Controle de Const. Na CF1891
Controle de Const. Na CF1891
Controle de Const. Na CF1891
Abstract: This article approaches the importance of the 1891 Constitution for the
incentive to the development of the constitutionality control in Brazil, pointing out
the pertinent juridical institutes consigned in the constitution, the competence of the
Supreme Court, the specific requisites of the extraordinary resource admissibility
and the consequences that come from such control, concluding with a critic to the
model used in Brazil so far.
1
Cuida-se de julgado da Court of Common Pleas da Inglaterra, relativo à prisão do médico Thomas
Bonham por ordem da respectiva entidade classista (Royal College of Physicians), no qual
preponderou a lição de sir Edward Coke, no sentido de que o estatuto da corporação, que previa a
medida restritiva da liberdade, afigurava-se inválido por atritar-se com o common law. Tais
ensinamentos de Coke foram, em forma de livro (Institutes of the Laws of England, 1628-1644),
trazidos às terras da América do Norte, cujos laços se acentuaram com a circunstância de Coke
haver sido tutor de Roger William, fundador da colônia de Rhode Island, e cujas obras tiveram
grande difusão perante os colonos americanos. Análise pormenorizada do Bonahm’s case, bem
assim de sua importância, consta de Fernando Rey Martinez, “Una relectura del Dr. Bonham ’case
y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review”, Revista Española de
Derecho Constitucional, a. 27, n. 81, 2007, pp. 163-181.
2
Conferir, especificadamente, texto de Hamilton que constitui o Capítulo LXXVIII. Há versão da
obra em português (Alexander Hamilton; James Madison; Jay John, O Federalista – Um
comentário à Constituição Americana, Editora Nacional de Direito, Rio de Janeiro, 1959, Tradução:
Reggy Zacconi de Moraes).
3
Ver Artigos III, Seção II, e VI.
298
Qualquer que fosse a situação dentre as acima mencionadas, de notar-se é
que a separação de poderes à francesa sempre repeliu a idéia do juiz analisar a
constitucionalidade das leis4.
4
Prova insofismável disso, a Constituição francesa de 1791, promulgada nos estertores do reino
de Luís XVI, em seu Título III, Cap. V, art. 3, dispunha: “3. Os tribunais não podem imiscuir-se no
exercício do Poder Legislativo, nem suspender a execução das leis, nem encarregar-se de funções
administrativas, nem citar para comparecer diante deles os administradores em razão de suas
funções”. Tradução nossa a partir de texto em espanhol disponível em:
http://constitucion.rediris.es/principal/constituciones-francia1791.htm#c5. Acesso em 10.11.2008.
5
Referido diploma realçava, em muito, o papel do rei, sendo interessante observar tanto a redação
de seu preâmbulo quanto dos arts. 13 a 23, valendo notar exaltação de que a sua pessoa era, na
condição de chefe supremo do Estado, inviolável e sagrada. Interessante notar que, em contraste
com as constituições marcadamente liberais, a iniciativa do processo legislativo pertencia, com
exclusividade, ao rei (art. 16).
6
O art. 102 da Constituição em comento, no decorrer de seus quinze incisos, traçava relevantes
competências a serem exercitadas pelo Imperador como chefe do Poder Executivo.
7
Dentre as diversas atribuições inerentes ao Poder Moderador, nos termos do art. 101, I a IX, da
Constituição de 1824, encontra-se a notável influência que o Imperador poderia exercer no
funcionamento do Legislativo e do Judiciário e das administrações municipais. Não fosse pela
titularidade do Poder Moderador, não poderia D. Pedro II haver implantado, entre nós, regime de
governo parlamentarista mediante o Decreto 523, de 20 de julho de 1847, sem reforma expressa
do texto constitucional. A pujança do Poder Moderador restou imortalizada na pena de Pimenta
Bueno: “O Poder Moderador, cuja natureza a Constituição esclarece bem em seu art. 98, é a
suprema inspiração da nação, é o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma,
de examinar o como os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus mandatários, são
exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que cada um deles se conserve em sua
órbita, e concorra harmoniosamente com os outros para o fim social, o bem-estar nacional: é quem
mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim a
mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente de todas as instituições
fundamentais da nação” (José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente, “Direito público
299
E, como se não bastasse, o art. 15, VIII, da Constituição do Império,
dispunha, às explícitas, ser atribuição da Assembléia Geral “fazer leis, interpretá-
las, suspendê-las e revogá-las”.
Por sua vez, no rol de competências dos órgãos do poder judiciário, nem
mesmo especificadamente quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, havia mínima
referência que fosse a permitir compreensão de ser possível verificação de
questão de legitimidade constitucional.
Tudo isso serve para mostrar que a escolha em favor do modelo francês,
levada a cabo pela Carta de 1824, com o acréscimo do clima político reinante,
inviabilizou qualquer tentativa para a afirmação da possibilidade dos juízes
verificarem o concerto entre aquela e as leis e demais atos normativos.
300
julgar: a) as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em
disposição da Constituição Federal”.
Nessa hipótese, a lei poderia ser inconstitucional por seu objeto não se
situar na competência legislativa da pessoa política que a editou, ou por contrariar
as disposições constitucionais.
9
João Barbalho, Constituição Federal Brasileira (1891)-comentada, Senado Federal, Brasília,
2002, p. 242.
301
Em segundo lugar, a inconstitucionalidade poderia ter lugar quando aferida
a desconformidade do processo parlamentar de elaboração da lei com os
respectivos preceitos da Constituição.
Pela lição do autor já se antevia divisão, que sobrevive até os dias de hoje,
fracionando os tipos de inconstitucionalidade em material e formal10.
10
Consultar: José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 8. ed., Malheiros, São
Paulo, 1992, p. 48 e Clèmerson Merlin Clève, A fiscalização abstrata de constitucionalidade no
direito brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, pp. 31-37.
11
O preceito continha o teor seguinte: “Os juízes e tribunaes appreciarão a validade das leis e
regulamentos e deixarão de applicar aos casos occurrentes as leis manifestamente
inconstitucionaes e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a
Constituição”.
12
Amaro Cavalcanti, Regime Federativo e a República Brasileira, Universidade de Brasília,
Brasília, 1983, Coleção Temas Brasileiros, v. 48, p. 203.
13
Interessante transcrever a seguinte passagem do pronunciamento: “Que incumbe aos Tribunais
de Justiça verificar a validade das normas que têm de aplicar aos casos ocorrentes e negar efeitos
jurídicos àquelas que forem incompatíveis com a Constituição, por ser esta a lei suprema e
fundamental do país; Que este dever não só decorre da índole e natureza do Poder Judiciário, cuja
missão cifra-se em declarar o direito vigente, aplicável aos casos ocorrentes regularmente sujeitos
à sua decisão, se não também é reconhecido no art. 60, letra ‘a’, da Constituição que inclui na
competência da Justiça Federal o processo e julgamento das causas em que alguma das partes
302
Com isso, evidentemente, não se quer dizer que o Supremo Tribunal
Federal ostentava papel idêntico ao dos demais órgãos jurisdicionais no particular
da competência examinada. Absolutamente. Seja pela relevância de sua
competência originária, ou pela competência recursal última, àquele foi apontada
função de guardião-mor da autoridade da Constituição, singularidade divisada pela
doutrina de então14, sem contar importante função de velar pelo pacto federativo,
firmando a harmonia entre os Estados e a União.
303
numero de casos, se utilisam os litigantes para o fim de obter a
reforma das decisões da instância inferior pela superior 15.
Num ponto, porém, penso ter havido interpretação alargada do art. 59, §1º,
alínea b, pelo Supremo Tribunal Federal, pois, como nos informa João Barbalho19,
no Recurso Extraordinário 91, julgado em 09 de dezembro de 1896, assentou-se
que a expressão “leis locais” compreendia não somente as leis promulgadas pelos
15
Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, Senado Federal, Brasília, 2003, p.103.
16
Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, Senado Federal, Brasília,
2005, p. 617, Coleção história constitucional brasileira, Fac-sím. de: Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos
Santos, 1918.
17
Parece que o autor, posteriormente consagrado em obra dedicada à hermenêutica jurídica, já
vaticinava o caos que, nos dias atuais, viria instaurar-se no Pretório Excelso, com as estatísticas
referentes ao quase concluso ano de 2008, retratando o ingresso de 87.529 processos em
contraste ao número de 90.847 julgamentos. O quantitativo não deixa de ser animador quando se
observa que, no ano de 2007, foram recebidos 119.324 feitos e julgados 159.522.
18
Eis o aludido preceito: “A simples interpretação ou applicação do direito civil, commercial ou
penal, embora obrigue em toda a Republica, como leis geraes do Congresso Nacional, não basta
para legitimar a interposição do recurso, que é limitado aos casos taxativamente determinados no
art. 9º, paragrapho unico, letra (c) do citado decreto n. 848.”
19
João Barbalho, Constituição Federal Brasileira (1891)-comentada, op. cit., p. 246.
304
Estados, englobando também as municipais20. O entendimento, ao que parece,
mantém-se ainda hoje por força do art. 102, III, alíneas a e c21.
20
O mesmo entendimento foi esposado por Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição
Brasileira de 1891, op. cit., p. 617).
21
Consultar: Pleno, RE 206.777- 6/SP, v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 30-04-99; 1ª T., RE
249.070-9/RJ, v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 17-12-99.
22
João Barbalho, Constituição Federal Brasileira (1891)-comentada, op. cit., p. 246.
23
Na moldura atual do recurso extraordinário, o Pretório Excelso (1ª T., RE 265.297 – DF, v.u., rel.
Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 01-07-2005, p. 00056; 1ª T., AI – AgR 358.226 - SP, v.u., rel.
Min. Ellen Gracie, DJU de 23-08-2002, p. 00085) tem, em linha de princípio, afastado o seu
cabimento nas hipóteses em que se discute possível violação da Constituição por dispositivo
regulamentar, ora por reputar ausência de questão de constitucionalidade, porquanto tudo não
passaria de confronto entre a lei e o dispositivo que a complementa, ora por ser caso de ofensa
indireta, reflexa, do texto magno.
24
É de serem apontadas três modificações legislativas, quais sejam a de: a) 1891, a qual, a par da
criação de tribunais intermediários (tribunais de circuito) entre a primeira instância da justiça federal
e a Suprema Corte, diminuiu as hipóteses de apelação obrigatória e instituiu o writ of certiorari; b)
1925, que reduziu mais ainda os casos de apelação obrigatória e aumentou a discricionariedade
da Suprema Corte para o conhecimento de recursos (discretionary power), instituindo o certiorari
by pass; c) 1988, responsável pela eliminação das situações de apelação obrigatória,
remanescendo a petition for writ certiorari como única via de acesso recursal à Suprema Corte.
305
Por essa razão, tanto a doutrina quanto a jurisprudência se mantiveram
ciosas em traçar limites a serem observados quando da aferição da
compatibilidade vertical entre a Constituição e as leis e demais atos estatais.
25
Thomas Cooley, Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América,
Russel, Campinas, 2002, p. 147. Tradução e anotações de Ricardo Rodrigues Gama à 3ª edição,
publicada em 1898.
26
Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, op. cit., pp.130 - 131
306
que a questão constitucional, para assim qualificar-se, deve ser o único objeto da
discussão jurídica, de modo que se há autônoma possibilidade desta ser resolvida
com o emprego de outro argumento, não haveria que se cogitar de
questionamento de compatibilidade vertical.
Não havia disposição magna expressa sobre a matéria, o que veio a surgir
somente com a Constituição de 1934, permanecendo a exigência até a Lei
Fundamental vigente (art. 97), havendo, na atualidade, o Supremo Tribunal
Federal se mostrado rígido quanto à sua observância29.
Isso não impedia – e ainda hoje não impede – que o juiz singular pudesse
deixar de aplicar uma lei ou ato normativo, ao reconhecer incidentalmente sua
inconstitucionalidade. Nem mesmo nos Estados Unidos há qualquer restrição a
esse respeito30.
27
Amaro Cavalcanti, Regime Federativo e a República Brasileira, op. cit., p.204
28
Para Amaro Cavalcanti (Regime Federativo e a República Brasileira, op. cit., p. 203) tal deveria
ocorrer porque, no controle de constitucionalidade, não se estava diante apenas da missão
ordinária do juiz de julgar acerca da lei invocada sobre um fato, mas antes de um ato do Poder
Público, superior à simples função judicial. Também sustentava idêntica preocupação Carlos
Maximiliano (Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., p. 612).
29
Eis, portanto, o teor da Súmula Vinculante 10: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF,
artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou
em parte”.
30
Elucidativa, a respeito, a leitura de Eduardo Vírgala Foruria, “Control abstracto y recurso directo
de inconstitucionalidad en los Estados Unidos”, Revista Española de Derecho Constitucional, a. 21,
n. 62, 2001, pp. 77/124.
307
Galvaniza atenção a incessante tentativa de delimitar o alcance da ação de
habeas corpus. Incorporada ao nosso sistema jurídico com o Código de Processo
Criminal do Império (art. 340), assomou ao texto constitucional com o § 22 do art.
72 da Constituição de 1891, assim redigido: “§ 72. Dar-se-á habeas corpus
sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência,
ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”.
31
A esse propósito, inexcedível lição de Rui Barbosa, Atos inconstitucionais, 2. ed, Russel,
Campinas, 2004, p. 156: “A confusão, que irrefletidamente se faz muitas vezes entre direitos e
garantias, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve presidir a interpretação dos textos,
e adultera o sentido natural das palavras. Direito “é a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de
praticar, ou não praticar certos atos”. Garantia, ou segurança de um direito, é o requisito de
legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados, de ocorrência mais ou
menos fácil”.
32
Eis o preceito: “A requerimento do autor, a autoridade administrativa que expediu o acto ou
medida em questão suspenderá a sua execução, si a isso não se oppuzerem razões de ordem
pública.”
33
No particular, o relato de Amaro Cavalcanti: “O pensamento, que se depreende dos dispositivos
dessa lei, é, antes de tudo, o de que a eficácia dos atos legislativos e administrativos, assim como
o dever de obediência aos mesmos, deverão subsistir sem quebra, até que, por sentença judiciária
proferida em processo regular, sejam tais atos declarados, por ventura, nulos ou carecedores de
fôrça jurídica. O legislador de 1894 procurou tornar êste seu pensamento o mais claro possível,
estatuindo, como advertência especial, no §7º do citado art. 13, que o autor podia requerer a
suspensão do ato ou medida impugnada, – mas, dirigindo o seu requerimento à própria autoridade
administrativa expedidora do ato, e esta poderá atendê-lo, ‘se a isto não se opusessem razões de
ordem pública’. Não reconheceu, entretanto, a mesma faculdade à autoridade judiciária”
(Responsabilidade civil do Estado, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1956, Tomo II, p. 783-784).
34
Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., p. 734.
308
Porém, o Supremo Tribunal Federal, de fato, deferiu várias impetrações
para que fossem assegurados outros direitos fundamentais que não a liberdade
individual. Houve resistências, mas parcelares. Noutras ocasiões se conhecia do
pedido, a pretexto de que, embora não sendo a liberdade de locomoção a utilidade
imediata, sua proteção estava vinculada, de modo insuperável, ao desempenho de
outro direito fundamental.
35
Em voto vencido, o Min. Godofredo Cunha salientou que, em sendo os fatos idênticos aos que
ensejaram o deliberado no HC 2.984, o novo pedido de habeas corpus somente poderia ser
recebido como reclamação para execução do primeiro acórdão. É, assim, possível visualizar em tal
pronunciamento embrião do que, mais tarde, tem-se como reclamação para preservação da
autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l, CF), medida de extrema e
presente relevância no controle de constitucionalidade em face da introdução do efeito vinculativo
da ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, da ADPF e da
súmula vinculante.
309
1914 (rel. Min. Oliveira Ribeiro), cuja concessão implicou o direito constitucional do
impetrante, Senador Rui Barbosa, para publicar seus discursos proferidos da
tribuna do Senado pela imprensa, onde, como e quando lhe convier, tendo o Min.
Godofredo Cunha votado pelo não conhecimento do pedido, porquanto o habeas
corpus é destinado tão-só a tutelar a liberdade pessoal; i) HC 3.697, de 16 de
dezembro de 1914 (rel. Min. Enéas Galvão), cujo deferimento assegurou ao
Senador Nilo Peçanha o direito para que ingressasse nas dependências do
palácio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, a fim de exercer suas funções
de presidente do Estado até o término do mandato; j) HC 4.781, de 05 de abril de
1919 (rel. Min. E. Lins), concedido para que o Senador Rui Barbosa, juntamente
com os demais impetrantes, pudesse, no Estado da Bahia, exercer direito de
reunião e de palavra publicamente nas praças, ruas, teatros e quaisquer recintos.
36
Respondendo, por ocasião de discurso pronunciado na Câmara dos Deputados no ano de 1926,
ao que denominou de fulminações da “esquerda parlamentar” contra o projeto de revisão
constitucional, frisou Francisco Campos (Direito constitucional, Livraria Freitas Bastos, Rio de
Janeiro, 1956, v. II, p. 368), quanto à restrição explicitada para o habeas corpus, que: “A natureza
do habeas-corpus, repito, está legitimamente restaurada no texto da reforma. Nem nunca foi outra
coisa, o habeas-corpus, nas nossas tradições judiciárias, senão o remédio destinado a assegurar,
proteger e tutelar a liberdade de locomoção”.
37
Cf. narrativa constante de estudo de nossa autoria (Edilson Pereira Nobre Júnior, “Mandado de
segurança coletivo e sua impetração por partido político”, Revista Cuestiones Constitucionales,
Ciudad Universitaria, n. 16, 2007, pp. 282-283, rodapé 2).
310
Esse mito foi superado pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal. Em
sua memorável peleja contra os atos perpetrados pelo Presidente Floriano
Peixoto, é sabido que Rui Barbosa não se cansou em alardear mensagem de que
a ação do Executivo e do Legislativo tinha como forçado encerro a Constituição.
Tanto que deixou claro, por isso, ser inadmissível impugnação direta duma
lei, porque, se assim pudesse ser realizado, exorbitaria o judiciário o alcance de
sua competência, o que não impediria os atingidos de resguardarem seus direitos
individuais contra os atos embasados no comando legal.
38
Incisivo, Marshall, no Marbury vs. Madison, de 24 de fevereiro de 1803, elucidou imperiosa
distinção: “...quando os responsáveis dos ministérios são agentes políticos, ou de confiança do
Executivo, limitando-se a executar a vontade do Presidente, ou, em geral, atuando em casos nos
quais o Executivo dispõe dum âmbito constitucional ou legal de discricionariedade, nada pode
estar mais claro que estes atos são somente politicamente fiscalizáveis. Porém, quando a lei
estabelece um dever específico, e existem direitos individuais que dependem do cumprimento
deste dever, está igualmente claro que o cidadão que se considere prejudicado tem o direito de
recorrer às leis de seu país em busca de uma reparação” (tradução nossa a partir de versão
espanhola disponível em: www.der.uva.es. Acesso em 31-10-2008).
39
A teorização desenvolvida sobre o assunto por Rui Barbosa é encontradiça em os Atos
Inconstitucionais, op.cit., p. 105-119. Devido à extensão dos fundamentos que a ampara,
interessante transcrever-se parte das conclusões: “Atos políticos do Congresso, ou do Executivo,
na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da justiça, consideram-se
aqueles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício
dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo. Em prejuízo destes o direito constitucional não
permite arbítrio a nenhum dos poderes. Se o ato não é daquele que a Constituição deixou à
discrição da autoridade, ou se, ainda que o seja, contravém às garantias individuais, o caráter
político da função não esbulha do recurso reparador as pessoas agravadas. (...) A violação de
garantias individuais, perpetrada à sombra de funções políticas, não é imune à ação dos tribunais.
A estes compete sempre verificar se a atribuição política, invocada pelo excepcionante, abrange
em seus limites a faculdade exercida.” (Atos inconstitucionais, op. cit., pp. 118-119).
311
O pensar acima, após iniciais reveses, alcançou receptividade no Supremo
Tribunal Federal. Inicialmente se mencione o HC 300, de 27 de abril de 1892,
impetrado por Rui Barbosa em favor do Senador Almirante Eduardo Wandenkolk e
outros, detidos e desterrados por ordem do Marechal Vice-Presidente da
República, conforme os Decretos de 10 e 12 do referido mês. O Pretório Excelso
denegou o pedido sob consideração de incompetência, afirmada com base nos
seguintes argumentos: a) antes do juízo político do Congresso não poderia o
Judiciário examinar o uso que fez o Presidente da República da atribuição
constitucional de lançar mão do estado de sítio, uma vez não ser da índole do
Supremo Tribunal Federal envolver-se em questões políticas; b) ainda que, na
situação criada pelo estado de sítio, possam estar envolvidos alguns direitos
individuais, tal não habilita o poder judicial a intervir para nulificar os atos
presidenciais, visto ser impossível isolar esses direitos da questão política que os
envolve.
40
Considerando-se que talvez tenha sido esta a primeira manifestação, com robustez, do
afastamento da imunidade do controle judicial dos atos ditos políticos, interessante transcrição de
passagem do pronunciamento: “Em face de nosso atual regimen, é indiscutível a competência do
Poder Judiciário Federal para manter a inviolabilidade da Constituição, que não pode flutuar à
mercê dos caprichos dos dois outros órgãos da soberania nacional. Assim, pois, se as medidas
discricionárias do chefe do Poder Executivo, durante o estado de sítio, têm os seus limites na lei
fundamental, que da mesma sorte indica nesta grave emergência da vida social qual o
procedimento que assiste ao Congresso, é manifesto que a inobservância de tais preceitos abre
espaço à intervenção do Poder Judiciário. O estado de sítio não significa a suspensão de todas as
garantias, mas tão somente daquelas que se acham mencionadas no art. 80, n.2, da Constituição,
312
Outra oportunidade recaiu no HC 1.974, de 14 de janeiro de 1903,
impetrado em favor de Gastão de Orleans e demais membros da ex-dinastia
brasileira de Bragança, para que pudessem, sem prejuízo de suas liberdades
físicas, ingressar e demorar no território nacional, ao argumento de que o Decreto
78 – A, de 21 de dezembro de 1889, foi revogado pela Constituição de 1891,
havendo o Supremo Tribunal Federal não conhecido do pedido.
A ordem foi concedida com base no voto do relator, Min. Pedro Lessa, o
qual inferiu que o ato impugnado não era daqueles de natureza política, entregue
unicamente à discrição do Legislativo, ou Executivo, ensejando-se, assim, a
competência do Judiciário para a sua análise. A ofensa injusta à liberdade pessoal
justificava o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
e de cujo emprego o Presidente da República “logo que se reúna o Congresso, motivando-as lhe
relatará”. Por conseguinte, tudo que for além de tais medidas dará então lugar a intervenção do
Poder Judiciário, antes ou depois do juízo político do Congresso, por não se tratar mais de atos
praticados dentro da órbita constitucional, porém de violência à liberdade individual, que tem no
habeas corpus, o meio legítimo de fazer cessar esse constrangimento. E nem seria admissível que,
tendo o nosso estatuto político, por intuitiva precaução, restringido a ação do Poder Executivo,
durante o estado de sítio, pretender-se condenar à inércia o Poder Judiciário Federal diante de
quaisquer abusos que porventura se pudesse praticar à sombra dessas medidas de salvação
pública.”
41
Entendimento similar se deu no HC 2.437, de 11 de maio de 1907, no qual foi negado pleito de
regresso ao Brasil formulado por D. Luiz de Orleans e Bragança, havendo ficado vencidos os
Ministros Amaro Cavalcanti e Alberto Torres, este com talentosa declaração de voto-vencido,
concluindo pela desconformidade do Decreto 78 – A, de 1889, com a então vigente Constituição.
313
Em ambas situações, o Supremo Tribunal Federal deferiu a ordem,
havendo, na primeira das oportunidades citada, o relator, Min. Amaro Cavalcanti
afastado óbice inerente ao conhecimento pelo Judiciário de matérias políticas,
argumentando que esta regra somente se aplica quando, no caso concreto, o ato
impugnado é da atribuição exclusiva de dado poder político, nos termos expressos
da Constituição e que, na situação presente, aquele se reduzia a um simples ato
de coação, praticado pela força federal a instâncias do Presidente da República,
privando os impetrantes de ingressaram no edifício legislativo e, portanto, de
exercerem suas funções.
Essa lição, encontradiça em Amaro Cavalcanti42, tem, mais uma vez, seu
lastro na experiência norte-americana, e resulta do caráter excepcional do controle
de constitucionalidade, mostrando ao juiz o dever de procurar, o máximo possível,
salvar o texto da lei ou do ato normativo impugnado43.
42
Amaro Cavalcanti, Regime Federativo e a República Brasileira, op. cit., p. 203.
43
É como diz García-Pelayo (Derecho constitucional comparado, 3ª reimpressão, Alianza Editorial,
Madri, 1993, p. 431), comentando o sistema americano, quando o juiz se depara com a
possibilidade duma lei ser suscetível de duas interpretações, gravitando em torno da invalidade e
da validade do texto legal, deverá preferir esta última.
44
Cf. Amaro Cavalcanti, Regime Federativo e a República Brasileira, op. cit., p. 206.
45
Assim Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., p. 617,
referindo-se ao cabimento do recurso extraordinário.
314
Não é possível olvidar impressão então prevalecente sobre qual a eficácia
duma declaração de inconstitucionalidade de lei proferida pelo Judiciário, emane
ou não do Supremo Tribunal Federal.
Isso porque, como sustém o autor49, a lei ou ato estatal, enquanto não
declarado inconstitucional, porta presunção de legitimidade, a atuar em favor
daqueles que, civil, criminal ou administrativamente, agiram de acordo com os
seus comandos.
46
Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, op. cit., pp. 138-139.
47
Amaro Cavalcanti, Regime Federativo e a República Brasileira, op. cit., p. 207.
48
Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., pp. 120-121.
49
Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., p. 121.
315
Isso se dá à medida que se observa que os norte-americanos, apesar de
terem limitado a eficácia da declaração à controvérsia, indiretamente, por força da
regra da obrigatoriedade do precedente, transpunham a tal deliberação eficácia
contra todos e vinculativa.
50
Sem embargo de representar limite formal, a sua conexão com a temática dos efeitos das
decisões de inconstitucionalidades faz com que seu tratamento seja deslocado como
conseqüência daqueles.
51
Incisivo o comentário do autor: “Interprete da Constituição, e mais autorizado que os outros, é o
Poder Judiciário. Não age, todavia, sponte sua; pronuncia-se contra a validade de actos do
Executivo ou do Congresso Nacional quando os prejudicados o reclamam, empregando o remédio
316
vedação peremptória. A nulidade da lei inconstitucional não estava a obstar que,
uma vez levada uma questão a juízo, pudesse o magistrado, mesmo à míngua de
tal matéria não constar da causa de pedir, reconhecer inconstitucionalidade duma
lei se entendesse relevante para o julgamento da causa. O que estaria interditado
ao Judiciário era assim operar sem que exista demanda instaurada a pedido da
parte interessada53.
juridico adequado à especie, obedecendo aos preceitos formaes para obter o restabelecimento do
direito violado” (Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, op. cit., p. 116).
52
Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, Ministério da Justiça,
Brasília, 1997, p. 113.
53
A admissibilidade do Judiciário, de ofício, verificar possível inconstitucionalidade constitui, na
atualidade, entendimento preponderante no Pretório Excelso (Pleno, RE – ED 219.934 – SP, v.u.,
rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 26-11-2004, p. 6).
54
Tratou-se do HC 18.178, julgado nas sessões de 27 e 29 de setembro e 01 de outubro, assim
ementado: “Na tramitação parlamentar da Reforma Constitucional não foi violada cláusula alguma
da Constituição da República. O quorum de approvação das emendas à Constituição é de dois
terços dos votos dos congressistas presentes. O poder judiciário continúa competente para
conhecer de habeas-corpus durante o estado de sítio desde que as medidas tomadas pelo
Executivo ultrapassem os limites fixados no art. 80 da Constituição” (Revista Forense, v. XLVII,
fascículos 277 a 282, jul./dez., 1926, p. 748).
55
Pela sua incontestável importância histórica, transcrevemos relevante trecho da deliberação: “A
primeira questão a se examinar é a de saber se o Judiciário tem ou não competencia para
conhecer da arguição de inconstitucionalidade da reforma constitucional. Para mim, não há a
menor dúvida que tem. Nos termos do art. 60, letra a, da Constituição desde que seja submetida
ao conhecimento do Judiciário uma causa em que a parte funde a acção, ou a defesa na
Constituição, não poderá elle se esquivar ao dever de verificar se o preceito constitucional,
invocado pela parte, effectivamente a protege, ao de fazer valer o direito da parte contra qualquer
lei do Congresso, que o violou, violando o dispositivo garantido. A Constituição não distingue nas
leis as que podem das que não podem ser arguidas de inconstitucionalidade. Por tanto, todas o
podem, inclusive a lei da reforma constitucional que é, como todas as leis, disciplinada também,
em sua elaboração, por preceitos constitucionaes, que, para a sua validade, deverão ser
rigorosamente observados. E´ do regimen politico que adoptamos, de poderes limitados, que
nenhuma funcção será relativamente exercida sem que se contenha estrictamente dentro da órbita
que traça a Constituição ao poder que a exerce. E por força do citado dispositivo da letra a do art.
60, ao Judiciario é que incumbe, quando a isso regularmente provocado, pronunciar a inefficiencia
do acto exorbitante e desconforme com os preceitos constitucionaes. Mais que as leis ordinárias as
destinadas a alterar a Constituição deveriam ser sujeitas, como foram, a exigências de tal modo
rigorosas, que, de um lado, difficultassem as alterações, assegurando a estabilidade das
317
V. SÍNTESE CONCLUSIVA
318
inconstitucionalidade e a possibilidade de ser suscetível de questionamento a
validade de emenda constitucional.
Evadindo-se à forma adotada para este tópico, não poderia omitir que de
tudo isso restou evidenciado, à época, o elevado grau de desenvolvimento do
sistema americano de controle da constitucionalidade, tanto que a ausência de
atenção de nossa doutrina e jurisprudência para a regra da observância dos
precedentes, que poderia ser extraída pela posição proeminente do Supremo
Tribunal Federal na guarda da Lei Fundamental, fez com que, décadas mais tarde,
se tornasse demasiado e formalmente complexo nosso modelo, com a
transposição para o texto constitucional da (desnecessária) ação declaratória de
constitucionalidade, da competência do Senado Federal, atualmente acoimada de
anacrônica56 e da dupla previsão, no texto sobranceiro, de efeito vinculativo.
Porventura tal se deveu às condições políticas e sociais de nossa prática
republicana que, contrariamente à tradição norte-americana, não criou clima
propício a que a interpretação constitucional levada a cabo pelo Supremo Tribunal
Federal se erigisse à condição de moderadora da atividade dos poderes públicos
e das relações jurídicas entre particulares. Fica registrado o lamento.
VI. BIBLIOGRAFIA
56
Ver Gilmar Fererreira Mendes; Inocêncio Mártires Coelho; Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso
de Direito Constitucional, 2 ed., Saraiva, São Paulo, 2008, p. 1.082.
319
Eduardo Vírgala Foruria, “Control abstracto y recurso directo de
inconstitucionalidad en los Estados Unidos”, Revista Española de Derecho
Constitucional, a. 21, n. 62, 2001, pp. 77/124.
Fernando Rey Martinez, “Una relectura del Dr. Bonham ’case y de la aportación
de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review”, Revista Española de
Derecho Constitucional, a. 27, n. 81, 2007, pp. 163-181
José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente, “Direito público brasileiro e
análise da constituição do império”, en Eduardo Kugelmas (Org.), 1. ed., Coleção
Formadores do Brasil, Editora 34, São Paulo, 2002.
320