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IMAGINAÇÃO E CRIAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO ONTOGENÉTICO:

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

IMAGINATION AND CREATION IN ONTOGENETIC DEVELOPMENT:


CONTRIBUTIONS FROM THE HISTORICAL-CULTURAL THEORY

IMAGINACIÓN Y CREACIÓN EN EL DESARROLLO ONTOGENÉTICO:


CONTRIBUCIONES DESDE LA TEORÍA HISTÓRICO-CULTURAL

Fabrício Santos Dias de Abreu1


Patrícia Lima Martins Pederiva2

Resumo: As teorizações sobre a gênese do processo de organização da atividade consciente do ser


humano são uma marca nos escritos de L. S. Vigotski (1896-1934). No curso do desenvolvimento da
consciência, a imaginação – entendida como atividade complexa – caracteriza-se como um sistema
psicológico de relações interfuncionais que ocupa centralidade e ganha contornos específicos ao longo
da ontogênese. Neste artigo revistamos a obra vigotskiana com o objetivo de analisar o
desenvolvimento e os contornos dos processos imaginativos ao longo da infância e da adolescência
(períodos ontogenéticos estudados pelo autor). Defendemos que condição humana, essencialmente e 1
ontologicamente, se vincula aos processos imaginativos, pois ao criar estratégias intencionais de
sobrevivência e ação sobre a natureza o indivíduo torna-se capaz de operar psiquicamente por meio da
produção, reprodução e criação de imagens.

Palavras-chave: Imaginação. Criação. Teoria Histórico-Cultural. L.S. Vigotski.

Abstract: Theorizations about the genesis of the process of organizing the conscious activity of
human beings are a mark in the writings of L. S. Vigotski (1896-1934). In the course of the
development of consciousness, imagination – understood as a complex activity – is characterized as a
psychological system of interfunctional relationships that occupies a central position and gains specific
contours throughout ontogenesis. In this article, we review the Vygotskian work with the aim of
analyzing the development and contours of imaginative processes throughout childhood and
adolescence (ontogenetic periods studied by the author). We argue that the human condition,
essentially and ontologically, is linked to imaginative processes, as by creating intentional strategies

1
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Brasília (UnB), pedagogo e doutorando em
Educação pela mesma instituição. Professor da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e
do Centro Universitário Estácio de Brasília. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas Educativas
(GEPPE) e coordenador do Círculo Vigotskiano – Grupo de Estudos em Teoria Histórico-Cultural. E-mail:
[email protected]. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3055-5704.
2
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), musicista pela mesma instituição, mestre em
Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Professora da Faculdade de Educação (FE), da
Universidade de Brasília, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas Educativas (GEPPE). E-
mail: [email protected]. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4434-6671.

Revista de Estudos em Educação e Diversidade. v. 2, n. 6, p. 1-17, out./dez. 2021.


Disponível em: http://periodicos2.uesb.br/index.php/reed
ISSN: 2675-6889
for survival and action on nature, the individual becomes capable of operating psychically through the
production, reproduction and creation of images.

Keywords: Imagination. Creation. Historical-Cultural Theory. L.S. Vygotsky.

Resumen: Las teorizaciones sobre la génesis del proceso de organización de la actividad consciente de
los seres humanos son una marca en los escritos de L. S. Vigotski (1896-1934). En el curso del
desarrollo de la conciencia, la imaginación, entendida como una actividad compleja, se caracteriza
como un sistema psicológico de relaciones interfuncionales que ocupa una posición central y gana
contornos específicos a lo largo de la ontogénesis. En este artículo revisamos el trabajo vygotskiano
con el objetivo de analizar el desarrollo y los contornos de los procesos imaginativos a lo largo de la
infancia y la adolescencia (períodos ontogenéticos estudiados por el autor). Sostenemos que la
condición humana, esencial y ontológicamente, está ligada a procesos imaginativos, ya que al crear
estrategias intencionales de supervivencia y acción sobre la naturaleza, el individuo se vuelve capaz de
operar psíquicamente a través de la producción, reproducción y creación de imágenes.

Palabras-clave: Imaginación. Creación. Teoría histórico-cultural. L.S. Vygotsky.

Introdução

As teorizações sobre a gênese do processo de organização da atividade consciente do


ser humano são uma marca nos escritos de L. S. Vigotski (1896-1934), principal precursor da
Teoria Histórico-Cultural. Interessa ao autor bielorrusso estabelecer bases epistemológicas
capazes de explicar a passagem do ser natural (orgânico) para o simbólico-cultural, 2
principalmente no que tange a especificidade humana de assumir os fios que tecem a sua
história e conduzem sua evolução. No curso do desenvolvimento da consciência, a
imaginação – entendida como atividade complexa – caracteriza-se como um sistema
psicológico de relações interfuncionais (VIGOTSKI, 1998) que implica a participação de
“várias funções em suas peculiares relações” (VIGOTSKI, 1998, p. 198). Essa questão é
bastante debatida ao longo de sua produção intelectual (VIGOTSKI, 1998, 2003, 2008, 2009),
porém é em uma publicação de 1930, intitulada Imaginação e criação na infância3 (2009) –
organizado a partir de suas palestras para professores – que o tema ganha destaque e assume
contornos de uma operação exclusiva e essencialmente humana marcada por processos
simbólicos complexos.
A Teoria Histórico-Cultural, ancorada principalmente em problematizações da fase
final da vida de Vigotski (1998)4, assevera que a imaginação não pode ser enquadrada

3
Esta obra é bastante influenciada pelos estudos do francês Théodule-Armand Ribot (1839-1916),
principalmente pelas discussões contidas no “Essai sur l’imagination créatrice” (RIBOT, 1908).
4
A obra “O desenvolvimento psicológico na infância” foi organizada a partir de transcrições taquigráficas de
conferências ministradas por Vigotski entre março e abril de 1932 no Instituto Pedagógico Superior de
Lenigrado, dois anos antes da sua morte e em estágio avançado da tuberculose.
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enquanto uma função psicológica superior, pois “deve ser considerada uma forma mais
complicada de atividade psíquica” (p.127) já que mantém união, conexões e relações
interfuncionais com a emoção, linguagem, pensamento etc. Devido a sua complexidade, “que
superam os limites dos processos que costumamos chamar de funções, seria correto utilizar a
denominação de sistema psicológico5, tendo em conta sua complicada estrutura funcional”
(VIGOTSKI, 1998, p. 127). A partir disto, torna-se mister entender os processos de
organização da imaginação e da criação ao longo da ontogênese e suas implicações na
constituição subjetiva das pessoas. Neste artigo revistamos a obra vigotskiana com o objetivo
de analisar o desenvolvimento dos processos imaginativos ao longo da infância e da
adolescência (períodos ontogenéticos estuados pelo autor). Na infância a brincadeira, máxima
expressão dos processos imaginativos nesta fase do desenvolvimento, apresenta-se como
elemento central para emergência de complexos processos de funcionamento abstrato, de
elaboração e ampliação das competências imaginativas e linguísticas, pois permite à criança
agir além de suas competências habituais e de seu comportamento cotidiano. Na adolescência,
por sua vez, a imaginação se intelectualiza, devido a reorganização do pensamento que passa
a operar por meio de conceitos.

3
Imaginação e atividade criadora nos estudos de L. S. Vigotski

A atividade criadora6, de acordo com Vigotski (2009), vincula-se ao ineditismo


daquilo que se produz através de mecanismos conscientemente concebidos mentalmente,
podendo ser instrumentos, signos ou sentimentos. Ou seja, a criação não se vincula apenas à
produção de artefatos ou produtos, mas também assume uma dimensão intrapsicológica que
marca as formas do afeto e da regulação do comportamento do humano. Na mesma linha,
Rubinstein (1973) assevera que a imaginação se encontra em: “qualquer acto de criação
artística e em qualquer sentimento autêntico, em qualquer pensamento abstrato que se eleva
sobre o imediatamente dado, em qualquer ação que de algum modo modifique o mundo” (p.
106), ou ainda, “em qualquer humano que pensando, sentindo e actuando traga à vida nem
que seja apenas um pequeno grão de algo novo, de original” (p. 106).

5
Essa questão pode ser aprofundada em “Sobre os sistemas psicológicos” (VIGOTSKI, 1996).
6
Imaginação e criação (atividade criadora) encontram-se em íntima relação conforme explica Petrovsky (2017):
“a imaginação é um elemento necessário para a atividade criadora da pessoa que se expressa na construção da
imagem dos produtos do trabalho e que assegura a criação do programa de conduta quando a situação
problemática caracteriza-se por sua indeterminação” (p. 181-182).
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Ao analisar o comportamento humano da criação, Vigotski (2009) e Rubinstein (1973)
diferenciam dois tipos de atividade, a saber: reconstituidora-reprodutiva e criadora-
combinatória. A primeira relaciona-se à memória tendo um caráter que se aproxima da
reprodução. Organiza-se a partir do acesso às marcas e impressões deixadas no ser humano
através das suas vivências e daquilo que já existe no universo cultural, assim “sua essência
consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou
ressuscitar marcas de impressões precedentes” (VIGOTSKI, 2009, p. 11). Essa forma de
lembrança, ou seja, de operar com as imagens mentais, encontra-se amalgamado à memória e
permite a conservação da experiência anterior – de forma direta ou mediada – facilitando a
adaptação e inserção no mundo. Essa atividade só ocorre devido a plasticidade7 cerebral, que
é a capacidade da substância nervosa de alterar e também preservar as marcas-registros dessas
modificações.
Para explicar essa premissa, Vigotski (2009) utiliza o exemplo de uma folha de papel e
expõe que no cérebro acontece algo similar ao ato de dobrá-la ao meio. No local onde o vinco
foi feito permanece a marca da modificação e, num simples manejo, há uma predisposição
para que a dobradura se repita no mesmo lugar. A partir dessa analogia se pode dizer que
“nosso cérebro mostra-se um órgão que conserva nossa experiência anterior e facilita sua
4
reprodução” (VIGOTSKI, 2009, p. 13).
Apesar de sua importância para o funcionamento psíquico, a atividade reprodutiva não
é capaz de dar conta das demandas internas e externas impostas às pessoas, principalmente
pelo trabalho social8, pois volta-se para o passado e para a reprodução. Se os sujeitos fossem
regidos unicamente por essas características, o futuro seria uma mera duplicação adaptativa
do passado sem avanços. Essa noção de atividade criadora, referendada pela velha psicologia,
7
Vigotski (2003) explica que a plasticidade constitui uma das propriedades fundamentais e primárias de toda a
matéria e que se organiza entorno de três características básicas: 1) capacidade de transformar a disposição das
partículas; 2) conservar os indícios da modificação; e, 3) tendência em reproduzir as marcas deixadas pela
modificação. O autor assevera que a substância nervosa é a mais plástica dentre as conhecidas na natureza e é a
única que pode desenvolver a capacidade para transformações, conservação da experiência e predisposição para
a reprodução, esses elementos são a base para a memória.
8
Para explicar as peculiaridades que tangenciam a experiência do indivíduo no mundo é necessário ir as suas
fontes histórico-culturais de atividades, que de acordo com Luria (1991) se relaciona com o trabalho social, que
desencadeou o emprego de instrumentos, a organização coletivo-social e o surgimento da linguagem. Defendem
Marx e Engels (2009) que “são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio
material que, ao mudarem essa sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos de seu
pensamento” (p. 32). Portanto, é na atividade de produção, de transformação intencional da natureza, mediada
pelo trabalho, que os indivíduos modificam radicalmente sua realidade objetiva e, consequentemente, sua
subjetividade e seus modos de pensar, agir e sentir,etc. Assim, o ser humano é a única espécie (até então) que foi
capaz de “transformar a natureza para criar seu próprio meio em função de objetivos previamente definidos por
ele e que, ao fazê-lo, transforma a ele mesmo, assumindo o controle da própria evolução” (PINO, 2005, p. 30).

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baseada em “combinações associativas de impressões acumuladas anteriormente”
(VIGOTSKI, 1998, p. 107), não era capaz de explicar o grande salto qualitativo que permitiu
ao ser humano constituir as funções psicológicas superiores – tipicamente humanas.
Para transformar a natureza e a si mesmo, criando suas condições de existência, foi
necessária a emergência de uma forma de atividade humana que tivesse como resultado a
criação de novas imagens e ações, guiadas por um comportamento criador ou combinatório.
Assim, “enquanto a reprodução é o traço fundamental da memória, a transformação do
reproduzido é característico da imaginação. Imaginar algo significa transformá-lo”
(RUBINSTEIN, 1973, p. 97). A característica fundamental da memória é a “renovação das
imagens em sua aproximação máxima ao padrão” (PETROVSKY, 2017, p. 186), já a da
imaginação é “transformar as representações (as imagens), que, como resultado, asseguram a
criação de um modelo de uma situação verdadeiramente nova” (PETROVSKY, 2017, p. 186).
Memória e imaginação, portanto, estão entrelaçadas, pois essa opera a partir de
“transformações das representações e a criação de novas imagens sobre a base das existentes”
(PETROVSKY, 2017, p. 186).
Essa forma de conduta engendra uma nova organização psíquica que “faz do homem
um ser que se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente” (VIGOTSKI,
5
2009, p. 14). Tal comportamento denomina-se imaginação ou fantasia e baseia-se na
capacidade de combinação cerebral, por meio da criação de novas imagens. Essa forma de
atividade psíquica humana “não repete em formas e combinações iguais impressões isoladas,
acumuladas anteriormente, mas constrói novas séries, a partir das impressões anteriormente
acumuladas” (VIGOTSKI, 1998, p. 107). O humano, por excelência, é um ser atuante no
mundo, não apenas o observa e o reconhece, mas modifica-o e transforma-o a partir de suas
necessidades e intenções. “Para se poder transformar a realidade na prática deve saber-se
também transformá-lo mentalmente. Essa exigência é cumprida pela imaginação”
(RUBINSTEIN, 1973, p. 97). Portanto, essa atividade consciente vincula-se diretamente à
capacidade de ação-modificação do mundo, “de transformar ativamente a realidade e criar
algo novo” (RUBINSTEIN, 1973, p.97).
A diferença básica entre a imaginação e a reprodução consiste no fato de suas relações
serem diametralmente distintas com a realidade. As imagens mnemônicas representam uma
reprodução da experiência, pois compete a memória “conservar o mais fielmente possível os
resultados da experiência; e a da imaginação, em transformá-la” (RUBINSTEIN, 1973, p. 98).
Vigotski (2009) explica que o cérebro, além de exercer as funções de conservação e
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reprodução da experiência, também é capaz de, a partir desses elementos, recombiná-los e
reelaborá-los de forma criadora, fazendo emergir novos comportamentos e atividades. É
importante frisar, conforme faz Leontiev (1980), que as funções desempenhadas pelo cérebro
não são inatas, mas possuem a capacidade filogenética de, a partir da apropriação da cultura,
manifestar os sistemas funcionais cerebrais que representam o produto do desenvolvimento
histórico da humanidade.
A imaginação organiza-se sempre tomando por base os elementos acessados na
realidade concreta e presentes na experiência antecedente do sujeito. A imaginação, portanto,
tem as suas bases no material produzido pelo acúmulo das experiências (direta ou mediada)
que o indivíduo acessa em sua vida. Para Vigotski (2009) quanto mais rico e diversificado
forem os intercâmbios que o sujeito trava no mundo da cultura, mais variado será o seu
repertório para compor as atividades criadoras. Em síntese: “quanto mais rica a experiência da
pessoa, mais material está disponível para a imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p. 22). Para criar
a emblemática Emília, por exemplo, Monteiro Lobato, em seu processo criador, valeu-se da
combinação de elementos reais (boneca de pano e características tipicamente humanas) que,
amalgamados, se transformam em um componente fantástico inédito (a boneca-gente, que
virou marquesa, tagarela e questionadora). Outro exemplo poderia ser da estatueta, datada de
6
cerca de 32 mil anos atrás, do homem-leão (ou mulher-leoa) encontrada em 1939, em uma
caverna da Alemanha, composta por um corpo humano (bípede) com uma cabeça de leão. A
capacidade cognitiva de fazerem novas combinações a partir dos elementos acessados pela
memória representa um processo criador que culmina em algo novo, que vai além da mera
reprodução. “É essa capacidade de fazer uma construção de elementos, de combinar o velho
de novas maneiras, que constitui a base da criação” (VIGOTSKI, 2009, p. 17).
A imaginação, dessa forma, manifesta-se em todos os aspectos da vida em sociedade,
perpassando a arte, a ciência e a técnica. Tudo que nos rodeia e tem a marca da invenção
humana, ou seja, o mundo da cultura organizado a partir das demandas e orientações dos seres
humanos são produtos da imaginação e da atividade criadora e foram, antes de mais nada,
“construções erigidas na mente, por meio de novas combinações ou correlações”
(VIGOTSKI, 2009, p. 14). Ainda nessa linha, Rubinstein (1973) explica que na imaginação
“as imagens formam-se de acordo com os objetivos da consciente atividade criadora do
homem” (p. 104).
Vigotski interessa-se por entender as atividades imaginativas e criadoras a partir de
sua processualidade e em uma dimensão coletiva e anônima. Assim, os produtos, frutos da
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invenção humana, que compõem o arcabouço material do saber acumulado, carregam a
história da técnica e são o resultado de diversas imaginações, se assim podemos dizer. O
martelo, por exemplo, desde a ideia primitiva da junção da pedra ao porrete sofreu inúmeras
modificações até chegar ao produto com múltiplas funcionalidades e derivações que se
apresenta hoje, sem perder a essência inicial. Sobre isso, Leontiev (1980) explica que o
instrumento de trabalho não é um simples utensílio, mas manifesta-se “como um objeto no
qual se gravam modos de ações, operações do trabalho socialmente elaboradas” (p. 168). Ao
atribuir essa dimensão histórica às invenções “podemos dizer que todos os objetos da vida
cotidiana, sem excluir os mais simples e comuns, são imaginações cristalizadas” (VIGOTSKI,
2009, p. 15).
Percebe-se que, nesta perspectiva teórica, a imaginação – que pelo senso comum ainda
é considerada da ordem do devaneio, da ilusão e do incontrolável – tem seu estatuto
modificado ao ocupar a centralidade da constituição das pessoas, através de seu papel
primordial na atividade intrapsicológica, e nas relações sociais de produção entre as pessoas.
Outro avanço importante está na crítica de Vigotski ao entendimento de que a criação seria
dom de alguns poucos eleitos, como Mozart ou Newton, ou estaria apenas restrita aos grandes
feitos ou obras; naquilo que se equaciona como belo, extraordinário e economicamente
7
rentável.
O autor rompe drasticamente com a noção de que a criação se vincula essencialmente
a dons individuais ou a produtos grandiosos e defende que essa “não existe apenas quando se
criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o ser humano imagina, combina,
modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado a
criação dos gênios” (VIGOTSKI, 2009, p. 15). A ênfase da discussão está na atividade
criadora enquanto um processo anônimo, coletivo, e sem mensuração de extraordinariedade,
pois é fruto da experiência coletiva entre os indivíduos travados cotidianamente na cultura que
se materializa, em suma, na criação de elementos novos no real.
Portanto, a “criação é o destino de todos (...) ela também é uma companheira normal e
constante do desenvolvimento infantil” (VIGOTSKI, 2009, p. 51). É na brincadeira, por
exemplo, que a criança expressa suas potencialidades imaginativas, ao articular o real com a
fantasia. Quando brincam, desenham, narram, etc. elas revelam refinadas atividades
psicológicas e demonstram a íntima relação entre cultura, imaginação e criação.

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A brincadeira como a máxima expressão dos processos imaginativos na infância

Explica o autor (VIGOTSKI, 2008; 2009) que é na idade entre três e sete anos,
chamada por ele de pré-escolar, que a brincadeira se torna a principal linha do
desenvolvimento infantil, esclarecendo que a sua gênese se encontra na necessidade, desejos e
motivações de a criança apropriar-se dos elementos culturais a partir de suas percepções da
sociedade que a rodeia. A necessidade, o desejo e as motivações, nessa conjuntura, agem
como impulsionadoras da ação criadora, pois “tudo que se desenvolve se desenvolve por
necessidade” (VIGOTSKI, 2006, p. 282).
Se é pela força da necessidade que o homem passou a agir intencionalmente sobre a
natureza, modificando a ela e a si mesmo (MARX; ENGELS, 2009) e também pela
necessidade de ação sobre o mundo que a criança brinca. Para Vigotski (2008), na infância
surgem necessidades e impulsos específicos que são importantes para o desenvolvimento e
que conduzem diretamente à brincadeira. As crianças querem agir diretamente sobre o
mundo, porém, devido às suas limitações orgânicas e pela organização adultocêntrica dos
espaços sociais, ocorrem impedimentos que freiam esses desejos, que são reconfigurados por
meio do brincar de faz de conta. Elas querem fazer uma viagem espacial, cuidar de um bebê,
8
dirigir um caminhão, mas esses desejos não podem ser realizados de forma objetiva e, por
isso, utilizam a imaginação para criarem narrativas, cenários, objetos, desenhos etc. que
passam a compor o enredo lúdico que permite o acesso ao mundo, até então, intangível.
Na brincadeira de faz de conta, de acordo com Mukhina (1995), a criança satisfaz seus
desejos de acesso e atuação no universo adulto, por isso “reproduz as relações e as atividades
de trabalho dos adultos de forma lúdica” (p. 155). Na brincadeira de polícia e ladrão, tão
comum na cultura brasileira, a criança deseja atirar, manusear uma arma, ter a desenvoltura de
um policial tal qual nos filmes, porém essas ações são impossíveis dentro da sua cultura, por
isso brinca. “É disso que surge a brincadeira, que deve sempre ser entendida como uma
realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis” (VIGOTSKI, 2008, p. 25).
O caráter psicológico da brincadeira, pela sua confluência entre fantasia e experiência,
não se encontra apenas no que é observável (o ato de ninar, a ação de correr atrás de um
bandido, por exemplo), mas na aquisição de características que possibilitam a leitura da
realidade e a composição da personalidade do brincante, assim a brincadeira é capaz de
formar “as características internas fundamentais de sua futura experiência, que a ajudará a
realizar na vida o que treina através do jogo” (VIGOTSKI, 2003, p.105). Ao fazer essa
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discussão sobre a brincadeira de assunção de papéis, Vigotski (2003) estabelece que a
centralidade está no fato de a criança sentir aquilo que encena. “Quando brinca com bonecas,
a menina não aprende a cuidar de uma criança viva, mas a se sentir mãe” (p.105). Nota-se que
existe uma íntima relação entre imaginação e emoção e que essa vinculação marca os
processos criadores humanos (VIGOTSKI, 2003, 2009). Em suma: “a atividade da
imaginação está estreitamente ligada com o movimento de nossos sentimentos” (VIGOTSKI,
1998, p. 124) e “a imaginação é uma atividade extraordinariamente rica em momentos
emocionais” (VIGOTSKI, 1998, p. 125).
Ainda sobre isso, Vigotski (1998) afirma que na brincadeira “seu motor principal é o
afeto” (p. 124). Assim, a brincadeira sempre é colorida e entremeada pela emoção. É ela que
traz a vivacidade e a dramaticidade encenada para o enredo composto pelas crianças. Vigotski
(2003) explica que o brincar sempre desperta sentimentos intensos e vívidos e essa forma
peculiar de sentir e afetar-se exerce uma função educativa ao ensinar aos pequenos a não
seguir livremente os sentimentos. Por mais que uma criança se sinta impelida em uma
brincadeira de polícia e ladrão, por exemplo, a prender alguns colegas pela posição que ocupa
na brincadeira ela não o faz, pois consegue coordenar suas ações e sentimentos na dicotomia
realidade e fantasia. Portanto, a brincadeira propicia “a primeira forma de comportamento
9
consciente que emerge com base no instintivo e no emocional” (VIGOTSKI, 2003, p. 123). É
pertinente, então, entender, conforme Vigotski (2003), que a emoção “é um poderoso
organizador do comportamento” (p.118) que regula e orienta nossas ações e coloca em tensão,
incita, estimula ou reprime as reações do sujeito com e na cultura. É defendido aqui, conforme
também o faz Toassa (2009), que as emoções movem a criação. A brincadeira de faz de conta,
além do seu viés criador e de mobilização de aspectos complexos do psiquismo infantil,
ensina as crianças a manejarem e entenderem suas emoções. Pelos enredos, cenografias e
personagens que compõem, as crianças (re)criam um universo de impressões do real
impregnados de mobilizações dos afetos e passam a agir de forma consciente na cultura.
Emoção e imaginação, historicamente, ocuparam um lugar marginal dentro da ciência
psicológica por serem considerados distantes do pensamento racional e, portanto, foram
classificadas da ordem do devaneio, da loucura e do incontrolável. A emoção, por exemplo
era “a ovelha negra entre os demais capítulos que integravam a psicologia da época”
(VIGOTSKI, 1998, p. 79) e “o capítulo menos elaborado da velha psicologia” (VIGOTSKI,
2003, p. 113), já a imaginação “constituía um enigma insolúvel” (VIGOTSKI, 2003, p. 105).
O autor reposiciona essa questão ao trazer a emoção e a imaginação da periferia para o centro
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da psicologia e dedica grandes esforços nas suas obras para demonstrar que esses elementos
se organizam no psiquismo enquanto unidade (SAWAIA; SILVA, 2015) e que são centrais
para a passagem do ser biológico para o sujeito cultural. Toassa (2009, 2011) ao cotejar a obra
vigotskiana, principalmente no que tange às questões relacionadas às emoções e às vivências,
percebe que o problema da imaginação e do sentimento ocupa lugar de destaque nas
teorizações deste autor, e estabelece que as explicações dessa relação são influenciadas pelo
trabalho de Ribot, e pela filosofia monista de Spinoza. Sobre aquele, Vigotski (1998)
estabelece que suas teorizações foram bastante frutíferas, “já que mostraram, passo a passo,
que os processos da imaginação eram condicionados pelos sentimentos” (p. 109).
Uma das funções da imaginação, portanto, é emocional (VIGOTSKI, 2003), pois “a
fantasia é o aparelho que realiza diretamente o trabalho de nossas emoções” (p. 155). O
aspecto emocional da imaginação é explicado por Vigotski (1998) a partir do que ele
denomina como lei da sensação real na atividade da fantasia ou lei da realidade emocional da
imaginação (VIGOTSKI, 2009). Para o autor, a relação entre emoção e fantasia manifesta-se
em duas frentes. Por um lado, os afetos agem diretamente sobre a imaginação, pois os
sentimentos que a influenciam são capazes de guiar nossas impressões acerca dos objetos e
das relações, “a emoção tende a se encarnar em imagens conhecidas correspondentes a esse
10
sentimento” (p. 25). Ao sentir tristeza, por exemplo, os vínculos e as percepções se
reorganizam, afinal, o olhar sobre o mundo se modifica a partir do estado emocional. Por
outro, a imaginação influi nos sentimentos, já que as realidades, por meio da experiência,
compõem o material semiótico da imaginação e dos sentimentos (TOASSA, 2011). Essa
relação inversa entre imaginação e emoção (sentimentos influem na emoção e imaginação
influi nos sentimentos) faz com que Vigotski (2009) formule postulados acerca da realidade
emocional da imaginação. Para estabelecer essa premissa, o autor vale-se de Ribot e assevera
que “todas as formas de imaginação criativa contêm em si elementos afetivos” (p. 28).
Pode-se explicar esse anunciado ao utilizar o exemplo clássico do medo das crianças
da figura do monstro debaixo da cama. Sabe-se que monstros são alegorias fantásticas e que,
portanto, não existem no mundo real e muito menos habitam o espaço entre a cama e o chão.
Ao assumir uma materialidade criada pela mente e compor o universo imaginativo da criança,
o medo pela criatura tenebrosa é real. Calafrios, choros, náuseas e etc. materializam-se no
corpo de forma tangível. Essa lei psicológica também é capaz de explicar os sentimentos que
as obras de artes, criadas pelas fantasias de seus autores, causam em seus expectadores. Por
mais que se conheça o filme Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, como um suspense
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ficcional, é possível sentir tensão, angústia e medo na cena clássica do chuveiro. Mesmo
estando diante de um evento inverídico e fantástico, orquestrado por um autor, as “emoções
provocadas pelas imagens artísticas fantásticas das páginas de um livro ou do palco de um
teatro são completamente reais e vividas por nós de verdade, franca e profundamente”
(VIGOTSKI, 2009, p. 29).
As brincadeiras infantis também podem ilustrar essa constatação. A partir dessa lei
pode-se afirmar que a estrutura do processo imaginativo das crianças – seu enredo,
personagens e objetos – pode revelar-se irreal nas brincadeiras de faz de conta, mas os
sentimentos que produzem são reais, realmente vivenciados por quem brinca. Ao analisar
racionalmente o episódio com o enredo de polícia e ladrão, por exemplo, na materialidade da
vida concreta os brincantes são crianças e, portanto, efetivamente não podem ser um policial e
nem exercer as atividades inerentes a essa profissão – não é possível manejar uma arma,
prender bandidos, dirigir uma viatura ou acessar um batalhão. Assim sendo, o enredo criado
pelas crianças é composto por características irreais e ilusórias, mas Vigotski (1998) salienta
que ele se torna verossímil, pois “é real no sentido emocional” (p. 124). É na dialética
irrealidade concreta versus realidade emocional que a brincadeira se organiza e materializa-se
no espaço que ocupa. A criança, de fato, não é um policial, mas sente-se como um, os
11
sentimentos que o brincar suscita são vivenciados de forma verdadeira por aqueles que
brincam.
É defendido, até então, a centralidade da imaginação como sistema psicológico na
formação do psiquismo humano, sinalizando como exemplo o brincar no desenvolvimento
infantil. Parece consenso, entre os principais teóricos da psicologia do desenvolvimento que
se filiam ao marxismo (VIGOTSKI, 1998, 2008; WALLON, 2007, 2015), que o brincar
possibilita as crianças ações que vão além das percepções imediatas do real, alargando suas
funções cognitivas na medida que possibilitam generalizações, abstrações, etc. Também
concorda-se com Petrovsky (2007) que na infância a imaginação “se mostra como uma das
condições mais importantes para a assimilação da experiência social” (2017, p. 193) que vai
se reorganizando e assumindo outros contornos ao longo da ontogênese.
Ao defender que a experiência é o motor propulsor da imaginação e,
consequentemente, da produção das atividades criadoras, Vigotski (2009) formula que, para
elas ocorrerem, há dependência direta “da riqueza e da diversidade da experiência anterior da
pessoa, porque essa experiência constitui o material com que se criam as construções da
fantasia” (p. 22). É a partir dessa premissa que o autor constata na imaginação infantil, se
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comparada a de um adulto, a presença de elementos qualitativamente distintos no que diz
respeito à qualidade produtiva das combinações9 que impulsionam a criação.
Isso se explica, pois as experiências das crianças estão em um processo contínuo de
alargamento. Paulatinamente, vão tendo acesso ao mundo cultural, em seus instrumentos e
signos, propiciando uma expansão do arsenal de imagens retidas na memória e também uma
maior organização-experimentação dos sentimentos. Ao conhecerem o mundo e tudo que nele
contém, fruto do desenvolvimento histórico da humanidade, seus interesses vão se
complexificando, tornando o material que compõe a imaginação mais rico e diversificado.

Os contornos da imaginação na adolescência

A relação com a imaginação também se modifica ao longo das fases do


desenvolvimento humano. Na infância há uma maior liberdade na sua operacionalização e nas
crianças, por sua conduta ser regida por linhas mais imprevisíveis10, é mais comum a
externalização das atividades criadoras (principalmente o brincar, desenhar e narrar). Porém,
“a viva fantasia infantil não está determinada pela riqueza e abundância das suas
representações, mas se deve a uma maior intensidade de sentimentos, a sua maior
12
excitabilidade [...] e a falta de espírito crítico” (VYGOTSKI, 2012, p. 2018). Em síntese: “a
criança é capaz de imaginar bem menos do que o adulto, mas ela confia mais nos produtos da
sua imaginação e os controla menos” (VIGOTSKI, 2009, p. 46). Na medida que o sujeito vai
se desenvolvendo, dialeticamente nas dimensões da maturação biológica e da complexificação
social do psiquismo, há uma “potente ascensão da imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p.45) que
coincide com a adolescência (também chamada de idade de transição 11 nos escritos
vigotkianos).
Outra diferença diz respeito as formas como crianças e adolescentes racionalizam as
imagens, ou seja, as representações imaginativas. Aquelas, principalmente as mais novas,

9
A imaginação, conforme já expomos, desloca-se da memória, mas não se opõe a ela. Para que aquela ocorra é
necessário o apoio desta, que armazena experiências e sentimentos que, combinados, são a base da atividade
criadora. Partimos do princípio de que existem especificidades em cada função psicológica mediadas, mas essas
não atuam como entes autônomos, mas de forma sistêmica.
10
Sobre isso, Vigotski (2003) explica que nessa faixa etária a criança “ainda não elaborou a força moderadora
que regula seu comportamento. Sua fantasia não conhece a repressão nem o autocontrole e é extremamente
impulsiva” (p. 156).
11
Vigotski (2009) demarca que a idade de transição se caracteriza por uma série de relações contraditórias e
polarizadas, sendo “a idade da transgressão do equilíbrio do organismo infantil e do equilíbrio ainda não
encontrado do organismo maduro” (p. 48).
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operam por meio de imagens eidéticas12 visual-diretas, pois “suas lembranças, sua imaginação
e seu pensamento ainda reproduzem diretamente a percepção real com toda a plenitude da
vivência, com toda a abundância de detalhes concretos” (VYGOTSKI, 2012, p. 210). Com a
emergência do pensamento por conceitos, característico da adolescência, a atividade
imaginativa conduzida por imagens eidéticas reconfigura-se gradualmente, assumindo outras
características e funções, ou seja, “como todas as demais funções, a imaginação do
adolescente se modifica e se reconstrói sobre uma nova base sob a influência do pensamento
em conceitos” (VYGOTSKI, 2012, p. 209). Essa mudança, considerada por Vigotski como a
mais essencial que experimenta a imaginação na idade de transição, “significa a passagem do
pensamento concreto, visual-direto ao pensamento em conceitos13” (VYGOTSKI, 2012, p.
210) e “consiste em que se libera das imagens puramente concretas e opera com elementos do
pensamento abstrato” (VYGOTSKI, 2012, p. 213).
Nesse período ocorre uma profunda reestruturação do psiquismo, em relação a
imaginação, em específico, de subjetiva passa a ser objetiva (VIGOTSKI, 2009). Essa questão
é aprofundada por Rubinstein (1973) quando explica que a primeira está “pouco submetida ao
controle crítico do pensamento, que capta mal a realidade, revestindo-se de um véu
fantástico” (p. 118). Em contrapartida, a segunda é crítica e realista e “não se submete
13
incontrolavelmente à subjectividade do sentimento” (RUBINSTEIN, 1973, p. 118) e no que
tange a transformação da realidade, orienta-se a partir de “normas e tendências na evolução da
realidade objectiva” (p. 118).
Esse processo de reestruturação é marcado por rupturas, transgressões e busca de um
novo equilíbrio e verifica-se que “a atividade da imaginação, na forma como se manifestava
na infância, retrai-se na adolescência” (VIGOTSKI, 2009, p. 48). Esse fato é perceptível, por
exemplo, ao analisar as produções infantis. Em determinada idade, por volta dos 10-12 anos,
o desenho deixa de ser uma predileção, salvo em casos específicos, e torna-se atividade
esporádica. O abandono desse interesse acontece porque a criança passa a ter uma relação
crítica com seu desenho, “os esquemas infantis deixam de satisfazê-la; eles parecem-lhe por
demais objetivos e ela chega à conclusão de que não sabe desenhar, pondo de lado o desenho”
(VIGOTSKI, 2009, p. 49).

12
“Geralmente classifica-se como imagens eidéticas as representações visuais-diretas que a criança reproduz com
alucinadora claridade depois de ter percebido uma situação visual-direta ou um quadro” (VYGOTSKI, 2012, p.
209).
13
Vigotski (2012) salienta que com o advento do pensamento abstrato o pensamento visual-direto, ou concreto,
não desaparece por completo da vida intelectual do adolescente, mas “somente se desloca a outro setor” (p. 214).
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No período da adolescência há uma contradição nos processos imaginativos, pois os
conteúdos das atividades criadoras típicas desse período (principalmente as que envolvem
narrativa e literatura) são impregnadas de conteúdo sensível e íntimo com fortes marcas
subjetivas. Dessa forma, gradualmente, vai seguindo pela “linha de atrofia de seus momentos
subjetivos e pela linha de crescimento e consolidação dos momentos objetivos” (VIGOTSKI,
2008, p. 49). O que se ergue de novo no desenvolvimento da imaginação do adolescente é que
ela se intelectualiza devido ao seu entrelaçamento ao pensamento por conceitos, assim “se
integra no sistema de atividade intelectual e começa a desempenhar uma função totalmente
nova da personalidade do adolescente” (VYGOTSKI, 2012, p. 208) e “a fantasia e o
pensamento se aproximam, e a imaginação do adolescente começa a se apoiar nos
conceitos”14 (VYGOTSKI, 2012, p. 213). Dessa forma, duas linhas de desenvolvimento que
até então seguiam caminhos separados se interceptam na idade de transição e seguem, a partir
de então, em estreita conexão.
Vigotski, interessado em encontrar o marco zero da imaginação e da atividade
criadora, visita dados clínicos de pacientes com diagnóstico de afasia15 que não conseguiam
operar pelo ilusório – um deles, por exemplo, em uma conversa ocorrida em um dia
ensolarado e com temperatura amena, era incapaz de dizer que hoje o tempo estava mal e
14
chuvoso. A partir dessas análises psicopatológicas, o teórico chega à seguinte conclusão:
enfermos que padecem de graves alterações em “funções intelectuais superiores estruturadas
na base da linguagem e do pensamento em conceitos demostram a mesma dependência
evidente das percepções diretas, concretas” (VYGOTSKI, 2012, p. 205) ou ainda “com a
perda da linguagem como meio de formação de conceitos, desaparece também a imaginação”
(VYGOTSKI, 2012, p. 219).
O problema central que essa afirmativa revela é da falta de liberdade, pois um homem
sem a habilidade de fazer algo que não esteja vinculado diretamente às situações concretas é
incapaz de criar nas mais diversas esferas da vida social. Nos casos analisados por Vigotski
era notório o aprisionamento dos sujeitos às situações reais vinculadas ao campo perceptivo
imediato. Nesse sentido, o indivíduo é o único ser que tem liberdade para fazer coisas
aparentemente sem sentido ou a entrar em conflito com as necessidades próprias da espécie.
Luria (1991) exemplifica esses casos de total independência consciente dos sujeitos nos casos

14
É mister salientar, conforme faz Vigotski (2012), que essa aproximação não significa uma fusão ou integração
da imaginação ao pensamento.
15
Vigotski (2017) assim conceitua afasia: “a pessoa que se desconectou da linguagem”.
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de heroísmo patriótico na qual se lançam à morte sob tanques ou ataques de inimigos 16. Para
Vigotski (2009) é a liberdade um dos princípios que distingue a pessoa dos demais animais e
encontra sua base no domínio do próprio comportamento. A chave para entender essa questão
encontra-se no pensamento por conceitos que “está relacionado com a liberdade e a intenção
da ação” (VYGOTSKI, 2012, p. 207).
Assim, a imaginação e as atividades criadoras relacionam-se a livre elaboração e
acesso aos elementos da experiência e sua livre combinação exige uma premissa
indispensável: “a liberdade interna do pensamento, da ação, do conhecimento que alcançaram
somente aqueles que dominam a formação dos conceitos” (VYGOTSKI, 2012, p. 207).

Conclusões

Em síntese, para a Teoria Histórico-Cultural a especificidade do humano deve-se “ao


fato da atividade dos homens, ao contrário da dos animais, ser criadora” (LEONTIEV, 1980,
p. 44). No indivíduo, por exemplo, a ação e o resultado do trabalho são sempre projetados-
antecipados na consciência antes de serem efetivados na materialidade. Portanto, possuem a
capacidade de idear (imaginar ideias) antes de objetivar (materializar). Se “o animal se
contenta com o desenvolvimento da natureza, o homem constrói a sua natureza (LEONTIEV, 15
1980, p. 270) por meio da imaginação e das capacidades de atuar com imagens mentais e de
planejar idealmente o futuro.
A inclusão das operações simbólicas é o que possibilita a aparição de um campo
psicológico de estruturação completamente novo, que se liberta das amarras situacionais do
campo imediato-concreto e dirige-se para “o esboço do futuro e cria, portanto, uma ação livre,
independente da situação imediata” (VYGOTSKI, 2017, p. 55). Ao adquirir a capacidade de
imaginar o indivíduo passou a representar no pensamento os fenômenos do mundo que o
cerca adquirindo a capacidade de criar meios técnicos (instrumentos) e simbólicos (signos)
para agir sobre a natureza e objetivar sua existência.
A condição humana, essencialmente e ontologicamente, se vincula aos processos
imaginativos, pois ao criar estratégias intencionais de sobrevivência e ação sobre a natureza o
indivíduo torna-se capaz de operar psiquicamente por meio da produção, reprodução e criação
de imagens. Nessa direção, Pino em vários dos seus trabalhos assevera que: “[...] em última

16
Sobre isso Vigotski (2012) explica que os demais animais não podem realizar operações sem sentido e atuam
regidos por impulsos próprios e estímulos externos, “não pode realizar uma operação volitiva, intencionada,
livre, que não tem sentido desde o ponto de vista da situação” (p. 207).
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instância, o imaginário é o que define a condição humana do homem” (2005, p. 49) e que “a
emergência da consciência é um fenômeno historicamente situado e ligado à atividade
criadora do homem” (2018, p. 231). Ou ainda, em Vigotski: “a criação é condição necessária
à existência” (2009, p. 16). A partir dessas características, e na busca de compreender de
maneira apropriada a constituição psicológica do humano, julga-se essencial abordar a
centralidade da imaginação nesse processo ao longo do desenvolvimento ontogenético, tal
qual delineamos ao longo deste trabalho.

Referências

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WALLON, Henri. Do ato ao pensamento: ensaio de psicologia comparada. Petrópolis:


Editora Vozes, 2015.

17

Recebido em: 30 de outubro de 2021.


Aprovado em: 21 de dezembro de 2021.

Revista de Estudos em Educação e Diversidade. v. 2, n. 6, p. 1-17, out./dez. 2021.


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