não apenas
como balizas morais do comportamento feminino, mas como marcos de episódios
salomônicos na trajetória do reinado de D. Afonso IV, sendo símbolos da escolha do
rei acerca de decisões de governança.
O último capítulo desta dissertação, o Capítulo V, intitula-se D. Maria e D.
Inês & a representação do Poder Régio: O Espelho Antagônico de Comparação e
converge para si todas as elucubrações dos capítulos anteriores, analisando o papel
das representações das duas personagens no contexto da literatura moralizante avisina
a partir das estrofes XCVIII a CXXXVII d’Os Lusíadas. Valemo-nos das noções de
D. Maria e D. Inês como símbolos do exercício do poder régio em Camões e de suas
funções contraposicionadas – uma simbolizando o positivo e a outra o negativo – para
elaborar uma ferramenta de comparação, o Espelho Antagônico, colocando -as frente a
frente, ressaltando suas proximidades e afastamentos, e relacionando-as com as
decisões de D. Afonso IV tal como narradas por Camões.
É o espelho antagônico de comparação que nos permite acessar o alinhamento
das personagens de D. Maria e D. Inês ao projeto político avisino. É no Capít ulo V
que detectamos um eixo comum entre os episódios de D. Maria e D. Inês é a temática
das paixões pessoais: o discurso de ambas está carregado de paixões, seja pela
emergência da guerra contra os mouros ou pela iminência da execução sumária. Tanto
D. Maria quanto D. Inês realizam apelos emocionados ao rei de Portugal e a decisão
que ele toma em cada situação, a maneira com a qual ele lida com as paixões
individuais, compõem os exemplos de governança pretendidos por Camões. Um
episódio, nestas condições, só se completa com o outro e juntos eles formam o uno
simbólico que participa do propósito avisino: gerar um modelo de reino acerca do
poder régio de vida e morte e uma exemplificação sobre a maneira pela qual um rei
deve pôr os benefícios ao reino à frente das emoções individuais.
As cinco etapas de nosso processo argumentativo culminam-se no Capítulo V
de forma gradativa e acumulativa: o conhecimento que produzimos não é estanque ao
longo do trabalho, não se segmenta com o passar das páginas, mas se acumula. Cada
capítulo carrega em si as experiências e as práticas do anterior, de modo que, ao
172
274
CAMÕES, Luís Vaz de. Op. Cit., p. 04.
173
aquelas pessoas que se libertaram da “ley da Morte” por “obras valerosas”275 são
representações do próprio reino de Portugal, em diferentes ocasiões, de diferentes
maneiras. No caso de D. Maria e D. Inês, ambas as representações construídas por
Luís de Camões sobre estas personagens d’Os Lusíadas são integrantes do projeto
político realizado pelo poeta em seu trabalho por simbolizarem os imbróglios que
envolviam os assuntos públicos do reino nos assuntos particulares daqueles que
estavam em seu comando. D. Maria e D. Inês simbolizam as decisões que um rei
precisa tomar, pondo sempre as necessidades do reino à frente das suas emoções e
dos assuntos pessoais que lhe envolvem.
A maneira através da qual as mulheres da aristocracia ibérica tardomedieval
estavam envolvidas na diplomacia entre os reinos daquela região constituiu outro
questionamento da pesquisa, cuja resposta encontramos na análise das dinâmicas
matrimoniais das sociedades medievais, nas quais as mulheres solteiras e enviuvadas
serviam como “moedas de troca” contratual, fiéis-depositárias de acordos políticos
através dos acordos de casamento que uniam muito mais que noivos e noivas, mas
famílias, suas riquezas, suas influências políticas e seus poderios bélicos. Estas
dinâmicas instrumentalizavam mulheres no tardomedievo, sobretudo as da realeza e
da alta nobreza, antes mesmo do ato da assinatura de um contrato de casamento: em
suas criações, almejavam prospecções de possíveis maridos e benefícios que suas
uniões poderiam originar. Tanto D. Maria de Portugal quanto D. Inês de Castro
sofreram, cada uma de maneira diversa, a influência dessa política matrimonial em
suas trajetórias sociopolíticas e o impacto que estas dinâmicas tiveram em seus
relacionamentos parentais imediatos e na conjuntura política do Portugal do
tardomedievo.
Por fim, o destaque que Luís de Camões dá a estas duas personagens em seu
poema, o protagonismo que entrega a D. Maria de Portugal e D. Inês de Castro é o
questionamento que está no cerne de nossa pesquisa e que transpassa inteiramente o
argumento desta dissertação. As representações camonianas de D. Maria e D. Inês
estão carregadas destes backgrounds sociopolíticos que suas trajetórias possuem. A
necessidade de compreender a influência de tais fatores n’Os Lusíadas e,
consequentemente na literatura moralizante avisina, levou-nos a analisar as
representações de D. Maria e D. Inês através de duas fases: a primeira, comparando
275
Ibid., p. 01.
174
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