Mito e Necessidade
Mito e Necessidade
Mito e Necessidade
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A respeito do etapismo, consultar a obra seminal sobre esta teoria, de W. W. Rostow (1959). Etapas do
desenvolvimento econômico, na qual o autor estabelece cinco etapas distintas do desenvolvimento
econômico dos países, as quais seriam inexoráveis para o alcance do estágio de um país desenvolvido.
histórico, donde se averigua a eficácia da teoria, confrontando-a com uma realidade
histórica dada.
O desenvolvimentismo, de acordo com o seu caráter ideológico dominante,
estabeleceu as bases para o conjunto hegemônico de autores se posicionarem quanto às
possibilidades de evolução positiva das civilizações. Ao longo das últimas sete décadas,
os jargões teóricos se tornaram linguagem popular, conteúdo de currículo escolar e
material para amplos debates teóricos e ideológicos. Assim, expressões como: “países
desenvolvidos e subdesenvolvidos”; “países de primeiro, segundo e terceiro mundo”;
“países ricos e países pobres”, “países em desenvolvimento ou países emergentes”,
tornaram-se corriqueiras e dominaram o ambiente do debate, do discurso político, social
e cultural. Neste contexto conceitual e ideológico se fundamentam a teoria liberal e
neoliberal e a crítica à visão liberal de desenvolvimento.
2
TAVARES, M. C.; SERRA, J. Além da estagnação. In: TAVARES, M. C. Da substituição de
importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre a economia brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978. p. 159-167.
Estes discordaram da conclusão de Furtado sobre a estagnação como fator inexorável,
indicando que este autor teria confundido uma estagnação cíclica na economia brasileira
e na América Latina, com uma tendência inescapável de estagnação estrutural.
A crise, segundo estes autores, era resultado de um boom de investimentos do
Plano de Metas da era Juscelino Kubistchek, que promovera nos anos 1960 uma
ociosidade expressiva na indústria. Mas a possibilidade dessa ocupação da ociosidade
poderia ser retomada, ampliando o mercado consumidor que, até ali, estivera restrito e
por nova capacidade de investimento, como viria a fazer mais tarde a ditadura militar,
aproveitando-se do grau de desenvolvimento do capitalismo brasileiro e da expansão do
mercado interno. Porém, este foi um processo, não de justiça social, mas uma
reconcentração das rendas pessoal e funcional. A primeira gerou demanda de consumo e
a segunda o autofinanciamento parcial do investimento. Os autores discordam também
sobre o peso da variável tecnologia no processo de crescimento, informando que esta
não é a verdadeira motivação do investimento.
Neste ponto, ressalta-se outra vertente do pensamento sobre o desenvolvimento,
a teoria da dependência. Esta foi formulada, segundo seus críticos, a partir de um
revisionismo superficial dos pensadores marxistas, e aproveitando-se do pensamento
dos estruturalistas da CEPAL. Os marxistas, naquele momento, teorizavam fortemente
sobre o processo imperialista de expansão colonialista no século XIX, e apontavam para
a lógica de um desenvolvimento capitalista que é desigual e combinado. E também da
perspectiva instaurada por Tavares e Serra (1970), que apontavam, diferente de Furtado,
a possibilidade de o capitalismo brasileiro avançar no seu desenvolvimento. Desta linha
de argumentação, destaca-se aqui a obra de Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso
(1984)3. Estes autores buscam sintetizar toda a discussão cepalina e pós-cepalina, dada
até o momento em que escrevem suas teses, com as teorias marxistas sobre o
imperialismo, e inserem uma visão sociológica sobre o processo de
desenvolvimento/subdesenvolvimento, desde um olhar visto de dentro dos países
periféricos (FIORI, 1998). Advinda, portanto, desse caldo cultural, esta tese, entretanto,
“arranca de uma visão pessimista sobre as possibilidades de desenvolvimento na
periferia capitalista” (FIORI, 1998, p. 77).
3
CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na Ámerica Latina: ensaio de
interpretação sociológica. 7 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. 208p.
A teoria da dependência, da forma que foi teorizada é uma tentativa de se
misturar um conjunto de perspectivas, a partir de um recorte sociológico, o que, para o
autor:
[...] trata-se de uma obra inconsistente e, do ponto de vista político,
inconsequente. Em particular na versão de Cardoso [...] esta contribuição [...]
acabou se misturando de forma eclética com a visão cepalina e produzindo
uma verdadeira geleia teórica repleta de boas intuições (FIORI, 1988, P. 77).
4
TAVARES, M.C.A. Acumulação de capital e industrialização no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 1985.
Na década de 1980 sofríamos a dura crise da dívida externa, que iniciou o
debilitamento fiscal e financeiro do Estado, bem como destruiu sua base para
gestão de política e planejamento econômico, que foram rapidamente
substituídos pelo conjunturalismo. O resultado do decênio foi um medíocre
crescimento do PIB, piora das condições sociais de todo o país e uma perda
de prioridade da questão regional na Agenda do Estado. (CANO, 2012, p.24).
Ainda segundo Dallabrida (2011), quatro são as principais vertentes teóricas que
articulam o pensamento sobre o desenvolvimento a partir de uma dimensão espacial
local, regional ou territorial: a que trabalha com a ideia de distrito industrial
marshalliano; a abordagem regulacionista; a de influência neoschumpeteriana de
evolucionismo por etapa e as institucionalistas. Todas as quatro vertentes enquadram-se,
por sua vez, no campo da “Nova Ortodoxia” ou do “Novo Regionalismo”, conformado
a partir dos anos 1980 nas Ciências Econômicas. E têm em comum o fato de levarem
em conta como premissas as formulações sobre a acumulação flexível5. Dessas, a linha
que tem hegemonizado o debate conceitual sobre o desenvolvimento territorial, é a
última, a institucionalista.
Na abordagem institucionalista, é evidente a dimensão política, a qual não pode
ser separada do recorte teórico territorial. Tal desenvolvimento seria, pois, um processo
integrado do movimento do real, no qual se busca superar a abordagem setorial por
outra que tome a dinâmica geral espacial presente, a qual conforma uma territorialidade,
envolvendo diversos aspectos e atores. Nas diversas correntes de pensamento sobre o
tema, é possível identificar elementos comuns a todas elas: envolve participação social;
vai além de uma abordagem econômica, implica aspectos sociais, ambientais, culturais e
institucionais e tem como objetivo um bem-estar social geral, e a preservação ambiental
(DALLABRIDA, 2011). Portanto, trata-se também de desenvolvimento sustentável:
5
Vide a obra referencial sobre acumulação flexível, de M. Piore e C. Sabel, intitulada La Segunda
Ruptura Industrial (1993).
olhar, as vantagens comparativas: setoriais ou de localização, seriam menos importante
do que:
[...] o fenômeno da proximidade social que permite uma forma de
coordenação entre os atores capaz de valorizar o conjunto do ambiente em
que atuam e, portanto, de convertê-lo em base para empreendimentos
inovadores. (ABROMOVAY, 2000, p. 1).
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A respeito encontram-se as obras de A. Bagnasco (1977) e G. Becatinni (2009), precursores dos estudos
territoriais sobre a Terceira Itália.
se prende às formas de relações sociais estabelecidas; ii) percepção de crescimento
econômico diferente de desenvolvimento – para aferir causas e identificar fatores de
óbices do e ao desenvolvimento, não se restringe apenas aos aspectos econômicos e de
mercado, toma-se os elementos institucionais e históricos que estão por trás de
realidades deprimidas social e economicamente; iii) o estudo territorial passa a entender
os atores e suas organizações, empiricamente e as políticas públicas promovem a
organização e cooperação dos atores; iv) relação entre sistemas sociais e ecológicos;
territórios são relações sociais e, dentro delas, ocorrem as relações de produção, que
envolvem, por sua vez, relações com os sistemas naturais que apoiam sua reprodução.
Assim, a produção e a produtividade não são elementos isolados de um amplo
contexto social, definido historicamente e conformado por uma cultura resultante das
interações sociais e ambientais humanas. A abordagem territorial do desenvolvimento é
a versão mais atualizada das iniciativas voltadas para a promoção do desenvolvimento
rural em nível mundial, denominada nos meios acadêmicos e financiadores de “nova
visão. (FAVARETO, 2007). É a partir das formulações geradas no âmbito das ciências,
das agências internacionais de fomento e das esferas de governo que se consubstancia as
tendências hegemônicas que orientam o desenvolvimento. Neste âmbito ocorre a
legitimação de conceitos, leituras, estratégias e políticas públicas. Assim tem sido desde
o pós-Segunda Guerra, variando no tempo os modelos hegemônicos adotados.
(FAVARETO, 2007).
Dado o arco de elementos implicados no desenvolvimento e a inclusão dos
aspectos sociais e políticos, tem-se que a “nova visão” de abordagem territorial é
tomada como uma vertente institucionalista. Os aspectos definidores do
desenvolvimento estariam dados a partir da capacidade institucional das sociedades em
articularem os atores, as iniciativas, as oportunidades e os recursos disponíveis para
gerar as condições necessárias ao desenvolvimento. Entende-se que a abordagem
institucionalista requer um grau de complexidade grande, e a superação de modelos
calcados em localismos restringentes de ações tópicas e seletivas, focos setoriais. Ou
seja, requer superar os modelos até então vigentes em países como o Brasil.
No que pese toda uma produção científica e institucional, por parte de agências
como o Banco Mundial (BIRD), o Banco Interamericano para o Desenvolvimento
(BID), a Organização das Nações Unidas (ONU) através de sua Organização para
Alimentação e Agricultura (FAO) e da Comissão Econômica para a América Latina
(CEPAL), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), apontando para a dimensão
territorial, tem-se que a passagem da “nova visão” à ação continua sofrendo grandes
óbices. (FAVARETO, 2007). Isto porque:
Embora o discurso sobre desenvolvimento territorial tenha entrado
definitivamente para o discurso acadêmico e governamental na presente
década (2000), até o momento trata-se de uma incorporação “por adição” dos
novos temas, sem a devida mudança institucional capaz de sustentar a
inovação que ela deveria significar. (FAVARETO, 2007, p. 162).
Para este autor, os corolários das grandes agências e a produção acadêmica têm
determinado um conjunto de políticas públicas territoriais para o desenvolvimento rural
na América Latina, mas, apesar de um discurso coerente com a nova abordagem, as
estratégias propostas ainda são fortemente setorizadas, com focos restritivos,
notadamente no combate à pobreza rural. Esta situação corrobora para a manutenção de
uma partitura de ações viciadas em práticas muito setorizadas, sustentadas, por sua vez,
por uma mentalidade tradicional, que resiste à mudanças, absorvendo a estratégia
territorial de maneira superficial, “por adição”, ao conjunto hegemônico de práticas
conservadoras.
A abordagem territorial requer, portanto, a superação de instituições e práticas
restritivas, e uma intervenção articulada e coordenada territorialmente, abarcando a
diversidade das instituições e suas ações. Para Favareto (2007) e Abromovay (2006), a
produção acadêmica sobre o tema deve ir além de meras normatizações, a partir de
objetos específicos estudados, e aprofundar a investigação sobre a diversidade do real,
notadamente ao que tange à origem e comportamento das instituições presentes nos
territórios. Além disso, Favareto (2007) chama atenção para o fato de as políticas
públicas implementadas estarem ainda vinculadas a uma concepção do rural como locus
específico do agrário, lugar de pobreza e atraso tecnológico. Na medida em que se
promove políticas de combate à pobreza e de apoio à agricultura familiar, sem uma
perspectiva territorial, ou seja, sem uma ampla articulação de outras frentes, inclusive
urbanas, tender-se-ia para manter o isolamento do rural e sua acepção como lugar
apenas de atividade agropecuária. Sobre isso, Favareto (2007) observa:
Num aparente paradoxo, é curioso observar como várias vertentes das teorias
institucionalistas estão presentes na formulação da “nova visão” do desenvolvimento
rural pelos organismos internacionais. E, no entanto, a principal falha na
implementação da “nova visão”, via políticas e programas governamentais, esbarra,
justamente, na dificuldade da mudança institucional (FAVARETO, 2007, p. 162)
Dadas tais premissas sobre as condições institucionais e a formação de um
capital social, como base para o desenvolvimento territorial, infere-se a seguir sobre
outro aspecto imprescindível à abordagem territorial, qual seja o processo de
descentralização do Estado. Este ocorreu, no Brasil, durante a retomada da democracia,
após a ditadura militar e teve como cenário privilegiado a formulação da Constituição
de 1988. Discorre-se a seguir sobre tal processo, a fim de demonstrar algumas das
condições históricas recentes que estão na base das dificuldades institucionais para a
implementação efetiva da abordagem territorial do desenvolvimento.
A dinâmica geral da sociedade que promoveu o fim da Ditadura trazia em seu
bojo fortes anseios por uma descentralização, tomada como parte do processo de
redemocratização do país. Assim, tanto forças empresariais, vinculadas às elites
políticas, quanto o movimento social geral que reivindicava o aprofundamento da
justiça social, a distribuição da renda e ampliação dos direitos, defendiam maior
descentralização do arranjo federativo brasileiro. Segundo Fonseca et al. (2013), os
movimentos pró-inovação institucional buscavam um novo pacto federativo que
fortalecessem os municípios. E esta bandeira era tanto de partidos de direita quanto de
esquerda, com argumentos diferenciados e objetivos distintos.
Ao se referir a um período de demarcação mais clara e em que a linguagem
dicotômica de classificação “direita” e “esquerda” era comum e hegemonicamente
aceitável, Fonseca et al. (2013) mantém tal categoria, a qual se reproduz aqui para
melhor entendimento. A direita enfatizava os aspectos liberais, focando a dimensão
econômica, tomando os municípios como localizações capazes de empreenderem suas
alavancagens econômicas. Ou seja, os municípios deveriam deixar de ser meramente
executores e se tornarem empreendedores de suas gestões. Isso, de acordo com os
interesses dos mercados, quando os municípios poderiam se tornar mais “livres” para
comporem com os objetivos dos capitais de investimento. Como avalia Fonseca et al.
(2013):
Nesse caso, a emergência do município, do local, como uma escala apta a dar
conta da globalização competitiva diante de um estado “moribundo”, era
fundamental, mesmo sabendo da possibilidade da geração de localismos
verticalizados, predatórios e fragmentadores, que ampliam as desigualdades
sociais e espaciais (FONSECA et al., 2013, p. 167).
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O evento ocorreu entre dezembro de 2009 a março de 2010 em Salvador, Bahia, realizando-se em quatro
módulos, abordando todos os temas tomados como estratégicos para o desenvolvimento do estado.
Buscava-se um plano integrado, que fosse capaz de pensar o conjunto do estado
e de cada território e macrorregião, a fim de promover as iniciativas de maneira
adequada às particularidades de cada um e, ao mesmo tempo, integrá-los a partir da
logística, do aproveitamento das particularidades e de suas articulações produtivas,
comerciais, de circulação e mobilidade. O Governo defendia ali a construção da
Ferrovia Oeste-Leste como ação de desconcentração regional e integração de territórios
de identidade. Vê-se aqui que a concepção da SEPLAN era a de fomentar a abordagem
territorial, mas sem perder de vista a visão de conjunto, de uma dimensão estadual, no
sentido de que o Estado da Bahia, do ponto de vista do planejamento, é mais do que a
soma dos territórios de identidade. Visão, como a do MDA, que leva em consideração o
local, mas também sua integração de um plano macro do planejamento.
Pode-se observar também a questão ambiental no projeto Pensar a Bahia 2023.
O governo associa o desenvolvimento à sustentabilidade nos seus documentos
referentes. Afirma-se que, para atender uma condição com desenvolvimento sustentável,
é importante ter as questões ambiental e social como prioridades (BAHIA, 2010a).
Reconhece, ainda, a necessidade de se conhecer o contexto histórico das experiências
construídas nos territórios de identidade, a fim de inseri-las na estratégia de
desenvolvimento da agricultura familiar. Ou seja, a concepção de planejamento do
desenvolvimento projetada pela SEPLAN não se distancia do modelo daquela aplicada
na SDT/MDA, guardadas suas particularidades e escalas. E se apresenta teoricamente,
como algo em sintonia com as tendências de descentralização e integração.
A territorialidade seria, neste modelo, a dimensão de uma dada realidade social,
econômica e cultural, expressa em termos de situações que precisam ser consideradas
pelas políticas públicas de fomento ao desenvolvimento, desde os entraves ao
crescimento econômico, passando pelas dificuldades de organização de cadeias
produtivas e do escoamento de seus produtos, até a baixa capacidade de intervenção
política da população local e do seu grau de associação para superação de dificuldades
ao desenvolvimento.
MARCELO ROCHA