Diáspora Negra e Lugares de Memória
Diáspora Negra e Lugares de Memória
Diáspora Negra e Lugares de Memória
(Organizadoras)
Niterói, RJ – 2013
Copyright © 2013 by Hebe Mattos
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Normalização: Maria Lúcia Gonçalves
Edição de texto: Icléia Freixinho
Revisão: Cinthia Paes Virginio
Capa e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo
Editora filiada à
Apresentação ........................................................................................................7
Capítulo 1
..............9
Thiago Campos Pessoa Lourenço
Capítulo 2
............................37
Daniela Yabeta
Capítulo 3
...........63
Nilma Teixeira Accioli
Capítulo 4
................................................
Camilla Agostini
Capítulo 5
............................................................................
Hebe Mattos e Martha Abreu
..........................................................................................................................
Apresentação
A história que eu sei [...] é que [...] proibiram a venda dos escravos para cá.
Mas, não sei como é que fizeram, [...] e arrumaram uns escravos para tra-
zer pra cá, para vender novamente. Raptaram escravo lá, encheram o navio
e trouxeram pra cá. Mas veio até aqui, numa ilha com um nome... Ilha de
Cunhambebe. Uma ilha que tem pra trás [...] O barco entrava lá, passava
pertinho [...] e trazia o pessoal para cá [...]. 2 (Manoel Moraes, morador de
Santa Rita do Bracuí)3
1
Thiago Campos Pessoa Lourenço é doutorando em história pela UFF e bolsista CNPq. Professor da
rede pública de ensino do Rio de Janeiro.
2
Sobre pesquisas arqueológicas evidenciando o naufrágio de negreiros exatamente na região apon-
tada por Manoel Moraes, ver caderno de imagens anexo a este trabalho e o documentário Passados
presentes: memória negra no sul fluminense, de Hebe Mattos e Martha Abreu (2011b).
3
Entrevista com sr. Manoel Moraes, 27 out. 2006. LABHOI. Acervo Petrobrás Cultural Memória e
Música Negra, 01.0020 e 01.0064. Disponível em: <www.historia.uff.br/jongos>. Acesso em: 10
ago. 2012.
10
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
Em 10 de Janeiro [de 1837] [...], por aqui apreendido pelo Juiz de Paz
deste distrito o patacho que se diz ser portuguez e que se denomina União
Feliz ter-se empregado desde 1835 no ilícito, imoral, e desumano trafico
da escravatura, e que acabava de verificar um desembarque de africanos no
lugar onde fora apreendido e porque tivesse ingerência nessa embarcação
Joaquim de Souza Breves [...].6
4
Biblioteca Nacional. Localização original: Manuscritos C-1058,077 n. 002. Outras localizações: Do-
cumentos biográficos c 1052,44. Projeto escravos no Brasil.
5
Segundo Luís Henrique Tavares, Joaquim Breves estaria ao lado de grandes traficantes, como Ma-
noel Pinto da Fonseca e José Bernardino de Sá, “grandes negreiros no Rio de Janeiro dessa época”.
6
Fundação Mario Peixoto. Ofícios da Câmara ao Governo do Império, 1832-1846. Ofício n. 6.
7
Hoje, através do trabalho desenvolvido pela Fundação Mario Peixoto, sabemos que Joaquim Bre-
ves possuía muitos inimigos políticos na Vila de Mangaratiba. Consulte Bondim, Heffener e Souza
(2011).
12
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
15
Cabe destacar que não devemos encarar a quantidade de apreensões e de africanos desembarcados
como números absolutos. A construção do quadro 1 não busca apresentar um caráter quantitativo,
mas sim ilustrar em números, ainda distantes da realidade, o fluxo constante, durante a clandesti-
nidade, dos empreendimentos traficantes da família Breves.
16
É importante destacarmos que o tráfico ao norte da linha do equador era ilegal desde 1815, segun-
do acordo traçado entre a Coroa portuguesa e a Grã-Bretanha.
17
The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4640. Disponível em: <www.slavevoya-
ges.org/tast/index.faces>. Acesso em: 10 ago. 2012.
18
Sobre essas apreensões, ver o capítulo 2 deste livro.
17
25
Museu de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de José de Souza Breves, v. 1, p. 164.
26
Vale destacar que o advento da linha férrea no vale fluminense também contribuiu bastante para a
decadência econômica do litoral sul da província do Rio de Janeiro.
27
Jornal do Commercio, 6 mar.1851. Acervo da Biblioteca Nacional.
28
Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Joaquim José de Souza Breves, v. 2,
p. 291-299.
21
29
Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Joaquim José de Souza Breves, v. 2,
p. 294.
22
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
31
Entre os 540 africanos, apenas 60 eram mulheres. Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468. Ver
também Zimba (2006).
32
Segundo Roquinaldo Ferreira (1996, p. 176), algumas das fazendas dos Breves possuíam instala-
ções apropriadas para receber navios negreiros enviados da África.
33
Sobre pesquisas arqueológicas recentes evidenciando o naufrágio do brigue Camargo ver: RAM-
BELLI, Gilson. Arqueologia de naufrágios e a proposta de estudo de um navio negreiro. Revista de
História da Arte e Arqueologia, Campinas, SP: n. 6, dez. 2006.
24
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
apenas três dentre eles. No lugar do desembarque, que segundo todas as infor-
mações é o Bracuí eram esperados os africanos, tanto que à sua chegada foram
recebê-los canoas, que os puseram em terra [...]34
34
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 468, grifos nossos.
35
A viagem do brigue Camargo foi bastante longa. Partiu do Rio de Janeiro em 11 de abril de 1851 e
retornou de Quelimane com cerca de 540 cativos em 12 de dezembro de 1852. Consulte The Trans-
-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4154.
36
Segundo Manolo Florentino, no século XIX a travessia média entre Moçambique e o Rio de Janeiro
durava cerca de 60 dias, enquanto que na viagem entre Angola e o litoral fluminense gastava-se a
metade do tempo.
37
Outra hipótese, não menos relevante, é que muitos africanos tenham sido lançados ao mar, na imi-
nência da apreensão. Embora essa informação não apareça nos inquéritos policiais, encontramos
indícios dessa prática na memória local. Segundo o sr. Manoel Moraes: “proibiram a venda dos es-
cravos para cá. Mas, não sei como é que fizeram que ainda roubaram lá oportunidade e arrumaram
uns escravos para trazer pra cá, para vender novamente Raptaram escravo lá, encheram o navio e
trouxeram pra cá. Mas veio até aqui, numa ilha com um nome... Ilha de Cunhanbebe. Uma ilha que
tem pra trás [...]. E quando observaram que vinha uma escolta atrás deles, pra prender eles [...] o
navio tinha um buraco, tinha um buraco que batia [...], aquele pino saía, né? Saía e abria um buraco
e a água invadia. Então foi assim, alguns caíam na água, outros jogavam lancha na água, então
salvou bastante e morreu bastante e o barco afundou na ponta da ilha” [sr. Manoel Moraes, 27 out.
2006].
25
[...] que da terra vieram logo a bordo três indivíduos que trouxeram canoas
para o desembarque de africanos, mas que não apareceu ninguém armado,
e parecia a ele, interrogado, que as pessoas que vieram a bordo noticiar a
vinda de canoas eram já conhecidas de Cardoso [piloto do brigue] e que
como tais o cortejaram.38
38
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468.
39
O capitão do brigue Camargo, Nathaniel Gordon, na década de 1860 atuava no tráfico entre o
reino do Congo e a ilha de Cuba. Partira de Havana e, no dia 8 de agosto de 1860, saíra da África
com o tumbeiro norte-americano Erie, com 897 escravos a bordo. A viagem durou apenas 30 dias,
e quase todos os 897 africanos chegaram vivos à região da Flórida. The Trans-Atlantic Slave Trade
Database Voyages. Voyage 4653.
40
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468.
26
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
41
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468; FERREIRA, 1996, p. 180.
42
Como destaca Abreu, é interessante notar que Joaquim, e não José, tenha sido levado a júri nessa
época. Os laços de amizade entre José e Eusébio de Queiroz e a importância do comendador no
Partido Conservador talvez tenham amenizado a necessidade de julgamento do dono do Bracuí.
Certamente, os reincidentes desembarques na Marambaia colaboraram muito mais para a estig-
matização de Joaquim Breves.
27
[...] me dirijo a V.EXa. a pedir-lhe por eles, e por mim sua valiosa proteção
vista do estado a que se podem ser levados nossas fazendas [...] vesse essa
classe importante [os lavradores] exposta a um domicílio militar, desta-
camentos invadindo sua propriedades para procurarem africanos boçais;
vesse essa classe sujeita a interrogatórios e aos caprichos de uma ou outra
tenção [...] a continuar a porem em muito risco nossa segurança, abalará
nossas fortunas, e pode acarretar para o país, funestas conseqüências.44
[...] Quando digo nutrimos sérios receios não exagero, pois considero que,
se nossas fazendas são costiadas por negros pela maior parte ladinos, al-
guns há as tem de pouco mais de 2 anos que mal falão, e huma diligência qual-
quer que ali não vá muito pode prejudicar, abalando mais e mais os ânimos
d’aqueles nos privando d’estes [...].45
[...] é o que disse até no Parlamento isto é quando o governo não iria dar
buscas nas fazendas para resolver o passado [...] Pode ser que a audácia
das especulações o leve a proceder com mais algum rigor ou outra vez,
mais creio que nem se ultrapassarão os limites da necessidade, nem se re-
solve o passado [...] Qualquer busca que se dê é para procurar os negros agora
importados, e nunca para se entender com o passado [grifo do autor]. Não
deve pois V. Exa. temer, uma vez que como me diz, e eu creio, não tendo
introduzido [africanos] depois da nova lei de 1850. A separação é difícil,
até o reconheço, mas quando a verdade procede com desejo de acertar,
e não de perseguir, os homens de bem e que se sentem innocentes não
devem temer [...].49
47
Sobre os africanos livres, consulte Mamigonian (2005).
48
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/2, 7 fev. 1853.
49
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/1. Minuta de resposta, 1853.
50
Segundo José Murilo de Carvalho, a orientação do Conselho de Estado era: “olhar somente para o
futuro, esquecendo o passado”.
30
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
fluente, ao ser inquirido respondeu que “era dos depois da lei de sete de
novembro de 1831” (ABREU, 1995, p. 189; MAMIGIOMIAN, 2007, p.
163-174). Breves temia que esse ideal de liberdade, mais comum durante
a década de 1860, se espalhasse pelo interior das senzalas, tanto que par-
ticipou de uma representação escrita em Piraí, onde residia, publicada no
Jornal do Commercio no dia 1 de março de 1853:
51
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468, grifos nossos.
52
Ibid.
53
Em 1850 o navio Esmeralda, de propriedade de Ruviroza, desembarcou em Mangaratiba, região
de domínio dos Breves, 500 africanos. Em Cabinda havia embarcado 556 cativos com destino ao
Brasil. The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4629. Segundo Daniela Yabeta
(2009, p. 72), Joaquim Antônio Ferreira, morador de Itacuruçá, casado, de 34 anos, interrogado
pela Auditoria Geral da Marinha, teria dito o seguinte: “não sabia o nome do navio nem a quem
pertencia, sabia apenas que servia e foi enviado a D. Francisco, que lhe contaram ser espanhol e
estar na dita ilha a espera dos africanos”.
54
Segundo o autor, ver o relatório do cruzeiro vapor Thetis em 22 jan. 1853 (Arquivo Nacional. IJ6
472).
32
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
[...] tenho de participar a V. Ex.a, que fui informado, que os dois irmãos
Joaquim José de Sousa Breves, e José de Sousa Breves convidaram diver-
sos fazendeiros dos Municípios de S. João do Príncipe, e Pirahy a esta-
rem para comprar uma porção d’Africanos, que mandaram vir de Costa
de Leste em seu navio, que deve aportar à Província o Rio de Janeiro, de-
mandando especialmente a parte dela compreendida entre a Guaratiba, e
Angra dos Reis, e que aquele navio deve chegar em dias deste mês, ou do
próximo futuro.57
56
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 472. Secretaria de Polícia da Corte. Reservado, 2 set. 1853.
57
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 468. Secretaria de Polícia da Corte. Reservado, fev. 1854, grifo
nosso.
34
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense
58
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Arquivos particulares – Senador Nabuco de Araújo.
Lata 366, pasta 57.
35
Daniela Yabeta1
Da comunidade remanescente de
1
Daniela Yabeta é doutoranda em história pela UFF. Este texto é uma versão atualizada do II capítu-
lo da minha dissertação de mestrado, intitulado “Os processos” (YABETA,2009).
2
Para maiores informações sobre o programa Egbé Territórios Negros, ver Koinonia Presença Ecu-
mênica e Serviço. Programas. Disponível em: <www.koinonia.org.br/programas-egbe.asp>. Acesso
em: 18 maio 2012.
3
Art. 2º – “O Ministério da Marinha firmará acordo com a Fundação Abrigo do Cristo Redentor para
receber o acervo da Escola Técnica Darcy Vargas, que ficará sob a administração daquela Secretaria
de Estado, que lhe dará a destinação que melhor atenda o interesse público. Parágrafo único – A
transferência da parte imobiliária do acervo será efetivada mediante o termo lavrado em livro
próprio do Serviço de Patrimônio da União” (Decreto nº 6.8224, de 12 de fevereiro de 1971 – Au-
toriza a reincorporação ao patrimônio da União dos bens móveis e imóveis da Escola Técnica Darcy
Vargas, da Fundação Abrigo Cristo Redentor).
38
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Joaquim José de Souza Breves e era utilizada por ele como um porto clan-
destino para desembarque de africanos. Antes de morrer, em setembro
de 1889, de acordo com a memória dos ilhéus, o comendador Breves teria
doado as praias da Marambaia para as famílias de ex-escravos que conti-
nuaram vivendo por lá após a abolição.
Minha atuação como estagiária do programa Egbé Territórios Negros
durante os anos de 2005-06 permitiu que eu acompanhasse de perto o
conflito vivenciado pelos ilhéus da Marambaia em busca da titulação de
seu território como remanescente de quilombo. Uma das minhas atribui-
ções era fazer a postagem das notícias no site do Observatório Quilombola,
vinculado ao programa.4 A grande maioria delas falavam sobre o conflito
dos moradores da Marambaia com a Marinha, embate que eu também
acompanhava através do processo administrativo pela titulação do terri-
tório remanescente de quilombo pelo Instituto de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) e através da ação civil pública, ajuizada pelo Ministério
Público em 2002 contra a União Federal e a Fundação Cultural Palmares.5
Nesses processos, questões como o tráfico de africanos no século XIX e a
formação de quilombos no Brasil eram comumente discutidas por antro-
pólogos, advogados e juristas, por conta da memória da escravidão pre-
sente na comunidade da Marambaia.
No meio de todo esse debate, uma situação em especial me chamou a
atenção. Tratava-se de uma ação de reintegração de posse ajuizada pela
União Federal na década de 1990 contra d. Zenilda Soares Felicíssimo,
moradora da praia da Armação.6 Dona Zenilda foi intimada a prestar de-
poimento e compareceu à audiência sem advogado. Diante da juíza, con-
tou que nasceu e cresceu na Marambaia, assim como seus pais e avós. Por
conta do depoimento de d. Zenilda, a juíza não efetivou a reintegração
de posse solicitada pela União Federal. Muito pelo contrário, o relato da
moradora despertou na juíza a ideia de que a casa de d. Zenilda poderia se
constituir num território quilombola, de acordo com o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal
de 1988. A juíza, então, solicitou ao Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) um relatório sobre a presença de quilombos
na Marambaia.7 O resultado do relatório foi negativo. O argumento do
4
“O Observatório Quilombola é um espaço interativo, interdisciplinar, dedicado à coleta, organi-
zação e análise de informações relativas às comunidades negras rurais e quilombolas, em seus
contextos locais e regionais, assim como às políticas pertinentes.” Disponível em: <www.koinonia.
org.br/oq/quemsomos.asp>. Acesso em: 27 jun. 2012.
5
Em dezembro de 2011 realizei o levantamento de todas as notícias publicadas no Observatório
Quilombola sobre a ilha da Marambaia. De outubro de 2004 até dezembro de 2011 foram contabi-
lizadas 315 notícias. Processo administrativo no 54180.000945/06-83, referente à regularização
fundiária da comunidade remanescente de quilombo da ilha da Marambaia – Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra). Processo no 2002.5111000118-2 – Ação civil pública –Mi-
nistério Público Federal, 14 fev. 2002.
6
Processo no96.0007682-0 – Ação de reintegração de posse ajuizada pela União Federal contra Ze-
nilda Soares Felicíssimo, maio de 1996.
7
Ibid. Assentada: 20 de março de 1997.
39
Daniela Yabeta
pesquisador responsável foi de, que por se tratar de uma ilha, a possibili-
dade de formação de quilombos seria quase nula. Além disso, ele também
relatou que, através de uma pesquisa arquivística, havia identificado um
processo julgado pela Auditoria Geral da Marinha em 1851 no qual consta
a presença de oficiais de Marinha e imperiais marinheiros, além da pró-
pria Polícia da Corte, na ilha da Marambaia.8 Todos estariam em busca de
africanos recém-desembarcados que, de acordo com uma denúncia, ha-
viam chegado havia poucos dias na Marambaia. De fato, a diligência, após
vasculhar toda a ilha, apreendeu 199 africanos que foram levados para a
Corte para julgamento, pelo auditor-geral da Marinha, sobre suas liber-
dade de acordo com o art. 1º da lei antitráfico de 1831, que previa a liber-
dade de todos os africanos desembarcados após aquela data em território
nacional. O raciocínio do pesquisador do Iphan foi de que, se por acaso
houvesse quilombo na Marambaia, tal diligência em busca de africanos
recém-desembarcados ilegalmente teria descoberto o grupo.9
As informações sobre o tráfico de africanos na ilha me remeteram
ao laudo pelo reconhecimento étnico e territorial da comunidade da
Marambaia como remanescente de quilombo. O trabalho, finalizado em
2003, foi coordenado pelo antropólogo José Maurício Arruti, que na épo-
ca também atuava na coordenação do programa Egbé Territórios Negros
de Koinonia. Nesse laudo, a ênfase do trabalho recai na memória da es-
cravidão entre os moradores da ilha e na relação desses moradores com o
território pleiteado. A memória sobre o tráfico ilegal e o entendimento da
Marambaia como “uma fazenda de engorda do comendador” foram utili-
zados pelo antropólogo como base para a construção da nova identidade
quilombola. Nesse sentido, as fontes existentes sobre o desembarque ile-
gal de 1851 reforçavam a memória dos ilhéus, e seu pleito de serem en-
quadrados como comunidade remanescente de quilombo nos termos em
que o art. 68 do ADCT da Constituição de 1988 vinha sendo regulado.10
No laudo, portanto, também há menção ao episódio da diligência na ilha
da Marambaia, que teria ocorrido por conta de um “flagrante policial”.
Como referência desse “flagrante”, Arruti (2003b, p. 95) indica uma carta
precatória de 1856 encontrada no Arquivo Nacional. Ao buscar tal carta,
percebi que ela tratava do mesmo processo da Auditoria Geral da Marinha
informado pelo pesquisador do Iphan em seu relatório anexado à ação de
reintegração de posse ajuizada contra d. Zenilda.
As duas referências ao processo da Auditoria Geral da Marinha foram
mais do que o suficiente para que eu buscasse a documentação completa
no Arquivo Nacional. Estava acostumada a acompanhar o conflito entre
a Marinha e os ilhéus da Marambaia no tempo presente e acreditava que
8
Relatório de pesquisa do Iphan sobre a possível existência de quilombo na praia da Armação, ilha
da Marambaia, elaborado por Joaquim Alcides Ribeiro em 9 de julho de 1997.
9
Sobre a presença de quilombo da ilha da Marambaia consulte Gomes (2006, p. 286, 287).
10
Sobre a legislação acerca de novos quilombos e sua regulação, ver o capítulo final deste volume.
40
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Daniela Yabeta
legislação que determinava que esses dois processos fossem encaminha-
dos para julgamento naquele tribunal. Porém, para chegar até o momento
em que a Auditoria da Marinha recebeu mais essa atribuição, precisei vol-
tar ainda mais no tempo e relembrar os tratados internacionais firmado
entre Inglaterra e Portugal, e posteriormente, Inglaterra e Brasil, assim
como as leis de proibição ao tráfico de africanos promulgadas no Brasil em
1831 e 1850, já analisadas por diversos historiadores (BETHELL, 2002;
RODRIGUES, 2000; CARVALHO, 2003; MAMIGONIAN, 2002).
Começamos pelo ano de 1807, quando a Inglaterra aboliu o comércio
escravista. A partir daí, o Parlamento britânico iniciou uma campanha mi-
litar e diplomática para eliminá-lo em diversos países, principalmente os
mais vulneráveis às suas pressões. Essa decisão britânica transformou o
sentimento crescente de condenação da escravidão e do tráfico de escravos
em uma política pública que direcionaria e justificaria as ações do gover-
no britânico ao longo de todo século XIX (MAMIGONIAN; GRINBERG,
2007, p. 87).
No que se refere a Portugal, a pressão inglesa para o fim do comércio
negreiro remonta à vinda da família real para o Rio de Janeiro, em 1808
(RODRIGUES, 2000, p. 97). Devido a uma série de problemas em fun-
ção das guerras napoleônicas, Portugal transferiu sua corte para o Brasil
e, para isso, contou com a proteção da Inglaterra. Em troca, o príncipe
regente assinou um tratado de aliança e amizade em 19 de fevereiro de
1810. Nesse tratado, Portugal mantinha o direito de comerciar escravos
em todos os seus domínios africanos e, em contrapartida, concordava em
cooperar com a Grã-Bretanha pela adoção de medidas mais eficazes que
levassem a cabo a gradual abolição do comércio de escravos em todos os
seus demais domínios (BETHELL, 2002, p. 29, 30).
Anos mais tarde, em 1815, o debate sobre o fim do tráfico chegou
ao Congresso de Viena, onde Portugal assinou um novo acordo com a
Inglaterra pelo fim do comércio negreiro. Desta vez, foi proibido a todo
vassalo da Coroa de Portugal comprar ou traficar escravos em qualquer
lugar da costa da África ao norte do equador, região que incluía a tra-
dicional fonte abastecedora da costa da Mina (atuais Daomé e Nigéria,
na África ocidental), em troca de uma substancial indenização financeira.
Entretanto, a repressão ao tráfico só foi regulamentada por uma conven-
ção adicional ao tratado assinada em 28 de julho de 1817. Essa convenção
instituía direito a ambos os governos (Portugal e Inglaterra) de dar bus-
cas em navios um do outro caso houvesse a mínima suspeita de tráfico
de africanos e criava comissões mistas no Rio de Janeiro, Serra Leoa e
Londres (RODRIGUES, 2000, p. 98; BETHELL, 2002, p. 34, 35).
As comissões eram compostas por um juiz, um comissário de arbitra-
gem de cada nação e um secretário ou oficial de registro nomeado pelo
governo em cujo território a comissão estivesse situada. Cabia a essas co-
missões decidir, sem direito a recurso, se o navio era ou não um negreiro
42
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Daniela Yabeta
tráfico. Em 13 de novembro de 1826 foi assinado um novo tratado, desta
vez, o primeiro anglo-brasileiro, que previa o fim do tráfico para dali a três
anos. Ratificado pela Coroa inglesa em 13 de março de 1827, ele mante-
ve os termos dos tratados assinados entre Portugal e Inglaterra em 1815
e 1817 (RODRIGUES, 2000, p. 99, 100; CARVALHO, 2003, p. 254, 294;
BETHELL, 2002, p. 99).
Foi durante a Regência que o governo brasileiro passou a pensar na
responsabilidade de repressão ao tráfico de escravos. Isso ocorreu devido
a um forte ressentimento em relação à interferência britânica nos assun-
tos nacionais. Buscando uma solução para o impasse, em 31 de maio de
1831, Felisberto Caldeira Brant – o marquês de Barbacena – introduziu
no Senado brasileiro um projeto de lei contra o comércio de escravos que
foi prontamente aprovado. Esse projeto foi imediatamente remetido à
Câmara, onde vários deputados já tinham se manifestado em favor de
alguma forma de legislação preventiva contra o tráfico negreiro. Padre
Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça na época, foi o principal res-
ponsável pela condução do projeto Barbacena na Câmara, que finalmente
tornou-se lei em 7 de novembro de 1831 (RODRIGUES, 2000, p. 110).
Através desta determinação, os legisladores brasileiros foram ainda
mais rígidos com aqueles envolvidos no tráfico de escravos do que até en-
tão estava inscrito nos acordos bilaterais. Além de declarar livres todos os
escravos introduzidos no país a partir daquela data e determinar que fos-
sem reenviados para a África, previa também punição para todos que se
envolvessem no transporte e na venda dos africanos (CARVALHO, 2003,
p. 295). Em 12 de abril de 1832, foram introduzidos novos regulamentos
que previam a inspeção, pela polícia e pelos juízes de paz locais, de todos
os navios que entrassem ou saíssem de um porto brasileiro. Também es-
tava previsto um exame mais cuidadoso dos escravos postos à venda no
Brasil, a fim de verificar se eles tinham sido importados antes de 13 de
março de 1830.
Conhecida como “lei para inglês ver”, ou seja, um simples resultado
das pressões da Inglaterra pela interrupção do tráfico atlântico de afri-
canos, a lei de 7 de novembro de 1831 passou para a história como se ti-
vesse sido criada para existir apenas no papel e nunca ser implementada.
De acordo com Mamigonian e Grinberg (2007), ficou popular justamente
por representar a suposta característica brasileira de promulgar leis para
jamais cumpri-las. Durante muito tempo, a historiografia corroborou
esta interpretação, baseando-se no fato de a lei não ter servido muito à
repressão do tráfico, que no fim da década de 1830 e durante a década
de 1840 alcançou volumes de importação antes inéditos. Por isso, sem-
pre foi alvo de todo tipo de crítica, inclusive tentativa de revogação, em
1837. Novas abordagens historiográficas reconhecem que a Lei de 1831
teve interpretações diversas (e controversas) entre as décadas de 1830
e 1880, buscam mapeá-las e, assim, trazem contribuições importantes
44
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Daniela Yabeta
A ação inglesa atingiu o auge em junho de 1850, quando o almi-
rante Reynolds, com o apoio do ministro do Exterior da Inglaterra,
LordPalmerston e de seu representante no Brasil, James Hudson, passou
a invadir portos brasileiros e neles apreender e afundar navios nacionais.
A atitude britânica acabou despertando a indignação popular. Liberais e
conservadores foram alvos de críticas quanto à incapacidade de evitar vio-
lações da soberania nacional (CARVALHO, 2003, p. 297). Em 12 de julho
do mesmo ano o governo apresentou um projeto à Câmara, que na época
contava com apenas um deputado liberal. Esse novo projeto era baseado
no apresentado por Barbacena em 1837 e previa que os traficantes fossem
julgados por juízes de direito, como auditores de Marinha. A diferença era
que o projeto de 1850 mantinha a Lei de 1831, diferentemente da propos-
ta de revogação apresentada no projeto de 1837.
Discutido em sessões secretas, esse novo projeto foi aprovado na Câmara
cinco dias depois (17 de julho) e remetido ao Senado para votação das emendas.
Em 13 de agosto foi aprovado no Senado e se tornou lei em 4 de setembro de
1850 (Lei nº 581). Além da pressão inglesa, o medo da haitianização e a busca
pela garantia da integridade do território brasileiro também foram questões-
-chave para que a nova lei antitráfico fosse promulgada (RODRIGUES, 2000,
p. 50). Com essa medida o governo passou a colaborar com a ação inglesa.
Hudson e o almirante Reynolds tinham concordado, a pedido do ministro dos
Negócios Estrangeiros, Paulino de Souza, em suspender as agressões dentro
dos portos, a fim de facilitar a aprovação da lei.
Conhecida como “Eusébio de Queiroz”, ministro da Justiça na época e
grande articulador da sua promulgação, a nova lei alterou a tramitação dos
processos judiciais referentes ao tráfico de africanos e passou a considerá-lo,
através do seu art. 4º, como crime de pirataria.12 Sobre o apresamento das em-
barcações suspeitas, a condenação dos traficantes e a liberdade dos africanos
apreendidos, o art. 8º determinava que passariam a ser julgados em primeira
instância por um tribunal especial – a Auditoria Geral da Marinha,13 e em se-
gunda instância pelo Conselho de Estado (RODRIGUES, 2000, p. 117).
12
“Art. 4º – A importação de escravos no território do Império fica nele considerada como pirataria,
e será punida pelos seus tribunais com as penas declaradas no artigo segundo da Lei de 7 de no-
vembro de 1831. A tentativa e a cumplicidade serão punidas segundo as regras dos artigos 34º e
35º do Código Criminal. Câmara dos Deputados. Decreto no 708 de 14 de outubro de 1850: Regula
a execução da lei que estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos neste Império.”
(Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
13
“Art. 8º – Todos os apresamentos de embarcações, de que tratam os Artigos 1º e 2º, assim como a
liberdade dos escravos apreendidos no alto do mar, ou na costa antes do desembarque, no ato dele,
ou imediatamente depois em armazéns, e depósitos sitos nas costas e portos, serão processados e
julgados em primeira instância pela Auditoria da Marinha, e em segunda pelo Conselho de Estado.
O Governo marcará em Regulamento a forma do processo em primeira e segunda instância, e po-
derá criar Auditores da Marinha nos portos onde convenha, devendo servir de Auditores juízes de
Direito das respectivas Comarcas, que para isso forem designados. Câmara dos Deputados. Decreto
no 708 de 14 de outubro de 1850: Regula a execução da lei que estabelece medidas para a repressão
do tráfico de africanos neste Império.” (Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
46
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
14
“Câmara dos Deputados. Decreto nº 731A de 14 de novembro de 1850: Determina a porcentagem
que compete ao Auditor de Marinha e ao seu Escrivão nas apreensões de barcos empregados no
tráfico de africanos: Hei por bem Declarar, que do produto da venda das embarcações, e barcos
empregados no tráfico, e de seu carregamento, assim como da retribuição pecuniária que, pela
apreensão de africanos deve fazer o Governo, se deduzirão dois por cento para o Auditor de Mari-
nha, e três para o seu Escrivão”. (Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
47
Daniela Yabeta
D. Afonso e Fidelidade, que patrulhavam a costa entre Cabo Frio e ilha
Grande. No relatório do ministro da Marinha, Manoel Viera Costa, em
1851, foi relacionado o destino dado a cada embarcação. Do total de 59
navios, 13 estavam atuando contra o tráfico de africanos.
Quadro 2 – Relação dos navios da Armada existentes no emprego contra o tráfico (1851)
1 Fragata Cearense
2 Patacho Desterro
3 Brigue Escuna Olinda
4 Brigue Escuna Fidelidade
5 Brigue Escuna Andorinha
6 Brigue Escuna Canopo
7 Brigue Escuna Legalidade
8 Brigue Escuna Canhoneira Campista
9 Iate Paraybano
10 Iate Constante
11 Iate Itapagipe
12 Vapor Urânia
13 Vapor Thetis
Fonte: Arquivo da Marinha. Relatório do ministro da Marinha, 1851.
nas embarcações e nos africanos; auto de corpo delito nos africanos; auto
de depósito dos objetos apreendido nas embarcações; edital e translado
do auto de arrecadação dos objetos apreendidos com as embarcações;
mandado de avaliação dos objetos pertencentes às embarcações apresa-
das, bem como a relação dos objetos; edital de arrematação dos objetos
apreendidos; auto de apreensão dos suspeitos de serem os traficantes;
auto de perguntas feito aos suspeitos de serem os traficantes; sentença do
auditor de Marinha, sentença do Conselho de Estado. No Rio de Janeiro,
a Auditoria Geral da Marinha teve como auditor José Baptista Lisboa, que
julgou os processos de contrabando de africanos apreendidos ao longo da
década de 1850. A seguir, veremos como ocorreram as apreensões desses
africanos – homens, mulheres e crianças – na ilha da Marambaia e quem
eram os sujeitos históricos envolvidos na experiência da organização e da
repressão ao ilícito comércio.
15
Daniela Yabeta
emblemática do poder dos terratenentes do Império no Brasil”. Declarava-
se senhor e possuidor de mais de 30 propriedades, tendo comprado a ilha
de José Guedes Pinto em 17 de abril de 1847. Maria Sylvia de Carvalho
Franco (1969, p. 210) defende que, com a compra, o comendador “resol-
veu seu problema de escassez de mão de obra montando uma empresa
negreira na ilegalidade, possuindo navios, fazendo de sua propriedade na
Marambaia um entreposto de desembarque e distribuição de escravos”.
Com um pano atado à cabeça, queixando-se de forte enxaqueca e acompa-
nhado por “dois hóspedes”, Breves foi pessoalmente até o chefe de polícia
se informar do que tratava a diligência. Ao saber que estavam em busca de
“africanos boçais”, assegurou que em sua propriedade não havia ocorrido
desembarque algum e “gentilmente”, ofereceu sua casa para Azambuja
descansar da viagem e almoçar em sua companhia.
Enquanto a força de permanentes se espalhava pela ilha em busca dos
africanos, Azambuja recusou o almoço, mas aceitou o convite à casa do co-
mendador, onde aproveitou para examinar todos os cômodos e nada en-
controu que gerasse suspeita de “falcatrua do desembarque de africanos
boçais”. Incomodado, Breves considerava um absurdo a diligência em sua
ilha, repetia que respeitava as leis do país e as ordens do governo e jamais
consentiria desembarque de africanos em suas propriedades. Queixou-se
novamente de enxaqueca, de dor no estômago e foi deitar-se. Azambuja
também se retirou e foi ao encontro do alferes Faria, que trazia um recado
do tenente Neves solicitando o envio de mais praças para um sítio a pouca
distância da praia da Armação, onde um “guia” afirmava para lá terem
seguido, na véspera, os africanos desembarcados.
Era a primeira vez que a Marambaia sofria uma diligência encaminha-
da à Auditoria Geral da Marinha, mas não era a primeira vez que esse
tribunal atuava na província do Rio de Janeiro. Três apreensões já haviam
sido feitas em 1850: o iate Rolha,em Macaé, com 212 africanos em 4 de
outubro; o bergantim nacional Sagaz,incendiado pela tripulação na praia
do Peró, em Cabo Frio, em 4 de novembro e o iate Jovem Maria, com 291
africanos na “altura da ilha Grande”.17 Em todos esses casos, temos a pre-
sença do navio, com ou sem africanos, mas essa não era a única forma de
apreendê-los. Como bem nos lembra Jaime Rodrigues,
Daniela Yabeta
tenente Neves trazendo consigo uma “grande porção de africanos boçais” e
um “língua” que declarou ter vindo com eles no mesmo barco, desembarcado
no dia 28 de janeiro na praia da Armação e terem ido para Serra d’Água em
1 de fevereiro. Feita essa apreensão, encaminhados e contados os referidos
africanos, verificou-se serem eles “perfeitamente boçais”, num total de 143 do
sexo masculino e 10 do sexo feminino. Terminados esses trabalhos, Azambuja
ordenou que fossem liberados os escravos ladinos que estavam sob custódia e
encerrou a comissão de que havia sido encarregado. Em seu relatório final ao
auditor de Marinha, considerou a diligência “delicada e difícil”:
[...] claro que houve desembarque mui recente na Praia da Armação perten-
cente a Ilha da Marambaia pelo lado interior, e que os africanos boçais assim
desembarcados foram passados para um casa e sítio próximo também em
pouca distancia da Praia de Fora e logo em seguida entranhados nas matas em
companhia de pessoas brancas das quais uma deixou cair um relógio, que entre
eles (africanos) havia gente do mar que deixaram um saco com roupas achados
no referido mato; e que por um momento procuraram resistir de longe, dando
alguns tiros, e que finalmente não pode efetuar a captura de pessoa alguma,
além dos africanos [...]. De todas as pessoas que me acompanharam na dili-
gencia, poderá Vossa Senhoria obter esclarecimentos de quem precisar, e por
intermédio do africano boçal que acima fiz menção de que servia de “língua”
dos outros, conseguirá Vossa Senhoria melhor orientar-se.
18
Daniela Yabeta
Armação depois de o patacho ter encalhado na Marambaia. Outro cadáver
examinado foi de um africano do sexo masculino ainda moço que tinha
uma perna quebrada devido a uma “coisa com que viera apreendido” e
muito provavelmente falecera em decorrência dessa fratura.
Mas não só os cadáveres dos africanos passavam por exames de perí-
cia. O patacho também precisava ser examinado em busca de sinais que
constituíssem presunção legal do destino das embarcações ao tráfico. O
juiz municipal, então, foi até o lugar chamado Galhota, onde o patacho
havia encalhado, e nomeou para servir de peritos o imediato Oliveira e
o segundo tenente José Emygdio Pereira. Após examinarem, declararam
que o navio estava aberto, encalhado, com o convés partido, que era co-
nhecidamente um patacho, que continha indícios claros de ter vindo da
costa da África pela quantidade de mantimentos que trazia, que encon-
traram uma bandeira nacional em farrapos e que não descobriram seu
nome. Sugeriram que o melhor que podia ser feito era incendiar os restos
da embarcação. O juiz, então, mandou lançar fogo a fim de inutilizá-la
definitivamente.
Nos relatórios dos oficiais percebemos também a presença de pescado-
res, que comumente eram apreendidos pelas autoridades para servirem
de guias durante a diligência na ilha. O tenente Xavier relata ter avistado
cinco canoas que “navegavam muito encostadas à praia da ilha”. Quando
interrogados, todos os tripulantes dessas canoas declararam que estavam
na Marambaia pescando e, sobre os desembarques, disseram que pela ma-
nhã viram quatro africanos correndo pela praia, “os quais não puderam
aprisionar” porque sumiram entrando pelas matas. O mesmo tenente
também interrogou um marinheiro apreendido que confessou, “por meio
de ameaças”, que o capitão do patacho chamava-se “Fulano de Tal Freire”,
o consignatário chamava-se Manoel Botelho e o navio transportava apro-
ximadamente 500 africanos. Informou, ainda, que ele escapara junto com
mais três indivíduos num bote, na véspera de o patacho encalhar e que “o
fim deles em terra era saber onde residia o consignatário e depois saber
onde este queria que desembarcassem os africanos”.
Em 11 de fevereiro, todos os apreendidos foram remetidos aos cui-
dados do auditor de Marinha da corte, José Baptista Lisboa. A divisão
foi feita da seguinte forma: 93 na corveta Bertioga, 88 no brigue escuna
Andorinha – incluindo “um pardinho recém-nascido”, e 369 no vapor de
guerra Golfinho. Foram também colocados à disposição do auditor Lisboa
os cinco presos: (1) Clemente Eleutério Freire, “que se julga o capitão”;
(2)Antônio Silveira Soares, “passageiro”; (3) José Rosa, “marinheiro”; (4)
José da Silva, “piloto”; (5) João Valentim, “liberto”.
Entre a documentação apreendida, foram enviadas aos cuidados do
Auditor: (1) uma carta dirigida a Clemente Eleutério Freire, datada de
2 de dezembro de 1850, em Benguela, e assinada por Silva; (2) uma car-
ta de liberdade passada em Luanda, no dia 9 de dezembro de 1846, por
54
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Daniela Yabeta
junto com outros oficiais para uma nova diligência em Jaguanum, ilha
vizinha a Marambaia, onde fizeram uma “completa exploração e não des-
cobriram nenhum africano boçal”. O segundo retornou da comissão em
18 de fevereiro tão doente quanto os africanos. Ardendo em febre, ele
contou em seu relatório que durante os dias em que ficou na ilha só se
alimentava de cana e milho, e era atacado constantemente por mosquitos
e marimbondos.
Pois S.S. que tem estado em fazendas ignora que há pretos que em pouco
tempo o aprendem, e outros que ainda com trinta anos de casa não falam
coisa alguma que se entenda? Ali mesmo na Marambaia posso eu apresen-
tar um comprado talvez há mais de 40 anos, por nome Domingos, de na-
ção Congo, hortelão (que foi dos Srs. Guedes), que não fala uma só palavra
do português, enquanto porem que outros tenho visto, comprados há dois
anos que falam melhor que muitos crioulos; logo, escolhendo-os S.S. em
porção, havia de achar muitos que falam em mal, pois ninguém ignora que
um africano quando chega as nossas fazendas é logo metido no meio dos
outros em os trabalhos de lavoura, falando apenas com um feitor que os
dirige, que quase sempre se escolhe da mesma nação para se entenderem,
e que por isso lhes leva muito tempo a aprender o nosso idioma: é pois essa
observação do Sr. Azambuja daqueles que não constituem grande prova
em favor do boçalismo, e muito principalmente sabendo eles que fingindo-
-se boçais seriam libertos e iriam para a sua terra.
Daniela Yabeta
de 12 de abril de 1832, regulamentava as diligências para a aplicação da lei
de 1831, determinando, em seu art. 9º:
Daniela Yabeta
Na contagem do auditor consta um africano a menos: 57 mulheres e
233 homens. Entre as mulheres, cinco eram crianças de 0 a 10 anos, seis
tinham entre 21 e 40 anos e a grande maioria, 46 africanas, eram jovens
entre 11 e 20 anos de idade. Já entre os homens, 34 eram crianças de 0
a 10 anos, 19 tinham entre 31 e 40 anos, 64 entre 21 e 30 anos e, assim
como no caso das mulheres, a grande maioria tinha entre 11 e 20 anos de
idade, num total de 113 jovens.19
Quanto ao que o auditor chamou de “nação” em seu relatório, observa-
mos, entre as mulheres, grande quantidade de Mossumbe (12), Mohambe
(11) e Monjolo (11). Encontramos também seis mulheres do Congo, cinco de
Cabinda e apenas uma de Benguela. Entre os homens o quadro é diferente.
Encontramos em maior número: Congo (45), Mossumbe (33) e Monjolo (20).
Aparecem também 12 de Cabinda, quatro de Moçambique e um identifica-
do como Mina. Todos foram depositados na Casa de Correção da Corte, onde
aguardavam a decisão do auditor, que deveria descobrir os criminosos e julgar,
em primeira instância, se estes africanos eram “verdadeiramente livres”, de
acordo com a lei de 7 de novembro de 1831.
Era muito comum que tripulantes pegos em flagrante e colocados na
condição de réus, buscassem respostas que negassem suas culpas, e não
foi diferente no caso do Jovem Maria. Mesmo assim, através de suas falas
podemos perceber um pouco das práticas de bordo comuns à tripulação
durante a travessia no atlântico (RODRIGUES, 2000, p. 17). Numa em-
barcação, podiam ser encontrados homens das mais diversas origens: eu-
ropeus, africanos, brasileiros, livres e escravos, jovens e velhos e o caso do
nosso iate em questão é um bom exemplo para mostrar essa diversidade.
O espanhol Nicolau Echevarrea, suspeito de ser o capitão do Jovem
Maria, respondeu em seu interrogatório que havia sido preso na altura
da Marambaia, a bordo do iate, que trazia africanos boçais e outros com-
panheiros de viagem. Afirmou ser apenas um passageiro e não saber a
quem pertencia o iate e sua respectiva “mercadoria”. Outro interrogado
foi Bartholomeu Colombo Lopez, espanhol de 26 anos, comerciante de
marfim e cera na cosa da África e suspeito de ser o piloto. Durante seu in-
terrogatório declarou que o iate havia sido apresado “nas águas próximas
a Marambaia”. Sobre as “mercadorias” informou que a embarcação tinha
saído da costa da África trazendo trezentos e poucos africanos, mas que
alguns faleceram durante a viagem devido à “febre da costa”. Disse ter
comprado sua passagem para a América do Norte ao capitão do Jovem
Maria e que não haviam seguido seu destino porque o capitão, o piloto
e mais três marinheiros africanos também morreram durante a viagem,
que durou aproximadamente 32 dias, motivo pelo qual procuraram logo
encontrar “terra”. Sobre a bagagem dos oficiais e marinheiros que mor-
reram, respondeu que “deixaram no mar com os cadáveres”. Dentro do
iate foi encontrado um baú com livros, relatos marítimos e uma instrução
19
Não consegui identificar a idade de três africanos.
60
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51
Daniela Yabeta
batizado Pompeu e o de número 290, batizado Alfredo. Ambos sabiam
falar português e foram interrogados separadamente.
Alfredo, um jovem cabinda de 18 anos, respondeu ao auditor que
aprendeu o idioma na costa da África com um espanhol chamado “d.
Firmino”. Ele e seus companheiros foram vendidos a esse espanhol depois
de terem sido “agarrados” por um preto. Foi o próprio “d. Firmino” quem
os entregou ao capitão do dito barco onde foram apreendidos. Quando o
auditor perguntou onde estavam os oficiais e marinheiros do iate que os
trouxera, o jovem respondeu que eles haviam sido presos junto com os
demais africanos e que nenhum deles era inglês. Declarou que estavam
a bordo do Jovem Maria, no momento da interdição, o capitão, o piloto,
o comandante, um filho do capitão e que, entre os marinheiros, “quatro
eram pretos”. Lisboa perguntou se ele seria capaz de reconhecer esses ho-
mens e ele respondeu que “reconhecia perfeitamente”. Os suspeitos fo-
ram chamados e colocados diante de Alfredo, que apontou um por um,
dizendo quem era quem, o que nos convida a repensar a disposição desses
africanos dentro do negreiro. Pompeu, também cabinda de 18 anos, de-
clarou que durante a viagem nenhuma “pessoa branca” havia morrido. O
auditor mandou, mais uma vez, que viesse a tripulação suspeita e, nova-
mente, todos foram reconhecidos: Nicolau Echevarrea – capitão; Joaquim
Gomes Marinho – filho do capitão; Bartolomeu Colombo Lopez – piloto;
Luiz Silva – contramestre; Roberto Blondes – cozinheiro; Jacome Solano
– servo de cozinha e marinheiro, e todos os outros marinheiros.
Depois do interrogatório, os africanos voltaram para a Casa de
Correção, onde continuaram aguardando o veredicto do auditor sobre a
possível liberdade deles, enquanto os suspeitos foram finalmente reco-
nhecidos como autores do crime de importação e condenados, em 11 de
fevereiro de 1851, por pirataria. O total da multa paga pelos oficias e ma-
rinheiros do Jovem Maria foi de aproximadamente quinhentos e noventa e
cinco mil contos de réis, depositados em cofres públicos. Entretanto, antes
de completarem 10 anos de prisão, em 1861, contaram com perdão impe-
rial e foram agraciados com a liberdade, sendo-lhes permitido inclusive,
que retornassem aos seus países.
1
Nilma Teixeira Accioli é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da
UFRJ.
2
Os resultados aqui apresentados se desdobraram em um prêmio de pesquisa da Biblioteca Nacio-
nal, publicado em 2011, com o titulo José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de
escravos no antigo Cabo Frio e, agora, em pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Progra-
ma de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, sob orientação de Flávio Gomes: Religiosi-
dade no Rio de Janeiro: 1870-1940. Cabula e Omolocô.
3
Relatório Alcoforado (IJ6 525) e Relação das pessoas implicadas no tráfico de africanos e em moe-
da falsa, elaborada conforme correspondência da polícia para o ministro de Estado da Justiça IJ6
56-472-480 (1864) Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
64
Quadro 4 – Desembarques em Cabo Frio (1844-1845)
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
4
Fontes: Arquivo Nacional, série Apelação Cível, caixa 556 G C – Processo José de Oliveira Gago; Silva
(1864); Aperj, registro no70, registros paroquiais de terras, N. Senhora Assumpção de Cabo Frio.
66
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
9
Ibid.
10
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, C.13.195 – Processo de apreensão do iate Rolha e de uma
garoupeira com 212 africanos pelo vapor de guerra Urânia no porto de Macaé.
11
Ibid.
69
A apreensão dos 212 africanos foi feita nas matas da fazenda a “uma
légua da praia” e, segundo a sentença, a autoridade do auditor “se deveria
limitar em caso tal a remeter ao chefe de polícia todos os indícios e pro-
vas”. Concluindo pela nulidade do processo, determinava: “condenam as
custas a municipalidade respectiva”.13
O comendador André Gonçalves da Graça imediatamente faz um re-
querimento solicitando “uma carta de sentença de recurso crime”, no que
foi prontamente atendido,
para com ela a ver de requerer tudo quanto for a bem de seu direito e jus-
tiça dando-a para isso a sua devida execução contra a Câmara Municipal
desta Cidade do Rio de Janeiro, e por seu requerimento ser justo e confor-
me as disposições de direito lha mandei dar e passar.14
12
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, C. 13.198 – Sentença cível em grau de apelação contra a Câma-
ra Municipal do Rio de Janeiro, passada a favor de André Gonçalves da Graça.
13
Ibid.
14
Ibid.
70
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
Cumpre-me dizer a VSª que esse Velho,que averigüei ser português,se acha
presentemente no Rio de Janeiro,não sei se na cidade, ou no interior,em
alguns dos lugares em que ele costuma passar meses.Há pouco veio a essa
cidade, servindo de piloto,a bordo do vapor Paraense que saiu do Porto
do Rio de Janeiro para este no dia primeiro de fevereiro próximo findo,
e d’agora regressou no mesmo vapor no dia 12 do mesmo mês.Já se em-
pregou no negócio de trafico de africanos e,em 1851, entrou arribado
15
Arquivo Nacional. Série Polícia. Relatório do tenente José da Silva Nazareth.
71
16
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, pacote IJ6 521 – Processos sobre tráfico, ofício de 20 de março
de 1856 do juiz de direito de Santos ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo.
17
Ibid.
72
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
18
Arquivo Nacional. Série Polícia. Nomeação de Luiz Munis Sampaio.
73
entramos num campo aberto, onde, numa eminência ficava a grande fa-
zenda de Campos Novos, ou antes Fazenda do Rei. Perto da casa do pro-
prietário, um capitão, os casebres dos negros se dispõem num quadrado
formando uma aldeola” (WIED-NEUWIED, 1858, p. 77).
O naturalista, após explorar anatureza próxima da fazenda, parte
em direção a São João da Barra, “atravessando uma imponente floresta
primitiva”.
No entanto é do naturalista Saint Hilaire, o relato mais detalhado so-
bre Campos Novos:
19
Depoimentos dos descendentes dos escravos da fazenda Campos Novos, em 2009.
20
Depoimentos realizados, em 2009, pelas comunidades remanescentes dos escravos da fazenda
Campos Novas.
76
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
São Jacinto foi usada como apoio da rota que saía da Ponta das
Emerências (atuais Praias de Tucuns e José Gonçalves, em Búzios), passa-
va pela Fazendinha, São Jacinto, Piraúna e Chegava em Campos Novos.21
Para a implantação do complexo agrícola, a presença de vários portos
para escoamento da produção era fundamental. Campos Novos estava em
situação privilegiada, próxima das praias de São João da Barra, da Barra do
Una e da praia do “Desembarque”, como era chamado o “Arpoador da Rasa”.
Os escravos desembarcados no Arpoador da Rasa, na Barra do Una e,
mais tarde, na praia das Emerências iam abastecer, através do traficante
José Gonçalves da Silva e seu sócio, José Antônio dos Guimarães, as fa-
zendas da região; do ponto de revenda em Campos Novos chegavam até
as áreas serranas mais próximas.
Para burlar a fiscalização, vários fatores foram favoráveis: o isolamen-
to da região, a presença de várias propriedades em poder de aliados e o
prestígio de José Gonçalves e de seu sócio, José Antônio dos Guimarães.
Os registros paroquiais de terras referentes à província de Nossa
Senhora da Assumpção de Cabo Frio mostram a posse de grandes áreas
pela família Gonçalves. Eles são citados registrando terras como proprie-
tários e também seus nomes são usados como referência para divisa das
terras de outros proprietários.
José Pereira Gonçalves registrou terras que iam de Barra do São
João até Campos Novos e faziam divisas com as terras de Antônio José
Gonçalves. Manuel Gonçalves possuía terras que iam de Barra do Una até
São Pedro da Aldeia. As terras da antiga fazenda Campos Novos estavam
assim sob controle dos Gonçalves, como podemos observar no quadro 7.
Quadro 7 – Terras sob controle dos Gonçalves na Região dos Lagos fluminense
Proprietário Localidade
Antônio Pereira Gonçalves Silva Campos Novos
Antônio Gonçalves Araçá
AntônioJosé Gonçalves Júnior Campos Novos(divisa com as terras de seu pai,AntônioJosé Gonçalves)
AntônioJosé Gonçalves Campos Novos até Barra do Una
Fortunato José Gonçalves Manguinhos
Francisco Gonçalves Canto do Peró e Baía Formosa até o Peró
Francisco José Gonçalves Campos Novos (divisa com terras de seu irmão,AntônioJosé Gonçalves Júnior)
José Gonçalves da Silva Baía Formosa
José Pereira Gonçalves Baía Formosa
José Pereira Gonçalves Barra de São João até Campos Novos
José Gonçalves Teixeira Bastos Campos Novos
Joaquim Gonçalves Terras no Porto
Manoel Gonçalves Coutinho Ferradura
Manoel Pereira Gonçalves Lima Retiro
Manoel Pereira Gonçalves Campos Novos
Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registros Paroquiais de Terras. Nossa Senhora da Assumpção de Cabo Frio.
21
Depoimentos colhidos em 2009.
77
22
Cartório do 1º Ofício de Justiça. Comarca de Cabo Frio. Livro de Notas no 189, fls. 10-19, 1966.
Escritura da fazenda Campos Novos.
79
23
Depoimentos dos afrodescendentes da Rasa, em Armação dos Búzios, e de Campos Novos, Cabo
Frio. Segundo os depoentes, a fazenda Retiro, principalmente, era usada para recuperação dos
mais debilitados.
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Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
Durante 14 anos publicou artigos sobre a “injustiça de que foi vítima”. Seu
caso provocou debates acalorados nas Câmaras de Deputados.
Um ofício do palácio de governo da província do Rio de Janeiro, data-
do de 26 de fevereiro de 1856, recomendava às autoridades de Cabo Frio,
em “cuja guarda estão os objetos que por apreensão ou qualquer outro
meio foram tirados de José Gonçalves da Silva em 1851 pelo então juiz,
lhesejam entregues,[assim como] o inventário dos objetos para verificar-
-lheso estado em que se acham”. Em outro parecer, o procurador-geral da
Coroa opina que “se entregasse ao suplicante os bens e mais petrechos
marítimos de que o governo se tem servido até agora.” Mas pelas cartas e
documentos, em sua maioria publicados no Jornal do Commercio, fica claro
queJosé Gonçalves não conseguiu reaver parte de seus bens.
Em 1860, sob o título “Heranças do Brasil”, questionou sobre a heran-
ça de seu antigo sócio, José Antônio dos Guimarães, “cuja fortuna os ces-
sionários de seus herdeiros se lembraram hoje de dizer e alegar perante
os tribunais do país que fora adquirida com o tráfico de africanos” (SILVA,
1864). Acusa o sócio de ter ficado com parte do seu patrimônio, cobra cen-
to e trinta contos de reis, que Guimarães lhe ficara devendo e, para reaver
parte do que possuía, que ficara com o sócio, entra com ação de embargo
contra Tereza Jesus dos Guimarães.
O tratamento dispensado ao traficante José Gonçalves, tomando por
base as matérias publicadas, não foi o mesmo dispensado ao seu sócio
JoséAntônio dos Guimarães e a outros traficantes, como André Gonçalves
da Graça, Joaquim Tomás de Faria e o poderoso Manuel Pinto da Fonseca
que, embora tendo sido deportado para sua terra, não teve o mesmo trata-
mento usado no caso de José Gonçalves. Os acordos políticos foram, pro-
vavelmente, determinantes na condução da repressão ao tráfico no litoral
norte fluminense como, inclusive, denunciou o próprio José Gonçalves
que, naturalmente, tinhaapoio político. Sua absolvição, apesar de as pro-
vas serem reais, sua longa campanha nos jornais e a maneira contundente
como atacava autoridades deixam isso evidente.
Um artigo publicado no Jornal do Commercio em 1860, comentando a
carta publicada por José Gonçalves, ressalta:
27
ALMANAQUE..., 1865, p. 462.
28
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Corte de Apelação, F. 20, no 129, M. 66, caixa 81, galeria C,
1867.
84
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense
29
Depoimentos gravados em 2009: Antônio da Silva Fernandes (Cabo Frio), Noel Trindade (Cabo
Frio),João dos Santos(Cabo Frio), Eva da Conceição Oliveira (Rasa, Búzios), Clarivaldina da
Costa(Rasa), Vanderléa da C. Benavenuto (Vila Verde, Búzios), José Luis da Costa (Rasa), Cassiano
de Oliveira (Rasa), Thiago Sousa (Campos Novos), Jovelino dos Santos Filho (Rasa) Marieta Con-
ceição (Campos Novos) e Valmir Rosa da Conceição (José Gonçalves, Búzios).
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José Luis trabalhou na fazenda Porto Velho quando era criança, “se-
meando capim para formar pastos”. Trabalhava “pagando dia para mo-
rar”, porque seu avô havia sido expulso das terras perto do Arpoador da
Rasa e fora morar na Vila Verde.
Com José Luis, que possui grande conhecimento sobre a região, esti-
ve nas ruínas da Piraúna e no “caminho antigo”, que ligava a ponta das
Emerências, passando pela Piraúna e chegava em Campos Novos.
Jovelino dos Santos Filho, 50 anos, é filho mais novo de Francisca
Benta da Costa, d. Chica, que era curandeira e faleceu muito idosa. Contou
que, quando era menino, trabalhou no Grotão (Fazendinha).Tinha 12
anos quando começou a trabalhar e saía da Fazendinha “pelo caminho
antigo”, passava pela Tauá e chegava em Campos Novos para encontrar as
irmãs, filhas do primeiro casamento de seu pai.
Na região da Fazendinha mora Vanderléa Conceição Benavenuto, que
ocupa as terras que seu avô, Félix Benavenuto, que lutou para preservar.
Segundo Vanderléa, seu avô nasceu na Fazendinha e era filho de escravos.
Quando o dono da Porto Velho obrigou os negros a saírem das terras que
havia comprado e substituiu as lavouras por pastos, Felix resistiu às ame-
aças. Os outros negros saíram das terras e foram para as terras que hoje
são o bairro Jardim Esperança.
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fortes, que eram usados como turmeiros, e os “de canela fina”, bons para
a lavoura, são constantes na região.
Antônio traçou a rota que, segundo contava sua avó, os africanos fa-
ziam, após o desembarque, para chegarem a Campos Novos:“atravessavam
a ponte do Genipapo, sobre o rio Una, seguiam a estrada da Flecheira e
chegavam a Campos Novos. Os que estavam muito fracos iam de barco
pelo canal do Una”.
O canal do Una foi aberto no século XVIII pelos jesuítas, para escoa-
mento da produção de Campos Novos.
Outro depoimento sobre o desembarque na Barra do Una foi de Thiago
Sousa. Sua família vivia ali e era uma comunidade de negros. Sousa lem-
bra de que no local havia ruínas de uma fazenda de cujo nome ele não
se recorda, e que sua avó viera da África: “era uma negrinha bem peque-
nininha e bem pretinha, tão pretinha que para ver os olhos dela tinha
que chegar bem perto; nunca usou sapato e falava bem embolado, nunca
aprendeu falar direito”. Quando era criança sua avó o mandava ir ao mato
buscar “pente de macaco”, uma vagem que ela usava como pente. A avó de
Sousa contava que havia desembarcado no Una e“ficou por ali mesmo”.
A família de Sousa saiu da Barra do Una quando ele estava com “uns
10 anos”. A Marinha retirou toda a comunidade do local elevou “em ca-
minhões” para a atual estrada de Campos Novos. Conta que “na área da
estação de rádio da Marinha dá para ver os restos da ponte do Genipapo
e da antiga fazenda. Mas a Marinha proíbe a entrada no local”. Sousa e a
família sobrevivem da venda de artesanato, feito de cipó e taboa, que ele
aprendeu com a avó.
Estive na Barra do Una, pelo lado em que o rio encontra o mar, e pude
ver detalhes do que foi relatado por Antônio e por Sousa. A estrada da
Flecheira, apesar das péssimas condições de acesso, quando seguida leva
até as proximidades de Campos Novos. O canal do Una, aberto pelos jesu-
ítas, está em área de Marinha e dele só pode ser visto um pequeno trecho.
A população das proximidades do Una, com predominância de negros,
trabalha em Cabo Frio e Búzios, mas ainda existem pescadores. Algumas
famílias moradoras em Maria Joaquina, Rasa, Campos Novos, Botafogo e
Angelim vão até as proximidades da Barra do Una “pegar gaiamu”. Nas mi-
nhas idas ao local pude observar a atividade que o príncipe Maximiliano
de Wied-Neuwied, que esteve na região no século XIX, descreveu:
Camilla Agostini2
Reza a lenda, que ali vivia um rico fazendeiro, detentor de uma grande
quantidade de escravos, de nome Joaquim Pedro. Em troca de riqueza e
prosperidade, fez um pacto com o “coisa ruim” prendendo-o em uma gar-
rafa. Porém, certo dia enquanto o fazendeiro negociava mercadorias no
canal de São Sebastião, sua mulher, desavisada, abre a garrafa libertan-
do o ser das trevas e consequentemente acarretando a morte de Joaquim
Pedro. Seu corpo é levado à sede da fazenda e ao cair da noite, em meio ao
1
Agradeço a Wagner Bornal por ter disponibilizado o sítio e seu acervo para a referida pesquisa; à
historiadora Aline Mazza pela indicação de muitos dos documentos citados neste texto; e a Clayton
Galdino pelo suporte na pesquisa. Agradeço, ainda, todo o apoio de Hebe Mattos, Marcos André
Torres de Souza e Luís Claudio Pereira Symanski ao longo do trabalho.
2
Camilla Agostini é doutora UFF, bolsista CNPq (POSDOC PPGH-UFF).
92
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
3
Cúria de Caraguatatuba. Certidão de casamento, 26 de maio de 1831; Arquivo Público do Estado de
São Paulo (Apesp), maços populacionais, São Sebastião, 1829, microfilme – rolo 186.
93
Camilla Agostini
negócios. É interessante que, no primeiro registro, quando apenas o casal
aparece, ambos são referidos como pardos; já no segundo, como brancos.
Ao acompanhar o registro nos maços populacionais de inúmeras pes-
soas no tempo, pode-se perceber que as referências à cor não eram sempre
coerentes, sendo, por vezes, uma pessoa designada como parda e, poste-
riormente, como branca (ou vice-versa), ou parda e negra (nunca branca
e negra), sugerindo uma dificuldade em definir a cor da pele de uma po-
pulação mestiça. Portanto, não é uma exceção o caso de Joaquim Pedro e
Ana da Cunha, mas não deixa de ser interessante notar seu “embranque-
cimento” paralelo ao seu enriquecimento.
Com 10 escravos em 18364 e 12 em 1844,5 mas apenas cinco deles
disponíveis para o trabalho na roça (entre os quais uma criança), Joaquim
Pedro não parecia preparado para a produção da cana nem do café, ao
menos não para uma produção em larga ou mesmo média escala. Em
1836, os escravos de Joaquim Pedro eram todos africanos, à exceção de
uma escrava que tinha apenas 4 anos. Em 1844, também quase todos os
seus escravos eram africanos, sendo apenas três crianças naturais de São
Sebastião.
A população escrava de São Sebastião pode ser medida através dos
mais de 2 mil escravos registrados na matrícula de escravos de 1844, exi-
gida por lei em função das dificuldades de controle de arrecadação da meia
siza.6 A maioria dos escravos da cidade era de crioulos e não de africanos,
sendo estes primeiros cerca de 63% do total.
apenas três deles parecem ser as mesmas pessoas, sendo todos os outros
novos africanos. Assim, africanidade e rotatividade parecem ter sido ca-
racterísticas do plantel de Joaquim Pedro na primeira metade do século
XIX, em tempos de ilegalidade do tráfico.
Cabe uma observação sobre o tempo de ocupação do sítio, que também
apresenta a maioria dos seus vestígios produzidos na primeira metade
do século XIX. A partir da cultura material exumada com as escavações
arqueológicas, mais particularmente das louças decoradas, é possível
estabelecer uma data média de ocupação para o sítio, uma vez que suas
técnicas de decoração, aplicação de diferentes esmaltes, pastas e marcas
de fabricantes são passíveis de datação. Para tal aplicou-se a fórmula de
South, tal como adaptada por Lima et al (1989).
A fórmula de South considera que cada tipo de louça (considerando
os elementos acima mencionados) tem uma data inicial de produção, um
pico, até a interrupção de sua manufatura. Relaciona, ainda, a frequência
de fragmentos de cada tipo de louça com sua data média de produção. O
método aperfeiçoado por Lima et al (1989) considera o número mínimo
de peças (NMP) e não o número de fragmentos na contagem do material.
Aplicando a fórmula para obtenção de uma data média para o sítio São
Francisco a partir de suas louças decoradas temos os números apresenta-
dos na tabela 1.
Tabela 1 – Obtenção de data média para Sîtio São Francisco a partir das louças decoradas
Período de produção Data média NMP Total
1830-1860 1.845 66 121.770
1845-1860 1852,5 2 3.705
1810-1860 1835 2 3.670
1845-1900 1872,5 26 48.685
1840-1910 1875 11 20.625
1780-1860 1820 7 12.740
1779-1860 1819,5 9 16.375,5
1805-1860 1832,5 8 14.660
1828-1864 1846 4 7.384
1828-1856 1842 7 12.894
1775-1840 1807,5 17 30.727,5
1775-1860 1817,5 47 85.422,5
1778-1840 1809 1 1.809
1783-1860 1821,5 1 1.821,5
Total 208 382.289
382.289 ÷ 208 = 1837,93 1838.
O ano de 1838 seria quase no meio do período do tráfico ilegal de escravos, que teria dinamizado as regiões litorâneas mais afas-
tadas dos portos oficiais. Ilha Bela e São Sebastião, entre tantos outros ancoradouros, foram escolhidas para o desembarque ilícito
de africanos.
Camilla Agostini
Cigarras), vizinha do local do sítio. Infelizmente não foi possível obter
qualquer outra informação sobre as características do negócio; apenas
que o imposto da casa seria de doze mil e oitocentos réis. Além disso, pos-
suía um número de escravos semelhante a quem “vivia de vender negros”,
como era o caso de Joaquim Ignácio da Silva, que possuía 13 escravos,7
ou de pessoas ligadas diretamente ao recebimento de africanos no lito-
ral, como foi relatado por africanos desembarcados da escuna Relâmpago,
que, quando capturados disseram que “[...] foram expostos (na praia) pelo
meio dia e daí caminharam de noite a uma casa grande no meio do mato
onde havia um homem branco que saía a cavalo e outros brancos e 10
pretos ladinos [...]” (RODRIGUES, 2000, p. 189).
No ano de 1856, quando as propriedades que já possuíam título legal
(sesmaria, compra, herança) ou que tinham posse comprovada estavam
sendo normatizadas e registradas, Joaquim José Pedro de Souza aparece
citado por três vizinhos: Manoel Gonçalves, José Miguel e José Joaquim
Correa, todos do bairro São Francisco, praia das Figueiras, local do sítio.8
É interessante notar que o próprio Joaquim Pedro não registra suas ter-
ras; sabemos delas apenas pela presença de seus vizinhos. Por que viver
em um local de difícil acesso, no alto de um morro, escondido em meio à
vegetação? A alta rotatividade e o alto índice de africanidade da pequena
escravaria de Joaquim Pedro, junto à posição estratégica da implantação
paisagística de sua propriedade, na primeira metade do século XIX, no
contexto dos arredores da cidade de São Sebastião, sugerem uma situação
de clandestinidade, provavelmente ligada ao tráfico ilegal de africanos.
Estaria ele, assim, fora da norma em 1856, quando apenas remanescentes
do tráfico clandestino atuavam? Teria sido Joaquim Pedro um dos últi-
mos intermediários a deixar o ilícito negócio do tráfico de escravos?
Boccia e Malerbi (1977) defendem que o tráfico não teria cessado por
completo no ano de 1850, continuando a ocorrer desembarques clandes-
tinos ao longo da década de 1850. Foram identificados, inclusive, esforços
para a apreensão do norte-americano Guilherme Forest nos anos de 1869
e 1870. Nesse contexto, a chegada de africanos ao litoral brasileiro era
seguida de um rápido ocultamento dos mesmos na mata, como explicam
Boccia e Malerbi:
Uma vez verificados os desembarques, quase sempre com auxílio das po-
pulações praianas, eram os negros encaminhados, por trilhos pouco fre-
quentados, ou picadas especialmente abertas, para o centro das matas,
onde permaneciam ocultos a fim de serem iniciados na língua portuguesa
e assim, mais facilmente, poderem ser tomados por ladinos. (BOCCIA;
MALERBI, 1977, p. 353)
7
Apesp. Maços populacionais para a cidade de São Sebastião, 1800-1850.
8
Apesp. C08558 – Tesouro-Sizas 1840-1874, maço 406/5, p. 46v.
96
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
[...] respondeu que é natural de Nagoá, que veio de sua terra em um bar-
co a cinco meses mais ou menos, que com uma porção de pretos buçaes
foram desembarcados uma noite em uma praia cujo nome ignora, que foi
conduzido com outros muitos para o centro das matas como quinze dias,
e que trabalharam alguns dias em colheita de café, e que de noite eram
recolhidos em um arranchamento no centro do mato, como dois meses, e
que depois fugiu com mais três companheiros, e que deles se perdeu: con-
tinuando a andar nos matos e passando alguns rios afinal foi pegado por
quem o apresentou. (BOCCIA; MALERBI, 1977, p. 353)
Camilla Agostini
Paraíba, onde prosperavam as fazendas de café. Dessa maneira, o sítio São
Francisco apresenta a possibilidade de ter sido um desses locais interna-
dos nas matas, onde africanos recém-chegados ocultamente se restabele-
ciam, aprendiam a língua e aprendiam o ofício a ser executado no interior,
seu destino final.
Nessa história cabe aprofundar, ainda, o forte aspecto cerimonial e
de intensa sociabilidade que se mostra presente no complexo principal,
ficando o estudo do setor periférico com as três unidades habitacionais
a ser aprofundado em outro momento. O primeiro elemento que chama
a atenção são as ruínas da própria capela. Essa estrutura foi identificada
como tal por Bornal (2008, p. 260) em função de inúmeros elementos que
sugerem que a construção tinha um aspecto diferenciado e privilegiado.
A construção, que deveria ter tido cobertura de telhas de capa e canal e
paredes de pau a pique, deve ter tido vidraças (pelos inúmeros fragmentos
de vidro plano encontrados no local), “[...] e cravos fixados nas bases das
colunas, juntamente com evidências de encaixes de vigas, formando ‘re-
baixos’ na argamassa, permitem inferir que o piso interno era composto
por um tabuado apoiado em barrotes de madeira, aspectos que segura-
mente atribuíam características diferenciais à construção”.
À frente da estrutura encontrava-se um pátio de ardósia, material não
encontrado em nenhum outro local do sítio, que deveria conferir uma es-
tética e apuro ao entorno da construção. Além desses vestígios, no outro
extremo do pátio de ardósia pode-se encontrar um nicho com bases late-
rais que sugerem pedestais para a colocação de imagens. O nicho, que é
todo decorado com embrechamento de conchas, possui, ainda, um nega-
tivo em forma de cálice, que deveria ser alimentado por fluxo de água con-
tínuo, caracterizando-se possivelmente como uma fonte ou pia batismal.
O grande pátio de pedras, no mais baixo patamar, por sua vez, não
apresenta viabilidade para a secagem de grãos como o café, por haver sul-
cos entre as pedras. O muro de arrimo que constitui a parede do referido
patamar é todo decorado com inúmeros símbolos em torno de barbacãs,
como as imagens de uma rã, de uma capela, da letra “E”, de uma figura
humana à semelhança de um arqueiro grego e de uma rosácea, todos em
baixo relevo em argamassa de cal e concha. Um pátio que possibilitava
mais a sociabilidade e a expressão simbólica do que a produção.
Outro aspecto indicador de alta sociabilidade é o grande número de ca-
chimbos encontrados, quando comparado a outras unidades domésticas
oitocentistas. Com o estudo de coleções procedentes da escavação de 17
sítios arqueológicos (AGOSTINI, 1997), pode-se notar que em 14 deles
foram encontrados menos de seis cachimbos, sendo as outras três amos-
tras mais significativas – 13, 24 e 91 peças.
Sítios como a fazenda da Mandioca, localizado em Raiz da Serra de
Petrópolis (RJ), cuja coleção total de objetos recuperados com a escavação
pode ser considerada expressiva em quantidade e qualidade, nos indicam
a frequência de cachimbos em contextos domésticos do século XIX com-
parada com a dimensão da coleção total e considerando seu contexto de-
posicional. Neste sítio foram identificados 24 cachimbos em meio à tralha
doméstica de uma casa de vivenda rural, a antiga fazenda da Mandioca, de
Langsdorf. Já o sítio Solar Grandjean de Montigny, localizado no bairro
da Gávea, na cidade do Rio de Janeiro, caracterizado no século XIX como
uma chácara em meio semirrural, apresentou um total de 13 cachimbos,
também em meio aos vestígios senhoriais.
As outras 14 coleções, com até seis peças, são procedentes de diferen-
tes contextos, sendo estes rurais, semirrurais, urbanos e de quilombos
no Sudeste, em sua maioria contextualizados no século XIX. Entre as
coleções procedentes de quilombos foram identificados dois cachimbos
procedentes do quilombo do Ambrósio e quatro do quilombo do Guinda,
ambos em Minas Gerais.
Já a coleção que apresenta cerca de 90 cachimbos refere-se justamente
ao complexo do sítio São Francisco. Também encontrados em meio aos
vestígios associados à cozinha da casa de vivenda senhorial, atrás da cape-
la, apresentam-se em quantidade excepcionalmente grande se compara-
dos à amostra total de objetos recuperados com as escavações. Ora, o que
é a prática do fumo – além da possibilidade do vício – senão um momento
de pausa, repouso ou sociabilidade? Sem contar com a possibilidade de
uso ritual ou religioso.
Também em meio ao lixo da casa principal, nos fundos da capela, fo-
ram encontrados cabos de frigideira com formas particulares. Uma delas
é a forma de figa, sinal de fertilidade, sorte ou insulto.
99
Camilla Agostini
Fonte: foto da autora.
Camilla Agostini
para garantir assim casamento (BRANDÃO, 1953, p. 13, 14; CASCUDO,
2002, p. 264; OTÁVIO, 2004, p. 39).
Ainda não foi possível encontrar esta representação fálica associada
a São Gonçalo no Brasil; apenas a associação do santo à fertilidade e à
esperança por casamento. Bomfim (2006, p. 49), entre outros autores,
menciona a “exaltação sexual” no primeiro registro ao culto a São Gonçalo
no Brasil, feito pelo viajante francês Gentil de la Barbinais, em 1718, na
Bahia.10
Gilberto Freyre (1995, p. 47, 248) faz referência ao culto a São Gonçalo
no Brasil entre os santos casamenteiros, como São João ou Santo Antônio,
como o mais livre e sensual. As práticas incluem “até safadezas e porca-
rias”. O autor chega a mencionar o “costume das mulheres estéreis de
se friccionarem ‘desnudadas’, pelas pernas da imagem jacente do Bem-
Aventurado [...]”, assim como as práticas de dança e de namoro dentro
das igrejas.
Beatriz Catão C. Santos (2004) entende que São Gonçalo é um san-
to dos humildes, e ainda de pessoas ligadas ao mar, como marinheiros,
pescadores etc. Há autores que dizem, ainda, ser o santo das prostitutas
(BONFIM, 2006; SANTOS, 2006; SANTANA, 2008). Em sermão, o padre
Antônio Vieira chega a referir-se ao culto a São Gonçalo como algo dis-
perso: “[...] nas remotíssimas terras da África, da Ásia e desta América
onde apenas há lugar, que não tenha levantado templos, ou altares a S.
Gonçalo, só com a invocação de seu nome [...]” (SANTOS, 2006, p. 301).
Gilberto Freyre (1995) indica que festas de fecundidade, como a de
São Gonçalo, teriam sido associadas também à proteção da agricultura,
à fertilidade da terra. Aqui cabe a pergunta que faz Laura Mello e Souza,
sugerindo que os escravos não teriam interesse em cultos de fertilidade
ou de fartura na lavoura: “para que pedir fecundidade às mulheres se, na
terra do cativeiro, elas geravam bebês escravos? Como solicitar aos deu-
ses boas colheitas numa agricultura que beneficiava os brancos, que se
voltava para o comércio externo e não para subsistência?” Completando
seu argumento, a autora ressalta que as religiões africanas recém-adapta-
das em terras brasileiras teriam colocado de lado as divindades proteto-
ras da agricultura, valorizando, contudo, as da guerra (Ogum), da justiça
(Xangô), da vingança (Exu) (SOUZA, 1995).
Os cabos de frigideira, como visto, parecem ter sido associados a cultos
de fertilidade, fossem relacionados ou não a São Gonçalo. As proximida-
des de uma capela no local onde foram encontrados os cabos fortalecem
a sugestão do santo. No entanto, quem seriam os devotos nesse escuso
espaço que une o profano e o sagrado em celebrações, considerando as
ponderações de Laura Mello e Souza sobre escravos estarem participando
de ritos de fertilidade, fosse de homens e mulheres, fosse da terra?
10
Consulte, também, Freyre (1995, p. 249).
102
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
Camilla Agostini
A hipótese de a capela do sítio São Francisco estar associada a cultos
a São Gonçalo nos leva a perguntar por que haveria outra capela devota
ao mesmo santo em São Sebastião. A localização do sítio, de difícil aces-
so, escondida em meio à vegetação, somada às representações fálicas su-
gerem talvez um local para cerimônias não tão oficiais, mas “oficiosas”.
A associação desses cabos de frigideira com a capela poderia sugerir um
local para o culto a São Gonçalo, com a mesma relação com o consumo de
comida que foi verificado em Portugal. Se o compromisso da irmandade
nos oferece dados sobre seus irmãos, no sítio São Francisco as digitais dos
participantes de festividades na capela são mais difíceis de serem identi-
ficadas. Afinal apresenta-se uma situação aparentemente contraditória:
libertos e cativos em irmandades “decentes” e normatizadas na cidade, e
um culto português “oficioso” escondido nas matas.
Esta inversão pode ser inferida no contexto particular em que é identi-
ficada. As cidades litorâneas na primeira metade do século XIX, mais par-
ticularmente a região de São Sebastião, em muito estiveram envolvidas
na clandestinidade do tráfico transatlântico de escravos, dada a partir de
1831 e confirmada após 1850. Os habitantes do litoral, fossem interme-
diários do tráfico, como parece ter sido Joaquim Pedro, fossem pessoas
livres e pobres que ajudavam ou mesmo calavam sobre os desembarques,
viviam, de certa maneira como ilegais e fortemente entrelaçados à dinâ-
mica cultural atlântica. Por outro lado, escravos e libertos já estabelecidos
em terras brasileiras buscavam formas de inclusão, entre elas legitimando
um espaço social nas irmandades religiosas.
Isso não quer dizer que africanos e seus descendentes não estivessem
associados também aos cultos “oficiosos” nas matas da propriedade de
Joaquim Pedro. Este entrelaçamento permitido pela dinâmica atlântica
pode ser inferido a partir de outro achado. Parte do piso da casa de viven-
da no complexo principal foi escavada. Ao que parece, não foi encontrado
nenhum vestígio no piso, a não ser sinais de ocupação e do telhado sobre
o piso. A exceção foi um conjunto de objetos, encontrados na fundação
da casa (dentro do piso), em um canto, ao lado do que pode ter sido uma
porta. Trata-se de uma pedra polida, semelhante a um machado indígena
quebrado e duas chaves, que, segundo a pessoa que retirou os objetos du-
rante a escavação, pareciam estar em forma de cruz, estando uma deitada
e a outra em pé.
104
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
Figura 5 – Pedra polida e duas chaves encontradas no canto da casa, em sua fundação
Ou, ainda, os casos de feitiços enterrados que eram desfeitos por es-
pecialistas identificados por Laura de Mello e Souza, como Domingos
Álvares, escravo natural da costa da Mina, que residiu no Rio de Janeiro
muitos anos. Ele foi preso pela inquisição, acusado de feitiçaria, e foi de-
gredado para o Algarve, onde não parou com suas práticas. Entre elas,
Domingos era especialista em desenterrar objetos, como uma prática de
contrafeitiço. O enterramento de “cabaças cheias de feitiço” era, assim,
uma estratégia para emanação de efeitos maléficos contra uma pessoa.
Como foi o caso de cabaças com “[...] cabelos, ossos, feitiços que, desco-
bertos, fizeram certa vez com que caísse no chão feito morto, espécie de
pára-raio dos efeitos maléficos emanados da cabaça” (SOUZA, 1995, p.
164-172).
Não apenas africanos, no entanto, envolviam-se com malefícios por
meio de feitiços enterrados, como foi o caso da índia Sabina, considerada
105
Camilla Agostini
uma contrafeiticeira nos tempos coloniais. Não apenas objetos enterra-
dos no chão, mas também nas paredes ela os encontrava, como foi o caso
de um feitiço encontrado dentro da parede do palácio do governador do
Grão-Pará, que se encontrava doente (SOUZA, 1995, p. 174, 175).
No entanto, pesquisadores das religiões afro-brasileiras oferecem in-
formações ricas para uma interpretação diferente desses achados. A an-
tropóloga Luciana Duccini menciona que na fundação de um terreiro de
candomblé, da roça ou do barracão, se enterram vasilhas de barro com
moedas antigas dentro, entre outros objetos.11 É o chamado “axé de fun-
damento”. A maneira como os objetos são enterrados e detalhes sobre
eles são fundamentos secretos que não podem ser revelados, colocando
em risco a segurança do terreiro. Da mesma forma, a pesquisadora Carina
Guimarães nota que nas fundações dos centros de umbanda também são
enterrados diversos objetos, sendo o fundamento do terreiro sua força de
proteção.12 Detalhes específicos sobre o assunto, especialmente quando
reportados a terreiros específicos são desrespeitosos, por anunciarem se-
gredos de seus fundamentos sagrados. Portanto atenho-me a essas refe-
rências para seguir com os achados do sítio São Francisco.
As chaves podem ter uma conotação de segurança, tranca, proteção.
Postas sob o piso da casa, em forma de cruz, remetem a um elemento fun-
damental da cosmologia centroafricana, de representação do encontro
do mundo dos vivos com o mundo dos mortos. Robert Farris Thompson
(1984, p. 108) mostra como o cosmograma bakongo (cuja forma simplifi-
cada é a cruz ou o X) era marcado no solo com o propósito de mediação do
poder espiritual entre os mundos. Segundo o autor, uma pessoa que ativa
esse sistema, ou cruza a fronteira, se situa entre a vida e a morte, evocan-
do o julgamento de Deus e dos mortos a seu respeito.
Ainda com relação à composição encontrada sob o piso da casa princi-
pal, vale uma observação sobre a pedra quebrada, que aparenta ser de ma-
chado indígena. Robert Slenes (2002, p. 186, 187) mostrou como rochas
de formas exóticas eram significativas para certos grupos procedentes da
África central, que compartilhavam certas orientações cognitivas ou pa-
radigmas. O autor, a partir dos trabalhos de Wyatt MacGaffey e Craemer,
Vansina e Fox, mostra como certos grupos procedentes de regiões próxi-
mas ao litoral, na África centro-ocidental, compartilhavam semelhanças
de visão de mundo, além de sistemas de linhagem, princípios como o de
“ventura-desventura”, tendência à flexibilidade religiosa e reinterpreta-
ção de símbolos e rituais estrangeiros, além de possuírem línguas de raiz
Bantu, não tão diferentes umas das outras.
Um desses elementos compartilhados seria a existência de espíritos
locais, que podiam ou não estar associados a pessoas que morreram, e
que morreram de novo no mundo dos mortos, tornando-se espíritos da
11
Informação obtida em contato pessoal com a pesquisadora Luciana Duccini, realizado em 2009.
12
Informação obtida em contato pessoal com a pesquisadora Carina Guimarães, realizado em 2009.
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Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
Camilla Agostini
como um intermediário entre o Vale do Paraíba e o além-mar. Assim, é
visto não apenas como um objeto em si mesmo, mas como integrante de
uma dinâmica cultural atlântica, que existia dentro da economia-mundo
em formação.
Para pensar a diáspora, Stuart Hall (2009) sugere o uso de conceitos
elaborados por Mary Louise Pratt, como o de “zona de contato”, que trata
da aproximação espacial e temporal de sujeitos anteriormente separados
por motivos geográficos ou históricos. Neste processo, pode-se entender
esses encontros através da noção de “transculturação” – conceito também
elaborado por Pratt – que trata do contato de grupos subordinados com
uma cultura dominante. Neste contato, os grupos subordinados selecio-
nam e inventam a partir do repertório dominante. Acrescenta-se ao deba-
te que, na verdade, esta é uma via de mão dupla, em que a cultura domi-
nante também interpreta, e por vezes se apropria de, códigos subalternos.
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
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Capítulo 5
Hebe Mattos
Martha Abreu
14
RUGENDAS, 1970, prancha 83.
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação
122
Referências
Referências
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trada imperial Mangaratiba – São João Marcos. Rio de Janeiro: Fundação
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