.Lido - Do Diário Ao Romance - Ana Karoliny Teixeira Da Costa

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DO DIÁRIO AO ROMANCE: REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA EM


QUARTO DE DESPEJO (1960) E PEDAÇOS DA FOME (1963), DE
CAROLINA MARIA DE JESUS

ANA KAROLINY TEIXEIRA DA COSTA

DOURADOS - MS
2013
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ANA KAROLINY TEIXEIRA DA COSTA

DO DIÁRIO AO ROMANCE: REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA EM


QUARTO DE DESPEJO (1960) E PEDAÇOS DA FOME (1963), DE
CAROLINA MARIA DE JESUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em


Letras (Mestrado), da Universidade Federal da Grande
Dourados, como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Literatura e Práticas Culturais.
Orientador: Prof. Dr. Rogério Silva Pereira

DOURADOS - MS
2013
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ANA KAROLINY TEIXEIRA DA COSTA

DO DIÁRIO AO ROMANCE: REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA EM


QUARTO DE DESPEJO (1960) E PEDAÇOS DA FOME (1963), DE
CAROLINA MARIA DE JESUS

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em Letras, na área
de concentração Literatura e Práticas Culturais, e aprovada em sua forma final pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado), da Universidade Federal da Grande
Dourados.

Dourados, 25 de março de 2013.

________________________________
Profa. Leoné Astride Barzotto, Drª.
Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________
Prof. Rogério Silva Pereira, Dr. – Presidente / Orientador (UFGD)

_____________________________________________________________
Profa. Rosana Cristina Zanelatto Santos, Drª. – Membro Titular (UFMS)

_____________________________________________________________
Profa. Leoné Astride Barzotto, Drª. – Membro Titular (UFGD)

_____________________________________________________________
Prof. Paulo Bungart Neto, Dr. – Membro Suplente (UFGD)
4

AGRADECIMENTOS

E aprendi que se depende sempre


de tanta muita, diferente gente,
toda pessoa sempre é as marcas
das lições diárias de outras
tantas pessoas

(Gonzaguinha)

Primeiramente agradeço a Deus, por me dar provas diárias de que está ao meu
lado, ofertando-me equilíbrio, força e persistência para seguir em frente.
Aos meus pais e irmã, por terem fechado os olhos e tapado os ouvidos, àqueles
que não acreditaram na possibilidade de eu vir a ser quem hoje sou. O meu muito obrigada
por serem a minha base e por nunca duvidarem que todos os esforços que fizemos até aqui
não foram em vão.
Aos meus amigos, que mesmo em sua maciça maioria linguistas (Elizete,
Tiago, Alice, Mariolinda, Eliana), nunca se importaram de me escutar ‘carolinear’, nos
momentos em que me encontrava em ‘conflito’ nos ‘diálogos’ que procurava travar com a
Carolina.
Um agradecimento, em especial, ao Tiago e à Elizete, meus irmãos de coração,
que estão em minha vida há um longo tempo. É imensurável o carinho e o respeito que
tenho por vocês. E como prova disto, fica registrado o meu desejo de que embarquemos
juntos em muitas e muitas ‘canoas’, ao longo de nossas vidas.
Aos profissionais da FACALE-UFGD, por sempre se apresentarem
predispostos a auxiliar-me nesta caminhada, que foi o mestrado.
Aos professores do PPGL-UFGD, pela forma generosa e paciente com que se
colocaram no compartilhamento dos seus conhecimentos em cada dia de aula.
Ao professor Rogério, pelo modo como, pacientemente e com grande
empenho, pôs-se a me ensinar o árduo ‘caminho das pedras’, rumo ao conhecimento, nos
papéis que cabia a mim enquanto aluna do curso de graduação em Letras/Literatura,
orientanda de PIBIC e de TCC e, hoje, enquanto orientanda de mestrado. Muito obrigada.
Aos meus colegas do curso PPGL-UFGD, por fazer do ambiente sala de aula
um lugar tão agradável e tão rico em discussão acerca do espaço literário.
Também deixo o meu agradecimento aos demais que de alguma forma fizeram
a diferença em minha vida.
5

Uma palavra escrita não pode nunca ser apagada. Por mais
que o desenho tenha si sido
do feito a lápis e que seja de boa
borracha,, o papel vai sempre guardar o relevo
qualidade a borracha
das letras escritas. Não senhor! Ninguém vai apagar as
palavras que eu escrevi1

1
Breve biografia da autora Carolina Maria de Jesus, interpretada por Ruth de Souza.
Parte do programa Heróis de Todo Mundo, exibido na TVE em homenagem às grandes personalidades
negras da nossa história. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&NR=1&v=sPI9bdgMUnA>. Acesso em: 8 fev. 2012.
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RESUMO

Toma-se como perspectiva o estudo de aspectos capazes de nos dar pistas das novas
formas representativas que ocorrem no espaço fronteiriço do Modernismo com a Literatura
Brasileira Contemporânea. Para tanto, propomos uma análise minuciosa dos gêneros
literários produzidos por Carolina Maria de Jesus, sendo eles, o seu primeiro trabalho
publicado Quarto de despejo: diário de uma favelada ([1960], 2004) e o único romance
publicado Pedaços da fome (1963). As escolhas referentes à escritora e às respectivas
obras fundamentam-se na proposta levantada por Bakhtin (2003) acerca de que a cada
comunidade ou cada esfera de comunicação humana corresponderá um universo de
gêneros de comunicação. O que se deixa entrever, nesse sentido, que uma alteração na
esfera de comunicação, poderá ser visualizada nos gêneros produzidos por ela. Assim,
trazemos para este trabalho a proposta de refletir até que ponto Carolina Maria de Jesus
está à vontade entre os gêneros literários por ela escolhidos, bem como, o modo como
desempenha a função de se autorrepresentar. São discussões que faremos à luz de teóricos,
tais como: Candido (1990) e Bueno (2006), para análise da representação literária; Lejeune
(2008) e Miranda (2009), para o estudo do gênero diário; Bakhtin (2003), Robert (2008) e
Lukács (2000), para a compreensão do gênero romance. Deste modo, através do diálogo
entre obras e teorias, teremos condições de constatar, entre outros aspectos, o nascimento
de uma ‘nova’ escritora de romance Carolina Maria de Jesus, por vezes diversa da diarista;
e o pioneirismo de Pedaços da fome para a Literatura Brasileira, com o projeto que visa
‘educar’ a elite, como veremos.

Palavras-chave: Diário, Romance, Carolina Maria de Jesus, Representação Literária.


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ABSTRACT

It is taken as perspective the study of aspects capable of giving us clues of new representative
forms that occur in the bordering space of Modernism with Contemporary Brazilian
Literature. Therefore, we propose a detailed analysis of literary genres produced by Carolina
Maria de Jesus, namely, her first published work Child of the dark: The diary of Carolina
Maria de Jesus ([1960] 2004) and the only published novel Pedaços da fome (1963). The
choices regarding to the writer and her works are based on the proposal raised by Bakhtin
(2003) concerning that every community or every sphere of human communication will
match an universe of communication’s genres. What is glimpsed at, in this sense, that a
change in the sphere of communication can be viewed in the genres produced by it. So, we
bring to this paper the proposal of reflecting how far Carolina Maria de Jesus is, at ease,
among the literary genres chosen by her, as well as the way how it performs the function of
self-representing. These are discussions that we will make departing from theorists such as
Candido (1990) and Bueno (2006), to analyze of literary representation; Lejeune (2008) and
Miranda (2009), to study the diary genre; Bakhtin (2003), Robert (2008) and Lukács (2000),
for understanding the romance genre. From this way, through the dialog between works and
theories, we will have conditions of constating, among other aspects, the birth of a ‘new’
novel’s writer Carolina Maria de Jesus, sometimes diverse from the diarist; and the pioneering
of Pedaços da fome for Brazilian Literature, through the project that takes as aim ‘to educate’
the elite, as it will be seen.

Keywords: Diary, Novel, Carolina Maria de Jesus, Literary Representation.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
CAPÍTULO 1. O FICCIONAL E O NÃO FICCIONAL: VIDA E OBRA DE CAROLINA
MARIA DE JESUS ................................................................................................................. 14
1.1. Vida e obra: Realidade e ficção, a construção do passado ....................................... 15
1.2. O “quarto”: espaço físico e ideológico..................................................................... 25
1.3. O quarto da Carolina: entre o privado e o público ................................................... 39
CAPÍTULO 2. A PLASTICIDADE DO GÊNERO EM QUARTO DE DESPEJO ............ 45
2.1. Íntimo, porém, público: absorção da forma romanesca pelo Diário........................ 46
2.2. O diário como crônica: da crônica à “estória” ........................................................ 55
2.3. Da “estória” à História: manobras de escrita em Quarto de despejo ....................... 58
2.3.1. O cigano Raimundo ....................................................................................... 59
2.3.2. O deputado Zuza ............................................................................................ 63
2.4. Escritora, autora, narradora e personagem: uma construção ambígua ..................... 66
CAPÍTULO 3. PROBLEMAS DE REPRESENTAÇÃO EM PEDAÇOS DA FOME ..... 82
3.1. O projeto de Carolina em Pedaços da Fome ........................................................... 84
3.1.1. Relação entre as pessoas do romance (autor, narrador e personagem) ......... 94
3.1.2. Paulo Lemes e a figura do malandro .............................................................. 97
3.1.3. A inversão da lógica social em Pedaços da Fome ....................................... 102
3.2. O processo alegórico no romance caroliniano ....................................................... 106
3.3. A função pedagógica do romance .......................................................................... 109
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 115
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 119
ANEXOS ............................................................................................................................... 124
1. Carolina Maria de Jesus: infância e adolescência em Sacramento
2. Jornal das exposições: Carolina Maria de Jesus
3. Teatro “carolinas”
4. Carolina, ponto final
5. Morre Carolina de Jesus
6. O Best-seller da fome
7. Carolina de Jesus vai ter sua obra perpetuada
8. Estudos acham inédito de Carolina de Jesus
9

INTRODUÇÃO

A presente dissertação toma como linha de pesquisa a área de concentração


Literatura e Práticas Culturais, do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras, da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Mais especificamente, é um trabalho de
pesquisa que se fundamenta nas propostas de investigação do projeto “Fronteiras da Literatura
Brasileira Contemporânea” (FLBC), coordenado pelo Professor Doutor Rogério Silva Pereira
(FACALE\UFGD). Tal projeto, por sua vez, assume o compromisso de contribuir com
investigações acerca das possíveis mudanças e permanências nas fronteiras entre o
Modernismo Brasileiro e a Literatura Brasileira Contemporânea.
Com efeito, iniciamos nossos trabalhos de pesquisa em dezembro do ano de 2006,
quando, ainda aluna do curso de licenciatura Letras/Literatura, pela Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD), propomos o projeto Fronteiras da Literatura Brasileira
Contemporânea: A imagem da personagem marginal segundo o olhar do narrador nas obras
Uma vida em segredo de Autran Dourado (1964) e Vidas secas de Graciliano Ramos (1938),
enquanto parte integrante do projeto referido acima. Trata-se de uma atividade que contou
com o apoio do PIBIC-UFGD, no período de agosto de 2007 a julho de 2008. No segundo
semestre de 2008, damos sequência às investigações das fronteiras literárias, com o projeto:
Fronteiras da Literatura Brasileira Contemporânea: Vozes Marginalizadas: Estudo da
narrativa literária em Quarto de despejo (1960), também desenvolvido com o apoio do
PIBIC-UFGD no período de agosto de 2008 a julho de 2009.
Estas atividades de pesquisa desenvolvidas nos dois projetos citados serviram como
base para que se pudesse desenvolver o meu trabalho de conclusão de curso no segundo
semestre do ano de 2009, intitulado Vozes marginalizadas: estudo da narrativa literária em
Quarto de despejo (1960), sob a orientação do Professor Doutor Rogério Silva Pereira.
Como forma de continuar a amadurecer as investigações sobre as nuances que
ocorrem no espaço fronteiriço do contexto literário brasileiro e tendo em vista a importância
desta pesquisa para o meio literário e social, houve a iniciativa de trazer como proposta de
trabalho para o Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras, da FACALE-UFGD, a
investigação analítica das obras de Carolina Maria de Jesus, focando em dois livros, a saber,
Quarto de despejo ([1960] 2004), pertencente ao gênero diário, e Pedaços da fome (1963),
pertencente, por sua vez, ao gênero romance. Optamos pela observação do comportamento
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desta escritora acerca de questões relativas ao processo de representação social e literária, por
meio da análise dos dois gêneros em questão.
A investigação é bastante relevante, uma vez que foi possível conferir
comportamentos diferentes de Carolina na escrita desses gêneros, os quais, como
procuraremos defender ao longo deste trabalho, apresentam-se como reflexos constitutivos do
posicionamento social na transição de espaços por quais passam a escritora, do “quarto de
despejo à sala de visita”, por assim dizer, metáfora usada por ela para se referir à sua transição
da condição social – como sabemos, depois do êxito de vendagem de sua obra Quarto de
despejo, a escritora se emancipa de sua condição de miserável moradora de favela, para um,
ainda que breve, período de reconhecimento como artista e de relativo conforto material.
As análises que propomos trazem como fio condutor as discussões sobre gêneros
levantadas por Bakhtin (2003), nas quais são ressaltadas que cada comunidade ou cada esfera
de comunicação humana corresponderá um universo de gêneros de comunicação. Isto nos
leva a entender, por conseguinte, que uma modificação na esfera de comunicação poderá ser
observada nos gêneros produzidos nesta mesma esfera. Gêneros novos são, por assim dizer,
resultado de importantes modificações nas relações das referidas comunidades. Assim,
abordar o gênero é entrever nele aspectos de mudanças ou permanências nas esferas de
comunicação onde são produzidos. Supomos, de fato, que começa a surgir uma nova esfera de
comunicação literária nos anos pós-1964, a qual, por conseguinte, convenciona novas
estruturas dentro dos gêneros literários, que a análise a seguir acaba por entrever.
A reflexão pressupõe importante aspecto que distingue Modernismo de
Contemporaneidade literária no Brasil, a saber, o fato de que durante o Modernismo vigorou
um protocolo de representação em que os excluídos (o negro, o sertanejo, o miserável, o
marginal) foram também excluídos da lógica da autorrepresentação; neste caso, eles eram
representados por outrem, a partir dos (pré)conceitos produzidos por uma sociedade urbana
industrial.
Contudo, acreditamos que a esfera de comunicação literária brasileira sofreu mudanças
em seu cenário, as quais, de certa forma, foram responsáveis por denunciar o projeto de
representação que vigorou no Modernismo. O livro de Clarice Lispector, A hora da estrela
(1978), é um desses exemplos de denúncia. A obra clariceana parece ser um resultado, por
assim dizer, desse processo de democratização literária pelo qual passa a sociedade brasileira
e que aludimos acima. O que é escrito neste romance só ganha credibilidade para o leitor a
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partir do momento em que é passível de comprovação pelo narrador Rodrigo S.M., por isso a
sua dificuldade de narrar, expressa nas páginas iniciais do livro (Cf. PEREIRA, 2007).
Na nova fase da vida brasileira, os discursos sobre o EU estão em alta; do contrário,
qualquer tentativa de falar do ELE, entendido como “outro”, de algo que é indiferente ao
narrador, automaticamente pertencerá à esfera do inverossímil e/ou da mentira. De fato, trata-
se de um novo regime de verdade, no qual as convenções que estavam vigentes até o
Modernismo, convenções estas que aludem ao que deve ser a verdade literária, vão aos
poucos perdendo sua validade.
Carolina Maria de Jesus, apesar de não fazer parte do grupo legitimado de pensadores
literários, é sensível às transformações que ocorrem a partir da década de 1960, e acreditamos
que suas obras são reflexos deste processo. Aliado aos jogos ficcionais e não ficcionais,
exigidos pelos gêneros escolhidos pela escritora, está uma forte resistência aos movimentos
sociopolíticos. Seja pelo seu pouco contato com o ensino básico regular ou, seja por suas
necessidades sociais e literárias, Carolina se obriga a flexionar e alargar as margens de tais
gêneros, conforme veremos ao longo deste trabalho. Nesses termos, a ideia é entrever na
flexão e no alargamento das margens dos gêneros diário e romance, postos em prática por
Carolina, aspectos da própria modificação da vida brasileira dos anos 1960 em diante e das
modificações na esfera de comunicação literária contemporânea, as quais, como vimos se
relacionam.
Assim, o que podemos conferir no capítulo 1 deste trabalho, intitulado “O ficcional e o
não-ficcional: vida e obra de Carolina”, é uma abordagem que procura unir aspectos
biográficos, com base em livros escritos pela autora e/ou trabalhos que tentam recuperar esses
escritos (a exemplo de Casa de alvenaria, 1961; Meu estranho diário, 1993; Diário de Bitita,
1986) ou em textos de estudiosos que investigam o passado caroliniano (Carolina Maria de
Jesus: uma escritora improvável, 2009; Antologia pessoal, 1996; Jornal Folha de São Paulo,
1977, entre outros). A proposta é oferecer um panorama capaz de dar amostras da construção
da imagem da Carolina Maria de Jesus, enquanto uma pessoa que tenta se configurar como
‘artista’, desde a infância. Fazemos referência, então, a uma identidade da menina Carolina,
que, em certa medida, virá a confirmar, quando não muito, justificar os caminhos percorridos
pela escritora em seu presente adulto. Este capítulo também será responsável por nos
apresentar o tempo presente de Carolina, em Quarto de despejo ([1960] 2004), enquanto
migrante, marginal e moradora da favela de Canindé, na cidade de São Paulo. A abordagem
que procuramos imprimir a esta primeira parte nos direcionará para questões acerca do
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‘quarto’, enquanto espaço físico e ideológico e, por extensão, enquanto metáfora da própria
condição da mulher no cenário literário. Neste aspecto, nos dedicamos a pensar, com mais
fôlego, na condição singular da escritora mulher, miserável e negra, do contexto brasileiro dos
anos de 1950 e 1960.
Por sua vez, no capítulo 2, denominado “A plasticidade do gênero em Quarto de
despejo”, será responsável por nos apresentar o modo como as margens do gênero diário são
dilatadas, de forma a atender as necessidades da escritora. Como veremos, trata-se de um
procedimento de comunicação artístico, possivelmente, não intencional. Contudo, não deixa
de nos dar pistas dessa nova necessidade que imprime ao fazer literário desse novo contexto
brasileiro contemporâneo. Neste mesmo capítulo, também teremos a oportunidade de
acompanhar os vários modos como o gênero diário é moldado e o quanto estas dilatações de
sua forma composicional o aproximam do gênero romanesco, em especial, por termos como
certa a consciente referência a um interlocutor/leitor/consumidor de diários publicados, como
também, pelo fato de ter claramente em sua narrativa, o desejo de tornar público o seu diário.
Estes dois aspectos exigem da escritora uma postura diferente, no trato com gênero – que, por
definição, tem face privada e íntima. Esta postura, por sua vez, se evidenciará, principalmente,
nos momentos em que observarmos a necessidade de subverter, ou ainda, perverter, à
semelhança de um arrivista (Cf. ROBERT, 2008), o mundo da intimidade, em público; ou,
neste caminho, quando se mostra o esforço da escritora em ligar fragmentos de uma realidade
que se apresenta caótica, que é a favela de Canindé, para um leitor alheio e desconhecedor da
realidade da mesma, que é o leitor/comprador de obras literárias.
Por fim, no capítulo 3, intitulado “Problemas de representação em Pedaços da fome”,
debruçamo-nos em investigações acerca do único romance, única obra ficcional, portanto,
publicado por Carolina. A proposta para este capítulo é mostrar o quanto o novo gênero a ser
trabalhado, depois da publicação de dois diários (Quarto de despejo, 1960 e Casa de
alvenaria, 1961), é reflexo da nova condição socioeconômica e cultural da escritora, agora,
enquanto frequentadora da “sala de visita”. É como se a nova condição de Carolina exigisse
e/ou possibilitasse uma nova forma de se fazer ouvir: o romance foi o meio escolhido. Com
efeito, uma importante questão se coloca neste ponto: negra, marginal, semi-analfabeta,
Carolina havia primado por representar a si mesma nos trabalhos anteriores, que são diários
em sua maioria; agora, no romance, decide representar uma mulher branca e rica – quais os
motivos e consequências desta decisão estética? Aos poucos, na busca de resposta para esta e
outras questões que lançamos ao longo deste trabalho de análise; surpreendentemente, o
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romance caroliniano se revelará como possibilidade de leituras que deflagram o pioneirismo


de Carolina Maria de Jesus, para a Literatura Brasileira Contemporânea, como veremos.
As questões abordadas nos capítulos deste trabalho de investigação literária se
fundamentam e, ao mesmo tempo, encontram sua real importância para o estudo da Literatura
Brasileira, ao tomarem como base duas perspectivas norteadoras: a primeira, trata-se do
reconhecimento dos textos de Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo: diário de uma
favelada (1960) e Pedaços da fome (1963)), diário e romance, como produções literárias; a
segunda perspectiva faz referência ao reconhecimento de que nasce na Literatura Brasileira
Contemporânea uma nova concepção do fazer literário, agora, construído a partir de vozes
marginais que tentam se autorrepresentar, de legitimar-se como plurais tanto no meio
sociopolítico quanto no meio cultural. Movimento autorrepresentativo este, do qual
acreditamos que Carolina faça parte, ou melhor, do qual seja uma das precursoras, como se
fará observar mais adiante.
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1. O FICCIONAL E O NÃO-FICCIONAL: VIDA E OBRA DE


CAROLINA MARIA DE JESUS

Segundo Antonio Candido, “[Uma] das funções capitais da ficção, [...] é a de nos dar
um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e
fragmentário que temos dos seres. Mais ainda: de poder comunicar-nos este conhecimento”
(CANDIDO, 1990, p. 64). Contudo, sendo a ficção uma ‘criação imaginária’, conforme
acepção do dicionário eletrônico Houaiss (2001), ela apenas consegue cumprir o seu papel de
comunicar um conhecimento mais completo do ser à medida que se aproxima de “[...] uma
impressão da mais lídima verdade existencial” (CANDIDO, 1990, p. 55). Para o autor, nesse
sentido, há uma conexão de legitimidade entre o ser ficcional e o mundo existencial a que ele
se refere. Não se trata de copiar o real, mas de dar a impressão de que se trata do real. O
ambiente é o da verossimilhança.
Como fazer isso? E será que isso é exclusivo do texto ficcional? E o que dizer de um
texto, como o de Quarto de despejo: diário de uma favelada, que, como o próprio subtítulo
indica (“Diário de uma favelada”), é um texto não ficcional? Nesse caso, podemos continuar a
pensar com Candido: por mais que haja uma intenção de seguir o viés da escrita não ficcional,
como é de se esperar do gênero diário, é preciso considerar que o texto literário encontra a sua
plenitude, em termos de coerência, na descrição “física” e “espiritual” do ser (Cf. CANDIDO,
1990, p. 55-59). O texto se legitima ao encontrar um vínculo com o mundo efetivamente
existente, sobretudo no ser humano real, e esse vínculo se encontra particularmente na
obtenção de certa coerência na descrição dessa pessoa. Eis aí o que os gêneros ficcionais e
não ficcionais devem ter em comum. Eles são linguagem e devem primar pela busca de certa
coerência, sob pena de acabarem perdendo seu pé na realidade, tão importante, afinal de
contas.
No diário caroliniano, a escritora alia uma atividade ética de observar um cotidiano
que é de seu domínio, a favela de Canindé, a uma necessidade estética, que é a construção de
um texto, por sua vez, deliberadamente literário. A autora quer, assim, configurar o mundo
através de um diário que traz em si aspectos poético-literários. Esse texto faz uso de valores
emocionais, de construções imaginárias, das crenças e preconceitos oriundos do sistema social
e linguístico ao qual a própria Carolina pertence, dentre outros. Todos esses fatores são
reunidos no esforço de dar vida à narradora e à personagem, ambas as construções presentes
em Quarto de despejo, e que, nem sempre se apresentarão como integração perfeita, antes,
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como polos em relativa tensão, conforme veremos, e sinalizarão aproximações e


distanciamentos de ‘personalidades’ (Cf. CANDIDO, 1990, p. 57).

1.1 Vida e obra: realidade e ficção, a construção do passado

Minha mãe queixou-se que eu chorava dia e noite. Ele [o médico espírita
Eurípedes Barsanulfo] disse-lhe que o meu crânio não tinha espaço
suficiente para alojar os miolos, que ficavam comprimidos, e eu sentia dor
de cabeça. Explicou-lhe que, até aos vinte e um anos, eu ia viver como se
estivesse sonhando, que a minha vida ia ser atabalhoada. Ela vai adorar tudo
que é belo! A tua filha é poetisa; pobre Sacramento, do teu seio sai uma
poetisa (JESUS, 1986, p. 71)2.

Carolina desde cedo nutre o seu lado artístico. Ao menos é o que podemos entrever
nas lembranças remotas configuradas no seu Diário de Bitita (1986)3, livro de memórias que
remete à infância da escritora, escrito anos depois da publicação de Quarto de despejo. Nesta
obra, podemos entrever aspectos da construção de um passado que, dentre outros, viria
confirmar o presente desta artista e escritora.
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, Minas Gerais.
Desde criança, foi considerada uma pessoa com imaginação muito fértil e contestadora de
tudo o que a cercava, contribuindo para que muitas vezes fosse considerada ‘louca’ ou
‘atrevida’ pela família e por muitos moradores da região. Tais impressões que compõem a
personalidade da escritora estão registradas em Diário de Bitita. A visão, é claro, é da própria
autora, mas pode ser muito útil para refletirmos alguns pontos. Para o primeiro caso, o da
Carolina considerada ‘louca’, vemos o seguinte:

[...] Quando o soldado Ovídio matou o baianinho, ouvi várias pessoas dizer:
‘Foi um crime matar este homem’. Algumas palavras eu ouvia e não
compreendia. Sorria e achava graça. [...] Alguém vendo-me sorrir e não
vendo o motivo para o riso dizia: [...] – Ela é louca! [...] Havia ocasiões que
eu dizia para a minha mãe: [...] – Mamãe, mamãe! Olha as cobras! [...] Ela
sorria e dizia: [...] – Eu não vejo nada minha filha! [...] Eu tinha a impressão
que milhares de cobras estavam enrolando-se em mim. E uma cobra enorme
investia na minha direção. Eu não tinha medo! O vovô disse-me: [...] São os
falsos amigos que você vai encontrar na tua vida. [...] Não compreendia nada
(JESUS, 1986, p. 120).

2
Os trechos citados das obras de Carolina Maria de Jesus são transcritos aqui em sua integridade, sendo
absolutamente fiéis ao português peculiar da escritora e às respectivas edições dos textos.
3
Apesar de o título fazer referência ao livro como um diário, trata-se de um livro de memórias. Isto fica
evidente, quando recobramos em Lejeune (2008) uma das principais características do gênero diário, isto é, o
fato de não poder haver um distanciamento temporal entre o escrito e o vivido.
16

Ressalta-se aqui o distanciamento da narradora que contempla a criança Carolina,


focando-a como personagem. Vemos a menina emaranhada em sua imaginação fértil,
alcunhada louca pelos vizinhos, por um lado, mas, por outro lado, vista com complacência
pela família, quer pelo sorriso da mãe, quer pela ‘explicação’, via presságio, do avô. Parece
que a escritora justifica uma pretensa ‘loucura’ no presente: ela cresceu num ambiente que
dava corda à sua imaginação feita de ideia que variavam de “minuto a minuto iguais às
nuvens no espaço que formam belíssimos cenários” (JESUS, 1986, p. 10). Sua ‘loucura’
infantil parece adequada ao presente da escritora cheia de imaginação.
O ‘atrevimento’ de Carolina também é característica que o Diário de Bitita ressalta.
Esta característica da menina também é fator útil no presente da escritora, em outras palavras,
é aspecto que se junta de modo adequado à persona pública da escritora, sempre atenta em
seus textos para a denúncia das mazelas sociais e políticas.
Contudo, útil no presente da escritora, problema no passado da menina: ser
denominada ‘atrevida’ no contexto ao qual a menina Carolina, a personagem, se insere, não
estava isento de complicações. Seu atrevimento era motivo de constantes conflitos de sua mãe
com a família:

Quando a minha mãe falava eu me aproximava para ouvi-la. Um dia, a


minha mãe repreendeu-me e disse-me:
– Eu não gosto de você!
Respondi-lhe:
– Se estou no mundo é por intermédio da senhora. Se não tivesse dado
confiança ao meu pai eu não estaria aqui.
Minha mãe sorriu e disse:
– Que menina inteligente. E está com quatro anos.
Minha tia Claudimira comentou:
– Ela é mal-educada.
Minha mãe defendia-me, dizendo que eu tinha dito a verdade.
– Ela precisa apanhar! Você não sabe criar filhos.
Elas iniciaram uma discussão. Pensei: ‘A minha mãe é quem foi ofendida e
não ficou ressentida’. Percebi que a minha mãe era a mais inteligente.
– Bate, Cota! Bate nesta negrinha! Ela está com quatro anos, mas o cipó se
torce enquanto é novo.
– O que tem de ser, já nasce – respondeu a minha mãe (JESUS, 1986, p. 8-
9).

Aqui, ressalta novamente a complacência da família. A mãe de Carolina é


configurada como alguém que, relevando o atrevimento da menina, descobre nela a
inteligência. O atrevimento se transmuta em inteligência. É assim, no seio da família
conflituosa sobre a sua educação, mas enfim complacente com seu atrevimento, que a futura
17

escritora, também atrevida, é nutrida. Trata-se da personagem que depois vemos ‘construindo-
se a si mesma’ na vida árdua da metrópole injusta que é a cidade de São Paulo. Trata-se da
escritora que não se conforma com a vida miserável da favela e que denuncia esta vida em
forma de literatura no seu Quarto de despejo.
Ainda na cidade de Sacramento, Carolina alternou épocas morando no campo e na
região urbana. A memória da escritora recolhe no passado as lembranças da tensão entre a
fome e a fartura. Tensão, diga-se, que veremos configurada no diário caroliniano.

Quando surgiu a colheita, fiquei admirada da prodigalidade da terra. Uma


amiga que todos os meses nos oferece algo para colher. Plantamos dois sacos
de arroz, colhemos trinta. Dois sacos de milho. Colhemos três carros. O meu
padrasto fez um paiol. Que fartura. As galinhas duplicavam, só carijó
(JESUS, 1986, p. 130).

E continua:

Eu estava enamoradíssima da nova vida. Estava desligando-me da compra de


quilos de arroz e familiarizando-me com os sacos de cem quilos e com o
paiol (JESUS, 1986, p. 131).

Dividida entre zona rural e zona urbana, Carolina parece adentrar o fluxo migratório
dos anos 30, 40 e 50, sem ter plena consciência disso. Com efeito, trata-se daquilo que vemos
patente na vida da família de Sinha Vitória e Fabiano, personagens de Vidas secas, de
Graciliano Ramos.
Carolina trabalhou como empregada doméstica e tentou muitas vezes trabalhar no
campo, na lavoura e na casa dos proprietários de terra. Não parava nos empregos. São vários
os momentos em que a narradora se põe a descrever as diversas tentativas de trabalhar e o seu
insucesso por não tolerar determinadas situações:

Consegui empregar-me com o senhor Benjamin, um sírio que tinha um


empório no sítio, não sabia ler, vendia a olho, e ganhava dinheiro. A esposa
também era analfabeta. Quando vendiam algo fiado, ela pegava um lápis e
riscava um papel que era para os fregueses verem que ela havia anotado.
Não somavam as rendas diárias, não tinham inscrição, não pagavam
imposto. Eram uns lesa-pátria. [...] O meu serviço era cozinhar, lavar e
passar. Prometeram que me pagavam quarenta mil-réis. Trabalhei dois
meses. Fiquei com nojo deles quando vi eles brigarem com a afilhada Nilza
e o seu esposo, um professor. O sírio não gostava do professor, dizia que ele
era brasileiro e pobre. Mas é no Brasil que eles enriqueceram. [...] Pedi a
conta. Me deram cinco mil-réis, deveriam me dar oitenta. Eu tive que viajar
a pé para a cidade. Roguei pragas ao sírio Benjamin, e à sua esposa dona
Maria. Avarentos (JESUS, 1986, p. 142).
18

Os episódios desse tipo se sucedem. Neles a persona da escritora adulta é


configurada na vida da menina e da adolescente. Além do que já foi dito, ressaltam nesses
episódios o senso crítico e o senso de justiça aguçados, ao que parece, pelas injustiças que se
abatem sobre a jovem Carolina.

O senhor Bruxelas comprou um cofre em São Paulo. Quando chegou o


cofre, eu estava varrendo a sala. O homem que fez a entrega do cofre
explicava o segredo!
- O senhor roda três vezes, zero. Roda quatro vezes dois.
Eu não estava prestando muita atenção na explicação mas os dados ficaram
gravados na minha mente. [...] Dias depois o senhor Emílio Bruxelas perdeu
o papel que continha a explicação para abrir o cofre. Ficou nervoso. O
senhor Jozias de Almeida disse-lhe:
- A Carolina é muito inteligente. Se ela ouviu o segredo do cofre, deve ter
decorado. [...] - A senhora ouviu o homem ler o segredo do cofre?
- Ouvi, sim senhor.
- Será que a senhora pode escrever o que foi que ouviu?
Fiquei vaidosa.
- Oh! Posso sim!
Ele pegou um papel e deu-me.
Escrevi: ‘Roda três vezes , zero. Roda quatro vezes, dois’.
Fui escrevendo o que ouvi e entreguei-lhe. Ele foi correndo abrir o cofre.
Abriu. Foi procura-me na cozinha.
- Dona Carolina a senhora pode ir-se embora. Vai arrumar as suas roupas e
sai.
Fiquei apavorada porque estava chovendo. Eu não podia perguntar-lhe por
que é que estava me expulsando de sua casa, se eu lhe prestara um grande
favor auxiliando-o a abrir o cofre. O meu orgulho falou mais alto. Já que ele
está me expulsando, vou sair sem pedir explicação. Ele deu-me trinta mil-
réis eu saí. Não tinha guarda-chuva. Dei cinco passos fiquei encharcada. Não
tinha ninguém nas ruas. Eu não tinha casa. Que luta! (JESUS, 1986, p. 184-
185).

Mais uma cena de injustiça. Nesse caso, as virtudes da jovem Carolina parecem não
ajudar muito a adolescente. Inteligência, boa vontade, ingenuidade, são mal interpretadas e,
quando a personagem ajuda o patrão numa situação decisiva, este lhe paga com demissão.
No contexto brasileiro no qual se insere a jovem Carolina, descrito no livro Diário de
Bitita, (aproximadamente década de 1930), a questão do preconceito racial ganha espaço de
modo explícito. E essas relações entre as pessoas se tornam ainda mais conflituosas quando se
alia o preconceito racial à discriminação socioeconômica, além do fato, é claro, das relações
de desigualdades sociais entre homens e mulheres. A personagem Carolina sofre esse triplo
preconceito.
Devido a uma doença de pele que adquiriu nas pernas durante o período que
trabalhou no campo, foi obrigada a procurar tratamento em outras cidades. Nestes locais, em
19

função da falta de apoio familiar e do estado debilitante de suas pernas, ela não pôde
trabalhar, tendo que se sujeitar a atividade de pedir esmolas. E, assim, o leitor tem mais um
episódio do confronto entre a mulher sozinha e o mundo injusto:

- Você não tem mãe, não tem parentes? Vocês, medíocres, dão graças a Deus
quando aparecem estas chagas nos seus corpos, para tirarem proveito da
doença pedindo esmolas. É que vocês, que são ignorantes, não sabem o valor
de um corpo são, sem enfermidade.
É horrível alguém ter nojo da gente. Segui sem me despedir pensando:
‘Prefiro morrer de fome do que pedir esmolas. Quando será que vou sarar?’
(JESUS, 1986, p. 166).

São estes alguns dos motivos que levam Carolina a iniciar suas viagens. Primeiro,
em cidades próximas à sua cidade natal, em busca de tratamento médico e, depois, a procura
de novas possibilidades de vida, como foi o caso da mudança para a capital de São Paulo.
Carolina é mais um indivíduo entre tantos, que arrisca sair do interior do Brasil,
marcado pela (pseudo)desvalorização do campo (sem que entremos muito neste assunto, há de
se ressaltar que existe um motivo para nutrir esta concepção: o projeto de modernização e
industrialização implantado nos centros urbanos) e pelo atraso do desenvolvimento
econômico, para ir à busca de oportunidades de trabalho oferecidas pela sociedade paulistana,
que, por sua vez, requisitava mão-de-obra barata para assumir os serviços do lar e de limpeza.
Contudo, São Paulo, como grande parte das demais localidades que passaram pelo processo
de desenvolvimento econômico, em nome de uma unidade cultural soberana, apoiou-se na
ideia de que era preciso ‘apagar’ as diferenças sociais, conforme observa Santiago (2004):

Pela persuasão de cunho patriótico, os multiculturalistas da comunidade


imaginada desobrigaram a elite dominante de exigências sociais, políticas e
culturais, que transbordam do círculo estreito da nacionalidade econômica.
Se se quiser lavar a roupa suja, terá de ser em casa. As diferenças étnicas,
linguísticas, religiosas e econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de
possíveis conflitos no futuro, escamoteadas a favor de um ‘todo’ nacional
íntegro, patriarcal e fraterno, republicano e disciplinado, aparentemente
coeso e, às vezes, democrático. Os cacos e as sobras do material de
construção, que ajudou a elevar o edifício da nacionalidade, são atirados no
lixo da subversão, que deve ser combatida a qualquer preço pela polícia e
pelo exército. A construção do Estado pelas regras desse multiculturalismo
teve como visada prioritária o engrandecimento do estado-nação pela perda
da memória individual do marginalizado e em favor da artificialidade da
memória coletiva (SANTIAGO, 2004, p. 57-58).

Esta ideologia do estado-nação cuja tônica é uma homogeneização, está refletida na


lógica da grande metrópole em que Carolina tenta se inserir. Em São Paulo, ela encontra um
20

jogo de cartas marcadas em que tem de se adaptar, porém, de modo a ocupar posição
subalterna. Mas não é isso que ela quer de fato.
Inicialmente, já em São Paulo, ela trabalhou como empregada em algumas casas.
Mas a independência, o senso de justiça e, provavelmente, aquela faceta de atrevimento e
inteligência que lhe atribuiu a mãe, não deixaram que Carolina ficasse muito tempo
trabalhando como doméstica. É o que lemos no livro Cinderela negra: “Tudo indica que não
lhe faltava serviço em casas de famílias brancas e economicamente bem colocadas, mas,
segundo suas próprias palavras, ela era muito independente para ficar limpando as bagunças
alheias” (MEHY; LEVINE, 1994, p. 21).
Em 1948, Carolina mudou-se para a extinta favela de Canindé, às margens do rio
Tietê, na rua A, barraco no 9. Ali, tornou-se mãe solteira de três crianças: José Carlos, João
José e Vera Eunice, filhos de pais diferentes.
Escrito e publicado, como dissemos, depois de Quarto de despejo, o Diário de
Bitita parece ter como conteúdo a infância e juventude da escritora. Ali, como vimos, ela
expõe as experiências de vida que parecem ser a temática para a escrita de todos seus
trabalhos. São verdadeiras experiências formadoras. Dentre elas, está a fome. Em toda a obra
de Carolina, a fome, tão bem conhecida pela moradora de Canindé, ganha destaque. No seu
limite, a fome, tema e realidade, é responsável por desencadear os grandes ápices do modo
expressivo pelo qual Carolina ficou conhecida e admirada pelas diferentes constituições
sociais de seu tempo e na contemporaneidade. Isto porque é no desespero causado pela fome
que a escritora coloca sob luz o seu lado poético, a sua indignação perante as desigualdades
sociais e o seu protesto por meio da escrita.
A fome verdadeira ganha materialidade poética. Uma sensação que ganha forma e
cores, amarela e roxa, conforme aumentava o desespero pela falta de alimento: “[...] Eu que
antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo” (JESUS, 2004, p. 40); “[...] Vi as
flores roxas. A cor da agrura que está nos corações dos brasileiros famintos” (JESUS, 2004, p.
123).
A fome é quase uma personagem em seus livros. Carolina vê a fome como
pedagógica, como experiência formadora. A ela atribui a responsabilidade de ensinar ao
homem, por meio do castigo, a necessidade de ser solidário com o próximo, lição aplicada
tanto na ‘realidade’, descrita no Diário, quanto na forma ficcional, no romance Pedaços da
fome: “... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é
professora. [...] Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças” (JESUS,
21

2004, p. 26); e “[...] Tôdas pessoas que são ricas deviam conhecer a pobresa; haviam de ser
mais humanos” (JESUS, 1963, p. 90-91).
Carolina deixou um legado de cerca de quatro mil e quinhentas páginas manuscritas
de trabalhos, distribuídos em 37 cadernos (Cf. MEIHY; LEVINE, 1996, p. 7), nos quais é
possível conferir: “1) os diários, 2) peças de teatro; 3) provérbios; 4) contos; 5) romances e 6)
cartas e bilhetes” (Cf. MEIHY; LEVINE, 1996, p. 28); além disso, destaca-se a:

[...] existência de páginas com outras letras e com matérias diversas (contas)
mostra que os cadernos eram mesmo recolhidos do lixo. Há páginas em que
estão escritas com letras de criança onde se nota, por exemplo, exercícios
escolares dos filhos. Curiosamente, são encontrados também receitas de
bolos, listas de compras de material doméstico. Tudo, porém, se compõem
num conjunto preciso. Único (Cf. MEIHY; LEVINE, 1996, p. 29).

É preciso observar que muitos desses trabalhos citados pelos estudiosos ainda estão
inacessíveis ao grande público. Dos trabalhos publicados, resultam cinco obras recortadas e
editadas: três diários, sendo eles, Quarto de despejo: diário de uma favelada ([1960] 2004);
Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961) e Diário de Bitita (1986), esta última
obra é uma publicação póstuma, feita primeiramente na França; um romance Pedaços da fome
(1963) e um livro intitulado Provérbios (1963), em que são compilados os vários provérbios
criados por Carolina. Os dois últimos trabalhos são publicados com o financiamento da
própria escritora.
Entretanto, apesar de transitar por diferentes caminhos de composição, a única obra
que de fato teve o seu reconhecimento alcançado e pelo qual Carolina é lembrada é Quarto de
despejo, primeiro trabalho publicado pela autora.
Trata-se de um livro composto por 167 páginas que se debruça acerca do esforço de
relatar o cotidiano da moradora da favela de Canindé, Carolina Maria de Jesus. Neste, além da
forma que compete ao gênero, são encontradas mesclas de poemas, provérbios, quadrinhas e
formas romanescas. Todas responsáveis por registrar desde assuntos banais, tais como,
informar se o dia é chuvoso ou ensolarado, traduzir um estado de espírito, ou marcar as ações
praticadas diariamente, como acordar toda manhã para carregar água e fazer o café; a assuntos
mais densos, como as relações entre os favelados, as dificuldades que encontra por ser mãe
solteira, os desafios de trabalhar como catadora de materiais recicláveis e, apesar do intenso
trabalho cotidiano, a falta de condições de levar uma vida com um mínimo de conforto. Além
desses assuntos, cabe ainda lembrar que o diário caroliniano abrange assuntos de cunho mais
pessoais, a exemplo do olhar que a narradora lança para a protagonista no âmbito da
22

intimidade: “Ele [senhor Manoel] saiu. Ele é muito bom e iducado. E bonito. Qualquer mulher
há de gostar de ter um homem bonito como ele é. Agradavel no falar” (JESUS, 2004, p. 91).
Casa de alvenaria retrata a recepção da obra Quarto de despejo. Além disso, fala
como a vida da escritora e de seus filhos mudaram em intervalo de tempo relativamente curto,
depois do sucesso do livro.
É, aliás, de fácil averiguação o modo como esta mudança brusca pode se
manifestar, por exemplo, no decorrer de um dia. Como é o caso do episódio em que a
escritora relata os acontecidos do dia 5 de maio de 1960, o dia em que assinou contrato de
publicação do livro Quarto de despejo. A escritora inicia o episódio narrando suas
dificuldades devido à falta de dinheiro: “Levantei as 5 horas para preparar as roupas dos filhos
para irmos na Livraria. Não vou fazer café porque não tenho açucar nem dinheiro para o pão”
(JESUS, 1961, p. 11). E ainda reporta que, na editora, ganhou esmolas:

Eu li um trecho do diário, que eu estava enfraquecendo porque passava


fome. O reporter da ‘Última Hora’ deu-me 20 cruzeiros. Quando eu entrava
na livraria e estava conversando com a caixa um senhor deu-me 10 cruzeiros
– tomou-me por mendiga (JESUS, 1961, p. 14).

No entanto, a situação se reverte ao longo do dia, pois, com a assinatura do


contrato, recebeu parte do pagamento:

...As 6 horas me despedi. O Senhor Lelio [diretor-gerente da editora Livraria


Francisco Alves] deu-me o seu cartão para eu procurá-lo. Citei os livros que
tenho em preparo. Hoje eu ganhei:

22,00 de ferro velho


10,00 de um freguês da livraria
20,00 do reporter da ‘Última Hora’
500,00 do pai da Vera
2.000,00 do Senhor Lelio
________
2.552,00

Despedi de todos na livraria e fui fotografada na vitrine. Quando chegamos


no ponto do bonde, levei os filhos para jantar no restaurante. Êles gostaram
(JESUS, 1961, p. 15).

No dia 18 de agosto, os preços já não são mais assunto de destaque: “[...] Faz tempo
que eu não visito as lojas. Que surpresa para mim! Encontrei as belezas de sempre. Só que os
preços... bem, não vamos comentar os preços. Comprei um adôrno para a Vera e um brinco
para mim” (JESUS, 1961, p. 37).
23

O último relato no dia 30 de agosto se refere à realização do grande sonho da


Carolina: a compra da casa de alvenaria. “Agora eu estou na sala de visita. O lugar que eu
ambicionava viver. Vamos ver como é que vai ser a minha vida aqui na sala de visita”
(JESUS, 1961, p. 48).
Já na ‘sala de visita’, Carolina tem várias oportunidades de divulgar e discutir, em
São Paulo e nas diversas regiões do Brasil, as temáticas tratadas no Diário. O seu trabalho
ganhou visibilidade, inclusive, nos bancos acadêmicos:

6 de setembro [...] O Senhor Valdir presidente da Academia de Letras da


Faculdade apresentou-me ao publico e disse que eu ia receber o diploma de
membro honorário da Academia da Faculdade de Direito. Que aquele
diploma estava reservado a Jean Paul. [...] E disse: - A França tem Sartre,
nós temos a Carolina! (JESUS, 1961, p. 55).

O Diário também ganhou visibilidade em reflexões intelectuais, nas discussões


políticas, nos meios de telecomunicações, como também no cotidiano popular. Reconhecida
por pessoas de diferentes segmentos sociais, Carolina teve a oportunidade de conhecer as
realidades contrastivas dos ‘mundos’ ideológicos e socioeconômicos da população brasileira:
“[...] Comendo aquela comida granfina, eu pensava nos favelados. E cheguei a conclusão que
quem está na sala de visita não sofre, e se sofre, o sofrimento é suave” (JESUS, 1961, p. 54),
oportunidade, mas também de muitos aborrecimentos:

27 de outubro ...Fomos na Televisão Canal 2 ver a Dona Suzana Rodrigues


que convidou-me para tomar parte no seu programa. Sentamos na sala de
espera. Conversei com as ilustres senhoras que estavam presentes. Falamos
da transformação da minha vida. As mulheres dizia:
- Você deve adorar o reporter. Que homem bom!
- Êle faz tudo de graça para a senhora?
- Faz. O que ganho num mês êle ganha em 6 mêses. Tem dia que o reporter
diz que o seu ordenado é pouco e eu digo: sinto não poder dizer-te o mesmo.
As mulheres sorriam. A Dona Suzana Rodrigues disse-lhes que eu tenho
mais dinheiro do que ela. Mostrei-lhe os recibos dos bancos. Ela disse-me
para eu ter cuidado.
- Não tem perigo.
...Disse-lhe que quando recebo 100.000 cruzeiros, recebo 200 mil de
aborrecimentos (JESUS, 1961, p. 65).

O Diário, enquanto registro de uma realidade esquecida à margem econômica e


social, serviu de pano de fundo para discussões nas redes de televisão, rádio, cinema, teatro,
para os bancos acadêmicos e debates políticos. Todos com a participação da escritora.
24

Durante a divulgação do livro, Carolina viajou de avião para diferentes regiões do


país, desfrutou do conforto oferecido em hotéis e das comidas sofisticadas de restaurantes,
conheceu muitas pessoas importantes que, na maioria das vezes, estavam dispostas a saber um
pouco mais a sua opinião sobre a realidade que ela dominava: a favela. Além de ganhar
prêmios e títulos dentro e fora do país, em reconhecimento à repercussão deste seu primeiro
trabalho.
A velocidade com que ocorrem as mudanças na vida de Carolina e na vida de seus
filhos acaba gerando, em certa medida, um desafio para esses personagens. Isto porque, como
é observado no segundo diário, há uma dificuldade em se fazer o processo de assimilação da
nova rotina. O fato pode ser expresso pelo comportamento e pela fala das crianças ao lidar
com o descobrimento das coisas comuns ao cotidiano da alta-sociedade:

[...] Os meus filhos estavam abismados. A Vera olhava tudo ao seu redor
com assombro. O que impressionou-a foi a banheira. Ela dizia:
- Como é que a agua pode sair quente de dentro da parede? Mamãe, esta casa
é a casa das fadas que falam os livros? (JESUS, 1961, p. 74).

Os meus filhos estão confusos com a mudança brusca de nossa vida. Êles
compram maçã, ficam sorrindo e comentando:
- Que bom poder comprar o que desejamos.
A Vera pergunta:
- Nós vamos viver sempre assim? (IBIDEM, p. 83, grifo nosso).

A pergunta de Vera feita à mãe fica sem resposta. Sendo o último registro feito no
dia 26 de novembro de 1960. Seja por consciência da incerteza do destino reservado ao
homem ou pela necessidade de exorcizar uma reflexão que ousasse colocá-la de volta no
‘quarto de despejo’, Carolina se calou. Contudo, como se fosse uma forma de enfatizar a
diferença entre a vida real e a ficcionalidade dos contos maravilhosos, que terminam com o
famoso ‘felizes para sempre’, este não foi o final da história de Carolina. É o que se pode ver
pela reportagem abaixo do jornal Folha de São Paulo:

Famosa, mas a cada dia mais pobre. Em 66 [Carolina] foi vista catando papel
outra vez na região da rodoviária: o dinheiro vindo de edições estrangeiras
rareava e um documentário sobre sua vida feito pela Tv alemã não pôde ser
passado em nossas Tvs, só na Europa, sob os protestos do embaixador
brasileiro. ‘Quarto de Despejo’ vendido por 3 mil cruzeiros para ser filmado
por Gerson Tavares, jamais foi realizado. ‘Talvez Gerson tivesse problemas
com a censura’, explicou Carolina, numa fase amarga em que dizia coisa
como: ‘Quando vivi na favela, a alegria era comer; hoje, alegria é ter o que
25

vestir’, envergonhada de suas roupas rasgadas (FOLHA de São Paulo, 1977,


p. 10, sessão ilustrada).

Descrente da política, incomodada com os constantes pedidos de ajuda das pessoas


e com problemas financeiros, Carolina vende a casa que comprou na Rua Benta Pereira, 562,
no bairro paulistano de Santana (Cf. JESUS, 1961, p. 100) e vai morar em um sítio com o
filho mais velho João José, na cidade de Parelheiros. Neste contexto, Carolina deixa de
escrever os diários e investe em romances.
Há registros que indicam a composição de três obras: Pedaços da fome (1963),
Felizarda e Os escravos (este incompleto), as duas últimas permanecendo inéditas. Todas
com temáticas relativas aos dramas íntimos enfrentados por personagens ricos. Contudo, são
trabalhos que não alcançam a mesma repercussão que o diário Quarto de despejo.
Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977, vítima de uma parada respiratória.
Abandonada pela mídia, editores e leitores de suas obras, o pequeno velório aconteceu no
sítio, em Parelheiros:

E nessa sala triste, pintada de verde, despida de móveis, isso não tem
nenhuma importância. Para os filhos de Carolina (João José, 28 anos, José
Carlos, 26 anos e Vera Eunice, 23 anos) como para os vizinhos que vieram
se despedir de dona Carolina, esta negra mirrada, feições marcantes, não é
escritora famosa, que denunciou a vida desumana da favela. É apenas a mãe,
a vizinha a quem todos louvaram a bondade (FOLHA de São Paulo, 1977, p.
1, sessão ilustrada).

Os trabalhos da escritora Carolina Maria de Jesus voltam a ser objeto de discussões


para a crítica literária, em maior intensidade a partir da década de 1990, com o
desenvolvimento dos Estudos Culturais Latino-Americanos, que tomam por responsabilidade,
dentre outras, o olhar para questões de minoria da sociedade e da cultura. A partir deste
momento, Carolina deixa de ser alvo de discussão enquanto porta-voz de um discurso
socioeconômico que urge por mudanças e passa a ser observada enquanto voz individual ou
coletiva de autoria feminina, que apesar de excluída, luta pelo direito de ser ouvida tanto no
espaço social, quanto literário.

1.2. O ‘quarto’: espaço físico e ideológico

[...] dêem-lhe um quarto próprio e quinhentas libras por ano, deixem-


na falar livremente e ponham de lado metade do que ela agora afirma,
26

e um dia desses ela escreverá um livro melhor4 (WOOLF, 1985, p.


116).

A epígrafe selecionada é um fragmento do ensaio Um teto todo seu (1928 [1985]), de


Virgínia Woolf. Neste texto, a escritora opta pela forma ficcional para, por meio da
protagonista Mary Beton, defender sua hipótese sobre a necessidade de se ter dinheiro e um
quarto próprio para que de fato possa existir uma mulher escritora de ficção.
Há que fazer aqui uma ressalva sobre as diferenças das duas obras. Um teto todo seu
é um texto que é resultado do trabalho intelectual de uma mulher que faz palestra na década
de 1920, em um espaço acadêmico, para um público inglês feminino, em pleno raiar do
movimento feminista inglês. Sua autora, Woolf, é uma mulher inglesa branca, altamente
letrada e que tem o seu reconhecimento como escritora, inclusive, a ponto de ser denominada
a ‘Proust inglesa’. Trazemos este ensaio para dialogar com o posicionamento da escritora do
diário Quarto de despejo e do romance Pedaços da fome, Carolina Maria de Jesus. Isto é,
uma mulher brasileira negra, catadora de material reciclável nas ruas de São Paulo e moradora
da favela do Canindé.
Carolina escreve nas décadas de 1950 e 1960 o diário e o romance, cujos temas
agregam as experiências de vida da escritora, principalmente no que se diz respeito às
privações pelas quais passa. Sendo a fome, conforme destacado no título do romance, um dos
aspectos mais acentuados nas duas obras. Em Quarto de despejo, obra que nasce de folhas
velhas que Carolina recolhia do lixo, a narradora descreve recortes do cotidiano da favela de
Canindé, alinhavados por forte crítica social. Tudo isso é feito a partir do olhar de uma mulher
que se autodenomina poetisa, e que, em contraste, completou apenas dois anos de estudo
primário.
Mesmo assim, embora haja um distanciamento espacial, temporal e contextual entre
o ensaio de Woolf e os trabalhos literários supracitados de Carolina, acreditamos na
possibilidade de um diálogo. Tendo em vista a existência de um fio condutor que os
aproximam: ambos os trabalhos são resultados de esforços intelectuais de mulheres que
trazem no cerne da questão dos gêneros textuais escolhidos, a opressão da mulher que tenta se
colocar como escritora em uma sociedade regida por epistemes fundamentalmente patriarcais.

4
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. RIBEIRO, Vera. São Paulo: Nova Fronteira S.A., 1928. [Este
ensaio baseia-se em dois artigos lidos perante a Sociedade das Artes, em Newnham, e a Odtaa, em Girton, em
outubro de 1928. Os artigos eram demasiadamente extensos para serem lidos na íntegra e foram posteriormente
alterados e ampliados].
27

Assim, questionar o percurso da Carolina escritora de diário e romance é,


inevitavelmente, tangenciar questionamentos acerca da falta de investimento na escritora para
que mantivesse a mesma aceitação das demais obras pelo público-leitor que teve Quarto de
despejo e, consequentemente, a solidificação da sua carreira como escritora. No diálogo entre
os textos, o que se propõe é uma reflexão da possibilidade de trazer a hipótese defendida por
Woolf para o contexto de Carolina: ter um “quarto próprio” e “quinhentas libras por ano” era
suficiente para que Carolina adentrasse o mundo literário pela porta da frente?
Para que fique mais clara esta hipótese, cabe trazer para este trabalho algumas
proposições de Woolf dispostas no ensaio Um teto todo seu, antes de darmos sequência com
as investigações acerca do texto caroliniano. Em breve resumo sobre o ensaio, inicialmente, o
que encontramos é a escritora incomodada com os caminhos que sua reflexão pode ganhar.
Woolf destaca a amplitude que o tema “As mulheres e a ficção” carrega, bem como, a
dificuldade de se chegar a uma resposta conclusiva sobre a questão:

[...] O título ‘As mulheres e a ficção’ poderia significar — e talvez vocês


assim o quisessem — a mulher e como ela é; ou poderia significar a mulher
e a ficção que ela escreve; ou poderia significar a mulher e a ficção escrita
sobre ela; ou talvez quisesse dizer que, de algum modo, todos os três estão
inevitavelmente associados, e vocês desejariam que eu os examinasse sob
esse ângulo. No entanto, quando comecei a ponderar sobre esta última forma
de abordar o assunto, que parecia a mais interessante, logo percebi que havia
um inconveniente fatal. Eu jamais conseguiria chegar a uma conclusão
(WOOLF, 1985, p. 7).

Diante disso, no lugar de tocar em assuntos com os quais poderia frustrar seus
ouvintes por não ter condições de se chegar a uma resposta conclusiva, a escritora se propõe a
falar em sua comunicação sobre “um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e
um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção” (WOOLF, 1985, p. 8). Por se tratar de
um assunto um tanto controvertido, a oradora usa da liberdade reflexiva e interpretativa que o
papel de romancista lhe oferece para aprofundar seu posicionamento sobre a questão
colocada: “[...] Mentiras fluirão de meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade no
meio delas” (WOOLF, 1985, p. 9).
A comunicação de Woolf, apesar de ser uma palestra, figura-se como um texto
ficcional, em que uma protagonista, Mary Beton, discorre sobre a função da mulher escritora.
O espaço ficcional escolhido para que a história aconteça, inicialmente, é uma universidade
em Oxbridge, e nela, Beton, defronta-se com situações que explicitam a condição submissa da
mulher naquele ambiente.
28

A submissão é percebida, por exemplo, quando Beton é interpelada por,


distraidamente, pisar na grama, lugar permitido somente aos Fellows – membro,
possivelmente masculino de uma faculdade e com direito a certos privilégios –, ao invés de
ter trilhado o caminho cascalhado; ou, ainda, quando na mesma manhã de outono, é barrada
na porta da biblioteca:

[...] Nesse ponto, eu já estava na porta de entrada da própria biblioteca. Devo


tê-la aberto, pois instantaneamente surgiu dali, como um anjo da guarda a
barrar o caminho com um agitar de túnica negra, e não de asas brancas, um
cavalheiro súplice, grisalho e gentil, que lamentou em voz baixa, e fez-me
sinais para que saísse, porque as damas só eram admitidas na biblioteca
acompanhadas por um Fellow da faculdade ou providas de uma carta de
apresentação (WOOLF, 1985, p. 12).

Parece que os privilégios de pisar na grama e de frequentar a biblioteca não são


exclusivos de “estudantes” de Oxbridge; são privilégios apenas masculinos de Oxbridge. No
segundo capítulo do ensaio, isso se evidencia. Aqui o cenário se altera: “[...] As folhas ainda
caíam, mas agora em Londres, não em Oxbridge” (WOOLF, 1985, p. 33). E neste lugar,
impulsionada pelas experiências vivenciadas na universidade, a protagonista passa a refletir
sobre o modo como era exorbitante a diferença de direitos e conquistas entre pessoas de sexos
opostos:

[...] a visita a Oxbridge e o almoço e o jantar tinham dado início a um


enxame de perguntas. Por que os homens bebiam vinho e as mulheres, água?
Por que um sexo era tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tinha a
pobreza na ficção? Quais as condições necessárias para a criação de obras de
arte? — faziam-se mil perguntas a um só tempo (WOOLF, 1985, p. 33).

As diferenças entre os sexos em Oxbridge são maiores do que as meras diferenças


entre homens e mulheres, são diferenças sócio-político-econômicas que resultam na cabeça da
personagem em questões sobre as diferenças entre escritoras e escritores.
O texto funde ficção com realidade, de modo, muitas vezes, quase imperceptível. Na
voz da protagonista Beton, Woolf parece mostrar como a história poderia ser diferente, caso
mentes femininas brilhantes não tivessem o seu amadurecimento interrompido pela falta de
investimento financeiro e por discursos e práticas patriarcais de uma sociedade que acusava
de exposição ao ridículo ou de crise de loucura a mão feminina que ousasse empunhar uma
pena.
29

Uma forma que Beton encontrou para ir à busca de suas respostas foi refletir sobre a
disposição dos livros encontrados nas prateleiras do Museu Britânico. É durante a leitura de
diferentes livros neste Museu, referentes às mais diversas áreas, e constantes fluxos de
consciência, que a narrativa de Woolf ganha densidade.
A curiosidade e revolta de Beton se acentuam ainda mais no momento em que se dá
conta de que tudo o que se tem registrado antes do século XVIII sobre a mulher é escrito por
homens. E isto poderia ser justificado, ainda segundo pensamento da protagonista, pela
incerteza que fica acerca do modo como essas mulheres eram educadas, se sabiam escrever,
se tinham salas de estar próprias, quantas tiveram filhos antes dos vinte e um anos, se tinham
dinheiro, o que faziam no cotidiano, entre outras questões. As incertezas de Beton são
possivelmente realidades concretas de muitas moças inglesas dos séculos passados. A partir
disso, ela concorda com uma constatação já elaborada por outros pensadores: “[...] teria sido
extremamente incomum, mesmo considerando apenas essa amostra, que de repente uma delas
houvesse escrito as peças de Shakespeare” (WOOLF, 1985, p. 58). E esta constatação a qual
chega a protagonista, explica-se pelo fato de:

[...] um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras,


sem instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os
bretões. Não nasce hoje nas classes operárias. Como poderia então ter
nascido entre mulheres, cujo trabalho começava, de acordo com o professor
Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram forçadas a ele por
seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? (WOOLF,
1985, p. 61).

Um gênio como o de Shakespeare parece não nascer entre trabalhadores porque a


arte de pensar exige do indivíduo um tempo disponível para se exercer o estudo teórico e
prático da cultura, para que se desenvolva a criatividade do ser pensante. Por conseguinte,
sendo a mulher rebaixada ao mesmo nível dos trabalhadores, das pessoas que não têm tempo
para o ócio, para o amadurecimento do pensamento, de fato, torna-se pequena a probabilidade
de que nasça uma mulher tão talentosa quanto foi Shakespeare.
Embora a personagem do ensaio de Woolf tenha certa a necessidade de se ter
instrução e dinheiro para que se desenvolva alguém da importância intelectual que teve
Shakespeare, ela não descarta a possibilidade de que em meio à configuração social operária
tenham existido mulheres com talentos, contudo, são talentos que não chegaram ao papel.
O caminho mais adequado para refletir sobre as questões que estão colocadas no
ensaio, segundo Beton, seria um enfoque na leitura sobre casos de punição a mulheres
30

acusadas de feitiçaria, possuídas por demônios, sobre bruxas que vendiam ervas. Pois é por
esta linha que a protagonista arrisca-se a apontar que estão presentes exemplos de poetisas,
romancistas reprimidas, perdidas: “[...] assim me pareceu [...] é que qualquer mulher nascida
com um grande talento no século XVI teria certamente enlouquecido, se matado com um tiro,
ou terminado seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio feiticeira,
temida e ridicularizada” (WOOLF, 1985, p. 62).
Ainda segundo Woolf, Beton descreve e exemplifica casos de mulheres que, nos
séculos posteriores (XVIII e XIX), deixaram registros de suas tentativas de se expressar por
meio da palavra. Diferentemente das “feiticeiras” aludidas acima, são mulheres de posses,
dotadas de relativa liberdade e conforto, que publicam trabalhos em seus nomes e expõem-se
a críticas. Contudo, a imaturidade da escrita, a falta de uma tradição literária feminina e as
críticas massacrantes dos homens, levaram essas mulheres a cometerem um erro responsável
pelo empobrecimento dos seus trabalhos artísticos: a emoção. E isto fica evidente no
comentário feito por Beton acerca dos poemas de Lady Winchilsea, mulher que nasceu em
1661, nobre por nascimento e por casamento, e que não tinha filhos:

É mil vezes lastimável que uma mulher capaz de escrever assim, cuja mente
estava em sintonia com a natureza e a reflexão, tenha sido levada à raiva e à
amargura. Mas como poderia ela ter evitado isso? Perguntei a mim mesma,
imaginando as expressões de escárnio e as risadas, a adulação dos
bajuladores, o ceticismo do poeta profissional. Ela deve ter-se encerrado
num aposento no campo para escrever e deve ter-se dilacerado de amargura
e talvez escrúpulos, embora seu marido fosse dos mais bondosos e a vida
conjugal, a perfeição (WOOLF, 1985, p.76).

Nessa linha, Woolf dirá que a escrita de autoria feminina começa a ganhar um
capítulo importante na história quando deixa de ser apenas uma atividade feita por mulheres
de posses para o seu próprio deleite e se transforma em uma atividade que gera renda. O novo
sentido atribuído à escrita é de suma importância, como enfatiza Beton, pois é a partir deste
momento que “[...] começa a liberdade da mente, a possibilidade de que, no decorrer do
tempo, a mente venha a ser livre para escrever o que bem quiser” (WOOLF, 1985, p. 80);
além da condição simbólica conquistada pelo dinheiro, há de se atribuir também a sua
importância econômica:

O dinheiro dignifica aquilo que é frívolo quando não é remunerado. Talvez


ainda fosse de bom-tom torcer o nariz para as ‘literatas com ânsias de
escrevinhar’, mas não se podia negar que elas conseguiam pôr dinheiro na
bolsa. Assim no término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se
31

eu estivesse reescrevendo a história, descreveria mais integralmente e


consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das
Rosas: a mulher da classe média começou a escrever (WOOLF, 1985, p. 81-
82).

E somente a partir da identificação deste momento, isto é, do momento em que a


mulher começa a ganhar dinheiro com a sua inteligência, já no início do século XIX, que
Beton se depara com uma nova realidade nas prateleiras do Museu. Trata-se de prateleiras
inteiras dedicadas a abrigar os livros de autoria feminina, em contraste com as poucas
prateleiras dedicadas a escritoras dos séculos precedentes. Além das prateleiras, deve-se
ressaltar os espaços que foram abertos no mercado literário para a escrita de autoria feminina,
formado principalmente por mulheres pertencentes às classes médias. Outra constatação a
qual chega Beton é que além dos espaços reservados para essas obras, ainda muda-se o tom
empregado na escrita desses livros: “Ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo
sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregações” (WOOLF, 1985, p. 85).
Contudo, inicialmente, ainda é uma escrita que toma como base os valores impostos pelo sexo
masculino, como forma de conquistar legitimidade e integridade necessárias para a
constituição da mulher romancista:

Assim, toda a estrutura do romance do início do século XIX era levantada,


quando se era mulher, por uma mente ligeiramente tirada do prumo e forçada
a alterar sua visão clara em deferência à autoridade externa. Basta examinar
os velhos romances esquecidos de modo superficial e ouvir o tom de voz em
que foram escritos para adivinhar que a escritora estava recebendo críticas;
estava dizendo isto a guisa de agressão, ou aquilo a guisa de conciliação.
Estava admitindo que era ‘apenas uma mulher’, ou protestando ser ‘tão boa
quanto um homem’. Enfrentava a crítica como ditasse seu temperamento,
com docilidade e inibição ou com raiva e ênfase (WOOLF, 1985, p. 92).

Com a formação de uma tradição literária, a mulher passa a ganhar consciência do


seu papel como escritora e a sua escrita, densidade:

A simplicidade natural, a era épica da produção literária das mulheres, talvez


tenha passado. A leitura e a crítica talvez lhe tenham ampliado o alcance,
aumentado a sutileza. O impulso para a autobiografia terá se esgotado.
Talvez a mulher esteja começando a usar a literatura como uma arte, não
como um método de expressão pessoal (WOOLF, 1985, p. 99).

E continua:
32

[...] Pois os livros vêm sempre numa seqüência, apesar de nosso hábito de
julgá-los separadamente. E devo também considerá-la — essa mulher
desconhecida — como a descendente de todas aquelas outras mulheres cujas
condições de vida estive examinando e ver o que ela herdou de suas
características e restrições (WOOLF, 1985, p. 100).

Também, pela divergência de interesses, o enfoque dos temas aos quais as mulheres
se dedicam, diferem-se da escrita de autoria masculina:

Há tantos fatos novos para ela [a escritora] observar! Não mais precisará
limitar-se às casas respeitáveis da classe média alta. Entrará sem bondade ou
condescendência, mas com espírito de camaradagem, naquelas pequenas
salas perfumadas onde se sentam a cortesã, a meretriz e a dama com o
cãozinho de estimação. Ali elas ainda se sentam com as grosseiras roupas
que o escritor masculino lhes colocou à força sobre os ombros. Mas Mary
Carmichael tomará da tesoura e irá talhá-las sob medida para que se ajustem
a cada reentrância e cada ângulo. Será curioso — quando tivermos
oportunidade — ver essas mulheres tais como são, mas precisamos esperar
um pouco, pois Mary Carmichael ainda ficará embaraçada por aquele
constrangimento em presença do ‘pecado’, o legado de nosso barbarismo
sexual. Ainda usará nos pés os velhos grilhões ordinários da camada social
(WOOLF, 1985, p. 109-110).

Mary Carmichael, em A aventura da vida, e outras escritoras precedentes renovaram


a sua escrita ao romper com um protótipo de mulher sempre visto pelo homem e em relação
ao homem. Estas escritoras passam a iluminar as ações e pensamentos das mulheres para além
dos papéis domésticos. É nesse momento que a mulher, como designa Beton, escreve como
uma mulher. Ela deixa de lado os atritos com o sexo oposto, que a levava a um desvio do foco
narrativo e, sem ter consciência de si, passa a se concentrar naquilo que é de seu interesse, nos
valores que de fato são importantes para as mulheres. Contudo, trata-se de um processo que
não se completa com o romance de Carmichael, como destaca Beton, isto porque a escritora
ainda está presa às convenções sociais. O resultado disso é um romance que recebe elogios e
críticas da protagonista:

Dêem-lhe mais uns cem anos, concluí, lendo o último capítulo — o nariz e
os ombros descobertos das pessoas apareciam sob um céu estrelado, pois
alguém havia puxado a cortina da sala de estar —, dêem-lhe um quarto
próprio e quinhentas libras por ano, deixem-na falar livremente e ponham de
lado metade do que ela agora afirma, e um dia desses ela escreverá um livro
melhor. Será uma poetisa — disse eu, colocando A aventura da vida, de
Mary Carmichael, no final da prateleira — dentro de mais uns cem anos
(WOOLF, 1985, p. 116).
33

O ato das mulheres escreverem como mulheres é importante não para suscitar uma
disputa entre sexos, mas ao contrário, para que haja equilíbrio na construção poética:

[...] É preciso haver um perfeito entendimento, na mente, entre o lado


feminino e o masculino antes que a arte da criação possa realizar-se. Algum
casamento entre opostos precisa ser consumado. A totalidade da mente deve
estar escancarada, se quisermos ter o sentimento de que o escritor está
comunicando sua experiência com perfeita integridade (WOLLF, 1985, p.
127).

E essas mulheres só conseguirão encontrar a sua plenitude, na mente, quando tiverem


liberdade intelectual e, como coloca Beton: “A liberdade intelectual depende de coisas
materiais. A poesia depende da liberdade intelectual” (WOOLF, 1985, p. 131). Por isso que a
protagonista é tão enfática na necessidade que a escritora tenha um quarto com fechadura e
quinhentas libras por ano:

Mesmo concedendo uma generosa margem ao simbolismo, no sentido de


que quinhentas libras por ano representam o poder de contemplar, e de que a
fechadura da porta significa o poder de pensar por si mesma, vocês ainda
poderão dizer que a mente deve elevar-se acima dessas coisas; e que os
grandes poetas foram freqüentemente homens pobres. Permitam-me então
citar-lhes as palavras de seu próprio catedrático de literatura, que sabe
melhor do que eu o que contribui para a formação de um poeta. Sir Arthur
Quiller-Couch escreve: ‘Quais são os grandes nomes da poesia dos últimos
cem anos, aproximadamente? Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley,
Landor, Keats, Tennyson, Browning, Arnold, Morris, Rossetti, Swinburne
— podemos parar por aqui. Dentre esses, todos, com exceção de Keats,
Browning e Rossetti, foram homens saídos da universidade; e dentre esses
três, Keats, que morreu jovem, ceifado na plenitude da vida, era o único que
não tinha muitas posses. Talvez pareça uma coisa brutal dizê-lo, e é triste
dizê-lo, mas, na dura realidade, a teoria de que o gênio poético floresce
onde é semeado, e de igual modo entre pobres e ricos, contém pouca
veracidade. Na dura realidade, nove entre esses doze foram homens saídos
da universidade, o que significa que de um modo ou de outro, conseguiram
os meios de obter a melhor educação que a Inglaterra pode proporcionar. Na
dura realidade, dos três restantes vocês sabem que Browning era abastado, e
aposto com vocês que, não tivesse ele sido abastado, não teria conseguido
escrever Saul ou The ring and the book, assim como Ruskin não teria
chegado a escrever Modern painters, não tivesse seu pai sido um próspero
comerciante. Rossetti tinha uma pequena renda pessoal e, além disso,
pintava. Resta apenas Keats, a quem Átropos assassinou ainda jovem, assim
como assassinou John Clare num hospício e James Thomson pelo láudano
que tomou diante da decepção com as drogas. Esses são fatos terríveis, mas
vamos enfrentá-los. É certo — por mais desonroso que seja para nós como
nação — que, por alguma falha de nossa comunidade, o poeta pobre não tem
hoje em dia, nem teve nos últimos duzentos anos, a mínima chance. Creiam-
me — e passei uns bons dez anos observando umas trezentas e vinte escolas
primárias —, podemos tagarelar sobre a democracia, mas, na verdade, uma
34

criança pobre na Inglaterra tem pouco mais esperança do que tinha o filho de
um escravo ateniense de emancipar-se até a liberdade intelectual de que
nascem os grandes textos’ (WOOLF, 1985, p.130-131, grifo nosso).

Como se vê, o ensaio de Woolf nos encaminhará para questões polêmicas acerca do
desenvolvimento da escrita literária de autoria feminina. E isto ocorre, em especial, por trazer
como cerne da questão assuntos externos à literatura, mas pertencentes aos eixos de
organizações sociais, econômicas e históricas. O que se explana é a necessidade de se ter em
mente a hierarquia dos fatores que favorecem, ou não, o desenvolvimento da criatividade
literária da mulher, para além da fantasia disseminada da arte literária enquanto uma
conquista natural. Como destacado no trecho do ensaio, “a teoria de que o gênio poético
floresce onde é semeado, e de igual modo entre pobres e ricos, contém pouca veracidade”, por
conseguinte, compreende-se que, como no texto bíblico de Mateus 13, na parábola do O
semeador, não são em todos os solos que as plantas vingam, como no caso dos pedregosos e
em meio aos espinhos, mas somente naqueles em que o solo tem terra boa para o plantio.
As mulheres precisam de um solo com boa terra para que tenham a oportunidade de
presenciar o nascimento sadio de uma escritora promissora. Contudo, na realidade brasileira
da década de 1960, vemos ‘nascer’ a escritora Carolina Maria de Jesus, do solo mais
improvável, a favela de Canindé:

...As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos


excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a
impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus
tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a
impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo (JESUS, 2004, p. 33).

O lugar destinado à Carolina escritora é o barro podre, é o quarto que exclui. E essa
exclusão é feita, como aponta Woolf, por uma questão de falta de dinheiro e de um quarto,
enquanto espaço físico que ofereça um mínimo de conforto para que se pratique a escrita.
Contudo, trazendo para o contexto caroliniano, ainda cabe acrescentar um terceiro ponto de
exclusão, que se metamorfoseia no quarto reservado a abrigar o objeto Carolina: a quem
pertence o direito à voz literária. Sobre este terceiro ponto, cabe refletir algumas implicativas
consideradas determinantes para se entender o modo como ocorre o processo
autorrepresentativo no espaço literário, tal qual se manifesta na Literatura Brasileira
Contemporânea.
35

Logo no início de seu artigo, “Uma voz ao sol: representação e legitimidade na


narrativa brasileira contemporânea” (2002), Regina Dalcastagnè retoma a definição de
Barthes (1999) para o termo escritor, o qual é caracterizado como sendo uma figura
responsável por falar no lugar do outro. Poderíamos dizer que esta afirmação barthesiana é
regida, em um primeiro momento, por princípios de ordem linguística. Isto porque, conforme
o próprio Barthes assinala no “Prefácio” de seu livro Crítica e Verdade, assim como um
indivíduo que se propõe a falar, o texto de um escritor, não encontra sentido pleno e estável
no presente da atividade construtiva. Ao contrário disso, o domínio da recepção/interpretação
de uma mensagem por parte do emissor se torna limitado, uma vez que tanto a fala quanto a
escrita, têm como objeto a linguagem, que é, por assim dizer, um organismo em constante
atividade.
Portanto, como ressalta Barthes, o ato da escrita exige do escritor um trabalho
incessante com a palavra, visto que não está em jogo o simples ato de falar aquilo que se
sente, mas sim, de falar daquilo que se sente de modo que seja possível ao outro (o
interlocutor) compreender o sentido pretendido inicialmente. Assim, o compromisso do
escritor não é simplesmente expressar as suas impressões sobre o mundo, mas trabalhar a
palavra; tornar aquela linguagem que já habita o mundo, que já nomeia, que é cotidiana e
gasta, em uma linguagem indireta e, por isso, “original”, “inventada”. Neste contexto, o
“outro” aparece como um importante componente emblemático na desintegração da
identidade social do escritor, do seu “Eu” social, para que ele se torne apenas um proferinte de
uma mensagem, de modo que se tenha como produto um “signo puro” (Cf. BARTHES, 1999,
p. 24); mas também, ainda tomando como suporte o texto barthesiano, é possível se deparar
com uma segunda leitura do “outro”, o qual pode se referir a um indivíduo social, que o
escritor precisa prever, antecipar-se a este, para que tenha condições de manipular a
linguagem, de modo a fazer da sua mensagem a expressão mais precisa daquilo que se quis,
de fato, colocar (sentimento, reflexão) (Cf. BARTHES, 1999, p. 18).
Este segundo ponto, a respeito do “outro” enquanto indivíduo, parece ser o que mais
se aproxima do empregado no texto de Dalcastagnè. Contudo, há de se ressaltar um aspecto
importante que os diferenciam: o lugar que o “outro” ocupa na construção discursiva. Isto
porque, enquanto em Barthes temos um indivíduo social receptor, em Dalcastagnè, tem-se a
preocupação não simplesmente com o processo de se antecipar ao receptor, mas também,
transformá-lo em objeto discursivo. Nesse sentido, o “outro” passa a ser configurado como
aquele de quem se fala, ou ainda, daquele que passa a ser representado no campo literário.
36

Um traço característico da Literatura Brasileira é, em certos aspectos da sua


formação, voltar-se para aquilo que Candido (1989) define como “Literatura empenhada”.
Nessa linha, Luiz Bueno (2006), em Uma história do romance de 30, irá discutir a função do
escritor brasileiro, o intelectual, como única possibilidade para se estabelecer um elo entre as
classes sociais distintas que compõe a sociedade brasileira da década de 1930, utilizando
como espaço o campo literário. O que temos, então, são intelectuais que pertencem ao seu
tempo preocupados em trazer para o campo estético, especialmente a produção de textos
literários, discussões comuns ao seu contexto histórico, que, por sua vez, acaba por configurar
o campo ético, isto é, o mundo da política e das classes sociais. Isto significa dizer que,
empenhados em discussões de cunho social e, aqui, destaca-se a vigência da ideologia de
inclusão do marginalizado socialmente (migrantes, mulheres, negros, homossexuais, pobres,
analfabetos), os intelectuais passam a trazer este “outro”, que difere da sua condição social de
pertencente à elite letrada, para protagonizar situações comuns ao seu meio social, dentro da
literatura – meio por definição alheio ao excluído.
Assim, tenta-se trazer para a literatura, através do ato configurador, o
comportamento, a cultura, as crenças, a linguagem, o cotidiano, os problemas diários
enfrentados pelo sertanejo e pelo migrante, por exemplo. Como é o caso de obras tão bem
conhecidas por todos, a exemplo de Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos e Grande
sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. Sobre este comportamento do intelectual, Luiz
Bueno comenta:

[...] O escritor, o artista, por sua vez, não é visto como intelectual pura e
simplesmente. Mais do que isso, é alguém que, não totalmente engolido pelo
discurso da lógica, é capaz de compreender outros discursos e plasmá-los na
forma híbrida de conhecimento e intuição que é a obra de arte (BUENO,
2006, p. 24-25).

Contudo, há de se ressaltar que a ‘preocupação’ com o excluído não é uma faceta


literária recente. Pereira (2005) observa que:

[esse] discurso de inclusão tem, seguramente, célebres precedentes. Alencar


talvez seja um deles, com sua preocupação de incluir o índio no discurso
literário; tem também, por outro lado, alguns importantes seguidores. O G.
Ramos que escreve Vidas Secas [...], o faz tendo em vista um certo propósito
de inclusão (PEREIRA, 2005, p.130).
37

Todavia, é um processo que ganhará substancialidade na segunda metade do


Modernismo Literário Brasileiro, iniciado nos anos de 1930. Período este que remete às
mudanças no cenário cultural, em virtude de uma tomada de consciência que urgia pela
construção de uma nova linguagem estética (ainda que não totalmente desvinculada das
vanguardas europeias, garantia um rompimento com as formas literárias tradicionais, até
então adotadas). A liberdade formal e a valorização do cotidiano foram duas consequências
importantes para pensarmos algumas dessas mudanças. É a partir de então que os olhos dos
intelectuais se voltam para a prosa de ficção e, na maioria, o enfoque se dá para o nacional,
para as questões sociais e a necessidade de se estabelecer o processo de inclusão social e
cultural. No campo literário, isto significa dizer que os intelectuais passaram a tomar o
homem marginal como objeto discursivo literário, visando uma inclusão deste no espaço
cultural.
Dalcastagnè (2002) e Bueno (2006), porém, tocam em uma questão importante sobre
esse projeto de inclusão fundado pelos Modernistas Literários Brasileiros: embora se possa
imaginar que haja de fato uma boa intenção por parte dos intelectuais, este projeto literário
não era o bastante. Isto porque o marginal continuava a ocupar o mesmo espaço, ou seja, o
estreito espaço de ser apenas objeto do discurso, sem figurar como o portador do discurso, ou
aquele que fala. Além disso, esse marginal, em casos não raros, quando configurado, acaba
sendo formatado a partir de (pré)conceitos constituídos socialmente e que os escritores,
inconscientemente acabam plasmando em sua escritura.
Assim, cientes do impasse instaurado pela dificuldade de se dar conta de falar
por/sobre a riqueza humana do outro, intelectuais passaram a tomar atitudes diferentes. Bueno
exemplifica dois casos que ocorrem em Vidas Secas e Grande Sertão: veredas. O primeiro,
caracterizado pela atitude explícita de um escritor que procura deixar em evidência a distância
entre intelectual e proletário: “Assumir o outro como outro para entendê-lo” (Cf. BUENO,
2006, p. 25). Para Ramos, o proletário, o vaqueiro, o sertanejo eram misteriosos – e assim
deveriam permanecer na sua escritura. No caso do segundo, Guimarães Rosa, considerado
pelo crítico como um passo à diante, o intelectual aproxima-se de fato do proletário (ou do
jagunço, sertanejo). O lugar do escritor para Rosa é um lugar relativamente neutro, em que é
possível, juntar o louco, a criança, o bêbado e o artista (escritor) – vozes, por definição, não
regidas pela lógica. Assim, em Guimarães Rosa, vemos o escritor “solucionando” o problema
das distâncias entre grupos sociais: o escritor é responsável por plasmar seu discurso como
sendo um discurso híbrido. Sobre isto, Bueno destaca:
38

A solução linguística a que chegou Guimarães Rosa se liga naturalmente a


essa concepção. A língua do pobre pode ser tomada com liberdade e
reinventada no contato com uma tradição intelectual da, em princípio, mais
arrogante alta cultura porque o artista é mesmo o único lugar em que essa
fusão pode se dar (BUENO, 2006, p. 25).

Ora, nada mais evidente do que notar que embora houvesse esforços de inclusão por
meio de tais manobras adotadas pelos escritores, o problema ainda permanecia, isto porque o
mecanismo do diagrama da comunicação literária (de um Eu que fala por/sobre um Ele, que é
o “outro”) ainda era excludente. Assim, a voz literária continuava não múltipla. E as
representações, como coloca Dalcastagnè, não eram “representativas do conjunto das
perspectivas sociais” (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 34). A alternativa para que de fato se
cumprisse o projeto de inclusão via literária, era abrir espaço, dar condições para que vozes
representativas da marginalidade falassem por si mesmas.
Como bem ressalta Dalcastagnè, o fato de haver pessoas que falam em nome de
outras não significa simplesmente que estas pessoas silenciadas não procuram se
autorrepresentar nos diferentes meios de reprodução discursivos. Tais questões, antes,
perpassam as críticas explícitas empregadas por Woolf, em Um teto todo seu, no que diz
respeito à legitimidade ou ainda, à autoridade conferida àquele que fala. Todos deveriam ter
direito à voz literária, porém, não são todos que têm. Isto fica em evidência quando
resgatamos o percurso das mulheres escritoras de romance, antes, consideradas ridículas ou
insanas pelos meios sociais aos quais pertenciam.
A partir dos aspectos sublinhados até aqui, a literatura vista como meio de
representação deve ser entendida como um lugar não neutro, mas sim, atravessado por
diversas formas de interesses e perspectivas do contexto sociopolítico que, seja pelos seus
atritos ou acordos, tornam-se responsáveis por impregnar a tessitura do texto literário. E não
só, somado ao processo de ‘impregnação’ da matéria textual, também se encontra outra forma
de interferência neste curso: a aceitação da crítica literária, ou não, e do mercado consumidor
de produto literário.
Esta colocação ganha corpo quando trazemos para o cerne da questão o próprio caso
de Carolina Maria de Jesus. Carolina é modelo destas pessoas excluídas que produzem os seus
próprios discursos, contudo, depende do aval de produtores literários para ter seus textos
publicados. Isto fica em evidência, por exemplo, quando nos damos conta de que não é ao
acaso que Quarto de Despejo apenas consegue publicação após o encontro de sua autora com
o jornalista Audálio Dantas. Tal situação se estende para as demais obras da autora, que, por
39

motivos que ainda inquietam os seus pesquisadores, sofreram abandono por parte dos leitores.
Esta é uma dúvida que ainda paira entre os críticos, como se faz ver no “Preâmbulo” de Meu
estranho diário, escrito por pesquisadores importantes da obra de Carolina:

[...] Mesmo sem se ter colocado a público a imensa variedade de escritos


carolinianos, a lógica do abandono da produção conhecida desafia
entendimentos. Foi mesmo só uma forte tempestade? Caso tenha sido, por
que seus reflexos estão tão pouco percebidos? Se considerado mais um dos
tantos casos de silêncio, como explicá-lo além do mercado de consumo, ou
seja, que rastro esta experiência teria gerado nos meios da crítica literária e
da história? Enfim: culturalmente falando, o que explicaria aquela Carolina e
por que não seus outros textos que, pelo menos hipoteticamente, teriam
mercado editorial garantido? Será mesmo que ela teria sido um produto, algo
fabricado para um momento do mercado? (MEIHY; LEVINE, 1996, p. 9).

Todavia, poderíamos dizer que, embora as obras carolinianas tenham ficado sob
penumbra ao longo da história literária brasileira, Carolina preconiza um movimento
importante, ainda hoje vivenciado pela literatura, que é o excluído exigindo para si o direito
de se autorrepresentar no campo social e cultural. Ao lado deste, como veremos mais adiante,
a escritora também será pioneira em uma nova forma de representação literária: o olhar
literário do excluído para o não excluído.

1.3. O quarto da Carolina: entre o privado e público

A palavra quarto, vem do latim quártus, a, um “quarto; quarta parte”, que se refere a
“quarta parte da casa”, conforme dicionário eletrônico Houaiss (2001). Contudo, em
complemento à perspectiva apresentada pelo dicionário, enquanto divisão de área, ainda é
possível atribuir ao quarto a responsabilidade por representar uma divisão funcional. A esta
fração da casa cabe o papel de preservar a intimidade do indivíduo, do casal ou da família que
o habita. Dessa forma, ao contrário das demais dependências de uma casa que são de uso
comum, o quarto é de acessibilidade restrita, uma vez que se emprega a este local um sentido
de territorialidade, demarcando o espaço íntimo e pessoal do residente.
Segundo Marilice Costi (2003), o quarto “é o ambiente marcado pelas características
de seu ocupante, lugar das dores e dos prazeres, um espaço íntimo onde são repostas as
energias físicas e emocionais” (COSTI, 2003, p. 4) e, portanto, “demasiado personalizado
para albergar personalidade que não a de seu criador” (COSTI, 2003, p. 5).
40

Neste viés, poderíamos aproximar esta perspectiva de Costi à proposta desenvolvida


por Bachelard (1978), o qual, em suas discussões sobre o estudo da topoanálise – teoria
literária do espaço –, pontua a imagem da casa como sendo a transformação dela na
topografia do nosso ser íntimo (Cf. BACHELARD, 1978, p. 196). A “casa onírica” referida
por Bachelard, assim como a consciência humana, é dividida na verticalidade em três ou
quatro partes: sótão, pavimento térreo e porão. Sendo cada uma dessas divisões responsáveis
por uma profundeza da consciência, das quais, o sótão e o porão representam as experiências
oníricas, que são os medos primitivos do homem. Para o teórico, se lhe fosse perguntado o
benefício mais precioso da casa, a resposta seria: “[...] a casa abriga o devaneio, a casa
protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as
experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam
o homem em sua profundidade” (BACHELARD, 1978, p. 201).
Independente do sentido que cabe à palavra quarto nos estudos que competem ao
campo da Arquitetura, da Psicologia e da Literatura – enquanto a quarta parte de uma casa,
ambiente que limita o acesso de outrem, espaço que abriga a intimidade, a imagem da
topografia do nosso ser íntimo, o lugar que estimula a experiência do autoconhecimento, ou
ainda, enquanto ambiente que impulsiona a formação do indivíduo –, parece ser esta soma de
reflexões o ambiente que melhor se adéqua ao quarto referido por Woolf para o
desenvolvimento da mulher escritora de obras ficcionais.
Tendo isto como certo, logo, torna-se possível a compreensão do quarto de Woolf
não como um simples espaço da casa com fechaduras, de fácil substituição por outro
qualquer, para que a prive de interrupções relativas aos afazeres domésticos. A mulher
escritora de Woolf parece necessitar de um quarto com fechaduras para poder, primeiramente,
ter consciência de si. E ela apenas conseguirá isto em um ambiente que se sobreponha a uma
mera descrição física. A escritora precisa, portanto, de um ambiente que seja ‘marcado pelas
características do seu ocupante’, que tenha condições de se metamorfosear, de interagir com o
indivíduo em conflito, em construção.
E, a partir do momento em que a mulher consegue se posicionar como indivíduo, no
momento em que escreve, é que ela encontrará no quarto o ambiente necessário para
amadurecer seus pensamentos e a tranquilidade indispensável para tornar rarefeitas as
‘mágoas’ geradas pela crítica do sexo oposto, para transformar aquilo que pertence ao mundo
do não-dito da intimidade, em algo comunicável, traduzível.
41

Por sua vez, em Quarto de despejo, embora esteja assinalada no título a palavra
‘quarto’, de modo irônico, Carolina Maria de Jesus não dispõe de um quarto próprio para
desenvolver a sua escrita. Aqui, – ao contrário da definição que Woolf emprega no ensaio
para a palavra ‘quarto’, enquanto espaço delimitado e com fechaduras que assume a função de
preservar a escritora iniciante dos olhares críticos e, ao mesmo tempo, libertá-la por meio do
amadurecimento intelectual proporcionado por um ambiente que se adéqua e impulsiona a
sensibilidade para a escrita –, o quarto de Carolina é sem divisórias fixas entre o quarto e o
restante dos cômodos que compunham seu barraco localizado na rua A, às margens do rio
Tietê, na favela de Canindé.
Construído com as próprias mãos, o barraco servia de abrigo à Carolina e a seus três
filhos. Um espaço sem planejamento arquitetônico, feito a partir de restos encontrados ao
acaso e desprovido de zelo da intimidade dos moradores:

Para construir o seu barraco, Carolina carregou tábuas e materiais extraídos


da construção de uma igreja a cinco quadras de sua morada. Com o que
conseguiu ela construiu um barraco com as próprias mãos, cobrindo com
toscas folhas de zinco, recolhidas também ao acaso. [...] Ela usava um
retalho de estopa como cortina para garantir certa privacidade [...]
(MEIHY; LEVINE, 1994, p. 22, grifo nosso).

Como se vê, o único recurso que tenta garantir certa privacidade à Carolina mulher e
à Carolina escritora de diário e romance é um retalho de estopa. Um pedaço de pano feito dos
materiais menos nobres, por vezes, até mesmo descartados por ser a parte mais grosseira dos
fios que servem na fabricação do linho. Assim também o é de qualidade inferior os materiais
que encontrou ao acaso para fazer o seu quarto e, até mesmo, as folhas que coletou do lixo
para escrever seu diário.
Contudo, o retalho de estopa, por ser de fácil permeabilidade, não cumpre o papel de
garantir privacidade à Carolina. Falta a ela uma ‘fechadura’ e até mesmo uma porta, além de
uma estrutura que ofereça um mínimo de segurança e conforto para que se desenvolva uma
interação entre sujeito e ambiente, tão importante para o amadurecimento da escritura, aos
olhos de Woolf. Ao contrário disso, o que se tem é um quarto que desperta repulsa: “... A
coisa que eu tenho pavor é de entrar no quartinho onde durmo, porque é muito apertado. Para
eu varrer o quarto preciso desarmar a cama. Eu varro o quartinho de 15 em 15 dias” (JESUS,
2004, p. 115).
Sobre as interações que ocorrem entre o indivíduo e o ambiente, Bachelard (1978)
observa a necessidade de superar a formulação de julgamentos e de se fazer devaneios sob o
42

objeto ‘casa’ e dos elementos que a compõem. Ao contrário, há de se concentrar no “[...]


esforço preciso para compreender o germe da felicidade central, seguro e imediato. Encontrar
a concha inicial [...]” (BACHELARD, 1978, p. 199).
Como coloca o estudioso, é preciso questionar de que forma se dá o enraizamento
cotidiano nesse ‘canto do mundo’, que é a casa, bem como, de que forma se habita, levando-
se em consideração as várias dialéticas que circundam a vida do indivíduo, incluindo aqui, a
existente entre realidade e ficção: “[...] na mais interminável dialética, o ser abrigado
sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade,
através do pensamento e dos sonhos” (BACHELARD, 1978, p. 200).
Desse modo, por mais que o diário caroliniano tente se firmar nas bases da realidade
é inevitável que exista um entrelace entre a escrita de diário e a escrita fictícia, pois somente
dessa forma é que a escritora tem condições de oferecer uma organicidade e concretude ao
registro do que acontece diariamente. Um dos momentos em que se torna possível constatar
esse entrelace do ficcional e não ficcional é quando a Carolina alia à escrita dos dramas
diários, um tom poético:

...A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica
gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. Começo ouvir
uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro que quer dar no senhor Binidito.
Mal entendido. Caiu uma ripa no fio da luz e apagou a luz da casa do
Ramiro. Por isso o Ramiro queria bater no senhor Binidito. Porque o Ramiro
é forte e o senhor Binidito é fraco (JESUS, 2004, p. 28).

Ao trazer as reflexões de Bachelard para se pensar a importância do quarto


caroliniano, o que se observa é um quarto que, mesmo sem porta, metamorfoseia-se na
presença dos devaneios ou dores “física” e “moral” (Cf. JESUS, 2004, p. 81) da personagem
Carolina Maria de Jesus. É na tristeza, na fome, na agonia por ter que lidar com a incoerente
realidade marginal – do indivíduo que trabalha exaustivamente e não tem dinheiro ao menos
para se alimentar de modo adequado e para manter a sua higiene pessoal –, que Carolina
descreve de modo poético as dilatações e compressões de um ambiente que é, em comparação
ao seu corpo ou ao seu estado de espírito, acima de tudo, incômodo:

Saí pensando na minha vida infausta. Já faz duas semanas que eu não lavo
roupas por falta de sabão. As camas estão sujas que dá até nojo [...] ...Não
fiquei revoltada com a observação do homem desconhecido referindo-se a
minha sujeira. Creio que devo andar com um cartas nas costas: [...] Se estou
suja é porque não tenho sabão (JESUS, 2004, p. 89).
43

...Hoje os meninos vão comer só pão duro e feijão com farinha. Eu estou
com tanto sono que não posso parar de pé. Estou com frio. E graças a Deus
não estamos com fome. Hoje Deus está ajudando-me. Estou indecisa sem
saber o que fazer. Estou andando de um lado para o outro, porque não
suporto permanecer no barracão limpo como está. Casa que não tem lume no
fogo fica tão triste! As panelas fervendo no fogo tambem serve de adorno.
Enfeita um lar (JESUS, 2004, p. 94).

...Voltei para o meu barraco imundo. Olhava o meu barraco envelhecido. As


tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida! (JESUS, 2004, p.
154).

O quarto, todavia, assume função de proteção apenas quando o enfoque da escritora


deixa de ser introspectivo e passa a tomar como objeto de discussão a relação da protagonista
com os demais moradores da favela do Canindé: “[...] À noite enquanto elas pede socorro eu
tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas
do barracão eu e meus filhos dormimos socegados” (JESUS, 2004, p. 14). Morando sozinha,
Carolina não tem um marido que, como parece comum na favela, seja violento com ela – eis
talvez uma vantagem.
E por não ter um ambiente com estrutura mínima capaz de oferecer suporte à
escritora, esta estende as margens do seu ‘quarto’ e põe-se a praticar as atividades de ler e
escrever em diferentes ambientes, dentre os quais, além do quarto, inclui-se o quintal e a casa
do homem com quem teve um relacionamento passageiro, o cigano Raimundo. Sendo esta
situação vivenciada por Carolina, de adaptar-se a diferentes ambientes para desenvolver a
escrita, responsável por colocá-la exposta diariamente a dois obstáculos: a interrupção e a
crítica, conforme trechos:

[...] Enquanto as roupas cora eu sentei na calçada para escrever. Passou


um senhor e perguntou-me: [...] - O que escreve? [...] - Todas as
lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana.
[...] Ele disse: [...] - Escreve e depois dá a um critico para fazer a revisão
(JESUS, 2004, p. 20, grifo nosso).

[...] Bateram na porta. Mandei o João José abrir e mandar entrar. Era o
seu João. [...] Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diário
(JESUS, 2004, p. 23).

...Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos,
passava e dizia: [...] - Está escrevendo, negra fidida! (JESUS, 2004, p.
24).
44

Deitamos. Eu estava agitada e nervosa porque queria passar o dia


escrevendo. Custei durmir. Eu fiquei cançada de tanto correr para ir
chamar a Radio Patrulha (JESUS, 2004, p. 86).

Para dissipar a tristeza que estava arroxeando a minha alma, eu fui falar
com o cigano. Peguei os cadernos e o tinteiro e fui lá. [...] Eu puis o
olhar no caderno e comecei a escrever (JESUS, 2004, p. 135-136).

Como se pode constatar nos fragmentos acima, o trabalho de escrita desenvolvido


por Carolina não se limita ao contexto da intimidade e isto acontece a partir de duas
perspectivas, são elas: (a) a exposição da intimidade daquela que ultrapassa os limites do
quarto e se permite dialogar com outro que pertence ao mundo externo, os moradores e
visitantes da favela do Canindé com quem conversa, para a escrita de um gênero da
intimidade, que é o diário íntimo; (b) a abertura que se faz das margens do quarto que, por sua
vez, propicia uma abertura das margens do gênero escolhido pela escritora.
Esta segunda colocação é importante para pensarmos as manobras que a escritora
obriga-se a fazer para compor o seu Diário.
45

CAPÍTULO 2. A PLASTICIDADE DO GÊNERO EM QUARTO DE DESPEJO

Nas reflexões de Bakhtin, em Estética da criação verbal (2003), a noção de gênero


discursivo está diretamente ligada ao funcionamento da língua em práticas comunicativas
(oral ou escrita), enquanto produto, construído por sujeitos no processo de interação nas
esferas de relações humanas e de comunicação. É dentro destas esferas, em instâncias
públicas ou privadas do uso da linguagem, que o gênero se constitui; trata-se de um meio pelo
qual os sujeitos sociais usam para suprir suas demandas de irtelocução, enquanto mecanismo
utilizado pelos sujeitos para se interrelacionar com os demais indivíduos das diversas
sociedades em que estão inseridos. Cada esfera é responsável por desenvolver os seus
próprios gêneros, determinando ‘formas relativamente estáveis’ de manifestação do discurso,
no que diz respeito ao tema, estilo e composição (Cf. BAKHTIN, 2003, p. 161-169).
Talvez uma das imagens mais ilustrativa deste processo responsável por definir o
gênero e os seus mecanismos de articulação com a esfera humana de comunicação, seja a
imagem da moldura. Os gêneros são “molduras”. Essas molduras, primeiramente, devem ser
reconhecidas pelos sujeitos sociais pertencentes a certa esfera social. E, para que isto seja
possível, elas precisam ser guiadas por determinados padrões de comportamento, relativo ao
tema, estilo e composição. Por conseguinte, é a partir dessas molduras que o homem consegue
ordenar e reproduzir a sua ‘realidade’ para a tela, a partir de lentes que deflagram a sua
subjetividade de indivíduo social, de modo coerente e comunicável. Estas molduras são as
formas que usamos para representar nossa realidade. A comunidade, por assim dizer,
“combina” as formas de uso destas molduras.
Contudo, como observa Bakhtin, a moldura, apesar de precisar de uma estabilidade
para se fazer comunicável em um jogo dialógico, acompanha a dinamicidade da linguagem e,
portanto, sofre modificações, conforme necessidade da esfera de comunicação a qual
pertence. Essas modificações podem surgir no diálogo, ou ainda, na incorporação de um
gênero por outro, conforme Bakhtin:

[...] Aqui é de especial importância atentar para a diferença essencial entre os


gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexo) – não se
trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos secundários
(complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie; os
grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio
cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado
(predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No
caso de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros
primários (simples), que se formaram nas condições de comunicação
46

discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí


se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato
com a realidade concreta e os enunciados reais alheios (BAKHTIN, 2003, p.
263).

Neste processo de incorporação de um gênero por outro, conforme salienta o crítico,


é possível inferir dois movimentos: um de exclusão, e outro, de transmutação, no qual um
gênero é absorvido pelo outro. Sendo o romance um desses gêneros que se abre para o
processo de transmutação. Em seu corpo, é possível encontrar a réplica de uma conversa do
cotidiano, o uso de lendas, rezas, poemas, cartas, ou ainda, gêneros comuns àquilo que
denominamos como ‘esfera da intimidade’, neste caso, é possível se deparar com a
incorporação do diário íntimo, pelo romance.
Fazemos esta conversa sobre transmutação de gênero porque acreditamos que este
processo ocorre no diário caroliniano. Apesar de considerarmos Quarto de despejo um diário,
não descartamos a hipótese de ser possível encontrar elementos romanescos em sua tessitura
composicional. De modo metafórico, o Diário é responsável por deixar transparecer o
empenho da escritora em tornar “maleáveis” as molduras as quais recorre – da forma que
melhor atenda aos seus propósitos, em especial aos seus propósitos de comunicação com a
esfera a qual ‘pertence’, ou deseja pertencer – para desenhar a sua realidade caótica, de modo
coerente. Isto se explicita, em especial, a partir de duas leituras que fazemos: o de Quarto de
despejo visa um leitor e tem fins publicáveis.

2.1. Íntimo, porém, público: a absorção da forma romanesca pelo Diário

A escrita do diarista é íntima por definição, uma vez que sugere uma identidade entre
autor, narrador e personagem principal, como propõe Viana, ao elucidar a definição de
literatura íntima (Cf. VIANA, 1995, p. 31). Sobretudo, parece que o interlocutor do diarista é
ele próprio. No que se refere ao diário caroliniano, “íntimo” deve ser entendido no sentido de
flexibilidade e alargamento dos limites do quarto – espaço íntimo por natureza, conforme
visto no “capítulo 1” deste trabalho dissertativo. Cabe observar o quanto Carolina se obriga a
redimensionar as margens limitantes do seu ‘quarto’ – enquanto espaço considerado por
Woolf como o lugar que deveria abrigar a intimidade do sujeito que o ocupa, como também as
atividades que pratica, incluindo a escrita – para que possa desenvolver o registro do seu
Diário.
47

Ainda nos guiando por Viana, a escrita do diário pode ser considerada íntima porque
serviu, inicialmente, como único meio pelo qual a mulher pôde exercitar o processo reflexivo
da sua própria condição de ser, dotado de identidade:

[...] o registro do cotidiano empresta aos fatos uma uniformidade muitas


vezes indispensável ao equilíbrio do eu, que, na fragmentação do dia-a-dia,
busca sua própria unidade. A par disso, falar com esse outro – o caderno –
converte-se num exercício de dialogismo que parece infinitamente mais
fácil, já que esse outro não reprime, não contesta, não recusa, não impõe.
Não decepciona nunca. Ao contrário, entrega-se branco e passivo à função
de companheiro discreto, solícito, de olhar receptivo e complacente para
com o eu escrevinhador (VIANA, 1995, p. 55).

Outro ponto que denota a característica de intimidade ao gênero diário está no fato de
trazer como tema, por exemplo, aquilo que se constitui como privado na relação com o
contexto social. No caso de Quarto de despejo, Carolina coloca sob a luz, os mecanismos
mais “íntimos” que regem a interioridade do organismo favela de Canindé, mas também, a
escritora deixa revelar a própria intimidade do seu quarto, da sua vida, da sua condição de
mulher dotada de sentimentos, vontades e desejos.
Também é o diário um gênero da intimidade porque, tomando-se como base a
proposta de Lejeune (2008), trata-se de um gênero que, não é publicável:

[...] Desde a Antiguidade, no Ocidente, assistimos a uma progressiva


individualização do controle da vida e da gestão do tempo. É o que já se
chamava antigamente de ‘foro íntimo’, bela expressão que designa a
passagem de uma jurisdição externa e social (fórum) a um tribunal
puramente interior e individual, o da consciência. O desenvolvimento atual
do diário corresponde talvez a essa delegação de poder: cada indivíduo tem
de administrar a si mesmo, com seu próprio setor de contenciosos e seus
próprios arquivos (LEJEUNE, 2008, p. 259).

O fato de não ser publicável, faz do gênero diário um diferencial em relação aos
outros gêneros vizinhos que também tratam da figura do ‘eu’, mas que, porém, são
publicáveis. Estes são tipos textuais vizinhos ao diário, têm, por sua vez, em sua origem de
produção uma necessidade de serem compartilhados, de visarem um leitor e, por isto, de
serem publicados, como é o caso da biografia e da autobiografia.
Os três gêneros, como se colocou, tomam como compromisso lidar com assuntos
relacionados a figura do ‘eu’. Contudo, há em cada um peculiaridades que os distinguem,
conforme combinações desta primeira pessoa do singular, este “eu”, nas múltiplas funções
48

daquelas figuras implicadas na composição de um texto (escritor, autor, narrador, personagem


principal).
Sobre a biografia o Houaiss eletrônico (2001), diz que biografia é um “gênero
literário cujo objeto é o relato da aventura biográfica de uma pessoa ou de uma personagem”.
Trata-se de um alguém que fala sobre certa pessoa. Geralmente, um ente próximo ou
estudioso que vai a busca de vestígios responsáveis por deixar transparecer a existência
daquele sobre quem se fala. Uma vez munido destas provas de cunho materiais ou
sentimentais, esta pessoa (o escritor) se coloca no direito de poder descrever e narrar fatos da
vida deste outrem, colocando-o como personagem principal de sua obra. Trata-se de um ‘eu’
escritor, autor e narrador que fala sobre alguém, sobre um ‘ele’ personagem, de modo a
estabelecer um todo coerente, mantendo a expressão, num todo articulado.
Diferente da biografia e em semelhança ao diário, o gênero autobiografia é uma
composição que, por sua vez, necessita de uma persona que assuma as quatro categorias das
figuras que compõe este gênero. O que temos é uma pessoa que sente a necessidade de voltar
ao seu passado distante para reconstruir – entre lembranças, esquecimentos e ficcionalizações
– fatos de sua vida, de modo a formar uma narrativa coesa, sem que transpareça lapsos de
memória. O texto autobiográfico consegue se sustentar como um gênero não ficcional, por
trazer em sua base um ‘eu’ escritor, autor, narrador e personagem que conta a sua própria
história.
Apesar da semelhança das posições ocupadas pelas figuras que compõe o gênero
autobiográfico e o diário, há diferenças sensíveis quanto aos dois gêneros. Sendo o tempo das
ações narradas um dos principais. Isto porque, enquanto o diário procura dar conta do tempo
presente vivenciado pelo escritor, autor, narrador e personagem, a preocupação do
autobiógrafo é com a rememoração do passado.
Como o próprio nome sugere, nas páginas do diário são sinalizados os registros
diários da pessoa. Sendo uma atividade sempre acompanhada pela data ao início de cada
registro. Lejeune (2008), ao esquematizar os elementos responsáveis por definir o diário, entre
outros gêneros vizinhos à autobiografia, faz a seguinte divisão: (1) Forma da linguagem; (2)
Assunto tratado; (3) Situação do autor e (4) Posição do narrador (Cf. LEJEUNE, 2008, p.14).
Com relação à forma da linguagem, devemos compreender o diário como uma forma
narrativa em prosa, que toma como assunto a vida individual daquele que propõe a prática da
escrita do diário. Neste gênero, a identidade do autor remete a identidade do narrador, e, por
sua vez, ambas tocam a realidade por, necessariamente, estarem ligadas a uma pessoa real.
49

Nesta linha, no item “4” acima, a identidade do narrador é igual à identidade do personagem
principal da narrativa.
E é exatamente o fato de se mostrar atento à sua volta e desejar transformar a sua
experiência do tempo presente em algo exprimível, por meio da escrita, que o diarista é
adjetivado por Lejeune como um “ruminante”:

[...] O diário é uma oficina de escrita quotidiana em que se vai aprendendo


aos poucos, pela releitura e pela repetição. Por outro lado, o diarista é um
‘ruminante’. Sem que se dê conta, é ao longo do dia, enquanto vive, que a
entrada que escreverá ‘espontaneamente’ à noite vai se elaborando em sua
cabeça. Esses ‘rascunhos mentais’ não deixam nenhum vestígio. A fase
silenciosa de elaboração se conclui diante do papel, com as últimas
hesitações, de lápis erguido (LEJEUNE, 2008, p. 329-330).

A analogia proposta pelo crítico entre o trabalho desenvolvido pelo diarista e a


oficina, parece nos remeter às habilidades do trabalho manual, que exige do seu artesão
tempo, paciência e persistência na prática diária da atividade, a fim de que se alcance
resultados mais perfeitos. A escrita também é assim. Isto fica explícito, por exemplo, quando
se reflete sobre o ritual de organização dos fatos por meio da coerência espacial e temporal,
bem como, no trabalho de persistência e paciência na ‘releitura’ e na ‘repetição’ diária da
escrita. Contudo, apesar de expor estas características imanentes ao escritor de diário e aos
demais escritores, Lejeune estabelece uma diferença fundamental para definir o escritor de
diário: “não lhe passará pela cabeça a ideia de ‘trabalhar’ o texto” (LEJEUNE, 2008, p. 330).
Para o crítico, é possível que algum fato escape a descrição proposta pelo escritor e
que, neste caso, possa ocorrer dele se “retratar” nas linhas subsequentes ou às margens da
folha, no entanto, é uma atividade que se deve realizar no próprio dia e não mais tarde: “[...] A
meu ver, o valor do meu diário se deve a sua historicidade. Bobagens, erros, má-fé têm valor
por serem coisas ‘do dia’, como se fossem ovos frescos. Trapacear significaria anular a
empreitada por inteiro” (LEJEUNE, 2008, p. 330).
Qualquer tentativa de rasurar a folha, na escolha da melhor palavra, ou do modo mais
propício de se falar algo, é encarada por Lejeune como um, poderíamos dizer, ‘desvio do
gênero’. Como se faz observar neste trecho:

[...] Não lhe passará pela cabeça a ideia de ‘trabalhar’ o texto, e se começar a
fazê-lo, se sentirá incomodado como se fosse uma impostura, cujos vestígios
permaneceriam visíveis. Isso não significaria fazer um arranjo com relação
ao que foi vivido, resultando numa comédia, um ensaio de sedução, com
relação a um futuro leitor? Além disso, seria agradável reler um texto cheio
50

de correções? A ideologia da espontaneidade e o suporte restritivo do


caderno (não se pode refazer a página) aproximam o diário da aquarela: o
retoque é impossível, é preciso acertar na primeira vez (LEJEUNE, 2008, p.
330).

Os “retoques à pintura”, quantos forem necessários, sem que deixem seus vestígios,
só serão possíveis, para Lejeune, após a invenção do computador. Embora, ainda assim, para
o crítico, permaneça intacta a ‘velha regra’ da necessidade de se respeitar o valor da
historicidade do diário. O crítico faz um apelo para que se preserve aquilo que o texto tem de
mais essencial, que são as marcas do autor, pequenos detalhes, tais como o sentimento
daquele que escreve sobre determinado assunto, que aflora no momento da escrita subjetiva.
Com a popularização do computador na França, no final da década de 1990, época
em que desenvolveu a pesquisa apresentada em seu artigo, foi possível detectar a
transformação pela qual passava o gênero diário, com a mudança de suporte, do caderno para
o computador:

Se você está na web, cai em um espaço cuja lógica se opõe à do diário


íntimo: a instantaneidade (ao invés do prazo), a comunicação (ao invés da
reserva). Não é exatamente o espaço da correspondência clássica (prazo,
destinatário preciso), mas antes uma forma de conversa escrita, o que chamei
‘conversa fiada’ com desconhecidos (LEJEUNE, 2008, p. 336).

Contudo, há que se ter determinada cautela com o que é proposto neste ponto por
Lejeune. Isto porque Carolina Maria de Jesus, já propunha inflexões no gênero diário íntimo,
ainda na segunda metade da década de 1950, antes dos computadores serem inventados.
Como coloca Maria José Motta Viana (1995), o diário íntimo, por gozar de certa liberdade, na
medida em que não precisa se preocupar com a existência de um editor e um público leitor,
acaba tomando para si uma liberdade maior para se manifestar, podendo ser enxertado de
várias vozes e modelos discursivos (Cf. VIANA, 1995, p. 52-53).
Essas formas, que, para Viana, poderia facilmente ser vistas como descaracterização
de um texto, desconhecem regras fixas de constituição. O que aparentemente indicaria uma
falta de lógica narrativa, contudo, de fato indicam o contrário. Tais construções se carregam
de lógica, uma vez que esta precede a construção textual. O ‘eu’ leitor do futuro, que também
é o ‘eu’ do passado que vivenciou ou ao menos presenciou os fatos narrados, é responsável
por fazer essas ligações. Deste modo, a forma:
51

[...] de apropriação de discursos, constitui-se como um jogo bastante livre de


escrita, onde a possibilidade de inserção de variados elementos – citações,
cartas, rol de afazeres, fragmentos de poesias, historietas contadas por outra
voz, preces e orações, bilhetes, fotografias – contribui para radicalizar sua
configuração de texto cifrado, fendido, pontilhado de brancos e vazios, onde
o paradoxo e a ambivalência podem coexistir com a linearidade e a
univocidade (VIANA, 1995, p. 53).

Assim, além da ideia de fragmento oferecida pela falta de continuidade de algumas


micronarrativas cotidianas, como se verá mais adiante, ainda é possível conferir este
mecanismo na inserção de diferentes gêneros encontrados no diário caroliniano. Nele, é
possível encontrar bilhetes, versos, letras de música, provérbios, conforme exemplos:

Bilhete
-Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer
uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel.
Agradeço. Carolina (JESUS, 2004, p. 27).

Verso
Tenho nojo, tenho pavor
Do dinheiro de aluminio
O dinheiro sem valor
Dinheiro do Jucelino (JESUS, 2004, p. 112).

Letra de música
Te mandaram uma macumba
e eu já sei quem mandou
Foi a Mariazinha
Aquela que você amou
Ela disse que te amava
Você não acreditou (JESUS, 2004, p. 107).

Provérbio
[...] Eu estou tão nervosa que recordei o meu proverbio: não há coisa pior na
vida do que a propria vida (JESUS, 2004, p. 145).

Apesar dos fragmentos expostos, seja pela inclusão ou ainda, pela obsorção de
diferentes gêneros que Carolina traz para o seu diário, ainda se torna possível observar uma
predominância de um esforço em transformar a sua realidade aparentemente caótica e
fragmentária em um todo coeso. Esses aparentes ‘fragmentos’, unem-se em uma tessitura
coesa, de modo a revelar – por meio dos sentimentos expressos por Carolina, em cada tipo
textual que submete aos seus devaneios –, o grande campo semântico que constitui favela de
Canindé, como é o caso, do que é a fome, a degradação do homem, a intimidade de uma
mulher que vive à margem socioeconômica, entre outros.
52

A nossa hipótese é que esta necessidade de ligar fragmentos, de procurar tornar


coerente a sua via tumultuada e fragmentária de mulher favelada e marginal; mais do que uma
exigência de tornar a sua realidade coerente para si mesma, trata-se de esforço de torná-la
coerente para o ‘outro’, que nada mais é, do que o seu leitor.
O fato de se visar um leitor, que não um ‘eu’ futuro, rompe as barreiras que isolava o
diário dos outros gêneros vizinhos, como também, podemos induzir, até mesmo, uma
aproximação com o gênero romance.
A se pensar com Lukács, vemos que uma das principais preocupações do romancista
é de conectar fragmentos, que estão no mundo, de forma coesa, dando a estes uma
configuração minimamente comunicável ao seu leitor.
De fato, aceita-se a ideia de que o gênero diário, tal como é delineado pelos teóricos,
apresenta-se como um exemplo da necessidade que o homem tem de ligar fragmentos da
realidade. Porém, a diferença básica é que enquanto o diarista, que não procura superar as
margens do gênero, ordena os fatos para si mesmo, o romancista e, no caso, a escritora do
Diário, ordenam esses fatos visando outrem. Carolina tenta unir fatos isolados tomados ao seu
cotidiano, em uma tessitura coesa, isto é, a autora sente a necessidade de apresentar ao outro,
seu interlocutor, o que é a favela, por intermédio de suas experiências cotidianas.
Outra característica que aproxima Quarto de despejo, aos aspectos da narrativa
romanesca, refere-se às intenções expressas no texto. Carolina deixa em evidência qual o
propósito que tem na escrita do seu diário: visa-se o exercício da crítica social.
Bakhtin, no capítulo “Funções do trapaceiro, do bufão e do bobo no romance”, do
livro Questões de Literatura e Estética: A teoria do romance (1993), traça algumas
características destas três figuras literárias (o trapaceiro, o bufão e o bobo), que influenciaram
o desenvolvimento do romance europeu. Essas figuras não possuem datas específicas de
surgimento. Tudo o que fazem ou dizem está no sentido figurado, ou até mesmo no sentido
inverso. Sua função é criar um modo singular para mostrar o homem em seu interior por meio
do riso paródico.
Eles vestiam máscaras, “que lhes conferiam o privilégio consagrado de não
participação na vida e da inteligibilidade de seu discurso” (BAKHTIN, 1993, p. 277), para
fazer críticas às convenções institucionalizadas pela sociedade feudal, por intermédio de
figuras pitorescas. No romance também é possível encontrar a necessidade que o autor tem de
se posicionar diante de uma ação narrada. Isto porque “o romancista precisa de alguma
53

espécie de máscara consistente na forma e no gênero que determine tanto a sua posição para
ver a vida, como também a posição para tornar pública essa vida” (IBIDEM, p. 277).
Assim como esses personagens pitorescos, Carolina ‘veste máscaras’ e exige para si a
autoridade daquele que recria seu mundo como forma de denúncia contra espécies de
convenções falsas das relações humanas, em semelhança ao romance, que toma para si esta
autoridade e passa a ter o direito de tornar público a vida privada, com todos os seus segredos
mais íntimos.
E é esta a autoridade que Carolina toma para si, ao relatar as mazelas da favela, mais
especificamente, o modo de vida dos moradores da favela de Canindé:

... Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me:


- Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver!
- Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo.
- E porque é que eu estou nisto?
- Você está aqui por que naquele dia que o Armim brigou com você e
começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua.
Ela não gostou e disse-me:
- O que é que a senhora ganha com isto?
... Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei o céu com suas nuvens negras
que estavam prestes a transformar-se em chuva (JESUS, 2004, p. 126).

Carolina relata o que aconteceu com “Ela” e com outras personagens, ao mesmo
tempo em que oferece o seu julgamento sobre as coisas que aprova ou reprova na favela:
“Tenho pavor destas mulheres da favela” (JESUS, 2004, p. 12). Consideramos que esses
movimentos apenas são possíveis, porque ela exige para si a autoridade do romancista, para
fazer esse processo de revelação, sem, no entanto, sofrer algum tipo de represália social.
Outro ponto que deflagra a aproximação com o gênero romanesco com Quarto de
despejo está no fato de se tratar de um gênero que visa lucro com a revelação da sua
intimidade a um público leitor.
Baseando-se em Marthe Robert (2008), temos que, na tentativa de definir o que é o
gênero romance, a teórica trabalha com o emprego do termo “arrivista”. Segundo definição no
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2001, o arrivista é aquele que
“[...] se determinou a triunfar a qualquer preço, mesmo em prejuízo de outrem”. Não é o caso
pleno de Carolina. Em seu texto a autora dá mostras de ser muito ética. Mas julgamos
importante sublinhar o quanto a autora tem a ambição do arrivista, quando a questão é sair da
favela. Sua vítima principal é o gênero diário, o qual ela perverte ao limite.
54

No texto de Robert, ao retomar a história deste gênero, a autora constatou que o


romance é relativamente novo e que não mantém uma ligação próxima com a tradição de
origem. O adjetivo empregado – arrivista – surge na tentativa de enfatizar a forma espantosa
com que em um curto espaço de tempo, na passagem do século XVIII para o XIX, o romance
deixou de ser encarado como “publicamente indigno [aos] leitores” (ROBERT, 2008, p. 12) e
se tornou aceito por esses. Além de conseguir encontrar um espaço na sociedade, de modo
relativamente rápido, outro ponto que chama atenção é a forma como o romance ganha esse
espaço. Ele conquista o espaço dos demais gêneros, absorve as características desses e os
tornam dependentes.
No caso de Carolina, a sua postura é arrivista, uma vez que, como observamos, usa seu
diário como forma de sair da favela. Seu diário é o texto de uma ‘arrivista’, que de diversos
modos – seja com a intenção de vender livros, ou seja com a intenção de fugir
imaginariamente do espaço favela e ‘viajar’ pelo mundo da imaginação, proporcionada pela
escrita do seu diário – quer ir para a cidade; quer melhorar de vida. Mais importante que isso,
mas nessa linha, Carolina se vale de seu diário para tentar fazer isso.
É nesta perspectiva que vemos o quanto este gênero é subvertido e pervertido nos seus
fundamentos, que é ser um tipo textual da intimidade, tornando-se público, tal qual o
romance. Em ligação com o que vimos a partir do que pontua Bakhtin (1993), uma importante
característica de subversão, desse uso arrivista do gênero diário, implica na disposição da
autora de usar seu texto, que deveria ser da intimidade, para denunciar a condições de vida do
povo da favela, bem como, a sua própria condição de marginal. Uma vez que a denúncia
necessita, evidentemente, de um interlocutor responsável por recebê-la.
Deste modo, acreditamos que as características, tais como, a necessidade de ligar
fragmentos; de subverter o conteúdo, de forma a produzir denúncias, ou ainda, de procurar
encontrar uma coerência para o contexto favela, são recursos que evidenciam o esforço da
escritora em romper com as margens do gênero diário, uma vez, impulsionado pelo desejo de
transformar o gênero da intimidade, em um objeto publicável, que é o livro.
Neste viés, entendemos que as mesclas de vozes e discursos no Diário,
caracterizados por Viana (1995) como liberdade de escrita comum ao gênero, ao contrário,
apresentam-se como uma necessidade da Carolina em se reafirmar como escritora de
literatura para um leitor que não a conhece, um leitor que não é morador da favela de
Canindé.
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Assim, ao se prever um leitor, Carolina não apenas muda a sua postura cômoda,
oferecida pelo gênero, mas se vê obrigada a transitar a margem do gênero escolhido.
Propondo, por conseguinte, nuances na própria estrutura composicional do diário íntimo.
Essa tentativa de dilatar as margens do gênero, ao sensibilizar as linhas entre as
vertentes pública e privada, resulta não somente na possibilidade de se observar novas
negociações e, até mesmo, remodelações da forma do gênero diário, como também, torna
ambígua a própria identidade da Carolina em seus diferentes papéis na constituição da obra,
seja ela autora, escritora, narradora ou personagem. Assim, aos poucos, embora a forma
textual escolhida pela escritora prime pela verdade, somos convidados a fazer o exercício de
identificar as diferentes ‘Carolinas’ que ‘falam’ em Quarto de despejo, conforme veremos
mais adiante.
Antes, cabe observar que essa necessidade de estabelecer conectivos, de tentar
articular os fatos fragmentários que acontecem em seu cotidiano de mulher da favela, dentre
outros, ou ainda, de transformar crônicas em estórias, também faz deste fenômeno um ponto
de intersecção com características comuns ao gênero romance.

2.2. O diário como crônica: da crônica à “estória”

Para pensar a fragmentação do gênero diário, como também, a própria fragmentação


do diário caroliniano, é útil recorrermos às reflexões de Hayden White (1995), a seguir. White
utiliza o conceito de “crônica”, em seu sentido histórico, para definir o saber histórico. O
teórico procura semelhanças entre os gêneros ficcionais (genericamente, a Literatura) e os
gêneros históricos, que são, por definição, não ficcionais.
Para ele, Literatura e História se aproximam, sobretudo, pela circunstância de que
uma e outra são formas de organização em “estória” de fatos retirados da crônica. A distinção
entre crônica e estória, porém, é simples. Entretanto, antes de adentrar o processo de
identificação dessas formas textuais, cabe lembrar que o conceito de crônica referida pelo
crítico não é o gênero presente em jornais, revistas, entre outros meios de comunicação,
entendida, por sua vez, como uma mistura entre literatura e reportagem que vemos nas
páginas dos periódicos. A crônica em questão, diferentemente, é um tipo textual que dispõe os
fatos em sua sucessão meramente temporal ou ordem cronológica.
O dicionário eletrônico Houaiss (2001), na sua versão eletrônica, diz em sua primeira
acepção do vocábulo crônica: “compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem
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de sucessão no tempo”. A crônica, neste caso, não se organiza segundo a noção de ‘começo,
meio e fim’, que é típico do texto literário e do texto histórico, e que é, enfim, a característica
primordial do conceito de “estória”, segundo White. Diz o autor:

As estórias históricas reconstituem as sequências de eventos que conduzem


dos inícios aos términos (provisórios) de processos sociais e culturais, de um
modo que as crônicas não são obrigadas a fazer. A rigor, as crônicas têm
finais em aberto. Em princípio, não têm inícios; simplesmente ‘começam’
quando o cronista passa a registrar os eventos. E não têm pontos culminantes
nem resoluções (WHITE, 1995, p.22).

O arranjo da crônica, assim, é meramente cronológico, enquanto o da história é


causal. White fala em código de motivos: “motivos iniciais”, “motivos de transição” e
“motivos conclusivos” (Cf. WHITE, 1995, p 21). Nestes termos, no código de motivos, os
fatos devem mutuamente motivar e serem motivados entre si. O código de motivos da estória
é uma articulação causal entre eventos. Na crônica, os eventos acontecem meramente “um
após o outro”; na estória, eles acontecem “um por causa do outro”. E os eventos das estórias
são retirados de um conjunto de eventos organizados cronologicamente, que é muito mais
amplo, a que estamos denominando crônica. Com efeito, os eventos da estória são escolhidos
dentre a massa de acontecimentos da crônica por serem causa ou consequências uns dos
outros.
De passagem, devemos propor uma distinção (provisória, é verdade, porém, válida)
entre história e ficção, ainda segundo White: “[...] a diferença entre ‘história’ e ‘ficção’ reside
no fato de que o historiador ‘acha’ suas histórias, ao passo que o ficcionista ‘inventa’ as suas”
(WHITE, 1995, p. 22). E diz o autor, “[...] o objetivo do historiador é explicar o passado
através do ‘achado’, da ‘identificação’ ou ‘descoberta’ das ‘estórias’ que jazem enterradas nas
crônicas” (WHITE, 1995, p. 22).
O papel do historiador é transformar as crônicas em estórias, tecendo fio a fio uma
coerência entre os fatos, em semelhança ao poema Tecendo a Manhã, de João Cabral de Melo
Neto:

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios do sol de seus gritos de galo,
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para que a manhã, desde uma teia tênue,


se vá tecendo, entre todos os galos (MELO NETO, 1997, p. 14).

São fios do início, meio e fim que se alinhavam, de modo a formar uma tessitura com
pontos bem atados.
Muitos dos textos de Carolina Maria de Jesus presentes em seu Quarto de despejo
são, por assim dizer, crônicas. Não são obviamente ficções, são, como se sabe, um conjunto
de acontecimentos reputados como reais, relatados pela própria pessoa que se representa
como personagem na obra. Com efeito, são crônicas: fatos organizados temporalmente que,
pouco ou nada, organizam-se de modo causal e que, com frequência, são inconclusivos. As
histórias observadas no presente pela Carolina, muitas vezes, ocorrem de se ‘perderem’.
Muitas, apenas são citadas, sem que haja um “meio”, isto é, sem um desenvolvimento do caso
narrado e, por conseguinte, sem um “final” conclusivo. Geralmente, isto ocorre pela incerteza
do que a espera no dia seguinte, como nos exemplos:

A Theresa irmã da Meyri bebeu soda. E sem motivo. Disse que encontrou
um bilhete de uma mulher no bolso do seu amado. Perdeu muito sangue. Os
medicos diz que se ela sarar ficará imprestavel. Tem dois filhos, um de 4
anos e outro de 9 meses (JESUS, 2004, p. 39).

Ou ainda:

...Quando cheguei na favela os meninos estavam brincando. Perguntei-lhe se


alguem havia brigado com eles. Responderam-me que só a baiana. Uma
vizinha que tem 3 filhos. E que a Leila brigou com o Arnaldo e queria jogar
a sua filha recem-nascida dentro do rio Tietê. E foram brigando até a rua do
Porto. E a Leila jogou a criança no chão. A criança tem dois meses. (...) As
mulheres queriam ir chamar a policia para levar a menina no Juizado. Eu
estava cançada, deitei. Não tive coragem nem de trocar roupa (JESUS, 2004,
p. 63).

Não é de acesso ao leitor saber o conteúdo do bilhete que estava no bolso do amado
de “Theresa” e se, de fato existiu um bilhete; nem ao menos, tem-se a informação do nome
deste homem. Não é dado ao conhecimento do leitor que tipo de relacionamento se
estabelecia entre essas duas pessoas. Fica na penumbra o que de fato pensava esta mulher ao
tentar contra a própria vida, em qual ambiente esta cena ocorreu, se os filhos presenciaram a
cena, quem a socorreu, quais foram os danos causados e, enfim, se de fato a Theresa sarou por
completo ou não. No segundo fragmento, a situação não é diferente. Somos convidados,
enquanto leitores, a nos contentar com o resumo do relato narrado por Carolina que, cansada,
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prefere ir dormir, a saber, os pormenores dos acontecidos. Não se sabe qual o motivo da briga
que a baiana teve com as crianças, como também não é dito que tipo de conflito aconteceu ali:
foi uma discussão verbal? Caso sim, o que foi dito? Ou ocorreu agressão física? – o que era
frequente –; Contra quem? Alguém ficou ferido? Como e por que acabou esta briga?.
Também não foi dito ao leitor qual o motivo da briga da Leila com o Arnaldo. A criança era o
centro das discussões ou apenas um objeto de coagimento? Ao ser jogada no chão, machucou-
se? Quem a socorreu? A briga parou em que momento? Quem eram essas mulheres que
queriam chamar o juizado? O que as levaram a se mobilizar? E, afinal, o juizado foi
chamado?
Contudo, também há exemplos nítidos, dentro do diário caroliniano, da preocupação
de estabelecer uma sequência não apenas cronológica entre os fatos, como também, uma
necessidade de colocar o conjunto de eventos em diálogo com códigos de motivos. Processo
entendido por WHITE (1995) como necessário para a construção da estória.
A Carolina que escreve seu diário, muitas vezes, cumpre esse papel de cronista
quando toma para si o compromisso de coletar fatos que compõe a sua realidade de mulher
marginal e moradora da favela de Canindé.

2.3. Da “estória” à História: manobras de escrita em Quarto de despejo

Carolina avança na estruturação do seu texto e, aquilo que poderia parecer simples
crônica, torna-se “estória” e história. No ato de colocar os fatos de modo espacializado,
seguindo a ordem cronológica, a escritora alia a este processo alguns conectivos que vão
ordenando a crônica segundo motivos causais. Sendo estes frutos da sua memória, do seu
ponto de vista – enquanto mulher negra, marginalizada, que vive os efeitos das ideologias
fabricadas pela sociedade brasileira das décadas de 1950 e 1960.
A seguir discutimos duas estórias/histórias de Carolina que, podendo ser simples
crônicas, ganham destaque e são organizadas em código de motivo. A primeira é sua história
de amor com o cigano Raimundo; a segunda, trata-se do descaso político dos poderosos, no
relato da história do deputado Zuza.
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2.3.1. O cigano Raimundo

Para o primeiro caso, que exemplifica o esforço da Carolina em transformar crônica


em estória, selecionamos o momento em que a escritora abre espaço no seu diário para relatar
o seu relacionamento com o cigano Raimundo. É um episódio que chama atenção ao leitor,
em especial, por se tratar do único caso de amor que Carolina narra de modo mais amplo. Os
demais momentos que abordam a relação da personagem com seus possíveis pretendentes,
limitam-se a pequenas passagens, como o relato em um parágrafo para citar que dormiu com
o senhor Manoel (Cf. JESUS, 2004, p. 157), que recebeu o convite para ir ao quarto do seu
Gino (Cf. JESUS, 2004, p. 25), que tem um soldado que gosta dela (Cf. JESUS, 2004, p. 57),
entre outros exemplos.
Carolina inicia o comentário do seu envolvimento com o cigano Raimundo a partir do
dia 31 de dezembro de 1958 (Cf. JESUS, 2004, p. 130). Nesse dia, ela relata em seu diário
que não vai dormir, pois quer ouvir a corrida de São Silvestre. Mas, ao leitor não é revelado se
de fato ela chegou a ouvir a corrida, uma vez que assim se finda essa informação e, no mesmo
parágrafo, se põe a descrever a continuação do que aconteceu no seu dia, isto é, que foi à casa
de um cigano, inicialmente não identificado pelo nome. Nessa visita, Carolina revela que
sentiu pena da situação a qual ele se encontrava, dormindo no chão. Assim, doou-lhe duas
camas, mas pediu que fosse à sua casa durante a noite, pois tinha receio das conversas
inoportunas das vizinhas. O cigano seguiu suas recomendações.
O que fica implícito na sequência da narrativa é que esse não foi o primeiro contato
deles, pois Carolina revela o conteúdo da conversa que tiveram. Inicialmente, o cigano mostra
a sua pretensão de ficar naquela comunidade e colocar os dois filhos na escola. Além disso,
no diário se lê uma informação relevante, a qual cumpre o papel de ponte, para que se
aprofunde o conteúdo da conversa: ele é viúvo. A partir desse novo dado, a protagonista abre
o jogo com o leitor e mostra as intenções do cigano: “[...] ele é viuvo e gosta muito de mim.
[perguntou] Se eu quero viver ou casar com ele” (JESUS, 2004, p. 131).
Assim, Carolina, na noite de véspera de ano novo, comenta: “[o cigano] Abraçou-me e
beijou-me. Contemplei a sua boca adornada de ouro e platina. Trocamos presentes. Eu dei-lhe
doces e roupas para os seus filhos e ele deu-me pimenta e perfumes. A nossa palestra foi
sobre arte e musica” (JESUS, 2004, p. 131). Cabe destacar neste fragmento que Carolina não
se enamora pelo cigano somente por ser este um homem disposto a viver com ela – aliás, ela
recebe convites de outros homens, inclusive do senhor Manoel, e diz não a todos –, mas
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porque ambos possuem interesses culturais e artísticos em comum. Eles não falaram de mero
assunto, tratava-se de uma “palestra” e uma palestra sobre arte (possivelmente artes plásticas)
e música. A Carolina escritora de literatura também gosta muito de artes plásticas e música.
“[...] Entre eu e o cigano existe uma atração espiritual” (JESUS, 2004, p. 131),
comenta a personagem. O termo espiritual parece reforçar a ideia de afinidade de Carolina
com o que o cigano representa, isto é, uma pessoa com quem Carolina pode falar sobre arte,
poesia, que a acompanha para ouvir rádio e gosta de ler, como se confirma nesse trecho: “[...]
Ele gosta de ler. Dei-lhe livros para ele ler” (JESUS, 2004, p. 131).
A linguagem também ganha sons poéticos na boca do cigano: “Ele disse-me que o
amor de cigano é imenso igual o mar. É quente igual o sol” (JESUS, 2004, p. 131). Contudo,
apesar de atraída por ele e por tudo o que representa, ela reluta, pois não se vê levando uma
vida de cigana.
Carolina volta a falar do cigano apenas no dia 6 de janeiro, quando relata que o filho
do cigano veio chamá-la, a pedido do pai. Ao chegar a casa dele, este começa a reclamar da
vida que leva em São Paulo, pois não consegue encontrar emprego: “– No Rio ganha mais –
ele afirmou – Lá eu benzia crianças, vendia carne e ganhava muito dinheiro” (JESUS, 2004,
p. 132). É a partir dessa conversa, que Carolina conclui: “Percebi que cigano quando conversa
com uma pessoa, fala horas e horas. Até a pessoa oferecer dinheiro. Não é vantagem ter
amisade com cigano” (JESUS, 2004, p. 132).
Apenas quatro dias depois a personagem volta a citar o nome do cigano, no dia 10 de
janeiro, mas agora, em uma situação de diálogo com o senhor Manoel, com quem também
tem um relacionamento. No dia 11 de Janeiro, Carolina escreve: “Parece que este cigano quer
hospedar-se no meu coração” (JESUS, 2004, p. 134). As dúvidas quanto ao caráter do cigano
desaparecem: “No inicio receei a sua amisade. E agora, se ela medrar para mim será um
prazer” (JESUS, 2004, p. 134).
E só a partir desse novo sentimento que o cigano tem o seu nome revelado: “O nome
do cigano é Raimundo. Nasceu na capital da Bahia. Mas não usa peixeira. Ele parece o Castro
Alves. Suas sobrancelhas unem-se” (JESUS, 2004, p. 134).
No dia seguinte, quando o cigano foi buscar os filhos e viu que todos jantavam,
inclusive Rosalina – a quem a narradora descreve em páginas anteriores como moradora da
favela, mãe de três filhos e branca –, Carolina rememora ao leitor o convite que o cigano a fez
de morar em Osasco, mas, dessa vez, se chateia, pois o mesmo convite é feito à Rosalina: “Eu
não apreciei. Não foi egoísmo. Foi ciume” (JESUS, 2004, p. 134).
61

O Diário volta a ser escrito dois dias depois, 14 de janeiro, e o tratamento para o
cigano já se altera, agora é “senhor Raimundo” (Cf. JESUS, 2004, p. 135). Ela atendeu ao
pedido dele e foi à sua casa. Era para avisar que ele iria para Volta Redonda. De modo frio e
com poucas palavras, não mais carregadas em metáforas e poesia, Carolina se limita a falar:
“[...] Creio que sentirei saudades. (...) Despedi-me dele dizendo que precisava escrever e que
não podia demorar” (JESUS, 2004, p. 135).
Dia 16 de janeiro, Carolina, decepcionada por não ter dado certo a publicação do seu
diário nos Estados Unidos, pela The Reader Digest, recolhe os seus cadernos no correio e vai
para a casa do cigano. Ele volta a falar que irá para Volta Redonda, com um detalhe a mais,
morar na casa da jovem de 14 anos que mora com ele, a qual foi apresentada como irmã.
Carolina relata que o cigano era demasiado atencioso com a menina e isso não a agradava. Era
o ciúme.
Depois da refeição, Carolina começou a escrever, mas, ao erguer a cabeça por um
instante, observou o olhar do cigano sobre a jovem. Esse foi o motivo para que o amor desse
lugar à raiva, pois é a partir daquela cena, que a personagem diz começar a “[...] desvendar a
sordidez do cigano” (JESUS, 2004, p. 136). E assim, a beleza do cigano, até então associada a
uma condição positiva, passa a ser sinônimo de algo negativo, uma vez que, como observado
por ela, serve como distração para atrair as moças, satisfazer seu desejo e depois as
abandonar: “Olhei o rosto do cigano. O rosto bonito. Mas fiquei com nojo. Era um rosto de
anjo com alma de diabo” (JESUS, 2004, p. 136). E continua:

[...] Vim para o meu barraco. Eu estava pondo os cadernos em cima da mesa,
quando senti que alguem me pegava pelas costas. Era o cigano que me
abraçava [...] Enquanto ele me abraçava, eu pensava: este diabo devia estar
na cadeia. [...] O meu carinho representava interesse para descobrir suas
atividades (JESUS, 2004, p. 137, grifo nosso).

Carolina usa da ‘falsa obediência’, proposta por Bhabha (2003), isto é, ainda finge se
deixar dominar pelo poder se sedução do cigano para descobrir o que ele escondia, ou ainda,
descobrir qual o seu envolvimento com a jovem, o que lhe permite emancipar daquele
discurso de repressão difundido pela figura do cigano, enquanto figura masculina, dotada de
poderes sociais, não permissivos às mulheres, como é o caso recorrente de independência
sexual.
E esse discurso se torna emancipador em sua plenitude quando Carolina se recusa a ter
relações sexuais com cigano, o qual, mesmo com a recusa, promete voltar após saber por onde
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a jovem andava. Contudo, mais tarde o cigano diz a José Carlos, filho de Carolina, que diga à
mãe que não irá dormir na casa dela. Esse episódio finda com o desabafo dela diante do
recado: “Fiquei contente” (JESUS, 2004, p. 137).
No dia 17 de janeiro, Carolina fica sabendo, pelo senhor Adelino, que o cigano brigou
com um dos favelados, ambos queriam provar quem era baiano. No mesmo dia, Carolina
relata que ficou doente, por se alimentar de uma comida forte, na casa da dona Julita: “[...] É
que a comida de lá é muito forte. Sopa, carne e outras iguarias. Quando o pobre come uma
comida forte, dá tontura” (JESUS, 2004, p. 138). Dona Julita, porém, refuta sua hipótese: diz
a Carolina que o mal-estar devia ser tristeza por causa do cigano. E a narração desse dia
termina assim, sem que a hipótese de Dona Julieta fosse negada ou afirmada.
O diário só volta a ser escrito no dia 3 de fevereiro, mais de 15 dias depois, data esta
que Carolina se põe a recapitular todos os dias em que ficou sem escrever e no qual volta a
falar pela a última vez do cigano. Dentre outros, relata que a Fernanda, também moradora do
Canindé, veio perguntar por ele e que responde: “[...] É a mesma coisa que ela perguntar-me
onde é a casa do vento” (JESUS, 2004, p. 139). A narradora termina de recapitular o que
aconteceu com ela nos dias em que não pôde escrever com um poema que fez para o cigano
(JESUS, 2004, p. 139):

Não pensas que vais conseguir


o meu afeto novamente
o meu odio vai evoluir
criar raizes e dar semente

Como se pode observar, há uma tentativa explícita da escritora Carolina em ligar


fragmentos diários, no que diz respeito ao seu relacionamento com o cigano Raimundo. Isto
fica em especial evidência, quando procura retomar fatos já citados nos dias anteriores
enquanto forma de ‘alinhavar’, ou justificar, o seu presente. Um exemplo disso pode ser
verificado quando a escritora retoma o convite que o cigano a fez, de ir morar em um terreno
na cidade de Osasco, como forma de justificar e até mesmo, imprimir uma coerência para o
sentimento de ciúme que se desencadeou, quando o convite também foi feito à Rosalina.
Outra forma de averiguar uma necessidade de articular fragmentos por parte da
escritora, de transformar crônicas e estória, trata-se da coerência estabelecida na evolução dos
sentimentos que se despertam, em relação ao cigano. Claramente, podemos ordenar
cronologicamente e, principalmente, articular os relatos dirigidos ao seu caso com o cigano, a
partir de uma sequência, que mostra o amadurecimento dos sentimentos desta personagem
63

para com o cigano. Apesar de breve, o relacionamento é amadurecido a partir de seis


sentimentos, a saber: pena, atração espiritual, desconfiança, amor, ciúme e raiva.

2.3.2. O deputado Zuza

O relato do episódio referente ao dia em que Carolina conheceu o deputado Zuza,


também serve como exemplo para observarmos o esforço de transformar crônica em estória.
Aqui, neste recorte que fazemos do Diário, é possível visualizar que o relato meramente
cronológico é transcendido e ganha o estatuto de “código de motivos”, com um ‘começo,
meio e fim’.
A narração se inicia no dia 21 de junho de 1958 (Cf. JESUS, 2004, p. 60-61). Trata-
se de mais um dia aflitivo para Carolina, pois é sábado e ela precisa correr contra o tempo e
contar com a sorte para conseguir recolher o maior número de materiais para ter dinheiro
suficiente no sábado e domingo.
Chega o final da tarde, ela sabe que deveria continuar o seu trabalho árduo para ter
mais dinheiro, no entanto, o cansaço a domina, até o momento em que ouve as crianças gritar
que estão entregando cartões: “[...] Corri como flexa. A canceira sumiu. Encontrei o João que
já vinha com um cartão acenando na mão. Todos estavam sorrindo como se tivesse ganhado
um premio. Li o cartão. Era para ir buscar um premio e uma surpresa para seu filho na rua
Javaés 771” (JESUS, 2004, p. 61).
No dia seguinte, 22 de junho, às 5 horas, Carolina e os filhos já estavam preparados
para ir “[...] na festa na rua Javaés” (JESUS, 2004, p. 61). João, filho de Carolina, negou-se a
comer a refeição feita pela mãe. “Ele não gosta de festa. Mas se ele sabe que vai ter comida é
o primeiro a insistir e faz questão de levar a sacola” (JESUS, 2004, p. 61). O que Carolina
estava esperando, como os demais favelados, era encontrar aquilo que existia de mais antigo,
e mais comum em época eleitoral: ‘pão e circo’.

[...] Tomei o bonde. O dinheiro não dava. Cheguei lá as 2 horas. A fila


estava enorme. Podia ter umas 3 mil pessoas. Quando eles vieram nos
convidar os favelados ficaram contentes. Os que não ganhou cartão ficou
chorando e dizendo que não tinha sorte. Percebi que povo favelado gosta de
ganhar esmolas. Puzeram umas tabuas na calçada e forraram com jornaes e
puzeram os pães em cima. Ouvi uma mulher dizer: [...] – Não é ruim ser
pobre (JESUS, 2004, p. 61).
64

O fato de ‘ser favelado’ já é algo natural e não questionado por aquelas pessoas que
Carolina observa. A situação é grave, mas chega a ganhar cores cômicas. Carolina sai de casa
com os filhos, um deles sem se alimentar, às 5 horas, com a promessa de encontrar não uma
proposta de alguém que lhes tragam melhorias socioeconômicas, mas que lhes ofereça
esmolas. Ela gasta seu escasso dinheiro, que no dia anterior trabalhou a exaustão para
conseguir, com o transporte; e, depois, enfrenta uma fila enorme. Tudo para se deparar com
pães, postos sobre tábuas revestidas por jornais, no chão. Este gesto mostra a real falta de
consideração para com o marginalizado, ao se supor que este, em comparação com os
animais, não irão se importar com o modo como o alimento é servido. O que de fato acontece.
Como se faz perceber com o comentário da mulher no trecho citado acima: “Não é ruim ser
pobre”.
E, em contraste com o desenho da pobreza, da fome, do farrapo em que se encontram
os miseráveis observados por Carolina, aparece um homem que se destaca: “[...] Apareceu um
preto alto e gordo como se fosse decendente de elefante. Falava para todos ouvir. [...] – Eu
não sou deputado. Sou simplesmente amigo do povo humilde” (JESUS, 2004, p. 61). No
entanto, Zuza nem ao menos fazia o esforço de tentar incorporar o papel de “amigo do povo
humilde”, mostrando-se indiferente ao sofrimento alheio: “- Espera! Vocês estão mortos de
fome?” (JESUS, 2004, p. 62). Enquanto isto, Carolina testemunha mulheres grávidas
desmaiar.
Na sequência da narrativa, quando o pão finalmente é distribuído, o deputado manda
que os favelados ergam as mãos para que os pães fossem fotografados. A situação é caótica.
Na rua, Carolina previa um acidente em instantes devido ao grande fluxo de crianças que
atravessavam o trânsito de um lado para o outro. As pessoas, desapontadas por receberem
apenas pães, começam a apresentar a sua insatisfação em estarem ali. E como tentativa de
amenizar a situação, “O senhor Zuza mandou dois violeiros tocar e apareceu um palhaço”
(JESUS, 2004, p. 62). No entanto, as atrações não foram suficientes para que o caos
instaurado fosse contornado:

Era domingo e o povo ficou expantado quando viu os indigentes superlotar o


onibus Bom Retiro. Tivemos sorte. Fomos com um cobrador que aceitava a
quantia que nós davamos. Uns dava 1 cruzeiro, outros dava só um passe.
Tinha uma mulher com crianças que vieram de Santos e ganhou só um pão e
um saquinho de bala e uma regua escolar que estava escrito Lembrança do
Deputado Paulo Teixeira de Camargo. [...] Tinha mulher que gastou vinte
cruzeiros nas conduções. E não ganharam nada. [...] Devido eu ter bajulado
inconcientemente o senhor Zuza, ele deu-me varios pães. [...] Eu estava com
cinco crianças, e eu, seis. Porisso eu fui obrigada a suplicar ao condutor que
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deixasse nós voltar por três cruzeiros. Era o unico dinheiro que eu tinha. A
Vera ficou com os pés inchados de tanto andar. Quando eu cheguei na favela
vi as mulheres rogando praga no Zuza. As mulheres que estavam com
crianças não ganharam pão, porque não ia entrar no meio do povo que dizia:
[...] – Vamos pegar alguns pães para não perder a viagem (JESUS, 2004, p.
62).

O Zuza volta a ganhar espaço no diário caroliniano e, a concluir esta narrativa,


apenas no dia 28 de Junho, quando a narradora se põe a rememorar um fato que aconteceu no
dia 26 de junho:

Esqueci de citar que quando eu estava esquentando fogo as mulheres


começaram a falar que haviam visto o retrato do Zuza no jornal. E estavam
alegres. Percebi que o senhor Zuza com a festa que fez para o povo em vez
de atrair amigos atraiu inimigos. Eis o que estava escrito no jornal do dia 26
de junho de 1958: ‘‘Zuza, pai de santo, em cana’. [...] ‘Zuza’ está em cana
desde ontem, pois ele, que se chama na realidade José Onófre, e tem uma
aparencia realmente importante, mantinha para lucros extraordinários uma
tenda de Umbanda no Bom Retiro, a Tenda Pae Miguel Xangô. É também
diretor de uma industria de cadeiras suspeitas de irregularidades na
Delegacia de Costumes. ‘Zuza’ (foto), foi autuado em flagrante’. [...] Eu
disse ao Zuza que ele ia sair no jornal. Eu ouvi um senhor dizendo que o
Zuza era malandro. Mas foi pragas das mães que gastaram dinheiro e não
ganharam nada que pegou igual a visgo (JESUS, 2004, p. 66-67).

Mais uma vez, é possível observar nos recursos de retomar os acontecidos, uma
necessidade de estabelecer coerência para as histórias que acontecem em seu cotidiano. Isto se
explicita tanto pela opção de retomar o recorte do jornal, de modo a oferecer um ‘final’ para a
estória, quanto pelo modo como retoma a ideia do dia anterior, como forma de estabelecer
articulação para os fatos isolados. Há um motivo, uma causalidade, para que Carolina tenha
apenas três cruzeiros para dar ao cobrador de ônibus, em virtude de não ter ganhado dinheiro
suficiente para o final de semana, conforme relatado no dia 21 de junho, véspera do comício
feito pelo deputado Zuza; como também, de modo irônico conferido pela autora, à
justificativa do porquê o deputado ter sido preso no dia 26 de junho: não por ter atentado
contra as ordens sociais, mas devido a “praga das mães que gastaram dinheiro e não ganharam
nada”, no dia do comício, relatado no dia 22 de junho. Como se vê. Todos os fios textuais se
cruzam, de modo a justificar e articular o relato.
Essa necessidade de tentar articular os acontecimentos fragmentários que acontecem
em seu cotidiano de mulher marginalizada, aproxima o gênero diário íntimo de gêneros
vizinhos que tratam da figura do “eu” (biografia e autobiografia). Esta situação é ainda mais
complexa, quando passamos a observar que os fragmentos articulados no Diário, é um
66

recurso que visa atender as necessidades não da leitora Carolina, no futuro; mas a um leitor
que desconhece mundo da favela. Sendo esta manobra, por sua vez, responsável por dilatar as
margens do gênero diário e tornando possível uma aproximação com o romance.
Assim, a partir desta leitura que fazemos de Quarto de despejo, torna-se possível
conferir o esforço que essa atividade exige da escritora, uma vez que, pedem-se novas
negociações no sentido de remodelar o seu trabalho. O que influi, de certa forma, até mesmo
na identidade da Carolina na ocupação dos diferentes papéis, seja enquanto autora, escritora,
narradora ou personagem; de modo a revelar ambiguidades. Assim, aos poucos, embora a
forma textual escolhida pela escritora prima pela verdade, somos convidados a fazer o
exercício de identificar as diferentes ‘Carolinas’ que ‘falam’ em Quarto de despejo, conforme
veremos mais adiante.

2.4. Escritora, autora, narradora e personagem: uma construção ambígua

Carolina Maria de Jesus é escritora, autora, narradora e personagem do diário Quarto


de despejo. Contudo, há de se ressaltar que não se trata da mesma entidade. Isto porque a
escrita, como coloca Wander Melo Miranda, ao recuperar a voz de Jarrety, “[...] não é um
vidro transparente através do qual a realidade pode ser vista, mas um fator de opacidade, um
obstáculo a ser contornado” (MIRANDA, 2009, p. 146). A escrita é atravessada de sentidos,
sobre os quais não é possível se ter controle no processo que se faz até a recepção. Como
também o é de difícil captação a realidade que vivenciamos, devido à fragmentaridade do ‘eu’
do homem contemporâneo.
Por isso, o texto, munido de escolhas, de imaginário e memória, busca recobrar as
lembranças de situações e diálogos que ocorreram no dia, na semana ou no mês, mas agora,
de modo a hierarquizar e até mesmo preencher, com o recurso da imaginação, os
acontecimentos fragmentários. Esta manobra feita pela escrita se torna responsável por formar
um conjunto coerente, capaz de eliminar os limites entre passado e presente, realidade e
ficção.
Como parte integrante desse processo, baseando-nos em Candido (1990), temos que
a personagem, entendida como produto criativo da imaginação, possui uma mobilidade na
relação entre o ser vivo e o ser fictício. O que lhe permite, consequentemente, dar respostas
mais coerentes, mais completas do que a conhecimento limitante e fragmentário que temos
dos seres, embora isto não signifique que a personagem seja mais simples. Longe disso,
67

conforme propõe o crítico, isto apenas oferece indícios do quanto a personagem se apresenta
mais lógica. Deste modo, a partir desta organicidade do raciocínio acerca do que se pressupõe
ser a personagem, Candido chega a seguinte fórmula: a personagem é igual à soma da pessoa
com a incógnita “x” (Cf. CANDIDO, 1990, p. 65) . Sendo esta uma equação importante para
pensar a condição da personagem Carolina.
Nesses termos, devemos compreender a personagem como a pessoa Carolina Maria
de Jesus, no sentido em que busca um referencial, um ponto de apoio na realidade, que é
somada à incógnita “x”. Este “x”, por sua vez, representa a liberdade da criação, da
necessidade de ir à busca de respostas que a própria Carolina, cuja identidade é objeto
referencial, não tem condições de oferecer, devido a condição fragmentária em que todo
homem está submetida.
Nas discussões de Stuart Hall (2006), a identidade é vista como fragmentária na
medida em que se mostra complexa, devido ao seu estado de constante construção e, por
vezes, até mesmo desconstrução. Conforme trecho:

De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas


dessa forma por identificações rivais e deslocantes - advindas,
especialmente, da erosão da ‘identidade mestra’ da classe e da emergência
de novas identidades, pertencentes à nova base política definida pelos novos
movimentos sociais [...]. Uma vez que a identidade muda de acordo com a
forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é
automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada
(HALL, 2006, p. 21, grifo nosso).

Com isso, a “erosão da ‘identidade mestra’” é senão, a fragmentação do sujeito, a


consciência de um “ser” que deixa de ser definido e natural, como seria a vida de um
mosquito ou de um ancinho, segundo exemplificação de Eagleton:

[...] por sermos animais históricos, estamos sempre no processo de vir-a-ser,


perpetuamente projetados para adiante de nós mesmos. Como nossa vida é
um projeto, e não uma série de momentos presentes, nunca podemos atingir
a identidade estável de um mosquito ou de um ancinho (EAGLETON, 2006,
p. 281, grifo nosso).

Trata-se de uma identidade que é construída, mas também, inúmeras vezes,


desconstruída. Uma identidade que é “ganhada ou perdida” e que, porém, nunca se chega a
um processo de conclusão.
68

A partir deste cenário é que a ficção aparece como uma alternativa para proporcionar
certo ‘alívio’ ao ser humano, na medida em que se sustenta como suporte capaz de saciar a
curiosidade sobre respostas mais completas do que a sugestiva vaga alusão que temos dos
seres. Além disso, trata-se de um suporte que permite comunicar este conhecimento. É o que
acontece quando a Carolina se põe a escrever seu diário.
O que encontramos no diário caroliniano é uma tentativa de organizar o cotidiano
caótico da favela de Canindé, de modo a fazer algum sentido para a realidade subumana
vivenciada por ela e pelos demais moradores. Trata-se de uma tentativa de buscar resposta
acerca do que é o organismo favela, de tentar traduzir aquela realidade. Mas, não é uma
atividade que faz somente para si mesma, como se poderia imaginar pela escolha do suporte
caderno, para a escrita do gênero diário íntimo; Carolina tem em foco um leitor, com o qual,
não são raros os momentos, em que se põe a dialogar, conforme trechos:

[...] Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no alcool. Se você


achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: [...] – Muito
bem, Carolina! (JESUS, 2004, p. 65, grifo nosso).

Bem: vamos deixar o Dr. Adhemar em paz porque ele está com vida mansa.
Não passa fome. Não come nas latas de lixo igual os pobres. Quando eu ia
na residência do Dr. Adhemar encontrei um senhor que deu-me este cartão:
Edison Marreira Branco (JESUS, 2004, p. 92, grifo nosso).

...Vocês já sabem que eu vou carregar agua todos os dias. Agora eu vou
modificar o inicio da narrativa diurna, isto é, o que ocorreu comigo durante o
dia (JESUS, 2004, p. 110, grifo nosso).

Além do fato de dialogar diretamente com um leitor, fica explícito, no decorrer do


diário, que não se trata de qualquer um. O texto procura saciar a curiosidade de alguém que
desconhece o espaço favela. Esta característica de Quarto de despejo não se ressalta apenas
por meio da rejeição do texto por parte dos demais moradores da favela de Canindé, ao
tomarem ciência de que fazem parte do Diário, conforme fragmento:

O João quando retornou-se disse que a reportagem havia saido. Vasculhei os


bolsos procurando dinheiro. Tinha 13 cruzeiros. Faltava 2. O senhor Luis
emprestou-me. E o João foi buscar. O meu coração ficou oscilando igual as
molas de um relogio. O que será que eles escreveram a meu respeito?
Quando o João voltou com a revista, li – [...] Retrato da favela no Diário da
Carolina [...] Li o artigo e sorri. Pensei no reporter e pretendo agradecê-lo.
(...) Fui receber o dinheiro e avisei o tesoureiro que eu estava no O Cruzeiro.
[...] Tomei o onibus e quando cheguei no ponto final o jornaleiro disse que
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as negrinhas da favela havia me chingado, que eu estava desmoralizando a


favela. [...] O João disse-me que o Orlando Lopes, o atual encarregado da
luz, havia me chingado. Disse que eu fiquei devendo 4 meses. Fui falar com
o Orlando. Ele disse-me que eu puis na revista que ele não trabalha. [...] –
Que história é esta que eu fiquei devendo 4 meses de luz e agua? [...] – Ficou
sim, sua nojenta! Sua vagabunda! [...] – Eu escrevo porque preciso mostrar
aos políticos as pessimas qualidades de vocês. E eu vou contar ao reporter
(JESUS, 2004, p. 150-151).

Além da agressividade com que os demais personagens tratavam a protagonista, por,


entre outros motivos, não apreciarem a inclusão de suas imagens ao diário, outro fator que
denota a ideia de um leitor que não pertence à realidade favela, pode ser conferido nos
mecanismos utilizados pela escritora ao compor o Diário. É possível acompanhar marcas que
demonstram o esforço da escritora na tentativa de utilizar métodos tradutórios em sua
narrativa, a exemplo do uso de metáforas, como forma de apresentar a favela de Canindé,
enquanto espaço físico, bem como, os costumes e desafios enfrentados pelos moradores, ao
seu leitor:

...Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem
luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É
o terrestre. É o atacadista (JESUS, 2004, p. 54).

Enquanto eu vestia ouvia a voz do Durvalino que discutia com um bebado


desconhecido por aqui. Começou surgir as mulheres. Elas não perdem estas
funções. Passam horas e horas contemplando. Não lembram de nada, se
deixou panela no fogo. A briga para elas é tão importante como as touradas
de Madri para os espanhois (JESUS, 2004, p. 74, grifo nosso).

[...] A cidade é o morcego que chupa o nosso sangue (JESUS, 2004, p. 159).

O próprio título dado ao livro serve como referência desse processo. Não se trata de
uma escolha feita ao acaso. “Quarto de despejo” é uma expressão que serve de exemplo da
necessidade de designar uma condição, utilizando como recurso, para tanto, o uso de uma
palavra que faz referência a outro objeto ou qualidade, mas, que estabelece com o sentido
primeiro, uma relação de semelhança. Assim, depreendemos que a favela limita-se à imagem
de um quarto, porém, não se trata do quarto destinado a abrigar a intimidade do dono da casa,
de uma visita, ou até mesmo da empregada. O quarto referido é o de “despejo”. Segundo o
Dicionário Eletrônico Houaiss (2001), a palavra despejo, significa:
70

Substantivo masculino: 1. ato ou efeito de despejar(-se); despejamento. 1.1.


ato ou efeito de livrar de estorvo, de obstáculo; desempedimento,
desembaraço. 1.2. ato ou efeito de desocupar; desocupação, evacuação.
1.2.1. Rubrica: termo jurídico. desocupação obrigatória de imóvel, por parte
do locatário, em cumprimento de sentença judicial. 2. Derivação: por
metonímia. o que se despeja. 3. Derivação: por extensão de sentido. o que
não presta e se joga fora; lixo, imundície, sujeira. 4. recinto, aposento onde
se acomodam objetos de pouco uso ou velhos; quarto de despejo, casa de
despejo. 5. ausência de pejo, de pudor; impudor, descaramento. 6. soltura de
espírito, de maneiras; desembaraço, desenvoltura, vivacidade. 7. ausência de
temor; ousadia, intrepidez, audácia.

O ‘quarto’ de Carolina e dos demais moradores da favela de Canindé, como se faz


inferir, é o espaço onde se jogam as coisas, leia-se homens, que não têm mais valor. Este valor
se perde, na medida em que o Brasil passa por reformas econômicas, no sentido em que se
mostra propenso ao processo de modernização urbano-industrial. Estas pessoas – pobres, sem
alfabetização e, na sua grande maioria, migrantes do campo ou de cidades menores que ainda
não passaram pelo processo de desenvolvimento, como é o caso de Carolina – vão à busca de
melhores condições de vida em São Paulo.
O crescimento desordenado e precário das habitações no centro urbano não foi visto
com bons olhos pelas autoridades municipais. Estas, por sua vez, sob a justificativa de
temerem que as epidemias e pestes que ali se concentravam se espalhassem para outras
localidades e atingissem outros segmentos sociais, implantaram ações de higienismo e
sanitarismo. Tais medidas consistiam, de modo geral, em exigências acerca da destruição de
cortiços e que as novas instalações fossem construídas distantes do perímetro urbano.
Sem uma política que atendesse às necessidades destas pessoas, elas foram
simplesmente ‘abandonadas’ nos morros. Como se vê, a favela, mais que um espaço para
abrigar essas pessoas que não têm mais um valor para a sociedade brasileira, também é um
lugar onde se destina o despejo de ‘estorvos’, de preferência, o mais longe possível aos olhos
dos indivíduos que compõe a cidade desenvolvida. E é esta a crítica empregada no título dado
por Carolina ao seu livro, como se faz conferir em um trecho da narrativa: “...Eu classifico
São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o
jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2004, p. 28).
Assim, neste processo de tentar comunicar o espaço favela, por meio de mecanismos
tradutórios a alguém que não pertence àquele ambiente, lançando mãos do gênero diário
íntimo; Carolina se coloca como centro de investigação, enquanto parte de um todo,
denominado favela de Canindé. Sendo esse percurso, de se autodesenhar, uma atividade
complexa, uma vez, que sempre lhe escapa algum detalhe, ou então, os contornos não se
71

ajustam. E, por ser um trabalho delicado, a narradora, em semelhança à atividade praticada


por uma artesã, se trai, ao passo em que deixa emergir detalhes de uma imagem sobreposta a
outras, por meio de processos de “pentimento” (Conf. VIANA, 1995, p. 57). Viana define
esse processo a partir de uma construção metafórica, sugerida na epígrafe de Hellman:

À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna
transparente. Quando isso ocorre, é possível ver, em alguns quadros, as
linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma
criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar
aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de
ideia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma
imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde (VIANA,
1995, p. 57).

Talvez, a se pensar na condição do diarista, a partir do processo pentimento, poderia


sugerir as inúmeras tentativas de procurar reproduzir a imagem do autor, que se reflete no
espelho. Trata-se de um exercício, que, como sugere Helman, não está livre de correções, a
partir do exercício “de se ver, e ver novamente mais tarde”. Estas imagens pinceladas por
Carolina, revelam-se múltiplas no texto, uma vez que há uma predisposição, por parte da
narradora, em se aproximar daquele ideal de intelectual alimentado pela alta sociedade, como
pré-requisito para ter direito à voz; contudo, ao longo da narrativa, o projeto criado pela
narradora deixa de cumprir este papel e, consequentemente, diferentes Carolinas são
reveladas, como se fará observar.
A narradora, embora assuma a sua identidade enquanto moradora da favela de
Canindé, em semelhança à escritora, sente a necessidade de estabelecer uma distância entre
ela e os demais moradores daquela comunidade. Distância esta também transferida para a
protagonista, em relação aos demais personagens favelados. Tal procedimento fica explícito
na tentativa de firmar determinados padrões de comportamento para a protagonista do diário,
distintos do contexto favela. A imagem que se tenta firmar para a personagem é de uma
persona que se diferencia dos demais por ser uma intelectual, na medida em que gosta de ler e
escrever.
No transcurso disso, a narradora tenta passar uma imagem de credibilidade e
seriedade para a sua protagonista. Visto, por exemplo, nos momentos em que sobrepõe o seu
ponto de vista, diante de um caso relatado, conforme trechos:

[...] Hoje é a Nair Mathias quem começou impricar com os meus filhos. A
Silvia e o esposo já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Ele está lhe
72

espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem


palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um nucleo
mais decente (JESUS, 2004, p. 10, grifo nosso).

Fui torcer as minhas roupas. A D. Aparecida perguntou-me: [...] – A senhora


está grávida? [...] – Não senhora – respondi gentilmente. [...] E lhe chinguei
interiormente. Se estou gravida não é de sua conta. A lingua delas é como os
pés de galinha. Tudo espalha. Está circulando rumores que eu estou gravida!
E eu, não sabia! (JESUS, 2004, p. 12, grifo nosso).

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer
especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda
apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu
tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos
quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não
invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas
(JESUS, 2004, p. 14).

Quando as mulheres feras invade o meu barraco, os meus filhos lhes joga
pedras. Elas diz: [...] – Que crianças mal iducadas! [...] Eu digo: [...] – Os
meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode
compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que
aqui se passa. E tudo que vocês com estas cenas desagradaveis me fornece
os argumentos (JESUS, 2004, p. 17, grifo nosso).

Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os
homens. (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever.
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo (JESUS, 2004, p. 19).

[...] Eu penso que a violência não resolve nada. (...) Assembleia de favelados
é com paus, facas, pedras e violências (JESUS, 2004, p. 45).

...Que descontentamento na corrida das mulheres. Todas queriam ser


classificadas. Eu fico só olhando. Não interfiro-me porque eu não gosto de
polemica (JESUS, 2004, p. 67).

Se observados com atenção, veremos nesses trechos destacados, de diferentes partes


do texto, basicamente a mesma estrutura: a protagonista que, embora pertença ao meio,
contrasta com as ações praticadas pelos demais favelados. Em determinados pontos da
narrativa, é possível encontrar não apenas um confronto de opiniões, mas até mesmo uma
reação de surpresa da Carolina para com os atos praticados pelas “mulheres feras”. O que
denota, em certa medida, uma tentativa de distanciamento dos moradores daquela comunidade
e, por conseguinte, uma aproximação dos ideais de comportamento postulados como ‘certo’,
pela alta sociedade.
73

Ao contrário do que possa parecer, acreditamos que a manobra feita pela narradora
para o comportamento da personagem Carolina, no sentido de imitar o comportamento
ideologicamente considerado certo, não funciona como forma de abandonar a sua causa – de
falar em seu próprio nome e dos demais marginalizados –, mas, antes, como meio de
aproximação daqueles que não detêm apenas o poder socioeconômico, mas também cultural.
Neste sentido, para aquele contexto no qual Carolina está presente, desenhar-se como uma
mulher séria, defensora da leitura, da escrita, dos direitos das crianças e que não gosta de
conversas alheias, parecia ser a única forma de se fazer ouvir pelos moradores das casas de
alvenaria. Isto é reafirmado, por exemplo, nos momentos em que também nos deparamos com
passagens no texto, tais como:

... Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem
manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros (JESUS, 2004,
p. 32).

...Os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte
quando vê o seu povo oprimido (JESUS, 2004, p. 35).

...Mas eu já observei os nossos politicos. Para observá-los fui na Assembleia.


A sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no
palacio do Governo. Foi lá que eu vi ranger os dentes. Vi os pobres sair
chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os
poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um
expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em
relação ao povo (JESUS, 2004, p. 47).

Nestes exemplos, a Carolina ainda continua a delinear uma imagem que a diferencia
dos demais favelados, a partir do momento em que se autodenomina poetisa. Contudo, aqui, a
diferença é estimulada como uma tentativa de ir em busca de uma forma de representar a si
mesma, bem como, aos demais indivíduos que compõe um grupo de marginalizados social e
culturalmente. Porém, a partir deste ponto, o poder que a Carolina se auto-intitula para ter
condições de falar ‘em nome de’, torna-se ambíguo.
Por um lado, de fato, como se viu, é necessário tomar uma distância do contexto
marginalizado e, na sequência, tentar estabelecer uma aproximação da alta cultura para se
fazer ouvir. Por outro, assim como na política, os novos caminhos Literários exigem do
escritor uma ‘verdade’ no que se fala. E Carolina é obrigada a fazer o caminho inverso, isto é,
ela precisa se integrar ao grupo marginalizado para ter autoridade no que se propõe a
denunciar:
74

Abri a janela e vi as mulheres que passam rapidas com seus agasalhos


decorados e gastos pelo tempo. Daqui a uns tempos estes palitol que elas
ganharam de outras e que de há muito devia estar num museu, vão ser
substituidos por outros. É os politicos que há de nos dar. Devo incluir-me,
porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo,
e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo (JESUS,
2004, p. 33).

...Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao


povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o
que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode
fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido.
Precisamos livrar o paiz dos politicos açambarcadores (JESUS, 2004, p. 35).

Contudo, estas não são as únicas ‘Carolinas’ que aparecem em Quarto de despejo.
Em certo ponto, ainda é possível conferir digressões comportamentais da protagonista, na
medida em que se distancia do projeto desenvolvido pela narradora que desenha uma
personagem com níveis de comportamento próximos aos idealizados pela alta sociedade. No
Diário, a personagem ‘trai’ esse projeto a partir do momento em que revela situações nas
quais não apenas ocupa um pedaço do espaço denominado favela de Canindé, mas no
momento em que interage com este espaço e com os demais ocupantes dele, e o quanto isto é
produtivo no sentido em que influencia as ações desta personagem:

...Enquanto eu estava na rua o Alexandre maltratou a mãe do soldado


Edison. Quando eu cheguei ele começou insultar-me: [...] – Negra suja.
Ordinaria. Vagabunda. Lixeira. [...] Eu não tenho paciência, lhe chinguei,
joguei-lhe um vidro no rosto. Ele fechou a janela. Abriu outra vez, eu lhe
joguei uma escova de lavar casa. Ele fechou a janela. Depois abriu e
começou descompor o soldado Edison [...] (JESUS, 2004, p. 88).

Cheguei no frigorífico. Os meninos entraram e cada um ganhou uma


salchicha (JESUS, 2004, p. 89).
O soldado Flausino disse-me que a C. era amante do pai. Que ela havia dito
que ia com pai e ganhava 50 cruzeiros. [...] Eu contei na torneira e as
mulheres disseram que havia desconfiado (JESUS, 2004, p. 102).

Esta historia das mulheres trocar-se de homens como se estivesse trocando


roupa, é muito feio. Agora uma mulher livre que não tem compromissos
pode imitar o baralho, passar de mão em mão (JESUS, 2004, p. 112).

Este é o ponto em que a personagem Carolina se modela novamente. Agora, o que


temos diante de nós, leitores, é uma mulher que no descontrole emocional briga com os
vizinhos e chega a usar da força física para se defender; é uma mulher que, apesar de todo o
trabalho, aceita esmolas, em contraste daquela que se orgulhou de não sustentar seus filhos
75

com pães de igreja; também é a mulher que chega a torneira e repassa conversas de outrem
para as demais pessoas que ali se encontram, bem como, é a mulher que, ainda na década de
1950, defende a sua liberdade sexual, enquanto parte integrante do grupo de mulheres
solteiras.
Um novo estágio de modelagem da personagem Carolina ocorre quando nos
propomos a estudar simultaneamente o livro Quarto de despejo e o livro Meu estranho diário
(1996), organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine. Tanto o texto
publicado em 1960, quanto de 1996, buscam reproduzir o trabalho manuscrito deixado por
Carolina em seu diário.
Em Quarto de despejo, conforme expresso nas folhas iniciais do livro, embora a
autenticidade do escrito seja de autoria de Carolina Maria de Jesus, reafirmado pelo nome na
capa, houve a participação de Audálio Dantas, na época, um recém-jornalista, na seleção e
edição do material. Em contrapartida, Meu estranho diário, é resultado de pesquisas
acadêmicas que tomaram por objetivo a publicação na íntegra de alguns textos dos cadernos
da Carolina, incluindo fragmentos até então não publicados:

[...] cabe esclarecer que o conjunto dos textos guardados em cadernos são
fragmentados. Os cadernos não apresentam nenhuma sequência lógica e num
mesmo volume pode-se encontrar diferentes gêneros. O estado do material
também é bem precário, faltando, em alguns casos, páginas. A ausência de
numeração dos cadernos, bem como a existência de lacunas sugerem que
podem ter ‘desaparecidos’ alguns de seus textos. De qualquer forma, um
elemento impressionante é o cuidado que ela manteve em preservar cópias,
inclusive de seu Quarto de despejo (MEIHY, 1994, p. 29).

As discussões que propomos perpassam pelas reflexões tratadas por Lejeune (2008),
no capítulo “A autobiografia dos que não escrevem” (Cf. LEJEUNE, 2008, p. 113-141).
Longe de trazer para o centro de discussão deste trabalho diagnósticos capazes de apontar a
legitimidade da Carolina Maria de Jesus enquanto escritora, ou não, de Quarto de despejo,
propomos um estudo de reflexão acerca das ‘Carolinas’ encontradas tanto no diário editado
pelo jornalista Audálio Dantas, quanto no trabalho de publicação dos cadernos da Carolina,
incluindo os fragmentos não publicados anteriormente, organizado por José Carlos Sebe Bom
Meihy e Robert M. Levine, sob o nome de Carolina Maria de Jesus: Meu estranho diário
(1996).
Esta proposta ganha sensível importância quando se leva em consideração que a
etapa de produção do texto autobiográfico pode passar por diferentes mãos, conforme
esclarece Lejeune (Cf. LEJEUNE, 2008, p. 119). No caso de Quarto de despejo, Carolina
76

Maria de Jesus é a pessoa que assume o papel de rememorar os fatos que aconteceram no dia
ou em semanas anteriores, como também, de escrever e de assinar o seu nome na capa do
livro, responsabilizando-se pelo o que é publicado. Mas também, deve-se levar em
consideração o papel desempenhado pelo repórter Audálio Dantas, enquanto aquele que
decide o que deve ser publicado e o que não deve, os ‘erros’ que devem ser corrigidos ou não.
Conforme se faz ver nas ressalvas feitas pelo próprio repórter na apresentação do diário
caroliniano:

[...] Fui o responsável pelo o que se chama edição de texto. Li todos aqueles
vinte cadernos que continham o dia-a-dia de Carolina e de seus
companheiros de triste viagem. [...] A repetição da rotina favelada, por mais
fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os
trechos mais significativos. [...] Mexi, também, na pontuação, assim como
em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E
foi só, até a última linha (JESUS, 2004, p. 3).

Entretanto, as mudanças feitas por Audálio, no papel de redator, não resultam apenas
em ‘limpezas’ do que é escrito por Carolina, mas também promovem novos sentidos no texto
caroliniano, dando uma nova identidade para a personagem. Uma identidade que se adapta à
escritora e, ao mesmo tempo, que seja bem recebida pela crítica e mercado consumidor (Cf.
LEJEUNE, 2008, p. 119). Nesse sentido, Audálio precisa equilibrar a imagem da mulher
favelada, que tem pouco estudo e leva uma vida subumana, com uma imagem da mulher que,
apesar do contexto vivenciado, supera as dificuldades, de modo a oferecer uma resposta que a
distingue dos demais favelados. Assim, constrói-se a imagem de uma Carolina que é poetisa
e, por extensão, um exemplo de heroína do ‘seu povo oprimido’.
Um exemplo do que se fala, isto é, da formação de diferentes ‘Carolinas’, encontra-
se no registro que foi escrito no dia 20 de novembro de 1958. Vejamos, na sequência, o
registro editado por Audálio Dantas e o registro recuperado pelos pesquisadores Meihy &
Levine (1996).

Quarto de despejo:

20 DE NOVEMBRO ...Olhei o céu. Parece que vamos ter chuva. Levantei,


tomei café e fui varrer o barraco. Vi as mulheres olhando na direção do rio.
Fui ver o que era. Eu estava com umas cebolas que a Juana do Binidito deu-
me porque eu dei-lhe uns tomates. Mandei a Vera guardar os tomates e fui
perguntar as mulheres o que havia no rio. [...]- É uma criança que não pode
sair do rio. [...] Fui ver. Pensei: se for criança eu vou atravessar o Tietê para
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retirá-la e se for preciso nadar eu entro na agua. Corri para ver o que era. Era
um jacá de queijo que flutuava. Voltei e fui escrever (JESUS, 2004, p. 121).

Meu estranho diário:

20 de Novembro de 1958

Dêixei o lêito as 5 horas e fui carregar agua. – Que fila! Aquilo é a fila do
inferno![...] A prutuguesa que deu-me os papeis disse-me que me conheçe
faz muitos anos. Disse-me que todos poetas ficam loucos. [...] Eu disse-lhe:
que quando percebi que eu sou poetisa que fiquei triste porque o exsesso de
imaginação era demasiado. Que examinei o cerébro no Hospital das
Clinicas Que o exame deu que sou calma. Que eu iduquei imensamente o
meu cerébro. Que não dêixei as idéias dominar-me. Que fiquei triste do
desprêso do povo pelo poeta. Mas agora estou na maturidade e não
impreciono com as filancias de quem quer que sêja. [...] Eu disse-lhe que os
brancos do Brasil ainda continuam escravisando os pretos. Uma escravidão
moral – Intimidando o preto com a prisão. [...] Que eu procuro não errar
para não ser dominada pelos brancos. Que faço os brancos ajoelhar-se aos
meus pés. Que percebi, que trabalhando eu não tinha ideias poeticas por
isso é que eu resolvi trabalhar. [...] Que eu quiz incluir-me no nucleo
artistico brasileiro Mas que não suportei a jatancia dos semi-astros do
Brasil. [...] Cheguei na favela os filhos ja estavam em casa preparei a
refeição para eles Depôis guardei as latas e os metaes e fui deitar consegui
dormir um pouco. O João limpou o fogão fez uma faxina em casa. [...] fez
café – Fiquei deslumbrada porque e a primeira vez que êle interessa pela
ordem do barraco. [...] Parece que vamos ter chuva. Levantei, tomei café e
fui varrer o barraco e o quintal e queimar o lixo Vi as mulheres olhando na
direção do rio. – Fui ver o que era Eu estava com umas cebolas que a Juana
do Biniditi deu-me porque eu dei-lhe uns tomates [...] Mandei a Vera
guardar os tomates e fui perguntar as mulheres o que havia no rio? [...] - E
uma criança que não pode sair do rio – Fui ver. [...] pensando: se for criança
eu vou atravessar o Tietê para retirá-lo e se for preciso nadar eu entro na
agua. [...] Corri para ver o que era.[...] Era um jacá de queijo que flutuava
com a onda. Voltei e fui escrever. O João surgiu dizendo-me que estava
com dor na perna e chorava (...) eu pedi o senhor Luiz para vê-lo porque êle
é enfermêiro olhou, e disse-me que não era apenes. para eu passar iodo –
Mandei o José Carlos comprar. [...] Achei que o Jose Carlos estava
demorando peguei a sombrinha e fui atras dêle lhe chingando de pernostico
que ele não prestava. Que eu ia dar-lhe uma surra ate peguei uma vara que
encontrei. [...] Encontrei com a Dona Maria do Carioca e fui quêixando-lhe
já estava enjôada dos meus filhos. Que êles não prestavam para nada [...] Eu
pensei que ele havia parado para ver a briga do nortista ordinario que
expancou uma velha semi-paralitica. A mãe da Fernanda – Ela é doente.
Mas o nortista é um animal e a pior classe que Deus pôis no mundo – Eles
com suas manias de valentia desclassifica-se no conçêito publico. [...] Os
nortistas quando vem para São Paulo esqueçe de incluir na sua bagagem,
um pouco de iducação, sêja o nortista culto ou inculto, eu procuro manter-
me a distancia [...] (JESUS, 1996, p. 82-87).
78

A última metamorfose por qual passa Carolina é o momento em que a protagonista


finalmente se aproxima do comportamento das “mulheres feras”, repudiada pela narradora e
personagem de Quarto de despejo. Talvez, a partir destes recortes, fosse possível falar na
observação do nascimento de uma Carolina ‘esquecida’ por Audálio Dantas.
De fato, Quarto de despejo abrange um maior espaço de tempo a trajetória de
Carolina Maria de Jesus. Iniciado em 15 de Julho de 1955 a 1 de Janeiro de 1960, respeitando
recortes e períodos em que se absteve da escrita. O que significa, em termos de história
socioeconômica brasileira, um período de intensas modificações, cujos resultados interferiam
diretamente na forma de vida das pessoas de baixa renda, como se faz conferir no Diário:
“[...] Antigamente, isto é de 1950 até 1956, os favelados cantavam. Faziam batucadas. Em
1957, 1958, a vida foi ficando causticante. Já não sobra dinheiro para eles comprar pinga. As
batucadas foram cortando-se até extinguir-se” (JESUS, 2004, p. 32).
Ao passo que Meu estranho diário se concentra apenas no ano de 1958, mais
especificamente, de 30 de Outubro de 1958 a 4 de Dezembro de 1958, ou seja, no período em
que Carolina se apresenta mais aflita.
Colocado sob a luz esses pontos, ainda assim, torna-se possível conferir na
construção textual dos dois trabalhos (Quarto de despejo e Meu estranho diário), elementos
fundamentais para observar a construção das ‘Carolinas’ que, em certa medida, chegam a se
contrastar quase que por completo, sendo os trechos extraídos do dia 20 de Novembro de
1958, exemplo disso.
A primeira, de Quarto de despejo, é uma Carolina mais serena, que não revela
agitação em sua escrita. A sequência narrativa parece mecânica, sem sentimentos de angústia
ou felicidade. Aqui, temos uma personagem de gestos nobres. Propõe-se a entrar no rio para
ajudar uma criança. Um rio que é descrito em outros momentos como um local sujo, usado
pelas fábricas para desprezar alimentos fora do prazo de validade.
Em Meu estranho diário, por sua vez, desenha-se uma personagem com oscilações
sentimentais extremas no decorrer do seu dia. Ela mostra alegria por saber que o filho se
preocupa com os afazeres da casa, mas também, fica irritada e chega a ser até mesmo
agressiva com os filhos por não acatarem às suas ordens no tempo desejado. A intranquilidade
também é despertada pela crise com a sua condição de poetisa e pelo modo como toca em
assuntos inflamáveis, tais quais, os julgamentos que faz dos nordestinos, as críticas aos ‘semi-
artistas’ e a relação entre pessoas negras e brancas.
79

De fato, há de se ressaltar, no entanto, que no texto editado por Audálio também


aparecem questões que expõem a opinião da Carolina a respeito dos nordestinos e a denúncia
de preconceitos raciais, todavia, são registros que não chegam a atingir tamanha
agressividade. Geralmente, o que encontramos em Quarto de despejo são construções mais
genéricas, que de certa forma, reproduzem o senso comum. Longe de ter por objetivo
amenizar a gravidade desses discursos, entretanto, por não ser a voz de apenas uma pessoa,
tais discursos ganham certa ‘leveza’ na voz da Carolina. A exemplo dos fragmentos:

[...] Depois que a favela superlotou-se de nortistas tem mais intrigas. Mais
polemicas e mais distrações. A favela ficou quente igual a pimenta (JESUS,
2004, p. 67).

...O baiano esposo de dona Zefa é meu vizinho e veio queixar-se que o José
Carlos lhe aborrece. O que eu sei é que com tantos baianos na favela os
favelados veteranos estão mudando-se. Eles querem ser superior pela força.
Para ficar livre deles os favelados fazem um sacrificio e compram um
terreno e zarpam-se (JESUS, 2004, p. 70).

[...] Mas eu não gosto de negociar com purtuguês. Eles não tem iducação.
São obscenos, pornograficos e estúpidos. Quando procura uma preta é
pensando explorá-la. Eles pensam que são mais inteligentes do que os outros
(JESUS, 2004, p. 83).

[...] Quando eu estava catando o papel surgiu o espanhol que faz a limpesa
começou a gritar comigo. Hoje eu estou nervosa e não adimito que um
extrangeiro grite comigo. [...] ...Tem uma espanhola que vai no Frigorifico
catar carne no lixo e quando vê o espanhol diz: [...] – Este non é de mim
tierra. Isto é purtuguês! [...] E tem uma purtuguesa que diz: [...] – Esta besta
não de Portugual! [...] E eu, para arrematar digo: [...] – Graças a Deus, ele
não é brasileiro! (JESUS, 2004, p. 89).

Ao contrário do Meu estranho diário, que até a própria estruturação do texto mostra-
se como um exemplo dessa tensão vivenciada por Carolina. E isto se expressa na falta de
pontuação; nas descontinuidades dos parágrafos; na escrita que acompanha a oralidade, e no
modo como um assunto é abruptamente interrompido e ligando-se, na sequência da mesma
linha, a outro assunto, às vezes, sem fazer uso de qualquer tipo de sinalização. Sendo
construções que, de certa forma, oferecem uma sensação ao leitor de acompanhar a
fragmentação e as situações simultâneas que acontecem no decorrer de um dia.
Uma explicação bem provável para essas divergências do estado de espírito da
personagem Carolina dos trabalhos em questão seja puramente comercial. Quarto de despejo
é um produto para consumo. Talvez não seja interessante, por conseguinte, um tom tão
80

agressivo para com aqueles leitores que, na sua maioria, são brancos, letrados e com dinheiro
para comprar livros.
Contudo, em termos de estruturação da narrativa, é possível perceber o quanto as
fronteiras do gênero diário íntimo, escolhido por Carolina para a escrita do seu texto,
apresentam-se flexíveis. Isto é importante ser observado uma vez que percebemos as
necessidades da escritora de transpor as barreiras de gênero, a fim de se autorrepresentar.
Sendo esta uma característica que não deve ser passada em branco, sem que as devidas
hipóteses sejam levantadas: a) trata-se de um recurso utilizado por uma mulher que não tem
escolaridade e, portanto, faz estas nuances em seu trabalho sem perceber, ou, por outro lado;
b) esta reação é sintomática de indivíduos marginalizados social e culturalmente, que buscam
o reconhecimento de suas vozes no campo literário, utilizando, para tanto, formas discursivas
que, em certa medida, indicam uma maior acessibilidade de composição.
Como vimos em Woolf (1985) e Viana (1995), o diário era um tipo textual de maior
acessibilidade às mulheres, as quais não tinham uma vida escolar desenvolvida por serem
obrigadas a cuidar de assuntos relacionados ao lar. O diário se adaptava a essas escritoras,
entre outros motivos, devido a abrangência maior e aceitação de diferentes formas discursivas
no texto. Por isso, mostravam-se mais acessível, ao contrário de outros gêneros textuais, tais
como o romance, que exige do seu escritor um leque de conhecimentos não permissivos, no
início, às mulheres, como frequentar a escola, viajar, tempo ao ócio, entre outros.
Apesar dos tempos terem mudado e Carolina ter conquistado certa independência,
ainda assim, teve que largar o estudo cedo para trabalhar; já adulta e em São Paulo, não teve
tempo para continuar seus estudos, pois precisava trabalhar para se sustentar e aos filhos;
como o dinheiro era escasso, mal dava para se alimentar, por isso, quase não tinha tempo para
o descanso, o que dirá de ir viajar. Neste contexto, nada mais lógico do que a escolha do
gênero diário.
Ao que tudo indica, embora se releve o fato de que devido aos seus dois anos de
estudo, Carolina possa não ter conhecimento dos limites do gênero textual e cometa alguns
enganos que levam a flexão do gênero diário íntimo. Ainda assim, não se pode fechar os olhos
para o fato de que Carolina faz parte do processo pelo qual a história literária brasileira e,
mesmo com o seu pouco tempo de estudo, tem sensibilidade suficiente para refletir tais
mudanças, como de fato o faz.
Diante disso, quando nos propomos a refletir o Diário, os erros ortográficos e de
concordância, bem como, a necessidade de sensibilizar os limites do gênero diário, não devem
81

ser entendidos como uma problemática do texto caroliniano, mas antes, como característica
das novas necessidades representativas que surgem no início da Literatura Brasileira
Contemporânea. Carolina é exemplo desse novo contexto em que, embora não se tenha
escolaridade, faz da escrita a forma de exigir que sua voz seja ouvida no campo literário.
Mas estas mudanças não são vistas apenas no gênero diário íntimo, Carolina, como
vimos, transita por diferentes gêneros, inclusive, chega a se ‘aventurar’ na escrita de um
romance, denominado Pedaços da fome. Como veremos no próximo capítulo desta
dissertação, o enfoque ainda recairá sobre um fato que a Carolina conhece muito bem: a fome,
contudo, a escolha do gênero exigirá da escritora uma postura diferente da de diarista. Cabe
observar como se dará este processo.
82

CAPÍTULO 3. PROBLEMAS DE REPRESENTAÇÃO EM PEDAÇOS DA FOME

Nesse meio tempo entre a fama e o fiasco, Carolina é a


personalidade da cidade rica: convidada pelos Matarazzo, por
faculdades chilenas, fotografada ao lado do presidente do Uruguai,
apertava a mão de Jânio Quadros, brigava com Carlos Lacerda e
Abreu Sodré, aparecia nas manchetes de jornais com sua fantasia
de carnaval. Resultado: quis escrever um livro sobre príncipes e
princesas e cantar numa rádio (FOLHA DE S. PAULO, 1977, p.
10).

Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada

(Manuel Bandeira, 1930)

“A representação literária é também representação política” (BASTOS, 2006, p. 92),


afirma Hermenegildo Bastos, no artigo Formação e Representação. E esta característica do
processo representativo pode ocorrer tanto na prática literária exercida na vida social, quanto,
no modo interno como é organizado, isto é, na relação que se estabelece entre personagens ou
entre narrador e personagem.
A ligação que ocorre entre a representação literária e política não é atividade comum
somente ao mundo moderno. Antes, perpassa por uma necessidade de se constituir uma
identidade própria, que só é reconhecida a partir do momento em que um grupo ganha uma
existência política. Assim, como coloca o crítico, trata-se de um processo iniciado com a
tentativa de copiar modelos literários europeus e, posteriormente, de modo mais
desenvolvido, por meio da conscientização da necessidade de uma literatura própria, diferente
da europeia; capaz de identificar um país que está em processo de construção da sua própria
identidade. Agora, no entanto, o mundo moderno já exige do processo representativo, uma
nova postura. Cabe ao processo dar conta de repensar a identidade nacional, em virtude do
debate acerca das diferenças de grupos, antes anuladas em favor de uma unidade. Mais
especificamente, o processo representativo, hoje, indica um fenômeno político de classe.
83

Mas como se desenvolve o processo representativo literário e político no gênero


romance? Sobre isso, Bastos propõe que a:

[...] lógica da eficácia estética depende de como os códigos literários são


trabalhados, reformulados, refinados, renovados; não na fidelidade aos fatos.
Por outro lado, convém perceber na afirmação de Antonio Candido que os
códigos e convenções literários estão livres da fidelidade aos fatos para
poder estabelecer outro tipo de comprometimento: estão ligados, à sua
maneira, à realidade histórica, mantendo, assim, um outro tipo de relação –
em que a não-fidelidade, ou ainda, a infidelidade aos fatos, pode ser
significativa (BASTOS, 2006, p. 103-104).

Nesse sentido, é possível entender que há uma preocupação em subverter um


modelo literário preexistente, de acordo com as necessidades de representação da matéria
local, na sua atualidade. É o que, por exemplo, fez Machado de Assis, conforme Bastos, ao
deixar de lado temas padronizados pelo Realismo – e aqui implica em falar em temas comuns
ao mundo europeu – e colocar em primeiro plano as relações sociais brasileiras em Memórias
de um sargento de milícias (Cf. BASTOS, 2006, p. 100). Contudo, conforme destacado no
fragmento, o valor estético de uma obra literária não está diretamente ligado a uma
comprovação dos acontecimentos dispostos na narrativa, mas sim, no modo como são
trabalhados. Prosseguindo com as discussões levantadas por Bastos, o “Realismo” das
matérias trabalhadas pode ser indicado não necessariamente no relato de referências precisas,
mas no modo como o escritor consegue “captar a História em movimento” (Cf. BASTOS,
2006, p. 96).
Carolina Maria de Jesus, colocando-se agora no papel de romancista, com o livro
Pedaços da fome (1963), assim como ocorreu no Diário, procurará levantar questões que
perpassam o seu contexto social, contudo, aqui, assumirá explicitamente o viés ficcional, sob
uma perspectiva que oscila entre os contos de fadas, assentado numa lógica fantasiosa e
maravilhosa, e o romance, assentado numa lógica realista, como se sabe. O ambiente ainda é o
da favela, como ocorre em Quarto de despejo. A escritora trabalha no romance, sob uma ótica
invertida, a relação entre classes sociais paulistanas, em um período que o interior brasileiro
ainda é dominado pelo coronelismo, e a capital tenta se consolidar como um lugar de
oportunidades para aqueles que se aventuram a migrar do interior, para construir suas
carreiras profissionais. O contexto é o da migração da primeira metade do século XX, no
Brasil. A literatura brasileira fala amplamente da questão: são migrantes de todas as classes
sociais, que procuram a cidade, seja a metrópole, seja a cidade média, como recurso. E são
muitas mulheres. Para ficar em apenas algumas: a Sinha Vitória, de Vidas secas (1938), de
84

Graciliano Ramos; a Virginia, de O lustre (1946), de Clarice Lispector; a própria Carolina


Maria de Jesus, do diário ora em estudo, Quarto de despejo ([1960] 2004); a Biela, de Uma
vida sem segredo (1964), de Autran Dourado; a Macabéa, de A hora da estrela (1977),
também de Clarice Lispector.
A Maria Clara Fagundes, protagonista de Pedaços da fome, também é uma migrante
que chega à cidade grande. O nome ‘Clara’ (mas também o nome Maria) é obviamente
significativo, e é a marca mais visível que a coloca em simetria com a escritora negra Carolina
Maria de Jesus. A protagonista é uma jovem branca, letrada, rica e moradora do interior.
Se a fome é o que torna Carolina infeliz, a infelicidade presumível de Maria Clara se
deve ao fato de ela não ter um namorado. Sua sorte parece se reverter ao conhecer Paulo
Lemes, um jovem da capital, que se apresenta a ela como sendo uma pessoa de posses, com
formação superior em odontologia. Após curto tempo dedicado a um namoro, conduzido sem
que a família saiba, e um casamento desastrosamente apressado pelo pai, o coronel Pedro
Fagundes (realizado para “evitar conversas”), Maria Clara resolve satisfazer a vontade do
esposo e foge com este para a capital, um dia após o casamento. A protagonista, já na capital,
depara-se com a sua nova realidade: Paulo Lemes a leva para morar num cortiço. O romance
se desdobra partindo desta complicação. O que verá o leitor é uma descida à favela desta
moça rica e branca.
Com Pedaços da fome, Carolina Maria de Jesus obedece a um projeto: põe de lado o
gênero diário, que desenvolvera até então (como vimos com duas publicações: Quarto de
despejo e Casa de alvenaria) em favor do gênero romance. A escolha do gênero ficcional faz
sentido: a escritora coloca uma jovem da alta sociedade do interior para descobrir as dores do
marginal num cortiço – que, de certo modo, é a própria favela. Nesse sentido, a nossa hipótese
é que Carolina, agora morando numa casa de alvenaria, tendo saído da favela, procura se
adequar para se fazer ouvir por meio do que escreve.

3.1. O projeto de Carolina em Pedaços da fome

Pedaços da fome (1963), único romance publicado por Carolina Maria de Jesus, é
um livro que tem como temática, conforme sugerido no título, a fome daqueles que levam
uma vida subumana na capital paulista. Mas aqui, diferente do Diário, o enfoque não é a vida
de Carolina ou de quaisquer moradores, digamos, ‘genuínos’ da favela. A escritora – como
vimos, uma mulher de aproximadamente quarenta e nove anos, negra, ex-moradora de favela,
85

e, a partir desta última informação, vale lembrar, marcada pelas diversas formas de sofrimento
– aparentemente se sente à vontade para falar sobre a vida e o modo de pensar de Maria Clara
Fagundes, uma personagem jovem, de dezenove anos, branca, rica e, possivelmente, livre de
maiores sofrimentos que não os do amor romântico de adolescente.
As escolhas da escritora ao trabalhar com um gênero ficcional, depois de já ter
publicado dois diários, Quarto de despejo: diário de uma favelada ([1960] 2004) e Casa de
alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), bem como, a inversão do enfoque dado à
caracterização da protagonista, são fenômenos que não ocorrem por acaso. Isto porque
acreditamos na possibilidade de estarem vinculadas ao novo contexto social vivenciado por
Carolina.
A partir do final da década de 1950, Carolina já começa a ter o seu reconhecimento
como escritora o que também leva a modificações na vida pessoal desta mulher:

Em 1958 aparece a primeira reportagem sobre seu diário no jornal Folha da


Noite. No ano seguinte, é a vez da revista O Cruzeiro de divulgar o retrato da
favela feito por Carolina. Era o aceno do sucesso e da popularidade. O
abraço viria em seguida, a partir de 1960 (VOGT, 1983, p. 205).

O início da década de 1960, mencionado no trecho acima como período de glória


para a escritora, faz referência ao momento em que foi publicado o diário Quarto de despejo e
o fato da obra ter obtido boa receptividade por parte dos leitores e crítica. Isto fica evidente
quando são levantados alguns números: no total, foram vendidos dez mil exemplares na
primeira semana do lançamento, o Diário passou por nove edições, houve tradução do livro
para treze línguas e circulou por quarenta países. Somado a estes dados, a repercussão do
livro, mencionado principalmente em Casa de alvenaria, possibilitou que a autora tivesse
contato com muitas autoridades, participasse de mesas de debates sobre o desenvolvimento
econômico do país, além disso, a repercussão de Quarto de despejo foi de extrema
importância para que as questões tratadas no livro servissem de subsídio para discussões
propostas nos bancos acadêmicos – ainda que, neste momento, tenha servido apenas como
objeto documental e não literário –, e para que recebesse prêmios nacionais e internacionais
pela sua capacidade crítica.
Também podemos entender o sucesso do início da década de 1960, como o fato da
Carolina ter finalmente conseguido sair da favela de Canindé, após viver ali por nove anos, e
ir morar, inicialmente, em uma pequena casa emprestada, na cidade de Osasco (Cf. JESUS,
86

1961, p. 44-48). E, posteriormente, com a compra da sua casa de alvenaria, ainda em


dezembro deste mesmo ano (Cf. JESUS, 1961, p. 100-101).
Todos esses fatos foram decisivos para que Carolina rompesse o vínculo com a
favela de Canindé, tanto pela distância espacial, quanto, por assim dizer, emocional. Esta
última se explicita, por exemplo, no relacionamento inflamado pela repercussão do livro e a
saída da Carolina da favela, conforme passagem de Casa de alvenaria:

30 de agosto Levantei as 6 horas, preparando as roupas e fazendo trouxas


para zarpar da favela. Fiz café e fui comprar pão. [...] Êle [Paulino de Moura,
dono da livraria Boulevard] trouxe uns livros para eu autografá-los. Eu
estava autografando quando chegou o reporter Gil Passarelli, das “Folhas”,
para fotografar-me porque eu vou mudar. O senhor Paulino auxiliou-me,
retirando as gavetas pela janela, para ser filmada e fotografada. O Gil
despediu-se porque a reportagem ia sair a tarde. Continuei autografando os
livros, quando chegou o senhor Pompilio Tostes que veio filmar-me. Êle
filmou o barracão por fora. Depois foi filmar o interior, mas não tinha
claridade. O João subiu no telhado para retirar umas telhas, para penetrar
claridade. [...] ... Os jornais já havia noticiado que eu ia mudar para Osasco
as 14 horas. Na favela os curiosos já estavam presentes e as crianças
rondando o barracão. Não vieram auxiliar-me. A D. Alice disse-me que os
meninos haviam mechido nos meus livros. Xinguei-os. Respirei aliviada
quando o motorista chegou. O senhor Milton Bitencourt. Êle ficou receioso
quando viu os favelados aglomerados ao redor do barracão. Pedi que fosse
carregado os cacarecos para o caminhão. [...] Êle [João] subiu no telhado e
caiu e feriu a perna. Foi para a Central de Policia fazer curativo. [...] A D.
Alice auxiliou-me a carregar os cacarecos. Entreguei-lhe o barracão e
entramos no caminhão. Eu e os dois filhos [...]. A Meyri surgiu e disse: [...] –
Vê se não esquece dos pobres. [...] A Leila surgiu andando com dificuldade.
Veio para instigar os favelados. O motorista saiu com a maquina acelerada.
Começaram a atirar pedras. A Leila agitou-se, pegou pedra e atirou dentro
do caminhão. Eu olhava as pedras e a direção com receio de atingir os olhos
da Vera e do José Carlos, que já estava ferido com as pedras. Que confusão!
Eu não sei de onde surgiu tantas pessoas para presenciar a minha partida. A
Chica e a Nair xingavam-me e diziam: [...] – Você vai embora para não
apanhar! [...] Eu disse-lhe: [...] Estou aqui há 12 anos e você nunca
espancou-me. Pode espancar. Eu vou residir em Osasco. O meu endereço é
Rua Antonio Agu 833. O Audálio e os outros jornalistas estavam no meio
dos favelados. Eu temia uma agressão. Despedi só da D. Alice e da D.
Eunice. O Audálio queria que eu despedisse dos favelados pegando-lhes nas
mãos, gesto que eu reprovei. [...] Eu olhava os meus filhos sujos e com os
rostos feridos pelas pedras dos favelados. Era preciso sair da favela (JESUS,
1961, p. 45-47).

A partir deste momento, a vida da Carolina passa por modificações, das quais, a
favela deixa de ser o seu centro gravitacional. De fato, a escritora ganha popularidade com um
livro que fala sobre as questões da favela de Canindé. Em praticamente todas as
oportunidades de debates que teve era sobre a realidade dos favelados. Porém, há de se
87

ressaltar que Carolina, embora resida em uma casa simples, não fala mais de dentro da favela
e passa a ter contato com diversas pessoas de segmentos sociais pertencentes à alta sociedade.
Trata-se de uma voz que agora trava seus diálogos na “sala de visita” e fala diretamente, sem
a intermediação da escrita, antes feita pelo Diário, gênero que insistia na presença constante
de um leitor não favelado.
São fatores que, de certa forma, acreditamos, exigirão da escritora uma nova postura,
dentro deste novo habitat em que se emaranha, que é a sociedade em que vive a elite
econômica e letrada brasileira de seu tempo, e na qual Carolina penetra, não sem algum
desconforto. O esforço da escritora é de adaptação – nos vários sentidos propiciados pela
expressão. Isto pode ser entrevisto em seus trabalhos escritos após a publicação e o sucesso de
Quarto de despejo. De fato, Carolina “experimenta”, nas obras que se seguem e é possível ver
uma trajetória de distanciamento da favela.
Em Casa de alvenaria (1961), como vimos no capítulo 1, o que se encontra é algo
parecido a uma prestação de contas àqueles que torciam por uma superação da vida que
Carolina levava na favela. Vemos a escritora, protagonista da história que narra, como na obra
inaugural, Quarto de despejo; também vemos a forma do diário comandando a fatura da obra;
além disso, também está presente ali a escritora que visa o público de classe média comprador
de seus livros. Mas o título não engana: agora aquele leitor de classe média fala com uma
escritora que, aos poucos, parece se “despir” da favela. Uma escritora que quer reafirmar seu
novo lugar de enunciação: a cidade em que, diga-se, ainda não se encontra plenamente à
vontade: “Agora eu estou na sala de visita. O lugar que eu ambicionava viver. Vamos ver
como é que vai ser a minha vida aqui na sala de visita” (JESUS, 1961, p. 48).
Materialmente falando, Carolina é uma nova mulher. Mora em casa de alvenaria,
frequenta como diz a “sala de visita”, é artista que publica e vende milhares de livros,
frequenta as universidades como palestrante, vai às compras, entre outros. Contudo, cabe a
pergunta: Carolina é agora uma nova escritora?
Assim, a sensação de que ela quer mostrar-se uma nova escritora a seus
interlocutores se adensa com a publicação do livro seguinte, Provérbios (1963). Neste livro, a
favela dá lugar ao genérico e abstrato de máximas sobre a vida humana em geral. Nada dos
temas explícitos sobre a favela que se via há apenas três anos antes, em Quarto de despejo. O
novo livro toma como proposta o uso de frases curtas de efeito moral para se pensar o
comportamento do homem, entendido genericamente. De fato, o leitor está próximo dos dois
sentidos que estão na base do conceito “provérbio”, a saber, (a) “frase curta, geralmente de
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origem popular, frequentemente com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito
a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p.ex.: Deus ajuda a quem madruga)”;
(b) “na Bíblia, pequena frase que visa aconselhar, educar, edificar; exortação, pensamento,
máxima” (Cf. HOUAISS, 2001, CD-ROM).
De fato, este trabalho de Carolina está muito próximo daquilo a que se chama
provérbio bíblico, sobretudo pelo fato de ser tratar de “uma coleção de provérbios literários e
poemas de sabedoria” (WILLIAMS, 1997, p. 288). O provérbio bíblico está ligado ao mito: o
ponto comum entre ambos é que, de alguma forma, colocam “seus respectivos temas fora do
tempo” (WILLIAMS, 1997, p. 287). Como no mito, o provérbio enuncia uma verdade
inaugural, anterior aos “inícios” da vida da comunidade. Por sua vez, há também uma
semelhança entre o ritual e o provérbio: “ambos representam um presente ideal que sempre
ressurge segundo um modelo específico do mundo” (WILLIAMS, 1997, p. 287). Como no
ritual, o provérbio tem em mente um conjunto de comportamentos considerados ideais e
modelares.
Deste modo, o mito está ligado à noção de um tempo não histórico ou anterior à
história, mas que dá origem ou deve dar origem ao propriamente histórico; O ritual está ligado
às noções de modelo e de ideal, apresenta-se no ritual a forma ideal e modelar da comunidade
agir. Eis então o provérbio: algo ideal e não real; algo não histórico, mas algo que deve
interferir no real e no histórico – no “aqui agora”. Nesse sentido, o provérbio, por ser palavra
do sábio e ser transmitidos pelos anciãos, está preso ao mundo tradicional (Cf. WILLIAMS,
1997, p.286). De fato, no contexto bíblico, o provérbio pertence à sabedoria tradicional que,
“das ideias básicas às formas literárias, afirma a ordem” (WILLIAMS, 1997, p. 286). Outra
característica do provérbio é seu caráter assistemático: “ele não impõe [...] uma visão
sistemática da ordem” [...] “as situações são concebidas em sua particularidade e não
metodicamente organizados em um sistema de abstrações” (WILLIAMS, 1997, p. 286). De
fato, a coleção de provérbios segue caso a caso, sem uma ordenação aparente de assuntos e
com poucas articulações. Essa contradição entre filiação à ordem e o caráter assistemático da
forma do provérbio está explicitada na sua forma fragmentária.
O texto dos Provérbios de Carolina Maria de Jesus está ancorado na tradição e
poucas vezes veremos a Carolina rebelde de Quarto de despejo inscrita neste texto.
Com efeito, as “ideias básicas” presentes nos provérbios carolinianos são também
(em sua maioria) de afirmação da ordem, tanto quanto, sua forma literária, o uso de imagens e
sonoridades, etc., são também afirmação de uma certa “ordem literária”.
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Abaixo, seguem alguns exemplos, com alguns comentários para que tenhamos noção
de como o típico provérbio caroliniano pode ser descrito pelas características que também
descrevem os provérbios bíblicos que se destacou acima:
“O inculto rico é fel, o culto rico é mel” (JESUS, 1963, p.12) – note-se aqui a
sonoridade das rimas simples que afirmam a ordem literária como dada.
“O mundo é um salão de baile onde os humanos dançam a música chamada vida e
não apertam o passo” (JESUS, 1963, p.12) – note-se o uso das imagens (metáforas)
justapondo mundo/salão de baile e seres humanos/dançarinos; note-se, alem disso, o caráter
abstrato: aqui não se fala de Brasil ou São Paulo, fala-se do “mundo”; não se fala deste ou
daquele indivíduo singular ou específico, fala-se do genérico “ser humano”.
“A mulher honesta é 1000; a mulher adúltera é 0000 – não tem unidade” (JESUS,
1963, p.13). Aqui o genérico abstrato desconhece o histórico não se fala da mulher do século
XX especificamente: fala-se de qualquer mulher, de qualquer tempo; o sentido moralista que
replica e universaliza a ordem patriarcal é recorrente nos textos dos Provérbios carolinianos.
Adepta da “elegância” e da “decência”, ou, dito de outro modo, da adesão entre o
ético e o estético, Carolina situa modestamente a ambição de seus Provérbios, como escreve
no Prólogo:

Espero que alguns de meus provérbios possa auxiliar alguns dos leitores a
reflexão. Porque o provérbio é antes de tudo uma advertência em forma de
conta-gôtas, já que nos é dado a compreender mútuamente para ver se
conseguimos chegar ao fim da jornada com elegância e decência (JESUS,
1963, p. 7, grifos nossos).

Na verdade, se pensarmos que quem escreveu os provérbios bíblicos, ao menos


conforme a lenda, foi Salomão (Cf. WILLIAMS, 1997, p. 289), temos uma Carolina que tenta
se igualar ao sábio-rei-poeta bíblico. Não é pouco.
Assim, mais do que uma Carolina adaptada, temos uma Carolina em mutação,
empenhada num esforço de adaptação, com dicção de quem fala do lugar da “ordem” e da
“sabedoria”.
Porém, o esforço de adaptação torna-se mais evidente com Pedaços da fome (1963).
O livro parece ter sido produto de uma das maiores metamorfoses da Carolina escritora – de
fato, com ele, Carolina pretende se tornar ficcionista e romancista. A transformação estava em
vias de se consolidar.
90

Se antes Carolina se dedicou ao diário e à poesia, gêneros socialmente tidos como


menos influentes, seja pela extensão seja pelo prestígio social, agora se permite usar um
gênero consagrado, reservado durante séculos a leitores e escritores das classes burguesas.
Este é o momento em que, embora os resultados das vendas de livros não tenham sido
favoráveis, deixa de lado os gêneros menos influentes para falar a partir de um gênero
reconhecido pela alta sociedade: o romance. Não à toa, o tema também vem reafirmar esta
hipótese, uma vez que exige para si a autoridade de falar sobre uma realidade que ela
presumivelmente domina, por agora frequentar a “sala de visita”; por ter saído da favela.
Nesse sentido, devemos introduzir as seguintes perguntas: por que Carolina, recém-
saída da favela, se põe a representar uma personagem tão diferente dela própria, a
protagonista de Pedaços da fome, Maria Clara, uma mulher branca e rica? Por que recorrer a
um gênero tão representativo das classes econômica e culturalmente altas, como o romance?
Marthe Robert (2008), ao reconstruir os caminhos percorridos pelo gênero romance
até alcançar a importância que possui hoje como gênero, compara o comportamento do
romance ao de um parasita, uma vez que este gênero depende de outras formas escritas e da
própria realidade para sobreviver. Contudo, embora dependa da realidade, o romance não
mantém com aquela (a realidade) vínculos de obrigatoriedades. Diz Robert:

[...] Quanto ao mundo real com quem [o romance] mantém relações mais
estreitas que qualquer outra forma de arte, permite-se-lhe pintá-lo fielmente,
deformá-lo, conservar ou falsear suas proporções e cores, julgá-lo; pode até
mesmo tomar a palavra em seu nome e pretender mudar a vida
exclusivamente pela evocação que faz dela no seio de seu mundo fictício. Se
fizer questão, é livre para se sentir responsável por seu julgamento ou sua
descrição, mas nada o obriga a isso: nem a literatura nem a vida pedem-lhe
contas da forma como explora seus bens (ROBERT, 2008, p. 14).

Além da falta de vínculos de obrigatoriedades com a realidade, deve-se ressaltar que


este gênero não é capaz de tocar esta realidade. A sua relação com ela se estabelece a partir do
“desejo real de mudá-la”, conforme propõe a estudiosa no seguinte fragmento:

[...] embora a realidade lhe seja [ao romance] para sempre inacessível, ele a
toca, apesar disso, sempre num ponto decisivo, [ele] figura o desejo real de
mudá-la.[...] de toda forma, ele nega a realidade empírica em nome de um
sonho pessoal que acredita possível realizar graças à mentira e à sedução
(ROBERT, 2008, p. 28-29).
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Desta forma, entende-se que o romance subverte a realidade em nome de um sonho


pessoal do romancista. A realidade passa a ser mudada quantas vezes forem necessárias no
sentido de contestar hierarquias e de propor mudanças na própria biografia do sujeito
“fazedor” de romances, bem como, do grupo que compartilha tais desejos. O romance exige
para si um espírito libertador, que renega qualquer tipo de amarras sociais tradicionais e
irreversíveis. Eis o gênero apropriado à mulher-escritora Carolina Maria de Jesus.
Neste contexto, qual deveria ser o perfil da protagonista de um romance como Pedaços
da fome? Nada mais natural do que imaginar uma protagonista negra (assim como a escritora)
para Pedaços da fome, talhada para desfrutar da vida oposta à levada por Carolina enquanto
aquela que viveu na favela. Mais explicitamente: por que a protagonista de Pedaços da fome
não é uma mulher negra – por que a escritora escolhe uma mulher branca e rica para ser
protagonista da sua primeira obra ficcional depois da consagração?
Sendo assim, seria, no mínimo, coerente imaginar para esta narrativa uma personagem
que, à imagem de Carolina, tivesse a oportunidade de vida diferente da vivenciada pela
escritora. A se pensar nos moldes dos trabalhos apresentados em seus diários e até mesmo
neste romance, é curioso encontrarmos em Pedaços da fome uma personagem não negra, “que
não sabe o que é sofrimento” (Cf. JESUS, 1963, p. 29), e que não tem ciência das dificuldades
enfrentadas pelos favelados; que sempre teve a mesa farta todos os dias e uma casa
confortável, com direito a um “quarto construído especialmente para ela” (JESUS, 1963, p.
31).
Uma possível resposta a estas questões poderia ser encontrada na tensão entre realidade
e ficção presente naquele momento.
O romance caroliniano é explicitamente uma ficção. Em vários momentos somos
convidados a fazer o mesmo pacto que é realizado quando lemos a expressão “Era uma vez”
no início dos contos de fadas. Como neste, a escritora procura marcar esse posicionamento
pela forçosa ligação que procura estabelecer com os contos maravilhosos. De fato, aspectos da
estrutura lembram a de um conto de fadas: Carolina toma como base do romance a ideia de
uma princesa que tem tudo, mas, mesmo assim, sente uma tristeza enorme, até encontrar o seu
príncipe, que é responsável por “salvá-la” daquela situação inicial de tristeza. Diz Maria Clara
logo nas primeiras páginas do romance: “- E eu... quando será que vou encontrar o meu
príncipe encantado?” (JESUS, 1963, p. 27).
Este sonho ingênuo se choca brutalmente com a realidade de Carolina. Se Maria Clara,
a personagem, sonha com um enredo romântico para sua vida, a autora/escritora Carolina
92

Maria de Jesus, enquanto configura seu romance, tem plena consciência do que são os
verdadeiros sonhos de uma mulher como ela própria. Em Quarto de despejo, vemos um ótimo
exemplo dos sonhos de Carolina:

Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha
banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario da
minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito
ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa
para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga,
batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade
amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do
rio Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açucar porque ontem eu saí e
os meninos comeram o pouco que eu tinha (JESUS, 2004, p. 35).

Mesmo vivenciando em um curto sonho a fantasia de mesa farta (como em todas as


refeições da personagem Maria Clara, quando ainda morava na casa de seus pais) a sensação
de Carolina é de uma “noite horrível”, porque aquela realidade não lhe pertence, não é a que
ela vai encontrar quando acordar. O sonho de fartura é pesadelo.
A realidade plena vivenciada neste sonho não está vedada somente à Carolina, mas a
uma grande parcela de indivíduos que não tiveram sucesso na migração para os centros
urbanos brasileiros que, por sua vez, tentavam se firmar enquanto economia industrial nos
anos de 1950 e 1960. Neste contexto, nada mais coerente do que imaginar para uma favelada,
mãe solteira de três filhos e miserável, como era o caso de Carolina, vivenciar esses
momentos de fartura apenas em sonhos breves, como de fato aconteceu. Tal cena, só pode ser
descrita se for para provocar o ‘choque’ do despertar imediatamente posterior. Se for descrita
como realidade cotidiana, acaba se chocando com a vida real fora das páginas do romance; se
for descrita como realidade cotidiana, será fatalmente acusada de idealização inverossímil.
A partir disso, ficamos próximos de uma resposta à questão acima, isto é, por que
Carolina não usa as prerrogativas do romance – como vistas em Robert – para, subvertendo a
realidade, impor ao romance uma mulher negra e favelada que realize seu sonho? O trabalho
de realização deste sonho via romance seria gigantesco e fadado ao fracasso, porque uma tal
realização ficcional não encontraria nenhum vestígio que a amparasse na realidade do Brasil
dos anos de 1960, período em que Carolina escreve. A vida real de Carolina não é exceção, ao
contrário, é a regra de seu tempo. Seu sonho só pode ser curto e assinalado previamente como
sonho, senão será acusado de fantasia ingênua.
Assim, salta aos olhos as diferenças entre escritora e protagonista. Há uma barreira
social e econômica; há uma falta de identificação entre escritora e protagonista. Isto acontece,
93

possivelmente, porque antes de pousar a caneta sobre o papel, Carolina, apesar de ter certo
que Pedaços da fome seja um gênero ficcional, sabe também que a forma representativa
institui um modo de poder. Como visto em Bastos (2006), a nova fase por qual passa o
processo representativo, exige do romancista uma interação do seu texto com a História social
brasileira, neste caso, do início da década de 1960.
O início dos anos de 1960 ainda se encontrava sob o entusiasmo de um Brasil que se
mostrava economicamente promissor, no governo de Juscelino Kubitschek, referente ao ano
de 1956 a 1961. Período este em que JK trazia como slogan “cinquenta anos em cinco”, cujo
sinônimo de progresso se referia ao desenvolvimento industrial nos grandes centros urbanos,
sobretudo em São Paulo. A esta proposta governamental, estava ligado um processo de
modernização influenciado pela economia norte-americana, o que impulsionou a mudança de
comportamento e da necessidade de consumo por aqueles que habitavam os grandes centros
urbanos.
Todavia, por mais que houvesse um contexto promissor, os centros urbanos não
estavam preparados para receber, no sentido de instalar e empregar, uma grande massa
populacional vinda do campo e de cidades menores. O que, em certa medida, determinou a
marginalização espacial, econômica e social destas pessoas, como é o caso da própria
Carolina Maria de Jesus. Isto significava a formação de uma sociedade marcada por um fosso
quase intransponível de diferenças sociais, em um mesmo ambiente, que é o ambiente da
metrópole. Neste espaço, o fosso social se torna a cada dia mais intransponível – o que faz
com que a atividade de configuração da ficção um esforço gigantesco. De fato, se quiser
mostrar a vida como ela deveria ser, isto é, sem fome, Carolina deveria escrever uma ficção
científica, localizada num paraíso extraterreno (ou algo parecido), não um romance situado no
Brasil, muito menos na cidade de São Paulo. Mas é isso que ela acaba fazendo.
A situação de diferença entre as classes sociais brasileiras ganham um peso ainda
maior, quando singularizamos a forma de marginalidade a qual Carolina está submetida.
Trata-se, de um indivíduo triplamente subordinado ao sistema social brasileiro de seu tempo:
Carolina é subordinada por ser mulher, pobre e negra (Isso, claro, não impede que, tomando
consciência disso, Carolina, se rebele contra este estado de coisas e se torne exceção, como se
sabe).
Estas são constatações que pesam sobre seus ombros no momento de se fazer uma
ficção verossímil. É uma tarefa que exige muito do romancista para se fazer coerente na
escolha de colocar o protótipo de uma mulher negra no papel de quem tem o poder econômico
94

e ideológico no período em que Carolina escreve. Neste sentido, torna-se uma decisão
incabível criar uma personagem negra e socialmente marginalizada, para assumir o papel da
princesa dos contos de fadas, em comparação ao contexto que Carolina obrigou-se a
enfrentar:

[...] Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu


pensei no Casemiro de Abreu, que disse: ‘Ri criança. A vida é bela’. Só se a
vida era boa naquele tempo. Porque agora a epoca está apropriada para dizer:
‘Chora criança. A vida é amarga’ (JESUS, 2004, p. 32).

Assim, é possível imaginar que este viés de pensamento tenha pesado na decisão
(também corajosa) da escritora em deixar de lado uma personagem negra/miserável e escolher
uma personagem branca/rica, para ser protagonista do romance.

3.1.1. Relação entre as pessoas do romance (autor, narrador e personagens)

Feita a escolha, os problemas de configuração parecem saltar aos olhos, mal o leitor
começa a ler o livro. Um dado inicial: apesar da enorme distância sócio-cultural-econômica
entre a escritora e a personagem de Pedaços da fome, a estratégia narrativa deixa evidenciar
uma aproximação entre ambas, no sentido de que a narradora tem total controle do que se
passa na narrativa, inclusive sobre o que se passa na cabeça dos seus personagens. Trata-se de
uma narradora onisciente.
Na trama, temos a oportunidade de conhecer todo o contexto das relações
interpessoais as quais Maria Clara se envolve direta ou indiretamente no decorrer da história.
De modo resumido: somos informados sobre o tipo de relação que têm os pais da protagonista
e destes, com a filha; a relação do coronel Pedro Fagundes com os seus submissos, incluindo
autoridades locais; a relação de Maria Clara com Paulo Lemes; de Paulo Lemes com os
moradores do cortiço e com a família rica.
Nesta linha, é dado também ao leitor conhecer o tipo de relação que se estabelece
entre narradora e protagonista. Um aspecto que marca a distância entre Maria Clara e a
narradora que, por assim dizer, acompanha-a, é o contraste que se estabelece, de um lado, pela
ingenuidade da personagem, que acaba se tornando objeto nas mãos dos demais personagens
e da própria narrativa; e, do outro lado, a posição de extrema subjetividade da narradora, que
se coloca com total controle da história que narra.
95

Neste quadro, entretanto, o leitor pode verificar o nascimento de uma forma de afeto
da narradora para com sua ‘criatura’. E isto fica explícito nas marcas textuais deixadas pela
narradora a cada reviravolta na vida da personagem. Como se faz verificar nos seguintes
trechos:

[...] Paulo olhou [...] por todos os lados e não vendo ninguém tomou-a em
seus braços e beijou seus candidos lábios murmurando: ‘Maria... Maria...
Maria Clara meu doce amor’. Apertou tanto a jovem que lhe embargou a
respiração deixando a pobre moça com a mentalidade confusa e empolgada
com aquelas carícias (JESUS, 1963, p. 36, grifo nosso).

Paulo já sabia que Maria Clara era filha do Coronel. E que êle tinha jagunço.
Mas a pequena estava gostando dêle e ninguém rejeita o afeto de uma
menina rica. Resolveu despedir-se antes das dez horas (JESUS, 1963, p. 45,
grifo nosso).

- Êle [Paulo] dormia no albergue, ela [a tia rica, Dona Raquel] ficou com dó
e deu isto aqui para êle morar. Não espere nada dêste traste de homem. Ele
há de ser um reboque na tua vida. É melhor a senhora ir praticando no corte
e costura. Se a senhora não trabalhar há de sofrer muito, (comentário êste
feito com escârnio que feriu fundo a pobre Maria Clara) (JESUS, 1963, p.
81, grifo nosso).

“Pobre moça”, “pequena”, “pobre Maria Clara” – há um afeto nestas palavras que a
narradora não esconde.
Maria Clara sempre é referida como uma pessoa frágil, pequena, digna de piedade
pelos infortúnios da vida. Ao mesmo tempo em que essas marcas textuais expressam o sinal
de afeto estabelecido entre narradora e personagem, podem indicar, por sua vez, um desfoque,
intencional ou não, da lente com que Carolina Maria de Jesus ‘olha’ para os seus personagens,
enquanto arquétipos de pessoas comuns com as quais a escritora tem contato.
Para o primeiro caso, como um sinal de aproximação entre a narradora e a Maria
Clara, fica evidente esta tentativa até mesmo no momento anterior ao encontro com Paulo
Lemes. Isto significa dizer, que a narradora demonstra afeto por Maria Clara, até mesmo,
quando esta ainda era rica e menosprezava as pessoas, bem como, não dava o devido valor às
coisas acessíveis ao seu mundo, como um prato de sopa (Cf. JESUS, 1963, p. 85-86). Os
comportamentos de Maria Clara eram tratados com complacência, sem julgamentos. De certa
forma, é como se os seus erros fossem perdoados, em função do que a aguardava no futuro
próximo, mas também, eram perdoados pela tristeza que a dominava naquele momento,
devido ao peso do seu sobrenome:
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Recolhida nos seus aposentos, construído especialmente para ela, Maria


Clara evocava o seu passado na escola, com grande ressentimento. Era
considerada a melhor aluna da classe. Se errava nas lições não era castigada.
Era aprovada em tudo. Reinava na classe e nunca foi castigada e recebia as
melhores notas. Ninguém mencionava seu nome. Dizia: ‘A filha do coronel’.
Quando atingiu a juventude com seus sonhos deslumbrantes, a reserva com
que lhe tratavam foi magoando-lhe profundamente. Ninguém ousaria tocar-
lhe. A filha do coronel era uma boneca de porcelana (JESUS, 1963, p. 21-
22, grifo nosso).

Ainda que o trecho aponte para certa repulsa da protagonista em ser tratada com
excepcionalidade, “por ser filha do coronel”, entre outras referências possíveis, parece que
estamos aqui no ‘reino dos estereótipos’. Carolina parece buscar sua protagonista num
romance de Macedo ou de Alencar, e não numa pretensa realidade que eventualmente pudesse
observar.
A visão é, por assim dizer, desfocada. A escritora constrói em Pedados da Fome
perfis sociais, propositalmente ou não, a partir de (pré)conceitos oriundos do meio social e
refletidos nos folhetins que assistiu nas fitas de cinema ou leu na literatura romântica a qual
tanto gostava.
Assim, o leitor se vê diante de uma mulher rica que é descrita como frágil, uma
“boneca de louça”, que deve ser poupada ao máximo das desventuras comuns ao mundo.
Criada sob a tutela dos pais, Maria Clara também pode ser descrita como uma pessoa mimada,
pois, além de ser a única herdeira de pais ricos, ainda tem todos os seus desejos, passíveis de
ser comprados com dinheiro ou com o poder do sobrenome Fagundes, realizados. E, por
último, trata-se de uma jovem prepotente, à medida que sabe desfrutar do peso do seu
sobrenome e isto fica explícito, por exemplo, no primeiro encontro com Paulo Lemes, quando
resolve acompanhá-lo a uma praça que, por sinal, recebe o nome do seu pai, o Coronel Pedro
Fagundes:

[...] o olhar de Paulo perpassava... [...] – Aqui pode-se andar sem atropelos.
[...] Maria Clara tinha a impressão que estava andando no ar, seus
pensamentos estavam inestros igual ao balão quando atingem o cimo. [...] –
Nós temos o nosso banco aqui no jardim. [...] E Maria Clara dirigiu-se para o
local onde estava o seu banco. [...] Dois senhores que estavam sentados
olhavam para ela e retiraram-se sem protestar. Paulo leu o que estava no
banco: ‘Coronel Pedro Fagundes’. E perguntou-lhe: - Quem é o Coronel
Pedro Fagundes? [...] – É meu pai. [...] – Porque é que aquêles dois senhores
deixaram o banco sem protesto? [...] – São empregados do papai. [...] Sendo
empregados de teu pai são teus empregados também (JESUS, 1963, p. 33).

Ou ainda, quando a situação se repete no dia seguinte:


97

[...] Chegaram ao jardim. Dois senhores estavam sentados no banco. [...] –


Vamos noutro banco, deixemo-los em paz. [...] – Não, eu quero sentar-me no
mesmo lugar. [...] Paulo não apreciava os debates, calou-se. Maria Clara
aproximou-se e disse-lhes: [...] – Eu quero sentar-me neste banco. [...] Eles
olharam. Era a filha do coronel, levantaram e saíram do jardim (JESUS,
1963, p. 41-42).

A praça, apesar de pública, era um bem desfrutável preferencialmente por aqueles


que foram homenageados pela própria existência da praça. Isto fica evidente na passagem em
que Maria Clara esclarece que, naquele espaço aparentemente público, há reserva de um
banco para sua família, fato este expresso por ela como se fosse uma situação natural. Aquele
banco ostensivamente privado, publicamente reclamado como bem privado, numa praça
pública, é metonímia do grande poder de influência que o coronel exerce naquela cidade do
interior. Ciente disso, Maria Clara exige para si esta autoridade, nos dois episódios, ao se
colocar diante dos homens que ocupavam o banco a fim de que estes se levantem. O que de
fato acontece, confirmando a autoridade do sobrenome Fagundes e dá pistas fortes sobre a
prepotência da filha do coronel.

3.1.2. Paulo Lemes e a figura do malandro

Na outra extremidade, temos Paulo Lemes. Um personagem que nos é apresentado


aos moldes do malandro, uma figura pretensamente nacional. Pertencente menos ao contexto
social brasileiro do que ao contexto cultural brasileiro, frequente na literatura e nas canções, o
malandro compartilha suas principais características comportamentais com o estereótipo
firmado da identidade do povo brasileiro: “vagabundagem, preguiça, sensualidade,
indisciplina, vivacidade de espírito, nossa modalidade de ‘inteligência’ e sobretudo simpatia”
(Cf. GALVÃO, 1976, p. 32 apud BOTOSO, 2011, p. 127-128).
Altamir Botoso, no artigo “A recriação do pícaro na literatura brasileira: o
personagem malandro” (2011), retoma as reflexões de Antonio Candido, no capítulo
“Dialética da Malandragem”, do livro O discurso e a cidadania (2004), para discutir as
proximidades do pícaro, uma figura pertencente à literatura espanhola do século XVI e XVII,
com o malandro. Ao contrário de Candido, que afirmava não haver uma ligação entre essas
figuras, apesar de traçar linhas paralelas de pontos de identificação, Botoso, acredita em uma
descendência cultural “da linhagem de anti-heróis protagônicos, inaugurada justamente pelo
romance picaresco espanhol” (BOTOSO, 2011, p. 125):
98

Assim é como surgem as variações que incomodam tanto aos críticos e que
constituem, em compensação, seu valor mais significativo, pois ainda
permanecendo no mesmo leito original, cada obra oferece uma
personalidade própria. O Lazarillo inicial conta sua vida a ‘Vossa Mercê’,
mas outros a contam a um ‘senhor’, a um vigário ou um cura [sic], ao leitor,
a um amigo poeta... O primeiro conta-a para explicar seu ‘caso’; os outros o
fazem para escarmentar, para adquirir fama, para divertir... Um começa
desde a infância, outro desde quando estava no ventre de sua mãe... Um
menciona os pais, outro acrescenta os avós e tataravós... O moço é
substituído pela moça... O monólogo torna-se diálogo... A autobiografia é
agora relato em terceira pessoa... O protagonista se converte em
testemunha... O que era mendigo na rua é agora criado num convento, pajem
na corte, soldado na guerra... O que não havia saído de sua cidade, viaja
agora pela Espanha, pela Europa, chega ao Oriente, e acaba na América... O
rapaz bom, mas travesso, torna-se um bêbado empedernido, um ladrão e
malfeitor, um criminoso e assassino... O filho de ninguém chega a ser
soldado, escudeiro, homem de bem, até aristocrata... Alguns superam sua
condição miserável e se ‘estabelecem’ na sociedade, outros não... Alguns se
arrependem e mudam de vida, outros não, ou terminam condenados à
morte... Onde havia um pícaro, agora há dois... Se antes não havia amor,
agora há... (BRAIDOTTI, 1979, p. 112-113 apud BOTOSO, 2011, p. 125-
126).

Paulo Lemes configura-se aos moldes de um anti-herói, na medida em que se


distancia das habilidades e benfeitorias sobrenaturais do herói épico e se aproxima do
comportamento do homem comum, inclusive pelo fato de se quebrar a dicotomia do caráter
maniqueísta. Trata-se de um personagem que, assim como o malandro, pertence à
marginalidade, e que, entretanto, usa da sua habilidade de raciocínio e simpatia para
engambelar suas vítimas a fim de ascender à alta sociedade e defender a sua liberdade, sem
esforço físico, ou ainda, sem trabalhar. Entretanto, o malandro não deve ser classificado como
uma persona criminosa, pois, como coloca Cláudia Matos (1982):

[...] o próprio malandro é um ser da fronteira, da margem. [...] Ele não se


pode classificar nem como operário bem comportado, nem como criminoso
comum: não é honesto, mas também não é ladrão, é malandro. Sua
mobilidade é permanente, dela depende para escapar, ainda que
passageiramente, às pressões do sistema. [...] A poética da malandragem é,
acima de tudo, uma poética da fronteira, da carnavalização, da ambiguidade
(MATOS, 1982, p. 55 apud BOTOSO, 2011, p. 129).

Apesar de este personagem ter sido o principal agente causador da transformação da


sorte de Maria Clara, o leitor não é levado a atribuir facilmente a ele a condição de vilão, isto
se de fato em algum momento é possível fazer esta manobra. É claro que não se esconde do
leitor as verdadeiras intenções de Paulo Lemes quando resolve se aproximar de Maria Clara.
99

Lemes está interessado no lucro e o relacionamento é meio para se obter isto, tendo em vista o
sogro rico, e o dote/herança advindo do casamento.
Mas, ao mesmo tempo, perdoam-se as falhas deste personagem porque suas
justificativas são “nobres”, fundadas no amor que sente por Maria Clara:

Oh! Maria, não vai pelo amor de Deus! Se o teu pai souber que eu sou um
João Ninguém, mata-me. O teu pai tem cem qualidades, noventa e nove de
maldades e uma de bondade. Eu vou sair, e compro um guarda-roupa, e um
colchão, e uma mesa e umas cadeiras para você. E vamos vivendo, com o
tempo a nossa vida há se modificar-se. Que culpa tenho eu de ter nascido
pobre? Sei que vocês ricos dão preferência a outros mais ricos. Mas o meu
amor por você turbou-me a mente. Maria, eu quero viver dentro de uma
casca de noz, mas com você ao meu lado (JESUS, 1963, p. 72).

Aos poucos, somos convidados a descobrir um personagem que não é calculista, que
não prejudica as pessoas de caso pensado. Paulo prejudica as pessoas e a si mesmo por
omissão, não de modo consciente. Apesar do nome “Lemes”, que se refere à noção de
controle (Cf. HOUAISS, 2001, CD-ROM), àquela peça do navio ou do avião que lhes dá a
direção, Paulo Lemes deixa que a vida o leve, e segue-a com pouco rumo e/ou iniciativa. Ele
não possui voz ativa nas suas redes de relações sociais, o que, de certa forma, nos faz
novamente relacionar este personagem com mais uma das características comum ao
malandro, elencada por Altamir Botoso (2011), o fato do malandro não ter iniciativa.
De fato, Paulo é um indivíduo que não é sujeito do seu destino. Um dos episódios
que evidencia esta ideia de omissão pode ser vista quando todos os moradores do cortiço onde
Paulo e Maria Clara vivem são obrigados a desocupar o local, em um prazo de noventa dias
(Cf. JESUS, 1963, p. 161). Aos poucos, todos os vizinhos vão indo embora, alguns para casa
de parentes, outros conseguindo encontrar casas para alugar, ou ainda, outros, não
encontrando imóveis para alugar, acabam comprando terrenos, etc. Neste quadro, situação de
Maria Clara é colocada na narrativa como uma das mais graves em comparação a dos
vizinhos, isto porque, além da pobreza extrema, por depender apenas dos seus trabalhos
temporários para as despesas da casa, não pode contar com Paulo, seu marido, que não
trabalha, e por possuir extensa prole, num contexto em que havia preferência por inquilinos
sem crianças: passados os sete anos em que Maria Clara vivia com Paulo, o casal já possuía
seis filhos.
A “solução” do problema é dada por Paulo:
100

Quando as crianças entraram no caminhão sorriam. Iam sentadas nos


móveis. O caminhão percorreu várias ruas, parou num terreno desocupado
pertinho de uma casa. [...] Maria ficou contente pensando: - Será que Paulo
conseguiu, um quarto n’uma casa sem lama ao redor. [...] Paulo retirou os
móveis do caminhão e colocou-os na calçada e pagou o motorista que
zarpou-se. Carregou os móveis para o terreno vazio e encostou-os no muro.
[...] – Onde é que vamos morar? Perguntou a espôsa de Paulo. [...] – Vamos
passar a noite aqui, respondeu, e amanhã construiremos um barracão neste
local. [...] Começou aparecer alguns curiosos olhando aquela cena. [...] As
pessoas iam jogando dinheiro. Os filhos de Maria Clara iam recolhendo e
sorrindo. Paulo ganhou tanto dinheiro e pensou: - Se ficarmos aqui uns seis
dias conseguiremos para comprarmos um terreno e umas tábuas para
fazermos um barracão. [...] [De manhã] Paulo sentou-se numa cadeira e
ficou aguardando o despertar de sua família. Os que passavam iam jogando
dinheiro. Êle ia recolhendo. De vez em quando erguia os olhos sob o céu
observando e suplicando ao grande Deus para não enviar chuvas. Esta era a
sua preocupação. [...] – As crianças precisam comer. Eu fiz o café e fervi o
leite, comprei pão, queijo e manteiga, disse Paulo com a satisfação de um
grande heroi. [...] – Está bem Paulo. [Maria Clara] Fitou seus filhos, que
dormiam miseràvelmente naquele estrado. – Oh! Paulo, eu não me conformo
com o que você fez! [...] – Você tem razão, Dona Maria Clara Fagundes.
Todos procuravam casas e mudavam. E nós íamos ficando. Eu fiquei com
vergonha vendo os outros homens deixando a vila e nós sem ter para onde ir.
Eu sou chefe da casa. Resolvi tirar você de lá de qualquer geito. Juro que
sofro mais do que você. Já estou enfastiado das críticas (JESUS, 1963, p.
161-169).

Paulo é sempre aquele que espera as causalidades interferirem, ou ainda, definirem o


ritmo da sua vida. Ele tira os seis filhos e a esposa do cortiço para ocupar um local que não
lhe pertence, correndo o risco de despejo a qualquer momento. Além disso, trata-se de um
espaço que não tem a mínima estrutura para abrigar a família de sol, chuva e intempéries.
Diante do cenário exposto, a única iniciativa de Paulo é rezar para que não chova.
Este personagem espera sentado o ganho de esmolas para comprar pão para as
crianças e, como se não fosse o suficiente, chega a fazer planos com o dinheiro que ainda
espera ganhar de novos curiosos que passar por ali, a fim de iniciar a construção de uma casa
naquele local. Lendo as peripécias do malandro Paulo Lemes, acabamos nos lembrando dos
conselhos de Carolina nos seus Provérbios que, como vimos, foi publicado no mesmo ano
que Pedaços da fome. É conselho que não está livre de certo moralismo simplista e burguês,
mas dá a medida da situação de Paulo Lemes, aos olhos da escritora: “O homem que trabalha
para viver é um herói. E o vadio é um crápula” (JESUS, 1963, p.15). Paulo é vadio: não é um
crápula, mas também não é um herói – é um malandro que se deixa levar pela sorte.
Toda a construção da narrativa leva a crer que é exatamente neste ponto, do destino e
da sorte/azar, isto é, daquilo que não está nas mãos dos homens, mas na vontade dos deuses,
que os dois personagens, pertencentes a classes sociais diferentes, se aproximam. Para os
101

personagens, eles não estão juntos e passando por todas as dificuldades porque querem, mas
porque existe uma força maior que rege suas vidas. Há algo de teológico nos destinos destes
dois personagens, conforme se pode inferir no seguinte comentário de Maria Clara: “[...]
Várias pessoas aconselhou-me para deixar-te, mas eu não tenho coragem. Você é meu legado
fatal” (JESUS, 1963, p. 169). Ou ainda, na fala de Paulo, onde o ‘teológico’ se faz mais
presente:

- E o teu dinheiro afugentava os pretendentes. Ninguém ousava casar-se com


uma arquimilionária como você. Talvez o teu casamento comigo foi castigo
de Deus para pagar os crimes que o teu pai deve ter cometido. Eu sendo o
seu espôso não estou tranquilo. Eu não aprecio as mortes trágicas. Mas tenho
pressentimento que hei de morrer tràgicamente porque tive a infelicidade de
tornar-me genro do coronel Pedro Fagundes (JESUS, 1963, p. 117, grifo
nosso).

Paulo tem consciência que o modo como encaminha a sua vida não é visto como
motivo de orgulho para ninguém, como deixa evidente em certo diálogo com Maria Clara: “-
[...] Reconheço que não sou o espôso ideal nem para você nem para teus pais. Não disponho
de recursos nem para você divertir-se” (JESUS, 1963, p. 124). Mas, também não se
incomoda. É como se não tivesse como ir contra o seu destino: “Oh! Maria. Até você! Se eu
pudesse não deixava sofrer, lamentou Paulo, tristonho e acrescentou: – Eu resolvi viver de
qualquer geito” (JESUS, 1963, p. 169).
Guardada as devidas proporções e, aceita a hipótese de Botoso (2011) sobre a
descendência do malandro brasileiro em relação ao pícaro espanhol, o “malandro espanhol” é
delineado por Candido (1970) como aquele que, no final da história: “[...] termina sempre, ou
numa resignada mediocridade, aceita como abrigo depois de tanta agitação, ou mais miserável
do que nunca, no universo do desengano e da desilusão, que marca fortemente a literatura
espanhola do Século de Ouro” (CANDIDO, 2004, p. 21).
No caso de Paulo, não há alterações na sua estrutura socioeconômica ao longo da
narrativa, pois, ele não teve chance de desfrutar dos benefícios trazidos pelo dinheiro de
Maria Clara, como também, não conseguiu conquistar a simpatia da Dona Raquel, que é a tia
rica. Ele inicia a narrativa morando em um cortiço e morre em uma favela. Contudo, assim
como acontece com o pícaro refletido por Candido, Paulo não lamenta a sua condição. Ao
contrário, este personagem se sente bem neste ambiente:

[...] Quando chegaram na favela, Paulo ficou alegre. Era o seu ambiente.
Todos pobres. Todos irresponsáveis. Todos marginais. Eram pessoas
102

conformadas com a pobreza. Viviam resignados, sem lamentos. Crianças


brincavam na terra, descalças e rotas, rodando pião (JESUS, 1963, p. 180,
grifo nosso).

Note-se no trecho a visão que Carolina divulga dos moradores da favela: uma visão
negativa e preconceituosa. Carolina, por este viés, traça uma imagem de si mesma como a
moradora de favela que é essencialmente diferente do favelado médio, este um preguiçoso e
acomodado: como Lemes.
Com efeito, as grandes modificações socioeconômicas acontecem apenas na vida de
Maria Clara. Paulo, no papel do malandro, não serve como objeto para mostrar a transição de
ambientes e os confrontos destes espaços, como se propõe nos romances de origem hispânica
e brasileira. Paulo Lemes, ao contrário, serve como catalisador para que haja as modificações
na vida de Maria Clara. Nestes termos, podemos dizer que aqui, mesmo sem querer, Paulo
servirá de “leme” para a vida de Maria Clara.

3.1.3. A inversão da lógica social em Pedaços da fome

Com efeito, é aqui que podemos dizer que as escolhas de configuração de Carolina
ganham sentido. De fato, nos perguntamos nas páginas iniciais deste capítulo sobre a opção
da escritora pela escolha de uma mulher branca para protagonista deste seu romance.
Dizíamos que era difícil configurar a vitória material de uma negra miserável em um
romance, sob pena de se receber na face a acusação de inverossimilhança, que é a acusação
mais grave que um romance pode receber. Ou, como dirá Adorno (2003), qualquer tentativa
do narrador se apresentar como capaz de dominar a realidade de modo harmônico e
articulado, como é o mundo tradicional, dos contos de fadas, por exemplo, onde ‘tudo’ é
possível, seria recebido com impaciência e ceticismo pelo leitor (Cf. ADORNO, 2003, p. 56).
Ou ainda, como observa Lukács (2000), qualquer tentativa do romancista de se
distanciar da nova configuração do mundo, ditada pela distância que existe entre este e do ser,
e, por conseguinte, aproximando-se do tempo epopeico; corre-se o risco de acarretar ao
romance um “[...] rebaixamento ao nível da mera literatura de entretenimento” (LUKÁCS,
2000, p. 70).
Nesta linha, a escolha de Maria Clara parece atingir o alvo. A ideia de Carolina
parece ser trazer uma pessoa representante das classes altas brasileiras, com o perfil do típico
leitor de Carolina naquele Brasil dos idos de 1960, para viver a lição catártica que ele já havia
experimentado lendo o diário Quarto de despejo. Pedaços da fome é uma descida ao inferno
103

da favela que é imposta a Maria Clara, espécie de estereótipo da mocinha rica, branca e
ingênua, oriunda das classes altas brasileiras. Nesses termos, Paulo Lemes é o anti-Orfeu que
vai buscar Maria Clara no paraíso, isto é, na casa do pai rico, para levá-la ao inferno, aos
cortiços e favelas. De passagem, podemos comparar Lemes também ao Horácio e à Beatriz
que acompanham Dante na Divina comédia, em direção à salvação.
É através da aproximação destes dois personagens que a escritora do romance tem
condições de trazer uma figura representativa da alta sociedade à favela para descobrir o que é
o sofrimento: “Maria Clara sorriu, achando graça nas palavras. Porque ela não conhecia as
lutas da existência. Para ela as palavras sofrimento eram abstratas” (JESUS, 1963, p. 29). O
romance de Carolina Maria de Jesus é uma drástica inversão da lógica dos espaços e dos
personagens.
Neste viés, não é a figura do malandro que assume o papel dentro da narrativa de
apresentar ao leitor e à Maria Clara as diferentes manobras – trapacear, enganar, extorquir –
para se conhecer a vida da favela. Diferentemente, estas manobras, executadas por um
malandro ‘desastrado’, servem como veículo para que o leitor seja convidado a entrar nos
pequenos quartos de cortiços e conhecer a marginalidade daqueles que vivem na capital
paulista, em plena expansão econômica; fato este responsável pela ‘regeneração’ e ‘expiação’,
por assim dizer, de Maria Clara e, por extensão, da alta sociedade. Nesse sentido, o texto do
romance é um texto de aprendizado e reeducação, com elementos teológicos. Levada pela
mão de Carolina, e pelo ‘meio-malandro’ Lemes, Maria Clara mostra que está aprendendo a
lição. Paulo Lemes é professor sem saber:

[...] – Eu não conhecia a mania dos ricos porque quando somos ricos não
percebemos o quanto a nossa exigência escravisa uma pessoa. Mas eu
também obriguei muitos pobres a curvar-se aos meus pés. Eu era uma
petulante, igual ao Renato [primo rico de Paulo e filho da Dona Raquel]. O
meu casamento com você [Paulo] é uma expiação daquelas faltas. Dizem que
o que se faz paga-se. Agora estou quase acreditando nisso. Os ricos pensam
que os pobres desconhecem os sentimentos; que são insensíveis. Aos ricos
nunca podemos fazer advertências porque êles é que predominam. Agora
que sou pobre é que tenho dó dos pobres. Porque compreendo o seu
sofrimento. Quantos pobres hão de estar ressentidos comigo. Mas eu nunca
vi um rico mais cacête do que o Renato. Êle não tem nenhuma qualidade
para prender um coração feminino. E entre triste e arrependida ajuntou: - Se
eu voltar a ser rica um dia, juro que hei de ser filantrópica. Eu nuca dei uma
esmola a um pobre. O meu dinheiro era destinado ao luxo. Queria ser bonita,
atraente para arranjar um namorado (JESUS, 1963, p. 116, grifo nosso).
104

Aqui, sublinhe-se que não é o processo social real que submete Maria Clara. Por
contraste, o Brasil dos anos de 1950 é o Brasil da ideologia do desenvolvimentismo de
Kubitscheck. Enquanto na ficção, Maria Clara está fazendo o percurso ‘riqueza-favelização’.
Na vida real, as classes, de um modo geral, estão melhorando de vida. Não se pode aqui falar
do processo de empobrecimento das classes altas pelo qual passaram intelectuais oriundos de
famílias do Império e/ou da Velha República, no início do século XX (Cf. MICELI, 2001),
tais como Drummond e Bandeira. Ou, como depois, durante o Regime Militar e o Governo
Collor, com o desaparecimento das classes médias. Aqui era preciso um acidente de percurso:
a introdução artificial de um Paulo Lemes na história de vida de Maria Clara para levá-la,
como um instrumento de Deus, à miséria e ao sofrimento.
A indumentária com que Carolina veste o casal protagonista – Maria Clara, uma
mulher branca, rica, letrada e inocente, e Paulo, homem pobre, desenhado aos moldes do
malandro, e, no final da narrativa, revelando-se um típico morador de favela – é visivelmente
construída a partir de fontes estereotipadas e não podemos aqui apontar mais do que alguns de
seus elementos. Esta roupagem feita de estereótipos se evidencia ao se observar que há no
texto uma mescla das experiências pessoais da escritora, expressas, especialmente, na forma
como lida com a caracterização da identidade de Maria Clara, uma persona diferente da sua;
como também, são reafirmadas ideologias que nascem em meio ao contexto social do
trabalho.
Para o primeiro caso, voltando-se para o modo como a escritora contorna a
personagem Maria Clara, salta aos olhos, como vimos, a frivolidade desta personagem, ao
modo das ‘meninas mimadas’ dos folhetins. Por ser uma pessoa rica, Maria Clara não tem
com o que se preocupar. Tudo é resolvido com o dinheiro. Trata-se de uma pessoa previsível,
sem preocupações, rasa. Muito diferente da densidade que se procura dar, por parte dos
estudiosos, à identidade do homem social, enquanto uma atividade constante do ‘vir a ser’ e,
por isto, profunda e, em determinados pontos, até mesmo obscuras. A personagem de Maria
Clara está presa à lógica do “personagem plano”, descrita, dentre outros, por Antonio Candido
(1990), ao usar as teorias de Forster; ela é um tipo.
Por sua vez, a ideologia que professa o trabalho como sinal de heroísmo também é
veiculada sem meios termos. Está presente, por exemplo, no modo como Paulo Lemes é
caracterizado enquanto aquele que é preguiçoso, que tem condições de mudar o seu destino
por morar na capital, e não faz nada, conforme a fala do coronel:
105

- Oh! Exclamou o coronel horrorizado. – Mas um homem que nasce e vive


em São Paulo tem possibilidades para trabalhar. Os que não têm cultura para
conseguir um trabalho intelectual, podem trabalhar na Prefeitura para varrer
ruas. Podem trabalhar nas repartições públicas furando o solo para estender
as redes de esgôtos. Podem trabalhar num restaurante lavando pratos. Para
mim o teu espôso [Paulo] é um vadio que não obedecia aos pais e não
comparecia as aulas; tipo dos que desviam-se para a malandragem. E êstes
malandros transformam-se em pragas para a sociedade. Êles querem ter
igualdade de condições com os ricos mas não querem estudar e nem
trabalhar. Ocupam muitas vêzes os lugares nas escolas de outros que
poderiam aproveitar as lições. Depois querem casar-se. O malandro é um
homem desajustado, sendo também um péssimo chefe de família. São
homens atabalhoados (JESUS, 1963, p. 203, grifos nossos).

Repare-se no trecho: o “estudo” e o “trabalho” são os meios de se equiparar com os


ricos. Não há aqui, por assim dizer, dialética da malandragem. Ainda que Paulo não seja o
‘crápula’ de que se fala no Provérbio, de Carolina; ainda que, por outro lado, ele não seja um
vilão e seja até visto com simpatia pelo leitor, ele está longe de ser tratado como um herói. No
limite, a ética é a do trabalho. Na cidade grande, que vive o boom da ideologia e do otimismo
dos “50 anos em 5”, de Kubitscheck, há espaço para todos, ao menos segundo o coronel Pedro
Fagundes.
Nesta linha, podemos também pensar sobre o estereótipo do pobre. Este se desenha,
por exemplo, por meio da visão dos ricos presentes no texto. Aqui, referimo-nos à família de
Maria Clara, incluindo-se aí ela, e o tio de Paulo. A esta ideia formada do pobre, há uma
predominância da visão do pobre enquanto aquele que prejudica o rico. Isto está presente, por
exemplo, na fala da Dona Virgínia, mãe de Maria Clara:

[...] Se o senhor não provar que é um dentista, vae passar um grande vexame
com o coronel, êle detesta os pernósticos. Para êle o senhor é um indouto.
Nós somos uma família culta. E pretendiamos para a nossa filha um homem
culto porque... é horrível a união de um superior com um inferior (JESUS,
1963, p. 66).

Ou ainda, no diálogo que Maria Clara trava com Paulo, logo que chega à capital e
descobre que ele é pobre: “- Meu Deus, então você é pobre? Meu Deus, pobre não presta! Não
tem valor” (JESUS, 1963, p. 71).
O desabafo do tio de Paulo com Maria Clara, também deixa esta ideia do pobre como
um entrave para a vida dos ricos, em evidência:

- Eu não tive o direito de educar o meu filho. Percebi que não faz bom
negócio quem casa nesta família. Eu era rico e casei-me com Raquel, que era
106

pobre. Ela passou a dominar-me. E para evitar discórdia eu não reagia. [...].
A Raquel, casando-se comigo modificou por completo o curso da minha
vida. Só ela lucrou-se com a ditosa união; ficou rica e com nome. Mas eu
não quero recordar os momentos amargos que tenho passado (JESUS, 1963,
p. 134).

Não é à toa que sobrinho e tia interferem na vida dos seus parceiros. Parece ser o
pobre responsável por mudar a vida das pessoas ricas, ou ainda, pela infelicidade de Maria
Clara e do tio de Paulo. Trata-se de uma cena que se repete, tornando-se cíclica. No romance,
a visão dos personagens ricos é que o pobre prejudica o rico, intencionalmente ou não. É
curioso notar que, mesmo sendo o romance de uma escritora que tenha passado por um
histórico de pobreza, trata-se de uma visão que pouco é desmistificada no decorrer do livro.
Os responsáveis por “prejudicar” os ricos na história não se redimem, até mesmo porque, não
se expressa um sentimento de culpabilidade por parte desses.
Uma possível leitura para este comportamento da escritora em seu romance seja a
necessidade de assumir a máscara de quem, agora, pertence à “sala de visita”. É como se
houvesse uma necessidade de mudança do gênero diário para o romanesco e uma mudança de
postura – daquela que tem condições de dialogar, por compartilhar o mesmo tipo de ideologia
–, para se fazer ouvir por aqueles, que assim como ela, estão na sala de visita. Com isto,
Carolina exige para si o direito e a autoridade para pegar alguém pertencente à sala de visitas
e encaminhar para a “cozinha”, que é o lugar destinado ao empregado, da subserviência,
daquele que não tem voz ativa socialmente. Conquista-se primeiro a atenção para, dessa
forma, desvendar a sua real intenção. E faz isto, como se houvesse uma necessidade de
colocar um arquétipo da alta sociedade para sentir na pele o que é o sofrimento, sentido por
ela e pelos demais marginais na realidade.

3.2. O processo alegórico no romance caroliniano

Bader Burihan Sawaia, no artigo “O sofrimento ético-político como categoria de


análise da dialética exclusão/inclusão” (2001), distingue a “dor” do “sofrimento”, tomando
como base Heller, filósofa neomarxista da escola de Budapeste:

Na defesa dessas teses, Heller distingue dor de sofrimento (Cf. HELLER,


1979, p. 313-315 apud SAWAIA, 2001, p. 102). Dor é próprio da vida
humana, um aspecto inevitável. É algo que emana do indivíduo, das afecções
do seu corpo nos encontros com outros corpos e diz respeito à sua
capacidade de sentir, que para ela eqüivale a estar implicado em algo ou,
107

como analisa Espinosa, de ser afetado. [...] O sofrimento é a dor mediada


pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar submetida à fome e à
opressão, e pode não ser sentido como dor por todos. É experimentado como
dor, na opinião de Heller, apenas por quem vive a situação de exclusão ou
por ‘seres humanos genéricos’ e pelos santos, quando todos deveriam estar
sentindo-o, para que todos se implicassem com a causa da humanidade
(SAWAIA, 2001, p. 102, grifos nossos).

Apesar de o sofrimento ser um fenômeno não compartilhado por aqueles que não
passam pelo processo de exclusão, Carolina usa o romance como forma de reverter este
quadro. E faz isto ao utilizar como método a alegoria.
Segundo dicionário eletrônico Houaiss, “Alegoria” significa “um modo de expressão
ou interpretação usado no âmbito artístico e intelectual, que consiste em representar
pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada e em que cada elemento funciona como
disfarce dos elementos da ideia representada” (HOUAISS, 2001, CD-ROM). Alegoria é,
dentre outros, a tentativa de traduzir uma linguagem desconhecida, pertencente a um universo
complexo, em uma linguagem simples, comum ao universo simples.
No caso de Pedaços da fome, Carolina toma por missão tentar explicar uma série de
elementos que compõe o campo semântico “fome”, mas não se trata da fome passageira e
opcional, trata-se da fome que sofre o miserável, a fome que muitas vezes a escritora sofreu
com a sua família na favela de Canindé. E tenta traduzir esta fome para os seus leitores de
romance, que, por suposição, não a conhece.
Como explicar a fome? Em Quarto de despejo, como vimos, Carolina apresentou
micronarrativas que, acompanhadas de apoios metafóricos, procuravam traduzir a sua
realidade de favelada, apelando para a sensibilidade emocional. Isto ocorre, por exemplo,
quando a autora se põe a narrar sobre o seu receio de comer alimentos jogados no lixo,
embora, em determinada fase tenha que se sujeitar a esta situação para não morrer de fome:

Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em


1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia
vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem deve catar papel
são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom
Jardim. No lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado
carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços: Disse-me: [...] – Leva, Carolina.
Dá para comer. [...] Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei.
Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros
ruidos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia.
Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar
assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí
pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser
real num paiz fertil igual ao meu. [...] No outro dia encontraram o pretinho
108

morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centimetros. Ele


aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não
trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguem procurou
saber seu nome. Marginal não tem nome (JESUS, 2004, p. 36).

Embora esta história contada por Carolina Maria de Jesus possa chocar muitos dos
seus leitores, isto não é o suficiente. Porque não passa de um efeito catártico. Isto porque,
apesar do “pretinho” ser uma pessoa, e com isto, proporciona-se uma sensibilidade na
manobra de colocar-se no lugar de quem passa a fome, este é um exercício passageiro. O
pretinho é um “Zé qualquer”. Com o término do pacto de leitura com o Diário, perde-se o
sentido de continuar sofrendo por alguém que não é próximo.
Por sua vez, em Pedaços da fome, o mecanismo é alegórico. Carolina Maria de Jesus
tenta explicar o que é a fome, colocando um arquétipo da jovem pertencente à alta classe,
semelhante às jovens que poderiam estar lendo seu livro, para descobrir na pele o que é esta
sensação. Este momento fica bem marcado no episódio em que Dona Maura, uma das
moradoras do cortiço que acolhe a família de Paulo, faz a proposta de oferecer um prato de
sopa em troca do uso da máquina de costura de Maria Clara:

- Aceita, Maria Clara, insistiu Paulo. Um prato de sopa te fará bem, falou
baixinho nos seus ouvidos. [...] – Está as suas ordens, Dona Maura,
respondeu Maria Clara, com uma voz de desolação. [...] Oh! que bom! sou
eu que vou estreá-la, a sua máquina. [...] Dona Maura entrou e sentou-se na
máquina. Acionou o pedal, dizendo tôda satisfeita: [...] – Eu vou buscar a
sopa para a senhora. [...] Levantou e saiu após experimentar a máquina de
costura. [...] Maria Clara enxugou uma lágrima que surgiu contra a sua
vontade e perdeu-se em recordações. Pensava: ‘na casa de papai eu não
tomava sopa’ (JESUS, 1963, p. 85-86).

Esta passagem retoma um fato narrado na página 27 deste livro: “Dona Virgínia
[mãe de Maria Clara] surgiu e anunciou o almôço. Na mesa, Dona Virgínia insistia com Maria
Clara para tomar sopa: [...] – Eu não gôsto, mamãe! [...] Havia muitas coisas para comer, a
mesa era farta e variada” (JESUS, 1963, p. 27).
Dando sequência ao momento em que Maria Clara já mora no cortiço:

[...] Dona Maura voltou com um caldeirão de sopa e dois pedaços de pão. Ia
sentar-se quando notou que Maria Clara não tinha pratos e nem colher.
Quando Dona Maura saiu para buscar a vasilha Maria Clara ajuntou: [...]
Como hei de bendizer esta senhora! Estou com tanta fome! Recebo esta sopa
como dádiva do céu. [...] Dona Maura retornou-se, entregou-lhe os pratos e
as colheres. [...] Paulo forrou a mesa com um jornal para não sujar a toalha
de linho. E colocou o caldeirão em cima da mesa. E serviu a sua espôsa. Ela
109

comia tudo, com tanto prazer como se fôsse a primeira vez que comia na sua
vida. [...] – Como está gostosa! Exclamou, já com acenos de alegria. Seu
apetite era grande. Agora ela sabia dar valor a uma côdea de pão (JESUS,
1963, p. 86, grifo nosso).

Deste modo, vemos que embora a narradora tenha uma relação de afeto por Maria,
trata-se de uma personagem que precisa aprender a “dar valor a uma côdea de pão”. E a forma
de aprendizagem não é mais por meio de relatos das situações passadas por indivíduos
desconhecidos pelo leitor. Foi preciso colocar um protótipo de uma jovem rica, para aprender
por ela mesma os valores humanos que transpõe as barreiras existentes entre classes sociais.
Aprende-se por meio da dor, do sacrifício físico e mental, a tornar-se humano, em seu sentido
pleno.

3.3. A função pedagógica do romance

Como se faz conferir no desabafo de Carolina em Quarto de despejo e na reflexão de


Maria Clara em Pedaços da fome, há um desejo compartilhado tanto por Carolina, na
realidade, quanto por Maria Clara, na ficção – após o momento em que esta passa a descobrir
os desafios enfrentados pelo marginal –, de que os ricos aprendam a ser mais ‘humanos’;
como, em certa medida, elas mesmas foram obrigadas a aprender, a partir das suas próprias
experiências enquanto marginais na capital paulista:

... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome
também é professora. [...] Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e
nas crianças (JESUS, 2004, p. 26).

Tôdas pessoas que são ricas deviam conhecer a pobresa; haviam de ser mais
humanos (JESUS, 1963, p. 90-91).

Dentro do romance caroliniano, os desejos expressos nessas falas, tornam-se


ficcionalmente possíveis. A escritora coloca dois protótipos representativos de classes sociais
distintas para interagir. Por conseguinte, o pobre, de certa forma, assume a função de
propiciar a uma jovem rica as maiores lições sobre o que é passar fome. Este processo, apesar
de árduo, é necessário para que se desenvolva, por sua vez, o processo de aprendizagem do
respeito ao próximo, que é nada menos do que o respeito ao marginal. O respeito constitui-se
como uma necessidade de passar a enxergar o marginal como parte integrante das atividades
110

sociais, entendendo-o como indivíduo que tem os mesmos desejos, necessidades e direitos,
como qualquer outro.
Parece não haver outro caminho possível para Maria Clara no processo de
aprendizagem, senão por meio do sofrimento. Mas, o sofrimento não é visto como uma forma
de punição, antes, trata-se de uma forma de purificação e, a partir disso, da redenção.
Redenção e purificação, mas não punição. Punido (aliás, com uma morte bastante apropriada,
de infarto, no final do romance), é o pobre Paulo Lemes, por ter enganado a rica Maria Clara e
seu rico pai. Carolina não rejeita e nem odeia as classes ricas brasileiras.
No contexto do desenvolvimentismo dos anos de 1950 e 1960, no contexto da
radicalização da Guerra Fria e dos antagonismos entre esquerda e direita (que iria se agravar
com o Golpe Militar de 64), a ex-miserável Carolina Maria de Jesus é uma cidadã brasileira
que não quer punir nem humilhar a classe baixa. Ela parece ser favorável à ordem. A escritora
parece achar que estas classes devem ser educadas. Carolina, contudo, desenha seu romance
com elementos de uma teologia difusa que articula sofrimento, purificação e redenção.
Como vimos, Maria Clara, antes de conhecer Paulo Lemes, no tempo ainda em que
vivia na rica fazenda de seu pai e que dispunha de todos os privilégios comprados com o
dinheiro ou pela força do seu nome, não se sentia feliz. O seu sonho era encontrar um
“príncipe”, um homem bem sucedido, estudado e com influência na política e na alta
sociedade da capital para inseri-la nesses núcleos:

[...] [Maria Clara pensava] Como seria a sua vida conjugal? Residir na
capital, uma cidade bela! Frequentar teatros, ópera, ter uma casa suntuosa,
tôda ajardinada, usar toiletes de alto preço, ser notada quando passasse pelas
ruas, ser indicada!... – ‘Olha a senhora Paulo Lemes!’ E o Paulo há de
trabalhar para pessoas de renomes. Com certeza há de apresentar-me, para o
prefeito e ao governador e para falar com o governador eu vou com um
toilete especial. O meu colar de brilhantes! Sorria e pensava: Eu custei a ser
feliz! Mas agora sou felizarda! (JESUS, 1963, p. 38).

Ela sonhava com a possibilidade de ser ‘resgatada’ da cidade do interior, onde


nenhum rapaz teria coragem de se aproximar dela em virtude da autoridade do Coronel Pedro
Fagundes, para, com a união matrimonial, somar mais riquezas e influência. Mas, a estratégia
textual acredita ser preciso que ela aprenda que isto não é o essencial.
Maria Clara ‘precisa’ dar o devido valor ao que tem, sem a ânsia de sempre querer
mais, ambição comum a uma cidade que tenta se projetar como modelo de desenvolvimento
econômico, sem, no entanto, ambos – Maria Clara e seus correlatos, a cidade em
desenvolvimento e a elite econômica –, pensarem naquelas pessoas, que, ao não se
111

enquadrarem nos perfis propícios ao desenvolvimento, vivem às margens. No entanto, a


protagonista apenas conseguirá alcançar esse entendimento da vida, quando passar pelo
processo árduo da aprendizagem. É no momento que passa pelas maiores crises físicas e
emocionais, que de fato, Maria Clara descobrirá o verdadeiro sentido que cabe à palavra
“felizarda”:

- Então minha filha, você foi uma felizarda? [...] – Não papai. Fui uma
infeliz. Fiquei conhecendo o rigor da existência. Tenho a impressão que
retorno de uma viagem ao purgatório. Agora estou contente porque o senhor
protege-me, porque o senhor defende-me. O senhor é uma sombra amiga na
minha vida. Enfim... o senhor é o meu pai! [...] O coronel entregou-lhe um
embrulho. [...] Ela desfez o embrulho e exclamou: - minhas jóias! Obrigada
papai! É ao lado do senhor que devo dizer: - sou uma felizarda (JESUS,
1963, p. 215, grifo nosso).

No final do romance, a estrutura teológica recorrente se fecha com um final feliz de


contos de fadas. Depois da aludida ‘viagem ao purgatório’, Maria Clara retorna à casa do pai.
‘Tudo’ parece igual como no passado, antes da chegada de Paulo Lemes. O quarto da ‘menina
fujona’ fora deixado intocado. E mesmo as jóias, símbolo da sua condição de princesa, são
plenamente recuperadas pelo pai. Paulo Lemes, acometido por um enfarto, falece. Parece que
o ‘pesadelo acabou’.
No início deste capítulo, aludimos a um sonho que Carolina relata em seu diário,
Quarto de despejo. Carolina sonha com mesa farta, entretanto, em seguida, acorda na favela
sentindo o mal estar do contraste entre sua realidade de fome e as delícias de seu sonho.
Pedaços da fome também se articula como se fosse um sonho ruim, para a protagonista – só
que com maior extensão, isto é, com a extensão inerente ao romance. Assim como Carolina
acaba acordando de seu sonho ruim, em que almoça em mesa farta, também Maria Clara
acorda de seu pesadelo, em que sofre, se purifica e se redime, de seus vícios de ‘menina de
elite’.
Também nas páginas iniciais deste capítulo dissemos que há uma certa simpatia da
voz narrativa pela personagem: Carolina tem, de fato, simpatia por Maria Clara. Tal fórmula
implica, por decorrência, numa simpatia de Carolina Maria de Jesus pelas classes dominantes
de seu tempo: Maria Clara é, como vimos, um tipo, uma alegoria da própria elite brasileira
que, aos olhos da escritora, necessita ser educada. Se isso é verdadeiro, de fato, Carolina,
levando Maria Clara à favela, não quer torturar, punir ou ‘matar’ a elite brasileira por seus
desmandos ou sua exploração selvagem: ela quer ‘educá-la’. Não se quer revolução, se quer
reforma. Isso implica, por outro lado, numa característica evidente que demonstramos: de
112

alguma forma, a narradora acaba por assumir uma atitude de tutela em relação à protagonista,
de tal forma que seu caminho, ainda que seja árduo, acaba sendo um caminho seguro, como
alguém que sabe que o sofrimento edifica. A ideia é colocar Maria Clara para sofrer, mas sem
deixar que ela corra maiores perigos. Deste modo, então, dá-se a sensação de ‘fim de
pesadelo’, que o leitor pode experimentar no final do romance, deliberadamente construído
pela escritora.
Tratava-se apenas de um teste e de uma provação a que Carolina, pedagogicamente
e, como uma espécie de deusa que tudo sabe, estava submetendo a elite brasileira. Mas, tudo
sob estrito controle. O controle ao qual aludimos é coerente com uma voz narrativa que, já na
metade do século XX, no Brasil, adota uma perspectiva análoga aos narradores do século
XIX, que tudo sabem. A voz narrativa de Pedaços da fome parece a de um narrador
onisciente, do típico romance europeu do século XIX. Nesse sentido, trata-se de uma
estratégia narrativa que passa ao largo de experiências literárias como as de Virgínia Woolf,
James Joyce, entre outros, (Cf. AUERBACH, 1994) e, no Brasil, Clarice Lispector e
Guimarães Rosa (Cf. SANTIAGO, 2006).
As implicações disso podem ter extensão (não são nosso assunto aqui), mas é preciso
destacar um aspecto: nesse contexto, salta aos olhos a forma com que Carolina resolve os
problemas propostos pela narrativa, como se um Deus ex-machina entrasse nos textos (uma
fada madrinha?) e resolvesse tudo de uma hora para a outra na vida de Maria Clara:
propiciando um encontro casual com o pai, matando Paulo, restituindo as jóias há muito
extraviadas, entre outros aspectos.
Assim, neste viés, após a solução do grande conflito narrativo, que é delineado como o
momento em que Maria Clara aprende o que é sofrimento a partir das suas experiências na
capital, a protagonista, ao lado do pai, retorna a uma condição inicial. Esta condição fica
marcada, por exemplo, no regresso à casa do pai e no reencontro com as coisas que deixou
para trás, em especial, o seu quarto, que foi conservado do mesmo modo que ela havia
deixado há sete anos: “Maria Clara queria rever o seu quarto. Foi pedir a chave ao coronel.
Estava do jeito que ela deixou. As gavetas abertas e os jornais espalhados no assoalho, tudo
coberto de pó” (JESUS, 1963, p. 215).
Na sequência deste episódio, ainda fica marcada outra característica desse ‘encaixe
fácil das coisas’, como na situação inicial: “O coronel entregou-lhe um embrulho. [...] Ela
desfez o embrulho e exclamou: – minhas jóias!” (JESUS, 1963, p. 215). Tratam-se das jóias
113

que Maria Clara ganhou da família e amigos e que, porém, foram empenhoradas para que ela
pudesse se sustentar na capital.
Um terceiro ponto que denota essa tentativa de um retorno a um estágio inicial
reencontrado é o desfecho dado ao personagem Paulo Lemes, considerado o pivô do conflito
da narrativa. Este personagem tem uma morte súbita, sem muitas justificativas, ao se deparar
com o coronel Pedro Fagundes.
O clima de final feliz e de súbita supressão das contradições, como a se tratar de um
conto de fadas, é exemplificado pelo resgate paterno. Maria Clara, como sempre passiva, nos
moldes dos contos de fadas, recebe a graça do reencontro com o pai que a acolhe depois de
sete anos. O clima é de festa:

As crianças [de Maria Clara] entraram no carro e foram para o hotel. O


coronel entrou na frente altivo igual um General na frente do exército. [...]
Os hóspedes ficaram horrorisados vendo as crianças descalças, sujas e os
cabelos longos como se fossem descentes de Sansão. [...] O coronel pediu
um médico para examinar a menina [o bebê de Maria Clara que estava
doente]. Era início de intoxicação. Levaram-na ao hospital, enquanto os
outros foram ao banheiro se levarem. Que confusão no hotel. Todos queriam
ver a filha do coronel. [...] – Telefona para uma casa de modas vir aqui e
preparar roupas decentes para os meus netos, ordenou o coronel ao
motorista. Depois que êles estiverem com seus cabelos cortados e limpos
vou querer almoçar sòzinho com a minha família. [...] Três horas depois
dava gosto ver os netos do coronel. Êles não conheciam barbeiros porque
Maria Clara era quem cortava o cabelo dêles por não poder pagar barbeiros.
Almoçaram. As crianças queriam comer carne de frango. E comia dizendo: –
que comida gostosa. [...] – Obrigado vovô. O senhor é o vovô que desce do
céu? Porque é o vovô que vem do céu que compra doces, brinquedos e
comida (JESUS, 1963, p. 207).

Esses elementos acima aludidos nos dão condições para concluir que Maria Clara é
de fato tutelada por Carolina, como se as forças históricas que deveriam ser os guias das
causalidades do romance não pudessem agir plenamente em Pedaços da fome, ficando à
mercê da vontade da escritora, ou, pior, dos desejos do público leitor. Vemos isso o tempo
todo nas novelas, nos folhetins e na pulp ficcion, das bancas de revistas. Mas essa tutela
também nos remeta às epopeias antigas, onde os heróis estão sempre em companhia dos
deuses:

Os heróis da juventude são acompanhados em seus caminhos pelos deuses


[...] eles jamais avançam sozinhos, estão sempre conduzidos [...]
abandonados por todos, podem eles sempre sonharem em ilhas desertas,
podem cambalear nos portais dos infernos no mais profundo descaminho da
cegueira – sempre os envolve essa atmosfera de segurança do deus que traça
114

os caminhos do herói e toma-lhe a frente na caminhada (LUKÁCS, 2000,


p.88).

Maria Clara é uma heroína da juventude; é alegoria ideal da elite brasileira: jovem,
branca, rica, letrada e ingênua – na perspectiva de Carolina. Esta, por sua vez, (mal ou bem,
pouco importa) quer educar esta jovem elite, mostrando-lhe os caminhos tortuosos do povo
brasileiro que mora em favela e passa fome. Tudo isso com os riscos controlados de um
experimento.
Depois de escrever um livro de provérbios, Carolina resolve escrever um romance de
educação sobre o que é morar em favelas e passar fome, para a elite brasileira. A atitude de
tutela típica dos provérbios talvez possa ser encontrada aqui também em Pedaços da fome.
115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das reflexões feitas sobre o diário Quarto de despejo ([1960] 2004) e o
romance Pedaços da fome (1963), desenhadas ao longo deste trabalho de dissertação, abre-se
espaço para voltarmos às questões iniciais, propostas ainda no capítulo 1, “O ficcional e o não
ficcional: vida e obra de Carolina Maria de Jesus”, quando trouxemos o texto de Woolf, Um
teto todo seu, a fim de nos oferecer uma abordagem sobre as dificuldades por quais passaram
a escrita de autoria feminina, no percurso à construção de uma tradição literária para as
mulheres escritoras; e lançamos a seguinte questão: ter um “quarto próprio” e “quinhentas
libras por ano” era suficiente para que Carolina adentrasse o mundo literário pela porta da
frente?
Responder a esta pergunta, também é, de certa forma, entrar em questões, tais como,
por que, dentro da considerável obra da escritora, somente Quarto de despejo (1960) obteve
êxito, ou ainda, - uma questão que talvez seja fundamental para pensarmos as demais –, quem
tem o direito à voz social e literária no período em que os textos de Carolina foram
produzidos?
Uma resposta que já podemos sinalizar, de imediato, é que, Carolina não tem direito à
voz; como também, não seria suficiente a ela um “quarto próprio” e dinheiro para ser aceita e
respeitada como uma escritora pertencente ao mundo literário. Estas questões se sustentam no
próprio percurso biográfico de Carolina, uma vez que, como vimos neste trabalho, mesmo
tendo a oportunidade de realizar o seu grande sonho, que era morar na “casa de alvenaria”, a
escritora não conseguiu sucesso com as demais obras pós-Quarto de despejo, como foi o caso
do próprio romance Pedaços da fome, publicado com recursos da escritora, quando já morava
na cidade.
A leitura que fazemos, a partir dos pontos refletidos ao longo deste trabalho, é que,
embora haja um esforço de adaptação e da plena vontade de ser aceita na “sala de visita”,
levado a termo por parte de Carolina, a escritora não logra êxito; ironicamente, quase sempre
figurará ali como “visita” e, raras vezes, como dona da casa. Carolina sempre vai estar a meio
termo, seja na favela, seja no contexto da vida levada pela elite cultural e econômica. Em
Quarto de despejo, quando se esforça para se afastar pela escrita, dentre outros, da vida dos
moradores da favela, Carolina não quer adaptação; em Pedaços da fome, quando se sente a
vontade para ‘falar’ sobre uma moça branca, também se esforçando, pela escrita, para
adentrar o mundo da “alta” literatura, ela não é bem recebida. A escritora faz um esforço em
116

seus trabalhos (diário e romance), para dar mostras do quanto tem capacidade para pertencer
àquele meio literário; contudo, como nos referimos no capítulo 3, Carolina entra em um ‘jogo
de cartas marcadas’, que, de antemão, lhe impõe condição de enunciadora subalterna.
De fato, Quarto de despejo, ao que tudo indica, logrou êxito na sua recepção inicial,
possivelmente por intermediar visões do exótico. Tinha-se ali a novidade da mulher negra e
marginal que ‘abre’ ao leitor não favelado as portas do seu ‘quarto’ – metonímia da própria
favela de Canindé – via diário. Era uma artificialidade: o leitor burguês, morador dos centros
urbanos industriais, não precisava (por não querer) se conduzir à favela, às realidades caóticas
e subumanas daquela vida miserável, não precisava pôr em questão sua colocação social ou
sua segurança, para obter o lenitivo de ‘vivenciar’ a vida de uma favelada. Carolina lhe dava
isso esteticamente – e era tudo o que este leitor ‘sensível’ queria: catarse quanto às gritantes
desigualdades sociais da metrópole capitalista.
Neste viés, entendemos que insistir nesta questão é também tangenciar o percurso
literário percorrido por Carolina na escrita dos seus trabalhos e perceber que não é à toa que
apenas o seu diário, Quarto de despejo, alcançou, não sem ressalvas, seu sucesso. Se Carolina
foi ouvida no gênero diário, salta aos olhos o quanto foi relegada ao ostracismo quando
‘ousou’ o gênero romance.
Aqui, talvez caiba aludir a uma hipótese lançada por Lajolo (1996), no livro Antologia
pessoal:

Uma certa incapacidade prática (porque técnica) de Carolina vencer (n)este


mundo que lhe reserva o papel de lavadeira é inevitável: afinal em poesia,
como de resto na literatura que se pensa com letra maiúscula, ao contrário do
que se possa pensar, não se admite ignorância das normas gramaticais.
Melhor dizendo, só se admite a infração, e a infração precisa ser voluntária.
Ou seja: não se pode ignorar a gramática, embora se possa infringi-la.
Tolera-se a infração, mas não o desconhecimento do que se infringe
(LAJOLO, 1994, p. 43, grifo nosso).

Mesmo que não voluntários, os erros gramaticais e de concordância da Carolina em


Quarto de despejo, são ‘perdoados’. Isto porque é um diário que tenta manter as
características composicionais do seu escritor. Os ‘erros’ entram como componentes que, de
certa forma, vem enfatizar que a ‘voz’ no diário é de uma mulher favelada, que tem apenas
dois anos de ensino formal, e que, porém, supera a sua dificuldade proveniente de um ciclo de
instrução regulamentar interrompido, e que, além disso, procura se autorrepresentar e
representar aos demais moradores da favela de Canindé, por meio da escrita.
117

Por sua vez, ao escolher o gênero romance, ao que nos parece, é que esses ‘erros’ não
são ‘perdoados’. O esforço de se escrever romance exige um trabalho de configuração que
acessa códigos de configuração muito restritos às camadas socialmente e culturalmente
excluídas da sociedade – muito disso é resultado do fosso econômico da vida brasileira da
primeira metade do século XX. É árduo o esforço que se exige do romancista para
transformar o ético em estético, para perceber a realidade caótica e fragmentária que circunda
o homem contemporâneo e ter a sensibilidade de transformá-la em um discurso coeso e
comunicável ao seu leitor. São esforços que não condizem com a restrita formação literária de
Carolina.
Como se evidencia, é verdade que Pedaços da fome tem sérios problemas de origem
gramaticais e de concordância. Contudo, como vimos, no último capítulo, os ‘perigos’ aos
quais este romance está submetido, os quais nos chamam a atenção, estão no nível da
configuração. Estão, em especial, no modo como a escritora/narradora conduz o seu texto, no
modo como se distancia das contradições do mundo real, para estabelecer com a protagonista
uma relação de pura tutela. A narradora é, por assim dizer, onipresente, uma vez que está
sempre por perto para ‘resgatar’ sua cria, o ser humano frágil, a jovem rica e inocente Maria
Clara, dos ‘perigos’ da realidade marginal dos grandes centros urbanos. O romance deve
configurar uma realidade sem fadas, sem deuses e sem as exigências de happy ends. A relação
de ‘tutela’ que a narradora do romance impõe à sua personagem, aproxima o texto dos contos
de fadas, da epopeia, e dos textos de entretenimento. Na esteira disso, e para se pensar em
outro momento, o romance acaba invertendo a relação de tutela que as classes dirigentes
sempre gostariam de impor ao povo brasileiro. Relação da qual Carolina sempre fugiu.
Contudo, apesar da fácil constatação de “erros” gramaticais e de concordância na
escrita de Carolina Maria de Jesus, seja no diário ou no romance, não há motivos para atribuir
a tais erros a responsabilidade pela não aceitação dos textos desta escritora. Pois, acima dos
erros, há uma característica do texto que se sobrepõe: a ousadia. Sendo esta, consideramos, a
principal virtude de Pedaços da Fome. Neste único romance publicado, de uma escritora com
extrema imaginação, há uma semente que o público brasileiro, ledor de romances, pouco
deixou germinar. A ideia ousada de ‘educar’ a elite brasileira, de levá-la ‘a passeio’ pela
favela para aprender, é pioneira.
Com este romance, Carolina ambicionou olhar a realidade da perspectiva de sua elite.
A opção por um gênero que, por séculos, foi instrumento de entretenimento, de conhecimento
da realidade e de expressão exclusivo das elites letradas e dos ditos ‘grandes escritores’, deve
118

ter sido desconcertante o bastante para que pudesse resultar em sucesso. Parte do insucesso de
vendas de Pedaços da fome, deve-se, possivelmente, à ambição e ousadia desta escritora que,
ao escrever, publicar e fazer sucesso com um diário, acabou adentrando a ‘sala de visita’ e,
nesta condição, só poderia escrever a partir desta perspectiva. É possível que o público, a
crítica e o mundo literário em geral, não quisessem isso. Por suas qualidades intrínsecas, por
pertencer ao seu tempo, inaugurando-o, por iluminar toda a obra de Carolina Maria de Jesus,
Pedaços da fome, ao modo de Quarto de despejo, merece muitas reedições. Aguardemos.
119

REFERÊNCIAS

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