Política Cultural e Musica - de Marchi

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Diversidade cultural nos mercados de comunicação e

TEORIA E CULTURA

cultura: um panorama das discussões e métodos de


pesquisa na indústria fonográfica

Leonardo De Marchi 1

Resumo

A diversidade cultural se tornou um critério importante para a formulação de políticas culturais. No


entanto, a definição conceitual desse elusivo termo e o desenvolvimento de técnicas de mediação de
seus níveis em mercados de comunicação e cultura constituem um grande desafio. É interessante
notar que a indústria fonográfica tornou-se um laboratório de desenvolvimento de técnicas de
pesquisa sobre diversidade cultural, contando, hoje, com uma vasta literatura dedicada ao tema.
Contudo, na medida em que a própria indústria fonográfica se digitaliza, torna-se urgente revisar
os fundamentos dessas pesquisas. Este artigo apresenta, portanto, um duplo objetivo. Por um lado,
propõe uma descrição dos métodos de medição da diversidade cultural no mercado fonográfico, a
partir da análise dos principais estudos dedicados ao tema. Por outro, descreve o negócio fonográfico
na era digital, a fim de avaliar a necessidade ou não de revisão dos tradicionais métodos de mediação
de seus níveis de diversidade cultural. Como considerações finais, aponta tópicos importantes para
futuras pesquisas sobre organização do mercado de comunicação e cultura e diversidade cultural.

Palavras-chave: diversidade cultural. Indústria fonográfica. Estrutura de mercado. Métodos de


pesquisa de diversidade cultural. Serviços de streaming.

Cultural diversity in the markets of communication and culture: an overview of


discussions and research methods in the music industry

Abstract

Cultural diversity has become an important issue for cultural policies. Nevertheless, the conceptual
definition of this elusive term and the development of techniques to measure its levels in communication
and cultural markets are a great challenge. Interestingly, the recording industry became a sort of
laboratory for the development of these sort of techniques, presenting nowadays a considerable
literature on the subject. As the recording industry becomes digital, however, there is an urgency to
revise the existing premises and instruments of measurement. The objective of the article is two fold.
On the one hand, I propose a overview of cultural diversity measurement methods in the recording
industry, commenting on the main papers on this topic. On the other, I describe the recording
business in the digital age, in order to evaluate the necessity of reviewing those traditional methods.

1 Bolsista PNPD/CAPES do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(PPGCOM-UERJ). E-mail: [email protected]

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As concluding remarks, I highlight some aspects desses mercados digitais.

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for future research on the organization of the Entre essas questões, abre-se espaço para o
culture market and cultural diversity. debate sobre diversidade cultural. Termo cuja
definição é propositalmente frouxa para que possa
Keywords: cultural diversity. Music industry. se adequar a diferentes interesses, a demanda
Market structure. Methods of researching pelo respeito à diversidade cultural pode ser
cultural diversity. Streaming services. justificada seja para defender o ideal liberal do
mercado de ideias, seja para defender políticas de
afirmação cultural de grupos minoritários e/ou
Introdução subalternos dentro de determinada sociedade.
Uma vez consolidada na agenda política dedicada
As tecnologias da informação digitais e em à regulação dos mercados de comunicação e
rede têm provocado uma destruição criadora cultura (sobretudo após a adoção do termo pela
dos mercados de comunicação e cultura, UNESCO), tornou-se imperativo desenvolver
notadamente de tradicionais ramos como técnicas para a medição da diversidade cultural
imprensa, rádio, televisão, cinema e fonografia. nos diferentes ramos da economia da cultura.
A digitalização de seus conteúdos tornou Essa tarefa provaria ser altamente difícil. Não
obsoletos os modelos de negócios de tradicionais apenas seria necessário encontrar um consenso
produtores e intermediários, os quais têm conceitual para o termo, como também
observado o surgimento de concorrentes desenvolver ferramentas de análise adequadas às
mais bem adaptados ao ambiente digital. De especificidades de cada mercado de comunicação
negócios que funcionavam numa lógica de e cultura. Afinal, muitos desses mercados, ao
produção industrial, tendo intermediários que contrário de ramos mais estabelecidos das
selecionavam o que deveria ser publicado (em indústrias de bens utilitários, possuíam poucas
jornais, revistas, discos ou transmitidos via informações prontas para análise e, em não
rádio ou televisão), passou-se a um sistema em poucos casos, tratava-se de informações de baixa
que a produção de conteúdos foi atomizada e a confiabilidade.
distribuição se tornou a fase crítica para o acesso e É interessante notar que, entre tais mercados,
usufruto dos bens culturais. Ao invés de produzir a indústria de discos, ou fonográfica, tornou-se
modelos similares em larga escala e transportá- um laboratório propício para o desenvolvimento
los para lojas físicas, hoje se faz necessário cultivar de técnicas de pesquisa sobre diversidade
redes de usuários, os quais se encarregarão da cultural. Afinal, trata-se de uma indústria de
disseminação dos conteúdos digitais. Com o alcance global, que experimenta uma dinâmica
notável barateamento do estoque e distribuição intensa de transformação de suas estruturas
dos conteúdos digitais, a tendência do mercado produtivas, além de ser um negócio de cultura
digital seria se converter numa grande coleção de que apresenta uma farta (e razoavelmente precisa)
mercado de nichos, em que todo tipo de produto quantidade de informação sobre o consumo de
encontraria seu consumidor, configurando um seus produtos, através de publicações informadas
tipo de economia de cauda longa (ANDERSON, pelas associações da própria indústria. Assim,
2006). O problema passaria a residir, portanto, na desde o pioneiro trabalho de Richard Peterson
capacidade de diferentes produtores acessarem e David Berger (1975) até a análise tripartite de
seu público, imerso num ambiente de abundante Heritiana Ranaivoson (2010), está disponível
informação, para negociarem diretamente seus um importante conjunto de pesquisas que
produtos. Isso acarreta uma transformação apresentam um panorama bastante interesse do
profunda nas estruturas de mercado desses debate sobre diversidade cultural e estrutura do
ramos do comércio de bens culturais, abrindo mercado de discos físicos.
toda uma série de questões sobre a dinâmica Contudo, na medida em que a indústria

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fonográfica se digitaliza, torna-se urgente revisar
os fundamentos das pesquisas anteriores. Afinal, Os estudos sobre diversidade cultural na
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elas se dedicaram a um negócio industrial de indústria fonográfica: principais métodos de


produção de discos físicos; agora, trata-se da análise
circulação de conteúdos digitais, o que implica a
aparição de novos players e hábitos de consumo. Pode-se dizer que a diversidade cultural
Além disso, os serviços de streaming fazem um tornou-se um critério importante para políticas
uso intensivo de algoritmos para a recomendação de comunicação e cultura contemporâneas,
musical. Mais do que um serviço automático ainda que não sem controvérsias seja sobre sua
submisso às demandas que partem dos usuários, definição, seja sobre utilização política. Em
tais algoritmos são agentes que apresentam uma sociedades de tendência política liberal, o termo
série de arquivos, preterindo tantos outros, de materializa o princípio do “mercado de ideias”, de
acordo com os cálculos que fazem da mineração acordo com o qual a maior diversidade de bens
de dados. Assim, como isso poderia afetar a culturais disponível permite fomentar diferentes
diversidade cultural do mercado fonográfico objetivos desejados: desde a escolha racional dos
digital? Ou, ainda, como seria possível verificar consumidores, o pluralismo cultural, o exercício
a manifestação da diversidade cultural na era de da cidadania até o funcionamento correto do
algoritmos complexos para prescrição musical? sistema democrático (NAPOLI, 1999; McQUAIL,
Para começar a responder tais questões, é 1998).
preciso avaliar, antes, como se tratou a questão Desde a década de 1990, contudo, a ideia de
da diversidade cultural na indústria fonográfica diversidade cultural ganhou outra dimensão, ao
na época industrial desse negócio e quais são ser incluída em tratados políticos e comerciais
as principais diferenças que se apresentam internacionais como certa forma de “antídoto”
atualmente. ao risco de “homogeneização” das culturas
Este artigo apresenta um duplo objetivo. Por nacionais diante de um mercado de bens culturais
um lado, propõe-se uma revisão dos métodos globalizado. Tal ênfase resultou de uma disputa
de medição da diversidade cultural no mercado política entre os Estados Unidos e um grupo
fonográfico, a partir da análise dos principais de países francófonos, liderados por Canadá e
estudos dedicados ao tema. Por outro, descreve- França. Em meio às negociações para facilitar e
se o que se tornou o negócio fonográfico, a fim institucionalizar o comércio global, na chamada
de avaliar a necessidade ou não de revisão dos Rodada do Uruguai da Organização Mundial
tradicionais métodos. O artigo se divide em duas do Comércio (OMC) houve um embate entre
partes. Na primeira, revista-se a literatura sobre os representantes estadunidenses, canadenses e
estrutura do mercado fonográfico e diversidade franceses sobre a inclusão dos chamados bens
cultural, através dos textos referenciais. culturais (artes e entretenimento) nos acordos
Na sequência, comentam-se as principais de livre-comércio. Enquanto aqueles desejavam
transformações no modus operandi do mercado incluir esse tipo de mercadoria entre os artigos a
fonográfico na era digital, fazendo uma breve serem livremente comercializados entre os países,
crítica a argumentos liberais que, num momento, sem que quaisquer proteções alfandegárias
celebraram acriticamente a possibilidade se impusessem, a liga liderada pelos países
dos mercados de comunicação e cultura de francófonos se opôs terminantemente, afirmando
abrigarem diferentes tipos de expressões que os bens culturais não apresentavam a mesma
culturais (notadamente, a teoria da cauda longa). natureza utilitária de outros itens que constavam
Como considerações finais, apontam-se aspectos das negociações, pois estariam vinculados à
importantes para futuras pesquisas sobre formação de identidades nacionais. Para garantir
organização do mercado de cultura e diversidade a continuidade de suas políticas culturais diante
cultural. de um cenário de total desregulação neoliberal,

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os franceses chegaram a cunhar o conceito e cultura específicos são dois problemas

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de “exceção cultural” (l’exception culturelle). extremamente complexos em si e que, para
No entanto, como a expressão se restringiu ao piorar a situação, devem ser forçosamente
mundo da francófono, houve todo um esforço articulados. Como sustentar políticas públicas de
diplomático para que a discussão alcançasse defesa e promoção da diversidade cultural sem
uma plataforma global, com força política, como saber como ela se manifesta nos mercados de
a UNESCO. A partir daí, o termo adotado foi comunicação e cultura?
“diversidade cultural”. Como observa Martí Petit É interessante notar que um dos mercados
(2012, pp.220-3), a recepção desse debate pela de comunicação e cultura mais analisados é o
UNESCO permitiu que outros países europeus fonográfico. Afinal, trata-se de um objeto de
interessados no tema (como os países compostos estudo que cobre diversos parâmetros importantes
por diferentes nações, as quais apresentam para embasar tais pesquisas: (1) trata-se de uma
demandas independentistas) se engajassem indústria de alcance global, presente em países
individualmente (já que na OMC eles eram de distintos níveis de desenvolvimento; (2) a
representados como União Europeia), além dos música gravada se tornou um produto cultural
países em desenvolvimento que mostravam- altamente disseminado em muitas sociedades; (3)
se preocupados com o avanço dos produtos é uma indústria que experimenta uma dinâmica
culturais estadunidenses sobre seus mercados intensa de transformação de suas estruturas
nacionais. produtivas, além de ser (4) um negócio de
Ao ser encampado pela UNESCO, o termo cultura que apresenta uma farta (e razoavelmente
ganhou um sentido ampliado, aproximando-se precisa) quantidade de informação sobre o
do de direitos culturais (STOCZKOWSKI, 2009; consumo de seus produtos, o que não ocorre
UNESCO, 2002, 2005). Nesse caso, diante de uma com a indústria de cinema, nem a de livros, por
articulação econômica crescente entre diversos exemplo. Atualmente, pode-se encontrar um
países, baseada em (1) políticas econômicas que importante corpo de pesquisas que apresentam
minariam políticas locais de desenvolvimento metodologias comprovadamente eficazes para
e (2) no livre fluxo de capital e trabalho, além medir a diversidade cultural. A seguir, apresenta-
da consolidação de um mercado global de se um resumo desses estudos.
bens culturais produzidos em larga escala e A literatura sobre o tema da diversidade
fundamentados em um estilo de vida baseado cultural no mercado fonográfico concorda
no consumo de algumas marcas transnacionais, em que o trabalho seminal é o dos sociólogos
a UNESCO reinterpretaria sua preocupação com Richard Peterson e David Berger (1975) acerca
uma unidade da humanidade, enfatizando a da relação entre estrutura de mercado, inovação
necessidade da preservação e fomento justamente e diversidade no mercado fonográfico. Nesse
da diferença entre povos e grupos sociais, ou paper, os autores buscavam pensar a questão
em uma expressão, protegendo e fomentando a através da teoria dos ciclos econômicos,
diversidade cultural. aplicando-a à indústria fonográfica2. O texto
Esse breve resumo permite entrever que vinha a se somar ao esforço de outros estudiosos
definir tecnicamente o que se entende por que rejeitavam o pressuposto de que a produção
“diversidade cultural” a fim de medir o grau de de bens culturais nas sociedades capitalistas
sua manifestação em mercados de comunicação tendia inexoravelmente à homogeneidade dos

2 Os economistas concordam em que a taxa de inovação numa indústria é diretamente proporcional à estrutura de um
mercado. Em seu livro sobre ciclos econômicos, Schumpeter havia afirmado que apenas um mercado oligopolista teria
empresas com recursos financeiros suficientes para financiar a inovação e repassar esses altos custos para o consumidor.
Outros economistas, porém, afirmam o contrário: apenas quando um mercado é constituído por um grande número de
empresas que competem entre si é que a inovação encontra um molde institucional capaz de fomentá-la.

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produtos, como sustentava a abordagem da O que ocorreu na sequência foi, de acordo com o
Escola de Frankfurt à indústria cultural. Pelo argumento, um aumento importante do número
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contrário, entendia-se que o tipo de organização de gravadoras que emplacaram pelo menos
que assume um determinado mercado de cultura um artista na parada dos dez compactos mais
pode deixá-lo mais ou menos propenso à inovação vendidos. Este número quadruplicou em relação
e à diversidade cultural, pressuposto que exigia ao período anterior e entre as gravadoras que
estudos empíricos sobre a estruturação de cada constavam com mais de um artista, triplicou. No
ramo das indústrias culturais. Assim, buscava-se entanto, entre os anos de 1970 e 1973, as grandes
verificar se a estrutura do mercado (aspectos da gravadoras passaram a comprar as empresas
interação da oferta e demanda, organização da independentes, gerando uma nova onda de
produção e sua relação com a natureza e níveis de concentração de mercado, que se refletiu na
consumo) gerava impacto sobre o que os autores baixa variedade de empresas que emplacaram
classificaram de “inovação” e “diversidade” alguma gravação nas paradas de sucessos naquele
de produtos. Os termos merecem atenção: período.
“inovação” equivalia a “gêneros musicais”, Peterson e Berger concluíram que havia uma
enquanto “diversidade” designava “variedade das relação inversa entre concentração de mercado
letras” ou “diferenças” (melódicas, harmônicas, e inovação e/ou diversidade cultural. Isto é,
rítmicas) entre as músicas de sucesso. mesmo que haja certa competição entre grandes
Para tanto, analisaram-se as listas dos dez empresas em um estado de oligopólio, a tendência
compactos (singles) mais vendidos, segundo é que tais companhias inovem com moderação
a Revista Billboard3, entre os anos de 1948 e em suas linhas de produtos, uma vez que seu
1973, nos Estados Unidos. Através da análise da objetivo é a conquista de uma grande parcela de
variação das gravadoras e de novos artistas que um mesmo mercado. Inversamente, quando há
alçavam o chamado Top 10, demonstraram como diversas firmas competindo, a tendência é que
o marcante período de inovação musical que se se criem segmentos de público (nichos) através
experimentou entre os anos 1950 e 1960 (período da constante inovação dos produtos. Assim,
de emergência e consolidação do rock n`roll) “inovação” e “diversidade” equivaler-se-iam, tão
havia sido precedido por uma reestruturação do logo houvesse um alto índice de competição
mercado de comunicação e cultura. Entre 1955 empresarial.
e 1959, houve um momento de flexibilização da A teoria dos ciclos econômicos seria
produção (antes, concentrado em quatro grandes retomada posteriormente por vários autores,
gravadoras) e a emergência de mais gravadoras com o intuito de dar sequência ao método
independentes. Uma das principais razões para de Peterson e Berger. Assim, Rothenbuler e
isso, afirmavam, teria sido o surgimento da Dimmick (1982) analisaram as paradas de 1974
televisão e a conseguinte transformação do radio a 1980, e, em seguida, Burnett e Weber (1989)
de um grande mercado nacional, controlado atualizaram a pesquisa até 1986. Porém, esses
por um reduzido número de estações, para um pesquisadores já observavam que a indústria
conjunto de nichos de mercado, conduzidos por fonográfica assumira uma organização distinta
estações menores e especializadas. Com isto, as entre as décadas de 1970 e 1980. Ao invés das
companhias discográficas independentes tiveram grandes gravadoras verticalizarem sua produção
a oportunidade de acessar mais facilmente as (isto é, internalizarem as diversas partes da cadeia
estações de rádio para promover seus produtos. produtiva, centralizando as tomadas de decisões),

3 Editada pela primeira vez em 1894, a Revista Billboard era dedicada, inicialmente, ao mercado publicitário. A partir
dos anos 1950, passou a se dedicar ao mercado de música, publicado as paradas de discos (álbuns e compactos) mais
vendidos nos Estados Unidos.

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tais companhias passavam a estabelecer acordos distribuição/divulgação). Isso ocorreu ao mesmo

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com empresas independentes a fim de que estas tempo em que a concentração do mercado
produzissem discos e firmassem parcerias com as de discos aumentava significativamente: esse
majors para a distribuição dos produtos físicos. foi o período em que o mercado passou a se
Começa-se, assim, a notar que as fronteiras concentrar em quatro corporações fonográficas,
entre o que é mainstream e o independente se as quais detinham de 70% a 80% da venda de
tornavam porosas. Nesse cenário, observaram música gravada no mercado internacional de
os autores em sua conclusão, seria provável que discos. Tais dados levaram-no a concluir que
a relação entre estrutura de mercado e inovação/ a adoção de uma organização mais flexível de
diversidade no mercado de música variasse num produção (open system), como a rotulou, pelas
futuro próximo. grandes gravadoras permitira manter o nível de
Essa previsão foi concretizada, como se diversidade musical no mercado mesmo diante
verifica no trabalho de Paul D. Lopes (1992). da brutal concentração das vendas.
Lopes partiu de outra pergunta: ao invés de O método de análise das paradas de sucesso
querer saber se havia ou não uma inequívoca da Billboard, ainda que importante, estava
relação direta entre concentração de mercado longe de ser capaz de alcançar algum consenso
e inovação estética/ diversidade cultural, seu sobre como se medir a diversidade cultural de
interesse residia em saber se havia a possibilidade algum mercado cultural. Assim sendo, outras
de haver uma alta concentração de mercado sem técnicas foram buscadas. Em um trabalho menos
gerar, com isso, um baixo nível de inovação e conhecido, mas não menos importante, Michael
de diversidade. Outra inovação interessante do Christianen (1995) propôs abordar esta discussão
trabalho de Lopes foi a decisão de concentrar- a partir de outra técnica de pesquisa. Seu
se não apenas na lista dos dez compactos mais argumento era o de que a técnica utilizada por
vendidos, mas nas listas dos 100 compactos e todos os autores anteriores não era representativa
álbuns (discos contento mais de quatro músicas de tudo o que se produzia em um determinado
de um ou vários artistas) mais vendidos entre mercado de música, privilegiando apenas o polo
1969 e 1990. De acordo com o próprio autor, do consumo (em detrimento da produção). A
a ampliação dos objetos de análise se deveu ao maneira mais apropriada de se avaliar a questão
fato de que, para a indústria fonográfica a partir seria analisar toda a produção de discos em
dos anos 1970, o formato de “álbum” tornara-se um contexto, durante determinado período.
mais importante do que o de compactos. Desta Nesse sentido, analisou a produção de discos na
forma, uma análise sobre níveis de concentração Holanda, entre os anos de 1975 e 1992. Ao invés
e diversidade cultural no mercado de música de se basear no número de aparições de selos e
não poderia deixar de levar em consideração empresa nas paradas de sucesso, Christianen
a participação das empresas fonográficas no dividiu sua análise em três eixos: (I) gêneros
campo dos álbuns mais vendidos. musicais (rock, pop, rap, etc.); (II) repertório
O resultado obtido demonstrava que: o (inédito, reeditado, nacional, internacional); (III)
movimento de concentração de mercado número de gravadoras e selos. Diferentemente
continuou com força ao longo dos anos 1970 e dos autores anteriores, a definição deste autor
1980, mas o número de gravadoras e selos que para medir a “diversidade cultural” no mercado
emplacaram algum sucesso entre os anos 1980 holandês de música não se referia às paradas
e 1990 manteve-se estável e até aumentou em de sucesso, mas (a) à disponibilidade de música
certos períodos. Por exemplo, gêneros como o rap para os consumidores no grande mercado e (b)
ou a new wave passaram a ter uma participação à disponibilidade de artistas em cada gênero
importante nas paradas de sucesso, mesmo sendo musical. “Inovação” equivalia, por seu turno,
introduzidos por gravadoras independentes ao número de novos artistas que a cada ano
(ainda que ligadas às grandes por acordos de acessavam o mercado de música.

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Sua análise indicava que os níveis de particionada (por exemplo: o número
diversidade cultural e inovação no mercado de de opções tecnológicas funcionalmente
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música alcançaram o patamar mais elevado nos morfologicamente ou operacionalmente


anos 1990, quando uma forma mais flexível distintas oferecidas em paralelo num
de produção de fonogramas foi adotada pelas mercado).
gravadoras. Mais importante do que isto, porém, b) Balanço: refere-se às “cotas de mercado”
foi que o autor comprovava que, ao longo do de cada uma das opções tecnológicas.
período estudado, o número de lançamento de c) Disparidade: refere-se à natureza e ao
novos artistas por grandes gravadoras havia grau em que as próprias categorias são
diminuído dramaticamente (de 60% nos anos diferentes umas das outras.
1970 para 25% nos 1990), na mesma medida Como observa Luis Albornoz (2017, p. 199),
em que crescia a participação de empresas modelo de Stirling foi adotado pelo Departamento
independentes. Afinal, também Christianen de Estatística da UNESCO para aplicação nos
confirmava as conclusões de Burnett e Weber mercados de comunicação e cultura, a fim de
(op. cit.) e Lopes (op. cit.): uma estrutura mais analisar os níveis de diversidade (nesse caso,
dinâmica de produção fonográfica ampliava a cultural). Para tanto, contudo, os mesmos termos
diversidade cultural e os níveis de inovação no assumiram os seguintes sentidos:
mercado de música. Mas também aportava uma a) Variedade: quantidade de gêneros
nova e importante informação: cada vez menos culturais (por exemplo, no mercado de
as grandes gravadoras controlavam diretamente livros, isso pode se referir a gêneros como
a inovação musical e a diversidade cultural no ficção, teoria, quadrinhos etc.).
mercado de música. b) Balanço: proporção de mercado,
Todos esses trabalhos compartilham, frequência ou qualquer medida de
porém, de um mesmo problema: baseiam-se proporção de um tipo particular dentro de
numa perspectiva dual de análise. Basicamente, uma população.
contrasta-se diversidade de produtos que c) Disparidade: refere-se ao grau em que as
aparecem nas listas de compactos e/ou discos categorias de gênero cultural são diferentes
mais vendidos com a estrutura do mercado umas das outras.
fonográfico no período estudado. Tais parâmetros Esse modelo tem sido testado em diferentes
seriam suficientes para medir a potencialidade mercados e contextos nacionais por diversos
de artistas e expressões culturais que podem pesquisadores. No caso da música gravada,
atingir um mercado de música nacional? Ou o foi aplicado de forma notável por Heritiana
resultado estaria enviesado por se concentrar Ranaivoson (2010).
nas duas pontas do ciclo produtivo? Esse tipo de O modelo tripartite permitiu a Ranaivoson
questionamento acarretou o desenvolvimento de incluir uma série de dados ausentes das análises
uma metodologia mais sofisticada para medir a anteriores. Desde o princípio, o autor definiu
diversidade cultural: o modelo tripartite. que um sistema é mais diversificado quanto mais
O modelo tripartite foi emprestado dos variedade, equilíbrio e/ou disparidade existir.
estudos de inovação e economia, nomeadamente Além disso, estabeleceu que todo mercado tem
o desenvolvido por Andrew Stirling (1998). dois tipos de diversidade: a diversidade oferecida
Discutindo a importância do termo “diversidade” pelos produtores e a diversidade de produtos
(tecnológica, no caso) na teoria econômica utilizada pelos consumidores. Finalmente, a
contemporânea, esse pesquisador afirma que diversidade cultural depende de interações
sua medição nos mercados deve considerar três complexas entre a diversidade de produtores,
aspectos (STIRLING, 1998, p. 39-40): produtos e consumidores. Logicamente, sua
a) Variedade: número de categorias nas definição de “diversidade cultural” contempla:
quais a quantidade em questão pode ser (1) a variedade, o equilíbrio e a disparidade de

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produtos na forma como são disponibilizados no ampliação do número de artistas nos mercados

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mercado e, depois, consumidos, (2) diversidade em que é aplicada.
de produtores, de acordo com seu potencial Não obstante, a digitalização do mercado
poder de mercado e a forma como esse poder é fonográfico implicou uma transformação
expresso (estrutura de mercado) e (3) diversidade qualitativa do objeto de pesquisa. A reorganização
dos consumidores, no que diz respeito aos seus do mercado fonográfico através de plataformas
gostos e identidades diferentes (ibid., p. 218). digitais (iTunes, Spotify, YouTube, entre outros)
Além disso, ampliaram-se os dados utilizados e agregadores de conteúdos (The Orchid, Believe
para incluir condições sociais, demográficas e Digital, One RPM, AltaFonte, CD Baby, entre
econômicas (renda per capta, PIB, entre outras outros) faz com que a conexão entre produção
categorias) das populações. Outro aspecto e consumo seja realizada na circulação dos
que torna seu trabalho excepcional é o escopo conteúdos. Sendo assim, a separação entre as
da pesquisa: analisaram-se 69 países em 5 partes, conforme pensado nas pesquisas acima
continentes4. descritas, perde seu sentido, isso é, a produção
Suas conclusões informam que também em não pode deter mais o centro das atenções. Além
nível internacional: (1) o sistema flexível de disso, os sistemas de recomendação de conteúdos
produção fonográfica favorece a diversificação utilizados por tais intermediários assumem um
de produtos disponíveis no mercado, (2) a inusitado protagonismo. Os algoritmos dessas
concentração da distribuição pode levar a uma plataformas não fazem apenas o que os usuários
maior variedade de produtos consumidos (o que demandam; eles atuam sobre as próprias
não significa que a concentração da distribuição escolhas dos usuários, sendo determinantes para
e a diversidade de produtos sejam sempre o acesso aos conteúdos e, por conseguinte, sobre
diretamente proporcionais) e que (3) condições a inovação de produtos e a diversidade cultural
sociais, demográficas e econômicas apresentam do mercado fonográfico digital. Como analisar,
uma variedade de influências diretas e indiretas portanto, a diversidade cultural nesse novo
tanto sobre a oferta de produtos quanto sobre contexto?
as escolhas dos consumidores, ainda que nem
sempre de forma óbvia5. Desafios para a diversidade cultural na
Sem constrangimentos, pode-se afirmar que era digital: da cauda longa à recomendação
a pesquisa coordenada por Ranaivoson encerra musical em serviços de streaming
um ciclo de pesquisas sobre diversidade cultural
no mercado fonográfico analógico. Não é que No final dos anos 1990, a emergência de
todas as questões tenham sido respondidas, mas, tecnologias digitais e em rede de reprodução
sim, que as possibilidades de pesquisa foram sonora apresentou abruptamente um novo
radicalmente ampliadas a fim de dar conta de cenário para a indústria fonográfica. Diante da
um objeto conceitualmente complexo. Mais do articulação entre de reprodutores de arquivos
que isso, as hipóteses sobre o polo de produção digitais de música com interfaces amigáveis (como
fonográfica parecem ter sido esgotadas: o sistema o Winamp), arquivos digitais compactos de som
flexível de produção permite, sem dúvida, uma (como o MP3) e programas de compartilhamento

4 Porém, com dados de segunda mão, obtidos com as associações nacionais e internacional da indústria fonográficas.
Esses dados nem sempre são obtidos de forma confiável, valendo-se demasiadamente de estimativas. Para completar
tal base de dados, Ranaivoson (2010) também se valeu de informações emitidas pela Divisão de Estatística das Nações
Unidas (UNSD) e pelo Banco Mundial.
5 Por exemplo, identificou-se que a diversidade cultural não é necessariamente a mais elevada nos países mais favorecidos.
Particularmente, um índice mais elevado de desenvolvimento humano leva à menor diversidade fornecida (ibid., p. 224-
5).

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de arquivos entre pares (peer to peer, ou P2P), cauda longa (Long Tail), de Chris Anderson
os tradicionais atores da indústria fonográfica (2006). Nesse best seller da década de 2000, o
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observaram, boquiabertos, a passagem de uma autor apresenta uma arguta explicação sobre
economia de natureza industrial (a produção as transformações econômicas no mercado
em larga escala de fonogramas físicos) para digital através de uma análise de gráficos de
uma economia de redes6, baseada em serviços curva de demanda. Demonstra-se, assim, que
de acesso à informação (arquivos digitais de com a digitalização dos bens e dos canais de
música). Isso colocou em questão a função distribuição dos mesmos há: (a) uma redução
dos tradicionais mediadores do mercado de drástica nos custos de armazenamento e
fonográfico: gravadoras, leis de direitos autorais distribuição de bens (uma vez que estão todos
e lojas de discos pareciam ter se tornado, de digitalizados, não se faz necessário desenvolver
repente, dispensáveis num cenário de acesso uma estrutura física para abrigá-los; apenas se
direto a qualquer tipo de música que se desejasse. faz necessário ampliar as possibilidades técnicas
Isso provocou toda uma revolução na maneira de de distribuição dos conteúdos), (b) a ampliação a
conceber o negócio fonográfico (DE MARCHI, baixo custo do mercado, permitindo um aumento
2016). significativo da produção de bens, que tendem a
Num primeiro momento, a internet parecia se especializar em mercados de pequena e média
concretizar a ideia neoliberal da completa extensão (nichos) e (c) o aumento da oferta de
desintermediação do mercado de música: sem a bens propicia a todo produtor encontrar seu
necessidade de gravadoras, todo artista poderia consumidor, que por seu turno pode realizar
acessar diretamente seus ouvintes, estabelecendo escolhas racionais sobre o que deseja, uma vez
relações de confiança mútua através de que dispõe de dispositivos de busca que lhes
comunidades virtuais (KUSEK; LEONHARD, permitiria acessar toda informação necessária
2005). Essa perspectiva teve efeitos concretos no sobre o produto desejado.
mundo dos negócios: muitos artistas recusaram- Ainda que não se tenha explorado tal conexão,
se a assinar contratos com gravadoras, confiando é interessante notar que tal argumento se encaixa
em seus websites para acessar diretamente seus perfeitamente no de autores liberais sobre as
consumidores (DE MARCHI, op. cit.). Tal tecnologias digitais. Tome-se, por exemplo, o
momento permitiu leituras otimistas também notório argumento de Gates (1995), em seu
sobre a diversidade cultural no mercado momento de ideólogo das novas tecnologias da
fonográfico: sem os tradicionais gatekeepers comunicação, sobre o “capitalismo sem força de
(intermediários que selecionam quem participa atrito” (frictionless capitalism). Com isto, o autor
ou não de um mercado), o mercado de música queria dizer que as tecnologias digitais em rede
parecia não ter barreiras econômicas, nem de diminuem os custos divulgação, distribuição e
poder, para qualquer tipo de artista e de música. armazenamento das informações, permitindo
Do ponto de vista econômico, essa atitude que cada consumidor possa encontrar de
refratária aos tradicionais mediadores do forma direta e clara o que quer e negociar até
mercado de música apoiava-se na teoria da alcançar o preço mais baixo, cumprindo assim

6 Economistas como Carl Shapiro e Hal Varian (1999, p. 204 et seq.) estabelecem uma definição de “economia de redes”
em contraposição ao que se convencionou rotular de “economia industrial”. Assim, para tais autores, a economia industrial
se caracteriza pela organização de estruturas produtivas comandadas por grandes empresas, verticalizadas e controladas
por forte burocracia, que produziam modelos em série para mercados de escala (economia de escala controladas pela
oferta), tendendo a uma estrutura de mercado oligopólica. Em contraste, a “economia de redes” se caracterizaria uma
organização horizontal entre os nodos, funcionando através de uma dinâmica de feedbacks positivo e negativo. Nesse
sentido, afirmam, “o valor de ligar-se a uma rede depende do número de outras pessoas já conectadas a ela” (ibid., p.
205). Assim, sua estrutura de mercado se caracteriza por monopólios temporários e economia de escala controladas pela
demanda.

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a promessa de eterno retorno dos pequenos Essa concepção liberal também afeta a

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mercados tradicionais sobre os quais versavam percepção sobre diversidade cultural: está claro
os economistas clássicos7. Ou seja, as tecnologias que, nesse contexto de desintermediação, há
da informação e da comunicação concretizariam espaço para todo tipo de produção musical.
a utopia liberal de um mercado de competição Como expressam de maneira precisa Davis
perfeita. Kusek e Gerd Leonhard:
O livro de Anderson é a forma mais
sofisticada deste argumento, na medida em que O acesso à música nunca foi tão fácil, e a música
apresenta um caso concreto. O que importa é, no nunca foi prosperou tanto em níveis tanto regionais
entanto, que o substrato ideológico dessas duas quanto globais. Rock, intérpretes/ compositores,
obras é o mesmo: as tecnologias da informação bluegrass, hip-hop, heavy metal, versões e remixes
digitais e em rede revolucionam a maneira de de DJ, músicas étnicas de toda variedade, incluindo
fazer negócio, desmanchando no ar as antigas música brasileira, cubana e africana, são apenas
estruturas que engessavam as negociações entre alguns exemplos de gêneros musicais que estão
produtores e consumidores. Isso abriria espaço gozando de enorme popularidade hoje em dia. A
para um livre mercado no qual os indivíduos internet, na verdade, todo tipo de rede digital, está
racionais podem fazer suas próprias escolhas e revirando os gêneros de nicho, alçando-os do fundo
negociações diretamente. O que se subentende para o topo [do mercado] (KUSEK; LEONHARD,
dessa perspectiva é que a diversidade cultural 2005, p. 7, tradução própria).
nos mercados de cultura estaria garantida, pois
todos os produtores têm condições de acessar Após as intensas emoções da década de 2000,
o mercado sem vexações impostas por agentes estruturada em torno da bipolaridade entre o
economicamente mais poderosos. A importante pânico da “crise da indústria fonográfica” e o
conclusão desse raciocínio é que políticas de otimismo da “revolução da música digital”, a
proteção e fomento da diversidade cultural não década de 2010 apresentaria cenário bastante
são necessárias, pelo contrário, pois as leis do diferente. Após anos de gastos com custosos
mercado digital já garantiriam espaço para as (e nem sempre efetivos) processos contra
diferentes manifestações culturais. programas de compartilhamento de arquivos
Infelizmente, Anderson não apresenta digitais (P2P) ou usuários individualmente, os
qualquer reflexão sobre como o mercado digital tradicionais agentes da indústria fonográfica
se estrutura, em torno de quais empresas e decidiram agir ativamente e apoiar startups de
como estas afetam a dinâmica da produção e do tecnologia que pretendiam desenvolver negócios
consumo de bens no mercado digital. Tampouco, formais de distribuição de música digital.
interessam-lhe como produtores e consumidores Surgem os serviços de streaming de música,
podem se encontrar e negociar num contexto como Spotify, Deezer, Rdio, Apple Music, entre
de abundância de informações. Isso é, qualquer outros, contando com o apoio dos principais
consideração sobre os novos intermediários players da indústria fonográfica para alavancar
do mercado digital (sites de buscas ou seus o novo modelo de negócio. Tecnicamente, os
algoritmos) é sumariamente desconsiderada. serviços de streaming foram os únicos capazes de
Assume-se simplesmente que o livre-mercado estabelecer uma competição com os programas
estabelecido pela mudança técnica acarreta de P2P. Afinal, eles compreenderam as dinâmicas
muitas opções de consumo. de uma economia em rede e as demandas do

7 Como afirma textualmente este autor: “a estrada [da informação] ampliará o mercado eletrônico e fará dele o
intermediário universal e definitivo. Com frequência, as únicas pessoas envolvidas numa transação serão o comprador
e o vendedor. [...] Isso nos conduzirá a um novo mundo, de um capitalismo com pouca força de atrito e baixo custo
administrativo, no qual a informação de mercado será abundante e os custos de transação, baixos.” (GATES, 1995, p. 200).

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público de conteúdos digitais, passando a oferecer do último é o conjunto obtido ao se agregar os
acesso a um número expressivo de arquivos de elementos gerados anteriormente, isto é, {0, {0}}. O
TEORIA E CULTURA

música (sempre na casa dos milhões), o que sucessor disso é {0, {0}, {0, {0}}}, e assim por diante.
lhes permitia cobra um preço por mensalidade Portanto, um processo recursivo, uma vez iniciado,
relativamente baixo (cerca de US$ 10) gera nada mais do que uma repetição da mesma
(KISCHINHEVSKY; VICENTE, DE MARCHI, operação. No entanto, os resultados desta operação
2015). Ao mesmo tempo, cumpriam com as não são independentes um do outro, simplesmente
duas demandas dos titulares dos direitos autorais porque eles estão incorporados um ao outro
das obras licenciadas: impediam os usuários de (TOTARO; NINO, 2014, p. 31, tradução própria).
baixarem individualmente os arquivos para os
intercambiarem entre si e pagavam royalties aos No caso dos sistemas de recomendação
titulares dos direitos autorais e fonomecânicos. de música, os algoritmos das plataformas de
É verdade que os serviços de streaming música entregam conteúdos digitais de maneira
não pacificaram todas as disputas dentro da personalizada, construindo uma cadeia de
indústria fonográfica. Tampouco seu modelo informações cuja lógica reside em integrar
de negócio provou ser sustentável em termos informações provenientes:
econômicos: pelo contrário, a maior parte dessas a) do gosto de cada usuário;
empresas ainda é deficitária justamente devido b) metadados inseridos por produtores e/
às altas quantias pagas aos titulares de direitos ou agregadores de conteúdo;
autorais (KISCHINHEVSKY, VICENTE, DE c) gosto de outros usuários, pares do
MARCHI, op. cit.). Não obstante, é inegável que usuário inicial;
eles estabeleceram algum nível de estabilidade d) gosto de diversos outros usuários,
sobre o que pode ser o comércio de fonogramas tomados a partir dos metadados dados
digitais, a partir do qual se torna possível discutir pelos produtores/agregadores.
cenários concretos para a indústria. e) análise das reações emocionais dos
Um olhar atento ao funcionamento dessas usuários a cada música (com uso de redes
plataformas digitais indica que elas apresentam neurais).
uma importante novidade: o uso intensivo de Através de cálculos complexos, cujas fórmulas
algoritmos complexos. Em particular, destacam- não são tornadas públicas, pois constituem
se os sistemas de recomendação de música segredo de indústria, uma informação se
para os usuários. Afinal, eles operam um papel junta a outra, criando uma cadeia chamada
determinante na realização do gosto dos usuários playlist, a qual pode ser renovada apenas pela
das plataformas digitais. recombinação dos fatores (além de novos dados
É preciso ter em conta que os sistemas inseridos através de cada categoria mencionada
de recomendação operam na linguagem dos acima). Evidentemente, esse processo não resulta
algoritmos, cuja característica fundamental é a em escolhas perfeitas pelos algoritmos. No
função recursiva8. Como a definem Paolo Totaro entanto, o erro é parte inerente (para não dizer
e Domenico Nino, fundamental) do processo. Como bem resume
María F. Dorda:
[...] o conceito de [recursividade] pode ser
representado graficamente agrupando-se a Embora as pesquisas sobre Inteligência Artificial e
sequência já realizada no passo anterior. Assim, o Machine Learning estejam aplicando suas fórmulas
sucessor de 0 (o conjunto vazio) é {0}. O sucessor matemáticas para se especializar na previsão do

8 Por recursividade (recursion), Paolo Totaro e Domenico Nino (2014, p. 30) assumem o sentido dado por Hofstadter de
recursivo como o aninhamento de coisas dentro das coisas e suas variações. É como o fenômeno da repetição infinita de
imagens refletidas em dois espelhos colocados opostos um ao outro.

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gosto dos internautas, o desenvolvimento de um no mercado fonográfico? Esses casos indicam a

TEORIA E CULTURA
processo mecânico que não falhe ainda está longe importância em se pensar as plataformas digitais
de ser alcançado. Não obstante, essa margem de erro de música como ecossistemas singulares, nos
é a chave para o próprio refinamento do algoritmo quais o gosto musical emerge de uma complexa
e, sem dúvida, leva o usuário ao conteúdo que não interação entre relações sociais, afetos e função
teria descoberto sem sua ajuda. O espaço em que o recursiva dos algoritmos. Isso acarreta uma
algoritmo se move é o do limite do gosto de cada série de questões: a circulação se tornou a etapa
usuário. Ou seja, o algoritmo explora os limites das central para a aferição da diversidade cultural?
“ilhas de gosto” do perfil de gosto de cada usuário e Como medir a atividade dos algoritmos? Estes
os destaca. Esta busca constante entre as categorias são capazes de manter a diversidade cultural
que identificam o gosto do usuário favorece a por si mesmas? Ou se fazem necessárias leis
descoberta por acidente. Ao mesmo tempo, este que regulem sua atividade? Se assim for, como
rastreamento de identidade virtual e gostos já aplicar tal tipo de lei nacional em plataformas
definidos é suportado por estatísticas derivadas virtuais e globais? Enfim, como equilibrar a
do conjunto de internautas (DORDA, 2017, p. 27, construção algorítmica do gosto com o objetivo
tradução própria). de se proteger e fomentar a diversidade cultural
em mercados específicos?
Cria-se, assim, uma aleatoriedade programada
das músicas, em que o sistema é criado para Considerações finais
prover um acesso aos conteúdos digitais de forma
a parecer acaso e simular um acesso à diversidade Fica claro que os serviços de streaming
de arquivos existentes. O objetivo é mobilizar as apresentam um novo cenário para o debate
emoções dos ouvintes. O excesso de informações sobre diversidade cultural nos mercados de
disponíveis (cada plataforma de streaming, por comunicação e cultura, particularmente no
exemplo, vende-se a partir da oferta de “milhões” fonográfico. Na era dos produtos físicos, o
de arquivos) obriga a que se busque afetar o contexto que envolvia a produção, circulação e
ouvinte para que continue escutando sempre e consumo das obras foi bem contemplado pelos
mais os arquivos sugeridos pela IA. estudos de diversidade cultural. Na era das
Não obstante, é crítico sublinhar, as novas plataformas digitais, ainda não está claro, de
sugestões que os algoritmos apresentam, como se todo, o que deve ser estudado e, sobretudo, como
fossem aleatórias, são derivações de proclividades deve ser estudado. Trata-se de lidar com uma
passadas, de dados derivados do elenco economia na qual a etapa da produção se tornou
apresentado acima, o que tende a apresentar menos problemática e a circulação ficou bem
tão somente variações de um grupo restrito de mais complexa. Mais do que isso, trata-se de lidar
músicas. Afinal, os algoritmos sabem o que afeta com tecnologias da informação (algoritmos) que
ou não afeta as emoções dos usuários a fim de não podem ser vistas como mero instrumentos
que consumam mais dentro da plataforma. Isso para determinados fins, mas, sim, como agentes
tende a criar, no limite, bolhas de gosto da qual fundamentais na própria realização do mercado
parece ser muito difícil aos usuários escaparem. de música gravada. Sem os algoritmos das
O paradoxo que se coloca, assim, é que, pese plataformas digitais, não se sabe o que há para
a abundância inédita de acesso a arquivos de ouvir e com quem se pode compartilhar o que se
música de diversas culturas, os algoritmos das ouve. Presença nos arquivos dessas plataformas
plataformas digitais tendem a construir bolhas não significa estar acessível, legal e praticamente.
de gosto que se reforçam automaticamente, Pelo contrário, como bem resumem Hoelck e
privando muitas outras possibilidades de Ranaivoson (2017, p. 25, tradução nossa):
consumo musical.
Como isso pode afetar a diversidade cultural No final, a questão crucial é, portanto, em que

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medida as plataformas estão dispostas a garantir industry 1948-1986”. Annual Meeting of the
que obras culturais marginais (criadas por criadores American Sociological Association, Aug., San
TEORIA E CULTURA

jovens, produzidos por produtores independentes Francisco, 1989.


ou originários de países pequenos) não só estejam
disponíveis, mas também sejam promovidas de CHRISTIANEN, Michael. “Cycles in symbol
uma forma que pode compensar sua falta inicial production? A new model to explain
de visibilidade. Em outras palavras, temos um risco concentration, diversity and innovation in the
em termos de Disparidade (isto é, há trabalhos music industry”. Popular Music, v. 14, n. 1, p. 55-
marginais disponíveis?) E Equilíbrio (ou seja, todos 93, Jan. 1995.
os tipos de trabalhos têm igual disponibilidade e
promoção?). DE MARCHI, Leonardo. A destruição criadora
da indústria fonográfica brasileira, 1999-2009: dos
Logo, pode-se tratar de uma era da construção discos físicos aos serviços digitais. Rio de Janeiro:
algorítmica do gosto musical. Folio Digital, 2016.
Faz-se necessário, portanto, construir
novas técnicas de pesquisa que abarquem DORDA, María F.. Serendipia programada: la
o funcionamento dos algoritmos dessas construcción del gusto según las recomendaciones
plataformas digitais. Esse movimento é de Spotify. (Dissertação de mestrado). Getafe:
fundamental para rechaçar a ideia da cauda longa Universidad Carlos III de Madrid, 2017.
e cobrar das autoridades públicas políticas de
comunicação e cultura (termos que não podem GATES, Bill. A estrada do futuro. São Paulo: Cia
mais ser separados) que protejam e fomentem a das Letras, 1995.
diversidade cultural.
Enfim, o objetivo deste artigo não foi propor HOELCK, Katharina; RANAIVOSON, Heritiana.
alguma nova metodologia de medição da “Threat or opportunity? Cultural diversity in the
diversidade cultural nas plataformas digitais, mas era of digital platforms in the EU”. Quaderns del
apontar esse cenário significativamente distinto CAC, n. 40, vol. 20, p. 17-28, 2010.
do período analógico. Entende-se que é somente
a partir desse reconhecimento que se tornará KISCHINHEVSKY, Marcelo; VICENTE,
possível desenvolver novos métodos de análise Eduardo; DE MARCHI, Leonardo. “Em busca
que contemplem os desafios da era digital. da música infinita: os serviços de streaming e os
conflitos de interesse no mercado de conteúdos
digitais”. Revista Fronteiras, v. 17, n. 3, 2015.
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