O Gato Preto...
O Gato Preto...
O Gato Preto...
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O INTERSTÍCIO E A INCERTEZA: AS
FACES DO FANTÁSTICO EM “O GATO
PRETO” DE EDGAR ALLAN POE
THE MOMENT BETWEEN AND
UNCERTAINTY: THE FACES OF THE
FANTASTIC IN “THE BLACK CAT” BY
EDGAR ALLAN POE
Evanir Pavloski* *
Doutor em Estudos
UEPG Literários. E-mail:
[email protected]
Abstract: The aim of this work is to revisit the iconic short story “The Black Cat”,
written by Edgar Allan Poe, on the theoretical-critical basis of the ambiguity’s
importance in the text and its effect on the reader. In order to accomplish this
objective, we will take as our main theoretical support the work titled The Menace
of the Fantastic, written by the Spanish critic David Roas, as well as its references
to concepts of other thinkers, such as Pierre Castex, Louis Vax e Tzvetan Todorov.
We intend to show that a destabilization process of the reader’s worldview takes
place both through the understanding of the protagonist’s attitudes as results of the
influence of evil forces and through the character’s psychological and discursive
analysis. As we shall reveal, in both views on the face of human monstrosity,
the logical and pacifying representations of reality have part of their deceiving
integrities put at risk.
Keywords: Fantastic. Destabilization. Real. Poe. “The Black Cat”. David Roas.
Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós,
em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-
-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro. Por isso
sua obra, atingindo dimensões extratemporais, as dimensões da natureza
profunda do homem sem disfarces, é tão profundamente temporal a ponto
de viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas
imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca de certos
ideais e de certos sonhos. (CORTÁZAR, 2006, p. 104).
Não obstante a simetria dos dois discursos sobre essa questão primor-
dial para a caracterização do gênero, as linhas teóricas assumem itinerários
distintos no tratamento dos efeitos do fantástico sobre o leitor nas esferas
intra e extratextual. O pensador búlgaro distingue de imediato as duas pos-
sibilidades de significação da obra e já aponta para os limites genéricos do
estranho e do maravilhoso.
Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse
caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta rea-
lidade é regida por leis desconhecidas por nós. (TODOROV, 1981, p. 30).
sonhando. Mas amanhã morrerei e hoje quero desafogar minha alma. Meu
propósito imediato é expor diante do mundo, de modo direto, sucinto e sem
comentários, uma série de simples eventos domésticos.2 (POE, 2012, p. 64). 2
FOR the most wild,
yet most homely
narrative which I
As primeiras palavras do trecho citado provocam no leitor um efeito am about to pen, I
de estranhamento em relação ao objetivo do relato que está prestes a acom- neither expect nor
panhar. Qual o propósito de tecer toda uma narrativa para a qual não se solicit belief. Mad
indeed would I be to
espera crédito? A nosso ver, essa aparente indiferença do narrador quanto à expect it, in a case
recepção de sua história denuncia um artifício retórico que busca angariar where my very senses
reject their own
maior credibilidade da parte de seu interlocutor, i. e., a suposta despreocu- evidence. Yet, mad
pação com a natureza crível de suas memórias conduziria o leitor a imaginar am I not –and very
que o narrador não teria motivos para omitir ou distorcer quaisquer acon- surely do I not dream.
But to-morrow I
tecimentos relatados. Com isso, um aspecto tido como inalienável de todo die, and to-day I
objeto textual pelos teóricos da recepção ficaria relativamente dissimulado: would unburthen my
a sua dimensão argumentativa. Vicent Jouve (2002), por exemplo, afirma soul. My immediate
purpose is to place
que não há texto, especialmente na arte literária, isento de mecanismos before the world,
retóricos e modelos de representação, os quais interagem diretamente com plainly, succinctly,
and without
a consciência e a visão de mundo do leitor. Segundo ele, comment, a series
of mere household
O texto como resultado de uma vontade criadora, conjunto organizado de events. (POE, 1984,
elementos, é sempre analisável, mesmo no caso das narrativas em terceira p. 63).
pessoa, como “discurso”, engajamento do leitor perante o mundo e os se-
res. [...] A intenção de convencer está, de um modo ou de outro, presente
em toda narrativa. (JOUVE, 2002, p. 21).
No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso. Todo rodeio é des-
necessário sempre que não seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente
digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase
e nos predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento.
(CORTÁZAR, 2006, p. 124).
Falando de sua inteligência, minha esposa, que no fundo não era pouco
imbuída de superstição, fazia frequente alusão à antiga crença popular que 5
In speaking of his
via em todos os gatos pretos bruxas disfarçadas. Não que em algum mo- intelligence, my wife,
mento falasse a sério nesse sentido – e não toco no assunto por nenhum who at heart was not
a little tinctured with
outro motivo além de acontecer, bem agora, de me vir à memória.5 (POE, superstition, made
2012, p. 64). frequent allusion to
the ancient popular
notion, which
Neste trecho, o protagonista insinua uma essência mística na existência regarded all black
do gato ao mesmo tempo em que refuta o próprio comentário, tratando-o cats as witches in
racionalmente como mero produto da superstição popular. Dessa forma, o disguise. Not that
she was ever serious
sobrenatural e o natural dividem espaço como formas de caracterização do upon this point -– and
felino, sem que haja, de forma incontestável, a imposição de uma sobre a outra. I mention the matter
O que usualmente denominamos de superstição seria apenas um conjunto at all for no better
reason than that it
de fabulações do imaginário coletivo ou a expressão popular de fenômenos happens, just now,
inexplicáveis? Essa ambivalência afeta as perspectivas interpretativas da to be remembered.
(POE, 1984, p. 64)
afirma que seus postulados podem ser aplicados em obras que, como “O gato
preto”, mantém o seu caráter ambíguo para além de seus desfechos. “Minha
definição inclui tanto as narrativas em que a evidência do fantástico não
está sujeita a discussão, quanto aquelas em que a ambiguidade é insolúvel,
já que todas postulam a mesma ideia: a irrupção do sobrenatural no mundo
real” (ROAS, 2014, p. 43).
É precisamente essa abertura teórica que exploraremos a partir deste
momento, tendo como objetivo demonstrar que a análise mimético-realista
mantém o processo de desestabilização do leitor e, a nosso ver, duplica-a
em dois pontos de vista. Para esclarecer esse efeito, trataremos de algumas
facetas das manifestações da psique do protagonista no conto.
Após o parágrafo inicial, o narrador expõe momentos significativos
do seu desenvolvimento pessoal, incluindo suas dificuldades de socialização
e a sua progressiva aproximação das mais diferentes espécies de animais
Certa noite, voltando para casa, muito embriagado, de uma das minhas aven-
turas pela cidade, julguei que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e
ele, horrorizado com a violência do meu gesto, infligiu-me um leve ferimen-
to na mão com os dentes. [...] Tirei do bolso do colete um pequeno canivete,
abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e deliberadamente arranquei um 12
One night,
de seus olhos da órbita! Coro, enrubesço, estremeço conforme descrevo a returning home, much
abominável atrocidade.12 (POE, 2012, p. 65, grifo nosso). intoxicated, from one
of my haunts about
town, I fancied that
Além do exposto, há em ambos os trechos citados o uso de expres- the cat avoided my
sões (em negrito) que apontam para sentimentos como vergonha e culpa. presence. I seized
Entretanto, o plano de expressão da narrativa é profundamente revelador das him; when, in his
fright at my violence,
contradições que habitam na personagem. Ainda que a princípio o leitor possa he inflicted a slight
acreditar nas reações do narrador, evidencia-se já no próximo parágrafo que wound upon my
a passagem do tempo dilui rapidamente esses impulsos de arrependimento hand with his teeth.
[…] I took from my
e reconduz o protagonista ao seu comportamento agressivo. waistcoat-pocket a
pen-knife, opened
Eu experimentei um sentimento que era parte horror, parte remorso pelo cri- it, grasped the poor
me do qual eu era culpado; mas foi quando muito, um sentimento fraco e am- beast by the throat,
and deliberately cut
bíguo, e a alma permaneceu intocada. Voltei a mergulhar em excessos e não one of its eyes from
tardei a afogar na bebida qualquer lembrança do ato.13 (POE, 2012, p. 65). the socket! I blush,
I burn, I shudder,
while I pen the
Ainda que mantenhamos o foco restrito a uma análise mimética do damnable atrocity.
conto, essas incongruências no fluxo do relato colocam o leitor diante de duas (POE, 1984, p. 64,
possibilidades de caracterização da personagem, o que intensifica ainda mais grifo nosso)
o signo da ambiguidade na obra. Redunda justamente dessa ambivalência 13
I experienced
a sentiment half
a ampliação do processo de desestabilização do real em “O gato preto”. of horror, half of
Primeiramente, poderia ser atribuída ao protagonista uma condição remorse, for the
crime of which I had
patológica que explicaria, em grande medida, as suas ações. Recuperando been guilty; but it
um argumento já mencionado, a negação da loucura no primeiro parágrafo was, at best, a feeble
do conto indicaria, segundo percepções arraigadas no imaginário coletivo, and equivocal feeling,
and the soul remained
um sintoma da própria insanidade. untouched. I again
plunged into excess,
Com a consideração de algum tipo de distúrbio, outros aspectos do and soon drowned in
relato assumem também novos sentidos como, por exemplo, a inexatidão nas wine all memory of
descrições de determinadas situações, a dificuldade em distinguir realidade the deed. (POE, 1984,
p. 64)
humanas. O narrador não deseja aliviar a sua alma por meio da confissão, o entusiasmo da
personagem com a
mas marcar a sua existência através da naturalização de seus atos. O pos- ação realizada, mas
tulado resultante dessa argumentação seria o de que qualquer indivíduo, também o ineditismo
plenamente consciente de suas decisões e considerado mentalmente sadio, de um ato tão bem
desempenhado na
poderia agir do mesmo modo que o protagonista do conto. vida do protagonista,
Manifesta-se, diante disso, a segunda desestabilização do real sob um o que torna ainda
mais complexa a
ponto de vista analítico de ordem mimético-realista. O leitor é confrontado análise de sua psique
por uma concepção da natureza humana que problematiza o entendimento e dos limites do
do mundo ao seu redor. Se a patologização do crime permite a manutenção sobrenatural.
18
And then came,
de certa ordem no universo empírico, a sua naturalização ameaça os limites as if to my final
da própria noção da humanidade como uma espécie social. Nesse processo, and irrevocable
há novamente um caráter dual. Por um lado, o receptor pode reexaminar o overthrow, the spirit
of PERVERSENESS.
seu juízo sobre a violência cotidiana e sobre os riscos potenciais da vida em Of this spirit
coletividade. Por outro lado, ele pode questionar as suas próprias tendências philosophy takes no
agressivas e encontrar, em maior ou menor grau, alguma concordância com account. Yet I am not
more sure that my
as ideias do narrador sobre si e sobre a raça humana. Para David Roas, o soul lives, than I am
efeito de desestabilização da literatura fantástica não atinge apenas a visão that perverseness is
do sujeito sobre o espaço extradiegético, mas também (e, às vezes, de forma one of the primitive
impulses of the
mais contundente) a percepção de si mesmo como integrante desse locus. human heart --one
Um dos perigos do encontro com “monstros” é que ele pode desvelar os of the indivisible
traços de monstruosidade que temos em comum. Como salientou Louis Vax primary faculties, or
sentiments, which
“é através de mim que o monstro existe. A transcendência fantástica reside give direction to the
no coração dessa imanência”.19 (VAX, 1965, p. 311, tradução nossa). character of Man.
Who has not, a
Neste artigo, objetivamos demonstrar que o conto de Edgar Allan hundred times, found
Poe, além de ser um texto exemplar de diferentes mecanismos marcantes da himself committing
literatura fantástica, amplia significantemente as potencialidades do gênero a vile or a silly
action, for no other
no que se refere aos seus efeitos na dimensão simbólica da leitura. Isso se reason than because
dá pela operacionalização cuidadosa de um dos elementos mais relevantes he knows he should
do fantástico: a ambiguidade. Ao sugerir diferentes formas de significação not? Have we not a
perpetual inclination,
da narrativa, sem impor ou invalidar nenhuma delas, o autor cria um espaço in the teeth of our
intersticial que, ao romper com dualismo típico dos processos de represen- best judgment, to
tação e da própria linguagem, obriga o leitor a lidar com a multiplicidade violate that which is
Law, merely because
de sentidos e com a incerteza das escolhas. Essa circunstância de recepção we understand it to
potencializa a sensação de desestabilização do real, que, em “O gato preto”, be such? (POE, 1984,
não se restringe à insinuação do sobrenatural e permeia as interpretações p. 65).
19
C’est par moi que
que, guiadas por perspectivas realistas de análise, são questionadas em suas le monstre existe.
próprias concepções do real. Assim como na representação da Máscara da La ‘transcendance’
Eternidade, a transcendência imanente e diacrônica do conto de Poe continua fantastique habite
au coeur d’une
a desafiar os mais diversos binarismos. immanence.
Referências
CASTEX, Pierre. Anthologie du Conte Fantastique Français. Paris:
Libraire José Corti, 1947.
Recebido em agosto/2018.
Aceito em outubro/2018.