Instruções Espirituais-Diálogos Com Motolovic

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SERAFIM DE SAROV

I�STRUÇOES ESPIRITUAIS
DIALOGOS COM MOTOVILOV

EDIÇÕES PAULINAS
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Título original
86raflm de Sarov, SA VIE per lrlna Goralnoff
Entretlen avec MOTOVILOV et INSTRUCTIONS SPIRITUEUES tradult
du ftl8N par 1. Gorainoff
@ Desclée De Brouwer, 1979
Tradução
Helena Uvramento

Revisão
Jo16 Joaquim Sobral

ti) EDIÇÕES PAULINA&


TELEX 1111 39484 IPSSP BRI
Rua Dr. Pinto Fenllz, 183
04117 SÃO PAUID - SP
END. TELEGR.: PAULINOS

© EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1989


ISBN 85-05-01000-0

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INTRODUÇÃO

S. Serafim de Sarov é um dos grandes santos da


Igreja russa, talvez o maior de todos na época moder­
na. Nasceu em 1759. Morreu em 1833. Desde cedo
foi objeto de grandes graças místicas e de favores
divinos. Várias vezes ficou curado de graves acidentes
por intervenções milagrosas. Entrou no mosteiro de
Sarov em 1778 aos 19 anos de idade. O mosteiro fi­
cava no meio da imensa selva da Rússia central:
pera os monges russos a grande selva constituía o
deserto em que se desenvolvia o combate espiritual.
Foi ordenado diácono e, pouco depois, sacerdote. Em
1794, exatamente 16 anos depois da sua entrada no
mosteiro, o monge .Serafim obteve a licença de viver
como solitário num refúgio extraordinariamente pobre
1 uns 6 km do mosteiro. Dez anos mais tarde foi as­
aeltado por bandidos que o feriram de tal modo que
o creram morto. Serafim recuperou-se de modo mila­
groso e iniciou uma nova fase da sua vida. Voltou
à sua soledade, desta vez para uma vida de silêncio
absoluto. Em 1810, obrigado a voltar ao mosteiro pelo
■eu superior, o solitário Serafim entrou numa vida de
recluso. Passou 5 anos numa cela estreita sem comu­
nicação com o mundo exterior. Depois disso come­
çou a abrir a cela e iniciou uma vida de conselheiro
para os monges, e depois para os leigos. A sua fama
cresceu e, no fim da sua vida, atendia sem parar à
multldAo que vinha receber dele conselho, ânimo, co­
ragem. Foi canonizado pela Igreja russa.

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Na Rússia, foi e ainda é celebrado como um san­
to de virtudes extraordinárias. Foi um místico total­
mente fora de qualquer categoria, da altura dos maio­
res místicos do Ocidente e do antigo Oriente. Foi
um dos mais profundos porta-vozes da doutrina es­
piritual da Filocalia que foi a herança da espirituali­
dade grega transmitida aos russos.
Um ano antes da morte, o monge Serafim teve
longa conversa com um leigo, chamado Nicolas Mo­
tovi lov. Este sofria de grave enfermidade e carregava
uma vida pecaminosa. Estava doente de corpo e alma.
No entanto, Serafim escolheu-o como depositário da
sua última mensagem. A longa conversa com Motovi­
lov foi realmente a expressão de toda a sua espiritua­
lidade e da sua vida. Essa longa conversa foi escrita
mais tarde por Motovilov e divulgada. Tornou-se então
uma das obras da espiritualidade cristã, meditada e
celebrada no mundo inteiro, e doravante também pelo
público de língua portuguesa. Na realidade durante 70
anos, o manuscrito de Motovilov permaneceu escon­
dido. Foi descoberto nos velhos papéis de Motovilóv
muitos anos depois da morte deste. A própria viúva
de Motovilov entregou o velho manuscrito ao escritor
Sergio Nilus e este se encarregou da divulgação.
José Comblln

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A VIDA

Primeira parte
NA SOMBRA

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PANO DE FUNDO

No dia 19 de julho de 1759, nasceu um menino


na família do comerciante Isidoro Mochnine, em
Koursk, e recebeu, no batismo, o nome de Prokhore.
Nenhum acontecimento especial assinalou este nas­
cimento. Koursk era uma cidade de província, como
hé muitas na Rússia, de casas térreas cercadas de
paliçadas ao longo de ruas mal pavimentadas, mas
multas vezes sombreadas por belas árvores, seme­
lhantes às de um parque.
Isabel, filha de Pedro o Grande, reinava então
num país que se recuperava lentamente dos terríveis
abalos que seu pai, implacável·revolucionário Impe­
rial, lhe havia infligido no Início do século. Na corte
bailava-se muito. Mas em Moscou fundava-se a Aca­
demia das Ciências bem como a das Belas Artes.
Pavilhões de caça, "eremitérios" românticos, palá­
cios de paredes verde-maçã, com pilastras brancas e
cornljas douradas, devidas à imaginação transbordan­
te do arquiteto italiano Rastrelli, brotavam da terra à
ordem da alegre imperatriz. Nas horas de penitência
- porque ela as tinha - a devota soberana exigia
Igrejas e conventos. Rastrelli introduziu na Rússia
um barroco mitigado cujos querubins dourados e bo­
chechudos folgavam impunemente nas altas paredes
das lconóstases, sob o olhar severo e desaprovador
dos ícones.
Todas estas novidades não atingiam a província.
A classe comerciante à qual pertencia a família Moch-

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conservava intactos os antigos costumes. Vestidos à
maneira dos bons velhos tempos, corpulentos e usan­
do barba (proibida na corte), seus membros davam
à Igreja dinheiro e filhos, o que os nobres de olhos
fitos na França de Luís XV, quase não faziam.
Foi no entanto uma igreja, cujo plano tinha sido
estabelecido pelo célebre Rastrelli, que a cidade de
Koursk decidiu oferecer a si mesma. Os trabalhos fo­
ram confiados a Isidoro Mochnine, pai do pequeno
Prokhore, que possuía uma olaria de tijolos e tinha a
reputação de ser construtor íntegro e consciencioso.
Jovem ainda, morreu antes de terminar a obra. A viú­
va encarregou-se dela.
O que se sabe desta mulher à qual Prokhore (ti­
nha apenas três anos quando seu pai morreu) deverá
o melhor de si mesmo? A falta do seu retrato, tem
sido representada como uma dessas matronas russas,
ligeiramente gorda, com os traços regulares, a fronte
serena, firme com doçura, inteligente sem ostenta­
ção, trabalhadora sem ruído e sem precipitação. Não
somente achava tempo para gerir o seu comércio e a
sua casa, educar os dois filhos, Aléxis e Prokhore,
vigiar a construção da igreja, mas ainda empreendeu
receber em sua casa, educar, dotar e casar convenien­
temente, órfãs cuja sorte, nesses tempos, era das
mais tristes.
Encontram-se ecos da boa ordem que reinava na
casa de Agata, em certos conselhos que seu filho
prodlgallzava ulterlormente e em que se tratava de
varrer bem seu quarto, ao levantar, "com uma boa
vassoura", bem como Imediatamente acender o fogo
do samovar, "sendo a égua quente boa para a alma,
tanto quanto pera o corpo". Com toda a probabilidade
foi de sua mãe que ele herdou o amor pelo traba­
lho bem feito, o horror à preguiça e os olhos de um
azul muito puro.
Prokhore tinha sete anos quando, pela primeira
vez, o "sobrenatural" se fez pressentir nesta calma

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existência provinciana. Durante uma visita, em com­
panhia de sua mãe, à igreja em construção, caiu do
alto dos andaimes que cercavam o campanário e se
levantou indene.
Aos dez anos - já ia à escola - uma doença,
cuja natureza se ignora, esteve a ponto de arreba­
tá-lo. Ágata desesperava da vida de seu filho quando
ele a informou de um belo sonho que acabava de ter:
a Virgem Santa tinha-lhe aparecido para anunciar que,
em pessoa, viria curá-lo. Ora alguns dias mais tarde,
um ícone de Nossa Senhora de Koursk, considerada
miraculosa, foi levado em procissão pelas ruas da ci­
dade. Ao aproximar-se da casa de Mochnine, desen­
cadeou-se uma tempestade acompanhada de chuva di­
luviana. Para proteger o ícone introduziram-no no pá­
tio. Ágata aproveitou para descer seu filho e o doente
foi curado. Fato sensacional, como se lê, por vezes,
nos jornais? Pequenos "milagres" anódinos que, ao
menos uma vez em sua existência consolam os cren­
tes? Mas havia mais.
"Feliz és tu, ó viúva", disse certo dia à valente
Agata que, com seus dois rapazes, com ele se en­
controu na rua, um "louco em Gristo" que tinha fama,
como muitos dos seus semelhantes, de conhecer o
futuro, "feliz és tu por ter um filho que se tornará
poderoso intercessor perante a Santíssima Trindade,
um homem de oração para o mundo inteiro".
Um louco em Cristo? Mal representamos a Rús­
sia sem estes seres de olhos claros, fala enigmática,
gestos desordenados, muitas vezes simbólicos, como
os dos antigos profetas, passeando seminus - ou
nus, slmplesmente, como Isaías - sem abrigo para o
frio e a neve, dormindo sob os pórticos das igrejas,
&arrestando pelo chão grossas cadeias, impondo-se ter­
rlvols penitências, escolhendo como ascese suprema
o 11lmulacro da loucura. Para um ocidental de espírito
cnrtoslano, o próprio fato de lançar esburacado man­
to do truão sobre a sua inteligência é prova de de-
1,lorável falta de equilíbrio. No Oriente, o ponto de

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vista é outro. Loucos em Cristo (!''saloi") existiam em
Bizâncio, e a Rússia canonizou trinta e cinco deles.
Durante a vida, alguns foram perseguidos e maltrata­
dos. Desejando a cruz, procuraram o opróbrio. Entre
eles há, certamente, histéricos e impostores, mas os
verdadeiros yourodivi eram autênticos filhos de Deus,
esses "pequeninos" que o Pai tinha colocado no lu­
gar dos hábeis e dos sábios, a fim de que os simples
possam reconhecer-se neles. E o povo russo, sempre
ávido de Justiça-Verdade (Pravda), reconhecia-se efe­
tivamente nestes contestadores de um Estado tirânico,
de uma Igreja multo bem estabelecida, de um cristia­
nismo superficial ou hipócrita. Pela boca dos youro­
divl, ele dizia o que pensava aos grandes deste mun­
do, afrontava sem temor os príncipes cruéis. O mais
célebre destes pequenos profetas - um grande san­
to - morto no século XVI, está enterrado em Mos­
cou, na Praça Vermelha, nessa igreja de multicor e
extravagante beleza que traz o seu nome: Basílio, o
Bem-aventurado.
Ignoramos por quais excentricidades o louco em
Cristo, de Koursk, terá ganho os seus galões de you­
rodivi - seu próprio nome ficou desconhecido - mas
sabe-se que, na época em que se dirigiu à viúva Moch­
nine, ele já gozava da veneração dos seus conci­
dadãos. Terá ela ficado impressionada com a sua pre­
dição? Seu filho era "criança predestinada"?
O caráter de Prokhore fortalecia-se. Ele perten­
cia a uma raça virll. A cidade de Koursk está situada
na fronteira das estepes. Desde sempre, seus habi­
tantes tinham sido chamados a se baterem contra in­
vasores. A peça de sabor medieval "A tropa de lgor"
descreve-os como segue: "Enfaixados debaixo dos
clarins, alimentados na ponta das lanças, seus arcos
retesados, as golllhas abertas, como lobos cinzentos,
eles galopam nos campos buscando para eles a honra,
para seu príncipe: a glória".
Avido de heroísmo, não eram no entanto os fei­
tos dos guerreiros que entusiasmavam o jovem Prok-
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hore Mochnine. Sonhava com outras lutas. Comba­
tes mais perigosos o atraíam: as proezas ascéticas
dos santos opondo-se às forças do demônio.
Agata ter-se-á surpreendido quando ele pediu a
aua bênção para ir, em companhia de cinco outros
Jovens filhos de comerciantes, em peregrinação a
Kiev, rezar no Mosteiro das Grutas para alcançar co­
nhecer a vontade de Deus acerca do seu futuro? Pro­
vavelmente não. Saberia ela que esse louco em Cris­
to, do qual seu filho se fizera amigo, exercia sobre
ele Influência sempre crescente? Uma coisa era cla­
ra: o comércio familiar de que o mais velho dos Moch­
nlne, Aléxis, se ocupava não interessava ao mais
novo. Kiev era uma cidade santa, "a mãe das cidades
russas", onde, em 989, o Príncipe Vladimir tinha bati­
zado o seu povo no Dnieper, onde um egresso do mon­
te Atos tinha fundado o célebre "Mosteiro das Gru­
tH", matriz de cultura cristã no país inteiro. Prokhore
encontraria aí a resposta que ele procurava? Ela foi­
lhe dada por um velho staretz de nome Dositeu, que
■provou o seu desejo de entrar na vida religlosa e o
orientou para um mosteiro de que ·· o Jovem já ouvira
filar: o "Deserto de Sarov".
"Vai para lá sem temor", teria dito Doslteu, "e
fica lé. 1: ali que salvarás a tua alma. 1: também
lá que terminarás a tua peregrinação terrestre.
Familiariza-te com o pensamento constante de Deus.
Apela pa­ra o seu nome. E o Espírito Santo virá
habitar em ti e guiará a tua vida em plena
santidade".
Prokhore estava exultante. Era precisamente
para o Deserto de Sarov que se sentia atraído.
Vários dos seus concidadãos já se encontravam lá.
Mas foi mutuamente dolorosa a separação de sua
mãe. Ele se lançou aos seus pés. Banhada em
lágrimas, ela deu­lhe a beijar os r cones familiares e
colocou-lhe no pescoç0 uma cruz de cobre, de forma
octogonal, sobre a qual estava representado o
Senhor crucificado. Esta cruz nunca abandonou o
filho de Agata. Até a sua morte, trouxe-a em evi-
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dência no peito e pediu que, depois de morto,
a colocassem no seu caixão. Depois, com o bordão
de caminhante .fia mão, em companhia de dois dos
seus cinco amigos, com os quais fizera a
peregrinação a Kiev, tomou a estrada. Cerca
de seiscentos quilômetros separavam Sarov de
Koursk.
O deserto
A palavra "deserto", em hebraico, significa algu­
ma coisa ou alguém abandonado - à natureza, aos
animais - uma "terra que não é semeada" (Jr 2,2).
Em russo, poustynia: deserto vem de pousto, pous­
tota: o vazio. O sentido profundo dos dois termos é
idêntico. Pode-se, no deserto, estar abandonado por
Deus ou inteiramente abandonado a Deus. É no vazio
de todas as coisas, e particularmente de nós mesmos,
que podemos aproximar-nos de Deus após termos re­
pelido as tentações propostas pelo seu adversário.
Foi ao deserto que, tal qual os profetas do Antigo
Testamento, ele foi conduzido, "impelido" pelo Espí­
rito Santo; aí Cristo obteve, sobre Satanás, a sua pri­
meira vitória.
Neste sentido, o deserto não é, obrigatoriamente,
uma &xtensão de areia como o Saara. Para os russos,
a floresta que ocupava grande parte do seu território
- imenso, quase virgem - fazia as vezes dele. E a
tradicional santidade ortodoxa florescia aí tanto co­
mo na Síria, na Palestina ou no Egito.
O monge ortodoxo não é missionário. Ele não vai
pregar como um franciscano ou um dominicano. Para
se encher de Deus ele se esconde. Mas, uma vez es­
palhado à sua volta o odor das suas virtudes, a sua
missão torna-se espiritual, cultural, social. Um dos
maiores santos russos, Sérgio de Radonege (1314-
1392), que pôde ser chamado o "Moisés" do seu povo,
ao qual Insuflou a cor�gem necessária para sacudir
o jugo mongol, conselheiro dos grandes, amigo dos
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pequenos, após ter começado por se enclausurar na
espessura dos bosques, acabou hegúmeno da céle­
bre Laura da Santíssima Trindade - hoje Zagorsk -
cuja importância na história da Rússia foi enorme e
permanece considerável. São Paulo de Obnorsk, no
século XV, conseguiu manter-se, durante três anos,
sem que alma viva o descobrisse, no tronco oco de
uma velha tília. Somente os animais conheciam o seu
retiro. Quando rezava, as aves cantavam sobre os
seus ombros. Morreu na idade de cento e doze anos
cercado de discípulos.
A floresta de Sarov, situada ao norte de Tambov
e ao sul de Nizhni-Novgorod, no centro da Rússia, pos­
suía tudo o que é requerido para servir de "deserto".
"Floresta muito grande", diz uma velha crônica, "com
carvalhos, abetos e outras árvores; e nesta floresta
múltiplos animais: 'ursos, alces, raposas, martas; e
nas margens dos rios Satis e Sarovka, castores e lon­
tras..." Ela apenas era freqüentada por caçadores pro­
fissionais fineses da tribo Mordva. Quando os russos
penetraram nela impelidos pelos tártaros, os nativos
ae retiraram. Na confluência dos dois rios, os tárta­
ros construíram um campo ent"rincheirado, mas, de
pois da vitória de Demétrio Donskoi no Campo das
Galinholas (1380), também eles partiram.
A floresta fechava-se sobre si mesma, servindo
de entro aos salteadores e aos fora da lei. No século
XVII, somente um monge de nome Teodósio ousou
modelar uma cabana no aterro do velho campo.
Assaitado pelos malfeitores, teve de partir. Um
outro, Guérassime, tomou o lugar dele. Apenas
um terceiro, lsaac, no início do reinado de Pedro, o
Grande, fundou um mosteiro e o dotou de severa
regra. A licença pare construir uma igreja foi dada
pelo último patriarca de Moscou. Entusiasmados, os
monges ergueram­na em cinqüenta dias. Conta-se
que, durante a sua conaegreção, alegres carrilhões
fizeram vibrar a floreste. De onde vinham? Nem no
novo mosteiro, nem nos arredores havia um único
sino.
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O que é mais miraculoso/ talvez, embora mais
prosaico, é que o u Deserto de Sarov" tenha podido
ser fundado, que tenha podido desenvolver-se e pros­
perar, num momento da história russa tão pouco pro­
pício ao monaquismo. Pedro, o Grande, tinha imprimi­
do ao seu país uma orientação segundo o Ocidente.
A herança de Bizâncio, compreendendo a sua cultura
religiosa, devia ceder o lugar a rudimentos de técnica
moderna importados da Holanda. O Patriarcado foi
abolido. Os mosteiros, "gangrena do Estado" e os
monges, u esses mandriões", eram votados ao desa­
parecimento. As casas religiosas foi baixada a inter­
dição de receberem noviços. Os estudos eram pros­
critos, o monge em cuja cela fossem encontrados pa­
pel e tinta eram passíveis de castigos corporais.
Continuando a política de seu antecessor, Cata­
rina li ordenou o fechamento de todos os mosteiros
do Império. O ucasse nunca foi completamente exe­
cutado. Mas houve perseguições religiosas que fize­
ram vítimas inocentes. O hegúmeno Isaac, do u De­
serto de Sarov", doce e santo velho que por sua com­
preensão e bondade reconduziu à Igreja antigos fiéis
dispersos nos bosques vizinhos, foi acusado de ativi­
dades subversivas contra o Estado e levado acorren­
tado a São Petersburgo onde, após três anos de so­
frimentos, morreu na prisão. Seu sucessor, Efrém,
passou quinze anos sem se lamentar, na fortaleza de
Oremburgo. Reabilitado, retornou a Sarov e foi ree­
leito hegúmeno. Era um aficionado e fino conhecedor
de música religiosa, monge exemplar, estimado pela
sua grande misericórdia para com os pobres e os des­
graçados. Durante a fome de 1774, albergou e ali­
mentou no mosteiro, com risco de morrer de fome
com seus monges, centenas de refugiados. Para suce­
der-lhe nomeou o pedre Pakhome, originário de Koursk,
sob cujo báculo pastoral o jovem Prokhore Mochnine
devia colocar-se. Apesar dos incêndios e ataques dos
salteadores que várias vezes teve de sofrer, o mos­
teiro, em setenta anos de existência, tinha-se amplia-

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do e embelezado. A pobre capela de madeira, cons­
truída em cinqüenta dias, tinha dado lugar a uma igre­
ja de pedras brancas cujas cruzes douradas brilha­
vam acima do muro do recinto, na confluência dos
rios Satis e Sarovka, cujos meandros caprichosos se
perdiam sob as abóbadas sombrias da floresta.

O noviço

Foi em fria tarde de novembro: no dia 20 de no­


vembro de 1778, vigília da Apresentação da Virgem
Santa no Templo, que, ao termo de longo caminho,
Prokhore e seus companheiros perceberam, enfim,
através de grandes abetos negros, os muros brancos
do mosteiro. Na igreja cantavam-se as vésperas. Na
doce penumbra, os,círios ardiam diante do rosto dos
lcones. Prokhore amava a severa disposição do ofício,
a melodiosa fusão das vozes na harmonia do coro.
Tudo estava bem.
No dia seguinte, dia da Apresentação no Templo,
o Jovem apresentou-se ao hegúmeno. Tinha dezenove
anos e era belo: alto, esbelto," largo de ombros, de
cor clara, pomos ligeiramente salientes, nariz afilado,
olhos muito azuis. Havia nele alguma coisa de são,
virginal e forte. Originário como ele da cidade de
Koursk, o padre Pakhome recebeu-o com bondade.
Provindo ele também de família de comerciantes, na
1ua Juventude conhecera os pais de Prokhore. Cati­
vado pela franqueza do jovem, pela limpidez do seu
olhar, afeiçoou-se a ele desde o começo.
Enquante noviço, Prokhore foi nomeado servente
de ceie do padre ecônomo. Em seguida foi submetido
a diferentes trabalhos que, nos mosteiros do Oriente,
11 chamem "obediências". Sucessivamente ele foi pa­
deiro, marceneiro, sacristão. Como São Sérgio, foi o
oficio de carpinteiro - o de Cristo em Nazaré - que
ole preferiu. Mostrou-se nisso tão hábil que o apeli­
daram de "Prokhore o Carpinteiro". Artista na alma
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como muitos russos, fabricava com amor, de madei­
ra de cipreste, pequenas cruzes que os peregrinos
compravam de bom grado. Dotado de força física pou­
co comum, ajudava também os monges no corte e
no transporte dos abetos por água. "O trabalho físico
e a familiaridade da Sagrada Escritura contrihuem
para guardar a pureza", dizia ele, seguindo Santo
Isaac, O Sírio, um dos seus autores preferidos.
Amavam-no, no mosteiro, pelo seu calor e o seu
bom humor. "Que eu era alegre! ... " dirá mais tarde a
uma religiosa. "A alegria não é pecado, Matoush­
ka,1 pelo contrário. Ela dissipa a fadiga e da fadiga
provém o desencorajamento, nada pior!
Quando entrei no mosteiro, cantava no coro.
Acontecia por vezes que, estando os irmãos fatiga­
dos, os cantos se ressentiam disso, não vindo alguns
cantar. E eu, com minha alegria, estava tão contente!
Quando eles se reuniam todos, eu lhes dizia alguma
coisa engraçada e eles esqueciam sua fadiga. Na casa
de Deus é errado falar ou fazer seja o que for de mal,
mas uma palavra benévola, divertindo, encorajando,
não é pecado, Matoushka. Ela ajuda o espírito do ho­
mem a manter-se na alegria perante a face de Deus."
O futuro padre Serafim já está inteiro nesta pe­
quena arenga, fielmente reproduzida: seu falar carac­
terístico, propositadamente !JOpular, bom menino: seu
hábito de tratar por "tu" seus interlocutores chaman­
do-os "minha alegria", o que em russo soa menos
estranho do que em português; seu horror ao desenco­
rajamento e ao pessimismo.

1 A língua russa é partlcularrnente rica em diminutivos, cons­


tantemente empregados, como • Batioushka • - paizinho, • Matioushka •
- mãezinha. Ridículos em português são, em russo, tão respeitosos
quão carinhosos. Usam-se quando nos dirigimos a um sacerdote,
a uma religiosa mas, em certos casos, podemos também empregar
familiarmente "batioushka" por "senhor" e "matioushka" por "se­
nhora". Empregam-se também corrrentemente, em russo, expressões
afetuosas como "dusha moia" - minha alma; "golubtchik moi"
meu pequeno pomho, "radost moia" - minha alegria. que era a
expressão favorita de Prokhore Mochnlne, conhecido mais tarde como
Serafim de Sarov.

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A despeito de tão felizes disposições, não é pre­
ciso crer que o noviciado deste moço transbordante
de vida, gostando de cantar, sensível à beleza, se
passasse sem choques. "Até os trinta e cinco anos,
Isto é, até a metade da nossa vida terrestre n, con­
fessará ele mais tarde, "grande é o esforço de que é
preciso se prover para se guardar do mal. Numerosos
são aqueles que não chegam a isso e que se desviam
do caminho reto para seguirem as suas próprias in­
clinações".
Que fazer para perseverar? Uma série de con­
selhos, prodigalizados a um postulante, lança certa
luz sobre os anos jovens de Prokhore o Carpinteiro.
EI-ios:
"Seja qual for a maneira como você entrou no
mosteiro, não perca a coragem: Deus está aí. A vida
monástica não é fâcil. Não se deve, à primeira decep­
ção, pensar em deixar um mosteiro por outro. O no­
viço deve ter a vontade de perseverar.
Vivendo nesta santa casa, faça isto: na igreja,
esteja atento, familiarize-se com os ofícios, vésperas,
completas, vigílias noturnas, m�tinas, leituras das ho­
ras. Durante a liturgia, permaneça em pé, com os
olhos fixos num ícone ou num círio. Que a peste
das suas distrações não se misture com o incenso
da salmodia. Na sua cela, aplique-se à leitura, sobre­
tudo do Saltério. Releia várias vezes cada versículo,
o fim de o guardar na memória. Se tem trabalho, fa­
ça-o. Se o chamam para uma obediência, vá. Ao tra­
balhar, repita continuamente a oração:
'Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tende piedade de mim, pecador'.
Ao rezar, unifique o seu espírito e una-o ao co­
rnção. No começo, um dia ou dois, ou mais, reze com
n sua Inteligência, pronunciando separadamente cada
pnlavre. Depois, quando o Senhor tenha aquecido o
■eu coração pela graça em união com o Espírito, a
11uo oração fluirá sem interrupção e estará sempre con-

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sigo, alegrando-o e alimentando-o. Quando você es­
tiver de posse deste alimento espiritual, isto é, a
conversa com o próprio Senhor, por quê ir às celas
dos irmãos mesmo que eles o convidem? Em verdade
eu lhe digo: o amor à conversa é, também, o amor
à preguiça. Se você não se compreende a si mesmo,
do que é que pode discorrer com os outros, o que é
que podem ensinar-lhes? Cale-se. Cale-se o tempo to­
do, lembre-se sempre da presença de Deus e do seu
nome. Não entre em conversação com ninguém, mas
guarde-se de criticar os galhofeiros e os bem-falantes.
Seja surdo e mudo.
-
No refeitório, não repare no que os outros co-
mem e não juigue, mas dê atenção a si mesmo, ali..
mentando a sua alma com a oração. Ao meio-dia, coma
até fartar. A noite, abstenha-se. A gula não é ocupação
de monge. Na quarta-feira e na sexta, se possível. to­
me apenas uma refeição e o Anjo do Senhor se ligará
a você. No entanto, é preciso tomar bastante alimen­
to para que o corpo, reconfortado, seja um auxiliar
para o homem, no cumprimento do seu dever. De ou­
tro modo, pode acontecer que, estando o corpo enfra­
quecido, a alma vergue. O jejum não consiste apenas
em comer raramente, mas em comer pouco. Não pro­
cede segundo a razão o jejuador que, tendo esperado
com impaciência a hora da refeição, se entrega com
voracidade - corporal e mental - a consumir a ali­
mentação. O verdadeiro jejum, aliás, não consiste ape­
nas em dominar o seu próprio corpo, mas em se pri­
var, a fim de dar pão àquele que o não tem.
Não durma, todas as noites, menos de quatro
horas: a décima, a décima primeira, e décima segun­
da e uma hora depois da meia-noite. Se você se sente
fatigado pode, depois do meio-dia, fazer uma sesta...
Foi o que eu fiz desde a juventude. Conduzindo-se as­
sim, você não estará triste, mas passará bem de saú­
de e estará contente. E você permanecerá no conven­
to até o fim dos seus dias".

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A primeira virtude do noviço deve ser a obediên­
cia, melhor remédio contra o tédio, doença perigosa
que a um principiante é difícil evitar, a menos que
alga estritamente as ordens dadas por seus superio­
res. Ao mesmo tempo que a obediência, o jovem mon­
ge deve praticar a paciência. Sem murmurar, é preciso
suportar vexações e injúrias.
"O hábito monástico: é a aceitação das ofensas
e das calúnias n. Um monge deve ser semelhante a
uma velha chinela, usada até a corda. Deve ser como
o pano que um fabricante de panos bate, pisoteia, so­
va, lava, a fim de torná-lo branco como a neve. "Sem
provações não há salvação. Não nos tornamos monge
■em possuir a oração e a paciência, tal como não se
vai à guerra sem levar armas. n
Um escolho: as mulheres.
"Evite, como o fogo, essas gralhas pintadas. Mui­
taa vezes elas transformam um guerreiro do rei em
eecravo de satã. As virtuosas são de evitar tanto quan­
to as outras. Tal como a cera de um círio, mesmo
■ pagado, não pode deixar de derreter quando está
cercado de círios que ardem, o coração de um monge
• eempre enfraquecido por um comércio com o sexo
feminino.
Desde a entrada no mosteiro e até a morte, a
vida do monge não é senão luta terrível contra o
mundo, a carne e o diabo. Não é monge aquele que
gosta de pavonear-se; não é monge aquele que, em
tampo de guerra, cai por terra e deixa de combater. n
Estes conselhos são os de um homem amadure­
uldo. Mas refletem os problemas de todos os jovens
rallglosos de todos os tempos.
Proveniente do fundo das idades, uma voz parece
ra ■ ponder: "E monge aquele que fortalece o seu co­
r ■ Qfto e espira encerrar o Incorporal em uma morada
ele carne". E São João Clímaco, hegúmeno no século
VII, no mosteiro de Santa Catarina no Sinai, quem fala.
01 anos nade mudaram nos preceitos da ascese, ao
m1no1 na ortodoxia.

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A herança do hesicasma2

"Ao trabalhar, repita continuamente a oração: 'Se­


nhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de
mim pecador'... Lembre-se, sempre, da presença de
Deus e do seu santo Nome"... Em Kiev, o "velho" Do�
siteu não dissera a mesma coisa?
A lembrança constante da presença divina e a
invocação do santo Nome de Deus, impronunciável
por causa do terrível poder de que estava carregado
e que se substituía por outros: Javé, Eloim, Adonai,
remonta à mais alta antiguidade bíblica. Na oração
ensinada por Cristo aos seus discípulos, a primeira
petição é: "Santificado seja o vosso Nome". O nome
de Jesus, no qual desde o início da sua pregação os
apóstolos tinham posto ênfase, que eles invocavam
para curar as doenças, representava uma força, bem
como fonte de salvação. Eis porque os membros do
Sinédrio proibiam de o pregar (At 4,17-18; At 5,28.40-
41). Em sua epístola aos Filipenses, São Paulo, ao
falar de Cristo, escreve: "Por isso Deus o sobreexal­
tou grandemente e o agraciou com o Nome que é
sobre todo o nome, de modo que, ao nome de Jesus,
se dobre todo o joelho dos seres celestes, dos terres­
tres e dos que vivem sob a terra, e, para glória de
Deus, o Pai, toda a língua confesse Jesus é o Senhor"
(FI 2,9-11). Jesus glorificado é o Ungido, o Senhor.
Ao Nome de Jesus, expressando a sua glória, é ine­
rente uma força salvífica e vivificante, daí a propa­
gação progressiva entre os monges, e depois entre
todos os cristãos, da "oração de Jesus".
O Nome de Jesus implica a sua presença. "Entre
o Nome e aquele que o Nome invoca não se poderia
introduzir sequer uma lâmina de barbear", disse um
teólogo russo contemporâneo.3
2 Doutrina mística originada no monte Atos e que suscitou, em
Blzlnlco, uma discussão entre 1341 e 1351 (N. do T.).
3 Paul Florensky. citado por • Anônimo" num caderno mimeo­
grafado oriundo da URSS (em russo).

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A qualquer pessoa presente, fala-se. Falar a Deus
é rezar. uorai sem cessar", diz São Paulo (1Ts 5,17).
Mas, entregue a si mesmo, o homem tem dificuldade
de rezar, por pouco que seja, mesmo raramente.
Por sorte, uo Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois
não sabemos o que pedir como convém; mas o pró­
prio Espírito intercede por nós com gemidos inefá­
veis" (Rm 8,26). Não podemos separar Jesus e o
Espírito Santo.
Mas o Espírito fará a sua morada num ser de
pensamentos divagantes, de veste manchada pelo pe­
cado? Certamente não. Para começar, é preciso arre­
pender-nos. Depois, pôr em guarda o coração, para
Impedir o acesso das tentações, dos pensamentos
nocivos e desta louca da casa, a imaginação, da
qual o inimigo se serve para extraviar os inexpe­
rientes na persegutção de visões pseudocelestes. 1:
por Isso que os conselhos dados aos postulantes es­
tipulam: uAo rezar, esteja atento ao que diz, isto é,
unifique o seu espírito e una-o ao coração" (a união
da Inteligência ao coração, considerada como centro,
• Indispensável). u Depois, quandq o Senhor tiver aque­
cido o seu coração mediante a graça, em união com
o Espírito, a sua oração fluirá sem interrupção..." Es­
te modo de orar, nascido no deserto, elaborado nos
mosteiros do Oriente através dos séculos, tornado
verdadeira doutrina aceita pela Igreja, recebe o nome
de, heslcasmo do grego esukía: paz interior, calma,
tranqüllldade.
Ele tem dois cumes. Um é atingido quando a
oração, tornada parte integrante do homem, não é
mnls algo que o homem diz, mas algo que nele é dito.
• Quando o Espírito estabelece a sua morada no ho­
mem, este não pode mais parar de rezar, porque o
ENplrlto não cessa de orar nele... Daí por diante, ele
nlo concilie a oração por períodos de tempo determi­
nados, mas em todo o tempo". Mesmo quando está
■m vlafvel descanso, a oração é assumida secreta­
monte nele porque uo silêncio do impassível é ora-

23
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ção", diz Isaac, o Sírio.4 "Os seus pensamentos são
moções divinas, os movimentos do Intelecto purifica­
do são vozes silenciosas que cantam no íntimo esta
salmodia ao invisível." Mas o Sírio apressa-se a acres­
centar: "Dificilmente se encontrará, em uma geração
Inteira, um homem que tenha acesso a este conheci­
mento da glória de Deus".5
O segundo cume é inundado por uma luz que a
ortodoxia qualifica de incriada. Apesar da interdi­
ção que lhes era feita de "meditarem" sobre tal ou
qual episódio da vida de Cristo, de permitir que se
formassem imagens no seu espírito, os adeptos da
"oração de Jesus" tinham algumas vezes visões lu­
minosas que nem eram eieito da sua imaginação, nem
de uma luz meteorológica simbolicamente interpre­
tada, mas uma teofania - uma revelação divina -
tão real como a do monte Tabor prefigurando a glória
do Ressuscitado, bem como a luz sem declínio que
iluminará a Jerusalém Celeste e cuja luminária será o
Cordeiro (Ap 21,23). Um grande místico do século XI,
hegúmeno do mosteiro de São Mamas em Constanti­
nopla, São Simão, que a Igreja honra com o título de
"Novo Teólogo", foi o inspirado cantor desta Luz­
Espírito.
Os monges de Sarov estavam ao corrente da dou­
trina e das práticas hesicastas? Segundo os conse­
lhos prodigalizados ao postulante e que nós acaba­
mos de citar, a resposta é afirmativa. Desde o início
do século XIV se propagaram escritos sobre o hesi­
casmo através dos países eslavos e atingiram a Rús­
sia. São Sérgio de Radonege tinha conhecimento de­
les? A experiência da luz incriada não lhe era estra­
nha. No século XV, São Nilo de Sora, eremita da "Te­
baida do Norte" no Além-Volga, que falava corrente­
mente o grego, tendo permanecido muito tempo no
monte Atos, deixou aos seus descendentes espiri-
4 Mystlc Treatlses by Isaac of Nlnlveh, traduzido por A. J. Wenslnk
(Amsterdam, 1923), p. 174.
5 Ibidem, p. 113.

24
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tuals uma Regra inspirada pelos grandes mestres da
doutrina hesicasta: João Clímaco, Isaac de Nínive, Si­
mão, o Novo Teólogo... Os textos que dela se conser­
vam "constituem simultaneamente exemplo surpreen­
dente de fidelidade absoluta à tradição hesicasta bi­
zantina e de notável simplicidade espiritual que ca­
racterizava a própria pessoa de Nilo e que constituirá
o traço surpreendente dos santos russos posterio­
res". Isto convém reter: "Os santos russos", escreve
o padre Meyendorff, "ao terem menos interesse pela
especulação teológica, contribuíram muitas vezes, me­
diante certo lirismo cósmico, para humanizar a mís­
tica hesicasta; eles acentuaram, muito mais do que
os gregos, as implicações sociais do monaquismo
eremítico".6
As dificuldades e mesmo as perseguições que a
Igreja russa conheceu no decorrer do século XVIII não
conseguiram, como vimos, esvaziar a alma russa do
aeu desejo de Deus. Mais num�rosos do que nunca,
us peregrinos sulcavam o Império à procura desta Ver­
dade-Justiça que a vida sobre a terra parecia recusar.
E els que alguns dentre eles se puseram a importar
da Moldávia excelentes notícias: -havia lá, nos confins
da Romênia, um monge russo, um verdadeiro staretz,
Palssy Velitchkovsky, em torno do qual a vida monás­
tica se tinha organizado de acordo com as mais au­
tênticas tradições. Milhares de monges se haviam já
reunido no seu mosteiro. Quanto ao próprio Paissy,
que falava várias línguas, traduzia infatigavelmente
do grego (num momento em que os monges, na Rús-
11la, estavam em princípio privados do direito de estu­
dar e de escrever) as obras da literatura patrística e,
nobretudo, as obras dos santos hesicastas com as
,,uals se tinha familiarizado durante permanência pro­
longada no monte Atos. O único retrato que se pos-
1ul dele representa-o frágil, sob as largas pregas de
um manto monacal e o doce rosto comido por um par
e Jean Meyendorff. Saint Gr6golre Palamas et la Mystlque Ortho­
doH, Ed. du Seull, "Maitres Splrltuels", p. 151.

25
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de olhos enormes. Dizam-no muitas vezes doente.
Acaçapado em sua cama como uma criança, mas cer­
cado de dicionários, ditava a vários secretários as
suas traduções. Sua influência na Rússia foi enorme.
Nos fins do século XVIII e começos do XIX, encon­
tram-se por toda a parte discípulos seus ou os discí­
pulos destes últimos. Dositeu de Kiev, que orientou
Prokhore Mochnine para o Deserto de Sarov, foi um
deles. Porém, nada daquilo que Paissy traduziu teve
êxito comparável ao da Filocalia - em grego "Amor
do Belo", em russo Dobrotolyubie: "Amor do Bem"
- co�etânea de adágios patrísticos, publicada em 1782,
em Veneza, por um bispo grego exilado de sua dio­
cese pelas autoridades otomanas locais, Macário de
Corinto (1731-1805), em colaboração com um monge
do monte Santo, Nicodemos, o Hagiorita (1749-1809).
Sem preocupação com as repetições, esta coleção
continha uma série de textos cujos autores eram
grandes contemplativos hesicastas, a começar pelos
Padres do Deserto e até os restauradores do século
XIV.7 A tradução russa apareceu em São Petersburgo
em 1793, no final do reinado de Catarina 11, graças
aos esforços do eminente metropolita Gabriel. Porém,
vê-se que dezesseis anos antes da sua aparição ofi­
cial, Dositeu de Kiev estava já familiarizado com o
espírito do seu conteúdo.

A doença

Hesicasta consciente ou não, o zelo que Prokhore,


o Carpinteiro, empregou no Deserto de Sarov esteve
a ponto de levá-lo à tumba. Pensa-se que a sua doen­
ça era hidropisia. Sofreu dela três anos e ela acabou
por pregá-lo à cama. O recurso à medicina não está
na tradição monástica. Não há médico no monte Atos.
Todavia, desesperando da vida do seu preferido, o
7 Cf. Petlte phlloca!la de la prlitre du coeur, tradulte et présentée
par Jean Gouillard, Ed. du Seull.

26
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padre abade, que não deixava mais a sua cela, estava
prestes a mandar procurar, na cidade, um médico,
quando, com pasmo de todos, o doente sarou. Que
se teria passado? Não se soube senão muito mais
tarde.
A Virgem Santa que, em Koursk, tinha vindo sob
a forma de um ícone salvar a criança doente, tinha
retornado, desta vez em pessoa, para salvar o jovem
noviço do Deserto de Sarov. Ela estava acompanhada
dos apóstolos Pedro e João. Voltando-se para eles,
ela pronunciou estranhas palavras: u Ele é da nossa
raça", disse designando o moribundo. Estas coisas
não se inventam. Como teriam elas vindo ao espírito
de um aspirante à humildade? u A sua mão direita",
contava ele na sua velhice, u pousou-a na minha fron­
te. Na sua mão esquerda ela segurava um cetro. Com
este cetro, tocou o pobre Serafim. Nesse lugar - so­
bre o quadril direito - cavou-se um buraco. Foi por
lé que a água se escoou. E foi assim que a Rainha
do Céu salvou o humilde Serafim". Uma profunda
cicatriz, no quadril, testemunhava o milagre.

Monge. Diácono. Sacerdote

Serafim ... Oito anos depois da sua entrada no


Deserto de Sarov, Prokhore, com vinte e sete anos
de Idade, achado digno de trazer o hábito monástico,
foi recebido a 13 de agosto de 1786 na comunidade
do Deserto. Sem lhe pedirem a opinião, impuseram­
lhe o nome de Serafim que, em hebraico quer dizer
H flamejante". Em breve deveria ser ordenado diácono.
A'1tes, porém, tinha que desonerar-se de uma dívida
do gratidão: com a bênção de seus superiores partiu
n fim de reunir fundos para a construção de uma
pequena igreja acima da cela, testemunha dos seus
1ufrlmentos e onde fora visitado e curado.
1: desnecessário dizet que, no decorrer deste fa­
t loante passeio através do país, ele teria Ido até
27
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Koursk, abraçado uma última vez sua mãe, e teria
predito a seu irmão Aléxis que o seguiria de perto
na tumba o que, passado o tempo, ocorreu. Mas nun­
ca se pensou na impressão que esta longa caminhada
através da terra russa terá podido deixar num homem
jovem marcado pelo sofrimento e, por isso, parti­
cularmente receptivo.
A Rússia era então feliz? Foi alguma vez? O lon­
go reinado de Catarina 11, exteriormente brilhante,
não trouxe ao povo senão males suplementares. Cris­
to se encarnava nos sofrimentos do povo. Um poeta
escreve:
"Vergando sob o peso da cruz,
Tendo tomado o aspecto de escravo,
Tu percorreste, ó Rei do Céu,
Toda a nossa terra natal
Abençoando-a 8 11

A obsessão de um reino camponês, ideal e santo,


com sua "justiça florestal permanecia viva na alma
II

popular que guardava no mais íntimo de si mesma


o sonho de uma Jerusalém russa com seu Czar Bran­
co e seu Cristo Peregrino.
Poderíamos perguntar-nos se o conhecimento
aprofundado que ele mais tarde mostrará da vida do
povo não terá vindo, ao padre Serafim, ao menos em
parte, desta lenta marcha através de pobres regiões
brutalizadas por cruéis Injustiças mas, em companhia,
talvez, de peregrinos perpétuos, infatigáveis perse­
guidores da verdade?
Em Sarov, foi ordenado diácono. De novo ele
manifestou muito zelo. Demasiado, pensavam cer­
tos monges. Tinham alguma vez visto um diá­
cono preparar-se para a liturgia dominical passando a
noite em orações na igreja, Imóvel até a manhã? Ter­
minado o ofício, ele hesitava ainda em partir. Teria
gostado, como um puro espírito, de servir continua-
ª Tloutchev.
28
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mente o Senhor, esquecendo o beber e o comer? En­
quanto o corpo canti:iva, acontecia-lhe, dizia, ver pas­
sar anjos. De vestes brancas, brilhantes como relâm­
pagos, eles atravessavam a igreja cantando muito
melhor do que os monges. 1: certo, pensavam estes
últimos, que os anjos tomam parte na celebração da
eucaristia, é ortodoxo. Durante a Grande Quaresma,
nas liturgias dos pré-santificados, não se proclama:
"Hoje as forças celestes concelebram invisivelmente
conosco"? Mas o padre Serafim não exagera ao pre­
tender vê-los? Este homem calmo, sólido, equilibrado,
este bom operário que tinha sido Prokhore, o Carpin­
teiro, transformava-se num desses "místicos" que a
severa sobriedade tradicional do monaquismo orien­
tal receia como a peste?
Certo dia, foi áurante a mais solene liturgia da
quinta-feira santa, depois de ter abençoado a assistên­
cia e pronunciado as palavras: "e pelos séculos dos
séculos", em vez de se retirar, como o exigia o de­
senrolar do ofício, o padre Serafim ficou pregado no
lugar, imóvel, de todo ausente. Compreendendo que
algo de insólito se havia passado, dois diáconos to­
maram-no pelos braços e o levaram para trás da ico­
nostase. A sua imobilidade durou três horas. Retor­
nado a si, explicou ao seu confessor e ao padre
Pakhome: "Eu estava deslumbrado, como que por um
ralo de sol. Voltando os olhos para esta luz, vi nosso
Senhor e Deus, Jesus Cristo, tendo o aspecto do
Filho do Homem na sua Glória, brilhando com uma
luz inefável e cercado pelos exércitos celestes: an­
jos, arcanjos, querubins e serafins. Vindo da porta
oeste, caminhando pelos ares, ele abençoou os cele­
brantes e a assistência. Em seguida, entrando no seu
lcone perto da porta real, mudou de aspecto, sempre
cercado de ordens celestes que, pelo seu esplendor
Iluminavam a igreja inteira. Quanto a mim, terra e
cinza, fui objeto de uma bênção especial". Os velhos
monges escutavam atentamente. Depois, sábios e ex­
perimentados que eram, olham-no severamente, em
29
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guarda contra as visões em geral e as tentações de
orgulho em particular.
Mas o padre Serafim não era mais noviço. Ele
sabia que a humildade era o cimento que sustenta o
edifício da perfeição espiritual. Mas ele sabia tam­
bém que, uma vez engajado na via de união com Deus,
o homem não mais pode deter-se. "Se alguém diz:
Eu sou rico, tenho bastante daquilo que adquiri, não
tenho necessidade de mais nada, não é um cristão,
mas um vaso de iniqüidade diabólica", escreve Ma­
cário do Egito. "Pois o prazer que se experimenta
em Deus é tal que não nos podemos fartar dele.
Quanto mais o saboreamos, mais nos comunicamos
com ele, mais fome temos dele".9
O padre Serafim tinha entrado neste mundo invi­
sível ao qual poucos homens têm acesso. Mas ele
não dizia: Eu sou rico. Pelo contrário, sua sede de
contemplação não fazia senão crescer. Ordenado sa­
cerdote, ele não sentia menos o atrativo da grande
solidão do verdadeiro deserto. A contemplação de um
anacoreta é mais preciosa do que "o sacerdócio para
sempre, segundo a ordem de Melquisedec"? Há aí
um mistério.
O hegúmeno Pakhome morreu. A sua doença ti­
nha retido o padre Serafim no mosteiro. Uma vez de­
saparecido o velho, que ele cuidara como um filho,
pediu a seu sucessor, o padre Isaías, licença para se
retirar para a floresta, e deixa o mosteiro, munido de
uma dispensa oficial na forma devida. Conhecemos a
data da sua partida: 20 de novembro de 1794, vigília
da Apresentação da Virgem Santa no Templo, exata­
mente dezesseis anos após a sua entrada. Tinha trin­
ta e cinco anos, etapa importante, segundo suas pró­
prias palavras, na vida de um homem.

9 St. Macalra d'Egypte,, Ed. Laura de Salnte Trlnlté, 1904, p. 129.

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O eremita
Há uma carta escrita a um amigo pelo staretz
Paissy Velitchkovsky sobre o tema da vida eremítica
em que diz: "Você deve saber, muito querido amigo,
que o Espírito Santo dividiu a vida monástica em três
categorias: a vida eremítica; a vida em companhia de
dois ou três irmãos num skit; e a vida cenobítica.
A vida eremítica deve ser compreendida como uma
existência longe dos homens, no deserto. O eremita
entrega-se apenas a Deus: no concernente à salvação
da sua alma, à alimentação, ao vestuário e a toda a
necessidade terrestre. Apenas espera nele, em todos
os combates da alma e do corpo, porque somente
ele é sua ajuda e sua esperança neste mundo. Po­
rém, esta existência não é possível senão para os
espiritualmente am�durecidos, os inteiramente paci­
ficados. Quanto aos inexperientes que se engajam ra­
pidamente, cuidado! Se caem na sonolência, na falta
de atenção ou na perplexidade - nenhum homem se
encontrará perto deles para os reanimar! "1 º
O padre Serafim fez a experiência disso. "Aque­
les que vivem nos mosteiros", dirá ele, "lutam com
os inimigos do gênero humano como com pombas;
os anacoretas - como com leões e leopardos."
Mas, quem são estes "inimigos do gênero hu­
mano"? Contra quem, esta luta no vazio? O homem
do século XX ainda sabe que o seu destino, em gran­
de parte, depende disso?
Na opinião dos antigos, o Universo era gerado
por espíritos que governavam os astros e residiam
"nos céus" ou "nos ares". Eles coincidiam, em par­
te, com o que São Paulo chama "os elementos do
mundo" (GI 4,3). Infiéis a Deus, eles quiseram - e
conseguiram - escravizar o homem no pecado. Mas
Cristo veio livrar a humanidade da sua escravidão,
orrancá-la ao império das trevas. "Primogênito de to-
10 Une lettre du staretz Paissy Velltchkovsky sur le vle monastl­
que, 1. Smolltch, Moines de la Sainte Russle, Mame, Paris, 1967, p. 89.

31
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da a criatura, porque nele foram criadas todas as coi­
sas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis:
Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi
criado por ele e para ele (...), pois nele aprouve a
Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por
ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos
céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz" (CI
1,15-20).
Para São Paulo, a Encarnação coroada pela Res­
surreição, colocou a natureza humana de Cristo à ca­
beça não apenas de toda a raça humana, mas ainda
de todo o universo criado, interessado na salvação
como o esteve na culpa. Esta reconciliação universal
engloba todos os espíritos celestes tanto quanto to­
dos os homens. Ela não significa a salvação indi­
vidual de todos, mas antes a salvação coletiva do
mundo pelo seu retorno à ordem e à paz, na perfeita
submissão a Deus.
Mas, enquanto esperamos a vitória final, o dia
terrível da Vinda triunfal do Senhor, "quando ele en­
tregar o reino a Deus Pai ( ...) para que Deus seja
tudo em todos" (1Cor 15,21-28), nós temos de lutar.
O pecado do homem foi maldição para a terra.
Cabe a este trabalhar pela sua redenção. "Pois a
criação em expectativa anseia pela revelação dos fi­
lhos de Deus", diz São Paulo nesta admirável passa­
gem da Epístola aos Romanos, tão freqüentemente
citada (Rm 8,19-23), "(...) na esperança de ela tam­
bém ser liberta da escravidão da corrupção para en­
trar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois
sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores
do parto até o presente. E não somente ela. Mas
também nós, que temos as primícias do Espírito, ge­
memos interiormente, suspirando pela redenção do
nosso corpo."
Eis, portanto, trabalho para um místico, para um
anacoreta. A salvação do mundo depende disso. Reen­
trando em si mesmo, ele se fechará na "cela interior"
do seu coração para encontrar aí "mais profundo do
32
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que o pecado " 11 o começo de uma ascensão, no decor•
rer da qual o univers<;> lhe aparecerá cada vez mais
unificado, cada vez mais coerente, penetrado de for­
ças espirituais, não formando senão um todo na mão
de Deus.

O • pequeno deserto longínquo"


u u
A floresta que serviu de deserto ao padre Se­
rafim era imensa e sombria. Abetos se erguiam como
mastros de navios. Alguns tinham vários metros de
circunferência. Uma modesta isba situada em mar­
gem escarpada do rio Sarovka, cerca de seis quilô­
metros do mosteiro, fazia-lhe as funções de eremité­
rio. Um ícone em um canto, um fogareiro no outro,
um cepo de madeira à guisa de cadeira - é tudo.
Cama? inútil. Ele batizou o conjunto: "Monte Atos".
Um eremita, para se preservar do tédio, tem ne­
cessidade de um emprego do tempo dos mais estri­
tos. O dia do padre Serafim começava à meia-noite.
Seguia a regra de São Pacômio, o Grande, em vigor
entre os Padres do Deserto. Para 'começar, recitava o
ofício, matinas e laudes. As nove horas era a vez do
terço, sexta e noa. Enfim, à tarde ele cantava as vés­
peras e as completas. Ao cair da noite, recitava as
orações em prelúdio ao sono, acompanhadas de nume­
rosas prosternações, como os monges orientais cos­
tumam fazer. Nos intervalos, fazendo seja o que for,
a Ininterrupta oração do coração, ritmava as suas ati­
vidades. No seu imenso desejo de tudo reconduzir a
Jesus, dera aos arredores nomes bíblicos. Em "Na­
zaré" cantava os hinos akathistas à Virgem; recitava
aexta e noa no "Gólgota"; lia o evangelho da Trans­
figuração no UMonte labor" e entoava em UBelém"
o "Glória a Deus nas alturas".

11 Vladimir Lossky, Théologle mystlque de l'Eglise d'Orlent,


Aubler, Paris, p. 101.

33
, ln11ruçõe1 ...

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No entanto, a humilde e casta natureza russa não
se parecia quase nada com a longínqua Palestina. No
verão, a doçura do céu descia sobre os troncos róseos
das coníferas, os troncos prateados das bétulas, mi­
rava-se na palidez dos pequenos rios de curvas sinuo­
sas e singelas. Múltiplas flores dos campos alegra­
vam as clareiras. A floresta recendia a resina quen­
te, a musgo, a cogumelos, sussurrava com o vôo de
inumeráveis insetos dançando ao sol. De noite, ou­
via-se ao longe o coaxar das rãs, o grito das garças
nos pântanos e, abafando tudo, o ruidoso concerto dos
rouxinóis.
O padre Serafim cultivava uma horta. Como adu­
bo utilizava o musgo úmido que, dorso nu, ia buscar
nos pântanos, oferecendo "a carne rebelde" às pica­
das dos moscardos e pernilongos.
No inverno a floresta vestia-se de um manto de
arminho e tomava aspecto severo e real. Sob seus
fardos de neve, os ramos das árvores se inclinavam
como cortesãos à passagem de um soberano. Nas bre­
chas ouvia-se o passo silencioso dos lobos. O rosto
mordiscado pelo ar vivo, o padre Serafim, a grandes
golpes de machado, cortava lenha.
E vinha a primavera de sopro morno, trazendo o
odor da neve derretendo, da seiva subindo. A prima­
vera - a Ressurreição - Páscoa. Deixando seu ere­
mitério, o padre Serafim passava a primeira semana
da Grande Quaresma no mosteiro, privando-se com­
pletamente de alimento, repetindo com seus irmãos a
oração de penitência de Santo Efrém, o Sírio.12
"A oração e o jejum, a �olidão e a abstinência
formam a quadriga que arrebata a alma para o Reino
de Deus", dizia o habitante do "Pequeno Deserto Lon­
gínquo". Quanto à leitura, permanecia uma das ocupa­
ções favoritas deste homem do ar livre. O evangelho
que ele trazia num saco às costas, acompanhava-o por
toda a parte. Cada dia lia dele alguns capítulos, "abas-
12 Cf. a oração no fim das "Instruções espirituais".

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tecendo" assim a sua alma. Pois "a alma deve estar
alimentada pela palavra de Deus". "É preciso habi­
tuar-se a que o espírito esteja imerso na lei de Deus",
ensinará ele. Com efeito, freqüentemente, sua con­
versação será apenas uma série de paráfrases de tex­
tos bíblicos livremente aplicados às situações em
pauta.
"O homem tem necessidade das Escrituras por­
que ainda não está na posse do Espírito que aparta
dos erros. Mas uma vez que o Espírito se tenha apo­
derado do homem, seus preceitos se enraizarão nele,
no lugar da lei das Escrituras. Ele será misteriosa­
mente guiado pelo Espírito e não terá necessidade de
nenhuma ajuda sensível. Enquanto o coração aprende
pela mediação das coisas materiais, o aprendizado é
seguido do erro e do esquecimento. Mas quando o
ensino vem do Espírrto, a memória conserva-se intac­
ta." Doutrina ousada - ortodoxa? - que o eremita
de Sarov jamais atualizou inteiramente, já que até a
morte continuou suas leituras diárias da Bíblia, mas
que partilhava com esse "enfant terrible" da Igreja,
que é S. Simão, o Novo Teólogo. "O que tem por inter­
locutor o Inspirador daqueles que escreveram os li­
vros divinos (o Espírito Santo), que por ele é iniciado
nos arcanos dos mistérios secretos, esse é, portanto,
para os outros, um livro inspirado de Deus", escrevia
o hegúmeno de S. Mamas. 13
A solidão de um eremita chama e facilita a vinda
do Espírito. "Na descida do Espírito", dirá Serafim de
Sarov, "convém estar à escuta - absolutamente si­
lencioso. Também pela leitura que se torna supérflua
uma vez que o Espírito se apoderou do homem, a ora­
ção, à sua vinda, não tem mais necessidade de pa­
lavras."
Teria ele chegado ao estádio descrito por Isaac,
o Sírio, em que "o silêncio do impassível é oração"?
13 St. Siméon le Nouveau Théologlen, Chapltres Théologlques,
Onostlques et Patrlstlques. Cent. 3, chap. 98-100, Sources• Chrétlennes
n. 61.

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Desejando saudar o padre Serafim, os padres
Marx e Alexandre, como ele solitários, encontravam­
no por vezes na sua horta, com a pá jazendo aos pés,
o olhar perdido no céu. Ele não ouvia nem o zumbido
das abelhas à sua volta nem a aproximação dos via­
jantes. Compreendendo que seu espírito tinha "emi­
grado para Deus", suavemente eles iam embora. Po­
rém, freqüentes vezes importunos menos discretos se
obstinavam em visitar o jovem anacoreta e, entre
eles, com grande descontentamento dele - mulheres.
Já no sécu!o IV cameleiros egípcios alugavam suas
montadas a curiosos ávidos de lançar uma vista de
olhos na maneira de viver dos Padres do Deserto.
Bastava proclamar-se eremita para não mais ficar só.
Agastado, ele pediu aos superiores licença para obs­
truir, com ramos, o atalho que levava ao seu eremi­
tério e o obstruiu.

O cosmo

Os Padres afirmam que a Bíblia constitui a chave


do "Liber Mundi". "A misericórdia divina", diz Santo
Agostinho, "deu aos homens a Bíblia", este "outro
mundo", para lhes permitir compreenderem de novo
o sentido do mundo, "esse primeiro livro".
Tal corr.o da alma ao corpo, impõe-se a corres­
pondência entre a Escritura e o mundo: aquele que
possui a inteligência espiritual da primeira receberá,
no Espírito, a contemplação do verdadeiro cosmo. Por
isso é que o padre Serafim achava útil ler atenta­
mente, na solidão, toda a Bíblia? Este gênero de exer­
cício trazia, segundo ele, a sabedoria como recom­
pensa.
A oração hesicasta que o eremita de Sarov pra­
ticava infatigavelmente, também ela se torna, não po­
demos esquecê-lo, "uma chave que abre o mundo, um
instrumento de oferenda secreta, uma aplicação do
selo divino em tudo aquilo que existe. A invocação do
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Nome de Jesus é método dé transfiguração do unl­
verso.14 Aquele que ora sem descanso adquire o co­
nhecimento da linguagem da criação. Ele escuta o lou­
vor das criaturas e compreende como é possível con­
versar com elas.

Os animais

Conta o padre Joseph, uma testemunha ocular,


que u à meia noite, ursos, lobos, lebres e raposas as­
sim como leopardos e répteis de toda a espécie cer­
cavam o eremitério. O asceta, terminadas as suas ora­
ções segundo a regra de São Pacômio, saía de sua
cela e se punha a alimentá-los". Igual testemunha, o
padre Alexandre, intrigado, tinha certa vez perguntado
como é que o pouco pão seco contido no seu saco
podia bastar, ao Padre Serafim, para satisfazer tal
quantidade de animais. u Há sempre bastante", foi a
tranqüila resposta. Particularmente um grande urso
gozava da intimidade do santo homem. Relatos cir­
cunstanciados do encontro dele, à primeira vista pou­
co tranqüilizador, com este habitante dos bosques,
foram deixados pelo padre Alexandre, bem como por
outras pessoas. O que sobretudo os impressionava
era a alegria que, então, o padre Serafim irradiava.
Sorrindo, ele enviava o urso com uma incumbência e
o animal retornava, caminhando sobre as patas trasei­
ras, trazendo um favo de mel que o anacoreta ofere­
cia amavelmente aos seus visitantes. Entre as repre­
sentações póstumas de Serafim de Sarov, mais popu­
lares tornaram-se aquelas que o viam sentado sob
um abeto, dando um pedaço de pão a um urso.15

14 Um monge da Igreja do Oriente.


15 Em memória de são Serafim, a caça ao urso esteve Interdita
até a Revolução, na floresta de Sarov. E nunca se registrou nenhum
Incidente deplorável. ..
Na ilha de Patmos. na Grécia, um eremita morto em 1917, vivia
numa gruta em companhia de numerosas víboras e mais tarde, quan-

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"O que é um coração caridoso? n pergunta-se San­
to Isaac, o Sírio. "É um coração que se inflama de
caridade pela criação inteira, pelos homens, pelos pás­
saros, pelas feras, pelos demônios, por todas as cria­
turas.
Aquele que tem este coração não poderá evocar
ou ver uma criatura sem que seus olhos se encham
de lágrimas por causa da compaixão imensa que se
apodera do seu coração. E o coração se abranda e
não pode mais suportar, se vê ou ouve por outros,
um sofrimento qualquer, ainda que se trate de uma
pena mínima infli_gida a uma criatura. É por isso que
um tal homem não cessa de orar também pelos ani­
mais, pe!os inimigos da verdade, por aqueles que lhe
fazem mal, a fim de que eles sejam conservados e
purificados. Ele pede, até, pelos répteis, movido por
uma piedade que desperta no coração daqueles que
se assimilam a Deus" . 16
Na seqüência de um Macário do Egito, de um São
Francisco de Assis, deu um Sérgio de Radonege, Se­
rafim de Sarov atualizava este magnífico texto.

O demônio

Mas a natureza não é sempre clemente. Longas


são as noites de inverno quando sopra um vento gla­
cial, brame a queixa dos velhos abetos e uivam, em
bando, os lobos. O demônio procura abalar o coração
do asceta pelo terror e a angústia. O demônio? Mas
ele não existe, dirá, encolhendo os ombros, um ho­
mem· do século XX, mesmo cristão. Tal não é a opi­
nião, baseada na experiência, dos eremitas e dos san­
tos. A um jovem que diante dele expressava dúvidas
acerca da existência e do poder do maligno, Serafim
do envelheceu, alimentava diante da sua cela uma enorme serpente
que, todos os dias ao meio-dia, vinha beber a ração de leite que o
santo homem lhe servia num pires.
16 Isaac la Syrien, Ed. A. J. Wenslnk, p. 341.

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de Sarov respondia trocista: "Que vos ensinam nas
vossas universidades? Seguramente que ele existe!"
E a um indiscreto que perguntava se ele tinha visto
diabos, retorquiu brevemente: "São abjetos".
Como seus ancestrais espirituais no Egito e na
Síria, como o próprio Cristo no deserto, Serafim de
Sarov, na floresta, foi assaltado e tentado pelo demô­
nio. Que armas empregar contra ele? Cristo disse-o:
"Esta espécie, não é possível expulsá-la senão pela
oração e pelo jejum" (Me 9,29).

O jejum

O padre Serafim atribuía grande Importância ao


jejum. "Nosso Senhor Jesus Cristo, antes de come­
çar seu ministério de salvação do gênero humano",
dizia, "fortificou-se por prolongado jejum. E todos os
ascetas, ao se colocarem ao serviço do Senhor, não
tocavam a via crucificante senão depois de ter, pre­
viamente, jejuado. Eles avaliavam o seu progresso nes­
ta via, segundo os progressos que faziam no jejum".
Ele mesmo, feito eremita, o que comia? Um pouco de
pão trazido do mosteiro � de que a maior parte ia
para os animais - algumas batatas, cebolas, beterra­
bas que recolhia de sua horta. Com o tempo, ele deci­
diu que podia passar sem pão. Depois, deixou de cul­
tivar os legumes.17
De que se alimentava? De certa erva chamada
egopode: "Eu a colhia e a metia num frasco; juntava
um pouco de água e colocava tudo no fogão - dava
uma boa sopa. Secava-a e me alimentava dela no in­
verno e os irmãos perguntavam-se o que eu podia co­
mer! E eu", concluía maliciosamente o padre, "eu co­
mia egopode. Mas disso nada dizia a ninguém!"
Quais os resultados de semelhante regime? "Ao
Jejuar assim, o corpo daquele que jejua torna-se diá-
17 Cf. A vida de S. Hilarião de Gaza, no século IV.

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fano e ágil, a vida interior se aperfeiçoa e se manifesta
por maravilhosas visões, as sensações exteriores são
como que abolidas e a inteligência, abandonando a
terra, eleva-se ao céu e mergulha inteiramente na con­
templação do mundo espiritual."

A oração

Ele jejuava, portanto. Quanto à oração, seria para


se opor ao demônio que este homem, que já orava sem
cessar, empreendeu uma façanha que o aparentou
com os estilitas de outrora, de que Simão, o Estilita,
no século V, foi o mais célebre? Durante mil dias e
mil noites, em pé e de joelhos sobre grande pedra
chata ou num subterrâneo cavado sob o seu eremi­
tério, Serafim de Sarov gritava como o publicano do
evangelho: "Senhor Jesus, tem piedade de mim, pe­
cador!" Ninguém jamais saberá a que imagens hor­
ríveis, a que tentações tão sutis quanto atrozes res­
pondia este grito de alarme. Mas Cristo estava lá.
"Quem nos separará do amor de Cristo?", grita São
Paulo. "A tribulação, angústia, perseguição, fome,
nudez, perigo, espada? (...) Pois estou convencido de
que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os
principados, nem o presente nem o futuro, nem os
poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem nenhu­
ma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus
manifestado em Jesus Cristo Nosso Senhor" (Rm 8,
35.38-39).
Quando, na véspera da sua morte Serafim de Sa­
rov, mandou um noviço procurar a pedra sobre a qual
ele se tinha conservado tão longo tempo em pé e as
pessoas se surpreendiam por sua "façanha", ele res­
pondia: "Simão o Estilita conservou-se quarenta e sete
anos em pé sobre uma coluna. Em comparação, o que
é que eu fiz?" - "Sentia a ajuda da graça?" - "Cer­
tamente. As forças humanas seriam insuficientes". E
acrescentava, fazendo-se eco da ardente declaração
40
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de amor de São Paulo: "Quando o coração está cheio
de adorante ternura, Deus está aí".

O perdão das ofensas


Estaria o demônio definitivamente vencido? Um
incidente, que cedo se produziu, significaria um últi­
mo gesto de vingança de sua parte? Em todo o caso,
neste senti.do o interpretaram os seus contemporâ­
neos.
Em 12 de setembro de 1804, o padre Serafim pre­
parava-se para cortar madeira no bosque quando três
homens se aproximaram dele e, grosseiramente, lhe
exigiram dinheiro. Como ele replicasse que o não ti­
nha, objetaram: "Mas as pessoas vêm ver você. De­
vem trazer-lho". - ",Eu não recebo nada de ninguém",
disse o eremita. Então, um dos três lançou-se sobre
ele por detrás mas, em vez de o derrubar, caiu ele.
Sabe-se que o padre Serafim era dotado de força física
pouco comum. A idéia de se defender aflorou-lhe: ti­
nha em mãos o machado. Imediatamente, porém, a
lembrança da Paixão de Cristo o deteve. Deixou cair
o machado e, cruzando os braços sobre o peito, disse:
"Façam o que vocês vieram fazer. Apanhando o uten­
sílio, um dos matutos feriu-o na cabeça. O padre caiu,
perdendo a consciência. Então, sem parar de bater-lhe
aos socos, aos pontapés e a pauladas, os salteadores
arrastaram-no até a cabana, amarraram-no com a in­
tenção de lançá-lo ao rio, mas, julgando-o morto, aban­
donaram-no para se precipitarem na busca do tesou­
ro escondido. Desmontaram o fogão, esburacaram o
chão - e nada. Em um canto, acharam duas ou três
batatas - foi tudo. Um ícone da Virgem olhava-os do
eito da parede. Subitamente tomados de pânico, puse­
ram-se em fuga.
Mas o padre Serafim não estava morto. Voltando
e si, conseguiu desembar.açar-se das ataduras. Feliz­
mente um monge, vindo de passagem, correu a pre-

41
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venir o hegúmeno. Transportaram o ferido - assus­
tador à vista - para o mosteiro. Coberto de sangue,
de lama, de poeira, ninguém acreditava que ele pudes­
se sobreviver. Por desencargo de consciência manda­
ram procurar os médicos. Eles diagnosticaram uma
fratura do crânio, afundamento do tórax, costelas que­
bradas, sem falar de numerosos ferimentos e, desam­
parados perante tantos males, mas fiéis aos métodos
do tempo, declararam que era preciso sangrar o doen­
te. O hegúmeno Isaías opôs-se. Seu bom senso dizia­
lhe que o infeliz já perdera suficientemente sangue.
Ao próprio padre Serafim cabia tomar uma decisão.
Os doutores discutiam gravemente na sua cela,
empregando palavras latinas. Quanto ao ferido, ador­
mecera docemente. Neste ligeiro sono viu entrar, tal
como outrora ela o fizera, quando de sua doença,
acompanhada pelos apóstolos Pedro e João, irradian­
te de glória e revestida com seu manto real, a Vir­
gem Santa Maria. Ela se aproximou do moribundo e,
voltando-se para os médicos disse: "Para que servem
vossos esforços? Depois, olhando o asceta ferido, re­
petiu as misteriosas palavras já pronunciadas a pro­
pósito dele: "Ele pertence à nossa raça". Ele abriu
os olhos - ela tinha desaparecido.
Num estado de feliz excitação que durou cerca
de quatro horas, o padre Serafim recusou a assistên­
cia dos médicos; depois, já mais calmo, levantou-se.
Com grande espanto de todos, deu alguns passos na
cela e, pela primeira vez em oito dias, aceitou um
pouco de alimento: uma pequena porção de chucrute
e pão.
A saúde fez, desde então, notórios progressos.
Cinco meses mais tarde, ele pedia a bênção do hegú­
menr; para retornar ao seu "longínquo Pequeno Deser­
to". Mas o padre Isaías hesitava. O eremita não era
mais o homem de estatura atlética que conhecêramos
antes do atentado, mas, nas vésperas dos cinqüenta
anos, um velho curvado, caminhando penosamente,
apoiando-se no seu machado ou num bordão. Assim
42
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foi que ele permaneceu gravado na memória de seus
contemporâneos: u Um velhinho encarquilhado, intei­
ramente branco, inteiramente seco, vestido com um
mantéu branco".
Neste meio tempo, os culpados tinham sido acha­
dos - três camponeses de uma cidade vizinha, Kre­
menok. O padre Serafim opôs-se energicamente a
que lhes infligissem o menor castigo. Mas um desses
incêndios terríveis, que fazem arder as cabanas isbas
das aldeias russas, assolou Kremenok. As casas dos
malfeitores foram presas das chamas. UO céu os pu­
niu", diziam as pessoas. Interpretando assim a sua
desgraça, os pobres tratantes correram, arrependi­
dos, a se lançarem aos pés do homem que eles quase
haviam assassinado.
O perdão das ofensas foi sempre, para um fiel
russo, a pedra de toque de um cristianismo autêntico.
Pouco depois do batismo do país russo pelo príncipe
Vladimir, seus dois jovens filhos, Bóris e Gleb, dei­
xaram-se assassinar, depois da morte de seu pai
Ct 1015), pelos emissários de um irmão mais velho,
que temia o ascendente deles. Eles eram jovens e
belos, ávidos de viver. Seus guêrreiros arenas lhes
pediam consentimento para · protegê-los. Entretanto,
de preferência a verter sangue numa luta fratricida,
como cordeiros levados ao matadouro, nenhuma re­
sistência ofereceram. O povo russo, recentemente
conquistado para o cristianismo, compreendeu a ati­
tude deles e pediu a sua canonização. Os bizantinos
ficaram assombrados. Estes jovens príncipes nem
eram confessores, nem doutores, nem mesmo, para
falar com propriedade, mártires. Eles eram strasto­
terptzi - alguém "tendo sofrido a paixão", responde­
ram os russos. Seu heroísmo, se se pode dizer, às
avessas, sem penacho, particularmente apreciado por
seus compatriotas, inimigos dos grandes gestos e das
atitudes teatrais, coloca-os, de roldão, entre os santos
mais amados. Vemos seus ícones lado a lado, caval­
gando soberbos corcéis cor da noite, cor da aurora,

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enquanto que, do alto do céu, a mão de Cristo os
abençoa. Pela mediação destes inocentes, Cristo pa­
decente, paciente e doce fez, desde o início, a sua
entrada na Igreja russa, para não mais a deixar. Per­
seguida, ela não amaldiçoa seus inimigos. Um dos
nossos contemporâneos, Silvano de Atos, morto em
odor de santidade na península da Virgem Ct 1938),
escrevia: "Tu perguntas: como hei de amar o inimigo
que persegue a nossa Igreja? Eu respondo: a tua po­
bre alma não conhece Deus, ela não compreendeu o
que significa: ele nos ama com um amor infinito, ele
deseja, ele espera que todos os homens se salvem. O
Senhor é amor e concedeu, na terra, o Espírito Santo
que ensina a alma a amar os inimigos e lhe dá forças
para pedir que também eles sejam salvos". 18
O gesto de Serafim de Sarov foi muitas vezes ci­
tado como exemplo e o exemplo foi seguido. O per­
dão das ofensas rompe a cadeia infernal da lei do ta­
lião, das vinganças sangrentas. "Basta perdoar àque­
les que nos ofenderam e a alma fica na alegria co­
mo se um nó, que nenhum esforço pudesse desatar,
se tivesse rompido", escreve, em seus Pensées im­
promptu [Pensamentos de improviso], André Siniavs­
ky, condenado, nos nossos dias, a sete anos de tra­
balhos forçados num campo de concentração.

O s//ênclo
Retornado ao "Longínquo Pequeno Deserto" co­
mo chamavam ao seu eremitério, por causa da distân­
cia que o separava do mosteiro, o eremita votou-se a
uma nova forma de ascese: entrou em silêncio. Tendo
começado a sua vida de anacoreta após a morte do
seu primeiro superior, o padre Pakhome, encerrou-se
num mutismo completo após a desaparição do seu su­
cessor, o padre Isaías. Estes dois anciãos, "colunas
18 Staretz Sllouane, apresentado pelo monge Sophrony, p. 157
(em russo).

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de fogo subindo da terra até o céu" como ele os cha­
mava, tinham acolhido, guiado, compreendido o mon­
ge fora de série que Prokhore Mochnine se tornara.
Com a jovem geração, os laços tinham-se afrouxado.
Propuseram-lhe o posto de hegúmeno - ele recusou.
O ecônomo Nifonte foi eleito em seu lugar. Espiri­
tualmente, um estranho.
u Prefira a ociosidade do silêncio à atividade de
alimentar famintos", escreveu Isaac, o Sírio.19 Quão
chocante afirmação para o nosso século ativista e ata­
refado! É-o menos se nos dermos conta de que a lin­
guagem ascética tem dois termos diferentes para de­
signar o silêncio: um quer dizer simplesmente ausên­
cia de palavras, o outro indica o vazio absoluto que o
homem faz em si, para se encher de Deus. Era deste
último silêncio que falava o Sírio . Era deste silêncio
que o eremita Sarov, desejava encher-se. uo silêncio
é mistério do século futuro; as palavras são utensí­
lios deste mundo", afirmava o Sírio. uo silêncio abso­
luto é uma cruz sobre a qual o homem se crucifica
com todas as suas paixões e suas concupiscências",
acrescentava Serafim de Sarov.
Ninguém jamais saberá como ele viveu o misté­
rio deste silêncio. Ele se tlnha desvinculado com­
pletamente do mundo. Quando ocorria encontrar al­
guém na floresta, caía de joelhos com a face na terra
e permanecia nesta posição até que o transeunte se
afastasse. Uma vez por semana, ao domingo, um mon­
ge lhe levava um pouco de alimento. Antes de entrar
ele pronunciava a oração costumeira. Tendo respon­
dido interiormente: Amém, o silencioso abria a porta
e se detinha no limiar, com os braços cruzados no
peito e os olhos baixos. O monge, depois de uma
curta oração e uma metania, 20 colocava o alimento
que tinha trazido numa bandeja perto da qual, ao lado,

19 Isaac le Syrlen, H'lmélle 56. citado por N. Levltsky ln La via


de notre pêre Séraphlm de Sarov, Ed. Mt. Atos, Moscou, 1905, p 89.
20 • Metanla •. Empregada nu·m . sentido monástico, esta palavra
1lgnlflca, em grego: lncllnação profunda; prosternação.

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o eremita havia co)6cado um pequeno pedaço de pão
ou antes um potléo de chucrute para mostrar o que
era preciso trazer no domingo seguinte. O monge, ten­
do rezado de novo, inclinava-se diante do padre Se­
rafim e deixava o eremitério sem ter ouvido o som
da sua voz. Ascética pantomima que durou dois anos.

A paz
Qual era, segundo o padre Serafim, o fruto desta
nova ascese? A paz. A paz de Cristo que ultrapassa
todo o entendimento. Paz mais preciosa do que todas
as jóias do mundo, para cuja aquisição longos anos
de labor não são demasiados. "Não há nada acima da
paz de Cristo", dirá Serafim de Sarov. "Eu te suplico,
minha alegria, adquire o espírito de paz. O homem, na
posse deste espírito, por nada é perturbado. Ele é co­
mo que surdo e mudo, como que morto, quando sobre
ele se abatem tristezas, calúnias e perseguições que
todo cristão que quer seguir Cristo deve forçosamen­
te experimentar e atravessar. Porque é através de mui­
tos males que nos é preciso entrar no Reino dos Céus.
Foi assim que os justos entraram neste Reino em
comparação com o qual toda a glória deste mundo
nada é. Todas as volúpias deste mundo não são nem
sombra da felicidade reservada nos céus àqueles que
amam a Deus. Lá está a alegria eterna, o triunfo e a
festa." E ele acrescentava algo que, de repente, nos
reconcilia a nós, utilitários, com isso que teríamos ten­
dência a condenar como mística ridícula, supérflua,
desumana:
"Adquira a paz interior e milhares,
à sua volta, encontrarão a salvação".
Ah! chegamos, finalmente. Eis alguma coisa que
justifica e explica tantos anos de dura ascese, de
penosas ascensões. "Milhares, à sua volta, encontra­
rão a salvação", encontrarão já, na terra, essa paz
que nenhuma organização de beneficência, nenhuma
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clínica psiquiátrica pode dar, esesa paz que somente
Cristo possui e que ele transmite através de seus ser­
vidores; essa paz que milhares de infelizes, famintos
de justiça e de ternura paternal, virão buscar.
O silencioso estaria já em condições de distri­
buir esta paz? Não ainda inteiramente ...
Porém, os monges se escandalizavam. Por que
é que o padre Serafim, pergutavam, não mais vinha,
como antes, comungar na liturgia do domingo? Teria
ele a presunção de fazer crer que anjos, como ele
contou na vida de São Pafnúcio, lhe levavam ao de­
serto a santa comunhão?21 Sabia-se que nas suas per­
nas se tinham formado chagas varicosas devido às
longas permanências em pé. O trajeto semanal até a
igreja, seis quilômetros distante, estaria acima de
suas forças? O novo superior reuniu os irmãos em
capítulo. Foi decidido enviar um ultimatum ao eremi­
ta: assistir à eucaristia todos os domingos e todos
os dias de festa ou, se o estado da sua saúde não lho
permitia, voltar a viver no mosteiro. A primeira vez
que o monge portador da comida transmitiu a mensa­
gem, o padre Serafim o escutou e o deixou partir sem
uma palavra. No domingo seguinte a proposta foi re­
novada. Depois de uma semana 'passada em oração,
estava tomada a decisão do eremita; abençoou o men­
sageiro e, sem dizer uma palavra o seguiu. Estava-se
e 8 de maio de 1810. A floresta cantava a primavera.
Ao longo çfo caminho o lírio-do-vale começava a florir.
Apoiando-se em seu bastão, arrastando dolorosamen­
te as suas pernas doentes, o padre Serafim ia ao en­
contro da mais penosa de todas as suas asceses.

O recluso
"A obediência, para um monge, é mais importan­
te do que o jejum e a oração n. O padre Serafim ti-
21 Na vida de santo Onofre (Menológlo, 12 de Junho), acha-se a
descrição da viagem de são Pafnúclo ao deserto onde, no século IV,
viviam numerosos anacoretas. Respondendo à pergunta de são Pafnú­
clo aobre os sacramentos, santo Onofre disse: • Um anjo do Senhor

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nha-o dito e ele a 1a em consequencia. Por obediên­
cia, este home que passava dos cinqüenta, asceta
de galões, dei va o seu retiro florestal onde, durante
dezesseis an s, se tinha deleitado a louvar o seu Se­
nhor e seu Óeus. Entretanto o período de silêncio que
o Espírito lhe impunha não tinha terminado. Come
perseverar num mosteiro em plena atividade, ruidoso
pejado de visitantes e de peregrinos? Pediu ao hegú­
meno a bênção para se enclausurar em sua antig�
cela e aí receber os sacramentos.
Esta cela era pequena peça, de teto· baixo, ma
iluminada por duas estreitas janelas dando para urr
barranco. O interior lembrava, por sua pobreza, o de
Pequeno Deserto Longínquo: em um canto, um ícone
da Virgem, com sua lamparina sempre acesa; um cepc
de madeira, à maneira de cadeira; um fogão - que
não servia nunca - e, diante dele vazio, alguma!
achas. Na entrada, que ele partilhava com um vizi nho
o padre Serafim guardava um caixão de carvalho bru
to que ele mesmo tinha cavado no tronco de uma gros
sa árvore. Seu vizinho, o irmão Paulo, homem simples
de coração puro, trazia-lhe uma vez por dia a alimen
tação. Tal como no deserto, ele recitava uma oraçãc
diante da porta fechada. Mas, sequer ao abri-la
o recluso lhe mostrava o rosto. Com a cabeça coberta
de roupa branca, ele se colocava de joelhos, recebia
o prato e o levava para dentro. Quando acabava dt
comer colocava o prato diante da porta, mantendo in
visível o seu rosto. A ementa era sempre a mesma
um pouco de farinha de aveia seca e um pouco di
chucrute.
Cristo fez-se obediente até a morte. Por obediên
eia, Serafim de Sarov tinha trocado o majestoso si
lêncio da floresta pelos ruídos de uma casa pobre; e
ar perfumado da resina, o avermelhado dos poentei
na esbelteza dos grandes abetos pela poeirenta pe
vem trazer-me os santos dons e dá-me a comunhão. Não é soment1
a mim que ele traz a divina comunhão mas aos outros ascetas tam
bém".

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r.umbra de um quartinho de teto baixo. Dezesseis anos
ele permaneceu encerrado ali.
Que fazia aí? Mais do que nunca, mergulhava na
leitura da Bíblia. No decorrer da semana lia o Novo
Testamento inteiro.22 Por vezes comentava em voz al­
ta as suas leituras. Os monges vinham escutar à por­
ta e tiravam disso o maior proveito espiritual. Tinha
também visões. Uma delas transportou-o, como a São
Paulo, às "moradas celestes". Com o corpo - ou fora
do corpo - ele o ignorava.
Assim se passaram cinco anos. Um dia, sem sair
da cela, o recluso abriu a porta. Aqueles que quises­
sem vê-lo podiam entrar. Sempre mudo, ele vagava
em suas ocupações cotidianas. Mais cinco anos - ele
começou a responder às perguntas e a dar conselhos.
De início somente os monges o visitavam. Cedo eles
foram seguidos pelos leigos. A própria Virgem tinha
dado ao recluso ordem para os receber. A torrente
não mais cessava. Em todo o caso ele não deixava
seu sombrio reduto. A falta de ar e de exercício cau­
sava-lhe dores de cabeça insuportáveis. Saía de noite,
às escondidas. Uma ou duas vezes viram-no assim,
perto do cemitério, transportandô algo pesado e mur­
murando a oração de Jesus. "Sou eu, sou eu, o pobre
Serafim ... Cala-te, minha alegria!", dizia. Sentindo as
forças enfraquecerem, pediu a Deus licença para ter­
minar a sua reclusão. E a licença veio. A 25 de no­
vembro, dia em que se comemoram os santos Cle­
mente de Roma e Pedro de Alexandria, a Virgem Ma­
ria, quando ele dormia, apareceu ao padre Serafim na
companhia deles e o autorizou a voltar ao seu eremi­
tério. Tendo obtido a bênção do hegúmeno, o recluso,
depois de dezesseis anos de prisão voluntária, saiu
abertamente em pleno dia e se dirigiu à floresta.
22 Na segunda-feira lia, Inteiramente, o Evangelho segundo São
Mateus; na terça-feira, o Evangelho segundo São Marcos; na quarta•
feira, o de S1o Lucas; e, na quinta-feira, o quarto Evangelho, segundo
SIio João. Os dois últimos dias · da semana consagrava-os à leitura
dos Atos dos Apóstolos e das Ep:stolas.

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Segunda parte

EM PLENA LUZ

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REGRESSÃO NO TEMPO

"Vem tanta gente ver o padre Serafim", dizia,


não sem ponta de ironia, o monge Nifonte, "não se
consegue, antes da meia-noite, fechar as portas do
mosteiro".
Desde o momento em que, de novo livre, Sera­
fim de Sarov repartiu seu tempo entre a floresta e
sua cela monástica, ele cessou, de fato, de se perten­
cer. Era às multidões que, daí por diante, ele perten­
cia. Tinha sessenta e seis anos. Os dezesseis primei­
ros anos de sua vida religiosa, ele os havia passado
no mosteiro. O homem amadurecido - a partir de
trinta e cinco anos - se tinha escondido na floresta,
havia escolhido se enclausurar durante dezesseis
anos, em sua cela monacal. Quase meio século de
preparação para um ministério que devia durar oito
anos. Teria ele vivido fora do tempo este meio sé­
cu�o? Nada indica, nas parcas informações que se
possuem a esse respeito, a menor influência dos acon­
tecimentos contemporâneos sobre a formação espi­
ritual de Serafim de Sarov. No entanto, a História não
tinha parado nesse intervalo.
Ele acabava de se retirar para a floresta quando
o brilhante reinado de Catarina chegava ao fim, no
meio de inquietações. Amedrontada com os primei­
ros compassos da Marselhesa, a imperatriz, para con­
seguir que a nobreza retrógrada lhe perdoasse, o fler­
te epistolar com Voltaire e Diderot, sua leitura de

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O espírito das leis de Montesquieu, prendeu definiti­
vamente os camponeses à terra, transformando em
verdadeira escravidão a servidão de outrora. O reina­
do, felizmente curto, de seu filho Paulo, cabo prussia­
no coroado, que via jacobinos por toda a parte e se­
meava ao seu redor o terror, finda com um assassí­
nio trágico (1801 ). Sucedendo-lhe com a idade de vin­
te e quatro anos, Alexandre 1, neto adorado da grande
Catarina, foi aclamado como libertador. Educado por
um preceptor suíço, discípulo de Rousseau, elegante,
cortês, o novo monarca encheu de esperança os co­
rações da jovem nobreza livre-pensadora. Seus admi­
radores chamavam-lhe "nosso Anjo", os desconfia­
dos a "esfinge sedutora". Mergulhado na política eu­
ropéia, ora se batia ora se reconciliava com Napoleão.
Serafim de Sarov tinha entrado no silêncio quan­
do, em 1812, Moscou ardeu e "la Grande Armée" [o
exército comandado por Napoleão I] foi tragada pe­
las neves. Finalmente vencedor, o Anjo se afirmou
decepcionante. Sonhando com uma Europa unida an­
tes do tempo, ecumênico antes da hora, decepciona­
do ele mesmo com Metternich e a Santa Aliança, bus­
cou a ortodoxia num arquimandrita de mau caráter,
Fócio, a mística em Madame Kruedener, e caiu, final­
mente desiludido, sob a influência de verdadeiro
monstro, único que ele acreditava fiel: o sádico e rea­
cionário general Arakchéev.
O fim desse soberano ambíguo, desse Jano de
duas faces, permanece mistério que a História teve di­
ficuldade de elucidar. Morreu - jovem ainda - como
quer a versão oficial, na pequena cidade de Taganrog,
no mar de Azov, cujo clima convinha, ao que parece,
à saúde precária da imperatriz? Ou então, como afir­
mam alguns e como o quereria a espiritualidade rus­
sa, ele mandou colocar num esquife, em lugar do seu,
o corpo de um soldado recentemente morto e se foi,
peregrino sem dinheiro e sem passaporte, pelas es­
tradas de seu imenso império até chegar à Sibéria
onde viveu longos anos, conhecido com o nome. de
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"staretz Feodor Kouzmitch "? Por Inverossímil que Isto
possa parecer a um ocidental (pode imaginar-se um
Luís-Filipe levando o alforje de peregrino mendican­
te?), a segunda versão tem possibilidades de ser a
certa.

O Imperador

Foi em 1825, ano em que Serafim de Sarov ter­


minava a sua reclusão. Um monge, que mais tarde con­
taria a história a um oficial da marinha que se fizera
religioso no Deserto de Sarov, observou um dia que
o padre Serafim limpava e varria a sua cela com um
cuidado incomum. Ao cair da noite, uma tróica parou
diante da escadaria. Vindo ao seu encontro, o monge
saudou, prostrado por terra, o oficial que desceu da
tróica. Ambos se retiraram em seguida para a cela do
padre e aí permaneceram, fechados, durante quase
três horas. Era noite quando o desconhecido saiu para
retornar à carruagem. O monge que o acompanhava
pronunciou do alto da escadaria, à guisa de adeus,
estas misteriosas palavras: "Lembra-te, senhor, do
que te disse e cumpre-o". O monge, intrigado, ter-se-ia
escondido e teria ouvido. 1
O que dá certo peso a esta narrativa é a ausência
do Imperador, durante dois dias, da cidade de Nizhni­
Novgorod, a sessenta quilômetros de Sarov onde, na
época, ele residia. O calendário imperial nenhuma jus­
tificativa dá para esses dois dias. Alexandre gostava
de agir escondido. Assim, ele visitava freqüentemen­
te - alma atormentada - monges famosos por sua
vida de oração. Por nobres de seu convívio - proprie­
tários rurais das cercanias - é possível que ele tenha
ouvido falar do eremita. O trajeto de Nizhni-Novgorod
ao Deserto de Sarov, em vista do estado deplorável
das estradas, não exigia menos de dois dias. O "hu-
1 E. Possellanlne, A lenda .do staretz Serafim e do Imperador
Alexandre 1, São Petersburgo, 1903 (em russo).

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milde" Serafim, na posse da paz de Cristo, teria pro­
digalizado seus conselhos e dado a sua bênção ao
soberano senhor de uma sexta parte do globo que,
do cume da sua glória, teria visto o abismo de todas
as vaidades? Não se pode afirmá-lo, nem negá-lo.2
A família imperial entrou, mais tarde, em contato com
Feodor Kouzmitch que viveu na Sibéria até uma idade
muito avançada, mas desencorajou, sempre, as pes­
quisas a seu respeito.

O staretz
Staretz - era assim que, daí por diante, chama­
vam o eremita de Sarov. Literalmente staretz quer di­
zer "ancião", yerontas em grego. Tomado no sentido
monástico, pai espiritual. São Paulo já reclamava
esta paternidade quando escrevia aos coríntios: "fui
eu quem pelo evangelho vos gerou em Jesus Cristo"
(1Cor 4,16), e aos gálatas: "Meus filhos por quem eu
sofro de novo dores de parto" (GI 4,19). Nos mostei­
ros orientais, os "anciãos" dirigiam os noviços. Gran­
des santos toram formados por startzi. Simão, o Novo
Teólogo, proclamava tudo dever ao seu staretz, Simão,
o Piedoso. Mas na Rússia, o starchestvo - o ministé­
rio do staretz - recolocado em vigor por Paissy Ve­
litchkovsky, no fim do século XVIII, tornou-se, pode­
ria dizer-se, verdadeira instituição que representou na
história do país papel considerável. Serafim de Sarov
foi o primeiro, o maior desses homens de Deus. De­
pois de sua morte, o carisma do starchestvo, sob a
forma do qual "a santidade dos tempos passados re­
torna à vida na santidade moderna de uma maneira
tão tradicional e ao mesmo tempo tão surpreendente
pela sua novidade" ,3 passou ao "Deserto" de Optino
2 Maurício Paleólogo, embaixador da França em São Petersburgo,
publicou em Paris, depois da Revolução de 1917, um llvro cujo fim é
provar que o staretz Feodor Kouzmltch e o Imperador Alexandre 1
não eram senão uma e a mesma pessoa.
3 Vladimir Lossky, "Les startzl d'Optlno•, ln Contacta n. 33, 1•
trimestre, 1961, p. 6.

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onde, tornada u hereditária", ela se manifestou em vá­
rias gerações de startzi que se sucederam até a Re­
volução. Como se sabe, Tolstói e Dostoievsky foram a
Optino buscar a sabedoria. E, convertido por sua mu­
lher, o filósofo Kiréyevsky escrevia: UTodos os livros,
todas as obras do espírito não valem, a meus olhos,
o exemplo de um santo staretz".
O exemplo sim. Era, pois, pelo exemplo que pre­
gavam; sobretudo esses eleitos do Espírito. Eles mes­
mos devem ter sofrido provas e devem ter-se mos­
trado dignos de seus dons. Um guia inexperiente é
perigoso. É um desses cegos de que fala o evangelho
que caem no buraco com aque!e que pretendem levar
e bom porto. u O Senhor não abençoa aos que se con­
tentam em ensinar, mas antes, àqueles que, pela prá­
tica anterior dos mandamentos, mereceram ver e ne­
les mesmos contemplam a luz esplendorosa e brilhan­
te do Espírito e, nessa visão, nesse conhecimento e
nesse influxo, conheceram pelo Espírito aquilo de que
devem falar e o que devem ensinar aos outros", es­
crevia Simão, o Novo Teólogo.4
Com a sua bonomia costumeira, muito russa, Se­
rafim de Sarov confirmava as pálavras do grande bi­
zantino: u Eu sei que ele é muito hábil para inventar
sermões", dizia ele de um teólogo que lhe vinham
apresentar. u Mas é tão fácil ensinar como lançar pe­
dras do alto do nosso campanário. Quanto a executar
o que se ensina, é tão difícil como carregar pedras
pera o cume do campanário. Esta é a diferença entre
o ensino e a prática".
Um dito espirituoso, talvez contestável. mas não
desprovido de verdade, quer que haja um peregrino
adormecido em cada russo e que esteja cada russo
pronto para fazer centenas de quilômetros para se en­
contrar com um staretz autêntico. Crescendo de dia
p3ra dia a reputação do staretz Serafim, multidões -
muitas vezes vários milhares de pessoas ao mesmo
4 Syméon le Nouveau Théologlen, Cent. 1, chap. 4.

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tempo - invadiam o Deserto de Sarov. Que viam
elas aí?
Um velhinho, u completamente branco, todo enru­
gado, inteiramente seco n, de olhos azuis e um sorriso
u incompreensivelmente radioso n. A sua acolhida, para
com todos, era a mesma. u Bom dia, minha alegria! n
e ainda: UCristo ressuscitou! n - saudação pascal,
cara aos seus compatriotas.
Resolutamente otimista: u Não sigamos a via do
desânimo, proclamava ele batendo alegremente com o
pé no chão. Cristo venceu tudo. Ele ressuscitou Adão.
Ele restaurou Eva em sua dignidade. A morte, ele a
matou! n
Mas, às vezes: UQue desgraça vejo vir a mim!
Que desgraça!" exclamava ao distinguir alguém na
assembléia. E, antes que o afligido tivesse tido tem­
po de lhe dizer o que quer que fosse: uEu sei, eu
sei! n repetia. E, abraçando-o, chorava com éle.

O resultado da ascese

A coroação dos feitos ascéticos é o amor. Mura­


do no silêncio perfeito, o recluso intercede, com sua
oração, pelo mundo inteiro. u Mas aquele n, diz Isaac,
o Sírio,5 "que entra em relação com os homens e igno­
ra as suas misérias, julgando ser assim mais fiel às
austeridades de sua regra, não é misericordioso mas
cruel... Quem não visitar um doente não verá a luz.
Quem desvia seu rosto de um aflito verá o seu dia se
encher de trevas. E os filhos daquele que não ouve
a voz do sofrimento irão, cegos, tateando, buscar suas
moradas. Pois a cada existência a sua hora, o seu
lugar e a sua particularidade.
Houve um tempo em que o padre Serafim entrin­
cheirava com troncos de árvores o caminho do longín­
quo Pequeno Deserto, recusava falar com seus se­
melhantes e cobria a sua face diante deles.
5 Isaac o Sírio, Trindade S. Sérgio, 1893, pp. 225, 259 (em russo).

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Agora, a sua hora tinha chegado.
- Admitamos, dizia ele, que feche a porta de mi­
nha cela. Os que vieram, esperando uma palavra de
conforto, me implorarão, em nome de Deus, para abrir.
Não tendo obtido resposta, irão imensamente tristes
para suas casas. Que álibi poderei eu apresentar a
Deus, no dia do seu terrível julgamento?
A sua paciência era inesgotável. Escutava cada
um com atenção e doçura. Mas não abria igualmente,
diante de todos, os tesouros de seus carismas.
- Não se deve, dizia ele, abrir sem necessidade
o coração a outrem. Entre mil, haverá um só, talvez,
capaz de penetrar o seu mistério. Com um homem psí­
quico, é preciso falar de coisas humanas. Mas com
aquele que tem a inteligência aberta ao sobrenatural,
deve-se falar de coisas celestes.

O modo da clarividência

"Eu sei!", dizia o staretz. Mas como saberia ele?


Um de seus amigos, o padre Antônio, hegúmeno do
mosteiro de Vissokogorsk, um frt:iqüentador de Sarov,
foi certo dia testemunha de uma conversa entre o
santo homem e um negociante de Vladimir, que ele
via pela primeira vez, mas em cuja alma lia como num
l;vro aberto. O padre Antônio lhe perguntou como
conseguia penetrar nas profundezas mais íntimas de
cada consciência sem fazer perguntas, sem ouvir con­
fidências.
A resposta do staretz nos abre os olhos. "Ele vi­
nha ao meu encontro, respondeu ele falando do ne­
gociante, como os outros, como tu, ao ver em mim
um servo de Deus; e eu, indigno Serafim, que me
considero como um pobre servidor de Deus, transmi­
to aquilo que Deus ordena a seu servidor. O primeiro
pensamento que me vem, considero que é Deus que
mo envia; e falo sem saber o que se passa na alma
de meu interlocutor, mas acreditando que é a vontade

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de Deus e que é para seu bem. As vezes, tendo-me
fiado na minha própria razão, respondia pensando que
era fácil. Nesses casos resultavam erros. Tal como o
ferro se dá à bigorna, dou minha vontade a Deus.
Ajo como ele quer. Não tenho vontade própria". Mas
o padre Antônio replicava que o staretz via a alma de
um homem como se vê um rosto num espelho, por
causa da pureza de seu próprio espírito. O padre Sera­
fim pôs a sua mão direita sobre a boca do hegúmeno:
"Não, minha alegria, não se deve falar assim. O co­
ração humano não está aberto senão para Deus
somente. Se o homem se aproxima, vê quanto o co­
ração do outro é profundo" (SI 64,7). O staretz não
ia do homem para Deus, mas de Deus para o homem.
Não fazia psicanálise, mas se punha à escuta do Es­
pírito.
"Ele adivinha", diziam os camponeses. Um deles
acorreu, certa manhã, para pedir a ajuda d1.J staretz
num assunto para ele vital: tinham-lhe roubado o ca­
valo e, sem cavalo, ele nem podia trabalhar nem ali­
mentar a sua família. "O padre Serafim", conta uma
testemunha ocular, "tomou em suas mãos a cabeça
do camponês e aproximou-a da sua. Rodeia-te de si­
lêncio, disse-lhe, vai a X (citou uma aldeia vizinha).
Antes de entrar nessa aldeia, vira à direita. Contorna,
por detrás, quatro cercados de fazendas. Verás então
um portão de serviço. Empurra-o, desata o teu cavalo
e leva-o sem nada dizer". E isto foi feito.
Seria o staretz aquilo que, em nossos dias, se
chama "social"? Nas raras instruções espirituais dei­
xadas por escrito, mostra-nos estas linhas significa­
tivas: "Quando nos aproximamos dos homens, é pre­
ciso sermos puros de palavras e de pensamento, igual
para com todos (o grifo é nosso), nunca lisonjear nin­
guém - de outro modo, tornaremos inútil a nossa
vida". Ele estava a par das condições miseráveis da
vida camponesa, o que não o fazia revolucionário. Tan­
to quanto São Paulo, não pregava a abolição da es­
cravatura, mas fazia apelo ao coração e à consciência
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de cada um. Tocando com os dedos as cruzes com as
quais o peito de certos altos dignitários estava es­
trelado, ele lhes lembrava que fora sobre uma cruz
que o Senhor havia morrido e que, por conseguinte,
as cruzes que eles ostentavam, em vez de serem
motivo de orgulho, deviam, pelo contrário, incitá-los
a uma conduta digna de cristão. A um funcionário im­
portante e briguento, ao qual por muito tempo tinha
recusado receber, tendo-o finalmente recebido, per­
gunta: UVossos empregados não agem, para com aque­
les que vos vão ver, como agi para convosco? 'O se­
nhor não está em casa', dizem eles. Ou então: 'O se­
nhor não tem tempo', contristando assim vosso pró­
ximo, atraís sobre vós a cólera divina". Ouviu-se um
orgulhoso general, que entrou em sua casa por curio­
sidade, chorar em sua cela como uma criança. u Atra­
vessei toda a Europti com o exército russo, explicava
mais tarde, jamais encontrei algo semelhante: toda
a minha vida se desenrolava diante dele até nos seus
mínimos detalhes, ignorados por todos". Em compen­
sação, o staretz amou esse senhor que era o príncipe
Golitzine, que chegara a Sarov incógnito. Ao separar­
se dele intima-o a prestar particularmente atenção ao
último versículo do Credo: u Creio na ressurreição
dos mortos e na vida eterna".

Paternidade maternal

Entre os visitantes que recebia, havia natural­


mente muitos monges e clérigos. Um deles, esse he­
gúmeno de Vissokogorsk, Antônio, que havia pergun­
tado ao staretz sobre a sua clarividência, acorreu um
dia para lhe contar sobre a angústia que o oprimia.
Crendo na morte próxima dizia, no seu mosteiro,
adeus a todos à sua volta. u Você não o entende como
convém, minha alegria, lhe disse afetuosamente o
1tsretz. Deixará o seu mosteiro mas não morrerá.
Seré colocado à frente de uma grande Laura". A pre•

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dição não tardou a se cumprir. O padre Antônio foi
designado pelo metropolita Filarete, de Moscou, para
representá-lo como vigário nessa abadia venerável en­
tre todas, a Trindade-São Sérgio. As recomendações
que o staretz lhe fez, ao prever essa nomeação, po­
dem e devem ser comparadas às que fizera outrora a
um noviço (ver páginas 14 e 15), referentes à vida
religiosa. Tomadas em conjunto, formam como que um
díptico onde o comportamento do superior e o dos
inferiores se harmoniza e se completa.
"Sê mais mãe do que pai para teus monges",
dizia ele a Antônio.6 "Todo superior deve ser - e
permanecer - para suas ovelhas, como mãe sensata.
A mãe amorosa não vive para si, mas para seus filhos.
Ela suporta as doenças dos enfermos com amor; lim­
pa os que estão sujos, lava-os docemente, calmamen­
te; veste-os com roupas limpas e novas; calça-os,
aquece-os, alimenta-os, consola-os e procura rodeá­
los de tal modo a fim de jamais ouvir deles a menor
queixa. Tais filhos são apegados a sua mãe. Assim,
cada superior deve viver não para si, mas para suas
ovelhas. Deve ser indulgente com suas fraquezas;
suportar com amor as suas enfermidades; encobrir os
males dos pecadores com emplastros de misericór­
dia; levantar com doçura os que caem; purificar tran­
qüilamente os que se mancharam com algum vício,
impondo-lhes uma penitência suplementar de oração
e de jejum; revesti-los de virtude pelo ensinamento
e pelo exemplo; deles se ocupar constantemente e
salvaguardar sua paz interior de modo a jamais ou­
vir, por parte deles, nem gritos nem queixa. Então, por
sua vez, eles farão o possível por proporcionar ao
superior a tranqüilidade e a paz".

6 As recomendações feitas por São Francisco de Assis aos su•


perlores das suas fundações são surpreendentemente semelhantes.
Também ele emprega o termo "mãe".

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Ascese e símbolos

Assim rodeado, procurado, venerado, o staretz


relaxaria a sua ascese pessoal? "1: difícil ao homem
subir à glória sem dano para a sua alma", lia ele no
seu autor preferido, Isaac, o Sírio (Homilia 1). "Isto é
difícil não somente para os apaixonados e para os
que estão em luta contra as suas paixões, mas igual­
mente para os que venceram suas paixões, para os
santos. Tendo-lhes sido dada a vitória sobre o pecado,
a faculdade de mudar permanece. A possibilidade do
retorno ao pecado não lhes é retirada ..." A inclinação
ao orgulho, observa Macário, o Grande, reside nas
almas mais purificadas.
Serafim de Sarov continuava a dormir sobre sa­
cos de pedra, com um tronco por travesseiro ou, en­
tão, sentado no chão, encostado à parede, com a cabe­
ça entre os joelhos. Como antes, comia uma vez ao
dia, um pouco de chucrute e uma pitada de aveia seca,
vestia-se com um velho casacão branco e tinha nos
pés Japti de cortiça. A sua cela continuava sempre es­
se tugúrio atapetado de garrafas de vinho de missa
e de sacos de pão seco dos quais distribuía pedaci­
nhos a seus visitantes. Outras garrafas continham
óleo para as lamparinas.
A um discípulo que lhe perguntara por que é que
acendia tantas velas e lamparinas diante dos ícones,
o staretz respondia: "Há pessoas que me trazem óleo
e velas, pedindo-me para rezar por elas. Eu menciono
seus nomes ao recitar minha regra. Como, porém, são
numerosas, eu não poderia mencioná-las todas, cada
vez que a regra o pede; não teria tempo de terminar
e leitura da minha regra, se o fizesse. Acendo então
uma vela para cada uma, como sacrifício a Deus, às
vezes uma grossa vela por várias e também lampari­
nas e, onde a regra pede que os mencione, digo:
"Senhor, lembra-te de todas essas pessoas, teus ser­
vos, pelas almas das quais eu, indigno Serafim, faço
arder diante de ti estas velas e estas lâmpadas".

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O padre Serafim atribuía grande importância a
esse uso que ele remontava a Moisés. Não falara
Deus a Moisés nestes termos: u Moisés, Moisés, diz a
teu irmão Aarão que acenda diante de mim lâmpadas
dia e noite: isto me é agradável e é um sacrifício que
me satisfaz". Em vão procurar-se-ia na Bíblia um texto
correspondendo exatamente a este! É este um exem­
plo de uma dessas paráfrases bíblicas que o padre
Serafim usava muitas vezes, inspiradas, na ocorrên­
cia, do Êxodo 40,25 e do Levítico 24,2-4.
Gostava de comparar a vida humana a uma vela.
u Olhando uma vela acesa - sobretudo na igreja -
pensamos sempre no início, no desenrolar e no fim
de nossa vida: tal como castiçal em que uma vela
arde perante a face de Deus, assim a cada instante
a nossa vida diminui, aproximando-se do seu termo.
Este pensamento nos ajudará a não nos dissiparmos
na igreja, a rezarmos com mais ardor e a fazermos
o possível para que a nossa vida se assemelhe a
uma vela fabricada com cera pura, queimando e se
apagando sem odor".
O símbolo tem a faculdade de se infiltrar, incóg­
ni�o. na consciência humana. Pregando o exemplo,
apesar de um dom incontestável de eloqüência, uma
bela memória e uma erudição patrística alimentada
por constantes leituras, o staretz se servia constan­
temente de símbolos para fazer penetrar as verdades
cristãs nas almas de seus visitantes. O fogo... Deus é
fogo devorador. A luz ... Deus é luz. A cera - não é
ela virginal? O óleo simboliza o Espírito Santo, unção
batismal e real, força do atleta, medicamento, fonte
de calor que expulsa a frieza dos corações endure­
cidos.

As mulheres

Nesta cela tantas vezes descrita, cujo ar, ape­


sar do atravancamento, permanecia estranhamente

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puro, ele recebia todo o mundo, muitas mulheres.
Não dissera ele, um dia, que era preciso desconfiar,
como da peste, dessas "gralhas pintadas"? Ao enve­
lhecer, repleto como estava de força espiritual, a sua
atitude para com elas mudara. Ele, primeiro entre os
santos russos, é que devia ocupar-se da sua sorte,
prever o papel que, no futuro, lhes estava reservado.
"Não esquecerei jamais", conta uma delas, "co­
mo tendo rezado comigo diante do ícone da Mãe de
Deus, pôs sobre minha cabeça suas mãos quentes e
senti, de repente, uma força vivificante se espalhar
através do meu corpo inteiro. Levantei os olhos para
o padre e vi que chorava. Uma de suas lágrimas caiu
sobre minha fronte. Choraria ele por mim? Não ousei
perguntar-lho..."
Choraria ele sobre a sorte de tantas mulheres
escravas de senhores desumanos, de maridos cuja
brutalidade espezinhava suas almas e seus corpos, de
órfãs sem dote e sem amparo, das quais se ocupava
outrora a sua mãe Ágata Mochnine de santa memória?
1: mais que provável.
Ao falar às pessoas casadas, o staretz não entra­
va nos detalhes da vida conjugai. Contentava-se em
perguntar aos esposos sobre a fidelidade conjugal re­
cíproca e sobre o amor, que asseguram à família a
estabilidade e a paz. Insistia sobre a hospitalidade e
a esmola: "Não vos esqueçais da hospitalidade, por­
que graças a ela alguns, sem o saber, acolheram an­
jos", disse São Paulo (Hb 13,2-3).
Quanto à esmola, é alegremente que ela deve ser
feita. "Deus ama aquele que dá com um coração ale­
gre", assim o staretz parafraseava as palavras do
Apóstolo (2Cor 9,7).
Grande era o respeito desse monge pela família.
A um homem que veio lamentar-se da mãe beberrona,
ele pôs, prontamente, a mão sobre a boca para impe­
di-lo de falar e para mostrar que os vícios dos pais
não dispensam os filhos de honrá-los como manda a
Bíblia.

65
J • lmtruçõa ...
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Poder-se-ia muito aprender dos gestos simbóli­
cos e das breves palavras do eremita de Sarov.
Entretanto, as "gralhas pintadas" existiam. En­
tre as numerosas narrativas descrevendo o estranho
fenômeno que era, no século XIX, esse staretz, Padre
do Deserto e um pouco louco em Cristo, há algumas
que valem reportagens modernas, como esse trecho
de um jornal mantido por um jovem nobre, 1. M. Ne­
verov, adolescente na época, que lança divertida luz
sobre o encontro do homem de Deus com uma dessas
mundanas alérgicas ao Espírito.

A história de um louco riso


"Tendo chegado no sábado, para as vésperas",
escreve Neverov, "soubemos que o padre Serafim es­
tava no mosteiro e que ia, como de costume, comun­
gar no dia seguinte pela manhã. Terminada a liturgia,
nos pusemos em fila na cela do staretz onde ele co­
meçou a oferecer, a seus visitantes, como de costu­
me, minúsculos pedaços de pão bento que retirava
de uma taça repleta de vinho e que apresentava so­
bre uma colher de estanho. Uma jovem, Senhora Z.,
parecia muito admirada com esse presente incomum
e, quando o padre Serafim se aproximou dela e lhe
colocou diante da boca a colher, não quis aceitá-la
e, por várias vezes, virou a cabeça. O bom staretz,
pensando talvez que ela hesitasse diante da largura
da colher, disse-lhe ingenuamente: 'Ajuda-te com o teu
dedo, senhorinha .. .', quer dizer, empurra o conteúdo
da colher na tua boca, com o teu dedo. Ouvindo esse
conselho, a senhora se pôs a rir e eu também, em
seguida, estourei de rir. O venerável staretz se afas­
tou desconcertado e a senhora deixou a cela. Quanto
a mim, continuando cada vez mais o meu louco riso,
apesar dos esforços de minha mãe para detê-lo, fui
posto fora e recebi forte reprimenda pela minha in­
conveniente conduta. Fui privado do café da manhã
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e do jantar e minha mãe declarou que não me per­
doaria enquanto não obtivesse o perdão do padre Se­
rafim, para junto do qual ela me mandou.
Tendo-me aproximado da porta de sua cela, eu
a encontrei fechada e, de acordo com o uso, pronun­
ciei as palavras da oração: 'Senhor Jesus Cristo, Fi­
lho de Deus, tem piedade de nós', o que equivale,
na linguagem monástica, a pedir permissão para en­
trar. Responderam-me do interior: 'Amém' - quer
dizer, 'entra' - e a porta se abriu.
Qual não foi minha surpresa quando vi, no meio
da cela, um esquife e, sentado nele, o venerável sta­
retz, tendo nas mãos um livro. Ele me saudou com
bondade.
- Bom dia, meu amigo, bom dia. O que te traz?
- Minha mãe me envia para vos pedir perdão
porque, ainda há poueo, zombet de vós.
- Tua mãe te envia? Está bem, agradece-lhe de
minha parte, meu amigo, agradece-lhe por interceder
por um velho. Rezarei por ela. Agradece-lhe!
Estas palavras foram ditas com bonornia, mas
uma ligeira entonação particular sobre a frase 'tua
mãe te envia' me produziu o efeito de uma censura.
Sentindo-me em falta e desejando a todo o custo re­
ceber o perdão do staretz, me permiti dizer: 'Não,
não foi minha mãe que me mandou. Vim por minha
própria vontade'.
- Vieste por tua própria vontade, meu amigo, eu
te agradeço, te agradeço. Que a bênção de Deus es­
teja sobre ti.
- Ele me fez sinal para que me aproximasse,
me abençoou e acrescentou: 'O arrependimento apa­
g3 o pecado, mas aqui não havia nem sequer pecado.
Cristo esteja contigo, meu amigo'.
Em seguida me perguntou se eu lia o evangelho.
Respondi que não. Quem, naquele tempo, lia o evan­
oelho, senão o diácono na Igreja? O staretz me con­
vidou a me sentar a seu lado. Abriu o livro Que tinha
em mãos - que era justamente um evangelho - e

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começou a ler o capítulo VII de São Mateus: 'Não
julgueis para não serdes julgados. Pois com o juíga­
mento com que julgais sereis julgados, e com a me­
dida com que medis sereis medidos'. Ele leu o capí­
tulo inteiro sem comentários, se·m se referir, em na­
da, à minha conduta. Ouvindo-o, porém, compreendi
profundamente a minha falta e essa leitura produziu
em mim uma tal impressão, que as palavras evangéli­
cas se gravaram para sempre na minha memória. Ten­
do procurado um evangelho, li por várias vezes esse
capítulo de São Mateus e, durante muito tempo, podia
recitá-lo quase inteiramente de cor. Tendo terminado
a sua leitura, o padre Serafim me abençoou mais uma
vez e, antes de me deixar partir, me aconselhou a
ler, o mais freqüentemente possível, o evangelho o
que, tendo tomado a peito suas palavras, fiz depois
regularmente".

As crianças

Se nos adultos a adesão às convenções sociais'


atrofia o senso espiritual, em contrapartida as crian­
ças, como os animais, captam, sem dificuldade, a
atmosfera paradisíaca da qual um homem de Deus
está rodeado.
Um outro "instantâneo" atribuído à pena de Na­
dege Aksakov nos faz participar de uma visita que
sua família fez a Sarov. Essa visita- gravou-se para
sempre na memória da meninazinha que ela era então.
Como sempre, depois da liturgia, os peregrinos
vindos ao Deserto para verem o staretz se precipi­
taram em direção à sua #cela. Mas a porta fechada não
se abriu. Fatigado pelo trato incessante com as mul­
tidões, o padre Serafim se esquivava, às vezes, para
retomar alento na sua querida floresta.

7 E, em nossos dias, o uso dos aperitivos, dos coquet61s.

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- Ele deve ter-se escapado pela janela ao ouvir
o ruído das vossas carruagens no pátio, disse um ve­
lho monge. Para vê-lo é preciso procurá-lo no fundo
dos bosques.
- Vocês não têm muita chance de encontrá-lo,
disse o hegúmeno do mosteiro, vendo partir o grupo
dos visitantes. Ele se deitará na relva. A não ser que
responda ao apelo das crianças. Façam-nas correr dian­
te de vocês.
"A floresta", conta Nadege Aksakov, "tornava-se
cada vez mais espessa. A claridade mal se via sob a
abóbada dos imensos pinheiros. Experimentávamos
uma sensação de mal-estar nessa floresta obscura.
Felizmente um raio de sol brilhou entre os ramos
eriçados de agulhas. Retomando coragem nós nos lan­
çamos na direção dessa luz. Uma clareira verde, inun­
dada de sol, se abriu diante de nós. Lá, ao pé de um
pinheiro- que estava crescendo separado dos outros,
um velhinho enrugado, curvado até o chão, cortava
rapidamente, com seu machado [sic!], as altas has­
tes das ervas. Tendo ouvido barulho, ele se endirei­
tou, prestou atenção em direção ao mosteiro e, como
uma lebre arisca, se lançou em. direção à floresta;
mas, cedo ofegante, parou, olhou receosamente para
trás e, tendo-se jogado na relva, tornou-se invisível.
Padre Serafim! Padre Serafim!
i;ramos uns vinte chamando-o assim. Ao som das
nossas vozes infantis, ele não se pôde conter em seu
esconderijo. A cabeça de ancião apareceu acima da
erva. Com um dedo na boca parecia pedir-nos para
não denunciarmos a sua presença aos adultos.
Tendo afastado as ervas para nos abrir cami­
nho, sentou-se e nos fez sinal para que nos aproximás­
semos. A pequena Lisa - ainda quase um bebê - se
precipitou em primeiro lugar e, tendo-se lançado em
seus braços, apoiou a sua face fresca no ombro ru­
goso do ancião.
- Tesouros! Tesouros!, murmurava ele apertan­
do contra o seu magro peito cada um de nós.

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Confiantes, felizes, nós o beijávamos. Mas o jo­
vem pastor Sioma retrocedeu no caminho e correu
em direção ao mosteiro, gritando: 'Por aqui! Por aqui!
Ele está acolá, o padre Serafim!'
Ficamos envergonhados. Os nossos beijos nos
pareceram uma traição."
Retornando ao mosteiro, a pequena Lisa que o
Padre havia apertado primeiro, em seus braços, apro­
ximou-se de sua irmã e tomando-lhe a mão: "O padre
Serafim finge ser velho, disse ela. Na verdade ele é
criança como nós, não é Nadia?"
De fato, jamais em toda a sua vida, escreve na
sua velhice Nadege Aksakov, encontrou um olhar de
pureza infantil igual ao do padre Serafim, jamais viu
um sorriso semelhante ao seu. "Assim sorri um re­
cém-nascido" quando, segundo dizem as velhas "ba­
bás", ele brinca, no seu sono, com os anjos.

Outra imagem

Infância espiritual? Loucura em Cristo? Isto seria


tudo o que os peregrinos de Sarov viam quando acor­
riam ao Deserto, curiosos ou fervorosos? A mesma
Nadege Aksakov, em suas memórias, nos mostra um
aspecto diferente do homem de Deus.
Foi depois da liturgia. O padre Serafim saía da
igreja.
"Ele estava revestido do tradicional hábito mo­
nástico (grande capa preta) e levava as insígnias de
seu sacerdócio - estola (epitrachilion) e os punhos
(que os padres ortodoxos prendem aos pulsos para
celebrarem). A alegria de homem que participara da
refeição eucarística reluzia no seu rosto, na fronte
alta, nos traços expressivos. O esplendor da inteligên­
cia brilhava em seus grandes olhos azuis. Ele descia
os degraus lentamente, mancando um pouco e, mal­
grado essa enfermidade e a corcunda que tinha nas
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costas, parecia ser - e era verdadeiramente - de
uma beleza majestosa".
Depois de ter comungado, o padre Serafim passa­
va por entre as filas apertadas dos peregrinos com os
olhos baixos, sem se dirigir a ninguém. Desta vez,
contra o seu hábito, parou.
u Não esquecerei jamais", escreve Nadege, u o seu
olhar inspirado, o seu rosto transfigurado e o som de
sua voz quando se dirigia à multidão. Falava da Santa
Cruz e de sua significação para o cristão. Suas pala­
vras sonoras, simples, eloqüentes, deslizavam sem
esforço e penetravam nas almas. Falava com autori­
dade, a exemplo de Cristo, seu Senhor e seu Mestre
e não 'como os escribas e fariseus'".
As vezes os visitantes se arrastavam até o lon­
gínquo Pequeno Deserto com a esperança de aí encon­
trarem o staretz. Emava ele fora? Sim, de pé, diante
de um ícone da Mãe de Deus, fixado no tronco de
grande pinheiro, multiplicando lentamente o sinal da
cruz, como os russos têm o hábito de fazer, ele pare­
cia abismado em sua oração contínua. Os joelhos se
dobravam então involuntariamente. Em silêncio, to­
dos rezavam. O Anjo da Paz sóbrevoava a clareira.

O taumaturgo

O padre Serafim penetrava as mentes, predizia o


futuro, mantinha relações telepáticas com eremitas
que viviam a milhares de quilômetros de distância,
respondia às cartas sem nunca as ter aberto. Tinha o
dom da levitação e da bilocação, e eis que o dom de
fazer milagres e de curar enfermos lhe foi concedido.
Alegrou-se ele com isso?
uos verdadeiros santos não apenas não desejam
fazer milagres, mas, quando esse dom lhes é conferi­
do, eles o recusam. Não é somente diante dos ho­
mens que eles não querem esse dom, mas no se­
gredo do seu coração. Se alguns aceitam o dom será

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por necessidade ... outros, por ordem do Espírito San­
to agindo neles, nunca por acaso, sem necessidade" .8
O primeiro miraculado chama-se Miguel Mantou­
rov. Proprietário rural da aldeia de Noutch, na pro­
víncia de Nizhni-Novgorod, jovem, alegre, com aspec­
to agradável, a vida lhe sorria quando uma doença
estranha o derrubou. Perdeu o uso das pernas, peda­
ços de ossos caíam de seus pés. Desiludido com os
ineficazes tratamentos médicos, se fez transportar a
Sarov e, com lágrimas nos olhos, suplicou ao staretz
que o curasse.
- Crês em Deus?, perguntou por três vezes o
santo homem. "Se crês, minha alegria, tudo é possí­
vel àquele que crê".
Tendo obtido uma resposta afirmativa, retornou à
sua cela e voltou trazendo um pouco de óleo prove­
niente da lamparina que ardia diante do ícone da Vir­
gem. Com esse óleo, friccionou os pés e as pernas
do enfermo repetindo: "Pela graça recebida de Deus,
eu te curo em primeiro lugar". Em seguida enfiou nos
pés de Mantourov meias de tecido, trouxe de sua ce­
la uma quantidade de pedacinhos de pão seco e, com
eles, encheu os bolsos do casaco do jovem e lhe
disse que voltasse a pé para a hospedaria.
Me.!ltourov não se sentia seguro. Há muito tinha
perdido o uso de suas pernas. Mas uma vez postos os
pés no chão, sentiu que tinha força para se manter
de pé. Fora de si de alegria, prostrou-se diante do
staretz Serafim. Este o levantou e, severamente, lhe
disse que não era a ele, mas a Deus que era preciso
agradecer.
Feliz, Mantourov voltou para sua casa, para a jo­
vem esposa alemã que havia desposado durante o
serviço militar nas Províncias Bálticas. Mas, passado
certo tempo, ele se pôs a refletir. Agradecer a Deus?
Como? Voltou a Sarov e o perguntou ao staretz Se•
8 Bispo 1. Brlantchanlnov, MIiagres e menlfestaç6es divinas,
Yaroslavl, 1870, pp. 35-36 (em russo).

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rafim. O velho o olhou com infinito amor. Mas a res­
posta dada encheu Mantourov de consternação.
- Eis, minha alegria, disse jovialmente, que da­
rás tudo o que tens a Deus e reservarás para ti a po­
breza voluntária.
Seria essa "a terrível suavidade do evangelho"?
Michel pensou em sua jovem mulher, habituada a uma
vida fácil, amando o luxo... O preço exigido pela sua
cura não seria excessivo?
- Não tenhas medo, acrescentou o staretz. O
Senhor não te abandonará jamais, nem nesta vida nem
na outra. Reza. Reflete. E volta a ver-me".
Ao contrário do jovem rico do evangelho, Miguel
Mantourov aceitou.

Antes de Lourdes

Tendo-se propagado a notícia da cura do jovem


proprietário rural, afluíram doentes a Sarov, tanto
mais que a própria Santíssima Virgem parecia aben­
çoar e encorajar esta nova atividade de seu eleito.
No dia em que ele deixava a sua prisão voluntária
para retornar à floresta, ela lhe apareceu no caminho
acompanhada de São João, feriu o solo com seu ce­
tro e "uma fonte de água clara jorrou". A água dessa
fonte seria mais curativa que a da piscina de Betsai-
da, disse ela.
Em Jerusalém as curas só se verificavam após a
descida do Anjo, enquanto que em Sarov, os doentes
seriam curados ao longo de todo o ano. O padre Se­
rafim rodeou essa fonte com um muro e fez dela um
poço. Mais tarde construiu-se por cima desse poço
uma capela e canalizou-se a água para dois pavilhões
diferentes, para uso dos homens e das mulheres.
A semelhança com Lourdes (onde a Virgem apareceu
vinte e três anos mais tarde) é surpreendente. A água
de Sarov tinha todas as propriedades da água de Lour­
des, mas era ainda mais fria, não ultrapassando 4°.

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Entretanto, como em Lourdes, nenhum caso de res­
friado foi jamais registrado e os banhistas, ao sair,
proclamavam que sentiam um bem-estar extraordi­
nário.

O hegúmeno Nifonte

"Ninguém é profeta em sua terra n, diz a Bíblia.


Quanto mais gente o padre Serafim recebia, quanto
mais milagres fazia, mais os monges do Deserto de
Sarov o olhavam com desconfiança e animosidade.
Sobretudo o padre abade desaprovava este velho não
conformista, cuja presença transtornava a marcha nor­
mal da vida monástica. Um "instantâneo" - cujo au­
tor é o padre Antônio, hegúmeno do mosteiro de Vis­
sokogorsk, freqüentador do Deserto - é, a propósito,
revelador. n
"Cheguei uma vez a Sarov , conta ele, "para visi­
tar o hegúmeno Nifonte que diziam estar seriamente
doente. Com grande espanto eu o encontrei em per­
feita saúde. Vendo minha surpresa, relatou-me o se­
guinte: 'O padre Serafim veio me procurar e trouxe
com ele um pedaço de pão preto que me entregou
dizendo: Estás doente, padre. Pois bem, manda que
te preparem um caldo de peixe e toma-o comendo este
pão; isso te dará forças e, com a ajuda de Deus, fi­
carás bom' - 'Que dizes, staretz! Há já um bom tem­
po que não como absolutamente nada, que nada pos­
so comer e o pão preto me foi proibido pelos médi­
cos'. - 'Teus médicos não lêem o saltério. E no sal­
tério está escrito: o pão fortificará o coração do ho­
mem. Come pois um pouco deste pão'. Insistia de tal
modo que eu não podia recusar. Encontrou-se um pou­
co de peixe e, com ele, fizeram um caldo. Pus-me a
tomá-lo comendo o pão que o padre Serafim me tinha
trazido e ele me vigiava. para que comesse até o fim
Quando acabei, disse: 'Está bem. Agora, com a ajuda
de Deus, voltarás a ter saúde'. Mal saía ele, senti

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forte desejo de dormir, eu que desde muito tempo
estava privado do sono. Adormeci profundamente e
acordei banhado em suor. A doença tinha desapare­
cido. E agora estou completamente bem".
"Que pensa disto, padre Antônio?", concluiu o
hegúmeno de Sarov: "o nosso padre Serafim seria ver­
dadeiramente um taumaturgo?"

Dlvéyevo

Mas nada do que fez ou disse o staretz exaspe­


rou tanto os monges do Deserto de Sarov como a fun­
dação, por ele, de um convento de mulheres. No en­
tanto, ele não agia por sua própria iniciativa, mas exe­
cutava ordens. "Em Divéyevo, dirá ele, não dei um
passo, não preguei úm prego sem a vontade da Mãe
de Deus, a Santíssima Virgem Maria".
Tudo começou quando ele era ainda diácono. Indo
certa vez ao enterro de um rico benfeitor do mostei­
ro, o padre Pakhome, superior de Sarov na época,
acompanhado pelo diácono Serafim, parou em Divéye­
vo para saber notícias de uma doente, a piedosa viúva
Agata Melgounov que, durante longos anos vivera nes­
sa pobre aldeia, da qual se tornara benfeitora. Tinha
construído uma igreja para seus habitantes e, lá para
os fins da vida, com a bênção do hegúmeno de Sarov,
fundara aí uma pequena comunidade.
Sentindo próximo o fim, Agata pediu a unção dos
enfermos e entregou ao Superior do Deserto três pe­
quenos sacos - um cheio de ouro, outro de prata e o
terceiro contendo moedas de cobre - tudo quanto
lhe restava da fortuna, outrora considerável, pois an­
tes de se dedicar a Deus tinha sido uma nobre dama,
viúva do rico coronel Melgounov. Confiando-lhe seu
pequeno pecúlio, a agonizante suplicou ao padre
Pakhome que não abandonasse suas "órfãs", as irmãs
de sua jovem comunidade.
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"Minha Madre, teria respondido o velho, -nada de­
sejo mais do que fazer a tua vontade... Mas estou ido­
so e só Deus sabe quanto tempo me resta para viver.
No entanto, o diácono Serafim, que aqui está, viverá
muito tempo para ver a tua comunidade crescer e se
desenvolver. É a ele que a deves confiar. A própria
Santíssima Virgem o instruirá e lhe mostrará o que
deve ser feito". Profecia que levou tempo para se
cumprir.
Passando por Divéyevo dois dias mais tarde, os
padres encontraram a santa monja no seu leito de
morte e concelebraram uma Missa de réquiem. Era
13 de junho de 1789. Chovia torrencialmente. Mas em
lugar de compartilhar, depois do enterro, de um almo­
ço de mulheres, o jovem diácono Serafim, ainda aves­
so às mulheres, partiu sob a forte chuva para percor­
rer a pé os doze quilômetros que separavam Divéyevo
de Sarov.
Agata e suas órfãs... Estas palavras terão des­
pertado ecos no coração do filho de sua homônima,
a negociante de Koursk? Em todo o caso, sem apa­
rentemente se preocupar com as monjas de Divéyevo,
retirou-se para a floresta, enclausurou-se e os anos
passaram.
Mas eis que um dia - era 1823, quando após
longa reclusão abriu a porta de sua cela aos visitantes
- o padre Serafim, aos sessenta e quatro anos, man­
dou buscar Miguel Mantourov que acabava de curar
e ao qual pedira que fizesse voto de pobreza. Miguel
tinha vendido todos os seus bens e, posto de lado o
dinheiro como o staretz desejara, tinha-se instalado
em companhia da mulher alemã numa pequena casa
comprada em Divéyevo, suportando pacientemente as
ironias de seus amigos e o mau humor de sua esposa.
Quando o jovem se apresentou, o staretz tomou
uma pequena estaca, fez o sinal da cruz, beijou a
estaca e pediu a Mantourov que fizesse o mesmo.
Em seguida, saudou-o inclinando-se até o chão e dis­
se: "Vai, batioushka, a Divéyevo. Ao chegar, pôr-te-ás
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defronte da janela da abside central da Igreja de Nos­
sa Senhora de Kasan (construída pela madre Agata).
Em seguida, darás X passos (o número exato foi es­
quecido), te encontrarás num atalho limítrofe; de lá,
contarás X passos e chegarás a uma terra arada; ain­
da X passos e te encontrarás num prado. Lá, no centro
- bem no centro - fincarás esta estaca. Eis, ba­
tioushka, o que te peço para fazeres".
Mantourov partiu e, chegado a Divéyevo, · ficou
surpreso por encontrar tudo exatamente como o sta­
retz tinha indicado. Plantou a estaca e retornou a Sa­
rov onde o padre Serafim o recebeu exultante de
alegria.
Um ano passou. Como o staretz não falava mais da
pequena estaca, Miguel Mantourov concluiu que a ti­
nha esquecido. Um belo dia, porém, o padre Serafim
o chamou de novo e, desta vez, lhe entregou quatro
pequenas estacas.
"Aqui está batioushka. Vai de novo a Divéyevo
e lá, ao redor da pequena estaca plantada no ano
passado, enterra, em distâncias iguais, estas quatro
estacas. E para maior segurança - a fim de que o
lugar fique bem marcado - juhta calhaus e rodeia
cada estaca com um monte deles".
Quando Mantourov regressou, o staretz, sem uma
palavra, saudou-o inclinando-se até o chão. E outra
vez o brilho extraordinário do seu rosto impressionou
vivamente o jovem.
Que significaria essa estranha pantomima? Como
é que o padre Serafim, que não havia posto os pés em
Divéyevo desde o enterro da madre Agata, em 1789,
podia conhecer, trinta e quatro anos mais tarde, a
distância exata entre as terras aradas e os prados
atrás da igreja? Em todo o caso, foi a partir desse
momento que tudo começou.
Uma nova comunidade nasceu. A "Comunidade
Moleira" (assim chamada por causa do moinho "nutriz
das órfãs", que foi construído sobre o lugar marcado
pelas pequenas estacas), devia nitidamente se dife-

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renciar da antiga comunidade da madre Agata. So­
mente virgens poderiam dela fazer parte e a própria
Virgem Maria seria a Superiora.
Não está claro em que preciso momento ela deu
suas ordens ao padre Serafim. Mas uma vez plantadas
as pequenas estacas - sobre um terreno que aind�
não lhe pertencia - ele se pôs em ação. O padre aba­
de Nifonte o fez pagar a madeira que tirava da flores­
ta de Sarov para a construção do moinho, enviou ins­
petores a Divéyevo. "O padre Serafim nos rouba tu­
do", dizia ele. Mas o moinho - graças à ajuda de
um devotado camponês - foi construído e se pôs a
moer. Sete irmãs aí viviam, dormindo sobre as mós
do moinho até chegarem os frios de outubro, quando
ficaram prontas as primeiras celas.
Quem eram essas irmãs? Jovens aldeãs escolhi­
das pelo padre Serafim com a aprovação da Celeste
Superiora. Se a sua escolha lhe desagradava, enviava
a postulante à madre Xênia, mulherzinha seca, rústica
e iletrada, mas de espírito indomável, que dirigia a
comunidade de madre Agata.
- Pedi às senhoritas para virem - elas não qui­
seram, dirá o padre Serafim.
"Mas o que há de louco no mundo, eis o que Deus
escolheu para confundir os sábios; o que há de fraco
no mundo, eis o que Deus escolheu para confundir a
força; o que no mundo é sem nome e o que se des­
preza, eis o que Deus escolheu" (1Cor 1,27-28). Eis o
que a Virgem Maria, "humilde serva", escolhia com
um objetivo que só se tornará visível anos mais tarde.
Nem todas as recrutas do padre Serafim esta­
vam entusiasmadas. A penúria na qual a comunidade
seria chamada a viver causava medo a seu bom senso
camponês. Em que aventura o staretz se lançava?
- Não, Batioushka, não! Não quero, não posso!
gritava a bela Xênia Poutkov, filha de agricultores
abastados, noiva de um jovem que amava e à qual o
staretz pedia que tomasse o véu. Mas ele:

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- Escuta, minha alegria. Dir-te-ei um segredo.
Por ora não o reveles a ninguém: foi a própria Mãe
de Deus que escolheu o lugar para esta comunidade.
Tudo o que ela nos quiser dar, nós o teremos: um moi­
nho, em seguida uma igreja. Olha, minha alegria, tere­
mos tudo, terras para nós...
Mas no momento nada havia e estas promessas
pareciam inverossímeis ao prático senso da abastada
camponesa.
- Dizes que me amas e não queres crer em
mim, insistia o staretz.
u E, contava em sua velhice a bela Xênia, tornada
madre Capitolina, ele aparecia, de repente, irresisti­
velmente sedutor - todo luminoso".
Uma senhorita veio, ainda assim - Helena Man­
tourov, a irmã de Miguel. Criança mimada, de grandes
olhos negros - bemita, viva, encantadora - noiva
aos dezessete anos, tendo rompido, sem razão, o seu
noivado, teve, ao voltar do enterro de seu avô, uma
visão aterradora que a orientou para a vida religiosa.
Pareceu-lhe ver um enorme dragão negro abater-se
sobre ela, cuspindo fogo. É verdade que estava sob o
Impacto de seu primeiro contato'com a morte e presa
de forte febre. Não obstante, ela levou a visão a sério,
abandonou a vida mundana, mergulhou em leituras
edificantes e não sonhou senão com a tomada de véu
e a vida monástica. Mas o padre Serafim, que foi con­
sultar, recebeu-a brincando:
- Ah, Matioushka, que histórias são essas? Entrar
para o convento - que idéia! Deves casar-te, minha
alegria!
Helena chorou, rezou à Virgem Santíssima e seu
desejo de entrar para o convento só aumentou! De­
pois de tê-la provado longamente, o staretz enviou-a
finalmente a Divéyevo e a nomeou u superiora terres­
tre" da virginal comunidade.
Nesse mesmo ano um novo cura foi nomeado pa­
ra a paróquia de Divéyevo; o padre Basílio Sadovsky,
com apenas vinte e cinco anos de idade. O staretz

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gostou desse jovem padre de coração puro e fez dele,
apesar da sua juventude, o confessor de suas "órfãs".

As Igrejas

Nada mais faltava à Comunidade Moleira senão


uma igreja.
"Minha alegria", disse ele, "a nossa pobre pe­
quena comunidade não tem igreja. As irmãs são obri­
gadas a freqüentar a igreja paroquial onde se cele­
bram casamentos e batizados. Não está bem, pois elas
são solteiras. A Rainha dos Céus deseja que tenham
uma igreja para elas... Então, minha alegria, vamos
construir, para minhas 'órfãs', uma igreja em honra
da Natividade do Filho da Virgem".
- Abençoai, Batioushka, respondeu alegremente
Miguel, sempre pronto a executar as vontades de seu
bem-amado staretz. Sentia-se feliz ao saber que o di­
nheiro que havia posto de lado, depois da venda de
seus bens, serviria para a construção de uma casa de
Deus. Várias pessoas já haviam proposto ao padre
Serafim'ajudá-lo a construir uma igreja em Divéyevo
- ele sempre tinha recusado.
- Lembra-te uma vez por todas, - dizia ele à
bela Xênia, que lhe vinha falar de certa oferta, - que
não é qualquer dinheiro agradável ao Senhor e à sua
Santa Mãe. Nem tudo o que me querem dar entrará
no meu convento, Matioushka. Há quem apenas esteja
pedindo para dar, como que dizendo: aceite, simples­
mente. Mas a Rainha do Céu não aceita tudo o que
se lhe oferece. Há dinheiro e dinheiro. Muitas vezes
é fruto da violência, das lágrimas e do sangue. Não
temos o que fazer com esse dinheiro. Não devemos
aceitá-lo.
Este ponto de vista era também o dos loucos em
Cristo, que recusavam a esmola oferecida por certos
ricos para aceitarem a ajuda fraternal dos pobres de
coração puro.
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A Igreja foi terminada em 1829 e consagrada, co­
mo expressamente queria o staretz, no dia 6 de agos­
to, festa da Transfiguração do Senhor. Uma cripta de­
dicada à Santa Mãe de Deus foi acrescentada e con­
sagrada no ano seguinte, no dia 8 de setembro, festa
da Natividade da Virgem.
Mas por que quereriam tantas igrejas? Não são
elas centros, não geográficos, mas cósmicos, de um
universo destinado a ser eucaristia? Partindo da igre­
ja, a bênção do óleo, do pão, do vinho e do trigo,
consagra os elementos de toda a superfície da terra.
- A terra sob nossos pés é santa, - dizia o
staretz. - Todos os que aqui vivem serão salvos.
Sabeis que o inimigo se estabelecera aqui e nas cer­
canias? Mas o misericordioso Senhor me permitiu
expulsar esta tropa de Satã.
As aldeias de ,Divéyevo e de Vertianovo tinham,
de fato, má reputação devido à presença de uma po­
pulação operária miserável, empregada nas minas de
ferro das redondezas e tristemente conhecida pela
sua embriaguez, suas rixas e seus crimes.
Com a chegada da madre Ágata, a fundação dos
conventos, a construção das igrejas, o clima mudou,
como mudou, após o batismo da Rússia, na cidade
pagã de Kiev, como mudou na França, na aldeia de
Ars, quando lá se instalou um santo cura, como con­
tinua mudando por toda a parte onde a graça se es­
parrama como óleo nas consciências e nos corações.
Tudo quanto se passa com o homem tem significação
universal. Dar-se-á ele conta, suficientemente, dessa
temível responsabilidade?
O fervor cristão sempre multiplicou as igrejas.
A tibieza as negligencia. O ateísmo militante se en­
carniça para as destruir. No seu poema em prosa,
"Passeio ao longo do rio Oka n, um escritor russo con­
temporâneo,9 verifica com mágoa o desaparecimento
das igrejas. Os raros campanários que se erguem ain­
da, no campo, não ultrapassam senão edifícios des-
9 Soljenltsyne, "Promanada le long de la Oka".

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mantelados transformados em granjas, nos quais os
caminhões, buzinando, penetram aos solavancos. Em
lugar do som dos sinos chamando para as vésperas,
ele ouve, aproximando-se, a voz do caminhoneiro gri­
tando ao camarada que, no interior, arruma a sua car­
ga: "Apressa-te, Vítor! Anda! Vamos dançar, haverá
cinema esta noite!"
O padre Serafim amava muito suas igrejas. "O
que há de mais belo, de mais doce, de mais elevado
que uma igreja? Onde nos regozijaríamos mais em
espírito, do que na igreja, em presença de Nosso Se­
nhor e Deus? Não há obediência mais importante do
que aquela que se cumpre na igreja. Se só com um
pequeno esfregão, se limpa a poeira na casa de Deus,
não se ficará sem recompensa".
Depois que Helena Mantourov pronunciou seus
votos nas mãos do monge Hilarião de Sarov, o staretz
a nomeou sacristã com a bela Xênia Poutkov como
adjunta. Na presença de seu cura, o padre Basílio,
deu-lhes instruções precisas concernentes aos ofícios
e à manutenção do interior. Dois monges de Sarov de­
viam ajudar o padre Basílio a ensinar às irmãs as ru­
bricas e o canto litúrgico. Nunca indo a Divéyevo, o
staretz, de longe, vigiava tudo e queria que tudo fosse
impecável. Insistia para que um círio ardesse cons­
tantemente, noite e dia, diante do ícone do Salvador
na igreja da Natividade, e que uma lamparina perma­
necesse eternamente acesa embaixo, na cripta, diante
do ícone da Mãe do Verbo. Era-lhe caro o simbolismo
dessas pequenas luzes que ele dizia agradáveis a
Deus e que remontava a Moisés.
"Enquanto vivia", contava a bela Xênia, "não sa­
bíamos o que era comprar velas. Levavam-lhe muitas
e ele, o nosso Batioushka, guardava todas para Di­
véyevo. Quando íamos vê-lo - sobretudo nos últi­
mos tempos, antes de sua morte - ele não falava
senão de suas igrejas: 'Tendes tudo o que é Pl'.'eciso,
Matioushka? Não vos falta alguma coisa?' - 'Não,
Batioushka' - 'Graças a Deus, minha alegria, agrade-
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çamos ao Senhor!', murmurava ele persignando-se ra­
pidamente".
No entanto, malgrado a solicitude do santo an­
cião, não era sempre que nada faltava: a jovem comu­
nidade era pobre e as irmãs não ousavam importunar
o staretz.
Um dia, querendo acrescentar o óleo na lampa­
rina cuja perpétua chama iluminava o ícone da Santís­
sima Virgem, a irmã Xênia constatou que a garrafa
estava vazia. Ao aproximar-se, depois da liturgia, viu
que, por falta de óleo, a lamparina se apagara. Que
fazer? Não havia, na comunidade, nem óleo, nem di­
nheiro. A dúvida invadiu o espírito da jovem. Se em
vida de seu Batioushka suas indicações não podiam
ser respeitadas, o que seria depois de sua morte?
Tristemente ela se dirigiu para a saída quando ouviu
um ligeiro crepitar e, voltando-se, viu que a lampari­
na, cheia de azeite, se tinha acendido sozinha. Feliz,
serenada, correu para contar o prodígio a Helena Man­
tourov quando, perto da porta, um camponês a deteve:
uSois vós a sacristã?" - "Sim, por quê?" - uo pa­
dre Serafim vos recomenda que mantenhais uma cha­
ma perpetuamente acesa diante cio ícone da Mãe de
Deus. Então, eis 300 rublos. São para o azeite. E para
que meus pais sejam inscritos no necrológio e men­
cioneis seus nomes em vossas orações". uoh, Ba­
tioushka", pensou Xênia agradecendo ao camponês,
ucomo se pode duvidar de tuas palavras?"

A regra
A regra com a qual a Soberana do Céu dotara a
Jovem comunidade era das mais simples: a oração a
Jesus e a obediência eram seus fundamentos. Três
vezes o u Pai-nosso", três vezes a uAve-Maria" e a
recitação do Credo era suficiente pela manhã, meio­
dia e à noite, como prática cotidiana dessas campo­
nesas que, para se alimentarem, continuavam a tra-
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balhar nos campos, acompanhando entretanto - e era
o mais difícil - suas atividades cotidianas com a con­
tínua oração do coração. Hesicasta convicto, o padre
Serafim não tinha hesitado, apesar das críticas, em
fazer desse utête-à-tête" com o Senhor a própria base
do novo edifício. A leitura ininterrupta do saltério, na
igreja, por doze irmãs, especialmente designadas para
essa tarefa era, entretanto, obrigatória, bem como o
canto da "Paraklisis" - um ofício da Virgem - no
domingo antes da liturgia.
Quanto à obediência, por todos os meios o padre
Serafim se empenhava em tornar leve e maleável a
vontade de suas ovelhas. O fato de serem todas sol­
teiras tornava, segundo ele, a tarefa mais fácil. uAs
viúvas - observava com uma ponta de humor -
são levadas a viverem de lembranças. 'Oh como era
bom o falecido!' dizem elas, perturbando assim a ima­
ginação das moças. Ou então, ao contrário, se a vida
conjugal tinha sido infeliz, elas obscurecem com suas
recriminações a glória de um estado abençoado por
Deus". Tinha observado também que a mulher, no ca­
samento, adquire muitas vezes uma vontade própria
difícil de quebrar na vida monástica. uPrefiro me ha:
ver com oito moças do que com uma só viúva!", afir­
mava.
As múltiplas obediências que impunha às irmãs
da Comunidade Moleira chegavam muitas vezes ao
absurdo. Assim, mal tinham chegado a Divéyevo, de
Sarov, onde haviam trabalhado o dia todo, fazia-as re­
tornar ao u Deserto", obrigando-as a percorrerem vin­
te e quatro quilômetros a pé, sem terem tido tempo
de repousar, nem de comer. As vezes, caminhando
de noite, chegavam ao amanhecer diante da cela do
staretz, cuja porta estava fechada. O melhor diácono
de Sarov, Natanael, vivia ao lado. UEle faz vocês gela­
rem, esse velho!", dizia às moças. uEntrem na minha
cela para se aquecerem um pouco". Algumas entra­
ram. O staretz, avermelhou de zanga. uProíbo-vos de
entrarem aí!", gritou ele. "Que espécie de diácono é

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ele? Não é diácono de Sarov!" Coisa estranha, Na­
tanael se pôs a beber e foi excluído da comunidade
do Deserto. Mas acontecia também que jovens mon­
jas, recalcitrando sob o jugo, decidiam deixar a Co­
munidade Moleira. Sempre misteriosamente chama­
das, no momento mesmo em que se preparavam para
partir, vinham se lançar aos pés do padre ao qual
nada era necessário confessar de sua tentação - ele
sabia.

Milagres

À obediência cega - ato de fé - respondia o


milagre. Assim, durante a epiciemia de cólera que
grassou em 1830, o staretz predisse que ninguém cai­
ria doente nem no convento nem fora, com a condi­
ção de não saírem sem bênção. A vida cotidiana ,das
Irmãs era tecida de pequenos milagres que acabavam
por aceitar como fazendo parte de sua existência sob
a direção de seu Batioushka. Quer se tratasse de um
cavalo pesadamente carregado, incapaz de subir uma
encosta; quer de uma colheita de batatas; do moinho
que, num dia de forte vento, gir'ava depressa demais
- o milagre intervinha sempre.
Algumas irmãs foram enviadas pelo staretz para
colheram airelas na floresta. Um guarda florestal, a
cavalo, quis expulsá-las e ergueu contra elas o chi­
cote. Mas o chicote caiu-lhe das mãos sem que pu­
desse encontrá-lo. Ficou bastante aborrecido, o pobre,
pois o chicote não mais lhe pertencia. Quando as ir­
mãs narraram o incidente ao staretz, ele se pôs a rir.
"Ele pode procurar o seu chicote, - disse, - é de­
baixo da terra que ele se encontra".
O pequeno milagre, quase diário, estaria destina­
do a reforçar uma fé desprovida de toda a base inte­
lectual? A maioria das religiosas camponesas de Di­
véyevo não tinha nem mesmo freqüentado a escola.
"O padre me falou longamente da vida eterna",
lê-se muitas vezes nas declarações feitas mais tarde

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por uma ou outra dentre elas e narradas na crônica de
Divéyevo. Mas em que consiste esse ensinamento,
eram incapazes de o dizer. Em contrapartida, lembra­
vam-se muito bem do dia em que tinham visto seu
Batioushka caminhar numa campina acima da ponta
das ervas; do dia em que uma futura irmã, instanta­
neamente curada de paralisia das pernas, se pusera
a ceifar o feno na companhia delas; ou ainda do dia
em que, após trabalho fatigante, o staretz lhes tinha
servido, em sua cela florestal, uma suculenta refeição
sem carne, expressamente preparada para elas não
se sabe como nem com quê, enquapto ele mesmo co­
mia uma crosta de pão velho que tinha achado sus­
pensa na ponta de um barbante, na sua ermida.
O clima paradisíaco que rodeava o homem de
Deus e ao qual os animais tinham sido sensíveis,
triunfaria dos determinismos e das limitações da ma­
téria? "Cristo ressuscitou!", clamava o staretz. Nele
um mundo transfigurado surgia à luz do Espírito. Para
ele não existiam portas fechadas. O milagre florescia,
sinal da volta ao Paraíso. Mas por quê, perguntamo­
nos ao ler, na Crônica de Divéyevo, as narrativas tão
simples, mas tão palpitantes da vida dos contempo­
râneos do staretz - Mantourov, o padre Basílio, as
próprias irmãs - por que essa prodigalidade louca,
inútil, essa avalanche de maravilhas derramada sobre
rústicas aldeãs de uma província qualquer do centro
da Rússia? Por que esse interesse excepcional, que a
Virgem tinha pela fundação e desenvolvimento da Co­
munidade Moleira? A luz dos acontecimentos que se
desenrolaram em seqüência torna-se manifesto que
uma visão profética do futuro estava subjacente a
tudo quanto se passava em Divéyevo. Monjas seme­
lhantes àquelas que, em Divéyevo, faziam por obe­
diência vinte e quatro quilômetros em jejum terão,
cem anos mais tarde, a força de alma requeri­
da para jejuar, durante a quaresma, nesses campos
de concentração em regime de fome; preferirão ficar
de pé um dia inteiro imóveis, na água gelada de neve

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em degelo, do que trabalhar no dia de Páscoa, susci­
tando, por heróicos testemunhos, a curiosidade ad­
mirada dos descrentes.
A Igreja russa conhece poucas santas canoniza­
das. A História russa, em compensação, conhece pou­
cas - ou nenhuma - cortesã. A santidade da Rússia
está difundida em suas mulheres. Em graus diferen­
tes, elas são portadoras de seu ideal. Um retrato de
mulher esboçado por Leão Tolstói fornece exemplo
disso. Trata-se de sua tia, que lhe serviu de mãe
quando ficou órfão.
"O que me feria a atenção nela e mais me in­
fluenciava - escreve Tolstói - era a sua espantosa
bondade para com todos sem exceção. Procuro lem­
brar-me - e não posso - de uma só vez em que
ela se teria zangadp, teria dito uma palavra dura, te­
ria feito um julgamento. Em trinta anos de vida não
posso lembrar-me que ela o tenha feito, uma só ve;zJ
Nunca me ensinou com palavras como era preciso vi­
ver, jamais me fez 'sermões'. Todo o seu trabalho
espiritual estava no interior e, exteriormente, apenas
se viam seus atos - nem mesmo seus atos mas a
sua vida, calma, doce, resignada mas de um amor apa­
ziguante e como que secreto. Ela trabalhava numa
obra de amor interior e, por isso, era-lhe impossível
apressar-se. Essas duas faculdades - a paz e o amor
- atraíam e davam ao seu convívio um encanto par­
ticular. Alegre era o ambiente de amor que a cercava
- amor para com os presentes e os ausentes, para
com os vivos e os mortos, para com os homens e
mesmo para com os animais n .1°
A paz. O amor. A resignação. A alegria. Este re­
trato não nos faz pensar em Serafim de Sarov? Por
uma espiritualidade idêntica à sua é que uma mulher
como a tia de Tolstói foi moldada.
10 Nlcolas Arsenlev, "As tr�lç6es espirituais da famflla ruua",
em "Ortodoxia na vicia", coletânea publlcada sob a direção de C.
Verkhovskoy, Nova York, 1935 (em russo).

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O instinto maternal é muito desenvolvido na mu­
lher russa - mesmo com relação ao homem que ela
ama. Tem a tendência a apiedar-se de suas fraquezas
mais do que a desfiar seus encantos para conquistar
a sua força. Ao falar em u A mulher e a salvação do
mundo", da mulher em geral, foi na mulher russa, em
particular, que o teólogo contemporâneo Evdokimov
deve ter pensado. u Ela mantém o carisma maternal
de fazer nascer Cristo nas almas dos homens. A ela
incumbe a tarefa de levantar o zelo masculino que
desliza tão freqüentemente - e cada vez mais -
para a profanação dos mistérios e a perda dos va­
lores espirituais. Nas condições de vida atuais, a san­
tidade é mais interior na mulher do que no homem.
Toda mulher tem intimidade inata, quase cumplici­
dade com a tradição, a continuidade da vida".11 Era
apoiado nesta faculdade feminina de guardar "a lem­
brança de todos estes fatos em seu coração" (Lc 2,
51 ), como ela própria fazia, que ele lançava a Virgem
com o título de Superiora da Comunidade Moleira.
Ela previa - e fazia seu eleito Serafim prever - que,
para guardar a fé num país devastado pelas persegui­
ções e ameaçado de descristianização, não eram co­
rações carregados de um excesso de ciência humana
que seriam necessários, mas corações despedaçados
- como o seu ao pé da cruz - por um paroxismo de
sofrimento.

A morte
Nesta enseada de promessas divinas, o Gólgota
projetava já a sua sombra. A Rússia estava em guerra
com a Polônia. Dirigindo-se para o exército, o general
Kouprianov parou em Sarov, travou conhecimento com
Miguel Mantourov e, encantado com a sua persona­
lidade aberta e agradável, impressionado pelo seu
11 P. Evdoklmov, A mulher e a salvação cio mundo, Ed. Paullnaa
1888.

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bom senso prático e pelo desinteresse com que se
ocupava dos negócios do staretz, pensou que se tor­
naria um intendente ideal para gerir seus domínios
enquanto ele guerreava no Oeste. O staretz, por ra­
zões diferentes, foi do mesmo parecer.
- Querem levar-te, minha alegria, disse ele a seu
fiel "Mishenka nii - que fazer! Tu me prestaste mui­
tos serviços. Vai agora prestar serviços em outros
lugares. Os camponeses do general são pobres, aban­
donados, sua vida é dura. Não se deve abandoná-los.
Ocupa-te disso, minha alegria. Sê bom para eles. Tra­
ta-os com doçura. Eles te amarão, te ouvirão, retorna­
rão a Cristo. É para isso, sobretudo, que te envio.
Leva tua mulher contigo. E, voltando-se para Ana Man­
tourov:
- Sê n para ele uma mulher sensata. Ele é "um
pão bento , o nosso Mishenka. Não deixes que se
enfureça, é preciso que te ouça.
Ela estava contente por partir. A eterna pen.úria
na qual o casal vivia lhe era penosa. No começo -
embora não o tenha abandonado - tinha acabrunha­
do o marido com censuras. Mas, como ela própria
narra em suas memórias, ele apenas respondia com
suspiros. A perspectiva de ganhar um pouco de di-
nheiro iile sorria.
Nos domínios do general, o casal encontrou a
Incúria, camponeses vagando como ovelhas sem pas­
tor. Muitos dentre eles, no seu desespero, se. tinham
unido a seitas de velhos crentes. Pondo ordem nos ne­
gócios do general, Miguel adquiriu-lhes a confiança.
Em grande número retornaram à Igreja, sobretudo
após uma epidemia de febre perniciosa, na qual os
doentes foram curados pelas orações do padre Sera­
fim e pelo conselho que deu a Mantourov de os fa.
zer comer migalhas de pão preto sem outro medica­
mento. A região era pantanosa. A malária grassava aí
em caráter endêmico. Ao fim de dois anos Miguel, tam-
12 "Mlshenka", diminutivo afetuoso de Miguel.

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bém, caiu doente e escreveu a sua irmã rogando-lhe
que pedisse a ajuda do staretz. Acompanhada da bela
Xênia, ela foi a Sarov.
- Sempre me obedeceste, - lhe disse o velho
homem. - Pois bem, minha alegria, gostaria de te
impor uma obediência.
- Eu vos escuto, Batioushka.
- Vê, minha alegria, teu irmão Miguel está mui-
to doente. Ele deve morrer. Mas eu ainda preciso
dele para o convento, para as órfãs. Então, a obe­
diência da qual te quero encarregar é a seguinte:
morrer em lugar dele.
- Abençoai, Batioushka, - respondeu Helena
muito calma.
Ele a olhou longamente, falando-lhe da vida eter­
na. Ela escutava sem uma palavra.
- Batioushka! - gritou ela, de repente. - Te­
nho medo da morte!
A essa família excepcional, o staretz pedia coi­
sas extraordinárias: ao irmão - o sacrifício de sua
fortuna; à irmã - o sacrifício de sua vida. No con­
vento ela levava uma existência ascética, não co­
mendo senão batatas e bolachas que tirava de um
saco suspenso à entrada de sua cela. "Como? Não há
mais nada?" - admirava-se a irmã cozinheira. -
" Acabei de encher a sacola". - "Não fique zangada
- respondia docemente Helena - desculpa-me. �
meu fraco - gosto demais dessas bolachas!" Dormia
sobre uma pedra recoberta com um tapete rústico e
dava tudo o que tinha, sempre às escondidas. Ama
vam-na por sua grande bondade. Muitas vezes, na igre
ja, passando diante de uma irmã necessitada ou dE
uma peregrina indigente, ela lhe escorregava dinheirc
na mão, murmurando: "Olha, Matioushka, pediram-mi
para te entregar..."
De temperamento frágil, emotiva, nervosa, sujei
ta a visões diabólicas, Helena tinha tido sempre me
do da morte. Ela pressentia, com pavor, o próximo de
saparecimento do staretz e dizia que não lhe poderi,

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sobreviver. Pedindo-lhe para morrer antes, estaria ele
satisfazendo o seu desejo? Outros pretendiam que,
tuberculosa, Helena estava de qualquer modo conde­
nada e que o staretz o sabia. Durante longo tempo
tinha ela tido em sua cela e cuidado com amor, a
sua antiga arrumadeira, Oustinia, que jamais tinha con­
sentido em separar-se de sua senhora. Ora Oustinia
era tísica. Alguns dias antes de sua morte, teria dito
à antiga senhora: "Vi em sonhos um belo jardim. E
uma voz me disse: Este jardim é teu e de Elena Vassi­
lievna.13 Logo ela virá juntar-se a ti".
Levado tudo isso em consideração, teria o staretz
o direito de apressar a sua morte? Tinha o dom de
curar. Não poderia sarar a jovem, se estava tão doen­
te e também seu irmão Miguel?
Ao grito desesperado de Helena: "Batioushka, te­
nho medo de morrer!", ele respondeu docemente:
"Não cabe a nós ter medo, minha alegria. Para ti e
para mim é a felicidade".
Ela despediu-se mas, mal transposta a soleira da
porta, cambaleou e caiu desmaiada. O staretz deitou-a
no caixão que conservava na entrada (o que não a deve
ter serenado quando voltou a si; a pobrezinha!), as­
pergiu-a com água benta e deu-lha a beber.
De novo em Divéyevo, Helena se acamou. "Não
me levantarei mais", disse ela. Impressionável como
era, não há nada de espantoso em que o choque que
acabava de sofrer tenha apressado a sua morte. Ela
partiu com beleza, munida dos sacramentos da Igreja,
rodeada de visões celestes. Era véspera de Pentecos­
tes. Conta-se que no dia seguinte, enquanto se can­
tava, na liturgia, o Hino dos Querubins, Elena Vassi­
llevna, à vista de toda a assistência, teria, por três
vezes, sorrido, com a face radiosa, no seu caixão
aberto.
- Por que choras? Como sois bobas, minhas ale­
grias, por chorar, dizia o staretz à bela Xênia e às
13 Elena Vasslllevna, nome e sobrenome. Em russo: Elena, fllha
de Vasslly (Baslllo).
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Irmãs inconsoláveis
n
com a perda de sua "superiora
terrestre . Deveríeis tê-la visto alçando vôo e abalar
para o Reino de Deus: ela é, agora, dama de honra da
Rainha do Céu!...

A primeira andorinha

No entanto, houve uma morte que o velho homem


chorou. Quando ele recrutava postulantes para a sua
nova fundação, a irmã Parasceve veio vê-lo em com­
panhia de sua irmã caçula que, segundo a expressão
imaginadan
pela mais velha, a tinha seguido "como
um totó . Apesar de sua pouca idade - tinha apenas
treze anos - teimava em querer entrar para o conven­
to. Reservada, silenciosa, impressionou o staretz pelo
que havia de severamente angélico na sua juvenil
beleza. Sem mesmo lhe dar tempo de voltar a casa,
mandou-a para Divéyevo. Enquanto ela viveu, essa ma­
ravilhosa adolescente foi sua preferida. Tinha por ela
particular ternura. Somente a ela falava de suas vi­
sões, confiava-lhe segredos referentes ao futuro.
- O indigno Serafim poderia enriquecer-vos, se
quisesse - dizia ele - mas de nada vos serviria. O
muito, em vossa casa, não aumentará; o pouco não
diminuirá. Nos últimos tempos conhecereis a abun­
dância, mas será o fim.
Sentado sobre um cepo de madeira, traçava o
plano do convento,14 tal como seria depois de sua
morte, com seu muro de pedra, várias igrejas, um
campanário, alojamentos novos,
n
um refeitório, uma
hospedaria. "E as terras? , perguntavam as irmãs.
- "Serão nossas. O czar virá com toda a sua família.
O grande sino soará: Bom! Bom! (o staretz imitava
o som do sino). Em pleno verão se cantarão hinos n
pascais. Esta alegria, porém, será de curta duração .
O rosto do velho se entristecia. Abaixava a ca­
beça e lágrimas deslizavam ao longo de suas faces.
14 Tal plano era conservado em Dlvéyevo, antes da Revolução.

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- A vida será breve então - suspirava ele. -
Os anjos mal terão tempo de apanhar as almas.
Dizia ainda outras coisas - incompreensíveis -
que a jovem Maria tentou transmitir às irmãs antes
de morrer. Tratava-se de algo que voga sobre o mar,
de algo que voa pelos ares - grandes dispersões.
• Preparai sacolas de lapti 15 - tereis necessidade de­
les. Preparai o mais possível: um par nos pés, outro
na cintura - nunca se sabe... " O êxodo e a dis­
persão dos russos, cem anos mais tarde; quem, a essa
altura, acreditaria nisso?
Ela mesma partiu bem antes da hora - com a
Idade de dezenove anos. Em toda a sua curta vida
tinha sido a imagem da obediência. Um dia, como sua
Irmã Parasceve lhe falasse de certo monge de Sarov:
• Como são eles, os monges - perguntou ingenua­
mente - todos se parecem com Batioushka?"
- Vais sempre a Sarov e nunca viste um monge?
- Não, nunca. Quando vou a Sarov não vejo na-
da, não ouço nada. Batioushka me disse que nunca
olhasse os monges. Então desço o meu xale sobre
os olhos de modo a não ver senão a estrada sob os
pés.
O staretz conheceu em espírito a hora da morte
da doce criança que ele amava. Pôs-se a chorar e
disse a seu vizinho de cela, o irmão Paulo: • Maria dei­
xou o mundo, Paulo. Eu lamento a sua perda. Lamento
tanto quanto vês, não paro de chorar".
Enviou velas em profusão, para arderem no seu
enterro, ordenou que a revestissem com o megalo­
schema. Entre os dedos tinham-lhe passado um terço
de couro, preser:ite do staretz e, em redor de sua
cabeça amarrado o belo xale azul de franjas que lhe
havia dado para os dias em que fosse comungar. A
velha criança de olhos límpidos, que era o padre Se­
rafim, sentia-se espiritualmente aparentada com a pe­
quena camponesa, primeira andorinha de seu conven­
to, que partia para a prima.vera sem declínio do Reino?
15 Calçado de cortiça.

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"No outro mundo - suspirava ele - ela será vice­
priora da Comunidade Moleira e minha noiva na eter­
nidade n.
Que sabia ele da morte?
Uma vez conseguiu fazê-la recuar. Era meia-noite
quando o habitante de uma cidade vizinha, Vorotilov,
acorreu para se lançar aos pés do staretz de Sarov,
implorando-lhe que salvasse sua esposa moribunda.
"Ela deve morrer n - respondeu ele. Mas de joelhos,
soluçando, Vorotilov suplicava ao homem de Deus
que rezasse por sua esposa. O staretz fechou os olhos.
Ao fim de algum tempo abriu-os, brilhantes de alegria.
"Pois bem, minha alegria", disse levantando Vorotilov,
"volta para casa. O Senhor concede a vida à tua mu­
lher". Em casa, Vorotilov soube que uma melhora de­
cisiva se produziu no momento em que, em Sarov, o
staretz tinha rezado pela doente.
Grande é o poder do homem. Do homem teleguia­
do pelo Espírito. Jesus o proclamara: "Em verdade,
em verdade, vos digo: quem crê em mim fará as
obras que faço e fará até maiores do que elas" (Jo
14,12). Serafim de Sarov tinha já seus acessos a esse
"outro mundo n onde se vê diferentemente, onde se
julga de outro modo, onde a gente se alegra enquanto
aqui na terra se chora e onáe desaparecem, para o
comum dos mortais, as almas dos defuntos? Ele reza­
va muito pelos mortos. As vezes lhe acontecia, de
acordo com suas próprias palavras, arrancar da fúria
dos demônios as almas que eles impediam de subir
para as esferas celestes.16

Tristes pressentimentos

A sua própria morte aproxima-se. O staretz esta­


va avisado dela. Sentia-se envelhecer. As multidões,
que em número sempre crescente invadiam o Deser­
to e o perseguiam na floresta, fatigavam-no. Penosa
16 Santa Teresa de Avlla tinha o mesmo poder.

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também era a animosidade do hegúmeno Nifonte e da
maioria dos monges para com sua obra preferida - o
convento de Divéyevo. Mas pior que tudo era a ati­
tude insincera e adocicada daquele que devia mos­
trar-se o inimigo número um da bem-amada fundação.
Pequeno-burguês da cidade de Tambov, Ivan
Tikhonovitch Tolstoshéyev, noviço em Sarov, dotado
para a pintura, possuindo bela voz, não era desprovi­
do nem de qualidades nem de encantos. Chamavam­
no "o pintor". Ter-se-ia o staretz enganado uma vez?
Teria feito do jovem seu confidente? As lembranças
que, mais tarde, este último publicou poderiam fazer
crer nisso. Enfim, clarividente, o padre Serafim ter­
se-ia em seguida retraído, deixando o coração de Ivan
presa de uma espécie de amor-ódio? Inteligente e am­
bicioso, resolveu fazer carreira apresentando-se, de­
pois da morte do staretz, como seu discípulo preferi­
do e seu sucessor em Divéyevo.
"Quando fui a Sarov - lê-se nos depoimentos de
Miguel Mantourov feitos depois da morte do staretz
e narrados na Crônica de Divéyevo - eu não notava
nada de repreensivo em Ivan Tikhonov. Mesmo achan­
do-o pouco simpático, entrei ainda' assim em sua cela,
e seu convite, para tomar uma xícara de chá. Um dia
Batioushka me perguntou de onde vinha. 'De tomar
chá na cela do pintor de Tambov', respondi. 'Oh,
minha alegria, não vá nunca lá! Isso te será preju­
dicial. Não é de boa mente que ele te convida, mas
para espionar. Desde então cessei minhas visitas.
1: extraordinário como Batioushka sabia tudo com an­
tecedência e como ele nos preservava de todo o
mal'".
As irmãs, também, ele prevenia:
- Minha alegria - dizia à madre Eudóxia - eu
vos trouxe ao mundo espiritualmente e não vos aban­
donarei. O padre Ivan pede que, após minha morte,
vos dê a ele. Não, não vos dou. O seu coração e o
coração dos que se seguirão, são frios para convosco.
Ele diz: "Estás velho, Batioushka, dá-me tuas filhas!"

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"Ele o pede com um coração frio. Tu lhe dirás, Ma­
tioushka, em meu nome, que não sois atribuição dele".
Em tempo oportuno ela o fez.
"Um coração frio", repetia o staretz com angús­
tia. Ivan Tikhonov teria o coração frio. Por que este
medo do velho diante da frieza do falso discípulo?
Porque o demônio é frio, ele que é o pai da mentira.
A irmã Ana conta que se encontrava certo dia
perto da fonte miraculosa em companhia do padre
que, apoiado à rampa, se debruçava sobre a água.
"Olha Matioushka...", disse ele de repente. "Vi a água
tornar-se turva, agitada e cheia de tremor, perguntei:
'O que quer isso dizer?' Ao mesmo tempo percebi
Ivan Tikhonov que descia a rampa. Batioushka o apon­
tou. 'I: ele que vai perturbar tudo. Ele me perturbou,
a mim, o pobre Serafim, a fonte também e perturbará
todo mundo' ".

A gloriosa rainha do céu

Nessas horas difíceis que precediam a sua mor­


te, quando o staretz sofria com o pensamento dos
estragos que esse homem falso e sem escrúpu­
los iria causar ao feudo de sua Soberana, a Rainha
do Céu vinha reconfortar aquele que ela chamava
liubimitche moi - expressão de ternura popular in­
traduzível - algo entre "meu muito amado" e "meu
favorito".
"Certa vez - conta nas suas memórias o padre
Basílio Sadovsky - três dias após a festa da Dor­
mição da Santíssima Virgem, fui ver o padre Serafim
em Sarov e o encontrei só em sua cela. Recebeu-me
muito afavelmente e me falou da vida dos santos
agradáveis a Deus, dignos de diversos carismas, de
visões maravilhosas e mesmo de visitas da Rainha
do Céu em pessoa. Depois de me ter longamente en­
tretido desse modo, me perguntou: 'Tens um lenço,
batioushka?' Respondi que sim. - 'Dá-mo'. Eu lhe

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dei. Ele o desdobrou e, tirando de uma terrina, aos pu­
nhados, biscoitinhos brancos, como jamais eu havia
visto, se pôs a encher o meu lenço. 'Eu também fui
visitado por uma rainha', dizia ele, 'foi o que ficou de
sua passagem'. Enquanto pronunciava estas palavras
o seu rosto estava tão alegre, tão radioso que é im­
possível descrevê-lo. Ele mesmo amarrou bem forte
o lenço. 'Vai, batioushka, para casa, come destes bis­
coitos; dá à tua 'amiga' (era assim que sempre cha­
mava a minha esposa); depois, vai à comunidade e
põe três biscoitos na boca de cada uma de tuas filhas
espirituais'.
Eu ainda era jovem - continua o padre Basílio.
- Não compreendi que a Rainha dos Céus o havia vi­
sitado. Pensei simplesmente que uma rainha terrestre
tinha ido vê-lo, incógnita, e não 01:Jsei perguntar-lhe
qual. Foi só mais tarde que o homem de Deus me
explicou de quem se tratava. 'A Rainha do Céu - a
própria Rainha do Céu, batioushka, visitou o pobre
Serafim. Que alegria para nós, batioushka! A Mãe de
Deus recobriu de inefável graça o pobre Serafim.
'Liubimitche moi - meu dileto - dignou-se dizer a
Soberana bendita, pede-me o que quiseres'. Ouves,
batioushka? Que graça! Pronunciando estas palavras,
o homem de Deus, cheio de alegria, tornava-se inteira­
mente luminoso. u E o pobre, o miserável Serafim pe­
diu à Mãe de Deus por suas órfãs, rogando que todas
elas sejam salvas. E a Mãe de Deus prometeu ao po­
bre Serafim essa alegria inefável..."
Um ano e nove meses antes de sua morte, o
staretz teve a felicidade de receber uma última vez
- a décima primeira - a Celeste Visitante.1; Era ao
amanhecer de 25 de março de 1831, dia da Anun­
ciação.
A madre Eudóxia foi testemunha dessa visão, co­
mo outrora o monge Miquéias, na Laura da Santíssima
17 O Santo Cura d'Ars. seu contemporâneo, viu-e também, doze
vezes.

97
4 • Instruções ...
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Trindade, foi testemunha da última aparição da P�rís­
sima a São Sérgio.
Tendo rezado, o staretz disse à religiosa: u Não
tenha medo. Agarra-te a mim". No mesmo momento,
um ruído semelhante ao do vento na floresta se fez
ouvir. Uma luz celeste brilhou. Ressoaram cantos. A
cela se encheu de perfumes.
O staretz caiu de joelhos com os braços levan­
tados para o céu: UOh Virgem bendita e Soberana Pu­
ríssima, Mãe de Deus!", gritou ele.
Dois anjos apareceram, trazendo palmas.
Depois ela entrou precedida pelo Precursor e por
São João Evangelista que ela havia tomado como fi.
lho ao pé da Cruz e que, sempre, a acompanhava.
Doze virgens seguiam-se, com os cabelos desatados
sobre os ombros resplandecentes de pedrás precio­
sas. Incapaz de suportar a sua vista, a religiosa caiu
por terra e perdeu a consciência. Foi a própria Vir­
gem quem a tomou pela mão e a levantou.
A madre Eudóxia viu então que o staretz não es­
tava mais de joelhos diante de sua Celeste Soberana
mas de pé, conversando com ela de igual para igual,
com toda a simplicidade. Quanto à Rainha do Céu,
ela lhe falava familiarmente, como a um parente pró­
ximo.
A conversa durou muito tempo, mas a madre Eu­
dóxia dela não apanhou senão as últimas palavras:
- Meu dileto - Liubimitche moi - disse a
Puríssima, logo estarás conosco.
E a esplendorosa visão se dissipou.
Uma tal intimidade com a Teotocos pode parecer
estranha, até chocante, a ponto de enfraquecer o tes­
temunho da madre Eudóxia. No entanto, um homem
como São Simão, o Novo Teólogo," afirma a possibili­
dade de tal comércio: u Aquele que se enriqueceu com
a riqueza celeste, quero dizer, com a presença e a
inabitação daquele que disse: 'Eu e meu Pai viremos
e faremos nele nossa morada', esse sabe, pela expe­
riência da alma, qual a grandeza da graça que rece-
98
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beu e a beleza do tesouro que carrega no castelo do
coração. Como um amigo conversando com um ami­
go, se mantém perto de Deus, todo confiante em pre­
sença daquele que habita na luz inacessível. Feliz
quem ni&so crer! Três vezes feliz quem se esforça
pela prática e pelos santos combates, por adquirir o
conhecimento do que dissemos: é um anjo, para não
dizer mais, aquele que pela contemplação e o conhe­
cimento chegou à altura desse estado. Está perto de
Deus, filho de Deus" .18

18 Syméon le Nouveau Théologlen, Chapltraa th6ologlques etc.,


Cent. 2, Chap. 9-10.

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Terceira parte
O ESPfRITO SANTO

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O PORTADOR DE UMA MENSAGEM

Serafim de Sarov tornou-se um desses homens


únicos numa geração - segundo os dizeres de Isaac,
o Sírio - que, levados pela oração perpétua, fruto
do Espírito Santo, atingem o cume da espiritualidade
cristã? u Homem celeste e anjo terrestre", eleito da
Virgem, restava-lhe ainda uma mensagem a difundir
antes de deixar a terra? Sim.
Aquele que escolheu para seu porta-voz não era
nem monge, nem clérigo, assim como Miguel Man­
tourov, um jovem nobre das redonê:Jezas, um grande
enfermo. Filho único, tendo perdido o pai cedo, Ni­
colau Motovilov fez estudos universitários, viveu co­
mo se vive na sociedade, pecou e sofreu. Atingido
por uma doença incurável na época - provavelmente
uma esclerose em placas - em vão consultou, se­
gundo as suas próprias palavras, alopatas, homeopa­
tas e cirurgiões de renome na Rússia e no estrangei­
ro. Desesperado, se fez conduzir a Sarov, para pedir
as orações do célebre staretz Serafim.
u Cheguei ao Deserto de Sarov em 5 de outubro
de 1831 - escreve ele em suas memórias. - Tive
e felicidade, em 7 e 8 de setembro - dia da Nativi­
dade da Santíssima Virgem - de ter duas entrevis­
tas com o padre Serafim, antes do jantar e depois
do jantar, em sua cela, mas não fui curado. No dia
seguinte, 9 de setembro, levaram-me ao seu 'Próxi-
103
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mo Deserto'1 perto da fonte. Ele estava conversando
com uma multidão de pessoas que o rodeavam. Qua­
tro de meus empregados me carregavam em seus bra­
ços, o quinto sustinha a minha cabeça. Sentaram-me
perto de um grande e grosso pinheiro que ainda se
vê à margem do rio Sarovka, no prado onde habi­
tualmente o staretz secava o feno. Ao meu pedido
de me curar, ele respondeu: Não sou médico. É a
um médico que nos devemos dirigir quando quere­
mos ser curados de uma moléstia qualquer.
O infeliz confessou seus fracassos junto do cor­
po médico e disse que a graça de Deus, por inter­
médio das orações do staretz, era a sua única es­
perança.
- Ele me fez uma pergunta, continua Motovilov.
Crês em Nosso Senhor Jesus Cristo que é Deus­
Homem e em sua Santíssima Mãe, que é sempre
Virgem?
- Respondi: Creio.
- Crês, perguntou ele ainda, que o Senhor que,
no tempo, por uma única palavra, um único gesto,
curava, de imediato, as doenças dos homens, pode
com tanta facilidade como antes vir em auxílio da­
queles que o imploram? E que a intercessão de sua
Mâe Santíssima é sempre todo-poderosa e que em
virtude dessa intercessão, Nosso Senhor Jesus Cris­
to pode imediatamente e por uma única palavra de­
volver-te a saúde?
- Respondi que verdadeiramente, de todo o meu
coração, de toda a minha alma, acreditava. De outro
modo não teria vindo.
- Se crês, disse ele à guisa de conclusão, já
estás curado.
- Como curado?, perguntei-lhe. Quando meus
empregados e vós mesmo me segurais em vossos
braços?
1 lsba construída pelo staretz perto da Fonte milagrosa, na pro­
ximidade do mosteiro.

104
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- Não, disse ele, estás completamente curado,
todo o teu corpo está agora são.
Ordenou aos meus empregados que se afastas­
sem e, tomando-me pelos ombros, pôs-me em pé.
- Sustenta-te, coloca teus pés no chão, assim.
Não tenhas medo, estás completamente curado!
Depois acrescentou, olhando-me alegremente: Vê
como te manténs bem!
- Certamente me mantenho bem já que sois vós
que me sustentais, respondi.
Mas ele, retirando suas mãos:
- Agora não te sustenho mais e estás de pé sem
minha ajuda. Vai, sem medo. Deus te curou. Então,
vai! Adianta-te.
Ele me tomou pela mão e, me empurrando ligei­
ramente pelas costas, fez-me dar alguns passos so­
bre a relva e no térreno desigual junto do pinheiro,
repetindo: Firme, meu amigo, vê como andas bem!
- Sim, porque tendes a bondade de me con­
duzir.
- Não (ele retirou a mão), o Senhor te curou
inteiramente. Sua Santa Mãe lho pediu. Podes agora
andar sem mim. Vai. E ele me empurrava para que
avançasse.
- Cairei e me machucarei...
- Não, não cairás, não te machucarás, mas an-
darás com passo seguro.
- Sentindo-me cheio de uma nova força, me pus
a caminhar mas ele me deteve.
- Isso basta. Estás persuadido agora de que o
Senhor na realidade te curou e para sempre? Vê o
milagre que ele fez por ti. Perdoou teus pecados e
relevou tuas iniqüidades. Crê então nele, espera em
sua bondade, ama-o de todo o teu coração e agra­
dece à Rainha dos Céus por seu benefício. Todavia,
fraco como estás pelos três anos de sofrimento, não
caminhes muito de uma só vez e cuida de tua saúde
como de um dom precioso de Deus".

105
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"Deus perdoou teus pecados e relevou tuas ini­
qüidades ", disse o staretz. No homem psicossomáti­
co, os pecados e os males físicos, na maioria das ve­
zes, não fazem senão um todo. Ao curar o paralítico,
Jesus perguntava aos fariseus: "Que é mais fácil
dizer: Teus pecados estão perdoados ou: Levanta-te
e anda?" (Lc 5,23). Uma coisa é necessária: a fé.
Com insistência o padre Serafim fazia a pergunta a
Mantourov como a Motovilov: "Crês?" Realizado o
milagre, o Senhor constatava: "Tua fé te salvou".
A alma de Motovilov estava doente como seu
corpo. Como é que o padre Serafim o sabia? O jo­
vem com certeza se tinha aberto com ele durante as
entrevistas da véspera, mas havia ainda mais. Um
staretz possui a faculdade de ver um homem tal co­
mo ele é na realidade e não como se julga ou tem a
pretensão de se apresentar. "Nossas virtudes visí­
veis, mas irreais, nos impedem de lutar contra nos­
sos pecados invisíveis, mas reais", dizia o metropo­
lita Filarete de Moscou. Um confessor superficial e
apressado se contenta, por tranqüilidade de cons­
ciência, com absolver essa imagem estereotipada e
falaciosa que lhe apresenta o seu penitente ao passo
que, por virtude de um dom especial, um staretz vê
cada ser tal como Deus o vê e procura ajudá-lo a
sair de seus entraves ocultos.
Complicado, apaixonado, generoso e instável,
Nicolau Motovilov não tinha nem a alegre candura
nem a pura simplicidade de um Miguel Mantourov.
Foi ele, no entanto, que o staretz escolheu. Curado e
cheio de gratidão, vinha freqüentemente ver seu ben­
feitor e foi durante uma dessas visitas, no fim do
mês de novembro de 1831, um ano mais ou menos
antes da morte do staretz que se deu a entrevista
agora célebre sobre o objetivo da vida cristã que o
homem de Deus destinava "ao mundo inteiro" e que
Motovilov devia transmitir.

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O objetivo da vida cristã

"Era - escreve Motovilov - uma quinta-feira.


O céu estava cinza. A terra estava coberta de neve
e espessos flocos continuavam a turbilhonar, quando
o padre Serafim entabulou nossa conversa numa cla­
reira perto de sua 'Pequena Ermida' em frente ao rio
Sarovka, que acabava de derrubar e ele acocorou-se
na minha frente.
- O Senhor me revelou, disse o grande staretz,
que desde a tua infância desejavas saber qual era o
objetivo da vida cristã, e muitas vezes tinhas interro­
gado a esse respeito personagens altamente coloca­
das na hierarquia da Igreja".
De fato, desde a idade de doze anos, Motovilov
tinha sido atormentado por inquietações desse gê­
nero. No entanto nã'o tinha falado disso ao padre Se­
rafim. A resposta que recebeu diferia sensivelmente
das ouvidas até então.

O objetivo da vida cristã consiste na


aquisição do Espíritp Santo
Na aquisição do Espírito Santo? Mas quem é na
verdade o Espírito Santo?
A Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Não
uma força impessoal e impalpável. Uma pessoa à
qual a Igreja dirige suas preces. O Espírito anuncia
o Messias, fala pelos profetas, inspira as Escrituras.
Repousa sobre Cristo até o fim de seu ministério ter­
restre. Ressuscitado, Cristo dá o Espírito à sua Igre­
ja. "Lá onde está o Espírito, lá está a Igreja", dirá
Santo lrineu de Lião.2 No Ocidente, esta Pessoa, que
não tem nome próprio, foi a tal ponto esquecida que,
no Segundo Concílio do Vaticano se pôde chamá-lo
"esse grande desconhecido", "Aquele de quem não

2 Santo lrlneu de Lyon, Adveraus Haresu Ili, 21, 1.

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se sabe como falar e acerca do qual as palavras
soam vazias".3
O Oriente jamais cessou de aprofundar o seu
mistério. Os doutores da Igreja procuram definir seu
papel; os hesicastas invocaram-no para fecundar a
oração do coração; a Igreja o invocou em cada euca­
ristia, no momento da Epiclese. Mas qual era o cris­
tão que, no século XIX, lhe concedia lugar particular
na sua existência de todos os dias?
- Como "a aquisição"?, perguntou Motovilov,
perplexo. Não compreendo bem.
Era na verdade difícil compreender. Como pode­
mos adquirir, apropriar-nos da Terceira Pessoa da
Santíssima Trindade e que benefício o homem tiraria
disso?
O staretz explica.4
O Espírito Santo é doador de graças, enquanto
Dom. 1: neste sentido que se pode "adquiri-lo", en­
chendo-nos de sua graça, fazendo-o habitar em nós,
tornando-nos "templos do Espírito Santo" (Ef 2,22;
2Cor 6,16). Toda virtude praticada em nome de Cris­
to nos traz a graça do Espírito Santo. A oração mais
do que qualquer outra coisa...
Mas Motovilov se impacienta. "Padre, diz ele,
falais sempre da aquisição da graça do Espírito San­
to como do objetivo da vida cristã. Como posso eu
reconhecê-la? As boas ações são visíveis. Mas co­
mo é que o Espirita Santo pode ser visto? Como pos­
so saber se ele está ou não comigo?•

Ver s Deus

A grande pergunta fora colocada. O homem po­


de ou não pode ver a Deus? Segundo Aristóteles,
3 Boris Bobrlnsky, "Le Salnt-Esprlt, Vle de l'!Êgllse•, ln Contacta,
n. 55, 3° trimestre, 1966, pp. 194-195.
4 Cf. A tradução integral da conversa. Damos aqui apenas um
resumo dela.

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todo conhecimento tem por origem a experiência dos
sentidos. Para os neoplatônicos, Deus está acima da
experiência sensível; o conhecimento místico não
pode ser senão simbolicamente real.
As questões relativas ao Espírito e à graça for­
mavam, a partir do século IX, em Bizâncio, o âmago
central ao redor do qual gravitava o pensamento teo­
lógico inseparável da espiritualidade. No fim do sé­
culo X e no início do século XI, o abade do mosteiro
de S. Mamas, em Constantinopla, Simão, chamado
o "Novo Teólogo", mereceu plenamente este título,
cativado como estava pelo mistério do Espírito Santo
habitando em nós e se manifestando, nos graus su­
periores da vida espiritual, como luz.
Qual a natureza dessa luz divina? Trata-se de
uma percepção sensível ou intelectual?
"Deus é luz, diz S. Simão, e ele se comunica
pela sua claridade aos que se unem a ele na medida
de sua purificação ... Oh, milagre! O homem se une a
Deus espiritualmente e corporalmente, porque sua
alma não se separa do espírito, nem o corpo se sepa­
ra da alma. Deus entra em união com o homem in­
teiro".5
"Aquele que é Deus por natureza se entretém
com os que fez deuses pela graça, como um amigo
se entretém com seus amigos, face a face ... O Espí­
rito Santo torna-se neles tudo o que as Escrituras di­
zem a respeito do Reino de Deus".6
"Não falamos de coisas que ignoramos, afirma
Simão, mas damos testemunho daquilo que conhe­
cemos... Deus é Luz e aqueles que ele torna digno
de o verem vêem-no como Luz; os que o receberam,
receberam-no como Luz, pois a luz da sua glória pre­
cede a sua Face e é impossível que ele apareça de
outro modo que não seja na luz" ,i
5 Simão o Novo Teólogo, Sennlo 25 (em russo), Ed. Monte Atos.
6 lbld., Homllla XC (em russo), Ed. Monte Atos.
7 lbld., Homllla LXXIX, 2' ed. russa, Monte Atos, pp. 318-319.

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Mais tarde, no século XIV, a ardente questão da
possibilidade de uma união real com Deus, da acessi­
bilidade à sua natureza inacessível, deu novamente
lugar, em Bizâncio, a apaixonados debates teológicos.
São Gregório Palamas (1296-1359), porta-voz dos mon­
ges atonitas e arcebispo de Tessalônica, defendeu
perante concílios, às vezes tumultuosos, o ponto de
vista hesicasta, não deixando nenhuma dúvida sobre
a realidade da luz incriada.
Não entraremos aqui nos detalhes de uma dou­
trina que remonta aos primeiros séculos da Igreja,
fazendo parte da sua tradição oriental, professada
pelos Padres gregos. Gregório Palamas teve o mé­
rito, formulando-a definitivamente, de expô-la através
de um fundo dogmático. Segundo ele, é preciso dis­
tinguir em Deus a sua essência - totalmente incog­
noscível e inacessível - e suas energias, transbor­
damento da natureza divina, derramando-se eterna­
mente da essência una da Trindade e às quais o
homem pode ter acesso. Os Padres aplicavam a essas
energias o nome de "raios da divindade". Palamas
chamava-as "divindade" simplesmente, "luz incriada"
ou "graça n •8
1: "a luz inacessível em que Deus habita", se­
gundo São Paulo (1Tm 6,16).
1: a glória na qual Deus aparecia aos justos do
Antigo Testamento.
1: a luz eterna da qual a humanidade de Cristo
estava penetrada e que tornou sua divindade visível
aos Apóstolos quando da Transfiguração.
1: a graça incriada e deificante, presságio da
Ressurreição, participação dos santos da Igreja, que
vivem na união com Deus.
Enfim, trata-se do Reino dos Céus onde os justos
resplandecerão como o sol (Mt 13,43).9

8 Vladlmlr Losaky, Th6ologle Myatlque, p. 71.


8 lbld., p. 74.

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Na Rússia

Os santos russos tiveram disso experiência?


Contemporâneo de Gregório Palamas, São Sér­
gio de Radonege (1314-1392) foi visto, pelos monges
Isaac, o Taciturno, e Macário, concelebrar uma liturgia
com seu irmão e um terceiro celebrante resplande­
cente de luz. Terminada a liturgia, perguntam-lhe
quem era. M Se Deus no-lo revelou, respondeu o san­
to, não o posso ocultar-vos. Aquele que haveis visto
é um anjo do Senhor e não somente hoje, mas sem­
pre, celebro, indigno que sou, com ele . 10
n

Em uma outra vez, Simão, o Eclesiarca, viu, du­


rante a liturgia, um fogo se propagar ao redor do
altar e, no momento da comunhão, entrar no cálice
no qual o santo bebeu.
Mas voltemos à floresta de Sarov onde, sob neve
que suavemente caía, de um céu cinza, o staretz Se­
rafim, no século XIX, conversava acerca destes mis­
térios com o jovem leigo, Motovilov.
Na ótica do que acabamos de referir ser-nos-á
mais fácil seguir-lhes a conversa e apreciar, sob suas
aparências sempre destituídas -de formalismo, a es­
trita conformidade das palavras do staretz com a
tradição ortodoxa.

Orgulho Intelectual - Barreira para a visão

À pergunta de Motovilov:
n
MComo é que o Espírito
Santo pode sern
visto? MComo posso saber se ele
está comigo? respondeu o staretz:
- Na época em que vivemos, chegou-se a uma
tal tibieza de fé, a uma tal insensibilidade para com
a comunhão com Deus, que nos afastamos quase to­
talmente da verdadeira vida cristã ... Sob pretexto de
instrução, de ciência, nós nos engajamos numa tal
10 Pierre Kovalevsky, Saint Serge et la Splrltuallt6 Ru888, Ed. du
Seull, • Maitres Splrltuels •, p. 116.

111
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obscuridade de ignorância que achamos inconcebível
tudo aquilo de que os antigos tinham noção bastante
clara para poder falar, entre eles, das manifestações
de Deus aos homens como de coisas conhecidas de
todos e nada estranhas.
Há quinhentos anos, no limiar da Renascença,
Gregório Palamas formulava já os mesmos pensa­
mentos. Certos homens desprezam o objetivo pro­
11

posto aos cristãos n, ironizava ele, sob pretexto de


11

que é por demais modesto: os bens indizíveis que


vos foram prometidos para o século futuro! Conside­
rando como conhecimento apenas a ciência experi­
mental, eles a introduzem na Igreja daqueles que pra­
ticam a sabedoria de Cristo. Os que não possuem
conhecimentos científicos, declaram eles, são igno­
rantes, seres imperfeitos... nu
Desenvolvendo-se num mundo secularizado e
materialista, estas idéias abriram caminho. Há mui­
11

tos modos de falta de fé n, pensa um teólogo anônimo


russo, cujos escritos recentemente atravessaram a
cortina de ferro. "A pior é ter uma fé racional e ra­
cionante. Certamente não está excluído que a fé pos­
sa ser defendida com a ajuda da razão, mas para isso
é preciso que a inteligência, em estado de graça,
se alimente 'das profundezas da vida divina'". Uma
vez secada essa fonte, começa o racionalismo reli­
gioso. Isto corresponde às palavras de São Paulo: Se
11

alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe co­


mo deveria saber; mas se alguém ama a Deus, é co­
nhecido por Deus" (1 Cor 8,2-3).
- Mas, padre, insistia Motovilov, como posso
conhecer em mim a graça do Espírito Santo?
- Já vos disse que é muito simples. Que mais
vos é preciso?
- Preciso compreendê-lo ainda melhor.
Então, escreve Motovilov, o padre Serafim me
segurou pelos ombros e disse:
11 Jean Meyendorff, Saint Grégolre Palamaa et la Mystlque Or­
todoxa, Ed. du Seull, "Maitres Splrltuels", pp. 112-113.

112
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- Estamos os dois na plenitude do Espírito San­
to. Por que não me olhas?
- Não posso, Padre. Brotam raios de vossos
olhos. O vosso rosto tornou-se mais luminoso do que
o sol.
- Não tenhais medo. Vós vos tornastes tão lu­
minoso quanto eu. Estais também agora na plenitude
do Espírito Santo, de outro modo não teríeis podido
me ver ... Por que não me olhais nos olhos? Ousai
olhar-me sem medo. Deus está conos�o.
- Eu o olhei e um medo ainda maior se apode­
rou de mim. Imaginai um homem que vos fala, en­
contrando-se a sua face como que _no meio de um sol
do meio-dia. Vedes o movimento de seus lábios, a
expressão cambiante de seus olhos; ouvis o som de
sua voz, sentis suas mãos vos apertarem os ombros
mas, ao mesmo tempo, não percebeis nem suas mãos,
nem seu corpo, nem o vosso, nada senão uma es­
plendorosa luz se propagando ao redor, a uma distân­
cia de vários metros iluminando a neve que recobria
a campina e caía docemente sobre o grande staretz
e sobre mim. Como descrever o que sentia então?
- Que sentis?, perguntou 'o staretz.
O diálogo que se segue é extraordinário. Moto­
vilov está feliz. Sua alma, cheia de silêncio, está re­
pleta de paz e de alegria. Seu corpo, apesar do frio,
deleita-se num agradável calor. Aspira delicioso per­
fume. O staretz comenta longamente todos esses es­
tados.
- É assim que as coisas devem ser, acaba por
dizer, habitando a graça divina no mais profundo de
nós, nos nossos corações. "O Reino de Deus está
dentro de vós", ensina o Senhor. Por Reino dos Céus,
ele entende a graça do Espírito Santo ... É o estado
no qual estamos atualmente e que o Senhor tinha em
vista quando ele prometia a seus discípulos: "Em
verdade vos digo que estão aqui presentes alguns
que não provarão a morte até que vejam o Reino de
Deus chegando com poder" (Me 9, 1 ).

113
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E o que viam eles? A transfiguração na luz do
Tabor.
- Parece-me que não mais ides agora interro­
gar-me, amigo de Deus, sobre o modo como se ma­
nifesta, no homem, a presença da graça do Espírito
Santo. Lembrar-vos-eis desta manifestação?

Difusão da mensagem

- Não sei, padre, se Deus me tornará digno de


conservar sempre esta graça, na minha memória,
com tanta nitidez como agora.
- E eu, respondeu o staretz, acredito, pelo con­
trário, que Deus vos ajudará a conservar essas coi­
sas para sempre, na vossa memória, senão ele não
teria sido tão rapidamente tocado pela minha humil­
de oração e não teria tão prontamente atendido o
desejo do miserável Serafim. Além do mais, não é
somente a vós que é dada a manifestação desta
graça, mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro.
Apenas podemos admirar a tranqüila segurança
com que, do fundo dos bosques nos quais tinha de­
corrido sua vida de eremita, o staretz profeti�ava a
difusão mundial de uma mensagem confiada a um jo­
vem ieigo pouco preparado para se lembrar de seu
conteúdo. Mas "quanáo o ensinamento vem do Espí­
rito, a memória se conserva intacta", dizia o padre.
Sem sua ajuda, é evidente que Motovilov nunca teria
podido reconstituir uma conversa repleta de doutrina,
de teologia e de citações bíblicas.

O monge e o leigo

Quanto aos nossos diferentes estados de monge e


de leigo não vos preocupeis, disse o velho. Seu jo­
vem interlocutor é leigo. Ele, monge. Isso não tem
importância, afirma o staretz: é a fé e o amor que
contam. Propriamente falando, ele não é, também,

114
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um teólogo. O que é ele? Um hesicasta que se tornou
inteiramente oração. E quem quer que saiba rezar,
é teólogo, diz ,a sabedoria ortodoxa.
"I: preciso possuir a teologia patrística por den­
tro. A intuição pode ser mais importante do que a
erudição. Somente ela ressuscita e vivifica os velhos
textos, os transforma em testemunho. Esta intuição
não é senão a graça do Espírito Santo". 12
Esta intuição, nascida da graça, o staretz Serafim
a possuía, a ponto de ilustrar suas palavras com um
testemunho visual e vivo.
Familiares aos perfeitos, as realidades do século
futuro, entrevistas desde a terra, estão ao alcance
de todos os cristãos, inclusive porque se encontram
na graça batismal. ensina São Simão, o Novo Teólogo.
Esta graça, porém, para ser eficaz, não deve somente
ser recebida no sacramento, mas "adquirida com pe­
nas e trabalhos múltiplos".
"A virtude", dizia o padre Serafim, "não é uma
pêra que se coma de uma só vez".
Tanto quanto a obediência, ele pregava a paciên­
cia. "A subida para o Reino exige paciência e gene­
rosidade. Pois não é facilmen\e que se triunfa do
apego às vaidades deste mundo.
Somente depois de ter suportado, com a ajuda
da oração, múltiplas tentações involuntárias, é que
alguém se torna homem humilde, seguro e experi­
mentado".
"A paciência", dizia ele para terminar, "é a apli­
cação da alma ao trabalho". 13

A nossa conduta aqui na terra

Sendo o coração do homem capaz de conter o


Reino dos Céus, é preciso que, acima de tudo, ele
12 G. Florovsky, Os camlnbos da teologia russa, Paris, 1937, p.
506 (em russo).
13 Chronlque de Dlv6yevo, pp. 78-79.

115
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procure esse Reino, o que não quer dizer que todo
o gozo terrestre lhe seja interdito.
- A necessidade, as penas e as desgraças fa­
zem parte da nossa existência, mas não devem cons­
tituir toda a trama. � por isso que, pela boca do
Apóstolo, o Senhor nos recomenda que carreguemos
os fardos uns dos outros. Ele próprio nos deu o man­
damento de nos amarmos mutuamente para que, re­
confortados por esse amor, a caminhada dolorosa pa­
ra a pátria celeste nos parecesse mais fácil... Tudo o
que pedirdes ao Senhor obtê-lo-eis, contanto que seja
para a glória de Deus e para o bem do próximo; pois
Deus não separa o bem do próximo da sua glória.
"Tudo o que fizerdes ao menor dentre vós, é a mim
que o fareis".
E o staretz termina com um pensamento original:
- Quanto a solicitar bens pessoais, prestai aten­
ção para pedirdes somente coisas das quais tendes
necessidade urgente. Talvez sejais atendido, mas vos
será perguntado por que quisestes obter o que teríeis
podido facilmente dispensar.
- Eis aí, amigo de Deus: agora já vos disse tudo.
Mostrei-vos com toda a realidade o que o Senhor e
sua Santa Mãe quiseram por meu humilde intermé­
dio, revelar-vos...
- Amém. Ide em paz.
"Vi com meus próprios olhos", conclui Motovi­
lov, "o brilho da luz inefável da qual o santõ era a
fonte e estou pronto a testemunhá-lo sob juramento".

Transfiguração

Aquilo que o bizantino requintado, Simão, o No­


vo Teólogo, tinha ensinado, cantado em seus escritos
e em sermões belos como poemas, o "miserável"
Serafim havia humildemente demonstrado em am­
biente campestre a um jovem admirado e lento para
compreender. Longe do Sinai, da Palestina, da Grécia,

116
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a luz u incriada" se tinha manifestado numa floresta
austera e triste, no decorrer de um dia de novembro.
O céu estava baixo e nevava. Lentamente, tranqüila­
mente, silenciosamente nevava. Nada é comparável à
brandura acolchoada de um dia de neve na Rússia.
Tal como para o profeta Elias, Deus não veio nem no
furacão, nem na tempestade. Ele veio, para o staretz
Serafim, na paz da neve que cai.
Ao jovem sentado diante dele, no tronco cortado
de uma árvore, o velho dá o estranho título de uvos­
sa Teofilia" - Amigo de Deus, pois todos os que
buscam a Deus com coração sincero são seus ami­
gos. Motovilov representa esses buscadores. Univer­
sitário influenciado pelo Ocidente, temperamento
apaixonado, alma inquieta, é já contemporâneo dos
estudantes revoltados, dos doentes, tão freqüentes
no século XX, dos,quais um psiquiatra conhecido pô­
de dizer: u Mais ou menos um terço dos pacientes
não está atingido por neurose clínica definível, mas
sofrem do fato de estarem suas vidas desprovidas de
sentido e de conteúdo". 14
A Motovilov à procura desse sentido, o staretz
responde: o Espírito Santo.
Sinônimo do Reino de Deus, ele para lá nos leva.
Na verdade, quem é ele senão o Agente de nossa
deificação? Pois, na seqüência de Santo lrineu, os
Padres da Igreja não cessaram de afirmar que u Deus
se fez homem para que o homem pudesse tornar-se
Deus".15 Embriagadora perspectiva! Antídoto do qual,
um século mais tarde, um mundo secularizado, bê­
bado de incerteza, terá desesperadamente necessi"­
dade.
A u Pequena Transfiguração" do staretz Serafim
não teve outra testemunha a não ser Motovilov, por
causa da inoportunidade de sua divulgação na época,
14 C. G. Jurig, Seelenprobleme der Gegenwart (em alemão), p. 96.
15 Santo lrlneu de Uio, Adverau• H•reNS, v. praef. P. G., t. 7,
col. 1120.

117
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para além da floresta de Sarov? A Rússia não estava
pronta e o mundo exterior menos ainda.
Esperando, ajudado pelo Espírito Santo, Motovi­
lov anotou o seu diálogo com o staretz nas suas Me­
mórias cujo caderno, uns quarenta anos mais tarde,
confiou, antes de morrer, à sua mulher. Sentindo,
por sua vez, a proximidade do fim, ela o exumou do
sótão onde o tinha relegado, para confiá-lo a um es­
critor de passagem, que publicou o diálogo referente
ao Espírito Santo, no "Jornal de Moscou" sob o títu­
lo: "Como o Espírito de Deus se manifestou em São
Serafim no decorrer de sua conversa sobre o sentido
da vida cristã".
Ele podia dizer "São Serafim" pois que a canoni­
zação do staretz se deu no mesmo ano de 1903, se­
tenta anos depois de sua morte e setenta e dois anos
após a conversa perto do "Próximo Pequeno Deser­
to", na floresta.

A grande partida

Tal como muitos santos, o padre Serafim conhe­


cia a hora de sua morte com antecedência e para
ela se preparava. "Quando retornardes a Sarov, en­
contrareis minha porta definitivamente fechada", di­
zia ele a certas pessoas. A outras, enviava mensa­
gens. "Eles mesmos não me verão mais". A seu vi­
zinho de cela, o irmão Paulo, anunciava: "Será logo
o fim". Na simplicidade do seu coração, o bom irmão
Paulo se perguntava se seria do fim do mundo que o
staretz queria falar.
"A minha vida diminui", dizia ele. "Meu corpo
está morto para tudo, mas meu espírito está como
se houvesse nascido ontem!" E o seu rosto, enquan­
to pronunciava estas palavras, resplandecia dessa luz
Irradiante com a qual o viam muitas vezes iluminado.
118
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A maior preocupação do velho homem continua­
va a ser o futuro de Divéyevo, que ele previa pertur­
bado e tempestuoso.
"Agora não vos falta nada, dizia às irmãs, mas
quando eu não mais estiver, tereis muitos, muitos ma­
les. Que fazer - tal é o vosso quinhão! Ser-vos-á ne­
cessária a paciência. Rezai constantemente. Agrade­
cei a Deus por tudo. Sede sempre alegres. Rezai por
vossos benfeitores. Não lhes agradeçais com pala­
vras. Agradecendo-lhes diretamente vós os privareis
da recompensa à qual têm direito. Quando eu tiver
partido, vinde ao meu túmulo. Quando tiverdes tem­
po. O mais freqüentemente possível. Tudo quanto ti­
verdes no coração, todas as vossas penas, com a fa­
ce por terra, contai-mas como a um vivo. Eu vos ou­
virei e tirarei a vossa tristeza; pois que para vós es­
tarei sempre vivo.'
Confio-vos a Deus e à sua Santa Mãe. Nada
temais. Após muitas tribulações, a ordem retornará
11
ao convento com a décima segunda superiora.
Ao padre Basílio, cura de Divéyevo e confessor
das monjas, renovava suas ins,truções de mansidão
"ordenando-me", escreveu o padre Basílio , "que fos­
se tão tolerante quanto possível no confessionário,
o que sempre fiz, apesar das críticas Essa tolerân­
11•

cia, baseada na esperança ilimitada na bondade di­


vina, era um dos traços salientes da espiritualidade
do padre Serafim. Os pecadores e os "infelizes" eram
uma só coisa para ele.
O dia 1 9 de janeiro de 1833, era um domingo. O
staretz foi à igreja para a construção da qual tinha,
na sua juventude, angariado fundos, venerou os íco­
nes, acendeu diante deles velas - o que era con­
trário a seus hábitos - e comungou na liturgia. Ter­
minado o ofício, despediu-se dos irmãos presentes,
beijou-os, deu-lhes a bênção e saiu da igreja pela por­
ta do Norte. Observou-se a sua fadiga, a sua fraqueza
física, mas o seu comportamento era, como de ordi­
nário, tranqüilo e alegre.
119
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No decorrer do dia ele recebeu muita gente. A
uma irmã de Divéyevo deu duzentos rublos para que
comprasse pão na aldeia vizinha, estando esgotada a
provisão da comunidade. A uma outra ele disse: "Oh,
Matoushka, que Ano Novo tereis! A terra se encherá
de gemidos e lágrimas n.
Mas ninguém queria crer que ele ia morrer.
O irmão Paulo, no entanto, notou que, durante o
dia, por três vezes o staretz saiu da sua cela para ir
à vizinhança da igreja da Dormição da Virgem, ao lu­
gar que havia designado como o de sua futura sepul­
tura e lá permaneceu longo tempo, pensativo, olhando
a terra.
A noite, já tarde, o irmão Paulo o ouviu cantar.
Estava-se no tempo de Natal, mas hinos pascais su­
biam da cela do padre Serafim: "Tendo visto a Res­
surreição de Cristo... n; "Resplandece, resplandece,
Nova Jerusalém... n; "ó Cristo, nossa Páscoa Santíssi­
ma... n; "Cristo ressuscitou dos mortos, por sua mor­
te, ele venceu a morte... n
De manhã, lá pelas seis horas, no momento de
ir para o ofício, o irmão Paulo sentiu, na entrada, um
cheiro de fumaça. Ele tinha muitas vezes alertado o
padre Serafim contra um possível incêndio quando
saía para a floresta, deixando a sua cela repleta de
velas acesas. O staretz respondia que não havia pe­
rigo - somente a sua morte seria anunciada por um
começo de incêndio.
O irmão Paulo, no momento, não pensou nisso.
Tendo pronunciado a súplica de costume, bateu
à porta, mas não recebeu resposta. Fora, entreviam-se
na obscuridade os monges indo para a igreja. O ir­
mão Paulo gritou: "Meus Padres e irmãos! Sente-se
a fumaça - eu me pergunto o que estará queimando.
O staretz deve ter partido para o 'deserto' n.
Um jovem noviço, Anikita, acorreu e, com um
violento golpe de ombros, fez saltar o trinco da por­
ta. Viram na cela pedaços de pano, bem como livros
colocados em desordem sobre um banco em vias

120
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de se consumirem lentamente, icendiados por uma
vela caída do castiçal. Além disso não havia nenhu­
ma luz. Perguntando-se se o staretz teria adormecido
depois de uma noite passada em oração, os monges
Indecisos se acotovelaram à porta.
Na igreja, entretanto, a liturgia da aurora pros­
seguia. Depois da epiclese cantava-se: u Digna és tu
de ser louvada eternamente, Mãe de Deus", quando
um rapaz entrou precipitadamente e avisou os mon­
ges do que se passava. Vários saíram para correrem
à cela do staretz.
Tateando na obscuridade, o irmão Paulo e o no­
viço Anikita se tinham aproximado do padre Serafim.
Pegou-se um castiçal e, à sua fraca luz, viu-se o ho­
mem de Deus de joelhos diante do ícone da Virgem
de Ternura.
- "A Alegria 'de todas as Alegrias", como ele
a designava. Com a cabeça descoberta, revestido
com o seu eterno casaco branco, o evangelho que
tinha o hábito de ler aberto à sua frente. Suas mãos
estavam cruzadas sobre o peito, acima do seu cru­
cifixo de cobre, bênção materna que não o deixava
nunca. Seu rosto estava tranqüilo e sereno. Dormia?
Suavemente tentaram acordá-lo. Mas seus olhos não
se abriram. De joelhos, diante de sua celeste Sobe­
rana, o staretz tinha adormecido para sempre.

Os que ficam

Enquanto em Divéyevo o convento ecoava em


gemidos e prantos, preparava-se, em Sarov, o enter­
ro do grande monge cuja presença, durante cinqüenta
anos, tinha santificado o "Deserto".
Durante oito dias o corpo ficou exposto, desco­
berto, na catedral da Dormição da Virgem. Milhares
de pessoas, vindas de perto e de longe, aí se com­
primiam para dizer adeus ao seu bem-amado "Ba­
tloushka". No dia do enterro a multidão era tão com-

121
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pacta que as velas, perto do caixão. se apagavam por
falta de ar. O hegúmeno Nifonte oficiava. Não houve
sermão. Substituíam-no as palavras do staretz, ainda
vivas em todas as memórias.
O que era o staretz para essa multidão? Um tau­
maturgo, um vidente, um exorcista, um adivinho? Um
verdadeiro pai. Com tudo o que a paternidade com­
porta de sabedoria, de força, de estabilidade, de viril
ternura. Alguém a quem se podia dizer tudo com a
certeza de jamais ser rejeitado ou incompreendido.
Ao seu contato, os homens maltratados pela vida re­
tomavam esperança, se achavam melhores. Os pe­
cadores se transformavam em filhos pródigos.
Chora-se por ter ofendido um ser amado, mas
não se lamenta ter transgredido as ordens de um
déspota. Na visão do staretz, Deus era amor. Unica­
mente. Esquecemo-nos demasiado disso. Em lugar de
acabrunhar os pecadores e de ameaçá-los, o padre
Serafim falava da misericórdia divina. "Se enchêsse­
mos um oceano de prantos e arrependimento", dizia
ele, "não chegaríamos a satisfazer o Senhor que, gra­
tuitamente, nos dá sua carne e seu sangue como ali­
mento e bebida a fim de nos lavar de nossas man­
chas, nos purificar, nos vivificar, nos ressuscitar".
A paz do homem de Deus se comunicava a seus
interlocutores. "Aquele que anda na paz, como que
apanha, com uma colher, os dons da graça", dizia.
Ouviu-se dizer que os animais selvagens o serviam e
que ele oferecia a seus visitantes, fora da época, fru­
tas "celestes" de sabor delicioso. Milhares de infe­
lizes vindos a Sarov viam, no fim da penosa cami­
nhada terrestre, se entreabrir o pórtico luminoso do
Reino dos Céus.
"Vinde a mim todos os que estais cansados sob
o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. To­
mai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque
sou manso e humilde de coração, e encontrareis des­
canso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave
e o meu fardo é leve" (Mt 11,28-30).
122
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O staretz amava particularmente e repetia mui•
tas vezes estas palavras de Cristo.
Este tipo de cristianismo, pensa Berdiaev, no qual
o impulso para Deus, a graça, os dons carismáticos
contam mais do que a disciplina eclesial e os precei­
tos da moral juridicamente formulados, poderia des­
pertar no ocidental dúvidas concernentes à sua "efi­
cácia". De todas as formas do cristianismo, todavia,
é a mais próxima de suas origens evangélicas. Um
staretz é um guia perfeito para um cristianismo des­
te gênero.
Nicolau Motovilov, que se encontrava na cidade
de Voroneje, foi avisado da morte do seu benfeitor
pelo bispo do lugar, santo homem, ao qual o staretz
apareceu às duas horas da madrugada, para informá­
lo de que havia deixado a terra. Sem esperar outras
confirmações, o prelado celebrava naquele mesmo
dia uma missa de réquiem. Quanto a Motovilov, às
pressas se pôs a caminho. Sendo considerável a dis­
tância entre Voroneje e Sarov, ele não chegou a tem­
po para o último adeus. Seu desespero era tal que o
hegúmeno Nifonte, para o consolar, lhe deu o livro
do evangelho que o staretz lia todos os dias e cuja
capa estava ligeiramente chamuscada pelo fogo, bem
como uma pequena cruz de cipreste que o próprio pa­
dre Serafim tinha fabricado e enquadrado em prata
proveniente de uma moeda antiga que sua mãe lhe
havia dado quando de sua peregrinação a Kiev.
"Quanto à grande cruz octogonal, de cobre, bên­
ção maternal, e o ícone da Mãe de Deus, 'Alegria
de todas as Alegrias', diante do qual, de joelhos, ele
morreu, eu os enviei", disse o hegúmeno, "à Comu­
nidade de Divéyevo ".

Tribulações preditas

Em 1833, ano da morte do padre Serafim, as mon­


jas de Divéyevo formavam duas comunidades separa-
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das, uma chamada "Comunidade de Kazan", fundada
pela madre Ágata, a outra "Comunidade Moleira",
fundada pelo staretz a pedido da Virgem Maria. Cen­
to e treze mulheres viúvas e moças, de todas as ida­
des, viviam nas dezessete casinhas da Comunidade
de Kazan, enquanto cento e vinte monjas, todas sol­
teiras, ocupavam as dezenove celas construídas no
terreno doado por uma benfeitora à Comunidade Mo­
leira. Cada comunidade observava sua regra. A de
Kazan seguia obstinadamente a regra, estrita e dura,
dos monges do Deserto de Sarov, enquanto a Comu­
nidade Moleira vivia, sobretudo, como queria o staretz,
da oração de Jesus.
Nas duas igrejas - na da Natividade de Cristo e
na da Natividade da sua Santa Mãe - as lamparinas
permaneciam acesas diante dos ícones e a leitura
do Saltério prosseguia, sem interrupção, noite e dia.
Grande era a pobreza das irmãs. Mal alimenta­
das, faltando-lhes muitas vezes o necessário, traba­
lhando duro, elas se sentiam entretanto amparadas
pela oração diante do ícone "Alegria de todas as
Alegrias" e pelo mútuo amor que se tinham. O bom
padre Basílio Sadovsky as reconfortava com freqüen­
tes visitas. Também, sempre que possível, iam a Sa­
rov ao túmulo de seu bem-amado "Batioushka" para
lhe confiarem, como ele consentira, suas penas e suas
mágoas. A noite, trabalhando à luz fumarenta de uma
"loutchina", 16 repassavam na memória as lembranças
dos tempos felizes em que ele era deste mundo, re­
lembravam seus milagres, sua alegria, suas afetuo­
sas palavras. Cada uma tinha alguma coisa para
contar.
Cinco superioras se sucederam na tranqüilidade
e na paz.

16 Loutchlna: fina palheta de madeira que se acendia para Ilu­


minar.

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O •visitante estranho"
Mas o noviço Ivan Tikhonov, sineiro do mosteiro
de Sarov, estava longe de abandonar seus desígnios
sobre Divéyevo.
O Senhor teve Judas: Francisco de Assis, Elias
de Cortona: Serafim de Sarov, Ivan Tikhonov. Cada
vez mais freqüentemente se pôs a visitar sua prima,
monja da Comunidade de Kazan, cujas irmãs tinham
estado menos próximas do staretz Serafim do que
as da fundação posterior. Persuasivo, bom conversa­
dor, possuindo certa instrução, sabendo pintar ícones
e cantar na igreja, ele se impunha a essas mulheres
simples e acabou adquirindo simpatizantes entre elas.
Pelo contrário, na Comunidade Moleira, a resistência
às suas investidas foi imediata e unânime. As irmãs
lançaram-lhe em rosto que o padre Serafim lhes ha­
via proibido de se abrirem com ele. Furioso, ele teria
gritado: u Juro que não descansarei enquanto não ti­
ver apagado da face da terra até a lembrança da
Comunidade Moleira. Transformar-me-ei em serpente,
mas hei de penetrar aí! n
O orgulho perdeu Lúcifer. Ete perdeu Ivan Tikho­
nov, canonarca de Sarov. No seu desejo frustrado de
se fazer passar pelo sucessorn espiritual do staretz
Serafim, uo pintor de Tambov perdeu totalmente o
equilíbrio. Como os monges de Sarov reprovavam
unânimes a sua conduta, deixou o u Deserto", entrou
num outro mosteiro, obteve a ordenação sacerdotal
sob o nome de Josafá e escreveu, num estilo vivo,
uma vida do staretz Serafim que obteve sucesso em
São Petersburgo e lhe valeu ser apresentado à im­
peratriz. Tendo, daí por diante, acesso à corte, jul­
gou-se autorizado a tudo.
Dir-se-ia que o seu objetivo era destruir sistema­
ticamente tudo quanto o homem de Deus tinha dese­
jado e realizado. O staretz queria conservar a sepa­
ração entre as duas comunidades? O padre Josafá
obteve sua fusão. A comunidade de Kazan perdia sua

125
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regra; a do padre Serafim não era mais composta
de jovens solteiras. O staretz mantinha-lhes igrejas?
O padre Josafá fechou-as, apagou as lamparinas, sus­
pendeu a leitura do saltério, deslocou o moinho, de­
moliu celas. O staretz sonhava construir, num ter­
reno que adquirira a custo de prata. uma igreja ca­
tedral. A realização desse projeto devia ser impe­
dida. Miguel Mantourov conservava os papéis lega­
lizando a compra do terreno. Como se recusasse a
se separar deles - o st11retz tinha-o expressamente
proibido - o padre Josafá caluniou Miguel aos olhos
do general Kouprianov. Sem pagar os ordenados que
devia a seu intendente, o irascível militar, na sua
volta da Polônia, o expulsou de suas terras que, em
sua ausência, ele tinha tão bem gerido. A pé, mor­
rendo de fome, Miguel e Ana - mendigos voluntá­
rios - retornaram a Divéyevo onde, a fim de que
pudessem construir uma isba, o padre Basílio lhes
deu os 70 rublos que, penosamente, havia economi­
zado para a sua velhice.
"Durante vinte e nove anos, lê-se na crônica de
Divéyevo, a comunidade sofreu com a intromissão
nos seus negócios e a tutela de Ivan Tikhonov. Uma
luta incessante prosseguia, durante esses longos
anos entre as irmãs da comunidade que, deixadas
órfãs, defendiam os preceitos de seu fundador e pai,
e o inimigo do gênero humano, Ivan Tikhonov que,
entre pessoas pouco instruídas e espiritualmente ce­
gas, tinha encontrado adeptos. É preciso ser comple­
tamente desprovido de senso sobrenatural para não
ver, nos acontecimentos de Divéyevo esse gênero
de combate. n
A singela crônica tem razão. O combate que e
staretz, durante toda a sua vida, tinha travado com
o demônio prosseguia após sua morte. "Não vivereh:
até o Anticristo, mas os tempos do Anticristo vós os
cruzareis", pontificava a suas "órfãs". Poder-se-ia mes•
mo supor, sem demasiada inverossimilhança, que
os "tempos perturbados" de Divéyevo prefiguravarr

126
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os tempos perturbados e trágicos pelos quais a Igre­
ja Russa cedo teria de passar. Tudo nos leva a crer
que o staretz o entendia assim. Divéyevo, feudo da
Virgem, seria ameaçado pelas forças das trevas co­
mo a própria terra russa.
O "Visitante estranho", Ivan Tikhonov, de "cora­
ção frio" caminhava, no ínterim, de vitória em vitó­
ria. Durante as festas da coroação de Alexandre li
decidiu pedir, por intermédio de uma dama de honra
da imperatriz, a autorização para transformar a co­
munidade mista de Divéyevo em um convento regu­
lar, com a intenção mal disfarçada de tomar a dire­
ção dele.
Chegara a hora do último ato do drama.
Após longo período de interregno, uma nova su­
periora acabava de ser eleita pela comunidade. Vin­
da de uma família d� nobreza rural, Elisabeth Ousha­
kov era inteligente, equilibrada e firme de caráter.
Durante vários anos tinha exercido a ingrata função
de ecônoma e conhecia bem a situação em que se
encontrava o convento. O dinheiro que o padre Josa­
fá coletava em São Petersburgo, por intermédio de
Irmãs que enviava à Capital para aprenderem pintu­
ra, desaparecia sem jamais chegar ao destino. As des­
pesas insensatas às quais se entregava o "visitante
estranho" agravavam o orçamento. Não somente não
havia dinheiro, mas havia dívidas. Até o pão mui­
tas vezes faltava. Com muita paciência Elisabeth fez
face a esta situação difícil. Calma, ordenada, doce
para com irmãs, ela gozou logo do amor e do res­
peito de todo mundo. Em Divéyevo começava-se a
respirar quando um rumor inquietante chegou à co­
munidade: o novo bispo de Nizhni-Novgorod, que di­
ziam ser favorável a Josafá, viria logo a Divéyevo
receber os votos da superiora por ocasião da trans­
formação, decretada pelo Santo Sínodo, da antiga co­
munidade mista em convento regular.
Era o mês de maio, pouco depois da Páscoa. O
bispo chegou numa noite de tempestade. Pela ma-
127
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nhã, antes mesmo de se dirigir à igreja, convocou
Elisabeth Oushakov.1;
- Tenho uma questão a vos apresentar, disse
ele.
- Estamos acostumadas a obedecer a ordens.
Que desejais?
- Deveis deixar este convento e ir, como su-
periora, para o de Davidovo.
Atônita, Elisabeth se calava.
- Por que vos calais?
- Não vos compreendo, Excelência.
- Digo que deveis deixar Divéyevo e ir para o
convento de Davidovo. Está desorganizado. Poreis or­
dem lá.
- Impossível, respondeu docemente Elisabeth.
O bispo se zangou. A guerra estava· declarada.
Foi levada pelas "loucas em Cristo".

Um pouco de loucura

"Oxalá pudésseis suportar um pouco de loucura


da minha parte!" suspirava São Paulo (2Cor 11,1).
Havia "louco em Cristo" em Serafim de Sarov? In­
dignados, os tradicionalistas gritavam: Não! O seu
"Batioushka Serafim", monge exemplar, filho submis­
so da Igreja! Tudo isso ele era. Mas, tal como os
loucos em Cristo, desdenhava o conforto mais ele­
mentar, comia ervas e se entregava, às vezes, a di­
vertidas e inofensivas excentricidades que exaspe­
ravam seus confrades monásticos.
Seu ponto de vista, todavia, sobre a loucura em
Cristo era dos mais severos. "Os que tomam sobre
si a loucura em Cristo sem um chamado especial de
Deus, dizia ele com indignação, correm em linha reta
para a perdição. Entre os yurodivi que se arrastam,

17 Cr6nlca de Dlv6yevo, Narração detalhada da visita de Dom


Nectário, pp. 604-618 (em russo).

128
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simulando a loucura, de uma cidade a outra, dificil•
mente se encontraria um só que não fosse induzido
em tentação pelo demônio, sem sucumbir. Os nossos
Padres não permitiam a ninguém fazer de yurodivi.
No meu tempo, somente um quis tentar: durante o
ofício se pôs a miar como um gato. Imediatamente
o padre Pakhome ordenou que o fizessem sair, da
igreja primeiro, em seguida da área do mosteiro. Há
três caminhos que não se devem seguir sem ser cha­
mado de modo particular: o da direção de um mos­
teiro; o da reclusão; e o da loucura em Cristo".
Vê-se, portanto, que era no pináculo que, decidi­
damente, São Serafim levava essas "mordidas" de
Deus. Profeta, ele mesmo, servia-se desses peque­
nos profetas para que, uma vez desaparecido, eles
pudessem agir em seu lugar.
Tal como os do Antigo Testamento, estes últimos
deviam atingir a imaginação popular com medos pou­
co comuns. Isaías, sabe-se, andou nu durante três
anos; Jeremias carregava uma canga aos ombros para
predizer o cativeiro de Israel; Ezequiel teve que fa.
zer um buraco em sua casa e por ali sair carregando
uma trouxa para mostrar aos habitantes de Jerusa­
lém o que os esperava, "porque te ponho como sinal
para a casa de Israel", disse Deus (Is 20,3-4; Jr 27;
Ez 12,1-7). O casamento infeliz de Oséias não era se­
não a figura do casamento de Javé com seu povo in­
fiel.
As palavras misteriosas dos yurodivi, as suas
ações simbólicas e a sua faculdade de predizer o
futuro aparentava-os aos profetas. Não somente de­
viam "significar" a vontade de Deus, mas eles mes­
mos deviam transformar-se em "sinais". Tal como
seus confrades bíblicos, tinham às vezes o dom de
evocar o futuro com imagens, de representá-lo por
gestos. Sob uma aparência voluntariamente repugnan­
te, escondiam os dons do Espírito que somente o
brilho de seus olhos e a .limpidez extraordinária do
olhar traíam.

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Pe/ágia

No momento da visita de Dom Nectário a Dl­


véyevo, o convento abrigava uma louca em Cristo
chamada Pelágia. Bela, inteligente, saída de família
de abastados comerciantes, tinha sido prometida em
casamento, cedo e contra a vontade, a um vendedor
de Arzamas, que as excentricidades da noiva rebel­
de não tinham conseguido afastar.
Com o marido, visitou Sarov. O padre Serafim
a recebeu em particular e ficou por tão longo tempo
fechado com ela que o marido se ofendeu. Para gran­
de espanto seu, ao reconduzir a jovem senhorà, o
staretz lhe fez presente de um terço, abençoou-a e
saudou-a inclinando-se até o chão. Era a seu futuro
de mártir voluntária que o homem de Deus prestava
assim homenagem.
As loucas esquisitices às quais Pelágia se en­
tregava, os escândalos que provocava na pequena ci­
dade, acabaram exasperando seu bom marido comer­
ciante, que apesar de tudo a amava. Não sabendo o
que fazer, enchia-a de pancadas, acorrentava-a para
impedi-la de sair, mas ela rompia as ataduras, os fer­
ros dos punhos, corria à noite pelas ruas, meio ves­
tida no frio e sob a neve. O sacristão tomou-a, certa
vez, por um fantasma e tocou o alarme. Era demais.
Publicamente, chicotearam a culpada. Com a carne
dilacerada, ela não proferiu um lamento. Cristo não
tinha sido flagelado pelos soldados romanos?
Finalmente, expulsa pelo marido e pela própria
mãe, chegou a Divéyevo. O staretz já tinha morrido.
As irmãs, no começo, não foram ternas para com ela.
Cheia de lama, ela sujava a casa, pois a maior parte
do tempo passava-o num buraco que, tal como um
cachorro, tinha cavado para si no pátio. Chorava mui­
to. Quando lhe perguntavam por quê, respondia que
chorava pela Rússia. O staretz não tinha também der­
ramado antecipadas lágrimas pela sua infeliz pátria?

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A pouco e pouco, as irmãs se habituaram à es­
tranha companheira. Confiada aos cuidados de uma
monja que, não se sabe por que, ela tinha denomi­
nado "Bendito n, Pelágia se instalou em sua cela, en­
tre três portas, sobre um pedaço de feltro não longe
do fogão. Deixava as unhas crescerem como gar­
ras de pássaro, não comia quase nada e não se
deitava para dormir. À noite "Bendito n a ouvia con­
versar com visitantes invisíveis. Uma vez, ela reco­
nheceu distintamente a voz do padre Serafim.
A clarividência concedida aos verdadeiros lou­
cos em Cristo, pelo Espírito Santo, tornou logo Pe­
lágia célebre. Muita gente vinha pedir-lhe conselho.
Tendo ouvido falar dessa mulher, Dom Nectário ex­
primiu o desejo de vê-la.
Na cela de "Bendito n, Pelágia estava sentada so­
bre uma banqueta, encarquilhada sobre si mesma. O
bispo pegou outra banqueta e sentou-se ao lado.
- Que devo fazer, serva de Deus, que devo fa­
zer?, perguntou.
A resistência da comunidade de Divéyevo ao seu
projeto de lhes dar, a pedido do padre Josafá, uma
nova superiora, tinha-o perturbado·.
A "louca n pousou nele o olhar severo e profundo
de seus olhos límpidos.
- i; em vão, senhor bispo, que te incomodas tan­
to, respondeu ela num tom firme. Não te será entre­
gue a mãe.
Com a barba apoiada ao seu bastão episcopal,
meneando lentamente a cabeça: "Não sei o que fa­
zer... n, murmurava o prelado.
De repente, inquietante, apavorante de se ver,
Pelágia se alçou e se pôs a "guerrear n. Ela batia no
ar como que para matar inimigos invisíveis, quebrava
o que lhe caía nas mãos. "Bendito n teve o tempo jus­
to de fazer sair o bispo.

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Parasceve
Noutra ala do edifício, a velha Parasceve, Irmã
da pequena Maria (preferida do staretz, que entrara
no convento na idade de treze anos e morrera alguns
anos depois), estava, ela também, presa de loucura
profética.
Ajudando-o um dia a descer de um carro de fe­
no, o staretz lhe havia dito: "Estás colocada mais al­
to do que eu. No final da tua vida serás louca em
Cristo. Quando vires a fonte borbulhar de impurezas,
saberás que o momento chegou. Não tenhas medo
- diz a verdade. Depois morrerás". Ora, tendo ido a
Sarov para rezar no túmulo do staretz, alguns dias
antes da chegada do bispo, Parasceve foi à fonte ti­
rar água. Sempre límpida, a fonte de repente se tur­
vou. Como que projetados por força invisível, a areia
e os cascalhos subiam do fundo para a superfície.
Apavorada, a velha religiosa olhava ao redor dela pa­
ra compreender a causa desse fenômeno insólito,
quando percebeu a irmã Lukia, fervorosa adepta do
padre Josafá, descendo para a fonte. Compreendeu.
Não percebera o staretz Serafim, certo dia, na água
turva, a aproximação daquele que não era outro se­
não o noviço Ivan Tikhonov e que, depois, se. tinha
mostrado o mais temível inimigo da comunidade? O
momento de "escarrar" a verdade tinha então che­
gado.
Parasceve se lembrou das palavras do padre Se­
rafim: "Logo a seguir morrerás".
- Adeus, Elias, disse ela a um irmão de Sarov
chegado à fonte. Não te verei mais.
- Que estais para aí a dizer, "Matioushka"? Po,
que falar de morte?
Mas ela insistia muito calma:
- Não te verei mais, Elias, adeus!
E agora, enquanto Pelágia "guerreava em sua ce•
la", Parasceve, tendo "escarrado a verdade" ao bis•

132
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po, quebrava, vestida com uma pele de carneiro pelo
avesso, as vidraças da cela.18

Em plena ação

Histeria de mulheres exaspera�as? Não era as­


sim que se interpretava no convento. Os gestos, em
aparência ridículos, dos loucos em Cristo, tornavam­
se compreensíveis se se acreditasse firmemente que
é contra os espíritos das trevas que eles partem em
guerra, tendo a faculdade, desde a terra, de ver os
demônios bem como os anjos. Basílio, o Bem-aventu­
rado, era conhecido por jogar pedras às paredes das
igrejas, às quais se grudavam os demônios afasta­
dos da liturgia, ao passo que beijava a soleira dos
lugares maus, onde c�oravam os anjos da guarda dos
que se encontravam no interior. A tentativa do "visi­
tante estranho", o padre Josafá, de substituir pela
sua criatura, a irmã Lukia, a madre atual, a fim de go­
vernar por seu intermédio a comunidade, não se po­
dia explicar senão por um assalto do maligno contra
o feudo da Virgem. E, representaRtes do staretz, as
"loucas" reagiam.
Tudo ia de mal a pior. O bispo declarou que, no
dia seguinte, após a liturgia, se lançariam sortes. "Se
a sorte cair na irmã Lukia, as que recusarem acei­
tá-la como superiora serão mandadas embora".
Como era de prever a sorte caiu em Lukia. Um
burburinho se produziu na assistência. Ouviram-se
soluços. Uma mulher caiu desmaiada. Cochichava-se
que os três bilhetes apresentados ao bispo só conti­
nham um nome. Por isso ele se apressava em pôr os
dois outros no bolso.
Teria ele a consciência tranqüila? Deve-se crer
que não. No dia seguinte pela manhã, voltando da
18 "Guardei-vos dos falsos profetas que vêm e vós disfarçados
de ovelhas mas por dentro são lobos ferozes. Pelos seus frutos os
conhecereis" (Mt 7,15-16).

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igreja, viu a u Bem-aventurada" Pelágia sentada à bei­
ra da estrada fazendo rolar ovos de Páscoa, jogo no
qual se empenham as crianças na Rússia. Dir-se-ia
que ele procurava ser sossegado sobre o que aca­
bava de fazer.
Parou seu carro e desceu.
- Aqui está, serva ·de Deus, uma prosphore 19
da liturgia que acabo de celebrar.
Ela se virou.
u Ele deveria ter compreendido e partido", conta

"Bendito". u Mas não. Aproximou-se pelo outro lado


e, de novo, estendeu a prosphore ".
Levantando-se, de repente, esbelta e fina, amea­
çadora e terrível:
- Por que te intrometes?, urrou a louca, assen-
tando no bispo um tapa magistral.
Ele estendeu a outra face:
- Segundo o Evangelho, bate na outra.
- Basta-te uma, respondeu desdenhosamente
Pelágia e, sentando-se de novo, se pôs a rolar os ovos
de Páscoa, como se nada tivesse havido.
Imagine-se o rumor que o fato provocou.
- Vão-te pôr na prisão, te internarão numa casa
de loucos, diziam a Pelágia.
- Eu nunca lá estive nem jamais estarei, res­
pondia ela, muito calma.
De fato, a ocorrência não teve, para a u bem­
aventurada", nenhuma conseqüência. De volta ao bis•
pado de Nizhni-Novgorod, Dom Nectário por vária!
vezes lhe enviou sua bênção, pedindo suas orações
Pensaria ele no salmo onde se diz: u Que o justo me
bata e me castigue, é caridade" (SI 140,5)? Uma vei
mesmo, por intermédio de um peregrino, lhe fez che
gar um presente.
Quanto à u bem-aventurada" Parasceve, apenas vi
veu nove dias após a partida do bispo.
Assistida pelo padre Basílio, provida dos último:
sacramentos, apagou-se docemente, como o havil
19 Prosphore: pão da oferenda lltúrglca.

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predito seu staretz. Ao saber da sua morte, Dom Nec­
tário ficou pensativo. "Era uma grande serva de
Deus", suspirou ele.
A liberdade dos filhos de Deus triunfava da Ins­
tituição.

O desfecho
O staretz não era, como o havia mostrado por
várias vezes, filho amante e obediente da Igreja? Tal
como muitos santos, no entanto - Simão, o Novo
Teólogo, no Oriente, Francisco de Assis no Ocidente
- conheceu esse penoso conflito entre um profeta
e padres cuja cegueira provisória impede de aceitar
a visão. Não se devem interpretar os acontecimentos
de Divéyevo, a guerra das loucas em Cristo pelo
staretz bendito, como gestos de insubordinação, mas
como meio de lutar contra o espírito das trevas. 1:
pela intervenção da mais alta autoridade da Igreja,
aliás, que a verdade triunfa finalmente.
Antes de morrer, o padre Serafim tinha nomea­
do Motovilov "Defensor das órfã�". Muitas vezes ele
vinha a Divéyevo e acabou por se casar com uma
jovem sobrinha da irmã Parasceve, educada no con­
vento. Acompanhado da mulher e de suas duas fi­
lhas, se dirigia de Simbirsk a Moscou quando, ligeiro
acidente de carro o obrigou a parar em Divéyevo,
onde possuía uma casa. Instruído do que aí se pas­
sava, foi testemunha da forçada eleição de uma no­
va superiora e, sem perda de tempo, decidiu agir.
Seu plano era pôr o metropolita Filarete de Mos­
cou - alta e venerável personalidade que represen­
tou papel importante na renovação da Igreja Russa
- ao corrente do caso. Mas o prelado tinha partido
para a Laura Trindade-São Sérgio (da qual, desde
1770, os metropolitas de Moscou eram oficialmente
abades), para acolher a família imperial que aí se
esperava.

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Ora, o vigário do metropolita, residente no lu­
gar, era então esse arquimandrita Antônio que viera
uma vez a Sarov perguntar ao padre Serafim se de­
via preparar-se para a morte e ao qual o homem de
Deus tinha respondido que, em lugar de morrer, se­
ria nomeado para a posição importante de superior
de um mosteiro entre todos venerável. Antes de se
despedir dele, o staretz, lágrimas nos olhos, lhe ha­
via dito: "Não abandone minhas órfãs! n Na época, o
padre Antônio não havia compreendido.
Mas ele compreendeu agora, quando Motovilov
que, com toda a pressa, fora à Laura, e lhe apresen­
tou seu pedido. Escolhendo um momento propício,
falou ao metropolita Filarete, seu superior e amigo
que, por sua vez, pôs o imperador ao corrente.
- Sempre tive dúvidas quanto a esse padre Jo­
safá, quando a imperatriz dele me falava, disse o
soberano.
Uma sindicância foi aberta. Levada com empe­
nho, com objetividade, inteligência e tato, sob a vi­
gilância do próprio metropolita, teve como resultado
a reabilitação de Elisabeth Oushacov que o padre Jo­
safá tentava caluniar e sua confirmação como su­
periora do convento Serafim-Divéyevo, como deveria
daí por diante se chamar a comunidade. Ela recebeu
o hábito e pronunciou seus votos com o nome de
Maria. "A ordem voltará com a décima primeira su­
periora, tinha predito o staretz, o nome dela será
Maria n .
O padre Josafá, do qual a sindicância revelou
certos desvios de conduta, foi posto em observacão
e obrigado a assinar uma declaração estipulando a
promessa de nunca mais se imiscuir nos negócios
de Divéyevo. Mais tarde, chegou a ser nomeado he­n
gúmeno de um mosteiro e tomou o "megalo-schema
com o nome de... Serafim. O amor triunfou do ódio?
Mil religiosas - como havia predito ao staretz
a Rainha do Céu - cedo se agruparam ao redor de
madre Maria que, com mão firme e suave, trouxe à
136
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tona a nave vacilante que tinha sido chamada par&
dirigir. O vigésimo quinto jubileu da bem-amada su­
periora foi alegremente festejado em Dlvéyevo, em
1887. Ao lado da madre estava, durante a cerimônia,
uma das primeiras irmãs da Comunidade Moleira, a
outra bela e recalcitrante Xênia, então madre Capl­
tolina, agora com a idade de oitenta e três anos.
"Quando as doze primeiras Irmãs da comunida­
de tiverem deixado este mundo, fazendo suas despe­
didas ao padre Basílio Sadovsky, partirás, tu também,
o décimo terceiro. Tua esposa preceder-te-á dois
anos". Esta previsão se realizou como todas as ou­
tras. Lamentado por todos, humilde e fiel servidor
de Deus, o padre Basílio, nascido em 1800, foi reu­
nir-se às suas ovelhas, oitenta e quatro anos mais
tarde.
- Faz que te, enterrem à direita da igreja da
Natividade, lhe havia dito o staretz. Michenka (dimi­
nutivo de Miguel) será colocado à esquerda. E a mim,
colocar-me-ão no meio. Assim estaremos sempre
Juntos.
Mantourov, efetivamente, foi depositado, para
dormir o seu último sono, à e�querda dessa Igreja
que, a suas custas, tinha construído. Votado à abne­
gação, não viu o triunfo da justiça em Divéyevo.
Partiu num momento em que a vitória do ªVisi­
tante estranho", de vistas sacrílegas, ao qual se opu­
nha com todas as suas forças, parecia quase certa.
Apesar de seu otimismo, o pobre Miguel estava
a ponto de perder a coragem, quando viu em sonhos
o seu "Batioushka" que lhe dizia: ªVem, vamos re­
zar juntos!" Concluiu que a sua hora estava próxima,
pediu ao genro do padre Sadovsky que celebrasse
uma liturgia na igreja da Natividade, comungou e,
voltando para casa, disse à sua esposa: • Apressa-te
em fazer o jantar. Senão, te lamentarás - será muito
tarde..." Saiu depois ao jardim para dar framboesas
ao genro do padre Sadovsky, sentiu-se um pouco fa­
tigado, sentou-se num banco - e entregou a alma.

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Sua partida foi a tal ponto tranqüila que, sua mulher,
vindo chamá-lo para o jantar, o julgou adormecido.
Tinha apenas sessenta anos.
Era talvez o mais perfeito discípulo do staretz,
buscando acima de tudo o Reino de Deus e confian­
do em receber o resto por acréscimo. Leigo casado,
não encarnaria, precedendo-o, esse "monaquismo in­
terior n de que se fala em nossos dias? De grande
bondade, com o coração na mão, tinha físico agradá­
vel, fisionomia aberta e alegre, grandes olhos claros.
Convertida ortodoxa, Ana, sua fiel esposa alemã, aca­
bou seus dias em Divéyevo onde, em segredo, tomou
o véu.
Quanto à promessa feita pelo staretz de repou­
sar entre os seus dois amigos, o padre Basílio e
Miguel, muitos se surpreenderam disso. Não estava
enterrado em Sarov? Por que é que seria transpor­
tado para Divéyevo? Alguém fez a pergunta à madre
Maria. Ela pareceu refletir. Depois, passado um mo­
mento de silêncio: "Os restos permanecem muitas
vezes longo tempo ocultos n, disse ela. Estranha res•
posta que se compreende melhor no momento atual,
em que ignoramos o que foi feito dos restos mor­
tais do padre Serafim.
Quanto a Nicolau Motovilov, "o humilde servi­
n
dor do staretz, como gostava de se designar, dei­
xou este mundo em 14 de julho de 1879, com a idade
de setenta e um anos. Nos fins de sua vida, o lado
espiritual de sua natureza complicada e ardente so­
brepujou o que havia nele de muito terrestre e mun­
dano. ·vendo por toda a parte, no mundo, o espírito
do Anticristo, sentindo-se um viajar estranho, aqui
na terra, empreendia, cada vez mais, longínquas pe­
regrinações. E nos lugares santos mais distantes da
imensa Rússia, conhecia-se a sua alta silhueta coroa­
da de cabelos brancos.20 O perpétuo peregrino é apa­
rentado com o louco em Cristo. "És tão louco quan­
to eu, Nikolka n, lhe dizia com afetuosa familiaridade
a "bem-aventurada" Pelágia.

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Um mês antes de sua morte, Motovilov teve um
sonho que contou a sua esposa. A Rainha do Céu lhe
apareceu no sono e lhe prometeu levá-lo logo em
peregrinação a uma região desconhecida onde ela o
faria travar conhecimento com muitos santos dos
quais jamais ouvira falar. Depois desse sonho suas
forças começaram a abandoná-lo. Morreu calmamen­
te no seu domínio de Simbirsk, mas foi enterrado
em Divéyevo.
Sua mulher voltou a viver no convento onde ti­
nha passado a sua infância e mocidade. Antes de
morrer, como já dissemos, confiou o caderno de me­
mórias de seu marido a um escritor de passagem,
Sérgio Nilus.
Foi então que, pela primeira vez, se ouviu falar
da extraordinária conversa aureolada de luz divina
que o staretz havie recomendado a Motovilov que
divulgasse. Incompreendida como teria sido na se­
gunda met�de do século XIX, adquiriu, no século XX,
uma significação de amplidão inusitada, não somente
na Rússia mas, como tinha previsto o staretz, no
"mundo inteiro".

20 V. Zander, Seraphlm von · Sarov, Patmos Verlag, 1965, p. 169


(em alemão).

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EPÍLOGO

Ninguém na Rússia duvidava da santidade de Se­


rafim de Sarov. Os milagres que o Senhor operava
por seu servidor já não se contavam. Nos arquivos
do hegúmeno do "Deserto" encontravam-se centenas
de cartas, muitas vezes acompanhadas de donativos
em dinheiro, agradecendo pelas graças e pelas curas
obtidas por intermédio do staretz. Em Divéyevo, an­
tes da Revolução de 1917, não se tinha ainda chega­
do a classificar todos os testemunhos escritos.
Em número sempre crescente, os peregrinos
afluíam a Sarov. Muitas pessoas viam o homem de
Deus em sonho. A outras, ele aparecia, sobretudo às
crianças. As vezes era encontrado em casa de Man­
tourov como o afirmava sua viúva.
Bem antes da canonização oficial, a vox populi
tinha beatificado esse homem calçado com cortiça,
ancião de traços severos e finos, de olhos de límpido
azul, dizendo aos que vinham ao seu encontro: "Bom
dia, minha alegria!" e acrescentando: "Cristo ressus­
citou!"
Agora que se havia unido na eternidade à Vir­
gem Maria, primeira criatura deificada que dizia que
ele também era "de sua raça", seu poder parecia
maior que nunca. "Se obtiver graça diante de Deus,
prometia ele antes de deixar a terra, rogarei por to­
dos, prostrado diante do trono do Altíssimo".
A eficácia de sua oração não oferecia dúvida a
ninguém. Sessenta anos após sua morte, o Santo Sí-

140
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nodo encarregou uma comissão especial de pesqui­
sar os milagres e as curas atribuídas ao padre Sera­
fim. Dez anos mais tarde, em 1902, o Imperador Ni­
colau li exprimiu o desejo de ver o Santo Sínodo le­
var a cabo a instrução da canonização. Em janeiro
de 1903, "persuadido da autenticidade dos milagres
atribuídos às orações do staretz Serafim, e dando
graças a Deus glorificado em seus santos", o Sínodo
submetia sua decisão ao imperador de todas as Rús­
sias. Foi publicada no número 5 do Jornal Eclesiástico
aparecido em 1 de fevereiro de 1903, com a recomen­
dação de se fazer dele leitura em todas as igrejas do
Império, no domingo seguinte à aparição do jornal.

A canonização
I

Com alegria, a Rússia começou os preparativos


para a festa nacional que seria a canonização de seu
bem amado staretz Serafim.
A data foi fixada para 19 de julho, dia do ani­
versário de nascimento do novo santo. Esperava-se
em Sarov não dezenas, mas centenas de milhares de
peregrinos, o que acarretava problemas de alojamen­
to e abastecimento. Ao longo das estradas e nas cla­
reiras, construíram-se barracões de madeira que não
tardaram em se transformar em pequenas aldeias
provisórias, com padarias, mercearias, balcões de be­
bidas populares não-alcoólicas, quiosques onde se
vendiam biografias do santo, ícones de preferência
representando-o diante de sua ermida, dando pão a
um urso, livros de orações, revistas religiosas, bem
como Evangelhos e Saltérios. O clero das redondezas
(trinta monges dos mosteiros vizinhos, trinta padres
do bispado de Tambov) foi mobilizado a fim de aten­
der às necessidades espirituais dos fiéis. Altas per­
sonalidades eclesiásticas tinham sido convidadas a
tomar parte na procissão .e a pronunciar homilias das
quais algumas eram muito apreciadas pelo auditório.
141
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"Obrigado! Muito obrigado, Batioushka! ", g'ritava-se
na multidão.
Nas raras estradas arenosas, os peregrinos ca­
minhavam sob o ardente sol de julho, alguns em gru­
pos, cantando hinos, outros saltérios, curvados sob
o peso de sua mochila, apoiando-se em seu bastão.
Carriolas transportavam os fracos e os doentes. Os
mais afortunados chegavam de trem, descendo em
Nizhni-Novgorod mas, os sessenta quilômetros à ci­
dade de Sarov, eles os percorriam quase todos a pé.
Mas eis que entre os grandes pinheiros apare­
ciam as muralhas brancas do mosteiro, suas cúpulas
brilhantes de cruzes douradas. A fadiga se mudava
em alegria. Os homens e as mulheres se persigna­
vam, caíam de joelhos, invocavam São Serafim. Quem
acreditaria cento e vinte e cinco anos antes, que um
modesto jovenzinho, chegado diante desses muros
numa fria noite de novembro, atrairia a ele, um dia,
multidões vindas dos quatro cantos da imensa Rús­
sia?
O tempo estava esplêndido, as festividades se
desenrolavam numa alegria geral. Na aurora do dia
17 de julho, as monjas de Divéyevo, levando em triun­
fo o ícone da Virgem "Alegria de todas as Alegrias",
acompanhado de outros ícones e de numerosas flâ­
mulas brilhando ao sol, se dirigiram para Sarov onde,
à entrada dos bosques, eram esperadas pelos mon­
ges do "Deserto" saídos em procissão pela "porta
santa". Após um Te Deum cantado em comum, reli­
giosos e religiosas se dirigiram juntos, entre duas
alas compactas de peregrinos, para o mosteiro onde
outros peregrinos os esperavam, aglomerados na co­
lina. Até o rápido olhar, parece, era inesquecível.
Havia algo infinitamente alegre nessa maré humana
subindo, debaixo de um céu esplendoroso de luz, pa­
ra os muros brancos da venerável construção, o sol
de verão borrifando com seus fogos as cristas de
suas vagas: uma auriflama dourada, o revestimento
142
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precioso de um ícone. Reunidos na alegria, Sarov e
Dlvéyevo, homens e mulheres, cantavam seu santo.
À tarde, os sinos se puseram a badalar, anun­
ciando a aproximação do cortejo imperial. Sentado
num carro aberto, o imperador e a imperatriz foram
saudados por "hurras n frenéticos. Ele era jovem, ela,
encantadora. Foi um delírio. Em outras carruagens,
seguiam os membros da família imperial.
"O grande sino soará: bum! bum! (o staretz Imi­
tava o som do sino), o czar virá com toda a sua fa.
mília... n A promessa do santo homem se realizava.
No dia seguinte pela manhã, apenas começada
a liturgia da aurora, viu-se entrar na igreja, já cheia,
sós e sem escolta, o imperador e a imperatriz. Vi­
riam pedir a graça de ter um herdeiro? Como simples
peregrinos, misturados ao povo, eles se aproximaram
dos sacramentos. 'Na multidão chorava-se de alegria.
Autocrata de todas as Rússias, homem profunda­
mente e sinceramente religioso, Nicolau li sonhava
tapar a brecha que a brutal política ocidentalizante
de Pedro, o Grande, tinha cavado entre o poder e o
povo. Queria, continuando autocrata (não era o ungi­
do do Senhor?), voltar a ser Ô pai desta Rússia, or­
todoxa e camponesa, da qual, idealizando-a, tentava
aproximar-se. Nesses dias de fervorosa oração em
comum, o milagre parecia possível.
O belo dia estival chegava ao seu fim. O mo­
mento mais solene das festividades aproximava-se:
a transferência, em procissão, das relíquias do novo
santo da Igreja Zocime-Sabbati para a igreja catedral
da Dormição da Virgem, onde deviam ser oferecidas
à veneração da multidão.
Os russos herdaram de Bizâncio o amor pelas
esplêndidas cerimônias religiosas. No "Deserto n de
Sarov viu-se, nessa noite, um deslocamento suntuo­
so de fauston
eclesiásticon em honra do "pobre n, do
"mlserável , do "humilde Serafim. À frente do cor­
tejo o metropolita, três · bispos, doze arquimandritas,
doze padres e monges avançavam lentamente, reves-

143
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tidos de paramentos dourados, presente impera­
dor, sobre os quais haviam sido bordados i com fios
de prata, serafins de seis asas. Carrega num an­
dor, acima das cabeças inclinadas da m tidão ajoe­
lhada, o caixão recoberto por um tecido de veludo
grená, parecia planar nos ares. A noite estava tão
doce que a chama das velas que os peregrinos ti­
nham na mão mal vacilava.
Toda a Rússia estava lá, com seu czar, reunida
em torno de seu bem-amado "Batioushka", tão pró­
ximo do coração de cada um, tão representativo de
seu misterioso país.
O ofício terminou à meia-noite. Depois, o clero
e a família imperial, os fiéis por sua vez, foram ad­
mitidos a venerar as relíquias. Seu desfile durou to­
da a noite.
Entrementes, mais além do circuito monástico,
ao longo dos rios Satis e Sarovka, fogos se tinham
acendido. Sem poder penetrar no interior dos muros,
a imensa maioria dos peregrinos tinha rezado fora,
a céu aberto. Ninguém pensava em dormir. Grupos
se tinham formado cantando sob as estrelas: "Gló­
ria a Deus no mais alto dos céus", hinos à Virgem.
a nova coletânea composta em honra do santo. Meia­
noite foi passada, os cantos continuavam quando, de
repente, se difundiram, aiegres, os hinos de Páscoa:
Dia de Ressurreição", Que Deus ressuscite", Cris­
to ressuscitou dos mortos, por sua morte ele venceu
11 11 11

a morte e aos que estavam no túmulo ele cleu a vida".


Em pleno verão, se cantará Páscoa..." Por várias
vezes o staretz o tinha profetizado. Mas logo após
11

seu rosto se anuviava. lágrimas deslizavam ao longo


de suas faces: Esta alegria será de curta duração",
dizia ele.
11

Nessas horas de apoteose, nesses dias de união


entre o povo, seu czar e a Igreja, quem teria podido
acreditar?

144
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Terrível, perspectivas

Um aviso no estilo do staretz foi entretanto dado


quando, tendo deixado Sarov e o desfile interminá­
vel dos peregrinos que devia prosseguir durante vá­
rios dias ainda, a família imperial parou em Divéye­
vo. Ela aí encontrou uma louca em Cristo chamada
Pasha de Sarov. Filha de servos, expulsa por seus
senhores após uma calúnia, foi nas grutas e nas to­
cas da floresta de Sarov que encontrou refúgio. Ao
fim de alguns anos, percebeu-se o dom de clarivi­
dência que seus sofrimentos lhe tinham valido e iam
vê-la. Salteadores a atacaram como outrora tinham
atacado São Serafim, deixando-a meio morta, banhan­
do-se num mar de sangue. Nunca se restabeleceu
completamente. "Oh, mamãe, gemia ela falando con­
sigo mesma, como me dói aqui!" E mostrava sua ca­
beça ou seu lado.1
Depois da morte da bem-aventurada Pelágia, em
odor de santidade, e que tinha sido chamada "o se­
rafim de Serafim", Pasha veio a Divéyevo e a madre
Maria acolheu-a com alegria. Foi com prazer que es­
sa mulher que, durante anos, , tinha vivido como um
animal, se instalou numa cela limpirha e se vestiu
de cores vivas. Quando lhe anunciaram a visita do
Imperador, com o espanto de todo mundo, ela despiu
suas vestes limpas e - mau presságio - se cobriu
de velhos trapos. Tinha o hábito de servir chá a seus
visitantes. Aqueles que uma desgraça esperava pu­
nha, para os "consolar", muito açúcar em suas xíca­
ras. Pôs tanto açúcar na xícara do imperador que o
chá transbordou. O soberano pediu para ficar só com
ela. Quando ele saiu de sua cela, sua comitiva foi
Impressionada pela palidez de seu rosto e seus tra­
ços alterados. Jamais revelou a alguém o que a "lou­
ca" de Sarov acabava de lhe dizer.

1 Alguns dos nossos contemporâneos conheceram-na. Ela morreu


em 1917. com mais de cem anos de Idade.

145
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O grão-duque Sérgio, cunhado da imperltriz, es­
tava na viagem. Tendo partido os augusto$ visitan­
tes: Não podia olhá-lo, suspirava Pasha. 'Via seus
11

miolos esparramados numa calçada". Pouco tempo


depois, o grão-duque caía vítima de um atentado ter­
rorista.
Um ano após as festividades de Sarov, o herdei­
ro tão desejado nascia - mas era hemofílico.
Em 1904, a guerra com o Japão trouxe ao colos­
so russo a vergonha amarga da derrota.
Os primeiros estrondos revolucionários se fize­
ram ouvir em 1905, com rebeliões sangrentas, bru­
talmente reprimidas.
A Primeira Guerra Mundial rebentou em 1914,
seguida da Revolução de 1917.
Quinze anos somente, após as festividades de
Sarov, o czar era assassinado com toda a sua família.
O balanço das três guerras - as duas mundiais
e a guerra civil que dilacerou a Rússia - com seu
cortejo de horrores, de epidemias, de perseguições,
de fome, de expurgo, se conta pelo número alarman­
te de quarenta milhões de vítimas. Alguns calculam
sessenta milhões. Exageradas ou não, essas aproxi­
mações são aterradoras. O staretz tinha razão de di­
zer: A vida será curta então. Os anjos mal terão
11

tempo para amontoar as almas".


Entre os peregrinos reunidos em Sarov para as
festividades da canonização, quantos depois se tor­
narão renegados, vítimas, mártires?
Voltando, por assim dizer, a estar corporalmente
entre os seus, nos luminosos dias de julho, pareceria
que o novo santo se punha deliberadamente no limi­
te das coisas que tinham sido e daquelas que iriam
ser, aproximando-se mais ainda, na véspera de trági­
cos e imprevisíveis amanhãs desse povo russo pelo
qual ele tinha prometido rezar, prosternado diante do
trono do Altíssimo.

146
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SÃO SERAFIM E OS TEMPOS MODERNOS

A loucura da cruz
Cheio de angústia profética, o staretz previa cla­
ramente os dias apavorantes que iriam seguir-se?
Nada de inverossímil há nisso. Tudo o que ele ha­
via predito sempr'e se havia realizado. E poder-se-ia
perguntar, como já o fizemos, se nas perturbações
de Divéyevo que ele tanto temia, o homem de Deus
não via figurado o futuro de seu país bem-amado,
assim como o da Igreja Russa e, na pessoa do •visi­
tante estranho", um precursor do Anticristo? Lobo
revestido de pele de cordeiro, haverá muitos como
ele numa Igreja por momentos órfã (cf. Mt 7,15-16).
Mas o Espírito Santo inspira o discernimento dos
espíritos e não abandona a Igreja. Muitas vezes fi­
camos surpreendidos com o faro espantoso de que
devam prova os cristãos da Rússia reconhecendo,
durante os tempos mais difíceis, os verdadeiros pas­
tores dos falsos. •São reconhecidos por seus olhos... "
como se reconhecem, pelos olhos, os verdadeiros
loucos em Cristo.
Sobre eles, hirsutos, piolhentos, famintos, semi­
nus, o Anticristo não terá poder. Não poderá tentá­
los nem com as promessas de um paraíso terrestre,
nem com as maravilhas da técnica e da ciência. Qual
é o seu ícone? A imagem de Cristo revestido de uma
túnica escarlate, rei bufão, esbofeteado pelos solda-

147
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dos. O Rei da Glória poderia tornar-se mais1 abjeto e
mais ridículo?
Escolher tal caminho é revestir-se do Cristo.
"Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que,
para os judeus, é escândalo, para os pagãos é lou-
cura" (1Cor 1,23-24). "Com efeito, a linguagem da
cruz é loucura" (1Cor 1,18ss).
Ela o é, de fato, nos países, ai, numerosos, onde
o ateísmo é de rigor, onde os crentes são considera­
dos como associais e confinados como loucos. Mes­
mo nos países ditos cristãos, não são tachados de lou­
cura aqueles que remam contra a corrente, recusan­
do conformar-se com os usos e costumes de "todo o
mundo", com as exigências da vida "moderna" espo­
reados pela pressa, subjugados pela técnica?
1: preciso heroísmo - muito heroísmo - para
ser louco em Cristo. E se São Serafim até certo pon­
to o era, o povo russo amava-o mais por isso. Porque
o heroísmo russo permanece sem ostentação e não
é por causa dessa simplicidade que o homem dos
bosques, de olhos claros se tornou o eleito daquela
que se dizia "a humilde Serva" e que, deificada, foi
coroada Rainha dos Céus?

A "Teotocos, mãe de Deus" e a mulher russa

Não era ela, a sua Celeste Soberana, quem dava


ao seu eleito as diretrizes a seguir, referentes ao
convento de Dlvéyevo do qual ela escolheu ser a
abadessa? Por que se debruçaria com tanto amor so­
bre esse viveiro de jovens c.amponesas iletradas?
Já se perguntou, mas agora conhecemos, sem
nenhuma dúvida, a resposta. E sua importância mere­
ce que nisso nos detenhamos.
· Num país que cinqüenta anos de regime ateu,
de perseguição e de sofrimento não conseguiu des­
cristianizar, quem permanece fiel à fé ancestral?
Quem guarda e perpetua a tradição de uma Igreja

148
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privada de livros? A infância doutrinada pelo mar­
xismo, quem fala de Cristo? - A mulher.
A obediência do staretz à Rainha dos Céus traz
seus frutos. Outros starzi - particularmente os do
• Deserto Optino" - prepararam igualmente, na se­
gunda metade do século XIX, a mulher russa para seu
papel de guardiã da fé! Serafim de Sarov pode ser
considerado seu precursor. O interesse que esses
monges tinham para com as mulheres parecia, na
época, escandaloso. Mas o trabalho desses órgãos
do Espírito Santo não foi em vão. É preciso ter esta­
do nas igrejas russas ainda abertas ao culto, é pre­
ciso ter visto esses rostos de mulheres, duros, fe­
chados, severos - como é severo, nos retratos que
se tem dele, o rosto de São Serafim - ter sentido a
força e a qualidade dessa oração, tão diferente da
oração indolente e distraída desses cristãos • que
não sofreram a paixão".
• São severos, vossos ícones", dizem multas ve­
zes os ocidentais. Sim. Mas atrás dessa severidade
- que ternura!
Dizem também desdenhosamente: • São velhas
essas mulheres". Não todas. E, mesmo que todas o
fossem, Deus não é Senhor para fazer sair brotos
verdejantes de um tronco ressecado? Que diz a Bí­
blia? Sara, mãe do povo eleito, era velha. Velha era
Ana, mãe da Virgem; velha Isabel, a mãe do Precur­
sor. E a profetisa Ana que, cheia do Espírito Santo,
proclamava a divindade de Jesus quando da Apresen­
tação no Templo, não tinha a idade de oitenta e qua­
tro anos?
Tal como as irmãs de Divéyevo, essas mulheres
conservam acesa, diante do ícone da Mãe de Deus,
uma pequena lamparina de chama perpétua. Essa cha­
ma é precária, essa luz é pálida. O staretz vela para
que não se apague. Basta um pouco de fogo para
desencadear um incêndio.

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Influência póstuma

Depois da Revolução, a Igreja russa mais do que


nunca teve necessidade do Espírito Santo, Consola­
dor que, com antecedência, Serafim chamava em sua
ajuda.
ªQuando, pois, vos levarem para vos entregar,
não vos preocupeis com o que haveis de falar;
mas o que vos for indicado naquela hora, isto
falareis; pois não
n
sereis vós quem falará, mas
o Espírito Santo (Me 13,11).
1: este mesmo Espírito que dará aos mártires a
alegria do perdão das ofensas, do qual o eremita do
"Deserto Distante n conhecia o sabor.
Malgrado o fato de que, em vida, o staretz não
tivesse discípulos diretos, todos os homens de Deus
que viveram entre o seu tempo e o nosso podem ser
considerados como seus continuadores, pertencendo
à mesma tradição, comungando no mesmo espírito:
João de Cronstadt, Siloane de Atos, esse genial Pau­
lo Florensky morto num campo de concentração per­
to do círculo polar, bem como esse humilde padre
de uma paróquia moscovita, Alexis Metchev, viúvo
cedo, pai e avô que, doente, vivia em plena Revo­
lução num constante "banho de multidão n, dispensan­
do a todos a sua sabedoria e o seu amor e que era
comparado a São Serafim.
Inovador cuja ousadia passava desapercebida, es­
condido como estava no seu "Deserto n, o staretz de
Sarov recomendava a comunhão freqüente, a pro­
moção dos leigos a uma dignidade igual à dos mon­
ges e, sobretudo, a prática constante da "oração de
Jesus n que, no seu tempo, apenas começava a pene­
trar nas camadas populares. Ousou mesmo pôr essa
oração na base da regra que deu ao convento por
ele fundado.
Depois, toda a Rússia se deixou impregnar for,
temente pelo espírito do staretz. Um padre vindo dE
150
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URSS dizia recentemente, a um pastor anglicano que
encontrou em Genebra, que, no confessionário, ou­
vindo seus penitentes, parecia-lhe muitas vezes ou­
vir o próprio São Serafim. Queria dizer com isso que
era no espírito do staretz que esses homens e essas
mulheres se confessavam; sua atitude para com a
vida e a morte, o pecado, a redenção, a Igreja, se
inspiravam na dele.

Extensão mundial da mensagem de São Serafim

Mas há mais. Tal como o staretz previa, sua


mensagem devia atravessar fronteiras. Era ao mun­
do inteiro que estava destinada.
A um mundo que sofre.
De que sofre e1e? Em primeiro lugar da perda
da fé. u Eis que virão dias,
- oráculo do Senhor Javé -
em que enviarei fome ao país,
não uma fome de pão, nem uma sede de água,
mas sim de ouvir a palavra de Javé.
Cambalearão de um mar a outro' mar,
errarão do norte até o levante,
para procurar a palavra de Javé,
mas não a encontrarão!" (Am 8,11-12).
Não a encontrarão porque é com orgulho, ser­
vindo-se de sua inteligência humana que a buscarão.
Procurá-la-ão sem pedir a ajuda do Espírito Santo.
Por esse sopro de orgulho luciferino, os cris­
tãos, como os outros, são abalados. Perdem-se nos
labirintos dessa fé u racional e raciocinadora", inimi­
ga do Espírito. Retornando às heresias de outrora,
tornam-se semelhantes ao "cão [que] voltou ao seu
próprio vômito" segundo a expressão imaginada por
São Pedro (2Pd 2,22). Enfiando-se num fundo de saco
de desespero, jovens "loucos em anticristo", embria­
gados de ódio, drogados, vomitam todas as impure-
151
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zas do seu ser e se deleitam em morrer. Quanto ao
homem respeitável e ponderado, esse põe sua es­
perança na técnica. Benfazeja como instrumento, tor­
na-se terrível como ídolo.
O homem tem medo.
Para onde vai? O que será ele?
Robô ou deus?
Mas o Espírito Santo, Verdade, Amor e Vida so­
pra onde quer.
u Sem ele", dizia em Upsala em 1968, o metropo­
lita de Lattaquié, Inácio Hazim, u Deus está longe,
Cristo permanece no passado, o evangelho é letra
morta, a Igreja uma simples organização, a autorida­
de uma dominação, a missão uma propaganda, o cul­
to uma evocação e o agir cristão moral de escravo.
Mas nele e numa sinergia indissociável, o cosmo é
erguido e geme no parto do Reino... Cristo ressusci­
tado está aí e o evangelho significa a missão trini­
tária, a autoridade é serviço libertador, a missão é
um Pentecostes, a liturgia é memorial e antecipação,
o agir humano é deificado..."2
Era ele que São Serafim era chamado a manifes­
tar ao mundo: o u Desconhecido" de ontem, o ª Despre­
zado", o imperceptível, vivificador, otimista divino,
Criador de tudo o que é novo, capaz de abrir caminho
nos impasses e de trazer a esperança aos desespe­
rados.
Mas pode o homem ª da rua" verdadeiramente
adquiri-lo?
Há tantos caminhos para Deus quantos homens
sobre a terra. A peregrinação para o Reino está aber-
2 O Metropolita de Lattaqulé, Inácio Hazlm, a quem tinha sido
confiada a tarefa de abrir os trabalhos da assembléia do Conselho
Ecumênico mediante uma exposição sobre o tema que deveria orlen•
tá-los: "Els que eu faço novas todas as coisas• (Ap 21,5), foi formado
pelo Instituto São Sérgio em Paris. Pioneiro do Movimento de Ju- '
ventude do Patriarcado de Antioquia, está enraizado num cristianismo
de expressão semítica, próximo das fontes bíblicas.
Ollvler Clément, Dialogues avec le Patrlarche Ath6nagoru, p. 495.

152
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ta a todos. O Espírito está em cada homem criado
por Deus.
- Batioushka, perguntou certo dia um noviço ao
staretz, por que é que não levamos uma vida como
a dos antigos?
- Porque nos falta decisão para fazê-lo, res­
pondeu ele. Se estivéssemos firmemente decididos
a imitá-los, viveríamos como nossos Pais, pois a gra­
ça que Deus dá aos que de todo o coração o procu­
ram não muda: "Jesus Cristo é o mesmo. ontem e
hoje; ele o será para a eternidade" (Hb 13,8).
Haverá sempre estes buscadores. Na Rússia, co­
mo "no mundo inteiro".
O Espírito trabalha.
A vida continua.

Instituto São Sérgio, Paris,


Patmos (Grécia).

153
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li
CONVERSA COM MOTOVILOV

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Era uma quinta-feira. O céu estava cinza. A ter­
ra estava coberta de neve e espessos flocos conti­
nuavam a turbilhonar, quando o padre Serafim co­
meçou a nossa COIJVersa na clareira perto de sua
u Pequena· ermida", frente ao rio Sarovka que desli­
zava ao pé da colina.
Fez-me sentar no tronco de uma árvore que aca­
bava de derrubar e ele se acocorou em minha frente.
- O Senhor me revelou, disse o grande staretz,
que desde a vossa infância desejáveis saber qual a
finalidade da vida cristã e que tínheis muitas vezes
Interrogado a esse respeito mesmo a altas persona­
gens na hierarquia da Igreja.
Devo dizer que desde a idade de doze anos es­
sa idéia me perseguia e que, efetivamente, havia pro­
posto a questão a várias personalidades eclesiásti­
cas, sem nunca receber resposta satisfatória. O
staretz ignorava-o.
- Mas ninguém, continuou o padre Serafim, vos
disse nada de preciso; vos aconselhavam a ir à igre­
ja, a rezar, a viver segundo os mandamentos de Deus,
a fazer o bem - tal, diziam, era o objetivo da vida
cristã. Alguns até desaprovavam a vossa curiosida­
de, julgando-a descabida e ímpia. Mas estavam erra­
dos. Quanto a mim, miserável Serafim, vos explica­
rei, agora, em que consiste realmente esse objetivo.
157
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A verdadeira meta da vida cristã

A oração, o jejum, as vigílias e outras atividades


cristãs, tão boas quanto possam parecer em si, não
constituem a finalidade da vida cristã, ainda que aju­
dem a chegar a ela. O verdadeiro objetivo da vida
cristã consiste na aquisição do Espírito Santo de
Deus. Quanto à oração, ao jejum, às vigílias, à es­
mola e qualquer outra boa ação feita em nome de
Cristo, são apenas meios para a aquisição do Espíri­
to Santo.

Em nome de Cristo

Observai que uma só boa ação feita em nome


de Cristo nos obtém os frutos do Espírito Santo. Tu­
do o que não for feito em seu nome, mesmo o bem,
não nos obtém nenhuma recompensa no século fu­
turo e, nesta vida, também não nos alcança a graça
divina. Por isso o Senhor Jesus Cristo dizia: "Quem
não ajunta comigo, dispersa n (Lc 11,23).
Somos portanto obrigados a denominar uma boa
n
ação, de "ajuntar ou colheita, pois mesmo que ela
não seja feita em nome de Cristo ela permanece
boa. A Escritura diz: "em qualquer nação quem teme
n
a Deus e pratica a justiça lhe é agradável (At 10,
35). O centurião Cornélia, que temia a Deus e agia
de acordo com a justiça, foi visitado, enquanto se
achava em oração, por um anjo do Senhor que lhe
disse: "Envia alguns homens a Jope à casa de Si­
mão o curtidor e aí encontrarás um certo Pedro que
te fará ouvir palavras de vida eterna pelas quais se­
rás salvo tu e toda a tua casa n (At 10) [sic].
Vê-se pois que o Senhor emprega seus meios
divinos para permitir a tal homem não ficar privado,
na eternidade, da recompensa que lhe é devida. Mas
para obtê-la é preciso que desde a terra ele comece
a crer em nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus

158
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descido à terra para salvar os pecadores, bem como
para adquirir a graça do Espírito Santo que introduz
nos nossos corações o Reino de Deus e nos abre o
caminho da beatitude do século futuro. Aí se resolve
acerca da satisfação que as boas ações, que não
são realizadas em nome de Cristo, procuram obter
de Deus. O Senhor nos dá os meios para completá­
las. Ao homem cabe aproveitá-los ou não. Por isso o
Senhor disse aos judeus: "Se fôsseis cegos não te­
ríeis culpa: mas dizeis: Nós vemos! Vosso pecado
permanece" (Jo 9,41). Quando um homem como Cor­
nélio cuja ação não foi feita em nome de Cristo, mas
que foi agradável a Deus, começa a crer, esta obra
lhe é contada como feita em nome de Cristo por
causa de sua fé nele (Hb 11,6). Caso contrário, o
homem não tem direito a lamentar-se de que o bem
realizado não lhe tt!nha sido proveitoso. Isso jamais
acontece quando uma boa ação foi feita em nome
de Cristo, pois o bem realizado em seu Nome traz
não somente uma coroa de glória no século futuro
mas, desde a terra, enche o homem da graça do
Espírito Santo, como foi dito: "o dom do Espírito é,
na verdade, sem medida. O Pai ama o Filho e tudo
entregou em suas mãos" (Jo 3,34-35).

A aquisição do Espírito Santo

1: pois na aquisição desse Espírito de Deus que


consiste a verdadeira finalidade da vida cristã. en­
quanto a oração, as vigílias, o jejum, a esmola e
as outras ações virtuosas, feitas em nome de Cris­
to, são apenas meios para adquiri-lo.
- Como a aquisição?, perguntei ao padre Se­
rafim. Não compreendo muito bem.
- A aquisição é a mesma coisa que a obtenção.
Sabeis o que é adquirir dinheiro? Em relação ao Es­
pírito Santo é semelhante. Para as pessoas comuns,
o objetivo da vida consiste na aquisição do dinheiro

159
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- o ganho. Os nobres desejam, além disso, obter
honras, sinais de distinção e outras recompensas con­
cedidas por serviços prestados ao Estado. A aquisi­
ção do Espírito Santo é também um capital mas um
capital eterno, dispensador de graças; muito parecido
aos capitais temporais e que se obtém pelos mesmos
processos. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus-homem,
compara a nossa vida a um mercado e a nossa ativi­
dade na terra a um comércio. Recomenda-nos a todos:
"Negociai até que eu volte, remindo o tempo, porque
os dias são maus" (lc 19,12-13; Ef 5,15-16), quer di­
zer: "Apressai-vos em obter bens celestes, negocian­
do mercadorias terrenas". Essas mercadorias terres­
tres não são senão as ações virtuosas feitas em no­
me de Cristo e que nos trazem a graça do Espírito
Santo.

A parábola das virgens

Na parábola das virgens prudentes e das virgens


loucas (Mt 25,1-13) quando estas últimas não tinham
azeite, lhes foi dito: "ide antes aos que o vendem e
comprai-o". Mas ao retornar encontraram a porta do
quarto nupcial fechada e não puderam entrar. Alguns
julgam que a falta de azeite das Virgens loucas sim­
boliza a insuficiência de ações virtuosas no cotidiano
de suas vidas. Tal interpretação não é inteiramente
certa. Que falta de ação virtuosa poderia haver aí
já que eram chamad'ls virgens, ainda que loucas? A
virgindade é uma alta virtude, um estado quase-an­
gélico, que pode substituir todas as outras virtudes.
Eu, miserável, penso que lhes faltava justamente o
Espírito Santo de Deus. Praticando virtudes, essas
virgens, espiritualmente ignorantes, acreditavam que
a vida cristã consistia nessas práticas. Agimos de
modo virtuoso, realizamos obras de piedade, pensa­
vam elas sem se preocuparem com ter ou não rece­
bido a graça do Espírito Santo. Deste gênero de vida,

160
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baseado unicamente na prática das virtudes morais,
sem um exame minucioso para saber se elas nos
trazem - e em que quantidade - a graça do Espíri­
to de Deus, foi dito em livros patrísticos: "Tal cami­
nho parece reto para alguém, mas afinal é o caminho
da morte" (Pr 14,12).
Falando dessas virgens, Antão, o Grande, diz, nas
suas epístolas aos monges: "Muitos monges e vir­
gens ignoram, completamente, a diferença que existe
entre as três vontades agindo no interior do homem".
A primeira é a vontade de Deus, perfeita e salvadora;
a segunda - nossa vontade própria, humana, que
não é, em si, nem nefasta nem salvadora; enquanto
que a terceira - diabólica - é completamente ne­
fasta. 1: esta terceira vontade inimiga que obriga o
homem seja a não praticar de todo a virtude seja a
praticá-la por vaidacfo ou unicamente para o "bem"
e não para Cristo. A segunda, nossa vontade própria,
nos incita a satisfazermos os nossos maus instintos
ou, como a do inimigo, nos ensina a fazer o "bem"
em nome do bem, sem nos preocuparmos com a
graça que se pode adquirir. Quanto à primeira von­
tade, a de Deus, salvadora, ela consiste em nos en­
sinar a fazer o bem unicamente com o objetivo de
adquirirmos o Espírito Santo, tesouro eterno, inesgo­
tável, que nada no mundo é digno de igualar.
Era justamente a graça do Espírito Santo, simbo­
lizada pelo óleo, que faltava às virgens loucas. Elas
são chamadas "loucas" porque não se preocupavam
com o fruto indispensável da virtude que é a graça do
Espírito Santo sem a f!ual ninguém pode ser salvo,
pois "toda a alma é vivificada pelo Espírito Santo, a
fim de ser iluminada pelo mistério sagrado da Uni­
dade Trinitária" (Antífona do Evangelho de matinas).
O próprio Espírito Santo vem habitar as nossas al­
mas, e esta residência do Todo-poderoso em nós, a
coexistência em nós de sua Unidade Trinitária com o
nosso espírito, não nos é dada a não ser sob a con­
dição de trabalharmos por todos os meios ao nosso

161
6 . lnstruçõet...
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alcance na aquisição desse Espírito Santo que prepa­
ra em nós um lugar digno para esse encontro, segun­
do a imutável palavra de Deus: "a ele viremos e nele
estabeleceremos morada" (Ap 3,20; Jo 14,23). Era es­
se o óleo que as virgens prudentes tinham em suas
lâmpadas, óleo capaz de brilhar longamente alto e
claro, permitindo esperar a chegada, à meia-noite, do
esposo e a entrada, com ele, no quarto nupcial da
alegria eterna.
Quanto às virgens loucas, vendo que suas lâm­
padas estavam em risco de se apagarem, foram ao
mercado, mas não tiveram tempo de voltar antes do
fechamento da porta. O mercado - é a nossa vida.
A porta do quarto nupcial, fechada e proibindo o aces­
so ao esposo - é a nossa morte humana; as virgens
- prudentes e loucas - são almas cristãs. O azeite
não simboliza as nossas ações, mas a graça por in­
termédio da qual o Espírito Santo preenche o nosso
ser, transformando isto naquilo: o corruptível no in­
corruptível, a morte psíquica em vida espiritual, as
trevas em luz, o estábulo onde são encerradas, como
animais, as nossas paixões, em templo de Deus, em
quarto nupcial onde reencontraremos Nosso Senhor,
Criador e Salvador, Esposo de nossas almas. Grande
é a compaixão que Deus tem pela nossa desgraça,
quer dizer, por nossas negligências para com a sua
solicitude. Ele diz: "Eis que estou à porta e bato..."
(Ap 3,20), entendo por u porta" o cotidiano da nossa
vida, ainda não detido pela morte.

A oração

Oh! como gostaria, amigo de Deus, que nesta


vida estivésseis sempre no Espírito Santo. "Julgar­
vos-ei no estado em que vos encontrar", diz o Senhor
(Mt 24,42; Me 13,33-37; Lc 19,12 e seguintes). Des­
graça, grande desgraça se vos encontrar sobrecarre­
gados de preocupações e penas terrestres, por que

162
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quem poderá enfrentar a sua cólera e quem poderá
resistir-lhe? Por isso foi dito: "Vigiai e orai, para que
não entreis em tentação" (Mt 26,41), quer dizer, para
não serdes privados do Espírito de Deus, pois as
vigílias e a oração nos dão a sua graça.
1: certo que toda a boa ação feita em nome de
Cristo confere a graça do Espírito Santo, mas a ora­
ção mais do que todas as outras coisas, visto estar
sempre à nossa disposição. Tereis, por exemplo, vonta­
de de ir à igreja, mas está longe ou o ofício terminou;
tereis vontade de dar esmola, mas não vedes pobres
ou não tendes dinheiro; desejáveis permanecer vir­
gem, mas não tendes assaz forças para isso por cau­
sa da vossa constituição ou por causa das ciladas do
inimigo, às quais a fraqueza da vossa carne humana
não vos permite resistir; quereríeis talvez encontrar
uma outra boa ação para a fazerdes em nome de
Cristo, mas não tendes bastante força para isso ou a
ocasião não se apresenta. Quanto à oração, nada de
tudo isso a afeta: cada um tem sempre a possibili­
dade de orar, o rico como o pobre, o notável como o
homem comum, o forte como o fraco, o sadio como
o doente, o virtuoso como o pecador.
Podemos julgar acerca do poder da oração, ainda
que pecadora, que sai de um coração sincero, pelo
exemplo seguinte, narrado pela Santa Tradição: a pe­
dido de uma infeliz mãe, que acabava de perder seu
filho único, uma cortesã, que ela encontrou no seu
caminho, tocada pelo desespero maternal, ousou gri­
tar ao Senhor, manchada como estava ainda pelo seu
pecado: "Não por mim, horrível pecadora, mas por
causa das lágrimas desta pobre mãe que chora o seu
filho e crê firmemente em tua misericórdia e em tua
onipotência, ressuscita-o, Senhor!" E o Senhor o res­
suscitou.
Tal, amigo de Deus, é o poder da oração. Mais
do que qualquer outra coisa, ela nos dá a graça do
Espírito de Deus e, mais do que tudo, ela está sem­
pre ao nosso alcance. Felizes seremos nós quando

163
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Deus nos encontrar vigiando, na plenitude dos dons
do seu Espírito Santo. Podemos então esperar ser ar­
rebatados sobre as nuvens, ao encontro de Nosso Se­
nhor, vindo nos ares revestido de poder e de glória
julgar os vivos e os mortos e dar a cada um o que
lhe é devido.

Quando a oração cede lugar ao Espírito Santo

Julgais, amigo de Deus, que é uma grande felici­


dade poderdes entreter-vos com o miserável Serafim,
persuadido como estais de que ele não se encontra
desprovido da graça. Que diríamos nós então de uma
conversa com o próprio Deus, fonte inesgotável de
graças celestes e terrenas? É pela oração que nos
tornamos dignos de nos entretermos com ele, nosso
vivificante e misericordioso Salvador. Mas, mesmo en­
tão, não devemos orar senão até o momento em que
o Espírito Santo desce sobre nós e nos concede, em
certa medida, somente dele conhecida, a sua graça
celeste. Visitado por ele, é preciso parar de rezar.
Na verdade, de que serve implorar-lhe: uvem, faz
a tua morada em nós, purifica-nos de toda a mácula e
salva as nossas almas, tu que és bondade" (trapo or­
todoxo, recitado no início dos ofícios), quando ele já
veio, em resposta às nossas humildes e amorosas so­
licitações, ao templo de nossas almas sedentas de
sua vinda? Explicar-vos-ei isto com um exemplo. Su­
ponhamos que me haveis convidado à vossa casa e
que vim com a intenção de me entreter convosco, mas
que, apesar da minha presença, vós não cessais de
repetir: u Por favor, entrai!" Eu pensaria certamente:
uaue tem ele? Perdeu a cabeça. Estou em casa dele e
continua a me convidar". A mesma coisa ocorre no
que se refere ao Espírito Santo. Por isso foi dito:
"Tranqüilizai-vos e reconhecei: eu sou Deus, mais
alto que os povos, mais alto que a terra!" (SI 46[ 45],
11 ). O que significa: aparecerei e continuarei a apa-

164
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recer a cada crente e conversarei com ele, como con­
versava com Adão no paraíso, com Abraão e Jacó e
meus outros servidores, Moisés, Jó e seus semelhan­
tes. Muitos crêem que o "afastamento" deve ser in­
terpretado como eliminação dos afazeres deste mun­
do, isto é: ao falar com Deus na oração é preciso
desentender-se de tudo quanto é terreno. Certamente.
Mas eu, em Deus, vos direi que, apesar do fato de
ser necessário, durante a oração, afastar-nos disso,
é preciso, quando o Senhor Deus, o Espírito Santo
nos visite e venha a nós na plenitude de sua indizível
bondade, afastarmo-nos, também, da oração, suprimir­
mos até a oração.
A alma orante fala e profere palavras. Mas à des­
cida do Espírito Santo, é conveniente estarmos abso­
lutamente silenciosos para que a alma possa ouvir
claramente e compreender bem, os anúncios da vida
eterna que ele se digna então trazer. A alma e o Es­
pírito devem então encontrar-se em estado de so­
briedade completa e o corpo em estado de castidade
e pureza. Foi assim que as coisas se passaram no
monte Horeb, quando Moisés otdenou aos israelitas
que se abstivessem das mulheres durante três dias
antes da descida de Deus sobre o Sinai, pois Deus
é "um fogo abrasador!" (Hb 12,29) e nada de Impuro·,
fisicamente ou espiritualmente, pode entrar em con­
tato com ele.

Comércio espiritual
- Mas como praticar, Padre, em nome de Cris­
to, outras virtudes que permitiriam a aquisição do
Espírito Santo? Não falais senão de oração.
- Obtende a graça do Espírito Santo negociando
em nome de Cristo todas as virtudes possíveis, fazei
espiritualmente o comércio, negociai as que vos dão
maior benefício. O capital, fruto dos bem-aventurados
retornos da misericórdia divina, Investi-o na caixa

165
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econômica eterna de Deus com porcentagens imate­
riais, não somente de 4% ou 6% mas de 100% e mes­
mo infinitamente mais. Por exemplo, as orações e
vigílias vos trazem muitas graças? Velai e orai. O je­
jum vos alcança mais ainda? Jejuai. A caridade vos
alcança ainda muito mais? Fazei caridade. Conside­
rai assim cada boa ação feita em· nome de Cristo.
Falar-vos-ei de mim, miserável Serafim. Nasci
numa família de negociantes de Koursk. Antes da mi­
nha entrada no mo13teiro, meu irmão e eu negociáva­
mos com diversas mercadorias, especialmente com
as que nos traziam mais lucros. Fazei o mesmo. Tal
como no comércio o objetivo é conseguir o maior lu­
cro possível, assim na vida cristã a meta deve ser
não somente orar e fazer o bem, mas obter o maior
número possível de graças. Bem disse o Apóstolo:
uorai sem cessar n (1Ts 5,17) e acrescenta: UMas,
numa assembléia, prefiro dizer cinco palavras com a
minha inteligência, para instruir também os outros,
a dizer dez mil em línguas n (1Cor 14,19). E o Senhor
nos previne: u Nem todo aquele que diz 'Senhor, Se­
nhor', entrará no Reino dos Céus, mas sim, aquele
que pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus n
(Mt 7,21), com outras palavras, aquele que faz a obra
de Deus com zelo (Jr 48,10). E que obra é esta senão
u que acrediteis naquele que ele enviou" (Jo 6,29).
Se refletirmos corretamente nos mandamentos de
Cristo e nos dos Apóstolos, vemos que a nossa ativi­
dade cristã não deve consistir unicamente em acumu­
lar as boas ações - que não são senão meios para
chegar à meta - mas em tirar delas o maior pro­
veito, que quer dizer, em obter os dons superabundan­
tes do Espírito Santo.
Como gostaria, amigo de Deus, que encontrás­
seis esta fonte inesgotável de graça e vos interrogás­
seis sem cessar: uo Espírito Santo está comigo? Se
ele está comigo, bendito seja Deus, não nos inquie­
temos - mesmo que o julgamento final seja amanhã;
estou pronto a comparecer. Pois foi dito: u Julgar-vos-
166
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ei segundo o estado no qual vos encontrar". Se pelo
contrário não tivermos mais a certeza de estar com
o Espírito Santo, é preciso descobrir a causa pela
qual ele nos abandonou e procurá-lo sem descanso,
até o encontrarmos de novo, a ele e à sua graça.
1: preciso perseguir os inimigos, que nos impedem de
ir a ele, até seu aniquilamento completo. O profeta
Davi disse: "Persigo meus inimigos e os alcanço, não
volto atrás sem tê-los consumido; eu os massacro e
não podem levantar-se, eles caem debaixo dos meus
pés" (SI 18[17],38-39).
Sim, é bem assim. Fazei comércio espiritual com
a virtude. Distribuí os dons da graça a quem os pede,
inspirando-vos no exemplo seguinte: uma vela acesa,
queimando com um fogo terreno, inflama, sem per­
der o seu brilho, outras velas que iluminarão outros
lugares. Se tal é a 'propriedade de um fogo terreno,
que dizer do fogo da graça do Espírito Santo? A rique­
za terrena, distribuída, diminui. Quanto à riqueza ce­
leste da graça, ela não faz senão aumentar naquele
que a propaga. Assim o próprio Senhor disse à Sa­
maritana: "Aquele que bebe de,sta água terá sede
novamente; mas quem beber da água que eu lhe darei
nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tor­
nar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida
eterna" (Jo 4,13-14).

Ver a Deus

- Padre, disse-lhe eu, falais sempre da aquisi­


ção da graça do Espírito Santo como a finalidade da
vida cristã. Mas, como posso reconhecê-la? As boas
ações são visíveis. Mas o Espírito Santo pode ser
visto? Como posso saber se ele está ou não em mim?
- Na época em que vivemos, respondeu o sta­
retz, chegou-se a uma tal tibieza na fé, a uma tal
Insensibilidade para com a comunicação com Deus,
que as pessoas se afastaram totalmente da verdadei-

167
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ra vida cristã. Há passagens da Escritura que nos
parecem estranhas hoje, como, por exemplo, quando
o Espírito Santo pela boca de Moisés diz: "Adão via
Deus passeando no paraíso" (Gn 3,8), ou quando le­
mos no apóstolo Paulo que foi impedido pelo Espí­
rito Santo de anunciar a palavra na Asia, mas que o
Espírito o acompanhou quando ele se dirigia para a
Macedônia (At 16,6-9). Em muitas outras passagens
da Sagrada Escritura ele é, por várias vezes, assunto
da aparição de Deus aos homens.
Então alguns dizem: Estas passagens são incom­
preensíveis. Pode-se admitir que homens possam ver
a Deus de maneira tão concreta? Esta incompreensão
vem do fato de que sob pretexto de instrução, de
ciência, mergulhamos numa tal obscuridade de igno­
rância, que tudo achamos incompreensível, tudo de
quanto os antigos tinham uma noção bastante clara
para poderem falar entre eles das manifestações de
Deus aos homens como de coisas conhecidas e, de
forma alguma, estranhas. Assim Jó, quando os seus
amigos o reprovavam por não blasfemar contra Deus,
respondia: "enquanto em mim houver um sopro de
vida e o alento de Deus nas narinas, meus lábios não
dirão falsidades" (Jó 27,3). Em outras palavras, como
posso blasfemar contra Deus, quando o Espírito San­
to está em mim? Se blasfemasse contra Deus, o Es­
pírito Santo me deixaria, mas sinto sua respiração
em minhas narinas. Abraão e Jacó conversaram com
Deus. Jacó lutou mesmo com ele. Moisés viu Deus e
todo o povo com ele, quando recebeu as Tábuas da
Lei, no Sinai. Uma coluna de nuvens de fogo - a
graça visível do Espírito Santo - servia de guia ao
povo hebreu no deserto. Os homens viam Deus e seu
Espírito não em sonho ou em êxtase - fruto de uma
Imaginação doentia - mas na realidade.
Desatentos, como nos tornamos, compreendemos
as palavras da Escritura contrariamente ao que se de­
veria. E tudo isso porque, em lugar de buscar a gra­
ça, nós a impedimos, por orgulho Intelectual, de vir

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habitar em nossas almas e de nos esclarecer como
são esclarecidos aqueles que de todo o coração bus­
cam a verdade.

A criação

Muitos, por exemplo, interpretam as palavras da


Bíblia: "Deus modelou o homem com a argila do solo,
Insuflou em suas narinas um hálito de vida" (Gn 2,
7), como querendo dizer que até então não havia em
Adão nem alma, nem espírito humano, mas somente
uma carne criada do barro do solo. Esta interpretação
não é correta, pois o Senhor Deus criou Adão do
barro do solo no estado do qual fala o apóstolo Paulo
quando afirma: "que vosso espírito, vossa alma e
vosso corpo sejam guardados de modo irrepreensível
para o dia da vinda do Senhor Jesus Cristo" (1Ts 5,23).
Todas essas três partes do nosso ser foram cria­
das do barro do solo. Adão não foi criado morto, mas
criatura animal atuante, semelhante às outras criatu­
ras que vivem na terra e são animadas por Deus. Mas
eis o importante. Se Deus não -tivesse insuflado na
face de Adão este alento de vida, isto é, a graça do
Espírito Santo que procede do Pai e repousa no Filho
e, por causa deste o não tivesse enviado ao mundo,
por mai� perfeito e superior às outras criaturas que
Adão fosse, teria permanecido privado do Espírito
deificante e seria semelhante a todas as criaturas
que possuíssem carne, alma e espírito segundo a sua
espécie, mas privados, no interior, do Espírito Santo
que estabelece parentesco com Deus. A partir do mo­
mento em que Deus lhe deu o sopro de vida, Adão
tornou-se, segundo Moisés: "uma alma vivente", quer
dizer, em tudo semelhante a Deus, eternamente imor­
tal. Adão havia sido criado invulnerável. Nenhum ele­
mento tinha poder sobre ele. A água não podia afo­
gá-lo, o fogo não podia queimá-lo, a terra não o podia
engolir e o ar não lhe podia ser nocivo. Tudo lhe era

169
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submisso, como ao preferido de Deus, como ao pro­
prietário e rei das criaturas. Ele era a própria per­
feição, a coroa das obras de Deus e admirado como
tal. O alento de vida que Adão recebeu do Criador,
o encheu de sabedoria a tal ponto que jamais houve
sobre a terra, e provavelmente jamais haverá, um
homem tão repleto de conhecimento e de saber quan­
to ele. Quando Deus lhe ordenou que desse nomes a
todas as criaturas. ele as denominou cie acordo com
as qualidades, as forças, e as propriedades de cada
uma, conferidas por Deus.
Este dom da graça divina supranatural, que veio
do alento de vida que havia recebido, permitia a Adão
ver a Deus passeando no paraíso e compreender as
suas palavras bem como a conversa. dos santos an­
jos e a linguagem de todas as criaturas, dos pássa­
ros, dos répteis que vivem sobre a terra, de tudo o
que nos é dissimulado, a nós, pecadores, desde a
queda, mas que antes era perfeitamente claro para
Adão.
A mesma sabedoria, a mesma força e o mesmo
poder, assim como qualquer outra santa e boa quali­
dade tinham sido conferidos por Deus a Eva no mo­
mento de sua criação, não do barro do solo, mas de
uma costela de Adão, no l:den das delícias, no paraíso
desabrochado no meio da terra.

A árvore da vida e o pecado original

A fim de que Adão e Eva pudessem comoda­


mente manter neles as suas propriedades imortais,
perfeitas e divinas, vindas do sopro da vida, Deus
plantou, no meio do paraíso, a árvore da vida em cujos
frutos encerrou toda a substância e a plenitude dos
dons de seu divino sopro. Se Adão e Eva não tives­
sem pecado teriam podido, eles e seus descendentes,
comendo os frutos dessa árvore, manter neles a força
vivificante da graça divina, bem como a plenitude

170
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imortal. eternamente renovada das forças físicas, psi­
quicas e espirituais, um não envelhecimento perpé­
tuo, um estado de beatitude que atualmente a nossa
imaginação tem dificuldade de representar.
Tendo porém saboreado o fruto da árvore da ciên­
cia do bem e do mal, antes da hora e contrariamente
às ordens de Deus, conheceram a diferença entre o
bem e o mal, e tornaram-se presa dos desastres que
se abateram sobre eles depois que infligiram a or­
dem divina. Perderam o dom precioso da graça do
Espírito Santo e até a vinda de Jesus Cristo, Homem
Deus, "não havia ainda Espírito [no mundo], porque
Jesus não fora ainda glorificado" (Jo 7,39)

O espírito de Deus no Antigo Testamento


I

Isto não quer dizer que o Espírito de Deus tenha


abandonado totalmente o mundo, mas a 'sua presença
não era tão manifesta como o era em Adão ou como o
é em nós, cristãos ortodoxos, mas permanecia exte­
rior e os homens o sabiam. Assim, por exemplo, mui­
tos dos segredos concernentes •à futura salvação da
humanidade foram revelados a Adão e a Eva após a
queda. Apesar de seu crime, Caim pôde ouvir a voz
divina proferindo censuras. Noé conversou com Deus.
Abraão viu Deus e seu dia e com isso rejubilou. A
graça do Espírito Santo se manifestava externamente
em todos os profetas do Antigo Testamento e nos
santos de Israel. Os judeus tinham até escolas espe­
ciais para aprenderem a discernir os sinais das apari­
ções de Deus e dos anjos e a diferenciar as ações
do Espírito Santo dos acontecimentos da vida ordiná­
ria, privada da graça: Simeão, Joaquim e Ana e ou­
tros numerosos servidores de Deus eram freqüente­
mente gratificados por manifestações divinas. Ouviam
vozes, recebiam revelações confirmadas, depois, por
acontecimentos miracul-osos, mas verídicos.

171
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O espírito de Deus nos pagãos
O Espírito de Deus se manifestava além disso,
ainda que com menor força, nos pagãos que não co­
nheciam o verdadeiro Deus, mas entre os quais ele
encontrava também adeptos. As virgens profetisas,
por exerrplo, as sibilas, conservavam sua virgindade
por um Deus Desconhecido - mas um Deus, apesar
de tudo - que se julgava ser o Criador do universo,
o Todo-poderoso que governa o mundo. Os filósofos
pagãos, errando nas trevas da ignorância de Deus,
mas buscando a verdade, podiam por causa dessa
busca agradável ao Criador, receber numa certa me­
dida o Espírito Santo. Está dito: "os gentios, não ten­
do Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei,
eles não tendo Lei, para si mesmos são Lei n (Rm 2,
14). A tal ponto a verdade é agradável a Deus que ele
mesmo proclama por seu Espírito: "da terra germi­
nará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu n (SI
85[84], 12).
Foi assim que o conhecimento de Deus se conser­
vou entre o povo eleito, amado por Deus, e igualmen­
te entre os pagãos que ignoravam a Deus, desde a que­
da de Adão e até a Encarnação de Nosso Senhor Jesus
Cristo.

A vinda de Cristo revelada pelo Espírito Santo

Sem esse reconhecimento sempre claramente


conservado no gênero humano, como teriam podido
os homens saber, ao certo, que ele tinha vindo, aque­
le que, segundo a promessa feita a Adão e Eva, devia
nascer de uma Virgem destinada a esmagar a cabeça
da serpente?
Mas eis que S. Simão ao qual foi revelado, aos
sessenta e cinco anos, o mistério da concepção, e
do nascimento virginal de Cristo, proclamou, em voz
alta no Templo, que tinha a certeza, no Espírito Santo,
172
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de ver diante dele Cristo, Salvador do mundo, cujo
nascimento da Puríssima Virgem Maria e do Espírito
Santo lhe havia sido predito, há trezentos anos, por
um anjo.1 E Santa Ana, a profetisa, filha de Fanuel,
que desde a sua viuvez, durante oitenta e quatro anos
servia no Templo, mulher cheia de graça e de sabedo­
ria, anunciava também que estava efetivamente ali o
Messias, o verdadeiro Cristo, Deus e homem, o Rei de
Israel, que vinha salvar Adão e todo o gênero humano.

Renovação do "sopro de vida" perdido por Adão


Quando Nosso Senhor Jesus Cristo terminou a
sua obra de salvação, ressuscitado de entre os mor­
tos ele soprou sobre os Apóstolos, renovando o so­
pro de vida do qual gozava Adão e lhes r1;tstituindo
a mesma graca que Adão perdera. Mas não era tudo.
Disse-lhes: "Eu vos digo a verdade: é de vosso in­
teresse que eu parta, pois se eu não for, o Paráclito
não virá a vós. Mas se eu for, enviá-lo-ei a vós. Quan­
do vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à
verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá
tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas
futuras. Vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que
eu vos disse n (Jo 16,7.13;14,26). Trata-se da graça
que já lhes tinha prometido. "Graça sobre graça n.

Pentecostes
E eis que, no dia de Pentecostes, ele lhes enviou
solenemente o Espírito Santo num vento de tempes­
tade, sob o aspecto de línguas de fogo, que pousa­
ram sobre cada um deles e os encheram da força ful­
gurante da graça divina, orvalho vivificante e alegria
para as almas daqueles que participam de sua potes­
tade e dos seus efeitos.
1 O texto é aqui tributário de uma tradição apócrifa, segundo a
qual o velho Simeão teria vivido até a Idade de 385 anos.
173
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O batismo

Esta graça fulgurante do Espírito Santo nos é con­


ferida a todos nós, fiéis de Cristo, no sacramento do
batismo. Ela é confirmada pela crisma - unção feita
com o santo óleo sobre os principais membros do
nosso corpo indicados pela Santa Igreja, depositária
eterna dessa graça. Diz-se: "O selo do dom do Espíri­
to Santo n. Ora, sobre o que é que depositamos os
nossos selos senão em recipientes cujo conteúdo é
particularmente precioso? E o que há de mais precio­
so no mundo e de mais sagrado que os dons do Espí­
rito Santo, enviados do alto durante o sacramento do
batismo?
Esta graça batismal é tão grande, tão importante,
tão vivificante para o homem que, mesmo que ele se
tornasse herético, ela não lhe seria tirada até a mor­
te, quer dizer, até o termo de sua prova temporal fi­
xada pela Providência, a fim de lhe dar uma oportuni­
dade de se erguer.
Se não pecarmos, permaneceremos sempre ser­
vidores de Deus, santos e imaculados, estranhos a
toda a impureza do corpo e do espírito. A desgraça
é que, avançando em idade. não cresçamos em sabe­
doria e em graça com.o .o fazia nosso Senhor Jesus
Crista (Lc 2,52) mas, pelo contrário, nos depravemos
cada vez mais, nos tornemos, privados do Espírito
Santo, grandes, abomináveis pecadores.

O arrependimento
Quando um homem, retornando à vida pela sa­
bedoria divina sempre em busca da nossa salvação,
se decide a voltar-se para Deus para escapar da per­
dição, deve seguir a via do arrependimento, praticar
as virtudes contrárias aos pecados cometidos e es­
forçar-se, agindo em nome de Cristo, por adquirir o
174
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Espírito Santo que, dentro de nós, prepara o Reino
celeste.
Não foi em vão que o Verbo disse: "o Reino d.e
Deus está no meio de vós. Penetra-se nele pela vio­
lência do esforço" (Lc 17,21). Se apesar dos liames
do pecado que os mantém cativos impedindo, por no�
vas iniqüidades, de se voltarem para o Salvador com
perfeita contrição, os homens se esforçam por que­
brar esses liames, chegarão finalmente perante a face
de Deus mais brancos do que a neve, purificados por
sua graça.
11
Então, sim, poderemos discutir, diz Javé: mes­
mo que os vossos pecados sejam como escarlate, tor­
nar-se-ão alvos como a neve" (Is 1,18). O Vidente do
Apocalipse, o apóstolo São João, o Teólogo, viu tais
homens vestidos de branco, purificados, tendo pal­
mas nas mãos COIT)O sinal de vitória e cantando ale­
luia. Incomparável era a beleza do seu canto. O anjo
do Senhor disse falando deles: Estes são os que
11

vêm da grande tribulação: lavaram suas vestes e al­


vejaram-nas no sangue do cordeiro" (Ap 7,14).

O sangue do cordeiro dado em troca


do fruto da árvore da vida

Lavado" pelo sofrimento, alvejado", comungan­


11 11

do nos santíssimos mistérios da Carne e do Sangue


do Cordeiro Imaculado, Cristo é voluntariamente imo­
lado ante os séculos pela salvação do mundo e ainda
hoje imolado, fracionado, jamais consumido a fim de
nos fazer participantes da vida eterna e nos permitir
que nos justifiquemos no juízo final. Mistério dado
em troca - ultrapassando todo o entendimento -
desse fruto da Arvore da Vida do qual o inimigo da
humanidade, Lúcifer, caído do céu, queria privar in­
justamente o gênero humano.

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A Virgem Maria

Apesar do fato de Satã ter seduzido Eva, arrastan­


do Adão atrás de si, Deus não somente nos deu um
Redentor que pela sua morte venceu a morte, mas,
na pessoa da Mulher, a Mãe de Deus, Maria sempre
Virgem que esmagou nela e em todo o gênero hu­
mano a cabeça da serpente, ele nos deu uma advoga­
da infalível junto de seu Filho e nosso Deus, uma
lntercessora invencível para os pecadores mais in­
veterados. i; por isso que ela é chamada u O Flagelo
dos demônios", pois é impossível ao demônio fazer
perecer um homem, enquanto este não cessar de re­
correr à Teotocos.

Diferença entre a ação do Espírito Santo


e a do maligno

Devo eu ainda, miserável Serafim, explicar-vos,


amigo de De�s. em que consiste a diferença entre a
ação do Espírito Santo tomando misteriosamente pos­
se dos corações dos que crêem em nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo e a ação tenebrosa do pecado
que vem a nós como um ladrão por instigação do de­
mônio.
O Espírito Santo nos repõe na memória as pala­
vras de Cristo e trabalha de acordo com ele guiando
os nossos passos solenemente e alegremente no ca­
minho da paz. Enquanto que as atrações do espírito
diabólico oposto a Cristo, nos incitam à revolta e
nos tornam escravos da luxúria, da vaidade e do or­
gulho.
"Em verdade, em verdade, vos digo: aquele que
crê tem a vida eterna" (Jo 6,47). Aquele que por sua
fé em Cristo está de posse do Espírito Santo, mesmo
tendo cometido, por fraqueza humana, qualquer pe­
cado causando a morte de sua alma, não morrerá para
sempre, mas será ressuscitado pela graça de nosso

176
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enhor Jesus Cristo que tomou sobre si os pecados
o mundo e que dá, gratuitamente, graça sobre graça.
1: falando dessa graça manifestada ao mundo in­
siro e ao nosso gênero humano pelo Deus-Homem
ue o evangelho diz: Nele estava a vida e a vida
11

ra a luz dos homens" e acrescenta: "E a luz brilha


188 trevas, mas as trevas não a apreenderam" (Jo 1,
-5). O que quer dizer que a graça do Espírito Santo
ecebida no batismo em nome do Pai, do Filho e do
:spírito Santo, malgrado as quedas pecaminosas, ape­
ar das trevas que rodeiam a nossa alma, continua a
,rllhar no nosso coração com a sua eterna luz divina,
,or causa dos inestimáveis méritos de Cristo. Peran­
e um pecador inveterado, esta luz de Cristo diz ao
'ai: Abba, Pai, que a tua cólera não se inflame con­
11

ra este endurecimento". Em seguida, quando o peca­


lor se tenha voltado para o arrependimento, ela apa-
1ará completamente os traços dos crimes cometidos,
·evestindo o antigo pecador com uma veste de incor­
·uptibilidade tecida da graça deste Espírito Santo de
:uja aquisição vos falo o tempo todo.

4 graça do Espírito Santo é luz


Ainda é preciso que vos diga, a fim de que com­
:>reendais o que é preciso entender por graça divina,
como ela se manifesta nos homens que ilumina: a
Graça do Espírito Santo é Luz.
Toda a Sagrada Escritura fala disso. Davi, o ante­
lassado do Deus-Homem, disse: Tua palavra é lâm­
11

:,ada para os meus pés, e luz para o meu caminho"


:si 119[118],105). Em outros termos, a graça do Espí­
·lto Santo, que a lei revela na forma dos mandamen­
'.os divinos, é minha luminária e minha luz e, se não
:osse essa graça do Espírito Santo: ·que com tanto
:rabalho me esforço por adquirir, me interrogando se­
:e vezes ao dia de sua verdade (SI 119[118],164) co­
no, entre as numerosas preocupações inerentes à ml-

177
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nha condição real, poderia encontrar em mim uma
só chispa de luz para me iluminar acerca do caminho
da vida enegrecida pelo ódio de meus inimigos?"
De fato, o Senhor muitas vezes mostrou, na pre­
sença de numerosas testemunhas, a ação da graça do
Espírito Santo sobre os homens que ele havia ilumi­
nado e ensinado através de grandiosas manifesta­
ções. Lembrai-vos de Moisés, depois de sua conversa
com Deus sobre o monte Sinai (Ex 34,30-35). Os ho­
mens não podiam olhá-lo de tal modo seu rosto brilha­
va com uma luz extraordinária. Era mesmo obrigado a
se mostrar ao povo com a face recoberta com um
véu. Lembrai-vos da Transfiguração do Senhor no la­
bor. "E ali foi transfigurado diante deles. O seu ros­
to resplandeceu como o sol e suas vestes se torna­
ram brancas como a luz... Os discípulos ouvindo a
voz, muito assustados, caíram com o rosto no chão".
Quando Moisés e Elias apareceram revestidos da
mesma luz "uma nuvem os encobriu para que não
ficassem cegos" (Mt 17,1-8; Me 9,2-8; Lc 9,28-37). 1:
assim que a graça do Espírito Santo de Deus aparece
numa luz ínefável àqueles a quem Deus manifesta a
sua ação.

Presença do Espírito Santo

- Como poderei então, perguntei ao padre Sera­


fim, reconhecer em mim a presença do Espírito Santo?
- 1: muito simples, respondeu ele. Deus disse:
"o saber é fácil para o inteligente" (Pr 14,6). Nossa
desgraça é que nós não procuramos essa sabedoria
divina que, não sendo deste mundo, não é presunço­
sa. Cheia de amor por Deus e pelo próximo, ela molda
o homem para sua salvação. Foi falando dessa sabe­
doria que o Senhor disse: "Deus (...) quer que todos.
os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento
da verdade" (1Tm 2,4). A seus Apóstolos, que não ti­
nham esta sabedoria, ele disse: "ó insensatos e len-
178
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tos de coração para crer tudo o que os profetas anun­
ciaram!" (Lc 24,25-27). E o evangelho diz que ele "lhes
abriu a inteligência a fim de que pudessem compreen­
der as Escrituras". Tendo adquirido essa sabedoria,
os Apóstolos sabiam sempre se o Espírito de Deus
estava ou não com eles e, cheios desse Espírito,
afirmavam que sua obra era santa e agradável a Deus
Por isso em suas epístolas podiam escrever: "Pareceu
bem ao Espírito Santo e a nós..." (At 15,28) e somen­
te persuadidos como estavam de sua presença sen­
sível. enviavam suas mensagens. Então, amigo de
Deus, vede como é simples.
Respondi:
- Apesar de tudo, não compreendo como posso
estar absolutamente certo de me encontrar no Espírito
Santo. Como posso eu mesmo descrever em mim a
sua manifestação?,
O padre Serafim respondeu:
- Já vos disse que é muito simples e vos expli­
quei com detalhes como os homens se encontravam
no Espírito Santo e como se deve compreender a sua
manifestação em nós... Que vos falta ainda?
- Eu preciso, respondi, compreendê-lo verdadei­
ramente bem...

A luz Incriada

Então o padre Serafim me tomou pelos ombros


e, apertando-os fortemente, disse:
- Estamos ambos, vós e eu, na plenitude do Es­
pírito Santo. Por que não me olhais?
- Não posso, padre, olhar-vos. Brotam raios de
vossos olhos. O vosso rosto tornou-se mais luminoso
do que o sol. Os olhos me doem ...
O padre Serafim disse:
- Não tenhais medo, amigo de Deus. Também
vos tornastes tão luminoso quanto eu. Vós também
estais agora na plenitude do Espírito Santo, de outro
modo não teríeis podido me ver.
179
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Inclinando a sua cabeça para mim, disse-me ao
ouvido:
- Agradecei ao Senhor por vos ter concedido
esta graça indizível. Vistes - nem mesmo fiz o sinal
da cruz. No meu coração, em pensamento somente,
rezei: "Senhor, tornai-me digno de ver claramente,
com os olhos da carne, a descida do Espírito Santo
como a teus servidores eleitos quando te dignaste
aparecer-lhes na magnificência de tua glória!" E ime­
diatamente Deus atendeu a humilde oração do mise­
rável Serafim. Como não agradecer-lhe por esse dom
extraordinário que a nós dois ele concede? Não é tam­
bém sempre aos grandes eremitas que Deus mani­
festa assim a sua graça. Como mãe amorosa, esta
graça se dignou consolar o vosso coração desolado,
a pedido da própria Mãe de Deus. Mas, por que não
me olhais nos olhos? Ousai olhar-me sem temor, Deus
está conosco.
Depois destas palavras, levantei os olhos para
o rosto e um medo maior ainda tomou posse de mim.
Imaginai-vos no meio do sol, na claridade mais forte
de seus raios de meio-dia, o rosto de um homem que
vos fala. Vedes o movimento de seus lábios, a ex­
pressão cambiante de seus olhos, vós ouvis o som
de sua voz, sentis a pressão de suas mãos nos vos­
sos ombros mas, ao mesmo tempo, não percebeis
nem suas mãos, nem seu corpo, nem o vosso, nada
senão uma esplendorosa luz se propagando ao redor,
a uma distância de muitos metros, iluminando a neve
que recobria a campina e caía sobre o grande staretz
e sobre mim. Pode-se representar a situação na qual
me encontrava então?
- Que sentis agora?, pergutou o staretz.
- Sinto-me extraordinariamente bem.
- Como "bem"? Que quereis dizer por "bem"?
- Minha alma está cheia de um silêncio e de
uma paz inexplicável.
- Aí está, amigo de Deus, esta paz da qual o
Senhor falava quando ele dizia a seus discípulos:

180
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"Deixo-vos a minha paz, a minha paz vos dou; não
vo-la dou como o mundo a dá. Se fôsseis do mundo,
o mundo amaria o que era seu; mas porque não sois
do mundo e minha escolha vos separou do mundo, o
mundo por isso vos odeia. Eu vos disse tais coisas
pera terdes paz em mim ( ... ) tende coragem: eu venci
o mundo" (Jo 14,27;15,19;16,33). É a esses homens
eleitos por Deus, mas odiados pelo mundo. que Deus
dá a paz que sentis agora, "a paz de Deus, diz o Após­
tolo, que excede toda a compreensão" (FI 4,7). O
Apóstolo denomina-a assim porque nenhuma palavra
pode exprimir o bem-estar espiritual que ela faz nas­
cer nos corações dos homens em que o Senhor a im­
planta. Ele mesmo a chama sua paz (Jo 14,27). Fruto
de generosidade de Cristo e não deste mundo, nenhu­
ma felicidade terrena a pode dar. Enviada do alto pelo
próprio Deus, ela é,a paz de Deus... Que sentis agora?
- Uma delícia extraordinária.
- É a delícia de que fala a Escritura. "Eles ficam
saciados com a gordura de tua casa, tu os embriagas
com um rio de delícias" (SI 36[35] ,9). Ela transborda
do nosso coração, derrama-se em nossas veias, traz­
nos uma sensação de delícia in�xprimível... Que sen­
tis, ainda?
- Uma extraordinária alegria em todo o meu co­
ração.
- Quando o Espírito Santo desce sobre o ho­
mem com a plenitude de seus dons, a alma humana
fica cheia de uma alegria indescritível. É dessa alegria
que o Senhor fala no evangelho quando diz: "Quando
uma mulher está para dar à luz, entristece-se porque
e sua hora chegou; quando, porém, nasce a criança
ela já não se lembra dos sofrimentos, pela alegria
de ter vindo ao mundo um homem. Também vós, ago­
ra, estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso
coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa ale­
gria" (Jo 16,21-22).
Por grande e consoladora que ela seja, a alegria
que sentis neste momento nada é, em comparação

181
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com aquela da qual o Senhor disse através de seu
Apóstolo: "o que os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e o coração do homem não percebeu, isso
Deus preparou para aqueles que o amam" (1Cor 2,9).
O que nos é concedido presentemente é apenas uma
antecipação dessa alegria suprema. E, se desde ago­
ra, nós sentimos deleite, júbilo e bem-estar, que dizer
dessa outra alegria que nos está reservada no céu,
depois de ter, aqui na terra, chorado? Já haveis cho­
rado bastante em vossa vida e vede que consolação
na alegria o Senhor vos dá aqui na terra. Cabe a nós,
agora, amigo de Deus, trabalhar com todas as nossas
forças para subirmos de glória em glória "até que
alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno co­
nhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem
Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo"
(Ef 4,13). "Os que põem a sua esperança em Javé
renovam as suas forças, formam asas como as águias,
correm e não se fatigam, caminham e não se can­
sam" (Is 40,31). "Eles caminham de terraço em terra­
ço e Deus lhes aparece em Sião" (SI 84[83],8). 1: en­
tão que a nossa alegria atual, pequena e breve, se
manifestará em toda a sua plenitude e ninguém nos
poderá arrebatá-la, repletos como estaremos de in­
dizíveis gozos celestes. Que sentis, ainda, amigo de
Deus?
- Um calor extraordinário.
- Como, um calor? Não estamos na floresta, em
plena neve? A neve está sob nossos pés, estamos
cobertos dela e ela continua caindo... De que calor
se trata?
- Um calor semelhante ao de um banho de va­
por.
- E o cheiro é como no banho?
- Oh, não! Nada sobre a terra se pode com-
parar a esse perfume. No tempo em que a minha mãe
vivia, ainda gostava de dançar e quando eu ia a um
baile, ela me aspergia perfumes que comprava nas

182
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melhores lojas de Kasan e pagava muito caro. O seu
odor não é comparável a estes aromas.
O padre Serafim sorriu.
- Eu sei, meu amigo, tanto quanto vós, e é de
propósito que vos interrogo. 1: bem verdade, nenhum
perfume terreno pode ser comparado ao bom odor
que respiramos neste momento, o bom odor do
Espírito Santo. O que pode, sobre a terra, ser-lhe
comparado? Dissestes, ainda há pouco, que fazia ca­
lor, como no banho. Mas olhai, a neve que nos cobre,
a vós e a mim, não se funde, assim como a que está
sob os nossos pés. O calor não está no ar, mas no
nosso interior. 1: este calor que o Espírito Santo nos
faz pedir na oração: "Que teu Espírito Santo nos
aqueça!" Este calor permitia aos eremitas, homens
e mulheres, não temerem o frio do inverno, envolvi­
dos, como estavaITT, como que num manto de peles,
numa veste tecida pelo Espírito Santo.
1: assim que, na realidade, deveria ser, habitando
a graça divina no mais profundo de nós, em nosso
coração. O Senhor disse: u O Reino de Deus está den­
tro de vós" (Lc 17,21). Por Reino dos Céus ele enten­
de a graça do Espírito Santo. Es-te Reino de Deus está
em nós, agora. O Espírito Santo nos ilumina e nos
aquece. Enche o ar de perfumes variados, alegra os
nossos sentidos, sacia o nosso coração com alegria
Indizível. O nosso estado atual é semelhante àquele
do qual fala o Apóstolo: "Porquanto o Reino de Deus
não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz
e alegria no Espírito Santo" (Rm 14,17). A nossa fé
não se baseia em palavras de sabedoria terrena, mas
na manifestação do poderio do Espírito. Trata-se do
estado em que estamos atualmente e que o Senhor
tinha em vista quando dizia: "Em verdade vos digo
que estão aqui presentes alguns que não provarão a
morte até que vejam o Reino de Deus chegando com
poder" (Me 9,1).
Eis aí, amigo de Deus, a alegria incomparável
que o Senhor se dignou conceder-nos. Eis o que é estar

183
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• nà plenitude do Espírito Santo". 1: isto o que entende
São Macário, o Egípcio, quando escreve: Eu mesmo
11

estive na plenitude do Espírito Santo". Humildes


quanto somos, o Senhor nos encheu da plenitude de
seu Espírito. Parece-me que, a partir deste momento,
não tereis de me interrogar mais sobre a maneira co­
mo se manifesta, no homem, a presença da graça do
Espírito Santo.
Esta manifestação permanecerá para sempre em
vossa memória.
- Não sei, Padre, se Deus me tornará digno de
me lembrar dela sempre com tanta nitidez como
agora.

Difusão da mensagem

- E eu, respondeu o staretz, julgo que, pelo con­


trário, Deus vos ajudará a guardar todas estas coisas
para sempre, em vossa memória. De outro modo ele
não teiria sido tão rapidamente tocado pela humilde
oração do miserável Serafim e não teria atendido tão
depressa o seu desejo. Além do mais, não é somente
a vós que é dado ver a manifestação desta graça
mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro. Vós
mesmo assegurai-vos, sereis útil a outros.

Monge e leigo

Quanto a nossos estados diferentes, de monge e


leigo, não vos preocupeis. Deus procura aqima de tu­
do um coração cheio de fé nele e em seu Filho úni­
co, em resposta à qual envia do alto a graça do Espí­
rito Santo. O Senhor procura um coração repleto de
amor por ele e pelo próximo - aí está um trono so­
bre o qual ele gosta de sentar-se e onde ele apa­
rece na plenitude de sua glória. Meu filho, dá-me o
11

teu coração, e o resto eu te darei por acréscimo"


184
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(Pr 23,26). O coração do homem é capaz de conter o
Reino dos Céus. Buscai, em primeiro lugar, o Reino
11

de Deus e a sua justiça, diz o Senhor a seus discí­


pulos, e todas estas coisas vos serão acrescentadas,
pois, Deus, vosso Pai, sabe do que precisais" (Mt 6,33).

Legitimidade dos bens terrenos

O Senhor não nos proíbe o gozo dos bens ter­


renos, e diz ele próprio que, dada a nossa situação
aqui na terra, deles precisamos para dar tranqüili­
dade às nossas existências e tornar mais cômodo e
fácil o caminho para a nossa pátria celeste. E o após­
tolo Pedro acha que nada há melhor no mundo do
que a piedade unida ao contentamento. A Santa Igre­
ja pede que isso seja dado. Apesar das penas, as
desgraças, e as necessidades serem inseparáveis da
nossa vida na terra, o Senhor jamais quis que os
cuidados e as misérias constituíssem toda a trama
dela. E, por isso, pela boca do Apóstolo nos manda
carregar os fardos uns dos outros, a fim de obedecer
a Cristo que pessoalmente nos deu o preceito de nos
amarmos mutuamente. Reconfortados por esse amor,
a caminhada dolorosa pela via estreita que leva à
nossa pátria celeste nos será facilitada. Não desceu
o Senhor do céu não para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida pela redenção de muitos?
(Mt 20,28; Me 10,45).
Atuai do mesmo modo, amigo de Deus e, cons­
ciente da graça da qual fostes visivelmente objeto,
comunicai-a a todo o homem desejoso da sua sal­
vação.

Atividade missionária

A colheita é grande", diz o Senhor, "mas pou­


11

cos os operários" (Mt 9,37-38; Lc 10,2). Tendo rece-

185
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bido os dons da graça, somos chamados a trabalhar
colhendo as espigas da salvação do nosso próximo,
para os recolhermos no celeiro, em grande número,
no Reino de Deus, a fim de que produzam seus fru­
tos, uns trinta, outros sessenta e outros cem. Este­
jamos atentos para não sermos condenados com o
servo preguiçoso que enterrou o dinheiro a ele con­
fiado, mas tratemos de imitar os servos fiéis C!Ue de­
volveram ao Mestre um, em vez de dois talentos,
quatro, e o outro, em vez de cinco talentos, dez.
Quanto à misericórdia divina, não se pode duvidar de­
la: vede vós mesmo como as palavras de Deus, ditas
por um profeta, se realizaram por nós. "Sou, por
acaso, Deus apenas de perto..." (Jr 23,23).

O poder da fé

Mal eu, miserável, fiz o sinal da cruz, mal no


meu coração desejei que o Senhor nos tornasse dig­
nos de ver a sua misericórdia, em toda a sua pleni­
tude e, imediatamente, ele se apressou a atender o
meu desejo. Não o digo para me glorificar nem para
vos mostrar a minha importância e vos tornar ciu­
mento ou para que penseis que é pelo fato de eu
ser monge enquanto sois leigo, amigo de Deus, não.
"O Senhor está próximo daqueles que o invocam. Ele
não faz acepção de pessoas. O Pai ama o Filho e a
todos reconciliou em suas mãos".
Contanto que nós amemos a ele, nosso Pai ce­
leste, como filhos, o Senhor escuta tanto um monge
quanto um homem do mundo, um simples cristão,
contanto que ambos sejam ortodoxos (tenham a ver­
dadeira fé), amem a Deus do fundo do seu coração
e possuam uma fé "semelhante a um grão de mos­
tarda" (Mt 13,31-32; Me 4,30-32; Lc 13,18-19), ambos
alçaremos montanhas (Me 11,23). "Como pode um ho­
mem só perseguir mil, e dois porem em fuga a dez
mll" (Dt 32,30)? O próprio Senhor disse: "Tudo é pos-
186
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sível para aquele que crê!" (Me 9,23). E o santo após­
tolo Paulo escreve: "Tudo posso naquele que me for­
talece" (FI 4,13). Mais maravilhosas são as palavras
do Senhor referindo-se aos que crêem nele: "Quem
crê em mim fará as obras que faço e fará maiores
do que elas, porque vou para o Pai. E o que pedirdes
em meu nome fá-lo-ei, a fim de que o Pai seja glorifi­
cado no Filho. Se me pedirdes algo em meu nome,
eu o farei" (Jo 14,12-14). "Até agora, nada pedistes
em meu nome; pedi e recebereis para que a vossa
alegria seja completa" (Jo 16,24).
Assim é, amigo de Deus. Tudo o que pedirdes a
Deus, obtereis, contanto que o vosso pedido seja para
a glória de Deus ou para o bem de vosso próximo.
Pois Deus não separa o bem do próximo da sua glória.
"Tudo o que fizerdes ao menor de entre vós é a mim
que o fareis" (Ml 10,40; Me 9,37; Lc 9,48). Deveis,
pois, estar seguro de que o Senhor atenderá vossos
pedidos; contanto que sejam feitos para edificação e
utilidade do vosso próximo. Todavia, mesmo que seja
para vossa própria necessidade ou utilidade ou pro­
veito que peçais qualquer coi�a. não tenhais dúvida
alguma de que Deus vo-la concederá se houver ver­
dadeiramente necessidade, pois ele ama os que o
amam. É bom para todos. A sua misericórdia esten­
de-se também aqueles que não invocam o seu nome.
Quanto mais não fará ele a vontade daqueles que o
temem. Ele atenderá todos os vossos pedidos, ele não
vo-los recusará por causa da vossa fé ortodoxa no
Cristo Salvador, pois ele não abandona o cetro dos
Justos nas mãos dos pecadores (SI 125[ 124] ,3)2 e fará
certamente a vontade de Davi, seu servidor. Todavia
ele poderá perguntar-vos por que foi incomodado sem

2 As referências aqui feitas são, freqüentemente, difíceis de


determinar. São Serafim, cujo espírito estava "Imerso• na Sagrada
Eecrltura (tal como, segundo a sua expressão, o espírito de cada
homem deveria estar), citava de memória e a tradução do eslavõnlo,
que ele emprega, não corresponde sempre exatamente à versão da
Blblla de Jerusalém!

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necessidade e por que haveis solicitado aquilo de que
facilmente teríeis podido abster-vos.
Pois bem, amigo de Deus, agora eu vos disse
tudo e, na realidade, mostrei-vos tudo o que o Senhor
e sua Santa Mãe quiseram mostrar-vos por intermé­
dio do miserável Serafim. Ide então em paz. Que o
Senhor e sua Santa Mãe estejam convosco agora e
sempre e pelos séculos dos séculos. Amém. Ide em
paz.
Ao longo de todo o tempo que durou a conversa,
desde o momento em que o rosto do padre Serafim
se iluminou, a visão de luz continuava e a sua pos­
tura, enquanto falava, desde o começo desta narra­
tiva até o fim, permanecia imutável. Quanto ao es­
plendor indizível da luz que irradiava, eu a vi com
meus próprios olhos e estou pronto a confirmá-lo sob
juramento.

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NOTA DE si;RGIO NILUS

Escritor ao qual o manuscrito de Motovilov


foi entregue, setenta e dois anos mais tarde,
pela viúva deste último.

Aqui termina o manuscrito de Motovilov. Não


compete a mim divulgar e sublinhar a importância
deste escrito que, aliás, não tem necessidade de co­
mentários, testemunhando por si mesmo com uma
força que nenhum palavreado deste mundo consegui-
ria abalar. _,
Mas valia a pena ver em que estado me foram
entregues os papéis de Motovilov, que encerravam
este tesouro! Cobertos de poeira, de penas de pom­
bos e estorninhos, de excremento de aves, estavam
misturados com faturas, notas discriminativas de con­
tabilidade agrícola sem interesse-, cópias de deman­
das administrativas e cartas particulares, empastela­
das em completa desordem, pesando tudo mais de
c:uarenta quilos. Os papéis em mau estado, estavam
cobertos de uma escrita cursiva a tal ponto ilegível
que eu fiquei apavorado. Como compreender algo
dlaso?
Tentando orientar-me neste caos, encontrei nume­
rosas dificuldades - especialmente a escrita era,
para mim, uma pedra de tropeço - e quase desespe­
rei. Mas, de longe em longe, no meio da miscelâ­
nea, brilhava, como uma centelha, uma frase meio
decifrada: "O Padre Serafim me dizia... " Dizia o quê?
O que escondiam esses Incompreensíveis hlerógrl­
tos? Eu ficava desolado.
Uma tarde, lembro-me, após um dia passado num
trabalho encarniçado e Infrutuoso, não o suportando

189
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mais, gritei: "Padre Serafim, é possível que tenhas
feito vir, de um canto perdido como Divéyevo os ma­
nuscritos do teu 'pequeno servidor' (Motovilov) para
que, indecifrados, voltem ao esquecimento?" A invo­
cação partiu do fundo do coração. No dia seguinte,
pela manhã, tendo-me lançado à triagem dos papéis,
caí imediatamente sobre este manuscrito e recebi, ao
mesmo tempo, a faculdade de ler a escrita de Mo­
tovilov.
1: fácil imaginar a minha alegria e quão viva­
mente fui impressionado pelas seguintes palavras que
pude ler:
"E eu julgo, respondeu o staretz, que Deus vos
ajudará a conservar estas coisas na memória. De ou­
tro modo, não teria sido tão rapidamente tocado pela
humilde oração do miserável Serafim e não teria aten­
dido imediatamente o seu desejo. Tanto mais que não
é apenas a vós que é dado ver a manifestação desta
graça mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro".
Durante setenta longos anos este tesouro per­
maneceu enterrado nos sótãos, sob um montão hete­
róclito de velha papelaria - e eis que verá a luz.
Quando? Na vigília da canonização daquele a quem a
Igreja Ortodoxa começa já a dirigir-se exclamando:
"Padre Serafim, pede a Deus por nós!"
19 de maio de 1903

190
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111
AS INSTRUCÕES ESPIRITUAIS

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Símbolo vivo, o staretz quase nada escreveu. No
entanto, ficaram-nos dele algumas Instruções Espiri­
tuais. Primeiramente inclusas numa biografia manus­
crita, redigida em 1837 por um monge de Sarov, Sér­
gio, não foram impr�ssas senão dois anos mais tarde,
como apêndice a um pequeno opúsculo Intitulado:
"Um breve resumo da vida de Staretz do Deserto de
Sarov, Marcos, Monge e Anacoreta". (Trata-se de um
dos dois eremitas, contemporâneos do padre Serafim
que, ao mesmo tempo que ele, viveram na floresta
de Sarov). Quanto à biografia do- santo, propriamente
dita, apenas em 1841, oito anos depois da sua morte,
ele recebeu, após numerosas diligências feitas pelo
metropolita de Moscou, Filarete, o lmprimatur do San­
to Sínodo.
Foi também este prelado que, desejoso de apres­
sar a sua aparição, revisou as Instruções Espirituais,
como o testemunha uma carta escrita ao seu vigário
e amigo, o arquimandrita Antônio, Abade da Laura da
Santíssima Trindade-São Sérgio.
"Envio-lhe, Padre Vigário, as Instruções Espirituais
do padre Serafim, revistas por mim. Tomei a liberda­
de de mudar e de completar certas expressões, em
parte para que, gramaticalmente, estejam mais corre­
tas e, também, para evitar que pensamentos não ex­
pressos com bastante clareza ou expressos de modo
pouco comum sejam mal interpretados. Examine e
193
7 - ln1truçlies ...
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diga-me se se pode acreditar que eu não tenha de­
formado em nada o pensamento do staretz."
Infelizmente, tendo-sé perdido o original, é-nos
impossível fazer a comparação. 1: pena. O grande me­
tropolita estava, no entanto, bem intencionado. O San­
to Sínodo provavelmente não teria dado o imprimatur
às Instruções tais como elas tinham sido redigidas
por Batioushka Serafim.
No livro do monge Sérgio (quarta edição, Mos­
cou, 1856), estas Instruções são em número de trinta
e três. Uma biografia do santo, compilada por N. Le­
vitsky e editada em 1905 em Moscou, pelo Mosteiro
de São Panteleimon do monte Atos, cita trinta e seis.
Nós tomamos a liberdade de abreviar ligeiramen­
te estes textos, e, a fim de evitar repetições, remeter
o leitor aos capítulos precedentes, desta obra, em que
as mesmas idéias já foram expostas. Em contrapar­
tida, em certas passagens nós completamos as "Ins­
truções" com ensinamentos do staretz, tais como os
encontramos algures, em particular nos capítulos XVI
e XVII do livro de N. Levitsky (pp. 166-199).
Pelo elevado número de citações, vê-se que o es­
pírito do staretz "nadava" efetivamente (segundo uma
expressão que lhe era cara) nas Sagradas Escrituras.
A numeração dos salmos é feita segundo a Bíblia
grega que São Serafim seguia, mas a tradução é to­
mada da Bíblia de Jerusalém, à parte certas expres­
sões que assinalamos sempre.

194
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DEUS

Deus é um fogo que reanima e inflama os cora­


ções e as almas. Se sentirmos nos nossos corações
o frio que vem do demônio - porque o demônio é
frio - recorramos ao Senhor e ele virá reaquecer o
nosso coração com um amor perfeito, não apenas pa­
ra com ele, mas também para com o próximo. E o
frio do demônio fugirá ante a sua face.
Lá, onde está Deus, não há nenhum mal...
Deus nos mostra o seu amor pelo gênero huma­
no não apenas quando nós fazemos o bem, mas tam­
bém quando o ofendemos merecendo a sua cólera ...
Não digas que Deus é justo·, ensina santo Isaac
(o Sírio)... Davi chamava-lhe "justo", mas seu Filho
nos mostrou que ele é, antes, bom e misericordioso.
Onde está a sua justiça? Nós éramos pecadores e
Cristo morreu por nós (Horn. 90).

Razões pelas quais Cristo velo a este mundo

1) O amor de Deus pelo gênero humano. "Sim,


Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho
único, para que todo o que nele crer não pereça, mas
tenha a vida eterna" (Jo 3,16).
2) A restauração, no homem decaído, da imagem
divina e da conformidade com essa imagem, como a
Igreja canta (Primeiro Cânon de Natal, cant. 1).

195
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3) A salvação das almas. "Pois Deus não enviou
o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas
para que o mundo seja salvo por ele" (Jo 3,17).

Sobre a fé
Antes de mais nada é preciso crer em Deus, "Pois
(...) que ele existe e recompensa os que o procuram"
(Hb 11,6). A fé, segundo Santo Antíoco, é o começo
da nossa união com Deus... A fé sem as obras é mor­
ta (Tg 2,26). As obras da fé são: o amor, a paz, a
longanimidade, a misericórdia, a humildade, o carre­
gar a cruz e a vida segundo o Espírito. Somente uma
tal fé conta. Não pode haver verdadeira fé sem obras.

Sobre a esperança

Todos aqueles que esperam firmemente em Deus


são elevados em direção a ele e iluminados pela cla­
ridade da eterna luz.
Se o homem abandona seus próprios negócios
pelo amor de Deus e para fazer o bem, sabendo que
Deus não o abandonará, sua esperança é sábia e
verdadeira. Mas se o homem se ocupa pessoalmente
de seus negócios e se volta para Deus apenas quan­
do a desgraça o atinge, e ao ver que não pode sair
dela pelas próprias forças, uma tal esperança é
artificial e vã. A verdadeira esperança busca, acima
de tudo, o reino de Deus, persuadida de que tudo
aquilo que é necessário à vida aqui na terra será dado
por acréscimo. O coração não pode estar em paz an­
tes de ter adquirido esta esperança.

Sobre o amor de Deus

Aquele que atingiu o perfeito amor de Deus vive


neste mundo como se nele não vivesse; porquanto
196
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ele se considera como estranho àquilo que vê, espe­
rando com paciência o invisível... Atraído para Deus,
apenas aspira a contemplá-lo...

Contra a Inquietação Inútil

1: próprio do homem pusilânime e de pouca fé


Inquietar-se em demasia com os negócios deste mun­
do... Se não remetermos a Deus os bens de que go­
zamos neste mundo, como poderemos esperar dele os
bens prometidos no outro? Busquemos em primeiro
lugar "o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas n (Mt 6,33).
1: melhor para nós desprezarmos o que não nos
diz respeito, quer dizer, aquilo que é temporário e
passageiro, e desejarmos o que nos compete, isto é,
a Incorruptibilidade e a imortalidade; porque então
seremos dignos da visão de Deus face a face, tal co­
mo os Apóstolos durante a Transfiguração divina e,
analogamente aos espíritos celestes, conheceremos
a união supra-racional com Deus; visto que seremos
·semelhantes aos anjos" e "filhos de Deus, sendo fi­
lhos da ressurreição" (Lc 20,36).

Acerca do cuidado da alma

O corpo do homem é semelhante a um círio. O


círio deve consumir-se, o homem deve morrer. Mas
a alma é imortal e nós devemos fazer mais caso da
nossa alma do que do nosso corpo. "Com efeito, que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder
a sua alma? Ou que pode o homem dar em troca da
própria alma?" (Me 8,36-37; Mt 16,26).
"Nós consideramos que a alma é mais preciosa
do que tudo, diz Macário, o Grande, porque Deus, den­
tre todas as criaturas, só não desdenhou unir-se ao
homem, que amou mais do que a qualquer outra crla-
197
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tura (Macário, o Grande, Hom. Sobre a liberdade e a
inteligência, cap. XXXII). Portanto, devemos importar­
nos, sobretudo, com a nossa alma e fortalecer o corpo
à medida que ele deve contribuir para o fortalecimen­
to do espírito.

De que é necessário muni; a alma?

- Da palavra de Deus, porque a palavra de Deus,


como diz Gregório, o Teólogo, é o pão dos anjos de
que se alimentam as almas sedentas de Deus.
É também preciso munir a alma de conhecimen­
tos concernentes à Igreja: de como ela foi preser­
vada desde o início até nossos dias, do que ela teve
de sofrer. É preciso conhecermos estas coisas não
com a intenção de governarmos os homens, mas pa­
ra o caso de se ter de responder sobre questões
acerca das quais pudessem solicitar-nos. Mas, sobre­
tudo, há que fazê-lo por causa de nós mesmos, a fim
de adquirirmos a paz da alma, como diz o salmista:
u Paz àqueles que amam teus preceitos, Senhor", ou
u É grande a paz dos que amam a tua lei" (SI 118,165).

Acerca da paz da a/ma1

Nada há acima da paz em Cristo. Por ela são des­


truídos os assaltos dos espíritos que andam pelos

1 Tocamos aqui o coração do ensinamento do staretz, que pode


resumir-se nestas duas afirmações:
1) O fim da vida cristã está em adquirir o Espírito Santo;
2) Adquire a Paz Interior, e almas, aos milhares, encontrarão,
Junto de ti a Salvação.
Tudo se acha subordinado à aquisição desta paz: a adesão à
Igreja, a "verdadeira" esperança, a ausência das paixões, o perdão
das ofensas, a abstenção do juízo acerca do próximo e, sobretudo,
o silêncio Interior.
Observemos o número de vezes que a palavra Paz reaparece
nestas Instruções Espirituais.

198
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ares e na terra. Pois o nosso combate não é contra
11

o sangue nem contra a carne, mas contra os principa­


dos, contra as autoridades, contra os dominadores
deste mundo de trevas, contra os espíritos do Mal,
que povoam as regiões celestiais" (Ef 6, 12).
Um homem sensato dirige seu espírito para o
interior de si mesmo e o faz descer ao seu coração.
Então a graça de Deus o ilumina, e ele se encontra
num estado tranqüilo e supratranqüilo: tranqüilo, por­
que a sua consciência está em paz; supratranqüilo,
porque no interior de si contempla a graça do Espíri­
to Santo...
Podemos deixar de nos alegrar ao ver, com os
próprios olhos da carne, o sol? Tanto maior é a nos­
sa alegria quando o nosso espírito, com os olhos da
alma veja Cristo, Sol de Justiça. Partilhamos então a
alegria dos anjos. O Apóstolo disse a propósito: a
11

nossa cidade está nos céus" (FI 3,20).


Aquele que caminha na paz apanha, como a co­
mida com a colher, os dons da graça.
Os Padres, estando na paz e na graça de Deus,
viviam até muito velhos.
Quando- um homem adquire �a paz, pode derramar
sobre outros a luz que ilumina o espírito ... Mas ele
deve lembrar-se das palavras do Senhor: Hipócrita,
11

tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem


para tirar o cisco do olho do teu irmão" (Mt 7,5).
Esta paz, Nosso Senhor Jesus Cristo a deixou a
seus discípulos antes de sua morte, como inestimá­
vel tesouro, dizendo: Deixo-vos a paz, a minha paz
11

vos dou" (Jo 14,27). O Apóstolo também fala disso


nestes termos: Então a paz de Deus, que excede to­
11

da a compreensão, guardará os vossos corações e


pensamentos em Jesus Cristo" (FI 4,7).
Se o homem não despreza as leis deste mundo
não pode ter a paz.
A paz adquire-se mediante as tribulações. Aque­
le que quer agradar a Deus deve atravessar multas
provas.

199
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Nada contribui mais para a paz interior do que
o silêncio e, se possível, a conversação incessante
consigo mesmo e rara com os outros.
Devemos portanto concentrar nossos pensamen­
tos, nossos desejos e nossas ações na aquisição da
paz de Deus e gritar incessantemente com a Igreja:
"Senhor! Dá-nos a paz! "2

Como conservar a paz da alma?


1: preciso aplicarmo-nos com todas as forças a
salvaguardar a paz da alma e a não nos indignarmos
quando os outros nos ofendem. 1: preciso abstermo­
nos de toda a cólera e preservar a inteligência e o
coração de qualquer movimento inconsiderado.
Por Gregório, o Taumaturgo, foi-nos dado exem­
plo de moderação. Aproximou-se dele, numa praça pú­
blica, uma mulher de má vida que lhe pedia o preço
do adultério que ele teria cometido com ela. Em vez
de se zangar, ele disse tranqüilamente a seu amigo:
Dê-lhe o que ela pede. Tendo recebido o dinheiro, a
mulher foi derrubada pelo demônio. Mas o santo ex­
pulsou o demônio pela oração (Menes, 17 de nov. Vida
de São Gregório).
Se for impossível não se indignar, é necessário
ao menos conter a língua...
Para salvaguardar a paz é preciso banir a melan­
colia e esforçarmo-nos por ter o espírito alegre...
Quando um homem não pode satisfazer às suas
necessidades, é-lhe difícil vencer o desalento. Mas
isto diz respeito às almas fracas.
Para salvaguardar a paz interior é preciso evitar
julgar os outros.
1: preciso entrar em si mesmo e perguntar-se: "On­
de estou?"
2 No decorrer da liturgia, a Igreja, servindo-se da voz do sacer­
dote, repete Incansavelmente • A paz seja convoacol"

200
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Há que evitar que nossos sentidos, especialmen­
te a vista, nos tragam distrações: porquanto os dons
da graça não tocam senão àqueles que oram e se preo­
cupam com a sua alma.

Sobre a vigilância do coração


Devemos velar por preservar o nosso coração de
pensamentos e de impressões indecentes. "Guarda o
teu coração com todo o cuidado, porque dele provém
a vida" (Pr 4,23). Assim nasce, no coração, a pureza.
"Bem-aventurados os puros de coração, porque verão
a Deus" (Mt 5,8).
O que de bom entrou em nosso coração, não de­
vemos vertê-lo inutilmente no exterior: pois o que foi
acumulado não pode estar ao abrigo dos inimigos vi­
síveis e invisíveis a •não ser que o guardemos, como
tesouro, no fundo do coração.
O coração, reaquecido pelo fogo divino, ferve
quando está cheio de água viva. Se esta água foi
vertida no exterior, o coração esfria e o homem fica
como que gelado.

Sobre as tentações
Devemos libertar-nos de qualquer pensamento im­
puro, sobretudo oferecendo a Deus nossas orações,
a fim de não misturar o fedor aos aromas.
Devemos rejeitar imediatamente os pensamentos
que tentam ... dando especial atenção à guloseima, à
avareza e à vaidade...
Se nos opusermos a que o demônio nos segrede,
fazemos bem.
O demônio apenas pode influenciar os apaixona­
dos. Não pode aproximar-se a não ser do exterior da­
queles que se purificaram das suas paixões.
Pode o homem, na sua Juventude, evitar ser per­
turbado por tentações carnais? Ele pode orar ao Se-

201
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nhor para que se extinga, desde o Início, a centelha
do vício...

Acerca do discernimento dos espíritos

Quando o homem recebe em seu coração algo de


divino ele se regozija; quando é algo de demoníaco
- fica perturbado.

Acerca da contrição

Aquele que deseja a salvação deve ter o coração


pronto para a contrição e para o arrependimento:
"Sacrifício a Deus é um coração contrito, coração
contrito e esmagado, ó Deus, tu não desprezas" (SI
50,19).
Com o espírito contrito, o homem pode tranqüi­
lamente atravessar as ciladas do demônio cuja inteira
ambição é perturbar-lhe o espírito e nele semear o
joio, segundo as palavras evangélicas: "Senhor, não
semeaste boa semente no teu campo? Como então
está cheio de joio?" (Mt 13,27-28). Mas se o homem
conservar um coração humilde e pensamentos pací­
ficos, qualquer ataque do demônio fica sem efeito.
A contrição começa pelo temor de Deus, diz o
mártir Bonifácio (Menes 19 de dez.). Deste temor nas­
ce a atenção, mãe da paz Interior e da consciência que
permite à alma ver, tal como numa água pura e lisa
a sua própria fealdade...
Durante toda a nossa vida não fazemos senão
ofender a majestade de Deus. Devemos pois humilhar­
nos perante ele, pedindo-lhe o perdão das nossas
faltas.
Um homem, caído depois de ter estado na graça,
pode reerguer-se em seguida? Sim.
Exemplo - o anacoreta que, tendo ido buscar
água à fonte, encontrou uma mulher com a qual
202
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caiu no pecado. De volta à sua casa, dando-se conta
da falta cometida, continuou todavia a viver como as­
ceta, apesar dos conselhos do maligno que se esfor­
çava por desviá-lo do seu caminho sob pretexto de
que havia pecado. Deus deu a conhecer este caso a
um ancião, encarregando-o de ir louvar o jovem mon­
ge por sua vitória sobre o demônio.
Quando sinceramente nos arrependemos das nos­
sas faltas voltando-nos de todo o coração para Nos­
so Senhor Jesus Cristo, ele se regozija e convida à
festa todos os espíritos amigos, mostrando-lhe a drac­
ma reencontrada...
Não hesitemos, pois, em nos voltarmos para nos­
so misericordioso Senhor, sem nos darmos nem ao
descuido nem ao desespero. O desespero constitui a
maior alegria do demônio. 1: o pecado mortal de que
fala a Escritura (1Jo 5,16).
A contrição consiste, entre outras coisas, em não
recair no mesmo pecado.

Da oração

Aqueles que decidiram verdadeiramente servir a


Deus devem exercitar-se em guardar, constantemente
a sua lembrança no coração e em orar incessantemen­
te a Jesus Cristo repetindo Interiormente: Senhor Je­
sus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, peca­
dor ...
Agindo assim, preservando-nos das distrações,
conservando a consciência em paz, podemos aproxi­
mar-nos de Deus e unir-nos a ele. Porquanto, diz San­
to Isaac o Sírio, à parte a oração ininterrupta, não há
outro meio de nos aproximarmos de Deus (Horn. 69).
Na igreja, é bom conservar os olhos fechados,
para evitar as distrações; podemos abri-los se sentir­
mos sonolência; convém, então, fixar o olhar em um
ícone ou em um círio aceso diante dele.

203
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Se durante a oração o nosso espírito se dissipa,
é necessário humilharmo-nos perante Deus e pedir
perdão... pois, como diz São Macário "o inimigo não
aspira senão a desviar o nosso pensamento de Deus,
do seu temor e do seu amor" (Horn. 2 cap. XV).
Quando a inteligência e o coração estão unidos
na oração e a alma por coisa alguma é perturbada,
então o coração se enche de calor espiritual e a luz
de Cristo inunda de paz e de alegria todo o homem
Interior.

Acerca da luz de Cristo


Para receber no seu coração a luz de Cristo há
que, tanto quanto possível, desprender-se de todos os
objetos visíveis. Tendo preliminarmente purificado a
alma mediante a contrição e as boas obras, tendo,
impregnados de fé em Cristo crucificado, fechados
nossos olhos de carne, mergulhemos nosso espírito no
coração para bradar pelo nome de Nosso Senhor Je­
sus Cristo; então à medida de sua assiduidade e do
seu fervor para com o Bem-amado, o homem encontra
no nome invocado consolação e doçura, o que o incita
a procurar um conhecimento mais alto.
Quando por tais exercícios o espírito se enraizou
no coração, então a luz de Cristo vem brilhar no in­
terior, iluminando a alma com sua divina claridade,
como diz o profeta Malaquias: Mas, para vós que
11

temeis o meu nome, brilhará o sol de justiça, que tem


a cura em seus raios" (MI 3,20). Esta luz é, também,
a vida segundo a palavra do evangelho: Nele estava
11

a vida e a vida era a luz dos homens" (Jo 1,4).


Quando o homem contempla no interior de si es­
ta luz eterna, esquece tudo o que é carnal, esquece-se
de si mesmo e quereria esconder-se no mais fundo
da terra, a fim de não ser privado deste bem único
- Deus.

204
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Acerca da atenção

Aquele que segue a via da atenção não deve fiar­


se unicamente do seu entendimento, mas deve refe­
rir-se às Escrituras e comparar os movimentos do seu
coração e sua vida à vida e atividade dos ascetas que
o precederam. � assim mais fácil preservar-se do ma­
ligno e ver claramente a verdade.
O espírito de um homem atento é comparável a
uma sentinela que vigia sobre a Jerusalém interior.
A sua atenção não escapa uque o vosso adversário,
o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando
quem devorar (1Pd 5,8), nem aqueles uque retesam
n

o arco, ajustando a flecha na corda, para atirar oculta­


n
mente nos corações retos (SI, 10,2). Ele segue o en­
sinamento do apóstolo Paulo que diz: uPor isso de­
veis vestir a armadura de Deus, para poderdes resis­
n
tir no dia mau (Ef 6,13).
Aquele que segue esta via não deve dar atenção
aos boatos que correm nem ocupar-se das tarefas de
outro ... mas orar ao Senhor: uPurifica-me das faltas
n
escondidas (SI 18,13). n
uEntra em ti mesmo , dizia 'O staretz parafrasean­
do Santo Isaac o Sírio, ue repara que paixões foram
atenuadas em ti; quais se calam em conseqüência ·da
cura de tua alma; quais foram aniquiladas e te deixa­
ram completamente. Vê se uma carne firme e viva
começa a crescer sobre a úlcera da tua alma - sen­
do esta carne viva a paz interior. Vê também que
paixões ainda subsistem - corporais ou espirituais?
E como reage a tua inteligência? Ela entra em guerra
contra estas paixões ou parece não as ver? E não se
formaram novas paixões? Assim estando atento podes
conhecer a medida da saúde de tua alma n.
� preciso que o homem esteja atento ao início e
ao termo da sua vida, sendo o melo - com o que
comporta de felicidade ou de lnfellcldade - Indife­
rente.

205
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Sobre o temor de Deus

O homem que empreendeu seguir a vida da aten­


ção interior deve possuir, acima de tudo, o temor de
Deus que é o início da sabedoria, lembrando-se das
palavras do salmista: "Servi o Senhor com temor, re­
n
gozijai-vos nele com tremor 3 (SI 2, 11 ).
Ele deve seguir esta via com prudência e respei­
to pelo sagrado... "Maldito o que faz com negligência
o trabalho de Javé! n (Jr 48,10).
Aquele que teme a Deus realiza bem, por amor
a ele, tudo quanto faz.
Quanto ao diabo, não é preciso temê-lo; aquele
que teme a Deus triunfa do diabo; perante ele, o dia­
bo é impotente.
Há dois gêneros de temor: se não queres fazer
o mal, teme a Deus e não o farás; se queres fazer o
bem, teme a Deus e fá-lo-ás.
Um homem não pode adquirir o temor de Deus
antes de se desembaraçar dos cuidados deste mundo.
Liberto dos cuidados, o espírito é impelido pelo te­
mor de Deus para o amor da sua misericórdia.

Acerca do desprendimento do mundo

O temor de Deus se adquire quando o homem,


tendo-se apartado do mundo, concentra seus pensa­
mentos e seus sentimentos na lei divina mergulhando
inteiramente na contemplação de Deus e na expecta­
tiva da beatitude prometida aos santos...

Da vida ativa e contemplativa

O homem, corpo e alma, é chamado a seguir du­


pla via - a da ação e a da contemplação.
3 Tradução eslava. A Bíblla de Jerusalém traduz: "beijai seus
pés com tremor".

206
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A via ativa compreende: o jejum, a abstinência,
as vigílias, as genuflexões, a oração. • Estreita, po­
rém, é a porta e apertado o caminho que conduz à
Vida. E poucos são os que o encontram" (Mt 7,14).
A via contemplativa consiste na elevação do es­
pírito a Deus, na atenção interior, na oração pura e,
pela mediação destes exercícios, na contemplação das
coisas espirituais..
Aquele que aspira à vida contemplativa deve co­
meçar pela vida ativa... Porquanto é impossível ter
acesso à vida contemplativa sem passar pela vida
ativa.
A vida ativa serve para nos purificar de nossas
paixões... porque somente os puros podem embrenhar­
se na via da contemplação... São Gregório o Teólogo
diz: • A contemplação só não apresenta perigos para
os perfeitamente experimentados" (Horn. sobre a Pás­
coa).
1: preciso abordar a vida contemplativa com te­
mor e tremor, com um coração humilde e contrito, de­
pois de ter consultado demoradamente as Sagradas
Escrituras e, de preferência, sob a orientação de um
staretz iniciado e não com temeridade e uma vontade
própria caprichosa.4
Não é preciso abandonar a vida ativa mesmo de­
pois de ter passado, por seu intermédio, à vida con­
templativa; porquanto ela é uma contribuição para a
vida contemplativa, ajudando à sua elevação.

Da solicitude e do silêncio
Da multiplicidade das palavras
Do silêncio Interior

Cf. Primeira parte, pp. 46-49.


4 O abandono da vontade própria 6 de uma lmportlncla capital,
sobretudo para o monge. "Se você a abandonou em uma coisa mas
a guardou em uma outra, Isso quer dizer que você a guardou também
naquilo em que Julgava tê-la abandonado", diz o ataretz Serafim.

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Acerca do jejum

Cf. Primeira parte, pp. 39-40.

Das proezas ascéticas

Nada é preciso fazer de exagerado, mas tratar


de permitir ao nosso amigo, o corpo, que permaneça
fiel e concorra para o desenvolvimento das virtudes.
A via mediana é a melhor... Ao espírito é preciso
dar o que é espiritual; ao corpo, o necessário. De
modo algum há que recusar à vida social o que, legiti­
mamente, ela exige de nós: "devolvei o que é de
César a César, e o que é de Deus, a Deus" (Mt 22,21).
A um jovem noviço que lhe pedia licença para
usar um cilício e cadeias, o staretz respondia rindo:
"O que quer que eu lhe diga? Se um bebê viesse me
perguntar semelhante coisa, que lhe responderia? Um
homem que bebe e come à saciedade, que dorme
até fartar, que não pode suportar a menor reprimenda
por parte de seu superior sem cair no desencoraja­
mento, estará maduro para usar cadeias e cilício?"
Há que ser paciente para consigo mesmo e su­
portar seus próprios defeitos como se suportam os
do próximo, mas sem se deixar escorregar para a
preguiça e se esforçando constantemente por me­
lhorar.
Se comemos demasiado ou fizemos, por fraqueza
humana, algo repreensível, não nos indignemos juntan­
do um mal a outro mal, mas, conservando a paz inte­
rior, apliquemo-nos, corajosamente, a nos corrigir. A
virtude não é uma pêrà que se come de uma só vez.
Não está, qualquer Ul'!I, apto a sujeitar-se a uma
regra severa e a privar-se de tudo aquilo que pode
aliviar seus males. IÊ insensato quem volutariamente
enfraquece seu corpo, mesmo na Intenção de chegar
à perfeição.
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Nada empreenda que esteja- acima das suas for­
ças. De outro modo cairá, e o Inimigo se rirá de você.
Houve quem muito entesourasse na juventude
mas, tendo sido tentado pelos demônios (da luxúria
em particular), não souberam resistir e tudo perde­
ram.
Esteja cada um atento à avaliação de suas pró•
prias aptidões. A Deus devemos atribuir todo o pro­
gresso e repetir com o salmista: "Não a nós, Javé
não a nós, mas ao teu nome dá glória" (SI 113,9).5

Sobre a resistência às tentações

1: preciso desconfiar sempre dos ataques do de­


mônio. Como poderemos esperar que nos deixe tran­
qüilos quando ousóu tentar o próprio Mestre, Nosso
Senhor Jesus Cristo? Sempre nos é preciso gritar por
Deus e rogar-lhe humildemente para que a tentação
não seja acima das nossas forças e para que ele nos
livre do maligno.
Quando Deus abandona o homem a si mesmo,
o diabo está pronto a reduzi-lo à pó, tal como a mó a
um grão de trigo.

Da tristeza - do tédio - do desespero

Ao espírito de tristeza, no monge, acrescenta-se


o do tédio. "Este tédio, observaram os Padres, apode­
ra-se· do monge pela meia idade e põe-no em tal es­
tado de inquietação que ele não pode mais suportar
nem seu habitáculo, nem os irmãos que o cercam; dá­
lhe o desgosto pela leitura, o desejo de bocejar, de
comer. Uma vez de barriga cheia, o demônio do tédio
Inspira ao monge o desejo de sair da cela para con­
versar com alguém, como se a conversa fosse o único
5 Referência na Bíblla de Jerusalém: SI 115 (113 B), 1.

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meio de se livrar do tédio... Se não consegue fazer
sair o monge da cela, o demônio se esforça por dis­
trair-lhe o espírito durante a leitura e durante a ora­
ção. Isto não está no seu lugar e aquilo é preciso co­
locá-lo acolá... O fim destas distrações é tornar o es­
pírito ocioso e estéril.,,.
Uma coisa é o tédio - outra o desalento. Acon­
tece que o homem, neste estado de espírito, preferiria
destruir-se ou ser privado dó conhecimento do que
conservar-se neste tormento. É preciso sair dele tão
depressa quanto possível. Proteja-se do espírito de de­
sânimo porque todo o mal nasce dele.
Para salvaguardar a paz interior há que afastar-se
da tristeza e esforçar-se por ter o espírito sempre ale­
gre pois, segundo o Sirácida, a tristeza mata e nenhu­
ma utilidade há nela. "Como efeito, a tristeza segundo
Deus produz arrependimento que leva à salvação e
não volta atrás, ao passo flUe a tristeza segundo o
mundo produz a morte" (2Cr 7,10).
Pior que tudo é o desespero. Ele constitui a maior
alegria do demônio. É o "pece.do mortal" de que fala
a Escritura (1Jo 5,16).

Sobre a doença
O corpo é escravo da alma. A alma é rainha.
Quando o corpo é enfraquecido pela doença, trata-se
de sinal da misericórdia de Deus: a doença enfra­
quece as paixões, o homem volta a si. Acontece tam­
bém que a doença pode ser engendrada pelas paixões.
Retirem o pecado - as doenças desaparecerão, afir­
ma S. Basílio o Grande. O Senhor criou o corpo não
a doença, a alma, não o pecado. O que é, pois, salutar
e necessário? A união com Deus e uma troca de amor
com ele. É ao perder o amor que nós nos separamos
de Deus e, separados, tornamo-nos presa de múltiplos
males. Em contrapartida, àquele que suporta a doença,
com paciência, ela é computada à maneira de ·uma
"proeza" ascética e até mais.

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Dever e amor para com o próximo

1: preciso tratar o próximo com suavidade, velan­


do atentamente por não ofendê-lo de maneira alguma.
Quando nos afastamos de um homem ou o ofen­
demos, é como se metêssemos uma pedra no nosso
coração.
A um homem desamparado e perturbado, é pre­
ciso devolver-lhe a coragem por uma palavra afe­
tuosa.
"Lança o teu manto sobre o homem pecador para
n
acobertá-lo , aconselha Isaac o Sírio (Horn. 89).
Quando nos aproximamos dos homens temos de
ser puros nas palavras e no espírito, tratar a todos
igualmente, nunca adular ninguém - de outro modo
tornaremos inútil a ,nossa vida.
Devemos amar o nosso próximo não menos do
que_ a nós mesmos, de acordo com o preceito do Se­n
nhor: "Amarás (...) a teu próximo como a ti mesmo
(Lc 10,27), mas de tal maneira que, permanecendo nos
limites da moderação, este amor não nos afaste do
primeiro e mais importante mandamento: "Aquele que
ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de
mim n (Mt 10,37).
São Demétrio de Rostov expressa-se bem quanto
a esta matéria (2' parte, Sermão 2): "Comprova-se no
cristão um amor imperfeito quando compara a criatura
ao Criador ou é mais atento para com ela do que para
com o Criador; e um amor verdadeiro quando somente
o Criador é preferido e amado acima de toda a cria­
tura•.

Sobre o Julgamento do próximo

Não é necessário julgar mesmo que, com nossos


próprios olhos vejamos alguém prestes a infringir os
preceitos divinos. Critica a má ação, não porém, aque-

211
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le que a faz. Não nos cabe a nós julgar, mas sim ao
Juiz Supremo.
"Não julgueis para não serdes julgados" (Mt 7, 1)
e ainda: "Quem és tu que julgas o servo alheio? Que
ele fique em pé ou caia, isso é lá com o seu patrão;
mas ele fica em pé, porque o Senhor tem o poder de
o sustentar" (Rm 14,4).
Ignoramos quanto tempo poderemos, nós mes­
mos, perseverar na virtude. uauanto a mim, eu dizia
tranqüilo: jamais serei abalado! Javé, teu favor me
firmará sobre fortes montanhas; mas escondeste tua
face e eu fiquei perturbado" (SI 29,7-8).
Devemos considerar-nos, a nós mesmos, como os
piores culpados, perdoar ao próximo toda a transgres­
são e odiar somente o demônio que o tentou. Pode,
por vezes, parecer-nos que o outro faz mal enquanto
que, na realidade, por sua intenção, que é boa, ele
faz bem. A porta do arrependimento está aberta a to­
dos, e não sabemos quem por ela entrará primeiro -
se tu que julgas ou aquele que por ti é julgado.
Para não julgar, é preciso estar atento a si mes­
mo, não aceitar de ninguém idéias estranhas e per­
manecer morto para tudo. Julga-te a ti mesmo e ces­
sarás de julgar os outros.

Do perdão das ofensas


Jamais é necessário vingar uma ofensa, seja ela
qual for, mas, pelo contrário, perdoar de todo o co­
ração àquele que nos ofendeu, mesmo que o nosso
coração se oponha. "Mas se não perdoardes aos ho­
mens, o vosso Pai também não perdoará os vossos
delitos" (Mt 6, 15), e ainda: "amai os vossos inimigos
e oral pelos que vos perseguem" (Mt 5,44).
Se atacam a tua honra, esforça-te por perdoar;
" ... e não reclames de quem tomar o que é teu" (Lc
6,30).

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Deus nos recomenda a inimizade unicamente para
com a serpente que, desde o início, Induziu o homem
em tentação e o expulsou do paraíso.
Pensemos em Davi, em Jó, em todos os santos
agradáveis a Deus, que tudo venceram, ignorando o
ódio.
Se também nós vivermos assim, podemos espe­
rar que a luz divina brilhe em nossos corações, ilumi­
nando a nossa vida para a Jerusalém celeste.

Sobre a paciência e a humildade

1: preciso suportar com paciência tudo, venha co­


mo vier, com reconhecimento, até, pelo amor de Deus.
Censuram-te - responde com elogios; perse­
guem-te - suporta1 fazem-te repreensões - não as
faças tu.
Sofre em silêncio que o inimigo te ultraje e abre
apenas a Deus o teu coração.
Humilhemo-nos e veremos a glória de Deus, por­
quanto onde está a humildade aí se manifesta a glória.
Tal como a cera não aqueelda e amolecida não
pode receber o selo divino sem antes ter passado por
provas e tribulações. Quando o demônio deixou o Se­
nhor no deserto, os anjos aproximaram-se dele para
o servirem (Mt 4,11). Se eles se afastam de nós du­
rante as tentações, não irão longe e cedo retornarão...
Não agradeçamos a Deus apenas na prosperi­
dade...
O Apóstolo Tiago nos ensina: "Meus Irmãos, ten­
de por motivo de grande alegria o serdes submetidos
a múltiplas tentações ( ... ) Bem-aventurado o homem
que suporta com paciência a tentação! Porque uma
vez provado, alcançará a coroa da vida, que o Senhor
prometeu aos que o amam " (Tg 1 ,2 .12).

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Da mlserlc6rdla
Sede misericordiosos para com os pobres e os
peregrinos. Os Padres, luminares da Igreja, velam as-
siduamente por isso.
No que concerne a esta virtude, devemos con­
formar-nos com o mandamento divino: "Sede miseri­
cordiosos como o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,
36), e ainda: "Misericórdia é que eu qÚero e não sa­
crifício" (Mt 9,13).
Os sábios são atentos a esta palavra, enquanto
os outros não a escutam.• Eis porque a recompen­
sa será diferente: "Sabei que quem semeia com par­
cimônia, com parcimônia também colherá, e quem se­
meia com largueza, com largueza também colherá•
(2Cor 9,6).
1: preciso dar esmola com afabilidade, como
ensina Santo Isaac o Sírio (Horn. 89): "que a alegria
do teu rosto preceda o dom, e que tuas boas palavras
consolem a miséria•.
"Dá sempre - por toda a parte•, dizia o staretz.
E acrescentava: "Deus ama a quem dá com alegria.
A esmola assim dada, mesmo sendo insignificante,
traz consigo a recompensa" (2Cor 9,7-8).
Estas Instruções são como que um resumo da es­
piritual idade do staretz de Sarov. Dirigem-se unicamen­
te àqueles que aspiram à vida monástica? Poderíamos
perguntar-lho se ignorássemos que, entre os religiosos
e os "leigos· a ortodoxia traça o mínimo de frontei­
ras fixas.

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Regra para a oração

Ao levantar-se, todo cristão, em pé diante dos íco­


nes, recite a oração dominical "Pai-nosso" três vezes,
em honra à Santíssima Trindade; depois, o canto à
Virgem "Alegrai-vos, ó Virgem, Mãe de Deus" ,6 tam­
bém três vezes e, por fim, o Credo, uma vez. - De­
pois de assim rezar, cada cristão se ocupe do que
,em a fazer. Ao trabalhar, em casa ou fora dela, no
caminho, que ele repita baixo: "Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador" e, se
não estiver só, diga interiormente: "Senhor, tende pie­
dade" e assJm até o meio-dia.
Antes de comer, que ele repita a oração da ma-
nM.
A tarde, cada cristão, ao ocupar-se de seus tra­
balhos, diga docel]lente: "Santa Mãe de Deus, sal­
vai-me, pecador" ou então: "Senhor Jesus Cristo, pe­
la intercessão de tua Santa Mãe, tem piedade de mim,
pecador (ou pecadora)".
E continue assim até a noite.
No momento de se deitar, cada cristão recite, de
novo, as orações que rezou de. manhã; depois, ador­
meça, tendo feito o sinal da �ruz.
Seguindo esta regra, dizia o staretz, podemos che­
gar ao cume da perfeição cristã, porque as três ora­
ções que ela compreende estão na base do mesmo
cristianismo. A primeira foi dada pelo próprio Senhor
e serve de exemplo a todas as outras; a segunda é
um canto trazido do céu pelo Arcanjo, para saudar a
Virgem Maria, Mãe de Deus; quanto ao Credo, ele con­
tém, em resumo, todos os dogmas da fé cristã.
Até aqueles que não tinham a possibilidade de re­
citar esta regra diante dos ícones, o staretz permitia
que a recitassem no leito, andando, trabalhando, já que
foi dito: "todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo" (Rm 10, 13). Quanto àqueles que têm mais

6 Equivalente à Ave Maria.

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tempo não sendo necessário aterem-se a esta regra,
e se são mais instruídos, podem acrescentar outras
orações, a leitura dos cânones, dos akathistas, dos
salmos, do evangelho e das epfstolas.
Ao comparar esta regra à dada outrora pelo sta­
retz às monjas de Divéyevo, percebe-se que a dife­
rença não é grande. O u Pai-nosso", a u Ave-Maria" e
o Credo formam a base dela. O mais difícil é comum
a ambas: u manter" ao longo do dia em seu espírito,
unida ao coração, a oração interior. Ela é u a Invencível
vitória", u a estrela que nos guia no caminho do reino•.
Aos leigos, como ao� religiosos e religiosas, o
staretz aconselhava a comunhão freqüente. u O mais
freqüentemente possível. Aquele que comunga não
somente uma vez por ano, mas muitas vezes, será
abençoado desde aqui, na terra. Eu creio que a graça
se difunde também sobre a descendência daquele que
comunga. Um justo conta mais, diante de Deus, do
que uma multidão de ímpios".
1: preciso que nos apressemos a acrescentar que
a regra cotidiana, seguida pelo próprio staretz, não era
nem tão simples, nem tão breve. Compreendia um
grande número de orações, de invocações, trapos,
kondaks, cathismos que nos abstemos de reproduzir.
Podemos encontrá-la em resumo no livro de N. Levits­
ky (pp. 643-646), assim como em V. 1. llyn, Saint Sé­
raphim de Sarov, V. M. C. A. Press, Paris, 1930 (em
russo), pp. 193-198.
Quereríamos apenas citar aqui uma oração de pe­
nitência - a de Santo Efrém o Sírio - que os fiéis
recitam com amor e compunção durante a Grande
Quaresma, e que o staretz tinha incluído na sua regra
diária, em razão da sua grande beleza e de sua íntima
correspondência ao espírito da Ortodoxia.
Meu Deus e Senhor de minha vida,
livra-me do espírito de ociosidade
de desânimo

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de vontade própria
e de palavras vãs.
Metania
Mas o espírito de castidade
de humildade
de paciência
e de amor
concede-o ao teu servidor
(ou à tua servidora).
Metania
ô meu Deus e meu Rei,
faz que eu veja meus próprios pecados
e que eu não julgue o meu próximo
poraue tu és bendito pelos séculos dos séculos.
Metania

Amém.

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BIBLIOGRAFIA

As principais fontes de que dispomos são:

- Crônica do Mosteiro Serafim-Divéyevo, do Departamento de Nizhnl­


Novgorod, do cantão de Ardatov, com a biografia de seus fun­
dadores: a madre Alexandra - no mundo A. S. Melgounov - e
o bem-aventurado staretz monge Serafim e seus colaboradores:
Mlchel Mantourov, o arcipreste Sadovsky, a bem-aventurada Pe­
lágla lvanovna Serebrlanikov, Nicolau Alexandrovitch Motovilov, os
religiosos do convento e outros. Compilado pelo P. Leônidas
Tchltchagov - Edições do Mosteiro Serafim-Divéyevo, Moscou,
Impressora A. 1. Snéguirev, 1896, reeditada em 1903.
- A vida do nosso Padre, semelhante a Cristo, Serafim de Sarov, por
Leônidas Denisov, edição A. D. Stoupine, Moscou, 1904.
- A vida, as "proezas", os milagres e a canonização do nosso
Padre Teodoro Serafim de Sarov, por N. Levitsky, edição do Mos­
teiro russo de S. Pantéleimon do Monte Atos, Moscou, 1905.
Como os livros mencionados, raríssimos e impossíveis de achar
em livrarias, são em russo, e como há poucas probabilidades de
que algum dia sejam traduzidos em línguas estrangeiras, não nos
pareceu útil carregar o texto da nossa bibliografia do Santo com
referências numerosas às fontes mencionadas, referências que se
sobreporiam constantemente, não fazendo Denisov e Levitsky senão
repetir, o primeiro, de maneira inteiramente caótica e o segundo,
com mais ordem e espírito de seqüência, os fatos referidos na
Crônica. Levitsky, que escreveu em 1905, é o único a fazer um
relato da canonização.

A Crônica compreende uma lista de fontes:


Fontes manuscritas
Sessenta cadernos, na posse do Convento Serafim-Divéyevo. com­
preendendo as Memórias de A. N. Motovilov, do P. Basílio Sadovsky,
os relatos feitos por Mlchel Mantourov e as religiosas do convento.

Impressos
1. As "sentenças" que dizem respeito às "façanhas" e aos even­
tos da vida do staretz Serafim, monge eremita e recluso do Deserto

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de Sarov, acrescidas de uma exposição da vida da fundadora da
Comunidade feminina de Divéyevo, Ágata Semenovna Melgounov,
Editada pelo monge Josafá, São Petcrsbourgo, 1849.
Idem, 2� edição, 1856.
2. A vida do staretz Serafim, monge do mosteiro de Sarov, edição
do Deserto de Sarov, São Petersburgo, 1863 - Idem, 4� edição, De­
serto de Sarov, Mouron, 1893.
3. O Deserto de Sarov e os monges de santa memória que ai
alcançaram a sua salvação, Moscou, 1884, 4� edição.
4. A vida e as "façanhas" ascéticas do monge investido do
"mégalo-esquema" Joio, fundador e primeiro superior do Deserto de
Sarov, Mouron, 1892.
5. Breve descrição da vida do staretz Serafim . de Sarov e da
"Superiora" Ágata Semionovna Melgounov, fundadores do mosteiro de
Serafim-Divéyevo, edi7ão do mosteiro, Mosccu, 1874.
6. O Mosteiro feminino de Serafim-Divéyevo, com a descrição das
vidas do P. Serafim e da M. Alexandra, Compilado pela Princesa
Helena Gortchakov, Moscou. 1889.
7. Vigésimo quinto jubileu da Abadessa do mosteiro de Serafim­
Dlvéyevo - Nizhnl-Novgorod, 1887.
8. Relato da vida da Louca em Cristo, Pelágia lvanovna Serebriani­
kov, Tver, 1891.
9. S. Em. Antônio, Arcebispo de Voronege e de Zadonsk, Vorone­
ge, 1890.
10. S. Em. Théophane, recluso de Bishensk, Moscr,u, 1895.
11. S. Em. Jéremlas, bispo de Nizhni-Novgorod, Nizhni-Novgorod,
1886.
12. O P. Josafá, que no "mégalo-esquema" toma o nome de
Serafim, ancião Superior do mosteiro de Pavlo-Obnorsk, pelo Padre
Bratanovsky, Yaroslavl, 1885.
13. Compilação dos pontos de vista e das opiniões expressas
por Fllarete, metropolita de Moscou e de Kolomna: vol. IV e V (1�
parte).
14. Cartas de Fllarete, metropolita de Moscou e Kolomna, a mem­
bros da Família Imperial e outros personagens, Tver, 1888.
15. Cartas de Fl�arete, metropolita de Moscou, ao arquimandrita
Antônio, vigário da Laura Sérgio da Santíssima Trindade - IV parte,
Moscou, 1884.

No estrangeiro, apenas quatro livros apareceram sobre São Se­


rafim de Sarov:
V. N. llyn, Sio Serafim de Sarov, V. M. C. A. Pres, Paris, 1930 (em
russo).
A. T. Dobble-Bateman, Séraphlm of Sarov, Conversation with Motovilov,
(em Inglês).
1. de Beausobre, Flame ln the Snow, 1945 (em Inglês), romanceado.
V. Zander, Seraphlm von Sarov, Patmos Verlag, Düsseldorf, 1965 (em
alemão).
Uma brochura oferecendo a tradução de:
Entretlen avec Motovilov, por Mme. Mouraviev, foi publicada pele
"Collection Splrltuelle" (Paris, 1957) sob o título Sur la lumlàre du
Salnt-Esprlt, Entretlen avec Motovilov.

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Artigos

Extratos de l'Entretlen avec Motovllov foram traduzidos em Moines


de la Sainte Russie, por Smolitsch, Paris, 1967.
Belpaire (Dom Théodore), "Séraphim de Sarov" ln lrenlkon, 1933, pp.
140s.
Evdokimov, Paul, "Séraphim de Sarov", in Échanges, 1960, n. 40.
- "Saint Séraphim de Sarov, an lcon of Orthodox Spirituallty",
in The Ecumenical Rewiev, vol. XV, n. 3, 1963.
Rosanov, A Face Ténébreuse, S. Petersbourg, 1911 (em russo): um
capítulo é consagrado à descrição de uma peregrinação feita a
Sarov pelo autor.

Outras obras consultadas

Behr-Sigel, E., Prlêre et salnteté de l'Egllse russe, Palrs, 1950.


Berdiaev, N., Problémes de la conscience religieuse russa, anthologle,
V. M. A. Press. Berlln, 1924.
-, "Le problême soclologique et métaphysique de la technique",
in Contacts, 1966, n. 55, pp. 152-178.
-, Las Esprits de la Révolution russe, Le Messager Orthodoxe,
1967-1968, n. 4041.
Bolensen, "A loucura por Cristo", ln Pout ("La Vole"), 1927, n. 8
(em· russo).
Bobrinskoy, B., "Le Salnt-Esprlt, vle de l'Égllse·, ln Contacts, 1966,
n. 55, pp. 179-197.
Boulgakov, S., La Paraclet, Paris, Aubler.
-. Orthodoxie, Paris, 1958.
Briantchaninov, 1., bispo, Milagres e sinais, Jaroslav, 1870 (em russo).
Cassien, Mons. (Besobrasov), Cristo e a primeira geração cristã,
Paris, 1950 (em russo).
Clément Olivier, • Le sens de la terre. Note de Cosmologle Orthodoxe",
in Contacts, 1967, n. 59-60, pp. 252-323.
-. • Notes sur la salnteté au XXe siêcle", in Contacts, 1963, n. 41,
pp. 52-61.
Daniélou, Jean, Les Anges et leur mlsslon, éd. de Chevetogne.
Demina, N., A Trindade de André Roublev, éd. do Estado "Arte",
Moscou, 1963 (em russo).
Evdokimov, Paul, Le■ âge■ da la via splrltualle, éd. Desclée de
Brower, Paris.
-. L'Orthodoxle, éd. Delachaux-Nlestlé.
-. La femme et la salut du monde, Castermann.
Fedotof. G. P., Os santos da Rússia antiga, Paris (em russo).
-. The Russlan Rellglous Mind, Harper Torchbooks, Harper Bros,
(em Inglês).
Florensky, P.. A coluna e o fundamento da Verdade (carta V) (em
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Florovsky, P., As vias da teologia russa, Paris, 1937 (em russo).
Hlstolre de l'Art russa, éd. de l'Académie des Sclences, 1953 (vol.
1 e 11).

220
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Histolre de l'Eglise, publlé sous la dlrectlon de A. Fliche et V.
Martin. éd. Bloud et Gay, Paris.
Kologrivov, P., Essai sur la sainteté en Russle, édition Bayaert,
Bruges, 1953.
Kontzevitch. 1., A recepção do Esplrlto Santo na antiga Rússia, Paris,
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ÍNDICE

7 A vida de Serafim de Sarov


155 Conversa com Motovilov
191 As instruções espirituais
218 Bibliografia

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Serafim de Sarov é um dos grandes santos da Igreja
russa. Nasceu em 1759 e morreu em 1833. Entrou
no mosteiro de Sarov, na Rússia central, em 1778,
tendo sido ordenado diácono e sacerdote.
Um ano antes da morte, monge Serafim teve longa
conversa com um leigo, chamado Nicolas Motovi­
lov. Este sofria de grave enfermidade e carregava uma
vida pecaminosa. Estava doente de corpo e alma. No
entanto, Serafim escolheu-o como depositário da sua
última mensagem. A longa conversa com Motovilov
foi realmente a expressão de toda a sua espirituali­
dade e da sua vida. Essa longa conversa foi escrita
mais tarde por Motovilov e divulgada. Tomou-se en­
tão uma das obras da espiritualidade cristã, medita­
da e celebrada no mundo inteiro, e doravante tam­
bém pelo público de língua portuguesa.

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