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PROCESSO INQUISITORIAL DE JOANA D’ARC: CONFLITOS POLITICOS E

RELIOGIOSOS

Por

WANESSA LOPES NUNES

Monografia apresentada ao Departamento de História da União Pioneira de Integração


Social

Orientador

Prof. Luciano Muñoz

Brasília

2015
União Pioneira de Integração Social
Faculdade de Educação, Ciências e Letras
Departamento de História
Disciplina: Trabalho de Conclusão de Curso
Aluno: Wanessa Lopes Nunes, matrícula nº13123012-3

PROCESSO INQUISITORIAL DE JOANA D’ARC: CONFLITOS POLITICOS E


RELIOGIOSOS

Orientador: Prof. Ms.Luciano Muñoz

Brasília

2015
À minha família.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por todas as coisas, pelo dom da vida, por ter me concedido saúde e
sabedoria necessária para concluir este curso. Agradeço a Ele por revigorar minha alma, assim
pude superar os medos. Obrigada, por me ajudar a enfrentar o sono, o cansaço, o conteúdo
difícil, as chuvas, o calor, o frio, a solidão, os lutos, as longas viagens de ônibus, a saudade, a
chegada em casa após a meia noite, a violência, o levantar de madrugada, o estudar e
trabalhar, “o não” o “tá errado” que ouvi, as decepções, as falsidades e o TCC, tudo isso
foram aprendizados que fortaleceram minha alma. Aprendi que o que é valoroso exige esforço
e dedicação, que as dificuldades passam e tudo que acontece em nossa vida vira experiência.

Sou grata a minha família, em especial, aos meus pais, Naziazeno Cirino Nunes e Irani
Lopes Nunes, pelo apoio, os bons conselhos, a amizade, a confiança e a dedicação. Vocês são
a base que me fortalece, que investe e acredita no meu futuro como pessoa e profissional.
Foram os meus primeiros professores, ao modo simples de viver, me ensinaram a lidar com os
obstáculos da vida.

As minhas queridas irmãs, minhas amigas, Andreza Lopes Nunes e Adriana Lopes
Nunes, agradeço a cumplicidade, por terem acompanhado e apoiado mais essa trajetória. Uma
caminhada acadêmica com seus momentos de alegria e tristeza. Vocês me deram ânimo para
que eu vencesse mais essa etapa da vida.

Gratidão ao professor, Dinair Andrade, responsável pela disciplina desde a elaboração


do pré-projeto, pelo amor e dedicação que transmite o conhecimento aos seus alunos. Ao meu
orientador, professor Luciano Muñoz que dispôs de seu tempo com dedicação e precisão na
elaboração desse TCC, sobretudo, pela paciência diante dos obstáculos que enfrentei para
concluir este projeto. Ambos foram professores de destaque na minha trajetória acadêmica e
contribuíram para que eu chegasse com êxito a conclusão deste curso.

A todos aqueles que contribuíram direto ou indiretamente e estiveram verdadeiramente


comigo, pelo apoio e carinho e aos amigos conquistados no decorrer do curso.
“(...) toda verdade pode ser questionada (...)”.
(Gabriel Pensador)
RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo delimitar as questões acerca do processo inquisitorial de Joana
d’Arc, o qual envolve conflitos políticos e religiosos. A respeito dos conflitos políticos,
discorre da história da Guerra dos Cem Anos — (1337-1453) caracterizada por um longo
período de disputa de sucessão de trono monárquico entre a Inglaterra e a França. No que
tange os conflitos religiosos, relata a participação de Joana d’Arc na quarta fase (1428- 1453)
da Guerra dos Cem Anos, que agindo em nome da fé favoreceu a França com batalhas
vitoriosas sobre a Inglaterra. O posicionamento de Joana d’Arc alterou o cenário da guerra e a
visão que a Inglaterra, a Igreja Católica e a França tinham sobre ela. O que resultou em três
tipos de investigação a respeito de sua vida: a primeira, a fim de averiguar a permissão de
guerrear em nome de Deus e da França; a segunda, uma acusação comandada pela Igreja
Católica junto com a Inglaterra, a qual Joana d’Arc foi acusada de crime de heresia e
condenada à morte; a terceira, um processo de investigação sobre as possíveis irregularidades
do segundo processo de acusação. A pesquisa também analisa como prosseguiu a Guerra dos
Cem Anos, após a morte de Joana d’Arc, datando seu fim no ano de 1453.

Palavras-chave: Política. Igreja Católica. Heresia. Inquisição.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8

CAPÍTULO 1: FRANÇA E INGLATERRA NOS TEMPOS DE JOANA D’ARC .......... 11

1.1 DINASTIA DOS VALOIS DE 1380 A 1422 ................................................................... 11

1.2 DINASTIA DOS LANCASTER DE 1413 A 1422 .......................................................... 13

CAPÍTULO 2: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DE JOANA D’ARC ................................ 20

2.1 MISSÃO DADA POR DEUS.......................................................................................... 20

2.2 DE CAMPONESA A COMANDANTE DE MILITAR .................................................. 25

CAPÍTULO 3: O PROCESSO INQUISITORIAL DE JOANA D’ARC ........................... 31

3.1 A ESTRUTURA DO PROCESSO: INVESTIGAÇÃO, ACUSAÇÃO E PUNIÇÃO..... 31

3.2 FRANÇA E INGLATERRA DE 1431 A 1453 ................................................................. 40

CONCLUSÃO......................................................................................................................... 43

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 46

CRONOLOGIA ...................................................................................................................... 47
8

INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como tema o processo inquisitorial de Joana d´Arc:


conflitos políticos e religiosos. O objetivo do projeto é estudar o posicionamento e as relações
da Igreja e o Estado na investigação a respeito de Joana d’Arc.

A trajetória de Joana d´Arc está inserida no âmbito da Guerra dos Cem Anos (1337-
1453). Os principais motivos que levaram os dois reinos: Inglaterra e França, a travar uma
guerra que durou mais de cem anos, consistem, sobretudo, em disputas do poder monárquico
e conquistas territoriais. O estopim que causou a rivalidade da monarquia inglesa contra a
monarquia francesa foi considerado após a morte do último filho do rei francês Carlos IV, sem
deixar descendente. Entretanto os franceses decidiram atribuir a coroa a Felipe de Valois,
visto como o parente mais próximo. Enquanto o rei da Inglaterra, Eduardo III, neto do rei
francês Felipe IV, pelo lado de sua mãe, rainha Isabel, pretendia ser o herdeiro autêntico das
duas monarquias.

Foram razões que se intensificavam ao longo do tempo, atingindo diversas gerações


dos ingleses e franceses, entre essas gerações, tem-se o surgimento da pucelle1 de Orléans
(1429-1431). Da jovem camponesa, mais conhecida contemporaneamente por Joana d´Arc,
aparece na 4º fase da Guerra dos Cem Anos, motivada pela fé que a encorajava a dar um novo
destino a França, por qual passava por momentos ruins decorrentes dos conflitos gerados pela
Guerra dos Cem anos. A postura da jovem camponesa Joana d´Arc de se tornar uma guerreira,
protegendo a França das invasões Inglesas e sendo responsável pela coroação do delfim2 e
conseguinte rei Carlos VII, causa naquele período do século XIV/XV, um alvoroço nas
autoridades políticas e religiosas que se entrelaçaram ao caso, o finalizando com um processo
inquisitorial, resultando na morte de Joana d´Arc pela fogueira, o que era considerado a pena
mais grave e cruel. A forma como foi conduzida o processo de julgamento da Joana d’Arc,
levantou dúvidas durante e após julgamento, a saber, se seria um tribunal legal e de quem se
fazia o maior interesse com a morte de Joana d´Arc.

De acordo com o contexto histórico apresentado, a pesquisa pretende responder as


seguintes indagações: Quais foram os critérios que a Igreja usou para aprovar a missão de
Joana d’Arc em assumir o exército francês, onde a mesma, logo mais a condena por heresia?

1
Corresponde a donzela em português. Nome pelo qual Joana d´Arc era conhecida em sua época.
2
Nome usado para o herdeiro do rei da França.
9

Os teólogos e universitários responsáveis em realizar testes em Joana d’Arc, na qual nada


constataram. Teriam sido estes convocados ao tribunal inquisitório e a Santa Sé estava em
concordância com o julgamento realizado? Joana d’Arc teve direito a testemunhas? Teria os
ingleses, usado a igreja como pretexto, para obter a qualquer custo a morte de Joana d’Arc?
Por que Carlos VII não foi considerado herege e assim, possivelmente queimado por se
apropriar de redenções vindo de uma provável bruxa?

Embora esta pesquisa aborde o contexto histórico estrangeiro, ainda sim, foi possível
prosseguir a pesquisa com o auxílio de fontes secundárias como: obras traduzidas e trabalhos
de caráter científico como monografia, artigo e tese. Buscando uma segura intertextualização
entre as fontes e a relação com o contexto do objeto, a fim de serem comprovadas as hipóteses
desta pesquisa.

A pesquisa é um tema relevante no meio acadêmico, pois estudiosos como Colette


Beaune, afirma: “Joana d´Arc é provavelmente, a figura de mulher mais documentada de toda
a história” (BEUANE, 2006. p. 15). Documentada em diversas biografias históricas, crônicas,
peças de teatro, canções, poemas, filmes, estátuas públicas. Despertando interesses em
diferentes áreas do saber, perpassa História, Psicologia, Dramaturgia, Cinema e até mesmo
estudos espiritualistas. Um caso histórico que atravessa séculos, e ainda sim, visto como um
enigma que não esgota possibilidades de ser novamente analisado.

Quanto à estrutura, a monografia foi dividida em três capítulos, em que foram


organizados de forma sistemática os assuntos a serem tratados com uma completa
abrangência do tema, sendo estes, subdivididos em duas seções para cada capítulo. O primeiro
capítulo intitulado “França e Inglaterra nos tempos de Joana d’Arc”, será tratado sobre as
fases finais da Guerra dos Cem Anos a respeito da organização da dinastia francesa dos Valois
e da dinastia inglesa dos Lancastes, como ambos se prepararam no período da guerra. O
resultado da guerra referente à organização militar destas dinastias influência no surgimento
de Joana d’Arc na quarta fase da guerra. O segundo capítulo intitulado “A trajetória histórica
de Joana d’Arc”, abordará a biografia da Joana d’Arc, uma biografia constituída durante as
investigações sobre a sua vida, visto como era Joana d’Arc antes de ser comandante de guerra
e como e porque resolveu se tonar uma guerreira. No terceiro e último capítulo intitulado “O
processo inquisitorial de Joana d’Arc”, ilustrará como ocorreu a estrutura de seu processo
inquisitorial de acusação, quem era os responsáveis do andamento deste processo, qual era as
10

condições de réu de Joana d’Arc, sua sentença de morte e como ficou o resultado da guerra
sem a presença dela.
11

CAPÍTULO 1: FRANÇA E INGLATERRA NOS TEMPOS DE JOANA D’ARC

Este capítulo discute sobre o perfil de uma guerra medieval, que está fortemente ligada
a concepção religiosa, e a organização monárquica francesa e inglesa nas fases finais da
Guerra dos Cem Anos, entre o período 1380-1422.

O período que as seções logo a seguir discutirão compreende a terceira e a quarta fase
da guerra, cujo objetivo é analisar as características dinásticas dos Valois de 1380 a 1422 e
dos Lancaster de 1413 a 1422, ou seja, como ambos se prepararam no período da Guerra de
Cem Anos. Período este que logo atingirá a geração da jovem Joana d’Arc, aparecendo ela na
quarta fase da guerra.

1.1 DINASTIA DOS VALOIS DE 1380 A 1422

Esta seção discutirá a estrutura da dinastia dos Valois, a partir do monarca Carlos VI.
Tratará dos momentos principais de sua regência, como o declínio da sua monarquia por conta
da sua saúde mental abalada, em decorrência, sucessivas batalhas perdidas para Inglaterra e o
tratado de Troyes, o qual dava condições favoráveis a Inglaterra assumir as duas monarquias:
Inglaterra e França.
Carlos VI3, sucessor de Carlos V, o Sábio, herdou o trono ainda muito jovem com
aproximadamente doze anos de idade e devido ser menor de idade, o governo francês foi
entregue a uma regência provisória composta por um conselho chefiado pelos seus tios, os
duque de Borgonha, de Berry e Bourbon assumem a responsabilidade do trono, até que
atingisse a maioridade, em 1388.

Carlos VI não conduziu seu governo com astúcia, como fez o seu pai Carlos V,
O rei era sábio: caso de Carlos V, que, encerrado em seus quartos cheios de livros e
joias, mandavam agirem em seu nome recebedores e capitães, e que, afinal
rechaçados os ingleses, e tomado de remorso de ter extraído tanto dos pobres, fez
saber no seu leito de morte que o imposto seria suprido. (DUBY, 1992, p. 268)

Entretanto Carlos VI, antes de sofrer de um loucura intermitente4, era “cognominado


como o bem amado” (PERNOUD, 2004, p.17), pois, mostrava-se preocupado com a nação
francesa e dessa forma, buscava desempenhar um papel justo e piedoso na administração de

3
Foram poucas as informações encontradas a respeito da regência de Carlos VI, entretanto, a autora desta
monografia procurou elencar os pontos principais, como citar a loucura de Carlos VI, uma enfermidade
intermitente, que contribuiu facilmente para as ambições da monarquia inglesa.
4
Algo que pode ser interrompido por períodos, não é contínuo. Como ocorreu com a demência de Carlos VI,
suas crises começaram no ano de 1392.
12

seu reinado. Era uma maneira de atender o desejo de seu pai no leito da morte e
principalmente amenizar o desequilíbrio financeiro do cofre real, provocado pelos seus tios
enquanto assumiam a monarquia francesa. Estes por sua vez,

Meteram as mãos sem cerimônia no tesouro (...) cada um puxava para si,
defendendo-se dos concorrentes que lhe disputavam a presa, na pilhagem
desenfreada dos lucros do imposto — lucros consideráveis, pois se tratava de não
abolir as taxas, descumprindo a derradeira vontade do falecido pai. (DUBY, 1992, p.
269)

Os duques agiam dessa maneira quando assumiram o governo provisório até Carlos VI
atingir a maioridade, e também quando a situação agravava-se após o afastamento de Carlos
VI por conta de sua demência. A ambição tomava de conta da França gerando uma guerra
civil, que ocorre entre 1407- 1435. A França estava dividida entre facções rivais conhecidos
como: borguinhões e armagnacs.
O surgimento destas facções se fazia pela disputa de poder entre grupos da realeza
francesa. Inicia na disputa entre o duque de Borgonha João sem medo e Luis de Orléans,
irmão do rei da França, Carlos VI. O duque João sem Medo liderava os borguinhões,
franceses que apoiavam os ingleses; e o duque Luis de Orléans liderava os armagnacs estes
apoiavam a regência de Carlos VI bem como apoiaram o delfim Carlos VII. O conflito
agrava-se com o assassinato do duque Luis de Orléans em 1407 a mando do duque João sem
Medo.

Apesar de ambos os grupos apoiarem as monarquias distintas, os dois tinham os


mesmos objetivos, “[a]mpliar e consolidar suas possessões, provendo-as de uma organização
política militar e financeira sólida, conseguir a maior parte dos subsídios reais, tomar o
primeiro lugar no governo monárquico”. (BEAUNE, 1992, p. 79)

Além dos grupos rivais que se formavam logo a Inglaterra passou a ser governada em
1413 pelo rei Henrique V. Henrique V soube usar da fragilidade da França a seu bem querer,
conforme será analisado em mais detalhes na próxima seção deste capítulo, o rei inglês
apresentava estratégias mais precisas e aguçadas em vista da França. Este cenário apontava o
declínio da França e o apogeu da Inglaterra que ia se apossando cada vez mais dos territórios
franceses, ganhando sucessivas batalhas entre as quais a mais importante e decisiva batalha de
Agincourt (1415). Em razão desta vitória inglesa surpreendente de Agincourt, Henrique V
propôs um tratado a França, no qual poderia por fim aos conflitos sucessórios, um acordo
13

aprovado em 1420, conhecido como o Tratado de Troyes, estabelecido após acordos


matrimonias, assegurando que os direitos da soberania do monarca francês Carlos VI,
passariam a monarquia inglesa.

O tratado estabelecia o casamento de Henrique V com Catarina filha de Carlos VI o


que lhe daria o direito legal de assumir a monarquia dos dois reinos: França e Inglaterra após
a morte5 de Carlos VI. O que, por outro lado, tiraria a legitimidade da sucessão do delfim
Carlos VII. Para os ingleses o Tratado foi considerado a “paz final, já os partidários do delfim
Carlos VII o denominaram de o vergonhoso Tratado de Troyes” (BEUANE, 2012, p.23).
Deste modo, o Tratado ao invés gerar trégua e por um fim nas questões sucessórias, causaria
novas possibilidades de guerra, num sentido de revanche.

Não se tratava mais de partilhas feudais como no século XIV, a unidade do reino da
França estava em princípio preservada. A dupla monarquia repousava sobre a
administração separada dos dois reinos e sobre dignidades iguais. França e Inglaterra
tinham em comum somente o rei. Mas a previsão de paz durou pouco. (BEAUNE,
2012, p. 23)

Esta seção buscou elucidar as principais modificações bruscas que ocorreram na


conjuntura política francesa, na qual sofria com a instabilidade interna gerada pelas crises de
loucura do rei Carlos VI, em decorrência a intensa guerra civil estimulada por facções rivais:
borguinhões e armagnacs; uma das surpreendentes vitórias da Inglaterra a batalha de
Agincourt, esta batalha colocava a Inglaterra numa condição privilegiada, a ponto de propor e
selarem o Tratado de Troyes com a França, um acordo que autorizava após a morte de Carlos
VI, o rei Henrique V legalmente assumir as duas coroas: Inglaterra e França. O Tratado de
Troyes previa o fim dos conflitos sucessórios, uma “paz” que não chega a vingar, provocando
mais adiante a quarta fase da guerra e, por conseguinte o surgimento de Joana d’arc, quando
lutará pela legitimação do delfim Carlos VII, deserdado pelo Tratado de Troyes. Este era o
cenário político francês no período da regência de Carlos VI nas últimas fases da Guerra de
Cem Anos.

1.2 DINASTIA DOS LANCASTER DE 1413 A 1422

Esta seção discutirá sobre dinastia dos Lancaster, a partir do monarca Henrique V.
Explanando a sua audaciosa diplomacia e estratégia de guerra, tão perceptível na batalha de
Agincourt e analisar a estrutura desta batalha pela percepção religiosa.
5
Carlos VI morre no ano de 1422.
14

Henrique V, sucessor de Henrique IV, herdava o trono sob um governo endividado,


com um conselho real e a nobreza dividida por facções e intrigas, de modo geral, várias
circunstâncias assolavam o solo inglês. Entretanto, “Henrique V estava decidido a fazer com
que seu reino marcasse uma mudança de rumo no destino da monarquia inglesa. Embora não
tivesse nascido para ser rei, ele tinha, literalmente, recebido um treinamento para seu futuro
papel”. (BARKER, 2009, p. 43)

A formação de Henrique V composta por um refinado gosto pela literatura clássica


somada a um conhecimento sólido dos fundamentos de guerra foi uma forte base para sua
regência “Henrique V havia sido educado para dominar as letras e os números de modo
incomum, provavelmente porque era filho e neto de dois grandes patronos da literatura, da
cavalaria e da erudição”. (BARKER, 2009, p. 44)

O rei Henrique V, além de possuir um conhecimento admirável pela arte, literatura e a


guerra, soube conduzir seu reinado a base da diplomacia, um modo político, que fez toda a
diferença no resultado da batalha Agincourt. A maneira como Henrique conduzia sua regência
impunha respeito até sobre seus inimigos.

O caráter e a conduta de Henrique impressionavam até seus inimigos. Os


embaixadores franceses enviados para negociar com ele alguns anos mais tarde
foram embora lhe tecendo elogios. Eles o descreveram como sendo alto e distinto,
com o comportamento orgulhoso de um príncipe, mais ainda assim tratando todos,
independente de sua posição, com a mesma afabilidade e cortesia. (BARKER,
2009, p. 63)

Logo sua habilidade e força política atraiu o interesse e conquistou o apoio da facção
dos franceses borguinhões rivais dos seus conterrâneos armagnacs. Dessa forma, ia
prosseguindo o governo do rei Henrique V, regado de muito conhecimento, estratégias
habilidosas e cautelosas e com muita diplomacia. Assim atingia cada vez mais o auge de sua
regência. O rei Henrique também era um homem ambicioso e oportunista e sua ambição
principal era conquistar a coroa francesa, a qual alegava ter direitos de sucessão e para atingir
tal objetivo procurou fazer acordos com delfim o Carlos VII, já que seu pai Carlos VI não
possuía condições mentais para atos diplomáticos. Henrique V, chegou até mesmo a lançar
desafios ao delfim Carlos VII, mas, como era de se esperar, este nem se quer lhe enviava uma
resposta.

O delfim Carlos VII era quase dez anos mais novo que Henrique V (BARKER, 2009,
p. 91). Analisando ambas as formações e preparações para tal responsabilidade de monarquia,
15

as suas experiências e estratégias monárquicas era notoriamente discrepantes, e conforme


Barker (2009, p. 242) deve ter sido humilhante comparar a fraqueza de seu próprio líder com
o comportamento exemplar de Henrique V.

O rei Henrique V, que tentava de várias maneiras provocar uma reação e acordos por
parte do delfim Carlos VII, percebia que suas tentativas se faziam em vão, entretanto, não via
outra solução, a não ser buscar apoios financeiros para promover uma guerra contra a França.
Intimidá-los com a guerra seria a única forma de decidir no tudo ou nada a coroa da França,
desta maneira, os franceses eram obrigados a reagirem para defender suas vidas. Assim
decidindo a coroa através de uma guerra declarada, poderiam saber a decisão, a opinião, de
quem os medievos mais se importavam: Deus. Ou seja, de quem Deus demonstraria estar ao
lado? E por fim conceder a razão, e o direito de sucessão?

Nesta época medieval, Fróes (FRÓES, 1992, p. 9) ressalta a importância em dizer


“que o político está mergulhado no sagrado em toda a Idade Média (...) e que o cristianismo é
o tecido imaginário que permite a concretização do político, seus rituais, sua simbolização e a
organização recíproca de poder”. Deste modo, a religião predominante era o catolicismo, a
Igreja Católica era considerada a depositária da fé única e verdadeira, pois estava com a
verdade e a paz de Deus e, por conseguinte era intermediária do que está ligado ao céu e à
terra. Intimidava a sociedade a seguir um modelo de perfeição cristã, pois era interesse de
todos viver sobre o agrado de Deus, do contrário, poderiam sofrer a ira de Deus.

Sendo assim, as duas monarquias inglesa e francesa estavam fortemente ligadas a esta
concepção religiosa, pois para resolver este embate que ultrapassava cem anos, as vitórias
concedidas nas batalhas eram vistos como um sinal e aprovação de Deus. E durante a Guerra
dos Cem Anos, a Inglaterra vinha se destacando com suas vitórias, enquanto a França vinha
sendo drasticamente prejudicada. Desta forma, seria natural pensar pela perspectiva dos
medievos que Deus estaria com ingleses?

Deus não permitiria que uma injustiça fosse cometida, explicava o argumento;
portanto, a vitória caberia àquela parte que tivesse o direito do seu lado. Era esta a
razão pela qual o julgamento por batalha também era conhecido na Idade Média
como o judicium dei, ou julgamento de Deus (...). (BARKER, 2009, p. 239)

É fácil se convencer do sim, ao se analisar as sucessivas vitórias da Inglaterra, em


destaque, a batalha de Agincourt 1415 sob o comando do rei Henrique V, onde das várias
16

batalhas vencidas: de Calais 1347, de Crécy 1346, de Poitiers 1356, a batalha de Agincourt
considerada a mais surpreendente.

Conforme já citado o rei Henrique V não viu outra solução, senão promover a guerra e
para tal tinha consciência de que uma guerra devia ser adequadamente financiada. Conseguiu
organizar-se,

Por meio dos simples expedientes de suprimir as fraudes e os desperdícios, restaurar


o poder central e controlar, revisar os arrendamentos nas terras da coroa e manter os
olhos atentos para as despesas, ele conseguiria melhorar as receitas tradicionais da
coroa a ponto de, a partir dos mesmos recursos, receber mais de duas a renda
disponível para seu pai. (BARKER, 2009, p. 129)

Henrique V preparou-se financeiramente para as despesas militares e para isso, contou


com vários apoios de seus súditos, principalmente das Comunas compostas por cavaleiros do
condado e os burgueses das cidades e do Parlamento.

Henrique não teve dificuldade de reunir um exército, pelo contrário, teve dificuldade
de encontrar um lugar em que coubessem todos os homens, isso porque, “[a]pesar do fato de a
Inglaterra não possuir um exército permanente na época medieval, o que significava que todo
soldado em serviço teve que ser recrutado individualmente”. (BARKER, 2009, p. 140)

Legalmente submetidos pela lei, os soldados possuíam contratos por escrito de


serviço. Assim uma grande quantidade de contratos militares temporários para a campanha de
foi assinada em Westminster.

Tudo parecia prosseguir bem conforme planejava Henrique V, mas de repente houve
uma queda brusca na quantidade de seu exército, fato atribuído ao astrólogo Tommaso da
Pizzano6 acusado de usar da sua arte para expulsar os ingleses da França. E
impressionantemente, o resultado foi sensacional, se não instantâneo, pois “em poucos meses
todas as campanhas mencionadas haviam fugido do reino”. (CAREY apud BARKER, 2009,
p. 154).

Apesar deste imprevisto, o rei Henrique V não se deixou abalar e colocou-se ainda
mais atento e cauteloso sobre a estratégia que aplicaria na batalha. Nas vésperas da batalha, “o

6
Os astrólogos eram mais aceitos na França, entre os admiradores desta arte, tem-se o rei francês Carlos V
“devoto das artes da astrologia e da geomancia. Na Inglaterra, a astrologia como meio de prever o futuro era
considerada bruxaria e falsa profecia, condenadas pela bíblia”. (BARKER, 2009, p. 154).
17

próprio rei passou em revistas as fileiras, encorajando seus homens”. (BARKER, 2009, p.
295).

Enquanto o rei Henrique V demonstrava toda preocupação com seu exército, fazendo
questão de verificar tudo pessoalmente, não dormia montando e refazendo estratégias,
levando em consideração todas as possibilidades de ataque francês. Do outro lado do campo,
tinha-se uma organização das tropas francesas, as quais não foram montadas facilmente, uma
tarefa que caberia naturalmente ao rei. Ao invés disto, estavam ausentes na batalha o rei
Carlos VI o delfim e os duques de Berry, Borgonha, Bretanha e Anjou. Não houve presença
de sangue real para assumir o comando.

A batalha ocorreu no dia 25 de outubro de 1415, o nome Agincourt, dado a batalha


surgiu com referência a um grande castelo de Agincourt, que há muito tempo tinha
desaparecido, e no local os fazendeiros cultivavam milharais altos que obscureciam o campo
de batalha.

Dividido em dois os campos aráveis e planos que formam um triângulo entre as três
pequenas aldeias de Agincourt, a noroeste, Tramecourt a nordeste e Maisoncelle ao
sul. As aldeias se encontram a menos de dois quilômetros umas das outras e cada
uma ainda possui a sua paróquia, seu agrupamento de cabanas de Artois em vários
graus de dilapidação e seu terreno arborizado nos arredores. Um calvário a margem
da estrada, perto do cruzamento de Tramecourt, marca o campo santo dos franceses.
(BARKER, 2009, p. 296)

A guerra por ser travada num território francês, os ingleses tiveram um percurso
naturalmente mais longo e exaustivo, seu exército contava com doze mil soldados, porém
havia embarcado na expedição, somente a metade, ou seja, seis mil soldados acampavam no
campo de Agincourt. Enquanto os franceses confortáveis em seu próprio território
aguardavam confiantes sob um exército de trinta e seis mil soldados, prontos para vingarem a
tomada da cidade de Harfleur. E eis como estavam as situações dos dois exércitos antes de
iniciar a batalha, conforme a narração na íntegra da historiadora medieval Juliet Barker,

De um lado, uma fileira de incontáveis e inertes soldados franceses, protegidos da


cabeça aos pés por armaduras lustrosas, armados com espadas e lanças curtas para
lutar a pé, ostentando suas bandeiras e flâmulas reluzentes e coloridas que agitavam
acima da cabeça. Atrás deles e nas extremidades, besteiros e arqueiros cujos
serviços haviam sido requisitados, além de canhões, catapultas e outras máquinas de
guerra que tinham sido trazidas das cidades vizinhas, todos esperando para disparar
contra o inimigo. A única movimentação ocorria atrás do exército, onde os cavalos
inquietos, literalmente esfolados pela manhã fria e úmida do final do outono, tinham
que ser exercitados pelos soldados montados e seus valetes. Bem nutridos, bem
armados, seguros quanto à sua superioridade numérica, este era um exército
transbordando de confiança e ávido por esmagar a modesta força que tivera a
18

temeridade de invadir a França e capturar suas mais belas cidades. Do outro lado
estavam os ingleses, uma visão igualmente temível, mas por razões diferentes. Eram
homens encurralados e desesperados, que sabiam que só um milagre poderia salvá-
los da morte e, portanto, determinados a se bater até o fim. Durante quase três
semanas eles tinham marchado por território inimigo, suas provisões de alimentos e
bebidas se esgotando, incapazes de se lavar ou barbear, suas armaduras manchadas e
suas túnicas e bandeiras sujas e esfarrapadas pela exposição constantes aos
elementos. Alguns deles, disseram, estavam até mesmo descalços, tendo gastado
totalmente seus calçados durante a viagem. Tinham o estômago e o intestino já
comprometidos pela fome e pela disenteria e agora eram atormentados pelo medo.
Muitos dos arqueiros eram obrigados a rasgar suas roupas íntimas imundas a fim de
permitir que a natureza seguisse seu curso mais facilmente – uma opção que os
soldados não tinham, encerrados em suas armaduras de metal. Por mais repugnante
que fosse seu aspecto, o cheiro provavelmente era pior. (BARKER, 2009, p.321 -
322)

A lógica da situação descrita por Barker é que praticamente e facilmente a França


conseguiria a vitória, mas apesar da desvantagem da Inglaterra, eles ainda contavam com a
inteligência e a experiência do rei Henrique V. Henrique V diante daquela situação tinha que
se manter o mais calmo entre os homens para não colocar tudo a perder, e assim o fez.
Colocou o seu exército em posição de ataque, que fugia da posição tradicionalista, pois pela
quantidade do exército francês, temia um ataque de surpresa, na qual cercasse o seu exército,
e para evitar essa possibilidade, o rei arriscou outra posição de ataque, enquanto a França
alinhava o seu exército na posição tradicional de guerra7. Quando os exércitos encontravam-se
um de frente para o outro, houve um longo silêncio de ambas as partes. Henrique V,
percebendo logo o jogo da França, que quanto mais se passava o tempo, era vantagem para
França atacar com seus oponentes cada vez mais fracos, pois a Inglaterra corria mais risco
naquele momento com situação de fome, desidratação, do que com o exército francês
propriamente dito. E sendo assim, para evitar o pior, o rei Henrique V resolver atacar
primeiro. Durante três horas de guerra, impressionantemente “(...) desafiando toda a lógica e a
sabedoria militar da época, os ingleses saíram vitoriosos e os campos de Agincourt ficaram
cobertos com o que um dos observadores descreveu graficamente como ‘morros, colinas e
pilha dos mortos”. (MONSTRELET apud BARKER, 2009, p. 16).

7
A posição tradicional de guerra recomendava que as três divisões do exército deveriam ficar uma atrás da outra,
formando um sólido bloco, esta configuração, aplicava-se a uma infantaria pesada como era o caso do exército
francês, porém Henrique V tendo consciência da quantidade inferior de seu exército, saberia que se tomasse a
posição tradicional de guerra, apresentaria um exército estreito e dessa forma, correriam o risco de ser cercados
e dominados. Henrique V ao invés seguir uma estratégia militar convencional preferiu alinhar o seu três
batalhões lado a lado, de modo a apresentar um exército alongado. (BARKER, 2009, p. 302).
19

Com a vitória dos ingleses, sendo como foi ressoando conforme as perspectivas
medievais, mais do que estratégia e inteligência, mas sim um milagre de Deus, ou a justiça de
Deus sendo feita, o que significaria que o trono francês passaria a pertencer à Inglaterra. A
Inglaterra neste momento vitorioso tinha total condição de estabelecer o que bem queria da
França, tanto que foi estabelecido no Tratado de Troyes, no qual autorizava Henrique V a
assumir as duas monarquias após a morte do rei francês Carlos VI. Entretanto, o rei Henrique
V vem a falecer em 1422, no mesmo ano do rei francês Carlos VI. Sendo assim, com a morte
destes reis, o trono passaria para o filho de Henrique V, o Henrique VI, que na época ainda era
um bebê, até que atingisse a maioridade o trono ficaria sobre a guarda de seus tios.
20

CAPÍTULO 2: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DE JOANA D’ARC

Este segundo capítulo foi reservado a analisar a biografia de Joana d’Arc entre o
período de seu nascimento 1412 a 1429, o ano que marca os seus feitos como guerreira
francesa surpreendendo os franceses e encabulando os ingleses. Logo as duas seções
explicarão esse processo da mudança de vida da jovem Joana d’Arc. A primeira seção
mostrará como Joana d’Arc vivia antes de se tonar uma comandante de guerra, e a segunda
seção discutirá a preparação de Joana d’Arc quando assume o comando militar da França com
a autorização do delfim Carlos VII e da Igreja Católica.

2.1 MISSÃO DADA POR DEUS

Será analisado nesta seção como era a rotina, a vida comum que vivia Joana d’Arc, a
relação com a família, com seus vizinhos, com a igreja, e também sobre a sua particularidade
de fé (as supostas vozes que a conduziram a dar um novo rumo à França).

Joana d’Arc se tornou uma figura marcante historicamente pelo perfil ambíguo
construído ao longo de sua trajetória, pois enquanto para os partidários armagnacs era vista
como pastora para os borguinhões como vaqueira ou a servente de hospedaria; assim de
virgem a prostituta; de mandatária de Deus a feiticeira. Encerra sua vida condenada a morte
pelo crime de heresia e logo após vinte cinco anos é reabilitada à sociedade em decorrência da
reabertura do seu processo inquisitorial8 com o intuito de rever as irregularidades do seu
segundo processo. No ano 1920 é canonizada Santa Joana d’Arc pela Igreja Católica. Todos
esses títulos dados a Joana d’Arc em comparação de uma facção a outra, foram imagens que
surgiam num tempo consideravelmente pequeno de dois anos (1429- 1431), o tempo que
atuou na Guerra dos Cem Anos em favor da França.

8
Uma ação judicial, o qual faz parte de um sistema jurídico em que o tribunal, eclesiástico possui um grupo de
inquisidores, os quais estão ativamente envolvidos na investigação dos fatos. Ao contrário de um sistema atual
acusatório, onde o papel do juiz é essencialmente de um árbitro imparcial entre a acusação e a defesa.
21

E para que se pudesse ter uma compreensão de quem era essa jovem camponesa que
gerava tantas interrogações, a sua biografia à qual hoje se tem acesso, foi construída aos
poucos a partir do momento em que Joana d’Arc vai ao encontro do delfim e logo passa pela
avaliação da Igreja Católica não encontrando esta nenhuma irregularidade na sua vida. Outra
ocasião ocorre durante o seu julgamento de acusação onde foram questionados vários
momentos de sua vida e também houve a reabertura do processo que buscou refazer essa
investigação da vida de Joana d’Arc. Esses três momentos de investigação contaram com
testemunhas, cada qual com seus interesses. E com base nesses três modos que ocorreram de
investigação, pode-se conhecer a história de Joana d’Arc antes de ser conhecida como
comandante de guerra.

O nascimento de Joana d’Arc foi deduzido ser por volta do dia 6 de janeiro de 1412,
com base na sua resposta durante seu julgamento inquisitorial (1431) ao responder sua idade,
“declarou: ‘[a]o que me parece, tenho por volta de dezenove anos”. (BEAUNE, 2012, p.62).

Viveu numa aldeia de Domrémy, nas proximidades da fronteira a noroeste da França,


“achava-se no limite do reino, às margens do rio Meuse (...)” (BEUANE, 2012, p. 27). As
fronteiras ainda estavam indefinidas,

(...) formava uma colcha de retalhos de poderes feudais: o norte do vilarejo pertencia
ao reino e dependia da castelania real de Vaucouleurs, a uma dezena de quilômetros
ao norte, o Sul fazia parte do Barrois Mouvant (...). O vale era armagnac. (...). Em
1428, os anglo-borguinhoes apossaram-se de todos os lugares do vale do rio Meuse
que permaneciam fiéis ao delfim (...), os habitantes de Domrémy refugiaram-se em
Neufchâteau. Quando voltaram, encontraram o vilarejo devastado e a igreja
queimada. Joana era filha da fronteira e da guerra. (BEUANE, 2012, p. 27)

Joana d’Arc pertencia a uma família de camponeses, seu pai chamava-se Jaccques
d’Arc e sua mãe Isabelle Romée, tinha quatro irmãos: Jacquemin, Jean, Pierre e Catherine.
Os pais de Joana eram lavradores abastados9 e de acordo com Beaune, “[o]s ‘bons
lavradores’, como são os pais de Joana, são honrados, probos, destemidos, como dizem todos
os vizinhos, estes também são lavradores e sensíveis ao prestígio local de seus estados. Um
lavrador necessariamente vive bem, mas não é rico”. (BEUANE, 2006, p. 42).

9
Um lavrador abastado era um camponês que possuía casa, uma charrua, animais e alguns hectares de terra que
cultivava com a família ou com a ajuda de trabalhadores assalariados. (BEUANE, 2012, p. 38).
22

Ainda que não eram ricos, mas viviam bem, conforme relata Beuane e reforça Duby,
Joana d’Arc “não vivia na indigência” (DUBY, 1992, p.271). Dessa forma, contradizem a
ideia comum de que Joana d’Arc não seria uma pobre camponesa, mas que tinha uma vida
financeira consideravelmente boa. A ideia de uma camponesa pobre provavelmente surge do
contexto de seu processo inquisitorial, quando a mesma relata em seu julgamento que teria
“respondido ao anjo que lhe aparecera: ‘eu sou somente uma pobre menina...’, mas a
sequência da frase — ‘eu não sei fazer a guerra’— “(BEUANE, 2012, p. 37-38). Beuane
explica que se tratava de uma falta de competência e não da capacidade financeira. Embora
para esta época medieval, não era a riqueza que importava e determinava a condição de
alguém, mas o valor da família desta época recaía sobre sua reputação, a honra, “pois todos
sabiam que era mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo
buraco de uma agulha” 10. (BEUANE, 2006, p.43). Para os medievos a boa reputação estava
associada, acima de tudo em viver conforme os preceitos de Deus.

Joana d’Arc teve uma educação cuidadosamente voltada aos costumes e às práticas
religiosas. Sua mãe Isabelle Romée ensinou-lhe os princípios da religião católica, as
principais orações como o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo, desta maneira Joana d’Arc ia se
adequado ao cotidiano da fé pelo próprio exemplo de sua mãe de ir à igreja, confessar-se,
comungar e dar esmola aos pobres.

Entre as diversas testemunhas interrogadas em Domrémy, Jean Moreu11, seu Padrinho,


camponês de Geux, morava numa aldeia próxima a Domrémy confirmou suas origens como
seu nascimento e batismo,

Joaninha foi batizada na igreja de Saint-Rémy, paróquia da região. Seu pai


chamava-se Jacques d’Arc, e sua mãe, Isabel, ambos viviam de seu trabalho em
Domrémy (...). Eram bons e fieis católicos, bons trabalhadores, de boa conduta, de
reputação e prosa honesta (...). Eu até fui um dos padrinhos de Joana (...). Ao longo
das declarações, uma expressão apareceu constantemente: “gostava de”. “Ela
gostava de cuidar dos animais, de ir à igreja e aos lugares sagrados, de dar o que
tinha por amor a Deus... gostava. Gostava”. Disso tudo resulta um dinamismo e
transparece uma alegria que parecem ter caracterizado Joana por toda a sua
existência. (PERNOUD, 2004, p.12-14)

10
Refere-se à passagem bíblica do livro de Lc 18, 25.
11
Uma das testemunhas interrogadas no processo de reabilitação durante o mês de janeiro de 1456.
23

A convivência com Joana d’Arc segundo os relatos dos testemunhos era tida como um
comportamento comum, sem nenhuma irregularidade, pois Joana d’ Arc apresentava um
comportamento adequado de acordo com sua época, conforme as outras meninas. Uma boa
educação “não é necessariamente uma criança muito instruída nem que tenha frequentado
necessariamente a escola, mas conhece os gestos necessários a seu sexo e a sua condição”
(BEUANE, 2006, p. 44). Assim se fazia o caso de Joana d’Arc, analfabeta, pois “ninguém
jamais a viu escrever nem ler ou utilizar um livro de preces. Chegando a Poitiers, ela afirma a
seus sábios perquiridores12: ‘Eu não sei nem A e nem B” (BEUANE, 2006, p.68). Não
existiam escolas nem em Domrémy nem em Greux, que foram pequenas aldeias, a mais
próxima ficaria em Maxey-sur-Meuse, funcionava desde 1369 e ensinava os filhos dos
camponeses mais importantes alguns rudimentos de leitura e de moral.

Até então, conforme já escrito sobre a rotina de Joana d’Arc, o texto do processo não
apresenta nenhuma estranheza no comportamento desta jovem camponesa que viveu como
deveria viver sobre os costumes da época com uma boa relação com sua família, seus
vizinhos e principalmente com a igreja, entretanto, ocorreu um fato, que passou a ser um
divisor de águas na vida de Joana d’Arc, por conta de sua particularidade de fé,
consideravelmente misteriosa. Joana d’Arc alegou ter recebido uma missão de Deus ainda
muito jovem, com aproximadamente treze anos entre 1424-1425. Essa missão foi manifestada
segundo Joana d’Arc, através de vozes (porta-vozes de Deus) que identificou sendo de São
Miguel Arcanjo, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia. As vozes
pareciam a encorajar a salvar o delfim e a França que vivia maus momentos.

Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, ouvi a voz de Deus que veio para ajudar-
me a me governar. Na primeira vez, tive muito medo. E veio essa voz, no verão, no
jardim de meu pai, por volta do meio-dia (...) eu ouvi a voz do lado direito, quando
ia para a igreja. É raro que eu a ouça sem que haja uma luminosidade. Essa
luminosidade vinha do mesmo lado de onde a voz era ouvida. Comumente havia
uma grande luminosidade (...). Depois que eu ouvi essa voz três vezes percebi que
era a voz de um anjo (...). Ela me ensinou a me conduzir bem e a frequentar a igreja.
Ela me disse que era necessário que eu, Joana, viesse à França...”. Ás perguntas que
lhe faziam, ela respondia em seguida: “Na primeira vez, tive dúvidas se era são
Miguel que vinha a mim, e nessa primeira vez tive muito medo. E eu o vi, depois,
muitas vezes até saber que era São Miguel...Antes de tudo, ele me dizia que eu era
uma boa menina e que Deus me ajudaria. Entre outras coisas, disse-me para eu vir
em socorro do rei da França...O anjo me falava da piedade que existia no reino da
França. (PERNOUD, 2009, p. 22-23)

12
Que faz investigação de forma bem detalhada.
24

Joana d’Arc manteve em segredo esta sua missão até o ano de 1428. Este fato que
ocorre na vida de Joana d’Arc sinaliza brevemente uma mudança histórica no cenário político
da França e uma situação que irá desconcertar os ingleses. Afinal, a grande questão deve ser
pensada pela perspectiva religiosa dos medievos, pois, Deus parecia demonstrar estar ao lado
dos ingleses pelas suas sucessivas vitórias, sobretudo a batalha de Agincourt,

Os Armagnacs, segundo se relata, se comportaram pior do que os sarracenos, e mais


de um cronista viria a concluir que a derrota em Agincourt, que foi infligida no dia
da festa de São João de Soissons no ano seguinte, foi uma retribuição divina pelos
seus crimes contra a cidade. Tornou-se desde então um refrão comum dizer que nada
do que os ingleses infligiram aos sofredores habitantes do norte da França conseguiu
superar as misérias que eles sofreram nas mãos de seus próprios conterrâneos.
(BARKER, 2009, p. 81)

Deste modo, os desígnios Deus pareciam mudar posto isto, ambas as monarquias
estariam preparadas para esta mudança? Ou poderia se tratar de uma influência de forças
ocultas vista como malignas? Mas, sendo assim, porque se manifestariam a uma jovem
camponesa de bons comportamentos cristãos?

Questionamentos estes que passariam a incomodar os franceses e, sobretudo os


ingleses após Joana d’Arc decidir obedecer às vozes e ir ao encontro do capitão Robert de
Baudricourt em Vaucouleurs13, um fiel defensor da França e do delfim Carlos VII, era
responsável pela fortaleza de Vaucouleurs. Joana contou com a ajuda de seu primo, Durand
Laxart, que morava em Burey-le-petit, uma aldeia próxima à cidade-fortaleza para ir de
encontro com Baudricourt. Quando chegou à cidade, não teve sucesso em seus primeiros
encontros com o capitão Baudricourt. Apenas na terceira tentativa que Joana d’Arc conseguiu
convencer Baudricourt de sua missão. Baudricourt se deixou convencer, pois ele tinha ouvido
dizer, segundo relata Durand Laxart, o primo de Joana d’Arc: “que existia uma profecia
segundo a qual a França estaria perdida por uma mulher e seria restaurada por uma virgem lá
das bandas de Lorraine. Lembrei-me de ter ouvido aquilo e fiquei estupefata Depois disso,
acreditei em suas palavras e, comigo, muitas outras pessoas”. (PERNOUD, 2009, p. 27).

Desta forma, a sua fama já começava a disseminar-se pela cidade, na qual passavam a
chamá-la da pucelle de Orléans. Joana d’Arc ia ganhando a confiança e a solidariedade das
pessoas que viam nela uma esperança de recuperar a França. Por precaução Baudricourt
mandou exorcizá-la.
13
Localidade no departamento de Mosa, França, situada às margens do rio Mosa, nas proximidades de Nancy.
Aí começa a história bélica de Joana d’Arc (PERNOUD, 2009, p. 20).
25

Fez-se acompanhar de um padre convenientemente usando estola14 e munido de


água benta. Joana aproximou-se do padre e pôs-se de joelhos: era o sinal que o padre
esperava; todos se tranquilizaram. Baudricourt concordou em deixá-la partir com
uma pequena escolta, aliás, espontaneamente constituída por Jean de Metz e Jean de
Honneacourt, seu criado, Bertrand de Poulengy e Julian, seu criado. (PERNOUD,
2009, p.31).

Para que se sentisse segura, Joana d’Arc prepara-se para viagem sob trajes masculinos.
Em onze dias de cavalgadas percorre e cerca de 600 quilômetros, calcula-se que chegou a
Chinon, lugar onde se encontrava o delfim, por volta do dia 6 março já em 1429, conforme
acredita boa parte dos historiadores (PERNOUD, 2009, p.40).

2.2 DE CAMPONESA A COMANDANTE DE MILITAR

Nesta seção, será do encontro de Joana d’Arc com o delfim Carlos VII; da permissão
do delfim apoiado pela Igreja Católica em conceder um exército a Joana d’Arc, e de como
esta organizou seu exército; das batalhas vencidas contra a Inglaterra; da coroação do delfim
Carlos VII e do sentimento de humilhação que sentiram os ingleses ao veem o cenário da
guerra sendo transformado por esta jovem camponesa.

Joana d’Arc ao chegar a Chinon acompanhada por um pequeno grupo de escolta


assegurado por Baudricourt estava prestes a anunciar sua missão para quem se fazia de direto
saber, o delfim Carlos VII.15 O delfim já estava ciente de sua vinda a Chinon alertado por
Baudricourt, e também pelas próprias cartas16 enviadas de Joana d’Arc.

A jovem camponesa não encontrou tanta dificuldade em falar com o delfim por conta
de uma antiga lenda francesa que dizia: “Virá uma Virgem da fronteira da Floresta de
Carvalho que irá curar reino”. (BEAUNE, 2006, p. 104). Acreditar nessa lenda naquele
momento seria uma das poucas saídas que a França tinha e ainda poderia contar, pois quanto
mais o tempo passava a sua situação se agrava pela invasão inglesa.

14
Paramento sacerdotal, que consiste em uma tira de seda, ou outro tecido nobre, mais larga nos extremos do que
do meio, e que os sacerdotes colocam sobre a túnica.
15
Carlos VII (1403-1461), quinto filho de Carlos VI, o Bem-Amado, e de Isabel da Baviera. Perdeu o seu
direito de sucessão ao trono francês decorrente do tratado de Troyes e também por consequência de seus delitos
cometidos, responsável pela morte do duque João sem Medo. Carlos era caçoado pelos borguinhões que o via
como covarde. Não tinha espírito de iniciativa, deixava as decisões serem tomadas pelos seus conselheiros, como
ocorreu a discussão sobre para onde deveriam fugir, enquanto os ingleses estavam sitiando Orléans. Esta
situação da França passa a mudar com a chegada de Joana d’Arc a Chinon. (PERNOUD, 2004, p.8).
16
Joana d’Arc era analfabeta, suas cartas eram ditadas por ela.
26

Mas a lenda era uma possibilidade, ou seja, não era uma verdade atribuída a Joana
d’Arc, ela precisaria demonstrar algo, um sinal preciso de que falaria a verdade. Quando vai
encontrar o delfim percebeu que estava na companhia de alguns de seus conselheiros, “o rei
jamais recebia só, mesmo para uma entrevista considerada privada, como era o caso dessa,
com uma desconhecida que podia ter intenções duvidosas ou ser desequilibrada”
(BEAUNE,2006, p.82).

Este momento em que Joana encontra o delfim e conquista sua confiança é


testemunhada de várias formas e possibilidades como narra Beaune,

Quando ela entrou na câmera do rei, ela o reconheceu seguindo o conselho sua
voze” (...) o rei teria se mantido afastado ou teria se escondido entre os senhores. Ele
teria se recusado a ser considerado como rei e designado um de seus primos, Charles
de Bourbon. Jogo simbólico: o rei ainda não consagrado e ameaçado de todos os
lados é ainda o rei? Joana, que o reconhece, torna-o rei (...) o rei troca as roupas com
um de seus conselheiros e o faz sentar-se em seu trono. Ele permanece dissimulado
na multidão (inexistente!), malvestido e desviando o olhar. Mas Joana o teria
reconhecido entre dez mil e lhe diz: “sois aquele que eu procurava, verdadeiro rei da
França”. (...). Entretanto, a ideia de que Joana teria contado segredos ao rei surge
imediatamente. Para A. Chatier: “Ninguém sabe o que ela lhe disse sob a influência
do espírito”. “Quando o processo de 1456, Jean d’Aulon afirma que a Virgem falou
ao rei secretamente (privadamente) disse-lhe algumas coisas secretas, as quais ele
não diz”; e, segundo Pasquarel, “Joana lhe havia contado alguns segredos que
ninguém, salvo Deus, podia conhecer. (BEUANE, 2006, p. 95-96).

A maneira como Joana d’Arc o reconheceu é visto com diferença ainda que mínima,
mas são testemunhadas de formas diferentes, no entanto, o que tornou o encontro e sua missão
possível, foi a conversa de Joana d’Arc tida em particular com o delfim, o assunto de teor
desconhecido, mas considerado de impacto no delfim a ponto de logo se encantar com os
dizeres de Joana e assim dar-lhe um voto de confiança. Apesar de Carlos VII dar este voto de
confiança a Joana d’Arc, só o seu voto não seria suficiente, precisaria ter a comprovação mais
precisa, sobretudo de quem entendia de fato de boa conduta: a igreja. Dessa forma,
asseguraria que não estaria sofrendo um golpe.

O delfim por precaução e orientado pelos seus conselheiros, toma medidas mais
formais e envia Joana a Poitiers para ser interrogada por uma comissão de teólogos17, tratando
de verificar todos os meios possíveis a respeito de sua conduta. Em Poitiers foi

17
A comissão era organizada por mestres da Universidade de Paris, os poucos entre os numerosos universitários,
que não se deixaram corromper pelo invasor.
27

examinada durante a três ou quatro semanas por uma comissão composta em sua
maioria teólogos, mas também de juristas e de alguns conselheiros reais, sob a
presidência do chanceler da França e arcebispo de Reims, Renaud de Chartres. Fez
um registro dos interrogatórios, mas que se extraviou, ao que parece, antes do
processo de anulação. Em 1456, o irmão Seguin ainda tem lembranças precisas
disso. Chegou-nos apenas a conclusão reticente, mas favorável, dos doutores de
Poitiers: “O rei, dada sua necessidade e a de seu reino e consideradas as contínuas
preces de seu povo, não deve nem repelir nem afastar a Virgem enviada por Deus
para lhe prestar socorro, ainda que suas promessas [na medida em que ainda não
foram realizadas] sejam apenas obras humanas. (BEUANE, 2006, p.82-83)

Os investigadores de Poitiers não constataram nenhuma irregularidade, até mesmo o


exame de virgindade foi feito, o “que motivou esse exame foi Joana fazer-ser chamar ‘a
donzela’, ‘a pucella’, isto é a virgem”. (PERNOUD, 2004, p.50). Quando acontecia o
interrogatório em Poitiers, Seguin Seguin18 relata ter ficado impressionado com Joana d’Arc
ao demonstrar quatro objetivos que realizaria em nome de Deus:

[e]la disse que os ingleses logo seriam derrotados, que o cerco da cidade de Orléans
seria levantado e a cidade ficaria livre deles (...). Ela disse também que o rei seria
sagrado em Reims (...). Em terceiro, que a cidade de Paris retornaria ao domínio do
rei e, por fim, que o duque de Orléans retornaria da Inglaterra. Tudo isso — concluía
o velho dominicano — eu vi acontecer. (PERNOUD, 2004, p.49).

Joana d’Arc mostrava-se impaciente durante o interrogatório, pois sabendo que


Orléans19 estava sitiada20 pelos ingleses, saberia que deveria agir logo, e quando os
investigadores insistiam que lhe mostrasse um sinal, ela respondia: ´´‘Em nome de Deus, eu
não vim a Poitiers para provar nada; leve-me a Orléans, e eu lhes mostrarei os sinais para os
quais fui enviada’´´. (PERNOUD, 2004, p, 55).

18
Padre dominicano o qual fez parte do primeiro processo investigativo de Joana d’Arc em Poitiers (1429). E foi
um das poucas testemunhas que sobreviveram a dar seu relato sobre a conduta de Joana d’Arc no processo de
reabilitação, ou anulação de 1456.
19
A cidade tinha sido sitiada ainda no ano de 1428 no mês de outubro. Orléans era porta de entrada do Loire e,
portanto, das regiões do Além-Loire, onde estava refugiado o pretendente ao trono, Carlos VII, que, por
zombaria, era chamado o rei de Bourges. Loire oferecia dois pontos adequados para uma invasão procedente de
Normandia ou da ilha da França. A cidade de Orléans oferecia uma situação estratégica muito superior: uma vez
tomada a cidade, marcharia sem dificuldades sobre Bourges e, de lá rumo à Guyenne, que era inglesa por
herança e na qual os suseranos ingleses somente deviam vassalagem ao rei da França. (PERNOUD, 2004, p.37-
38).
20
O sítio é a guerra defensiva por excelência, o modelo de uma guerra justa, o que seria ao contrário de uma
guerra ofensiva causada por vassalos ou soldados pagos. Enquanto a defensiva, passava a ser o dever de todos
defender sua cidade, castelo, um tipo de guerra acessível as mulheres que geralmente colaboravam ajudando a
carregar munições, água, óleo fervente ou pedras necessárias para reparar as brechas das muralhas. Durante um
sítio, as mulheres defendem suas vidas, suas honras, seus filhos e suas cidades. Elas podem participar das
operações, mas é preciso evitar o máximo possível que derrame sangue. O sítio é um caso de necessidade em que
todas as regras do funcionamento social são colocadas em parênteses, uma espécie de estado de exceção que
dura enquanto dura o sítio. No entanto, por essa perspectiva medieval o sítio de Orléans foi uma guerra defensiva
e justa onde Joana d’ Arc teve o aval do delfim Carlos VII. (BEUANE, 2006, p.163; 174).
28

E assim foi feito, Joana d’Arc teve a permissão do delfim Carlos VII de assumir o
comando das batalhas liderando “trezentos cavaleiros que iam socorrer a cidade de Orléans”
(BEUANE, 2006, p 83) na tentativa de recuperá-la dos invasores ingleses.

Entretanto como Orléans estava sitiada e não poderia ser alcançada senão com uma
tropa militar, Joana foi imediatamente levada a Tours, onde se equipou militarmente:
foram confeccionados “trajes adequados para ela”, ou seja, uma armadura sob
medida (...). Joana por iniciativa própria mandou fazer, naquela oportunidade, um
estandarte21 e uma bandeira22. (PERNOUD, 2004, p.55).

Joana d’ Arc ainda exigiu que buscasse uma espada23 a pedido de suas vozes na cidade
de Fierbois no santuário de Saint- Catherine a capela,

(...) abrigava um conjunto considerável de ex-votos militares (grilhões de


prisioneiros, espadas) e alguns túmulos de cavaleiros célebres por suas proezas.
Com efeito, na iminência de morrer, vários cavaleiros ofereciam à igreja que haviam
eleito para a eternidade o conjunto de seus equipamentos de guerra e de torneio.
Estes poderiam ser dispostos com a capela funerária para serem utilizados quando
dos serviços de óbitos. Mas as espadas conservadas em Fierbois não podiam de
modo nenhum sair dos limites da construção do santuário. (BEUANE, 2006,
p.2005).

Joana dizia que seria uma espada que ninguém jamais viu, estaria atrás do altar, Joana
d’Arc descreve essa espada que daria a vitória como marcada por cinco cruzes. A preparação
de Joana d’Arc para as batalhas era sempre a preocupação com a moral e a fé, exigia que os
soldados se confessassem, comungassem e participassem da missa, para que isso fosse
possível, o delfim ordenou que fosse um grupo de padres, acompanhar as batalhas conforme
exigia Joana, dessa forma, seu exército evitaria os pecados graves, podendo colocar tudo a
perder, não admitia a blasfêmia24 em seu comando.

21
“Sua Santas haviam-lhe ordenado que tomasse para si um estandarte. O estandarte inteiro era encomendado
por Deus e pelas vozes de Catarina e Margarida: ‘Toma o estandarte da parte do rei do céu... ’ Que ela o tomasse
de modo decidido que Deus a ajudaria.” (BEUANE, 2006.p.200). O estandarte tinha a figura de Jesus assentado
em julgamento, nas nuvens, abençoando um anjo que carrega nas mãos uma flor de lis, emblema dos reis da
França.
22
A diferença era mínima, mas trazia as palavras Jesus Maria, a cor branca e a figura da Virgem da Anunciação,
diante da qual, próximo da haste, ajoelhava-se o anjo Gabriel apresentando-lhe uma flor de lis. Do outro lado, na
direção da direção à ponta, havia uma pomba branca sobre o campo azul ordenando de flores de lis e que tinha
em seu bico um rolo onde estava escrito: ‘Da parte do rei do céu’, e não Ave Maria, como a cena exigia a
princípio.
23
A espada da vitória durou tanto quanto as conquistas de Joana, tanto quanto sua prosperidade, que declinou,
depois desapareceu, quando ela foi vencida. (BEUANE, 2006, p. 2006).
24
Proferir insultos contra a divindade.
29

Joana antes de iniciar as batalhas tentou negociar com os ingleses enviando-lhes cartas
para que retirasse seu exército sem que houvesse derramamento de sangue, mas os ingleses
enxergavam aquele ato de Joana como audácia, e duvidavam que pudessem ser vencidos por
um comando de uma garota, e com essa resistência Joana lhe envia a última carta,

A vós, ingleses, que não tendes direito algum sobre o reino da França, o Rei dos
Céus vos ordena e manda, por meu intermédio, eu, Joana, a Donzela, que
abandoneis vossas fortalezas e volteis para vosso país, do contrário eu moverei
contra vós um ataque tão poderoso que jamais se apagará de vossa memória. Eis o
que vos escrevi pela terceira e última vez, e não mais escreverei. Assinado: Jesus
Maria, Joana, a Donzela. (PERNOUD, 2004, p.71)

Os ingleses mantiveram-se resistentes e assim sendo, em 4 de maio, o combate foi


travado contra as tropas inglesa. Entre as batalhas Joana chega a ser ferida,

com uma flechada, acima do seio e, quando se sentiu ferida, teve medo e chorou,
mas Joana logo volta ao combate (...). Voltando, apanhou depressa seu estandarte e
colocou-se sobre a borda do fosso. Quando a viram, os ingleses tremeram e ficaram
aterrorizados, e os soldados do rei tomaram coragem e começaram a subir, atacando
o baluarte sem encontrar a menor resistência. (PERNOUD, 2004, p.77-78)

Dessa forma surpreendente a França sai vitoriosa.

Outras batalhas foram vencidas como a tomada de Jorgeau e a tomada de Patay. Joana
estava pronta para cumprir a segunda missão de sagrar o delfim Carlos VII, o delfim
demonstrava certa hesitação em chegar a Reims, pois tinha que passar pela Borgonha que era
aliada dos ingleses, e haviam guarnições deles. Mas a confiança de Joana era tanta que envia
uma carta aos moradores de Troyes, convidando todos os franceses a prestigiar o rei. A
coroação de Carlos VII foi realizada dia 17 de julho de 1429, consagrado a rei, foi aclamado
pelo povo e Joana d’Arc lhes diria: “Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”. (AQUINO,
2009, p.247).
30

A missão de Joana d’Arc não tinha acabado ainda restava tomar Paris e libertar o
duque de Orléans. E enquanto Joana se preparava para prosseguir com sua missão, a
humilhação caía sobre os ingleses e estes desejavam saber quem era essa camponesa capaz de
realizar todo esse feito, pois tudo estava indo bem para os ingleses e inesperavelmente o jogo
se inverte, seria o caso de Deus ter mudado de lado? Essas vitórias atribuídas ao comando de
Joana d’Arc passam a causar desconforto na Inglaterra de tal modo que começam a planejar
um tipo de investigação sobre sua vida na qual pudesse comprometê-la. Joana como se
pressentisse, disse logo após a coroação do rei, em Chinon “subsistirei por ano, um pouco
mais”. (PERNOUD, 2004, p.104).
31

CAPÍTULO 3: O PROCESSO INQUISITORIAL DE JOANA D’ARC

Este terceiro e último capítulo irão tratar dos últimos momentos de vida de Joana
d’Arc (1430-131) exposta diante de um tribunal inquisitorial eclesiástico, para ser novamente
investigada, acusada e punida sob a sentença de morte. Também será abordado o desfecho da
Guerra dos Cem Anos, após a morte de Joana d’Arc (1431-1453).

3.1 A ESTRUTURA DO PROCESSO: INVESTIGAÇÃO, ACUSAÇÃO E PUNIÇÃO

Nesta primeira seção será relatada desde sua captura a organização do processo
inquisitorial. O que constava na investigação, quais foram os crimes de acusação e as
punições que ela sofreria.
Após o ano de 1429 um período de conquistas, paz e glória para a França, o rei Carlos
VII decidiu que não haveria mais necessidade de derramamento de sangue, ele pensava que a
França estaria num controle suficiente. Diante disso, o rei “Carlos VII assinava com os
enviados do duque de Borgonha (Felipe, o Bom), um tratado de trégua... por quinze dias! Em
troca dela, o duque prometia entregar-lhe Paris” (PERNOUD, 2004, p.49). Este acordo era
feito em sigilo, para a decepção de Joana d’Arc que teria o seu último objetivo prejudicado de
fazer com que a cidade de Paris retornasse ao domínio do rei e, por fim, libertar o duque de
Orléans.25·. Entretanto, “o duque, por sua vez, só pensava em divertir-se ganhando tempo e
acumulando todas as vantagens possíveis” (...) (PERNOUD, 2004, p. 99-100). Apesar desta
trégua assinada no dia 28 de agosto, Joana d’Arc e seu pajem26 Alençon entraram em Saint-
Denis e se prepararam para atacar a Paris, porém a cidade comprometida com os anglo-
borguinhões resistiu, Joana d’Arc acabou sendo ferida e seu pajem morto.

Desde o tratado estabelecido pelo rei Carlos VII com os borguinhões, o rei dispensou
os serviços de seu exército, isso significaria que qualquer atitude do exército dali em diante
não contaria mais com o apoio financeiro do rei Carlos VII, ainda sim, houve tentativas de
ataque por conta do exército, porém sem obter vitórias. No final de 1429, Joana d’Arc e seus
homens juntaram-se ao exército real comandado por Charles d’Albret com o intuito de libertar
Nivernais, Saint-Pierre-le-Moutiers e La Charité, mas as cidades já estavam fortemente

25
Feito prisioneiro na batalha de Agincourt.
26
Aquele que acompanhava um príncipe, um fidalgo ou uma dama, prestando-lhe serviços.
32

dominadas pelos ingleses, no qual resistiram, fazendo com que o exército francês batesse em
retirada. Nesse meio- tempo a trégua teve um basta, pois,

Compiégne, prometida aos anglo-borguinhões recusou-se a acolhê-los; em maio de


1430, Felipe, o Bom, sitiou a cidade. Joana chegou em 23 de maio para socorrer “as
boas gentes de Compiégne”. Em 24, tentou uma saída (...). Em quanto isso,
Compiégne fechava precipitadamente suas portas, Joana foi aprisionada por um
escudeiro borguinhão e, depois, no de Beurvoir, de onde ela tentou saltar do torreão,
quando soube que o rei da Inglaterra a comprara por 10.000 libras. Entregue aos
inimigos, foi aprisionada no castelo de Rouen a partir do fim de dezembro de 1430.
(BEUANE, 2012, p. 30-31).

Joana d’ Arc ainda poderia ter tido a chance de ser libertada mediante a uma oferta de
resgate ou por meio da troca de prisioneiros, mas não houve nenhuma manifestação de ajuda
dos partidários de Carlos VII para libertar Joana d’Arc. A falta de reação da corte francesa,
abre para um leque de interpretações, sendo a mais evidente: abandono ou traição.

Neste momento Joana d’Arc se tornava ré de um tribunal eclesiástico num solo


inglês, ela estaria enfrentando novamente uma investigação. Porém desta vez correspondia a
um processo acusatório, a pedido da Universidade de Paris, que possuía uma fidelidade aos
ingleses. “A Universidade de Paris, cumulada de favores e benefícios dos ingleses depois de
devotar-se inteiramente ao duque da Borgonha, sentia como verdadeira humilhação as vitórias
de Joana. Entre os membros da Universidade que assim se sentiam estava o Pierre Cauchon,
antigo reitor”. (PERNOUD, 2004, p.100). Pierre Cauchon um dos beneficiados ganhou dos
ingleses “por seus bons serviços, a diocese de Beauvais” (PERNOUD, 2004, p.103). Assim
sendo, “os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem
guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon,
devotado a causa dos invasores e, por isto, refugiado em Rouen, território dos ingleses (...).
Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal”. (AQUINO, 2009, p. 250).

O processo inquisitorial movido contra Joana d’Arc era inegavelmente tendencioso


com pretexto religioso e intencionalmente político, cujo interesse se fazia da Inglaterra. Para
que o processo prosseguisse conforme planejavam, acusando Joana d’Arc de indícios de
irregularidades contra a fé, e assim acusá-la de heresia e sobre tudo que caberia julgá-la de
crimes contra a fé, para tal, seria necessário uma investigação minuciosa para encontrar algum
deslize de sua conduta, uma tarefa difícil, pois já existia esse tipo de investigação realizado
em Poitiers (1429), Joana d’Arc teria se submetido aos teólogos do delfim Carlos para
33

comprovação de sua ligação divina, no qual, nada constataram, mas, a saber, que este
processo em Poitiers não foi usado nem anexado neste processo de acusação.

A investigação foi a primeira fase da estrutura do processo, iniciando antes mesmo da


abertura oficial em 9 de janeiro de 1431. A investigação correspondia analisar sua fama, visto
que seu ato passava a ser conhecido por todos. Essa tarefa foi atribuída por Isambard de La
Pierre; “ele percorreu grandes distâncias, indo até Domrèmy, para reunir a documentação
suficiente para que pudesse analisar e estruturar o julgamento. Testemunhos, cartas, crônicas,
tudo que foi encontrado e eleito como relevante foi utilizado contra ela”. (ROCHA, 2009,
p.72).

O processo foi organizado da seguinte forma, conforme relata Beuane,

O processo de condenação se desenrola de janeiro a maio de 1431. É um processo


por heresia conduzido diante de um tribunal da Igreja sediado em Rouen e reúne,
como era de hábito, um representante da inquisição e um ordinário (isto é, o bispo
do lugar) (...). A primeira parte do processo é consagrada ao interrogatório da
acusada. Na segunda parte, intervém um promotor designado pelos juízes e que
exerce o papel de acusador público encarregado de produzir os principais pontos de
acusação. Jean d’Estivet, promotor da provisória de Beauvais, formula assim, a
partir dos interrogatórios, o libelo27 em 70 artigos, submetido ao acusado, e depois,
sem dúvida, o libelo de em 12 artigos, utilizado para a sentença. Joana não teve
advogados na medida em que é vedado a quem quer que seja dar ajuda a uma
herética. (BEUANE, 2006, p. 18).

O processo de Joana d’Arc foi realizado oficialmente com uma abertura solene em 9
de janeiro de 1431. Joana d’Arc passou por seis audiências públicas, no total de quinze
sessões, entre 21 de fevereiro a março de 1431. Foi advertida por Cauchon, conforme narra
Pernoud:

[...] Pierre Cauchon pediu a Joana que prestasse juramento e enfatizou: “Nós a
proibimos de deixar a prisão que lhe é destinada no castelo de Rouen sem nossa
permissão, a menos que esteja convencida do crime de heresia”. Joana respondeu
com presteza: “Não aceito essa colocação. Se eu escapar, jamais alguém poderá
censurar-me de haver transgredido ou violado minha fé”. Essa resposta foi como que
colocar repentinamente, o “dedo na ferida”, pois Joana passou a ser tratada como
prisioneira de guerra, trancada em prisão inglesa e vigiada por carcereiros ingleses.
Pierre Cauchon pretendia mover contra ela um processo por crime de heresia, como
eram normalmente os processos da Inquisição. As mulheres intimadas pela
Inquisição eram, no entanto, encarceradas nas prisões das dioceses e arquidioceses e
guardadas por outras mulheres. No processo contra Joana houve, portanto, uma
fraude manifesta, e as intenções de Cauchon e dos demais universitários estavam

27
Exposição em forma de artigo, por escrito, daquilo que o autor intenta provar contra o acusado. Libelo
acusatório: exposição articulada dos fatos criminosos que o Ministério Público pretende provar contra o réu.
(PERNOUD, 2004, p. 116).
34

bem definidas: minimizar o fato de as vitórias terem colocado em perigo a ideologia


instaurada por eles para dar ênfase à legalidade das duas coroas que ostentaria o rei
da Inglaterra, estendendo seu poder não somente sobre seu próprio reino, mas
também sobre o que ele acreditava ter conquistado. (PERNOUD, 2004, p. 126-127).

Joana d’Arc no decorrer das audiências públicas respondia as perguntas com


inteligência e segurança, chegando até mesmo constranger o júri, e para evitar que ganhasse a
simpatia do povo que acompanhava as audiências, resolveram realizar interrogatórios secretos
que ocorreram na prisão, para dessa forma não prejudicar o andamento do processo.

Conforme as repostas da Joana d’Arc no decorrer do interrogatório, Pierre Cauchon


criou uma comissão encarregada de compactuar a volumosa acusação de setenta artigos para
doze artigos “alguns quesitos [artigos] eram falsos” (PERNOUD, 2004, p.138), a intenção era
que estes artigos passassem por uma avaliação identificando claramente com base nas
repostas de Joana d’Arc no que consistiriam os crimes contra a fé.

As respostas de Joana d’Arc resultaram na compilação de doze artigos observados


pelos seus inquisidores:

I – Uma mulher diz e afirma que, com a idade de cerca de treze anos, viu com os
seus olhos, S. Miguel, algumas vezes S. Gabriel e também uma multidão de anjos.
Santa Catarina e Santa Margarida também lhe apareceram corporalmente, junto de
uma fonte que brota perto de uma grande árvore que, na sua região, é conhecida por
“Árvore das Fadas”; os doentes com febre dirigiam-se aí em grande número, para lá
recuperarem a saúde. Essa fonte e essa árvore são, portanto, lugares profanos. Essas
santas ordenaram-lhe que fosse procurar determinado príncipe secular, que lhe daria
armas e que, graças a ela, recuperaria um grande domínio temporal e a honra perante
o mundo. Elas ordenaram-lhe que envergasse traje de homem, que ela recusa
abandonar, mesmo para ouvir missa e receber a comunhão. Esta mulher, “com
desconhecimento e contra a vontade de seus pais” abandonou, com cerca de
dezessete anos, a casa paterna e viveu depois no meio de homens e de soldados,
“não tendo nunca ou, pelo menos, muito raramente, outra mulher com ela”.
“Discordou e recusou” submeter-se à Igreja militante... “Não aceita submeter-se à
decisão ou ao julgamento de qualquer homem, mas somente ao julgamento de
Deus.” As suas santas revelaram-lhe que ganharia a salvação, se conservasse a sua
virgindade... “Afirma que está tão certa da sua salvação, como se estivesse já no
reino dos céus.” II — A dita mulher diz que o sinal recebido pelo príncipe ao qual
ela foi enviada, sinal que fez esse príncipe decidir a acreditar nela e a recebê-la para
fazer a guerra, foi que S. Miguel veio até ao dito príncipe, no meio de uma multidão
de anjos, uns dos quais tinha coroa e outros asas; com eles estavam também Santa
Catarina e Santa Margarida. O anjo entregou ao príncipe uma coroa; uma outra vez
foi um arcebispo que recebeu o sinal da coroa e a entregou ao príncipe na presença
de numerosos grandes senhores da Corte. III — Essa mesma mulher afirma que S.
Miguel se terá “identificado perante ela”, tal como Santa Catarina e Santa Margarida
[...]. IV — A referida mulher diz e afirma que está certa do que vai acontecer acerca
de certas coisas futuras... No que se refere às coisas ocultas, gaba-se de as conhecer,
ou de as ter conhecido.... Por exemplo, que será libertada e que os franceses farão,
sob seu comando, os maiores feitos jamais cometidos em toda a cristandade [...]. V
— A citada mulher diz e afirma que é por ordem de Deus que enverga traje de
35

homem. Descrevem-se essas vestes: “túnica curta, capuz, jaqueta, grilhetas, calções
com muitas franjas, cabelo cortado em redondo por cima das orelhas, não
conservando qualquer peça de vestuário própria do seu sexo”. Recebeu a Eucaristia
“nesses trajes”, os quais, apesar de “muitas vezes lhe ter sido pedido e aconselhado”,
se recusa a abandonar... “Assim, por nada deste mundo faria juramento de não voltar
a envergar esse traje e de não voltar a pegar em armas. Em tudo isso, afirma que
procedeu bem e que faz bem em obedecer a Deus e às suas ordens.” VI — A dita
mulher confessa e reconhece que mandou escrever muitas cartas, nas quais foram
apostas as palavras JESUS, MARIA, com o sinal da cruz [...] Disse frequentemente
que não fez nada que não fosse por ordem de Deus”. VII — Este quesito retoma a
história do encontro de Joana com Roberto de Baudricourt, que lhe forneceu um
traje de homem, armas e uma escolta. “Ela prometeu-lhe rodeá-lo de grandes
domínios e vencer os seus inimigos; fora Deus que a incumbira dessa missão. ” VIII
— Recorda-se que, “sem ninguém a obrigar, precipitou-se do alto de uma torre
muito alta (Beaurevoir) ...”. IX — A mulher em questão diz que Santa Catarina e
Santa Margarida lhe prometeram conduzi-la ao paraíso, se conservasse a sua
virgindade de corpo e de alma, virgindade que lhes votou.... Não pensa ter cometido
atos de pecado mortal; pois, segundo diz se estivesse em estado de pecado mortal,
não lhe parece que Santa Catarina e Santa Margarida a visitariam todos os dias,
como costumam fazer. X — A mesma mulher diz e afirma que Deus ama algumas
pessoas ainda vivas, nomeadas, e designadas por ela, na medida em que ela própria
as ama... Recorda-se que as santas falam francês, “uma vez que não são do partido
dos ingleses”. XI — Esta mulher diz e confessa toda a devoção e toda a honra que
vota a S. Miguel e às suas santas. Dedicou-se a elas e obedeceu-lhes sem consultar
ninguém, nem pai, nem mãe, nem cura, nem prelado. Repete que acredita neles tão
firmemente como na fé cristã. [...]. XII — Ainda a dita mulher diz e confessa que, se
a Igreja quisesse que ela fizesse algo contrário às ordens que diz ter recebido de
Deus, não consentiria nisso, fosse pelo que fosse. Afirma que sabe bem que tudo o
que consta do seu processo lhe aconteceu por ordem de Deus e que lhe será
impossível fazer o contrário do que faz. Por esse motivo, não se quer submeter à
decisão da Igreja militante, nem de quem quer que seja no mundo, mas somente à de
Deus, Nosso Senhor, de quem executará todas as ordens, sobretudo no que respeita
às suas revelações e ao que faz em consequência delas [...]. (BERTIN apud CERINI,
2010, p.68-69).

A função do tribunal eclesiástico era fazer com que o acusado reconhecesse seus erros
perante a Igreja Triunfante e retornasse para a verdade, o sistema processual inquisitório tinha
como característica a confissão do réu. Era costume a lei secular agir sobre punições de
torturas e execuções de réus, seguiam as influências do Direito Romano. A justiça civil era
punir atos que atentasse contra a integridade e delitos contra fé, ou seja, não tinha distinção
entre crimes comuns ou delitos contra fé. Eram julgados tanto crimes de heresia, magia como
homicídios, calúnias etc. A Igreja católica percebeu a necessidade de fundar um tribunal
eclesiástico e seu objetivo não era só de preservar os ensinamentos da fé como única e
verdadeira sobre cuidados de estudiosos preparados. Mas, também em manter a harmonia e
controle social. Pois aconteciam muitas revoltas populares e por consequência linchamentos e
acusações injustas. Então, para evitar essa desordem social e propagação de doutrinas
contrárias a fé Católica. O tribunal eclesiástico condenava tais crimes religiosos: heresia,
36

sacrilégio, blasfêmia, cisma, simonia, violação de sepultura, feitiçaria, bruxaria, entre outros.
A importância desse tribunal era incentivar a perfeição espiritual da sociedade cristã e obter o
seu arrependimento. Isso era feito através de varias punições, podendo ser pública ou secreta.

A pública a mais comum, reforçava a religiosidade popular e a confissão do réu que


compunha o sacramento de penitência. O que diferenciava o ofício da lei civil sobre da
eclesiástica estava entre os réus penitentes, impenitentes e relapsos. Os penitentes era
interesse da Igreja, pois se mostravam arrependidos e estavam dispostos a submeter a
quaisquer penitências. Já os impenitentes que recusavam a reconhecer seus erros, e os
relapsos que reconheciam, mas logo recaia na heresia, esses passavam a ser responsabilidade
do poder civil. (GONZAGA, 1993, p.130-142)

No caso da Joana d’Arc, a inquisição tentava extrair sua confissão de culpa, insistindo
que as vozes ao invés de Deus poderia ser influência de demônios; que os acessórios usados
durante as batalhas, a espada de Sainte Catherine de Fierbois28, o estandarte29, a
mandrágora30 e a árvore das fadas31, estariam associados aos crimes de feitiçaria e
supertição. Além dos trajes masculinos que estaria transgredindo a fé, pois justificaram com a
passagem bíblica do livro de Deuteronômio 22:17, “ A mulher não deverá usar artigo
masculino, nem o homem se vestirá com roupa de mulher, pois quem assim agi é abominável
para Javé seu Deus”.

Não houve tortura física, apenas ameaças e sobre isso Joana lhe respondia: “mesmo
que me arrancassem os membros e me separásseis a alma do corpo, eu nada vos diria. E se eu
vos dissesse alguma coisa, depois eu diria que vós me forçastes a fazê-lo”. (PERNOUD,
2004, p. 145). Embora não houvesse torturas físicas, passou por torturas mentais e desgastes
físicos, quando presa era acorrentada a ferros que a incomodavam. A intenção de lhe provocar
medo era por conta do processo já se fazer muito demorado, desta forma Pierre Cauchon
temia que isto lhe comprometesse. Para que o processo fosse concluído de vez, foi montada

28
Joana mandou buscá-la na cidade de Fierbois, a mando de suas vozes.
29
Confeccionada sob instruções das vozes.
30
Gênero de plantas solanáceas, de sabor e cheiro desagradável, raiz grossa que lembra a forma humana. A essa
planta, antigamente, atribuíam-se virtudes mágicas e afrodisíacas. Joana foi acusada de “carregar no peito uma
mandrágora” (PERNOUD, 2004, p. 139).
31
Ou “árvore das damas”, era uma árvore localizada próxima à casa de Joana d’Arc. Esta árvore era uma
referência onde ocorria uma “festa tradicional, cujas origens remontam tradições muito antigas” (PERNOUD,
2004, p. 21). Costumavam-se dançar, levar nozes, pães, bebiam da fonte do Rains, cuja água, dizia-se curava.
No decorrer do processo inquisitorial (1430-1431) a árvore das fadas foi considerada o ponto de partida onde
Joana d’Arc aprenderia a feitiçaria.
37

uma audiência pública no dia 24 de maio de 1431, no cemitério de Saint-Ouen, na presença de


uma fogueira já pronta, para advertir Joana mais uma vez contra seus crimes a fé. Uma
maneira encontrada de intimidá-la e provocar medo. Os doze artigos que passaram a ter um
teor acusatório foram lidos em públicos, consistiam em:

1º - As aparições que Joana d´Arc via desde os treze anos eram perniciosas
sedutoras e ligadas ao demônio.
2º - Os sinais dados ao rei, na comprovação de que era mesmo uma enviada de
Deus, não passavam de mentiras que denegriam a Igreja.
3º - Não é possível reconhecer os anjos nas vozes que ela descreveu e seguir seus
conselhos era um erro de fé.
4º - Utilizou-se de adivinhação e superstição para saber dos acontecimentos futuros
e suas consequências.
5º - Ao utilizar vestimentas masculinas blasfemava contra Deus, transgredindo a fé e
sendo alvo de idolatria.
6º - Foi cruel ao colocar os homens em conflito em nome de Deus. Por inúmeras
vezes utilizou-se dos sinais Jesus Maria e do sinal da cruz em suas cartas.
7º - Transgrediu os mandamentos de Deus no momento que não honrou o dever com
seus pais.
8º - Seu salto da Torre de Beaurevoir foi um desrespeito à fé e um pecado mortal.
9º - Se contradiz no momento em que argumenta que guardou sua virgindade para
garantir sua ascensão ao céu, cometendo assim um pecado contra a fé cristã.
10º - Ao dizer que os santos estavam contra a Inglaterra e a Borgonha blasfemou
contra eles.
11º - Usou-se de idolatria e invocação para manter contato com as vozes, o que
também era considerado um erro na fé.
12º - O pecado de não reconhecer o poder designado por Deus à Igreja Militante.
(ROCHA, 2009, p. 78-79)

Joana d’Arc acabou cedendo às acusações e para tal, foi covencida que escaparia da
morte, tendo como punição a prisão perpétua, uma prisão da Igreja na qual seria vigiada por
mulheres. Desta forma assinou a ata em forma de cruz abjurando seus “crimes”. “Mas dois
dias depois, aconselhada por vozes, voltou atrás em suas confissões e retomou as roupas de
homem. [Decorrente a isto], um breve processo por relapso condenou-a a morte. Em 30 de
maio de 1431, morreu queimada, na Praça do Vieux-Marché de Rouen, a pronunciar o nome
de Jesus”. (BEUANE, 2012, p. 32).

Esta seção busca elencar alguns pontos crucias no decorrer do processo inquisitorial
acusatório de Joana d’Arc, o qual é reforçado diversos pontos de sua biografia.
Recapitulando o primeiro processo realizado em Poitiers, investigou se a missão Joana d’Arc
poderia ser atribuída a Deus conforme afirmava. Concluíram que ela não apresentava
nenhuma irregularidade na conduta de fé e que a missão que afirmava ter merecia um voto de
confiança. Após essa verificação, constatou-se que Joana d’Arc, antes de se tornar
comandante de guerra, vivia normalmente como as demais garotas de sua época. Tinha boa
38

relação com a família, os vizinhos e com a igreja. Este comportamento relatado por várias
testemunhas é confirmado no terceiro processo conhecido como processo de reabilitação ou
anulação (1456), que será abordado brevemente- visto que este não é o foco deste estudo- na
segunda seção deste terceiro capítulo.

O processo inquisitorial acusatório teve caráter eclesiástico deixando evidente que não
havia a intenção de anexar ou reconsiderar o primeiro processo de Poitiers, o que leva a crer
que o registro do processo pode ter sido destruído, a fim de não prejudicar o objetivo do
segundo processo.

Apesar do segundo processo ser atribuído a um tribunal inquisitorial eclesiástico, a


intenção não era apenas acusar Joana d’Arc de heresia, mas afirmar, conforme desejavam os
ingleses, que tentaram de todas as formas obter o arrependimento dela e a conversão a Igreja
Católica. Entretanto, como Joana d’Arc sentiria remorso de algo que tinha plena consciência
não ter cometido? Talvez de forma proposital, a primeira investigação em Potiers não foi
anexada neste processo, caso contrário comprovaria que ela possuía boa conduta ou pelo
menos daria um equilíbrio justo ao processo de acusação.

A Igreja tinha a intenção de abandonar o caso, pois Joana d’Arc na penúltima sessão
de julgamento passou por uma tortura emocional, no cemitério de Saint-Ouen, na presença de
uma fogueira já pronta. O que fez que por medo assumisse os crimes contra a fé, aceitando
uma culpa que a todo tempo vinha negando ter cometido. Entretanto

na prisão, suas vozes visitavam-na, reanimando-a. e ela mantinha-se fiel a elas.


Como raramente acontecia nos processos de gênero, ela enfrentou corajosamente os
acusadores, e mesmo quando aconteceu de ceder, esgotada, ultrajada e sequiosa do
sacramento da Eucaristia, logo recobrou ânimo, voltando à recusa de dobrar perante
os homens (...) [desta forma, o plano dos clérigos parecia funcionar, pois]. Aliviado,
o tribunal dos clérigos não mais hesitou. [E por parte da igreja, Joana d’Arc d’Arc
foi] excomungada, afastada da comunidade cristã ‘como um membro apodrecido’.
(DUBY, 1992, p.276).

Porém era preciso que antes o processo inquisitorial passasse a ser responsabilidade de
um tribunal eclesiástico e que fosse garantida uma fama de herege, esgotando toda a
possibilidade dos feitos dela serem atribuídos como milagres.

A condição de Joana d’Arc como uma prisioneira comum de guerra no Castelo


vigiadas por homens reforça a real intenção do seu processo inquisitorial que tinha interesse
inglês por detrás. Por se tratar de uma inquisição da Igreja Católica, ela deveria estar
39

“encarcerada na prisão da diocese e arquidiocese e guardada por mulheres” (PERNOUD,


2004, p.126-127). Sem mencionar, o primeiro processo que não foi reaproveitado,
consequentemente não teve a participação de nenhum inquisidor do processo de Poiters, nem
de testemunhas e advogado.

Além de todas as circunstâncias enfrentadas, Joana d’Arc ainda teve o direto negado
de recorrer ao julgamento do Papa32 “‘Peço que me leveis à presença do Senhor nosso. O
Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder. Tudo que lhe disse seja levado a
Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para qual dirijo o meu apelo!’ ” “em vão, porém,
apelou”. Conforme Aquino, “o júri era de todo ilegítimo (...). A Santa Sé não fora em absoluto
informada da constituição real de tal tribunal”. (AQUINO, 2009, p.250).

Nem o rei Carlos VII e ninguém da corte francesa socorreram Joana d’Arc no processo
inquisitório. O que comprova que essa iniciativa não partia da Igreja, caso contrário,
provavelmente, o rei seria penalizado por usar de feitiçaria para apossar-se do trono da
França, o que levaria a sua destituição como ocorreu pelo Tratado de Troyes. No entanto, o rei
Carlos VII não representava ameaça, pois era considerado despreparado. Os ingleses sabiam
que juridicamente ele tinha direito de sucessão de trono, pois sua linhagem era legítima,
porém houve o acordo do Tratado de Troyes onde após a morte de seu pai Carlos VI, a
Inglaterra assumiria as duas monarquias. Entretanto, com Joana d’Arc vencendo as batalhas, a
França reestabeleceu a moral e fez com que seu Estado sanasse essa divida com a Inglaterra.

Muitos ingleses não aceitavam que uma simples camponesa conseguiria modificar o
rumo de uma guerra e acreditavam que os atos de Joana d’Arc tinham uma atribuição
maligna, caso contrário os fariam acreditar que teriam sidos abandonados 33 por Deus. Se esse
pensamento disseminasse prejudicaria ainda mais o direito de recuperarem a coroa francesa,
conforme a Inglaterra tivera conquistado pelo Tratado de Troyes.

Joana d’Arc deixou claro que sua morte foi injusta, graças à negligência de Pierre
Cauchon, “bispo, morro por sua causa. Confirmo isso diante de Deus.” (PERNOUD, 2004,
p.152).

32
A igreja era governada pelo Papa Martinho V (1417-1431). (FRÖHLICH, 2010, p.110).
33
Quando vinculado ao abandono de Deus significaria que deixariam de ter parte com Deus por estarem no erro,
no pecado.
40

3.2 FRANÇA E INGLATERRA DE 1431 A 1453

Nesta segunda seção, será discorrido o resultado de uma longuíssima guerra após a
morte de Joana d’Arc.

A Guerra dos Cem Anos atingiu gerações e apresentou reviravoltas inesperadas, como
a batalha de Agincourt que favoreceu os ingleses. Mas o surgimento da jovem camponesa
Joana d’Arc tornando-se comandante do exército francês foi responsável pela coroação do
delfim da França, Carlos VII. Isso gerou uma mudança súbita e de difícil aceitação, ao ponto
de acarretar a morte de Joana d’Arc por meio do processo inquisitorial eclesiástico. A questão
agora seria compreender como a dinastia inglesa e a francesa, finalizaram essa disputa de
sucessão de longos anos sem a presença de Joana d’Arc d’Arc?

A França teria mais motivos para sucumbir do que a Inglaterra, pois se o


restabelecimento do país dependesse da intervenção de Joana d’Arc, os franceses voltariam a
um estado de calamidade como estava antes do surgimento da Pucelle de Orléans.
Infelizmente, Joana d’Arc morreu sem concluir dois dos quatros objetivos que tinha o de
retomar Paris e libertar o duque de Orléans. A França estaria desmotivada pela morte de sua
guerreira mais ilustre, enquanto isso os ingleses poderiam aproveitar este momento de
desânimo e continuar a atacá-la com mais chances de êxito.

Entretanto, a maior característica da Guerra dos Cem Anos é não ter respostas óbvias,
ou seja, a Inglaterra poderia ter mais chances, pois o seu perfil na guerra era se valer de boas
estratégias, contudo, gradativamente a França conquistava e mantinha os seus territórios.
Antes destes resultados, ainda no ano da morte de Joana d’Arc

Os ingleses não desistiram da retomada das conquistas militares e das questões que
favoreciam o seu poder; em 16 de dezembro de 1431, eles coroaram o rei da França
em Paris, o ainda menino Henrique VI que recebera em Westminister a coroação da
Inglaterra: no percurso do cortejo tradicional que marcava as cerimônias de sagração
de um rei, viu-se, através de um jogo de cordas e roldanas magistralmente
manobradas, um anjo descendo do céu para colocar duas coroas na cabeça do jovem
soberano. Essa realeza presumida não iria muito longe. Cada novo ataque das forças
francesas iria ser marcado por uma vitória. (PERNOUD, 2004, p. 159-160).

Embora as inúmeras tentativas dos ingleses, os franceses se uniram e retomaram o


ânimo, suas conquistas datavam desde 1432 com a retomada de Chartres, depois Lagny, entre
outras sucessivas conquistas. A forma com que a França ia progredindo parecia validar as
41

últimas palavras de Joana d’Arc d‘Arc “antes de 7 anos, os ingleses perderão mais do que tem
na França”. (PERUNOD, 2004, p.151)

Durante esse tempo, o rei Carlos VII logo tratou de retomar as negociações com a
Borgonha. “Elas se estenderiam até as conferências de Nervs, depois de Arras, no de 1435. E
logo depois, em Compièngne, firmava-se um acordo entre a França e a Borgonha o qual seria
ratificado em 10 de dezembro do mesmo ano por Carlos VII em Tours”. (PERUNOD, 2004,
p.160). A partir deste acordo, a França não estaria mais dividida e a boa paz que propusera
Joana d’Arc d’Arc duraria por um bom tempo.

Em 1436, Paris é retomada pelo Condestável de Richemont a pedido de Carlos VII.


Em 1440, o duque Carlos após vinte e cinco anos como prisioneiro dos ingleses retornaria a
Orléans e como gratidão a Joana d’Arc convidaria sua mãe Isabel Romée a morar na cidade,
pois após a morte “marido e do filho mais velho, ela se encontrava em dificuldades para
manter suas terras e, ameaçada pela miséria”. Romée passou a receber pensão estipulada no
valor de 48 moedas uma boa quantia para época, pouco depois o duque presenteia o irmão de
Joana d’Arc d’Arc, o Pierre, dando-lhe uma ‘Ilha dos Bois’ onde logo passaria a morar com
mãe. (PERUNOD, 2004, p.161).

Entres esses acontecimentos um dos mais marcantes ocorreu em 1449, com a entrada
de Carlos VII na cidade de Rouen, libertada após 30 anos da ocupação inglesa. Supõe que o
interesse do rei Carlos VII, pelo processo inquisitorial de Joana d’Arc d’Arc se deu nesse
período, mas foi no ano de 1450 que direcionou uma carta ao seu conselheiro Guillaume
Bouillé “mandando-o proceder a uma investigação para se conhecer com exatidão, por meio
das testemunhas ainda vivas, em que condições havia sido conduzido o processo de Joana
d’Arc e como ela havia sido condenada à fogueira”. (PERUNOD, 2004, p.161). Logo a Igreja
se pronunciou e iniciou um processo em 1452, uma investigação conduzida por Guillaume
d’Estouteville, um representante diplomático do Vaticano, também conhecido como Núncio
Apostólico. Sendo assim, o Papa Calisto III, “endereçava à família de Joana d’Arc d’Arc um
‘documento’, autorizando-a a proceder à revisão do processo34”. (PERUNOD, 2004, p.164).

A nulidade do processo oficialmente foi declarada em 7 de julho de 1456. Em 1909 Joana d’Arc foi declarada
34

beata, mas só em 1920 foi canonizada santa Joana d’Arc.


42

O encerramento da Guerra dos Cem Anos aconteceu em 1453, sobre as considerações


que a morte de Joana d’Arc não trouxe resultados pretendidos pelos ingleses, pois não
conseguiram manter o poder de uma monarquia dupla. Enquanto o rei Carlos VII conseguiria
cada vez mais estabelecer o seu domínio e logo tratou de se responsabilizar-se sobre a real
intenção do processo acusatório de Joana d’Arc. O que transformou Joana d’Arc de herege a
santa, confirmando assim, as irregularidades e injustiças de seu processo intencionalmente
causado pelos ingleses.
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CONCLUSÃO

A proposta desta pesquisa discorreu sobre o processo inquisitorial de Joana d’Arc:


conflitos políticos e religiosos, um tema inserido no âmbito da Guerra dos Cem Anos, mas
analisado do período de 1380-1453 correspondente às fases finais da guerra. A compreensão
da mentalidade medieval foi fundamental para a elaboração desta pesquisa, conhecer as
crenças, os medos e o modelo de organização das leis, para entender o desenrolar da Guerra
dos Cem Anos.

Como abordado ao longo do texto, a Guerra dos Cem Anos ocorreu num período
medieval entre os séculos XIV/XV ainda sob um regime feudal. A organização da sociedade
francesa e inglesa era controlada pelo Estado e pela a Igreja Católica, ambos tinham força de
repressão e coerção perante o povo, mas cada qual tinha suas especificidades, como leis
canônicas e as leis civis. A Igreja Católica ainda se sobressaia, pois era considerada nesta
época a depositária da fé única e verdadeira. O Estado considerava a religião como um
poderoso instrumento educativo, paz social e freio as más paixões. Poderes esses que se
entrelaçavam conforme a sua necessidade. A igreja contava com o apoio financeiro e a
proteção do Estado, este por sua vez contava com incentivo da igreja para estimular
sentimentos piedosos a seus súditos. A igreja intimidava a sociedade a seguir um modelo de
perfeição cristã, dessa forma, evitava o pecado que poderia despertar a ira de Deus, por meio
de sinais de catástrofes, misérias, epidemias, guerras perdidas etc.

O tema da pesquisa foi desenvolvido em três capítulos para facilitar a compreensão.


Ao longo do primeiro capítulo foi delineada a trajetória da organização militar das dinastias
francesa dos Valois e inglesa dos Lancaster (1380-1422), na qual ambos se confrontavam pela
sucessão dinástica. A preparação de cada dinastia no decorrer da guerra determinava quem
poderia ter melhores condições de finalizar a guerra com a vitória.

A dinastia dos Valois representou a má organização militar na guerra, pois tratou da


monarquia do rei Carlos VI que apesar de ter sido considerado um rei justo foi ausente por
conta de sua loucura intermitente. Com isso, o reino era mal administrado e o que resultou em
inúmeras batalhas perdidas para a Inglaterra. O seu sucessor seria Carlos VII, mas a futura
monarquia causava divisões no reino entre as facções partidárias dos borgonheses e
armagnacs. Os franceses borgonheses apoiava a Inglaterra, acreditavam que o governo inglês
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apresentava mais preparo para assumir as duas coroas. Já os armagnacs apoiava o rei Carlos
VI pois prezavam pela linhagem legítima de sucessão que caberia somente ao delfim Carlos
VII. Os borgonheses se identificavam com os ingleses devido o reinado de Henrique V [dos
Lancaster] demonstrar o oposto da administração francesa. O rei Henrique V detinha o
domínio de seu reino, controle financeiro, tática de guerras, diplomacia, o qual resultava numa
boa administração. Todos esses pontos positivos do governo ingleses foram demonstrados na
famosa batalha de Agincourt, uma surpreendente vitória da Inglaterra.

A vitória de Agincourt favoreceu muito os ingleses ao ponto de proporem o Tratado de


Troyes, o qual estabelecia que após a morte do rei Carlos VI, a Inglaterra assumiria as duas
coroas. No ano de 1422, morre os dois reis, Carlos VI e Henrique V, e quem passaria a
assumir as duas monarquias seria Henrique VI, filho de Henrique V. Não assumiu o trono
prontamente, pois ainda era um bebe e ficaria na responsabilidade de seus tios até que
atingisse a maioridade. Desta forma, o capítulo buscou esclarecer a preparação militar das
dinastias Francesa e Inglesa, pois a organização fez toda a diferença no desenrolar da guerra.
O tratado que previa também estabelecer a paz teve efeito contrário, as disputas entre as
facções se intensificavam e o delfim Carlos VII tinha sido deserdado do trono. Essa rivalidade
passa atingir a geração de Joana d’Arc.

A pesquisa enfatizou no segundo capítulo a biografia de Joana d’Arc, as informações a


respeito de sua vida têm como fonte os processos investigativos e suas peculiaridades. O
primeiro processo revela que Joana d’Arc levava uma vida comum em sua vila Domrèmy. Ela
tinha uma boa relação com sua família, com seus vizinhos e, sobretudo com a Igreja. Ajudava
nas tarefas de casa, sua educação era voltada fielmente para os costumes religiosos, mas não
sabia ler. Joana d’Arc teve uma vida sem constar nenhuma irregularidade, vivia como toda
garota de sua idade numa época medieval.

O segundo momento importante de Joana d’Arc, é quando passa de camponesa a


comandante de guerra, essa reviravolta em sua vida e na história da França é posta por uma
missão que recebera de Deus por meio de suas vozes. As vozes falavam que deveria salvar a
França e coroar o delfim Carlos VII. Ela conquista a confiança do delfim, assume o comando
do exército e vence batalhas contra os ingleses. Joana d’Arc despertou a esperança na França
e a fúria dos ingleses.
45

O terceiro capítulo apresentou como os ingleses reagiram aos feitos de Joana d’Arc,
planejando com o apoio da igreja uma investigação minuciosa de sua vida, para tirar proveito
de algo que pudesse comprometê-la. Essa investigação se tratou do seu segundo processo
acusatório. A estrutura do processo apresentou irregularidades que demonstrava o interesse na
morte de Joana d’Arc, o desfecho do processo foi sua pena de morte, o qual seria queimada
viva na fogueira.

A pesquisa também ressaltou o desfecho da Guerra dos Cem Anos, a vitória da guerra
foi atribuída à França que conseguiu restabelecer os seus domínios, retomar lugares
importantes como Paris, Rouen e Compiégne. A morte de Joana d’Arc não garantiu a dupla
monarquia aos ingleses, que em torno de 7 anos foram expulsos do solo francês.
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REFERÊNCIAS

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Para entender a inquisição. Lorena: Cléofas, 2009.

BARKER, Juliet. Agincourt.Trad. Mauro Pinheiro.Rio de Janeiro: Record, 2009.

BEUANE, Colette. Joana d´Arc. Trad. Marcos Flamínio Peres. São Paulo: Globo, 2006.

______. Joana d´Arc: verdades e lendas. Trad.Victor Villon. Rio de Janeiro: Cassará, 2012.

CERINI, Fabrício Reinaldo. Julgamento e processo de condenação de Joana d’Arc: teologia e


poder. 2010. Disponível em: http://revista.fundacaojau.edu.br/artigos/6.pdf. Acesso em: 23
Out.2014.

DUBY, Georges. A Idade Média na França (987-1460): de Hugo Capeto a Joana d’Arc. Trad.
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1992.

FRÓES, Vânia. Apresentação. In: DUBY, Georges. A Idade Média na França (987-1460): de
Hugo Capeto a Joana d’Arc. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1992.

FRÖHLICH, Roland. Curso básico de história da Igreja. Trad. Alberto Antoniazzi. São
Paulo: Paulus, 2010.

GONZAGA, João Bernadino Garcia. A inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993.

PERNOUD, Régine. Joana d’Arc: a mulher forte. Trad. Jairo Veloso Vargas. São Paulo:
Paulinas, 1996.

ROCHA, André Pereira. As questões políticas de um processo religioso: a complexidade do


julgamento de Joana d’Arc. 2009. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Ouro Preto.
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CRONOLOGIA


1412
Janeiro: Nascimento de Joana em Domrémy.


1423 ou 1425
Primeira manifestação das vozes.


1429


Por volta de 13 de fevereiro: Partida de Joana para Chinon.


Por volta de 23 de fevereiro: Primeira audiência com o delfim.


Fim de março: Decisão da Comissão de Poitiers.


22 de março: Carta aos ingleses.


Entre 27 de março e começo de abril: Audiência do Sinal.
Abril: Em Tours, equipamentos, espada de Fierbois. Depois em Blois, onde se reuniu o


exército real.


29 de abril: Entrada de Joana em Orléans.
5 – 7 de maio: Tomada das bastilhas de Saint-Loup no dia 4; des Augustins no dia 6; des


Tourelles no dia 7.


8 de maio: Os ingleses levantaram o cerco.


Fim de maio: encontro em Loches com o delfim.


Junho: Tomada de Jargeau, dias 16-17; Patay dia 18.


29 de junho: Partida de Gien da expedição para o coração.


Julho: Entrada em Troyes (do dia 5 ao 12), Châlons (doa dia 14 ao 15), depois em Reims.


17 de julho: Coroação de Carlos VII.


20-21 de julho: Orei toca as escrófulas em Corbény.


14-15 de agosto: Montepilloy, ingleses e franceses encontram-se frente à frente.


25-28 de agosto: Saint-Denis.


8 de setembro: Fracasso na tomada de Paris.


13 de setembro: O exército real recua para Gien e se dispersa.
4 de outubro: Cerco de Saint-Pierre-Le-Moutier, depois de la Charrité.


1430


Janeiro-março: estadia de Joana em Sully.


13 de maio: Joana chega em Melun, Lagny e depois Compiégne.


23 de maio: Joana é presa em Compiégne.


26 de maio a 10 de julho Prisão de Beaurevoir nos domínios de João do Luxemburgo.


9 de novembro: Arras.


20 de dezembro: Le Crotoy.
23 de dezembro: Chegada de Joana em Rouen.


1431
9 de janeiro – 29 de maio: Processo de Inquisição em Rouen.
 21 de fevereiro: Primeiro interrogatório público.
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 27-31 de março: Leitura dos 70 artigos do Promotor dʹ Estivet.




23 de maio: Leitura dos 12 artigos.


24 de maio: Predicação pública de Guillaume Erard no cemitério de Saint-Ouen. Abjuração.


28 de maio: Joana retoma as roupas de homem.


29 de maio: Joana é condenada como relapsa.
30 de maio: Joana morre na fogueira.

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