Texto 2 - Rubem Alves

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— Fitho, que injustisa esté sendo feita com a gente ‘Vamos tomar uma cerveja? Ninguém se humilharia. Ninguém se orgulharia. Os vestibulares instauram 0 ddio entre pais e filhos. s sorteios trariam de volta a amizade. MESTRES E COZINHEIROS A se acreditar em entendidos em coisas de outros ‘mundos, j4 devo ter sido cozinheiro em alguma vida pas- sada. que tenho um fascinio enorme pelas panelas, pelo fogo, pelos temperos e por toda a bruxaria que acon- tece nas cozinhas, para a produgio das coisas que si boas para o corpo. Nao € s6 uma questdo de sobreviven- cia, Os cozinheiros dos meus sonhos nfo se parecem com especialistas em dictéti Interessa-me mais 0 prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a tampa da pane- Ja, para ver 0 que esté 1é dentro. Minhas cozinhas, em ‘minhas fantasias, nada tém a ver com estas de hoje, mo- dernas, madeiras sem a meméria dos cortes passados das coisas que se derramaram, tudo movido a botlo, for- no de micro-ondas, adeus aos jogos eroticos preliminares de espiar, cheirar, beliscar, provar, perfurar... Tudo ré- pido, tudo prético, tudo funcional. Imaginei que quem assim trata @ cozinha, no amor deve ser semelhante 20s galos ¢ galinhas, quanto mais depressa melhor, ha coisas mais importantes a se fazer. Como aquele vendedor de pilulas contra a sede, da estéria do “Pequeno Principe”. Ir até o filtro é uma perda de tempo. Com a pilula eli minase a perda indtil. “— E que € que eu faco com o tempo que eu perco?” — perguntou o Principezinho. 90 Vocé faz 0 que quiser”, respondeu o vende- dor. “— Que bom! Entdo, & isto o que vou fazer, ‘bem devagarzinho, mios nos bolsos, até a fonte, beber gua...” ~~ Quero voltar & cozinha lenta, erética, lugar onde a ~ quimica est mais préxima da vida e do prazer, cozink’ velha, quem sabe com alguns picumas pendurados nd teto, testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali Nada melhor que 0 contraste. A sala de visitas, por xemplo. L& no interior de Minas, faz tempo. Retrato silencioso oval do“avé, na parede, samambaia no cachepd de madeira envernizada, portas bibel6s, as cadeiras, en- costos verticais, 90 graus, para que ninguém se acomo- ddasse, capas brancas engomadas pra que nenhuma cabe- ‘ga brilhantinosa se encostasse, dizendo em siléncio esté na hora, o “‘ainda é cedo”, na hora da partida, junto com ‘as recomendagées a tia Sinha (porque toda familia tinha de ter uma tia Sinhé). Af a porta fechava, e ainda reco- ~ megava, na cozinha. . A porta da rua ficava aberta. Era s6 ir entrando. Se no encontrasse ninguém nao tinha importincia, por- que em cima do fogio estava a cafeteira de folha, sem- pre quente, para quem quisesse. Tomava-se o café @ ia-se embora, hayendo recebido 0 reconforto daquela cozinha vazia © acolhedora. Eu diria que a cozinha é o ttero da_casa: lugar onde a vida cresce“eo prazet SGOml quente.._ Tudo provoca o corpo e sentidos adormeci. wos_acordam, So os cheiros de fumaca, da gordura queimada, do pao de queijo que cresce no forno, dos tem- eros que transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz © do cérebro, até o lugar onde mora a alma, Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher para a prova, enquanto 0 ouvido se deixa emba- a1 i lar pelo ruido crespo da fritura e os olhos aprendem a escultura dos gostos e dos odores nas cores que sugerem © prazer. Cozinha: alf se aprende a vida. & como uma escola chap nce aie todas ere ee Se ee ee ep eg ee da culinéria, se toma arte, brinquedo, fruigéo, alegria. Cozinha, lugar dos risos Pensei entio se nio haveria algo que os professores \dessem aprender com os cozinheiros: que a cozinha fos” pecrigariacinaraydiaalayda,aibas; Grave on professions tivessem sido antes, pelo menos nas fantasias © nos dese- jos, mestres-cucas, especialstas nas pequenas coisas que fazem 0 corpo sorrir de antecipacio. Isto, Uma Filosofia Culinéria da Educagio, Imagi- nei que 0s professores, acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mio, haveriam de se ofender, pensando que isto néo passa de uma gozacéo minha Logo me trangiilizei, ouvindo a sabedoria de Ludwig Feuerbach, a quem até mesmo Marx prestou atengio: “O hhomem € aquilo que ele come”. Absixo Descartes. [déias _ claras ¢ distintas podem ser boas para o pensamento. ‘Também bombas atémicas e as contas do FMI sio boas para serem pensadas, S6 que no podem ser amadas, no tm gosto e nem cheiro, e por isto mesmo a boca no ~ as saborgia © ndo entram em nossa carne 2 = — Imitar os que preparam as coisas boas_e ensinam os sabores. + ‘A primeira liglo & que no hé palavra que possa en- sinar 0 gosto do feijio ou 0 cheiro do coentro, E pre provar, cheirar, s6 um pouquinko, e ficar ali, atento, para ue 0 corpo escute a fala silenciosa do gosto e do cheiro. Explicar 0 gosto, enunciar o cheiro; pré estas coisas 92 Ciéncia de nada vale; é preciso sapiéncia, ciéncia saboro- sa, para se caminhar na cozinha, este lugar de saber-sa- bor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. “— Vamos, prove, veja Palavras que néo transmitem saber, liasse seus alunos por meio de testes de miiltipla escolha. E assim com a vida inteira, que nio pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre Barthes, a quem nesta relago amorosa, ligeiramente erStica, entre mes- eget eed ee 2 ae ee ‘numa refeigao cucaristica, os pratos que o mestre prepa- rou com a sua propria came. A ligdo dois € que 0 prazer do gosto € do cheiro nfo convivem com a barriga cheia. O prazer etesce em meio as pequenas abstengSes, as provas que s6 tocam a Iin- gua... E af que 0 corpo vai se descobrindo como enti- dade maravilhosamente polimérfica na sua infindével ca- - pacidade para sentir prazeres nao pensados. Jé os est6- magos estufados pdem fim ao prazer, pedem os digestivos, © sono e a obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem justivel. Que os corpos continuem a marchar- oF | ‘se fossem pilulas. Aboli¢ao da cozinha, aboligao do pra- “zer: pura utilidade, zero de fruicéo. “— Estava boa a comida?” “= Otima, Comi um quilo e duzentas gramas. Equagio desejével, pela reducio do prazer & quan- tidade de gramas. Nao deixa de ser uma Filosofia... Co- ‘mo aquela que desemboca nos cursinhos vestibulares © jé se antncia desde a primeira série do primeiro grau. se trata da erotizacdo do corpo. Para a engorda tais sen- 93 amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo come- sobre o prazer. A comida se produz as dezenas de qui-_ earaatafiasarlaiees coiccmes nono Comeia ee eS ae CIP-Brasil. Catalogacio-na-Publicagio sibilidades so dispenséveis. Artificio na criagio de gan- Cimara Brasicre do" Liore, 3 sos, para a obtenco de figados maiores: funis goelas ‘abaixo e por alf a comida sem gosto, @Afimalyeporaque | [— Alves, Rubem Azevedo, 1933 i Est0rias de quem gosta de ensinar / Rubem Alves, 44 ed. — Sto Paulo : Cortez : Autores | Associados, 1088 } ‘Colegio pottmicas do nosso tempo; 9) | 1 Prbieons ewan 1. Bo | Entendem por que eu queria uma filosofia culinér wep | de educagio? E que temas tomado os criadores de ganso | ecoaea 18 362,042 como modelos... + me | Aste “MONJOLOS E MOINHOS ‘A julgar pelo corpo que temos, somos uma espécie que deveria ter desaparecido da face da Terra milhares de anos atrés. Tudo é desajeitado,.. Comegando pela pele, deticadinha, que nfo agtienta nem sol quente nem frio, no pode ser comparada nem com os invejéveis ceasacos dos ursos ou com as sélidas carapacas ambulantes — “das tartarugas e tafus. Othe para suas unhas. Para que “servem, além de ajuntar sujeira, crescer ¢ quebrar? Claro -que-para cogar alguma mordida de carrapato, coisa qué. tem inegével valor erético, mas pouco contribui para a sobrevivéncia. Veja, por contraste, um tatu cavando 0” seu buraco. Suas unhas so verdadeiras cavadeiras. Ou os gatos ¢ parentes felinos, com unhas-navalha que rasgan © couro mais duro. |As pernas valem também muito pouco. Os prodf- gos de um Jo%o-do-Pulo ndo podem ser comparados ao cotidiano das pulgas, dos gafanhotos e dos cangurus. E se a questo € correr, qualquer formiga corre mais a pé do que um carro de Formula Um, guardadas as devidas pro- 94

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