Vale Abraao Agustina Bessa Luis
Vale Abraao Agustina Bessa Luis
Vale Abraao Agustina Bessa Luis
Agustina Bessa-Luís
PLANETA DeAGOSTINI
Contracapa
Dirão os leitores que uma mulher como Ema não existe. Eu direi que sim. A
beleza de Ema tornara-se tão evidente que causava uma espécie de paralisia.
Página de Rosto
Agustina Bessa-Luís
Vale Abraão
PLANETA DeAGOSTINI
Ficha Técnica
© Agustina Bessa-Luís e Guimarães Editores, Lda., Lisboa - 1991
© Editora Planeta DeAgostini, SA, Lisboa - 2000, para a presente edição
Todos os direitos reservados.
ISBN: 972-747-438-1
Depósito legal: 153792/00
Impressão: Cayfosa-Quebecor, Santa Perpètua de Mogoda (Barcelona) Printed
in Spain - Impresso em Espanha
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
CAPÍTULO I
O ROUXINOL
A margem esquerda dos rios não apetece tanto, seja porque o sol a procura em
horas mais solitárias, seja porque a povoa gente mais tristonha e descendente de
homiziados e descontentes do mundo e das suas leis. A região demarcada do Douro,
que ocupa quase na sua totalidade a margem direita, prova pelo menos que o reflexo
solar tem efeito no negócio dos homens e lhes determina a morada.
Porém, há na curva que apascenta o rio pelo rechão areento, ao sair da Régua,
um vale ribeiro de produção ainda de vinhos de cheiro e que se estende, rumo à
cidade de Lamego, comarca a que pertence, até às águas medicinais de Cambres. É o
Vale Abraão, com suas quintas e lugares de sombra que parecem acentuar a memória
dum trânsito mourisco que de Granada trazia as mercadorias do Oriente e,
porventura, os gostos de pomares de espinho e dos vergéis de puro remanso.
Almansor teve residência em Lamego e escreveu aí a história da campanha com os
seus aliados, os condes moçárabes. Talvez por isso, porque corre um fio de tinta
desde a fronteira duriana até às águas do Tedo e do Távora, os poetas e os letrados
obstinados produzem as suas obras naquele território que, antes do trato da índia,
conheceu verdadeiro esplendor agrícola e comercial.
No século XIII, o rio Paiva servia de limite sul à tenência de Lamego, e lá
vivia, cerca de S. Pedro de Castro-Daire, um físico engenhoso e curador de fleumões
malignos chamado Abraão de Paiva.
Apanhado em maus lençóis com uma dona de Moimenta, que abortou em
condições desastrosas, ele deu-se ao cuidado de descer a ribeira do Balsemão e ir cair
em lugar recatado, como convinha à sua sina ofuscada. O Vale Abraão passou a ter
nome no mapa, ainda que fechado à curiosidade dos topógrafos. Com o Liberalismo,
Lamego não cessou a sua inclinação absolutista, até que o movimento Setembrista
acabou com as suas pretensões no domínio político e eclesiástico; ficou reduzida a
uma cidade estagnada, onde os parques e os monumentos condescendem em recordar
o passado feirante, alegre e próspero.
O que aconteceu ao físico Abraão de Paiva não se pode supor, excepto que
enriqueceu e morreu de febres, deixando um saquitel de peças de ouro e um gabinete
de experiências; não com ratos e porcos da Índia, mas com a famosa massa de vinhos
de Riba Douro. O estudo da Medicina fez-se tradição de família, e em 1910, data da
República, vamos encontrar um doutor Paiva casado com Maria Coelho, do Portelo
de Cambres, que era senhora de bens e que tinha nas fragas de Santos de Deus uns
pardieiros com restos de pedra de armas. As mulheres dos Paivas eram, por atributo
de sangue e linhagem, muito convencidas do seu génio em negócios e vontade de
poder e afirmação. Desde tempos remotos que carregavam o sobrenome de Pai voas.
Maria Coelho teve um neto, pachorrento e dado a letras menores, que ela quis
fazer vinhateiro e produtor de vinhos de feitoria. Não teve muito êxito com o plano, e
Carlos Paiva estudou Medicina no Porto. Era um rapaz sonso, bonitão, de alta
estatura. Casou com uma viúva e ficou ancorado em Vale Abraão, fazendo uma
clínica modestíssima e comendo requeijão e cavacas. Era guloso da mesa; do leito,
não sabia, que a mulher tinha os pés frios e o coração enroupado em flanelas. Os
Paivas gostavam de mulheres maduras, de pele branca e propensão matriarca. Houve
um Araújo de Paiva que casara em Paris com uma judia russa, informadora de
Bismarck. A biografia dele não ia além disto, mas Carlos chamava-lhe, com respeito,
"o meu tio banqueiro".
No que Carlos de Paiva se distinguiu foi em ser monitor de mulheres um
pouco solitárias de maridos vadios e que elas corriam dos braços com o pretexto de
achaques que iam até à histerectomia pura e simples. Ele falava-lhes de livros e
deixava-as crer que eram poetisas duns versos coxos em que ele efectuava uma
ortopedia de rimas óbvias. Um dia Carlos Paiva foi a Lamego por altura das festas
dos Remédios e deu com um homem de bons modos, com a filha de quinze anos, a
comer uma cambulhada de enguias num restaurante da praça. Reparou na menina,
que estava vestida de luto e que tinha tranças. Dos torcidos de cabelo escapavam-se
uns anéis lustrosos e na nuca enrolavam-se mais anéis, que pareciam azuis na luz
fulgurante da tarde. Era tão formosa que Carlos deu em atarantar-se, oferecendo-lhe
um prato de figos que lhe serviam à mesa.
— São pingo-de-mel e frescos, colhidos de manhã, da figueira.
Ema recusou com tanto brio, que o pai intercedeu por Carlos. Quis remediar os
modos da filha e tornou-se bom conversador.
Quando Carlos se apresentou como médico e agricultor, a alma do velho
iluminou-se; contou-lhe as doenças passadas como quem conta a viagem da Nau
Catrineta. Sobre a mulher falou pouco. Era remota a viuvez, mas sentira a falta da
bonita esposa, que era de Loureiro.
— Tenho um tio na Penajóia, em Estremadouro — disse Carlos. O calor fazia-
o arfar; havia uma ventoinha, e os cabelos dele voavam nas fontes. Ema reparou que
ele tinha algumas brancas.
De Estremadouro saíram com um parentesco que os aproximou mais. O velho
deu-lhe o endereço, no Romesal; era a margem direita do Douro, uma quinta
mediana, com jardim sobre a estrada. Paulino Cardeano convidou Carlos e disse que
se estivesse doente o chamava.
- Má sina a dos doutores, que só são benvindos para purga e sangria — disse
Carlos, a rir-se. Ema achou-o parvo; ninguém mais se purgava para aliviar os
humores e, muito menos, lancetava as veias. Mas depois percebeu que ele falava com
arte e varonil graça. Não o viu mais, nem pensou nele nunca. Tinha a imaginação dos
quinze anos, que não cuida do presente senão para o julgar importuno e contrário às
ilusões, que são mais preciosas do que as promessas da vida real.
Carlos Paiva voltou para casa, a mulher estava a lavar os pés, que tinha um
impetigo nos dedos e aplicava-lhes pós amarelos e federorentos. Era carrancuda,
ralhava alto, vestia-se mal. De repente Carlos Paiva deu conta disso tudo e tornou-se
manso e amável com ela. Deu-lhe razão em tudo, ela desconfiou, pôs-se a espiá-lo.
"Viu alguém" — pensou, com uma lucidez de condenado à morte. Mas Carlos não
lhe deu ocasião a mais reparos. O tempo passou e não aconteceu mais nada. Sabe-se
lá quando o coração esfria ou ganha carvão para manter o calor! Carlos de Paiva viu-
se um dia a sair do seu carrinho sujo e que cheirava a álcool canforado, a perguntar
pelo Romesal a dois moços que desciam pela estrada.
— Depois da curva, mas vá com cuidado.
Riram-se alto e foram pelo caminho abaixo, rasteirando-se um ao outro. Carlos
pensou que eram amadores de futebol, havia um campo ao lado, com redes
desmanteladas. Avistava-se a nobre vastidão das montanhas, o cálice do rio ao fundo,
a mata sombria e pesarosa sombreando a estrada. Era um lugar de delícias mas com
algo de tenebroso, rompendo dum passado de solidão inveterada. O século XVIII
povoara-o de vinhedos, havia ainda o solar e o casão de quinta, com a capela e a
escada de alpendre e colunata. Mas o mais eram pequenas casas de telhados caiados,
com neves aparecendo sobre o roçagar verde dos laranjais. O proprietário de módicos
rendimentos, às vezes saído da faixa militar, ou o negociante de panos, ou o clérigo
com filhos e cães de caça; ou o consignatário de companhias inglesas, era o que mais
havia.
Sempre endividado, sempre com hipotecas a vencer, sempre lutando com o
aumento dos salários e dos adubos, sempre abatido pelo preço dos vinhos, o lavrador
do Douro era um colosso de persistência, de afinação com o destino, de secura
empresarial. Ainda tinha um vislumbre poético para plantar um cipreste ao canto do
jardim, que via crescer, apontando-lhe o espaço como uma bala negra e moldada ao
sabor dos séculos. Esperava pacientemente um ano bom para casar as filhas e refazer
o telhado. Era dado a extravagâncias, comprava um pónei para as crianças, e uma
peliça para ele próprio. Gastava, quando tinha; quando não tinha, era arrogante e
frequentava as mulheres com uma sensualidade catastrófica. Carlos sentiu no ar o
cheiro da queimada, ardiam nas vinhas as vides da poda que dantes serviam de
combustível nas lareiras. Agora era caro transportá-las e ardiam mal, carregadas de
água. Um fumo branco e enrolado agachava-se como uma oferta mal aceita por
Jeová.
Não soube que dizer quando Paulino Cardeano o mandou subir. Estava
enroupado numa velha samarra, e não havia aquecimento na sala.
— Que surpresa! Mas que surpresa! E eu que tenho andado esquisito. Tenho
umas ouras e formigueiro nas mãos.
Carlos ofereceu-se para o medicar. Mas o que o trazia, disse, era a procura dum
vinho fino para oferecer; uma coisa garantida, de adega particular.
— Não tenho, mas pode-se arranjar. Mas é caro, doutor. É bebida de reis; e
mesmo os reis bebem zurrapa e julgam que são bem servidos. Eu sou conhecedor e
posso jurar.
Ema entrou na sala. Estava mais alta, a delgada cintura balançava dentro do
grande pull-over de pescador. E os cabelos pretos caíam sobre a grossa lã como um
rio de tinta entornada. Ela não deu mostras de o reconhecer.
— É o doutor Carlos. Lembras-te, em Lamego?
— Não me lembro — cortou Ema, com aquela dignidade infantil que cria
distâncias e se previne contra os estranhos. Mas recordava-se; achara-o bonito, com
dentes certos e brancos, uns dentes de caixeiro.
Ela pensava que os caixeiros tinham que sorrir muito e deviam ter dentes
assim. O Beto das Escadas, que lhe vendia as róbias de Verão, tinha dentes assim.
Ema reconhecia as boas famílias pelos dentes acavalados e a deformação congénita,
a cor de velho marfim, as serrilhas, o crescimento dos caninos, o atrofiado do siso;
quando se começaram a acertar os dentes por um padrão regular não foi mais
possível descobrir a nascença, os vícios, as castas, os cruzamentos, as dietas e até os
nomes de dinastias inteiras. Ela perguntou para si própria quem era aquele rapaz
corpulento demais para a idade, com um bigode chorudo e que a olhava
embasbacado.
— Em Lamego? — Ema sorriu tão depressa e tão depressa ficou séria e um
pouco desdenhosa, que Carlos Paiva se sentiu escorraçado. Levantou-se e despediu-
se.
— É visita de médico e é mesmo. Ema, traz um cálice e umas bolachas.
— Não há bolachas nenhumas.
— Não se incomode — disse Carlos, ferido.
Cardeano foi acompanhá-lo, fê-lo sair pelo portão principal, que não se abria
quase nunca. Uma varanda envidraçada ocupava toda a frontaria sobre as escadas de
pedra, obra mais recente e com mostras de obedecer a uma alta financeira. Um cão
pardo, de patas curtas, veio ladrar com uma ferocidade pronta a tornar-se em pânico.
— Cala-te, Jordão! És parvo, ou quê? — disse Cardeano, desculpando-se. Mas
Carlos ficou ainda mais sentido, jurou não voltar mais. Atirou-se para dentro do carro
com uma amargura absurda; tinha lágrimas nos olhos. Não olhou para trás. Se o
tivesse feito, veria Ema encostada à grade do jardim, acima da estrada; ela compunha
o cabelo com a mão, e aquilo podia parecer um aceno. "Quem se julga ela?" —
pensou. Atacou-o uma tristeza tão funda que perdeu o apetite, e a mulher, mais uma
vez, percebeu que estava enfeitiçado, em guerra com o mundo e com ele próprio.
O velho Cardeano foi para dentro pensativo. Ali estava um genro que lhe
convinha, era tempo de colocar a filha, ia fazer dezassete anos, a tia não a podia
segurar se à pequena lhe desse para variar. E, depois, uma virgem velha, como a irmã
Augusta, não lhe punha embargos aos prazeres; enquanto que com Ema era diferente;
queria-a criada no bom exemplo e confiada nos homens, que é sempre garantia de
paz doméstica.
Ema cresceu em condições precárias para o sentimento e favoráveis aos
segredos da vida, que em tudo se identificam com o desejo e os seus imperativos. A
solidão desperta cedo o coração humano e distancia as pessoas da unidade em que as
coisas acontecem. Aos quinze anos Ema já tinha amado, e o amor para ela era algo de
passivo e tão distante como uma ideia que já não surpreende porque é uma ideia
inatingível. Amara por efeito dum olhar que mal se aflora e tudo põe em causa: a
liberdade e a vontade de expiação. Era uma menina dócil, no entender das mestras e
das criadas, mas era sobretudo distraída de tudo o que não fosse uma fuga, um plano
de fuga, sempre adiado e sempre prestes a resolver-se. O pai achava-a um pouco
assustadora. Percebia que a estrutura da família despertava nela um movimento de
repulsa, e não a obrigava aos deveres domésticos nem a nada muito concretamente.
Cresceu nessa perigosa eventualidade que é a liberdade demasiada. Faltou-lhe a mãe,
para que pudesse redigir o protesto a um inimigo; a mãe é a primeira face do
antagónico em que pousa o imperativo do amor. Só tinha dela recordações em que
não punha confiança; eram trazidas por objectos pessoais que nunca vira usados pela
mãe. Uma mantilha, um terço, uma volta de ouro, ganham significado conforme a
história que os qualifica. Deixam de ser objectos para ser parte dum todo
indissolúvel, o espírito duma grei que pode não ter maior dimensão do que um
quadro de família.
Ema ficara órfã aos seis anos e parecia-lhe muito mais tempo. A mãe sempre
fora doente, recolhida, quase invisível no quarto. A única coisa de que se lembrava
era dum cheiro adocicado, de leite, escorregando-lhe nos ouvidos. Tivera uma vez
dores de ouvidos e deitaram-lhe leite materno para suavizar-lhe o sofrimento.
Lembrava-se desse lento gotejar e do seio brando a que se encostava. O resto era um
secreto e alucinado parentesco com o ventre donde viera, um quarto onde ressoavam
sons, palavras; onde tudo se movia e possuía uma elasticidade confortável. Talvez as
paredes do útero, raiadas de pregas que cediam ao seu peso, à sua nutrição, ao
crescimento das mãos e dos pés. Do resto, não se lembrava: do rosto da mãe, da voz
dela. Quando estava na igreja e os coros elevavam os seus cânticos, tentava distinguir
neles a voz diurna da mãe. Não conseguia. Perdia-se, como se farejasse um rasto
sempre interrompido. O suor borbulhava nas asas do nariz, pensavam que ela tinha
calor ou que se sentia mal. O pai proibiu-lhe assistir a cerimónias muito longas,
missas de festa e sermões. Vivia muito em casa e ganhou um gosto expansivo e um
pouco selvagem pelo reino doméstico, onde ela dominava, no coro das criadas que a
adulavam e que lhe rendiam toda a espécie de agrados. De resto, não faltava entre
elas um aconchego erótico, feito de segredos, de punições, de confidências, de
quezílias partilhadas, de afeições preteridas e ciúmes desesperados. A casa duma só
ama, e uma ama jovem e muito formosa, é um ves-peiro de amores e seus contrários,
que são ainda amores. Quando Ema adoeceu gravemente, tinha cinco anos, não
faltaram promessas, pactos com os santos e santas, choros de mulheres que se
aproveitam da tragédia comum para exaurir a pena que não sabem qualificar: pena de
pobreza e de preguiça em remediá-la; pequeno vestígio de harém mal terminado na
lembrança moira ou goda. Ema restabeleceu-se mas ficou lesionada da perna
esquerda. Era um defeito enorme para tantos encantos que possuía, e, se ela se
conformou, o pai tomou isso como ofensa pessoal. Dizia sempre que era pena ser
aleijada, e dizia-o como se a punisse desse demérito; como se uma mercadoria lhe
saísse mal aviada.
Enquanto durou a doença, veio tratá-la uma tia paterna que vivia no convento;
tomara o véu de noviça mas não fizera os votos. Era acanhada de espírito, feia e
bondosa. Tanto se acomodou a Ema e à casa, mais do que lhes ganhou afeição, que
transferiu o enxoval e o livro de Kempis para o quartinho que lhe destinou o irmão.
O oratório, enorme móvel do século XVII, deslumbrava-a. Para ele viveu, como se
desposasse aquele armário verde, com dourados; era como se desposasse uma farda,
cheia de bordados e condecorações. Tia Augusta comungava todos os dias e dizia a
Ema que tinha no céu uma cadeira de braços.
— O Senhor sabe que eu não posso estar muito tempo sentada sem pousar os
cotovelos — dizia, sincera.
As criadas riam-se dela; mas riam-se só durante duas semanas, porque se
habituavam às condições da casa e a rotina proibia a ironia. Por fim, os dislates de
dona Augusta pareciam razões tão normais como as outras. Ema não gostava que
mofassem da tia, como não gostava que quebrassem as xícaras ou deitassem uma
nódoa nos aventais. O espaço do lar era um santuário que ela queria bem tratado; o
respeito, e às vezes a veneração, pertenciam ao ritual doméstico. E também uma
memória teatral e inumana, a memória da mãe defunta estendida diante do oratório,
que funcionava como um cenário. Ema via-a pela chapa de latão do confessionário,
perfurado em cruz e que era um simples ralo entre a sala de jantar e a sala de entrada.
Já não havia capelão em casa, e o confessionário não era usado. Daí Ema vira a mãe
morta. Estava amortalhada com o vestido de noiva, que lhe ficava apertado, apesar de
ela parecer tão sumida debaixo das pregas de renda. Ema disse para si que gostava de
estar ali deitada, tendo à cabeceira o oratório aberto de par em par e, dentro, Santa
Brígida, advogada das cozinheiras, ao que se dizia, porque carregava um grosso livro
supostamente de receitas culinárias.
— Porque não pode ser outra coisa? Por exemplo, um livro de árias ou de
sermões?
Tia Augusta disse que as mulheres não liam livros. Não era coisa que lhes
interessasse, e isto não as diminuía em nada. Eram muito poderosas mesmo sem ler o
Amadis de Gaula e Rolando Furioso que, no entanto, amavam senhoras sem letras e
sem latim nenhum.
Ninguém sabia se Ema era inteligente ou se era simplesmente adequada ao seu
meio. Tinha alguns estudos e sabia um pouco de piano. Num colégio de Lamego
aprendera alguma coisa de etiqueta e de redacção. Sabia comer com elegância, mas
depressa retomou as grosseiras maneiras das servas e das jornaleiras que limpavam a
boca com as costas da mão e fincavam na mesa o cotovelo. Escrevia-lhes, no entanto,
as cartas de namoro das mais analfabetas, pondo-lhes sentimentos finos, dizendo
"esta que te ama", o que soava estranho e parecia frase de novela. Beijavam-lhe os
pésinhos brancos quando os lavavam e admiravam-lhe os cabelos negros, cacheados.
E os olhos, aqueles olhos cor de ágata, com estrias pretas, debruados dum friso
escuro que parecia tinta; tinham ao canto um ponto róseo como nas bonecas de
porcelana.
Tia Augusta receava por ela, queria que fosse freira. Imaginava-a com touca e
rosário à cinta; um rosário grande, cujo crucifixo de cobre brilhava, saltando na
cadência do andar contra a perna, em que as saias rugiam levemente.
— Freira, a nossa menina? — Marina punha-se furiosa. Era pequena, bonita,
de pestanas duras como varetas. Tinha um génio bravo, como Medeia, e os rapazes
que a pretendiam recuavam, repensavam o caso. Branca era mais dócil, gostava de
homens, sem submissão, apenas por vício. E Alice, que tinha como plano casar acima
dos seus meios, mostrava-se distraída, fazendo deslizar o fio da faca no molho de
couve apertada no punho. Era o "caldo verde", segado como fios de linha, e que
enchia a bacia de folha, tocado às vezes duma gota de sangue espirrado do dedo.
Todas amavam Ema e lhe traziam novidades. A casa fervia de ditos, intrigas,
assuntos de fora, coisas maliciosas e sentidas, de morte, de sexo, de paixões várias. A
casa era um ninho de abelhas, agitada, enrolada no próprio zumbido, cativeiro de
sonhos e de avisos; promíscua, doce, pachorrenta, zelosa. O gado pequeno grunhia e
piava, os tanques tinham sempre uma baba de roupa que foi posta em primeiro sabão.
A lavadeira era uma espécie de Core que velava sobre os sinais de vida e de morte.
Procedia à lavagem das toalhas enegrecidas do lastro gordurento da cozinha ou
manchadas de vinho espesso e roxo. Ela sabia a casta da uva só de ver a sua nódoa;
sabia das regras das mulheres e da sua vida genital, só de tocar os panos
sanguinolentos. Sangue fresco e vermelho, se era o de virgens; escuro e corrompido,
se de mulheres casadas, já perto da idade crepuscular do sexo. A lavadeira era muda,
duma família de mudos e de idiotas. Mas ela, Ritinha, singularmente curiosa e alegre
de perceber o mundo. Parecia um sarmento de videira, seca e cinzenta, com aqueles
cabelos que tinham sido sempre como uma grossa teia de aranha, presos na nuca com
um travessão com brilhantes e dois rubis de cada lado. Eram bonitos enfeites de feira
que já se não usavam. Ainda se vendiam nos pequenos estancos, de mistura com
"punaises" e ganchos invisíveis, em pacotinhos. Ema sempre encomendava da
Régua, a pequena Babilónia do distrito, as suas coisas de costura e toucador. Havia
sempre uma mulher em recados, de cá para lá na estrada, aproveitando às vezes os
carros de praça em retorno, muito íntima com os motoristas, gente vivida do tempo
do volfrâmio e que conhecia a lenda da comarca inteira.
Ema não gostava de sair. Até aos quinze anos, excepto para comungar, podia
dizer-se que não pôs o pé fora de casa. E mesmo no dia da comunhão solene, tão bem
organizado por tia Augusta, recebeu o Senhor no oratório, e o fotógrafo veio retratá-
la entre vasos de aspidistras, na varanda que era ao mesmo tempo estufa. Saiu apenas
para se mostrar às senhoras Mellos, gente distinta, avaliadora, culta, que passava o
Inverno em Cascais.
Eram duas irmãs, uma viúva; tinham casa no Viso, que era pouco distante das
termas. Ema entrou na sala, com o seu andar ligeiramente cambaleado, e ficou
assente que ela era uma mulher assustadora. A beleza dela era tão manifesta que as
senhoras Mellos, da directa linhagem dos Mellos, de Ataíde, do célebre marquês, se
endireitaram nas cadeiras como se recebessem uma visita ameaçadora.
Ema percebeu o efeito que causava com o vestido comprido, armado e cheio
de pregas, à religiosa. Nesse momento, houve como que um crepitar dum fogo
desconhecido, no fundo do seu inocente coração. As palmas das mãos foram
percorridas por um formigueiro, como sempre que se emocionava. Medo, emoção
fria e desprezo, era o que sentia. Tudo isso ainda mal destacado duma candura
infantil e generosa que, de resto, nunca perdeu completamente.
Voltou para casa e o pai deu-lhe a primeira jóia valiosa, uma medalha de ouro e
um cordão. A medalha tinha turquesas, que era pedra destinada às raparigas solteiras.
Em tudo havia uma regra, produzida pela necessidade; uma ordem que a experiência
tinha posto à prova e depois adoptado com uma determinação quase cruel. Por
exemplo: as filhas da casa não tinham o mesmo tratamento dos rapazes; eram criadas
à parte, debaixo duma severidade paternal que se destinava a moderar nelas as
fantasias eróticas e as paixões que, se mal disciplinadas, lhes seriam fatais. Embora
as coisas tivessem mudado, o lavrador Paulino Cardeano conservava restos dessa
educação austera, sem risos e sem intimidades. Rezava à noite o terço, passeando no
corredor e não dando mostras de fazer qualquer oração; abandonara os costumes
antigos que eram o de reunir a família e os criados, à luz dos candeeiros de bocal, e
rezar, com uma piedade nobre e vinculada aos acontecimentos do dia, aos trabalhos
da vinha, aos apetites do corpo. Ele era um homem bom mas, às vezes, atordoado
com as mulheres. Ema não lhe conhecera nunca amiga ou "amantilhona", como se
dizia. Era extremamente cauto, para surpresa dos vizinhos, informados de todas as
histórias escabrosas das redondezas.
Mas até os padres eram menos facciosos, gracejavam sobre o amor, o que era
indício de não estarem submetidos nem julgados. O Porto, como cidade grande,
consumia os pecados de toda a província como se consumisse fruta fresca. Já não
havia a legenda inflamada do eros burguês, e as mulheres podiam francamente
receber homens em casa sem que isso as comprometesse e as infamasse. Tinham
tantos amantes como queriam e havia sempre maneira de os esquecer, pessoal e
colectivamente. Na realidade, as coisas sempre foram moderadamente conduzidas
pelo espírito clerical, que não era rigoroso mas nassa-culpas. Grande parte da doçura
dos costumes, em Portugal, é devida ao cura de família, que assistia a todo o
movimento surdo das paixões humanas, encaixando-as na teoria do perdão e nos
quadros da sobrevivência, que a moral frequenta com pés de lã. Tinham o cuidado de
não tomar a imaginação pelo coração e muito menos pelos interesses públicos e
privados.
Não se pode dizer que houvesse uma província doentia, reprimida, em que a
hipocrisia fizesse ninho e a ave da lei ali chocasse. Tudo eram arranjos, medidas
cautelares e sentimentos improvisados. Não havia com que fazer uma tragédia; ela
consumia-se à luz da razão popular, que, se não era douta nem escrita, era a razão do
possível. Não havia outra moral senão a agilidade da alma. Mas, com Ema, as coisas
começaram a decompor-se. Ela significava a extremidade dalguma coisa, a sua
beleza constituía uma exorbitância e, como tal, um perigo.
O que sentiram as senhoras Mellos quando a viram vestida como para casar, de
branco e com um sorriso indefinível, ligeiramente cruel, como se fosse um animal de
presa farejando a sua dieta de sangue quente, não foi nada agradável. A educação
delas, própria para cabeças duras e nervos a condizer, informava-as de que estavam
diante dum caso único; uma rapariga capaz de livre decisão e que nem sequer tinha
ideia do que era a submissão.
Podia, era seguro, levar até ao crime a sua rebelião, só que não tinha qualquer
pensamento nesse sentido, tão tranquila estava de poder fazer o que queria.
— Há qualquer coisa nela que repugna — disse a irmã mais velha, cujo
vocabulário agressivo era inexistente. Quando se dava ao trabalho de censurar
alguém, limitava-se a chamar-lhe "uma pessoa de critério". Chamara assim a sogra
odiosa, a quem devia vexames imperdoáveis e que a levara à beira da loucura. —
Tudo nela tem um ar sinistro, a começar pela beleza.
— Acha-a assim bonita? — disse a irmã mais nova, tocada no pressentimento
de animal doméstico que vê o seu território invadido.
— Não sei como explicar. A beleza dela confunde-se com uma espécie de
génio.
Em geral, a irmã mais velha, cujo nome não adianta lembrar, só chegava a um
grau de inteligência superior quando se tratava de defender a sua espécie; ou seja, a
de pessoa convencida dos seus direitos da idade adulta, a sua cultura, em suma. A
cultura não é mais do que isto: um conjunto de prerrogativas.
Quanto a Ema, as irmãs Mellos sabiam que ela não possuía uma cultura. Era
completamente desafectada de tudo, inclusive da beleza que tinha e do orgulho ou
ambição que ela podia desencadear. Limitava-se, com quinze anos feitos, a inclinar-
se da varanda do jardim e interrogar toda a gente que passava. Usava um tom
desprendido, como se fosse uma princesa que via mover-se o mundo a seus pés, mas
com o qual não tinha muito em comum. Não por vaidade, mas por pura desinibição e
desfrute do seu tempo. Respondiam-lhe com a altivez amigável que se estabelece
entre gente que dispensa a resistência de classes. Eram seus inimigos por princípio e,
ao mesmo tempo, reciprocamente reconheciam-se como motivo para agir. O que uma
pessoa vê na outra não é o seu semelhante mas o seu dissemelhante, o que lhe
proporciona a espontaneidade dos seus actos.
O facto de Ema frequentar muito a varanda provocava bastantes precalços. Ao
desfazer a curva da estrada, era forçoso levantar os olhos para a figura ali debruçada;
e não havia motorista que ficasse indiferente. O choque da beleza ofuscava-o, isto
sem querer exagerar. Perdiam por momentos o controlo e eram rudemente
projectados contra a parede; outras vezes chocavam de frente com o carro que subia
em sentido contrário e que não tinha maneira de se desviar, posto que o muro da
propriedade de Ema era uma espécie de baluarte com quatro metros de altura.
Também acontecia atropelarem gatos e cães, ou seguirem em ziguezague até à recta
seguinte, causando o pânico sobretudo entre os frequentadores da taberna do
Alexandre da estrada, que vinha à porta, com a camisola manchada de vinho e o ar
fleumático dum Poirot de tasca e ramada. As coisas foram piorando e chegaram aos
ouvidos das autoridades. Uma manhã, pelas onze horas e pico, o Paulino Cardeano
teve a visita do presidente da Câmara em pessoa. Recebeu-o no salão de baixo, com
móveis de jacarandá e um piano, verdadeiro monumento de respeitabilidade e de
sensatez algo vertiginosa que há nos salões de província, com dois espelhos dourados
e cinzeiros em forma de folha lanceolada, com uma ninfa das águas como remate.
Como é que uma tal deidade celebra as exéquias dum cigarro ou dum havano, não é
fácil de explicar. Mas ela láestá, vestida de verde, com cabelos soltos e muito
parecida às senhoras de Klimt. O presidente da Câmara, um homem doentio e de
grandes olhos esbraseados, por causa da fadiga e do nervosismo constante, entrou
imediatamente no assunto.
— A sua filha é um perigo para o trânsito nesta estrada.
— O quê? — disse Cardeano, estupefacto.
— Desculpe-me pôr as coisas assim, mas é um facto.
O Cardeano pensou que os presidentes da Câmara são sempre desprovidos de
substância interior, de tutano, de calor humano. Conhecera um que se chamava
Homero e nada mais fazia senão prometer o saneamento nos lugarejos mais atrasados
e acabar com os pobres. Era acometido por uma estranha fixação, a de agradar ao
povo. Era nele como uma inferioridade, como se uma melodia interior o prevenisse
dum fim inesperado.
— Não sei o que a minha filha. — ia a começar a dizer o Cardeano. Mas o
presidente interrompeu-o.
— Ela não tem culpa, é evidente. Mas aquela varanda é muito capaz de não
estar bem colocada. Seria bom mudá-la de sítio.
— Mudar a varanda? — disse Cardeano. A sua pequena cabeça calva cobriu-se
dum tom arroxeado que alarmou o presidente.
— Não digo isso. Não sei se me faço entender.
— Não percebo absolutamente nada.
Quando Cardeano usava o advérbio "absolutamente", fazia-o como os
advogados, para ganhar tempo. Estava perto de entrar na questão que tinha a ver com
Ema à varanda. Seria ela causa de alguma cena imprópria? Se assim fosse, ele teria
sido informado, de tal modo a casa era percorrida por um zumbido de novidades e de
notícias de que nada escapava. Mas Ema, acima de tudo, era uma criança e
comportava-se como tal. Falava tão alto da varanda que se podia ouvir até à curva,
entre Fontelas de Cima e Fontelas de Baixo. Não tinha segredos nem sabia nada das
armadilhas da vida. À cautela, Cardeano pediu explicações mais detalhadas.
— Não é nada de mal — disse o presidente, tomando o seu ar afável das
sessões da vereação. Cruzou a perna e pediu licença para fumar. A ninfa verde, que
podia autorizá-lo ou não, não foi consultada. — O certo é que esta curva já está a ser
encarada como a curva da morte. Todos se despistam aqui, e o motivo é essa maldita
varanda.
Não aludiu a Ema, mas Cardeano compreendeu, de repente, onde estava o
carácter inteligível da questão. Ema era a causadora. Ao que parecia, o povo tinha
apresentado queixa, mães e pais e esposas também, quanto à presença de Ema na
varanda. Ela causava como que uma rápida resolução de jogar o carro contra o muro,
gerando um procedimento irreversível. Os jovens motociclistas também eram
atingidos e ficavam em estado deplorável.
— Se ao menos não usassem capacete! Mas é de lei, e não morrem, na maioria
dos casos. Ficam incapacitados para o trabalho e são um encargo para a família
durante toda a vida.
— Mas será que as coisas são mesmo assim? — Cardeano estava com muitas
dúvidas. Aquele jardim à beira da estrada podia bem ter entrado nos cálculos do
presidente e talvez ele esperasse chegar a um acordo sobre isso. Ouvira dizer que ele
procurava terreno para fazer uma casa, e que melhor sítio do que aquele, arejado,
descoberto e voltado ao Sul? Cardeano cada vez achava razões maiores para
desconfiar. Mas prometeu tomar medidas.
— Ou recua a varanda ou faça o que entender. No sentido de afastar a sua filha
dali.
— Não vou pôr a minha filha numa torre. Não é nenhuma princesa encantada
— disse Cardeano. Não se ria, nem nada. Estava simplesmente com cara de caso.
Perguntou a Marina o que se passava, e ela não foi uma testemunha muito
prestável. Mas Alice teve uma explicação, esperta como era e, sobretudo, pouco
disposta a garantir a beleza da ama. Preferiu dizer que os janelões de cima deviam
encandear os motoristas, porque o sol abrasava os vidros e eles despediam faíscas.
Era a célebre varanda-estufa, construída nos tempos áureos, quando Cardeano se
casara. Estava cheia de plantas, begónias e avencas e cóleos vermelhos. No Verão,
secava-se lá a marmelada e os figos pingo-de-mel. Uma gota de âmbar ficava
cristalizada na sua boca rebentada e que deixava ver as sementes rosadas. Dali se
acenava ao comboio das quatro que levava para o Porto os parentes e as visitas: o Dr.
Carmezim, professor de surdos-mudos, e a esposa Chelinha, feia como um
manipanço mas tão boa que até dava pena. Eram os padrinhos de Ema e vinham
todos os anos passar o Natal, trazendo uma caixa de passas de Alicante. Gente séria e
ponderada. O doutor Carmezim era ateu, mas muito conservador. Cínico, com falas
de livre-pensador, bonito homem, ria-se superiormente da Igreja e dos padres.
Quanto a Ema, não se davam bem, apenas se toleravam. A beleza dela, cada vez mais
inegável, produzia no professor Carmezim um despeito e uma arrelia difícil de
explicar.
— Ele desadora-a — disse Alice, que era muito despachada em burlas e em
acusações. O jovem seminarista Nelson, de mãe beata e fina como um coral, atrevia-
se com pensamentos mais profundos. Dizia ele:
— Não me admira. A beleza é aquilo que mais abate o nosso fingimento.
Amava Ema como se fosse um favor que lhe devia. Não julgava acabar os
estudos e dizer missa, embora a mãe o exortasse nesse sentido; era um belo rapaz,
romântico e sem escrúpulos, pronto a vender-se para sossego do corpo e da alma.
Rezar muito parecia-lhe baixeza, se era por humilhação e falta de recursos. Durante
anos viu Ema como uma estátua e servia-a com deleite e não com imitação de
obediência. Era realmente o seu escudeiro e até o seu trovador. Escrevia versos para
ela e pensava casar rico um dia para que Ema não se envergonhasse dele. Teria
propriedades muradas e uma grande casa com sofás floridos e persianas. Não queria
emigrar, mas travar relações com alguma herdeira a banhos na Póvoa em quem
pousaria os olhos dourava como se padecesse desconsolos gravíssimos. A leitura dos
pensadores cristãos dera-lhe um vocabulário irresistível.
— Qual maior amor do que o do esposo para quem a formusura é obra do
muito amor? — dizia Nelson. Alto e delicado, com uma tristeza varonil, fazia grande
impressão nas mulheres. Branca engravidou dele e depois abortou, tudo com muito
sigilo e escusa da casa inteira. O doutor Paiva veio vê-la, mostrou-se reservado e não
a denunciou. Foi um pretexto para voltar a ver Ema. Entretanto ficara viúvo e usava
uma braçadeira preta, o que lhe dava um ar de confraria; Ema achou-o abatido e
descobriu nela própria um apetite pelas coisas tristes, como se fossem o galardão dos
seus sacrifícios. Os seus sacrifícios eram aborrecer a vida que levava, as revistinhas
baratas com receitas de cordeiro ensopado e moldes para saias.
Já não lhe apetecia frequentar a varanda do jardim nem mostrar-se em toda a
sua arrebatadora beleza. Para que queria a beleza se não podia ser admirada senão
por caixeiros e trabalhadores de pau e pica? Quando ela passeava na quinta, indo
sentar-se num banco de xisto donde se descobria a radiosa face do rio e as vinhas
baixas dum verde extremoso e protector, os homens paravam de sulfatar, tinham
ditos vulgares; um brutal desejo voava como mariposas negras. Ema tomava aquilo
como injúria, como uma forma de posse. "Hão-de pagá-las" — pensava. Não sabia
como enfrentar esse grupo tão acirrado, capaz de a desnudar com um furor cego e
fútil. Mas não seria imaginação e eles estavam inocentes e só ela era a causadora
duma vontade aterradora, fechada a qualquer generosidade? O desejo deles parecia-
lhe uma coisa lúcida e criminosa, a única coisa por que se esperava tão
pacientemente a morte. Começava a deter-se sobre esse rodeio que os homens fazem
para chegar à injustiça, fonte do sumo prazer. Entendia já a hesitação do professor
Carmezim em aclamá-la como perfeita afilhada e beleza perfeita. Insultando o que
havia de belo em Ema, ignorando-o, ele produzia nela um temor, o de não ser capaz
de agradar, o de ter que duvidar dos seus dons. Aqueles homens, furiosos de desejo e
de culpa, porque insultavam nela a inocência e a graça, queriam apenas gozar com a
injustiça praticada. Alguma coisa em Ema era força impressionante e neles fraqueza
absorta; a batalha tinha que se dar e esvaziar o instinto feroz lançado em combate
singular. A fraqueza imitava a força, bastava um golpe hábil e Ema cairia. O golpe
não tinha leis, tomaria as mais absurdas formas. Já aquela petição para a proibir de
assomar à varanda, com a vinda do presidente da Câmara e a sua secretária (tudo
absolutamente viável e selvagem), era um golpe parecido a um crime. Ema percebeu
que só podia fazer uma coisa: ceder, dissimular, dar-se por morta.
Mas não haveria tréguas. O próprio pai a considerava sujeita a um mandado de
prisão; tinha-a à sua mercê, prolongava o momento de manifestar o seu poder sobre
ela.
Era um carcereiro afectuoso, mantinha-a em perpétuo conhecimento das suas
regras de cativeiro e espertava nela o apetite da liberdade com pequenos efeitos
paternais, a licença para sair, gastar dinheiro, vestir-se bem. Casar-se, sobretudo isso.
Ela cravava os olhos no rio, que se ampliava na bacia da Régua, ainda seguindo um
curso natural e banhando as vinhas de Vale Abraão, onde se percebia um eixo de
prosperidade e de luxo. Ema ia buscar o velho binóculo para decifrar o que acontecia
nessa lonjura lancetada de sol. Percebia rapazes que se banhavam e a copada massa
do parque da Caverneira, meio lendária, aberto ao público aos domingos. A varanda
de madeira da casa do médico Paiva distinguia-se mal na subida que ia dar à
grandiosa entrada dos Lumiares, cuja moradia escurialesca causava um pouco de
intranquilidade. Ema pensava que era habitada por gente detestável e snobe, mas cujo
mérito estava nessa mesma evidência de pri-vatividade irascível.
O que Ema descortinava com o binóculo, verdadeiro caso de progresso no
Romesal e que a mãe trouxera com o enxoval de noiva, era completamente
exorbitante. Mais do que os primeiros folhetins da televisão ou do que os segredos de
boca a orelha que se contavam.
O binóculo, forrado de pele castanha e com poderosas lentes Zeiss,
desempenhava uma função quase telepática. Ema tinha a impressão de que, quando
assentava a mira num vulto à entrada da Régua e reconhecia nele Branca ou Marina,
elas apressavam o passo, sentindo-se observadas. E que os banhistas, defronte da
Caverneira, ficavam de repente enervados e tratavam de se enrolar nas toalhas. Com
o binóculo, mais do que aparentando a Terra com a Lua, Ema ficava íntima do espaço
varrido pelo olhar; minuciosamente devassado, com uma lentidão arcaica, como se
tratasse de seguir dinossauros ao longo do areal de Vale Abraão.
Porque era sobretudo Vale Abraão que ela desencantava da sua solidão em que
pairava algo de antiquíssimo e perdido da memória dos homens.
Algo de cruel, aliado ao banditismo pós-liberal e às incursões dos comuneros
foragidos de Toledo. E, para lá da linha da água, um canto esbranquiçado da casa que
lhe constava ser a de Carlos Paiva, com uma balaustrada de varanda de madeira que
o tempo estremecera, causando-lhe lesões incuráveis. "É lá que ele vive" — pensava
Ema. Chamava-se Ema, como a mãe. E, ao olhar para o retrato da defunta, com
cabelos soltos até à cintura, parecia-lhe ter que contribuir para algo que ela deixara
incompleto — uma vida de prazer, em que o coração faustoso e nobre pudesse ter o
seu refrigério. A toda a hora, com escândalo de tia Augusta, o binóculo era assestado
na paisagem. Não ficava uma vinha por reconhecer, uma figura por adivinhar, um
cão até por assinalar. Os perdigueiros, os guardiões da Serra, de pêlo fulvo, os
fraldiqueiros, os lazarentos, os rafeiros, como Jordão, que tinha o seu carácter, no
entanto, entre perverso e educado. E os filhos do feitor Marcolino, que eram oito, de
duas mães, e a quem ele dera nomes iguais: o Cândido e o Candidinho, ambos
atrasados e com algo de espiritual e ausente que lhes tornava a miséria prodígio
imerecido.
"É lá que ele vive" — pensava Ema, malucando nesse desconhecido que se lhe
tornava próximo e desejável pela fantasia de que o rodeava. Mas não pensava em
casamento. No Natal, o padrinho, que veio consoar, com a madrinha, disse:
— Ema não tem namorado? — E deitou-lhe um olhar que a enxovalhava, que
lhe rompia as entranhas como uma arma branca.
Ema pensou, pela primeira vez, que o casamento estava a preparar-se como
uma nova condenação, como uma injustiça mais elaborada. Carmezim deu-lhe a
notícia de que precisava de tomar as águas. Tinha o fígado avariado, era o termo que
usava, como se se referisse a uma máquina, um motor que, de tempos a tempos,
precisasse de reparação. Mas o que pretendia, no absoluto da sua vontade, odiosa
apesar de afectar complacência e grandeza de alma (outro dos seus termos favoritos),
era despertar na afilhada a perturbação sexual que iria resolver-se no casamento.
A juventude, minada assim na sua substância equivalente à eternidade, teria
que receber o golpe que não cicatriza mais; seria corrompida pelo desejo revelado; e
a aventura humana começaria para Ema com todos os seus males do século, a
ansiedade e o tema da senilidade. Convidou-a para os acompanhar às termas.
Ema preparou-se para veranear, fez alguns vestidos leves e vaporosos, ficando
com o ar algo postiço de postal ilustrado. Aqueles postais em folhetim que enchiam
caixas de chapéus e que a mãe recebia de Lausane, e de Paris, quando lá vivia por
temporadas um irmão nefelibata. A mãe de Ema era a quarta filha duma dessas casas,
primeiro abastadas e depois decadentes, em que se criava uma geração de criaturas
aluadas, em quem as paixões não faziam efeito algum e pareciam inúteis sob o ponto
de vista biológico. Eram de tal maneira exangues e apáticas, que não era possível
combiná-las com a realidade. Quanto a Ema, ela herdara dessa gente um
pressentimento de que a vida era outra coisa e que aquela que vivia não passava dum
sistema de agressões e defesas, como um jogo que só a morte podia resolver.
Ficou um pouco intimidada com o Palácio das termas, feito para receber o rei
nos tempos das suas caçadas. Era um Palácio como nos contos de fadas, iluminado,
no meio dum parque que parecia ampará-lo com a sua elevada, frondosa
personalidade. Pela manhã, estando as alamedas desertas, Ema encontrava nesse
parque uma sedução perniciosa: como se fosse seguida por alguém que, de repente,
se ia deixar ver, misto de vassalo e soberano, um amante ideal, em suma.
A permanente presença dum casal de noivos, que chegavam à sala de jantar de
mãos dadas, que trocavam a comida dos pratos, que se mostravam galantemente
apaixonados, produzia em Ema um êxtase até aí desconhecido. Até aí, a casa era o
seu mundo, os tesouros da casa de que era a herdeira bastavam para lhe dar a
sensação de felicidade. Limpava os santos do oratório com um algodão embebido em
leite; polia as salvas de prata vendo na sua lua azulada o rosto delicioso e quase
imaterial.
Mas agora uma outra estrutura do seu direito de viver assomava da
profundidade do parque, aparecia na fragilidade dos gestos amorosos dos noivos e na
lógica duma nova noção de ser. Teve vergonha de andar só ou ter apenas como
companhia o padrinho, que achou pesadão, desajeitado no vestir, familiar demais
com os criados. Reparou que ele limpava as unhas com a própria unha, quando
estava desocupado e se aborrecia. De resto, Carmezim sentiu-se mal com os
primeiros tratamentos e caiu de cama dois ou três dias, ficando a mulher a cuidá-lo.
Ema vagueava como um fantasma pelos grandes corredores, deitando um olhar aos
quartos dos hóspedes, se as portas estavam abertas. As roupas deles, como acabadas
de despir, davam-lhe uma sensação de intimidade, duma mão forte que fosse arrastá-
la, agarrando-a com uma brutalidade feudal, iniciando-a para a idade do desejo.
— Estás amarela como a cera. Não te sentes bem? — O padrinho pousou nela
um olhar apagado, quase indiferente. Mas estava atento à infinidade de práticas que o
corpo da mulher sofre só por efeito da imaginação.
Ema acabou por ganhar gosto aos seus passeios no parque, gosto em estar
sozinha, medindo a sua insatisfação e demorando qualquer tipo de solução para ela.
Queria ser eternamente jovem, naquela expectante certeza de alguém que pudesse
adivinhar a sua invisível grandeza. O noivo reparou como ela era bonita e fez disso a
primeira chantagem matrimonial; a noiva debulhou-se em lágrimas e mostrou a Ema
uma aversão violenta. Era a comédia da rivalidade com todos os efeitos da
humilhação e da frustração; com todas as condições para a inexorável etiqueta do
amor.
Ema ficou impressionada e ferida. Não se sentia culpada, mas instalou-se nela
a desconfiança. Passou a proteger-se dos seus próprios sentimentos, mesmo os mais
insignificantes.
Quando voltou para casa, tia Augusta estava doente. Morreu pouco tempo
depois, e Ema verificou que, modesta e silenciosa como era, lhe fazia imensa falta.
Não se podiam avaliar as pessoas pela comparação a que eram submetidas;
cada uma era uma lição em que a aspiração se esconde. Tia Augusta deixou expressa
a sua última vontade: queria ser amortalhada no hábito de Nossa Senhora de Lourdes,
o que resultava muito caricato, dado que se tratava duma senhora velha e hidrópica.
Sobretudo o nariz volumoso e picado de crateras escuras dava-lhe um ar
completamente bufo. Parecia postiço e, além do mais, burlesco. Mas a ordem de tia
Augusta foi cumprida, e ninguém se riu. Estava depositada em frente do oratório,
tendo por cabeceira essa peça admirável, pintada de verde e ouro, com o Jesus nas
palhinhas que ela tanto amara. A faixa azul tocava-lhe os sapatos brancos e tinha em
cima deles uma rosa amarela, segundo a revelação de Bernadette. As pessoas faziam
por não olhar para o rosto de dona Augusta, nem para o seu ventre inchado. Subiam
as escadas e paravam um pouco no patamar de colunas, como para retomar o fôlego,
mas na realidade para reunir forças e concentrarem-se naquele acto sepulcral.
Entravam e deitavam em cima do corpo umas gotas de água benta com o hissope.
Branca tinha pousado uma folha de papel transparente sobre o cadáver para que não
se molhasse. Ema pôs luto fechado e não o quis tirar senão passados seis meses. À
noite, quando se foi deitar, sentiu enormemente a falta da velha senhora; senil como
estava, unicamente empenhada em devoções, abanando a cabeça com um tique que
parecia escândalo triste mas era só um descontrolo motor, ela fazia-lhe falta. Ema
desenrolou lentamente o cabelo, que tinha atado como para dar-lhe mais severidade,
e pensou que alguma coisa estava encerrada, na sua vida. Já não era mais a menina
da casa tendo por protectora aquela alma dócil e, no entanto, sem ser conivente com
as curiosidades do mundo. Deitou a cabeça para trás, e as veias do pescoço
desenharam-se, azuladas na pele palidíssima. A beleza parecia abrir-se sobre a
superfície sedosa duma dor dormente. Era como uma fera que tem fome, um animal
pequeno ainda, mas cujo porte denuncia já todas as graças da vontade predadora.
Sentia que os laços com a mediocridade e o amor dos caminhos da infância
estavam soltos; assim como soltara a massa dos cabelos pretos, também o coração
perdia uma espécie de constrangimento onde, no entanto, ele bebia uma felicidade
nunca mais recuperável.
Trazia ainda luto pela tia Augusta quando o doutor Paiva foi chamado. Branca
estava de cama com uma cólica, e o sofrimento dela parecia perturbar-lhe a razão.
Não entendia quando lhe falavam, e apenas repetia, duma maneira ansiosa e
assustadora: "Vai passar vai passar" Carlos ficou só com ela no quarto e voltou com
uma cara tão indiferente que Ema achou motivo para se tranquilizar. Estava sentada
no contra-luz da janela e o estore corrido desenhava-lhe no vestido um corte como se
emergisse dum poço. As longas pestanas carregavam a cor dos olhos, que pareciam
negros. Eram, na realidade, claros, entre o verde e o loiro, o que, sem saber porquê,
surpreendeu Carlos. Estes primeiros movimentos em que a sedução actua decidem
das paixões, dando-lhes uma resistência que não teriam se elas enfrentassem logo as
suas consequências. Parecia só que ele se distraía com uma visita de rotina e nem
sequer pensava que Ema era bela.
A casa, a situação dela e o seu recheio, interessou-o de repente. Como uma
pessoa que tem em conta a operação duma hipoteca, deitava os olhos em volta para
uma primeira avaliação. O que viu agradou-lhe. A mesa sólida, de patas elefantinas,
tinha aos cantos revistas antigas, de assuntos caseiros, como moldes de vestidos e
bordados. Era evidente que Ema não as consultava; estavam ali desde o tempo da
mãe dela, "a defunta", como Paulino dizia, e eram uma espécie de homenagem aos
seus gostos e à sua presença já muito apagada. Paulino tinha-a ido buscar, e trouxera-
a em carro de aluguer, feliz por ter encontrado uma mulher bonita, caseira e de
poucas ambições. O doutor Paiva pensou que a casa não era de boa construção e que
o mirante, revestido de lousa, ameaçava ruína. Mas havia livros e objectos valiosos,
vindos por heranças obscuras guarnecer um desses lares frios e cuja abundância é um
vício do ganho miraculoso dos vinhos finos entesourados nas adegas, e por fim
resgatados para a mesa dos opulentos, com o carácter dum pacto selado.
O doutor Paiva dissimulava a sua vontade de cortejar Ema, com aquele súbito
cálculo em que se envolvia perante a fortuna dela. Há homens que nem submetidos a
tormentos confessariam o seu amor por uma mulher, sobretudo tratando-se de uma
mulher honesta. É como se a palavra amor trouxesse um ar pestilento ou, pelo
menos, um ar em que se respira o conflito dos sexos. Já de si, homem e mulher são
muito difíceis de harmonizar; são precisos padrinhos, sacramentos, certidões e um
sem número de provas que lhes permitam coabitar sem perigo. Quanto mais se o
amor se instala com eles; de certeza que não podem aguentar essa partilha de
emoções e delitos, tanto morais como sexuais.
O doutor Paiva tinha já a experiência dum casamento que só não falhara
completamente devido à paciência que era nele uma forma de esperança adiada
resistindo aos sentimentos fortes e a sua demonstração. No seu entender, tratava-se
de humores desfavoráveis a uma compleição que se quer virtuosa e bem ordenada. A
figura de Ema, sentada na cadeira de palha e com um gato pequeno ao colo (ela
apanhara-o do chão como se apanhasse um lenço que lhe caísse, e acariciava-o com
alguma melancolia, o que fazia ressaltar nela um desejo suave), a figura de Ema
embriagava-o. Lembrou-se da esposa azeda e meio selvagem que lhe deixara uma
fortuna regular em vinho generoso e algumas pratas. Mas era cáustica, de peito chato
e ciumenta, a ponto de lhe cheirar os lenços do bolso e suspeitar amantes em todas as
criadas. Por fim, ela fez-se tão apegada com uma, a Natália, que não podia privar-se
dela nem destiná-la a outra coisa que não fosse essa espécie de secreta praxe que há
entre amos e escravos: uma indecifrável relação de amor e desprezo mútuo.
A mulher de Paiva morreu, constou que se envenenara, e tudo se tornou de
repente claro na vida dele. Era como um banhista que volta à superfície depois dum
mergulho em que os sons se reduzem a uma atordoada vibração nos ouvidos e a cor é
um registo de verdes baços. Respirou e não pensou mais em casar-se.
Mas agora reparava naquela rapariga cuja beleza ele não comentava com
ninguém e que ninguém parecia notar, pois falar nos dotes físicos duma pessoa com
mais de quinze anos pode despertar desejos ou confessar pensamentos lúbricos.
Coisa de que se acautela a sociedade por a ter por desintegradora das suas regras.
Todavia, dessa discrição, que vinha sendo dada pela má catadura do pai,
incapaz de mostrar alegria perante as graças duma filha, resultava que a rapariga
crescia insatisfeita de si própria, e era assaltada muito cedo por uma curiosidade
sobre o amor que era uma forma narcísica de se comprometer nele. O
descontentamento em que crescia, a recusa em louvar os seus dons e tomá-los como
uma oferta da natureza para que lhes desse destino nobre, fazia com que a mulher
ganhasse depressa um desdém pelo casamento, tão parco em prazeres da imaginação.
Suspeitava que os amantes eram melhores provas do seu conhecimento interior; que
só eles podiam ser uma via de acesso para ela própria. Enquanto se iniciava no
período de enamoramento, a mulher vivia espontaneamente, amava-se por
intermédio do retrato que dela fazia o amante. Mas isso não durava; voltava a cair
nas dúvidas impostas desde a infância: que era insignificante e efémera em todos os
seus actos.
Com Ema as coisas não foram muito diferentes. O pai não era por cautela que
impedia a revelação das suas perfeições; era por ignorância. Era com profunda
insinceridade que optava pelo dito popular, quando se elogia a beleza dum filho: "É
perfeitinho", diz a mãe, com uma ponta de aristocrática secura. Paulino Cardeano via
a filha desabrochar, mas negava esse facto para que a sua negação tomasse o carácter
duma lei universal.
Queria-a recatada, portanto não a podia entregar à aventura humana de se
reconhecer bela e capaz de contrariar a sua condição feminina, isto é, a sua
obscuridade. Uma vez informada dos seus dotes físicos, da inteligência fecunda, ela
iria passar para o lado dos homens e tornava-se nalguma coisa de indecifrável e com
destino mal parado.
Não sabia Paulino que as "heroínas", mulheres das histórias de cordel que se
apresentavam munidas dum apetite sexual fora do comum, eram afinal simples
fugitivas dessa condição milenária da solidão e do esquecimento. O que elas
invejavam nos homens não eram os órgãos genitais, mas o que eles representam: uma
criatura completamente prestável aos jogos do acaso e livre da submissão que
constrange o perverso, o mal visto, o apaixonado pelo seu próprio mérito, a lançar-se
debaixo dum comboio ou a comer um punhado de arsénico. Ema conhecia esses
casos limite que faziam eco na região e que passavam, como uma onda mole e
salobra sob os pilares das pontes familiares, e que iam esbater-se longe, uma vez
desgastado o trabalho das agitações do amor.
O que era o amor? Ema achava-o um derivativo duma vocação profunda e
inflexível; um luxo que simboliza paisagens que a ninguém é dado ver; sonhos,
apetites, manias que nada mais são do que o desejo de ser uma outra pessoa, de
arrancar desses símbolos do corpo (o sexo e os olhos que primeiro pecam) a natureza
da pessoa, em toda a sua difusa corrente de movimentos. Movimentos ignóbeis
porque são idênticos à antiga hoste de mulheres profetas, consagradas a uma ascese
que os homens proíbem, para lhes atribuir a mediocridade vivida por Eros. Ema sabia
os casos de indizíveis precalços em que o amor desempenhava um papel decisivo
porque sustentava a permanência da juventude através desse espírito da submissão. O
que lhe estava destinado era uma doce miséria de relações matrimoniais, com um
homem que pagaria as suas contas e que ela amaria como se corresse o fio do terço;
com uma distracção embebida de iniquidade porque estava cheia de pensamentos
fantásticos que sucediam na sua mente como parte duma realidade ideal.
Na Primavera Ema estava noiva de Carlos Paiva, e sentiu-se de certa maneira
embrutecida de felicidade. Ele vinha vê-la, mas evitava estar a sós com ela;
precavido como era, não pensava sequer em combinar o seu estado de promessa com
algo de mais solícito, já designado como direito dum marido. Ema quase lhe
repugnava quando se aproximava demasiado, trémula no vestido de algodão claro,
um pouco calada demais, capaz de o embaraçar pela angústia recalcada do desejo.
Pressentia nela alguma coisa que nada podia suspender, algo que era questão de vida
ou de morte. Adiou duas vezes o casamento, sem pretexto quase, como para provar
que resistia a essa mulher que o amava e que, no fundo, lhe fazia medo. Lamentou a
sua viuvez e teve uma recordação agradecida para a esposa embirrenta e de macabros
pés frios; e que, de certo modo, o tranquilizava porque não era de todo real na sua
vida, mas como um fantasma feito de água e de luz. O que ele temia era a resoluta
presença de Ema que se distinguia tão bem da submissão fútil em que se criara. Um
dia particularmente difícil dos seus encontros, que sempre decorriam em público, no
jardim ensombrado por caneleiras e ramos espinhosos de buganvíleas, Carlos Paiva
teve a noção de que tudo aquilo era embaraçante porque era falso. Ema sabia muito
mais do amor do que ele podia conjecturar. Percebeu, ainda que não se demorasse
nessas conjecturas que humilhavam a sua honra de homem, percebeu que uma
virgem era algo de complexo e inqualificável. Chegava às mãos do marido, ou num
estado de embrutecimento em que os sonhos tinham uma parte de desvio
embaraçante, ligados como estavam a favores da carne na heráldica familiar, com
pais e irmãos e parentes de todos os lados chegados para o festim de iniciação; ou
então, como Ema, eram raparigas inseduzíveis mas capazes duma sinceridade que as
punha à beira de situações difíceis.
Quando se anunciou o resultado da sua assiduidade junto de Ema, apareceram
certos fragmentos de revelações a respeito dela e que, sem lhe ferir a reputação,
deixavam uma interrogação no ar. Mas não era de esperar outra coisa na terra em que
ela crescera e se fizera mulher, e que a observara em todos os estados de mudança.
Sobretudo, aquela famosa varanda, que tantas colisões e despistes provocara, deixava
o nome de Ema um tanto maltratado. Também havia um ourives que prometera a
Branca uma volta de ouro, caso o aproximasse de Ema. O que ela tentou, mas sem
resultado. Depois disso, um viúvo apresentável, dono duma loja de panos, sondou a
possibilidade de obter a mão dela. Não eram muitas, porque Ema lhe disse, num
bilhetinho quase amistoso, que não pensava casar-se cedo; o que era verdade,
satisfeita como estava com a sua corte de criadas e de bufões, e um pai que a amava e
os padrinhos que a enchiam de presentes.
A luz não caía sobre as grandes operações sentimentais de Ema nem ninguém
as podia vislumbrar, mergulhadas como estavam em actos insignificantes. Por
exemplo, os filhos de Mabília, um, companheiro de jogos e seu capitão de aventuras
que deveras a assustavam, como chamar nomes feios às pessoas mais gradas do
território e que não lhe caíam em graça. Francisco era tão irreverente que o coração
de Ema pulsava só de o ver aparecer. Que maroteira imaginava ou que pequeno
escândalo ia desencadear, era excitante supor. Não era amor o que sentia por ele, mas
o amor andava perto dessa angústia selvagem que a fazia refugiar-se atrás de
Francisco enquanto ele atirava pedras desde a ribanceira do quintal. Queria acertar no
chino do Mendiz, funcionário pobre da Casa do Douro. Era um homenzinho meio
assustado, que passava a horas certas para o emprego e que parecia completamente
fora do seu ambiente na Estrada Larga, ao sol de Verão. Os Mendiz eram de casa
decaída, mas mantinham um aprumo de Ossian no cativeiro.
Quanto ao outro amor obscuro de Ema, era sem dúvida Nelson, o outro filho
de Mabília. Ele era o seu pajem e o seu trovador. Sabia versos e lendas, falava até
latim. A graciosa figura, Os olhos verdes, dava-lhe grandes possibilidades junto das
mulheres. Seduzira Branca e muitas outras; para Ema guardava uma doce e
encantada visão da sua juventude de homem, algo que não era possível alcançar e
muito menos perder. Ele servia-a; ela deixava-se adorar. Saía à janela, de manhã,
com os cabelos desfeitos e a camisa desabotoada, sabendo que Nelson estava debaixo
da ramada e podia vê-la em aparato de tanta sedução. Os seus desejos encontravam-
se; desejos como borboletas, parte da ilusão humana que se não quer consumada. De
repente, Nelson foi para o Porto e teve uma vida que parecia vir a ser de perdição.
Não foi. Casou com uma herdeira, como nos filmes um pouco frouxos cuja
sensualidade está no que se omite. Constou que a noiva quase o violou antes e depois
de casar, e que morreu cedo, deixando-o a uma amiga, como quem deixa um colar de
pérolas. Nelson voltou a casar e fez-se um proprietário estimado e de bons costumes.
Tinha a moral de convento, que é cauta e furtiva, dada a secretas desinibições.
Esqueceu Ema, provavelmente; mas era propenso a súbitas emoções, os olhos
enchiam-se-lhe de lágrimas por causas insignificantes: uma criança que aprende a
andar, uma moça que canta com voz trinada, no campo, cortando erva. Vivia entre
Ribeirão e a vila da Trofa, que se tornara rica e carregada d palacetes exorbitantes.
Mas deixamos a sua história para outra ocasião, se a houver.
Paulino Cardeano tinha herdado a casa do Romesal duma avó que fora
acompanhante duma senhora de título e que lhe deixou a propriedade. Pequena de
rendimento, porque as vinhas foram distribuídas ao longo dos anos, por partilhas ou
troca de outras vinhas, a casa representava ainda a antiga família, morgados de
Gervide. Era um paredão corrido, com seis janelas de guilhotina e dois portões de
armazéns por baixo. Os soalhos, assentes em vigas de castanho, deixavam passar
pelas frinchas o odor fermentado dos lagares. Mas Paulino Cardeano não era rico.
Hipotecara a quinta e vivia entre a fartura fictícia da colheita e as dívidas de todo o
ano.
Ema não dava conta das dificuldades, tanto era lauta a mesa, sem faltar aquela
abundância provinciana onde tudo floresce e a fruta se mede aos cestos e não ao
quilograma. A Ema não faltavam os vestidos de estação, as luvas até, que eram um
luxo que depois se tornou um pouco maníaco. "Quando for velha durmo de luvas."
Dormia em nova, pelo rigor do frio; e Marina ia virar-lhe a folha do livro, se estava
deitada e não queria destapar os dedos, metidos em guantes de lã que mandava fazer,
com trancinhas. Caprichava muito nessas coisas, o que desviava o coração doutros
apetites.
Em tempos, o enxoval representava um quinto da erótica feminina, que nele
empregava desejos, fantasias e até as funções mais abissais do tédio. Os bordados, as
bainhas, as rendas aplicadas, as cambraias e os linhos, tinham um significado
ligeiramente bestial; um significado de rogo e praxe amorosa que roça pela
obscenidade. Fazer ilhós e abrir os riscos de folhagem em volta duma haste em
cordão perle tinha quase o significado dum himeneu. Ema já não estava senão na orla
final dessa praxe de gineceu, mas tinha ainda nos ouvidos as recomendações de dona
Augusta, ela própria uma dama dos enxovais, que arrumava em armários altos como
oratórios; nunca se casou, mas o enxoval cumpriu o seu simbolismo, deu-lhe as
alegrias fabulosas do encontro dos corpos e a sensual presença do noivado
aromatizado de camoesa e lavanda. Ema percebeu que quanto mais o casamento
desagradava e tinha espinhos que feriam de maneira profunda, mais as mulheres
voltavam para esse enxoval as suas atenções quase libidinosas. No tempo de Ema, a
roupa interior tomou a dianteira sobre o enxoval de casa; fez-se subtil, ardente e
requintada. Cumpriu com a missão de encobrir desejos sem os deixar de ouvir. Ema
teve uma das maiores colecções de camisas de noite, de seda e de algodão fino.
Vestia-as, e sentia-se outra: uma deusa na sua concha, embalada pelo mar. Eram
espuma, algas e leves folhos de sal. Levou as coisas ao extremo de usar toucas para
dormir, o que lhe dava um ar violável e excitante.
Mas tudo se passava numa ingenuidade de gestos que deixavam Carlos
tranquilo. Para ele, Ema era um achado: talvez pouco carinhosa, mas também não
muito informada do poder da sua beleza, ela seria uma esposa adequada à posição
dele, que se tornara respeitável. Marcaram o casamento para Setembro, quando
Paulino Cardeano tinha assegurado o pagamento do vinho. Os lagares estavam
vazios, as cooperativas aceitavam a produção vinícola e tinham-se acabado as
vindimas báquicas dos tempos de cardenho e pisa.
Nas vésperas do casamento Ema abriu a janela do quarto e pousou os olhos
sobre o Romesal, e pareceu-lhe que o rio na curva mole que se ia desfazendo desde a
Régua trazia no ventre inchado algo de monstruoso. Era um rio que descera de
Espanha com o seu cardume de grandes peixes negros e que eram aprisionados em
viveiros nas margens. Depois sofreu assaltos de barqueiros e pestes que dizimaram as
espécies; saltavam na água apenas uns bodiões e percas, pouco apreciados. Mas Ema
pensou que, porventura no fundo, havia ainda desses peixes gigantes, que raramente
assomavam das profundidades a cabeça brilhante. Voltou-se, assustada, porque
Marina a chamava.
— Olha além. O rio não está diferente?
— Não. É o rio Douro, que esteve ali sempre.
Mas Marina chegou-se à janela para ver melhor. Uma tromba de água levantou
a massa lamacenta das bordas; algo se movia sob a toalha da água.
— É um homem — disse Ema. Mas, a tão grande distância, um homem faria o
efeito dum alfinete. Tudo ficou sossegado, um barco parecia andar à deriva;
transportava passageiros desde o cais das termas. Ela lembrou-se dum bonito rapaz
que lá encontrara num Verão, aleijado das duas pernas e depois curado como por
milagre da piscina de Siloé. Não o viu mais, nem sabia quem era. "Vou casar-me. É
um disparate, nem sequer gosto dele." — pensou. Mas Marina distraiu-a com as
perguntas que lhe fazia, e depois Branca veio ajudá-la a vestir-se, trazendo a
costureira Judite como se fosse uma portadora de oferendas.
Era o vestido. Parecia enorme, com folhos e saias de baixo, e uma laçada azul
na cinta.
— Uma coisa azul, para dar sorte.
De facto, era uma extravagância de Ema. Quis sapatos azuis, para acompanhar.
De qualquer forma, ficou esplêndida, tendo frisado os cabelos e posto neles cachos
de muguet. No peito brilhava o medalhão com turquesas, não quis privar-se de o
levar.
— Outra coisa azul, para dar sorte; nunca é demais…
Nelson, quando soube do casamento de Ema, chorou como uma vide e
recostou-se na cadeira de palha como se fosse morrer. A mulher acariciou-lhe as
fontes, que embranqueciam.
— Deixa lá, não te ponhas assim.
Protegia-o com um enorme gosto da renúncia e despedia-se em cada prova de
amor que lhe dava. Nelson queria uma propriedade em Romesal, para apagar a
memória da sua mocidade pobre e da casa de Mabília, tão mal casada com um
bêbado que acabou no asilo e que a espancava. Nelson comprou, já a inclinar-se para
a cova, velho e sombrio, uma quinta em Gervide. Ema não morava mais lá, nem
sabia mais do seu paradeiro. Lembrava-se da mocidade, de Branca que ele tivera nos
braços naquela mansarda onde se criavam periquitos e que, ao ouvirem os gemidos
dos amantes, piavam de alegria. O sol entrava como um deus que se alimenta da
matriz do corpo astral que é o homem. Um rouxinol cantava ao cair da noite, com um
trinado tão genial que arrastava a alma de quem o ouvia.
CAPITULO II
O POBRE-NADA QUE ENAMORA
Sim, é certo, das janelas do Romesal via-se o Vale Abraão, terra de Paivas e de
Semblanos. Destacavam-se as propriedades mais sumptuosas, entre maciços das
árvores de jardim; o resto eram casas agaioladas com mansardas revestidas de lousa,
mas raras. Que o vale era sobretudo recatado na sua abastança, que decaíra muito
com a alta dos salários e as vocações migratórias.
As casas "maison", com estabelecimentos ao rés-do-chão e uma escada
exposta como um fémur partido, não eram do estilo do vale, que se reduzia a três ou
quatro quintas ribeiras; para cima da estrada era a encosta de Cambres, onde se
exploravam águas medicinais. A mãe de Ema tivera uma paixão fulgurante por um
engenheirozinho polonês, que gerira em tempos a empresa falida e se distraía do
fracasso construindo no quintal "o poço da morte", onde girava na sua moto de
grande potência. Agora Cambres era pobre e sem recursos; ao sol de Maio, as
raparigas sentavam-se nos muros, gozando a civilização da ganga e da bota alta.
Em Vale Abraão não havia, como no Romesal, "o povo", com as suas
escalavradas escadas de antigo solar e gente remexida que se insultava, a ponto de a
Guarda achar Gervide cova de facínoras e Fontelas-de-Cima um lugar de maus
ladrões. Havia assassinos bem comportados, abades agiotas, rapazes viciosos mas
pondo na libertinagem uma travagem que proporciona a censura viril, muito próxima
da virtude.
Não havia nada parecido à venda do Alexandre, cheirosa de cascos de vinho,
de iscas secas de bacalhau, de azeitonas em talha. O que havia era a Caverneira, com
o parque de cerejeiras do Japão e umas fontes que se ouviam de noite como risos de
palácios encobertos. E, ainda impressionante na sua estrutura de velho alcazar, as
Jacas, onde vivia com a mulher Pedro Lumiares, boémio arrependido e erudito sem
carreira; amavam-se, aquele casal tenebroso que a miséria rondava, tendo no fio os
rendimentos e os lençóis da cama.
Em Vale Abraão estava a casa de Carlos Paiva. Nada de orgulhar ninguém; um
amontoado de sobrados, de pequenas salas e alcovas, e eidos que se foram juntando,
como para se aquecerem, e que resultara num incongruente encosto de telhados e
goteiras, portas esconsas e janelas desiguais. Ema, que conhecia a casa dos domingos
de piquenique, em que fora recebida pelas Paivoas, mulheres de cidade com
correntes Chanel, achou-a mudada. Era um dia de vento, o lugar pareceu-lhe sinistro,
com o estradão resvaladiço de cascalho até ao rio e um padrão das velhas
demarcações postado a uma esquina como uma sentinela.
Ela levava, como uma sultana dos emiratos, uma bagagem de sedas e de
tapetes que alarmou Carlos; criado numa pequena abundância de mesa, não conhecia
nada de elegância e muito menos de luxos sibaritas. Tomava como estratégia a
grandeza opípara dos Semblanos, com as suas pelicas de vison e os blazer de botões
brasonados. Mas ele próprio, Carlos Paiva, vestia no Inverno uma samarra desbotada
para se agasalhar das geadas.
As Paivoas achavam Ema leviana encoberta e induziram o irmão a tirar
informações da vida dela. Já casado, Carlos caiu na infâmia legítima de investigar a
moral de Ema, sobre a qual parecia pesar uma disfarçada opinião de impostura. Mas
nada encontrou de mal. Ela era pura como as estrelas. Compensou-a com extremos
de galanteria que Ema estranhou, sabendo-o acanhado em inspirações de amor.
Se interrogasse, no entanto, o pai Cardeano, podia ficar algo mais esclarecido.
Ele conhecia um secreto pendor de Ema para a exploração das ocasiões e, sobretudo,
a veia do orgulho que, às vezes, a enlouquecia. Como gostava de vestir bem e não
tinha os meios suficientes, entendeu um dia fazer chantagem com o pai e revelar os
seus amores com mulheres da vinha à pobre tia Augusta, que o tinha por casto e
viúvo exemplar. Cardeano fez-lhe frente, ameaçado mas não desprevenido. Rasteiras
de mulheres não lhe pareciam causa de susto. Achou que a filha pouco sabia de
homens. Quando a viu casada, porque a amava, chorou e bebeu demais, o que o pôs
mais sombrio ainda. Tinha a impressão de que Carlos não era marido que convinha a
Ema. Era um desses homens, mais numerosos do que se pensa, que, sem conhecer as
paixões, as tinham por denunciantes de segredos que é melhor guardar. Ele venerava
os valores medianos, como a dignidade da profissão e um lar de que nada constasse.
Na véspera do casamento teve uma crise de dúvida, esteve prestes a romper com
Ema. Tomava como uma espécie de rivalidade tanta beleza junta. Como ela se
mostrava enervada com o efeito que podia causar, Carlos disse-lhe:
— No fim de contas, não vai estar lá gente que perceba muito disso.
No dia da boda, Ema verificou quanta razão ele tinha, ao ver chegar as primas
de Além-Douro com as capelinas cheias de fitas e as horríveis bolsinhas bordadas.
Teve de repente um baque; pareceu-lhe estar a dar um passo estouvado, embora
Carlos fosse o mais sensato dos homens e bem cotado no quadro médico. "Um truta"
não era. Riam-se das suas receitas e do jeito dele para arrancar dentes a alicate. Mas
essa mediocridade tornava-o simpático e fazia-lhe perdoar a mulher que mal
apresentava, deixando-a atrás dele, como uma criada. Só o Semblano velho disse que
ela era encantadora. Disse isso como se usasse um direito de ancião; mas não a
desejava, por ser sacudida e talvez impertinente. Ele gostava de raparigas pobres em
estado de necessidade que é vizinho de Eros. Foi dizer a Maria Semblano, a esposa,
que gozava de fama angélica, que Carlos Paiva tinha casado mal.
— É uma mulherzinha que lhe vai trazer dissabores — disse.
— Que dissabores? — Maria Loreto Semblano era alta, ruiva, de porte
"imperial", como diziam as suas inimigas. Escrevia contos exemplares e tinha algum
sucesso com a sua erudição pastoral. — Que dissabores?
— Não sei, o costume.
Ele despiu o casaco e, dando conta de que não arriscava essa intimidade há
muito tempo, junto da mulher, voltou a vesti-lo. Maria Semblano sentiu um arrepio
de tristeza, incurável como uma maleita. Amara o marido com uma admirável
dedicação de que as raparigas frias têm o segredo. A infidelidade dele não a
desiludira; dera-lhe asas para uma certa vacuidade nobre que a surpreendia como um
desejo suspenso.
Carlos Paiva era o seu consultor ortográfico, não o seu médico de cabeceira.
Oferecia-lhe as suas horas mais especiais, de confidência intelectual e que ele achava
arrasantes. Com o casamento, esperava livrar-se de Maria Semblano, que o
convocava às sextas-feiras para jantar e rever provas tipográficas. Mas tal não se deu.
Maria continuou a convidá-lo, sem parecer notar a chegada de Ema, a quem, de resto,
mandava regularmente morangos e bolos de fécula.
— A minha mulher ficou encantada.
Mas Maria Semblano não deixava ocasião a maiores expansões. Levantava a
colher da mesa e comia a sopa em silêncio. Vestia-se tão bem que parecia deslocada
naquela orla de Vale Abraão, servida de três criadas velhas e mentirosas que trouxera
da casa dos pais há muitos anos. Ema invejava-lhe o trem discreto, a elegância
frugal, a raça, que era, de resto, atravessada de negociantes de Lugo e moageiros da
Maia. "A farinha fê-la branca e com aquele ar de profetisa'' — dizia Pedro Lumia-res.
E falava do tempo em que Maria vendia beijos nas quermesses, divina como Juno
acolitada por pavões reais.
Ema não conseguira que Branca a seguisse, temerosa que estava de perder
casamento com um cabo da Guarda; e Marina também se escusou, porque estava
noiva e passava as tardes nos tanques, a molhar peças de pano. Só Ritinha, a muda,
foi durante algum tempo para Vale Abraão. Era uma espia extraordinária. A falta dos
sentidos do ouvido e da fala desenvolvera nela faculdades finíssimas de
entendimento. Nada lhe escapava. Conhecia toda a clientela de Carlos, sabia as
doenças de que se queixavam, as contas que pagavam, as casas e os bens que tinham.
Ema chamava-a como se chama a um cão, entregava-lhe tudo — chaves, garrafeira,
jóias e correspondência. Mas, um dia, as Paivoas acusaram-na de perder um lenço de
bolso e Ritinha partiu, muito seca, sem dar explicações. De resto, Carlos achava-a
inútil porque não podia atender o telefone. Ema esteve um tempo amuada, Ritinha
fazia-lhe falta. Era o seu bobo, a sua aia; era o elo que a ligava ainda ao Romesal, ao
seu belo espaço de corredores e átrios grandes como gares. Em comparação, a casa
de Vale Abraão parecia-lhe um labirinto de tabiques e tectos baixos demais.
— Os tectos baixos favorecem as paixões. — Pedro Lumiares, que ela
encontrava na missa das onze na capela das Jacas, informava-a de que era uma
fórmula de Le Corbusier.
— Olhe que se enganou. Paixões são ali coisa que não há, nem nunca houve.
Ema riu-se. Era um riso rasgado que lhe descobria os dentes brancos e sólidos;
dentes que tornavam o riso agressivo e triunfal ao mesmo tempo, e que Marina dizia
serem tão belos como postiços. Marina fazia-lhe falta, e as saias dela presas com um
alfinete de segurança para marcar melhor a cintura. Teve saudades de tudo, até do
internato em Lamego e das lições de estilística e de desenho com moldes de pés de
gesso. A mesa do Romesal, sempre posta, com o queijo dentro duma redoma de vidro
e a fruteira de estanho donde pendiam os cachos de uvas, que quando o pé secava
eram retirados. As romãs abertas mostravam o róseo grão, e a película brilhava como
algo de arrancado à profundeza da terra e aos seus veios diamantinos.
Sobretudo Ema estranhou o dinheiro contado até ao último tostão, o peixe
congelado que lhe sabia a papel, todos os truques da economia que a primeira mulher
implantara e que Carlos seguia como um testamento. Os mimos, os pequenos sonhos
perdulários que o pai lhe permitia, estavam proibidos naquela casa que era pior do
que pobre, era mesquinha. Ema tinha saudades de tia Augusta e do tempo em que se
sentava nos joelhos dela para tomar o café e se fingia distraída para exasperar a boa
criatura. Olhava para a parede, como se pela primeira vez visse o besugo e os
mexilhões da litografia. — Bebe, menina — Tia Augusta era ainda nova mas parecia
pronta para um lar da terceira idade, com o seu grosso e disforme nariz crivado de
buracos como um dedal. Nunca se zangava, excepto se lhe tocavam na reputação dos
seus santos e santas, o que até o professor Carmezim evitava fazer, apesar da sua
vulgaridade laica. Tia Augusta, se apoquentada, limitava-se a abanar repetidamente a
cabeça, dizendo "que mania", com uma expressão afligida que Ema queria logo
apagar da cara dela. Não suportava ver tia Augusta molestada pelas ínfimas doses de
malícia que fazem o centro de gravidade das famílias felizes. As alterações do génio
contribuíam para criar formas de convivência e aliança. Ema era na casa um pólo
afectivo seguro, tocado de azedume e competição que produzem movimentos
constantes de reconciliação, animando as almas para o trabalho e dando-lhes
merecimento para suportar a ideia da morte. A trama carnal de todos esses
sentimentos servia a composição do quadro do crescimento moral e conduzia às
vezes a um desfecho imprevisível. Marina foi praticamente violada pelo noivo, que a
deixou depois de perceber que as suas relações eram infecundas. "Quem não faz
filhos não faz vontades", disse, cruelmente. Quis oferecer-lhe uma gargantilha de
ouro, mas Marina recusou.
— Quem és tu para me pagares favores? — disse-lhe. E o coração dela estava
oprimido porque o amava muito. Era o mais belo mancebo de Gervide, mas Marina
tinha orgulho em o esquecer. "Sem ofensa" — disse ela. "Só porque é justo".
Ema pensou nestas coisas, uma vez que foi ao Romesal, tendo o pai já
falecido. Tia Augusta também já não existia e a buganvília roxa crescera
desmedidamente ao longo do gradeamento do jardim. As camélias anãs desfolhavam-
se tristemente e as pétalas secas rodeavam o pé como papel queimado. Os objectos
Kitch que pertenciam aos seus lugares e seria um sacrilégio mudar, estavam, ou
perdidos ou fora do sítio. Talvez alguém os roubasse, ou então Paulino Cardeano os
oferecera às amigas como presentes de emergência.
Ouviam-se as varejas como um pelotão inimigo, e Ema chorou de cólera
quando deu com a troca do oratório. Não era o mesmo. O pai tinha-o vendido para
fazer dinheiro e substituíra-o por portadas miseráveis pintadas de verde garrafa.
Pegou no Menino Jesus, ainda intacto na manjedoura com palhas de trigo, e,
embrulhando-o numa toalha de altar, levou-o com ela.
— Que levas aí? — disse Lolota, que tinha sete anos e era uma criança pouco
dotada.
— Nada. Umas coisas — Ema nunca entregaria às filhas as suas recordações
mais profundas, nem deixaria que tocassem no Menino que só raramente tia Augusta
lhe deixava pegar. Ema sentava-se com ele no colo no degrau do oratório, e o
Menino parecia olhar para ela, risonho e pronto a falar.
Dessa vez teve a impressão de deixar o Romesal para sempre. Estava casada
há perto de dez anos e caía nessa vulgaridade ritual que era fazer um balanço da sua
vida. Aborrecia-se e tomava isso como uma capacidade de se emancipar das suas
desilusões.
Tivera duas filhas, Lolota e Luisona, mas não aprofundara as alegrias da
maternidade. Antes disso revelou-se-lhe o coração para as paixões do risco,
desprender-se dos medíocres trajectos que o casamento lhe oferecia. Sem repelir
Carlos, achava-o cada vez mais desinteressante, e essa lucidez de opinião parecia-lhe
funesta para o equilíbrio que pretendia.
Porque em tudo punha uma febre de ambições que não sabia qualificar, pois
não eram de índole social nem se preocupava por igualar as mulheres mais
afortunadas. Era um delírio que se tornava cada vez mais exigente e que a lançava
por caminhos desconhecidos.
Tudo começara há muito tempo quando Carlos Paiva a levou ao baile das
Jacas. Teve um convite expresso dos Lumiares que, de resto, aproveitavam para
conhecer Ema sem se comprometerem a aceitá-la.
A casa, iluminada, florida, com o seu célebre centro de vermeil atribuído a um
discípulo de Celini, pareceu a Ema um castelo que se abria por efeito de mágica. A
grande álea de plátanos, cuja folha caía lentamente, estava cheia de carros cujos
pneus rangiam no areão molhado. Tinha chovido mas fazia luar. O brilho das estrelas
percebia-se por entre os ramos das árvores e dava à noite um tom de compaixão
sublime. Ema vestia uma toilette de seda cor de açafrão, e o modesto colar de pérolas
envergonhava-a. Mas os cabelos escuros, repuxados para trás, deixavam a descoberto
o formoso rosto, tão pálido e regular como o de um manequim. As longas pestanas,
que ela prolongara mais com uma franja postiça, tocavam-lhe as faces dando-lhe uma
expressão voluptuosa mas não vulgar. Os homens acharam-na deslumbrante, e
durante toda a noite evitaram-na.
Só um deles, Fernando Osório, um primo dos Lumiares, a foi buscar para
dançar. Ela não sabia andar nos saltos altos, e os pés enrolaram-se num tapete curto,
esteve em riscos de cair. Osório segurou-a pela cinta, e a mão dele, mão nervosa de
rapaz, pareceu-lhe familiar; como quando o filho de Mabília, o mais novo, a agarrava
nos braços, ajudando-a a pular dos muros quando iam ambos em busca de míscaros
pelas matas de Gervide.
Um outro homem a notou e lhe deu atenção. Era o dono da casa, Pedro
Lumiares, um excêntrico, com efeitos lendários na região. Viviam na propriedade das
Jacas, ele e a mulher, sonsa e de tipo flamengo, que o adorava. A casa das Jacas, de
estilo acastelado, estava em ruínas.
Pairava algo de repugnante sobre esse idílio dos Lumiares: ele erudito e
jogador, ela obediente como um cão, fazendo tarefas desprezíveis, dispensando
criadas para qualquer serviço. Era o amor a dois, tão maligno como um ódio puro.
Em volta deles não crescia nada, os animais morriam, as vinhas secavam, os frutos
apodreciam., Paixão tão absoluta convertia tudo em pó. Ouviam-se pela casa os
passos de Simona, que andava descalça mesmo com o tempo mais frio. Não
recebiam. Só Pedro Lumiares tinha algumas visitas, mas não as retribuía. Parecia
esperar um acontecimento que por fim decidisse a sua vida separada do mundo como
por uma rede de prisão. Havia um carro abandonado no pátio e há muito que não
funcionava. Era um carro grande, verde, com assentos de couro, e fora posto em
marcha a última vez, há mais de dez anos. A buzina de prata anunciava como um
arauto a chegada desse Magriço inteligente que era o dono das Jacas. O baile, o
último, ficou presente no imaginário sensual que a sociedade comanda. Reuniu na
maioria as burguesas com "muito de seu", como se dizia no Romesal para referir
bens de fortuna; elas consideravam o baile uma trégua no silêncio do corpo e da
alma, silêncio em que, entre elas, se reconheciam. Sem deixar de ser neurótica, a
mulher quebrou em parte esse silêncio. O tom de inimizade, que identificava a sua
"impureza", prontamente notada quando se aproximavam entre si, se não foi abolido,
também não tomou proporções maiores. Justamente porque o silêncio foi quebrado e
o símbolo tornou-se desnecessário. Entre os quais, o baile.
O baile, tal como o das Jacas, tinha ainda o carácter de entreter a fábula sexual
e confirmar o conselho das famílias. Ema, que provinha duma casa onde ela era
soberana e onde não tinha que justificar os impulsos, e em que bater em Ritinha era
tão natural como sentá-la à mesa e servi-la ela própria, sentiu-se desadaptada. E, no
entanto, o baile fez nela uma impressão fulminante. Mediu, de repente, a sua situação
de jovem esposa de um homem medíocre, cujas peúgas escorregavam para os
tornozelos e que usava sapatões de marcha com o smoking mal talhado.
Ela própria, bonita como era, irritou-se com a figura que via nos espelhos: uma
provinciana demasiado enfeitada e cujos brincos de minas pareciam um ex-voto da
Senhora das Dores. De nada valeu a dança com Osório que, farto de a tentar distrair
sem que ela sorrisse, a largou junto de duas senhoras que falavam agitadamente das
doenças dos filhos pequenos. Punham na conversa tanto empenho, que ela soava
falso. Estavam decerto assustadas com a ideia de ninguém reparar nelas e parecerem
abaixo da condição que desejavam representar. "São, como eu, modelos de
domésticas, e o livro de cabeceira delas é uma agenda com calendário e horário dos
comboios" — pensou Ema. A sua própria insignificância apresentou-se com nitidez
tal, que Ema sacudiu com força os cabelos, donde se desprendeu um ramo de rosas-
chá. Foi nessa altura que Pedro Lumiares passou e levantou do chão as flores. Olhou
com desprezo as rosas fingidas, mas entregou-as duma maneira cordial. A beleza de
Ema pareceu-lhe deliciosa, e os olhos dele semi-cerraram-se para a apreciar. As duas
senhoras calaram-se instantaneamente, expulsas do seu domínio prático onde se
refugiavam com alcofas de crianças e uma dignidade domingueira. Pedro disse:
— Não é tipo de pessoa que se espera encontrar aqui, apesar de eu a ter
convidado.
— Porquê? — Ela estava tão infeliz que a sua originalidade sobressaía, como a
de alguém que não tem nada a perder. — É um baile como outro qualquer.
— Conhece outro qualquer?
— Não. Por isso digo "outro qualquer". Não se parecem todos? No cinema, são
todos iguais.
Lumiares não a estava a ouvir. Pensava que se Ema aprendesse a vestir-se ia
causar algum sobressalto naquela sociedade que nem se dignava pronunciar-lhe o
nome. Era a "mulher do doutor", e Carlos Paiva recebia assim um tratamento
inconfundível, que o ligava à Caverneira para sempre, embora não fosse jamais
consultado em casos graves.
Mas Maria Semblano concedia-lhe a sua protecção ao confiar-lhe os seus
manuscritos. Ele corrigia-lhe os originais com uma discrição tumular, não lhe
divulgando os erros de ortografia. Ela passou, Berenice arrastando a fulgurante
cabeleira, e havia um murmúrio extasiado atrás dela, feito de sincero amor e
adulação áulica. Maria Loreto vestia uma espécie de túnica pesada, dum beije escuro
que agia na pele como uma maquilhagem. Os seus famosos brincos de esmeraldas
percebiam-se entre o crespo cabelo. Era uma ruiva grande, de nariz curvo e olhos
amendoados, a quem não faltava uma simplicidade trágica, tomando por modelo as
mártires dos primeiros tempos do cristianismo, Santa Petronilla e Santa Justa
avançando no meio da turba agitada. Mas ali pouco faltava para se porem de joelhos
e pedirem a sua bênção. Ela parou uma fracção de segundo quando viu Ema. Mas,
decerto incomodada com a presença de Pedro Lumiares, seguiu, dispensando-lhe um
sorriso áspero.
— Que foi que eu lhe fiz? — disse Ema.
— Oh! Não pense que ela se preocupasse com qualquer coisa que lhe fizesse.
É um tigre de circo, nunca conheceu a selva nem sabia como comportar-se lá. O mal
é só um tema de homilia; não sabe se existe.
— É assim tão invulnerável?
— Todos gostam dela. Até os inimigos dela os conta como amigos.
Ema viu o marido que dormitava, tendo uma das horríveis peúgas com baguete
a descobrir a pele branca em que se enovelavam pêlos brilhantes. Pedro Lumiares,
distraído ou insolente, não o reconheceu. — Este aqui parece um enfermeiro da noite
— disse.
Ema agarrou-lhe rapidamente o braço, e esse gesto parecia ousado demais para
outro que não fosse Pedro Lumiares. Para ele, parecia uma súplica; e era o que
realmente era.
O baile das Jacas, que nunca mais se repetiu, ficou muito tempo no
pensamento de Ema. Via-se dançar airosamente (mais airosamente do que dançara de
facto) nos braços de Fernando Osório; o cheiro dele, cheiro de bom tabaco e de sabão
caro, lembrava-lhe como algo de distinto que só a ele pertencesse. O seu ar
pachorrento e másculo fazia-lhe saltar as lágrimas. Devia ser bom ter em casa um
homem assim, que a ouvisse durante todo o tempo que ela tivesse para se queixar das
suas decepções. Ele tirava do bolso a bolsa do tabaco e lentamente enchia o
cachimbo, pondo na operação um fleumático enlevo que podia parecer, prazer de
compartilhar a festa íntima do casamento, os seus pequenos segredos de finanças a
que o amor imprimia um efeito de risco e desafio comum. Carlos não se parecia com
esse retrato que ela todos os dias embelezava com novos pormenores. Como
Fernando Osório se esquecera da bolsa do tabaco em cima duma mesa, Ema
apoderou-se dela e meteu-a no saco de mão disfarçadamente. Durante muito tempo
aspirava o cheiro do tabaco, e o ventre comovia-se com um desejo brutal, que ela só
acalmava saindo de casa e dando pelos arredores um passeio que a fatigava. Ia até ao
rio e voltava, muito pálida, com um fio de febre, calada. Carlos não reparava nesses
sintomas a não ser para lhe receitar vitaminas. Vivia ocupado com os doentes e as
intrigas da profissão; sentia-se feliz porque a mulher não parecia exigente nem se
queria juntar aos casais cristãos que a Semblano aplaudia sem nunca captar o marido
para esse exercício. O velho Semblano, lúbrico como um macaco mas espirituoso em
coisas da carne, disse que não apreciava os retiros espirituais dos casais.
— Tenho medo de perder a graça. — E fez uma pirueta, rodando sobre um pé
só, como sempre que estava contente consigo próprio.
A casa que Ema encontrou em Vale Abraão não se comparava com o Romesal.
Era mais acanhada, mais escura, com móveis baratos, louceiros de alçado onde se
viam muitas xícaras rachadas e pires soltos. As cortinas pingavam dos varões e não
se tinham substituído desde que a última Paivoa se casara e fora viver para Lisboa.
Há uns bons vinte anos.
Ema fez algumas transformações, mas Carlos cortava nas despesas porque o
consultório era caro e tinha uma empregada que lhe exigia sempre aumentos e que
ele lhe pagasse um curso de informática. Ele lembrava-se de quando o avô, médico
também, fazia circuncisões em casa e fervia seringas na chama duma vela. Esses
tempos históricos pareciam-lhe bem melhores. O cliente entrava pela porta da
cozinha e deixava azeite e vinho para todo o ano. Agora a burocracia abafava a
iniciativa, o doente não era mais um convidado para o rito nobre da doença e cura.
Era mandado para um terminal de saúde onde lhe faziam exames e donde saía
munido de papéis que se acumulavam sobre o seu caso como provas dum crime.
O telefone tocava só para Carlos, chamando-o à sua clientela; ou então eram
vendedores de adubos que lhe propunham novos compostos. Ema cansava-se de nada
fazer, as filhas não a interessavam, achava-as um pouco tolas, com caras de anjos de
barro mal cozido, embirrando, sujando tudo. O belo sofá forrado de linho inglês, que
Ema copiara dum que havia nas Jacas, aparecera rasgado e imundo. Pilhas de roupa
suja amontoavam-se no quarto, e a cama ficava o dia inteiro por fazer. Carlos, para a
contentar, deixou que ela comprasse um carrinho amarelo, em segunda mão, um
carro de rapaz, descapotável e muito rápido. Ema achou que devia usar roupa a
condizer, e quis vestir-se duma maneira mais ousada. Pedro Dossém, que era seu
pajem, embora casado com uma inglesa aficcionada ao golf, deu-lhe alguns
conselhos. Depressa Ema tomou o gosto duma extravagância que, para não ser de má
nota, tinha que ser dispendiosa. Apareceram no seu guarda-fato os casacos de alpaca,
de caxemira e de couro. Os sapatos eram tão caros que Carlos nunca soube o preço;
tinha luvas que a própria Maria Semblano não suspeitava existirem. Trazia-lhas
Pedro Dossém de Paris, e Ema tornou-se conhecedora do seu talhe, da pele, do forro,
e recusava tudo que não tivesse marca estrangeira. Os Dior, os Hermes, os objectos
de toilette com monograma, os lenços de cambraia com bordado expressamente
encomendado para ela.
Lendo um dia o romance da Dama das Camélias, ficou impressionada com o
leilão, depois da sua morte, onde só havia ouro e prata nas coisas pessoais dela. E
ouvindo dizer que não há nada mais vulgar do que um falso Chanel, ria-se das
cunhadas que usavam em profusão imitações desse tipo, cinturadas com cadeias de
metal.
Pedro Dossém era o seu guia, o seu confidente, o seu compère, no espectáculo
que Ema se dava a si própria. E ele, homenzinho snobe mas sem o atractivo dos leões
do gosto, revia-se naquele manequim admirável em que Ema se transformava.
Parecia mais alta, as botas e as calças escondiam-lhe a perna aleijada; e a beleza dela
mostrava-se como algo de impróprio no quadro vegetal da província, vaidosa, cínica
e cheia de compromissos de opinião. Ema não era ainda alguém de quem se espera
uma surpresa má; mas começavam a olhá-la com um pouco de interesse, que era o
começo duma ameaça.
Ema ia regularmente ao Porto, e Pedro Dossém acompanhava-a às passagens
de modelos e apontava-lhe o que devia usar. Ela contrariava-o, movida por uma
arrogância de tímida que a levava a comprar à toa coisas que não usava porque era
demasiado inteligente para se cobrir de bagatelas. Também era demasiado insegura
dela própria para acreditar em Deus. Isso dizia-lhe Pedro Lumiares, que lia, sem
intenções piedosas, Inácio de Antioquia e que a crivava de conversas exigentes. Se
ela não seguia o seu pensamento, pelo menos criava uma elevação de meios que cada
vez mais a afastavam de Carlos.
Só três anos depois do casamento "ficou de esperanças", como dizia Maria
Semblano, a quem repugnava um vocabulário popular. Estar prenhe era para as gatas,
e cheia para as vacas; e as raparigas que se deitavam com o velho Semblano, no
chalé ao fundo do jardim, essas podia-se dizer que engravidavam. Enquanto que o
termo "alcançar", antiquado e plebeu, se destinava a recém-casadas de baixa
condição, mas honestas.
Carlos pareceu apropriar-se da gestação da criança. Engordou, fez-se
preguiçoso, saía tarde de casa; e havia nele singularidades que eram a convalescença
do primeiro casamento, que não gozara e que o deixara ignorante das coisas da cama,
como uma experiência má ou, pelo menos, um pouco incómoda.
Com Ema, percebeu que a felicidade estava ao alcance das suas posses e dos
seus direitos. Era aquela mulher turbulenta e sempre em vias de o deixar ficar mal,
com inconveniências que não eram vulgares, mas espirituosas. E que a beleza dela
tornava menos agressivas.
Quando a criança nasceu, Ema mandou vir Ritinha e teve-a em casa só como
engomadeira da menina. Depois quis uma nurse que alojou fora de casa com a
pequena Lolota, que teve a sua área privada, decorada com um luxo desconhecido até
nas famílias mais abastadas. Só os filhos de Maria Semblano tinham tido ama e um
pónei de crinas douradas. Vendo Carlos preocupado com as despesas que se
tornavam excessivas, ofereceu-se para falar com Ema e chamá-la à razão. Carlos
recusou. Receava que se fechassem mais as fronteiras do seu entendimento com a
mulher. Não sabia o que esperar dela. Mas amava-a muito; amava as suas
extravagâncias, os seus penteados, e até a ligeira insinuação de pecados que ela usava
como se fossem perfumes. Outro dos seus delírios eram os perfumes. A casa
rescendia a incenso, a aloés, a sândalo, a nardo, a almíscar. Um relógio floral girava à
volta dela, e Ema foi das primeiras mulheres a pintar os olhos como Jezebel quando
esperava Jehú. Maria Semblano, quando ela saía, ia abrir de par em par as janelas.
Raramente recebia Ema, mas o perfume dela ficava por toda a parte, nos
guardanapos, que, depois de muito lavados, ainda denunciavam o cheiro de jasmim e
da rosa damasquina. Carlos viu-a fumar e entrar tarde; viu-a com amigos que ele não
conhecia e que mal o cumprimentavam, tratando-o de alto, bebendo-lhe o seu bom
vinho e deixando queimadelas de cigarro nas toalhas. Paulino Cardeano disse-lhe:
— Você é um bodas. Deixa-a fazer tudo quanto ela quer e pede-lhe desculpa
por existir. As mulheres são como os cavalos: rédea curta e antolhos, cilha apertada.
- Não, Ema é diferente. Damo-nos bem, afinal. Não me posso queixar, damo-
nos bem.
Paulino Cardeano achava que era melhor não interferir. Tinha um fraco por
Ema, estava pronto a acusar Carlos e a receber de braços abertos a filha, se ela se
separasse. Mas quando a via, vistosa como uma actriz, com écharpes que voavam em
volta dela e vestida com uma elegância exasperante, arrependia-se de a imaginar de
volta ao Romesal. Apetecia-lhe consolá-la da manqueira de que ela sofria; até sentia
um certo gosto azedo em reparar naquele defeito e atribuir-lhe o sentido dum castigo.
Carlos habituou-se a ver duplicadas as despesas, trabalhou mais, fez dívidas e pagou-
as. As pessoas viam na sua obstinação profissional o sinal duma competência. Ema
era o seu emblema, a pluma no seu chapéu, a flor na sua lapela. Da jovem que ele
qualificara como angélica e a quem oferecera um prato de figos no restaurante, em
Lamego, já não restava nada. Às vezes, porém, enternecia-se a contemplá-la, vindo-
lhe à memória a mãe dela, de quem Ema tinha a beleza casta e o porte levemente
distante. Ela era uma Guedes, de Loureiro, gente que nunca enriquecera mas tinha
casa de sobrado e alpendre desde o século XV. Com o tempo, degeneraram, sem
perder um acabamento polido como o que se dá aos móveis de alta marcenaria. Os
cabelos tornavam-se finos demais, os dentes ficavam acavalados, as mãos e os pés
reduziam-se. Mas tinham uma graça que é parente da morte que se tem por
perfectionista. Os Guedes de Loureiro, de origem bretã, eram todos indolentes, "uns
perdidos", no entender das formidáveis Paivoas, as irmãs de Carlos. Mas havia uma
inveja opiniosa nessas considerações. A inveja era o carácter das Paivoas; se a cobiça
não fosse o medo de não corresponderem ao respeito e apreço do seu público, elas
não eram senão sacos de tripas, como o senhor de Talleyrand.
Uma coisa Ema apreciava na casa de Vale Abraão: a varanda. Dizem que
varanda é uma palavra celta, que significa barreira. Talvez seja. Não se sabe porque
teve tão alto crédito na arquitectura rural e urbana.
É uma espécie de ventre que se projecta sobre a rua; é uma demonstração de
poder e afectação de desejos. Serve para cortejar o mundo e dar prova das condições
do indivíduo, comparando-o ao imaginário em que a sociedade cresce e perdura.
A varanda, tanto permite o olhar que avalia, até ser pecaminoso (a varanda
onde Goya instala a Celestina, velha observadora e profunda nas suas rapacidades,
encobre na sombra a virginal pécora, que se destina a ser descoberta para glória dos
desejos humanos), como serve de recreio às mulheres demasiado fechadas e
consumidas de obrigações. A varanda é mais sensual do que licenciosa. É um lugar
de aprazível pausa; enquanto que a reixa é uma forma de confessionário e um
obstáculo permissivo dos apetites.
A varanda de Vale Abraão, pintada de zarcão e em mau estado, sendo que os
barrotes de madeira estavam podres e toda ela em vias de ruína, conheceu, com a
chegada de Ema, um novo afecto. Ela deu-lhe serventia e até gosto que prolongava o
conforto do interior, abrindo para a sala nobre através de portadas com maçanetas de
porcelana e que Ema se apressou a mudar por outras, de vidro verde facetado.
Na varanda Ema passou os dias cálidos, com as filhas recém-nascidas no
regaço, Lolota, que era uma criança grande demais e que parecia atrasada; e Luisona,
a mais bonita, doce e tão sossegada que não chorava nunca, mesmo quando
contrariada ou doente. Ema perguntava-se que género de insuficiência ela teria,
lembrando-se que as Guedes eram todas estranhas e a própria mãe de Ema não tivera
dores de parto e, se magoada, não sentia nada, nem pelo fogo, nem pelo ferro. Aos
poucos, a memória dessa gente, insigne alguma dela, os do senhorio de Murça, por
exemplo, apagara-se. Ema não tinha particular respeito por eles; antes os achava um
peso nos seus ombros, que ela sacudia sempre que podia. Outras vezes, já quando
arrebatada pelas suas desastrosas aventuras, falava dos Guedes como se os trouxesse
no sangue e gozasse da sua investidura e grandes feitos.
Quanto mais sentia que descia no respeito da opinião, mais se vingava em
bater-se, tendo por parceiros os Guedes de Murça e os de Loureiro, de quem nada se
sabia senão que um deles morrera em Alcácer-Quibir e outro tivera amores no Paço.
Da varanda Ema ouvia o salto das bogas no rio e via os pescadores retirar os
muges mortos dos ceirões de ouriços que se acumulavam no fundo das margens
quando do tempo das castanhas. Ofereciam-lhe o peixe, ao passar no caminho; e ela
não respondia, pousando o braço na barra da varanda, deixando-se amar num olhar
de gula que lhe dirigiam os homens, pálidos das primeiras névoas de Outubro.
Vencidas as febres da dentição, livres já das doenças da infância, tanto Lolota
como Luisona foram muito requisitadas pelas Paivoas, que deram em ser mães de
papel e as levaram para Lisboa e as educaram quase de contínuo. Ema não reagiu.
Ficava livre para uma espécie de solidão que cultivava como uma promessa. Carlos
não a importunava; habituara-se a andar sem ela e a dispensar-lhe a companhia. Se a
senhora Semblano, da Caverneira, lhe pedia que a levasse aos jantares que dava todas
as primeiras quintas-feiras do mês, Carlos desculpava Ema. Chegava a dizer que ela
sofria duma depressão singular e incurável devido ao defeito da sua manqueira.
— Não a posso obrigar. É tímida e tem problemas muito complicados — dizia.
Mas como Ema atava relações com as pessoas mais desabusadas da região, ou
as mais excêntricas, Carlos Paiva caía no ridículo. Ultimamente ela visitava muito
Tomásia do Fafel, que era feia mas extraordinária em brios que só aos homens
competiam. Era caçadora e bom ginete; e foi a primeira mulher da alta a ter um filho
de solteira e a criá-lo à vista de todos, com honra e vagares de muita filosofia.
Gostava de andar pela serra em tempo de trovoadas e cheirar o enxofre das
descargas. Ema admirava-a, como admirava tudo que era desordenado e atrevido.
Carlos só conseguia viver em paz porque lhe tolerava todos os caprichos,
esperando que a idade fizesse de Ema uma senhora, já esquecida da época de
provocação que atravessava. Às vezes pensava que ela não era de todo normal; era
uma escapatória para não ter que se desiludir sobre si próprio. Ema usava a arma dos
profetas, que é assustar para obter atenção. O seu defeito, a leve manqueira, era às
vezes mais pronunciado, como quando estava mais perturbada e infeliz. E nunca
parecia coisa de que ela gostasse de privar-se; despertava, com a deformidade, uma
inquietação súbita nos outros, o que não poderia conseguir com uma presença banal.
A casa tomara um aspecto irrealista, introduzira nela modificações, como a
cozinha modelo, com balcões de aço e uma geladeira onde cabia uma pessoa de pé. A
cozinha modelo e o quarto de banho estilo anúncio de sais e sabonetes, ou mesmo
como lugar onde se bebe um whisky de malte, entravam nos costumes burgueses
com a embriaguez da promoção pessoal. Ema mandou fazer cadeiras de espaldar
alto, forradas de cetim branco, para a sala de jantar. Passou a adquirir quadros e, um
dia, dando de cara com o seu desenho de Minerva, mandou-o para o sótão onde
estavam também quase todas as prendas de casamento, taças para azeitonas com
colher de prata perfurada, e um serviço de louça aos raminhos. Quis pratos de prata
para marcar os lugares, e Carlos teve que desdobrar a sua cirurgia para pagar em
prestações essa extravagância. Mas tirava algum proveito dessas fantasias; corria o
boato de que Ema era muito rica e que herdara muitos bens de tios e tias. A confiança
tomava proporções sólidas, pois há uma conexão lógica entre as razões e os actos. Se
os Paivas gastavam assim, era porque havia uma fonte de rendimento por detrás. Não
sendo o volfrâmio e a emigração, motivos de riqueza já injustificáveis, restava o
favor político e as suas combinações redentoras. Mas Carlos fazia o seu trabalho,
dormia muito e confiava na sorte. Ema desempenhava um papel cada vez mais
excitante, embora não se lhe conhecessem aventuras. Os homens são gratos para com
as mulheres que servem de pretexto sem querer servir de prova.
Às vezes pensava na cândida nobreza do Romesal, nos quartos onde a castanha
se amontoava, no cepo à entrada da cozinha onde dantes se sentavam os mendigos e
que servia de degrau para o cardenho das mulheres. Parecia-lhe tudo muito distante e
não sabia se lhe interessava recuperar aquilo. A corte de mulheres, que a amavam,
que a penteavam lentamente falando dos amantes que estavam em África, dos irmãos
que voltavam e se drogavam. Morriam uns e outros no tumulto dos acontecimentos e,
passados alguns meses, não se falava mais deles. Enterravam-se os caixões com
pedras dentro, ficavam os corpos ao crepitar do sol abundante e justo. Um sol
kantiano, de acordo com a liberdade de todos e de cada um, para fazer germinar e
para fazer apodrecer. Ema perguntava às vezes por eles, os jovens maridos, os primos
que escreviam cartas um pouco fúteis, de não ter que dizer nem motivos morais para
o dizer. Ema soube por Ritinha que Nelson dera um tiro nele próprio para o trazerem
depressa para casa. As condições não eram favoráveis para o heroísmo, morria-se em
emboscadas, por simples azar. Francisco era piloto aviador, foi vender um avião
roubado a Pretória. Era inconcebível como ele se safava daquelas histórias, a não ser
que houvesse uma ordem que se opunha à razão de direito, que fundava um preceito
novo da razão prática; assim, era possível Francisco, que fora mau aluno do
seminário e filho extremoso da Mabília, entrar numa relação de conveniência em
tudo contrária aos princípios morais. Como ele nunca se filiara profundamente numa
regra de vida nem se importava com actos virtuosos senão como condescendências
aos transportes histéricos da mãe, não sofrera com a passagem a um mundo
sacrílego, mundo de crime em que nem sequer se vislumbrava a colisão de direitos:
tudo era possível se não era abolido pela morte. Ema sentia alguma fascinação por
esse mundo se pensava em Francisco, que, de resto, vivia impunemente a sua carreira
de piloto, convencido de que a força criava o direito, embora não se devesse
subestimar a eficácia natural que resulta dos contratos e do poder afectivo das
pessoas. Casara e costumava censurar a anarquia geral em que o país estava
comprometido.
Francisco era ainda um dos seus suportes sentimentais, um elo com a
juventude no Romesal e, de certo modo, um ideal de companheiro, fora de qualquer
intenção sedutora. Homens como Francisco podem ser, como ele era, inteligentes e
delicados, capazes de desempenhar um cargo com competência, mas totalmente
cegos à moral. Isto foi o que Ema conservou daquela lição que fora a sua convivência
com Francisco, no Romesal. Ele foi o seu protótipo que a infância absorveu com
singular paixão. De certo modo, era o protótipo da sua época.
Ema tinha ainda presentes as festas de Lamego, decorridas na concha do Verão
abismado no disco do sol, e lembrava-se das corridas de cavalos de amadores em que
concorria uma mulher: Tomásia de Fafel. Não era feia, mas só hombruna e desabrida.
Corria sem selim e sem estribos, e mesmo assim ganhava com grande avanço; numa
nuvem de pó branco Ema via-a, mal vestida com umas calças de algodão e calçando
sapatilhas. Tomásia era chegada às casas melhores da região, e teve um filho sem pai
conhecido que ela criou para lorde, deixando-lhe uma fortuna. Nunca se quis casar.
Era mais velha do que Ema um par de anos e representava uma casta de mulheres
que não sabem medir a força das suas paixões senão pela capacidade de as debelar.
Ema sentia-se mesquinha e insignificante face à fogosa personalidade da Fafel que,
na realidade, se chamava Maria Tomásia Bernardina. Essas mulheres originais
desapareceram cedo da face da sociedade, que não alimenta bocas ociosas. Aos
quarenta anos já ninguém falava dela; nem bem nem mal. Era um enterro sem
epitáfio, e Tomásia caiu num poço de silêncio onde se amarrou às antigas virtudes
raciais que desprezara antes. De resto, a revolução de 1974 sepultou essas vistosas
marcas de elegância feudal e substituiu-as pela devoção partidária. Não se admirava
mais ninguém, trocava-se o voto pelos benefícios do supermercado e os serviços
sociais. Tomásia via o filho crescer para a vida diplomática e sentia-se feliz em tê-lo
feito tão rico que o consideravam apto para ser tratado londrinamente, como um
inútil de carreira.
Esta Tomásia foi mais tarde confidente de Ema, quando a confidência era uma
operação indolor e não significava mais do que um derivativo da alma que ganhava
cabelos brancos. Viu Tomásia em Lamego, pela primeira vez. Na romaria de
Lamego, Branca contara-lhe que perdera a virgindade e um brinco de bolinha. A
mata, como o bosque de Arícia, guardava segredos que não cabiam no eucológico
pastoral. Era imensa, de grande poder testemunhal quanto a prazeres e a seduções.
Três quartos das raparigas da região tinham passado por lá com mais ou menos
objecções e proveito. Até Carlos, que se podia nomear como virtuoso, que é uma
palavra indizível para homens triunfais, levara à mata dos Remédios duas
enfermeiras com quem teve amores passageiros ou simples entrevistas que o
garantiram na lista dos licenciosos da família hospitalar; o que era falso, porque
Carlos nunca conhecera a virulência das paixões da adolescência, e como rapaz
adulto nem sequer era sensível às coisas malsãs que às vezes corrigem os efeitos das
coisas sãs. Não era um Tartufo, mas desprezava as condições falsas do amor
clandestino. A imaginação não era o seu forte, e ele dava mais ouvidos ao orgulho da
sua consciência de quadro.
E, além do mais, Ema bastava-lhe. Amava-a com a teimosia que as pessoas do
campo põem nas coisas da sua propriedade; não se via como infiel, assim como não
se veria ladrão ou falsá-rio. Era uma questão de desconfiança por caminhos que não
cabiam na sua aritmética existencial. Há coisas que se aprende serem para os outros,
e isso permite um domínio dos nervos e um toque de má fé para com o género
humano. Estamos senis quando nos consideramos definitivamente amadurecidos.
A partir dos sete anos de casamento, Carlos tornava-se, sujeito a desesperos
brutais com respeito aos colegas mais bem situados na carreira ou que tinham subido
muito depressa. Atribuía-lhes carácter duvidoso e um comportamento dúbio e
corrupto. Não perdoava as menores faltas, sobretudo aquelas que podiam significar
para ele qualquer humilhação.
Encarava a vida do ponto de vista do defunto, como disse Simona um dia,
olhando-o com não se sabe que celerados pensamentos. Carlos tinha-lhe medo mas,
como era mais forte do que o medo a passagem curiosa pela casa das Jacas, perdia-se
entre a repulsa e a atracção daquela mulher.
Quase por efeito duma soma de desesperos conjugais que não chegam a
significar um desgosto, mas só a inibição do próprio desgosto, Carlos começou a
entrar nas Jacas com uma naturalidade "branqueada". Como dinheiro de origem
crapulosa entra num banco e sai limpo das suas máculas. Ele queria chegar ao fundo
dum enigma, Ema, que ele não ousava interrogar nunca, sob que pretexto fosse.
Constituíam um casal feliz, com vidas um pouco separadas e sustentadas por uma
tonalidade irónica que diz bem a todos os casais. A ridicularizar-se esse limbo
premeditado do casamento, consegue-se iludir uma consciência abissal dos seus
perigos. Eram desconhecidos bem intencionados, interessados num sonambulismo
em pantufas que partilhavam, não partilhando mais nada.
Quando, pela mão do marido, Ema entrou na casa das Jacas, aparentemente
não fez mais do que uma visita de cortesia. Era um jantar simples, mas tão bem
organizado e servido, que despertou em Ema uma fascinação singular. Simona estava
vestida como se acabasse de alinhavar o vestido que lhe caía com uma
sumptuosidade merecida. Era magra, e a sua nudez não devia resultar muito
atractiva; mas havia nela um desprezo pela felicidade mesquinha, e a sua beleza era
apenas isso. "Como é? — disse Ema — Ela percebe que todos nós estamos aqui
reunidos à custa de mutilações terríveis." Recuou para o fundo do seu cadeirão, e um
frio viscoso percorreu-a.
Nessa mesma noite declarou a Carlos que Simona lhe desagradara e que
achava o marido dela uma espécie de corvo, à cabeceira da mesa, crocitando.
— Não percebi nada do que ele dizia. Tem uma cultura acima do vulgar, mas
tem também qualquer coisa de criminoso.
Carlos, que desatava os cordões dos sapatos, mostrou-se distraído com essa
operação. As conversas de carácter íntimo causavam-lhe apreensão e até medo. Mas
gostava de proporcionar a Ema ocasião para ela desenvolver as suas aptidões,
oferecendo-lhe um luxo de imaginação que ele próprio não era; capaz de lhe dar.
Receava talvez perdê-la se ficassem demasiado a sós. Por isso, em dado momento,
foi tão importante para ele sair com amigos e entabular novas relações, arrastando
Ema com ele, como a vítima para o holocausto. A casa das Jacas parecia o local
apropriado para nele se efectuar um sacrifício: para que o amor de Carlos por Ema
fosse degolado e daí resultasse um renascimento. As paixões têm que ser feridas de
morte para atingirem a encarnação de qualquer outra relação humana, como a que a
cultura proporciona ou o dinheiro admite. Há uma história de bestialidade vencida
em todo o sucesso dum argentário ou dum filósofo.
Carlos percebia que Ema estava perto de cometer uma loucura, e achou que
devia premeditar outra loucura mais conforme o plano da família. Deu-lhe a escolher
Pedro Lumiares, que era, no seu entender, um robot com vantagens sobre os outros
homens: sabia falar de amor. Era de Pedro Lumiares que Ema precisava para não se
sentir inferior à casta de mulheres amadas. Duma maneira astuta, mas sem grandes
prodígios psicológicos, Carlos conhecia Ema. Amava-a, mas era irredutível a
qualquer originalidade; como o amor é e será sempre. Como conservar Ema, até que
o sexo se tornasse menos vingativo, era a sua preocupação. Chegara ao ponto do
casamento em que o consentimento da mulher é pior do que a recusa; é uma
saciedade ainda inocente. Percebia que Ema estava prestes a cair nos ciúmes
persecutórios que são afinal um desânimo do amor. Já lhe fazia perguntas
intempestivas, lia-lhe as cartas, tentava encontrar-lhes um sentido dúbio e
comprometedor. Estava alterada, tinha crises de indolência, não se vestia durante dois
dias. Depois arranjava-se de ponto em branco, pintava-se como se fosse pisar um
palco e descia a escada com passo desafiador.
As filhas olhavam-na maravilhadas, e Lolota, que era um pouco parada,
balbuciava:
— Como tu estás linda!
— Como tu és tola, minha filha!
Não amava as crianças, mas queria-as bem tratadas, servidas, mantidas com
luxo para não destoarem da casa e dela própria que parecia um quadro, como Ritinha
dizia por gestos largos e espaventosos. De facto, a beleza de Ema tornara-se tão
evidente que causava uma espécie de paralisia. Aquilo que se não critica desenvolve
uma obediência capaz de, para encontrar saída, cair noutras reprovações. Ema passou
a ser pasto de maledicência e ainda não tinha feito nada de condenável. Foi nessa
altura que lhe inventaram o título de madame Bovary.
— A Bovarinha — disse Lumiares, divertido. Nunca tinha reparado nessa
mulher senão para comentar consigo mesmo que ela era bonita demais para as suas
posses. A beleza que não se ajusta aos meios que a garantem entra no temor de
ofendida. Para provar esse pensamento, na linha das suas denúncias morais,
Lumiares convidou Carlos e a mulher quando deu o baile; foi a última vez que se
abriram os velhos salões das Jacas. Depois a Revolução mudou tudo, fortunas e
paisagens. Lumiares e a mulher deixaram de receber e fecharam-se para o mundo.
— Eu — disse Lumiares — orgulho-me de ser um robot bem afinado, muito
além do meu século. E do meu sexo. — Ele riu-se.
A mulher ouvia-o com uma deliciada frieza; percebia-se que eram
inseparáveis, mas que se privavam um do outro no que em geral as pessoas julgam
ter em comum: os desejos, que tantas informações falsas dão sobre a pessoa.
Lumiares e Simona eram pessoas duma espécie incalculável, em contraste com os
casais que eles consideravam apenas como um sonho fantástico. Na casa das Jacas,
tão solitária como convinha àquele par "colado à parede", como dizia Lumiares,
quase não se sentiam passos. Às vezes, uma porta fechava-se devagar. A um lado, no
terraço, estava um velho Buick que se ia desfazendo sem que servisse senão para
abrigo dos gatos vadios.
Uma criança passava, de raspão, sem se deixar ver bem, filho ou filha dos
caseiros e, como eles, com um subtil passo de veado, que os levava como que para a
densidade do bosque silencioso. Lumiares aparecia à entrada, alto e desengonçado,
sempre com um livro na mão; o portão ferrugento estava entreaberto, mas, se
reparássemos, uma cadeia de ferro impedia a passagem. Parecia que as Jacas estavam
sob o efeito dum feitiço; os caseiros, ao menos, diziam isso. Mas não. Lumiares era
um sábio, à sua maneira, e tinha uma disposição íntima para uma letargia quase
semelhante a um estado de senilidade.
Foi ele que quase levou Ema pela mão à casa da Caverneira e a apresentou,
antes de Carlos pensar nisso. Mas Carlos acompanhou-os. As vinhas, com oliveiras a
cercá-las, estavam carregadas ainda da uva de mesa, a última a ser cortada. Foram a
pé, a distância era curta, bastava subir uma estrada entre bardos; a noite não caíra
ainda. Ela sentia-se tremer no vestido de seda clara, que Lumiares escolhera para ela.
Dera-lhe instruções de como devia vestir-se, era como se a preparasse para cometer
um crime.
— Tens frio? — disse Carlos. Ela negou, mas chegou-se ao braço dele, e sentiu
com indignação o cheiro do seu tabaco vulgar e da loção da barba, uma loção de
anúncio, quase pestilenta. Ele nunca se habituaria a gastar, embora fosse já rico e
fizesse operações bancárias bastante avultadas. Dizia-se que extraía mais lucros do
jogo da Bolsa, do que pedras das suas vesículas. A fadiga tornava-o macilento e
envelhecido. Além disso, nunca dançara na vida, a não ser um twist nas festas de
curso, com colegas ligeiramente embriagadas que o tratavam como irmão. Ela
lembrava-se: que fora ele fazer àquele baile, com o smoking apertado nas cavas e os
sapatos de grossas solas de celeiro? Por economia não comprara outros, de
polimento. Ema pensou que iam dar triste espectáculo da sua mediania, e carregou o
semblante; isto fê-la parecer altiva e favoreceu-lhe o rosto miúdo, os olhos largos
puxados para as fontes.
No meio de tantas mulheres desenvoltas e picantes, que, no seu meio,
parodiavam as mulheres galantes e até as rameiras, Ema sentiu-se ignorada. De facto,
davam pela presença dela, mas seria abrir uma brecha no baluarte de defesa, se o
manifestassem. Pedro veio em socorro dela, e nunca Ema percebeu melhor as
incoerentes fases da amizade, fabricada às vezes por intermédio duma infelicidade
imediata. Estava apavorada e aceitou a companhia de Lumiares com uma sofreguidão
que a ela própria surpreendeu. Carlos deixou-a entregue e foi beber o seu whisky
aguado que ele recomendava como vaso-dilatador. Ema disse-lhe, em voz um pouco
alta demais, que fosse prudente.
— Ah, sim, está descansada. — Ele sorriu, ternamente tocado por aquele aviso,
e ficou um momento mergulhado na doce persuasão de que aquilo era uma
demonstração de amor da parte duma mulher bonita, a sua mulher. Pedro Lumiares,
com o laço meio desfeito, que ele usava para se distinguir, os míseros papillons hirtos
e prontos a servir, encaminhou Ema para um canto da sala onde um grupo ria de
maneira hilariante, com esse riso de província, bem humorado e abençoado pelo
patrão da casa, o parente rico com quem é possível fazer graças. Imediatamente
tomaram Ema como centro de apetites velados por uma malícia irreflectida.
Lumiares disse:
— Calem-se lá! Vocês não têm órgão espiritual, e os outros não são assunto de
conversa diante de senhoras.
— Ó Lumiares, as senhoras são uma ideia que já não é deste tempo. Usas
chapéu de plumas e gola de renda? Não.
— Há quem use. Satanás usa, mas vocês que sabem disso?
— Ora esta, Satanás! Ele que disse? Vais falar das forças do mal? Eu fujo —
disse um rapaz franzino, de olhos claros. Chamava-se Fernando Osório e tinha uma
quinta na foz do rio Tedo; estava arruinado, e isso dava-lhe direito às suas fantasias
abusivas. Mas arruinado, para um Osório, era estar enterrado em ouro até aos joelhos
em vez de nadar nele.
Lumiares deu por acabada a conversa e levou Ema com ele. Quisera só mostrar
que ela lhe obedecia e que dispunha da sua beleza, embora não a desejasse.
Nesse ponto, ele sofria por não amar as mulheres, inclusive a dele. Para dizer
doutra maneira as mulheres eram o que ele menos amava, embora as tomasse a sério.
Elas retribuíam-lhe com reconhecimento, porque preferiam ser levadas a sério, a ser
amadas. Desejadas, sim, que riam ser; e alimentavam essa condição satânica nos
homens que era o desejo indestrutível, dócil, afogado na escravidão que tem algo de
espiritual porque, ao servir a matéria, projecta para além dela o fantasma da sua
alma.
Lumiares entendeu depressa que Ema tinha a capacidade, muito rara, de
iluminar o desejo e fazê-lo correr como um fogo fátuo sobre os cadáveres da
virilidade mítica e obstinada mas, de facto, sofredora, dos homens. Ele podia
aproveitar Ema no sentido de subornar os outros homens. Era só questão de a
oferecer e distribuir em doses proporcionadas e ligeiramente venenosas. Agora
tratava-se de a fazer gozar o baile, mostrar-lhe os primeiros passos na ambição,
começar a produzir a obstinação que principia com a melancolia duma alma sem
corpo. E Ema, embora tivesse um corpo delicioso, estava separada dele por uma série
de tristezas, umas fornecidas como educação moral, inflexível às maquinações dos
apetites, outras exploradas no sentido de manter até à morte a mulher amorosa,
visionária duma felicidade incorruptível.
Fê-la andar pelos salões, três salões com tectos brancos, debruados a ouro, e
onde se dançava alegremente. Algumas raparigas usavam sapatos de ténis para se
destacarem da formal toilette de noite; mas não eram por isso menos soberbas, e os
vestidos compridos eram caros e bem cortados. Quando Ema passava, seguiam-na
com um olhar de repente batido e cansado. Reconheciam nela uma irrealidade que
produz a capacidade do sofrimento para quem a descobre. E aquela pele ligeiramente
cinza, onde brilhavam os olhos castanhos, sem lamentação e sem medo, fazia com
que, de repente, se aliassem com ela. Os rapazes sentiam, de imediato, um ciúme
profundo; e tratavam de as cortejar, profundamente.
Tal era o efeito que Ema causava. Sentia-se feliz, mas também surpreendida
com tantas emoções, entre as quais se destacava um desejo absoluto e constante.
Tudo era inferior ao seu desejo e, ao mesmo tempo, tudo lhe parecia inatingível. Tal é
a força do desejo, que mais imagina do que consome.
— Está feliz, Ema? — perguntou-lhe Lumiares.
— Sim, estou — Mas deixou-o ignorar aquele tormento que se ia tornar
familiar, a avidez permanente para uso da sua fome de luxo. Não só de luxo, mas de
oposição ao vazio, à castração de que a ameaçava a vida conjugal e a sociedade no
seu conjunto. Uma imensa vontade de lesar, de fazer mal, levantava-se nela como
uma onda de frescura, de vitalidade. Voltou para casa pelo braço de Carlos, deixando
que a cauda do vestido se esfiapasse no areão do jardim.
— Olha que estragas a saia — disse Carlos, meio repreensivo. Ela parou, não
deu resposta alguma. Depois olhou para o céu escuro e coalhado de estrelas.
— É uma coroa por cima da minha cabeça.
Um sentimento negro, que lhe aparecia em toda a sua limpidez e grandeza,
revelou-a nesse momento único de sinceridade. Quando acordou, no dia seguinte, o
quarto pareceu-lhe pobretão e a cama de bilros desproporcionada nas quatro paredes
exíguas sobre a alcatifa que tinha manchas da papa das crianças. Ralhou porque
descobriu uma nódoa de café na dobra do lençol. Durante oito dias quis que se
tomasse o primeiro almoço na sala de jantar, preparando um bufete com ovos e
fiambre. Resultava caro e ninguém apreciava. A fruta cortada não tinha mais proveito
e acabava por ser deitada fora. Carlos reprovou aquilo timidamente. Gostava de
almoçar no quarto, fumando depois o primeiro cigarro, antes de fazer a barba. Ema
mostrou-se, de repente, incompatível com esse hábito, falou em ter quarto à parte.
— É mais saudável e não tenho que acordar quando chegas tarde. — Foi um
golpe para o marido.
Amava a intimidade da mulher, a carne nua, a carícia que o sono torna pueril;
amava o todo desejável que completa a vida conjugal, a conversa de cama, a
felicidade de berçário que se respira num quarto de casal nas horas em que reina uma
ordem espiritual, de paz profunda, ininteligível, em que todas as humilhações ficam
ofuscadas, em que o orgulho negro de amantes desaparece. São apenas dois seres
inocentes, a alma é o risco proposto pelo corpo, mas um risco suspenso e reduzido
apenas a uma ferida secreta, adormecida. Ema manteve a ideia dos quartos
separados, mas seria preciso fazer obras na casa e reduzir mais as proporções da
entrada, já assim acanhada. Preferiu deixar as coisas como estavam.
Mas um sem número de caprichos assaltaram-na. Quis viajar, mas não tinha
paciência para correr as estradas nem admirar catedrais. Ficava, sedenta e irritada,
nas esplanadas, a beber, como um homem, um whisky puro ou um café muito forte.
A beleza de Ema era notada, ela parecia ofendida, saía de rompante; Carlos tinha que
levar-lhe a bolsa e os óculos de sol que ela abandonara.
Outras vezes gastava doidamente em produtos de maquilhagem, pintava-se
como uma actriz, usava cabeleiras e pestanas postiças. Tinha o ar duma deusa
egípcia, os enormes olhos rasgados pelo lápis negro, as sombras azuis das pálpebras
a carregar-lhe o olhar. Voltavam-se para a ver, Carlos começou a receber indirectas
dos colegas, outros mostravam um empenho insinuante em frequentar-lhe a casa, e a
mulher. Ele tinha ciúmes mas guardava recato e, sobretudo, não deixava perceber a
Ema quanto o afligiam as suas fantasias e como ela o fazia sofrer. Chegava a perder o
interesse pelo corpo de Ema, de tanto que a via exposta ao desejo dos outros homens.
Só confiava em Pedro Lumiares, e pedia-lhe humildemente que se ocupasse de Ema.
Vagamente, deixava perceber que ela era frígida e que não era ameaça para os casais
bem ligados. Pedro ouvia-o com alguma reserva; os princípios incoerentes que
Carlos manifestava não deixavam de o preocupar.
— Que quer dizer com os casais bem ligados? Por acaso o casamento é uma
maionese? Deve ser. O dele destalhou e não sabe o que há-de fazer.
Simona, sempre agachada no chão a limpar calçado ou a mudar plantas dos
vasos, não respondeu. Os cabelos lisos cobriam-lhe a cara e não se via a expressão
que ela tinha, possivelmente não estava interessada senão em dar brilho aos sapatos,
fazendo entrar a graxa nos finos vincos do cabedal. Simona sempre fora educada para
não temer as rivais. Não era capaz dum pensamento virulento contra ninguém, não
por generosidade mas por coesão indestrutível com o seu próprio meio. Tudo o que
acontecia fora dele não lhe dizia respeito.
— Que vou fazer, não me dizes?
Simona levantou a cabeça e olhou para ele com aqueles olhos pálidos, nobres e
incapazes de ironia. Às vezes, Pedro Lumiares achava-a poderosa em demasia e, por
isso, fechada numa espécie de letargia. O duelo com Simona era impossível; o amor,
com o seu infinito comportamento batalhador, era impossível.
Sentiu uma tentação quase dolorosa de conhecer de perto a história
contemporânea dos seus vizinhos. Carlos parecia esperar dele auxílio. Mas que
espécie de auxílio? Via-se a braços com uma mulher que se lhe opunha inteiramente,
como uma mulher faz quando está possuída de forças sobre-humanas. Enfeitiçada,
possessa, como se dizia em tempos mais experientes e em que o fogo era um recurso
contra a resistência da matéria. Pedro Lumiares foi ver Ema.
Encontrou-a pronta para sair, como estava sempre, tendo umas luvas de
conduzir nas mãos pequenas e que, Pedro reparou, não eram bonitas. Esse pormenor,
que escapava ao milagre de tanta beleza, tranquilizou-o.
— Venho falar consigo — começou, sem preâmbulos. — Para principiar, acho
que está a passar-se consigo o que se chama a febre da ascensão. Não tem asas, nem
poderes sobrenaturais, e não quer arriscar-se a atirar-se dum quinto andar porque
acredita na lei da gravidade. Em suma, precisa dum psiquiatra ou dum amante.
— Está muito enganado. Essa ideia imbecil de que tudo se resolve com uma
queda ou com um banho frio! Não é assim tão simples.
Ela pareceu derrotada por ter usado palavras duma urgência que lhe repugnava.
Ofereceu-lhe lugar no sofá, mas não se sentou. Aborrecia-a que alguém a perturbasse
tão pacatamente quando o seu estado era o de alguém que sabe ter a vida por um fio.
Que se pode dizer a alguém, nesse caso? Não podia explicar-lhe que uma mulher, ao
ser engendrada no ventre da mãe, está já marcada para o insucesso. Enquanto o
homem trata de se aplicar à vida por diferentes meios, a arte, a guerra e os: negócios,
a mulher não tem hipótese de escapar ao braço de ferro que acabará por destruir
todas as suas partículas. Ela sabe que está protegida da matéria exterior pela
manipulação dosl sentidos e pelas fraudes da oposição a si mesma. Mas tudo é inútil.
Ema usava para com Pedro o método que se usa para com os doidos: a
simulação. Discutiam de maneira inteligente, mas] nada daquilo se ajustava à
realidade. Para Ema, tratava-se dum profundo fracasso que ele, como homem, não
podia compreender. Ema dava-lhe conta dos seus movimentos, que apenas atingiam
um raio muito breve dos seus objectivos; como comprar um objecto caro, mais uma
vez imitar a independência económica e, com ela, toda uma independência física de
que o casamento a privara. Cada vez estava mais distraída dos seus deveres, Carlos já
não sabia como falar-lhe, e as filhas escapavam dessa instabilidade com promessas
de compensações, mais livros ilustrados, mais aparelhos de vídeo e mais roupas de
marca. Já não suportavam nada que não fosse garantido por um estilo, eram criadas
para ser belas e decorar uma empresa como dantes se decorava um harém.
Ema, quando cruzava com Lolota, que era tímida e assustada, pensava, como
uma treinadora, o que poderia ser feito por ela no sentido duma carreira. Mas Lolota
só tinha dez anos, era melhor não se preocupar demasiado.
Não se preocupar era o estribilho de Ema, que, entretanto, aumentava as suas
queixas, nunca estava em casa e arranjava divertimentos novos. Carlos via-a sair com
estranhos, quase implorava a Pedro Lumiares que travasse aquela vadiagem sempre
justificada com ocupações que se multiplicavam. Ia ao Porto pentear-se e fazer
ginástica aerobiótica. Era tudo bastante inocente; Pedro Lumiares dizia que as
mulheres professavam no seu quadro de criatividades, como dantes professavam num
convento. Mas Carlos não ficava convencido. Para ele, Ema tinha amantes e, o que
era mais grave, podia a todo o momento abandoná-lo. Ignorava que os homens se
tinham tornado completamente ofuscados pelo jogo dos determinismos, e a paixão já
não tinha para eles o mérito dum acontecimento. Uma beleza como a de Ema não era
vista como uma revelação dalguma coisa inspiradora. A época tudo absorvia, não
havia em circulação obsessões que produzissem o amor lírico; os prazeres da
hipocrisia superavam os prazeres do leito. Não havia sequer sensibilidade para um
ciclo histórico, que se fecha: como a batalha de Alcácer-Quibir ou o cerco de
Leninegrado; ou Waterloo e Trafalgar. O peso das instituições e a transferência rápida
das classes impediam os sonhos, calculados ou só românticos, das pessoas de cultura.
Havia toda uma composição de atitudes novas sobre o dinheiro, a doença, a vida
sexual. Não se vivia para ser feliz, para suportar uma angústia, para medir forças com
o destino; vivia-se para entrar numa estatística.
Ema queria saborear ainda um horror qualquer, detestar o marido medíocre e
fora das leis do sucesso; amar um desconhecido que encontrasse na gare, enquanto
ela, por detrás dos vidros da carruagem, pousasse nele os olhos profundos, como se
não quisesse mais acabar de olhar para ele.
Quem era? Onde vivia? Ema pensava que podia amar assim, mas logo era
interrompida por um telefonema, tinha hora marcada no massagista, passavam-se os
modelos de Primavera num hotel, ela tinha que correr, beber o seu Campari, ir à
garagem buscar o carro, ficar presa no engarrafamento das sete da tarde. Chegava a
casa desfeita, comia um bacalhau com natas já repousado, abria os convites para
exposições, concertos e sessões de animação ou recepções consulares. Nem sequer
estava ao par do serviço da casa, as criadas pareciam todas iguais, só as batas lhes
assentavam melhor ou pior. Já não se lembrava de ter despedido uma criada; elas é
que saíam, nervosas, fartas, cheias de exigências com que superavam a sua
necessidade de mudança e as catástrofes da insedução de tudo.
Quase sem reparar, Ema aceitou a corte de Fernando Osório, e deixou-se
conquistar a ponto de pensar em separar-se e começar outra vez com um homem rico,
comprometido na política e que tinha alianças apreciáveis. Ele divorciara--se e tinha
três filhos a estudar. Ema pediu a Lumiares informações.
— É um parvo e bebe muito — disse Pedro, pondo de lado o livro e tirando os
óculos devagar. Ema tinha chegado às Jacas como um furacão e deitou para cima do
tapete o casaco vermelho forrado de peles pretas. Mostrar desprezo pelo luxo
parecia-lhe dum refinado gosto. — Como é? Andas a dormir com ele?
— Não, estás doido. Não é isso.
Mas confessou que Fernando Osório lhe soltara as alças do vestido, uma vez,
na piscina, à noite. Não estava ninguém, e a água negra brilhava com pequenos
sulcos como se fosse agitada desde o fundo.
— As alças do vestido? Não deixes fazer a nenhum homem o que podes fazer
sozinha. Doutro modo, nunca te vais emancipar na vida. Que queres dele? É um
unhas-de-fome e tem três filhos como três carraças, que lhe levam tudo.
Acho que comprou no nome deles os prédios no Porto. Gasta com eles o que
tem e o que não tem, para os subornar. Onde o conheceste?
— No baile, aqui mesmo. Foste tu que mo apresentaste.
— O baile. Só sabes falar desse baile. Parece que não te aconteceu mais nada
na vida. Foi como o primeiro Congresso para um médico da Assistência. Melhor:
para uma médica da Assistência. O Fernando Osório é burro. Nem sabe quem
escreveu Os Lusíadas.
— Para ti não há ninguém que preste, ninguém que valha nada. É um
desespero falar contigo.
Ela baixou-se para pegar no casaco, um pouco corrida, sem saber como manter
as suas propostas de vivacidade e de audaciosos amores. Lumiares cortava pela base
o que ela tinha por seguro e, mais ainda: impedia-lhe imaginar afinidades com
qualquer coisa de provocador. Não era a concupiscência que a movia, era a
provocação que dela se socorria, o que a lançava no seu romance com Osório, ou
com outro.
Levou por diante essa história, uma história dum julgamento em que, de
antemão, o réu, o amante, estava condenado. Enquanto o amou, não deixou de
acumular na memória factos que pudessem um dia servir para instruir-lhe o processo
e para o levar ao fracasso. Isto era nela o contraponto da ânsia de poder que os
homens lhe ensinavam. "O amor tem má memória" — dizia Lumiares. Mas estava
desconcertado; via Ema agir fora das suas instruções, dos seus panfletos contra o
sentimento inculto do heroísmo. O que Ema propunha era sair do seu papel de
desapontamentos feitos de opções ligeiras, ocupações duma nova integridade, a
distribuição do tempo na sua vida que já não era materna nem marital; era uma vida
com espaços que era preciso preencher com horários, esperas, encontros, boletins,
para ser comparável a uma profissão e um cargo.
Mas a arte da liberdade, que qualquer pessoa obscura inventava, a arte de
agradar que não era a intenção de conseguir uma clientela, isso tinha desaparecido.
Que heroísmo havia nessa bonita mulherzinha que, se nem todos evitavam, muitos
deixavam no seu canto porque ela era o que menos sugestiona o pagão civilizado —
era uma desconhecida? Simona deixava que ela entrasse e saísse da casa das Jacas,
porque a considerava inofensiva. Lumiares nunca ia ficar tocado por ela, uma vez
que só a libido livresca lhe interessava. O que não fosse escrito, passado pela
ortografia correcta, fazia-o bocejar. Quando estava com ele na sala de entrada, Ema
ouvia os pés nus de Simona no corredor esteirado; ou ouvia-a lá fora regar as flores,
deixando correr a água nas lousas, muito tempo, como se esse desleixo fosse
interromper o colóquio deles. O que decidira a intimidade de Ema com as Jacas fora,
antes de tudo, a vizinhança e também o assombro incutido pela grande fachada
escurialesca da casa velha. Havia outro edifício nas traseiras, datado dos anos
quarenta e que representava uma euforia financeira, a última, dos Lumiares. Era um
piso térreo, confortável, combinado com um estilo que fora audacioso e que
subitamente envelhecera e que parecia subsistir apenas nas comédias de Hollywood.
Tudo se degradara, mas era ainda bela a porta de ferro forjado e o quarto de Simona
todo em palissandro, a cama sobre um estrado alcatifado.
O que impressionava mais era a avenida dos plátanos e a ruína insidiosa dos
espaços entregues ao movimento das estações. Ouvia-se, claro, o apito dos comboios
do outro lado do rios; e um bater de barcos no ancoradouro da Caverneira, que tinha
sempre duas lanchas ao serviço dos hóspedes em trânsito para o Moledo, defronte.
Ema deixou-se deslumbrar pela grandeza secreta dos lugares, esse Vale Abraão,
derrotado, mas soberbo, com o seu padrão de demarcação ao canto do caminho
solitário. Achou que não era tolice amar todo esse adereço de riqueza, que lhe dava
esperança para ela própria ser candidata a qualquer forma de glória.
Depois, Pedro Lumiares revelou-se um bom conversador e um mestre que lhe
serviu para não ter de se ignorar a ela própria. Foi ele que lhe chamou a Bovarinha,
com o desprendimento senhorial de quem põe nome a um cão. E, ouvindo-o,
rapidamente Maria Semblano divulgou a alcunha, sem esquecer retirar-lhe o fel da
maledicência. Era uma brincadeira, embora cruel, mas não mais do que isso. Ela
achava-se por demais senhora da sua vontade, para se diminuir com a malícia.
Que podia fazer Ema quando estava presa numa era de alquimia sentimental,
meias verdades e paixões difusas? Queria amar e repartir-se em amor profundo, sob
qualquer pretexto, sendo o conjugal o menos a propósito. Carlos Paiva teria preferido
que ela passasse dez anos de infidelidade, junto dele, sem o incomodar muito,
recebendo bem os amigos e dando às filhas um bom exemplo entre os notáveis,
guardas da sua imagem, pecadora mas não funesta. Quem ia levantar o véu das suas
escapadelas, tocar abertamente nos seus prazeres que garantiam a mensagem
libidinosa em circulação? Mensagem que era ao mesmo tempo implacável e
saborosa; que permitia a visão duma aliança de grupo muito mais vasta e profunda
que os elos familiares e as combinações parentais.
Mas Ema estava pronta a estragar essa rede de boa vizinhança com algo de
revelador, longe de qualquer cumplicidade. Ela queria amar duma maneira heróica,
abusiva, selvagem. O amor assim é blasfemo. A emergência dum amor pessoal, que
levanta a suspeita antiquíssima da feitiçaria, era insuportável e era iníqua. Porque a
sociedade cada vez mais procura estar precavida contra a paixão cega que sintoniza o
desejo de dominar a morte, de deter o envelhecimento, de prolongar o prazer carnal
como um direito divino. As multidões têm que estar cada vez mais submetidas,
capazes de optar pelo fim sem sofrimento, desaparecendo modelarmente nas rampas
que conduzem à morgue e aos fornos crematórios. Rapidamente, sem deixar
vestígios.
Entretanto a permissividade, tanto mais efémera quanto não é consultada a
sensualidade do indivíduo, empobrecido nos elementos naturais que a sugerem, é
imposta como uma nova alquimia fáustica. Os limites do prazer parecem ser
vencidos e levar a melhor sobre a autoridade de Deus. Mas o que na realidade
acontece é que o homem se distancia do desejo, não habitando mais a sua alma que
se alimenta da paixão pelo absoluto. A imediatez técnica basta-lhe, os segredos da
volúpia não lhe interessam, parecendo estar desvendado com o texto duma pedagogia
sexual.
Ema adivinhava que, nela, a obsessão do prazer era muito mais do que uma
história de costumes. Subitamente entregou-se a uma espécie de doença que estava
enraizada na insatisfação profunda do seu ser. Julgou que a libertação sexual a ia
curar, mas durou pouco esse convencimento. Desde o primeiro momento em que caiu
nos braços de Osório, percebeu uma coisa: ele não ia senão tentar deslumbrá-la com
palavras, como de resto Pedro Lumiares fazia, à sua maneira fáustica.
Os primeiros tempos foram compensadores, tendo em vista o esforço poético,
o lugar, a quantidade de liberdade concedida à sua imagem social. Osório levou Ema
para uma propriedade que tinha na região mais solitária do Douro, e ficaram sós três
dias. Era tenebroso o rio, altas paredes de granito negro modelavam as águas; e eles
saíam na lancha a motor, das margens nem viv'alma os podia surpreender. Só, ao
longe, uns restos de muros, que foram em tempos casa de pequenos fidalgos
arruinados pela filoxera. Ainda se viam as vinhas devastadas, como dentes podres na
fauce da montanha. Tudo era silencioso, e as águas, mais profundas pela descarga das
barragens, deixavam suspeitar um abismo mole, de lodos que se acumulam e que a
corrente não logra vencer. Ema sentia-se abordar por um pequeno atentado de
loucura; a loucura que todos trazemos connosco e que precisa só dum composto de
representações humanas, a suspeita dum crime, uma troca de libertinagem, uma
companhia do desencanto, para se manifestar. Ema estava feliz, Osório não a
decepcionava. Era um homem de boa índole e estava apaixonado.
Aqui podíamos manifestar um gosto de bordel privado, como acontece quando
o amor se torna assunto educativo. Mas, à parte o despertar, às nove da manhã, em
que o mordomo Caíres intervinha, levando ao quarto um almoço de chá e torradas,
não se passava nada de escandaloso na casa do rio. É verdade que, debaixo do
mosquiteiro de tule, que o mordomo ia descer à tarde, pondo novas toalhas nos
toalheiros, podia surpreender os amantes nus, mas, mesmo assim, decentemente
velados. Caires, só quando a cozinha estava arrumada e quando a mulher se recolhia
aos quartos exteriores, que tinham nomes como Vintage e Tawny, para melhor os
situarem, é que ele contava aquelas cenas íntimas de que não era grande apreciador.
Gostava muito mais de dinheiro e tinha um jeito rapace de receber as gorgetas,
fazendo-as desaparecer no bolso da farda de sarjão branco, com ferrugem na base dos
botões de latão. Ema vestia todo o dia um macacão azul deslavado e lançava-se em
corridas no barco a motor, os cabelos desfeitos e um riso quase feroz na linda boca. O
perigo e as coisas um pouco desabusadas agradavam-lhe, como se provasse ao
experimentá-las o seu lado exasperado de rapaz de liceu, uma virilidade capaz de
proezas como doutras tantas seduções para mulheres. À noite, porém, Ema dava
largas ao seu luxo de interior, vestia grandes roupões com laços e golas de rendas,
mostrava, nos decotes profundos, um deslumbrante clarão de seda, que era a sua
lingerie dum preço exorbitante. Jantavam à luz das velas, Caires servia, a chama
amarela a reflectir-se na sua cabeça calva.
— Não parece um espião russo? — murmurava Ema. O olhar saciado acendia-
se com os vinhos quentes e adamados. Não pensava se era feliz; aquela história
picante e deliciosa de gosto, com boa comida e a preguiça de férias, deixava-a
agradecida, um pouco enervada, também. Telefonou para casa, Carlos estava fora; as
crianças alegraram-se, contaram as doces banalidades do dia.
— Tenham juízo. Eu vou na quarta-feira; aviso antes.
— Onde estás, mamã? — Lolota, que era a mais sensata, tinha a voz
embaraçada. Ema voltou-se para o lado, para que Osório não visse que estava
comovida. A filha tinha andado febril, eram anginas e um pouco da morbidez do
crescimento.
— Os teus filhos não vêm para aqui? — perguntou. Rolava nos dedos bolinhas
de pão; há muito tempo que se esquecera de fazer isso. Uma onda de recordações
veio misturar-se àquela hora em que, como um dever, os amantes se entendiam para
os gozos de alcova. Ouvia-se rir na cozinha, apareceu à porta o procurador, rapaz
loiro e com olhos desbotados, que se encarregava dos visitantes e dos negócios
conduzidos por eles. A quinta era bastante importante, situada já no limite do Cachão.
Um ermo. Um pequeno comboio de desvio passava-lhe em frente, e o jardim da
estação, florido de cristas de galo, punha na paisagem um sorriso carnal. Ema não
punha o pé fora de casa que não recebesse a impressão duma cratera esfriada dum
vulcão. De resto, o lugar chamava-se o Vesúvio. Causava admiração que tão
solitários e agrestes caminhos fossem um dia explorados por gente aparentada na
corte e com hábitos de cultura. Eram juízes corregedores, fidalgos de luva e espora.
Osório tinha-se por herdeiro dessa gente rústica mas que não desleixava certas
práticas cristalizadas em rotinas fantasmas. Chamavam cantores célebres para, com
as janelas abertas sobre o rio, então cristalino e pedregoso, darem concertos
espirituais. Dizia-se que a Banti fora ao Vesúvio, assim como Caruso fora a Manaus.
Ema ouvia contar a Osório essas coisas, caía num cismar respeitoso, deixando-se
aparentar à família com o que tinha de saudoso pelo Romesal, as salas de Verão, com
esquadrilhas de moscas e os estores brancos corridos. Exagerava o gosto e o luxo da
solteiria, descrevia o pai como um titular e a mãe uma senhora fina dos Guedes de
Loureiro.
- Morreu tinha eu seis anos, mas ainda me lembro dela.
Entrava em descrições, com uma tal doutrina de família, que Osório se
entediava. Amava-a, mas fazia um esforço para suportar certos aspectos da
provinciana ensaboada, como classificava Ema. Ela não ignorava o desprezo que,
como cavalheiro europeu, Osório tinha por quem não guardava as distâncias. Só no
leito ele tolerava a igualdade de casta. Embora amasse Ema e a achasse uma beleza
difícil de igualar, o seu snobismo latente vinha ao de cima quando tinha que a ouvir
falar de dona Augusta, o protótipo da papa-hóstias, cuja bondade era uma história de
cordel. Osório tinha espírito, mas só o manifestava quando a sua consciência de
classe acordava; ou quando estava bêbado.
Ema viu depressa que ele bebia demais, o que o tornava um amante
arrependido, quase casto. Deitava-se na cama tendo um ar incompatível com o amor,
e dormia toda a noite, enrolando-se no mosquiteiro no tumulto dos sonhos. No outro
leito, Ema esperava; se não fosse a imprevisível energia sensual de Osório, ela teria
partido mais cedo. Ele sabia demorá-la com a surpresa duma lição em coisas do
sentimento, ofereceu-lhe uma pulseira de pedras, de preço módico, mandou vir
lagostas da sua peixeira na Foz, e um goraz grande como o peixe de Jonas. Mas há,
pensava Ema, uma felicidade para noivos e outra para amantes. Para uns as regras da
iniciação, talhadas numa experiência do desconhecido; para outros a liberdade que se
abre ao improvável, um desregramento que significa um rapto em relação à
existência conhecida e da qual se receberam avisos desoladores.
Ema saía para o cais, um pontão de tábuas onde a água batia com um rumor
sinistro; e fazia-se ao largo do rio, lançando-se numa corrida que tinha muito de
imprudente. O mordomo olhava do terraço e achava-a maluca. Era diferente das
outras, estranhava em Ema as iras repentinas que faziam parte do seu misterioso
poder de atracção. Essa veemência fazia supor formas inimitáveis de paixão. Mas
depressa se estancava o delírio que a acometia.
Aparecia para jantar, vestida e decotada a rigor, as unhas pintadas de ocre ou
de prata, tão bela que o mordomo Caires se distraía e servia pela direita o famoso
goraz de pinta num molho de alcaparras. Havia visitas, os amigos de Osório, entre
eles, Pedro Dossém, que se dizia parente de Santo António de Lisboa. A prova era
fraca, baseava-se no testemunho do cronista paduano Giulielmo Ongarello, que em
1441 referiu Doson como sendo o seu nome de família.
Pedro Dossém tinha propriedade valiosa em pleno Douro vinhateiro, no
Pinhão, na estrada das Covas. Era um homem de bom sangue, mas um pouco
desleixado pela Natureza naquilo em que a Natureza é todo-poderosa: o sexo e a
morte. Pedro Dossém não pensava nem no amor nem na morte; era uma alma-de-
cântaro, como se diz, oco e soando a vazio. Mas naquela sua visita ao Vesúvio a vida
dele transformou-se. Nunca acreditara que uma mulher pudesse ser tão bela e tão
desenganadora. Ema não iludia ninguém, não tinha táctica, tinha só o sentido do
espectáculo. Vestia-se e agia como se tivesse de conquistar Holofernes no seu arraial,
mas, na realidade, não passava dum erotismo tabelado pela utopia do poder e da
importância social. Ainda que temporariamente ela fosse a companheira sentimental
de Osório, tinha um marido que a tutelava em muitos aspectos e que podia
reivindicar os seus direitos a todo o momento. Pedro Dossém pensou imediatamente
entrar nas boas graças do marido, o que lhe oferecia vantagens no sentido de
frequentar a mulher. Não seria um rival, mas um coadjutor do casamento, papel mais
útil e necessário do que se pode supor.
Com as suas acanhadas luzes, foi Pedro Dossém que afastou Ema de Osório e
a encaminhou para a vida que ela ambicionava. Limitado como era, tinha, no entanto,
pelo lado das afinidades de sangue, relações numerosas e escolhidas que
ultrapassavam as fronteiras. Ia caçar para as coutadas reais em Espanha, e era
recebido pela aristocracia romana, ao abrigo duma sensibilidade ortodoxa que se
apegava à sotaina de Monsenhor Lefebvre.
Pedro Dossém gostava de gloriar-se, ainda que sem perder a discrição que é
timbre dos autênticos áulicos. Como era desprovido de humor, o sentimento que
tinha por Ema parecia profundo. Mas era um sentimento como a arte musical, uma
maneira de modelar as paixões. Ema dedicou-se a ele, e com ele atingiu paradeiros
diferentes dos da vida física. Não havia senão um jogo, mais inocente do que se fosse
embebido de sonhos libidinosos. Pedro Dossém tinha uma esposa e numerosa
família; nunca faltou à lealdade que lhes jurara; mas contraiu com Ema uma espécie
de segundas núpcias, levando-a ao altar mundano, com a promessa de lhe dar a
conhecer as alegrias da vaidade e das finezas.
CAPITULO III
O VESÚVIO
Quando Ema voltou do Vesúvio, achou a casa duma mediocridade exasperante.
A criada, de aspecto pobre, andava descalça a lavar o pátio da cozinha. Havia
bacalhau cozido para o jantar, e o cheiro pareceu-lhe plebeu, capaz de denunciar até
aos limites da comarca o seu viver mesquinho. Uma sebe de campânulas azuis tinha
crescido muito por cima do muro; dizia-se que dava azar, mas Ema ficou a olhar com
um sentimento de respeito por um código eterno em que ela se incluía. Despiu-se e
olhou de relance as ancas finas mas bem talhadas. A segurança duma vida conforme
as normas, confortável e apagada, por um momento seduziu-a. Tinha só que
introduzir na casa alguns melhoramentos, um sofá de chintz vermelho, um pouco de
talha dourada, nichos com louça inglesa. Talvez isso fosse o bastante. As filhas
cresciam e casavam cedo, era de prever. Carlos talvez morresse de enfarte, ela ficava
bem. Não eram ricos, mas também estavam longe de pedir esmola. Pousou as mãos
abertas nos joelhos, sentada na cama; ouvia correr a água na banheira, e aquele som
de água estalando na superfície da água fez-lhe lembrar a massa escura do rio onde, à
tarde, fazia circuitos velozes no barco a motor parando para estremecer com o
paredão das margens, num silêncio que a convidava às lágrimas; um silêncio que lhe
parecia uma figura nova da paixão.
Carlos encontrou-a assim, quieta, olhando os pés descalços. A água tinha
arrefecido na banheira. Ele precipitou-se a apagar algumas luzes; e esse gesto de
economia acendeu em Ema uma cólera triste. Deixou-se beijar, como se fosse
sonâmbula. Carlos disse:
— Todos têm perguntado por ti! Julguei que nunca mais chegavas.
Parecia intimidado; o amor não gosta de reflectir. E ele reflectia sobre Ema e a
maneira de não ser abandonado por ela. Perguntou: — Como era a casa?
Nada perguntou sobre a gente que lá estava; a indiferença irritou Ema, porque
sabia que ele queria ocultar-lhe o ciúme que tinha. Um ciúme obeso, como ele estava
agora, com patilhas que lhe davam um ar de taberneiro. — Que fizeste lá?
E como Ema disse que nadava e guiava a lancha, ele mostrou-se sarcástico,
ridicularizou tudo.
— "Nadar, nadar, mas vir morrer em terra" é o que dizia o meu pai. E uma casa
ao pé do rio é uma coisa que ninguém fazia dantes. "A par do rio, nem vinha, nem
casa, nem olival." Há muitos mosquitos e as cheias levam tudo.
— A nossa casa é perto do rio também.
Ela impacientava-se. Estava constantemente nervosa, mudava de penteado,
vestia-se dez vezes antes de sair. Subitamente recaía nos hábitos monótonos, tinha
medo de não voltar ao Vesúvio, Osório não dava notícias. As suas empresas
retinham-no ou faziam-no viajar muito. Já não havia homens sedentários, com tempo
para um amor de sentimentos nimbados de filosofia, um amor de especialistas, que
tinha um pouco a ver com a carreira das armas, entre a disciplina, a libertinagem e a
morte. Ema ficava na banheira, agitando a água espumosa com o movimento dos
ombros. A pele era brilhante e lisa, apercebia-se a gota negra duma mestiçagem
muito apagada, vinda não se sabe de que escrava parda, de ancas estreitas. Era nas
pernas, longas e secas, que a raça se denunciava mais. Daí, talvez, o exemplo
extremo duma sensualidade que enchia a atmosfera dos acontecimentos quando Ema
entrava numa sala.
As mulheres projectavam sobre ela uma ameaça, cientes como ficavam
daquela sedução animal que, no entanto, Ema repartia por objectos e a genialidade
duma fuga contínua.
Mas agora fixara-se em Osório, queria-o condenado ao prazer que, de resto, ela
não suportava como finalidade. O sentido fugidio do prazer era o que Ema captava.
Pedro Dossém rondava-lhe a porta com uma persistência minuciosa. Era um snobe
de província, não lidava senão com nomes e nunca com pessoas. As suas relações
ramificavam-se por toda a Europa, tinha guarida em palácios e castelos do mais
recôndito da aristocracia, de filhos segundos e tias desbotadas e insignes. Amava os
duendes e os fantasmas, conhecia-os pelas manias e as extravagâncias; as suas
inferioridades de tipo sexual e as suas indignações face ao destino tosco e
desmantelado duma pátria que não o honrava nem prometia nada, libertavam-se por
esse meio de acreditar em lendas e em criaturas obscuras e poderosas. Nesse aspecto,
pouco apreciado pela concreta gente de campanário, Pedro Dossém era um homem
interessante. Agora enfrentava a paixão por Ema, a cigana da sua vida, a mulher que
queria que fosse a Lola Montes do seu reinado de Covas.
Em primeiro lugar, tratou de ligar-se ao doutor Paiva, adulando-o com uma
constância, uma prudência, uma arte com que nenhum profissional da vassalagem
podia ombrear. Fez-se seu acólito, sem ser seu íntimo. Deu-lhe a consolação
necessária aos maridos infelizes que sempre esperam doutro homem a garantia da
honestidade e pureza de intenções. Carlos confiava-lhe a mulher como se lhe
confiasse a vida. Com Pedro Dossém sentia-se seguro ou, pelo menos, enganado a
meias.
Admitia que não era possível segurar Ema em casa; nem pela força, nem pela
persuasão. As leis que moderavam a libido estavam usadas até ao fio, as mulheres
andavam por fora como caixeiros-viajantes dos seus encantos e travavam
abertamente relações com qualquer recém-chegado. Sem, no entanto, descurar o
casamento e as condições de estabilidade que, com ele, procuravam.
Se Ema fosse menos inteligente, contentava-se com um prazo conjugal de
cindo a dez anos e divorciava-se para se instalar na tribo de feiticeiras poligâmicas
que era cada vez mais populosa. Mas ela tinha uma aspiração frugal quanto aos
homens, não os desejava senão como condutores duma importância social que
apetecia como uma forma de sexo mais recitativa do que prática. Pedro Dossém
percebeu rapidamente o que Ema esperava dele: contactos com uma sociedade que
ela, por si só, não podia frequentar. Há coisas a que uma mulher dum médico, mesmo
o mais douto e bem lançado na carreira, não tem acesso: a ante-câmara das alcovas
verdadeiramente polémicas, infalíveis e por onde passa a História. Nem o médico
nem o padre se aproximam muito desse nombrilismo político que é o confuso
segredo das mulheres com poder. Poder sexual ou simplesmente influência indirecta,
a mais cobiçada, porque redime qualquer constrangimento dum drama pessoal. Ema
não sabia o que podia esperar duma sociedade fechada sobre os seus próprios riscos e
proteccionismos; mas fez ver a Pedro Dossém o que esperava dele: uma apresentação
formal, como na corte. Há uma epidemia de ambições que nunca se extingue
completamente no corpo social e que promove a História em todos os sentidos.
As primeiras avançadas de Pedro Dossém não obtiveram resultado. Ema fez
sensação pela beleza, mas o grupo que a recebeu uma noite, para um jantar seguido
de bridge, tomou uma atitude que é típica da burguesia: a de medo. Uma ousadia e
um gosto sanguinário deviam fazer-se notar na figura deliciosa de Ema, porque
homens e mulheres a deixaram só com Pedro Dossém, embora não sublinhassem
qualquer hostilidade.
À segunda tentativa para frequentar a casa duma rica argentaria, não foi
melhor sucedida. Convidou-os para a sua mesa, onde se jogava forte, e fez perder
uma soma avultada a Ema, que deixou ali as suas economias dum ano. Pedro Dossém
sentiu-se magoado e disse a Ema que não voltava lá.
— Bem me enganou. Eu tinha-a por uma senhora, e saiu-me uma marafona.
Uma marafona era pior do que uma prostituta: tem o gosto de trair e a bazófia
do enredo. A senhora costumava receber na sua sala pequenas aprendizas da intriga
privada, em busca de um sucesso social e amoroso, e a quem ela dava conselhos
sábios.
— Nunca diga que é divorciada ou separada, minha filha: diga que é viúva. A
viuvez tem uma relação decente com o dinheiro, o trabalho e o amor.
Em tempos, tivera amantes, entre os quais um herói da República que
negociou com ela as cartas de amor e que se fez rico dessa maneira. Ela revelou-se
acima de qualquer discurso crítico, amando-o até morrer. Porque ela, no exílio em
Cascais, solicitada por um destino de milionária que a província interdita aos seus
prazeres simples, morreu seis anos depois da Revolução de 1974, sem ter tempo para
um conveniente aggiornamento. Ema não soube de nada tanto mais que estava outra
vez arrebatada pelo reatar dos amores com Osório, que teve a coragem de se mostrar
em público com ela e de a apresentar quase como uma noiva. Aconteceu o que Carlos
temia: Ema estava em risco de dar atenção a um só homem e a comprometer-se.
Pedro Dossém mais uma vez foi em seu socorro e convenceu Ema a espaçar os
encontros com Osório. Não se sabe o que se passa na cabeça dos viciosos que, de
repente, se tornam duma mediocridade a toda a prova quanto à vida de família.
Osório, desiludido com Ema, voltou à esposa que desprezava e aos filhos que
aborrecia; fez-se um pouco libertino sem cair na devassidão, mas nem ele nem Ema
se esqueceram dos amores no Vesúvio e dos poéticos conflitos de que o mordome
Caires era testemunha. Ela saía para andar de barco, arremessando-o pelo rio fora
com uma violência sombria. Os paredões de pedra pareciam escoltar-lhe o génio de
furores e de paixões feridas. Ema não se dava bem com os amantes. Não brigava,
mas era desabrida por efeito dum incessante mal-estar crónico, provocado pela
própria incoerência dos desejos.
Mas tinha sedução naquele espalhafato de cóleras mal acabadas, de risos
cruéis, de entusiasmos que iam dar a maquinações vingativas. Osório havia de
recordar sempre com uma espécie de mágoa cáustica os detalhes desses amores e o
pouco prazer que auferira deles. Ela era distraída no leito, tinha dificuldade em levar
a sério os sentimentos romanescos, precisava de mover-se para dissipar os seus traços
autênticos de solitária. Pedro Dossém, que não tinha pretensões a ser seu amante,
recebia a melhor parte que era uma amizade arrapazada e a fidelidade que está acima
de todos os acontecimentos.
Enquanto durou "o noivado" de Ema com Osório, houve um período que
Carlos não achou ser o pior da sua vida. Ele dormia muito, parecia que o sono o
protegia duma realidade que lhe podia ser fatal. Deitava-se praticamente vestido, por
respeito ao corpo que a repelia ou, o que é pior, o ignorava. Ema desenvolveu um
estilo fantástico, que lhe grangeava muitos admiradores; mas logo estacavam,
receosos de irem muito além com uma mulher inteligente e cujo desequilíbrio parecia
uma forma de má consciência. Não era. Ema via que o marido sofria, preferia que ele
a deixasse e levasse com ele as filhas. Mas ele afectava não dar por nada e depositava
em Pedro Dossém, como dantes em Pedro Lumiares, uma confiança tão absoluta que
roçava pelo ridículo. Dizia que os seus afazeres não lhe permitiam dar a Ema o
género de vida turbulenta que ela queria ter; e mostrava-se grato por ela dispor de
acompanhantes de boa índole e moral intocável como Pedro Dossém, cuja mulher,
uma inglesa desportiva, tomava o amor conjugal como uma partida de ténis, às vezes
de pares. De resto, ela era golfista muito reputada.
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema
para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se
prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha
dourada que mais parecia um altar barroco.
Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema
O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá
um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom
gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num
lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita
num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que
Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas
para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o
médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para
redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie
de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento duma
comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a
mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que
subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.
Em pouco tempo Carlos Paiva foi nomeado director do Hospital e candidato a
presidente da Câmara. Ema disse que ele se instalava no reino da corrupção que é o
que obtém o poder por meio de discursos.
— És um parvo, não sabes falar e nunca hás-de saber. O melhor que pode
acontecer é construíres frases sem verbo e acharem que és um oráculo. O país precisa
de oráculos, já que não tem estadistas.
Ema estava a esfregar as pernas com um creme destinado a dar-lhes uma cor
bronzeada. O sol brunira-lhe o rosto, e os olhos dela, com pestanas azuladas,
brilhavam profundamente. Como todas as mulheres que não gostam de ficar à mercê
dos olhares demasiado entendidos em beleza, ela mostrava pouco do corpo. Usava
grandes roupões de felpo e sandálias, como uma actriz que vai entrar no seu filme de
estúdio e banhar-se entre flores de lótus. Pedro Dossém estava a admirá-la como se
rezasse uma oração.
Ela riu-se com uma doçura muito rara e que dedicava a imbecis com juízo,
como Pedro Dossém era, no seu entender. — Uma caçada, onde? — perguntou.
— Na Itália.
— Na Itália? Que se vai caçar à Itália, com um tempo destes? Com efeito, a
chuva fazia no jardim um ruído de metralha.
Mas Ema continuava a preparar-se para aparecer em público, como se
chegasse na véspera das grandes férias de sol mexicano. Embora a fama dela se
ampliasse, muito tecida em calúnias e fantasias, o certo é que os Paiva só recebiam
gente menor ou ferida de qualquer suspeita: empresários entre a falência e a burla,
negociantes da praça do Porto que faziam contrabando, filhos-família que
carregavam um vício, como a droga ou o gosto pelos rapazes. Ema dava cobertura a
tudo; não se envolvia demasiado e, excepto Osório, de quem esperava um rapto,
como dum Tenório, ela não se interessava muito por homens. Pedro Dossém era o
seu pajem, e Lumiares o seu filósofo. Amantes não tinha, mas atribuíam-lhe uma
quantidade deles, cada qual o mais insípido e desanimador. Às vezes Ema pensava
que a vida dela estava acabada e que não lhe restava senão resignar-se, engordar e
dedicar-se a promover a carreira do marido. Tentou perceber quais eram os
horizontes dele, e o que viu deixou-a prostrada. Carlos Paiva jantava uma vez por
semana com um banqueiro, redigia as memórias duma cliente rica, metida a
pensadora cristã; e fazia uma clínica cada vez mais reduzida, com consultas das cinco
às sete da tarde. Tinha uma auxiliar venenosa e que quase expulsava os doentes
porque, dizia, "o doutor não tem tempo para tratar mazelas.". A própria Ema era mal
recebida ao telefone, e um dia que apareceu no consultório de surpresa encontrou
Carlos a dormir, com os pés em cima da mesa. Reconheceu que era um caso perdido
e foi dizer a Pedro Lumiares que não aguentava mais.
— Não aguento mais e acho que estou a perder o meu tempo.
— Que tempo, que nada! És uma trafulha e hás-de ser sempre assim.
Acumulas pontos de vista, como nos romances, e és uma escritora sem escrita.
— Que devo fazer?
— Mobila outra vez a casa. À mourisca, se puderes. Com muitas almofadas
como rodas de carro. E compra um samovar. Não queres comprar um samovar? Eu
tenho um para vender. Se não o quiseres, tenho que dá-lo como presente de
casamento.
Era o famoso samovar dos Lumiares que dava a volta por todos os casamentos
da região e acabava por voltar às mesmas mãos, como por encanto. Simona tratava
de o manter brilhante e limpo, pronto a servir para a corbeille dos noivos a seguir.
Ema não dava ouvidos a Lumiares, nem ia ter com ele para lhe dar ouvidos. Estava
cada vez mais presa na vaga dos acontecimentos, sem chegar ao centro deles,
sentindo-se incapaz de se impor em público. Não sabia, como dizia Lumiares, servir-
se dos seus dons. Pertencia à escola do desencantamento, e a sociedade em declínio,
rotas as bases da própria decomposição, não a podia ajudar em nada. Deixava-a livre,
o que era o mesmo que escorraçá-la.
Conheceu um período de desânimo profundo. Já não pensava em Osório senão
como pertencendo a uma lenda, e o mordomo Caires, que lhe roubava todos os dias
pequenas quantias de dinheiro, fazia-lhe falta para lhe trazer a correspondência numa
salva. A criadinha Aurora andava descalça na alcatifa, todas as vezes que podia, e não
compreendia nada de etiqueta. Dizia "Ema", quando falava dela às visitas, e ia ver
telenovelas para o quarto, deixando o serviço interrompido a todo o momento.
Fumava erva e sonhava com os anúncios da Coca-Cola, ágeis e com personagens
dum amor ginástico e radioso.
Ema desinteressava-se de tudo, ia para o Porto comprar roupa, colares e
brincos tão grandes como chaveiros. Em toda a parte fazia sensação. Um dia, um
homem seguiu-a num Ferrari e entrou pelos portões dentro de Vale Abraão, julgando
seguir uma mulher fácil. Ema saiu do carro, tinha um fato de homem de seda crua e
um bolero de vison claro. Em tudo sugeria o deboche e uma dimensão sentimental do
espectáculo. O homenzinho, calvo, ao volante do Ferrari, olhou para ela meio
descoroçoado.
— Acho que me enganei — disse.
— Dê a volta devagar, não me estrague as hidranjas. — Ela olhava-o com uma
severidade pomposa e foi, como uma rainha, arrastando um pouco o casaquinho de
pele no areão da entrada; orgulhava-se dela própria.
Mas momentos como esse eram raros. Os tempos eram pouco próprios para
situações romanescas; o discurso igualitário, puramente tagarela, dominava tudo. O
povo estava entregue à sua desilusão, perante o acontecimento histórico da revolução
que o ultrapassava, como sempre acontece. Era, agora, uma burguesia dejeans e
dissimulava a melancolia com assomos de virtude face aos novos especuladores.
Declarava-se um ódio fomentado pelas paixões moderadas, mais perniciosas do que
as vivas explosões da autoridade moral. O falhanço das ideologistas trazia consigo a
susceptilidade da nova burguesia, ansiosa de poder e capaz de todas as fraquezas, o
que não lhe garantia o sucesso hereditário. Queria, pois, triunfar depressa, antes de
ter de se descobrir como inapta.
Só Carlos Paiva se esquivava a servir as opiniões, deixando-se ficar do lado
dos grandes moribundos que podiam contemplá-lo no testamento. O que era melhor
do que debater-se com uma posição política cujas causas reais nem eram claras nem
sequer prometedoras.
Havia uma brecha entre a sociedade que acumulara uma educação com a
importância que se atribuía, e uma História falsificada por todos com o fito de se
poder dormir tranquilamente. A descolonização criara uma geração pronta ao
sentimentalismo histórico e em que faltava o sentido do drama. O estado psicológico
de pessoas como Carlos Paiva era pedido emprestado ao clerical e ao pedagogo. Ema
decifrava um tartufismo nascente no marido, que via com olhos cada vez mais
denunciantes, embora não deixasse a parte de cúmplice que lhe cabia como esposa e
que não estava disposta a sacrificar ao seu carácter romântico. Ela tinha deferência
pelo chefe da casa, que de qualquer modo mantém unida a família e a tira de apuros;
mas, ao mesmo tempo, Carlos parecia-lhe cobarde, servindo o processo da
imbecilidade, caro a todos os sobreviventes.
— É um chacal capaz de pedir esmola e nunca de atacar — dizia, a Lumiares.
Ele tinha a capacidade de se divertir com uma mulher tão oposta à democracia
virtuosa instaurada há muito mais tempo do que podia crer a fase sentimental de
Portugal de 80. Era um regalo para ele, Ema, tão inteligente e devorada por uma
cupidez sem nexo, semelhante a um ciúme de odalisca. Ele detestava Carlos Paiva ou
no que se tornara aquele médico de província, que fora primeiro um leitor de Camilo
Castelo Branco entregue a uma seriedade ortográfica, e aos seus deveres com
parturientes pobres. Em Vale Abraão adoravam-no, com a sua mala preta e a
corpulência bonacheirona, no fundo serviçal com os ricos ou o que deles restava, mas
reservando-se uma pequena vingança de honorários para com os herdeiros. "Alma de
cangalheiro", como dizia Ema, a quem as altas facturas mandadas depois dos enterros
escandalizavam.
— Mas, minha filha, quem paga as tuas cortinas de seda creme e os vestidos de
vidrilhos? Hás-de concordar que o dinheiro tem que vir de algum lado.
Ela repetia que ele era um gato pingado, até nas leituras que fazia. Queixava-se
a Lumiares que o marido lia novelas de terror.
— Menina, todo o médico é um estripador bem comportado. Não te admires.
Está rico, não está?
— Não sei. Esconde o que ganha, mas faz dinheiro com tudo. Especula na
Bolsa, compra e vende jóias. Agora há muitas mulheres que estão a desfazer-se do
ouro que têm em casa, por medo dos ladrões.
Pedro Lumiares olhava para ela com os olhos semi-cerrados, pensando se Ema
não seria, em tempo mais oportuno, uma Lavalière de muito boa apresentação. Não
lhe faltava o defeito físico, excitante da beleza que a corrupção contempla. Também
Satã era representado manco, porque a formosura precisa de ter um aviso nela. —
Para salvação dos homens — disse Lumiares.
Notou como Ema fumava, acendendo o cigarro no cigarro dele e parecendo
que ia beijá-lo ou que o tinha feito. Isto porque Simona se desenhava no contra-luz
da porta do jardim e podia vê-los. Ema gostava do mal, como se gosta duma iguaria
fina, um vinho muitas vezes filtrado, passado ao longo dos anos duma vasilha a
outra, rolado, misterioso, profundo. Era o seu cadastro antiquíssimo, esse mal que a
mulher mistura a todos os actos, a todas as delícias, deveres, condições, sofrimentos.
Mas não era possível imaginá-la a realizar o mal; só a macerar o coração dos homens
nessa espécie que salga a terra e a faz fecunda.
— Não ouves? Enganaste alguma vez Simona?
— Não. Não sou tão medíocre como isso. Não tenho êxito com as mulheres,
acredita.
— Será que os homens se estão a tornar inteligentes? O que vai suceder se
desaparecer a vaidade humana? O riso há-de secar, e todos hão-de suspirar como
mulheres doentes.
— Parece um cântico de luto. Que linda és, Ema! Linda a valer.
— Envergonho-me de o ser, se não te tentar.
— Não o faças, Ema. Só aos sedentos se deve dar água. Eu não tenho sede.
Ela pensou que Lumiares se ria dela, e saiu arrebatadamente. Ouviu-a derrapar
na areia do terreiro, e Simona veio perguntar porque fugira Ema daquela maneira.
— A lua há-de corar porque ninguém faz caso dela. É isso o que acontece com
Ema.
Mesmo se Luís XIV fosse vivo, e Ema fosse a Lavalière em pessoa, as coisas
não se passavam melhor. Era uma mulher que sobrevivia a um sem-número de
fracassos nas fileiras do passado feminino. Os homens construíam castelos,
fechavam-se lá dentro e reinavam de qualquer maneira entre os seus serviçais,
incluindo as esposas e as concubinas. Mas as mulheres tinham que se comparar a um
cão, ou um vegetal. Havia algumas que não aguentavam isso, e o mais simples era
parecerem-se com homens.
Ema, ao afastar-se, teve ainda a imagem da casa de Lumiares, igual a um
alcazar bombardeado. "Ele está lá — disse ela — a jogar o xadrez com as palavras, e
eu que me arranje".
Quando ela saiu, Pedro Lumiares fez um gesto que parecia de perdão, e
Simona, quase de rastos, correu para os braços dele. Era um amor que tocava o
delírio, em que se empenhavam forças extraordinárias, sensual e casto ao mesmo
tempo. As lágrimas embargavam a voz de ambos, e todas as misérias e alegrias do
mundo contribuíam para esse momento de comunhão; como se a decepção profunda
os ligasse com o sagrado que a decepção evoca. Pedro Lumiares sabia quanto a
injustiça cria uma poderosa sedução. Cortar uma flor não era só um acto de
vandalismo; era um ritual de guerra cruelmente inútil, excepto se fosse uma
arquitectura do desejo humano contido nesse gesto breve. E as mulheres, durante
milénios, foram sabedoras desse pacto com a injustiça. Tiravam dele o seu à-vontade
com os homens; os sonhos da intencionalidade atingiram ali a sua fascinação maior, e
a paixão tinha encontro com a sua finalidade: o arquipélago dos desejos
transformava-se na face do absoluto. Mas só o sacrifício podia conduzir além do
afecto banal, produzindo uma paz que a morte não ousava impressionar. Ema nunca
aceitaria o sacrifício, debatia-se com os seus fantasmas de infância, o amor em
grande estilo: o amor que nasce das alusões, das memórias, dos debates, da teologia,
da erudição, das promessas, das leituras, de toda a espécie de mensagens e de formas
que o revelam; um amor imaginário e sagrento; um amor protector e hospitalar, de
despedidas e ressurreições mágicas.
Quando entrava em casa, como nesse dia em que deixara bruscamente Pedro
Lumiares, era para sentir aversão pelo quartinho de cujas janelas se viam as ramadas
agora nuas e que pareciam uma rede negra de vides. A chuva escurecia os pelados
sarmentos, tudo tinha um ar de abandono e de miséria instaurada, fiel, acumulada
pelos acontecimentos do passado.
Ela deitou-se na cama; ouvia um cão que sacudia a chuva do pêlo, fazendo
tinir a coleira. Isso, não sabia porquê, acabou de a enfurecer. Era para isto que se
casara. O pai, Cardeano, depois de a criar com tantos mimos, que eram promessas
quase em vias de satisfação, entregara-a ao primeiro desconhecido. Sim, porque
quem era Carlos Paiva? Um desconhecido, que bem podia descender do bandido
Espadagão, um soldado profanador de igrejas. Ouvia-o às vezes, animado pelo seu
cálice de bagaço, falar de antigos casos, dos cabecilhas liberais, chefes de guerrilha
que se acolhiam pelos lugares mais esquecidos e ermos e que acabavam envenenados
no canto duma taberna, ou varados pelas balas da cavalaria no fundo duma ravina.
Ele falava dos cismáticos da Granja do Tedo como se tivesse deles conhecimento
directo, como se fossem avós e tios e primos carnais. Que sangue lhe corria nas
veias? De ateus, de facínoras, envolvidos na perseguição dos cartistas, tornados em
violadores e incendiários. Às vezes tinha medo dele; se ouvia a chave na fechadura,
levanta-se dum salto e procurava com o olhar um sítio para se refugiar. A criada, que
lidava com os talheres, pondo a mesa, restituía-lhe a presença de espírito.
Era diferente com Fernando Osório. Ao menos, sabia que ele era aparentado
duma Clara Carolina, primeira mulher dum juiz de fora de Lazarim, que se casara
com uma tia de sua mãe, do lugar de Ariz. Os Osórios eram pessoas nobres que
andavam na vereação e em cargos políticos do alto poder e sentimento. Justino
Osório enriqueceu com o despojo dos jesuítas expulsos do reino, ficando como
depositário de grandes somas. Daí a fortuna enorme que ainda lhes dava uma espécie
de coroação menor, fazendo-os respeitados e escolhidos. Com Fernando ela podia
associar a união do casamento com um território sobre o qual reinassem
espontaneamente. Fora tola em não esperar, tola em acreditar que o pai queria
oferecê-la à felicidade conjugal com outra intenção que não fosse livrar-se da filha
importuna dum viúvo ainda bem conservado. Cardeano, mesmo antes de tia Augusta
sofrer um derrame e ficar confinada à sua cela abacial, contraíra umas núpcias
morganáticas com uma modista. Ema chorou de raiva.
— Não esperava isso. Os homens são muito fingidos. Quanto mais velhos mais
garotos.
— Ele não é velho — atalhou Carlos. Aquela peripécia provocava-lhe o bom
humor; Ema pensou que ele queria vê-la humilhada. Gostava de a ter segura, de a
inferiorizar. Engordou, ele ficou encantado; ficaria mais se a visse disforme com
bócio e manchas na pele. A beleza dela era uma ameaça à sua tranquilidade. Ema
imaginava estas coisas e muitas outras, o casamento abafava-a, sentia-se isolada,
diminuída, prestes a cair na maior das vulgaridades, a ter outro filho que se chamasse
Bruno. De repente sentia saudades de Fernando e do tempo em que o conhecera;
saudades daquele baile, de quando ele a segurara para impedir que caísse, quando
tropeçara num tapete. O vestido cor de açafrão claro deixara passar o calor da mão
dele, mão de homem, que transmitia desejo e provocação. Escreveu-lhe e rasgou a
carta, optando por telefonar-lhe depois. Mas tinha medo, não sabia como retomar
esse amor casual, que ela aceitara para desconfiar dele e tendo-o por iniciação e não
por culpa. Por fim decidiu-se; uma secretária, com uma frieza soberba, disse que ele
andava em viagem.
— Se quiser deixar algum recado.
Ema riu-se, pensou que tratava com uma dessas parceiras de escritório que se
deixam amar entre a hora das visitas e do expediente, e conservam um sentimento
caseiro entre a intriga que se dramatiza e a desilusão que resvala para a franqueza de
amigos.
— Pode dizer-lhe que o amo.
— Quem fala?
— A Bovarinha.
Era a primeira vez que ela fazia uso do título que sabia darem-lhe e que,
primeiro, a exasperava. Mas agora estava mais madura, um cinismo semelhante ao
bom humor acompanhava os seus pequenos impropérios. Não se gostava dela, mas a
verdade é que alguma coisa correspondia à expectativa do seu público.
Porque Ema tinha um público, mais do que amantes. Mesmo aquela tentativa
para se ligar a Fernando não fora bem sucedida. Não gostava da cama nem para curar
uma gripe; e isso prejudicava-lhe a linguagem do amor.
E, todavia, a sua fama crescia. Fama de cortesã privada, que frequenta as artes
e não os lupanares. Também aumentava nela o nervosismo, o desejo de acumular
objectos, o livre jogo do epigrama, a volúpia de sugerir, mais do que praticar.
Começou a acreditar que, se pusesse nisso a força do pensamento, podia obter dum
homem total obediência. Sozinha no seu quarto, a cabeça inclinada no peito, sem se
mexer, achava que Fernando Osório recebia a mensagem imperiosa e que voaria para
ela desde outro continente. Ele viajava continuamente, o mundo tornara-se uma
caldeira de negócios, de projectos, de vibração financeira que levantava da terra uma
esquadrilha de aviões, sempre cheios de passageiros com pastas recheadas de papéis;
com uma escova de dentes e um cartão de crédito dava-se a volta ao mundo, sem sair
de hotéis de cinco estrelas e das suas salas de congressos. O amor era fornecido com
os chinelos de quarto e a bíblia de cabeceira. Osório entrara nesse rebanho duma
promiscuidade perfumada a colónia, tornara-se no personagem de ficção que povoa
as gares, os halls, os gabinetes dos vips. Uma espécie de combinação de riqueza,
facilidade, código bancário e mesa reservada, dava-lhe uma força astral que rompia o
cordão umbilical com o pecado. Quando estava em casa (divorciara-se, embora
tivesse relações esporádicas com a mulher, o que devia ser o oitavo pecado capital,
voltar ao vomitado), entretinha-se com serões de vídeo pornográfico, medindo em
companhia dos casais amigos a quantidade de liberdade concedida ao gozo do corpo.
Em geral, não era muita, arrastados que eram todos para representações errantes do
poder, a consumação de negócios e a frequentação das grandes relações; gente de
meia-idade, conhecedora do catecismo dos interesses, navegantes entre uma ganância
dissoluta e um puritanismo capaz de alimentar paixões ideais.
De repente Fernando Osório podia ser atingido pela doença que Ema lhe
transmitia, a fascinação por valores imaginários, pela arte, pelo amor. Foi isso o que
os uniu durante uns tempos, não sem sofrimentos. Foi isso, de resto, que fez a grande
aura do Sotheby de Londres e que é afinal a consolação do cavalheiro, a noção de se
ter descoberto uma região que transcende a vida quotidiana e que desculpa a
mediocridade humana.
Assim cresciam as paixões absurdas, sempre no sentido de inovação duma
nova liberdade, duma mercadoria de elites. O que Ema sentira no baile dos Lumiares,
que representava formas propícias à paixão, em que os sorvetes de morango, meio
derretidos em taças de cristal, lhe davam uma impressão duma carne sacrificada na
batalha do consumo sumptuário, fora um desejo de desperdício, de competição,
sucedâneo dum poder absoluto que simulasse uma auto-destruição. Os jovens
recorriam à droga e ao sexo; os adultos apelavam a formas de sociabilidade
exasperadas, de razias morais, de excitantes fantásticos como a memória de lendas
antigas e proezas acontecidas.
Na sua casa, que Ema enchia de talha, de imagens sacras, de objectos semi-
preciosos, dum efeito de bijuteria que cristalizavam a ilusão do poder, o génio do
barroco, a esperança da paixão feérica, tudo continuava a estar assente em ideias
práticas: como cozinhar as refeições, lavar a roupa, fazer as camas. Não era por
encanto que essas coisas apareciam feitas. Mas, como a criada era insuficiente para
todo o serviço, Ema dava às vezes uma ajuda, valendo-se do sentido prático que
nunca perdera e que recuperava a sua vida solteira, entre serviçais, jornaleiras,
mulheres de fora, mendigas até, que faziam recados, as costureiras que remendavam
os sacos da grainha. O trabalho diário, à margem duma cultura de leituras e de
espectáculos, deixava pouco espaço às ciladas da imaginação. E a própria televisão,
que dona Augusta aparentava com um inferno portátil, servia de recreio medieval,
onde, em vez de fiarem, as mulheres se encontravam para controlar o seu universo;
embriagando-se com as paixões heréticas, com a realidade convulsa, que de facto não
as atingia senão pelo lado duma provocação irrisória.
Elas, as mulheres da casa, criavam o movimento dos sentimentos, optavam
pela inteligência do desenlace, punham em causa a alma, se fosse preciso. Tratava-se
duma espécie da metafísica do desgarramento entre o que são as coisas demonstradas
e as coisas que podem ser vividas. À luz dessa recordação, Ema ia varrer o pátio de
entrada, vestida com uma bata desbotada e às vezes até descalça. Gostava do calor
das pedras nos pés nus e da brisa que arrefecia o suor no corpo sem roupa de baixo.
Muitas vezes não usava calcinhas, ou então vestia coisas duma beleza um pouco
indecente a que chamava a roupa de bordel.
Um dia, um carpinteiro que vinha executar uma obra viu-a a lavar a escada e
ficou subitamente atraído por Ema. Não a conhecia, julgou que era uma criada.
— Deixe isso para os patrões. Eles que façam isso — disse. Não lhe ocorreu
melhor galanteio e serviu-se duma imagem ofuscante, que era a liberdade que a
revolução propunha.
Mas, tão depressa como se fazia mesquinha, mercê duma arquitectura afectiva
que era o seu encanto, Ema voltava a ser uma vagabunda estilizada, com o seu
relógio de ouro e calças esfarrapadas. Nada lhe dava maior prazer do que meter-se
num comboio asmático, dos que só funcionavam nos ramais em vias de extinção, e
atirar-se para um banco com o seu casacão de marmota e ir até ao fim da linha às
vezes, para voltar da mesma maneira, depois de tomar um café aguado nos bares da
gare. Causava uma estranheza tão delirante, que as crianças vinham à beira dela para
lhe tocarem, e as velhas recoveiras falavam mal, para que Ema ouvisse, retribuindo
como podiam a surpresa a que as sujeitava. Pedro Lumiares avisava-a dos perigos
daquele comportamento. Dizia-lhe que ela não podia invadir o território duma classe
que não era a dela sem ficar sob a mira dos demónios dum poder que não era
impassível. Há compromissos que é preferível respeitar; certas maneiras de vestir e
de falar que só como emergência se podem levar além do seu espaço próprio.
O telefonema que Ema fez a Osório não deu o mínimo resultado. Ele andava
em viagem, ou a inseparável secretária não lhe dera qualquer recado. Cartas e
bilhetes já não se usavam, pelo menos para marcar uma intimidade. Ema sentia-se
muito desamparada na sua situação de amante tão abandonada como era como
esposa. Não que Carlos não a amasse. Mas o desejo legítimo é já a projecção dum
desejo insatisfeito. Ela queria uma dramatização somática que estimulasse as suas
relações com o mundo. O marido opunha-lhe o trabalho, incluindo as suas visitas a
Maria Semblano que lhe garantia o futuro, porque ele esperava acumular uma conta
astronómica dos seus serviços, como quem faz um pé-de-meia.
— Vais ver quando me pagarem. É uma fortuna, é como ganhar a lotaria —
dizia, cabeceando, porque andava derreado, comia mal e a desoras; nunca tinha
dinheiro suficiente para as coisas mais elementares — a padaria, as propinas das
filhas, a roupa de Inverno. Fechava os olhos aos luxos de Ema, fingia que ela os
resolvia com as economias, uns tostões aqui, uns escudos acolá. O provérbio de que a
mulher com unia agulha a arrecadar e um homem com uma pá a deitar para fora de
casa, dá para que vença a mulher, repetia-o até à saciedade. Ema censurava-lhe o
feitio irrealista, achava-o mal pago, acanhado nas contas, que reduzia sempre à
última hora, com medo que as achassem exorbitantes.
— És um parvo. Afinal que fazes lá tardes inteiras?
Ema referia-se à sua cliente mais respeitável pela fortuna e pela fama de casta
e que a voz pública beatificara. Fora linda, ruiva, de porte grave, e apaixonara-se
muito nova por um primo bacharel, a quem chamavam o Mosco pelo interminável
zumbido das suas alegações.
Cedo se romperam as relações conjugais, ficando a ternura insultuosa da
mulher baseada nas primeiras ilusões. Ninguém, excepto Carlos Paiva, sabia o
motivo desse corte nos amores, de resto fecundos. Havia dois filhos. Maria de
Loreto, ou Maria Semblano, tinha Carlos como seu leitor e seu guia nas letras em que
ela queria professar. Escrevia versos e contos piedosos. Carlos via-se apertado com
esses deveres literários em que tinha que achar um sentido que não o desgostasse
completamente. Ele sabia que jogar com o sacrifício e jogar com a poesia significa
abordar a vida comum acrescentando-lhe uma chamada à transcendência, para a
poder suportar. E ele, Carlos Paiva, se ia tão assiduamente visitar Maria Semblano,
era porque alguma coisa nela teatralizava as suas próprias misérias e, de certa
maneira, as enriquecia. Porque falava ele em acumular uma fortuna com essa
paciente duma bondade que era um rito de desarmamento? Porque, de facto, Carlos
se enriquecia com uma luz que, se não era mística, era pacífica.
Maria Semblano escrevia cartas ainda. Selava-as com o seu anel, ou com os
seus anéis, porque tinha uma variedade deles, gravados, como um rei de França.
Parecia andar com eles num cestinho, entre a costura e o caderno de versos, para
poder escolher o que melhor dizia com o seu estado de espírito. Ema recebia às vezes
essas cartas, se Carlos não estava, e o prestígio que irradiava delas punha-a furiosa.
Tinha ciúmes do que não compreendia.
— Ela é doida, não é? Há uma forma de sensibilidade que tem que ver com os
rendimentos das pessoas. Uma forma de consolação dos ricos, o cu de ouro dos
beneméritos, dos Mecenas, dessa gente toda.
— Porque dizes isso?
— É Lumiares, não sou eu.
Ela fazia gala das suas entrevistas com Lumiares, da companhia amorosa de
Pedro Dossém, ambos metidos num labirinto de sentimentos que a aborrecia, que a
punha selvagem e capaz de dar um tiro em alguém. Fernando Osório, ao menos, não
era como eles. Mas, também, que amante, que homem representava? Lumiares
fornicava com a distância do que é humano; Pedro Dossém, com as suas manias
aristocráticas; enfim, Osório, com as gatas dos congressos e as assistentes sexuais
dos hotéis, sem mais tempo do que fazer gemer a cama e não as mulheres. Eram uns
tagarelas e mais nada.
CAPÍTULO IV
A BOVARINHA
CAPÍTULO V
A CAVERNEIRA DO LADO NASCENTE
CAPÍTULO VI
OS CONTOS DA CAVERNEIRA
CAPITULO VII
LUISONA E LOLOTA
CAPÍTULO VIII
A SENHORA
Desde esse tempo duma orfandade dissipada pelo riso das numerosas mulheres
do Romesal, Ema foi a senhora absoluta da situação. Ela comandava o riso,
preservando a sua identidade superior que exclui de si mesma o que é risível. Sabia
que, se não superasse o seu defeito, que a obrigara a usar um aparelho de aço até aos
dez anos, ia ter que suportar que a reduzissem a uma matéria inanimada, como um
fantoche. Foi desenvolvendo o espírito de exibição escandalosa, para proibir ameaça
da maldade humana pronta a lançar-se sobre o objecto de riso, a sua deformidade.
Aos dez anos, os médicos mandaram retirar o aparelho de tortura. Ema não
quis olhar para a perna, ligeiramente mais delgada e mais curta. Não estava
desgostosa, porque sabia que com esse defeito tinha direito à razão da seriedade.
Ninguém, de algum estofo moral e pronto a salvar a dignidade humana, ia rir-se dela.
Excepto Ema, que não queria integrar-se no seio duma grave sociedade, depravada
ao ponto de maldizer o riso e tê-lo por ofensivo. Se não fosse essa escola do riso em
que Ema se fez mestra, começando por se amoldar à sua infelicidade, ela não teria
talvez conseguido elevar-se à beleza que depois adquiriu. Porque, em criança, Ema
não era sequer bonita. Tinha um rosto inexpressivo, uns dentes grandes demais, e não
controlava o andar.
Parecia um gafanhoto ferido, tentando equilibrar-se nas magras patas. Às
vezes, diante do espelho, ela exagerava esse efeito e ficava satisfeita por não sentir
nenhum sofrimento. O riso desmascarava as intenções agressivas dos outros e
causava pânico no grupo dominante. É por isso que alguém que é marcado com um
defeito físico, ou que se marca a si próprio por meio de tatuagens e símbolos de
terror, pinturas, cabelos eriçados, roupas ostensivas e macabras, sabe que está a
valorizar o seu lado sério e a causar um efeito de superioridade que é um efeito
sagrado; o riso fica interdito.
Desde que se dispôs a frequentar uma sociedade acima do seu meio e da sua
educação, Ema optou por usar, a título de ameaça, um comportamento
desequilibrado. Encarnou a personagem associa, primeiro desajeitadamente, o que
era quase o segredo do seu sucesso. Nunca parecia uma mulher industriada na
prostituição, mas alguém que se distancia da baixeza humana por meio duma infantil
falta de jeito. Dava a impressão de que, para além das suas provocações, não se
amava muito e oferecia uma conformidade ao soberano julgamento dos homens. Isto
tornava-a fascinadora, porque a imagem fundamental é aquela que deixa aos outros o
direito de não reflectir os seus actos.
— Como tu és tola, minha filha — dizia ela a Luisona que, aos cinco anos, se
ajoelhava para lhe rezar, quando a via vestida para uma noite de gala. Mas Ema sabia
que aquela imbecilidade era a sua protecção mais forte. Embora o velho advogado, a
seduzisse e deixasse grávida, ela ia sair de apuros na melhor das ocasiões, porque o
seu mau contacto com um homem servia de pretexto à dialéctica salvadora dos
outros.
Ema tinha uma conduta estudada ou, na realidade, era impelida a um
procedimento vil para se evadir do papel que inspira piedade ou riso? Não amava os
homens porque não se amava a ela própria. Na sua ligeira e quase mecânica
interpretação da mulher pública mas de bom-tom (como seria a Dama das Camélias,
libertina e candidata à catástrofe como no teatro, conservando a dignidade pela
surpresa da catástrofe), Ema não deixava de deslumbrar.
Toda a teatralidade deslumbra porque se afirma contra o riso. A vida real
convida à hilaridade porque é previsível e todas as coincidências convidam o lado
cómico a aparecer. Mas no teatro as coincidências têm um texto a conduzi-las, e um
texto não é obra do bufão, nem do acaso; é prova da seriedade.
Ema aspirava ao grande mundo, mas ao seu irreal, à sua montagem cénica.
Evidentemente que a cocote, com as carnes que amolecem e os olhos vidrados pela
bebedeira, não estava na sua mente. Nem as doenças infamantes que, em vez de
serem dominadas, reapareciam como as cabeças da hidra. A sida sucedia à sífilis e
assumia o significado que lhe era imposto, de desonra táctica e de imaginário dum
poder injusto e eminentemente sério. A ética do mal ficava em causa, não pelo
trabalho da doença, mas pelo seu fermento risível: como se a cigarra fosse mais uma
vez troçada pela formiga laboriosa, ao perder as asas que a faziam rechinar de prazer.
A Dama das Camélias, provinciana adorável e vadia sem escrúpulos, no seu
camarote de Ópera, podia bem significar um manequim mitológico, se não fosse a
mensagem que ela mandava aos amantes: cinco dias, camélias vermelhas, ou seja, o
impedimento da menstruação nauseabunda; e vinte e cinco dias de banhos de aloés,
com champanhe gelado. Todos os seus objectos de uso eram de oiro e de prata, e isso
tornava transponíveis as contradições: a sordidez e o luxo cúpido; as dívidas ignóbeis
e a glória dos festins.
Ema fora uma leitora absorta da Dama das Camélias. Ela era a sua fada
madrinha, assim clara de pele, de estatura elevada, opondo ao riso aberto da honesta
ralé, que apupa a miséria e o vício que com ela se desonra, opondo-lhe o bom gosto,
fruto da escola que doma o carácter e faz rastejar a opinião. Ema admirava a cruzada
do luxo, que faz mais vencidos do que a cruzada da Terra Santa. O vencido era o
espectador desse teatro radicalmente estranho ao corpo que sofre e goza com as suas
praxes carnais; o espectador que aplaude, mais do que participa, é um vencido da
irrealidade social, um comparsa que gesticula e grita, fazendo-se entender pelo que é
mais falso — o entusiasmo.
Ema sabia que não provocava senão um entusiasmo colectivo, que
privilegiava, não a sua forma de mulher, mas sim a transformação dela em objecto
oferecido à tentação do grupo. Se não fosse assim, o riso deslocava-a dessa
solidariedade do massacre; e o ventre tomava as conformações obscenas que o riso
acentuava. E até a sua deformidade, a perna delgada e coxa, ficava desprotegida e
entregue à desabusada conduta do homem, da sua febre genocida moderada pelo riso.
Ela nunca se precipitaria na carreira da rameira nuclear que se inscreve numa
lista, como os vinhos de qualidade. Não seria jamais pasto do sadismo absoluto, que
lhe exigiria o pleno emprego da sua passividade. Quando Fernando Osório
telefonava, confirmando a sua chegada ao Vesúvio, Ema simulava que não recebia a
chamada, e partia; às vezes, na sua pressa, abandonava parte da bagagem, um estojo
de toilette, umas chinelas de quarto, como um general que, para não cair cativo, deixa
no arraial as suas condecorações e o chapéu de campanha.
O mordomo Caires tentava ainda obstruir-lhe o passo, com pretextos, dúvidas,
ruminações. Ema não o queria ouvir. Seria capaz de clamar, como no mau teatro, "o
dever chama-me", e dizer que tinha a velha mãe às portas da morte. Desculpa de
cozinheira, que Caires havia de entender sem sequer se pronunciar pela falsidade
dessa escusa.
Só a Senhora, lívida e enguantada de preto, cravava nela um olhar de família,
sem ironia e sem significado. "Vai, minha filha, eu cá estou para o receber, esse asno
que não merece a tua ignomínia". Ema tinha a impressão de que a Senhora
conseguira reunir toda a derisão e atirá-la, do alto do Vesúvio, ao fundo do rio. Mas
que implacável génio era preciso, e quanto oiro para apagar a linha do baixo ventre,
as nádegas, os seios, tudo o que podia alimentar o riso e os sonhos cruéis do
optimista sexual!
Havia quem desafiasse tudo isso. Tomásia da Silveira, por exemplo, que tivera
um filho e não se mostrara interessada em reconhecer o pai. Talvez não soubesse
quem era, ou mantinha-se fora da contaminação dos valores, optando pela
maternidade desportiva. Riram-se dela e acentuaram a sua fealdade. A Camafeu era
rica e bateu-se bravamente com a maldade humana e até a bondade. Mas nunca
pensou que, ao proceder assim, tomava a personalidade masculina; abandonar os
seus direitos sobre o pai da criança era uma desfiguração dum sedutor, ela própria.
Uma vez arrumada Lolota, com a participação das Paivoas, que davam
amplidão às suas vidas de divorciadas fazendo o que queriam e simplificando as
intrigas de amor e de dinheiro, restava Luisona. Comprida, de pernas como fusos e
uma alma de gato persa, sem jovialidade nenhuma, Luisona era a que ajoelhava
diante da mãe julgando-a aparentada com as imagens dos altares. Ema mostrava-a o
menos possível e mantinha-a fechada num colégio, como dantes se guardavam nos
conventos as ingénuas filhas de mães inteligentes; que lhes preparavam a cama sem
se desviarem da inspiração de mulheres: sonhar todas as paixões que, se não podem
ter, transmitem às filhas como uma corbeille de noivas.
Luisona havia de sair do internato para se casar com um rapaz de queixo à
Carlos V e que era o sobrinho preferido de Maria Semblano. Ela abençoou aquele
casamento e serviu de madrinha. Ema não compareceu, inventando um compromisso
que não passava duma das suas fúrias repentinas contra o que se punha de permeio
entre ela e o seu mandato de prima-dona. Invejou Maria, que se prontificou a
substituí-la com uma discrição que raiava pelo cinismo.
— Ela detesta-me — disse Ema. A sua impaciência tomava foros de demência.
Partia os objectos mais preciosos, e tinha prazer em vê-los em migalhas.
— Para ti, toda a gente te detesta. — Carlos aparentava uma calma tão
singular, que Ema acabou por se rir. Olhou para ele com comiseração e fastio.
Carlos não entendia que viver era uma catástrofe solitária, ou então fingia,
perante o mau cheiro das perfídias que ela lhe impunha. Queria fazê-lo sofrer, ou
simplesmente ignorava os sintomas que ele apresentava, a sua prisão de ventre, a
obstinação do trabalho, as visitas a Maria Semblano, a quem tratava por Loreto,
como se sufocasse uma confidência? Ema não o tomava a sério, mas às vezes ficava
picada, fula, achava-o indigesto com os seus pequenos mistérios, a sua arte cómica
de se fazer notar. E, sobretudo, escondendo dela quanto ganhava e deixando, ainda
que raramente, que ela suspeitasse uma fortuna, uma herança, um lucro inesperado.
Ema vestia-se para sair, levando duas horas a pintar-se, como um modelo
profissional. Carlos admirava-se sempre, cada vez que a via, já pronta, com os olhos
debruados dum traço negro e alongados até às fontes como as figuras egípcias.
Admirava-a pela soberania das suas entradas em cena. Algo de tétrico a levava pela
mão, algo que ela se acostumara a esperar como "o pior"; pior do que o escárnio e a
pobreza e que lhe dava força para avançar na direcção do grande desejo da
insinceridade. Porque mentia sempre, fingia sempre, atirava um remoque à mais
sagrada das ocasiões, dizia alto o que pensava, era incorrigível ao mesmo tempo que
generosa; era selvagem ao mesmo tempo que elegante até às unhas, até ao fio dos
cabelos. Cabelos que ela pintava em casa, deixando jorros de tinta preta na banheira e
manchas nas toalhas, porque não era capaz de mostrar as suas cãs em público e fazer
saber que as encobria. Até um dia em que tomou a decisão de aparecer com elas,
quando subitamente embranqueceu e isso lhe deu um tipo exótico, como num sonho
que mergulhasse na mais impiedosa imaginação.
E então Ema causava um calafrio de desejo, curiosidade e receio. Os jovens
sentiam-se chamados à sua irrealidade que eles queriam converter em inspiração,
mas que resultava num mal-estar entre a desistência e a vertigem.
A beleza de Ema, preparada até parecer intocável, dava-lhes a ideia de que o
mundo fabrica em surdina coisas que pertencem ao isolamento real dos seres, e que
se não partilham, como o sexo e o pão. Queriam segui-la, mas ficavam no circular
caminho das suas interdições, convertidos à mediocridade como a um credo, dizendo
para eles próprios que tinham de crescer, estudar, casar-se e ter filhos; enveredar por
uma profissão e viajar com uma pasta de couro onde guardavam a pasta de dentes e
apontamentos de marketing.
Entretanto Ema foi entrando na via das mantidas com quem tinha afinidades
fantasmais, sem hábitos conhecidos, aparecendo num hotel ou num bar, ostentando a
sua imagem de recusada, de quem perdeu a dimensão social e se projecta entre um
leito fictício e um caos de efabulações em que entrava o play boy jogador de pólo, o
príncipe homossexual com os seus cãezinhos Yorkshire, ou o chefe de mesa que
conhece o Verbo da gastronomia e cujo conselho lisonjeia mais do que a admiração
dum eunuco. Ela frequentava os lavabos dos hotéis de luxo onde desciam as
concubinas bonitas, frias, cautelosas, como se pisassem gelo fino. Falavam de
homens; velhos, novos, das suas paixões domadas, das trocas que faziam e da
floração do amor comprado em cujas raízes se embebem todas as ambiguidades do
mundo. Quando Ema aparecia, um arrepio imperceptível percorria-as, não sabendo
se aliar-se ou ignorá-la, o que era difícil, porque o seu ego fictício era insaciável e
elas surpreendiam em Ema um valor que partilhavam todas: o valor das suas
exigências impossíveis de satisfazer porque eram também fictícias. Todas eram
tocadas pelo desejo de amar, e, assim, alguém que superava a sua figura e
apresentação, fazia-as sentir uma avidez infinita pelo que viam mais longe, feitas as
contas às suas probabilidades. Entabulavam conversas inocentes, nasciam daí
amizades profundas; essas amizades de mulheres que protegem o seu desejo
incessante fazendo-o entender-se com a abnegação dos prazeres.
— Bonito vestido, e a cor. Sempre gostei dessa cor de cravo seco. Faz a pele
mais macia.
Ema sentia vontade de despir a roupa e dá-la de presente. Tinha repentes
doidos, de boémia; gostava de ter nome de mãos largas, não fazia contas ao que
gastava, ao que recebia. Se fosse uma cortesã, acabava na miséria. E, no entanto,
admirava as que sabiam guardar para a velhice e que iam para as grandes paradas de
luxo como quem vai para um retiro, aparentando o gosto sério e, o que é mais, sendo
sérias, cheias de volúpia transcendente para ouvir e dar conselhos a gente nova.
Acabavam casamenteiras, que é um angelismo proxeneta.
Mas Ema não era capaz dessa perfeição. Aborrecia-se. Tinha a asa dum génio e
o pé dum diabo manco. Aborrecia-se de morte de todos os papéis, todos os estilos,
todos os grandes passos na vida. Tinha-se agravado a sua anorexia, que não era
sexual, mas também dos pensamentos cultos ou infames. E Maria Semblano
aborrecia-a ainda mais porque era a Personagem Ilustre, que faz um nome como
quem faz um cesto para deitar ao Nilo com Moisés lá dentro, um cesto
completamente impermeável e seguro. E os seus gritos de tédio, que encobriam a
humilhação de não merecer um amor louco, assustavam os homens, que sentiam por
Carlos Paiva uma simpatia hipnótica e envergonhada. "Também nós seríamos uns
maridos como tu, mal-amanhados e completamente de rastos" — pensavam. E,
também por isso, vestindo a pele de cordeiro daquele homem respeitador e íntegro,
queriam mal a Ema e inventavam-lhe deboches e crueldades. Porque as amantes são
sempre cruéis para quem não se atreve com nenhuma.
Para as severas proprietárias de Vale Abraão, Ema era a melra, vocábulo que se
estendia a toda a mulher que desvia os homens e os transforma em picado enlatado.
Atribuíam-lhe vícios, desses que nem as páginas de sexo das revistas de família
ousavam nomear. Longe ia o desatar do colete da pequena Bovary, com o silvo do
cordão solto em volta das ancas e que, no seu tempo, pareceu o cúmulo da luxúria.
Agora sabia-se que havia sexo até numa carabina de canos serrados, e as escolares do
décimo ano falavam abertamente do amor sem costuras, que era o uso dos
preservativos.
Traziam-nos no porta-moedas, e os rapazes diziam que era mais fácil
engravidar uma freira do que a namorada. Mas tudo isso não condizia com Ema. Ela
sentava-se à sombra, ouvindo Lumiares tocar muito mal no velho piano desafinado, e
dizia:
— Quem me dera morrer no mês de Nisan, durante a colheita do sândalo.
Isto continha um tédio tão vasto como o Vale da Morte todo inteiro, lá onde ele
está. Lumiares vinha à porta para lhe perguntar se tivera vinho de benefício esse ano.
— Como queres que eu saiba? A colheita do sândalo é o que mais me
aproveita.
Era uma frase literária que ela decorara e que lhe parecia o cúmulo do ridículo:
"Era em Tabriz, no mês de Nisan, depois da colheita do sândalo". Como é que coisas
dessas não faziam rir aos borbotões, como se a gente deitasse sangue pelas goelas?
— Sabes? Um escritor é um tronco, uma árvore serrada.
— Como é?
— Sei lá. Rebola-se nas palavras, esconde o sexo no contínuo rebolar das
palavras. Achas que Maria Semblano é uma escritora? É uma bela forma de fazer
indecências.
A muito custo Ema emergia da sua verdadeira estrutura, que não era moral,
mas simplificada para não dar pistas sobre ela mesma. Era como se, ao traçar a
assinatura, se limitasse a um traço ilegível, para que nada ficasse de revelador. Nunca
se podia saber o que Ema era, porque ela se fechava num facto (os amantes, as
compras, as viagens) fácil de interpretar e que tinha um significado definido pelo
costume; constava do dicionário e dava a sua materialidade preservando a densidade
interior. "Fazer indecências" não era dormir com um homem nem usar de práticas
perversas; qualquer revistinha porno se agitava nessa escrita, reduzindo esses actos a
cópias incapazes de contar os sonhos, ofício que raros conseguem dominar bem. Ema
sabia que consolidar os sonhos, sentir o desejo do ausente, retomar todos os dias a
melancolia do imaginário impossível de materializar, isso era "a indecência". O que
não podia ser escolhido entre toda a sumptuosa carga de matéria que o mundo
oferecia.
Ser indecente era o que ela fazia: fechar-se no Vesúvio e deixar lavrar a ideia
de que se entregava a um amor sujeito a diversos níveis de interpretação. Amor
satânico, como as mães de família gostavam de chamar-lhe; ou amor arrojado, como
as adolescentes admiravam; ou amor libidinoso, como os jovens pensavam que era,
na tentativa de escapar a um destino sem fantasia. Ema tinha por único luxo o próprio
monólogo, derivativo das mulheres para dourar o seu medo.
Na verdade, ela nunca ousara ir muito além daquilo que a sociedade podia
digerir. Nunca fora muito forte para acabar definitivamente com o casamento,
fazendo dele trampolim para outro caso que a libertaria do que lhe faz medo — a
natureza feminina. Enquanto mulher, está condenada à usurpação dum território, dum
pensamento, dum prazer, que não são os dela. Há qualquer coisa de ignominioso, de
indecente, nisto. É criada como mulher, mas a sua consistência corresponde ao
movimento do espírito do homem. Que quer dizer saída da costela de Adão? Que ela
é algo de semi-real, que é nascida dum significado incompleto, como um costado a
que falta uma costela. A sua diferenciação fica imaginária, como "coisas de mulher",
como um organismo que absorve outro e o expulsa por ser estranho; a maternidade
simboliza esse falso portador em ligação com o ausente, o vazio do mundo para onde
tende o desejo.
Quando chegava ao Vesúvio, não era para se reunir com Fernando Osório; mas
para navegar a sós naquele rio escuro, sabendo que o barco podia voltar-se pelo risco
que lhe impunha duma velocidade exagerada para o seu calado. Quando ia pela
toalha de água fora, parava no lugar onde se afogara o procurador da Senhora, e
deitava na água um cálice de vinho. Esperava sempre ver sair da profundidade a
cabeça lívida e sem olhos, para agradecer, abrindo as narinas como um provador
experiente e farejando o sarro do vinho. E, voltando para casa, às vezes surpreendia
na Senhora uma interrogação divertida, como se Ema trouxesse notícias que eram
para ambas um factor de unificação.
O mordomo Caires prevenia-a do mau estado do cais. As tábuas lodosas
tinham apodrecido no último Inverno, a ponto de os cães não quererem pisá-las.
— Eles sabem que não estão seguras. Mas ainda não arranjei ninguém para as
consertar.
Ema passou a conhecer melhor o pontão, a esquivar-se dos seus estalidos, a
saber onde vergavam as madeiras; eram só uns segundos de perigo, depois
encontrava-se, como num ventre macio, dentro do barco, cujas almofadas azuis a
rodeavam. E Ema deixava-se levar no fio da água, vendo a esteira de prata que a
seguia fora do peso dos elementos; como se voasse ao encontro dum sentido que
fosse o sinal da incarnação feminina. As altas falésias, de pedra granítica e tumular,
levantavam-se nas margens. Não se podia chamar margens àquilo. Eram detalhes
dum vulcão; eram, nas pedras, rasgões de garras que ali tivessem escorregado.
Quem? O silêncio impenetrável subia até aos sarçais onde restos de oliveiras, que
não morriam nunca, pareciam ossadas desenterradas.
Caires mandava-a esperar por um dos criados e, como sabia que Ema vinha
gelada, os cabelos colados à cara pelo borrifo de água, mandava também chá quente.
Ela bebia-o, pequena figura na imensa cova do Vesúvio, desenhando-se acima da sua
cabeça as palmeiras dos terraços. E pareciam elevar-lhe a estatura, como os toucados
das bailarinas blue-bell.
A morte de Ritinha, a lavadeira muda, deu-lhe uma súbita reminiscência de
todo o passado. Não só a morte da mãe, no seu esquife forrado de seda branca, ela
com o vestido de casamento tão fresco e passado a ferro como se viesse nesse
instante da modista; não só o rostinho de Ema colado ao ralo do confessionário e,
atrás dela, como as palmeiras do Vesúvio, as flores e o besugo da natureza morta.
Eram também as coisas não-significantes, os chinelos de agasalho debaixo da cama,
esses chinelos que sempre produziam um cerimonial que precedia o Inverno.
Quando as castanhas caíam e os ouriços abriam deixando ver a lustrosa pele,
como a foca no banho, lisa, oleada e brilhante, era tempo de comprar calçado de
interior; quando os ouriços picavam o dedo grande do pé, desprotegido nas sandálias,
lembrava aquele rito dos chinelos de quarto. Marina trazia-os da vila em caixas de
papelão, e tia Augusta provava dois pares: um que lhe apertava o joanete, outro que
lhe estava largo. Mas Ema tinha à escolha uma sinfonia de cores: vermelhos com
pompom, feitos de baeta escocesa, debruados de gorgorão, de pele, de veludo; qual
deles o mais gráfico, como letras maiúsculas, redondas ou bicudas, letras azuis ou
castanhas, traçadas em tinta firme e indelével. Não sabia quais preferir, eram todos
belos e próprios para o passo feltrado, o subir aos cadeirões de palhinha que só
suportam pesos leves, senão começam a esbeiçar-se de riso e a ficar bambos e
esbarrigados. Os de couro seleiro eram os aconselhados por Marina; os de cetim
admirados por Ri tinha, que os roçava na cara como se os namorasse. O Inverno
começava com esse acto preparatório dos chinelos caseiros que Ema nunca esquecera
e que Lumiares achava o cúmulo da punição das donas de casa. Simona não os
usava. Andava descalça ou punha botas para descer ao laranjal e apanhar do chão as
laranjas. As botas de Simona sempre denunciavam um mistério, algo de castrense,
como se ela gostasse da vida de acampamento obediente ou dominante; como se algo
nela significasse um Calígula de pernas peludas, esperando avidamente o aplauso das
legiões. Os Césares gostavam de teatro, como os Braganças da dança. A senhora
recusara a filha a um César e depois a um Bragança porque os vira dançar num baile.
Causou-lhe cólera e espanto aquele prazer que trazia, das brisas profundas do tempo,
um desejo de violência que se mascara em rodopios, langores e curvas, em oscilações
e movimentos pendulares de corpo martirizado. O que ela Ema, a Bovarinha,
descrevia, com as suas partidas e chegadas ao Vesúvio, com a sua ambiguidade, os
seus esconderijos rasteiros e sempre renovados, como os chinelos de Inverno: uma
coisa que a prendia à casa, que era uma parte do seu monólogo com a casa.
A morte de Ritinha não devolveu Ema ao Romesal, que tinha sido vendido,
incluindo-se no negócio uma fímbria de vingança pela venda do oratório. Desde aí, o
mal-estar instalou-se entre Ema e o velho Cardeano, que negara sempre e dizia,
contra ventos e marés, que o oratório era mesmo.
— O mesmo?! O pior da velhice é a queda num poço de impudor. Eu senti isso
quando fui operada.
— Foste operada, quando? A quê? — disse Pedro Lumiares, meio estranhado
porque não recebia nunca bem qualquer insuficiência sobre a vida de Ema. Ela a sua
boneca, que estripava e armava outra vez, sabendo tudo sobre as suas molas e
engonços.
— Fui operada. Há muito tempo. Mas o que eu estava a dizer é que durante
cinco dias perdi a vergonha. Como quem perde o guarda-chuva. Ficava nua, sem
mais emoção do que uma estátua, e o paramédico até quase que pensou que eu estava
a deixar-me violar. Mas era só falta de vitaminas. E agora, quando leio essas coisas
sobre sexo em família e as maneiras de fazer sexo que são menos do que as de como
cozinhar bacalhau, penso se as pessoas não estarão desvitaminadas. Se estão a comer
bem ou não.
— Pode ser que tenhas razão, mas também há uma coisa: a vida de salão não
nos intimida nem nos interessa mais. O acto sintético é o que nos liga aos outros, e a
obscenidade é um acto sintético. Quando o grupo se sente ameaçado, a obscenidade
ganha corpo como uma vingança e um contrato de clemência. O riso é já um prólogo
para a clemência.
— Que clemência? Alguém que eu conheço?
— Exactamente. Alguém assim. Vês como estás a colaborar com a
obscenidade?
— Eu não — disse Ema, rapidamente. — Pertenço à velha raça de Severa
fadista que brinca com as franjas do xaile enquanto canta. E um detalhe muito
importante; o decoro reina, a obscenidade só se sugere.
— O que te perde é saberes raciocionar tão bem. É uma coisa que não resulta,
não modifica nada. Mas cada ideia certa é uma pedra enterrada junto com o poder do
Verbo. Valha-nos isso.
— Meu Deus — disse Ema —, tens os ombros cheios de caspa. Não lavas a
cabeça há quanto tempo?
— É mesmo tua uma pergunta dessas. Gostava de ser mulher para perceber o
que tens na cabeça.
— Caspa não tenho.
— Não. Mas alguma coisa parecida. Serrim.
Lumiares contou a história de sua tia Alberta que, na agonia dum cancro da
mama, mandara chamar a cabeleireira e se entregara aos cuidados da maior minúcia,
que a supliciavam. Um deles foi lavar a cabeça. Ela estava meio morta, um oleado
deixava escorrer a água que ensopava as toalhas. Escolheu ainda a cor da tinta, e só
não quis ver-se ao espelho. A volúpia de suportar as coisas, a volúpia turva e que
entra pelos umbrais da morte, era o que ela devia sentir. Mas só uma mulher chegava
até lá.
— A Bovary era um homem, penso eu — disse Lumiares. — É a mulher a
título de usurpação pelo homem. Ele queria sentir como ela aquele orgulho desumano
que só a passividade acarreta. Digo isto com uma ternura doentia. Não te admires se
me vires lágrimas nos olhos.
Ema riu-se da cara dele, como para o consolar. Não era a primeira vez que
sentia Pedro Lumiares muito próximo, tão próximo que chegava a incomodá-la. Ele
punha-se ao nível da dor com que só a mulher priva profundamente. A dor duma
falta, que não é de sexo nem de bem-estar. "O infinito poço do desejo" — pensou ela,
com acabrunhamento. Carlos não queria admitir que ela sofria, isso punha em causa
a sua fundamental ideia de homem, de que Ema era objecto de prazer e que ele, ou
um outro, combinados ou não, a fariam concentrar-se no prazer.
Para quê reconhecer-lhe uma consciência humana, e aquele doloroso poder de
articular pensamentos? Ele permitia-lhe tudo como prova da sua degradação que a
amarrava ao homem. Permitia-lhe amantes quantos quisesse; linguagem obscena,
vícios de todos os tipos, consumismo no reino de Satã e no reino de Deus — porque
não? Contanto que ela fosse parte do seu autor, que era o homem. Pedro Lumiares, ao
menos, sabia que Ema não queria apoderar-se dum homem, mas do mundo. Como o
diabo sabia que o Cristo tinha no coração essa vontade de poder, sagaz, contornadora
da pessoa e, ao mesmo tempo, sua totalidade. Se estivesse na mão dele contribuir
para a sua perda, ele fazia-o. Como Carlos, cego do amor e, no entanto, capaz de ser
o intermediário da destruição. Onde refugiar-se? Onde ir procurar asilo e segurança?
Como a mulher do Apocalipse, um rio correria no seu encalço para a afogar, e ela não
poderia contar com as asas da águia para voar para longe.
As relações de Carlos com Maria Semblano, se não eram de amantes,
pertenciam ao pequeno risco dos desejos singulares que se materializam pela palavra.
Um hábito de quinze anos, em que os impulsos destruidores do casamento são
compensação de sonhos literários, cuja passividade satisfaz um sem número de
propósitos sádicos, isso era impossível de atalhar. Ema encontrava nas suas fugas
para o Vesúvio uma espécie de história no interiror do texto que era o seu casamento
com Carlos. Eles amavam-se, mas sem que isso fosse suficiente e indispensável;
como acontece com a maior parte dos casais. O sentido indizível das coisas ficava às
portas do amor, que a tentação não ousava acompanhar.
Agora, que nada parecia proibido, que a linguagem ultrapassava a eloquência
para chegar directamente ao facto natural, como se fosse uma maneira de ignorar a
hipocrisia, Ema continuava alienada à sua beleza; e, por isso, o próprio marido
confiava nela. Não era uma mulher de carácter, longe disso. Mas a beleza,
reconhecida publicamente, fazia com que não fosse esposa nem amante. Há anos que
não encontrava Fernando Osório no Vesúvio.
Ele fazia por falhar a sua chegada; ela desaparecia um dia ou dois dias antes de
ele se anunciar. Mas mesmo quando tiveram relações mais íntimas, os beijos eram
ligeiros e como que desvinculados dum efeito erótico. E só com Fortunato ela se
libertou dessa obrigação platónica, conhecendo com ele um misterioso imperativo,
não apenas sexual, mas sobretudo um rancor que encontrava a sua evasão. Era como
se estivesse privada, pela majestosa marca da beleza, dos prazeres que toda a gente
desfruta, mesmo os mais miseráveis seres e os mais abandonados dos favores que a
natureza concede. Foi com uma espécie de ferocidade, às vezes terna e outras vezes
cruel, que Ema se precipitou nos braços de Fortunato. Ele assustou-se e foi refazer-se
num casamento acanhado e pobre, daquela riqueza de sentimentos e emoções que
não estava na sua expectativa nem nas suas ambições. Falava de Ema como de algo
que fora, ao mesmo tempo, um prémio e uma vergonha.
— Ela é doida. Ninguém me diga que não é chanfrada — dizia. Tudo o que
explica a oscilação entre a razão e a demência, por palavras embuçadas e até
amáveis, Fortunato usava para se referir a Ema. Desde "ser aluada", ou "ter um
parafuso a menos" ou "os cinco litros mal aferidos", tudo era a praga que lavrava
entre os pensamentos amorosos dele. Que eram sinceros, pelo menos enquanto se
entregaram ao lúdico precalço dos primeiros encontros. Vigiados pelo Caires, que
sofria como duma devoradora sarna que o enloquecia, ao andar em bicos de pé pela
casa para surpreender os mínimos gestos de Ema e Fortunato, eles sentiam um prazer
redobrado; porque a traição justifica o emprego dos outros como objecto submetido e
usado. O sentimento todo-poderoso de que se amavam, e faziam o que queriam desse
amor, fazia com que gozassem em enveredar pelo lado mau do poder. Ali, era
desesperar Caires, praticando o sadismo como um ofício, oferecendo-lhe todas as
ocasiões de ele se enganar e iludir. Porque o amor a que se entregavam vivia muito
do pleno emprego do outro, o terceiro, a serpente que conhece o sabor do fruto mas
não se serve dele, apenas o nomeia e reserva para ser consumido por outrem.
Ema e Fortunato, no Vesúvio, foram grandes jogadores do amor que gesticula,
cobre a voz dos outros, leva ao extremo e anarquia dos sentimentos e leva às vezes à
morte, por humilhação, o parceiro, em imaginação, dos seus prazeres e da praxe do
poder.
— Sãos uns safados — dizia Caires; e chorava. Tão grande era o seu
sofrimento, que saía fora do decoro matrimonial. A mulher compadecia-se, pregada
ao chão pelo terror daquele ignóbil desconcerto do espírito de Caires. Não se atrevia
a intervir. Já o fizera; mas o resultado foi tão arrasador que pensou deixar a vida
nessa empresa. Nem era a perda da moral, que invadira aos poucos a linguagem e a
vontade de Caires, o que a impressionava. Era a passividade que se ia desenhando, o
encarniçado intuito de se fazer invisível, de desaparecer e não ser notado, embora se
deslocasse pela casa como um fantasma. Esse efeito de zombi é uma defesa contra o
sadismo de grupo e do par que exerce o poder e que constitui uma força feroz. O
zombi, representado como o corpo sem alma, cuja identidade se reduziu ao mínimo,
pretende a libertação julgada impossível como vitória. Gradualmente submete-se,
não ao outro, mas à voragem sexual que o outro lhe impõe. Perde o imaginário do
prazer, e o consentimento é substituído por uma recusa letárgica em que a tentação
esbarra e o sofrimento se transforma em beatitude. O mordomo Caires, tendo
chegado ao cúmulo da humilhação, a sua aceitação como objecto desprezível, mal-
amado, ficou reduzido a uma sombra. Causava espanto, a mulher abandonou-o, sem
mesmo o recriminar. Sabia que falava para um muro fechado à cupidez e à
sensualidade. Caires já não dava significado ao dinheiro, e oscilava entre sonhos de
grandeza e de lírico franciscanismo. E, como se diz que aconteceu com S. Francisco
de Assis, os animais seguiam-no e demonstravam uma espécie de enamoramento.
Ema viu isso e ficou estupefacta.
Viu o entendimento despertar num gato ou numa galinha, o que abatia as
barreiras entre a razão e a irracionalidade. O sexo era, pois, uma reciprocidade de
perspectiva; cada ser reflecte a totalidade do outro, e era dessa maneira que o
mordomo Caires correspondia ao efeito cósmico do amor por Ema.
Mas era amor o que levava Ema ao Vesúvio, afogada no casaco de marmota e
respirando, até o rosto ficar banhado de vapor húmido, contra o abrigo de pêlos cor
de rato? Era sobretudo o impulso para o todo que estava em toda a parte que
constituísse o seu cenário — o Vesúvio com a casa da Senhora e os jardins onde se
perfilavam as palmeiras e sobretudo aquela ressuscitada forma duma unidade de
vida, com o cheiro dos lagares, da grainha moída, do cangaço onde se prendem as
peles das uvas, da aguardente quente pingando nas celhas; e uma unidade de ordens e
serviços, de ritos interrompidos, como o da reza das onze horas da noite, quando o
marido da Senhora levantava a voz para pedir clemência, em nome dele, que era
pessoa grata aos olhos de Deus e que podia garantir o comportamento dos pobres da
região, antigos jornaleiros e mulheres deles, cadelas da vinha que chefiavam o
levantamento do roubo. Isto ocorria à lembrança do marido-procurador e ganhava
corpo, e produzia um mecanismo da vingança, veloz como um dardo, e que ia cravar-
se na oração, desviando-a um pouco do seu objectivo.
Tinha um marido-primo, a que a Senhora chamava o defunto. Outro marido da
sua maturidade, homem rico mas poupado, a que ela chamava o morto; e o último
marido, mais dilecto pela confiança com que lhe entregava os negócios, havendo
sempre entre o casal, não lençóis, mas livros de contas; não um ninho de boas obras
da carne, mas um rugido de papel e um veloz correr da pena das rubricas. A esse, a
Senhora chamava o desaparecido. Não lhe dava um lugar na gaveta do jazigo, mas
um tempo na cripta faraónica donde ele havia de encontrar a saída no raio solar de
Rá, trazendo com ele a pasta com folhas timbradas, e cartas para responder.
O desaparecido fora o mais venerado, mas não o único para sempre. Que a
Senhora era fogosa e mulher-orquestra em coisas do amor e do ganho. Sempre se lhe
conheceram favoritos, a sua audácia era lendária em tudo. Contava-se como
despedira os ladrões de casa, sem susto algum, e eles lhe obedeceram. A linguagem
oral era acompanhada por uma postura em que se encadeavam razões menos poéticas
— razões de alcova, provavelmente.
Ema adivinhava que a Senhora era como um disco que não só transmite sons
ao ouvido do auditor, mas onde reside um encanto no fundo daquele percorrer das
estrias, um encanto que não é musical, mas é feito de sinais desagradáveis. Uma
declaração de poder, como se fosse proferida da varanda à multidão atónita. Os
ladrões retiraram, sem levar nada, cabisbaixos, sem se atrever a pôr os olhos nos
castiçais de cinco lumes e que a Senhora apagou um por um com as pontas dos
dedos, limpando o traço de fuligem contra a palma côncava como uma concha.
— Não tenho linha do destino — disse Ema.
"Isso é megalomania" — teria acrescentado Lumiares, se estivesse ali e a
ouvisse. Mas Ema estava só. Fortunato tinha-se casado e Osório viajava muito (não
tanto como dizia, mas mesmo assim por acessos, entre os quais alguns melómanos, e
ia a Inglaterra ouvir música) e ela sabia que parava em Hong-Kong para saborear o
hotel completamente cabotino onde os pés se enterravam em alcatifas altas como a
relva dum green. As pequenas chinesas de cabaia fendida até à coxa tinham uma
habilidade fantástica para sugerir despesas e contactos. Se fossem mais explícitas
desonravam a família. Osório ficava seduzido, o que é sinal duma castração sempre
em vias de se renovar.
— Hoje estou com veia de mirone. O passado mexe comigo — disse Ema.
A primeira informação do amor foi coada pelo ralo daquele confissionário
meio improvisado da sala de jantar para o oratório. Viu a mãe, amortalhada no
vestido de noiva, pois só há sete anos tinha casado. Morreu em Março, e um nevão
caiu na terra gretada das vinhas.
O azul crepuscular do céu surpreendeu Ema. Era como um aviso lutuoso, de
que a neve ia cair. Abrandou o frio, e Ema foi levada para fora de casa, na alegria da
nevada. As pantufas forradas ficaram vidradas de flocos secos. Ela riu-se, sentindo
nos cabelos as pétalas da neve. Como a mãe, no dia do casamento, em que nevara
também.
— Isto, sim, que é uma festa de noivos!
Conhecia mal Cardeano e, quando ele a carregou nos braços para a não deixar
molhar os pés na calçada, sentiu o cheiro do tabaco e do vinho que ele bebera em
demasia. Corria um regato de águas de sabão, filtrado pelos muros altos da
vizinhança. Nem uma flor, só pedras lisas e a escada para o alpendre da casa apoiado
em três colunas curtas. Ema teve o pressentimento de que não sairia dali viva. A sala
do oratório, na noite fechada, estava deslumbrante de velas que pareciam pipilar
como as aves. Ema escorregou dos braços do marido para o chão, e ficou num
silêncio que Cardeano interpretou como timidez. Era rico, comparado com Ema, filha
de fidalgos que tinham dom sem dim, sempre a braços com uma hipoteca e letras por
pagar. Mas era tão bonita, com o vestido de renda e as faces coradas pelo frio, que ele
a apresentou como uma rainha. Mana Augusta, com a cabeça trémula a dizer que
não, achou-a decotada demais. Não tinha ido ao casamento; cumpria uma promessa
que lhe proibia festas e vestidos de cor.
— Deus a abençoe, menina — disse, distraidamente. Sempre lhe mostrou
respeito; era a esposa do irmão que, se bem que mais novo, ela venerava como o
chefe da casa, sucessor hereditário do velho Cardeano, morto de pedra na bexiga. Os
lenços tabaqueiros dele ainda estavam arrumados ao canto do gavetão, vermelhos e
desbotados.
A Ema pequena não teve tempo de entrar na intimidade da mãe. Ela era
doente, sofria do coração; muito tempo depois de ela morrer, ainda havia remédios
em cápsulas de hóstia no armarinho da sala de banho. Ema pequena encontrava
também peças de enxoval, penteadores, uma camisa com violetas bordadas que se
esfarrapara quando ela lhe tocou.
Mas a recordação foi emuldurada, como um quadro, pelo ralo do
confessionário. A mãe deitada, como um mármore pronto a ser despachado para o
museu, dentro do caixão vermelho. Ema teve a impressão de que o caixão era
escarlate. Ouvia o borbulhar das orações, o tinir do hissope na caldeirinha de prata e
que ritualmente aspergia a morta de água-benta. Ela tinha já o peito ensopado, e Ema
condoeu-se. Essa dor acompanhou-a sempre; aturdiu-a com um sentimento fútil, que
era o de desgarrar das lembranças mais assustadoras da vida.
A segunda informação do amor foi colhida nas termas do Vidago, ao ver os
noivos que se escapavam para o parque. Um delírio sonso, um trémulo
contentamento que era temor de perder o prazer gozado. Via nos olhos dela esse
pudor cansado que se vai transformar em submissa calúnia do amor vivido. Os gestos
perdiam a casta admiração de serem correspondidos; ele abrasava-a de beijos na
sombra cálida do parque; e a noiva, sempre indefesa dos olhares estranhos, sentia a
violação dos gestos na ironia dos hóspedes. "Porque se resigna? Ele não vê que a faz
sofrer?" — pensava Ema. Tinha pena da jovem, tão corrompida naquele desejo
precipitado. Ele chegou a despir-lhe a roupa interior diante dos olhos de Ema, e a
possuí-la em público, cego para quem andava pelo parque. A carne branca, com veias
azuis no macerado das coxas, fez estremecer Ema. "Porque a não poupa?" Achou que
assistia a um suplício, mais do que a uma cena de amor.
Os criados riam-se; as matronas trocavam olhares reprovadores; o chefe de
mesa chegou a dizer alto que os noivos não deviam sair do quarto. "Porque suporta
tudo?" — pensava Ema. Era um enigma para ela o humilhante discurso em que se
perdiam, ele solitário na perseguição do prazer; ela, abandonada, na confiança que
havia de ser um dia veneno das recordações. Embora guardasse o decoro delas e só
libertasse pequenos flocos de frio e nostálgico sentimento. "Como éramos novos" —
diria ela, cruzando as mãos no ventre deformado.
E não reconhecia a noiva das termas, com as pernas abertas e como cruxificada
contra o lenho da alta faia do parque. A segunda informação do amor não a deixou
segura, só rebelde, que é fraqueza indignada.
Como não tinha já mãe, e tia Augusta era uma inútil, foi preciso esclarecer
Ema para o casamento. Era ridícula uma preocupação assim, tanto mais que Marina e
Branca tinham dito o que sabiam. Sem fazer-se rogadas, sem deixar de borrifar a
roupa lavada, instruindo Ema com o melhor da sua experiência, que era
acompanhada duma treva propositada, que serve ao mistério de persuasão. Branca
contava as suas relações com os homens como quem folheia uma lista de
informações. Ema sabia que ela se lembrava do seu último amante, e que ele era
partilhado ali como uma hóstia, corpo e alma devorados e amados. Nos primeiros
tempos do casamento, Ema não podia afastar da beira da cama o belo Nelson; o rosto
dele, nobre e compassivo, dava-lhe protecção nas revelações da carne, que não eram
surpreendentes. Carlos não sabia muito de alegrias. Achava o prazer uma forma de
preencher o tempo quando o trabalho não apertava. O trabalho era o seu pretexto
mais agudo para evitar enfrentar-se com a mulher e algo de assustador que ela
significava: uma espera de mostruosa inquietação e perseverança, como se fosse
rasgar-lhe as entranhas com os dentes brancos. Os dentes de Ema sempre o
assustavam, carnívoros, grandes e caveirais, se quisesse isolá-los do lindo calor do
rosto. Carlos era como a mulher, na função de receber o insulto do sexo; e ela, a
apavorante imposição ao desejo que se furtava a ser mais uma vez acendido. Parecia
que não ia acabar nunca o castigo do sexo; que Ema, ou outra, não ia perdoar-lhe
nunca mais a sujeição, a fome, a repetição nauseabunda do sexo. Toda a memória
desqualifica o amor; a vergonha, o ódio de partilhar esse flagrante desnudar do corpo,
eram obstáculo à liberdade de ambos. Carlos lembrava-se dos bons tempos com a
primeira mulher, aprovada pelas Paivoas, que lhe chamavam "a calçuda". Ela usava
calças grossas de fazenda, como se as herdasse dum tio padre; porque sofria de
reumatismos, de espondilose, e precavia-se do ar e do vento.
Faziam um amor como uma cataplasma, separavam-se logo, ele enroupando-se
entre as pernas com o lençol, ela saindo da cama para verificar se a porta da cozinha
estava fechada e se os gatos estavam fora de casa. Não denunciava jamais o calor do
coito, isso seria uma traição imperdoável. E Carlos apreciava esse respeito de velha,
a exumação do sexo uma vez por semana. "É uma boa senhora, devo-lhe muito" —
dizia, fazendo da gratidão um revulsivo da alma que se ia tornando apática e
analfabeta.
O pequeno Carlos, filho quase tardio, que escapara a ser mongólico, no parecer
do pai que se julgava uma vocação recusada, estava a parecer-se com Ema. Isto
comoveu-a. Como sempre que se achava em risco de descer da sua representação
sempre com qualquer coisa de régio, como se equilibrasse na cabeça uma coroa, ela
tomava um ar agressivo; uma agressividade viril. Amava a criança como se
emendasse um exercício escrito, procurando fazer parecer-se esse amor a um texto
completamente clássico.
Enquanto Ema Bovary deixa perceber o equívoco, porque é um homem
desencorajado da sua virilidade e se refugia no travesti, Ema Paiva era uma mulher-
espectáculo. Quando a mulher se dá em espectáculo, prefere uma retórica viril;
criança crescia, sujeita ao bizarro comportamento da mãe, que lhe dizia: "Tu és um
homem como eu te ensino a ser. Não terás decepções se me imitares". Imitar Ema era
surpreender a sua doutrina de caçador, o porte de arma (assim podemos chamar os
atractivos da moda e um perfume cinegético que vai desde o repentismo da palavra
até à degradação dela), a posição vencedora tão usada pelas vamps do cinema, como
Marlene, a cavalgar a cadeira, como o corpo dum homem. Homem feminino,
oferecendo os joelhos como inspiração à virilidade da mulher. Marlene, vestida para
a noite, com casaca e laço branco; a noite do homem urbano que é uma forma de
vingador da figura doméstica, do professor Unrhat, ocupado com os instrumentos
frustes da ordem escolar e da respeitabilidade.
A noite, também para Ema, tinha os acessórios da virilidade, o sexo não
mutilado, a graça lúdica de tudo o que se não destina ao essencial da sobrevivência.
Ela saía com Pedro Dossém (que já não a acompanhava tanto, desde que a mulher o
ocupava nas suas participações no open ibérico), e tudo se transformava. Os olhos de
Ema brilhavam, ela era agitada por um desejo devastador; e Pedro Dossém tinha
dificuldade em travar o seu génio de destruição, um génio a que o cómico se
misturava como um moderador de cabeceira. Ela sabia fazer rir os homens, e nisso
não era uma Bovary bem copiada. Ema Bovary não tinha qualquer sentido de humor,
e daí a sua impaciência estéril. Mas Ema Paiva começara por dividir o riso em duas
penadas: o guerreiro, e o alimentar. O primeiro pertencia às suas surtidas com Pedro
Dossém, cuja imbecilidade servia de escudo à depravação. Ele amava-a com uma
falta de temperamento em que não se podia deixar de supor uma singularidade
secreta para o amor adolescente e as suas dolorosas consequências. Ema era solidária
com essa penosa fase, nunca mais acabada, do amor da puberdade. Se não o
compreendia, não o fazia sofrer com um riso guerreiro. Era mais o riso alimentar que
às vezes deixava escapar, mas isento de troça; como quando via tia Augusta a passar
com o seu pequeno regador em direcção à varanda-estufa, e ela lhe parecia um
gnomo, pronto a desaparecer e a materializar-se mais além. Esse riso tem um sabor
vitaminai, protege o coração de se tomar a sério, mas não o mumifica, não o
acostuma a descobrir a impureza dos outros. O que é muito puro faz rir; mas com
riso nutritivo, de quem come uma fruta doce e, ao mesmo tempo, se alegra de não a
pagar caro com o arrepio da desilusão. Porque o que faz rir desilude, e nisso intervém
o riso guerreiro, que é uma forma de compensar a decepção.
Pedro Dossém pediu de empréstimo o riso de Ema, como se pede um lenço,
com aquele grau de intimidade pronto sempre a sanar uma situação embaraçosa. Ela
ria-se, mas ficava assente que era porque ele próprio não se levava a sério. A ironia
de Ema era uma cautela proposta à situação criada: a imbecilidade de Pedro Dossém,
cujas molas Ema sabia existirem fora dessa definição, a do riso. Snobs,
homossexuais, homens que viviam secretamente com os seus lacaios e um
regulamento que movia um cosmos ilusório, o do poder, eram os que Ema
frequentava. O próprio Osório a fizera entrar nessa seita extraordinária, que as
famílias tomam por aberrante e da qual participam as pessoas de letras e do teatro.
Fizera isso um pouco para se livrar dela; porque uma mulher como Ema, se não está
ligada a qualquer vertigem sobrenatural e não pratica, pelo menos, a levitação, torna-
se incómoda. Para a ocupar não há como esse meio propenso a admirações súbitas e
traições que devoram a interpretação de cada um, o seu papel de burguês extraviado.
Pedro Dossém foi durante muito tempo o seu reposteiro-mor e depois
desapareceu, solicitado pela golfista-lírica que era a mulher dele e que ele dizia
descender dos Coetman da Bretanha. Reposteiro-mor e pajem de lança eram os
atributos de Pedro Dossém que Ema declarava com o seu riso que rodeava de
desprezo o mundo e o sentimento mais íntimo das pessoas. Era por isto que Carlos
nunca conseguira fazer dela uma cúmplice no casamento. Ema preferia ser falsa
amante a ser esposa. Era mais salutar e mais conforme a evolução do cómico;
enquanto ser a senhora do doutor lhe parecia duma infinita insipidez. Lembrava-se da
primeira vez que saíra sozinha e fora tomar o comboio à Régua, levando até ao cais
Marina como aia que servia a sua mudez e cegueira; porque Ema tinha os olhos
fechados e a língua travada, tudo lhe parecia existir como pretexto da sua
passividade.
— Eu vi — disse Marina, e os olhos azuis cobalto brilharam com o brilho
obtuso que lhe era próprio. — Eu vi embarcar a nora da Condessa, uma tarde como
esta. E lembro-me só da luva enrugada no punho pousada na janela da carruagem. Eu
senti que era capaz de morrer por aquela luva. Até me apeteceu chorar.
Ema pensou que a frágil casca humana estala facilmente com o efeito duma
coisa que triunfa do imaginário, como uma luva que adere à pele; parecendo a pele e
não sendo, como um texto parecendo a vida e não sendo ela.
— Não te esqueças de temperar a carne — disse, a meia-voz. Ficou de pé atrás
da portinhola, a ver a figura de Marina a diminuir e a reduzir-se a um ponto na gare
da estação. A condessa, que era neta da Senhora, casara na região das Landes com
um fidalgo endividado, trazendo com ela a sogra, exemplo acabado de brasão de
armas gotado de sangue azul. As Mellos tinham-lhe a raiva bem parecida que é
tesouro de invejas bem vistas. As Mellos recebiam Ema à merenda e apoiaram o
casamento dela com Carlos Paiva, "Embora ele não tenha a sua linhagem" — diziam,
sedentas de diferenciação. Entre elas e o mundo pairavam timbres com flor-de-lis e
torres e leões de escudo. Eram muito "pafúncias", como lhes chamava o lavrador
Cardeano, mas castelonas de boas contas e interessantes como figuras entre clericais
e hereges. Não perdoavam ao Papa o aggiornamento nem ser da Europa infeliz com
muitas pragas em cima, de judeus pobres. A francesa, sogra velhíssima da condessa,
adivinhara em Ema uma anomalia, uma passada em falso que a fizera transpor duma
só vez duas gerações. Da mãe Ema (destinada a morrer cedo porque esgotara
depressa o sentimento escarnecedor da vida, que nos defende e nos liberta) até ao
lugar que a jovem Ema tentou ocupar, havia um abismo; ou, pelo menos, um espaço
vazio. O adultério era ainda uma forma de se situar no campo positivo que as
mulheres aceitam como uma actividade menos irrisória das suas vidas. Mas com
Ema Paiva isso já não bastava. Subira demasiado na escala das suas imaginações e
era difícil servir na moldura da jovem Ema do Romesal, quando os desejos fictícios
lhe bastavam.
Depois achou-se apoderada pela vontade de amar, quando o baile lhe descobriu
um horizonte deslumbrante; teve a necessidade dum sentimento que era o apelo para
algo de distante e nobre, sendo-lhe indiferente poder obter isso. "Eu queria ser igual a
alguém que eu forçava a amar, desempenhando o papel desse alguém" — disse a
Lumiares que, como outras vezes, sentiu inveja dessa aspiração de mulher, que a
elevava acima da fraca ideia que tinha dela. Nem podia ser doutra maneira. Não há
nada de esplêndido senão na sujeição de alguém, e os jogos do imaginário dependem
dessa infiltração da personalidade acima da criação. Resta a mulher, produzida
depois do homem e portanto singular nos vestígios dessa aparição subalterna.
Apesar do seu desprendimento vadio, Ema estava ligada a Carlos pela
habitualidade do casamento. Quando voltava do Vesúvio, depois de o trair, Ema
sentia ciúmes do marido. A facilidade com ele suportava toda a matéria do adultério,
recusando-se a considerá-lo uma praxe do próprio matrimónio, incomo-dava-a. Não
encontrando Carlos em casa, como se ele fosse a mulher desordenada nos seus
deveres, irritava-se e fazia uma cena violenta. Ultimamente, o casamento estava
fundado nesse discurso secreto das suas relações em que o sexo tomava foros de pura
ficção. Já não dormiam juntos, mas havia neles uma expectativa mais ardente do que
se fossem um casal tradicional.
Sobretudo Ema não falava disso. Sentir-se-ia desonrada se admitisse ter
ciúmes de Carlos. E não eram senão ciúmes, ou uma inveja alucinante por qualquer
privilégio que não queria encarar, como, por exemplo, o apreço que Maria Semblano
tinha por ele. Apreço por aquele homem medíocre, junto do qual ela não conseguia
despertar da sua solidão.
— Não sei o que fazem juntos, mas acho que há qualquer coisa de ridículo nas
alegrias intelectuais — dizia Ema. Ela punha de parte os seus colóquios com
Lumiares, que eram lições enfadonhas e às quais ela não prestava nenhuma atenção.
Não deixava de admirar a orgulhosa resignação do marido, e exasperava-se porque
ele não parecia molestado; nem sequer convencido do que toda a gente sabia, que
Ema o enganava.
Era mais do que meter-se na cama com outro: era fazer do casamento uma
paisagem em que ela se materializava como as ninfas, mas a que não dava outra
significação senão a de paisagem, no sentido mais frio e mais ausente. Ema ficava
desconhecida, revelada como uma película que se mergulha na água, o mistério do
sexo pressionado pela operação fotográfica, mas que fica o que é: uma soma de
funções caricatas, porque todo o movimento é caricato. E, possivelmente, a terra não
se move, por essa razão dizia Pedro Lumiares.
Até à morte havia que constar esse estilo de vida, o conjugal,
insuficientemente elaborado e também sempre adiado para melhor oportunidade de
solução. Carlos não queria descobrir mais nada do que lhe era consentido por uma
realidade convencional; e Ema não se deixaria limitar pelo quase-encontro dos sexos.
Preferiam ambos um imaginário que se pode materializar através duma comédia sem
qualquer intenção de responder aos seus exercícios da verdade emprestada. Era uma
verdade emprestada o que os fazia ficar juntos e amarem-se. Outra coisa seria
insuportável.
Como Nelson disse, quando apareceu no Romesal como comprador, sendo já
um abastado proprietário:
— Não, nunca me separo das mulheres com que me caso; é como deitar à rua
as alegrias da impureza.
CAPÍTULO IX
UM CENTRO DE MESA PARA ROMÃS
O mais provável da história das pessoas é dado pelo que vai anunciando a sua
pobreza essencial. Sem essa pobreza, de causas e efeitos, a vida humana seria muito
mais dolorosa.
Tomemos como exemplo David, o que foi rei aos trinta anos do povo de Israel
e, no cúmulo do seu triunfo, se comportou como um bailarino vulgar, manifestando
pobreza de espírito. Ele conhecia a armadilha do poder, que é fechar o círculo dos
efeitos em volta da informação indizível do homem: se a sua pequenez não fica
incólume e se ele não a preserva da transcendência, acontece que a fragilidade
humana se decompõe e surge a depressão, tão antiga como a vida mental na terra.
Aconteceu com Saul essa plenitude de significação, e ele foi um rei não só escolhido
entre a multidão, por possuir a estatura mais elevada, mas também como aquele que
se devia manter acima dela em todos os sentidos. Não se protegeu com a pobreza de
meios humanos. David teve muitas vezes que dissipar-lhe a tristeza tocando harpa
aos seus pés. Não era a música o que o acalmava, mas a pequenez de David, capaz de
confiar nos prazeres reais deste mundo. A sabedoria, sempre prestes a evaporar-se
porque a sabedoria é uma designação do desejo, só pode manter-se intacta pelo seu
lado inarticulável — a pobreza de espírito. David, ao materializar o imaginário,
sucedendo a Saul, não abandonou o pastor de pés ligeiros capazes de trocar as voltas
aos seus negros desejos.
E nem sempre, como depois se provou. Um dia, Ema teve ocasião de entrar na
casa onde há vinte anos se dera o baile que tanto a impressionara e que mudou o
rumo da sua vida. Pareceu-lhe o salão mais pequeno. As tábuas do soalho rangiam e
os reposteiros tinham manchas amareladas. Via-se a mesa da copa que ela
surpreendera carregada de doçaria e jarras de sumos: a laranja, da pálida espuma; a
groselha, como sangue fraco acabado de correr das veias. Aquilo que tanto a
comovera, no silêncio da tarde azulada pelo nevoeiro, fê-la gelar de receio
extraordinário.
— Se eu soubesse que as coisas eram assim, não tinha rompido com a minha
vida decente.
Lembrou-se das mulheres sentadas contra a parede, segurando as bolsinhas em
cima dos joelhos e olhando o vazio com o seu alvar orgulho que nem de leve a
notava, apesar da beleza magnífica de Ema. Elas não a reconheciam, não lhe davam
sequer o lugar dos criados de libré preta e que ela fazia por não confundir com os
convidados. Apenas não mudara a impressão quase dolorosa do braço de Osório na
sua cinta, quando ela tropeçou no tapete. Fora uma gratidão estranha que traçara no
coração de Ema o arabesco do amor. Procurou com os olhos o tapete em que os pés e
o vestido cor de açafrão se enrolaram, e viu-o, meio dobrado, uma ponta levantada
como para o retirar dos pingos de chuva que as telhas deixavam entrar.
— Os telhados estão uma desgraça. Sabe quanto dinheiro é preciso para
compor estes telhados?
A criada grave, que envelhecera a abrir e fechar as inúmeras janelas da casa,
deitou-lhe a mão porque Ema ia caindo. Havia buracos no chão, aproveitados para
deitar venenos dos ratos. Se parassem de falar, o roer duro das ratazanas ouvia-se
como uma obscenidade. Ema estava ali para avaliar alguns objectos a ser leiloados. A
casa (o escorialesco edifício que tanto impressionara Ema) não se desmanchava, mas,
depois da morte da mãe de Pedro Lumiares, servia de pretexto a uma almoeda. Ema
não viu os candelabros de vermeil com cupidos esculpidos, nem as porcelanas azuis
que tanto a fascinaram na sua fugaz passagem, no baile.
— Quem fica com a casa? — perguntou. Entrevia a luz de uma alcova onde,
na cama alta, decifrou um prazer de corpos, há muito tempo ali enlaçados. O coito
dos ricos, sem a infâmia da dependência, um consumo apenas de parentesco,
descrevia-se nessa rápida composição da cama coberta com uma colcha branca.
— A casa, não sei. É um encargo muito grande. Só os telhados, é uma fortuna
para serem reparados.
A mulher vivia obsecada com a água que tinha que aparar em bacias e potes,
que a acordava de noite com o seu estalido de chicote. Mostrava-se ofendida com a
indiferença dos amos e o seu absentismo, que, segundo ela, estava eivado de
intenções malignas. Sabia que qualquer dia lhe faziam as contas e a punham na rua.
Eram senhores para isso.
— São senhores para isso — disse, num desabafo.
Ema deu-lhe algum dinheiro, que ela fingiu recusar duas vezes, conforme o
protocolo da antiga servidão. Já não usava o avental branco, não usava mesmo
avental nenhum, como prova da sua emancipação; mas havia no olhar da mulher
outra forma de humilhação, que era a profecia de ser uma narradora apanhada na
armadilha da anedota humana. Pedro Lumiares despediu-a efectivamente, não por
economia, mas por pudor. Não quis que ela presenciasse o destino das Jacas, que
foram vendidas para turismo de habitação e se encheram de gente abusadora que
roubava plantas do jardim e levantava os pratos da mesa para verificar a marca.
Nesse Inverno, o estado de Maria Semblano piorou. Ela estava perto dos
setenta anos, o que era para Ema uma fonte de êxtases maliciosos. De tempos a
tempos deixava perceber que não lhe restava senão escrever os seus contos da
Cavèrneira como forma de revolta camuflada.
Não pensava Ema que a morte é a mais devorante das paixões; e que quando
alguém parece impaciente com a sua decadência, está a entrar em profundidade na
identidade da morte. Privando-se dos prazeres da vida não renuncia, mas descobre a
Natureza como resumo do Universo a que se entrega completamente.
Maria Semblano era uma rival a recear muito mais do que quando, mulher
ainda desejável, arrastava uma pequena turba de curiosos, se acontecia embarcar na
estação para o Porto. A sua écharpe sarapintada voava fora da janela como uma
serpente alada que a seguia, lambendo-lhe os cabelos ruivos.
Ema percebia que o marido ficava mudo com as suas pequenas alusões
satânicas; isto irritava-a ainda mais.
"Nunca aprendo" — pensava ela. Pois sabia que o desdém manifestado por
alguém é uma forma de a sobrestimar. Há muito tempo que não via Maria Semblano
e nunca lhe perdoara o papel que tivera no casamento de Lolota. Não que fosse um
casamento falhado, mas porque isso ligara mais Carlos à Caverneira. As mulheres
adúlteras têm um lado de artista do ressentimento. Para chegar a esse imperativo da
liberdade sexual, é preciso percorrer um caminho indispensável em que se acumula o
despeito, a mágoa, da organização familiar.
Com Ema, as coisas "traziam água no bico", desde os tempos mais finos da sua
infância. "Trazer água no bico" era expressão muito usada por tia Augusta e
significava subtileza e uma série de veículos de intencionalidade. Ela vivera numa
casa em que as mulheres predominavam, o que lhe dera uma noção de vertigem
feminina, de falta de compromisso didáctico; porque as jovens que a rodeavam eram
todas entregues a um divertimento especial, o de desesperar dos homens. Sentindo
prazer com o desejo que despertavam, nem por isso tomavam a sério esse contrato do
amor. Para elas, amar e ser amada era sobretudo uma comédia dell’Arte, com o seu
Arlequim e Colombina que, sendo docemente sinistra ao combinar dois homens
opostos ao serviço de uma ilusão, fica fora de cena durante toda a representação a ser
injustamente amada por ambos. De todos os modos, Arlequim e Pierrot encontram-se
na pele de uma mulher e executam variantes graciosas dos seus passos.
Mas ela não está lá. Os próprios artifícios que lhe atribuem, e de que
Polichinelo se apropria, por pura inveja da feminilidade, não são a sua satisfação
maior. Ela pressente que uma misoginia qualquer escolta; que se trata de a marcar, de
a tratar injustamente. Ema tinha a impressão de que o sentimento mais persistente a
seu respeito era o da injustiça. Para chegar a isso, adulavam-na e procuravam deixá-
la desprevenida para, de repente, atacar de maneira mais cruel. A injustiça parecia ser
um objectivo profundo, e a sua essência difícil de descobrir.
Mas enquanto Ema estivera naquele viveiro de mulheres, nada lhe podia
acontecer, nem de bom, nem de mau. A injustiça não tinha perspectiva, as relações
não se degradavam porque o contrato da injustiça não se fazia. A única vez em que se
sentiu aflorada pela injustiça, num colégio de raparigas, foi isso possível porque uma
aparência sensível do masculino se manifestou. A professora de caligrafia, com os
pêlos no queixo e uns olhos que se desviavam das alunas de uma maneira
pecaminosa, acendeu-se em cólera, quase por combustão espontânea, e aplicou-lhe
fortes reguadas nas palmas das mãos.
— Que bem me sabe! — disse ela, como se comesse um doce, um "papo-de-
anjo" ou uma bolacha de hóstia. — Escrever Manuel com um "m" pequeno é um erro
imperdoável.
— Eu não escrevi com um "m" pequeno. Faça favor de reparar.
— Reparar? Que desaforo, minha diabinha! — E deu-lhe mais quatro valentes
reguadas. A injustiça sabia-lhe bem e despertava o seu lado cantante. A voz trinava,
os cabelos do queixo vibravam, um prazer fazia-lhe palpitar as narinas; o que se
passava por baixo daquelas saias devia parecer-se a trovões e raios. A injustiça
produzia deleites gloriosos, e a professora, uma vez experimentando essa poção
gostosa, ia querer mais. Ema voltou para o lugar. As mãos ardiam-lhe como se
estivessem mergulhadas em água quente; parecia-lhe mesmo que tinham inchado
como um gordo sapo fumador. "Ela não fica por aqui, agora que me caçou", pensou
Ema.
Conhecia o prazer da injustiça e como se desenvolvia no corpo das pessoas;
como abria brechas e gretas, e levantava os beiços, e arrepiava a nuca, e dilatava a
vulva que se fazia potente e macha. Só a injustiça conseguia esse efeito. Com Ema
nunca acontecera, mas a primeira vez arrastava outras. Percebia como havia
delinquentes contumazes, sempre a entrar na prisão e a ser julgados; e outra vez
levados ao banco dos réus e esmurrados ou, pelo menos, privados dos sapatos e das
meias. Quando lhos devolviam, eram os dois do pé esquerdo, pura declinação da
injustiça pura. Ema disse, escrevendo ao pai uma carta fina e roçagante como uma
saia de seda:
— Traga-me umas luvas de Inverno, podem ser azuis escuras. Ou então
brancas, com barrinhas.
Cardeano sabia que ela não usava senão luvas de pelica, muito justas, que lhe
desenhassem a mão. Pensou que Ema queria alguma outra coisa, e mandou Marina
averiguar. Ema disse:
— Se não for para casa, fujo daqui e sabe Deus aonde vou parar. Ao muro da
estação, não me importa.
— Mas porquê? — Marina estava estupefacta, e os olhos azuis piscavam de
espanto. Não era muito esperta, e Ema dava-lhe que pensar; no geral era comedida e
não se acreditava a ira que via nela.
— Tu não percebes, Marina, minha tansa. Apanharam-me de ponta e não me
vão largar. Sou como um diospiro bem maduro e rasgam-me até eu suar o doce e o
azedo.
— Quem?
— Nem vale a pena dizer.
— Mas quem? Tenho que contar ao seu pai. Trataram-na mal?
— Não tenho escapatória agora que cheiraram o medo e viram as minhas mãos
a escorrer água. Nós destilamos água quando temos medo.
— Que fez assim de tão mau, menina Ema?
— Nada. Ela pensou que escrevi Manuel com "m" pequeno.
Eram altas gramáticas para Marina, que só se acobardava quando a menina
tinha aqueles lumes do colégio interno, que durou pouco. Ema voltou para casa com
doze anos e o pai destinou-lhe um professor de latim, e a reitora do patronato falava
com ela francês. Leram de parceria o Robinson Crusoé, o que, para programa, era
insólito. Mas Ema não deixou de tomar ensino desse curso, sobretudo das aulas com
o abade, homem sério e que a mandava recolher atrás da porta, quando ela o despedia
reverencialmente.
— Não é bom que nos vejam assim.
Ema não entendia, mas, vendo-se no espelho, rimando os anéis do cabelo com
os olhos profundos, achou que não era bom estar na moldura da porta, que a fazia
retrato dos desejos. Mas ganhou embirração ao abade e às declinações de latim.
Estava, como se dizia, uma senhora, e reinava no meio das criadas como uma infanta
típica. Nem faltavam os bobos à sua volta, o Cândido e o Candidinho, que eram
gente de algo decaída. Faziam recados e, às vezes, iam para Lamego, comer o rancho
do quartel; não porque tivessem fome, mas porque era gosto libidinoso ser pasto das
chalaças dos recrutas.
— Não tens mulher, Candidinho?
— Tem dentes, tem dentes.
Queria dizer que era despesa o casar e não podia sustentar amiga. Cândido era
mais regular no juízo, só calado como um mocho num amieiro. Pequenos ambos, de
boné ou chapéu roto, o povo amava-os com singular afeição, que é a que se dá aos
mal-aviados, de que todos se culpam um pouco. Ema disse:
— E o Candidinho?
— Morreu já há muito tempo. Teve um enterro como só visto.
— Ele?
— Ele mesmo. Vestido como um lorde e passeado numa carreta com franja
dourada. Parecia um santinho, branco como a cal e mimoso. Tão mimoso!
Ema lembrava-se de lhe fazer partidas e de o mandar pelas portas pedir um
litro de paciência.
Ele ia e voltava à noite, porque aproveitava para vadiar e entreter-se nos
lavadouros onde as mulheres falavam de vivos e de mortos. Paciência, não trazia.
Voltava o forro dos bolsos e saíam deles cotão e baraços, chaves velhas.
— Não há paciência. Perguntei e não havia. Nem cara nem barata. Não há.
Tia Augusta abanava a cabeça com reprovação; não gostava do desfrute dos
pobres e apoucados. Mas Candidinho era mais feliz com enganos, do que com
justiça. Bebia o seu púcaro de café e ficava ao sol, alagartado, o feltro preto enterrado
até aos olhos com uma arte clownesca difícil de imitar. Seria tão doido assim ou
percebia que o riso lhe rendia para a malandragem, que era vocação distinta e que ele
prezava como marca de fidalguia? Era irmão de Ritinha, mas ela mais soberba
quanto ao efeito da sua raça, que era gananciosa de trabalho. Trabalhava ferozmente,
como outros fazem guerra e nela abrem trincheiras e praticam escaladas. Ritinha era
um fenómeno de balde e sabão amarelo; que depois acabou, quando os soalhos se
afogaram com alcatifas.
Ema disse:
— Nunca vi ninguém tão esfregadora e caprichada. Deitou-se para trás no
cadeirão, onde o pai morrera e que tinha uma capa de linho remendada, sobre o couro
surrado. Ritinha nunca lhe dera que pensar, nem nada. Mas agora removia os
bloqueios da memória para trazer as almas acima das labaredas, fazendo-as despontar
nuas e inocentes do seu mar de línguas rubras. Pensou que nunca salvamos os outros
das chamas em que ardem e que não parecem sulfurosas mas que o são. Ritinha,
caganita de rato de antiga estirpe, polia na pedra do lavadouro os encardidos sacos da
baga; como se lavasse a bandeira das cinco quinas e ao lábaro cristão restituísse a cor
e a formosura. Assim mesmo. Com igual catadura de condestável, ânimo de porta-
bandeira, sentimento de Magna-Carta. E, no entanto, quem adivinhava essa proeza
linda? Quem beijava os cotos da sua ínfima nobreza e lhe levantava da testa a farripa
aureolada de espuma?
Quem admirava a fidelidade ao segredo da roupa suja, como se fosse
conjurada, maçónica, chama, donzela de Orléans e Fátima? Ela sabia de corrimentos,
laivos de sangue, prenúncios de má castidade, doenças que o ventre exuda, leite de
entranha dolorosa, mensagem de humor castigado, borra de fígado morto e do
coração confiscado ao tempo. A sua nudez não era impedimento de revelações; mas
Ritinha venerava o seu ofício, celebrante que era das vidas que expiram e soluçam.
As mãos vermelhas acariciavam a seda das peças íntimas das mulheres da alta, das
mulheres de comerciantes, surdas à inteireza da posição e que chamavam, entre as
seis e as sete da tarde, os caixeiros bonitos, como o Beto da escada, que tinha olhos
de sheik novo, olhos de ouriço verde quando caía dos castanheiros.
Quando Nelson se apeou do seu Mercedes branco, trazendo na mão um chapéu
de panamá, segurando-o com respeitosa maneira, como um criado, Ema disse para si
que, sem o amor, ele não seria nada. Via-se que, ao aproximar-se da porta da sala, ele
retinha as lágrimas a muito custo. Voltara do Brasil, onde se refugiara durante a
época mais turbulenta da revolução, e em que a sua fábrica de fiação fora ocupada
pelos trabalhadores. A mulher não o acompanhara. Era uma insípida senhora, com ar
de governanta de padre, e que lhe criara os filhos do primeiro casamento com uma
competência profissional; professora primária, nunca abandonara o ideal dessa
cruzada que era, no dizer dela, "abrir as inteligências". Parecia algo como uma
trepanação operada nas cabeças nodosas das crianças de escola. Tudo isto
amachucara Nelson, que era sobretudo o amante latino de Entre-Douro-e-Minho.
Melhor situado não podia estar, com a infância de seminário e a mão coberta de
equimoses feitas por um marido bêbado e abatido pelas sevícias dela, raposa que não
aquecia o leito, sempre em engenhosas artes de se evadir da cova. Não gostava da
casa pobre nem do homem bruto. Alegrava-se com os filhos, estampas de fidalgos
florentinos; o marido dizia que se deitava com eles, o que era forçar direitos de Papas
e de condottieri.
Nelson disse, com voz embargada, que tinha saudades do Romesal. Já
comprara uma propriedade escalavrada e grande como um condado, que não eram
grandes em Portugal. D. Egas punha-se rápido em Lamego, com duas tropadas dos
seus cavalos fulvos, indo do Freixo ou do Marco. Nelson estava tão velho que Ema
se interrogou sobre o efeito da riqueza nas veias, tão encordoadas e azuis apareciam
nas mãos do que ela chamava o belo Brummel. Ele sentou-se na beira da cadeira e
pousou no chão o chapéu.
— Não me conhecia se me visse na rua — disse, com uma polidez triste. Mas
tentava desafiar nela um louvor à antiga beleza, no que não foi bem sucedido. Ema
não estava a pensar em iludi-lo.
— Eu também estou mudada.
Na sala do Romesal zumbiam as moscas, e os estores manchados de caruncho
coavam a luz violenta. Era o Verão, em Agosto. Ouvia-se o fio de água arrulhar como
um pombo, ao cair e abrir--se na escuridão da mina. Ema encontrava-se ali não sabia
que pela última vez. Cardeano morrera e era preciso pôr cobro às despezas que a casa
acarretava. Ele tinha uma amiga que Ema despediu, não sem constrangimento,
porque ela fora, afinal, uma Nightingale pobre, alojada no quarto das castanhas. Deu-
lhe alguns móveis e roupas de cama, o que a encheu de gratidão. Depois disse que
fora roubada e que Cardeano lhe prometera uma vinha e, não se sabe porquê, o banco
de carpinteiro que estava ao abandono debaixo do telheiro, frente à cozinha.
— Para que quer ela o banco de carpinteiro? — disse Ema. Girava pela sala,
parava para folhear as velhas revistas que já estavam lá no tempo em que se usavam
plumas de galo no chapéus. No tempo da mãe, possivelmente. Deu, por u momento,
atenção a Nelson e mandou servir vinho fino.
— Não bebo. — Ele parecia envergonhado a dizer isto, lembrando-se das
tremendas bebedeiras do pai, que entrava em casa como um touro e partia a loiça
toda. Mabília fazia-lhe frente.
Grande e delgada, o lenço atado nos queixos, as mãos compridas e muito
sardentas, ela parecia Ifigénia que escapasse a ser sacrificada e envelhecesse num
anonimato desprezível. — A tua mãe ainda é viva?
Emendou, balbuciando, aquele tu que o remetia ao passado subalterno e que
era sobretudo direito de Cardeano à sua mesnada de trabalhadores da vinha e de
hortelões. Nelson pertencera ao número dos faz-tudo, que se chegam só aos ofícios
limpos e acabam por andar "de costas direitas" a servir moças com quem contratam
amores avulsos e riscos de prenhez. A mãe de Nelson tinha morrido. Ema não se deu
por entendida, porque a morte é uma vocação prioritária e é melhor não intervir
demasiado. Sentiu de súbito a respiração quente do homem no seu ombro e,
maquinalmente, levantou a gola, como se de frio se tratasse. Ele afastou-se
rapidamente; e veio, acima da sua nostálgica referência ao sentimento já perdido,
uma ira vagabunda que Ema conhecia. Os homens sempre a saudavam como com um
grito de guerra, uma vez dissipado o pacto do desejo. A ela agradou-lhe ser
reconhecida como inimiga.
— Não se vá embora. Não voltamos mais a estar aqui, eu e você. —
Subitamente veio-lhe à memória uma frase teatral de dois crucificados,
companheiros de combate: "Lembras-te dos leões de Megara?". Não era próprio
dizê-la, mas ficou satisfeita por lhe ter ocorrido. Nelson curvou-se para lhe agradecer.
Não sabia o quê, mas era sempre elegante agradecer, como um actor, mesmo diante
da plateia vazia. Olhou para Ema e achou-a bela; incomodou-o aquela beleza que
deitava por terra tudo o que fizera e por que lutara: os casamentos com mulheres
bisonhas, as mobílias de quarto herdadas das famílias rurais, pesadonas como elas, de
pernas torcidas e decotes na carne vermelhusca; como se fossem de vinhático.
Porque se empenhara tanto em enriquecer, a ter um Mercedes branco e camisas de
seda? Antes pusesse a arte em amar Ema e arrancá-la ao tempo do Romesal, quando
era possível ainda levá-la nos braços, de noite, como faziam os belos raptores da
Paramount.
Porque não a fechava contra o peito e ficavam calados, ouvindo-se só o
delicado espirrar da água no tanque e o crepitar das folhas ao sol? Não; já não era o
belo rapaz que, pela janela da cozinha, espreitava, como um fauno de tenra idade e
chifres curtos. Era um velho, e humilhava-o o facto de ter um coração ainda cativo de
tanta beleza. Disse algumas palavras ocas, e saiu do Romesal para sempre.
— Pareceu-me mais pequeno — comentou Ema, em casa, ao jantar. Carlos riu-
se, como sempre fazia quando um rival entrava no túmulo, e ele ficava fora a fazer
pequenos bochechos de aguardente. O que Ema achava indecente.
Ritinha disse, com gestos rasgados, que achara Nelson baixinho. Riu-se com o
seu ar triunfal e que anunciava uma sabedoria de alcova, um grande breviário de
paixões e ritos. Ela conhecia os abortos mais precavidos, que deixavam nas mulheres
uma anorexia, um recurso ao imaginário da infância, protegida sob o jugo paterno
cuja moral repousava na importância do dinheiro e do rendimento. A filha rendia
enquanto era engendrada na sensibilidade doméstica, no espírito do casal que,
mesmo sem conjugalidade, representava uma ordem fundamental em que a
sociedade, mesmo com crises, se radica. Mas Ema não pertencera a esse número; era
já um exemplar desembaraçado da austeridade primitiva e que dedicava ao supérfluo
uma parte da fortuna; e que fazia do gosto um património. Ema não fora
propriamente educada; mas a súbita ilustração por intermédio dos grandes parvenus,
como Pedro Lumiares, deixava-lhe uma margem de abuso que se parecia à liberdade.
Lia muito, mas não lhe servia senão para se comparar a esses artistas que produziam
uma obra que tinha influência nos outros, deixando-os a eles próprios impassíveis.
Era isso que ela invejava acima de tudo: o dom da impassibilidade. Imitava-o, o que
lhe dava um encanto de inércia interior, como acontece com as mulheres projectadas
no ambiente à sua volta, sobretudo se esse ambiente é desafogado e até luxuoso. O
nome de "divinas", das vamps dos anos trinta, provinha dessa fragilidade que se
consuma na imitação.
Não seriam nada se não fosse a aprendizagem do gosto e o compromisso com
os arranjos que o revelam. Escolher um vestido, retocar o rosto já por si encantador,
ocupa a essência da mulher e conjuga-se com o puritanismo da grande cortesã que se
deixa reconhecer na cama mas que se isola no universo, porventura um universo
onde o desejo não consta.
Pedro Lumiares, em certas horas crepusculares quando contemplava Ema meio
deitada no sofá, uma perna dobrada e o pé da outra no ar, como um pequeno animal
que saltasse, sentia-se mergulhar no coração de uma vida fugaz mas genuína, em que
os desejos não se conduziam como tal. Não tinham tempo de nascer; a Beleza punha-
os à distância. Por isso, quando Carlos Paiva insinuava que Ema era frígida e até um
tanto andrógina (eram confissões destas, no auge da humilhação, que ele se permitia
ter com Maria Semblano), as pessoas acreditavam. A perfeição de Ema parecia tão
irreal como devia ser, e constatavam, com desprezo mal disfarçado, os esforços dela
para provar a sua feminilidade.
Mas o papel de mulher de casa não era o seu forte, nem ela parecia interessada
em representá-lo. No entanto, em certos momentos, quando Carlos era mais novo e
trazia convidados, Ema preparava uma noite deliciosa, sendo ela o centro da mesa,
com o seu lindo colo em que as pérolas rolavam; e as mãos brincavam com o talher,
parecendo acariciar uma ideia assustadora e, no entanto, carregada de esplêndida
passividade; como a própria faca de vermeil, a faca de manteiga, punhalzinho rombo
com uma doçura na lâmina sem fio. Um centro de mesa para romãs, fruta que não era
sujeita a podridão, que não se corrompia para lá da casca dura, cada vez mais curtida,
dura e bronzeada.
As conversas dos homens eram cultas e sentimentais; Ema aproximava-se da
janela com um copo na mão, segurando o cotovelo com a outra mão livre, como via
fazer às estrelas de cinema, esguias, como lampreias, nos seus vestidos de cetim.
E essa imitação lisonjeava os convivas; não sendo uma traição às suas
expectativas, na verdade pouco inventivas e originais, Ema agradava-lhes.
Todavia, era para a criada, Branca, que os desejos deles se dirigiam. Seguiam-
na com os olhos, apreciavam-lhe o cabelo crespo na nuca, os olhos longos, de um
azul de safira. Entreolhavam-se rapidamente entre eles, tendo a vaga percepção de
que estavam a colaborar numa orgia, trocando sinal de comparência nalgum lugar
propício onde pudessem fornicar com Branca.
Quando saíam, já não se lembravam disso. E recebiam nos ombros os
sobretudos trazidos pela solícita camareira, regateando mentalmente a gorjeta e
dizendo para si que isso não se usava mais. Ela, humildemente, ficava à porta, até
que os via entrar nos carros e, com o cigarro mordido ao canto da boca torcida,
procurar a chave da ignição. Ema disse:
— Não era eu que entrava naquela geladeira.
— Mas tem aquecimento, ou não tem? — Branca recolhia os guardanapos,
calculando quantos tinham ficado intactos e lhe poupavam o trabalho de os lavar.
Estava morta de sono, e ainda tinha forças para se orgulhar dos amos, que recebiam;
um mundo de novas emoções era nela uma alvorada que deixava para saborear no
outro dia.
Agora já não davam jantares. Nem Ema, nem ninguém. Muita gente
abandonara as casas, a vida tornara-se insustentável, a comida e o trabalho doméstico
encareciam muito. Já não havia férias e vindimas e pedantes reuniões nas quintas,
que eram propriedade de multinacionais. Ou, então, gozavam do regime de
fundações culturais, ou simplesmente se integravam no turismo de habitação. Mesmo
o Vesúvio estava em riscos de ir parar a esse tipo de negociações, e o mordomo
Caires propusera fazer dele um complexo de lazeres com pesca desportiva e jogos
náuticos. Não sabia nada dessas empresas, mas tinha algum dinheiro de parte e
atingira as três fases do tédio que é roubar sem perigo, comer sem fome e envelhecer
sem experiência.
À parte o desejo por Ema, que tomara foros de obsessão à medida que já não
lhe parecia uma desgraça, mas uma distracção, o mordomo Caires não tinha coragem
senão para explorar os outros. O duro feitio de chefe de pessoal, que alternava com o
do feitor e o administrador (cujo modelo fora o último marido da Senhora), mudara-
se numa instrumentalização do poder — as suas economias. Ema ficou siderada
quando Caires lhe disse de quanto dispunha. Naturalmente, ele mentiu-lhe.
Impressionar a mulher, e sobretudo uma mulher como Ema, admitia princípios de
conjunto, como o da pirataria. O resto era a diferença entre o flibusteiro e o corsário.
Se ficou surpreendida, isso não durou muito. Ema não era de molde a deixar
que se lhe impusessem pelo dinheiro. Embora não negasse a importância das honras
e a da fortuna, tinha a moderar-lhe o entusiasmo uma raiva em simultâneo com a
leviandade do mal-amado.
O mordomo Caires, meio separado da mulher, que vivia em Carlão com as tias
feiticeiras interpretando os desenhos rupestres da área para benefício das suas artes, o
mordomo Caires, dizia, já não tinha pachorra para a moral cristã nem para nenhuma
outra. Andava pela casa a renovar o isco para os ratos e desenvolvia o seu lado
mesquinho e falacioso. Às vezes telefonava a Ema para lhe dizer que Osório a
esperava; dissimulava a voz atrás de uma baeta, o que encurralava Ema entre não
acreditar e julgar-se vítima dalgum maníaco. Tinha uns repentes de pânico se o ouvia
abrir portas, o que ele fazia com uma cautela que parecia estar a desarmadilhar uma
bomba. Mas era inofensivo e não sabia como acabar aquilo que começara sem aval e
sem lei — a própria vida.
Depois de muito tempo, ainda tinha ciúmes de Fortunato. Mas tratava-o com
esmeradas atenções, como se cuidasse assim comprar-lhe a fidelidade. O mesmo
acontecia com Carlos Paiva. O mordomo Caires tinha-lhe afecto profundo, fiado em
que se uniam assim contra os corrosivos impulsos de Ema e os amantes de que eles
faziam multidão sem ordem de idade e até de sexo.
Porque Carlos tanto se via ameaçado pelo desejo das mulheres como dos
homens; e achava neles instintos de moscas carniceiras, capazes de fazer de Ema
pasto de imundos apetites. Carlos ligava-se ansiosamente a todos, pedindo-lhes
socorro para não serem cúmplices de Ema na traição que ela preparava. Porque, para
ele, Ema não pensava senão em desviar os homens, casados e solteiros, do bom
caminho; e eles eram, em última análise, vítimas da sua sedução, e bons rapazes que
ela ia esquecendo, substituindo-os com um infantil satanismo.
É claro que Ema não correspondia a esse retrato, e as suas aspirações sexuais
eram muito mais modestas. Fartara-se do seu inferno que era ser matéria deliciosa e
privada de alma; e dedicara-se a fazer operações na Bolsa, com algum êxito e
algumas decepções. Ela sabia que nunca conseguiria chegar à felicidade vulgar e que
qualquer outra lhe era interdita porque não tinha suficiente desejo para a obter. Os
seus vícios tinham-se posto de acordo, não para a perder, mas para desacreditar as
virtudes. Era tão rica de improvisos, réplicas, saídas espirituosas e cortantes que, se
tivessem um objectivo destruidor, o mundo ficava à mercê desse pandemónio amoral.
Mas não passava de fogo de artifício, explodindo em luzes sem importância.
O que melhor a definia era uma gelada lógica que negava os fins e os
princípios da raça humana. A tentação esbarrava aí, com algo de cruel, contraído na
prática duma forma de ascese inveterada. A faculdade de sentir estava muito além da
sua vida orgânica. Sentir, como percepção intelectual e não como apetite das coisas.
Dirão os leitores que uma mulher como Ema não existe.Eu direi que sim. A
mulher, aos cinco anos, percebe o que há de exasperante e triste na vida, em todos os
detalhes. E Ema, especialmente avisada ao ver pelo ralo do confessionário a mãe
defunta, foi para sempre, e plenamente, impregnada de uma amargura horrível. Como
alguém que sabia estar cumulada de riquezas e as vê perdidas. Nada mais ama;
deseja apenas, mas é tudo parte da memória e não factor da concupiscência.
Em cima, o oratório, que parecia à criança de seis anos mal cumpridos um um
salão dourado cheio de fadas e amores de asas, como as das aves. Tudo brilhava e
despedia fulgores, o presépio era forrado de brocado e as suas pobres palhas
escondidas. Tudo podia de repente ter vida; o menino mexia-se com doce pestanejar
e as mãozinhas agitavam-se para uma carícia.
Mas, diante dessa cena deslumbradora, abaixo do degrau do oratório, estava o
caixão de Ema, a mãe. Ela vestia a roupa do casamento, e um véu cobria-a até aos
pés. As velas ardiam em volta, e um lenço de cambraia atava-lhe o queixo para que a
boca se não abrisse. Ema olhava pelo ralo do confessionário e não perdia um só
pormenor. O oratório estava fechado e parecia só um móvel que contivesse copos e
garrafas e latas de bolachas já bichadas. Só o caixão, que lhe pareceu vermelho, feito
de laca vermelha, constituía uma afirmação sublime, pela sua forma capaz de sugerir
a ressurreição. A mãe podia erguer-se e olhar para todos com agradável rosto.
Dizendo: "Não vamos brincar mais, são horas de ceia". Estendia ao marido a mão e
ele ajudava-a a sair do esquife. As mulheres, tia Augusta primeiro, apagavam as
velas, apertando nos dedos o morrão. Ema ia colher as lágrimas de cera ainda
líquidas e esperava que arrefecessem para ver as formas que tomavam, lindas formas
crispadas, lindas surpresas.
— Esta menina está fria como água — disse a cozinheira, que se aproximou.
Aqueceu-a com cobertores, levou-a para o lume e deu-lhe sopa bem quente. Tinha os
olhos rasos. — A mãe foi para o céu — disse ela. Ema achou que era impossível. E
que, como isso, tudo era impossível. O amor também.
— Bem, o meu livro está pronto. Chama-se Contos da Caverneira. Que acha?
Carlos não pôde ignorar a servidão que Maria lhe impusera com a riqueza que,
afinal, partilhava escassamente. Mas o fascínio do poder mantinha em reservada
aliança os que se aproximavam por adulação e temor; os sinais imperceptíveis da
cumplicidade estavam em tudo que ela tocava.
A fortuna era uma espécie de magistrado que, sem pretender punir, descobre na
alma dos outros o merecimento da punição. Porque a aturava com fidelidade
inalterável, há tantos anos? É certo que a Revolução dera à moral burguesa, que
Maria perfilhava, uma sacudidela muito forte. Mas seria mesmo uma moral o que
Maria tinha como regra de vida? Ela recusava aos outros o direito de castigar ou de
premiar; assim fizera com o marido, mantendo-o na sua casa de prazeres ao fundo do
jardim e obrigando-o a usar da sua autorização para gozar com as mulheres que,
também ela, lhe escolhia. Não as "do muro da estação", mas moças limpas e, de certo
modo, bem comportadas. "Ajuizadas", porque se entregavam a uma vida que era
muito diferente da vida desregrada. Casavam com pequenos funcionários e só muito
raramente "davam em droga". Maria Semblano orgulhava-se disso. A Revolução
abalara os princípios da culpa e da honra como compromisso social. Os jovens
empresários, não sem a indignação pomposa dos filhos-família, impunham agora
uma atitude mais franca, visando o triunfo a todo o custo. Era uma espécie de
Renascença com a carreira aberta aos Médicis de todos os pontos da terra. A
linguagem fez-se solta e impertinente; não por desprezo para com o tom bem-
educado, mas por um gosto novo de actividade sensual; a boa hipocrisia de
antigamente ficava confusa e não sabia como se manifestar. Em geral, era a
comunicação social quem tomava o partido da moral e dos seus conformismos. Os
escândalos financeiros ganhavam foros de perseguição contra o "olhar de cima" da
nova geração. O mundo mudava. O que Ema não suportava em Carlos Paiva era o
seu romantismo balofo que encobria a saudade do grande século, o século dezanove.
Se pudesse sair à rua de cartola e luvas brancas, ele sentir-se-ia de certa maneira bem
sucedido. Ele queria as mulheres tímidas, contrafeitas nos seus saltos altos, absurdas
na sua beleza exposta. Aplaudia vivamente os concursos das Misses e o imobilismo
que a moda assegura. Ema era-lhe antipática, ainda que a amasse.
Por isso, o casamento estava cheio de pequenas perfídias e má-fé sexual que
minava a consistência das relações. Ema queria ir buscar fora de casa uma forma de
constância que o casamento lhe proibia na sua forma perniciosa de cautério das
paixões.
— Tu queres viver uma paixão grandiosa e ninguém está interessado — disse-
lhe Lumiares, que fazia gala de a lastimar. No seu entender, Ema era uma pessoa
comum em busca de situações incomuns; o que podia produzir uma bela tragédia, se
as tragédias se destacassem das notícias dos jornais entre a informação desportiva e o
dia da Árvore. Uma tragédia, como a que acontecera em Vale Abraão havia vinte
anos, quando Ema fora para lá, não ocupava senão duas colunas, com fotografia, e
depois o espaço de um anúncio para gestor de empresas, e, a seguir, nada.
Ema lembrava-se da matança de uma família inteira, por um dos filhos que se
dizia rapaz sossegado e de bom costumes. Ele pensava casar e já comprara uma cama
e um guarda-loiça, num dos armazéns de mobílias que se abriam à alegria castelã do
emigrante, capaz de uma euforia que se localiza como uma angústia respiratória,
entre o hiato e a boca do estômago. Ema viu-o, uma vez que voltava do dentista e
parou na estrada para cuspir um pouco de sangue. Era um moço sólido, de olhos
amendoados e rosto achinesado. Parecia um basco, de pura linhagem. Ela sorriu,
depois de enxugar a boca com o lenço, um lenço vermelho, dos que se usam para
limpar o excesso de bâton. Nunca mais o viu nem sabia quem ele era. Ficou muito
impressionada quando leu no jornal a história do crime e o reconheceu pela
fotografia.
— Arrepiei-me toda — disse, a Lumiares. Na realidade sentia uma espécie de
orgulho em ter cruzado com o assassino. Ele só poupara uma irmã mais nova; o resto
fora abatido como ovelhas, com uma machada ou uma foice de podar. Toda a gente
se assustou, e não se entregaram a muitos comentários. — Porque fez aquilo, até sei
porquê — disse ela, maquinalmente.
— A vontade de manchar a casa paterna está em nós todos. É um desejo
colossal de carregar com uma culpa que nos rói desde criança. — Pedro Lumiares
estava a levantar o seu passado com uma arte um tanto irónica. Não queria inquietar
Ema. A mulher, como cúmplice de Satanás, assusta-se facilmente. Senão, é ver como
Asmodeu e Lúcifer se comportam, usando de artifícios, normalmente artifícios
sexuais.
— Eu é que sei — disse Ema.
— O quê?
— O aborrecimento. É como se notássemos um defeito; como se fôssemos
uma porcelana com defeito, com um espaço em branco no lugar onde devia estar um
filete contínuo, de ouro. Não podemos ir à mesa do rei. Por pouco, mas não podemos.
— Isso é razão? — Ele calou-se, e disse depois: — Porque não? Ultimamente,
Ema estava a parecer-lhe estranha, e ele não admitia que ela tivesse consciência de
uma moral desprovida de filosofia — a que ele professava.
— Sabes? Começo a pensar que a vida não é um mistério. É um aborrecimento
muito bem conservado, é o que é.
Lumiares sentiu-se perder o posto de marechal que ocupava junto da bela Ema.
Bela? Já não era, ou ele via-a com olhos mais perspicazes. Uma beleza que não se
pode utilizar perde o seu lado favorável. Se pudesse, ele acentuava-lhe as rugas e os
traços mais banais do seu rosto; revelava-lhe melhor o aspecto anti-social.
— Sabes que tens um pescoço magro demais? Não és nenhuma Nefertiti.
Nem Nefertiti era nenhuma Nefertiti. Aquilo era um molde de artista. O que é
acentuado é o supérfluo, a realeza. Não é um retrato, muito longe disso. É um
enigma. Por isso parece tão belo.
Ema estava a ficar inteligente, e isso era uma beleza sobreposta àquela outra
que fazia mergulhar as pessoas no seio da culpa; de facto, anulando o desejo. Mas a
inteligência era ainda mais cruel, porque nem mesmo era objecto de contemplação;
era uma sobrevivência imparcial, e como tal não tem família, nem parceiros, nem
amigos.
Lumiares contava a impressão que lhe fizera a visita às grutas de Altamira. Era
como mergulhar no tempo inalterável em que a imitação reina. A inteligência é a fase
superior da imitação. Que aleijões viviam ali, não podendo acompanhar os homens às
caçadas, submersos numa escuridão que de repente se dissipava com a volta dos
guerreiros ou dos predadores? Acendiam-se grandes fogos, e eles traziam para a
mesa dos banquetes os animais sacrificados, que tinham ainda o movimento da
corrida nas patas delgadas; a inteligência recebia a informação da natureza, e
imitava-a. As paredes eram cobertas de figuras que pareciam vivas. Os homens
tomavam as azagaias para não serem surpreendidos, e espantavam-se porque o
bisonte continuava parado, na sua ruminante imobilidade, e não galopava pela
pradaria fora, ao ser atingido. A inteligência, às vezes alojada em corpos enfermiços,
a quem se lançavam restos que os cães não invejavam, voltava à escuridão da
caverna quando os homens partiam outra vez. No escuro, ela distinguia a forma das
coisas, o vento que faz ondular a erva alta, o perfil dos homens que se levantam e
correm brandindo as armas. A imitação disciplinava o tédio, o artista era tão
consumado como um Miguel Ângelo disforme e, por isso, preciosamente solitário.
Que faltava a Ema para se lhes comparar? O grau suficiente de imitação que
faz da pessoa um artista e não um portador de máscaras. A máscara é a baixa
ambição do imitador. Lumiares surpreendia em Ema aqueles trejeitos que iam ser a
causa das suas rugas; aqueles gestos extravagantes que simulam paixões verdadeiras.
Era um manequim dos seus próprios prazeres; só que ela sabia-se incapaz da
imitação sublime que é amar.
Lumiares dizia que Ema lhe parecia um homem que valesse todas as mulheres.
Isto explicava o seu gosto ambíguo em tê-la como amiga; ela não o obrigava a trair a
realeza viril, o que acontece quando os homens são reduzidos pela reputação da
feminilidade. Não pelas mulheres, mas pela reputação que os homens transmitem
entre eles a tal respeito.
Ema foi levada a um contrato estranho com uma gente que, de repente, se
tornou indispensável para ela. Não se tratava de amizade. As pessoas bizarras
exerciam nela uma atracção especial. Mulheres mantidas, homossexuais, narcisos
vagos que se entregavam à mistificação, entre a indolência e a glória! Ela era
benvinda pela sua beleza, algo de improdutivo, que a beleza descobre e que não
alinha com as responsabilidades fundamentais — a procriação ou o trabalho
integrado numa profissão. Embora Ema tivesse filhos, isso era-lhe descontado como
uma debilidade; e o marido, parte da sua história privada com direito aos erros da
juventude. Se não tivesse nascido de pais tão modestos, tão isolada das encruzilhadas
da aventura que compete a toda a excepção, Ema podia alcançar outra posição,
mesmo que fosse a título de vedeta sem ofício. Como uma Garbo, que não tinha
talento, mas recebera uma inteligência emprestada da qual nunca se separou; o
bastante para fazer a sua lenda, ao imitar o genuíno ou só a parte ligeira do génio que
é o voluntariado para a aristocracia. Garbo dizia: "Já fiz bastantes caretas." Isso
denunciava-a. Porque a imitação não são caretas, mas a afeição ao objecto imitado; o
amor, portanto. Mas ela não sentia amor, era demasiado limitada à sua imagem, e
com ela protegia a insignificância das paixões. E os homossexuais com quem vivia
não censuravam essa frigidez tumular, antes a douravam, como um fruto raro,
nascido entre duas estações, destinado a não ter mercado porque não era um fruto
comestível. Nos quadros de Jerónimo Bosch há essa atmosfera irreal, de uma beleza
feita de colagens e que não imita nada. É uma beleza em ruptura com o mundo,
ninguém dirá que é belo esse ciclo de disparates; mas tem algo de infinitamente
artístico, escarnecedor e ambíguo, como Ema e os seus amigos e a vida que ela podia
ter levado. Mas quê? Em Vale Abraão não havia nada que pudesse elevá-la e escusá-
la do sequestro em que todos andavam; uns com êxito, outros com fracasso, mas
sequestrados numa pequena e facinorosa obra humana, mesmo quando se chamava
obra social.
Maria Semblano, por exemplo: viúva temente a Deus, servia-se desse
parentesco para as suas ousadias literárias, acreditando que eram travessuras leves e
até recomendáveis perante a sociedade nova que estava a crescer como couve galega
num quintal, sem proporção nenhuma, excepto se o gigantismo for tomado como
uma proporção. Maria Semblano era ainda um preconceito tirânico com os seus
Contos da Caverneira, bem escritos, e cujo estilo todos admiravam. Mas admiravam
acima de tudo aquele sabor de despotismo que tão bem fazia ranger as articulações
linfáticas e que as deixava parecidas às articulações de um jogador bem treinado e
capaz de ganhar um campeonato. Tudo se passava na imaginação e ninguém ficava
mais apto, ao ser anestesiado com os Contos da Caverneira. O estilo era o símbolo da
tirania; a qualidade era o seu ferro a ser aplicado na carne fraca.
Ema entrou em deambulação pelos círculos da cultura sem, no entanto, ter que
cumprir um programa. Servia apenas para distrair as melancolias dos artistas pouco
susceptíveis a qualquer distracção. Convidavam-na, porque a bela mediocridade
poupa o coração para coisas mais disformes, como as coisas do génio.
Também entre os artistas Ema não encontrou o acolhimento que esperava. Não
lhe ofereceram paixões, como as que retratavam nas suas obras; também não lhe
reconheceram nenhuma fascinação. Ema continuava a dizer que, se iam a casa dela,
era para namorar-lhe a criada.
— São uns indecentes e deitam-me a cinza no leite-creme — dizia. Encontrava
furos de cigarros nas toalhas de mesa, e até lhe faltaram alguns talheres de prata. —
São selvagens, ou quê?
— Mas, querida Ema, não te exponhas a essas coisas. Deus sabe quanto lhes
custa não serem vadios a tempo inteiro. Deixa-os lá! É muito difícil entrar numa
ordem qualquer, comer a horas e produzir um trabalho chamado digno — falava
Lumiares.
— Bem — dizia ela. — Sou eu que não percebo nada. Mas acho que são uma
data de exploradores. Não sei o que querem de mim, que não sou rica, nem famosa.
— Tu divertes essa gente. — Esteve para dizer "divertes-me a mim", mas
deteve-se a tempo. Uma mulher julga-se sempre excluída dessa área de
entendimento, talvez o único sem hipocrisia. Ninguém ainda se informara sobre o
riso com absoluta competência, mas ele continha um forte ascendente sobre as
paixões. A mulher só era tão constante factor de riso porque isso era equiparado a um
exorcismo e dificultava que a perturbação se produzisse; a perturbação erótica que
chama a ira como sua última aliada. O riso incentiva a praxe das relações, que é, em
geral, abusiva e cruel. Ele foi instaurado como mediador de uma situação funesta,
dado o seu conteúdo miraculoso. O que não comove nem desperta o riso corre o risco
de se tornar agressivo. Ele não é admitido na área sacerdotal ou política senão
quando existe uma combinação de cultura que faz do poder um instrumento e não um
acidente vitorioso. O riso é uma protecção que visa aproveitar a discórdia para
localizar as probabilidades, tanto de acordo como de ajuste de contas. Os homens que
não riem confiam na ruína e dão-lhe nomes irrecusáveis.
Calígula começou por ser uma promessa risonha, e de repente deve ter notado
que o seu lado lúdico ia perdê-lo ou, pelo menos, tirar-lhe o trono. O tirano
manifestou-se quando o imitador se escondeu atrás do palco. Se Calígula se admirava
de amar tanto a mulher dele, era porque ele tinha uma boa influência sobre a sua
inteligência taciturna. Talvez fosse uma dançarina, de alguma trupe de judeus de
Filadélfia, desses a quem o apóstolo dizia que não eram quentes nem frios, e nós
acrescentaremos que eram risonhos.
Quanto a Ema, não era de risos, mas de chufas. Bastava estar um pouco
aquecida pelo vapor do vinho, que o espírito dela acendia-se e provocava um alarido
de troças e confusões.
A escola dela fora a mocidade no Romesal, com muitas criadas e gente de
lavoura, que são espadachins da palavra quando encostam, depois do trabalho. Ema
era do tempo ainda em que os cardenhos das mulheres, junto à porta da cozinha, se
enchiam de femeaço, umas velhas, outras novas, mas todas agudas em tirar partido
do riso. Era isso que as sustentava na pobreza imerecida. Todas tinham sonhado com
patrões rafeiros das paixões, que as recebessem na cama e as tirassem daquela
miséria toucada de resignação falsa. Eram orgulhosas, e o riso alimentava-lhes a
cólera e até a esperança; porque, mesmo à beira da morte, ainda sonhavam com
electro-domésticos e jogos de Totobola. O céu dos jogadores não é o ganho; é o
opulento milagre de ver a Deus num número de sorte. Pois o que é a sorte senão
misericórdia em chuva de oiro, como Zeus destinou à sua panasca Danae?
Ema não era de risos, mas não os repelia nem excomungava. Andava
ultimamente com gente galhofeira, mascarada de tribo desaparecida. Um dia, foi para
Marrocos levando o filho, e Carlos teve um desgosto, à moda metropolitana, dando
satisfações a Maria Semblano das suas avarias familiares. Ainda se lembrava do
tempo austero dos avós Paivas, em que um rapaz da casa engravidava uma solteira, e
os vizinhos foram dar condolências, usando meias palavras e começando por falar do
tempo. Falava-se do tempo durante um bom quarto de hora, e só depois vinha o
assunto em regra e a hóstia santa da conversação para entendidos: o negócio, o
contrato, o pedido de casamento. Ema, em Marrocos, era caso para pêsames. Maria
Semblano levou a peito aquela desfeita cometida contra o seu leitor e nomeou-o seu
testamenteiro. Passou-lhe pela cabeça uma ideia aguçada como um punhal; não o
punhal que lhe servia de abridor de livros e da correspondência, que era rombo e
meio desarticulado do cabo, mas uma fina adaga de aço azulado pronta a rasgar a
garganta de um ladrão pela mão da Morgiana que todos conhecem.
Carlos não ficou nem mais rico nem mais pobre, com a nomeação devida à
patroa; mas esta pensou, entre a cólera que é gerada pelo afecto que se não interroga
para não ter que se negar, que género de marido ele era afinal.
"Ter cornos é como ter sarampo; não acontece duas vezes". Pensou que ele
seria um homem regenerado do casamento, que lhe dera tantas amarguras e que o
tornara paciente com as mulheres. Porque sofrer pelo que se ama torna as pessoas
vulgares e atrofiadas; o orgulho perde-se e a alma também. Ema achava-o cada vez
mais sonso. Ultimamente, ia à missa e ajudava na colecta. Ela voltara do Norte de
África muito perspicaz em delitos sexuais; vestia-se de homem e dera nas vistas pelo
bom parecer e a graça ambígua. Vale Abraão mudara radicalmente. Havia tentativas
para manter as propriedades na mão privada, mas a ruína ameaçava as melhores; e a
pequena lavoura afundava-se com aquela insensata fantasia de se morrer patrão de si
mesmo. Até o grande império da Senhora sofria transformações, e a sociedade
familiar, que ela deixara acautelada de falência e má gestão, abria brechas insanáveis.
O mordomo Caires era um dos candidatos às vinhas que iam sendo vendidas quando
não emparcelavam com o território mais fácil de adaptar aos novos métodos de
cultivo. Era muito ilusório ter lucro da terra, mas havia ainda quem sonhasse esse
prazer de pisar terra própria e colher fruto da árvore. Em Vale Abraão, levantavam-se
os cardenhos que destemperavam a paisagem e lhe davam um aspecto de cenário
improvisado. Casas como as Jacas ficavam ainda assentes no seu chão arroteado,
cercadas por bardos pesarosos, sem viva alma por perto.
A capital recolhia os antigos senhores que apertavam o cinto e usavam uma
casaca com trinta anos nos casamentos das netas. Tinham medo de fazer um fato
novo, que custava tanto como um carro de pequena cilindrada no seu tempo. Não
reconheciam que estavam pobres, mas sim que tudo estava diferente. Despontavam
os empresários agressivos, como pugilistas num ringue de treinos, saltando de um pé
ao outro e ensaiando murros demolidores. Em vez de se chamarem Silva e Ferreira,
podiam usar os nomes de Tigres da concorrência e Leões do mercado.
Para essa gente, que Osório desprezava sem contudo os ignorar, Ema Paiva
não era mais a fantástica imagem de um erotismo quase só temerário e não
consumado. Ela, que constava ter tido intervenção nalguns pré-avisos da revolução e
que passara para o estrangeiro artigos para os jornais na sua bolsa de crocodilo, era
agora um objecto de museu. Preferiam as mulheres contratadas para um fim de
semana, pagas e seleccionadas por computador e que não interferiam nem nos
negócios, nem na família. Ema sentia que o vazio se ampliava à sua volta. O marido
passava a maior parte do tempo na Caverneira, a corrigir os contos de Maria
Semblano e a medir-lhe a tensão. O filho estava alto e desenvolvido; era bonito e
cauteloso com aquela mãe que não sabia como apresentar. Em geral, as outras eram
professoras ou executivas de empresas, médicas em grande número. Vestiam roupas
de tricot e tinham um colar de pérolas com fecho de esmeralda. Mas Ema, sem
reparar, ficara fora de moda com os seus gestos sacudidos e o ar de manequim
antiquado. Fora extraordinária, mas agora parecia dessas bonecas que acabam os seus
dias numa montra de província, os braços seguros com adesivos debaixo do vestido
estranhamente curto e de uma sensualidade caricata. Ema era um caso arrumado.
Carlos percebia, com alguma angústia (porque a velhice vinha a caminho com esses
pensamentos saudosos), que a bela Ema já não o incomodava. Em breve, os homens
não iam mais reparar nela nem desejar-lhe a companhia. Só os seus amigos marginais
lhe dedicavam algo que não era uma fidelidade, mas que se parecia com isso. Como
os desejos não eram motivo de nenhuma rapacidade, Ema não os estorvava e até a
tomavam como cúmplice. Ela sentia-se um pouco degradada da sua natureza de
mulher, mas era melhor do que nada ter amigos desses. Todavia, notava no olhar de
Carlos, às vezes, uma parcela de ironia porque era inútil tomar-se pelo que fora: um
perigo.
Ema não era mais perigosa. Nunca o fora; tinha limitações de toda a ordem,
era tímida, ainda que insolente.
Não perdera nunca o respeito pela castidade, e o oratório do Romesal
comandava até as suas ilusões. Aquela dourada corte de santos e santas, os palmitos,
as flores, as luzes, que recriara no baile, quando entrara pelo braço de Carlos,
procurando não tropeçar no vestido cor-de-açafrão, tudo isso era e fora o seu
doutoramento em artes marciais do amor. Quando estava deprimida e não pintava o
cabelo, quando a cantoria da criada a exasperava e o ruído do aspirador acabava com
o resto das suas forças, voltava o pensamento para o Romesal. Mas não via senão
uma casa insignificante e, nela, um movimento convulso de cadáveres. O pai
Cardeano a dar ordens com voz zangada (nunca falava normalmente, mas com um
tom ameaçador) e a bulha do galinheiro debaixo das janelas, ou o crepitar das
ramadas onde os pardais roçavam as asas em voo disparado. Não valia a pena
entusiasmar-se com o passado; Ele era tão medíocre como o presente. Marina casara
com um homem muito novo que tinha cadastro e que lhe pôs nos braços o filho de
outra mulher. Ela empenhou-se naquele passo miserável como se redimisse uma
culpa com ele.
— Porque és tão tola, Marina? O que te leva a aceitar uma coisa dessas? —
perguntou-lhe Ema. E Marina disse:
— É o meu destino.
Assim diziam as putas. Ema sentiu que as palmas das mãos suavam; era medo
pelo inevitável. Era medo e uma singular sensação de estar só no meio de um
turbilhão de factos que não condiziam uns com os outros e não tinham efeito no
silêncio do cosmos. Então, tudo era inútil: amor, compaixão, civilidade e
cumprimento do bem e do mal. Ema disse:
— O destino, sua burra, é a tabela dos heróis. Bem me parecia a mim que tens
muito de heroína.
Aquilo não soou bem a Marina, para quem heroína era mulher do fado. Como
as pessoas, mais dia menos dia, se desentendem, ela achou que devia achar pretexto
para isso. Nunca mais voltou a Vale Abraão e sentiu-se justificada da sua ingratidão.
Ema sempre a tivera ligada a ela pelo sentimento de partilharem uma história
comum. Deu por finda a história, e o sentimento evaporou-se.
CAPÍTULO X
UM RIO CHAMA OUTRO RIO
FIM