Bem Comum - Introducao

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João Pato
Luísa Schmidt
Maria Eduarda Gonçalves

Introdução

Uma reflexão contemporânea acerca


do bem comum
A reflexão em torno do «bem comum» ganha particular relevância
em momentos de crise e transição. Não só porque o risco de desestrutu-
ração das instituições existentes se associa à incerteza relativamente ao
que poderão ser as instituições do futuro, mas também porque os valores
e as questões que esta noção evoca e faz veicular são testados com parti-
cular energia em momentos de mudança. Neste sentido, a reflexão que
agora se propõe e que foi inspirada num conjunto de seminários que de-
correram no ICS ao longo de um ano, ganha pertinência pelo momento,
mas pretende igualmente constituir-se como um contributo situado para
uma discussão que vem sendo desenvolvida ao longo de séculos.
Sendo diversas as perspectivas sobre a questão do «bem comum» ao
longo dos tempos, uma das primeiras e ainda hoje mais relevantes for-
mulações é atribuída à tradição aristotélica-tomista. Para Aristóteles a
«vida boa» e as «boas acções» seriam o objecto da comunidade política,
não apenas a vivência comum: o «bem comum» depende da «virtude» e
não da capacidade de criar uma comunidade de subsistência ou interesses
(Aristóteles 1998). Retomando a visão aristotélica quinze séculos mais
tarde, São Tomás de Aquino acrescentaria que o bem comum adquire o
seu sentido nas práticas de governação – governar é direccionar as coisas go-
vernadas a um fim, que consiste em algum bem (Aquinas 1922) –, o que im-
plica uma discussão dos fins, mas também dos meios. No entanto, São
Tomás de Aquino remete para uma fundamentação metafísica de inspi-
ração cristã do «bem comum» – a pessoa humana é ordenada directamente a
Deus como seu fim último – que precede, na sua perspectiva, qualquer con-
cepção de filosofia social.
Influenciando a discussão em torno do «bem comum» praticamente
até hoje, a tradição aristotélica-tomista perdeu importância com a emer-

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gência do individualismo nas sociedades ocidentais do século XIX, a que


se seguiram reações de natureza totalitarista ou exclusivamente comuni-
tária já em pleno século XX. Compreende-se assim a tentativa de desen-
volvimento de um conceito de pessoa humana integrada em sociedade
como resposta às visões, mutuamente exclusivas, subjacentes às ideias de
um estado totalitário ou da soberania do indivíduo. Ou, por outras pa-
lavras, a tentativa de superação da dicotomia inerente à discussão em
torno do bem comum – a sociedade existe para cada um de nós, ou cada um
de nós existe para a sociedade – através de uma visão personalista.
As tentativas de superação desta dicotomia observadas desde finais
do século XIX, diz-nos Jacques Maritain, assumiram uma natureza parti-
cularmente doutrinária e inclinaram-se ora para sistemas ditatoriais ora
para sistemas anarquistas. Na sua obra A Pessoa e o Bem Comum, publicada
em 1947, aquele autor apresentou em alternativa uma revisão do perso-
nalismo em São Tomás de Aquino assente na tentativa de separar uma
filosofia social focada na dignidade humana relativamente a qualquer fi-
losofia social centrada na primazia do indivíduo ou do bem privado. Esta
visão terá influenciado a definição de bem comum enunciada mais tarde,
no âmbito do Concílio Vaticano II, como o «conjunto de condições da
vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus
membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição» (Concílio
Vaticano II 1965), associada às concepções de «solidariedade» e de «sub-
sidiariedade».
É igualmente na década de 1940 que se assiste ao retomar da discussão
acerca dos direitos humanos fundamentais e ao papel do Estado como
instituição de garantia do bem comum. O projeto de reconstrução da
Europa no pós-II Guerra Mundial, a criação da Organização das Nações
Unidas em 1945 e a adopção da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos em 1948 representam, para além das motivações inerentes à con-
juntura histórica, uma tentativa de criar condições efectivas à implemen-
tação de um novo Estado social e de um projecto de paz duradoura. As
concepções de justiça, subsidiariedade, solidariedade, redistribuição e
protecção social foram colocadas no centro de uma discussão política
que tem paralelo nos valores da Declaração de Independência dos Esta-
dos Unidos da América e da Revolução Francesa em finais do século
XVIII e, desde então, amplamente desenvolvidas no âmbito da ciência e
da filosofia políticas.
A maior ou menor adesão a estes valores e pressupostos normativos
tem justificado distintas orientações políticas, com reflexo no desenho
de sistemas políticos e respectivos modelos de governação. No entanto,

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Introdução

sempre que se trata de procurar a fundamentação científica de decisões


políticas e dos respectivos processos de desenho, implementação e mo-
nitorização de políticas públicas observam-se constrangimentos diversos.
Ora porque o racional subjacente aos processos políticos, bem como as
suas rotinas e idiossincrasias, não se compatibilizam com a racionalidade
científica e com os ritmos de produção de conhecimento, suscitando
problemas de comunicação, ora porque a própria comunidade científica
tem dificuldade em desenvolver linhas de investigação de natureza trans-
disciplinar que assumam distintas políticas públicas como seu objecto
de análise.
A questão justificou a tentativa de afirmação das «policy sciences» na
década de 1950 como campo científico autónomo e exclusivamente de-
dicado à resolução de problemas de natureza política, sendo consensual
o reconhecimento da importância da obra seminal editada por dois psi-
cólogos sociais em 1951 (Lerner e Lasswell) como ponto de partida para
uma discussão que se mantém até hoje. Representando a necessidade de
fazer convergir ciência e valores relativamente à produção de conheci-
mento necessário à melhoria dos processos democráticos, as «policy scien-
ces» viriam a ser designadas mais tarde como as «policy sciences of democracy».
A crise de segurança decorrente da Guerra Fria, diria Lasswell, acen-
tuava a necessidade de garantir a utilização dos recursos intelectuais dis-
poníveis com a maior eficácia possível, bem como a importância de re-
flectir acerca das possibilidades de utilização do conhecimento científico
tendo em vista a satisfação de necessidades políticas de primeira ordem.
O aconselhamento de decisões políticas sempre fez parte de qualquer
processo político e a comunidade científica/universitária norte-americana
já vinha observando problemas de integração de conhecimento para os
quais se procuravam respostas alternativas, nomeadamente através da
noção de planeamento que vinha sendo associada à melhoria das condi-
ções de produção de informação com base na qual responsáveis políticos
e técnicos pudessem tomar decisões operacionais.
Particularmente inovadora à época seria a tentativa de constituir um
campo científico autónomo e exclusivamente dedicado a estas questões,
que deveria assumir um enfoque transdisciplinar, bem como a natureza
das questões enunciadas como prioritárias. No seu discurso de tomada
de posse como presidente da Associação Americana de Ciência Política,
Lasswell situava o desígnio institucional a desenvolver – «my intention
is to consider political science as a discipline and as a profession in rela-
tion to the impact of the physical and biological sciences and of engi-
neering upon life of man» (Lasswell 1956) – e associava este projecto a

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três problemas fundamentais: as consequências do armamento do ponto


de vista da política mundial; a relação entre produção, sociedade e con-
dições ambientais à escala global; a necessidade de antecipar os desen-
volvimentos da genética, embriologia experimental e disciplinas relacio-
nadas, que configuram a possibilidade de condicionar a evolução das
gerações futuras, bem como a sua relação com a radioactividade.
Desde a década de 1950, o desenvolvimento das policy sciences não foi
propriamente linear. Os problemas de políticas públicas começaram por
ser entendidos como questões técnicas, resolúveis através da aplicação
sistemática de conhecimento, associando-se um elevado sentido de mis-
são – contribuir para a construção de um mundo melhor – e uma confiança
inesgotável na capacidade científica para «medir» e «monitorizar» (Deleon
2006): a investigação científica disciplinar poderia ser orientada de forma
linear para reduzir a incerteza acerca de distintos problemas de políticas
públicas; uma vez alcançado um grau satisfatório de conhecimento, res-
ponsáveis políticos e administrativos poderiam tomar decisões funda-
mentadas e formular políticas públicas adequadas. No entanto, e apesar
de alguns dos traços fundamentais desta concepção tradicional da relação
entre ciência e políticas públicas prevalecerem ainda hoje, os falhanços
observados em distintas áreas de governação, sobretudo a partir da década
de 1970, vieram questionar alguns dos seus pressupostos fundamentais.
A crescente tomada de consciência da interligação e complexidade
dos fenómenos sociais, políticos, económicos e ambientais não só desa-
fiou a percepção de ordem social e política predominante (Hajer 2003),
como fez questionar o potencial da concepção tradicional de relação
entre ciência e processos de tomada de decisão política (Jasanoff e Wynne
1998). No primeiro caso, a emergência de redes policêntricas e transna-
cionais de governação, em que o poder é disperso, contribuiu para acen-
tuar situações de vazio institucional em que não existem regras e normas
consensuais acerca da forma como devem ser conduzidas políticas pú-
blicas – veja-se o exemplo das alterações climáticas; em simultâneo, a transição
das concepções clássicas/modernas de governo para sistemas de gover-
nação deliberativa ou para soluções auto-reguladas de gestão de recursos
comuns tem vindo a confrontar decisores e analistas políticos com ques-
tões de escala, qualidade, ligação e legitimidade sempre que se trata de
desenhar soluções institucionais e promover capacidades. No segundo
caso, os estudos sociais sobre ciência vieram igualmente contribuir para
desmistificar a importância atribuída às abordagens estritamente discipli-
nares: a diversidade de recursos científicos, argumentativos, institucionais
e materiais em jogo nos processos de tomada de decisão criam sistemas

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Introdução

complexos não lineares, dependentes de variáveis contextuais e sujeitos


a orientações de valor. Os problemas associados às tentativas de imple-
mentação de modelos de desenvolvimento sustentável vieram acrescentar
ainda maior complexidade a estas variáveis, introduzindo a componente
temporal como um factor crítico: confrontados com limitações de co-
nhecimento, decisores e analistas políticos têm de saber lidar com deci-
sões de longo prazo num contexto de grande incerteza e contingência.
De que forma é que estas questões se articulam com a discussão acerca
do bem comum? Num sentido material e pragmático, a necessidade de
tomar decisões políticas e de desenhar políticas públicas adequadas tem
conduzido as sociedades ocidentais a escolher e a aperfeiçoar modelos
de desenvolvimento capazes de dar resposta às exigências valorativas e
normativas enunciadas do ponto de vista político. E se essas exigências
ganharam novos contornos na transição da década de 1940 para a década
de 1950, como vimos, é igualmente possível identificar três tendências
que materializam distintas concepções acerca do papel do Estado e dos
pressupostos de governação que devem contribuir para a materialização
desses valores.
O primeiro momento situa-se no período do pós-II Guerra Mundial,
com a adopção de políticas económicas keynesianas assentes no papel
interventivo do Estado. Começa a definir-se um modelo de intervenção
pública que se distinguia pelo centralismo, pela hierarquia verticalizada
e sectorizada das políticas e por uma visão redistributiva do rendimento,
que se considerava essencial ao equilíbrio económico. Entendiam-se os
gastos públicos como elemento determinante deste processo, e as políti-
cas públicas deveriam cumprir funções de política económica, a par de
funções de natureza assistencialista. O Estado keynesiano era, neste sen-
tido, um Estado produtor de bens e serviços, tendência que veio a inten-
sificar-se a partir da II Guerra Mundial: não só os bens que já tinham
provisão pública – estradas, portos, educação, segurança, etc. – passam a
ser proporcionados de forma ainda mais generosa, mas sobretudo são
criadas novas áreas de provisão pública – saúde, habitação, educação su-
perior, serviços sociais – e um sistema de pagamentos de prestações – dos
mais novos aos mais velhos, através do sistema de pensões – que fundava
o contrato social numa conjuntura económica que demonstrava grande
prosperidade.
A viabilidade deste modelo de intervenção pública dependia, con-
tudo, de um crescimento económico elevado e regular, assim como de
uma lógica de utilização dos recursos naturais que os tomava por ines-
gotáveis. Ora, as crises económicas e energéticas da década de 1970 vie-

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ram deitar por terra estes dois pressupostos: não só o crescimento eco-
nómico estagnou, deixou de ser regular e chegou mesmo a verificar pe-
ríodos de retroacção, como se começou a tornar cada vez mais evidente
não só que os recursos eram escassos em função das necessidades, mas
também que o modelo de produção económica era responsável pela cria-
ção de externalidades negativas de natureza ambiental que colocavam
em causa a qualidade e a possibilidade de utilização desses mesmos re-
cursos.
Emerge, assim, uma segunda tendência que propõe uma resposta de
natureza liberalizante: assente num paradigma de gestão privada, traduziu
a ideia de que o Estado deveria reduzir o seu papel na provisão de bens
e serviços, passando a assumir um papel de regulador e estimulador da
iniciativa privada. O impacto foi claro a nível das formulações de políti-
cas públicas um pouco por toda a Europa, que passaram a orientar-se
pela tentativa de flexibilização da administração através de sucessivos
processos de emagrecimento do Estado: a privatização dos serviços, par-
tindo-se do pressuposto de que o Estado não sabia gerir; a subcontrata-
ção, assumindo-se que algumas funções estratégicas do Estado não po-
diam ser privatizadas mas podiam ser subcontratadas; os sistemas de
parcerias, levando a casamentos vários entre gestão pública e gestão pri-
vada.
Este novo paradigma encontrou tradução explícita em novos pressu-
postos de orientação de políticas públicas: as dinâmicas locais e regionais
passariam a complementar as políticas de escala nacional, e o envolvi-
mento dos agentes passa a constituir-se como variável fundamental. Para
além disso, a actuação do Estado deveria organizar-se em rede, promo-
vendo-se a acção de todos os agentes considerados relevantes e estimu-
lando-se a corresponsabilização e o desenvolvimento de competências
diversificadas. Ganhava corpo crescente a ideia de subsidiariedade, tão
característica do projecto europeu e que, complementada pelo estímulo
da competição e do empreendedorismo, deveria servir de suporte à ex-
pansão dos modelos de gestão das organizações privadas às instituições
públicas.
Se este último paradigma persiste ainda hoje como visão dominante,
a partir da transição do milénio começa a observar-se a emergência de
novas tendências assentes na ideia de inovação social como resposta às
falhas quer dos mercados, quer dos governos, bem como aos problemas
de articulação entre o Estado e uma rede cada vez mais densa e complexa
de instituições de natureza privada e não-governamental. Tendo por valor
essencial o ideário político do desenvolvimento sustentável, assim como

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Introdução

os seus objectivos quantificáveis, as diferentes formas de instituições po-


líticas emergentes (estatais, subestatais e supraestatais) confrontam-se com
a necessidade de articular os seus quatro pilares – sustentabilidade am-
biental; equidade social; capacidade e competências; eficiência econó-
mica – com duas linhas de intervenção essenciais: o reforço da partici-
pação da sociedade civil na concepção, implementação e avaliação de
políticas públicas; as novas formas de governabilidade da relação entre o
global e o local, tendo em conta também as limitações dos recursos na-
turais.
A inovação social apresenta-se, neste sentido, como elemento-chave
no desenvolvimento de políticas públicas associadas a um novo para-
digma – o paradigma da sustentabilidade – assente na necessidade de
promover capacidades de aprendizagem e capacidades institucionais. No
caso das primeiras, porque elas estão intimamente ligadas ao acesso à in-
formação, à promoção da comunicação entre agentes e à construção e
partilha de conhecimento. As segundas tornam-se evidentes porque, para
promover as primeiras são necessários mecanismos e processos de mo-
bilização social e política capazes de as concretizar: a nível das novas for-
mas de organização familiar e social, a nível da cooperação interinstitu-
cional, a nível da implementação da agenda política e a nível da
promoção da capacidade de adaptação a alterações estruturais por parte
de indivíduos, comunidades e instituições públicas e privadas (capacita-
ção, empowerment e resiliência). Este será provavelmente o maior desafio
político do início do século XXI, agora confrontado com a vertigem de
falência dos sistemas financeiros e da resposta política subsequente.
Em síntese, o início do século XXI confronta-se com cinco desafios es-
truturantes. Um primeiro diz respeito à transformação dos sistemas polí-
ticos, de um modelo rigidamente hierárquico (local/regional/nacional/in-
ternacional) para um modelo de governação multinível em que a maioria
dos níveis políticos intervém em simultâneo: a representação política
perde parte da sua importância e emerge, em paralelo, uma constelação
de novos agentes que intervêm no espaço político em diferentes escalas,
com diferentes tipos de recursos e com interesses diferenciados. Um se-
gundo desafio configura a incerteza radical como variável essencial da de-
finição, implementação e avaliação de políticas. Se os paradigmas de go-
vernação anteriores atribuíam ao conhecimento científico uma
importância determinante no sucesso das políticas, os novos sistemas de
governação têm de saber lidar com a incerteza e apostar na contextuali-
zação das situações, na partilha de responsabilidades, nos processos ba-
seados em performance e aprendizagem colectiva. O terceiro desafio associa

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a este processo um aumento de complexidade que deriva do aumento da


diversidade de agentes, valores, interesses e contextos. Já o quarto surge
como corolário dos desafios anteriores: a interdependência entre agentes
e recursos é cada vez mais significativa, o que abre caminho a novas pos-
sibilidades no desenvolvimento de políticas colaborativas e de troca. No
entanto, eleva-se aqui o grau de exigência relativamente à capacidade de
diálogo, coordenação, integração e criação de situações de respeito mútuo.
Por fim, um último desafio evidencia a importância da identidade e da
confiança no quadro das relações interinstitucionais e interpessoais. Isto
é, se no sistema político do pós-guerra a confiança política das pessoas era
depositada nas instituições constitucionais, actualmente essa confiança
tem de ser construída entre os vários agentes envolvidos no processo po-
lítico. E ao mesmo tempo que se dá essa interacção, e que se constroem
esses laços de confiança, vão-se constituindo também novas identidades
colectivas em torno de instituições, movimentos colectivos ou formas de
acção individual a que os cidadãos aderem.
A reflexão em torno do bem comum que se propõe neste livro assume
estes desafios como princípios estruturantes, bem como as tendências
históricas que conduziram à sua enunciação actual. Situando-se o papel
estruturante que o Estado continua a desempenhar enquanto garante do
bem comum, a diversidade crescente de formas institucionais alternativas
não pode deixar de nos levar a uma abordagem simultaneamente disci-
plinar, temática e reflexiva. Neste sentido, o livro divide-se em três partes
– Bem comum, bens públicos, bens privados; Entre o público e o privado: desafios
regulatórios; Público e privado: conflito e cooperação – que representam, res-
pectivamente, os contributos do direito, da economia, da sociologia e
da filosofia política para a discussão; a análise detalhada de problemas
específicos (água, bens ambientais, informação, propriedade intelectual e ge-
noma) e pontos de vista reflexivos acerca de questões transversais (proprie-
dade e território; urbanismo; democracia; responsabilidades públicas e privadas).
Subscrevendo-se o princípio de que as abordagens científicas a pro-
blemas políticos e de políticas públicas devem assumir um enfoque trans-
disciplinar, a enunciação de visões disciplinares acerca do bem comum
constitui-se assim como um primeiro passo na identificação de possibi-
lidades de diálogo entre distintas disciplinas que enunciam a questão de
forma mais ou menos directa. De entre elas, o direito e a economia sa-
lientam-se relativamente às restantes precisamente porque procuram es-
tabelecer uma ligação entre alguns dos pressupostos filosóficos inerentes
ao bem comum com uma visão operatória de conceitos e possibilidades
analíticas no desenvolvimento dos seus contributos disciplinares.

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Introdução

Bem comum, bens públicos, bens privados


Maria da Glória Garcia oferece-nos um texto ao mesmo tempo in-
quieto e motivador. Partindo das reflexões contemporâneas sobre a frag-
mentação, a alienação e a hipnose da sociedade hiperconsumista de raiz
ocidental, começa por nos colocar perante a angustiosa incerteza que
gera a consciência do «tempo parado» (ou distraído) por onde se podem
sumir simultaneamente a História e a Humanidade. Nesse tempo «becket-
tiano» como se irão resolver os problemas que a todos respeitam, per-
gunta a autora.
Depois, passa em revista as respostas que, historicamente, a filosofia
da política e do direito foram dando a esta pergunta. Ou seja, como de-
fender o bem comum, o que é ele, e como se traduz em termos de direi-
tos e em termos de deveres. Centrando-se no Estado de Direito, Maria
da Glória Garcia alerta para o perigo da mera perpetuação maquinal desse
Estado «sem o suplemento de alma capaz de projectar a sociedade no
futuro». Isto é, «esvaziado da dimensão intencional ou política» da vida
em sociedade. Exorta, pois, a autora ao reactivar da «força propulsora da
sociedade» através do «despertar para o bem comum». Exortação à espe-
rança e à responsabilidade. Na base dessa exortação está o conhecimento
que impele à acção. Despertar para o bem comum gera novas responsa-
bilidades e deveres fundamentais. Virado para o futuro e para a acção,
eis um bom começo para o livro que o leitor tem em mãos.
João Ferreira de Almeida conduz-nos por um vasto itinerário de re-
flexões por onde ensaia os modos de aparecimento do bem comum. Seja
na dominante jurídica sobre a responsabilidade civil, seja sobre as dimen-
sões da racionalidade entre o Estado e o mercado, seja na dimensão in-
dividual ou colectiva dos factos sociais, a questão do bem comum é uma
questão de todas as ciências sociais.
Neste sentido, o autor aprofunda a problemática do bem comum à
luz da análise de valores sociais e, em particular, aqueles que estão ex-
pressos na ponderação da qualidade de vida. No horizonte desta reflexão
está a sua preocupação com o lugar da política na democracia e o modo
como as capacidades efectivas de acção informada dos cidadãos realizam
o bem comum.
No texto de João Pato desenvolve-se uma reflexão em torno da ques-
tão do valor na teoria do direito e do Estado que nos remete para dois
ramos do direito – público e privado – que delimitam, respectivamente,
a relação entre a sociedade e o indivíduo. Partindo-se do pressuposto de
que o Estado é a organização que efectua a positivação da ordem jurídica

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e cuida de assegurar os direitos de cada um, assumem-se assim três tipos


de situações em que esta relação se manifesta e que o direito público re-
gula: as relações entre os indivíduos e a comunidade; as formas de orga-
nização das comunidades; as relações entre diferentes comunidades.
Ora, diz-nos João Pato, se os valores do indivíduo e da personalida-
de são na sua maior parte «valores-fins», os valores do Estado ou políticos
são essencialmente «valores-meios»: os primeiros discutem-se do ponto
de vista ético, os segundos dizem respeito ao «bem comum». Neste sen-
tido, a discussão jurídica em torno do «bem comum» define-se no campo
do direito público em torno da noção de justiça e encontra no conceito
de «bem público» um referencial significativo: os bens públicos represen-
tam uma expressão «material» do «bem comum». O texto desenvolve-se
em torno desta ligação – «bem comum»/«bens públicos» –, fundamen-
tando-se na produção científica relativa à teoria do direito e ao direito ad-
ministrativo e permitindo retirar duas conclusões importantes do ponto
de vista do diálogo disciplinar. A primeira diz respeito ao facto de que só
são públicas as coisas assim classificadas na lei: as «coisas públicas» são
submetidas ao domínio de uma pessoa de direito público e subtraídas ao
comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva.
A segunda surge como seu corolário e possibilita a contextualização his-
tórica – que «coisas públicas» foram sendo classificadas na lei – e o desen-
volvimento de distintas formas de análise de políticas públicas – de que
forma uma «coisa pública» permite a satisfação de necessidades colectivas.
É precisamente através desta enunciação que se torna evidente a liga-
ção com a abordagem económica no que respeita, não só à definição
económica do conceito de «bem público», mas também aos sistemas de
provisão de bens e serviços, públicos ou privados. Paulo Trigo Pereira co-
meça por enunciar o conceito de «bem-estar social» como aquele que
tem maior proximidade com a noção de «bem comum» na teoria eco-
nómica. Do ponto de vista de políticas públicas, reforça, interessa sobre-
tudo analisar o efeito produzido por determinadas medidas políticas, o
que tem sido feito por três tradições distintas no contexto da teoria eco-
nómica: o utilitarismo; o rawlsianismo; as capacidades básicas. Salien-
tando as diferenças entre as duas primeiras abordagens, o texto desen-
volve-se em torno daquela que é considerada uma questão central
inerente à discussão acerca do bem comum – a eficiência associada à pro-
visão de bens públicos, a correcção de externalidades e a sua aplicação na gestão
de recursos comuns –, analisando dois problemas: O que distingue os diferentes
tipos de bens (públicos, privados, mistos) e quais as consequências que daqui deri-
vam para o papel do Estado, do mercado e do terceiro sector? Que problemas se

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Introdução

colocam numa sociedade democrática quando se trata de determinar o nível óp-


timo de provisão de bens públicos ou o nível óptimo das externalidades, e quais as
soluções, se existem, para esses problemas?
O diálogo entre as noções jurídica e económica de bem público torna
assim evidente duas incompatibilidades conceptuais: se o direito distin-
gue um bem público pela sua classificação na lei em virtude da sua capa-
cidade única de satisfazer necessidades colectivas, a teoria económica tra-
dicional afirma a impossibilidade de se medirem necessidades colectivas
(a procura agregada corresponde à agregação das necessidades indivi-
duais) e classifica os bens públicos em função da natureza dos bens e não
do valor que os mesmos representam do ponto de vista social ou político.
Assim, se no direito os bens públicos são excluídos do comércio jurídico
privado por uma questão de princípio associada à noção jurídica de uti-
lidade colectiva, na economia os bens públicos são aqueles que, pela sua
própria natureza – consumo não rival e impossibilidade de exclusão –
não podem ser provisionados pelo mercado em condições óptimas.
O texto de José Castro Caldas ganha aqui particular relevância precisa-
mente porque situa a discussão da teoria económica em torno de uma visão
rival da visão tradicional. Questionando a própria validade da função de
bem-estar social que está subjacente à teoria económica dos bens públicos,
propõe uma revisão crítica dos seus pressupostos e sugere uma alternativa
fundamentada num exercício de «exploração histórica das ideias económi-
cas e de análise das controvérsias actuais» em torno de três tópicos distintos:
concepções de ordem social, de escolha colectiva e de acção colectiva.
A primeira diz respeito à visão negativa que «tem povoado os manuais
de Economia Política», e que considera que o comportamento de qual-
quer indivíduo se orienta sempre pela necessidade de obter para si os me-
lhores resultados independentemente das consequências que esses resul-
tados possam ter para terceiros ou para o colectivo. Assume-se assim a
universalidade de um pressuposto negativo acerca da natureza humana,
desvalorizando-se a sua capacidade moral. A segunda sugere que a ruptura
que vem sendo operada por abordagens à escolha colectiva que enfatizam
a participação no processo político democrático – democracia deliberativa
por oposição a democracia representativa – como condição da determinação
de necessidades colectivas parte do reconhecimento da pluralidade dos
valores em presença nos processos de deliberação. O ponto de chegada
destas abordagens sugere que há racionalidade na forma como se produ-
zem escolhas colectivas, apresentando-se assim uma alternativa à visão
tradicional. A terceira apresenta a acção colectiva como alternativa para-
digmática à visão tradicional das motivações individualistas da acção: nas

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circunstâncias em que se promovem condições de comunicação efectiva


entre distintos membros de um grupo é possível definir normas partilha-
das de acção que evitam o comportamento egoísta e criam situações de
gestão colectiva de bens. É necessário reconhecer, contudo, que estas vi-
sões construtivas de escolha e acção colectiva foram observadas e testadas
do ponto de vista científico em contextos locais: fica assim o desafio de
recolocar a questão em escalas diferenciadas, nomeadamente globais, para
que se possa definir uma «economia dos bens comuns».
Finalmente, Renato Lessa leva-nos para uma reflexão radical sobre a
possibilidade e as condições em que pode ser pensado o que seja o bem
comum. Sob a égide inspiradora de Fernando Gil, começa por assumir
a falta de clareza da ideia de bem comum oculta por detrás do sentido
intuitivo que ela desperta na opinião geral. Recusando o exercício de
falso esclarecimento por via dos exemplos e analogias, Renato Lessa vai
buscar a Fernando Gil a distinção entre dois regimes cognitivos – funda-
mento e fundação – para procurar determinar aquilo em que pensamos
quando invocamos o bem comum. A fundação histórica e circunstancial,
por um lado, e o fundamento axiomático, por outro, seguem esclare-
cendo o bem comum e, ao mesmo tempo, perpetuando o desacordo em
que esta demanda fatalmente existe. Lessa ensaia a superação desta anti-
nomia invertendo a interrogação em termos não de bem comum, mas
de «mal comum».
Através de uma filosofia política negativa e perante a condição con-
temporânea de colapso ecológico da presença física dos humanos no pla-
neta – mal comum tragicamente antecipado no Holocausto – Renato
Lessa conduz-nos ao reconhecimento de que «a emergência do mal ab-
soluto pode ser tomada como ponto de partida para uma das mais rele-
vantes facetas da moderna definição de bem comum: a parte do direito
público internacional que trata dos crimes contra a Humanidade e suas
implicações extraterritoriais».

Entre o público e o privado:


desafios regulatórios
Se as visões disciplinares apresentadas neste livro pretendem contri-
buir para o debate disciplinar e interdisciplinar em torno da noção ou
sentido do bem comum tendo em vista a sua operacionalização, as di-
mensões temáticas situam a discussão em torno de questões objectivas
associadas a determinados tipos de bens que, pela sua natureza e impor-

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