Amadeo e Mário
Amadeo e Mário
Amadeo e Mário
Viviane Vasconcelos*
Em Portugal, no nosso século, dois gritos de Poesia se ouviram: Mário de Sá Carneiro e Amadeo de
Souza Cardoso. Poesia das letras e Poesia das cores. Grito do verso que é a arte precoce, e grito das cores
que é a arte não precoce. Os dois mundos da Poesia actuante em que o protagonista é o autor, e não
ficção. Ceifados ambos. A Mário de Sá Carneiro já não lhe era possível mais, senão o mal-menor da
grande obra que sucede e fica aquém, e é sempre quase o grito inicial da espontaneidade. Ele recusa a
grande-obra. A Amadeo de Souza Cardoso é a vida que lhe recusa a grande-obra por ele mesmo anun-
ciada em grito de poeta mobilizado “cantor-de-dia na alegria do mundo”. “Amadeo de Souza Cardoso
é a primeira descoberta de Portugal no século XX”, escreveu-se a tempo, em vida do pintor. Havia de
terem sido entre nós estes dois gritos de Poesia. Foram eles. Depois deles prosseguiu o grande-frete da
Poesia: fazer do antigo o novo, do actual o princípio, o eternamente presente, o constantemente perfec-
tível (...) (NEGREIROS, 1997, p.1075)
* Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense – UFF e Professora Adjunta do Instituto de Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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(...) Confesso-lhe, meu caro Pessoa, sem estar doido, eu acredito no cubismo. Quer dizer: acredito no
cubismo, mas não nos quadros cubistas até hoje executados. Mas não me podem deixar de ser simpáti-
cos aqueles que, num esforço, tentam em vez de reproduzir vaquinhas a pastar e caras de madamas mais
ou menos nuas – antes, interpretar um sonho, um som, um estado de alma, uma deslocação do ar, etc.”
(SÁ-CARNEIRO, 1995, p.754)
para um dos aspectos do cubismo compreendidos pelo poeta, pois aborda a necessidade
da tentativa de expressão de um sonho, de um estado subjetivo, de uma imagem. De
registro essencialmente visual, outros poemas refletirão acerca da fragmentação como
um elemento substancial de ponto de partida. Depreende-se daí, dessa visão sobre o
fazer estético, a existência de um texto poético marcado pela necessidade do movimen-
to e, por conseguinte, pela constatação de uma impossibilidade, como afirma Vergílio
Ferreira. Essa forma de realização do trabalho poético, que recorre a diferentes estraté-
gias, como a elaboração de imagens potentes que apoiam a ideia de êxtase angustiado e
incompletude, parecem mais evidentes em outros poemas, assim como a própria ideia
de uma pintura cubista. No entanto, é justamente em Escavação que pode ser lida uma
espécie de síntese teórica dos princípios que poderiam unir a arte cubista e a literatura.
O poeta não chegou a ter conhecimento dos impactos posteriores que arte cubista pro-
vocou no século XX, mas percebia que havia um princípio, uma forma ou um método.
Parece-nos relevante recorrer ao pensamento de Maurice Blanchot, no texto “A
literatura e a experiência original” (2008) quando se detém especificamente à questão da
preocupação com a origem da obra de arte e afirma que ela está relacionada com o in-
sucesso e com êxito, que não é algo que possa ser compreendido sob a perspectiva do
trabalho edificante e que depende da voz de um homem. Ao contrário, a obra de arte
faz-se ouvir, “embora dizendo os deuses, diz algo e mais original que eles, diz a privação
dos deuses que é o Destino deles, diz, aquém do Destino, a sombra onde reside sem sinal
e sem poder”. (BLANCHOT, 2008, p.253). A experiência derivada dessa concepção se
transforma em busca pela essência ou pela origem da obra e reforça que a arte é invisível,
“mais anterior do que aquilo de que fala e mais anterior do que ela mesma”. (BLAN-
CHOT, 2008, p.254). Esse movimento de subtração, acrescenta Blanchot, potencializa,
contraditoriamente, a obra e a torna menos presente, mas potente. Mais adiante na sua
análise, Blanchot afirma que a busca pela compreensão da obra é infinita, pois é carac-
terístico da origem “ser sempre velada por aquilo que ela é a origem” (BLANCHOT,
2008, p.255). É por meio da dissimulação e do que se mantém permanentemente es-
condido que a arte consegue manter essa lei secreta que define sua existência:
Por que a aliança tão íntima da arte e do sagrado? É porque, no momento em que a arte, o sagrado, o
que se mostra, o que se esconde, a evidência e a dissimulação se permutam sem descanso, se chamam e
se apreendem onde, entretanto, só se realizam como abordagem do inapreensível, a obra encontra a
profunda reserva de que necessita: escondida e preservada pela presença do deus, protegida e reservada
de novo por essa obscuridade e essa distância que constitui seu espaço e que ela suscita como para al-
cançar o dia. É essa reserva que lhe permite, então, dirigir-se ao mundo sem deixar de se reservar, de ser
o começo sempre reservado de toda a história”. (BLANCHOT, 2008, p.254)
Ora, tanto na carta destinada a Fernando Pessoa quanto no poema, a busca por
uma origem da criação se confunde com a procura por si mesmo. Alfredo Margarido
ainda ressalta, no referido artigo, que Sá-Carneiro, por meio das influências do final do
século XIX, também mencionava o mistério como uma das características da arte, re-
velado em muitas obras, como na sua narrativa, “A Confissão de Lúcio”, mas já era
influenciado pelos estilos do início do século XX. Se levarmos em consideração os ca-
minhos percorridos pelo sujeito lírico do poema, a crença pessoal do poeta no cubismo
e toda a plasticidade da obra de Sá-Carneiro, como podemos refletir acerca da influên-
cia de um cubismo? Em outras palavras, de que forma o cubismo pode estar presente,
aproximando Mário de Sá-Carneiro e Amadeo de Souza-Cardoso?
Pensemos em um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso como “Entrada”, de
1917, e no movimento, por vezes cingido, observado também em poemas de Sá-Car-
neiro. É a cor que possibilita, muitas vezes, o movimento em quadros como “Entrada”,
por exemplo, que se assemelha ao “onde” do verso de Sá-Carneiro, advérbio de lugar
que indica o impreciso: “- Onde existo que não existo em mim?”. “Escavação” e “En-
trada” permitiriam a visualização de espaços, de caminhos que ainda serão percorridos
ou encontrados. O quadro insere a colagem que, segundo Clement Greenberg (2013),
foi um “dos pontos de inflexão mais importantes na evolução do cubismo, e portanto
em toda a evolução da arte moderna deste século” (GREENBERG, 2013). Na análise
de Rui-Mário Gonçalves, disponível no portal e-Cultura, “Entrada” é um representan-
te das características mais fundamentais do cubismo, que se preocupava com uma nova
sintaxe muito mais do que com um ineditismo vocabular. Segundo o pesquisador, a
obra possui um excesso de sentidos que podem ser percebidos pelos objetos e pelas
cores: a colagem de vidros, as cores, a viola, o violino, os frutos, a indicação do espu-
mante, permitida pela palavra Brut, a marca do perfume Brut 300, as diferentes maté-
rias, lisas ou ásperas.
Entrada, 93,5 cm X 76 cm, 1917, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão de Lisboa.
poem “Escavação” and the painting “En- explications pour caractériser ce mouve-
trada”. ment, relevant un argument qui serait
développé des années plus tard par la cri-
Keywords: Amadeo de Souza-Cardoso, tique de l’art. D’autres contemporains des
Mário de Sá-Carneiro, cubism. deux artistes, comme Almada Negreiros,
ont aperçu les correspondances fondamen-
Résumé: Ce travail propose de réfléchir sur tales entre ces deux oeuvres. Pour analyser
le dialogue entre l’écrivain Mário de Sá- les points de convergence, on a choisi le
Carneiro et le peintre Amadeo de Souza- poème “Escavação” et la toile “Entrada”.
Cardoso à travers quelques définitions du
cubisme. Dans une lettre à Fernando Pes- Palavras-chave: Amadeo de Souza-Cardo-
soa, Sá-Carneiro semble résumer l’une des so, Mário de Sá-Carneiro, cubisme.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
_____________. A parte do fogo. Rio de janeiro: Rocco, 1997.
CLÁUDIO, Mário. Amadeo. Lisboa: INCM, 1984.
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GREENBERG, Clement. Colagem (1959). In: Arte e Cultura. Tradução: Otacílio Nunes. São Pau-
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NEGREIROS, José de Almada. Amadeo de Souza-Cardoso. In: Obras completas. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997.
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
Sites visitados:
http://www.e-cultura.sapo.pt/artigo/20039.