Crises Na Vida Do Pastor e Reflexos Na Família

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Crises na vida do Pastor e reflexos na Família

Preparado e apresentado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, em alguns encontros de
Ordens de Pastores Batistas. Isaltino faleceu em 1º/10/2013. O pastor Isaltino era filósofo,
psicólogo, teólogo e pastor. Foi o escritor batista com o maior número de livros publicados.

INTRODUÇÃO

Para iniciar esta minha palavra, apresento minhas credenciais. Tenho dois filhos, um
casal. Ele é diácono e ela é crente atuante, de testemunho evangelístico. Ambos têm
cursos seculares, mas fizeram disciplinas avulsas na Faculdade Teológica Batista de
Campinas. Ele ainda fez uma, na Faculdade Batista de Teologia do Amazonas. Minha
esposa, após 37 anos de casados, ainda anota meus sermões. Registra todos os esboços
em sua Bíblia. Costumo dizer que sua Bíblia tem mais palavras de Isaltino que palavra de
Deus. Ela me leva a sério.

Não sou melhor nem pior que outros pastores. Apenas quero ressaltar que o quesito
família deu certo em minha vida. As pessoas mais próximas de mim, que partilham de
intimidade, creem no que prego. Carrego como condecoração a apresentação que meu
filho fez quando preguei na igreja em que ele era vice-presidente: “Vai pregar o meu pai.
Meu pai é um homem da Bíblia. Ele vive o que prega e prega o que vive”. Quem me
conhece intimamente sabe quem sou eu e me admira e respeita. Isto me basta. Minha
família sabe que vivo minha fé e vivo o ministério pastoral. Vou falar com coração. E
convicção.

Mas como pastor, tive crises de pensar em abandonar o ministério. Tive crises
doutrinárias, denominacionais e de fé. Quem as nunca teve, receba meus sinceros
parabéns, sem ironia. Quem as teve sabe do que falo. Nós, que tivemos e temos crises,
não somos inferiores aos que nunca tiveram e não as têm. Mas esta não é a questão
fundamental. A questão é: como manter a família imune aos efeitos de nossas crises ou
como minimizar esses efeitos? Vamos caminhar por aqui. Dividi esta palestra da seguinte
maneira: (1) Os diferentes tipos de crise; (2) Porque elas surgem; (3) Como tratar as
nossas crises; (4) Como proteger a família; (5) Questões práticas; Conclusão.
Comecemos, então, pelos diferentes tipos de crise que enfrentamos.

1. OS DIFERENTES TIPOS DE CRISES

Alisto quatro tipos de crises, que me parecem ser as mais comuns no ministério pastoral.

(1) A primeira é a crise de vocação. Entramos no ministério cheio de ideais, mas as


coisas começam a dar errado. Os desacertos são maiores do que os acertos e se a
pessoa é reflexiva, logo lhe vem uma dúvida: “Sou mesmo vocacionado para isto?”.
Reconheço que meu primeiro pastorado foi um fracasso. Eu era muito novo, entrado nos
vinte anos. Tinha, entre muitos, dois defeitos mortais em sua combinação: era inexperiente
e arrogante. As coisas não davam certo. Orei muito diante dos problemas e sofri muito
com a situação. No início, pensava que o erro era da igreja e do povo, mas depois de
algum tempo descobri que o erro estava comigo. Alguns colegas que passaram pela
mesma situação, desistiram do ministério ou fizeram-se esta pergunta. Não desisti. Nem
fiz a pergunta. Tomei outro caminho. Dei-me uma segunda oportunidade. Apeguei-me a
isto: “Eu tenho uma sequência de experiências espirituais que me dão certeza de que sou
vocacionado”. Achei que valia a pena insistir.

Se há uma lição que aprendi e que posso repartir é esta: não se precipite nem tome
decisões no calor da frustração. Saiba esperar. Nós, pastores, nem sempre sabemos
esperar. Queremos resultados imediatos, queremos sucesso em nosso trabalho. Desejar
sucesso no trabalho é algo justo, ainda mais quando se tem a convicção de que o que está
se fazendo é um trabalho para Deus. O problema é muitas vezes ouvimos relatos
triunfalistas e nos frustramos se não temos relatos semelhantes. Nossas ovelhas ouvem
tais relatos e nos cobram o mesmo sucesso. Então vem a pergunta: “Por que não
acontece assim comigo? Acho que não sou do ramo!”.

(2) A segunda crise é de espiritualidade. As frustrações e as derrotas nos derrubam


espiritualmente. Em vez de nos dedicarmos e apegarmos a Deus, nós o deixamos de lado.
É o conhecido mecanismo de não buscar a Deus nas horas de decepção. Nós nos
comparamos aos outros. Esquecemos a individualidade de cada um de nós. Vivi esta
experiência, de me comparar com outro e me depreciar, e já com mais de trinta anos de
ministério. Convidei o Pr. Renato Cordeiro de Souza para efetuar pregações na igreja do
Cambuí, que eu pastoreava, então. Após as pregações do colega, senti-me
profundamente abatido, e disse para Meacir: “Estou mal, muito mal. Eu nunca serei um
pastor como o Renato, nunca serei espiritual como o Renato, nunca pregarei como o
Renato. Acho que não sirvo para ser pastor”. Ela me disse: “Não, você nunca será como
ele, mas você vai ser um pastor como o Isaltino é, será espiritual como o Isaltino é, e
pregará como o Isaltino prega”. Aquilo me ajudou.

Como caí nesta esparrela de me comparar com alguém? Recordo-me que quando eu
estava com 26 anos, no meu quarto ano de ministério, que um colega, entrando meu
gabinete, vendo a mesa, os livros, o lugar de trabalho, me disse: “Então, este é o lugar das
grandes batalhas com Deus!”. Fiquei sem saber o que dizer. Na realidade, nunca tive
grandes batalhas com Deus. Sou mais Samuel (“Fala, pois o teu servo está escutando!” –
1SM 3.10, LH) que Jeremias (“Ó SENHOR Deus, tu me enganaste, e eu fiquei enganado.
Tu és mais forte do que eu e me dominaste. Todos zombam de mim, caçoando o dia
inteiro” – Jr 20.7-9, LH) e Jonas, com sua briga com Deus. O colega tinha batalhas com
Deus, e eu não. Não éramos um melhor ou pior que o outro, mas apenas éramos de
temperamentos diferentes. Com 26 anos eu entendia isto, e com 50 desaprendi! É que
emoções não se racionalizam. Elas vêm e nos derrubam. Cuidado com elas!

(3) A terceira crise é de ordem eclesiástica. É no âmbito da igreja que pastoreamos ou


do trabalho que fazemos. Queremos, como pessoas normais, reconhecimento pelo nosso
trabalho, ansiamos por respeito como trabalhadores que levam a sério o que fazem,
almejamos e sucesso em nossa atividade. Somos muito cobrados e nem sempre
gratificados (o termo aqui tem conotação emocional; podemos ser bem pagos e pouco
gratificados). É curioso que até mesmo nas datas especiais em que nos homenageiam
(como o dia do pastor ou aniversário de pastorado), os versículos que são lidos versam
sobre a responsabilidade do pastor e seus deveres, aumentando-lhe o fardo e uma
possível crise que esteja incipiente. Nunca vi lerem versículos sobre a obediência devida
pela igreja ao pastor. Nunca alguém foi me homenagear e leu para a igreja “Obedecei a
vossos pastores, e sujeitai-vos a eles” (Hb 13.17, Almeida Revista e Corrigida) ou “Os
presbíteros que fazem um bom trabalho na igreja merecem pagamento em dobro,
especialmente os que esforçam na pregação do evangelho” – 1Tm 5.17, LH). Aos irmãos
presbiterianos lembro que para nós, batistas, “presbítero” e “pastor” designam a mesma
função. Respeito-os, mas isto é apenas para lembrar o sentido da minha frase. O ponto é
este: até as homenagens que nos acabam nos massacrando. Leem um texto ou fazem um
jogral que ressalta os deveres pastorais ou que idealizam a figura do pastor num nível em
que qualquer pastor honesto sabe que não chegou lá.

Muito pastor se esgotou emocionalmente no serviço, por dar-se ao rebanho, e em troca


receber incompreensão ou comentários bem dimensionados sobre suas falhas. Como diz
um email que recebi: “Pastor, às você chora, e ninguém vê sua lágrima; você sorri, mas
ninguém vê seu riso; mas cometa uma falha…” . Sem querer defender a classe: reconheço
que os pastores prestaremos contas a Deus do que ele nos confiou (e isso me assusta!),
mas muitas igrejas e muitos donos de igreja darão contas a Deus das dores que causaram
a pastores… Há crentes que são especialistas em machucar pastor. Na história da sua
igreja, em todas as crises que ela viveu, tais crentes estavam presentes, e não como
espectadores, mas como agentes. Há crentes com tradição neste ramo… Basta ler as atas
da igreja e ver que nas grandes crises há o dedo deles.

(4) O quarto tipo de crise são as familiares. Somos humanos. Somos gente como
qualquer um. Queremos amor, queremos respeito, ansiamos por um lar em que nos
sintamos bem. Ouvimos queixas da igreja e aí vamos para casa de cabeça cheia,
querendo um buraco para nos escondermos do mundo. Então, lá chegando, ouvimos
queixas dos filhos e da esposa. Com honestidade, diante de Deus: minha esposa e meus
filhos são admiráveis e nunca me criaram dificuldades. Tiraram-me, muitas vezes, como
instrumentos de Deus, do fundo do poço. Mas sei de colegas, que me abrem o coração,
que nem sempre isto é experimentado por eles. Diziam os ingleses que “o lar de um
homem é seu castelo”. O meu sempre foi, graças a Deus e à excepcional figura de Meacir
Carolina. Como eu disse na dedicatória que lhe fiz em meu comentário sobre Atos, é “a
mais extraordinária pessoa que conheci”. Mas há momentos em que o pastor chega em
casa e não tem apoio. Há lares pastorais em conflitos, e, seja quem for que esteja errado,
isto o desestrutura. Antes de dar mais bordoada no coitado, que ajuda podemos lhe dar?
Que podem as igrejas e as ordens fazer, além de demitir do pastorado e o coitado ser mal
visto na Ordem?

QUAL É O RESULTADO DE TUDO ISTO? Muitas vezes é frustração, desequilíbrio, e


abandono da vocação. Os reflexos se fazem sentir na família. Por vezes, o pastor cai no
ativismo para se justificar e para ver se agrada a Deus e assim Deus se condói dele (como
nos esquecemos da graça e como caímos na meritocracia!). Alguém comentou um dia
sobre um pastor que se orgulhava de não tirar férias há seis anos e que se mantinha
ocupado todas as noites na atividade ministerial. Quando a esposa o deixou, ele se
perguntou “Por quê?”. Creio que não era preciso dar nenhuma resposta.

A alternativa que eu apontaria aqui é esta: não despejar nossas frustrações em casa nem
esperarmos ter em casa o reconhecimento que queremos da igreja. São esferas
diferentes, analisadas por perspectivas diferentes. Devemos entender que as decepções
com a igreja ou denominação não devem ser transferidas para casa, de maneira nenhuma.
Lembremos que nossa casa é nossa local de retempero, é o nosso hospital emocional, é o
nosso lugar de consolo. Nossa esposa é nossa amiga e não a rival da igreja, nem um
estorvo em nossa função. É a mulher que Deus nos deu. E os filhos são herança do
Senhor, como diz o Salmo 127.3. É sempre necessário dar mais amor à família que ao
rebanho. E sobre isto falo um pouco mais à frente.

2. PORQUE ELAS SURGEM

Aponto quatro razões, dentre muitas, pelas quais nossas crises surgem.

(1) A primeira razão é um elevado conceito de si mesmo. Há pastores que se têm em


conta exagerada. Esquecem que são fracos e falíveis, e se julgam super espirituais, acima
das questiúnculas humanas. Sem sarcasmo, alguns parecem ter complexo de ser a quarta
pessoa da trindade. A forma como falam de si nos leva a ver assim. Alguns até usam o
plural majestático, ou falam de si na terceira pessoa, como o Pelé costuma fazer. Com
esta mentalidade, duas atitudes os acometem: 1) Nada de ruim lhes acontecerá porque
estão acima dessas coisas que afligem os mortais e pecadores; 2) Se eventualmente algo
lhes suceder, tal algo não prosperará (há até um corinho que diz que “nenhuma arma
forjada contra ti prosperará”), pois eles são pessoas especiais de Deus, que os protegerá.
“Portanto, aquele que pensa que está de pé é melhor ter cuidado para não cair” (1Co
10.12, LH). Notemos que não é “aquele que está de pé”, mas “aquele que pensa que está
de pé”. A autossuficiência precede a queda. E quando as coisas começam a dar mal, vem
a crise, se o sujeito é autossuficiente.

(2) A segunda razão é um elevado nível de expectativas que o obreiro cria para si e
para seu ministério. No início de meu ministério, eu esperava que houvesse decisões e
mais decisões, conversões aos montes, e pensava em organizar três ou quatro igrejas em
curto espaço de tempo. Lia relatos mirabolantes de pastorados alheios, e pensava que
aquilo também aconteceria comigo. Era bastante ingênuo na casa dos vinte anos e cria em
tudo que ouvia; hoje dou grande desconto ao que ouço e compro a prazo. E descobri que
há obreiros que exageram em seus relatos. Mas quando não acontecia comigo o
mirabolante acontecimento alheio, eu me inquietava. Mas eu também esperava mais da
igreja. Idealizava uma igreja num nível impossível de acontecer: todos santos, todos
evangelistas, todos dizimistas, todos consagrados, todos me hipotecando apoio irrestrito.
Na realidade, ainda me frustro com as respostas lentas e com o fato de as coisas não
andarem no ritmo que eu gostaria que andassem. Estas expectativas que não se
concretizam acabam produzindo uma crise enorme, que traz profundo desconforto e
insegurança.
(3) A terceira razão é um elevado nível de cobrança. Eu me cobrava muito. Ficava
arrasado quando pregava mal (ainda acontece isto, então vejam que sempre fico arrasado
quando prego) e deprimia-me quando alguma coisa falhava. Por exemplo, se aconselhava
um casal e ele se divorciava, eu entrava em parafuso. Onde foi que eu falhara? Que
poderia ter feito melhor? Como outros pastores “consertavam” casamentos e eu não
conseguia? Via estes insucessos como derrota pessoal e me sentia indigno da vocação.
Custei a parar de me cobrar nos insucessos.

É um problema muito sério quando o pastor se identifica tanto com seu ministério que vê
as coisas que deram erradas como culpa sua. Ele não dissocia o rumo das coisas da sua
pessoa. E tão ruim quanto isso é quando ele vê as coisas que deram certas como se
fossem mérito seu. No primeiro caso, ele se deprime. Deixa de confiar na graça. No
segundo caso, ele se ensoberbece. Assume como sua a glória que é exclusivamente de
Deus. Em ambas as circunstâncias, ele deixou de ver a obra como sendo de Deus e
passou a vê-la como sua. É bom sempre ter em mente que somos apenas instrumentos e
que nossa responsabilidade é sermos instrumentos disponíveis e usáveis.

(4) A quarta razão é por nos desligarmos do mundo real. Os pastores vivemos num
mundo de conceitos e de sonhos, que não é o mundo real em que as pessoas vivem. Não
tomamos ônibus cheio nem almoçamos no refeitório da fábrica. Muitos de nós almoçamos
em casa. Não marcamos ponto, nem batemos cartão, mas fazemos nosso próprio horário,
sem prestarmos contas a ninguém disto. E lemos livros e revistas que ninguém lê.
Discutimos assuntos que a nós parecem tão importantes, mas que são absolutamente
irrelevantes para as pessoas. Vivemos num mundo paralelo ao mundo em que as pessoas
vivem. Há pastores que sequer sabem o preço dos produtos alimentícios. Mas conhecem
as nuances dos diferentes pensamentos de filósofos e teólogos. Ignorantes do mundo que
importa às pessoas, muitos nos tornamos irrelevantes para elas. Esta quarta razão
desencadeia uma série de atitudes em nossa vida que levou a alguém a definir o pastor
como “alguém invisível durante a semana e irrelevante no domingo”. Assim, muitos de nós
pregamos o que não interessa a ninguém. Será que, realmente, as pessoas reais estão
interessadas em dicotomia e tricotomia, a ponto de isto demandar uma exaustiva análise
do púlpito durante três domingos? Ninguém de vida cotidiana normal perde sono com
heteus, cananeus e jebuseus. As pessoas perdem sono com coisas reais, como
desemprego, enfermidades, vida vazia, marido pulando cerca, mulher frigida, filhos
desobedientes, e não com “a conceituação dos grandes términos escatológicos”.

RESULTADO: O resultado é a nossa incapacidade de lidar com o mundo que nos cerca. E
ficamos surpreendidos quando o mundo real, o mundo lá fora, triunfa sobre o nosso
mundo conceitual, aquele que criamos em nossa mente e projetamos como sendo o
mundo em que as pessoas devem viver. O processo hermenêutico da Universal do Reino
de Deus é, sendo gentil, inusitado. Mas funciona porque seus pastores falam de coisas
reais para as pessoas reais. As pessoas querem respostas e não lucubrações. Elas vivem
num mundo de racionalizações durante toda a semana, e no domingo tomam mais uma
dose extra de racionalização e conceitos do púlpito, quando este é o mundo em que o
pastor vive. E há o aspecto familiar, aqui. Um pastor, sabedor que seu filho estava
envolvido com drogas, disse: “Eu nunca pensei que isto fosse acontecer comigo”. Era um
bom pai, crente extraordinário, e homem de absoluta integridade, mas vivia num mundo
irreal, em que essas coisas não aconteciam com os crentes, menos ainda com pastores.
Ignorava o que era a vida real. Muito do nosso mundo ideal não existe.

A alternativa que vejo aqui é não nos colocarmos como pessoas a receber tributo em casa,
mas sim como doadores, como tributadores. Em casa devemos elogiar, agradecer,
mostrar amor e ternura à família. Dar-lhe segurança. Se temos carências, a família
pastoral mais ainda. O filho do pastor vê seu pai ser cortês e atencioso com os filhos dos
outros, e ausente com ele. A esposa do pastor vê o marido ser gentil com outras mulheres
(e isto sem segundas intenções), mas não vê o marido ser atencioso para com ela. O
ministério não pode nos colocar num mundo de ilusões e não pode nos levar a esquecer
nossa esposa e nossos filhos. Se a igreja é a cara do pastor, a família do pastor é o retrato
exato do que ele lhe dedica. O mundo real é de crianças que brigam entre si, despensa
que precisa ser enchida, contas por pagar, esposa que quer atenção, vizinhos
encrenqueiros. Muito antes de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, dizer que “viver
é perigoso”, Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf, dissera: “sempre sentia que era muito, muito
perigoso viver, por um só dia que fosse”. A vida não são ideias, mas tensões.

3. COMO TRATAR AS NOSSAS CRISES

Isto não é um tratado sobre crises pastorais, mas apresento sugestões que podem ser
bem ponderadas e, depois de filtradas, aplicadas.

(1) A primeira maneira de tratar nossas crises é não as minimizando. Alguns,


exatamente por terem um alto conceito de si, minimizam-nas, não as consideram
seriamente e as empurram com a barriga. Se não são para desesperar, elas são sintomas
de perigo, que exigem mudanças de atitudes, de estilo de vida, de hábitos. Leve-as a
sério. Sem entrar em pânico, pense seriamente no que está acontecendo. Não as ignore e
comece a pensar em tratá-las, antes que se avolumem. Numa ocasião, “este que vos
escreve” foi extrair uma verruga que crescera e que se tornara esteticamente incômoda. O
médico que o atendeu disse que ele chegara em bom tempo. Se tivesse demorado
acabaria tendo problemas. Não procrastine o encarar os problemas.

(2) A segunda maneira de tratar nossas crises é não às superdimensionar. É o oposto


do comentado no tópico anterior. Alguns, também pelo alto conceito de si,
superdimensionam suas crises. Acham que, sendo especiais, não deveriam ter
dificuldades nem crises, e entram em parafuso. Culpam-se, duvidam de sua vocação,
culpam a igreja (já mencionei um pouco disto, anteriormente). Não era para aquilo
acontecer, afinal, “tudo que o justo fizer, prosperará”, e eles se não prosperam, ou não são
justos ou os ímpios os obstaculizam. Pode ser que não haja culpados, e apenas
circunstâncias. Pode ser que tudo faça parte do propósito de Deus, dentro de sua
soberania. Ele pode estar amadurecendo pessoas ou preparando ambientes. Pergunte-se
o que Deus está fazendo e como está conduzindo a questão. Não se apavore. Deus
sempre está trabalhando em nossas vidas.

(3) A terceira maneira de tratar nossas crises é não as transferindo. Magoados ou


deprimidos, culpamos os outros e descarregamos na família. É o velho e conhecido
mecanismo de chegar em casa chutando a porta e pisando no rabo do cachorro. É bom se
esforçar e tentar ter serenidade no trato com quem não tem nada a ver. O maior erro que
podemos cometer, em relação à nossa família, é deixá-la em insegurança na maneira de
se relacionar conosco. Um chefe de família consciente oferece tranquilidade à família, e
nunca a desestabiliza. Por maior que seja a dificuldade, aquiete sua esposa e os seus
filhos. Eles precisam de segurança e dependem de você para que isto aconteça. Satanás
já trabalha bastante com nossa família. Se há algo que não precisamos nem devemos
fazer é dar-lhe munição.

(4) A quarta maneira de tratar nossas crises é nos lembrando que o que pregamos
para os outros se aplica a nós. Dizemos ao povo para buscar a Deus quando a coisa
fica feia, mas nem sempre o fazemos quando fica feia para nós. O remédio que
prescrevemos aos outros serve para nós. Alguns pastores parecem ter se esquecido que
são crentes, no sentido de que o receituário do púlpito é para eles, também. Continuamos
membros da igreja, sujeitos a ela, dependentes dela, e aprendendo o que ela ensina. O
pastor não é dono da igreja e não está acima dela.

A maneira de alguns pastores procederem em assembleias convencionais mostra que eles


não aplicam a si mesmos o que esperam de suas ovelhas. Se suas ovelhas procedessem
em uma assembleia da igreja como eles procedem numa assembleia convencional, eles
moveriam os pauzinhos para defenestrá-las. Os pastores são as pessoas de conduta mais
indisciplinada que há, quando se trata de discutir assuntos do reino. Alguns agem como se
não fossem crentes em Jesus Cristo. Isto porque não aplicam a eles o que aplicam ao
povo. Mas nós somos povo de Deus e devemos proceder como esperamos que os demais
procedam, inclusive na questão de dependência de Deus.

(5) A quinta maneira de tratar nossas crises é aprendendo delas. Elas não devem
passar em branco em termos de acrescentar alguma coisa à nossa experiência. Não é
necessário repetir os mesmos erros. Até mesmo porque há erros novos por cometer (por
favor, isto é um chiste – e, por favor, não analisem à luz do conceito freudiano de chiste).
Devemos aprender as lições e amadurecer das crises. Dizemos que elas são
oportunidades. Que sejam para nós, também.

RESULTADO: Precisamos reconhecer a nossa vulnerabilidade espiritual e emocional,


depender de Deus, ter humildade para reconhecer os erros e saber pedir desculpas. O
pastor precisa buscar ser melhor cada dia. Muita gente melhora como obreiro, mas
infelizmente piora como ser humano. Há santos que são horrorosos no relacionamento
com os demais. Eles são tão santos que não mais conseguem conviver com pecadores. É
bom evitar a duplicidade: ser algo espiritualmente e ser completamente diferente como
pessoa. Um pastor precisa ser cristalino. O “duplipensar” de George Orwell não pode ser
um “dupliagir” pastoral.

4. COMO PROTEGER A FAMÍLIA

Como proteger nossas famílias, tanto da maldade de alguns bodes travestidos de ovelhas
quanto de nossas falhas e limitações? A família pastoral sofre muito. Muita gente tenta
atingir os familiares do pastor para magoá-lo. E ela ainda sofre com atitudes nossas. Como
protegê-la?

(1) Devemos lembrar que somos os pastores da nossa família. Crentes sinceros,
amigáveis, têm o costume de chamar a esposa do pastor de “primeira dama”. É uma
maneira carinhosa (penso!). Mas devemos ter em conta que a nossa esposa não é a
primeira dama, mas é a primeira ovelha. Sempre deixei bem claro para as igrejas que
pastoreei que se tivesse que escolher entre a igreja e minha esposa, a igreja sobraria.
Igrejas há muitas. Esposa, só tenho uma, e só quero aquela. Os filhos do pastor são suas
ovelhas. Devem ser cuidados e protegidos por ele. E mais que o restante do rebanho.
Lembremos da tragicidade de Cânticos 1.6 (VR): “Não repareis em eu ser morena, porque
o sol crestou-me a tez; os filhos de minha mãe indignaram-se contra mim, e me puseram
por guarda de vinhas; a minha vinha, porém, não guardei” (o itálico é meu). Ela guardou a
vinha dos outros, mas não cuidou da sua. Pastor, nunca aconteça que você cuide dos
filhos dos outros e se esqueça de cuidar dos seus. Ou que se preocupe com a situação
das esposas dos outros e descuide da sua esposa. É dever do pastor cuidar e proteger a
sua família. Nunca deve oferecê-la no altar do sucesso ministerial. Primeiro porque Deus
não pede isto, e depois porque se arruinará também, além de ter que prestar contas pelos
seus familiares. Uma das condições sine qua non para um obreiro ter respeitabilidade é
esta: “que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em sujeição, com todo o
respeito (pois, se alguém não sabe governar a sua própria casa, como cuidará da igreja de
Deus?)” (1Tm 3.4-5, VR).

(2) Devemos criar e manter uma cumplicidade na família. “Cumplicidade” não significa
apoio no erro, mas sim tornar a família coesa, fechada, unida contra investidas externas.
Qualquer investida contra ela fracassa, porque não há brechas no relacionamento. O
pastor é um dos responsáveis, como chefe da família, em criar um vínculo de unidade nas
relações domésticas. Como homem, ele é o chefe da família não apenas para receber
tributo (como alguns homens parecem pensar), mas para dar o rumo por onde todos
devem seguir. Ele ama os filhos e a esposa e lhes diz isto, lhes faz sentir isto e mostra isto
no trato. Ele nunca permite que gente de fora seja mais importante que gente de casa e
nunca deprecia o que é seu.

(3) Uma questão óbvia, mas que muitos ignoram: devemos sempre evitar levar os
problemas da igreja para casa. Alguém dirá: “Isto é impossível!”. Não, não é. Nas
ocasiões em que trabalhei em administração de instituições de ensino teológico, eu não
tinha um número sequer de telefone de nenhum professor em casa. Sei que com igreja é
diferente. Mas esforce-se e ensine a igreja a não ver sua casa como extensão das
reuniões administrativas da igreja e de aconselhamento pastoral. Tanto quanto possível,
evite isto. Eventualmente poderá suceder isto, mas não trivialize. Não crie o hábito. No
início de meu ministério, a casa pastoral era ao lado da igreja. Estava sentado junto ao
púlpito, pastor novo, de 23 anos, enquanto o coral cantava, quando um homem se sentou
ao meu lado e me pediu a chave da minha casa para ir ao banheiro. Eu lhe disse para usar
o da igreja e ele me respondeu que o da igreja era ruim e o da minha casa era bom,
porque a igreja o reformara. Tornei a negar e lhe disse que o banheiro da minha casa era
para mim e para minha esposa, e que ele se levantasse na assembleia e propusesse a
reforma dos banheiros da igreja. Ele foi abusado, mas só daquela vez. Nunca mais agiu
assim. Cortei-o e também cortei um costume: quando eu menos esperava havia quatro ou
cinco pessoas dentro de minha casa, simplesmente por abrirem a porta e entrarem. Não
tínhamos privacidade no lar.

Não confundam isto com ausência de hospitalidade. São valores diferentes. Ser
hospitaleiro e receber bem as pessoas são uma coisa. Mas ter uma esposa recém-casada
dividindo o banheiro com gente que ela desconhece e cinco ou seis desconhecidos
invadindo seu espaço, inclusive seu quarto, é outra.

Nunca permita a quebra de privacidade do seu lar, nem a invasão eclesiástica de seu
domicílio. Não se trata da questão do uso do banheiro, mas sim da mistura de ambientes.
Sua casa é lugar de recolhimento com sua família. Nela, você recebe quem você quer
receber ou quem precisa de sua ajuda, e não quem nada tem a fazer.

RESULTADO: Não ponha a família vivendo em função de você ou de seu ministério.


Respeite a individualidade de cada um. Veja-os como membros de seu lar, sob seus
cuidados. Não os exponha. Viva para ela, a família, e procure mantê-la a salvo de
membros de igreja que por vezes são cruéis ou maledicentes. Proteja seu lar. Guarde seu
espaço doméstico.

5. QUESTÕES PRÁTICAS

Atrevo-me, agora, a alinhavar algumas sugestões de ordem prática, nesta área. Algumas
dessas questões desdobram o que disse anteriormente.

 Evite atender gente em sua casa. A casa é o local de repouso e refrigério. Há


pastores que têm o gabinete pastoral em casa. Respeito sua decisão, que por
vezes é uma contingência, mas peço-lhes, humildemente, que tenham bastante
cuidado para não expor a família. Seus filhos não precisam ver casais chorando ou
gente brigando em sua própria casa. E precisam ter a intimidade preservada, bem
como sua esposa. Como disse um amigo, “casa é o lugar onde um homem pode
andar sem camisa, e uma mulher pode ficar de short”. Mas com a casa cheia de
gente de fora isto não é possível.
 Evite comentar problemas da igreja em casa. Não traga a crise,
voluntariamente, para dentro de casa. Ela virá, inevitavelmente, com o tempo. Não
apresse a chegada de problemas. Sua responsabilidade é proteger e não expor
sua família.
 Mude o papel que desempenha em casa; seja marido e pai, e não o oficial da
igreja. Há pastores que impostam a voz até em casa, e, pasmem, chamam a
esposa de “irmã Fulana”. Até a oração à mesa, na hora da refeição, é imponente e
tonitruante, como se feita num templo.
 Valorize a família mais que a igreja local. Igreja há muitas, mas família só há
uma. Sobre sua esposa, lembre-se de Provérbios 18.22: “Quem encontra uma
esposa acha uma coisa boa; e alcança o favor do Senhor” (VR). Sobre os seus
filhos, lembre-se do Salmo 127.3: “Eis que os filhos são herança da parte do
Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão”. Sua esposa e seus filhos são jóias
valiosas que o Senhor lhe confiou. Não perca essas joias. E não as troque por
bijuterias.
 Seja sensível aos anseios e reclamos da sua família. Sua conduta com ela é
um termômetro de como andam sua vida e suas prioridades. Um pastor contou,
com orgulho, que seu filho lhe pediu para marcar uma audiência, já que ele era um
homem ocupado. Que pena! Nossa família não pede audiência, mas tem nosso
tempo a qualquer hora. Deve saber que o marido e o pai estão acessíveis a
qualquer instante.
 Veja sua família como um dom de Deus. Ele deu pastores à igreja (“E ele deu
uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros como evangelistas, e outros
como pastores e mestres” – Ef 4.11, VR), mas ele nos deu uma esposa (Pv 18.22)
e filhos (Sl 127.3). Sua igreja um dia terá outro pastor. Talvez melhor que você.
Mas sua esposa quer você como marido, e seus filhos querem você como pai.
Principalmente com seus filhos, lembre-se: você terá um sucessor no pastorado,
mas nunca poderá ter um sucessor como pai. Se tiver, é porque fracassou. O
melhor pastor do mundo é substituível. Um bom pai é insubstituível.

CONCLUSÃO

Terminar uma palestra destas é mais difícil que começar. Mas a questão pode ser bem
simples. Ouvimos dizer, várias vezes, que nenhum sucesso na carreira compensa o
fracasso no lar. Isto pode se aplicar ao pastor. De que adianta ser um orador daqueles de
embevecer multidões ou um grande líder denominacional, e perder a família?

É mais importante ser um bom mordomo de Deus na sua própria família que ser um bom
mordomo na vida alheia. Creio mesmo que isto, uma família desestruturada, nos inviabiliza
no ministério. Ao mesmo tempo, ter uma família unida ao redor da cruz e do ministério do
pastor é uma bênção e nossa maior credencial a apresentar. Parafraseio Paulo, quando
disse: “Não negligencies o dom que há em ti” (1Tm 4.14).

Digo “Não negligencies a família que começa em ti”. Pastoreemos nossas famílias e não
permitamos que nossas crises a estraguem

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