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Apoio: FAPEMIG
Belo Horizonte
FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2015
Sandra Regina de Sousa
Apoio: FAPEMIG
Belo Horizonte
FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
CDU 248
DEDICATÓRIA
Peregrino
“Quando teu navio ancorado muito tempo no porto te
deixar a impressão enganosa de ser uma casa; quando
teu navio começar a criar raízes na estagnação do cais,
faze-te ao largo. É preciso salvar a qualquer preço a
alma viajadora de teu barco e tua alma de peregrino”.
(Dom Hélder Câmara)
À Trindade Santa que me fez conhecer seus caminhos e a grandeza que há em uma vida entregue
ao amor e ao serviço.
Aos meus pais, amigos fiéis nesta jornada.
Aos familiares que torceram por mim e rezaram.
Aos amigos e amigas pelas orações, escuta, cuidado, carinho e gratuidade.
Ao Prof. Ulpiano, meu orientador, que me permitiu ser conduzida pelo Espírito.
À faculdade Jesuíta que me deu as bases teológicas para a reflexão.
Ao Prof. Manuel Hurtado, pela colaboração.
Ao Pe. João Batista Libanio (in memoriam), pela clareza de pensamento e ensinamentos
profundos.
Aos colegas de mestrado que, vivendo a mesma batalha, foram portadores de força e incentivo
para prosseguir. Em especial Fabrício Veliq, Rodrigo Ladeira e Luciana Gangussu.
À Zita, Vanda, Aldair, Jordan, Adriano, Viviane, funcionários da biblioteca, extensão da minha
casa que, com carinho e alegria colaboraram muito neste processo.
Ao Prof. Geraldo De More, coordenador da pós-graduação, pelos inúmeros desafios impostos
que me ajudaram a crescer na confiança.
Aos funcionários da faculdade que gentilmente me atenderam em várias solicitações. Em
especial Edna, Patrícia, Adriana, Andreia, Késia.
Ao Irmão Eudson que delicadamente me acolheu em situações difíceis.
À minha comunidade, Paróquia nossa Senhora da Boa Viagem, pela compreensão nos
momentos de afastamento.
Ao Pe. David que colaborou com este trabalho e ainda ouviu minhas queixas e secou minhas
lágrimas na orientação espiritual, e a Pe. Jackson que continua o processo de me orientar.
À Josina, pela amizade e o carinho nas correções do texto.
À FAPEMIG que financiou meus estudos.
Ao meu pai espiritual Inácio de Loyola, que com seus Exercícios Espirituais e testemunho de
vida provocou revoluções em minha história.
PREFÁCIO
Meu coração inquieto andou por muitos anos à procura de beber da fonte que me
saciasse a sede mais profunda de Amor. As palavras tão bem descritas no livro do Apocalipse:
“A quem tem sede eu darei gratuitamente da fonte de água viva” (Ap 21,6), queimavam minha
interioridade e me impeliam a buscar sem descanso esse dom. Cavei cisternas e bebi em vários
poços, mas nada matava a sede de desejar a água, com a avidez de quem está no deserto.
Prossegui a busca com coragem e esperança. Em meio a caminhos, descaminhos,
atalhos, encontrei os Exercícios Espirituais1, e através deles, a fonte que tanto desejei. Nela
saciei a sede várias vezes, mas sabe como é sede, sempre volta e, voltando, aumentava a
intensidade, me fazendo querer cada vez mais a água pura. Idas e vindas até descobrir que havia
iniciado um caminho na vida espiritual. Aos poucos fui percebendo a profundidade dessa
descoberta. Um facho de luz aqui a iluminar as trevas mais densas do meu ser; uma faísca acolá
a riscar o céu dos grandes medos; um raio na fresta da janela a acender o desejo de crescer no
autoconhecimento; um lampejo ao longe a descortinar o sentido da existência; um intenso
desejo de crescer na espiritualidade criando um vínculo de amizade com o Senhor.
E assim, aprendi com Inácio de Loyola a importância da oração cotidiana. Fechar a
porta do quarto, estar a sós com a Trindade e dialogar. Mergulhar em sua Palavra, me alimentar
dela, saborear, sentir o cheiro, contemplar, me deixar questionar em minhas atitudes e rumores,
infinitas misérias e inúmeras vontades. Comprometer-me em vivê-la no ordinário da vida com
seus assustadores desafios e incontáveis alegrias. Nela ouço a voz do Amor que me fala com
ternura e firmeza quem sou eu em minhas sombras e luzes, ensinando-me a escutar meus passos,
meu respirar, as emoções confusas, os temores escondidos, a ignorância sem compaixão, dons,
fracassos, ilusões, vocação, inseguranças, surdez, cegueiras, egoísmos, orgulho... tudo que
dentro dos meus limites, sob a luz divina, consigo perceber que é imprescindível remexer,
podar, transformar. “Aquilo que o Senhor do mundo opera nas almas racionais se destina ou a
nos dar mais glória ou a impedir de sermos piores, porque ele não encontra em nós matéria para
outra coisa” (CE 6).
1
Livro escrito por Santo Inácio de Loyola, fruto da sua experiência espiritual. Tornou-se um método que há cinco
séculos possibilita às pessoas no mundo inteiro percorrerem um caminho de encontro com Deus-Trino, na oração.
O capítulo 1, ponto 1.5 aprofundará o seu processo e suas marcas estão em todo este trabalho.
Nesse bonito encontro com Deus na oração, a inquieta fé lançou-me para águas
mais profundas (cf. Lc 5,4), e parti em direção ao outro. Visitei presidiários que choram suas
mágoas atrás das grades e idosos abandonados em asilos ou em leitos de hospitais; rezei com
prostitutas e travestis nas portas dos motéis, e me dei conta do quão triste é o submundo
depredado pelo preconceito; subi morros e entrei em barracos desnudos, mas plenos de
solidariedade e aconchego; sentei em meio fio e ouvi tristes histórias de dor e abandono;
acompanhei pessoas totalmente quebradas pela dependência química, e mães dilaceradas que
passaram pelo inferno de perder seus filhos para a cruel violência; presenciei os maus-tratos
sofridos por tantos seres humanos completamente sozinhos, esquecidos e humilhados.
Compreendi profundamente o grande sofrimento que há no mundo e suas
consequências na vida de tantos seres marcados a ferro e a fogo no fundo da alma. Descobri a
importância de escutar o outro por inteiro, olhando nos olhos, atenta aos gestos, palavras não
ditas, sorrisos inexpressivos, sussurros, lágrimas, silêncios. Entendi a expressão de Inácio “O
amor consiste mais em obras do que em palavras” (EE 230), e percebi que há nesse amor um
convite a sair de si em prol de uma entrega generosa e gratuita, tornando-se força provocativa,
capaz de causar grandes transformações, pois a fonte de onde brota é o próprio Deus.
Experimentei que cada um tem o que oferecer ao outro, independente da condição em que se
encontra ou da história que vive.
O tesouro chamado Exercícios Espirituais provocou revoluções no meu íntimo e a
“Contemplação para alcançar amor” (EE 230-237) me fez acordar para o valor da oração na
vida diária, pois nela, amar é resposta ao amor recebido e isso exige colocar os pés no chão da
realidade com os olhos atentos e o coração aceso, em cujo centro não cabe mais os frios desejos,
as atitudes vazias e os apegos infantis, mas sim, o sorriso sincero, o cuidado, a sensibilidade; a
entrega toda a Deus e ao próximo.
Também me fez olhar ao redor e perceber nas comunidades cristãs onde trabalho e
escuto as pessoas, quão grave é a crise vivida hoje na espiritualidade, em que uma boa parte
dos membros do Corpo de Cristo, por um lado não cultivam a vida interior – pela falta de tempo,
interesse ou prioridade –, privando-se de construir uma relação de amizade fecunda com o
Deus-Trino, que leve a uma verdadeira conversão nos pensamentos, palavras e ações. A vida
tem sido gasta na temporalidade dos dias em inúmeros compromissos que roubam o precioso
tempo do verdadeiro encontro; acúmulo de funções, títulos e feridas que anestesiam o serviço
alegre e despretensioso; doses imensas de preconceitos e fechamentos, que excluem, machucam
e levam os irmãos e irmãs a desacreditarem da vida fraterna.
Por outro lado, os que estão submersos numa oração intimista ou em certas práticas
devocionais, voltadas inteiramente para questões particulares, resultando num
desconhecimento total de si mesmos, pelo fato de não experimentarem na profundidade do ser
um encontro libertador com o Deus vivo, o que reflete em práticas descomprometidas com a
comunidade de fé e com o mundo que grita por mudanças, testemunhos autênticos, corações
ardentes e acolhedores.
Diante dessa realidade, nasceu em mim uma vontade imensa de estudar, refletir e
escrever sobre a experiência espiritual feita por Inácio e sua contribuição para a renovação da
espiritualidade na Igreja. A obra dele é a própria vida que experimenta as marcas profundas da
comunicação de Deus. Mas, por que essa história? Cinco séculos nos separam e podem causar
a impressão de que ele já está ultrapassado e não traz novidade alguma para a inconstante e
dispersa pós-modernidade, imersa em tantas outras buscas espirituais. Por que justo esse
homem que peregrinou obstinadamente à procura da vontade de Deus, não escreveu tratados
teológicos, nem doutrinas ou manuais?
Creio que as respostas estão dentro do meu coração, pois minha própria vida
assemelha-se à dele nessa dimensão de busca incansável por encontrar tal vontade. Inácio é um
homem comum e sua história é repleta de coisas às vezes insignificantes, assim como a de todos
nós. Seus limites, fraquezas e realismo nos colocam diante de uma realidade concreta, onde é
possível experimentar Deus interiormente no caos de uma vida formatada pela religiosidade
devocional, pela fé que não passa pelo conhecimento, pelo vilão do ativismo ou ainda pelas
vaidades, ostentações e soberbas que nos cercam no dia a dia.
Ele, marcado em suas dimensões mais profundas por Jesus Cristo, uniu oração e
práxis, deixando-se mover pelo Espírito que acendeu um fogo novo nos seus desejos, fazendo-
o passar pelo processo de conhecer-se a si mesmo, cultivar a interioridade, “ordenar a própria
vida [...] para buscar e encontrar a vontade divina” (EE 1. 21). Tal experiência ainda toca
corações, transforma vidas e está aberta a todos os seres humanos. Cada pessoa, a seu modo,
tem a chance de experimentar no mais íntimo a presença do Deus que é amor (cf 1Jo 4,16).
Construir com Ele uma relação de intimidade que provoque mudanças e dê frutos saborosos de
serviço aos irmãos, sem pretensões de alcançar visões místicas ou arroubos espirituais, mas
simplesmente relacionar-se, dar tempo para estar a sós, escutar, silenciar, aprender a caminhar
guiado por Suas mãos paternas. “Há uma passagem, um caminho, uma esperança de um
aproveitamento? Vamos adiante!” (CE 7).
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre a importância da oração como caminho de
transformação da práxis cristã. Para fundamentá-lo foi escolhida a trajetória de conversão feita
por Inácio de Loyola, que ao encontrar-se com Cristo, contempla a comunicação de Deus em
seu mistério de amor, vive profundas mudanças e descobre sua missão no mundo, deixando-se
conduzir pelo Espírito. À luz dessa experiência, propõe-se pensar sobre a necessidade de
redescobrir na Igreja, onde há uma distância entre oração e práxis, o caminho de integração
entre ambas, através do cultivo da interioridade, como condição de possibilidade de conhecer
internamente o amor do Deus vivo para mais amar e servir. A resposta de quem experimenta
esse amor é a entrega de si mesmo: Tomai, Senhor, e recebei, visto que o amor é comunicação
de ambas as partes e abre horizontes para encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas
em Deus. O fruto dessa oração é a escuta do chamado de Jesus Cristo dia a dia, para servir a
Igreja e o mundo, pois o amor consiste mais em obras do que em palavras, e é legitimado na
realidade cotidiana, onde tudo deve ser feito para a maior glória de Deus.
Palavras-chave: Experiência, Oração, Práxis, Inácio de Loyola, Fé, Amor, Serviço, Exercícios
Espirituais, Comunicação, Discernimento.
ABSTRACT
This work aims to reflect on the importance of prayer as a path of transformation of christian praxis. It is
based on the path of conversion undergone by Ignatius of Loyola, who meets Christ, contemplates the
communication of God in his mystery of love, experiences, deep changes and discovers his mission in the
world, allowing himself to be led by the Holy Spirit. In the light of this experience it is proposed to consider
the need to rediscover in the church, where there is a distance between prayer and praxis, the path of
integration between both, through the cultivation of one’s interior, as a condition of possibility of knowing
internally the love of the living God in order to love and serve. The answer of those who experience this
love is a surrendering of oneself: take, oh! Lord, and receive because love is communication of both sides
and opens horizons for finding god in all things and all things in God. The result of this prayer is listening
to the call of Jesus Christ, day to day, serving church and the world, because love consists more in works
than in words, and is legitimized in everyday reality, where everything should be done for God’s greater
glory.
Keywords: Experience, Prayer, Praxis, Ignatius of Loyola, Faith, Love, Service, Spiritual Exercises,
Communication, Discernment.
ABREVIATURAS
1.6 Conclusão: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as
coisas internamente” ............................................................................................................. 64
CAPÍTULO 2: CONTEMPLAÇÃO PARA ALCANÇAR AMOR ................................... 65
2.3 Conclusão: “Encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” ................ 94
2
Cf. Mt 11,27; 26,36; Lc 3,21-22; 5,15; 6,12-13; 9,28-29; 22,39-44; Jo 17.
3
Esta expressão dá nome a um livro do teológo Paul Tillich, que se tornou capelão voluntário na primeira guerra
mundial (1914) e viveu experiências profundas na dimensão da fé.
16
“A vida de oração é insubstituível”, pois ela busca o “fogo unificador de Deus em
meio à matéria dispersa [...] do mundo”4. Sua importância é vital para o crescimento da
espiritualidade. Precisa ser uma experiência que ultrapasse as fronteiras do estreito subjetivismo
e alcance as profundezas da interioridade, onde o “amor foi derramado por Deus em nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Necessita de tempo, despojamento,
entrega plena, escuta atenta para crescer no conhecimento interno de Jesus Cristo, que redime,
purifica, ilumina, descentrando o ser de si mesmo, conduzindo-o a uma práxis libertadora
consolidada na história humana.
Portanto, oração e práxis se entrelaçam e são a cor e o tom desta pesquisa, formando
o eixo central pelo qual passará toda a reflexão aqui proposta, a partir da experiência espiritual
de Inácio de Loyola. Ele que, afetado em sua essência mais pura pela vida de Cristo, contempla
Deus “em seu mistério de amor”5 – comunicando e criando comunicação. Percorre com lucidez
a estrada da conversão, vive mudanças profundas no seu íntimo em busca de descobrir sua
missão no mundo, deixando-se conduzir pelo Espírito para mais amar e servir (EE 233), num
aprendizado contínuo de ser contemplativo na ação6.
Essa profunda experiência de Deus o leva a uma reciprocidade que se dispõe a
realizar a vontade divina na livre entrega de si mesmo, despertando a consciência para assumir
o compromisso verdadeiro com a Igreja de Jesus Cristo, onde “descobriu uma maneira de ajudar
almas como a sua, que queriam tornar-se uma com o Senhor na oração e no trabalho”7, pois “o
amor consiste mais em obras do que em palavras”8 e “é comunicação de ambas as partes” (EE
230-231). “Tenhamos cuidado de manter nossos corações numa grande pureza de amor a Deus”
(CE 18).
As fontes inacianas aqui estudadas, têm como base o livro dos Exercícios
Espirituais, “que nem pode ser chamado de livro, mas é um manual prático, um caderno de
apontamentos. Não foi feito para ser lido, sim para orientar a prática do método”9. É o registro
da experiência de mudança radical vivida por Inácio no encontro com Deus.
4
BUELTA, Benjamín González. Orar em um mundo fragmentado. São Paulo: Loyola, 2007, p. 16.
5
BINGEMER, Maria Clara. Em tudo amar e servir, mística trinitária e práxis cristã em Santo Inácio de Loyola.
São Paulo: Loyola, 1990, p. 23.
6
Expressão usada por Pe. Nadal, companheiro de Inácio, ao referir-se à forma de viver desse grande homem, que
plenamente unido a Deus, alcança a liberdade interior e todas as suas ações direcionadas ao próximo são
encharcadas por esse Amor experimentado na interioridade.
7
BARRY, William; DOHERTY, Robert. Contemplativos em ação: o caminho jesuíta. São Paulo: Loyola, 2005,
p.19.
8
No texto original é escrito “se pone”, mas neste trabalho optou-se por usar “consiste” da tradução em português.
9
IPARRAGUIRRE, Ignacio. Obras Completas de San Ignacio de Loyola. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1952, vol. 86, p. 64*. (Tradução nossa).
17
Relato de tudo que foi experimentado no caminho e que deu consistência à sua vida de
Peregrino10, transformando-se em um itinerário de oração para ser experenciado por quem
deseja entrar nos caminhos do Espírito, encontrar-se com o Criador do universo, configurar-se
com Jesus pobre e humilde, deixando-se continuamente alcançar pelo Amor. “Neles se pode
encontrar a ‘teoria’ ou teologia que faz com que a experiência e a práxis de Inácio sejam
verdadeiramente teologais [...] e claramente trinitárias”11.
Inácio escreve as Constituições, “expressão privilegiada da experiência fundante
dos primeiros companheiros” com esforço, lágrimas, orações, participação na Celebração
Eucarística, sob a unção do Espírito (CCJ 3,1ª). Elas contêm a estrutura da Companhia de
Jesus12, os fundamentos que dão solidez à vida religiosa, consistência e coerência aos seus
membros, suscitando a disposição do coração em realizar de forma integrada o ideal missionário
de servir a Cristo em todo o mundo. A fórmula do Instituto explicita o objetivo da Companhia:
10
Expressão usada por Inácio em sua Autobiografia para definir seu permanente estado de caminhante incansável
e buscador da vontade divina.
11
BINGEMER, 1990, p. 22.
12
Nome da Congregação fundada por Inácio de Loyola e seus companheiros. Em latim escreve-se Societas Iesu,
cuja sigla é SJ, colocada no final do nome de todos os seus membros. Foi reconhecida em 27 de setembro de 1540,
por Paulo III, na Carta Apostólica Regimini militantes Ecclesiae e confirmada por Júlio III em 21 de julho de 1550,
na Carta Apostólica Exposcit debitum.
13
Para todas as citações do Diário Espiritual foi usada a obra em português: LOYOLA, Inácio. Diário espiritual.
Tradução: R. Paiva, SJ. São Paulo: Loyola, 2008.
18
No Epistolário, que contém cartas e instruções, o leitor tem “acesso à riqueza
espiritual deste grande inspirador de homens e mulheres no seguimento de Cristo e no serviço
evangélico do Reino de Deus” (CE, p. 7)14, mostrando assim o jeito inaciano de viver e ser
contemplativo na ação. Deixa transparecer a personalidade de Inácio e seu modo de agir.
Sustenta a importância de escrever cartas como meio de reforçar a unidade entre os membros
do corpo apostólico da Companhia15. Há também todo um universo de pessoas para as quais
escreve, importantes personagens, almas aflitas, gente influente nas mais diversas situações.
A Autobiografia, aqui revisitada no primeiro capítulo, não foi escrita, mas narrada
por ele a pedido de seus companheiros, que desejavam saber da história da sua vida “pelo grande
bem que disso resultaria para toda a Companhia de Jesus” (Aut. p. 5)16. Pe. Luís Gonçalves da
Câmara foi o escolhido para percorrer junto com Inácio os caminhos de sua conversão. Era
possuidor de uma memória extraordinária e escrevia em seu quarto tudo que ouvia da
libertadora experiência vivida por esse homem, que se entregou sem reservas ao Amor.
Da escrita dos Exercícios à fundação da Companhia, Inácio deixa um legado
inestimável à Igreja e ao mundo que a circunda. Essa riqueza atravessa cinco séculos de história
e marca pessoas em todos os cantos da Terra, que com coragem e determinação entram na
dinâmica dos Exercícios, dispostos a trilhar um caminho de encontro, em que a intimidade
construída com o Senhor suscita o desejo sincero de unir oração e práxis. A universalidade
desse carisma é expressa nos documentos fundacionais, cujo desejo é “ir de um lugar ao outro
e viver em qualquer parte do mundo onde se espera maior serviço de Deus e bem do próximo”17.
Todavia, esse ideal missionário que enfrenta desafios e anuncia uma Boa-Nova
apaixonante, impulsionando uma entrega total ao apostolado, sofre grandes perseguições, tanto
Inácio, que responde alguns processos em sua caminhada de fé, quanto a Companhia que foi
extinta em todo o mundo, com exceção da Rússia de Catarina II. Um dos fatos mais tristes da
história18, que cala a voz de seus membros por muito tempo e provoca grandes sofrimentos.
14
Esta citação encontra-se na obra em português: LOYOLA, Inácio. Cartas Escolhidas. Tradução: R. Paiva, SJ.
São Paulo: Loyola, 2007. Ao longo do trabalho serão utilizadas também citações das Cartas tiradas da obra de
Ignacio IPARRAGUIRRE em espanhol, com tradução nossa.
15
LOYOLA, Inácio. Cartas Escolhidas. Tradução: R. Paiva, SJ. São Paulo: Loyola, 2007, p. 19.
16
As citações da Autobiografia usadas neste trabalho foram retiradas da edição em português: LOYOLA, Inácio.
Autobiografia de Inácio de Loyola. Tradução e notas: Pe. Armando Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola, 5ª ed., 1997.
17
BINGEMER, Maria Clara; NEUTZLING, Inácio; MAC DOWELL, João (orgs). A globalização e os jesuítas:
origens, história e impactos. Anais. São Paulo: Loyola, vol. 1, 2007, p.14.
18
A Companhia foi extinta em 1773 por Clemente XIV em seu Breve Dominus ac Redemptor. Pode ser consultado
o site www.bicentenariosj.com.br para maiores informações. O tema é abordado no nº 95 da ITAICI - Revista de
Espiritualidade Inaciana, março/2014; Cf. AGÚNDEZ, Urbano Valero. Supresión y restauración de la Compañía
de Jesús (Documentos). Coleção Manresa 52.
19
No entanto, sua restauração19 abre as portas novamente a esses missionários incansáveis e
atentos à ordem que Jesus Ressuscitado deixa aos seus amados discípulos: “Ide por todo o
mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).
Em todos os lugares onde há uma obra da Companhia, muito decisiva tem sido sua
contribuição em diversos campos da sociedade. Na educação, espiritualidade, artes, arquitetura,
música, matemática, astronomia, física. Na reflexão teológica e filosófica, na colaboração com
a investigação científica, na consolidação da cultura humanista, no “desenvolvimento e cultivo
da inteligência”20. E ainda na abertura da consciência para a realização do Magis21, tendo em
vista as grandes transformações a serem efetuadas nas mais diversas realidades.
O apostolado nascido da oração de Inácio, gera dentre os seus filhos espirituais, o
Papa Francisco, homem formado na espiritualidade do amor e do serviço, que ocupando o lugar
mais alto na hierarquia da Igreja, não deixa que as algemas do poder o encarcerem em uma
burocracia extenuante e muito menos numa visão principesca de si mesmo, mas revela em cada
gesto, sorriso, posturas, seu amor imenso a Jesus Cristo e ao rebanho que lhe foi confiado. Suas
atitudes revelam a transparência de quem encontrou-se verdadeiramente com Deus.
Ele defende os que sofrem à margem do sistema capitalista, produtor da “economia
da exclusão e da desigualdade social”, e denuncia a cruel competitividade que transforma o ser
humano em descartável, bem de consumo, excluído da sociedade, morrendo à míngua, faminto,
enquanto toneladas de alimento se destinam ao lixo todos os dias. O cenário mundial que mostra
a face horrível de uma cultura de morte firmada numa globalização da indiferença, que
anestesia corações, impedindo-os de se compadecerem das dores alheias (EG 53-54).
Francisco envolve-se com questões seríssimas dentro e fora da Igreja, mostrando a
solidez da sua fé, extraída da experiência pessoal do amor de Deus que ele tão bem comunica
a todos. Sua fecunda liberdade interior o faz romper barreiras e ir além dos grandes muros que
ainda insistem em fechar a vida eclesial. Chama a atenção dessa pós-modernidade – refém do
individualismo –, a ultrapassar as barreiras do egoísmo e comunicar o amor buscando em tudo,
o bem do próximo.
19
Acontecida em 7 de agosto de 1814, por Pio VII em sua Bula Sollicitudo Omnium Ecclesiarum. “Três fatores
aceleraram sua restauração: a abolição da monarquia francesa, promovendo o retorno dos jesuítas aos seus
domínios; a mudança gradual de posição de Pio VI, que passou de uma cautelosa e tímida aprovação a um desejo
claro do restabelecimento da Companhia e a firme determinação de restaurá-la do seu sucessor Pio VII, eleito em
1800”. Cf. CODINA, Victor. A restauração da Companhia (1814), reflexões e questionamentos. ITAICI- Revista
de Espiritualidade Inaciana 95, 2014, p. 33.
20
BINGEMER et al., 2007, p.14.
21
Palavra de origem latina significa o mais, o melhor. Inácio a utilizou para dizer que é possível avançar em tudo
que se faz em busca de um bem maior. No site www.magis2013.com, está sua história e proposta de trabalho.
20
Somente graças a esse encontro – ou reencontro – com o Amor de Deus, que
se converte em amizade feliz é que somos resgatados da nossa consciência
isolada e da autorreferencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos
quando somos mais que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza
para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro.
Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Se alguém acolheu esse amor que
lhe devolve o sentido da vida, como pode conter o desejo de comunicá-lo aos
outros? (EG 8).
Esse apanhado do conjunto da obra de Inácio de Loyola é feito com o intuito de dar
uma visão geral do que a oração desencadeou na sua consciência missionária, e o que disso
resultou em benefícios concretos para a comunidade de fé e a sociedade. Ele não é um pensador
que sistematizou uma teologia e suas obras são estudadas na Academia. Por isso, ao longo desta
dissertação, não será feita uma reflexão sistemática sobre seus escritos ou uma historiografia,
mostrando contexto social, político e cultural em que viveu, nem apresentar os grandes feitos
ou a história da Companhia, muito menos uma aproximação psicológica da sua pessoa, mas
sim, uma abordagem do caminho mistagógico percorrido por ele, escrito de maneira simples e
direta na Autobiografia, em cujo cerne há um retrato fiel de que o “amor é comunicação de
ambas as partes” (EE 231).
Sua história parte do vazio de uma vida centrada em si mesma, destituída do sentido
existencial transcendente, que é tocada pela presença transformadora de Jesus e chega
progressivamente pela oração a uma conversão radical, experiência plena da comunicação de
Deus em seu ser, que o leva a escrever o itinerário dos Exercícios Espirituais, a fincar raízes na
história eclesial e a solidificar uma práxis do amor e do serviço. “A experiência desse amor
havia libertado o cavaleiro Inácio de Loyola das glórias mundanas. Depois da sua conversão,
Inácio amou e serviu a Deus e aos seus irmãos como discípulo de Jesus Cristo”22.
No primeiro capítulo está toda a travessia espiritual realizada por ele e os
fundamentos dessa profunda experiência, em que a Palavra conduz a fé a uma experiência de
encontro, a fé desperta a oração, a oração experimenta o amor e o amor gera a práxis. Esses
elementos interligados contribuem de maneira efetiva com o propósito de redescobrir na Igreja
a importância da integração entre oração e práxis, através do cultivo da interioridade, lugar
teológico onde é possível estabelecer uma relação de amizade com Deus. Chave para o
crescimento da espiritualidade, que não se contenta com o muito saber, mas sim, com o
saborear todas as coisas internamente (EE 2).
22
BARREIRO, Álvaro. “Conhecer, acolher e viver o amor de Deus: como orar a Contemplação para alcançar
amor. São Paulo: Loyola, 2011, p.74.
21
No segundo capítulo é feito um recorte dos Exercícios Espirituais privilegiando a
“Contemplação para alcançar amor”, com a finalidade de comprovar seu papel determinante na
compreensão do caminho trilhado, acentuar sua principal característica de ser ponte que conduz
à vida cotidiana e provocar a reflexão sobre o amor a ser alcançado na oração, como essência
da identidade cristã e centro da sua práxis23. Para atingir tal meta é preciso adentrar na estrutura
da oração de contemplação, perceber seus traços em todo o itinerário dos Exercícios e
aprofundar os elementos essenciais, que articulados entre si, possibilitam um crescimento no
conhecimento interno do Deus vivo para mais “amar e servir” (EE 233), alcançando em
profundidade o amor ofertado por Ele desde o “Princípio e Fundamento” (EE 23). A resposta a
esse amor é a livre entrega de si mesmo: “Tomai, Senhor, e recebei” (EE 234); o
reconhecimento de que “Deus habita todas as criaturas” (EE 235); a certeza de que Ele chama
a colaborar com Seu trabalho no mundo (EE 236); o despertar da consciência de que “todos os
bens e dons descem do alto” (EE 237) enraizando-se na realidade, onde o desejo deve ser
sempre o de “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (CCJ 288).
No terceiro capítulo encontra-se o fruto da experiência do Amor na Contemplação:
“consiste mais em obras do que em palavras” (EE 230), e requer o compromisso de colocar-se
inteiramente a serviço da Igreja e do mundo, deixando-se mover pelo Espírito, escutando
cotidianamente o chamado de Jesus Cristo, que exige discernimento das reais motivações que
levam ao seguimento, indiferença frente às escolhas a serem feitas, almejando em tudo a
liberdade interior, e humildade para servir por amor sem pretensões de honras e glórias. É uma
contínua descoberta de que “quem ama dá e comunica o que tem ou pode a quem ama” (EE
231), ultrapassando barreiras institucionais e colocando os pés na História, onde o sofrimento
humano encontra abrigo no coração do Redentor e pede compaixão com os pobres-crucificados,
e a “Mãe Terra” geme em dores de parto nas mãos do Criador, implorando por consciência e
cuidado.
A práxis cristã movida pelo amor é o único meio eficaz para despertar a humanidade
do sono profundo que a empurra cada vez mais à uma desumanização destruidora, estimulando
a sensibilidade a reconhecer que todo o universo está interligado pelo mesmo fio do Amor
altruísta que deseja apenas o bem em todas as suas dimensões. “Pelos seus frutos os
reconhecereis” (Mt 7,16). Lavar os pés, devolver a dignidade a quem está excluído, mudar as
estruturas, são gestos que só podem ter sentido para aquele que mergulha na oração e, na práxis,
age em tudo, desejando unicamente “a maior glória de Deus” (EE 152).
23
JEANROND, Werner G. Teología del amor. Santander: Sal Terrae, 2013, p. 49.
22
Precisamos identificar a cidade a partir de um olhar contemplativo, isto é, um
olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas
suas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e
grupos efetuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida (EG 71).
Os três capítulos formam uma unidade. A experiência de Amor feita por Inácio de
Loyola numa vida orante resulta em seguimento a Jesus Cristo e compromisso apostólico. O
caminho trilhado por ele – embora pareça ultrapassado diante dos desafios de uma pós-
modernidade centrada em si mesma –, possui uma riqueza inesgotável, pois nele é possível ver
que o encontro com Deus é gerador da liberdade interior e se dá na vida concreta de homens e
mulheres, com suas contradições e conflitos, esperanças e alegrias.
A oração transforma o âmago do ser, fazendo-o crescer na intimidade com o Senhor
e o lança para fora de si mesmo em direção ao outro que se encontra na exterioridade, lugar
onde deve transparecer a “imagem e semelhança” (cf. Gn, 1,26) do Deus-Amor, para depois
voltar a essa Fonte que abastece e reanima a caminhada, impulsionando a recomeçar todos os
dias. Por isso, a práxis cristã não tem raízes sólidas sem o amor que a sustente, e este, sem a
práxis, perde a capacidade de crescer, estender seus ramos e abrigar o mundo com benevolência.
Que ninguém queira ser tido por hábil nem seja vaidoso da própria aparência,
de ter bom senso, de falar bem. Olhe-se Cristo, que considerou tudo isso nada
e que escolheu ser, por nossa causa, humilhado e desprezado pelos homens,
mais do que ser honrado e considerado. [...]. Um dos pontos que devemos
estabelecer com firmeza para sermos agradáveis a Deus será afastar de nós
tudo o que nos possa separar do amor de nossos irmãos: trabalharemos para
amá-los com uma caridade cordial, pois diz a soberana Verdade: Por este sinal
reconhecerão que vós sois meus (1Jo 13,35) - (CE 18).
23
CAPÍTULO 1
“O AMOR É COMUNICAÇÃO DE AMBAS AS PARTES”
1
ÁVILA, Teresa. Escritos de Teresa de Ávila. São Paulo: Loyola; Higienópolis: Carmelitanas, 2001, p. 488.
2
TEIXEIRA, Celso Márcio (org). Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004. Primeira de Celano,
cap. VII, nº 7, p. 209.
3
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984, livro X, p.277.
4
BARREIRO, 2011, p.18.
24
Inácio também é um desses que foi marcado no fundo da alma pelo Amor. De
servidor do rei, rapaz de bons modos, ambição e carisma tornou-se servidor do Rei Eterno5, o
Senhor que mudou sua história e o fez atravessar gerações em todos os cantos da Terra,
apontando caminhos possíveis de encontro entre o Criador e a criatura. Sua vida feita de intensa
peregrinação em busca de achar a vontade divina e seu lugar no mundo, foi sendo lapidada com
paciência pelas mãos do Pai.
Quando afirmo que tive uma experiência de Deus, não sinto a necessidade de
apoiar esta afirmação em uma dissertação teológica [...], nem pretendo falar
dos fenômenos que a acompanham: visões, símbolos e audições figurativas,
nem do dom das lágrimas ou coisas semelhantes. A única coisa que digo é que
experimentei a Deus, ao indizível e insondável, ao silencioso e contudo
próximo, na tridimensionalidade de sua doação a mim. [...]. Era Deus mesmo
que eu experimentei; não palavras humanas sobre Ele. Deus e a surpreendente
liberdade que o caracteriza e que somente se pode experimentar em virtude de
Sua iniciativa. [...]. E ainda que esta experiência constitua uma graça, isto não
significa que, em princípio seja negada a ninguém6.
Experiência é processo dinâmico. Tem que ser vivida onde Deus quer se revelar e
ser encontrado: na concretude da história humana, “situada no tempo e no espaço”,
condicionada a fatores sociais, culturais, econômicos, religiosos. Ele encontra-se com a pessoa
nos acontecimentos diários, nas realidades do mundo feitas de contrastes e discrepâncias.
Revela-se no humano para recriar, descentrar e transformar em Cristo7.
Este capítulo percorre a estrada espiritual de Inácio de Loyola no passo a passo da
sua Autobiografia, um “livro de viagem ao interior de si mesmo”8, sentindo as batidas do seu
coração inquieto à procura de grandes feitos, vanglórias, conquistas e honras. Não é fácil para
ele sair de si, do mundo dos ideais, das fantasias e dos sonhos para entrar no caminho da
conversão gratuita, reconstruindo a vida sob outra perspectiva, com todas as rupturas cabíveis
e inimagináveis, mas também com a esperança de que o novo que chega traga a certeza de quem
ele é, e o conduza a uma integração de todo o seu ser. Mudar a direção só é possível quando
Deus revela-se inesperadamente nas profundezas do coração e abre a porta da intimidade,
deixando de ser o transcendente, absoluto, distante, para tornar-se o Pai, Criador, o Deus-Trino
que é amor.
5
Expressão usada por Inácio na contemplação do Exercício do Reino [EE 91-100]. Será estudada no capítulo 3.
6
RAHNER, Karl. Palavras de Inácio de Loyola a um jesuíta de hoje. São Paulo: Loyola, 1978, p. 8-10.
7
PALÁCIO, Carlos. Experiencia de Dios. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander:
Sal Terrae, 2007, p. 861.
8
ALDEA, Quintin (Ed.). Ignacio de Loyola en la gran crisis del siglo XVI. Congresso Internacional de História.
Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae, vol. 11, 1991, p. 55. (Tradução nossa).
25
Cada experiência de conversão é sempre inspiradora para a vida cristã, uma vez
que, em sua essência está o movimento do Espírito “que sopra onde quer” (Jo 3,8). A de Inácio
tem como primeira e fundamental mediação Jesus Cristo, Palavra Viva do Pai, que plenifica
de sentido todo o itinerário espiritual feito por ele. Sua vida interior é enriquecida pela constante
mutação ao atravessar os vãos escuros da alma ferida e alcançar a claridade da luz divina. De
uma margem à outra deixa-se modelar, passando do vazio de uma fé preceitual à experiência
do encontro; da exterioridade dos grandes feitos à interioridade que descobre, na descida ao
coração, o lugar sagrado da oração; dos combates internos que provocam aridez e desolações
ao dom da graça que liberta e faz brotar a gratidão.
Ao fazer essa travessia interior chega a um profundo entendimento, compreendendo
as verdades do espírito, da fé e das letras com intensa claridade (Aut. 30). Essa epifania desperta
em seu coração sedento a vontade de ter apenas Deus como refúgio, lançando-o num peregrinar
incessante e sem descanso, movido pelo desejo ardente de ajudar as almas encontrarem sua
liberdade dentro da liberdade divina. Cada sentimento, pensamento, moção e iluminação que
perpassa seu íntimo depois da conversão, é anotado, revisto e proposto a quem deseja mergulhar
na oração e “tirar de si as afeições desordenadas e depois de tirá-las, buscar e encontrar a
vontade divina” (EE 1). Sua verdadeira loucura por Cristo (EE 167,3), está muito bem descrita
na estrutura dos Exercícios Espirituais, como eixo provocador por onde passa toda “a História
da Salvação, centrada em Cristo e orientada para o Pai, no Espírito”9.
Inácio experimenta a ruptura com o velho homem e a conscientização da liberdade
do novo homem, em Jesus. Os fundamentos dessa experiência são determinantes para a
compreensão do seu crescimento espiritual, pois estão bem ancorados na Palavra que ilumina
a fé, na fé que provoca a oração, na oração que encontra o amor e no amor que dá coerência à
práxis. Tal experiência é o farol que ilumina este trabalho, com o propósito de refletir sobre a
importância de redescobrir na Igreja o caminho de integração entre oração e práxis, através do
cultivo incessante da interioridade, lugar teológico do encontro, onde é possível estabelecer
uma relação de amizade com o Deus-Amor e aprender com ele a dialogar no silêncio da oração
que se abre à escuta e à palavra a ser dita; crescer no autoconhecimento, na liberdade interior e
no entendimento de que “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear
as coisas internamente” (EE 2).
9
PALAORO, Adroaldo. A experiência espiritual de Santo Inácio e a dinâmica interna dos exercícios. São Paulo:
Loyola, 1992, p. 61.
26
1 A TRAVESSIA INTERIOR
O itinerário de cada ser até Deus e com Deus é único e imprevisível, como
única e imprevisível é sua vocação e seu amor, que não se fatiga e nem se
cansa, não se repete. [...]. Ele o conduz por caminhos frequentemente secretos,
perfeitamente inesperados, cria pistas em pleno deserto, ali onde ninguém
poderia imaginar que fosse possível a existência10.
10
SALVADOR, Federico Ruiz. Compêndio de Teologia Espiritual. São Paulo: Loyola, 1996, p. 456.
11
IDÍGORAS, José Ignacio Tellechea. Inácio de Loyola, a aventura de um cristão. São Paulo: Loyola, 2001, p. 7.
27
Cada fase do processo é percorrida com intensidade e bravura pelo valoroso
soldado. Não desiste, não volta atrás, não se cansa de querer chegar à plenitude em Deus. Mas
precisa caminhar, enfrentar os medos, o voluntarismo, a teimosia. Na primeira fase, três
momentos são essenciais para compreender que seu caminhar assemelha-se ao de qualquer
cristão que se dispõe a responder à iniciativa divina, pois envolve afetos, pensamentos, pobreza
interior, cegueira, surdez.
No primeiro momento o acento recai sobre a fé como condição de possibilidade de
um encontro com Jesus Cristo, princípio de mudança. No segundo momento, na dimensão
antropológica do ser que passa da exterioridade para a interioridade, descendo ao coração, fonte
de onde brota a oração. No terceiro momento, na descoberta dos combates espirituais que ele
enfrenta ao se dispor estar a sós com o Amado, e a atuação da graça que o faz reconhecer, com
gratidão, sua impotência diante da existência do mal, mostrando-lhe a grandiosa força que há
no discernimento. Esses três movimentos iniciais de purificação são o fundamento sobre o qual
é construída a vida espiritual de Inácio, que atravessa noites escuras e dias cinzentos, até chegar
à iluminação do entendimento e compreensão das verdades eternas (Aut. 30).
12
GUARDINI, Romano. A vida da fé. Lisboa: Editorial Aster, Coimbra: Casa do Castelo Editora, 1957, p. 22.
13
SOUSA, Sandra Regina; PULIER, Tania Ferreira. Creio na Alegria: caminho da fé cristã nos passos do Credo.
Livro do Catequista. São Paulo: Paulus, vol. 1, 2011, p. 13.
28
Esse encontro com Jesus tem na Catequese seu ponto de partida e pedra
fundamental para o erguimento de uma sólida construção na vida cristã. Ela é a grande
responsável por transmitir a riqueza da fé, “que precisa ser conhecida, celebrada, vivida e
cultivada na oração” (DNC 53). Tal experiência é capaz de mudar vidas e fazer discípulos
missionários a exemplo do Verbo de Deus, grande missionário do Pai (cf. Jo 20,21).
Todavia, ao longo da história, a catequese sofre modificações em seu centro vital.
Deixa de proporcionar a experiência fundante e inspiradora dos primeiros séculos e faz uma
imersão na cristandade, ligando-se ao poder civil com tanta força, que transforma a educação
da fé simplesmente numa participação na vida social, na qual toda a sociedade vive em um
ambiente inteiramente cristão (CR 8-9), onde não é mais possível encontrar-se com o mistério.
A partir do século XV, ela usa formulações doutrinais para diluir possíveis mal-
entendidos causados pela reforma protestante, valorizando somente o aprendizado individual,
sem traços de ligação com a comunidade cristã (CR 10-13). Há uma brusca ruptura entre fé e
vida, e a iniciação cristã passa por significativas mudanças, responsáveis pelo deslocamento de
um modelo experiencial de fé para uma catequese apenas doutrinal (DNC 13), resultando num
cumprimento de preceitos vazios do sentido existencial, que deixa ainda mais distante a
possibilidade do encontro com o Jesus dos Evangelhos.
Do século XX até os dias de hoje, graças a efervescência dos diversos movimentos
que surgiram na Igreja: bíblico, patrístico, litúrgico e querigmático, proporcionando uma
“revalorização da Bíblia, da Liturgia e do anúncio de Jesus Cristo”, da abertura inspiradora do
Concílio Vaticano II, e tantas outras mudanças ocorridas na história, a catequese inaugura um
tempo novo de conscientização da importância de uma fé sólida, que leve o cristão a uma
verdadeira conversão e compromisso com as transformações sociais, evidenciando a
importância de uma permanente ação evangelizadora, que seja porta-voz dessa experiência do
encontro com Deus que se revela na realidade humana (CR 14-29).
A caminhada de fé feita por Inácio de Loyola até sua juventude, no fim da Idade
Média, expressa em suas posturas e ideais o vazio do não encontro com Cristo, sendo ele mesmo
que se descreve como um “homem entregue às vaidades do mundo”, vivendo entre o sagrado e
o profano sem culpa ou medo (Aut. 1). Porém, as grandes provações que a vida lhe traz, o
colocam frente a frente com a Palavra (Aut. 5-6), e o fazem chegar à real experiência de
encontrar-se afetivamente com Jesus, impulsionando-o a colocar os pés no caminho exigente e
provocativo do seguimento. Sua primeira travessia parte do vazio existencial e chega
gradualmente à uma conversão.
29
Assim, a mudança de perspectiva da fé doutrinal, “como sistema de crenças que o
crente assume, fides quae creditur”, para a experiencial “como assentimento à revelação,
virtude teologal, fides qua creditur”14, é a primeira etapa do caminho de purificação de Inácio
e permite ampliar os horizontes, indo além do que a catequese do seu tempo propunha aos
cristãos. A grande novidade agora é que essa fé, “centelha que se expande em viva chama” (LF
4), dilata sua existência e o conduz à um crescimento espiritual que acende o desejo, ainda
tímido, de seguimento.
14
CÁTALA, Vicent. Fe. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae, 2007,
p. 872.
15
De origem germânica, significa “íntimo”. A partir de 1535, em Paris muda para Inácio, provavelmente por ter
grande devoção a santo Inácio de Antioquia, referindo-se a isto em uma carta escrita a São Francisco de Borja.
16
Inácio de Loyola faleceu em 31 de julho de 1556 e foi canonizado em 12 de março de 1622.
17
CACHO, Ignacio. Ignacio de Loyola. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander:
Sal Terrae, 2007, p. 975.
18
Pe. João de Polanco, espanhol, nascido em Burgos em 1516, entrou na Companhia em 1541. Foi secretário na
Companhia, nomeado por Inácio de 1547 a 1573. Escreveu a vida de Pe. Inácio e a História da Companhia.
19
LETURIA, Pedro. El gentilhombre Iñigo López de Loyola. Barcelona: Editorial Labor, S.A, 1949, p. 59.
30
Entregue às vaidades e apaixonado por armas, o buscador incansável de honras e
glórias almeja somente gozar o prestígio de um soldado. Munido de grande obstinação, dá asas
às suas ambições desmedidas com habilidade, coragem e ardor20. No entanto, os sonhos caem
por terra ao ser ferido numa batalha em Pamplona. Tiros de artilharia o atingem, quebrando
uma perna e deixando a outra bastante debilitada. É levado de volta à sua terra para ser cuidado
pelos familiares e sofre duras provações durante o tempo de recuperação, suportando dores
terríveis com resignada paciência e profundo silêncio (Aut. 1-2).
A morte chega bem perto e quase afasta a esperança do horizonte da vida. “Recebeu
os sacramentos, na véspera de São Pedro, de quem é muito devoto, e São Paulo. Diziam os
médicos que se até meia-noite não sentisse melhora, podia considerar-se morto” (Aut. 3).
Porém, nosso Senhor age em seu favor naquela noite de espera, e o desejo desmedido desse
homem o faz atravessar a escuridão e chegar do outro lado, fora do perigo de morte, ainda
disposto a sofrer um pouco mais em nome da vaidade que o impulsiona a querer seguir o mundo
(Aut. 4).
Em seu espírito cavalheiresco, o mundo é para Inácio o lugar dos deleites, das
grandes aspirações, das incontáveis façanhas, dos desejos por realizarem-se. A fértil
imaginação o leva a terras desconhecidas como um dom Quixote em busca de sua amada
Dulcineia21 ou um valoroso soldado disposto a dar a vida para ganhar a batalha, em cuja
personalidade existe uma imensa força de vontade e obstinação (Aut. 6). Não se interessa pelos
assuntos de fé e pratica “um catolicismo cultural e sociologicamente aceitável no seu mundo
cortesão”22, no entanto, era possível ver nele que Deus o havia feito para realizar grandes
coisas23. Esse Deus que despedaça e recompõe para criar um coração novo; fere e cura para
suscitar desejos maiores diante da vida; desperta e impulsiona a alçar voos mais altos.
20
STIERLI, Josef. Buscar a Deus em todas as coisas. São Paulo: Loyola, 1990, p. 12.
21
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.33.
22
AZEVEDO, Ferdinando. Uma mística do serviço: as inspirações trinitárias na espiritualidade inaciana. ITAICI
– Revista de Espiritualidade Inaciana 18, 1994, p. 34.
23
LETURIA, 1949, p. 148.
31
1.1.2 O encontro com a Palavra
“Nosso Senhor Jesus Cristo ocupa objetiva e vitalmente o centro, tanto na vida
como na teologia espiritual. Deus o pôs como pedra angular da história salvífica e de toda a
criação”24. Ele é o coração da experiência cristã e eixo em torno do qual gira seu Corpo Místico,
a Igreja, envolvida nesse mistério inefável de amor: “Quando, porém, chegou a plenitude do
tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que
estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4-5). Fez-se homem para
revelar que a vida humana é o lugar sagrado onde Deus se dá a conhecer, podendo ser buscado
e experimentado25 por cada um de seus filhos e filhas na vida diária com suas lutas, dores,
incertezas e aprendizado.
“Ele é a palavra inesgotável de Deus” e quanto mais os seres humanos dela se
aproximam, mais se abrem os horizontes e novas e surpreendentes mudanças acontecem26. É
explícito em sua pessoa um novo jeito de olhar o mundo, de provocar polêmicas, de romper
com esquemas, de não ser compatível com poderes opressores e discursos bem-elaborados
distantes da experiência; de endereçar a cada pessoa a mesma e provocadora pergunta: “E vós
quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). Dizer quem ele é exige bem mais que os conceitos que a
linguagem estrutura e o pensamento assimila. É preciso encontrar-se com Ele na profundidade
do ser e conhecê-lo em sua infinita riqueza.
Temos tudo em Cristo [...]. Se queres curar tua ferida, ele é o médico. Se ardes
em febre, ele é a fonte. Se precisas de socorro, ele é a força. Se temes a morte,
ele é a vida. Se foges das trevas, ele é a luz. Se tens fome, ele é o alimento27.
24
SALVADOR, 1996, p. 87.
25
PALÁCIO, Carlos. Mistérios de Cristo – mistério do cristão. São Paulo: Loyola, 2013, p. 35.
26
BUELTA, 2007, p. 77.
27
CLEMENT, Olivier. Fontes. Os místicos cristãos dos primeiros séculos. Textos e comentários. Juiz de Fora:
Edições Subiaco, 2003, p. 54.
28
Cf. CARTUSIANO, Ludolfo. O livro da Vita Christi: em lingoagem portuguesa. Casa de Rui Barbosa, 1957.
Coleção de textos de língua portuguesa arcaiaca; GARCÍA MATEO, Rogelio. Flos Sanctorum. Diccionario de
Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae, 2007, p. 886-887.
32
Assim, começa a ser sensibilizado em seu vazio existencial pelo Homem de Nazaré,
que pela palavra, penetra aos poucos esse coração agitado por ventos contrários. De um lado, o
encantamento pela mulher que lhe rouba os pensamentos e provoca ânsias de conquista. De
outro lado, o mergulho nas histórias da vida dos santos e nas maravilhas que realizaram por
amor a nosso Senhor Jesus Cristo, suscita-lhe o desejo de fazer o mesmo que eles: “E se eu
realizasse isso que fez São Francisco? E isto que fez São Domingos?” (Aut. 6-7). O determinado
Inácio acredita ser capaz de empreender as proezas que outros fizeram e coisas ainda maiores.
Em meio ao turbilhão que começa a viver, passa a observar a si mesmo e percebe a
diversidade de pensamentos que o agitam, pois quando se imagina fazendo grandes feitos
mundanos, sente prazer, mas logo em seguida acha-se insatisfeito. Ao passo que pensando em
ir descalço até Jerusalém, comer só verduras e fazer penitências como os santos, sente-se feliz
e tal sentimento é duradouro. Desses movimentos internos surge aos poucos a percepção da
“diversidade dos espíritos que o moviam, um do demônio e outro de Deus” (Aut. 8). Tal
percepção cresce no seu caminho de conversão e transforma-se em discernimento, que “torna-
se um exercício diário”29 e o ajuda a decidir qual a “melhor maneira de agir e de viver a fé no
mundo real e concreto”30, sendo esta uma das grandes marcas da sua espiritualidade e
instrumento preciosíssimo para o crescimento espiritual.
A conversão chega devagar ao seu coração, ainda sem certezas, sem formas
definidas, sem clareza no entendimento, misturada a um exacerbado e aventureiro
voluntarismo, que crê depender tudo de si mesmo. Ao mesmo tempo, a grande novidade o faz
crescer num “ânimo generoso, aceso do amor de Deus” (Aut. 9), levando-o a uma gradual
reconstrução da vida sob outro fundamento, tendo o Espírito Santo como guia e Jesus Cristo
como Senhor, deixando para traz, pouco a pouco, os grotescos desejos de poder, nobreza e
posição social.
Os ventos agora sopram em uma única direção e abrandam seu indomável espírito
nesse encontro marcante com Cristo. Alimenta “santos desejos quando uma visita do céu” os
confirma ao ver claramente a “imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus”. É consolado e
rompe definitivamente com todo pecado vivido antes de ser tocado pela graça, visto que, “ficou
com tanto asco de toda a vida passada, que parecia terem-lhe tirado da alma todas as imagens
[...] e nunca mais teve nem um mínimo consentimento em matéria carnal” (Aut. 10).
29
LIBANIO, João Batista. O discernimento espiritual revisitado. São Paulo: Loyola, 2ª ed., 2005, p. 17.
30
MARTIN, James. A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo. Espiritualidade para a vida cotidiana. Rio de
Janeiro: Sextante, 2010, p. 263.
33
Já é possível perceber a ação benéfica de Deus nessa cega criatura e nobre
cavalheiro, que se dobra diante da iniciativa divina e se entrega à irrupção de uma luz interior
que o faz descobrir o vazio e o abismo sob seus pés, justamente porque lhe mostra o caminho
do Absoluto31.
31
IDÍGORAS, J. Ignacio T. Ignácio de Loyola: solo y a pie. Madrid: Cristiandad, 1987, p. 99.
32
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 28-29.
33
BOLZAN, Maria. A experiência inaciana, tempo de libertação e integração. ITAICI – Revista de
Espiritualidade Inaciana 1, 1988, p. 11.
34
LEPARGNEUR, Hubert. Consciência, corpo e mente. São Paulo: Papirus, 1994, p. 219.
35
GRILLMEIER, Alois. Cristo en la tradicion Cristiana: desde el tempo apostólico hasta el Concílio de
Calcedônia (451). Salamanca: Edições Sigueme, 1997, p. 828-829
34
A manifestação de Jesus na carne revela ao mundo um componente antropológico
no centro da sua identidade. Seu rosto humano mostra de forma integrada que o corpo unifica-
se na interioridade, lugar em que experimenta sua divinização no encontro com Deus, e
comunica-se na exterioridade, tornando-se canal de contato com a realidade externa, onde é
possível viver a experiência de ser autêntico e único, consciente de possuir um potencial de
abertura significativo à sensibilidade.
Inácio ao ser interpelado pela vida de Jesus Cristo, depois de sofrer tão grandes
dores em nome da vaidade, mostra no corpo, os primeiros sinais de mudanças neste novo
caminho, já visíveis até para aqueles que estão ao seu redor: “foram conhecendo pelo exterior
a mudança que se opera em sua alma interiormente” (Aut. 10). Ele empreende no corpo uma
passagem gradativa da exterioridade, onde ainda se agitam pensamentos confusos e o
autocentramento, para a interioridade, a um nível mais profundo, em que é necessário escavar
o coração em suas dimensões nunca dantes exploradas. “A ele nada importava que os outros
notassem, mas perseverava em sua leitura e em seus bons propósitos. O tempo, em que
conversava com os de casa, gastava-o em assuntos de Deus” (Aut. 11).
A partir desses movimentos internos e externos, reconhece o valor do corpo no
caminho dos Exercícios Espirituais “para favorecer a sua disposição à oração, discernir o que
lhe sucede e responder ao encontro com Deus”36. Aprende a dar importância à antropologia do
ser humano em oração, que necessita de condições favoráveis para a integração: com o
ambiente que expresse o tema rezado (EE 79); o lugar mais propício (EE 20); as condições
físicas que precisam ser respeitadas (EE 129); a posição corporal durante a oração (EE 76).
“Porque Deus não se manifesta só à inteligência ou à razão, mas à pessoa que é espírito no
corpo, espírito encarnado”37.
36
DOMÍNGUEZ, Luís Maria Garcia. Cuerpo. Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, 2007, p. 531.
37
PALÁCIO, 2013, p. 51.
35
1.2.1 Descer ao coração
“Não vá fora, volte-se para dentro de si mesmo, pois no homem interior mora a
verdade”38. O coração tem sido ao longo da Tradição bíblica (Leb no hebreu) e da patrística
(Kardía no grego) a sede profunda do verdadeiro conhecimento. Descer até ele e permitir que
Deus o ocupe plenamente, só é possível quando há o esvaziamento total de si, a Kénosis
salvífica que expulsa o ego e escava o espaço mais íntimo, onde habita o mistério trinitário39.
Ir ao encontro desse mistério é agora o horizonte existencial de Inácio. Os livros
que lê sobre a “vida de Cristo e dos Santos”, mexem tanto com seus pensamentos que ele retira
deles o que acha mais bonito. “Traçava as palavras de Cristo, com tinta vermelha; e as de Nossa
Senhora com tinta azul”. Seu coração agora mais sensível sente grande consolação por
contemplar o céu em noites estreladas, vendo brotar em si o chamado de servir ao Senhor,
“pensava muitas vezes em seu propósito, desejando ficar já de todo curado, para pôr-se a
caminho” (Aut. 11).
Não se intimida diante do novo, não recua frente ao desconhecido, mesmo que este
desperte o medo. Segue decididamente como se tudo dependesse dele e do determinado
voluntarismo que o cega. Aprende a descer devagar e às apalpadelas até as profundezas do
coração à procura da Fonte imensurável do amor. Tarefa bastante árdua para quem sabe quanto
o seu mundo externo o provoca e seus pensamentos ainda vagueiam na exterioridade por entre
devaneios.
A descida à interioridade dá início à sua vida de intimidade com Deus, em que
descobre a importância do “conhecimento interno”40, sendo a oração, chave que possibilita o
acesso a esse tesouro escondido. É nela que acontece os grandes encontros e as transformações.
Encontrar-se, encontrar o outro e encontrar o grande Outro é mistério à procura de tempo e
paciência para germinar e crescer, silêncio e persistência para aprender a cultivar.
38
AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. São Paulo: Paulus, nº 72, 2002, p. 98.
39
MELLONI, Javier. El conocimiento interno en la experiencia del Cardoner. Manresa 71, 1999, p. 6.
40
Expressão usada por Inácio na petição da graça nos Exercícios Espirituais. Será aprofundada no cap. 2.
36
1.2.2 Primeiros passos na oração
O ser humano procura por Deus em todos os tempos, em qualquer lugar da terra,
sob os mais diversos nomes. Tal procura inscreve-se por toda a parte na História das Religiões
e deixa suas marcas nas centenas de livros, nos hieróglifos egípcios, nos desenhos antigos e em
outras formas de expressão. Tudo remete à busca incessante de se ligar ao Transcendente. Da
Idade da Pedra até os dias atuais, o centro da oração em todo o mundo é o Pai, o Criador, a
Origem, a Harmonia, a Fonte de misericórdia e de perdão41. Há nesse reconhecimento do
Absoluto a certeza de que o mistério do universo ultrapassa todo e qualquer conceito, e diante
dele só cabe à criatura o olhar de admiração, a contemplação agradecida e o êxtase.
O lugar teológico onde o encontro entre criatura e Criador acha seu espaço para
expandir por primeiro é na oração. Ela é a possibilidade infinita de comunicação e diálogo. É
um gesto simples e profundo, que tem a função de invadir de luz o coração em trevas; de
fortalecer os joelhos enfraquecidos; de curar as feridas causadas pelo desamor. É um ato de
amor. Penetra e suaviza a existência humana. Nela há uma certeza de que a voz que clama será
ouvida: “Por isso, vos digo: tudo o que pedirdes na oração, crede que já o recebestes, e vos será
concedido” (Mc 1,24). “É uma conversação do espírito com Deus. Procura, então, o estado do
qual necessita o espírito para poder ir ao encontro do seu Senhor, sem esmorecer, e conversar
com ele sem qualquer intermediário”42.
Inácio, um pouco mais pacificado nesta etapa do caminho, “parte do tempo gastava
em escrever, parte em oração” (Aut. 11). No mais profundo de si mesmo, nutre-se de bons
propósitos, e firme, espera a hora de escolher entrar na “Cartuxa de Sevilha” ou andar pelo
mundo. Os que estão ao seu redor suspeitam que ele quer “abraçar grande mudança de vida”
(Aut. 12). Mas, não tem clareza de nada, pois ainda não sabe para onde aponta a novidade de
Deus, visto que “quem vive uma experiência, na verdade não tem e tampouco vive de um
conhecimento exterior [...], mas de algo que se forjou no íntimo da pessoa”43.
Faz uma intensa experiência de oração no Santuário de Nossa Senhora de Aranzazu,
onde começa o novo ciclo da vida, que com o passar dos anos terá como núcleo a intimidade
com a Trindade. “Não sentia temores, e tomava certa confiança e amor pela Santíssima
Trindade” (DE 95).
41
MURARO, R.M.; CINTRA, R. As mais belas orações. Rio de Janeiro: José Olympio, 2ª ed., 1970, p. xix-xxi.
42
CLEMENT, 2003, p. 167.
43
SECONDIN, Bruno; GOFFI, Tullo. Curso de Espiritualidade. Experiência-Sistemática-Projeções. São Paulo:
Paulinas, 1994, p. 37.
37
De mim vos posso dizer que tenho particular causa para a desejar: porque,
quando Deus nosso Senhor me fez mercê para eu empreender alguma
mudança em minha vida, lembro-me de ter recebido algum proveito em minha
alma, velando no corpo dessa Igreja, de noite”44.
Ele se entrega à oração durante toda a noite com o intuito de “alcançar novas forças
para o caminho”, aos pés de Nossa Senhora, que se torna fiel intercessora e depositária de sua
confiança filial (Aut. 13). “Grande sentimento e visão de Nossa Senhora, muito propícia junto
ao Pai [...]. Não podia deixar de senti-la como aquela que é parte ou porta do céu” (DE 31).
“O encontro de cada um com o Senhor é um amplo caminho de graça”45. Precisa de
tempo para ser assimilado, percebido em profundidade, acolhido em sua grandeza. E ainda
exige a experiência para amadurecer e transformar, abrindo a consciência ao entendimento dos
vários processos que se desencadeiam após a conversão. Não é instantâneo como num passe de
mágica, mas história construída sob a luz da misericórdia divina, que marca como um selo o
coração do filho (cf. Ct 8,6), e nele imprime seu amor de Pai.
Por necessitar de tempo na assimilação, a alma de Inácio que ainda se mantém um
pouco cega, não sabe discernir a vontade de Deus nas situações pontuais apresentadas pelo
caminho, onde ele “não olhava a circunstância alguma interior, nem sabia o que era humildade,
nem paciência, nem discrição para regular ou medir estas virtudes”, mas quer somente realizar
grandes coisas tendo em vista a “glória de Deus” (Aut. 14). Continua movido por desejos
latentes carregados de imagens do mundo exterior, mas já se veem os sinais de uma nova relação
em processo de construção. Já se percebe um raso mergulho no coração.
Desse modo, segue o aprendiz a estrada da conversão, preocupado com as “façanhas
que devia obrar por amor de Deus”, mas também aprendendo devagar a se colocar em oração e
incansavelmente não desistir do propósito de servir. Mais uma vez entrega-se numa vigília em
Nossa Senhora de Monserrate, onde vela armas toda a noite, “sem sentar-se nem encostar-se,
ora de pé, ora de joelhos”, deixando suas vestes para “vestir as armas de Cristo” (Aut. 17). Há
neste gesto orante uma dimensão simbólica do gentil Inácio, expressa na renúncia de si mesmo
em prol do Senhor que o chama a despir-se por inteiro dos ideais desconexos, recuperar a
“totalidade de sua pessoa, com ambições, dinamismos e paixões a serem ordenados e não
mutilados”46, e segui-lo fielmente como um bom e determinado soldado de Cristo.
44
Palavras de Inácio escritas na carta endereçada a Francisco de Borja (Fontes narrativas I, 76).
45
SALVADOR, 1996, p. 77.
46
FILHO, Spencer Custódio. Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola: um manual de estudo. São
Paulo: Loyola, vol. 20, 1994, p. 74.
38
Essa travessia espiritual feita por ele é processo de reconstrução da sua personalidade,
a partir do autoconhecimento que reconhece fragilidades e vontades presentes e atuantes em
seu íntimo. “Depois de se entreter em oração, fez confissão geral por escrito”, que durou três
dias, revelando seguramente sua imensa “determinação” (Aut. 17). Pela terceira vez, antes de
seguir viagem para Manresa,
Nesse gesto mostra que as mudanças externas refletem o que ele vive interiormente na
busca por agradar somente a Deus, como fizeram também os santos. “O abaixar-se socialmente
é o primeiro sinal externo de sua conversão interior que marca definitivamente sua experiência
espiritual”47. Tal atitude, porém, causa constrangimento no pobre com quem troca suas roupas
e ele enche-se de tamanha compaixão que as lágrimas saltam-lhe dos olhos (Aut. 18). No
coração deste homem já queima o pequeno desejo de ser livre e de se assemelhar ao Senhor
Jesus em sua pobreza e humildade, mantendo-se firme nessa opção durante toda a sua vida. “E
sempre mais firme e mais levado a não ter nada” (DE 6).
A estada de Inácio em Loyola, marcada pela transformação interior, feita de duras
lutas e descobertas, torna-se o alicerce da sua vida espiritual, e anos mais tarde, depois de viver
outras tantas experiências, consolida-se na escrita dos Exercícios Espirituais48. “Determinava
ficar num hospital uns dias e anotar alguns pontos em seu livro que levava muito bem guardado
e que muito o consolava” (Aut. 18). Segundo P. Cusson dois são os frutos desse tempo: “o
primeiro é o de sua verdadeira conversão definitiva, que o arranca do mundo e o consagra
firmemente ao serviço do Senhor. O segundo é consequência desta eleição fundamental que
impõe um novo modo de vida”49.
A verdadeira oração não sai apenas dos lábios, mas do “coração”, isto é, de
todo o ser. É o grito de profundis, “das profundezas”. Pois existe uma
correspondência entre as profundezas do coração e as alturas do céu, que não
deve ser entendida em sentido físico, mas no sentido de ir além pelo centro50.
47
www.cpalsj.org/.
48
PALAORO, 2012, p. 21.
49
CUSSON, Gilles. Experiencia personal del mistério de salvación. Madrid: Apostolado da Imprensa; Zaragoza:
Hechos y Dichos, 1973, p. 19-20. (Tradução nossa).
50
CLEMENT, 2003, p. 168.
39
1.3 Da desolação ao dom da graça
51
BUELTA, 2007, p. 158.
52
“O Pseudo-Dionísio distingue três fases da vida espiritual: purificação, iluminação (meditação da Palavra de
Deus) e união com Deus (pela experiência)” Cf. MONDONI, Danilo. História e Teologia da Espiritualidade. São
Paulo: Loyola, 2014, p. 151. São Boaventura também escreve sobre as três vias em BOAVENTURA, São. Obras
Escolhidas. Caxias do Sul: Sulina Editora; Porto Alegre: Editora Vozes, 1983, p. 235-256.
53
FONTI, Jordi. Desolación. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae,
2007, p. 576.
40
Inácio insiste que nesta fase é essencial não mudar os bons propósitos, “insistir mais
na oração, meditação e em examinar-se muito, bem como nos dedicarmos mais a alguma
penitência conveniente” (EE 319), pois só é possível sair dela pela força do Espírito. Não há
outro caminho para crescer no processo de conversão e proximidade com Deus. Nos combates
espirituais, a impotência diante do sofrimento é algo real e desnorteador. No entanto só a ação
da graça é eficaz, pois “onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17).
Na desolação, a liberdade chega para soltar as amarras que prendem o ser a si
mesmo. Clareia o entendimento que lhe permite escolher livremente sua vida e o lança
destemidamente para a história com os olhos fitos no Senhor e o coração pleno da mais profunda
gratidão que nasce do amor. “A purificação da alma pelo fogo espiritual do amor, intenso e
tenebroso, realizada na noite escura, prepara-a para receber o amor, e a graça de Deus é a luz
da sabedoria divina que vem para iluminar”54.
Avança sem descanso o determinado Inácio e sua vida espiritual ganha força na
medida em que a interioridade passa por ajustes e ordenação, encontrando pequenas luzes que
se acendem no cotidiano. Aprende a se conhecer um pouco mais, observa suas vaidades e luta
contra elas. Em Manresa pede esmola cada dia. Não come carne, nem bebe vinho. Não penteia
o cabelo e muito menos corta as unhas (Aut. 19). Também não distingue com clareza a ação do
inimigo e por isso é invadido pela tentação sem se dar conta dela, pois “até este tempo sempre
perseverava quase num mesmo estado interior, com igualdade grande de alegria, sem ter
conhecimento algum de problemas interiores” (Aut. 20).
Desse modo, a voz da astúcia que circunda o coração, interroga seus pensamentos
com o intuito de suscitar o medo diante desse novo caminho, apresentando-lhe “a dificuldade
de sua vida, como se dissesse dentro da alma: ‘Como poderás sofrer tal vida nos setenta anos
que hás de viver?’”. Sua resposta interior é resoluta e fecha a porta à primeira tentação que se
lhe apresenta ao espírito: “Ó miserável, podes-me tu prometer uma hora de vida?” (Aut. 20).
Assim, o servo de Deus inicia uma nova etapa neste caminho espiritual em que sentirá o gosto
amargo da desolação e dos escrúpulos, mas também da incondicional liberdade que o faz
enxergar mais longe.
54
STEIN, Edith. A ciência da cruz. São Paulo: Loyola, 3ª ed., 2002, p. 112.
41
Experimenta a aridez, os combates internos e uma variedade de sentimentos na
alma, até então imperceptíveis: “achava-se às vezes tão desabrido, que não sentia gosto em
rezar, nem ouvir missa, nem em nenhuma outra oração”. Em certos momentos o sentimento era
contrário, porque “parecia que lhe tiravam a tristeza e desolação, como quem tira a capa dos
ombros de um homem”. Enfim, sai do seu estado de principiante na vida espiritual e passa para
um estágio mais avançado que requer atravessar as trevas da noite e chegar à claridade do dia,
de tal maneira que ele mesmo compreende a profundidade desse caminho e se faz a pergunta:
“Que nova vida é esta que agora começamos?” (Aut. 21).
O desalento que obscurece a situação é na verdade uma realidade objetiva em que
se encontra a criatura numa total “inquietude, com diversas agitações e tentações, movendo à
desconfiança, sem esperança, sem amor, achando-se a pessoa toda preguiçosa, tíbia, triste e
como que separada de seu Criador e Senhor” (EE 317). Mesmo passando por essa situação,
Inácio mantém aceso no coração o “fervor e muita vontade de progredir no serviço divino”,
com tanta e tamanha intensidade que persevera nas “confissões e comunhões cada domingo”
(Aut. 21).
Todavia, os conselhos do mau espírito, cujas intenções são maliciosas (EE 318),
trazendo enganos e provações, o fazem sofrer “muitas aflições de escrúpulos” (Aut. 22), que o
atormentam com incessantes desejos de confessar pecados, infinitas vezes, “como se uma
mancha acusadora que lhe revela que a imagem idealizada de si mesmo está construída sobre a
mentira”55, provocando um empobrecimento espiritual e uma crise que toma proporções
gigantescas, de modo a achar que não há remédio algum para tais tormentos. E nesse estado de
tribulação grita a Deus com todas as suas forças: “Socorre-me, Senhor! pois não acho nenhum
remédio nos homens, nem em criatura alguma! [...]. Mostra-me, tu, Senhor, onde o posso achar.
Se for preciso andar atrás de um cachorrinho para que me dê remédio, eu o farei!” (Aut. 23).
As tentações são tão fortes que lhe despertam o desejo de morrer e ele grita
desesperado, ainda com mais força: “Senhor, não farei nada que te ofenda!” (Aut. 24). É nítido
nessa experiência que a desolação não pode ser interpretada como abandono de Deus, embora
haja uma completa escuridão na alma, mas necessária para tirar proveito na vida espiritual,
ensinando-o a deixar de confiar em suas próprias forças, ordenar suas vontades e abandonar-se
inteiramente nas mãos misericordiosas de Deus, fonte de salvação eterna56.
55
MELLONI, Manresa 71, 1999, p. 9.
56
PALAORO, 1992, p. 23.
42
Teu silêncio, Senhor, é um tormento que aprofunda as dores da ferida. Vivo
na noite escura, denegrida, onde tudo é ausência e sofrimento. Vaga sem rumo
a alma e seu lamento, fecha todas as portas de saída. A sede é funda, e funda
a doida saudade, sem consolo e alimento. Minha memória perde o já vivido,
nada de bom encontro no passado, nem vejo no futuro algum sentido. Até
quando, Senhor, serei humilhado, no fundo deste poço onde resido? Sinto-me
irmão de Jó, crucificado57.
57
MAIA, Pedro Américo. Desolação. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana 33, 1998, p. 76.
43
É o Pai misericordioso quem segura a mão do filho amado em seus primeiros
passos na via espiritual. “Deus o tratava como um mestre-escola trata um menino que ensina.
Isso sucedia por sua rudeza e dura inteligência ou porque não tinha quem o instruísse, ou pela
firme vontade que o mesmo Deus lhe dera para servi-lo” (Aut. 27). Ele é quem abre as portas
do entendimento e derrama sua graça salvífica na interioridade de Inácio, onde estão implícitas
a liberdade e a gratidão. E seu coração já é capaz de reconhecer esse dom oferecido por puro
amor, primordial na integração do ser, contribuindo para o seu amadurecimento58.
58
LÓPEZ-YARTO, Luis. La gratuidade, mucho más que una emoción pasajera. Manresa 85, 2013, p. 8.
59
BOAVENTURA, São. Obras Escolhidas. Caxias do Sul: Sulina Editora; Porto Alegre: Vozes, 1983, p. 236-
238.
60
MELLONI, Javier. Cardoner. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 282.
61
GONZÁLEZ MAGAÑA, Jaime Emílio. Entendimiento. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao:
Mensajero; Santander: Sal Terrae, 2007, p. 765.
62
BINGEMER, 1990, p. 49.
44
Outra vez “se lhe representou no entendimento, com grande alegria espiritual, o
modo com que Deus criara o mundo. Parecia-lhe ver uma coisa branca da qual saíam alguns
raios e dela fazia Deus luz” (Aut. 29). Inácio serve-se dessa inspiração ao escrever a
“Contemplação para alcançar amor” (EE 230-237), cuja oração é feita de forma a “olhar como
todos os bens e dons descem do alto [...], assim como os raios do sol” (EE 237). Ele agora
entende Deus como fonte e origem de todas as coisas criadas63, e por isso, em qualquer
circunstância deve ser louvado, reverenciado e servido (EE 23).
A iluminação traz o consolo de Deus ao seu espírito, mostrando-lhe o bem que ele
faz às outras pessoas. Consciente, deixa “os excessos que antes praticava, cortando as unhas e
o cabelo”. E certo dia, durante a missa, “na elevação do corpo do Senhor, viu com os olhos
interiores uns como raios brancos que vinham de cima” e entendeu claramente “como estava
no Santíssimo Sacramento Jesus Cristo”. E ainda, em momentos de profunda oração, vê a Sua
humanidade e figura, como que num corpo branco, sem distinção de membros. Suas visões
confirmam a fé de maneira tão sólida que “se não houvesse Escritura que ensinasse estas
verdades de fé, ele se determinaria a morrer por elas, só pelo que vira” (Aut. 29).
Quando o dinamismo do Espírito Santo perpassa a vida de Inácio provoca uma
divisão de águas, uma experiência fundante que marca um antes e um depois, engendrando um
novo estado de consciência. Seu olhar vê mais longe ao contemplar o rio Cardoner e alcança as
realidades cósmicas, onde Deus tudo unifica e manifesta luz ao entendimento. “Outras águas e
outras fontes brotaram do seu interior enquanto o contemplava”64, serpenteando por entre vales
à procura do mar. “Os prodígios feitos por Deus em sua alma, correrá logo como um rio de
amor em toda sua vida”65, que não recebeu em outro tempo tanto conhecimento como nessa
ocasião.
Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em
assunto de espírito, como de fé e letras. Isto com uma ilustração tão grande
que lhe pareciam coisas novas. Não se pode declarar os pormenores que então
compreendeu, senão dizer que recebeu uma intensa claridade no
entendimento. Em todo o decurso de sua vida, até os 62 anos, coligindo todas
as ajudas recebidas de Deus e tudo que aprendera por si mesmo, não lhe parece
ter alcançado tanto, quanto daquela só vez. Nisto ficou com o entendimento
de tal modo ilustrado, que lhe parecia ser outro homem e ter outro
entendimento, diferente do que fora antes! (Aut. 30).
63
VÁZQUEZ, Ulpiano. A Contemplação para alcançar amor. São Paulo: Loyola, 2005, p. 99.
64
MELLONI, 2007, p. 280.
65
CASANOVAS, Ignacio. San Ignacio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Barcelona: Editorial Balmes,
1944, p. 109.
45
Inácio contempla Cristo imerso na luz da Trindade que o envolve, “derramando-se
salvífica e economicamente na totalidade da realidade, transfigurando e fazendo novas todas as
coisas”66. Uma inefável manifestação divina ao coração humano. Esta epifania inunda por um
bom tempo seu ser e ele “se foi fincar de joelhos a uma cruz que estava ali perto, a dar graças
a Deus”. Diante dela vê com nitidez a visão que há tempos se lhe apresenta ao espírito de um
“objeto formoso com muitos olhos”. Percebe então, “um claro conhecimento, com grande
assentimento da vontade, que isso era do demônio” (Aut. 31).
A cruz do Senhor vence os embustes do inimigo e a última palavra é o amor. Ela é
fonte de salvação para a humanidade e sua claridade aniquila o mau espírito revestido de luz.
“É próprio do mau anjo, assumindo a aparência de anjo de luz, introduzir-se junto à pessoa
devota para tirar vantagem própria” (EE 332). Até Paulo, mestre no discernimento dos espíritos,
assim como Inácio, tão bem o define em sua carta aos Coríntios: “E não é de estranhar! Pois o
próprio Satanás se disfarça de anjo de luz” (2Cor 11,14).
Os frutos dessa profunda experiência são as “Regras de discernimento dos
espíritos” descritas nos Exercícios e essenciais para “sentir e conhecer” as várias “moções”, os
dinamismos interiores que atraem a pessoa para “algo”. Propostas e sugestões vindas de fora
do “querer de quem as experimenta, produzindo reações das mais diversas, sendo sentidas como
apelos, chamamentos ou atrações”. Aparecem também como “pensamentos, frases interiores
ou vozes”. Para a pessoa que deseja crescer no caminho da oração é imprescindível identificar
tais moções, “as boas para receber e as más para rejeitar” (EE 313-336)67.
A experiência mística só é reconhecida como verdadeira a partir dos efeitos que ela
deixa na alma e na ação modificada daquele que a experimenta. Todo crédito dado a ela parte
da mudança profunda que se exterioriza na conduta. Inácio encontra nessa experiência uma
lucidez que reconhece a tentação do mau espírito; uma capacidade de integrar conhecimento e
vontade, unificando e harmonizando os diversos âmbitos da sua personalidade; uma abertura à
alteridade que o leva a “comunicar ao próximo as coisas do Senhor com simplicidade e
caridade”; e uma memória afetiva dessa experiência durante toda a sua vida68. Há um mergulho
interior tão profundo que possibilita aos seus olhos transfigurados captarem a claridade da
presença de Deus em todas as coisas69.
66
BINGEMER, 1990, p. 49.
67
LOYOLA, Inácio. Exercícios Espirituais. Tradução: R. Paiva, SJ. São Paulo: Loyola, 7ª ed., 2013, p. 119. (Nota
de rodapé 256, p.119).
68
MELLONI, 2007, p. 284-285.
69
MELLONI, Manresa 71, 1999, p. 17.
46
Com a sensibilidade aguçada, o peregrino deixa-se guiar incessantemente no
caminho espiritual, percorrendo-o com o coração ardendo por ajudar as almas a encontrarem-
se com o Senhor e serem transformadas por ele, pois “só desde uma mística profunda pode
nascer uma vida apostólica fecunda e profética”70, enraizada no chão da história.
Ele vê, ele sabe o que é melhor. Como ele tudo sabe, ele mostra o caminho a
seguir. De nossa parte é de grande valia para nós, amparados por sua divina
graça, procurar e experimentar muitas maneiras para conseguir andar pelo
caminho que é “o mais claro”, o mais feliz, o mais santificante aqui embaixo,
inteiramente orientado, ordenado à vida eterna (CE 25).
70
CODINA et.al. A pie con Ignacio: una introducción a la espiritualidade ignaciana. São Paulo: Paulinas, 2012,
p. 45.
71
MELLONI, Javier. La Mistagogía de los Ejercicios. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae 2001, p.19.
72
CODINA et al., 2012, p. 52.
73
SCHIAVONE, Pietro. Missa. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 1234.
47
Inácio tem sede de pôr-se a caminho (Aut. 11) desde o começo de sua conversão.
Tal apelo produz no íntimo uma inquietude constante que o impulsiona a desbravar outros
caminhos e se autodenominar Peregrino74, sempre disposto a ir, mesmo sem saber o que o
espera pela frente, num caminhar apressado e desejoso de chegar à terra prometida75. É uma
viagem com Deus em busca do enraizamento interno que vai além do geográfico ou cultural.
Como todo peregrino, “tem um senso de liberdade que pode facilmente se tornar uma ameaça
a quem quer que ainda ache sua segurança em pertencer a um lugar e grupo específico ou a um
sistema sólido”76.
Peregrinar não é simplesmente mudança de cenários, mas moções interiores que
buscam incansavelmente por Deus. O caminhante não pode correr o risco de parar em qualquer
perspectiva para perceber teologalmente a realidade. Esta que o convoca “é a Kenósis de Cristo
que o leva a encher de esperança sua própria existência e submergir em um movimento
peregrinante”77, percebendo que o centro dessa peregrinação é conduzido pelo dinamismo do
Espírito que o faz partir a pé, sem medo e sem nada além da total confiança em Deus. Passa
frio e fome, adoece. Enfrenta tempestades, pestes, processos jurídicos, sofre calúnias. “Durante
os cinco processos e duas prisões, não quis, por graça de Deus, tomar outro defensor, procurador
ou advogado do que Ele próprio, no qual coloquei, por sua graça e seu divino favor, toda a
minha esperança presente e futura” (CE 19).
Desse modo, decide sair de Manresa e embarcar para Barcelona sozinho e sem
nenhuma provisão, com a ideia de “ter a Deus só por refúgio” e a firme certeza de que deseja
ardentemente alcançar as três virtudes teologais: caridade, fé e esperança (Aut. 35), pois,
viajando com outra pessoa terá em quem confiar e se afeiçoar. No seu íntimo “esta afeição,
confiança e esperança, a queria ter só em Deus. Isto que dizia desta maneira, sentia-o assim em
seu coração”. Palavra e sentimento encontram sintonia nesse peregrino mais amadurecido e
ansioso por “seguir perfeição e o que mais fosse glória de Deus” (Aut. 36).
E assim, a Trindade o impulsiona a lutar contra a vanglória; a buscar pessoas
espirituais para ajudá-lo; a mendigar e defender os fracos; acreditar “que acharia modo de ir a
Jerusalém”; dormir em estábulos; enfrentar tempestades no mar revolto e longas caminhadas;
ser consolado com as visões que tinha de Cristo; escutar pessoas que o acolhem em casa e falar
de Deus para elas; suportar o maltrato da febre; confiar no Pai que o conduz. (Aut. 38-44).
74
Esta expressão encontra-se em sua Autobiografia nos números 39. 42-43. 45-47. 49. 50. 52. 54. 57-59. 62.
75
PALÁCIO, 2007, p. 860.
76
www.padresdodeserto.net/peregr.htm.
77
RUIZ PÉREZ, Francisco. Camino. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 266.
48
Passa por Roma, Veneza, Chipre, chegando a tão sonhada Jerusalém, que desde os
primeiros tempos de sua conversão em Loyola, faz seu coração arder de desejos. “Vendo a
cidade, o peregrino teve grande consolação. A mesma devoção sentiu sempre nas visitas dos
lugares santos”. Seu propósito era permanecer ali e ajudar as almas (Aut. 45). No entanto, a
vontade divina mostra-se pela palavra e ação do provincial dos franciscanos, Pe. Ângelo de
Ferrara, que tendo a custódia desses lugares, tem também o reconhecimento papal, através de
bulas, de fazer sair ou deixar ficar quem ele assim o quisesse78.
Ele ameaça Inácio de excomunhão que se rende e percebe não ser vontade do
Senhor ali ficar (Aut. 46). Porém, antes de ir embora da terra dos seus sonhos, empreende um
peregrinar audacioso na tentativa de realizar o desejo de pisar novamente os lugares que os pés
do Mestre pisaram. Uma pretensão de estar naquele cotidiano que traz as marcas da Sua
presença. Aproximar-se, conhecer e amar o Jesus de Nazaré, que pela encarnação realiza a
Salvação de Deus, assumindo a condição humana em um lugar específico, num determinado
povo e tempo. “No Monte Olivete está uma pedra, da qual subiu o Senhor aos céus e na qual se
vêm ainda agora suas pegadas impressas: isto era o que ele queria tornar a ver” (Aut. 47)79.
A partir dessa experiência de querer tocar e ver as marcas, Inácio propõe nos
Exercícios a contemplação dos mistérios da vida de Cristo (EE 261-312), como caminho de
conhecimento interior que impele a escolher conscientemente segui-lo em sua pobreza e
humildade, perseguições e injúrias, sofridas como consequência da entrega à cruz pela redenção
do mundo. Para alcançar o objetivo de conhecer mais intimamente esse Jesus, ele dá um
destaque especial à composição do lugar80, como elemento imprescindível que coloca a pessoa
que contempla, não no passado, mas na realidade da história
Em meio a tão fortes experiências entende o peregrino “ser vontade de Deus não
continuar em Jerusalém, veio sempre pensando consigo o que faria. Por fim, inclinava-se a
estudar algum tempo para ajudar as almas, e determinava ir para Barcelona” (Aut. 50). Continua
assim, o incansável peregrinar à procura de discernir aonde o Senhor o quer conduzir e quais
os meios para levar aos corações sedentos a benesse do Seu grandioso amor que se dá a Si
mesmo com generosa gratuidade.
78
Os motivos de tamanho rigor são os conflitos políticos e bélicos existentes entre cristãos e mulçumanos, que em
todos os tempos são ameaças para os inocentes.
79
Foi construída no século IV uma Igreja em honra da Ascensão, cuja abóbada ficou aberta, simbolizando o
caminho aberto de Cristo para o céu. Na Idade Média foi restaurada e em seu centro ficava uma pedra com a
marcas dos dois pés, atribuída aos pés de Cristo. Os fiéis beijavam e raspavam o pó como relíquia até que a marca
do pé direito quase desapareceu. (Aut. 47, nota de rodapé 29, p. 55).
80
Este tema será aprofundado no capítulo 2.
49
1.4.2 O desejo ardente de “ajudar as almas”
Sair de Jerusalém não o fez sentar-se à beira do caminho e lastimar por não realizar
o sonho de ficar naquela terra respirando os ares que o Senhor respirou (Aut. 8). Pelo contrário,
ele segue em frente, indiferente quanto ao lugar da missão, mas seguro de querer colocar os pés
em outra estrada e “ajudar as almas”. Essa indiferença diante das escolhas a serem feitas é
trabalhada por ele no Princípio e Fundamento dos Exercícios, em cujo centro está o não querer
uma coisa mais que a outra: “saúde que enfermidade” (EE 23), mas querer somente em tudo
configurar-se a Cristo, seu grande amor e sentido de toda essa caminhada.
Percorrendo com ele o caminho já feito, é possível enxergar seu processo de
maturação espiritual agora sob outro prisma. Não existe mais o homem centrado em si mesmo,
convicto de que a santidade está ao seu alcance só pelas grandes proezas realizadas ou as duras
penitências impostas, mas sim, o peregrino que escuta a voz de Deus ressoar em seu coração,
enchendo-o de claridade e calor, abrindo possibilidades de perceber a vastidão do caminho
missionário que desponta à sua frente.
Esse apelo interior é o chamado apostólico que aponta o horizonte da alteridade e
inflama o desejo de levar o outro ao encontro com Deus numa relação de amor. Eis o tempo
novo, o verdadeiro Kairos derramado em sua vida, fazendo o pobre peregrino Inácio (CE 1)
alargar-se e perguntar insistentemente: “O que fazer? Por onde seguir agora?” (Aut. 50) Toda
a experiência que brota das respostas de Deus é riqueza adquirida e transforma-se em seu
magistério espiritual. Agora está marcado em suas raízes mais profundas. O que fazer não é
anseio de realizar grandes obras e ser reconhecido por elas, mas partilhar todo o amor recebido
com quem quer que seja, vivendo a entrega cada vez mais intensa ao mover do Espírito.
Parte Inácio para Barcelona, Alcalá, Paris. Estuda gramática, teologia, filosofia com
o firme propósito de adquirir conhecimentos necessários para ensinar a doutrina cristã e
continuar a falar das coisas de Deus. Enfrenta tentações do mau espírito, é preso algumas vezes,
sempre sob acusações infundadas. Volta a fazer penitências. Vive de esmolas, enfrenta a
epidemia da peste e sérios problemas de estômago. Exercita-se em dar os Exercícios Espirituais
e “com isso fazia fruto para a glória de Deus. Muitas pessoas subiram alta notícia e gosto de
coisas espirituais” (Aut. 51-84). A ele se juntam os primeiros companheiros em Paris81, e fazem
o voto de gastar suas vidas em proveito das almas no dia 15 de agosto de 1534 (Aut. 85).
81
Pedro Fabro, Francisco Xavier, Diogo Laínez, Afonso Salmerón, Nicolau Afonso Bobadilha, Simão Rodrigues
de Azevedo. Um ano depois juntam-se a eles Cláudio Jaio, João Codure, Pascásio Broet. (Aut. 84, nota de rodapé
38, p. 94).
50
Com eles ordena-se sacerdote em 24 de junho de 1537, fazendo votos de pobreza e
castidade (Aut. 93). Tem muitas consolações, visões espirituais de tamanha importância que o
marcam para sempre, assim como as de Manresa. Quando toma a decisão de ser sacerdote, pede
à Virgem que o coloque com seu Filho. Estando um dia em uma igreja de La Storta fazendo
oração “sentiu tal mudança em sua alma e viu tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo,
seu Filho, que não teria ânimo para duvidar disto, de que o Pai o punha com seu Filho” (Aut.
96). Essa graça é uma resposta ao seu profundo anseio de ser um companheiro de Jesus e possui
uma estreita relação com a iluminação de Manresa, vivida 15 anos antes. Todo o percurso desse
tempo é de um verdadeiro amadurecimento espiritual.
Agora, busca “um oferecimento mais completo de sua vida a serviço de Cristo e
dos homens”. Essa oferta inspira nos Exercícios o pedido incessante ao Pai, com um colóquio
a Maria “para alcançar-me de seu Filho, nosso Senhor, graça para que eu seja recebido sob sua
bandeira” (EE 147), com a firme determinação de viver na pobreza com o Cristo pobre82,
experimentando cada dia mais a verdade desta palavra: “nada tendo e tudo possuindo” (2Cor
6,10) - (CE 11).
Tantas foram as graças recebidas por ele nesse caminho espiritual que não faz outra
coisa senão devolvê-las no serviço ao próximo. Em Roma, funda a obra dos Catecúmenos, para
a conversão dos Judeus e Maometanos, que deu grandes frutos; funda casas para prostitutas que
se arrependem e mudam de vida, provocando grande reforma nos costumes do povo; funda o
Colégio Romano e abre a catequese das crianças e rudes em treze bairros de Roma, “confiada
por Paulo III aos primeiros jesuítas” (Aut. 98).
É o homem da ação que não perde de vista sua ligação profunda e enraizada com o
Senhor. “Sempre crescera em devoção, isto é, em facilidade de encontrar a Deus e agora mais
que em toda a sua vida. Sempre que queria encontrar a Deus o encontrava” (Aut. 99). Ao
celebrar a Eucaristia tem muitas e consoladoras visões, e quando escreve as Constituições, se
acaso lhe apresenta dúvidas na alma, celebra missa cada dia, leva o ponto tratado a Deus e faz
oração sobre ele. “Sempre orava e celebrava com lágrimas” (Aut. 101).
82
PALAORO. 1992, p. 25.
51
Cada trecho do caminho percorrido depois de encontrar a alteridade é feito com o
intuito de “ajudar o próximo a conhecer e amar a Deus, e salvar a sua alma” (CCJ 446), sendo
essa a vocação apostólica da Companhia de Jesus e o significado mais profundo dos Exercícios
Espirituais em sua clara função de conduzir o caminhante até a fonte do incomensurável
Mistério. É com todo o seu ser que ele se entrega a esta grandiosa aventura de amar e servir.
Sair de si à procura de outros. Subir os montes, descer colinas. Alçar voos, vencer neblinas. Ir
solícito, como Maria até Isabel. Sem medo, sem olhar para trás. Sem perder de vista o céu.
Abandonando-se totalmente nas mãos do Senhor, “aonde vais, aonde vou. Seguindo-vos, meu
Senhor, não poderei me perder” (DE 115).
83
Inácio foi acusado de pelagianismo. Para muitos a oração proposta por ele nos Exercícios dependia apenas da
vontade humana para alcançar a Deus, mas pelo contrário, ele afirmava que liberdade e graça são inseparáveis
neste caminho. Pelágio foi um monge que discordou de Agostinho quanto ao fato da liberdade estar em
consonância com a graça. Para ele, “os dons naturais” presentes no homem eram suficientes para vencer o pecado.
84
PALAORO, 1992, p. 53.
85
DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicodinâmica de los Ejercicios ignacianos. Bilbao: Mensajero; Santander:
Sal Terrae, vol. 30, 2003, p. 124.
52
Inácio que é um experimentadíssimo mestre da introspecção, grande
conhecedor das marés interiores do espírito, dos apelos da graça e as maneiras
sutis de resistência que o homem possui, quer mostrar nessa experiência
pessoal que assim como ele fez, cada um pare para pensar, medite, peça a luz
de Deus e enfrente-se com as grandes questões: Deus e eu86.
“Os Exercícios são, com toda certeza, tudo o melhor que nesta vida pude pensar,
sentir e entender, para o homem poder aproveitar a si mesmo, como para poder frutificar, ajudar
e aproveitar a outros muitos” (CE 10). Assim, escreve Inácio ao Padre Manuel Miona em 1536,
definindo o que são os preciosos Exercícios Espirituais. Neles estão contidos a experiência
interior combinada com a experiência apostólica, realizando seu sonho de “ajudar as almas” a
progredirem no caminho pedagógico do Espírito Santo. Ele diz ao Pe. Câmara que não os
escreveu de uma só vez, mas durante todo o percurso do caminho.
Algumas coisas que ele observava em sua alma e as achava úteis a si e lhe
parecia poderem ser úteis aos outros, as punha por escrito, por exemplo, o
exame de consciência com aquele modo de linhas etc. As eleições
especialmente me disse havê-las tirado daquela variedade de espíritos e
pensamentos que tinha quando estava em Loyola doente da perna (Aut. 99).
86
IDIGORAS, 2001, p.67.
53
Antes de entrar na rica experiência das quatro semanas dos Exercícios, que tem
como eixo principal a História da Salvação em seus diversos matizes, da criação à ascensão, é
digno de consideração apontar os elementos importantes que compõem a sua base, a partir de
onde se constrói a experiência. Primeiramente, trata-se de reconhecer que é um método vital
que conduz ao Mistério87, por isso, a simbologia do “caminho” é basilar para a compreensão de
toda sua estrutura.
Num segundo momento, aparece a finalidade dos Exercícios, em que a articulação
entre oração, ordenação das afeições e busca da vontade de Deus, só é possível, se há uma
entrega generosa ao grande condutor desse processo, o Espírito Santo. “Ele é que no tempo
privilegiado da graça leva a pessoa, através de uma catarse progressiva e interna, para o
encontro pessoal com o Deus vivo” (EE 1)88. Deixar-se conduzir por Seu dinamismo é abrir a
porta da interioridade que procura incansavelmente pelas transformações verdadeiras.
Caminhar é fazer história e se deixar invadir pelo imprevisível do dia a dia. Tem
sabor de alegria e dor, escolha e erro, decisão e dúvida, em que contexto histórico, cultura,
costumes, leis, normas, vida social e experiência religiosa influenciam no processo de crescer
e tornar-se pessoa. Todos os seres em todos os lugares do mundo estão sempre a caminho,
fazendo caminho num movimento contínuo de busca da esperança, mas também de retrocessos.
Nem sempre o caminho exterior é reflexo do interior. O caminhante muda de rumo, envereda-
se por caminhos errados, encontra o certo. Há uma responsabilidade pessoal, mas também um
conjunto de fatores que modificam a caminhada feita de complexidade e graça.
O “pôr-se a caminho” (Aut. 11) de Inácio é chave hermenêutica para a compreensão
de todo o processo proposto nos Exercícios. Caminhar é um traço forte em toda sua vida de
peregrinação espiritual, não só pelos inúmeros deslocamentos geográficos, mas também pelo
movimento interno provocado pela comunicação divina, que o transfigura em sua aventura
humana89, lançando-o para a profundidade das águas do Espírito, portadoras da Vida
Verdadeira. É um itinerário de fé, iluminado pela experiência e não um voluntarismo que chega
a uma meta.
87
PALAORO, 1992, p. 56.
88
Nota de rodapé 3, p. 9.
89
PALÁCIO, 2013, p. 72-73.
54
Desse modo, a estrada a ser trilhada pelo exercitante90 dentro dos Exercícios, tem
uma tríplice conotação que carece de entendimento. Primeiramente é caminho que faz “o
Criador agir diretamente com a criatura” (EE 15), numa relação pedagógica, gradual, ritmada,
respeitosa, e estreita-se na medida em que passa pelo conhecimento, afetividade, linguagem,
ação, inteligência. É um processo interior relacional, precisa de tempo para germinar,
generosidade para crescer e fidelidade para permanecer.
A segunda dimensão é o fim ao qual se pretende chegar, isto é, a transformação
pessoal que acontece durante a caminhada, exigindo da pessoa “sair do próprio amor, querer e
interesse” (EE 189), na medida em que é despertado nela uma fidedigna paixão pelo seguimento
de Jesus Crucificado e uma total abertura ao movimento do Espírito em direção a um caminho
de maior serviço e louvor a Deus.
90
Pessoa que se dispõe a mergulhar profundamente no caminho dos Exercícios Espirituais.
91
VÁZQUEZ, Ulpiano. A orientação espiritual: mistagogia e teografia. São Paulo: Loyola, 2001, p. 36.
92
TETLOW, Joseph Allen. Encontrar a Deus em todas as coisas. São Paulo: Loyola, 2006, p. 21.
55
Sendo os Exercícios “a expressão universalizada e metódica, e ao mesmo tempo
extraordinariamente flexível, da experiência de Inácio”93, faz muito sentido a oração ser sua
atividade principal e perpassar todo o caminho, visando ajudar o exercitante a corresponder à
ação da graça divina. Ele a experimenta das formas mais variadas e valoriza sua força de
transformação, pois a fonte de onde brota é o Espírito Santo, o “fogo abrasador” que o orienta
e o conduz ao mais profundo de si mesmo, lá onde o espera Deus.
“Todo aprofundamento na existência, todo pressentimento do mistério diante do
amor, da beleza ou da morte tende para a oração”94. Qualquer que seja sua linguagem, se feita
de gestos, palavras, sentimentos, silêncio, súplica, louvor, adoração, é um meio eficaz para se
fazer a experiência do amor, instrumento valoroso na construção da vida interior e aporte
fundamental para o crescimento da espiritualidade.
Junto à oração, os Exercícios apontam neste trecho do caminho mais dois
movimentos guiados pelo Espírito que devem ser bem observados, pois estão presentes em todo
seu trajeto: a ordenação dos afetos e a busca da vontade de Deus. A articulação entre eles é obra
da graça, mas o exercitante pode ter uma “livre disposição de perder aquela capacidade original
de aderir à vontade de Deus”95, e isso requer uma atenção redobrada e um discernimento
indispensável e atento para não correr o risco de romper um desses horizontes durante a viagem
interior.
Por isso, o caminho dos Exercícios mostra que “é necessário crescer em liberdade,
conhecer-se, e saber das próprias afeições desordenadas, sem estranhar em tê-las”96, mas
desejar ordená-las em prol de um bem maior, buscando sem cessar a vontade divina. A
dinamicidade do Espírito colabora com o crescimento contínuo da responsabilidade do
exercitante de entregar-se livremente à oração, criando espaço para o autoconhecimento, que
se empenha em purificar projeções egoístas e impulsionar o avanço para Deus. “Os exercícios
são o fruto de uma reflexão muito concreta sobre o ato de liberdade, e seu valor universal vem
de que eles expressam dialeticamente os momentos e os elementos essenciais [...] do drama
humano-divino que é a liberdade”97.
93
BARREIRO, Álvaro. Contemplar a vida de Jesus: prática e frutos. São Paulo: Loyola. Coleção Leituras e
Releituras, 2ª ed. 2003, p. 15.
94
CLEMENT, 2003, p. 167.
95
ARZUBIALDE, Santiago. Ejercicios Espirituales de S. Ignacio: historia y analísis. Bilbao: Mensajero;
Santander: Sal Terrae, 2009, p. 90.
96
CORELLA, Jesús. Dinâmica del deseo y de las afecciones desordenadas em processo de los Ejercicios (1).
Manresa 66, 1994, p. 157.
97
SAMPAIO, Alfredo. Um equilíbrio difícil: graça e liberdade nos EE de Santo Inácio. ITAICI - Revista de
Espiritualidade Inaciana 90, 2012, p. 37.
56
1.5.3 A História da Salvação nos Exercícios Espirituais
98
GONZALEZ, Luis; IPARRAGUIRRE, Ignacio. Ejercicios Espirituales, comentário pastoral. Madrid:
Biblioteca de Autores cristãos, 1965, vol. 144.
99
CEI-ITAICI. A força da metodologia nos Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 2002. Coleção Leituras e
Releituras, p. 30-42.
57
1.5.3.1 O amor-amizade entre Deus e o ser humano
“O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e,
assim, salvar-se”. Esse é um texto “claramente antropológico”, que coloca em evidência a
abertura da pessoa à transcendência divina, sentido último da existência100. Sua criaturalidade
estabelece com Deus um forte vínculo de amizade que a conduz ao sentido profundo e
orientação fundamental da vida: maior serviço e louvor. É uma experiência de fé vivida com
radicalidade, despojamento de si e consciência de que, “as outras coisas sobre a face da terra
são criadas para o ser humano e para o ajudarem a atingir o fim para o qual foi criado” (EE 23).
Do seio da mãe Terra brota a água pura que ao barro se mistura. E as mãos
sedentas do Amor modelam a amada criatura. Numa explosão de alegria a
vida se inicia e quando o Amor envolve tudo, o ser se deixa amar. Na grande
descoberta o sentir profundo do caminhar no mundo, e o coração responde ao
chamado, abrindo-se à fé. O Amor assim, seja amado, servido e louvado e a
esperança alcance o outro que põe-se a caminhar.
Que não queiramos mais saúde que enfermidade, riqueza que pobreza, honra
que desonra, vida longa que vida breve, desejando e escolhendo somente
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados (EE 23).
100
ARZUBIALDE, 2009, p. 113.
101
PALAORO, 1992, p. 87.
58
1.5.3.2 O processo de conversão à luz do mistério de Cristo
Trazer à memória o pecado dos anjos, isto é, recordar como foram criados na
graça. Não quiseram, no entanto, servir-se de sua liberdade para prestar
reverência e obediência a seu Criador e Senhor [...]. Trazer à memória o
pecado dos primeiros pais [...] e quanta corrupção veio disso ao gênero
humano. Trazer à memória o pecado de cada pessoa, agindo contra a bondade
infinita do seu Criador e Senhor (EE 50-52).
Por outro lado, ele insere todo esse dinamismo de quebra no movimento da graça.
“É aprendizado contínuo das maneiras como Deus atua e como o pecado se faz presente na
história humana e na história pessoal”103. As considerações feitas a esse respeito nesta semana
são em clima de “vergonha e confusão a meu próprio respeito, vendo quanta gente foi
condenada por um só pecado mortal e quantas vezes mereci ser condenado para sempre por
meus numerosos pecados” (EE 48), e ainda “pedir profunda e intensa dor e lágrimas” (EE 55,4),
não com o objetivo de arrastar o exercitante para a culpabilidade, ou a se fechar no pessimismo,
mas sim, encontrar-se com o perdão que brota da fonte do amor de Deus e revela que “onde
abundou o pecado superabundou a graça” (Rm 5,20)104.
É experiência da misericórdia divina que, em seu Filho Jesus, salva e arranca dessa
condição pecadora, através do seu chamado105. Diante do Crucificado é possível passar das
trevas à luz, da autossuficiência à necessidade intrínseca de ser salvo, do silêncio infértil ao
diálogo misericordioso. O processo toma forma na leitura redentora da própria história e na
reconstrução integral da identidade ferida pelo pecado, mas ao mesmo tempo, envolvida por
completo nos braços compassivos do Pai.
102
FILHO, 1994, p. 45.
103
MAGAÑA, Álvaro Quiroz; OSORIO, Hermann Rodriguez (org). Exercícios Espirituais na América Latina.
Rio de Janeiro: CPAL, 2011, p. 25.
104
PALAORO, 1992, p. 89-90.
105
PALÁCIO, Carlos. Para uma teologia do existir cristão. Leitura da segunda semana dos Exercícios Espirituais.
Perspectiva Teológica 16, 1984, p. 175.
59
Desse modo, o exercitante é chamado a viver uma profunda humildade à
semelhança de Cristo na cruz, e olhando para si mesmo se perguntar “O que tenho feito, faço e
devo fazer por Cristo?” (EE 53). “A espiritualidade que daqui resulta não é a de uma pessoa
que sai à procura de Deus fora do mundo, mas é a de um Deus que vem ao encontro da pessoa
em sua situação histórica de pecado e de dor”106.
106
FILHO, 1994, p. 86.
107
PALÁCIO, 2013, p. 12.
108
Op. cit., 1994, p. 45.
109
É a semana mais extensa dos Exercícios. Sua novidade “é acrescentar à experiência de sentir-se perdoado o
sentir-se chamado. Conversão do coração, chamamento para a missão, duas etapas que revelam a obra de Jesus;
duas etapas consecutivas e inseparáveis. Cristo nos liberta para segui-lo; e é através do seguimento do Senhor que
iremos encontrar a vontade de Deus para nossa vida”. (Cf. PALAORO, 1992, p. 92).
110
“É um exercício que procura a transição da experiência do amor salvador, que perdoa, para uma experiência do
amor Salvador, que continua atuando na história”. (EE 91, nota de rodapé 108, p. 49).
60
Inácio considera decisivo que a união do exercitante à pessoa de Jesus, deve se
estender também à sua missão, e para isso é imprescindível uma atitude de total disponibilidade
em conformar-se à vida dele. Pacificado e reconciliado com Deus, consigo mesmo e com o
mundo, profundamente tocado pela misericórdia divina, o ser entra nessa semana pedindo “a
graça de não ser surdo a seu chamado, mas pronto e diligente para cumprir sua santíssima
vontade” (EE 91,4). Quem ouve o chamado não se isenta dos sofrimentos, mas identifica-se
com a sua Pessoa, participa do seu Senhorio, oferta a própria vida, coloca-se a serviço (EE 98).
A resposta ao chamado do Rei eterno, leva o exercitante a entrar na
Contemplação111 da Encarnação (EE 101-109)112, e aventurar-se a conhecer este Homem de
Nazaré a partir de sua vinda à terra para fazer a redenção do gênero humano (EE 107,2). Nesse
caminho, pede a graça de alcançar “o conhecimento interno do Senhor que por mim se fez
homem, para que eu mais o ame e siga” (EE 104). Penetrar esse mistério é tomar consciência
de uma “realidade espiritual cuja compreensão é possível, mas inesgotável. Não há uma palavra
definitiva sobre Ele, pois sempre há um caminho a percorrer”113.
Tal experiência de conhecimento do Senhor alimenta a mística do apaixonamento
por Ele e impulsiona o exercitante a fazer sua Eleição114, escolhendo participar da Aliança
salvífica oferecida pelo Deus de amor, que quer uma entrega humilde e solidária ao serviço dos
pequenos, dos maltratados, dos pobres, sob a ação transformadora do Espírito de Jesus Cristo.
“Assim, qualquer coisa que eu escolher deve ajudar-me a atingir o fim para o qual sou criado,
sem ordenar e trazer o fim para o meio, mas o meio para o fim” (EE 169).
Nos exercícios não temos um tratado sistemático sobre Jesus Cristo; tampouco
pretendem dar um conhecimento completo sobre sua vida. O que propõem é
que se busque e se encontre a vontade divina mediante um encontro
transformador com Cristo115.
111
“O método proposto por Inácio para a assimilação pessoal do mistério de Cristo (conhecer-amar) e para
configuração com ele (seguir) não é o da meditação segundo as três potências. Propõe contemplações a partir das
narrações evangélicas”. (EE 101, nota de rodapé 122, p. 53).
112
Há uma incrível identidade entre essa Contemplação da Encarnação proposta por Inácio, que destaca a cegueira
humana, ou seja, o pecado, como causa da vinda do Verbo à terra e o escrito de Santo Atanásio “A Encarnação do
Verbo” (cf. São Paulo: Paulus, 2010, Coleção Patrística), em cujo centro está a afirmação que a redenção aconteceu
pela negligência humana ao abandonar a contemplação de Deus. É bastante provável, segundo seus biógrafos, que
Inácio não tenha lido Atanásio, no entanto, os dois encontram o ponto comum, um, pela experiência própria e o
outro pela razão teológica, que também tem seu chão na experiência.
113
FILHO, 1994, p. 86.
114
Para muitos estudiosos é o ponto máximo de todo o caminho dos Exercícios Espirituais. “Momento privilegiado
e decisivo para descobrir e dizer sim à vontade divina”, segundo o estilo da vida de Cristo e as inspirações do
Espírito. Cf. SAMPAIO, Alfredo. Elección. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero;
Santander: Sal Terrae, 2007, p. 726-733. O processo da eleição não chega ao fim no término dos Exercícios, mas
continua pela vida afora, sempre em busca da vontade divina.
115
PIRES, Claúdio. A função da Sagrada Escritura na segunda semana dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.
Roma: Pontifícia Universitas Gregoriana, 1981, p. 21.
61
1.5.3.4 O amor apaixonado a Cristo crucificado
116
ARZUBIALDE, 2009, p. 502.
62
1.5.3.5 A alegria da vida nova em Cristo
117
ARZUBIALDE, 2009, p. 539.
118
FILHO, 1994, p. 213.
63
1.6 Conclusão: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear
as coisas internamente”
64
CAPÍTULO 2
“CONTEMPLAÇÃO PARA ALCANÇAR AMOR”
1
VÁZQUEZ, 2005, p. 19.
2
PALAORO, 1992, p. 87.
3
ARZUBIALDE, 2009, p. 559.
4
Op. cit., 2005, p. 20.
5
GARCÍA, José. De los Ejercicios a la vida ordinária: La Contemplación para alcanzar amor. Manresa 79, 2007,
p. 166.
6
IPARRAGUIRRE, Ignacio. Lineas directivas de los ejercicios ignacianos. Bilbao: Mensajero, 1949, p. 59.
65
Amor é o eixo central onde se revela a doação incondicional do Deus trinitário, que
na realidade da História da Salvação oferta seu Filho amado (cf. 1 Jo 4,10). É o fio condutor da
jornada espiritual de Inácio e horizonte último da mística inaciana, em que fica claro que é amor
experimentado na interioridade, transformado em entrega a Cristo, pobre e humilde, nascido do
agradecimento por sua oblação a toda humanidade (EE 98). “Só consegue experimentar a
transparência divina das coisas quem encontra a Deus, não só onde Ele queira ser encontrado,
mas onde Ele está abaixado ao mais denso, ao mais fechado ao divino [...] à Cruz de Cristo”7,
expressão fecunda de um amor maior.
7
RAHNER, K., Meditaciones sobre los Ejercicios de San Ignacio. Barcelona: Herder, 1979, p. 259-260.
8
BINGEMER, 1990, p. 306.
9
ARZUBIALDE, 2009, p. 486. Autores como Nadal, Polanco, González Dávila, o Directorium Granatense e os
Diretórios de 1591 e 1599 relacionam esta Contemplação com a via unitiva, por isso o lugar dela há de ser sempre
junto à quarta semana. (Cf. CUSSON, 1973, p. 262-275).
10
GARCÍA RODRÍGUEZ, Antonio. Amor. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero;
Santander: Terrae, 2007, p. 149.
11
SAMPAIO, Alfredo. Praticar na vida cotidiana a dinâmica dos Exercícios: o fruto da Contemplação para
alcançar o Amor. ITAICI - Revista de Espiritualidade Inaciana 68, 2007, p. 36.
12
VON BALTHASAR, Hans Urs. Textos de Ejercicios Espirituales. Bilbao: Mensagero; Santander: Sal Terrae,
2009, p. 253.
66
Há uma circularidade nesse caminho, onde a Contemplação para alcançar amor
representa uma volta ao Princípio e Fundamento, e este, uma ida até a Contemplação13. No
ponto de partida nasce a vocação humana para a reverência, o louvor e o serviço (EE 23), e no
ponto de chegada, o reconhecimento dos dons recebidos expressam o desejo profundo de
transformar o amor em gestos (EE 230).
Quem orienta essa pedagogia espiritual é o Espírito Santo, o Mestre interior: “ora
chamando a atenção para um aspecto do assunto proposto; ora despertando sua memória; ora
iluminando ou propondo algo novo através das moções”. Ele, “a virtude divina”, que ilumina o
entendimento (EE 2) atrai à oração, sendo seu autor principal, “instruindo, movendo e
robustecendo o exercitante14.
Este capítulo privilegia a estrutura da Contemplação para alcançar amor, com a
finalidade de mostrar seus traços presentes nas quatro semanas e seu valor na compreensão do
percurso feito nos Exercícios; acentuar sua característica de ser ponte que leva o exercitante de
volta à realidade; provocar a reflexão sobre o amor a ser alcançado na oração, como centro da
identidade cristã e motor da sua práxis.
13
BINGEMER, 1990, p. 306.
14
Nota de rodapé 10, p. 11.
15
MALDANER, Maria Fátima. Contemplação para alcançar o Amor. ITAICI - Revista de Espiritualidade
Inaciana 14, 2007, p. 63.
16
PALAORO, 1992, p. 81.
17
ZAS FRIZ, Rossano. Composiçión de lugar. Diccionario de Espiritulidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero;
Santander: Sal Terrae, 2007, p. 360
67
O segundo passo alcança os quatro pontos que representam “a lógica trinitária do
amor”18 expressa no reconhecimento agradecido do exercitante dos “benefícios recebidos pela
criação, redenção e dons particulares”, ajudando-lhe a ponderar “com afeto” o quanto Deus dá-
se a Si mesmo, em Cristo, pelo Espírito, possibilitando-o “alcançar” em profundidade esse
Amor e responder a ele, amando (EE 234). Perceber Sua presença em “todas as criaturas” (EE
235), crescer na colaboração constante com Seu trabalho no mundo (EE 236), e na consciência
de que “todos os bens e dons descem do alto” (EE 237), para a realidade sensível, onde é
possível “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (CCJ 288).
As duas notas preliminares “dão a tônica daquilo que a Contemplação pretende
suscitar”19. São trabalhadas em separado nesta pesquisa no primeiro e no terceiro capítulos,
com a pretensão de destacar a importância delas para dar unidade ao trabalho. No primeiro
capítulo a nota usada é “o amor é comunicação de ambas as partes” (EE 231), e o intuito é de
evidenciar que a experiência fundante da vida espiritual de Inácio é a comunicação de Deus. A
resposta dada por ele é a livre oferta de si mesmo. No terceiro capítulo, a nota empregada é “o
amor consiste mais em obras do que palavras” (EE 230), fruto da Contemplação, que possibilita
ao exercitante abrir-se à realização de uma práxis do serviço, fundamentada no chamado de
Jesus Cristo e na disposição de transformar o amor recebido em amor doado.
A Contemplação para alcançar amor é aporte importante na reflexão sobre a
unidade imprescindível que deve haver entre oração e práxis, pois em sua estrutura há uma
conformidade entre as duas dimensões solidamente construídas. Partindo da experiência de ser
amado, é possível chegar à consciência da seriedade e do compromisso que o cristão é chamado
a assumir ao professar a fé no Deus-Trino. Viver em sua intimidade e ao mesmo tempo aprender
a comunicar seu amor, sendo “contemplativo na ação”, mantendo o coração centrado n’Ele,
descobrindo sua presença em cada gesto realizado no dia a dia, consciente de que “ama com o
mesmo amor com que Deus ama a todas as criaturas, porém o “peso” de seu amor só descansa
em Deus (Cf. EE 184. 338)”20.
18
ARZUBIALDE, 2009, p. 569.
19
BINGEMER, 1990, p. 307.
20
TEJERA, Manuel. La cuarta semana em la dinâmica de los Ejercicios Espirituales. Manresa 59, 1987, p. 403.
21
BUELTA, 2007, p. 226.
68
2 O CAMINHO DA CONTEMPLAÇÃO
“A oração é a essência e a vida dos Exercícios”22. Inácio a propõe com toda riqueza
de detalhes ao longo das quatro semanas, tendo o cuidado de explicitar as diversas maneiras de
exercitá-la: “meditar, contemplar, oral vocal e mentalmente”, reforçando sua finalidade de ser
um meio da “pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas e
encontrar a vontade divina” (EE 1).
A contemplação é proposta como um modo específico de orar a partir da segunda
semana dos Exercícios Espirituais (EE 101), quando se inicia o caminho de contemplar os
mistérios da vida de Cristo – “só compreensível na totalidade das etapas e na sua mútua
relação”23. O objetivo dessa proposta é alcançar a graça de configurar-se a Ele inteiramente no
amor: “amar e seguir” (EE 104); “imitar” (EE 109); escolher o que for para Sua maior glória
(EE 152); juntar-se à sua dor (EE 203); pedir a graça de sentir intensa e profunda alegria com
Ele (EE 221); “amar e servir” (EE 233). O processo desencadeia uma “transformação
progressiva” que modifica a percepção da realidade e “a maneira de estar presente nela” como
seguidor de Cristo24.
Na Contemplação para alcançar amor, o exercitante que mergulha inteiramente na
vida de Jesus Cristo e deixa-se transfigurar por Ele, agora é convidado a contemplar “o mistério
do Deus Criador e do Deus Redentor, do Deus que dá a vida e que conserva o universo, de
quem tudo procede e para quem tudo retorna”25. É a sua Autocomunicação que gera vida,
livremente, e a tudo configura numa unidade indissolúvel. O êxtase desse amor é a doação plena
de Si que desce26 ao mundo e se faz presente em toda a realidade: “nos elementos dando o ser;
nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva (EE
235). Esse convite sustenta o caminho da Contemplação e assinala a importância de percorrê-
la, entregando-se a uma experiência de desarmar-se das defesas, desfazer-se das garantias,
despojar-se de si mesmo, do “eu” egoísta, e audaciosamente, na mais absoluta nudez, navegar
pelos mares insondáveis do Mistério, sem rota, sem cais, sem medo. Livre, entregue,
abandonado nas mãos bondosas do Amor.
22
PALAORO, 1992, p. 79.
23
PALÁCIO, Carlos. Os “mistérios” da vida de Cristo nos Exercícios Espirituais. ITAICI- Revista de
Espiritualidade Inaciana 8, 1992, p. 40.
24
Ibid., p. 38.
25
Op. cit., 1992, p. 115.
26
Karl Rahner é provavelmente o único teólogo que usa este termo com propriedade para explicitar a
autocomunicação de Deus, na Palavra eterna, que desce à Criação e permanece na história dando a Si mesmo e em
contrapartida, deseja que o ser desça ao mais secreto de si e encontre-se com Ele.
69
“A oração de contemplação é o protótipo da oração afetiva, e por isso é também
conhecida como ‘oração do coração’, para distingui-la de outros modos de orar”27. Não é um
modelo exclusivo criado por Inácio, mas ele acrescenta a imaginação como um elemento chave
que a distingue da contemplação clássica, iniciada na tradição cristã com os Padres da Igreja.
Estes exaltam o grande valor da contemplação, não como um fim em si mesma, mas uma
mediação para se alcançar a união plena com Deus. Apoiados na certeza de que há no espírito
humano uma necessidade de “nutrir-se da verdade”, contemplar é então a melhor maneira de
obter a satisfação de tal desejo, tendo em vista aderir ao mistério da fé de forma absoluta28. Tem
fundamental importância na vida monástica e perpassa a história dos grandes místicos como
São João da Cruz, Teresa de Ávila e tantos outros com características próprias e muita
vitalidade, gerando inúmeros frutos.
Contemplar é um escavar, perfurar a superfície do coração e alcançar o núcleo mais
secreto que contém os sinais do Mistério29. Entrar no espaço sagrado onde habita o
Transcendente, inebriar-se de sua presença inefável e, no silêncio deslumbrado, submergir
nesse mistério e “ver”30 além das realidades externas e aparentes. Atravessar a densidade do
humano e chegar à transparência, num encontro que a tudo transfigura. “Vai além dos lábios e
da mente, portanto, não centrado no processo discursivo dos pensamentos, mas sim, situa-se
em chave de amizade, de gratuidade, de fascinação, cercada do enamoramento”31. Aparenta ser
ineficaz, pois não é especulação, nem discurso, nem reflexão teológica ou exegética32, mas
simplesmente contemplação, sensibilidade que saboreia internamente. Instrumento poderoso
para se chegar ao conhecimento interno, profundo e afetivo do Deus-Amor.
27
GUILLEN, Antonio T. Contemplación. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Ediciones Mensajero;
Santander: Editorial Sal Terrae, 2007, p. 445.
28
BERNARD, Ch. A. Contemplação. Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas; Portugal: Paulistas,
1989, p. 185-186.
29
BORRIELLO, L. CARVANA, E. DELGENIO, M.R.; SUFFI, N. Contemplação. Dicionário de Mística. São
Paulo: Loyola, 2003, p. 261.
30
Ver com os olhos interiores, esta é a grande novidade de Inácio ao propor a contemplação. Ver a cena bíblica
para entrar nela e captar o que de mais essencial ela contém.
31
GUILLEN, 2007, p. 446.
32
ARZUBIALDE, 2009, p. 331.
33
Ibid., p. 113.
70
A Contemplação para alcançar amor traça seu caminho envolvendo a totalidade das
dimensões humanas. Afeto, imaginação, conhecimento interno, integram-se numa relação
ritmada e harmoniosa, que preparam o exercitante para mergulhar integralmente na “lógica
trinitária do amor”, em cujo núcleo está a Bondade divina imersa em toda a Criação, doando-
Se infinitamente, provocando na vida humana a entrega sincera da memória, da vontade, do
entendimento e da liberdade. É oração e tem força suficiente para transformar coração e
realidade, potencializando as estruturas fundamentais do ser e aflorando a criatividade, o
encanto, a beleza, a reciprocidade.
34
www.conceito.de/ritmo.
71
Inácio propõe a mesma estrutura inicial em cada contemplação nos Exercícios,
dando-lhe merecida legitimidade: “Antes de começar a contemplação ou meditação, deve-se
fazer sempre a oração preparatória, sem mudá-la. Também devem ser feitos os dois
preâmbulos” (EE 49). Há uma interligação explícita entre esses três elementos que conduzem
de forma cadenciada à “meta de buscar e achar, buscar desejando e achar discernindo a vontade
de Deus”35.
“A oração preparatória37, consiste em pedir a graça a Deus nosso Senhor para que
todas as intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas a serviço e louvor de sua
divina Majestade” (EE 46). É uma “prescrição metodológica” de Inácio presente desde a
primeira semana que, por sua própria determinação, permanece constante e invariável ao longo
de todo processo dos Exercícios (EE 49). Inspira seu itinerário e apresenta-lhe um horizonte
constante de “encerrar em si o núcleo da experiência vivida no Princípio e Fundamento”, em
cuja base está a consciência da realidade de que a vida humana é criada para “louvar, reverenciar
e servir a Deus38, desejando e escolhendo somente aquilo que mais conduz ao fim” (EE 23).
Diante dessa compreensão, a oração preparatória apresenta a condição de
possibilidade de “deslocar a criatura para colocar no centro o Criador”39, movendo todo o seu
mundo interior em uma única direção do “serviço e louvor”. Expressa de forma ajustada a
radicalidade do esvaziamento de si exigida desde o início da trajetória com o Deus de Jesus
Cristo “que sendo rico de todas as coisas, despojou-se de tudo para nos dar exemplo” (CE 11),
abrindo os horizontes da existência humana que procura pelo sentido40 do que seja configurar-
se à vida d’Ele que vive a verdadeira e livre Kenosis.
35
GARCÍA HIRSCHFELD, Carlos. Preámbulos. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero;
Santander: Sal Terrae, 2007, p. 1472.
36
CUSSON, Gilles. Experiencia personal del mistério de salvación. Madrid: Apostolado de La Prensa, 1973, p.
100.
37
Presente nos EE 46. 55,2. 65,2. 91,2. 101,2. 110,2. 136,2. 149,2. 190,2. 218,1. 231,3.
38
GARCÍA HIRSCHFELD, Carlos. Oración Preparatoria. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao:
Mensajero; Santander: Sal Terrae, 2007, p. 1377.
39
SANTANA, Roberto González. En todo amar y servir: estudo sincrónico sobre el texto de los Ejercicios
Espirituales de San Ignacio de Loyola. México: Obra Nacional de la Buena Prensa, 2000, p. 103.
40
SOBRINO, Jon. O Cristo dos Ejercicios de San Ignacio. Santander: Sal Terrae, 1990, p. 24-25.
72
Essa oração inicia o movimento ritmado do caminho da contemplação, acentuando
o ordenar consciente de toda a pessoa, ponto fulcral que conduz de forma objetiva e
incondicional à finalidade dos Exercícios: mover os afetos à uma constante e ininterrupta
ordenação na direção de encontrar a vontade divina (EE 1).
A importância dos afetos para Inácio de Loyola é expressa nos Exercícios das mais
variadas formas. Ele afirma nas anotações que em todo o itinerário usa-se “o entendimento,
refletindo, e a vontade afeiçoando-se” (EE 3). Portanto, o exercitante é convidado a “despertar
mais os afetos com a vontade” (EE 50,6); chegar a uma “exclamação admirativa, com intenso
afeto” (EE 60); reconhecer que Deus tem se dado a Si mesmo “ponderando com muito afeto”
(EE 234); encher-se de gratidão pelo quanto Ele tem comunicado seu amor e despertado desejos
de responder a Ele, amando41. Essa dinâmica impele a pessoa a estabelecer com Deus uma
união das vontades, que resulta numa comunhão vital do Amor.
O afeto suficientemente ordenado inclina-se de modo natural e espontâneo a desejar
só a Deus como bem supremo. Todo o método de Inácio é orientado para a ordenação desse
afeto, e neste ponto, sua originalidade é extraordinária diante da realidade que o cerca,
principalmente em se tratando do ambiente eclesial em que vive42. Aí reside sua grande força e
o segredo da permanência dos Exercícios no decorrer da história, pois toca num ponto, que
mesmo suscitando controvérsias, resistências e temores, dificuldades que inibem o
entendimento, a afetividade é fundamental em qualquer época e lugar, pois faz parte da
constituição humana, ainda que negada, malvista ou deixada de lado.
Ele valoriza dignamente o terreno afetivo ao inserir em seu seio a semente da
instauração de um novo objeto de amor: “Jesus e seu Reino”43. Para chegar a esse fim, é preciso
que “todas as intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas” (EE 231,3). Essa
linguagem da totalidade usada por Inácio nos Exercícios deixa claro que a experiência de Deus
exige a entrega de “tudo” com generosidade, sem mesquinhez ou reservas, pois só assim a
ordenação interior conduzirá a pessoa que ora a uma verdadeira descoberta do que é ser livre.
41
DOMÍNGUEZ, Luis M. Afecto. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 95.
42
Final da Idade Média, que ainda carrega marcas profundas da negação ou quem sabe do desconhecimento da
afetividade como algo intrínseco no ser humano.
43
DOMÍNGUEZ MORANO, 2003, p. 140.
73
A totalidade tem um lugar especial na Contemplação para alcançar amor, que além
de estar presente na oração preparatória, encontra-se também no pedido da graça, cujo querer
está voltado inteiramente para “em tudo amar e servir” (EE 233); no primeiro ponto, em sua
oração de entrega “Tomai, Senhor, e recebei”, aparece com destaque diversas vezes: “toda a
minha liberdade, memória, entendimento, vontade”, “tudo o que tenho ou possuo”, “tudo é
vosso” (EE 234); no terceiro ponto que diz “em todas as coisas criadas” (EE 236); e ainda no
quarto ponto, onde se refere a Deus como fonte de “todos os bens e dons” (EE 237). Tudo na
criatura foi feito para direcionar-se ao Criador, todas as intenções, ações e operações.
As intenções são as infinitas possibilidades e desejos que existem na pessoa,
vivenciados como projetos e direcionados ao futuro que ainda não se tem domínio. As ações
ou movimentos, impulso e energia, manifestações, são o resultado final do processo, sua práxis
no tempo presente em contato com a realidade44. As operações se movem no seu mundo
interior, onde é formada a personalidade e faz emergir os atos concretos. A essas faculdades
que a tornam profundamente humana, juntam-se também a memória, em que é possível reviver
e assumir o passado ou tirar proveito das inúmeras experiências; o entendimento, como a
capacidade de entender para comparar, julgar e deduzir outras coisas a partir das que já se
conhecem, e a vontade, potencial de decidir, levar adiante o que quer e deseja45. É o espaço
onde moram as afeições46.
“Puramente ordenadas a serviço e louvor de sua divina Majestade” se contrapõem
à desordem que a finalidade descrita na primeira anotação deixa claro: “todo modo de preparar
e dispor a alma para tirar de si todas as afeições desordenadas” (EE 1). Isso implica uma
participação integral da pessoa e uma “ação misteriosa de Deus em sua alma”47. Por isso, a
oração preparatória coloca em ordem os movimentos internos do exercitante e dá o ritmo
inicial da Contemplação, orientando seu coração para aprofundar um pouco mais no próximo
passo, a composição do lugar, onde é possível ver além das realidades externas, usando a
imaginação como instrumento valioso nesse percurso.
Pois o ser humano que não pode se ocupar inteiramente do único necessário
deve, pelo menos, colocar todo o seu ser em ordenar todos os diferentes
negócios que o ocupam e solicitam (CE 11).
44
MELLONI, 2001, p. 114.
45
GARCÍA HIRSCHFELD. Oración Preparatoria, 2007, p. 1378.
46
MOLINA, Diego. Meditación con las tres potencias. Manresa 81, 2009, p. 105-106.
47
DOMÍNGUEZ MORANO, 2003, p. 146.
74
2.1.2 Composição do lugar
48
Presente nos EE 47. 55. 65. 91. 103. 112. 138. 151. 192. 220. 232.
49
ZAS FRIZ, Composición de lugar, 2007, p. 360.
50
PALAORO, 1992, p. 81.
51
Nota de rodapé 63, p. 33.
52
Este pensamento entra em sintonia com a teologia da Oração Eucarística. Nela, as intercessões, exprimem que
a “Eucaristia é celebrada em comunhão com toda a Igreja, tanto celeste como terrestre, e que a oblação é feita por
ela e por todos os seus membros, vivos e defuntos, os quais foram chamados a participar da redenção e da salvação
adquiridas pelo Corpo e Sangue e Cristo” (Missal cotidiano. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 8*). Há uma troca de
dons entre o céu e a terra, a “comunhão dos santos”, professada no Credo.
75
A composição de lugar é um horizonte amplo que, com os afetos ordenados, facilita
ver além. Ajustado à petição da graça, “os dois preâmbulos assinalam ao longo das quatro
semanas o ritmo do desejo e da vontade, ajudados pela imaginação e marcam de modo singular
a mistagogia dos Exercícios”53, guiada pelo Espírito Santo, visando somente o encontro afetivo
e efetivo com o olhar de amor infinito de Deus. A pessoa por inteira mergulha na vastidão do
mar interior rompe com fronteiras de tempo e espaço, alcançando o que só os olhos da
imaginação podem ver.
53
ZAS FRIZ, 2007, p. 360.
54
HORMAZA, Maria Luz. La contemplación ignaciana, caminho de encuentro. Manresa 81, 2009, p. 114.
55
FRICK, Eckhard. Imaginación. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 990.
76
Todavia, a imaginação tem sua ambiguidade e pode tranquilamente levar por outros
caminhos que não sejam o do encontro com o Senhor. “O inimigo costuma propor prazeres
aparentes às pessoas que vão de pecado mortal em pecado mortal, fazendo-as imaginar deleites
e prazeres sensuais” (EE 314). Por isso, Inácio chama a atenção para usar os sentidos espirituais,
pois, “não é um recurso para sujeitar a fantasia”56, mas instrumento para assegurar-se da
presença divina e centrar-se na afetividade. É um simples deixar-se olhar, tocar, assombrar-se,
afetar-se pelo que se contempla. Exige uma disposição para entrar na cena descrita e ver, ouvir,
observar, sentir, prestar atenção, fazer parte, saborear57. O cenário que a imaginação cria
permite que aconteça a petição, autêntica chave espiritual da graça que se espera alcançar58.
56
GARCÍA HIRSCHFELD. Preámbulos, 2007, p. 1471.
57
HORMAZA, Manresa 81, 2009, p. 117-118.
58
GARCÍA, José. De los Ejercicios a la vida ordinária: La Contemplación para alcanzar amor. Manresa 79,
2007, p. 157.
59
Encontra-se também nos EE 48. 55,4. 65,4. 91,4. 104. 139. 152. 193. 221.
60
PALAORO, 1992, p. 82.
61
Encontram-se nos EE 20. 98. 167. 199. 350.
62
DOMÍNGUEZ MORANO, 2003, p. 141-142.
63
Nota de rodapé 66, p. 33.
77
Não equivale a desejar um conhecimento externo, mas conhecer por dentro, a partir
de dentro, de modo que toque todas as fibras da interioridade. Trata-se de conhecer
internamente para aprender a “amar e servir”. “Deve ter algo a ver com o amor ao Senhor e
com o amor àquilo que ele mostra, que é amar”64. É viver no mundo como lugar onde Ele se
revela e espera pelo amor e o serviço de cada um dos seus filhos e filhas, aprendizes de que
“tanto amor recebido gera um amor totalmente entregue”65.
64
VÁZQUEZ, 2005, p. 10.
65
GARCIA, 2007, p. 157.
66
LACERDA, Milton Paulo. “Em tuas mãos, Senhor...!”: aspectos psicológicos da petição da 2ª semana dos EE.
ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana 76, 2009, p. 52.
67
PALÁCIO, 2013, p. 164.
68
Nota de rodapé 216, p. 92.
78
Tal conhecimento não é o abstrato e intelectual que a razão moderna enfatizou, nem
está relacionado somente a sentimentos e emoções incontroláveis. É um ato que envolve a
pessoa como um todo na sua dimensão antropológica mais profunda. Suas raízes estão fincadas
no coração, onde afeto e desejo são imprescindíveis no movimento de ver a partir de dentro e
se identificar com o que é visto, numa dinâmica crescente de autoconhecer-se69.
É conhecimento experimental de tanto amor recebido gratuitamente (operativo e
comunicativo) para que, ao se sentir tão amado, sinta-se movido a amar, oferecendo-se. Servir
é um modo do amado comunicar-se com o amante. “Em tudo amar e servir significa participar
na missão do Filho, único Salvador dos homens e do mundo”70, e saborear a bondade de Deus.
Isso não é uma norma a ser seguida nesse itinerário da oração, mas impulso vital nascido dos
desejos mais profundos de realmente alcançar a graça de conhecer esse amor, que plenifica a
estrutura humanamente divina de cada ser.
Conhecer, amar e servir refletem a compreensão de Inácio a respeito do ser humano,
acentuando a força da purificação que limpa as “três janelas da vida cristã: o conhecimento, que
sem purificar-se cai facilmente nas ilusões e ideologias; o amor que se desvia para afeições não
trabalhadas, e o serviço que se perde nos radicalismos e disputas”71. Inácio pede sempre muito
cuidado, porque o mau espírito penetra essas vias, modifica percepções e impede a capacidade
de avançar. “Pois é próprio do mau espírito remorder, entristecer e pôr impedimentos,
inquietando com falsas razões para que a pessoa não vá adiante” (EE 315,2).
O que realmente é conhecido é possível comunicar a outros. Há uma intensa relação
entre conhecimento e amor, que São João tão bem define: “porque conhecemos o Filho, estamos
em comunhão com ele” (1Jo 2,3). Conhecer é se dispor a entregar-se ao Amor
apaixonadamente. Inácio é convicto disso e assume que sua missão está impregnada desse
desejo ardente: “Animarei as pessoas a melhor conhecer e amar seu Criador e Senhor” (CE 21).
A oração nunca te deixa onde te encontras. Leva-te sempre para outro lugar,
mesmo quando as palavras se repetem. É um pouco como caminhar, os passos
são sempre iguais, mas devagar, vais avançando ao encontro de novas
paisagens. [...]. A oração tem ajudado a mudar a tua relação com Deus e com
os irmãos. Mudou e continua a mudar a tua paisagem interior, levando-te a
lugares que não conhecias72.
69
PALÁCIO, 2013, p. 159.
70
SAMPAIO, Revista de Espiritualidade Inaciana 68, 2007, p. 35.
71
LIBANIO, João Batista. A petição da segunda semana dos Exercícios: “conhecimento interno para que eu mais
o ame e o siga” (EE 104). ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana 76, 2009, p. 39.
72
www.passo-a-rezar.net.
79
O ritmo que marca a oração preparatória, a composição do lugar e a petição da
graça, permite ao exercitante penetrar consciente e devagar no “coração do mistério”, onde
pulsa incansavelmente a força fecunda do Amor em sua lógica interna, que traz a bondade do
Pai, a misericórdia do Filho e a sabedoria do Espírito a todos os seres humanos.
73
TEJADA, Darío López. Los Ejercicios Espirituales de San Ignacio de Loyola: comentario y textos afines.
Madrid: Edibesa, 2002, p. 667.
74
LERA, Manresa 63, 1991, p. 183.
75
BINGEMER, Maria Clara. Eu, o Outro e os outros: mística inaciana em tempo mutantes e conflitivos. ITAICI
– Revista de Espiritualidade Inaciana 62, 2005, p. 6.
76
ARZUBIALDE, 2009, p. 561.
80
Inácio fala das “Três Pessoas”77 mais explicitamente na Encarnação do que na
Contemplação para alcançar amor. Nela, ele apenas mostra a ação de cada uma das Pessoas,
pedindo ao exercitante para “recordar os benefícios recebidos da criação, redenção e dons
particulares” (EE 234). Todo amor experimentado nesse caminho sustenta sua fé em crer que o
Pai ama e salva por meio do Mistério Pascal do Filho, que desde a cruz irradia o Espírito Santo
sobre toda a humanidade78.
“Essa Contemplação reúne de uma maneira nova, essencialmente especulativa, a
substância dos diversos temas que as quatro semanas têm proposto em uma sucessão histórica,
cujo núcleo tem sido a vida de Cristo”79. É uma recapitulação. Aponta para a estreita relação
entre as quatro semanas dos Exercícios Espirituais e os quatro pontos da Contemplação. Há
semelhanças entre muitos verbos comuns, presença de termos essenciais e similitude das
principais imagens utilizadas.
Os quatro pontos da Contemplação são uma ação pedagógica de Inácio, níveis de
aprofundamento para descobrir a presença amorosa de Deus em todas as coisas. Apresenta-se
primeiramente entre Ele que se dá e o ser humano que responde, dando-se a si mesmo;
reconhece a presença divina em todos as criaturas, aflorando a consciência da dignidade que há
no corpo, templo do Espírito Santo; percebe Sua atuação no universo e a colaboração a que
todos são chamados a dar; mostra que da Fonte de onde tudo brota, faz nascer com força o
desejo do dom de si entregue aos outros.
Comunicação, gratidão, cooperação e entrega sintetizam esses quatro pontos e os
transformam em uma via espiritual, que alcançam os graus de profundidade da fé, num
movimento espiral. É convite para entrar nas maravilhas do Senhor e “descobrir o quanto Deus
se doa através de seus dons”80, não como uma fantasia que tira os pés do chão da realidade, mas
como um alerta para a missão de nutrir-se desse amor gratuito e levá-lo às incongruentes
situações atuais. Reconhecer o amor de Deus do qual tudo procede e para o qual tudo retorna,
sentir-se envolvido por esse amor e desejar compartilhá-lo com os irmãos é o fruto por
excelência dos Exercícios Espirituais, o qual tende a amadurecer, alimentado na oração
cotidiana, tornando o cristão contemplativo na ação, desperto e consciente, vendo o próprio
Deus em todas as coisas e todas as coisas n’Ele.
77
Sua fé trinitária é mais velada nos Exercícios em comparação com o Diário Espiritual e a Autobiografia.
78
TEJERA, Manresa 59, 1987, p. 383.
79
FESSARD, Gaston. La dialéctica de los Ejercicios Espirituales de san Ignacio de Loyola. Bilbao: Mensajero;
Santander: Sal Terrae, vol. 43, 2010, p. 208.
80
SAMPAIO, Revista de Espiritualidade Inaciana 68, 2007, p. 38.
81
2.2.1 Amar por ser amado
81
FINERAN, Geraldo. O exercício da Contemplação para alcançar amor. ITAICI – Revista de Espiritualidade
Inaciana 1, número especial, 1988, p. 76.
82
Para Inácio, que bebeu nas fontes da escolástica, a memória é a primeira faculdade da alma humana e é
extremamente importante na composição da personalidade.
83
BUELTA, 2007, p. 226.
82
“Ponderando com muito afeto84 quanto Deus nosso Senhor tem feito por mim,
quanto me tem dado daquilo que tem”. Esse é um pedido que a memória recorde e o afeto
considere a realidade em que Deus enche suas mãos e distribui com largueza tudo que tem, pois
o amor que dele vem, não se saboreia em si mesmo, sai de Si e comunica-se até alcançar a
plenitude85. Suas obras doadas por pura graça elevam a um nível de comunicação em que
devolver com alegria o que é recebido, torna-se natural, espontâneo, imediato, afetivo,
despertando uma admiração terna que inspira uma sintonia com o Doador.
Assim, deixar que o afeto e a capacidade de ser tocado pelo essencial, invisível aos
olhos da razão, sejam ativados por tudo que Deus tem feito e dado, é uma maneira de voltar o
olhar sobre a criação e a redenção86. Desse modo, é a memória, húmus de onde brota o
agradecimento sincero, que mobiliza o coração a despertar e responder afetuosamente,
louvando, agradecendo e bendizendo ao Criador por tantas e tão generosas graças. Inácio
acentua a força sem limites que há na gratidão, enquanto postura de vida, por isso, na carta
escrita em março de 1542 e endereçada a Simão Rodrigues destaca a ingratidão como um dos
piores males desta terra:
Considero, em sua divina bondade e salvo melhor juízo, que entre todos os
males e pecados imagináveis, a ingratidão é um dos que mais merecem ser
tida como abominável diante de nosso Criador e Senhor e diante das criaturas,
que ele fez para sua divina e eterna glória. Com efeito, ela é falta de
reconhecimento dos bens, graças e dons recebidos. Ela é a causa, o princípio
e a origem de todo mal e de todo o pecado. Pelo contrário, quanto são amados
e estimados, no céu e na terra, a gratidão e o reconhecimento dos bens e dons
recebidos (CE 17).
“Em consequência, como o mesmo Senhor quer dar-se a mim quanto pode, segundo
sua divina determinação”. Deus dá a existência à criatura, dando-lhe de tudo o que tem,
inclusive a Redenção, graças ao Filho amado. Para Inácio esse ponto é ainda mais profundo,
pois além de dar seus dons, Ele quer dar-se a Si mesmo, entregar-se à sua criatura,
autocomunicando-se na mais pura delicadeza. Com tanto amor, o todo amor quer amar, porque
Ele é o amor. Quer unir-se ao amante e nutri-lo desse amor, assumindo-o em Sua vida. “Seu
amor infinito de Criador se debruçou sobre sua criatura. Infinito que era, ele fez-se finito e quis
morrer por ela” (CE 17).
84
Inácio conhece bem a constituição humana e sabe que tudo passa pelos afetos, mas em momento algum
desvaloriza o uso da razão na oração (EE 2,2-3), que para ele deve também guiar a criatura em todo seu proceder.
85
ARZUBIALDE, 2009, p. 570.
86
VÁZQUEZ, 2005, p. 68.
83
“Refletir em mim mesmo”87 é voltar-se continuamente ao mistério até saboreá-lo
internamente, deixar-se envolver por ele inteiramente. Próprio das contemplações da segunda
semana, não se trata de terminar a oração afetiva com uma conclusão lógica, mas perceber como
a ação do Espírito foi evidente nos apelos sentidos, nas moções, facilitando assim a
compreensão do que pode ser feito na vida com todas as vivências experimentadas na oração.
É oferecer e devolver a Ele o que ele deu. Deixar que o fogo do amor divino perpasse a
existência provocando uma resposta de amor. Não se pede raciocinar e nem tirar conclusões88.
“Considerando com muita razão e justiça o que devo oferecer de minha parte a sua
divina Majestade. A saber: todas as minhas coisas e, com elas, a mim mesmo, assim como quem
oferece com muito afeto”. Oferecer tudo o que se tem e é, começando pelo núcleo do ser e a
raiz de todo amor e atividade: a liberdade, o querer, qualidades pessoais, tudo que do Amor
gratuito recebe, com amor desinteressado o devolve89. “É a resposta da reciprocidade humana
à entrega de Deus”90, sem reservas à amizade, com afeição, carinho, gosto. Correspondência
que livremente a pessoa humana pode fazer ao dom de Deus.
Essa oração é uma oblação irrestrita, “uma chama ardente, um místico holocausto
que se consome no altar do amor”91. Entrega e resposta fecunda ao amor desmesurável do Deus-
Trino, que ama incondicionalmente. O coração plenificado desse amor prorrompe em
sentimentos de gratidão, oferecendo a Ele os dons que recebeu92 com extremada reverência.
“Tomai e recebei”93. A forma imperativa desses verbos marcam a rendição decidida
da criatura em dar tudo ao Senhor, numa total e absoluta entrega que nada mais reserva para si.
É a atitude de fé de quem sabe que saiu nu das mãos d’Ele e para ele retornará94. Tudo é dado
consciente e coerentemente, de bom grado e inteiramente. É a genuína resposta de amor dada
ao amor ofertado.
87
Este exercício está proposto nos EE 106,4. 108,4. 114,3. 116,3. 122. 125. 194,1.
88
ARZUBIALDE, 2009, p. 451.
89
TEJADA, 2002, p. 673.
90
VÁZQUEZ, 2005, p. 73.
91
VALENSIER, Albert. Iniciación a los Ejercícios Espirituales. Santander: Sal Terrae, 1952, p. 410.
92
JUNGUES, José Roque. A Contemplação para alcançar amor. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana
55, 2004, p. 20.
93
Não são dois tempos de um mesmo movimento, mas movimento circular, alguém que oferta e pede ao outro que
receba.
94
MALDANER, Maria Fátima. Contemplação para alcançar amor (EE 230-237). ITAICI – Revista de
Espiritualidade Inaciana 14, 1993, p. 59.
84
“Toda a minha liberdade”. É a capacidade de saber quem se é, e por escolha, render-
se sem temor, sem condições ou pretensões. Nada além do desejo de unir-se somente a Ele.
União efetiva, afetiva e total. Isento das paixões que acorrentam a sensibilidade, a afetividade
e a inteligência e prendem o ser em si mesmo de forma direta ou por meio das realidades criadas.
Não se sujeita ao ego, podendo assim, ser desprendido em profundidade. É a posse serena de
si, fruto da purificação. A liberdade concede as dádivas da decisão e da autodeterminação. É
para Inácio e para toda a antropologia cristã, o campo onde pode dar-se a oferta de Deus à
criatura em forma de amor livre e pessoal e a resposta igualmente livre e pessoal a esse dom é
orientada ao querer divino que ensina “em tudo amar e servir”95.
“Minha memória”. Lugar santo da gratidão e do louvor. Conduz ao mistério da
existência. Jesus pede por ela na última ceia: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19),
acentuando sua dimensão soteriológica, em que a imanência de Deus ao mundo criado é
expressão do amor que existe desde sempre. Tudo está repleto da sua presença, é dom e graça.
95
VIVES, Joseph. La espiritualidade ignaciana como espiritualidade de liberdad para el Espiritu, liberdad en el
Espíritu, liberdad de Espíritu. Manresa 63, 1991, p. 192.
96
FESSARD, vol. 43, 2010, p. 260.
85
“Tudo o que tenho ou possuo vós me destes com amor. A vós, Senhor, restituo.
Tudo é vosso. Disponde segundo a vossa vontade”. A iniciativa divina é gratuita, oferta da
riqueza interior, dom do Amor. Tudo é recebido por amor e é entregue ao Outro. Exige abertura
para colaborar com a obra do Pai, na plena liberdade que se vê capacitada para levar a termo
tal obra. É a troca entre ofertante e doador de onde nasce a vida e as mais fecundas mudanças,
pois nutre-se da seiva de Deus.
“Dai-me o vosso amor e a vossa graça, pois ela me basta”. Essa afirmação equivale
a uma grandiosa epiclese do Espírito, para que opere a transformação em Deus e faça de cada
ser participante no Ressuscitado, da vida trinitária. Abertura total ao apostolado, à missão
universal. Chega assim, ao sentido profundo e operativo do Pentecostes. Quem reconhece que
só o amor e a graça lhe bastam, pode sentir-se livre e ordenado de toda afeição às criaturas para
direcioná-lo ao Criador de todas elas97. Amor e graça preenchem a existência cristã e dão a ela
o significado de que amar é infinitamente dom para quem se sente amado. A graça basta a um
coração agradecido.
Tomai, Senhor, e recebei é resposta para toda a vida e encontra eco na mística
cotidiana do serviço. A sugestão de Inácio é que seja rezada nos outros três pontos: “também
refletir em mim mesmo como ficou dito no 1º ponto ou sentir melhor. Da mesma forma nos
pontos seguintes” (EE 235. 236. 237), expressando assim a tamanha força que ela traz em si. É
entrega não só para um primeiro momento, mas para a vida toda e traduz a atitude cristã que
deve permear a vida do Corpo Místico do Senhor.
97
ARZUBIALDE, 2009, p. 579.
98
Para Inácio a fealdade do pecado consiste na ingratidão e no não reconhecimento do amor de Deus (EE 57).
86
Esse que foi perdoado e purificado das afeições desordenadas, contempla o mundo
e a si mesmo com um novo olhar. É impossível não amar a quem o enriqueceu com tantos dons.
Há uma semelhança entre a oração de entrega nessa Contemplação com a primeira semana dos
Exercícios nos verbos e imagens repetidas: “dar graças a Deus nosso Senhor pelos benefícios
recebidos” (EE 43); “aplicar a memória [...], depois a inteligência refletindo [...], logo a
vontade, querendo recordar e compreender” (EE 50. 51. 56); “exclamação admirativa, com
intenso afeto” (EE 60); “falando e agradecendo a Deus nosso Senhor por haver me dado vida
até agora” (EE 61).
Neste primeiro passo (EE 234), Inácio pede ao exercitante que traga à memória os
benefícios recebidos da Trindade. Esses vão além dos dons pessoais e alcançam a dimensão
existencial-salvífica de todos os seres humanos. Na criação, redenção e dons particulares, a
História da Salvação se faz realidade no imenso gesto de amor que espera uma resposta sincera,
nascida da gratidão de fazer parte desse mistério trinitário. O próximo ponto vai além da
presença dos benefícios e considera a presença do Benfeitor em suas criaturas. Agora o “olhar”
precisa ver mais longe “a largura e o cumprimento, a altura e a profundidade” (Ef. 3,18) do
Amor, que dá existência a cada planta, pedra, bicho, gente.
“Olhar como Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a
vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva” (EE 235)99. A
imanência do Deus-Trino em todo ser criado100, infunde-lhe a vida e conserva-a, dando-se a Si
mesmo nela. Ele “não permanece exterior à sua criação, mas habita no meio de suas criaturas
[...]. O valor e significado de todas as coisas provém não delas, mas da presença de Deus em
seu interior, pelo seu Espírito”101. Inácio é tão seguro dessa verdade que a reafirma nos
Exercícios Espirituais: “Os perfeitos, graças à assídua contemplação e iluminação do
entendimento consideram, meditam e contemplam mais como Deus nosso Senhor está em cada
criatura, segundo sua própria essência, presença e poder” (EE 39,6).
99
Este “esquema tradicional”, provavelmente provém da “Teologia Naturalis” da época, a qual dividia os seres
criados em quatro gêneros: os que possuem o ser (reino mineral), os que além disso possuem a vida (reino vegetal),
os que vivem e sentem (reino animal), e os que a tudo isso somam a inteligência e a liberdade. É possível que
Inácio acrescente a vida sobrenatural pela qual o homem recebe em si a imagem de Deus e se converte por ela em
seu templo.
100
Inácio retira esta ideia da imanência do pensamento escolástico apreendido durante seus estudos.
101
BINGEMER, 1990, p. 311.
87
“As criaturas são veículos de Deus e por conseguinte, fontes de contemplação”102.
Ele se dá a Si mesmo a todas elas na profundidade do seu dom. Está em tudo, inunda tudo103.
Tudo é sagrado, permeado pelo seu Santo Espírito e interligado por um único fio de amor. Paulo
dilata o horizonte dessa presença quando diz que “Nele vivemos, nos movemos, existimos” (At
17,28).
“O mundo todo está em Deus”104 e é sinal visível da sua Bondade amorosa, que
mesmo em meio ao mal, é sacramento de amor. Na medida em que a criação evolui, mais visível
e transparente torna-se a ação do seu Espírito vivificante, despertando uma alteridade operante
já existente em cada coração. Em vista disso, o corpo expressa de forma digna a presença divina,
sendo templo que abriga o Amor. Carece de ser respeitado em todas as suas dimensões, amado
como é, cuidado em sua fragilidade, e disponível em ser dom para outros.
“Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também
fazendo de mim o seu templo, criado à semelhança e imagem de sua divina Majestade” (EE
235,2). O Espírito Santo, que habita em plenitude o ser, faz dele, templo, santuário e altar do
Deus-Trindade: “Sois templo de Deus e o Espírito Santo habita em vós” (1Cor 3,16). Assim, as
criaturas apresentam a imagem da Trindade. Essa realidade configura-as dando-lhes dignidade,
que mesmo em meio às maiores dores e aos mais tristes pecados, essa divinização mantém-se,
ainda que escondida como uma brasa sob as cinzas à espera de um sopro que a reacenda.
E mesmo que muitas criaturas não abram a porta desse sumo bem, pois perderam a
chave nas calamidades da vida, os traços da perfeição divina são visíveis, umas com a graça,
outras com a força, outras com a inteligência, a fé, a bondade, a resistência, a sabedoria, a
compaixão, apesar da exterioridade refletir a fealdade do pecado. Todas, sem exceção, são
filhas e filhos amados do Pai, criados por amor “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). Inácio
insiste que seus companheiros de apostolado olhem as criaturas “como banhadas no sangue de
Cristo, imagens de Deus e templo do Espírito” (CE 77)105.
102
LEWIS, Jacques. Conocimiento de los Ejercicios Espirituales de San Ignacio de Loyola. Santander: Sal Terrae,
1987, p. 150.
103
Contrário ao Panteísmo que afirma que Deus é tudo e se mistura em sua abrangência e imanência, para Inácio,
sua imanência está em todos os seres, mas separada da sua Transcendência.
104
VÁZQUEZ, 2005, p. 91.
105
Tradução espanhola: IPARRAGUIRRE, Ignacio. Obras Completas de San Ignacio de Loyola. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, vol. 820, 1952.
88
Por isso, cada ser humano é um dom para o outro. Ao ver que “Deus habita todas
as criaturas”, o exercitante recupera a visão em sua limpidez original, enxergando todas as
coisas do “ponto de vista da Redenção”, em que a novidade da Contemplação para alcançar
amor não é comunicar “a ilusão das coisas bonitas”, mas descobrir a beleza, onde parece não
existir. Relacionar a realidade concreta com a “história de Deus” presente nela, “com a
encarnação, a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus”106.
Esse ponto remete à segunda semana nos seus elementos fundamentais, em cujo
centro está a Encarnação e o seguimento de Cristo (EE 91-109). O “Verbo de Deus”, de
condição divina, por amor, se faz homem e habita no mundo entre os seres humanos, tornando
templo, o seio de Maria que O acolhe. Inácio assim descreve esse mistério:
Seguir o Verbo em sua missão salvífica, encontra sentido no pedido da graça para
conhecer, amar e seguir Jesus Cristo (EE 104), dilatando a compreensão de que, habitada por
Deus, a criatura se dispõe a caminhar junto a Ele fazendo o bem ao próximo. A eleição, escolha
feita pelo exercitante nessa etapa dos Exercícios, o faz entender que todos os seres fazem parte
de uma única dimensão divina, formando uma unidade que nutre-se da mesma Fonte.
Este segundo ponto valoriza o “olhar”, que pede tempo para perceber detalhes e
ensina a ver sem julgamentos ou preconceitos, ultrapassando a simples aparência das coisas e
no íntimo, percebendo a Presença. Olhar contemplativo, dócil, que não se fecha diante dos
limites e das trevas. E pela fé, descobre o sentido da existência cristã banhada nas águas do
Batismo em nome da Trindade-Amor. No terceiro ponto, o enfoque está no “considerar”, refletir
com profundidade, que este Deus dá-se a Si mesmo às criaturas, habita-as, trabalha arduamente
por elas e em cada uma delas. Convida a todas a participarem desse trabalho fecundo.
Alcança-me, por tuas preces, se abra para mim a obra em que devo me ocupar.
[...]. Preciso que as obras se abram e se disponham para mim, pela graça de
Deus. Teme antes ao Senhor, a quem vês diante de ti, para ele não te fechar o
coração à sua alegria; nem teu coração se estreite para com ele e tudo que é
dele. Pois, se ficares bem aberto com ele e ele contigo, facilmente sucederá
que tudo parecerá alargado para ti e tu para todos107.
106
VÁZQUEZ, 2005, p. 89.
107
FABRO, Pedro. Memorial do Beato Pedro Fabro. São Paulo: Loyola, 1995, p. 77.
89
2.2.3 O incansável trabalho de Deus no mundo
“Considerar como Deus trabalha e age108 por mim em todas as coisas criadas sobre
a terra. Isto é, age à maneira de quem trabalha” (EE 236). O primeiro trabalho do Deus-Trino é
a criação. Ele se compromete com sua obra. Interessa-se, acompanha de perto a evolução do
universo em contínuo processo com toda sua complexa estrutura e atividade dos elementos: “O
começo, o meio e o fim dos tempos, as alternâncias dos solstícios, as mudanças de estações, os
ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a variedade das plantas, os
pensamentos dos homens (Sb 7,18-20). Em tudo se vê Sua ação benéfica num movimento
incessante e restaurador.
Na História da Salvação, sua obra é vista em Jesus Cristo. O Pai trabalha na
encarnação do Filho, em seu mistério pascal, vida, morte e ressurreição, “ponto máximo de sua
decisão a nosso favor e de seu sofrimento por nós. Assim põe a vida na morte”. Jesus
crucificado, esvazia-se, fazendo-se servo de todos e revela a ação universal de Deus a serviço
das criaturas. Trabalha também enviando o Espírito Santo e põe “alento e esperança na
imanência fechada”109.
Nesse ponto da Contemplação para alcançar amor, aparece o termo por mim, e de
forma similar na terceira semana, quando Inácio destaca que todo sofrimento de Jesus Cristo
foi especificamente por cada pessoa em particular: “vai a sua paixão por meus pecados” (EE
193), “ele padece tudo isso por meus pecados” (EE 197), “com pena interior por tanta pena que
Cristo passou por mim” (EE 203). Desse modo, o exercitante é convidado a pedir a graça de
sentir “dor, sentimento e confusão” (EE 193) com Ele, entrando em comunhão e participando
dos seus sentimentos, “recordando frequentemente os trabalhos, fadigas e dores que nosso
Senhor passou desde o dia em que nasceu até o mistério da paixão” (EE 206).
A qualidade de todo esse trabalho de Deus na criação, na redenção e na
santificação é imensurável. Com uma constância infatigável, sustenta a atividade de todos os
seres e é alento para todas as formas de vida. Ele chama e espera pela colaboração de cada
criatura para “em tudo amar e servir”. “Se a pessoa deve ver a habitação de Deus no mundo,
não pode colocá-la só no que está aparentemente pronto, realizado, mas deve vê-la também no
que está a caminho, no que está se fazendo, no que está doendo, no que está sofrendo”110.
108
No original dos Exercícios, a palavra em espanhol é labora. Inácio usa termos aparentemente semelhantes para
dar um sentido de que o trabalho de Deus é com esforço e sofrimento até o ponto de dar a vida.
109
GARCÍA, Manresa 79, 2007, p. 160.
110
VÁZQUEZ, 2005, p. 95.
90
2.2.3.1 A participação amorosa na obra divina
“Assim nos céus, elementos, plantas, frutos, animais etc.: dando o ser, conservando,
fazendo vicejar e sentir etc”. (EE 236,2). “Deus trabalha dentro do universo, dentro das coisas.
Trabalha, também e sobretudo, dentro do homem, pelas moções do seu Espirito111”. Jesus junta-
se a esse trabalho, desafiando a Lei que desvaloriza a pessoa em função do sábado e diz
categoricamente: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” (Jo 5,17). Inácio também
desafia o exercitante a escutar o convite de Jesus para trabalhar com Ele: “Quem quiser vir
comigo há de trabalhar comigo” (EE 95), colaborando no apostolado do amor e do serviço.
Essa é mais uma resposta consciente do exercitante no caminho da Contemplação
que, aos poucos, diante das descobertas da grandeza do amor Doador, que faz sua morada no
ser, assume o compromisso de devolver com trabalho o que experimenta. É dizer não à
“estreiteza do coração”, que se faz surdo diante do sofrimento lancinante da Criação, submetida
“à vaidade, ao poder e destruição da natureza, e ainda, destruindo o templo de Deus que é a
humanidade”112.
O caminho dos três pontos na Contemplação, passa pelo reconhecer de tantos
benefícios e graças recebidos de Deus, apodera-se da certeza de que Ele está presente na história
e em cada criatura, desperta a sensibilidade para a colaboração pessoal com Seu trabalho,
orientando “o olhar do exercitante para ‘o alto’ de onde isto desce e provém”, do manancial da
vida. Este quarto ponto tem uma força de “recapitulação da Contemplação e de todo o percurso
feito. É descida e ascensão”, que emanam da Fonte de todo bem e a ela tudo retorna113.
“Olhar como todos os bens e dons descem do alto, assim como meu limitado poder
provém do infinito e sumo poder do alto” (EE 237). Todas as coisas na face da terra têm a
mesma origem, nascem da mesma Fonte do amor, e apresentam em si mesmas, a presença ativa
do Criador em sua imanência, só possível graças à transcendência. Tudo no universo fala da
Sua perfeição infinita e faz voltar à Origem de onde emanam todos os dons. Deus “descende
para fazer-me semelhante a ele pelo Espírito”114.
111
BINGEMER, 1990, p. 314.
112
VÁZQUEZ, 2005, p. 97.
113
Op. cit., 1990, p. 316.
114
TEJADA, 2002, p. 695.
91
A relação desse ponto com a quarta semana está no verdadeiro conhecimento de
Deus, que se revela na ressurreição de Jesus de uma maneira nova, “faz resplandecer o triunfo
do amor invencível, que agora se manifesta glorioso e transfigurado pela vida divina em um
mundo habitado pelo amor da Trindade”115. O exercitante experimenta os dons do alto vindos
de Deus. Ele, que “parecia esconder-se durante a paixão, aparece e se mostra miraculosamente
em sua santíssima ressurreição pelos seus verdadeiros e santíssimos efeitos” (EE 223). O
Espírito Santo comunica a vida do Ressuscitado, imagem perfeita do Pai, plenitude de
comunhão que retorna à Fonte original.
Assim, o Amor trinitário irrompe na história e dele “descem ‘benefícios’, ‘dons’,
‘bens’, uma efusão, uma ação”, para fazer de toda criatura participante da mesma comunhão
das Três Pessoas divinas e livremente ao entregar-se a si mesma por amor: “Tudo é Vosso” (EE
234), “faz com que tudo retorne à Fonte”116. Essa é a comunicação a ser restabelecida, para
manter a diferença que existe entre Criador e criatura, pois tudo d’Ele se origina e n’Ele se
abastece117. Frente a esse poder ilimitado, a criatura responde com reverência, humildade e
gratidão, pois sabe que todas as coisas, na realidade que a circunda, provém de Deus. Inácio,
com o entendimento iluminado, deseja que a pessoa embebida por essa experiência, esvazie-se
de vez das falsas ilusões egocêntricas, e plenificando-se do Deus- Trino, faça um dom de si ao
próximo, utilizando-se de todos os dons recebidos para colocá-los a serviço.
“Do mesmo modo, a justiça, bondade, piedade, misericórdia etc., assim como
descem os raios de sol, as águas da fonte” (EE 237). Os dons são sinais evidentes de que Deus
ama. O amor que desce de cima agrega os afetos e purifica as vontades para a vivência
verdadeira da amizade. Sair de Deus e voltar a ele, implica olhar ao redor e ver todas as coisas
criadas, estabelecendo uma relação de respeito e cuidado ao utilizar-se dos dons da justiça,
piedade, misericórdia e bondade em função dos outros, para os outros. É entrar na dinâmica da
“mística de olhos abertos”118 e mãos operantes, transfiguradoras, e ao mesmo tempo
experimentando a fragilidade tão intrínseca à natureza humana.
115
ARZUBIALDE, 2009, p. 573.
116
LEWIS, 1987, p. 159.
117
VÁZQUEZ, 2005, p. 99.
118
Expressão utilizada por J.B.Metz e citada por Benjamín González Buelta em seu livro Salmos para “sentir e
saborear internamente”, 2004.
92
O amor inquieto deve então ser o selo da vida cristã, que não se conforma com este
mundo, mas empreende todas as forças na esperança de vê-lo renovado, transformado (cf. Rm
12, 2). Trata-se do dom de si mesmo que renuncia à centralidade do ego, ao mal uso do poder,
à mesquinhez da vaidade e se transfigura em amor espontâneo, gratuito, sem motivos ou
interesses, sem justificação, oblativo, esvaziado de si, assim como Jesus que “esvaziou-se de
sua divindade” (Fl 2,1-11) e se fez servo de todos. Solidifica-se em atitudes concretas que
devem reger a vivência dos dons recebidos, estes que “têm suas raízes sagradas em Deus e
pode-se descobri-los em todas as coisas”119.
“Eu sou porque tu és; e tu és, porque eu sou, pois como seres humanos dependemos
uns dos outros, e como criaturas dependemos de outras criaturas”120. Inácio é um apaixonado
pelo mundo, pois sabe que ele não existe sem o Criador. Essa certeza é o que dá força e
dinamicidade à sua espiritualidade apostólica, fortalece seu amor à Trindade e anima sua
presença no mundo. Nada precisa ficar preso ao “eu” egoísta, atado em seus ideais de poder, de
conquistas, soberbas mil. “Sem a fonte não há rio, sem a presença da Fonte não há vida”121.
Pela força e a vida dos raios se pode conhecer o sol, identificação com Cristo
“Luz do mundo” (Jo 8,12) e por idêntica força e vida das águas do rio a riqueza
da fonte. Identifica-se com o Espírito Santo, a “Água Viva”, prometida no
Apocalipse: “A quem tem sede eu darei da água viva” (Ap 21,6), e a vida
divina dada nas águas no Batismo122.
Um dos frutos da quarta semana é propício para perceber nesse ponto a importância
fundamental do dom de si. Ao exercitante pede-se “Olhar o ofício de consolar, que Cristo nosso
Senhor exerce, comparando como os amigos costumam consolar-se” (EE 224). Ao beber da
fonte límpida do Amor durante o percurso dos Exercícios, experimentando que tudo é dom de
Deus, na Contemplação dá um sim final que terá consequências claras na vida cotidiana, onde
a entrega a uma práxis transformadora será a expressão máxima da ressurreição de Cristo na
vida do outro. O ofício de consolar pede espaço para acontecer na solidão de uma grande parte
dos seres humanos nos tempos atuais, que necessitam do serviço cristão embebido do amor
atuante e comprometido, colocado mais nos gestos e atitudes do que nas palavras e promessas,
e em cujo centro está unicamente a vida de Jesus Cristo, modelo do amor-serviço.
119
GARCÍA, Manresa 79, 2007, p. 160.
120
MOLTMANN, Jurgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 36.
121
JUNGES, Revista de Espiritualidade Inaciana 55, 2004, p. 20.
122
GUILLÉN, Manresa 68, 1996, p. 14.
93
O colóquio final nesse ponto da Contemplação é um diálogo espontâneo e amistoso
com o Senhor, que recolhe o vivido, saboreado, sentido ao longo da oração. É resposta à palavra
de Deus, na qual o exercitante se une e se identifica com ele. É agradecimento por graças
recebidas no caminho. Termina com o Pai nosso, oração de identificação com Jesus Cristo que
a ensinou e plenamente a viveu.
Buscar (em fé, esperança e caridade) a união com Deus, até alcançar o
sentimento habitual de sua presença e influxo universal: em um clima de
transparência, de confiança pacífica, de amor transcendente, de ação
contemplativa, até senti-lo presente e atuante em todas as coisas, até sentirmo-
nos vestidos, plenos de Deus123.
123
TEJADA, 2002, p. 700.
94
“Encontrar Deus”, isto é, “ler” Deus em todas as coisas é reviver a experiência
de fascínio do Absoluto, nas vivências da existência cotidiana, é acolher o
divino nas profundezas misteriosas de todos os sentimentos. É “ler” Deus na
fidelidade a um amor, a uma amizade ainda quando não correspondidos. É
“ler” Deus na solidão e na ausência da fraternidade. É “ler” Deus na sede de
amor e de pureza, na tristeza e na própria imperfeição. É “ler” e traduzir Deus
também nas atitudes da vida: sofrer com o que sofrem; rir com os que riem;
alegrar-se com o que se alegram; permanecer ao lado dos oprimidos; entregar-
se às necessidades de outrem, mesmo que seja um estranho; ser agradecido
por tudo; atender à verdade íntima do irmão... E ver, assim, as coisas foi a
atitude de Cristo durante a sua vida124.
124
MALDANER, 1993, p. 63-64.
95
CAPÍTULO 3
“O AMOR CONSISTE MAIS EM OBRAS DO QUE EM PALAVRAS”
1
“A conceitualização ou reflexão sobre a Experiência do Espírito Santo dentro do mistério de Deus
(pneumatologia) ia ser uma realidade muito mais obscura e tardia do que a reflexão teológica sobre o Filho de
Deus (cristologia)”. (Cf . CHONG, João Chenchon. ITAICI - Revista de Espiritualidade Inaciana 47, 2002, p. 31).
2
PALAORO, 1992, p. 30.
3
LEWIS, 1987, p. 157.
4
Expressão que denota com intensidade a simbiose existente entre contemplação e ação.
5
GARCÍA, Manresa 79, 2007, p. 161.
6
TEJADA, 2002, p. 673.
96
Nas Constituições Inácio fala com clareza sobre isso ao referir-se à postura que
deve ter o Superior geral: “Uma grande união e familiaridade com Deus nosso Senhor, na
oração e em toda a sua atividade” (CCJ 723). Contemplá-lo em tudo o que constitui o tecido da
vida cotidiana supõe uma fé ativa e uma interioridade sensível. Assim, a Contemplação faz do
coração uma brasa viva acesa pelo Amor, e da vida, um serviço oblativo aos irmãos.
É tão rica essa Contemplação na essência, que sua primeira nota: “o amor consiste
mais em obras do que em palavras” (EE 230) é a linha mestra deste capítulo e abre espaço para
uma reflexão mais abrangente sobre a práxis em sua condição “histórica e solidária”, como um
constante exercício de unir-se a Deus, ampliando a visão global da realidade circundante, que
se insere no quadro da criação, onde todos os seres humanos têm seu lugar e vocação.
É ponto fulcral para evitar o grande risco dos Exercícios suscitarem moções que
não levem à missão. Não é convite a debruçar-se sobre o ego e paralisar-se na união intimista,
mas sim, configuração a Jesus de Nazaré pobre e humilde. “Ele é a Palavra encarnada, obra do
amor de Deus por nós”7. N’Ele, o que foi dito uniu-se ao que fez. Palavra e ação em harmonia
e coerência8. E palavras só têm concretude quando transformadas em gestos, caso contrário,
correm sérios riscos de desaparecerem junto com as grandes tribulações. As obras são frutos
maduros do amor e dão credibilidade, pois possuem verdade e duração. “Se não faço as obras
de meu Pai, não acrediteis em mim; mas se faço, mesmo que não acrediteis em mim, crede nas
obras, a fim de reconhecer de uma vez que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10,37-38).
O exercitante que fez o itinerário dos Exercícios Espirituais agora está de volta ao
seu ambiente familiar, social e eclesial. Na caminhada profundamente transformadora, a escrita
de Deus deixa as mais surpreendentes marcas em sua alma. Inúmeras moções, consolações,
desolações, entendimentos, constituem o processo de se encontrar com o Amor na estrada da
oração e entregar-se a Ele numa comunicação mútua, que muda horizontes e faz enxergar Sua
vontade como sentido único da existência humana.
Todo a dinamicidade do Espírito vivida no retiro deverá se converter em serviço
dentro das mais densas realidades. Chega a hora de redobrar as orações na vida diária, prestando
atenção aos diversos movimentos interiores, causados por fatores externos e internos, que
influenciam e pedem uma ininterrupta vigilância. Agora é no campo da missão que todo o
conhecimento interno, adquirido de Jesus Cristo em cada etapa do caminho, torna-se ação.
7
MELLONI, 2001, p. 254.
8
MARTÍNEZ, Julio. Moral social y espiritualidade. Una co(i)nspiración necessária. Santander: Sal Terrae,
Coleção Presencia Teológica, 2011, p. 141.
97
E toda ação tem destinatários concretos, palpáveis, feridos. Por isso, a
especificidade desse serviço é traduzida em um agir ético, coerente e maduro. Todavia, se essa
ação for destituída de amor, não reflete a imagem trinitária, que na encarnação do Verbo
fecunda os desertos humanos e diviniza-os, fazendo crescer e expandir esse amor que humaniza,
resgata, aproxima, unifica, move, ama com paixão e ensina a amar. Hoje as urgências são
maiores, e não é só a fome, a sede, a solidão a serem combatidas, mas o egoísmo, o desperdício,
a intolerância, a violência, a injustiça que crucifica os irmãos nas mais deploráveis situações.
Com efeito, “o amor é um ato imanente que tende ao bem do amado: a dar-lhe o
que não tem e a descansar no que já tem. O bem consiste nas obras”9, que não devem ser
entendidas como um fazer compulsivo, obrigatório, exigido como passaporte para a salvação e
alcance da vida eterna, mas fruto de uma autêntica experiência da criatura de sentir-se amada
pelo Deus-Trino, desejada, querida, respeitada em sua liberdade, acolhida em suas limitações,
e por conseguinte, impulsionada em sua alteridade a partilhar com os outros.
Aqui, “não se trata de eleger entre amor afetivo e amor efetivo, já que todo amor é
por natureza afetivo. Trata-se de situar a expressão efetiva do amor afetivo menos nas palavras
que nas obras"10, pois “Pelos seus frutos os reconhecereis” (Mt 7,16). Assim, cuidar dos que
sofrem, acolher as diferenças, defender os mais fracos, levantar os caídos, consolar os aflitos,
libertar os cativos, mudar as estruturas é amar e servir na mesma perspectiva de “amor serviçal
e serviço amoroso, amor de seguimento ou seguimento amoroso”11.
Este capítulo apresenta o fruto da experiência do Amor na Contemplação: “consiste
mais em obras do que em palavras” e requer do exercitante, ao colocar os pés na realidade, um
sério compromisso de servir a Igreja e o mundo, agora sobre outra perspectiva, em cujo centro
está sua fé transformada pela experiência do encontro com Cristo, sustentando a oração que
gera o amor, o grande motor da práxis.
Essa mística do serviço aponta para duas dimensões importantes: a eclesial e a
universal. Na dimensão eclesial, pinça elementos fundamentais da espiritualidade inaciana, que
o exercitante experimenta durante o percurso dos Exercícios, e agora deve tê-los presentes na
oração diária e na vida prática, pois serão um suporte importantíssimo nos grandes desafios a
serem enfrentados na comunidade de fé, onde o Corpo de Cristo é constituído de seres humanos.
9
ENCINAS, Antonio. Los Ejercicios de San Ignacio: explanación y comentário. Santander: Sal Terrae, 1952, p.
693.
10
COATHALEM, H., Comentario del libro de los Ejercicios. Buenos Aires: Apostolado de la Oración, 1987, p.
235.
11
GARCÍA, Manresa 79, 2007, p. 156.
98
Assim, é essencial manter os ouvidos atentos cotidianamente ao chamado de Jesus
Cristo, impulsionando um incessante discernimento das reais motivações que levam ao
seguimento, a uma busca pela indiferença como caminho para alcançar a liberdade interior, e a
uma profunda vivência da humildade, que se coloca a serviço somente por amor.
Na dimensão universal, o acento é sobre o compromisso com a promoção da justiça
na sociedade, num contínuo processo de reconhecer que “quem ama dá e comunica o que tem
ou pode a quem ama” (EE 231), vivendo a divinização dos filhos de Deus, que ultrapassa
“muros” institucionais e se instala na concretude da vida, onde o sofrimento humano encontra
abrigo no coração do Redentor e pede compaixão com os pobres-crucificados. A Terra geme
nas mãos do Criador, implorando por gestos significativos e conscientes que se desvelem em
cuidado. A práxis cristã, movida pelo amor, é capaz de acordar a sensibilidade diante da
desumanização destruidora, ampliando a consciência de que o Cosmos está todo interligado
pelo mesmo fio de Amor. À criatura cabe uma postura correta que almeje, sempre, em tudo, o
bem do próximo e a “maior glória de Deus” (EE 152).
Tua Voz. “Não temas! Eu estou aqui e Sou aquele que te olha, te chama.
Desce desta árvore de medos e vem caminhar comigo. Vamos ao encontro dos
irmãos que necessitam ser valorizados, animados a prosseguirem. Vem
comigo estender as mãos ao que está caído, apoiar o que foi vencido,
direcionar o que não tem para onde ir. Ficarei muito feliz por te ter ao meu
lado! Necessito de braços acolhedores, de sorrisos esperançosos, de amor no
coração. Minha missão precisa ser continuada em ti. Segura firme minha mão
e te conduzirei às fontes de água pura”.
À luz do mistério revelado na Trindade brota a Igreja “do lado de Cristo, morto na
cruz” (SC 5) e do sopro do Espírito, em forma de água (batismo) e sangue (eucaristia). Essa
realidade espiritual congrega “num só corpo” os filhos e filhas de Deus, comunidade de
batizados, membros do povo sacerdotal, profético e régio, chamados a viver a fé na comunidade
eclesial, participando ativa e frutuosamente das celebrações litúrgicas12, atentos à Palavra,
alimentados pelo Pão, enriquecendo-se uns aos outros numa intensa vida fraterna, em busca do
conhecimento profundo do Senhor, sem deixar de lado a história com seus arcabouços culturais
e sociais, composta de homens e mulheres sedentos por uma ação apostólica eficaz.
12
BUYST, Ione; SILVA, José Ariovaldo. O mistério celebrado: compromisso e memória I. São Paulo: Paulinas;
Espanha: Siquem, 2003, p. 94.
99
Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se
tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à
autopreservação (EG 27).
Inácio aprende passo a passo a “sentir a Igreja”, vivendo dentro dela experiências
turbulentas e dolorosas feitas de processos, suspeitas, inquisições, prisões, em virtude do
constante impulso que sentia por “ajudar as almas” (Aut. 58. 61. 65. 68), falando das “coisas
de Deus”, mas com pouco fundamento nos estudos (Aut. 62)13. No entanto, mesmo sofrendo,
nada o impede de tornar-se um homem profundamente eclesial. Desde a visão de La Storta,
quando “sentiu tal mudança em sua alma e viu tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo
seu Filho” (EE 96), é aceito pela Trindade como servidor, transformando-se em “companheiro
de Jesus”14, entregue inteiramente ao seu serviço, “associado estreitamente à Roma, ao mistério
do Cristo e da Igreja”15.
Nos Exercícios Espirituais, ele pontua alguns aspectos essenciais que possibilitem
ao exercitante enraizar-se na comunidade de fé. “O máximo de experiência pessoal desemboca
em um máximo de comunhão eclesial”16. Portanto, as “Regras para sentir com a Igreja” (EE
352-370)17 têm o objetivo de alcançar o “verdadeiro sentido” de participação que se deve “ter
na Igreja militante” (EE 353), exortando a louvar as diversas práticas estabelecidas em seu seio,
sentindo-se agradecido por fazer parte, ser membro de uma comunidade que existiu, existe no
tempo e segue existindo no presente da história em todos os lugares da terra.
“A graça sempre supera o indivíduo: torna-o membro de um Corpo, sarmento de
uma videira, pedra de um edifício, concidadão de uma comunidade”18. O rosto dessa Igreja em
tempos pós-modernos é um mosaico composto de uma infinidade de movimentos, pastorais,
congregações, associações, ordens com os mais variados carismas, posturas, identidades,
gestos, devoções, linguagens. Na arte de compor o mosaico há uma simetria fundamental, onde
cada pedaço lixado e polido se encaixa ao outro de maneira integrada, com um pequeno espaço
entre eles para o rejunte final. Da mesma forma, a comunidade de fé é composta por pessoas,
que em sua unicidade e alteridade, juntam-se de modo a formar a face de Cristo.
13
CORELLA, Jesús. Sentir la Iglesia. Comentário a las regras ignacianas para el sentido verdadeiro de Iglesia.
Bilbao: Mensajero; Santander: Sal Terrae, vol. 15, 1995, p. 42.
14
Nas Fontes Narrativas II, 133, Pe. Laínez faz uma relação sobre esta visão que exprime mais profundamente
como Inácio a viveu. (Aut. 96, nota de rodapé 30, p. 109).
15
PALAORO, 1992, p. 27.
16
MELLONI, 2001, p. 267.
17
Do tempo dos estudos em Paris (1534). Foram escritas não tanto contra o protestantismo, mas contra os perigos
surgidos dentro do seio da Igreja (misticismo exagerado dos “alumbrados” e o falso humanismo de Erasmo).
18
SECONDIN, 1994, p. 298.
100
E essa comunidade de fé encontra-se inserida inteiramente no mundo, o lugar do
aprendizado, das provações, das dores mais profundas, da luta contra ou a favor do mal. Nele,
o novo e o velho se enfrentam o tempo todo. Novos conceitos, velhas posturas. Novas ideias,
velhas crenças. Novas experiências, velhas ignorâncias. Estudos, descobertas, avanços,
crescimentos, mas quantos retrocessos, conservadorismos, quanta fome e destruição. Quanta
pressa e tão pouco equilíbrio. “O mundo é teatro da história da humanidade, marcado por
derrotas e vitórias e que os cristãos acreditam ter sido criado e conservado pelo amor do Criador
[...], libertado pela cruz e ressurreição de Cristo [...], destinado a ser transformado e alcançar a
própria realização” (GS 2).
A mística do serviço realizada a favor da Igreja e do mundo que a circunda,
resultante do encontro com Jesus Cristo, deve revestir-se de uma disponibilidade permanente e
corajosa, extrapolando os limites de uma Igreja particular, libertando-se de alienações e
fechamentos, para lançar-se sem medo na aventura de se entregar ao próximo. Tal entrega,
segundo João, é o que dá identidade ao amor: “Nisto conhecemos o Amor: ele deu sua vida por
nós. E nós também devemos dar nossa vida pelos irmãos” (Jo 3,16).
Como colaborador dessa comunidade de fé e cidadão do mundo, volta o exercitante,
trazendo na bagagem a experiência indelével de amor feita no itinerário dos Exercícios
Espirituais. O momento é fértil para cultivar a integração entre oração diária e práxis do serviço,
imbuídos de autênticos valores, tais como ética e responsabilidade; respeito e dignidade;
solidariedade e compaixão; tolerância e compromisso; gentileza e verdade; perdão e
fraternidade.
Por isso, quatro exercícios feitos antes da Eleição19, não podem ser perdidos de
vista em tempo algum na caminhada espiritual, pela importância que tem cada um dos seus
elementos para o cultivo dos valores essenciais na vida: a escuta do chamado do Amor que
possibilita viver o discernimento, a indiferença e a humildade de modo fecundo, alimentados
na oração. Assim, evita-se que a práxis seja transformada em uma obrigação, uma disputa por
poder, um motivo de orgulho, de soberba ou de vanglória, uma forma de manipular ou um jeito
egoísta de centralizar. Pelo contrário, torne-se o que ela é em sua essência, práxis libertadora,
constituída de cuidado e consciência com a comunidade de fé e com a sociedade, porque nasce
da identificação com Jesus, libertador.
19
O primeiro deles é o “Exercício do Reino”, seguido da “Meditação das Duas Bandeiras”, “Meditação dos três
tipos de Pessoas” e “Três modos de Humildade”. Entre o primeiro e o segundo exercício encontram-se a
“Contemplação da Encarnação”, “Contemplação do Nascimento” e “Preâmbulo para considerar Estados” que não
serão abordados neste estudo.
101
O Filho de Deus, unindo a si a natureza humana e vencendo a morte, remiu o
homem, transformando-o numa nova criatura (cf. Gl 6,15). Pela comunicação
do Espírito constitui com os irmãos de entre todas as gentes, o seu corpo
místico (LG 7).
Agora o exercitante está de volta a essa realidade eclesial e, nela, toda a experiência
marcante vivida desde o Princípio e Fundamento à Contemplação para alcançar amor, converte-
se em adesão à pessoa e ao projeto de Jesus Cristo, abrindo um novo horizonte de sentido em
sua práxis na comunidade de fé20, iluminada pela presença divina, constituída de pessoas que
trazem “seus tesouros em vasos de barro” (2Cor 4,7), suscetíveis a quebras, rompimentos,
estragos. Portadoras de fragilidades, mas também receptoras da força de integração que emana
da Trindade. Este é o tempo de entender radicalmente o valor de um “amor que consiste mais
em obras do que em palavras”.
Neste contexto, é enriquecedor trazer à memória o “Exercício do Reino” (EE 91-
100) e deixar-se afetar novamente pelo desejo sincero de escutar a voz do Senhor Jesus, que
chama o discípulo para a missão: “Quem quiser vir comigo há de trabalhar comigo” (EE 95,5).
A centralidade desse exercício está na dinâmica do chamado, que é “anterior à profissão de fé
ou à vocação cristã e eclesial”21, e divide-se em duas partes muito significativas. A primeira,
apresenta “um rei humano, escolhido pela mão de Deus nosso Senhor, a quem reverenciam e
obedecem todos os príncipes e homens cristãos” (EE 92), que passa chamando para trabalhar
com ele e partilhar não só das lutas, mas também das vitórias. A segunda parte, “consiste em
aplicar esse exemplo do rei deste mundo a Cristo nosso Senhor, Rei eterno que chama todos e
cada um em particular” para trabalhar com Ele, andar por seus caminhos, segui-lo nas lutas,
vencendo os inimigos e alcançando a “glória do Pai” (EE 95,2).
Inácio estabelece uma comparação entre um chamado e outro, pois “o chamamento
do rei temporal ajuda a contemplar a vida do Rei eterno” (EE 91,1), e instiga o exercitante a
entregar-se a uma grande causa, “que desperta generosidade e suscita compromisso”22 (EE
94,1). Com efeito, a iniciativa de Cristo, de chamar a todos e a cada um em particular, dá a
tônica do caminho a percorrer e inspira a graça a ser pedida “de não ser surdo a seu chamado,
mas pronto e diligente para cumprir sua santíssima vontade” (EE 91,4).
20
JUNGES, 2001, p. 118.
21
PALÁCIO, 2013, p. 151.
22
No universo simbólico de Inácio trata-se de comprometer-se com uma grande causa, pautado por um código
ético que gira em torno da “honra”. (Cf. PALÁCIO, 2013, p. 145-146).
102
No entanto, a questão não é realizar feitos, mas oferecer-se inteiramente, sem
reservas ou condições. É o grande amor apaixonado que move ao trabalho, à colaboração.
“Considerar como todos os que tiverem juízo e razão se oferecerão inteiramente para esse
trabalho” (EE 96). Essa chamada pessoal é o que faz o exercitante compreender sua importância
no mundo, como também a de todas as criaturas, que fazem parte nesta obra da salvação. Só
assim, é possível renunciar os próprios interesses e fazer a oferenda todos os dias:
23
MELLONI, 2001, p. 163.
24
JUNGES, 2001, p. 118.
103
3.1.1 Discernimento das motivações profundas
Notou todavia essa diferença: quando pensava nos assuntos do mundo, tinha
muito prazer; mas quando, depois de cansado, os deixava, achava-se seco e
descontente. Ao contrário, quando pensava em ir a Jerusalém descalço, em
não comer senão verduras, em imitar todos os mais rigores que via nos Santos,
não se consolava só quando tinha tais pensamentos, mas ainda, depois de os
deixar, ficava alegre e contente (Aut. 8).
25
PALÁCIO, 1984, p. 197-198.
26
BACH, Marcos. Consciência e identidade moral. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 100.
27
Op. cit., 1984, p. 199-202.
28
LIBANIO, 2005, p. 7.
104
Para ele, a pessoa nunca toma posse inteiramente da sua liberdade. Os
condicionamentos externos e internos seguem operando de modo permanente, reforçando que
o discernimento é um ato que deve existir continuamente na vida humana, visto que, o mau
espírito não cessa sua ação depois que o exercitante sai dos Exercícios 29. Ao voltar à vida
ordinária precisa ter ainda mais cautela com seus embustes, devido as complexas circunstâncias
que envolvem o dia a dia. A condição humana inspira vigilância cerrada e o discernimento bem
feito detecta a voz que fala de dentro, do mais profundo, e muitas vezes pode confundir a voz
de Jesus Cristo.
A meditação das Duas Bandeiras (EE 136-148) é dirigida à inteligência e “tem a
finalidade de dar um critério claro, objetivo e universal para saber o que é verdadeiramente de
Cristo ou do inimigo”. É verificação da autenticidade da fé, em que Ele deve ser a verdadeira
motivação do compromisso com o Reino, independente das circunstâncias, das pressões ou
lutas. O joio e o trigo precisam ser separados no tempo certo, através do discernimento, para
que as razões e critérios do seguimento sejam transparentes e livres30.
É necessária uma atenção redobrada aos enganos que se instalam nas ações, pois
cada ser humano é suscetível de ser tentado em qualquer situação. Ninguém está seguro em
suas convicções, cargos, posturas e nada está imunizado. O discernimento é o caminho que
ilumina as dinâmicas espirituais e psicológicas. Assim, a graça de “pedir conhecimento dos
enganos do mau chefe e ajuda para defender deles” (EE 139,1), facilita o reconhecimento que
o mal está presente nas relações e precisa ser discernido para combater grandes vícios
adquiridos ao longo dos anos, corroendo retas intenções no caminho do serviço, provocando
um estado de ignorância e cristalização.
O fundamental é que, através do discernimento, adquira-se de volta a lucidez,
enxergando as reais motivações que levam ao seguimento de Jesus Cristo, para “sentir e
conhecer as várias moções que são causadas na pessoa, as boas para receber e as más para
rejeitar” (EE 313), desmascarando o mal que se reveste de bem, pois é próprio do mau espírito
afligir o coração, colocar impedimentos à boa ação, suscitar ilusões no caminho do bem,
provocando divisão interior e exterior, falta de diálogo e de comunhão (EE 315,2). O contrário
disso é a atuação do bom espírito ao “dar ânimo, forças, consolações, lágrimas, inspirações e
quietude, facilitando e tirando todos os impedimentos, para a pessoa progredir na prática do
bem” (EE 315,3).
29
DOMÍNGUEZ MORANO, 2003, p. 164.
30
PALAORO, 1992, p. 102-103.
105
Inácio apresenta na bandeira de Lúcifer o orgulho em sua escala ascendente
manifestado de três maneiras: “a ganância de riquezas, que facilmente chega à honra vã do
mundo e daí a uma grande soberba” (EE 142). Em linha paralela pode-se refletir sobre a postura
de alguém dentro da comunidade de fé que possui cargo de liderança e usa dele para proveito
próprio em diversos sentidos. “A dinâmica do orgulho, apropriação levada ao extremo, começa
pelo desejo irrefreável de dominar as pessoas e culmina no autocentramento”. Todo cuidado é
pouco quando se tem o poder nas mãos, ainda que seja mínimo. O pecado de Adão e Eva teve
a mesma progressão: “a ‘avidez pelo fruto’ (Gn 3,1-3) – cobiça; a ‘pretensão de imortalidade’
(Gn 3,5) – honra vã; e a autodivinização, ‘sereis como deuses’ (Gn 3,5) – soberba”31.
A bandeira de Cristo, ao contrário, vai conduzindo a um despojamento processual,
em que a pobreza interna e externa refere-se ao abandono da autossuficiência e a acolhida da
gratidão. O exercitante se vê inteiramente necessitado da graça divina, e se expressa no pedido
de um autêntico “conhecimento da vida verdadeira que o supremo e verdadeiro chefe mostra
como graça para o imitar” (EE 139,2). Opróbrios e menosprezos significam a liberdade
alcançada diante da despreocupação com o fato de não ser colocado em primeiro lugar.
É querer ser o último escutando a voz do Senhor que fala: “Aquele que dentre vós
quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro, seja o servo de
todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua a vida em
resgate por muitos” (Mc 10,43-45). Assim, a mesquinha necessidade de ser reconhecido pelos
irmãos e irmãs de comunidade se transforma em identificação íntima com o Servo que
“esvaziou-se de si mesmo (ekénosen) e tomou a condição de escravo” (Fl 2,7).
Inácio na sua trajetória espiritual não se contenta em ser apenas um bom cristão,
mas, vai mais longe no desejo ardente de saber a direção que Deus quer dar a sua vida, partindo
de uma leitura do seu mundo afetivo, depois de constatar os diferentes pensamentos que nele
são produzidos. Discerne se as motivações são egocêntricas e apresentam-se como altruístas ou
se estão revestidas de luz, mas não iluminam de verdade. Sua exigência primordial é um olhar
atento à interioridade, reconhecendo a diversidade de movimentos que nela são suscitados e a
posse da certeza de que conversão é ação contínua na vida e requer uma renovação constante e
um desejo intenso de crescimento. Os duelos internos continuam no processo de ordenar
afeições, e há sempre um risco de que antigos e deteriorados objetos de amor voltem a fazer
parte do universo da intimidade.
31
DOMÍNGUEZ MORANO, 2003, p. 182.
106
A comunidade cristã é um lugar de discernimento, da retidão e das decisões.
Necessitamos compartilhar em comunidade, porque somos discípulos;
pessoas que, por definição, não chegaram; aprendizes que tratam de interpretar
experiências confusas...; peregrinos que estão no caminho para a conversão32.
32
MARTÍNEZ, 2011, p. 141.
33
HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora objetiva, 2009, p. 1073.
34
Ele usa essa expressão em mais três pontos dos Exercícios (EE 157.170.179).
35
As leituras feitas por ele da Vita Christi, Imitação de Cristo e Devotio Moderna têm um valor marginal no
processo da escrita, embora alguns elementos sejam semelhantes.
36
EMONET, Pierre. Indiferencia. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, 2007, p. 1016.
107
Desse modo, o Exercício dos Três Binários (149-163)37, “para abraçar o melhor”,
pontua a necessidade de uma disposição da pessoa em deixar a afeição desordenada pela coisa
mal adquirida para chegar “aonde Deus quer” (EE 149)38. Destaca três atitudes possíveis ante
uma situação em que lhe é pedido a decisão de desprender-se de algo em vista de um bem
infinitamente maior. Não é situação de pecado, mas de “desejar e conhecer o que é mais grato”
(EE 151) ao Senhor. O que está em jogo não é a posse de um bem, mas a escolha da liberdade
interior diante dele, que só adquire sentido em Cristo Jesus, pois discípulo pela metade não
pode ser discípulo.
A única atitude plausível da criatura ante o Deus que o elege, chama e ama, é
a indiferença, compreendida como a absoluta disponibilidade que conduz ao
abandono a Deus. [...] Será, portanto a postura existencial que permita ao ser
humano estar imerso no mundo e comprometido com a missão de Deus, sem
estar atado ao mundo39.
37
No texto original é escrito “Binários”, termo usado nos séculos XV e XVI, designava de modo indeterminado,
classe ou tipo de pessoas. Nas traduções recentes usa-se “Tipos”. Este Exercício é o mais original de Inácio, pois
não foi encontrado em nenhuma outra fonte.
38
Nota de rodapé 149, p. 65.
39
VON BALTHASAR, 2009, p.62-63.
40
MELLONI, 2001, p. 186.
108
Em paralelo, pode-se pensar no exercitante que possui um cargo de muita
responsabilidade e liderança na comunidade de fé, porém encontra-se apegado a ele, sabendo
que precisa se desapegar, mas não consegue tomar nenhuma atitude, porque se vê escravo da
situação. Nesse caso, só a intenção é insuficiente para decidir-se por libertar a afetividade que
teimosamente insiste em permanecer no mesmo estado. É preciso ir além e mudar a perspectiva,
transformando a própria atitude em ato concreto na história. “Na ação o ser humano expõe quem
ele é”41, muito mais do que nas palavras ditas ou nos desejos aprisionados.
O segundo tipo de pessoa, “quer tirar o afeto, mas de tal modo que fique com a
soma adquirida. Assim que Deus venha até onde ele quer, sem se deixar determinar a deixar a
quantia para ir até Deus, ainda que fosse o melhor estado para si” (EE 154). Ele não deixa o
apego. Está preso a si mesmo, quer fazer a sua vontade manipulando a de Deus. “A força do
afeto dependente deforma a percepção da realidade”42. É contradição entre o que diz querer e o
que de fato quer, por isso utiliza-se de vários argumentos para encontrar uma certa razoabilidade
em seu comportamento, mas no fundo, o desejo é de continuar preso afetivamente ao objeto, é
claro, que sob as bênçãos de Deus. O desafio é desafeiçoar-se para escolher, abrindo mão de
enganar-se a si mesmo.
O terceiro tipo “quer tirar o afeto, mas de tal modo que não tenha afeição em ter ou
não ter a quantia adquirida” (EE 155,1). Encontra a liberdade interior usando a indiferença
como guia de sua decisão, e assim, consegue tirar o afeto sobre o que possui, tornando-se livre
em querer simplesmente o querer de Deus. “Apenas quer querê-la ou não, conforme o que Deus
nosso Senhor puser em sua vontade, e o que lhe parecer melhor para o serviço e louvor de sua
divina Majestade” (EE 155,2). Age como um bom e fiel discípulo, portador do desejo de
“proceder como quem deixa tudo efetivamente, esforçando-se em não querer aquilo ou outra
coisa qualquer, a não ser movido somente pelo serviço de Deus nosso Senhor e, assim, que o
desejo de melhor poder servir o mova a tomar a soma ou deixá-la” (EE 155,3-4).
41
Ibid., p. 186.
42
Ibid., p. 187.
43
Ibid., p. 188.
109
Os três tipos de pessoas exemplificam as três dimensões que configuram a pessoa
humana: o ser exterior, regido pelos sentidos, o ser racional, e o ser deiforme, feito à “imagem”
de Deus. Juntos formam uma integralidade em seus dinamismos distintos. Essa parábola
interpela o ouvinte a mudar posturas e comportamentos, mudando a maneira de atuar44 em seu
lugar de missão que é em toda a sua história, e não só na vida eclesial. Não há obstáculo algum
entre a vontade da pessoa e a vontade de Deus, porque “O discernimento e a opção são feitos
sobre a vontade de Deus e não sobre a “coisa adquirida” (situação)”45.
Os dois primeiros tipos não possuem uma vontade firme, que rompa com as amarras
afetivas em busca de alcançar a liberdade. Todavia, a atitude do terceiro tipo deve permanecer
sempre em estado de alerta, pois as dinâmicas externas e internas não param, não se estabilizam,
mas estão em contínuo movimento, precisando de alinhamento uma vez ou outra. Para Inácio
a indiferença em momento algum é frieza, insensibilidade, falta de interesse, mas na relação
com Deus ela é primordial, pois não permite que os afetos desordenados tomem as rédeas da
vida da pessoa e a levem para longe do fim ao qual foi criado: servir e louvar a Deus (EE 23),
pois “quando sentimos afeto ou repugnância à pobreza material, não estamos indiferentes à
pobreza ou riqueza” (EE 157,1).
A indiferença é uma grande aliada no caminho do serviço dentro da comunidade
de fé. Ela traz em si uma benéfica capacidade de desatar nós que por ventura prendem as pessoas
em suas posições de comando, apoiadas muitas vezes em interesses particulares, presas em
afetos desordenados, impossibilitadas de tomar posturas e enfrentar ventos contrários. Ela
assegura aos que se encontram em situações complexas, que certas escolhas são inevitáveis e
imprescindíveis, por isso precisam ser feitas no horizonte da vida, que preserva com afinco a
relação de comunhão com o Deus-Amor. A indiferença carece de receber o apoio extraordinário
da humildade, colaboradora indispensável para o crescimento da fé e do serviço.
Uma das grandes marcas deixadas por Jesus Cristo explicita com lucidez o que é
humildade. O evangelista João soube como ninguém retratá-la no desconcertante gesto do lava-
pés (cf. Jo 13,1-15). Seu significado é, acima de tudo, o esvaziamento completo de si mesmo,
colocando-se a serviço numa atitude fraterna e cuidado amoroso, abaixando-se para servir.
44
ALBUQUERQUE, Antonio. Binarios. Diccionário de Espiritualidad Ignaciana. Bilbao: Mensagero; Santander:
Sal Terrae, 2007, p. 231.
45
PALÁCIO, 1984, p. 204.
110
Na intimidade daquela ceia, o Mestre que aos seus discípulos “amou até o extremo”
(Jo 13,1), cinge a cintura, derrama água na bacia e lava os pés dos companheiros de caminho.
Se faz servo e dá o exemplo. Traduz em gestos o verdadeiro sentido das palavras amor e entrega.
Resgata a dignidade alheia pela prática do serviço mútuo: “Dei-vos o exemplo para que, como
eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,15). Aquele que se eleva acima do outro não conhece
o Servo que se faz igual a todos. Assim, cai por terra toda possibilidade de desigualdade entre
os filhos de Deus. A hierarquia é colocada de lado e o serviço despretensioso traz de volta a
liberdade perdida nas relações de opressão e poder. Lavar os pés, oferecer as mãos, amparar
nos braços é o grande ensinamento do Homem de Nazaré.
Diante da amplitude desse gesto o exercitante pode ver nos Três modos de
humildade46 (EE 164-168) em qual deles o único critério “para o serviço de Deus e salvação”
(EE 166,2) é objetivamente “imitar e assemelhar-se a Cristo” (EE 167,2) em sua pobreza
humilde, como escolha lúcida no caminho da vida. “Ele se fez pobre para entrar em relação
fraterna conosco”47 e, por conseguinte, espera que a relação humana seja perpassada pela
disponibilidade de se fazer pobre nas palavras, nas atitudes, no serviço gratuito, porque “quem
ama coloca em primeiro lugar a pessoa a quem ama. Para o soberbo, o que vale em primeiro
lugar é o seu ‘eu’ (o que diz, o que quer, o que pensa...)” (EE 164,1)48.
No primeiro modo de humildade “é necessário para a salvação eterna: que eu me
abaixe e humilhe tanto quanto me seja possível, para obedecer em tudo à lei de Deus nosso
Senhor” (EE 165,1). O ponto central é a obediência que brota da confiança. Por isso, é essencial
na oração recordar o pecado do orgulho e acolher a condição de restaurar “a imagem e
semelhança”, que presume a identificação com a humildade e obediência do Filho de Deus.
Esse é o limiar para existir uma comprovada experiência cristã. O exercitante, que na primeira
semana experimenta a fealdade do pecado e é purificado, tem que se cuidar para que não caia
novamente nas suas garras na realidade. Nada impede que ele corra sérios riscos de quedas nas
mesmas questões cruciais experimentadas durante o processo dos Exercícios, e agora
concretamente vividas nas relações cotidianas. A consciência do mal possibilita enxergar as
condições da salvação de tal maneira que já não cabe mais a hesitação entre ele e o bem.
46
“O tema da humildade tem ampla tradição dentro do Cristianismo. São Bento descreve doze graus de humildade,
que são recolhidos por Santo Tomás. São Gregório enumera quatro graus de soberba que se opõem aos quatro
graus de humildade. São Bernardo em seu tratado Sobre os doze graus de humildade, elenca doze graus de soberba.
Santo Anselmo não fala de graus, mas sim que opõem a três modos de orgulho, três modos de humildade e um
discípulo seu conta sete graus”. (Cf. DOMÍNGUEZ, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, 2007, p. 1186).
47
GARCIA-LOMAS, Juan Manuel. Ejercicios Espirituales y mundo de hoy. Bilbao: Mensagero e Santander: Sal
e Terrae, vol. 8, 1991, p. 162.
48
Nota de rodapé 160, p. 69.
111
No segundo modo: “que eu me ache em tal disposição que não queira nem tenha
mais afeição a ter riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida breve, sendo
coisa igual para o serviço de Deus e a minha salvação” (EE 166,1-2), a humildade alcança o
estado da indiferença presente na segunda parte do Princípio e Fundamento (EE 23). Há uma
visível renúncia da vontade própria para não quebrar a comunhão com Deus, passando em
profundidade para uma total entrega. Inácio quer que “a oração desperte as afeições, depure o
valor exato dos desejos e confirme a veracidade dos apelos de Deus”49.
O terceiro modo50 é mais um degrau no encontro com a liberdade. É decisão
incondicional: “quero e escolho mais pobreza com Cristo pobre do que riqueza; mais injúrias
com Cristo injuriado do que honras. E também desejo ser considerado inútil e louco por Cristo,
que primeiro foi tido como tal, antes de ser tido por sábio e prudente neste mundo” (EE 167,3-
4). É ser tocado por Jesus desde as entranhas, e com os olhos fitos nele se dispor a amar e
servir. Ser afetado pelo Seu estilo de vida e segui-lo com o coração esvaziado, produzindo bons
frutos na vida comunitária, pois estará menos suscetível à influência do ego que trabalha para
si mesmo e quer de todas as formas impedir a configuração com Ele.
Inácio tem um bom exemplo do terceiro grau de humildade, quando, estando a
caminho de Gênova, é preso pelos guardas, que pensam ser ele um espião. “Despiram-no e até
os sapatos lhe esquadrinhavam, e todas as partes do corpo, para verem se levava alguma carta”.
Arrastando-o até o capitão, no caminho “teve o peregrino uma representação de quando levaram
a Cristo, embora não fosse visão como as outras. Foi conduzido por três grandes ruas, mas ia
sem nenhuma tristeza, antes com alegria e contentamento” (Aut. 51-52). Essa capacidade
iluminada de esvaziar-se proporciona o querer empregar-se em um serviço humilde e amoroso,
desejoso apenas de ser um simples colaborador em Sua obra salvífica.
O Exercício dos “Três modos de humildade”, no quadro dos Exercícios Espirituais
tem em vista a eleição, que não deve ser só um ponto ao qual se pretende chegar, mas sim, um
viver em constante estado de eleger a Cristo e identificar-se com Ele no serviço de todos os
dias. É resposta à Aliança salvífica oferecida por Deus. O primeiro modo “denota uma atitude
antropológica de obediência fundamental, o segundo de indiferença e liberdade interior diante
das coisas e o terceiro supõe um amor apaixonado, que não mede consequências”51.
49
PALAORO, 1992, p. 106.
50
Comparando este modo com o segundo, o elemento comum entre ambos é o serviço apostólico e a diferença
consiste na vontade do exercitante, que nesse caso se “ache em tal disposição que não queira nem tenha mais
afeição a ter riqueza que pobreza, [...], e naquele “prefere escolher a pobreza e humilhações, já que a obra de Cristo
se cumpre sob o signo da cruz. Em um, a disposição, no outro, a escolha” (EE 167,1, nota de rodapé 163, p. 70).
51
BINGEMER, 1990, p. 214.
112
A chave de tudo se encontra na finalidade com que Inácio delineia a
consideração das três maneiras de humildade. Não intenta formalmente expor
princípios objetivos de atuação, nem normas de perfeição de nossos atos, nem
fazer uma divisão completa da vida espiritual em três graus. Nada disso. Só
deseja ajudar a que o homem se afete à verdadeira doutrina de Cristo,
condensando sua atitude na humildade52.
52
RUIZ JURADO, M. Tres maneras de humildad. Manresa 38, 1966, p. 128.
53
ARZUBIALDE, 2009, p. 567.
113
A compreensão cristã do amor como “comunicação de ambas as partes”, que Inácio
aponta como chave de leitura de toda a experiência dos Exercícios, não se encaixa na lógica
humana dos tempos atuais, herdeira da racionalidade moderna e da subjetividade pós-moderna,
voltada para si mesma e sobrecarregada de ídolos, vivendo tranquilamente sem necessidade
alguma de estabelecer um horizonte de sentido em Deus, e em consequência disso, sem
comprometimento ou disponibilidade para dar do que tem, só e simplesmente por amor.
Neste contexto, o cristão, que também sofre uma “acentuação do individualismo,
uma crise de identidade e um declínio do fervor” (EG 78), é advertido a procurar pelo Amor na
fonte do coração. Ir além dos seus preconceitos, fechamentos e limites. Compreender que amar
é verbo, ação continuada, impulso para sair do egoísmo que gira em torno dos templos e
mergulhar na sofrida condição humana; conscientizar-se de que “quem ama dá e comunica o
que tem ou pode a quem ama. Por sua vez, quem é amado dá e comunica ao que ama. De modo
que, se um tem ciência, ou honras ou riquezas dá ao que não as tem. E assim mutuamente” (EE
231,1-2). Portanto, a comunicação é a substância mesma do amor54. Inácio a experimenta como
comunhão, dom, amante, amado, essência do Espírito Santo. Ela acontece no nível mais
profundo da amizade, que iguala as duas partes na mesma responsabilidade de se doar, sendo
fusão entre a ação de Deus e a ação humana.
Através da compaixão com o sofrimento alheio, semelhante ao de Cristo, o
Redentor que “levou sobre si as nossas dores” (Is 53,4), e o crescer da consciência de toda
exploração sangrenta que sofre a “Mãe-Terra”, escutando o seu grito de socorro por respeito e
cuidado, o exercitante agora toma as rédeas da sua vida e amplia seus horizontes, estendendo o
olhar para além da sua comunidade de fé, numa tentativa misericordiosa de alcançar o mundo
que o cerca, para generosamente partilhar o amor nas ações, tendo em vista somente a “maior
glória de Deus”.
54
Inácio aproveita nesta nota a terminologia usada por Santo Agostinho, quando começa sua especulação sobre os
vestígios da Trindade no mundo.
114
3.2.1 O sofrimento humano no coração do Redentor
O sofrimento está enraizado de tal maneira na vida humana que é impossível ignorá-
lo ou precisar sua extensão, diversificação e pluridimensionalidade. Ele atinge a pessoa não só
em sua dimensão corporal, mas também na moral e na espiritual. A história da humanidade é
constituída de preconceitos, exclusões, divisões, e a guerra já não pertence mais ao universo de
países que disputam entre si poder e territórios, mas explode por todos os lados dentro do cruel
mundo do tráfico de drogas, de pessoas, de animais, de órgãos, de armas, de influência. Divide
famílias num desatino sem igual, prolifera nas ruas onde a intolerância atropela o bom senso.
Está estampada na política suja, enlameada pela corrupção, que visando a interesses egoístas
desvia verbas, elimina adversários e promove a injustiça social.
As dores humanas estão por todas as partes à espera de bons samaritanos que ousem
parar, debruçar-se sobre elas e cuidar de suas feridas (cf. Lc 10,29-37). Encontram-se expostas
nas calçadas que se tornam casas ou debaixo dos viadutos transformados em tetos. Nas mãos
trêmulas de um viciado que morre a cada dia, esquecido de si mesmo. Nas mães que choram
lágrimas de sangue, assim como Maria, perdendo seus filhos para a violência descabida e a
negligência desumana. Nas doenças psíquicas que sadicamente vitimam pessoas inocentes. No
absurdo do Bullying, que provoca, de forma irreversível, a destruição moral de um ser humano.
E ainda na extrema dureza de ter que deixar o próprio país ou estado por causa da
fome, das guerras, das divergências ideológicas, das sandices de tantos homens. Na perseguição
religiosa sofrida por quem deseja apenas professar sua fé. E ainda no abominável terrorismo
que espalha o ódio e o medo por todas as partes do planeta; no despropósito do lobby quando
visa apenas os interesses particulares; na trágica desigualdade; na crueldade da pedofilia e dos
maus-tratos sofridos por tantas crianças; na corrupta fraude; na loucura de uma economia que
mata, explora, oprime, desperdiça num mercado insano produtor de consumidores insensíveis.
Um universo tão grande que é impossível abraçá-lo e listar nele todas as dores
vividas hoje pela raça humana, e que parecem avançar com a força incontrolável das
avalanches. A exigência agora é compreender o sentido salvífico do sofrimento, pois, “no
coração do mundo está a misteriosa presença d’Aquele que se compadece de todos os que
sofrem”55. O Filho de Deus “tornou-se incessantemente próximo do sofrimento humano, pelo
fato de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento” (SD 16).
55
MARTÍNEZ, 2011, p. 148.
115
Sua história é marcada pela incompreensão, hostilidade e a pretensão dos outros de
eliminá-lo. Caminha em direção à Paixão, seu sofrimento maior, com uma perfeita lucidez e
certo de ser essa a missão que o Pai lhe confia. “É precisamente por meio da sua cruz que Ele
deve atingir as raízes do mal, que se embrenham na história do homem e nas almas humanas”,
realizando a obra da salvação, que pelo “desígnio do amor eterno, tem um caráter redentor”
(SD 16).
Ele que “passou fazendo o bem” (At 10,38) manifesta sua preferência pelos que
sofrem, libertando-os dos espíritos impuros, da cegueira, das deficiências físicas, da lepra. É
sensível o bastante para acolher e curar, incluir, perdoar, alcançando o sofrimento do corpo e
da alma, devolvendo a dignidade perdida. Mas, como levar a concretude dessa verdade do
Cristianismo para os corações que sofrem no presente da história? Onde encontrar vestígios do
amor no submundo da trama, onde o indivíduo não se reconhece mais na face do outro que lhe
é semelhante, a face do Criador na “sua imagem e semelhança”? Como falar de um Deus que
se faz homem, morre na cruz para libertar do mal, se este continua sendo força de destruição?
De que modo a fé pode ser sinal de esperança aos corações desesperançados, se dentro da
“Igreja que nasce do mistério da Redenção na Cruz de Cristo” (SD 3), o sofrimento é também
uma realidade que muitas vezes não experimenta a libertação, germinada no Seu coração
redentor?
Tais questões abrem o campo para uma reflexão mais realista sobre as verdades de
fé que não atingem uma grande parte das pessoas que estão dentro e, menos ainda, as de fora
da Igreja. Há um contexto de desiquilíbrio em que o exercitante precisa olhar sem enganos.
Inácio não oferece românticas ilusões na volta para casa depois da Contemplação para alcançar
amor. Acompanhar Jesus Cristo é na pena e na dor (EE 98). A segunda Pessoa da Trindade se
faz carne e nasce em meio a tantos sofrimentos e trabalhos, “refaz a criação ao ser crucificado
e nos permite olhar para a realidade de um modo em que ainda pode existir esperança; somos
capazes de agradecer, de nos comover e de reconhecer o dom e a graça do Senhor”56.
Nos olhos de todos os homens habita um insaciável desejo. Nas pupilas dos
seres humanos de todas as raças, nos olhares de todas as crianças e anciãos,
das mães ou das mulheres que amam, nos olhos do policial, do empregado, do
assassino, do revolucionário e do ditador, assim como nos olhos do santo: em
todos a mesma centelha do desejo insaciável está presente, o mesmo fogo
secreto, o mesmo abismo profundo, a mesma sede infinita por felicidade e
alegria e posse sem fim57.
56
VÁZQUEZ, 2005, p. 85.
57
GRUN, Anselm. Se quiser experimentar Deus. Petrópolis: Vozes, 2003, p.58.
116
O imperativo de quem bebeu na fonte do amor, conhecendo Jesus Cristo desde o
nascimento até a glorificação, dispondo-se a tudo por sua causa, é que o amor tome forma nas
obras realizadas em favor de amenizar o sofrimento latente na humanidade. É no compromisso
social, que o exercitante, com sensibilidade. “não passa ao largo pelo sofrimento humano das
pessoas e pelo mal do mundo”58, mas se compadece, partilha, divide. Compromete-se com a
sociedade na luta pelos direitos humanos, ou no trabalho profissional que realiza, e ainda nas
situações corriqueiras da vida em que a dor aparece como Jesus a descreve: “Tive fome e me
destes de comer; sede e me destes de beber; era forasteiro e me acolhestes; nu e me vestistes;
doente e me visitastes; preso e viestes me ver” (Mt 25,34-36). Não de forma assistencialista,
causando dependência em quem recebe, mas oferecendo oportunidades, trabalho, consciência,
dignidade. É movimento do Espírito Santo de amor, que rompe com a acomodação e que se dá
sem limites, derrubando os muros que insistem em separar os filhos de Deus.
“Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes” (Mt 25,40). Eis a centralidade do evangelho do Reino, que no rosto do pobre apresenta
o rosto de Cristo, o Filho de Deus que se faz presença nos pequenos, esquecidos, abandonados,
reclamando por cuidados e justiça social. Ele representa todos os que são jogados no sistema
opressor do mundo, fora do convívio, excluídos da participação justa nas esferas comuns. Esses
retratam a desigualdade que se banqueteia insaciavelmente, deixando cair as migalhas da mesa
sem consciência do miserável de mãos estendidas a pedir insistentemente trabalho e pão. Há
uma “legitimação” da sua existência no mundo, que permite a reprodução da dominação
cotidiana nos níveis mais diversos da sociedade, reafirmando continuidade com o passado59.
Desde a Conferência de Medellin (1968), que descreve a pobreza latino-americana
e assinala suas causas, levanta-se uma voz profética na Igreja, que ratificada em Puebla (1979),
faz surgir com força a expressão opção preferencial pelos pobres e usa frequentemente os dois
termos pobreza e libertação, reafirmando o compromisso de solidariedade em “favor dos pobres
e contra a pobreza”60. Chama a atenção nos dias de hoje para um tema tão complexo, que desafia
o mundo e também os cristãos a olharem para dentro de suas estruturas e detectar os abusos que
contratestemunham essa realidade.
58
MARTÍNEZ, 2011, p. 37.
59
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 15
60
GUTIERREZ, Revista de Espiritualidade Inaciana 25, 1996, p. 33.
117
E assim, é reafirmado constantemente o desequilíbrio, a distância e o
desnivelamento que caracteriza o modo de vida na sociedade pós-moderna. De um lado a fome,
a miséria, a exclusão, de outro, o desperdício, a insensatez e o preconceito. Na atualidade, o
Papa Francisco tem refletido com ênfase sobre a preferência que deve ser dada aos pobres de
Deus: “Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus a serviço da
libertação e da promoção dos pobres” (EG 187), não como expressão do comunismo, mas,
evangelho de Cristo, que veio “para evangelizar os pobres” (Lc 4,18) e ele mesmo “se fez pobre,
embora fosse rico, para vos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9).
“O pobre manifesta mais palpavelmente as estruturas antropológicas de todo ser
humano pelo fato de estar diminuído nelas”61. Ele é um sacramento, um sinal vivo e verdadeiro
da presença de Deus na vida. Precisa ser defendido do cruel egoísmo e da autossuficiência, que
afundada nas ilusões, ignora, explora e humilha os prediletos do Pai. Em seu amor inclusivo,
clama a seus filhos a terem um coração dilatado pela compaixão com os crucificados deste
mundo, e lutem para fazer valer a eficácia da ação, combatendo a exclusão social, protegendo
e resgatando os que tem nada têm e sofrem como vítimas da discriminação.
Inácio assume seu grande amor por Cristo: “quero e escolho mais pobreza com
Cristo pobre do que riqueza” (EE 167,3), e nele se inspira para viver a pobreza em sua vida.
Começa essa caminhada em Monsserrate quando “foi o mais secretamente que pôde a um
pobre, despiu-se de suas vestes, e lhas deu” (Aut. 18). Esse gesto se multiplica infinitas vezes
no caminho de conversão até a identificação total com o Senhor, quando se autodenomina o
pobre peregrino63. No Diário Espiritual é explícito o seu entendimento sobre a grandeza
contida na forma concreta de viver a pobreza de maneira digna:
Parecia-me com grande clareza e mudança não de costume, que ter qualquer
coisa seria uma confusão, que tudo ter seria um escândalo e contribuiria para
rebaixar a pobreza, tão louvada por Deus, nosso Senhor (DE 5).
61
JUNGES, 2001, p. 47.
62
BINGEMER, M.C. A argila e o espírito. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p.131.
63
Ele acrescenta “pobre” pela primeira vez numa carta a Inês Pascual que data de 6 de dezembro de 1524.
118
Nas Constituições da Companhia, enfatiza no que concerne à missão: “Os centros
sociais e a ação direta com e pelos pobres serão tanto mais eficazes na promoção da justiça
quanto melhor integrem a fé em todas as dimensões do seu trabalho” (CCJ 300, §2). E ainda
reafirma: “Por ser apostólicas, as nossas comunidades devem orientar-se para o serviço dos
outros, principalmente os pobres, e para a cooperação com os que buscam a Deus ou trabalham
por um mundo mais justo” (CCJ 323). Em seu “contato com os pobres, foi fazendo-se, ele
mesmo pobre”64.
Ao exercitante que escuta o chamado do Rei eterno, dispõe-se a contemplar os
mistérios da sua vida, se compadece de suas dores e humilhações, escolhe segui-lo em
humildade e pobreza, agora é o tempo de viver essa escolha. Seu ponto de partida é a descida
ao encontro de Deus, seguindo o Cristo crucificado, que se esvaziou até chegar ao último
degrau da condição humana (cf. Fl 2,6-18) e seu rosto se faz presença no rosto dos pobres, sem
voz e sem vez dentro de um capitalismo abusivo.
Sua ética cristã deve resultar de uma espiritualidade genuína dirigida e sustentada
pelo Espírito Santo, que aponta para o viver em Cristo, pelos irmãos. “Quando na presença de
outrem digo: Eis-me aqui! É o espaço por onde o infinito entra na linguagem, mas sem se deixar
ver”65. O resultado da comunhão com a Trindade é a compaixão pelos pobres que sofrem
calados as injustiças do mundo e o cuidado com a Terra que agoniza nas mais terríveis dores.
“Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros,
já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu
amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem” (EG 2).
“Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente”
(Rm 8,22). Sem sombra de dúvidas, o Planeta Terra com suas riquezas extraordinárias, tem
sido alvo do capitalismo desumano, que o suga gota a gota, visando somente o lucro e
produzindo o desperdício dentro de um consumismo desenfreado. Por outro lado, é também
uma das maiores preocupações de muitos seres humanos que se importam com esta “casa
comum” e requer cuidado e atenção redobrados, pelas atrocidades que tem sofrido ao longo de
tantos anos de exploração e desrespeito.
64
RAMBLA, vol. 4, p. 26.
65
LEVINAS, Emanuel. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 98.
119
É o claro-escuro da história, onde ouve-se o gemido de cada espécie extinta, de cada
árvore tombada, de cada rio que seca. O momento é crítico, pois a continuação da vida depende
da Mãe-Terra com seus seios fartos, porém tudo que acontece a ela, acontece aos seus filhos.
“A terra seja talvez o maior sacramento do Fazedor e Conservador da vida. Nela Deus se revela
como nossa digníssima Mãe”66.
A Igreja, apesar de ter como origem da sua teologia bíblica a Criação, esteve alheia
às questões concernentes à ecologia por muitos séculos na história. A visão de mundo da
“cultura judaico-cristã”, foi culpabilizada por levar a sério demais o antropocentrismo que
colocou o homem, criado por Deus, como senhor da criação, outorgando-lhe o direito de
dominar e subjugar o quanto quisesse. Essa “superioridade humana” frente à natureza deu
inteiro respaldo à destruição, fechando as portas para a consciência da integração amorosa que
deve existir entre os seres humanos e a Terra. A ciência na atualidade nega veemente esse
senhorio, revelando a “igualdade substancial entre o corpo humano e o de outros animais” 67.
Nos tempos atuais há uma mudança nessas relações, a partir de inúmeros grupos de
estudos bíblicos que “tentam aprender com a Bíblia um profundo amor à terra”. Também na
presença dos cristãos em movimentos ecológicos; nos empreendimentos sustentáveis que
desenvolvem uma economia solidária; nas cooperativas de reciclagem que geram trabalho e são
responsáveis pelo sustento de tantas famílias; no testemunho dos que dão a vida por projetos de
sustentabilidade, como Ir. Doroty junto aos trabalhadores rurais no Xingu ou Dom Cappio no
Rio Francisco lutando pelas populações ribeirinhas68. Há sinais de comprometimento na
experiência de fé da Igreja que pede ainda mais abertura às realidades do mundo.
66
SUSIN, Luiz Carlos; Santos Joe Marçal (orgs). Nosso planeta, nossa vida: Ecologia e Teologia. São Paulo:
Paulinas, 2011, p. 160.
67
Ibid., p. 140.
68
MURAD, Afonso. Fé cristã e ecologia: o diálogo necessário. Perspectiva Teológica 40, 2008, p. 234.
69
http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/text.html. Trecho da Carta da Terra, uma “Declaração universal de
proteção ambiental e desenvolvimento sustentável”, lançada em junho de 2000 no Palácio da Paz em Haia.
Iniciativa da sociedade civil que encoraja os povos a reconhecerem uma responsabilidade pelo bem-estar de toda
a família humana, da comunidade maior da vida e das futuras gerações.
120
Inácio abarca toda essa dimensão cósmica da natureza interligada a tudo, quando
contempla o céu estrelado e sente-se impelido a servir ao Criador de tantas maravilhas: “A
maior consolação que descobrira então era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes
e por muito tempo, porque com isso sentia um grande esforço para servir a nosso Senhor” (Aut.
11). Durante toda sua vida conserva essa sensibilidade. Laínez o testemunha: “Subia ao terraço
donde se descortina o céu livremente. Aí se punha de pé, tirava o barrete e sem mover-se estava
um pedaço com os olhos fitos no céu”70.
Essa admiração que ele sentia pelas coisas criadas e o desejo de aprender a ver Deus
em todas elas, colabora para que haja na atualidade uma profunda reflexão sobre a certeza de
que contemplação da natureza não pode ser algo passivo e descomprometido, mas impulso que
leva a querer de verdade e profundamente colaborar com sua preservação, fazendo um esforço
de romper a visão mecanicista e utilitarista que insiste em predominar na cultura ocidental.
Reduz o planeta a um objeto de onde se pode extrair vantagens e lucros visando apenas
interesses pessoais.
Com efeito, o ser humano e o planeta que o acolhe não são mercadorias. A
vida não é apenas quantificável. A cura do mundo passa também por uma
reformulação dos valores éticos universais através de um autêntico diálogo
entre as culturas e por uma refundação da relação entre o ser humano e a
natureza, o homem e a mulher, o indivíduo e a transcendência. [...]. Sem uma
transformação de si mesmo não será possível qualquer transformação do
mundo. Sem uma revolução da consciência de cada pessoa será impossível
esperar por uma revolução global71.
O “Deus que trabalha e age em todas as coisas criadas sobre a terra” (EE 236),
recolhe em suas mãos o sofrimento da Mãe-Terra, e provoca no exercitante que O contemplou
na beleza da Criação (EE 23), a consciência de pertencer a essa Mãe, que se dá generosa e
gratuitamente aos filhos, e de estar em conexão com todas as coisas criadas, assumindo uma
diaconia em favor da natureza. Uma expansão da consciência que percebe a circularidade
existente no Planeta, onde cada elemento está interligado ao outro no dinâmico processo da
criação.
70
Aut. 11, nota de rodapé 17, p. 25.
71
LENOIR, Frédéric. A cura do mundo. São Paulo: Loyola, 2014, p.13.
72
Ibdi., p. 80.
121
3.2.2.1 A consciência de pertença e cuidado
A medida do amor que tenho aqui embaixo por qualquer pessoa é a de dar-lhe
a ajuda que posso, pois não ama a Deus de todo coração quem ama qualquer
coisa por ela mesma e não por Deus (CE 3).
73
GARCÍA, Manresa 79, 2007, p. 158.
74
BACH, 1985, p. 97-104.
75
Ibdi., p. 98.
122
3.3 Conclusão: “A maior glória de Deus”
76
MARTÍNEZ-GAYOL, Nuria Fernández. Gloria de Dios en Ignacio de Loyola. Bilbao: Mensajero; Santander: Sal
Terrae, vol. 34, 2005, p. 12.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Sois uma carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo,
não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (2Cor 3,3). Toda carta contém
uma mensagem e sempre provoca um movimento interior em quem a lê. Os que consentem em
ser carta legível escrita pelas mãos do Senhor Jesus, levam a mensagem do Evangelho no
próprio corpo, e são enviados com o selo do Espírito a todos os povos da terra, que precisam
ler o que cada um carrega em si e ver em cada passo, gesto e palavra que sai dos lábios, o
próprio Cristo Jesus.
Inácio é uma dessas cartas que se transforma em mensagem de amor para o
próximo. Sua trajetória espiritual é surpreendente, enriquecedora e única, pois traz em si a
marca distinta dessa escrita, cujo conteúdo não tem fórmula pronta, nem é sistematizado em
categorias teológicas, mas simplesmente autocomunicação de Deus no mais íntimo do seu ser.
Iniciativa surpreendentemente livre da graça divina, que de tão desmedida provoca uma
transfiguração consciente em meio as lutas, orações, incessante peregrinar, mudança de rota e
intenso crescimento humano.
Ele, um cristão comum e descomprometido, envolvido em tantas ambições e
vaidades, é sensibilizado pela história de vida do “Verbo que se fez carne” (Jo 1,14), iniciando
seus primeiros passos na via espiritual, que começa pela derrubada das egoísticas aspirações e
a descoberta da força de transformação que há na Palavra. Aprende a olhar para dentro de si e
prestar atenção nos pensamentos e sentimentos despertados. Cresce em sensibilidade e
discernimento, compreendendo que a alma se satisfaz não com o “muito saber”, mas com o
“saborear internamente”, sentir o gosto, experimentar na intimidade. Vive o processo contínuo
de conversão que o leva a um amadurecimento espiritual, e sob a guia do Espírito de amor,
livre, dinâmico, iluminador, galga profundezas inimagináveis. Ele mesmo relata em seu
epistolário ao escrever a Teresa Rejadell todo o movimento interior que experimenta:
Muitas vezes acontece que nosso Senhor trabalha nossa alma, movendo-a e
forçando-a a uma ação ou outra. Fala no interior dela mesma, sem nenhum
ruído de palavras. Eleva-a a seu divino amor sem que seja possível resistir a
esse sentimento que é seu e que nós fazemos nosso (CE 7).
124
Esta pesquisa abordou a obra de amor que a Santíssima Trindade fez nas raízes mais
profundas da sua experiência de fé, e o impulsionou a viver esse amor na praticidade do seu
carisma e grandeza do apostolado, fazendo-o participar plenamente das tristezas e angústias de
homens e mulheres do seu tempo.
A divina Majestade sabe com que ardor e com que frequência ela me tem
inspirado a vontade decidida e o desejo sempre crescente de ser agradável e
útil espiritualmente, por pouco que seja, a todos os homens e a todas as
mulheres de minha terra, em sua divina bondade (CE 15).
Passo a passo Inácio entra no caminho da oração e faz dela sua aliada. Enche-se
plenamente da Trindade e esvazia-se totalmente de si mesmo, numa laboriosa travessia
espiritual. Por fazer uma experiência tão grandiosa, aprende a compreender a alma humana à
luz da fé, e sabe do quanto ela precisa ser movida em seus afetos sem deixar de lado a razão,
para descobrir o significado do existir em Deus, vivendo a espiritualidade a partir do encontro
com Jesus de Nazaré, degustando de sua presença, conhecendo seus feitos, apaixonando-se por
sua vida, deixando-se tocar na interioridade pelo seu amor.
A paz de nosso Senhor é toda interior, trazendo com ela dons e todas as graças
necessárias à salvação e à vida eterna. Esta paz leva a amar o próximo por
amor de seu Criador e Senhor, e este amor faz observar os mandamentos da
Lei, segundo a palavra de São Paulo: Quem ama o seu próximo cumpre a Lei
(Rm 13,8). Cumpriu toda a Lei porque ama seu Criador e Senhor e também o
próximo, por amor a Deus (CE 15).
“A relação profunda com Deus, desenvolvida nos Exercícios, deve mudar a mente
e o coração, para tornar o exercitante um cristão mais coerente com sua própria vocação”1. Este
certamente é o desejo que Inácio carrega nas entranhas em todos os seus anos de vida, vivendo
em função de “ajudar as almas”. Ele não tem a pretensão de esgotar o tesouro da Revelação nos
Exercícios, e esses não abarcam todas as riquezas de Cristo e do seu Evangelho, mas
humildemente mostra que o Deus-Trino revela-se diretamente à criatura, construindo com ela
uma relação de amizade e intimidade pela via da oração, que tem em vista cultivar o amor,
ordenar a vida, situar-se ante a vocação recebida, levando a sério o projeto salvífico de Jesus
que chama a todos para trabalhar no seu Reino.
1
QUEVEDO, Luís González. Permanecer no amor: a continuidade dos Exercícios Espirituais. ITAICI - Revista
de Espiritualidade Inaciana 45, 2001, p. 54.
125
Nunca demoremos em realizar uma boa obra, mesmo que seja pequena, com
a ideia de que faremos maiores em outra ocasião. Esta é uma tentação habitual
do inimigo: fazer-nos ver a perfeição nas coisas a vir e nos levar a desprezar
as coisas presentes (CE 18).
2
CLEMENT, 2003, p. 254.
126
Ah! O amor! Deseja ir aonde ninguém vai. Corre na direção dos que não têm
direção, vibra nos olhos dos cegos, sorri na boca das crianças pequeninas. De ternura se enche
o amor, explode, palpita. A seu tempo, faz um coração bater mais forte, os passos andarem mais
rápido, a estrada encher-se de flores. No amor, a chuva é mansa; a brisa, leve; o céu, azul. O
amor descansa no Amado. Dá-se à vida sem medidas, sem egoísmo e orgulho.
Dele aprende-se a humildade. Nele se reconhece a caridade, o perdão, o diálogo, a
vida com mais sabor. Doa-se por inteiro, sem negar ao outro o que lhe é de direito. Derrama-
se, desmancha-se, dilui-se no outro, torna-se um com, pois sua fonte originária é Deus. “Seguir
este caminho seria andar direito no serviço do Senhor, estimando mais este caminho do que
qualquer outra coisa” (DE 160).
Aqueles que professam sua fé no Deus-Trino têm no Evangelho de Jesus Cristo o
caminho do amor e do serviço. Sua atuação no mundo depende da experiência de encontrar-se
com Ele nas profundezas do coração. Um encontro de amor que seja gerador de amor. Na oração
Sua presença se torna mais sensível, candente e inesquecível. Nela é possível cultivar a
interioridade e construir a intimidade, caminho feito com paciência, pois exige maturação do
desejo, disponibilidade para o encontro e abertura para o diálogo fecundo. “Se falta a
capacidade de orar, de se colocar face a face em atitude filial diante de Deus, não há mais nada
que seja cristão e ofereça garantias de autenticidade”3.
Ó Deus que suscitastes em vossa Igreja Santo Inácio de Loyola para propagar
a maior glória do vosso nome, fazei que auxiliados por ele, imitemos seu
combate na terra para partilharmos no céu sua vitória. Por nosso Senhor Jesus
Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém4.
3
SALVADOR, Federico Ruiz. Compêndio de Teologia Espiritual. São Paulo: Loyola, 1996, p.281.
4
Oração do dia rezada na festa litúrgica de Santo Inácio de Loyola em 31 de julho. Cf. MISSAL ROMANO. São
Paulo: Paulinas; Petrópolis: Vozes, 1992, p. 624.
127
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