Dissertacao Sobre o Kitsch en Cfa
Dissertacao Sobre o Kitsch en Cfa
Dissertacao Sobre o Kitsch en Cfa
Londrina
2007
12
BÁRBARA CRISTINA MARQUES
Londrina
2007
13
BÁRBARA CRISTINA MARQUES
COMISSÃO EXAMINADORA
14
A Octávio e Luiza Soncella pela
sabedoria e amor com filhos, netos e
bisnetos
15
AGRADECIMENTOS
A minha mãe, Sonia Soncella, que me mostrou a magia da literatura desde criança
A meu pai, Luiz Altino, e minha irmã, Camila, que demonstraram afeto em todo
esse período
Aos amigos queridos que fiz no percurso do Mestrado, Miguel Heitor Braga Vieira,
Francis de Lima Aguiar, Rafaella Berto Pucca e Ygor Raduy, pelas várias risadas
proporcionadas
Em especial, a três figuras muito queridas que me ensinaram que Arte é paixão, o
resto é retórica: Gabriela Canale Miola, Lara Gervásio Haddad, e Aurélia Hubner
Peixouto.
16
Traduzir-se
(Ferreira Gullar)
17
MARQUES, Bárbara Cristina. A estética do Kitsch em Onde andará Dulce Veiga?, de
Caio Fernando Abreu. 2007. 181 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.
RESUMO
Esta dissertação lida com o conceito da estética do kitsch no romance Onde andará
Dulce Veiga? Um romance B (1990), de Caio Fernando Abreu, com o intuito de avaliar
de que maneira e em que medida esta narrativa multifacetada, apropriando-se de
manifestações da arte de massa, articula o espaço discursivo, numa espécie de
plurissignificação estética e estilística, de modo que os gêneros massivos possam ser
revalorizados e/ou apreendidos criticamente, apontando, sobretudo, a falência da
distância entre arte erudita e arte de massa. Problematizando o par arte e
entretenimento, o autor estabelece um tipo de jogo polifônico a partir da
incorporação do romance policial, do filme noir, do discurso clicherizado, das
referências fílmicas, musicais e cinematográficas. O kitsch, que perpassa todo o
romance, pode ser observado através da construção estereotipada de personagens e
ambientes, mas, sobretudo, por meio de um conjunto de discursos provenientes de
diferentes âmbitos culturais. No primeiro capítulo, com base num elenco teórico-
crítico, discorremos sobre a natureza do kitsch, seu contexto histórico-cultural,
lidando com os conceitos de indústria cultural e cultura de massa. Propusemos
também, no segundo tópico deste capítulo de abertura, uma discussão acerca de
vanguarda e kitsch, com o objetivo de constatar a dialética entre invenção e
padronização no cenário contemporâneo. A partir daí, no segundo capítulo,
tratamos da situação da ficção brasileira contemporânea, tendo em vista as décadas
de 70, 80 e 90. Constatamos que a produção literária brasileira contemporânea, em
linhas gerais, abriu-se a um novo diálogo intertextual e metaficcional, promovendo
novas possibilidades de leitura e apreensão do objeto artístico. Nesse sentido, o
debate acerca do pós-modernismo se fez presente neste capítulo, na tentativa de
mostrar os seus desdobramentos na ficção contemporânea. O terceiro capítulo foi
dedicado ao projeto literário de Caio Fernando Abreu. Vale ressaltar que buscamos
retirar da vasta produção do autor, antes de tudo, textos ancorados no
procedimento literário da paródia, do pastiche e da ironia pós-modernos com o
intuito de mostrar o “lado B” do autor. No capítulo de encerramento, demos
atenção ao romance, explorando o entrecruzamento dos gêneros massivos, da
estética do kitsch em contraponto com a estética noir, e a construção da
personagem Dulce Veiga como um mito da cultura de massa.
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MARQUES, Bárbara Cristina. A estética do Kitsch em Onde andará Dulce Veiga?, de
Caio Fernando Abreu. 2007. 181 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.
ABSTRACT
This dissertation treats of the concept of kitsch in the novel Onde andará Dulce
Veiga? Um romance B (1990), from Caio Fernando Abreu, with the intention of
evaluating how and in what level this multiple narrative articulates the speech by
using mass art manifestations in a kind of aesthetic and stylistic plurisignification, in
a way that this massive genres can be revalued and/or appreciated critically,
showing the failure of the distance between massive art and elitist art.
Problematizing art and entertainment, the author establishes a polyphonic game
with the incorporation of detective novels, noir films, cliché speeches, music and
movie references. The kitsch that crosses the entire novel can be observed through
the stereotyped construction of characters and spaces, but above all, through an
ensemble of speeches from different cultural scopes. In the first chapter, based in
critical theoretical works, we talk about the kitsch nature in its historical cultural
context, dealing with the concepts of the cultural industry and mass culture. We
also propose, in the second part of the same chapter, a discussion about the avant-
garde and the kitsch, with the objective of verifying the dialectics between
invention and standardization in the contemporary scene. In the second chapter,
we speak about the contemporary Brazilian fiction situation within the 70s, 80s and
90s. In general, we noticed that this literary production opened to a new
intertextual and metafictional dialogue, promoting new possibilities of reading and
apprehending the artistic object. In this sense, the debate about postmodernism
was present in this chapter to show its ways in contemporary fiction. The third
chapter was dedicated to the literary project of Caio Fernando Abreu, mainly the
texts which use the post moderns parody, pastiche and irony with the aim of
showing the author’s “B side”. In the closing chapter, we talk about the novel
exploiting its crossing with the massive genre, the aesthetics of kitsch in opposition
with the noir one and the construction of Dulce Veiga’s character as a myth of the
mass culture.
19
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................167
REFERÊNCIAS..............................................................................................................174
INTRODUÇÃO
20
Pesquisar a estética do kitsch no romance Onde andará Dulce Veiga?
(1990), de Caio Fernando Abreu (1948-1996), pode-se dizer, é fruto de uma
inquietação que se estende, de um lado, ao projeto literário e poético do autor, e, de
outro, à questão da ficção brasileira contemporânea.
A obra de Caio Fernando Abreu (1970-1996) dialoga com muitos
acontecimentos políticos, sociais e culturais que marcam a metade do século XX.
Nesse caso, vê-se que a produção do autor gaúcho é comumente marcada pela
forte abordagem de temas que exploram a problematização do sujeito diante da
violência da ditadura militar no país, do inchaço dos grandes centros urbanos, dos
movimentos da contracultura, entre outros. O descentramento do sujeito,
enfatizado pela perda de um modelo identitário, é um dos traços mais peculiares da
obra do autor. Tendo perambulado por diversas metrópoles brasileiras e países
europeus ao longo de sua vida, Caio Fernando Abreu produziu uma vasta obra,
sendo que a maior parte dela consiste em contos, divididos em 8 livros (Inventário do
Ir-remediável; O Ovo apunhalado; Pedras de Calcutá; Morangos Mofados; Mel & Girassóis; Os
dragões não conhecem o paraíso; Ovelhas negras; Estranhos estrangeiros). Além destes, Caio é
autor ainda da novela Triângulo das águas, de 1983, e de dois romances, Limite Branco,
de 1971, e Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. As personagens de Caio Fernando
Abreu representam o indivíduo aniquilado pelo confinamento do espaço urbano
caótico. Entretanto, o romance Onde andará Dulce Veiga?, ainda que não descarte a
problematização do sujeito pós-moderno, explora outras possibilidades estéticas
como forma representativa de um tipo de procedimento estilístico que enche a
obra de arte de extratexto histórico-social através do uso permanente de
intertextualidade. A apropriação dos gêneros massivos funciona, em Onde andará
Dulce Veiga?, como uma espécie de poética do artifício, cuja exageração, e mesmo a
adulteração, de formas e objetos artísticos confere multiplicidade à narrativa.
21
Diante disso, acabamos por nos questionar em que medida e de que
maneira este romance, assim como outras produções brasileiras contemporâneas,
em linhas gerais, torna-se um produto híbrido a partir do momento que incorpora
elementos “depreciados pela cultura erudita” e, numa espécie de reciclagem
estética, revaloriza e, muitas vezes, ressignifica estes materiais apontando, entre
outras coisas, para a falência da distância entre cultura erudita e cultura de massa.
Assim, o kitsch serviria para transformar o texto num conjunto de discursos
provenientes de diferentes âmbitos culturais.
Ao nos depararmos com essas outras possibilidades de apreensão
da obra de Caio Fernando Abreu, a partir do romance Onde andará Dulce Veiga?,
embora já se pudesse evidenciar esse diálogo do erudito e do massivo, do “maior e
do menor”, em outros contos anteriores ao romance, observamos uma carência de
uma pesquisa mais profunda orientada para este romance. No que respeita à
estética do kitsch, constatamos, então, a ausência de estudos que apontassem, ainda
que de maneira breve, para essa temática. Obviamente que esta ausência se deu
como uma espécie de motivo fundamental para acreditarmos na pertinência da
nossa dissertação. É claro que existem muitos estudos de fôlego acerca da
produção ficcional de Caio, porém, reiteramos, nenhum que tratasse deste romance
à luz da inferência do kitsch como um deslocamento que pode funcionar, ora como
revalorização, ora como apropriação crítica que põe em evidência a
problematização do par arte e entretenimento.
Uma vez decididos o corpus e a temática, partimos para a divisão
formal da dissertação, entendendo que a investigação dessa estética do kitsch nos
imporia, sem dúvida, um capítulo teórico para nos ajudar a compreender aquele
mecanismo de apropriação/incorporação/reciclagem no romance de Caio
Fernando Abreu.
Sendo assim, optamos por uma divisão que, embora seja um tanto
“tradicional”, aloca no primeiro capítulo uma discussão teórico-crítica acerca do
kitsch; no segundo, buscamos mesclar teorias e avaliações a respeito da ficção
22
brasileira contemporânea com exposições de citações de obras contemporâneas
(além das de Caio Fernando Abreu); o terceiro capítulo é dedicado ao projeto
literário do autor, dando atenção a três contos, cujo diálogo com os códigos
advindos da cultura de massa já pode apontar uma certa exploração do terreno do
kitsch; e por fim, no último capítulo, partimos para a análise do romance,
evidenciando os traços mais significativos para a conclusão da existência dessa
estética do kitsch em Onde andará Dulce Veiga?.
Nesse sentido, o primeiro capítulo irá se concentrar nas bases
teóricas acerca da fenomenologia da estética do kitsch, levando em conta os
conceitos de indústria cultural e cultura de massa, bem como o sistema opositivo
vanguarda e kitsch, avaliando suas implicações estéticas e ideológicas no tocante ao
lugar da arte na contemporaneidade.
No segundo capítulo, daremos atenção às situações e formas da
ficção brasileira contemporânea, de forma a avaliar a crise da representação estética
na narrativa pós-moderna que, uma vez cooptada pelos produtos da cultura de
massa, promove outras possibilidades estéticas através da incorporação e
ressignificação dos signos do mau gosto. A literatura, então, abre-se numa polifonia
discursiva ao agregar as manifestações da arte de massa, tais como o romance
policial, o melodrama, o folhetim, o cinema B hollywoodiano, as canções
populares, entre outros. Nesse sentido, para uma compreensão mais coesa da
produção literária brasileira contemporânea, fez-se necessário o diálogo com
algumas acepções acerca da discussão sobre o pós-modernismo, fundamentalmente
no que se refere à diluição das fronteiras entre as culturas, e mesmo ao
entrelaçamento destas; à fragmentação das formas discursivas; à falta de
profundidade estética da literatura contemporânea pela enfatização de uma
mecânica que busca atender as exigências de um público consumidor; à falência dos
modelos identitários; à problematização, e mesmo a perda, de categorias que foram,
outrora, válidas na modernidade. Trabalharemos com a idéia de que a ficção
brasileira, a partir da década de 70, apreende, como temáticas, os signos da vida
23
urbana e das metrópoles impessoais, os discursos antes periféricos, a
problematização do indivíduo, a fragmentação discursiva, e, claro, os elementos
advindos da cultura de massa. Estas temáticas deram nova cor à narrativa
contemporânea numa espécie de pluralidade discursiva, cujos códigos massivos são
revalorizados. É dentro desse contexto, de esgotamento das certezas, da
problematização do cânone do passado, da propagação das imagens midiáticas, da
metalinguagem, da apropriação dos produtos da indústria cultural, que emerge o
projeto literário de Caio Fernando Abreu.
No terceiro capítulo, pretendemos discutir a poética de Caio
Fernando Abreu, autor marcado por uma produção de temática urbana, que
representou, através de personagens quase sempre angustiadas, o peso da
experiência da solidão, da opressão, da falta de comunicabilidade entre os sujeitos
massificados pelo cotidiano frio dos grandes centros urbanos. Pode-se dizer que a
originalidade do projeto poético de Caio, como diz Márcia Denser (2003),
concentra-se na linguagem que é “ambígua e fragmentada, descentrada e
esquizofrênica, poética e anti-literária, minimalista, essencialmente pós-moderna”.
Na composição da obra de Caio ainda encontramos as imagens clicherizadas que
comportam valores gerados pela cultuta de massa, como os estereótipos fílmicos e
musicais através das divas do cinema norte-americano das décadas de 40 e 50, a
paródia dos romances policiais, o melodrama das telenovelas e a simulação de um
discurso padronizado. Todos estes elementos misturando-se sempre àquele
cotidiano hostil e degradado.
Finalmente, o capítulo que encerra nosso trabalho, destinado ao
romance Onde andará Dulce Veiga?, dar-se-á como uma espécie de diálogo com a
discussão engendrada nos capítulos anteriores, de maneira que se possa abarcar os
procedimentos narrativos com o intuito de analisar o kitsch, tanto sob o ponto de
vista temático, bem como dos elementos conteudísticos do romance. Dito de outro
modo, vê-se que, em Onde andará Dulce Veiga?, Caio Fernando Abreu, para além das
personagens descentradas, propõe a problematização de categorias estéticas, e
24
mesmo do próprio modelo formativo do objeto literário, quando insere os resíduos
do kitsch ao romance, conferindo-lhes novo sentido. Isso se sustentará através da
temática do romance, isto é, uma busca que, só aparentemente, se mostra afeita ao
gênero policial; através dos mitos vinculados à cultura de massa que atuam como
uma espécie de imaginário coletivo, apontando uma consciência alienante das
personagens; e ainda, por meio de todas as referências fílmicas e musicais que
pontuam o trânsito cultural, marcando, novamente, o cruzamento do massivo e
erudito, do cânonico e do periférico, o que, de fato, reveste o romance de uma
justaposição de códigos heterogêneos. Numa espécie de provocação, o romance
Onde andará Dulce Veiga? traz junto ao título um atributo, “um romance B”, que faz
referência aos filmes hollywoodianos de tipo B que, em linhas gerais, representa
uma ironização dos rótulos valorativos conferidos aos produtos da indústria
cultural. A recuperação do kitsch, da paródia, dos elementos da cultura de massa e
da cultura popular dialogam o tempo todo com as representações estéticas da
cultura erudita. A provocação do título ainda repousa na idéia de que “Onde andará
Dulce Veiga?” é o título da crônica que o protagonista se vê obrigado a escrever
para um jornal decadente, no qual trabalha, no afã de descobrir o paradeiro de
Dulce, cantora de sucesso da década de 60 que desaparece sem deixar pistas. Nesse
caso, não só o mistério da busca por Dulce sustenta o modelo policial, mas
também o discurso fragmentado, cujas informações são quase enigmáticas,
requerendo a interpretação do protagonista. O leitor, então, é inserido nessa
experiência de mistério. Deixa de ser passivo e é alimentado por uma curiosidade
que se dá graças ao suspense, e mesmo ao processo de identificação com os
símbolos massivos. Desse modo, o objetivo da nossa dissertação é consoante à tese
de Irlemar Chiampi (1996) quanto ao papel dessa reciclagem estética poder se
apresentar como “operação crítica”. Na opinião da autora, esse tipo de
procedimento artístico, de recuperação e revalorização dos códigos massivos,
“responde a uma necessidade de elaborar o luto pelo fim da modernidade” (p. 85).
Portanto, incorporar e ressignificar pode representar uma certa liberdade da obra,
25
ou uma abertura, tal qual afirma Eco (2004), que nos possibilitaria afirmar ser um
recurso como este um traço da ficção pós-moderna.
26
1 A ESTÉTICA DO KITSCH: CONCEITO E CONTEXTO
1
A etimologia da palavra kitsch pode ser concontrada em alguns dos teóricos dos quais irá se
tratar nesse trabalho. Emprestaremos de Eco (1993, p. 71) a etimologia conferida por Ludwig
27
objetos, atitudes ou obras de arte considerados de mau gosto, medíocres, cafonas,
démodés; trata-se, assim, da ausência de estilo, marcadamente conferida pela negação
daquilo que é autêntico, constituindo-se como uma arte pejorativa e falsa.
A partir disso, o primeiro passo deste trabalho consiste na
explanação de algumas teorias acerca da estética kitsch a fim de fundamentar as
bases de uma conceituação, levando em conta o contexto no qual o kitsch está
inserido, tanto sob o ponto de vista sócio-histórico localizado na ascensão
burguesa, bem como sob o viés do campo artístico, que, na tentativa de agradar um
público cada vez maior, lança mão de formas já gastas e projeta sobre elas uma
espécie de representação estética redundante, cujo objetivo é dar aos seus
receptores a capacidade de reconhecimento rápido e fácil. Nesse sentido, vê-se que
para encontrar uma caracterização para o kitsch é necessário verificarmos sua
intrínseca relação com outras formas artísticas e sua localização em um dado
contexto. Para tanto, trataremos nesse primeiro momento do fenômeno do kitsch à
luz de um elenco teórico que, ao nosso ver, pode ser dividido entre aqueles que
dirigem ao kitsch apenas uma análise formalista – no sentido mesmo de
compartimentá-lo em objetos, esvaziando-o de qualquer julgamento crítico-
ideológico – , como Abraham Moles (1975), por exemplo, e aqueles que o colocam
nos termos de uma visão dialética, isto é, procuram analisar a estética kitsch como
um signo de valor que só pode ser compreendido se colocado dentro de um
sistema dicotômico: na relação vanguarda e kitsch, tais como Clement Greenberg
(1996), Hermann Broch (2001), Gillo Dorfles (1965), José Guilherme Merquior
(1974) e Umberto Eco (1993).
Por saber que o kitsch acabou se tornando um tipo de arte
absolutamente perniciosa, como veremos na exposição teórica, acreditamos que,
Geiz, in Phaenomenologie des Kitsches (1960): “Segundo a primeira, remontaria ele à segunda metade
do século XIX, quando os turistas norte-americanos em Munique, querendo adquirir um quadro,
mas barato, pediam um esboço (sketch). Teria vindo daí o termo alemão para indicar a vulgar
pacotilha artística destinada a compradores desejosos de fáceis experiências estéticas. Todavia, em
dialeto mecklemburguês, já existia o verbo kitschen para ‘tirar a lama da rua’. Outra acepção do
mesmo verbo seria também ‘reformar móveis para fazê-los parecer antigo’, e tem-se igualmente o
verbo verkitschen para ‘vender barato’ (grifo do autor).
28
pensar a lógica da estética kitsch só é possível desde que se explore o princípio
daquilo que se convencionou chamar Estética – enquanto conceito subjacente à
experiência da arte e da natureza.
Entender e fazer crer que determinados objetos e produções são
genuinamente artísticos requer, sem dúvida alguma, trazer à discussão um outro
problema deveras complexo – o chamado juízo de valor. Todo o funcionamento
desta lógica, sobre a qual repousam objetos e obras, artistas, espectador/receptor,
fruição e apreciação, invoca a constituição do gosto, o qual pode chegar ao juízo
estético ou à simples apreciação hedonista. Seja como for, o gozo estético ou a
“concepção da apreciação como percipiência” (OSBORNE, 1978, p. 44) implica na
atual crise das formas de representação estética, cujo apagamento da distância entre
obra de arte e obra como bem de consumo promove o fascínio pelo kitsch.
Conceitualmente, seria possível acreditar que neste pequeno espaço
fronteiriço entre a universalidade do juízo estético e o prazer hedonista reside o
gérmen da estética do kitsch, na qual subjaz toda a degradação da arte que lhe
serviu de empréstimo. De fato, não se advoga aqui pelo projeto moderno nem pelo
“cosmopolitismo elitista dos estilos de vanguarda” (MERQUIOR, 1974, p. 8). A
nossa questão primeira está na tentativa de captar por que o rompimento com as
produções canônicas modernas foi culminar no efeitismo2 do kitsch?; e ainda, qual
a natureza desta estética kitsch?. Embora nosso foco concentre-se na atuação do
2
‘Efeitismo’ e ‘Esteticismo’ são expressões que integram o corpo da linguagem da estética do
Kitsch. Merquior (1974), por exemplo, explica o ‘efeitismo’ tomando de empréstimo a conhecida
fórmula do crítico norte-americano Clement Greenberg, que cria essa expressão ao comparar o
kitsch com a arte de vanguarda. Segundo Greenberg, então, “enquanto a arte de vanguarda,
sendo, como é, ‘abstrata’, introspectiva e reflexiva, dedicada às explorações ‘metalingüísticas’,
tende a imitar os processos da arte, o kitsch imita os efeitos da arte” (MERQUIOR, 1974, p. 14 –
grifo do autor). Embora Merquior aponte que a ação de provocar efeitos no âmbito das artes não
é uma especialidade que surge com o Kitsch, uma vez que “a arte da surpresa e dos efeitos
teatrais” (p. 14) remonte ao barroco, será com a arte kitsch que o “efeito se converte ao
‘agradável’, ao ‘culinário’ e digestivo” (p. 15 – grifo do autor). Com relação ao “esteticismo”,
podemos apresentar as considerações de Merquior e de Gillo Dorfles. Merquior, defende que a
arte kitsch é inimiga das “estéticas exigentes”, antes é “um dos alimentos desse ethos
desascetizado”. Nesse caso, o kitsch busca, antes de mais nada, efeitos “puramente estéticos” (p.
32). No caso de Dorfles, o procedimento do esteticismo na obra de arte é justamente “a ausência
de distância estética”, provocada pelo mecanismo da “falsificação intencional” (DORFLES, 1965,
p. 152).
29
kitsch, tendo em vista sua caracterização burlesca de formas outrora realizadas pela
arte, insistimos na necessidade de apontar, mesmo que de maneira breve, a
preocupação assumida da filosofia da arte por meio da determinação da natureza
do objeto artístico. Certamente, tal atitude implicaria uma exposição historiográfica
ou dialética dos fundamentos teóricos da estética da arte, mas cremos ser, além de
inviável, desnecessário, uma vez que optamos pelo filho espúrio daquela – o kitsch.
Por isso tudo, acresce-se também a insuficiência de teorias que há muito tentam dar
cabo das expressões estéticas; insuficiência que, claro, se verificará menos pela
capacidade intelectual do que pela vasta complexidade das produções artísticas e da
variedade das investigações filosóficas.
Nesse sentido, imaginamos que a nossa justificativa em traduzir o
pensamento de Immanuel Kant (1794-1804)3 e submetê-lo à lógica da nossa
argumentação repouse no fato de a teoria a respeito da fenomenologia do kitsch
apenas poder ser clarificada nos termos da dimensão estética4. Assim, notar-se-á
que o diálogo entre arte e kitsch não se esgotará nesse capítulo inicial; ao contrário,
tal contraposição irá se desdobrar em outras categorias de igual modo dicôtomicas,
isto é, postulações que, quer no âmbito estético, sociólogico, filosófico,
antropológico, e mesmo cultural, apontam este diálogo como situação sine qua non.
Finalmente, pretendemos encerrar esse capítulo com entendimento suficiente para
que possamos chegar ao romance de Caio Fernando Abreu, a saber, Onde andará
3
Será utilizada neste trabalho a terceira obra da trilogia de Críticas, a saber, A Crítica da Faculdade
do Juízo (1993), publicada em 1790, com a qual Kant diz haver ter concluído seu projeto crítico.
Acredita-se que essa obra encerra o empreendimento crítico de Kant, uma vez que arremata a
discussão da faculdade de entendimento e da razão, explorados na duas primeiras obras, com a
discussão a respeito da faculdade do juízo, sendo, portanto, o sistema dos juízos estéticos do
gosto opositivos aos dos juízos práticos e teóricos.
4
Importante ressaltar que seria perfeitamente pertinente somarmos a nossa discussão o
pensamento de Hegel, bem como o de Benedetto Croce e Luigi Pareyson no tocante à definição
do conceito de arte, em sentido geral. No entanto, julgamos ser esta discussão demasiado
complexa e extensa, não nos cabendo aqui. Além disso, acreditamos que a opção única por Kant
não seja excludente com os demais. O criticismo kantiano vem ao nosso encontro por razões
óbvias, que não se justificam somente no fato de o filósofo alemão ter fundado as bases da
estética moderna, mas que vão desde definições estéticas até as considerações sobre a formulação
de juízos de valor/juízos estéticos (tendo em vista a Crítica do Juízo). Mesmo assim, reservaremos
a Croce, em Breviário de Estética (1997), espaço para considerações a respeito dos fundamentos
kantianos.
30
Dulce Veiga? (1990), e apontar como esse objeto híbrido, construído a partir da
incorporação de elementos depreciados pela cultura erudita, numa espécie de
reciclagem, consegue, ao mesmo tempo, aliviar a tensão entre alta cultura e cultura
de massa – o que já revela a falência dos sistemas rígidos de separação entre as
culturas – , e ainda problematizar o par arte e entretenimento.
Não obstante o objeto artístico esteja relacionado diretamente a
uma intuição, a uma emoção ou sentimento, a estética é norteada por um discurso
racional e, portanto, está sujeita aos rigores de um exame lógico-argumentativo. De
qualquer modo, as teorias estéticas convergem na tentativa de dar as propriedades
denifidoras da natureza da arte. Isto significa dizer que a pergunta que principia um
discurso teórico é: “O que é arte?”. Assim, tais teorias manteriam uma intrínseca
relação não apenas com os fundamentos da natureza da arte, derivando daí a
apreciação estética, mas com o próprio conceito formulado a respeito desta. Em
geral, a teoria estética busca explicar tal conceituação, sua aplicação às várias formas
de representação estética, a experiência do artista, e, claro, a fruição pelos
apreciadores de arte. O problema é que, diante da complexidade artística, como
expusemos há pouco, se torna peremptoriamente ilegítimo qualquer tipo de
construção de propriedades que sejam necessárias ou suficientes à arte. Contudo, a
possibilidade de se verificar novas diretrizes para a também nova produção artística
contemporânea apenas se dá a partir da avaliação do papel e contribuição da teoria
estética.
Para não cairmos na armadilha do percurso de âmbito histórico ou
na mera taxionomia dos tipos teóricos concernentes à estética da arte, optamos, por
bem, direcionar nossa atenção inicial a alguns conceitos relativos ao campo estético
para, assim, alcançarmos nosso objeto de mira, o kitsch. Dessa forma, beleza,
unidade estética, gosto e percepção, gozo estético e juízo estético, todos conceitos
inerentes ao corpo da linguagem que formula a teoria da estética, nos servirão de
amparo para o início da nossa discussão neste capítulo.
31
Quando se abeira do terreno profícuo da teoria estética, no qual o
pensamento objetivo exerce firmes contornos na subjetividade artística, salta aos
olhos o conceito de gosto como essencial na compreensão das formulações dos
juízos estéticos, cuja autenticidade ou falsidade conferidas aos objetos se definem
pela maneira como ocorre a sua percepção. Contra o reducionismo do juízo
estético, forçosamente, surge nas malhas do gosto a experiência com objetos
artísticos, na qual não são imputados os valores estéticos. Então, vê-se que a
atividade estética só se realiza em si mesma através da exigência da criação do juízo
estético.
Chega-se, assim, ao pensamento de Immanuel Kant (filósofo
alemão que nos setecentos funda as bases da estética moderna) acerca da
concepção da apreciação estética permeada pelo conceito de juízo estético. Dotado
de um preciso pensamento crítico, Kant, “que relutou em elevar a Estética ao nível
de tratamento filosófico” (CROCE, 1997, p. 112), vê-se obrigado a escrever, depois
da Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática, a Crítica do Juízo, na qual “distingue
com energia a natureza estritamente idiossincrática do sentimento do agradável do
juízo propriamente estético” (MERQUIOR, 1974, p. 47). Talvez como forma
combativa aos princípios hedonistas de Aristóteles e Platão, os quais acreditavam
estar concentrado no belo o critério único de todo objeto artístico que desejava
agradar, Kant tenha proposto uma outra ordem, entendendo que beleza tem de ser
apreciada na sua forma, mas com o esclarecimento de que esta não representa um
fim em si mesma, sabendo, nesse caso, que o juízo estético se funda sobre um
sentimento privado e individual. No entanto, o belo essencial, em Kant, mesmo
contido na subjetividade de cada um, se revela como um prazer universal, já que
“solicita a aprovação de todos os demais” (KANT, 1993, p. 19). Por ser demasiado
complexa a doutrina kantiana, optamos por respaldos, conferindo a Merquior e
Croce uma explicação melhor do pensamento de Kant:
33
(ECO, 1993, p. 69); um mau gosto como falta de medida que opera na vulgaridade
através de clichês, mas que, ainda assim, busca se elevar à condição de obra de arte.
34
no reino dos valores estéticos de um novo fenômeno, o qual revela na sua afluência
toda a gratuidade de uma arte apoiada na sensação de causar efeito. O lugar mais
seguro para o kitsch é justamente aquele avesso à sensibilidade da experiência
artística, fazendo, então, com que “o enfrentamento de dificuldades perceptivas”
(MERQUIOR, 1974, p. 12) não seja solicitado. Nesse caso, o kitsch é a arte do
paradoxo; ele é contestado por seu conformismo, pela utilização que faz de formas
já existentes, não busca o original, opta sempre pelo déjà vu; tem a tendência de
vulgarizar e deformar os objetos, o discurso e as formas estéticas; não contente
com a imitação e reprodução daqueles, o kitsch os degrada. Eis que essa
desnaturalização é essencial à lógica da estética kitsch.
Diante das aporias advindas do terreno acidentado da arte pela
invasão do kitsch, os teóricos buscam cada vez mais a compreensão de termos que
possam produzir algum significado com relação à estandartização da qual padece a
cultura contemporânea.
Um dos primeiros teóricos que atentou para a falência da arte
causada pela instauração do kitsch foi Hermann Broch, cujo livro Quelques
Remarques à propos du kitsch5 (2001) confere ao “homem kitsch” – kitschenschen – a
experiência da decadência artística. Broch viu na atitude do homem kitsch a única
possibilidade de permanência da “pacotilha artística”6, assentando toda sua
investigação “numa atitude determinada de vida”, atribuída à burguesia do século
5
No original: Einige Bemerkungen zum Problem des Kitsches (1955). Traduzido para o francês pela
Gallimard, em 1966, com o título: Quelques remarques à propos du kitsch.
6
O termo “pacotilha artística”, usado por Hermann Broch (2001) e também por Umberto Eco
(1993) é utilizado para designar um conjunto de ‘produtos’ que falsificam e adulteram obras de
arte originais. O kitsch, nesse sentido, representaria esse conjunto de obras artificiais. Dorfles
(1965, p. 147) afirma que “o princípio do ‘sub-rogado’, da falsificação com fins comerciais e
utilitários é, sem dúvida, um dos primeiros responsáveis pelo processo de degradação da obra de
arte”. O autor dá alguns exemplos interessantes que expressam bem essa condição de ‘fake’ do
kitsch: “a Gioconda de Leonardo utilizada como reclame de remédio [...], o fragmento de música
clássica reduzido a ritmo de jazz [...], a inserção de um móvel antigo no meio de outras peças de
grosseira falsificação [...], o romance célebre (Crime e Castigo, Ana Karenina, Vermelho e Negro)
condensado e reduzido ao romance cor-de-rosa [...]; o verso harmonioso e romântico, o refrão de
uma cançoneta, habilmente incluídos num texto literário, ou o objecto trivial e produzido
industrialmente, os restos, os destroços, de que grande artistas se serviram como elementos
compositivos nas suas obras (Schwitters, Duchamp, Picabia, etc.)” (DORFLES, 1965, p. 143).
35
XIX. Assim, é na atitude do homem que necessita da mentira do kitsch como
forma de reconhecimento próprio que Broch justifica sua definição, pois “a arte
kitsch não nasceria, nem sobreviveria se não existisse o homem do kitsch, que ama
o kitsch, que como produtor quer fabricá-lo e como consumidor está pronto a
comprá-lo e mesmo a pagar um preço alto por ele”7 (BROCH, 2001, p. 7 –
tradução nossa).
A teoria quase messiânica de Broch protagoniza uma luta pela
revitalização estética frente à literatura estetizante e à arte kitsch. O autor austríaco,
então, parte da idéia de que a dissolução dos valores, sejam estes ligados à arte ou
não, dá-se como conseqüência inevitável da secularização do Ocidente, uma vez
rompidas definitivamente a concepção platônica do mundo e a visão teocêntrica da
existência humana. O relativismo que pode suplantar valores de qualquer ordem
chegaria à arte e à literatura – instâncias privilegiadas – causando-lhes a morte na
mesma lógica que o advento da classe burguesa imputa à valoração dos signos
vazios. Com isso, o kitsch em toda a sua pujança seria a maior ameaça à arte, pois
provocaria num fruidor pouco informado uma espécie de arrebatamento, fazendo-
lhe crer, portanto, estar diante de uma verdadeira obra de arte; o kitsch escaparia
dos valores de controle (entenda-se juízo estético ou ‘senso comum’, como defende
Merquior) transformando-se numa mentira artística que operaria, antes de mais
nada, como contravenção do autêntico. É, pois, através da sedução que o kitsch,
enquanto fenômeno estético, se esforça por esconder o vazio.
Nas palavras de Merquior (1974), “os escritos de Broch sobre esse
tema constituem [...] o ápice crítico da teoria do kitsch”, porque conjuga “a
descrição estilística do kitsch a uma verdadeira sociopsicanálise da burguesia” (p. 29-30
– grifo do autor). O crítico brasileiro aponta a teoria de Broch em face dos
discursos contraproducentes de Edgar Morin e Abraham Moles, os quais também
7
No original: “l’art kitsch ne saurait naître ni subsister s’il n’existait pas l’homme du kitsch, qui
aime celui-ci, qui comme producteur veut en fabriquer et comme consommateur est prêt à en
acheter et même à le payer un bon prix”
36
se propuseram a tratar do kitsch, mas numa posição bem distante da de Broch.8 Na
verdade o que faz Merquior é traduzir o pensamento de Broch com relação à
“fome de décor” burguesa no século XIX:
Será justamente sob esse viés que Broch nos põe à frente daquilo
que ele nomeia como “o sistema do kitsch”9, que tem por princípio básico fazer
“um belo trabalho”10. Sendo assim, “o kitsch é o mal no sistema de valores da
arte”11 (BROCH, 2001, p. 33 – tradução nossa). O mecanismo enganador desta arte
de efeitos acaba, por assim dizer, representando um fim em si mesmo, tal qual nos
mostrou Broch, a beleza como consubstancial ao kitsch, e a verdade à arte.
Se “o esteticismo é a matriz da pseudoarte”, como quer Merquior
(1974, p. 32), não haverá dificuldade de compreensão ao ver que o kitsch não
8
Para Merquior, as análises de Morin e Moles são contraproducentes porque estes autores “se
empenham em neutralizar a noção de Kitsch, retirando-lhe todo sabor de acusação e denúncia” (p.
24 – grifo do autor). O problema dessa legitimação do kitsch, segundo Merquior, não reside na
tentativa de justificar a arte kitsch, e sim, de desejar “a uma sutil demolição interna do significado
crítico da idéia de kitsch” (p. 24).
9
No original: “le système du kitsch”
10
No original: “fait du beau travail”
11
No original: “le kitsch, c’est le mal dans le système des valeurs de l’art”
37
submete seus objetos a um imperativo ético, nem tão pouco nos convida à reflexão
ética; antes, ele se apóia na representação do efeito, notadamente percebido pela
comunhão de exagero e ostentação. Perceber a finalidade do kitsch é a forma mais
eficaz para entender o vilanismo tão comumente atribuído a sua falta de valor
estético. Prendemo-nos, então, à leitura que Broch faz acerca do papel exuberante
da arte prontamente reconhecível:
12
No original: “Sa convention originelle est l’exubérance ou, comme nous pouvons maintenant
bien dire, une exubérance simulée puisqu’elle cherche à établir une liaison absolument fausse
entre le ciel et la terre. En quelle espèce d’œuvre d’art ou, plus exactement, en quelle création
artificielle essaye-t-elle de transformer la vie humaine? La réponse est simple: en une œuvre d’art
névrosique, c’est-à-dire une œuvre d’art qui impose à la réalité une convention absolument irréelle
et qui l’y fait entre de force. Dans le romantisme à son apogée fourmillent, comme la chose la
plus banale, des tragédies d’amour, des suicides et des doubles suicides, car le nérvrosé,
cheminant entre des conventions irréelles qui ont pris pour lui une valeur symbolique, ne
remarque pas qu’il ne cesse de prendre la catégorie esthétique pour la catégorie éthique et qu’il
obéit à des imperatifs qui n’en sont absolument pas. La seule catégorie qui s’est manifestée ici est
celle du kitsch et de sa malfaisance. C’est la malfaisance d’une hypocrisie universelle dans la façon
de vivre, égarée dans l’immenses fourrés de sentiments et de convention. Il est superflu de faire
ressortir que la bourgeoisie s’est jouée hypocritement la comédie du triomphe complet de son
attitude”.
38
Sob tal aspecto, verifica-se, em Broch, que agregar a automatização
artística aos desejos e gostos da burguesia industrial, copiados em grande parte da
nobreza aristocrática, é perfeitamente justificável no Romantismo pelo modo como
este concedia “valores simbólicos” aos objetos da arte sempre no sentido de
conferir-lhes a beleza como requisito imediato. Por causa dessa exigência
romântica, as produções artísticas passariam a repousar num sistema fechado,
culminando no fim da arte. Entretanto, o crítico afirma que o kitsch não é “uma
arte ruim”, mas sim “um corpo estranho jogado ao sistema da arte” (p. 30).
Da mesma forma que Broch, negando acumpliciar-se ao kitsch,
Clement Greenberg (1996), no capítulo intitulado “Vanguarda e Kitsch” (p. 22-39),
discute o kitsch à luz da formação de juízos de valor, entendendo que sem a
aplicação do gosto e juízo estético não há efetiva possibilidade de se conhecer arte.
Só isso já seria suficiente para revelar, indubitavelmente, uma postura bastante
contrária ao princípio “enganador” do kitsch. Todavia, o crítico norte-americano
avança na tese da objetividade do gosto, afirmando que nenhum juízo de valor
pode ser criado a partir de posições lógicas ou científicas por se tratar de valores
humanos, e, nesse sentido, “valores relativos” (p. 31). Mesmo os valores absolutos
(ou seja, os valores inquestionáveis, universais), de tal sorte que os buscou a
vanguarda, são aqueles que se ligam à estética, portanto, ainda relativos. Contudo,
diz Greenberg: “parece ter havido um consenso mais ou menos geral entre a parte
culta da humanidade em todas as épocas sobre o que é arte ruim” (p. 31).
A extensa obra de Greenberg permite-nos evidenciar, e não seria
redundante dizer, com bastante clareza, a vanguarda como uma produção de alto
nível, e a justificativa para isso reside na sua auto-consciência. Esse paralelismo
entre vanguarda e kitsch parece, de fato, ser um lugar-comum no seio da teoria
estética, porém, em Greenberg, essa relação se mostra antes como uma necessidade
do que uma contingência13. Isso porque, como se sabe, as vanguardas sempre
13
Cumpre lembrar, antes de mais nada, as duas acepções possíveis ligadas ao conceito de
vanguarda: aquela concernente às manifestações artísticas do ínicio do século XX, tais como
Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, e tantos outros ismos, acrescentando ainda as chamadas
39
tentaram manter o sentido de “verdade” ou “originalidade” da obra de arte,
baseando suas “experiências” em uma espécie de contraposição à ilusão promovida
pela arte enlatada. Na verdade, o assalto que faz o kitsch à estética de vanguarda
estabelece um tipo de dialética que desemboca na relação entre invenção e
padronização, com a qual, Greenberg, postula um modelo teórico para explicar o
modo como a dinâmica do kitsch, atuando provocativamente nos mesmo termos
da vanguarda, promove o rebaixamento de obras artísticas, e, ainda, incita nos seus
receptores a falsa sensação de estarem fruindo, do ponto de vista estético,
possibilidades artísticas mais apuradas.
Em decorrência disso, “o kitsch é enganador” porque não provoca
nenhum enriquecimento da capacidade fruitiva e mesmo da atividade perceptiva
diante do objeto artístico, ao contrário, trabalha na insistência de estabelecer formas
prontamente reconhecíveis, depauperando, assim, a verdadeira experiência das
formas de representação estética. Diante disso, Greenberg defende seu pensamento
a partir da idéia de que “a cultura de vanguarda é imitação do ato de imitar”,
enquanto o kitsch “imita seus efeitos” (GREENBERG, p. 26-33).
Já o italiano Dorfles (1965) propõe uma definição de kitsch que vai
além das propriedades normativas do gosto e da fruição estética porque, antes de
qualquer outra coisa, o kitsch liga-se a um desvio no exame da obra de arte, quer
dizer, o indivíduo “dotado de mau gosto”, certamente, poderá fruir determinados
objetos, mesmo aqueles considerados “obras de arte autêntica”, mediante um olhar
equivocado. De fato, se isso adultera, sob o ponto de vista estético, os objetos e as
obras, também provoca um “desvio da norma” (p. 141) no que diz respeito à
questão ética dos sentimentos. Diz Dorfles, então, que “mesmo os sentimentos, as
neovanguardas do período do pós-guerra que se estendem até os dias atuais – Pop Art, Arte
Povera, entre outras; e aquela ligada a uma idéia de vanguarda que, de acordo com Subirats (1993,
p. 11-12), “designa uma estratégia militar”, isto é, expressão de uma pretensão ideológica de
poder que agia de forma a dominar e postular “a liquidação das formas de experiência do
passado”. Isso será melhor entendido no próximo subcapítulo (1.2), onde trataremos da dialética
vanguarda e kitsch, voltando, inclusive às considerações de Greenberg. Por ora, cabe-nos apenas
esboçar o pensamento dialético de Greenberg, tendo em vista a necessidade que nos é imposta
pela definição do conceito de kitsch.
40
reacções patéticas, a resposta moral, a própria noção de ‘bem’ e de ‘mal’, de dor, de
amor, acabam, em certo sentido, por alterar-se” (DORFLES, 1965, p. 141 – grifo
do autor). Isso é curioso pois retira dos objetos e do aspecto fruitivo destes a
exclusividade de uma efetiva avaliação estética que pudesse, com efeito, criar uma
definição cristalizada para o kitsch. Dito de outro modo, vê-se que o que, a priori,
sustenta a degradação da arte genuína é uma espécie de “fruição aberrante”
conferida pela cooptação de valores artísticos aos produtos kitsch, cujo mediador é
aquele público que tem uma peculiar capacidade apreciativa (ou depreciativa)
duvidosa diante de objetos artísticos ou, por outro lado, complacente diante da
falsificação do kitsch.
Em Dorfles, também se verifica que a situação da fenomenologia
do mau gosto passa necessariamente pela compreensão da ascensão progressiva de
uma classe média (ou pequeno-burguesa), que, na tentativa de romper com os
velhos padrões de criação, passa a nutrir uma elevada simpatia ao ímpeto
renovador que prometia, entre outras coisas, o alargamento da produção artística,
daí o surgimento de uma arte destinada às massas. Certamente, pode-se pensar que,
tal qual fez Broch, ao associar o mau gosto ao sentimentalismo exacerbado do
Romantismo, Dorfles o faz na medida em que observa no “aburguesamento das
massas” um crescente gosto pelo “patético do tipo kitsch”. Isso porque o
sentimentalismo afeito ao kitsch, de acordo com Dorfles, pode ser considerado
“como uma espécie de pathos privado de todo o componente racional e
inteiramente voltado para um deleite hedonista das suas experiências” (p. 145 –
grifo do autor). Assim, o homem de mau gosto “deixa-se enternecer a qualquer
preço” (p. 145), corrompendo-se à falsificação do kitsch. Inegavelmente, isso
justifica aquela “fruição aberrante”.
Segundo Dorfles (1965, p. 152), a “distância estética” criada a partir
da adulteração da intencionalidade fruitiva faz com que a obra de arte não seja mais
“entendida como veículo de um ‘valor’, como um elemento axiologicamente
relevante, mas como um estímulo de uma pessoal e subjectiva comoção”.
41
Talvez esteja precisamente aqui uma das diferenças mais
significativas entre apreciador de bom e mau gosto, ou melhor,
entre o autêntico saboreador da arte e o saboreador ‘utilitário’ e
hedonista da mesma: o facto de estabelecer uma certa distância
entre si e a obra, de observá-la com participação consciente e não
apenas com ‘deixar-se ir’ na onda do agrado, faz com que possa
também admitir o porquê de uma possível negativização do kitsch, a
eventualidade de poder utilizá-lo com fins artísticos (DORFLES,
1965, p. 152 – grifo do autor).
42
sabido que esse procedimento de provocar sensações falsas, mas não menos
prazerosas, é sempre predeterminado.
Merquior (1974) é absolutamente mordaz ao fazer algumas
observações a respeito “do vulgar que aspira a parecer refinado” (p. 7-8). Poder-se-
ia afirmar, talvez, que o capítulo intitulado “Kitsch e Antikitsch (arte e cultura na
sociedade industrial)” traga, sob o ponto de vista crítico, as melhores considerações
sobre a estética do kitsch, senão, pelo menos, a mais completa no tocante à
exposição teórico-crítica. Na verdade, o texto de Merquior pode ser considerado
completo porque discute o kitsch a partir de uma visão bem ampla que vai desde
sua formação junto à classe burguesa, sua especificidade concentrada no efeitismo e
esteticismo, a visão negativa da sociologia como crítica cultural, a sua legitimação
crítica, e, finalmente, a sua relação com a vanguarda. O que nos interessa nesse
momento é observar algumas dessas considerações de Merquior, levando em conta
o propósito inicial deste capítulo com relação à fenomenologia do kitsch. Nesse
sentido, concentraremos nossa atenção na idéia da “reação controlada”
concernente à atuação estética do kitsch, e ainda, na análise que faz o autor sobre o
livro O Kitsch: a arte da felicidade (1975)14, de Abraham Moles15, que, como é sabido,
vê no kitsch uma certa democratização cultural, um tipo de prazer socialmente
aceito.
Como o kitsch é um advento que surge da forte aspiração burguesa
aos prestígios artísticos gozados originalmente pelas aristocracias, não é de se
espantar que sua lógica se alimente da mesma forma que a cultura de massa que, no
intuito de obedecer aos padrões industriais, acabou por deteriorar os objetos
culturais. Por força do alargamento do consumo imediato e do desejo pelo
divertimento a qualquer preço, a cultura de massa – que nada mais é do que um
descendente da burguesia industrial – falsearia a promessa de que a cultura estaria,
14
O livro de Abraham Moles, originalmente em francês com o título: Psycologie du Kitsch – L’art du
bonheur, foi publicado pela Maison Mame, Paris, em 1971.
15
Conjugaremos, de forma a finalizar esse tópico incial, a crítica de Merquior ao pensamento de
Abraham Moles por acreditar que essa exposição dialética tenha pertinência na compreensão final
da fenomenologia estética do kitsch.
43
então, voltada às massas de forma democrática, que o acesso aos “bens culturais”
seria igualitário.
Esses mesmos bens culturais não passariam mais por uma fruição, e
sim, por uma consumação; os bens de consumo alimentariam um público, desejoso
de consumir, sob a máscara do politicamente acessível. Assim, a cultura, ao lado do
homem pouco afeito ao esforço mental, banaliza e padroniza tanto os objetos
quanto o gosto16. Cumpre lembrar que só isso não é suficiente para diferenciar a
arte kitsch dos outros tipos massivos de representação estética, pois, no caso
modelar do fenômeno kitsch a “reação controlada”17, previamente pensada, é
fundamental para seu aprimoramento. Este mecanismo, que conjuga na arte kitsch
efeitismo e esteticismo, segundo Merquior, é garantia para o homem da massa “da
alienada distração”, uma agradabilidade diante de um repertório de objetos
fomentadores do prazer. Sem dúvida, é possível perceber que o kitsch é uma arte
bem acabada, ainda que esteticamente degradada, tanto no seu propósito formal
quanto ideológico, idéia que, de fato, parece bastante paradoxal, uma vez
conhecido o esvaziamento de sentidos no kitsch. A explicação para este bom
acabamento reside na concepção de que a arte kitsch, insistindo nas formas
facilitadoras de fruição, e trabalhando no imaginário coletivo de forma a alimentar
o consolo através daquilo que é universalmente reconhecido, desempenharia um
papel absolutamente reacionário na tentativa de aprisionar um contingente
significativo de fruidores nos seus signos vazios. É, pois, nesse sentido que se
estende a crítica ferrenha de Merquior à teoria legitimadora de Moles, a qual, entre
outras coisas, confere ao kitsch a estética do prazer.
De fato, não é preciso esmiuçar o livro de Moles (1975) para se
deparar com conclusões pouco fundamentadas ou reflexões redundantes acerca do
16
Todas essas considerações a respeito da massificação cultural por meio da indústria cultural
serão esmiuçadas no próximo subcapítulo quando discutiremos a dialética vanguarda e kitsch.
17
De acordo com Merquior (1974, p. 11), “a forma específica da atuação do kitsch em termos de
percepção estética é a ‘reação controlada’: a especialidade do kitsch consiste em digerir
previamente a arte para o consumidor. A obra kitsch já contém as reações do leitor ou
espectador, dispensando maiores esforços perceptivos e interpretativos” (grifo do autor).
44
kitsch; isso já pode ser apontado como lugar-comun. O que chama atenção, e nesse
ponto concordamos com Merquior, é a falta de postura e definição valorativas no
tocante aos desígnios falaciosos da arte kitsch. No segundo capítulo do livro de
Moles, “A inserção do kitsch na vida” (1974, p. 23-30), diz o autor: “Este livro
gostaria de ser o revelador de uma imagem kitsch latente do universo
contemporâneo e para isso procurará morder com ácido cítrico esta imagem. O
distanciamento que oferece o humor não deve iludir-nos” (p. 28-29). O que se
verificará ao longo do livro, contudo, serão esforços para agregar à arte da
felicidade (entenda-se a arte do kitsch) um valor inegavelmente positivo. Moles
reconhece os processos negativos do kitsch, porém isso não neutraliza uma análise
absolutamente positiva com relação aos produtos do kitsch. Parece mesmo que a
conclusão de Merquior sobre a “tentativa de esvaziamento crítico da noção de
kitsch” (1974, p. 24) buscada por Moles se concentra no fato de este justificar o
kitsch como uma necessidade permanente do homem. Dessa forma, nota-se que,
mesmo ressaltando os aspectos artificiosos e destrutivos do kitsch, Moles atribui-
lhe um caráter menos pejorativo por acreditar no seu princípio de validade estética,
daí aquela atitude filistina tão rejeitada por Merquior. Para termos uma idéia mais
coesa do modelo teórico de Moles, é necessário que avaliemos, em primeiro lugar, a
relação ambígua estabelecida na transformação do kitsch em arte através do prazer
encontrado pelo homem.
A começar pelo plano estético, percebe-se que Moles,
erroneamente, confronta o kitsch com a arte pelo papel democrático deste em
contraposição à dificuldade perceptiva e fruitiva daquela. Ora, se Moles desejava
pôr o kitsch no mesmo princípio de equivalência estética que a chamada arte
autêntica, deveria, antes de tudo, lidar, sob o ponto de vista teórico-crítico, com
concepções mais apuradas sobre a finalidade dos objetos artísticos. Entretanto,
Moles prefere o reducionismo, lançando mão de taxionomias que, concordemos,
são interessantes, mas estão bem longe de revelar uma possível epistemologia do
kitsch, uma vez que é esta a proposta. O problema maior para Merquior é a defesa
45
de Moles quanto à alienação kitsch. Já nosso intuito é bem menos agressivo; não
pretendemos denunciar aqueles que não se posicionaram avessos à falsificação, e
sim, no caso de Moles, demonstrar que seus argumentos ficaram aquém das
possibilidades verdadeiramente explicativas. Moles defende, por exemplo, que
46
aceitação fundamental” (p. 75). Parece ser essa a razão encontrada por Moles para
acreditar em uma “função pedagógica do kitsch”.
47
queiramos ou não, “a arte cotidiana de nossa época”18. E mesmo a arte autêntica –
aqui, a referência é à arte de vanguarda – tomou posse de figurações kitsch porque,
afinal de contas, “a arte de massa é um fenômeno do mundo da arte” e, assim,
“produzida segundo admissões básicas da Arte dos Séculos: a admissão de que as
formas tradicionais podem ser postas em novos usos através de recursos técnicos; a
admissão de que estas formas conservam um poder intrínseco de emocionar as
pessoas” (p. 196). Por isso, Rosenberg rejeita essa crítica acadêmica que instala nos
procedimentos estéticos a “separação e oposição” entre arte diletante e produção
mercadológica: “o resultado, claro, é kitsch” (p. 196 – grifo do autor).
A despeito da validação ou anulação do kitsch no universo teórico-
crítico, vê-se que só é possível abarcar todos os argumentos compreendendo as
mudanças na arte, ocorridas nas últimas décadas, de forma a abranger tanto os
modelos estruturais quanto os contextos histórico-sociais. É nesse sentido que
acreditamos que esboçar uma dialética entre vanguarda e kitsch, permeando os
conceitos de indústria cultural e cultura de massa, pode nos auxiliar a chegar a uma
compreensão mais coesa sobre a noção de estética do kitsch. Veremos, então,
como os procedimentos vanguardistas podem se assemelhar ao kitsch na medida
em que deixam de ser “dissonantes” e tornam-se “harmoniosos” (ECO, 1985, p.
53); de outro lado, como o kitsch pode se distanciar ou até mesmo se opor à
vanguarda mediante a promoção da automatização dos códigos da arte, retirando
dela, então, uma certa ideologia revolucionária, uma certa capacidade da arte de
discutir sua própria condição, tão cara à vanguarda. Pretendemos com isso verificar
aquele “processo de canibalização recíproco”, do qual nos fala Vera Lúcia Follain
de Figueiredo (2005), que promove o trânsito entre as esferas culturais de modo a
fazer tanto a cultura de massa se apropriar dos códigos da arte quanto a própria
vanguarda, que igualmente, emprestou os valores do kitsch. Isso nos levará, sem
dúvida, àquela outra dialética entre invenção e padronização que, de acordo com
Figueiredo (2005, p. 35), “vem sendo buscado pela ficção contemporânea como
18
O texto de Rosenberg data de 1974. Nesse caso, quando o autor se refere à arte de “nossa
época”, podemos nos certificar de que se trata da arte do século XX.
48
um caminho para a própria sobrevivência, ainda que sob a ameaça de diluir as
fronteiras que a delimitavam segundo os princípios de automatização da esfera da
arte que fundaram a modernidade estética”.
49
alguma coisa “espiritual” e que o artista seria, então, uma espécie de gênio criador
isolado do universo dos mortais. Certamente, esses privilégios, concedidos às obras
há muito, revelavam, para além da finalidade da obra de arte, um certo narcisismo
artístico que implicava, entre outras coisas, o afastamento das produções artísticas
com o público pelo modo como estas eram tomadas pelo seu caráter
absolutamente apurado. Pierre Francastel, por exemplo, atribuiu ao reducionismo
das explicações estéticas esse afastamento entre o homem e a arte. Segundo ele,
aquelas teorizações do campo artístico eram
51
a sociedade e vice-versa. Para tanto, mesmo se pensar esteticamente, ver-se-á a
dificuldade em sistematizá-las sob um conceito único com o pretexto de fazer
emergir a sua essência. Vejamos a explicação de García-Canclini quanto aos
objetivos de seu estudo:
52
artísticas, tais como o Teatro, a Arquitetura e a Escultura, o autor de A República
pôs nos termos da dimensão social a função da arte, e sua finalidade ficou destinada
à política. Das acepções de Platão, talvez a que tenha sofrido maior contestação no
tocante à estética foi o fato de o filósofo grego ter concedido à arte uma forma de
conhecimento inferior, posto que esta dava-se como imitação das coisas sensíveis.
Isso fez com que a arte se aprisionasse em um sentido de imitação da verdade. Já
Aristóteles toma a arte como uma atividade prática, fixando-lhe, sob o conceito de
mímesis, o sentido de verossimilhança. Em virtude do reconhecimento dado aos
aspectos formais da obra, Aristóteles avaliou a arte no domínio de suas
especificidades por entender que ela é uma construção e um conhecimento. Se essa
concepção mimética da arte já se apresentava problemática na antigüidade,
certamente, chegando ao século XVIII, quando a arte se faz mais efetivamente
objeto de investidas teórico-críticas, as tentativas de abordá-la sistematicamente
tornam-se mais abertas e propensas a reflexões.
Dentro desse contexto, que compreende os séculos XVIII e XIX,
consolidam-se as formulações teóricas acerca do conceito de arte, para as quais esta
recebe outras angulações. Nesse caso, tanto a vertente do Iluminismo francês, com
elaborações de Diderot e Rousseau, quanto o pensamento alemão, sob as figuras de
Lessing, Kant, Schelling e Hegel, “proclamam a autonomia definitiva da arte e dos
artistas, defendem sua indiferença com relação ao público e a toda forma de ação”
(GARCÍA-CANCLINI, 1984, p. 101).
Com o crescimento de um mercado capitalista, unido à ascensão e
estabelecimento da classe burguesa, as produções artísticas integram-se em um
sistema autônomo, diferente daquele ligado à tradição cortesã, de gosto
inegavelmente burguês. Segundo Hauser (1995), é preferencialmente, no século
XIX, quando a burguesia efetivamente recupera o poder e toma para si o domínio
das “questões culturais”, que a arte se vulgariza, havendo o “rebaixamento do
padrão dominante de gosto” e anunciando “o começo de um declínio da
qualidade” (p. 568). Hauser ainda coloca que essa fragilidade de gosto, nascida sob
53
a forma da exacerbação do sentimentalismo nos “primeiros romances de
sensação”, aponta, antes de um “deslocamento do valor estético”, o
desenvolvimento de uma “cultura emocional”. Em contrapartida, o intelectualismo
do pensamento alemão, sustentado na intelligentsia burguesa, proclama sob a égide
do irracionalismo uma outra compreensão das categorias estéticas. A obra de arte,
assim, seria tomada pelo seu caráter divino e não estético, “como um processo
misterioso derivado de fontes tão insondáveis quanto à inspiração divina, a intuição
cega e os estados de ânimo imprevisíveis” (HAUSER, 1995, p. 615).
A rigor, quando se investiga a origem dos movimentos artísticos de
ação coletiva, os quais a partir do Romantismo entram impetuosamente para a
história das artes, nota-se a importância da consolidação da classe burguesa em
virtude de uma conquista da liberdade de pensamento. No entanto, a situação do
artista sofre forte abalo nesse período porque a obra de arte, agora, tem de estar em
plena sintonia com os interesses mercadológicos da burguesia. Isso significa dizer
que restara ao artista a adequação ao sistema de uma civilização industrial ou a
oposição. Cumpre lembrar que o Romantismo, como reação à vida ordinária
burguesa, potencializa a distância entre o artista e o homem comum, e, por
conseguinte, afasta a obra da realidade social, promovendo o individualismo e
aquela idéia do artista como gênio criador. García-Canclini (1984) afirma que a
burguesia, tanto sob o ponto de vista econômico quanto ideológico, restringiu a
produção artística ao domínio da valorização do consumo e a liberdade criadora
dos artistas, posto que “os métodos de produção foram valorizados pela
exclusividade e pelo custo” (p. 103).
Esteticamente, nota-se, então, que os movimentos vanguardistas,
iniciados em fins do século XIX e tendo seu apogeu no começo do século XX, se
revelam como proscrição de toda a tradição apoiada numa ação libertária, que,
antes de mais nada, pretendia ser a expressão da modernidade. Se originalmente a
palavra avant-garde prefigura uma idéia de militância, entendida como a linha de
frente de um exército que se antecipa na defesa, tão logo ela chega à teoria da arte
54
significando um certo ativismo político que implicaria um comprometimento
artístico com as questões sociais (ENZENSBERGER, 1971). De acordo com
Subirats, as artes de vanguarda identificam-se com a idéia de militância, pois “esse
significado militar compreende um valor interior básico das próprias vanguardas
artísticas: seu caráter destrutivo, a concepção niilista do mundo, a visão
providencialista da história, a pretensão absoluta da ordem, das normas estéticas e
sociais, e também do poder” (SUBIRATS, 1993, p. 11). Nesse sentido, vê-se que
estes movimentos artísticos – Impressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Futurismo e
tantos outros -ismos – refletem, sob o ponto de vista estético, aquele mesmo sentido
ideológico de “vanguarda” que resguardava a idéia de avanço, inovação e
recomeço. Assim é que todos os grupos vanguardistas assumiriam em seus
programas de protesto contra a ordem estabelecida a promessa “de liberdade
mediante a revolução” (ENZENSBERGER, 1971, p. 101). Seja como for, tanto o
projeto da modernidade quanto a idéia de vanguarda almejavam, através de
manifestações programáticas, um tipo de projeto civilizatório que sustentava, entre
outras coisas, a dissolução do conceito da autonomia da arte, outrora
institucionalizado pela efervescente classe burguesa. Em decorrência disso, o
projeto vanguardista buscou integrar as artes ao processo produtivo na tentativa de
consolidar aquele processo de modernização. Tratava-se, então, de efetivar a
aspiração de uma realidade ideal pela via tecnológica e, nesse caso, a arte retomaria
sua função social e seu caráter transformador. Entretanto, esse caráter beligerante
das vanguardas artísticas tornou-se problemático na medida em que suas
experimentações estéticas se esvaziam diante dos novos aparatos tecnológicos da
indústria cultural.
Muitas das vicissitudes que promoveram o esgotamento das
vanguardas, resultantes em grande parte da racionalização das instituições artísticas,
recaem sobre a própria atitude ambígua do projeto vanguardista, isto é, aquele
“espírito de aventura e experimentação” e “vontade de transformação e progresso”
estavam em sintonia com “o caráter destrutivo [...], e ao mesmo tempo definição de
55
um poder carismático e total; [...] um princípio legitimador de um novo sistema
globalizador de dominação” (SUBIRATS, 1993, p. 12-13). Nesse sentido, é que se
pode verificar que o movimento crítico de vanguarda representou um fim em si
mesmo; mostrou-se contraditório a começar pela propagação de uma poética
ideologicamente libertária, mas que, ao fim e ao cabo, ocultava “valores normativos
universais e absolutos” (p. 13), como pontua Subirats:
56
maneira, naquilo que sempre negou, ideológica e esteticamente, ou seja, em
mercadoria. Sanguineti afirma ainda que os museus tornaram-se uma espécie de
vitrine expositiva para os artistas, posto que “museu e mercado são absolutamente
contíguos e comunicantes” (SANGUINETI in LIMA, 1982, p. 268).
Na verdade, o problema apontado pelos teóricos como a crise das
vanguardas pode ser melhor avaliado fazendo um paralelo com o cenário artístico
contemporâneo, predominantemente marcado pelos adventos da cultura de massa
e da indústria cultural, afinal, como pontua Morin (1997a, p. 15), “a cultura de
massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens
concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e
identificações específicas”.
Por uma compreensão mais coesa acerca do processo de
massificação da cultura, quando, de fato, se chega à diluição do caráter
revolucionário das vanguardas históricas e, por conseguinte, ao papel
desempenhado pelo kitsch como promoção de uma práxis artística padronizada, é
necessário abordar o conceito de “indústria cultural”, pioneiramente trazido ao
cenário moderno, em 1947, por Adorno e Horkheimer.19
Adorno e Horkheimer (in LIMA, 1982) elaboram o termo
“indústria cultural” de forma a elucidar o caráter contraditório da massificação da
cultura, ao identificarem na mercantilização desta um tipo de ideologia de
dominação imposta verticalmente, isto é, autoritariamente, quando procura adaptar
as mercadorias às massas e vice-versa, fato que geraria, entre outras coisas, o
desenvolvimento das novas tecnologias de reprodução. A análise dos
frankfurtianos está ancorada na idéia de que a indústria cultural, quando liquida a
obra de arte, destruindo, assim, sua capacidade crítica e transformadora, expropria
19
Quando se mencionam as figuras de Adorno e Horkheimer, logo de imediato, faz-se a
associação à Escola de Frankfurt, a qual, em 1924, despontaria na modernidade como uma das
mais importantes tendências filosóficas e teoria social do pensamento ocidental, abrigando um
elenco de teóricos, do qual fizeram parte, a exemplo dos já citados, Walter Benjamin, Herbert
Marcuse e, posteriormente, Jürgen Habermas.
57
também do sujeito a articulação crítica, fazendo-o perder sua autonomia. Esse
exercício de manipulação, estendido às obras e aos indivíduos, revela, sobretudo,
que a indústria cultural passou a mediar a relação dos homens com a sociedade.
Isso implica, entre outras coisas, o papel manipulatório e mantenedor da indústria
cultural no que respeita aos veículos de comunicação de massa – os mass media,
que, como já haviam demonstrado através do rádio e do cinema, possuíam forte
apuro técnico ao veicularem a propaganda nazi-fascista. Sob tal aspecto, Adorno e
Horkheimer verificaram, então, que os produtos da indústria cultural operavam no
sentido de alienar e reificar as massas porque ofereciam apenas a representação,
mediante formas diferentes, daquilo que é sempre igual, ainda que aparentemente
pareça algo novo. Nesse sentido, as análises aterradoras de Adorno e Horkheimer
assentam-se na idéia de que há um movimento recíproco, alimentado pela indústria
cultural, no cerne da relação entre obra de arte e fruidor. Dito de outro modo, têm-
se o empobrecimento estético dos produtos da indústria cultural, através de
fórmulas estereotipadas, e a generalização do conformismo dos
receptores/consumidores.20
Em “A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de
massas”21, Adorno e Horkheimer aludem à fetichização da técnica e à
estandartização da cultura amparadas pelas particularidades engendradas pelo
20
Importante ressaltar que estamos aqui trazendo as idéias de Adorno e Horkheimer acerca do
papel manipulador da indústria cultural com o intuito de verificar o modo como se efetiva a arte
de massa e, como resultado disso, observar de que maneira ocorre o esgotamento das vanguardas
históricas, cooptadas pelo mercado. Acreditamos ser por essa via que poderemos compreender a
dialética vanguarda e kitsch, e invenção e padronização. Isso significa dizer que, embora as idéias
de Adorno e Horkheimer devam ser levadas em conta pelo caráter emancipatório, reconhecemos
nestas o excesso de preconceitos, aliados a considerações exageradas e a uma visão unilateral e
absolutamente conservadora. No entanto, é necessário fazer uma ressalva quanto ao que estamos
chamado de ‘posturas conservadoras’ em Adorno e Horkheimer. Lembrando Silvia Borelli (1996,
p. 29), por exemplo, a radicalidade das concepções de Adorno “é compreendida quando inserida
em contexto histórico mais amplo. Em um mundo estilhaçado pela ameaça nazi-fascista,
deturpado pela ascensão stalinista e projeto idilicamente nos espaços audiovisuais [...], torna-se
justificável o surgimento de uma interpretação cujo pressuposto estético é o da negatividade e
cuja perspectiva analítica revela um inequívoco tom de desencantamento. Desencantamento
resultante do diagnóstico da presença de uma sociedade fragmentada, descontínua e em processo
acelerado de desagregação”.
21
Este texto faz parte do livro Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos (1947). No nosso
trabalho, será utilizada a publicação de Luiz Costa Lima (1982).
58
cinema e rádio enquanto veículos difusores de um tipo de prazer e divertimento
alienantes que conduzem as massas, antes de mais nada, à resignação. Assim sendo,
vê-se que uma das funções do cinema, por exemplo, seria a de regulador moral das
massas, uma vez obliterado seu caráter revolucionário e emancipatório, incutindo
nelas um determinado padrão de comportamento exibido nos filmes, no sentido de
manter o sistema. Na verdade, na análise dos autores, o cinema, como todos os
produtos da indústria cultural, é a arte fetichizada que pulveriza todos os
particulares em razão da fórmula universal, portanto, padronizada.
Embora os frankfurtianos, especialmente Adorno, Horkheimer e
Benjamin, operassem um pensamento em sintonia com a compreensão dos
fenômenos gerados pela modelagem cultural moderna, é com Walter Benjamin (in
LIMA, 1982), em 1936, que são delineadas reflexões sobre o curso transformador
da arte moderna no tocante ao processo de sua reprodutibilidade técnica. Pode-se
afirmar que o pensamento benjaminiano centra-se, no tocante às questões internas
relativas à constituição da obra de arte, no problema do embate entre a tradição e a
vanguarda, isto é, as identificações que faz quanto ao cinema e a fotografia –
expressões traduzidas nas vanguardas, cruzando-as com a tradição da pintura e do
teatro. Como colocou Luiz Costa Lima (1982, p. 208), no comentário sobre o
conhecido texto benjaminiano: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica”, Benjamin teria demonstrado certo avanço com relação a Adorno e
Horkheimer, por “não mais tentar a caracterização da arte como infalível oposição
à indústria cultural, mas sim, ao desmistificar teorias consideradas como
universalmente válidas”. Para tanto, percebe-se em Benjamin uma certa distância
em relação às análises de Adorno e Horkheimer, pois vê no cinema, por exemplo,
sua capacidade transformadora em termos positivo, isto é, não registrou a perda
aurática da obra de arte como um dado de negatividade, ainda que sob a
perspectiva da subversão da função da arte. Subirats coloca que
62
naquela dicotomia que insiste em agregar papel valorativo, bom ou ruim, à cultura
de massa. Assim, a avaliação que se sustentaria, segundo Eco, seria “qual a ação
cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular
valores culturais?” (ECO, 1993, p. 50).
Na tentativa de responder questões como esta, por exemplo, e
observar em que medida os produtos de massa são válidos esteticamente, capazes
de sustentar uma veiculação de “valores originais”, Eco expõe alguns aspectos da
cultura de massa a partir de dois pontos-de-vista, isto é, aqueles que relegam aos
produtos de massa uma concepção mais conservadora, e aqueles que acreditam em
uma democratização cultural que eliminaria, entre outros, as diferenças de nível
social.
De modo geral, como já foi exposto anteriormente com as teses de
Adorno, Horkheimer e Benjamin, o termo “cultura de massa” toma corpo quando
as massas passam a participar efetivamente da vida social, tendo “acesso a novos
padrões de vida: entram progressivamente no universo do bem-estar, do lazer, do
consumo” (MORIN, 1977a, p. 89).
Se contrapusermos as duas faces de uma problemática que se dirige
ao conceito de cultura de massa e tudo que ele possa englobar, tal qual faz Eco,
veremos que o maior problema em se acumpliciar ou rejeitar as manifestações
emergentes da cultura de massa revela um certo reducionismo no sentido de
apontar a cultura de massa como algo homogêneo. O que nos interessa, todavia, é
tomar de empréstimo de Eco algumas considerações a respeito da cultura de massa
que, em certa medida, possam se assemelhar ao papel do kitsch.
O kitsch como um tipo de “mentira artística” (ECO, 1993, p. 73),
como “comunicação que tende à provocação do efeito” (p. 76) se aproxima, na
visão de Eco, das possibilidades inovadoras da vanguarda. De um lado, isso
também pode revelar uma certa diferença entre o kitsch e outros produtos da
cultura de massa, uma vez que os objetos do kitsch põem em evidência aquele tipo
de apresentação do objeto como obra de arte. Na verdade, a dialética vanguarda e
63
kitsch pode ser encarada como a mesma relação entre cultura erudita e cultura de
massa. Aliás, seguindo as premissas de Eco, vê-se que a estética do kitsch faz
dialética com a vanguarda justamente porque apresenta os produtos kitsch como
arte.
Vale lembrar, nesse momento, das palavras de Silvia Borelli com
relação à análise de Eco sobre as ‘separações’ entre cultura erudita (defendida pelo
autor como ‘cultura de proposta’) e cultura de massa – como a cultura do
entretenimento, apontadas e discutidas no conhecido livro Apocalípticos e Integrados
(1993):
64
episteme das culturas e à estética do kitsch oscila entre uma postura crítica mais
“severa e o fascínio pelos meios de comunicação” (BORELLI, 1996, p. 32).
22
Relembando Greenberg (1996, p. 33), “se a vanguarda imita os processos da arte, o kitsch,
como vemos agora, imita seus efeitos”.
23
Representações estéticas como o folhetim, o melodrama, o cinema hollywoodiano, e a telenovela,
são exemplos perfeitos de matrizes culturais que desempenham o papel da provocação do efeito,
ou da “reação controlada” (MERQUIOR, 1974), pois “aparecem como elementos de
constituição do imaginário contemporâneo e de construção de uma mitologia moderna: reposição
65
identificou o Kitsch com a cultura de massa” (p. 76), justamente pelo modo como a
indústria cultural foi levada “a vender efeitos já confeccionados, a prescrever com o
produto as condições de uso, com a mensagem e a reação que deve provocar” (p.
76 – grifo do autor).
24
Pensamos aqui especificamente nas teorias que adotaram a dialética do kitsch com a vanguarda
como um tipo de modelo formativo para explicar a distância que mantém a estética do kitsch dos
demais produtos massivos a despeito de sua intrínseca relação com a cultura de massa. Os
exemplos estão nos modelos teóricos de Eco (1993), Greenberg (1996), e Merquior (1974).
25
Pensamos aqui na multiplicidade apresentada por estas produções pós-modernas, tanto com a
inferência de gêneros ficcionais seculares, como os romances policiais, romances de aventuras, os
folhetins melodramáticos, bem como com o entrecruzamento de linguagens (técnicas) de ficção
que são originalmente produzidas e veiculadas nos mass media, tais como as telenovelas, o
cinema B hollywoodiano (que engloba os filmes de ação, de suspense, de melodramas, os
western).
67
No capítulo que se segue, buscaremos explorar a produção literária
brasileira contemporânea que, reaproveitando-se de alguns elementos da cultura de
massa, pode ser vista e apreendida como uma literatura que mantém um diálogo
com o “espírito da pós-modernidade”. Em geral, várias obras, algumas com grande
vendagem e aceitação do público, como as de Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, João
Gilberto Noll, Antônio Torres, Caio Fernando Abreu, Roberto Drummond, José
Roberto Torero, Silviano Santiago, Sonia Coutinho, Sérgio Sant’Anna, entre outros,
articulam elementos do massivo, muitas vezes kitsch, sem que o resultado, ou seja,
sem que esta literatura perca qualidade estética. Ao contrário, elas evocam de seus
receptores possibilidades de fruição absolutamente crítica; mantêm a qualidade
estética, no caso da linguagem trabalhada, ainda que se faça uso de expressões
chulas; conseguem propiciar ao leitor uma participação ativa, seja pela identificação
através dos materiais recuperados dos mass media – linguagem quase televisiva ou
cinematográfica, seja pela possibilidade de o leitor poder criar mais de uma
possibilidade de leitura; e, por fim, o jogo estético estabelecido com o
entrecruzamento, com a justaposição de linguagens e de gêneros, tornando o autor
um verdadeiro bricoleur pós-moderno.
68
2 FORMAS E SITUAÇÕES DA FICÇÃO BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
69
Pois Lana Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana
Turner c’est moi. Foi o que também pensou a segunda mulher,
a outra, o espelho”
(Sonia Coutinho – “Toda Lana Turner tem seu Johnny
Stompanato”)
26
Faz-se referência aqui à perda de crença na exatidão e a todos os valores que sustentavam a
modernidade. Lembremos das palavras de Eduardo Subirats em “Os maus dias passarão”
(Conferência no ‘Congresso Nacional de Arquitetos do Brasil’, São Paulo, 21 de outubro de 1991,
e no ‘Primer Encuentro Internacional sobre Teoría de las Artes’, Caracas, 27 de fevereiro de
1992), publicado no livro Vanguarda, Mídia e Metrópoles (1993): “O universalismo secular da razão,
que desde o iluminismo até o socialismo havia anunciado a possibilidade histórica de uma ordem
mundial da liberdade, fracassou diante do panorama real das desigualdades sociais e da
deterioração ou desintegração das formas de vida. Progresso, História, Razão e Revolução, as
grandes categorias que definiram os projetos sociais mais significativos da modernidade, se
converteram efetivamente em palavras de ordem vazias [...] É necessário questionar os grandes
discursos históricos e, ao mesmo tempo, questionar com eles o poder uniformizador e coercitivo
dos sistemas globais de dominação que precisamente legitimaram esses discursos. Porém, a
mentalidade pós-moderna da década de 80 não concretizou precisamente essa prometida crítica.
Limitou-se a expor a doutrina niilista do final dos grandes discursos filosóficos. Postulou uma
morte. Defendeu existencialisticamente a metafísica decadente da morte. Celebrou com
complacência mais ou menos irresponsável, a liquidação das esperanças históricas de um passado
recente. Para abrigar-se sob o signo de um arcaico pessimismo existencial pelos rumos
apocalípticos do fim da história” (SUBIRATS, 1993, p. 27)
70
momento em que aparecem as diferenças27, dando lugar ao provisório, à
incredulidade, à pluralidade de paradigmas, ao descentramento do sujeito pela
perda de um modelo identitário, à desterritorialização, entre outros), enfatiza uma
literatura que incorpora, cada vez mais, os signos da vida urbana e das metrópoles
impessoais, os discursos antes periféricos, provocando a fragmentação das formas
discursivas.
Nesse sentido, surge uma literatura que, muitas vezes, como
questionamento do cânone do passado, promove outras possibilidades estéticas
através da recuperação de gêneros massivos, multiplicando-se o espaço discursivo
pelas manifestações da arte de massa. Assim, o romance policial, o melodrama, o
folhetim, o cinema tipo B, as canções populares e os mitos artificiais28 criados pela
indústria cultural são comumente referenciados na produção contemporânea. Além
disso, a ficção brasileira pós-7029, muitas vezes apreendida como uma narrativa que
apresenta falta de profundidade estética por meio da enfatização de uma mecânica
que busca, cada vez mais, atender às exigências de um público consumidor,
empregaria, também, novos procedimentos estilísticos como a paródia e o pastiche,
a ironia e o humor, e a denúncia que expressa “as relações entre a modernização
conservadora e a violência” (PELLEGRINI, 2001a, p. 61). É, pois, dentro desse
27
Quando os discursos periféricos dos gays, dos negros, das mulheres, isto é, das minorias, se
fazem mais presentes na cultura ocidental e na crítica da cultura.
28
Segundo Fred Tavares (2000, p. 33 – grifo do autor), os mitos artificiais, sobretudo aqueles
criados e sustentados pela mídia televisiva, “emergem do mágico espetáculo da televisão e são
idolatrados por milhões de telespectadores. Estes novos sujeitos e identidades são mitologizados
e envolvidos nos sonhos e nas fantasias das mentes de consumo (funcionando como portadores
de projeção e identificação, sendo fabricados e massificados pelo meio eletrônico) como
personagens arquetípicos”.
29
Ao longo deste capítulo buscaremos mostrar as diferentes nuances entre a produção dos 70, 80
e dos 90, mas podemos já destacar a prosa dos 70 como marcada pelo golpe militar de 1964,
quando a literatura efetivamente mostra-se resistente à situação política do Brasil. De modo geral,
os textos produzidos nesse decênio, sob forma de romances-reportagens, relatos confessionais e
memorialismos, denunciam o sistema opressor responsável pela privação dos sonhos, ideais e
esperanças de liberdade. Tal qual afirma Alfredo Bosi (1994, p. 436), “o melhor da literatura feita
nos anos de regime militar bateria, portanto, a rota da contra-ideologia, que arma o indivíduo em
face do Estado autoritário e da mídia mentirosa. Ou, em outra direção, dissipa as ilusões de
onisciência e onipotência do eu burguês, pondo a nu os seus limites e opondo-lhe a realidade da
diferença”.
71
contexto, sob o ponto de vista cultural, de esgotamento das certezas, da perda ou
ausência de referenciais históricos, da fragmentação do sujeito, do fim das grandes
narrativas, e, sob o ponto de vista estético, da metalinguagem, da intertextualidade,
da apropriação dos produtos massivos e da propagação das imagens dos meios de
comunicação de massa que emerge a produção literária brasileira contemporânea.
Therezinha Barbieri (2003), discutindo a prosa dos 70, 80 e 90, à
qual ela chama de “Ficção impura”, faz um balanço da ficção literária brasileira
produzida nessas décadas, apontando alguns traços que iriam se evidenciar mais nas
narrativas dos 90 até os dias atuais.
30
Cumpre lembrar que ao falarmos de “esgotamento de uma estética baseada na idéia
vanguardista de ruptura” estamos pensando nos programas estético-ideológicos das vanguardas
do início do século XX, os quais, como já expusemos no capítulo anterior, a partir de
manifestações programáticas, propunham uma ruptura com o passado no sentido de promover
nas artes em geral um caráter progressista, revolucionário e emancipatório.
72
Hoje assistimos ao crepúsculo da estética de mudança. A arte e a
literatura deste fim de século perderam paulatinamente seus
poderes de negação; há muito tempo suas negações são repetições
rituais, fórmulas sem rebeldia, cerimônias sem transgressões. Não
é o fim da arte: é o fim da idéia de arte moderna. Ou seja: o
fim da estética fundada no culto à mudança e à ruptura (PAZ
apud BARBIERI, 2003, p. 112 – grifo nosso).
73
1985, segundo o próprio autor31. Além disso, o projeto poético de Caio Fernando
Abreu perpassa estas três décadas, o que nos impõe, mais uma vez, um olhar mais
apurado sobre a prosa brasileira contemporânea. Buscaremos explorar os traços
mais significativos de cada decênio encaixando em cada um deles a produção de
Caio. No entanto, é preciso fazer uma ressalva de que estas particularidades são
fluidas, pois há aspectos que transitam de uma década para outra.
A produção literária da década de 70 esteve intimamente ligada ao
contexto sócio-político do país, uma vez que a ditadura militar (1964-1984) vetava a
liberdade de expressão, o que acarretou um período marcado pela violência, pelas
manifestações de contestação à censura, quer no âmbito político-social, quer no
âmbito cultural. Os romances-reportagens ou a literatura fotográfica, de forte
cunho realista, apresentavam-se como forte luta contra a censura militar,
misturando no discurso literário diferentes modos expressivos oriundos do
jornalismo, da televisão e do cinema. De modo geral, os temas, sobretudo dos
romances desta década, denunciavam “a perplexidade diante das súbitas
transformações sociais, a violência da repressão política e da vida urbana, […] o
desamparo do indivíduo […], o medo diante do Estado militarizado” (FRANCO,
1998, p. 6). Assim, a década de 70, “engrossando uma vertente que vinha de trás, é
predominantemente ocupada pela literatura de denúncia política e social,
preenchendo espaços jornalísticos, já que a imprensa, amordaçada, deixava vácuos
de informação” (BARBIERI, 2003, p. 81).
Foram muitos os autores que se viram amarrados, em certa medida,
à “tirania da objetividade, que, sob o rótulo de literatura-verdade”, trouxeram ao
cenário literário brasileiro romances e contos que ecoavam, sob a forma de
depoimento e com um tom confessional, as vozes de “uma geração massacrada
pelo AI-5” (BARBIERI, 2003, p. 81). É o caso de se falar em Ignácio de Loyola
Brandão, em Zero (1975), em Rubem Fonseca, autor que já na década de 70
31
“Depoimento em mesa-redonda no seminário Sobre o Manuscrito, organizado pelo setor de
Filologia da fundação Casa Rui Barbosa, em outubro de 1990. Também participaram da mesa,
além de Caio, os escritores Antonio Callado e Sérgio Sant’Anna”. In: ABREU, Caio Fernando.
Depoimento (1998).
74
apresentava um perfil hiper-realista com forte propensão à violência, e em
Fernando Gabeira, com a publicação de O que é isso, companheiro? (1979), narrativa
que enfocava o período da ditadura militar, “o processo de institucionalização da
tortura no Brasil [...], a história de tempos bicudos, quando o medo, ‘que esteriliza
os abraços’, passou a ser o prato de cada dia” (BARBIERI, 2003, p. 82 – grifo da
autora).
Nas palavras de Jaime Ginsburg, em artigo sobre dois contos de
Caio, “Lixo e purpurina” e “Os sobreviventes”32,
76
convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e observam personagens sem
fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo” (SÜSSEKIND, 1993, p. 210).
A prosa dos 80, e, por conseqüência a dos 90, sobrevive, então, de
temáticas em que afloram os discursos periféricos dos homossexuais, das mulheres,
dos negros, além de uma expressão estética que passa a incorporar as leis do
mercado editorial e as imagens veiculadas nos meios de comunicação de massa. O
cenário urbano agudiza-se em detrimento do rural, revelando o universo de
violência nas metrópoles, recrudescido pelo contexto marginalizado das drogas, da
pornografia e das doenças sexuais – como a Aids, por exemplo.
33
Lembremos dos contos “Dama da noite”, de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), e “Aqueles
dois”, de Morangos mofados (1982). Nos dois casos, as personagens padecem de um mesmo mal – o
isolamento, a falta de comunicação com o outro e o estranhamento de si e do outro. “Dama da
noite”, por exemplo, é um conto que carrega consigo a ambivalência de um sujeito que busca a
lucidez e o entendimento do “eu” através de uma personagem madura, cuja vida afetiva é levada
ao outro como a imagem do fracasso, havendo, portanto, um embrutecimento deste “eu”. Imersa
num processo de deterioração, a personagem atesta à figura do outro – do “boy” – uma fala ácida
que se legitima por meio de perguntas agudas, construindo, assim, um tipo de manifesto
anárquico contra si – filha de uma geração derrotada, e contra o outro, que, de igual modo,
79
apresentar “como marca de seu estilo [...] a preocupação com o desmontar os
artifícios textuais, mostrando como ‘funciona um texto’, desvelando a máscara do
realismo tradicional”, segundo Pellegrini (1999, p. 26 – grifo da autora), também
ficcionaliza a problematização do sujeito com a realidade. Com relação a Notas de
Mafredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de 1973, Liane Bonato (2003, p. 174)
afirma ser a imagem deste sujeito “[…] múltipla, inquietante e ao mesmo tempo
grotesca, brutal, enigmática. Os heróis são medíocres, vencidos pela impotência que
lhes tolhe as atitudes, conduzindo-os à humilhação e ao desespero”.
Levando em consideração a leitura de Therezinha Barbieri sobre a
ficção brasileira contemporânea, isto é, uma leitura que enxerga a produção “dos 80
e 90 na rede de novas relações estabelecidas a partir do contexto da sociedade de
massa” (BARBIERI, 2003, p. 38), chegaremos, ao nosso ver, num dos aspectos
mais marcantes e significativos do processo de hibridismo, tão caro às narrativas
consideradas pós-modernas. Isto porque um dos maiores paradoxos das narrativas
pós-modernas é justamente a relação que mantém com a cultura de massa, ou
melhor, a diluição entre as chamadas cultura de elite e cultura de massa
(HUTCHEON, 1991).
Além da crescente importância das referências aos mitos da
indústria cultural, tais como as divas do cinema norte-americano, os cantores de
boleros e pop, e, ainda, das referências aos produtos do universo dos meios de
comunicação de massa, como as radionovelas, os melodramas, e, mais
recentemente, as telenovelas brasileiras, tem-se na ficção contemporânea o excesso
das imagens, tanto a cinematográfica quanto a televisiva.
pertence a uma geração já desesperançada, afinal, ele “nasceu dentro de um apartamento, vendo
tevê. Não sabe nada, foras essa coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador,
heavy-metal e o caralho” (ABREU, 1988, p. 94). Já em “Aqueles dois”, por meio de referências
musicais e cinematográficas, é criado um espaço fechado e solitário para as confissões
amarguradas de Raul e Saul, ambos sobreviventes de uma vida fracassada. A temática da
homoafetividade é revelada como um simulacro dos conflitos do eu através de intolerância social
e perplexidade diante da superfície fria do cotidiano. Assim, o problema da solidão, aliado à
carência afetiva nas grandes cidades, faz com que estas personagens se descubram num mundo
absurdo e inseguro.
80
A propagação das imagens e das performances que emplacaram na
prosa brasileira das décadas de 80 e 90 consolida um outro fato – o de que a
literatura, em geral, foi rendida às leis do mercado.34 As chamadas subliteratura,
paraliteratura, os best-sellers, ou seja, a literatura de massa, exigiram do romance
contemporâneo, por força da pressão do mercado, uma espécie de reprodução das
características dos produtos da indústria cultural, seja na composição ou nas
temáticas. A importância das citações, como dito acima, aponta para dois aspectos:
de um lado, uma narrativa quando utiliza este tipo de recurso aproxima o leitor
através de identificações com seu universo familiar; de outro, porque as referências
aos produtos massivos seria condição prévia de garantia de vendagem. Conforme
defende Tânia Pellegrini (2001b, p. 62 – grifos da autora), “a propalada eliminação
das fronteiras entre ‘cultura erudita’ e ‘cultura popular’ instaurou uma outra, muito
mais poderosa, a da ‘cultura de mercado’. Tal fato provocaria na ficção brasileira
contemporânea, “como se fossem soluções pós-modernas”, “as mesmices,
descuidos, chulices e obviedades”.
Desse modo, é por força desta cultura de mercado que se
intensificam os gêneros massivos com todas as suas construções clicherizadas.
Exemplo claro dessa propagação são os romances policiais e as formas
folhetinescas, entre outros, os quais recebem a designação de literatura de
entretenimento.
Sem dúvida, o grande representante dessa nova vertente do policial
é Rubem Fonseca, autor de grande vendagem, que com romances como Bufo &
Spallanzani (1986), A grande arte (1983) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988),
por exemplo, potencializou algumas características do gênero, como a criação de
34
É importante ressaltar que esta idéia de que a literatura, ainda que em linhas gerais, se rende às
leis do mercado, defendida por Tânia Pellegrini (2001b) é apresentada neste capítulo como
tentativa de mostrar algumas condições da produção ficcional brasileira das décadas de 80 e 90. A
despeito de esta afirmação ser pertinente, não desejamos aqui fazer dela um endosso para a nossa
dissertação, pois sabemos que nem toda obra produzida nestas décadas, sobretudo a prosa de
ficção, pode ser avaliada no âmbito da literatura de massa. Deve-se salientar também que a autora
discute o estreitamento da ligação entre a literatura e o mercado como um dos pontos que
marcam a produção dos 80 e 90.
81
personagens detetivescas absolutamente estereotipadas – detetive Madrake que
aparece em muitos de seus textos –, mas mesclou a isso uma forma de narrar bem
típica das narrativas pós-modernas. Isto é, Rubem Fonseca transgrediu formas
tradicionais35 em favor da justaposição de códigos, com a mescla de vários tipos de
linguagem (cinematográfica, ensaística, televisiva, detetivesca), o que tornou plural
sua prosa.
A pluralidade, que parece ser o traço mais marcante na ficção
brasileira contemporânea, promoveu uma literatura pop, “onde existe uma
suspensão do juízo crítico, uma morte ou retraimento do autor e uma reduplicação
frenética dos códigos e discurso, que atravessam a atualidade. Literatura que
poderíamos dizer na linha do pastiche” (VILLAÇA, 1996, p. 96 – grifo nosso).
35
Falaremos sobre as formas, os tipos e a constituição dos romances policiais (enquanto gênero
narrativo que possui um modelo estrutural que gera produção em série de fácil aceitação junto ao
público) no 4º Capítulo, destinado à análise de Onde andará Dulce Veiga?, usando a discussão de
Sandra Reimão, autora de vários livros sobre o gênero e Boileau e Narcejac.
82
A nossa intenção nesta dissertação não é investigar as possíveis
marcas que compõem a pós-modernidade e o fenômeno do pós-modernismo36,
mas acreditamos ser inevitável fazer algumas observações a respeito, uma vez que a
narrativa brasileira dos 80 e 90, principalmente, apresenta sintomas da
contemporaneidade.
36
Cumpre lembrar que esta distinção entre pós-modernidade e pós-modernismo é pertinente,
sobretudo porque as duas expressões, de acordo com Eagleton (1998), traduzem ‘movimentos’
diferentes. Assim, a pós-modernidade “[...] alude a um período histórico específico. É uma linha
de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a
idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os
fundamentos definitivos de explicação” (p. 7); enquanto o pós-modernismo seria “um estilo de
cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial,
descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as
fronteiras entre a cultura ‘elitista’ e a cultura ‘popular’, bem como entre a arte e a experiência
cotidiana” (p. 7 – grifo do autor).
83
categorias como progresso versus reação, direita versus
esquerda, presente versus passado, modernismo versus
realismo, abstração versus representação, vanguarda versus
kitsch”
(Andreas Huyssen)
84
que inclui a si mesma e eu acho muito bom não ter que se discutir
se os capítulos que se seguem são uma investigação sobre a
natureza da ‘teoria do pós-modernismo’ ou apenas exemplos dela
(JAMESON, 1996, p. 14 – grifo do autor).
37
É importante lembrar que Jamenson analisa o fenômeno cultural contemporâneo sob o viés da
crítica marxista, que tende a observar o texto literário segundo um contorno político. A citação
aqui exposta pretende elucidar apenas a visão do crítico com relação à emergência em discutir os
efeitos do pós-modernismo na sociedade contemporânea.
86
Andreas Huyssen (in HOLLANDA, 1992, p. 20-23), por exemplo,
diz haver uma transformação evidente na cultura ocidental contemporânea. Sendo
discutível ou não o caráter dessas transformações, o que importa todavia, segundo
o autor, é que o termo “pós-modernismo” nestas proporções é devidamente
cabível. Nesse sentido, Huyssen explicita sua posição ao afirmar que não tentará
“definir o que é pós-modernismo”, valendo-se apenas de um “mapeamento” deste,
segundo o “modo como ele tem dado forma a vários discursos desde os anos 60”.
Se a pós-modernidade debruça-se no paradoxal, tornam-se
contraditórias ainda mais as teorias que tentam desanuviar a forte natureza
multivalente do fenômeno do pós-modernismo. Nesse sentido, de haver algumas
abordagens para o problema que encerra o pós-modernismo, parece firmar-se
bastante perigosa uma tentativa de rotular o termo e suas causas. A par de alguns
teóricos, tais como Frederic Jameson, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard,
Andreas Huyssen, Linda Hutcheon, Terry Eagleton, Ernest Laclau, Ihab Hassan,
Steven Connor, Perry Anderson, entre outros, surgem vozes consideráveis como o
português Carlos Ceia que vem também evidenciar essa problemática:
87
condição de algo que está sendo feito ‘agora mesmo’, algo que ainda não oferece, e
nem pretende oferecer, nenhuma perspectiva futura”.
A despeito das diferentes posturas adotadas por alguns que
teorizam o pós-modernismo, o que se pretende observar aqui são alguns dos traços
que, independente de que linhas seguem, sinalizam alguns aspectos da literatura
contemporânea.
As mudanças que ocorrem a partir das décadas de 50-60, “quando
por convenção se encerra o modernismo” (SANTOS, 1997, p. 7-8), abalam os
pilares da sociedade ocidental. No frenesi pós-moderno, a tecnociência, os meios
midiáticos, o bombardeio de informação, a massificação cultural, as chamadas
neovanguardas (Pop Art, Arte Povera, Op Art, Land Art), até a própria
digitalização do real fazem surgir uma literatura que é, ao fim e ao cabo, a
exuberância de uma geração plena de recursos e aparatos tecnológicos.
Se a “contradição é típica da teoria pós-modernista”, ou ainda, se
“o múltiplo, o heterogêneo, o diferente é a retórica pluralizante do pós-
modernismo”, tal qual afirma Hutcheon (1991, p. 87-95), é claro que o resultado
dessa literatura muitas vezes pode ser grotesco. Embora já tenhamos mencionado a
condição descentrada e problemática do sujeito pós-moderno, vale ressaltar as
palavras de Jair Ferreira dos Santos no tocante ao niilismo abrupto que toma conta
do indivíduo em tempos de pós-modernidade.
88
culturais, sociais e políticos (SANTOS, 1997, p. 15-27 – grifo do
autor)38.
38
O termo blip é usado pelo autor para designar os fragmentos de informação que chegam ao
sujeito. Contrapondo-se ao real que é bit – dado os códigos que permeam os meio de
comunicação de massa, o sujeito fica tão fragmentado quanto o próprio blip que lhe é passado.
89
pós-modernismo revela que não existe mais uma Cultura monolítica, branca,
ocidental, masculina e heterossexual. Podemos, então, falar em ‘culturas’, em
‘discursos’ e, claro, em ‘literaturas’.
No âmbito da ficção brasileira contemporânea, esta diversidade
articula-se de modo que as produções apresentem uma espécie de mélange de traços
que formam a estética pós-moderna. O “fim das grandes narrativas”, expressão que
tomou grande corpo na teoria cultural através de Lyotard (2000), chegou à prosa
brasileira da contemporaneidade com o fim dos grandes heróis e a problematização
de personagens sem rosto, sem nome e sem perspectivas, bem como a ressonância
do imediatismo do mercado e o pragmatismo do consumo proposto pela indústria
cultural.
A leitura da realidade que passou a fazer o autor contemporâneo
tornou-se mediada pelos signos dos mass media. A cultura de massa desdobrou-se
em cultura da mídia na chamada era da imagem, onde objetos tecnológicos como a
televisão, e mais recentemente, a Internet, conduziram a um novo tipo de
autonomia cultural (KELLNER, 2001). Sem dúvida, a televisão, nesse domínio, foi
o principal meio produtor de possibilidades de fragmentação, em que as pequenas
narrativas tiveram cada vez mais importância com a democratização da exposição
de outros rostos e outras identidades. Certamente, uma tendência dos meios de
comunicação de massa para a fragmentação.
Acerca do agenciamento cultural pelas mídias visuais, sobretudo a
televisa, Martín-Barbero e Gérman Rey, no livro Os exercícios do ver: hegemonia
audiovisual e ficção televisiva (2001), discutem a experiência audiovisual como produto
de uma representação hegemônica. Na verdade, o próprio aparelhamento midiático
concentra em si um potencial subversivo porque traz no seu âmago a necessidade
de pluralizar as percepções da nossa realidade. Os autores afirmam, então, que é
com a televisão como experiência audiovisual que se concretiza uma nova ordem
cultural, uma outra percepção de ser e estar no mundo. As imagens captadas e
transmitidas pela TV oferecem, para nosso deleite, um tipo de migração espacial,
90
permitindo-nos uma mudança de percepção de tempo e espaço através de uma
simulação que vai além do real. Assim, os autores de Os exercícios do ver discutem os
movimentos da cultura num espaço social, agora coordenado pela hegemonia
audiovisual, e todos os seus desdobramentos, mostrando “o entrelaçamento cada
dia mais denso entre os modos de simbolização e ritualização do laço social com os
modos de operar os fluxos audiovisuais e das redes comunicacionais” (MARTÍN-
BARBERO; REY, 2001, p. 18). Desse modo, a segmentação, a fluidez e a
proximidade, bem como a multiplicidade de narrativas, a ênfase no imediato e o
excesso de imagens tornam a televisão a principal representativa da cultura
contemporânea.
91
Isto nos leva a pensar que, para as performances pós-modernas se
concretizarem de fato, é indispensável o uso da produção da imagem através das
técnicas midiáticas; talvez seja mais fácil pensar nessa associação como algo
inerente aos paradoxos que a pós-modernidade ora afirma, ora nega e ora subverte.
De modo geral, a cultura da mídia traz ao palco da pós-modernidade uma espécie
de vitrine do consumo. O que todos estes meios fazem é conferir ao espectador um
jogo de aparências que sempre se descortina pelo excesso. Baudrillard (1992, p. 73)
vê na lógica da sedução “um despreendimento do real através do próprio excesso
das aparências do real. Os objetos aí se parecem muito com o que são, essa
semelhança é como um segundo estado, e seu relevo, através dessa semelhança
alegórica, através da luz diagonal, é o da ironia do excesso da realidade”.
Nesse sentido, diante do espetáculo pós-moderno, a ‘(des) ordem
cultural’ é agora programada porque lhe foi introjetada a emergência da
performance rápida a partir da tecnociência, dos meios de comunicação de massa,
das indústrias culturais – cinematográfica, fonográfica, e tantas outras terminadas
em “gráficas”, da robotização, da cibernética, entre outras.
92
que todos os outros aspectos aparecem, como a confluência de linguagens,
multiplicidade de formas e estilos muitas vezes indefiníveis, a narração e
compreensão do espaço-tempo, as referências e citações, as mudanças de cenários,
e tantos outros. Nizia Villaça (1996, p. 77), ao tratar de autores, cujas obras
apresentam características pós-modernas onde os textos reproduzem “os
simulacros que percorrem os meios de comunicação de massa”, afirma que:
93
convencionalismos discursivos de baixa extração são ‘naturalizados’
no discurso da narração que remete a uma voz autorial da alta
cultura (CHIAMPI, 1996, p. 76 – grifo da autora).
94
estéticas novas, bem como promover uma discussão crítica com relação à própria
condição das práticas e produções pós-modernas.
Um dos resultados dessa apropriação dos massivos na ficção
brasileira contemporânea pode ser conferido, tal como pontua Luiz C. Simon
(1999), pelo culto aos mitos do cinema, da música e, sobretudo, da televisão39. Em
certa medida, percebe-se que a referência ao mito se dá como uma espécie de
projeção das personagens, isto é, os astros e estrelas da mídia podem saciar o desejo
destas personagens em ingressar num universo de grandes paixões, de glamour e de
grandes sensações, sugerido pelos filmes e telenovelas, na tentativa de realizar seus
sonhos impossíveis.
Para tanto, vê-se que a coexistência de elementos tão díspares
dentro de um mesmo texto, aspecto que põe o texto no nível da simulação, é um
meio de retratar a pós-modernidade como um universo artificial. Na prosa, esse
artificialismo é representado pela inferência das imagens clicherizadas. Assim, “a
descontinuidade do discurso narrativo deixa à mostra, na recorrência de suas
múltiplas fraturas, reminiscências, clichês automatizados, ênfases retóricas, pedaços
de reportagens, filmes, peças de teatro e de TV” (BARBIERI, 2003, p. 61).
Finalmente, o gosto pelo kitsch que surge em algumas produções
brasileiras contemporâneas40 confirma a necessidade de discutir o lugar da arte na
39
Consideramos que essa mitificação é um dos principais traços do romance Onde andará Dulce
Veiga? (1990). O culto à cantora Dulce Veiga, que desaparece sem deixar pistas, e às divas do
cinema hollywoodiano, como também às cantoras de jazz (Billie Holiday, por exemplo), aliado à
idéia de uma narrativa afeita ao gênero policial exercem a função, no desenrolar da trama, a
função de mitificação de um imaginário coletivo. Entre outras coisas, tal procedimento serve para
sustentar o efeito de sedução dos produtos massivos.
40
Podemos citar, por exemplo, o conto “Marilyn no inferno”, de O cego e a dançarina (1980), que,
segundo a análise Therezinha Barbieri, “incorpora à cena da escrita a presença de anúncios
luminosos, de filmes, shows de strip-tease, programas de TV e de rádio, video games, outdoors
etc”. (BARBIERI, 2003, p. 72). Outro exemplo típico de construção de um discurso kitsch é o
conto “Ismênia, moça donzela”, de Dalton Trevisan, publicado em Morte na praça, de 1964.
Segundo Arnaldo Franco Junior (2002), neste conto: “O kitsch reside na possibilidade de
reconhecermos, por meio das cartas, não apenas as etapas de uma seqüência narrativa previsível
desde a sua manifestação até os seus desdobramentos ‘naturais’, mas, também, algo como uma
força inexorável, que faz com que, a partir da constituição morfológica das personagens, a anedota
que as une apresente-se como algo déjà vu em todos os seus aspectos. Essa força tem um nome e é
95
contemporaneidade uma vez que são incorporados à narrativa os signos da cultura
de massa. Desse modo, por trás dos discursos clicherizados e dos objetos
fetichizados, tem-se, de um lado, uma ficção que apresenta uma espécie de versão
cifrada do papel desempenhado pelo objeto literário frente às leis do mercado, e, de
outro, uma ficção que busca arduamente representar uma realidade teatralizada, já
representada, isto é, uma realidade que já se coloca no nível do simulacro. Daí, o
“texto funciona como uma máscara amplificadora que tudo põe a nu, nada
escapando à violência do simulacro” (BARBIERI, 2003, p. 63).
No próximo capítulo, quando tratarmos do projeto literário de Caio
Fernando Abreu, mostraremos que a recorrência de uma prosa kitsch pode ser
observada também em alguns contos, e não apenas no romance Onde andará Dulce
Veiga?. Desse modo, analisaremos os contos “Mel & Girassóis”, de Os dragões não
conhecem o paraíso (1988), “Ascensão e queda de Robhéa, manequim & robô”, de O
Ovo apunhalado (1995) e “A margarida enlatada”, também de O Ovo apunhalado
(1995)41.
42
A partir daqui usaremos a sigla CFA para designar o autor Caio Fernando Abreu.
97
um tanto oblíquos para a época. Desse modo, o autor exercita no seu universo
poético uma linguagem que se assemelha a um jogo de peças que vão se montando
pouco a pouco, onde realidade e fantasia se misturam. A multiplicidade temática
esbarra em personagens que, em sua maioria, padecem de um mesmo mal – o
isolamento, a falta de comunicação com o outro, o estranhamento de si e do outro,
a angustiante possibilidade de ser e estar no mundo. No prefácio de O Ovo
apunhalado (4. ed.), a autora e amiga de Caio, Lygia Fagundes Telles escreve acerca
do projeto literário do autor:
43
Livros de contos: Inventário do Irremediável (1970); Inventário do Ir-remediável (revisado e reeditado
em 1995); O Ovo apunhalado (1975); Pedras de Calcutá (1977); Morangos Mofados (1982); Os dragões não
conhecem o paraíso (1988); Mel & Girassóis (Antologia de contos de 1988, organizada por Regina
Zilberman); Ovelhas negras (1995); Estranhos e estrangeiros (livro póstumo de 1996). Novelas:
Triângulo das águas (1983); Bien loin de Marienbad (publicada na França em 1994); As Frangas (novela
dirigida ao público infantil de 1989). Romances: Limite Branco (1970); Onde andará Dulce Veiga?
(1990). Peças teatrais: Teatro Completo (publicação póstuma de 1977). Crônicas: Pequenas
Epifanias (Reunião de crônicas escritas entre 1986 e 1995, publicado postumamente em 1996).
99
(apud BESSA, 1997), tais como a homoafetividade e a AIDS. Na verdade, a
inclinação a uma poética homoerótica dá-se como uma espécie de terminologia
para designar algumas das relações sexuais e afetivas estampadas, sejam elas em
contos, novelas ou nos romances. Caio dizia que não escrevia sobre
“homossexualidade”, mas sim sobre sexualidades partilhadas com parceiros do
mesmo sexo, do sexo oposto ou os dois. É claro que não se pode excluir esta
possibilidade dos textos do autor, haja vista o grande número de trabalhos a
respeito. Talvez, a maior necessidade desse tipo de autoria, pelo menos no que toca
à poética de CFA, fazia parte de um questionamento bem mais complexo – a
subjetividade do eu enfraquecido em busca da identidade perdida. Essa busca
desesperada por se descobrir e, simultaneamente, conhecer o outro é articulada de
modo que as personagens apresentem um estado, muitas vezes, ambíguo, dividido
entre a esperança da liberdade, do amor, da descoberta, e a frustração, o incômodo,
o estranhamento do corpo e ausência de percepção e compreensão do espaço
urbano.
Das temáticas mais significativas, ou mais freqüentes, tratadas por
CFA, destacam-se as referências à geração hippie, iniciada na década de 60, que
revolucionava padrões de comportamentos, cujo interesse se fez mais latente pela
busca de uma espiritualidade, o psicodelismo, a vida em comunidade, e o próprio
movimento de contracultura, todos estes violentamente censurados pelo
militarismo brasileiro. Como ilustração dessas perspectivas, voltadas em grande
parte à experiência da intimidade, têm-se os livros Pedras de Calcutá (1977), e Ovelhas
negras (1995). Destes dois livros, destacam-se os contos “Loucura, chichete & som”
e “Lixo e purpurina”, de Ovelhas negras; “Sally Can Dance (and the Kids)”, de Pedras
de Calcutá. Sob um ambiente rarefeito, aparece na produção de CFA um estado de
loucura e alucinação, evidenciado por personagens que se paralisam diante do vazio
e da solidão; estas enlouquecem ao se depararem com situações adversas,
aprisionando-se na espera por algo ou alguém. “Uma estória de borboletas”, de
Pedras de Calcutá, e “Gravata”, de Os dragões não conhecem o paraíso são dois contos
100
emblemáticos nesse sentido. Curioso nestes dois contos é a desnaturalização do
real; aliás, o real é conhecido a partir da loucura. Há o esvaziamento de qualquer
tentativa de delimitação entre a loucura e o real. A respeito dessa temática, sublinha
Bruno Souza Leal (2002, p. 81):
101
Para José Castello (1999), Caio foi o “poeta negro” por excelência,
e somente com a proximidade eminente da morte, pôde se transformar em um
outro Caio. De modo geral, os estudos a respeito da obra de CFA são bastante
recentes e, nesse sentido, há uma espécie de escassez no que seria uma fortuna
crítica mais ampla. Pode-se dizer que os estudos abordam o aspecto temático na
observação crítica do projeto literário do autor. Já expusemos alguns temas que
sobrevoam a obra de CFA. Sem dúvida alguma, além do caráter testesmunhal
centrado na referencialidade de um momento socio-histórico determinado,
sobressaem outras perspectivas de leituras, algumas abordadas com enorme
freqüência, ancoradas nos conflitos existenciais, nas práticas homoafetivas e, por
fim, na massificação cultural das décadas de 80 e 90. Esta última em especial é
consoante a nossa pesquisa pela semelhança que alguns contos mantêm com o
romance Onde andará Dulce Veiga? quanto a referências irônicas à sociedade do
consumo. Nesse caso, podemos lembrar de “Ascensão e queda de Robhéa,
manequim & robô” e “A margarida enlatada”, os dois de O Ovo apunhalado. Na
perspectiva do kitsch, o conto “Mel & Girassóis”, de Os dragões não conhecem o paraíso,
é modelar nesse sentido. Em linhas gerais, esses três contos evidenciam a ironia, a
fala mordaz e o recurso da pluralidade discursiva como estratégias ficcionais na
tentativa de problematizar o espaço repressor e reificador da cultura de
massa.Vejamos “Ascensão e queda de Robhéa, manequim & robô”:
102
proporcionando à ex-camareira a candidatura, ao mesmo tempo,
aos Prêmios Nobel da Paz e da Literatura. [...] Tudo inútil. Muitos
anos depois, os jornais publicaram uma pequena nota
comunicando que Robhéa, ex-manequim, ex-atriz de cinema e
robô de sucesso em passadas décadas, suicidara-se [...], desde então,
foram publicados fascículos com sua vida completa e fotos
inéditas, os travestis passaram a imitá-la em seus shows e, quando as
discussões versavam sobre as grandes cafonas do passado, seu
nome era sempre o primeiro a ser lembrado (ABREU, 1992, p. 49-
50).
104
se afirma o processo de realidade simulada por força dos massa media. A
sensibilidade artística em autores pós-modernos, como CFA, difunde-se numa
produção literária alicerçada pelo imbricamento de vários modelos discursivos, quer
sob o ponto de vista formal, ou socio-cultural. Essa profusão de imagens que Caio
produz em muitos de seus contos também significa a quebra entre o real e o
imaginário. O capitalismo tardio (JAMESON, 1996) mostrou-se tão avassalador, ao
destruir identidades e desterritorializar culturas, que a literatura pós-moderna se viu
cada vez mais propensa a jogar com os planos simulados, onde são tematizados os
cruzamentos entre realidade e fantasia, loucura e sanidade. Neste conto, ocorre o
divórcio entre a ficção e o real. O absurdo que, teoricamente, deveria estar ligado
ao jogo ficcional, é posto no plano do real. A margarida é apenas uma constituição
simbólica por meio da qual o autor identifica a realidade exterior calcada na imagérie
contemporânea.
Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu
o anúncio:
Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato agora é avenca (ABREU, 1992, p. 161).
105
cultura de massa (novelas de TV, revistas femininas, música, cinema), e no desejo
pessoal em encontrar e viver uma história de amor.
Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever
Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A
Fim de Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amir Klink.
Ela, que quase não fumava, aceitou um cigarro. E disse que gostava
de Fellini. Ele concordou: demais. Para a surpresa dela, ele falou
em Fassbinder. Ela foi mais além, rebateu com Wim Wenders. Ele
106
então teve um pouco de medo, recuou e contemporaneizou em
Bergman. [...]. Encontram-se tanto que, mais de meio-dia, ela
aceitou também uma cerveja. Meio idiotas, mas tão felizes, ficaram
cantando O Pato, enquanto todos aqueles Atletas Dispostos A
Tudo Por Um Corpo Mais Perfeito, Gays Fugindo Da Paranóia
Urbana Da Aids, Senhoras Idosas Porém Com Tudo Em Cima, e
por aí vai, retiravam-se em busca de almoço. O sol queimava
queimava. Então ele viu um barquinho a deslizar, no macio azul do
mar, mostrou pra ela, que viu também, e apontaram, e riram, e o
sol não parecia tão ardente [...]. Ela não suportou olhar tanto
tempo. Virou de costas, debrucou-se na janela, feito filme: Doris
Day, casta porém ousada. Então ele veio por trás: Cary Grant,
grandalhão porém mansinho. Tocou-a devagar no ombro nu
moreno dourado sob o vestido decotado, e disse:
– Sabe, eu pensei tanto. Eu acho que.
Ela se voltou de repente. E disse:
– Eu também. Eu acho que.
Ficaram se olhando. Completamente dourados, olhos úmidos. Seria
a brisa? Verão pleno solto lá fora.
Bem perto dela, ele perguntou:
– O quê?
Ela disse:
– Sim.
Puxou-o pela cintura, ainda mais perto.
Ele disse:
– Você parece mel.
Ela disse:
– E você, um girassol (ABREU, 1988, p. 106-114).
107
urbanos, ou mesmo, através dos próprios conflitos existenciais. Optamos por nos
concentrar nesses três contos em especial pelo modo como estas narrativas podem
nos traduzir uma outra face do projeto literário do autor. Isso se deu para nós não
como insatisfação em vista das temáticas mais freqüentemente exploradas,
tampouco para alcançarmos com o trabalho uma certa exclusividade, se assim se
pode dizer. O nosso objetivo neste capítulo foi justamente uma forma de legitimar
a nossa tese de que a obra de CFA, num todo, não se aprisiona na melancolia, no
estado de solidão e fragmentação do sujeito. É óbvio, até por motivos de paixão
mesmo pelo texto de Caio, que todas essas temáticas que regem grande parte dos
estudos levantados são muito significativas na compreensão da poética do autor.
No entanto, não se pode deixar de empreender uma pesquisa voltada para esse
olhar, embora crítico, irônico e paródico acerca das manifestações da cultura de
massa e os gêneros massivos.
108
4 O KITSCH EM ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?
44
Apud FRANCO, Carlos. Um último sopro de vida. 1996.
109
caso de Onde andará Dulce Veiga?, trata-se de um gesto camp45, isto é, de um tipo de
estilo que se relaciona a uma poética do artifício definida pela exageração estética
de certos objetos artísticos.
Neste capítulo, que encerra nossa dissertação, buscaremos explorar
esses procedimentos de apropriação/reciclagem/incorporação, de forma a avaliar o
kitsch como uma estética que transforma o texto num conjunto de discursos
provenientes de diferentes âmbitos culturais. Assim, o tom detetivesco do romance,
a impressão cinematográfica, a construção da personagem Dulce Veiga como mito,
a ambiência kitsch em contraste com o “noir”, e o “romance B” como colagem e
bricolagem serão os pontos avaliados para observar a adoção da estética do kitsch
como um deslocamento de revalorização ou de apropriação crítica pelo autor.
De modo geral, a trama do romance em questão é articulada pela
busca da cantora Dulce Veiga que desaparece no dia de um show de estréia sem
deixar pistas. O protagonista, também narrador, é um jornalista decadente de quase
quarenta anos que, depois de um tempo de desemprego e desilusão, é convidado a
trabalhar como repórter em um jornal sensacionalista. Escalado por Castilhos, seu
editor, a fazer uma entrevista com uma banda de rock chamada Vaginas Dentadas,
o protagonista (sem nome em todo o romance) redescobre o mito Dulce Veiga ao
ouvir, na voz de Márcia Felácio – vocalista das Vaginas, a música “Nada além”46,
agora em ritmo de punk rock da década de 80. A lembrança de Dulce, que fora
entrevistada por ele no início de sua carreira, o leva a escrever uma crônica
intitulada “Onde andará Dulce Veiga?”, fato que desperta a curiosidade em milhões
de leitores do jornal. É, pois, a partir daí que a narrativa se abre num jogo à moda
policial, uma vez que o jornalista/protagonista/narrador se vê obrigado a fazer o
45
De acordo com Susan Sontag em “Notas sobre o Camp” (1987, p. 318-337), o gesto camp “é
um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. Essa
maneira, a maneira do Camp, não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização [...]
Camp é uma visão do mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo
exagero, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são [...] Camp é arte que se
propõe seriamente, mas não pode ser levada totalmente a sério porque é ‘demais’” (grifo da
autora).
46
Música de Custódio Mesquita em parceria com Mario Lago, interpretada por Orlando Silva em
1941.
110
papel de detetive na tentativa de desvendar o mistério que gravita em torno do
desaparecimento da cantora ocorrido há vinte anos. Como a crônica sobre o
sumiço de Dulce desperta grande repercussão nacional, Rafic, dono do jornaleco
Diário da Cidade, viabiliza financeiramente ao jornalista a investigação do paradeiro
da cantora.
O romance é fracionado em sete capítulos que correspondem aos
dias da semana, todos devidamente intitulados47, conferindo à narrativa uma
velocidade do texto. O aspecto da velocidade no romance é um recurso típico de
narrativas contemporâneas, o qual pode tanto se concentrar na rapidez dos
acontecimentos, muitas vezes através da inferência de inúmeros diálogos, bem
como pelo corte abrupto de frases. Vale lembrar as Seis propostas para o novo milênio
(1990), de Italo Calvino, sendo que a “rapidez e a concisão do estilo agradam
porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou cuja sucessão é tão
rápida que parecem simultâneas” (p. 55).
48
Todas as citações que serão usadas nesta dissertação do romance Onde andará Dulce Veiga? são
da publicação de 1990, pela Cia das Letras.
112
– Corta! – alguém gritou.
Então lembrei, num relâmpago: Dulce Veiga.
Há dez, quinze, vinte, quantos anos? O arrepio desceu da nuca para
os meus braços, estranho feito uma premonição (p. 28).
113
jovens admiradores do rock pesado e metalizado da década de 80. A mitificação
destas personagens, certamente anti-heroínas, potencializa o efeito de sedução dos
produtos da cultura de massa nas pessoas. Algumas das descrições de Márcia
Felácio, por exemplo, que aparecem no romance podem ser encaradas como a
imagem da obscuridade e da agressividade típicas da rebeldia de alguns movimentos
dos anos 80.49
49
No romance Onde andará Dulce Veiga?, a personagem Márcia Felácio mitifica a idéia dos
movimentos undergrounds, consolidados na década de 80, os quais, a partir da música,
representavam a rebeldia e a insatisfação com o mundo e com padrões estabelecidos. Derivações
do rock, estilos como o punk rock, por exemplo, funcionaram, a partir da década de 70, como
movimentos da contracultura. O parecer sujo compunha uma espécie de estética ideológica que
se refletia nas roupas e no visual, bem como no próprio som distorcido das guitarras e dos vocais
berrados.
114
garantida. Caio constrói em Onde andará Dulce Veiga? um universo quase
cinematográfico, “roteirizado” pelas descrições pormenorizadas de elementos que
enriquecem a imagem e pela caracterização absolutamente estereotipada das
personagens (gestos, gostos, preferências, trejeitos). Duas personagens que
chamam a atenção quanto ao exagero na caracterização, quase numa espécie de
montagem caricatural ou galeria fotográfica, são Terezinha O’Connor – colunista
social do Diário da Cidade –, e Castilho, editor-chefe da redação.
116
Castilho gritou:
– É a capa da sexta – e depois, sem levantar, mas com a voz muito
empostada, num inglês tão perfeito que não entendi absolutamente
nada, recitou: – ‘Disable all the benefits of your country, be out of love with
your Nativity, and almost chide God for making that countenance you are’.
O rapaz de preto deteve as mãos sobre o teclado.
– Jonh Donne – arriscou.
A ex-bailarina russa bateu palmas:
– Fernando Pessoa.
Estava totalmente errada. Nos vinte anos que eu conhecia aquele
jogo, em língua portuguesa Castilhos só admitia Camões. E certa
vez, para surpresa geral, Florbela Espanca: ‘Sempre da vida o mesmo
estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta!’. Agora todos esperavam,
olhando para mim. Era decisivo como uma prova iniciática.
Chutei:
– Shakespeare.
Castilhos confirmou:
– As you like it. Ato quatro, cena um (p. 17-18 – grifo do autor).
117
original. A moça é modelo, atriz, cantora. Puta talento, puta mulher
[...]
– Muito expressivo – eu disse. A náusea voltava, mais forte (p. 103-
104 – grifo do autor).
118
[...] engloba desde a construção prolixa de personagens
infinitamente díspares e planas, até a presença tradicionalmente
marcante de heróis problemáticos em conflito com um mundo
hostil; desde a perspectiva da pintura homogênea e realista de
ambientes e atmosferas, até a refração de espaços múltiplos e
simultâneos, zonas ou territórios antigeograficamente ilimitados,
traduzindo a sensação de caos globalizado; desde o tempo como
duração, que se perde ou recupera pela memória, pelo sonho ou
pelo desejo, até a experiência de um eterno presente, pontual e
descontínuo, ‘esquizofrenicamente’ mensurado pelos tempos das
novas mídias (PELLEGRINI, 2003, p. 16-17 – grifo da autora).
119
de simulações. Ilusão e realidade se confundem no protagonista e, por conseguinte,
no leitor que aguarda ansiosamente o desvendamento do mistério.
120
com Pedro também é marcada por observações irônicas do protagonista a respeito
de gêneros que seduzem o público da indústria cultural:
121
algumas pessoas aqui, pelo menos com mais de 35 anos,
sabem quem é Odete Lara. Para quem não se lembra, foi a
maior estrela de cinema deste país, talvez a única estrela de
cinema deste país. Ela fazia uma cantora chamada Dulce
Veiga, cujo grande sucesso no filme era ‘Nada além’, um fox
de Custódio Mesquita, com letra de Mário Lago. Fiquei
fascinado por aquela personagem, fiquei absolutamente
fascinado com a Odete e com a figura de Dulce Veiga na
cabeça, a personagem. Eu me perguntava: mas onde andará
Dulce Veiga? Que era o mesmo que: onde andará Odete
Lara? Se aquela personagem fosse viva, o que teria acontecido
com ela? Passaram-se muitos anos, isso foi em 76, 77, e de
repente essa imagem da cantora Dulce Veiga, sempre
cantando ‘Nada além’, começou a magnetizar, agregar, atrair
outras coisas estranhas também, outras histórias, outras
personagens. Fui anotando nos meus cadernos. De repente,
eu ‘soube’ que essa mulher – que já não era personagem do
filme, era minha – no dia da estréia do grande show dela, que a
lançaria como a maior cantora do Brasil, simplesmente não
compareceu à estréia. Deixou um bilhete na poltrona do seu
quarto, uma bergère de veludo verde de que gostava muito,
dizendo: ‘Eu quero outra coisa, desapareci para sempre, não
tentem me encontrar’. Todas essas coisas foram se juntando
estranhamente, caoticamente na minha cabeça até que, por
volta de 1985, assumi que isso era um romance ou uma
novela, e comecei a escrever”
(Caio Fernando Abreu)
50
Depoimento que o autor concedeu em mesa-redonda no seminário Sobre o Manuscrito, organizado pelo
setor de Filologia da fundação Casa de Rui Barbosa, em outubro, de 1990.
122
A respeito destas aproximações, Antonio Hohlfeldt (1984)
apresenta algumas diferenças que são significativas para entendermos de que
maneira CFA em seu romance aproxima essas linguagens de modo que a narrativa
se roteirize, e as imagens, por sua vez, possam produzir tanto impacto a ponto de a
história ser “narrada” como se fossem takes. Assim, o tempo e o espaço são
cadenciados como se houvesse mesmo uma câmera, ora congelando, ora
fracionando, ora dando velocidade às cenas. Seguindo as observações de Hohlfeldt
(1984, p. 131), “a literatura constitui-se numa linguagem simples, que se transmite
pela palavra, enquanto o cinema é uma linguagem mais complexa, compreendendo
códigos superpostos, e por vezes os mais díspares possíveis”. Vejamos o que diz o
autor ao comparar as duas linguagens:
125
Entretanto, Caio vai além. Produz uma obra absolutamente polifônica. Sob a
perspectiva da sétima arte, o romance joga com os planos de enquadramentos,
angulações e, também, com o uso de flashbacks, ativados pelas lembranças de Dulce
Veiga, de Lidia, de Pedro, e mesmo de outras pessoas do círculo de Dulce – como
Alberto Veiga (o marido) e Pepito Moraes (o pianista).
Interessante ressaltar que Caio brinca com o travestimento de certas
personagens (seja este ‘real’ ou imaginário – isto é, há o travestimento daquelas que
realmente encarnam outras pessoas, como Jacyr/Jacyra e Saul/Dulce, e daquelas
que desejam ser um outro, como Patricia que acredita ser a reencarnação de
Virginia Woolf) sempre as colocando num nível de comparação com personagens
do cinema. Jacyr, por exemplo, vizinho que se presta à faxina na casa do jornalista,
é metade do ano homem e metade mulher, daí Jacyra.
126
janela filtrando uma luz sempre baça pelos vidros sujos, Castilhos
flutuava entre nuvens de cigarros. À esquerda, vestida de cinza,
voltada para a parede, inteiramente imóvel, Terezinha O’Connor
contemplava mais uma página do calendário Seicho-No-Ie que
devia ter acabado de virar [...] Tambores na selva, lembrei, ligar um
rádio para que a música afro fizesse aquela natureza-morta
estremecer. Ou entrar desejando boa tarde! em voz alta, tão alta
que fossem obrigados a mover-se, mesmo para me olhar com
desagrado, sem dizer coisa alguma. Mas parado na porta – se a
câmera mudasse seu enquadramento e substituísse meus
olhos pelos olhos de Castilhos ou de alguém postado atrás
dele, por sobre seus ombros curvos – , eu também fazia parte
daquela cena. Qualquer movimento, o filme andaria (p. 82 –
grifo nosso).
127
pouco a pouco adentrando o terreno das artes em geral, promovendo outros
modos de percepção dos objetos artísticos. Mais recentemente, na chamada Era da
Imagem, o produto literário também se viu ‘contaminado’ (o termo aqui não é
empregado com sentido pejorativo) pelas imagens que saíam da TV e do cinema,
sem falarmos das imagens eletrônicas da Web, muito provavelmente por conta do
modo pela qual sofreu a imaginação dos autores (BARBIERI, 2003). Sendo assim,
a dicotomia autor-receptor é mediatizada por uma obra que, num certo sentido,
democratiza possibilidades de leitura e de apreensão de significados.
Narrado como um filme, Onde andará Dulce Veiga? se choca com os
ingredientes típicos da trama policial, mesclando-os aos diferentes desdobramentos
que o gênero recebeu desde sua origem52. A despeito de Boileau e Narcejac (1991)
afirmarem ser um grande engano pensar em renovação do romance policial a partir
de Edgar A. Poe, “tornando-se sucessivamente romance-problema, romance de
suspense, romance ‘noir’, etc” (p. 9), fica evidente no romance de CFA a
elaboração de técnicas de narrativas detetivescas pelo abuso de clichês do gênero.
Mais um recurso usado por Caio para revelar um tipo de inconsciente coletivo que
projeta sobre os produtos da indústria cultural sonhos, desejos e expectativas. O
mistério, o erotismo e, algumas vezes, a violência – retratada pela cidade caótica e
pela deterioração de personagens com o uso de drogas (Márcia com a cocaína,
Dulce e Saul com a heroína), ajudam a compor o cenário de suspense do romance.
De modo geral, Onde andará Dulce Veiga? pode ser entendido como uma paródia do
gênero policial tradicional, uma vez que o desaparecimento de Dulce – mote da
trama – não se liga a crimes e/ou assassinatos; ao contrário, apenas sugere esta
possibilidade sustentada pelas divagações do próprio narrador.
53
Ou literatura de massa, encontram-se os romances policiais, romances de aventura, melodrama,
folhetim, ficção científica, telenovelas, histórias em quadrinho, entre outros.
129
‘culta’ e/ou esteticamente mais apurada, é o mesmo que descartar um dos
elementos da triconomia autor-obra-receptor, ou seja, o leitor.54
54
Vale lembrar das considerações de Umberto Eco, em “Intentio lectoris” (2004), quanto aos
limites, às possibilidades e à pluralidade no âmbito da interpretação. Esta tornou-se alvo no
processo de observação do objeto literário com autores que versavam uma “estratégia” bem
distinta daqueles precedentes, cujas balizas para análise do texto davam-se no exercício único da
verificação da forma. O estruturalismo e todas as teorias imanentistas do texto acabaram por dar
lugar a um outro tipo de investigação, cujo papel do receptor se fazia imprescindível. Ora, se o
leitor ou a intenção do leitor pesa agora no projeto literário, é evidente que o texto em si
apresente-se como polifônico e, se possuidor de vozes múltiplas, também são certas as
possibilidades interpretativas. Mesmo que ocorrido mudança nos paradigmas de análise para a
crítica literária, isso não significa dizer, segundo Eco, que os pós-estruturalistas partilhavam de
idéias únicas, por certo que afins. Ao cotejar as várias possibilidades que pode oferecer a leitura, o
semiólogo italiano aponta duas posturas distintas no tecer a leitura pelo leitor: aquela que apenas
usa o texto e a que o interpreta de fato. Na tricotomia autor-obra-leitor, atenta-se para as
intenções de cada uma destas instâncias como responsáveis pela produção do sentido de um
texto. Eco questiona até que ponto o leitor e o processo interpretativo podem ser fidedignos à
obra; ainda mais quando postulada a existência de uma intentio auctoris e intentio operis dividindo
espaço com a intenção do leitor. De todo modo, acredita-se que o texto literário é o lugar por
excelência onde residem diversas e variadas vozes culturais, e, nesse sentido, o texto apresenta
espaços lacônicos, cujo preenchimento é dado, a posteriori, pelo leitor como uma espécie de
manipulador de objetos.
130
cinema, a fim de exagerar os elementos dos massivos, deformando criativamente os
modelos de sucesso. No texto, o autor chega a citar Phillip Marlowe, detetive
criado pelo escritor Raymond Chandler que, ao lado de Dashiell Hammett, funda o
chamado romance ‘noir’. Caio, dessa maneira, não só enfatiza a ação investigativa
do romance, como também potencializa o efeito do kitsch em narrativas como esta.
Isso quer dizer que o caráter de exagero, de provocação de efeito e de
reconhecimento imediato dos produtos que apresentam uma estética kitsch, é
trabalhado no romance, entre outros, a partir da apropriação dos recursos do
romance policial, mais especificamente o romance noir.55
132
personagem real, como a cantora Maysa, e recuperar Leniza Maia, a famosa cantora
de rádio que luta pela fama no romance de Marques Rebelo, aponta, como uma
espécie de interface da narrativa, o valor do simulacro. Este, em forma de repetição
de modelos massivos ou representação de representação (como é o caso da cantora
‘fictícia’ Leniza Maia), aparece como um jogo intertextual a ser decodificado pelo
leitor. Procedimento típico da cultura de massa, a repetição pode se referir a um
protótipo, a uma matriz, ou a um arquétipo, repetidos constantemente na tentativa
de marcar pontos de identificação com o público. Calabrese (1987) diz que a forma
mais conhecida, e portanto mais comercial, da repetição é aquela que consiste na
continuação de um tema e/ou personagens que tenham sucesso. Viu-se neste
último trecho, por exemplo, que a repetição de Leniza Maia e a referência à cantora
brasileira Maysa funciona também para privilegiar os flashbacks do romance que, de
modo geral, mantêm a salvo as personagens, potencializando ainda mais o tipo de
simulação produzida. Sem dúvida alguma, essa condição de reproduzir na ficção
ícones da cultura massiva, funcionando como um espelho para o leitor,
recondiciona uma narrativa que requer receptores diferenciados, que possam
decodificar e reconhecer no texto os elementos parodísticos, as citações, o jogo de
ironia e, sobretudo, os simulacros.56
A idéia de thriller policial sobre uma das quais nos debruçamos neste
capítulo também pode ser tomada como um dos processos utilizados pelo autor
para sustentar o princípio de simulação do romance. Tal fato indica um duplo
movimento no plano da diegese: aumentar o potencial dramático da ação no que
respeita aos movimentos de desdobramentos da trama sustentada pelo mistério do
desaparecimento de Dulce Veiga; incidir sobre a descaracterização de alguns
elementos do gênero através da exageração e ridicularização, elevando o índice
parodístico da narrativa.
56
Cumpre lembrar que a nossa idéia de simulacro é consoante à tese de Baudrillard (1991) a
respeito da cultura contemporânea ser o universo da simulação. Na contemporaneidade, não
existe mais o real, mas um “hiper-real”. Diz Baudrillard: “Já não existe o espelho do ser e das
aparências, do real e do seu conceito. Já não existe coextensividade imaginária: é a miniaturização
genética que é a dimensão da simulação” (p. 8).
133
Segundo Muniz Sodré (1988, p. 38), a palavra thriller, “como
variante do gênero policial, tem sido forte constante de inspiração à indústria
cinematográfica e, sem dúvida nenhuma, fonte de conhecimento dos bastidores do
poder dos grandes centros urbanos”.
Thriller é uma palavra para todo uso, cujo sentido convém precisar.
A narrativa de ‘fazer medo’ deve entender-se de duas maneiras. De
um lado, há a narrativa de espanto, cujo modelo deve ser
procurado no velho romance ‘noir’ [...] A detecção aí não
desempenha nenhum papel. Por outro lado, há esse novo romance
policial americano que não procura absolutamente espantar, mas
que faz mal pela dureza de certas cenas (BOILEAU; NARCEJAC,
1991, p. 59 – grifo dos autores).
134
clichês do gênero de forma que a narrativa seja divida em duas ambiências: a
underground da metrópole apodrecida, cujo cenário é o da prostituição, das drogas e
da marginalidade; e a totalmente kitsch, evidenciada pela cafonice de cenários e
personagens.
Em meio à paródia detetivesca, a visão que o leitor tem do
protagonista é uma espécie de mistura do sujeito descentrado de Hall (1998), de um
‘eu’ esquizóide de Deleuze e Guattarri (1976), do fractal de Baudrillard (1976)57,
isto é, sem identidade fixa – traço comum nas personagens de Caio, mas que,
ironicamente, é temperado ao tom do humor, traço que aponta para os sinais do
triunfo da superficialidade, do vazio e da efemeridade da pós-modernidade. Nesse
sentido, a narrativa realiza a marcação dos estereótipos e das formas ritualizadas do
processo de imitação. Tanto o sujeito problemático quanto o risível são
amalgamados em uma só pessoa. “O bem e o mal cozinhando no mesmo caldeirão.
Não rimos mais dos outros, mas, à la Woody Allen, rimos de nós mesmos”
(VILLAÇA, 1996, p. 138 – grifo da autora).
57
Emprestamos de Nizia Villaça (1996), as considerações acerca das fases do simulacro,
desenvolvidas por Baudrillard em L’échange symbolique et la mort (1976). Segundo observa Villaça, a
quarta fase, a fractal, diz respeito “a desreferencialização total” do sujeito com objeto, “nada se
distigue de nada, tudo perde o lugar e o valor em sucessivos golpes” (p. 73).
135
Nesse caso, o “ter para onde ir” é o mesmo que poder recomeçar,
redescobrir-se diante do frenesi da metrópole que “parecia metida dentro de uma
cúpula de vidro embaçada de vapor. Fumaça, hálitos, suor evaporando, monóxido,
vírus” (p. 16). A função de jornalista, então, abre-se na possibilidade da descoberta
(de si e do outro). Vê-se que a crônica, gênero consagrado pelo veículo jornalístico,
que fora publicada em homenagem à cantora tem papel fundamental no romance
porque marca a associação não apenas com o ofício de escritor (metalinguagem),
mas, inegavelmente, serve como alavanca para desencadear o processo investigativo
da narrativa. De autor a detetive, o jornalista passa a se alimentar de pistas, e não
mais de notícias. O vazio dá lugar à expectativa. Vejamos o que diz Isabel Jasinski a
respeito da incorporação do policial em Onde andará Dulce Veiga?.
136
suspeita”. O próprio Caio (1995), ao comentar o romance em entrevista a José
Castello, ressalta que: “O leitor, se puder, vai entender então que Dulce está ligada
ao Santo Daime e isso provocará um choque violento porque, provavelmente, ele
estava lendo o livro como um romance policial”. Isso já revela uma proposta de
ruptura com o romance policial, indicando, antes de mais nada, o caráter de
desapropriação do gênero em favor de reciclagens e transformações. Assim, o
deslocamento de matrizes culturais como esta – o policial – permite que a narrativa
resulte em novos produtos. A respeito da adulteração dos produtos massivos,
Borelli (1996, p. 193), conclui que, “se, por um lado, os gêneros perdem parte de
sua autenticidade com adaptações [...], por outro, ganham em diversificação e
ampliam seus limites em direção a interessante processo de desterritorialização”.
As descobertas sobre o sumiço de Dulce Veiga vão sendo
projetadas no romance conforme o protagonista vai tateando situações e pessoas.
O triângulo afetivo concentrado em Dulce, Alberto Veiga e Saul é ponto-chave
para o desfecho do mistério. Descobre-se, então, que Dulce mantinha uma relação
extraconjugal com Saul, um ativista político que fora exilado em tempos de ditadura
militar no país. Assim, é levantada no romance outra especulação – a de que Márcia
poderia não ser realmente filha de Alberto Veiga. Especulação que se efetiva
quando o jornalista vai ao encontro de Lilian Lara, que fora, afinal, “a última pessoa
a ver Dulce Veiga” (p. 171). Imaginando receber a visita do jornalista para uma
entrevista sobre sua carreira de sucesso como atriz, Lilian Lara fala o tempo todo
de seus papéis, chegando a colocar uma fita de vídeo sobre o filme que fizera com
Dulce, pois chegou a dizer: “Quando Dulce desapareceu [...] nós estávamos
fazendo um filme juntas. Eu peguei uns fragmentos, mandei montar este vídeo. É a
última imagem dela” (p. 174). A passagem que narra a ida do jornalista à casa da
atriz reforça a idéia do procedimento híbrido da narrativa. Em primeiro lugar,
porque a personagem de Lilian só apresenta um certo glamour quando vista no
vídeo do filme, filmado há vinte anos. Na realidade da ficção, esta personagem é
apresentada na superfície, sem nenhuma densidade, vivendo ainda de um modelo
137
identitário do passado, mediado por imagens cinematográficas ou televisivas. Em
segundo lugar, tem-se a configuração do tempo e do espaço desmontada pelos
artifícios das imagens. O paralelismo entre realidade e ficção se desdobra em
‘realidade da narrativa’ e ‘ficção propriamente dita’. No filme “em preto e branco”
(p. 175) mostrado ao jornalista, Dulce aparece sentada numa poltrona. Nesse
sentido, cruzam-se a imagem ‘real’ de Dulce na narrativa e a imagem do filme.
Nesta passagem do romance, embora sabendo ser “um fracasso como detetive” (p.
169), o jornalista (e o leitor) é surpreendido com duas revelações bombásticas. Saul
era o pai de Márcia, e não o marido Alberto Veiga. Dulce o havia deixado para
viver com Saul que “foi preso, torturado, e quando saiu da prisão, meio louco,
Dulce tinha desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele foi
parar num hospício, durante anos” (p. 174). A segunda revelação: Patricia era filha
de Lilian Lara.
A pluralidade de fontes e pistas neste romance é uma constante no
texto como tentativa de clicherizar a dramatização de narrativas policialescas.
Cruzada com um número imenso de imagens, percebe-se que Onde andará Dulce
Veiga? subverte a racionalidade típica do thriller policial, pois permite ao leitor
vivenciar ou assistir às mazelas e às ambigüidades do sujeito problemático.
Preferimos, assim, deixar o desfecho do romance para o próximo
tópico, uma vez que este se liga fundamentalmente à figura e à descoberta do
paradeiro de Dulce. Veremos como a personagem mitificada e fetichizada como
produto de uma indústria cultural é construída no imaginário do narrador, ainda
que essa imagem do mito seja quebrada ao final, afirmando, mais uma vez, o
movimento de desarticulação da narrativa.
138
4.2 DULCE VEIGA: A CRIAÇÃO DE UM MITO DA CULTURA DE MASSA
58
Aqui vale a ressalva de que o papel dos mitos projetados dentro de uma cultura de massa não
pode ser encarado da mesma maneira como as antigas sociedades tomavam um vasto repertório
iconográfico como uma espécie de narrativa embuída da função de explicar a origem do mundo e
de dar, entre outros, a compreensão de fenômenos ocorridos no corpo da estrutura social. Mircea
Eliade (1978, p. 11), por exemplo, diz que “o mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial […]. Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento”. Não nos interessa, de fato, traçar um percurso de evolução
do significado do mito. No entanto, tentaremos mostrar que a mitificação de Dulce Veiga pode
ser associada ao papel dos mass media como agentes de consolidação imaginária e
ressignificadores do conceito de mito no que respeita à produção simbólica contemporânea.
140
Nesse sentido, com a predominância de uma orientação
comportamental e artística apoiada no star system norte-americano, é que começam a
surgir, no Brasil, os mitos do século XX, os quais, nas palavras de Edgar Morin
(1977b), surgem “olimpianos”, intocáveis. Os novos mitos, portanto, exercem o
mesmo poder que os meios de comunicação de massa quanto a sua capacidade de
construção e manutenção de identidades que refletem valores, desejos e
perspectivas consoantes às aspirações do público massivo. É oportuno considerar,
então, alguns elementos característicos que dão contorno ao conceito de mito no
âmbito da cultura de massa, correlacionando-o às expressões estéticas dos mass
media que, no romance, imprimem uma multiplicidade discursiva.
Considerando o sentido do fenômeno dos “mitos sociais”, tal qual
pontua Gillo Dorfles (1965), pode-se dizer que, na contemporaneidade, ocorre uma
desmitificação com relação aos mitos sagrados, que perderam grande parte de sua
riqueza simbólica institucionalizada, ao passo que o processo de mitificação
adquiriu a força da simbolização de novos elementos elevados a uma categoria
semelhante a dos mitos, sobretudo pela sua cota de irracionalidade.59
59
De acordo com Dorfles, os novos mitos da sociedade moderna surgem pelo desconhecimento
de uma má interpretação de alguns elementos ou situações. Explica o autor que quando se
desconhece a finalidade de uma técnica ou se distorce o verdadeiro uso de um elemento junto a
sua adoração chega-se a uma forma “mitagógica”, isto é, são os fatores mitizantes ou
fetichisticamente mitizantes que conferem valor negativo à mitificação. De outro lado, quando
esta mitificação é capaz de restituir alguns valores simbólicos a entidades já perdidas, tem-se o
caráter “mitopoiético”, positivamente, ainda que seja de forma inconsciente.
141
Mais do que apenas recriarem as velhas narrativas míticas, a cultura
de massa acabou por fundar um repertório imenso de mitos modernos que, através
das aspirações coletivas corporificadas pelas personagens midiáticas, foi possível
“criar” figuras que aglutinaram o imaginário de nossa época. A percepção do uso
da expressão “mito” na sociedade de massa, isto é, a apropriação de formas de
representação para designar personalidades que exercem um certo destaque no
imaginário contemporâneo, permeia a obra de alguns teóricos, tais como Edgar
Morin, Roland Barthes e Umberto Eco. Morin (1977), por exemplo, afirma que a
cultura de massa fornece à vida privada as imagens e modelos que dão forma às
inspirações do homem comum a partir do empréstimo da terminologia mítica ou
do discurso mítico.
142
algumas considerações com relação à pulverização do mito baseada no cânone
estético dos modelos mais tradicionais do cinema hollywoodiano.
A primeira vez que vi Dulce Veiga, e foram apenas duas, ela estava sentada
numa poltrona de veludo verde. […] Por alguma razão, até hoje, ao pensar
nela penso também inevitavelmente num filme qualquer, em preto e branco, da
década de 40 ou começo dos 50. Dulce tinha a cabeça jogada para trás,
afundada entre aquelas abas. Como se não me visse, como se eu não estivesse
lá. Parada sob o arco que dividia em duas a sala de paredes altas onde
estávamos os dois, eu podia ver apenas sua garganta muito fina branca, um fio
de pérolas brilhando contra a pele. Na peça escurecida, provavelmente era quase
noite e, além disso, as cortinas permaneciam sempre cerradas, eu saberia depois,
sem que ninguém me contasse, as sombras caídas sobre a poltrona e seus cabelos
louros não permitiam que eu visse o rosto dela. Percebia somente suas mãos
longas, magras, unhas pintadas de vermelho, destacadas como um recorte móvel
na penumbra azulada do entardecer. Numa das mãos, agitava lenta um cálice
de conhaque. A outra segurava um cigarro aceso. […] Não estou
absolutamente seguro que, de algum lugar no interior do apartamento, viessem
os acordes iniciais de Crazy, he calls me, na gravação de Billie Holiday, e
poderia ser também Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer
outra dessas canções roucas, gemidas. Naquele tempo eu não as conhecia, mas
estou certo de que nessa ou na outra vez perguntei quem era e ela disse que era
Billie […] Tudo isso que agora parecia clichê banal, naquele tempo […] –
tudo era novo, eu nem suspeitava das marcas pelo caminho. […] Logo que
entrei na sala, não a vi. Mas devo ter sentido a presença de alguém, algo como
uma respiração arfante, um perfume adocicado de jasmim, dama da noite,
manacá ou outra dessas flores assim antigas, excessivamente perfumadas. […]
Quando meus olhos acostumaram-se à luz escassa pude vê-la inteira, sentada
naquela poltrona de veludo verde, pernas cruzadas, vestida toda de preto. Ela
usava sempre no máximo duas cores. […] A brasa de seu cigarro subia e
descia no escuro, às vezes mais viva, quando ela tragava. […] Creio que
perguntei se podíamos começar a entrevista, e ela disse que sim, ou não disse
nada durante algum tempo, não lembro. Mas tenho certeza que, antes de
levantar o rosto, estendeu a mão para depositar o cálice de conhaque sobre a
mesa de mármore, depois apanhou uma caixinha preta, redonda, abriu a
tampa com um estalido seco e equilibrou nela o cigarro. Só então Dulce Veiga
ergueu para mim o rosto de maçãs salientes, os olhos verdes, e pude ver seus
cabelos lisos, louros, finos, repartidos ao meio com exatidão milimétrica, caindo
em duas pontas no espaço entre os lábios finos e o queixo um tanto orgulhoso
(p. 33-35 – grifo do autor).
143
Escolhemos esta longa descrição de Dulce porque ela nos permite
constatar o processo criativo utilizado pelo autor para estabelecer no romance-
mosaico a mitificação da cantora.60 No plano do enredo, esse procedimento
mimético de criar uma personagem tal qual um objeto de devoção e adoração,
sobre o qual são projetados um mundo de sonhos inspirado nos produtos da
cultura de massa, funciona, em primeira instância, para aumentar um conjunto de
potencialidades que pode ser ativado pela memória. Isto é, Dulce para o jornalista é
a cristalização de uma imagem que reflete sua própria condição de medo e solidão,
ou sua própria ideologia perdida, cujos sonhos pessoais e profissionais foram
frustrados. Por isso, o narrador propõe um modelo mitificado buscando evidenciar
os mecanismos de identificação a partir de protótipos já gastos e reconhecidos.
Sublinham-se, assim, as semelhanças entre os mitos sociais e o imaginário coletivo
motivado pelo desejo de projeção de conflitos e emoções.
Ao longo do romance, é possível verificar alguns fatores que
favorecem a mitificação de Dulce Veiga, estando a maioria deles ligada aos veículos
de comunicação de massa. O desaparecimento da cantora como mote do romance,
além de propiciar na narrativa a inferência do jogo policial, permite reforçar a
imortalização do mito. Se como afirmou Roland Barthes (1975, p. 163),
enfatizando que “a função do mito é evacuar o real”, vê-se que o abandono da
cantora do cenário artístico no auge do sucesso culminando nesse desaparecimento
sem pistas dá relevo ao binômio realidade/ilusão. A falta de domínio entre o real e
o ilusório pode ser observada em diversas passagens nas quais o jornalista
protagoniza cenas de delírio ao acreditar estar vendo Dulce Veiga perambular por
vários cenários da São Paulo caótica.
60
Cumpre relembrar, antes de mais nada, que a personagem Dulce Veiga foi inspirada na
personagem da atriz brasileira Odete Lara que, no filme de Bruno Barreto (baseado no romance
de Marques Rebelo) A estrela sobe, interpreta uma cantora de rádio – Dulce Gonçalves – que,
embora tivesse papel secundário, exerceu grande fascínio em CFA como uma espécie de símbolo
de glamour.
144
Com relação aos meios audiovisuais, como mantenedores de
discursos míticos no sentido de projetar padrões de comportamento afeitos à
imitação, a personagem Dulce Veiga vincula-se no romance a dois modelos
estereotipados dos mass media, a cantora de rádio em ascensão e a estrela
clicherizada do cinema norte-americano das décadas de 40/50/60. Para
compreender de que maneira e em que medida esses veículos de comunicação de
massa introjetam valores e mudam os costumes do imaginário contemporâneo,
emprestamos de Martín-Barbero (2003) algumas considerações a respeito do
cinema e do rádio. Optamos, assim, por seguir o mesmo diálogo do professor
espanhol estabelecido com as teses de Edgar Morin (1977) pela semelhança da
teoria em torno da cultura de massa que define, de alguma maneira, o
funcionamento sociocultural desses veículos massivos.
O primeiro ponto que se deve considerar, então, diz respeito “aos
mecanismos de identificação e projeção, para pensar os modos como a indústria
cultural responde, na era da racionalidade instrumental, à demanda de mitos e
heróis” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 95). Em diálogo com Morin, para o qual, a
função destes meios na cultura de massa é “a comunicação do real com o
imaginário”, Martín-Barbero explica que o sucesso dos mitos modernos e dessa
nova mitologia se dá em função da “resposta a interrogações e vazios não
preenchidos” (p. 95). Isto significa dizer que os mass media respondem às
aspirações de um público desejoso de ver nas telas do cinema ou ouvir através do
rádio os mesmos conflitos e situações do seu próprio cotidiano, fosse pelo tom
lamurioso e exagerado das narrativas melodramáticas, fosse pelo happy end das
películas hollywoodianas. No tocante ao cinema, Martín-Barbero afirma que com o
estabelecimento do star system norte-americano em detrimento das produções
européias e também com “a criação de gêneros” foi possível comercializar “os
mecanismos de percepção e reconhecimento popular” (MARTÍN-BARBERO,
2003, p. 210). Nesse sentido, o espectador passou a expressar um tipo de sedução
145
não mais pelas condições da representação e sim pela identificação com os finais e
destinos de cada personagem.
[…] abastecem com faces, corpos, vozes e tons a fome das pessoas
por se verem e se ouvirem. Para além da maquiagem e da operação
comercial, as verdadeiras estrelas do cinema obtêm sua força de um
pacto secreto que enlaça esses rostos e vozes com seu público, com
seus desejos e obsessões (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 245).
146
tal qual o faria uma estrela de cinema. Vejamos a descrição da lembrança de
Castilhos, editor-chefe do jornal, quando o protagonista lhe pergunta sobre Dulce.
147
conferem um novo sentido na vida do jornalista. A cada nova ‘pista’, ainda que
todas fossem quase sempre muito enigmáticas e desencontradas, o jornalista se
enche de esperança. Dulce que tivera a vida marcada pelo sucesso e pela desilusão
corresponde simbolicamente àquilo que Morin (1977b, p. 109) denomina como “a
crise da felicidade”. Para o sociólogo francês, a crise dos mitos olimpianos decorre
da substituição do arquétipo de felicidade para o da infelicidade. O cinema,
considerado até a década de 60 como o maior produtor de estrelas, que produzia
grandes produções apoiadas nos perfis estereotipados, tanto no que respeita aos
modos de representação quanto à exigência de rostos de beleza ofuscante, passa a
produzir filmes de baixo orçamento cujas personagens já não necessitam ser
“grandes astros”.
148
profunda dor, pela falta de certeza diante do mundo e da própria existência. Nesse
sentido, as imagens da cantora que povoam a mente do jornalista e de outros,
como Castilhos e Rafic, por exemplo, a partir de fragmentos da memória de um
passado que combina sucesso e decadência, não correspodem à realidade em que se
encontra Dulce. Mesmo antes da aparição da cantora ao final do romance, o
narrador descobre, ao dinamizar encontros com personagens do círculo de Dulce,
contornos de uma Dulce perdida em sua própria solidão, talvez em busca de uma
identidade que fora apagada pela desumanização da sociedade e pelo sistema
cultural brasileiro, ancorado naquele momento na ditadura militar. Vale lembrar
que Dulce, mesmo casada com Alberto Veiga, envolve-se com o ex-ativista
político, Saul, com quem secretamente tem uma filha, Márcia Felácio. Vejamos
algumas passagens em que o narrador descreve a vida de Dulce antes de seu
desaparecimento.
149
desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele foi
parar num hospício, durante anos (p. 174).
150
Ele tornou a gritar, a gemer sem palavras, não parecia ter medo de
mim. Passei a mão por sua cabeça, os fios muito curtos espetavam
as palmas esfoladas das minhas mãos. Ele parou de arranhar o
ferro da cama, torceu uma ponta do robe. Lembrava um gato
sarnento, escorraçado […] (p. 187-188).
151
– grifo do autor) é encontrada cantando numa churrascaria como uma senhora, de
vida simples, totalmente alheia ao universo artístico.
“R. soube que tenho andado com Saul. Disse que vai mandar fazer uma
investigação sobre ele.”
“Não posso romper completamente com R. Saul não compreende. Há coisas, eu
disse. […]”
“R. disse que acionará a toda a imprensa. Que jogarão tomates e ovos podres
no dia da estréia do show, que a crítica dirá que sou ridícula.”
“Recebi outra carta de Deodato, ele diz que a hora que eu quiser, a
comunidade está aberta. Mandou um pouco, provei. É amargo demais. Tive
vontade de ser outra coisa.”
“R. diz que pagou pessoas para me apedrejarem na saída do teatro. Não
suporto mais. Não posso falar nada, só poderia fugir”.
“Quero apenas cantar. Não quero nada disso que vejo em volta, eu quero
encontrar outra coisa”.
“Vou ajudar a preparar a Nova Era. E me esquecer de mim.” (p. 194 –
grifo do autor).
152
De um modo geral, em todo o romance é possível evidenciar um
modelo discursivo apoiado em simbologias. Nesse caso, o “processo mitopoiético”
(ECO, 2003) empregado na construção de Dulce Veiga também se estende a toda a
narrativa através de uma iconografia e analogia que atestam os mesmos valores
simbólicos que são particulares aos mitos. Isto significa que em Onde andará Dulce
Veiga? a necessidade de mitificação responde a uma outra necessidade da
contemporaneidade. Trata-se, na sociedade de massa, como observa Umberto Eco,
da “identificação privada e subjetiva, na origem, entre um objeto, ou uma imagem,
e uma soma de finalidades, ora cônscias ora incônscias, de maneira a realizar-se
uma unidade entre imagens e aspirações” (ECO, 2003, p. 242). CFA tece então, em
meio à polifonia do romance, construções bastante reveladoras que permitem
entrever um vasto repertório de mitologias, muitas vezes, universalmente
conhecidas. É o caso das referências à astrologia, cuja porta-voz é Patricia,
produtora da banda Vaginas Dentadas; aos ícones da religião afro-brasileira com
seus deuses sobrenaturais; às citações do calendário Seicho-No-Ie de Terezinha
sempre com dizeres que remetem a acontecimentos no nível do enredo; às imagens
da mitologia grega (Perseu e Medusa, por exemplo); à simbologia do número sete,
reconhecida pelo próprio autor61; ao ritual do Santo Daime que se liga à
comunidade onde passa a viver a cantora; à metáfora a partir da imagem da
borboleta. Esta última merece algumas considerações, ainda que breves.
Segundo Raphael Patai (1974), a verdade do mito concentra-se na
crença, isto é, é preciso acreditar “na verdade que o mito afirma” (p. 14). Além
disso, são necessárias algumas condições para a perpetuação da narrativa mítica: os
mitos têm que comunicar mensagens que possibilitem a auto-identificação; exigem
repetições; determinam a sensação de satisfação, saciedade de desejos e aumento de
autoconfiança. Dentre estas características, vê-se que, para a ordenação do sentido
e suas significações quanto ao uso da imagem da borboleta, CFA insiste
constantemente na repetição da simbologia da borboleta. Esta representa para a
61
In: ABREU, Caio Fernando. Depoimento (1998).
153
narrativa como um todo a metamorfose do protagonista. Metamorfose esta que
simboliza o próprio ritual de nascimento e morte. Para o jornalista, este “morrer”
significa fazer renascer um outro ‘eu’, transformado, purificado. Muitas são as
passagens que apontam a imagem da borboleta como símbolo de alguma
mensagem oculta. Vejamos: ela aparece tatuada nos seios de Márcia Felácio; é
oferecido ao jornalista por um vendedor ambulante um bilhete do jogo do bicho
que era da borboleta; Castilhos num determinado momento do romance faz gestos
com as mãos que lembram os de uma borboleta.
Os signos ligados ao misticismo ajudam a compor os episódios
fragmentados do romance. Procurar Dulce é uma maneira metafórica de montar o
quebra-cabeça da própria existência do jornalista. Desvendar as pistas e interpretar
os sinais fazem de Onde andará Dulce Veiga? não apenas um romance aparentemente
do tipo B, romance policial, mas um verdadeiro projeto de busca de um centro, de
uma certa unidade, tanto para o desfecho da trama, bem como para o jornalista
“um ideal de vida melhor” (BITTENCOURT, 1995, p. 20).
154
hollywoodianos de segunda, da chamada subliteratura,
com suas categorias de horror e aventura em brochuras
de aeroporto, da biografia popular, dos mistérios
policiais e dos romances fantasiosos ou de ficção
científica. [...] Incorporam-nos, a ponto de a linha
divisória entre a arte superior e as formas comerciais
parecer cada vez mais difícil de traçar”
(Jameson)
156
Ironia, jogo metalingüístico, enunciação elevada ao quadrado.
Portanto, com o moderno, quem não entende não pode aceitá-lo,
ao passo que, com o pós-moderno, é possível até entender o jogo e
levar as coisas a sério. O que constitui a qualidade (o risco) da
ironia. Existe sempre quem tome o discurso irônico como se fosse
sério (ECO, 1985, p. 57-58).
157
materiais, de modo a selecioná-los de acordo com as conveniências políticas e
éticas pós-modernas”. Fica claro no romance de CFA que tal incorporação,
sobretudo o uso do kitsch, serve a uma análise crítica ironizada no que respeita a
maneira pela qual o homem contemporâneo interpreta e apreende os signos dos
gêneros massivos.
Com relação à apropriação da estética do romance noir, observa-se
na narrativa uma espécie de desdobramento quanto ao uso dos elementos do noir.
Isso porque a narrativa aparentemente obedece ao jogo detetivesco clicherizado
através do desaparecimento de Dulce que suscita interpretações de pistas,
investigação de pessoas, depoimentos desencontrados e enigmáticos; de outro lado,
descrições de espaços apodrecidos, violentados pelo caos urbano. Sabe-se que o
romance policial compreende diferentes categorias, sendo que uma delas é o
chamado romance noir, o qual, recortando diferentes características do gênero
policial, retrata, sobretudo, uma realidade social que põe em cena a violência
urbana, a corrupção, a obscuridade dos espaços marginalizados. Opõe-se, assim, ao
universo lúdico do policial tradicional, apontando um discurso crítico e contestador
da sociedade, onde o detetive, por exemplo, é mergulhado num meio social
determinado.
Nascido nos Estados Unidos, de onde surgiram mestres do gênero
que criaram uma literatura com novas personagens e um novo meio de difusão, o
romance noir empreendeu uma literatura mais distante do padrão do romance
policial tradicional e mais realista tornando-se, assim, uma leitura popular. O
policial noir americano desenvolve-se nos anos 30, logo após a queda da bolsa em
1929, em plena crise sociopolítica marcada pela corrupção. Dessa forma, o
romance se prende ao aspecto social primando pelo testemunho da situação de
uma sociedade em decomposição. Daí uma narrativa que passa a retratar a luta de
gangues, a corrupção e o crime organizado, isto é, uma literatura testemunha de
uma vida que se torna cada vez mais violenta. Por isso, esses romances abandonam
totalmente a idéia de jogo, como no romance enigma, e buscam compreender a
158
violência do homem moderno, importando agora não mais os aspectos
psicológicos e sim os comportamentais. Autores com Dashiell Hammett e
Raymond Chandler tornam-se grandes ícones do gênero por inaugurar uma
narrativa que “é construída no presente, acompanha o correr dos fatos, segue as
investigações, ou seja, se dá no mesmo tempo da ação” (REIMÃO, 2005, p. 11). A
proposta é de uma narrativa cujo discurso é sombrio, de atmosfera obscura. O
detetive, por sua vez, é descaracterizado daquele estereótipo que apresentava um
investigador gentil e confiável. O detetive, no romance noir, tem a consciência de
viver numa sociedade corrompida e marginalizada. Como literatura de massa, estão
presentes no romance noir alguns elementos clicherizados, tais como o detetive
particular (privé), a secretária, os colaboradores, o jornalista e a femme fatale.62 Em
linhas gerais, então, pode-se delinear esse congênere do policial como uma
narrativa que descreve uma sociedade sombria de ambiência envolvente onde uma
certa magia se descobre por meio do aspecto ‘cinza’ e freqüentemente noturno das
ruas da metrópole. Narra-se o mistério, mas, revelando-se sobretudo as
conseqüências perversas de uma desigualdade social. Nota-se que no caso do
romance noir tudo é possível, sem regras, sem codificações.
Em Onde andará Dulce Veiga?, as descrições de ambientes afeitos à
estética do noir são observadas a partir de espaços fechados, absolutamente
claustrofóbicos, e de lugares urbanos sujos de uma metrópole apodrecida. A
ambiência citadina, nesse sentido, é apresentada ao leitor como elemento simbólico
que compõe um cenário sempre em movimento; uma atmosfera fervilhante, cuja
malha humana é tomada por barulhos, luzes, tráfego e buzinas. A cidade, como
espaço sígnico, é efêmera; por trás dos milhares de néons deixa transparecer os
escombros de um espaço em decadência. A imagem da metrópole, no romance,
recorta-se na visão do protagonista não como espetáculo de luzes e vitrines, mas
como espaço de opressão onde os valores e referenciais são todos esgotados. Os
espaços fechados, por sua vez, como representação do enclausuramento do sujeito,
62
Cf: Emerson F. C. Paubel in: O filme “noir”.
159
pasteurizam uma certa podridão onde as vozes ficam reprimidas diante do
gigantismo da metrópole impessoal. É o caso do apartamento do jornalista e do
quarto mofento de Saul.
160
no romance estabelece uma relação com uma estética trash como aceitação do
precário, do podre, do lixo em detrimento de valores considerados de ‘bom gosto’.
É curioso observar no romance a conjugação do ambiente típico do noir, pela sua
atmosfera sombria, com os resíduos dessa composição meio grotesca, pois, de fato,
a comunicação destes elementos enfatiza o caráter crítico da obra, uma vez que é
aumentado o grau de tensão social.
A sala grande estava enevoada pelo gelo seco. Entre nuvens, fui
distinguindo aos poucos alguns homens, ou parte deles. Troncos,
cabeças. Pouco depois, ao fundo, um cenário de papelão pintado
reproduzindo edifícios em ruínas cercadas por enormes latas de
lixo quase do tamanho deles. De dentro delas, brotavam objetos
161
inesperados: uma perna de manequim, um relógio de pêndulo, um
violoncelo partido ao meio, bonecas decepadas, flores de plástico,
lápides, résteas de alho. Salvador Dali em Hollywood, pensei,
cenografando um filme de Christopher Lee (p. 25).
162
romance apresenta personagens humanas, identificadas na sociedade. Elas têm uma
psicologia, um estado de espírito, são, de fato, projetadas como “reais”. O leitor,
desse modo, pode encontrar uma personagem com quem se identificar. Estas são
capazes de despertar a emoção e a curiosidade do leitor. Pode-se dizer que o
romance se torna uma espécie de estudo de caso onde o leitor reconhece-se e
conhece-se. Tais personagens são geralmente bem trabalhadas pelo autor de modo
que seus perfis aparecem sempre muito variados. Dulce Veiga e Márcia Felácio
simbolizam a femme fatale, figura que tem os atributos da sedução e destruição;
Alberto Veiga, Saul, Rafic e Pepito Moraes, em certa medida, perpassam o
componente da traição, ressaltado por Lima Trindade, ao mesmo tempo que
podem ser tomados como ‘culpados’ de um suposto crime em função de suas
ligações afetivo-obsessivas com Dulce; e, por fim, o jornalista/protagonista
representando o detetive que, tal como no romance noir, possui certos valores
numa sociedade corrompida. À margem de todos os estereótipos do romance noir,
o que se pode identificar de fato a partir da incorporação dos elementos do noir em
Onde andará Dulce Veiga é a construção de uma narrativa que privilegia detalhes,
utiliza gírias e expressões corriqueiras com o intuito de reforçar uma escritura
precisa da realidade marginalizada, pela qual não perpassa o universo idealizado.
Contudo, o romance, polifônico nos seus discursos, serve de lugar
de apreciação crítica com o ambiente ‘vulgar’ do kitsch. Vestimentas,
comportamentos, descrições de espaços cafonas, tudo se presta à inferência desse
universo estético depauperado. A etiqueta de uma literatura pop, que empresta à
narrativa multiplicidade discursiva e estética, expressa os elementos e produtos
próprios da cultura de massa. É a maneira encontrada pelo autor para retratar um
cotidiano onde, segundo Morin (1977b), “[…] é preciso […] apreciar o cinema,
gostar de introduzir uma moeda na jukebox, divertir-se nos caça-níqueis, seguir as
partidas esportivas, no rádio, na televisão, cantarolar o último sucesso”. Em sentido
amplo, o que o romance de CFA discute está muito próximo aos debates acerca das
práticas artísticas pós-modernas. Já identificamos, no segundo capítulo desta
163
dissertação, alguns aspectos que afloram dessa literatura chamada pós-moderna.
Queremos dizer que o que apreendemos de fato como “literatura pós-moderna” se
liga a uma idéia de pluralidade de códigos que permite uma práxis artística
ideologica e esteticamente positiva na medida em que amplia o espaço discursivo da
narrativa. A incorporação/apropriação de objetos e discursos considerados
alienantes não rebaixa a obra pós-moderna, nem tampouco lhe retira o status
artístico; ao contrário, permite a revitalização dos signos massivos e a identificação
e decodificação destes mesmos elementos por parte do leitor. É nesse sentido que
encaramos o romance Onde andará Dulce Veiga?. A estética do kitsch no romance é
mais um, dentre os códigos massivos, elemento de composição para o processo
criativo de CFA que esboça o perfil de uma prosa polimorfa, iluminando a
capacidade de um texto literário poder gerar outros textos. É, portanto, a riqueza
do encontro entre vários suportes de expressão estética.
A ambientação de mau gosto proporcionada pela estética do kitsch
em Onde andará Dulce Veiga? focaliza um cotidiano clicherizado de onde se podem
entrever imagens portadoras de uma cafonice que expressa o desejo pelo exagero,
pelo excesso de ornamentação. Já falamos das personagens Terezinha O’Connor,
Castilhos e Rafic pelo modo como estas simulam comportamentos e atitudes
próximos a um gosto apurado, quando, na verdade, representam aquela
inadequação com a mesma intensidade que o kitsch reclama para si autenticidade e
originalidade. Acreditamos que uma maneira interessante de evidenciar a estética do
kitsch, segundo o propósito deste subcapítulo, seria trazer à luz a relação que as
personagens mantêm com determinados objetos. Abraham Moles (1975, p. 204)
sublinha que essa relação entre o homem e os objetos diz respeito “não somente à
escolha dos objetos mas também aos próprios comportamentos. O homem Kitsch
seria talvez definido por comportamentos e por série de atos […]”. O autor explica
que, em geral, tal relação se estabelece dialeticamente, uma vez que os produtos
oferecidos pelo mercado para o consumo são fabricados “pelo ser humano e para si
próprio” (p. 199 – grifo do autor). Isso significa que o homem se relaciona com os
164
objetos, no âmbito de uma atitude kitsch, a partir de um processo que os coloca
diante de um “prazer estético” que agrada pela beleza. Diz Moles que “o mundo da
moderna sociedade de consumo é um mundo artificial de objetos fabricados” (p. 155 –
grifo do autor).
No romance, os arquétipos do vulgar potencializam a construção
de estereótipos, sejam eles personagens caricaturizados, comportamentos
identificáveis, repetição de mensagens que apresentam pistas para o
desvendamento do sumiço de Dulce. Com relação aos ambientes projetados sob a
etiqueta do kitsch, podemos recorrer à casa de Rafic.
165
a despeito da decadência do protagonista, o autor possibilita ao leitor através do
próprio protagonista/narrador perceber a vulgarização tanto dos espaços quanto da
atitude das personagens. No episódio em que a esposa de Rafic, a famosa Silvinha
Rafic, aparece na sala, percebemos claramente que o autor coloca em flagrante a
ironia mediante a referência de signos próprios da sociedade de massa.
166
imaginário sob o qual estão circunscritas as personagens, reiteram o caráter de
reconhecimento fácil próprio da estética do kitsch.
167
significando a quebra de uma estrutura fechada e a valorização de estruturas
abertas, inacabadas (cf: HUTCHEON, 1991; ECO, 1985).
O sentido de bricolagem ancorado em Lévi-Strauss, por exemplo,
assinala um novo arranjo de elementos, uma vez que novos universos nascem de
seus fragmentos. A figura do bricoleur, como um tipo de arranjador faz-tudo pela
abordagem oportunista que lhe permite sobreviver e também afrontar a
instabilidade da pós-modernidade, pode ser vinculada ao autor contemporâneo que,
bombardeado por imagens culturais vindas de todas as direções, trabalha com o
‘reaproveitamento’ de diversos resíduos estéticos na elaboração de uma narrativa
que reclama para si outros olhares. Pode-se dizer, nesse sentido, que a noção pós-
moderna que se tem acerca dessas metanarrativas são como alegorias63 cotidianas.
Isto é, a experiência com a esquizofrenia das imagens pós-modernas acentua uma
forma discursiva que brinca com as mensagens a ponto de o sentido se obscurecer
diante da pluralidade das imagens. Parece, pois, que o original não é mais
precedente sobre a citação, a referência, a colagem/bricolagem e o procedimento
submetido à incorporação de formas e modelos discursivos advindos do seio da
cultura de massa.
63
De acordo com Craig Owens (1989, p. 204), “a alegoria se verifica cada vez que um texto tem
o seu duplo num outro”. Desse modo, “na estrutura alegórica, um texto é ‘lido através’ de outro,
por muito fragmentária, intermitente ou caótica que possa ser sua relação: o paradigma da obra
alegórica (sendo), pois, o palimpesto”.
168
performático de um discurso que teatraliza outras expressões estéticas onde é
possível observar uma técnica narrativa que aumenta o grau de ironia revelando,
por trás da obra, um autor que consegue domar o estado de confusão da
contemporaneidade. Se falamos em ironia dentro de uma ficção que se apresenta
tão fluída como a pós-moderna, não se pode descartar as marcas da paródia e do
pastiche como elementos cada vez mais sintonizados à literatura contemporânea.
Com o romance de CFA não é diferente. Onde andará Dulce Veiga? é, portanto, um
romance que se esgarça na tentativa de abrigar várias outras vozes, outros
discursos, outras literaturas; através de outros gêneros artísticos, sejam eles
massivos ou não, CFA trabalha o jogo da representação subvertendo a ordem dos
signos, retirando-lhes seus significados ou apenas os deslocando para lhes dar novo
sentido. O romance, então, aparece como uma rede múltipla – símbolo do
empreendimento pós-moderno. Steven Connor (2000, p. 103-104 – grifo do autor)
diz que “[…] os relatos mais aceitos na ficção pós-moderna acentuam a
prevalecência da ‘metaficção’ paródica, ou a exploração pelos textos literários de
sua própria natureza de condição de ficção”. A nossa intenção, ao citarmos a
paródia e o pastiche, não é discorrer sobre as características de cada um, mas
apenas os localizarmos dentro do jogo ficcional elaborado por Caio. Isso porque o
romance se mantém aberto à inserção de formas estéticas de toda ordem e
natureza. Já é comum em textos que discutem o pós-modernismo apontar tais
elementos como típicos da estrutura romanesca pós-moderna. Sem dúvida, os
nomes de Linda Hutcheon e Frederic Jameson destacam-se na projeção dos
debates acerca da produção literária contemporânea que faz uso permanente dessas
técnicas narrativas. Grosso modo, poderíamos ressaltar, a respeito dos conceitos de
paródia e de pastiche, a crescente importância destes como uma espécie de
paradigma de se fazer arte na contemporaneidade. Circunscritos na arte pós-
moderna de modo geral, esses dois conceitos são comumente confundidos pela
proximidade metaficcional. Hutcheon (1989; 1991) que prefere a paródia,
obviamente porque esta se adequa ao seu objeto de análise – a metaficção
169
historiográfica, sublinha que ela “[…] é, pois, na sua irônica ‘transcontextualização’
e inversão, repetição com diferença” (HUTCHEON, 1989, p. 48 – grifo da autora).
Nos limites da paródia situam-se diversos ‘tipos discursivos’, entre eles o pastiche
que, ainda segundo Hutcheon (1989, p. 50) “opera por semelhança e
correspondência”, ou seja, “o pastiche é imitativo”. Na comparação entre os dois,
enfatiza a autora, “a paródia está para o pastiche talvez como a figura de retórica está
para o clichê. No pastiche e no clichê, pode dizer-se que a diferença se reduz à
semelhança” (1989, p. 55 – grifo da autora). Já na acepção de Jameson (1996), a
paródia pode ser melhor identificada na literatura moderna, de modo geral, ao
passo que o pastiche, como procedente das artes visuais, está inserido na cultura da
massa. No âmbito da produção literária, podemos interpretar o conceito de
pastiche de Jameson como a transformação da realidade em imagens, o que afirma
sua condição de simulação e heterogeneidade estilística que conduz à perda do
referente. Seria, portanto, uma imitação esvaziada de sentido. Para exemplificar a
sua noção de pastiche, o autor recorre aos “filmes de nostalgia” que, de alguma
maneira, buscam resgatar as sensações do passado através da recriação de cenários
antigos e estereótipos construídos no imaginário coletivo, perdendo, assim, a
referência com o mundo real.
No universo de Onde andará Dulce Veiga?, a recorrência a filmes,
músicas, textos literários, entre outros, alude à necessidade de resgatar um passado
perdido, retomado apenas pela memória destes referentes já mitificados. A colagem
de múltiplas cenas busca se ordenar por meio da trama policialesca. De fato, a
narrativa filia-se, por assim dizer, muito mais ao recurso da paródia na medida em
que ridiculariza as mesmas formas de construção utilizadas no romance. Dito de
outro modo, os gêneros da arte de massa, e mesmo os suportes dos mass media,
são comumente ironizados pelo autor. Entretanto, é preciso avaliar as apropriações
utilizadas no romance, em linhas gerais, em sentido duplo. Isso porque o olhar
sobre estes gêneros na narrativa não é de todo crítico, se pensarmos no
envolvimento do narrador/protagonista (uma vez que é através dele que o leitor
170
pode reconhecer o potencial crítico) com todo esse universo da cultura de massa e
midiática. Os universos entre cultura de massa, erudita, e mesmo popular, que
poderiam ser postos em paralelo, estão amalgamados no romance como tentativa
de romper fronteiras, acentuando o caráter heterogêneo do discurso pós-moderno.
Ou, sob outra leitura, revelando o enfraquecimento dos limites a partir de uma
hibridação que problematiza as conceituações ou julgamentos quanto à qualidade
estética das expressões da arte de massa.
Preferimos deixar o subtítulo do romance – “Um romance B” –
para este momento final da nossa dissertação por acreditarmos que ele está sujeito à
discussão que pretendemos levantar sobre o deslocamento do kitsch, e todas as
incorporações dos gêneros massivos, como um procedimento estético-estilístico
que revaloriza e ressignifica ou apenas o faz como apropriação crítica. Colocamos
essa questão no fechamento de nossa análise pelo caráter perturbador que ela nos
provoca. Isso porque, optar por uma das respostas seria o mesmo que descartar
possibilidades que o próprio romance oferece. Ou seja, essa operação de incorporar
no romance produtos dos gêneros massivos ocorre como apropriação crítica que
ressignifica e, ao mesmo tempo, revaloriza. Desse modo, a incorporação já é, por si
só, uma postura de revalorização. O exemplo mais significativo, nesse sentido, é a
construção da trama à moda policial, uma espécie de thriller, que, juntamente com o
subtítulo do romance, aponta para a idéia de uma narrativa propensa a supostos
crimes, desvendamentos de mistérios, personagens corrompidas pelo universo da
cultura de massa. Entre outras características, Onde andará Dulce Veiga? Um romance B
é um conjunto de perspectivas de leitura e feitura narrativa, apoiado no enredo
particular do famoso romance noir ou filme noir. O atributo do “romance B” já é,
ele próprio, uma grande ironia quanto à fabricação de modelos cinematográficos
considerados ‘ruins’, de baixa qualidade por conta de uma produção de baixo
orçamento. O próprio Caio (1998) afirmou ter sido enganado pelos revisores do
romance ao publicar o subtítulo grafado em maiúsculo, e apenas na folha de rosto e
não na capa. O atributo em minúsculo era justamente para dar a idéia de deboche.
171
Mas os revisores dão muito problema para a gente. Esse meu
último livro, Dulce Veiga, eu queria um subtítulo assim: um romance
b, tudo em minúsculas, no romance e no b também, a idéia de
filme B, uma coisa tão B que o B deveria ser minúsculo. Não teve
jeito, saiu maiúscula…(ABREU, 1998, p. 86 – grifo do autor).
173
Todo vestido de preto, cabelos eriçados de gel no alto da cabeça,
raspados em volta das orelhas, uma cruz também de prata
pendurada na orelha esquerda, muito pálido, era o rapaz que eu já
vira na redação. Não era uma palidez doentia, dessas de gente que,
por medo da luz, qualquer espécie de luz, recusava-se a ver o sol,
nem tinha aquele tom macilento dos intelectuais que bebem até
tarde da noite. Era uma palidez sofisticada, aristocrática, como
quem viveu muito tempo na Europa e achasse vulgar uma pele
bronzeada, uma camisa florida ou qualquer outra cor além do preto
e do branco da pele.
– Meu nome é Filemon – ele disse. – Desculpe interromper, mas
eu li o seu livro. Não lembro direito o título. Visões, qualquer coisa
assim.
– Miragens – corrigi. […]
– Belo título. Bastante simbolista, não? […]
– Nada contra o final do século XIX, ainda mais agora, no final do
século XX. Afinal, as questões básicas e o desamparo humano
continuam e continuarão os mesmos de sempre.
Era pedante demais. […] Ele parecia ter decorado o texto, soava
inteiramente deslocado ali, no ar azedo do bar do jornal, em frente
àqueles vidros redondos atulhados de ovos de cascas azuis, às
travessas de peixe frito, coxinhas, empadas, cheiro de cebola e
presunto gordo (p. 58-59).
174
romance certa ambigüidade inerente aos textos pós-modernos. Entretanto, é
preciso ressaltar que o texto de CFA, mesclando gêneros e discursos, consegue
mostrar em que medida a narrativa pode construir novas possibilidades estético-
literárias; até que ponto, através do texto narrativo, a ficção e a realidade podem se
imbricar. Isso equivale ao papel da ressignificação estética permitindo evidenciar
um processo criativo sobre o qual a literatura se mantém viva, porque nos mostra
criticamente a natureza dos gêneros massivos, dos materiais degradados,
clicherizados e ‘alienantes’ como fisionomias da pós-modernidade. Parece-nos,
pois, que a aposta de uma narrativa híbrida, polifônica, plural, enfim, múltipla não
descaracterizou o status da obra de arte. Ao contrário, abriu-nos portas para novas
perspectivas de apreensão do texto literário.
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS
177
parecia estar meio esquecido do universo crítico-literário, além do fato de este
freqüentar com muito mais afinco outras áreas de estudos e culturais, como as artes
plásticas, o design e a arquitetura. Contudo, aceitamos o desafio e partimos ao
levantamento bibliográfico. Para a nossa surpresa, a estética do ‘mau gosto’ nos
chegou como um leque de possibilidades de leitura. Isso significa dizer que, ao
contrário do que pensamos no início, o kitsch apresentava, feliz ou infelizmente,
muito mais do que o imperativo da cafonice. Foi preciso verificar seu contexto
histórico-cultural ao lado das mudanças pelas quais passaram as artes, sobretudo no
século XX. Ancorada num elenco teórico que versava sobre o kitsch, só assim a
nossa pesquisa pôde estabelecer ligações com o romance de CFA, já que as
posições teórico-críticas nos apontavam direções quanto à natureza dessa estética.
Apresentamos um perfil da produção literária brasileira
contemporânea, baseado nas décadas de 70, 80 e 90. Não foi difícil perceber a
qualidade estética de uma literatura que, embora trabalhasse com a articulação de
vários elementos massivos, manteve potencial crítico, técnicas narrativas
absolutamente sofisticadas com a mescla de linguagens discursivas, e, sobretudo,
uma literatura que proporcionou ao leitor uma participação ativa. Vimos que a
literatura dos 70, por exemplo, esteve a serviço dos escritores para testemunhar um
contexto sócio-político de um país marginalizado pela opressão da ditadutra militar.
Firmaram-se, nesse caso, obras que mantinham compromisso literário em
apresentar a violência do período marcado pela censura de toda ordem. Muitos dos
textos de CFA, sobretudo os contos, denunciaram os efeitos do golpe militar.
Outros autores, como Fernando Gabeira, Ignácio de Loyola Brandão e Rubem
Fonseca, ao lado de CFA, refletiram as vozes de indivíduos que amargaram o exílio,
a repressão cultural, reproduzindo a frustração dos sonhos e desejos de uma
juventude obscurecida pela realidade opaca e violenta do regime militar. Violência
representada, muitas vezes, pela impossibilidade de soltar a voz, de não poder
decidir sobre suas próprias preferências. De outro lado, a ficção dos 80 e que se
estende à década de 90, ainda que com algumas diferenças, passou a adotar uma
178
linguagem “mais aberta ao mundo e ao tempo” (BARBIERI, 2003, p. 44). A
tentação por agregar novas formas estéticas e estilísticas passou a perseguir os
escritores contemporâneos, principalmente aquelas que vinham do cenário da
cultura de massa. Curiosamente, essa atração pelos produtos massivos não
conseguiu descaracterizar a qualidade expressiva de muitos autores que
transformaram esta atração em incorporação. Viu-se que, de modo geral, o espaço
urbano das metrópoles, ao mesmo tempo, apodrecido e sedutor, agudizou-se
sucumbindo o rural. Os discursos periféricos, com temáticas voltadas à condição
do feminino, do homossexual, do negro, entre outros, também se fizeram mais
presentes. A sexualidade, a questão do corpo em evidência, como apontamos,
passou a ser mais explorada, retirando o peso de vulgarização ou, sob outro ponto-
de-vista, os (pre)conceitos e tabus até então vigentes. A problematização da
literatura e o papel do intelectual estiveram articulados com os processos culturais
de uma sociedade consumista. Sem dúvida alguma, o aspecto que mais se
sobressaiu, na avaliação das produções literárias destes períodos, foi a fragmentação
da identidade do sujeito em meio à confusão e instabilidade da pós-modernidade. A
forte presença das imagens pode ser inserida dentro dessa projeção mais
significativa. Os mass media ofereceram, então, a propagação intensa de imagens
que favoreceu à representação dos recursos do simulacro. O televisivo, o
cinematográfico, o teatral, explorados no espaço discursivo, inauguraram uma
literatura propensa à multiplicação. Cresceu a importância das citações, das
referências, dos clichês, da linguagem chula, das obviedades. Tudo isso apontou
para uma literatura que traduziu fortemente os desdobramentos do
contemporâneo. Diante desse fato, propusemos uma breve discussão sobre pós-
modernismo/pós-modernidade. Com as leituras que fizemos, percebemos que,
como já apontamos neste trabalho, o debate acerca da contemporaneidade, com
discussões girando em torno do pós-modernismo/pós-modernidade, apontavam
caminhos distintos para a compreensão de termos que alocam num único espaço
expressões como incredulidade, perda de referenciais, multiplicidade, pluralidade,
179
paradoxos, incertezas, falência de um modelo identitário, queda das grandes
narrativas, heterogeneidade, culturas ao invés de Cultura. Mediante olhares
positivos ou negativos, os teóricos da cultura contemporânea apresentam um
pensamento comum com relação à diluição de categorias hegemônicas e universais.
Os sintomas da pós-modernidade são expressos na literatura brasileira
contemporânea de modo que a ficção se torne cada vez mais mediada pelos signos
dos mass media. Isso porque, vimos que a cultura de massa desdobrou-se numa
heterogeneidade a partir da sintaxe da chamada Era da imagem.
Avaliando a poética de CFA no terceiro capítulo, deparamo-nos
com uma escrita esquizofrênica que se revelou, sobretudo, como problematização
em vários níveis e contextos. Rompendo diversas vezes com uma estrutura linear,
CFA reproduziu uma linguagem permeada de sensações, alucinações, e
subjetividades que representa, antes de mais nada, a necessidade real de expurgar
experiências pessoais, afetivas, sexuais. Isso não significa dizer que a obra de Caio
seja necessariamente, ou somente, autobiográfica. Aliás, o projeto literário do autor
é comumente confundido com sua trajetória pessoal. Quando escolhemos trabalhar
com a obra de CFA sentimos a escassez de uma fortuna crítica, especialmente em
livros, a respeito da literatura do autor que publicou mais de dez livros ao longo de
26 anos de escrita. De modo geral, os textos críticos sobre a literatura do autor
estão dispostos em materiais diversos, tais como jornais, artigos em antologias
críticas, publicações em periódicos, e trabalhos acadêmicos (nem sempre de fácil
acesso). Uma outra inquietação nossa, e que tem muito a ver com a nossa opção
pelo romance Onde andará Dulce Veiga?, e mais ainda, com a escolha da temática, foi
observar nos textos críticos aos quais tivemos acesso uma certa recorrência de
temáticas na avaliação do objeto literário. Isto é, grande parte das pesquisas se
mostrou ancorada nas temáticas da identidade, sexualidade, do processo
testemunhal de uma geração massacrada pela ditadura, do homoerotismo, do
universo urbano caótico, e mesmo a violência. É preciso ressaltar que muitos destes
trabalhos comentaram o uso do procedimento intertextual e metaficcional do
180
autor. Nesse sentido, pelo menos sobre o material utilizado por nós, incomodou-
nos, em certa medida, a ausência de uma avaliação que pudesse desnudar a
confluência da escritura literária com a reprodução de discursos, linguagens, e
imagens advindos do contexto da cultura de massa. A exploração que fizemos do
kitsch no romance parte desse incômodo, mas, principalmente, pelo caráter
desafiador de despertar um tipo de estética um tanto esquecida pela literatura e pela
crítica literária. É claro que todas essas temáticas, balizes de muitos trabalhos
críticos, são absolutamente relevantes em se tratando da paisagem literária da obra
de CFA. Além disso, a plasticidade estética, a qualidade narrativa e o envolvimento
com sensações ambivalentes (loucura, sanidade, realidade, fantasia, esperança e
desespero, euforia e melancolia, isolamento e coletividade) apontam para um autor,
cuja produção é de extrema qualidade. Como tínhamos a intenção, ainda que
modesta, de mostrar o lado B de Caio, optamos neste terceiro capítulo por avaliar
rapidamente três contos que revelavam matizes novos se os contrapusermos aos
contos que têm exploração de temas mais “pesados”, como disse o próprio autor.
De alguma maneira, estes três contos, em particular “Mel & Girassóis”, de Os
dragões não conhecem o paraíso (1988), podem ser entendidos como embrião para o
romance Onde andará Dulce Veiga?.
O nosso último capítulo se ocupou da análise do romance, levando
em conta os aspectos mais significativos para marcar a apropriação do kitsch. Já
comentamos no início deste fechamento do trabalho a respeito da condição
multidiscursiva do romance. Nesse sentido, daremos seqüência ao trajeto da
dissertação. Subdividimos este último capítulo em 4 subcapítulos, abordando as
marcas da linguagem cinematográfica e a construção da intriga à moda detetivesca;
a criação da personagem Dulce Veiga como um mito da cultura de massa; o
contraste das ambiências kitsch e noir como característica de uma ficção pós-
moderna; e, finalmente, a inferência do kitsch como um deslocamento de
revalorização ou apropriação crítica do autor. Deixamos essa questão sobre a
introdução da estética do kitsch para finalizar nossa análise porque, certamente, ela
181
responderia nossa tese inicial, ainda pouco amadurecida, a respeito da obra pós-
moderna, sendo plural e propensa a diversos níveis de interpretações e leituras,
poder proceder com essas incorporações, reaproveitamentos e reciclagens estéticas,
ideologica ou criticamente, num movimento duplo. Ou seja, buscar na arte de
massa gêneros comumente associados ao entretenimento, como é o caso do
romance policial, pode tanto representar um movimento de revalorização como
apreensão crítica. O texto parodístico de CFA não descarta nenhuma dessas
possibilidades. Ao contrário, dialoga com o leitor através da inferência de
elementos da cultura erudita, por meio de citações e referência à literatura ‘culta’,
bem como através de materiais e linguagens discursivas familiares. O processo de
identificação que satisfaz o gosto pelo massivo entrecruza-se com o universo da
alta cultura. Na verdade, essa separação, esse paralelismo entre as culturas, perdeu-
se ao longo da trama. É mais pertinente falarmos em hibridização dessas categorias.
Nesse sentido, podemos concluir que o romance Onde andará Dulce Veiga? é uma
espécie de gênero em mutação, privilegiando reflexões que apontam para os limites
da arte e da não-arte. Ou, dito de outro modo, questionando tanto a validade
estética das formas tidas como ‘originais’ e daquelas que falseiam outros objetos.
CFA, de fato, coloca aos leitores, médios ou não, a reflexão sobre o status da obra
de arte contemporânea. Só isso já revela um autor preocupado em construir uma
outra trajetória para a história da literatura, sem medos e preconceitos que possam
despertar julgamentos febris. Nesse sentido, o romance é a ilustração da
contemporaneidade, estampando as manifestações da cultura de massa, onde o
kitsch, segundo a nossa leitura, é um elemento a mais para colorir a narrativa.
182
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