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A SECULARIZAÇÃO E O CRISTIANISMO A-RELIGIOSO EM DIETRICH


BONHOEFFER COMO PROPOSTA DIALÓGICA ENTRE A CULTURA E A
RELIGIOSIDADE

THE SECULARISATION AND A-RELIGIOUS CHRISTIANITY ON DIETRICH


BONHOEFFER AS A DIALOGICAL PROPOSAL BETWEEN CULTURE AND
RELIGIOSITY

Vanessa Roberta Massambani Ruthes1

Resumo: O processo de construção da modernidade passa necessariamente por um


desdobramento que culmina com a exaltação da autonomia do humano frente às várias meta-
narrativas que fundamentavam sua visão de mundo. A tal desdobramento dá-se o nome de
secularização, que em seu viés cultural atingiu de forma profunda as religiões, principalmente
o Cristianismo. Na atualidade existem várias formas de realizar um enfretamento e uma delas
é a relação dialógica. Esta não permite o aniquilamento das partes, muito menos sua fusão, mas
sua convivência estável a partir de questões que são essenciais tanto para a secularização, como
para o Cristianismo. Neste sentido, uma das teorias que se aproxima desta proposta é a do
cristianismo a-religioso do teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer.

Palavras Chave: Secularização, Cultura, Religião, Cristianismo a-religioso e Diálogo.

Abstract: The process of construction of modernity necessarily requires a development that


culminates in the exaltation of the human autonomy facing the various meta-narratives
underpinning their worldview. Such a development is called secularization, which in its cultural
bias reached deeply into the religions, especially Christianity. Nowadays there are several ways
of confrontation and one of them is the dialogic relationship. This does not allow the destruction
of the parties, nor their merger, but the stable coexistence from issues that are essential for both
secularization and Christianity. In this sense, one of the theories that approaches this proposal
is that of A-religious Christianity from German theologian Dietrich Bonhoeffer.

Keywords: Secularization, Culture, Religion, Christianity and non-religious Dialogue.

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Doutoranda em Teologia pela PUCPR. [email protected]
[revista Último Andar (ISSN 1980-8305), n. 27, 2016]
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Introdução

O tema da secularização, principalmente após o fim da II Guerra Mundial, tem se


ampliado de forma considerável no pensamento Ocidental. Este pode ser relacionado com
diversas esferas da sociedade: jurídica, política, social, científica, filosófica, artística,
econômica, moral e religiosa. No que tange a esta última, os impactos já podem ser sentidos
desde o fim da Era Medieval, mas é no século XX que grandes questões vêm sendo colocadas
às religiões e teologias.
Importante é ressaltar que os grandes impactos no campo do religioso foram sentidos
primeiramente na Europa, sobretudo após 1945. Contudo, nos demais continentes, esta
dimensão da secularidade religiosa já vem sendo vivenciada nas últimas décadas.
Segundo o relatório do Pew Research Center sobre as religiões mundiais, aqueles que
se denominam não afiliados2 ocupam atualmente 16,3% da população mundial, estando em
terceiro lugar na classificação. Deste montante, destacam-se as porcentagens de países
Asiáticos (76,2%); Europeus (12%); Norte-americanos (5,2%) e uma pequena parcela dos
Latino-americanos (4%) (TEIXEIRA. 2013, p. 18-19).
No Brasil, em especial, o último Censo do ano de 2010, realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou o crescimento da liberdade religiosa;
declínio da religião tradicional; ascensão das pessoas declarantes como não fidelizadas a uma
religião, mas crentes, como também daquelas que não professam crença ou fé no transcendente.
Segundo Pierucci, estes dados demonstram que também o Brasil passa por um processo de
secularização religiosa, que desenha “com números sólidos a rota sem volta de uma
destradicionalização cultural (...) de um pós-tradicional sem rumo, vivido também no campo
religioso” (PIERUCCI, 2013, p. 60).
Nesta perspectiva situacional, cabe às religiões e às teologias uma reflexão profunda,
não somente das raízes da secularização e de suas consequências, tendo em vista que são de
caráter global, mas também de que forma pode-se estabelecer um relacionamento dialógico
entre ambas.

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Esta categoria inclui ateus, agnósticos ou pessoas crentes, mas não religiosas.
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A Modernidade e o processo de Secularização

No processo de construção histórica do pensamento Ocidental, o período que compõe o


final da Idade Média e a transição para o Renascimento traz consigo uma série de movimentos
inovadores. No âmbito cultural-religioso, este é o período em que se realiza uma cisão entre o
processo reflexivo do conhecimento e a necessidade da existência de um transcendente.
Um dos principais pensadores deste período foi o frade franciscano Guilherme de
Ockham, cujo pensamento vinha de encontro a toda a tradição escolástica, fundamentada em
uma metafísica ex machina. Tendo em conta a ênfase de Aristóteles no primado ontológico das
particularidades concretas sobre as formas arquetípicas do Idealismo Antigo, Ockham
“argumentava que nada existia, a não ser os seres individuais [e] que somente a experiência
concreta poderia servir de base para o conhecimento” (TARNAS, 2000, p. 225). Para ele,
somente os seres e as realidades concretas eram reais. Tudo o mais, as naturezas em comum
defendidas por Duns Scotus, as espécies inteligíveis explicitadas por Agostinho e Tomás de
Aquino, ou as formas transcendentais estruturadas por Platão, eram consideradas ficções.
Como consequência desta afirmação, Ockham realiza a cisão entre a razão e a fé, pois
são “duas realidades dadas ao humano: a realidade de Deus, concedida pela revelação e a
realidade do mundo, outorgada pela experiência direta” (TARNAS, 2000, p. 277). Assim, algo
que está além da mensuração dos sentidos só poderia ser revelado por meio da fé e não poderia
ser absorvido pela razão.
Neste ponto, encontramos a grande consequência do pensamento de Ockham: a
ratificação do movimento laicizante que se iniciava. Como afirma Tarnas: “de maneira
convincente, ele revelava uma forma nova do Universo de dupla verdade – uma religiosa e outra
científica – cortando efetivamente os laços entre a teologia e a filosofia” (TARNAS, 2000, p.
229).
Este dado nos auxilia a entender que a Modernidade, mais que um período histórico, se
constituiu como um período de estruturação de uma nova visão de mundo para o Ocidente. A
partir do processo de autonomia da razão – que gerou uma nova visão tanto do Universo como
do ser humano – operou-se mudanças fundamentais em todas as áreas da vida humana. A
Modernidade foi influenciada por três grandes épocas anteriores e o que nelas foi vivido: o
Renascimento, a Reforma e a Revolução Científica e Filosófica (TARNAS. 2000, p. 245).
A Renascença foi um período em que a cisão prenunciada por Ockham se tornou
realidade. Buscando sua fundamentação e inspiração no pensamento característico do período
helenista, realizaram-se várias e profundas mudanças, tanto no campo da Filosofia, das Artes,
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da Moral, da Política, da vida social e da Economia. O ser humano já não é mais dependente de
outras realidades para Ser, ele se torna o princípio e a finalidade para a qual tudo converge
(VAZ, 1999, p. 257-260).
Tais mudanças impactaram de forma efetiva também a teologia e a religião, ambas
solidificadas em uma forte tradição escolástica, mas profundamente impregnadas pelo laicismo
hierárquico, por lutas diplomáticas e militares e por incongruências entre doutrina, pregação e
testemunho. Neste cenário, insurge a Reforma, movimento que, pressuposto na fé e na graça,
questionou a hegemonia espiritual do Cristianismo romano. Dentre as várias consequências
deste processo, é importante salientar a abertura “para o pluralismo religioso, depois para o
ceticismo e, por fim, a um completo rompimento na visão de mundo cristã” (TARNAS, 2000,
p. 262).
A Revolução Científica e Filosófica, nesta mesma perspectiva, foi resultado da atuação
de vários cientistas e filósofos que refutaram as teses cosmológicas e sobre a natureza empírica,
métodos de conhecimento e, principalmente, os princípios pelos quais é possível ao homem
chegar ao conhecimento verdadeiro. Tal processo não só ratificou a hegemonia do ser humano
sobre a natureza sensível, mas também da autonomia da razão (ROUANET, 2004, p. 32).
Toda esta construção histórica da Modernidade produziu um processo de laicização no
Ocidente, de “dessacralização de atividades dependentes até então total ou parcialmente da
religião”. Sendo importante citar: as artes, a política, a técnica, o comportamento, as normas
éticas e morais e inclusive métodos e práticas científicas. Este processo é denominado de
secularização, o qual “nomeia a total autonomia de um mundo que se compreende de maneira
imanente a partir de si mesmo” (LACOSTE, 2004, p. 1629).
Segundo Taylor, o mundo fundamentado na existência de Deus, de um cosmos, de um
reino ou comunidade, foi suplantado pela dinâmica da secularização. O desencantamento
derivado desta é que sustenta o desaparecimento da presença de Deus e a recolocação do Eu do
ser humano como fundamento. (TAYLOR, 2010, p. 41-46) Nesta mesma linha de análise,
Gauchet, que compreende a religião como eixo organizador da sociedade ocidental, afirma que
a separação de Deus em relação ao mundo – por meio de um processo de desencantamento –
promove a emersão do humano como sujeito do conhecimento e da ação. (GAUCHET, 2005, p.
37-49)
Toda esta dinâmica hoje se reflete de forma direta na vida humana, não apenas em seu
conjunto de crenças, mas principalmente na forma como elas se configuram. Tal realidade traz
para a reflexão teológica cristã sérios questionamentos sobre seus objetos de análise e faz

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emergir sérias e profundas reflexões de como posicionar-se frente a uma sociedade


secularizada.

A Secularização e a Reflexão Teológica

Quando voltamos o olhar para a análise teológica da secularização, cabe salientar, como
afirmamos anteriormente, que a mesma foi intensamente trabalhada após a segunda metade do
século XX, mas já encontramos alguns estudos significativos e basilares em tempos anteriores.
Wilhelm Dilthey, filósofo alemão, em várias obras descreve o processo de secularização como
aquele que fez o mundo a chegar a sua idade adulta3. Max Weber, por sua vez, aborda a temática
da secularização quando se refere em suas obras ao grande processo de racionalização da
sociedade moderna que proporcionou um desencantamento do mundo.
Nesta mesma perspectiva, o teólogo alemão Ernest Troeltsch apresenta a secularização
como descontinuidade, mas também como continuidade do Cristianismo. Como
descontinuidade, pois o mundo moderno é emancipado das transcendências e focado na
autonomia do humano. Como continuidade, pois a formação do mundo moderno foi realizada
a partir de fundamentos e valores cristãos.
Nesta mesma perspectiva de análise, Friedrich Gogarten questiona “se a secularização
é algo alheio à fé cristã e contraposto a ela, que lhe é imposto à força e que a destrói a partir do
exterior, ou se é um evento decorrente da essência da fé cristã e totalmente consequente com
ela” (GOGARTEN, 1971, p. 8). Para viabilizar respostas a este questionamento, o autor levanta
três grandes teses: ou refutamos a secularização, ou nos despedimos definitivamente do
Cristianismo porquanto é incapaz de reger o peso da autonomia do homem, ou trata-se de
interpretar de maneira diferenciada o nexo entre o Cristianismo e a secularização
(GOGARTEN, 1971, p. 10).
Vários foram os que saíram em defesa de uma destas três formas de enfretamento. A
primeira tese é profundamente defendida pela teologia católica. Karl Rahner, por exemplo,
defendia de forma explicita que o imperativo da secularização estava subjugado à tutela da
Igreja, pois a mesma é “sacramento fundamental para a salvação do mundo (...) ela deve e quer
co-determinar o caminho do mundo secular, sem, contudo poder determina-lo integrística e
doutrinariamente” (GIBELLINI, 2010, p. 147). A segunda tese encontra alguns ecos na teologia

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Posteriormente, veremos como Bonhoeffer desenvolverá teologicamente esta tese.
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secular, que entende que há uma profunda diferença entre o ateísmo filosófico e o cristão “se a
teologia reconhece a morte de Deus, a fé transforma-se em amor e a teologia em ética da
responsabilidade, que se orienta para a figura de Jesus, que indica um lugar para ficar”
(GIBELLINI, 2012, p. 144). A terceira tese, por sua vez, é muito debatida e estudada
atualmente.
Em especial, vamos discorrer sobre a abordagem do teólogo protestante Dietrich
Bonhoeffer (que historicamente precede toda a discussão feita por Gogarten) – que, a partir de
uma análise da Europa nos anos de 1930 e 1940, faz acerca da relação entre o cristianismo e
secularização, em busca dialógica.

Bonhoeffer, a Secularização e o Cristianismo a-religioso

A obra de Bonhoeffer possui, dentre várias, uma característica importante a ser


ressaltada: nela a “biografia e a teologia interpenetram-se e entrelaçam-se como talvez em
nenhum outro teólogo do século XX” (GIBELLINI. 2010, p. 75). Tal sintonia e honestidade
intelectual o impulsionam a viver e teorizar sobre temas contemporâneos e que diretamente
impactaram sua vida e a de sua sociedade.
Dietrich nasceu na Alemanha em 1906 e faleceu em 1945. Viveu no período mais
conturbado do século XX para sociedade europeia, que fora assolada por duas Guerras
Mundiais. Foi testemunha do subjugamento das Igrejas frente ao poder secular e militar, foi
militante no processo de denúncia acerca das atrocidades promovidas pelo Nacional Socialismo
nos anos 30 e 40, fez parte do círculo da resistência Abwehr que conspirava contra o líder do
Nazismo, por fim foi preso e enforcado por traição ao Führer. Aqui cabe salientar que embora
sua preocupação fosse teológica e pastoral, sua atuação era eminentemente política. Sendo que
tal refletiu-se de forma explicita em seu pensamento.
Para Bonhoeffer, o processo de secularização é um fenômeno do ocidente cristão. É um
processo de libertação da razão que se intensifica com a Reforma, ao desdivinizar o mundo e
abrir o campo para o florescimento das ciências racionais e empíricas e o desenvolvimento da
tecnologia, que se desenvolveu como um fim em si mesma. (BONHOEFFER, 2002, p. 59) Ele
reconhece que a libertação da razão e a primazia do conhecimento e domínio sobre a natureza,
como a afirmação de que esta não pode deliberar sobre o transcendente (o numinoso), foi o
ponto nevrálgico para o processo de secularização. Reconhece também que não é possível um

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retrocesso: “temos que nos defrontar com ela; não podemos voltar a um ponto anterior a ela”
(BONHOEFFER, 2002, p. 59). Como afirma Lacoste:

O procedimento de Bonhoeffer consiste assim em levar em conta o niilismo moderno:


os homens nem idólatras são mais. Por outro lado, a tendência niilista em conceber
tudo como um eterno vir a ser, manifesta que o homem se tornou maior e se libertou
de seus tutores (LACOSTE, 2004, p. 1630).

Reconhece-se que esse irreversível movimento em direção à autonomia humana permite


que o mundo funcione sem Deus. Como afirma em sua carta de 16 de julho de 1944: “Deus nos
dá a conhecer que devemos viver como indivíduos capazes de enfrentar a vida sem ele”. Trata-
se de um paradoxo existencial e relacional no qual “O Deus que está conosco é o Deus que nos
abandona! Diante de Deus e com Deus vivemos sem Deus. Deus permite que seja expulso do
mundo até a Cruz”. Mas um paradoxo que não nos afasta dele: “Deus é impotente e fraco no
mundo e exatamente assim Ele esta ao nosso lado e nos ajuda.” (BONHOEFFER, 1968. p. 173)
Neste ponto, poderíamos nos questionar: mas qual é então o papel da religião em um
mundo secularizado? Para responder tal questão, Bonhoeffer questiona o valor das palavras e
realiza uma genealogia acerca do conceito de Deus. Para ele existem duas grandes
compreensões: a de um Deus das certezas metafísicas e um Deus bíblico que age na história.
Quando o teólogo alemão disserta acerca da primeira acepção afirma que o mesmo foi
relegado a uma dimensão intimista e individualista, pois este existe apenas além da experiência
do mundo, é um Deus ex machina. Este deslocamento, “a expulsão de Deus da existência
pública do homem conduz à tentativa de ao menos ainda conservá-lo ao alcance do pessoal, do
íntimo e do privado” (BONHOEFFER, 1968, p. 165-167). A grande consequência deste
processo foi a separação entre a vida interior e a exterior do homem, Deus foi relegado ao plano
intimista, o seu domínio é simplesmente espiritual, não há nexo consequencial entre a
interioridade (reflexão) e a exterioridade (prática vivencial). Isto acaba por gerar uma cisão
interna no homem cujo resultado é a desvinculação da religiosidade pessoal da prática cotidiana.
No que tange a segunda acepção, Bonhoeffer afirma que o Deus das Escrituras é um
Deus que se revela na História, que não está separado dela e que não é possível contrabandeá-
lo para qualquer canto último e secreto. (BONHOEFFER, 1968, p. 169) Nesta perspectiva, o autor
inicia um processo de estudos da interpretação não religiosa dos conceitos bíblicos, sendo que:
“podemos dizer que a referida evolução até a emancipação do mundo, com a qual se acaba uma
ideia falsa de Deus, liberta o olhar para o Deus da Bíblia” (BONHOEFFER, 1968, p. 173).
Segundo Forte, o teólogo busca a persistência do cristianismo para além do fim da modernidade,

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apoiando-se não em um pensamento forte, totalizante a par das visões ideológicas, mas um
pensamento fraco baseado na fraqueza do Deus Sofredor que se encarna, se faz humano.
(BONHOEFFER, 2002, p. 155). Como afirma Bonhoeffer em sua carta de 21 de julho de 1944:

Mais tarde compreendi e experimento ainda até a presente hora, que só na plena
aquendidade da vida aprendemos a crer. Quando desistimos completamente de fazer
algo importante de si mesmo [...] tudo isto eu chamo aquendidade, isto é viver na
plenitude das tarefas, problemas, dos sucessos e fracassos, das experiências e
perplexidades, assim nos lançamos inteiramente nos braços de Deus, e não mais
levamos tão a sério os nossos padecimentos, mas levamos a sério o sofrimento de
Deus no mundo, e então vigiamos com Cristo no Getsemani, e penso que isto é fé,
isto é metanóia. Assim nos tornamos homens cristãos. Jamais no tornaremos
arrogantes com os sucessos, nem desalentados com os fracassos, se sofremos com
Deus na vida presente. (BONHOEFFER. 1968, p. 178)

Toda esta reflexão desemboca na proposta de Bonhoeffer de viver um Cristianismo a-


religioso, que em especial é tratado em sua carta de 30 de abril de 1944.
O autor inicia a carta a seu amigo Eberhard Bethge, posicionando que a secularização
provocou um processo de desconstrução do aspecto religioso, como afirma: “Um problema que
não chega a uma solução dentro de mim é a questão do que é o cristianismo ou também que é
o Cristo hoje para nós, verdadeiramente”. Ele ressalta que as explicações teológicas ou piedosas
já não se constituem necessariamente respostas com significado para as pessoas. Ao mesmo
tempo, constata que “já passou o tempo da interioridade e da consciência, o que podemos
resumir nas palavras: passou o tempo mesmo da religião. Nós marchamos para uma época sem
religião alguma” (BONHOEFFER, 1968, p. 130).
Percebemos que a grande questão colocada por Bonhoeffer – profundamente
influenciado por Dilthey – é que num mundo no qual a religião não faz sentido, em um mundo
tornado adulto, emancipado, “como conjugar com a fé em Cristo, o caminhar do mundo para a
autonomia” (GIBELLINI, 2010, p. 79).
Nesta perspectiva, o autor faz um paralelo entre a questão paulina da circuncisão, que
não era entendida pelo apóstolo como condição para a justificação, e a religião, que não se
constituiria mais condição para a salvação. Para isto critica veementemente o discurso da Igreja
que se fundamenta no Deus Metafísico (da interioridade e dos limites da vida e da vida após a
morte) e ressalta a importância de se falar de Deus no centro, ou seja, “não nas fraquezas, mas
na força, não, portanto, em combinação com a morte e a culpa, mas ao lado da vida e do homem”
(BONHOEFFER, 1968, p. 132).

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O ser humano é conclamado a compartilhar o sofrimento de Deus por causa do mundo


sem Deus (...) Ser cristão não significa ser religioso de uma determinada maneira,
tornar-se alguém (um pecador, penitente ou um santo) com base em alguma
metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de ser humano,
mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso que produz o cristão, mas a
participação no sofrimento de Deus na vida mundana. Esta é a metanóia: não pensar
primeiramente nas próprias necessidades ou aflições, perguntas pecados e medos, mas
deixar-se arrastar para o caminho de Jesus, para dentro do evento messiânico do
cumprimento de Is. 53 agora. (...) Jesus não conclama para uma nova religião, mas
para a vida. (BONHOEFFER, 1968, p. 175)

Assim, a partir da concepção do Deus das Escrituras, Bonhoeffer ressalta a importância


de compreender o Cristianismo encarnado na História e fundamentado em um Deus que se
revela e se encarna na mesma. Como ele afirma em seu livro Ética: “Quem fala em Deus não
pode riscar simplesmente o mundo real em que vive. Senão não estaria falando do Deus que em
Jesus Cristo entrou nesse mundo, mas de algum ídolo metafísico” (BONHOEFFER, 2002, p.
202).
Para o autor uma das formas de viver em um mundo tornado adulto, consequentemente
a-religioso, é a participação no mesmo em todas as perspectivas possíveis e em prol dos outros.
Assim, percebemos que para ele a dimensão de comprometimento social esta diretamente ligada
à vivência do Cristianismo como uma experiência da transcendência a-religiosa:

Nossa relação com Deus não é uma relação religiosa como um ente poderoso e
elevado acima de nossa imaginação – isto não seria a verdadeira transcendência – mas
nossa relação com Deus é uma nova vida no ‘existir-para-os-outros’, na participação
da natureza de Jesus. Não as tarefas ilimitadas, inalcançáveis, mas o próximo que
encontramos em alguma ocasião como acessível é o transcendente. Deus em figura de
homem, não como nas religiões orientais, em figuras animais como o monstruoso,
caótico, distante, horroroso; mas tampouco nas figuras conceituais do absoluto,
metafísico e infinito; nem a figura grega do deus-homem, do ‘homem em si’, mas o
homem para outros [...] O homem que vive do Transcendente (BONHOEFFER, 1968,
p. 185).

Assim, percebemos que a vivência cristã na Modernidade é para Bonhoeffer uma viver
para os outros. Cabe salientar que este viver para os outros significa não só viver por atos de
caridade, mas também um comprometimento profundo de cada pessoa na defesa da justiça e do
direito, em favor de mudanças sociais. O Cristianismo a-religioso é, portanto, “um Cristianismo
não da fuga, mas da fidelidade ao mundo, um Cristianismo a ser vivido na responsabilidade, na
participação e na solidariedade” (GIBELLINI. 2010, p. 83).

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Considerações Finais

O processo de secularização efetivamente impactou o campo religioso de uma forma


expressiva. A grande tarefa da teologia na atualidade é estabelecer processos dialógicos nos
quais os temas relacionados à fé possam não somente fazer sentido, mas principalmente serem
coerentes com os valores e a vida atuais. A proposta de um Cristianismo a-religioso, realizada
por Bonhoeffer, que extemporaneamente vislumbrou as consequências que impactariam a
religião no mundo tornado adulto vêm ao encontro de uma proposta coerente na qual, a partir
da crença em um Deus encarnado, o humano possa, como Ele, viver para os outros, não por
meio de uma heteronomia, mas por uma opção real, consciente, ou seja, autônoma.

Referências

BONHOEFFER, Dietrich, Ética. 6. ed. Sinodal: São Leopoldo, 2002.

BONHOEFFER, Dietrich, Resistência e Submissão. Trad. Ernesto Bernhoeft. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1968).

FORTE, Bruno, À escuta do Outro: filosofia e Revelação. São Paulo: Paulinas, 2003

GAUCHET, Marcel, Le desenchantement du monde: une histoire politique de la religion.


França: Gallimard, 2005.
GIBELLINI, Rosino, Breve história da teologia do Século XX. Trad. Antônio Bicarato.
Aparecida: Santuário, 2010.

GIBELLINI, Rosino, A teologia do século XX. Trad. João Paixão Netto. 3. Ed. São Paulo:
Loyola, 2012.

GOGARTEN, Friedrich, Destino y esperanzas del mundo moderno. Trad. Carlos de la Sierra.
Madri: Fontanella, 1971.
LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário Crítico de Teologia. Trad. Paulo Menezes. São Paulo:
Paulinas, 2004.

PEW RESEARCH CENTER, The Global Religious Landscape – A report on the Size and
Distribution of the World’s Major Religious Groups as of 2010, dez/2012. Disponível
em: http://www.pewforum.org/2012/12/18/global-religious-landscape-exec/ - Acesso
em 02/01/2015.

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PIERUCCI, Antônio Flávio, O crescimento da liberdade religiosa e o declínio da religião


tradicional: a propósito do Censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino. Religiões em
movimento – O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013. pp. 49-61.
ROUANET, Sérgio Paulo, As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TARNAS, Richard, Epopeia do Pensamento Ocidental: para compreender as ideias que


moldaram nossa visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
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TAYLOR, Charles, Uma era secular. Trad. Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo:
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TEIXEIRA, Faustino, O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: esboço da apresentação. In:


TEIXEIRA, Fautisno. Religiões em movimento – O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes,
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VAZ, Henrique de Lima, Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São
Paulo: Loyola, 1999.

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