Diáspora Negra e Lugares de Memória

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Hebe Mattos

(Organizadoras)

Niterói, RJ – 2013
Copyright © 2013 by Hebe Mattos
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP


M921 Diáspora negra e lugares de memória: A história oculta das propriedades voltadas para o
tráfico clandestino de escravos no Brasil imperial / Hebe Mattos (organizadora). – Niterói, 2012.
132 p. 23 cm. (Coleção Terra, 5)
Bibliografias
ISBN 978-85-228-0851-9
1. História. 2. Memória. I. Mattos, Hebe.
CDD 900

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


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Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Livia Reis
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos

Editora filiada à
Apresentação ........................................................................................................7

Capítulo 1

..............9
Thiago Campos Pessoa Lourenço

Capítulo 2

............................37
Daniela Yabeta

Capítulo 3

...........63
Nilma Teixeira Accioli

Capítulo 4

................................................
Camilla Agostini

Capítulo 5

............................................................................
Hebe Mattos e Martha Abreu

..........................................................................................................................
Apresentação

Há mais de 18 anos venho pesquisado a memória coletiva das comu-


nidades negras do litoral do Sudeste que pleiteiam ser identificadas como
remanescentes de quilombo nos termos do art. 68 da Constituição de
1988. O que de mais surpreendente descobri nesses anos de pesquisa foi
a presença de indícios consistentes de uma tradição oral ligada à existên-
cia de propriedades rurais voltadas para a intermediação do tráfico clan-
destino de escravos no contexto da expansão cafeeira da primeira metade
do século XIX. Com esta hipótese em mente, três dos meus orientandos
começaram a pesquisar casos específicos do funcionamento de tais pro-
priedades no século XIX. Camilla Agostini (2011), doutora em história
com formação em arqueologia, pesquisou o caso de um sítio arqueológico
no litoral norte paulista.Nilma Acciolly (2009) desenvolveu seu trabalho
de conclusão do curso de especialização em história do Rio de Janeiro com
o caso da fazenda Campos Novos, na Região dos Lagos, presente na me-
mória dos vários grupos classificados como remanescentes de quilombos
hoje existentes na região. E Thiago Campos Pessoa Lourenço defendeu
seu mestrado com ênfase nas relações entre a família Breves e o comércio
ilegal de africanos, destacando o complexo estruturado para o tráfico nas
antigas fazendas do Bracuí (propriedade de José de Souza Breves) e da
Marambaia (propriedade de seu irmão Joaquim José de Souza Breves).
Descendentes dos trabalhadores escravizados nas duas fazendas estão
na origem das atuais comunidades remanescentes de quilombo do Bracuí
e da Marambaia. Para evitar confusão entre os nomes dos dois irmãos
quase homônimos, personagens de vários capítulos do livro, utilizaremos
daqui por diante apenas os seus primeiros nomes, José de Souza Breves
(proprietário do Bracuí) e Joaquim de Souza Breves (proprietário da
Marambaia).
Paralelamente, a pesquisa desenvolvida sob coordenação de José
Mauricio Arruti (2003b) para o relatório de identificação do quilombo
da Marambaia e, depois, no Observatório Quilombola da ONG Koinonia,
onde foi estagiária Daniela Yabeta, atualmente doutoranda do PPGH/
UFF sob minha orientação, também fez emergir informações sobre o trá-
fico clandestino na Marambaia e suas ligações com a memória da comuni-
dade remanescente que hoje habita a região. Daniela Yabeta (2009) defen-
deu uma dissertação de mestrado emhistória na Unirio sobre o tema,com
orientação de Keila Grinberg, em 2005.
O presente livro reúne os resultados desses trabalhos de pesquisa pa-
ralelos, mas convergentes, para abordar aspecto quase desconhecido da
história social da escravidão atlântica no século XIX: as fazendas do trá-
fico clandestino. Utilizando tradição oral e arqueologia como fontes de
pesquisa, em associação com as fontes escritas, os ensaios aqui reunidos
ajudam a revelar uma história até há pouco tempo intencionalmente es-
quecida pela memória nacional. O capítulo final, escrito por mim em con-
junto com Martha Abreu, aborda o conhecimento histórico que surge des-
sa memória e os novos sentidos que as antigas narrativas sobre a prática
do comércio ilegal de africanos escravizados adquirem no novo contexto.
Narrativas que se transformam em dever de memória, redimensionando
seus usos políticos contemporâneos.
Berlim, 20 de junho de 2012
Capítulo 1

Thiago Campos Pessoa Lourenço1

A história que eu sei [...] é que [...] proibiram a venda dos escravos para cá.
Mas, não sei como é que fizeram, [...] e arrumaram uns escravos para tra-
zer pra cá, para vender novamente. Raptaram escravo lá, encheram o navio
e trouxeram pra cá. Mas veio até aqui, numa ilha com um nome... Ilha de
Cunhambebe. Uma ilha que tem pra trás [...] O barco entrava lá, passava
pertinho [...] e trazia o pessoal para cá [...]. 2 (Manoel Moraes, morador de
Santa Rita do Bracuí)3

Manoel Moraes há mais de 80 anos vive nas antigas terras da fazenda


de Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis. Seus avós maternos e pater-
nos foram escravos do comendador José de Souza Breves. “Preto Forro”,
avô paterno, e Antônio Joaquim da Silva, pai de sua mãe, viveram os úl-
timos anos da escravidão na fazenda. Ambos receberam suas alforrias no
início de 1880 e foram citados como legatários da antiga fazenda no tes-
tamento do comendador, escrito em 1877. Muito provavelmente foram
seus avós que perpetuaram as histórias ao longo dos anos, transmitidas
de geração a geração, em um processo de rememoração em que o histó-
rico da fazenda se confundia com as próprias trajetórias familiares dos
seus moradores. No caso do sr. Manoel Moraes, as histórias da escravidão
e do tráfico narram também lembranças de família muito vívidas e com

1
Thiago Campos Pessoa Lourenço é doutorando em história pela UFF e bolsista CNPq. Professor da
rede pública de ensino do Rio de Janeiro.
2
Sobre pesquisas arqueológicas evidenciando o naufrágio de negreiros exatamente na região apon-
tada por Manoel Moraes, ver caderno de imagens anexo a este trabalho e o documentário Passados
presentes: memória negra no sul fluminense, de Hebe Mattos e Martha Abreu (2011b).
3
Entrevista com sr. Manoel Moraes, 27 out. 2006. LABHOI. Acervo Petrobrás Cultural Memória e
Música Negra, 01.0020 e 01.0064. Disponível em: <www.historia.uff.br/jongos>. Acesso em: 10
ago. 2012.
10
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

referenciais muito fortes na experiência da escravidão nas últimas déca-


das do século XIX (MATTOS; RIOS, 2005).
Certamente, Antônio Joaquim da Silva, escravo de José Breves, en-
carregado do engenho de cana de açúcar, viveu ou ouviu falar dos inú-
meros desembarques de africanos que ocorreram no Bracuí na fase ilegal
do tráfico. O engenho no qual trabalhava produzia essencialmente aguar-
dente, mercadoria-chave no comércio de escravos com a costa atlântica
da África. Ao analisarmos a fazenda de Santa Rita no final da década de
1870, encontraremos uma área em decadência, praticamente abandona-
da à própria sorte dos moradores. No entanto, antes de nos determos
sobre a relação entre a antiga fazenda do Bracuí e o comércio de africanos,
cabe esclarecer alguns pontos importantes sobre o tráfico ilegal de africa-
nos. Como se reorganizara após a ilegalidade?
No litoral africano, os padrões de abastecimento do tráfico atlântico
de escravos se alteraram significativamente já a partir da segunda década
do século XIX. A repressão inglesa na África fez com que os traficantes do
litoral mudassem suas estratégias de comércio. O embarque no continen-
te africano deslocou-se de Luanda e dos demais portos centrais da região
centro-sul para locais mais afastados do litoral, como o norte de Angola
e as ilhas da África oriental. Os embarques dos portos de Moçambique,
Inhambane e Quelimane cresceram significativamente nesse momento,
seguindo a tendência de reestruturação do tráfico atlântico de africanos
na década de 1830 (FERREIRA, 1996; CICHELLI, 2006).
No Império do Brasil, a partir da Lei de 1831, o tráfico também se mo-
dificou, principalmente em termos estruturais. Com o comércio negreiro
considerado uma atividade ilegal, o mercado do Valongo, responsável por
receber e redistribuir os escravos pelo Rio de Janeiro e pelas demais pro-
víncias do Império, foi fechado, pairando durante poucos anos um vazio
sobre onde e como seriam recebidos os escravos que continuariam a vir
da África após 1831(KARASCH, 2000; HONORATO, 2008). No entanto,
rapidamente novos agentes entrariam no ilícito comércio. E com eles no-
vas estratégias para burlar a lei e redefinir as estratégias de um comércio
juridicamente condenado. Ao que tudo indica, rapidamente foram articu-
lados novos portos de desembarque. No caso do Rio de Janeiro, as praias
afastadas ao norte e ao sul da Corte foram os locais escolhidos para rece-
ber os africanos. Novos agentes também entravam nesse lucrativo comér-
cio, já em meados dos anos de 1830, com destaque para os fazendeiros
fluminenses.
Nos litorais das diversas praias afastadas do interior do Império, os
desembarques recomeçavam e passavam a contar com a ingerência dos
antigos senhores de escravos e fazendeiros de café, sedentos pela mão
de obra africana e pelos altos lucros dos empreendimentos negreiros.
Provavelmente os irmãos Souza Breves despontaram nesse comércio
ainda na década de 1830, entre os primeiros agentes a se lançarem na
11

Thiago Campos Pessoa Lourenço


atividade negreira, considerada, à época, ilegal pelas leis brasileiras e por
acordos internacionais.
Em 1830, no comprovante de concessão e registro da Ordem da Rosa
atribuído a Joaquim Breves, encontramos, além do nome completo do fa-
zendeiro, uma referência bastante importante: comerciante de escravos.4 Os
negócios negreiros, legais ou não, marcaram logo de início a trajetória dos
Souza Breves, assim como tiveram uma importância singular na confor-
mação das suas fortunas (TAVARES, 1988, p. 29).5 A partir de 1837, con-
juntamente com o crescimento das plantações de café no Vale do Paraíba
fluminense, os dois irmãos passariam a investir no lucrativo comércio de
almas. Nesse mesmo ano, o presidente da Câmara de Mangaratiba, em
ofício ao governo do Império nos informa sobre Joaquim:

Em 10 de Janeiro [de 1837] [...], por aqui apreendido pelo Juiz de Paz
deste distrito o patacho que se diz ser portuguez e que se denomina União
Feliz ter-se empregado desde 1835 no ilícito, imoral, e desumano trafico
da escravatura, e que acabava de verificar um desembarque de africanos no
lugar onde fora apreendido e porque tivesse ingerência nessa embarcação
Joaquim de Souza Breves [...].6

Segundo a Câmara de Mangaratiba, o futuro comendador não era ape-


nas um exímio comprador de indivíduos reduzidos ilegalmente à escra-
vidão. Mais do que isso, possuía ingerência sobre a embarcação negreira
que cruzava o Atlântico nas rotas da ilegalidade. Certamente, o empreen-
dimento traficante contava com um apoio logístico para o embarque na
África e o desembarque no Brasil. Os negócios da família Breves movi-
mentavam uma ampla rede comercial nas duas margens do Atlântico, en-
volvendo, além dos irmãos José e Joaquim Breves, outros indivíduos de
destaque na sociedade oitocentista. Entretanto, a gerência desse empre-
endimento, no lado brasileiro do Atlântico, estava nas mãos de Joaquim.
Ressaltemos: não foi pequeno o investimento dos Breves nessa em-
preitada. Prova disso é que Joaquim levou até as últimas consequências
as tentativas de garantir a viabilidade dos seus negócios, enfrentando,
inclusive, o Estado Imperial. Certamente, o presidente da Câmara de
Mangaratiba não estava entre os pares de Breves,7 tanto que continuou
sua denúncia sobre a audácia do fazendeiro-traficante:

4
Biblioteca Nacional. Localização original: Manuscritos C-1058,077 n. 002. Outras localizações: Do-
cumentos biográficos c 1052,44. Projeto escravos no Brasil.
5
Segundo Luís Henrique Tavares, Joaquim Breves estaria ao lado de grandes traficantes, como Ma-
noel Pinto da Fonseca e José Bernardino de Sá, “grandes negreiros no Rio de Janeiro dessa época”.
6
Fundação Mario Peixoto. Ofícios da Câmara ao Governo do Império, 1832-1846. Ofício n. 6.
7
Hoje, através do trabalho desenvolvido pela Fundação Mario Peixoto, sabemos que Joaquim Bre-
ves possuía muitos inimigos políticos na Vila de Mangaratiba. Consulte Bondim, Heffener e Souza
(2011).
12
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

[...] e conhecendo este [Joaquim Breves] não poder corromper o juiz de


paz então em exercício [...] de viva força asenhorar-se do mesmo Patacho
e do [...] que por cautela estaria depositado no Forte da Guia, e fazê-lo de
novo navegar afim de transportar talvez outro carregamento de infelizes
e para esse fim mandou engajar em serra acima gente mercenária da mais
ínfima classe a maior parte seus dependentes os quais armados de diver-
sos modos descerão efetivamente e em sua casa e na de seus protegidos
se acoitarão [...] 100 [homens] ou mais como se manifesta no documen-
to junto marcado [...] e porque este indivíduo reconhecesse a dificuldade
da empreza vista da vigilância [...] dispeardiu-se por então da empreza,
[...] esperando ocasião mais oportuna para por em execução o seu intento
quando com certeza de bom êxito pudesse efetuar o que premeditara. [...]
Por [...] rivalidade e mesmo por vingança Joaquim José de Souza Breves,
Exmo. Sr., ameaça a huma povoação inteira, espalhou o terror entre os
habitantes do município e o que mais [...] disso se vangloria, e impune
e audaz passe entre nós. Ilmo. homem que se [...] a mandar vir de Serra
Acima huma quantidade de gente armada para cometer um atentado de tal
natureza, é capaz de praticar outros mais [...] e a vista de hum tal procedi-
mento authorizado está para cometer quantas desvarias conceber em sua
escaldada imaginação. (BONDIM; HEFFENER; SOUZA, 2011)

Não suporia o presidente da Câmara que a imaginação de Joaquim


fosse tão longe. Tampouco suporíamos que a audácia do referido fazen-
deiro fosse tão grande. Para sê-lo, a ponto de organizar uma incursão ao
Forte da Guia para retomar o patacho, era possível que além de possuir
ingerência sobre o tumbeiro, fosse o próprio Breves o dono da embarca-
ção. Era comum, durante a ilegalidade, as embarcações usarem bandeiras
falsas para fugiram dos cruzadores britânicos (CONRAD, 1985).. Joaquim
Breves poderia manter um navio com documentação portuguesa como
forma de burlar a repressão, já que só em 1836 o tráfico se tornaria ile-
gal nos domínios portugueses. Ou simplesmente, nesse período, apenas
agenciava o contrabando, sendo responsável pelo desembarque na costa
brasileira. Nessa hipótese todo o malogro do empreendimento cairia so-
bre suas costas. Talvez isso ajude a entender a atitude impulsiva e auda-
ciosa de organizar uma empreitada, com mais de 100 homens armados,
com a finalidade de resgatar o patacho negreiro. Vele ressaltar, também,
que as disputas em torno da construção da estrada imperial Mangaratiba
– São João Marcos colaboraram para “a rivalidade e vingança” nutrida
pelo fazendeiro. No entanto, é bastante improvável que Breves estivesse
sozinho nessa iniciativa. Certamente o prejuízo da travessia negreira im-
plicaria perdas econômicas e uma possível desarticulação de uma cadeia
de relações sociais e econômicas estruturada no Atlântico.
Quase 15 anos após a denúncia da Câmara de Mangaratiba, Joaquim
de Paula Guedes Alcoforado, traficante redimido, era contratado pela
13

Thiago Campos Pessoa Lourenço


legação inglesa no Rio de Janeiro com a finalidade de elaborar um deta-
lhado relatório sobre os meandros do comércio ilegal de africanos entre
1831 e 1853. O “Relatório Alcoforado”, como ficou conhecido, ratifica os
nossos indícios de que os Breves foram pioneiros na retomada do tráfico
na década de 1830. Além disso, Alcoforado, que também estava a serviço
da Polícia da Corte do Rio de Janeiro, desvenda novos nomes, confirman-
do a hipótese de um comércio de família em escala atlântica:

Infelizmente o primeiro ambicioso brasileiro que tratou desse tão infame


como repugnante tráfico foi Joaquim Breves, seu sogro e irmão, lançando
mão do aventureiro e degenerado português João Henrique Ulrich (hoje
grande notabilidade), a quem mandavam à África com grandes negocia-
ções. (ALCOFORADO, 1995, p. 219-229)

Joaquim Breves, seu irmão e o sogro de ambos, José Gonçalves de


Moraes, barão de Pirahy, empreenderam um comércio em família que
funcionava nas duas margens do Atlântico, gerando altíssima lucrativi-
dade. Além deles, João dos Santos Breves, irmão dos referidos comenda-
dores, também participara da traficância.8 João administrava armazéns e
entrepostos comerciais de propriedade de sua família em Mangaratiba.9
Poucos sabemos sobre o irmão de José e Joaquim Breves, no entanto
podemos inferir que João exercia importante função nos negócios fami-
liares com a costa africana, atuando na organização dos desembarques
em Mangaratiba. Na África, contavam com o agente João Henrique
Ulrich para intermediar as negociações no litoral. Até o momento, des-
conhecemos a trajetória de João Ulrich; acreditamos ser um negociante,
como informa Alcoforado, que enriqueceu com o tráfico e fez fortuna em
Portugal.10
Mas se contavam com os barracões para armazenar os cativos até o
embarque nos tumbeiros, com africanos para abastecer os navios e via-
bilizar o empreendimento do tráfico, e com Ulrich para fechar os últimos
detalhes comerciais da viagem, como era a estrutura do desembarque?
Quem os esperava? Onde deveriam desembarcar e aguardar instruções
8
Segundo Yabeta (2011), João Breves e Antônio Dias Pavão eram proprietários do brigue Flumi-
nense, comandado por Bento José de Almeida, apreendido pelo navio francês Le Lerger e levado a
julgamento pela Comissão Mista em 1841.
9
Em fevereiro de 1851, quando o delegado de polícia do Rio de Janeiro, Bernardo de Azambuja,
apreendeu 199 africanos novos na Marambaia, além de Joaquim encontrava-se na restinga João
dos Santos Breves. Segundo os depoimentos colhidos por Azambuja, João era negociante em Man-
garatiba. (Arquivo Nacional. Juízo de Auditoria de Marinha – 1856. No 478; M: 2259; Gl. A).
Armando de Moraes Breves (1966, p. 96), em suas memórias familiares recorda que: “A rusga mais
séria deu-se na ocasião em que alguns barcos ingleses entraram em Angra dos Reis, perseguindo
dois navios negreiros [...] os tumbeiros chamavam-se Leopoldina e Januária. O contrabando vinha
despachado para João dos Santos Breves, irmão do tio Joáca [Joaquim Breves]”.
10
Sabemos que João Henrique Ulrich também recebeu o título de comendador. Era casado com Ma-
ria Luisa de Sá Ulrich. Disponível em: <www.arqnet.pt/dicionario/ulrichjh.html>. Acesso em: 18
maio 2009.
14
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

antes de irem para as fazendas? Novamente Alcoforado nos auxilia na


construção das respostas:

Em fins de 1835, o tráfico era grande. Em muitos pontos de nossa costa se


estabeleceram *barracões e fazendas *apropriadas para se darem estes desem-
barques de africanos; as autoridades de terra que tinham ingerência neste
negócio eram os *Juízes de Paz *que no *termo* aonde eram feitas estas
especulações tinham como *paga 10,8%* de cada negro desembarcado [...].
Um Joaquim Thomaz de Farias, patrão-mor da Barra de Campos e um ma-
rinheiro por nome André Gonçalves da Graça (hoje ambos Comendadores)
trataram de fazer um ponto de desembarque um pouco mais ao Norte da
Barra de Campos lugar denominado Manguinhos; José Bernardino de Sá
e um tal de Veiga estabeleceram próximo a São Sebastião, lugar denomi-
nado Itabatinga; [...] *José Breves em Mangaratiba mais adiante na Ilha da
Marambaia* [...] (ALCOFORADO, 1995, p. 219-229, grifos nossos)11

As fazendas da Marambaia e de Santa Rita do Bracuí estavam entre


aquelas propriedades organizadas para receber os africanos recém-chega-
dos da travessia atlântica no período do tráfico ilegal. Durante a década
de 1830, barracões e fazendas do litoral recriavam as estruturas outrora
destruídas pela lei de 7 de novembro de 1831. Canoas, construções para
quarentena e locais de “engorda” dos recém-chegados conformavam as es-
truturas de recepção de africanos novos. Indivíduos especializados em se
comunicar com as diferentes nações africanas, os chamados línguas, em
sua maioria escravos ou ex-escravos, vinham nos tumbeiros ou esperavam
em terra a carga humana, junto com os demais sujeitos do empreendimen-
to negreiro. Além deles, outros homens transportavam por terra os “ne-
gros novos” para quarentena ou os redistribuíam pelas fazendas da região.
São esses sujeitos, ainda pouco conhecidos pela historiografia, que faziam
funcionar o tráfico de africanos na clandestinidade, dinamizando o funcio-
namento das fazendas receptoras de escravos no litoral brasileiro.12
O complexo de fazendas da restinga da Marambaia, de propriedade do
comendador Joaquim Breves, no litoral de Mangaratiba, abrigava algu-
mas destinadas à recepção de africanos.13 Desde o final dos anos de 1830,
a restinga funciona como porto seguro para a recepção de escravos. Em
1837 a embarcação bergantim Leão, procedente do Quelimane, na costa
oriental, desembarcou 572 africanos. Quase 15 anos depois, em apenas
três meses, entre dezembro de 1850 e fevereiro de 1851, foram apreendi-
dos 940 africanos ilegalmente trazidos para o Brasil e desembarcados nas
águas da Marambaia (CICHELLI, 2006; YABETA, 2009).
11
Agradecemos a generosidade do prof. Carlos Gabriel Guimarães, do Departamento de História da
UFF, por ceder a transcrição do referido documento. O trecho cedido por Carlos Gabriel não consta
no texto transcrito por Roquinaldo Ferreira.
12
Para uma análise desses sujeitos, consulte Rodrigues (2005).
13
Sobre a Marambaia, consulte Motta (2007). Para uma análise etnográfica, veja Arrutti (2003a).
15

Thiago Campos Pessoa Lourenço


Em uma dessas apreensões, realizadas entre os dias 1 e 2 de fevereiro de
1851, em incursão à Marambaia, o delegado da Polícia da Corte, Bernardo
de Azambuja, após notificar o comendador, que se encontrava na fazen-
da, apreendeu espalhados pela restinga 199 africanos, que eram escon-
didos por um escravo ladino pertencente a Joaquim Breves. Certamente
esse cativo era um dos sujeitos que faziam a estrutura da Marambaia fun-
cionar como um exímio porto de desembarque de “negros novos”. Nessa
mesma época, 450 africanos foram encontrados em um navio encalhado
nas margens da fazenda da Armação, também na Marambaia, em feve-
reiro de 1851. Três meses antes, o tumbeiro Jovem Maria fora flagrado
nas águas da restinga com 291 africanos a bordo. Entre os documentos
trazidos pelo navio, foram encontradas instruções para que os africanos
se dirigissem à fazenda Bom Retiro, na província da Bahia.14
Não foram poucos os desembarques que envolveram direta, ou indire-
tamente, os irmãos Souza Breves. Com exceção do desembarque realizado
em 1837 na Marambaia, todos os demais incluíram os comendadores nos
autos de investigação. Destacamos, a seguir, apenas aqueles desembar-
ques que se confirmaram, deixando de fora as suspeitas e demais acusa-
ções de tráfico ilegal.

Quadro 1 – O tráfico ilegal de africanos e os Souza Breves1


Ano Embarcação Bandeira Embarque Desembarque Proprietário Embarcados Desembarcados
1837 Patacho União Feliz2 Portugal/Brasil Mangaratiba
1837 Bergantim Leão2 Portugal/Brasil Quelimane Marambaia 855 572
1839 B. D. João de Castro Portugal/Brasil Moçambique Marambaia Antônio dos 490 444
Reis
1839 B. D. João de Castro Portugal/Brasil Moçambique Marambaia 497 450
1839 Brigue Resolução Portugal/Brasil Quelimane Marambaia 465 421
1850 Iate Jovem Maria1 Brasil Vitor M. 354 291
Paneto
1850 Edelmando Ibo Marambaia Francisco 683 559
Ramos
1851 Marambaia 199
1851 Patacho Atividade Marambaia 455
1851 Brigue Destro Brasil Rio de Janeiro Joaquim 657 457
Breves
1852 Brigue Camargo USA Quelimane Bracuhy 550 540
Total 4.551 4.388
1
Consideramos também os casos de desembarques que envolveram os comendadores, mas não se deram exatamente nas suas
fazendas, como nos desembarques do patacho União Feliz, em 1837; do iate Jovem Maria, apreendido no mar entre a ilha Grande
e a Marambaia, em 1850; e o caso do brigue Destro, em 1851.
2
Sobre os tumbeiros União Feliz e Leão, outras viagens foram encontradas entre 1818 e 1850. Ver: The Trans-Atlantic Slave Trade
Databese Voyages. Voyages n. 87, 630, 1438, 3361, 7204, 1733, 2299, 3629 e 4050.
Fontes: The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Disponível em: <www.slavevoyages.org/tast/index.faces>. Acesso em:
set. 2009. Fundação Mario Peixoto, ofício n.6; Arquivo Nacional. Juízo de Auditoria de Marinha – 1856. Nº 478; M: 2259; Gl. A.

Entre 1837 e 1852 tivemos a confirmação de 11 desembarques envol-


vendo os Breves ou suas propriedades, a grande maioria nas proximidades
14
Ibid.
16
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

da ilha da Marambaia.15 Como vimos, os comendadores estavam entre os


primeiros indivíduos a retomarem o comércio de africanos e os últimos
a abandoná-lo. Nesse período de 15 anos, desembarcaram nas proximi-
dades de suas fazendas no mínimo 4.388 africanos. Considerando que
só uma ínfima minoria dos desembarques clandestinos eram investiga-
dos pela Polícia da Corte e, na década de 1850, pela Auditoria Geral da
Marinha, podemos supor que esses números fossem muito maiores. Não
é exagero afirmar que os irmãos Breves ajudaram a trazer para o Brasil
milhares de africanos durante a clandestinidade do comércio negreiro, e
que boa parte desses sujeitos foram reduzidos ilegalmente ao cativeiro
nas escravarias espalhadas pelas fazendas do Vale do Paraíba.
Era no Rio de Janeiro que começava a maioria das viagens. Do bergan-
tim Leão, que atuava no tráfico em 1837, ao brigue Camargo, último de-
sembarque confirmado nas propriedades dos Breves até então, o caminho
era semelhante: Rio de Janeiro – África – Rio de Janeiro. Nos dois casos
citados, ambos os navios partiram do Rio de Janeiro rumo a Quelimane.
Retornaram com mais de 500 cativos cada um. Além deles, os brigues D.
João de Castro e Edelmando fizeram trajetórias muito semelhantes, o
primeiro saindo por duas vezes do Rio de Janeiro para Moçambique e o
segundo para Ibo, na África ocidental.16 Dito de outra forma, também no
período ilegal boa parte dos traficantes do comércio de almas movimenta-
vam suas redes transoceânicas a partir do litoral do Rio de Janeiro.
Também nos chama a atenção que das seis procedências registradas,
cinco se relacionavam ao litoral de Moçambique. A importância da costa
oriental no período do tráfico ilegal é reconhecida por vários historiado-
res; no entanto, ela parece ter sido muito maior do que se tem imagina-
do. Entre os 11 navios registrados, quase a metade saiu dos portos de
Moçambique e Quelimane. Estranhamente uma das embarcações catalo-
gadas teve em Ibo, próximo à atual Nigéria, sua principal praça de aquisi-
ção de cativos.17 Os 683 africanos embarcados em Ibo chegaram ao litoral
sul fluminense em 1850. Em relação aos demais não temos informações
precisas sobre a procedência. Entretanto, pelos escravos apreendidos no
iate Jovem Maria, no patacho Atividade, e na embarcação que trouxe 199
africanos para a Marambaia em 1850, acreditamos que estes embarques
tenham se dado na costa central-atlântica africana, provavelmente nos
portos ao norte de Luanda.18

15
Cabe destacar que não devemos encarar a quantidade de apreensões e de africanos desembarcados
como números absolutos. A construção do quadro 1 não busca apresentar um caráter quantitativo,
mas sim ilustrar em números, ainda distantes da realidade, o fluxo constante, durante a clandesti-
nidade, dos empreendimentos traficantes da família Breves.
16
É importante destacarmos que o tráfico ao norte da linha do equador era ilegal desde 1815, segun-
do acordo traçado entre a Coroa portuguesa e a Grã-Bretanha.
17
The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4640. Disponível em: <www.slavevoya-
ges.org/tast/index.faces>. Acesso em: 10 ago. 2012.
18
Sobre essas apreensões, ver o capítulo 2 deste livro.
17

Thiago Campos Pessoa Lourenço


Entre as bandeiras dos navios, a maior parte eram portuguesas ou bra-
sileiras, com exceção do brigue norte-americano Camargo. Sobre as tri-
pulações, temos poucas informações, com exceção do iate Jovem Maria
e do brigue Camargo. Nessas embarcações, a composição da tripulação
variava, em sua maioria, entre portugueses, espanhóis, norte-americanos
e ingleses, embora também encontrássemos a presença de brasileiros e de
indivíduos de diferentes partes da África. O comércio negreiro mantinha
seu caráter transoceânico, tanto para aqueles que o financiavam como
para os indivíduos que o executavam.
Oito, entre os 11 desembarques ocorreram na Marambaia. A restin-
ga concentrava a finalização do empreendimento traficante desde pelo
menos 1837. Duas embarcações atracaram nesse mesmo litoral: uma em
1837, em Mangaratiba, e a outra em Angra dos Reis, na fazenda de Santa
Rita do Bracuí, 15 anos depois. Nos dois casos encontramos o envolvi-
mento direto dos comendadores Joaquim e José Breves.
Em um dos desembarques ocorridos fora da Marambaia, deparamo-
-nos com a presença ilustre de Joaquim Breves. Em 1851 era ele o proprie-
tário do brigue Destro, que desembarcou no Rio de Janeiro 457 africanos.
Sabiamente, no auge da repressão ao ilícito trato, Breves não utilizou suas
fazendas litorâneas para finalização do empreendimento. Optou por atra-
car seu brigue em outra parte do litoral fluminense, fugindo da visada
restinga de sua propriedade.
Outros senhores também figuraram como proprietários de tumbeiros
atracados na Marambaia de Breves. Entre eles, Antônio Brás dos Reis,
Vitor Manoel Paneto e Francisco da Costa Ramos. Braz dos Reis, dono
do brigue D. João de Castro, capturado duas vezes pelos britânicos em
1839. Na primeira vez, o tumbeiro desembarcou 450 cativos no litoral da
Marambaia; já na segunda viagem, 444 africanos foram levados da res-
tinga para as fazendas do Vale do Paraíba.19 Antônio Reis e Vitor Paneto
eram proprietários do Jovem Maria e do Edelmando, apreendidos nas
proximidades das águas da Marambaia em 1850.
Provavelmente, Joaquim Breves agenciava a última fase do empre-
endimento traficante, especialmente a partir da década de 1840. No en-
tanto, mais da metade dos desembarques registrados ocorreram no pós
1850. Os demais se deram nos anos de 1837 e 1839. Não há nenhuma
evidência de navios capturados nos anos de 1840. Obviamente, estamos
longe de acreditar que a Marambaia, o Bracuí e outras regiões do litoral
sul fluminense tenham deixado de receber africanos ilegalmente duran-
te aqueles anos. Certamente é possível afirmar que o Império tenha sido
bastante permissivo em relação ao tráfico nas fazendas afastadas da Corte
naquele período. O domínio político conservador, após a maioridade de
19
A coincidência no nome do navio, assim como do seu capitão (Vicente de Freitas Serpa), que co-
mandou ambas as viagens, faz com que acreditemos tratar-se do mesmo brigue, ou dos mesmos
empreendedores. Consulte The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyages 1948 e
900153.
18
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

d. Pedro II, assegurava não só a continuidade do tráfico, como também


adiava para o início da década seguinte a perseguição aos tumbeiros e aos
desembarques realizados ao longo da costa brasileira.
Por fim, não podemos esquecer que boa parte dos africanos traficados
morreram a caminho do cativeiro no Brasil. Os avanços tecnológicos dos
tumbeiros nem sempre garantiam uma redução significativa da taxa de
mortalidade.20 Por exemplo, o tumbeiro bergantim Leão perdeu cerca de
33,1% dos seus cativos em 1837. Quatorze anos depois, o brigue Destro,
de propriedade de Joaquim Breves, amargou um prejuízo significativo,
com a morte de 30,4% dos escravos a bordo. Embora essas taxas sejam
bastante altas, elas não correspondem à totalidade dos desembarques.
Nos casos analisados, as taxas oscilam bastante. Exemplo disso é que em
1939, nas duas viagens do brigue D. João de Castro, a taxa de mortalida-
de girava em torno de 10%, praticamente a mesma do brigue americano
Camargo, que registrou mortalidade em torno 9,1% em 1852. Essas vari-
áveis não eram fixas, e se relacionavam tanto com o itinerário das viagens
e seus portos de origem quanto com a finalização do empreendimento.
A própria lógica de maximização de alguns traficantes, que abarrotavam
os tumbeiros com centenas de africanos, aumentava significativamente
esses índices.21 Emblemático, nesse sentido, é o caso do bergantim Leão,
que embarcou 855 africanos em 1837 e, ao mesmo tempo, amargou a
maior taxa de mortalidade entre as embarcações registradas.

Não restam dúvidas de que as fazendas litorâneas dos comendadores


José e Joaquim Breves eram estruturadas para recepção de africanos re-
cém-chegados da travessia atlântica. Algumas delas, além de possuírem
uma estrutura montada para o desembarque de africanos, tinham-se
organizado produtivamente para o empreendimento atlântico. É o caso
da fazenda Santa Rita do Bracuí, adquirida por José de Souza Breves em
30 de maio de 1829, posteriormente integrada à pequena propriedade de
Jurumirim.
Em relação ao tráfico, entre as 11 fazendas do comendador, desta-
cavam-se as duas propriedades referidas acima, localizadas na extin-
ta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Ribeira, em Angra dos
Reis.22 Em 1881, ambas as propriedades foram avaliadas, e o que nos cha-
ma a atenção é o estado de abandono em que se encontravam. Enquanto
nas outras propriedades são listados inúmeros escravos, diversos bens
20
Para os cálculos das taxas de mortalidade utilizamos os dados presentes no quadro 1.
21
Entretanto, devemos destacar que não acreditamos em uma relação linear e direta entre o número
de africanos embarcados e o aumento das taxas de mortalidade. Para o cotejamento de outras
variáveis, consulte Klein (1989).
22
Museu de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de José de Souza Breves, v. 3, p. 528-
538v, 1879.
19

Thiago Campos Pessoa Lourenço


avaliados, entre móveis, imóveis, terras, cafezais e semoventes, as duas
propriedades do litoral parecem abandonadas à sorte dos seus próprios
habitantes.
Em 1881, o Bracuí contava com 2.640 m de terras de frente e fundos
“até a mais alta serra do mar”, avaliados em dois mil reis cada metro, tota-
lizando cinco contos e duzentos mil réis. Entre as benfeitorias da fazenda
encontramos uma casa de vivenda bastante estragada, dois lances de ca-
sas que serviam como paiol, além de uma casa com rancho ao lado para
guardar canoas. As edificações estavam em ruínas no início dos anos de
1880. Ao que nos parece, havia tempos não se produzia em Santa Rita.
Havia, na fazenda, apenas 20 enxadas, 10 foices e dois machados de ser-
viço de roça, tudo avaliado em míseros oito mil réis. Existia apenas um pe-
queno canavial, um pomar e alguns cafezais, que somados não chegavam
a meio conto de réis.23
O que realmente encarecia a fazenda era sua antiga estrutura de pro-
dução de aguardente, que nessa época também estava em decadência,
como nos mostra a avaliação feita em 1881. Dessa antiga estrutura exis-
tiam quatro carros de bois, próprios para condução de cana, que somados
aos semoventes, 36 bois de carro, chegavam a um conto cento e sessenta
mil réis. Isoladamente, o bem mais valioso da antiga fazenda era uma casa
de telha, na dita fazenda, com engenho, moendas, alambique, tonéis e
outros elementos para a produção de aguardente, tudo visto e avaliado
em um conto de réis. Somando o engenho com os carros de bois e seus
respectivos semoventes destinados ao transporte de cana, chegamos a
quase 50% do valor da referida propriedade. Isso demonstra que nas dé-
cadas anteriores a estrutura produtiva de Santa Rita estava voltada para
produção de aguardente.
Como demonstrou Roquinaldo Ferreira (2001), a geribita, conhecida
popularmente como cachaça, era uma das mercadorias mais valorizadas
no comércio de escravos no interior do continente africano.24 Nesse senti-
do, a família Breves mostrava-se bastante conectada com as preferências
dos mercadores africanos, sobretudo na costa angolana. Produzindo ge-
ribita atendiam às demandas do tráfico, multiplicando os desembarques
de africanos no litoral brasileiro. Provavelmente João Henrique Ulrich,
agente dos Souza Breves em África, comercializou a aguardente do Bracuí
na costa africana.
Somando-se à decadência da fazenda analisada, encontramos uma pe-
quena propriedade denominada Jurumirim, no lugar de mesmo nome,
formada em sua maior parte por 528 m de terras na ilha da Barra, tam-
bém na Freguesia da Ribeira. A descrição no inventário é muito sucinta,
23
Ibd.
24
Segundo Ferreira (1996, p. 16): “Em 1850, o consulado português no Rio de Janeiro dizia: ‘uma
grande parte dos gêneros de importação nesta África são produtos do solo brasileiro principalmen-
te aguardente, açúcar, farinha de mandioca’”. Ofício do consulado português no Rio de Janeiro em
27 dez. 1850.
20
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

demonstrando que havia apenas terras e poucas construções, estas pra-


ticamente abandonadas. Além de Jurumirim, José possuía também uma
faixa de terra denominada Ilha Comprida, próxima a Mambucaba. O co-
mendador deixara a ilha em usufruto dos pescadores que nela viviam e
dos próprios moradores de Santa Rita.25
Na segunda metade do século XIX, enquanto o Vale do Paraíba repre-
sentava a mola mestra da economia imperial, o litoral sul da província
parecia padecer em um crescente abandono. Certamente o fim do tráfico
de africanos nos primeiros anos da década de 1850 afetou, em curto pra-
zo, a região, que no período imediatamente anterior se especializara na
recepção de negros vindos das mais diferentes regiões da África.26
Entre os domínios litorâneos dos irmãos Breves, a Marambaia confi-
gurava-se como a principal porta de entrada de milhares de africanos re-
duzidos ilegalmente à escravidão. Ligação entre o litoral de Mangaratiba
e a imensidão do Atlântico, a restinga se tornara um porto seguro para o
desembarque de africanos desde o final da década de 1830. Mas foi nos
anos finais do tráfico que o comércio clandestino se tornou tão frequente
que até mesmo o proprietário da restinga admitia os desembarques.
A restinga da Marambaia foi comprada de Guedes e Irmão em 17
de abril de 1847.27 Em 1890, ano de avaliação da fazenda no espólio de
Joaquim de Souza Breves, ficamos com a impressão de que havia tem-
pos aquela propriedade estava abandonada e improdutiva. Entre os três
primeiros dias do mês de setembro a Marambaia foi inventariada minu-
ciosamente pelos avaliadores juramentados no processo.28 Logo de início,
observarmos que se tratava de uma fazenda mais estruturada do que a de
Santa Rita, principalmente pelo número de construções, móveis e canoas.
No entanto, ao analisarmos mais detidamente a documentação, percebe-
mos que o abandono em Marambaia era muito semelhante ao do Bracuí,
inventariado 10 anos antes no espólio de José Breves. Na descrição das
casas e de alguns móveis aparecem, com muita frequência, expressões que
denotam esse abandono. Construções em mau estado ou em ruínas rein-
cidentemente marcam as falas dos avaliadores.
Outra particularidade da Marambaia era o complexo de propriedades
que a compunham. A fazenda da Armação parecia ser a principal delas. É
na Armação que encontramos o bem mais valioso inventariado:

uma casa de vivenda, comprida com varanda, na frente envidraçado, na fa-


zenda denominada Armação, assoalhada e forrada, com diversos quartos

25
Museu de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de José de Souza Breves, v. 1, p. 164.
26
Vale destacar que o advento da linha férrea no vale fluminense também contribuiu bastante para a
decadência econômica do litoral sul da província do Rio de Janeiro.
27
Jornal do Commercio, 6 mar.1851. Acervo da Biblioteca Nacional.
28
Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Joaquim José de Souza Breves, v. 2,
p. 291-299.
21

Thiago Campos Pessoa Lourenço


e salas e cozinha e outras dependências, parte em bom estado e parte em
mau estado, visto e avaliada por dois contos de réis – 2:000000.29

Até mesmo o bem mais valioso da Marambaia estava se deteriorando,


aparentemente abandonado no final do século XIX. Era na Armação que
se encontravam importantes construções do recente passado escravista,
como a casa de vivenda que servira outrora de hospital, avaliada em du-
zentos e cinquenta mil réis. Além dela, mais outras cinco construções pa-
reciam seguir o mesmo caminho, servindo de abrigo para bois, cavalos e
de chiqueiros para os porcos. Inclusive, os chiqueiros estavam ao lado da
antiga enfermaria, o que confirma nossa hipótese de reestruturação do
espaço com o fim do cativeiro. Reorganização semelhante deve ter ocorri-
do com o fim do tráfico de africanos, finalidade específica das proprieda-
des da restinga da Marambaia.
A cerca de uma légua encontramos a fazenda da Serra d’Água, compos-
ta de duas casas erguidas sobre pilares de pedra e uma capela de Nossa
Senhora da Conceição, construída em 1851. As duas casas, assim com
as anteriores, encontravam-se em ruínas. Além das fazendas, Joaquim
Breves mantinha três ilhas em frente à restinga: Saracura, Bernarda e
Papagaio fechavam o complexo da Marambaia. Certamente a ilha do
Papagaio era a menor delas, apreçada em um terço (cinquenta mil réis)
do valor das demais. No entanto o que enriquecia o espólio deixado pelo
comendador era a imensa restinga, descrita como ilha da Marambaia, ava-
liada em duzentos e noventa e cinco contos de réis em 3 de setembro de
1890. Em resumo, o complexo negreiro de Joaquim valia 59 vezes mais do
que a fazenda do seu falecido irmão, no mesmo litoral.
Apesar de toda a vastidão da restinga, o abandono socioprodutivo era
a marca das antigas propriedades do litoral sul fluminense, não só no final
de 1880, mas também na década anterior. Esse processo era evidente a
partir da avaliação da antiga fazenda de Santa Rita, mas se torna muito
mais claro ao analisarmos as benfeitorias da restinga da Marambaia. Em
1890, tanto na fazenda da Armação quanto na Serra d’Água, as únicas
plantações existentes eram os mil pés de coqueiros da Bahia, espalhados
pelas referidas propriedades e avaliados em mil réis cada um. Ao longo
de toda a avaliação, há apenas uma referência indireta a antigas culturas
agrícolas, exatamente no momento em que se avaliava um antigo enge-
nho na praia da Armação para secagem dos grãos de café. Pela quantidade
de coqueiros e inexistência de qualquer outra cultura que ao menos vales-
se a pena ser inventariada, supomos que há tempos a Marambaia era uma
daquelas propriedades sem finalidade específica após o fim do tráfico de
africanos. Nesse sentido, compreendemos o abandono da restinga à pró-
pria sorte dos seus moradores nas últimas décadas do século XIX.

29
Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Inventário de Joaquim José de Souza Breves, v. 2,
p. 294.
22
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

Restaram aos herdeiros da Marambaia, além das construções em ruí-


nas, alguns animais, móveis e canoas. Da antiga casa de Joaquim Breves,
sobraram apenas mesas e cadeiras em mau estado, dois pianos e uma ca-
noa grande de jequitibá, certamente usada no transporte entre o litoral
de Mangaratiba e a restinga. No dia 4 de setembro, o juiz do caso e os
avaliadores juramentados deixaram a Marambaia, seguindo para o saco
de Mangaratiba, onde em apenas um dia inventariaram as construções
em ruínas e uma chácara nessa mesma região – reminiscências de uma
época marcada pelos altos lucros da exportação do café e pela ilegalidade
do comércio internacional de africanos.
É intrigante perceber o abandono e a decadência dessas fazendas do
litoral sul fluminense, em contraponto à opulência das demais proprie-
dades da família Breves no Vale do Paraíba no final da década de 1870. A
Lei no 581, de 4 de setembro de 1850, que ratificava a ilegalidade do trá-
fico e estendia as responsabilidades sobre o ilícito comércio,30 parece ter
mudado, em curto prazo, a paisagem social das fazendas do litoral. O fim
do tráfico de africanos, gradativamente conquistado na primeira metade
da década de 1850, alterou profundamente a rotina das fazendas do sul
da província do Rio de Janeiro. As estruturas do tráfico clandestino deve-
riam ser desmontadas ou simplesmente abandonadas, e as fazendas que
as englobavam, reestruturadas ou deixadas a cargo dos seus moradores,
em sua maioria escravos e libertos que ali viviam como agregados. Esse
parece ter sido o destino da fazenda de Santa Rita do Bracuí e do comple-
xo da Marambaia, logo após o fim do tráfico atlântico de escravos.
Talvez por isso, para os que permaneceram na restinga, suas iden-
tidades se relacionavam diretamente às antigas histórias dos últimos
desembarques de africanos, vivenciadas, direta ou indiretamente, por
seus pais e avós. Ao encontrar os que permaneceram na ilha em 1927,
Assis Chateaubriand registrou o que disseram os últimos ex-escravos de
Joaquim Breves. Chateaubriand encontrou Adriano Júnior e Gustavo
Victor. Adriano havia trabalhado na fazenda São Joaquim da Grama e
tinha aproximadamente 75 anos. Gustavo, no entanto, aparentava mais
idade. Após ser questionado sobre seu antigo senhor, Gustavo vinculou
de maneira direta e explícita a restinga ao comércio de africanos. Segundo
ele: “Gente vinha de bahia d’Angola premero pra qui. Engordava, e depois
ia pra roça, trabaiá no cafezá”. Sobre seu antigo senhor, lembrava que: “Era
um veio bão. Quando via nego assentado, depois do serviço, apreguntava
se nego tava triste, e mandava reunir a senzala para dançar o cateretê e
o batuque, fazendo tocar o bumba de barriga” (CHATEAUBRIAND apud
BREVES, [s.d.], p. 749, 750).
30
Em seu art. 3o, a lei estabelece que: São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa
importação o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga.
São complices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no territorio brasi-
leiro, ou que concorrerem para os occultar ao conhecimento da Autoridade, ou para os subtrahir a
apprehensão no mar, ou em acto de desembarque, sendo perseguido.”
23

Thiago Campos Pessoa Lourenço


O tráfico na Marambaia se confundia com a própria trajetória dos an-
tigos escravos. Da conformação das fazendas aos indivíduos que lá per-
maneceram, o infame comércio parecia atribuir sentido à história daquela
restinga e dos seus moradores, estabelecendo uma nítida interseção entre
passado e presente. Certamente Gustavo e Adriano teriam muito mais a
contar; faltou a Chateaubriand a produção do registro ou um pouco do
espírito do historiador.

Em dezembro de 1852, 540 africanos procedentes do Quelimane e


da ilha de Moçambique desembarcaram do brigue Camargo nas terras
da fazenda Santa Rita do Bracuí, propriedade do opulento José de Souza
Breves.31 Como mostramos acima, Santa Rita possuía todas as caracte-
rísticas daquelas fazendas citadas por Alcoforado como áreas destinadas
à recepção de africanos traficados na ilegalidade.32 Talvez por isso tenha
sido tão incisiva a repressão ao comércio de africanos nas duas proprie-
dades dos comendadores Breves no litoral sul da província fluminense.
Como vimos, vários desembarques ocorreram na Marambaia no início dos
anos 1850; no entanto, o “caso Bracuí”, como ficou conhecido à época, se
tornou exemplar, principalmente por evidenciar a rede de funcionamento
do tráfico de africanos no Atlântico após 1831 (ABREU, 1995).
O brigue Camargo, de bandeira norte-americana, participava ativa-
mente do tráfico internacional de africanos.33 A tripulação, apreendida
pela Polícia da Corte em 1853, era formada por marinheiros de diver-
sas nacionalidades, a saber: dois americanos, um espanhol e um inglês.
Nathaniel Gordon, capitão do navio, e o piloto F. Cardoso conduziram o
brigue americano do oceano Atlântico ao Índico. De acordo com os de-
poimentos dos marinheiros apreendidos, a Polícia da Corte concluiu que:

O brigue americano – Camargo – largou deste porto no dia 12 de abril de


1852, e seguiu com carga lícita, que se manifestou no Consulado, para o
Cabo da Boa Esperança, e daí foi para Quelimane, e para Moçambique e
equipado para o tráfico de negros na costa de Madagascar voltaram para
Quelimane, e aí ao sul de um rio cujo nome ignoro, recebeu quinhentos e
trinta a quinhentos e quarenta africanos e seguiu para a Costa do Brasil de-
sembarcando-os no número com que saiu de Moçambique tendo morrido

31
Entre os 540 africanos, apenas 60 eram mulheres. Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468. Ver
também Zimba (2006).
32
Segundo Roquinaldo Ferreira (1996, p. 176), algumas das fazendas dos Breves possuíam instala-
ções apropriadas para receber navios negreiros enviados da África.
33
Sobre pesquisas arqueológicas recentes evidenciando o naufrágio do brigue Camargo ver: RAM-
BELLI, Gilson. Arqueologia de naufrágios e a proposta de estudo de um navio negreiro. Revista de
História da Arte e Arqueologia, Campinas, SP: n. 6, dez. 2006.
24
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

apenas três dentre eles. No lugar do desembarque, que segundo todas as infor-
mações é o Bracuí eram esperados os africanos, tanto que à sua chegada foram
recebê-los canoas, que os puseram em terra [...]34

O empreendimento negreiro que desaguou no desembarque do Bracuí


cruzou oceanos, sendo planejado e executado durante todo o ano de
1852.35 Nessa época, cresciam os embarques de africanos na costa orien-
tal da África, justamente por conta da repressão inglesa na faixa central-
-atlântica. Nesse movimento, os embarques também deixavam de serem
realizados nos visados portos do litoral, deslocando-se para rios e ensea-
das mais afastadas da costa atlântica da África. Devemos destacar que em
uma das travessias mais longas entre a África e o Brasil, morreram apenas
três africanos (FLORENTINO, et al 2006).36 A baixíssima taxa de morta-
lidade, calculada no desembarque no Brasil, conciliava-se também com a
estrutura de recepção, montada na fazenda do Bracuí. À espera dos “ne-
gros novos” estavam canoas e alguns indivíduos responsáveis pelo desem-
barque dos africanos. Devia-se, também, alimentar os recém-chegados,
exaustos e famintos por conta da longa travessia. Junto deles, estaria um
africano “língua”, responsável pela comunicação com os recém-chegados,
além de outros indivíduos que organizariam a redistribuição dos cativos
pelas fazendas fluminenses.37
Segundo Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos, secretário da Polícia
da Corte, os marinheiros inquiridos foram unânimes em apontar como
articulador do empreendimento negreiro o negociante português João
Pedro da Costa Coimbra, proprietário do brigue Camargo. Coimbra, no
momento do inquérito, se encontrava em Buenos Aires, no entanto este-
ve presente no Bracuí recebendo os africanos na baía de Angra. Coimbra
insistiu no tráfico ilegal no pós-1850, sendo bastante conhecido pelas
autoridades de repressão. Segundo Ferreira, era através do traficante

34
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 468, grifos nossos.
35
A viagem do brigue Camargo foi bastante longa. Partiu do Rio de Janeiro em 11 de abril de 1851 e
retornou de Quelimane com cerca de 540 cativos em 12 de dezembro de 1852. Consulte The Trans-
-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4154.
36
Segundo Manolo Florentino, no século XIX a travessia média entre Moçambique e o Rio de Janeiro
durava cerca de 60 dias, enquanto que na viagem entre Angola e o litoral fluminense gastava-se a
metade do tempo.
37
Outra hipótese, não menos relevante, é que muitos africanos tenham sido lançados ao mar, na imi-
nência da apreensão. Embora essa informação não apareça nos inquéritos policiais, encontramos
indícios dessa prática na memória local. Segundo o sr. Manoel Moraes: “proibiram a venda dos es-
cravos para cá. Mas, não sei como é que fizeram que ainda roubaram lá oportunidade e arrumaram
uns escravos para trazer pra cá, para vender novamente Raptaram escravo lá, encheram o navio e
trouxeram pra cá. Mas veio até aqui, numa ilha com um nome... Ilha de Cunhanbebe. Uma ilha que
tem pra trás [...]. E quando observaram que vinha uma escolta atrás deles, pra prender eles [...] o
navio tinha um buraco, tinha um buraco que batia [...], aquele pino saía, né? Saía e abria um buraco
e a água invadia. Então foi assim, alguns caíam na água, outros jogavam lancha na água, então
salvou bastante e morreu bastante e o barco afundou na ponta da ilha” [sr. Manoel Moraes, 27 out.
2006].
25

Thiago Campos Pessoa Lourenço


português que os Breves acessavam os demais negociantes envolvidos no
comércio negreiro (FERREIRA, 1996, p. 178).
Francisco Vasconcellos prendeu também George Browm, despachante
do brigue Camargo e de outros tumbeiros em África. Browm era natu-
ral do Cabo da Boa Esperança e embarcou no brigue na sua cidade natal,
rumo ao porto de Quelimane. Nesse momento, o Camargo já era coman-
dado por Gordon, que o levou até um rio próximo a Quelimane para a re-
alização do embarque dos 540 africanos. Nesse mesmo lugar, o tumbeiro
foi armado pelo português Isidoro, para a travessia transoceânica, com os
mantimentos necessários para a alimentação da tripulação e dos escravos.
Questionado se o navio já era esperado no lugar de desembarque e so-
bre os meios disponíveis para a recepção dos africanos, Browm respondeu:

[...] que da terra vieram logo a bordo três indivíduos que trouxeram canoas
para o desembarque de africanos, mas que não apareceu ninguém armado,
e parecia a ele, interrogado, que as pessoas que vieram a bordo noticiar a
vinda de canoas eram já conhecidas de Cardoso [piloto do brigue] e que
como tais o cortejaram.38

Browm acrescenta que durante o desembarque ouviu dizer que os ne-


gros iam ser entregues a Coimbra. Ratifica seu desconhecimento sobre o
paradeiro de Gordon39 e Cardoso, assim como sobre nomes de fazendas e
demais pessoas envolvidas no desembarque, alegando não compreender a
língua portuguesa e estar unicamente à espera do pagamento de seu salá-
rio. Afirma apenas serem os africanos procedentes do Quelimane. Alguns,
inclusive, já falavam o português e possuíam marcas no corpo com as le-
tras A = R = C = U e diferentes números.40
Ao que parece, nas margens da fazenda do Bracuí havia uma sólida
estrutura montada para a recepção dos africanos recém-chegados. Os ho-
mens que subiram a bordo do Camargo apoiavam a logística do desem-
barque. Como vimos, os Souza Breves atuavam nesse ramo havia algum
tempo. No entanto, foi na década de 1850 que suas redes agenciadas para
o tráfico se fortaleceram, sobretudo por conta da repressão ao ilícito trato.
Os cativos desembarcados em 1852 foram distribuídos pelos próprios
fazendeiros da região. O major Nogueira se encarregou da distribuição
dos 250 “negros novos” pelas fazendas do vale cafeeiro. Segundo depoi-
mento de Nicolau Alvares, marinheiro do brigue Camargo:

38
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468.
39
O capitão do brigue Camargo, Nathaniel Gordon, na década de 1860 atuava no tráfico entre o
reino do Congo e a ilha de Cuba. Partira de Havana e, no dia 8 de agosto de 1860, saíra da África
com o tumbeiro norte-americano Erie, com 897 escravos a bordo. A viagem durou apenas 30 dias,
e quase todos os 897 africanos chegaram vivos à região da Flórida. The Trans-Atlantic Slave Trade
Database Voyages. Voyage 4653.
40
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468.
26
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

[...] na fazenda do fulano Nogueira perto de bananal tinham ficado 250


escravos [...] que sabe mais que distribuíram alguns outros africanos por
diferentes pessoas, lembrando-se entre elas de ter visto um tal Luciano
que esteve na fazenda do Major Nogueira. Que se lembra que os pretos
de Coimbra tinham a marca com algarismo quatro no ombro esquerdo, ao
número pouco mais ou menos de trezentos.41

Nogueira não estava sozinho nessa empreitada; importantes fazendei-


ros participaram do empreendimento. Articuladores do desembarque ou
apenas compradores dos africanos ilegalmente transformados em escra-
vos no Brasil, a lei de 1850 considerava todos cúmplices de contrabando
e passíveis de punição. Sendo assim, foram indiciados, no dia 12 de feve-
reiro de 1852, por crime de contrabando de africanos os senhores Manuel
Aguiar Valim, dono da fazenda Resgate e seu sogro, o comendador Luciano
José de Almeida, além do major Antônio José Nogueira, responsável por
esconder os africanos em sua fazenda, e Pedro Ramos Nogueira, afilhado
de José Breves e dono da fazenda Grataú, propriedade vizinha à fazenda
do Bracuí. Nessa mesma época, Joaquim Breves era levado a júri na co-
marca de Angra dos Reis (ABREU, 1995, p. 176).42
Os outros 300 africanos vieram da costa em nome de Coimbra, respon-
sável pela parte operacional da expedição. Segundo Roquinaldo Ferreira
(1996, p. 180), provavelmente o traficante português representava os in-
teresses dos negociantes de Moçambique e Quelimane nessa empreitada.
O lucro obtido por Coimbra seria dividido com os agentes negreiros da
costa oriental africana.
Sobre a denúncia de desembarque no Bracuí, inicialmente José Breves
respondera às acusações tentado provar que sua fazenda estava distante,
mais de uma légua, da foz do rio Bracuí, onde ocorreu o desembarque do
brigue Camargo. Dois meses depois, em maio de 1853, em carta enviada
ao ex-ministro da Justiça, Breves parecia indignado com as calúnias sobre
seu envolvimento no episódio. Na mesma oportunidade, também tentou
explicar suas ligações com Coimbra, dono do brigue Camargo e articula-
dor do empreendimento negreiro:

V. Exa. quando Ministro da Justiça, o Sr. que em 8 de Fevereiro de 1853


teve uma denúncia anônima da cidade de Angra de que se premeditara
um desembarque de africanos em Bracuí, na minha fazenda daquelas
paragens, custou-me isso a crer por que se assim é com razão me devo
queixar a V. Exa. mesmo quando confidencialmente me não chamou, e me

41
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468; FERREIRA, 1996, p. 180.
42
Como destaca Abreu, é interessante notar que Joaquim, e não José, tenha sido levado a júri nessa
época. Os laços de amizade entre José e Eusébio de Queiroz e a importância do comendador no
Partido Conservador talvez tenham amenizado a necessidade de julgamento do dono do Bracuí.
Certamente, os reincidentes desembarques na Marambaia colaboraram muito mais para a estig-
matização de Joaquim Breves.
27

Thiago Campos Pessoa Lourenço


ordenou explicações a respeito [...] E pois se é por Coimbra ter freqüenta-
do aquela minha fazenda, onde passou mesmo alguns verões com a sua
família, devido isso as antigas relações de amizade que intretinha-mos,
que denunciarão a dita fazenda, pretexto que consideraria absurdo, com
tudo se tal denuncia me fora confiada por V. Exa., como me parece tinha
o direito de esperar [...] meu nome não seria atasalhado por um senhor
Souza Ramos. Nunca huma ordem de prisão seria dada contra mim como
para hum facinorozo [...] como conseqüência o meu nome servir de capa
aos contrabandistas como em outras épocas outros já tinhão feito, embora
agora como então esteja alheio a esses negócios [...] meu nome que ali apareceu
como Pilatos no credo só para satisfazer os desejos d’esse Sr. Ramos, que para
bajular o governo inglês que talvez tanto não reagisse não duvidou sacrificasse-
-me, com que a mais a classe inteira da lavoura [...].43

Ao comendador José Breves restava recorrer aos “velhos amigos”,


como o mesmo se refere ao final da carta ao antigo ministro da Justiça
Eusébio de Queiroz. Procurou, também, justificar seus laços de amizade
com Coimbra, por quem pedira anos antes ao então ministro, pela não
deportação do seu amigo traficante. Para Breves, essa íntima relação com
Coimbra não justificaria seu envolvimento no desembarque do Camargo.
Até porque, como mesmo afirma: “[...] agora como então esteja alheio a
esses negócios [...]”. José deixa claro que embora tivesse participado do
comércio negreiro antes de 1852, naqueles anos havia abandonado o já
infame comércio.
No entanto, devemos convir que não era uma simples coincidência o
fato do brigue de Coimbra atracar justamente na propriedade do seu ami-
go. Coimbra conhecia a região, passou algumas férias na casa de José, no
Bracuí, como afirmou o próprio Breves. Talvez por essa íntima relação e
pelo próprio envolvimento de ambos ao comércio negreiro, o substituto
de Eusébio na pasta da Justiça, José Ildefonso de Souza Ramos, foi tão
rigoroso nas averiguações. Pela primeira vez o governo imperial ordena-
va busca sistemática nas fazendas (ABREU, 1995, p. 175). Certamente a
nova posição do governo em relação ao comércio de africanos desagradou
não só a Breves, mas a todos os fazendeiros envolvidos ou beneficiados
com o ilícito trato.
A incursão da Polícia da Corte à procura de negros novos nas pro-
priedades dos fazendeiros envolvidos no desembarque do Bracuí afetou
significativamente o cotidiano das senzalas do interior fluminense. José
de Souza Breves foi o porta-voz dos lavradores junto ao ex-ministro da
Justiça, Eusébio de Queiroz. Entre fevereiro e novembro de 1853, o co-
mendador enviou cinco ofícios ao ex-ministro e amigo solicitando que in-
tercedesse para o fim das incursões da polícia nas fazendas de sua proprie-
dade e nas de seus pares. Como vimos, José Breves nutria um profundo
43
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/3, 27 maio 1853, grifos nossos.
28
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

descontentamento com Souza Ramos, ministro à época e responsável,


em última instância, pela repressão ao tráfico. José pedia a proteção de
Eusébio, para que ele intermediasse contra os “abusos” cometidos pelo
chefe de polícia da Corte, subordinado de Souza Ramos. Deixava claro,
no entanto, que não falava sozinho, suplicando também em nome dos
“homens da lavoura”, classe que representava:

[...] me dirijo a V.EXa. a pedir-lhe por eles, e por mim sua valiosa proteção
vista do estado a que se podem ser levados nossas fazendas [...] vesse essa
classe importante [os lavradores] exposta a um domicílio militar, desta-
camentos invadindo sua propriedades para procurarem africanos boçais;
vesse essa classe sujeita a interrogatórios e aos caprichos de uma ou outra
tenção [...] a continuar a porem em muito risco nossa segurança, abalará
nossas fortunas, e pode acarretar para o país, funestas conseqüências.44

José Breves realmente parecia muito preocupado com as incursões da


polícia nas fazendas da região. Mais do que a possibilidade de serem en-
contrados africanos novos nessas propriedades, o que mais o incomodava
era a presença do Estado em um domínio que antes pertencera somente
aos senhores de terras. Na segunda metade do século XIX, a interferência
do Estado nas relações escravistas cresceria bastante, tendo seu auge com
as reformas da escravidão, entre finais da década de 1860 e o início dos
anos de 1870. O comendador se refere ao perigo que essas investigações
causariam, especialmente em relação à ordem interna das suas senzalas:

[...] Quando digo nutrimos sérios receios não exagero, pois considero que,
se nossas fazendas são costiadas por negros pela maior parte ladinos, al-
guns há as tem de pouco mais de 2 anos que mal falão, e huma diligência qual-
quer que ali não vá muito pode prejudicar, abalando mais e mais os ânimos
d’aqueles nos privando d’estes [...].45

Não é de se estranhar que em junho de 1853 existissem escravos que


falavam o português há apenas dois anos. Sabemos que os Breves atua-
vam no tráfico vividamente no início dos anos de 1850, e provavelmente
centenas desses cativos tenham ficado nas suas próprias fazendas. O in-
quérito da polícia assustava os fazendeiros tanto por interferir no domí-
nio de relações estritamente senhoriais como por revelar que boa parte
das suas escravarias era formada por africanos ilegalmente importados,
fosse pela proibição de 1831 ou mesmo pela lei de 1850. Entre 1831 e o
início da década de 1850, calcula-se que mais de meio milhão de africanos
tenham sido trazidos para o Brasil e reduzidos ilegalmente à escravidão.46
44
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/1, 3 jun.1853.
45
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/1, 3 jun.1853, grifos nossos.
46
Sobre os números do tráfico, consulte Goulart (1949), Bethell (1976), Eltis (1987) e Conrad (1985).
29

Thiago Campos Pessoa Lourenço


Certamente as senzalas do interior da província fluminense estavam re-
pletas de africanos escravizados ilegamente.47
Devemos deixar claro que as incursões nas fazendas procuravam ape-
nas os africanos desembarcados após 1850. José Breves acusava, inclu-
sive, alguns policiais de “aliciar os negros prometendo-lhes liberdade se
declarassem onde se achariam os negros novos”.48 Nesse momento, o go-
verno brasileiro não pretendia estender a liberdade aos africanos desem-
barcados no Brasil a partir de novembro de 1831. Eusébio de Queiroz,
articulador da lei de 1850 e indivíduo havia muito tempo vinculado às
questões do tráfico, responde a José Breves nos seguintes termos:

[...] é o que disse até no Parlamento isto é quando o governo não iria dar
buscas nas fazendas para resolver o passado [...] Pode ser que a audácia
das especulações o leve a proceder com mais algum rigor ou outra vez,
mais creio que nem se ultrapassarão os limites da necessidade, nem se re-
solve o passado [...] Qualquer busca que se dê é para procurar os negros agora
importados, e nunca para se entender com o passado [grifo do autor]. Não
deve pois V. Exa. temer, uma vez que como me diz, e eu creio, não tendo
introduzido [africanos] depois da nova lei de 1850. A separação é difícil,
até o reconheço, mas quando a verdade procede com desejo de acertar,
e não de perseguir, os homens de bem e que se sentem innocentes não
devem temer [...].49

O governo brasileiro não estava disposto a acertar contas com o pas-


sado. A Lei de 1831 deveria ser posta de lado, pelo menos em relação aos
africanos trazidos para o Brasil. O Estado também preferia esquecer os
ricos fazendeiros envolvidos com o tráfico nos quase 20 anos de ilegali-
dade, entre 1831 e 1850 (CARVALHO, 2003, p. 298).50 Entretanto, não
pouparia esforços para encontrar os africanos recentemente importados
e punir os principais envolvidos, fossem eles traficantes ou simplesmente
compradores dos negros importados ilegalmente. Eusébio de Queiroz, sa-
bendo do temor do seu amigo, vinculado de longa data, ao tráfico, deixa-
va-lhe um recado pouco consolador: “os homens que se sentem inocentes
não devem temer”.
José Breves estava bastante preocupado, sobretudo, pelas consequên-
cias das averiguações policiais no interior das senzalas. O comendador
nutria profundo receio que seus escravos se apropriassem da Lei de 1831
para reivindicar a liberdade. Como no caso do africano Braz, que levado de
Bananal para a Casa de Correção no Rio de Janeiro, falando um português

47
Sobre os africanos livres, consulte Mamigonian (2005).
48
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/2, 7 fev. 1853.
49
Museu Histórico Nacional. Coleção Eusébio de Queiroz. EQcr 79/1. Minuta de resposta, 1853.
50
Segundo José Murilo de Carvalho, a orientação do Conselho de Estado era: “olhar somente para o
futuro, esquecendo o passado”.
30
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

fluente, ao ser inquirido respondeu que “era dos depois da lei de sete de
novembro de 1831” (ABREU, 1995, p. 189; MAMIGIOMIAN, 2007, p.
163-174). Breves temia que esse ideal de liberdade, mais comum durante
a década de 1860, se espalhasse pelo interior das senzalas, tanto que par-
ticipou de uma representação escrita em Piraí, onde residia, publicada no
Jornal do Commercio no dia 1 de março de 1853:

Os escravos pajens, e aqueles mais inteligentes que freqüentam as povo-


ações trazem de volta para as fazendas estas perigosas notícias, as quais,
como relâmpago, se espalham por todos os escravos, e estas idéias tomam
vulto, porque eles não distinguem que tais diligências se estendem so-
mente aos africanos de próximo importado, pois se consideram todos em
igualdade de condição. (ABREU, 1995, p. 190)

O receio da interferência do poder público no domínio senhorial se


concretizava quando africanos importados depois de 1831 alargavam as
noções de liberdade e justiça, reivindicando os mesmos direitos dos de-
sembarcados no pós-1850. Em se tratando de uma escravaria repleta de
africanos juridicamente livres, não era pequeno o impacto das buscas aos
negros recém-chegados da travessia atlântica no início dos anos de 1850.
Somente estes eram reconhecidos pelo governo imperial como africanos
livres. Coube aos demais atuarem na esfera da lei e acionarem o legítimo
direito à liberdade. Aos fazendeiros, restaria o temor de uma escravaria
construída na ilegalidade e que começava a questionar o domínio senho-
rial, contando com a ajuda indireta da ação do governo imperial.
Mesmo com toda a repressão de meados do século XIX ao comércio de
africanos, o envolvimento dos Souza Breves com tal atividade parecia não
cessar. Entretanto, só conseguiriam agenciar o empreendimento negreiro
por conta dos vínculos comerciais, e até mesmo pessoais, com importan-
tes traficantes que atuavam havia algum tempo nos negócios do tráfico.
Francisco Ruviroza y Urzellas era um deles. Expulso do Império do
Brasil em 1853, por conta do envolvimento com o tráfico, o espanhol
Urzela movimentava os negócios negreiros em três continentes. Na
Europa, encomendava parte das mercadorias para o escambo, enquanto
no Atlântico organizava a estrutura de embarque e desembarque dos afri-
canos, tanto para o Brasil como para Cuba em meados da década de 1850.
Ruviroza insistira em fazer o comércio de africanos em 1855, três anos
após o desembarque do Bracuí. Suspeitava-se que, para isso, o traficante
estaria escondido no Rio de Janeiro ou em suas imediações. Essa suspei-
ta foi alimentada por Alcoforado, com base em cartas vindas da Europa
para o Rio de Janeiro, endereçadas ao negociante espanhol. Além disso,
encontravam-se repentinamente na Corte, nessa mesma época, pessoas
muito próximas a Ruviroza, como José Alves Ferreira de Almeida e Miguel
Miró Garcia. O primeiro, comissário dos traficantes na costa da África, e
31

Thiago Campos Pessoa Lourenço


Miró, capitão espanhol dos tumbeiros negreiros agenciados por Ruviroza.
Alcoforado, profundo conhecedor dos meandros do tráfico de africanos,
suspeitava que o desembarque organizado por Ruviroza pudesse envolver
mais gente:

As minhas primeiras suspeitas foram sobre a Fazenda da Marambaia não


só que reconheço que é aquele ponto possível, em que com mais facilidade
se possa dar um desembarque, como por saber que entre Ruviroza e Joaquim
Breves sempre houveram muita intimidade, e para ali logo mandei um agente
meu a ver se podia colher alguma coisa, o qual nada pode fazer, por que
não foi possível penetrar naquela fazenda.51

A Secretaria de Estado ordenou uma nova visita à Marambaia:

[...] expedi um Agente para Marambaia para com as necessárias instru-


ções, a fim de ver se descobria esse indivíduo. Esse agente, porém não vol-
tou, nem me dirigiu a menor participação dos resultados da Comissão.52

Se o agente enviado pelo Estado Imperial encontrou Ruviroza na


Marambaia nunca saberemos. Seu paradeiro após a incursão é uma in-
cógnita, inclusive para seus superiores. Entretanto sabemos que entre
Ruviroza e Breves havia muito mais do que uma profunda amizade.53 A
alta lucratividade do comércio negreiro também alimentava uma rentável
aliança comercial entre eles. Ruviroza e a família Breves certamente trou-
xeram milhares de africanos nas duas décadas de proibição do comércio
negreiro, tanto que após o desembarque do Bracuí, a associação entre trá-
fico de africanos e os Souza Breves era quase sempre recorrente:

Não há um só indivíduo naquelas paragens que não diga que os escravos


importados [refere-se ao desembarque do Bracuí] estão na fazenda de
Pirahí, propriedade do opulento José Breves, de infalível recordação quando
se fala em tráfico de africanos [grifos do autor]. Esta fazenda forte como
uma citadela está guarnecida com perto de 2.000 homens segundo se diz.
(FERREIRA, 1996, p. 178)54

51
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468, grifos nossos.
52
Ibid.
53
Em 1850 o navio Esmeralda, de propriedade de Ruviroza, desembarcou em Mangaratiba, região
de domínio dos Breves, 500 africanos. Em Cabinda havia embarcado 556 cativos com destino ao
Brasil. The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages. Voyage 4629. Segundo Daniela Yabeta
(2009, p. 72), Joaquim Antônio Ferreira, morador de Itacuruçá, casado, de 34 anos, interrogado
pela Auditoria Geral da Marinha, teria dito o seguinte: “não sabia o nome do navio nem a quem
pertencia, sabia apenas que servia e foi enviado a D. Francisco, que lhe contaram ser espanhol e
estar na dita ilha a espera dos africanos”.
54
Segundo o autor, ver o relatório do cruzeiro vapor Thetis em 22 jan. 1853 (Arquivo Nacional. IJ6
472).
32
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

O relatório do vapor Thetis, que patrulhava a região sul fluminense à


procura de novos desembarques, foi enfático ao afirmar a participação de
José Breves no desembarque do Bracuí. Ia além, dizendo que boa parte
dos 540 africanos estava na fazenda do Pinheiro, residência do comenda-
dor em Piraí. A prova cabal da ilegalidade da transação negreira parecia
estar muito bem-escondida em uma das principais e mais bem-equipadas
fazendas do vale cafeeiro. Em 1853 era pública e notória a relação do dono
do Pinheiro com os escusos negócios do tráfico.
Mesmo com a crescente repressão jurídica e moral da sociedade oi-
tocentista brasileira, o envolvimento dos Souza Breves com o comércio
negreiro não cessou após o desembarque de dezembro de 1852. Em 1853
o vapor de guerra Recife inspecionava o litoral sul fluminense. Segundo
o comandante do navio, as instruções se referiam a um possível desem-
barque pelas bandas do Bracuí, para onde devia seguir. Entrando na baía
da ilha Grande, cruzou com o vapor Thetis e definiu que inspecionariam
as entradas sul e norte da baía, por onde necessariamente passariam os
navios dedicados ao infame comércio. Ao término das suas instruções, o
comandante do vapor Recife recomendava ao seu colega que:

[...] ele tivesse também cuidado nos outros pontos, recomendando-


-lhe com especialidade a entrada Sul, e os navios que se dirigissem para
Jerumirim até Paraty, porque me tinha contado que ainda se esperava outro
navio d’Africanos para desembarcá-los no Bracuí, ou por ali próximo pois per-
tenciam aos mesmos donos dos que ultimamente naqueles lugares desembar-
caram. Tais donos ou interessados neste negócio, eu tenho com esforço
procurado saber com certeza quem são, porém infelizmente ainda não
pude descobrir, apenas me tem contado serem José Breves, seu sogro, um tal
Coimbra e certo Custódio, morador na [Mambucaba] lugar este também per-
to do Bracuí e que este último até mandara para serem tratados em Paraty,
alguns escravos que desembarcaram ultimamente, e estavam doentes.55

Cerca de um mês após o desembarque dos africanos do brigue Camargo,


a Polícia da Corte recebera notícias de uma nova tentativa de tráfico na
região. O desembarque se realizaria nas mesmas terras, e José Breves,
conjuntamente com Coimbra, organizaria tal empreendimento. Cabe
lembrarmos que foi Coimbra o principal articulador do desembarque rea-
lizado em dezembro de 1852, dono do navio Camargo ao qual ateou fogo
após o desembarque. Juntava-se a eles um novo personagem, Custódio,
morador da região, que parecia cuidar da logística do desembarque e do
transporte dos africanos até os lugares adequados.
No mês de setembro de 1853, o brigue Maria Izabel, de proprieda-
de de Joaquim Breves, era suspeito de trazer da costa leste uma porção
de africanos, que seriam desembarcados no litoral sul do Rio de Janeiro.
55
Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 472, grifo nosso.
33

Thiago Campos Pessoa Lourenço


Quando iniciada a denúncia, acreditava-se que o brigue ainda estaria na
costa de Santa Catarina. Rapidamente a Polícia da Corte acionou as au-
toridades da comarca de Angra dos Reis recomendando-lhes vigilância e
cautela. Ao mesmo tempo, deslocou efetivo para auxiliar na apreensão
dos africanos e prisão dos traficantes envolvidos. Nesse momento, o bri-
gue do comendador já se encontrava em águas brasileiras:

Apresso-me a comunicar a V. Ex.ª que pessoa em quem deposito toda con-


fiança acaba de informar-me que o brigue Maria Isabel, que vem da costa
carregado de Africanos pertencente a Joaquim José de Souza Breves [grifos
do autor], acha-se já nas águas do Brasil e pretende descarregar em qual-
quer lugar ao sul da Província do Rio de Janeiro, e com especialidade na
Guaratiba.56

O brigue, que curiosamente tinha o mesmo nome da esposa de


Joaquim, não foi encontrado. Apesar do empenho da Marinha na repres-
são ao tráfico na Marambaia, o efetivo desembarque não foi registrado.
No entanto, as denúncias em relação aos Souza Breves não paravam de
chegar à secretaria da Polícia da Corte, tanto que em fevereiro de 1854,
quatro anos após a publicação da Lei Eusébio de Queiroz, Joaquim e José
eram novamente acusados de continuarem organizando o empreendi-
mento negreiro, cuidando, inclusive, da redistribuição dos africanos.

[...] tenho de participar a V. Ex.a, que fui informado, que os dois irmãos
Joaquim José de Sousa Breves, e José de Sousa Breves convidaram diver-
sos fazendeiros dos Municípios de S. João do Príncipe, e Pirahy a esta-
rem para comprar uma porção d’Africanos, que mandaram vir de Costa
de Leste em seu navio, que deve aportar à Província o Rio de Janeiro, de-
mandando especialmente a parte dela compreendida entre a Guaratiba, e
Angra dos Reis, e que aquele navio deve chegar em dias deste mês, ou do
próximo futuro.57

Como vemos, os negócios do tráfico não haviam cessado em 1854. Os


irmãos Souza Breves continuavam agindo conjuntamente na articulação
do infame comércio. Não era incomum que esse tipo de negócio fosse ar-
ticulado por importantes famílias do Brasil e da África nos séculos XVIII e
XIX (THOMPSON, 2006). É possível que quatro anos após a proibição do
tráfico os Breves continuassem embarcando africanos em tumbeiros pró-
prios, como o Maria Izabel, e redistribuindo-os entre os ricos fazendeiros
do antigo Vale do Paraíba.

56
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 472. Secretaria de Polícia da Corte. Reservado, 2 set. 1853.
57
Arquivo Nacional. Série Justiça IJ6 468. Secretaria de Polícia da Corte. Reservado, fev. 1854, grifo
nosso.
34
Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense

Os comendadores, em meados do Oitocentos, controlavam várias fases


do empreendimento negreiro. Possuíam agentes no continente africano,
além de embarcações próprias para o comércio negreiro. No litoral sul do
Rio de Janeiro contavam com fazendas como o Bracuí e a Marambaia, que
detinham uma estrutura montada e organizada para os desembarques e
a recepção de recém-chegados da costa africana. Por último, cuidavam da
redistribuição e do comércio negreiro entre suas próprias fazendas e as
demais propriedades escravistas. Os Souza Breves articulavam boa parte
da cadeia de relações do tráfico de escravos entre a África e o Império do
Brasil a partir do final da década de 1830.
Nesse contexto, encontramos vários ofícios solicitando que vapo-
res de guerra vasculhassem áreas suspeitas, como Jurumirim, Bracuí e
Marambaia. As fazendas dos irmãos Breves estavam na rota do tráfico e
faziam parte daquelas propriedades destinadas à recepção de africanos,
encontrando-se na lista da Polícia da Corte. Em 1855, deparamo-nos
com o último registro do envolvimento da família Breves no ilícito trato
negreiro:

[...] a muito conhecido o espanhol D. Francisco Ruviroza [...] nesta cidade


ou suas imediações que seu fim não se pode duvidar que seja plano de
introduzir aqui algum carregamento de africanos [...] conforme toda apa-
rência que seja a fazenda da Marambaia e seu proprietário Joaquim Breves
envolvida nesta trama [...].58

Na impossibilidade de agirem sozinhos em uma rede tão complexa


quanto a que envolvia o comércio internacional de escravos, os Souza
Breves acionavam seus contatos comerciais nos dois lados do Atlântico.
Na segunda metade da década de 1850, os grandes investidores do tráfi-
co voltavam seu interesse para o comércio com a pequena ilha de Cuba.
Ruviroza e outros importantes traficantes da época redirecionaram seus
investimentos para outras áreas, abandonando de vez o comércio de es-
cravos para o Império do Brasil. Nesse contexto, a repressão ao tráfico era
implacável, transformando qualquer denúncia de desembarque de africa-
nos em um rigoroso inquérito policial, que contava com o gerenciamento
da Auditoria da Marinha, órgão de particular importância no combate
ao comércio de africanos no pós-1850. Somava-se a isso o fato de que a
sociedade brasileira parecia cada vez mais convicta na condenação mo-
ral ao tráfico, mostrando-se disposta, em alguns casos, a colaborar com o
governo brasileiro a partir da década de 1850. Aos Souza Breves restava
reordenarem seus investimentos, abastecendo suas fazendas com os es-
cravos procedentes das demais províncias do Império. Joaquim Breves

58
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Arquivos particulares – Senador Nabuco de Araújo.
Lata 366, pasta 57.
35

Thiago Campos Pessoa Lourenço


passava, inclusive, a investir na imigração de colonos portugueses pobres
(ALENCASTRO, 1988).
Capítulo 2

Da comunidade remanescente de quilombo

da Auditoria Geral da Marinha sobre

Daniela Yabeta1

Da comunidade remanescente de

A primeira vez que estive com os moradores da Ilha da Marambaia


foi em dezembro de 2005, quando eu cursava a graduação em História e
estagiava no programa Egbé Territórios Negros de Koinonia, uma entida-
de ecumênica de serviço sem fins lucrativos que produziu o laudo de re-
conhecimento étnico e territorial da comunidade como remanescente de
quilombo (ARRUTI, 2003b).2 Localizada no município de Mangaratiba,
litoral sul do Rio de Janeiro, a Marambaia pertence à União Federal e é
administrada pela Marinha desde a década de 1970.3 Como visto no capí-
tulo anterior, em meados do século XIX, a ilha pertenceu ao comendador

1
Daniela Yabeta é doutoranda em história pela UFF. Este texto é uma versão atualizada do II capítu-
lo da minha dissertação de mestrado, intitulado “Os processos” (YABETA,2009).
2
Para maiores informações sobre o programa Egbé Territórios Negros, ver Koinonia Presença Ecu-
mênica e Serviço. Programas. Disponível em: <www.koinonia.org.br/programas-egbe.asp>. Acesso
em: 18 maio 2012.
3
Art. 2º – “O Ministério da Marinha firmará acordo com a Fundação Abrigo do Cristo Redentor para
receber o acervo da Escola Técnica Darcy Vargas, que ficará sob a administração daquela Secretaria
de Estado, que lhe dará a destinação que melhor atenda o interesse público. Parágrafo único – A
transferência da parte imobiliária do acervo será efetivada mediante o termo lavrado em livro
próprio do Serviço de Patrimônio da União” (Decreto nº 6.8224, de 12 de fevereiro de 1971 – Au-
toriza a reincorporação ao patrimônio da União dos bens móveis e imóveis da Escola Técnica Darcy
Vargas, da Fundação Abrigo Cristo Redentor).
38
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

Joaquim José de Souza Breves e era utilizada por ele como um porto clan-
destino para desembarque de africanos. Antes de morrer, em setembro
de 1889, de acordo com a memória dos ilhéus, o comendador Breves teria
doado as praias da Marambaia para as famílias de ex-escravos que conti-
nuaram vivendo por lá após a abolição.
Minha atuação como estagiária do programa Egbé Territórios Negros
durante os anos de 2005-06 permitiu que eu acompanhasse de perto o
conflito vivenciado pelos ilhéus da Marambaia em busca da titulação de
seu território como remanescente de quilombo. Uma das minhas atribui-
ções era fazer a postagem das notícias no site do Observatório Quilombola,
vinculado ao programa.4 A grande maioria delas falavam sobre o conflito
dos moradores da Marambaia com a Marinha, embate que eu também
acompanhava através do processo administrativo pela titulação do terri-
tório remanescente de quilombo pelo Instituto de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) e através da ação civil pública, ajuizada pelo Ministério
Público em 2002 contra a União Federal e a Fundação Cultural Palmares.5
Nesses processos, questões como o tráfico de africanos no século XIX e a
formação de quilombos no Brasil eram comumente discutidas por antro-
pólogos, advogados e juristas, por conta da memória da escravidão pre-
sente na comunidade da Marambaia.
No meio de todo esse debate, uma situação em especial me chamou a
atenção. Tratava-se de uma ação de reintegração de posse ajuizada pela
União Federal na década de 1990 contra d. Zenilda Soares Felicíssimo,
moradora da praia da Armação.6 Dona Zenilda foi intimada a prestar de-
poimento e compareceu à audiência sem advogado. Diante da juíza, con-
tou que nasceu e cresceu na Marambaia, assim como seus pais e avós. Por
conta do depoimento de d. Zenilda, a juíza não efetivou a reintegração
de posse solicitada pela União Federal. Muito pelo contrário, o relato da
moradora despertou na juíza a ideia de que a casa de d. Zenilda poderia se
constituir num território quilombola, de acordo com o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal
de 1988. A juíza, então, solicitou ao Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) um relatório sobre a presença de quilombos
na Marambaia.7 O resultado do relatório foi negativo. O argumento do
4
“O Observatório Quilombola é um espaço interativo, interdisciplinar, dedicado à coleta, organi-
zação e análise de informações relativas às comunidades negras rurais e quilombolas, em seus
contextos locais e regionais, assim como às políticas pertinentes.” Disponível em: <www.koinonia.
org.br/oq/quemsomos.asp>. Acesso em: 27 jun. 2012.
5
Em dezembro de 2011 realizei o levantamento de todas as notícias publicadas no Observatório
Quilombola sobre a ilha da Marambaia. De outubro de 2004 até dezembro de 2011 foram contabi-
lizadas 315 notícias. Processo administrativo no 54180.000945/06-83, referente à regularização
fundiária da comunidade remanescente de quilombo da ilha da Marambaia – Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra). Processo no 2002.5111000118-2 – Ação civil pública –Mi-
nistério Público Federal, 14 fev. 2002.
6
Processo no96.0007682-0 – Ação de reintegração de posse ajuizada pela União Federal contra Ze-
nilda Soares Felicíssimo, maio de 1996.
7
Ibid. Assentada: 20 de março de 1997.
39

Daniela Yabeta
pesquisador responsável foi de, que por se tratar de uma ilha, a possibili-
dade de formação de quilombos seria quase nula. Além disso, ele também
relatou que, através de uma pesquisa arquivística, havia identificado um
processo julgado pela Auditoria Geral da Marinha em 1851 no qual consta
a presença de oficiais de Marinha e imperiais marinheiros, além da pró-
pria Polícia da Corte, na ilha da Marambaia.8 Todos estariam em busca de
africanos recém-desembarcados que, de acordo com uma denúncia, ha-
viam chegado havia poucos dias na Marambaia. De fato, a diligência, após
vasculhar toda a ilha, apreendeu 199 africanos que foram levados para a
Corte para julgamento, pelo auditor-geral da Marinha, sobre suas liber-
dade de acordo com o art. 1º da lei antitráfico de 1831, que previa a liber-
dade de todos os africanos desembarcados após aquela data em território
nacional. O raciocínio do pesquisador do Iphan foi de que, se por acaso
houvesse quilombo na Marambaia, tal diligência em busca de africanos
recém-desembarcados ilegalmente teria descoberto o grupo.9
As informações sobre o tráfico de africanos na ilha me remeteram
ao laudo pelo reconhecimento étnico e territorial da comunidade da
Marambaia como remanescente de quilombo. O trabalho, finalizado em
2003, foi coordenado pelo antropólogo José Maurício Arruti, que na épo-
ca também atuava na coordenação do programa Egbé Territórios Negros
de Koinonia. Nesse laudo, a ênfase do trabalho recai na memória da es-
cravidão entre os moradores da ilha e na relação desses moradores com o
território pleiteado. A memória sobre o tráfico ilegal e o entendimento da
Marambaia como “uma fazenda de engorda do comendador” foram utili-
zados pelo antropólogo como base para a construção da nova identidade
quilombola. Nesse sentido, as fontes existentes sobre o desembarque ile-
gal de 1851 reforçavam a memória dos ilhéus, e seu pleito de serem en-
quadrados como comunidade remanescente de quilombo nos termos em
que o art. 68 do ADCT da Constituição de 1988 vinha sendo regulado.10
No laudo, portanto, também há menção ao episódio da diligência na ilha
da Marambaia, que teria ocorrido por conta de um “flagrante policial”.
Como referência desse “flagrante”, Arruti (2003b, p. 95) indica uma carta
precatória de 1856 encontrada no Arquivo Nacional. Ao buscar tal carta,
percebi que ela tratava do mesmo processo da Auditoria Geral da Marinha
informado pelo pesquisador do Iphan em seu relatório anexado à ação de
reintegração de posse ajuizada contra d. Zenilda.
As duas referências ao processo da Auditoria Geral da Marinha foram
mais do que o suficiente para que eu buscasse a documentação completa
no Arquivo Nacional. Estava acostumada a acompanhar o conflito entre
a Marinha e os ilhéus da Marambaia no tempo presente e acreditava que

8
Relatório de pesquisa do Iphan sobre a possível existência de quilombo na praia da Armação, ilha
da Marambaia, elaborado por Joaquim Alcides Ribeiro em 9 de julho de 1997.
9
Sobre a presença de quilombo da ilha da Marambaia consulte Gomes (2006, p. 286, 287).
10
Sobre a legislação acerca de novos quilombos e sua regulação, ver o capítulo final deste volume.
40
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

o processo da Auditoria Geral da Marinha me permitiria ver como era a


relação entre a Marinha e os escravizados que trabalhavam, ou que foram
desembarcados na Marambaia, na segunda metade do século XIX.
Encontrei muito mais do que esperava! Na verdade, como visto no ca-
pítulo anterior, ao contrário de um suposto isolamento, a restinga tor-
nou-se rapidamente um dos lugares mais visados pela repressão ao trá-
fico ilegal de africanos após 1850. Provavelmente, porque era de amplo
conhecimento das autoridades locais e imperiais seu uso para este fim.
Encontrei dois processos julgados pela Auditoria Geral da Marinha refe-
rentes à apreensão de africanos na Marambaia, ambos em 1851, ainda
que sem “flagrante” do desembarque. O chefe de polícia interino da Corte,
oficiais de Marinha e imperiais marinheiros foram até a Marambaia por
conta de uma denúncia e, ao inspecionarem a ilha, apreenderam 199 afri-
canos suspeitos de serem recém-desembarcados. Exatamente como havia
descrito o pesquisador do Iphan, apesar de o mesmo ter trocado o nome
do chefe de polícia. A novidade foi que encontrei outra diligência na qual
mais de 455 africanos foram apreendidos. As duas ocorreram em menos
de uma semana. Além disso, encontrei o processo referente ao iate Jovem
Maria, apreendido na altura da ilha Grande e da ilha da Marambaia em
dezembro de 1850. Parte da tripulação apreendida declarou, durante o
interrogatório, que a referência do desembarque era a ilha da Marambaia,
e por conta disso também foi separado para análise. O iate Jovem Maria
foi apreendido, em alto-mar pela Marinha brasileira, com 291 africanos.
Percebi que a leitura atenta desses documentos poderia oferecer uma
nova possibilidade para se pensar o tráfico de africanos na Marambaia,
recuperando também sua perspectiva atlântica.11 Foram esses processos
que pesquisei durante o mestrado (YABETA, 2009).

O caminho quilombola em busca da titulação de seu território na


ilha da Marambaia, sustentado pelo art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, acabou me levando
para uma questão além do debate político e antropológico sobre o tema.
Meu interesse passou a ser o julgamento em primeira instância, pela
Auditoria Geral da Marinha, sobre a liberdade dos africanos apreendidos
na Marambaia pelo chefe de polícia interino da Corte, Bernardo Azambuja,
e pelo juiz municipal e delegado de Mangaratiba, João José de Andrade
Pinto, em fevereiro de 1851. Sendo assim, foi necessário entender qual a
11
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Auditoria Geral da Marinha, microfilme 116-2001 (1851) – Pro-
cesso de presa feita pelo vapor de guerra Urânia de um iate com 291 africanos nos mares da ilha
Grande. Auditoria Geral da Marinha, microfilme 117-2001 (1851) –Processo de presa feita na ilha
da Marambaia, de 199 africanos que constava terem sido recentemente ali desembarcados. Audito-
ria Geral da Marinha, microfilme 120-2001(1851)– Translado de sentença do processo contra um
patacho com carregamento de africanos, encalhado no dia 5 de fevereiro de 1851 nas costas da ilha
da Marambaia.
41

Daniela Yabeta
legislação que determinava que esses dois processos fossem encaminha-
dos para julgamento naquele tribunal. Porém, para chegar até o momento
em que a Auditoria da Marinha recebeu mais essa atribuição, precisei vol-
tar ainda mais no tempo e relembrar os tratados internacionais firmado
entre Inglaterra e Portugal, e posteriormente, Inglaterra e Brasil, assim
como as leis de proibição ao tráfico de africanos promulgadas no Brasil em
1831 e 1850, já analisadas por diversos historiadores (BETHELL, 2002;
RODRIGUES, 2000; CARVALHO, 2003; MAMIGONIAN, 2002).
Começamos pelo ano de 1807, quando a Inglaterra aboliu o comércio
escravista. A partir daí, o Parlamento britânico iniciou uma campanha mi-
litar e diplomática para eliminá-lo em diversos países, principalmente os
mais vulneráveis às suas pressões. Essa decisão britânica transformou o
sentimento crescente de condenação da escravidão e do tráfico de escravos
em uma política pública que direcionaria e justificaria as ações do gover-
no britânico ao longo de todo século XIX (MAMIGONIAN; GRINBERG,
2007, p. 87).
No que se refere a Portugal, a pressão inglesa para o fim do comércio
negreiro remonta à vinda da família real para o Rio de Janeiro, em 1808
(RODRIGUES, 2000, p. 97). Devido a uma série de problemas em fun-
ção das guerras napoleônicas, Portugal transferiu sua corte para o Brasil
e, para isso, contou com a proteção da Inglaterra. Em troca, o príncipe
regente assinou um tratado de aliança e amizade em 19 de fevereiro de
1810. Nesse tratado, Portugal mantinha o direito de comerciar escravos
em todos os seus domínios africanos e, em contrapartida, concordava em
cooperar com a Grã-Bretanha pela adoção de medidas mais eficazes que
levassem a cabo a gradual abolição do comércio de escravos em todos os
seus demais domínios (BETHELL, 2002, p. 29, 30).
Anos mais tarde, em 1815, o debate sobre o fim do tráfico chegou
ao Congresso de Viena, onde Portugal assinou um novo acordo com a
Inglaterra pelo fim do comércio negreiro. Desta vez, foi proibido a todo
vassalo da Coroa de Portugal comprar ou traficar escravos em qualquer
lugar da costa da África ao norte do equador, região que incluía a tra-
dicional fonte abastecedora da costa da Mina (atuais Daomé e Nigéria,
na África ocidental), em troca de uma substancial indenização financeira.
Entretanto, a repressão ao tráfico só foi regulamentada por uma conven-
ção adicional ao tratado assinada em 28 de julho de 1817. Essa convenção
instituía direito a ambos os governos (Portugal e Inglaterra) de dar bus-
cas em navios um do outro caso houvesse a mínima suspeita de tráfico
de africanos e criava comissões mistas no Rio de Janeiro, Serra Leoa e
Londres (RODRIGUES, 2000, p. 98; BETHELL, 2002, p. 34, 35).
As comissões eram compostas por um juiz, um comissário de arbitra-
gem de cada nação e um secretário ou oficial de registro nomeado pelo
governo em cujo território a comissão estivesse situada. Cabia a essas co-
missões decidir, sem direito a recurso, se o navio era ou não um negreiro
42
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

comerciando ilicitamente. Em caso de condenação, o produto da venda


dos navios seria dividido entre os dois governos. Os africanos apreendi-
dos, por sua vez, receberiam alforria e prestariam serviços como trabalha-
dores livres. Caso a embarcação fosse absolvida, tanto o navio quanto os
escravos seriam restituídos aos seus proprietários. As comissões mistas
não tinham jurisdição sobre os proprietários, comandante ou tripulação
de um navio condenado; eles deveriam ser encaminhados às autoridades
de seus países para julgamento e punição em seus próprios tribunais. Os
termos desse novo tratado motivaram confrontos, que apareciam prin-
cipalmente nas reações dos comerciantes da Bahia e do Rio de Janeiro.
Tais confrontos revelavam a dificuldade do governo português e brasileiro
em fazer cumprir os compromissos assumidos com a Inglaterra no que
se refere ao fim do tráfico de africanos (RODRIGUES, 2000, p. 98, 99;
MAMIGONIAN; GRINBERG, 2007, p. 87; BETHELL, 2002, p. 39, 40).
Com a independência em 1822, o Brasil tornou-se o maior importador
de escravos sem qualquer compromisso formal de aboli-lo. Teoricamente,
os comerciantes brasileiros, ou mesmo portugueses que tinham assumi-
do a nacionalidade brasileira, poderiam legalmente comerciar escravos da
África para o Brasil, incluindo as regiões ao norte do equador, sem qual-
quer receio de interferência das autoridades brasileiras ou da Marinha bri-
tânica, mas na prática a situação era bem diferente. Para a Grã-Bretanha,
era essencial persuadir o Brasil a proibir o comércio negreiro para que to-
dos os seus esforços diplomáticos desde 1807 não fossem anulados. Para
o Brasil, era necessário assegurar o reconhecimento internacional de sua
independência. Esse impasse foi logo percebido pelo ministro do exterior
da Inglaterra, Lord Canning ao declarar, em 27 de setembro de 1822, que
nenhum estado do Novo Mundo seria reconhecido pela Grã-Bretanha
se não tivesse franca e completamente abolido o comércio de escravos
(BETHELL, 2002, p. 52, 53).
Canning instruía o representando inglês no Rio de Janeiro, Henry
Chamberlain, no sentido de informar o novo governo brasileiro a res-
peito dos princípios condenatórios ao comércio de escravos. Essas con-
versas não deveriam ser em tom de ameaça ou de intimidação; apenas
deveriam deixar transparecer o desejo do governo britânico de que o fim
do tráfico de africanos fosse proposto por um ato voluntário do governo
brasileiro. As negociações de Chamberlain com o ministro dos Negócios
Estrangeiros do Império, José Bonifácio, até que foram bastante amigá-
veis. Mesmo assim, Bonifácio defendia, em 1823, que a abolição imediata
do tráfico era precipitada e propunha uma suspensão gradativa, em dois
ou três anos, tempo necessário para que se encaminhasse a imigração
branca para substituir a africana. A abolição imediata do tráfico era consi-
derada por ele um suicídio político. As conversas entre os dois países pros-
seguiram sempre centradas na barganha envolvendo o reconhecimento
da independência do Brasil em troca de garantias seguras da abolição do
43

Daniela Yabeta
tráfico. Em 13 de novembro de 1826 foi assinado um novo tratado, desta
vez, o primeiro anglo-brasileiro, que previa o fim do tráfico para dali a três
anos. Ratificado pela Coroa inglesa em 13 de março de 1827, ele mante-
ve os termos dos tratados assinados entre Portugal e Inglaterra em 1815
e 1817 (RODRIGUES, 2000, p. 99, 100; CARVALHO, 2003, p. 254, 294;
BETHELL, 2002, p. 99).
Foi durante a Regência que o governo brasileiro passou a pensar na
responsabilidade de repressão ao tráfico de escravos. Isso ocorreu devido
a um forte ressentimento em relação à interferência britânica nos assun-
tos nacionais. Buscando uma solução para o impasse, em 31 de maio de
1831, Felisberto Caldeira Brant – o marquês de Barbacena – introduziu
no Senado brasileiro um projeto de lei contra o comércio de escravos que
foi prontamente aprovado. Esse projeto foi imediatamente remetido à
Câmara, onde vários deputados já tinham se manifestado em favor de
alguma forma de legislação preventiva contra o tráfico negreiro. Padre
Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça na época, foi o principal res-
ponsável pela condução do projeto Barbacena na Câmara, que finalmente
tornou-se lei em 7 de novembro de 1831 (RODRIGUES, 2000, p. 110).
Através desta determinação, os legisladores brasileiros foram ainda
mais rígidos com aqueles envolvidos no tráfico de escravos do que até en-
tão estava inscrito nos acordos bilaterais. Além de declarar livres todos os
escravos introduzidos no país a partir daquela data e determinar que fos-
sem reenviados para a África, previa também punição para todos que se
envolvessem no transporte e na venda dos africanos (CARVALHO, 2003,
p. 295). Em 12 de abril de 1832, foram introduzidos novos regulamentos
que previam a inspeção, pela polícia e pelos juízes de paz locais, de todos
os navios que entrassem ou saíssem de um porto brasileiro. Também es-
tava previsto um exame mais cuidadoso dos escravos postos à venda no
Brasil, a fim de verificar se eles tinham sido importados antes de 13 de
março de 1830.
Conhecida como “lei para inglês ver”, ou seja, um simples resultado
das pressões da Inglaterra pela interrupção do tráfico atlântico de afri-
canos, a lei de 7 de novembro de 1831 passou para a história como se ti-
vesse sido criada para existir apenas no papel e nunca ser implementada.
De acordo com Mamigonian e Grinberg (2007), ficou popular justamente
por representar a suposta característica brasileira de promulgar leis para
jamais cumpri-las. Durante muito tempo, a historiografia corroborou
esta interpretação, baseando-se no fato de a lei não ter servido muito à
repressão do tráfico, que no fim da década de 1830 e durante a década
de 1840 alcançou volumes de importação antes inéditos. Por isso, sem-
pre foi alvo de todo tipo de crítica, inclusive tentativa de revogação, em
1837. Novas abordagens historiográficas reconhecem que a Lei de 1831
teve interpretações diversas (e controversas) entre as décadas de 1830
e 1880, buscam mapeá-las e, assim, trazem contribuições importantes
44
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

para a reinterpretação do impacto desta lei nas transformações na escra-


vidão brasileira durante o século XIX (BETHELL, 2002, p. 88, 89, 92-97;
CARVALHO, 2003, p. 294).
Logo depois da promulgação da lei de novembro de 1831, o poder le-
gislativo passou a discutir diversos pontos dela, tais como a atuação das
comissões mistas anglo-brasileiras e a própria ineficácia da lei. Caldeira
Brant, (marquês de Barbacena) autor da Lei de 1831, elaborou, em 1837,
um novo projeto a ser discutido no Senado, desta vez para revogar a lei
de sua autoria. Nesse projeto, os africanos livres que tivessem sido com-
prados como escravos ficavam impossibilitados de reverter sua situação e
reivindicar a condição de livres. Quanto aos senhores compradores, estes
ficariam a salvo de qualquer ação penal. Todo o ônus do tráfico ficava com
os traficantes, que seriam julgados por juízes de direito, como auditores
de Marinha. Também estariam passíveis de processo os tripulantes das
embarcações e os que auxiliassem nos desembarques. A pena para os réus
seria de três a nove anos de degredo para Fernando de Noronha, além do
pagamento das despesas de reexportação dos africanos. Menos rigoroso
do que a Lei de 1831, o novo projeto de Barbacena contemplava os senho-
res, ao livrá-los da responsabilidade, e também estimulava, indiretamen-
te, a continuidade do tráfico ilegal (RODRIGUES, 2000, p. 118).
Em 1844, com a subida dos liberais ao governo, a Câmara dos Deputados
voltou a se reunir em torno da tarefa de elaborar um novo tratado antitráfico,
já que o anterior, assinado com a Inglaterra, expiraria no mesmo ano. Os bri-
tânicos continuavam pressionando pela manutenção dos termos do tratado
de 1826, no qual o tráfico de africanos era considerado “crime de pirataria”,
principalmente por esta especificidade do tipo de crime não ter entrado na Lei
de 1831. As exigências britânicas não ficaram restringidas a conversas diplo-
máticas; assumiram também formas bélicas, como o apresamento de navios
no próprio litoral brasileiro. Por outro lado, havia também a pressão feita pelos
senhores brasileiros, que diretamente ou por meio de assembleias provinciais,
pediam modificações ou a própria revogação da Lei de 1831.
A recusa sistemática do governo brasileiro em assinar um novo tratado
nos moldes que o governo britânico desejava levaram ao fim das negocia-
ções e à promulgação unilateral do Bill Aberdeen, em 8 de agosto de 1845.
Tratava-se de uma lei que autorizava o governo inglês a julgar os navios
brasileiros como piratas, em tribunais ingleses, quaisquer que fossem os
locais onde ocorressem as capturas. A lei foi promulgada ignorando os
protestos da legação brasileira em Londres. Somente em 1848 os liberais
voltaram a analisar o projeto de Barbacena proposto em 1837. O proje-
to foi aprovado na Câmara em segunda discussão, mas com importantes
modificações que enfraqueciam seu poder de repressão ao tráfico, ao re-
verter ao júri popular o julgamento dos traficantes. Os deputados tam-
bém não conseguiram definir-se quanto ao artigo que revogava a Lei de
1831 (RODRIGUES, 2000, p. 115; CARVALHO, 2003, p. 296).
45

Daniela Yabeta
A ação inglesa atingiu o auge em junho de 1850, quando o almi-
rante Reynolds, com o apoio do ministro do Exterior da Inglaterra,
LordPalmerston e de seu representante no Brasil, James Hudson, passou
a invadir portos brasileiros e neles apreender e afundar navios nacionais.
A atitude britânica acabou despertando a indignação popular. Liberais e
conservadores foram alvos de críticas quanto à incapacidade de evitar vio-
lações da soberania nacional (CARVALHO, 2003, p. 297). Em 12 de julho
do mesmo ano o governo apresentou um projeto à Câmara, que na época
contava com apenas um deputado liberal. Esse novo projeto era baseado
no apresentado por Barbacena em 1837 e previa que os traficantes fossem
julgados por juízes de direito, como auditores de Marinha. A diferença era
que o projeto de 1850 mantinha a Lei de 1831, diferentemente da propos-
ta de revogação apresentada no projeto de 1837.
Discutido em sessões secretas, esse novo projeto foi aprovado na Câmara
cinco dias depois (17 de julho) e remetido ao Senado para votação das emendas.
Em 13 de agosto foi aprovado no Senado e se tornou lei em 4 de setembro de
1850 (Lei nº 581). Além da pressão inglesa, o medo da haitianização e a busca
pela garantia da integridade do território brasileiro também foram questões-
-chave para que a nova lei antitráfico fosse promulgada (RODRIGUES, 2000,
p. 50). Com essa medida o governo passou a colaborar com a ação inglesa.
Hudson e o almirante Reynolds tinham concordado, a pedido do ministro dos
Negócios Estrangeiros, Paulino de Souza, em suspender as agressões dentro
dos portos, a fim de facilitar a aprovação da lei.
Conhecida como “Eusébio de Queiroz”, ministro da Justiça na época e
grande articulador da sua promulgação, a nova lei alterou a tramitação dos
processos judiciais referentes ao tráfico de africanos e passou a considerá-lo,
através do seu art. 4º, como crime de pirataria.12 Sobre o apresamento das em-
barcações suspeitas, a condenação dos traficantes e a liberdade dos africanos
apreendidos, o art. 8º determinava que passariam a ser julgados em primeira
instância por um tribunal especial – a Auditoria Geral da Marinha,13 e em se-
gunda instância pelo Conselho de Estado (RODRIGUES, 2000, p. 117).

12
“Art. 4º – A importação de escravos no território do Império fica nele considerada como pirataria,
e será punida pelos seus tribunais com as penas declaradas no artigo segundo da Lei de 7 de no-
vembro de 1831. A tentativa e a cumplicidade serão punidas segundo as regras dos artigos 34º e
35º do Código Criminal. Câmara dos Deputados. Decreto no 708 de 14 de outubro de 1850: Regula
a execução da lei que estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos neste Império.”
(Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
13
“Art. 8º – Todos os apresamentos de embarcações, de que tratam os Artigos 1º e 2º, assim como a
liberdade dos escravos apreendidos no alto do mar, ou na costa antes do desembarque, no ato dele,
ou imediatamente depois em armazéns, e depósitos sitos nas costas e portos, serão processados e
julgados em primeira instância pela Auditoria da Marinha, e em segunda pelo Conselho de Estado.
O Governo marcará em Regulamento a forma do processo em primeira e segunda instância, e po-
derá criar Auditores da Marinha nos portos onde convenha, devendo servir de Auditores juízes de
Direito das respectivas Comarcas, que para isso forem designados. Câmara dos Deputados. Decreto
no 708 de 14 de outubro de 1850: Regula a execução da lei que estabelece medidas para a repressão
do tráfico de africanos neste Império.” (Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
46
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

Pouco depois, em 14 de outubro de 1850, o Decreto nº 708 estabele-


cia medidas efetivas de repressão ao ilícito comércio. Determinava que
depois de apreendidas, as embarcações suspeitas deveriam ser apresadas
e encaminhadas ao porto mais próximo. Chefes de polícia, juízes munici-
pais e delegados ficavam encarregadas de procurar e apreender o navio e
os africanos, mas agora era o auditor de Marinha quem conduzia o julga-
mento. Cabia ao apresador comunicar por escrito ao auditor de Marinha
competente o motivo do apresamento. No documento o apresador deve-
ria relacionar dia e hora em que foi efetuada a apreensão, em que paragem
e altura, que bandeira a embarcação trazia, se tentou fugir de vista, além
de informar o número de africanos encontrados suspeitos de serem livres
– de acordo com a lei de 7 de novembro de 1831 –, descrever os documen-
tos apresentados pela tripulação, enfim, tudo que comprovasse o compro-
metimento da embarcação com o tráfico atlântico de africanos. O mesmo
decreto também tratava da designação dos auditores de Marinha. Estava
previsto um auditor na corte do Rio de Janeiro e outros nas cidades de
Belém do Pará, São Luiz do Maranhão, Recife, Bahia e Porto Alegre. Os
auditores seriam juízes de direito designados pelo governo. Em falta de
designação especial, serviria o juiz que fosse chefe de polícia; se este fosse
desembargador, serviria o juiz de direito da 1ª Vara Crime. Nas suas faltas
ou impedimentos, os auditores poderiam ser substituídos por juízes mu-
nicipais e, caso fosse necessário, poderiam ser criadas novas auditorias
em outros portos no Império. Para finalizar, através do Decreto nº 708
o governo determinava os critérios para que um navio fosse considerado
tumbeiro.
Logo em seguida, em 14 de novembro de 1850, foi promulgado o
Decreto nº 731, que determinava o procedimento para julgamento em se-
gunda instância pelo Conselho de Estado. O Decreto nº 731A, do mesmo
dia, tratava da porcentagem “extra” que competia ao auditor de Marinha
e ao seu escrivão, decorrentes das apreensões de navios que fossem consi-
derados “boa presa”, ou seja, nos casos em que o comprometimento com
o tráfico de escravos fosse devidamente comprovado.14 Em 5 de junho de
1854, outro decreto de número 731 dava aos auditores de Marinha com-
petência para processar e julgar os réus mencionados no art. 3º da lei de
1850, ou seja, todos os suspeitos de terem qualquer interesse no tráfico
não seriam mais julgados por um júri local.
A Marinha brasileira também continuava a ser utilizada na repressão
ao comércio de africanos. Antes da promulgação da lei, em julho de 1850,
ela já possuía 35 navios, entre eles os de guerra, como Urânia, Golfinho,

14
“Câmara dos Deputados. Decreto nº 731A de 14 de novembro de 1850: Determina a porcentagem
que compete ao Auditor de Marinha e ao seu Escrivão nas apreensões de barcos empregados no
tráfico de africanos: Hei por bem Declarar, que do produto da venda das embarcações, e barcos
empregados no tráfico, e de seu carregamento, assim como da retribuição pecuniária que, pela
apreensão de africanos deve fazer o Governo, se deduzirão dois por cento para o Auditor de Mari-
nha, e três para o seu Escrivão”. (Colleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889).
47

Daniela Yabeta
D. Afonso e Fidelidade, que patrulhavam a costa entre Cabo Frio e ilha
Grande. No relatório do ministro da Marinha, Manoel Viera Costa, em
1851, foi relacionado o destino dado a cada embarcação. Do total de 59
navios, 13 estavam atuando contra o tráfico de africanos.

Quadro 2 – Relação dos navios da Armada existentes no emprego contra o tráfico (1851)
1 Fragata Cearense
2 Patacho Desterro
3 Brigue Escuna Olinda
4 Brigue Escuna Fidelidade
5 Brigue Escuna Andorinha
6 Brigue Escuna Canopo
7 Brigue Escuna Legalidade
8 Brigue Escuna Canhoneira Campista
9 Iate Paraybano
10 Iate Constante
11 Iate Itapagipe
12 Vapor Urânia
13 Vapor Thetis
Fonte: Arquivo da Marinha. Relatório do ministro da Marinha, 1851.

Segundo Jaime Rodrigues, através da Auditoria Geral da Marinha,


o traficante assumia a condição de réu explícito, poupando os senhores
de terra que compravam os escravos. Estes foram deixados na esfera da
Justiça comum. José Murilo de Carvalho defende que com a lei de 1850,
“os compradores de escravos (fazendeiros) seriam julgados pelo júri, como
previsto na lei de 1831, o que significava na prática, anistiá-los e quase le-
galizar a propriedade dos escravos importados desde aquela data”. A ação
mais severa recaía apenas sobre os traficantes – tanto em alto-mar como
no desembarque, seriam eles julgados pela Auditoria da Marinha, que
passava ser o tribunal responsável por sentenciar sobre a liberdade dos
africanos apreendidos, colocando-os à disposição do governo com suas
respectivas cartas de liberdade.
No Arquivo Nacional encontram-se 28 autos julgados na Auditoria
Geral da Marinha, referentes às capturas efetuadas no litoral centro-sul
do Brasil, englobando as províncias do Espírito Santo, Rio de Janeiro,
São Paulo, Paraná e Santa Catarina, além da Corte, no período compre-
endido entre 1850 e 1857, sendo que nem todas as apreensões puderam
ser feitas antes do desembarque dos africanos e da fuga da tripulação
(RODRIGUES, 2000, p. 150). Os documentos estão expostos da seguin-
te maneira: termo de apreensão de africanos boçais; termo de apreensão
de embarcação; auto de exame em cadáver; auto de processo e diligência;
relação de recolhimento dos africanos enviada pela Casa de Correção da
Corte; óbitos informados pela Casa de Correção da Corte; auto de arrola-
mento e batismo dos africanos apreendidos; auto de nomeação e juramen-
to de curador; auto de perguntas aos africanos; auto de exame procedido
48
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

nas embarcações e nos africanos; auto de corpo delito nos africanos; auto
de depósito dos objetos apreendido nas embarcações; edital e translado
do auto de arrecadação dos objetos apreendidos com as embarcações;
mandado de avaliação dos objetos pertencentes às embarcações apresa-
das, bem como a relação dos objetos; edital de arrematação dos objetos
apreendidos; auto de apreensão dos suspeitos de serem os traficantes;
auto de perguntas feito aos suspeitos de serem os traficantes; sentença do
auditor de Marinha, sentença do Conselho de Estado. No Rio de Janeiro,
a Auditoria Geral da Marinha teve como auditor José Baptista Lisboa, que
julgou os processos de contrabando de africanos apreendidos ao longo da
década de 1850. A seguir, veremos como ocorreram as apreensões desses
africanos – homens, mulheres e crianças – na ilha da Marambaia e quem
eram os sujeitos históricos envolvidos na experiência da organização e da
repressão ao ilícito comércio.

15

Em 31 de janeiro de 1851, o chefe de polícia interino da província do


Rio de Janeiro, Bernardo Azambuja,16 por ordem do governo imperial,
embarcou às 22 h no navio de guerra Golfinho,da Marinha do Brasil, co-
mandado pelo capitão-tenente Henrique Hosffmith, a fim de proceder
à apreensão de africanos recém-importados na ilha da Marambaia, em
virtude de uma denúncia que tivera. Segundo informações, os africanos
haviam desembarcado “para as bandas de Guaratiba” e sido levados por
canoas para a praia da Armação, parte interna da ilha, no dia 28 de janei-
ro do mesmo ano. Azambuja levava à sua disposição na diligência uma
força de permanentes composta pelo tenente Hermenegildo José Galvão
Neves, o segundo tenente Elisário José Barbosa, o alferes João José de
Faria, um sargento, dois cabos e 27 praças. Na manhã do dia 1 de fevereiro
de 1851, as autoridades desembarcaram na praia da Armação, em frente
à casa do comendador Joaquim Breves.
Proprietário da Marambaia, Breves é citado por José Murilo de
Carvalho (2003, p. 254) como “o maior cafeicultor do país e proprietário
de uns seis mil escravos”. Nascido em 10 de junho de 1804 e falecido em
30 de setembro de 1889, Márcia Motta (2003, p. 59) o considera “a figura
15
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Auditoria Geral da Marinha, microfilme 117-2001 (1851) – Pro-
cesso de presa feita na ilha da Marambaia de 199 africanos que constava terem sido recentemente
ali desembarcados. Todas as informações referentes ao primeiro caso foram tiradas desse processo.
16
Em consequência da licença que obteve para tratar da saúde o dr. Venâncio José Lisboa, passou a
servir de chefe de polícia interino o dr. Bernardo Augusto Nascente de Azambuja. Ele também foi
encarregado pelo presidente de província do Rio de Janeiro de cuidar do assentamento de todos os
africanos livres, empregados no serviço das obras da província. Criou-se um livro próprio de matrí-
cula, onde deveriam constar a data de chegada e o destino dos africanos. Ver Relatório Presidente
de Província do Rio de Janeiro, 1851. Disponível em: <http:/www.crl.edu/brazil/provincial/rio de
janeiro>. Acesso em: 4 set. 2012.
49

Daniela Yabeta
emblemática do poder dos terratenentes do Império no Brasil”. Declarava-
se senhor e possuidor de mais de 30 propriedades, tendo comprado a ilha
de José Guedes Pinto em 17 de abril de 1847. Maria Sylvia de Carvalho
Franco (1969, p. 210) defende que, com a compra, o comendador “resol-
veu seu problema de escassez de mão de obra montando uma empresa
negreira na ilegalidade, possuindo navios, fazendo de sua propriedade na
Marambaia um entreposto de desembarque e distribuição de escravos”.
Com um pano atado à cabeça, queixando-se de forte enxaqueca e acompa-
nhado por “dois hóspedes”, Breves foi pessoalmente até o chefe de polícia
se informar do que tratava a diligência. Ao saber que estavam em busca de
“africanos boçais”, assegurou que em sua propriedade não havia ocorrido
desembarque algum e “gentilmente”, ofereceu sua casa para Azambuja
descansar da viagem e almoçar em sua companhia.
Enquanto a força de permanentes se espalhava pela ilha em busca dos
africanos, Azambuja recusou o almoço, mas aceitou o convite à casa do co-
mendador, onde aproveitou para examinar todos os cômodos e nada en-
controu que gerasse suspeita de “falcatrua do desembarque de africanos
boçais”. Incomodado, Breves considerava um absurdo a diligência em sua
ilha, repetia que respeitava as leis do país e as ordens do governo e jamais
consentiria desembarque de africanos em suas propriedades. Queixou-se
novamente de enxaqueca, de dor no estômago e foi deitar-se. Azambuja
também se retirou e foi ao encontro do alferes Faria, que trazia um recado
do tenente Neves solicitando o envio de mais praças para um sítio a pouca
distância da praia da Armação, onde um “guia” afirmava para lá terem
seguido, na véspera, os africanos desembarcados.
Era a primeira vez que a Marambaia sofria uma diligência encaminha-
da à Auditoria Geral da Marinha, mas não era a primeira vez que esse
tribunal atuava na província do Rio de Janeiro. Três apreensões já haviam
sido feitas em 1850: o iate Rolha,em Macaé, com 212 africanos em 4 de
outubro; o bergantim nacional Sagaz,incendiado pela tripulação na praia
do Peró, em Cabo Frio, em 4 de novembro e o iate Jovem Maria, com 291
africanos na “altura da ilha Grande”.17 Em todos esses casos, temos a pre-
sença do navio, com ou sem africanos, mas essa não era a única forma de
apreendê-los. Como bem nos lembra Jaime Rodrigues,

encontrar africanos boçais a bordo dos navios ou em terras próximas ao


local do desembarque era outro indício comprometedor de envolvimento
no tráfico. Mesmo que apenas um africano fosse localizado, isso indicava
que havia a possibilidade da existência de outros. (RODRIGUES, 2000)
17
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Auditoria Geral da Marinha, microfilme 114-2001 (1850) –
Processo de apresamento e arrecadação dos objetos pertencentes ao bergantim nacional Sagaz,que
foi incendiado pela tripulação em Cabo Frio; Auditoria Geral da Marinha, microfilme 114-2001
(1850)– Processo apreensão do iate Rolha e de uma garoupeira com 212 africanos pelo vapor de
guerra Urânia no porto de Macaé; Auditoria Geral da Marinha, microfilme 116-2001 (1851) – Pro-
cesso de presa feita pelo vapor de guerra Urânia de um iate com 291 africanos nos mares da ilha
Grande.
50
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

O Decreto nº 708, de 14 de outubro de 1850, que regulava a execu-


ção da Lei no 581 e estabelecia medidas para a repressão do tráfico de
africanos no Império determinava, no art. 12, que se fossem apreendidos
escravos, cuja importação era proibida pela Lei de 1831,

fora da embarcação que os trouxe, mas ainda na costa antes do desembar-


que, ou no ato dele, ou imediatamente depois em armazéns, ou em depó-
sitos sitos nas costas ou portos, serão levados ao auditor de Marinha, que
procederá a respeito deles pela mesma forma determinada para os apre-
endidos a bordo.

De fato, não demorou muito para os africanos aparecerem. Enquanto


caminhava para o suposto local do desembarque, Azambuja encontrou
debaixo da guarda uma “porção de africanos boçais” composta por nove
homens e sete mulheres, que o tenente Neves havia encontrado no tal sí-
tio. O chefe de polícia então mandou convidar o comendador e seus “dois
hóspedes” a acompanhá-lo na diligência.
Os hóspedes eram os negociantes de Mangaratiba Antônio Lourenço
Torres e João José dos Santos Breves. Eles não especificaram em qual tipo
de negócio atuavam em Mangaratiba; sabe-se apenas que João Breves era
irmão do comendador e Antônio Lourenço era casado com uma sobrinha
de Joaquim Breves (filha de João Breves). Declararam que receberam a no-
tícia de que o comendador estava na ilha e decidiram visitá-lo. Chegaram
à tarde do dia 30 de janeiro e pretendiam retornar a Mangaratiba naquele
mesmo dia. Azambuja perguntou se tinham alguma informação a respei-
to de um barco que desembarcara gente nas propriedades da Marambaia
e eles responderam que “por um boato vago que ocorreu, sabem que há
coisa de seis dias um navio de guerra perseguiu um cargueiro brasileiro
que acabou desembarcando gente em terra, não sabendo afirmar que fun-
cionamento possa ter esse boato”. E mais nada declararam.
Logo assim que encerrou o interrogatório, o tenente Neves participou ao
chefe de polícia que o comendador havia deixado sua residência na Marambaia.
Azambuja ordenou que, se por acaso Joaquim Breves fosse encontrado em
qualquer parte da ilha, deveria ser preso e levado até sua presença. Agora,
tornara-se bastante suspeito de conivente no desembarque dos “africanos
boçais”e poderia ser considerado cúmplice, fosse por coadjuvar no desembar-
que dos escravos em território brasileiro ou por ocultá-los do conhecimento
das autoridades. De ambas as formas seria punido de acordo com a justiça co-
mum – estava no rol dos “escapáveis” da Auditoria.
No dia seguinte, 2 de fevereiro de 1851, logo depois o amanhecer, Azambuja
foi com o guarda-marinha Siqueira Lima até o local chamado Serra d’Água,
onde havia pernoitado um destacamento de imperiais marinheiros junto com
os oficiais encarregados. Chegando lá, encontraram em uma casa 32 escravos
ladinos do comendador sob custódia de um sargento. Logo depois chegou o
51

Daniela Yabeta
tenente Neves trazendo consigo uma “grande porção de africanos boçais” e
um “língua” que declarou ter vindo com eles no mesmo barco, desembarcado
no dia 28 de janeiro na praia da Armação e terem ido para Serra d’Água em
1 de fevereiro. Feita essa apreensão, encaminhados e contados os referidos
africanos, verificou-se serem eles “perfeitamente boçais”, num total de 143 do
sexo masculino e 10 do sexo feminino. Terminados esses trabalhos, Azambuja
ordenou que fossem liberados os escravos ladinos que estavam sob custódia e
encerrou a comissão de que havia sido encarregado. Em seu relatório final ao
auditor de Marinha, considerou a diligência “delicada e difícil”:

[...] claro que houve desembarque mui recente na Praia da Armação perten-
cente a Ilha da Marambaia pelo lado interior, e que os africanos boçais assim
desembarcados foram passados para um casa e sítio próximo também em
pouca distancia da Praia de Fora e logo em seguida entranhados nas matas em
companhia de pessoas brancas das quais uma deixou cair um relógio, que entre
eles (africanos) havia gente do mar que deixaram um saco com roupas achados
no referido mato; e que por um momento procuraram resistir de longe, dando
alguns tiros, e que finalmente não pode efetuar a captura de pessoa alguma,
além dos africanos [...]. De todas as pessoas que me acompanharam na dili-
gencia, poderá Vossa Senhoria obter esclarecimentos de quem precisar, e por
intermédio do africano boçal que acima fiz menção de que servia de “língua”
dos outros, conseguirá Vossa Senhoria melhor orientar-se.

Às 4 h da tarde do dia 2 de fevereiro de 1851, Azambuja embarcou


com os 199 africanos boçais apreendidos, a saber, 182 do sexo masculino
e 17 do sexo feminino. Um ponto que merece ser destacado no relatório
do chefe de polícia é quando ele cita que ao “entrarem a vista para o lado
da Barra”, se depararam com a corveta Bertioga e o patachoAndorinha,
ambos da Marinha do Brasil, encontrando-se também nessa direção uma
lancha da dita carreta com o tenente Antônio Benedicto Xavier a bordo.
Azambuja então mandou dizer-lhe da necessidade de não perder de vis-
ta aquele litoral, “a fim de evitar-se a passagem para a terra o comércio
dos africanos boçais”. Esse é o momento em que as duas diligências se
encontram em alto-mar, enquanto Azambuja retornava à corte com os
apreendidos na ilha, a outra diligência partia em busca do patacho que
perseguiram até os mares da Marambaia...

18

Voltamos agora para 29 de janeiro de 1851, quando o tenente coman-


dante interino da corveta Bertioga,Joaquim José de Oliveira, avistou no
18
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Auditoria Geral da Marinha, microfilme 120-2001 (1851) –
Translado de sentença do processo contra um patacho com carregamento de africanos encalhado
no dia 5 de fevereiro de 1851 nas costas da ilha da Marambaia. Todas as informações referentes a
esse segundo caso foram retiradas desse processo.
52
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

mar da ilha Grande um patacho bastante suspeito de estar envolvido com


o tráfico de africanos. Iniciou-se uma verdadeira caça à embarcação, até
uma das praias da Marambaia. Provavelmente era sobre esse episódio que
os comerciantes Antônio Lourenço Torres e João José dos Santos Breves,
parentes e hóspedes do comendador Joaquim Breves, se referiam quando
interrogados por Azambuja.
O patacho foi encontrado pelo tenente Xavier e pelo tenente Miranda,
numa “praia comprida” conhecida como Galhota. Em seu relatório, Xavier
descreve que ao “montar a ponta da Costa da Marambaia” avistou o casco
de um bote, viu sobre a praia corpos de pretos e sobre a terra caminhavam
alguns que procuravam entrar nas matas. Pela tarde do mesmo dia, a cor-
veta Bertioga chegou à Marambaia trazendo mais alguns praças reservas
e dois escalares do brigue escuna Andorinha. Segundo informações do
tenente Xavier, já estavam na ilha cerca de cento e vinte e poucos praças
“mais ou menos” espalhados por entre as praias da ilha em busca dos afri-
canos, um número muito maior do que o de participantes da diligência
realizada por Azambuja.
Suspeitava-se que o número de desembarcados fosse de 500 africanos.
Na praia da Armação foram encontrados cerca de 140 no Engenho d’Água
as autoridades se depararam com aproximadamente 330 africanos, “in-
cluindo quatro crias”, sendo a maior parte destes últimos composta por
mulheres. Devido ao grande número de africanos, o comandante interino
da corveta Bertioga escreveu a Luiz Miguel de Souza Melo e Alvim, che-
fe da esquadra e encarregado do quartel-general da Marinha, solicitando
que fosse enviado mais apoio para ajudá-lo nas apreensões. Em 7 de fe-
vereiro de 1851, o vapor de guerra Golfinho, comandado pelo capitão-
-tenente Henrique Hosffmith, retornou a Marambaia para ajudar na dili-
gência que, por ordem do ministro da Justiça Eusébio de Queiroz, deveria
ser realizada sob a direção do juiz municipal e delegado de polícia da vila
de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, João José Andrade Filho. Em
seguida, partiu ao encontro deste para entregar-lhe pessoalmente o ofício
enviado pelo ministro.
Andrade Filho já havia estado na ilha dias antes da chegada das forças
militares, por conta de uma denúncia, feita pelo próprio administrador
da fazenda da Armação, de que um “barco que viera da Costa da África
contrabandeando africanos fora perseguido por um navio de guerra bra-
sileiro” e acabara encalhando nos mares da ilha. Em sua primeira visita
apreendeu 21 africanos recém-desembarcados. Ao retornar à ilha, acom-
panhado dos oficias e de seu escrivão interino, Antônio Maria Morais de
Carvalho, o juiz municipal deparou-se com o cadáver de um africano, do
qual determinou exame imediato. Os peritos encarregados declararam
que se tratava de um jovem africano de 20 anos e “supunham que tivesse
morrido de inanição”. Acreditavam que estava bastante magro por ter sido
abandonado junto com os outros e ter-se perdido nas matas da fazenda da
53

Daniela Yabeta
Armação depois de o patacho ter encalhado na Marambaia. Outro cadáver
examinado foi de um africano do sexo masculino ainda moço que tinha
uma perna quebrada devido a uma “coisa com que viera apreendido” e
muito provavelmente falecera em decorrência dessa fratura.
Mas não só os cadáveres dos africanos passavam por exames de perí-
cia. O patacho também precisava ser examinado em busca de sinais que
constituíssem presunção legal do destino das embarcações ao tráfico. O
juiz municipal, então, foi até o lugar chamado Galhota, onde o patacho
havia encalhado, e nomeou para servir de peritos o imediato Oliveira e
o segundo tenente José Emygdio Pereira. Após examinarem, declararam
que o navio estava aberto, encalhado, com o convés partido, que era co-
nhecidamente um patacho, que continha indícios claros de ter vindo da
costa da África pela quantidade de mantimentos que trazia, que encon-
traram uma bandeira nacional em farrapos e que não descobriram seu
nome. Sugeriram que o melhor que podia ser feito era incendiar os restos
da embarcação. O juiz, então, mandou lançar fogo a fim de inutilizá-la
definitivamente.
Nos relatórios dos oficiais percebemos também a presença de pescado-
res, que comumente eram apreendidos pelas autoridades para servirem
de guias durante a diligência na ilha. O tenente Xavier relata ter avistado
cinco canoas que “navegavam muito encostadas à praia da ilha”. Quando
interrogados, todos os tripulantes dessas canoas declararam que estavam
na Marambaia pescando e, sobre os desembarques, disseram que pela ma-
nhã viram quatro africanos correndo pela praia, “os quais não puderam
aprisionar” porque sumiram entrando pelas matas. O mesmo tenente
também interrogou um marinheiro apreendido que confessou, “por meio
de ameaças”, que o capitão do patacho chamava-se “Fulano de Tal Freire”,
o consignatário chamava-se Manoel Botelho e o navio transportava apro-
ximadamente 500 africanos. Informou, ainda, que ele escapara junto com
mais três indivíduos num bote, na véspera de o patacho encalhar e que “o
fim deles em terra era saber onde residia o consignatário e depois saber
onde este queria que desembarcassem os africanos”.
Em 11 de fevereiro, todos os apreendidos foram remetidos aos cui-
dados do auditor de Marinha da corte, José Baptista Lisboa. A divisão
foi feita da seguinte forma: 93 na corveta Bertioga, 88 no brigue escuna
Andorinha – incluindo “um pardinho recém-nascido”, e 369 no vapor de
guerra Golfinho. Foram também colocados à disposição do auditor Lisboa
os cinco presos: (1) Clemente Eleutério Freire, “que se julga o capitão”;
(2)Antônio Silveira Soares, “passageiro”; (3) José Rosa, “marinheiro”; (4)
José da Silva, “piloto”; (5) João Valentim, “liberto”.
Entre a documentação apreendida, foram enviadas aos cuidados do
Auditor: (1) uma carta dirigida a Clemente Eleutério Freire, datada de
2 de dezembro de 1850, em Benguela, e assinada por Silva; (2) uma car-
ta de liberdade passada em Luanda, no dia 9 de dezembro de 1846, por
54
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

Clemente Eleutério Freire ao seu escravo João Valentim; (3) um titulo


de habilitação passado no consulado de Portugal em Pernambuco aos 13
de janeiro de 1849 em nome de João Valentim; (4) um passaporte emi-
tido pela Secretaria de Polícia da Corte em 18 de novembro de 1850 a
Francisco José de Souza, para o Rio de Janeiro; (5) uma carta feita em
Luanda, em 10 de julho de 1850, emitida por Augusto Guedes Garrido a
Francisco Antônio Flores; (6) uma carta emitida no Rio de Janeiro, em 5
de outubro de 1850, a Rocha, na Barra de São João, por Estácio; (7) uma
carta dirigida a Andrés Castilho e João, por Bernardo, do Rio de Janeiro
(sem data).
Desembarcaram no Rio de Janeiro em 12 de fevereiro de 1851. Em ra-
zão do mau estado de saúde dos africanos, o auditor mandou que fossem
conduzidos o mais rapidamente possível à Casa de Correção, para serem
atendidos nas enfermarias. Entre os africanos que estavam no brigue es-
cuna Andorinha, três não sobreviveram à viagem. Eram eles dois meninos
– um de seis e outro de 11 anos de idade – e uma mulher de 30 anos. De
acordo com os peritos, todos morreram de inanição. Os embarcados no
vapor de guerra Golfinho também estavam em péssimo estado de saúde.
Em seu relatório, o comandante Hosffmith chega a declarar a necessidade
de mantê-los em quarentena caso algum desses apreendidos viesse a fale-
cer durante a viagem, ou mesmo “derramar o alarme nesta cidade agitada
ainda pelas tristes recordações da última epidemia”. E, de fato, uma afri-
cana de 26 anos faleceu em decorrência de uma forte disenteria enquanto
seguiam em direção ao Rio de Janeiro. Provavelmente a declaração do co-
mandante Hosffmith referia-se à forte epidemia de febre amarela que as-
solou o Rio de Janeiro no verão de 1850. As estimativas indicam que mais
de um terço dos 266 mil habitantes do Rio contraíram a doença naquele
período. O número oficial de mortos durante a epidemia chegou a 4.160
pessoas, mas tudo indica que o total informado foi consideravelmente su-
bestimado. Houve quem falasse em 10 mil, 12 mil, 15 mil vítimas fatais.
O péssimo estado de saúde dos africanos alimentava o medo das auto-
ridades. Os peritos eram nomeados para declararem a causa da morte des-
sas pessoas na hora. Na grande maioria das vezes eram os oficiais presen-
tes e não havia preocupação com a distinção de cargos. Impossibilitados
de analisarem com precisão, as declarações eram feitas com base na
suposição.
Uma parte da força de permanentes e pedestres continuou na ilha
vistoriando os africanos que não puderam embarcar no Golfinho porque
estavam muito doentes. Encontramos, anexados ao processo, mais três
óbitos de jovens africanos: um morreu devido a ferimentos de bala e ou-
tros dois de inanição. Em 15 de fevereiro de 1851, mais sete africanos e
três passageiros do patacho foram remetidos ao auditor de Marinha a bor-
do do vapor Recife, comandado pelo capitão-tenente Francisco Alcântara.
Quanto aos tenentes Xavier e Miranda, o primeiro deixou a ilha e partiu
55

Daniela Yabeta
junto com outros oficiais para uma nova diligência em Jaguanum, ilha
vizinha a Marambaia, onde fizeram uma “completa exploração e não des-
cobriram nenhum africano boçal”. O segundo retornou da comissão em
18 de fevereiro tão doente quanto os africanos. Ardendo em febre, ele
contou em seu relatório que durante os dias em que ficou na ilha só se
alimentava de cana e milho, e era atacado constantemente por mosquitos
e marimbondos.

Algumas vezes, as disputas que corriam na Justiça do Império decor-


rentes da ilegalidade e repressão ao tráfico de africanos acabavam reper-
cutindo nos principais jornais da Corte em forma de artigos. E foi justa-
mente esse o recurso utilizado por Breves quando, em 14 de fevereiro de
1851, publicou no Jornal do Commercio, na seção de publicações a pedido,
uma carta com título “Negócios da Marambaia”, na qual tentava desqua-
lificar a diligência do chefe de polícia interino Azambuja em sua proprie-
dade, declarando que o mesmo era seu inimigo pessoal. Em sua versão, o
comendador contou que, devido a uma dose de cachaça oferecida durante
o almoço em sua residência na fazenda da Armação, o comandante da
operação, tenente Neves, teria ficado completamente alcoolizado e fora
de si. Em consequência disso, o mesmo acabou invadindo as enfermarias
da ilha e levando aleatoriamente seus escravos, declarando-os forros:

O comandante antes de embarcar a gente nova no porto da fazenda, para


onde o tinham trazido, mandou tocar o sino para juntar toda a escravatura
que se achava em casa, por ser domingo, e ali, contando todos, declarou
que eles e a fazenda pertenciam à nação; mas como ainda se não me inti-
mou judicialmente esta sentença, julgo-me por hora na posse e no domí-
nio dela. É o exposto aqui que presenciei e que ouvi de pessoas que foram
a tudo presentes e que merecem inteiro crédito.

As duas principais questões que assombravam os proprietários rurais


na década de 1850 podem ser exemplificadas com a frase de Breves quan-
do diz que o comandante declarou que os escravos e a fazenda pertenciam
à nação: a repressão ao tráfico de africanos e a política de terras. Essas
medidas atingiram profundamente os interesses dos proprietários rurais,
ou pelo menos de parcela deles, na qual o comendador estava incluído. Por
isso a medida providencial em desqualificar a atuação da diligência, numa
tentativa de mostrar, através da imprensa, o que considerava uma forma
abusiva de repressão. Uma semana depois, em 21 de fevereiro, foi publi-
cada, no mesmo jornal, a réplica de Azambuja. Nela, o chefe de polícia
conta, mais uma vez, sua versão da apreensão dos africanos, acusa Breves
de inverter os fatos e defende a atuação do tenente Neves:
56
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

[...] antes de entrar na casa me foram apresentados alguns pretos doen-


tes, que eu, reconhecendo serem escravos da fazenda, declarei logo que a
diligência não se entendia com eles, e que, portanto, fossem levados para
onde estavam [...] nada receasse, pois eu não ia ali resolver o passado, nem
fazer pesquisas inquisitoriais, e tão somente descobrir africanos boçais,
que contava terem desembarcado de próximo naquela ilha [...].

Mas qual era esse “resolver o passado” a que Azambuja se referia?


Beatriz Mamigonianlança a seguinte questão: “considerando que a ilega-
lidade da propriedade dos escravos trazidos depois de 1831 estava inscri-
ta na lei, como se sustentou o direito dos senhores sobre a propriedade
dos escravos nas duas décadas de tráfico ilegal?” (MAMIGONIAN, 2006).
Podemos encontrar uma possível resposta nas palavras do próprio Breves,
em sua tréplica ao chefe de polícia, publicada no mesmo jornal, em 6 de
março de 1851: “Assevera S.S em sua correspondência o haver me dito
que não pretendia resolver o passado. Ora, entendo eu que esse passado
são os importados antes da lei de 4 de setembro”.
O comendador reclamava que Azambuja “lançou mão de seus cava-
los e arreios” sem pedir permissão ao seu administrador da fazenda da
Armação e utilizou-se dos seus escravos para práticas sem seu consenti-
mento; garantia que 46 de seus escravos ladinos haviam sido levados pela
diligência como boçais porque não sabiam falar bem o idioma português:

Pois S.S. que tem estado em fazendas ignora que há pretos que em pouco
tempo o aprendem, e outros que ainda com trinta anos de casa não falam
coisa alguma que se entenda? Ali mesmo na Marambaia posso eu apresen-
tar um comprado talvez há mais de 40 anos, por nome Domingos, de na-
ção Congo, hortelão (que foi dos Srs. Guedes), que não fala uma só palavra
do português, enquanto porem que outros tenho visto, comprados há dois
anos que falam melhor que muitos crioulos; logo, escolhendo-os S.S. em
porção, havia de achar muitos que falam em mal, pois ninguém ignora que
um africano quando chega as nossas fazendas é logo metido no meio dos
outros em os trabalhos de lavoura, falando apenas com um feitor que os
dirige, que quase sempre se escolhe da mesma nação para se entenderem,
e que por isso lhes leva muito tempo a aprender o nosso idioma: é pois essa
observação do Sr. Azambuja daqueles que não constituem grande prova
em favor do boçalismo, e muito principalmente sabendo eles que fingindo-
-se boçais seriam libertos e iriam para a sua terra.

A carta de Breves reflete a fragilidade do direito do senhor sob a pro-


priedade escrava diante do “boçalismo”. Falar e entender português tor-
nava o africano um alvo de disputas entre diversos agentes sociais en-
volvidos no tráfico ilegal. O Estado Imperial entendia a proficiência no
idioma como principal prova de desembarque ilegal e, através do decreto
57

Daniela Yabeta
de 12 de abril de 1832, regulamentava as diligências para a aplicação da lei
de 1831, determinando, em seu art. 9º:

Constando ao intendente geral da polícia, ou a qualquer juiz de paz ou


criminal que alguém comprou ou vendeu preto boçal, o mandará vir a sua
presença, examinará se entende a língua brasileira, se está no Brasil antes
de ter cessado o tráfico da escravatura, procurando, por meio de intérpre-
te, certificar-se de quando veio da África, em que barco, onde desembar-
cou, por que lugares passou, em poder de quantas pessoas tem estado, etc.

O resultado disso foi o seguinte: de um lado, os interessados na con-


tinuidade do tráfico atlântico tentavam a todo custo justificar que seus
escravos eram ladinos; do outro, crioulos e ladinos emudeciam-se para
mostrarem-se boçais. No quadro 3, os escravos reclamados por Breves.

Quadro 3 – Relação dos escravos ladinos e criouloslevados das fazendas da Marambaia


Seq.., Nome Seq. Nome Seq. Nome
1 Isidoro Cabinda 17 Estevão Cabinda 33 Manoel Monjolo
2 José Congo 18 Elias Cabinda 34 Joaquim Cabinda
3 Candido Monjolo 19 André Monjolo 35 Thomé Cabinda
4 Rafael Monjolo 20 Camillo Cabinda 36 Pio Cabinda
5 Victorino Cabinda 21 Américo Cabinda 37 Umbelino Cabinda
6 Salvador Monjolo 22 Valetim Cabinda 38 Delfino Cabinda
7 Theodoro Cabinda 23 Nicolau Cabinda 39 Anastácio Cabinda
8 Damião Cabinda 24 Herculano Cabinda 40 Cosme Cabinda
9 Daniel Cabinda 25 Thomazia Cabinda 41 Belarmino Cabinda
10 Israel Cabinda 26 Eulália Cabinda 42 Justina Crioula
11 Simplicio Cabinda 27 Silvéria Cabinda 43 Maria Cabinda
12 Antônio Cabinda 28 Francelina Cabinda 44 Juliana Cabinda
13 Hildefonso Cabinda 29 João Crioulo 45 BenedictaMonjola
14 Felippe Cabinda 30 Agripino Congo 46 Antônio Cabinda
15 Caetano Cabinda 31 João Cabinda
16 Belmiro Cabinda 32 Francisco Monjolo
Fonte: Biblioteca Nacional. Correspondências. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 6 mar. 1851.

Sobre o fato de não ter comparecido a bordo do vapor Golfinho para


prestar depoimento a respeito dos africanos boçais apreendidos em sua
propriedade, o comendador se justificou dizendo, mais uma vez, que esta-
va muito doente naquele dia e perguntou: “Será isso crime?”. Insistia que
Azambuja havia presenciado seus esforços para não sair da mesa durante
o almoço oferecido na Armação “apesar dos vômitos” que o acometiam e
terminou dizendo: “Mais censurado deverá ser o Sr. Azambuja [...] que
o tratei em minha casa correspondeu com uma despedida a inglesa!!”.
Defendeu-se dizendo que não havia fugido das autoridades:
58
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

Achando-se o Sr. Azambuja já na praia, mandou por um inferior chamar


os Srs. João Breves e Torres, meus hóspedes, e com eles se embarcou para
bordo, levando as minhas canoas e os escravos que mencionei, sendo neste
ato que também me mandou chamar por um oficial; porém recebendo eu
tal convite, ordenei dissessem a este senhor que eu não estava em casa,
o que não faria por certo com qualquer outra autoridade que não fosse
exercida por um meu rancoroso inimigo; assim como também outro que
não fosse o Sr. Azambuja não se atreveria a mandar-me chamar, como se o
fizera a um seu moleque, sendo sim certo que, apesar da resposta que dei
ao chamado de S.S., só cheguei a retirar-me ao anoitecer desse mesmo dia,
e fui pousar em casa de um amigo meu no Jaguarão, em conseqüência da
continuação do meu incomodo.

A correspondência do administrador da fazenda da Armação também


foi publicada no jornal por Breves. Nela, ele compara a atuação do juiz
municipal com a atuação do chefe de polícia. Durante a diligência coor-
denada pelo primeiro não houve nenhum ato de violência, não lançaram
mão de nada da fazenda sem antes solicitarem e, no final, ainda pagaram
trinta mil réis para gratificar os pretos ladinos na apreensão dos negros
novos. Quanto à diligência coordenada pelo segundo, declara que de tudo
se apoderam sem nada pedirem: cavalos, bois, e inclusive, “arvoraram os
negros da fazenda em capitães do mato”.
Vale a pena lembrar que todo esse debate na imprensa entre o comen-
dador e o chefe de polícia encontra-se anexado ao processo da Auditoria,
e muito provavelmente interferiu no julgamento do auditor sobre a liber-
dade desses apreendidos.

Em 29 de dezembro de 1850, por volta das 5 h da tarde, o vapor de


guerra Urânia, da Marinha de Guerra brasileira, patrulhava a costa da
ilha Grande, região sul fluminense, quando avistou o iate Jovem Maria.
O comandante do vapor, Delfim Carlos de Carvalho, primeiro-tenente da
Armada, decidiu interceptar o iate por suspeitar de envolvimento com o
tráfico atlântico. Ao tomarem o controle da embarcação, os ocupantes do
Urânia abriram as escotilhas e se depararam com 291 africanos – homens,
mulheres e crianças. O Jovem Maria foi apresado e tanto os tripulantes
quanto os africanos foram apreendidos e remetidos à Casa de Correção. O
processo foi encaminhado à Auditoria Geral da Marinha. Assim que rece-
beu os africanos, o auditor Lisboa separou-os por sexo, numerou e provi-
denciou o batismo. Com a ajuda dos africanos livres que trabalhavam na
Casa de Correção, Manoel Benguela e Antônio Congo, nomeados por ele
intérpretes dos apreendidos, anotou suas idades presumíveis, “nações” e
marcas corporais.
59

Daniela Yabeta
Na contagem do auditor consta um africano a menos: 57 mulheres e
233 homens. Entre as mulheres, cinco eram crianças de 0 a 10 anos, seis
tinham entre 21 e 40 anos e a grande maioria, 46 africanas, eram jovens
entre 11 e 20 anos de idade. Já entre os homens, 34 eram crianças de 0
a 10 anos, 19 tinham entre 31 e 40 anos, 64 entre 21 e 30 anos e, assim
como no caso das mulheres, a grande maioria tinha entre 11 e 20 anos de
idade, num total de 113 jovens.19
Quanto ao que o auditor chamou de “nação” em seu relatório, observa-
mos, entre as mulheres, grande quantidade de Mossumbe (12), Mohambe
(11) e Monjolo (11). Encontramos também seis mulheres do Congo, cinco de
Cabinda e apenas uma de Benguela. Entre os homens o quadro é diferente.
Encontramos em maior número: Congo (45), Mossumbe (33) e Monjolo (20).
Aparecem também 12 de Cabinda, quatro de Moçambique e um identifica-
do como Mina. Todos foram depositados na Casa de Correção da Corte, onde
aguardavam a decisão do auditor, que deveria descobrir os criminosos e julgar,
em primeira instância, se estes africanos eram “verdadeiramente livres”, de
acordo com a lei de 7 de novembro de 1831.
Era muito comum que tripulantes pegos em flagrante e colocados na
condição de réus, buscassem respostas que negassem suas culpas, e não
foi diferente no caso do Jovem Maria. Mesmo assim, através de suas falas
podemos perceber um pouco das práticas de bordo comuns à tripulação
durante a travessia no atlântico (RODRIGUES, 2000, p. 17). Numa em-
barcação, podiam ser encontrados homens das mais diversas origens: eu-
ropeus, africanos, brasileiros, livres e escravos, jovens e velhos e o caso do
nosso iate em questão é um bom exemplo para mostrar essa diversidade.
O espanhol Nicolau Echevarrea, suspeito de ser o capitão do Jovem
Maria, respondeu em seu interrogatório que havia sido preso na altura
da Marambaia, a bordo do iate, que trazia africanos boçais e outros com-
panheiros de viagem. Afirmou ser apenas um passageiro e não saber a
quem pertencia o iate e sua respectiva “mercadoria”. Outro interrogado
foi Bartholomeu Colombo Lopez, espanhol de 26 anos, comerciante de
marfim e cera na cosa da África e suspeito de ser o piloto. Durante seu in-
terrogatório declarou que o iate havia sido apresado “nas águas próximas
a Marambaia”. Sobre as “mercadorias” informou que a embarcação tinha
saído da costa da África trazendo trezentos e poucos africanos, mas que
alguns faleceram durante a viagem devido à “febre da costa”. Disse ter
comprado sua passagem para a América do Norte ao capitão do Jovem
Maria e que não haviam seguido seu destino porque o capitão, o piloto
e mais três marinheiros africanos também morreram durante a viagem,
que durou aproximadamente 32 dias, motivo pelo qual procuraram logo
encontrar “terra”. Sobre a bagagem dos oficiais e marinheiros que mor-
reram, respondeu que “deixaram no mar com os cadáveres”. Dentro do
iate foi encontrado um baú com livros, relatos marítimos e uma instrução
19
Não consegui identificar a idade de três africanos.
60
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

para que a embarcação se dirigisse à fazenda Bom Retiro, mas o inter-


rogado respondeu que não sabia do que se tratava e, infelizmente, essa
documentação não está anexada ao processo.
O baiano Joaquim Gomes Marinho contou, em seu interrogatório, que
vivia na costa da África há 13 meses. Junto com seus pertences, foi en-
contrada uma carta escrita por Felipe Nery na costa africana e que deveria
ser encaminhada a João Caetano Ribeira. Marinho negou conhecer o dito
Ribeira. Mais uma vez, não encontramos a carta no processo. O português
Luiz da Silva também foi interrogado. Contou ser natural de Lisboa, 41
anos, casado e oficial carpinteiro. Em seu depoimento, ele informou que o
iate Jovem Maria havia saído do rio Congo, que ficava a cerca de 60 km do
porto de Cabinda, na África ocidental (GRADEN, 2007, p. 14), com desti-
no à América do Norte e repetiu a história das mortes durante a viagem.
Outro brasileiro, chamado Francisco Régio, casado, marinheiro, natural
do Rio de Janeiro, nos mostra um pouco da mobilidade no espaço viven-
ciada por um marinheiro. Ele saíra de Pernambuco no palhabote de nome
Vingador rumo à costa da África, mas antes de chegar ao seu destino final
passara pelo porto do Rio de Janeiro. Também estivera no Rio Grande
do Sul por duas vezes, nos brigues Maria Primeira e Lagunense. Estava
na costa da África há 12 meses esperando alguma embarcação que viesse
para o Rio de Janeiro, onde morava sua família, e foi aí que apareceu o
Jovem Maria, a cujo capitão ele pedira uma passagem.
Além desses, também foram interrogados: José da Silva, 25 anos, mari-
nheiro, casado, português, natural de Braga, que saiu de Lisboa no brigue
Tarijo e estava na costa da África há dois anos; Miguel Antônio de Mattos,
24 anos, marinheiro, espanhol, natural da Galícia, que chegou à costa da
África pelo brigue americano Ruiva e lá permaneceu por cinco meses;
Antônio Joaquim, 25 anos, solteiro, português, natural de Lisboa; José
Francisco, 57 anos, solteiro, brasileiro, natural da Bahia, que estava na cos-
ta da África há três anos e decidiu vir para “terra de branco para tratar de
sua saúde”; Manoel Antônio, 31 anos, solteiro, carpinteiro, português, na-
tural do Cabo Verde; Roberto Blondes, 56 anos, preto forro, português na-
tural de Cabinda, que quis vir para o Brasil e pediu passagem ao capitão do
iate; Francisco Lopes, 35 anos, solteiro, marinheiro, africano forro, natural
de Wai, na costa da África; José Luiz, 18 anos, solteiro, marinheiro, por-
tuguês, natural do Porto, que saiu de Lisboa na escuna Constituição, da
qual desertou, e estava na costa da África há 18 meses; Antônio Joaquim,
17 anos, solteiro, marinheiro, português, natural do Porto; Jacome Solano,
15 anos, solteiro, marinheiro, espanhol, natural da Galícia, que foi preso
pelos ingleses quando estava numa embarcação de nome Thereza,na costa
da África, e depois que o deixaram em terra permaneceu por lá 13 meses.
Finalmente chegou a vez dos africanos serem interrogados, e dois de-
les, em especial, dispensaram a ajuda dos intérpretes: o de número 289,
61

Daniela Yabeta
batizado Pompeu e o de número 290, batizado Alfredo. Ambos sabiam
falar português e foram interrogados separadamente.
Alfredo, um jovem cabinda de 18 anos, respondeu ao auditor que
aprendeu o idioma na costa da África com um espanhol chamado “d.
Firmino”. Ele e seus companheiros foram vendidos a esse espanhol depois
de terem sido “agarrados” por um preto. Foi o próprio “d. Firmino” quem
os entregou ao capitão do dito barco onde foram apreendidos. Quando o
auditor perguntou onde estavam os oficiais e marinheiros do iate que os
trouxera, o jovem respondeu que eles haviam sido presos junto com os
demais africanos e que nenhum deles era inglês. Declarou que estavam
a bordo do Jovem Maria, no momento da interdição, o capitão, o piloto,
o comandante, um filho do capitão e que, entre os marinheiros, “quatro
eram pretos”. Lisboa perguntou se ele seria capaz de reconhecer esses ho-
mens e ele respondeu que “reconhecia perfeitamente”. Os suspeitos fo-
ram chamados e colocados diante de Alfredo, que apontou um por um,
dizendo quem era quem, o que nos convida a repensar a disposição desses
africanos dentro do negreiro. Pompeu, também cabinda de 18 anos, de-
clarou que durante a viagem nenhuma “pessoa branca” havia morrido. O
auditor mandou, mais uma vez, que viesse a tripulação suspeita e, nova-
mente, todos foram reconhecidos: Nicolau Echevarrea – capitão; Joaquim
Gomes Marinho – filho do capitão; Bartolomeu Colombo Lopez – piloto;
Luiz Silva – contramestre; Roberto Blondes – cozinheiro; Jacome Solano
– servo de cozinha e marinheiro, e todos os outros marinheiros.
Depois do interrogatório, os africanos voltaram para a Casa de
Correção, onde continuaram aguardando o veredicto do auditor sobre a
possível liberdade deles, enquanto os suspeitos foram finalmente reco-
nhecidos como autores do crime de importação e condenados, em 11 de
fevereiro de 1851, por pirataria. O total da multa paga pelos oficias e ma-
rinheiros do Jovem Maria foi de aproximadamente quinhentos e noventa e
cinco mil contos de réis, depositados em cofres públicos. Entretanto, antes
de completarem 10 anos de prisão, em 1861, contaram com perdão impe-
rial e foram agraciados com a liberdade, sendo-lhes permitido inclusive,
que retornassem aos seus países.

Outras áreas de desembarque, outras comunidades


remanescentes de quilombo

Voltando ao processo de titulação dos quilombolas da Marambaia,


é importante destacar que a Marinha encomendou seu próprio lau-
do sobre o reconhecimento étnico e territorial da comunidade, numa
tentativa de deslegitimar o trabalho que foi coordenado por Arruti em
Koinonia e impedir a titulação. O trabalho foi realizado pelo Laboratório
de Antropologia Biológica do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A coordenadora da pesquisa
62
Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de africanos livres: os processos da Auditoria Geral da
Marinha sobre apreensões de recém-desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51

foi a professora CléiaSchiavoWeyrauch. Sobre o tráfico de africanos na


Marambaia, há poucas informações no trabalho. Todos esses processos
localizados no Arquivo Nacional referentes à Auditoria Geral da Marinha,
por exemplo, ficaram de fora da análise. Além da ausência dessas fontes, a
antropóloga chega a questionar a “especificidade” da ilha como um “pon-
to de desembarque de negros”, destacando a ilha Grande como “desem-
barcadouro privilegiado”. Sobre o envolvimento do comendador Joaquim
Breves em negócios negreiros, Weyrauch relata apenas sua participação
no caso do Bracuí, em Angra dos Reis, destacando que o mesmo foi ino-
centado. No que se refere à caracterização da comunidade como um ter-
ritório remanescente de quilombo, de acordo com o art. 68 do ADCT da
Constituição Federal de 1988, a conclusão do relatório de Cléia Schiavo
Weyrauch (2003, p. 5-25) foi de que a comunidade da Marambaia não
“alcançou institucionalizar uma cultura de resistência nos moldes de ou-
tras culturas brasileiras”. Até a memória dos ilhéus sobre a experiência da
escravidão na ilha é considerada pela pesquisadora como de “modo geral
cheia de equívocos”.
Dentro desse contexto, podemos observar que a história da Marambaia
passa a ser utilizada como uma ferramenta em que o fato de ignorar/des-
tacar determinados episódios nos permite perceber o posicionamento
político dos grupos. No caso do contralaudo, foi interessante para os pes-
quisadores da UERJ deixar de lado a própria documentação da Marinha
sobre a atuação na repressão aos desembarques ilegais pós-1850.
Para além do caso da Marambaia, a documentação da Auditoria Geral
da Marinha nos permite reconstruir uma parte da rota de desembarques
clandestinos de africanos no Brasil durante a segunda metade do século
XIX. Além dos processos de apreensão de africanos recém-desembarcados
na ilha, temos também a apreensão de 212 africanos no porto de Macaé e
de 121 africanos em São Francisco de Itabapoana. No século XX, a partir
do reconhecimento de direitos coletivos previstos na Constituição Federal
de 1988, que através do art. 68 criou uma categoria jurídica nova – “os re-
manescentes de quilombo” –, outras comunidades negras rurais que tam-
bém mantêm a memória com relação aos desembarques de africanos no
território que habitam há várias gerações buscam o caminho quilombola,
da mesma forma que os ilhéus da Marambaia. Como exemplo temos, na
Região dos Lagos, a comunidade remanescente de quilombo da Rasa, lo-
calizada no município de Búzios e, em São Francisco de Itabapoana, no
norte fluminense, a comunidade do Deserto Feliz.
Capítulo 3

Nilma Teixeira Accioli1

Este capítulo foi desenvolvido a partir de pesquisa realizada para a mo-


nografia de conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em História do
Rio de Janeiro, concluído na Universidade Federal Fluminense, em 2010.
Seu ponto de partida foi a memória sobre o tráfico ilegal de africanos en-
tre os moradores das várias comunidades negras que reivindicam o reco-
nhecimento como remanescentes de quilombo na região, em especial as
comunidades da Rasa, em Búzios, e de Botafogo e Caveira, em Cabo Frio.2
Apesar da proibição, estabelecida pela lei de 1831, o tráfico de africanos
continuou forte no litoral norte do Rio de Janeiro. Segundo o Relatório
Alcoforado (1995), em fins de 1835 foram criados diversos barracões de
escravos ao longo da costa. Em Barra de Campos, os principais responsá-
veis foram os comendadores Joaquim Tomás de Faria e André Gonçalves
da Graça.3
O tráfico acentuou-se e, a partir de 1840, foram feitos inúmeros de-
sembarques em Campos e Cabo Frio com o apoio de autoridades locais
ligadas aos traficantes.O aumento do tráfico pode ser observado nos qua-
dros que se seguem, que registram desembarques ocorridos no período
de 1844 a 1845.

1
Nilma Teixeira Accioli é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da
UFRJ.
2
Os resultados aqui apresentados se desdobraram em um prêmio de pesquisa da Biblioteca Nacio-
nal, publicado em 2011, com o titulo José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de
escravos no antigo Cabo Frio e, agora, em pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Progra-
ma de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, sob orientação de Flávio Gomes: Religiosi-
dade no Rio de Janeiro: 1870-1940. Cabula e Omolocô.
3
Relatório Alcoforado (IJ6 525) e Relação das pessoas implicadas no tráfico de africanos e em moe-
da falsa, elaborada conforme correspondência da polícia para o ministro de Estado da Justiça IJ6
56-472-480 (1864) Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
64
Quadro 4 – Desembarques em Cabo Frio (1844-1845)
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Embarcação Proprietário Embarque No de desembarcados


Coimbra – Gabão 90
Francelina Gabriel J. Antônio Luanda 350
Espadarte Manuel Pinto da Fonseca Cabinda 380
Relâmpago José Bernardino de Sá Cabinda 480
Agnes Manuel Pinto da Fonseca Cabinda 400
Ganaflite Manuel Pinto da Fonseca Cabinda 420
Montevidéo Manuel Pinto da Fonseca Cabinda 750
Kentucky Manuel Pinto da Fonseca Sofala 450
Ganaflite Guimarães de Sá L.Marques 380
Carmenista F.F.Guimarães Cabinda 363
Restaurador F.F.Guimarães – 382
São Lourenço F.A. Mota Cabinda 600
Diligente Manoel Pedro Ferreira Benguela 300
Kentucky Manoel Pinto da Fonseca Quilimane 545
Tentativa Antônio Dias e Castro Souza – 200
Caxias Antônio Gomes Neto Serra Leoa 450
Ventura Fonseca Quilimane 400
Garrafinha Manuel Pinto Gabão 400
Fonte: <www.slavesvoyages.org>. Aceso em: 20 out. 2010.

Quadro 5 – Desembarques em Campos (1844-1845)


Embarcação Proprietário Embarque No de desembarcados
Ventura Feliz Joaquim Tomás de Faria Benguela 580
Espanhola – Cabinda 60
Confidência José Ferreira Cerelo Cabinda 301
N. Senhora da Conceição Feliz José Bernardino de Sá Gabão 205
Felicidade J. Tomás de Faria Luanda 340
Campista Francisco Alves Brito – 90
Rainha dos Anjos J. Tomás de Faria – 280
Fama J. Tomás de Faria Luanda 430
Esperança Jorge J.de Souza Cabinda 420
Belmira Jorge J. de Souza Ambriz 650
Especuladora André G. da Graça Cabinda 280
Três Corações Barbosa e Castro Benguela 160
Belmira Jorge J. de Souza Luanda 573
Esperança Jorge J. de Souza Luanda 500
Aventureiro Bernardino de Sá Ambriz 201
Nova Sociedade André da Graça e Antônio Coutinho Cabinda 240
Zampes Manuel Ventura Benguela 280
Fonte: <www.slavesvoyages.org>. Acesso em: 20 out. 2010.
65
Quadro 6 – Desembarques em Macaé (1844-1845)

Nilma Teixeira Accioli


Embarcação Proprietário Embarque No de desembarcados
Felicidade Jorge J.de Souza Luanda 332
Bela Maria José Dias Cupertino Luanda 350
Espanhol – Benin 353
Bela Maria José Dias Cupertino Cabinda 400
Caçador da Bahia – Luanda 650
Nova Sociedade José Bernardino de Sá Ambriz 200
Delinda – – 230
Teixeira Barbosa e Castro Benguela 420
Caxias Antônio Gomes Neto Luanda 400
Esperança José Bernardino de Sá Ambriz 395
Boaventura Manoel Antônio Rodrigues Benguela 170
Lobo José Dias Cupertino – 410
Três Corações Manoel Antônio Rodrigues Benguela 200
Dois Corações Manoel Antônio Rodrigues Benguela 182
Henriqueta José Bernardino da Costa Benguela 105
– Jorge José de Souza – 280
Virginia Vergueiro – 450
Fonte: <www.slavesvoyages.org>. Acesso em: 20 out. 2010.

Podemos observar que, tomando como referência apenas embarcações


em que constam o número de africanos desembarcados, aproximadamen-
te 18.500 africanos foram desembarcados no litoral norte fluminense (de
Cabo Frio a Macaé) no período de 1844 a 1845. Naturalmente, outros
desembarques devem ter ocorrido no mesmo período, determinando um
intenso tráfico na região.
Em Cabo Frio, o Montevideo desembarcou, no ano de 1844, aproxima-
damente 800 africanos e o Agnes, “fervilhando com mais de quinhentos
negros e com bandeira e papéis americanos substituídos pelos de nacio-
nalidade brasileira”, burlaram a lei e abasteceram a região com novos es-
cravos (OSCAR, 1985, p. 71).
Outro aspecto importante, que pode ser observado nos quadros aci-
ma é o uso dos mesmos navios por diferentes traficantes e, em alguns
casos, uma associação entre traficantes como o caso de André Gonçalves
da Graça e Antônio Coutinho na embarcação Nova Sociedade. Alguns tra-
ficantes, como José Bernardino de Sá, que em 1850 foi agraciado com o
título de barão de Vila Nova Minho, atuavam em várias localidades. Os
traficantes buscavam soluções para desembarcarem os africanos e uma
delas era o controle das áreas de desembarque por familiares e aliados,
como no caso de André Gonçalves da Graça e seu sócio Joaquim Tomás
de Faria, que contavam com o apoio de suas fazendas, para viabilizar o
desembarque, expediente também usado por José Gonçalves e seu sócio
Antônio dos Guimarães, em Cabo Frio.4

4
Fontes: Arquivo Nacional, série Apelação Cível, caixa 556 G C – Processo José de Oliveira Gago; Silva
(1864); Aperj, registro no70, registros paroquiais de terras, N. Senhora Assumpção de Cabo Frio.
66
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Roquinaldo Ferreira (1996, p. 157) destaca que “do Rio de Janeiro se


organizou boa parte do tráfico ilegal no Brasil numa verdadeira comuni-
dade, os traficantes formavam grandes firmas”. Os traficantes destruíam
navios, mudavam rotas de desembarque e frequentemente contavam com
o apoio das autoridades locais. A ligação entre a ilegalidade e autoridades
era antiga na região de Cabo Frio e chamou, inclusive, a atenção de Saint
Hilaire, naturalista francês que, saindo de Campos Novos em direção a
São João da Barra, no início do século XIX,fez, o seguinte comentário:

Perguntei ao negro que transporta os viajantes aonde poderia encontrar


um abrigo, tendo obtido a resposta que o comandante arranjar-me-ia al-
gum. Acreditei tratar-se do comandante da aldeia e que iria encontrar o
homem mais distinto do lugar [...] Não se tratava, como eu havia imagi-
nado, do magistrado da aldeia, mas de um simples cabo de polícia que co-
mandava o destacamento de 6 homens encarregados de fiscalizar o paga-
mento do pedágio e de prender os viajantes suspeitos. Esse destacamento-
devia ser substituído quinzenalmente, mas as pessoas abastadas pagavam
as substituições e eram sempre os mesmos homens que ocupavam o posto.
(SAINT-HILAIRE, 1974, p. 178)

É importante destacar que pela Guarda de São João se tinha acesso às


regiões auríferas de Minas Gerais e, mais tarde, era pelo rio São João que
se escoava a produção agrícola da Região Serrana do norte fluminense. É
obvio que na segunda metade do século XIX ocorreram mudanças e havia
empenho do governo imperial em acabar com o tráfico de africanos. As
correspondências entre as autoridades demonstram essa preocupação.
Em 1856, José Maria Paranhos avisa o governo sobre os navios ameri-
canos Adela e Rosa, que se achavam sob suspeita de envolvimento com
o tráfico.5 O patacho português Roberto foi denunciado por levar a bor-
do maior quantidade de mantimentos e aguada do que o necessário para
qualquer viagem de longo curso e, por esse motivo, levantava suspeitas
das autoridades.6
São inúmeras denúncias, e a fiscalização se tornara rigorosa a partir de
1850, “mas perder um navio num apresamento não desestimulava o trá-
fico. Daí que a repressão só teve êxito quando elevou a níveis intoleráveis
as taxas de risco do tráfico ilegal.” (FERREIRA, 1996, p. 120)
Uma das medidas mais fortes foi a extradição dos traficantes estran-
geiros, como ocorreu com o português Manoel Pinto da Fonseca, podero-
so em Cabo Frio e na Corte e que, como vimos nas tabelas anteriores, de-
sembarcou em Cabo Frio, entre 1844 e 1845, pelo menos 2.895 africanos.
Naverdade, neste caso específico, a expulsão atendia a vários interesses:
5
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, processos sobre tráfico, ofício de 20 de março 1856 do juiz de
direito de Santos ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo, pacote IJ6 521.
6
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, processos sobre tráfico, ofício de 20 de março 1856 do juiz de
direito de Santos ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo, pacote IJ6 521.
67

Nilma Teixeira Accioli


servia de exemplo sobre como o governo imperial estava empenhado em
acabar como tráfico e era muito bem vinda para pessoas ilustresdo Rio de
Janeiro, que deviam grandes somas ao traficante. O fato é que Manoel
Pinto da Fonseca foi embora extremamente rico “carregando sua imensa
fortuna avaliada em um milhão de libras, o que na época era assinalável.
Pois foi esse dinheiro base do Banco Fonseca e Burnay” (Clarence-Smith,
[s.d.], p. 54).
Os traficantes, em caso de processo, contavam com o apoio de alguns
juízes.Além das autoridades locais, que sempre estiveram presentes nas
averiguações de suspeitas e denúncias de contrabando de africanos, de-
pois de 1850 surgiu a figura do auditor de Marinha. Nos casos julgados
pelos auditores, podem ser percebidas diferentes formas de atuação.A se-
veridade no cumprimento da lei,por exemplo,não foi uma regra geral na
Auditoria Geral de Marinha e a eficiência da repressão diminuía quando
os navios conseguiam desembarcar a carga humana.
Em 1850, Luiz José Lopes Trindade (José do Peró), cuja família pos-
suía terras em Porto do Carro (Cabo Frio) com registro feito em nome
de Manoel Lopes Trindade, foi acusado de tráfico de africanos, mas usou
um expediente conhecido para fugir da comprovação da atividade ilegal:
quando as autoridades chegaram ao local, o bergantim Sagas, vindo de
Cabinda, já havia desembarcado os africanos e foi incendiado pela tripu-
lação, com o apoio de moradores da praia do Peró (RODRIGUES, 2000, p.
152-169).
O processo organizado pelo auditor de Marinha sobre o apresamento e
arrecadação dos objetos recolhidos do bergantim Sagas, após o incêndio,
pelo guarda de alfândega José Joaquim dos Santos, determinou o leilão
dos objetos e, embora o incêndio do barco fosse uma evidencia do envol-
vimento no tráfico, não houve maiores punições.7
Em São João da Barra, extremo norte do litoral do Rio de Janeiro, o
comendador André Gonçalves da Graça liderava o tráfico de africanos. Seu
caso é mais uma demonstração das dificuldades para punir traficantes e
da conivência das autoridades.
Em 1850, foi aprisionado o iate Rolha, com 212 africanos, de diferen-
tes nações, desembarcados na praia de Manguinhos, perto da fazenda São
Pedro de Alcântara, de propriedade daquele comendador.8
O processo, rico em detalhes, descreve até as marcas apresentadas pe-
los africanos, e condena André Gonçalves da Graça e seu sócio, Joaquim
Faria,de crime de pirataria e contrabando de africanos. Na apelação, o réu
André Gonçalves nega a competência do auditor militar para julgar o caso.
7
Arquivo Nacional, C13.195, P.1 – Processo de apresamento e arrecadação dos objetos pertencentes
ao bergantim nacional Sagas, que foi incendiado pela tripulação. Em estudo posterior, pude esta-
belecer a ligação de José Gonçalves da Silva, denunciado por tráfico de africanos em 1851, com este
desembarque realizado pelo Sagas.
8
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, C.13.195 – Processo de apreensão do iate Rolha e de uma
garoupeira com 212 africanos pelo vapor de guerra Urânia no porto de Macaé.
68
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Aponta vários supostos erros cometidos nas diligências, como o fato de


apenas dois africanos terem sido ouvidos em interrogatórios.
O auditor, em resposta à apelação de André Gonçalves, afirma que o
réu era proprietário das lanchas e que os africanos foram desembarcados
na fazenda do comendador. Sobre o fato de o réu afirmar que as lanchas
não apresentavam sinais que caracterizassem o uso para tráfico, o auditor
afirma:

desde que se pudesse fazer transportar os africanos em pequenas barcas


e fazer desaparecer o navio que os conduziu, e mesmo fazer escapar esses
africanos da vigilância das autoridades nada podiam obrar por quanto não
se dava vestígios e sinais, que tão rigorosamente quer o requerente, como
de se lanchas e qualquer outros barcos pequenos, que podem servir tam-
bém para outros ésteres, pudessem ter esses sinais próprios e somente dos
navios de longo curso.9

O auditor José Baptista Lisboa persistia na afirmação de que as lan-


chas pertenciam ao “requerente e que se ocupam no transporte de africa-
nos boçais dos navios em que eram importados para os depósitos que tem
e para sua fazenda”.
Segundo o auditor, todas essas declarações acham-se confirmadas nos
autos de apreensão e no depoimento das testemunhas. “As lanchas eram
empregadas exclusivamente no tráfico de africanos” e que, recentemente,
se tinham prestado a um desembarque em Manguinhos presidido pelo
próprio comendador.10
Os africanos transportados para a fazenda do requerente foram en-
contrados nas matas da propriedade e eram todos inteiramente boçais.
Segundo o auditor “uma das lanchas, até o dia em que ali chegou a força
do governo, estava toda preparada com água e mantimentos a bordo para
um transporte de africanos de Guarapari, levando consigo para sinal uma
bandeira branca com o círculo encarnado”,11 o que era conhecido como um
sinal dos traficantes de africano.
No processo fica evidenciado que o comendador André Gonçalves da
Graçapossuía lugar na costa para recebimento e depósito de africanos,
e sinais, em sua fazenda, para guiar os navios que vinham com esse
carregamento.
O auditor cometeu a displicência de ouvir apenas dois dos 212 africa-
nos, o que écontestado pelo comendador, uma vez que a lei exigia que to-
dos fossem ouvidos. Apesar de todas as provas, o processo foi julgado nulo
pelo Tribunal da Relação, que afirmou a incompetência da Marinhano

9
Ibid.
10
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, C.13.195 – Processo de apreensão do iate Rolha e de uma
garoupeira com 212 africanos pelo vapor de guerra Urânia no porto de Macaé.
11
Ibid.
69

Nilma Teixeira Accioli


caso do comendador e declarou que os réus, André Gonçalves da Graça e
seu sócio Joaquim Tomás de Faria, “não são compreendidos em nenhuma
das categorias do artigo 3 da Lei nº 581”. O tribunal decidiu,sem senten-
ça, que

o auditor de Marinha só tem jurisdição para processar e julgar o implica-


do do crime de importação de escravos enquanto estes são apreendidos
em alto mar ou na costa antes do desembarque, no ato dele ou imediata-
mente depois em armazéns e depósitos nas costas e portos, e não quando
sem se ir em seguimento deles de tem já internados, como na espécie, em
território.12

A apreensão dos 212 africanos foi feita nas matas da fazenda a “uma
légua da praia” e, segundo a sentença, a autoridade do auditor “se deveria
limitar em caso tal a remeter ao chefe de polícia todos os indícios e pro-
vas”. Concluindo pela nulidade do processo, determinava: “condenam as
custas a municipalidade respectiva”.13
O comendador André Gonçalves da Graça imediatamente faz um re-
querimento solicitando “uma carta de sentença de recurso crime”, no que
foi prontamente atendido,

para com ela a ver de requerer tudo quanto for a bem de seu direito e jus-
tiça dando-a para isso a sua devida execução contra a Câmara Municipal
desta Cidade do Rio de Janeiro, e por seu requerimento ser justo e confor-
me as disposições de direito lha mandei dar e passar.14

O processo contra André Gonçalves da Graça é longo e bastante ins-


tigante, rico em detalhes, e merece um estudo mais aprofundado futura-
mente. Nele podemos perceber aspectos como o fato da sentença negar
a competência da Marinha, mas a culpa, tão evidente, não ser comenta-
da. Apesar da repressão existente no período, fica bastante acentuado o
favoritismo e a conivência das autoridades que julgaram o processo de
apelação. Embora o processo fosse “contra a competência da Marinha”, as
provas do tráfico não foram mencionadas pelos desembargadores. Os 212
africanos que, pela lei, seriam considerados livres, tornaram-se escravos.
Em 1856, nova denúncia foi feita contra o desembarque na área da
fazenda do comendador André Gonçalves da Graça. Uma carta vinda da
costa da África avisava sobre um provável desembarque dirigido por José
de Souza Velho, conhecido por seu envolvimento com o tráfico.

12
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, C. 13.198 – Sentença cível em grau de apelação contra a Câma-
ra Municipal do Rio de Janeiro, passada a favor de André Gonçalves da Graça.
13
Ibid.
14
Ibid.
70
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

O antigo sócio do comendador, fazendeiro Joaquim Tomás de Faria, já


era falecido, mas sua fazenda, agora administrada por sua viúva, continu-
ava na rota do tráfico, como consta do relatório do tenente João da Silva
Nazareth, encarregado da diligência para comprovação da denúncia.
O relatório do tenentemostra que a área já era bastante conhecida
como ponto de desembarque clandestino e estabelece as trilhas que eram
usadas pelos traficantes:

Tendo seguido em diligência ao lugar denominado Marobá, afim de exa-


minar as picadas que ali existissem, ou de haver indícios de algum desem-
barque.Tenho a honra de informar a V. Sª. que existem duas picadas na
Praia do Marobá, tendo uma destaspicadas vários caminhos como ouvi
de Felismino Francisco Batalha, Antônio de Tal, Viana, Jordão de Tal e
Manoel Soares, sócio do comendador André Gonçalves da Graça, daí segue
estrada fazendo duas picadas, uma que vai sair ao rio Muqui e outra que
vai se comunicar com a fazenda denominada Santa Anna, pertencente a
viúva do finado comendador Joaquim Thomas de Faria daí segue para o
distrito de Guarulhos, termo de Campos e dessa mesma picada do Marobá
tem outra que vai ter com os Cajueiros de Itapemirim. Mas segundo as in-
formações que tive não oferece grande transito, do que eu mesmo exami-
nei suas entradas, conheci que há franqueza de transito. Quanto por todo
o litoral do Termo de Itapemirim não encontrei canoas nem botes que se
ocultassem pelos [ilegível] da praia, portanto julgo conveniente um desta-
camento de cavalaria, pois só assim impedirá qualquer desembarque, não
só porque é uma praia de extensão de seis léguas como também é muito
fácil dar-se um desembarque com presteza.15

Foi expedida uma ordem de captura de José de Souza Velho, que já


havia sido processado em 1851 por desembarque clandestino em Santos,
mas a Auditoria de Marinha havia considerado o navio “má presa”e o ti-
nha liberado. Em novembro de 1851, o Conselho de Estado reviu a sen-
tença e “mandou a embarcação a leilão” (RODRIGUES, 2000, p. 140).
As buscas ao traficante José de Souza Velho podem ser acompanha-
das através das correspondências entre autoridades. O juiz de direito de
Santos enviou carta ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo:

Cumpre-me dizer a VSª que esse Velho,que averigüei ser português,se acha
presentemente no Rio de Janeiro,não sei se na cidade, ou no interior,em
alguns dos lugares em que ele costuma passar meses.Há pouco veio a essa
cidade, servindo de piloto,a bordo do vapor Paraense que saiu do Porto
do Rio de Janeiro para este no dia primeiro de fevereiro próximo findo,
e d’agora regressou no mesmo vapor no dia 12 do mesmo mês.Já se em-
pregou no negócio de trafico de africanos e,em 1851, entrou arribado

15
Arquivo Nacional. Série Polícia. Relatório do tenente José da Silva Nazareth.
71

Nilma Teixeira Accioli


neste porto,vindo de Santa Catarina, comandando o patacho português
rio Tamega,que se destina ao tráfico:esse patacho foi d’aqui mandado para
o Rio,onde considerarão-o boa presa.16

O juiz negou o desembarque em Santos, em 1856, e conclui: “Enquanto


eu aqui estiver, não se há de dar um passo para a introdução de africa-
nos. Sei quanto os africanistas são atrevidos e ousados, mas eu os vigio
bastante”.17
Não foi possível localizar o processo com a nova denúncia.
Provavelmente André Gonçalves da Graça tenha conseguido escapar da
acusação e continuado com grande prestígio na região.
Pouco tempo depois, J. J. von Tschudi (1954), naturalista e embaixador
da República Hevéltica no Brasil, esteve na fazenda de André Gonçalves
da Graça, e descreveu o comendador como agradável e hospitaleiro: “às
seis da tarde atingimos a propriedade do comendador André Gonçalves
da Graça, a 10 léguas de Santo Antônio do Muqui”.
André Gonçalves era natural da província de Trás-os-Montes e teria
navegado, segundo relatou a Von Tschudi, durante muitos anos entre
a costa da África e o Brasil. “Parece que tais viagens foram lucrativas.
Possuía ele, além da fazenda S. Pedro, outra maior, vizinha, ambas muito
bemcultivadas”.
André Gonçalves e seu genro exibiram com orgulho para Tschudi a es-
trutura e as aparelhagens da fazenda, que era altamente produtiva.
O viajante narrou um amanhecer na fazenda do comendador:

Um monótono vozerio, vindo da varanda fronteira à janela do meu apo-


sento, despertou-me, na manhã seguinte, muito antes do amanhecer.
Escutando algum tempo, descobri que se tratava do apelo matinal aos es-
cravos, o que em breve foi seguido pelo murmúrio da prece com que ini-
ciou o dia. (VON TSCHUDI, 1954)

No mesmo período em queAndré Gonçalves recebeu a visita de


Tschudi, foi chamado, em documento oficial, de “famigerado africanis-
ta”. O comendador controlava o tráfico e a revenda dos escravos para as
fazendas de Campos e São Fidélis, mas também abastecia outras regiões
mais distantes.
Em 1852, André foi eleito vice-presidente da Câmara Municipal de São
João da Barra. O sobrado que o comendador construiu no centro de São
João da Barra hospedou d.Pedro II e, atualmente, é a sede do Fórum da
cidade.

16
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, pacote IJ6 521 – Processos sobre tráfico, ofício de 20 de março
de 1856 do juiz de direito de Santos ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo.
17
Ibid.
72
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Existe, no Arquivo do Cartório do 1º Ofício de São João da Barra, uma


ação de liberdade, datada de 1883, do escravo africano Antônio. Inquirido,
o escravo nos dá algumas informações sobre seu desembarque:

Perguntado seu nome, naturalidade, residência, idade e profissão? –


Respondeu chamar-se Antônio, Congo, natural d’Angola, residente na
freguezia de São Francisco de Paula; ignora sua idade, mas era moleque
quando aqui saltara, data que coincidiu com a construçãodo sobrado de
André Gonçalves nesta cidade. – Perguntado onde desembarcara, quem
fora o seu primitivo senhor ou senhores, em cujo poder tem estado até a
presente data?– Respondeu que desembarcara na Praia de Manguinhos
em idade muito tenra, muito pequeno ainda, sendo seu primitivo senhor o
referido André da Graça, onde esteve sobre o seu poder por espaço de três
ou quatro anos [...]. (OSCAR, 1985, p. 98)

Recentemente, na praia de Manguinhos, após uma grande ressaca,


foi descoberta uma grande quantidade de ossadas humanas. Os técni-
cos do Iphan, chamados ao local, ficaram impressionados com o achado.
Após análise do material, que indicou a possibilidade de as ossadas se-
rem de africanos, o acervo foi registrado e o local reconhecido como sítio
arqueológico.
Apenas após 1850, as autoridades imperiais se tornaram efetivamen-
te empenhadas em extinguir o tráfico. Em 21 de janeiro de 1856, Luiz
Muniz Sampaio foi contratado para estacionarna povoação de Itaipu, a
fim de tornar eficaz a vigilância para prevenir qualquer desembarque de
africanos.

O Sr. Luiz Munis de Sampaio é comissionado pela polícia da Província


para exercer toda a possível vigilância e empregar os meios ao seu alcance
para que tais fatos se não reproduzam e quando sejam tentados encon-
tre a necessária repressão. Para isso poderá requisitar os auxílios de que
precisar, a autoridade policial do lugar,ao comandante da Fortaleza de
Santa Cruz,ou a esta repartição como julgar mais conveniente,deve arrolar
embarcações existentes,fiscalizar as pessoas da tripulação e passageiros
suspeitos,prenderá os criminosos tanto na terra como no mar.18

As atribuições de Luiz Munis de Sampaio, entre outras, incluía requi-


sitar o apoio da Fortaleza de Santa Cruz, a mesma fortalezade onde o ne-
greiro Galgo foi rebocado pelos traficantes, após a Lei de 1831. A posição
do governo, em 1856, era realmente outra.

18
Arquivo Nacional. Série Polícia. Nomeação de Luiz Munis Sampaio.
73

Nilma Teixeira Accioli


A fazenda Campos Novos foi fundada pelos jesuítas em 1690. Sua
sede, situada entre São Pedro da Aldeia e São João da Barra, foi cons-
truída sobre uma elevação entre a planície pantanosa dos rios Una e São
João. Para a implantação da fazenda ocorreu a queimada e derrubada das
florestas próximas do rio Una, que foram substituídas pela plantação de
gramíneas para formação das pastagem (PIZARRO, 1945, p. 108).
Com a expulsão da Companhia de Jesus, a fazenda Campos Novos foi
confiscada pelo governo português e se nome foi mudado para fazenda
D’El Rey e, em 1759, arrematada por Manuel Pereira Gonçalves.
“Mas, por efeito do seqüestro dos bens dessa corporação, passou a ca-
pela, com a fazenda, ao senhorio de Manuel Pereira Gonçalves” (PIZARRO,
1945, p. 116).
A vasta região que formava Cabo Frio no século XIX foi percorrida por
inúmeros viajantes. Seus relatos são importantes subsídios para saber-
mos como estava a área na primeira metade do Oitocentos.
Saint Hilaire descreveu Cabo Frio da seguinte maneira:

A paróquia de Cabo Frio, após ter tido outrora 20 léguas de comprimento


está hoje reduzida a 3 ou 4 léguas e conta com cerca de 2 mil almas [...] dos
2 mil indivíduos, de que venho de referir, quase mil são escravos, mas a
maior parte destes últimos acha-se disseminada pelas propriedades rurais
[...] nas vizinhanças da cidade para além dos tristes areais há um grande
número de cultivadores e entre eles dois proprietários de engenho de açú-
car. Acorreu também aos arredores de Cabo Frio negociantes da Bahia,
mas estes limitam-se a adquirir farinha de mandioca [....] Cultiva-se tam-
bém um pouco de algodão nos arredores de Cabo Frio, mas ele não é de
qualidade superior, e os colonos reservam-no geralmente para uso de suas
famílias e em particular para a roupa dos negros. (SAINT-HILAIRE, 1974,
p. 166-170)

Outro viajante que, no início do século XIX, esteve percorrendo a re-


gião foi o príncipe Maximiliano. O viajante foi convidado a conhecer um
engenho de açúcar e relatou: “A fazenda do capitão, cercada pelas cabanas
dos negros, fica aprazivelmente situada numa colina. Vêem-se em torno
montanhas cobertas de mata e encostas silvestres, formando amável con-
trastes com os canaviais verde-claro” (WIED-NEUWIED, 1858, p. 70).
Provavelmente a fazenda descrita pelo naturalista é a “fazenda
Trimumu”, cujas ruínas visitei com o Antônio da Silva Fernandes, descen-
dente de escravos que viveram na região de Campos Novos.
Em 8 de setembro de 1818,o príncipe Maximiliano deixou os arre-
dores de Cabo Frio e avançou pela beira da lagoa: “Deixando a floresta,
74
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

entramos num campo aberto, onde, numa eminência ficava a grande fa-
zenda de Campos Novos, ou antes Fazenda do Rei. Perto da casa do pro-
prietário, um capitão, os casebres dos negros se dispõem num quadrado
formando uma aldeola” (WIED-NEUWIED, 1858, p. 77).
O naturalista, após explorar anatureza próxima da fazenda, parte
em direção a São João da Barra, “atravessando uma imponente floresta
primitiva”.
No entanto é do naturalista Saint Hilaire, o relato mais detalhado so-
bre Campos Novos:

Ao redor do imenso pátio que forma um quadrilátero longo aberto por um


dos lados menores, ficam as casas construídas para os negros e as casinhas
sem dúvida destinadas aos operários livres que trabalhavam no estabeleci-
mento. À extremidade de um dos grandes lados do pátio, vê-se, sobre uma
pequena eminência a igreja com o convento e, à extremidade do grande
lado oposto existe um engenho de cana. As casas que rodeiam uma parte
do pátio são grosseiramente construídas de pau-a-pique e barro. Pequenas
e cobertas de capim, algumas são isoladas na fila, outras reunidas sob o
mesmo teto, contei 28 ao lado onde se acha o convento. Este e a igreja não
me parecem em proporção com o restante doestabelecimento; mas esta fa-
zenda não podia ser senão uma fonte de renda, por conseguinte não se de-
via para aí enviar senão os religiosos encarregados da administração. Após
a expulsão dos jesuítas o estabelecimento passou para as mãos de homens
ricos; morrendo estes os escravos foram distribuídos entre os herdeiros, o
engenho cessou de funcionar e em poucos anos a fazenda Campos Novos
provavelmente não existirá mais. (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 176)

Dois aspectos chamam a atenção no relato de Saint Hilaire: primeiro, o


fato de ele ter reconhecido Campos Novos como local de “fonte de renda”.
Ela não possuía o objetivo de catequese. Outro aspecto é a previsão de
Campos Novos deixar de existir devido à decadência na época em que ele
visitou a fazenda. A decadência das regiões auríferas, no início do século
XIX, refletiu-se em Campos Novos, que tinha como grande fonte de renda
o envio de carne e outros produtos para Minas Gerais. Mas a previsão de
a fazenda deixar de “existir” não se confirmará. A partir de 1830, Campos
Novos tornou-se a sede de um complexo agrícola enriquecido, principal-
mente com o tráfico ilegal de africanos.
Após a independência do Brasil, Campos Novos, que deixou de perten-
cer ao patrimônio público, passou por sucessivos arrendamentos e sur-
giram vários “donos”. Como não existia nenhuma escritura da fazenda,
houve o fortalecimento de uma antigalenda, ainda hoje muito conhecida
na região, de que a fazenda tinha sido doada a Santo Inácio e que a escri-
tura estaria gravada nos pés da imagem, em ouro, do santo. A imagem foi
roubada, evárias lendas surgiram sobre tal desaparecimento. Na primeira
75

Nilma Teixeira Accioli


metade do século XX (na década de 30) foi feita uma escritura, em car-
tório, que mantinha apenas quatro alqueires de terra para Santo Inácio.
Os descendentes de antigos libertos, que permaneceram trabalhando e
ocupando terras em Campos Novos, repudiaram essa escritura, afirman-
do que era falsa, o que deu origem a vários conflitos (WERNECK, [s.d.]).
Em 1847, d.Pedro II esteve em Campos Novos, cujo proprietário erao
reverendo Joaquim Gonçalves Porto, e o fazendeiro José Gonçalves da
Silva forneceu a verba para a festa de recepção ao imperador. Campos
Novos era, na época, um importante complexo agrícola formado por ou-
tras fazendas, como Porto Velho, Fazendinha, São Jacinto, Araçá, Piraúna,
Angelin, Caveira, Retiro e outras menores.19 A sede era a antiga fazenda
dos jesuítas, próxima da capela de Santo Inácio. Em quase todas essas
áreas existem atualmente comunidades remanescentes de quilombo nos
termos da Constituição de 1988.
Deste a primeira metade do século XIX, o Complexo Agrícola Campos
Novos tornou-se fornecedor de produtos agrícolas, como cachaça, banana
e farinha de mandioca, o que foi importante para o tráfico de africanos.
Roquinaldo Ferreira (1996, p. 166) chama a atenção para o fato de que
“talvez o uso de mercadorias genuinamente brasileiras seja inclusive a
chave para o acesso dos fazendeiros ao tráfico ilegal. Os fazendeiros ti-
nham melhores condições para conseguir os bens da terra empregados no
tráfico em Angola”.
A região fornecia frutas tropicais e, na Porto Velho, havia a produção
de doces para exportação. Piraúna era grande produtora de farinha de
mandioca e a fazenda sede, Campos Novos, era usada para a criação de
gado e como ponto de revenda de escravos. As outras fazendas, além de
fornecerem produtos agrícolas, eram pontos de apoio para a rota ilegal
de africanos, como ocorria em Fazendinha, Porto Velho,Tauá, Piraúnae
Caveira.20
Sobre a fazenda São Jacinto, localizada na estrada que atualmente liga
Cabo Frio a Campos Novos, Saint Hilaire comentou:

Fui pedir hospitalidade na Fazenda São Jacinto, quase destruída. O proprietá-


rio não se achava em casa quando aí cheguei, fui muito mal recebido pelo negro
a quem me dirigi, insisti, aborreci-me e acabei por descarregar minha baga-
gem, sem cerimônia. Pouco depois chegou o dono da casa. Tratava-se de um
homem muito rico, possuidor de muitas outras propriedades,e que não cuidava
daquela, aonde tinha o costume de apenas deter-se de passagem. Não pareceu
contrariado em me ver instalado em sua casa [...] As terras dos arredores de S.
Jacinto são próprias para todos os gêneros de cultura,excetuando a do arroz.
(SAINT-HILAIRE, 1974, p. 175)

19
Depoimentos dos descendentes dos escravos da fazenda Campos Novos, em 2009.
20
Depoimentos realizados, em 2009, pelas comunidades remanescentes dos escravos da fazenda
Campos Novas.
76
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

São Jacinto foi usada como apoio da rota que saía da Ponta das
Emerências (atuais Praias de Tucuns e José Gonçalves, em Búzios), passa-
va pela Fazendinha, São Jacinto, Piraúna e Chegava em Campos Novos.21
Para a implantação do complexo agrícola, a presença de vários portos
para escoamento da produção era fundamental. Campos Novos estava em
situação privilegiada, próxima das praias de São João da Barra, da Barra do
Una e da praia do “Desembarque”, como era chamado o “Arpoador da Rasa”.
Os escravos desembarcados no Arpoador da Rasa, na Barra do Una e,
mais tarde, na praia das Emerências iam abastecer, através do traficante
José Gonçalves da Silva e seu sócio, José Antônio dos Guimarães, as fa-
zendas da região; do ponto de revenda em Campos Novos chegavam até
as áreas serranas mais próximas.
Para burlar a fiscalização, vários fatores foram favoráveis: o isolamen-
to da região, a presença de várias propriedades em poder de aliados e o
prestígio de José Gonçalves e de seu sócio, José Antônio dos Guimarães.
Os registros paroquiais de terras referentes à província de Nossa
Senhora da Assumpção de Cabo Frio mostram a posse de grandes áreas
pela família Gonçalves. Eles são citados registrando terras como proprie-
tários e também seus nomes são usados como referência para divisa das
terras de outros proprietários.
José Pereira Gonçalves registrou terras que iam de Barra do São
João até Campos Novos e faziam divisas com as terras de Antônio José
Gonçalves. Manuel Gonçalves possuía terras que iam de Barra do Una até
São Pedro da Aldeia. As terras da antiga fazenda Campos Novos estavam
assim sob controle dos Gonçalves, como podemos observar no quadro 7.

Quadro 7 – Terras sob controle dos Gonçalves na Região dos Lagos fluminense
Proprietário Localidade
Antônio Pereira Gonçalves Silva Campos Novos
Antônio Gonçalves Araçá
AntônioJosé Gonçalves Júnior Campos Novos(divisa com as terras de seu pai,AntônioJosé Gonçalves)
AntônioJosé Gonçalves Campos Novos até Barra do Una
Fortunato José Gonçalves Manguinhos
Francisco Gonçalves Canto do Peró e Baía Formosa até o Peró
Francisco José Gonçalves Campos Novos (divisa com terras de seu irmão,AntônioJosé Gonçalves Júnior)
José Gonçalves da Silva Baía Formosa
José Pereira Gonçalves Baía Formosa
José Pereira Gonçalves Barra de São João até Campos Novos
José Gonçalves Teixeira Bastos Campos Novos
Joaquim Gonçalves Terras no Porto
Manoel Gonçalves Coutinho Ferradura
Manoel Pereira Gonçalves Lima Retiro
Manoel Pereira Gonçalves Campos Novos
Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registros Paroquiais de Terras. Nossa Senhora da Assumpção de Cabo Frio.

21
Depoimentos colhidos em 2009.
77

Nilma Teixeira Accioli


Não foi possível estabelecer os graus de parentesco entre esses
Gonçalves; apenas três casos são especificados nos registros: o de
AntônioJosé Gonçalves e seus dois filhos AntônioJosé Gonçalves Júnior
e Francisco José Gonçalves.
É interessante observar que, nas suas cartas às autoridades, José
Gonçalves faz referências a sua propriedade, altamente produtiva, na
baía Formosa. Ele cita, também,terras na Restinga. O registro de terras da
Barra do Una até São Pedro em nome de AntônioJosé Gonçalves abrange
as terras situadas em Botafogo (hoje dividido entre os municípios de São
Pedro d’Aldeia e Cabo Frio) que, segundo depoimentos de antigos mo-
radores, era também chamada de Restinga. No final da estrada que dá
acesso à região, os moradores falam de uma antiga fazenda ali existente.
Estive na casa de um morador, que ocupa exatamente as terras onde fi-
cava a casa da fazenda. Ele contou que seu pai encontrou muitos objetos
da fazenda mas que, com o tempo, os objetos foram sendo perdidos, e
mostrou o que sobrou: umachave de ferro batido. Hoje, esta comunida-
de fundou a Associação de Remanescentes de Quilombos Botafogo Cabo
Frio. No entanto, a Restinga, em que José Gonçalves possuía uma chácara
fica no atual município de Arraial do Cabo.
Pelos registros paroquiais de terras, observamos que de Campos
Novos até a praia das Emerências (atual praia de José Gonçalves), passan-
do por Fazendinha, Rasa,Vila Verde, Baía Formosa, São Jacinto e Piraúna,
os Gonçalves eram proprietários de grandes extensões de terras. Alguns
registros foram feitos apenas indicando o nome Campos Novos, o que,
na época, compreendia uma vasta área desde o Canto do Peró até a sede
propriamente dita, ouseja, das áreas de plantação e criação de gado até os
pontos de desembarque clandestino de africanos.
O sócio de José Gonçalves da Silva, o comendador José Antônio dos
Guimarães, possuía terras em Campos Novos que faziam divisa com ter-
ras de Antônio José Gonçalves, próximas a Barra do Una. Outro registro
cita terras, arrematadas do Mosteiro de São Bento, no lugar denominado
Estaleiro, além de terras na praia do Forno, em Arraial do Cabo.
No Cartório do 1º Ofício de Cabo Frio existe uma escritura de venda
de Campos Novos, feita em 1961, pela Destilaria Medellín. Embora os
limites já estivessem bastante alterados, com sucessivos desmembramen-
tos, ainda podemos ter ideia da extensão do que foi o Complexo Campos
Novos e do que ainda estava nas mãos dos Gonçalves:

Uma área aproximada de 2.000 alqueires geométricos ou 48.400 m qua-


drados, cada um e compreendendo as antigas propriedades agrícolas de-
nominadas Campos Novos, Fazendinha, Baía Formosa, Botafogo, Caveira,
São Jacinto, Piraúna, Itaúna, Angelin, Araçá e outras menores [...] Com as
seguintes características: partindo do Capão da Pedra confrontando com
as terras de Fausto Pereira de , José Manoel de , herdeiros de Querino
78
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Antônio de , José Manoelde Araújoe outros, continua depois na direção


da propriedade denominada Baía Formosa ou Banco por meio de várias
retas compreendendo as divisas da antiga Fazendinha e indo a Praia das
Emerências, confrontando com as terras do mesmo José Manoel de Araújo,
Izidio Marinho, Alcino da Silva Porto, herdeiros de Alípio de Tal e outros.
Partindo da Praia das Emerências, acompanha a Praia Rasa, até encontrar
as terras dos herdeiros de Manoel Pereira Gonçalves e AntônioElesbão
Pereira Gonçalves.22

Essa escritura chama a atenção nos seguintes pontos: dá uma ideia de


qual foi a extensão de Campos Novos e ratifica a rota que chegava até lá,
pela Rasa, saindo das Emerências. Foi o controle, na primeira metade do
século XIX, da maior parte dessas terras, principalmente com sua fazenda
na baía Formosa, que permitiu a José Gonçalves comandar otráfico ilegal-
de escravos na região.
O Arpoador da Rasa, conhecido como praia do Desembarque, foi usado
regularmente como ponto de chegada de escravos. Com a intensificação
do controle, foi necessário buscar novos pontos de desembarque. A posse
das terras permitiu estabelecer outras rotas clandestinas: a de Barra do
Una e de Ponta das Emerências. O isolamento das áreas e a presença de
Fazendinha e Piraúna permitiam o caminho rápido e seguro do “desem-
barque” até o ponto de revenda.
Alguns mapas de viajantes do século XIX são importantes para conhe-
cermos esses caminhos. O mapa de Hilário Massow e José Gomes (1892)
indica o caminho que era usado, saindo da aldeia de São Pedro, até chegar
à região do rio Una e outro caminho que, saindo de Cabo Frio, passan-
do pelo Peró ebaía Formosa, chegava até o rio Uma. No mapa de Louis
Freycinet (1824) podemos observar a “praia das Emerências” (atuais
Tucuns e José Gonçalves) e a armação existente na baía Formosa, próxi-
mo da atual praia Rasa, logo após o rio Una, em área hoje pertencente à
Marinha. Tal área foi lembrada nos depoimentos dos descendentes dos
escravos da fazenda Campos Novos – o sr. Antônio Fernandes e o sr.Tiago
, que ouviram de suas avós – como sendo ponto de pesca dos escravos. O
mapa mostra, também, a sede de Campos Novos como “Colégio”.
O mapa publicado por Burmestein (1980) mostra Campos Novos, o
caminho de São Jacinto e o caminho que seguia pela baía Formosa, mas
apresenta um dado muito interessante: entre os dois caminhos, já conhe-
cidos, mostra outro caminho que, um pouco depois da praia das Caravelas
(hoje área de proteção ambiental) saía das proximidades das Emerências,
passava entre a Fazendinha e a Porto Velho para seguir até Campos Novos.
Esse era o caminho que José Gonçalves, fugindo da fiscalização, usou para
fazer os africanos desembarcados nas Emerências chegarem ao local de

22
Cartório do 1º Ofício de Justiça. Comarca de Cabo Frio. Livro de Notas no 189, fls. 10-19, 1966.
Escritura da fazenda Campos Novos.
79

Nilma Teixeira Accioli


revenda em Campos Novos, como relataram os afrodescendentes em seus
depoimentos.
Os escravos chegavam, muitas vezes, tão debilitados que eram ne-
cessários pontos de recuperação física antes de serem vendidos e, para
isso, havia locais como as fazendas Tauá, Retiro e Caveira, entre outras.
Manolo Florentino chama a atenção para o fato de que “os efeitos da tra-
vessia não se esgotavam por ocasião dos desembarques no Brasil. Muitos
africanos que sobreviviam aos percalços oceânicos chegavam tão debilita-
dos aos portos brasileiros que eram postos em quarentena”.23
Num trecho da estrada da Fazendinha e da Tauá obtive informações
sobre ossadas e correntes existentes no local. A Associação Quilombola da
Rasa tem uma corrente que foi encontrada em Vila Verde.
José Gonçalves da Silva foi processado, em 1851, por tráfico ile-
gal de escravos. A ação de perseguição ao traficante começou, segundo
José Gonçalves, devido ao episódio da escuna Rival, de propriedade de
Francisco Gonçalves Lages, que, em 1850, estava no estaleiro de José
Gonçalves, em Cabo Frio. O Cormorant, da Marinha da Inglaterra, teria
tentado sequestrar a Rival e fora repelido pela população local.
Em 20 de janeiro de 1851, as propriedades de José Gonçalves foram in-
vadidas por policiais da Corte e praças da Marinha Imperial, comandados
pelo chefe de polícia interino da província do Rio de Janeiro, Bernardo
Azambuja, que chegaram em Cabo Frio no vapor D. Afonso.
Azambuja trazia uma portaria assinada por Eusébio de Queiroz. As
propriedades de José Gonçalves foram invadidas e saqueadas, gavetas
trancadas foram arrombadas, 60 escravos de sua propriedade fugiram e
os bens do traficante foram confiscados. Nos barracões foram encontra-
das bandeiras de diferentes países, o que era considerado prova de tráfico
clandestino de escravos.
José Gonçalves, em um libelo intitulado “José Gonçalves da Silva à na-
ção Brasileira” e publicado em 1864, reuniu cartas, discursos de deputa-
dos, matérias publicadas em jornais nacionais e portugueses denuncian-
doser “uma perseguição que causando graves prejuízos a esse cidadão,
não se sabe por que crime”.
Acusava o ministro Eusébio de Queiroz, a quem chamava de “prepoten-
te e ladrão”e denunciava um acordo entre Azambuja e seu sócio,Antônio
dos Guimarães,vice-presidente da Câmara de Cabo Frio. Ironizava o fato
de a escuna Rival ser acusada de envolvimento com o tráfico e lembrava
que era a mesma embarcação que havia sido solicitada e que ele “gentil-
mente” emprestara para a viagem de d. Pedro II a Cabo Frio.
José Gonçalves foi preso, colocado em “celas de assassinos e
celerados”,mas em 1853 foi absolvido da acusação de tráfico de africanos.

23
Depoimentos dos afrodescendentes da Rasa, em Armação dos Búzios, e de Campos Novos, Cabo
Frio. Segundo os depoentes, a fazenda Retiro, principalmente, era usada para recuperação dos
mais debilitados.
80
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Durante 14 anos publicou artigos sobre a “injustiça de que foi vítima”. Seu
caso provocou debates acalorados nas Câmaras de Deputados.
Um ofício do palácio de governo da província do Rio de Janeiro, data-
do de 26 de fevereiro de 1856, recomendava às autoridades de Cabo Frio,
em “cuja guarda estão os objetos que por apreensão ou qualquer outro
meio foram tirados de José Gonçalves da Silva em 1851 pelo então juiz,
lhesejam entregues,[assim como] o inventário dos objetos para verificar-
-lheso estado em que se acham”. Em outro parecer, o procurador-geral da
Coroa opina que “se entregasse ao suplicante os bens e mais petrechos
marítimos de que o governo se tem servido até agora.” Mas pelas cartas e
documentos, em sua maioria publicados no Jornal do Commercio, fica claro
queJosé Gonçalves não conseguiu reaver parte de seus bens.
Em 1860, sob o título “Heranças do Brasil”, questionou sobre a heran-
ça de seu antigo sócio, José Antônio dos Guimarães, “cuja fortuna os ces-
sionários de seus herdeiros se lembraram hoje de dizer e alegar perante
os tribunais do país que fora adquirida com o tráfico de africanos” (SILVA,
1864). Acusa o sócio de ter ficado com parte do seu patrimônio, cobra cen-
to e trinta contos de reis, que Guimarães lhe ficara devendo e, para reaver
parte do que possuía, que ficara com o sócio, entra com ação de embargo
contra Tereza Jesus dos Guimarães.
O tratamento dispensado ao traficante José Gonçalves, tomando por
base as matérias publicadas, não foi o mesmo dispensado ao seu sócio
JoséAntônio dos Guimarães e a outros traficantes, como André Gonçalves
da Graça, Joaquim Tomás de Faria e o poderoso Manuel Pinto da Fonseca
que, embora tendo sido deportado para sua terra, não teve o mesmo trata-
mento usado no caso de José Gonçalves. Os acordos políticos foram, pro-
vavelmente, determinantes na condução da repressão ao tráfico no litoral
norte fluminense como, inclusive, denunciou o próprio José Gonçalves
que, naturalmente, tinhaapoio político. Sua absolvição, apesar de as pro-
vas serem reais, sua longa campanha nos jornais e a maneira contundente
como atacava autoridades deixam isso evidente.
Um artigo publicado no Jornal do Commercio em 1860, comentando a
carta publicada por José Gonçalves, ressalta:

Se o governo do Brasil em 1851 quando mandou a Cabo Frio destruir e


confiscar os bens de José Gonçalves da Silva, e prende-lo e persegui-lo
como fez, a título de traficante de africanos, houvesse procedido do mes-
mo modo com seu ex-sócio José Antônio dos Guimarães, e não cometesse
a revoltante injustiça de o deixar livre e glorioso para se poder apropriar
de todos os interesses e vantagens que a ambos pertenciam, nem José
Gonçalves seria despojado de seus bens,nem Guimarães teria morrido
sem terminar com ele suas contas, e entregar-lhe o que lhe pertencia e que
guardava em seu poder.
81

Nilma Teixeira Accioli


O artigo continua comentando a repercussão que o assunto teve nas
câmarasbrasileiras: “Muitas vezes se tem falado das violências de que
José Gonçalves da Silva foi vítima,do grande atentado que se cometeu
mandando confiscar os bens e arrasar os edifícios de sua propriedade.”24
No libelo publicado em janeiro de 1864, intitulado “José Gonçalves da
Silva à Nação Brasileira”, o traficante continua denunciando “os 14 anos
de perseguição que sofre devido ao senhor Eusébio, ministro que ordenou
tais violências em portaria reservada” e informa que, em 1863, o “pri-
meiro jornal político de Lisboa, Revolução de Setembro, publicou matéria
censurando em termos habeis o procedimento do governo do Brasil”. José
Gonçalves agradece o apoio do jornal português e dá ênfase à responsa-
bilidade do ministro da Justiça Eusébio de Queiroz, que em 1851 iniciara
a perseguiçãode que se diz vítima. Apósa carta de José Gonçalves, segue
um comentário do jornal:

As autoridades brasileiras, em sua casa em Cabo Frio, levaram tão longe


o excesso de poder e da arbitrariedade [que] não só lhe arremataram as
embarcações, escravos e mais bens de sua casa, mas lhe devastaram, es-
tragaram e inutilizaram tudo o que ali existia, a pretexto de contrabando
de escravos.
Este infeliz cidadão foi metido em processo, mas depois julgado inocen-
teobtendo sentença que lhe restituía a liberdadee lhe mandaram entregar
seus bens.25

É bastante interessante, nas cartas, José Gonçalves afirmar sua ino-


cência, assim como são interessantes a sentença que o declarou inocente e
o texto intitulado “Heranças do Brasil”, que acusa o comendador Antônio
dos Guimarães, sócio de José Gonçalves, de enriquecimento com o tráfico.
Na carta datada de 14 de abril de 1864, José Gonçalves da Silva dirige-
-se à nação brasileira de forma mais otimista: “já não me assombram os
fantasmas imaginados por meus algozes, porque tenho meu talismã con-
tra seus malefícios, a S.M.Imperador, que cheio de bondade, não quer e
nem consente que se negue justiça aos seus súditos”.26
José Gonçalves comemorou a atitude da Câmara de Deputados, que
solicitou informações ao governo para resolver a pendência de 14 anos
sobre a devolução do que havia ficado com seu antigo sócio Antônio dos
Guimarães: “Creio que no fim de 14 anos de sofrimento encontrei abrigo
na nação a quem apelei”.
Certo de que a Câmara iria resolver sua situação, conclui que com isso
“salvará da miséria uma família brasileira não pequena. Espera ser atendi-
do o cidadão José Gonçalves da Silva”.
24
HERANÇAS do Brasil. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 5 maio 1860, p. 2.
25
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 14 abr. 1854.
26
Idem.
82
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

O tráfico de africanos na região de Cabo Frio sofreu forte abalo com


a situação dos principais traficantes José Gonçalves da Silva e Manuel
Pinto da Fonseca. Outro fator importante foi a ação de fiscalização da
Marinha. Entretanto, um fator foi fundamental para o fim do tráfico na
região: já havia uma preocupação com a grande presença de escravizados.
Os registros das atas da Câmara Municipal de Cabo Frio, em 1831, expres-
sava essa preocupação do poder púbico em reprimir rebeliões escravas e
os quilombos existentes na região. Os vereadores expõem “a necessida-
de de nomeação de capitães de mato para a extinção de quilombos e a
apreensão de escravos fugidos”, e nota-se a preocupação com a reduzida
força policial para defender a cidade de “piratas e quilombos”. Em 1856,
o tráfico na região de Campos Novos sofreu o golpe definitivo comuma
grande epidemia de cólera que, atingindo a região, transformou a fazenda
Campos Novos em uma grande enfermaria. Para a Caveira foram levados
os casos mais graves. A população começou a ver com desconfiança a che-
gada de novos africanos e o tráfico cessou na região.
A partir da segunda metade do século XIX, o Complexo Agrícola
Campos Novos passou por vários donos. No início do século XX passou
para Eugenio Arnoud e, depois, para Antônio Palermo, ainda lembrado
pelos habitantes da região como “o marquês”, de tão terríveis lembranças
para os que conviveram com ele. É importante lembrar que todas essas
“compras” eram contestadas e ilegais.
Os descendentes dos escravos permaneceram nas terras “pagando dia
para morar”. A partir dos anos 1930, opondo-se ao surgimento de pre-
tensos donos, que começaram a dividir Campos Novos, surgiram vários
conflitos na região que perduraram até a década de 1980, inclusive com
assassinatos, como o do líder sindical Sebastião Lan.
Os afrodescendentes continuaram exigindo o respeito à escritura de
doação de terra feita a Santo Inácio, no século XVII. Lutaram contra a
venda da fazenda, repudiaram a legalidade das escrituras que apareceram.
Com a decadência da agricultura na região, muitas unidades foram subs-
tituídas por pastos.
Do Complexo Agrícola Campos Novos restaram a capela de Santo
Inácio e o casarão, agora sede da Secretaria de Agricultura de Cabo Frio,
que está em processo de tombamento.
O traficante José Gonçalves, após sua intensa campanha pela impren-
sa, continuou em suas “atividades comerciais” e residindo na Corte, na
Rua Nova do Imperador, 17. O Almanaque administrativo mercantil e in-
dustrial (1844-1889) relaciona Gonçalves,no ano de 1865, entre “capita-
listas e proprietários”. Na parte sobre profissões, o almanaque cita José
Gonçalves como estabelecido na Rua do Carmo, 6 – sobrado e anuncia:
“José Gonçalves da Silva, Rua do Carmo 6, Sobrado. Procurador de cau-
sas cíveis,crimes e de secretarias, solicitador da Relação e seus auditórios
83

Nilma Teixeira Accioli


tratam de Causas documentadas conforme ao ajusto, assim como de
cobranças”.27
Mas José Gonçalves respondeu a um novo processo em 1867. Desta
vez, por desacato a autoridade. O processo teve início com a denúncia
de Antônio Moreira, genro de José Gonçalves, de que o antigo traficante
havia se apropriado de um lote de escravos pertencentes ao denunciante.
Segundo os encarregados das averiguações, quando chegaram à chácara
de José Gonçalves, este, com a ajuda de seus escravos, reagiu e desacatou
os policiais. No interrogatório, José Gonçalves apresenta-se como nego-
ciante matriculado em Grosso Trato na Imperial Junta Comercial, com
nacionalidade brasileira, nascido no Porto e com residência na Rua Nova
do Imperador, no 17, na Corte. Pelas informações percebe-se que é uma
bela propriedade, com muitos escravos.
Os escravos de José Gonçalves, indiciados com ele por desacato a auto-
ridade e resistência à prisão, declaram-se africanos e maiores de 60 anos.
Os escravos reclamados por Antônio Moreira, que deveriam ter chega-
do à casa do denunciante e ficaram na casa de José Gonçalves, declararam
que haviam chegado à Corte recentemente e que não sabiam quem era seu
senhor. O escravo Guido, ao ser interrogado, respondeu “que tem estado
na casa de José Gonçalves da Silva, ignorando se este é o seu senhor ou
Antônio Moreira”.28
Na memória dos afrodescendente de Campos Novos, após o processo
de 1851 José Gonçalves teria continuado a “vender escravos” no Rio de
Janeiro. Ao que tudo indica, ele continuou atuando no comércio de escra-
vos, atuando no tráfico interprovincial.
Prováveis descendentes dos Gonçalves ainda possuem muitas terras
em Armação dos Búzios, principalmente na Rasa, onde foram até recente-
mente a única família branca emum bairro “de negros”, como é conhecido
o local.
O nome de José Gonçalves ainda é bastante lembrado pelos antigos
moradores, euma proposta recente para mudança do nome do bairro de
José Gonçalves, onde o traficante tinha seu desembarque, foi recusada
pela população, que alegou que a manutenção do nome era um registro da
história dos afrodescendentes.

27
ALMANAQUE..., 1865, p. 462.
28
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Corte de Apelação, F. 20, no 129, M. 66, caixa 81, galeria C,
1867.
84
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

A história do tráfico ainda está presente na memória dos moradores da


região que, no século XIX, formava o Complexo Agrícola Campos Novos.29
O que era o complexo está, atualmente, dividido entre os municípios
de Cabo Frio, São Pedro da Aldeia e Búzios. As localidades de São Jacinto,
Araçá, Campos Novos, Botafogo, Angelim, Pretos Forros, Pacheco e Retiro
fazem parte do território do município de Cabo Frio. Caveira e parte de
Botafogo estão ligados a São Pedro da Aldeia. Em Armação dos Búzios:
Fazendinha, José Gonçalves, Tucuns, Caravelas,Vila Verde e Rasa.
As diferentes comunidades apresentam características comuns: con-
tam suas histórias sempre associadas à fazenda Campos Novos, até hoje
as comunidades são formadas predominantemente por negros e todosse
identificam como descendentes dos antigos escravos das diferentes uni-
dades de Campos Novos.
Os caminhos internos, usados pelos africanos desembarcados ilegal-
mente na Barra do Una, Arpoador da Rasa e José Gonçalves, são os mes-
mos que seus descendentes usam.
Para conhecermos os caminhos usados no século XIX, foram mui-
to importantes esses conhecimentos que os descendentes possuem e
que, confrontados com documentos, textos de viajantes e mapas, foram
comprovados.
Com vários depoentes percorri caminhos onde encontramos ruínas e
trilhas internas conhecidas pelos mais antigos e que, quando percorridas,
levam dos pontos de desembarque até Campos Novos.
Observamos que os descendentes, sempre que possível, permanece-
ram nas terras em que viviam seus ancestrais à época do tráfico ilegal,
cada uma delas ligada a um ponto de desembarque. Assim, as localidades
de São Jacinto, Araçá, Angelim, Botafogo, Genipapo e Pacheco, receberam
os desembarcados em Barra do Una. Alguns ficaram na região para atua-
rem em atividades de apoio ao tráfico.
Um exemplo deste vínculo entre determinadas fazendas e determinada
área de desembarque foi demonstrado por Antônio Fernandes, residente
em Trimumu, que ao ser perguntado sobre o desembarque do Arpoador
da Rasa respondeu: “sobre lá quem sabe é o pessoal de Vila Verde, Rasa e
Fazendinha”.
O Arpoador da Rasa é apontado, em todos os depoimentos, como o
ponto de desembarque mais antigo, e a pessoa mais idosa da Rasa é d.
Eva, que em 23 de dezembro de 2009 completou 100 anos, comprovados

29
Depoimentos gravados em 2009: Antônio da Silva Fernandes (Cabo Frio), Noel Trindade (Cabo
Frio),João dos Santos(Cabo Frio), Eva da Conceição Oliveira (Rasa, Búzios), Clarivaldina da
Costa(Rasa), Vanderléa da C. Benavenuto (Vila Verde, Búzios), José Luis da Costa (Rasa), Cassiano
de Oliveira (Rasa), Thiago Sousa (Campos Novos), Jovelino dos Santos Filho (Rasa) Marieta Con-
ceição (Campos Novos) e Valmir Rosa da Conceição (José Gonçalves, Búzios).
85

Nilma Teixeira Accioli


em certidão de nascimento. Mas ela acreditava ter mais idade, pois, se-
gundo seu depoimento, foi “registrada quando era crescidinha”.
D. Eva sempre trabalhou na roça, na fazenda Piraúna, junto com seus
familiares, e afirmou que sua avó Eva, nascida em Angola, contava que
desembarcara do navio na Ponta do Pai Vitório, vindo de barco até o
Arpoador da Rasa. Segundo d. Eva, sua mãe “nasceu livre” e trabalhava
na Piraúna, com a filha amarrada nas costas, como todas as mulheres que
tinham filhos pequenos faziam.
Quando d. Eva era criança, viu muitos negros, durante a noite, ficarem
sentados conversando no Arpoador da Rasa. Da fazenda Piraúna lembra-
-se da senzala e das casinhas de pauapique que os negros construíram.
Mesmo com o fim da escravidão, a família de d.Eva e os outros negros
continuaram na Piraúna,“pagando dia para morar”, e ali permaneceram
até serem expulsos pelo “marquês, que dizia ser o dono de tudo”. Os ne-
gros vieram ocupar terras na Rasa.
Clarivaldina da Costa (68 anos), conhecida na comunidade como d.
Uia, filha de d. Eva, é uma líder local. O filho de d. Uia, Leonardo,é presi-
dente da Associação dos Remanescentes de Quilombo da Rasa. Segundo
ela, aavó contavaque os navios paravam na Ponta do Pai Vitório, depois
os negros eram levados para batismo na Capela Sant’Anna e distribuídos
para Araçá, Caveira, Piraúna e Tauá; outros eram levados para Campos
Novos para serem revendidos.
Sobre o desembarque disse: “quando era de dia faziam no Arpoador
e depois, quando parou de poder vender, os escravos vinham de José
Gonçalves”. Sua avó contava que “quando os navios chegavam em José
Gonçalves, tinha de ter mercadoria para abastecer. Todas as fazendas
mandavam produtos para Porto Velho e lá eram embarcados nos navios,
depois que retiravam os escravos”.
Nos depoimentos de d. Eva e d. Uia, encontramos um elemento que a
historiografia tem recentemente enfatizado: a importância das produções
agrícolas locais para apoio ao tráfico, inclusive o tráfico interno/interpro-
vincial, após a extinção do tráfico atlântico.
D. Uia trabalhou na Piraúna “pagando dia para morar”, prática que per-
sistiu na região até a segunda metade do século XX e diz que “o dono de
Campos Novos era o dono de tudo”. Lembra-se de vários dos que se apre-
sentaram como donos de Campos Novos: “o Joaquim português, depois
o Arnaud e o marquês, que colocou boi no pasto e expulsou todo mundo
da Piraúna”.
Cassiano de Oliveira, 76 anos, é filho do primeiro casamento de Adalto
de Oliveira. A mãe de Cassino faleceu quando ele estava com dois anos, e
ele foi criado pela madrasta, d.Eva. Cassiano contou que seu avô Gládio
era branco e administrava a fazenda Piraúna. Seus avós não eram casados
e seu avô tinha filhos com outras mulheres que trabalhavam na fazenda.
86
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

Quando era criança, Cassiano conheceu Benta e Benvinda, que foram


escravas na Piraúna. Ele trabalhou em Campos Novos “pagando dia para
morar”. Não lembra a idade que tinha nessa época “mas era menino ain-
da”.Trabalhava quatro dias por semana e ia para Campos Novos “pelo ca-
minho antigo”.Cassiano nunca foi à escola, “a vida era dura, era só traba-
lho, e a única distração era a ladainha na casa do tio Aristides”.
Cassiano é pescador no Porto das Canoas (na Rasa) que, segundo os
depoentes, sempre foi usado pelos negros para pesca.Atualmente o Porto
das Canoas ainda é usado por pescadores que utilizam técnica de pesca-
totalmente artesanal, não usam motores nos barcos e são predominante-
mente negros. É interessante observar que o mapa de Burmestein mos-
tra, próximo deste local, uma armação.
José Luis da Costa, pescador de 55 anos e morador de Vila Verde, foi
criado pelos avós Benvinda Benta da Conceição e Olavo da Costa, faleci-
do com a idade de 109 anos. Segundo José Luis, seu avô contava que no
Porto das Canoas os escravos Zizinho, Neco e Narciso pescavam.
José Luis lembra que, quando era criança, existiam só três famílias na
Rasa:

• a família dos Costa, divididos em descendentes de Benta da Costa e


descendentes de Olavo da Costa;
• a família de Adalto de Oliveira, que é a família do marido de d. Eva;
• a família Gonçalves – “os únicos brancos da Rasa”.

José Luis trabalhou na fazenda Porto Velho quando era criança, “se-
meando capim para formar pastos”. Trabalhava “pagando dia para mo-
rar”, porque seu avô havia sido expulso das terras perto do Arpoador da
Rasa e fora morar na Vila Verde.
Com José Luis, que possui grande conhecimento sobre a região, esti-
ve nas ruínas da Piraúna e no “caminho antigo”, que ligava a ponta das
Emerências, passando pela Piraúna e chegava em Campos Novos.
Jovelino dos Santos Filho, 50 anos, é filho mais novo de Francisca
Benta da Costa, d. Chica, que era curandeira e faleceu muito idosa. Contou
que, quando era menino, trabalhou no Grotão (Fazendinha).Tinha 12
anos quando começou a trabalhar e saía da Fazendinha “pelo caminho
antigo”, passava pela Tauá e chegava em Campos Novos para encontrar as
irmãs, filhas do primeiro casamento de seu pai.
Na região da Fazendinha mora Vanderléa Conceição Benavenuto, que
ocupa as terras que seu avô, Félix Benavenuto, que lutou para preservar.
Segundo Vanderléa, seu avô nasceu na Fazendinha e era filho de escravos.
Quando o dono da Porto Velho obrigou os negros a saírem das terras que
havia comprado e substituiu as lavouras por pastos, Felix resistiu às ame-
aças. Os outros negros saíram das terras e foram para as terras que hoje
são o bairro Jardim Esperança.
87

Nilma Teixeira Accioli


Vanderléa lembra-se de o avô contar que os escravos desembarcavam
em José Gonçalves e sobre as brigas com o fazendeiro para ficar na terra.
A região era muito isolada, “só tinha mato”; os negros faziam casinhas
de pauapiquee cultivavam bananas. Lembra que, quando era criança, ia
tomar a bênção a “tio Olavo”, que era muito idoso (é o mesmo Olavo da
Costa, avô de José Luis), e “d. Chica”, que era rezadeira e tinha muitos des-
cendentes em Vila Verde. Foi d. Chica quem arrumou o primeiro trabalho
para Vanderléa, ainda criança, na casa de uma família em “Búzios”. Este
aspecto do depoimento de Wanderléa mostra um elemento interessante e
repetido em outros depoimentos: embora os bairros ocupados pela popu-
lação predominantemente negra, como Rasa e Vila Verde, sejam no muni-
cípio de Búzios, eles estabelecem uma divisão, diferenciando a região em
que vivem da região com população branca. É interessante assinalar que
essa situação é reforçada pela existência do“pórtico”, que funciona como
uma barreira simbólica nesta divisão. Para as comunidades da Rasa e Vila
Verde, existe uma exclusão em relação a eles e à população da “península”,
com a qual estabeleceram, até pouco tempo, apenas relações de trabalho.
Outro assunto repetido em vários depoimentos e comentado por
Vanderléa foi a quantidade de ossos encontrados em Tauá e Fazendinha,
que os antigos diziam que eram dos escravos.
Embora o ponto de desembarque seja importante para a ocupação dos
descendentes, as lembranças ligadas a Campos Novos são o elemento de
ligação entre as diferentes comunidades surgidas na região e estão pre-
sentes em todos os depoimentos. Embora hoje separados administrativa-
mente, algumas pertencem a Cabo Frio e outras a Armação dos Búzios, e
sem muitos contatos entre eles, um ponto une essas comunidades: todas
se reconhecem como descendentes dos escravos do Complexo Agrícola
Campos Novos.
João dos Santos nasceu e é morador da Caveira, mas sua família veio
do Retiro, outra unidade do complexo, para trabalhar na sede de Campos
Novos. Vieram com um grupo de negros, trazidos pelo velho Severino e
“pagavam dia para morar”. Segundo João dos Santos, “contavam os anti-
gos que a Caveira era o local onde levavam os que estavam muito mal, e
várias ossadas foram encontradas na fazenda”.
As mães dos pais de João dos Santos foram escravas e contavam “que
os que não eram bem domados recebiam muitos castigos”
Antônio da Silva Fernandes, de 76 anos, possui uma memória fami-
liar ligada ao desembarque na Barra do Una. Afirma que sua família era
da sede de Campos Novos e depois foi para Trimumu (área situada atrás
da sede de Campos Novos). A avó de Antônio era “turmeira” em Campos
Novos. Ele afirma que ela eramuito alta e forte e contava que, quando
tinham que castigar alguma escrava, era chamada para bater. Segundo o
neto “o soco dela derrubava um homem”. O relato sobre negros altos e
88
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

fortes, que eram usados como turmeiros, e os “de canela fina”, bons para
a lavoura, são constantes na região.
Antônio traçou a rota que, segundo contava sua avó, os africanos fa-
ziam, após o desembarque, para chegarem a Campos Novos:“atravessavam
a ponte do Genipapo, sobre o rio Una, seguiam a estrada da Flecheira e
chegavam a Campos Novos. Os que estavam muito fracos iam de barco
pelo canal do Una”.
O canal do Una foi aberto no século XVIII pelos jesuítas, para escoa-
mento da produção de Campos Novos.
Outro depoimento sobre o desembarque na Barra do Una foi de Thiago
Sousa. Sua família vivia ali e era uma comunidade de negros. Sousa lem-
bra de que no local havia ruínas de uma fazenda de cujo nome ele não
se recorda, e que sua avó viera da África: “era uma negrinha bem peque-
nininha e bem pretinha, tão pretinha que para ver os olhos dela tinha
que chegar bem perto; nunca usou sapato e falava bem embolado, nunca
aprendeu falar direito”. Quando era criança sua avó o mandava ir ao mato
buscar “pente de macaco”, uma vagem que ela usava como pente. A avó de
Sousa contava que havia desembarcado no Una e“ficou por ali mesmo”.
A família de Sousa saiu da Barra do Una quando ele estava com “uns
10 anos”. A Marinha retirou toda a comunidade do local elevou “em ca-
minhões” para a atual estrada de Campos Novos. Conta que “na área da
estação de rádio da Marinha dá para ver os restos da ponte do Genipapo
e da antiga fazenda. Mas a Marinha proíbe a entrada no local”. Sousa e a
família sobrevivem da venda de artesanato, feito de cipó e taboa, que ele
aprendeu com a avó.
Estive na Barra do Una, pelo lado em que o rio encontra o mar, e pude
ver detalhes do que foi relatado por Antônio e por Sousa. A estrada da
Flecheira, apesar das péssimas condições de acesso, quando seguida leva
até as proximidades de Campos Novos. O canal do Una, aberto pelos jesu-
ítas, está em área de Marinha e dele só pode ser visto um pequeno trecho.
A população das proximidades do Una, com predominância de negros,
trabalha em Cabo Frio e Búzios, mas ainda existem pescadores. Algumas
famílias moradoras em Maria Joaquina, Rasa, Campos Novos, Botafogo e
Angelim vão até as proximidades da Barra do Una “pegar gaiamu”. Nas mi-
nhas idas ao local pude observar a atividade que o príncipe Maximiliano
de Wied-Neuwied, que esteve na região no século XIX, descreveu:

é difícil de caçar, porque, ao menor ruído, se esconde na toca. Adotei, por


isso, para o apanhar, o chumbo de caça. Constitui um alimento básico en-
tre os brasileiros,cuja indolência é muitas vezes tão grande,que tornando-
-se o peixe escasso,vivem apenas do gaiamu, regime que achamos miserá-
vel. (WIED-NEUWIED, 1858)
89

Nilma Teixeira Accioli


Próximo da Barra do Una encontrei uma família de oito mulheres: d.
Marieta, duas filhas, nora e netas que estavam pegando guaiamum para o
almoço. O príncipe usava o chumbo; a família de d.Marieta utiliza a técni-
ca artesanal, “para pegar gaiamu”, que ela aprendeu com os avós, descen-
dentes dos escravos de Campos Novos.
Os filhos, genros e nora de d. Marieta trabalham em casa de família
ou na construção civil, em Cabo Frio e Búzios, e o guaiamumconstitui um
reforço para a alimentação da família.
A região, que no século XIX era o desembarque de José Gonçalves, so-
freu grandes transformações devido à especulação imobiliária, principal-
mente em Tucuns (antiga ponta das Emerências). São poucos os descen-
dentes dos escravos que ainda ocupam a região.
Walmir Rosa da Conceição, o “Pintinho”, nasceu em José Gonçalves, é
pescador e descendentede escravos que viviam na ponta das Emerências.
Quando ele era criança ia apanhar tijolo maciço em uma fazenda que di-
ziam ter sido de José Gonçalves. Sua avó contava que não havia muita
gente vivendo ali, mas que havia lavoura nas Emerências.
O atual bairro de José Gonçalves, embora bastante modificado por
uma ocupação mais recente, mantém a memória do tráfico, e é no local
que o nome do traficante é mais conhecido pela população. Uma tentativa
recente de mudar o nome do bairro foi recusada pelos moradores, que
acreditam ser importante preservar o nome como parte de sua história.
Com o sr.Walmir percorri a extenuante trilha que leva ao ponto do
“desembarque de José Gonçalves”, conhecido por poucos pescadores. No
isolamento do local cercado pelas “alturas das Emerências”, encontramos
nas pedras as marcas da antiga “atracação” dos barcos que traziam os afri-
canos. As correntes, vistas por Walmir quando era criança e ia ao local
com seus parentes, não estão mais lá.

• Tráfico de africanos. Pessoas suspeitas e culpadas. Arquivo Nacional,


IJ 6522.
• Juízo Municipal, 3a Vara.Execução, ano de 1860. Réu: José Gonçalves
da Silva, no 8.175, caixa 1.042, galeria A. Arquivo Nacional.
• Juízo Municipal, 3a Vara. Libelo, ano de 1857.Réu: José Gonçalves
da Silva, no 5.695, caixa 924, galeria A, Arquivo Nacional.
• Corte de Apelação, no 129, mç. 66, caixa 81, galeria C, 1867, fundo
20.
• Processo de apreensão do iate Rolha e de uma garoupeira com 212
africanos pelo vapor de guerra Urânia no porto de Macaé. Arquivo
Nacional, C. 13.195. P. 2.
• Relatório Alcoforado I J 6 525(1836) e Relação das pessoas impli-
cadas no tráfico de africanos e em moeda falsa, elaborada conforme
90
Campos Novos e o tráfico ilegal de escravos no litoral norte fluminense

correspondência da polícia para o ministro de Estado da Justiça IJ6


56-472-480 (1864) Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Capítulo 4

Cultura material e expressão simbólica à

Camilla Agostini2

Arqueólogos sabem o quanto é difícil a interpretação de estruturas ar-


queológicas históricas sem o auxílio de documentos escritos relacionados
ou relatos orais. Atribuir funcionalidade e ainda significados a estruturas
é uma tarefa árdua, que deve ser feita com a devida cautela. Os vestígios
de uma fazenda oitocentista, no litoral norte de São Paulo, instigam por
diversas razões. Abominado pela população local após seu abandono, o
lugar ficou preservado das ações humanas, embora não tenha escapado
das ações do tempo. Assim, encontra-se no alto de um morro, em meio à
vegetação, um conjunto de ruínas que guardam uma história, lembrada
por moradores de um bairro vizinho. Wagner Bornal, arqueólogo respon-
sável pelas pesquisas no sítio há cerca de 20 anos, teve a chance de conhe-
cer Sebastião Fortunato, antigo morador da praia da Figueira (em frente
à qual está localizado o sítio), falecido na década de 1990, com 98 anos de
idade. Bornal teve a chance de registrar sua versão sobre a ocupação das
ruínas escondidas no alto do morro:

Reza a lenda, que ali vivia um rico fazendeiro, detentor de uma grande
quantidade de escravos, de nome Joaquim Pedro. Em troca de riqueza e
prosperidade, fez um pacto com o “coisa ruim” prendendo-o em uma gar-
rafa. Porém, certo dia enquanto o fazendeiro negociava mercadorias no
canal de São Sebastião, sua mulher, desavisada, abre a garrafa libertan-
do o ser das trevas e consequentemente acarretando a morte de Joaquim
Pedro. Seu corpo é levado à sede da fazenda e ao cair da noite, em meio ao
1
Agradeço a Wagner Bornal por ter disponibilizado o sítio e seu acervo para a referida pesquisa; à
historiadora Aline Mazza pela indicação de muitos dos documentos citados neste texto; e a Clayton
Galdino pelo suporte na pesquisa. Agradeço, ainda, todo o apoio de Hebe Mattos, Marcos André
Torres de Souza e Luís Claudio Pereira Symanski ao longo do trabalho.
2
Camilla Agostini é doutora UFF, bolsista CNPq (POSDOC PPGH-UFF).
92
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

velório, ouve-se um grande estrondo e apagam-se todos os lampiões. Em


seguida, sobre o telhado da residência, surge o diabo carregando o corpo
do falecido, provocando a fuga apavorada de todos que ali se encontravam
e o desmoronamento de todas as construções que ali um dia existiram. O
local passa a ser abominado pela população da época, sendo abandonado
para sempre. (BORNAL, 2008, p. 277)

Visitado por caçadores, ou mesmo por vândalos e pessoas que iam ao


local para retirar material construtivo para reaproveitamento, o sítio não
chegou a ser reocupado de fato. O abandono do local pode ser conferido
no próprio sítio, que guarda bolsões de material não revirado, com objetos
com alto grau de integridade, que brotam na superfície. Construído em
patamares, superando as dificuldades do terreno íngreme, a fazenda foge
ao perfil paisagístico das fazendas e engenhos do sudeste dos Oitocentos.
Foram identificadas por Bornal as ruínas de uma casa, no patamar mais
alto, de uma capela, no patamar intermediário, e de um pátio coberto de
pedras, no mais baixo patamar. Ao fundo dessas construções estão as ruí-
nas do que teria sido um engenho e um bolsão de lixo, associado à cozinha
da casa principal, que teria sido lançado porta ou janela a fora (BORNAL,
1995, 2008).
O engenho sugere que a fazenda vivesse em função do processamento
da cana de açúcar, apesar de, aparentemente, ter sido de pequeno porte.
Já os inúmeros pés de café encontrados no entorno da construção, em
meio à vegetação densa, sugerem que o local pode ter sido adaptado ao
cultivo do café no século XIX, como fizeram muitos engenhos e fazendas
do litoral no sudeste oitocentista (BORNAL, 2008). No entanto, fontes
históricas apontam para outra possibilidade, que, somando-se ao pe-
queno porte das ruínas do engenho, indicam que não era a agricultura o
principal negócio de Joaquim Pedro, ou Joaquim José Pedro de Souza, o
possível proprietário da fazenda.
É interessante notar, nos maços populacionais para a vila de São
Sebastião, o registro do fogo de Joaquim José Pedro de Souza, casado com
Ana da Cunha, ainda jovens (28 e 25 anos respectivamente) em 1831.
Este teria sido o ano em que se casaram, e o primeiro registro deles juntos
nos maços.3 Sem filhos, agregados ou escravos, começavam a vida vivendo
“de seus negócios”. É de se notar que não tenha sido registrada como sua
ocupação a referência à lavoura ou à agricultura. Cinco anos depois, em
1836, o casal reaparece nos registros já com dois filhos e uma vida apa-
rentemente mais próspera. Ainda vivendo como “negociante”, chegou a
ter como renda um conto de réis anuais e contava com um patrimônio de
10 escravos. Joaquim Pedro parece ter tido uma ascensão rápida com seus

3
Cúria de Caraguatatuba. Certidão de casamento, 26 de maio de 1831; Arquivo Público do Estado de
São Paulo (Apesp), maços populacionais, São Sebastião, 1829, microfilme – rolo 186.
93

Camilla Agostini
negócios. É interessante que, no primeiro registro, quando apenas o casal
aparece, ambos são referidos como pardos; já no segundo, como brancos.
Ao acompanhar o registro nos maços populacionais de inúmeras pes-
soas no tempo, pode-se perceber que as referências à cor não eram sempre
coerentes, sendo, por vezes, uma pessoa designada como parda e, poste-
riormente, como branca (ou vice-versa), ou parda e negra (nunca branca
e negra), sugerindo uma dificuldade em definir a cor da pele de uma po-
pulação mestiça. Portanto, não é uma exceção o caso de Joaquim Pedro e
Ana da Cunha, mas não deixa de ser interessante notar seu “embranque-
cimento” paralelo ao seu enriquecimento.
Com 10 escravos em 18364 e 12 em 1844,5 mas apenas cinco deles
disponíveis para o trabalho na roça (entre os quais uma criança), Joaquim
Pedro não parecia preparado para a produção da cana nem do café, ao
menos não para uma produção em larga ou mesmo média escala. Em
1836, os escravos de Joaquim Pedro eram todos africanos, à exceção de
uma escrava que tinha apenas 4 anos. Em 1844, também quase todos os
seus escravos eram africanos, sendo apenas três crianças naturais de São
Sebastião.
A população escrava de São Sebastião pode ser medida através dos
mais de 2 mil escravos registrados na matrícula de escravos de 1844, exi-
gida por lei em função das dificuldades de controle de arrecadação da meia
siza.6 A maioria dos escravos da cidade era de crioulos e não de africanos,
sendo estes primeiros cerca de 63% do total.

Fonte: matrícula de escravos para a vila de São Sebastião (1844).


Figura 1 – População escrava na vila de São Sebastião (1844)

Ao alto índice de africanidade dos escravos de Joaquim Pedro, compa-


rado com a demografia escrava na vila, soma-se o fato de que em oito anos
4
Apesp. Registro nos maços populacionais para cidade de São Sebastião.
5
Prefeitura de São Sebastião. Departamento de Patrimônio. Registro no livro de matrícula de escra-
vos de 1844.
6
Apesp. Colleção das Leis do Império do Brasil de 1842, tomo V, parte II. Rio de Janeiro: Typogra-
phia Nacional, 1865. p. 201-207.
94
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

apenas três deles parecem ser as mesmas pessoas, sendo todos os outros
novos africanos. Assim, africanidade e rotatividade parecem ter sido ca-
racterísticas do plantel de Joaquim Pedro na primeira metade do século
XIX, em tempos de ilegalidade do tráfico.
Cabe uma observação sobre o tempo de ocupação do sítio, que também
apresenta a maioria dos seus vestígios produzidos na primeira metade
do século XIX. A partir da cultura material exumada com as escavações
arqueológicas, mais particularmente das louças decoradas, é possível
estabelecer uma data média de ocupação para o sítio, uma vez que suas
técnicas de decoração, aplicação de diferentes esmaltes, pastas e marcas
de fabricantes são passíveis de datação. Para tal aplicou-se a fórmula de
South, tal como adaptada por Lima et al (1989).
A fórmula de South considera que cada tipo de louça (considerando
os elementos acima mencionados) tem uma data inicial de produção, um
pico, até a interrupção de sua manufatura. Relaciona, ainda, a frequência
de fragmentos de cada tipo de louça com sua data média de produção. O
método aperfeiçoado por Lima et al (1989) considera o número mínimo
de peças (NMP) e não o número de fragmentos na contagem do material.
Aplicando a fórmula para obtenção de uma data média para o sítio São
Francisco a partir de suas louças decoradas temos os números apresenta-
dos na tabela 1.

Tabela 1 – Obtenção de data média para Sîtio São Francisco a partir das louças decoradas
Período de produção Data média NMP Total
1830-1860 1.845 66 121.770
1845-1860 1852,5 2 3.705
1810-1860 1835 2 3.670
1845-1900 1872,5 26 48.685
1840-1910 1875 11 20.625
1780-1860 1820 7 12.740
1779-1860 1819,5 9 16.375,5
1805-1860 1832,5 8 14.660
1828-1864 1846 4 7.384
1828-1856 1842 7 12.894
1775-1840 1807,5 17 30.727,5
1775-1860 1817,5 47 85.422,5
1778-1840 1809 1 1.809
1783-1860 1821,5 1 1.821,5
Total 208 382.289
382.289 ÷ 208 = 1837,93 1838.
O ano de 1838 seria quase no meio do período do tráfico ilegal de escravos, que teria dinamizado as regiões litorâneas mais afas-
tadas dos portos oficiais. Ilha Bela e São Sebastião, entre tantos outros ancoradouros, foram escolhidas para o desembarque ilícito
de africanos.

Nos maços populacionais e em recibos de impostos tem-se a indicação


que Joaquim Pedro vivia de “negócios” e não de “lavoura” ou “agricultu-
ra”, chegando a ter uma casa de negócio na antiga praia do Barro (atual
95

Camilla Agostini
Cigarras), vizinha do local do sítio. Infelizmente não foi possível obter
qualquer outra informação sobre as características do negócio; apenas
que o imposto da casa seria de doze mil e oitocentos réis. Além disso, pos-
suía um número de escravos semelhante a quem “vivia de vender negros”,
como era o caso de Joaquim Ignácio da Silva, que possuía 13 escravos,7
ou de pessoas ligadas diretamente ao recebimento de africanos no lito-
ral, como foi relatado por africanos desembarcados da escuna Relâmpago,
que, quando capturados disseram que “[...] foram expostos (na praia) pelo
meio dia e daí caminharam de noite a uma casa grande no meio do mato
onde havia um homem branco que saía a cavalo e outros brancos e 10
pretos ladinos [...]” (RODRIGUES, 2000, p. 189).
No ano de 1856, quando as propriedades que já possuíam título legal
(sesmaria, compra, herança) ou que tinham posse comprovada estavam
sendo normatizadas e registradas, Joaquim José Pedro de Souza aparece
citado por três vizinhos: Manoel Gonçalves, José Miguel e José Joaquim
Correa, todos do bairro São Francisco, praia das Figueiras, local do sítio.8
É interessante notar que o próprio Joaquim Pedro não registra suas ter-
ras; sabemos delas apenas pela presença de seus vizinhos. Por que viver
em um local de difícil acesso, no alto de um morro, escondido em meio à
vegetação? A alta rotatividade e o alto índice de africanidade da pequena
escravaria de Joaquim Pedro, junto à posição estratégica da implantação
paisagística de sua propriedade, na primeira metade do século XIX, no
contexto dos arredores da cidade de São Sebastião, sugerem uma situação
de clandestinidade, provavelmente ligada ao tráfico ilegal de africanos.
Estaria ele, assim, fora da norma em 1856, quando apenas remanescentes
do tráfico clandestino atuavam? Teria sido Joaquim Pedro um dos últi-
mos intermediários a deixar o ilícito negócio do tráfico de escravos?
Boccia e Malerbi (1977) defendem que o tráfico não teria cessado por
completo no ano de 1850, continuando a ocorrer desembarques clandes-
tinos ao longo da década de 1850. Foram identificados, inclusive, esforços
para a apreensão do norte-americano Guilherme Forest nos anos de 1869
e 1870. Nesse contexto, a chegada de africanos ao litoral brasileiro era
seguida de um rápido ocultamento dos mesmos na mata, como explicam
Boccia e Malerbi:

Uma vez verificados os desembarques, quase sempre com auxílio das po-
pulações praianas, eram os negros encaminhados, por trilhos pouco fre-
quentados, ou picadas especialmente abertas, para o centro das matas,
onde permaneciam ocultos a fim de serem iniciados na língua portuguesa
e assim, mais facilmente, poderem ser tomados por ladinos. (BOCCIA;
MALERBI, 1977, p. 353)

7
Apesp. Maços populacionais para a cidade de São Sebastião, 1800-1850.
8
Apesp. C08558 – Tesouro-Sizas 1840-1874, maço 406/5, p. 46v.
96
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

Outros detalhes são dados por um africano dito boçal, recém-chegado,


fugido e preso:

[...] respondeu que é natural de Nagoá, que veio de sua terra em um bar-
co a cinco meses mais ou menos, que com uma porção de pretos buçaes
foram desembarcados uma noite em uma praia cujo nome ignora, que foi
conduzido com outros muitos para o centro das matas como quinze dias,
e que trabalharam alguns dias em colheita de café, e que de noite eram
recolhidos em um arranchamento no centro do mato, como dois meses, e
que depois fugiu com mais três companheiros, e que deles se perdeu: con-
tinuando a andar nos matos e passando alguns rios afinal foi pegado por
quem o apresentou. (BOCCIA; MALERBI, 1977, p. 353)

Como salienta Rodrigues (2000, p. 136, 187), encontrar africanos di-


tos boçais nos navios ou em terra próxima ao local dos desembarques era
o indício mais comprometedor de envolvimento no tráfico no período
ilegal, motivo pelo qual o autor defende que já na África os indivíduos
escravizados estariam aprendendo o português, para que, ao chegarem
no Brasil, passassem por ladinos em caso de apreensão. Segundo o autor,
“raras vezes foram capturados africanos que soubessem falar o português,
mas temos exemplos de que eles nem sempre eram absolutamente bo-
çais”. O autor admite não ter encontrado nenhum caso, na documentação
que consultou, que apontasse para o ensino regular da língua portuguesa
na própria África, e que, apesar de ser uma estratégia tanto para fugir da
fiscalização como para valorizar o produto, os africanos que falavam o
português podiam ter aprendido a língua no lidar cotidiano com portu-
gueses e brasileiros na África.9
Para reforçar a hipótese da clandestinidade da propriedade de Joaquim
Pedro, chama-se atenção para a falta de senzalas nos arredores imediatos
do complexo principal mencionado a cima; ao menos até hoje não foram
identificados possíveis locais de sua construção. A quase 1 km do comple-
xo principal foram localizadas as ruínas de três unidades habitacionais
que, pela técnica construtiva, forma de implantação no terreno e distân-
cia sugerem pertencer à mesma propriedade. Escavações no local revela-
ram uma incidência não muito alta de material. Não foram encontrados
os bolsões de descarte de lixo, o que diminuí a possibilidade da amostra,
que se constituí majoritariamente de objetos cerâmicos.
Seria este o local para os escravos? Por que tamanha distância do
complexo principal, fugindo completamente de qualquer semelhança
com a implantação de outras fazendas do Sudeste, que têm as senzalas
sempre nas proximidades das casas senhoriais? A hipótese de quarente-
na parece viável, quando pensamos na possibilidade de Joaquim Pedro
estar receptando escravos recém-chegados para encaminhá-los ao Vale do
9
Para o estudo da formação de uma cultura crioula na costa da África, consulte Heywood (2002).
97

Camilla Agostini
Paraíba, onde prosperavam as fazendas de café. Dessa maneira, o sítio São
Francisco apresenta a possibilidade de ter sido um desses locais interna-
dos nas matas, onde africanos recém-chegados ocultamente se restabele-
ciam, aprendiam a língua e aprendiam o ofício a ser executado no interior,
seu destino final.
Nessa história cabe aprofundar, ainda, o forte aspecto cerimonial e
de intensa sociabilidade que se mostra presente no complexo principal,
ficando o estudo do setor periférico com as três unidades habitacionais
a ser aprofundado em outro momento. O primeiro elemento que chama
a atenção são as ruínas da própria capela. Essa estrutura foi identificada
como tal por Bornal (2008, p. 260) em função de inúmeros elementos que
sugerem que a construção tinha um aspecto diferenciado e privilegiado.
A construção, que deveria ter tido cobertura de telhas de capa e canal e
paredes de pau a pique, deve ter tido vidraças (pelos inúmeros fragmentos
de vidro plano encontrados no local), “[...] e cravos fixados nas bases das
colunas, juntamente com evidências de encaixes de vigas, formando ‘re-
baixos’ na argamassa, permitem inferir que o piso interno era composto
por um tabuado apoiado em barrotes de madeira, aspectos que segura-
mente atribuíam características diferenciais à construção”.
À frente da estrutura encontrava-se um pátio de ardósia, material não
encontrado em nenhum outro local do sítio, que deveria conferir uma es-
tética e apuro ao entorno da construção. Além desses vestígios, no outro
extremo do pátio de ardósia pode-se encontrar um nicho com bases late-
rais que sugerem pedestais para a colocação de imagens. O nicho, que é
todo decorado com embrechamento de conchas, possui, ainda, um nega-
tivo em forma de cálice, que deveria ser alimentado por fluxo de água con-
tínuo, caracterizando-se possivelmente como uma fonte ou pia batismal.

Fonte: foto da autora


98
Figura 2 – Colunas da possível capela, com pátio de pedras no patamar abaixo.
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

O grande pátio de pedras, no mais baixo patamar, por sua vez, não
apresenta viabilidade para a secagem de grãos como o café, por haver sul-
cos entre as pedras. O muro de arrimo que constitui a parede do referido
patamar é todo decorado com inúmeros símbolos em torno de barbacãs,
como as imagens de uma rã, de uma capela, da letra “E”, de uma figura
humana à semelhança de um arqueiro grego e de uma rosácea, todos em
baixo relevo em argamassa de cal e concha. Um pátio que possibilitava
mais a sociabilidade e a expressão simbólica do que a produção.
Outro aspecto indicador de alta sociabilidade é o grande número de ca-
chimbos encontrados, quando comparado a outras unidades domésticas
oitocentistas. Com o estudo de coleções procedentes da escavação de 17
sítios arqueológicos (AGOSTINI, 1997), pode-se notar que em 14 deles
foram encontrados menos de seis cachimbos, sendo as outras três amos-
tras mais significativas – 13, 24 e 91 peças.
Sítios como a fazenda da Mandioca, localizado em Raiz da Serra de
Petrópolis (RJ), cuja coleção total de objetos recuperados com a escavação
pode ser considerada expressiva em quantidade e qualidade, nos indicam
a frequência de cachimbos em contextos domésticos do século XIX com-
parada com a dimensão da coleção total e considerando seu contexto de-
posicional. Neste sítio foram identificados 24 cachimbos em meio à tralha
doméstica de uma casa de vivenda rural, a antiga fazenda da Mandioca, de
Langsdorf. Já o sítio Solar Grandjean de Montigny, localizado no bairro
da Gávea, na cidade do Rio de Janeiro, caracterizado no século XIX como
uma chácara em meio semirrural, apresentou um total de 13 cachimbos,
também em meio aos vestígios senhoriais.
As outras 14 coleções, com até seis peças, são procedentes de diferen-
tes contextos, sendo estes rurais, semirrurais, urbanos e de quilombos
no Sudeste, em sua maioria contextualizados no século XIX. Entre as
coleções procedentes de quilombos foram identificados dois cachimbos
procedentes do quilombo do Ambrósio e quatro do quilombo do Guinda,
ambos em Minas Gerais.
Já a coleção que apresenta cerca de 90 cachimbos refere-se justamente
ao complexo do sítio São Francisco. Também encontrados em meio aos
vestígios associados à cozinha da casa de vivenda senhorial, atrás da cape-
la, apresentam-se em quantidade excepcionalmente grande se compara-
dos à amostra total de objetos recuperados com as escavações. Ora, o que
é a prática do fumo – além da possibilidade do vício – senão um momento
de pausa, repouso ou sociabilidade? Sem contar com a possibilidade de
uso ritual ou religioso.
Também em meio ao lixo da casa principal, nos fundos da capela, fo-
ram encontrados cabos de frigideira com formas particulares. Uma delas
é a forma de figa, sinal de fertilidade, sorte ou insulto.
99

Camilla Agostini
Fonte: foto da autora.

Figura 3 – Cabos de frigideira em forma de figa

Originalmente, a representação da figa é atribuída aos tempos clássi-


cos na Europa, como um sinal de fertilidade, contra mau agouro ou como
um insulto, sendo a forma dos dedos uma representação do ato sexual.
Paiva (2001) encontrou, em testamentos de libertas em Minas Gerais do
século XVIII, a presença de figas. Symanski (2007) identificou, em inven-
tários de africanos e libertos, a presença de figas como amuletos, mesmo
sendo estas comuns na tradição portuguesa.
Atualmente no Brasil é possível encontrar referências às figas ou “figas
de Guiné” em pontos de umbanda como uma referência a um talismã ou
como insulto:

Preto Velho ele vem de Aruanda


Vou fazer figa para quem de mim falar
Ele traz figa de Guiné
Zum zum zum gira mundo põe para girar
Sete velas, toalha encarnada
Pra louvar Jesus Nazaré.
[Ponto de Exu, figa como insulto]
Na última saia tem mironga
Vovó veio de Angola
Pra salvar filhos de umbanda
Com seu patuá, figa de Guiné
Vovó veio de Angola para salvar filhos de fé.
[Ponto de Preto Velho, figa como amuleto]

As figas encontradas no sítio São Francisco (em um total de três) são


todas representações da mão direita. É difícil atribuir um sentido para
esta escolha, uma vez que existem diversas explicações e diferentes
100
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

preferências (pelas figas de mão esquerda ou direita). Seria interessante


observar, em contextos específicos, se há alguma tendência ou preferência.
Passechnikoff (2000) encontrou, entre pescadores portugueses, argu-
mentos diferentes sobre ambas as figas. Alguns acreditam que a mão es-
querda é a representação do mal, em oposição às representações da mão
direita. Alguns outros pescadores dizem que as de mão direita ninguém
quer, porque a esquerda é a que possuí realmente o poder contra o mau
agouro.
É comum, na perspectiva do catolicismo do século XIX, atribuir às re-
ligiões e crenças africanas a noção de má, diabólica, representada pela
“magia negra”. Pode-se perguntar se as figas de mão direita encontradas
no sítio seriam mais associadas a uma crença portuguesa do que a uma
africana. Talvez estas “figas de direita” tivessem maior importância como
representações sexuais, de fertilidade, do que poder contra mau olhado
ou como insulto. A outra representação encontrada entre os cabos de fri-
gideira reforçam esta hipótese.
Trata-se de uma representação intrigante, uma vez que aparece em
relativa alta frequência no sítio (cerca de 20 delas). Trata-se de claras
representações fálicas. Deve-se levar em conta que esses cabos de frigi-
deira foram encontrados muito próximos às ruínas da capela em número
expressivo. Deve-se considerar, assim, como a classe dominante – par-
ticularmente senhores de escravos e autoridades religiosas – lidava com
a contradição de uma representação sexual em suas mesas e uma forte
moralidade cristã. Pode-se perguntar se africanos estariam introduzindo
rituais próprios na casa de seu senhor, uma vez que a forte sexualidade
sempre recaiu como estereótipo sobre eles.

Fonte: fotos da autora.

Figura 4 – Representações fálicas em cabos de frigideiras cerâmicas

Mas há, ainda, outra possibilidade: foi registrado, já no século XX, um


culto tradicional do catolicismo popular português devoto a São Gonçalo,
em que esta representação fálica aparece. Em uma data especial, pães e
bolos são feitos na forma de pênis, e as mulheres disputam um pedaço,
101

Camilla Agostini
para garantir assim casamento (BRANDÃO, 1953, p. 13, 14; CASCUDO,
2002, p. 264; OTÁVIO, 2004, p. 39).
Ainda não foi possível encontrar esta representação fálica associada
a São Gonçalo no Brasil; apenas a associação do santo à fertilidade e à
esperança por casamento. Bomfim (2006, p. 49), entre outros autores,
menciona a “exaltação sexual” no primeiro registro ao culto a São Gonçalo
no Brasil, feito pelo viajante francês Gentil de la Barbinais, em 1718, na
Bahia.10
Gilberto Freyre (1995, p. 47, 248) faz referência ao culto a São Gonçalo
no Brasil entre os santos casamenteiros, como São João ou Santo Antônio,
como o mais livre e sensual. As práticas incluem “até safadezas e porca-
rias”. O autor chega a mencionar o “costume das mulheres estéreis de
se friccionarem ‘desnudadas’, pelas pernas da imagem jacente do Bem-
Aventurado [...]”, assim como as práticas de dança e de namoro dentro
das igrejas.
Beatriz Catão C. Santos (2004) entende que São Gonçalo é um san-
to dos humildes, e ainda de pessoas ligadas ao mar, como marinheiros,
pescadores etc. Há autores que dizem, ainda, ser o santo das prostitutas
(BONFIM, 2006; SANTOS, 2006; SANTANA, 2008). Em sermão, o padre
Antônio Vieira chega a referir-se ao culto a São Gonçalo como algo dis-
perso: “[...] nas remotíssimas terras da África, da Ásia e desta América
onde apenas há lugar, que não tenha levantado templos, ou altares a S.
Gonçalo, só com a invocação de seu nome [...]” (SANTOS, 2006, p. 301).
Gilberto Freyre (1995) indica que festas de fecundidade, como a de
São Gonçalo, teriam sido associadas também à proteção da agricultura,
à fertilidade da terra. Aqui cabe a pergunta que faz Laura Mello e Souza,
sugerindo que os escravos não teriam interesse em cultos de fertilidade
ou de fartura na lavoura: “para que pedir fecundidade às mulheres se, na
terra do cativeiro, elas geravam bebês escravos? Como solicitar aos deu-
ses boas colheitas numa agricultura que beneficiava os brancos, que se
voltava para o comércio externo e não para subsistência?” Completando
seu argumento, a autora ressalta que as religiões africanas recém-adapta-
das em terras brasileiras teriam colocado de lado as divindades proteto-
ras da agricultura, valorizando, contudo, as da guerra (Ogum), da justiça
(Xangô), da vingança (Exu) (SOUZA, 1995).
Os cabos de frigideira, como visto, parecem ter sido associados a cultos
de fertilidade, fossem relacionados ou não a São Gonçalo. As proximida-
des de uma capela no local onde foram encontrados os cabos fortalecem
a sugestão do santo. No entanto, quem seriam os devotos nesse escuso
espaço que une o profano e o sagrado em celebrações, considerando as
ponderações de Laura Mello e Souza sobre escravos estarem participando
de ritos de fertilidade, fosse de homens e mulheres, fosse da terra?

10
Consulte, também, Freyre (1995, p. 249).
102
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

Vale lembrar que a cidade de São Sebastião contava, desde o início do


século XIX, com uma capela devota a São Gonçalo, construída não muito
distante da matriz da cidade, a cerca de 10 km do local do sítio. O interes-
sante é notar, no compromisso de fundação da irmandade, nos primeiros
anos do século XIX, quem eram seus devotos e irmãos: “Nós Casemiro dos
Santos Juiz, Brazida da Costa Juíza, e Irmãos de Mesa, pardos, Libertos
e Cativos, que por nossa devoção servimos ao glorioso São Gonçalo neste
Presente ano de mil oitocentos e dois [...]” (SANTOS, 2006, p. 312).
Seriam, pois, pardos (como Joaquim Pedro) libertos e cativos os prin-
cipais irmãos, ainda que a irmandade estivesse aberta a quem dela quises-
se participar. A única condição era a de viver “debaixo da Obediência da
Santa Igreja Católica Romana”, e pagar de entrada a quantia de trezentos
e vinte e seis réis. Apesar de não incluírem na apresentação “negros” ou
“pretos” libertos e cativos, fica claro no compromisso que a irmandade
estaria aberta a “todas as pessoas de um, e outro sexo que nela quiserem
servir sem exceção de graduação nem qualidade” (SANTOS, 2006, p. 312).
Curioso é, após tantas referências à sensualidade, exaltação sexual, re-
presentações fálicas, mulheres desnudas etc., conferir os propósitos da
irmandade e suas festas associadas. Ainda em seu compromisso, a irman-
dade seria

[...] obrigada a conservar a nossa capela, reparando as suas ruínas, ornan-


do-a conforme os seus rendimentos, especialmente o altar do nosso Santo,
que estará sempre preparado com decência, e ornado com vestimentas
próprias conforme os dias para se celebrar o Santo Sacrifício da Missa [...].
(SANTOS, 2006, p. 318)

Como observa Santos, a festa regulada pelo “Compromisso dos Irmãos


de São Gonçalo” só previa “Missa, Sermão e Procissão”. A autora nota que:

A julgar pelos elementos dispersos no Compromisso, a missa do santo es-


tava adequada às normas estabelecidas pelas Constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia. A festa, assim como o conjunto do Compromisso,
receberia a aprovação do Bispado de São Paulo, representado na pessoa de
D. Matheus. É necessário observar que não há qualquer menção às danças
de São Gonçalo, localizadas e analisadas pelos folcloristas e, em particular,
na região de São Paulo. (SANTOS, 2006, p. 320)

A devoção a São Gonçalo na cidade de São Sebastião, no início do sé-


culo XIX, nada se parecia com as festividades de caráter profano descritas
desde o século XVIII até o século XX, ainda que estivesse associada a gente
humilde. “Decência” e a adequação às normas dos altos escalões da Igreja
talvez fossem uma porta de entrada na sociedade excludente em que vi-
viam libertos e cativos.
103

Camilla Agostini
A hipótese de a capela do sítio São Francisco estar associada a cultos
a São Gonçalo nos leva a perguntar por que haveria outra capela devota
ao mesmo santo em São Sebastião. A localização do sítio, de difícil aces-
so, escondida em meio à vegetação, somada às representações fálicas su-
gerem talvez um local para cerimônias não tão oficiais, mas “oficiosas”.
A associação desses cabos de frigideira com a capela poderia sugerir um
local para o culto a São Gonçalo, com a mesma relação com o consumo de
comida que foi verificado em Portugal. Se o compromisso da irmandade
nos oferece dados sobre seus irmãos, no sítio São Francisco as digitais dos
participantes de festividades na capela são mais difíceis de serem identi-
ficadas. Afinal apresenta-se uma situação aparentemente contraditória:
libertos e cativos em irmandades “decentes” e normatizadas na cidade, e
um culto português “oficioso” escondido nas matas.
Esta inversão pode ser inferida no contexto particular em que é identi-
ficada. As cidades litorâneas na primeira metade do século XIX, mais par-
ticularmente a região de São Sebastião, em muito estiveram envolvidas
na clandestinidade do tráfico transatlântico de escravos, dada a partir de
1831 e confirmada após 1850. Os habitantes do litoral, fossem interme-
diários do tráfico, como parece ter sido Joaquim Pedro, fossem pessoas
livres e pobres que ajudavam ou mesmo calavam sobre os desembarques,
viviam, de certa maneira como ilegais e fortemente entrelaçados à dinâ-
mica cultural atlântica. Por outro lado, escravos e libertos já estabelecidos
em terras brasileiras buscavam formas de inclusão, entre elas legitimando
um espaço social nas irmandades religiosas.
Isso não quer dizer que africanos e seus descendentes não estivessem
associados também aos cultos “oficiosos” nas matas da propriedade de
Joaquim Pedro. Este entrelaçamento permitido pela dinâmica atlântica
pode ser inferido a partir de outro achado. Parte do piso da casa de viven-
da no complexo principal foi escavada. Ao que parece, não foi encontrado
nenhum vestígio no piso, a não ser sinais de ocupação e do telhado sobre
o piso. A exceção foi um conjunto de objetos, encontrados na fundação
da casa (dentro do piso), em um canto, ao lado do que pode ter sido uma
porta. Trata-se de uma pedra polida, semelhante a um machado indígena
quebrado e duas chaves, que, segundo a pessoa que retirou os objetos du-
rante a escavação, pareciam estar em forma de cruz, estando uma deitada
e a outra em pé.
104
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

Fonte: foto da autora.

Figura 5 – Pedra polida e duas chaves encontradas no canto da casa, em sua fundação

Symanski (2007) identifica, na fundação de uma casa senhorial no


Brasil Central, um prato com uma moeda no meio e apoia-se na biblio-
grafia africanista e sobre a diáspora africana para sugerir tratar-se de uma
obra religiosa ou de feitiçaria, feita por escravos contra o senhor. Assim,
apesar de econômica e socialmente dominante, o senhor estaria, de certa
maneira, espiritualmente dominado.
Diversos autores mostraram as artimanhas espirituais de africanos
para agir contra seus senhores, como foi o caso de

Felizardo Crioulo [que] revelou que nos encontros noturnos prévios [a


uma “revolução contra os brancos”], os escravos faziam mesinhas “para
amansar os brancos para as armas dos mesmos não ofenderem a eles pre-
tos e se levantarem afoitamente com eles brancos, matá-los, e ficarem eles
pretos todos forros”. (RODRIGUES, 2000, p. 57)

Ou, ainda, os casos de feitiços enterrados que eram desfeitos por es-
pecialistas identificados por Laura de Mello e Souza, como Domingos
Álvares, escravo natural da costa da Mina, que residiu no Rio de Janeiro
muitos anos. Ele foi preso pela inquisição, acusado de feitiçaria, e foi de-
gredado para o Algarve, onde não parou com suas práticas. Entre elas,
Domingos era especialista em desenterrar objetos, como uma prática de
contrafeitiço. O enterramento de “cabaças cheias de feitiço” era, assim,
uma estratégia para emanação de efeitos maléficos contra uma pessoa.
Como foi o caso de cabaças com “[...] cabelos, ossos, feitiços que, desco-
bertos, fizeram certa vez com que caísse no chão feito morto, espécie de
pára-raio dos efeitos maléficos emanados da cabaça” (SOUZA, 1995, p.
164-172).
Não apenas africanos, no entanto, envolviam-se com malefícios por
meio de feitiços enterrados, como foi o caso da índia Sabina, considerada
105

Camilla Agostini
uma contrafeiticeira nos tempos coloniais. Não apenas objetos enterra-
dos no chão, mas também nas paredes ela os encontrava, como foi o caso
de um feitiço encontrado dentro da parede do palácio do governador do
Grão-Pará, que se encontrava doente (SOUZA, 1995, p. 174, 175).
No entanto, pesquisadores das religiões afro-brasileiras oferecem in-
formações ricas para uma interpretação diferente desses achados. A an-
tropóloga Luciana Duccini menciona que na fundação de um terreiro de
candomblé, da roça ou do barracão, se enterram vasilhas de barro com
moedas antigas dentro, entre outros objetos.11 É o chamado “axé de fun-
damento”. A maneira como os objetos são enterrados e detalhes sobre
eles são fundamentos secretos que não podem ser revelados, colocando
em risco a segurança do terreiro. Da mesma forma, a pesquisadora Carina
Guimarães nota que nas fundações dos centros de umbanda também são
enterrados diversos objetos, sendo o fundamento do terreiro sua força de
proteção.12 Detalhes específicos sobre o assunto, especialmente quando
reportados a terreiros específicos são desrespeitosos, por anunciarem se-
gredos de seus fundamentos sagrados. Portanto atenho-me a essas refe-
rências para seguir com os achados do sítio São Francisco.
As chaves podem ter uma conotação de segurança, tranca, proteção.
Postas sob o piso da casa, em forma de cruz, remetem a um elemento fun-
damental da cosmologia centroafricana, de representação do encontro
do mundo dos vivos com o mundo dos mortos. Robert Farris Thompson
(1984, p. 108) mostra como o cosmograma bakongo (cuja forma simplifi-
cada é a cruz ou o X) era marcado no solo com o propósito de mediação do
poder espiritual entre os mundos. Segundo o autor, uma pessoa que ativa
esse sistema, ou cruza a fronteira, se situa entre a vida e a morte, evocan-
do o julgamento de Deus e dos mortos a seu respeito.
Ainda com relação à composição encontrada sob o piso da casa princi-
pal, vale uma observação sobre a pedra quebrada, que aparenta ser de ma-
chado indígena. Robert Slenes (2002, p. 186, 187) mostrou como rochas
de formas exóticas eram significativas para certos grupos procedentes da
África central, que compartilhavam certas orientações cognitivas ou pa-
radigmas. O autor, a partir dos trabalhos de Wyatt MacGaffey e Craemer,
Vansina e Fox, mostra como certos grupos procedentes de regiões próxi-
mas ao litoral, na África centro-ocidental, compartilhavam semelhanças
de visão de mundo, além de sistemas de linhagem, princípios como o de
“ventura-desventura”, tendência à flexibilidade religiosa e reinterpreta-
ção de símbolos e rituais estrangeiros, além de possuírem línguas de raiz
Bantu, não tão diferentes umas das outras.
Um desses elementos compartilhados seria a existência de espíritos
locais, que podiam ou não estar associados a pessoas que morreram, e
que morreram de novo no mundo dos mortos, tornando-se espíritos da
11
Informação obtida em contato pessoal com a pesquisadora Luciana Duccini, realizado em 2009.
12
Informação obtida em contato pessoal com a pesquisadora Carina Guimarães, realizado em 2009.
106
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)

natureza, como os espíritos da água. Os chamados basimbi, para os bakon-


go, entre outros grupos, ou o equivalente kianda, em Luanda, seriam tais
espíritos, donos da terra, manifestos em pedras de formas exóticas ou
exuberantes. Alguns animais que vivem dentro da água também podiam
incorporar tais espíritos, assim como elementos menores, como a fumaça
ou conchas de forma espiralada (SLENES, 2002, p. 192, 203, 204).
A pedra que podia ter sido identificada como um objeto dos antigos
donos da terra encontrada no sítio São Francisco, somada às duas cha-
ves em forma de cruz, podiam representar objetos de desconjúrio, como
aqueles identificados por Christopher Fennell (2007, p. 21, 22), que “[...]
envolvem invocações individualizadas e privadas de forças espirituais”.
A conotação de proteção ou segurança dos enterramentos relatados
pelas referidas pesquisadoras de cultos afro-brasileiros, inclusive seme-
lhante à composição do prato e moeda encontrados por Symanski, aponta
para uma interpretação diferente daquela que o autor sugere. Estariam
os senhores, no caso de Symanski e do sítio São Francisco, com medo
do mundo mágico-espiritual africano, e pedindo proteção a escravos apa-
drinhados? Aqui aparece outra inversão. O “padrinho espiritual” africano
ajudando na proteção do senhor.
Slenes (2002, p. 196) refere, ainda, que os cultos aos espíritos das
águas, associados a pedras, eram feitos sobretudo como cultos de fertili-
dade (da agricultura ou dos homens), assim como para o bem-estar de
indivíduos e da comunidade. Se, hipoteticamente, esta composição de ob-
jetos fosse de interesse particular ao dono daquela propriedade, não deixa
de ser interessante sua associação a cultos de fertilidade, uma vez que os
cabos de frigideira apontam nesse sentido.
Assim, este local propício a cultos populares “oficiosos” também de-
veria contar com a forte presença, se não com a segurança, de africa-
nos e seus descendentes. Aqui, lembra-se a lenda contada por Sebastião
Fortunato sobre Joaquim Pedro e seu pacto com o “coisa ruim”. Seria o
apadrinhamento de Joaquim Pedro notório? Seria a referência diabóli-
ca, na verdade, um medo ou reprovação sobre o que se passava em sua
propriedade?
Objetos de magia, culto à fertilidade, referenciais religiosos diferentes
conferiam a esta fazenda oculta na vegetação e de difícil acesso peculia-
ridades que podem ser entendidas quando lançamos o olhar para a for-
mação de culturas atlânticas e para a dinâmica social proporcionada pelo
tráfico de escravos na primeira metade do século XIX.
As expressões simbólicas apresentadas a partir da cultura material
encontrada na referida fazenda, dentro dos limites da cidade de São
Sebastião, são entendidas dentro da dinâmica atlântica e de um circuito
cultural que gerava fenômenos híbridos ou sincréticos, mas não por isso
destituídos de contradições e conflitos. Após a apresentação dos dados a
cima, cabe notar de que maneira o sítio São Francisco pode ser entendido
107

Camilla Agostini
como um intermediário entre o Vale do Paraíba e o além-mar. Assim, é
visto não apenas como um objeto em si mesmo, mas como integrante de
uma dinâmica cultural atlântica, que existia dentro da economia-mundo
em formação.
Para pensar a diáspora, Stuart Hall (2009) sugere o uso de conceitos
elaborados por Mary Louise Pratt, como o de “zona de contato”, que trata
da aproximação espacial e temporal de sujeitos anteriormente separados
por motivos geográficos ou históricos. Neste processo, pode-se entender
esses encontros através da noção de “transculturação” – conceito também
elaborado por Pratt – que trata do contato de grupos subordinados com
uma cultura dominante. Neste contato, os grupos subordinados selecio-
nam e inventam a partir do repertório dominante. Acrescenta-se ao deba-
te que, na verdade, esta é uma via de mão dupla, em que a cultura domi-
nante também interpreta, e por vezes se apropria de, códigos subalternos.
Cultura material e expressão simbólica à sombra da clandestinidade: o caso do sítio São Francisco/São Sebastião (SP)
108
Capítulo 5

Hebe Mattos
Martha Abreu

A Constituição brasileira de 1988 abriu caminho para o desenvolvi-


mento de políticas de reparação em relação à escravidão africana no Brasil.
Entre elas, destacam-se a possibilidade de titulação coletiva de terras a
comunidades negras tradicionais reconhecidas como “remanescentes de
quilombos” e o reconhecimento oficial de patrimônios imateriais relati-
vos à herança de populações escravizadas.O “Jongo do Sudeste”, manifes-
tação de canto, dança e percussão cuja origem é atribuída aos africanos
escravizados das antigas áreas cafeeiras do sudeste do Brasil foi reconhe-
cido como patrimônio cultural brasileiro em 2005. Este capítulo aborda,
historicamente, a construção desses novos marcos legais e seu impacto
na produção de novos atores políticos coletivos a partir da valorização da
identidade negra e da memória de antepassados cativos. Para tanto, anali-
sa especialmente o processo de identificação, como remanescente de qui-
lombo, de três comunidades negras do estado do Rio de janeiro, com base
em pesquisa desenvolvida durante nossa participação como especialistas
na construção dos relatórios técnicos que subsidiaram os procedimentos
legais da titulação de suas terras pelo poder público.
O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição brasileira de 1988 reconheceu direitos territoriais aos “re-
manescentes das comunidades dos quilombos”, garantindo-lhes a titula-
ção definitiva pelo Estado brasileiro.2 A partir da análise de casos con-
cretos relativos ao estado do Rio de Janeiro, o presente capítulo discute
1
Parte deste capítulo foi originalmente publicada na revista Iberoamericana, em 2011. Consulte
Mattos e Abreu (2011a).
2
O texto integral do Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece que
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhe-
cida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
110
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

alguns desdobramentos políticos e culturais da aprovação desse artigo,


diretamente articulados com a implementação do Decreto no3.551, de 4
de agosto de 2000, que permitiu considerar como patrimônio da nação
manifestações culturais imateriais. Ou seja, saberes, celebrações, lugares
e formas de expressão musicais e festivas dos diferentes grupos formado-
res da sociedade brasileira, especialmente os afrodescendentes, passam a
receber o título de patrimônio brasileiro.3
Para entender a redação do art. 68 e sua inclusão nas disposições tran-
sitórias da Constituição, é preciso levar em consideração, primeiramente,
o fortalecimento dos movimentos negros no país ao longo da década de
1980 e a revisão, por eles proposta, da memória pública da escravidão
e da abolição. À imagem da princesinha branca, libertando por decreto
escravos submissos e bem-tratados, que durante décadas se difundiu nos
livros didáticos brasileiros, passou-se a opor a imagem de um sistema
cruel e violento, ao qual o escravo negro resistia, especialmente pela fuga
e formação de quilombos. Numa leitura restrita do dispositivo constitu-
cional, apenas os remanescentes dos acampamentos de escravos fugidos
estariam amparados pela nova lei.
No entanto, a maioria das muitas comunidades negras rurais espalha-
das pelo país, em conflito pelo reconhecimento da posse tradicional de
terras coletivas, então majoritariamente identificadas como “terras de
preto” (ALMEIDA, 1996, 2001), nem sempre se associava à ideia históri-
ca clássica do quilombo. Muitos dos grupos referenciados à memória da
escravidão e à posse coletiva da terra, em casos estudados por antropólo-
gos ou historiadores nos anos 1970 e 80, tinham seu mito de origem em
doações senhoriais realizadas no contexto da abolição (SOARES, 1981;
SLENES, 1996). Do ponto de vista desses grupos, além da referência ét-
nica e da posse coletiva da terra, os conflitos fundiários vivenciados no
tempo presente habilitavam-nos a reivindicar enquadrar-se no novo dis-
positivo legal do art. 68.
Juristas, historiadores, antropólogos e, em especial, a Associação
Brasileira de Antropologia (ABA) tiveram importante papel nessa discus-
são (PRICE, 1999; CULTURAL SURVIVAL QUARTELY, 2002). Tendo em
vista o crescimento do movimento quilombola a partir de final dos anos
1990, passaram a predominar, nos campos antropológico e jurídico, as
interpretações que consideravam a ressemantização da palavra quilombo
para efeitos da aplicação da provisão constitucional, valorizando o con-
texto de resistência cultural que permitiu a viabilização histórica de tais
comunidades (O’DWYER, 1995, 2002; ALMEIDA, 1996).
A promulgação do decreto sobre o patrimônio imaterial, em 2000, refor-
çou este ponto de vista e abriu caminhos para os quilombolas conferirem
3
A Constituição Federal de 1988, nos arts. 215 e 216, garantiu a promoção e proteção do patrimônio
cultural brasileiro aos “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-
junto, portadores de referencia à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira”. Veja, também, Abreu (2007).
111

Hebe Mattos e Martha Abreu


valor de patrimônio cultural à sua própria história, memória e expressão
cultural.Desde a Constituição de 1988,os arts. 215 e 216 já apontavam
importantes possibilidades de mudança na concepção de patrimônio cul-
tural. À imagem de um patrimônio cultural brasileiro identificado apenas
com construções suntuosas de pedra e cal, passou-se a agregar a ideia de
um patrimônio imaterial, identificado com expressões culturais popula-
res. A Constituição de 1988ampliou a noção de direitos e estendeu às prá-
ticas culturais essa noção.Garantiu a promoção e a proteção do patrimô-
nio cultural brasileiro, compreendido de uma forma mais ampla em ter-
mos culturais e sociais: “bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referencia à identidade,
à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasi-
leira”. Entre eles, é claro, encontravam-se os afrodescendentes.
A perspectiva aberta com os artigos constitucionais tornou-se uma
larga avenida depois da aprovação do Decreto no3.551/2000 e uma das
bandeiras do Ministério da Cultura, desde a posse do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, em 2002. Com alguns exemplos, pode-se ter uma rá-
pida avaliação dessa repercussão.Em 2004, já se encontravam registrados,
como patrimônios imateriais brasileiros,além da pintura corporal e arte
gráfica do grupo indígena wajãpi, o ofício das paneleiras de Goiabeiras, o
Círio de Nossa Senhora de Nazaré, o ofício das baianas do acarajé, a viola
de cocho e o samba de roda do Recôncavo Baiano. Este último recebeu, em
2005, o título de “Obra-Prima da Humanidade”. No mesmo ano,o jongo
do Sudeste, expressão cultural protagonizada por populações afrodescen-
dentes das antigas regiões escravistas de café do sudeste do Brasil – que
receberam as últimas levas de africanos escravizados no país, na primei-
ra metade do século XIX – tornou-se patrimônio cultural brasileiro.O
Decreto no3.551 permitiuque todo um conjunto de bens culturais de per-
fil popular e de reconhecida presença afrodescendente, como o samba de
roda, o acarajé, o tambor de crioula, o samba e a capoeira, recebesse reco-
nhecimento até mesmo internacional.
Com abrangência nacional, o processo de emergência das novas co-
munidades quilombolas, ainda que gestado majoritariamente em contex-
tos de conflitos territoriais, se apresenta hoje estreitamente associado ao
movimento paralelo de patrimonialização da cultura imaterial identifica-
da com populações afro-brasileiras. Segundo o Decreto no 4.887, de 20
de novembro de 2003, que regulamenta o art. 68, em termos legais “a
caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será
atestada mediante autodefinição da própria comunidade”, entendendo-
-as como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida”. A posse de patrimônios culturais relativos à
experiência da escravidão e à memória da África ou do tráfico, exemplos
112
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

contundentes da “resistência à opressão histórica sofrida”, fortaleceu as


reivindicações e transformou-se em moeda de legitimação do processo de
demanda pela posse de territórios ocupados coletivamente por descen-
dentes das últimas gerações de africanos trazidos como escravos ao Brasil
–todos eles, de uma forma geral, remanescentes de um campesinato ne-
gro formado no contexto da desagregação do escravismo no país, ao longo
da segunda metade do século XIX.
Em 2003, 178 comunidades estavam formalmente referidas como re-
manescentes de quilombo no Sistema de Informações das Comunidades
Afro-Brasileiras (Sicab), na página da Fundação Cultural Palmares, 70
delas então já tituladas (SANZIO, 2001, 2005). Ainda pelaFundação
Palmares, em 2009, 1.342 comunidades quilombolas, agora classificadas
como partes integrantes do patrimônio cultural brasileiro, encontram-se
certificadas. Levantamento do Centro de Geografia e Cartografia Aplicada
(Ciga) da Universidade de Brasília (UNB), sob a direção do geógrafo Rafael
Sanzio, registrou 848 ocorrências em 2000 e 2.228 territórios quilombo-
las em 2005.4
As novas formas de se conceber a condição de patrimônio cultural
nacional tem permitido que diferentes grupos sociais, utilizando as no-
vas leis e o apoio de especialistas, revejam as imagens e alegorias de seu
passado e passem a decidir sobre o que querem guardar e definir como
próprio e identitário, através de festas, músicas e danças, tradição oral,
formas de fazer ou locais de memória. O decreto abriu possibilidade para
o surgimento de novos canais de expressão cultural e luta política para
grupos da sociedade civil. Antes silenciados, esses grupos são detentores
de práticas culturais imateriais, avaliadas como tradicionais, o que tem
sido fundamental para o processo de reconhecimento das comunidades
remanescentes de quilombos.
Nesse sentido, o caso de São José da Serra é exemplar. A divulgação
e a visibilidade do jongo, expressão cultural que articula música, verso
e dança, tornou-se uma importante estratégia na luta pela terra e pelo
reconhecimento da identidade negra de um grupo de descendentes de es-
cravos do município de Valença, no estado do Rio de Janeiro, hoje oficial-
mente conhecido como o quilombo São José da Serra. Como afirmou o sr.
Manoel Seabra, um dos mais velhos membros da comunidade, em uma
entrevista que nos foi concedida em 2004, a comunidade sabia o valor do
jongo – “tambor” em suas palavras.5A dança e o batuque sempre expres-
saram um patrimônio do grupo. Entretanto, entendia, agora, a partir de
contatos com diferentes intelectuais e especialistas, que o jongo ganhava
novos e importantes significados, para além da comunidade. Em suas pró-
prias palavras,
4
Cf. Sistema de Informações das Comunidades Afro-Brasileiras (Sicab) na página da Fundação Cul-
tural Palmares do Ministério da Cultura. Disponível em: <www.palmares.gov.br>. Acesso em: 3 set.
2005.
5
O jongo no Sudeste é também conhecido como tambu e caxambu.
113

Hebe Mattos e Martha Abreu


a gente não sabia o valor que o tambor tem, mas o tambor tem muito, era
um divertimento, a gen te não sabia a responsabilidade, a gente que vem
acompanhando, que sabe a responsabilidade dele, mas levava como diver-
timento e pronto. Mas isso tem valor, né? Pro mundo inteiro, né? Depois
que a gente pegou [começou] a lidar com vocês, que a gente viu que grande
valor! [...] Vamos conservar que é muito importante. (SEABRA, 2005)

Segundo Robert Slenes (2007), a atual emergência do jongo em várias


comunidades do Sudeste, quilombolas ou não, é uma das maiores evi-
dências da força da presença de escravos centroafricanos no século XIX.
Palavras quepodemos ouvir nas rodas de jongo do século XXI, faziam par-
te da vivência de jongueiros escravos do século XIX e de seus antepassados
centroafricanos. Cantados com palavras africanas ou em português cifra-
do, seus significados não eram entendidos pelos não iniciados, facilitando
a construção identitária entre os escravos. As proximidades linguísticas e
religiosas dos povos bantus certamente criaram elementos de coesão e de
solidariedade nas experiências do cativeiro e na construção do jongo do
Sudeste ao longo do século XX.
A presença das fogueiras e, consequentemente, do fogo, remetiam a
elementos simbólicos importantes da religiosidade africana, como o cul-
to aos ancestrais.Em toda a região atlântica e até mesmo interiorana da
África central, encontravam-se puítas e tambores, como o caxambu/ango-
ma e seu companheiro menor; a palavra ngoma aplicava-se ao maior deles,
de face única e afinado ao fogo. A dança de casais ao centro da roda, marca
registrada do jongo no Sudeste nos dias atuais, foi descrita por viajantes
no século XIX, no interior de Luanda e sudoeste de Angola. O canto e os
versos, a interação entre um solista e o coro do tipo “chamado-respos-
ta”, nos momentos de trabalho ou diversão, por sua vez, representavam
um traço típico das canções centroafricanas da região do antigo reino
do Congo. Ainda segundo Robert Slenes, diversos temas de pontos que
conhecemos hoje eram cantados na região de Congo e Angola, no início
do século XX, como desafios entre as lideranças locais, conhecidos como
“cumbas”.
A articulação entre a nova agenda patrimonial de valorização de ex-
pressões culturais afro-brasileiras – elevadas a ícones da “resistência à
opressão histórica sofrida” – e as ações de reivindicação pela titulação de
remanescentes de quilomboparece cada vez mais se expandir no velho su-
deste escravista. Além da comunidade de São José da Serra, outros grupos
afrodescendentes do Sudeste, em Guaratinguetá (São Paulo), no Bracuí e
em Pinheiral (Rio de Janeiro), têm associado a memória da escravidão
com a valorização do jongo, patrimônio cultural herdado e reconstruído
114
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

pelosdescendentes de escravos.6 Apropriando-se dessa associação, no


novo contexto legal, as comunidades portadoras do jongo reafirmam po-
liticamente sua trajetória histórica e sua autenticidade étnica e cultural,
ganhando visibilidade e novas perspectivas de sobrevivência coletiva.7 Os
territórios do jongo no Sudeste, situados em antigas terras litorâneas li-
gadas ao tráfico ilegal de africanos ou nas antigas fazendas de café do Vale
Paraíba fluminense e paulista acabam por imbricar-se com a emergência
de novos territórios quilombolas ou vice-versa. O caso do quilombo São
José da Serra já foi considerado aqui e em diversos artigos (MATTOS,
2003, 2006a, 2006b, 2008). No presente texto, iremos colocar em evidên-
cia novos casos paradigmáticos do mesmo movimento.8
Antes, porém, é preciso lembrar que a incorporação de uma agenda
política patrimonial nas reivindicações pelo direito à terra e à identidade
quilombola não envolveu unicamente expressões culturais de música e
dança associadas à escravidão e à afrodescendência.9 Envolveu, também,
a percepção da própria história, memória e tradição oral do grupo como
patrimônios que precisam ser valorizados, lembrados e, desta forma, re-
parados. Os novos casos que apresentaremos demonstram que os grupos
quilombolas começam também a reivindicar reparações materiais e sim-
bólicas, em nome de um “dever de memória” da sociedade brasileira em
relação à escravidão e à ilegalidade do tráfico negreiro. Os remanescentes
6
Outros grupos quilombolas, se não praticam hoje o jongo, destacam a expressão como memória
familiar, como é o caso do quilombo da Rasa, em Búzios (RJ), ou reconstroem a prática a partir do
contato com outros grupos quilombolas e jongueiros, como é o caso do quilombo do Campinho,
em Parati.A partir de nossos contatos com grupos jongueiros e/ou quilombolas do Sudeste perce-
bemos que a relação parece cada vez mais se expandir.
7
A dinamização do jongo tem aberto caminhos de sobrevivência aos jongueiros através da obtenção
de financiamentos de agências governamentais, embora nem todos tenham assumido a luta pelo
reconhecimento quilombola. Recentemente, foi fundado o Pontão de Cultura do Jongo, um ins-
trumento institucional de implementação dos projetos de salvaguarda do Iphan após a elevação do
jongo a patrimônio de cultural brasileiro (salvaguarda do patrimônio imaterial – Decreto no5.753
de 12 de abril de 2006). O Pontão de Cultura do Jongo (Caxambu), criado em 2008, é uma ação de
13 comunidades jongueiras dosestado de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo
–nem todos quilombolas ou identificados com o movimento– e do governo federal, através de uma
grande articulação entre o Ministério da Cultura, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
(Iphan) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem, como objetivos, a articulação entre as
comunidades e os saberes constituídos, a capacitação dos jongueiros, a pesquisaea divulgação de
seu patrimônio. O conhecimento, a divulgação e o intercâmbio das histórias do Jongo (Caxam-
bu) entre as diversas comunidades jongueiras do Sudeste têm fortalecido os laços identitários dos
grupos e demonstrado o quanto compartilham trajetórias e memórias. Paralelamente contribuem
para sua maior visibilidade, especialmente nas escolas, de acordo com a Lei no10.639/2003, que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. Não se
pode esquecer, contudo, que mesmo antes da mobilização das agências governamentais, e em pe-
ríodo anterior à própriapromulgação do Decreto no3.551/2000, as comunidades e praticantes do
jongo já tinham criado canais de comunicação, visibilidade e fortalecimento coletivos, através, por
exemplo, da Rede de Memória do Jongo e dos próprios encontros de jongueiros.
8
Para o relatório enviado ao Incra sobre a comunidade quilombola do Bracuí contamos com a par-
ceria das antropólogas Mirian Alves de Sousa e Patricia de Araujo Brandão Couto. Em Pinheiral, a
dobradinha com Patrícia Couto tem sido valiosa e, certamente, trará desdobramentos acadêmicos
promissores.
9
Neste sentido, veja Mattos e Abreu (2007).
115

Hebe Mattos e Martha Abreu


de quilombo passam a inserir-se,para além da luta por terras tradicionais,
em um esforço moral para que determinados acontecimentos não sejam
esquecidos,para que sejam registrados, como patrimônios do grupo, na
memória pública do país, através da construção de locais de memória ou
da incorporação de tais memórias e tradições orais à historia contada e
divulgada nas escolas e universidades. Essas ações – incorporadas à “his-
tórica opressão” dos termos da lei – assumem um sentido de direito à
reparação em função do esquecimento e guetificação a que foram subme-
tidas suas histórias ao longo do século XX.

A história, a memória e a trajetória do quilombo do Bracuí, uma comu-


nidade próxima da cidade de Angra dos Reis, demonstram muito bemesse
movimento. Seus moradores, descendentes de antigos escravos, tornam
hoje pública uma rica tradição oral a partir da qual constroem sua iden-
tidade como remanescentes de quilombo. As tradições orais e memórias
dos descendentes de escravos de Santa Rita do Bracuí dialogam frequen-
temente com registros escritos e eruditos sobre o passado e fornecem
subsídios para que se construa outra história dos últimos anos da escravi-
dão e do tráfico atlântico, até então esquecida, como seus protagonistas.
Um determinado repertório de narrativas transmitidas oralmente de
pai para filho, como patrimônios valiosos, animou e justifica hoje a per-
manência do grupo do Bracuí na região, em meio a diversas tentativas de
expulsão, desde o final do século XIX. No centro das narrativas, a preser-
vação da memória da doação de lotes de terra para um grupo de ex-es-
cravos, antepassados de muitos dos atuais moradores, no testamento do
comendador José de Souza Breves, em 1878, grande produtor escravista
de café e proprietário de inúmeras fazendas. Os lotes de terra doados em
uma de suas fazendas, à beira do mar, no litoral sul do atual estado do Rio,
estabeleceram o território atual da comunidade e sua rede de parentesco e
solidariedade. É a memória dessa herança em terras que acabou transfor-
mando os herdeiros em guardiões e testemunhos da história dos usos da
antiga fazenda para o recebimento de africanos recém-chegados, prática
então já ilegal pelas leis do país.
A tradição oral, transmitida através de muitos “causos” – como defi-
nem os moradores do quilombo do Bracuí –, constitui uma das mais im-
portantes bases da identidade do grupo e de manutenção de seu territó-
rio. Contar “causos” de antepassados escravos para os filhos, sobrinhos
e netos foi, sem dúvida, uma estratégia dos mais velhos de uma comu-
nidade não letradapara que o passado permanecesse no presente, para
que não se esquecesse, especialmente, o direito à propriedade da terra e à
herança recebida.
116
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

Através de conversas e histórias, repetidas na hora do trabalho com a


farinha, falava-se sobre o Breves e sobre a vida de seus escravos. A tradi-
ção oral, ao lado dos pontos de jongo, faz referência a histórias ambienta-
das na região, do lado de cá e de lá da serra da Bocaina, no Vale do Paraíba
cafeeiro. O cenário nelas apresentado são as antigas fazendas de café ou
as construções dos engenhos de açúcar e cachaça. Os protagonistas são
escravos, em geral com nomes presentes entre os herdeiros do testamen-
to do comendador José de Souza Breves. O repertório, também presente
em outros quilombos do velho Sudeste escravista, é amplo. Refere-se a
histórias heroicas e mágicas de escravos, casos da violência da escravidão,
histórias do bom Breves e do terrível Pedro Ramos, senhor de terras vi-
zinho, também ligado ao tráfico. Essa tradição oral, associada a uma de-
terminada forma e entonação na narração dos casos, é compartilhada por
diferentes famílias e dialoga com a própria história da região, revelando
acontecimentos até então muito pouco conhecidos.
O diálogo entre a tradição oral e as fontes escritas sobre a fazenda e a
região, ou a interligação entre a memória coletiva do grupo e a história dos
historiadores, é tão intenso que impressiona o pesquisador. Encontramos
uma série de registros escritos que envolvem os Souza Breves no tráfico
atlântico de escravos e que confirmam as histórias orais. Como nos con-
tou o sr. Moraes, um dos mais antigos moradores do quilombo do Bracuí,
já citado na abertura do capítulo 2 deste livro:

Mas aqui era o ponto de embarque e desembarque do Comendador Souza


Breves quando saia e chegava [...] Aqui é um ponto que existia também,
além de ser de desembarque, era de engorde também, sabe? Tinha um lu-
gar aí, que eu não posso dizer, onde os escravos quando chegava, pelo tem-
po que eles viviam no mar, eles não comiam bem, então perdiam o valor,
ficavam magros, emagreciam, ficavam abatidos. Então ficavam sem valor.
Então eles escondiam por aqui.Passavam ali uns vinte dias.
A história que eu sei [...] que [...] proibiram a venda dos escravos para cá.
Mas, não sei como é que fizeram, que ainda roubaram lá oportunidade
e arrumaram uns escravos para trazer pra cá, para vender novamente.
Raptaram escravo lá, encheram o navio e trouxeram pra cá. Mas veio até
aqui, numa ilha com um nome... Como é? Ilha Cunhanbebe. Uma ilha que
tem pra trás [...]O barco entrava lá [...] para entrar e trazia o pessoal para
cá. E ali quando observaram que vinha uma escolta atrás deles, pra pren-
der eles, [...] diz que o navio tem um buraco, tinha um buraco que batia [...]
a água, aquele pino saía. Saía e abria um buraco e a água invadia. Então
foi assim, alguns caíam na água, outros jogavam lancha n’água, então sal-
vou bastante e morreu bastante e o barco afundou na ponta da ilha. Nos
tempos atrás, ainda se via falar nesse barco, que as pessoas pescava muito
nele, que dava muito peixe e o pessoal procurava sempre aquele ponto ali
117

Hebe Mattos e Martha Abreu


a modo de pescar[Manoel Moraes, morador do quilombo de Santa Rita do
Bracuí, fevereiro de 2007].10

Através desse depoimento do sr. Manoel Moraes, neto de escravos de


JoséBreves, reencontramos um caso quejá tínhamos visitado em pesquisa
anterior, mas que agora ganhanovas dimensões: a perseguição do governo
imperial, através da Polícia da Corte, a um desembarque clandestino, em
1852 (ABREU, 1995). Esse desembarque, ao que tudo indica, foi um dos
últimos ocorridos nas águas da baía de Angra, muito próximo da foz do
rio Bracuí.
A narrativa do sr. Moraes é, sem duvida, uma versão oral, trabalha-
da pelo tempo, do episódio que ficou conhecido como o “caso do Bracuí”,
ocorrido em 1852, quando o governo imperial não poupou esforços para
mostrar que estava realmente decidido a eliminar o tráfico de africanos
para o Brasil. Tão decidido que, para capturar africanos ilegalmente es-
cravizados, chegaria até mesmo dentro das senzalas de poderosos fazen-
deiros de café na serra e no Vale do Paraíba, na região de Bananal, então
província de São Paulo, acima da fazendaSanta Rita do Bracuí.
Na versão do sr. Moraes, muitos escravos morreram, pois o “barco”,
para não ser encontrado, foi afundado. Temos evidências de que o navio
negreiro em questão – o brigue Camargo – realmente afundou,11 pois seu
capitão deu ordem de atear fogo.Pelos jornais de época, entretanto, os
africanos teriam desembarcado e sido distribuídos entre senhores do vale
do café, serra acima. As mortes relatadas pelo sr. Moraes podem ter sido
de outros desembarques que se associaram a este na memória, ou podem
ter sido omitidas nos debates que, à época, saíram na imprensa brasileira.
Em dezembro de 1852, 540 africanos procedentes do Quelimane e da
ilha de Moçambique desembarcaram, segundo vários jornais da cidade
do Rio de Janeiro, do brigue Camargo, nas terras da fazenda Santa Rita
do Bracuí,12 que possuía todas as características de uma área destinada à
recepção de africanos traficados na ilegalidade. Se vários desembarques
ocorreram também na ilha da Marambaia – hoje também local de um qui-
lombo – no início da década de 1850, o desembarque do Bracuí, por ter
sido descoberto, divulgado e perseguido, foi exemplar. Evidenciou a rede
de funcionamento do tráfico de africanos no Atlântico após 1831.13
Manoel Moraes, um dos mais velhos jongueiros da comunidade,há
mais de 80 anos vive nas antigas terras de Santa Rita do Bracuí. Seus
10
Acervo Petrobrás Cultura Memória e Música Negra, Arquivo Audiovisual do Laboratório de His-
tória Oral e Imagem do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Flumi-
nense (APCMMN/LABHOI/UFF, 01.0064). Veja, também:<www.historia.uff.br/jongos/acervo>.
Acesso em: ago. 2012.
11
Jornal do Brasil, 14 mar. 2009. Entrevista com o pesquisador e arqueólogo aquático Gilson Ram-
belli.
12
Entre os 540 africanos, apenas 60 eram mulheres. Arquivo Nacional. Série Justiça. IJ6 468.
13
Ver o capítulo 1, de Thiago Campos Pessoa Lourenço, neste volume.
118
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

avós maternos e paternos foram escravos do comendador José de Souza


Breves. “Preto Forro”, como era conhecido seu avô paterno, e Antônio
Joaquim da Silva, pai de sua mãe, viveram os últimos anos da escravidão
na fazenda. Ambos receberam suas alforrias ainda na década de 1870 e
foram citados como legatários da fazenda no testamento do comendador,
escrito em 1877 e aberto no ano de 1879. Muito provavelmente foram
seus avós e pais que perpetuaram as memórias dos “causos” ao longo dos
anos, transmitidas de geração a geração, como um patrimônio familiare
comunitário.
Não restam dúvidas de que as fazendas dos irmãos Breves no litoral
eram estruturadas para recepção de africanos recém-chegados da traves-
sia atlântica. Santa Rita do Bracuí, adquirida por compra em 1829, além
de possuir estrutura para o desembarque de africanos, organizou-se pro-
dutivamente para o empreendimento atlântico, como pudemos acompa-
nhar no capítulo 1.
Além do tráfico, a lembrança da antiga produção de cachaça também é
evidente no Bracuí. Atualmente ainda podem ser vistas as ruínas do velho
engenho. Poucos vestígios, é verdade, de um patrimônio também mate-
rial que resistiu ao tempo e só mesmo alguém que conhece o local pode
mostrar as pedras dispersas e escondidas em um amplo espaço com vege-
tação densa.Visitamos as ruínas, em 2007, acompanhados do sr. Romão,
morador da região e descendente de africanos, segundo seu próprio tes-
temunho. A mãe do sr. Romão, chamada Maria Romão Custódio, contava
que seus antepassados tinham vindo da África. Como escravos, ao lado de
muitos outros, teriam construído o engenho.
No novo contexto, o caráter de crime contra a humanidade do tráfico
negreiro, e o papel de guardiões da memória de tal prática pelo grupo,
assumem cada vez maior relevância na leitura pública da tradição oral
dos quilombolas do Bracuí. Ao conferirem novos significados ao jongo, os
herdeiros do testamento transformam-se em guardiões da memória do
tráfico atlântico e da experiência do cativeiro. O patrimônio, construído
através de “causos”, memórias, jongos e ruínas, transforma-se em tributo
às origens africanas de seus antepassados e confere direito, sentido e for-
ma à nova identidade quilombola do grupo.

Não muito distante do quilombodo Bracuí,também em terras que per-


tenceram ao comendador José de Souza Breves, mas já no alto da serra,
nas margens do rio Paraíba do Sul, situa-se a pequena cidade de Pinheiral.
Ali residem os que hoje reivindicam o título de remanescentes de quilom-
bo a partir de seu passado e do patrimônio cultural do jongo legado por
seus antepassados. A maior parte descende de escravos de fazendas próxi-
mas e migrou para as proximidades do antigo casarão dos Breves, também
119

Hebe Mattos e Martha Abreu


ramal ferroviário e escola agrícola nas primeiras décadas do século XX, em
busca de melhores oportunidades de vida, ou foi expulsa de seus peque-
nos lotes de terra, em levas sucessivas, após a abolição em 1888.
A área do quilombo pretendida é o que restou da suntuosa sede da fa-
zenda do Pinheiro, local central e de residência do poderoso comendador
José de Souza Breves, e seu entorno, com o antigo jardim, os terreiros de
café e algumas antigas senzalas reformadas para residências. Apesar de o
casarão – e sua restauração – ter sido reivindicado por outros grupos da
região, nada foi feito nessa direção. Nem mesmo seu tombamento como
patrimônio artístico e histórico do Brasil ou do estado do Rio de Janeiro
teve andamento.
Os descendentes de escravos de Pinheiral e proponentes do quilombo,
na maior parte jongueiros, há alguns anos utilizam o espaço dos jardins e
dos terreiros para dançarem o jongo e contarem suas histórias em ativi-
dades culturais e educacionais da cidade. Através da posse definitiva das
ruínas do casarão, pretendem criar um lugar de memória para o exercício
do direito de contar o passado de seu jeito e de celebrar a festa negra e a
herança cultural de seus antepassados na luta contra a discriminação e o
racismo.
O quilombo de Pinheiral emergiu, então, em um contexto de revitali-
zaçãode um patrimônio histórico e cultural negro inscrito em uma cons-
trução senhorial, representante do poder dos proprietários de terras e
escravos do Vale do Paraíba.Seus integrantes defendem a manutenção e o
revigoramento de uma memória e história afro-brasileira na área, marca-
da pelo jongo e pela escravidão. Tem como objetivo dar visibilidade a um
patrimônio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e
africanos, a partir de outro patrimônio, arquitetônico e artístico, símbolo
dos senhores dos velhos vales do café.
Os quilombolas de Pinheiral reivindicam ser legítimos herdeiros desse
patrimônio cultural material: o casarão – construído a partir do trabalho
e sacrifício de seus antepassados. Em diferentes períodos, a história dos
afrodescendentes na região foi ameaçada e esquecida, em função da sua
precariedade material de vida.É exatamente esse passado,transformado
em patrimônio imaterial da comunidade e bandeira de luta e resistência
pela manutenção e reprodução de uma determinada história e memória,
que pretendem ver garantidos no antigo território do café, noVale do
Paraíba fluminense e paulista.
É sabido que todo ato de preservação de patrimônios culturais traz
consigo a ideia de que é preciso salvar algo que está em perigo de desapa-
recimento ou se quer tirar do silêncio e do esquecimento. As ruínas do ca-
sarão e o jongo somam-se, em Pinheiral, para testemunhar uma história
que não está escrita e que ainda precisa ser divulgada como instrumento
de reparação aos descendentes de escravos e à sua herança cultural. O
120
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação

jongo de Pinheiral, ao lado do Bracuí, faz parte do Pontão de Cultura do


Jongo do Sudeste.
Ainda outro quilombo pode ser citado para demonstrar a relação entre
a nova agenda patrimonial e as reivindicações quilombolas. O quilombo
da Pedra do Sal também emergiu de um contexto de discussão sobre os sig-
nificados e os usos do patrimônio histórico e cultural negro, mas inscrito
na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro e reconhecido oficialmente
a partir do tombamento da Pedra do sal, em 1987, como patrimônio ma-
terial do estado do Rio de Janeiro. Seus membros defendem a manuten-
ção e o revigoramento de uma memória afro-brasileira na área, marcada
pelo samba, pelo candomblé e pelo trabalho negro no porto, e pretendem
visibilizar um patrimônio cultural imaterial herdado de seus antepassa-
dos escravos e africanos.
Com o fim da escravidão no final do século XIX, ficaria ainda visível
o território negro no entorno da Pedra do Sal: ali nasceram os primeiros
ranchos, estabeleceram-se as casas que abrigavam, material e espiritual-
mente, os novos recém-chegados, ex-escravos em busca de uma vida me-
lhor na cidade do Rio de Janeiro após a abolição, assim como importantes
organizações de trabalhadores negros no porto.
Ameaçados hoje de expulsão da área, o grupo de“remanescentes do
quilombo da Pedra do Sal”reivindica ser o legítimo herdeiro desse pa-
trimônio cultural, material e imaterial. Apesar de a Pedra do Sal já ser
tombada como patrimônio material do estado do Rio de Janeiro, esperam
transformar seuespaço físico e simbólico em espaço de celebração e en-
contro dos afrodescendentes da região:um lugar de memória do samba,
do candomblé e do trabalho negro no porto. Todo dia 2 de dezembro, o
grupo do quilombo da Pedra do Sal celebra, no largo João da Baiana, essa
história e memória através da lavagem da pedra (rito simbólico de purifi-
cação), do samba e de depoimentos de antigos portuários. É celebrada sua
continuidade histórica na região.
A área de referência da Associação da Comunidade Remanescente de
Quilombo da Pedra do Sal é ampla e reúne importantes marcos simbólicos
e territoriais identificados com a memória e a história negras na região
portuária da cidade do Rio de Janeiro, entre o largo de São Francisco da
Prainha e o morro da Saúde: o território do mercado de escravos africa-
nos, o Valongo, o cemitério dos pretos novos, o movimento do porto e
de seus antigos armazéns e a Pedra do Sal. Mas é a Pedra do Sal, o largo
João da Baiana e seu entorno, que, por seu amplo reconhecimento e sím-
bolo máximo de todo patrimônio afrodescendente na região, represen-
ta mais objetivamente a área pleiteada pela Associação da Comunidade
Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal. É no entorno da Pedra do Sal
que reside a maioria dos membros desta associação e onde se registram
os conflitos territoriais.
121

Hebe Mattos e Martha Abreu


Como outros quilombos do litoral do Rio de Janeiro, Bracuí,
Marambaia, Campinho da Independência e Rasa, o quilombo da Pedra
do Sal também está relacionado ao local do tráfico de escravos africanos
para o Brasil. Pelo testemunho do desenhista Rugendas, no início do sé-
culo XIX, as áreas da Pedra do Sal e da Prainha, serviram como primeira
morada aos pretos novos que chegavam da África.14 Ali eles morriam ou se
recuperavam para inventarem nova vida na nova terra. Em antigos locais
de tráfico de escravos, emergem comunidades quilombolas.

14
RUGENDAS, 1970, prancha 83.
Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação
122
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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)


após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE's – Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte Chaparral Prp, corpo 11.


Impresso na Globalprint Editora e Gráfica,
em Papel Polén Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250 gramas (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em janeiro de 2013.

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