Instruções Espirituais-Diálogos Com Motolovic
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I�STRUÇOES ESPIRITUAIS
DIALOGOS COM MOTOVILOV
EDIÇÕES PAULINAS
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Título original
86raflm de Sarov, SA VIE per lrlna Goralnoff
Entretlen avec MOTOVILOV et INSTRUCTIONS SPIRITUEUES tradult
du ftl8N par 1. Gorainoff
@ Desclée De Brouwer, 1979
Tradução
Helena Uvramento
Revisão
Jo16 Joaquim Sobral
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INTRODUÇÃO
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Na Rússia, foi e ainda é celebrado como um san
to de virtudes extraordinárias. Foi um místico total
mente fora de qualquer categoria, da altura dos maio
res místicos do Ocidente e do antigo Oriente. Foi
um dos mais profundos porta-vozes da doutrina es
piritual da Filocalia que foi a herança da espirituali
dade grega transmitida aos russos.
Um ano antes da morte, o monge Serafim teve
longa conversa com um leigo, chamado Nicolas Mo
tovi lov. Este sofria de grave enfermidade e carregava
uma vida pecaminosa. Estava doente de corpo e alma.
No entanto, Serafim escolheu-o como depositário da
sua última mensagem. A longa conversa com Motovi
lov foi realmente a expressão de toda a sua espiritua
lidade e da sua vida. Essa longa conversa foi escrita
mais tarde por Motovilov e divulgada. Tornou-se então
uma das obras da espiritualidade cristã, meditada e
celebrada no mundo inteiro, e doravante também pelo
público de língua portuguesa. Na realidade durante 70
anos, o manuscrito de Motovilov permaneceu escon
dido. Foi descoberto nos velhos papéis de Motovilóv
muitos anos depois da morte deste. A própria viúva
de Motovilov entregou o velho manuscrito ao escritor
Sergio Nilus e este se encarregou da divulgação.
José Comblln
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A VIDA
Primeira parte
NA SOMBRA
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PANO DE FUNDO
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nine conservava-se solidamente tradicionalista e
conservava intactos os antigos costumes. Vestidos à
maneira dos bons velhos tempos, corpulentos e usan
do barba (proibida na corte), seus membros davam
à Igreja dinheiro e filhos, o que os nobres de olhos
fitos na França de Luís XV, quase não faziam.
Foi no entanto uma igreja, cujo plano tinha sido
estabelecido pelo célebre Rastrelli, que a cidade de
Koursk decidiu oferecer a si mesma. Os trabalhos fo
ram confiados a Isidoro Mochnine, pai do pequeno
Prokhore, que possuía uma olaria de tijolos e tinha a
reputação de ser construtor íntegro e consciencioso.
Jovem ainda, morreu antes de terminar a obra. A viú
va encarregou-se dela.
O que se sabe desta mulher à qual Prokhore (ti
nha apenas três anos quando seu pai morreu) deverá
o melhor de si mesmo? A falta do seu retrato, tem
sido representada como uma dessas matronas russas,
ligeiramente gorda, com os traços regulares, a fronte
serena, firme com doçura, inteligente sem ostenta
ção, trabalhadora sem ruído e sem precipitação. Não
somente achava tempo para gerir o seu comércio e a
sua casa, educar os dois filhos, Aléxis e Prokhore,
vigiar a construção da igreja, mas ainda empreendeu
receber em sua casa, educar, dotar e casar convenien
temente, órfãs cuja sorte, nesses tempos, era das
mais tristes.
Encontram-se ecos da boa ordem que reinava na
casa de Agata, em certos conselhos que seu filho
prodlgallzava ulterlormente e em que se tratava de
varrer bem seu quarto, ao levantar, "com uma boa
vassoura", bem como Imediatamente acender o fogo
do samovar, "sendo a égua quente boa para a alma,
tanto quanto pera o corpo". Com toda a probabilidade
foi de sua mãe que ele herdou o amor pelo traba
lho bem feito, o horror à preguiça e os olhos de um
azul muito puro.
Prokhore tinha sete anos quando, pela primeira
vez, o "sobrenatural" se fez pressentir nesta calma
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existência provinciana. Durante uma visita, em com
panhia de sua mãe, à igreja em construção, caiu do
alto dos andaimes que cercavam o campanário e se
levantou indene.
Aos dez anos - já ia à escola - uma doença,
cuja natureza se ignora, esteve a ponto de arreba
tá-lo. Ágata desesperava da vida de seu filho quando
ele a informou de um belo sonho que acabava de ter:
a Virgem Santa tinha-lhe aparecido para anunciar que,
em pessoa, viria curá-lo. Ora alguns dias mais tarde,
um ícone de Nossa Senhora de Koursk, considerada
miraculosa, foi levado em procissão pelas ruas da ci
dade. Ao aproximar-se da casa de Mochnine, desen
cadeou-se uma tempestade acompanhada de chuva di
luviana. Para proteger o ícone introduziram-no no pá
tio. Ágata aproveitou para descer seu filho e o doente
foi curado. Fato sensacional, como se lê, por vezes,
nos jornais? Pequenos "milagres" anódinos que, ao
menos uma vez em sua existência consolam os cren
tes? Mas havia mais.
"Feliz és tu, ó viúva", disse certo dia à valente
Agata que, com seus dois rapazes, com ele se en
controu na rua, um "louco em Gristo" que tinha fama,
como muitos dos seus semelhantes, de conhecer o
futuro, "feliz és tu por ter um filho que se tornará
poderoso intercessor perante a Santíssima Trindade,
um homem de oração para o mundo inteiro".
Um louco em Cristo? Mal representamos a Rús
sia sem estes seres de olhos claros, fala enigmática,
gestos desordenados, muitas vezes simbólicos, como
os dos antigos profetas, passeando seminus - ou
nus, slmplesmente, como Isaías - sem abrigo para o
frio e a neve, dormindo sob os pórticos das igrejas,
&arrestando pelo chão grossas cadeias, impondo-se ter
rlvols penitências, escolhendo como ascese suprema
o 11lmulacro da loucura. Para um ocidental de espírito
cnrtoslano, o próprio fato de lançar esburacado man
to do truão sobre a sua inteligência é prova de de-
1,lorável falta de equilíbrio. No Oriente, o ponto de
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vista é outro. Loucos em Cristo (!''saloi") existiam em
Bizâncio, e a Rússia canonizou trinta e cinco deles.
Durante a vida, alguns foram perseguidos e maltrata
dos. Desejando a cruz, procuraram o opróbrio. Entre
eles há, certamente, histéricos e impostores, mas os
verdadeiros yourodivi eram autênticos filhos de Deus,
esses "pequeninos" que o Pai tinha colocado no lu
gar dos hábeis e dos sábios, a fim de que os simples
possam reconhecer-se neles. E o povo russo, sempre
ávido de Justiça-Verdade (Pravda), reconhecia-se efe
tivamente nestes contestadores de um Estado tirânico,
de uma Igreja multo bem estabelecida, de um cristia
nismo superficial ou hipócrita. Pela boca dos youro
divl, ele dizia o que pensava aos grandes deste mun
do, afrontava sem temor os príncipes cruéis. O mais
célebre destes pequenos profetas - um grande san
to - morto no século XVI, está enterrado em Mos
cou, na Praça Vermelha, nessa igreja de multicor e
extravagante beleza que traz o seu nome: Basílio, o
Bem-aventurado.
Ignoramos por quais excentricidades o louco em
Cristo, de Koursk, terá ganho os seus galões de you
rodivi - seu próprio nome ficou desconhecido - mas
sabe-se que, na época em que se dirigiu à viúva Moch
nine, ele já gozava da veneração dos seus conci
dadãos. Terá ela ficado impressionada com a sua pre
dição? Seu filho era "criança predestinada"?
O caráter de Prokhore fortalecia-se. Ele perten
cia a uma raça virll. A cidade de Koursk está situada
na fronteira das estepes. Desde sempre, seus habi
tantes tinham sido chamados a se baterem contra in
vasores. A peça de sabor medieval "A tropa de lgor"
descreve-os como segue: "Enfaixados debaixo dos
clarins, alimentados na ponta das lanças, seus arcos
retesados, as golllhas abertas, como lobos cinzentos,
eles galopam nos campos buscando para eles a honra,
para seu príncipe: a glória".
Avido de heroísmo, não eram no entanto os fei
tos dos guerreiros que entusiasmavam o jovem Prok-
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hore Mochnine. Sonhava com outras lutas. Comba
tes mais perigosos o atraíam: as proezas ascéticas
dos santos opondo-se às forças do demônio.
Agata ter-se-á surpreendido quando ele pediu a
aua bênção para ir, em companhia de cinco outros
Jovens filhos de comerciantes, em peregrinação a
Kiev, rezar no Mosteiro das Grutas para alcançar co
nhecer a vontade de Deus acerca do seu futuro? Pro
vavelmente não. Saberia ela que esse louco em Cris
to, do qual seu filho se fizera amigo, exercia sobre
ele Influência sempre crescente? Uma coisa era cla
ra: o comércio familiar de que o mais velho dos Moch
nlne, Aléxis, se ocupava não interessava ao mais
novo. Kiev era uma cidade santa, "a mãe das cidades
russas", onde, em 989, o Príncipe Vladimir tinha bati
zado o seu povo no Dnieper, onde um egresso do mon
te Atos tinha fundado o célebre "Mosteiro das Gru
tH", matriz de cultura cristã no país inteiro. Prokhore
encontraria aí a resposta que ele procurava? Ela foi
lhe dada por um velho staretz de nome Dositeu, que
■provou o seu desejo de entrar na vida religlosa e o
orientou para um mosteiro de que ·· o Jovem já ouvira
filar: o "Deserto de Sarov".
"Vai para lá sem temor", teria dito Doslteu, "e
fica lé. 1: ali que salvarás a tua alma. 1: também
lá que terminarás a tua peregrinação terrestre.
Familiariza-te com o pensamento constante de Deus.
Apela para o seu nome. E o Espírito Santo virá
habitar em ti e guiará a tua vida em plena
santidade".
Prokhore estava exultante. Era precisamente
para o Deserto de Sarov que se sentia atraído.
Vários dos seus concidadãos já se encontravam lá.
Mas foi mutuamente dolorosa a separação de sua
mãe. Ele se lançou aos seus pés. Banhada em
lágrimas, ela deulhe a beijar os r cones familiares e
colocou-lhe no pescoç0 uma cruz de cobre, de forma
octogonal, sobre a qual estava representado o
Senhor crucificado. Esta cruz nunca abandonou o
filho de Agata. Até a sua morte, trouxe-a em evi-
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dência no peito e pediu que, depois de morto,
a colocassem no seu caixão. Depois, com o bordão
de caminhante .fia mão, em companhia de dois dos
seus cinco amigos, com os quais fizera a
peregrinação a Kiev, tomou a estrada. Cerca
de seiscentos quilômetros separavam Sarov de
Koursk.
O deserto
A palavra "deserto", em hebraico, significa algu
ma coisa ou alguém abandonado - à natureza, aos
animais - uma "terra que não é semeada" (Jr 2,2).
Em russo, poustynia: deserto vem de pousto, pous
tota: o vazio. O sentido profundo dos dois termos é
idêntico. Pode-se, no deserto, estar abandonado por
Deus ou inteiramente abandonado a Deus. É no vazio
de todas as coisas, e particularmente de nós mesmos,
que podemos aproximar-nos de Deus após termos re
pelido as tentações propostas pelo seu adversário.
Foi ao deserto que, tal qual os profetas do Antigo
Testamento, ele foi conduzido, "impelido" pelo Espí
rito Santo; aí Cristo obteve, sobre Satanás, a sua pri
meira vitória.
Neste sentido, o deserto não é, obrigatoriamente,
uma &xtensão de areia como o Saara. Para os russos,
a floresta que ocupava grande parte do seu território
- imenso, quase virgem - fazia as vezes dele. E a
tradicional santidade ortodoxa florescia aí tanto co
mo na Síria, na Palestina ou no Egito.
O monge ortodoxo não é missionário. Ele não vai
pregar como um franciscano ou um dominicano. Para
se encher de Deus ele se esconde. Mas, uma vez es
palhado à sua volta o odor das suas virtudes, a sua
missão torna-se espiritual, cultural, social. Um dos
maiores santos russos, Sérgio de Radonege (1314-
1392), que pôde ser chamado o "Moisés" do seu povo,
ao qual Insuflou a cor�gem necessária para sacudir
o jugo mongol, conselheiro dos grandes, amigo dos
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pequenos, após ter começado por se enclausurar na
espessura dos bosques, acabou hegúmeno da céle
bre Laura da Santíssima Trindade - hoje Zagorsk -
cuja importância na história da Rússia foi enorme e
permanece considerável. São Paulo de Obnorsk, no
século XV, conseguiu manter-se, durante três anos,
sem que alma viva o descobrisse, no tronco oco de
uma velha tília. Somente os animais conheciam o seu
retiro. Quando rezava, as aves cantavam sobre os
seus ombros. Morreu na idade de cento e doze anos
cercado de discípulos.
A floresta de Sarov, situada ao norte de Tambov
e ao sul de Nizhni-Novgorod, no centro da Rússia, pos
suía tudo o que é requerido para servir de "deserto".
"Floresta muito grande", diz uma velha crônica, "com
carvalhos, abetos e outras árvores; e nesta floresta
múltiplos animais: 'ursos, alces, raposas, martas; e
nas margens dos rios Satis e Sarovka, castores e lon
tras..." Ela apenas era freqüentada por caçadores pro
fissionais fineses da tribo Mordva. Quando os russos
penetraram nela impelidos pelos tártaros, os nativos
ae retiraram. Na confluência dos dois rios, os tárta
ros construíram um campo ent"rincheirado, mas, de
pois da vitória de Demétrio Donskoi no Campo das
Galinholas (1380), também eles partiram.
A floresta fechava-se sobre si mesma, servindo
de entro aos salteadores e aos fora da lei. No século
XVII, somente um monge de nome Teodósio ousou
modelar uma cabana no aterro do velho campo.
Assaitado pelos malfeitores, teve de partir. Um
outro, Guérassime, tomou o lugar dele. Apenas
um terceiro, lsaac, no início do reinado de Pedro, o
Grande, fundou um mosteiro e o dotou de severa
regra. A licença pare construir uma igreja foi dada
pelo último patriarca de Moscou. Entusiasmados, os
monges ergueramna em cinqüenta dias. Conta-se
que, durante a sua conaegreção, alegres carrilhões
fizeram vibrar a floreste. De onde vinham? Nem no
novo mosteiro, nem nos arredores havia um único
sino.
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O que é mais miraculoso/ talvez, embora mais
prosaico, é que o u Deserto de Sarov" tenha podido
ser fundado, que tenha podido desenvolver-se e pros
perar, num momento da história russa tão pouco pro
pício ao monaquismo. Pedro, o Grande, tinha imprimi
do ao seu país uma orientação segundo o Ocidente.
A herança de Bizâncio, compreendendo a sua cultura
religiosa, devia ceder o lugar a rudimentos de técnica
moderna importados da Holanda. O Patriarcado foi
abolido. Os mosteiros, "gangrena do Estado" e os
monges, u esses mandriões", eram votados ao desa
parecimento. As casas religiosas foi baixada a inter
dição de receberem noviços. Os estudos eram pros
critos, o monge em cuja cela fossem encontrados pa
pel e tinta eram passíveis de castigos corporais.
Continuando a política de seu antecessor, Cata
rina li ordenou o fechamento de todos os mosteiros
do Império. O ucasse nunca foi completamente exe
cutado. Mas houve perseguições religiosas que fize
ram vítimas inocentes. O hegúmeno Isaac, do u De
serto de Sarov", doce e santo velho que por sua com
preensão e bondade reconduziu à Igreja antigos fiéis
dispersos nos bosques vizinhos, foi acusado de ativi
dades subversivas contra o Estado e levado acorren
tado a São Petersburgo onde, após três anos de so
frimentos, morreu na prisão. Seu sucessor, Efrém,
passou quinze anos sem se lamentar, na fortaleza de
Oremburgo. Reabilitado, retornou a Sarov e foi ree
leito hegúmeno. Era um aficionado e fino conhecedor
de música religiosa, monge exemplar, estimado pela
sua grande misericórdia para com os pobres e os des
graçados. Durante a fome de 1774, albergou e ali
mentou no mosteiro, com risco de morrer de fome
com seus monges, centenas de refugiados. Para suce
der-lhe nomeou o pedre Pakhome, originário de Koursk,
sob cujo báculo pastoral o jovem Prokhore Mochnine
devia colocar-se. Apesar dos incêndios e ataques dos
salteadores que várias vezes teve de sofrer, o mos
teiro, em setenta anos de existência, tinha-se amplia-
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do e embelezado. A pobre capela de madeira, cons
truída em cinqüenta dias, tinha dado lugar a uma igre
ja de pedras brancas cujas cruzes douradas brilha
vam acima do muro do recinto, na confluência dos
rios Satis e Sarovka, cujos meandros caprichosos se
perdiam sob as abóbadas sombrias da floresta.
O noviço
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A despeito de tão felizes disposições, não é pre
ciso crer que o noviciado deste moço transbordante
de vida, gostando de cantar, sensível à beleza, se
passasse sem choques. "Até os trinta e cinco anos,
Isto é, até a metade da nossa vida terrestre n, con
fessará ele mais tarde, "grande é o esforço de que é
preciso se prover para se guardar do mal. Numerosos
são aqueles que não chegam a isso e que se desviam
do caminho reto para seguirem as suas próprias in
clinações".
Que fazer para perseverar? Uma série de con
selhos, prodigalizados a um postulante, lança certa
luz sobre os anos jovens de Prokhore o Carpinteiro.
EI-ios:
"Seja qual for a maneira como você entrou no
mosteiro, não perca a coragem: Deus está aí. A vida
monástica não é fâcil. Não se deve, à primeira decep
ção, pensar em deixar um mosteiro por outro. O no
viço deve ter a vontade de perseverar.
Vivendo nesta santa casa, faça isto: na igreja,
esteja atento, familiarize-se com os ofícios, vésperas,
completas, vigílias noturnas, m�tinas, leituras das ho
ras. Durante a liturgia, permaneça em pé, com os
olhos fixos num ícone ou num círio. Que a peste
das suas distrações não se misture com o incenso
da salmodia. Na sua cela, aplique-se à leitura, sobre
tudo do Saltério. Releia várias vezes cada versículo,
o fim de o guardar na memória. Se tem trabalho, fa
ça-o. Se o chamam para uma obediência, vá. Ao tra
balhar, repita continuamente a oração:
'Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tende piedade de mim, pecador'.
Ao rezar, unifique o seu espírito e una-o ao co
rnção. No começo, um dia ou dois, ou mais, reze com
n sua Inteligência, pronunciando separadamente cada
pnlavre. Depois, quando o Senhor tenha aquecido o
■eu coração pela graça em união com o Espírito, a
11uo oração fluirá sem interrupção e estará sempre con-
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sigo, alegrando-o e alimentando-o. Quando você es
tiver de posse deste alimento espiritual, isto é, a
conversa com o próprio Senhor, por quê ir às celas
dos irmãos mesmo que eles o convidem? Em verdade
eu lhe digo: o amor à conversa é, também, o amor
à preguiça. Se você não se compreende a si mesmo,
do que é que pode discorrer com os outros, o que é
que podem ensinar-lhes? Cale-se. Cale-se o tempo to
do, lembre-se sempre da presença de Deus e do seu
nome. Não entre em conversação com ninguém, mas
guarde-se de criticar os galhofeiros e os bem-falantes.
Seja surdo e mudo.
-
No refeitório, não repare no que os outros co-
mem e não juigue, mas dê atenção a si mesmo, ali..
mentando a sua alma com a oração. Ao meio-dia, coma
até fartar. A noite, abstenha-se. A gula não é ocupação
de monge. Na quarta-feira e na sexta, se possível. to
me apenas uma refeição e o Anjo do Senhor se ligará
a você. No entanto, é preciso tomar bastante alimen
to para que o corpo, reconfortado, seja um auxiliar
para o homem, no cumprimento do seu dever. De ou
tro modo, pode acontecer que, estando o corpo enfra
quecido, a alma vergue. O jejum não consiste apenas
em comer raramente, mas em comer pouco. Não pro
cede segundo a razão o jejuador que, tendo esperado
com impaciência a hora da refeição, se entrega com
voracidade - corporal e mental - a consumir a ali
mentação. O verdadeiro jejum, aliás, não consiste ape
nas em dominar o seu próprio corpo, mas em se pri
var, a fim de dar pão àquele que o não tem.
Não durma, todas as noites, menos de quatro
horas: a décima, a décima primeira, e décima segun
da e uma hora depois da meia-noite. Se você se sente
fatigado pode, depois do meio-dia, fazer uma sesta...
Foi o que eu fiz desde a juventude. Conduzindo-se as
sim, você não estará triste, mas passará bem de saú
de e estará contente. E você permanecerá no conven
to até o fim dos seus dias".
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A primeira virtude do noviço deve ser a obediên
cia, melhor remédio contra o tédio, doença perigosa
que a um principiante é difícil evitar, a menos que
alga estritamente as ordens dadas por seus superio
res. Ao mesmo tempo que a obediência, o jovem mon
ge deve praticar a paciência. Sem murmurar, é preciso
suportar vexações e injúrias.
"O hábito monástico: é a aceitação das ofensas
e das calúnias n. Um monge deve ser semelhante a
uma velha chinela, usada até a corda. Deve ser como
o pano que um fabricante de panos bate, pisoteia, so
va, lava, a fim de torná-lo branco como a neve. "Sem
provações não há salvação. Não nos tornamos monge
■em possuir a oração e a paciência, tal como não se
vai à guerra sem levar armas. n
Um escolho: as mulheres.
"Evite, como o fogo, essas gralhas pintadas. Mui
taa vezes elas transformam um guerreiro do rei em
eecravo de satã. As virtuosas são de evitar tanto quan
to as outras. Tal como a cera de um círio, mesmo
■ pagado, não pode deixar de derreter quando está
cercado de círios que ardem, o coração de um monge
• eempre enfraquecido por um comércio com o sexo
feminino.
Desde a entrada no mosteiro e até a morte, a
vida do monge não é senão luta terrível contra o
mundo, a carne e o diabo. Não é monge aquele que
gosta de pavonear-se; não é monge aquele que, em
tampo de guerra, cai por terra e deixa de combater. n
Estes conselhos são os de um homem amadure
uldo. Mas refletem os problemas de todos os jovens
rallglosos de todos os tempos.
Proveniente do fundo das idades, uma voz parece
ra ■ ponder: "E monge aquele que fortalece o seu co
r ■ Qfto e espira encerrar o Incorporal em uma morada
ele carne". E São João Clímaco, hegúmeno no século
VII, no mosteiro de Santa Catarina no Sinai, quem fala.
01 anos nade mudaram nos preceitos da ascese, ao
m1no1 na ortodoxia.
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A herança do hesicasma2
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A qualquer pessoa presente, fala-se. Falar a Deus
é rezar. uorai sem cessar", diz São Paulo (1Ts 5,17).
Mas, entregue a si mesmo, o homem tem dificuldade
de rezar, por pouco que seja, mesmo raramente.
Por sorte, uo Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois
não sabemos o que pedir como convém; mas o pró
prio Espírito intercede por nós com gemidos inefá
veis" (Rm 8,26). Não podemos separar Jesus e o
Espírito Santo.
Mas o Espírito fará a sua morada num ser de
pensamentos divagantes, de veste manchada pelo pe
cado? Certamente não. Para começar, é preciso arre
pender-nos. Depois, pôr em guarda o coração, para
Impedir o acesso das tentações, dos pensamentos
nocivos e desta louca da casa, a imaginação, da
qual o inimigo se serve para extraviar os inexpe
rientes na persegutção de visões pseudocelestes. 1:
por Isso que os conselhos dados aos postulantes es
tipulam: uAo rezar, esteja atento ao que diz, isto é,
unifique o seu espírito e una-o ao coração" (a união
da Inteligência ao coração, considerada como centro,
• Indispensável). u Depois, quandq o Senhor tiver aque
cido o seu coração mediante a graça, em união com
o Espírito, a sua oração fluirá sem interrupção..." Es
te modo de orar, nascido no deserto, elaborado nos
mosteiros do Oriente através dos séculos, tornado
verdadeira doutrina aceita pela Igreja, recebe o nome
de, heslcasmo do grego esukía: paz interior, calma,
tranqüllldade.
Ele tem dois cumes. Um é atingido quando a
oração, tornada parte integrante do homem, não é
mnls algo que o homem diz, mas algo que nele é dito.
• Quando o Espírito estabelece a sua morada no ho
mem, este não pode mais parar de rezar, porque o
ENplrlto não cessa de orar nele... Daí por diante, ele
nlo concilie a oração por períodos de tempo determi
nados, mas em todo o tempo". Mesmo quando está
■m vlafvel descanso, a oração é assumida secreta
monte nele porque uo silêncio do impassível é ora-
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ção", diz Isaac, o Sírio.4 "Os seus pensamentos são
moções divinas, os movimentos do Intelecto purifica
do são vozes silenciosas que cantam no íntimo esta
salmodia ao invisível." Mas o Sírio apressa-se a acres
centar: "Dificilmente se encontrará, em uma geração
Inteira, um homem que tenha acesso a este conheci
mento da glória de Deus".5
O segundo cume é inundado por uma luz que a
ortodoxia qualifica de incriada. Apesar da interdi
ção que lhes era feita de "meditarem" sobre tal ou
qual episódio da vida de Cristo, de permitir que se
formassem imagens no seu espírito, os adeptos da
"oração de Jesus" tinham algumas vezes visões lu
minosas que nem eram eieito da sua imaginação, nem
de uma luz meteorológica simbolicamente interpre
tada, mas uma teofania - uma revelação divina -
tão real como a do monte Tabor prefigurando a glória
do Ressuscitado, bem como a luz sem declínio que
iluminará a Jerusalém Celeste e cuja luminária será o
Cordeiro (Ap 21,23). Um grande místico do século XI,
hegúmeno do mosteiro de São Mamas em Constanti
nopla, São Simão, que a Igreja honra com o título de
"Novo Teólogo", foi o inspirado cantor desta Luz
Espírito.
Os monges de Sarov estavam ao corrente da dou
trina e das práticas hesicastas? Segundo os conse
lhos prodigalizados ao postulante e que nós acaba
mos de citar, a resposta é afirmativa. Desde o início
do século XIV se propagaram escritos sobre o hesi
casmo através dos países eslavos e atingiram a Rús
sia. São Sérgio de Radonege tinha conhecimento de
les? A experiência da luz incriada não lhe era estra
nha. No século XV, São Nilo de Sora, eremita da "Te
baida do Norte" no Além-Volga, que falava corrente
mente o grego, tendo permanecido muito tempo no
monte Atos, deixou aos seus descendentes espiri-
4 Mystlc Treatlses by Isaac of Nlnlveh, traduzido por A. J. Wenslnk
(Amsterdam, 1923), p. 174.
5 Ibidem, p. 113.
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tuals uma Regra inspirada pelos grandes mestres da
doutrina hesicasta: João Clímaco, Isaac de Nínive, Si
mão, o Novo Teólogo... Os textos que dela se conser
vam "constituem simultaneamente exemplo surpreen
dente de fidelidade absoluta à tradição hesicasta bi
zantina e de notável simplicidade espiritual que ca
racterizava a própria pessoa de Nilo e que constituirá
o traço surpreendente dos santos russos posterio
res". Isto convém reter: "Os santos russos", escreve
o padre Meyendorff, "ao terem menos interesse pela
especulação teológica, contribuíram muitas vezes, me
diante certo lirismo cósmico, para humanizar a mís
tica hesicasta; eles acentuaram, muito mais do que
os gregos, as implicações sociais do monaquismo
eremítico".6
As dificuldades e mesmo as perseguições que a
Igreja russa conheceu no decorrer do século XVIII não
conseguiram, como vimos, esvaziar a alma russa do
aeu desejo de Deus. Mais num�rosos do que nunca,
us peregrinos sulcavam o Império à procura desta Ver
dade-Justiça que a vida sobre a terra parecia recusar.
E els que alguns dentre eles se puseram a importar
da Moldávia excelentes notícias: -havia lá, nos confins
da Romênia, um monge russo, um verdadeiro staretz,
Palssy Velitchkovsky, em torno do qual a vida monás
tica se tinha organizado de acordo com as mais au
tênticas tradições. Milhares de monges se haviam já
reunido no seu mosteiro. Quanto ao próprio Paissy,
que falava várias línguas, traduzia infatigavelmente
do grego (num momento em que os monges, na Rús-
11la, estavam em princípio privados do direito de estu
dar e de escrever) as obras da literatura patrística e,
nobretudo, as obras dos santos hesicastas com as
,,uals se tinha familiarizado durante permanência pro
longada no monte Atos. O único retrato que se pos-
1ul dele representa-o frágil, sob as largas pregas de
um manto monacal e o doce rosto comido por um par
e Jean Meyendorff. Saint Gr6golre Palamas et la Mystlque Ortho
doH, Ed. du Seull, "Maitres Splrltuels", p. 151.
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de olhos enormes. Dizam-no muitas vezes doente.
Acaçapado em sua cama como uma criança, mas cer
cado de dicionários, ditava a vários secretários as
suas traduções. Sua influência na Rússia foi enorme.
Nos fins do século XVIII e começos do XIX, encon
tram-se por toda a parte discípulos seus ou os discí
pulos destes últimos. Dositeu de Kiev, que orientou
Prokhore Mochnine para o Deserto de Sarov, foi um
deles. Porém, nada daquilo que Paissy traduziu teve
êxito comparável ao da Filocalia - em grego "Amor
do Belo", em russo Dobrotolyubie: "Amor do Bem"
- co�etânea de adágios patrísticos, publicada em 1782,
em Veneza, por um bispo grego exilado de sua dio
cese pelas autoridades otomanas locais, Macário de
Corinto (1731-1805), em colaboração com um monge
do monte Santo, Nicodemos, o Hagiorita (1749-1809).
Sem preocupação com as repetições, esta coleção
continha uma série de textos cujos autores eram
grandes contemplativos hesicastas, a começar pelos
Padres do Deserto e até os restauradores do século
XIV.7 A tradução russa apareceu em São Petersburgo
em 1793, no final do reinado de Catarina 11, graças
aos esforços do eminente metropolita Gabriel. Porém,
vê-se que dezesseis anos antes da sua aparição ofi
cial, Dositeu de Kiev estava já familiarizado com o
espírito do seu conteúdo.
A doença
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padre abade, que não deixava mais a sua cela, estava
prestes a mandar procurar, na cidade, um médico,
quando, com pasmo de todos, o doente sarou. Que
se teria passado? Não se soube senão muito mais
tarde.
A Virgem Santa que, em Koursk, tinha vindo sob
a forma de um ícone salvar a criança doente, tinha
retornado, desta vez em pessoa, para salvar o jovem
noviço do Deserto de Sarov. Ela estava acompanhada
dos apóstolos Pedro e João. Voltando-se para eles,
ela pronunciou estranhas palavras: u Ele é da nossa
raça", disse designando o moribundo. Estas coisas
não se inventam. Como teriam elas vindo ao espírito
de um aspirante à humildade? u A sua mão direita",
contava ele na sua velhice, u pousou-a na minha fron
te. Na sua mão esquerda ela segurava um cetro. Com
este cetro, tocou o pobre Serafim. Nesse lugar - so
bre o quadril direito - cavou-se um buraco. Foi por
lé que a água se escoou. E foi assim que a Rainha
do Céu salvou o humilde Serafim". Uma profunda
cicatriz, no quadril, testemunhava o milagre.
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O eremita
Há uma carta escrita a um amigo pelo staretz
Paissy Velitchkovsky sobre o tema da vida eremítica
em que diz: "Você deve saber, muito querido amigo,
que o Espírito Santo dividiu a vida monástica em três
categorias: a vida eremítica; a vida em companhia de
dois ou três irmãos num skit; e a vida cenobítica.
A vida eremítica deve ser compreendida como uma
existência longe dos homens, no deserto. O eremita
entrega-se apenas a Deus: no concernente à salvação
da sua alma, à alimentação, ao vestuário e a toda a
necessidade terrestre. Apenas espera nele, em todos
os combates da alma e do corpo, porque somente
ele é sua ajuda e sua esperança neste mundo. Po
rém, esta existência não é possível senão para os
espiritualmente am�durecidos, os inteiramente paci
ficados. Quanto aos inexperientes que se engajam ra
pidamente, cuidado! Se caem na sonolência, na falta
de atenção ou na perplexidade - nenhum homem se
encontrará perto deles para os reanimar! "1 º
O padre Serafim fez a experiência disso. "Aque
les que vivem nos mosteiros", dirá ele, "lutam com
os inimigos do gênero humano como com pombas;
os anacoretas - como com leões e leopardos."
Mas, quem são estes "inimigos do gênero hu
mano"? Contra quem, esta luta no vazio? O homem
do século XX ainda sabe que o seu destino, em gran
de parte, depende disso?
Na opinião dos antigos, o Universo era gerado
por espíritos que governavam os astros e residiam
"nos céus" ou "nos ares". Eles coincidiam, em par
te, com o que São Paulo chama "os elementos do
mundo" (GI 4,3). Infiéis a Deus, eles quiseram - e
conseguiram - escravizar o homem no pecado. Mas
Cristo veio livrar a humanidade da sua escravidão,
orrancá-la ao império das trevas. "Primogênito de to-
10 Une lettre du staretz Paissy Velltchkovsky sur le vle monastl
que, 1. Smolltch, Moines de la Sainte Russle, Mame, Paris, 1967, p. 89.
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da a criatura, porque nele foram criadas todas as coi
sas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis:
Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi
criado por ele e para ele (...), pois nele aprouve a
Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por
ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos
céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz" (CI
1,15-20).
Para São Paulo, a Encarnação coroada pela Res
surreição, colocou a natureza humana de Cristo à ca
beça não apenas de toda a raça humana, mas ainda
de todo o universo criado, interessado na salvação
como o esteve na culpa. Esta reconciliação universal
engloba todos os espíritos celestes tanto quanto to
dos os homens. Ela não significa a salvação indi
vidual de todos, mas antes a salvação coletiva do
mundo pelo seu retorno à ordem e à paz, na perfeita
submissão a Deus.
Mas, enquanto esperamos a vitória final, o dia
terrível da Vinda triunfal do Senhor, "quando ele en
tregar o reino a Deus Pai ( ...) para que Deus seja
tudo em todos" (1Cor 15,21-28), nós temos de lutar.
O pecado do homem foi maldição para a terra.
Cabe a este trabalhar pela sua redenção. "Pois a
criação em expectativa anseia pela revelação dos fi
lhos de Deus", diz São Paulo nesta admirável passa
gem da Epístola aos Romanos, tão freqüentemente
citada (Rm 8,19-23), "(...) na esperança de ela tam
bém ser liberta da escravidão da corrupção para en
trar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois
sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores
do parto até o presente. E não somente ela. Mas
também nós, que temos as primícias do Espírito, ge
memos interiormente, suspirando pela redenção do
nosso corpo."
Eis, portanto, trabalho para um místico, para um
anacoreta. A salvação do mundo depende disso. Reen
trando em si mesmo, ele se fechará na "cela interior"
do seu coração para encontrar aí "mais profundo do
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que o pecado " 11 o começo de uma ascensão, no decor•
rer da qual o univers<;> lhe aparecerá cada vez mais
unificado, cada vez mais coerente, penetrado de for
ças espirituais, não formando senão um todo na mão
de Deus.
33
, ln11ruçõe1 ...
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No entanto, a humilde e casta natureza russa não
se parecia quase nada com a longínqua Palestina. No
verão, a doçura do céu descia sobre os troncos róseos
das coníferas, os troncos prateados das bétulas, mi
rava-se na palidez dos pequenos rios de curvas sinuo
sas e singelas. Múltiplas flores dos campos alegra
vam as clareiras. A floresta recendia a resina quen
te, a musgo, a cogumelos, sussurrava com o vôo de
inumeráveis insetos dançando ao sol. De noite, ou
via-se ao longe o coaxar das rãs, o grito das garças
nos pântanos e, abafando tudo, o ruidoso concerto dos
rouxinóis.
O padre Serafim cultivava uma horta. Como adu
bo utilizava o musgo úmido que, dorso nu, ia buscar
nos pântanos, oferecendo "a carne rebelde" às pica
das dos moscardos e pernilongos.
No inverno a floresta vestia-se de um manto de
arminho e tomava aspecto severo e real. Sob seus
fardos de neve, os ramos das árvores se inclinavam
como cortesãos à passagem de um soberano. Nas bre
chas ouvia-se o passo silencioso dos lobos. O rosto
mordiscado pelo ar vivo, o padre Serafim, a grandes
golpes de machado, cortava lenha.
E vinha a primavera de sopro morno, trazendo o
odor da neve derretendo, da seiva subindo. A prima
vera - a Ressurreição - Páscoa. Deixando seu ere
mitério, o padre Serafim passava a primeira semana
da Grande Quaresma no mosteiro, privando-se com
pletamente de alimento, repetindo com seus irmãos a
oração de penitência de Santo Efrém, o Sírio.12
"A oração e o jejum, a �olidão e a abstinência
formam a quadriga que arrebata a alma para o Reino
de Deus", dizia o habitante do "Pequeno Deserto Lon
gínquo". Quanto à leitura, permanecia uma das ocupa
ções favoritas deste homem do ar livre. O evangelho
que ele trazia num saco às costas, acompanhava-o por
toda a parte. Cada dia lia dele alguns capítulos, "abas-
12 Cf. a oração no fim das "Instruções espirituais".
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tecendo" assim a sua alma. Pois "a alma deve estar
alimentada pela palavra de Deus". "É preciso habi
tuar-se a que o espírito esteja imerso na lei de Deus",
ensinará ele. Com efeito, freqüentemente, sua con
versação será apenas uma série de paráfrases de tex
tos bíblicos livremente aplicados às situações em
pauta.
"O homem tem necessidade das Escrituras por
que ainda não está na posse do Espírito que aparta
dos erros. Mas uma vez que o Espírito se tenha apo
derado do homem, seus preceitos se enraizarão nele,
no lugar da lei das Escrituras. Ele será misteriosa
mente guiado pelo Espírito e não terá necessidade de
nenhuma ajuda sensível. Enquanto o coração aprende
pela mediação das coisas materiais, o aprendizado é
seguido do erro e do esquecimento. Mas quando o
ensino vem do Espírrto, a memória conserva-se intac
ta." Doutrina ousada - ortodoxa? - que o eremita
de Sarov jamais atualizou inteiramente, já que até a
morte continuou suas leituras diárias da Bíblia, mas
que partilhava com esse "enfant terrible" da Igreja,
que é S. Simão, o Novo Teólogo. "O que tem por inter
locutor o Inspirador daqueles que escreveram os li
vros divinos (o Espírito Santo), que por ele é iniciado
nos arcanos dos mistérios secretos, esse é, portanto,
para os outros, um livro inspirado de Deus", escrevia
o hegúmeno de S. Mamas. 13
A solidão de um eremita chama e facilita a vinda
do Espírito. "Na descida do Espírito", dirá Serafim de
Sarov, "convém estar à escuta - absolutamente si
lencioso. Também pela leitura que se torna supérflua
uma vez que o Espírito se apoderou do homem, a ora
ção, à sua vinda, não tem mais necessidade de pa
lavras."
Teria ele chegado ao estádio descrito por Isaac,
o Sírio, em que "o silêncio do impassível é oração"?
13 St. Siméon le Nouveau Théologlen, Chapltres Théologlques,
Onostlques et Patrlstlques. Cent. 3, chap. 98-100, Sources• Chrétlennes
n. 61.
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Desejando saudar o padre Serafim, os padres
Marx e Alexandre, como ele solitários, encontravam
no por vezes na sua horta, com a pá jazendo aos pés,
o olhar perdido no céu. Ele não ouvia nem o zumbido
das abelhas à sua volta nem a aproximação dos via
jantes. Compreendendo que seu espírito tinha "emi
grado para Deus", suavemente eles iam embora. Po
rém, freqüentes vezes importunos menos discretos se
obstinavam em visitar o jovem anacoreta e, entre
eles, com grande descontentamento dele - mulheres.
Já no sécu!o IV cameleiros egípcios alugavam suas
montadas a curiosos ávidos de lançar uma vista de
olhos na maneira de viver dos Padres do Deserto.
Bastava proclamar-se eremita para não mais ficar só.
Agastado, ele pediu aos superiores licença para obs
truir, com ramos, o atalho que levava ao seu eremi
tério e o obstruiu.
O cosmo
Os animais
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"O que é um coração caridoso? n pergunta-se San
to Isaac, o Sírio. "É um coração que se inflama de
caridade pela criação inteira, pelos homens, pelos pás
saros, pelas feras, pelos demônios, por todas as cria
turas.
Aquele que tem este coração não poderá evocar
ou ver uma criatura sem que seus olhos se encham
de lágrimas por causa da compaixão imensa que se
apodera do seu coração. E o coração se abranda e
não pode mais suportar, se vê ou ouve por outros,
um sofrimento qualquer, ainda que se trate de uma
pena mínima infli_gida a uma criatura. É por isso que
um tal homem não cessa de orar também pelos ani
mais, pe!os inimigos da verdade, por aqueles que lhe
fazem mal, a fim de que eles sejam conservados e
purificados. Ele pede, até, pelos répteis, movido por
uma piedade que desperta no coração daqueles que
se assimilam a Deus" . 16
Na seqüência de um Macário do Egito, de um São
Francisco de Assis, deu um Sérgio de Radonege, Se
rafim de Sarov atualizava este magnífico texto.
O demônio
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de Sarov respondia trocista: "Que vos ensinam nas
vossas universidades? Seguramente que ele existe!"
E a um indiscreto que perguntava se ele tinha visto
diabos, retorquiu brevemente: "São abjetos".
Como seus ancestrais espirituais no Egito e na
Síria, como o próprio Cristo no deserto, Serafim de
Sarov, na floresta, foi assaltado e tentado pelo demô
nio. Que armas empregar contra ele? Cristo disse-o:
"Esta espécie, não é possível expulsá-la senão pela
oração e pelo jejum" (Me 9,29).
O jejum
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fano e ágil, a vida interior se aperfeiçoa e se manifesta
por maravilhosas visões, as sensações exteriores são
como que abolidas e a inteligência, abandonando a
terra, eleva-se ao céu e mergulha inteiramente na con
templação do mundo espiritual."
A oração
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venir o hegúmeno. Transportaram o ferido - assus
tador à vista - para o mosteiro. Coberto de sangue,
de lama, de poeira, ninguém acreditava que ele pudes
se sobreviver. Por desencargo de consciência manda
ram procurar os médicos. Eles diagnosticaram uma
fratura do crânio, afundamento do tórax, costelas que
bradas, sem falar de numerosos ferimentos e, desam
parados perante tantos males, mas fiéis aos métodos
do tempo, declararam que era preciso sangrar o doen
te. O hegúmeno Isaías opôs-se. Seu bom senso dizia
lhe que o infeliz já perdera suficientemente sangue.
Ao próprio padre Serafim cabia tomar uma decisão.
Os doutores discutiam gravemente na sua cela,
empregando palavras latinas. Quanto ao ferido, ador
mecera docemente. Neste ligeiro sono viu entrar, tal
como outrora ela o fizera, quando de sua doença,
acompanhada pelos apóstolos Pedro e João, irradian
te de glória e revestida com seu manto real, a Vir
gem Santa Maria. Ela se aproximou do moribundo e,
voltando-se para os médicos disse: "Para que servem
vossos esforços? Depois, olhando o asceta ferido, re
petiu as misteriosas palavras já pronunciadas a pro
pósito dele: "Ele pertence à nossa raça". Ele abriu
os olhos - ela tinha desaparecido.
Num estado de feliz excitação que durou cerca
de quatro horas, o padre Serafim recusou a assistên
cia dos médicos; depois, já mais calmo, levantou-se.
Com grande espanto de todos, deu alguns passos na
cela e, pela primeira vez em oito dias, aceitou um
pouco de alimento: uma pequena porção de chucrute
e pão.
A saúde fez, desde então, notórios progressos.
Cinco meses mais tarde, ele pedia a bênção do hegú
menr; para retornar ao seu "longínquo Pequeno Deser
to". Mas o padre Isaías hesitava. O eremita não era
mais o homem de estatura atlética que conhecêramos
antes do atentado, mas, nas vésperas dos cinqüenta
anos, um velho curvado, caminhando penosamente,
apoiando-se no seu machado ou num bordão. Assim
42
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foi que ele permaneceu gravado na memória de seus
contemporâneos: u Um velhinho encarquilhado, intei
ramente branco, inteiramente seco, vestido com um
mantéu branco".
Neste meio tempo, os culpados tinham sido acha
dos - três camponeses de uma cidade vizinha, Kre
menok. O padre Serafim opôs-se energicamente a
que lhes infligissem o menor castigo. Mas um desses
incêndios terríveis, que fazem arder as cabanas isbas
das aldeias russas, assolou Kremenok. As casas dos
malfeitores foram presas das chamas. UO céu os pu
niu", diziam as pessoas. Interpretando assim a sua
desgraça, os pobres tratantes correram, arrependi
dos, a se lançarem aos pés do homem que eles quase
haviam assassinado.
O perdão das ofensas foi sempre, para um fiel
russo, a pedra de toque de um cristianismo autêntico.
Pouco depois do batismo do país russo pelo príncipe
Vladimir, seus dois jovens filhos, Bóris e Gleb, dei
xaram-se assassinar, depois da morte de seu pai
Ct 1015), pelos emissários de um irmão mais velho,
que temia o ascendente deles. Eles eram jovens e
belos, ávidos de viver. Seus guêrreiros arenas lhes
pediam consentimento para · protegê-los. Entretanto,
de preferência a verter sangue numa luta fratricida,
como cordeiros levados ao matadouro, nenhuma re
sistência ofereceram. O povo russo, recentemente
conquistado para o cristianismo, compreendeu a ati
tude deles e pediu a sua canonização. Os bizantinos
ficaram assombrados. Estes jovens príncipes nem
eram confessores, nem doutores, nem mesmo, para
falar com propriedade, mártires. Eles eram strasto
terptzi - alguém "tendo sofrido a paixão", responde
ram os russos. Seu heroísmo, se se pode dizer, às
avessas, sem penacho, particularmente apreciado por
seus compatriotas, inimigos dos grandes gestos e das
atitudes teatrais, coloca-os, de roldão, entre os santos
mais amados. Vemos seus ícones lado a lado, caval
gando soberbos corcéis cor da noite, cor da aurora,
43
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enquanto que, do alto do céu, a mão de Cristo os
abençoa. Pela mediação destes inocentes, Cristo pa
decente, paciente e doce fez, desde o início, a sua
entrada na Igreja russa, para não mais a deixar. Per
seguida, ela não amaldiçoa seus inimigos. Um dos
nossos contemporâneos, Silvano de Atos, morto em
odor de santidade na península da Virgem Ct 1938),
escrevia: "Tu perguntas: como hei de amar o inimigo
que persegue a nossa Igreja? Eu respondo: a tua po
bre alma não conhece Deus, ela não compreendeu o
que significa: ele nos ama com um amor infinito, ele
deseja, ele espera que todos os homens se salvem. O
Senhor é amor e concedeu, na terra, o Espírito Santo
que ensina a alma a amar os inimigos e lhe dá forças
para pedir que também eles sejam salvos". 18
O gesto de Serafim de Sarov foi muitas vezes ci
tado como exemplo e o exemplo foi seguido. O per
dão das ofensas rompe a cadeia infernal da lei do ta
lião, das vinganças sangrentas. "Basta perdoar àque
les que nos ofenderam e a alma fica na alegria co
mo se um nó, que nenhum esforço pudesse desatar,
se tivesse rompido", escreve, em seus Pensées im
promptu [Pensamentos de improviso], André Siniavs
ky, condenado, nos nossos dias, a sete anos de tra
balhos forçados num campo de concentração.
O s//ênclo
Retornado ao "Longínquo Pequeno Deserto" co
mo chamavam ao seu eremitério, por causa da distân
cia que o separava do mosteiro, o eremita votou-se a
uma nova forma de ascese: entrou em silêncio. Tendo
começado a sua vida de anacoreta após a morte do
seu primeiro superior, o padre Pakhome, encerrou-se
num mutismo completo após a desaparição do seu su
cessor, o padre Isaías. Estes dois anciãos, "colunas
18 Staretz Sllouane, apresentado pelo monge Sophrony, p. 157
(em russo).
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de fogo subindo da terra até o céu" como ele os cha
mava, tinham acolhido, guiado, compreendido o mon
ge fora de série que Prokhore Mochnine se tornara.
Com a jovem geração, os laços tinham-se afrouxado.
Propuseram-lhe o posto de hegúmeno - ele recusou.
O ecônomo Nifonte foi eleito em seu lugar. Espiri
tualmente, um estranho.
u Prefira a ociosidade do silêncio à atividade de
alimentar famintos", escreveu Isaac, o Sírio.19 Quão
chocante afirmação para o nosso século ativista e ata
refado! É-o menos se nos dermos conta de que a lin
guagem ascética tem dois termos diferentes para de
signar o silêncio: um quer dizer simplesmente ausên
cia de palavras, o outro indica o vazio absoluto que o
homem faz em si, para se encher de Deus. Era deste
último silêncio que falava o Sírio . Era deste silêncio
que o eremita Sarov, desejava encher-se. uo silêncio
é mistério do século futuro; as palavras são utensí
lios deste mundo", afirmava o Sírio. uo silêncio abso
luto é uma cruz sobre a qual o homem se crucifica
com todas as suas paixões e suas concupiscências",
acrescentava Serafim de Sarov.
Ninguém jamais saberá como ele viveu o misté
rio deste silêncio. Ele se tlnha desvinculado com
pletamente do mundo. Quando ocorria encontrar al
guém na floresta, caía de joelhos com a face na terra
e permanecia nesta posição até que o transeunte se
afastasse. Uma vez por semana, ao domingo, um mon
ge lhe levava um pouco de alimento. Antes de entrar
ele pronunciava a oração costumeira. Tendo respon
dido interiormente: Amém, o silencioso abria a porta
e se detinha no limiar, com os braços cruzados no
peito e os olhos baixos. O monge, depois de uma
curta oração e uma metania, 20 colocava o alimento
que tinha trazido numa bandeja perto da qual, ao lado,
45
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o eremita havia co)6cado um pequeno pedaço de pão
ou antes um potléo de chucrute para mostrar o que
era preciso trazer no domingo seguinte. O monge, ten
do rezado de novo, inclinava-se diante do padre Se
rafim e deixava o eremitério sem ter ouvido o som
da sua voz. Ascética pantomima que durou dois anos.
A paz
Qual era, segundo o padre Serafim, o fruto desta
nova ascese? A paz. A paz de Cristo que ultrapassa
todo o entendimento. Paz mais preciosa do que todas
as jóias do mundo, para cuja aquisição longos anos
de labor não são demasiados. "Não há nada acima da
paz de Cristo", dirá Serafim de Sarov. "Eu te suplico,
minha alegria, adquire o espírito de paz. O homem, na
posse deste espírito, por nada é perturbado. Ele é co
mo que surdo e mudo, como que morto, quando sobre
ele se abatem tristezas, calúnias e perseguições que
todo cristão que quer seguir Cristo deve forçosamen
te experimentar e atravessar. Porque é através de mui
tos males que nos é preciso entrar no Reino dos Céus.
Foi assim que os justos entraram neste Reino em
comparação com o qual toda a glória deste mundo
nada é. Todas as volúpias deste mundo não são nem
sombra da felicidade reservada nos céus àqueles que
amam a Deus. Lá está a alegria eterna, o triunfo e a
festa." E ele acrescentava algo que, de repente, nos
reconcilia a nós, utilitários, com isso que teríamos ten
dência a condenar como mística ridícula, supérflua,
desumana:
"Adquira a paz interior e milhares,
à sua volta, encontrarão a salvação".
Ah! chegamos, finalmente. Eis alguma coisa que
justifica e explica tantos anos de dura ascese, de
penosas ascensões. "Milhares, à sua volta, encontra
rão a salvação", encontrarão já, na terra, essa paz
que nenhuma organização de beneficência, nenhuma
46
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clínica psiquiátrica pode dar, esesa paz que somente
Cristo possui e que ele transmite através de seus ser
vidores; essa paz que milhares de infelizes, famintos
de justiça e de ternura paternal, virão buscar.
O silencioso estaria já em condições de distri
buir esta paz? Não ainda inteiramente ...
Porém, os monges se escandalizavam. Por que
é que o padre Serafim, pergutavam, não mais vinha,
como antes, comungar na liturgia do domingo? Teria
ele a presunção de fazer crer que anjos, como ele
contou na vida de São Pafnúcio, lhe levavam ao de
serto a santa comunhão?21 Sabia-se que nas suas per
nas se tinham formado chagas varicosas devido às
longas permanências em pé. O trajeto semanal até a
igreja, seis quilômetros distante, estaria acima de
suas forças? O novo superior reuniu os irmãos em
capítulo. Foi decidido enviar um ultimatum ao eremi
ta: assistir à eucaristia todos os domingos e todos
os dias de festa ou, se o estado da sua saúde não lho
permitia, voltar a viver no mosteiro. A primeira vez
que o monge portador da comida transmitiu a mensa
gem, o padre Serafim o escutou e o deixou partir sem
uma palavra. No domingo seguinte a proposta foi re
novada. Depois de uma semana 'passada em oração,
estava tomada a decisão do eremita; abençoou o men
sageiro e, sem dizer uma palavra o seguiu. Estava-se
e 8 de maio de 1810. A floresta cantava a primavera.
Ao longo çfo caminho o lírio-do-vale começava a florir.
Apoiando-se em seu bastão, arrastando dolorosamen
te as suas pernas doentes, o padre Serafim ia ao en
contro da mais penosa de todas as suas asceses.
O recluso
"A obediência, para um monge, é mais importan
te do que o jejum e a oração n. O padre Serafim ti-
21 Na vida de santo Onofre (Menológlo, 12 de Junho), acha-se a
descrição da viagem de são Pafnúclo ao deserto onde, no século IV,
viviam numerosos anacoretas. Respondendo à pergunta de são Pafnú
clo aobre os sacramentos, santo Onofre disse: • Um anjo do Senhor
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nha-o dito e ele a 1a em consequencia. Por obediên
cia, este home que passava dos cinqüenta, asceta
de galões, dei va o seu retiro florestal onde, durante
dezesseis an s, se tinha deleitado a louvar o seu Se
nhor e seu Óeus. Entretanto o período de silêncio que
o Espírito lhe impunha não tinha terminado. Come
perseverar num mosteiro em plena atividade, ruidoso
pejado de visitantes e de peregrinos? Pediu ao hegú
meno a bênção para se enclausurar em sua antig�
cela e aí receber os sacramentos.
Esta cela era pequena peça, de teto· baixo, ma
iluminada por duas estreitas janelas dando para urr
barranco. O interior lembrava, por sua pobreza, o de
Pequeno Deserto Longínquo: em um canto, um ícone
da Virgem, com sua lamparina sempre acesa; um cepc
de madeira, à maneira de cadeira; um fogão - que
não servia nunca - e, diante dele vazio, alguma!
achas. Na entrada, que ele partilhava com um vizi nho
o padre Serafim guardava um caixão de carvalho bru
to que ele mesmo tinha cavado no tronco de uma gros
sa árvore. Seu vizinho, o irmão Paulo, homem simples
de coração puro, trazia-lhe uma vez por dia a alimen
tação. Tal como no deserto, ele recitava uma oraçãc
diante da porta fechada. Mas, sequer ao abri-la
o recluso lhe mostrava o rosto. Com a cabeça coberta
de roupa branca, ele se colocava de joelhos, recebia
o prato e o levava para dentro. Quando acabava dt
comer colocava o prato diante da porta, mantendo in
visível o seu rosto. A ementa era sempre a mesma
um pouco de farinha de aveia seca e um pouco di
chucrute.
Cristo fez-se obediente até a morte. Por obediên
eia, Serafim de Sarov tinha trocado o majestoso si
lêncio da floresta pelos ruídos de uma casa pobre; e
ar perfumado da resina, o avermelhado dos poentei
na esbelteza dos grandes abetos pela poeirenta pe
vem trazer-me os santos dons e dá-me a comunhão. Não é soment1
a mim que ele traz a divina comunhão mas aos outros ascetas tam
bém".
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r.umbra de um quartinho de teto baixo. Dezesseis anos
ele permaneceu encerrado ali.
Que fazia aí? Mais do que nunca, mergulhava na
leitura da Bíblia. No decorrer da semana lia o Novo
Testamento inteiro.22 Por vezes comentava em voz al
ta as suas leituras. Os monges vinham escutar à por
ta e tiravam disso o maior proveito espiritual. Tinha
também visões. Uma delas transportou-o, como a São
Paulo, às "moradas celestes". Com o corpo - ou fora
do corpo - ele o ignorava.
Assim se passaram cinco anos. Um dia, sem sair
da cela, o recluso abriu a porta. Aqueles que quises
sem vê-lo podiam entrar. Sempre mudo, ele vagava
em suas ocupações cotidianas. Mais cinco anos - ele
começou a responder às perguntas e a dar conselhos.
De início somente os monges o visitavam. Cedo eles
foram seguidos pelos leigos. A própria Virgem tinha
dado ao recluso ordem para os receber. A torrente
não mais cessava. Em todo o caso ele não deixava
seu sombrio reduto. A falta de ar e de exercício cau
sava-lhe dores de cabeça insuportáveis. Saía de noite,
às escondidas. Uma ou duas vezes viram-no assim,
perto do cemitério, transportandô algo pesado e mur
murando a oração de Jesus. "Sou eu, sou eu, o pobre
Serafim ... Cala-te, minha alegria!", dizia. Sentindo as
forças enfraquecerem, pediu a Deus licença para ter
minar a sua reclusão. E a licença veio. A 25 de no
vembro, dia em que se comemoram os santos Cle
mente de Roma e Pedro de Alexandria, a Virgem Ma
ria, quando ele dormia, apareceu ao padre Serafim na
companhia deles e o autorizou a voltar ao seu eremi
tério. Tendo obtido a bênção do hegúmeno, o recluso,
depois de dezesseis anos de prisão voluntária, saiu
abertamente em pleno dia e se dirigiu à floresta.
22 Na segunda-feira lia, Inteiramente, o Evangelho segundo São
Mateus; na terça-feira, o Evangelho segundo São Marcos; na quarta•
feira, o de S1o Lucas; e, na quinta-feira, o quarto Evangelho, segundo
SIio João. Os dois últimos dias · da semana consagrava-os à leitura
dos Atos dos Apóstolos e das Ep:stolas.
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Segunda parte
EM PLENA LUZ
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REGRESSÃO NO TEMPO
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O espírito das leis de Montesquieu, prendeu definiti
vamente os camponeses à terra, transformando em
verdadeira escravidão a servidão de outrora. O reina
do, felizmente curto, de seu filho Paulo, cabo prussia
no coroado, que via jacobinos por toda a parte e se
meava ao seu redor o terror, finda com um assassí
nio trágico (1801 ). Sucedendo-lhe com a idade de vin
te e quatro anos, Alexandre 1, neto adorado da grande
Catarina, foi aclamado como libertador. Educado por
um preceptor suíço, discípulo de Rousseau, elegante,
cortês, o novo monarca encheu de esperança os co
rações da jovem nobreza livre-pensadora. Seus admi
radores chamavam-lhe "nosso Anjo", os desconfia
dos a "esfinge sedutora". Mergulhado na política eu
ropéia, ora se batia ora se reconciliava com Napoleão.
Serafim de Sarov tinha entrado no silêncio quan
do, em 1812, Moscou ardeu e "la Grande Armée" [o
exército comandado por Napoleão I] foi tragada pe
las neves. Finalmente vencedor, o Anjo se afirmou
decepcionante. Sonhando com uma Europa unida an
tes do tempo, ecumênico antes da hora, decepciona
do ele mesmo com Metternich e a Santa Aliança, bus
cou a ortodoxia num arquimandrita de mau caráter,
Fócio, a mística em Madame Kruedener, e caiu, final
mente desiludido, sob a influência de verdadeiro
monstro, único que ele acreditava fiel: o sádico e rea
cionário general Arakchéev.
O fim desse soberano ambíguo, desse Jano de
duas faces, permanece mistério que a História teve di
ficuldade de elucidar. Morreu - jovem ainda - como
quer a versão oficial, na pequena cidade de Taganrog,
no mar de Azov, cujo clima convinha, ao que parece,
à saúde precária da imperatriz? Ou então, como afir
mam alguns e como o quereria a espiritualidade rus
sa, ele mandou colocar num esquife, em lugar do seu,
o corpo de um soldado recentemente morto e se foi,
peregrino sem dinheiro e sem passaporte, pelas es
tradas de seu imenso império até chegar à Sibéria
onde viveu longos anos, conhecido com o nome. de
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"staretz Feodor Kouzmitch "? Por Inverossímil que Isto
possa parecer a um ocidental (pode imaginar-se um
Luís-Filipe levando o alforje de peregrino mendican
te?), a segunda versão tem possibilidades de ser a
certa.
O Imperador
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milde" Serafim, na posse da paz de Cristo, teria pro
digalizado seus conselhos e dado a sua bênção ao
soberano senhor de uma sexta parte do globo que,
do cume da sua glória, teria visto o abismo de todas
as vaidades? Não se pode afirmá-lo, nem negá-lo.2
A família imperial entrou, mais tarde, em contato com
Feodor Kouzmitch que viveu na Sibéria até uma idade
muito avançada, mas desencorajou, sempre, as pes
quisas a seu respeito.
O staretz
Staretz - era assim que, daí por diante, chama
vam o eremita de Sarov. Literalmente staretz quer di
zer "ancião", yerontas em grego. Tomado no sentido
monástico, pai espiritual. São Paulo já reclamava
esta paternidade quando escrevia aos coríntios: "fui
eu quem pelo evangelho vos gerou em Jesus Cristo"
(1Cor 4,16), e aos gálatas: "Meus filhos por quem eu
sofro de novo dores de parto" (GI 4,19). Nos mostei
ros orientais, os "anciãos" dirigiam os noviços. Gran
des santos toram formados por startzi. Simão, o Novo
Teólogo, proclamava tudo dever ao seu staretz, Simão,
o Piedoso. Mas na Rússia, o starchestvo - o ministé
rio do staretz - recolocado em vigor por Paissy Ve
litchkovsky, no fim do século XVIII, tornou-se, pode
ria dizer-se, verdadeira instituição que representou na
história do país papel considerável. Serafim de Sarov
foi o primeiro, o maior desses homens de Deus. De
pois de sua morte, o carisma do starchestvo, sob a
forma do qual "a santidade dos tempos passados re
torna à vida na santidade moderna de uma maneira
tão tradicional e ao mesmo tempo tão surpreendente
pela sua novidade" ,3 passou ao "Deserto" de Optino
2 Maurício Paleólogo, embaixador da França em São Petersburgo,
publicou em Paris, depois da Revolução de 1917, um llvro cujo fim é
provar que o staretz Feodor Kouzmltch e o Imperador Alexandre 1
não eram senão uma e a mesma pessoa.
3 Vladimir Lossky, "Les startzl d'Optlno•, ln Contacta n. 33, 1•
trimestre, 1961, p. 6.
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onde, tornada u hereditária", ela se manifestou em vá
rias gerações de startzi que se sucederam até a Re
volução. Como se sabe, Tolstói e Dostoievsky foram a
Optino buscar a sabedoria. E, convertido por sua mu
lher, o filósofo Kiréyevsky escrevia: UTodos os livros,
todas as obras do espírito não valem, a meus olhos,
o exemplo de um santo staretz".
O exemplo sim. Era, pois, pelo exemplo que pre
gavam; sobretudo esses eleitos do Espírito. Eles mes
mos devem ter sofrido provas e devem ter-se mos
trado dignos de seus dons. Um guia inexperiente é
perigoso. É um desses cegos de que fala o evangelho
que caem no buraco com aque!e que pretendem levar
e bom porto. u O Senhor não abençoa aos que se con
tentam em ensinar, mas antes, àqueles que, pela prá
tica anterior dos mandamentos, mereceram ver e ne
les mesmos contemplam a luz esplendorosa e brilhan
te do Espírito e, nessa visão, nesse conhecimento e
nesse influxo, conheceram pelo Espírito aquilo de que
devem falar e o que devem ensinar aos outros", es
crevia Simão, o Novo Teólogo.4
Com a sua bonomia costumeira, muito russa, Se
rafim de Sarov confirmava as pálavras do grande bi
zantino: u Eu sei que ele é muito hábil para inventar
sermões", dizia ele de um teólogo que lhe vinham
apresentar. u Mas é tão fácil ensinar como lançar pe
dras do alto do nosso campanário. Quanto a executar
o que se ensina, é tão difícil como carregar pedras
pera o cume do campanário. Esta é a diferença entre
o ensino e a prática".
Um dito espirituoso, talvez contestável. mas não
desprovido de verdade, quer que haja um peregrino
adormecido em cada russo e que esteja cada russo
pronto para fazer centenas de quilômetros para se en
contrar com um staretz autêntico. Crescendo de dia
p3ra dia a reputação do staretz Serafim, multidões -
muitas vezes vários milhares de pessoas ao mesmo
4 Syméon le Nouveau Théologlen, Cent. 1, chap. 4.
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tempo - invadiam o Deserto de Sarov. Que viam
elas aí?
Um velhinho, u completamente branco, todo enru
gado, inteiramente seco n, de olhos azuis e um sorriso
u incompreensivelmente radioso n. A sua acolhida, para
com todos, era a mesma. u Bom dia, minha alegria! n
e ainda: UCristo ressuscitou! n - saudação pascal,
cara aos seus compatriotas.
Resolutamente otimista: u Não sigamos a via do
desânimo, proclamava ele batendo alegremente com o
pé no chão. Cristo venceu tudo. Ele ressuscitou Adão.
Ele restaurou Eva em sua dignidade. A morte, ele a
matou! n
Mas, às vezes: UQue desgraça vejo vir a mim!
Que desgraça!" exclamava ao distinguir alguém na
assembléia. E, antes que o afligido tivesse tido tem
po de lhe dizer o que quer que fosse: uEu sei, eu
sei! n repetia. E, abraçando-o, chorava com éle.
O resultado da ascese
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Agora, a sua hora tinha chegado.
- Admitamos, dizia ele, que feche a porta de mi
nha cela. Os que vieram, esperando uma palavra de
conforto, me implorarão, em nome de Deus, para abrir.
Não tendo obtido resposta, irão imensamente tristes
para suas casas. Que álibi poderei eu apresentar a
Deus, no dia do seu terrível julgamento?
A sua paciência era inesgotável. Escutava cada
um com atenção e doçura. Mas não abria igualmente,
diante de todos, os tesouros de seus carismas.
- Não se deve, dizia ele, abrir sem necessidade
o coração a outrem. Entre mil, haverá um só, talvez,
capaz de penetrar o seu mistério. Com um homem psí
quico, é preciso falar de coisas humanas. Mas com
aquele que tem a inteligência aberta ao sobrenatural,
deve-se falar de coisas celestes.
O modo da clarividência
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de Deus e que é para seu bem. As vezes, tendo-me
fiado na minha própria razão, respondia pensando que
era fácil. Nesses casos resultavam erros. Tal como o
ferro se dá à bigorna, dou minha vontade a Deus.
Ajo como ele quer. Não tenho vontade própria". Mas
o padre Antônio replicava que o staretz via a alma de
um homem como se vê um rosto num espelho, por
causa da pureza de seu próprio espírito. O padre Sera
fim pôs a sua mão direita sobre a boca do hegúmeno:
"Não, minha alegria, não se deve falar assim. O co
ração humano não está aberto senão para Deus
somente. Se o homem se aproxima, vê quanto o co
ração do outro é profundo" (SI 64,7). O staretz não
ia do homem para Deus, mas de Deus para o homem.
Não fazia psicanálise, mas se punha à escuta do Es
pírito.
"Ele adivinha", diziam os camponeses. Um deles
acorreu, certa manhã, para pedir a ajuda d1.J staretz
num assunto para ele vital: tinham-lhe roubado o ca
valo e, sem cavalo, ele nem podia trabalhar nem ali
mentar a sua família. "O padre Serafim", conta uma
testemunha ocular, "tomou em suas mãos a cabeça
do camponês e aproximou-a da sua. Rodeia-te de si
lêncio, disse-lhe, vai a X (citou uma aldeia vizinha).
Antes de entrar nessa aldeia, vira à direita. Contorna,
por detrás, quatro cercados de fazendas. Verás então
um portão de serviço. Empurra-o, desata o teu cavalo
e leva-o sem nada dizer". E isto foi feito.
Seria o staretz aquilo que, em nossos dias, se
chama "social"? Nas raras instruções espirituais dei
xadas por escrito, mostra-nos estas linhas significa
tivas: "Quando nos aproximamos dos homens, é pre
ciso sermos puros de palavras e de pensamento, igual
para com todos (o grifo é nosso), nunca lisonjear nin
guém - de outro modo, tornaremos inútil a nossa
vida". Ele estava a par das condições miseráveis da
vida camponesa, o que não o fazia revolucionário. Tan
to quanto São Paulo, não pregava a abolição da es
cravatura, mas fazia apelo ao coração e à consciência
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de cada um. Tocando com os dedos as cruzes com as
quais o peito de certos altos dignitários estava es
trelado, ele lhes lembrava que fora sobre uma cruz
que o Senhor havia morrido e que, por conseguinte,
as cruzes que eles ostentavam, em vez de serem
motivo de orgulho, deviam, pelo contrário, incitá-los
a uma conduta digna de cristão. A um funcionário im
portante e briguento, ao qual por muito tempo tinha
recusado receber, tendo-o finalmente recebido, per
gunta: UVossos empregados não agem, para com aque
les que vos vão ver, como agi para convosco? 'O se
nhor não está em casa', dizem eles. Ou então: 'O se
nhor não tem tempo', contristando assim vosso pró
ximo, atraís sobre vós a cólera divina". Ouviu-se um
orgulhoso general, que entrou em sua casa por curio
sidade, chorar em sua cela como uma criança. u Atra
vessei toda a Europti com o exército russo, explicava
mais tarde, jamais encontrei algo semelhante: toda
a minha vida se desenrolava diante dele até nos seus
mínimos detalhes, ignorados por todos". Em compen
sação, o staretz amou esse senhor que era o príncipe
Golitzine, que chegara a Sarov incógnito. Ao separar
se dele intima-o a prestar particularmente atenção ao
último versículo do Credo: u Creio na ressurreição
dos mortos e na vida eterna".
Paternidade maternal
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dição não tardou a se cumprir. O padre Antônio foi
designado pelo metropolita Filarete, de Moscou, para
representá-lo como vigário nessa abadia venerável en
tre todas, a Trindade-São Sérgio. As recomendações
que o staretz lhe fez, ao prever essa nomeação, po
dem e devem ser comparadas às que fizera outrora a
um noviço (ver páginas 14 e 15), referentes à vida
religiosa. Tomadas em conjunto, formam como que um
díptico onde o comportamento do superior e o dos
inferiores se harmoniza e se completa.
"Sê mais mãe do que pai para teus monges",
dizia ele a Antônio.6 "Todo superior deve ser - e
permanecer - para suas ovelhas, como mãe sensata.
A mãe amorosa não vive para si, mas para seus filhos.
Ela suporta as doenças dos enfermos com amor; lim
pa os que estão sujos, lava-os docemente, calmamen
te; veste-os com roupas limpas e novas; calça-os,
aquece-os, alimenta-os, consola-os e procura rodeá
los de tal modo a fim de jamais ouvir deles a menor
queixa. Tais filhos são apegados a sua mãe. Assim,
cada superior deve viver não para si, mas para suas
ovelhas. Deve ser indulgente com suas fraquezas;
suportar com amor as suas enfermidades; encobrir os
males dos pecadores com emplastros de misericór
dia; levantar com doçura os que caem; purificar tran
qüilamente os que se mancharam com algum vício,
impondo-lhes uma penitência suplementar de oração
e de jejum; revesti-los de virtude pelo ensinamento
e pelo exemplo; deles se ocupar constantemente e
salvaguardar sua paz interior de modo a jamais ou
vir, por parte deles, nem gritos nem queixa. Então, por
sua vez, eles farão o possível por proporcionar ao
superior a tranqüilidade e a paz".
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Ascese e símbolos
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O padre Serafim atribuía grande importância a
esse uso que ele remontava a Moisés. Não falara
Deus a Moisés nestes termos: u Moisés, Moisés, diz a
teu irmão Aarão que acenda diante de mim lâmpadas
dia e noite: isto me é agradável e é um sacrifício que
me satisfaz". Em vão procurar-se-ia na Bíblia um texto
correspondendo exatamente a este! É este um exem
plo de uma dessas paráfrases bíblicas que o padre
Serafim usava muitas vezes, inspiradas, na ocorrên
cia, do Êxodo 40,25 e do Levítico 24,2-4.
Gostava de comparar a vida humana a uma vela.
u Olhando uma vela acesa - sobretudo na igreja -
pensamos sempre no início, no desenrolar e no fim
de nossa vida: tal como castiçal em que uma vela
arde perante a face de Deus, assim a cada instante
a nossa vida diminui, aproximando-se do seu termo.
Este pensamento nos ajudará a não nos dissiparmos
na igreja, a rezarmos com mais ardor e a fazermos
o possível para que a nossa vida se assemelhe a
uma vela fabricada com cera pura, queimando e se
apagando sem odor".
O símbolo tem a faculdade de se infiltrar, incóg
ni�o. na consciência humana. Pregando o exemplo,
apesar de um dom incontestável de eloqüência, uma
bela memória e uma erudição patrística alimentada
por constantes leituras, o staretz se servia constan
temente de símbolos para fazer penetrar as verdades
cristãs nas almas de seus visitantes. O fogo... Deus é
fogo devorador. A luz ... Deus é luz. A cera - não é
ela virginal? O óleo simboliza o Espírito Santo, unção
batismal e real, força do atleta, medicamento, fonte
de calor que expulsa a frieza dos corações endure
cidos.
As mulheres
64
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puro, ele recebia todo o mundo, muitas mulheres.
Não dissera ele, um dia, que era preciso desconfiar,
como da peste, dessas "gralhas pintadas"? Ao enve
lhecer, repleto como estava de força espiritual, a sua
atitude para com elas mudara. Ele, primeiro entre os
santos russos, é que devia ocupar-se da sua sorte,
prever o papel que, no futuro, lhes estava reservado.
"Não esquecerei jamais", conta uma delas, "co
mo tendo rezado comigo diante do ícone da Mãe de
Deus, pôs sobre minha cabeça suas mãos quentes e
senti, de repente, uma força vivificante se espalhar
através do meu corpo inteiro. Levantei os olhos para
o padre e vi que chorava. Uma de suas lágrimas caiu
sobre minha fronte. Choraria ele por mim? Não ousei
perguntar-lho..."
Choraria ele sobre a sorte de tantas mulheres
escravas de senhores desumanos, de maridos cuja
brutalidade espezinhava suas almas e seus corpos, de
órfãs sem dote e sem amparo, das quais se ocupava
outrora a sua mãe Ágata Mochnine de santa memória?
1: mais que provável.
Ao falar às pessoas casadas, o staretz não entra
va nos detalhes da vida conjugai. Contentava-se em
perguntar aos esposos sobre a fidelidade conjugal re
cíproca e sobre o amor, que asseguram à família a
estabilidade e a paz. Insistia sobre a hospitalidade e
a esmola: "Não vos esqueçais da hospitalidade, por
que graças a ela alguns, sem o saber, acolheram an
jos", disse São Paulo (Hb 13,2-3).
Quanto à esmola, é alegremente que ela deve ser
feita. "Deus ama aquele que dá com um coração ale
gre", assim o staretz parafraseava as palavras do
Apóstolo (2Cor 9,7).
Grande era o respeito desse monge pela família.
A um homem que veio lamentar-se da mãe beberrona,
ele pôs, prontamente, a mão sobre a boca para impe
di-lo de falar e para mostrar que os vícios dos pais
não dispensam os filhos de honrá-los como manda a
Bíblia.
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J • lmtruçõa ...
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Poder-se-ia muito aprender dos gestos simbóli
cos e das breves palavras do eremita de Sarov.
Entretanto, as "gralhas pintadas" existiam. En
tre as numerosas narrativas descrevendo o estranho
fenômeno que era, no século XIX, esse staretz, Padre
do Deserto e um pouco louco em Cristo, há algumas
que valem reportagens modernas, como esse trecho
de um jornal mantido por um jovem nobre, 1. M. Ne
verov, adolescente na época, que lança divertida luz
sobre o encontro do homem de Deus com uma dessas
mundanas alérgicas ao Espírito.
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começou a ler o capítulo VII de São Mateus: 'Não
julgueis para não serdes julgados. Pois com o juíga
mento com que julgais sereis julgados, e com a me
dida com que medis sereis medidos'. Ele leu o capí
tulo inteiro sem comentários, se·m se referir, em na
da, à minha conduta. Ouvindo-o, porém, compreendi
profundamente a minha falta e essa leitura produziu
em mim uma tal impressão, que as palavras evangéli
cas se gravaram para sempre na minha memória. Ten
do procurado um evangelho, li por várias vezes esse
capítulo de São Mateus e, durante muito tempo, podia
recitá-lo quase inteiramente de cor. Tendo terminado
a sua leitura, o padre Serafim me abençoou mais uma
vez e, antes de me deixar partir, me aconselhou a
ler, o mais freqüentemente possível, o evangelho o
que, tendo tomado a peito suas palavras, fiz depois
regularmente".
As crianças
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- Ele deve ter-se escapado pela janela ao ouvir
o ruído das vossas carruagens no pátio, disse um ve
lho monge. Para vê-lo é preciso procurá-lo no fundo
dos bosques.
- Vocês não têm muita chance de encontrá-lo,
disse o hegúmeno do mosteiro, vendo partir o grupo
dos visitantes. Ele se deitará na relva. A não ser que
responda ao apelo das crianças. Façam-nas correr dian
te de vocês.
"A floresta", conta Nadege Aksakov, "tornava-se
cada vez mais espessa. A claridade mal se via sob a
abóbada dos imensos pinheiros. Experimentávamos
uma sensação de mal-estar nessa floresta obscura.
Felizmente um raio de sol brilhou entre os ramos
eriçados de agulhas. Retomando coragem nós nos lan
çamos na direção dessa luz. Uma clareira verde, inun
dada de sol, se abriu diante de nós. Lá, ao pé de um
pinheiro- que estava crescendo separado dos outros,
um velhinho enrugado, curvado até o chão, cortava
rapidamente, com seu machado [sic!], as altas has
tes das ervas. Tendo ouvido barulho, ele se endirei
tou, prestou atenção em direção ao mosteiro e, como
uma lebre arisca, se lançou em. direção à floresta;
mas, cedo ofegante, parou, olhou receosamente para
trás e, tendo-se jogado na relva, tornou-se invisível.
Padre Serafim! Padre Serafim!
i;ramos uns vinte chamando-o assim. Ao som das
nossas vozes infantis, ele não se pôde conter em seu
esconderijo. A cabeça de ancião apareceu acima da
erva. Com um dedo na boca parecia pedir-nos para
não denunciarmos a sua presença aos adultos.
Tendo afastado as ervas para nos abrir cami
nho, sentou-se e nos fez sinal para que nos aproximás
semos. A pequena Lisa - ainda quase um bebê - se
precipitou em primeiro lugar e, tendo-se lançado em
seus braços, apoiou a sua face fresca no ombro ru
goso do ancião.
- Tesouros! Tesouros!, murmurava ele apertan
do contra o seu magro peito cada um de nós.
69
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Confiantes, felizes, nós o beijávamos. Mas o jo
vem pastor Sioma retrocedeu no caminho e correu
em direção ao mosteiro, gritando: 'Por aqui! Por aqui!
Ele está acolá, o padre Serafim!'
Ficamos envergonhados. Os nossos beijos nos
pareceram uma traição."
Retornando ao mosteiro, a pequena Lisa que o
Padre havia apertado primeiro, em seus braços, apro
ximou-se de sua irmã e tomando-lhe a mão: "O padre
Serafim finge ser velho, disse ela. Na verdade ele é
criança como nós, não é Nadia?"
De fato, jamais em toda a sua vida, escreve na
sua velhice Nadege Aksakov, encontrou um olhar de
pureza infantil igual ao do padre Serafim, jamais viu
um sorriso semelhante ao seu. "Assim sorri um re
cém-nascido" quando, segundo dizem as velhas "ba
bás", ele brinca, no seu sono, com os anjos.
Outra imagem
O taumaturgo
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por necessidade ... outros, por ordem do Espírito San
to agindo neles, nunca por acaso, sem necessidade" .8
O primeiro miraculado chama-se Miguel Mantou
rov. Proprietário rural da aldeia de Noutch, na pro
víncia de Nizhni-Novgorod, jovem, alegre, com aspec
to agradável, a vida lhe sorria quando uma doença
estranha o derrubou. Perdeu o uso das pernas, peda
ços de ossos caíam de seus pés. Desiludido com os
ineficazes tratamentos médicos, se fez transportar a
Sarov e, com lágrimas nos olhos, suplicou ao staretz
que o curasse.
- Crês em Deus?, perguntou por três vezes o
santo homem. "Se crês, minha alegria, tudo é possí
vel àquele que crê".
Tendo obtido uma resposta afirmativa, retornou à
sua cela e voltou trazendo um pouco de óleo prove
niente da lamparina que ardia diante do ícone da Vir
gem. Com esse óleo, friccionou os pés e as pernas
do enfermo repetindo: "Pela graça recebida de Deus,
eu te curo em primeiro lugar". Em seguida enfiou nos
pés de Mantourov meias de tecido, trouxe de sua ce
la uma quantidade de pedacinhos de pão seco e, com
eles, encheu os bolsos do casaco do jovem e lhe
disse que voltasse a pé para a hospedaria.
Me.!ltourov não se sentia seguro. Há muito tinha
perdido o uso de suas pernas. Mas uma vez postos os
pés no chão, sentiu que tinha força para se manter
de pé. Fora de si de alegria, prostrou-se diante do
staretz Serafim. Este o levantou e, severamente, lhe
disse que não era a ele, mas a Deus que era preciso
agradecer.
Feliz, Mantourov voltou para sua casa, para a jo
vem esposa alemã que havia desposado durante o
serviço militar nas Províncias Bálticas. Mas, passado
certo tempo, ele se pôs a refletir. Agradecer a Deus?
Como? Voltou a Sarov e o perguntou ao staretz Se•
8 Bispo 1. Brlantchanlnov, MIiagres e menlfestaç6es divinas,
Yaroslavl, 1870, pp. 35-36 (em russo).
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rafim. O velho o olhou com infinito amor. Mas a res
posta dada encheu Mantourov de consternação.
- Eis, minha alegria, disse jovialmente, que da
rás tudo o que tens a Deus e reservarás para ti a po
breza voluntária.
Seria essa "a terrível suavidade do evangelho"?
Michel pensou em sua jovem mulher, habituada a uma
vida fácil, amando o luxo... O preço exigido pela sua
cura não seria excessivo?
- Não tenhas medo, acrescentou o staretz. O
Senhor não te abandonará jamais, nem nesta vida nem
na outra. Reza. Reflete. E volta a ver-me".
Ao contrário do jovem rico do evangelho, Miguel
Mantourov aceitou.
Antes de Lourdes
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Entretanto, como em Lourdes, nenhum caso de res
friado foi jamais registrado e os banhistas, ao sair,
proclamavam que sentiam um bem-estar extraordi
nário.
O hegúmeno Nifonte
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forte desejo de dormir, eu que desde muito tempo
estava privado do sono. Adormeci profundamente e
acordei banhado em suor. A doença tinha desapare
cido. E agora estou completamente bem".
"Que pensa disto, padre Antônio?", concluiu o
hegúmeno de Sarov: "o nosso padre Serafim seria ver
dadeiramente um taumaturgo?"
Dlvéyevo
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renciar da antiga comunidade da madre Agata. So
mente virgens poderiam dela fazer parte e a própria
Virgem Maria seria a Superiora.
Não está claro em que preciso momento ela deu
suas ordens ao padre Serafim. Mas uma vez plantadas
as pequenas estacas - sobre um terreno que aind�
não lhe pertencia - ele se pôs em ação. O padre aba
de Nifonte o fez pagar a madeira que tirava da flores
ta de Sarov para a construção do moinho, enviou ins
petores a Divéyevo. "O padre Serafim nos rouba tu
do", dizia ele. Mas o moinho - graças à ajuda de
um devotado camponês - foi construído e se pôs a
moer. Sete irmãs aí viviam, dormindo sobre as mós
do moinho até chegarem os frios de outubro, quando
ficaram prontas as primeiras celas.
Quem eram essas irmãs? Jovens aldeãs escolhi
das pelo padre Serafim com a aprovação da Celeste
Superiora. Se a sua escolha lhe desagradava, enviava
a postulante à madre Xênia, mulherzinha seca, rústica
e iletrada, mas de espírito indomável, que dirigia a
comunidade de madre Agata.
- Pedi às senhoritas para virem - elas não qui
seram, dirá o padre Serafim.
"Mas o que há de louco no mundo, eis o que Deus
escolheu para confundir os sábios; o que há de fraco
no mundo, eis o que Deus escolheu para confundir a
força; o que no mundo é sem nome e o que se des
preza, eis o que Deus escolheu" (1Cor 1,27-28). Eis o
que a Virgem Maria, "humilde serva", escolhia com
um objetivo que só se tornará visível anos mais tarde.
Nem todas as recrutas do padre Serafim esta
vam entusiasmadas. A penúria na qual a comunidade
seria chamada a viver causava medo a seu bom senso
camponês. Em que aventura o staretz se lançava?
- Não, Batioushka, não! Não quero, não posso!
gritava a bela Xênia Poutkov, filha de agricultores
abastados, noiva de um jovem que amava e à qual o
staretz pedia que tomasse o véu. Mas ele:
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- Escuta, minha alegria. Dir-te-ei um segredo.
Por ora não o reveles a ninguém: foi a própria Mãe
de Deus que escolheu o lugar para esta comunidade.
Tudo o que ela nos quiser dar, nós o teremos: um moi
nho, em seguida uma igreja. Olha, minha alegria, tere
mos tudo, terras para nós...
Mas no momento nada havia e estas promessas
pareciam inverossímeis ao prático senso da abastada
camponesa.
- Dizes que me amas e não queres crer em
mim, insistia o staretz.
u E, contava em sua velhice a bela Xênia, tornada
madre Capitolina, ele aparecia, de repente, irresisti
velmente sedutor - todo luminoso".
Uma senhorita veio, ainda assim - Helena Man
tourov, a irmã de Miguel. Criança mimada, de grandes
olhos negros - bemita, viva, encantadora - noiva
aos dezessete anos, tendo rompido, sem razão, o seu
noivado, teve, ao voltar do enterro de seu avô, uma
visão aterradora que a orientou para a vida religiosa.
Pareceu-lhe ver um enorme dragão negro abater-se
sobre ela, cuspindo fogo. É verdade que estava sob o
Impacto de seu primeiro contato'com a morte e presa
de forte febre. Não obstante, ela levou a visão a sério,
abandonou a vida mundana, mergulhou em leituras
edificantes e não sonhou senão com a tomada de véu
e a vida monástica. Mas o padre Serafim, que foi con
sultar, recebeu-a brincando:
- Ah, Matioushka, que histórias são essas? Entrar
para o convento - que idéia! Deves casar-te, minha
alegria!
Helena chorou, rezou à Virgem Santíssima e seu
desejo de entrar para o convento só aumentou! De
pois de tê-la provado longamente, o staretz enviou-a
finalmente a Divéyevo e a nomeou u superiora terres
tre" da virginal comunidade.
Nesse mesmo ano um novo cura foi nomeado pa
ra a paróquia de Divéyevo; o padre Basílio Sadovsky,
com apenas vinte e cinco anos de idade. O staretz
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gostou desse jovem padre de coração puro e fez dele,
apesar da sua juventude, o confessor de suas "órfãs".
As Igrejas
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mantelados transformados em granjas, nos quais os
caminhões, buzinando, penetram aos solavancos. Em
lugar do som dos sinos chamando para as vésperas,
ele ouve, aproximando-se, a voz do caminhoneiro gri
tando ao camarada que, no interior, arruma a sua car
ga: "Apressa-te, Vítor! Anda! Vamos dançar, haverá
cinema esta noite!"
O padre Serafim amava muito suas igrejas. "O
que há de mais belo, de mais doce, de mais elevado
que uma igreja? Onde nos regozijaríamos mais em
espírito, do que na igreja, em presença de Nosso Se
nhor e Deus? Não há obediência mais importante do
que aquela que se cumpre na igreja. Se só com um
pequeno esfregão, se limpa a poeira na casa de Deus,
não se ficará sem recompensa".
Depois que Helena Mantourov pronunciou seus
votos nas mãos do monge Hilarião de Sarov, o staretz
a nomeou sacristã com a bela Xênia Poutkov como
adjunta. Na presença de seu cura, o padre Basílio,
deu-lhes instruções precisas concernentes aos ofícios
e à manutenção do interior. Dois monges de Sarov de
viam ajudar o padre Basílio a ensinar às irmãs as ru
bricas e o canto litúrgico. Nunca indo a Divéyevo, o
staretz, de longe, vigiava tudo e queria que tudo fosse
impecável. Insistia para que um círio ardesse cons
tantemente, noite e dia, diante do ícone do Salvador
na igreja da Natividade, e que uma lamparina perma
necesse eternamente acesa embaixo, na cripta, diante
do ícone da Mãe do Verbo. Era-lhe caro o simbolismo
dessas pequenas luzes que ele dizia agradáveis a
Deus e que remontava a Moisés.
"Enquanto vivia", contava a bela Xênia, "não sa
bíamos o que era comprar velas. Levavam-lhe muitas
e ele, o nosso Batioushka, guardava todas para Di
véyevo. Quando íamos vê-lo - sobretudo nos últi
mos tempos, antes de sua morte - ele não falava
senão de suas igrejas: 'Tendes tudo o que é Pl'.'eciso,
Matioushka? Não vos falta alguma coisa?' - 'Não,
Batioushka' - 'Graças a Deus, minha alegria, agrade-
82
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çamos ao Senhor!', murmurava ele persignando-se ra
pidamente".
No entanto, malgrado a solicitude do santo an
cião, não era sempre que nada faltava: a jovem comu
nidade era pobre e as irmãs não ousavam importunar
o staretz.
Um dia, querendo acrescentar o óleo na lampa
rina cuja perpétua chama iluminava o ícone da Santís
sima Virgem, a irmã Xênia constatou que a garrafa
estava vazia. Ao aproximar-se, depois da liturgia, viu
que, por falta de óleo, a lamparina se apagara. Que
fazer? Não havia, na comunidade, nem óleo, nem di
nheiro. A dúvida invadiu o espírito da jovem. Se em
vida de seu Batioushka suas indicações não podiam
ser respeitadas, o que seria depois de sua morte?
Tristemente ela se dirigiu para a saída quando ouviu
um ligeiro crepitar e, voltando-se, viu que a lampari
na, cheia de azeite, se tinha acendido sozinha. Feliz,
serenada, correu para contar o prodígio a Helena Man
tourov quando, perto da porta, um camponês a deteve:
uSois vós a sacristã?" - "Sim, por quê?" - uo pa
dre Serafim vos recomenda que mantenhais uma cha
ma perpetuamente acesa diante cio ícone da Mãe de
Deus. Então, eis 300 rublos. São para o azeite. E para
que meus pais sejam inscritos no necrológio e men
cioneis seus nomes em vossas orações". uoh, Ba
tioushka", pensou Xênia agradecendo ao camponês,
ucomo se pode duvidar de tuas palavras?"
A regra
A regra com a qual a Soberana do Céu dotara a
Jovem comunidade era das mais simples: a oração a
Jesus e a obediência eram seus fundamentos. Três
vezes o u Pai-nosso", três vezes a uAve-Maria" e a
recitação do Credo era suficiente pela manhã, meio
dia e à noite, como prática cotidiana dessas campo
nesas que, para se alimentarem, continuavam a tra-
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balhar nos campos, acompanhando entretanto - e era
o mais difícil - suas atividades cotidianas com a con
tínua oração do coração. Hesicasta convicto, o padre
Serafim não tinha hesitado, apesar das críticas, em
fazer desse utête-à-tête" com o Senhor a própria base
do novo edifício. A leitura ininterrupta do saltério, na
igreja, por doze irmãs, especialmente designadas para
essa tarefa era, entretanto, obrigatória, bem como o
canto da "Paraklisis" - um ofício da Virgem - no
domingo antes da liturgia.
Quanto à obediência, por todos os meios o padre
Serafim se empenhava em tornar leve e maleável a
vontade de suas ovelhas. O fato de serem todas sol
teiras tornava, segundo ele, a tarefa mais fácil. uAs
viúvas - observava com uma ponta de humor -
são levadas a viverem de lembranças. 'Oh como era
bom o falecido!' dizem elas, perturbando assim a ima
ginação das moças. Ou então, ao contrário, se a vida
conjugal tinha sido infeliz, elas obscurecem com suas
recriminações a glória de um estado abençoado por
Deus". Tinha observado também que a mulher, no ca
samento, adquire muitas vezes uma vontade própria
difícil de quebrar na vida monástica. uPrefiro me ha:
ver com oito moças do que com uma só viúva!", afir
mava.
As múltiplas obediências que impunha às irmãs
da Comunidade Moleira chegavam muitas vezes ao
absurdo. Assim, mal tinham chegado a Divéyevo, de
Sarov, onde haviam trabalhado o dia todo, fazia-as re
tornar ao u Deserto", obrigando-as a percorrerem vin
te e quatro quilômetros a pé, sem terem tido tempo
de repousar, nem de comer. As vezes, caminhando
de noite, chegavam ao amanhecer diante da cela do
staretz, cuja porta estava fechada. O melhor diácono
de Sarov, Natanael, vivia ao lado. UEle faz vocês gela
rem, esse velho!", dizia às moças. uEntrem na minha
cela para se aquecerem um pouco". Algumas entra
ram. O staretz, avermelhou de zanga. uProíbo-vos de
entrarem aí!", gritou ele. "Que espécie de diácono é
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ele? Não é diácono de Sarov!" Coisa estranha, Na
tanael se pôs a beber e foi excluído da comunidade
do Deserto. Mas acontecia também que jovens mon
jas, recalcitrando sob o jugo, decidiam deixar a Co
munidade Moleira. Sempre misteriosamente chama
das, no momento mesmo em que se preparavam para
partir, vinham se lançar aos pés do padre ao qual
nada era necessário confessar de sua tentação - ele
sabia.
Milagres
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por uma ou outra dentre elas e narradas na crônica de
Divéyevo. Mas em que consiste esse ensinamento,
eram incapazes de o dizer. Em contrapartida, lembra
vam-se muito bem do dia em que tinham visto seu
Batioushka caminhar numa campina acima da ponta
das ervas; do dia em que uma futura irmã, instanta
neamente curada de paralisia das pernas, se pusera
a ceifar o feno na companhia delas; ou ainda do dia
em que, após trabalho fatigante, o staretz lhes tinha
servido, em sua cela florestal, uma suculenta refeição
sem carne, expressamente preparada para elas não
se sabe como nem com quê, enquapto ele mesmo co
mia uma crosta de pão velho que tinha achado sus
pensa na ponta de um barbante, na sua ermida.
O clima paradisíaco que rodeava o homem de
Deus e ao qual os animais tinham sido sensíveis,
triunfaria dos determinismos e das limitações da ma
téria? "Cristo ressuscitou!", clamava o staretz. Nele
um mundo transfigurado surgia à luz do Espírito. Para
ele não existiam portas fechadas. O milagre florescia,
sinal da volta ao Paraíso. Mas por quê, perguntamo
nos ao ler, na Crônica de Divéyevo, as narrativas tão
simples, mas tão palpitantes da vida dos contempo
râneos do staretz - Mantourov, o padre Basílio, as
próprias irmãs - por que essa prodigalidade louca,
inútil, essa avalanche de maravilhas derramada sobre
rústicas aldeãs de uma província qualquer do centro
da Rússia? Por que esse interesse excepcional, que a
Virgem tinha pela fundação e desenvolvimento da Co
munidade Moleira? A luz dos acontecimentos que se
desenrolaram em seqüência torna-se manifesto que
uma visão profética do futuro estava subjacente a
tudo quanto se passava em Divéyevo. Monjas seme
lhantes àquelas que, em Divéyevo, faziam por obe
diência vinte e quatro quilômetros em jejum terão,
cem anos mais tarde, a força de alma requeri
da para jejuar, durante a quaresma, nesses campos
de concentração em regime de fome; preferirão ficar
de pé um dia inteiro imóveis, na água gelada de neve
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em degelo, do que trabalhar no dia de Páscoa, susci
tando, por heróicos testemunhos, a curiosidade ad
mirada dos descrentes.
A Igreja russa conhece poucas santas canoniza
das. A História russa, em compensação, conhece pou
cas - ou nenhuma - cortesã. A santidade da Rússia
está difundida em suas mulheres. Em graus diferen
tes, elas são portadoras de seu ideal. Um retrato de
mulher esboçado por Leão Tolstói fornece exemplo
disso. Trata-se de sua tia, que lhe serviu de mãe
quando ficou órfão.
"O que me feria a atenção nela e mais me in
fluenciava - escreve Tolstói - era a sua espantosa
bondade para com todos sem exceção. Procuro lem
brar-me - e não posso - de uma só vez em que
ela se teria zangadp, teria dito uma palavra dura, te
ria feito um julgamento. Em trinta anos de vida não
posso lembrar-me que ela o tenha feito, uma só ve;zJ
Nunca me ensinou com palavras como era preciso vi
ver, jamais me fez 'sermões'. Todo o seu trabalho
espiritual estava no interior e, exteriormente, apenas
se viam seus atos - nem mesmo seus atos mas a
sua vida, calma, doce, resignada mas de um amor apa
ziguante e como que secreto. Ela trabalhava numa
obra de amor interior e, por isso, era-lhe impossível
apressar-se. Essas duas faculdades - a paz e o amor
- atraíam e davam ao seu convívio um encanto par
ticular. Alegre era o ambiente de amor que a cercava
- amor para com os presentes e os ausentes, para
com os vivos e os mortos, para com os homens e
mesmo para com os animais n .1°
A paz. O amor. A resignação. A alegria. Este re
trato não nos faz pensar em Serafim de Sarov? Por
uma espiritualidade idêntica à sua é que uma mulher
como a tia de Tolstói foi moldada.
10 Nlcolas Arsenlev, "As tr�lç6es espirituais da famflla ruua",
em "Ortodoxia na vicia", coletânea publlcada sob a direção de C.
Verkhovskoy, Nova York, 1935 (em russo).
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O instinto maternal é muito desenvolvido na mu
lher russa - mesmo com relação ao homem que ela
ama. Tem a tendência a apiedar-se de suas fraquezas
mais do que a desfiar seus encantos para conquistar
a sua força. Ao falar em u A mulher e a salvação do
mundo", da mulher em geral, foi na mulher russa, em
particular, que o teólogo contemporâneo Evdokimov
deve ter pensado. u Ela mantém o carisma maternal
de fazer nascer Cristo nas almas dos homens. A ela
incumbe a tarefa de levantar o zelo masculino que
desliza tão freqüentemente - e cada vez mais -
para a profanação dos mistérios e a perda dos va
lores espirituais. Nas condições de vida atuais, a san
tidade é mais interior na mulher do que no homem.
Toda mulher tem intimidade inata, quase cumplici
dade com a tradição, a continuidade da vida".11 Era
apoiado nesta faculdade feminina de guardar "a lem
brança de todos estes fatos em seu coração" (Lc 2,
51 ), como ela própria fazia, que ele lançava a Virgem
com o título de Superiora da Comunidade Moleira.
Ela previa - e fazia seu eleito Serafim prever - que,
para guardar a fé num país devastado pelas persegui
ções e ameaçado de descristianização, não eram co
rações carregados de um excesso de ciência humana
que seriam necessários, mas corações despedaçados
- como o seu ao pé da cruz - por um paroxismo de
sofrimento.
A morte
Nesta enseada de promessas divinas, o Gólgota
projetava já a sua sombra. A Rússia estava em guerra
com a Polônia. Dirigindo-se para o exército, o general
Kouprianov parou em Sarov, travou conhecimento com
Miguel Mantourov e, encantado com a sua persona
lidade aberta e agradável, impressionado pelo seu
11 P. Evdoklmov, A mulher e a salvação cio mundo, Ed. Paullnaa
1888.
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bom senso prático e pelo desinteresse com que se
ocupava dos negócios do staretz, pensou que se tor
naria um intendente ideal para gerir seus domínios
enquanto ele guerreava no Oeste. O staretz, por ra
zões diferentes, foi do mesmo parecer.
- Querem levar-te, minha alegria, disse ele a seu
fiel "Mishenka nii - que fazer! Tu me prestaste mui
tos serviços. Vai agora prestar serviços em outros
lugares. Os camponeses do general são pobres, aban
donados, sua vida é dura. Não se deve abandoná-los.
Ocupa-te disso, minha alegria. Sê bom para eles. Tra
ta-os com doçura. Eles te amarão, te ouvirão, retorna
rão a Cristo. É para isso, sobretudo, que te envio.
Leva tua mulher contigo. E, voltando-se para Ana Man
tourov:
- Sê n para ele uma mulher sensata. Ele é "um
pão bento , o nosso Mishenka. Não deixes que se
enfureça, é preciso que te ouça.
Ela estava contente por partir. A eterna pen.úria
na qual o casal vivia lhe era penosa. No começo -
embora não o tenha abandonado - tinha acabrunha
do o marido com censuras. Mas, como ela própria
narra em suas memórias, ele apenas respondia com
suspiros. A perspectiva de ganhar um pouco de di-
nheiro iile sorria.
Nos domínios do general, o casal encontrou a
Incúria, camponeses vagando como ovelhas sem pas
tor. Muitos dentre eles, no seu desespero, se. tinham
unido a seitas de velhos crentes. Pondo ordem nos ne
gócios do general, Miguel adquiriu-lhes a confiança.
Em grande número retornaram à Igreja, sobretudo
após uma epidemia de febre perniciosa, na qual os
doentes foram curados pelas orações do padre Sera
fim e pelo conselho que deu a Mantourov de os fa.
zer comer migalhas de pão preto sem outro medica
mento. A região era pantanosa. A malária grassava aí
em caráter endêmico. Ao fim de dois anos Miguel, tam-
12 "Mlshenka", diminutivo afetuoso de Miguel.
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bém, caiu doente e escreveu a sua irmã rogando-lhe
que pedisse a ajuda do staretz. Acompanhada da bela
Xênia, ela foi a Sarov.
- Sempre me obedeceste, - lhe disse o velho
homem. - Pois bem, minha alegria, gostaria de te
impor uma obediência.
- Eu vos escuto, Batioushka.
- Vê, minha alegria, teu irmão Miguel está mui-
to doente. Ele deve morrer. Mas eu ainda preciso
dele para o convento, para as órfãs. Então, a obe
diência da qual te quero encarregar é a seguinte:
morrer em lugar dele.
- Abençoai, Batioushka, - respondeu Helena
muito calma.
Ele a olhou longamente, falando-lhe da vida eter
na. Ela escutava sem uma palavra.
- Batioushka! - gritou ela, de repente. - Te
nho medo da morte!
A essa família excepcional, o staretz pedia coi
sas extraordinárias: ao irmão - o sacrifício de sua
fortuna; à irmã - o sacrifício de sua vida. No con
vento ela levava uma existência ascética, não co
mendo senão batatas e bolachas que tirava de um
saco suspenso à entrada de sua cela. "Como? Não há
mais nada?" - admirava-se a irmã cozinheira. -
" Acabei de encher a sacola". - "Não fique zangada
- respondia docemente Helena - desculpa-me. �
meu fraco - gosto demais dessas bolachas!" Dormia
sobre uma pedra recoberta com um tapete rústico e
dava tudo o que tinha, sempre às escondidas. Ama
vam-na por sua grande bondade. Muitas vezes, na igre
ja, passando diante de uma irmã necessitada ou dE
uma peregrina indigente, ela lhe escorregava dinheirc
na mão, murmurando: "Olha, Matioushka, pediram-mi
para te entregar..."
De temperamento frágil, emotiva, nervosa, sujei
ta a visões diabólicas, Helena tinha tido sempre me
do da morte. Ela pressentia, com pavor, o próximo de
saparecimento do staretz e dizia que não lhe poderi,
90
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sobreviver. Pedindo-lhe para morrer antes, estaria ele
satisfazendo o seu desejo? Outros pretendiam que,
tuberculosa, Helena estava de qualquer modo conde
nada e que o staretz o sabia. Durante longo tempo
tinha ela tido em sua cela e cuidado com amor, a
sua antiga arrumadeira, Oustinia, que jamais tinha con
sentido em separar-se de sua senhora. Ora Oustinia
era tísica. Alguns dias antes de sua morte, teria dito
à antiga senhora: "Vi em sonhos um belo jardim. E
uma voz me disse: Este jardim é teu e de Elena Vassi
lievna.13 Logo ela virá juntar-se a ti".
Levado tudo isso em consideração, teria o staretz
o direito de apressar a sua morte? Tinha o dom de
curar. Não poderia sarar a jovem, se estava tão doen
te e também seu irmão Miguel?
Ao grito desesperado de Helena: "Batioushka, te
nho medo de morrer!", ele respondeu docemente:
"Não cabe a nós ter medo, minha alegria. Para ti e
para mim é a felicidade".
Ela despediu-se mas, mal transposta a soleira da
porta, cambaleou e caiu desmaiada. O staretz deitou-a
no caixão que conservava na entrada (o que não a deve
ter serenado quando voltou a si; a pobrezinha!), as
pergiu-a com água benta e deu-lha a beber.
De novo em Divéyevo, Helena se acamou. "Não
me levantarei mais", disse ela. Impressionável como
era, não há nada de espantoso em que o choque que
acabava de sofrer tenha apressado a sua morte. Ela
partiu com beleza, munida dos sacramentos da Igreja,
rodeada de visões celestes. Era véspera de Pentecos
tes. Conta-se que no dia seguinte, enquanto se can
tava, na liturgia, o Hino dos Querubins, Elena Vassi
llevna, à vista de toda a assistência, teria, por três
vezes, sorrido, com a face radiosa, no seu caixão
aberto.
- Por que choras? Como sois bobas, minhas ale
grias, por chorar, dizia o staretz à bela Xênia e às
13 Elena Vasslllevna, nome e sobrenome. Em russo: Elena, fllha
de Vasslly (Baslllo).
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Irmãs inconsoláveis
n
com a perda de sua "superiora
terrestre . Deveríeis tê-la visto alçando vôo e abalar
para o Reino de Deus: ela é, agora, dama de honra da
Rainha do Céu!...
A primeira andorinha
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- A vida será breve então - suspirava ele. -
Os anjos mal terão tempo de apanhar as almas.
Dizia ainda outras coisas - incompreensíveis -
que a jovem Maria tentou transmitir às irmãs antes
de morrer. Tratava-se de algo que voga sobre o mar,
de algo que voa pelos ares - grandes dispersões.
• Preparai sacolas de lapti 15 - tereis necessidade de
les. Preparai o mais possível: um par nos pés, outro
na cintura - nunca se sabe... " O êxodo e a dis
persão dos russos, cem anos mais tarde; quem, a essa
altura, acreditaria nisso?
Ela mesma partiu bem antes da hora - com a
Idade de dezenove anos. Em toda a sua curta vida
tinha sido a imagem da obediência. Um dia, como sua
Irmã Parasceve lhe falasse de certo monge de Sarov:
• Como são eles, os monges - perguntou ingenua
mente - todos se parecem com Batioushka?"
- Vais sempre a Sarov e nunca viste um monge?
- Não, nunca. Quando vou a Sarov não vejo na-
da, não ouço nada. Batioushka me disse que nunca
olhasse os monges. Então desço o meu xale sobre
os olhos de modo a não ver senão a estrada sob os
pés.
O staretz conheceu em espírito a hora da morte
da doce criança que ele amava. Pôs-se a chorar e
disse a seu vizinho de cela, o irmão Paulo: • Maria dei
xou o mundo, Paulo. Eu lamento a sua perda. Lamento
tanto quanto vês, não paro de chorar".
Enviou velas em profusão, para arderem no seu
enterro, ordenou que a revestissem com o megalo
schema. Entre os dedos tinham-lhe passado um terço
de couro, preser:ite do staretz e, em redor de sua
cabeça amarrado o belo xale azul de franjas que lhe
havia dado para os dias em que fosse comungar. A
velha criança de olhos límpidos, que era o padre Se
rafim, sentia-se espiritualmente aparentada com a pe
quena camponesa, primeira andorinha de seu conven
to, que partia para a prima.vera sem declínio do Reino?
15 Calçado de cortiça.
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"No outro mundo - suspirava ele - ela será vice
priora da Comunidade Moleira e minha noiva na eter
nidade n.
Que sabia ele da morte?
Uma vez conseguiu fazê-la recuar. Era meia-noite
quando o habitante de uma cidade vizinha, Vorotilov,
acorreu para se lançar aos pés do staretz de Sarov,
implorando-lhe que salvasse sua esposa moribunda.
"Ela deve morrer n - respondeu ele. Mas de joelhos,
soluçando, Vorotilov suplicava ao homem de Deus
que rezasse por sua esposa. O staretz fechou os olhos.
Ao fim de algum tempo abriu-os, brilhantes de alegria.
"Pois bem, minha alegria", disse levantando Vorotilov,
"volta para casa. O Senhor concede a vida à tua mu
lher". Em casa, Vorotilov soube que uma melhora de
cisiva se produziu no momento em que, em Sarov, o
staretz tinha rezado pela doente.
Grande é o poder do homem. Do homem teleguia
do pelo Espírito. Jesus o proclamara: "Em verdade,
em verdade, vos digo: quem crê em mim fará as
obras que faço e fará até maiores do que elas" (Jo
14,12). Serafim de Sarov tinha já seus acessos a esse
"outro mundo n onde se vê diferentemente, onde se
julga de outro modo, onde a gente se alegra enquanto
aqui na terra se chora e onáe desaparecem, para o
comum dos mortais, as almas dos defuntos? Ele reza
va muito pelos mortos. As vezes lhe acontecia, de
acordo com suas próprias palavras, arrancar da fúria
dos demônios as almas que eles impediam de subir
para as esferas celestes.16
Tristes pressentimentos
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também era a animosidade do hegúmeno Nifonte e da
maioria dos monges para com sua obra preferida - o
convento de Divéyevo. Mas pior que tudo era a ati
tude insincera e adocicada daquele que devia mos
trar-se o inimigo número um da bem-amada fundação.
Pequeno-burguês da cidade de Tambov, Ivan
Tikhonovitch Tolstoshéyev, noviço em Sarov, dotado
para a pintura, possuindo bela voz, não era desprovi
do nem de qualidades nem de encantos. Chamavam
no "o pintor". Ter-se-ia o staretz enganado uma vez?
Teria feito do jovem seu confidente? As lembranças
que, mais tarde, este último publicou poderiam fazer
crer nisso. Enfim, clarividente, o padre Serafim ter
se-ia em seguida retraído, deixando o coração de Ivan
presa de uma espécie de amor-ódio? Inteligente e am
bicioso, resolveu fazer carreira apresentando-se, de
pois da morte do staretz, como seu discípulo preferi
do e seu sucessor em Divéyevo.
"Quando fui a Sarov - lê-se nos depoimentos de
Miguel Mantourov feitos depois da morte do staretz
e narrados na Crônica de Divéyevo - eu não notava
nada de repreensivo em Ivan Tikhonov. Mesmo achan
do-o pouco simpático, entrei ainda' assim em sua cela,
e seu convite, para tomar uma xícara de chá. Um dia
Batioushka me perguntou de onde vinha. 'De tomar
chá na cela do pintor de Tambov', respondi. 'Oh,
minha alegria, não vá nunca lá! Isso te será preju
dicial. Não é de boa mente que ele te convida, mas
para espionar. Desde então cessei minhas visitas.
1: extraordinário como Batioushka sabia tudo com an
tecedência e como ele nos preservava de todo o
mal'".
As irmãs, também, ele prevenia:
- Minha alegria - dizia à madre Eudóxia - eu
vos trouxe ao mundo espiritualmente e não vos aban
donarei. O padre Ivan pede que, após minha morte,
vos dê a ele. Não, não vos dou. O seu coração e o
coração dos que se seguirão, são frios para convosco.
Ele diz: "Estás velho, Batioushka, dá-me tuas filhas!"
95
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"Ele o pede com um coração frio. Tu lhe dirás, Ma
tioushka, em meu nome, que não sois atribuição dele".
Em tempo oportuno ela o fez.
"Um coração frio", repetia o staretz com angús
tia. Ivan Tikhonov teria o coração frio. Por que este
medo do velho diante da frieza do falso discípulo?
Porque o demônio é frio, ele que é o pai da mentira.
A irmã Ana conta que se encontrava certo dia
perto da fonte miraculosa em companhia do padre
que, apoiado à rampa, se debruçava sobre a água.
"Olha Matioushka...", disse ele de repente. "Vi a água
tornar-se turva, agitada e cheia de tremor, perguntei:
'O que quer isso dizer?' Ao mesmo tempo percebi
Ivan Tikhonov que descia a rampa. Batioushka o apon
tou. 'I: ele que vai perturbar tudo. Ele me perturbou,
a mim, o pobre Serafim, a fonte também e perturbará
todo mundo' ".
96
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dei. Ele o desdobrou e, tirando de uma terrina, aos pu
nhados, biscoitinhos brancos, como jamais eu havia
visto, se pôs a encher o meu lenço. 'Eu também fui
visitado por uma rainha', dizia ele, 'foi o que ficou de
sua passagem'. Enquanto pronunciava estas palavras
o seu rosto estava tão alegre, tão radioso que é im
possível descrevê-lo. Ele mesmo amarrou bem forte
o lenço. 'Vai, batioushka, para casa, come destes bis
coitos; dá à tua 'amiga' (era assim que sempre cha
mava a minha esposa); depois, vai à comunidade e
põe três biscoitos na boca de cada uma de tuas filhas
espirituais'.
Eu ainda era jovem - continua o padre Basílio.
- Não compreendi que a Rainha dos Céus o havia vi
sitado. Pensei simplesmente que uma rainha terrestre
tinha ido vê-lo, incógnita, e não 01:Jsei perguntar-lhe
qual. Foi só mais tarde que o homem de Deus me
explicou de quem se tratava. 'A Rainha do Céu - a
própria Rainha do Céu, batioushka, visitou o pobre
Serafim. Que alegria para nós, batioushka! A Mãe de
Deus recobriu de inefável graça o pobre Serafim.
'Liubimitche moi - meu dileto - dignou-se dizer a
Soberana bendita, pede-me o que quiseres'. Ouves,
batioushka? Que graça! Pronunciando estas palavras,
o homem de Deus, cheio de alegria, tornava-se inteira
mente luminoso. u E o pobre, o miserável Serafim pe
diu à Mãe de Deus por suas órfãs, rogando que todas
elas sejam salvas. E a Mãe de Deus prometeu ao po
bre Serafim essa alegria inefável..."
Um ano e nove meses antes de sua morte, o
staretz teve a felicidade de receber uma última vez
- a décima primeira - a Celeste Visitante.1; Era ao
amanhecer de 25 de março de 1831, dia da Anun
ciação.
A madre Eudóxia foi testemunha dessa visão, co
mo outrora o monge Miquéias, na Laura da Santíssima
17 O Santo Cura d'Ars. seu contemporâneo, viu-e também, doze
vezes.
97
4 • Instruções ...
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Trindade, foi testemunha da última aparição da P�rís
sima a São Sérgio.
Tendo rezado, o staretz disse à religiosa: u Não
tenha medo. Agarra-te a mim". No mesmo momento,
um ruído semelhante ao do vento na floresta se fez
ouvir. Uma luz celeste brilhou. Ressoaram cantos. A
cela se encheu de perfumes.
O staretz caiu de joelhos com os braços levan
tados para o céu: UOh Virgem bendita e Soberana Pu
ríssima, Mãe de Deus!", gritou ele.
Dois anjos apareceram, trazendo palmas.
Depois ela entrou precedida pelo Precursor e por
São João Evangelista que ela havia tomado como fi.
lho ao pé da Cruz e que, sempre, a acompanhava.
Doze virgens seguiam-se, com os cabelos desatados
sobre os ombros resplandecentes de pedrás precio
sas. Incapaz de suportar a sua vista, a religiosa caiu
por terra e perdeu a consciência. Foi a própria Vir
gem quem a tomou pela mão e a levantou.
A madre Eudóxia viu então que o staretz não es
tava mais de joelhos diante de sua Celeste Soberana
mas de pé, conversando com ela de igual para igual,
com toda a simplicidade. Quanto à Rainha do Céu,
ela lhe falava familiarmente, como a um parente pró
ximo.
A conversa durou muito tempo, mas a madre Eu
dóxia dela não apanhou senão as últimas palavras:
- Meu dileto - Liubimitche moi - disse a
Puríssima, logo estarás conosco.
E a esplendorosa visão se dissipou.
Uma tal intimidade com a Teotocos pode parecer
estranha, até chocante, a ponto de enfraquecer o tes
temunho da madre Eudóxia. No entanto, um homem
como São Simão, o Novo Teólogo," afirma a possibili
dade de tal comércio: u Aquele que se enriqueceu com
a riqueza celeste, quero dizer, com a presença e a
inabitação daquele que disse: 'Eu e meu Pai viremos
e faremos nele nossa morada', esse sabe, pela expe
riência da alma, qual a grandeza da graça que rece-
98
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beu e a beleza do tesouro que carrega no castelo do
coração. Como um amigo conversando com um ami
go, se mantém perto de Deus, todo confiante em pre
sença daquele que habita na luz inacessível. Feliz
quem ni&so crer! Três vezes feliz quem se esforça
pela prática e pelos santos combates, por adquirir o
conhecimento do que dissemos: é um anjo, para não
dizer mais, aquele que pela contemplação e o conhe
cimento chegou à altura desse estado. Está perto de
Deus, filho de Deus" .18
99
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Terceira parte
O ESPfRITO SANTO
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O PORTADOR DE UMA MENSAGEM
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- Não, disse ele, estás completamente curado,
todo o teu corpo está agora são.
Ordenou aos meus empregados que se afastas
sem e, tomando-me pelos ombros, pôs-me em pé.
- Sustenta-te, coloca teus pés no chão, assim.
Não tenhas medo, estás completamente curado!
Depois acrescentou, olhando-me alegremente: Vê
como te manténs bem!
- Certamente me mantenho bem já que sois vós
que me sustentais, respondi.
Mas ele, retirando suas mãos:
- Agora não te sustenho mais e estás de pé sem
minha ajuda. Vai, sem medo. Deus te curou. Então,
vai! Adianta-te.
Ele me tomou pela mão e, me empurrando ligei
ramente pelas costas, fez-me dar alguns passos so
bre a relva e no térreno desigual junto do pinheiro,
repetindo: Firme, meu amigo, vê como andas bem!
- Sim, porque tendes a bondade de me con
duzir.
- Não (ele retirou a mão), o Senhor te curou
inteiramente. Sua Santa Mãe lho pediu. Podes agora
andar sem mim. Vai. E ele me empurrava para que
avançasse.
- Cairei e me machucarei...
- Não, não cairás, não te machucarás, mas an-
darás com passo seguro.
- Sentindo-me cheio de uma nova força, me pus
a caminhar mas ele me deteve.
- Isso basta. Estás persuadido agora de que o
Senhor na realidade te curou e para sempre? Vê o
milagre que ele fez por ti. Perdoou teus pecados e
relevou tuas iniqüidades. Crê então nele, espera em
sua bondade, ama-o de todo o teu coração e agra
dece à Rainha dos Céus por seu benefício. Todavia,
fraco como estás pelos três anos de sofrimento, não
caminhes muito de uma só vez e cuida de tua saúde
como de um dom precioso de Deus".
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"Deus perdoou teus pecados e relevou tuas ini
qüidades ", disse o staretz. No homem psicossomáti
co, os pecados e os males físicos, na maioria das ve
zes, não fazem senão um todo. Ao curar o paralítico,
Jesus perguntava aos fariseus: "Que é mais fácil
dizer: Teus pecados estão perdoados ou: Levanta-te
e anda?" (Lc 5,23). Uma coisa é necessária: a fé.
Com insistência o padre Serafim fazia a pergunta a
Mantourov como a Motovilov: "Crês?" Realizado o
milagre, o Senhor constatava: "Tua fé te salvou".
A alma de Motovilov estava doente como seu
corpo. Como é que o padre Serafim o sabia? O jo
vem com certeza se tinha aberto com ele durante as
entrevistas da véspera, mas havia ainda mais. Um
staretz possui a faculdade de ver um homem tal co
mo ele é na realidade e não como se julga ou tem a
pretensão de se apresentar. "Nossas virtudes visí
veis, mas irreais, nos impedem de lutar contra nos
sos pecados invisíveis, mas reais", dizia o metropo
lita Filarete de Moscou. Um confessor superficial e
apressado se contenta, por tranqüilidade de cons
ciência, com absolver essa imagem estereotipada e
falaciosa que lhe apresenta o seu penitente ao passo
que, por virtude de um dom especial, um staretz vê
cada ser tal como Deus o vê e procura ajudá-lo a
sair de seus entraves ocultos.
Complicado, apaixonado, generoso e instável,
Nicolau Motovilov não tinha nem a alegre candura
nem a pura simplicidade de um Miguel Mantourov.
Foi ele, no entanto, que o staretz escolheu. Curado e
cheio de gratidão, vinha freqüentemente ver seu ben
feitor e foi durante uma dessas visitas, no fim do
mês de novembro de 1831, um ano mais ou menos
antes da morte do staretz que se deu a entrevista
agora célebre sobre o objetivo da vida cristã que o
homem de Deus destinava "ao mundo inteiro" e que
Motovilov devia transmitir.
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O objetivo da vida cristã
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se sabe como falar e acerca do qual as palavras
soam vazias".3
O Oriente jamais cessou de aprofundar o seu
mistério. Os doutores da Igreja procuram definir seu
papel; os hesicastas invocaram-no para fecundar a
oração do coração; a Igreja o invocou em cada euca
ristia, no momento da Epiclese. Mas qual era o cris
tão que, no século XIX, lhe concedia lugar particular
na sua existência de todos os dias?
- Como "a aquisição"?, perguntou Motovilov,
perplexo. Não compreendo bem.
Era na verdade difícil compreender. Como pode
mos adquirir, apropriar-nos da Terceira Pessoa da
Santíssima Trindade e que benefício o homem tiraria
disso?
O staretz explica.4
O Espírito Santo é doador de graças, enquanto
Dom. 1: neste sentido que se pode "adquiri-lo", en
chendo-nos de sua graça, fazendo-o habitar em nós,
tornando-nos "templos do Espírito Santo" (Ef 2,22;
2Cor 6,16). Toda virtude praticada em nome de Cris
to nos traz a graça do Espírito Santo. A oração mais
do que qualquer outra coisa...
Mas Motovilov se impacienta. "Padre, diz ele,
falais sempre da aquisição da graça do Espírito San
to como do objetivo da vida cristã. Como posso eu
reconhecê-la? As boas ações são visíveis. Mas co
mo é que o Espirita Santo pode ser visto? Como pos
so saber se ele está ou não comigo?•
Ver s Deus
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todo conhecimento tem por origem a experiência dos
sentidos. Para os neoplatônicos, Deus está acima da
experiência sensível; o conhecimento místico não
pode ser senão simbolicamente real.
As questões relativas ao Espírito e à graça for
mavam, a partir do século IX, em Bizâncio, o âmago
central ao redor do qual gravitava o pensamento teo
lógico inseparável da espiritualidade. No fim do sé
culo X e no início do século XI, o abade do mosteiro
de S. Mamas, em Constantinopla, Simão, chamado
o "Novo Teólogo", mereceu plenamente este título,
cativado como estava pelo mistério do Espírito Santo
habitando em nós e se manifestando, nos graus su
periores da vida espiritual, como luz.
Qual a natureza dessa luz divina? Trata-se de
uma percepção sensível ou intelectual?
"Deus é luz, diz S. Simão, e ele se comunica
pela sua claridade aos que se unem a ele na medida
de sua purificação ... Oh, milagre! O homem se une a
Deus espiritualmente e corporalmente, porque sua
alma não se separa do espírito, nem o corpo se sepa
ra da alma. Deus entra em união com o homem in
teiro".5
"Aquele que é Deus por natureza se entretém
com os que fez deuses pela graça, como um amigo
se entretém com seus amigos, face a face ... O Espí
rito Santo torna-se neles tudo o que as Escrituras di
zem a respeito do Reino de Deus".6
"Não falamos de coisas que ignoramos, afirma
Simão, mas damos testemunho daquilo que conhe
cemos... Deus é Luz e aqueles que ele torna digno
de o verem vêem-no como Luz; os que o receberam,
receberam-no como Luz, pois a luz da sua glória pre
cede a sua Face e é impossível que ele apareça de
outro modo que não seja na luz" ,i
5 Simão o Novo Teólogo, Sennlo 25 (em russo), Ed. Monte Atos.
6 lbld., Homllla XC (em russo), Ed. Monte Atos.
7 lbld., Homllla LXXIX, 2' ed. russa, Monte Atos, pp. 318-319.
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Mais tarde, no século XIV, a ardente questão da
possibilidade de uma união real com Deus, da acessi
bilidade à sua natureza inacessível, deu novamente
lugar, em Bizâncio, a apaixonados debates teológicos.
São Gregório Palamas (1296-1359), porta-voz dos mon
ges atonitas e arcebispo de Tessalônica, defendeu
perante concílios, às vezes tumultuosos, o ponto de
vista hesicasta, não deixando nenhuma dúvida sobre
a realidade da luz incriada.
Não entraremos aqui nos detalhes de uma dou
trina que remonta aos primeiros séculos da Igreja,
fazendo parte da sua tradição oriental, professada
pelos Padres gregos. Gregório Palamas teve o mé
rito, formulando-a definitivamente, de expô-la através
de um fundo dogmático. Segundo ele, é preciso dis
tinguir em Deus a sua essência - totalmente incog
noscível e inacessível - e suas energias, transbor
damento da natureza divina, derramando-se eterna
mente da essência una da Trindade e às quais o
homem pode ter acesso. Os Padres aplicavam a essas
energias o nome de "raios da divindade". Palamas
chamava-as "divindade" simplesmente, "luz incriada"
ou "graça n •8
1: "a luz inacessível em que Deus habita", se
gundo São Paulo (1Tm 6,16).
1: a glória na qual Deus aparecia aos justos do
Antigo Testamento.
1: a luz eterna da qual a humanidade de Cristo
estava penetrada e que tornou sua divindade visível
aos Apóstolos quando da Transfiguração.
1: a graça incriada e deificante, presságio da
Ressurreição, participação dos santos da Igreja, que
vivem na união com Deus.
Enfim, trata-se do Reino dos Céus onde os justos
resplandecerão como o sol (Mt 13,43).9
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Na Rússia
À pergunta de Motovilov:
n
MComo é que o Espírito
Santo pode sern
visto? MComo posso saber se ele
está comigo? respondeu o staretz:
- Na época em que vivemos, chegou-se a uma
tal tibieza de fé, a uma tal insensibilidade para com
a comunhão com Deus, que nos afastamos quase to
talmente da verdadeira vida cristã ... Sob pretexto de
instrução, de ciência, nós nos engajamos numa tal
10 Pierre Kovalevsky, Saint Serge et la Splrltuallt6 Ru888, Ed. du
Seull, • Maitres Splrltuels •, p. 116.
111
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obscuridade de ignorância que achamos inconcebível
tudo aquilo de que os antigos tinham noção bastante
clara para poder falar, entre eles, das manifestações
de Deus aos homens como de coisas conhecidas de
todos e nada estranhas.
Há quinhentos anos, no limiar da Renascença,
Gregório Palamas formulava já os mesmos pensa
mentos. Certos homens desprezam o objetivo pro
11
112
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- Estamos os dois na plenitude do Espírito San
to. Por que não me olhas?
- Não posso, Padre. Brotam raios de vossos
olhos. O vosso rosto tornou-se mais luminoso do que
o sol.
- Não tenhais medo. Vós vos tornastes tão lu
minoso quanto eu. Estais também agora na plenitude
do Espírito Santo, de outro modo não teríeis podido
me ver ... Por que não me olhais nos olhos? Ousai
olhar-me sem medo. Deus está conos�o.
- Eu o olhei e um medo ainda maior se apode
rou de mim. Imaginai um homem que vos fala, en
contrando-se a sua face como que _no meio de um sol
do meio-dia. Vedes o movimento de seus lábios, a
expressão cambiante de seus olhos; ouvis o som de
sua voz, sentis suas mãos vos apertarem os ombros
mas, ao mesmo tempo, não percebeis nem suas mãos,
nem seu corpo, nem o vosso, nada senão uma es
plendorosa luz se propagando ao redor, a uma distân
cia de vários metros iluminando a neve que recobria
a campina e caía docemente sobre o grande staretz
e sobre mim. Como descrever o que sentia então?
- Que sentis?, perguntou 'o staretz.
O diálogo que se segue é extraordinário. Moto
vilov está feliz. Sua alma, cheia de silêncio, está re
pleta de paz e de alegria. Seu corpo, apesar do frio,
deleita-se num agradável calor. Aspira delicioso per
fume. O staretz comenta longamente todos esses es
tados.
- É assim que as coisas devem ser, acaba por
dizer, habitando a graça divina no mais profundo de
nós, nos nossos corações. "O Reino de Deus está
dentro de vós", ensina o Senhor. Por Reino dos Céus,
ele entende a graça do Espírito Santo ... É o estado
no qual estamos atualmente e que o Senhor tinha em
vista quando ele prometia a seus discípulos: "Em
verdade vos digo que estão aqui presentes alguns
que não provarão a morte até que vejam o Reino de
Deus chegando com poder" (Me 9, 1 ).
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E o que viam eles? A transfiguração na luz do
Tabor.
- Parece-me que não mais ides agora interro
gar-me, amigo de Deus, sobre o modo como se ma
nifesta, no homem, a presença da graça do Espírito
Santo. Lembrar-vos-eis desta manifestação?
Difusão da mensagem
O monge e o leigo
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um teólogo. O que é ele? Um hesicasta que se tornou
inteiramente oração. E quem quer que saiba rezar,
é teólogo, diz ,a sabedoria ortodoxa.
"I: preciso possuir a teologia patrística por den
tro. A intuição pode ser mais importante do que a
erudição. Somente ela ressuscita e vivifica os velhos
textos, os transforma em testemunho. Esta intuição
não é senão a graça do Espírito Santo". 12
Esta intuição, nascida da graça, o staretz Serafim
a possuía, a ponto de ilustrar suas palavras com um
testemunho visual e vivo.
Familiares aos perfeitos, as realidades do século
futuro, entrevistas desde a terra, estão ao alcance
de todos os cristãos, inclusive porque se encontram
na graça batismal. ensina São Simão, o Novo Teólogo.
Esta graça, porém, para ser eficaz, não deve somente
ser recebida no sacramento, mas "adquirida com pe
nas e trabalhos múltiplos".
"A virtude", dizia o padre Serafim, "não é uma
pêra que se coma de uma só vez".
Tanto quanto a obediência, ele pregava a paciên
cia. "A subida para o Reino exige paciência e gene
rosidade. Pois não é facilmen\e que se triunfa do
apego às vaidades deste mundo.
Somente depois de ter suportado, com a ajuda
da oração, múltiplas tentações involuntárias, é que
alguém se torna homem humilde, seguro e experi
mentado".
"A paciência", dizia ele para terminar, "é a apli
cação da alma ao trabalho". 13
115
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procure esse Reino, o que não quer dizer que todo
o gozo terrestre lhe seja interdito.
- A necessidade, as penas e as desgraças fa
zem parte da nossa existência, mas não devem cons
tituir toda a trama. � por isso que, pela boca do
Apóstolo, o Senhor nos recomenda que carreguemos
os fardos uns dos outros. Ele próprio nos deu o man
damento de nos amarmos mutuamente para que, re
confortados por esse amor, a caminhada dolorosa pa
ra a pátria celeste nos parecesse mais fácil... Tudo o
que pedirdes ao Senhor obtê-lo-eis, contanto que seja
para a glória de Deus e para o bem do próximo; pois
Deus não separa o bem do próximo da sua glória.
"Tudo o que fizerdes ao menor dentre vós, é a mim
que o fareis".
E o staretz termina com um pensamento original:
- Quanto a solicitar bens pessoais, prestai aten
ção para pedirdes somente coisas das quais tendes
necessidade urgente. Talvez sejais atendido, mas vos
será perguntado por que quisestes obter o que teríeis
podido facilmente dispensar.
- Eis aí, amigo de Deus: agora já vos disse tudo.
Mostrei-vos com toda a realidade o que o Senhor e
sua Santa Mãe quiseram por meu humilde intermé
dio, revelar-vos...
- Amém. Ide em paz.
"Vi com meus próprios olhos", conclui Motovi
lov, "o brilho da luz inefável da qual o santõ era a
fonte e estou pronto a testemunhá-lo sob juramento".
Transfiguração
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a luz u incriada" se tinha manifestado numa floresta
austera e triste, no decorrer de um dia de novembro.
O céu estava baixo e nevava. Lentamente, tranqüila
mente, silenciosamente nevava. Nada é comparável à
brandura acolchoada de um dia de neve na Rússia.
Tal como para o profeta Elias, Deus não veio nem no
furacão, nem na tempestade. Ele veio, para o staretz
Serafim, na paz da neve que cai.
Ao jovem sentado diante dele, no tronco cortado
de uma árvore, o velho dá o estranho título de uvos
sa Teofilia" - Amigo de Deus, pois todos os que
buscam a Deus com coração sincero são seus ami
gos. Motovilov representa esses buscadores. Univer
sitário influenciado pelo Ocidente, temperamento
apaixonado, alma inquieta, é já contemporâneo dos
estudantes revoltados, dos doentes, tão freqüentes
no século XX, dos,quais um psiquiatra conhecido pô
de dizer: u Mais ou menos um terço dos pacientes
não está atingido por neurose clínica definível, mas
sofrem do fato de estarem suas vidas desprovidas de
sentido e de conteúdo". 14
A Motovilov à procura desse sentido, o staretz
responde: o Espírito Santo.
Sinônimo do Reino de Deus, ele para lá nos leva.
Na verdade, quem é ele senão o Agente de nossa
deificação? Pois, na seqüência de Santo lrineu, os
Padres da Igreja não cessaram de afirmar que u Deus
se fez homem para que o homem pudesse tornar-se
Deus".15 Embriagadora perspectiva! Antídoto do qual,
um século mais tarde, um mundo secularizado, bê
bado de incerteza, terá desesperadamente necessi"
dade.
A u Pequena Transfiguração" do staretz Serafim
não teve outra testemunha a não ser Motovilov, por
causa da inoportunidade de sua divulgação na época,
14 C. G. Jurig, Seelenprobleme der Gegenwart (em alemão), p. 96.
15 Santo lrlneu de Uio, Adverau• H•reNS, v. praef. P. G., t. 7,
col. 1120.
117
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para além da floresta de Sarov? A Rússia não estava
pronta e o mundo exterior menos ainda.
Esperando, ajudado pelo Espírito Santo, Motovi
lov anotou o seu diálogo com o staretz nas suas Me
mórias cujo caderno, uns quarenta anos mais tarde,
confiou, antes de morrer, à sua mulher. Sentindo,
por sua vez, a proximidade do fim, ela o exumou do
sótão onde o tinha relegado, para confiá-lo a um es
critor de passagem, que publicou o diálogo referente
ao Espírito Santo, no "Jornal de Moscou" sob o títu
lo: "Como o Espírito de Deus se manifestou em São
Serafim no decorrer de sua conversa sobre o sentido
da vida cristã".
Ele podia dizer "São Serafim" pois que a canoni
zação do staretz se deu no mesmo ano de 1903, se
tenta anos depois de sua morte e setenta e dois anos
após a conversa perto do "Próximo Pequeno Deser
to", na floresta.
A grande partida
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de se consumirem lentamente, icendiados por uma
vela caída do castiçal. Além disso não havia nenhu
ma luz. Perguntando-se se o staretz teria adormecido
depois de uma noite passada em oração, os monges
Indecisos se acotovelaram à porta.
Na igreja, entretanto, a liturgia da aurora pros
seguia. Depois da epiclese cantava-se: u Digna és tu
de ser louvada eternamente, Mãe de Deus", quando
um rapaz entrou precipitadamente e avisou os mon
ges do que se passava. Vários saíram para correrem
à cela do staretz.
Tateando na obscuridade, o irmão Paulo e o no
viço Anikita se tinham aproximado do padre Serafim.
Pegou-se um castiçal e, à sua fraca luz, viu-se o ho
mem de Deus de joelhos diante do ícone da Virgem
de Ternura.
- "A Alegria 'de todas as Alegrias", como ele
a designava. Com a cabeça descoberta, revestido
com o seu eterno casaco branco, o evangelho que
tinha o hábito de ler aberto à sua frente. Suas mãos
estavam cruzadas sobre o peito, acima do seu cru
cifixo de cobre, bênção materna que não o deixava
nunca. Seu rosto estava tranqüilo e sereno. Dormia?
Suavemente tentaram acordá-lo. Mas seus olhos não
se abriram. De joelhos, diante de sua celeste Sobe
rana, o staretz tinha adormecido para sempre.
Os que ficam
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pacta que as velas, perto do caixão. se apagavam por
falta de ar. O hegúmeno Nifonte oficiava. Não houve
sermão. Substituíam-no as palavras do staretz, ainda
vivas em todas as memórias.
O que era o staretz para essa multidão? Um tau
maturgo, um vidente, um exorcista, um adivinho? Um
verdadeiro pai. Com tudo o que a paternidade com
porta de sabedoria, de força, de estabilidade, de viril
ternura. Alguém a quem se podia dizer tudo com a
certeza de jamais ser rejeitado ou incompreendido.
Ao seu contato, os homens maltratados pela vida re
tomavam esperança, se achavam melhores. Os pe
cadores se transformavam em filhos pródigos.
Chora-se por ter ofendido um ser amado, mas
não se lamenta ter transgredido as ordens de um
déspota. Na visão do staretz, Deus era amor. Unica
mente. Esquecemo-nos demasiado disso. Em lugar de
acabrunhar os pecadores e de ameaçá-los, o padre
Serafim falava da misericórdia divina. "Se enchêsse
mos um oceano de prantos e arrependimento", dizia
ele, "não chegaríamos a satisfazer o Senhor que, gra
tuitamente, nos dá sua carne e seu sangue como ali
mento e bebida a fim de nos lavar de nossas man
chas, nos purificar, nos vivificar, nos ressuscitar".
A paz do homem de Deus se comunicava a seus
interlocutores. "Aquele que anda na paz, como que
apanha, com uma colher, os dons da graça", dizia.
Ouviu-se dizer que os animais selvagens o serviam e
que ele oferecia a seus visitantes, fora da época, fru
tas "celestes" de sabor delicioso. Milhares de infe
lizes vindos a Sarov viam, no fim da penosa cami
nhada terrestre, se entreabrir o pórtico luminoso do
Reino dos Céus.
"Vinde a mim todos os que estais cansados sob
o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. To
mai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque
sou manso e humilde de coração, e encontrareis des
canso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave
e o meu fardo é leve" (Mt 11,28-30).
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O staretz amava particularmente e repetia mui•
tas vezes estas palavras de Cristo.
Este tipo de cristianismo, pensa Berdiaev, no qual
o impulso para Deus, a graça, os dons carismáticos
contam mais do que a disciplina eclesial e os precei
tos da moral juridicamente formulados, poderia des
pertar no ocidental dúvidas concernentes à sua "efi
cácia". De todas as formas do cristianismo, todavia,
é a mais próxima de suas origens evangélicas. Um
staretz é um guia perfeito para um cristianismo des
te gênero.
Nicolau Motovilov, que se encontrava na cidade
de Voroneje, foi avisado da morte do seu benfeitor
pelo bispo do lugar, santo homem, ao qual o staretz
apareceu às duas horas da madrugada, para informá
lo de que havia deixado a terra. Sem esperar outras
confirmações, o prelado celebrava naquele mesmo
dia uma missa de réquiem. Quanto a Motovilov, às
pressas se pôs a caminho. Sendo considerável a dis
tância entre Voroneje e Sarov, ele não chegou a tem
po para o último adeus. Seu desespero era tal que o
hegúmeno Nifonte, para o consolar, lhe deu o livro
do evangelho que o staretz lia todos os dias e cuja
capa estava ligeiramente chamuscada pelo fogo, bem
como uma pequena cruz de cipreste que o próprio pa
dre Serafim tinha fabricado e enquadrado em prata
proveniente de uma moeda antiga que sua mãe lhe
havia dado quando de sua peregrinação a Kiev.
"Quanto à grande cruz octogonal, de cobre, bên
ção maternal, e o ícone da Mãe de Deus, 'Alegria
de todas as Alegrias', diante do qual, de joelhos, ele
morreu, eu os enviei", disse o hegúmeno, "à Comu
nidade de Divéyevo ".
Tribulações preditas
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O •visitante estranho"
Mas o noviço Ivan Tikhonov, sineiro do mosteiro
de Sarov, estava longe de abandonar seus desígnios
sobre Divéyevo.
O Senhor teve Judas: Francisco de Assis, Elias
de Cortona: Serafim de Sarov, Ivan Tikhonov. Cada
vez mais freqüentemente se pôs a visitar sua prima,
monja da Comunidade de Kazan, cujas irmãs tinham
estado menos próximas do staretz Serafim do que
as da fundação posterior. Persuasivo, bom conversa
dor, possuindo certa instrução, sabendo pintar ícones
e cantar na igreja, ele se impunha a essas mulheres
simples e acabou adquirindo simpatizantes entre elas.
Pelo contrário, na Comunidade Moleira, a resistência
às suas investidas foi imediata e unânime. As irmãs
lançaram-lhe em rosto que o padre Serafim lhes ha
via proibido de se abrirem com ele. Furioso, ele teria
gritado: u Juro que não descansarei enquanto não ti
ver apagado da face da terra até a lembrança da
Comunidade Moleira. Transformar-me-ei em serpente,
mas hei de penetrar aí! n
O orgulho perdeu Lúcifer. Ete perdeu Ivan Tikho
nov, canonarca de Sarov. No seu desejo frustrado de
se fazer passar pelo sucessorn espiritual do staretz
Serafim, uo pintor de Tambov perdeu totalmente o
equilíbrio. Como os monges de Sarov reprovavam
unânimes a sua conduta, deixou o u Deserto", entrou
num outro mosteiro, obteve a ordenação sacerdotal
sob o nome de Josafá e escreveu, num estilo vivo,
uma vida do staretz Serafim que obteve sucesso em
São Petersburgo e lhe valeu ser apresentado à im
peratriz. Tendo, daí por diante, acesso à corte, jul
gou-se autorizado a tudo.
Dir-se-ia que o seu objetivo era destruir sistema
ticamente tudo quanto o homem de Deus tinha dese
jado e realizado. O staretz queria conservar a sepa
ração entre as duas comunidades? O padre Josafá
obteve sua fusão. A comunidade de Kazan perdia sua
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regra; a do padre Serafim não era mais composta
de jovens solteiras. O staretz mantinha-lhes igrejas?
O padre Josafá fechou-as, apagou as lamparinas, sus
pendeu a leitura do saltério, deslocou o moinho, de
moliu celas. O staretz sonhava construir, num ter
reno que adquirira a custo de prata. uma igreja ca
tedral. A realização desse projeto devia ser impe
dida. Miguel Mantourov conservava os papéis lega
lizando a compra do terreno. Como se recusasse a
se separar deles - o st11retz tinha-o expressamente
proibido - o padre Josafá caluniou Miguel aos olhos
do general Kouprianov. Sem pagar os ordenados que
devia a seu intendente, o irascível militar, na sua
volta da Polônia, o expulsou de suas terras que, em
sua ausência, ele tinha tão bem gerido. A pé, mor
rendo de fome, Miguel e Ana - mendigos voluntá
rios - retornaram a Divéyevo onde, a fim de que
pudessem construir uma isba, o padre Basílio lhes
deu os 70 rublos que, penosamente, havia economi
zado para a sua velhice.
"Durante vinte e nove anos, lê-se na crônica de
Divéyevo, a comunidade sofreu com a intromissão
nos seus negócios e a tutela de Ivan Tikhonov. Uma
luta incessante prosseguia, durante esses longos
anos entre as irmãs da comunidade que, deixadas
órfãs, defendiam os preceitos de seu fundador e pai,
e o inimigo do gênero humano, Ivan Tikhonov que,
entre pessoas pouco instruídas e espiritualmente ce
gas, tinha encontrado adeptos. É preciso ser comple
tamente desprovido de senso sobrenatural para não
ver, nos acontecimentos de Divéyevo esse gênero
de combate. n
A singela crônica tem razão. O combate que e
staretz, durante toda a sua vida, tinha travado com
o demônio prosseguia após sua morte. "Não vivereh:
até o Anticristo, mas os tempos do Anticristo vós os
cruzareis", pontificava a suas "órfãs". Poder-se-ia mes•
mo supor, sem demasiada inverossimilhança, que
os "tempos perturbados" de Divéyevo prefiguravarr
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os tempos perturbados e trágicos pelos quais a Igre
ja Russa cedo teria de passar. Tudo nos leva a crer
que o staretz o entendia assim. Divéyevo, feudo da
Virgem, seria ameaçado pelas forças das trevas co
mo a própria terra russa.
O "Visitante estranho", Ivan Tikhonov, de "cora
ção frio" caminhava, no ínterim, de vitória em vitó
ria. Durante as festas da coroação de Alexandre li
decidiu pedir, por intermédio de uma dama de honra
da imperatriz, a autorização para transformar a co
munidade mista de Divéyevo em um convento regu
lar, com a intenção mal disfarçada de tomar a dire
ção dele.
Chegara a hora do último ato do drama.
Após longo período de interregno, uma nova su
periora acabava de ser eleita pela comunidade. Vin
da de uma família d� nobreza rural, Elisabeth Ousha
kov era inteligente, equilibrada e firme de caráter.
Durante vários anos tinha exercido a ingrata função
de ecônoma e conhecia bem a situação em que se
encontrava o convento. O dinheiro que o padre Josa
fá coletava em São Petersburgo, por intermédio de
Irmãs que enviava à Capital para aprenderem pintu
ra, desaparecia sem jamais chegar ao destino. As des
pesas insensatas às quais se entregava o "visitante
estranho" agravavam o orçamento. Não somente não
havia dinheiro, mas havia dívidas. Até o pão mui
tas vezes faltava. Com muita paciência Elisabeth fez
face a esta situação difícil. Calma, ordenada, doce
para com irmãs, ela gozou logo do amor e do res
peito de todo mundo. Em Divéyevo começava-se a
respirar quando um rumor inquietante chegou à co
munidade: o novo bispo de Nizhni-Novgorod, que di
ziam ser favorável a Josafá, viria logo a Divéyevo
receber os votos da superiora por ocasião da trans
formação, decretada pelo Santo Sínodo, da antiga co
munidade mista em convento regular.
Era o mês de maio, pouco depois da Páscoa. O
bispo chegou numa noite de tempestade. Pela ma-
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nhã, antes mesmo de se dirigir à igreja, convocou
Elisabeth Oushakov.1;
- Tenho uma questão a vos apresentar, disse
ele.
- Estamos acostumadas a obedecer a ordens.
Que desejais?
- Deveis deixar este convento e ir, como su-
periora, para o de Davidovo.
Atônita, Elisabeth se calava.
- Por que vos calais?
- Não vos compreendo, Excelência.
- Digo que deveis deixar Divéyevo e ir para o
convento de Davidovo. Está desorganizado. Poreis or
dem lá.
- Impossível, respondeu docemente Elisabeth.
O bispo se zangou. A guerra estava· declarada.
Foi levada pelas "loucas em Cristo".
Um pouco de loucura
128
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simulando a loucura, de uma cidade a outra, dificil•
mente se encontraria um só que não fosse induzido
em tentação pelo demônio, sem sucumbir. Os nossos
Padres não permitiam a ninguém fazer de yurodivi.
No meu tempo, somente um quis tentar: durante o
ofício se pôs a miar como um gato. Imediatamente
o padre Pakhome ordenou que o fizessem sair, da
igreja primeiro, em seguida da área do mosteiro. Há
três caminhos que não se devem seguir sem ser cha
mado de modo particular: o da direção de um mos
teiro; o da reclusão; e o da loucura em Cristo".
Vê-se, portanto, que era no pináculo que, decidi
damente, São Serafim levava essas "mordidas" de
Deus. Profeta, ele mesmo, servia-se desses peque
nos profetas para que, uma vez desaparecido, eles
pudessem agir em seu lugar.
Tal como os do Antigo Testamento, estes últimos
deviam atingir a imaginação popular com medos pou
co comuns. Isaías, sabe-se, andou nu durante três
anos; Jeremias carregava uma canga aos ombros para
predizer o cativeiro de Israel; Ezequiel teve que fa.
zer um buraco em sua casa e por ali sair carregando
uma trouxa para mostrar aos habitantes de Jerusa
lém o que os esperava, "porque te ponho como sinal
para a casa de Israel", disse Deus (Is 20,3-4; Jr 27;
Ez 12,1-7). O casamento infeliz de Oséias não era se
não a figura do casamento de Javé com seu povo in
fiel.
As palavras misteriosas dos yurodivi, as suas
ações simbólicas e a sua faculdade de predizer o
futuro aparentava-os aos profetas. Não somente de
viam "significar" a vontade de Deus, mas eles mes
mos deviam transformar-se em "sinais". Tal como
seus confrades bíblicos, tinham às vezes o dom de
evocar o futuro com imagens, de representá-lo por
gestos. Sob uma aparência voluntariamente repugnan
te, escondiam os dons do Espírito que somente o
brilho de seus olhos e a .limpidez extraordinária do
olhar traíam.
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Pe/ágia
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A pouco e pouco, as irmãs se habituaram à es
tranha companheira. Confiada aos cuidados de uma
monja que, não se sabe por que, ela tinha denomi
nado "Bendito n, Pelágia se instalou em sua cela, en
tre três portas, sobre um pedaço de feltro não longe
do fogão. Deixava as unhas crescerem como gar
ras de pássaro, não comia quase nada e não se
deitava para dormir. À noite "Bendito n a ouvia con
versar com visitantes invisíveis. Uma vez, ela reco
nheceu distintamente a voz do padre Serafim.
A clarividência concedida aos verdadeiros lou
cos em Cristo, pelo Espírito Santo, tornou logo Pe
lágia célebre. Muita gente vinha pedir-lhe conselho.
Tendo ouvido falar dessa mulher, Dom Nectário ex
primiu o desejo de vê-la.
Na cela de "Bendito n, Pelágia estava sentada so
bre uma banqueta, encarquilhada sobre si mesma. O
bispo pegou outra banqueta e sentou-se ao lado.
- Que devo fazer, serva de Deus, que devo fa
zer?, perguntou.
A resistência da comunidade de Divéyevo ao seu
projeto de lhes dar, a pedido do padre Josafá, uma
nova superiora, tinha-o perturbado·.
A "louca n pousou nele o olhar severo e profundo
de seus olhos límpidos.
- i; em vão, senhor bispo, que te incomodas tan
to, respondeu ela num tom firme. Não te será entre
gue a mãe.
Com a barba apoiada ao seu bastão episcopal,
meneando lentamente a cabeça: "Não sei o que fa
zer... n, murmurava o prelado.
De repente, inquietante, apavorante de se ver,
Pelágia se alçou e se pôs a "guerrear n. Ela batia no
ar como que para matar inimigos invisíveis, quebrava
o que lhe caía nas mãos. "Bendito n teve o tempo jus
to de fazer sair o bispo.
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Parasceve
Noutra ala do edifício, a velha Parasceve, Irmã
da pequena Maria (preferida do staretz, que entrara
no convento na idade de treze anos e morrera alguns
anos depois), estava, ela também, presa de loucura
profética.
Ajudando-o um dia a descer de um carro de fe
no, o staretz lhe havia dito: "Estás colocada mais al
to do que eu. No final da tua vida serás louca em
Cristo. Quando vires a fonte borbulhar de impurezas,
saberás que o momento chegou. Não tenhas medo
- diz a verdade. Depois morrerás". Ora, tendo ido a
Sarov para rezar no túmulo do staretz, alguns dias
antes da chegada do bispo, Parasceve foi à fonte ti
rar água. Sempre límpida, a fonte de repente se tur
vou. Como que projetados por força invisível, a areia
e os cascalhos subiam do fundo para a superfície.
Apavorada, a velha religiosa olhava ao redor dela pa
ra compreender a causa desse fenômeno insólito,
quando percebeu a irmã Lukia, fervorosa adepta do
padre Josafá, descendo para a fonte. Compreendeu.
Não percebera o staretz Serafim, certo dia, na água
turva, a aproximação daquele que não era outro se
não o noviço Ivan Tikhonov e que, depois, se. tinha
mostrado o mais temível inimigo da comunidade? O
momento de "escarrar" a verdade tinha então che
gado.
Parasceve se lembrou das palavras do padre Se
rafim: "Logo a seguir morrerás".
- Adeus, Elias, disse ela a um irmão de Sarov
chegado à fonte. Não te verei mais.
- Que estais para aí a dizer, "Matioushka"? Po,
que falar de morte?
Mas ela insistia muito calma:
- Não te verei mais, Elias, adeus!
E agora, enquanto Pelágia "guerreava em sua ce•
la", Parasceve, tendo "escarrado a verdade" ao bis•
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po, quebrava, vestida com uma pele de carneiro pelo
avesso, as vidraças da cela.18
Em plena ação
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igreja, viu a u Bem-aventurada" Pelágia sentada à bei
ra da estrada fazendo rolar ovos de Páscoa, jogo no
qual se empenham as crianças na Rússia. Dir-se-ia
que ele procurava ser sossegado sobre o que aca
bava de fazer.
Parou seu carro e desceu.
- Aqui está, serva ·de Deus, uma prosphore 19
da liturgia que acabo de celebrar.
Ela se virou.
u Ele deveria ter compreendido e partido", conta
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predito seu staretz. Ao saber da sua morte, Dom Nec
tário ficou pensativo. "Era uma grande serva de
Deus", suspirou ele.
A liberdade dos filhos de Deus triunfava da Ins
tituição.
O desfecho
O staretz não era, como o havia mostrado por
várias vezes, filho amante e obediente da Igreja? Tal
como muitos santos, no entanto - Simão, o Novo
Teólogo, no Oriente, Francisco de Assis no Ocidente
- conheceu esse penoso conflito entre um profeta
e padres cuja cegueira provisória impede de aceitar
a visão. Não se devem interpretar os acontecimentos
de Divéyevo, a guerra das loucas em Cristo pelo
staretz bendito, como gestos de insubordinação, mas
como meio de lutar contra o espírito das trevas. 1:
pela intervenção da mais alta autoridade da Igreja,
aliás, que a verdade triunfa finalmente.
Antes de morrer, o padre Serafim tinha nomea
do Motovilov "Defensor das órfã�". Muitas vezes ele
vinha a Divéyevo e acabou por se casar com uma
jovem sobrinha da irmã Parasceve, educada no con
vento. Acompanhado da mulher e de suas duas fi
lhas, se dirigia de Simbirsk a Moscou quando, ligeiro
acidente de carro o obrigou a parar em Divéyevo,
onde possuía uma casa. Instruído do que aí se pas
sava, foi testemunha da forçada eleição de uma no
va superiora e, sem perda de tempo, decidiu agir.
Seu plano era pôr o metropolita Filarete de Mos
cou - alta e venerável personalidade que represen
tou papel importante na renovação da Igreja Russa
- ao corrente do caso. Mas o prelado tinha partido
para a Laura Trindade-São Sérgio (da qual, desde
1770, os metropolitas de Moscou eram oficialmente
abades), para acolher a família imperial que aí se
esperava.
135
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Ora, o vigário do metropolita, residente no lu
gar, era então esse arquimandrita Antônio que viera
uma vez a Sarov perguntar ao padre Serafim se de
via preparar-se para a morte e ao qual o homem de
Deus tinha respondido que, em lugar de morrer, se
ria nomeado para a posição importante de superior
de um mosteiro entre todos venerável. Antes de se
despedir dele, o staretz, lágrimas nos olhos, lhe ha
via dito: "Não abandone minhas órfãs! n Na época, o
padre Antônio não havia compreendido.
Mas ele compreendeu agora, quando Motovilov
que, com toda a pressa, fora à Laura, e lhe apresen
tou seu pedido. Escolhendo um momento propício,
falou ao metropolita Filarete, seu superior e amigo
que, por sua vez, pôs o imperador ao corrente.
- Sempre tive dúvidas quanto a esse padre Jo
safá, quando a imperatriz dele me falava, disse o
soberano.
Uma sindicância foi aberta. Levada com empe
nho, com objetividade, inteligência e tato, sob a vi
gilância do próprio metropolita, teve como resultado
a reabilitação de Elisabeth Oushacov que o padre Jo
safá tentava caluniar e sua confirmação como su
periora do convento Serafim-Divéyevo, como deveria
daí por diante se chamar a comunidade. Ela recebeu
o hábito e pronunciou seus votos com o nome de
Maria. "A ordem voltará com a décima primeira su
periora, tinha predito o staretz, o nome dela será
Maria n .
O padre Josafá, do qual a sindicância revelou
certos desvios de conduta, foi posto em observacão
e obrigado a assinar uma declaração estipulando a
promessa de nunca mais se imiscuir nos negócios
de Divéyevo. Mais tarde, chegou a ser nomeado hen
gúmeno de um mosteiro e tomou o "megalo-schema
com o nome de... Serafim. O amor triunfou do ódio?
Mil religiosas - como havia predito ao staretz
a Rainha do Céu - cedo se agruparam ao redor de
madre Maria que, com mão firme e suave, trouxe à
136
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tona a nave vacilante que tinha sido chamada par&
dirigir. O vigésimo quinto jubileu da bem-amada su
periora foi alegremente festejado em Dlvéyevo, em
1887. Ao lado da madre estava, durante a cerimônia,
uma das primeiras irmãs da Comunidade Moleira, a
outra bela e recalcitrante Xênia, então madre Capl
tolina, agora com a idade de oitenta e três anos.
"Quando as doze primeiras Irmãs da comunida
de tiverem deixado este mundo, fazendo suas despe
didas ao padre Basílio Sadovsky, partirás, tu também,
o décimo terceiro. Tua esposa preceder-te-á dois
anos". Esta previsão se realizou como todas as ou
tras. Lamentado por todos, humilde e fiel servidor
de Deus, o padre Basílio, nascido em 1800, foi reu
nir-se às suas ovelhas, oitenta e quatro anos mais
tarde.
- Faz que te, enterrem à direita da igreja da
Natividade, lhe havia dito o staretz. Michenka (dimi
nutivo de Miguel) será colocado à esquerda. E a mim,
colocar-me-ão no meio. Assim estaremos sempre
Juntos.
Mantourov, efetivamente, foi depositado, para
dormir o seu último sono, à e�querda dessa Igreja
que, a suas custas, tinha construído. Votado à abne
gação, não viu o triunfo da justiça em Divéyevo.
Partiu num momento em que a vitória do ªVisi
tante estranho", de vistas sacrílegas, ao qual se opu
nha com todas as suas forças, parecia quase certa.
Apesar de seu otimismo, o pobre Miguel estava
a ponto de perder a coragem, quando viu em sonhos
o seu "Batioushka" que lhe dizia: ªVem, vamos re
zar juntos!" Concluiu que a sua hora estava próxima,
pediu ao genro do padre Sadovsky que celebrasse
uma liturgia na igreja da Natividade, comungou e,
voltando para casa, disse à sua esposa: • Apressa-te
em fazer o jantar. Senão, te lamentarás - será muito
tarde..." Saiu depois ao jardim para dar framboesas
ao genro do padre Sadovsky, sentiu-se um pouco fa
tigado, sentou-se num banco - e entregou a alma.
137
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Sua partida foi a tal ponto tranqüila que, sua mulher,
vindo chamá-lo para o jantar, o julgou adormecido.
Tinha apenas sessenta anos.
Era talvez o mais perfeito discípulo do staretz,
buscando acima de tudo o Reino de Deus e confian
do em receber o resto por acréscimo. Leigo casado,
não encarnaria, precedendo-o, esse "monaquismo in
terior n de que se fala em nossos dias? De grande
bondade, com o coração na mão, tinha físico agradá
vel, fisionomia aberta e alegre, grandes olhos claros.
Convertida ortodoxa, Ana, sua fiel esposa alemã, aca
bou seus dias em Divéyevo onde, em segredo, tomou
o véu.
Quanto à promessa feita pelo staretz de repou
sar entre os seus dois amigos, o padre Basílio e
Miguel, muitos se surpreenderam disso. Não estava
enterrado em Sarov? Por que é que seria transpor
tado para Divéyevo? Alguém fez a pergunta à madre
Maria. Ela pareceu refletir. Depois, passado um mo
mento de silêncio: "Os restos permanecem muitas
vezes longo tempo ocultos n, disse ela. Estranha res•
posta que se compreende melhor no momento atual,
em que ignoramos o que foi feito dos restos mor
tais do padre Serafim.
Quanto a Nicolau Motovilov, "o humilde servi
n
dor do staretz, como gostava de se designar, dei
xou este mundo em 14 de julho de 1879, com a idade
de setenta e um anos. Nos fins de sua vida, o lado
espiritual de sua natureza complicada e ardente so
brepujou o que havia nele de muito terrestre e mun
dano. ·vendo por toda a parte, no mundo, o espírito
do Anticristo, sentindo-se um viajar estranho, aqui
na terra, empreendia, cada vez mais, longínquas pe
regrinações. E nos lugares santos mais distantes da
imensa Rússia, conhecia-se a sua alta silhueta coroa
da de cabelos brancos.20 O perpétuo peregrino é apa
rentado com o louco em Cristo. "És tão louco quan
to eu, Nikolka n, lhe dizia com afetuosa familiaridade
a "bem-aventurada" Pelágia.
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Um mês antes de sua morte, Motovilov teve um
sonho que contou a sua esposa. A Rainha do Céu lhe
apareceu no sono e lhe prometeu levá-lo logo em
peregrinação a uma região desconhecida onde ela o
faria travar conhecimento com muitos santos dos
quais jamais ouvira falar. Depois desse sonho suas
forças começaram a abandoná-lo. Morreu calmamen
te no seu domínio de Simbirsk, mas foi enterrado
em Divéyevo.
Sua mulher voltou a viver no convento onde ti
nha passado a sua infância e mocidade. Antes de
morrer, como já dissemos, confiou o caderno de me
mórias de seu marido a um escritor de passagem,
Sérgio Nilus.
Foi então que, pela primeira vez, se ouviu falar
da extraordinária conversa aureolada de luz divina
que o staretz havie recomendado a Motovilov que
divulgasse. Incompreendida como teria sido na se
gunda met�de do século XIX, adquiriu, no século XX,
uma significação de amplidão inusitada, não somente
na Rússia mas, como tinha previsto o staretz, no
"mundo inteiro".
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EPÍLOGO
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nodo encarregou uma comissão especial de pesqui
sar os milagres e as curas atribuídas ao padre Sera
fim. Dez anos mais tarde, em 1902, o Imperador Ni
colau li exprimiu o desejo de ver o Santo Sínodo le
var a cabo a instrução da canonização. Em janeiro
de 1903, "persuadido da autenticidade dos milagres
atribuídos às orações do staretz Serafim, e dando
graças a Deus glorificado em seus santos", o Sínodo
submetia sua decisão ao imperador de todas as Rús
sias. Foi publicada no número 5 do Jornal Eclesiástico
aparecido em 1 de fevereiro de 1903, com a recomen
dação de se fazer dele leitura em todas as igrejas do
Império, no domingo seguinte à aparição do jornal.
A canonização
I
143
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tidos de paramentos dourados, presente impera
dor, sobre os quais haviam sido bordados i com fios
de prata, serafins de seis asas. Carrega num an
dor, acima das cabeças inclinadas da m tidão ajoe
lhada, o caixão recoberto por um tecido de veludo
grená, parecia planar nos ares. A noite estava tão
doce que a chama das velas que os peregrinos ti
nham na mão mal vacilava.
Toda a Rússia estava lá, com seu czar, reunida
em torno de seu bem-amado "Batioushka", tão pró
ximo do coração de cada um, tão representativo de
seu misterioso país.
O ofício terminou à meia-noite. Depois, o clero
e a família imperial, os fiéis por sua vez, foram ad
mitidos a venerar as relíquias. Seu desfile durou to
da a noite.
Entrementes, mais além do circuito monástico,
ao longo dos rios Satis e Sarovka, fogos se tinham
acendido. Sem poder penetrar no interior dos muros,
a imensa maioria dos peregrinos tinha rezado fora,
a céu aberto. Ninguém pensava em dormir. Grupos
se tinham formado cantando sob as estrelas: "Gló
ria a Deus no mais alto dos céus", hinos à Virgem.
a nova coletânea composta em honra do santo. Meia
noite foi passada, os cantos continuavam quando, de
repente, se difundiram, aiegres, os hinos de Páscoa:
Dia de Ressurreição", Que Deus ressuscite", Cris
to ressuscitou dos mortos, por sua morte ele venceu
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Terrível, perspectivas
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O grão-duque Sérgio, cunhado da imperltriz, es
tava na viagem. Tendo partido os augusto$ visitan
tes: Não podia olhá-lo, suspirava Pasha. 'Via seus
11
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SÃO SERAFIM E OS TEMPOS MODERNOS
A loucura da cruz
Cheio de angústia profética, o staretz previa cla
ramente os dias apavorantes que iriam seguir-se?
Nada de inverossímil há nisso. Tudo o que ele ha
via predito sempr'e se havia realizado. E poder-se-ia
perguntar, como já o fizemos, se nas perturbações
de Divéyevo que ele tanto temia, o homem de Deus
não via figurado o futuro de seu país bem-amado,
assim como o da Igreja Russa e, na pessoa do •visi
tante estranho", um precursor do Anticristo? Lobo
revestido de pele de cordeiro, haverá muitos como
ele numa Igreja por momentos órfã (cf. Mt 7,15-16).
Mas o Espírito Santo inspira o discernimento dos
espíritos e não abandona a Igreja. Muitas vezes fi
camos surpreendidos com o faro espantoso de que
devam prova os cristãos da Rússia reconhecendo,
durante os tempos mais difíceis, os verdadeiros pas
tores dos falsos. •São reconhecidos por seus olhos... "
como se reconhecem, pelos olhos, os verdadeiros
loucos em Cristo.
Sobre eles, hirsutos, piolhentos, famintos, semi
nus, o Anticristo não terá poder. Não poderá tentá
los nem com as promessas de um paraíso terrestre,
nem com as maravilhas da técnica e da ciência. Qual
é o seu ícone? A imagem de Cristo revestido de uma
túnica escarlate, rei bufão, esbofeteado pelos solda-
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dos. O Rei da Glória poderia tornar-se mais1 abjeto e
mais ridículo?
Escolher tal caminho é revestir-se do Cristo.
"Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que,
para os judeus, é escândalo, para os pagãos é lou-
cura" (1Cor 1,23-24). "Com efeito, a linguagem da
cruz é loucura" (1Cor 1,18ss).
Ela o é, de fato, nos países, ai, numerosos, onde
o ateísmo é de rigor, onde os crentes são considera
dos como associais e confinados como loucos. Mes
mo nos países ditos cristãos, não são tachados de lou
cura aqueles que remam contra a corrente, recusan
do conformar-se com os usos e costumes de "todo o
mundo", com as exigências da vida "moderna" espo
reados pela pressa, subjugados pela técnica?
1: preciso heroísmo - muito heroísmo - para
ser louco em Cristo. E se São Serafim até certo pon
to o era, o povo russo amava-o mais por isso. Porque
o heroísmo russo permanece sem ostentação e não
é por causa dessa simplicidade que o homem dos
bosques, de olhos claros se tornou o eleito daquela
que se dizia "a humilde Serva" e que, deificada, foi
coroada Rainha dos Céus?
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privada de livros? A infância doutrinada pelo mar
xismo, quem fala de Cristo? - A mulher.
A obediência do staretz à Rainha dos Céus traz
seus frutos. Outros starzi - particularmente os do
• Deserto Optino" - prepararam igualmente, na se
gunda metade do século XIX, a mulher russa para seu
papel de guardiã da fé! Serafim de Sarov pode ser
considerado seu precursor. O interesse que esses
monges tinham para com as mulheres parecia, na
época, escandaloso. Mas o trabalho desses órgãos
do Espírito Santo não foi em vão. É preciso ter esta
do nas igrejas russas ainda abertas ao culto, é pre
ciso ter visto esses rostos de mulheres, duros, fe
chados, severos - como é severo, nos retratos que
se tem dele, o rosto de São Serafim - ter sentido a
força e a qualidade dessa oração, tão diferente da
oração indolente e distraída desses cristãos • que
não sofreram a paixão".
• São severos, vossos ícones", dizem multas ve
zes os ocidentais. Sim. Mas atrás dessa severidade
- que ternura!
Dizem também desdenhosamente: • São velhas
essas mulheres". Não todas. E, mesmo que todas o
fossem, Deus não é Senhor para fazer sair brotos
verdejantes de um tronco ressecado? Que diz a Bí
blia? Sara, mãe do povo eleito, era velha. Velha era
Ana, mãe da Virgem; velha Isabel, a mãe do Precur
sor. E a profetisa Ana que, cheia do Espírito Santo,
proclamava a divindade de Jesus quando da Apresen
tação no Templo, não tinha a idade de oitenta e qua
tro anos?
Tal como as irmãs de Divéyevo, essas mulheres
conservam acesa, diante do ícone da Mãe de Deus,
uma pequena lamparina de chama perpétua. Essa cha
ma é precária, essa luz é pálida. O staretz vela para
que não se apague. Basta um pouco de fogo para
desencadear um incêndio.
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Influência póstuma
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ta a todos. O Espírito está em cada homem criado
por Deus.
- Batioushka, perguntou certo dia um noviço ao
staretz, por que é que não levamos uma vida como
a dos antigos?
- Porque nos falta decisão para fazê-lo, res
pondeu ele. Se estivéssemos firmemente decididos
a imitá-los, viveríamos como nossos Pais, pois a gra
ça que Deus dá aos que de todo o coração o procu
ram não muda: "Jesus Cristo é o mesmo. ontem e
hoje; ele o será para a eternidade" (Hb 13,8).
Haverá sempre estes buscadores. Na Rússia, co
mo "no mundo inteiro".
O Espírito trabalha.
A vida continua.
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li
CONVERSA COM MOTOVILOV
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Era uma quinta-feira. O céu estava cinza. A ter
ra estava coberta de neve e espessos flocos conti
nuavam a turbilhonar, quando o padre Serafim co
meçou a nossa COIJVersa na clareira perto de sua
u Pequena· ermida", frente ao rio Sarovka que desli
zava ao pé da colina.
Fez-me sentar no tronco de uma árvore que aca
bava de derrubar e ele se acocorou em minha frente.
- O Senhor me revelou, disse o grande staretz,
que desde a vossa infância desejáveis saber qual a
finalidade da vida cristã e que tínheis muitas vezes
Interrogado a esse respeito mesmo a altas persona
gens na hierarquia da Igreja.
Devo dizer que desde a idade de doze anos es
sa idéia me perseguia e que, efetivamente, havia pro
posto a questão a várias personalidades eclesiásti
cas, sem nunca receber resposta satisfatória. O
staretz ignorava-o.
- Mas ninguém, continuou o padre Serafim, vos
disse nada de preciso; vos aconselhavam a ir à igre
ja, a rezar, a viver segundo os mandamentos de Deus,
a fazer o bem - tal, diziam, era o objetivo da vida
cristã. Alguns até desaprovavam a vossa curiosida
de, julgando-a descabida e ímpia. Mas estavam erra
dos. Quanto a mim, miserável Serafim, vos explica
rei, agora, em que consiste realmente esse objetivo.
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A verdadeira meta da vida cristã
Em nome de Cristo
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descido à terra para salvar os pecadores, bem como
para adquirir a graça do Espírito Santo que introduz
nos nossos corações o Reino de Deus e nos abre o
caminho da beatitude do século futuro. Aí se resolve
acerca da satisfação que as boas ações, que não
são realizadas em nome de Cristo, procuram obter
de Deus. O Senhor nos dá os meios para completá
las. Ao homem cabe aproveitá-los ou não. Por isso o
Senhor disse aos judeus: "Se fôsseis cegos não te
ríeis culpa: mas dizeis: Nós vemos! Vosso pecado
permanece" (Jo 9,41). Quando um homem como Cor
nélio cuja ação não foi feita em nome de Cristo, mas
que foi agradável a Deus, começa a crer, esta obra
lhe é contada como feita em nome de Cristo por
causa de sua fé nele (Hb 11,6). Caso contrário, o
homem não tem direito a lamentar-se de que o bem
realizado não lhe tt!nha sido proveitoso. Isso jamais
acontece quando uma boa ação foi feita em nome
de Cristo, pois o bem realizado em seu Nome traz
não somente uma coroa de glória no século futuro
mas, desde a terra, enche o homem da graça do
Espírito Santo, como foi dito: "o dom do Espírito é,
na verdade, sem medida. O Pai ama o Filho e tudo
entregou em suas mãos" (Jo 3,34-35).
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- o ganho. Os nobres desejam, além disso, obter
honras, sinais de distinção e outras recompensas con
cedidas por serviços prestados ao Estado. A aquisi
ção do Espírito Santo é também um capital mas um
capital eterno, dispensador de graças; muito parecido
aos capitais temporais e que se obtém pelos mesmos
processos. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus-homem,
compara a nossa vida a um mercado e a nossa ativi
dade na terra a um comércio. Recomenda-nos a todos:
"Negociai até que eu volte, remindo o tempo, porque
os dias são maus" (lc 19,12-13; Ef 5,15-16), quer di
zer: "Apressai-vos em obter bens celestes, negocian
do mercadorias terrenas". Essas mercadorias terres
tres não são senão as ações virtuosas feitas em no
me de Cristo e que nos trazem a graça do Espírito
Santo.
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baseado unicamente na prática das virtudes morais,
sem um exame minucioso para saber se elas nos
trazem - e em que quantidade - a graça do Espíri
to de Deus, foi dito em livros patrísticos: "Tal cami
nho parece reto para alguém, mas afinal é o caminho
da morte" (Pr 14,12).
Falando dessas virgens, Antão, o Grande, diz, nas
suas epístolas aos monges: "Muitos monges e vir
gens ignoram, completamente, a diferença que existe
entre as três vontades agindo no interior do homem".
A primeira é a vontade de Deus, perfeita e salvadora;
a segunda - nossa vontade própria, humana, que
não é, em si, nem nefasta nem salvadora; enquanto
que a terceira - diabólica - é completamente ne
fasta. 1: esta terceira vontade inimiga que obriga o
homem seja a não praticar de todo a virtude seja a
praticá-la por vaidacfo ou unicamente para o "bem"
e não para Cristo. A segunda, nossa vontade própria,
nos incita a satisfazermos os nossos maus instintos
ou, como a do inimigo, nos ensina a fazer o "bem"
em nome do bem, sem nos preocuparmos com a
graça que se pode adquirir. Quanto à primeira von
tade, a de Deus, salvadora, ela consiste em nos en
sinar a fazer o bem unicamente com o objetivo de
adquirirmos o Espírito Santo, tesouro eterno, inesgo
tável, que nada no mundo é digno de igualar.
Era justamente a graça do Espírito Santo, simbo
lizada pelo óleo, que faltava às virgens loucas. Elas
são chamadas "loucas" porque não se preocupavam
com o fruto indispensável da virtude que é a graça do
Espírito Santo sem a f!ual ninguém pode ser salvo,
pois "toda a alma é vivificada pelo Espírito Santo, a
fim de ser iluminada pelo mistério sagrado da Uni
dade Trinitária" (Antífona do Evangelho de matinas).
O próprio Espírito Santo vem habitar as nossas al
mas, e esta residência do Todo-poderoso em nós, a
coexistência em nós de sua Unidade Trinitária com o
nosso espírito, não nos é dada a não ser sob a con
dição de trabalharmos por todos os meios ao nosso
161
6 . lnstruçõet...
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alcance na aquisição desse Espírito Santo que prepa
ra em nós um lugar digno para esse encontro, segun
do a imutável palavra de Deus: "a ele viremos e nele
estabeleceremos morada" (Ap 3,20; Jo 14,23). Era es
se o óleo que as virgens prudentes tinham em suas
lâmpadas, óleo capaz de brilhar longamente alto e
claro, permitindo esperar a chegada, à meia-noite, do
esposo e a entrada, com ele, no quarto nupcial da
alegria eterna.
Quanto às virgens loucas, vendo que suas lâm
padas estavam em risco de se apagarem, foram ao
mercado, mas não tiveram tempo de voltar antes do
fechamento da porta. O mercado - é a nossa vida.
A porta do quarto nupcial, fechada e proibindo o aces
so ao esposo - é a nossa morte humana; as virgens
- prudentes e loucas - são almas cristãs. O azeite
não simboliza as nossas ações, mas a graça por in
termédio da qual o Espírito Santo preenche o nosso
ser, transformando isto naquilo: o corruptível no in
corruptível, a morte psíquica em vida espiritual, as
trevas em luz, o estábulo onde são encerradas, como
animais, as nossas paixões, em templo de Deus, em
quarto nupcial onde reencontraremos Nosso Senhor,
Criador e Salvador, Esposo de nossas almas. Grande
é a compaixão que Deus tem pela nossa desgraça,
quer dizer, por nossas negligências para com a sua
solicitude. Ele diz: "Eis que estou à porta e bato..."
(Ap 3,20), entendo por u porta" o cotidiano da nossa
vida, ainda não detido pela morte.
A oração
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quem poderá enfrentar a sua cólera e quem poderá
resistir-lhe? Por isso foi dito: "Vigiai e orai, para que
não entreis em tentação" (Mt 26,41), quer dizer, para
não serdes privados do Espírito de Deus, pois as
vigílias e a oração nos dão a sua graça.
1: certo que toda a boa ação feita em nome de
Cristo confere a graça do Espírito Santo, mas a ora
ção mais do que todas as outras coisas, visto estar
sempre à nossa disposição. Tereis, por exemplo, vonta
de de ir à igreja, mas está longe ou o ofício terminou;
tereis vontade de dar esmola, mas não vedes pobres
ou não tendes dinheiro; desejáveis permanecer vir
gem, mas não tendes assaz forças para isso por cau
sa da vossa constituição ou por causa das ciladas do
inimigo, às quais a fraqueza da vossa carne humana
não vos permite resistir; quereríeis talvez encontrar
uma outra boa ação para a fazerdes em nome de
Cristo, mas não tendes bastante força para isso ou a
ocasião não se apresenta. Quanto à oração, nada de
tudo isso a afeta: cada um tem sempre a possibili
dade de orar, o rico como o pobre, o notável como o
homem comum, o forte como o fraco, o sadio como
o doente, o virtuoso como o pecador.
Podemos julgar acerca do poder da oração, ainda
que pecadora, que sai de um coração sincero, pelo
exemplo seguinte, narrado pela Santa Tradição: a pe
dido de uma infeliz mãe, que acabava de perder seu
filho único, uma cortesã, que ela encontrou no seu
caminho, tocada pelo desespero maternal, ousou gri
tar ao Senhor, manchada como estava ainda pelo seu
pecado: "Não por mim, horrível pecadora, mas por
causa das lágrimas desta pobre mãe que chora o seu
filho e crê firmemente em tua misericórdia e em tua
onipotência, ressuscita-o, Senhor!" E o Senhor o res
suscitou.
Tal, amigo de Deus, é o poder da oração. Mais
do que qualquer outra coisa, ela nos dá a graça do
Espírito de Deus e, mais do que tudo, ela está sem
pre ao nosso alcance. Felizes seremos nós quando
163
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Deus nos encontrar vigiando, na plenitude dos dons
do seu Espírito Santo. Podemos então esperar ser ar
rebatados sobre as nuvens, ao encontro de Nosso Se
nhor, vindo nos ares revestido de poder e de glória
julgar os vivos e os mortos e dar a cada um o que
lhe é devido.
164
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recer a cada crente e conversarei com ele, como con
versava com Adão no paraíso, com Abraão e Jacó e
meus outros servidores, Moisés, Jó e seus semelhan
tes. Muitos crêem que o "afastamento" deve ser in
terpretado como eliminação dos afazeres deste mun
do, isto é: ao falar com Deus na oração é preciso
desentender-se de tudo quanto é terreno. Certamente.
Mas eu, em Deus, vos direi que, apesar do fato de
ser necessário, durante a oração, afastar-nos disso,
é preciso, quando o Senhor Deus, o Espírito Santo
nos visite e venha a nós na plenitude de sua indizível
bondade, afastarmo-nos, também, da oração, suprimir
mos até a oração.
A alma orante fala e profere palavras. Mas à des
cida do Espírito Santo, é conveniente estarmos abso
lutamente silenciosos para que a alma possa ouvir
claramente e compreender bem, os anúncios da vida
eterna que ele se digna então trazer. A alma e o Es
pírito devem então encontrar-se em estado de so
briedade completa e o corpo em estado de castidade
e pureza. Foi assim que as coisas se passaram no
monte Horeb, quando Moisés otdenou aos israelitas
que se abstivessem das mulheres durante três dias
antes da descida de Deus sobre o Sinai, pois Deus
é "um fogo abrasador!" (Hb 12,29) e nada de Impuro·,
fisicamente ou espiritualmente, pode entrar em con
tato com ele.
Comércio espiritual
- Mas como praticar, Padre, em nome de Cris
to, outras virtudes que permitiriam a aquisição do
Espírito Santo? Não falais senão de oração.
- Obtende a graça do Espírito Santo negociando
em nome de Cristo todas as virtudes possíveis, fazei
espiritualmente o comércio, negociai as que vos dão
maior benefício. O capital, fruto dos bem-aventurados
retornos da misericórdia divina, Investi-o na caixa
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econômica eterna de Deus com porcentagens imate
riais, não somente de 4% ou 6% mas de 100% e mes
mo infinitamente mais. Por exemplo, as orações e
vigílias vos trazem muitas graças? Velai e orai. O je
jum vos alcança mais ainda? Jejuai. A caridade vos
alcança ainda muito mais? Fazei caridade. Conside
rai assim cada boa ação feita em· nome de Cristo.
Falar-vos-ei de mim, miserável Serafim. Nasci
numa família de negociantes de Koursk. Antes da mi
nha entrada no mo13teiro, meu irmão e eu negociáva
mos com diversas mercadorias, especialmente com
as que nos traziam mais lucros. Fazei o mesmo. Tal
como no comércio o objetivo é conseguir o maior lu
cro possível, assim na vida cristã a meta deve ser
não somente orar e fazer o bem, mas obter o maior
número possível de graças. Bem disse o Apóstolo:
uorai sem cessar n (1Ts 5,17) e acrescenta: UMas,
numa assembléia, prefiro dizer cinco palavras com a
minha inteligência, para instruir também os outros,
a dizer dez mil em línguas n (1Cor 14,19). E o Senhor
nos previne: u Nem todo aquele que diz 'Senhor, Se
nhor', entrará no Reino dos Céus, mas sim, aquele
que pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus n
(Mt 7,21), com outras palavras, aquele que faz a obra
de Deus com zelo (Jr 48,10). E que obra é esta senão
u que acrediteis naquele que ele enviou" (Jo 6,29).
Se refletirmos corretamente nos mandamentos de
Cristo e nos dos Apóstolos, vemos que a nossa ativi
dade cristã não deve consistir unicamente em acumu
lar as boas ações - que não são senão meios para
chegar à meta - mas em tirar delas o maior pro
veito, que quer dizer, em obter os dons superabundan
tes do Espírito Santo.
Como gostaria, amigo de Deus, que encontrás
seis esta fonte inesgotável de graça e vos interrogás
seis sem cessar: uo Espírito Santo está comigo? Se
ele está comigo, bendito seja Deus, não nos inquie
temos - mesmo que o julgamento final seja amanhã;
estou pronto a comparecer. Pois foi dito: u Julgar-vos-
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ei segundo o estado no qual vos encontrar". Se pelo
contrário não tivermos mais a certeza de estar com
o Espírito Santo, é preciso descobrir a causa pela
qual ele nos abandonou e procurá-lo sem descanso,
até o encontrarmos de novo, a ele e à sua graça.
1: preciso perseguir os inimigos, que nos impedem de
ir a ele, até seu aniquilamento completo. O profeta
Davi disse: "Persigo meus inimigos e os alcanço, não
volto atrás sem tê-los consumido; eu os massacro e
não podem levantar-se, eles caem debaixo dos meus
pés" (SI 18[17],38-39).
Sim, é bem assim. Fazei comércio espiritual com
a virtude. Distribuí os dons da graça a quem os pede,
inspirando-vos no exemplo seguinte: uma vela acesa,
queimando com um fogo terreno, inflama, sem per
der o seu brilho, outras velas que iluminarão outros
lugares. Se tal é a 'propriedade de um fogo terreno,
que dizer do fogo da graça do Espírito Santo? A rique
za terrena, distribuída, diminui. Quanto à riqueza ce
leste da graça, ela não faz senão aumentar naquele
que a propaga. Assim o próprio Senhor disse à Sa
maritana: "Aquele que bebe de,sta água terá sede
novamente; mas quem beber da água que eu lhe darei
nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tor
nar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida
eterna" (Jo 4,13-14).
Ver a Deus
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ra vida cristã. Há passagens da Escritura que nos
parecem estranhas hoje, como, por exemplo, quando
o Espírito Santo pela boca de Moisés diz: "Adão via
Deus passeando no paraíso" (Gn 3,8), ou quando le
mos no apóstolo Paulo que foi impedido pelo Espí
rito Santo de anunciar a palavra na Asia, mas que o
Espírito o acompanhou quando ele se dirigia para a
Macedônia (At 16,6-9). Em muitas outras passagens
da Sagrada Escritura ele é, por várias vezes, assunto
da aparição de Deus aos homens.
Então alguns dizem: Estas passagens são incom
preensíveis. Pode-se admitir que homens possam ver
a Deus de maneira tão concreta? Esta incompreensão
vem do fato de que sob pretexto de instrução, de
ciência, mergulhamos numa tal obscuridade de igno
rância, que tudo achamos incompreensível, tudo de
quanto os antigos tinham uma noção bastante clara
para poderem falar entre eles das manifestações de
Deus aos homens como de coisas conhecidas e, de
forma alguma, estranhas. Assim Jó, quando os seus
amigos o reprovavam por não blasfemar contra Deus,
respondia: "enquanto em mim houver um sopro de
vida e o alento de Deus nas narinas, meus lábios não
dirão falsidades" (Jó 27,3). Em outras palavras, como
posso blasfemar contra Deus, quando o Espírito San
to está em mim? Se blasfemasse contra Deus, o Es
pírito Santo me deixaria, mas sinto sua respiração
em minhas narinas. Abraão e Jacó conversaram com
Deus. Jacó lutou mesmo com ele. Moisés viu Deus e
todo o povo com ele, quando recebeu as Tábuas da
Lei, no Sinai. Uma coluna de nuvens de fogo - a
graça visível do Espírito Santo - servia de guia ao
povo hebreu no deserto. Os homens viam Deus e seu
Espírito não em sonho ou em êxtase - fruto de uma
Imaginação doentia - mas na realidade.
Desatentos, como nos tornamos, compreendemos
as palavras da Escritura contrariamente ao que se de
veria. E tudo isso porque, em lugar de buscar a gra
ça, nós a impedimos, por orgulho Intelectual, de vir
168
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habitar em nossas almas e de nos esclarecer como
são esclarecidos aqueles que de todo o coração bus
cam a verdade.
A criação
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submisso, como ao preferido de Deus, como ao pro
prietário e rei das criaturas. Ele era a própria per
feição, a coroa das obras de Deus e admirado como
tal. O alento de vida que Adão recebeu do Criador,
o encheu de sabedoria a tal ponto que jamais houve
sobre a terra, e provavelmente jamais haverá, um
homem tão repleto de conhecimento e de saber quan
to ele. Quando Deus lhe ordenou que desse nomes a
todas as criaturas. ele as denominou cie acordo com
as qualidades, as forças, e as propriedades de cada
uma, conferidas por Deus.
Este dom da graça divina supranatural, que veio
do alento de vida que havia recebido, permitia a Adão
ver a Deus passeando no paraíso e compreender as
suas palavras bem como a conversa. dos santos an
jos e a linguagem de todas as criaturas, dos pássa
ros, dos répteis que vivem sobre a terra, de tudo o
que nos é dissimulado, a nós, pecadores, desde a
queda, mas que antes era perfeitamente claro para
Adão.
A mesma sabedoria, a mesma força e o mesmo
poder, assim como qualquer outra santa e boa quali
dade tinham sido conferidos por Deus a Eva no mo
mento de sua criação, não do barro do solo, mas de
uma costela de Adão, no l:den das delícias, no paraíso
desabrochado no meio da terra.
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imortal. eternamente renovada das forças físicas, psi
quicas e espirituais, um não envelhecimento perpé
tuo, um estado de beatitude que atualmente a nossa
imaginação tem dificuldade de representar.
Tendo porém saboreado o fruto da árvore da ciên
cia do bem e do mal, antes da hora e contrariamente
às ordens de Deus, conheceram a diferença entre o
bem e o mal, e tornaram-se presa dos desastres que
se abateram sobre eles depois que infligiram a or
dem divina. Perderam o dom precioso da graça do
Espírito Santo e até a vinda de Jesus Cristo, Homem
Deus, "não havia ainda Espírito [no mundo], porque
Jesus não fora ainda glorificado" (Jo 7,39)
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O espírito de Deus nos pagãos
O Espírito de Deus se manifestava além disso,
ainda que com menor força, nos pagãos que não co
nheciam o verdadeiro Deus, mas entre os quais ele
encontrava também adeptos. As virgens profetisas,
por exerrplo, as sibilas, conservavam sua virgindade
por um Deus Desconhecido - mas um Deus, apesar
de tudo - que se julgava ser o Criador do universo,
o Todo-poderoso que governa o mundo. Os filósofos
pagãos, errando nas trevas da ignorância de Deus,
mas buscando a verdade, podiam por causa dessa
busca agradável ao Criador, receber numa certa me
dida o Espírito Santo. Está dito: "os gentios, não ten
do Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei,
eles não tendo Lei, para si mesmos são Lei n (Rm 2,
14). A tal ponto a verdade é agradável a Deus que ele
mesmo proclama por seu Espírito: "da terra germi
nará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu n (SI
85[84], 12).
Foi assim que o conhecimento de Deus se conser
vou entre o povo eleito, amado por Deus, e igualmen
te entre os pagãos que ignoravam a Deus, desde a que
da de Adão e até a Encarnação de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
Pentecostes
E eis que, no dia de Pentecostes, ele lhes enviou
solenemente o Espírito Santo num vento de tempes
tade, sob o aspecto de línguas de fogo, que pousa
ram sobre cada um deles e os encheram da força ful
gurante da graça divina, orvalho vivificante e alegria
para as almas daqueles que participam de sua potes
tade e dos seus efeitos.
1 O texto é aqui tributário de uma tradição apócrifa, segundo a
qual o velho Simeão teria vivido até a Idade de 385 anos.
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O batismo
O arrependimento
Quando um homem, retornando à vida pela sa
bedoria divina sempre em busca da nossa salvação,
se decide a voltar-se para Deus para escapar da per
dição, deve seguir a via do arrependimento, praticar
as virtudes contrárias aos pecados cometidos e es
forçar-se, agindo em nome de Cristo, por adquirir o
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Espírito Santo que, dentro de nós, prepara o Reino
celeste.
Não foi em vão que o Verbo disse: "o Reino d.e
Deus está no meio de vós. Penetra-se nele pela vio
lência do esforço" (Lc 17,21). Se apesar dos liames
do pecado que os mantém cativos impedindo, por no�
vas iniqüidades, de se voltarem para o Salvador com
perfeita contrição, os homens se esforçam por que
brar esses liames, chegarão finalmente perante a face
de Deus mais brancos do que a neve, purificados por
sua graça.
11
Então, sim, poderemos discutir, diz Javé: mes
mo que os vossos pecados sejam como escarlate, tor
nar-se-ão alvos como a neve" (Is 1,18). O Vidente do
Apocalipse, o apóstolo São João, o Teólogo, viu tais
homens vestidos de branco, purificados, tendo pal
mas nas mãos COIT)O sinal de vitória e cantando ale
luia. Incomparável era a beleza do seu canto. O anjo
do Senhor disse falando deles: Estes são os que
11
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A Virgem Maria
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enhor Jesus Cristo que tomou sobre si os pecados
o mundo e que dá, gratuitamente, graça sobre graça.
1: falando dessa graça manifestada ao mundo in
siro e ao nosso gênero humano pelo Deus-Homem
ue o evangelho diz: Nele estava a vida e a vida
11
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nha condição real, poderia encontrar em mim uma
só chispa de luz para me iluminar acerca do caminho
da vida enegrecida pelo ódio de meus inimigos?"
De fato, o Senhor muitas vezes mostrou, na pre
sença de numerosas testemunhas, a ação da graça do
Espírito Santo sobre os homens que ele havia ilumi
nado e ensinado através de grandiosas manifesta
ções. Lembrai-vos de Moisés, depois de sua conversa
com Deus sobre o monte Sinai (Ex 34,30-35). Os ho
mens não podiam olhá-lo de tal modo seu rosto brilha
va com uma luz extraordinária. Era mesmo obrigado a
se mostrar ao povo com a face recoberta com um
véu. Lembrai-vos da Transfiguração do Senhor no la
bor. "E ali foi transfigurado diante deles. O seu ros
to resplandeceu como o sol e suas vestes se torna
ram brancas como a luz... Os discípulos ouvindo a
voz, muito assustados, caíram com o rosto no chão".
Quando Moisés e Elias apareceram revestidos da
mesma luz "uma nuvem os encobriu para que não
ficassem cegos" (Mt 17,1-8; Me 9,2-8; Lc 9,28-37). 1:
assim que a graça do Espírito Santo de Deus aparece
numa luz ínefável àqueles a quem Deus manifesta a
sua ação.
A luz Incriada
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"Deixo-vos a minha paz, a minha paz vos dou; não
vo-la dou como o mundo a dá. Se fôsseis do mundo,
o mundo amaria o que era seu; mas porque não sois
do mundo e minha escolha vos separou do mundo, o
mundo por isso vos odeia. Eu vos disse tais coisas
pera terdes paz em mim ( ... ) tende coragem: eu venci
o mundo" (Jo 14,27;15,19;16,33). É a esses homens
eleitos por Deus, mas odiados pelo mundo. que Deus
dá a paz que sentis agora, "a paz de Deus, diz o Após
tolo, que excede toda a compreensão" (FI 4,7). O
Apóstolo denomina-a assim porque nenhuma palavra
pode exprimir o bem-estar espiritual que ela faz nas
cer nos corações dos homens em que o Senhor a im
planta. Ele mesmo a chama sua paz (Jo 14,27). Fruto
de generosidade de Cristo e não deste mundo, nenhu
ma felicidade terrena a pode dar. Enviada do alto pelo
próprio Deus, ela é,a paz de Deus... Que sentis agora?
- Uma delícia extraordinária.
- É a delícia de que fala a Escritura. "Eles ficam
saciados com a gordura de tua casa, tu os embriagas
com um rio de delícias" (SI 36[35] ,9). Ela transborda
do nosso coração, derrama-se em nossas veias, traz
nos uma sensação de delícia in�xprimível... Que sen
tis, ainda?
- Uma extraordinária alegria em todo o meu co
ração.
- Quando o Espírito Santo desce sobre o ho
mem com a plenitude de seus dons, a alma humana
fica cheia de uma alegria indescritível. É dessa alegria
que o Senhor fala no evangelho quando diz: "Quando
uma mulher está para dar à luz, entristece-se porque
e sua hora chegou; quando, porém, nasce a criança
ela já não se lembra dos sofrimentos, pela alegria
de ter vindo ao mundo um homem. Também vós, ago
ra, estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso
coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa ale
gria" (Jo 16,21-22).
Por grande e consoladora que ela seja, a alegria
que sentis neste momento nada é, em comparação
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com aquela da qual o Senhor disse através de seu
Apóstolo: "o que os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e o coração do homem não percebeu, isso
Deus preparou para aqueles que o amam" (1Cor 2,9).
O que nos é concedido presentemente é apenas uma
antecipação dessa alegria suprema. E, se desde ago
ra, nós sentimos deleite, júbilo e bem-estar, que dizer
dessa outra alegria que nos está reservada no céu,
depois de ter, aqui na terra, chorado? Já haveis cho
rado bastante em vossa vida e vede que consolação
na alegria o Senhor vos dá aqui na terra. Cabe a nós,
agora, amigo de Deus, trabalhar com todas as nossas
forças para subirmos de glória em glória "até que
alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno co
nhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem
Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo"
(Ef 4,13). "Os que põem a sua esperança em Javé
renovam as suas forças, formam asas como as águias,
correm e não se fatigam, caminham e não se can
sam" (Is 40,31). "Eles caminham de terraço em terra
ço e Deus lhes aparece em Sião" (SI 84[83],8). 1: en
tão que a nossa alegria atual, pequena e breve, se
manifestará em toda a sua plenitude e ninguém nos
poderá arrebatá-la, repletos como estaremos de in
dizíveis gozos celestes. Que sentis, ainda, amigo de
Deus?
- Um calor extraordinário.
- Como, um calor? Não estamos na floresta, em
plena neve? A neve está sob nossos pés, estamos
cobertos dela e ela continua caindo... De que calor
se trata?
- Um calor semelhante ao de um banho de va
por.
- E o cheiro é como no banho?
- Oh, não! Nada sobre a terra se pode com-
parar a esse perfume. No tempo em que a minha mãe
vivia, ainda gostava de dançar e quando eu ia a um
baile, ela me aspergia perfumes que comprava nas
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melhores lojas de Kasan e pagava muito caro. O seu
odor não é comparável a estes aromas.
O padre Serafim sorriu.
- Eu sei, meu amigo, tanto quanto vós, e é de
propósito que vos interrogo. 1: bem verdade, nenhum
perfume terreno pode ser comparado ao bom odor
que respiramos neste momento, o bom odor do
Espírito Santo. O que pode, sobre a terra, ser-lhe
comparado? Dissestes, ainda há pouco, que fazia ca
lor, como no banho. Mas olhai, a neve que nos cobre,
a vós e a mim, não se funde, assim como a que está
sob os nossos pés. O calor não está no ar, mas no
nosso interior. 1: este calor que o Espírito Santo nos
faz pedir na oração: "Que teu Espírito Santo nos
aqueça!" Este calor permitia aos eremitas, homens
e mulheres, não temerem o frio do inverno, envolvi
dos, como estavaITT, como que num manto de peles,
numa veste tecida pelo Espírito Santo.
1: assim que, na realidade, deveria ser, habitando
a graça divina no mais profundo de nós, em nosso
coração. O Senhor disse: u O Reino de Deus está den
tro de vós" (Lc 17,21). Por Reino dos Céus ele enten
de a graça do Espírito Santo. Es-te Reino de Deus está
em nós, agora. O Espírito Santo nos ilumina e nos
aquece. Enche o ar de perfumes variados, alegra os
nossos sentidos, sacia o nosso coração com alegria
Indizível. O nosso estado atual é semelhante àquele
do qual fala o Apóstolo: "Porquanto o Reino de Deus
não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz
e alegria no Espírito Santo" (Rm 14,17). A nossa fé
não se baseia em palavras de sabedoria terrena, mas
na manifestação do poderio do Espírito. Trata-se do
estado em que estamos atualmente e que o Senhor
tinha em vista quando dizia: "Em verdade vos digo
que estão aqui presentes alguns que não provarão a
morte até que vejam o Reino de Deus chegando com
poder" (Me 9,1).
Eis aí, amigo de Deus, a alegria incomparável
que o Senhor se dignou conceder-nos. Eis o que é estar
183
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• nà plenitude do Espírito Santo". 1: isto o que entende
São Macário, o Egípcio, quando escreve: Eu mesmo
11
Difusão da mensagem
Monge e leigo
Atividade missionária
185
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bido os dons da graça, somos chamados a trabalhar
colhendo as espigas da salvação do nosso próximo,
para os recolhermos no celeiro, em grande número,
no Reino de Deus, a fim de que produzam seus fru
tos, uns trinta, outros sessenta e outros cem. Este
jamos atentos para não sermos condenados com o
servo preguiçoso que enterrou o dinheiro a ele con
fiado, mas tratemos de imitar os servos fiéis C!Ue de
volveram ao Mestre um, em vez de dois talentos,
quatro, e o outro, em vez de cinco talentos, dez.
Quanto à misericórdia divina, não se pode duvidar de
la: vede vós mesmo como as palavras de Deus, ditas
por um profeta, se realizaram por nós. "Sou, por
acaso, Deus apenas de perto..." (Jr 23,23).
O poder da fé
187
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necessidade e por que haveis solicitado aquilo de que
facilmente teríeis podido abster-vos.
Pois bem, amigo de Deus, agora eu vos disse
tudo e, na realidade, mostrei-vos tudo o que o Senhor
e sua Santa Mãe quiseram mostrar-vos por intermé
dio do miserável Serafim. Ide então em paz. Que o
Senhor e sua Santa Mãe estejam convosco agora e
sempre e pelos séculos dos séculos. Amém. Ide em
paz.
Ao longo de todo o tempo que durou a conversa,
desde o momento em que o rosto do padre Serafim
se iluminou, a visão de luz continuava e a sua pos
tura, enquanto falava, desde o começo desta narra
tiva até o fim, permanecia imutável. Quanto ao es
plendor indizível da luz que irradiava, eu a vi com
meus próprios olhos e estou pronto a confirmá-lo sob
juramento.
188
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NOTA DE si;RGIO NILUS
189
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mais, gritei: "Padre Serafim, é possível que tenhas
feito vir, de um canto perdido como Divéyevo os ma
nuscritos do teu 'pequeno servidor' (Motovilov) para
que, indecifrados, voltem ao esquecimento?" A invo
cação partiu do fundo do coração. No dia seguinte,
pela manhã, tendo-me lançado à triagem dos papéis,
caí imediatamente sobre este manuscrito e recebi, ao
mesmo tempo, a faculdade de ler a escrita de Mo
tovilov.
1: fácil imaginar a minha alegria e quão viva
mente fui impressionado pelas seguintes palavras que
pude ler:
"E eu julgo, respondeu o staretz, que Deus vos
ajudará a conservar estas coisas na memória. De ou
tro modo, não teria sido tão rapidamente tocado pela
humilde oração do miserável Serafim e não teria aten
dido imediatamente o seu desejo. Tanto mais que não
é apenas a vós que é dado ver a manifestação desta
graça mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro".
Durante setenta longos anos este tesouro per
maneceu enterrado nos sótãos, sob um montão hete
róclito de velha papelaria - e eis que verá a luz.
Quando? Na vigília da canonização daquele a quem a
Igreja Ortodoxa começa já a dirigir-se exclamando:
"Padre Serafim, pede a Deus por nós!"
19 de maio de 1903
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111
AS INSTRUCÕES ESPIRITUAIS
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Símbolo vivo, o staretz quase nada escreveu. No
entanto, ficaram-nos dele algumas Instruções Espiri
tuais. Primeiramente inclusas numa biografia manus
crita, redigida em 1837 por um monge de Sarov, Sér
gio, não foram impr�ssas senão dois anos mais tarde,
como apêndice a um pequeno opúsculo Intitulado:
"Um breve resumo da vida de Staretz do Deserto de
Sarov, Marcos, Monge e Anacoreta". (Trata-se de um
dos dois eremitas, contemporâneos do padre Serafim
que, ao mesmo tempo que ele, viveram na floresta
de Sarov). Quanto à biografia do- santo, propriamente
dita, apenas em 1841, oito anos depois da sua morte,
ele recebeu, após numerosas diligências feitas pelo
metropolita de Moscou, Filarete, o lmprimatur do San
to Sínodo.
Foi também este prelado que, desejoso de apres
sar a sua aparição, revisou as Instruções Espirituais,
como o testemunha uma carta escrita ao seu vigário
e amigo, o arquimandrita Antônio, Abade da Laura da
Santíssima Trindade-São Sérgio.
"Envio-lhe, Padre Vigário, as Instruções Espirituais
do padre Serafim, revistas por mim. Tomei a liberda
de de mudar e de completar certas expressões, em
parte para que, gramaticalmente, estejam mais corre
tas e, também, para evitar que pensamentos não ex
pressos com bastante clareza ou expressos de modo
pouco comum sejam mal interpretados. Examine e
193
7 - ln1truçlies ...
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diga-me se se pode acreditar que eu não tenha de
formado em nada o pensamento do staretz."
Infelizmente, tendo-sé perdido o original, é-nos
impossível fazer a comparação. 1: pena. O grande me
tropolita estava, no entanto, bem intencionado. O San
to Sínodo provavelmente não teria dado o imprimatur
às Instruções tais como elas tinham sido redigidas
por Batioushka Serafim.
No livro do monge Sérgio (quarta edição, Mos
cou, 1856), estas Instruções são em número de trinta
e três. Uma biografia do santo, compilada por N. Le
vitsky e editada em 1905 em Moscou, pelo Mosteiro
de São Panteleimon do monte Atos, cita trinta e seis.
Nós tomamos a liberdade de abreviar ligeiramen
te estes textos, e, a fim de evitar repetições, remeter
o leitor aos capítulos precedentes, desta obra, em que
as mesmas idéias já foram expostas. Em contrapar
tida, em certas passagens nós completamos as "Ins
truções" com ensinamentos do staretz, tais como os
encontramos algures, em particular nos capítulos XVI
e XVII do livro de N. Levitsky (pp. 166-199).
Pelo elevado número de citações, vê-se que o es
pírito do staretz "nadava" efetivamente (segundo uma
expressão que lhe era cara) nas Sagradas Escrituras.
A numeração dos salmos é feita segundo a Bíblia
grega que São Serafim seguia, mas a tradução é to
mada da Bíblia de Jerusalém, à parte certas expres
sões que assinalamos sempre.
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DEUS
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3) A salvação das almas. "Pois Deus não enviou
o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas
para que o mundo seja salvo por ele" (Jo 3,17).
Sobre a fé
Antes de mais nada é preciso crer em Deus, "Pois
(...) que ele existe e recompensa os que o procuram"
(Hb 11,6). A fé, segundo Santo Antíoco, é o começo
da nossa união com Deus... A fé sem as obras é mor
ta (Tg 2,26). As obras da fé são: o amor, a paz, a
longanimidade, a misericórdia, a humildade, o carre
gar a cruz e a vida segundo o Espírito. Somente uma
tal fé conta. Não pode haver verdadeira fé sem obras.
Sobre a esperança
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ares e na terra. Pois o nosso combate não é contra
11
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Nada contribui mais para a paz interior do que
o silêncio e, se possível, a conversação incessante
consigo mesmo e rara com os outros.
Devemos portanto concentrar nossos pensamen
tos, nossos desejos e nossas ações na aquisição da
paz de Deus e gritar incessantemente com a Igreja:
"Senhor! Dá-nos a paz! "2
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Há que evitar que nossos sentidos, especialmen
te a vista, nos tragam distrações: porquanto os dons
da graça não tocam senão àqueles que oram e se preo
cupam com a sua alma.
Sobre as tentações
Devemos libertar-nos de qualquer pensamento im
puro, sobretudo oferecendo a Deus nossas orações,
a fim de não misturar o fedor aos aromas.
Devemos rejeitar imediatamente os pensamentos
que tentam ... dando especial atenção à guloseima, à
avareza e à vaidade...
Se nos opusermos a que o demônio nos segrede,
fazemos bem.
O demônio apenas pode influenciar os apaixona
dos. Não pode aproximar-se a não ser do exterior da
queles que se purificaram das suas paixões.
Pode o homem, na sua Juventude, evitar ser per
turbado por tentações carnais? Ele pode orar ao Se-
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nhor para que se extinga, desde o Início, a centelha
do vício...
Acerca da contrição
Da oração
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Se durante a oração o nosso espírito se dissipa,
é necessário humilharmo-nos perante Deus e pedir
perdão... pois, como diz São Macário "o inimigo não
aspira senão a desviar o nosso pensamento de Deus,
do seu temor e do seu amor" (Horn. 2 cap. XV).
Quando a inteligência e o coração estão unidos
na oração e a alma por coisa alguma é perturbada,
então o coração se enche de calor espiritual e a luz
de Cristo inunda de paz e de alegria todo o homem
Interior.
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Acerca da atenção
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Sobre o temor de Deus
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A via ativa compreende: o jejum, a abstinência,
as vigílias, as genuflexões, a oração. • Estreita, po
rém, é a porta e apertado o caminho que conduz à
Vida. E poucos são os que o encontram" (Mt 7,14).
A via contemplativa consiste na elevação do es
pírito a Deus, na atenção interior, na oração pura e,
pela mediação destes exercícios, na contemplação das
coisas espirituais..
Aquele que aspira à vida contemplativa deve co
meçar pela vida ativa... Porquanto é impossível ter
acesso à vida contemplativa sem passar pela vida
ativa.
A vida ativa serve para nos purificar de nossas
paixões... porque somente os puros podem embrenhar
se na via da contemplação... São Gregório o Teólogo
diz: • A contemplação só não apresenta perigos para
os perfeitamente experimentados" (Horn. sobre a Pás
coa).
1: preciso abordar a vida contemplativa com te
mor e tremor, com um coração humilde e contrito, de
pois de ter consultado demoradamente as Sagradas
Escrituras e, de preferência, sob a orientação de um
staretz iniciado e não com temeridade e uma vontade
própria caprichosa.4
Não é preciso abandonar a vida ativa mesmo de
pois de ter passado, por seu intermédio, à vida con
templativa; porquanto ela é uma contribuição para a
vida contemplativa, ajudando à sua elevação.
Da solicitude e do silêncio
Da multiplicidade das palavras
Do silêncio Interior
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Acerca do jejum
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meio de se livrar do tédio... Se não consegue fazer
sair o monge da cela, o demônio se esforça por dis
trair-lhe o espírito durante a leitura e durante a ora
ção. Isto não está no seu lugar e aquilo é preciso co
locá-lo acolá... O fim destas distrações é tornar o es
pírito ocioso e estéril.,,.
Uma coisa é o tédio - outra o desalento. Acon
tece que o homem, neste estado de espírito, preferiria
destruir-se ou ser privado dó conhecimento do que
conservar-se neste tormento. É preciso sair dele tão
depressa quanto possível. Proteja-se do espírito de de
sânimo porque todo o mal nasce dele.
Para salvaguardar a paz interior há que afastar-se
da tristeza e esforçar-se por ter o espírito sempre ale
gre pois, segundo o Sirácida, a tristeza mata e nenhu
ma utilidade há nela. "Como efeito, a tristeza segundo
Deus produz arrependimento que leva à salvação e
não volta atrás, ao passo flUe a tristeza segundo o
mundo produz a morte" (2Cr 7,10).
Pior que tudo é o desespero. Ele constitui a maior
alegria do demônio. É o "pece.do mortal" de que fala
a Escritura (1Jo 5,16).
Sobre a doença
O corpo é escravo da alma. A alma é rainha.
Quando o corpo é enfraquecido pela doença, trata-se
de sinal da misericórdia de Deus: a doença enfra
quece as paixões, o homem volta a si. Acontece tam
bém que a doença pode ser engendrada pelas paixões.
Retirem o pecado - as doenças desaparecerão, afir
ma S. Basílio o Grande. O Senhor criou o corpo não
a doença, a alma, não o pecado. O que é, pois, salutar
e necessário? A união com Deus e uma troca de amor
com ele. É ao perder o amor que nós nos separamos
de Deus e, separados, tornamo-nos presa de múltiplos
males. Em contrapartida, àquele que suporta a doença,
com paciência, ela é computada à maneira de ·uma
"proeza" ascética e até mais.
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Dever e amor para com o próximo
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le que a faz. Não nos cabe a nós julgar, mas sim ao
Juiz Supremo.
"Não julgueis para não serdes julgados" (Mt 7, 1)
e ainda: "Quem és tu que julgas o servo alheio? Que
ele fique em pé ou caia, isso é lá com o seu patrão;
mas ele fica em pé, porque o Senhor tem o poder de
o sustentar" (Rm 14,4).
Ignoramos quanto tempo poderemos, nós mes
mos, perseverar na virtude. uauanto a mim, eu dizia
tranqüilo: jamais serei abalado! Javé, teu favor me
firmará sobre fortes montanhas; mas escondeste tua
face e eu fiquei perturbado" (SI 29,7-8).
Devemos considerar-nos, a nós mesmos, como os
piores culpados, perdoar ao próximo toda a transgres
são e odiar somente o demônio que o tentou. Pode,
por vezes, parecer-nos que o outro faz mal enquanto
que, na realidade, por sua intenção, que é boa, ele
faz bem. A porta do arrependimento está aberta a to
dos, e não sabemos quem por ela entrará primeiro -
se tu que julgas ou aquele que por ti é julgado.
Para não julgar, é preciso estar atento a si mes
mo, não aceitar de ninguém idéias estranhas e per
manecer morto para tudo. Julga-te a ti mesmo e ces
sarás de julgar os outros.
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Deus nos recomenda a inimizade unicamente para
com a serpente que, desde o início, Induziu o homem
em tentação e o expulsou do paraíso.
Pensemos em Davi, em Jó, em todos os santos
agradáveis a Deus, que tudo venceram, ignorando o
ódio.
Se também nós vivermos assim, podemos espe
rar que a luz divina brilhe em nossos corações, ilumi
nando a nossa vida para a Jerusalém celeste.
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Da mlserlc6rdla
Sede misericordiosos para com os pobres e os
peregrinos. Os Padres, luminares da Igreja, velam as-
siduamente por isso.
No que concerne a esta virtude, devemos con
formar-nos com o mandamento divino: "Sede miseri
cordiosos como o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,
36), e ainda: "Misericórdia é que eu qÚero e não sa
crifício" (Mt 9,13).
Os sábios são atentos a esta palavra, enquanto
os outros não a escutam.• Eis porque a recompen
sa será diferente: "Sabei que quem semeia com par
cimônia, com parcimônia também colherá, e quem se
meia com largueza, com largueza também colherá•
(2Cor 9,6).
1: preciso dar esmola com afabilidade, como
ensina Santo Isaac o Sírio (Horn. 89): "que a alegria
do teu rosto preceda o dom, e que tuas boas palavras
consolem a miséria•.
"Dá sempre - por toda a parte•, dizia o staretz.
E acrescentava: "Deus ama a quem dá com alegria.
A esmola assim dada, mesmo sendo insignificante,
traz consigo a recompensa" (2Cor 9,7-8).
Estas Instruções são como que um resumo da es
piritual idade do staretz de Sarov. Dirigem-se unicamen
te àqueles que aspiram à vida monástica? Poderíamos
perguntar-lho se ignorássemos que, entre os religiosos
e os "leigos· a ortodoxia traça o mínimo de frontei
ras fixas.
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Regra para a oração
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tempo não sendo necessário aterem-se a esta regra,
e se são mais instruídos, podem acrescentar outras
orações, a leitura dos cânones, dos akathistas, dos
salmos, do evangelho e das epfstolas.
Ao comparar esta regra à dada outrora pelo sta
retz às monjas de Divéyevo, percebe-se que a dife
rença não é grande. O u Pai-nosso", a u Ave-Maria" e
o Credo formam a base dela. O mais difícil é comum
a ambas: u manter" ao longo do dia em seu espírito,
unida ao coração, a oração interior. Ela é u a Invencível
vitória", u a estrela que nos guia no caminho do reino•.
Aos leigos, como ao� religiosos e religiosas, o
staretz aconselhava a comunhão freqüente. u O mais
freqüentemente possível. Aquele que comunga não
somente uma vez por ano, mas muitas vezes, será
abençoado desde aqui, na terra. Eu creio que a graça
se difunde também sobre a descendência daquele que
comunga. Um justo conta mais, diante de Deus, do
que uma multidão de ímpios".
1: preciso que nos apressemos a acrescentar que
a regra cotidiana, seguida pelo próprio staretz, não era
nem tão simples, nem tão breve. Compreendia um
grande número de orações, de invocações, trapos,
kondaks, cathismos que nos abstemos de reproduzir.
Podemos encontrá-la em resumo no livro de N. Levits
ky (pp. 643-646), assim como em V. 1. llyn, Saint Sé
raphim de Sarov, V. M. C. A. Press, Paris, 1930 (em
russo), pp. 193-198.
Quereríamos apenas citar aqui uma oração de pe
nitência - a de Santo Efrém o Sírio - que os fiéis
recitam com amor e compunção durante a Grande
Quaresma, e que o staretz tinha incluído na sua regra
diária, em razão da sua grande beleza e de sua íntima
correspondência ao espírito da Ortodoxia.
Meu Deus e Senhor de minha vida,
livra-me do espírito de ociosidade
de desânimo
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de vontade própria
e de palavras vãs.
Metania
Mas o espírito de castidade
de humildade
de paciência
e de amor
concede-o ao teu servidor
(ou à tua servidora).
Metania
ô meu Deus e meu Rei,
faz que eu veja meus próprios pecados
e que eu não julgue o meu próximo
poraue tu és bendito pelos séculos dos séculos.
Metania
Amém.
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BIBLIOGRAFIA
Impressos
1. As "sentenças" que dizem respeito às "façanhas" e aos even
tos da vida do staretz Serafim, monge eremita e recluso do Deserto
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de Sarov, acrescidas de uma exposição da vida da fundadora da
Comunidade feminina de Divéyevo, Ágata Semenovna Melgounov,
Editada pelo monge Josafá, São Petcrsbourgo, 1849.
Idem, 2� edição, 1856.
2. A vida do staretz Serafim, monge do mosteiro de Sarov, edição
do Deserto de Sarov, São Petersburgo, 1863 - Idem, 4� edição, De
serto de Sarov, Mouron, 1893.
3. O Deserto de Sarov e os monges de santa memória que ai
alcançaram a sua salvação, Moscou, 1884, 4� edição.
4. A vida e as "façanhas" ascéticas do monge investido do
"mégalo-esquema" Joio, fundador e primeiro superior do Deserto de
Sarov, Mouron, 1892.
5. Breve descrição da vida do staretz Serafim . de Sarov e da
"Superiora" Ágata Semionovna Melgounov, fundadores do mosteiro de
Serafim-Divéyevo, edi7ão do mosteiro, Mosccu, 1874.
6. O Mosteiro feminino de Serafim-Divéyevo, com a descrição das
vidas do P. Serafim e da M. Alexandra, Compilado pela Princesa
Helena Gortchakov, Moscou. 1889.
7. Vigésimo quinto jubileu da Abadessa do mosteiro de Serafim
Dlvéyevo - Nizhnl-Novgorod, 1887.
8. Relato da vida da Louca em Cristo, Pelágia lvanovna Serebriani
kov, Tver, 1891.
9. S. Em. Antônio, Arcebispo de Voronege e de Zadonsk, Vorone
ge, 1890.
10. S. Em. Théophane, recluso de Bishensk, Moscr,u, 1895.
11. S. Em. Jéremlas, bispo de Nizhni-Novgorod, Nizhni-Novgorod,
1886.
12. O P. Josafá, que no "mégalo-esquema" toma o nome de
Serafim, ancião Superior do mosteiro de Pavlo-Obnorsk, pelo Padre
Bratanovsky, Yaroslavl, 1885.
13. Compilação dos pontos de vista e das opiniões expressas
por Fllarete, metropolita de Moscou e de Kolomna: vol. IV e V (1�
parte).
14. Cartas de Fllarete, metropolita de Moscou e Kolomna, a mem
bros da Família Imperial e outros personagens, Tver, 1888.
15. Cartas de Fl�arete, metropolita de Moscou, ao arquimandrita
Antônio, vigário da Laura Sérgio da Santíssima Trindade - IV parte,
Moscou, 1884.
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Artigos
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ÍNDICE
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Serafim de Sarov é um dos grandes santos da Igreja
russa. Nasceu em 1759 e morreu em 1833. Entrou
no mosteiro de Sarov, na Rússia central, em 1778,
tendo sido ordenado diácono e sacerdote.
Um ano antes da morte, monge Serafim teve longa
conversa com um leigo, chamado Nicolas Motovi
lov. Este sofria de grave enfermidade e carregava uma
vida pecaminosa. Estava doente de corpo e alma. No
entanto, Serafim escolheu-o como depositário da sua
última mensagem. A longa conversa com Motovilov
foi realmente a expressão de toda a sua espirituali
dade e da sua vida. Essa longa conversa foi escrita
mais tarde por Motovilov e divulgada. Tomou-se en
tão uma das obras da espiritualidade cristã, medita
da e celebrada no mundo inteiro, e doravante tam
bém pelo público de língua portuguesa.
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