O Gato Preto...

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DOI: 10.5212/MuitasVozes.v.7i2.

0020

O INTERSTÍCIO E A INCERTEZA: AS
FACES DO FANTÁSTICO EM “O GATO
PRETO” DE EDGAR ALLAN POE
THE MOMENT BETWEEN AND
UNCERTAINTY: THE FACES OF THE
FANTASTIC IN “THE BLACK CAT” BY
EDGAR ALLAN POE
Evanir Pavloski* *
Doutor em Estudos
UEPG Literários. E-mail:
[email protected]

Resumo: O objetivo do presente artigo é revisitar o icônico conto “O gato preto”,


de Edgar Allan Poe, tendo como perspectivas teórico-críticas a valorização da
ambiguidade no texto e o seu efeito sobre o leitor. Para tanto, utilizaremos como
aporte teórico principal a obra A ameaça do fantástico, de autoria do crítico catalão
David Roas, assim como suas referências a conceitos de outros pensadores, a
exemplo de Pierre Castex, Louis Vax e Tzvetan Todorov. Pretendemos demonstrar
que um processo de desestabilização da visão de mundo do receptor se efetiva tanto
na compreensão das atitudes do protagonista como resultantes da influência de
forças malignas quanto na análise psicológica e discursiva da personagem. Como
mostraremos, em ambos os pontos de vista sobre a face da monstruosidade humana,
as representações lógicas e pacificadoras de realidade têm parte de suas enganosas
integridades ameaçadas.

Palavras-chave: Fantástico. Desestabilização. Real. Poe. “O gato preto”. David Roas.

Abstract: The aim of this work is to revisit the iconic short story “The Black Cat”,
written by Edgar Allan Poe, on the theoretical-critical basis of the ambiguity’s
importance in the text and its effect on the reader. In order to accomplish this
objective, we will take as our main theoretical support the work titled The Menace
of the Fantastic, written by the Spanish critic David Roas, as well as its references
to concepts of other thinkers, such as Pierre Castex, Louis Vax e Tzvetan Todorov.
We intend to show that a destabilization process of the reader’s worldview takes
place both through the understanding of the protagonist’s attitudes as results of the
influence of evil forces and through the character’s psychological and discursive
analysis. As we shall reveal, in both views on the face of human monstrosity,
the logical and pacifying representations of reality have part of their deceiving
integrities put at risk.

Keywords: Fantastic. Destabilization. Real. Poe. “The Black Cat”. David Roas.

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


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Evanir Pavloski

A proposta de revisitar espaços ficcionais, cujas formalizações literá-


rias já foram inscritas no cânone ocidental, pode representar uma trajetória
analítica constantemente ameaçada pelos espectros do anacronismo e de
um suposto esgotamento crítico. Entretanto, as transformações histórico-
-culturais, as renovações dos horizontes de expectativas dos leitores e o
reconhecimento de outros roteiros teóricos, tanto para os estudos do que
convencionalmente denominamos de realidade quanto para aqueles que se
dedicam às suas formas de representação artística, pluralizam os caminhos a
serem seguidos, a partir das diferentes encruzilhadas possíveis entre recortes
sincrônicos e diacrônicos. Nessa perspectiva, o objeto literário escapa do
formalismo que ameaça fossilizar seus sentidos e se integra em um fluxo
histórico de leituras e releituras que pode, inclusive, lançar luz sobre os
aspectos que constituem o próprio cânone.
Em sua icônica obra A história da literatura como provocação à
teoria literária, Hans Robert Jauss afirma que:

A obra literária não é um objeto existente em si mesmo, oferecendo a cada


observador, em cada momento, a mesma aparência. Não é um monumento
oferecendo, em monólogo, a revelação da sua essência intemporal. É muito
mais como uma partitura construída sobre as ressonâncias sempre renova-
das das leituras, as quais arrancam o texto da materialidade das palavras e
atualizam a sua existência. (JAUSS, 2003, p. 62).

É justamente a esse processo de atualização do texto literário por parte


de diferentes públicos leitores que subjaz o surgimento de novos olhares
teórico-críticos que, sem desconsiderar o contexto da escritura da obra,
suplantam os limites temporais e interpretativos impostos por determinadas
correntes exegéticas.
Diante do exposto, o propósito de analisar contemporaneamente um
conto de um autor como Edgar Allan Poe (1809-1849) não apenas comprova
o potencial de atualização de sua narrativa, mas também permite reflexões
sobre elementos do seu plano de expressão e de conteúdo, a partir de áreas
de estudos que surgiram posteriormente à sua produção como, por exemplo,
a psicanálise e os estudos culturais. Sobre a atemporalidade da obra de Poe,
Julio Cortázar salienta que

Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós,
em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-
-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro. Por isso
sua obra, atingindo dimensões extratemporais, as dimensões da natureza
profunda do homem sem disfarces, é tão profundamente temporal a ponto
de viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas
imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca de certos
ideais e de certos sonhos. (CORTÁZAR, 2006, p. 104).

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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

Neste artigo, objetivamos discorrer especificamente sobre a obra “O


gato preto”, publicada na edição do Saturday Evening Post de 19 de agosto
de 1843, tendo como aporte teórico principal o texto A ameaça do fantástico,
de autoria de David Roas, e publicado no Brasil em 2014.
Para o autor catalão, o gênero literário em questão é fundamental-
mente caracterizado pela desestabilização do senso de realidade do leitor,
demonstrando a falácia de qualquer tentativa de determinação absoluta do
real. Como veremos, essa definição se revela produtiva para a investigação
não apenas das obras de Poe, mas também de seus tributários.
Contudo, antes da apresentação sistemática dos conceitos de Roas e
da análise do conto do autor estadunidense à luz de suas proposições, consi-
deramos necessária uma breve apresentação de alguns referenciais teóricos
anteriores ao referido texto, que integram uma herança epistemológica com
a qual Roas dialoga e que, de certa forma, já apontam para algumas das suas
conclusões. Essa aproximação demonstra que, assim como no desenvolvi-
mento dos gêneros ficcionais (o fantástico, inclusive), a teoria evolui com
uma face voltada para o passado e outra para o futuro.
Tal imagem ambivalente poderia ser associada à Máscara da Eternidade
mostrada por Joseph Campbell na série The Power of Myth transmitida pela
PBS (Public Broadcasting Series) em 1988. Esse artefato indiano apresenta
em seu centro um rosto em aparente meditação, do lado esquerdo uma fronte
masculina e do lado direito um semblante feminino. Campbell se remete
a essa escultura para afirmar que ao se afastar do todo transcendental, o
pensamento recai na dinâmica do binarismo que organiza a linguagem e,
consequentemente, o próprio mundo.
Assumindo como verdadeiro esse pressuposto, a face do centro da
máscara corporificaria o espaço transcendente de intermédio entre as oposi-
ções que regem a consciência e o imaginário. Esse espaço, portanto, seria o
interstício entre duas possibilidades contrárias de concretização de elemen-
tos do real. Em certo sentido, seria uma utopia do sentido, desde que nos
atenhamos às raízes etimológicas do termo (do grego u-topus: não lugar),
ou seja, uma zona de intermitência de significação, a qual não é produzida
pelo esvaziamento de quaisquer formas de representação, mas justamente
pelo amálgama de perspectivas diferentes de entendimento do mundo.
Em sua tese de doutorado, Karen Pike utiliza a descrição de Campbell
como forma de entendimento do próprio gênero fantástico, o qual, segundo
ela, seria também uma esfera de suspensão do binarismo sobrenatural/real,
uma vez que, ao longo do diálogo do leitor com o texto, as duas visões seriam
igualmente possíveis. Para a autora, a irrupção do insólito nas narrativas
fantásticas acarreta uma insuficiência da linguagem, que é desafiada pelo
indescritível e/ou pelo dúbio.

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Eu defenderei que “o interstício” é a chave para entender a natureza, o


modus operandi e mesmo o apelo das narrativas fantásticas. Essas narrativas
são exercícios de apreensão de algo além da linguagem, algo inominável
ou indescritível que apenas pode emergir quando a linguagem demonstra as
suas ineficiências.1 (PIKE, 2010, p. 02, tradução nossa).
1
I will argue that
“the moment
between” is the key
Essas colocações podem ser vistas como índices remissivos para to understanding
abordagens teóricas que marcaram o estudo do gênero fantástico no século the nature, the
modus operandi, and
XX. Pierre George Castex (1947), por exemplo, defende que o elemento even the appeal of
definidor do fantástico é uma abrupta invasão de uma sensação de mistério fantastic narratives.
no mundo (supostamente) conhecido pelo leitor. Louis Vax (1965), por These narratives
are exercises in
sua vez, afirma que a literatura fantástica é marcada primordialmente pela apprehending
incitação de uma duradoura sensação de incerteza no leitor em relação aos something beyond
language, something
eventos narrados. De acordo com essa caracterização do gênero, o interstício unnamable or
formado pelo texto entre o sobrenatural e o real se mantém mesmo depois indescribable that
do final de leitura, permanência que, como veremos, também é prevista e can only emerge
when language
valorizada pelos fundamentos conceituais de David Roas. demonstrates its
Finalmente, é preciso considerar a influente teoria de Tzvetan Todorov insufficiencies.
em sua Introdução à literatura fantástica (1970) e sua ênfase na hesitação
como característica definidora do efeito fantástico. Indubitavelmente, os
postulados do autor búlgaro reconhecem e valorizam a posição do gênero no
interstício entre as duas possibilidades citadas, as quais, no caso específico
da terminologia de Todorov, são consideradas como categorias particulares
e nomeadas, respectivamente, como o maravilhoso e o estranho. Entretanto,
o teórico búlgaro considera que a vasta maioria das obras que estimulam a
hesitação no leitor se define como pertencente a um dos gêneros vizinhos em
seu desfecho, reservando para uma restrita parcela de textos a designação
de fantástico puro. Dessa forma, a incerteza do leitor como característica
definidora do gênero representaria, na maior parte dos casos, uma reação
efêmera e circunscrita ao momento da leitura. Consequentemente, o fan-
tástico seria mais propriamente uma situação de interação com o texto,
limitada pela integração final deste ao maravilhoso ou ao estranho. Não é
absolutamente a nossa intenção diminuir a importância da teoria de Todorov
e a sua notória influência na produção de trabalhos de indiscutível valor
acadêmico. Nossa análise textual se remeterá, inclusive, a alguns de seus
preceitos no intuito de demonstrar suas afinidades e contrariedades com a
abordagem de Roas. Não obstante, nosso esforço de atualização crítica do
texto de Poe recai sobre a sensação de desconforto do leitor resultante da
ocupação desse não lugar entre a desafiada realidade e o até então ignorado
ou irrefletido desconhecido, aspecto que, a nosso ver, é descrito de forma
mais abrangente pelo autor espanhol.
Com efeito, os dois teóricos partem do mesmo ponto para suas res-
pectivas definições do gênero fantástico. Ambos enfatizam a irrupção de
um elemento insólito em um universo ficcional que, a princípio, mimetiza

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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

a realidade experimental. Comparemos os dois posicionamentos. Todorov


afirma que “num mundo que é exatamente o nosso (...) produz-se um acon-
tecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar”
(TODOROV, 1981, p. 30). David Roas, por sua vez, descreve assim o
processo de ruptura do mimetismo inicial dos textos do gênero:

O mundo construído nos contos fantásticos é sempre um mundo em que no


início tudo é normal e que o leitor identifica com a sua própria realidade
[...] Um funcionamento aparentemente normal que, de repente, se verá alte-
rado pela presença do sobrenatural, isto é, por um fenômeno que contradiz
as leis físicas que organizam esse mundo. (ROAS, 2014, p. 110).

Não obstante a simetria dos dois discursos sobre essa questão primor-
dial para a caracterização do gênero, as linhas teóricas assumem itinerários
distintos no tratamento dos efeitos do fantástico sobre o leitor nas esferas
intra e extratextual. O pensador búlgaro distingue de imediato as duas pos-
sibilidades de significação da obra e já aponta para os limites genéricos do
estranho e do maravilhoso.

Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse
caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta rea-
lidade é regida por leis desconhecidas por nós. (TODOROV, 1981, p. 30).

Nesse contexto de recepção, manifesta-se o sentimento de hesitação que


é tão importante na perspectiva todoroviana. Como salientamos anteriormente,
essa dubiedade raramente trespassa os desfechos das obras, sendo comumente
dissipada por explicações lógicas ou pela aceitação do inexplicável.
Em contrapartida, Roas enfatiza o impacto do sobrenatural sobre
a dimensão simbólica do processo de leitura, a qual ultrapassa os limites
do diálogo com o texto e permite que o fantástico, assim como ocorre na
diegese, problematize as certezas do leitor sobre o real.

Baseada, portanto, na confrontação do sobrenatural e do real dentro de um


mundo ordenado e estável como pretende ser o nosso, a narrativa fantástica
provoca – e, portanto, reflete – a incerteza na percepção da realidade e do pró-
prio eu; a existência do impossível, de uma realidade diferente da nossa, leva-
-nos por um lado, a duvidar dessa última e causa, por outro, em direta relação
com isso, a dúvida sobre a nossa própria existência. (ROAS, 2014, p. 32).

Percebemos, portanto, que o efeito fantástico para o teórico catalão


é duplamente referencial. Primeiramente, o leitor reconhece os elementos
de sua realidade empírica no espaço ficcional descrito na obra literária. Em
segundo lugar, a manifestação do insólito na narrativa leva o receptor não
apenas a questionar as regras implícitas no mundo da diegese – representação

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Evanir Pavloski

mimética da exterioridade que o circunda –, mas também a refletir sobre


os limites de compreensão e racionalização de seu universo experimental.

O fantástico, portanto, depende sempre do que consideramos real, e o real


deriva diretamente do que conhecemos. Assim, não podemos manter nossa
recepção limitada à realidade intratextual quando nos deparamos com um
texto fantástico. (ROAS, 2014, p. 111).

Segundo o ponto de vista de Roas, a determinação do caráter natural


ou sobrenatural do evento insólito nas narrativas fantásticas não suprime
necessariamente os desdobramentos do processo que, para o autor, distingue
o gênero em questão: a desestabilização da noção de real do leitor. “Essa é
a razão básica do contato fantástico: revelar algo que vai transtornar nossa
concepção da realidade”. (ROAS, 2014, p.114).
Diante desses apontamentos, é necessário fazer duas considerações.
Em primeiro lugar, Roas não estende a sua análise para um esforço especu-
lativo sobre o impacto dessa desestabilização no universo empírico do leitor,
o qual, é preciso admitir, demandaria um estudo quantitativo e qualitativo
extremamente complexo que transcenderia o escopo deste estudo. O autor
insiste, no entanto, que o potencial simbólico do fantástico se revela justa-
mente na sua influência sobre o imaginário do leitor, influição que extrapola a
efêmera situação de leitura. Além disso, Roas não desmerece os sentimentos
de hesitação ou de incerteza como efeitos da narrativa fantástica. Contudo, o
teórico não admite que esses sejam os elementos definidores do gênero, mas
catalisadores do movimento de desestabilização das noções supostamente
íntegras sobre o real. É justamente a partir dessa aproximação da dubiedade
do texto fantástico com a problematização do universo empírico do leitor
que desenvolveremos nossa análise do conto de Edgar Allan Poe.
Assim como uma parcela considerável dos textos fantásticos, “O gato
preto” apresenta um narrador em primeira pessoa que, de forma retrospec-
tiva, expõe os peculiares eventos que teriam marcado a sua história. Esse
modelo de foco narrativo não apenas permite o acesso direto do leitor à
psique da personagem, mas também o motiva a notar as nuanças do discurso
organizado pelo protagonista, especialmente quando se trata da explicação
de suas próprias ações. Uma vez que há a expressão de um único ponto
de vista na obra, o diálogo com o texto sempre demanda certos cuidados
do interlocutor e, em certos casos, como o conto em questão, mesmo uma
relativa desconfiança diante do que é narrado. Nesse sentido, o primeiro
parágrafo da narrativa de Poe fornece informações relevantes para a análise
da personagem e para a caracterização genérica da obra.

Para a narrativa sumamente extravagante e contudo sumamente trivial em


que tomo da pena, não espero nem peço crédito. De fato, louco seria eu de
esperar tal coisa, num episódio em que até meus próprios sentidos rejeitam o
que testemunharam. Contudo, não estou louco – e, decerto, tampouco estou

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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

sonhando. Mas amanhã morrerei e hoje quero desafogar minha alma. Meu
propósito imediato é expor diante do mundo, de modo direto, sucinto e sem
comentários, uma série de simples eventos domésticos.2 (POE, 2012, p. 64). 2
FOR the most wild,
yet most homely
narrative which I
As primeiras palavras do trecho citado provocam no leitor um efeito am about to pen, I
de estranhamento em relação ao objetivo do relato que está prestes a acom- neither expect nor
panhar. Qual o propósito de tecer toda uma narrativa para a qual não se solicit belief. Mad
indeed would I be to
espera crédito? A nosso ver, essa aparente indiferença do narrador quanto à expect it, in a case
recepção de sua história denuncia um artifício retórico que busca angariar where my very senses
reject their own
maior credibilidade da parte de seu interlocutor, i. e., a suposta despreocu- evidence. Yet, mad
pação com a natureza crível de suas memórias conduziria o leitor a imaginar am I not –and very
que o narrador não teria motivos para omitir ou distorcer quaisquer acon- surely do I not dream.
But to-morrow I
tecimentos relatados. Com isso, um aspecto tido como inalienável de todo die, and to-day I
objeto textual pelos teóricos da recepção ficaria relativamente dissimulado: would unburthen my
a sua dimensão argumentativa. Vicent Jouve (2002), por exemplo, afirma soul. My immediate
purpose is to place
que não há texto, especialmente na arte literária, isento de mecanismos before the world,
retóricos e modelos de representação, os quais interagem diretamente com plainly, succinctly,
and without
a consciência e a visão de mundo do leitor. Segundo ele, comment, a series
of mere household
O texto como resultado de uma vontade criadora, conjunto organizado de events. (POE, 1984,
elementos, é sempre analisável, mesmo no caso das narrativas em terceira p. 63).
pessoa, como “discurso”, engajamento do leitor perante o mundo e os se-
res. [...] A intenção de convencer está, de um modo ou de outro, presente
em toda narrativa. (JOUVE, 2002, p. 21).

A continuação da primeira sentença agrega ainda mais elementos


questionáveis ao discurso do narrador, especialmente se consideramos
um ato de releitura do conto. A associação dos termos “extraordinária”
e “familiar” produz a impressão de uma caracterização paradoxal dos
eventos a serem descritos, que pode ser resolvida pela atribuição de um
tom irônico às palavras do protagonista. Tendo o conhecimento de que a
narrativa versa sobre o assassinato da esposa da personagem pelas mãos
deste e dentro de sua própria residência, o leitor percebe a ambiguidade
latente no uso do adjetivo “familiar”. O mesmo tipo de apreensão se re-
pete algumas linhas abaixo quando a expressão “meros acontecimentos
domésticos” é utilizada.
Além disso, é preciso reconhecer que o narrador apresenta ao leitor não
apenas um relato retrospectivo, mas também o faz por meio da escrita. Em
primeiro lugar, o distanciamento temporal dos acontecimentos no momento
da organização da narrativa permite à personagem refletir cuidadosamente
sobre as suas ações e as formas possíveis de caracterizá-las. Segundamente,
a produção de um texto sobre o ocorrido potencializa ainda mais a articulação
retórica da exposição, tendo em vista as particularidades dessa modalidade
específica como, por exemplo, as escolhas de vocabulário, a possibilidade
de reescrita e a materialidade visual do discurso.

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Nas próximas duas sentenças a questão da loucura é colocada no


horizonte de análise textual. Inicialmente, o narrador relaciona a perda
da sanidade ao próprio fluxo de seu relato e ao seu conteúdo insólito. Em
seguida, o protagonista afirma não estar louco e menciona que não está a
sonhar. Destacamos essas duas sentenças porque tanto a loucura quanto o
sonho ou a alucinação são soluções recorrentes para a presença de elemen-
tos sobrenaturais em obras da literatura fantástica. Como afirma Castex, o
gênero “permite a expressão daqueles aspectos que se mantêm irredutíveis
à razão lógica”3 (CASTEX, 1947, p. 11, tradução nossa). 3
Permet d’exprimer
ces aspects
É justamente essa incompatibilidade com os parâmetros racionais de l’homme
aceitos em um determinado momento de recepção do texto que conduz o qui demeurent
irréductible à la
leitor para a consideração da insanidade como viés interpretativo. Alicerçado raison logique.
em afirmações menos científicas do que impressionistas, o interlocutor do
conto pode reconhecer, inclusive, a negação do narrador como indício de
sua loucura. Também com base no senso comum, entretanto, poderíamos
questionar se um louco seria capaz de uma estruturação textual e argumen-
tativa tão meticulosa. Se a negação é vista comumente como evidência de
uma perturbação mental, a dificuldade e/ou a incapacidade de uma articu-
lação razoável do discurso dentro dos parâmetros aceitos também o são.
Salientamos que nossas observações sobre as dinâmicas interpretativas e
projetivas na recepção do texto contemplam um leitor que, apesar de modelo,
não é versado em estudos da psique humana. Isso não significa, contudo,
que o tema da loucura não ocupe uma posição central na análise do conto.
4
In their
Retornaremos a essa questão oportunamente. consequences, these
Ainda sobre o trecho citado da obra, os parâmetros apontados pelo events have terrified
–have tortured –have
narrador como norteadores de sua narrativa são perceptivelmente desrespei- destroyed me. Yet
tados pela personagem ao longo do conto. Ainda que relativamente sucinta, I will not attempt
sua exposição não é simples ou desprovida de comentários. Além de um to expound them.
To me, they have
segundo exemplo da tentativa do narrador em afirmar a neutralidade de seu presented little but
relato, o trecho corresponde também a uma primeira ocorrência de uma série Horror --to many they
will seem less terrible
de contradições entre o que ele se propõe a narrar e o que é efetivamente than baroques.
narrado. São justamente as recorrentes tentativas de explicação da persona- Hereafter, perhaps,
gem que potencializam a essência dúbia de seu testemunho. some intellect may
be found which will
A segunda metade do parágrafo inicial do conto apresenta também reduce my phantasm
elementos interessantes sob o ponto de vista das teorias do fantástico. to the common-place
–some intellect more
calm, more logical,
Por suas consequências, esses eventos me aterrorizaram, me torturaram, me and far less excitable
destruíram. Contudo, não farei uma tentativa de explicá-los. Para mim, pouco than my own, which
representaram além do Horror – para muitos, parecerão menos terríveis do que will perceive, in the
barrocos. Num futuro próximo, talvez, algum intelecto haverá de surgir para circumstances I detail
with awe, nothing
reduzir minha fantasmagoria ao lugar-comum – algum intelecto mais calmo, more than an ordinary
mais lógico e muito menos excitável do que o meu, que perceberá, nas cir- succession of very
cunstâncias por mim detalhadas com assombro, nada mais do que uma ordi- natural causes and
nária sucessão de causas e efeitos perfeitamente naturais.4 (POE, 2012, p. 64). effects. (POE, 1984,
p. 63).

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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

Novamente, o narrador anuncia um comprometimento com a obje-


tividade para o curso do relato que não será cumprida posteriormente. Os
constantes esforços da personagem para esclarecer não apenas os eventos
insólitos, mas também as circunstâncias de sua progressiva derrocada atri-
buem ao seu testemunho um tom de encenação, artifício que tenta enredar
o leitor nas teias de seus argumentos. Se, para Poe, todos os elementos do
conto devem contribuir para o efeito geral do texto, as digressões e as con-
tradições do protagonista não devem ser absolutamente desconsideradas.
Ao contrário, elas delineiam a arquitetura espacial e psicológica do texto, na
qual o impacto da leitura se concentra. Como salienta Cortázar, nos contos
de Poe, mesmo o recurso da procrastinação é uma forma dissimulada de
preparar o clímax da narrativa.

No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso. Todo rodeio é des-
necessário sempre que não seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente
digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase
e nos predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento.
(CORTÁZAR, 2006, p. 124).

Especificamente em “O gato preto”, o efeito programado pelo texto


para o leitor está diretamente associado à manipulação do fantástico na
obra. Na parte final do primeiro parágrafo do conto, duas interpretações
possíveis da narrativa são identificadas pela própria personagem. Segundo
ela, haverá aqueles que compreenderão e compartilharão dos seus senti-
mentos de perplexidade e de terror. Logo em seguida, o narrador afirma que
futuramente poderá surgir uma mente mais lógica que observará os eventos
pelo filtro da dinâmica racionalista de causa e efeito. Ao delinear essas
duas rotas de leitura, o narrador caracteriza, respectivamente, aquelas que
Tzvetan Todorov denomina genericamente de maravilhoso e de estranho,
i. e., a aceitação do sobrenatural como elemento do universo ficcional ou a
sua neutralização por meio de explicações consideradas plausíveis. Desde
um ponto tão inicial da narrativa, em que basicamente nenhum detalhe do
enredo foi ainda revelado ao leitor, o mecanismo do fantástico é colocado
em funcionamento e o interstício entre formas de significação do texto é
criado, espaço de indeterminação que é sustentado ao longo de todo o conto.
Se, para Todorov, essa estrutura é responsável pela hesitação do leitor,
que, como vimos, é para ele a característica definidora da literatura fantásti-
ca, na visão de Roas, a própria sugestão de uma explicação para os eventos
do texto que suplante as noções de real do leitor já serve como elemento
determinante do gênero. Uma vez que para o autor catalão a recepção da
obra sempre ocorre a partir de associações referenciais com o universo expe-
rimental, a insinuação do sobrenatural como parte integrante da diegese faz
com o leitor reflita sobre os limites da sua compreensão da realidade em si.

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O fantástico, portanto, está inscrito permanentemente na realidade, a um só


tempo apresentando-se como um atentado contra essa mesma realidade que
o circunscreve. A verossimilhança não é um simples acessório estilístico, e
sim algo que o próprio gênero exige, uma necessidade construtiva necessá-
ria para o desenvolvimento satisfatório da narrativa. E não é só isso; toda
história fantástica também se apresenta como um acontecimento real para
conseguir convencer o leitor da “realidade” análoga do fenômeno sobrena-
tural. (ROAS, 2014, p. 52).

No conto de Poe, a verossimilhança à qual Roas se refere é profun-


damente relevante para a dinâmica que se estabelece entre as insinuações
sobrenaturais e as explicações racionais que se intercalam no relato do
protagonista. Como demonstramos, desde o início da obra, a personagem
alude de forma ambígua aos eventos por ele vividos e exibe contradições
internas em seu discurso. Tais aspectos, ao invés de comprometerem a sua
caracterização, tornam-na ainda mais verossímil ao atribuir ao narrador um
nível de complexidade psicológica e linguística que emula os atributos dos
indivíduos no universo empírico, mesmo se tratando de um testemunho
por escrito. Essa dimensão mimética do narrador contribui não apenas para
plausibilidade do espaço ficcional e de seus integrantes, mas também, como
veremos, para um dos aparentes objetivos da articulação de todo o relato.
É no interstício entre o puramente verossímil e o desconcertantemente
insólito que as diferentes facetas da desestabilização do real tomam forma.
Essa indeterminação é sustentada pela ambiguidade inerente à narrativa e
engenhosamente tecida por Poe.
No intuito de esclarecer esse mecanismo de indefinição programada de
sentido, aludiremos a duas passagens representativas do conto. Primeiramente,
consideremos a referência do narrador a um comentário de sua esposa sobre
o gato preto.

Falando de sua inteligência, minha esposa, que no fundo não era pouco
imbuída de superstição, fazia frequente alusão à antiga crença popular que 5
In speaking of his
via em todos os gatos pretos bruxas disfarçadas. Não que em algum mo- intelligence, my wife,
mento falasse a sério nesse sentido – e não toco no assunto por nenhum who at heart was not
a little tinctured with
outro motivo além de acontecer, bem agora, de me vir à memória.5 (POE, superstition, made
2012, p. 64). frequent allusion to
the ancient popular
notion, which
Neste trecho, o protagonista insinua uma essência mística na existência regarded all black
do gato ao mesmo tempo em que refuta o próprio comentário, tratando-o cats as witches in
racionalmente como mero produto da superstição popular. Dessa forma, o disguise. Not that
she was ever serious
sobrenatural e o natural dividem espaço como formas de caracterização do upon this point -– and
felino, sem que haja, de forma incontestável, a imposição de uma sobre a outra. I mention the matter
O que usualmente denominamos de superstição seria apenas um conjunto at all for no better
reason than that it
de fabulações do imaginário coletivo ou a expressão popular de fenômenos happens, just now,
inexplicáveis? Essa ambivalência afeta as perspectivas interpretativas da to be remembered.
(POE, 1984, p. 64)

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


627
O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

obra, tanto em sentido anafórico quanto catafórico. Se a sua menção, por


um lado, pode ocasionar um processo de ressignificação simbólica do gato
preto desde a primeira referência no título do conto, por outro lado, também
pode servir como recurso de predisposição do leitor para os acontecimentos
(aparentemente) insólitos descritos na sequência do relato. Não obstante, o
ceticismo se mantém como alternativa viável para a recepção do texto, o que
restringiria quaisquer representações místicas do gato à esfera da crendice.
Ainda em relação ao excerto citado, é curiosa a intenção da personagem
em reduzir, no final da passagem, a importância do que foi dito. O leitor deve
se recordar que o testemunho foi feito por meio da escrita, modalidade de
expressão que demanda reflexões sobre o seu próprio processo constitutivo,
seja no que se refere ao léxico ou à sintaxe, seja em termos de semântica e 6
The impression
retórica. Portanto, a escritura de um texto, ao contrário da expressão oral, was given with
an accuracy truly
dificilmente comporta recordações momentâneas e/ou excessos de lingua- marvellous. There
gem, invalidados pelo próprio autor como irrelevantes. Caso assim o fossem, was a rope about
bastaria a ele excluir tais trechos de seu relato. the animal’s neck.
When I first beheld
O segundo exemplo a ser destacado é o incêndio na casa do narra- this apparition -– for
dor, que acontece exatamente na noite do assassinato do gato. Nesse mesmo I could scarcely
regard it as less – my
episódio, causa estranheza a enorme imagem de um gato que surge gravada wonder and my terror
em uma das paredes da casa após o desastre. Ambas as ocorrências inspi- were extreme. But
ram explicações sobrenaturais, sendo uma delas a vingança sobrenatural at length reflection
came to my aid. The
de Pluto, morto pelo protagonista algumas horas antes. Todavia, a própria cat, I remembered,
personagem apresenta uma análise plausível, ainda que improvável, para o had been hung in a
garden adjacent to
aparecimento da figura estampada no reboco. the house. Upon the
alarm of fire, this
A imagem se estampava com uma precisão realmente maravilhosa. Havia garden had been
uma corda em torno do pescoço do animal. Quando contemplei a aparição immediately filled
– pois como menos que isso eu dificilmente podia encará-la – minha admi- by the crowd --by
some one of whom
ração e meu terror foram extremos. Até que enfim a reflexão veio em meu the animal must have
auxílio. O gato, lembrei, fora enforcado em um jardim adjacente à casa. Ao been cut from the tree
alarme de incêndio, esse jardim fora imediatamente tomado pela multidão and thrown, through
– e alguém ali devia ter cortado a forca e jogado o animal por uma janela an open window,
into my chamber.
aberta dentro do meu quarto. Isso provavelmente fora feito com o intuito de This had probably
me despertar de meu sono. A queda de outras paredes comprimira a vítima been done with the
de minha crueldade na massa da alvenaria recém-aplicada; a cal do reboco, view of arousing
sob a ação do fogo, combinara-se ao amoníaco da carcaça para executar o me from sleep. The
falling of other walls
esboço tal como eu o via.6 (POE, 2012, p. 66-67). had compressed the
victim of my cruelty
Essa dinâmica de proposições contraditórias para a descrição dos into the substance of
the freshly-spread
fenômenos é complementada por aspectos do texto que, ainda que de for- plaster; the lime of
ma menos explícita, reforçam o caráter ambíguo do relato. Dentre eles, which, had then with
ressaltamos novamente uma característica inerente ao foco narrativo em the flames, and the
ammonia from the
primeira pessoa: a unicidade de ponto de vista. Assim, a mancha em forma de carcass, accomplished
cadafalso no peito do segundo gato, por exemplo, pode ser entendida como the portraiture as I
saw it. (POE, 1984,
p. 66).

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


628
Evanir Pavloski

uma projeção subjetiva, já que não há a confirmação de outras personagens


dessa estranha coincidência.
Ainda que a obra de David Roas constitua nosso principal aporte
teórico, recorreremos uma vez mais ao pensamento de Tzvetan Todorov
no intuito de refletir sobre uma característica do conto de Poe que, segun-
do a teoria da hesitação do teórico búlgaro, seria incomum. Como vimos,
Todorov argumenta que as incertezas do texto fantástico e a consequente
hesitação do leitor tendem a ser resolvidas no desfecho da vasta maioria das
obras do gênero. Entretanto, o autor também afirma que há casos nos quais
a ambiguidade jamais é solucionada, fazendo com que a vacilação do recep-
tor jamais seja direcionada para uma explicação definitiva. “Seria errôneo
pretender que o fantástico só pode existir em uma parte da obra. Há textos
que conservam a ambiguidade até o final, quer dizer, além desse final. Uma
vez fechado o livro, a ambiguidade subsiste”. (TODOROV, 1981, p. 49).
Nessas eventualidades, o texto se mantém como interstício perma-
nente entre dois modos de concretização da narrativa. Assim como o conto
“A história do falecido Sr. Elveshaw” (1896), de H. G. Wells, e a novela
A volta do parafuso (1898), de Henry James, “O gato preto” se enquadra
nessa categoria da literatura fantástica.
Se refletirmos sobre essa particularidade da narrativa de Poe a partir
dos pressupostos de Roas, percebemos que o processo de desestabilização
do real, assim como a sua implicação na dimensão simbólica da leitura,
torna-se multifacetado em escala proporcional ao número de possibilidades
de significação do texto. “A indeterminação se converte em um artifício para
colocar em marcha a imaginação do leitor”. (ROAS, 2014, p. 58).
Primeiramente, discorreremos sobre a perspectiva de leitura que
admite a ocorrência de eventos sobrenaturais e, portanto, racionalmente
inexplicáveis no conto. Como vimos, o narrador sugere, desde o início do
relato, o caráter extraordinário de seu relato. Essa sugestão não é apenas
mantida, mas intensificada ao longo do texto por meio de diferentes recursos
retóricos e lexicais, dentre os quais destacamos o uso recorrente de termos
da esfera do misticismo religioso como, por exemplo, demônio e possessão.
Além dessa terminologia, é preciso considerar a ambiguidade inerente a
certas descrições episódicas, que permitem a inferência da ação de forças
sobrenaturais, como nos dois exemplos citados previamente.
De acordo com essa linha de análise, o protagonista teria sido punido
pelos seus atos de brutalidade contra Pluto e, posteriormente, contra sua esposa,
os quais poderiam ser entendidos, inclusive, como resultantes de influências
demoníacas. Nessa visão, o segundo gato seria a reencarnação do animal
enforcado, cuja presença impele o protagonista para o assassinato e, no des-
fecho do conto, aparece no esconderijo do cadáver para denunciar o narrador. 7
I had walled the
Com isso, a sentença final do conto – “Eu emparedara o monstro dentro da monster up within the
tomb! (POE, 1984,
tumba!”7 (POE, 2012, p. 71) – assume uma conotação ainda mais peculiar. p. 70).

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


629
O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

Seguindo os postulados de David Roas, o reconhecimento do so-


brenatural na obra faria com que o leitor refletisse sobre a possibilidade de
que forças místicas manipulassem indivíduos (e mesmo animais) no mundo
empírico, o que obviamente questionaria um entendimento positivista das
leis que gerem esse universo.
É preciso considerar que o termo manipulação seria o mais correto a
ser utilizado na leitura sob o prisma do sobrenatural, já que as atitudes do
protagonista são sempre admitidas por ele como derivadas de sua própria
vontade. Nesse sentido, os agentes sobrenaturais apenas tentariam o sujeito,
mas a efetivação das ações é sempre mediada pelo livre arbítrio. Mesmo
quando descreve a si mesmo por meio de associações metafísicas, o narrador
reconhece uma maldade inerente ao ser humano, que, segundo ele, seria um
traço herdado do próprio Criador.

E agora eu estava de fato desgraçado para além da desgraça da mera


Humanidade. E uma criatura bruta – cujo semelhante eu matara despre-
zivelmente – uma criatura bruta engendrara para mim – para mim, um
homem, feito à imagem do Deus Altíssimo – tamanho e insuportável su-
plício!8 (POE, 2012, p. 67-68). 8
And now was I
indeed wretched
beyond the
Ao mesmo tempo em que o trecho acima parece corresponder a uma wretchedness of
mistificação da maldade humana, o conhecimento que o leitor tem dos mere Humanity.
recursos discursivos do narrador influencia na incredulidade quanto aos And a brute beast
–whose fellow I
argumentos apresentados. A ambiguidade que se revela na passagem nos had contemptuously
leva para uma segunda interpretação possível do conto: a responsabilização destroyed –a brute
beast to work out
do narrador pelos seus próprios infortúnios e tormentos. for me – for me a
Para Todorov, essa hipótese guia o leitor para dentro dos limites do man, fashioned in
the image of the
estranho e privilegia a análise psicológica da personagem. David Roas, High God –so much
por sua vez, concentra o seu foco teórico sobre os textos que claramente of insufferable wo!
representam fenômenos sobrenaturais em seus enredos. Todavia, o autor (POE, 1984, p. 67).

afirma que seus postulados podem ser aplicados em obras que, como “O gato
preto”, mantém o seu caráter ambíguo para além de seus desfechos. “Minha
definição inclui tanto as narrativas em que a evidência do fantástico não
está sujeita a discussão, quanto aquelas em que a ambiguidade é insolúvel,
já que todas postulam a mesma ideia: a irrupção do sobrenatural no mundo
real” (ROAS, 2014, p. 43).
É precisamente essa abertura teórica que exploraremos a partir deste
momento, tendo como objetivo demonstrar que a análise mimético-realista
mantém o processo de desestabilização do leitor e, a nosso ver, duplica-a
em dois pontos de vista. Para esclarecer esse efeito, trataremos de algumas
facetas das manifestações da psique do protagonista no conto.
Após o parágrafo inicial, o narrador expõe momentos significativos
do seu desenvolvimento pessoal, incluindo suas dificuldades de socialização
e a sua progressiva aproximação das mais diferentes espécies de animais

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


630
Evanir Pavloski

em substituição ao contato humano, o qual é entendido pela personagem


como volúvel e insidioso. “Há qualquer coisa no amor altruísta e abnegado
de uma criatura bruta que cala fundo no coração de quem muitas vezes já
teve ocasião de experimentar a amizade mesquinha e a fidelidade impalpável 9
There is something
do mero Homem”.9 (POE, 2012, p. 64). in the unselfish and
self-sacrificing love
A descrição desse processo de transferência, assim como a menção of a brute, which
de experiências traumáticas vividas na infância, inscreve definitivamente goes directly to the
heart of him who
no horizonte de significação do leitor a possibilidade de análise psicológica has had frequent
das palavras e das ações do protagonista. A personagem assume então uma occasion to test the
dimensão mimética bem delineada que favorece a identificação do receptor, paltry friendship and
gossamer fidelity of
i.e., o texto representa um indivíduo que, assim como diversos outros seres mere Man. (POE,
humanos, passou por momentos de dor e de ressentimento em sua formação 1984, p. 63-64).
pessoal, os quais podem ter moldado aspectos de sua personalidade e de
10
I married early, and
was happy to find in
seu comportamento. my wife a disposition
A carência afetiva do narrador, por exemplo, conflui tão diretamente not uncongenial with
my own. Observing
para a sua relação com os animais que os comentários sobre a sua esposa e my partiality for
as circunstâncias de seu casamento, além de muito breves, enfatizam unica- domestic pets, she
lost no opportunity of
mente a afeição compartilhada pelos bichos de estimação. “Casei cedo e tive procuring those of the
a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição não incompatível most agreeable kind.
com a minha. Percebendo a minha preferência pelos animais domésticos, (POE, 1984, p. 64)
ela não perdia a oportunidade de obter os tipos mais agradáveis”10 (POE,
11
Pluto – this was
the cat’s name – was
2012, p. 64). Nesse sentido, é interessante notar que a descrição do gato my favorite pet and
Pluto ocupa um espaço muito mais amplo na narrativa do que quaisquer re- playmate […] Our
friendship lasted,
ferências à cônjuge do protagonista. Essa desproporcionalidade pode indicar in this manner, for
ao leitor que experiências pregressas criaram na personagem uma atávica several years, during
desvalorização dos seres humanos, o que, por sua vez, pode lançar luz sobre which my general
temperament and
a sua frieza no momento do assassinato e da ocultação do cadáver da esposa. character – through
Contudo, o comportamento do narrador descreve uma longa curva the instrumentality
of the Fiend
de deterioração no conto até a consumação do crime capital. Segundo ele, a Intemperance – had
explicação para a mudança de seu caráter foi uma crescente e incontrolável (I blush to confess
impaciência, que se tornara ainda mais desmedida com o uso frequente do álcool. it) experienced a
radical alteration for
the worse. I grew, day
Pluto – esse o nome do gato – foi meu bicho e companheiro favorito [...] by day, more moody,
Nossa amizade durou, desse modo, por vários anos, durante os quais meu more irritable, more
temperamento geral e caráter – por obra do Demônio da Intemperança – ex- regardless of the
feelings of others.
perimentaram (coro em confessar) uma radical alteração para pior. Tornei- I suffered myself
me, a cada dia, mais taciturno, mais irritável, mais sem consideração pelos to use intemperate
sentimentos alheios. Permitia-me o uso de uma linguagem destemperada language to my At
com minha mulher. Por fim, cheguei até a ameaçá-la de violência física. length, I even offered
her personal violence.
Meus bichos, é claro, também sofreram com minha mudança de dispo- My pets, of course,
sição. Eu não só os negligenciava, como também os maltratava.11 (POE, were made to feel
2012, p. 65, grifo nosso). the change in my
disposition. I not only
neglected, but ill-used
Os rompantes violentos do narrador atingem finalmente aquele que them. (POE, 1984, p.
ainda se mantinha relativamente protegido da sua intempestividade: o gato 64, grifo nosso)

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


631
O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

preto. Considerando a predileção do protagonista por animais em detrimento


a seres humanos, a preservação da integridade do gato (mesmo depois das
agressões à esposa) é coerente com a representação da sua psique no conto.
De certa forma, a personagem rompe progressivamente os limites de ética
e civilidade até o momento em que o carinho por Pluto se torna o último
resquício daquela sensibilidade infantil. É importante perceber, no entanto,
que o primeiro ato de grande brutalidade contra o animal ocorre justamente
porque o narrador sente que o felino o evita e, uma vez acuado, fere a sua
mão. A personagem se sente traída e desprezada pela única criatura com a
qual ainda se importava.

Certa noite, voltando para casa, muito embriagado, de uma das minhas aven-
turas pela cidade, julguei que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e
ele, horrorizado com a violência do meu gesto, infligiu-me um leve ferimen-
to na mão com os dentes. [...] Tirei do bolso do colete um pequeno canivete,
abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e deliberadamente arranquei um 12
One night,
de seus olhos da órbita! Coro, enrubesço, estremeço conforme descrevo a returning home, much
abominável atrocidade.12 (POE, 2012, p. 65, grifo nosso). intoxicated, from one
of my haunts about
town, I fancied that
Além do exposto, há em ambos os trechos citados o uso de expres- the cat avoided my
sões (em negrito) que apontam para sentimentos como vergonha e culpa. presence. I seized
Entretanto, o plano de expressão da narrativa é profundamente revelador das him; when, in his
fright at my violence,
contradições que habitam na personagem. Ainda que a princípio o leitor possa he inflicted a slight
acreditar nas reações do narrador, evidencia-se já no próximo parágrafo que wound upon my
a passagem do tempo dilui rapidamente esses impulsos de arrependimento hand with his teeth.
[…] I took from my
e reconduz o protagonista ao seu comportamento agressivo. waistcoat-pocket a
pen-knife, opened
Eu experimentei um sentimento que era parte horror, parte remorso pelo cri- it, grasped the poor
me do qual eu era culpado; mas foi quando muito, um sentimento fraco e am- beast by the throat,
and deliberately cut
bíguo, e a alma permaneceu intocada. Voltei a mergulhar em excessos e não one of its eyes from
tardei a afogar na bebida qualquer lembrança do ato.13 (POE, 2012, p. 65). the socket! I blush,
I burn, I shudder,
while I pen the
Ainda que mantenhamos o foco restrito a uma análise mimética do damnable atrocity.
conto, essas incongruências no fluxo do relato colocam o leitor diante de duas (POE, 1984, p. 64,
possibilidades de caracterização da personagem, o que intensifica ainda mais grifo nosso)
o signo da ambiguidade na obra. Redunda justamente dessa ambivalência 13
I experienced
a sentiment half
a ampliação do processo de desestabilização do real em “O gato preto”. of horror, half of
Primeiramente, poderia ser atribuída ao protagonista uma condição remorse, for the
crime of which I had
patológica que explicaria, em grande medida, as suas ações. Recuperando been guilty; but it
um argumento já mencionado, a negação da loucura no primeiro parágrafo was, at best, a feeble
do conto indicaria, segundo percepções arraigadas no imaginário coletivo, and equivocal feeling,
and the soul remained
um sintoma da própria insanidade. untouched. I again
plunged into excess,
Com a consideração de algum tipo de distúrbio, outros aspectos do and soon drowned in
relato assumem também novos sentidos como, por exemplo, a inexatidão nas wine all memory of
descrições de determinadas situações, a dificuldade em distinguir realidade the deed. (POE, 1984,
p. 64)

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


632
Evanir Pavloski

(intradiegética, obviamente) de alucinações e as atitudes extremamente


violentas que se seguem. Seria possível, inclusive, associar o vocabulário
místico do narrador a devaneios resultantes dessa perturbação psicológica.
“A fúria de um demônio apossou-se instantaneamente de mim. Eu não mais
me reconhecia. Minha alma original pareceu, na mesma hora, levantar voo
de meu corpo; e uma malevolência mais do que diabólica, inflamada a gim,
convulsionou cada fibra de meu corpo”.14 (POE, 2012, p. 65).
14
The fury of a
demon instantly
Essa interpretação do testemunho e dos eventos nele contidos sugere possessed me. I knew
para o receptor que o universo experimental é um espaço repleto de perigos myself no longer. My
original soul seemed,
que podem nunca ter sido plenamente considerados, como a existência de at once, to take its
pessoas que, influenciadas por certas patologias, podem cometer atos de flight from my body;
and a more than
grande violência. Neste ponto, ressaltamos que não há premeditação no fiendish malevolence,
assassinato da esposa, o que poderia indicar, dentre outras explicações, um gin-nurtured, thrilled
surto psicótico no protagonista. every fibre of my
frame. (POE, 1984,
Mesmo sem se afastar de um olhar mimético-realista, notamos, por- p. 64).
tanto, que o leitor encontra elementos potencialmente desestabilizadores de
um senso de realidade centrado no racionalismo e na coerência das ações.
A mente humana, espaço ainda resistente a exegeses definitivas, permanece
como fonte de terrores e fantasmagorias, que fomentam a literatura fantástica
antes e depois das teorias psicanalíticas freudianas.
Contudo, devemos considerar que um segundo procedimento de
interpretação do texto pelo viés realista pode trazer conclusões ainda mais
desconcertantes para o leitor. A atribuição da condição de louco para um
criminoso ou, mais especificamente, para um assassino pode servir como
recurso discursivo e simbólico para manter certa ordem ao mundo das rela-
ções. Por meio dessa racionalização, estabelece-se uma exceção patológica
ao grande conjunto dos comportamentos e dos perfis identitários humanos.
Em outros termos, a caracterização de um assassínio como uma anomalia
ético-moral perpetrada por uma psique doente resguarda a idealização de
uma sociedade funcional e ética. Ainda que permeável a casos de exceção,
o mundo, ao menos nesse aspecto, pode continuar em seu eixo.
Mas, e se essa concepção da realidade não ultrapassar os limites de
um discurso utópico pacificador? E se as patologias ou mesmo as condi-
ções econômicas não forem os únicos motivadores das atrocidades? E se o
assassino não for psicologicamente doente?
Em “O gato preto”, essa hipótese encontra diferentes pontos de ancora-
gem. Primeiramente, consideremos a habilidade retórica do narrador, o qual
demonstra ter um controle bastante razoável sobre o seu relato, utilizando,
inclusive, estratégias para angariar a credibilidade de seu leitor. Além disso,
os pequenos toques de ironia no testemunho indicam tanto a consciência de
seus atos quanto o desprezo pela seriedade de suas consequências. Citamos
anteriormente o uso do vocábulo doméstico no primeiro parágrafo da narra-
tiva e agora complementamos essa linha de raciocínio com outra passagem

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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

emblemática do conto: “[...] e nisso, no pleno frenesi de minha bravata, bati 15


[…] and here,
through the mere
fortemente, com a bengala que levava na mão, exatamente naquela parte da phrenzy of bravado, I
alvenaria atrás da qual jazia o cadáver de minha amantíssima esposa”15 rapped heavily, with
(POE, 2012, p. 71, grifo nosso). a cane which I held
in my hand, upon that
Mesmo quando a tendência irônica não é notável, há uma aparente very portion of the
falta de arrependimento da parte do protagonista, seja pela mutilação e ex- brick-work behind
which stood the
termínio do gato, seja pela execução de sua companheira. As manifestações corpse of the wife
de consternação às quais nos referimos anteriormente – claramente efêmeras of my bosom. (POE,
1984, p. 69, grifo
e tipicamente exageradas – são eclipsadas pela objetividade na ocultação do nosso)
cadáver e pelo entusiasmo do narrador ao ver sua mórbida tarefa realizada. 16
Having procured
mortar, sand, and
Tendo buscado argamassa, areia e crina, com todas as precauções possíveis, hair, with every
preparei um reboco que fosse indistinguível do antigo, e com ele procedi possible precaution,
I prepared a plaster
muito diligentemente à obra da nova alvenaria. Após terminar, observei which could not be
satisfeito o trabalho bem feito. A parede não apresentava o menor sinal de distinguished from
ter sido perturbada. Recolhi o entulho no chão com cuidado mais do que the old, and with
minucioso. Olhei em torno em triunfo e disse comigo mesmo – “Aí está, this I very carefully
went over the new
pronto, meu trabalho não foi em vão”16. (POE, 2012, p. 70)17 brick-work. When
I had finished, I felt
Finalmente, devemos considerar a preleção do narrador sobre o espí- satisfied that all
was right. The wall
rito da perversidade, na qual ele afirma abertamente que não é diferente de did not present the
qualquer outro ser humano, uma vez que todos nós, devido a uma maldade slightest appearance
inata e inalienável, seríamos capazes de atos semelhantes. Ainda que neste of having been
disturbed. The
ponto da obra o assassinato da esposa não tenha ocorrido, entendemos que rubbish on the floor
a argumentação é válida para o todo relato, uma vez que os eventos são was picked up with
the minutest care.
narrados retrospectivamente. I looked around
triumphantly, and
E então sobreveio, como que para minha ruína final e irrevogável, o espíri- said to myself
to da PERVERSIDADE. Desse espírito a filosofia não se ocupa. Contudo, -–”Here at least, then,
não tenho tanta convicção sobre a existência de minha alma quanto tenho my labor has not been
in vain.” (POE, 1984,
de que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano p. 68-69).
– uma das indivisíveis e primordiais faculdades, ou sentimentos, que orien- 17
Respeitosamente
tam o caráter do Homem. Quem nunca se pegou, uma centena de vezes, discordamos da
cometendo algum ato vil ou tolo sem nenhum outro motivo além de saber tradução apresentada
na obra referenciada
que não deveria? Não mostramos uma perpétua inclinação, malgrado todo
da última sentença
o nosso bom-senso, a violar essa coisa que chamamos Lei, meramente por- da passagem. Neste
que a compreendemos como tal?18 (POE, 2012, p. 65-66). trecho, confunde-se,
aparentemente, a
expressão “at least”
Ao estabelecer uma relação direta entre suas atitudes e uma carac- (pelo menos) com “at
terística supostamente ingênita da humanidade, o narrador não apenas last” (finalmente).
recusa novamente a qualificação de louco, mas também objetiva promover Considerando essa
diferença semântica,
e/ou fortalecer a identificação do leitor consigo. A nosso ver, essa busca acreditamos que a
por reconhecimento e compreensão é o verdadeiro propósito de todo o seu versão: “Pelo menos
testemunho. Sua intenção é criar um espelho em que o receptor veria sua aqui, o meu trabalho
não foi em vão!”
imagem refletida nas ações brutais cometidas, as quais, destituídas, nessa (POE, 2003, p. 48)
perspectiva, de explicações patológicas, revelar-se-iam essencialmente enfatiza não apenas

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


634
Evanir Pavloski

humanas. O narrador não deseja aliviar a sua alma por meio da confissão, o entusiasmo da
personagem com a
mas marcar a sua existência através da naturalização de seus atos. O pos- ação realizada, mas
tulado resultante dessa argumentação seria o de que qualquer indivíduo, também o ineditismo
plenamente consciente de suas decisões e considerado mentalmente sadio, de um ato tão bem
desempenhado na
poderia agir do mesmo modo que o protagonista do conto. vida do protagonista,
Manifesta-se, diante disso, a segunda desestabilização do real sob um o que torna ainda
mais complexa a
ponto de vista analítico de ordem mimético-realista. O leitor é confrontado análise de sua psique
por uma concepção da natureza humana que problematiza o entendimento e dos limites do
do mundo ao seu redor. Se a patologização do crime permite a manutenção sobrenatural.
18
And then came,
de certa ordem no universo empírico, a sua naturalização ameaça os limites as if to my final
da própria noção da humanidade como uma espécie social. Nesse processo, and irrevocable
há novamente um caráter dual. Por um lado, o receptor pode reexaminar o overthrow, the spirit
of PERVERSENESS.
seu juízo sobre a violência cotidiana e sobre os riscos potenciais da vida em Of this spirit
coletividade. Por outro lado, ele pode questionar as suas próprias tendências philosophy takes no
agressivas e encontrar, em maior ou menor grau, alguma concordância com account. Yet I am not
more sure that my
as ideias do narrador sobre si e sobre a raça humana. Para David Roas, o soul lives, than I am
efeito de desestabilização da literatura fantástica não atinge apenas a visão that perverseness is
do sujeito sobre o espaço extradiegético, mas também (e, às vezes, de forma one of the primitive
impulses of the
mais contundente) a percepção de si mesmo como integrante desse locus. human heart --one
Um dos perigos do encontro com “monstros” é que ele pode desvelar os of the indivisible
traços de monstruosidade que temos em comum. Como salientou Louis Vax primary faculties, or
sentiments, which
“é através de mim que o monstro existe. A transcendência fantástica reside give direction to the
no coração dessa imanência”.19 (VAX, 1965, p. 311, tradução nossa). character of Man.
Who has not, a
Neste artigo, objetivamos demonstrar que o conto de Edgar Allan hundred times, found
Poe, além de ser um texto exemplar de diferentes mecanismos marcantes da himself committing
literatura fantástica, amplia significantemente as potencialidades do gênero a vile or a silly
action, for no other
no que se refere aos seus efeitos na dimensão simbólica da leitura. Isso se reason than because
dá pela operacionalização cuidadosa de um dos elementos mais relevantes he knows he should
do fantástico: a ambiguidade. Ao sugerir diferentes formas de significação not? Have we not a
perpetual inclination,
da narrativa, sem impor ou invalidar nenhuma delas, o autor cria um espaço in the teeth of our
intersticial que, ao romper com dualismo típico dos processos de represen- best judgment, to
tação e da própria linguagem, obriga o leitor a lidar com a multiplicidade violate that which is
Law, merely because
de sentidos e com a incerteza das escolhas. Essa circunstância de recepção we understand it to
potencializa a sensação de desestabilização do real, que, em “O gato preto”, be such? (POE, 1984,
não se restringe à insinuação do sobrenatural e permeia as interpretações p. 65).
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C’est par moi que
que, guiadas por perspectivas realistas de análise, são questionadas em suas le monstre existe.
próprias concepções do real. Assim como na representação da Máscara da La ‘transcendance’
Eternidade, a transcendência imanente e diacrônica do conto de Poe continua fantastique habite
au coeur d’une
a desafiar os mais diversos binarismos. immanence.

Referências
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Libraire José Corti, 1947.

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


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O interstício e a incerteza: as faces do fantástico em “O gato preto” de Edgar Allan Poe

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Tradução de Davi Arriguei Jr. e


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VAX, Louis. La séduction de l’étrange: étude sur la littérature fantastique.
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Recebido em agosto/2018.
Aceito em outubro/2018.

Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 7, n.2, p. 618-636, 2018.


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