Idea e Aletheia: A Confrontação de Heidegger Com Platão

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Victor Sales Pinheiro

Idea e Aletheia:
a confrontação de Heidegger com Platão

Rio de Janeiro
2013
Victor Sales Pinheiro

Idea e aletheia:
a confrontação de Heidegger com Platão

Tese apresentada, como requisito


parcial para a obtenção de título de
doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de Concentração: Filosofia Mo-
derna e Contemporânea.

Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Casanova

Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

H465 Pinheiro, Victor Sales


Idea e alethea: a confrontação de Heidegger com Platão
/Victor Pinheiro Sales. - 2013.
369f.

Orientador: Marco Antônio Casanova.


Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
. Bibliografia.

1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Platão. 3. Filosofia


alemã–Teses. 4. Metafísica – Teses. I. Casa Nova, Marco
Antonio dos Santos. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 1(430)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.

20/11/2013
Assinatura Data
Victor Sales Pinheiro

Idea e aletheia
a confrontação de Heidegger com Platão

Tese apresentada, como requisito parcial


para a obtenção de título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Filoso-
fia, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração: Filosofia
Moderna e Contemporânea.
Aprovada em 10 de outubro de 2013.
Banca examinadora:

__________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Casanova (Orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Marques Cabral
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________________
Profª. Dra. Izabela Bocayuva
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Costa
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Rohden
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA

Para minha esposa Laise, primeira e última leitora de


tudo o que eu penso,doce companhia que alegra e
impulsiona meus dias.

Para nossa filha Maria, nossa felicidade plena.


AGRADECIMENTOS

À minha família, fundamento de minha vida: meu pai Pedro, minha mãe Nena e meu
irmão Pedro, apoiadores incondicionais do meu percurso pessoal e acadêmico.

À minha família carioca, Maria Lúcia, Sergio e Serginho, por todo apoio e carinho.

À minha avó Eva (in memoriam), falecida mas nunca ausente, minha grande amiga e
incentivadora, cuja lição de fé, humildade e perseverança me acompanham diariamente.

Ao meu mestre Benedito Nunes (in memoriam), decisivo para minha vocação filosófi-
ca, e cuja obra me iniciou no labirinto heideggeriano.

Ao meu amigo Padre Fabrizio Meroni, importante tutor espiritual e intelectual.

Ao professor e amigo Marco Antonio Casanova,exemplo de rigor e dedicação à filoso-


fia, cujas traduções, obras, aulas e orientações foram imprescindíveis a um trato crítico com a
história da filosofia, principalmente com Platão, Nietzsche e Heidegger.

Ao amigo e professor Alexandre Cabral, cuja interlocuçãoe ajuda foram inestimáveis


para a consecução desta tese.

Aos meus colegas da UERJ: Rainri Santos, Roberto Kahlmeyer-Mertens, Paulo Gil,
Marcelo Rangel, Rebeca Furtado, Renan Cortez, Rodolfo Souza e Myriam Protasio, sempre
prestativos e entusiasmados pela filosofia.

Aos meus amigos do Rio: Remo Mannarino, Luiz Otávio Mantovanelli, Alexandre
Costa (Tom), Zé Filho e Renato Moraes, pela generosidadee diálogo.

Aos meus amigos paraenses: Evinha, André e Clara Bitar, Angelica Nancy, Pedro
Araújo, Luiz Romano (Lula), Cintya Fontelles, Sandro Alex Simões, Adriano Bastos, Adal-
berto Sá, David Carneiro, André de Aviz, Benjamim Hamoy, André Ribeiro, Nayara e Bruno
Guedes, Liv Sarmento, Luciana Brandão e Ney Gomes, que apoiam meu trabalho intelectual.

Aos meus alunos amigos: Júlio Nassar, Francisco e Teuly Rocha, Diego Vale, Ricardo
Martins, Lívia Coutinho, Carlos Botelho, Kátia Jordy, Felipe Ribeiro, Ilka Steiner, Isis Paiva,
Isabella Emmi, Italo Abati e Douglas Domingues, que com tanto interesse escutam minha
especulação filosófica.

À Capes, pela bolsa de formação acadêmica.

A Deus, por tudo.


O pensamento de Platão segue a mudança da essência
da verdade, mudança essa que se transforma na histó-
ria da metafísica, a qual iniciou sua consumação in-
condicionada no pensamento de Nietzsche. É por isto
que a doutrina da ‘verdade’ de Platão não é algo pas-
sado. Ela é ‘atualidade’ histórica; mas isto não apenas
como ‘efeito posterior’, contabilizado historiografica-
mente, de uma peça doutrinal, nem tampouco como
reanimação ou como imitação da Antiguidade ou co-
mo uma conservação do que nos foi legado. Aquela
mudança da essência da verdade está presente e atual
como aquela realidade fundamental – de há muito fir-
mada e, por isto, ainda inabalável e tudo dominando –
da história universal planetária que se desenvolve em
sua mais nova modernidade.

Martin Heidegger
RESUMO

PINHEIRO, Victor Sales. Idea e aletheia: a confrontação de Heidegger com Platão. 2013. 369
f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O objetivo desta tese é analisar a confrontação de Heidegger com Platão, no que con-
cerne às duas palavras fundamentais da metafísica platônica, idea e aletheia. O primeiro capí-
tulo estuda o horizonte hermenêutico em que ocorre essa confrontação, no contexto da segun-
da fase da obra de Heidegger, após a viragem (Kehre) do seu pensamento: uma meditação
histórico-ontológica capaz de saltar para o impensado do outro início, ao destruir a história da
ontologia baseada na metafísica da idea, que constitui o primeiro início. O segundo capítulo
concentra-se no conceito de idea, nos seus múltiplos aspectos: metafísico, ontológico, teoló-
gico, eidético, ótico, apriorístico e dualista. A noção de ideia implica uma transição epocal no
sentido filosófico da verdade, considerada não mais como aletheia, mas como correspondên-
cia do pensamento à ideia, à entidade dos entes. Esse é o objeto do terceiro capítulo, que rela-
ciona o acontecimento apropriativo do ser (Ereignis) à verdade histórico-ontológica da physis
e à verdade metafísica da ideia.

Palavras-chave: Heidegger. Platão. Metafísica. História do ser. Ideia. Aletheia. Ereignis.


ABSTRACT

PINHEIRO, Victor Sales. Idea and Aletheia :Heidegger’s confrontation with Plato. 2013.
369 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

The goal of this thesis is to analyze Heidegger’s confrontation with Plato, regarding
the two fundamental words of platonic metaphysics, idea and aletheia. The first chapter stud-
ies the hermeneutical horizon in which occurs this confrontation, in the context of the second
phase of Heidegger’s work, after the turn (Kehre) of his thought: a historical-ontological
meditation able to leap to the unthought of the other beginning, by destroying the history of
ontology based on the metaphysics of the idea, that constitutes the first beginning. The second
chapter deals with the concept of idea, in its multiples aspects: metaphysical, ontological,
theological, eidetic, optic and dualistic. The notion of idea imply a historical transition in the
philosophical meaning of truth, considered no more as aletheia, but as correspondence of
thought with the idea, the entity of beings. This is the object of the third chapter, which relates
the event of appropriation of being (Ereignis) with the historical-ontological truth of physis
and with the metaphysical truth of idea.

Keywords: Heidegger. Plato. Metaphysics. History of being. Idea. Aletheia. Ereignis.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................9
1. CONFRONTAÇÃO HISTÓRICA COM O PRIMEIRO INÍCIO ................ ............23
1.1. Confrontação com a coisa do pensamento.................................................................... 23
1.2.Metafísica como platonismo: a dominância entificante da pergunta diretriz............36
1.3. Destruição da história da ontologia ................................................................ ............44
1.4.Viragem ao pensamento histórico.................................................................... ............63
1.5. Meditação histórica do seer ............................................................................ ............81
1.6. Passo de volta e epoché do seer ....................................................................... ............95
1.7. Salto ao outro início......................................................................................... ..........117
1.8. Andenken e Vordenken: o impensado a ser pensado...................................................142
2. IDEA ................................................................................................................ ..........150
2.1. Ser como idea ................................................................................................... ..........150
2.2. O sentido eidético da idea................................................................................ ..........157
2.3. O sentido ótico da idea .................................................................................... ..........176
2.4. Idea e chorismos: a cisão entre ser e aparência .............................................. ..........182
2.5. A idea como a priori ......................................................................................... ..........198
2.6. A ideia do bem: teleologia e ontologia ............................................................ ..........207
2.7. A ideiado bem e a onto-teo-logia metafísica ................................................... ..........213
2.8. A dimensão deveniente, valorativa e niilista da metafísica ............................ ..........223
3. ALETHEIA ...................................................................................................... ..........234
3.1. O arco reflexivo sobre a verdade .................................................................... ..........234
3.2. Aletheia e logos: velamento sofístico e desvelamento dialético ...................... ..........236
3.3. Da homoiosis (adequatio) à aletheia ................................................................ ..........250
3.4. A coerção da liberdade: a verdade das sombras ............................................ ..........265
3.5. A consecução filosófica da liberdade humana ................................................ ..........275
3.6. ‘A teoria platônica da verdade’:a metafísica humanista da paideia ocidental..... ...291
3.7. História essencial da verdade do seer: o dizer mítico da lethe....................... ..........302
3.8. Aletheia e Lethe; Physis e Ereignis .................................................................. ……..328
CONCLUSÃO………………………………………………………………………….357
REFERÊNCIAS ……………………………………………………………………….363
9

INTRODUÇÃO

Esta teseinvestiga a confrontação de Heidegger com Platão, especificamente em dois


conceitos fundamentais: idea e aletheia, que ocupam, cada qual, um capítulo. Antes de estu-
dá-los detidamente, porém, é necessário compreender o modo como Heidegger se confronta
com os filósofos da tradição e o papel que atribui a Platão no contexto da história do seer 1,
consoante a viragem(Kehre) no seu pensamento. O primeiro capítulo da Tese, portanto, se faz
imprescindível para delimitar qual Platão se estudará, considerando que, no interior da obra
de Heidegger, não há uma única leitura de Platão. Essa pluralidade de leituras de Platão res-
ponde aos contextos hermenêuticos a partir dos quais se dão as apropriações heideggerianas
do filósofo grego. Assim como não há, por exemplo, uma imagem única, estática de Aristóte-
les, Kant e Nietzsche, não há uma leitura unívoca de Platão na obra de Heidegger. O Platão
visado nesta Tese é o analisado na obra tardia de Heidegger, após a viragem, em que a noção
de acontecimento apropriativo(Ereignis) desempenha papel central.
Em primeiro lugar, como esclarecimento metodológico, importa explicitar o modo de
relacionar Heidegger e Platão adotado por esta Tese. De alguma forma, ela inverte a ordem
expositiva do livro referencial de Zarader sobre as palavras de origem, que, depois de desen-
volver minuciosamente o sentido e as transformações das palavras fundamentais – physis,
aletheia, logos, khreon, moira, eon -, dedica-se a elucidar o projeto que inspira a investigação
heideggeriana da história do seer, a filosofia do acontecimento apropriativo (Ereignis)2.
Como em Hegel, a interpretação da história da filosofia de Heidegger é questão central
e indissociável do seu próprio pensamento. Não há, por um lado, o filósofo do acontecimento
apropriativo e, por outro, o historiador-intérprete da história da filosofia. Ao contrário, a histó-
ria da filosofia de Heidegger só é inteligível a partir do acontecimento apropriativo , dos envi-
os epocais do seer que a conformam. Por isso, Gadamerconsidera a filosofia de Heidegger
impensável sem a consciência histórica despontada no século XIX, a qual submete “a preten-
são de conhecimento da filosofia” à legitimação diante de seu passado. Uma característica

1
Conforme as traduções de Casanova, opta-se pela grafia portuguesa arcaica da palavra “seer”, seguindo a inten-
ção de Heidegger, na segunda fase de sua obra, após a viragem, de distinguir, também gramaticalmente, o ser em
sua infinita diferença em relação ao ente. Essa distinção se dá tendo em vista o ser pensado pela metafísica como
ser do ente, entidade, ente supremo, realmente ente, etc. Com a grafia arcaica da palavra alemã “Seyn”, Heide-
gger marca essa diferença entre o seer pensado a partir do acontecimento apropriativo – o ser como tal, em si
mesmo - e o ser pensado a partir da metafísica – ser do ente.
2
Cf. ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
10

marcante da obra de Heidegger, segundo ele, é “a inserção da história no modo de questiona-


mento da filosofia.”3 Daí a importância indispensável de se estudar a sua compreensão de
história da metafísica como desdobramento do envio epocal do seer no primeiro início da filo-
sofia, que se evidencia de modo particular em duas palavras fundamentais do pensamento de
Platão, idea e aletheia.
O que importa ressaltar desde já, com Benedito Nunes, é que, “no ato de reinterpretar
todas as grandes filosofias”, “conferindo-lhes novas identidades”, o pensamento de Heidegger
encontra “o princípio mesmo de sua economia interna ou, se quisermos, de sua endogenia.”4
A interpretação apropriativa dos filósofos da tradição constitui a essência do filosofar heide-
ggeriano e não pode ser compreendida em todo o seu alcance e complexidade sem a penetra-
ção no interior dessa mesma filosofia. Esse é o sentido da leitura interna que esta Tese reali-
za, dimensionada no interior da obra heideggeriana. Em poucas palavras, a leitura de Platão
não pode jamais ser considerada um capítulo destacável da totalidade da meditação ontológi-
co-historial heideggeriana. É esse modo endógeno de incluir e contextualizar a leitura heide-
ggeriana de Platão no interior do pensamento do acontecimento apropriativo, portanto, o fun-
damento desta Tese. E é isso que a distancia das formas exteriores de crítica filológica ou
propriamente filosófica que isolam os momentos em que Heidegger se volta especificamente
a Platão, descurando os pressupostos hermenêuticos subjacentes à sua peculiar interpretação e
do contexto maior dos caminhos da obra a que esses momentos pertencem.
Essa Tese também não trata da influência ou presença de Platão no pensamento do fi-
lósofo alemão, como se aquele pudesse, de alguma forma, ser considerado fonte deste. Isso
poderia justificar um platonismo ou um antiplatonismo de Heidegger. Como lembra Courti-
ne5, essa perspectiva foi explorada principalmente na década de 1960 por franceses como
G.Deleuze, J.Derrida, M.Foucault, Ph.Lacoue-Labarthe e B.Pautrat, que analisam o curso de
Heidegger sobre Nietzsche – momento privilegiado de sua conceituação do platonismo como
a estrutura metafísica da tradição ocidental - no sentido de afirmar que a tese heideggeriana
ainda se encontra, ela mesma, amarrada no platonismo que projeta em Nietzsche, uma vez que
subestima ou não reconhece neste a efetiva superação do platonismo.

3
GADAMER, Hans.-Georg. “Hegel e Heidegger”, p.127.In: Hegel. Husserl. Heidegger. Trad. M.A.Casanova.
Petrópolis: Vozes, 2012. pp.122-140.
4
NUNES, Benedito. O Nietzsche de Heidegger. Rio de Janeiro, Pazulin, 2000. p. 18.
5
COURTINE, Jean.-François. ‘Le platonisme de Heidegger’,p.130-131. In: Heidegger et la phenomenologie.
Paris: Vrin, 1990. pp. 129-158.
11

Essa superação estaria contida exatamente nos elementos decisivos da obra de Nietzs-
che que são ignorados por Heidegger. Esses elementos ignorados - propositadamente?, per-
guntam-se os críticos de Heidegger - seriam a forma literária, o estilo, a dimensão autobiográ-
fica, o corpo, a animalidade, a dispersão, a metáfora generalizada, o simulacro, o caos, a retó-
rica, a poética, enfim, tudo o que comprovaria a contento a dimensão não-metafísica da obra
de Nietzsche, dimensão essa que Heidegger simplesmente descura na sua leitura deNietzsche
como um autor ainda enredado na metafísica platônica, mesmo quando a nega explicitamente.
Esse tipo de crítica externa, que mobiliza argumentos interpretativos específicos de
uma obra, é recorrente na condenação peremptória das violências heideggerianas ao texto
platônico, com base na forma literária e dramática do diálogo, no uso didático de metáforas
poéticas, na exploração da retórica, na ausência de um sistema orgânico e definitivo, etc. Po-
rém, como se argumenta no primeiro capítulo desta Tese, essa crítica externa não leva em
consideração o modo próprio de Heidegger lidar com os autores da tradição, principalmente
depois da viragem de seu pensamento. Como afirma Courtine: “A história da relação com
Platão não é, pois, estranha ao pensamento de Heidegger, exterior a ele, mas é talvez o cora-
ção mesmo do movimento do seu pensamento, na medida em que o seu pensamento se volta
precisamente à determinação da aletheia.”6
Como se sabe, a determinação de aletheia será a palavra fundamental do pensamento
de Heidegger depois da viragem, e Platão se torna um necessário protagonista nesse contexto,
pois é a partir dele que essa noção se torna metafísica, deixando o dinamismo da physis para
trás ao cristalizá-la na permanência da idea, do ser como presença.
Desse modo, não se pretende comparar as duas filosofias, a de Heidegger e a de Pla-
tão, analisando em que medida uma é mais consistente do que a outra, ou até que ponto Hei-
degger não compreendeu efetivamente a filosofia platônica, ou se Platão é irredutível à leitura
do alemão, e assim por diante. O Platão estudado nesta Tese é o Platãode Heidegger, não
porque este tem primazia sobre aquele, mas porque a interpretação heideggeriana é necessari-
amente apropriativa, de acordo com a confrontação, a destruição e a história do seer,sendo a
elucidação desses conceitos imprescindível para demonstrar a razão pela qual não se pode
simplesmente considerar Heidegger um intérprete neutro capaz de expor as Teses platônicas
de modo imparcial e objetivo.
Como se explica mais detidamente no primeiro capítulo, confrontar-se com um filóso-
fo não é descrevê-lo, elencar as principais premissas do seu pensamento e verificar a consis-

6
COURTINE, Jean.-François. ‘Le platonisme de Heidegger’,p.133. In: Heidegger et la phenomenologie. Paris:
Vrin, 1990. pp. 129-158.
12

tência lógica da sua argumentação ou a coerência da forma literária do seu pensamento com o
conteúdo por ele expresso. Para compreender um pensador, Heidegger precisa antes inseri-lo
no projeto histórico de mundo a que ele pertence, consoante a destinação epocal do seer de
que ele é voz. Como diz Casanova, “os pensadores desempenham para Heidegger justamente
o papel daqueles que dão voz à abertura do ser do ente na totalidade e que têm por tarefa pri-
mordial a colocação da questão sobre a verdade [...] do ser do ente na totalidade.”7
É o modo específico de Heidegger lidar com a tradição que precisa ser compreendido
antes de criticá-lo de fora, descurando o sentido e a direção da sua especulação.
Por essa razão, o título desta Tese destaca a confrontação de Heidegger com Platão,
questionando o papel de Platão no interior da filosofia de Heidegger, e não uma possível ré-
plica platonista dos supostos abusos que a apropriação heideggeriana comporta8. Na verdade,
Heidegger não interpreta Platão, mas se confronta com a coisa mesma do pensamento que
emerge da sua obra, das suas palavras fundamentais. Desse modo, não faz sentido algum
comparar as filosofias de ambos sem atentar para a coisa do pensamento que está em jogo,
uma vez que não existe a filosofia de Heidegger ou a filosofia de Platão, mas apenas a filoso-
fia como tal, a coisa dopensamento que encontra expressão em Heidegger e Platão e em todos
os outros filósofos decisivos da tradição – como Anaximandro, Parmênides, Heráclito, Aristó-
teles, S.Tomás, Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche, etc. -, que trataram diretamente da mesma
coisa. Como se verá em seguida, o espaço de aproximação que os une é a coisa do pensamen-
to. Esse é o sentido da afirmação de Heidegger em O fim da filosofia e a tarefa do pensamen-
to: “a questão crítica que pergunta pela coisa do pensamento (die Sache des Denkens) perten-
ce necessária e constantemente ao pensamento.”9 Ou seja, a comparação e o debate entre filo-
sofias pressupõe uma determinação da coisa mesma do pensamento, ainda que isso não seja
reconhecido, sendo essa a tarefa primordial do pensamento10.
Considerando a extensão e a centralidade da análise heideggeriana de Platão,
C.Zuckert divide a obra de Heidegger em três momentos diferentes, cada qual começando a

7
CASANOVA, Marco Antônio. Apresentação, p. xv. In: HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad.
M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. pp. v-xviii
8
Dois trabalhos se destacam neste sentido: ROSEN, Stanley. The question of being: A Reversal of Heidegger.
Indiana : St.Augustine Press, 2002 ; GONZALEZ, Francisco. Plato and Heidegger: A Question of Dialogue.
Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2009.
9
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p.71. In: Heidegger – Os pensadores.
Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.pp. 65-81. (Optou-se pela tradução literal de Sache por “coisa” e
não por “questão”, como sugerido pelo tradutor brasileiro, Ernildo Stein)
10
Cf. CICARELLI, Pierpaolo. Il Platone di Heidegger. Dalla ‘differenza ontológica’ alla ‘svolta’. Napoli: Socie-
tà editrice il Mulino, 2002. p.xii-xiii.
13

partir de uma (re)leitura de Platão: em primeiro lugar, o curso sobre o diálogo Sofista, em
1924-1925, enquanto trabalhava na elaboração de sua obra capital, Ser e tempo, publicada em
1927. Em seguida, tem-se o curso Da Essência da verdade, de 1931-1932, sobre a República
e o Teeteto, que constituiria a segunda fase platônica de Heidegger, em vista à viragem, cujo
marco é a conferência homônima de 1930, publicada apenas em 1943, posteriormente incluí-
da na coletânea Marcas do caminho. A culminância de seu pensamento teria como marco
platônico o curso Parmênides, que inclui uma alentada interpretação do mito de Er da Repú-
blica, em 1942-1943. A essência dos problemas filosóficos que o ocupam nessas três fases,
organizadas por Zuckert, podem ser diretamente relacionadas a questões platônicas 11.
Por sua vez, esta Tese considera apenas a divisão convencional da obra de Heidegger
em duas fases, dividas pela viragem, que é marcada pela insurgência do pensamento do acon-
tecimento apropriativo. Desse modo, não se estuda detidamente o primeiro encontro de Hei-
degger com Platão na década de 1920, no âmbito do projeto da ontologia fundamental e da
hermenêutica da facticidade 12. Na verdade, o curso sobre o Sofista de Platão, emblemático
desse primeiro encontro, é analisado no terceiro capítulo, no item 3.2., para acompanhar o
arco reflexivo de Heidegger sobre a noção de aletheia, de correção – baseada na metafísica da
idea - ao desvelamento do seer em meio à clareira, conforme a direção especulativa da vira-
gem. Por isso, esta Tese se concentra na segunda fase da obra de Heidegger, caracterizada
pelo pensamento ontológico-historial do acontecimento destinamental do seer, a partir da dé-
cada de 1930, em que sobressaem obras comoNietzsche, Introdução à metafísica, Questões
básicas da filosofia – problemas escolhidos de ‘lógica’, Contribuições e Meditação, além de
textos como Da essência da verdade, Doutrina platônica da verdade, Carta sobre o huma-
nismo, O dito de Anaximandro, O fim da filosofia e a tarefa do pensamento e Tempo e ser. As
obras da primeira fase, elaboradas ainda na década de 1920, principalmente Ser e tempo e o
curso sobre O Sofista, servem de esteio, quando necessárias, para se acompanhar o surgimen-
to das intuições iniciais que serão desenvolvidas ou alteradas com a viragem, como a noção
de destruição da história da ontologia e a noção de verdade como correção e desvelamento.
Essa delimitação da fase da obra estudada exige a compreensão do modo hermenêuti-
co próprio de Heidegger tratar a tradição filosófica - a confrontação - nesse momento do seu
caminho de pensamento, em que o decisivo é a a meditação histórica sobre o primeiro início

11
Cf. ZUCKERT, Catherine. Postmodern Platos. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p. 284, nota
3.
12
Para uma análise contextualizada e detida dessa leitura cf. CIMINO, Antonio. Ontologia, storia, temporalità.
Heidegger, Platone e l’essenza della filosofia. Pisa: ETS, 2005; e PELUSO, Rosalia. Logica dell’altro. Heide-
gger e Platone. Napoli: Gianni Editori, 2008.
14

da filosofia como metafísica. Sem essa compreensão hermenêutica, a mera exposição da ar-
gumentação heideggeriana parece arbitrária e facilmente criticável, tanto do ponto de vista
filológico quanto do ponto de vista historiográfico. O tipo de crítica comum que condena
Heidegger pela violência hermenêutica e incompreensão da especificidade dos filósofos anali-
sados normalmente incorre no reducionismo de descontextualizar os escritos em que Platão
ou o platonismo são tematizados do âmbito maior da obra de Heidegger 13.
Para se criticar a leitura heideggeriana de Platão do ponto de vista filológico-
exegético, deve-se, antes, criticar a totalidade do projeto fenomenológico-hermenêutico que a
sustenta. Isso porque, a rigor, Heidegger não tem qualquer pretensão propriamente historio-
gráfica e humanista em relação a Platão ou a qualquer filósofo decisivo da tradição. Ele não é
historiador da filosofia em sentido estrito, voltado a reconstituir a estrutura do pensamento de
autores. Como diz Gadamer, “por mais que ele mesmo [Heidegger] tenha buscado o começo
de nossa história junto aos gregos, ele não o fez como um humanista, nem como um filólogo
ou historiador, que seguem de maneira inquestionada a sua tradição.”14
Ao contrário, Heidegger figura como um crítico radical de uma mera “volta aos gre-
gos”15, tendência presente no humanismo helenista de alguns de seus contemporâneos.
O que singulariza o diálogo de Heidegger com os pensadores da tradição, distinguin-
do-o da forma usual do comentário exegético ou do escólio interpretativo, é o fato de que o
que está em jogo não é somente o dito num texto, mas, principalmente, o “não dito”. Mesmo
uma análise aparentemente filológica, acompanhada por uma tradução interpretativa de cada
linha e palavra, não pode ser considerada ciência filológica, porque o que Heidegger conside-
ra a “doutrina” de um pensador é o “não dito” em seu dizer, que é exatamente a retração cons-
titutiva de todo envio epocal do seer. No caso da alegoria da caverna tratada no texto A teoria
platônica da verdade, por exemplo, o não-dito a ser investigado é “a viragem na determinação
na essência da verdade”16, ainda que Platão não o manifeste explicitamente em momento ne-
nhum da alegoria. Além de ser um princípio hermenêutico já desenvolvido por Schleierma-
cher, o de que uma interpretação deve extrair mais do que expressamente contido num texto, a

13
Um exemplo típico dessa leitura reducionista é HYLAND, Drew. Questioning Platonism. New York: State
University of New York Press, 2004.
14
GADAMER, Hans-Georg. “Heidegger e os gregos”, p. 61. In: Hermenêutica em retrospectiva.Vol.1 Heidegger
em retrospectiva. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007, pp.49-70.
15
Ibidem.
16
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 215. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp. 215-250.
15

busca de Heidegger pelo não-dito responde a uma questão de ordem ontológica, pois é o seer
que não se deixa entrever por completo quando se plasma na linguagem dos autores da tradi-
ção.
Antes de se considerar arbitrário tal pressuposto, como se fosse um salvo-conduto para
projetar no texto algo que lhe seja estranho, é necessário reconhecer, com Casanova, “que as
questões habitualmente tratadas como filosóficas não possuem para ele [Heidegger] senão um
caráter derivado e só encontram a sua determinação fundamental em uma articulação essenci-
al com uma questão de base”17. Essa questão é exatamente a questão do acontecimento do ser
(Ereignis), da constituição de ontologias históricas em geral, a partir da qual o pensamento do
não-dito não é um arbítrio hermenêutico, mas participa ele mesmo da fala que enuncia o ser
exposto e implícito no texto. Interessa-lhe, principalmente, remontar à ontologia histórica de
que a obra de um filósofo é voz.
O projeto confrontativo de Heidegger implica, portanto, a articulação constante de um
pensador ao ser que o requisita. Em Nietzsche II, Heidegger afirma que “o pensador nunca
pode dizer aquilo que lhe é mais próprio”, porque a “requisição imediata do ser” que determi-
na a fala do pensador “precisa permanecer sem ser dito[a]”18. O que há de mais próprio em
um pensador não é propriedade ou atributo seu, mas do seer que dele se apropria. Núcleo da
história epocal do seer, o acontecimento apropriativo requisita a voz do pensador, as suas pa-
lavras fundamentais, apropriando-se dele e dando-lhe a medida simples do seer que condicio-
na uma época histórica. O pensamento de um pensador acolhe a remissão do ser em seus pro-
jetos, suas destinações históricas. Conclui Heidegger: “Esses projetos, porém, não fazem outra
coisa senão ratificar o seu pertencimento ao que foi remetido [pelo seer].”19 Desse modo, a
confrontação histórica perseguida por Heidegger busca a historicidade do ser no pensador e
não do pensador. A historicidade da confrontação não visa a ele, pensador, mas ao seer que
nele se faz ouvir pelo acolhimento apropriativo da destinação epocal. Inversamente, o que
Heidegger chama de “mero cálculo historiográfico” (historische verrechnung) concentra-se
apenas nos limites do próprio pensador, isto é, no que é explicitamente dito no seu texto. Co-
mo se sabe, o texto em suas dimensões linguísticas e literárias é objeto de investigação histo-
riográfico-filológica, da qual Heidegger se afasta.

17
CASANOVA, Marco Antônio. Apresentação. In: HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.vi.
18
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Tradução e apresentação M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 374
19
Ibidem.
16

Desse modo, o sentido da história do seer precisa ser estudado em item próprio, ainda
no primeiro capítulo. O que importa notar nesse momento é que Heidegger não lida com o
texto apenas, mas com o contexto da ontologia histórica a que esse texto pertence e com o
modo como o texto ressoa e vela essa destinação epocal do seer. Por isso, o texto nunca é a
fonte única da interpretação heideggeriana: Explica Casanova:

não é apenas no interior da produção específica dos autores da tradição que se deve
buscar, segundo Heidegger, a essência de seu pensamento, mas também e funda-
mentalmente na extensão dessa produção no interior da ontologia sedimentada de
seus mundos.20

Por isso, Heidegger pode alcançar mais do que Platão efetivamente escreveu, porque
se confronta com a questão mesma do pensamento, a questão do ser, tanto quanto Platão se
confrontou. Heidegger parte de Platão, mas não se detém exclusivamente nele. Para além do
expresso no texto platônico, portanto, deve-se buscar o impensado e o não-dito nele velado,
pois, como argumenta Benedito Nunes, “todo texto filosófico carrega uma margem de não
pensado, de possivelmente pensado”, uma vez que “todos os pensadores lidam, de diferentes
maneiras e até sob uma forma negativa, com a questão do ser.”21
O pensamento do ser ultrapassa o texto em que o filósofo se exprime, é o pano de fun-
do no qual toda reflexão filosófica já sempre se situa e a partir da qual extrai o seu sentido. O
filósofo é, na verdade, um porta-voz do ser que nele se faz linguagem, mas não inteiramente,
ou seja, sem se reduzir completamente ao texto em que se manifesta. Isso porque é da nature-
za do seer velar-se sempre que se manifesta. A manifestação, essenciação do seer se dá sob a
forma de um envio epocal que conforma as possibilidades ontológicas do pensamento e, por-
tanto, condiciona as filosofias. Nesse sentido, um autor da tradição não pode senão dizer a
verdade do ser que lhe é dada expressar; sua obra é o “testemunho de uma oculta necessidade
do próprio ser”22. Nesse momento, convém introduzir, com uma síntese de Benedito Nunes, o
problema da história do seer, que será tratado detidamente a seguir, em tópico específico:

De certo modo, o pensador, por essa compreensão [do ser] atraído, articula-a inde-
pendentemente da sua vontade. É dela uma espécie de emissário, de núncio extraor-
dinário de recônditas intenções só por seu intermédio transmitidas. O ato do filósofo

20
CASANOVA, M.A. Apresentação. In: HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II. op.cit., pp. vi-vii.
21
NUNES, Benedito. O Nietzsche de Heidegger. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000. pp. 20-21.
22
Ibid., p.24.
17

obedece a uma prévia ação que açambarca o seu pensamento, porque determinativa
de tudo quanto pensa ou produz. Assim, extravasando os limites do pensar individu-
al, o pensamento do ser, que a compreensão sustenta, se transfere às épocas que cir-
cunscreve; como pensamento, configura a história, de que é o cerne: a história do
ser, em que se enquadram o processo histórico e a historiografia.23

Como fica claro a partir da última parte dessa assertiva de Benedito Nunes, é ocioso
estudar o processo histórico da filosofia ou a historiografia filosófica sem antes enquadrá-las
na história do seer a que pertencem. Para Heidegger, a historiografia é sempre secundária,
derivada da abertura do ente na totalidade proporcionada pelo envio do ser, que configura
uma época histórica. Como explica Heidegger em Questões básicas da filosofia, o aconteci-
mento que caracteriza a história do seer é “mais real e mais eficaz do que todas as ocorrências
e fatos historiográficos, porque é o fundamento deles.”24 O esclarecimento prévio dessa noção
serve de precaução contra as interpretações errôneas que consideram a abordagem heideggeri-
ana de Platão uma análise historiográfica sobre uma doutrina relevante do passado a ser deba-
tida em termos alheios à hermenêutica em curso na obra heideggeriana.
Nesse momento, importa perguntar: como o modo de Heidegger compreender um
“texto” - a partir do contexto histórico do envio do seer e do não-dito – influencia na compre-
ensão da relação dos diálogos platônicos entre si e a formação de um sistema platônico? Em-
bora imprescindível para os estudos contemporâneos de Platão, essa questão não lhe é funda-
mental, pois Heidegger não se propõe a “discutir detalhadamente todos os ‘diálogos’ de Pla-
tão em sua conexão”25. Por isso, é possível simplesmente equiparar as suas menções a Platão
ao platonismo, pois, para ele, não há, por um lado, Platão, o autor intacto de um texto, e, por
outro, o platonismo, a doutrina que a tradição elaborou a partir de sua obra, não necessaria-
mente fiel ao seu pensamento, ou a organização sistemática desse pensamento. Com efeito, no
curso sobre Nietzsche, Heidegger adverte que está preocupado em delinear os traços decisivos
da filosofia de Platão, que são expressos em palavras fundamentais como idea, e não com a
filosofia de Platão propriamente dita:

Dizemos platonismo e não Platão porque não pretendemos dar sustentação à con-
cepção de conhecimento aqui em questão a partir de uma análise originária e minu-

23
NUNES, Benedito. O Nietzsche de Heidegger. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, p. 22.
24
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p.41 (§14).
25
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’, p. 215.In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp. 215-250.
18

ciosa da obra de Platão, mas apenas realçamos de maneira rudimentar um traço de-
terminado por ela.26

Isso não quer dizer, porém, que a leitura heideggeriana simplesmente sobrepõe um
platonismo, uma elaboração doutrinária posterior, à filosofia textual de Platão. A esse respei-
to, no curso sobre Parmênides, Heidegger afirma: “a tentativa de interpretar Platão com o
auxílio de alguma espécie de platonismo é a própria estagnação.”27 Sem a ilusão de objetivi-
dade filológica, Heidegger recorre ao próprio texto de Platão, às suas passagens principais e
palavras decisivas, para escutar a voz do seer nelas enviadas, ainda quando não-ditas expres-
samente. Um exemplo marcante desse procedimento hermenêutico é a transição da essência
da verdade na alegoria da caverna, transição essa que não é dita expressamente, mas que per-
manece latente. Para Heidegger, a mudança essencial operada por Platão é afirmação da meta-
física que entifica o ser por sua equiparação à idea do ente. Portanto, essa mudança deve ser
observada na transformação a que são submetidas as noções de idea – responsável pela entifi-
cação ontológica do ente – e de aletheia – subjugada à idea e rebaixada à correção do juízo.
Dessa maneira, o segundo capítulo desta Tese enfrenta o problema platônico da idea
nas várias nuances com que Heidegger caracteriza a insurgência do pensamento metafísico no
Ocidente. Em primeiro lugar, deve-se compreender a derivação da ideia a partir da noção não
metafísica de physis, do desvelamento do ente na totalidade que preserva a dinâmica alethéti-
ca da mostração e ocultamento do ser. A afirmação do ser como idea equaciona essa dinâmica
numa separação (chorismós) entre ser e aparência, um dos elementos básicos da filosofia pla-
tônica. Ora, o chorismós ofusca a diferença ontológica entre ser e ente, ao confundir o ser
como entidade máxima do ente, como ser do ente, impossibilitando a sua consideração sepa-
rada, o ser em si mesmo. Neste segundo capítulo também se estuda a temporalidade apriorís-
tica da idea platônica, determinante para as sucessivas posições fundamentais da metafísica
ocidental, que renovam o esquecimento do ser inaugurado por Platão. Essencial na análise de
Heidegger também é a compreensão ontológica e teológica da ideia do bem em Platão, a par-
tir da implicação metafísica da divindade fundamental com a entidade máxima da realidade, o
ser do ente, que estrutura a realidade como causalidade e sustentação ontológica. Consideran-
do a dimensão eidética e óptica da idea platônica, Heidegger investiga a origem do subjeti-

26
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad. M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
137 (Seção Verdade no platonismo e no positivismo. A tentativa nietzschiana de uma inversão do platonismo a
partir da experiência fundamental do niilismo).
27
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. §6, Recapitulação 1, p. 142.
19

vismo e do niilismo em Platão, como pilastra que alicerça a metafísica moderna e o desdo-
bramento nietzschiano da filosofia do devir e do valor, que tem como fundamento a primazia
do ente sobre o ser.
Para Heidegger, é a compreensão do ser como idea que fundamenta a faculdade repre-
sentativa do homem moderno, tanto no contexto do ego cogito de Descartes, como no da uni-
dade sintética da percepção de Kant, ou no da vontade de poder de Nietzsche. As interpreta-
ções metafísicas do ser são, para Heidegger, variações do platonismo: a substância de Aristó-
teles, a essentia de S.Tomás, o Cogito de Descartes, as categorias do Entendimento de Kant,
culminando na dialética idealista de Hegel e na vontade de potência de Nietzsche. A debatida
consequência desse esquema interpretativo é a redução das formas contrapostas ao idealismo
platônico a formas sublimadas desse mesmo platonismo, cujo núcleo originário subsistiria às
mais diversas correntes “metafísicas”. O paroxismo é atingido quando Nietzsche, nada obs-
tante sua declarada oposição à teoria dos valores ideais, à ideia como valor, é considerado
essencialmente platônico. Portanto, segundo a leitura heideggeriana, justifica-se a primazia de
Platão e do platonismo na história da metafísica, como origem e destinação da filosofia.
A partir da compreensão dessa noção platônica fundamental, idea, estuda-se, no ter-
ceiro capítulo desta tese, a noção de aletheia, central no pensamento tardio de Heidegger, que
almeja alcançar a verdade do seer. Platão é o marco de transição da verdade como desvela-
mento (aletheia) para verdade como correção, e conserva ainda elementos das duas fases no
interior de suas imagens filosóficas, como a alegoria da caverna e o mito de Er, ambos cons-
tantes do célebre diálogo denominado República. A compreensão da verdade do seer, conso-
ante o pensamento do acontecimento apropriativo (Ereignis), demanda a análise do primeiro
início do pensamento na aurora grega da filosofia ocidental, sendo a obra de Platão o locus em
que se registra exatamente a transição do pensamento alethético do ser para o pensamento
lógico ou metafísico da verdade como correção que denota a dependência ontológica do ser ao
ente, na verdade, a redução do ser ao ente.
No contexto da história do seer, a leitura dos gregos em geral e a de Platão em particu-
lar ocupa lugar privilegiado na interpretação do primeiro início da filosofia como metafísica,
de seu esgotamento e de sua iminente superação. A busca pelo fundamento do despontar ini-
cial da filosofia leva Heidegger à identificação da metafísica ao platonismo, como núcleo do
processo de estruturação do pensamento como representação metafísica da realidade. A con-
versão da noção de aletheia do processo dinâmico e físico – relacionado à emergência da
physis – à correção da representação eidética do homem marca uma mudança histórica no
destino do seer. Consoante essa transição epocal, de passagem de uma época para outra na
20

história do seer, o pensamento platônico conteria tanto (1) os traços determinantes da interpre-
tação grega originária do sentido do ser, perceptíveis nas palavras originárias de Parmênides e
Heráclito, como (2) os elementos que a inverteriam no sentido de uma representação fundante
que constituiria a essência da metafísica. Exatamente por isso, o pensamento platônico seria o
lugar privilegiado para se repensar a história do ser, sendo o platonismo a matriz metafísica da
filosofia. Concentrar-se no pensamento platônico seria um primeiro passo para trás, embora
não retrospectivo, no contexto de uma meditação histórica que possa preparar o advento de
uma nova fase da história do ser. Com efeito, trata-se de um passo de volta que destrói a tra-
dição platônica da filosofia para pensá-la a partir do acontecimento apropriativo que a origi-
nou essencialmente. Daí resulta a reconstrução histórica da ontologia, pela qual Heidegger lê
a história da filosofia ocidental a partir de seu início platônico, como uma progressiva redução
do pensamento aos limites da representação metafísica. Essa redução filosófica é a condição
do efetivo surgimento da metafísica enquanto tal, de seu esgotamento final e de sua conse-
quente superação.
Portanto, uma crítica efetiva à apropriação heideggeriana deve, primeiro, compreender
a complexidade do projeto filosófico que a anima. Perder de vista o sentido da destruição da
história da ontolologia e sua modulação no contexto da confrontação histórica simplesmente
neutraliza a crítica que se pretende fazer a Heidegger, pela falta de compreensão da intenção
hermenêutica do autor estudado. Em poucas palavras, tratar de Platão e do platonismo no II
Heidegger – para usar a divisão de Richardson explicada oportunamente - sem estudar a con-
frontação com o primeiro início da filosofia, a destruição e a repetição da questão do ser, evi-
dencia ingenuidade do intérprete, que desconhece o elemento principal que orienta o pensa-
mento heideggeriano. Essa é a motivação primordial do primeiro capítulo da Tese que se vin-
cula intimamente aos dois subsequentes.
Com efeito, os diversos modos de fazer essa relação entre Heidegger e Platão podem
ser compreendidos a partir de duas formas básicas: A primeira é a forma interna, que se insere
na problemática heideggeriana e compreende o projeto que a anima, contextualizando as aná-
lises de Platão e do platonismo no âmbito dos textos fundamentais que lhe conferem sentido.
Atenta à especificidade da leitura heideggeriana, essa forma é a que se percebe, por exemplo,
nos trabalhos de Zarader28, Haar29, Sallis30, Courtine31 e, no Brasil, Benedito Nunes32, Ernildo
Stein33 e Marco Antônio Casanova34.

28
ZARADER, M. Heidegger e as palavras de origem. Tradução João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
29
HAAR, Michek. Le chant de la tèrre. Paris: L'Herne, 1985.
21

A segunda forma de compreender a leitura heideggeriana de Platão pode ser denomi-


nada externa, a qual, alheia ao projeto que motiva Heidegger, critica-o de fora, renovando em
relação a Heidegger a acusação do que ele faria a Platão, impondo-lhe críticas que desconsi-
deram a essência e a forma de seu pensamento. Comum entre os helenistas e os estudiosos de
filosofia antiga, esse tipo de leitura normalmente recai em simplificações primárias, alegando,
por exemplo, a falta de conhecimento filológico ou de contextualização do trecho estudado
com o diálogo e com a obra. Destacam-se nessa modalidade de crítica os trabalhos de Bou-
tot35, Rosen36 e Gonzalez37, os quais se concentram nos textos de Heidegger em que Platão e o
platonismo são mencionados, contrastando-os diretamente com os diálogos platônicos. Sem
negar o alcance heurístico desse tipo de análise, principalmente na elucidação do texto platô-
nico, essa forma de abordagem normalmente não alcança a complexidade hermenêutica de
Heidegger e o reduz a um intérprete-comentador do texto platônico, função que ele nunca
pretendeu desempenhar, exatamente por considerá-la hermeneuticamente ingênua e filosofi-
camente inócua.
Essa abordagem externa é uma leitura platonista, uma vez que mobiliza principalmen-
te a obra platônica e busca defendê-la do arremedo heideggeriano. Ironicamente, porém, essa
mesma abordagem incorre, ela mesma, num arremedo do pensamento de Heidegger, ao cari-
caturá-lo como exegeta de textos platônicos. Por sua vez, a abordagem internapode ser consi-
derada heideggeriana, uma vez que concede atenção predominante, quando não exclusiva, à
obra de Heidegger, não almejando verificar a procedência da reconstituição heideggeriana da
totalidade da obra de Platão. Deve-se observar, entretanto, que, diferente da ingenuidade her-
menêutica que caracteriza a leitura externa-platonista, a abordagem interna-heideggeriana,

30
SALLIS, John. Plato’s other beginning. pp. 177-190. In: HYLAND, D; MANOUSSAKIS, J.P. Heidegger and
the Greeks – interpretative essays. Bloomington and Indianopolis: Indiana University Press, 2006.
31
COURTINE, Jean.-François., ‘Le platonisme de Heidegger’, pp. 129-158. In: Heidegger et la phenomenolo-
gie. Paris: Vrin, 1990.
32
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo, Loyola, 2012.
33
STEIN, Ernildo. Para além de Platão e Hegel, outro pensar e novo pensar. pp.61-87. In: Exercícios de feno-
menologia – limites de um paradigma. Ijuí: Ed.Unijuí, 2004.
34
CASANOVA, Marco Antônio. Der Anfang des Endes. Heidegger und die Macht des geschichtlichen Denkens,
pp. 203-232. In: STEINMANN, M. (org.), Heidegger und die Griechen. Frankfurt am Main: Vittorio Kloster-
mann, 2007.
35
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism. Paris : Presses Universitaires de France, 1987.
36
ROSEN, Stanely. The question of being: A Reversal of Heidegger. Indiana : St.Augustine Press, 2002.
37
GONZALEZ, Francisco. Plato and Heidegger: A Question of Dialogue. Pennsylvania: The Pennsylvania State
University Press, 2009.
22

perspectiva adotada nesta Tese, atende à forma de pensamento do autor estudado, Heidegger,
que lida com a coisa do pensamento e as palavras fundamentais que plasmam os envios epo-
cais do seer, não com autores cujas obras merecem análise filológica.
Após a viragem, o modo singular de Heidegger confrontar-se com os autores da tradi-
ção diz respeito a um projeto maior que conforma toda a sua obra tardia, o projeto de supera-
ção da metafísica, consoante a transição do primeiro início ao outro início. Esse projeto de
superação da metafísica e os conceitos que o consubstanciam são previamente elucidados no
primeiro capítulo, que se dedica a explicitar o contexto hermenêutico que confere inteligibili-
dade à interpretação heideggeriana de Platão pós-viragem e por que essa interpretação se con-
centra em palavras fundamentais (idea e aletheia). Note-se que não se trata de uma questão
meramente preliminar, mas uma questão indispensável, que integra a interpretação heidegge-
riana do platonismo. Portanto, não se deve considerá-lo como introdutório no sentido de ape-
nas apresentar e anunciar o tema a ser estudado, mas, ao contrário, é nesse início que se entre-
vê o alcance das análises realizadas nos dois capítulos posteriores.
23

1 CONFRONTAÇÃO HISTÓRICA COM O PRIMEIRO INÍCIO

1.1 Confrontação com a coisa do pensamento

Para a contextualização hermenêutica do modo de Heidegger interpretar Platão, a


primeira noção que precisa ser elucidada é a de confrontação (Auseinandersetzung). No pre-
fácio das preleções sobre Nietzsche – um dos textos fundamentais para a confrontação estu-
dada nesta tese -, Heidegger esclarece que “o nome do pensador” é o título para “a coisa de
seu pensamento”38. Dessa afirmação lacônica, porém decisiva, pode-se inferir que, no con-
texto da obra tardia de Heidegger, não é o autor propriamente dito, tampouco a sua obra o
objeto de análise, mas a coisa do pensamento (die Sache des Denkens). A coisa é o “caso li-
tigioso” em que o nosso pensamento deve se inserir 39. É o elemento essencial que subjaz à
multiplicidade de conceitos de um pensador e que só vem à tona por meio da confrontação.
Como explica Casanova, o sentido da noção alemã de Auseinandersetzung (confrontação)é o
de encontro agônico de dois indivíduos que, ao se defrontarem, ao se colocarem um diante
do outro, “firmam simultaneamente as suas determinações próprias”, “as suas posições espe-
cíficas”40.
Esse encontro diferenciador pressupõe, num primeiro momento, o afastamento indi-
vidualizador: a tomada de posição dos litigantes, para que se possa discernir a identidade de
cada um. Porém, esse distanciamento identificador dos contendores preserva a tensão que os
une. Não se trata, absolutamente, de um distanciamento positivista, que visa à neutralidade
da objetivação científica. Isso é hermeneuticamente impossível no contexto da analítica do
ser-aí, sempre lançado e situado num mundo específico, que não é contornável por uma mera
conduta teórica do ser-aí. O ser-aí jamais pode saltar o seu próprio mundo para contemplá-lo
de fora, distanciadamente, objetivamente. Ao contrário, a conquista desse distanciamento
permite que o pensador se aproxime do interpretado com a visada crítica necessária para con-

38
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vo. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.3.
Isso se dá pela articulação do nome do pensador, Nietzsche, com o niilismo por ele tratado, ínsito no suposto
radical do seu nome, “Niet”, que significa “nada”, “nicht”, em alemão, “nihil”, em latim, do onde provém a
palavra “niilismo”.
39
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p.74. In: Heidegger – Os pensadores.
Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 65-81
40
CASANOVA, Marco Antônio. Apresentação. In: HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. I., op.cit., p. vi.
24

frontá-lo. Nessa dinâmica de confrontação, ao mesmo tempo em que se apropria do interpre-


tado, o intérprete conquista-se a si mesmo, a sua determinação própria. Essa relação agônica
de união instaura a diferença específica entre os pensadores em meio à confrontação, tanto o
interpretado como o intérprete se distinguem pelo que têm de peculiar, e essa singularidade
não sobressai senão no interior da contenda hermenêutica. Em outras palavras, o próprio de
cada pensador só se revela na confrontação, em que o espaço de diferença evidencia as sin-
gularidades em aproximação. No caso do confronto estudado nesta tese, tanto Platão como
Heidegger surgem na relação diferenciadora, a partir da qual a demarcação da alteridade
permite a identidade. Ou seja, a aparição do próprio de um pensador não se dá pelo isola-
mento solipsista de sua individualidade, mas só surge no interior de um confronto que, à ma-
neira do pólemos de Heráclito, une enquanto distingue. Essa união confrontadora não é uma
fusão em que se perdem as individualidades, mas o espaço de diferença em que elas podem
emergir.
É nesse sentido que Heidegger afirma, no começo das preleções sobre Nietzsche, que
não se alcançou uma confrontação genuína em relação a ele, pois ainda não se conquistou o
suficiente “distanciamento a partir do qual é possível amadurecer uma apreciação do que é a
força desse pensador”41. Essa mesma ausência de confrontação “suficientemente ampla em
termos históricos” com relação a Nietzsche, também se dá com as relações filológicas e his-
toriográficas de Platão, a quem ou bem se elogia e imita ou bem se insulta e explora. 42 O que
está em jogo para Heidegger com a confrontação é a conquista do pensamento histórico, que
reconhece a “força atuante” dos envios epocais do seer, não simplesmente passados, mas vi-
gentes na temporalidade histórica do seer, que é irredutível às datações historiográficas ou as
demarcações filosóficas:

Confrontação é crítica autêntica. Ela é a maneira suprema e única de apreciar verdadeiramen-


te um pensador, pois assume sobre si a tarefa de repensar seu pensamento e persegui-lo em
sua força atuante, não em suas fraquezas. E para que isso? Para que, por intermédio da con-
frontação, nós mesmos nos libertemos para o supremo esforço do pensamento.43

Essa tensão heraclítica de aproximação e afastamento também pode ser compreendi-


da pelo fato de a confrontação ser uma “disputa amorosa” (liebende Streit). Com efeito, na
Carta sobre o humanismo, Heidegger encontra uma formulação variante oportuna para ex-

41
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. v.1. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 7.
42
Ibidem.
43
Ibid., p.8,
25

pressar o modo como o pensamento da história do seer procede em relação a outras filosofi-
as, as quais sempre tratam da mesma coisa, da coisa mesma, o acontecimento do seer. Como
“o acontecer da história essencia-se como o destino da verdade do ser a partir do ser”, “o que
dela surge não pode ser atacado nem sequer afastado por refutações” 44. Heidegger considera
sinal de ingenuidade, de “tolice” a refutação no campo do pensar essencial, uma vez que “a
disputa entre os pensadores é a disputa amorosa pela coisa mesma.” (“Der Streit zwischen
den Denkern ist der ‘liebende Streit’ der Sache selbst”)45. Todos os pensadores que se fazem
vozes do seer pertencem ao mesmo, e é nessa pertença simples à coisa mesma do pensamento
que podem encontrar “o que é próprio ao destino no destino do ser” 46. Como explica Heide-
gger, esse amar e querer a coisa do pensamento significa zelar por ela, ter diligência pela sua
essência. Pensado de modo originário, esse cuidado diligente e amoroso é “presentear o ser”,
que permite que algo “se essencie em sua pro-veniência”, isto é, que deixa que algo seja47.
A confrontação da filosofia com a coisa do pensamento é uma automeditação
sobre a sua própria essência, sobre a essência da verdade do seer que se apropria do pensa-
mento em um acontecimento essenciante. Nesse contexto, não se pode simplesmente refutar
um pensador essencial, aquele que dá voz a um acontecimento apropriativo do seer. Como
explica Heidegger em Meditação, “todo pensador essencial é irrefutável”, porque conquista a
cada vez na história do seer uma posição fundamental originária e, por isto, única.” 48 Nesse
sentido, não cabe contra a obra de um autor uma espécie de réplica que a refute, que demons-
tre a contradição interna de seus postulados fundamentais, que evidencie a sua “falsidade” ou
“incorreção”. Para Heidegger, esse propósito é, em si, impróprio e, com isso, uma demissão
da filosofia.
A confrontação filosófica não é nunca refutação historiográfica de hipóteses; ela não
refuta, nem pode refutar, porque concerne à posição fundamental do seer explicitada no pen-
sador essencial. Essa posição fundamental se mostra na palavra essencial que dá voz ao seer.
A confrontação com as posições fundamentais não leva à refutação dos pensadores essenci-
ais, mas à “unicidade do questionamento originário” que as sustenta, a “unicidade essencial-

44
HEIDEGGER, Martin. “Carta sobre o humanismo”, pp. 348-349. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.326-376.
45
Ibidem.
46
Ibidem.
47
Ibid., p. 329.
48
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 73 (§15).
26

mente histórica do ser e de sua verdade” 49, isto é, a coisa mesma do pensamento. Vinculadas
pela coisa mesma do pensamento, as posições fundamentais confrontadas entretêm aquela
relação de distanciamento e aproximação mencionada acima. Por um lado, elas se excluem,
com isso conquistam pela primeira vez a sua unicidade. Por outro lado, elas se assimilam,
pela “copertinência necessária com o unicamente questionável do pensar”50. É por essa uni-
cidade da coisa mesma do pensamento, que torna as posições fundamentais questionáveis e
copertencentes ao único elemento questionável, que a confrontação não acarreta nenhum tipo
de “progresso dialético”, que suspende e assimila opostos em síntese s cada vez mais abran-
gentes51.
A mesmidade da coisa mesma do pensamento é percebida na correspondência das pa-
lavras fundamentais, que atestam a pertinência ao único digno de ser pensado, o seer. Este é
conhecimento somente mediante um saber histórico, um questionamento originário provoca-
do pela apropriação do próprio seer, e que não se confunde, de modo algum, com uma mera
justaposição de conhecimento historiográfico. Por isso, afirma Heidegger em O dito de Ana-
ximandro: “Pertence a um diálogo [com o pensamento grego inicial] que o discurso das duas
partes fale do mesmo e, na verdade, a partir da pertença ao mesmo.” 52 O mesmo aqui é o seer
que é verbalizado nas palavras fundamentais confrontadas historicamente, como se explica
ao longo deste capítulo.
Portanto, não há que se falar em refutação ou superação no sentido de superioridade
ou aprofundamento de uma filosofia qualquer, visto que toda filosofia é expressão de um
acontecimento apropriativo do seer que a conforma e lhe confere inteligibilidade para além
do que nela está expressamente formulado. Como o seer “se dá e se nega ao mesmo tempo a
si mesmo”53, a linguagem em que ele se exprime, em que ele “mora” nunca é unívoca e defi-
nitiva, nunca pode ser interpretada à exaustão, como poderia supor um positivismo filológi-
co. A questão do ser que une e distancia os filósofos em confrontação os torna vozes desse
mesmo seer que acontece apropriativamente. Não há maior ou menor “razão” em cada um

49
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 73 (§15).
50
Ibid., p. 74.
51
Ibidem.
52
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 385.
53
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Pe-
trópolis, Vozes, 2008. p. 348.
27

deles, apenas maior ou menor esquecimento do fenômeno originário de que provêm as filo-
sofias, maior ou menor compreensão da diferença ontológica que subjaz à metafísica.
Quando Heidegger nomeia a coisa do pensamento “Nietzsche” ou “Platão”, ele não
se confronta com os esses autores, suas biografias ou bibliografias, ou ainda com trechos das
suas obras, mas com a coisa mesma do pensamento, o acontecimento do seer, neles plasma-
dos em palavras fundamentais. É isso que Heidegger deixa claro na seguinte passagem de
Nietzsche, que vale perfeitamente para Platão: “Nem a pessoa de Nietzsche nem mesmo a
sua obra nos importam aqui, uma vez que as duas em sua co-pertinência perfazem um objeto
de recensão historiográfica e psicológica.” 54 Ao contrário, interessa-lhe perguntar “pelo ser e
o mundo que fundam pela primeira vez a obra.” 55 O que Heidegger escuta não é, em definiti-
vo, o “texto” de um autor, a fim de reorganizá-lo interpretativamente, ou alterar o princípio
hermenêutico que norteia a sua explicitação filológica. Para além de todo interpretativismo,
Heidegger busca, a partir das palavras fundamentais do texto, o acontecimento apropriativo,
o envio epocal e histórico do seer.
Os pressupostos hermenêuticos que se elucidam neste capítulo demonstram que o
diálogo de Heidegger com a tradição não pode ser reduzido, sob o risco de distorcer por
completo o seu pensamento, a uma história da filosofia ou a uma história das ideias. Não se
trata de filologia ou de doxografia. O que lhe interessa no confronto com a tradição é a coisa
mesma do pensamento que emerge em cada autor confrontado, que se faz voz do aconteci-
mento apropriativo da história do seer. Portanto, os filósofos jamais são tratados a partir de
um complexo ideológico, de uma mentalidade cultural comum, de escola de pensamento ou
simplesmente de influências sucessivas. O que Heidegger busca em cada filósofo é algo mais
profundo e refinado do que isso, e pressupõe toda a sua elaboração filosófica do aconteci-
mento apropriativo. Ele busca a verdade mesma, o próprio seer que ganha voz nos autores da
tradição. O elemento central para que o seer seja compreendido nas filosofias em que surge é
a coisa do pensamento. No trecho a seguir, fica claro a posição de Heidegger a respeito do
seu trabalho interpretativo:
Em uma confrontação pensante com um pensador, não se trata de contrapor uma opinião a ou-
tra ou de ‘refutar’ um ‘ponto de vista’ por meio de outro. Tudo isso é trabalho extrínseco e
inessencial. Con-frontação não significa para nós: ‘polêmica’ de sabichões e ‘crítica’ vã. Con-
frontação significa, aqui, meditação sobre a verdade que se encontra em vias de decisão; em

54
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.
370.
55
Ibidem.
28

vias de uma decisão que, como história do ser, surge muito mais a partir do próprio ser para a
nossa história.56

Desse modo, fica claro por que a filosofia de Heidegger não é dialética, por que não
busca haurir um temário tradicional para desenvolvê-lo a partir das conquistas filosóficas da
modernidade, não busca a síntese histórica de filosofias antes antagônicas, não busca superar,
por intermédio de demonstração de insuficiência lógica, as filosofias confrontadas. Conside-
rando essa coisa mesma do pensamento que permite a confrontação litigiosa-amorosa, de
afastamento e aproximação, de alteridade e identidade, de gênese da identidade pela e na al-
teridade, fica claro que - para dizê-lo com Casanova - o filosofar heideggeriano não compor-
ta o acúmulo erudito de “doutrinas tradicionais ligadas a problemas filosóficos pontuais” a
fim de testá-los em uma “espécie de prova lógica de consistência”; tampouco comporta “o
esforço por superar todos os pressupostos herdados e, a partir de uma circunscrição aos pode-
res constitutivos da razão, seguir com rigor metodológico o caminho árduo que conduz à
verdade.”57
Pensada como acontecimento apropriativo, como envio e destino do seer que produz
a história, a coisa mesma do pensamento é a origem e o fim de todo pensar confrontativo,
origem essa que “nunca permanece isolada em um passado desprovido de sentido, mas que
sempre participa ativamente das decisões do futuro.”58 Com essa compreensão, fica evidente
a insuficiência das refutações filológicas, lógicas ou dialéticas das interpretações de Heide-
gger sobre os autores da tradição em geral e de Platão em particular. No contexto da sua obra
tardia, a partir da viragemdos anos 1930, Heidegger não considera Platão um autor singular
cujas teses são analisadas para serem refutadas ou ratificadas do ponto de vista de sua consis-
tência lógica ou de seu desdobramento na história da filosofia. Com efeito, no texto Supera-
ção da metafísica, Heidegger difere “meditação histórica” da “historiografia”, sendo que,
nesta última, predominam a apologia e a polêmica 59.
Como “pensadores essenciais”, Platão e Nietzsche delimitam respectivamente o mar-
co inicial e final da história da metafísica, pensada como história do seer. O que é decisivo
para Heidegger é a delimitação da “posição metafísica fundamental” que os une, que permite
56
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. V.2.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
18.
57
CASANOVA, Marco Antônio.Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009, pp. 15-16.
58
Ibidem.
59
HEIDEGGER, Martin. ‘Superação da metafísica’, pp. 61-110. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. p. 70 (§ XI).
29

considerá-los, a ambos, metafísicos. Essa delimitação configura-se a partir da “questão dire-


triz”, “o elemento propriamente metafísico na metafísica” 60. O que é a questão diretriz que
caracteriza a metafísica?
Trata-se da determinação do ser pelo ente, a partir do ente, com vistas ao ente. É a en-
tificação do ser, o esquecimento da diferença ontológica que os separa radicalmente. Adqui-
rido o caráter de autoevidência e obviedade, a questão diretriz deixa inquestionado o seu
fundamento, o retraimento do seer em proveito do ente que se revela. O esquecimento do ser
é o esquecimento da diferença ontológica entre o ser e o ente, a subordinação do ser ao ente
por meio da pergunta metafísica pelo ser do ente. No contexto da história do seer, a questão
diretriz da metafísica se dá pela essenciação do seer como acontecimento apropriativo desa-
propriado de si. Assim, todas as palavras fundamentais dos pensadores metafísicos dão voz,
ressoam a essenciação do ser que se retrai, resultando no esquecimento do ser. As palavras
fundamentais, que espelham a posição metafísica fundamental do ente na totalidade, refletem
a pergunta pelo ser do ente sem problematizar o ser enquanto tal, a diferença ontológica.
O objetivo de Heidegger é exatamente partir da questão diretriz (o que é o ente?) à
questão fundamental (o que é o ser?). Essa passagem se dá mediante o salto na questão fun-
damental, a questão da verdade da essenciação do seer, noção que será elucidada oportuna-
mente neste capítulo.É exatamente essa noção que inspira as Contribuições, obra decisiva de
Heidegger: “a con-frontação [Aus-einander-setzung] com as grandes filosofias” deve ser
compreendida como confrontação com “as posições metafísicas fundamentais no interior da
história da pergunta diretriz” 61
A partir do reconhecimento dessa questão diretriz, é possível identificar “figuras” em
que o pensamento metafísico se manifesta. E essas figuras plasmam-se em palavras funda-
mentais, que se tornam o núcleo hermenêutico de um autor. É por isso que Heidegger pode
tratar da totalidade do pensamento nietzschiano concentrando-se em cinco palavras funda-
mentais – vontade de poder, eterno retorno do mesmo, niilismo, além-do-homem e justiça.
Do mesmo modo, penetra na filosofia de Anaximandro pela palavra Khreon, na de Heráclito,
pela palavra Physis, na de Descartes, pela palavra Cogito, e assim por diante. No caso que
interessa a esta tese, Platão é sempre estudado por Heidegger com vistas à noção de idea e de
aletheia, temas que compõem os dois próximos capítulos desta pesquisa. Ao identificar essas

60
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.
355.
61
HEIDEGGER, M. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.158-9 (§93: As grandes filosofias).
30

palavras fundamentais, Heidegger afasta propositalmente diversos elementos determinantes


da filosofia de um autor, porque, no fundo, o que lhe interessa é o mundo histórico-
ontológico que transparece naquelas palavras fundamentais, consoante os envios destinamen-
tais da história epocal do seer.
Em Meditação, essa noção importante é claramente explicitada: a palavra diz o ser,
“o seer mesmo é transformado em verdade” 62. Isso significa que, nessas palavras essenciais –
o logos de Heráclito, a idea de Platão, a energeia de Aristóteles, a mônada de Leibniz, a
‘identidade’ de Schelling, o ‘conceito’ de Hegel e o ‘eterno retorno do mesmo’ de Nietzsche
-, o próprio seer é dito. O diálogo histórico com os pensadores fundamentais se dá como con-
frontação, como meditação a respeito do “mais simples”, o seer. Heidegger esclarece que os
filósofos “não enunciam ‘proposições’ sobre o seer, como se fosse um objeto alijado.” 63 A
radicalidade do pensamento heideggeriano, responsável por uma singularidade nem sempre
percebida, reside no fato de ser esse modo de questionamento inteiramente diverso do modo
metafísico de tratamento dos problemas filosóficos. A meditação histórica interroga o pró-
prio seer, a partir da palavra na qual a verdade do seer é conformada. A meditação histórica
não objetifica, não entifica o seer, por isso se afasta da tradição metafísica que visa a superar.
Diz Heidegger:
A questão do ser questiona agora o seer, para que o seer responda, doe a palavra que diz a
verdade ‘do’ seer. Agora, não colocamos mais a questão ao largo do ser, uma questão na qual
o ente enquanto tal permanece o questionável. Também não perguntamos com vistas ao ser,
algo por meio do que o ser se transformaria num ‘objeto’ à maneira do pensamento metafísi-
co. Ao contrário, nós perguntamos pelo próprio seer. O questionamento entrega-nos o seer
como o único que responde. [...] Na metafísica o ente torna-se questionável com vistas ao seu
ser. Esse ser permanece tão inquestionável em sua essência, que o ser não pode ser nem mes-
mo denominado o inquestionado.64

Como se pode perceber com esta relevante passagem citada, quem questiona é sem-
pre o próprio seer. Esse questionamento ontológico do seer pertence à essenciação da verda-
de do seer, sempre temporal e sempre verbal, mesmo que retraído na abissalidade da sua di-
ferença. A verdade do seer só pode ser meditada no interior de sua história originária, que é a
história do acontecimento de apropriação do seer. De modo algum pode a metafísica alcançá-
lo, pois o questionamento dela sequer reconhece a sua natureza histórica e epocal. É por isso
que toda a articulação de uma história do seer implica a superação da metafísica, e essa supe-

62
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 241 (§79).
63
Ibidem.
64
Ibid., pp. 273-274.
31

ração “provém do próprio seer”65. Na metafísica, o ser não pode ser considerado como in-
questionado porque ele é confundido com a entidade do ente. A metafísica se satisfaz com a
impressão, com a aparência de apreensão do ser, quando, na verdade, o toma como a essên-
cia entificada do ente. O próprio seer é responsável por seu esquecimento no interior da his-
tória da metafísica, pois é ele mesmo quem se subtrai constantemente e se furta a uma deno-
minação e explicação literal. As palavras com que o seer se essencia são fundamentais, mas
não exaurem o acontecimento apropriativo que as determina.
Como explica Heidegger em Nietzsche I, as palavras “são frequentemente mais pode-
rosas do que coisas e ações” 66 por serem portadoras das determinações metafísicas funda-
mentais no interior da história do seer. Mas, antes que se possa apreender erradamente essa
afirmação, como se a proposta fosse a de uma espécie de história dos conceitos, Heidegger
adverte que “a história da filosofia não é questão da historiografia, mas sim da filosofia.” 67 A
meditação histórica sobre a essência da metafísica desdobrada em suas palavras fundamen-
tais não pode se confundir com a historiografia que tem por objeto filósofos e suas “ideias”,
ainda que possa parecer um “extrato resumido de um manual qualquer de história da filoso-
fia”68. No segundo volume de suas preleções sobre Nietzsche, Heidegger reforça que, sob o
domínio da historiografia,
que sonda e traz à tona o passado com vistas à sua utilidade para o presente, a lembrança da
história do ser também permanece entregue, a princípio, à aparência que faz com que ela se
mostre como uma historiografia do conceito e, além disso, como uma historiografia unilateral
e lacunar.”69

Heidegger visa claramente à superação da interpretação historiográfica da história da


filosofia em nome de uma história do seer que considere a unidade da posição metafísica
fundamental ínsita na questão diretriz que percorre todas as filosofias essenciais, de Platão a
Nietzsche. Para tanto, como se elucida ao longo deste capítulo, Heidegger distingue a Histo-
rie – historiografia ou ciência histórica que objetifica o tempo passado para estudá-lo sem

65
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. p.274.
66
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.
350.
67
Ibid., p. 350-1.
68
Ibid., p. 351.
69
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
373. Para evitar o neologismo, prefere-se traduzir Historie por “historiografia”, e não por “historiologia”. Esta
última é a opção do tradutor brasileiro Casanova, em consonância com D. Krell, alegando que “a abordagem
lógico-científica dos eventos do passado” não se reduz à historiografia propriamente dita. O item 1.6. explica
detidamente o significado temporal e ontológico deste termo. Cf. nota do mesmo tradutor à pagina 10 de HEI-
DEGGER, Martin. O Sofista de Platão. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
32

relação com a temporalidade do mundo, do ser ou do ser-aí – da Geschichte – acontecimento


de essenciação epocal do seer que configura os destinos históricos de um passado essencial
que perdura no tempo presente e futuro.
A “confrontação autêntica” almejada por Heidegger com pensadores essenciais como
Platão e Nietzsche pressupõe o desdobramento das posições fundamentais recíprocas dos
contendores, para que sua resposta à questão diretriz seja firmada e sua posição metafísica
fundamental, estabelecida. Só assim se pode realizar a confrontação autêntica, em que “as
determinações essenciais” dos pensadores sejam aclaradas a partir da questão diretriz da me-
tafísica. Diz Heidegger: “É quase supérfluo dizer que uma tomada de posição originariamen-
te pensante em relação a uma metafísica só é possível e frutífera se essa metafísica mesma
for desenvolvida em sua própria posição fundamental e se o modo de sua resposta à questão
diretriz for determinado.”70
Mas é preciso que se esclareça por que os elencos que Heidegger realiza da história
da filosofia não são arbitrárias enumerações de conceitos que compõem a historiografia da
filosofia. De fato, salta aos olhos as listas de nomes e conceitos, as reconstruções imediatas
de vinte cinco séculos de filosofia ocidental em poucas páginas em muitas de suas obras,
como Introdução à metafísica, O que é filosofia?, Nietzsche, Parmênides, Contribuições e
Meditação. O que confere unidade a essas síntese s? O que permite a Heidegger assinalar a
continuidade e a ruptura desse processo histórico da metafísica? A resposta a essa pergunta
é: a coisa mesma do pensamento, o “mesmo” (das Selbst), a origem comum que sustenta as
diversas posições fundamentais da metafísica, as quais se manifestam em palavras funda-
mentais. É a Leitfrage - que o tradutor brasileiro das preleções de Nieztsche, Casanova, de-
nomina “pergunta diretriz”, e que alguns tradutores designam “pergunta condutora” – o nexo
que subjaz à história da metafísica, que lhe confere unidade e continuidade, mesmo nos mo-
mentos de aparente descontinuidade e ruptura.
Por isso, Heidegger pode afirmar, em Que é isto – a filosofia?, que a philosophia é
uma palavra grega que nos põe em diálogo com uma tradição histórica, com o passado “que
foi e continua sendo”71. Esse passado não é só dominante em relação àquilo que pergunta-
mos, mas à maneira como perguntamos. Nosso modo atual de fazer filosofia, de questionar
sobre a realidade que nos cerca ainda é grego, porque renovamos a maneira platônico-

70
HEIDEGGER, M. Nietzsche.Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p. 355-
356.
71
HEIDEGGER, Martin. ‘Que é isto – a filosofia?’, p. 15. In: CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFI-
COS.Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 13-24.
33

metafísica de perguntar pelo ser do ente. Isto é, renovamos a pergunta diretriz da filosofia
metafísica. Essa questão é carregada de historicidade, é, ela mesma, histórica, pois aponta
para o destino da filosofia ocidental. O futuro só pode ser compreendido pelo passado histó-
rico que o enviou como um destino. O que é determinante na história da filosofia é o seu des-
tino como pergunta metafísica que dirige os caminhos pelos quais as respostas podem ser tri-
lhadas. Esses caminhos são previamente balizados pela formulação da pergunta que circuns-
creve na dimensão metafísica toda reposta possível. A filosofia procura o ser do ente, enfoca
o ente sob o ponto de vista do seu ser. A pergunta diretriz é, então: “que é a entidade do en-
te? O ser do ente consiste na entidade.”72 O diálogo com os filósofos, que constitui a prática
filosófica considerada em seu aspecto histórico, é sempre uma resposta à pergunta diretriz
por eles respondidas.
Compreender a essência da metafísica a partir da pergunta diretriz que a conduz, que
determina todas as respostas que lhe foram dadas ao longo da história da tradição ocidental,
parece decisivo aos olhos de Heidegger. Nesse sentido, o encontro com Platão é crucial, uma
vez que foi no filósofo grego que a pergunta diretriz ganhou a sua forma paradigmática: co-
mo pergunta pela entidade do ente, pela sua idea. Por essa razão, Heidegger afirma que:

Toda questão delimita enquanto questão a amplitude e o modo de ser da resposta nela requisi-
tada. Com isso, demarca ao mesmo tempo a esfera das possibilidades de respondê-la. Para que
reflitamos suficientemente sobre a questão da metafísica, é necessário em primeira linha levá-
la em conta como questão, deixando de lado, porém, as respostas que lhe foram dadas no
transcorrer da história da metafísica.73

Essa condução da pergunta diretriz se evidencia nas respostas que a seguem mesmo
quando procuram negá-la. É o caso modelar de Nietzsche, que se pensa como uma inversão
da metafísica, do platonismo, mas que, para Heidegger, ainda permanece nela enredado por
ainda obedecer à sua pergunta diretriz. Há uma constante no pensamento de Heidegger – ex-
plicitada, por exemplo, em Nietzsche, Contribuições,Meditação e Questões básicas da filoso-
fia - que é de fundamental importância para se compreender por que ele ainda considera Ni-
etzsche um metafísico (anti)platonista: sempre que alguém se opõe a algo, preserva-se a refe-
rência àquilo a que se visa superar. Toda negação mantém-se sob o domínio do negado. Todo
antiplatonismo, assim como todo ateísmo, são variantes dependentes do platonismo e do te-

72
HEIDEGGER, Martin. ‘Que é isto – a filosofia?’, p. 18. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 13-24.
73
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. V.2.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
263.
34

ísmo. É por isso que, mesmo na descontinuidade, as versões antimetafísicas preservam a me-
tafísica a que visam superar. Ou seja, as versões antitéticas da filosofia platônica afirmam a
pergunta diretriz que ela instaurou, reforçando-a com respostas diferentes. Não se abandona
Platão por responder diferentemente a pergunta por ele formulada; essa atitude só reforça o
caráter dominante da pergunta diretriz, em vez de suprimi-la.
Em Questões básicas da filosofia, discutindo as diferenças entre a consideração histo-
riográfica e a meditação histórica – tema analisado em item próprio -, Heidegger reconhece
que uma era criativa deve defender-se tanto da imitação ignorante e débil do passado quanto
do repúdio desrespeitoso do passado historiográfico. Ambas as atitudes repousam sobre o
mesmo fundamento da metafísica e desconhecem o fundamento histórico do acontecimento
que embasa o passado. No fundo, essas duas vertentes, à primeira vista antagônicas, só são
“mutuamente opostas” na aparência, uma vez que elas se encontram intrinsecamente unifica-
das sob a hegemonia do presente, que caracteriza as abordagens historiográficas do passado.
A percepção dessa unidade pode acarretar uma confusão generalizada, baseada na alternân-
cia dessas variações historiográficas 74. Esse é, portanto, um típico exemplo de opostos unidos
pela base metafísica comum: glória e repúdio ao passado afirmam em uníssono a predomi-
nância do presente historiográfico.
Do mesmo modo, em Superação da metafísica, Heidegger afirma que “os movimen-
tos contrários a essa metafísica [a de Hegel] a ela pertencem.”75 Isso quer dizer que, quando
se afirma o contrário de algo, esse algo é preservado como referência do que é negado e, por-
tanto, delimita o horizonte do contrário que pretende superar. Ao tomá-lo como referência, o
contrário permanece derivado e cativo das categorias do que é negado. Como afirma nas
Contribuições,
ainda que Nietzsche experimente o ente como devir, permanece essa interpretação antagonista
no interior do marco tradicional; o ente é só interpretado diferentemente, mas a pergunta pelo
ser como tal, nunca é postulada.76

É essa derivação metafísica que interessa a Heidegger: todos os desdobramentos re-


montam à mesma questão diretriz, à essência do ser do ente. Todos os capítulos decisivos da
história da filosofia não são obra de filósofos criativos, uns mais inteligentes do que os ou-
tros, que lograram inteligir sucessivamente cada vez mais verdade sobre a realidade. Ao con-
74
Cf. HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução
R.Rojcewicz e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 46 (§16).
75
HEIDEGGER, Martin. ‘Superação da metafísica’, pp. 61-110. In: ______. Ensaios e conferências. Trad.
E.C.Leão; G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 66.
76
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 179 (§110: A idea, o platonismo e o idealismo).
35

trário, cada qual renova, a seu modo, a pergunta diretriz e aprofunda o esquecimento do ser
que a caracteriza. O fundamento da metafísica, a essência entificadora do ser por ela postula-
da, só se torna inteligível quando se percebe que toda a história da metafísica diz respeito a
um acontecimento apropriativo fundamental, o desvelamento do ente na totalidade e o cor-
respondente velamento do seer. Como diz Heidegger em Meditações, “as posições funda-
mentais da metafísica só são experienciáveis e inteiramente pensáveis em termos históricos
no pensamento da história do seer.”77 É a esse pensamento da história do seer que se deve
voltar para compreender inteiramente o significado da confrontação histórica de Heidegger
com a palavra fundamental de Platão: idea.
O seguinte trecho de Fim da filosofia e a tarefa do pensamento sintetiza o teor da ex-
plicação desenvolvida neste item: “Toda Metafísica, inclusive a sua contrapartida, o positi-
vismo, fala a linguagem de Platão. A palavra fundamental de seu pensamento, isto é, a expo-
sição do ser do ente, é eidos: idea: a aparência na qual se mostra o ente como tal.”78
A palavra fundamental de Platão reflete o modo como ele postula a pergunta diretriz:
o que é o ser do ente? Toda a tradição metafísica responde a essa mesma questão e é isso que
lhe dá “conexão histórica” (geschichtlichen Zusammenhang)79. Para perceber essa “coesão”,
é necessário compreender “mais originariamente” a essência velada da metafísica, que é pla-
tônica. Essa essência concerne à pergunta diretriz. Não se trata, portanto, de “dependência
historiográfica” (historische Abhängigkeit)80, de influências ou derivações temáticas, da
constituição de um temário comum que pauta e baliza a história da filosofia, mas da unidade
da essenciação do ser de que origina a forma platônica subjacente a todas as versões da meta-
física. Por isso, diz Heidegger em Fim da filosofia e a tarefa do pensamento: “Através de to-
da a História da Filosofia, o pensamento de Platão, ainda que em diferentes figuras, perma-
nece determinante. A metafísica é platonismo.”81

77
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.330. (§126: A
posição de Aristóteles na história da metafísica).
78
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p. 78. In: Conferências e escritos filosófi-
cos. Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 71-81
79
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. v.2. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p. 129.
80
Ibidem.
81
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p. 72. In: Conferências e escritos filosófi-
cos. Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 71-81.
36

1.2 Metafísica como platonismo: a dominância entificante da pergunta diretriz

As diferentes “figuras” da metafísica, a que se refere Heidegger em O fim da filosofia


e a tarefa do pensamento82,são as diferentes respostas à pergunta diretriz, que, na verdade,
não alteram a essência metafísica dessa pergunta que entifica o ser. O ser só é alcançado em
referência ao ente, seja como entidade, substância, essência, sujeito, espírito absoluto e assim
sucessivamente ao longo da história da filosofia ocidental. As mudanças das posições metafí-
sicas fundamentais, expressas nas mudanças das palavras essenciais, não acarretam mudança
substancial do fundamento histórico que as embasa, pois todas respondem à mesma questão
diretriz, sobre o ser do ente, e todas desdobram a forma de interrogar o ente na totalidade.
Como Heidegger elucida em Nietzsche II, o que garante que a unidade das posições
metafísicas fundamentais, por mais diversas que possam parecer, é que todas são posições
fundamentais da metafísica. Preserva-se, assim, uma “mesmidade”, “algo essencialmente
congênere”83. A “confrontação” evidencia não a igualdade do que é “totalmente desigual”,
mas “o mesmo”, e isso por causa da “essência velada da metafísica”, essência essa que é con-
quistada pelo reconhecimento da pergunta diretriz que determina a mesmidade das versões ou
figuras da metafísica. Essa mesmidade é platônica, pois é na obra de Platão que a forma deci-
siva dessa questão se constitui de modo paradigmático para a tradição. Isso não significa que
Platão tenha se tornado simplesmente o modelo, ou o exemplo a ser seguido pelos filósofos
que lhe sucederam, mas que a abertura do ente na totalidade que nele emergiu condiciona
todo o filosofar posterior. Não se trata, portanto, da exemplaridade, mas do acontecimento
histórico da essenciação do ser, que é um acontecimento desapropriante - como se verá a se-
guir, no item 1.6., a partir do texto ‘Identidade e Diferença’.
Deve-se atentar, ainda, ao fato de essa mesmidade não ser “igualdade”. Provenientes
da mesma pergunta diretriz, as “posições fundamentais” não são iguais, mas desdobramentos
progressivos do começo essencial da metafísica. Como expressões da “coisa mesma do pen-
samento”, as palavras fundamentais alternam-se, mas conservam a essência entificante da
metafísica. Assim, diz Heidegger:
A idea transforma-se em ideia, e esta, em representação. A energeia torna-se actualitas, e es-
ta, actualitas, realidade efetiva. Em verdade, mudam as concepções linguísticas da consistên-
cia essencial do ser, mas a consistência mesma – assim se diz – é mantida. Se posições fun-
damentais alternantes do pensamento metafísico se desdobram sobre esse solo, então a sua

82
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, pp. 71-81. In: Conferências e escritos
filosóficos. Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 72.
83
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p. 129.
37

multiplicidade não ratifica senão a unidade que permanece a mesma das determinações que
sustentam o ser.84

A unidade histórico-metafísica que as interliga é o primado do ente, constitutivo da


pergunta diretriz. Segundo Heidegger, esse primado do ente representa o ser sempre como
uma “determinação genérica”, como koinon ou genus commune, ou seja, “sempre deduz de
um ente normativo a cunhagem essencial” do ser 85. Com efeito, em Contribuições, Heidegger
ressalta que a interpretação platônica da ideia como gênero comum (koinon) torna o ser o ente
mais geral e se torna “a determinação essencial do ser mesmo”, isso porque a pergunta socrá-
tico-platônico fundamental, que é a essência questionadora da metafísica, sobre a entidade do
ente (ti estin) é sempre “a pergunta-pelo-koinon”, com o que a investigação sobre o ente con-
verte-se no exame abstratizante que o enfeixa no “gênero supremo”, na “suma generalida-
de”86.
As posições fundamentais da metafísica determinam a verdade sobre o ente como algo
que é considerado efetivamente real, o fundamento inconcusso que assegura a verdade da
representação abstrata do ente87. Esse é o papel paradigmático – no sentido de modelar e de-
terminante – da idea platônica como posição fundamental da metafísica, da qual provêm todas
as demais posições fundamentais, as quais remontam ao mesmo acontecimento apropriativo
que originou a metafísica. A partir da noção de idea, a filosofia platônica também opera uma
transformação na essência da verdade (aletheia), a qual se torna “certeza”, questão que será
tratada no terceiro capítulo desta tese. Novamente, a metafísica é incapaz de reconhecer que
essa transformação corresponde a um acontecimento apropriativo.
A história da metafísica é, portanto, a história do platonismo, a história das versões da
idea platônica, o que significa afirmar que é a história do idealismo, do niislimo, do esqueci-
mento do ser. Esse esquecimento diz respeito ao autovelamento do seer que abre o ente na
totalidade, à própria fisionomia ambígua do acontecimento apropriativo que, como clareira,
desvela o ente e vela o ser. Como explica Baffa, a direção metafísica da filosofia ocidental é a
de um abandono progressivo da sua origem essencial, esquecimento do acontecimento que ne-
la inicialmente se põe em trânsito, do ser como acontecimento primordial que a suporta na sua
possibilidade mesma de perdurar.88

84
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 316
85
Ibid., p. 324.
86
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 172 (§107: A resposta à pergunta condutora e a forma da metafísica tradicional).
87
Ibidem.
88
BAFFA, Maria Manoella Beaklini. A forma da metafísica: sobre a história da obra tardia de Heidegger. 2005.
188f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. pp. 100-101.
38

A filosofia de Platão constitui o primeiro início da filosofia, a abertura inicial e de-


terminante do processo que se encontra em curso ao longo da história da metafísica pensada
como história do seer. Esse primeiro início é pensado por Heidegger a partir da determinação
da verdade comoidea, quer dizer, a partir da entidade do ente tomada por ser. Isso é um acon-
tecimento determinado pelo próprio ser, que abre o ente na totalidade dessa forma, velando-
se. É o ser que determina a verdade do ente, que faz com que essa verdade seja considerada a
entidade do ente. É o ser que se subtrai e se deixa passar por algo que ele não é, a essência do
ente, a entidade. O ser se essenciacom o acontecimento apropriativo que abre o ente na totali-
dade, e isso – sublinha Heidegger – “jamais poderá ser demonstrado a partir do ente”89, leia-
se, a partir da metafísica. É o próprio ser que “se subtrai a toda explicação”, impedido de ser
conhecido como tal. A pergunta diretriz postulada por Platão – o que é o ente? - reflete a de-
sapropriação, a retenção e a recusa do próprio ser, que se encobre e se esconde sob o manto
do ente por ele desvelado. É por isso que a pergunta diretriz dá a falsa impressão de ser uma
ontologia, quando na verdade não o é. A metafísica não logra compreender a si mesma porque
pensa voltar-se ao ser, mas o confunde com a entidade do ente. A seguinte passagem de Hei-
degger, extraída de Nietzsche II, condensa o fundamental do seu argumento sobre a relação
entre o acontecimento apropriativo, o velamento do ser e o primado idealista-platônico do
ente:

Aquela história do ser que é conhecida historiograficamente como metafísica possui a sua es-
sência no fato de um movimento contínuo acontecer a partir do início. Nesse movimento, o
ser se despede e se entrega à entidade, recusando a clareira do iniciar do início. A entidade,
começando como idea, abre o primado do ente no que diz respeito à cunhagem essencial da
verdade, uma verdade cuja própria essência pertence ao ser. No que o ser se despede e se en-
trega à entidade, subtraindo a sua dignidade e levando-a para o interior do velamento ele
mesmo ao mesmo tempo velado, ele confere ao ente aparentemente o aparecer do ser. 90

Por sintetizar os pontos principais da argumentação até aqui desenvolvida, deve-se


analisar detidamente essa passagem, recapitulando a gama de noções articuladas nestes dois
primeiros itens da tese.
Em primeiro lugar, deve-se frisar que Heidegger entende a história da metafísica como
um arco único que vai de Platão a Nietzsche – pensadores cujas palavras fundamentais ecoam
a voz do ser nelas plasmadas. O vetor desse arco é a pergunta diretriz que é determinada pela

89
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 375.
90
Ibid., p. 375-376.
39

essenciaçãodo ser, que é o acontecimento em que ele se apropria do ente, velando-se à medida
que o manifesta. A determinação platônica inicial do ser como idea inaugura a primazia do
ente sobre o próprio ser, o qual permanece inquestionado no interior da tradição metafísica,
por força da dominância da pergunta diretriz que previamente o considera entidade. A per-
gunta diretrizpela entidade do ente obstrui a pergunta fundamental pelo ser como tal. A es-
sência da verdade pertence ao próprio ser, mas isso é invertido pela determinação platônico-
idealista da verdade, que a subjuga à idea. É essa junção platônica que deriva a verdade da
ideia, o que Heidegger identifica como sendo o primado do ente. No entanto, é o próprio ser
que se “entrega à entidade”, e nela se oculta. Isso quer dizer que o ser subtrai a sua dignidade
essencial e a oculta quando ele mesmo se vela ao deixar-se confundir com a entidade do ente.
É isso que Heidegger quer dizer com a última oração da passagem citada: “ele [o ser] confere
ao ente [à entidade] aparentemente o aparecer do ser” (überlässt das Sein dem Seindem
scheinbar das Erscheinen des Seins). Ou seja, o próprio ser permite que a entidade faça as
vezes do ser. É como se o ser se deixasse passar pela entidade, permitisse o “erro” que carac-
teriza a investigação metafísica, o “engano” que toma o ser pela entidade. O papel de Platão
nesse contexto é determinante: é a sua palavra fundamental, a idea, que conforma o primado
da entidade e o consequente (auto)velamento do ser. Idealista, a metafísica platônica ocasiona
o progressivo esquecimento do ser, ao tomá-lo como entidade do ente. Na verdade, a palavra
platônica já sempre se movimenta no interior de um horizonte que dá sentido e determinação
a essa voz do acontecimento desapropriante do seer.
Quando a metafísica pensa a si mesma, ela não reconhece o acontecimento apropriati-
vo do ser que a determina, pelo prévio condicionamento da entidade que supostamente expli-
ca o ente. Não sabe a metafísica platônica, porém, que essa própria consideração do ser do
ente como entidade é, ela mesma, derivada da destinação epocal do seer que abre o ente na
totalidade e se retrai no abismo da diferença ontológica que o separa do ente. É nesse sentido
que Heidegger afirma: “As representações metafísicas da metafísica permanecem necessaria-
mente aquém dessa [da sua] essência. A metafísica da metafísica nunca alcança a sua [pró-
pria] essência.”91
Por que a metafísica não pensa o seer como tal? Porque ela é circunscrita pela baliza
da pergunta diretriz pelo ente, que a impede de visar ao próprio ser. O ser é rebaixado à enti-
dade do ente, que é considerada ser do ente. Mas a pergunta ontológica fundamental não é
essa, mas a pergunta pelo ser enquanto ser, como tal, em si mesmo, independente da referên-

91
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 262.
40

cia metafísica ao ente, seja à idea, à ousia, à essentia ou ao subjectum. O que, na verdade, a
metafísica faz é pensar “o ente sob o ponto de vista do ser.”92 A pergunta que a conduz é a
pergunta pelo ente; do ente deriva o ser na metafísica. Nela, o seer, ele mesmo, permanece
impensado, pois é sempre o ente que é incessantemente o perguntado.
Isso não é uma consequência incidental do procedimento fundamental da metafísica,
mas concerne à sua própria essência entificadora: “de acordo com o sentido mais próprio da
questão metafísica, o ser é pensado como o ente em seu ser. Porquanto a metafísica pensa o
ente a partir do ser, ela não pensa: o ser enquanto ser.”93 É por essa razão que Heidegger a
considera essencialmente niilista, porque provoca o esquecimento do ser, esquecimento esse
velado em Platão e explícito em Nietzsche 94. Com Nietzsche, na verdade, pode-se falar em
abandono do ser, na fase da metafísica consumada, momento em que há o esgotamento das
suas possibilidades essenciais e a compreensão, a partir da história do seer, de sua essência
niilista. Ao incluir a metafísica na história dos envios epocais do ser, Heidegger reconhece
que o ser permanece essencialmente “de fora” da essência da metafísica, conforme a sua pro-
veniência histórico-ontológica. Ou seja, a tradição conformada pelo domínio irrestrito da me-
tafísica é aquela em que “o ser em sua verdade” “permanece de fora”, consoante o próprio
“envio destinamental” do ser”95. Por isso, a metafísica é o “impróprio na essência da metafísi-
ca”, o que conforma a “unidade essencial com o próprio do niilismo” 96. O impróprio, aqui,
consiste em a metafísica não visar ao ser, mas confundi-lo com o ente, consoante o aconteci-
mento apropriativo do seer que se desvelaretraído no ente com que é confundido. A metafísica
ignora o seer, por isso a sua essência é imprópria e niilista 97.
No curso Da essência da verdade, Heidegger examina a essência da alma humana a
partir da percepção sensível e sua relação com o conhecimento epistêmico no diálogo platôni-
co Teeteto. Frente à multiplicidade dispersiva da realidade sensível, Platão postula a unidade
da alma como idea. Espécie de elemento catalisador e centralizador dos vários temas tratados
por Platão – da ética à psicologia, da epistemologia à ontologia -, a idea é o núcleo da filoso-

92
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 264.
93
Ibidem.
94
Ibid., p.262.
95
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 304.
96
Ibid., p. 284.
97
Sobre a essência niilista da metafísica cf. HEIDEGGER, Martin. Nietzsche: metafísica e niilismo.
Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
41

fia platônica ao longo de toda a sua obra: “está em relação com o mais íntimo de seu pergun-
tar filosófico.”98 A redução dessa palavra fundamental a uma “doutrina das ideias” é o destino
mais funesto que poderia ter sucedido à filosofia de Platão, uma vez que isso neutraliza o po-
der pensante da questão platônica. A idea nunca deixou de ser um problema para Platão,
sempre foi uma pergunta para ele. A redução historiográfica da idea à “doutrina das ideias” é,
para Heidegger, o típico exemplo de calcificação deletéria realizada pela consideração histo-
riográfica da filosofia. É esse tipo de “representação ordinária” de uma palavra fundamental
como idea que deve ser superada mediante a destruição da história da ontologia, como se
verá a seguir, sendo esse projeto da destruição integrado à confrontação histórica com a coisa
mesma do pensamento. Em vez de “explicar” a idea a partir de uma calcificação posterior que
a descaracteriza, deve-se compreender “a possibilidade e a necessidade do surgimento dessa
palavra”99. Como ressalta Heidegger, só assim se pode “encontrar para a palavra idea um sig-
nificado extraído a partir da coisa mesma, em vez de se trancar na idea e assim dar-se a deci-
são sobre aletheia e ousia e com isso definitivamente para a metafísica.”100
A partir da noção de idea, Platão sedimenta a noção de alma como o órgão da percep-
ção sensível do homem que se relaciona com o ser, com a “presentificação da aparência”.101
Com esse significado de idea, Platão determina a “constituição fundamental do Dasein do
espírito ocidental”102. Depois dessa afirmação categórica, constante do apêndice do curso Da
essência da verdade, Heidegger apresenta um exemplo de elenco histórico – tanto mais pro-
blemático quanto mais abrangente - das posições metafísicas fundamentais como desdobra-
mentos da palavra fundamental de Platão: é da idea que advém o conceito cristão de Deus,
que se torna, teologicamente, o critério de mensuração ontológica e moral do ente, a criatura
não-divina (sendo essa a dimensão ontoteológica da metafísica platônica, que será desenvol-
vida no próximo capítulo desta tese, ao tratar da ideia platônica do bem). Depois do cristia-
nismo medieval, Heidegger menciona a dimensão idealista da razão moderna, à época da do-
minação iluminista da racionalidade científica. Do mesmo modo e inversamente, a idea platô-

98
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.198 (§24).
99
Ibidem.
100
Ibidem. (A tradução é de STEIN, E. ‘Para além de Platão e Hegel, outro pensar e novo pensar’. p.70. In:
Exercícios de fenomenologia – limites de um paradigma. Ijuí: Ed.Unijuí, 2004. pp.61-87).
101
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.198 (§24).
102
Ibid., p. 360.
42

nica conforma o contra-movimento do classicismo e do romantismo alemães, conforme o já


explicado balizamento da categoria da pergunta diretriz pelo ente mesmo no anti, no contra,
isto é,na oposição que visa a contrapô-la. Nesse contexto, Hegel é o movimento de reunião
dialética dessas duas potências filosóficas, a consumação cristã do platonismo cristianizado da
antiguidade. Os contra-movimentos materialistas do idealismo hegeliano, que de Hegel hau-
rem seus recursos e forças, também são platonismos invertidos, a exemplo das doutrinas da
ideologia e toda a crítica de Marx e do marxismo. Por sua vez, a reversão idealista operada
por Kierkegaard segue a palavra fundamental platônica, assim como toda a diluição, a confu-
são e colapso de todas essas potências no século XIX e no começo do século XX preservam a
matriz platônica. Por fim, Nietzsche, com sua crítica frontal às três frontes platônicas – huma-
nismo, cristianismo e iluminismo – permanece cativo das categorias dualistas do idealismo
platônico, pois a mera inversão dos fatores na relação sensível e suprassensível não supera a
questão diretriz que a estrutura e condiciona.
O que importa extrair desse elenco sintético é o princípio que o organiza. Heidegger
considera a metafísica como história das destinações epocais do seer, todos condicionados
pelo primeiro início platônico, que confunde o ser com um ente (denominado idea). Com isso,
o ser, ele mesmo, é encoberto; daí porque a história da metafísica é a história do esquecimento
do ser. Em todos os filósofos decisivos da tradição – Aristóteles, S.Tomás, Descartes, Kant,
Hegel e Nietzsche -, sistematicamente confrontados por Heidegger, um enteideal é tomado
pelo ser, é confundido com o ser, que permanece, por isso, velado 103. As sucessivas versões
da palavra fundamental da filosofia ocidental, idea, a traduzem sem transformar a estrutura
metafísica nela destinada.
Em Contribuições, Heidegger é igualmente explícito a respeito da centralidade de Pla-
tão na história do ser: Platão é o eixo metafísico gravitacional em que orbita a história da filo-
sofia ocidental. Platão é platonismo, é metafísica, e isso se condensa em sua palavra funda-
mental: idea. É a sua interpretação do ente que marca a impossibilidade de se postular a per-
gunta fundamental (sobre a verdade do seer), encoberta que está pela pergunta diretriz (sobre
a verdade do ente). Palavra-chave do platonismo, idea é a “interpretação da aletheia, por meio
da qual se prepara aquela tardia determinação da entidade como objetividade e se impede ne-
cessariamente a pergunta pela aletheia como tal para toda história da filosofia
tal.”104Ora, esse “domínio do platonismo, em diferentes orientações e figuras, conduz, pois,

103
Cf. STEIN, E. ‘Para além de Platão e Hegel, outro pensar e novo pensar’. p.73. In: ______. Exercícios de
fenomenologia – limites de um paradigma. Ijuí: Ed.Unijuí, 2004.pp.61-87.
43

também, a concepção de filosofia pré-platônica (e precisamente Nietzsche)”, de modo que


fica clara a hegemonia da interpretação do on como idea105.
O primeiro início da filosofia, que é o despontar hegemônico da pergunta diretriz pla-
tônica sobre o ser do ente, torna-se determinante na história da filosofia e torna as demais ver-
sões da metafísica apenas respostas variantes dessa mesma pergunta diretriz. Por isso, Heide-
gger chama esses capítulos, plasmados em nomes de pensadores, de “figuras” da metafísica
platônica. O que as unifica é acondução (consoante o verbo alemão leiten, presente na expres-
são Leitfrage, aqui traduzida por “questão diretriz”, aquela que conduz, que dirige) a partir de
uma determinação prévia do ser como entidade. E isso obstrui a compreensão do aconteci-
mento apropriativo que realmente configura essa determinação metafísica. A metafísica não
tem conhecimento de si, não sabe como surgiu e, portanto, é incapaz de pensar o ser adequa-
damente, porque se desvia dele ao concentrar-se no ente. De origem platônica, a metafísica
não é capaz de enfrentar o problema do ser enquanto ser, de pensar a “verdade do seer”, por-
que permanece presa, enredada na questão platônica diretriz. Ou seja, a história da filosofia
não é “a história do platonismo no sentido de uma sucessão de opiniões doutrinais com varia-
ções da teoria platônica, mas unicamente a história do tratamento da pergunta condutora sob o
domínio essencial do platonismo.” 106 Segundo essa noção, platonismo é a pergunta condutora
(diretriz) que “pergunta pela entidade do ente” e submete o ser à referência do re-presentar
(pensar), ao “presenciar-se” e à “estabilidade” da idea107.
É precisamente esse pensamento metafísico platônico, incapaz de reconhecer que não
alcança o ser visado, que Heidegger pretende superar com a meditação histórica, capaz de
pensar a temporalidade e a verdade do próprio seer. Efetuada como passo de volta, essa medi-
tação modula o projeto de destruição da história da ontologia, o qual deve agora ser elucidado.

104
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.174 (§109: idea).
105
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p. 179 (§110: A idea, o platonismo e o idealismo).
106
Ibidem.
107
Ibid., p. 178.
44

1.3 Destruição da história da ontologia

Este item aborda o projeto de destruição da história da ontologia no âmbito da ontolo-


gia fundamental, a fim de ressaltar o vínculo entre a temporalidade do ser e a historicidade do
ser-aí. Baseada em Ser e tempo, no curso sobre o Sofista de Platão e no texto conhecido como
Relatório Nartop (Interpretações fenomenológicas de Aristóteles), essa explanação tem por
objetivo embasar o próximo item, que analisa a reconfiguração desse projeto a partir da vira-
gem do pensamento heideggeriano, a qual perfaz um arco que vai da historicidade do ser-aí à
temporalidade do próprio ser. Sem o gesto da destruição, a lida de Heidegger com os gregos
seria uma especulação ociosa e arbitrária; careceria de dimensão propriamente filosófica. Tra-
tar da confrontação heideggeriana com Platão sem a devida compreensão hermenêutica do
modo específico de Heidegger enfocar a história da filosofia é demitir a priori a possibilidade
de entendê-la.
Projeto inicial de Heidegger, a ontologia fundamental trata do problema do sentido do
ser, e pergunta antes de tudo pela possibilidade mesma da ontologia. Ou seja, indaga como e
por qual ente a questão do ser pode ser proposta. Desse modo, ela aponta para o único ente
capaz de formular a questão do ser, o Dasein. Ou seja, a ontologia fundamental investiga a
possibilidade mesma da ontologia, por isso remete a uma questão de origem, o surgimento da
ontologia na Grécia, particularmente na obra de Platão e seus desdobramentos em Aristóteles.
Isso justifica a necessidade do diálogo com a tradição. Mas esse diálogo tem características
próprias, filosoficamente fundamentadas. Desde a referência ao Sofista, na epígrafe de Ser e
tempo, o problema da dominância da tradição em relação à concepção de ser parece a Heide-
gger um problema a ser suplantado, quando se deseja superar as aporias dessa concepção e
adentrar verdadeiramente no problema do sentido do ser, isto é, realizar o projeto da ontologia
fundamental.
A ontologia proposta por Heidegger em Ser e tempo não é fundamental no sentido de
ser fundadora, mas no sentido de ser destruidora da ontologia metafísica 108. Para dizê-lo mais
precisamente, a ontologia fundamental é destruidora do modo metafísico de questionamento
do ser, questionamento esse que descura da questão ontológica. A metafísica obscurece o sen-
tido do ser por fundá-lo sobre a entidade – como generalização abstrativa do ente -, ao mesmo
tempo em que não atenta às determinações existenciais, fáticas do ente capaz de questionar o
ser, o ser-aí. Por isso, a metafísica tem o seu propósito duplamente entravado: 1. não questio-

108
VAYSSE, Jean.-Marie. ‘Historialité et histoire de l’être’, pp. 171-213. In: CARON, M. (org.). Heidegger.
Paris: Cerf, 2006. p.198.
45

na radicalmente o ser enquanto ser, e 2. não questiona o ente capaz de compreender o ser. No
âmbito de Ser e tempo, essas limitações tentam ser superadas com os subprojetos que configu-
ram a ontologia fundamental: a hermenêutica da facticidade, a analítica existencial e a des-
truição da história da ontologia. De interesse particular a esta tese é esse último subprojeto, a
destruição que desentrava as camadas sedimentas pela tradição metafísica. Isso porque os
estratos conceituais metafísicos cristalizados obstruem o questionamento mais originário do
sentido do ser. Entretanto, a destruição está intimamente ligada à hermenêutica da facticidade,
da qual ela surge, e da analítica existencial, à qual ela permanece vinculada, enquanto perdu-
rar o projeto da ontologia fundamental, projeto esse que será revisto pela viragem no pensa-
mento heideggeriano dos anos de 1930. Essa mudança da destruição da história da ontologia
será estudada no próximo item.
Consoante o projeto de ontologia fundamental acima mencionado, toda ontologia tem
uma dimensão fática, pois toda compreensão do ser se dá por um ente capaz de questioná-lo,
o ser-aí. Como explica Casanova 109, esse ser-aí humano já sempre se encontra imerso num
mundo histórico que lhe descerra o ente na totalidade e que comporta uma estrutura prévia de
pré-compreensão do ser. Toda ontologia, portanto, tem uma dimensão fática, dependendo,
portanto, da história das sedimentações de determinações do ser do ente na totalidade. Nesse
sentido, o conhecimento teórico nunca é primário, mas sempre derivado de uma abertura his-
tórica de mundo – manifesto na linguagem - que delimita o horizonte de mostração dos fenô-
menos em geral. A história do ser não é a historiografia filosófica que elenca as diversas res-
postas da questão ontológica, as tentativas anteriores de alguns pensadores destacados cuja
obra mereceu ser preservada como testemunho exemplar de filosofia. Ou seja, não se trata de
uma investigação sobre as diversas opiniões, a serem reconstituídas de modo sistemático e
ordenado. Se assim fosse, o diálogo com a tradição não passaria de um exercício de erudição,
tão refinado quanto estéril. Para Heidegger, deve-se buscar nas obras dos filósofos não a for-
ma acabada de filosofia, ou a comparação entre as filosofias mais verdadeiras ou mais con-
vincentes. Devem-se buscar os resquícios que testificam o mundo fático no qual toda filosofia
está necessariamente inserida, pois a filosofia sempre reflete o mundo histórico no qual está
enraizada. Esse mundo a constitui e lhe fornece a estrutura fática de compreensão do ser. A
questão do ser, portanto, precisa ser balizada pela hermenêutica da facticidade. O que deve
aqui ser sublinhado é a historicidade da questão do ser, ressaltada constantemente por Heide-

109
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes. p. 80 e ss.
46

gger. Ontologia e história não são mutuamente excludentes, mas devem ser pensadas de modo
convergente e inseparável.
É a tradição filosófica que abre o campo histórico que delimita o questionamento do
ser, pois o passado sempre condiciona o modo como o presente pode se constituir. O presente
depende do passado. Por isso, todo questionamento ontológico de hoje – qualquer que seja o
momento histórico - remete ao modo como esse questionamento tem sido feito pela tradição
grega a que pertence a filosofia ocidental. Daí a indispensabilidade do diálogo com Platão e
Aristóteles. Desse modo, o diálogo com a tradição não é uma opção, uma alternativa disponí-
vel a certo tipo de filosofia, é, antes, um imperativo que reconhece o caráter necessariamente
tradicional de todo pensamento. Toda filosofia é, portanto, histórica e não pode ser pensada
sem a dimensão temporal que a constitui. Em que medida, então, a hermenêutica da facticida-
de vai ao encontro à destruição da história da ontologia?
Um filosofar que não questiona a tradição que o delimita não faz senão renovar as es-
truturas prévias de compreensão que conformam o seu horizonte histórico de mundo. Ou seja,
é um filosofar que repete o modo de questionamento ontológico que lhe foi predeterminado
pela dominância tradicional do passado sobre o presente. Por isso, a ontologia fundamental –
que efetivamente enfrenta o problema do ser – precisa operar a destruição da história da onto-
logia, que encerra um movimento crítico diante da hegemonia do passado, uma destruição dos
campos abertos pelo passado e cristalizados pela tradição. Esses campos fenomenológicos de
mostração franqueiam o horizonte de sentido que permite a questionabilidade da questão do
ser. Ou seja, são esses campos que tornam significativa a questão do ser, que permitem que a
questão ontológica seja formulada como tal, que ela seja possível, isto é, que ela tenha um
sentido. Quando esses campos são sedimentados por uma tradição hegemônica, a experiência
fática originária de que eles provêm são soterradas pela cristalização de significado condensa-
do nas palavras fundamentais dominantes. O modo como a questão do ser é formulada, então,
conquista caráter de autoevidência, que, para Heidegger, implica uma obviedade obstrutiva,
pois imobiliza o pensamento de ir além desse horizonte delimitado de questionamento 110. Isso
porque a sedimentação desse campo hermenêutico faz com que se tomem os pressupostos
interpretativos desse mundo histórico como naturais, como dados, negando-lhes a historicida-
de que os caracteriza. A investigação filosófica entra no arco preexistente de modulação des-
ses pressupostos, sem aceder a um nível de questionamento radical deles mesmos. A conse-

110
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p.39 (§1). Nas citações dessa edição
brasileira de Ser e tempo, esta tese não acolhe a tradução do termo Dasein por presença, optando por deixar o
termo alemão original, com a concordância do gênero masculino.
47

quência dessa hegemonia do questionamento ontológico grego, sedimento na tradução metafí-


sica, é – pra dizê-lo com Casanova – “um encurtamento de seu horizonte essencial e um obs-
curecimento de novas possibilidades de problematização. (...) É preciso quebrar a força da
obviedade e o seu poder letárgico sobre as possibilidades históricas da tradição.” 111. De que se
trata nessa libertação, nessa afirmação do caráter de poder-ser que constitui a ek-sistência do
Dasein?
Obra capital de Heidegger, Ser e tempo começa com a postulação da necessidade de se
retomar a questão do ser para além do horizonte apequenado legado pela tradição, que a su-
bestimou ao considerá-la uma questão trivial, óbvia, autoevidente. Trata-se de romper com a
inércia da tradição, com a consolidação de uma versão única de questionamento do ser. Para
tanto, é necessário destruir a tradição grega da filosofia, que neutraliza a questão do ser, con-
siderando o ser o mais vazio, universal e indefinível dos “conceitos”. O que antes inquietava e
propulsionava o questionamento antigo tornou-se evidente e claro ao ponto de não ser mais
questionado. Em outras palavras, a tradição da filosofia perde seu poder propriamente filosó-
fico.Por isso que, para a consecução do projeto da ontologia fundamental, deve-se compreen-
der os preconceitos metafísicos que a obstruem, a fim de renovar e esclarecer a questão do
ser, para além da obscuridade e do esquecimento a que foi submetida. Isto é, deve-se reelabo-
rar o modo adequado de colocação da questão (Fragestellung)112.
Desde o primeiro parágrafo de Ser e tempo, a repetição da questão do ser aponta para
a destruição da tradição metafísica que a imobiliza, tradição essa que se esqueceu da questão
fundamental do ser. Repetir a questão do ser é, então, aprofundar o horizonte de questiona-
mento da tradição grega para superá-la113. Não se supera a tradição abandonando-a ou despre-
zando-a. A superação é uma apropriação, uma radicalização do questionamento, como afir-
ma Heidegger em Problemas fundamentais da fenomenologia114.
Nesse texto importante para a compreensão fenomenológica do projeto de ontologia
fundamental, percebe-se que o escopo fundamental da filosofia de Heidegger é ir mais longe
do que os gregos, perguntar mais radicalmente sobre a possibilidade de que o ser seja interro-

111
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes.p. 83.
112
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de S.C.Schuback. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p. 37, 40 (§1).
113
Cf. SALLIS, John. ‘Nonphilosophy’, pp. 15-43.In: Echoes. After Heidegger. Bloomington and Indianapolis:
Indiana University Press, 1990. p.20.
114
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad. M.A.Casanova. Pertrópolis:
Vozes, 2012. p. 261 (cap.4).
48

gado na sua radicalidade, sem reduzi-lo ou confundi-lo com o ente. Desse modo, deve-se ter
em mente que não se trata de voltar-se contraa ontologia grega, mas de superar (überwinden)
o modo encobridor com que a tradição filosófica ocidental habituou-se a interrogar o sentido
do ser. Por isso, faz-se necessário acompanhar a formação da ontologia grega, a fim de per-
correr mais propriamente os caminhos entreabertos por ela. Heidegger almeja ir além dos gre-
gos, mas na mesma direção que eles 115. Trata-se de conquistar a prerrogativa de herdar o le-
gado filosófico da Antiguidade em toda sua vitalidade de pensamento. Essa herança não é
simplesmente pressuposta, dada, mas deve ser conquistada, a partir do método fenomenológi-
co de investigação, que orienta a filosofia à sua natureza esquecida e obstruída: a sua essência
ontológica. Pensada como superação, a destruição instaura uma dimensão autenticamente
filosófica à investigação fenomenológica de Heidegger. Sem isso, as inovações e alterações
da história da filosofia não são senão “remendos”, “aprimoramentos” ou “deteriorações” ines-
senciais. Tornar-se herdeiro dos gregos implica superá-los, ir além dos limites encurtados com
que a tradição os legou. É nesse contexto que se lê a seguinte afirmação de Os problemas fun-
damentais da fenomenologia: “Nós não apenas queremos, mas precisamos compreender os
gregos melhor do que eles mesmos compreenderam a si mesmos”116, o que remete a um prin-
cípio básico da hermenêutica de Schleiermacher: compreender um autor melhor do ele mesmo
se compreendeu.
Na verdade, deve-se atentar ao fato de que não se “supera” pura e simplesmente a
ontologia grega por um ato de vontade, pelo reconhecimento de sua inconsistência lógica ou
pela apresentação de um sistema mais coerente, ou mais verdadeiro. Ao contrário, deve-se
partir dela, seguir radicalmente seus passos até o destino que ela mesma conduz, a fim de re-
nová-la intimamente. Por isso, explica Heidegger:

A ontologia antiga, porém, não é por princípio trivial e nunca pode ser superada, porque ela
representa o primeiro passo necessário que toda filosofia precisa efetivamente dar, de modo
que esse passo sempre precisa ser repetido por toda filosofia efetivamente real. Só a moderni-
dade presunçosa e decaída no barbarismo pode pretender acreditar que Platão estaria, como se
diz com muito bom gosto, acabado.117

Isso quer dizer que os gregos não são jamais refutados ou superados intelectualmente.
Deve-se ultrapassá-los nos seus próprios termos, com uma fidelidade ao projeto originário

115
Cf. BRAGUE, Remi ‘La phénoménologie comme voie d’accès au monde grec’, p. 112. In: CARON, M.
(org.). Heidegger. Paris: Cerf, 2006.pp. 111-146.
116
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad. M.A.Casanova. Pertrópolis:
Vozes, 2012. p.166.
117
Ibidem.
49

deles, pois só a radicalidade desse projeto se chega à pergunta ontológica fundamental. O que
está em jogo é “pensar de modo mais grego do que os gregos”, para retomar a fórmula lapidar
de que Heidegger se vale em Unterwegs zur Sprache118. Mas o que significa esse pensamento
helenista, ou, melhor, essa filosofia à grega? Significa radicalizar as perguntas que os gregos -
notadamente Platão e Aristóteles e, antes deles, Parmênides e Heráclito - fizeram. Diz Heide-
gger: “Não estamos tentando outra coisa aqui com a nossa interpretação do ser senão repetir
os problemas da filosofia antiga para, na repetição, radicalizá-los a partir de si mesmos.” 119
Deve-se reforçar, porém, que essa repetição não consiste na reiteração uniforme do
sempre idêntico, mas totalmente o contrário: procurar, recuperar o que, retraindo-se, se reco-
lhe no antigo. Em outras palavras, essa repetição diz respeito à destruição, que não visa a im-
plodir a metafísica, mas a abrir-lhe à sua própria excedência. É essa superabundância, esse
excesso – como explica Courtine120 – que permite destinar à metafísica a sua autossuperação,
sendo insuficientes e inconsistentes, portanto, as filosofias que pretendem superar a metafísica
como algo simplesmente caduco, abrindo as portas para uma nova fase que se sucede triun-
falmente sobre um estágio acabado.
Com efeito, no segundo parágrafo de Ser e tempo, Heidegger alude à necessidade da
lida destrutiva com a tradição da ontologia a fim de não se deixar enredar em suas limitações,
na medida em que o condicionamento do seu enfoque pode obstruir a via de acesso ao ser ele
mesmo. Ou seja, esconder a questão do ser sob a falsa impressão de que ele foi questionado
metafisicamente com a entidade do ente. Isso porque há sempre uma “compreensão vaga e
mediana de ser” vigente em qualquer investigação ontológica que opera como horizonte de
pré-compreensão dos entes em geral. Para que o questionamento não simplesmente reproduza
e renove esses pressupostos interpretativos no mais das vezes velados, deve-se conduzi-los a
um patamar de transparência hermenêutica. Por essa razão, afirma Heidegger: “A compreen-
são de ser vaga e mediana pode também estar impregnada de teorias tradicionais e opiniões
sobre o ser, de modo que tais teorias constituam, secretamente, fontes de compreensão domi-
nante.”121 São essas “fontes de compreensão dominante” que devem ser destruídas para que a

118
HEIDEGGER, Martin.Unterwegs zur Sprache. GA 12. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermannm 1985. p.
134.
119
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad. M.A.Casanova. Pertrópolis:
Vozes, 2012. p.458.
120
COURTINE, Jean.-François. ‘Du besoin de la Philosophie’, p.31. In: Heidegger et la phenomenologie,
p.31.Heidegger et la phenomenologie. Paris: Vrin, 1990.pp. 13-32.
121
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2.ed. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p. 41 (§2).
50

questão do ser emerja em toda a sua plenitude filosófica, isto é, de modo não acachapado pela
tradição metafísica que o entifica. A consideração da tradição se impõe como conquista de
transparência hermenêutica do solo a partir do qual a questão do ser pode surgir. Sem isso,
assume-se irrefletidamente um “tradição venerável”, velada, sem a devida transparência do
problema122.
A destruição da história da ontologia é tematizada no sexto parágrafo de Ser e tempo.
Como ato intelectual do ser-aí, toda investigação baseia-se em uma possibilidade ôntica desse
ente cujo ser encontra seu sentido na temporalidade (Zeitlichkeit). Por ser temporal, o ser-aí é
também histórico. Essa historicidade (Geschichtlichkeit) do ser-aí diz respeito ao “acontecer”
(Geschehens) que o constitui como tal e do qual deriva a historiografia em geral, isto é, o ato
intelectual de recontar os acontecimentos do passado. A historiografia é sempre secundária
em relação à historicidade constitutiva do ser-aí. Não fosse essa historicidade elementar do
ser-aí, não haveria investigação sobre a dimensão temporal e histórica das ontologias em ge-
ral. Uma época que se dedica à pesquisa historiográfica é tão histórica quanto uma época que
a ignora, pois “é com base na historicidade que a ‘história universal’, e tudo que pertence his-
toricamente à história do mundo, torna-se possível”123. O ser-aí é sempre o seu passado, pois:

Em cada um de seus modos de ser, o Dasein sempre já nasceu e cresceu dentro de uma inter-
pretação de si mesmo, herdada da tradição. De certo modo e em certa medida, o Dasein se
compreende a si mesmo de imediato a partir da tradição. Essa compreensão lhe abre e regula
as possibilidades de seu ser. Seu próprio passado, e isso diz sempre o passado de sua ‘gera-
ção’, não segue mas precede o Dasein, antecipando-lhe os passos.124

A compreensão de ser (Seinsverständnis) delimita o poder-ser do ser-aí, sendo essa


compreensão baseada nas possibilidades da tradição em que ele se encontra enraizado. Essa
tradição, portanto, antecipa-lhe os passos, e isso diz respeito ao caráter futuro de todo aconte-
cimento histórico, às possibilidades vindouras entreabertas pelo acontecimento passado de
formação de mundo, dentro do qual o ser-aí existe compreendo a si e ao ser.
Baseado nessa historicidade elementar, pela qual o ser-aí é o seu passado, a historio-
grafia (Historie) é o modo de o ser-aí lidar com a sua tradição de modo refletido, conservan-
do-a e investigando-a, a fim de perceber “o que” ela transmite e “como” ela o faz. A historio-
grafia é, desse modo, uma possibilidade do ser-aí, que pode conquistar uma transparência

122
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback.
Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007., p. 47 (§3).
123
Ibid., p. 57 (§6).
124
Ibid., pp. 57-58.
51

histórica de sua própria existência, isto é, elucidar o modo como a tradição lhe legou as possi-
bilidades presentes. Além disso, o ser-aí pode ir além e perguntar pelo sentido da própria exis-
tencialidade (Existentialität), isto é, perguntar previamente pelo sentido do ser em geral. Ao
fazê-lo, o ser-aí se depara com a sua própria historicidade, concluindo que: perguntar pelo
sentido do ser em geral pressupõe a historicidade fundamental do ser-aí, pois o ser do ente que
realiza essa pergunta é histórico 125. Somente quando se apropria positivamente do seu passa-
do, o ser-aí dispõe da posse integral das possibilidades mais próprias de questionamento. Ou
seja, o ser-aí conquista a sua historicidade e, com isso, um modo mais originário de questio-
namento da temporalidade do ser.
Ser-no-mundo, o ser-aí tende a decair no mundo histórico que é o seu, a render-se à in-
terpretação dominante que lhe indica quem ele é, assim como as possibilidades que lhe são
apresentadas. É isso que Heidegger quer dizer ao afirmar que o ser-aí tende a decair no mundo
em que estáe é (ist), interpretando-se a si mesmo e com base nos critérios e conceitos prove-
nientes desse mundo. O ser-aí decaí, é absorvido pela tradição que “lhe retira a capacidade de
se guiar a si mesmo, de questionar e escolher a si mesmo.” 126 Tragado pela tradição, o ser-aí
inautêntico sequer percebe que está açambarcado por ela, uma vez que ela tem um caráter
pervasivo e dominante, ao mesmo tempo que se “encobre e esconde” 127, relegando o que ela
“entrega” – tradição é transmissão, entrega – ao caráter inquestionado da evidência.
Ao revestir-se de obviedade e evidência, o legado da tradição permanece inquestiona-
do, o que obstrui o acesso às “fontes originais” das quais provêm as categorias e os conceitos
tradicionais. Consoante o aspecto de evidência e obviedade de que se reveste a tradição, ela
gera a aparência de inutilidade e ociosidade da pesquisa ontológica que investiga as fontes
originárias de que derivam os conceitos: “A tradição até faz esquecer essa proveniência. Cria
a convicção de que é inútil compreender simplesmente a necessidade de retorno às ori-
gens.”128 Desse modo, a tradição desenraiza o ser-aí, priva-o de sua historicidade porque natu-
raliza e cotidianiza o presente, tornando esse presente tradicional no sentido de ser inquestio-
nado radicalmente. Procurando velar sua própria falta de solo e solidez existencial, o ser-aí
entretém-se, curiosamente, pelos vários tipos e correntes da filosofia de culturas alheias e dis-
tantes da sua, como se passeasse num museu de eras intelectuais admiráveis porém estéreis.
125
HEIDEGGER, Martin.Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p.58.
126
Ibid., p.59.
127
Ibidem.
128
Ibidem.
52

Com todo esse interesse pela historiografia, que descreve cientificamente os fatos históricos,
assim como pela interpretação filologicamente objetiva, o ser-aí torna-se incapaz “de compre-
ender as condições mais elementares que possibilitam um retorno positivo ao passado, no
sentido de sua apropriação produtiva.”129 É isso que caracteriza a destruição da história da
ontologia: uma apropriação da tradição da ontologia para além das calcificações que a ape-
quenam e que encobrem as experiências fáticas das quais ela provém. Nisso consiste um “re-
torno positivo ao passado”130.
A tradição metafísica neutralizou o questionamento ontológico ao estabilizar os com-
portamentos cotidianos em conceitos isolados dos contextos fáticos originários. O comporta-
mento cotidiano do ser-aí é permeado por decisões históricas que permanecem inquestionadas
pelo caráter de obviedade de que se revestem os conceitos da tradição. A questão do ser é o
princípio que norteia o comportamento relativo aos entes em geral. Essa orientação prévia do
ser, que condiciona a lida com os entes em geral, é o que precisa ser recuperado pela destrui-
ção. Com efeito, a destruição provoca a liberação do que permanece impensado no interior de
toda ontologia. Repetição da questão do ser é liberação, pela destruição, do impensado na
tradição ontológica. Repetição não é acolhimento passivo e reprodutivo de uma imagem lega-
da pelo passado tradicional, mas uma apropriação criativa que o liberta das amarras que o
impedem de se deixar ver por completo, isto é, de conquistar a autotransparência histórica.
Quando o ser-aí recupera o passado ontológico para além da tradição que o lega distorcido, o
ser-aí promove a sua metamorfose repetidora e criativa. A repetição aqui em jogo é a das pos-
sibilidades latentes do passado, as quais passam simplesmente despercebidas pela tradição
que as soterra em conceitos cristalizados e evidentes. É a liberação dessas possibilidades obs-
curecidas o objetivo da destruição, que repete o passado para reconquistá-lo, renová-lo e supe-
rá-lo.
Com isso, a destruição perfaz o projeto da ontologia fundamental, pois radicaliza a
questão do ser e pergunta pela própria possibilidade de tal questionamento ser desenvolvido.
Heidegger não se interessa por uma ontologia em particular - seja a grega ou a contemporâ-
nea, a medieval ou a moderna -, mas pela possibilidade de algo assim como a ontologia vir à
tona131. Para tanto, é necessário recorrer ao fundamento, ao princípio do pensamento ocidental
em Platão e Aristóteles. Isso porque a ontologia grega e sua história “ainda hoje determina o

129
HEIDEGGER, Martin.Ser e tempo. 2.ed. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.p. 60.
130
Ibidem.
131
Cf. CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 84.
53

aparato conceitual da filosofia”, ainda que ramificada em “filiações e distorções” 132. É neces-
sário radicalizar o questionamento originário de Platão e Aristóteles mediante a destruição da
tradição que os neutralizou, degradando-os na inquestionabilidade da evidência. A degradação
a que se refere Heidegger nesse passo de Ser e tempo é a subtração do poder especulativo da
ontologia grega, que se torna óbvia, autoexplicativa, “algo-que-se-entende-por-si-mesmo”
(Selbstverständdlichkeit), reduzida a mero material de reelaboração. Eis uma passagem rele-
vante a esse respeito:

Caso a questão do ser deva adquirir a transparência de sua própria história, é necessário, en-
tão, que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição petrificada e se removam os en-
tulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia,
legado pela tradição. Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão
do ser até chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações
do ente, que, desde então, tornaram-se decisivas.133

A destruição, portanto, não é algo estritamente negativo, “destrutivo”, como se poderia


supor à primeira vista. A destruição da história da ontologia é uma liberação do passado das
teias da tradição que o enredam em conceitos obstrutivos da questão do ser. O Dasein tem,
por conseguinte, que apropriar-se positivamente do passado a partir de um tratamento crítico e
destrutivo da tradição. A apropriação positiva do passado é a conquista da possibilidade do
questionamento efetivo do sentido do ser a partir da sua temporalidade, antes calcificada pela
tradição metafísica da ontologia grega. É esse o sentido do excerto mencionado acima, em
que Heidegger se refere a “um retorno positivo ao passado, no sentido de sua apropriação
produtiva”, a fim de apropriar-se integralmente “das possibilidades mais próprias de seu ques-
tionamento”134.
Desse modo, deve ficar claro que a destruição comporta dois momentos, um negativo
e outro positivo. Casanova esclarece a complementaridade dessas etapas: Em primeiro lugar,
a dimensão negativa implica a superação da “ingenuidade própria ao modelo iluminista de
racionalidade, segundo o qual seria possível começar o questionamento filosófico a partir do
zero.”135. Ora, ao interrogar pelo sentido do ser, o ser-aí já sempre parte de uma conceptuali-
dade que lhe viabiliza o horizonte de questionamento. São os conceitos ontológicos funda-

132
HEIDEGGER, Martin.Ser e tempo. 2. ed. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p. 58.
133
Ibidem.
134
Ibid., p. 59.
135
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 57.
54

mentais que franqueiam a questionabilidade do ser, a partir de uma abertura originária do ente
na totalidade plasmada nesses conceitos. Essa conceptualidade que permite o questionamento
ontológico é histórica, pois surge no “no interior de um processo de sedimentação de sentidos
e significações”136. A destruição visa a averiguar essa procedência fática das sedimentações
semânticas em que se baseiam os conceitos ontológicos que delimitam todo perguntar do ser.
Como explica Casanova, não é possível a consecução do projeto racionalista, o programa de
uma filosofia crítico-transcendental de “alcançar princípios puros e a priori de constituição de
todo conhecimento”137 para além dos conceitos fundamentais que sempre operam na lingua-
gem e que previamente orientam a investigação ontológica. Isso representa uma ingenuidade
hermenêutica da qual Heidegger tenta se distanciar pela destruição.
Ora, diferente do racionalismo transcendental, a destruição não intenta conquistar um
campo limpo e puro de especulação, isenta de toda esfera de pré-compreensão. Ela almeja
conquistar transparência hermenêutica do solo conceitual e significativo de que parte. A des-
truição procede, então, com a implosão dessa “camada significativa previamente dada”a fim
de “reconduzi-la à sua gênese histórica específica”138. Essa segunda operação correlata res-
ponde pela dimensão positiva do ato hermenêutico destrutivo. Essa gênese é exatamente a
situação fática que origina a conceptualidade ontológica. Ou seja, a destruição da história da
ontologia pressupõe a hermenêutica da facticidade, com o reconhecimento da vinculação ori-
ginária do ser-aí com o mundo fático a que necessariamente pertence, com a imersão no hori-
zonte originário da constituição fática da conceptualidade. Antes de “teorizar” sobre o ser, o
ser-aí se encontra imerso em uma situação fática específica, em um mundo histórico que lhe
abre possibilidades práticas, na lida cotidiana com os objetos à mão, e possibilidades cogniti-
vas, no tratamento teórico dos problemas filosóficos.
Se a destruição, no momento negativo, alija as significações infundadas de um mundo
histórico, ela, ao mesmo tempo, aponta para o momento positivo, em que conquista o horizon-
te originário de insurgência desses conceitos destruídos, perfazendo-se, portanto, como her-
menêutica da facticidade. Essa “postura crítica-destrutiva” é a modulação heideggeriana da
fenomenologia, que precisa reinserir os “fenômenos nas situações concretas em que de fato se

136
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 57.
137
Ibidem.
138
Ibidem.
55

apresentam”, ao mesmo tempo que opera uma “destruição dessas situações com vistas aos
horizontes originários de sua emergência.” 139
A busca do horizonte originário da insurgência da ontologia é o que torna o projeto fe-
nomenológico de Heidegger indissociável de um diálogo estreito com a metafísica de Platão e
Aristóteles, com os primórdios da filosofia grega, que delineiam a fisionomia da filosofia oci-
dental. No âmbito da historicidade da questão do ser, os filósofos gregos originários são deci-
sivos porque configuraram as estruturas prévias de toda interpretação subsequente dos entes;
retomá-los é indispensável para a compreensão dos horizontes sedimentados dos quais se par-
te em uma investigação ontológica, pois eles forneceram o “a priori histórico de nossa facti-
cidade, como medida prévia a partir da qual se constituem as diversas significações dos entes
que vêm ao nosso encontro e os diferentes comportamentos assumidos em relação a esses
entes”140.
Ou seja, o que se busca com a destruição é a conquista do solo originário de que pro-
veio a primeira determinação do ser no Ocidente, paradigmática e responsável por todo o des-
dobramento da tradição filosófica. Com isso, a destruição recupera as bases fenomenológicas
dos conceitos fundamentais.
Não se trata, portanto, de um interesse acadêmico e erudito, com pretensões de recons-
tituição filológica dos textos; de um diálogo que se contemple a alteridade filosófica de dou-
trinas passadas, mas de um questionamento ontológico que reconhece a sua dimensão históri-
ca. Todo questionamento ontológico é marcado pela historicidade do ser-aí que se pergunta
pelo ser. Portanto, o questionamento ontológico é, ele mesmo, ineludivelmente histórico. Para
um pensador como Heidegger, que se insere numa longa tradição de pensamento histórico
desenvolvida no século XIX alemão, a ontologia não pode jamais ser considerada “metafísi-
ca” no sentido de ser atemporal, eterna e imutável. O ser-aí pode ou bem renovar os precon-
ceitos da tradição - isto é, renovar o modo de questionamento consolidado pelo mundo histó-
rico em que se encontra absorvido -, ou bem destruir essa tradição, repetindo a questão do ser
de modo criador e apropriativo. Essa apropriação é a conquista da transparência histórica efe-
tuada pela destruição. Só assim é possível aceder às experiências originárias que se petrifica-
ram nos conceitos hegemônicos da tradição e que determinam toda pergunta ontológica. A
destruição é conduzida pela questão do ser porque evidencia a origem fática dos conceitos
ontológicos fundamentais que predeterminam o acesso do ser-aí ao ser, isto é, o modo exis-

139
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009., pp. 58-59.
140
Ibid.,p. 63.
56

tencial com que foram obtidas as primeiras determinações ontológicas do ente. Essas experi-
ências precisam ser resgatadas exatamente porque foram soterradas; ao se repetir a pergunta
sobre o ser para além das balizas limitadoras da tradição metafísica se alcança as respectivas
“certidões de nascimento”141 dos conceitos ontológicos fundamentais que conformam toda e
qualquer compreensão ontológica.
Desse modo, pode-se perceberque a destruição comporta uma dupla genealogia 142.
Uma primeira genealogia que conduz aos conceitos essenciais da ontologia grega no momen-
to de sua formação originária – isso porque toda a história da ontologia ocidental é tributária
ao modo como os gregos questionaram, pela primeira vez e originariamente, o ser. Há, ainda,
uma segunda genealogia que, num sentido ainda mais profundo, volta-se às experiências fun-
damentais que originaram os conceitos calcificados pela tradição.
A primeira genealogia comporta, então, uma dimensão história: o retorno à ontologia
grega a fim de repeti-la e radicalizá-la, a fim de conquistar o que, nela, permaneceu impensa-
do,por causa do modo metafísico de questionamento do ser. Com essa genealogia histórica, a
destruição permite que a investigação sobre o sentido do ser remonte à sua origem grega, a
partir da se qual podem compreender “as estações decisivas e fundamentais” da história da
ontologia143, uma vez que essa história representa o conjunto de reinterpretações superpostas
de uma mesma experiência originária que lhe confere unidade filosófica.
A segunda genealogia é baseada na hermenêutica da facticidade, pois reconduz a onto-
logia grega, ela mesma, às experiências originárias das quais ela provém. Só assim se pode
perceber o caráter limitador e parcial dos conceitos ontológicos que delimitam a compreensão
do ser. Como a destruição visa a interpretar a ontologia grega de modo mais originário e radi-
cal do que ela mesma se questionou, Heidegger a considera a partir da problemática da tem-
poralidade (Temporalität), consoante a historicidade constitutiva do ente que questiona o ser,
o ser-aí. Importa, portanto, reconhecer o predomínio ôntico do ser-aí que condiciona o questi-
onamento ontológico, a partir de sua motivação existencial, que é a autocompreensão inicial
do Dasein, que compreende o ser a partir de uma determinada região dos entes e conforme
uma experiência do tempo especifica.

141
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p. 61.
142
Cf. DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.p.22.
143
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.p. 61.
57

A fim de evitar os mal-entendidos que a noção de destruição pode suscitar, Heidegger


delineia três modos errôneos de compreendê-la. Em primeiro lugar, ela não acarreta em “rela-
tivização das perspectivas ontológicas” 144, ao articular os conceitos ontológicos às experiên-
cias originárias que os fundamentam. Como explicado acima, esses dois momentos genealó-
gicos, o histórico e o fático, complementam-se e se esclarecem mutuamente, não cabendo
sujeitar um ao outro de modo a relativizar a perspectiva ontológica, seja submetendo o concei-
to à experiência que o gerou, seja submetendo a experiência ontológica a uma forma concei-
tual prévia que a delimita e conforma.
A destruição também não é aniquilação niilista, negação pura e simples do passado,
atitude rebelde e revolucionária como a de certas vanguardas estéticas do começo do século
XX, como o dadaísmo. Com efeito, em O que isto – a filosofia?, Heidegger afirma que des-
truição “não significa ruína, mas desmontar, demolir, pôr-de-lado – a saber, as afirmações
puramente históricas sobre a história da filosofia” 145. Heidegger pondera a dimensão negativa
da destruição com a sua contraparte positiva, porque não se trata de “arrasar a tradição onto-
lógica”, mas de “definir e circunscrever a tradição em suas possibilidades positivas, e isso
quer sempre dizer em seus limites”146. Ao mesmo tempo que a tradição obstrui, ela abre um
campo de possibilidades para a exploração das experiências fáticas registradas, ainda que ve-
ladamente, nos conceitos ontológicos fundamentais. É a isso que Gadamer se refere ao afir-
mar que
‘destruição’ não significava de maneira alguma “dizimação”, mas tinha em vista uma des-
construção com uma meta segura: uma desconstrução das camadas sedimentadas que, por
fim, outrora como hoje, não vêm ao encontro senão na língua realmente falada. O que estava
em questão era, em outras palavras, a tarefa de se apropriar novamente ou descontruir a lin-
guagem conceitual de toda a história do pensamento que conduz do pensamento dos gregos,
passando pelo latim da Idade Média cristã e pela sobrevivência dessa conceptualidade, até a
formação do pensamento moderno e de suas línguas nacionais. Portanto, o que estava em
questão era tratar desconstrutivamente a terminologia tradicional, a fim de reconduzi-la a ex-
periências originárias.147

Desse modo, a destruição também não é passadista, ou histórica no sentido de se voltar


ao passado a fim de, nele, descobrir algo de relevante para o “conhecimento histórico”, a ci-
ência historiográfica. Não se trata de revisão histórica, mudança da compreensão do que acon-

144
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.p. 61.
145
HEIDEGGER, Martin. ‘O que é isto – a filosofia?’ pp. 13-24. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção
Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 20.
146
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.p. 61.
147
GADAMER, Hans-Georg. ‘Heidegger e a linguagem’, p. 30. In: Hermenêutica em retrospectiva.Vol.1 Heide-
gger em retrospectiva. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 25-48.
58

teceu no passado, a partir da alteração de um paradigma historiográfico. A destruição é um ato


propedêutico necessário ao projeto da ontologia fundamental, de compreensão do sentido do
ser a partir da historicidade do Dasein, por isso se concentra no “hoje”, nos “modos vigentes
de tratar a história da ontologia.” 148 Heidegger afirma, então, que “a destruição não se propõe
a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua função negativa
é implícita e indireta.”149
A partir da menção a essas três formas errôneas de compreender a destruição, de que
Heidegger se protege, pode-se acrescentar que a destruição não é nem teórica, nem dialética,
noções que podem ser apreendidas em uma aproximação descuidada do termo. A destruição
não é contraposição teórica de determinada tendência ontológica ou metafísica, no intento de
contrapor uma tese à outra, como quando o racionalismo se defronta com o empirismo a fim
de “destruí-lo”, por exemplo. Não é exercício dialético de refutação, como o Sócrates platôni-
co costumava fazer com os seus interlocutores, expondo-lhes as incongruências do seu pen-
samento, deixando-os, por isso, perplexos e “destruídos”.
Para consolidar o significado da destruição da história da ontologia, convém antecipar
as linhas gerais do terceiro capítulo desta tese, considerando a conhecida destruição da noção
grega de verdade, tratada no parágrafo 44 de Ser e tempo. De acordo com a tradição na qual a
modernidade se encontra de modo autoevidente, a verdade nada mais é do que a consistência
dos julgamentos, consistindo na adequação entre o juízo e os fatos. Porém, para Heidegger,
essa noção é enganosa na medida em que vela o sentido original da verdade como a-letheia,
des-velamento, tendo consequências filosóficas decisivas no esquecimento do ser a que está
submetida a metafísica ocidental. Desse modo, o trabalho de destruição da história da ontolo-
gia implica a exposição da problematicidade inerente à noção vigente, e a articulação da expe-
riência originária de que resultou tal conceito. Para dizê-lo de forma ainda mais explícita, tra-
ta-se de discernir o “fenômeno originário da verdade” e “o caráter derivado do conceito tradi-
cional da verdade”, conforme a seção b do parágrafo 44 150.
Ora, essa “experiência”, esse “fenômeno originário da verdade” é bloqueado pela tra-
dição da história da ontologia, impedindo que o passado imerja com o que tem de possível e
originário. Ao identificar os problemas e as falsificações inculcadas nos conceitos ontológicos
tradicionais, oriundos da primeira conceptualização ontológica grega, Heidegger visa a liberar

148
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.p. 61.
149
Ibidem.
150
Ibid., p. 289 (§44, b).
59

a questão do ser para o horizonte temporal que é o dela. Para tanto, não basta simplesmente
eliminar (ausschalten) a ideia de concordância, ou adequação, da concepção de verdade, pre-
cipitando a velha tradição no nada (in die Nichtigkeit stossen), o que seria algo arbitrário sem
a interpretação da experiência originária da “tradição mais antiga da filosofia”. Ou seja, para
recuperar a noção genuína de verdade a partir da experiência originária grega, deve-se proce-
der com a destruição da tradição que encobriu essa noção com algo que lhe é derivado. A do-
minância dessa camada tradicional derivada torna aparentemente arbitrária a interpretação
originária da verdade como aletheia, que “apenas traz uma interpretação necessária daquilo
que a tradição mais antiga da filosofia pressentiu de maneira originária.” 151
No curso sobre o Sofista de Platão, ministrado em 1924-1925, época da elaboração de
Ser e tempo, Heidegger deixa clara a necessidade de se livrar da dominância oclusiva da tra-
dição, com o objetivo de recuperar o passado nos seus próprios termos, isto é, o passado sem
a “traição” da “tradição”. Nesse sentido, Heidegger interpreta o famoso parricídio operado no
diálogo platônico, considerado como recusa da tradição dogmática, como meio de se alcançar
“a coisa mesma” que emerge do passado. Heidegger critica o romantismo que acredita poder
alcançar “por uma via direta o espaço livre, de tal modo que poderíamos nos desprender em
certa medida por um salto na história.” 152 Com o projeto da destruição, não se trata de se des-
vincular por completo do passado, mas de recuperá-lo sem da tradição. Isso porque a tradição
trai o passado ao legá-lo ao presente. O que Heidegger almeja, portanto, “não é se libertar do
passado, mas, inversamente, liberar o passado para nós, liberá-lo da tradição; e, em verdade,
da tradição inautêntica, que tem a peculiaridade de desfigurar no dar, no tradere, na entrega, o
próprio dom.”153
Essa passagem concerne à interpretação do significado filosófico do Parricídio, da
refutação de Parmênides pelo Estrangeiro de Eleia. Aquilo que permanece na história não são
os sistemas, afirma Heidegger, mas a “coisa mesma do pensamento” (die Sache des Denkens),
para usar sua expressão posterior já explicada no primeiro item deste capítulo. Desenredar o
passado da tradição que o apequena é identificar o que, nele,é realmente digno se der pensado,
é renovar o questionamento filosófico que o mobiliza, e não contentar-se com o resultado
“sistemático” que dele resulta. Somente mediante essa libertação “estaremos em condições de

151
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2.ed. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petrópolis:
Vozes, 2007.p. 289 (§44, b).
152
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.450 (§60, b).
153
Ibid., p. 451.
60

crescer nesse passado, isto é, somente então estaremos em condições de nos elevarmos em
meio à investigação assim liberta ao seu nível de questionamento e investigação.”154
A permanência das questões filosóficas no tempo não se dá de modo estático, sob a
forma de um presente eterno, como o concebeu a tradição metafísica da ontologia, mas no
sentido de “uma historicidade temporal própria”. Essa temporalidade é a temporalidade do
passado emergindo no presente, na meditação do pensador que o escuta desamarrado da tradi-
ção que o ecoa e repete irrefletidamente. É como se, na doação da tradição, faltasse o reflexo
do passado no presente, do ontem no hoje. Desse modo, a repetição do passado no presente
não permite a dinâmica da metamorfose das possiblidades intrínsecas do pensamento, mas, ao
contrário, o imobiliza na forma de um sistema autônomo, com suas hipóteses veladas e, prin-
cipalmente, com o velamento de sua historicidade e da experiência originária que o motivou.
Essa abertura às possibilidades filosóficas do passado é o que Heidegger chama de “trabalho
realmente investigativo”, com o qual “é possível conquistar a comunicação propriamente dita
com o passado”, e, com isso, “a perspectiva de sermos históricos. Intransigência em relação à
tradição se mostra como veneração pelo passado – e ela só é autêntica na apropriação do
passado a partir da destruição da tradição.”155
Na introdução desse curso sobre o Sofista, Heidegger atenta para dois pressupostos
decisivos da investigação, a preparação filosófico-fenomenológica e a preparação histórico-
hermenêutica. Vale notar que esses pressupostos não são detidamente desenvolvidos, mas
apenas mencionados brevemente.
A argumentação sobre a destruição da história da tradição da ontologia responde ao
pressuposto histórico-hermenêutico, pois franqueia o acesso efetivo ao passado, salvaguarda a
historicidade da compreensão do Dasein, ao tornar “transparente aquilo que é óbvio para
nós”156. A conquista hermenêutica dessa transparência histórica reconhece que o passado “não
é nada que se encontra destacado longe de nós. Ao contrário, nós mesmos somos esse passa-
do”, pois “nossa filosofia e ciência vivem desses fundamentos, isto é, da filosofia grega” 157.
Daí o nexo que une a história à existência do Dasein, ente eminentemente histórico, porquan-
to “compreender a história não pode significar outra coisa senão compreender a nós mesmos.

154
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.451 (§60, b).
155
Ibidem.
156
Ibid., p.10 (§1, b)
157
Ibidem.
61

[...] Apropriar-se de um passado significa estar em débito ante esse passado. Essa é a possibli-
dade propriamente dita de ser a própria história.”158
Como reforçado ao longo deste capítulo, esse atitude distancia-se radicalmente da his-
toriografia (Historie), modalidade de abordagem lógico-científica dos fatos ocorridos no pas-
sado. O propósito de Heidegger é o contrário disso. Como explica Casanova em nota à tradu-
ção do curso, a história (Geschichte) concerne “à história do ser e à constituição dos projetos
históricos de mundo, [às] decisões que nunca se perdem simplesmente no passado, mas que
sempre continuam vigentes no presente e determinantes para o futuro” 159
No parágrafo 33 desse curso, Heidegger deixa claro o que significa a abordagem histó-
rica que vivifica e integra o passado ao presente pelo reconhecimento da sua permanência, ou
seja, como lida não historiográfica e objetivante do passado. Isso depende do reconhecimento,
desenvolvido em Ser e tempo, de que o Daseiné intrinsicamente o seu passado, pois depende
de decisões históricas que o antecedem e que conformam mundos históricos dentro dos quais
se enraízam as suas possibilidades fáticas. Oaí do ser-aí é sempre condicionado pelo passado,
é sempre histórico. Por isso, afirma Heidegger: “O passado, nesse sentido, só se torna vivo se
tivermos compreendido que nós mesmos somos o passado. (...) nós somos o que nós fomos,
nós seremos aquilo de que, no que fomos, nos apropriamos e administramos.” 160 Uma investi-
gação efetiva, portanto, não deve recorrer a valores extratemporais e eternos, considerando-se
acima do tempo, para alcançar verdades imutáveis. Ao contrário, a efetividade de um questio-
namento histórico passa pela afirmação de sua radical historicidade, pois a confrontação com
o passado é, em si mesma, história 161.
Como se pode perceber, o curso sobre o Sofista está em consonância com o projeto da
ontologia fundamental delineada em Ser e tempo, articulando a destruição da história da onto-
logia à hermenêutica da facticidade. Essa relação pode ser observada de modo ainda mais

158
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p. 11.
159
Ibid., p. 10 (nota 2, do tradutor).
160
Ibid., p. 255 (§33).
161
Para a discussão circunstanciada do problema da historicidade do ser-aí e da historiografia cf. o quinto capítu-
lo de Ser e tempo, denominado ‘Temporalidade e historicidade’ (§§72-77).Cf. também NUNES, Benedito. Pas-
sagem para o poético – Filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992, p. 144: “O Dasein existe tem-
poralizando-se. Sem a temporalização nenhum Dasein seria, e, sem o Dasein, o mundo tampouco estaria aí (SZ,
p.365). [...] Esse movimento da sua existencia, enquanto contínuo prolongar-se, impõe-lhe a estrutura do aconte-
cer (Geschehen), de que deriva a historicidade (Geschichtlichkeit). Temporal no fundor de seu ser, o Dasein é
histórico. E isso devemos entender no sentido de que a sua constituição temporal possibilita tanto a ideia de fatos
históricos, o curso dos sucessos que fazem a história (Geschichte), quanto o conhecimento do passado pela histo-
riografia (Historie).”
62

ostensivo num texto programático de 1922, chamado Interpretações fenomenológicas de Aris-


tóteles, hoje conhecido como Relatório Nartop. Nele, Heidegger afirma a prioridade da tem-
poralidade do ser-aí humano sobre a análise formal do conceito de historiografia e sua noção
reificada de tempo, como organização cronológica dos fatos pretéritos. Ora, o que está em
jogo aqui, novamente, é o reconhecimento de que a situação contemporânea da filosofia mo-
ve-se inautenticamente no interior da conceptualidade grega, cujas experiências originárias
foram encobertas por sucessivas interpretações que constituem a tradição filosófica. Nada
obstante essa série de intepretações, ainda se pode entrever certos aspectos dessa experiência
originária nas palavras filosóficas fundamentais. Mas isso depende de uma condição: o afrou-
xamento da interpretação tradicional, de modo a liberar os “motivos encobertos” e as “ten-
dências inexpressas”, por meio de um “retrocessodestrutivo que penetre nas fontes originárias
motivadoras da explicação. Ahermenêutica só realiza a sua tarefa por sobre o caminho da
destruição.”162
Desse modo, a investigação filosófica ganha contornos de conhecimento histórico no
sentido radical do termo, pois é a facticidade da vida do ser-aí que delimita o alcance de sua
visada ontológica. Por essa razão, Heidegger nega que a investigação filosófica, que se con-
suma como “confrontação destrutiva com sua própria história”, seja considerada como um
tipo de “suplemento para ilustrar como as coisas eram em tempos anteriores, uma síntese
ocasional do que outros antes de nós conceberam, ou uma oportunidade de representar pers-
pectivas interessantes da história mundial.” 163 A destruição é o caminho autêntico no qual o
presente encontra o seu movimento temporal básico de apropriação das possibilidades radicais
do passado. Essa apropriação destrutiva perfaz-se como interpretação das experiências fun-
damentais do passado164. Só assim se conquista clareza e transparência hermenêutica do ponto
de partida das ontologias, ao se considerar o lastro histórico que embasa a existência do ser-aí.
A destruição não se limita a reconhecer que o ser-aí sempre se enraíza em uma tradição, mas
questiona o modo como ele se confronta com essa tradição.
Como se vê, a destruição da história da ontologia pensada como subprojeto da ontolo-
gia fundamental relaciona-se intimamente com a hermenêutica da facticidade. Por outro lado,

162
HEIDEGGER, Martin. Phenomenological interpretations in connection to Aristotle. An Indication of the
Hermeneutical Situation, p.124. In: Supplements. From the Earliest Essays to Being and Time and Beyond. Edi-
ção e tradução J.Van Buren. New York: State University of New York Press, 2002. pp.111-145.(A tradução
desse trecho encontra-se em CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p.
86.)
163
Ibidem.
164
Ibidem.
63

essa hermenêutica da facticidade não pode ser pensada sem o ente que se comporte teórica e
praticamente a partir do mundo histórico das ontologias sedimentadas. Esse ente é o ser-aí,
sempre decaído num mundo que lhe abre as possibilidades práticas e teóricas, ou seja, um
“ente que se ache a princípio absorvido na facticidade incontornável de seu mundo, ao mesmo
tempo em que seja marcado por uma relação originária e indissolúvel com o ser” 165. Sem o
ser-aí, entendido como nexo significativo da ontologia histórica e fática que constitui o mun-
do, não se pode sequer pensar em destruição das camadas sedimentadas que dominam os
comportamentos fáticos de um mundo histórico. Ou seja, a articulação da destruição da histó-
ria da ontologia e da hermenêutica da facticidade convergem para a analítica do ser-aí, tercei-
ro elemento da tríade de subprojetos que compõem a ontologia fundamental, consoante a or-
ganização expositiva proposta por Casanova 166. A ontologia fundamental de Ser e tempo, que
marca a primeira fase da obra heideggeriana, depende da explicitação das estruturas originá-
rias do ente capaz de se questionar pelo ser, do ente humano a quem a questão do ser é decisi-
va, o ser-aí.
Com a viragem de seu pensamento, Heidegger considera onerosa essa hipótese de fa-
zer derivar, da historicidade do ser-aí, a temporalidade do ser, por isso inverte esses polos e
torna o ser-aí dependente de um acontecimento apropriativo de essenciação da verdade do ser.
Esse é o tema do próximo item, que menciona, a partir da insuficiência de Ser e tempo, alcan-
ça a viragemheideggeriana para o pensamento histórico do ser.

1.4 Viragem ao pensamento histórico

Questão fundamental da meditação histórica, a temporalidade do seer é uma inflexão


do questionamento inicial de Heidegger, configurado principalmente em Ser e tempo, que
toma a historicidade do ser-aí como meio de alcançar a essência temporal do ser. Desde já,
deve-se ressaltar que a viragem(Kehre), termo com que marca esse redimensionamento na
obra de Heidegger, não é uma mudança radical de projeto filosófico, ou uma reversão do que
foi conquistado na primeira fase do pensamento heideggeriano. Com a viragem do seu pen-
samento, há uma mudança no modo de proceder com o mesmo questionamento acerca do
sentido do ser, reconfigurando o escopo de Ser e tempo, em que a ontologia fundamental en-
frenta a questão do ser a partir dos subprojetos da hermenêutica da facticidade, da destruição
da história da ontologia e, principalmente, da analítica existencial. O mais importante para a

165
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 87.
166
Ibid. p.88.
64

economia argumentativa deste capítulo é que, com a viragem, Heidegger modula o projeto de
destruição da história da ontologia, que se converte em confrontação histórica com a coisa do
pensamento, isto é, em uma meditação histórica atenta ao acontecimento do seer, ele mes-
mo 167.
Para isso, traçam-se as linhas gerais da limitação identificada por Heidegger no projeto
de Ser e tempo, e o modo como a destruição é redimensionada para além da analítica existen-
cial e da hermenêutica da facticidade. A caracterização da crise de Ser e tempo apresentada
neste item é apenas sumária, já que serve de lastro para a compreensão do passo de volta e da
meditação histórica, desenvolvidos com maior profundidade nos próximos itens.
A viragem no pensamento de Heidegger o leva a alijar a analítica existencial como
caminho que o conduziria ao sentido do ser, pois esse gesto passa a ser considerado metafísico
- antropocêntrico, humanista -,na esteira das filosofias do sujeito, que, como em Kant, buscam
na análise das categorias do entendimento humano as condições de possibilidade da questão
do ser. Como nota Barash168, a tensão entre antropologia e metafísica é central para a viragem
no pensamento de Heidegger, sendo o texto Kant e o problema da metafísica decisivo na crí-
tica ao antropocentrismo que condiciona o mundo à imagem concebida pelo homem. Esse
texto permite, portanto, uma reflexão do teor humanista e metafísico ainda presente em Ser e
tempo, o qual deve ser superado em favor de um pensamento mais radical sobre o sentido do
ser, independente do modo como o homem o percebe. A mudança saliente se faz sentir na
noção de verdade, que deixa de ser fundada na ontologia do ser-aí, para ser pensada a partir
da história do destino do seer.
A partir da viragem, o pensamento histórico do seer considera que o homem e o seu
modo de conhecimento existencial estão inseridos na provocação histórica do próprio ser.
Nota-se uma inversão de perspectiva: não é mais o ser que é dimensionado pelo ser-aí, mas o
ser-aí que é apropriado em meio a um acontecimento que o conforma. Na verdade, o aconte-
cimento apropriativo (Ereigns) que caracteriza o pensamento tardio de Heidegger, apropria
simultaneamente o seer e o ser-aí, não tendo o ser-aí uma primazia, pela qual se deva conhe-
cê-lo primeiramente, sendo o sentido do ser compreendido de modo derivado e posterior.
Com isso, o problema do aí (Da)conquista prioridade sobre o problema do ser-aí (Dasein).
Por essa razão, Heidegger passa a separar os termos constitutivos do termo alemão Da-

167
Para uma análise circunstanciada da viragem cf. GRONDIN, Jean. Le tournant dans la pensée de Martin
Heidegger. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.
168
BARASH, Jeffrey Andrew. Martin Heidegger and the problem of historical meaning. New York: Fordham
University Press, 2003. p.192 e ss.
65

sein(cujo significado básico é existência), destacando a partícula locativa Da, o aí, ao assina-
lar Da-sein. Ou seja, com a viragem, Heidegger distancia-se de um modelo de humanismo
metafísico que compreende o ser em referência ao ser-aí humano que o enfoca169. A origem
platônica desse humanismo metafísico será estudada nos próximos capítulos, que relacionam
as palavras platônicas fundamentais, idea e aletheia com a representação perceptiva do ho-
mem.
Com efeito, Gadamer identifica na “superação da subjetividade do pensamento mo-
derno” a “meta” da filosofia heideggeriana, a qual se delineia como um caminho uno, à reve-
lia das “voltas e viragems” por que passou170. O afastamento da questão transcendental, que
caracteriza a fisionomia do pensamento moderno kantiano, não significa deixar de pensar a
finitude e a historicidade constitutiva do ser-aí, mas a insere no horizonte da história do seer,
cuja temporalidade a delimita. Nesse contexto, Ser e tempo apresenta-se como uma obra pre-
paratória para a compreensão do acontecimento histórico do seer, um caminho necessário para
se atingir o campo de determinação recíproca de ser e tempo, como Heidegger aponta na con-
ferência Tempo e ser. É nesse sentido a hipótese de Gadamer de que o caminho da viragem
de Heidegger é marcado por um retorno, uma viragem para trás (Rück Kehr), que recupera o
já questionado e o envolve em um novo questionamento a partir da conquista de novos solos
de indagação. Essa é a dinâmica do caminho uno porém tortuoso de Heidegger. O que carac-
teriza esse retroceder, os volteios dos caminhos de floresta que constituem as incursões de sua
obra, é o fato de “o ser-aí não ser tanto um ente, mas muito mais o lugar no qual o aí se mos-
tra como um acontecimento apropriativo e, com isso, ao mesmo tempo como a história do ser
e o encobrimento do ser.”171
A viragem é, desse modo, um novo modo de questionar o aí. Em Ser e tempo, o ser-aí
manifesta uma unidade originária entre a sua constituição ontológica e a compreensão do ser.
Como ente que questiona o ser, o ser-aí conquista o seu ser no aí em que está desde sempre
jogado, inserido contextualmente num mundo histórico. Irredutível à dimensão meramente
física do lugar geográfico, o aí é o espaço ontológico em que o ente humano, o Dasein, con-
quista performaticamente o seu ser; o aí é o correlato intencional do poder-ser que constitui o
ser-aí. Assim, o problema da articulação histórico-temporal do mundo, o aí em que o ser-aí

169
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘A essência da verdade’, p.214. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.189-214.
170
GADAMER, Hans-Georg. ‘A viragem do caminho’, p. 109. In: Hermenêutica em retrospectiva.Vol.1 Heide-
gger em retrospectiva. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007. pp.109-116.
171
Ibid., p. 113.
66

existe, é essencial ao projeto da ontologia fundamental. Esse projeto não se confunde com
qualquer tipo de antropologia filosófica, tampouco se reduz a uma investigação transcendental
sobre as condições de possibilidade do conhecimento humano. Trata-se de um tipo de ontolo-
gia que se depara com o problema da variação dos mundos históricos nos quais se enraíza o
ser-aí que questiona o seu ser172. Mas, com o amadurecimento do seu pensamento, Heidegger
reconhece que o ser-aí não é mais um ente privilegiado, uma vez que isso ainda representa
uma réstia do subjetivismo metafísico do qual ele busca se afastar.
Não se pode afirmar, porém, que Ser e tempo é simplesmente um tratado restrito à te-
mática transcendental, envolto na problemática antropológica do sujeito moderno. Na carta a
Richardson, Heidegger reconhece ter logrado superar, na obra de 1927, essa imposição subje-
tivista, já que estabelece uma relação de interdependência entre o ser-aí e a questão do ser,
permanecendo cristalino que o ser ali questionado é irredutível a uma projeção do um sujeito
humano. Ao contrário, é o ser, temporalizado como presença (An-wesen), que se aproxima do
ser-aí173.
Quando Gadamer afirma que “o ser-aí não é tanto um ente”, ele quer dizer que o ser-aí
é, antes, o locus em que os mundos históricos se articulam, irredutíveis às determinações fáti-
cas estabelecidas pela analítica existencial. E é exatamente essa a aporia de Ser e tempo, a
qual Heidegger tenta contornar com a viragem: como explicar o acontecimento histórico do
mundo para além das determinações da analítica existencial. Isso denota exatamente o que
pode ser considerado a crise de Ser e tempo, a insuficiência de a ontologia fundamental alcan-
çar a questão que se propõe, a pergunta acerca do sentido do ser em si mesmo. Ser e tempo é
incapaz de explicar o acontecimento da mobilidade do aí histórico, do mundo temporal confi-
gurado pelo acontecimento apropriativo do ser. As reconfigurações existenciais do ser-aí não
encerram a historicidade do mundo, cuja temporalidade é baseada no acontecimento epocal do
ser.
Essa crise não elide, mas reconfigura o projeto de Ser e tempo. É por essa razão que
Heidegger ressalta a Richardson a implicação, a co-pertença do I e do II Heidegger, ainda que
reconheça certa diferença entre eles. Essa distinção só faz sentido se compreendida como con-
tinuidade e modulação, jamais como ruptura e abandono, pois “somente a partir do que é pen-
sado sob o I se faz possível o II”, assim como “o pensado sob o I somente é possível se está

172
Cf. o item 5.1. ‘A viragem do pensamento heideggeriano: a necessidade de reformulação do questionamento
de Ser e tempo’, de CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e
Heidegger. tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. p. 560 e ss.
173
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta a Richardson’ (prefácio), p. xviii, In: RICHARDSON,William., Heidegger –
through phenomenology to thought. New York: Fordham University Press, 2003. pp. viii-xxiii.
67

contido no II.”174. Trata-se de uma reversão, mas não como consequência de uma mudança no
ponto de partida de Ser e tempo, muito menos na questão fundamental dessa obra, a questão
do ser. A viragem deve ser vista, portanto, como uma inflexão no mesmo questionamento do
ser e não como uma alteração radical, uma ruptura, a instauração de um novo projeto. A ques-
tão do ser é a mesma, alterando-se a base temporal de que se parte; agora é a temporalidade
do ser o ponto decisivo, que repercute na historicidade do ser-aí, e não o contrário. O ser-aí
não é mais considerado o ente privilegiado ôntico-ontologicamente, base da reinterpretação
do mundo histórico; ele é agora considerado como o ente capaz de acolher e dar voz às deter-
minações epocais dos envios do seer.
Dastur sintetiza, com precisão, a essência dessa mudança como afastamento de uma
“perspectiva transcendental-horizontal de um sentido do ser que se temporaliza numa tempo-
ralidade ekstática do Dasein” em proveito de uma perspectiva “aletheiológica-eksistencial de
uma verdade do ser na qual o Dasein se encontra e à qual tem de corresponder”175 Nesse sen-
tido, o ser já não é mais temporal porque
constitui a unidade horizontal da temporalidade ekstática do Dasein, mas, pelo contrário, por-
que, enquanto histórico em si mesmo e não apenas por intermédio do Dasein, é o próprio ser
que ‘destina o homem tanto à eksistência do Da-sein como à sua essência’ (Carta sobre o
humanismo).”176

O que está em jogo na viragem heideggeriana é a inversão da historicidade do ser-aí


em um destino epocal da história do ser. Essa preposição “de”, ao lado do artigo definido “o”,
forma um genitivo subjetivo, pelo qual o ser é o sujeito que constitui a história e não apenas o
seu objeto177.Isto é, não se trata de história sobre o ser, realizada pelo homem, uma espécie de
história humanista a respeito do ser. Heidegger se afasta desse modelo, considerando-o histo-
riografia metafísica e entificante, que objetiva o ser e o confunde com o ente e que, portanto,
passa ao largo da epoché do ser que se retrai ao desvelar no ente. A temporalidade decisiva
agora é a do próprio ser que se envia epocalmente na história de um destino que engloba o
ente na totalidade e o próprio Dasein. Como diz Casanova, trata-se de “acompanhar o movi-
mento mesmo do lógos histórico em suas reuniões epocais”178, uma vez que o ser-aí não é

174
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta a Richardson’ (prefácio), p. xxii. In: RICHARDSON,William., Heidegger –
through phenomenology to thought. New York: Fordham University Press, 2003. pp. viii-xxiii.
175
DASTUR, François. Heidegger e a questão do tempo. Trad. João Paz. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 126.
176
Ibid., pp.126-127.
177
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p.329.
178
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 175.
68

mais formador de mundo, mas se deixa apropriar pela história do ser, recebendo dela o seu
“próprio”. Ou seja, a conquista do próprio não passa mais por um processo existencial de sin-
gularização extática, mas pertence ao “espaço aberto, no aí, que determina tudo o que ele é e
pode ser.”179
No contexto de Ser e tempo, a historicidade relaciona-se com aquele ente que goza de
um primado ôntico-ontológico, o ser-aí, único ente capaz de perguntar-se pelo ser. Por outro
lado, o ser-aí sempre se encontra imerso em uma compreensão fática de ser, por estar invaria-
velmente enredado em um mundo histórico; este mundo lhe delimita uma compreensão fática
de ser, que funciona como abertura do horizonte de compreensão do ser do ser-aí. Ou seja,
mundo e ser são indissociáveis. A compreensão do ser é, simultaneamente, uma compreensão
do mundo histórico. A singularização do ser-aí é o processo extático pelo qual se neutraliza a
significação consolidada de determinado mundo histórico que condiciona a sua conduta, teó-
rica e prática. A destruição da história da ontologia aponta para o acontecimento das ontologi-
as, acontecimento esse que é franqueado pela “conquista existencial do ser-aí como poder-
ser”180. Explica Casanova:
é só por meio da dinâmica de singularização pensada metodologicamente a partir de uma
hermenêutica da facticidade e de uma destruição da presença ontológica da tradição nos com-
portamentos do ser-aí de inicio e na maioria das vezes em seu mundo fático que Heidegger
toma como possível perguntar pela gênese dos projetos de mundo e pela mobilidade histórica
desses projetos.181

Como unificação da temporalidade pelo cuidado, a singularização é a conquista da


transparência do mundo fático do ser-aí. Como elucida Alexandre Cabral, isso significa tam-
bém que o ser-aí se apropria dos mundos fáticos passados que o constituem, “liberando con-
ceitos e pensamentos da tradição em seus respectivos campos de mostração.”182 Ora, isso im-
plica dizer que, segundo o mesmo autor, “a singularização permite ao ser-aí apropriar-se da
tradição por meio da aparição transparente dos campos ontológico-existenciais que fundamen-
tam seus conceitos.”183. A destruição se faz, então, necessária para implodir a tradição que
cristaliza esses conceitos e os desvincula das bases existenciais de que eles provêm. É só por
meio da destruição que o “lugar” ontológico-existencial de conceitos fundamentais como

]179CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009. p.178.


180
Ibid., p. 141.
181
Ibidem.
182
CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e Heidegger.
tese de doutoramento. Orientador: Marco Anônio Casanova. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2012. p. 633.
183
Ibidem.
69

idea, ousia, aletheia e subjectum podem vir à tona. Como explicado no item precedente, tra-
ta-se de conquistar as “certidões de nascimento” desses conceitos com base nas “experiências
originárias” de que eles derivam, experiências essas veladas pela tradição que os autonomi-
za184. A destruição prepara a construção posterior, na verdade uma reconstrução, que recon-
sidera os conceitos ontológicos da tradição à luz da analítica existencial do ser-aí. A destrui-
ção da história da ontologia em Ser e tempo é, portanto, indissociável da hermenêutica da fac-
ticidade e da analítica existencial. É possível pensar a destruição sem onerá-la com os outros
dois subprojetos correlatos?
O problema que surge da noção de singularização, que ultrapassa a experiência cotidi-
ana de autonomização das três dimensões cronológicas 185– passado, presente e futuro –, é a
articulação, o ponto de conexão entre a temporalidade ekstática do ser-aí e a essenciação da
verdade, o acontecimento temporal do sentido do ser que confere historicidade ao mundo. É
esse acontecimento que confere unidade ao mundo, e não o modo como o ser-aí é capaz de
superar a temporalidade estanque da sedimentação cotidiana. O ser-aí desempenha papel de-
terminante na temporalização do mundo, ao singularizar-se e apropriar-se de novas possibili-
dades existenciais. Porém, como ser-no-mundo, o ser-aí é, por si só, incapaz de conferir uni-
dade ao mundo histórico. O ser-aí não pode ser a fonte de determinação de uma mudança
epocal do mundo, porque ele pertence originariamente ao mundo. Mesmo quando rompe com
a dominância fática das sedimentações tradicionais que engessam a significância do mundo, o
ser-aí não pode ser considerado a medida para a abertura do ente na totalidade. Singularizan-
do-se, o ser-aí participa dessa abertura histórica do ente na totalidade, mas não a instaura. Pela
projeção de um campo particular do seu poder-ser em um sentido existencial, o ser-aí confere
historicidade ao mundo. Como poder-ser, o ser-aí explora a sua negatividade constitutiva,
desvelando o sentido temporal de seu ser, que é cuidado186.
Por essa razão, na economia de Ser e tempo, o ser-aí “devolve ao mundo fático a plas-
ticidade histórica que é a dele, tornando possível, então, o surgimento de novos sentidos do
ser.”187 Nada obstante tudo isso, a singularização do ser-aí não implica a ressignificação total
do mundo histórico, pois o ser-aí sempre permanece enredado na impropriedade da semântica

184
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2.ed. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petrópo-
lis: Vozes, p. 60-61 (§6).
185
Cf. ibid., §65.
186
Cf. NUNES, Benedito. Passagem para o poético – Filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992.
p. 131 e ss.
187
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 144.
70

fática, a qual ele pode suspender em determinadas aberturas e explorações do seu poder-ser,
mas jamais suprimi-la por completo. O próprio é uma modulação das possibilidades do im-
próprio, e não uma suplantação definitiva da impropriedade. O que se percebe com essa ar-
gumentação é uma tensão entre a temporalidade ekstática do ser-aí e a temporalidade epocal
do ser. É da dificuldade de pensar essas instâncias temporais de modo vinculado que conduz o
pensamento de Heidegger à viragem.
O projeto da ontologia fundamental encontra-se estreitamente vinculado à analítica do
ser-aí, pois o ser não pode ser pensado fora da compreensão do ser, e o ser-aí é o único ente
capaz de questionar o ser, de projetar um sentido de ser. Ora, o ser só se torna compreensível
pelo e no ser-aí. Por isso, a constituição ontológica do ser-aí condiciona o ser ele mesmo, na
sua constituição íntima. É essa noção que passa a ser considerada demasiada onerosa para
Heidegger, uma vez que, da impropriedade que constitui o ser-aí, na sua tendência incontor-
nável de fuga diante de si mesmo, deriva uma compreensão essencialmente inautêntica do ser.
Ou seja, a compreensão de ser que constitui essencialmente o ser-aí é sempre marcada pela
inautenticidade que caracteriza a experiência fática desse mesmo ser-aí, como ente jogado e
alienado de si mesmo. Isso significa que a compreensão ontológica traz sempre a marca da
inautenticidade que caracteriza primordialmente a constituição do ser-aí. Como ato existencial
e intelectual do ser-aí, a ontologia é um esquecimento do ser, pois se revela uma expressão da
fuga do ser-aí diante de seu ser temporal e finito. Como explica Alexandre Sá no artigoDa
destruição fenomenológica à confrontação: Heidegger e a incompletude da ontologia feno-
menológica, essa fuga exige o momento destrutivo da ontologia fenomenológica, que não
pode alcançar o ser nele mesmo se o ente que o projeta permanece enredado em uma tempora-
lidade inautêntica:
Se o Dasein é, na sua constituição ontológica, essencialmente temporal, na medida em que
surge constituído pelo ser ter-sido lançado no mundo e pela sua projeção em possibilidades
finitas, e se a sua compreensão inautêntica se caracteriza como uma fuga à temporalidade que
lhe é própria, tal quer dizer que a ontologia não pode deixar de, primeiro e quase sempre, es-
quecer a relação entre ser e a temporalidade.188

Consoante o projeto da ontologia fundamental explicado anteriormente, o gesto heide-


ggeriano da ontologia fundamental remete a tradição ontológica à estrutura da facticidade do
ser-aí. Com isso, faz derivar, da inautenticidade ontológica do ente que conhece o ser, a histó-
ria da ontologia. Pelo fato de o Dasein ser constituído, facticamente, sob a marca da inautenti-
cidade, a ontologia tradicional revela o signo do esquecimento do ser. Isso significa que toda a
tradição filosófica ocidental espelha a inautenticidade do ser-aí jogado no mundo histórico.

188
SÁ, Alexandre Franco, Da destruição fenomenológica à confrontação: Heidegger e a incompletude da onto-
logia fenomenológica. Covilhã: Universidade da Beira Interior; LusofiaPress, 2008. p. 6.
71

Ao articular a analítica existencial à hermenêutica da facticidade, e ambas à destruição da


história da ontologia, a ontologia fundamental evidencia essa derivação imprópria e visa a
superá-la, porém não pode fazê-lo sem romper os limites estabelecidos por Ser e tempo. Tra-
ta-se, aqui, da impossibilidade de afirmar que a autenticidade apresenta-se como alternativa
viável ao ser-aí, que poderia simplesmente desamarrar-se da teia de impropriedade que carac-
teriza a sua facticidade, para alçar-se a uma compreensão autentica da temporalidade do ser.
Essa possibilidade, porém, não é apresentada nos termos de Ser e tempo.
Como se sabe, a angústia (Angst) é uma modulação da inautenticidade, que a manifes-
ta sem, porém, superá-la, isto é, sem conduzir o ser-aí a um estágio puramente autêntico, isen-
to de qualquer resquício da inautenticidade originária que caracteriza a sua facticidade mun-
dana. Essa facticidade mundana refere-se ao fato de o ser-aí estar desde sempre e inexoravel-
mente lançado no impessoal. Ora, como afirma Alexandre Sá, “na medida em que é já sempre
lançado numa situação que o finitiza, na medida em que é ‘ser para morte’, o Dasein é sem-
pre, na sua facticidade, constituído pela fuga inautêntica diante da sua finitude.”189 Por isso
pode Heidegger afirmar que o estado de “decadência e estar-lançado” (Verfallen und die
Geworfeinheit) não podem ser reduzidos a uma “propriedade ôntica negativa”, superada por
um estágio mais desenvolvido da cultura humana 190.
O gesto fundamental de Ser e tempo é partir da análise fenomenológica do ser do
Dasein, da sua constituição essencialmente temporal, isto é, da sua temporalidade (Zeitlich-
keit), para a temporalidade ekstática do ser, a que Heidegger denominará Temporalität. O
importante aqui é ressaltar a primazia daquela temporalidade (Zeitlichkeit) sobre esta (Tempo-
ralität). Ora, é esta última temporalidade do ser que convoca a viragem, numa análise que
parta do tempo para o ser, ele mesmo, sem onerá-la pela estrutura existencial do ser-aí. A se-
gunda fase do projeto da ontologia fundamental, não desenvolvido pelo tratado inacabado que
é Ser e tempo, deveria inverter esses polos e ser conduzida sob a égide de “tempo e ser”. Nes-
se contexto, a compreensão ontológica do ser, que reconhece a temporalidade que lhe é pró-
pria (Temporalität) permanece inalcançável para um ente finito como o ser-aí, que sempre
projeta no ser a finitude que lhe é própria. Considerando a sua finitude, Heidegger reconhece
que compreender como Dasein é errar; ser Dasein é pertencer à errância, pois a compreensão

189
SÁ, Alexandre Franco, Da destruição fenomenológica à confrontação: Heidegger e a incompletude da onto-
logia fenomenológica. Covilhã: Universidade da Beira Interior; LusofiaPress, 2008. p. 7.
190
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p.241 (§38).
72

do ser é marcada pela dispersão e esquecimento do ser. Por isso, diz Heidegger em A essência
da verdade:
O homem erra. O homem não cai na errância em um momento dado. Ele nunca se move senão
dentro da errância, porque in-siste de maneira ek-sistente e já se encontra sempre, desta ma-
neira, na errância. [...] a errância pertence à constituição íntima do ser-aí, à qual o homem his-
tórico está abandonado.191

Essa errância não é atribuída a qualquer tipo de insuficiência antropológica ou subjeti-


va do homem, incapaz de perceber o ente na totalidade ou guiar-se no mundo histórico. É,
antes, atribuída ao próprio movimento fugidio do ser, que, essenciando-se, esquiva-se enquan-
to se desvela no ente. O excerto acima é, portanto, complementado e elucidado com a seguin-
te articulação: “O encobrimento do ente na totalidade, ele mesmo velado, impera no desvela-
mento do respectivo ente que, como esquecimento do encobrimento, se transforma em errân-
cia.”192
Como se pode observar nesse texto decisivo, A essência da verdade, em que a viragem
ganha pela primeira vez contornos claros, a verdade é agora uma determinação do próprio ser,
a partir de agora pensada como o domínio do aberto (das Offene), como clareira da não-
ocultação, noção com que Heidegger traduz a noção grega de aletheia, a verdade. Questão do
terceiro capítulo desta tese, a verdade do ser é a clareira que lumia o ente na totalidade, re-
traindo-se na ocultação de si. A verdade não é mais, como em Ser e tempo, uma determinação
do próprio ser-aí, em que o ser do homem é a sua própria luz, sendo o Dasein a clareira. Mu-
da-se a compreensão da existência do homem como ser-aí: a existência não é mais o ser do
ser-aí enquanto se relaciona a si mesmo. Essência da liberdade, a ek-sistência é agora a rela-
ção com o ser, com o aberto da verdade do ser, com a clareira, “a ex-posição ao ente enquanto
ele tem o caráter de desvelado”, isto é, ex-posição à desocultação do ente como tal193.
Em texto igualmente decisivo, Carta sobre o humanismo, são explicitadas as temáticas
do acontecimento apropriativo, da história epocal do ser, da verbalização ontológica das pala-
vras fundamentais e da correspondente alteração na compreensão do ser-aí humano. Nele,
Heidegger sintetiza o gesto básico da viragem, a saber, a primazia da história do ser sobre o
ser-aí: “A história do ser sustenta e determina toda e qualquer condition et situation humai-

191
HEIDEGGER, Martin. ‘A essência da verdade’, p. 208. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis: Vozes, 2008. pp.189-214
192
Ibid., pp. 208-209.
193
Ibid., p. 201.
73

ne.”194. Não é mais a estrutura do ser-aí que permite temporalização ekstática do ser; antes, é a
abertura eksistencial à interpelação do ser que essencia o homem. Por isso,Heidegger afirma:
o homem só se essencia em sua essência na medida em que é interpelado pelo ser. É por essa
interpelação que ele ‘tem’ encontrado aquilo em que habita sua essência. É só por este habitar
que ele ‘tem’ ‘linguagem’ como a morada que garante o ekstático à sua essência. Estar posta-
do na clareira do ser, a isso eu chamo de ek-sistência do homem.195

Como se pode perceber, a viragem parece consumada em um trecho como este, em


que a ek-sistência do homem torna-se tributária do acontecimento apropriativo do ser que a
essencia. A relação do ser-aí com o aí, conforme a explicação acima, redimensiona-se com a
viragem: “O homem se essencia de tal modo que ele é seu ‘aí’, isto é, a clareira do ser. Esse
‘ser’ do aí, e só ele, tem os traços fundamentais da ek-sistência, ou seja, do estar postado ek-
stático no cerne da verdade do ser”196. Sempre errante, a ek-sistência humana é um “postar-se
para-fora na verdade do ser”, e “o homem é na medida em que ek-siste”197. A errância da
existência humana concerne ao caráter errático e ambivalente do próprio ser, que sempre se
oculta ao desvelar o ente na totalidade. O aí do homem, seu mundo histórico, é uma época do
destino do ser. O caráter metafísico dessa subjetividade diz respeito à consideração do ‘proje-
to’ do ser-aí como um “instituir representador” de um ente “jogado” e “decaído” num mundo
histórico que o absorve. O que precisa ser repensado nessa argumentação é exatamente o que
ficou impensado no tratado incompleto que é Ser e tempo, a saber, a terceira parte que pro-
moveria a viragem de “ser e tempo” para “tempo e ser”. É com essa viragem, presente desde
A essência da verdade, que essa mesma questão do ser pode ser radicalizada a contento, a
partir da referência à clareira do ser que apropria o ser-aí, quando ele se abre, ex-pondo-se ek-
sistencialmente198.
O homem é na medida em que ek-siste. Ek-sistir é ex-por-se, abrir-se à clareira do ser.
É do ser que o homem extrai a sua ek-sistência, ao mesmo tempo em que ele precisa, antes,
abrir-se ao ser ek-sistindo na clareira. Há uma mútua implicação entre ser e ser-aí, pensada na
unidade do acontecimento apropriativo que a ambos apropria. Por isso, diz Heidegger: “é só

194
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 327. (em francês no original).
195
Ibid., p. 336.
196
Ibid., p. 338.
197
Ibid., p. 339; 342.
198
Ibid., p. 340.
74

quando a clareira do ser acontece apropriativamente, que sobrevém o ser ao homem.” 199. Di-
ferente de Ser e tempo, com a viragem, o ser-aí “se essencia no lance do ser”, isto é, ele se
essencia como “jogado”200. A grande diferença aqui é que quem lança o projeto não é o ho-
mem, mas o próprio ser, “que destina o homem à ek-sistência do ser-aí enquanto sua essên-
cia.”201
Ek-sistir, para o homem, significa deixar-se apropriar pelo ser em meio à clareira a que
o ser-aí se expõe, aproximando-se do ser. Essa proximidade franqueia-lhe o “aí” do seu ser-aí,
já que, nele, no aí do ser, o ser-aí habita ek-sistindo, isto é, saltando fora para o ser que o es-
sencia na abertura da clareira 202. Pode-se perguntar: mas por que o ser precisa do homem para
essenciar-se e essencializá-lo? Porque é por meio do homem que o ser pode vir à linguagem,
sem que isso implique qualquer redução antropocêntrica ou subjetivista da ontologia. Contra
essa redução que assombra a ontologia fundamental, Heidegger se contorceu, visando a su-
perá-la definitivamente.
Ora, há uma implicação recíproca de ser e homem no acontecimento apropriativo: “o
ser faz o homem acontecer como ser ek-sistente, para ser a guarda da verdade do ser, insta-
lando-o nessa mesma verdade.”203. A essência do homem é, assim, redimensionada a partir da
função que lhe é atribuída pelo acontecimento apropriativo do ser. O homem não vale mais
por si mesmo – como a afirmação moderna da dignidade humana à Kant, por exemplo -, mas
pela possibilidade de escutar a voz do ser, de salvaguardá-lo, de habitar no interior da sua
linguagem. O que o pensamento da viragem realiza é a articulação entre o acontecimento do
ser e a essência ek-sistente do homem. Esse pensamento ontológico-histórico é, como já dito,
doação do próprio ser, que se oferece ao pensar na linguagem em que o ser sempre mora.
Apropriado pelo ser, o homem também habita nessa linguagem, cujos guardiães são os poetas
e os pensadores. A custódia realizada por poetas e pensadores é o alcance da linguagem es-
sencial de palavras fundamentais que manifestam o ser por escutá-lo de modo atento, isto é,
por ek-sistirem no aberto da clareira do ser e ressoá-lo nas palavras fundamentais que o pre-
servam. Em poucas palavras, o ser vem à linguagem no pensar e no poetar, sendo as palavras

199
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Pe-
trópolis, Vozes, 2008, p. 349.
200
Ibid. p. 340.
201
Ibidem.
202
Ibid., p. 350.
203
Ibid., p. 358.
75

fundamentais dos pensadores e poetas, portanto, a custódia do ser. Apropriados pelo aconte-
cimento essenciante da verdade (clareira), ser e homem moram na linguagem 204.
A viragem surge, portanto, da exigência de se repensar a questão do ser para além da
finitude e da errância do ser-aí, que não pode mais ser considerado o lastro a partir do qual se
constrói uma ontologia fundamental. Sendo ele mesmo ex-posto ao desvelamento do ente na
totalidade, à não-ocultação do ser, o ser-aí encontra-se agora imerso no desvelamento alethé-
tico do ser, cuja história epocal ele acompanha pelo acontecimento que o apropria.
O que interessa ressaltar é que, ainda que superado o plano inicial da ontologia fun-
damental de Ser e tempo, a destruição da ontologia tradicional não foi de todo abandonada,
mas redimensionada no interior da meditação histórica do ser. A destruição, portanto, conti-
nua sendo essencial para se compreender a confrontação heideggeriana com Platão, agora no
âmbito do pensamento da história do ser. Toda a história da filosofia, em particular o plato-
nismo que a caracteriza, será repensada a partir dos envios destinamentais do ser, do aconte-
cimento apropriativo que verbaliza a voz do ser nas palavras fundamentais dos pensadores da
tradição. Como se analisa detidamente nos próximos itens deste primeiro capítulo, a destrui-
ção agora pertence à meditação (Be-sinnung) sobre o sentido (Sinn) da história, com vistas ao
outro início (anderer Anfang) da história do ser. Para tanto, é necessário traçar a fisionomia
do primeiro início (erster Anfang), que tem matriz platônica.

O pensamento da história do ser não é menos destrutivo do que a destruição pensada


no âmbito da ontologia fundamental. Desvinculada da construção fenomenológica a que ser-
via como preparação, a destruição converte-se, agora, em confrontação (Auseinandersetzung),
não só com a história da tradição ontológica, em que os pensadores ressoam em suas palavras
fundamentais a voz da verdade essenciante do ser, mas consigo mesmo, isto é, com o papel do
pensador inevitavelmente “integrado na tradição que constitui a história do ser como pen-
sar”205. Essa destruição da confrontação histórica pode ser considerada, portanto, ainda mais
destrutiva do que a anterior, pois, nela, Heidegger confronta-se consigo mesmo e destrói o seu
próprio caminho pensante. Essa viragem fica clara nas obras póstumas Contribuições à filoso-
fia (Do acontecimento apropriativo ) e Meditação, em que o projeto da ontologia fundamental
de Ser e tempo é submetido a uma reflexão radical a partir da história do ser em que ele está
necessariamente inserido.

204
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 326.
205
SÁ, Alexandre Franco, Da destruição fenomenológica à confrontação: Heidegger e a incompletude da onto-
logia fenomenológica. Covilhã: Universidade da Beira Interior; LusofiaPress, 2008. p. 6.
76

Como explica Alexandre Sá, “a partir de Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis),
pensar é essencialmente não apenas destruir, mas destruir-se”, pois “pensar é radicalizar a
destruição pensada por Sein und Zeit, estendendo-a ao próprio projeto da ontologia fundamen-
tal”206. Ora, isso significa que tal projeto não foi consumado, não foi realizado em sua pleni-
tude, devendo ser integrado na própria dinâmica da história epocal do ser, como finito, não
sistemático e passageiro. Em poucas palavras, o projeto da ontologia fundamental é inserido
no pensamento histórico do ser, ressoando a voz do ser enviado como destino. A destruição
agora em jogo não pode mais abrir espaço para qualquer construção posterior, uma vez que o
pensar é pura e simplesmente confrontação consigo, com a história dos envios epocais do ser.
Desse modo, o caminho filosófico de Heidegger, que vai da destruição fenomenológica da
ontologia tradicional à história do ser, pode ser considerado como o pêndulo que conduz a
uma “confrontação absoluta e integral, ou seja, como alargamento e aprofundamento da di-
mensão destrutiva do pensar ao ponto de a construção a ele inicialmente associada ter se tor-
nado inviável.”207

Esse pêndulo parte do projeto de ontologia fundamental, e radicaliza um de seus ele-


mentos constitutivos, a destruição da história da ontologia. A volta do pêndulo é uma viragem
que destrói o ponto de partida, tornando-se destruição histórica do próprio ser que se envia
retraído em meio a um acontecimento apropriativo (Ereignis).
Assim, não é mais possível supor uma construção fenomenológica correlata à destrui-
ção da história da ontologia, porque, no âmbito da história do ser, o pensamento não pode
conquistar um espaço para além do destino do ser, um espaço privilegiado fora da históriado
ser a partir do qual se poderia traçar uma ontologia fundamental. Ora, como assinalado na
Carta sobre o humanismo, “o pensar (...) deixa-se interpelar pelo ser para dizer a verdade do
ser”208: o pensamento é pensamento do ser, no sentido de um genitivo simultaneamente obje-
tivo e subjetivo – ou seja, o ser é sujeito que pensa a si mesmo como objeto. Explica Heide-
gger:
o pensar é o pensar do ser. O genitivo aqui diz duas coisas. O pensar é do ser, na medidaem
que o pensar, que pelo ser se tornou acontecimento apropriativo, a esse pertence. O pensar é
igualmente pensar do ser, na medida em que o pensar, pertencendo ao ser, escuta o ser. En-
quanto pertence ao ser, escutando-o, o pensar é de acordo com sua proveniência essencial. O

206
SÁ, Alexandre Franco, Da destruição fenomenológica à confrontação: Heidegger e a incompletude da onto-
logia fenomenológica. Covilhã: Universidade da Beira Interior; LusofiaPress, 2008. p.11.
207
Ibid., p. 12.
208
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. pp. 326-327.
77

pensar é – isto significa que o ser tomou diligência da essência do pensar como destino histó-
rico.209

Ou seja, o ser é o pensante e o pensado, é ele mesmo que subjaz a todo pensamento fi-
losófico, que, nesse sentido, não se reduz às “ideias” ou as “doutrinas” de um autor sobre a
realidade, mas reflete a manifestação do autopensamento do ser nas palavras fundamentais
que o ecoam em meio a um acontecimento apropriativo da verdade. Por isso, o pensar é, es-
sencia-se como destino histórico, como manifestação da epoché, do envio destinamental que
constitui a história do ser, como se explica no item 1.5, a seguir. Nisso consiste a “essência
ontológico-historial da linguagem”, que é a “casa do ser, apropriada pelo ser em meio ao
acontecimento e estabelecida pelo ser.” 210 É por isso que a confrontação heideggeriana com
Platão é com a coisa mesma do pensamento, o próprio ser que ganha voz na linguagem dos
pensadores essenciais. Porque “o pensar é convocado por esse ser. [...] O ser já se destinou ao
pensar”, e o destino “é em si mesmo histórico. Sua história já veio à linguagem no dizer dos
pensadores.”211
É essa problemática que se desenvolve nos itens subsequentes, o pensamento histórico
do ser na confrontação com as palavras fundamentais dos pensadores essenciais que o resso-
am. Trata-se de entender o significado da seguinte afirmação heideggeriana, contida na mes-
ma Carta sobre o humanismo: “É sua história [a do ser] que vem à linguagem na palavra dos
pensadores essenciais. É por isto que o pensar, que se lança de maneira pensante para o interi-
or da verdade do ser, é enquanto tal histórico.”212
O pensamento histórico remete-se ao primeiro início do pensamento, a fim de perceber
a destinação histórica do ser que configurou a metafísica ocidental. Por isso, é um pensar re-
memorante, também um pensar que é apropriado por essa mesma história epocal em meio ao
acontecimento apropriativo que a caracteriza. Ora, “o acontecer da história essencia-se como
o destino da verdade do ser a partir do ser.”213 Essa essenciaçãoé a verbalização da essência,
sua consideração processual e dinâmica de acontecimento que apropria o ser e o homem ek-
sistente, isto é, o ser-aí exposto à clareira do ser.

209
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 329.
210
Ibid., p. 346.
211
Ibid., p. 375.
212
Ibid., p. 348.
213
Ibidem.
78

Em Meditação, fica clara a renovação da destruição no interior do pensamento


histórico. Como confrontação com o primeiro início do pensamento, a meditação precisa libe-
rá-lo das amarras metafísicas que destituem a transparência de seu fundamento sem fundo, da
abissalidade do ser que destina a história da filosofia ocidental. Para tanto, é necessário des-
truir a tradição metafísica da ontologia para aceder à essência história do primeiro início, que
se distancia de todo tipo de consideração historiográfica. Destruição, aqui, é liberação do obs-
curecimento metafísico a fim de pensar mais originariamente o primeiro início, isto é, de pen-
sá-lo a partir do acontecimento apropriativo de que ele provém. Destruição é agora descons-
trução histórica – irredutível a uma organização historiográfica do passado filosófico. Segue
um excerto representativo dessa importante noção de Heidegger:
Na medida em que o questionamento da história do seer precisa pensar no interior da ‘destrui-
ção’ (Ser e tempo, §6), por causa da única confrontação histórico-fundante – não historiográ-
fica -, esta desconstrução terá aqui por seu ‘objeto’ aquilo que no curso da metafísica precisou
ser uma dissimulação do primeiro início, um resíduo dele e uma outorga das consequências de
uma necessária omissão (da fundação da verdade). A ‘destruição’ não é ‘destrutiva’ no senti-
do de uma dizimação em virtude da dizimação. Ela é ‘liberação’ do início, a fim de devolver-
lhe sua primeira inicialidade na plenitude inesgotada e no estranhamento ainda pouquíssimo
experimentado.214

A “primeira inicialidade” a que se refere Heidegger é a origem impensada da


metafísica, o salto originário do ser, que é o acontecimento apropriativo. O pensamento histó-
rico que confronta o primeiro início com o outro início pensa a verdade do seer como aconte-
cimento apropriativo. Ora, esse pensar é, ele mesmo, apropriado pelo acontecimento a ser
pensado. Esse é o sentido da seguinte frase de Meditação: “A origem (o salto originário) do
seer é o acontecimento de apropriação de sua verdade” 215 Ora, o que caracteriza o primeiro
início metafísico é a omissão da fundação, que não se dá por erro dos pensadores desse início,
mas por consequência do acontecimento de desapropriação que caracteriza a metafísica; por
isso, essa “omissão da fundação é o destino necessário do primeiro início.”216 Destino aqui
concerne à destinação epocal da história do ser, como se verá a seguir. Por ora, basta registrar
que a destruição ainda desempenha um papel determinante no pensamento histórico por libe-
rar a origem inaudita e esquecida do primeiro início.
Sem a destruição da tradição não se acede ao acontecimento que origina as ontologias
históricas. É necessário superar, pela via destrutiva, a metafísica que encobre a sua origem
histórica. A metafísica carece de autoconhecimento, porque obstrui o caminho que a condu-
ziria a sua origem essencial, epocal. Não se trata de refutar os autores que dão voz ao aconte-

214
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 65 (§14).
215
Ibid., p.66.
216
Ibidem.
79

cimento desapropriante da metafísica. A confrontação “não é nunca refutação”, afirma Heide-


gger reiteradamente, “mas sempre e a cada vez apenas a sondagem do fundamento, o risco do
ab-ismo do seer, do seer como ab-ismo.”217Nesse sentido, superação não é refutação porque
não se trata de retificar um pensamento imperfeito, de deixar para trás um pensamento obsole-
to, ou de conquistar um progresso a partir do que já foi elaborado filosoficamente. No interior
da meditação histórica, um pensador não é nunca refutado, mas é restituído à sua posição fun-
damental, com a qual ele se torna novamente “digno de questão”. Ora, a tradição toma por
evidente as posições dos pensadores no interior da história da filosofia, tornando-os inquesti-
onados naquilo que tem de essencial, isto é, o modo como ressoam a voz do ser. A confronta-
ção histórica precisa destruí-los, a fim exatamente de libertá-los das sedimentações metafísi-
cas da tradição, tornando-os novamente questionáveis. A destruição promove a liberação da
questionabilidade de um pensador, agora desamarrado das “doutrinas”, “resultados” e “propo-
sições” aparentes que lhe impuseram a cristalização do seu pensamento pela tradição. É isso
que Heidegger afirma neste relevante trecho de Meditação, que serve de elucidação para a
compreensão do modo como Heidegger lida com Platão:
No questionamento, em contrapartida, o pensador com o qual se busca a confrontação retorna
à sua posição fundamental e se torna alguém digno de questão; e isto de tal modo, em verda-
de, que seu questionamento mais próprio se destaca da vinculação aos ‘resultados’, às ‘doutri-
nas’ e ‘proposições’ aparentes e, enquanto assim liberto, se mostra pela primeira vez como a
libertação do pensamento para o interior do campo de jogo da questionabilidade do que há de
mais questionável – um assinalamento questionador , descobridor do ‘ser’ (‘des-truição’ em
Ser e tempo).218

O que está em jogo é a liberação da essência histórica da filosofia, essência essa que
foi encoberta pela tradição metafísica. Portanto, a tradição metafísica precisa ser destruída
para que as posições metafísicas fundamentais sejam desveladas a partir do acontecimento
apropriativo que as gerou. Heidegger promove a confrontação com essas posições fundamen-
tais, a partir das quais ele poderá conquistar o seu próprio, sua identidade a partir da pertença
ao mesmo, configurado na alteridade una das posições fundamentais. A unidade referida diz
respeitos à unicidade do questionamento da história do seer, perceptível na confrontação da
história da metafísica consigo mesma.
O objetivo dessa confrontação é a transição para o outro início do pensamento, que
não é uma derivação do primeiro início, mas uma transformação radical das potencialidades
retidas pela tradição metafísica. Em outras palavras, o outro início desponta o caráter de futu-
ro da história do pensamento, a partir da liberação destrutiva daquilo que nela se calcificou

217
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 75 (§15).
218
Ibidem.
80

metafisicamente. Ou seja, toda a retomada destrutiva do primeiro início aponta para a sua
superação, que se dá no salto para o outro início. É com o outro início que se conquista a ver-
dade histórica do seer do primeiro início. Isso porque “a ‘metafísica’ nunca consegue superar
a si mesma – ela exige como primeira história do primeiro início do seer um outro início, que
a institui ao mesmo tempo em sua verdade histórica.”219
Como se pode perceber, a carência de autoconhecimento da metafísica exige uma
superação que a ultrapasse saltando para fora dela, para além dos limites por ela impostos.
Isso se dá mediante a destruição, que se configura como passo de volta. Isso quer dizer que se
salta para fora da metafísica, para fora do esquecimento da verdade do ser em que ela encerra
o pensamento. Busca-se, aqui, um pensamento não metafísico da metafísica, um pensamento
que seja histórico-ontológico em relação à “proveniência essencial” da metafísica. Diz Heide-
gger em Nietzsche II: “todos os conceitos metafísicos da metafísica provocam o bloqueio da
metafísica em relação à sua própria proveniência essencial.” 220 Para superar a metafísica é
preciso destruí-la, isto é, pensá-la para além das suas categorias que provocam o esquecimen-
to do ser, o ofuscamento de sua proveniência histórica. Superação da metafísica significa aqui
o “abandono da interpretação metafísica da metafísica” 221.O pensamento que realiza efetiva-
mente essa superação é denominado passo de volta, que é um pensamento rememorante, pois
visa à lembrança do seer, esquecido pela tradição metafísica que o abandona por confundi-lo
com o ente. Com efeito, o passo de volta é a remodulação da destruição na fase da meditação
histórica, consoante a viragem do pensamento heideggeriano. Isso porque o passo de volta
considera o caráter de acontecimento ambíguo do seer, que se desvela no ente retraindo-se na
abissalidade da sua diferença. Por essa razão, diz Heidegger: “No passo de volta, o pensamen-
to já se pôs a caminho de ir de maneira pensante ao encontro do ser mesmo em seu subtrair-
se”222. O pensamento que opera o passo de volta é o pensamento histórico-ontológico, que é,
ele mesmo, apropriado pelo próprio ser ao questioná-lo. O pensamento “vai de maneira pen-
sante ao encontro do ser mesmo” 223, para não deixá-lo de fora. Para tanto, o pensamento reali-
za o desvelamento que desencobre o ser, retendo-o na clareira, na área desvelada.

219
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.85 (§20).
220
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 284.
221
Ibidem.
222
Ibidem.
223
Ibidem.
81

Desse modo, o que precisa ser discutido agora é a natureza do passo de volta no interi-
or da história do ser, pois se faz necessário superar a metafísica, que é um modo impróprio de
acontecimento do seer que marca a história ocidental. Pois, “o próprio ser, na história de sua
permanência de fora, se retém em si com o seu desvelamento. O ser mesmo essencia-se como
esse reter-se-em-si.”224 Essa essenciaçãoretentora de si, Heidegger designa epoché do seer.

1.5 Meditação histórica do seer

Tendo esclarecido o sentido das noções de confrontação, coisa do pensamento, pala-


vras fundamentais, pergunta diretriz, destruição da história da ontologia e vira-
gem,consoante a história da metafísica pensada como destinação epocal do seer, deve-se
adensar a noção de meditação histórica, característica da confrontação heideggeriana com
Platão, ou seja, o pensamento histórico-ontológico que opera a o passo de volta(sendo esta
última noção estudada no próximo item). Este item elucida o sentido da história no pensa-
mento do II Heidegger, após a viragem (Kehre) do seu pensamento, a partir dos seguintes
textos Meditação e Questões básicas de filosofia – problemas seletos de ‘lógica’. Com esse
adensamento conceitual, o esforço despendido nos próximos dois capítulos, que enfrentam
propriamente as palavras platônicas fundamentais, idea e aletheia, ganham contornos nítidos
e a contextualização necessária.
Como se se tem visto ao longo deste capítulo, a superação da metafísica – o
reconhecimento de seu caráter derivado e tardio - se dá pela confrontação com a coisa do pen-
samento. Neste item, o objetivo é compreender em que medida essa confrontação é uma medi-
tação histórica. Heidegger dedica a terceira seção de Meditação para abordar essa questão.
Trata-se de uma “automeditação”, uma meditação da filosofia sobre si mesma, “sobre aquilo
que nela há para ser pensado”, e isso deve ser mais do que nunca uma meditação “sobre o
‘seu’ tempo.”225 Isso significa uma forma peculiar de compreender o presente, o “aceno es-
sencial da essência da época moderna em termos da história do seer” 226. O conhecimento da
atualidade do presente diz respeito à abertura propiciada pela experiência originária dos gre-
gos, concernente ao passado pensado não como fato pretérito, mas como fato essencial que
permanece vigente ao longo do tempo, com o qual a filosofia precisa se defrontar para “não se

224
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II, Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 293.
225
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.45 (§126: A filosofia).
226
Ibid. pp.45-46.
82

deixar mais nomear ‘metafisicamente’ como ser ‘do’ ente.” 227 Assim, a filosofia imerge na
história do seer. Como reiterado ao longo deste capítulo, essa preposição “de” deve ser consi-
derada um genitivo subjetivo, pois é o próprio seer que se temporaliza, se essencia em deter-
minada época histórica228. A época é precisamente o envio destinamental do seer que deter-
mina o mundo histórico-temporal. Não se trata, como à primeira vista o termo pode indicar,
de uma determinada era demarcada historiograficamente a partir de uma medida cronológica
qualquer, como um milênio, um século, uma década ou um lustro.
No contexto do II Heidegger, a filosofia não é um conhecimento a partir de categorias
subjetivas a respeito de um objeto específico. Ao contrário, quando a filosofia conquista a sua
essência autêntica, ela é apropriada pelo acontecimento do seer que ela se esforça por pensar.
É por isso que Heidegger afirma que a filosofia pertence, ela mesma, ao ab-ismo do seer.
Longe de ser uma historiografia filosófica, a filosofia enquanto meditação histórica não é uma
“tipificação das épocas” mas “a ressonância do próprio ser”229. Não se trata de inventariar, em
uma espécie de “filosofia da filosofia” as possibilidades do pensamento filosófico, ou de con-
tabilizar historiograficamente as suas figuras passadas em uma “‘tipologia’ indiferente”230.
Antes, ao estudar as palavras fundamentais dos pensadores, a filosofia se confronta com a
coisa mesma nelas plasmadas, medita o acontecimento apropriativo com que o seer se essen-
cia verbalmente, na temporalidade que lhe é própria. Diz Heidegger: “O seer, porém, exige a
palavra, com a qual o acontecimento apropriativo a cada vez se essencia.” 231 Essa verbaliza-
ção apropriante do seer em palavras fundamentais é decisiva para a economia do pensamento
heideggeriano da viragem.
Uma passagem da Carta sobre o humanismo é precisa nesse sentido, tratando da lin-
guagem ontológica dos filósofos que ressoam a voz do seer: “É sua história [do seer] que vem
à linguagem na palavra dos pensadores essenciais. É por isto que o pensar, que se lança de
maneira pensante para o interior da verdade do seer, é enquanto tal histórico.”232 O pensamen-

227
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 46.
228
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 327.
229
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 46.
230
Ibid., p. 48.
231
Ibid., p. 48.
232
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 348.
83

to ontológico-historial não é uma contemplação neutra e desinteressada de fatos intelectuais


pretéritos, mas um lançar-se meditativo no interior de um acontecimento que se apropria his-
toricamente da filosofia, fazendo-a ecoar o seer apropriante e apropriado. Por isso Heidegger
une os dois elementos, a filosofia como meditação sobre si mesma e a filosofia como confron-
tação de sua história metafísica: ambas pertencem à história do seer 233, como se pode ler no
seguinte trecho de Meditação: “O pensar do seer, contudo, medita sobre si mesmo, à medida
que pensa o seer em sua verdade, o seer ao qual ele pertence, porque é apropriado por ele co-
mo acontecimento apropriativo em meio ao acontecimento.”234
O sentido dessa significativa passagem da Meditação heideggeriana reside no fato de o
próprio seer apropriar o pensamento que o pensa. O pensamento meditativo é uma lançar-se
fora no abismo do fundamento ontológico sem fundo. Isso acarreta a conquista do pensamen-
to por parte do próprio seer, que o apropria, ao desvelar o ente, enquanto ele mesmo, o seer, se
retrai na abissalidade da sua diferença. O seer é irredutível ao pensamento que ele apropria.
Sempre histórica e sempre temporal, a essenciaçãodo seer é também um velamento. Por isso,
toda meditação autêntica é histórica, porque inserida na abertura epocal do seer que se entrega
parcialmente num momento temporal. Nenhuma meditação pode ignorar sua temporalidade
ontológica, a temporalidade legada pelo próprio seer. Ao negligenciar isso, a metafísica se
esquece do seu caráter derivado e tardio, acostumando-se a pensar o ente para além do tempo
do seer que o destinou.
A meditação da filosofia sobre si mesma se dá na confrontação com sua história como
metafísica, que é a história do retraimento do seer e seu ofuscamento pela entidade do ente. O
resultado histórico desse retraimento não pode ser senão o esquecimento do seer, a que está
submetido todo o desdobramento da metafísica. O resultado mais palpável é a alienação da
filosofia à metafísica, ao estudo da entidade do ente, que pode se converter tanto em ciência,
como em poesia e visão de mundo. Todas essas são formas impróprias da filosofia, incapazes
de atingir o seer e de reconhecer o fundamento sem-fundo, o abismo que a apropria:
Em verdade, em tempos de predomínio do ente, essas três [ciências, poesia e visões de mun-
do] são previamente enviadas para a perturbação da filosofia sob a aparência de seu aprimo-
ramento, a fim de levar o seer a ser tributário do ente e para dar o direito exclusivo ao esque-
cimento do seer, um esquecimento do qual necessitam toda representação e produção do en-
te.235

233
Cf. HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 48.
234
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.51.
235
Ibid., p.51.
84

Como ciência dos fatos pretéritos, a historiografia responde a esse mesmo princípio
metafísico de presentificação representativa do ente, descuidando por completo do aconteci-
mento apropriativo que o funda abissalmente, com o retraimento do seer. Em Meditação,
Heidegger recorrentemente afirma que a filosofia é do seer, pertence ao seer e à sua história.
A filosofia participa “da essenciação da verdade pertencente ao seer”236. Nessa verdade onto-
lógica doseer, a filosofia encontra a sua história, que é o próprio ab-ismo da filosofia, o reco-
nhecimento do fundamento sem fundo sobre o qual se lança o pensamento autêntico. O deci-
sivo na história da metafísica pensada como história do seer, porém, é que “a verdade do seer
se enreda de antemão e durante muito tempo em uma aparência: a aparência de que o ser es-
gotaria como entidade a essência do seer” 237. Com origem na idea platônica, esse gesto condi-
cionou toda a compreensão da filosofia como metafísica, em que a entidade torna-se objeto de
representação universal.
A consequência posterior é a conversão da metafísica em ciência como forma funda-
mental do saber, que representa a entidade do ente para conhecê-lo em seu fundamento. Hei-
degger explica que as ciências, nesse contexto, se tornam realizações e produtos do espírito,
bens da cultura. Pari passu, a filosofia se converte em ciência historiográfica das ideias, histó-
ria do espírito e da cultura, elenco dos seus problemas filosóficos. O resultado dessa distorção
da essência da filosofia é a possibilidade de se conhecer historiograficamente muito sobre os
filósofos, suas ideias, obras, língua e história e praticamente nada sobre o acontecimento do
seer de que essas manifestações são apenas epifenômenos. Nesse contexto, Heidegger afirma
que a história da filosofia tal como reconstituída pela historiografia metafísica entificante,
abandona o seer em sua essência, não o questiona em sua verdade, enredada que está “em
meio à perturbação do ente”238. O que a metafísica é intrinsecamente incapaz de perceber é o
não-ser do seer; o seer nunca é o ente, se recusa a sê-lo em qualquer termo, nãoé a entidade do
ente, pois que “se recolhe em sua essência mais própria e dá acenos de si como origem (salto
originário)”239.
Por conta desse incoercível retraimento do seer, a meditação que a ele corresponde
precisa um espaço de verdade que seja, ao mesmo tempo, um espaço de velamento, uma cla-
reira que ilumine apenas parcialmente e que, simultaneamente, conserve uma zona de obscu-

236
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 52.
237
Ibidem.
238
Ibid., p. 53.
239
Ibid., p.57.
85

recimento, de encobrimento, constitutiva da própria iluminação em meio à escuridão. A histó-


ria do seer, a que pertence apropriativamente a meditação histórica, é a história de “um enco-
brimento descomunal e silencioso do próprio seer”240. A meditação histórica não é, portanto,
uma ciência que descobre definitivamente a essência da história da filosofia metafísica, mas
reflete esse traço deficitário e defectivo constitutivo do seer, que se retrai ao se manifestar. A
meditação autêntica é histórica porque epocal é o envio do seer na palavra que o ecoa.
Heidegger procura se escudar, a todo momento, do risco de ter a sua meditação histó-
rica confundida com uma inofensiva consideração historiográfica do passado grego da filoso-
fia. O retrocesso ao passado nada tem de arqueológico ou passadista, mas responde à necessi-
dade de se estabelecer o primeiro início metafísico da filosofia, a fim de preparar a decisão do
outro início iminente. O próprio questionamento do seer na história de suas épocas, seus envi-
os epocais, é o acontecimento apropriativo do seer, que se apodera do pensamento e o torna
eco de sua linguagem. A meditação histórica não se volta ao passado, mas ao futuro, ao advir
ínsito às decisões originárias do seer. Essas decisões não estão mais distantes do presente por
terem se dado há muito tempo atrás. Ao contrário, elas conservam a sua vigência intacta nas
transformações que só as alteram na aparência, retendo-as no que têm de essencial e decisivo.
A idea platônica é o acontecimento passado que vetorializa a metafísica ocidental como um
todo. Na idea platônica, o futuro do Ocidente está delineado, porque é dela que se extraem as
compreensões medievais, modernas e contemporâneas do seer. O apelo, a espera pelo outro
início depende do reconhecimento do primeiro início. Não se trata de uma superação realizada
por meio de um empreendimento humano, cultural ou intelectual, mas da instauração de uma
disposição fundamental, uma modulação de abertura ao acontecimento vindouro do seer que
se apropria do homem nas palavras fundamentais ressoadas pelos pensadores e poetas essen-
ciais. Por isso, diz Heidegger que “o questionamento pensante do ser como acontecimento
apropriativo só pode começar com o exame histórico da história do ser e esse exame precisa
se reestabelecer, por sua vez, na figura inaparente de uma consideração historiográfica da
metafísica ocidental.”241
Compreender a filosofia como sendo apropriada pelo acontecimento do seer significa
neutralizar a sua dimensão antropológica e subjetiva. Pensada como meditação da história do
seer, a filosofia não é ato do intelecto humano, não é reconhecimento intelectivo da realidade

240
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.57.
241
Ibid., p. 60. Cabe reforçar o que foi dito em nota anterior: opta-se pela tradução de Historie por historiografia,
a ciência histórica, e não por historiologia, sendo esta última palavra adotada pelo tradutor brasileiro, Marco
Antônio Casanova.
86

exterior, tampouco construto mental de representações ideais. Heidegger afirma expressamen-


te que
a filosofia não é nenhum construto humano, mas o curso da história da verdade do seer, uma
história na qual acontece para a essência do homem o voltar-se e o retirar-se do seer. ‘Filosó-
fico’ quer dizer: quem se encontra primeira e simplesmente sondando o fundamento da verda-
de do seer é o seer mesmo.242

Desse modo, fica claro que o pensamento ontológico-historial é sobre o seer realizado
pelo próprio seer. Nesse pensamento meditativo, sujeito e objeto coincidem: o seer. Não se
medita autenticamente sobre a história da filosofia quando se colecionam tendências do pen-
samento pretérito, quando a “erudição” a “maestria escolar” procedem com a comparação
historiográfica de “todos os pontos de vista” dos filósofos da tradição, sem discernir, neles, o
essencial: a verdade do seer, que é o acontecimento apropriativo pelo qual o seer se retrai e
deixa-se ser substituído por espectros do ente. É próprio do primeiro início da filosofia – o
início platônico-metafísico – que a verdade do seer permaneça velada, porque o seer mesmo
se desapropria no ente que desvela. Ou seja, a história do primeiro início da filosofia é a histó-
ria da “recusa da essência da verdade”, recusa essa que omite a verdade do seer e a substituí
por “subterfúgios, que levam por fim à indiferença em relação à essência da verdade.” 243
Importa ressaltar que a confrontação histórica afasta-se da historiografia, ciência bali-
zada pela entificação metafísica do ente que descura a temporalidade própria do seer em seus
envios retrativos, inaugurais de épocas históricas. Voltada à verdade do seer, a meditação da
história do seer, portanto, não promove uma visada passadista ou historicista do passado, “não
tolera a história como passado”, nem a atualização projetiva do que se conforma à tendência
do tempo presente. Do mesmo modo, a confrontação histórica “não erige ‘modelos” do que
foi e continua sendo”, porque esses modelos permanecem sempre como “contraimagens” de
um presente cuja temporalidade, ela mesma, permanece irrefletida. Nem ao passado, nem ao
presente, a confrontação visa ao futuro, liberando, com seu questionamento originário do pri-
meiro início, a história do pensamento da dominância metafísica do ente, a fim de alcançar a
verdade do seer que a fundamenta. A meditação histórica é – segundo precisa formulação
heideggeriana – um “saber no sentido da insistência na essência da verdade do seer.”244
A ênfase no primeiro início é a concentração na abertura originária da verdade do seer.
Mas isso não significa uma história parcial, ou temática. Ao contrário, a confrontação história

242
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 63.
243
Ibid., p.67.
244
Ibid., p. 75-76.
87

promovida por Heidegger é com a totalidade da história da filosofia ocidental, que tem em
Platão o primeiro protagonista. Como explanado no item anterior, Platão é a base da metafísi-
ca que esteia todas as concepções entificantes que se sucederam no desenrolar das posições
fundamentais. Com a variação das posições metafísicas fundamentais, que reforçam a pergun-
ta diretriz que as direciona a um único vetor entificante, resulta inalterado o retraimento cons-
titutivo do seer. Diz Heidegger:
O todo dessa história [da metafísica] não é determinado, neste caso, pela completude da intro-
dução historiográfica de todas as opiniões doutrinárias e de sua dependência entre si, mas an-
tes por meio da concepção do início dessa história, de sua queda incontornável em relação ao
início, da autossalvação da sua queda (Descartes) e de sua consumação (Nietzsche). O todo
assim concebido da história da filosofia ocidental em suas posições fundamentais é essa filo-
sofia como ‘metafísica’.245

A confrontação com o início primordial da filosofia, isto é, com a essência entificante


da metafísica platônica hegemônica na tradição ocidental, aponta para o futuro, para a possibi-
lidade de, pela primeira vez, a filosofia se iniciar como filosofia, e não como metafísica. O
primeiro início da filosofia é metafísico. A meditação histórica prepara o caminho para o ou-
tro início da filosofia, um início em que se essencie a verdade do seer, ressoando nas palavras
fundamentais. Para isso ocorrer, convém preparar o caminho para esse futuro iminente, e essa
preparação se dá pela liberação das posições metafísicas fundamentais para a unicidade do
questionamento metafísico que singulariza a tradição platônica ocidental. Só assim o futuro
pode advir. Isso explica a sentença com que desfecha a seção até aqui estudada de Meditação:
“A con-frontação: aquela entre a metafísica em sua história e o pensar da história do seer em
seu futuro.”246 A história do seer é preparatória para o vindouro acontecimento apropriativo
do seer, mas isso não pode se dar pela mera desconsideração do primeiro início, porque esse
primeiro início é exatamente o que obstrui a insurgência do outro início. Enquanto a filosofia
permanecer balizada pela pergunta metafísica diretriz do primeiro início, o outro início não
pode advir. Por isso, o outro início pode ser considerado uma resistência à dominância do
primeiro início metafísico.
Como elemento central do próprio pensar da história do seer, a meditação história é
confrontativa, no sentido destrinçado no item 1.1., na medida em que insere as posições fun-
damentais dos pensadores essenciais no horizonte único do elemento próprio da filosofia, a
questão do seer. Todo pensador essencial ecoa a voz do seer, esse é o elemento único de todo
e qualquer pensamento. Cada pensador só adquire singularidade quando confrontado com
outro no interior desse horizonte único, em que a pertença ao mesmo permite a alteridade. É

245
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 76.
246
Ibid., p. 78.
88

só essa aproximação que franqueia a distinção, a particularização entre os pensadores. Ou


seja, os pensadores históricos do seer só podem ser individualizados se antes se virem unifi-
cados pela pergunta do seer que os caracteriza a todos. É só mediante essa unificação apropri-
ativa que os pensadores adquirem vozes próprias, porque assim reconhecem a pertença ao
mesmo que efetivamente os distingue.
A grande dificuldade de Heidegger ao propor e praticar a meditação histórica é
discerni-la de uma simples refutação historiográfica de “doutrinas” e “opiniões” filosóficas,
atitude que permanece inesgotável porque dependente do momento presente, da variação atual
da tendência filosófica. Debitária da metafísica, a ciência historiográfica é uma atitude proje-
tiva do presente sobre o passado, que subjuga as filosofias anteriores à baliza da atual. Trata-
se de um debate de erudição filosófica historicista, um “negócio que sempre pode ser nova-
mente preenchido por cada presente vindouro com outros ‘pontos de vista’” 247.
A distinção conceitual entre meditação histórica (geschichtliche Besinnung) e consi-
deração historiográfica(historische Betrachtung) é desenvolvida por Heidegger de modo
mais detido no curso intitulado Questões fundamentais da filosofia – ‘problemas’ seletos de
‘lógica’, ministrado em Freiburg no semestre de 1937-1938, e que serve de importante com-
plemento às obras póstumas Meditação e, principalmente, Contribuições à filosofia (Sobre o
acontecimento apropriativo). Nesse curso, Heidegger mais uma vez alija as interpretações
historicistas e historiográficas da filosofia, corrente entre os historiadores da filosofia em ge-
ral, distinguindo, radicalmente, a meditação dessas outras formas de lida com o passado. O
questionamento da dimensão mais originária da verdade, perseguido por Heidegger ao longo
do curso, pressupõe a confrontação com a totalidade da filosofia ocidental, e essa confronta-
ção é essencialmente histórica248.
A recuperação da essência mais originária da verdade, porém, não é um retorno arcai-
zante ao passado, mas uma antecipação e uma preparação do futuro. O futuro, o advir é o
tempo decisivo da meditação histórica, e não o passado. Ao contrário, o questionamento au-
têntico sobre a essência da verdade – que remonta ao sentido aristotélico de correção – visa a
liberação, por meio da destruição acima explicada, desse sentido hegemônico firmado no
passado. Esse sentido é oclusivo, porque impede que a questão seja posta de forma originária,
obstrui o caminho que conduz à experiência originária de que esse sentido cristalizado pro-
vém. Com efeito, essa meditação histórica confrontativa é uma modulação do projeto de des-

247
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.78.
248
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p.12-13 (§5).
89

truição da história da ontologia, pois atende a necessidades do presente e principalmente do


futuro. O momento vindouro só pode advir se a dimensão oclusiva do passado for liberada,
destruída, uma vez que o passado da tradição metafísica é infundado 249.
Representada por Ranke e a tradição de sua Escola Histórica, a consideração historio-
gráfica é uma forma de relacionar o presente com o passado baseada naquilo que “passou”,
que “é passado”, mas que de alguma forma se liga ao presente. O critério aqui é o presente, os
pontos de vista e as sedimentações dominantes no tempo presente, projetadas no passado de
modo a compreendê-lo em uma solução linear de (des)continuidade. Esse modo historicista de
tratar o passado sofre defasagem constante, pois depende da variação de novas perspectivas
atuais, novos critérios do “hoje”, para a compreensão do “ontem”. Ou seja, trata-se de um tipo
de presentismo histórico, que está inserido num processo incessante de obsoletização, pois o
passado varia de acordo com os novos e sucessivos presentes.
Esse presentismo não se dá não somente quando a pesquisa histórica se baseia na re-
construção filológica de dados objetivos precisos, delimitados a priori por um método cientí-
fico que confere cientificidade ao resultado da investigação, de modo a aferir os fatos como
“verdadeiramente” ocorreram. A consideração historiográfica ocorre também no caso aparen-
temente oposto ao objetivismo historiográfico de Ranke, isto é, na modalidade hegeliana de
história da filosofia, que é, essencialmente, uma filosofia da história dedicada a “construir” o
seu objeto a partir do desenvolvimento atual a Ideia, da concreção do Espírito Absoluto.
Ao juízo de Heidegger, os dois casos – o objetivismo de Ranke e a filosofia da história
de Hegel - comportam uma espécie de redução historiográfica, em que predomina a determi-
nação do passado pelo presente. Em O Dito de Anaximandro, Heidegger desenvolve ainda
mais essa noção presentista e projetiva, ao dizer que “toda historiografia calcula o futuro pelas
imagens do passado, determinadas através do presente. A historiografia é a constante destrui-
ção do futuro e da relação histórica com o advento do destino.”250 Essa noção historicista é
considerada hegemônica, consolidada e mundialmente abrangente, perceptível na dominância
técnica da esfera pública, de que a radiofusão e a imprensa são paradigmáticos 251.
Contra a objetivação do passado – seja a científica de Ranke, seja a idealista de Hegel
-, emerge a complexa e necessária “meditação histórica”, que pondera a futuridade do passado

249
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 32 (§13).
250
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, p. 377. trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 371-440
251
Cf. ibidem.
90

histórico compreendido como destino epocal, envio destinamental do seer. Nesta forma de
compreender o passado, o histórico (geschichtlich) não indica o tipo de compreensão científi-
ca ou de exploração intelectual, mas o próprioacontecer (das Geschehen), ou seja, a história,
ela mesma, como seer. Por outro lado, o historiográfico, relativo à Historie, refere-se a um
tipo de cognição, daí porque Heidegger fala de uma consideração historiográfica, enfatizando
a dimensão cognitiva da palavra consideração (Betrachtung).
O histórico não é o passado, o que passou, tampouco o presente, o que se dá no dia de
hoje. O histórico éo advir, o acontecimento irruptivo que direciona o sentido do tempo; aquilo
que diz respeito à vontade, à espera, e ao cuidado 252. Ora, isso não é algo que possa ser posto
como objeto de consideração, mas algo digno de meditação. Meditação (Be-sinnung) é o mo-
do de reflexão confrontativa com o tempo que busca extrair dele o sentido (Sinn) do aconte-
cimento histórico, o sentido da história. Sentido aqui significa, para Heidegger, “a região
aberta de objetivos, critérios, impulsos, possibilidades decisivas e poderes – tudo isso perten-
ce essencialmente ao acontecimento.”253 Como possibilidade velada, o passado permanece um
acontecimento decisivo nas possibilidades que apresenta, sempre aguardando a liberação de
sua influência. Por isso, o passado, o que foi e continua sendo, é o futuro, que é a origem da
história.
Essência do histórico, o acontecimento é um modo próprio do seer, uma abertura em
meio à totalidade dos entes. O histórico não se refere, primordialmente, à produção e à suces-
são de acontecimentos, mas ao próprio acontecimento do “ser histórico”, ou seja, ao próprio
homem. Não o homem do tempo presente, que somos “eu” e “tu”, tampouco a ideia geral e
progressiva de humanidade, mas o homem que ocorre enquanto ad-vir254. Somente o homem
enquanto ser-aí (Da-sein) é histórico, porque só ele é apropriado pelo seer em meio ao acon-
tecimento apropriativo. O homem permanece exposto aos entes na totalidade, em intercâmbio
com esses entes, colocando-se livremente no interior da necessidade da natureza. Tudo o que
não é humano não é histórico do ponto de vista originário, embora sempre possa adquirir uma
temporalidade histórica quando inserido na urdidura da temporalidade humana histórica, a
partir da relação significativa que entretém no circuito estabelecido pelos homens. Por exem-

252
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p.38.
253
Ibid., p. 34.
254
Ibidem.
91

plo, uma obra de arte possui a sua história enquanto obra humana, capaz de abrir e conservar
aberto o mundo humano 255.
O decisivo na argumentação heideggeriana é a relação que o filósofo estabelece entre
o início e o advir, invertendo a ordem linear que a historiografia acostumou-se a pensar a
temporalidade, como momentos sucessivos e autonomizados por um processo de interdepen-
dência cronológica. Consoante a meditação histórica heideggeriana, “o acontecimento da his-
tória é primordialmente e sempre o futuro, aquilo que de um modo velado vem ao nosso en-
contro, um processo revelador que nos põe em risco, e, portanto, nos compele de antemão. O
advir é o início, de todo acontecer.”256
O princípio do acontecer contém tudo, todas as possibilidades desdobradas a partir do
seu direcionamento inicial. À primeira vista, pode parecer que há um processo de afastamento
do início com o transcurso temporal de um evento deflagrado. Porém, o início permanece
vigente durante a história do acontecimento inicial. Mesmo quando o início se torna aparen-
temente passado, ele continua pleno de força e preserva o traço essencial que o contrasta com
o futuro dele derivado. Na história genuína, a história do seer, que é muito mais do que a so-
ma dos eventos seguidos, o futuro é sempre o mais decisivo: os objetivos da atividade criati-
va, seus critérios e extensão. A grandeza da atividade criativa diz respeito à extensão da sua
capacidade de acompanhar o sentido mais velado da lei do início e conduzi-lo ao seu fim, ao
seu telos originários e inicial.
Desse modo, o novo, o desviante e o simplesmente decorrido são historicamente ines-
senciais, ainda que inevitáveis. Para Heidegger, “o inicial permanece sempre o mais escondi-
do”, e o relacionamento essencial, originário com esse iniciar, promovido pela “meditação
histórica”, constitui-se como uma atitude “revolucionária”, a qual, “a partir da inversão do
que é habitual, traz à luz as leis escondidas do início.” 257 O inicial é o mais velado porque é o
mais inesgotável e se retira de toda possibilidade de exaurimento. Por outro lado, o inicial se
confunde com o que se passou, o que se torna imediatamente habitual, escondendo o início
em toda a sua extensão. O inicial tornado cotidiano precisa ser reconsiderado, tomado de mo-
do revolucionário, para que se libere a lei do início nele ocultada. Ou seja, a relação originária
e genuína como inicial é revolucionária, porque revolve o habitual que oculta o inicial. Não se

255
Ibid., p.38. Cf. Origem da obra de arte. In:Caminhos de floresta. Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Funda-
ção Calouste Gulbenkian, 2007. pp.7-94.
256
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p.34-35.
257
Ibid., p.35.
92

trata, obviamente, de mera subversão ou destruição pura e simples, mas de um levante que
recria o passado cristalizado no habitual inquestionado e paradigmático a fim de reestruturá-
lo. Considerando que o original pertence ao início, essa reestruturação do início nunca é uma
imitação grosseira do que se deu anteriormente, mas é algo de totalmente diferente, inobstante
se tratar do mesmo início.
Nesse passo argumentativo, Heidegger procede com mais uma inversão: a atitude con-
servadora não preserva o início, porque sequer chega a alcançá-lo. O conservador transforma
o início em passado, naquilo que se tornou o início, no regular, no ideal de validade supra-
temporal, no que é renovado constantemente e precisa sempre ser recuperado como meta
constante. Isto é, o início é neutralizado em todo o seu poder de evento transformador e ante-
cipador do futuro. É a sua dimensão futura de acontecimento iminente que é perdida na histo-
riografia presentista. Rechaçada por Heidegger, essa atitude caracteriza a consideração histo-
riográfica do passado, incapaz de reconhecer a força oculta do início, a sua vigência perma-
nente no decurso temporal da história, como acontecimento possivelmente vindouro. Por essa
razão, a relação genuína com o início pressupõe uma sublevação contra a dominação do ordi-
nário, que deve ser “quebrado”, implodido para que o verdadeiro início emerja. Explica Hei-
degger: “O início nunca pode ser alcançado mediante a mera preservação, porque iniciar sig-
nifica pensar e agir da perspectiva do futuro e do que é extraordinário, e da renúncia das mu-
letas e evasões do habitual e usual.”258
O início originário resiste a qualquer representação e objetificação historiográfica 259.
A historiografia esteriliza o início, considerando-o do ponto de vista estático de um começo
que logo foi sucedido por uma segunda fase que o supera. É como se fosse o primeiro capítulo
de um livro, logo esquecido após o advento do segundo. A historiografia trata o início como
algo que já se deu, e não se dá mais. Porém, o início é conquistado apenas quando se experi-
menta criativamente a lei que o rege, e essa lei não é perceptível a uma visada objetivante,
pois diz respeito a um acontecimento apropriativo configurador de uma ontologia histórica.
Essa lei velada do início nunca pode ser subsumida a uma regra geral, mas permanece especí-
fica e particular, na unicidade de sua necessidade260. A historiografia acede exclusivamente ao
passado, mas nunca ao histórico, sendo este conquistado apenas por uma meditação que vise
ao acontecimento histórico do seer. Isso porque a historiografia considera, como numa espé-

258
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p.38.
259
Ibid., p. 39.
260
Ibidem.
93

cie de miopia ontológica, o “principal” e o “primeiro plano” dos “fatos históricos”, não aten-
tando ao que subjaz a eles, o acontecimento apropriativo de desvelamento do seer. Supra-
historiográfica, a meditação histórica não é eterna ou supratemporal. Ao contrário, enraíza-se
na temporalidade do seer e depende da participação das atividades configuradoras de eras por
ressoarem a epoca do seer, a criação do poeta, do arquiteto, do pensador e do estadista, capa-
zes de intuir a lei secreta do início e de antecipar o futuro ínsito na origem mais profunda.
Na recapitulação do parágrafo 16 do curso estudado, Heidegger delineia três possíveis
compreensões errôneas do que seja a meditação histórica. Em primeiro lugar, pode-se ter a
falsa impressão de que a meditação histórica é inteiramente ilimitada, uma vez que é desen-
volvida por pensadores criativos, que interagem com a lei do início. Essa é uma compreensão
desvirtuada, pois a meditação histórica tem uma relação ainda mais essencial e, portanto, mais
estreita com o acontecimento do passado do que a historiografia. A meditação histórica reco-
nhece que o passado é o mesmo que o futuro, sendo ambos estabelecidos por decisões ontoló-
gicas dos criadores, as quais se tornam leis que regulam a temporalidade do seer. Por outro
lado, a historiografia enquanto ciência procede de modo arbitrário ao interpretar o passado a
partir de um imperativo de progresso científico, colhendo novos fatos para incrementar o co-
nhecimento científico da história. A meditação histórica, ao contrário, não se prende à coleção
de fatos, mas ao acontecimento que os subsidia, de que eles provêm. É por isso que Heidegger
considera a lei a que a meditação histórica obedece “maior e mais rigorosa” do que o impera-
tivo que configura a ciência historiográfica 261.
Porém, isso não significa que a meditação histórica seja simplesmente antagônica e
dispense por completo a historiografia. Não se trata disso. Como aponta Heidegger no segun-
do tópico dessa organização conceitual, a consideração historiográfica é essencial quando
inserida no contexto da meditação histórica. Isolada, a historiografia é estéril e passa ao largo
do acontecimento decisivo de que derivam os fatos históricos por ela estudados. Quando alia-
da à meditação histórica, a historiografia torna-se indispensável para a efetiva compreensão
do passado, do que foi e continua sendo.
Por fim, e em terceiro lugar, a historiografia padece de um imperativo epistemológico
que neutraliza a sua visada do passado. Baseada no modelo da ciência natural, ela o considera
do ponto de vista do progresso temporal necessário, tratando o presente sempre como avanço
em relação ao passado, como se a filosofia progredisse incessantemente do mesmo modo co-
mo a ciência natural o faz. Se assim fosse, a historiografia filosófica seria ociosa, um antiquá-

261
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994.p. 46.
94

rio de conservação inútil de “doutrinas” passadas e superadas pelas concepções “modernas”.


Heidegger é extremamente crítico com o projeto moderno de substituir a especulação filosófi-
ca pela ciência moderna positiva, baseada em demonstração de fatos. Ele considera absurdo a
consideração historiográfica que obedece ao postulado: “o que quer que aconteça de novo, é
interpretado como progresso.”262 Ora, ao buscar a experiência básica e o conceito básico dos
gregos, a meditação histórica identifica o fundamento metafísico da ciência moderna, em cujo
espectro se inclui a historiografia. Desse modo, ela contribui para a superação da conexão
extrínseca com os fatos pretéritos – modo inautêntico de se relacionar com o passado, levado
a cabo pela historiografia – e franqueia o conhecimento histórico-ontológico do evento apro-
priativo do seer, o qual prepara a existência histórica para a grandeza do destino, para os
grandes momentos do seer, antevistos desde o início originário 263.
A atenção filosófica ao início, tal como visado pela meditação histórica, transcende a
consideração histórica, interessada no passado por ele mesmo, no passado feito presente regu-
lar. A meditação histórica volta-se à origem, compreendida como arché, como fonte perma-
nente que continua a atuar sobre o acontecer histórico, sem que o transcorrer do tempo dela se
distancie e se transforme a ponto de trai-la, convertendo-se em algo ausente no despontar ini-
cial dessa origem. Início é origem, o que, para Heidegger, aponta, ainda que veladamente, ao
fim e ao destino de todo acontecer histórico. Afinado com o pensamento grego originário,
Heidegger articula a arché do pensamento com o seu telos. É aqui que entra a importância
incomparável de Platão na meditação histórica da filosofia ocidental, pois Platão modelou e
conformou a lei interna do início originário da metafísica 264. Todo o pensamento ocidental
subsequente responde à pergunta diretriz por ele formulada, sendo diretamente condicionado
pela sua maneira de questionar o ente na totalidade, o seer como entidade do ente. É por isso
que Heidegger analisa tão detidamente, ao longo de sua vasta obra, a palavra platônica fun-
damental: idea.
A consideração historiográfica é simplesmente incapaz de perceber o destino histórico
da metafísica platônica, exatamente porque ignora o início originário de todo acontecimento
histórico-epocal do seer. Isso porque a historiografia entifica o passado ao torná-lo um objeto
de consideração científica. Ela sempre é retrospectiva e afirma a dominância do presente so-

262
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’. Tradução R.Rojcewicz
e A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994.p. 47.
263
Ibid., p. 50.
264
Ibid., p. 45.
95

bre o passado, tratando deste como a base daquele. Por sua vez, o passado visado pela medita-
ção histórica é o que foi e continua sendo. Um trecho de Heráclito de Heidegger é preciso ao
descrever o sentido dessa arché histórica perseguida pela meditação histórica: “naquilo que
foi e continua sendo espera, vindo ao nosso encontro, o segredo velado da nossa
cia”265.Somente quando se pressentir isso, dá-se o presente.
Seguindo a tradução proposta por Ernildo Stein, Casanova explica que o termo alemão
traduzido por “o que foi e continua sendo” é Gewesenheit. Essa palavra é formada pela subs-
tantivação do particípio passado do ver ser, Sein. Se a forma verbal Gewesen é o “sido”, aqui-
lo que foi, a forma substantivada Gewesenheit significa a determinação desse “sido”. O que
está em jogo é a transformação no modo de compreensão habitual e sedimentada do passado,
considerado pela tradição metafísica da historiografia como a transitoriedade que evade o que
se deu, a fugacidade permanente que fragmenta os momentos temporais e os divide em fases
cronológicas estancadas de passado, presente e futuro. Para Heidegger, as soluções de conti-
nuidade da historiografia da filosofia são sempre superficiais porque descuram o aconteci-
mento que subjaz de modo essencial e apropriativo à história. Segundo Casanova, pensar o
passado como Gewesenheit implica pensá-lo como “o dar-se histórico do ser que nunca passa,
mas continua sempre determinando o instante tanto quanto o porvir”, a partir do que é “efet i-
vamente decisivo no passado, e que jamais chega realmente a passar” 266. Desse modo, a medi-
tação histórica volta-se aos acontecimentos históricos das ontologias, a partir do passado es-
sencial, que foi e continua sendo, e “que impõe originariamente não como a história precisa
acontecer, [...] mas no interior de que limites a história precisa e pode efetivamente de desdo-
brar.”267
A noção que desponta dessa articulação e que motiva o próximo item desse capítulo é
a de passo de volta, que é o modo específico de Heidegger dialogar com as posições funda-
mentais dos pensadores da tradição, correlata à meditação histórica aqui delineada.

1.6 Passo de volta e epoché do seer

A elucidação do sentido da confrontação com a coisa do pensamento e da meditação


histórica do seer, noções analisadas no item anterior, revelou a peculiaridade do diálogo hei-

265
HEIDEGGER, M. Heráclito, GA 55. Frankfurt: Klostermann, 2000. p.194. Apud CASANOVA, Marco An-
tônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 176.
266
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 175.
267
Ibid., p. 176.
96

deggeriano com a tradição, questão imprescindível para a compreensão de seu contato intelec-
tual com Platão. Esse diálogo com a história da filosofia afasta-se da historiografia e se perfaz
com o passo de volta. Dimensão central do pensamento heideggeriano, o passo de volta insere
o diálogo com a tradição filosófica no problema da diferença ontológica, a qual determina a
história da filosofia por enquadrá-la no acontecimento apropriativo com que o ser se desvela
no ente retraindo-se na abissalidade da sua diferença. A partir dos textos ‘Identidade e dife-
rença’, ‘Tempo e ser’ e ‘O dito de Anaximandro’, esse item também estuda, portanto, o con-
ceito correlato da epoché do seer, a suspensão ontológica que instaura o destino dos aconte-
cimentos históricos. O percurso filosófico ocidental é um amplo desdobramento da posição
fundamental da metafísica platônica, que entifica o ser ao considerá-lo a máxima abstração do
ente. Esse primeiro início platônico “ressoa” e atravessa todos os desdobramentos ulteriores
da história da metafísica, como estudado no item 1.2.
Naseção ‘A constituição onto-teo-lógica da filosofia’, integrante da conferência ‘Iden-
tidade e diferença’ proferida em 1957, a noção de passo de volta é explorada por Heidegger.
Com efeito, ao lado de ‘Hegel e os gregos’, esse texto tem importância capital para a compre-
ensão do diálogo com Platão, pois visa a estabelecer interlocução com outro pensador decisi-
vo da tradição filosófica, Hegel. Para tanto, Heidegger atenta para a condição de que “o diálo-
go com um pensador somente pode tratar da coisa do pensamento”268. Como analisado no
primeiro item deste capítulo, a “coisa” é o caso controverso que estimula e motiva o pensa-
mento, aquilo que o provoca, que o dinamiza. É o seu objeto conflituoso que une os pensado-
res em torno ao pensamento do mesmo, da medida simples do pensar, que é o acontecimento
apropriativo do seer. Mas é necessário atentar para não considerar essa coisa um “objeto” no
sentido com que as ciência ônticas enfocam a realidade natural. Diz Heidegger: “A coisa do
pensamento urge o pensamento, de tal maneira que o conduz, primeiro, a sua coisa e, a partir
deste, a si mesmo.”269 A coisa do pensamento é mais “uma situação premente” do que uma
discórdia. É a unicidade da coisa do pensamento – relativa ao evento epocal do seer – que
permite a confrontação dos pensadores entre si. Trata-se, na verdade, de uma oposição singu-

268
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 189. Seguindo Casanova, opta-se por traduzir Sache
por “coisa”, diferente de Stein, no texto apenas referido, que se vale da palavra “objeto”. Isso por dois motivos:
Primeito, para preservar a homogeneidade e a coerência das traduções. Segundo, para evitar a objetificação enti-
ficante da meditação heideggeriana, que se afasta da historiografia por considerá-la ciência que objetifica o pas-
sado, assim como a filologia objetifica a língua filosófica ao analisá-la cientificamente.
269
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 189.
97

larizadora das suas respectivas posições fundamentais diante do apelo verbal e histórico do
seer, como explanado no item respectivo (1.2).
Hegel é importante para Heidegger porque lhe abre o caminho de um confronto espe-
culativo e filosófico com a história da filosofia, em que a coisa do pensamento é, em si, histó-
rica. A historicidade da coisa do pensamento provém não da temporalidade do sujeito que a
contempla, mas de seu caráter de acontecimento, de processo em que o ser se pensa a si mes-
mo. Para estabelecer um “diálogo pensante” com Hegel, Heidegger precisa abordar, com ele,
não só a mesma coisa, mas da mesma maneira. Isso significa pensar “o mesmo”, a mesmidade
do seer, o acontecimento apropriativo (Ereignis). Não se trata, bem entendido, de tratar do
igual, de uma reprodução irrefletida, ou de uma paráfrase eloquente dos postulados hegelia-
nos. Interessa tratar o seer historicamente, nisso reside uma das principais chaves de leitura da
obra heideggeriana. Hegel pertence a uma determinada “época histórica”, o que “não significa
absolutamente que pertença ao passado”270, pois a coisa do pensamento é sempre a mesma, o
seer. Se a coisa do pensamento mudasse no decorrer das eras históricas, não haveria possibili-
dade de um diálogo efetivo no interior da história da filosofia. No fundo, toda a história da
filosofia responde a uma destinação epocal do seer, a um acontecimento apropriativo cujo
apelo do seer determina a fisionomia de cada pensador que a ele responde. Essas respostas
configuram as diferentes posições fundamentais da metafísica que são responsáveis pela “di-
versidade do elemento histórico no diálogo com a história da filosofia” 271. Mas a coisa do
pensamento continua sendo sempre a mesma, o seer.
É o seer a medida simples que delimita um tempo histórico, e é o seer o núcleo de que
se extrai o pensado e o impensado das posições fundamentais. Heidegger interessa-se pelo
“impensado, do qual o que foi pensado recebe seu espaço essencial.” 272 Essa busca pelo im-
pensado não se resolve, porém, numa espécie de experiência mística do inefável, mas haure o
impensado do já pensado, em cujo interior se reserva o que ainda resta a pensar. O impensado
está contido, em oculta latência, no já pensado pela tradição. A meditação histórica heidegge-
riana se realiza, portanto, como destruição da história da ontologia, que destrói na tradição o
que nela impede o impensado de vir à tona. Para isso, é necessário penetrar em toda a potên-
cia do pensamento antigo, para atentar à voz inaudita que nele ressoa. Nesse sentido, diz Hei-

270
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 190.
271
Ibid., p.191.
272
Ibid., p. 192.
98

degger: “somente o já pensado prepara o ainda impensado que sempre de modos novos se
manifesta em sua superabundância.” 273
A conquista do impensado não se dá, como Hegel supunha, pela superação dialética
que reúne e sistematiza as etapas históricas anteriores em totalidades cada vez mais abrangen-
tes. Para Heidegger, essa conquista exige a liberação do pensamento da tradição filosófica
para o interior da dimensão do que ele reserva desde sua origem. Essa conquista se dá a partir
do passo de volta ao seer, que caracteriza o diálogo heideggeriano com a história do pensa-
mento. Dito de outro modo, é um procedimento que se perfaz pela destruição da história da
ontologia, pois o que se busca com a destruição é exatamente o seer elidido pelos encrosta-
mentos das ontologias metafísicas, isto é, o seer escondido pelas representações entificadas do
seer que o omitem por completo em uma projeção do ente. Daí porque a questão da diferença
ontológica é central na confrontação com a história da tradição. Com a destruição da história
da ontologia, o pensamento tradicional é como que implodido e direcionado para “o âmbito
do que dele já foi e continua reservado.”274 A conquista é daquilo que Heidegger denomina
“passado-presente”, o qual perpassa a tradição filosófica, o seer que nela permanece velado à
epiderme das posições metafísicas fundamentais.
Em nota elucidativa à tradução do texto ‘Identidade e diferença’, Stein atenta para o
antagonismo da direção temporal visada pelos dois filósofos: enquanto o pensamento hegelia-
no requer o passo para diante, como pro-gresso (Fort-gang), o heideggeriano exige o passo
de volta, como re-gresso (Rück-gang). Se Hegel persegue a sobressunção (Aufhebung) no
diálogo com a história da filosofia, em que o pensamento conduz para o interior da dimensão
dialética que sobre-eleva e unifica os polos antitéticos, Heidegger pensa esse diálogo como
passo de volta, o qual torna a questão (platônica) da essência da verdade do seer digna de ser
pensada. É essa questão que redimensiona toda a história da filosofia, pensada a partir do
acontecimento que a envia e a une.
Suscetível de leituras errôneas - como aliás todo o pensamento heideggeriano que visa
a superar agonicamente a tradição e a linguagem metafísica a que pertence –, o passo de volta
não implica regresso no sentido de passadismo, de tradicionalismo ou de apego antiquário ao
passado. Ao contrário, a direção do “longo caminho” a que ele aponta é o futuro acorrentado
no passado originário. Passo de volta diz, antes de tudo, o “movimento do pensamento” que

273
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 192.
274
Ibidem.
99

determina o diálogo heideggeriano com a tradição, operado mediante a confrontação medita-


tiva com o (não-)dito dos pensadores essenciais, que ressoam a voz verbalizada do seer. Co-
mo conquista do não dito nas palavras fundamentais da tradição, o passo de volta conduz o
pensamento “para fora do que até agora foi pensado na filosofia.”275 E isso a partir do recuo
diante do seer, apenas parcialmente observável na história que o representa metafisicamente.
O confronto realizado pelo passo de volta é com o todo da história da metafísica, com vistas à
sua fonte, o seer. É esse seer originário que permanece inquestionado ao longo da tradição
filosófica ocidental. E a prova disso é a linguagem metafísica que perpassa todas as posições
fundamentais dessa tradição, as quais se revelam incapazes de reconhecer, em sua radicalida-
de, a diferença ontológica entre o ser e o ente.
Essência da verdade, essa diferença é o impensado a ser meditado pela reflexão do
passo de volta. O pensamento platônico, que fundamenta a tradição metafísica ocidental, é o
responsável pela conformação inicial do esquecimento do ser, da diferença ontológica entre
ser e ente. Na verdade, não se trata de um esquecimento passivo, uma falta de memória diante
de algo que se viu ou viveu. Afaste-se, de pronto, qualquer conotação psicológica ou memori-
alística desse esquecimento, pois não se trata, em absoluto, de “uma distração do pensamento
humano”276. Trata-se, antes de tudo, de um acontecimento metafísico de retraimento do seer
que impede de, ele mesmo, ser retratado verbalmente pelos pensadores metafísicos, que aca-
bam por substitui-lo por representações abstrativas do ente. Diz Heidegger: “O esquecimento
a ser aqui pensado é o velamento da diferença enquanto tal, pensado a partir da lethe (oculta-
mento), velamento que por sua vez originariamente se subtrai.” 277 O esquecimento da diferen-
ça é atribuída ao retraimento do próprio seer, que desvela o ente na totalidade e se esconde na
abissalidade da sua diferença em relação ao ente desvelado.
A metafísica – forma de pensamento que conforma a totalidade essencial da tradução
filosófica ocidental – só pode ser pensada por causa da diferença ontológica entre ser e ente,
de cujo seio ela emerge. Nada obstante, a metafísica não toma conhecimento disso. Desponta-
da com a obra de Platão, a metafísica é o tipo de pensamento que carece de autoconhecimen-
to, e cuja origem permanece impensada a despeito dos múltiplos e fecundos desdobramentos
platônicos de sua história bimilenar. Por isso, Heidegger afirma que o passo de volta “se mo-

275
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 192.
276
Ibid., p. 193.
277
Ibidem.
100

vimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica.”278 Isso é fundamen-
tal de ser entendido: é necessário conquistar o espaço de alteridade com relação à metafísica
para que se possa confrontá-la autenticamente, isto é, de fora. Só assim se pode analisar a es-
sência ontológica da metafísica, a essenciaçãohistórica da metafísica. Isso significa conquis-
tar, pelo passo de volta, o primeiro início enfocado de fora: quer dizer, no interior do trânsito
para o outro início.
O passo de volta se perfaz como um salto para o outro início, do qual se pode vislum-
brar o primeiro início em sua inteireza e, principalmente, no seu caráter de esquecimento da
diferença ontológica. O primeiro início não reconhece a historicidade do ser, pois o hipostasia
para além do tempo. Mas esse início é, ele mesmo, uma modalidade histórica e epocal do seer
que se retrai em proveito do ente com o qual é confundido. É a subtração epocal do seer que
provoca o seu esquecimento. O seer é responsável pelo seu abandono, na fase da culminância
final da metafísica. Todas as representações filosóficas do seer dependem do envio com que o
seer se apresenta, não são da autoria de pensadores criativos. O seer é histórico, perpassa a
tradição historicamente. Para alcançá-lo, não se deve operar uma espécie de “retorno ao histó-
rico”, mas reconhecer a historicidade própria do seer que envia subtraindo-se, demarcando a
diferença ontológica que o distingue do ente. É por isso que a tradição do seer é sempre o des-
tino, pois determina a destinação no interior da qual se abre o mundo histórico.
O passo de volta abre o horizonte da efetiva articulação da relação entre ser e ente, da
diferença ontológica que os discerne. Não se trata de uma distinção do pensamento, que esta-
belece a diferença como representação mental acrescentada ao ser e ao ente, como se essa
diferença não os constituísse ontologicamente. Heidegger considera essa redução da diferença
ontológica à representação mental um rebaixamento da sua natureza. Ser e ente, cada um a
seu modo, “tornam-se fenômenos emergindo da diferença”279. E é o passo de volta que permi-
te o confronto objetivo dessa diferença, considerada nela mesma, e não na relação metafísica
de um elemento ao outro, seja o ser do ente – pensado como genitivo objetivo -, seja o ente do
ser – pensado como genitivo subjetivo. O passo de volta acede à distância a partir do qual a
proximidade pode se manifestar. Modulação do projeto de destruição da história da filosofia,
esse procedimento do passo de volta libera o objeto do pensamento, que é o ser da diferença,
para uma confrontação. Esse objeto não pode permanecer, de maneira nenhuma, inobjetivado,
como permanece no seio da tradição metafísica, que o toma como pressuposto sem jamais

278
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. CONFERÊNCIA E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 193..
279
Ibid., p. 198.
101

radicalizá-lo. Imersa no seu interior, a metafísica não pensa a diferença ontológica, porque
não pensa a historicidade dos envios epocais do seer. É isso que “deve ser pensado” pela me-
ditação histórica do passo de volta. É isso o “impensado” da tradição metafísica, ínsito ao que
é “pensado” e “dito” pelos pensadores essenciais.
O passo de volta reconhece que o seer é “advento”, que manifesta o ente e, simultane-
amente, se oculta. Como advento, o seer se oculta no desvelamento do ente do qual se dife-
rencia. O seer se demora na ocultação do presente, do ser ente. Nesse texto central, ‘Identida-
de e diferença’ – que será retomado no próximo capítulo, ao tratar da constituição ontoteoló-
gica da metafísica platônica -, Heidegger explica que “o ser se manifesta como fenômeno ao
modo de uma ultrapassagem para o ente”280. Mas isso não quer dizer que, antes de o ser, tran-
sitivamente, ultrapassar para o domínio do ente, o ente não existisse. Da mesma forma, o ser
não se move, como num plano físico estático, de um lugar para outro, deixando o espaço on-
de antes se encontrava. O advento do ser ao ente é quando o ser lhe sobrevém desocultando-o.
O ente vem à tona, torna-se presente pelo ser que, ao mesmo tempo, se oculta, deixando o
ente presentificado. Mediante esse desvelamento do ente pelo ser, pode-se dizer que o ser
sobrevém desocultando o ente, permanecendo, ele mesmo, o ser, na diferença abissal que os
separa, que os diferencia. Por isso, Heidegger afirma que o “ser mostra-se como sobrevento
desocultante”, pois o “ente enquanto tal aparece ao modo do advento que se oculta no desve-
lamento.”281
A noção fundamental que desponta dessa argumentação é a de Austrag, a partir da
qual se pode pensar a diferença ontológica entre ser e ente em toda a sua radicalidade. Heide-
gger intenta pensá-la correlativamente à noção de “sobrevento” (Überkommnis), como o
acontecimento inesperado que manifesta o “advento” (Ankunft). Como explica Stein, em nota
explicativa à sua tradução do texto analisado, “o ser é o sobrevento que desoculta o ente e
assim desvela aquilo que oculta: o advento do ente.” 282Austrag é, então, a de-cisão que signi-
fica a irredutível di-ferença entre ser e ente. O sentido corrente de Austrag é o de decisão,
resolução, ajuste, solução, porém Heidegger lhe empresta um sentido técnico, a partir da filo-
sofia do acontecimento apropriativo, pela qual a história do ser é pensada.O que está em jogo,
segundo Casanova, é a “confrontação entre o desvelamento do ente na totalidade e a retração
do ser no abismo da sua diferença, uma confrontação que nunca pode ser simplesmente su-

280
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. CONFERÊNCIA E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 198..
281
Ibidem
282
Ibidem.
102

primida, resolvida, ajustada, mas que dá voz a cada vez a uma tal resolução.” 283 Só ao expor
essa tensa confrontação da diferença ontológica é que se decide a configuração do “aí” que
provoca e convoca a meditação histórica; é desse aí que se forma o mundo histórico plasmado
nas palavras essenciais dos pensadores que souberam ressoar a voz fugidia do seer. Isso por-
que o sobrevento do ser é ocultado para que o advento do ente seja desocultado. Para Heide-
gger, interessa pensar a di-ferença de ser e ente que só pode emergir da unidade que os inter-
liga essencialmente:
Ser no sentido de sobrevento desocultante e ente enquanto tal, no sentido de advento que se
esconde, acontecem como fenômenos enquanto são assim diferenciados a partir do mesmo, a
partir da di-ferença. Somente esta [a diferença] dá e mantém separado o ‘entre’ em que sobre-
vento e advento são conservados na unidade, em que são sustentados distintos e identificados.
A diferença entre ser e ente é, enquanto diferença entre sobrevento e advento, a de-cisão de-
socultante-ocultante de ambos. Na de-cisão impera a revelação do que se fecha e se vela; este
imperar dá a separação e união de sobrevento e advento.284

A diferença ontológica é o mesmo(o Ereignis), a partir da qual se pode manifestar o


fenômeno de sobrevento do ser desocultante do ente, que advém. Diferidos, ser e ente se
unem pela diferença que os distingue. A diferença é o “entre”, o hiato que une e separa o ser
do ente e o ente do ser, em uma tensa unidade que os identifica e os distingue. Ambos são
simultaneamente desocultados e ocultados ao se distinguirem. Há uma revelação que acarreta
o velamento desvelador, sob a forma de sobrevento adveniente. Como salto, o passo de volta
conquista esse espaço intermediário do “entre”, sem o qual a diferença ontológica recai em
dicotomias e dualismos metafísicos. Esse passo de volta identifica a origem essencial da me-
tafísica, o primeiro início do pensamento ocidental, em um tipo específico de de-cisão da dife-
rença ontológica. Esse tipo específico responde pelo envio destinamental do seer, que confi-
gura a época da metafísica, a qual perpassa todos os desdobramentos que constituem a histó-
ria da filosofia metafísica.
Mas, como se destacou anteriormente, a tradição metafísica permanece velada a si
mesma enquanto de-cisão e, por isso, “esquecida por um esquecimento que a si mesmo ainda
subtrai”285. Ou seja, ainda que a metafísica advenha da diferença ontológica que a constitui, a
metafísica é incapaz de pensar a diferença ontológica enquanto de-cisão, enquanto diferença.
É o passo de volta que rompe com a tradição do pensamento metafísico representativo e ins-

283
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. M.A.Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.63 (§14), nota n. 7 do
tradutor, Casanova.
284
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. CONFERÊNCIA E ESCRITOS FILOSÓFICOS.. Trad.
Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 198.(coleções os pensadores).
285
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 200.
103

taura a lembrança do esquecido, a saber, a diferença que se caracteriza pela de-cisão de sobre-
vento desocultante e advento ocultante.
Cerne da diferença ontológica, a implicação recíproca de ser e ente é o que singulariza
a filosofia da de-cisão. Segundo essa filosofia, ao se separar o ser do ente, e o ente do ser,
reforça-se a união entre eles, que só podem ser pensados em referência um ao outro. A de-
cisão é uma referência individualizante, mas que preserva a relação de diferimento como las-
tro e critério de identificação. Ao diferir e separar, a decisão preserva o vínculo de união a
partir da qual ser e ente podem ser distinguidos. Por isso, explica Heidegger em passagem
importante do texto analisado:
Na medida em que ser acontece como fenômeno, como ser do ente, como diferença, como de-
cisão, perdura a separação e união do fundar e fundamentar; o ser funda o ente, este, enquanto
o mais ente, fundamenta o ser. Um sobre-vém ao outro, um ad-vém no outro. Sobrevento e
advento aparecem mutuamente enviscerados no re-flexo que os opõe. Dito a partir da diferen-
ça, isto significa: a de-cisão é um circular, um circular de ser e ente, um em torno do outro. 286

É precisamente essa dimensão do “entre” que interessa ao passo de volta, dimensão


essa esquecida pela metafísica. Por causa disso, a metafísica não pode conquistar o espaço de
determinação da sua essência, pois esqueceu-se da diferença ontológica que a constitui, es-
queceu-se do lugar a partir do qual esse diferença pode emergir. O passo de volta opera, por-
tanto, a volta para fora da metafísica; e isso para espelhá-la, para conquistar a consciência de
si de que ela é privada. Essa consciência é a consciência da diferença ontológica por ela es-
quecida, ignorada. Por outro lado, o passo de volta é para dentro da essência da metafísica.
Não se trata de um movimento evasivo, de distanciamento puro e simples da tradição
metafísica, como se fosse possível superá-la ignorando-a e rechaçando-a por um ato de vonta-
de. Heidegger é extremamente crítico desse tipo de crítica voluntarista da metafísica, como se
ela fosse uma ideologia delimitada pelo próprio homem e não um envio epocal do seer. A
“volta” do passo de volta é a superação do esquecimento da diferença a partir da imersão – o
para “dentro” da volta – no “destino do ocultamento da de-cisão, o ocultamento que se sub-
trai.”287
Diferente de Hegel, cujo contato com a história da filosofia é condicionada pelo con-
ceito de suprassunção (Aufhebung), Heidegger busca nessa história a dimensão esquecida da
sua origem, a gênese dos mundos históricos que subjazem a qualquer pensamento filosófico.
É o acontecimento apropriativo do seer que forma um mundo histórico, que lhe fornece a me-
dida simples a partir da qual as filosofias são possibilitadas. E esse acontecimento apropriati-

286
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 200.
287
Ibid., p. 201.
104

vo delineia um modo específico de diferença ontológica, pois, com ele, o seer sempre se retrai
no abismo de sua diferença em relação ao ente que descerra.
Como assinala Alexandre Cabral288, após a viragem, a diferença ontológica se mani-
festa duplamente no acontecimento apropriativo. Primeiro, na não identificação entre a clarei-
ra do seer (mundo) e os entes que nela se manifestam. Segundo, a retração do seer na abissali-
dade que o distingue do ente também registra o caráter ontologicamente diferenciador do
acontecimento apropriativo. Inserido na diferença ontológica, o passo de volta articula esse
tipo específico de acontecimento apropriativo formador de mundo histórico com a totalidade
histórica da qual esse acontecimento participa, isto é, a tradição. Isso porque toda abertura do
ente na totalidade, toda formação apropriativa de mundo histórico diz respeito às aberturas
anteriores de outros mundos históricos. Por essa razão, acompanhando a argumentação de
Alexandre Cabral – cuja tese de doutoramento enfrenta o problema da confrontação heidegge-
riana com Nietzsche -, “a história da filosofia identifica-se tanto com a pluralidade de aconte-
cimentos apropriativos que sustentaram os conceitos e questões dos filósofos, quanto com a
unidade desta pluralidade de envios históricos do seer.”289
A confrontação histórica de Heidegger com a tradição, portanto, parte de um texto em
direção à abertura do ente na totalidade que o embasa. A dimensão histórica dessa confronta-
ção concerne à história das aberturas do ente na totalidade que necessariamente incidem sobre
os acontecimentos apropriativos dos quais provêm os ulteriores mundos históricos. Toda aber-
tura do ente na totalidade responde às aberturas anteriores – o que não quer dizer a necessária
continuidade dos projetos históricos de mundo, como se a filosofia heideggeriana apontasse
para um historicismo linear. O fato determinante aqui é que o pensamento de um filósofo es-
sencial, como Platão, Hegel e Nietzsche, está essencialmente condicionado pela tradição a que
pertence. Daí porque não se pode jamais ignorar a história da filosofia para fazer filosofia, isto
é, para filosofar autenticamente. E a história da filosofia é marcada pela retração, pela subtra-
ção do seer que se oculta ao manifestar o ente na totalidade, instaurando e reforçando a dife-
rença ontológica que os demarca.
Essa subtração aponta para uma noção correlata do pensamento heideggeriano: época.
Época é o modo como o ser se dá historicamente, como se envia e configura o destino de um
tempo filosófico, uma abertura de mundo, um descerramento do horizonte do ente na totali-

288
CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e Heidegger.tese
de doutoramento. Orientador: Marco Anônio Casanova. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro, 2012. p. 637.
289
Ibidem.
105

dade. Epocal, “o ser se dá, se determina por si próprio, através do modo como se revela.” 290.
Ou seja, o ser é historicamente destinado; mas essa dimensão epocal de sua história destina-
mental só é percebida quando o pensamento meditativo é capaz de liberar o ser para o aconte-
cimento que lhe é próprio. Por essa razão, o ser somente se dá na dimensão histórica de uma
época verbalizada pelas palavras essenciais, como “physis, logos, hen, ideia, energia, subs-
tancialidade, objetividade, subjetividade, vontade, vontade de poder, vontade de vontade”291.
Em ‘Tempo e ser’, outro texto fundamental para a compreensão da epocalidade do
seer, Heidegger reconhece o pertencimento mútuo dos elementos essenciais que a metafísica
cindiu, tempo e seer, a partir exatamente do acontecimento que os origina, o acontecimento
apropriativo que dá tempo e seer. Tempo e seer se implicam mutuamente porque ambos pro-
vêm de um acontecimento único que os instaura. Não há seer fora do tempo, pois toda essen-
ciação do seer descortina um determinado tempo, articulando passado, presente e futuro no
interior da clareira aberta pelo acontecimento apropriativo 292. Nesse sentido, é que a medita-
ção histórica busca o futuro no passado, as possibilidades recônditas do passado a serem libe-
radas com a nova, porém sempre tradicional, destinação apropriativa. Quer dizer, o fato de um
novo acontecimento apropriativo se dar, não acarreta um abandono do passado tradicional a
que ele pertence. O pensamento heideggeriano não incorre no tipo de pensamento modernista
e futurista que aponta para o futuro, vislumbrando a possibilidade de abandonar o passado
com um gesto de afirmação da vontade e autonomia.
Pensar a história do seer como época, significa pensá-la como dom, doação, envio,
destino. A metafísica descurou o acontecimento apropriativo que dá o seer e tempo em pro-
veito do resultado estático desse dom, a presença do ser num presente supratemporal. Ignora-
da pela metafísica que lhe é tributária, a dimensão essencialmente histórica da história do seer
reside no acontecimento do seer, no fato de o ser se dar. Essa doação não é historiografica-
mente verificável em sua essência, mas apenas a sua superfície. A historiografia da filosofia
se detém na superfície filológica do texto sem adentar na camada da diferença ontológica que
o originou, isto é, a retração do seer que se vela na abissalidade de sua diferença ao manifestar
o ente. As palavras que dizem a medida simples do mundo histórico, visam a dizer o seer,
porém o confundem com o ente. Nisso reside a errância fundamental da metafísica, que, em

290
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS.Trad.
Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.199.(Coleção os pensadores).
291
Ibidem..
292
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os pensa-
dores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.265.(Coleção os pensadores).
106

verdade, reverbera o acontecimento apropriativo desapropriante com o que seer se envia nessa
época de sua história. A metafísica reflete a autoalienação do seer que se subtrai em favor do
ente; o ente é o dom do seer, seu envio. Sentido histórico do Ocidente, a metafísica marca a
época do esquecimento da diferença ontológica, exatamente porque privilegia exclusivamente
a entidade do ente, em detrimento do acontecimento do seer que a envia. Isso equivale a dizer
que a história ocidental das essenciações do seer é caracterizada pela metafísica, que obscure-
ce e ofusca o próprio acontecimento apropriativo 293.
O tempo configurado pelo acontecimento de essenciação do seer é a clareira temporá-
riado seer, que apresenta o espaço de mostração e configuração de tudo que é e pode vir a ser.
Elemento característico do acontecimento apropriativo, a articulação entre passado e futuro
advém do fato de toda essenciação do seer relacionar-se intimamente com o passado essenci-
al, isto é, com clareiras passadas, de cujo horizonte dependem as determinações dos mundos
históricos futuros, vindouros. A essenciação do seer abre um determinado tempo, mas sempre
a partir de uma clareira passada, da abertura epocal que a precede. Por isso a tradição é deci-
siva na compreensão da epocalidade do seer.
O seer é histórico porque se dá como acontecimento epocal. Porém o seer não se dá a
si mesmo, mas se dá doando o ente que descerra na totalidade que configura um mundo histó-
rico. A si mesmo, o seer se retém. A esse tipo de doação com que o seer doa o ente que é e
pode ser, ao mesmo tempo que retém o próprio ser doador, Heidegger chama de “destinar”:
“um dar que somente dá seu dom e a si mesmo, entretanto, nisto mesmo, se retém e sub-
trai”294. Nesse contexto, o elemento histórico da história do ser é o caráter de destinação de
que o acontecimento apropriativo do seer se reveste, ao doar um destino e, simultaneamente,
retirar-se desse dom. A epocalidade do seer diz respeito, precisamente, a esse tipo de destina-
ção, de doação do seer, pela qual o seer doa ente, alijando-se do ente doado para que este ente
possa ser. Mas o ente jamais exaure o seer de que provém. O seer não é o ser do ente, como a
metafísica habituou-se a pensar. É a epocalidade evasiva e fugidia que singulariza o aconte-
cimento apropriativo do seer, isto é, um acontecimento apropriativo desapropriante, que faz
com que a metafísica tome o ser por entidade do ente. A metafísica não pensa o Ereignis, por
isso é sempre um pensamento tardio e derivado, por isso ofusca a diferença ontológica. No

293
Cf. CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e Heidegger.
tese de doutoramento. Orientador: Marco Anônio Casanova. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2012. p. 638.
294
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS.Trad. Ernildo Stein.
São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 261. (Coleções os pensadores).
107

seguinte trecho de ‘Tempo e ser’, Heidegger esclarece o sentido da temporalidade epocal do


seer:
História do ser significa destino do ser – e nessas destinações tanto o destinar como o Se que
destina se retêm com a manifestação de si mesmos. Reter-se significa em grego epoché. Por
isso se fala de época do destino do ser. Época não significa aqui um lapso de tempo no acon-
tecer, mas o traço fundamental do destinar, a constante retenção de si mesmo em favor da
possibilidade de perceber o dom, isto é, o ser em vista da fundamentação do ente. 295

A destinação apropriativa do seer responde pelas épocas sucessivas de sua história. A


partir da origem, o destino anuncia e antecipa o futuro epocal, o comum-pertencer das épocas.
Nada obstante, essas épocas se encobrem ao se sucederem umas às outras, de modo que a
destinação inicial de ser como presença se encobriu de modo consolidado na história da meta-
física. E é essa história que o projeto heideggeriano visa a destruir,para alcançar o aconteci-
mento apropriativo originário que a fundamenta, a diferença ontológica que, nela, permanece
impensada e obscurecida. Somente saltando fora da metafísica se pode saltar na sua essência.
Salto aqui significa a busca de um modelo não-metafísico para compreender a metafísica, já
que ela mesma não acede ao autoconhecimento de si própria, pois tem um caráter derivado e
não mergulha da essência epocal que a originou.
O passo de volta ao primeiro início reconhece que, nele, já se decidiu a configuração
ontológico-temporal do ser como presença. O caráter destinamental de decisão, aqui, diz res-
peito ao fato de que o seer já se enviou epocalmente no primeiro início. Desde a aurora do
pensamento grego, que ganha revelo em Platão, o ser é desvelado como pensável e dizível,
como logos, e isso o temporaliza como presença constante. Heidegger afirma que, desde o
primeiro início até hoje, ser significa presentar; da presença se infere o presente como moda-
lidade privilegiada do tempo ontológico. Ora, essa afirmação preliminar conduz Heidegger à
reflexão sobre a consequência filosófica profunda dessa determinação do ser-presença pelo
tempo, a coisa do pensamento de que resulta a meditação da conferência estudada, ‘Tempo e
ser’. Ser como presença significa que ser é pre-sentar, pre-sentificar, ou seja, o ser conduz ao
desvelado, franqueia a aparição de um fenômeno. Diz Heidegger: “Pre-sentificar significa:
desvelar, levar ao aberto. No desvelar está em jogo um dar...”296 Como presentificação do
ente, como aquilo que traz o ente ao espaço de mostração do mundo histórico, o seer é dom

295
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os pensa-
dores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 261.
296
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os pensa-
dores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 261.p. 259.
108

do ente, doa-o destinando-o epocalmente297. Isso é a essenciação epocal do ser que desvela o
ente na totalidade de um mundo histórico. Em poucas palavras, a clareia histórico-temporal do
seer.
É essa clareira que a metafísica obscurece, ao reduzir o ser ao fundamento entiativo e
abrangente do ente. O ser não é apenas o fundamento, a fundação do ente, como a metafísica
o considera. Para pensá-lo propriamente, deve-se abandonar essa representação metafísica do
ser como fundamento do ente, em proveito “do dar que joga velado no desvelar, isto é, em
favor do dá-Se”298. Isso significa repensá-lo exatamente a partir de sua dimensão epocal de
doação do ente; epocal porque, nessa doação do ente, o ser se retrai a si mesmo, velando-se
enquanto desvela o ente na totalidade que conforma o mundo histórico, no qual o ente é e
pode vir a ser. O ser descerra ao ente possibilidades de ser. O seer presentifica o ente, torna-o
presente. Ao fazer isso, o seer recolhe-se na abissalidade da sua diferença. Diz Heidegger:
“Ser não é. Ser dá-Se como descocultar no pre-s-entear”299.
Proposta pelo tradutor Ernildo Stein, essa divisão da palava “pre-s-entear” evidencia o
particípio “ente-sendo” (ser) constante na palavra “presentar”, que articula a noção de doação
e de presentificação. O seer doa a presença do ente, permite que ele seja no presente, que
permanece no tempo atual. O seer não é, pois não se reduz ao ente que é no tempo presente,
no agora de um momento. Essa é a decisão grega, proveniente do envio epocal do ser que
caracteriza o primeiro início do pensamento, para fora do qual Heidegger pretende saltar.
Imperceptível do interior da tradição metafísica, essa noção primordial do ser como
pre-sentar da presença do ente é a fonte das múltiplas derivações que a registram adensando o
seu caráter impensado. No âmbito da tradição metafísica, “o ser é uniformemente determina-
do como pre-s-entar e presenti-ficar, isto é, desvelamento"300. O ser presentifica o ente dando-
lhe o ser que o torna o que é. O ente é sendo, estando presente, permanecendo, demorando-se.
Presença, o ente é no tempo presente, na permanência do momento atual.
Como já ressaltado anteriormente, as transformações no interior da história da metafí-
sica não alteram essa posição fundamental em que ela se assenta. A idea platônica é uma entre
as varias versões da metafísica que oculta o caráter presentificante do ser que se dá doando o

297
Cf. MARION, Jean-Luc. ‘La ‘fin de la métaphysique’ comme possibilitè’, p.22 e ss. In: CARON, M. (org.).
Heidegger. Paris: Cerf, 2006. pp. 11-38.
298
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os pensa-
dores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 260.
299
Ibidem.
300
Ibid., p. 263.
109

ente à presença. Palavras fundamentais como hén, logos, idea, ousia, energia, actualitas, per-
ceptivo, mônada, posição, conceito absoluto, vontade de poder são variações de um mesmo
tema, escalas cromáticas de uma mesma pauta metafísica. Segundo uma passagem significati-
va de ‘Tempo e ser’, todas essas palavras são:
palavras do ser, que respondem a um apelo, que fala no destinar que a si mesmo oculta, que
fala no ‘Se dá ser’”. Cada vez retido na destinação que se subtrai, o ser se libera da retração
para o pensamento com sua multiplicidade epocal de transformações. O pensamento perma-
nece ligado à tradição das épocas do destino-do-ser, lá mesmo e justamente lá onde se apro-
funda no fato de como e a partir de onde o próprio ser recebe cada vez suas próprias determi-
nações, a saber, a partir do: Se dá ser. O dar mostrou-se como um destinar.301

O destinar do ser, o envio ontológico que configura uma época histórica, é a voz do
ser, um apelo, e uma invocação. Como já reforçado ao longo deste capítulo, no âmbito do
pensamento heideggeriano, não há autor, doutrina ou escola filosófica, mas destinação epocal
do ser que se configura historicamente em palavras fundamentais, que se unem pela pertença
à coisa mesma do pensamento, pela qual podem ser confrontadas numa meditação histórica.
As palavras fundamentais, proferidas por pensadores essenciais como Platão, são uma respos-
ta que ressoa a fala do próprio ser que abre o ente na totalidade, fazendo-o ser. O ente é por
causa do envio do ser.Este envio é epocal porque suspende o próprio ser no ato de doar-se ao
ente. Doador, o ser, ele mesmo, retém-se nessa doação. O ente é donatário do ser: o ser dá ao
ente a possibilidade de ser. Entretanto, ainda que recôndito, o ser se libera para o pensamento
em forma das palavras fundamentais que o ressoam, que ecoam a sua voz. Ignoto, o ser se
confunde com as formas universais de ente, e essa entificação do ser encontra sua representa-
ção metafísica inicial de forma mais acabada com a comunidade (koinonia) das ideias, sendo
estas, por sua vez, reuniões dialéticas dos entes sensíveis, unidades inteligíveis que abarcam
multiplicidades reunidas. O pensamento filosófico recorre incessantemente à tradição formada
pela sucessão das épocas do destino-do-ser, para que possa identificar, nelas, o acontecimento
apropriativo de doação e retração que as caracteriza, a saber, a diferença ontológica a partir da
qual elas podem ser efetivamente pensadas, isto é, na radicalidade da sua historicidade epocal.
Em síntese do argumento, Heidegger afirma: “O dar no ‘dá-Se ser’ revelou-se como
destinar e como destino de presença, em suas transformações epocais” 302. Cabe aqui reforçar
os elementos centrais contidos nessa passagem que condensa o assunto analisado: primeiro, o
ser não é, ele se dá; essa doação é uma destinação que presentifica o ente, tornando-se presen-
ça e permanência estável; ao enviar-se, o ser se retrai ao desvelar o ente na totalidade, eviden-

301
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. CONFERÊNCIAS E ESCRITOS FILOSÓFICOS. Coleção Os pensa-
dores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 262.
302
Ibidem.
110

ciando-o enquanto se oculta; a esse ocultamento Heidegger denomina época, porque é a sus-
pensão retraída do seer que se subtrai na doação do ente; os envios destinamentais do seer
sucedem-se em cadeia, a partir das clareiras passadas dos acontecimentos apropriativos; pela
implicação recíproca de ser e tempo, ao dar-se, o ser abre também um tempo, que se dá pela
clareira do ser. O tempo do seer é a clareira em que se mostra tudo o que é e pode ser de uma
época histórica, isto é, de um envio que destina um mundo histórico, o espaço de mostração
do todo ente que é ou venha a ser.
Nessa mesma linha de raciocínio, em outro texto determinante, ‘O dito de Anaximan-
dro’, a noção de época é articulada com a história do ser e suas palavras fundamentais, assim
como o não dito que sempre as caracteriza. A époche do ser é o seu “manter-se em si próprio
que faz clarear”303. Afastando-se do método de suspensão fenomenológico husserliano, Hei-
degger pensa essa époche em consonância com o esquecimento do ser que caracteriza a meta-
física. A época configura a história do ser, o envio apropriativo que acontece e estabelece um
mundo no qual o ente se descerra, se torna aquilo que é. Heidegger afirma: “Da Época do ser,
vem a essência epocal do seu destino, no qual a autêntica história do mundo é. De cada vez
que o ser se detém no seu destino, acontece [ereignet sich], súbita e inesperadamente, mun-
do.”304
O acontecimento de mundo é o envio do ser que confere temporalidade ao mundo. O
ser, porém, retrai-se nessa doação, essa retração é a sua suspensão epocal. A essência epocal
do ser advém da sua temporalidade, do fato de ele se esconder quando opera essa doação tem-
poral de mundo. Nisso, há dois elementos decisivos: primeiro, a impossibilidade de fixação
definitiva de um mundo histórico absoluto, já que a epocalidade do ser torna todo mundo
temporal, temporário, provisório. Isso não quer dizer, porém, que os mundos históricos sejam
instáveis e totalmente fugazes. Ao contrário, o envio do ser é um destino de que desponta a
configuração presentificante do ente na totalidade, ou seja, há uma permanência e uma estabi-
lidade em cada projeto histórico de mundo.
A epoché do ser é a clareira (Lichtung) que responde à temporalidade de todo mundo
histórico, formado pelo descerramento do ente na totalidade. O horizonte temporal da época
do ser é chamado clareira porque é a luminosidade que permite a aparição dos fenômenos em
geral, o espaço de luz no qual o ente se manifesta, se dá. Como um clarão na floresta não su-
prime a escuridão que a rodeia, a clareira do ser não transcende o abismo que a sustenta, isto

303
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p.391.
304
Ibidem.
111

é, a retração do ser que a singulariza. O ser mantém-se a si mesmo e, com isso, clareia. O ser
goza de certa estabilidade histórica, ao essenciar uma clareira de mostração do ente, ao deter-
minar um mundo. Mas esse mundo estável nunca pode se absolutizar porque o ato que o fun-
dou é suspensivo, retrativo. Como diz Alexandre Cabral, “todo mundo é uma época, porque,
para que ele seja formado, é necessário que o seer, ao enviar-se, suspenda a sua essenciação,
ao retrair-se no abismo de sua diferença. Desta suspensão advém a unidade e a unicidade do
mundo histórico em sua respectiva estabilidade.”305
Ao estudar autores da tradição, como Platão, Heidegger busca a unidade do mundo
epocal que os sustenta. Essa unidade diz respeito à medida simples estabelecida pelo aconte-
cimento apropriativo de doação epocal do ente na totalidade. Heidegger questiona sempre a
época do ser que as palavras fundamentais de um pensador reverberam. Além disso, importa
saber qual é o papel desempenhado por essa época no interior da história da metafísica, que é
a variação de acontecimentos apropriativos desapropriados de si, uma vez que toda destinação
é uma retração do ser. O modo de se meditar sobre essa medida simples do seer é mediante as
palavras fundamentais do pensador que transparecem a unidade do mundo epocal.
A seleção e a reconstrução dos conceitos fundamentais de um pensador soa arbitrária
para quem não as integre na “lógica” do acontecimento apropriativo, que embasa toda experi-
ência filosófica de escuta ao apelo do seer. Renovação do projeto de destruição da história da
ontologia, esse procedimento interpretativo, chamado confrontação ou meditação histórica,
abre novas possibilidades para o pensamento na medida em que relaciona os pensadores à
formação de mundo que eles testemunham, mas da qual não são “autores”. Ao atender ao ape-
lo do seer, o pensador poetiza a linguagem do ser, verbalizando a própria coisa do pensamen-
to, que deve ser “traduzida” para as palavras fundamentais, que registram a essenciação epo-
cal do seer. As palavras fundamentais sempre carregam em si uma dimensão de não-dito por-
que o seer nunca se revela totalmente nelas, no acontecimento apropriativo que as originou e
da qual fazem parte. No fundo, as palavras registram a evasão do seer, o seu recolhimento
retrativo no ente desocultado na totalidade. A essa evasão Heidegger chama época.
É por essa razão que Heidegger afirma que, ao se traduzir uma palavra fundamental, a
atenção meditante se volta não à letra, mas à coisa do pensamento que a anima. A tradução é
da coisa do pensamento, não da palavra que a registra. Diz Heidegger: “Uma tradução só é
fiel às palavras quando as suas palavras forem palavras que falem a linguagem [Sache] das

305
CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e Heidegger.
tese de doutoramento. Orientador: Marco Anônio Casanova. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2012. p. 643.
112

próprias coisas. [...] é a própria coisa que, na tradução de uma língua [Sprache] para outra,
deve ser traduzida.”306
Isso precisa ser bem entendido para a compreensão do projeto hermenêutico que ani-
ma as traduções heideggerianas de Platão, como a tradução da alegoria da caverna, traduzida,
interpretada e “destruída” num texto como ‘A doutrina platônica da verdade’, estudado nos
próximos capítulos. O que está em jogo, aqui, é o “diálogo do pensar” com aquilo que, nele, é
efetivamente dito. “O pensar do ser é um modo originário de poetar”307, assinala Heidegger.
Esse poetizar é uma tradição pensante da verdade do ser contida nas palavras fundamentais, é
uma escuta da verdade do ser. Ou seja, o tradutor ouve antes o ser do que o texto que o retrata.
Desse modo, a tradução heideggeriana nunca é científica, filologicamente comprovável. A
tradução genuína é obra do ser, é sempre um “encontro histórico das linguagens históricas”:
um acontecimento apropriativo silencioso, no qual se percebe o destino epocal do ser. Essa
tradução só se abre ao pensar meditativo, que é “o poetar da verdade do ser no diálogo histó-
rico dos pensadores”308. É isso que Heidegger almeja ao confrontar-se com Platão, cujas pala-
vras essenciantes do ser nada dizem às análises historiográficas e filológicas. Para tanto, é
preciso despir os hábitos da representação metafísica dominante para escutar a palavra não-
dita do ser que sempre emerge do dizer essencial.
A recuperação das palavras fundamentais na língua original em que foram escritas se
deve exatamente pelo fato de seu sentido ter sido pulverizado, embotado e ofuscado pela tra-
dição metafísica, a qual se deve destruir a fim de escavar o solo originário do acontecimento
apropriativo que embasa todas as filosofias. Quando se recebe as palavras filosóficas funda-
mentais sem a atenção hermenêutica ao ser que nelas fala, elas renovam a compreensibilidade
corrente e vigente na língua traduzida, tendo seu sentido originário totalmente esvaziado 309.
Partindo desse problema hermenêutico da tradução, Heidegger efetua o diálogo poético com
as palavras fundamentais – contidas, por exemplo, no dito de Anaximandro e na alegoria da
caverna de Platão – sempre à escuta do apelo do seer, não à escuta dos textosdeles, em si

306
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 372-373. Trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 371-440.
307
Ibid., p. 380.
308
Ibid., p. 439.
309
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, p. 387. trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 371-440.
113

mesmos considerados. O que desponta aqui é a importância do não-dito ínsito a todo dito es-
sencial.
Desse modo fica claro que a atividade filológica e historiográfica de Heidegger é su-
bordinada ao interesse meditativo norteador de seu projeto hermenêutico: escutar o ser, e não
somente o expressamente dito nos textos, considerando a suposta literalidade das obras. Os
autores lhe interessam apenas na medida em que ressoam o ser, que é verbalizado e manifes-
tado nas palavras fundamentais. Quer dizer, o seu interesse é manifestamente escutar a voz do
ser, e não organizar tendências, escolas e influências intelectuais entre os pensadores. Como
explanado no item anterior, a historiografia e a filosofia da história são incapaz de remeter os
pensadores à sua verdadeira fonte, o acontecimento que lhes descerra o mundo. Segundo Hei-
degger: “Andar a procura de dependências e influências entre os pensadores é um mal-
entendido do pensar. Cada pensador é dependente, é, nomeadamente, dependente da resso-
nância [Zuspruch] do ser.”310
Isso porque “a riqueza essencial do ser” reside nas “palavras arcaicas fundamentais”
(in der frühen Grundworten geborgene Wesensreichtum des Seins); é o “pronunciamento
[Anspruch] do ser que fala nestas palavras, que determina a filosofia na sua essência” 311, e não
a suposta criatividade dos filósofos, considerados como autores cuja inspiração lhes permitiu
conceber uma doutrina filosófica de explicação de um mundo. Ao contrário, os filósofos são a
voz das palavras essenciais do seer, que se destina epocalmente na história de sua verdade
(aletheia), que é autovelamento do próprio seer e descobrimento do ente. Essa riqueza essen-
cial encontra-se, porém, “soterrada” pela sedimentação metafísica com que a tradição platôni-
ca a encobriu. Por esse motivo, a escuta genuína da essenciação verbal do ser pressupõe a
destruição dessa camada entificante, objetivante do ser, que o neutraliza como entidade má-
xima do ente, como ente mais geral, vazio e abstrato.
Se a essência da história é desconsiderada, ignorada, ou esquecida, de que servem as
historiografias e as filosofias da história? Sem a verdade do seer verbalizada, que é a sua es-
senciação epocal, qual é a valia de se enumearem as fases e períodos do pensamento filosófi-
co? Sem a coisa mesma, não há confrontação, meditação histórica. Por essa razão, indaga-se
Heidegger:
Para que nos servem todas as filosofias da história, apenas historiograficamente calculadas,
se, com a sinopse dos materiais historiograficamente aduzidos, elas não mais do que cegar, se

310
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, p. 436. trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 371-440.
311
Ibid., p. 411.
114

elas esclarecem a história sem nunca pensarem nos fundamentos das suas razões explicativas
a partir da essência da história e esta a partir do ser ele próprio?312

Pelo caráter temporal, epocal e fugidio do ser, que se subtrai “na medida em que se
desencobre no ente”, toda época da história do mundo é uma “Época de Errância” 313. Isso se
dá pelo acontecimento apropriativo que caracteriza toda abertura histórica de mundo. A errân-
cia é a essência da história, pois o que é histórico não se reduz ao ser do ente. O ser clareia o
ente de modo errante. O ente, então, acontece a partir da errância (Irre), pela qual passa ao
largo do ser que o funda. Esse espaço errante é o “espaço do estar-a-ser história”314. É a errân-
cia que confere caráter de destino à história. O destino é o envio epocal do ser que se doa ao
ente e, simultaneamente, se recolhe na abissalidade da sua diferença. Atenta à fuga do ser, a
meditação histórica é capaz de perceber a errância, mas a historiografia não, pois esta perma-
nece arraigada nas distâncias cronológicas e nas séries causais. Ser historicamente significa
estar em errância em relação ao que é grego, o que não significa proximidade ou distancia-
mento do ponto de vista historiográfico 315. Por se subtrair ao se desencobrir no ente, o ser
revela-se sob o ambíguo signo da aletheia, em que “traz o não-estar-encoberto do ente”, fun-
dando o “estar-encoberto do ser”. Esse encobrimento é um “recusar-se que se mantém a si
próprio”316. Só a partir dessa époche do ser, a história é pensada em sua essência temporal, de
errância, de velamento, de esconderijo do ser.
Como analisado no item 1.4., o texto ‘A essência da verdade’ marca a viragem heide-
ggeriana, o salto no interior da essenciaçãodo acontecimento apropriativo. Ele traz, pela pri-
meira vez de modo explícito, a noção de históriado seer a partir da verdade da essência, en-
tendida em sentido verbal do acontecimento processual de essenciação do seer, como diferen-
ça que vige entre ser e ente. A errância é conceituada com o recurso à ambiguidade da noção
grega de aletheia, desvelamento do ente e velamento do ser, e articulada com a liberdade ex-
tática do ser-aí. Diz Heidegger neste texto decisivo: “É nesta simultaneidade do desvelamento
e do encobrimento que impera a errância. O encobrimento do que está velado e a errância

312
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, p. 377. Trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 371-440.
313
Ibid., pp. 390-391.
314
Ibid., p. 390.
315
Cf. ibidem.
316
Ibidem.
115

pertencem à essência inicial da verdade.” 317 A errância constitui a história do ser, não sendo
algo de adventício ou provisório. A história é sempre errante porque nunca exaure o aconte-
cimento apropriativo do ser de que provém. Ela erra porque o ser, ao doar-se na abertura do
ente desvelado, sempre se oculta, se esquiva no “império [o domínio] da história”318. O seer é
o “velar iluminador”, é uma retração que se encobre ao desvelar o ente na totalidade. O seer é
a clareira denominada aletheia. Indissociável da essência da verdade do ser é a temporalidade
que lhe é própria, a sua epocalidade histórica, que confere o caráter de destino errante ao en-
vio do seer.
A essência do tempo – repete-o Heidegger reiteradamente ao longo de sua obra – não
é nada de ente, não é o “vazio da aparência do tempo retirada do ente, sendo este visado de
um modo objetivante”, como afirma em ‘O dito de Anaximandro’319. O tempo histórico é o
tempo da retirada do ser, em que o ente se desvela, ao passo que o ser se esconde. É por isso
que Heidegger se ressente da ausência de interpretação apropriada da história da filosofia,
pelo esquecimento do acontecimento apropriativo que a caracteriza. E esse acontecimento tem
o seu primeiro início decisivo na aurora grega da filosofia. Com os gregos, começa a Época
do ser; essa época só pode ser compreendida se pensada epocalmente, isto é, se reconhecida
como suspensão e retraimento do ser, que configura todo o destino da metafísica ocidental
como esquecimento do ser. O ser é esquecido porque ele mesmo se retraiu ao enviar o ente na
totalidade, quando do primeiro início. Essência da errância, esse retraimento ocasionou o es-
quecimento do ser por parte da tradição metafísica. Niilista, a metafísica tona-se, então, o des-
tino do próprio ser, que se envia no ente como ausência. A metafísica é niilista porque ignora
a essência epocal do ser e o abandona ao substitui-lo pela entidade do ente. Esse abandono
começa com o esquecimento do ser suscitado pela cristalização do ser como idea na obra de
Platão.
No texto aqui estudado, ‘O dito de Anaximandro’, Heidegger expressa de modo claro
o projeto que o anima ao confrontar-se com a história da filosofia ocidental. Com sua filoso-
fia, Platão consolida o esquecimento da diferença entre ser e ente que singulariza o “aconte-
cimento da metafísica”, que desponta no primeiro início da filosofia. Com efeito, “a história

317
HEIDEGGER, Martin. ‘A essência da verdade’, p. 210. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis: Vozes, 2008. p.189-214.
318
Ibid., p. 209.
319
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.p. 391.
116

do ser começa com o esquecimento do ser, começa com o ser a reter em si mesmo o seu estar-
a-ser, a diferença em relação ao ente.”320
Mas se o esquecimento da diferença é o próprio destino do ser no primeiro início da
sua história, como se pode contorná-la? Como se lembrar da essência do ser se ele se envia
retraído na tradição metafísica? Em outras palavras, como lembrar-se do ser se ele mesmo se
doa desapropriado no ente, se ele se esconde em sua diferença abissal? A resposta a esse intri-
gante questionamento repercute o núcleo do pensamento heideggeriano. De fato, a resposta só
é possível com a compreensão da viragem, do pensamento do ser como Ereignis, como ale-
theia, isto é, pela ambiguidade do velamento e desvelamento, presente nas palavras funda-
mentais.
O decisivo na meditação histórica é a capacidade de se experimentar o esquecimento
da diferença na sua radicalidade e vislumbrar a possibilidade de superá-lo. Isso significa pene-
trar na essência alienada da metafísica, na essência do acontecimento que a gerou e a privou
de transparência, porque a mergulhou numa dimensão de opacidade em relação ao seu fun-
damento. É por isso que a metafísica impede a ontologia genuína, é por isso que é necessário
destruir a história metafísica da ontologia, a fim de repetir a questão do ser, questionando-o a
partir dele mesmo, e não a partir do ente com o qual ele se deixa confundir. É necessário, en-
tão, a conquista da experiência do esquecimento como esquecimento, em direção a um pen-
samento rememorante mais originário. Só se sabe que se esqueceu de algo depois de ter-se
lembrado da sua existência. O esquecimento pode permanecer, ele mesmo, esquecido. E é isso
que a tradição metafísica preserva: o esquecimento do esquecimento, porque ela opera, na
verdade, com um substitutivo ao ser, o seu vulto no ente.
Heidegger tenta resistir ao caráter absorvente e hegemônico da tradição metafísica pela
escuta da voz do ser que ecoa nas palavras fundamentais, as quais preservam um “vestígio”
que registra a diferença entre ser e ente. É só mediante esse vestígio que o esquecimento do
ser pode ser, primeiramente, reconhecido e, posteriormente, superado. Ao se reconhecer o
caráter tardio e derivado da metafísica, o pensamento do ser pode saltar para além dela. Essa
diferença ontológica se clareou (sich gelichtet hat) na palavra inicial do ser (o to kreon, de
Anaximandro), em cuja sequência se desdobra as palavras posteriores da história do ser 321.
Sem a sólida compreensão do que seja a história do seer, tratada neste capítulo, todo o esforço
subsequente desta tese redunda ocioso, a compreensão das palavras platônicas idea e aletheia.

320
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440. trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 430.
321
Ibid., p. 391.
117

O vestígio do seer nas palavras originárias se dá como o não-pensado, o não-dito que


convoca e invoca o pensamento do seer. Como reforçado neste capítulo, é o próprio ser que se
pensa a si mesmo na meditação histórica, é ele que se confronta consigo, com a coisa mesma
do pensamento que ele mesmo é. Só assim se pode “experimentar historicamente o não-
pensado do esquecimento do ser”, “como aquilo que há de pensar, o “destino do ser” 322. Para
isso, é necessário um salto no fundamento impensado do ser, que configura o inaudito do ou-
tro início do pensamento, sendo esta a temática do próximo item.

1.7 Salto ao outro início

Para desenvolver a argumentação que motiva este capítulo, deve-se agora compreen-
der da noção de salto ao outro início, salto que se distancia e supera a metafísica. No próximo
item, que encerra o capítulo, discutem-se as noções de Andeken e Vordenken, completando a
reflexão sober o modo de Heidegger se confrontar com Platão.
Se o primeiro início do pensamento é marcado pela metafísica, que pergunta pelo ser
do ente, o outro início volta-se à verdade do próprio seer, considerado nele mesmo e indepen-
dente do ente que o subjuga na tradição platônica. É o salto que perfaz a meditação histórica,
rompendo com a entificação metafísica do ser, que o torna uma representação subjetiva, eidé-
tica. O salto considera o ser na radicalidade do acontecimento apropriativo (Ereignis). O pas-
so do primeiro ao outro início é chamado por Heidegger de trânsito e ocupa a segunda fuga
das Contribuições, seção denominada Zuspiel, o Interlúdio, ou Lance.
Como se tem visto ao longo dos itens anteriores, Heidegger considera ingênuo uma
negação pura e simples da metafísica, rechaçando-a de fora, como se fosse possível a sua
simples desconsideração como um “erro” intelectual de pensadores incapazes ou desatentos.
Isso configura um absurdo no âmbito do pensamento histórico-ontológico desenvolvido por
Heidegger, que reconhece a errância essencial de toda época da história destinamental do seer.
Só se pode conquistar o outro início mediante um salto, que parte do primeiro início e o supe-
ra a partir do trânsito. Esse trânsito é uma reiteração (Wiederholung) do primeiro início, e
nisso reside a importância capital da obra de Platão, que é a culminância inicial desse início
decisivo na história do seer enquanto metafísica. Para a compreensão dessa complexa medita-
ção histórica, deve-se acompanhar, ainda que de forma sucinta, o projeto que anima as Con-
tribuições e o núcleo das três primeiras fugas da segunda obra-prima heideggeriana (depois de

322
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 391.
118

Ser e tempo): 1. a ressonância do primeiro início, 2. o interlúdio do trânsito ao outro início e


3. o salto em que esse trânsito se efetua.
Com efeito, as contribuições à filosofia dessa obra póstuma de título se dão como uma
filosofia do trânsito (Übergang), uma filosofia que se ancora na transitividade ao outro início,
na abertura do espaço de jogo temporal (Zeit-Spiel-Raum) que franqueia a passagem do modo
metafísico de pensar o ser – a partir do ente – e o outro início não-metafísico, à escuta da des-
tinação epocal do seer, no acontecimento apropriativo. Esse espaço de jogo é o espaço do
trânsito, a ser atravessado pelo salto ao outro início, pela conquista de um novo horizonte in-
terrogativo, apartado do primeiro início. Heidegger afirma que a era dos sistemas passou 323,
pois é a sistematicidade que caracteriza a metafísica; o pensamento em transição das Contri-
buições não visa a refundar um novo sistema filosófico, uma nova construção metafísica acer-
ca da entidade do ente, mas almeja a preparação à emergência da verdade do seer.
“O pensamento transitório produz o projeto fundante da verdade do seer como medita-
ção histórica”324, afirma Heidegger no sugestivo primeiro parágrafo da obra, denominado ‘As
‘contribuições’ questionam ao longo de um caminho...’ As contribuições abrem um caminho,
um espaço de questionamento que prepare o futuro do outro início, demonstrando a insufici-
ência do primeiro início e denunciando o seu fim iminente, seu incoercível exaurimento. O
“espaço de jogo temporal” é exatamente o lugar da abertura à verdade do seer, onde a história
se torna o lugar das decisões epocais, pensadas a partir do acontecimento apropriativo que
configura a fisionomia ontológica das filosofias. O pensamento histórico é transitivo porque
interroga o impensado do primeiro início – “o primeiro sido do ser”, como ser do ente – com
vistas ao “extremo futuro da verdade do seer”325, conquistando, assim, a até agora impensada
essência do seer como aletheia, como clareira.
Trata-se de preparar o caminho, de instaurar “o espaço de jogo temporal” correspon-
dente à “disposição histórica para a verdade do seer”, como acolhida ao “seer mesmo como
acontecimento apropriador” que destina toda a história 326. Ou seja, o pensamento histórico do
seer delineado nas Contribuições é um pensamento transitivo, preparatório e antecipatório do
outro início. Essa preparação é a instauração do espaço de jogo temporal, em que o tempo seja

323
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.22 (§1, ‘As ‘contribuições’ questionam ao longo de um caminho...’).
324
Ibid., p.23.
325
Ibidem.
326
Ibid., p.200 (§125, ‘Seer e tempo’).
119

experimentável como lugar extático da verdade do seer. O salto é a trans-posição – o transpor-


te no sentido de ex-tâse temporal – à região clareada, na qual o seer “se reúne em sua essên-
cia”327 de clareira, de abertura iluminada para a mostração dos entes. Em poucas palavras, o
seer como alehteia só é entrevisto no salto ao outro início, pois a essência do seer jamais pode
ser “calculada”, analisada ou racionalizada como “algo presente à mão” 328, como uma entida-
de metafísica extraída abstrativamente do ente com vistas à compreensão do próprio ente. O
salto convida à preparação, ao aguardo da essenciação do seer que advém como um “gol-
pe”329. O salto localiza o pensamento histórico no interior da transitividade do espaço de jogo
temporal, em que a verdade do seer se essencia historicamente, epocalmente. Como explica
Casanova, esse espaço não é apenas um horizonte de ação, de espera ao outro início, porém,
mais radicalmente, “uma possibilidade de emersão”330, isto é, de emergência do outro início
pela essenciação da verdade do seer no interior do acontecimento apropriativo.
É essa passagem que franqueia um pensamento vindouro, iminente, uma disposição de
pressentimento para uma consumação que só ocorrerá no futuro, o qual se pode apenas prepa-
rar e aguardar. A lembrança da verdade do ser como acontecimento apropriativo acena para
outro lance, outro passe (Zuspiel)da Filosofia, que a joga adiante do que sempre deveria ter
sido pensado, mas que foi obnubilado pela tradição metafísica do primeiro início.
É por essa razão que a primeira fuga das Contribuições denomina-se “ressonância”, a
qual tematiza exatamente o esquecimento (Vergessenheit)do ser em favor do ente, a partir do
abandono (Verlassenheit) do ser na história da metafísica. A ressonância contempla o apogeu
do abandono do ser na técnica moderna, que o considera exclusivamente como ente e o domi-
na pela manipulação matematizante do cálculo e da quantificação, culminando na “maquina-
ção” (Machenschaft) total do ser entificado. O gesto heideggeriano fundamental é articular
essa maquinação moderna à metafísica desde seu início platônico. Consolidando a hegemonia
da ciência e da técnica, a modernidade apenas desenvolveu a potencialidade ínsita ao primeiro
início da filosofia, pensada na sua dimensão metafísica de poiesis e techné. Essas dimensões
metafísicas foram absorvidas pela noção moderna de subjetividade, que ganha primazia em

327
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2.ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p.200 (§125, ‘Seer e tempo’).
328
Ibidem.
329
Ibidem.
330
CASANOVA, Marco Antônio. ‘‘Pensiero in transizione’: Heidegger e l’altro inizio’ della filosofia’, p.45. In:
Giornale di Metafisica, Nuova Serie, XXXI (2009), pp.43-70.
120

relação aos entes representados. O ser é reduzido à entidade representada por um sujeito vi-
vencial. “Vivência” (Erlebnis) torna-se um conceito central nesse processo de essenciaçãoen-
tificada do ser. A entificação do ser é promovida e superdimensionada, portanto, pela subjeti-
vidade moderna, que radicaliza a metafísica produtivista já presente desde o primeiro início.
Heidegger assinala que ambas as noções – maquinação e vivência – nomeiam a história da
verdade e da entidade como história do primeiro início.331
Esse abandono do ser é essencialmente niilista, porque o nega em prol da dominação
maquinal do ente quantificado e calculado. O ser é restringido à disponibilidade do ente. O
que caracteriza esse abandono é ausência total de limites na apropriação técnica da realidade.
A essa característica do niilismo metafísico, Heidegger denomina gigantesco (das Riesenhaf-
te), que reduz todo ente à representação subjetiva e vivencial e à quantificação matemática
para o cálculo manipulador, o que, na sua obra tardia, Heidegger denominará o arrazoamento
(Ge-stell). Fundamentos do gigantesco, a maquinação e a vivência desconhecem qualquer
limitação, negam fronteiras de qualquer ordem. A perda de limites corresponde à demissão
niilista de critérios e fundamentos para o estabelecimento de valores e metas de vida, que po-
deriam guiar o sentido da existência, individual ou coletiva. O niilismo nietzschiano é, portan-
to, a vontade de nada, a negação radical da vida 332, e corresponde ao abandono do ser na era
da técnica.
Esse processo histórico de esquecimento do ser, que encontra sua culminância no nii-
lismo técnico, não obstrui por completo o acesso ao ser. O fato de ter sido abandonado ao
ente, não torna o ser inacessível, ocultado definitivamente. A finalidade, então, da primeira
fuga das Contribuições é provocar a ressonância do ser, ressoá-lo para provocar a lembrança
da sua presença remota, principalmente entender como ele começa a evadir-se no primeiro
início.
O esquecimento do ser provém do abandono do próprio ser. Não é o homem que o
abandona – ele não poderia fazê-lo por suas próprias forças. Mas é o ser que se evade, que
abandona o homem ao desvelar o ente como totalidade manipulável, aberta à representação
vivencial subjetiva. A ressonância é muito importante na economia das Contribuições porque
visa ao reconhecimento do abandono do ser, para que se possa reconquistá-lo, primeiramente
pela lembrança dessa fuga, em seguida com o salto ao outro início, transitando a partir do
primeiro início. Ressoar o abandono do ser permite a escuta da presença distante do ser que se

331
Cf. HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires:
Biblos, 2011. p.118. (§68, ‘Maquinação e vivência’)
332
Cf. Ibid., p. 122 e ss. (§72, ‘O niilismo’).
121

afasta no horizonte do primeiro início da filosofia metafísica. Por isso, “com a ressonância se
faz, pela primeira vez, a experiência da necessidade do trânsito do esquecimento do ser à ver-
dade do seer, e se vislumbra com isso a viragem (Kehre) ao outo princípio.” 333
O salto ao outro início implica uma transição que em nada é linear, previsível ou cal-
culável. Há um grande risco nesse trânsito, pois o salto não é em direção a algo já conhecido,
antevisto ou antecipado. Isso exatamente porque, como analisado nos itens acima, a confron-
tação (Auseinandersetzung) com os gregos não é um retorno historiográfico – que enumera os
fatos em uma escala de sucessão objetiva e linear -, ou uma suposição filosófica de como eles
supostamente se interpretaram a si mesmo, mas é um confronto histórico, que concerne ao
acontecimento (Geschehen) do próprio seer. Dessa forma, o salto se insere, radicalmente, no
âmbito da história epocal do seer, estudada nos últimos itens. O salto para o outro início é o
afastamento do primeiro início da metafísica, mas não para um âmbito exterior a ela. Ao con-
trário, a transição do primeiro ao outro início – que compõe a segunda fuga das Contribuições
– é a transformação dos ser tratado como ente em vistas à verdade do ser. Esse trânsito exige
o retorno ao primeiro início para ultrapassá-lo, para distanciar-se dele, em uma forma de “re-
trocesso frente a ele”334. Ou seja, o salto para o outro início é um afastamento da metafísica
para o interior de uma dimensão mais originária, para a dimensão histórica que a originou,
precisando, para tanto, efetuar uma compreensão da essência epocal da metafísica. O outro
início precisa do primeiro, tanto quanto o primeiro só pode ser suficientemente conhecido à
luz da transição ao outro. Isso porque o outro início desponta na confrontação com a história
da metafísica enfocada como história do seer. Somente em vistas ao outro início é que o pri-
meiro início ganha contornos precisos de sua inicialidade.
Acolhendo a experiência da ressonância da verdade do ser no interior do seu abandono
metafísico, o interlúdio (Zuspiel) esboça a primeira ponte entre os dois inícios. Essa ponte é a
transição do ser como entidade para a verdade do seer como acontecimento apropriativo. Ora,
essa transformação demanda a confrontação dos dois princípios, o metafísico e o ontológico-
historial. Para que essa confrontação seja possível, é necessário que, de algum modo, o outro
início desponte no horizonte de pensabilidade da meditação. E é esse o papel do interlúdio,
antecipar o outro início, torná-lo possível pela disposição que o prepara, que o rememora co-
mo possibilidade latente do primeiro início. O retraimento da verdade do seer, que caracteriza
o primeiro início, não elide a lembrança dessa verdade na transição ao outro início, com o

333
MÁSMELA, Carlos. Martin Heidegger: El tiempo del Ser. Madrid: Trotta, 2000. p. 157.
334
Ibidem..
122

qual a diferença entre ambos se revela. Trata-se do inverso. O outro início salienta o primeiro
por intermédio da conquista do espaço transitivo que os une e distancia. O trânsito permite
exatamente o autoconhecimento de que é privado a metafísica, que sequer sabe que confunde
o ser com o ente, como argumentado no item 1.2.
Como afirma Heidegger, “o trânsito conduz a pergunta diretriz (o que é o ente?, per-
gunta pela entidade, ser) à pergunta fundamental: o que é a verdade do seer?”335. Por isso, “a
apropriação originária do primeiro início (quer dizer, apropriação da sua história) significa por
o pé no outro início.” 336 O primeiro início experimenta, então, a verdade do ente, sem questi-
onar-se sobre a verdade como tal, porque o que se desvela nesse primeiro início, a entidade do
ente, domina-o por completo. Nisso reside o caráter hegemônico da metafísica, que obstrui o
caminho do questionamento pelo ser pela circunscrição de todo o questionarnos limites do
ente. O outro início, por sua vez, experimenta a verdade do seer, perguntando-se pelo ser da
verdade; isso significa que o outro início questiona o essenciar-se do seer, o processo alethé-
tico de essenciação com que ele vem à tona como acontecimento apropriativo337.
De fato, a meditação histórica, entendida como a confrontação com o primeiro início,
pressupõe a transição ao outro início. Há aqui uma complexa relação de implicação, recipro-
cidade e alteridade. Os dois inícios são impensáveis separadamente. É só a partir do primeiro
início que se pode saltar ao outro início. Por outro lado, sem o trânsito ao outro início, o pri-
meiro não pode ser conhecido com a alteridade e o distanciamento que revela o fundamento
histórico que o destina. Em outras palavras, sem a pergunta fundamental – sobre a verdade
histórica do seer -, a pergunta diretriz não vem à tona em sua diferença e especificidade. Nes-
se sentido, afirma Heidegger: “Como transeuntes [aqueles que perfazem o trânsito], temos
que passar através de uma meditação essencial sobre a filosofia mesma, para que a filosofia
alcance o início desde o qual ela possa ser novamente ela mesma por inteiro, sem precisar de
qualquer ajuda.”338
Essa reciprocidade dos dois inícios interligados, o primeiro e o outro, é radicalizada na
terceira fuga, que trata propriamente do salto. A aproximação meditativa ao primeiro início
franqueia ao mesmo tempo o distanciamento em relação a ele, distanciamento esse que vem
pensado como desprendimento. À medida que se conhece o fundamento da pergunta diretriz,
335
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.147.
336
Ibidem.
337
Ibid., p.152.
338
Ibid., p.151.
123

conquista-se alteridade em relação a ele, sente-se liberado dele. Com isso, abre-se a possibili-
dade de se pensar o outro início. Nada obstante, no âmbito do pensamento do Ereignis, não se
trata simplesmente de pensar o outro início, mas de saltar no âmbito desconhecido que ele é.
Desconhecido refere-se ao caráter impensado que é o dele, pois ele foi apenas vislumbrado
como ausência em meio a uma confrontação histórica.
A metáfora do salto – o pular de um lugar a outro, conquistando, pelo ar, um novo so-
lo aos pés - indica que o trânsito não se dá de maneira linear, progressiva. O salto não é um
passo adiante, em que a abertura das pernas denota a transição compassada e coesa de um
lugar a outro. Ressaltando a indissocibilidade do salto e do acontecimento apropriativo, expli-
ca Casanova:
A metáfora do salto – se for possível realmente falar de metáfora – evidencia o caráter repen-
tino do acontecimento adveniente [avvenimento]. O ‘acontecimento apropriador’ assinala uma
dinâmica repentina, um movimento instantâneo de rearticulação da historicidade do ser-aí, pa-
ra dizê-lo com brevidade, um átimo de decisão veritativa. A essa decisão, então, não se pode
jamais aceder através de uma passagem lógico-causal e tampouco aproximar-se a ela segundo
um processo gradual.339

Como se vê, a subtaneidade do salto corresponde ao caráter adveniente do aconteci-


mento apropriativo do seer, que se precipita no “espaço de jogo temporal” (Zeit-Spiel-Raum)
aberto pelo pensamento transitivo das Contribuições. O pensamento que promove a transição
atinge, saltando, a prontidão ao apelo veritativo do seer, pois “o salto é o saltar para a disposi-
ção da pertença ao acontecimento apropriativo” (die Er-springung der Bereitschaft zur Zu-
gehörigkeit in das Ereignis)340. O salto é um ato abrupto que corresponde ao caráter advenien-
te e inesperado do acontecimento apropriativo do seer, o qual não pode ser simplesmente al-
cançado pelo pensamento como uma abstração dialética ou como uma demonstração lógica. O
acontecimento histórico do seer, que denota a irrupção e o simultâneo ausentar-se do seer, não
pode ser forçado ou provocado pelo pensamento. Ao contrário, o pensamento deve preparar-
se para acolhê-lo, mediante o salto que instaura a região aberta do “espaço de jogo temporal”
(Zeit-Spiel-Raum). Esse é o lugar do momento adveniente, que torna acessível e durável, no
ser-aí, a fissura abissal do seer que se manifesta ocultando-se. Instantâneo, imprevisível e ar-
riscado, o salto corresponde ao caráter sub-reptício do Ereignis, que não é um a priori, não
está em nenhum lugar prévio e não depende, em absoluto, de qualquer tipo de representação
subjetiva.

339
CASANOVA, Marco Antônio. ‘‘Pensiero in transizione’: Heidegger e l’altro inizio’ della filosofia’, p.51. In:
Giornale di Metafisica, Nuova Serie, XXXI (2009), pp.43-70.
340
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2.ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 185. (§120, ‘O salto’)
124

Assim, o salto não é um passo contínuo e esperado do primeiro ao outro início. Ao


contrário, o salto significa que o trânsito atravessa uma fissura abissal, intransponível por um
passo previsível e calculável antecipadamente. Essa ruptura radical é “a verdade do seer em
sua retirada definitiva do ente e em sua viragem radical ao acontecimento apropriativo” 341.
Com efeito, o salto revela o seer como abismo, afastando toda referencialidade metafísica ao
ente. Por isso, o salto é extremamente arriscado, porque: “O salto, o [ato] mais ousado no pro-
ceder do pensar inicial, deixa e arroja todo o convencional atrás de si, e não espera nada ime-
diatamente do ente. Em vez disso, e antes de tudo, salta ao pertencimento do seer no seu pleno
essenciar-se como evento”.342
Esse trecho emblemático, com que Heidegger começa a terceira fuga das Contribui-
ções, traz uma noção extremamente precisa sobre a natureza do salto. Ele é um arrojamento,
um lançamento impetuoso em direção ao desconhecido do outro início. O seu caráter arrisca-
do provém da insegurança de abandonar-se o lastro metafísico do ente com que a tradição
oriunda do platonismo do primeiro início habituou-se a pensar o ser. A permanência da meta-
física, sob a forma de variados platonismos ao longo da tradição ocidental, diz respeito a essa
dificuldade que encerra a decisão originária e histórica de romper com a segurança da entifi-
cação do ser.
Não é fácil afastar-se da dominância do primeiro início, uma vez que ele renova a eva-
são do próprio ser que se envia desapropriado. O trânsito promovido pelo salto instaura o
abismo que convoca a decisão originária, porque estabelece uma situação de alternativas mu-
tuamente excludentes: ou permanecer detido no fim da metafísica, cujo exaurimento toma
formas cada vez mais grosseiras e infundadas (como o biologismo e teorias semelhantes), ou
lançar-se para o outro início, ou seja, decidir-se pela sua preparação 343. Nessa bifurcação, não
resta espaço para evasivas, nem para subterfúgios. Toda filosofia heideggeriana tardia aponta
para essa transicionalidade. A preparação para o outro início, que só se dá pelo salto, é, ela
mesma, já um salto. Ou seja, a confrontação com o primeiro início e sua história se dá com o
344
salto, que é, ao mesmo tempo, a preparação e o trânsito para o outro início .

341
MÁSMELA, Carlos. Martin Heidegger: El tiempo del Ser. Madrid: Trotta, 2000. p. 157.
342
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.189. (§115, ‘A disposição condutora do salto’)
343
Ibid., p.190.
344
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.190.
125

Com o salto, realiza-se a fundação da verdade do seer como abismo. A fundação (Die
Gründung) – tema da quinta fuga das Contribuições – não se refere aqui à fundamentação
metafísica do ente, como na tradição do primeiro início, mas à fundação da verdade do ser a
partir do acontecimento apropriativo que o caracteriza. Essa fundação é, então, um desloca-
mento do fundamento (Grund) metafísico do ente e do ser-aí ao acontecimento apropriativo
do ser como abismo. Diz Heidegger: “O ab-ismo é o essenciar-se originário do fundamento. O
fundamento é a essência da verdade. [...] O ab-ismo é o estar-ausente do fundamento.”345
No contexto do acontecimento apropriativo, a essenciação da verdade, denominada
aletheia, é ab-ismo sem fundo (Ab-grund), porque é um aclaramento ocultante, uma clareira
que ilumina o ente, enquanto retrai o ser. A essenciaçãoda verdade é a retração do ser, que,
como clareira, se presentifica como acontecimento apropriativo. A essenciação da verdade
como ab-ismo é um ocultamento aclarante, um aclaramento ocultante346. Em que consiste
essa dupla característica do acontecimento apropriativo (Ereignis)? O que se ilumina, e o que
se obscurece com a essenciação da verdade do seer? Por que o seer é abissal?
Com o reconhecimento da diferença ontológica – que implica a impossibilidade radi-
cal de considerar o seer como um ente entre outros, seja a entidade do ente, seja a máxima
abstração, o conceito universal do ente -, a pergunta sobre o ser transforma-se. Heidegger es-
tabelece uma distinção radical entre seer e ente, de modo a assinalar que: “O ente é”, ao passo
que “O seer se essencia"347. Ao invés de perguntar “o que é o ser?” – pergunta derivada da
pergunta metafísica “o que é o ente?” -, pergunta-se agora “como se essencia [Wesung] o
seer?”348.
No parágrafo 10 de Contribuições, a resposta de Heidegger a essa pergunta histórico-
ontológica é direta e se desdobra nas noções centrais da obra, Ereignis, aletheia e Lichtung:
“O seer se essencia como o evento. [...] O essenciar-se é garantido e abrigado na verdade. A
verdade acontece como a ocultação clareadora”349. O seer não é, não permanece estático, co-
mo um ente presente à vista, disponível para a intelecção subjetiva como uma entidade fixa e

345
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p. 303 (§242, ‘O espaço-tempo como o abismo’)
346
Ibid., p. 303 (§242, ‘O espaço-tempo como o abismo’).
347
Ibid., p. 42 (§10, ‘Sobre o acontecimento’).
348
CASANOVA, Marco Antônio. ‘‘Pensiero in transizione’: Heidegger e ‘’altro inizio’ della filosofia’, p. 57. In:
Giornale di Metafisica, Nuova Serie, XXXI (2009), pp.43-70.
349
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p. 42. (§10, ‘Sobre o acontecimento’).
126

imutável, como a idea platônica, pronta para ser inteligida quando corretamente visada pelo
intelecto humano puro, purificado dos sentidos que maculam e confundem a inteligência. O
seer não é, mas emerge em meio ao acontecimento apropriativo de essenciação da verdade.
Nesse processo, o ser reivindica o ente, permite que o ente seja, que o ente torne-se o
que é. Diz Heidegger: “O seer (como acontecimento) necessita do ente, a fim de que ele, o
seer, se essencie. O ente não precisa do seer desse modo. O ente pode ainda ‘ser’ mesmo com
o abandono do seer”350 Ou seja, nesse processo alethético de essenciação do seer, o ente dis-
pensa o seer, podendo ainda “ser” ente, desempenhar um papel ôntico qualquer, mesmo com o
abandono do seer. Sob o domínio da evasão do seer, a imediata acessibilidade, usabilidade, e
utilidade do ente constitui o critério exclusivo do que o ente é ou não é. Sem o seer, o ente é
na medida em que serve, e isso significa a “cegueira decadente” da época em que o seer se
enviou desapropriado, a época da metafísica platônica que domina a história da filosofia oci-
dental. É esse o vinculo que Heidegger faz entre a metafísica platônica da presença e a essên-
cia da técnica moderna, que reduz o ente ao seu aspecto meramente ôntico e ignora o seer que
retraidamente o enviou e o fundamenta no ab-ismo da sua diferença.
Essa “aparente autonomia do ente com relação ao seer, como se este fosse apenas um
suplemento do pensamento representativo abstrato”351, não encerra, segundo Heidegger, qual-
quer prioridade, mas apenas turva a compreensão da verdade como clareira, do acontecimento
histórico de abertura do seer que delimita toda configuração ontológica do ente. Ora, do ponto
de vista da verdade do seer, da clareira da aletheia, o ente considerado como onticamente real
é não-ser, porque sua origem ontológica permanece velada sob a “inessência da aparência”352.
Somente mediante “o pensamento originário” (anfänglich Denken), pode-se pensar o
seer como acontecimento apropriativo, como confrontação com o primeiro início que prepara
o outro início 353. O pensamento originário confronta-se com a origem verdadeiramente onto-
lógica da história, não se confunde com as representações historiográficas, com as conexões
dos fatos. O pensamento originário salta para além do primeiro início, que “pensa o seer como
presença a partir do presenciar-se”354. Mas esse primeiro início não é senão uma possível es-

350
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p. 42. (§10, ‘Sobre o acontecimento’).
351
Ibidem.
352
Ibidem.
353
Ibidem.
354
Ibidem.
127

senciação do seer, não podendo ser considerado metafisicamente como o único modo de pen-
sar o seer, isto é, como entidade. O salto permite que o pensamento acompanhe a dinâmica do
acontecimento apropriativo, imergindo no abismo da diferença ontológica e alcançando o seer
no seu aspecto fugidio, lançando-se no “espaço-tempo”, que é a estrutura fundamental que
emerge do acontecimento de essenciação do seer. Com efeito, “como juntura da verdade, o
espaço-tempo é originariamente o lugar do momento instantâneo do acontecimento.”355
Para que o pensamento seja originário, ele precisa arriscar-se e deixar-se apropriar-se
pelo acontecimento apropriativo do seer, ele precisa saltar, abandonando a representação me-
tafísica que caracteriza o primeiro início. Como explica Daniela Vallega-Neu356, o pensamen-
to originário é a tentativa de meditação histórica, levada a cabo por Heidegger nas Contribui-
ções, em que, pelo salto, o pensamento se deixa conduzir pela verdade do seer e permite que
as palavras do seer emerjam do desvelamento da verdade. O pensamento originário diz respei-
to à captura, à capacidade de o pensamento acolher e alcançar o seer que lhe é jogado pelo
acontecimento de que ele participa e que o apropria. Sendo apropriado pelo evento do seer, o
pensamento desvela o seer ao reconhecer a sua verdade como acontecimento apropriativo, que
se apropria, inclusive, do pensamento que se expõe a essa verdade. Esse pensamento originá-
rio não acede, porém, ao fundamento do seer, exatamente porque o seer não tem fundamento,
mas acontece como ab-ismo da clareira que ilumina e preserva a zona de obscuridade ao redor
de si.
Como abismo, o seer funda, mas ele mesmo é infundado, permanece fora do funda-
mento que instaura em relação ao ente. O seer é, portanto, o fundamento sem fundo, o ab-
ismo que se oculta ao fundar o ente, sem que ele mesmo tenha qualquer fundamento. Como
assinala Heidegger em Contribuições, o fundamento originário, o fundante, é o seer, que fun-
da o ente essenciando-se na sua verdade. Quanto mais radicalmente o fundamento (a essência
da verdade) é investigado, tanto mais radicalmente se essencia o seer. A investigação do fun-
damento, a sondagem da verdade do seer, porém, precisa ousar o salto no abismo, investigar o
próprio abismo. Com isso, o salto reconhece algo de inacessível à investigação metafísica do
primeiro início: o abismo como ausência-de-fundamento que funda é o vazio 357.

355
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p. 42. (§10, ‘Sobre o acontecimento’).
356
VALLEGA-NEU, Daniela. Heidegger’s Contributions to Philosophy. An introduction. Bloomington
&Indianapolis: Indiana University Press, 2003. p. 33.
357
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.304. (§242, ‘O espaço-tempo como o abismo’)
128

Como explica Casanova, a dinâmica do acontecimento apropriativo “implica um mo-


vimento duplo de desvelamento e retração”358. A essenciação do seer se dá como determina-
ção do ente na totalidade. Ao mesmo tempo, o seer se retrai no abismo de sua infinita diferen-
ça em relação ao ente que descerrou. Ou seja, a retração do seer impede que ele seja confun-
dido com o ente aberto na totalidade. Tampouco o seer pode ser confundido com a determina-
ção do ente pura e simples. Como clareira, a essenciação do seer abre o ente na totalidade,
mas conserva algo que resiste a essa abertura. A noção de clareira marca a dualidade claro-
escuro, do ente que se esclarece, que vem a ser, e o ser que se obscurece na sua diferença.
Clareira é a abertura no coração da floresta, que não elide a escuridão que a rodeia, como uma
picada de luz provisória e limitada que não exclui as sombras à sua volta.
O desvelamento do ente funda-se na diferença do seer enquanto seer, de modo que a
configuração do ente como ente implica o velamento do seer enquanto seer, que permanece
inexoravelmente escondido. Com uma série de expressões, exploradas e parafraseadas em
Contribuições e Meditação, Heidegger ressalta essa característica do acontecimento apropria-
tivo: o seer se recusa (sich verweigt), se nega (sich versagt), se retrai (zurücktritt), se renun-
cia-subtrai (sich verzichtet), afunda no abismo da diferença (versinkt in den Abgrund des Un-
terschiedes), se renega (sich verleugnet), se silencia (sich verschweigt), se faz um com o nada
(ist eins mit dem Nichts)359.
Por essa autorretração do seer, que se nega e se renuncia, o seer reserva-se a qualquer
associação direta com a entidade do ente, não podendo ser confundido com uma fundamenta-
ção metafísica do ente. Segundo Casanova, “toda determinação do ser do ente na sua totalida-
de se mostra, por isso, como uma determinação possível, histórica, e, portanto, em última ins-
tância, infundada.”360. Nesse sentido,toda a linguagem e conhecimento permanecem circuns-
critos à dimensão ôntica do ente, ao passo que o seer, ele mesmo, retraído na abissalidade da
sua diferença em relação ao ente, é inatingível pelo pensamento representativo. Como pensa-
mento representativo, a metafísica é incapaz de alcançar o ser, reduzindo-o, sempre, a uma
espécie de ente. Só o salto ao outro início pode enfocar corretamente o primeiro início metafí-
sico, a partir da alteridade que se conquista em relação a ele, isto é, a partir da verdade do seer
que o funda.

358
CASANOVA, Marco Antônio. ‘‘Pensiero in transizione’: Heidegger e ‘’altro inizio’ della filosofia’, p. 59. In:
Giornale di Metafisica, Nuova Serie, XXXI (2009), pp.43-70.
359
Cf. Ibid., p. 58.
360
Ibid., p. 59.
129

Como se estuda no próximo item, o salto transitivo do primeiro ao outro início, como
pensamento simultaneamente retrospectivo e prospectivo, realiza uma circularidade herme-
nêutica que confere inteligibilidade filosófica ao primeiro início, enquanto antecipa o aconte-
cimento do outro início. Com efeito, essa circularidade é uma característica da meditação his-
tórica como pensamento originário, em que a confrontação com o primeiro início faz com que
desponte tanto o mesmo quanto o outro, isto é, tanto a metafísica do primeiro início quanto o
acontecimento histórico do seer do outro início. Como assinala Casanova, “não se pode ja-
mais interpretar algo senão a partir de um horizonte compreensivo diferente, que se desvela
completamente só no seu efetivo realizar-se.”361
Com a dinâmica do acontecimento apropriativo, opera-se uma transição, uma inversão
no modo de fundamentação filosófica, que desloca a metafísica da centralidade ontológica
que adquiriu com o primeiro início. Com efeito, a confrontação com o primeiro início grego o
desloca a partir do outro início. Não se trata de uma mera negação, ou pura superação para
fora do já pensado no primeiro início, mas uma recuperação do que nele permaneceu impen-
sado e que é capaz de redimensionar a própria história desse primeiro início. Aqui entra em
jogo a questão da circularidade hermenêutica acima mencionada. A pedra de toque para a
compreensão da viragem heideggeriana é a palavra grega aletheia, que provoca uma verdadei-
ra revolução no modo de se compreender a ontologia e a tradição metafísica. Isso porque o
primeiro início, o qual concebeu o ser como presentidade - como presença constante do ser do
ente -, previu a ambiguidade da retração desvelante, ou do desvelamento reatraído caracterís-
tico da palavra aletheia, que retrata a verdade do seer. O primeiro início pressentiu essa di-
mensão da aletheia, mas não a pensou radicalmente. Portanto, a noção de aletheia do primeiro
início precisa ser arrastada pelo salto transitivo ao outro início para ser redimensionada. Ou
seja, o pensamento grego, platônico-aristotélico, será revolvido a partir de si mesmo. Heide-
gger escuta atentamente a verdade desse primeiro início a partir do pressentimento que ele
tem do outro início. O outro início permanece como que preso no interior do primeiro início,
precisando ser, portanto, liberado. Desse modo, o salto opera, mais uma vez, uma destrui-
çãodo primeiro início para reconstruí-lo a partir da verdade do seer percebida a partir do outro
início.
O outro início redimensiona o primeiro, libera a verdade nele velada. Isso significa
destruí-lo, não mais nos termos da ontologia fundamental, estudada anteriormente, mas a par-
tir do salto no abismo da verdade do seer, que rege o primeiro início, ainda que que o primeiro

361
CASANOVA, Marco Antônio. ‘‘Pensiero in transizione’: Heidegger e ‘’altro inizio’ della filosofia’, p.
68.Giornale di Metafisica, Nuova Serie, XXXI (2009), pp.43-70.
130

início não a reconheça, confundindo-a com e a verdade do ente. O primeiro início não é aban-
donado, não é negado e simplesmente rechaçado ou repudiado.
Com efeito, no parágrafo 90 das Contribuições, Heidegger trata do tipo de negação
operada no trânsito do primeiro ao outro início. Normalmente, a noção de negação comporta
“rejeição, demissão, rebaixamento e até desintegração”362, sendo que todas essas acepções
relacionam-se com a oposicionalidade constante na partícula negativa “não”. Segundo Heide-
gger, essa semântica comum da negação neutraliza a força filosófica da negatividade, que
precisa ser reconsiderada a partir da essenciação do seer. Ora, o “não” como rejeição, assim
como o “sim” como consentimento, insere-se no âmbito da verdade como correção, como
correspondência, característica do pensamento metafísico representativo e valorativo. Conso-
ante o pensamento originário do acontecimento apropriativo, o “não” é o salto-de (Ab-sprung,
que o tradutor americano denomina “leap away from”). Ora, esse salto-de afirma o local de
que salta, o primeiro início. Por outro lado, esse saltar-se não traz em si nada da negatividade
que aniquila e demole o ponto de que parte, que lhe serve de esteio para o salto adiante, para
além desse posto inicial. Por isso, todo abandono puro e simples dos gregos é, para o pensa-
mento histórico-ontológico de Heidegger, leviandade e barbárie.
Visto de fora, o salto-de é a separação configurante do primeiro início posto em revelo
pela diferenciação do outro início. Ou seja, o primeiro início é separado no contraste que
emerge quando o outro início é delineado a partir dele. O outro início está de alguma forma
no interior do primeiro início, por isso o salto é abissal, é a entrega à verdade velada do pri-
meiro início, somente visada quando o outro início dele desponta. O afastamento do salto,
portanto, nada tem de rejeição ou denegação. O afastamento do salto-de não é uma “deixar
para trás”363. Antes, o salto desenvolve-se evidenciando o primeiro início e sua história inici-
al; ao mesmo tempo, o salto renova esse primeiro início conferindo-lhe clareza quanto ao seu
princípio histórico, conforme a verdade da essência do acontecimento apropriativo que o im-
pulsionou. A história metafísica do primeiro início se dá pelo fato de o seer ter se enviado de
modo desapropriado e retraído, deixando-se confundir com o ente por ele desvelado. Ao reco-
nhecer essa origem do primeiro início, o salto o destrói, erigindo o que se destacou de forma
essencial no primeiro início. Esse é o sentido da “destruição no trânsito ao outro início” 364.

362
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.140.
363
Ibid., p. 152 (§90, ‘Do primeiro ao outro início. A negação’).
364
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 152 (§90, ‘Do primeiro ao outro início. A negação’).
131

Como já assinalado anteriormente, toda negação conserva o polo negado. Todo anti é
tributário da positividade rechaçada. Nesse contexto, o outro início não é um anti-primeiro-
início, uma anti-metafísica ou um anti-platonismo. Qualquer variante negativa do primeiro
início ainda se encontra presa no interior nas suas categorias fundamentais. Heidegger busca
uma alteridade radical em relação ao primeiro início, por isso a negação não lhe serve. A ne-
gatividade não alcança a alteridade. Por isso, afirma Heidegger no parágrafo 91 das Contri-
buições:
[a confrontação do primeiro e o outro início não é] nenhum contramovimento, pois todos os
contra-movimentos e contraforças são essencialmente codeterminados pelo seu contra-quê
[por aquilo de que são contrários], ainda que na forma de uma inversão dele. Por isso, nunca é
suficiente um contra-movimento para a transformação essencial da história.365

Toda negação dicotômica e antitética apenas reforça o negado, inserindo-se inteira-


mente na categoria que pretende confrontar. Qualquer inversão é incapaz de saltar fora da
baliza determinada pelo opositor. Para se livrar dessa hegemonia da pergunta diretriz, que
resiste mesmo à sua inversão mais radical – a de Nietzsche -, o pensamento transitivo do outro
início efetua o salto para fora da metafísica e para além de todas as suas negações, inversões e
reinvenções. O salto ao outro início “está fora do contra e da imediata comparabilidade” 366,
porque é um lugar de de-cisão, de cissura, de divisão, que permite a fundação por meio da
“inauguração da verdade do seer em sua singularidade, que se encontra antes de todas as opo-
sições da ‘metafísica’ vigente.”367 O salto não é nem a rejeição crua e grosseira do primeiro
início, nem a suprassunção dialética do primeiro pelo outro início. Antes, o salto acede à “ge-
nuína originalidade” do outro início, a partir da qual proporciona ao primeiro início a verdade
da sua história e, com isso, traça a sua inalienável e mais própria alteridade, a qual se faz fe-
cunda somente no “diálogo com os pensadores” 368. Esse diálogo é exatamente a confrontação
histórica em que cada um dos interlocutores-contendores distinguem-se pela pertença à coisa
mesma do pensamento que desponta de suas falas ontológicas. Cada pensador só conquista a
sua singularidade histórica pela confrontação com os que o precederam e com os quais entre-
tém íntima conversação, pela linguagem do seer que lhes é comum.

365
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011.p.158 (§92, ‘A confrontação entre o primeiro e outro começo’).
366
Ibidem.
367
Ibidem.
368
Ibidem.
132

O objetivo do salto para o outro início é a revelação do limite metafísico do primeiro


início, do que, nele, permanece impensado369. O outro início, assim, busca a origem, o ele-
mento originário das ontologias históricas, convertendo a metafísica do primeiro início a par-
tir do acontecimento desapropriado do ser que a configura. A transição ao outro início eviden-
cia a historicidade da metafísica, o acontecimento epocal que a essenciou de modo desapro-
priado, que permitiu a entificação do ser. O salto é o deslocamento que neutraliza o domínio
metafísico do primeiro início, inserindo na historicidade das ontologias. Assim deslocado, o
primeiro início torna-se inteligível, ou seja, pode ser “visto” de fora, a partir do salto que o
enfoca à distância, a caminho do outro início. Trata-se da conquista de uma nova origem, que
revela a limitação da origem metafísica da filosofia.
O caráter de decisão do salto ao outro início diz respeito à fase terminal da metafísica,
ao exaurimento de suas possibilidades na fase moderna da filosofia, designadamente em Ni-
etzsche. Por essa razão, ao longo da redação das Contribuições, Heidegger ministra um curso
sobre Nietzsche, que compõem um dos textos mais importantes para a compreensão do pen-
samento histórico-ontológico aqui analisado. A confrontação com Nietzsche é a confrontação
com a coisa mesma do pensamento, como já explicado no primeiro item deste capítulo. Trata-
se de “pensar um único pensamento – e esse pensamento [é] sempre “sobre” o ente na totali-
dade”370. O escopo da meditação heideggeriana é determinar as posições respectivas de cada
pensador-contendor – Nietzsche e Heidegger, tanto quanto Platão e Heidegger, ou Aristóteles
e Heidegger, sempre em confrontação - em relação à metafísica. Cada pensador ecoa uma voz
do ser, cada qual responde, portanto, a um apelo ontológico, que configura uma metafísica
específica.
No interior da história da metafísica, pensada como história do seer, Nietzsche figura
como aquele que levou a metafísica como um todo à consumação final, esgotando todas as
potencialidades latentes. Esse exaurimento se dá pela inversão radical das categorias metafísi-
cas, pela ontologização do devir. Nada obstante, Nietzsche permanece dentro da tradição que
ele nega. O que interessa a Heidegger, porém, é o aceno que ele provoca a outro horizonte
filosófico de compreensão da realidade. Levando a metafísica à sua fronteira máxima, Nietzs-
che aponta para outra coisa de absolutamente inquestionado até então. Esse limiar inquestio-
nado só será atravessado por um salto arrojado e destemido. Com efeito, Nietzsche encontra-
se na soleira da metafísica e do novo início, pressentido mas não penetrado. O elemento não-

369
Cf. WU, Roberto. Heidegger e a possibilidade do novo. Tese de doutoramento. Orientador: Paulo Cesar Du-
que-Estrada. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006. p.216 e ss.
370
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 370.
133

metafísico antecipado na obra de Nietzsche é a possibilidade de se pensar o ser enquanto ser,


e não mais a partir do ente; isto é, não mais como entidade, como ser do ente. O papel de Ni-
etzsche na história do pensamento é a instauração de uma de-cisão. A partir dele não se pode
continuar fazendo metafísica impunemente, ingenuamente. Ao extenuar a metafísica, Nietzs-
che exige que ela seja definitivamente superada, mas, ele mesmo, não pôde fazê-lo. O seu
mérito foi tê-la levado ao seu limite máximo, obrigando o pensamento a tomar uma via alter-
nativa – não metafísica – para interrogar e dizer o ser.
Heidegger articula, então, o fim do platonismo metafísico em Nietzche com a insur-
gência de um novo momento da história do seer, mas que não seja uma renovação da tradição
metafísica, como os vários capítulos da história da filosofia retratam. O novo início há de ser
outro início. A alteridade desse início reside no fato de não ser mais um início metafísico, que
parte do ente ao ser, mesmo quando se inverte essa relação, ou se alteram as palavras funda-
mentais que a configuram. A natureza da metafísica é essencialmente platônica, porque sem-
pre considera o ser como um “ideal”, uma idea do ente. Com efeito, Heidegger assim define a
metafísica em Nietzsche:
De acordo com padrões metafísicos, o ser é aquilo que é pensado a partir do ente como a sua
determinação mais genérica e em direção ao ente como o seu fundamento e a sua causa. [...]
O ente vige como aquilo que possui aqui o primado como o critério, a meta, a realização do
ser. Onde o ser é pensado no sentido de um ‘ideal’ para o ente, como isso que e como cada en-
te tem de ser, o ente particular está, em verdade, submetido ao ser. Na totalidade, porém o
ideal está a serviço do ente, assim como todo poder é, na maioria das vezes, dependente do
que dele se apodera.

A metafísica pensa o ente na totalidade segundo o seu primado em relação ao ser. Todo pen-
samento ocidental, desde os gregos até Nietzsche, é um pensar metafísico. Toda época da his-
tórica ocidental funda-se em sua respectiva metafísica. Nietzsche antecipa de maneira pensan-
te o acabamento da modernidade371

Sendo o “último metafísico do Ocidente” 372, Nietzsche encerra o arco histórico da me-
tafísica, ao mesmo tempo que exige uma “decisão histórica” acerca do caráter final dessa épo-
ca, do outro início que ela abre como possibilidade histórica. O pensamento histórico-
ontológico prepara essa decisão, uma vez que é uma destinação epocal do seer, um novo des-
tino histórico. Essa decisão só pode se dar como salto, atravessando um abismo do infundado
e do impensado, que é a antecipação histórica do outro início, latente no primeiro início. Co-
mo explica Heidegger, não se trata de adentrar um novo período, ou era histórica, pela sim-

371
HEIDGGER, Martin. Nietzsche I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 373.
372
Ibid., p. 374
134

ples sucessão cronológica de anos, mas de adentrar no domínio do “totalmente outro da histó-
ria”373.
Por essa razão o trânsito efetuado pelo salto não é reconhecido e nem acompanhado,
permanecendo o mais questionável e o mais ignorado, enquanto a “história do fim” transcorre,
com vitalidade e força, de modo mais confuso do que nunca 374. Essa confusão ocorre porque a
invocação do ser ainda não é chegada ao pensamento e à palavra, sendo a interpretação dessa
outra epocalidade do seer interpretada metafisicamente, o que torna essa interpretação total-
mente imprópria e incapaz de acolher a alteridade do envio do seer. Metafisicamente, o pen-
samento não alcança a historicidade do envio do seer, não pode ser apropriado pelo aconteci-
mento de essenciação da verdade. O salto instaura o trânsito para o totalmente outro porque
conduz o pensamento para fora de toda registro e predomínio metafísico, marcando, portanto,
uma descontinuidade radical em relação ao primeiro início metafísico. Por isso o salto transita
pelo abismo; na verdade, salta no abismo do infundado do outro início. Por outro lado, o salto
encerra um abismo entre dois inícios. O maior risco, a maior mostra de inautenticidade e de
impropriedade de um pensamento, é o de renovar versões metafísicas do outro início e ignorá-
lo no que tem de radical e absolutamente outro em relação ao primeiro início. Como explica
Roberto Wu, “sem esse salto, todas as ‘renovações’ permanecem como variações do primeiro
início, desdobramentos que encobrem esse início pela aparência de novidade que apresen-
tam.”375
Com efeito, a terceira fuga – sobre o salto (der Sprung) – relaciona-se intimamente
com a questão do fundamento, vale dizer, do abismo. Como Heidegger pensa o caráter abissal
do fundamento infundado? Além das Contribuições e de Meditação,‘Identidade e diferen-
ça(Princípio da identidade)’ e Princípio do fundamento contribuem para a compreensão dessa
questão decisiva no pensamento tardio de Heidegger.
O abismo é o modo de acontecimento da essenciação do próprio seer como clareira,
como aletheia, que se evade, que não é um fundamento inconcusso, sólido e inabalável que
garante estabilidade e “fundo” fixo para os entes. Ao contrário, o problema que caracteriza o
pensamento do acontecimento apropriativo do seer, o modo de sua essenciação histórica, resi-
de, como assevera Casanova,

373
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.189 (§116, ‘A história do seer’).
374
Ibidem.
375
WU, Roberto. Heidegger e a possibilidade do novo. tese de doutoramento. Orientador: Paulo Cesar Duque-
Estrada. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006. p.221.
135

na impossibilidade de fundamentações últimas e no fato de todo e qualquer projeto de mundo


estar assentado sobre um fundamento histórico que não possui ele mesmo fundamento algum,
mas emerge da abissalidade mesma do ser.”376.

Ora, o ser não é mais fundamento estável do ente, aquilo que lhe confere sentido e so-
lidez. Não se acede mais ao ser por meio de uma dialética que parta do ente, alçando-se à sua
entidade. Muito menos, se chega ao ser por meio de investigação transcendental do sujeito
que pode conhecê-lo ou intui-lo. É a partir da meditação histórica, realizada na como um salto
originário (Ursprung), que se conquista o seer. Como explica Heidegger em Meditação, esse
salto volta-se à origem, ao “rasgo abissal clarificador, que se essência como seer em meio ao
ente, para que seja conservado e esquecido enquanto tal.”377 O pensamento do seer acontece
apropriativamente juntamente com o ser a que se destina. O pensar se inicia, diz Heidegger378.
A filosofia torna-se início, outro início em relação ao primeiro que denominou o ser de physis
e, posteriormente, de idea. Na verdade, o outro início da filosofia depende de o seer mesmo se
essenciar como a origem, a partir do salto originário. “O pensar do seer tem, por isto, uma
origem essencial própria” 379
A sentença característica da tradição metafísica, “o ente é”, pergunta-se pelo ente,
concentra-se na essência do ente, extraindo dele o ser, como um derivativo. Ou seja, o ser é a
essência do ente, a consistência de sua essencialidade, tanto na maneira platônica, teológica-
cristã ou subjetivo-transcendental. A insuficiência dessa resposta metafísica sobre o ser, que o
torna dependente da entidade do ente, gera uma estranheza que antecipa a necessidade de um
salto pensante, que acompanhe o salto originário do próprio ser, um “salto na clareira do seer
e de sua essenciação”380. O pensamento do seer considerado como acontecimento apropriativo
da de-cisão, da “exportação resolutora” (Austrag), se dá por meio do salto no abismo sem-
fundo do ser.
Heidegger diz que a compreensibilidade é a mais acentuada ameaça do Ereignis381. Is-
so porque, ao reduzi-lo a uma conceituação metafísica, ele é completamente neutralizado e
alienado no que tem de próprio. Em poucas palavras, ele é desapropriado, enviado como au-

376
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 177.
377
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p.52. (§14: ‘A
filosofia na meditação sobre si mesma’).
378
Ibidem.
379
Ibidem.
380
Ibid., p. 89 (§21: ‘A sentença do pensamento da história do seer’).
381
Ibidem.
136

sência, e, portanto, recebido metafisicamente, como entidade “compreensível”, “pensável”


conceitualmente, dialeticamente ou logicamente. Ou seja, o acontecimento apropriativo não
pode ser pensado “nem a partir do ente como o seu resto e suplemento, nem com vistas ao
ente como a sua causa e condição”, porque o pensar da história epocal do seer ocorre “fora da
vida da ‘metafísica’”382. Ora, a metafísica como afirmação do primado do ser, como fundação
entificante do ser, é baseada no próprio acontecimento desapropriado do seer, a partir do mo-
do como ele “se nega e se doa”383, se retrai no abismo de sua diferença ao desvelar o ente na
totalidade.
Heidegger é claro a esse respeito: o seer não funda o ente como um alicerce ontológi-
co, inabalável, do qual depende o ente, “o ser essencia-se não como fundamento, ele não é o
basilar que prepara para todo ente no ab-ismo da clareira aquilo para onde o ente não pode se
precipitar”384. Ao contrário, o seer é essencialmente histórico, essencia-se no envio de uma
temporalidade epocal; não pode ser considerado atemporal, eterno, rígido e definitivamente
fixado, capaz de estabelecer o núcleo ideal imutável do ente. Explica Heidegger:
o seer é o abismo, o fosso do entre clareado [...] O seer não está fixado, engatado, apoiado e
sedimentado em parte alguma e em momento algum – o seer é o ‘fundamento’, que já sempre
rejeitou tudo o que é assim, porque ele, como acontecimento de apropriação, é o assinala-
mento que a si mesmo se recusa ao sem apoio e sem proteção, porque seer significa apenas is-
to.385

Como se percebe, Heidegger repensa radicalmente a noção de fundamento, para além


do modo metafísico de considerá-lo, isto é, a partir do ente. Nesse sentido, como ab-ismo, o
ser não é o ente, não é nada de ente. É o diverso abissal em relação ao ente, não o funda como
apoio, proteção, medida e meta386. O seer é o acontecimento apropriativo para o aberto da
recusa de si mesmo, recusa essa que ilumina o ente e obscurece a si mesmo. Ao desvelar o
ente na totalidade, o acontecimento apropriativo não funda o seer, porque o seer não perma-
nece o fundamento de si mesmo, autossuficiente ou autosubsistente, mas se evade na abissali-
dade da sua diferença incontornável. Por isso pode Heidegger afirmar que “o fundamento é,
de modo negador, o acontecimento da apropriação para a indigência da fundação”387. A indi-

382
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 89. (§21: ‘A
sentença do pensamento da história do seer’)
383
Ibidem.
384
Ibid., p. 90. (§22: ‘O fundamento (Seer e aletheia)’)
385
Ibid., p.95. (§26: ‘Ser: abismo’).
386
Ibidem.
387
Ibid., p.95. (§26: ‘Ser: abismo’).
137

gência aqui concerne ao caráter fugidio da epocalidade do ser, que, doando-se ao ente, esqui-
va-se na sua diferença.
O seer é sempre histórico, porque sempre se envia temporalmente, e isso significa que
nunca se envia totalmente. O seer nunca pode ser totalmente iluminado, compreendido por um
conhecimento definitivo que o esgote. O seer sempre preserva algo de insondável, de tempo-
rário, de precário. A metafísica é um grande desvio no questionamento da essência do seer,
que o confunde com a entidade do ente, tornando-o, por abstração, translúcido, transparente e
supra-histórico, eterno e imutável. Esse tipo de fundamentação metafísica é veemente afastada
pela meditação histórica heideggeriana, uma vez que a verdade do seer como Ereignis é mar-
cada pela historicidade que a torna precária, indigente: “A verdade é experimentada segundo
a sua essência como indigência.”388
Mas como se acede efetivamente ao caráter infundado e abissal do seer? Como se
pode reconhecer que o seer é abismo? A resposta, mais uma vez, remonta à noção de salto.
Como elucida Heidegger em ‘Identidade e diferença(Princípio da identidade)’, é o salto que
nos permite penetrar no comum-pertencer de ser e ser-aí, ou seja, permite que o ser aproprie o
ser-aí e imerja na dinâmica do acontecimento apropriativo que configura o mundo histórico a
que pertence o ser-aí. Não se pode simplesmente conhecer o acontecimento apropriativo, ex-
plicá-lo, descrevê-lo, constatá-lo. Não. Deve-se saltar, sem qualquer intermediação ou prepa-
ração, no interior da absissalidade desse acontecimento, deixando-se ser apropriado pela es-
senciação da verdade do seer, ao mesmo tempo iluminado e obscurecido pela clareira. Essa
transição abrupta é o salto, com o qual se distancia “da atitude do pensamento que represen-
ta”, que considera o homem um animal racional, um sujeito que representa objetos para co-
nhecê-los389. Com o salto, abandona-se a consideração metafísica do ser como fundamento,
como aquilo que funda o ente.
“Para onde salta o salto, se se distancia do fundamento?”390, pergunta-se, então, Hei-
degger. Excedente da circunscrição metafísica, a resposta é: salta num abismo sem-
fundamento, já que, como explicado acima, o ser não funciona como fundamento inconcusso,
tal como pensado em termos metafísicos. Nesse sentido, ele é abismo, o seer é sem fundo,
sem fundamento. Por outro lado, o salto permite a imersão na dinâmica do acontecimento

388
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010.p. 275 (§97: ‘O
pensar da história do seer e a questão do ser’).
389
HEIDEGGER, Martin. ‘O princípio da identidade’, pp. 179-202. In: Conferências e escritos filosóficos. Cole-
ção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 183.
390
Ibidem.
138

apropriativo, que revela a experiência do “comum-pertencer” de ser-aí e ser. Ente jogado no


mundo, inserido na totalidade do ser, o homem pertence ao ser, e é só através do homem que
o ser pode ser como ele realmente é, pre-sentando-se, isto é, fazendo-se parcialmente presente
em um envio epocal. Por sua vez, só através do ser, o homem é. O que distingue o homem,
como ser-aí, dos demais entes que o circundam é o fato de ele ser pensante, estar aberto ao
ser, estar posto em face dele. O homem permanece, portanto, indissoluvelmente ligado ao ser.
O homem é a sua correspondência ao ser.
Diz Heidegger: “No homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta ao ser,
porque a ele está entregue como propriedade.” 391 O ser, por sua vez, “se presenta ao homem,
nem acidentalmente nem por exceção. Ser somente é e permanece enquanto aborda o homem
pelo apelo. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento enquanto presen-
tar.”392 É essa mutua implicação, essa reciprocidade que caracteriza o salto ao ser (do homem
que a ele se entrega), que corresponde ao salto do ser (que se doa ao homem que o acolhe pela
abertura ontológica à clareira).
Experiência autêntica do pensar histórico, o salto aqui é a imagem da “subitaneidade
da entrada não mediada naquele pertencer cuja missão é dispensar uma reciprocidade de ho-
mem e ser e instaurar a constelação de ambos.”393 Ou seja, é só a partir do salto que o homem
pode deixar de representar metafisicamente o ser como entidade do ente, para experimentar
meditativamente a pertença ao ser. Esse trânsito resiste a intermediários, os quais sempre neu-
tralizam o comum-pertencer do ser e homem. As sequências e mediações, como os passos
sucessivos de um raciocínio dialético, só franqueiam o entrelaçamento de ser e homem, mas
não o comum-pertencerdeles. Com efeito, o comum-pertencer só pode ser conquistado como
salto, que se dá “na súbita penetração no âmbito a partir do qual homem e ser desde sempre
atingiram juntos a sua essência, porque ambos foram reciprocamente entregues como proprie-
dade a partir de um gesto que dá.”394
Como está claro nesse importante texto de Heidegger, ‘Identidade e diferença(O prin-
cípio da identidade)’, o homem não pode alcançar a dinâmica do acontecimento apropriativo
metodicamente, por um caminho seguro que o conduza às suas verdades, pela travessia pon-
tual e linear da distância que o separa do ser. Ao contrário. Como ser-aí pertencente ao seer
391
HEIDEGGER, Martin. ‘O princípio da identidade’, p. 182. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp. 179-202.
392
Ibidem.
393
Ibid., p.183.
394
Ibidem.
139

que também lhe pertence, o homem só pode atingi-lo imergindo no acontecimento apropriati-
vo em que já sempre está inserido como homem. O homem não pode representar o aconteci-
mento apropriativo como se ele fosse um objeto exterior a ele, o qual pudesse ser visualizado
e analisado intelectualmente. O seer não é um objeto diante do homem, não é nada de contra-
posto (ob-jectum) ao ser-aí. O ser-aí já sempre está em meio ao acontecimento apropriativo a
que ele pertence.
Portanto, o ser-aí só pode aceder ao ser sem mediações, sem representações, pela
imersão na dinâmica do acontecimento apropriativo. Isso significa que o homem se deixa
apropriar pelo seer que já se enviou a ele. Ora, é o salto que responde por essa entrega não-
mediada e súbita à dinâmica do acontecimento apropriativo. Com isso, rompe-se com a tradi-
ção metafísica do primeiro início, e se transita ao outro início da verdade do seer, em que ser e
ser-aí se dão no comum-pertencer que os caracteriza. Núcleo do primeiro início, a metafísica
é intermediação representativa, uma ponte conceitual e dialética que liga o homem ao ser do
ente visado. O salto rompe com essa noção de representação subjetiva, que desponta pela
primeira vez de modo claro com a idea platônica, para a assunção da permeabilidade e da
pertença do ser-aí em relação ao acontecimento apropriativo do seer.
Com o salto, explica Alexandre Cabral, “não mais nos alienamos em nossa relação
com os entes em geral, mas tornamos livre o caráter histórico do mundo em que estamos e nos
apropriamos do abismo da diferença que o funda.”395 É o salto que permite o ser-aí assumir
seu mundo e suas conjunturas históricas, porque, pela primeira vez, ele se entrega ao aconte-
cimento apropriativo que determina a história epocal do seer. Ou seja, o salto franqueia para o
ser-aí a tradição do seu mundo histórico, deixando-o imergir no abismo da diferença que o
funda. O ser-aí reconhece a historicidade do seu mundo, a epocalidade do envio destinamental
do seer, a clareira que registra o abismo da diferença entre ser e ente.
Conquista da historicidade epocal do mundo, o salto permite que a meditação compre-
enda um filósofo de modo apropriado, inserindo-o nos acontecimentos históricos de mundo,
nos acontecimentos apropriativos passados a que ele pertence e que conformam a história
ocidental. Consoante Alexandre Cabral, “o salto libera o campo de manifestações dos mundos
históricos passados e o modo de rearticulação destes acontecimentos apropriativos.” 396 O ser-
aí entrega-se à compreensão do modo de determinação dos fenômenos de mundos históricos

395
CABRAL, Alexandre Marques, Niilismo ehierofania: uma abordagem a partir de Nietzsche e Heidegger.
tese de doutoramento. Orientador: Marco Anônio Casanova. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2012. p. 640.
396
Ibid., p. 641.
140

passados, vigentes nas rearticulações das épocas da história do seer. A consequência heurísti-
ca desse pensamento do Ereignis é a possibilidade de compreender pensadores da tradição
para além da filologia e da filosofia metafísica, permitindo compreendê-los, pela primeira vez,
de modo autenticamente ontológico, pois suas palavras fundamentais ressoam o apelo do
seerno interior dos envios epocais da história. É por isso que o salto é determinante para a
confrontação com os mundos históricos dos pensadores do passado. Sem a coisa do pensa-
mento que subjaz a todo mundo histórico, todo diálogo com a história da filosofia é estéril,
oscilando ingenuamente entre subjetivismos e objetivismos hermenêuticos que descuram do
elemento que determina o lugar do pensador confrontado na história ontológica do Ocidente.
Esse elemento é o acontecimento apropriativo do seer.
A diferença ontológica reconhecida pelo ato do salto torna o ser não mais o fundamen-
to do ente no sentido metafísico do primeiro início, mas um abismo sem fundo, abismado na
diferença que o distancia do ente. É possível pensar o ser sem o ente? De que se trata esse
fundamento sem-fundo do seer alcançado pelo salto?
Em O princípio do fundamento, Heidegger tenta, agonicamente, superar a metafísica
que reduz o ser ao fundamento do ente. O salto é o gesto capaz de passar pela intercessão me-
tafísica do ser e do ente, a noção de fundamento: o salto é “do princípio do fundamento en-
quanto princípio sobre o ente para o princípio como dizer ser enquanto ser.” 397 Na metafísica,
o princípio do fundamento refere-se ao fundado, ao ente. O ser serve como fundamento doen-
te. Ou seja, o fundamento ontológico do ente é um princípio sobre o ente; o ser é o fundamen-
to do ente porque o funda. Nesse sentido metafísico é que se pode entender a afirmação de
Leibniz, de que “nada é sem fundamento”, já que todo ente pressupõe um fundamento racio-
nal que lhe seja o fundamento constitutivo e causal. O deslocamento pretendido pelo salto é a
compreensão do caráter infundado e abissal do próprio ser, independentemente de sua relação
com ente. Nesse sentido, o ser é abismo, sem-chão (Ab-grund). Ou seja, o que está em jogo é
saltar a fundamentação em termos metafísicos, a fundamentação do ente que caracteriza o
primeiro início da filosofia.
Mas essa transição não é o abandono puro e simples da fundamentação metafísica,
ainda que seja abrupta, não mediada e descontínua em relação a ela. O salto é desprendimento
(Absprung), “não deixa aquilo de onde ele se desprende atrás de si, senão que se apropria dis-
so de uma forma primordial” 398, isto é, de uma forma mais originária (ursprünglichere). O

397
HEIDEGGER, Martin. O princípio do fundamento. Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Piaget, 1999. p. 118
(Décima aula).
141

salto parte do solo metafísico para superá-lo, não para abandoná-lo. Antes, o salto volta-se
para o lugar de que saltou para se apropriar dele mais radicalmente pela alteridade atingida.
Isso significa que o primeiro início metafísico só pode ser radicalmente compreendido a partir
do salto ao outro início.
O salto é, portanto, essencialmente retrospectivo (zurückblickender), porque a área su-
perada é revisada a partir do espaço conquistado pelo salto. O salto não é uma progressão que
defasa o ponto de partida, não deixa para trás o desprendido. Antes, retoma essencialmente o
impensado subjacente no desprendido, na tradição metafísica. O impensado da metafísica de
que se parte, e de que se desprende, só é radicalmente pensado com o salto retrospectivo que a
enfoca a partir de outro espaço, do outro início.
Por isso, afirma Heidegger: “O salto desprende-se de uma e a partir de uma área de
desprendimento. O salto abandona esta área e não a deixa, contudo, atrás de si. Através do
abandonar, o salto recupera a área de desprendimento de uma nova forma” 399 A área a ser
ultrapassada pelo salto é a história do primeiro início do pensamento ocidental. É nessa área
que se dá a confrontação heideggeriana, e é só mediante o salto que essa área se torna com-
preensível ontológico-historicamente. Heidegger reforça em O princípio do fundamento que a
história é o destino do seer, e o traço fundamental desse destino é a retirada do seer que se
evade ao fundar o ente400. O seer é o fundamento abissal, porque é sem-fundo, infundado. A
retrospecção do salto é, pois, uma apropriação mais originária da fundamentação metafísica
que caracterizou o primeiro início.
O salto apropria-se originariamente da fundamentação metafísica de que partiu, de que
se desprendeu. O outro início não-metafísico só pode ser conquistado quando se suplanta o
princípio do fundamento como sendo o ente, em proveito do princípio do fundamento como
sendo o próprio ser, considerado em si mesmo. Esse é o núcleo argumentativo de O princípio
do fundamento. Quando se considera o ser nele mesmo, percebe-se que ele mesmo não tem
fundamento algum, não há razão suficiente que o explique ou o cause. Ele é sem-causa, sem-
chão, sem fundamento, sem fundo (Ab-grund).
Enquanto fundamento metafísico do ente, o ser é fundamento. Mas, metafisicamente,
o ser não tem fundamento, funda-se a si mesmo. Na sétima aula do texto estudado, O princí-
pio do fundamento, Heidegger assegura, de modo preciso, que “Ser ‘é’ na essência: funda-

398
HEIDEGGER, Martin. O princípio do fundamento. Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Piaget, 1999. p. 93
(Oitava aula).
399
Ibid., p. 103 (Nona aula).
400
Ibid., p. 103-104 (Nona aula).
142

mento. Por isso o ser nunca pode anteriormente ter um fundamento, que o deva fundamentar.
Em consequência disto, o fundamento do ser permanece fora. O fundamento permanece fora
do ser.”401. Em uma passagem como essa, Heidegger evidencia a impossibilidade de se pensar
a questão do ser no interior das fronteiras metafísicas. O ser é impensável metafisicamente,
pois, sendo fundamento ontológico do ente, ele mesmo não tem um fundamento ontológico.
Ele é causa de si mesmo, o fundamento de si próprio. Como não tem um fundamento que lhe
seja anterior ou exterior, transcendente ou transcendental, o ser é, ele mesmo, sem fundamen-
to. Não fundamentado, o ser é abismo, e somente pode ser atingido mediante o salto que dis-
pense toda relação metafísica com o ente.
A transição promovida pelo salto se dá mediante um pensamento rememorativo-
antecipador. O próximo item estudado trata dessa dupla natureza da meditação histórica, a
lembrança do primeiro início e a antecipação do outro início: o fim é impensável sem o início,
assim como o início só é perceptível a partir do fim. É com Nietzsche que Platão é pensável
em sua inteireza, e é só a partir de Platão que Nietzsche torna-se historicamente inteligível.

1.8 Andeken e Vordenken: o impensado a ser pensado

O salto se conforma com um pensamento de dupla característica: ele é rememorativo e


antecipativo (andenkend-vordenkende), pois promove a unidade do sido e do porvir. O salto é
um pensamento rememorativo porque é retrospectivo, lembrando-se da história superada do
primeiro início a fim de apropriá-la, conquistando o que, nela, permaneceu impensado e digno
de ser pensado. Ora, o impensado é o acontecimento apropriador, a clareira do seer de que
provém toda ontologia histórica. O caráter antecipativo concerne à preparação e instauração
do outro início, a partir do deslocamento do primeiro início, do qual o salto se distancia recu-
perando o que ele tem de mais próprio.
Por isso, diz Heidegger: “o salto abandona a área de desprendimento e, ao mesmo
tempo, recupera novamente o abandonado na memória, de forma que o ter sido só agora se
revela imperdível.”402 O salto acarreta não somente essa visada ao passado essencial, ao ter-
sido da destinação retrativa do seer, mas à liberação do impensado digno de ser pensado nesse
passado. Assim, nota-se que há um gesto voltado ao futuro nessa recuperação apropriativa do

401
HEIDEGGER, Martin. O princípio do fundamento. Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Piaget, 1999. p. 81
(Sétima aula).
402
Ibid., p. 93 (Oitava aula). p. 131 (Décima primeira aula, tradução modificada).
143

passado ontológico. Para além de toda repetição e regresso, o salto é um “antepensar recor-
dante”, porque o salto
Não salta nem para fora da área de desprendimento, nem adiante para uma zona separada de
si. O salto permanece salto apenas como memorial. Re-cordar, isto é o destino sido, exprime,
contudo: refletir, e na verdade sobre aquilo ainda impensado no sido como o a-ser-pensado. A
este corresponde o pensar apenas como ante-pensado. Re-cordar o sido é ante-pensar no im-
pensado a-ser-pensado. Pensar é antepensar recordando.403

Como entender esse pensamento recordante-antepensante? Seguindo a argumentação


de Zarader 404, pode-se dizer que há uma convergência entre o gesto rememorante e o precur-
sor-antecipativo. O Andenken é a o ato da memória, o pensamento que se volta para trás, re-
trospectivamente. Mas não é um retorno historiográfico, regressivo ou arqueológico. É uma
busca do futuro preso no passado, do impensado a ser liberado para que possa desenrolar o
porvir. Ou seja, o Andenken é insociável do Vordenken que o motiva.
O Vordenken é o avanço ou preparação que antecipa o futuro, o momento prospectivo
da meditação histórica. Essa prospecção não é um avanço modernista ao futuro, uma confian-
ça resoluta com os olhos fixos no amanhã para além do seu vínculo com o passado que o ori-
ginou. Ao contrário, é um olhar para frente dinamizado pela retrospecção e pela vinculação
com o passado originário da destinação do ser. O futuro não é menos destinal do que o passa-
do; o futuro é tão histórico, no sentido de ser epocal, quanto o passado.
Desse modo, em ‘Identidade e diferença(‘O princípio da identidade’)’, Heidegger re-
conhece a dimensão inescapável da tradição, na qual sempre nos movimentamos: “Ela [a tra-
dição] impera quando nos liberta do pensamento que olha para trás e nos libera para um pen-
samento do futuro, que não é mais planificação.”405 Não é possível olhar para o futuro sem
ligá-lo ao passado tradicional de que ele desponta; assim como, reciprocamente, não se pode
mirar o passado sem buscar nele o destino do seer que conformará o futuro essencial. Somen-
te nessa reciprocidade do “já pensado” e do “que está para ser pensado”, é que passado e futu-
ro podem ser pensados historicamente: “Mas, somente se nos voltarmos pensando para o já
pensado, seremos convocados para o que ainda está para ser pensado.” 406

403
HEIDEGGER, Martin. O princípio do fundamento. Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Piaget, 1999.p. 138
(Décima segunda aula).
404
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.34.
405
HEIDEGGER, Martin. ‘O princípio da identidade’, p. 187. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp. 179-202.
406
Ibidem.
144

Com efeito, em ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, Heidegger articula o fim


do primeiro início com o pensamento de antecipação e preparação para o outro início, a partir
do que há de impensado nesse início, mas que só vem à tona no momento de seu exaurimento
final. Não se trata de predizer o futuro, pois “o pensamento preparador em questão” “procura
apenas ditar para o presente algo que há muito, exatamente no início da Filosofia, já lhe foi
dito, e que, entretanto, não foi propriamente pensado.” 407 O pensamento preparador (Vorden-
ken) volta-se ao impensado do primeiro início que desponta no seu fim, descerrando as possi-
bilidades da superação da metafísica, do outro início não-metafísico do pensamento, agora já
não entificante. Esse pensamento, então, é uma meditação histórica no sentido epocal do te-
mo, pois precisa “pensar sobre a historicidade daquilo que garante à Filosofia uma possível
história.”408 O elemento histórico é a coisa do pensamento, o acontecimento apropriativo do
seer que caracteriza cada época da filosofia.
O início da filosofia enquanto metafísica, enquanto platonismo, só é totalmente visível
quando chega ao fim, perfazendo o arco de todas as suas possibilidades. Para Heidegger, o
fim não tem o sentido negativo de pura cessação de um processo, de decadência, ruína ou
impotência. O acabamento da Metafísica tampouco é a sua plenitude final, “sua suprema per-
feição”409: “o fim da filosofia é o lugar [Ort], é aquilo em que se reúne o todo de sua história,
em sua extrema possibilidade.” 410 O fim da filosofia é essa reunião, que associa a filosofia à
noção grega de logos, como reunião dialética e sintética que promove a unidade subjacente à
diversidade de figuras platônicas da metafísica. Essa unidade é visada a partir do impensado
imperante em cada uma delas: o fato de serem direcionadas pela pergunta diretriz a respeito
da entidade do ente.
Como analisado ao longo deste capítulo, a volta heideggeriana ao passado nunca é
passadista ou arcaizante, de modo que o pensamento rememorante sempre visa à futuridade
do passado originário, aquilo que, como impensado, pode imergir se devidamente preparado.
Desse modo, o pensamento histórico é preparador, porque, ao rememorar o primeiro início,
destrói a tradição que o avassala para liberar o que, nele, há de impensado. Alcançada medi-

407
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p. 74. In: Conferências e escritos filosó-
ficos. Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 65-81. Para padronizar a
terminologia heideggeriana, optou-se pela tradução de “Anfang” por “início” e não por “começo”, conforme
distinguido pelo próprio Heidegger em Hinos de Hölderlin, referido abaixo.
408
Ibidem.
409
Ibid., p. 72.
410
Ibidem.
145

ante o salto para o outro início, a coisa do pensamento é o impensado a ser pensado no primei-
ro início, e a isso Heidegger designa aletheia: “A aletheia é o impensado digno de ser pensa-
do, a coisa do pensamento”411.
Para pensar radicalmente essa coisa do pensamento digna de ser pensada é necessário
destruir a tradição que a encobre, que a impede de ser radicalmente questionada pela dimen-
são metafísica de que se reveste a noção de verdade como correção. O pensamento rememo-
rante-antecipador provoca, assim, a destruição que franqueia o impensado da história do seer,
liberando-a dos encrostamentos metafísicos que a alienam. De fato, em ‘Hegel e os gregos’,
Heidegger observa que
A tradição corretamente experimentada traz para nós como resultado o presente, aquilo que,
como coisa do pensamento, espera por um encontro conosco e está desta maneira em jogo. A
autêntica tradição não é de maneira alguma a sequela de cargas do passado; ao contrário, ela é
aquilo que nos liberta para o que está à nossa espera, tornando-se, deste modo, orientadora
que nos conduz para o interior da coisa do pensamento.412

É esse caráter de futuridade, o elemento “à espera”, que torna a meditação histórica


um enlace do início e do fim da filosofia. Nesse sentido, Casanova ressalta a imbricação das
noções de fim e início no âmbito do pensamento rememorante-antecipador, ao intitular um
importante subitem de seu estudo sobre Heideger de ‘O início do fim: a transformação essen-
cial de physis, logos e aletheia’413. Com isso, o estudioso e tradutor de Heidegger sublinha o
fato de o início só ser delineado a partir do fim. O fim, a consumação final da filosofia en-
quanto metafísica, enquanto platonismo, só é discernido a partir do exaurimento das possibili-
dades do início, que se reúne e se exaure na sua consumação final, apontando para o outro
início.
Se o início só pode ser enfocado adequadamente pela perspectiva global do fim, e o
fim é condicionado pela destinação epocal do início, a meditação efetivamente histórica é um
pensamento que se lembra do início a partir da sua consumação final, da qual desponta outro
início; ou seja, o pensamento rememorante é, também e essencialmente, antecipador. Mas
deve-se notar que, por ser baseado no impensado do primeiro início, nas possibilidades laten-
tes da tradição metafísica, o pensamento antecipador não é a “fundação” de outro início, mas

411
HEIDEGGER, Martin. ‘Hegel e os gregos’, p.452. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Petró-
polis: Vozes, 2008. pp.436-453.
412
Ibid., p. 437.
413
Cf. CASANOVA, Marco Antônio.Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009, p.194.
146

a sua preparação, de modo a “despertar uma disponibilidade do homem para uma possibilida-
de cujos contornos permanecem indefinidos, e cujo advento, incerto.”414
Essa unidade do Andeken e Vordenken demonstra que apropriação e superação são
gestos inseparáveis da meditação heideggeriana, os quais não podem ser confundidos com a
mera projeção de um futuro imaginado ou abandono que despreza o passado. Como salto que
se afasta da tradição, destruindo-a para compreendê-la na sua verdade essencial, pode-se
afirmar que o Andenken é uma apropriação da herança grega do pensamento ocidental. Por
sua vez, o Vordenken tem a dimensão prospectiva de superar a tradição a partir da reconstitui-
ção do impensado nela latente, alcançando um texto completamente diferente, ainda a ser
pensado. Trata-se, com efeito, da superação da metafísica hegemônica na tradição do primeiro
início 415.
A força do pensamento rememorativo-antecipativo é a sua unidade; cindir as instân-
cias que o compõem significa neutralizá-lo. Ou seja, é inadequado separar na meditação hei-
deggeriana o impensado do primeiro início do a ser pensado do outro início. Ambos só sur-
gem na dinâmica do trânsito, não estão previamente dados. Ora, esse trânsito se efetua com o
salto que destrói a tradição metafísica consolidada que poderia servir de referência para dis-
tinguir o primeiro do outro início. Quando o primeiro início ganha contornos verdadeiramente
históricos, quando o salto o enfoca sobre o acontecimento apropriativo de uma época do seer,
dessa dimensão impensada do primeiro início, emerge o a ser pensado do outro começo. Ou
seja, tanto o impensado quanto o a ser pensado pertencem à categoria do ainda não pensado.
O passado grego impensado precisa ser redescoberto a partir do que resta a ser pensado no
futuro e, ao mesmo tempo, recriado à luz do outro início. Com a destruição da tradição meta-
física até então inquestionável, não há uma referência sólida para discernir os elementos re-
trospectivo e prospectivo da meditação heideggeriana. Com efeito, como ensina Zarader, “o
Vordenken só esta voltado para o futuro guardando a memória do passado, e o Andenken só
está voltado para o passado para nele descobrir o futuro ainda inviolado, e sempre à espera,
que aí se encontra abrigado.”416
Essa “indissociabilidade profunda entre retomada e superação”, que caracteriza a confronta-
ção heideggeriana com os gregos em geral e com Platão em particular, também é sublinhada
414
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, pp. 65-81. In: Heidegger – Os pensado-
res. Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p.74.
415
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.
35.
416
Ibid., p. 36.
147

por Benedito Nunes, ao analisar a hermenêutica heideggeriana da viragem. Denominada “prá-


tica meditante”, a meditação heideggeriana comporta dois momentos inseparáveis, uma lida
arqueológica com os pensadores originários e a inauguração de outro início do pensamento,
“a abertura para um novo tempo e para uma nova História” 417, com a correspondência ao ape-
lo retraído do seer. Nesse sentido, explica Nunes: “a prática meditante de Heidegger prepara-
ria o futuro com a matéria ‘arqueológica’ do impensado, daquilo que, vislumbrado na origem,
e logo depois esquecido, seria pensável ou lembrável, inaugurando outra era.”418
Heidegger se volta para o primeiro início a fim de saltar para o outro início. O salto al-
cança o futuro irrompendo do passado. Para isso, é necessário pôr-se à escuta das palavras
fundamentais da aurora grega para perceber nelas a experiência impensada à espera de futuro,
o destino retido da história do seer que convoca outro acontecimento apropriativo, prenhe de
futuridade. Ao destinar a época histórica da metafísica, o seer retém-se em si mesmo, no
abismo sem fundo que é o dele, na clareira. O primeiro início, então, abriga e dissimula a ori-
gem da história. A origem não é transparente nesse primeiro início, é necessário destruir a
tradição para alcançá-la por meio de um salto originário. Elucida Zarader: “Heidegger visa
menos um retorno ao começo do pensamento do que uma aproximação do impensado origi-
nal: o seu diálogo com as palavras do começo é esforço para reconstituir o texto da ori-
gem.”419
Essa distinção entre início e origem sobressai com a noção de salto originário, que ar-
ranca a origem impensada do primeiro início . Com efeito, em Hinos de Hölderlin – curso
ministrado em 1934-1935, um ano antes do início da elaboração das Contribuições -, Heide-
gger afirma que
o início é aquilo com que algo se inicia, o princípio [Anfang] é aquilo de onde isso
vem. A Guerra Mundial principiou há séculos na História espiritual e política do
Ocidente. A Guerra Mundial começou com escaramuças entre postos avançados. O
começo é cedo deixado para trás, desaparecendo na continuação dos acontecimen-
tos. O princípio, a origem [Ursprung], pelo contrário, evidencia-se primeiramente
por entre os acontecimentos e só no fim destes está plenamente presente.420

Esse trecho deixa clara a diferença entre o começo historiográfico de um fato – as es-
caramuças da Guerra Mundial, por exemplo - e o princípio epocal que compõe o destino da

417
NUNES, Benedito. No tempo do niilismo. p.15. In: No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática,
1993. pp. 7-21.
418
Ibidem.
419
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.29.
420
HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Trad. L.Nahodil. Lisboa: Piaget, 2004. p.11.
148

história do seer. Só o princípio destina, pois o principio é o envio retraído do seer na totalida-
de do ente. Só o princípio (Anfang) remete à origem (Ursprung); ocioso voltar-se ao começo
factual e historiográfico dos acontecimentos. O princípio permanece sempre anterior a qual-
quer começo, mantendo-se também distinto desse começo ao longo da história. Por mais que
reconhecido e catalogado em um memorial historiográfico, o começo é sempre superado his-
toriograficamente pelo acontecimento subsequente, sendo apenas um marco cronológico ini-
cial. O princípio, por sua vez, permanece vigente ao longo dos transcursos temporais da histó-
ria. Mas essa permanência se dá de modo velado, com o que se delineia a segunda diferença
do princípio e do começo: além da anterioridade, o princípio é sempre ocultado, consoante a
natureza epocal, retrativa do seer. O princípio não é velado a despeito da clareza do começo,
mas precisamente por causa dela. Em O que significa pensar?, Heidegger afirma que o come-
ço inevitavelmente “é o envelope que esconde o princípio”, assim como, reciprocamente, “o
início [Anfang] se esconde (verbirgt sich) no começo.”421
Como discorre Zarader, o princípio é “a fonte inaparente de onde ‘brota’ (entspringt) o
processo, e em direção à qual o começo não pode fazer mais do que ‘apontar’.”422 A dimensão
originária do princípio permanece velada na história, porque o seer se envia sempre retraído.
É o salto que alcança essa dimensão originária, abismando-se no seer sem fundo. Ou seja, o
salto busca a coisa origináriaimpensada à espera de um futuro. O salto, então, relembra essa
origem e lhe abre a possibilidade de um futuro, de outro início. Em outras palavras, o começo
é cronológico, posterior e claro, ao passo que o princípio é sempre histórico, anterior e velado:
a origem epocal, compreendida como a arché sempre presente nas decisões históricas do seer.
Desse modo, o salto ultrapassa o começo em direção ao princípio originário. A arché perfaz-
se como telos, plenificando-se no seu fim; é a força motriz e vetorial apontada no princípio
que só se completa no arco do seu fim, momento em que se torna inteligível. Essa é a dimen-
são histórica que interessa à meditação de Heidegger. O princípio do primeiro início precisa
ser perscrutado para que, desse princípio, se irrompa o outro início.
É exatamente essa noção que desponta no último capítulo de Nietzsche II, denominado
“A lembrança da metafísica”: trata-se de ir ao cerne do princípio do início, “cujo iniciar que
se ilumina permanece o que está por vir” (dessen sich lichtende Anfängnis das Kommende

421
HEIDEGGER, Martin. Qu’appelle-t-on penser? Trad. A Becker; G. Granel. 2a ed. Paris: Presses Universitai-
res de France, 1999. p.154.
422
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.32.
149

bleibt)423. Veladamente, o inicial (dasAnfängliche) é o acontecimento apropriativo que se an-


tecipa antes de tudo que está por vir, advindo como destino na história. “Ele [o inicial] nunca
perece, ele nunca é algo que passou.”424. Avesso à consideração historiográfica, afeita aos
fatos passados e acabados, o pensamento rememorante mira “no ser que se essencia (o que foi
essencialmente [Das Gewesende]) e na verdade enviada do ser”425
Tendo em mente todo esse complexo horizonte hermenêutico da viragem, que se
baseia na noção de acontecimento apropriativo, convém analisar agora a especificidade da
confrontação heideggeriana com Platão. A partir dessa dimensão transitiva da meditação his-
tórica, o salto aponta para o primeiro início platônico da filosofia. Assim como Nietzsche, um
texto decisivo como ‘A doutrina platônica da verdade’, por exemplo, pertence ao conjunto de
reflexões da década de 1930, década da elaboração de Contribuições. Ora, se as Contribui-
ções são a preparação expectante da transição ao outro início, respondendo pela dimensão
antecipativa do Vordenken, ‘A doutrina platônica da verdade’ pode ser considerada, para dizê-
lo com Sallis, “o retorno complementar ao primeiro início” 426.
Desse modo, a obra de Platão apresenta-se como absolutamente indispensável à di-
mensão rememorativa da fundação metafísica na presentidade (Anwesenheit) do ente. A mu-
dança decisiva que caracteriza o primeiro início platônico da filosofia pode ser observado pela
transformação da noção de aletheia (verdade), em sua relação com as noções de physis e idea.
É a submissão da aletheia à ideaque caracteriza o gesto platônico fundacional da metafísica,
que supera a compreensão do desvelamento ocultante presente na physis dos pensadores ori-
ginários pré-socráticos. Mas como o momento retrospectivo é indissociável do momento
prospectivo da meditação histórica, no primeiro início platônico sobressai uma ambiguidade
que aponta para o outro início e que o torna decisivo no fim da metafísica. Daí porque Platão
é, ao lado de Nietzsche, a coisa primordial do pensamento da superação da metafísica. Sendo
o início, a arché da metafísica, Platão também aponta para a sua consumação final, e para sua
superação. Metafísica e niilismo são correlacionadas, pela vinculação do início e do fim, am-
bos só pensáveis pelo salto ao outro início. É ao diálogo confrontativo de Heidegger com Pla-
tão, portanto, em sua irredutível complexidade, que esta tese agora se volta.

423
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução e apresentação M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2007. p. 371.
424
Ibidem.
425
Ibid., p. 371-372.

426
SALLIS, John. ‘Plato’s other beginning’, p.182. In: HYLAND, D; MANOUSSAKIS, J.P. Heidegger and the
Greeks – interpretative essays. Bloomington and Indianopolis: Indiana University Press, 2006. pp. 177-190.
150

2 IDEA

2.1 Ser como idea

Segundo o núcleo da filosofia de Heidegger após a viragem, a filosofia de Platão, co-


mo a de qualquer pensador essencial, é fundamentalmente uma investigação sobre o sentido
do ser: a tentativa de considerar o ser em si mesmo, mas que é desvirtuado e submetido rela-
ção do ser com o ente. Nessa afirmação sumária, percebem-se os dois elementos centrais da
análise heideggeriana de Platão: a possibilidade de uma ontologia fundamental, que interro-
gue o ser em si mesmo, e o desenvolvimento da metafísica, que vincula a análise do ser à do
ente.
Como estudado no capítulo anterior, a ontologia fundamental é um projeto, uma pos-
sibilidade, e isso deve ser sublinhado, uma vez que Heidegger considera que tal ontologia
ainda não foi realizada na história da filosofia ocidental; ao contrário, a tradição metafísica
dominante a impediu no exato momento em que quis alcançá-la. Isso significa que Heidegger
não nega que Platão, no alvorecer da filosofia grega, não tenha buscado o ser, em si mesmo
considerado, mas que ele errou o caminho ao condicioná-lo ao ente a que está sempre referi-
do. Ao elaborar uma ontologia metafísica, Platão teria entificado o ser e neutralizado a dife-
rença ontológica que o distingue radicalmente do ente. Ou seja, a filosofia de Platão busca o
ser metafisicamente, isto é, a partir do ente. A noção de metafísica, portanto, é um modo de
consideração do ser derivando-o do ente. O ser, portanto, permanece sempre vinculado ao
ente. Esse é exatamente o problema aos olhos de Heidegger. Deve-se desvincular da metafísi-
ca para que se alcance a ontologia, que seja uma busca do ser em si e por si, e não o ser em
relação ao ente. Isso implica desenredar-se do platonismo dominante da tradição metafísica da
filosofia ocidental, mediante a destruição desenvolvida pelo salto para o outro início, salto
esse pensado de modo correlato às noções de passo de volta e epoché, conforme explicado no
capítulo anterior. Nesse capítulo, volta-se a atenção para a noção fulcral de idea, para com-
preender a essência do platonismo para a meditação histórica de Heidegger.
Heidegger identifica na investigação platônica duas ordens de pergunta: 1. a pergunta
pelo ser do ente e 2. a pergunta pelo ser em geral, como se dá no diálogo O Sofista, que serve
de impulso inicial de Ser e tempo. Ora, se o primeiro tipo de investigação interroga a essência
desta ou daquela realidade, normalmente a essência de uma virtude relevante, a segunda per-
gunta direciona-se ao ser em si mesmo considerado. Para Heidegger, toda a tradição filosófica
151

caracteriza-se por esse desenvolvimento, que corresponde a um caminho incompleto da meta-


física (ser do ente) à ontologia (ser em si mesmo). O importante é a premissa heideggeriana de
que a filosofia é a investigação de um ente em seu ser, ou, dito de outro modo, a investigação
do ser a partir do ente a que pertence e em que se manifesta. A filosofia, portanto, é conduzida
por uma questão essencial que é ao mesmo tempo ôntico e ontológica: o que é o ente, consi-
derado em seu ser? Nesse sentido, a filosofia platônica ocidental é metafísica.
Compreendida essa pergunta ontológica da filosofia metafísica, interessa a Heidegger
entender o horizonte especulativo aberto por Platão e que condiciona a tradição dele advinda:
esse horizonte é o da ideia. Como assevera Heidegger em ‘O fim da filosofia e a tarefa do
pensamento’, o platonismo domina a tradição filosófica: “Filosofia é Metafísica. Esta pensa o
ente em seu totalidade – o mundo, o homem, Deus – sob o ponto de vista do ser, sob o ponto
de vista da recíproca imbricação. A metafísica pensa o ente enquanto ente ao modo da repre-
sentação fundadora.”427
Em seguida, Heidegger observa o fato de o platonismo metafísico dominar mesmo em
seus aparentes contrapontos, como o positivismo, o mesmo valendo para o pensamento anti-
platônico de Nietzsche. Segundo Heidegger, “a palavra fundamental do seu pensamento [de
Platão], isto é, a exposição do ser do ente, é éidos, idéa: a aparência na qual se mostra o ente
como tal.”428 Compreender o sentido eidético da idea é, então, necessário para traçar a fisio-
nomia da confrontação heideggeriana com Platão.
A noção de metafísica como representação fundadora, questão saliente dessa passa-
gem, será tratada adiante, no penúltimo item deste capítulo. Essa passagem reforça também o
argumento apresentado na introdução desta tese, de que Platão orienta todas as versões (pla-
tônicas) da filosofia ocidental, mesmo aquelas que lhe fazem frontal oposição, como a positi-
vista e a nietzschiana.
Nesse momento, porém, quer-se ressaltar a compreensão “idealista” de Platão, que
considera o ser do ente - a sua entidade ou essência (ousia) – como ideia. O objetivo deste
capítulo é mostrar como esse idealismo metafísico de Platão é essencialmente niilista, segun-
do a interpretação de Heidegger. Noção típica de sua filosofia, a ideia é a palavra de Platão
para designar o ser, é o modo como o ser se dá, o lugar onde ele habita, por assim dizer. Exa-
tamente por isso, é o lugar de que o ser se retira, se retrai429. Ora, como já explicado no capí-

427
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p.71. In: Heidegger – Os pensadores.
Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.pp. 65-81
428
Ibid., p. 78.
152

tulo anterior, no contexto do pensamento do Ereignis, as palavras fundamentais que ecoam o


seer refletem o modo como ele se envia, como dom, ao ente, ocultando-se nesse processo ale-
thético de clareira. Aprender a ouvir o seer nessas palavras essenciais significa perceber co-
mo, nelas, ele se oculta sob a aparência do ente. Nesse sentido, Platão é uma testemunha pri-
vilegiada desse desvelamento ocultante do seer na ideia, que caracteriza o primeiro início da
filosofia ocidental.
Como nota Heidegger na seção ‘Esboços para a história do ser enquanto metafísica’,
das preleções sobre Nietzsche, a ideia não responde à existência do ente (ao fato de que ele
exista, de que ele seja), mas à sua essência (àquilo que ele é, à sua quididade, que Heidegger
denomina Was-sein, o seu o-que-é). Isso concerne diretamente à natureza entificada e entifi-
cante do ser para Platão, pois essa essenciação do ser acaba por entificá-lo. Heidegger explica
em dez passos o modo do acontecimento apropriativo desapropriante com que o ser se essen-
cia na metafísica. Em primeiro lugar, a aletheia cai sob o jugo da idea, distanciando-se do
acontecimento apropriativo inicial; ou seja, o seer se desapropria de si no ente desvelado, e é
esquecido como sendo o dom. O ente doado vela o seer que o doou. É a isso que Heidegger se
refere, quando, no segundo passo, menciona o “abandono do ente em meio à presença” 430. A
metafísica idealista platônica considera o ser como a entidade do ente, a idea do ente; o seer é
a presença permanente do ente. Por isso, o terceiro passo registra a “predominância do apare-
cer e do mostrar”431, consignada pela própria palavra idea, como aquilo que se vê e se con-
templa. A subjugação da aletheia se dá pela compreensão do seer como fenômeno aparente,
presença permanente à vista. Essa é a dimensão eidética da ideia, que será explorada a seguir.
No quarto passo dessa argumentação, Heidegger afirma que o primado da ideia confe-
re dimensão normativa tanto ao eidos quanto ao ti estin, já que o ser é, em primeiro lugar, “o-
que-é”. Por ser ontologicamente prioritário, o ser é a dimensão normativa da realidade, a que
prescreve o modo como os entes devem ser. A Heidegger importa ressaltar, nesse passo deci-
sivo, que a ontologização da ideia acarreta a nominalização do ser e a perda do seu caráter
verbal, processual, essenciante e histórico. Ou seja, fica velada a dimensão de acontecimento
histórico e epocal do seer, o qual Heidegger intenta recuperar a partir da noção de aletheia.

429
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilismee. Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987. p. 93.
430
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.353.
431
Ibidem.
153

Substantivado, o ser torna-se nome, substantivo, substância, e isso o confunde com a entidade
do ente por ele desvelado. Diz Heidegger:
4. [...] O que precisamos levar em conta é em que medida o o-que-é como o ser
(idea como ontos on) dá mais espaço ao próprio ente, ao on, concebido nominal-
mente, do que ao on concebido verbalmente. A indecisão do ente e do ser no on e
em sua ambiguidade.

5. O primado do o-que-é traz consigo o primado do próprio ente sempre naquilo que
ele é. O primado do ente fixa o ser como o koinon a partir do en. O caráter distintivo
da metafísica está decidido. O uno como a unidade unificadora torna-se normativo
para a determinação subsequente do ser.432

A compreensão verbal do ente diz respeito à sua existência, ao seu próprio ser, como
elucida Heidegger em seguida, na mesma parte analisada. A dimensão nominal do ente é a sua
qualidade, a sua essência, a sua própria natureza de ente. Por isso, no passo sete da argumen-
tação, Heidegger afirma que, pensados de maneira inicial – com base no acontecimento apro-
priativo do primeiro início – “o nominal” é o próprio ente, ao passo que o “verbal” é o ser 433.
É essa distinção que Heidegger busca enfatizar: o ser é compreendido a partir do ente, como o
seu koinon, a comunhão dos entes que têm, como qualidade intrínseca, certa determinação de
ser. Pensado em uma dimensão dialética, o ser é resultado da reunião qualitativa do aspecto
essencial dos entes. Relegado assim à quididade do ente (Was-sein), o ser é afastado da di-
mensão existencial desse mesmo ente, do seu Sein. Mas essa dimensão existencial não se refe-
re somente à dimensão ontológica estática do ser, mas, principalmente, à dimensão processual
e dinâmica do modo como o ser se essencia, ou seja, o acontecimento apropriativo que funda
o ente.
N’A República, Platão apresenta uma definição precisa da ideia única como ser essen-
cial dos entes que gozam entre si de certa qualidade comum, abonando o que Heidegger afir-
ma no quinto passo acima citado. Essa passagem é importante para a compreensão heidegge-
riana de que a ideia diz respeito à quididade, à essência do ente, mas, ao mesmo tempo, mos-
tra a ambiguidade do binômio existência-essência que Heidegger identifica na metafísica pla-
tônica, pois é exatamente por ser a essência dos entes que a idea lhes confere também existên-
cia. Conferir a um ente a sua qualidade essencial é, ipso facto, conferir-lhe a sua existência, o
seu ser. Desse modo, Platão reúne as duas noções, o Was-Sein e o Sein, ressalvado o fato de o
ser a que Platão se refere com a ideia não ser o ser em si mesmo considerado, mas o ser do
ente, a entidade, chamada por Heidegger de Was-Sein. Ou seja, Platão não acede ao pensa-

432
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.353.
433
Ibid., p. 354.
154

mento histórico originário, à dimensão essenciante e epocal do seer, pois o considera a ideia
essencial do ente:
Há muitas coisas belas, continuei, e muitas coisas boas, e tudo o mais do mesmo gê-
nero, cuja existência [einai] afirmamos e que distinguimos pela linguagem [tonlo-
gon]. [...] Como também para a existência do belo e do bem si, e que para cada coisa
das que então apresentamos como múltiplas corresponde uma ideia particular, a úni-
ca que denominamos O que existe (ho estin).434

A ideia existe, é, porque é permanente, presença constante, serve de esteio aos entes
que dela participam e da qual extraem o seu ser provisório. Estribando as coisas sensíveis, a
ideia permanece em si mesmo imutável. Como explica Boutot, a ideia representa a essência
da coisa, aquilo que ela é como tal. A ideia, de um modo geral, nomeia aquilo que a coisa é
em sua essência; a ideia é o ser enquanto quididade da coisa 435. Uma passagem de ‘A teoria
platônica da verdade’é explícita nesse sentido: “É por isso que, para Platão, o ser possui sua
essência própria no o-que-é. Já uma denominação posterior denuncia que o verdadeiro esse é
a quidditas, a essentia, e não a existentia.”436 Ao considerá-lo como ideia, Platão privilegia a
significação essencial do ser em detrimento de sua significação existencial. Nesse sentido,
Platão segue a direção da pergunta socrática: ti estin, o que é? Sócrates interroga a essência da
coisa, o que ela é, e não se ela é, se ela existe. O ser é, antes de tudo, o ser essencial da coisa.
A caracterização platônica do ser como ideia leva a cabo a redução socrática do ser à essência.
Ou seja, para Heidegger, o binômio acima referido resolve-se com a primazia da essência
sobre a existência no interior da metafísica platônica. A existência ontológica do ente advém
da sua essência, o que acarreta dizer que a existência do ser, considerado em si mesmo, não é
pensada radicalmente, mas somente o ser como causa ontológica do ente, a essência que lhe
confere existência. Essa é a noção presente na passagem d’A República em que Platão refere-
se à ideia do bem, na complexa analogia do sol, como sendo a causa epistemológica da inteli-
gibilidade das ideias, assim como a causa ontológica da existência e essência delas (Rep.
509b). As ideias extraem seu ser e essência da ideia do bem, mas o que o filósofo tem em vis-
ta é sempre a multiplicidade de coisas sensíveis. A postulação das ideias é metafísica porque,
partindo da dimensão “física”, sensível, a transcende em direção à esfera da realidade que a
explique.

434
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. p.310 (Livro VI,
507 b2-3).
435
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism.Paris : Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987. p. 93.
436
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 237. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250.
155

No passo seis do ‘Esboço para a história do ser enquanto metafísica’, aqui em análise,
Heidegger explica que o Was-Sein (o-que-é) alija a determinação essencial do ser, que é exa-
tamente o acontecimento apropriativo. Como anota Heidegger em nota de rodapé, o aconte-
cimento apropriativo, que é obnubilado pela metafísica platônica, é o “in-ício”, o inicial que
reside “antes da diferença entre ‘o que’ (Was) e “que” (Dass). A inicialidade do início con-
cerne à “emergência” (Aufgang) e ao “vir à presença” (Anwesens). Com a consolidação meta-
física da idea, como “o-que-é” (Was Sein), perde-se de vista o processo que essenciou o ser,
isto é, a dinâmica de emergência com que veio a ser aquilo que é, o acontecimento apropriati-
vo como aletheia. A estabilização metafísica do ser na ideia indica a perda da “plenitude ini-
cial da essência do ser” pois concentra-se exclusivamente no “fato-de-ser” (Dass-Sein, hoti
estin)437.
Quando o ser é nominalizado, ou seja quando a dimensão verbal e processual do acon-
tecimento histórico-epocal da aletheia é reduzida à dimensão nominal de substantivo, de subs-
tância, a verdade passa a ser certeza, segurança cognitiva com base nas ideias inteligidas pelo
pensamento, com as quais se pode corrigir a esfera sensível. Essa é a junção da dimensão
cognitiva e normativa da ideia platônica, que transforma a dimensão da aletheia enquanto
emergência, como vir à tona do ser. A ideia é a essência do ente, garante-lhe “o fato de ser” (a
realidade efetiva, Wirklichkeit), persistindo como autoevidente, legítima, metafísica. Essa
configuração filosófica do ser como idea ilumina a realidade do ente, ao passo que obscurece
a natureza do acontecimento do seer que gerou essa própria configuração; daí porque a histó-
ria da metafísica é a história de um progressivo esquecimento do ser, que se desdobra em um
abandono do ser, no apogeu técnico do niilismo metafísico.
O idealismo metafísico platônico impede a questionabilidade da essência do ser, ao
considerá-la resolvida, respondida pela entidade eidética do ente. A inicialidade do primeiro
início é, então, velada. Heidegger denomina essa inicialidade de “a pegada inicial”, referindo-
se ao fato de o seer, embora se esquivando e se velando no desvelamento que provoca ao ente,
ainda deixar-se perceber como rastro, como lembrança distante. Ou seja, em Platão ainda se
pode perceber uma réstia do pensamento originário dos pensadores pré-socráticos que atenta-
ram ao acontecimento essenciante do seer, mas não na palavra idea que o vela, mas na palavra
aletheia que reconhece a ambiguidade do movimento essenciante do seer.

437
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. V.2. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.354.
156

Esse reducionismo essenciante do ser é fundamental para a compreensão heideggeria-


na do idealismo platônico da metafísica ocidental, que rege toda a história da metafísica, até a
sua culminância do sistema de Hegel e sua inversão em Nietzsche:
No fim [da transformação, operada por Platão e Aristótles, do sentido originário da
physis] surge, como nome normativo e predominante do Ser, a palavra idea, eidos,
‘ideia’. Desde então a interpretação do Ser, como ideia, domina todo o pensar oci-
dental, por através da história de suas transformações, até os dias de hoje. Nessa
proveniência está também fundado o fato de que, na conclusão grandiosa e final da
primeira etapa do pensamento ocidental – a saber no sistema de Hegel – a realidade
do real, o ser em sentido absoluto, foi concebido como “Ideia” e assim expressamen-
te chamado.438

A mesma dominância platônica se encontra presente mesmo nos momentos da história


da filosofia em que a metafísica como tal foi expressamente rechaçada e criticada, como no
positivismo e em Nietzsche, cuja filosofia é marcada pela tentativa agônica de se desprender
das malhas do platonismo e acaba por revertê-lo sem, contudo, livrar-se de suas categorias
fundamentais, como demonstra Heidegger ao longo de suas preleções sobre ele. Nesse senti-
do, ressalta Heidegger:
Com a interpretação do ser como ideacomeça, portanto, a meta-física. Para o tempo
subsequente, ela marca a essência da filosofia ocidental. Desde Platão até Nietzsche,
a sua história é a história da metafísica. E como a metafísica começa com a inter-
pretação do ser como ‘ideia’ e como essa interpretação permanece normativa, toda a
filosofia desde Platão é ‘idealismo’ no sentido inequívoco da palavra, no sentido de
que o ser é buscado na ideia, naquilo que é conforme à ideia e no ideal. Por isso, vis-
to a partir do fundador da metafísica, também se pode dizer: toda a filosofia ociden-
tal é platonismo. Metafísica, idealismo e platonismo significam, em essência, o
mesmo. Eles também permanecem normativos lá, onde se fazer valer contramovi-
mentos e inversões. Na história do Ocidente, Platão tornar-se o arquétipo do filóso-
fo. Nietzsche não designou apenas a sua filosofia como uma inversão do platonismo.
O pensamento de Nietzsche foi e é um único diálogo, com frequência muito disso-
nante, com Platão.439

O que importa sublinhar nesse momento é que Heidegger entende que a filosofia oci-
dental platônica se reduz à metafísica e que esse gesto inaugural e decisivo acarreta o desen-
volvimento ulterior do niilismo como esquecimento do ser. Mas isso não significa que o nii-
lismo seja uma possibilidade da metafísica; ao contrário, metafísica platônica é niilista porque
é idealista, porque impede que o ser seja pensado nele mesmo, permanecendo encoberto e
impensado pelo predomínio da ideia, que, sob o argumento de desvelar a essência do ente,
entifica o ser que se retrai. Mas a clareira, ela mesma, não é percebida com uma leitura linear
e literal de Platão; ao contrário, a dinâmica do acontecimento apropriativo que determina o
modo idealista e entificante que caracteriza a filosofia platônica é totalmente obscurecido pela

438
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p.200
439
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 166.
157

tradição metafísica, a qual precisa ser destruída para que os rastros desse acontecimento ve-
nham à tona. Será a partir de outra palavra fundamental, aletheia, que Heidegger poderá per-
ceber a fundação platônica do primeiro início e o consequente afastamento da noção originá-
ria de verdade como desvelamento ocultante do seer.
Ou seja, o niilismo é o destino da filosofia porque a metafísica é, desde Platão, inelu-
dível. As suas bases estão fincadas numa camada subjacente a partir da qual se desenrola toda
a conversação filosófica no Ocidente, no interior dos termos e categorias traçadas por Platão.
Para Heidegger, o estudo da história da filosofia é, portanto, a análise das consequências e
implicações do idealismo platônico, a inauguração da metafísica e o advento do niilismo. É
também uma meditação histórica, porque se confronta com a coisa mesma do pensamento, a
epoché do seer. Ou seja, trata-se de pensar a filosofia platônica a partir do acontecimento
apropriativo desapropriante que a caracteriza, para, em seguida, perceber o desenrolar dessa
metafísica consolidada e hegemônica, isto é, as variações históricas do mesmo envio alienado
do seer no desvelamento do ente.

2.2 O sentido eidético da idea

Fonte de recorrentes mal-entendidos, a noção de ideia platônica deve ser, em primeiro


lugar, distinguida da noção moderna que lhe foi sobreposta. Mais uma vez, é necessário des-
truir essa camada significativa posterior que oblitera o acesso ao significado originário desse
conceito filosófico. Tão radical é a diferença entre o sentido platônico e o moderno-cartesiano
que se pode dizer que o sentido moderno é o inverso, sendo um meio de compreender a ideia
platônica por oposição. No entanto, Heidegger enfatiza que essa distorção deriva da ambigui-
dade própria da metafísica platônica, que desloca o polo de veracidade da coisa para a sua
visualidade, abrindo a possibilidade para o idealismo moderno, o qual restringe à epistemolo-
gia subjetiva o critério de veracidade das coisas. Ou seja, é a ideia platônica que abre o hori-
zonte filosófico para o subjetivismo moderno, ainda que, em Platão, a ideia signifique o as-
pecto visual da coisa, independentemente do modo como é percebida pelo homem. Heidegger
sublinha que a passagem da visualidade da coisa para a visão humana e subjetiva que se tem
dela é uma transição metafísica preparada pelo solo platônico, antecipada pelo caráter eidético
e óptico da ideia platônica. Em primeiro lugar, convém distinguir, basicamente, o sentido pla-
tônico do cartesiano.
No sentido cartesiano, ideia é uma representação subjetiva, uma perceptio de um sujei-
to. Foi contra esse subjetivismo que enfatiza o polo epistemológico em detrimento do ontoló-
158

gico, que Platão cunhou esse termo, relacionado a objetividade e a exterioridade do aspecto
visual que a coisa apresenta, a despeito das perspectivas subjetivas que a enfocam, perspecti-
vas essas que são sempre relativas e mutáveis. Platão buscava algo consistente, para além das
aparências e das limitações dos homens, algo que subsistisse por si e de modo inalterável, não
o que os homens projetavam sempre imperfeitamente a partir do que viam, a partir de como as
coisas lhes pareciam. Heidegger explica que, para a compreensão efetiva da “idea” platônica,
deve-se afastar “toda e qualquer ligação com a determinação moderna da idea enquanto per-
ceptivo e, com isso, a relação entre ideia e ‘sujeito’.”440 Isso porque a noção de idea deve ser
associada, de imediato, à noção correlata de eidos, que “significa ‘aspecto’ (Aussehen).”441
Ora, mas o problema reside exatamente no fato de que “nós tendemos a compreender uma vez
mais o ‘aspecto’ imediatamente em termos modernos como a visão que formamos para nós
sobre a coisa.”442
Ou seja, ao invés de ajudar, a associação da ideaaoeidos, ao aspecto visual do ente
analisado, contribui para a subjetivação moderna dessa noção, que se concentra no fato de
cada coisa apresentar-se de modo diverso ao olhar do sujeito que a contempla. Se, para os
gregos, o aspecto era algo de objetivo, de exterior ao sujeito, algo que permanecia invariável
para os múltiplos olhares que o enfocavam, na modernidade, esse aspecto se torna subjetivo,
se torna dependente da perspectiva subjetiva do sujeito. Como se percebe, há uma inversão do
sentido da idea platônica na modernidade, à custa da visualidade, do caráter eidético e óptico
traçado por Platão. Mas, para o filósofo grego, essa caráter visual era a garantia da objetivida-
de e da exterioridade da idea. O visual tornou-se subjetivo no idealismo moderno, uma vez
que dependente do olhar. Explica Heidegger:
Pensado em termos gregos, o ‘aspecto’ de um ente, por exemplo, uma casa, ou seja,
o que é próprio à casa, é aquilo em que esse ente vem à tona, isto é, ganha presença,
alcança o ser. O ‘aspecto’ não é – pensado em termos ‘modernos’ – um ‘ângulo de
visão’ para um ‘sujeito’, mas aquilo em que o ente em questão (a casa) possui a sua
subsistência e do qual ele emerge porque se encontra constantemente aí, ou seja, é.
Visto a partir das casas que são singularmente, então, o que é próprio à casa, a idea,
é o ‘universal’ em relação ao particular, e, por isso, a idea obtém a caracterização
como koinon, como aquilo que é comum a muitos singulares.443

Muitos conceitos determinantes na compreensão heideggeriana da ideia platônica es-


tão condensados nesta importante passagem de Nietzsche: ideia como presença constante,
440
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.164.
441
Ibidem.
442
Ibidem.
443
Ibidem.
159

como essenciação do ser do ente, como emergência do ser, como subsistência (ousia, essên-
cia) e como universal (koinon). Essas noções serão elucidadas ao longo deste capítulo, com o
auxílio do curso Questões básicas da filosofia, proferido na mesma época do curso Nietzsche,
ministrado na segunda metade da década de 1930. Além disso, devem-se articular essas no-
ções com o acontecimento apropriativo, noção central no pensamento tardio de Heidegger e
que desponta, principalmente, na obra Contribuições à filosofia, já referida no primeiro capí-
tulo desta tese.
A ideia platônica não é o resultado de um ato mental de um sujeito pensante que repre-
senta um dado percebido. Não há o ato intelectual de projeção subjetiva na noção platônica de
ideia: não há criação, imaginação e elaboração mental de um sujeito para o qual um objeto se
apresenta. Para se compreender a ideia platônica, deve-se, desde já, excluir toda referência à
subjetividade moderna, uma vez que o homem, na Grécia, não era considerado um sujeito,
muito menos um sujeito idealista, que projeta na realidade aquilo que nela percebe subjetiva-
mente. Como se vê, o idealismo moderno continua sendo uma forma de idealismo platônico,
ainda que o reverta e lhe acrescente a subjetividade de que era privado. Interessa a Heidegger
tanto traçar essa diferença, quanto perceber como o idealismo moderno deriva metafisicamen-
te do idealismo platônico.
Pai do racionalismo moderno, Descartes concebe o pensamento humano como “repre-
sentação” (vor-stellen, colocar adiante, em frente), no sentido próprio do termo, como ato da
consciência subjetiva que põe diante de si o objeto para a visualização mental. A representa-
ção cartesiana é uma representação segura de si mesma, que se assegura a partir dela própria,
sendo o fundamento da verdade daquilo que ela representa. Ou seja, o que assegura a veraci-
dade é o próprio ato subjetivo de representação e não o objetivo visualizado. Em poucas pala-
vras, o ato subjetivo de representação, seguro de si mesma, fundamenta a verdade do que é
representado. De modo contrário, a ideia platônica é aquilo que sempre se dá do mesmo mo-
do, independente das representações subjetivas. A ideia platônica se põe e mesmo se impõe ao
sujeito como medida de seu pensamento e ação, ao invés de ser posta pelo sujeito 444.
Afastandoa noção moderna-idealista de representação, Heidegger enfatiza a noção fe-
nomenológica de apresentação. Ideia é manifestação do ser do ente, “aquilo em que esse ente
vem à tona, isto é, ganha presença, alcança o ser”445. É a essência do ente, o seu ser, que Hei-

444
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism. Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987.p. 99.
445
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. v.2Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.164.
160

degger chama também de “subsistência”, que “emerge porque se encontra constantemente aí,
ou seja, é.”446 Como explica Boutot, trata-se da “autoapresentação do ente ele mesmo. No
eidos, é a coisa mesma, e, mais precisamente, a sua essência ou quididade que se manifesta,
que se coloca à vista.”447
Ou seja, a ideia de um ente é o seu ser, a sua essência, aquilo que lhe permite vir à to-
na, conquistar a presença, tornar-se o que é. Quando se pergunta: “o que é o ente?”, a resposta
aponta para a sua essência, para aquilo que subsiste essencialmente como aspecto universal e
comum a todas as concreções individuais dessa entidade. A entidade essencial de um ente é o
universal, que abrange a identidade permanente de todas as concreções particulares dessa es-
pécie. É essa essência (quididade) que identifica e que permite que os entes particulares ve-
nham a ser, tornem-se o que são. Esse foi o modo como o ser se essenciou no primeiro início
platônico da filosofia, confundindo-se com a entidade do ente. Esse acontecimento apropriati-
vo desapropriante impede que o processo alethético de desvelamento do ser seja questionado
em si mesmo, uma vez que a estabilização do ser como ideia, como presença constante que
permanece e subsiste independente das concreções particulares, domina o questionamento
metafísico. Em Contribuições, Heidegger afirma que a idea é uma interpretação da aletheia
que prepara a determinação tardia da entidade como objetividade e que deve ser superada pelo
salto ao outro início, à outra pergunta inicial, que se refira propriamente à essenciação do seer,
e não ao resultado derivado desse processo448.
Ao ser considerado o aspecto exterior do ente, a noção platônica de idea relaciona-se
diretamente à visão, ao idein (noein), ao representar do re-presentado. Essa é a dimensão ópti-
ca da idea, com a qual se encontra intimamente ligada ao ato subjetivo de ver, de visualizar e
de representar. Mas o sentido originário da palavra grega remete, antes, ao brilhar, que res-
plandece para fora de si, do aspecto mesmo, o que o aspecto essencial do ente oferece para a
visão449. O eidos, a idea não é apenas a forma exterior de um ente, mas o modo com que ele
se essencia, se presentifica, ganha a presença, ou seja, a ideia é a palavra fundamental que
ressoa o acontecimento apropriativo do primeiro início da filosofia ocidental, que é a metafí-

446
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’, p. 237. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp. 215-250.
447
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987.p. 107.
448
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.174 (§109: ‘idea').
449
Ibidem.
161

sica platônica. Portanto, idea é um conceito ontológico, pois é pelo aspecto que algo se dá e se
faz. O aspecto é a essência do ente, é o que lhe dá consistência e lhe franqueia a existência.
Assim, pode-se perceber que essa noção não remete, originariamente, ao sujeito, à representa-
ção mental de quem projeta uma imagem formal de um ente. Ao contrário, o que está em jo-
go, aqui, é a presenciação, o presenciar-se, o resplandecer adiante, que se mostra a uma visão
eidética, que se revela como eidos visual. Ora, sé é possível aceder a essa visão eidética,é
porque a idea tem consistência ontológica, permanece imutável, invariável a despeito da mu-
tabilidade e errância dos entes particulares que dela derivam. Como anota Heidegger em Con-
tribuições, a idea, ao vir à presença, conquista estabilidade e constância 450, conquistando um
espaço ontológico de permanência que se deixa visualizar para além da variabilidade da di-
mensão sensível. A ideia platônica é inteligível porque é resistente às mudanças da esfera sen-
sível da realidade. Aqui desponta a diferença metafísica decisiva para a história do primeiro
início platônico da filosofia, a diferença entre “o que é” (ti estin, essentia, quidditas) e “aquilo
que é” (oti, existentia). “Um ente é um ente em virtude da presença constante, idea, o visto no
seu ser visto (aletheia).”451 O que se “vê” na manifestação eidética de um ente é a sua dimen-
são essencial, a idealidade do seu ser, que permanece constantemente presente para a visão
essencial capaz de captá-la. Assim, manifesta-se o ser de um ente, a partir da sua ideia.
Em ‘A teoria platônica da verdade’, Heidegger ressalta essa dimensão fenomenológica
identificada na manifestação eidética e ontológica do ente, que evidencia o seu ser na ideia
que o torna intelectualmente visível. Ou seja, a ideia responde à essenciação do ser do ente,
que o torna presente à vista, que o presentifica, que lhe confere existência:
A ideia é o aspecto que empresta visibilidade àquilo que se apresenta. A ideia é o
puro brilhar no sentido da expressão ‘o sol brilha’. A ideia não deixa ‘brilhar’ ainda
outra coisa (por trás de si), ela própria é o que resplandece, a única coisa que reside
no resplandecer de si mesma. A ideia é o resplandecente. A essência da ideia reside
no caráter de luminosidade e visualidade. Essa realiza a presentificação, a saber, a
presentificação daquilo que é cada vez um ente. No o-que-é do ente, o ente a cada
vez se presenta. Presentificação, porém, é efetivamente a essência do ser. É por isso
que, para Platão, o ser possui sua essência própria no o-que-é. Já uma denominação
posterior denuncia que o verdadeiro esse é a quidditas, a essentia, e não a existentia.
O que a ideia traz aqui e, deste modo, permite que seja visto, é, para o olhar voltado
para ela, o desvelado daquilo como o que ela se mostra.452

Nesse trecho, fica claro que a idea é o elemento essencial do ente, o que lhe dá exis-
tência, é a presentificação do ente. Essa é a marca característica do primeiro início da filoso-
450
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.174 (§109: ‘idea').
451
Ibidem.
452
HEIDEGGER, M. ‘A teoria platônica da verdade’, p. 237. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp. 215-250.
162

fia, que estabiliza o ser do ente na essência imutável da idea, perdendo de vista a dimensão
originária da aletheia como physis, isto é, como processo de desvelamento que simultanea-
mente vela o ser que se esconde no abismo da sua diferença.
Ainda que intrinsecamente ligada à visão (ao idein), uma vez que a manifestação eidé-
tica se mostra à visão intelectual que a focaliza intencionalmente, não se pode, de modo al-
gum, afirmar que Platão faz depender dessa visão intencional o ser da ideia. O ver não consti-
tui a essência da ideia; a sua essência é a manifestação do ser do ente. A ideia existe indepen-
dente do olhar intelectual que a focaliza e que desempenha papel passivo na sua apreensão.
Diferente da representação subjetiva, que é constitutiva do idealismo moderno, a ideia platô-
nica se propõe ao olhar, se impõe a ele, sem que seja por ele configurada. Ela se apresenta em
seu perfil objetivo, devendo o olhar filosófico e dialético acolhê-la tal como ela é, tal como se
manifesta. Não há que se falar em “produção” de ideia, o que resvalaria numa dimensão sub-
jetivo-representativa de que precisou se desvencilhar.
Com efeito, no livro X da República, Platão enfatiza a relação contemplativa e não
produtiva do artesão que contempla a ideia sem criá-la ou projetá-la a partir de si. A ideia, na
verdade, ninguém a criou, mas sempre foi tal como é, sempre o será, pois é eterna e imutável.
Concebê-la como “criação” ou “representação” é inseri-la na ordem temporal do devir, do
genesis, pressupondo que poderia não ter existido em algum momento, antes de sua criação.
Essa assertiva pressupõe também que haveria alguma possibilidade de a ideia não existir, o
que é impossível no âmbito da ontologia platônica. Diz Sócrates, n’ARepública: “Costuma-
mos, também, dizer que os obreiros desses móveis têm em mira a ideia segundo a qual um
deles apronta leitos e outros as mesas de que nos servimos, e assim para tudo o mais. Porém a
ideia em si mesma, o obreiro não a fabrica.”453
O artesão não produz a ideia, apenas o ente sensível a partir dela forjado. Para Heide-
gger, a noção platônica de pro-dução diz respeito ao desvelamento, ao fazer aparecer, ao ex-
por qualquer coisa à presença, manifestar o seu ser. É nesse contexto que Heidegger explora a
noção de demiurgo, hermeneuticamente traduzido por artesão ou obreiro, a partir da etimolo-
gia composta de demos e ergon. O demiurgo é aquele que trabalha (ergon) para o povo (de-
mos), isto é, aquele que tona público, que produz algo, que estabelece a presença da coisa ao
torná-la manifesta aos olhos de todos. Trata-se, portanto, da dimensão epifânica da produção
que se encontra ausente no fazer do artesão, que reproduz apenas o aspecto exterior, visível e

453
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. p.310 (Livro X,
596b).
163

sensível do ente, sem, contudo, colocar a própria coisa em presença, manifestar o seu ser, evi-
denciando a sua essência na luz da visibilidade. Inserido no âmbito da derivação sensível e
ôntica, o artífice não instala o ente na presença, não provoca o desvelamento do seu ser, não o
põe no âmbito ontológico do desencoberto. Em uma palavra, não o revela veritativamente,
não promove o processo da aletheia. Isso só pode ser feito pela própria natureza, physis, que,
segundo Heidegger, “é a palavra grega primieva para o ser mesmo no sentido da presença que
eclode a partir de si e que assim vigora”454.
Compreender a noção de physis é fundamental para perceber como ela foi transforma-
da na noção de idea, que altera substancialmente a compreensão do processo veritativo de que
ambas as noções procedem. A aletheia da physis corresponde ao momento pré-socrático em
que ainda se pode perceber o nexo ontológico do desvelamento do ente pela retração autove-
lante do seer. Por outro lado, a transformação platônica entificou o seer ao torná-lo a essência
eidética do ente, ao estabilizar na presença constante da ousia eidética o ser do ente, descui-
dando do processo de manifestação ontológico que implica a dupla e ambígua característica
do seer que desvela o ente enquanto se vela no abismo da sua diferença.
O seguinte excerto de Nietzsche I comenta a passagem d’ARepública mencionada
acima, por isso merece atenção por articular as noções de physis e de ideia, que expressam
dois modos de acontecimento apropriativo da verdade:
He em ten physein ousa: ‘a cama que é na natureza’ significa: o que se essencia no
puro ser como o que se presenta a partir de si, o que provém a partir de si se encon-
tra em uma contradição com o que só é pro-duzido por meio de um outro. He physei
klinein: o que se pro-duz imediatamente por ele mesmo a partir de si mesmo em seu
puro aspecto. O que assim se presenta é o eidos puramente visado, o eidos que não é
por meio de nada diverso, que é pura e simplesmente, ou seja, a idea. Nenhum ho-
mem consegue levar tal coisa a luz, eclodir, phuein. Nenhum homem pode produzir
a idea, ele não pode senão vir a ser colocado diante dela.455

Como se percebe, a idea não é produzida por um ato subjetivo de representação, mas
é advinda, manifestada a partir de si mesma, pela eclosão espontânea de sua essência que pre-
sentifica o ente. Por isso, Heidegger afirma que nenhum homem pode produzir a idea de um
ente, porque não pode representar a sua essência de modo a criá-la, exatamente porque a es-
sência permanece, a presença constante desse ente não surge somente quando determinada
perspectiva a desvela. A essência eidética de um ente permanece presente à vista, independen-
te das representação subjetiva que a enfoque.

454
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. v.1. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
p.163.
455
Ibidem.
164

O modo como Platão afasta a possibilidade de considerar essa dimensão epifânica da


ideia como sendo uma atividade humana é atribuindo-a a deus. Naturalmente, não se deve
identificar nessa expressão qualquer dimensão teológica criacionista, cujo horizonte hebraico-
cristão encontra-se radicalmente ausente do pensamento grego. Heidegger associa a noção de
deus à noção de physis, precisamente como evento veritativo de manifestação do ser do ente,
eclodindo na luminosidade que torna esse ser visível à visão noética do homem, presente à
sua contemplação intelectual. Por essa razão, Heidegger afirma que: “O deus: ele deixa a es-
sência emergir – physin physei. Por isso, é chamado de phytourgos, aquele que cuida da eclo-
são do puro aspecto e o mantém pronto para que o homem possa visualizá-lo.”456
Como se vê, o artesão não pode “criar” a ideia, não pode manifestá-la ou evidenciá-la
com sua techné. O máximo que pode fazer é estar em sua presença e contemplá-la, apreender
a sua forma intrínseca, essencial para reproduzi-la mimeticamente em sua atividade poética de
confecção do móvel (leito). No contexto de derivação mimética dos planos de realidade, ana-
lisados por Platão no livro X d’ARepública, a ideia é, para o artesão, a regra e o critério da sua
atividade poético-mimética. A ideia lhe é anterior, preexistente e, por isso, orienta o seu traba-
lho poético-mimético derivado. Como observa Boutot, “o homem não é jamais a origem da
ideia, ele não pode jamais decidir o que deve ser o perfil essencial do ente.” 457 Ao contrário, a
significação eidética da ideia reforça o sentido contrário: a ideia é o que se manifesta para a
visão, o que se dá a ver, o que se propõe à vista, e não o que é criado pela representação sub-
jetiva de quem vê, tal como a modernidade a concebe. Esse procedimento comparativo de
dois momentos da história da filosofia caracteriza a meditação histórica heideggeriana que
procede por confrontação de palavras fundamentais e pensadores, sempre discernindo o que
tem de comum, o acontecimento apropriativo que orienta a pergunta diretriz da tradição meta-
física ocidental, e o que tem de diverso, que é o desdobramento histórico a partir da abertura
hermenêutica do primeiro início.
Desse modo, a atividade prática do artesão nunca é meramente prática, isto é, nunca é
totalmente desprovida de alcance teórico no sentido de contemplação eidética. Todo homem
já está inserido desde sempre na relação ideia-ente que caracteriza o agir humano, sendo a
ideia a medida, o modelo e principalmente o critério do ente, tanto o sensível secundário,
quanto o poético terciário. Secundário e terciário, aqui, são ordenações que se referem à pri-

456
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.
165.
457
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism Paris: Presses Universitaires de France,
1987.p. 110.
165

mariedade da ideia, como dimensão ontológica primeira da realidade. É a partir dela que se
derivam as outras esferas da realidade, a sensível e a poética. A poética também é sensível, é
uma cópia sensível da realidade natural sensível. Comparadas com a ideia inteligível, ambas
sao derivadas e imperfeitas, mutáveis e inconstantes, submetidas ao fluxo do devir.
Essa concepção platônica tão debatida é fundamental para se pensar a verdade como
adequação eidética e a consequente subestimação da atividade artística como intrinsecamente
afastada da realidade inteligível. Heidegger explica que a atividade mimética do artesão de-
pende do aspecto paradigmático da ideia, pois sempre que está produzindo um objeto de car-
pintaria, por exemplo talhando uma mesa, “o carpinteiro procede pros tem idean blepon poei-
en, ele faz esta e aquela mesa ‘na medida em que olha para a ideia’. Ele tem ‘em vista’ qual é
o aspecto geral de uma mesa.” 458 Entretanto, o carpinteiro não produz o aspecto, a idea da
mesa, tampouco produz a forma ideal dos seus instrumentos de trabalho, ou a sua atividade
laborativa. Em toda ação, e diante de qualquer instrumento presente à mão ou à vista, o car-
pinteiro, como qualquer homem, procede contemplando as formas que delineiam a estrutura
eidética da realidade, que é sempre mimetizada na realidade sensível. Questiona Heidegger:
“O carpinteiro também produz o aspecto da mesa? Não. ‘Nenhum dos artesãos é capaz de
produzir cada vez a ideia mesma’” 459
A atividade produtiva do carpinteiro serve a Platão como exemplo emblemático do ti-
po de relação que estrutura a lida cotidiana com as coisas sensíveis e delas derivadas. Essa
relação é pensada como modelo-cópia: o sensível é cópia do inteligível, tanto quanto o produ-
to da carpintaria, ou a obra de arte, é cópia do sensível. Essas três dimensões de realidade são
pensadas em uma hierarquia de derivação ontológica, na ordem inteligível, sensível e miméti-
co. A relação que as liga é a mimesis. Com essa articulação filosófica, Platão pretende subor-
dinar a atividade prática, independente de sua natureza e complexidade, à cognição científica,
e isso se dá a partir da noção grega de techné. Techné é uma atividade baseada num conheci-
mento sólido, científico a respeito do objeto da prática. Ou seja, mesmo o carpinteiro, ao ta-
lhar uma simples mesa, precisa contemplá-la em sua forma eidética, pois a estrutura modelar
e paradigmática da mesa, não foi ele quem a criou. Ele apenas a contempla eideticamente para
reproduzi-la materialmente. A ideia da mesa é algo que o construtor “ele mesmo não pode
fazer”460, pois, como explica Heidegger,

458
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
p.157-8.
459
Ibid., p. 158.
166

a ideia está, para ele, pré-ordenada, e ele está sub-ordinado a ela. Portanto, como
construtor, ele já é de algum modo alguém que constrói a partir de um modelo. Des-
sa forma, não há absolutamente algo assim como um homem puramente ‘prático’;
esse mesmo sempre já é, e, com efeito, necessária e antecipadamente, mais do que
prático. Esse é a intelecção fundamental, à qual aspira Platão.461

Nessa passagem, Heidegger evidencia por que o artesão não pode ser considerado nem
meramente prático, nem um produtor do ser do ente, da ideia. A seguir, Heidegger explica o
significado filosófico da produção que o artesão realiza, a qual, não sendo ontológica, é, nada
obstante, uma forma derivada de criação, que manifesta um aspecto do ente, ainda que não
conceba nem crie a sua ideia, sua forma inteligível. A partir da ideia, o artesão mimetiza, ma-
terialmente, o aspecto visualizado do ser, o qual, como se viu acima, é o modo como o ser se
manifesta em meio ao acontecimento apropriativo. Pode-se dizer que o artesão “pro-duz” uma
versão sensível da ideia inteligível, do mesmo modo que o pintor reproduz imageticamente
um leito sensível, em outra versão derivada, assim como o artesão toma a ideia como para-
digma. O artesão participa da dimensão epifânica da ideia ao reproduzi-la num ente sensível,
mas não a concebe ou cria, apenas a manifesta sensivelmente a partir da manifestação feno-
mênica do próprio ser do ente como entrega retraída, que manifesta um aspecto do ser do ente
e esconde o próprio ser, ele mesmo, no abismo de sua diferença.
Ora, Heidegger destaca o fato de que, para os gregos, antes de ser produzido, ou fabri-
cado, o ente não é, não existe, no entanto, a sua ideia já sempre foi. Sem essa precedência
ontológica da ideia, não se poderia criar efetivamente nada. É por isso que no diálogo Timeu,
afirma-se que as ideias não foram jamais criadas, mas já sempre existiram no plano inteligí-
vel, que não conhece começo ou fim, não está submetido à caducidade e à transitoriedade da
dimensão da genesis. Heidegger elucida que, quando se diz que um ente produzido – como a
mesa do carpinteiro - é, isso significa que:
O produzido ‘é’ porque a ideia torna possível vê-lo como tal, torna possível que ele
se apresente no aspecto, isto é, que ele ‘seja’. E, somente nessa medida, o produzido
mesmo pode ser denominado ‘sendo’ (seiend). Fazer – fabricar significa, com isso:
trazer-para-a-automostração o aspecto mesmo em um outro, no fabricado, ‘pro-
duzir’ o aspecto, não fabricar ele mesmo, mas deixá-lo aparecer. O fabricado só ‘é’
na medida em que nele o aspecto, o ser, a-parece. A sentença ‘algo fabricado é’ diz:
nele se mostra a presença em seu aspecto. Um artesão é alguém que leva o aspecto
de algo até o interior da presença da visibilidade sensível.462

Ou seja, a criação mimético-poética produz a manifestação da ideia, do aspecto que dá


existência a um objeto de carpintaria que seja. Com a produção sensível da mesa, o carpintei-

460
HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.158.
461
Ibidem.
462
Ibidem.
167

ro evidencia o aspecto eidético dela, trazendo-o para o horizonte de desvelamento. Com isso,
ele não cria a ideia, mas a torna desvelada, manifesta. Ele permite que ela imerja de sua di-
mensão anteriormente ocultada. Nada obstante, nenhum carpinteiro poderá manifestá-la por
completo, pois há sempre um hiato entre a manifestação sensível da ideia e o ser, que se retrai
quando permite a manifestação do ente.
Heidegger insiste nessa diferença substancial entre a ideia moderna e a ideia platônica,
exatamente para especificar a radicalidade da ontologia grega e sua dimensão fenomenológi-
ca. Na esteira de Husserl – ainda que este não tenha levado a cabo estudos específicos sobre
os diálogos platônicos -, Heidegger afasta todo subjetivismo moderno na interpretação de Pla-
tão. Nada obstante, posteriormente, reconhece que a ideia platônica é base do idealismo niilis-
ta que encontra na subjetividade moderna sua culminância. Ou seja, o idealismo platônico é
essencialmente niilista, é a base do primeiro início que acarreta o esquecimento e, depois, o
abandono do ser. Esquecido, o ser é abandonado em proveito do ente que o domina no interior
de uma relação de implicação mútua. Considerado como entidade do ente, o ser é reduzido à
ideia do ente, o que permite o posterior desdobramento da subjetivação moderna que reduz o
ser à representação mental do sujeito.
Atente-se ao fato que a terminologia platônica – se é que se pode denominar assim um
vocabulário tão flexível e poético como o de Platão, muitas vezes refratário à cristalização dos
conceitos de que se vale – haure seu significado do uso corrente da língua, apropriando-se do
sentido primário da fala cotidiana para lhe conferir dimensão filosófica. Isso é fundamental
para Heidegger, que se interessa pela hermenêutica da facticidade e a experiência pensante da
língua. Eidos não são palavras forjadas artificialmente por Platão, mas, antes de terem o signi-
ficado de entes inteligíveis, já significam o aspecto exterior que uma coisa visível oferece aos
olhos sensíveis. Ordinariamente, eidos significada a face, a vista (Sicht), o delineamento visí-
vel, o traço visual, sua forma exterior.
Além desse significado primário e amplo, de considerável alcance filosófico, eidos
também tem o sentido mais estrito de figura geométrica. Do ponto de vista da apropriação
filosófica do termo, a forma inteligível tem em comum com a forma geométrica uma estrutura
imanente, que pode ser conhecida pelo intelecto humano. Essa forma geométrica é composta
por várias unidades menores, que podem ser organizadas na forma única do eidos. A partir
d’ARepública e do Fedro, pode-se afirmar que cabe a dialética reunir essas unidades em uma
totalidade plural, a partir de uma visão sinóptica. Ora, a dialética é exatamente composta por
esse método da reunião e divisão, chegando a unidades cada vez mais abrangentes e dividin-
do-as em suas partes menores constitutivas, num movimento complementar de ascensão a
168

unidades cada vez maiores e redução a uma pluralidade cada vez mais diversa. A forma inte-
ligível compartilha com a forma geométrica essa relação orgânica e estrutural de pluralidade e
unidade. A ideia-forma é, portanto, a unidade de uma multiplicidade e, também, uma comuni-
dade da pluralidade de coisas sensíveis. Por isso, Heidegger afirma que “a ideaé o ‘universal’
em relação ao particular, e, por isso, a ideaobtém a caracterização como koinon, como aquilo
que é comum a muitos singulares.” 463
No cursoProblemas básicos da filosofia, para explicar o processo de inversão da medi-
tação histórica, que parte da essência da verdade para a compreensão da verdade da essência,
Heidegger analisa a determinação platônico-aristotélica da essencialidade da essência. A es-
sência de um ente é a sua idea, e essa é a determinação fundamental do primeiro início platô-
nico da filosofia. Mas o que isso significa? Como compreender efetivamente o gesto originá-
rio de Platão que condicionou toda a história da filosofia ocidental?
Nesse texto, Heidegger identifica nove características correlatas da essencialidade da
essência, a partir de Aristóteles e Platão: 1. to katholou(universal); 2. to genos(gênero-
origem); 3. to ti en einai(a priori); 4. hypokeimenon (subjectum); 5. to koinon (comum); 6. to
ti estin (quidditas); 7. to eidos (aspecto visual); 8. idea (forma) e 9. ousia (essentia). Todas
essas características são correlatas à idea platônica, que pode ser considerada a palavra fun-
damental de Platão e do primeiro início da filosofia, pois a essência, pensada como entidade
do ente, é a idea da coisa.
A essência eidética de uma coisa é o universal que se aplica às várias instanciações
particulares desse ente. O universal é o critério que se sobrepõe e subjaz às suas múltiplas
configurações individuais possíveis. Os gregos valiam-se da palavra katá, de kategoría por
exemplo, para designar o que se sobrepõe às particularizações e as enfeixa “de cima”. Como
universal (koinon), a ideaé o que permite a reunião dialética das concreções particulares que
dela derivam. O todo é o que inclui cada particular em seu interior, chamado holon464.
Desse modo, como assinala Heidegger, a “entidade denomina o que há de mais uni-
versal nesse elemento maximamente universal: o mais universal de tudo, to koi notaton, o
gênero supremo (genus), o ‘que há de mais geral’”465. Como correlato metafísico, “diferente-

463
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.164.
464
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 53 (§17).
465
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II.Trad. M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.158.
169

mente do ser, o ente sempre é, então, o ‘particular’, aquilo que é ‘dotado’ de tal ou tal ‘modo
de ser’ e que se mostra como ‘singular’” 466.
Enquanto genos, a essência é o elemento comum que paira sobre os particulares, as
espécies que gozam de características comuns ao gênero universal. A essência é, portanto, a
classe que abrange as variadas particularizações da idea universal. A palavra genos forma,
também, a palavra geração, origem, derivação. O gênero eidético não é apenas uma abstração,
que generaliza a característica comum de entes que detêm propriedades assemelhadas. O gê-
nero é a origem ontológica deles, é a fonte da qual os particulares provêm. Como afirma Hei-
degger, somente com o domínio da lógica – que é uma deturpação do logos originário -, o
genos torna-se “classe no sentido de universalidade superior de um ‘tipo’” 467.
Ou seja, Heidegger percebe a redução ontológica que ocorre na tradição ocidental
quando a noção de gênero perde a sua substancialidade essencial e passa a ser considerado
uma simples abstração mental, uma generalização epistemológica sem qualquer conteúdo
ontológico efetivo. Isso significa que os particulares não derivam mais geneticamente do gê-
nero, sendo o gênero apenas o resultado de uma operação abstrativa do intelecto subjetivo
representativo. O que Aristóteles denomina genos, Platão chama to koinon, o elemento co-
mum em um conjunto de particulares. Ora, a universalidade desse elemento se dá exatamente
pela múltipla participação de vários tipos individuais que se caracterizam por esse elemento
geral e comum a todos eles. Irredutível às mostras singulares, a essência sempre as transcende
e lhes determina o elemento específico e característico.
Para que a essência seja o universal (to katholou) e o gênero-origem (to genos), ou o
comum (to koinon), é necessário que ela preceda os tipos singulares que ela determina, com o
que se chega à noção de a priori. Como necessariamente a causa antecede o resultado, então a
essência precede os particulares dela derivados. A essência é a origem, é o que explica o que a
coisa singular é. Por isso, a essência é considerada como sendo algo que, de algum forma, já
era antes de o singular ser, pois – para retomar o exemplo platônico comentado por Heide-
gger -, para que a mesa particular venha a ser, é necessário que a idea da mesa já seja de an-
temão. Sem a mesa em geral, em universal, ou em comum, a mesa particular não teria ne-
nhuma essência para se tornar o que ela é. Desse modo, na Metafísica (Z 3, 1028b), Aristóte-
les concebe a essência do ser (einai) de um ente particular, como aquilo que esse particular já

466
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II.Trad. M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.158.
467
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 54 (§17)
170

era (ti en) antes de tornar-se o que ele é. Pensada desta forma, a essência é to ti en einai, o que
um ente desde sempre já é para que ele possa efetivamente tornar-se aquilo que é. A dimensão
da essência como to ti en einaiserádesenvolvida na análise do caráter a priori da idea platôni-
ca, em item próprio a seguir.
Esses elementos apontam para o caráter precedente e subjacente da essencialidade da
essência. Assim, é possível delinear suas outras características. A que desponta em seguida,
na mesma linha de raciocínio, é a da fundação como substância, isto é como aquilo que está
sob, abaixo, como sustentáculo, dos entes individuais. A essência é o fundamento subjacente,
o que subjaz, o que permanece abaixo como apoio, como esteio, para que os entes singulares
tornem-se o que são. Essa é a noção de hypokeimenon (subjectum), posteriormente apropriada
pela filosofia subjetivista moderna para determinar a natureza do homem, sujeito cognoscente.
A essência é também to ti einai (quidditas), o Wassein de um ente, aquilo que é em
seu ser, o que está constantemente presente nesse ente. Nesse sentido, a essência é o que sub-
siste à possível eliminação de todos os exemplares particulares desse elemento essencial. Co-
mo ser, a essência resiste à mudança e à variabilidade de suas concreções singulares. O ser de
uma mesa é aquilo que está presente em todas as mesas, que as gerou como causa, que as fun-
damenta como substância, do mesmo modo que é o que subsiste mesmo depois da decadência
e da aniquilação desses objetos. Ou seja, subsiste como sub-jectum à revelia da eliminação
dos objetos nele sustentados.
Agora se chega nas duas características da essencialidade da essência que dizem res-
peito propriamente à palavra fundamental platônica, a idea e o eidos. A presença constante da
essência é o que se vê antecipadamente, como aspecto visual e exterior que se apresenta à
contemplação inteligível, para que se possa conhecer, nomear e identificar ontologicamente
um ente singular. Ainda que não seja tematizado ou considerado com atenção, a visão anteci-
pada da idea de um particular é condição de possibilidade para que o individual seja reconhe-
cido como tal, como instanciação da essência universal. O que é contemplado eideticamente é
o ser do ente que se manifesta inteligivelmente em antecipação à visão sensível. Esse ser es-
sencial é constante e imutável. O “que a coisa é” (Wassein) é a sua idea, sua essência (ousia).
Mais precisamente, assinala Heidegger, a idea é a vista que a essência apresenta, o aspecto
formal com que o ser se manifesta, o eidos do ente. Ou seja, a essência ideal e eidética de um
ente é vista (idein) antecipadamente pela manifestação do aspecto formal, que é o seu próprio
ser (ousia). Desse modo, Heidegger afirma que “o que é visto de antemão e como isso é visto
171

é decisivo para o que nós facticamente vemos na coisa individual.” 468 Mais uma vez, percebe-
se que não se trata de uma opção “teórica” ou “filosófica”, pois o aspecto da coisa se antecipa
a visão humana para lhe pré-determinar o ente singular enfocado, tanto quanto o construtor do
leito o contemplou eideticamente para poder realizá-lo. Tudo o que se vê nos particulares
sempre é determinado pelo aspecto essencial antecipadamente manifestado desse ente. É essa
manifestação essencial prévia que abre o campo de mostração em que a coisa pode ser estabe-
lecida469.
Consoante a análise heideggeriana da palavra fundamental de Platão, com que despon-
ta o primeiro início da filosofia, a partir do acontecimento apropriativo do ser que se retrai ao
desvelar a entidade do ente, a visão antecipada do aspecto de um ente (seu eidos), acede ài-
dea, àquilo que o ente é, à sua essência (ousia). A idea é a entidade do ente, é aquilo que ele é
essencial e substancialmente. A investigação ontológica platônica orienta-se, então, pela bus-
ca da coisidade da coisa, da entidade do ente, do que o ente é como tal. Ou seja, o primeiro
início se caracteriza como sendo a busca metafísica pelo ser do ente. Em temos gregos, isso
significa que: o ente (to on) é enfocado em vistas à sua determinação universal (to katholou),
geral (to koinon) e geradora (to genos), àquilo que ele é em seu ser (ousia). A essência de um
ente é, pois, a sua idea, o ser permanente e imutável que o gerou e que o engloba juntamente
com o conjunto de entes idealmente assemelhados. Segundo Heidegger, o ser do ente (ousia)
é que permanece fixo, sempre presente. Como presença constante, a essência é o que se mos-
tra, a auto-mostração da idea queoferece o seu aspecto visual (eidos) para a contemplação.
Sinteticamente, Heidegger considera a idea platônica com base nessa compreensão do ser
como entidade que é presença constante e que promove a sua própria abertura e mostra-
ção470. Ao apresentar-se e mostrar-se, a idea revela a entidade do ente, a sua essência, o seu
ser. Para Heidegger, o ser platônico é presença dotada de auto-emergência – pois vem à tona
para a visão eidética - e auto-mostração – pois revela a si mesma, revelando a essência do ente
visado.
Esse caráter de auto-mostração da ideai relaciona-se intimamente com a faculdade
humana de ver (idein), mas essa faculdade é mobilizada pela emergência da apresentação es-
sencial da idea. Ou seja, o idein humano não é a faculdade representativa com que o homem
estabelece a idea. Heidegger admite que essa noção platônica foi distorcida e perdida ao longo

468
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 59 (§17).
469
Ibid., p. 60 (§17).
470
Ibid., p.61 (§17).
172

da tradição, desdobrando-se no idealismo moderno, principalmente a partir da tradução latina,


quando a ideia deixa de ser compreendida como presença constante que se apresenta e se
mostra essencialmente, mas passa a ser considerada como a apreensão e representação parti-
cular, como imagem resultante dessa representação. Afirma Heidegger: “A idea torna-se a
mera representação (percipere-perceptio-idea) e, ao mesmo tempo, a generalização do parti-
cular (Descartes, nominalismo)” 471.
Para os gregos, o ser é presença constante, a essência das coisas individuais. O fato de
uma mesa individual “existir”, efetivamente estar presente à mão diante de um homem que a
percebe sensivelmente, não pertence a sua essência. Com efeito, do ponto de vista do pensa-
mento platônico do primeiro início, a essência de um ente é debilitada ou reduzida pela parti-
cipação na dimensão sensível, pois ela perde a sua pureza e, de algum modo, a sua universali-
dade472. Embora não se confunda com a instanciação particular do ente, quando a essência é
“atualizada” aqui e agora, com determinada dimensão física de tempo e espaço, quando in-
gressa na dimensão sensível da realidade, ela não goza mais de seu caráter de plena universa-
lidade, generalidade e identidade, pois uma mesa particular está sempre aquém de sua essên-
cia, e a essência da mesa contemplada a partir de uma mesa particular está por esta contami-
nada de impureza sensível que a distorce. Isso porque essa mesa particular jamais exaure to-
das a possibilidade e variabilidade da essência da mesa, mas é um exemplar restrito dessa
essência. É por essa razão que Platão almeja uma contemplação eidética purificada das distor-
ções que a consubstanciação sensível da idea acarreta. Se, por um lado, uma mesa particular é
um ente (on), tem existência e pode ser pensado pela sua essência ideal, por outro lado, esse
ente é uma constrição, uma redução ontológica, na medida em que, quando efetivamente
comparado com sua essência, com seu ser permanente, com a presença constante de sua for-
ma ideal, a mesa particular nãoé (me on), pois goza de uma existência transitória e derivada.
Como conclui Heidegger, para os gregos, nas coisas individuais ao nosso redor, que entretêm
relações entre si, o que propriamente é, é precisamente a essência que permanece constante
em cada ente individual, à revelia da caducidade e efemeridade, da parcialidade e particulari-
dade que o caracteriza. Essa essência que realmente é, é a ideia.
Ou seja, algo que efetivamente não é, que não tem uma existência independente do su-
jeito que a projetou ou intuiu. Em comparação com a ideia essencial, pensada em sentido pla-
tônico, a instanciação individual é acidental e não tem qualquer duração real, pois está subme-

471
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 62 (§18).
472
Ibidem.
173

tida à errância temporal. Por isso, a mesa será destruída da mesma forma como foi construída,
não existindo senão por um breve lapso de tempo. Por outro lado, a sua forma ideal é perma-
nente e resiste a qualquer mudança, por isso o primeiro início a determinou como a entidade
do ente (a ousia, o einai do on), determinável pela noção de idea473.
Com a inversão moderna desse termo, passou-se a considerar a ideia de um ente a re-
presentação mental ou a imaginação subjetiva, um mero pensamento desprovido de substanci-
alidade ontológica. Em outras palavras, uma operação dialética de abstração, de reunião dos
particulares em unidades mentais abrangentes e universais. Isso significa considerar a ideia
como um construto mental que resulta numa espécie de conceito geral abrangente. Contra
essa noção neokantiana moderna, Heidegger afirma a ontologia da ideia platônica, a sua exis-
tência presentificante do ser, aquilo que franqueia, ilumina a aparição do ente. Não se trata de
uma representação geral que vale para diversas coisas, uma simples abstração lógica que só
existe no pensamento humano, mas o aspecto real e único que as coisas têm em comum, aqui-
lo que têm de subsistente para além de sua materialidade sensível.
Como discutido no diálogo Parmênides de Platão, a ideia não é um universal abstrato,
um objeto do pensamento, não se limita de modo nenhum à ordem intelectual ou psicológica.
Em poucas palavras, não se trata de algo subjetivo, mas objetivo, que existe independente-
mente do intelecto que a contempla. Heidegger explica essa relação a partir de uma passagem
central d’ARepública, em Nietzsche I. No passo 596a d’A República, Sócrates afirma que está
habituado a postular (“a deixar estar diante de nós”) um eidos, que seja a cada vez único, um
vínculo com a dimensão (peri) “dos a cada vez muitos”, para os quais se atribui o mesmo no-
me. Heidegger elucida que, nesse contexto do diálogo platônico, eidosnão significa o conceito
que abrange os múltiplos individuais sensíveis, mas o aspecto inteligível desses entes. Eis
como ele o sintetiza: “Em seu aspecto, esta ou aquela coisa não se fazem atuais, presentes em
sua particularidade. Ao contrário, fazem-se muito mais atuais, presentes no que elas são. Estar
pre-sente significa ser; o ser é, com isso, apreendido na visualização do aspecto.”474
Aqui, percebe-se a afirmação de um dos postulados fundamentais da compreensão
heideggeriana da ontologia grega: ser é presença constante; assim, o eidos platônico é o ser
dos entes sensíveis na medida que é o aspecto ontológico deles, aquilo que eles têm de per-
manente. Quando uma forma intelectual é “posicionada”, vem à tona a “unidade do eidos”
que subjaz à “singularidade múltipla”. Unidade eidética e pluralidade singular são intuídas em

473
HEIDEGGER, Martin. Basic questions of philosophy. Selected ‘Problems’ of ‘Logic’.Tradução R.Rojcewicz e
A.Schuwer. Bloomington; Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 63 (§18)
474
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.155.
174

uma “ligação mútua”475. O que está em jogo, para Heidegger, é o modo como “a multiplicida-
de dos singulares” se torna “articulável com a unidade de seu aspecto uniforme.”476 Esse
“procedimento implica uma mútua acomodação entre os muitos singulares e o uno apropriado
da ‘ideia’, a fim de ter os dois em vista e de determinar a sua ligação recíproca.” 477Desse mo-
do, fica claro que, para Heidegger, trata-se de estabelecer não só a ligação entre unidade e
multiplicidade na operação dialética de apreensão da forma inteligível, mas de reconhecer a
dimensão ontológica da forma, que é o próprio ser da coisa, o seu fazer-se presente, pois a
ideia é o ser, a essência do ente sensível.
Em Contribuições, Heidegger também articula essas características da idea platônica,
sempre em vistas ao acontecimento apropriativo desapropriante que as singulariza. Ou seja,
Heidegger deseja conquistar consciência do primeiro início da filosofia a partir do envio alie-
nado do ser que se essencia presentificando o ente. A entidade do ente é a estabilização meta-
física do ser, que se torna “entidade” do ente. Com isso, o pensamento metafísico como um
todo é refém da pergunta diretriz de Platão: “o que é o ente?”, ou “o que é a entidade do en-
te?”. A resposta, a idea, é o universal comum entre os particulares, o koinon, o “uno unifican-
te”478, o núcleo centrípeto a que aponta a multiplicidade cambiante dos entes individuais. Co-
mo logos, a idea é o on, o ente máximo, o ente supremo que unifica os particulares. Como
genos, a entidade é, também, anterior, atuando como causa dos entes singulares, posterior-
mente reunidos nesta mesma entidade ideal. Com isso, Heidegger anota que a idea torna-se a
“primeira e última” determinação da entidade, precedendo como geração e subsistindo como
reunião dialética do múltiplo.
Essa correlação metafísica com a entidade, que caracteriza o primeiro início da filoso-
fia, delimita o horizonte de perguntabilidade da tradição ocidental, a partir da dominância da
pergunta diretriz pelo ente. Com isso, o ser é somente “pensado e experimentado como enti-
dade, somente a partir do ente”479. O determinante, nessa articulação, é a incoercível referên-
cia ao ente, a dependência ontológica do ente que impede a pergunta direta e autônoma do
seer. Desde Platão, o seer se torna o ser do ente, a entidade máxima e verdadeira, o ontos on.

475
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.155.
476
Ibidem.
477
Ibidem.
478
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.174 (§109: ‘idea’).
479
Ibid., p.175 (§109: idea).
175

A idea responde, então, pela estabilização ontológica da presença do entes, que, reunidos em
categorias gerais e universais, compõem os grupos de gêneros eidéticos, que enfeixam em
unidades espécies determinadas de particulares. A interpretação do ente como ousia, comoi-
dea (koinon, gene) alcança apenas a entidade do ente e, portanto, o ser (einai) do on, o ser,
mas não o seer (Seyn) de que provém essa entidade. Nisto reside o núcleo da argumentação
heideggeriana a respeito do primeiro inicio platônico da filosofia: porque essa pergunta dire-
triz metafísica se refere apenas ao ente e à sua entidade, ela não pode jamais superar a entida-
de e se lançar ao seer, considerado em si mesmo 480. Em outras palavras, o platonismo que
caracteriza a tradição ocidental a restringe à pergunta metafísica, impedindo-a de postular a
autêntica pergunta ontológica: “o que é o seer?”.
A variação de respostas metafísicas à pergunta diretriz, as diferentes posições funda-
mentais ao longo da história só a renovam e reforçam, impedindo que se perceba a historici-
dade do acontecimento apropriativo que as provocou. A compreensão efetiva desse processo
histórico deve se basear no sentido da aletheia, consoante a tarefa de perguntar pela essência
da verdade como tal481. Essa essência da verdade relaciona-se à verdade do seer e, assim, con-
frontar-se com o próprio seer que se vela em meio à clareira que instaura em cada destinação
epocal. Esse percurso será realizado no terceiro capítulo desta Tese, que analisa o modo como
a dinâmica alethética da physis foi neutralizada pela estabilização ontológica da entidade do
ente com a noção platônica de idea, consoante a transformação da verdade em homoiosis,
adequatio e certeza. Essa história do primeiro início implica o desconhecimento da pergunta
pela essência da verdade, que o pensamento da viragem denomina a verdade da essência.
Como assinala Heidegger, o primeiro início distancia-se progressivamente da tarefa de inda-
gar pela essência da verdade como tal, indagação essa que se dá em íntima referência à verda-
de do seer. Ou seja, trata-se do impedimento de colocar o seer mesmo em questão, por conta
da dominância platônica da metafísica do ente.
Ou seja, o platonismo precisa ser superado mediante o salto que se volta a um saber
mais originário acerca da essência não-metafísica da metafísica. A verdade da metafísica só
pode ser conquistada mediante o salto no acontecimento apropriativo da essenciação do seer,
de que provém a estabilização eidética do ente, sua entidade, no primeiro início desapropriado
da filosofia. O platonismo, então, precisa ser superado em nome de um “saber mais originário

480
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. 175 (§109: idea).
481
Ibid., p.179.
176

acerca da sua essência”482. Para isso, é necessário compreender, em primeiro lugar, que expe-
riência e interpretação fundamenta a determinação do ser como idea. Pergunta-se Heidegger
em Contribuições: Que tipo de verdade, que essência permite a determinação da entidade
(ousia) do ente (on) comoidea?483 Por que essa verdade não foi questionada pela tradição?
Ora, o que é digno de nota, no processo histórico da filosofia platônica, é o fato de essa de-
terminação metafísica da verdade não ter sido questionada, de ela ter antecipadamente elidido
qualquer questionamento ontológico a respeito da metafísica da idea. Isso porque essa inter-
pretação projeta o ente na presença estável da ideia, que se essencia como entidade abrangen-
te, constante, universal e apriorística. Com isso, a idea impossibilita todo passo por cima dela,
pois o ser se essencia como a entidade que abarca tudo o que é. O ser como idea descerra o
ente na totalidade, impedindo qualquer questionamento para além dela. Diz Heidegger: “O
essenciar-se como presença e estabilidade não dá nenhuma espaço para uma insatisfação e,
com isso, tampouco um motivo para a pergunta pela verdade desta interpretação”484 A causa
desse processo de dupla determinação – do ente na totalidade e da própria entidade que o fun-
damenta – é que essa interpretação se confirma a si mesma ao mesmo tempo em que confirma
o ente na totalidade485. Ao garantir e estabilizar a verdade do ente, a idea garante a si mesma a
estabilidade do verdadeiramente ente (alethos on).
A superação do platonismo é a sua destruição, conforme explicado no primeiro capítu-
lo. Nessa passagem de Constribuições, Heidegger a conceitua como sendo a depuração que
desnuda as posições metafísica fundamentais, mediante o trânsito à pergunta fundamental:
como se essencia o seer?486 Só assim se logra implodir o cerco que oculta a verdade do seer
do primeiro início, a partir da radicalização da pergunta ontológica sobre o ser ele mesmo,
sem restringi-lo às derivações metafísicas que o aprisionam ao ente.

2.3 O sentido ótico da idea

Ao lado da dimensão eidética, Heidegger destaca o sentido ótico contido na noção de


idea. Com efeito, Platão opera uma transposição do significado visual sensível ao significado

482
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.182.
483
Ibidem.
484
Ibidem.
485
Ibidem.
486
Ibid., p. 183.
177

intelectual inteligível. O que se vê, na contemplação filosófica, não é o aspecto sensível do


ente, mas a sua dimensão imaterial, “invisível”, sempre idêntica a si mesma. Esse aspecto se
apresenta apenas aos olhos da alma que o apreende em um ato de visão-intuição intelectual,
captando a essência, a quididade do ente sensível. Essa essência jamais se evidencia aos sen-
tidos, apenas à inteligência. Heidegger reforça essa correlação ontoepistemológica entre a
esfera sensível e a apreensão dos sentidos, por um lado, e o ser inteligível e a apreensão inte-
lectual, por outro, sublinhando, ainda, que uma coisa é a sua ideia, e não o que ela parece ser
aos olhos sensíveis. Ou seja, ser é ideia, ousia.
Contudo, note-se que ele fala de uma “re-presentação”, que não deve ser entendida
como a representação cartesiana subjetivista, tratada acima, mas a visualização objetiva do
fenômeno do ser eidético tal como ele se dá. Ou seja, uma re-presentação eidética que abre o
horizonte de mostração do ser do ente, da sua presença constante: “Conhecimento é adequa-
ção ao que há de conhecer.”487 Com essa afirmação, Heidegger aparta qualquer subjetivismo
do idealismo platônico, a partir da noção de adequação. Isto é, a adaptação intelectual à forma
inteligível que se mostra no ente. O ente é o que há para se conhecer, mas, para conhecê-lo,
deve-se voltar intelectualmente para o que nele permanece imutável, para o ser ser, vale dizer,
para sua essência, sua idea. A idea é “aquilo que é apreendido quando observamos as coisas
em vista do modo como elas mesmas aparecem; em vista disso, como o que elas se dão: em
vista de sua quididade (to ti estin).”488
Mas a idea só é apreendida se o homem representá-la. Isso não significa que ela seja
uma projeção mental subjetiva, como já argumentado. Segundo Heidegger, “conhecer é ade-
quar-se representacionalmente ao suprassensível” 489, pois a dimensão ideal da realidade não
se mostra aos olhos dos corpo. Pois isso, a theoria a visão anímica da esfera suprassensível,
alcançada mediante a provocação intelectual que abre o campo de mostração do eidos do ente
sensível. É uma provocação ótica, uma conversão do olhar, que faz com que emerja o aspecto
visual e universal de uma coisa sensível diante dos olhos da alma. A representação a que se
refere Heidegger é responsável por esse “trazer o que não é sensivelmente visível para diante
de seus olhos, trazê-lo em geral para diante de si: re-presentá-lo.”490O primeiro início platôni-
co é metafísico, porque adere ao ser do ente, à representação que supera o sensível, o físico,
487
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 137.
488
Ibid., p. 137-138.
489
Ibid., p. 138.
490
Ibidem.
178

para alcançar o metafísico da representação teórica. O primeiro início é essencialmente teóri-


co nesse sentido, resguardada a “ligação mediadora” com o âmbito sensível da representação
intelectual. 491
Essa dimensão ótica da ideia diz respeito ao aspecto visual do perfil, do aspecto do en-
te, à sua “visibilidade intrínseca”492. Correlativamente, a ideia torna visível o ente de que par-
ticipa, torna manifesto o seu ser. Percebe-se, nesse momento, que a ideia tem pelo menos duas
funções filosóficas correlatas em relação à coisa sensível: a ideia ésua essência, e a ideia ma-
nifesta o seu ser, que é ela mesma. Ao colocar a coisa na luminosidade ontológica do aspecto
essencial, eidético, que é o dela, a ideia se apresenta como essência da coisa. A ideia é o as-
pecto visual, a forma do ente, que o torna compreensível ao intelecto. Mas a ideia também é a
luz que permite essa visão noética. Heidegger nota que a ideia desempenha em relação ao ente
as mesmas funções ontológicas e epistemológicas que a ideia do bem, exposta n’A República
de Platão, desempenha em relação às ideias em geral; analogicamente, o sol que dá vida (fun-
ção ontológica) e ilumina (função epistemológica) os entes do mundo sensível. Ao explicar o
sentido da compreensão eidética da igualdade de um ente, Heidegger argumenta que já deve
se ter visto essa igualdade, de antemão, enquanto ser, isto é, enquanto “presença em meio ao
desvelado”, pois esse “ser igual” “traz consigo pela primeira vez a ‘visão’ e ‘algo aberto’ e o
mantém patente, conferindo a visibilidade dos entes iguais.” 493 É por essa razão que Platão
denomina o ser desvelado como presença constante de idea, aquilo que é plenamente visível.
A idea é a conquista da presença de forma permanente, que se estabiliza como ser sempre
presente à vista intelectual. É o que é previamente visualizado para que seja conhecido sensi-
velmente o ente singular. Por isso, ela é sempre precedente, anterior na ordem da physis. Esse
caráter de emergência e automostração eidética evidencia que a idea não é uma criação subje-
tiva, não designa “‘representações’ que temos na consciência enquanto sujeitos egóicos.”494
Ao contrário, a dimensão ótica reside no fato de o homem a contemplar na sua alteridade e
objetividade, quando ela se apresenta previamente ao homem que lida com entes iguais, por
exemplo.
Como se vê, a visibilidade da ideia diz respeito à compreensão do ser como presença,
como aquilo que substancializa o ente, tornando-o consistente e permanente. Presença e per-

491
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. I. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 138.
492
BOUTOT, A. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.p.
115.
493
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.163.
494
Ibidem.
179

manência são os aspectos temporais fundamentais do ser platônico, segundo Heidegger, e isso
é essencial para a sua compreensão do platonismo em geral, como modo metafísico de pen-
samento que privilegia a dimensão temporal do presente e da presentificação ontológica do
ser (entidade) em relação ao ente. E é exatamente isso que a noção de ideia promove: torna o
ente presente em sua visibilidade formal, em sua essência ontológica. Enquanto delineamento
do ente, a ideia possui a característica fundamental da estabilidade que confere ao ente a per-
manência de se tornar presente e visível. Para Heidegger, ideia é ser: presença constante. Inse-
rido na onda incessante do devir, o ente é instável e, por isso, incognoscível. É o ser nele, a
presença fixa e imutável da ideia enquanto sua forma eidética que o torna estável o suficiente
para ser conhecido. Para Heidegger, isso significa que o ente ganha presença apenas a partir
da ideia nele contida. Em si mesmo, o ente é fugaz e efêmero, sua natureza volúvel e flutuante
registra a ausência de ser, de estabilidade na sua natureza. Entretanto, há algo nele, a sua for-
ma-ideia, de constante, a despeito das infinitas vicissitudes que o acometem. Ou seja, a di-
mensão sensível da realidade, submetida ao perpétuo devir, não tem subsistência ontológica
em si mesma, por isso, precisa da ideia para a presença constante que manifesta o seu ser es-
tável e cognoscível.
Essa caracterização do primeiro início da filosofia é importante para se notar como a
dinâmica do acontecimento apropriativo do seer é obscurecida, mesmo ofuscada com a meta-
física da entidade enquanto presença constante. O que é turvado na metafísica platônica é a
historicidade do seer, o envio epocal que o caracteriza, sua infinita retração em relação ao ente
que desvela, conforme explicado no primeiro capítulo. Ao mesmo tempo, a metafísica revela
falta de consciência, pois é incapaz de reconhecer-se como esquecimento do ser, uma vez que
o confunde com a entidade do ente.
O argumento eidético e ótico aqui delineado evidencia o vínculo íntimo entre a con-
cepção ontológica do ser como presença, constância e a forma de conhecimento correlata, a
contemplação noética. A metáfora da visão é fundamental nesse sentido: o homem contempla
o que tem diante de si, o que permanece exposto num campo de mostração, num horizonte de
manifestação visual, eidética. E é precisamente isso que a ideia realiza em relação à essência
do ente, torna-a explícita, visível, suscetível de ser contemplada pelos olhos da alma. Com
efeito, Platão se apropria de uma comparação antiga, vigente entre os gregos, que aproxima o
ato de conhecer ao ato de ver, de contemplar, de deter-se diante do que se mostra aos olhos.
Este é o sentido básico de theoria: contemplação, visão detida. Diz Heidegger: “É porque ser
significa presença e constância que o ver é extraordinariamente apropriado para servir como
180

explicitação para a apreensão daquilo que se torna presente e se faz constante.” 495 Como o ser
do ente, a entidade é considerada como presença e constância, a lida com o ser é visual, por-
que se instaura como presença constante a ser visualizada e contemplada, permitindo, assim a
compreensão do ente sensível que, ao ser, dele participa.
A dialética direciona-se à intuição noética final, atingida ao fim do processo discursi-
vo. Por isso, n’ARepública(VII, 537c), o dialético consumado é denominado sinóptico, aquele
capaz de uma visão do conjunto, uma intuição totalizante que abarca compreensivamente a
realidade como um todo. A intuição, visão noética,é o escopo e o princípio da discussão dialé-
tica. A centralidade da dialética na obra de Platão, a exposição de seus variados métodos e
possibilidades, não elide a primazia do teórico, ao contrário, serve-lhe como complemento
necessário. É como se primeiramente o logos tomasse a dianteira no processo cognitivo, ques-
tionando o ser do ente. Uma vez manifestado o ser, é uma visão noética que o apreende, que o
contempla, consoante a metáfora da visão. Em outras palavras, a discursividade da dialética
não neutraliza a dimensão óptica, teórica do conhecimento em Platão, exatamente porque a
ideia é forma visual, óptica, que se apresenta à imediaticidade da visão.
No contexto da obra de Heidegger, essa caracterização detida da metafísica platônica,
o modelo ontológico do ser como presença e o modelo epistemológico do conhecimento co-
mo visão noética, serve para diferenciar a própria forma de pensamento heideggeriano, a qual
se delineia em confrontação com os primeiros pensadores gregos. Recusando essa concepção
tradicional do ser como presença constante, Heidegger pensa o ser como evento (Ereignis),
como o acontecimento apropriativo da presença ela mesma, daquilo que emerge epocalmente,
como destinação histórica. Por isso,Heidegger refuta a interpretação epistemológica do co-
nhecimento como visão ou contemplação. Isso se dá em nome da escuta da voz do seer, plas-
mada nas palavras fundamentais dos poetas e dos filósofos, um gesto da atenção ao aconteci-
mento do ser ele mesmo, antes da configuração eidética que se apresenta à vista. Enquanto o
ser do ente, a entidade metafísica se contempla visualmente, o seer, ele mesmo, se escuta
apropriativamente, já que o pensamento do seer tem como sujeito e objeto o próprio seer, sen-
do a meditação histórica uma atividade conduzida e guiada pelo próprio seer.
Essa dimensão originária do pensamento, presente em Heráclito por exemplo, foi obli-
terada pela consolidação platônica do modelo metafísico de filosofia, que conforma a pergun-
ta diretriz do primeiro início, e se torna dominante na história da tradição ocidental. Com Pla-
tão, tem-se a hegemonia inconteste da visão noética do aspecto inteligível do ser, manifesto

495
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.168.
181

no ente como uma espécie de epifania luminosa, o que se pode apreender a partir da imagem
analógica do sol, correspondente sensível da ideia do bem. Conjugando o presente argumento
com o explicado no primeiro capítulo, pode-se afirmar que o percurso filosófico trilhado por
Heidegger caracteriza-se pelo seguinte percurso: da visão metafísica da entidade (idea) à es-
cuta da voz poética do seer histórico (Ereignis).
Há ainda um ponto importante a ser ressaltando nesta seção. Como mencionado, eidos,
com seu significado de aspecto exterior, de forma visual uma coisa, é uma palavra corrente de
que Platão se apropria para ressignificá-la filosoficamente. Platão sabe, porém, que essa apro-
priação filosófica do vocabulário comum não é simples e facilmente aceitável: afinal, nada de
mais sensível do que a forma de uma coisa. Como, então, a forma pode significar o que há de
mais inteligível no ente? Como usar um termo que remete essencialmente à visibilidade e à
visualidade do ente para explicar metaforicamente um ato intelectual puro de visão noética da
essência? Por saber que essa operação metafórica é muitas vezes violenta, Platão registra as
reações irresignadas de interlocutores a fim de demonstrar o quanto a filosofia nascente se
contorce semanticamente para se fazer entender a interlocutores ainda não habituados, “inici-
ados” em sua terminologia. Desse problema, aliás, Aristóteles soube se esquivar com o rigor
de conceptualização da forma científica do tratado em prosa, o que não é possível na forma
literária do diálogo socrático, caracterizado, entre outras coisas, pela flexibilidade semântica
da poesia.
A dificuldade dessa apropriação e ressignificação vocabular é preservar a concordân-
cia do interlocutor, a homologia do diálogo. Por exemplo, depois que Sócrates expõe a extra-
vagante comparação do sol com a ideia do bem, Glauco, “rindo às gargalhadas”, exclama:
“que hipérbole diabólica!”, ou, segundo outra tradução possível, “que extraordinário exage-
ro!” (Rep., 509c). Isso significa que Sócrates deve continuar na explicação da metáfora apre-
sentada, não obstante ressignificar o sentido dos termos. É muito difícil, mesmo contraintuit i-
vo se esforçar para entender diversamente do uso habitual o significado de uma palavra como
eidos, pois o sentido original da palavra vem à tona naturalmente e a cada momento. Mas Pla-
tão também sabe que não há outro modo linguístico de expressar o pensamento filosófico nas-
cente senão apropriando-se e redimensionando um horizonte semântico preexistente. Platão
não pode simplesmente impor aos seus interlocutores termos novos sem vinculá-los a experi-
ências correntes, tanto empíricas quanto mentais, daí a dupla apropriação da palavra eidos,
ressaltada por Heidegger: a visual e a geométrica. Ou seja, sem o recurso à metáfora, à alego-
ria e à simbologia em geral, a metafísica não pode ser tratada discursivamente.
182

Por sua vez, Heidegger também procede, em momentos decisivos de sua obra, com es-
sa transposição linguística, basta lembrar de uma noção tão importante para a compreensão do
acontecimento apropriativo como “clareira”, explicada no capítulo anterior e que ainda será
explorada no capítulo seguinte. Na conferência ‘A questão da técnica’, ele reconhece que o
sentido que atribui a “Gestell” (com-posição) não é facilmente compreensível e pode soar
bastante “arbitrário” e “extravagante”. Nada obstante, ele se vê legitimado por um audacioso
precursor, Platão, filósofo que inaugura a tradição de pensar o mais elevado a partir da lin-
guagem comum, contorcendo-a e esticando-a ao seu máximo limite de inteligibilidade. Aqui
se tem, portanto, um elemento reconhecidamente platônico da filosofia de Heidegger, que não
foi o primeiro a explorar extravagâncias semânticas:
esta extravagância é um antigo costume do pensamento. E os pensadores tornaram-
se extravagantes precisamente quando têm de pensar o mais elevado. Nós, epigo-
nais, já não possuímos condição de avaliar o significado do fato de Platão aventurar-
se a utilizar a palavraeidos para dizer a essência de tudo e de cada coisa. Pois, na
linguagem de todo dia, eidos diz a visão que uma coisa visível nos apresenta à per-
cepção sensível. Ora, Platão pretende da palavra algo inteiramente extraordinário.
Pretende designar o que jamais se poderá perceber com os olhos. E a extravagância
não termia aí. Pois idea não evoca apenas o perfil não sensível do que se vê sensi-
velmente. Idea, o perfil, significa e é também o que perfaz a essência de tudo que se
pode ouvir, tocar, sentir, de tudo que, de alguma maneira, se nos torna acessível.
Comparado com o que Platão pretende da língua e do pensamento neste e em outros
casos, o uso que ousamos agora fazer da palavra ‘Gestell’, com-posição, para dizer a
essência da técnica moderna é quase inocente. E, não obstante, continua sendo uma
pretensão sujeita a muitos mal-entendidos.496

2.4 Idea e chorismos: a cisão entre ser e aparência

Se há uma questão na interpretação de Platão em que Heidegger é enfático é na cesura


(chorismos) que a compreensão de ser como ideia promove. Aos olhos de Heidegger, essa
fenda operada na totalidade da realidade não será jamais reunida ao longo da tradição ociden-
tal platônica balizada pela abertura metafísica do primeiro início. O desabrochar originário
dos entes (physis) é neutralizado, mesmo substituído pela cristalização de seu aspecto eidéti-
co, que passa a ter a primazia ontológica. O aspecto da coisa se separa (chorizestai) da coisa
ela mesma. Com essa disjunção, a ideia, o perfil do ente, é promovida ao âmbito do único ser
verdadeiro (ontos on). Por sua vez, o ente ele mesmo é reduzido a um nível infra-ôntico de
não-ser (me on). Como explica Boutot497, a ideia platônica designa o que é o ente em sua es-

496
HEIDEGGER, Martin. ‘A questão da técnica’, p. 23-24. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão; G.Fogel;
M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.11-38.
497
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987.p. 134.
183

sência, a sua quididade (Wassein), o ser do ente. Ao mesmo tempo, a ideia é o que o ente é de
mais ente, o ente em seu grau máximo (das Seiendste am Seienden), o que o ente verdadeira-
mente é: ontos on. A essa supervalorização ontológica da ideia, como lugar de permanência
formal e estabilidade visual, corresponde a subestimação ôntica do ser ele mesmo, rebaixado a
um nível de não ser, de ser imperfeito, deficitário pela instabilidade temporal, pela fugacidade
que o caracteriza. A ideia informada em uma coisa sensível é a única capaz de ser efetivamen-
te conhecida, ao passo que o ente é relegado à aparência e à ilusão das opiniões arbitrárias e
inconstantes.
Em Introdução à metafísica, Heidegger ressalta a correlação entre a determinação da
ideia como essência do ente e a promoção da ideia como único ser verdadeiro. Isso acarreta a
negação da consistência ontológica do ente em si mesmo considerado. A estrutura que articula
essas categorias de ser verdadeiro e real e ente derivado e imperfeito se dá com as noções de
participação e cópia. Heidegger explica que a idea se torna “o ser do ente, o que há de mais
ente no ente” quando a essenciação do ser se acha na quididade 498. Ou seja, a ideia é o ente
propriamente dito, o ontos on. Heidegger atenta ao fato de que, quando pensado como ideia, o
ser se converte no ente em si, no ente efetivamente real. Com isso, o ente propriamente dito
torna-se o que Platão chama de me on, o “que propriamente não devia ser e também propria-
mente não é.”499
O ente sensível não só é deficitário em relação à sua entidade ideal (o ser ontologica-
mente consistente), mas também o “desfigura”. Toda vez que a ideia, o puro aspecto, é reali-
zada, configurada na matéria, ela é “desfigurada”. A ideia é o paradigma, a figura exemplar
de todo ente sensível correspondente. A consequência desse gesto platônico é, para Heide-
gger, o fato de a ideia ter se convertido em “ideal”. Explica Heidegger:
O exemplo [o ente], que se configura segundo a figura exemplar [a ideia], não ‘é’,
em sentido próprio, mas tem parte no Ser, methexis. Rasga-se e se estabelece o cho-
rismos, o abismo entre a ideia, como o ente propriamente, a figura exemplar e origi-
nária, e o não-ente propriamente, o exemplo configurado e imitado.500

O que Heidegger pretende enfatizar nessa operação filosófica de Platão é o desloca-


mento ontológico do ente ao ser, em detrimento daquele. Enfeixando as características essen-
ciais do ente, o ser como ideia alça-se ao único ser verdadeiro. Com efeito, a ideia responde a
duas perguntas básicas: 1. O que é o ente?; e 2. Qual é o ente que melhor corresponde à es-

498
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p.204.
499
Ibidem.
500
Ibidem.
184

sência do ente? A ideia do belo, por exemplo, é capaz de satisfazer a essas duas indagações:
ela designa, em primeiro lugar, aquilo que é belo, a essência de uma coisa bela. Além disso,
em segundo lugar, a ideia do belo é o belo em si, ou seja, algo que é intrínseca e verdadeira-
mente belo, pois contém em si todas as determinações essenciais de uma coisa bela.
Heidegger identifica nessa operação platônica um desvio do sentido primordial da es-
peculação grega, voltada à epifania da physis, a manifestação do próprio ente em seu ser, e
não do ser eidético, ideal do ente. Ou seja, Platão promove o desvio do ente para a ideia, esta-
belecendo uma divisão intransponível entre esses dois domínios da realidade, agora subordi-
nados e hierarquizados. Esse é o sentido fundamental do chorismos platônico, segundo Hei-
degger. E isso é, essencialmente, niilismo.
O chorismos platônico é niilista porque o ente sensível, o mundo circundante, é nega-
do, não em seu ser, pois as coisas não são consideradas inexistentes pura e simplesmente, co-
mo se não fossem (ouk on). As coisas, porém, são consideras como não-sendo, ne on, que
Heidegger demonstra ser, gramaticalmente, uma negação de privação. Ou seja, o ente sensível
está privado de ser, por lhe faltar as características ideais da forma inteligível, como a presen-
ça constante, a imutabilidade e a visibilidade eidética. A matéria sensível, por ser o suporte do
ser, sempre altera o perfil da ideia, impedindo-a de reluzir por si mesma, em sua pureza.
Em Nietzsche I, Heidegger descreve esse processo de niilismo do ente a partir da onto-
logização do ser, sublinhando que Platão diferencia o ontos on do me on, “o ente que é em seu
sendo e o ‘ente’ que não deveria ser e se chamar assim” 501. Por um lado, “o ontos on, o ente
que é em seu sendo, o ente que é propriamente, ou seja, de acordo com a essência do ser, é to
eidos, o aspecto, aquilo em que algo mostra a sua face, a sua idea, isto é, aquilo que algo é, a
sua quididade.”502 Por outro lado, a dimensão sensível da realidade é denominada como “não
sendo”, o “me on”. Essa esfera da realidade também tem um eidos, um aspecto com o qual se
manifesta, ainda que de forma precária e deficitária quando comparada com a plenitude onto-
lógica que caracteriza a idea. Consoante a relação de dependência e derivação entre ideia inte-
ligível e ente sensível, o aspecto do ente sensível é o perfil desfigurado da idea: “sua face [do
ente sensível] é distorcida e deformada, o aspecto e a visão são turvos e enevoados; o me on é,
com isso, to eidolon.”503

501
HEIDEGGER, M. Nietzsche. v.1.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.420.
502
Ibidem.
503
Ibidem.
185

Para Platão, as coisas normalmente consideradas como sendo “reais”, sensivelmente


palpáveis para os homens em geral – os objetos que os circundam, que lhes servem como
utensílios para as suas ocupações cotidianas – são eidola, imagens ilusórias que refletem a luz
das ideias, assumindo “um aspecto, mas que apenas se parece com o aspecto propriamente
dito”504. O âmbito sensível não é, porque é formado pelos não-entes (me onta), quando pen-
sado a partir de sua causa inteligível, as quais efetivamente são. O aspecto de um ente sensí-
vel é um reflexo turvo da ideia inteligível, que prejudica a sua aparição plena, indefectível. A
partir do ente sensível, porém, pode-se chegar à essência do ente, ao que lhe é ontologicamen-
te próprio. Ao referir-se ao exemplo de uma casa, Heidegger afirma em relação a sua essên-
cia: “O que é próprio à casa, o que torna uma casa uma casa é o ente propriamente dito nela.
O verdadeiramente ente é o eidos, a ‘ideia’”505.
O que Heidegger enfatiza nessa passagem é exatamente o chorismos, a cisão que apro-
funda o abismo entre o ser imutável e o ente cambiante, de modo a poder se falar de um pre-
juízo que o ser sofre pela dimensão sensível do ente em que ele se manifesta. Platão intui um
nível de perfeição inteligível, com sua respectiva apreensão noética, de todo imune à incerteza
do ente sensível. A coisa sensível torna-se a cópia do paradigma eidético, o modelo perfeito
de que ela não é senão uma versão derivada e rebaixada. Para Heidegger, como se pôde assi-
nalar acima, em Introdução à metafísica, a separação operada pela metafísica platônica não se
dá entre o ente e algo diverso dele, mas no interior da entidade ela mesma. É como se uma
parte da entidade fosse considerada cópia de uma parte mais perfeita, mais nobre, mais digna
da própria entidade. A cisão se dá no seio da entidade, e não no âmbito da diferença ontológi-
ca. Isso porque a entidade do ente continua sendo ente; exatamente por isso,a pergunta onto-
lógica de Platão é neutralizada pela dimensão entificante da metafísica, que reduz o ser à enti-
dade do ente. Mas Heidegger demonstra que, no pensamento originário da physis grega, não
há esse dualismo ente-ser.
Nessa bipartição metafísica, o ser como tal, o ser considerado como algo de totalmente
outro em sua diferença ontológica, não é efetivamente considerado. O ser é confundido como
a entidade do ente e se torna inquestionável desde então, pela falsa impressão de que ele re-
presenta, de fato, a dimensão ontológica da realidade, quando, na verdade, é uma alienação do
envio epocal do seer, que se entrega retraído e obscurecido. Como repisado no primeiro capí-
tulo, a metafísica platônica é a consecução do envio desapropriante do seer que se entrega

504
HEIDEGGER, M. Nietzsche. v.1.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.420.
505
Ibid., p. 421.
186

alienado, impedindo, pela estabilização ontológica da idea, o próprio questionamento ontoló-


gico autêntico, aquele que se volta ao seer nele mesmo, não à abstração hipostasiada do ente
na sua entidade eidética, ideal. Essa é a base do niilismo da metafísica platônica. Com efeito,
para Heidegger, o ser é apreendido como a parte mais eminente do ente, portanto não é pen-
sado em sua especificidade, em sua radicalidade ontológica. O pior para Heidegger, porém, é
que essa diferença ontológica entre ser e ente não é sequer percebida, ficando o ser esquecido,
velado pela entificação a que é submetido.
O chorismos do idealismo platônico é, para Heidegger, uma divisão de locais, de to-
poi, de modoque, desde então, a realidade é bipartida em duas esferas incomunicáveis, sepa-
radas: de um lado o ser-ideia (mundo inteligível) e de outro o ente (mundo sensível). Por mais
tradicional que possa parecer, essa separação dual não é originária, mas um artifício metafísi-
co e idealista que impede a verdadeira natureza da physis de se mostrar tal como de fato é e
como a testemunharam os primeiros pensadores. Segundo Heidgger, essa divisão se opera no
interior do esquecimento da dualidade (Zweifalt) entre ser e ente, ligados por um vínculo recí-
proco no seio de sua diferença. O ser é sempre ser do ente, ao passo que o ente é ente do ser.
O vocabulário ontológico remete a essa dualidade constitutiva. Todavia, com Platão, essa dua-
lidade originária se degenera em uma simples duplicidade do ente. Ora, se a dualidade origi-
nária se caracteriza pela diferenciação (Unterscheidung) primordial entre o ser e o ente – que
Heidegger denomina reiteradamente de diferença ontológica -, a partir do chorismos da meta-
física idealistaplatônica, essa diferenciação se esvanece e torna-se uma diferença aparente,
pois o que acontece, na verdade, é a duplicação do ente. Como elucida Boutot:
O ser não é mais o ‘diferenciador’ originário, mas simplesmente um termo ‘diferen-
ciado’ e distinguido do ente, e torna-se ele mesmo por consequência algo de ente.
Com o chorismos platônico, a essência inicial do ser como ‘diferença diferenciadora
ainda não diferenciada’ obscurece definitivamente no esquecimento.506

A separação entre a ideia e o ente corresponde à divisão fundamental entre ser e apa-
rência. Como já mencionado, a errância do sensível se dá pela efemeridade de sua natureza
sempre cambiante. Com efeito, para Platão, a natureza do ente é meramente aparente, feno-
menal, em oposição à solidez e à consistência ontológica do ser que sempre é como ele é, in-
dependente do modo como venha a aparecer. No âmbito epistemológico, o ente sensível sem-
pre gera opinião, um “parecer” a partir da impressão subjetiva de quem apreende a coisa. Pla-
tão associa a aparência com a ilusão, com a cópia e com o erro. O sensível é pensado, analo-
gicamente, em relação ao inteligível a partir da relação paradigmática modelo-cópia, como se

506
BOUTOT, A. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.p.
134.
187

pode analisar nas imagens da linha e da caverna, n’A República. Mas a cópia tem aqui um
sentido pejorativo, derivativo e subestimado. O ente sensível circundante é cópia, mera apa-
rência da realidade inteligível verdadeira; é sombra, reflexo da ideia, da forma sempre íntegra.
É esse caráter defeituoso da aparência sensível que Heidegger ressalta em Introdução
à metafísica. É só a partir da referência à ideia que o aparecer pode ser subestimado como
cópia rebaixada. Como afirma Heidegger, “o que aparece, a aparência, já não é a physis, o
vigor imperante que surge, nem também o mostrar-se do aspecto. Aparência é agora o surgir
da cópia, do exemplo [da ideia].” 507 Em comparação ao modelo eidético, “o que aparece é
uma simples aparência, propriamente um parecer, o que significa um defeito e deficiência. É
agora que se separam on e phainomenon.”508 Nisso consiste propriamente o chorismos: essa
divisão entre sensível e inteligível que os hierarquiza em uma relação de subordinação e de-
pendência. A consequência dessa estruturação metafísica da realidade é ontológica, epistemo-
lógica e axiológica. O sensível deve se adequar, se aproximar à forma inteligível, participando
dela para poder existir, mas estando, ao mesmo tempo, radicalmente separado dela por ser
uma cópia imperfeita da solidez ontológica que a caracteriza. Essa participação não diminui
ou neutraliza a separação, pois a idea sempre transcende o ente sensível que dela participa. O
caráter mimético do âmbito sensível responde a esse mesmo hiato, em que se plasma na esfera
inferior a forma da ideia modelar e imutável. Diz Heidegger: “Visto que a ideia é o ente pro-
priamente e o modelo exemplar, toda abertura e manifestação do ente tem que procurar igua-
lar-se ao exemplar originário, deve adequar-se ao modelo, conformar-se à forma da ideia.”509
Convém observar que o chorismos implica uma radical divisão entre os âmbitos sensí-
vel e inteligível, não havendo comunicação possível entre eles. O ser, em sua perfeição eidét i-
ca imutável, subtrai-se a toda mudança do sensível, que permanece submetido ao reino do
aparente e do ilusório. Essa característica espectral é totalmente ausente do ser-entidade, que
sempre se manifesta de um único modo, não estando sujeito a qualquer alteração perspectivís-
tica, de mudança de enfoque subjetivo. Há também uma cisão epistemológica correlata: a in-
teligência noética relaciona-se com as ideias inteligíveis, nada podendo discernir das sombras
sensíveis, que só se manifestam aos sentidos. Esse conhecimento ilusório dos sentidos é pare-
cer, opinião (doxa), baseada em impressões infundadas dos fenômenos. O que importa refor-
çar, com Boutot, é que, a despeito da relação paradigmática de modelo e cópia, ser e aparên-

507
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p.204.
508
Ibidem.
509
Ibidem.
188

cia tornam-se “dois domínios perfeitamente circunscritos e delimitados um em relação ao


outro, sem que qualquer passagem seja jamais possível de um ao outro. O ser escapa funda-
mentalmente em Platão ao domínio da aparência.”510
A mais detida análise dos atributos ontológicos da forma inteligível no corpus platôni-
co é feita n’OBanquete (211a-212a). Nessa descrição fica clara a estabilidade eidética da idea
que a distingue radicalmente dos entes sensíveis. Para explicar as características essências de
um objeto inteligível, Platão discerne as suas qualidades ontológicas das características mutá-
veis dos entes sensíveis. O tradicional contraste religioso, característico da poesia homérica,
entre a divindade imortal e o homem mortal - postulado filosoficamente por Parmênides, em
chave abstrativa, como a distinção entre ser e devir - é preservado por Platão, que denomina
“divina” a forma do belo. Com efeito, o primeiro atributo da forma do belo descrito é a sua
“eternidade”, o que registra, exatamente, a origem teológica da metafísica platônica 511.
Essa eternidade, pela qual a forma é privada de nascimento e morte, também a conser-
va de qualquer mudança. Como explícito no Timeu (37d-38a), a atemporalidade é correlata à
invariabilidade. Fora do tempo, não há mudança; o tempo é a base do devir, é ele que permite
a genesis, a passagem do não-ser ao ser, e vice-versa, o surgimento e a dissolução das coisas.
Subtraída do âmbito do devir e do tempo, a forma ideal não se altera, permanece sempre a
mesma, alheia à geração ou à corrupção; ou seja, a eternidade, a imortalidade corresponde à
sua permanência temporal.
Com essa característica atemporal da ideia platônica, pode-se perceber o quanto Hei-
degger precisa superá-la para promover o salto ao outro início, em que a historicidade do seer
seja reconhecida, no contexto do acontecimento apropriativo que a caracteriza. A metafísica
idealista do primeiro início obstrui a meditação histórica voltada ao caráter epocal e temporal
da destinação suspensiva do seer, pois a metafísica o hipostasia num plano imutável e atempo-
ral da idea inteligível. É preciso, então, superá-la mediante a transição que se perfaz com o
salto ao impensado do outro início.
Se a idea é eterna e imutável, ela é, também, invariável. Desse modo, tal como carac-
terizado por Platão, n’ OBanquete, o ser eidético é imutável e fixo, “não aumenta, nem dimi-
nui” (211a). Independente do que ocorre com as belezas transitórias que dela participam, a
forma do belo permanece invariável (211b). No Fédon (78c-d), encontra-se uma formulação

510
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de
France, 1987.p. 139.
511
KAHN, C. Plato and the Socratic dialogue. The philosophical use of a literary form. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996. p.345.
189

precisa para descrever a diferença essencial entre a perenidade da forma e a mutabilidade do


sensível: se o sensível é disposto diferentemente em momentos diferentes, e nunca no mesmo
estado, a forma é sempre constante e no mesmo estado.
A segunda característica essencial da forma é a sua resistência a todo tipo de relati-
vismo ou perspectivismo. A sua “aparência”, seu tornar-se visível (phainesthai, phantazes-
thai) não condiciona a sua essência. Ou seja, sua unidade e integridade preservam-se em rela-
ção à sua aparência, e ao enfoque perspectivístico que lhe seja direcionado. Objetiva, e não
relacional, a sua essência independe da posição, espaço-temporal, dos observadores que a
contemplam, independe do modo com que a focalizam. A circunstanciada descrição de Dio-
tima prevê diferentes modos de relativismo, todos eles transcendidos pela forma do belo por
ela descrita: o modal (bela de um jeito e feia de outro), o temporal (bela num determinado
momento, deixando de sê-lo depois), aspectual (bela sob tal aspecto e feia sobre outro), local
(bela aqui, e feia ali), e pessoal-comparativo (bela para algumas pessoas porém feias para
outras).
A forma ideal, a beleza suprema que constitui o ápice da escalada erótico-dialética
descrita n’O Banquete, não se confunde, tampouco, com as instâncias sensíveis que dela par-
ticipam. De acordo com essa sua terceira característica, delineia-se a distinção filosófica entre
a unidade inteligível e a pluralidade sensível. Transcendente, a beleza superior não aparece,
na sua totalidade, portanto, sob nenhuma forma concreta, sensível de beleza, seja beleza física
humana, de um rosto, das mãos, ou de qualquer parte do corpo, ou qualquer beleza física,
animal, terrestre ou celeste, seja beleza moral dos discursos, seja beleza intelectual das ciên-
cias. A alteração e a consumação das belezas plurais, inseridas no âmbito cambiante do devir,
em nada interfere o estado essencial, imutável da forma da beleza, que permanece sempre
uniforme, “em si e por si mesma, eternamente una consigo mesma” (211b).
Toda essa caracterização da forma ideal descrita n’O Banquete evidencia o chorismos
que, segundo Heidegger, estrutura a metafísica ocidental. Toda a tradição oriunda desse pri-
meiro início da filosofia é fundamentada nessa diferença estabelecida por Platão, que figura
aos olhos de Heidegger uma autêntica incompreensão da copertinência entre e ser e aparência,
ser e devir, ser e não-ser. Em poucas palavras, essa cisão descura a temporalidade do seer, seu
caráter evasivo, suspensivo, retrativo, histórico. Gesto primordial do primeiro início da filoso-
fia, essa divisão metafísica não pode ser considerada uma conquista do pensamento, mas, ao
contrário, um declínio do sentido originário da physis. O grave desse gesto platônico é que ele
acarreta o velamento, o esquecimento da pertença mútua entre essas dimensões indissociáveis
da realidade. Separá-las, e mesmo opô-las, traz sérias consequências de ordem ontológica e
190

epistemológica, consequências essas que Heidegger considera diretamente responsáveis pelo


desenvolvimento do niilismo contemporâneo, como resultado definitivo daquela destinação
inicial platônica.
Sempre no contexto da destruição da história da ontologia, Heidegger visa a implodir a
camada platônica posterior, que cinde as dimensões de ser e aparência, a fim de recuperar a
sua compreensão originária, entre os primeiros pensadores gregos. Ora, se Platão fragmentou
essas dimensões, era porque elas eram antes unidas. As dimensões cindidas de ser e aparência
concernem à diferença metafísica entre ser e devir, cuja união Heidegger identifica no pensa-
mento originário da physis. Ou seja, com a metafísica platônica, o primeiro início cinde e au-
tonomiza dimensões que no âmbito do pensamento originário da physis eram inseparáveis,
constitutivas do mesmo fenômeno da aletheia. Desse modo, Heidegger articula a cisão entre
ser e devir com a separação de ser e aparência, pois o aparente é o deveniente, o mutável, ao
passo que o ser é a estabilidade eidética que cuja aparência é copiada mimeticamente na di-
mensão sensível da realidade. Heidegger explica: “Frente ao Ser, como o constante em si, o
aparente é o que surge, em dado momento, para de novo desaparecer mansamente e sem cons-
tância nenhuma.”512
Com esse sentido encerrado na tradição metafísica, não se questiona como essas no-
ções filosóficas vieram a ser cindidas, isto é, como se operou a cisão ontológica, o chorismos.
Heidegger parte do fato de que, quando se reconhece uma cisão, pressupõe-se uma união an-
terior. Por isso, ele parte para a compreensão da “unidade escondida se Ser e Aparência” 513,
unidade essa que foi esquecida pela cristalização da tradição metafísica do primeiro início, a
qual deve ser destruída para se alcançar a dimensão originária da physis, mediante um salto
ao outro início. Para se compreender o chorismos, deve-se “retornar ao princípio” 514, sendo
esse o núcleo da confrontação histórica.
Heidegger refere-se à decadência do primeiro início em Platão, baseado exatamente no
chorismos; o “princípio” que denuncia a arbitrariedade e mesmo o errôneo dessa divisão me-
tafísica é o pensamento originário dos primeiros pensadores gregos. Para eles, longe de estar
libertado da aparência, o ser encontra-se em uma proximidade essencial com ela. É por isso
que, anteriormente à cisão operada pela ideia platônica, a physis primordial reconhece uma

512
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p.126.
513
Ibidem.
514
Ibidem.
191

dinâmica de retração e dissimulação do ser na aparência, como testemunha o famoso aforismo


de Heráclito: “physis kryptesthai philei” (fragmento 123).
Esse aforismo de Heráclito é recorrentemente evocado por Heidegger, que o parafra-
seia assim: “o Ser (o aparecer que surge, emergente) tem, em si, a inclinação para ocultar-se”
(Sein [aufgehendes Erscheinen] neigt in sich zum Sichvergeben)515. O que Heidegger busca
enfatizar nesse passo é que há uma agônica relação de “intimidade” (Innigkeit), de “proximi-
dade imediata” entre Ser e Aparência, que comporta unidade e oposição entre elas. Por via de
consequência, isso impede a afirmação de sua radical divergência, o abismo intransponível
que as separa. Essa separação é desenvolvida por Platão, quando introduz uma diferença me-
tafísica radical entre o caráter essencial e imutável da idea e o caráter aparente e mutável do
ente sensível. Mesmo tendo uma essência eidética, isto é, de aspecto visual, a idea não se con-
funde com o modo como aparece ou se manifesta; ela não é perspectivística ou relativizável.
A dimensão sensível da realidade é mutável, inclusive porque os modos como os homens ex-
perimentam sensivelmente essa realidade muda com o tempo, adquirindo o caráter errático da
ontologia do sensível. É por isso que, no Teeteto, Platão articula a dimensão epistemológica
da opinião, como parecer errático do homem baseado na ontologia sensível do ente com o
qual se relaciona.
Ora, para Heidegger, o aforisma de Heráclito evidencia a implicação recíproca de Ser
e Aparência, “porque Ser significa: aparecer emergente, sair do encobrimento, por isso per-
tence-lhe Essencialmente o encobrimento, a proveniência dele. Tal proveniência reside na
Essenciação do Ser. Do que aparece, como tal.”516. No âmbito do pensamento do aconteci-
mento apropriativo, o seer (Seyn) não pode ser pensado de modo entificado, como a hipóstase
metafísica da idea platônica. O seer diz respeito à dinâmica histórico-epocal da essenciação
com que vem à tona, sai do encobrimento e se manifesta, na luz da sua aparência. Por isso, o
seer instaura a clareira, a abertura do ente na totalidade com que se revela, rompendo com o
seu caráter obscuro e escondido. Mas essa clareira nunca é absoluta, definitiva, porque é mar-
cada pela epocalidade, a historicidade, pela destinação do seer que se envia ao mesmo tempo
em que se retrai e se retira no abismo da sua diferença. Nesse contexto, Heidegger afirma que:
“A proximidade imediata de physis e kryptesthai revela simultaneamente a intimidade de Ser
e Aparência como o seu embate.”517 Essa simultaneidade e intimidade concernem ao

515
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4.ed. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro, 1999. p.140.
516
Ibidem.
192

Ereignis,que é o acontecimento apropriativo com que o seer se envia retraído, ou seja, com
que se revela na sua luminosidade, sem deixar de se esconder. O seer sempre se envia “crip-
tografado”, sua linguagem é sempre críptica, pois sempre oculta ao revelar o ente na totalida-
de.
O que os primeiros pensadores, como Heráclito, ressaltam é a ausência de um dualis-
mo estanque no interior da totalidade do ente. Enquanto mostração espontânea, a Physis -
palavra originária para designar o “ser” e que Platão denomina ideia - também diz respeito à
ocultação, kryptesthai, ao abrigo secreto, à “cripta”. Não se trata de uma oposição diametral e
dicotômica entre o que se revela e o que permanece ocultado, mas de uma copertinência pela
qual um se inclina ao outro, dinamicamente. A aparência não se apresenta como um domínio
alheio ao ser, não é uma forma degradada de não-ser (me on), mas corresponde, inversamente,
ao abrigo do ser, à sua retração. No texto ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, Heidegger
explica o sentido originário, heraclítico, desse encobrir-se revelador da physis, como o que se
dá, o que é exatamente o seu aparecer, ainda que o seu aparecer não esgote a totalidade de
seu ser. Para estabelecer essa diferença, Heidegger contrapõe Heráclito a Platão, ao modelo
essencialista do idealismo platônico, que fixa a essência metafísica das coisas num substanti-
vo eidético, esquecendo-se do processo dinâmico de que resultam os fenômenos na physis.
Ao discutir esse fragmento de Heráclito, Heidegger rechaça a tradução platonizante
que o interpreta como “a essência das coisas ama esconder-se” (Physis kryptesthai philei),
pois é com o primeiro início platônico que a “essência das coisas” passa a ser pensada de mo-
do metafísico, isto é, como a derivação causal, “genética” dos entes sensíveis a partir de uma
idea imutável e metafisicamente fixada 518. Heidegger explica que “o fragmento pensa a physis
não no sentido substantivado de essência das coisas e sim no sentido verbal do essenciar-se da
physis, no seu vigorar.”519 É essa mudança fundamental que Heidegger estabelece entre o
primeiro início metafísico e o salto abissal ao outro início, recorrendo à experiência pensante
dos pensadores originários que testemunharam em suas palavras fundamentais – como physis
e aletheia – a dimensão epocal do acontecimento apropriativo do seer. Essa mudança se dá
exatamente nessa reflexão da essenciação histórica e epocal da verdade. A verdade não é mais
pensada como o resultado da correspondência entre a assertiva de um juízo e o conteúdo me-
517
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p.140.
518
HEIDEGGER, M. ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, p. 239. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.227-249.
519
Ibidem.
193

tafísico da realidade. Isso é consequência direta do idealismo platônico. Heidegger investiga a


verdade da essência, isto é, a dimensão verbal e dinâmica do processo de essenciação da
physis, que é o desabrochar que ama se esconder. Esse desabrochar da natureza é o vir à tona,
o emergir, a superação da dimensão ocultada.
No fragmento analisado, physisé “surgir (descobrir-se)”, e krypstesthai, “encobrir-se”,
estando as duas ações intrinsecamente relacionadas. Não há o chorismos metafísico que as
divide, elas estão “numa proximidade de vizinhança” 520. Heidegger ressalta a ambiguidade
constitutiva do acontecimento apropriativo do seer, plasmado na palavra originária Physis,
que significa “des-cobrir-se”, isto é, sair do encobrimento, vir ao descoberto, ao desvelado.
Ao mesmo tempo, essa physis que se manifesta “ama encobrir-se”. Ou seja, ao surgir no des-
velado, a physis se essencia e vigora no aberto, mas, simultaneamente, encobre-se, pois nunca
se doa por inteiro. Isso, porém, não acarreta qualquer déficit ontológico na sua natureza, por-
que a sua essência é processual, é dinâmica. A dimensão verbal dessa essenciação reside, pro-
priamente, no fato de sua essência não estar fixada metafisicamente num substantivo estático
que a determine definitivamente. Elucida Heidegger: “Se aqui, na perspectiva da physis, deve-
se aludir a ‘vigorar’, é justamente porque a physis não significa essência, o ho ti, o quê ou
quid das coisas.”521. Com efeito, a expressão kata physein não designa “segundo a essência”,
ou “segundo a natureza” em sentido metafísico; essa expressão significa: conforme a dinâmi-
ca do acontecimento apropriativo que caracteriza a verdade verbal e processual da essencia-
ção, sempre histórica e epocal. Não há, no interior desse pensamento originário, a cisão (cho-
rismos) entre ser e tempo, entre natureza e histórica, entre ser e devir ou entre ser e aparência.
São essas distinções que Platão instaurou no primeiro início da filosofia, e que se tornaram
hegemônicas.
O caráter dicotômico e cindido da metafísica impede a compreensão da ambiguidade
constitutiva do seer. Segundo Heidegger, o seer como physis deve ser pensado como o emer-
gir que não se manifesta inteiramente, que não se fixa num plano metafísico e essencial de
realidade transcendente. O seer não se subtrai à dinâmica do devir, da história, da temporali-
dade; ao contrário, depende constitutivamente dessa instância errática para se doar e descerrar
o ente na totalidade. Heidegger explana essa ambiguidade da physis na alternância entre o
desencobrir-se e o enconbrir-se:

520
HEIDEGGER, M. ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, p. 239. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.227-249.
521
Ibidem.
194

Surgir é, como tal, a cada vez já uma tendência para fechar-se. Surgir resguarda-se
nesse fechar. Enquanto en-cobrir-se, kryptesthai não é simplesmente fechar-se mas
colocar-se sob uma cobertura a que pertence o surgir e na qual se preserva a possibi-
lidade essencial do surgir. É no encobrir-se que predomina a tendência para desen-
cobrir-se. O que seria do encobrir-se se não houvesse nele mesmo uma inclinação
para surgir?

Physis e kryptesthai não estão separados um do outro, um tende para o outro numa
reciprocidade. São o mesmo. É somente nessa tendência que um favorece ao outro o
seu vigor próprio. Esse favorecimento recíproco é o vigor essencial de philei e phi-
lia. A plenitude vigorosa da physis reside nesse tender um para o outro e de surgir e
encobrir-se.522

Como se pode notar, a aparência é o locus onde o ser se dá, se manifesta, a partir do
qual o ser, enquanto physis se revela, desabrocha na presença. O decisivo nessa interpretação
heideggeriana da filosofia pré-metafísica grega é o enraizamento do ser na aparência, a partir
da experiência originária da physis como desvelamento, como “aparecer emergente”, que, na
dinâmica de sua manifestação, também comporta encobrimento. O ser nunca se apresenta por
inteiro, ele acontece re-velando-se, isto é, velando um aspecto de si mesmo enquanto expõe
outro. Ou seja, nessa experiência pré-chorismos, o ser não se encontra dicotomicamente opos-
to à aparência; ao contrário, só pode ser pensado a partir da manifestação aparente com que
reluz na sua essenciação e clareira que ilumina sem elidir o espaço de obscuridade que a cer-
ca.
Segundo Heidegger, a filosofia nascente de Platão precisava antagonizar com as po-
tências intelectuais hegemônicas na cultura de seu tempo e, aos olhos de Platão, elas se basea-
vam no poder da aparência, na capacidade que tinham de fazer aparecer, de forjar a realidade
a partir da faculdade imagética e assim ludibriar a pólis. Nessa categoria de criadores de apa-
rências inserem-se tanto os tragediógrafos quanto os sofistas, assim como os oradores políti-
cos que se valiam da técnica retórica e argumentativa ensinada pelos sofistas. O destaque do
ser em relação à aparência - quer dizer, o isolamento do ser em detrimento da aparência a que
estava submetida a sua existência - é uma operação filosófica que visa a salvaguardá-lo do
poder abrangente da aparência, que parece tudo dominar. Platão precisa defender o ser da
assertiva sofística de que “tudo é o que parece ser”, a qual equaciona ser e parecer. A resposta
platônica é a metafísica, o chorismos instaurado pela afirmação independente e estável da
idea.
Segundo Heidegger, trata-se de uma reação que defende, filosoficamente, a estabilida-
de e segurança ausente dessa forma imagética, poético-sofística, de lidar com o mundo. A
metafísica platônica seria uma forma de julgar as aparências que dominam a pólis, de contro-

522
HEIDEGGER, M. ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, p. 239. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.227-249.
195

lá-las, estabelecendo critérios fixos (eidéticos) de juízo, que são exatamente as formas ideais.
Nisso consiste o modelo paradigmático da idea analisado acima.
A origem da metafísica é impensável sem a compreensão desse combate (agon) cons-
titutivo do universo grego. Conforme a explicação de Heidegger, a filosofia teve que “arran-
car o Ser à aparência e protegê-lo contra ela”523. No âmbito do pensamento da physis, “o Ser
se Essencia a partir da re-velação (Um-verborgenheit)”524; ou seja o ser é formado por uma
aparência própria, que lhe pertence essencialmente. A aparência do ser não é produto de uma
degradação metafísica, de um rebaixamento ontológico do ente sensível que participa da es-
sência eidética da idea. O poder atribuído à aparência, no interior do pensamento arcaico ante-
rior à insurgência da sofística e da filosofia, era o poder da “revelação” do próprio ser, que
emerge no seu parecer. A religião dos deuses epifânicos que se manifestavam a todo o mo-
mento nos templos sagrados, o poder ostensivo das leis do Estado regulando as relações soci-
ais, a tragédia expondo mimeticamente o drama dos homens, deuses e semideuses, a competi-
ção agônica entre oradores, o combate esportivo entre atletas – essas são manifestações do
poder da aparência, do seu poder de parecer o que é. Essas manifestações essenciais do espíri-
to grego caracterizam-se pela unidade de ser e parecer; não há, nelas, uma diferença metafísi-
ca entre o que é e o que parecer ser, não há falsificação no processo de manifestação do ser,
não há uma perda metafísica no fato de o ser se manifestar sensivelmente. Para Heidegger,
“tudo isso [religião, leis, tragédia, retórica, esporte], edificaram no meio da aparência, cerca-
dos por ela, levando-a a sério, conhecendo-lhe o poder.Apenas entre os sofistas e em Platão, a
aparência se viu declarada simples aparência e assim rebaixada.”525 Com o processo de dis-
junção metafísica, operado principalmente pela metafisica platônica, “o Ser se desloca, como
idea, para um lugar suprassensível. O hiato, chorismos, se abriu entre o ente apenas aparente
aqui embaixo e o Ser real em algum lugar lá encima.”526
Heidegger observa que o poder atuante da aparência entre os gregos não é, de modo
algum, pensado como produto da imaginação subjetiva e, portanto, desprovido de dimensão
histórica e social. Isso seria falsear e falsificar o sentido essencial da aparência, que é propri-

523
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 132.
524
Ibidem.
525
Ibidem.
526
Ibidem.
196

amente manifestar o ser do ente527. Ao contrário da consideração individual e subjetivada da


aparência, típica da modernidade – “Só a gaiatice de todo epígono e esgotado (Müdgeworde-
ner) crê poder desfazer-se do poder Histórico da aparência, declarando-a ‘subjetiva’”528 -, os
gregos reconhecem nela um poder fundante, basilar da experiência de todo homem no mundo.
O mundo é o local onde se dão as aparências que o constituem. O mundo é aparente, é forma-
do pelas manifestações epifânicas do ser na linguagem.
Como as tragédias gregas souberam mostrar de modo eloquente, a experiência indivi-
dual de um homem como Édipo se vê inserida no drama da aparência e da revelação. Debat i-
do sucintamente por Heidegger em Introdução à metafísica, o pathos de Édipo é o drama que
o conduz pelo caminho do encobrimento – a falsa aparência que dele se tinha na cidade, e que
ele próprio acreditava sobre si, como sendo “de início salvador e senhor da Cidade, no es-
plendor da gama e da graça dos deuses” – à revelação de seu ser – “como assassino e desres-
peitador da mãe”529. Ora, a aparência do herói trágico “não constitui de forma alguma um
parecer meramente subjetivo de Édipo a seu respeito, mas a atmosfera, em que aparece a sua
existência, até que se dê a re-velação (Unverborgenheit) de seu ser.”530 Segundo Heidegger, o
pêndulo fatídico da tragédia, que vai do “começo de glória” até o “fim de horror”, “é um úni-
co embate entre aparência (Schein) (velamento, dissimulação) e a re-velação (o Ser).
À primeira vista, pode-se pensar que a tragédia antecipa a cissura entre ser e aparência
desenvolvida pela metafísica platônica. Mas Heidegger denega enfaticamente essa procedên-
cia, considerando que, ao contrário, a tragédia intui a unidade epocal de ser e aparência, que
caracteriza a errância como “figura da própria Verdade do Ser” 531. O erro e a ilusão propicia-
dos pela aparência, que pode ser enganosa em relação ao ser que manifesta, provém do pro-
cesso de essenciação do próprio seer, que se desencobre sempre parcialmente, permanecendo
sempre velado, nunca se deixando desvelar por completo. A aparência do seer não o esgota,
porque o próprio seer não se deixa exaurir na aparência de ente em que se revela. Isso diz res-
peito ao acontecimento apropriativo do seer, ao modo de essenciação histórica do seer, e não
pode ser equacionado, “solucionado” metafisicamente com a estabilização eidética do seer e o

527
HEIDEGGER, M. ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, p. 239. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.227-249.
528
Ibidem.
529
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro, 1999. p. 133.
530
Ibidem.
531
Ibid., p. 79 (nota n. 26, do tradutor).
197

consequente rebaixamento da aparência, do ente sensível a um nível de não-ser, de devir. O


des-encobrimento (Unverbogenheit) do seer é sempre uma re-velação, no sentido de ser um
novo velamento. Isso ocorre porque o seer, pensada como physis, retrai-se a si mesmo no pró-
prio ato de revelar-se, de aparecer. Nisso consiste a explicação do aforismo de Heráclito ex-
plicado acima: “Physis kryptesthai philei – (o aparecer que surge, emergente) tem, em si, a
inclinação para ocultar-se. Porque ser significa: aparecer emergente, sair do encobrimento,
por isso pertence-lhe Essencialmente o encobrimento, a proveniência dele.” 532 Isto é, essa
proveniência concerne diretamente ao processo de essenciacão do ser, que garante, também, a
intimidade entre ser e aparência. Esse processo revela o caráter artificial e infundado do cho-
rismos metafísico, que pretende dividir essas instâncias constitutivas do seer, como se a apa-
rência não lhe pertencesse essencialmente, como se lhe fosse um apêndice ilusório, uma ca-
mada enganosa que pudesse ser destacada da sua epiderme sem desfigurar o processo alethé-
tico da physis com que o ser emerge, desvelando-se e recobrindo-se ao mesmo tempo.
Diante da “onipotência” da aparência na pólis, Platão reage ao neutralizá-la metafisi-
camente, relegando-a à esfera inferior da hierarquia ontológica da realidade. Heidegger identi-
fica em Platão o abandono da potência primitiva da aparência, tornando-se um simples não-
ser (me on), sem consistência efetiva, sem manifestar a verdade do ente, ao contrário, destina-
da a falseá-la, pois a verdadeira essência do ente é o ser inteligível, a idea, cuja aparência ei-
dética não é sensível, mas inteligível. Com o chorismos, o idealismo platônico constitui, na
leitura de Heidegger, uma viragem em relação ao pensamento originário da physis, e essa mu-
dança é um grave declínio, uma vez que, com a hegemonia tradicional do dualismo metafísi-
co, a dinâmica do desvelamento-encobrimento, da mostração-retração sai do campo do pen-
samento, sendo relegada ao esquecimento, responsável pelo abandono niilista do seer. Desse
modo, Platão é o marco da metafísica da “plena luz”, da “plena positividade ontológica” 533,
isto é, da compreensão do ser como aquilo que sempre é, subtraído à mutabilidade do ente em
devir; o ser sempre é do mesmo modo e nunca parece ser diversamente do ponto de vista eidé-
tico. A aparência eidética do ser como ideia não muda nunca, apenas as suas configurações
ônticas e sensíveis que não são senão cópias esmaecidas do ser. Essa concepção metafísica
provoca o esquecimento da essência suspensiva, epocal (epoché) da physis originária, como
explicada no capítulo anterior. Antes de estudar o sentido niilista desse gesto platônico, con-

532
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica.Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro, 1999. p. 140.
533
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987.p. 142.
198

vém analisar a temporalidade apriorística da idea e a interpretação heideggeriana da ideia do


bem, núcleo do platonismo.

2.5A idea como a priori

Ao compreender o ser como ideia, Platão provoca a fissura ontológica entre ser e ente.
De um lado, o verdadeiramente ser (ontos on), inteligível, eidético e permamente e, do outro
lado, o ente sensível que não chega sequer a ser, por isso denominado me on, não-ser. A des-
peito dessa fenda, da separação do chorismos, essas dimensões não são absolutamente inde-
pendentes umas das outras, mas gozam de uma relação de anterioridade e posteridade, anali-
sada nesta seção. O nível superior do ser entra numa relação de “a-prioridade” com o nível
inferior do ente. O traço fundamental do ser, aquilo que o distingue do ente e lhe confere pri-
mazia ontológica, reside no fato de ser a priori em respeito à realidade sensível.
Heidegger observa que a noção filosófica de a priori é oriunda da palavra latina prius,
que já é, por sua vez, uma tradução e interpretação do grego proteron534. Em seu sentido tem-
poral comum, proteron é o anterior, o que precede, o que vem antes. Mas o que está em ques-
tão para Platão é a distinção entre ser e ente. Quando se diz que a ideia é a priori em relação
ao ente sensível, isso significa que ela lhe é antecedente, que vem antes dele e que, por isso,
determina-o. A relação de antecedência contida na noção de a priori encerra uma relação de
subordinação e dependência do ente sensível ao ser inteligível. O ente sensível é posterior
porque é determinado e subordinado pela ideia, que o precede na medida em que lhe serve de
fundamento e paradigma. Como se pode perceber, essa articulação contém a extensão da pri-
mazia temporal à prioridade axiológica, ou seja, da anterioridade temporal deriva a superiori-
dade do valor da ideia, que constitui o modelo paradigmático do ente sensível. É a ideia que
serve para aferir o valor, a qualidade do ente, o critério como qual se pode julgá-lo.
Antes de mais, é necessário discernir dois tipos de anterioridade, a em relação “a nós”
(pros emas) e a segundo a ordem do ser, “da natureza” (te physei). A anterioridade pode ser
dar em relação a nós, homens que observamos os fenômenos do mundo de acordo com o rit-
mo da nossa experiência, ora fazendo isso, ora aquilo. Quando dizemos que algo antecede
uma coisa, expressamos uma anterioridade baseada no nosso conhecimento, anterioridade de
ordem epistemológica, portanto. Nesse sentido, o anterior é o que apreendemos por primeiro,
sendo o posterior aquilo que percebemos depois, em segundo lugar. Naturalmente, essa dis-

534
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vo. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
pp.159-160.
199

tinção é limitada à nossa percepção e não considera a precedência lógica ou ontológica even-
tualmente presente na relação entre as coisas consideradas.
Em Nietzsche II, Heidegger explica que, quando comparamos duas coisas coloridas,
por exemplo, apenas posteriormente constatamos o ser da igualdade. Não se parte da ideia da
igualdade para somente depois se reconhecer que dois entes são iguais. Diz Heidegger: “vistas
em relação a nós, e, em verdade, em relação à nossa percepção e apreensão cotidianas as coi-
sas iguais se manifestam antes, isto é, o fato e elas se tornarem expressamente presentes como
tais.”535 Ou seja, “para nós”, a igualdade se revela posteriormente ao reconhecimento de dois
entes iguais. Para a percepção humana, no âmbito epistemológico, os entes sensíveis revelam-
se a priori em relação a articulação intelectual a respeito da natureza deles. Os entes sensíveis
apreendidos por nós são proteron, chegam-nos antes da igualdade abstratamente considerada,
do ser igual em si mesmo. Nesse sentido, pode-se afirmar que os entes sensíveis são prioritá-
rios para nós:
Daí, contudo, resulta claramente o fato de igualdade, ser igual e todo ser serem de-
pois do ente, ou seja, nunca a priori. Com certeza, eles são depois, a saber, eles são
depois pros emas, em consideração a nós, em consideração ao modo e à ordem dos
passos no modo como chegamos até eles enquanto algo que é expressamente conhe-
cido, pensado e questionado por nós. Na ordem temporal da apreensão e da conside-
ração expressas que são levadas a termo por nós, os entes, por exemplo, as coisas
que são iguais, são proteron, elas são antes da igualdade, do ser igual. No interior da
ordem citada, o ente é ‘antes’ – também podemos dizer agora: ele está mais voltado
para nós – que o ser. A ordem, segundo a qual o anterior e o posterior são determi-
nados aqui, é a sequência de nosso conhecimento.536

Além dessa anterioridade epistemológica, baseada na nossa apreensão, delineia-se a


anterioridade ontológica, segundo a ordem do ser, que Heidegger denomina anterioridade
“por natureza” (te physei) ou “em si” (katá autó). Nesse caso, passa-se da ordem do conhecer
para a ordem do ser, que é a ordem da physis, da eclosão da presença. A prioridade epistemo-
lógica é temporal na medida em que depende da sequência de apreensões de um sujeito, pri-
meiro sensível (quando visualiza dois objetos de cores iguais) e depois intelectual (quando
reconhece existir abstratamente a forma da igualdade na realidade). A prioridade ontológica,
porém, ainda que tenha uma dimensão temporal, é enfocada a partir da essenciação do ser e
do ente no interior da dinâmica da physis, que tem uma temporalidade própria, temporalidade
essa irredutível à sequencia cronológica de instantes sucessivos. É a temporalidade epocal do
acontecimento apropriativo, explicada no capítulo anterior. Essa distinção temporal sutil e ao
mesmo tempo abissal é fundamental para a compreensão heideggeriana do Ereignis, da physis

535
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vo. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.160.
536
Ibid., p. 162.
200

originária e sua posterior neutralização platônica. No horizonte da physis, o ser não precede o
ente no sentido de existir antes dele de forma autônoma e independente; o ser está sempre em
relação ao ente, e precisa dele para manifestar-se; o ente, por sua vez, é sempre de algum mo-
do ser pelo simples fato de aparecer, de estar presente, de surgir, o que Heidegger chama de
“essenciação”. Irredutível à dimensão cronológica, a prioridade ontológica é a anterioridade
do que vem à presença (phyein) primeiro.
A pergunta pela essenciação volta-se à compreensão do modo como o ser e o ente
eclodem a partir deles mesmos, como surgem, como vêm à presença. Ou seja, com essa inda-
gação, pergunta-se “como as coisas se comportam em relação ao ser, na medida em que ele
‘é’ o ser.”537 Como essência do ente, o ser refulge no aparecer, no desabrochar da physis. É
isso que Heidegger tem em mente quando desloca o polo de atenção do âmbito epistemológi-
co – dominante na época moderna da filosofia – para a dimensão ontológica, isto é, do próprio
ser, do modo como ele sedá, presentificando o ente em sua aparência. E isso é pensado a par-
tir da noção grega de physis, “o despontar-a-partir-de-si” do seer, que significa, essencialmen-
te, “um colocar-se-no-despontar”, “manifestar-no-aberto”.538 Quando se questiona no âmbito
desse despontar ontológico, ou seja, de acordo com o ser do ente que vem à presença (te phy-
sei), então o ser deve ser considerado o proteron em relação ao ente, já que o ente lhe é poste-
rior, depende dele para vir à tona539.
A fim de elucidar a natureza do ser como ideia, Heidegger distingue essas duas formas
de compreender a prioridade, epistemológica e ontológica. Para nós, o conhecimento sensível
de duas coisas iguais se dá espontaneamente antes da compreensão dialética da existência da
ideia de igualdade. Nada obstante, de um ponto de vista ontológico, mesmo sob uma ótica
estritamente lógica, a ideia inteligível é necessariamente anterior ao ente sensível que dela
participa. Se não fosse assim, se a ideia fosse posterior ao ente sensível, ela seria um conceito
mental, produto de uma abstração dialética.
Como se demonstrou anteriormente, a ideia certamente não é produto posterior da re-
presentação humana. Ora, Platão sabe que o homem encontra-se circundado predominante-
mente pela dimensão sensível da realidade e que a atividade filosófica, como evidenciada no
Fédon, é um progressivo afastamento da alma em relação ao corpo, o que significa um afas-
tamento da dimensão sensível da corporeidade para a convivência intelectual com a dimensão

537
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.162.
538
Ibidem.
539
Ibidem.
201

inteligível, que é o contato da alma com as ideias. Percebe-se, assim, que primeiramente li-
damos com a realidade sensível – dois objetos da mesma cor - e só após um processo ascético
e dialético apreendemos as formas inteligíveis que estruturam os entes e a nossa inteligência.
Ou seja, se não fosse o processo dialético e o esforço ascético que lhe é correlato – pensando
com base no Fédon – o homem não partiria para a “segunda navegação”, que é a forma filosó-
fica de pensamento, aquele que relaciona os entes sensíveis às ideias que lhes servem de fun-
damento e razão. O homem parte do sensível em direção ao inteligível, de modo que o ente é
anterior à ideia, a qual só é atingida ao termo de um processo dialético de inteligência filosó-
fica. É por isso que a ideia é, para nós, posterior ao ente sensível, que nos chega primeiro aos
sentidos. É a dimensão ôntica que se apresenta como o a apriori da nossa experiência cotidia-
na, cuja base é sensível e irrefletida. Essa experiência cotidiana pode ser considerada empíri-
ca, porque baseada nas aberturas (poros) dos nossos sentidos, que são o contato mais imediato
e direto que temos com a realidade circundante.
Ainda que a alcancemos posteriormente, a ideia platônica goza de uma evidente pri-
mazia ontológica, uma anterioridade essencial em relação ao ente sensível que dela participa.
Essa anterioridade essencial diz respeito à dinâmica essenciante da physis, ao pôr-se em des-
coberto da ideia, à sua presença no des-velado, precedendo o ente sensível na ordem do des-
velamento, antecipando-lhe ontologicamente a presença. É por isso que Heidegger afirma que
“idea é um nome para designar o próprio ser. As ‘ideias’ são proteron te physei [anteriores
segundo a natureza], o pre-cedente enquanto um ganhar presença.” 540 Essa é a origem na qual
o ser se essencia, sendo esse processo responsável pelo fato de que o ente seja. O ente só é
porque o ser se essencia; é o ser que abre o ente na totalidade, e essa abertura é prévia, anteri-
or à presentificação do ente. Explica Heidegger:
É sempre a idea e somente ela que distingue o ente enquanto um ente. Dessa forma,
em tudo aquilo que ganha a presença, a idea é o que vem primeiramente e antes de
tudo à tona. Segundo a sua própria essência, o ser é proteron, o a priori, o anterior,
apesar de essa anterioridade não se dar na ordem da apreensão por nossa parte, mas
muito mais com vistas àquilo que se mostra ele mesmo em primeiro lugar vindo em
nossa direção, àquilo que se presenta de antemão no aberto por si e vindo em nossa
direção.541

Como explicar, então, que o homem possa ter compreendido essa anterioridade onto-
lógica da ideia se epistemologicamente ele a apreende como posterior? É na doutrina platôni-
ca da reminiscência que Heidegger identifica o reconhecimento da anterioridade na ordem do

540
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. pp.163.
541
Ibid., p.164.
202

desvelamento essencial da ideia. De acordo com essa doutrina platônica, conhecer é lembrar-
se (Fédon, 72e), o que pressupõe que a ideia lembrada já foi anteriormente conhecida. Quer
dizer, a ideia nos foi previamente desvelada, ela se antecipa e se apresenta, se faz presente, à
nossa alma, ainda que dela nos esqueçamos e ainda que os sentidos acreditem ser totalmente
primária a experiência sensível. Como explica Boutot, é precisamente essa “presença antece-
dente da ideia” o que torna possível, de modo exclusivo, o desvelamento e o encontro das
realidades que dela participam542.
No texto analisado, Nietzsche II, Heidegger alude tacitamente ao Fédon (75b), no qual
se postula a necessidade de um conhecimento prévio do Igual em si, antes da percepção de
igualdades sensíveis. Heidegger reconhece que “o ser igual já se presenta no desvelado e a
igualdade ‘é’, antes de visualizarmos expressamente, considerarmos e até mesmo levarmos
em conta coisas iguais como iguais.” 543 Do ponto de vista platônico, quando nos confronta-
mos cotidianamente com coisas iguais, é necessário que o “ser igual” já tenha sido anterior-
mente visto, ainda quando nos demos conta desse fato. Ne verdade, é a ideia de um ente sen-
sível que o torna perceptível aos sentidos, que o torna desvelado em meio à clareira do seer.
Ora, como o ser é a própria presença que desvela o ente na totalidade, “o ser igual é aquilo
que se encontra essencialmente em vista, de tal modo, em verdade, que ele traz consigo pela
primeira vez a ‘visão’ e ‘algo aberto’ e o mantém patente, conferindo a visibilidade dos entes
iguais.”544 É assim que que Heidegger depreende o sentido ontológico da ideia, como “pre-
sença em meio ao desvelado”, aquilo que é “plenamente visível”, e que, portanto, torna visí-
vel o ente iluminado 545.
Do mesmo modo, no Fédon, Platão chega a essa mesma conclusão: para se afirmar
que duas coisas sensíveis – isto é, apreendidas pelos sentidos - são iguais é necessário saber a
priori o que é igualdade em si mesma considerada. Sem essa manifestação prévia da igualda-
de em si, não é possível reconhecer a existência da igualdade nas coisas, ou seja, reconhecer
que as coisas são iguais. Boutot assinala que “o desvelamento das igualdades sensíveis requer
e pressupõe o desvelamento da ideia de igualdade ela mesma” 546. Como se percebe, o desve-

542
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de
France, 1987. p. 146.
543
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche.Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
pp.163.
544
Ibidem.
545
Ibidem.
203

lamento do ente, sua manifestação na presença – o que equivale dizer, em chave heideggeria-
na, sua apresentação presentificante – subordina-se ao domínio da ideia. Ou seja, o ente reve-
la-se a posteriori, pois só se manifesta a partir da luz antecedente da ideia. A seguinte passa-
gem do Fédon (75a-b) - sobre a relação entre a igualdade em si, ideia inteligível, e a igualdade
nos e dos entes sensíveis - é explícita nesse sentido:
De qualquer forma, é por meio dos sentidos que observamos tenderem para a igual-
dade em si todas as coisas percebidas como iguais, porém sem jamais alcançá-la.
[...] Logo, antes de começarmos a ver, a ouvir ou a empregar os demais sentidos, já
devemos ter adquirido em alguma parte o conhecimento do que seja a igualdade em
si, para ficarmos em condições de relacionar com ela as igualdades que os sentidos
nos dão a conhecer e afirmar que estas se esforçam por alcançá-la, porém lhe são in-
feriores.547

A partir dessa compreensão do caráter a priori da ideia, sua primazia ontológica e axi-
ológica, Heidegger extrai o significado platônico da metafísica que se torna hegemônica na
tradição ocidental. Ao interpretar o ser como idea, Platão estabelece o caráter apriorístico da
causalidade ontológica: o ser “o proteron te physei”, tornando os entes, os “physei onta”, pos-
teriores. Como causa da dimensão ôntica, o ser-idea não é somente o precedente, indo “ao
encontro do ente”, mas também “vige sobre ele e se mostra como aquilo que reside para além
dos entes.”548 Por causa desse caráter a priori, o ser precede o ente, está para além dele, “por
cima dele”; daí seu caráter meta-físico. O ser é pensado metafisicamente quando localizado
em uma dimensão superior em relação a dimensão ôntica dos entes, ta physica. Por isso, a
ontologia platônica é metafísica, porque investiga o ente (ta physei onta)a partir de sua causa
a priori, a idea que está para além dele (ta metaphysica)549.
Segundo essa articulação de Heidegger, a filosofia de Platão instaurou o modo meta-
físico de conceber a realidade, porque pensa o ser como a priori, para além do ente que é por
ele precedido e condicionado. O ser é anterior ao ente na medida em que o domina e reina
sobre o domínio sensível. Essa subordinação da realidade sensível-ôntica à realidade inteligí-
vel-ontológica é o sentido platônico fundamental da tradição metafísica, segundo Heidegger.
Como reiteradamente salientado, a insurgência do pensamento metafísico configura um declí-
nio em relação à experiência autoral dos primeiros pensadores gregos, que compreendiam o

546
BOUTOT, A. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.p.
147.
547
PLATÃO, Fédon. Tradução e introdução Carlos Alberto Nunes. Coordenação Benedito Nunes e Victor Sales
Pinheiro. Edição bilíngue. Belém: Ed.Ufpa, 2011. p. 99.
548
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 165.
549
Ibidem.
204

ser como physis, que é fundamentalmente alheia a toda ideia de a priori, pensando ser-ente
em uma unidade constitutiva.
A ordenação anterior e posterior, precedente e subsequente, a idea é pensada como o
anterior cronológico do ente, o seu proteron. Isso fundamenta a distinção metafísica entre ser
e ente, sendo que o ser condiciona o ente, sendo-lhe o esteio subjacente. A anterioridade me-
tafísica do ser não impede que, para nós, o ente sensível apareça primeiro, seja mais próximo,
mais conhecido e familiar. É por isso que a filosofia platônica prevê o processo dialético de
purificação das impressões sensíveis a fim de se alcançar intelectualmente a essência eidética
do ente.
Considerando o pensamento originário da physis, o ser dispensa a ordenação que o dis-
tingue radicalmente do ente, “pois ele [o ser] é em si mesmo o emergir em sua clareira, como
o emergente, o pre-cendente, essenciando-se a partir de si mesmo em direção ao cerne da cla-
reira e por meio desta apenas se dirigindo ao homem.” 550 Como se percebe, a noção de physis
é refratária à sucessão cronológica presente na metafísica do a priori. É por isso que a tradu-
ção proposta por Heidegger para essa noção de a priori é pre-cedente (Vor-herige), pois essa
palavra comporta o duplo significado do pré – “desde o princípio” – e o cedente – “desde si
em nossa direção”551. Com isso, ele intenta neutralizar a sequencialidade cronológica ínsita à
noção metafísica de “anterior”, pois a considera errônea, resultante de uma incompreensão
fundamental em relação à “essência tempoforme” do seer, que é irredutível a “sucessão dos
entes”552.
No contexto do pensamento epocal da physis, não há que se falar em antes e depois,
em ordem de precedência e hierarquia entre ser e ente. Ainda que o ser se antecipe na clareira
e manifeste o ente no interior desse acontecimento veritativo (aletheia), o ser não lhe é a prio-
ri, não o condiciona, não o subordina. E isso porque, segundo Heidegger, só se pode falar
nesses termos no interior do pensamento metafísico, que opera o chorismos, a fissura no seio
da totalidade do ente, distinguindo a priori ser e devir, inteligível e sensível, ser e aparência,
hierarquizando a realidade em duas camadas sobrepostas e implicadas em graus de dependên-
cia. Ou seja, o pensamento metafísico instaura a diferença dualista, a hierarquia entre anterior
e posterior de um ponto de vista ontológico, que corresponde, no plano axiológico, ao superi-
or e inferior. Entre os pré-socráticos, todavia, a realidade é autossuficiente, determinando-se

550
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. v.2. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. pp.
171-172.
551
Ibidem.
552
Ibidem.
205

ela mesma por ela mesma, sem se conformar a uma ordem a priori que a subordina. Isto é, a
realidade tal como experimentada no cotidiano não era o resultado de uma ordem superior que
a dirigia; o homem não se sentia numa caverna cujos fenômenos eram imagens projetadas e
determinadas por modelos anteriores e superiores.
Como assinala Heidegger em Contribuições, no interior do pensamento do aconteci-
mento apropriativo, a physis é o determinante, o anterior, a procedência, a origem 553. O cará-
ter originário da physis diz respeito à emergência do seer que primeiro vem à presença, a es-
senciação da physis ela mesma como aletheia. Nesse sentido, porém, a physis não é o apriori,
pois não antecede o ente no sentido de estar presente fixamente num plano metafísico prévio.
A pergunta pelo proterón surge com a metafísica da idea, que é a entidade máxima, que, co-
mo tal, precede o ente que dela deriva. Entidade suprema, a idea é a causa do ente, sendo-lhe,
por isso, anterior. Desse modo, Heidegger afirma que a pergunta pelo a priori já se dá no âm-
bito da pergunta diretriz metafísica, pressupondo a estabilidade da ideia, para além da mutabi-
lidade dos entes sensíveis. A partir do pensamento do acontecimento apropriativo, a relação
entre o seer e o ente é totalmente diferente, não cabendo falar em uma anterioridade metafísi-
ca daquele sobre este, mas de uma dinâmica processual de simultaneidade, em que a emer-
gência do seer abre, ao mesmo tempo, o ente na totalidade. Ou seja, com o trânsito ao outro
início, a pergunta pelo a priori torna-se um problema aparente e secundário, porque baseado
na metafísica da idea.
Ora, o a priori surge quando, para a idea, a entidade dos entes,é conferida uma dimen-
são de superioridade metafísica, por resumir a comunidade (koinon) dos entes singulares, por
ser o mais real (ontos on) dos entes, “sendo em primeiro lugar” 554. O a priori concerne à pre-
cedência da entidade sobre o ente, pois a idea atua como a causa do ente, então deve necessa-
riamente ser anterior a ele. No âmbito do pensamento do acontecimento apropriativo, “a ver-
dade do seer e o essenciar-se do seer não é nem anterior, nem posterior.”555
Ao traçar essa distinção, entrevista em meio ao salto para o outro início, Heidegger vi-
sa a reconhecer que o idealismo apriorístico de Platão tornou-se canônico na tradição metafí-
sica até Nietzsche. O ser como ideia anuncia e prefigura o caminho traçado pelos sucessivos
sistemas filosóficos que postularam a anterioridade e a superioridade do ser sobre o ente. Isso
não quer dizer que se pode simplesmente justapor o a priori idealístico platônico ao a priori

553
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2. ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.183. (§111: ‘El ‘apriori’, y la physis’).
554
Ibid., p.184. (§112. ‘El ‘apriori’’).
555
Ibidem.
206

subjetivista kantiano. Ora, o a priori platônico, insiste Heidegger, não é uma representação
contida desde sempre na consciência de um sujeito, como categoria a priori da sensibilidade
ou do entendimento. O a priori platônico é mais compreensível do ponto de vista mítico-
alegórico, como anamnese, como lembrança de um conhecimento prévio identificado pela
inteligência quando se depara com um dado sensível. Em clave metafísica, isso significa que a
visão noética percebe a abertura do ser, a qual precede e condiciona o ente que dele participa.
Mas em que medida, pergunta fundamental, essa metafísica apriorística é niilista? Por
que afirma Heidegger tão categoricamente que “a metafísica é enquanto tal o niilismo propri-
amente dito”556?A metafísica é essencialmente niilista na medida em que desatenta ao sentido
do ser ele mesmo, pensando-o sempre em referência ao ente. Ao considerar o ser como a pri-
ori em relação ao ente, a metafísica subordina, inversamente, o ser ao ente; a metafísica vin-
cula o ser ao ente quando torna este dependente daquele. Ou seja, se o ente depende do ser, a
recíproca também é verdadeira, instaurando-se uma relação de mútua dependência, que, aos
olhos de Heidegger, se revela como uma entificação niilista do ser, que se torna uma espécie
de super-ente, o máximo ente possível. Com isso, não se considera jamais o ser em si mesmo,
naquilo que tem de próprio, de autônomo. O ser ele mesmo permanece velado, ocultado, es-
quecido. Para Heidegger, a metafísica, em todas as variantes de idealismo platônico, é esque-
cimento do ser; pior ainda, metafísica é esquecimento desse esquecimento, porque vela a in-
versão que promove ao subordinar o ente ao ser. Na verdade, a metafísica subordina o ser ao
ente, nadificando-o. Com base na diferença ontológica, incessantemente investigada, Heide-
gger afirma que, quando o ser é rebaixado ao ente, e isso se dá de modo eloquente na relação
de prioridade que a metafísica estabelece entre eles, o ser é, na verdade, alienado da sua natu-
reza específica, é ignorado em sua peculiaridade; em uma palavra, é reduzido a nada. E isso
exatamente porque não é o ente, não é nada de ente. O interesse da metafísica, elucida Heide-
gger, é pelo ente e só derivadamente pelo ser, o qual, em si mesmo considerado, “permanece
de fora”557.
A seção ‘A determinação histórico-ontológica do niilismo’, constante das preleções
que compõem a obra Nietzsche II, sintetiza esse argumento decisivo da leitura heideggeriana
de Platão: a metafísica idealista e apriorística é niilismo, esquecimento do ser, porque “o ser é
pensado precisamente a partir do ente e em direção ao ente”558. Isso ocorre mesmo quando a

556
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p. 267.
557
Ibid., p. 269.
207

metafísica interpreta o a priori como “como aquilo que é anterior segundo a coisa mesma ou
como aquilo que é preordenado na ordem do conhecimento e das condições do objeto.”559.
Heidegger enfatiza que, quanto mais o pensamento a priori, menos refletimos sobre o ser ele
mesmo. Em outras palavras, quanto mais aprofundamos as divisões que caracterizam essenci-
almente a metafísica – ser e não ser, ser e devir, ser e aparência, anterior e posterior – mais
relegamos o ser, ele mesmo, à dimensão do impensado, mais o abandonamos em nome da
entidade com a qual ele é substituído, obscurecido e ofuscado.
Com efeito, a metafísica reconhece que o ser não é o ente. Mas, tão logo essa afirma-
ção é feita, ela o confunde novamente como causa mais elevada do ente, como causa suprema
da realidade ôntica, ou mesmo como a subjetividade que fundamenta toda objetividade possí-
vel. Heidegger aponta, ainda, a síntese dessas duas modalidades metafísicas de entificação do
ser, “em consequência da co-pertinência das duas fundamentações do ser no ente, a determi-
nação do ente mais elevado como o absoluto no sentido da subjetivade incondicionada.”560 O
que interessa ratificar, nesse momento, é que essa fundamentação do ser no “maximamente
ôntico do ente” parte do fato inegável de o ente ser. Porém, a metafísica não se volta ao fato
de o ser se essenciar 561. Pensar radicalmente na essenciação do ser, na essência da verdade
como aletheia pressupõe o salto ao outro início, a partir da compreensão do sentido originário
de physis, anterior à dominância metafísica da idea que impede essa compreensão. Para pro-
mover a destruição dessa meditação histórica, faz-se necessário, ainda, analisar a essência
onto-teo-lógica da metafísica.

2.6A ideia do bem: teleologia e ontologia

A controversa ideia do bem, radicada no núcleo da obra mais importante de Platão,


ARepública, ocupa lugar central da leitura heideggeriana do platonismo. Com efeito, a ideia
do bem é provavelmente o ápice da especulação filosófica de Platão, a suprema “extravagân-
cia” de Sócrates. Considerada em vários textos de Heidegger, notadamente nas preleções de
Nietzsche e no texto ‘A doutrina platônica da verdade’,é a ideia do bem que permite compre-
ender o sentido último do ser, da idea, portanto é a essência profunda e a especificidade do
idealismo platônico. Ou seja, a ideia do bem é a chave de compreensão da ideia como tal,

558
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p. 264.
559
Ibidem.
560
Ibid., p. 265.
561
Ibid.,p.264-265.
208

sendo, por isso, a essência da metafísica platônica. É por isso que Heidegger afirma que “o
traço fundamental da idea é o agathon”562. Mas o que significa, primordialmente, a noção
platônica de bem, de agathon?
Inicialmente, devem-se afastar determinações alheias do contexto grego específico do
qual Platão extrai o significado filosófico do agathon. Em primeiro lugar, a tradução de aga-
thon por “bem” confere imediatamente um sentido moral ao termo, remetendo à virtude cristã
da bondade, pela qual o homem atende às prescrições morais. Daí poder falar-se de um ho-
mem “bom”, de busca “do bem”, de “boas” maneiras e assim por diante. Essa noção, contudo,
distancia-se do pensamento teleológico grego.
Em segundo lugar, não se deve atribuir ao agathon platônico a conotação moderna de
valor enquanto fruto da atividade de um sujeito, exatamente porque não há no mundo grego
essa noção correspondente de sujeito para designar o homem. Ainda que Heidegger reconheça
que o valor moderno, noção que remonta ao século XIX, procede remotamente do agathon
platônico, não se deve compreender este a partir daquele.
Afastadas essas duas camadas sobrepostas ao sentido originário de agathon, o moral e
o subjetivo, pode-se considerá-lo apropriadamente a partir do fundamento teleológico que lhe
é característico entre os gregos. Com efeito, agathon significa primordialmente o fim (telos) a
que uma coisa se destina, aquilo que lhe dá sentido, o porquê de sua existência. A esse sentido
teleológico inicial, Platão acrescenta, no contexto da argumentação metafísica da República,
um sentido propriamente ontológico, relacionado à geração das coisas, geração essa que é
pensada analogicamente a partir da imagem do sol, que não só ilumina as coisas que são vis-
tas (condição epistemológica de conhecimento) como lhes dá calor, vida (condição ontológica
de geração).
Na preleção sobre Nietzsche, Heidegger relaciona esses dois aspectos essenciais da
ideia do bem, o teleológico e o ontológico. A luminosidade conferida pela ideia do bem aos
entes sensíveis é considerada “o desvelamento” deles, o alcance alethético da verdade que os
permeia e que os põe no desencoberto. É esse desvelamento que torna o conhecimento filosó-
fico possível. Sem ele, os entes permaneceriam na obscuridade do não-ser. Além da luz, o sol
(a ideia do bem) confere aos entes sensíveis o seu calor, a sua substância ontológica, pela qual
“se tornam ‘algo que é’”, “aquilo que pode ganhar a presença em meio ao desvelado, sempre
segundo o seu modo de ser”563. O sentido teleológico é explicado por Heidegger como aquilo

562
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p.318.
563
Ibid., p.170.
209

que torna um ente apto para ser o que ele é. Naturalmente, essa dimensão relaciona-se inti-
mamente com a dimensão ontológica, que possibilita o ente enquanto tal, possibilitação de o
ente ganhar “presença em meio ao desvelado”564 Diz Heidegger: “Por meio da interpretação
platônica da idea como agathon, o ser se transforma naquilo que torna apto que o ente seja
um ente. O ser mostra-se sob o caráter da possibilitação e do condicionamento.”565
Como se percebe, o agathon está arraigado numa dimensão eminentemente prática, da
finalidade de uma coisa, daquilo porque ela existe, de seu fim. A ideia do bem realiza a finali-
dade da coisa, nisso consiste sua dimensão teleológica. Não se trata, portanto, da bondade
absoluta, da consecução da lei moral, mas da excelência da coisa, do cumprimento de sua
finalidade intrínseca. Ora, essa razão de ser aponta para a causa da coisa, daquilo que a gerou.
Daí vem a dimensão ontológica da ideia do bem, que é também “possibilitação” e “condicio-
namento”, no dizer de Heidegger. Mas como articular a dimensão ontológica e a teleológica?
Para entender essa articulação, convém complementar a argumentação heideggeriana com a
contextualização do momento da República em que surge a discussão sobre a ideia do bem,
de modo a elucidar a necessidade do aprofundamento ontológico na natureza da justiça, ques-
tão que move o diálogo 566.
Apenas declarado que os guardiães perfeitos devem ser nomeados filósofos (503b),
como principal condição de realização da cidade justa e bela (kallipolis), Sócrates anuncia
uma guinada no percurso até então seguido na conversa, num misto de ênfase e hesitação que
concede ao momento do diálogo uma dramaticidade ímpar, das mais tensas da obra platônica.
Depois de contornar as “ondas” anteriores, os argumentos da posse das mulheres e da procria-
ção dos filhos, Sócrates precisará recomeçar a articulação sobre a formação dos guardiães
“desde o princípio” (502e), de modo a integrar o que já tinha sido dito de modo genérico e
incompleto, ainda no Livro III (414a), com o conhecimento superior e necessário ao papel
determinante que esses guardiães desempenharão na cidade planejada. Ora, não se trata ape-
nas de instruir certo grupo político-militar capaz de gerir a nova polis, mas de construir no seu
âmbito um conjunto de governantes-filósofos capazes de compreender e preservar o sentido
originário e fundamental da justiça da sua constituição(497c). Para tanto, eles precisarão em-

564
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p.170..
565
Ibidem.
566
Essa contextualização foi feita na seção ‘4.1. A causalidade prática do bem: o sentido de agathos’da minha
dissertação de mestrado, intitulada Sol, Linha e Caverna: a dialética da imagem do bem na República de Platão,
redigida sob a orientação da professora Maura Iglésias, e defendida em 2010 no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Todas as referências são d’A
República de Platão.
210

penhar-se num “caminho mais longo”, e com o máximo rigor, como meio de atingir a plenitu-
de (telos) do conhecimento (mathema) mais importante (megiston), o que mais lhes convém
(504c-e).
A declaração de Sócrates, de que se deve buscar o o conhecimento superior (megiston
mathema), impressiona Adimanto, que retruca: “Há ainda algo de superior à justiça e às ou-
tras qualidades que analisamos?” (504d). E eis que Sócrates afirma a preeminência da ideia do
bem, o conhecimento superior capaz de torná-las úteis e valiosas, sem o qual de nada servirá
conhecê-las. (505a). A ideia do bem é, portanto, o fim da inteligência política dos archontes,
que, conhecendo-a, poderão orientar a sua conduta, tanto privada como pública (519c), inte-
grando as virtudes políticas pela correta determinação de suas atribuições567.
É exatamente a passagem do tratamento político-psicológico das virtudes para a fun-
dação onto-epistemológica da ética e da política sobre a ideia do bem e sobre a dialéticaque
caracteriza o desvio argumentativo de Sócrates neste momento da República, da psicologia à
metafísica. Não se trata de abordar outro tema, mas de enfrentar a mesma questão de modo
intelectualmente mais sólido, mais real. A discussão sobre as virtudes cardinais no livro IV
não passaram de um esboço do que agora será considerado a obra consumada, que é propria-
mente a fundamentação metafísica dessas virtudes políticas na ideia do bem (404d). Compa-
rada com a plenitude das formas perfeitas de virtude, apreendidas dialeticamente e considera-
das em si, subtraídas à inconstância do devir, as virtudes políticas do modo como foram des-
critas anteriormente no diálogo não são senão rascunhos, sempre incompletos e aproximati-
vos, afetados pela inexorável transitoriedade da ordem sensível. A ideia do bem será, de fato,
o modelo de referência, o paradeigma, nunca plenamente realizado, mas condição de possibi-
lidade para a efetivação, na medida do possível, da justiça na cidade. Só assim os guardiães
poderão ordenar a polis, os seus cidadãos e a si mesmos (VII, 540a).
Esta primeira apresentação da ideia do bem, que a relaciona concretamente às virtudes
políticas, denota a finalidade primordialmente ético-política de sua postulação. Essa dimensão
não pode ser esquecida no posterior aprofundamento de sua dimensão epistemológica e onto-
lógica. Isto é, não se deve desviar do horizonte essencialmente prático da investigação platô-
nica, plasmado na noção de agathon, com que descreveu a ideia superior de seu edifício meta-
físico. Essa questão é importante para a análise heideggeriana, que articula o platonismo nii-
lista de Nietzsche pela redução da ontologia à axiologia.

567
CF. GOLDSCHMIDT, G. Os diálogos de Platão – estrutura e método dialético. Trad. Dion Davi Macedo.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 269 e ss., principalmente, 274.
211

Nesse passo d’A República, percebe-se a passagem da justiça ao bem: Sócrates des-
centraliza, ou melhor, redimensiona o centro da reflexão para o bem, sem o qual a justiça per-
de o seu valor. Não se quer dizer com isso que o tema do diálogo mude, mas, ao colocar a
primazia na ideia do bem, Sócrates reposiciona o papel da justiça na cidade, submetendo-a à
efetivação causada pela ideia do bem, sem a qual ela permanece inútil e sem valor (505a). O
bem permite a atualização das coisas belas e justas, tornando-as úteis. O bem garante o pro-
cesso de atuação através do qual os valores encontram aplicação na cidade. Virtude e conhe-
cimento têm a possibilidade de serem aplicados praticamente e, assim, tornarem-se úteis e
vantajosos pela relação que tiverem com o bem 568. Como explica Heidegger, o adjetivo bom
refere-se sempre ao útil, ao vantajoso, ao fim próprio de cada coisa. Nessa mesma esteira,
Vegetti vincula a ética à teleologia:
uma coisa boa é uma coisa útil à realização de uma vida boa, isto é completa, prós-
pera, feliz; o que torna vantajosas e desejáveis as coisas boas individuais (ou singu-
lares) é esta instrumentalidade em respeito ao fim último, ao que é bom em si mes-
mo, a felicidade privada e pública.569

Com efeito, o termo agathon pertence, desde a época arcaica, ao campo semântico do
vocabulário moral, sempre associado à virtude. Nos poemas homéricos, agathos é o homem
virtuoso que atingiu a excelência no papel que desempenha. Como expressão específica de
Sócrates, agathon, já substantivado, quer dizer eficácia, utilidade, vantagem, em oposição ao
que é defeituoso, incompleto, impróprio, termos relacionados a kakon, seu antônimo 570. Como
explica Nettleship, toda ação do homem, como ser racional é praticada com vista a um fim
(telos), um objeto de desejo, que lhe é desejável e, por conseguinte, perseguido como bom,
útil, benfazejo. Esta é uma constante na vida humana, uma premissa básica entre os gregos,
explorada por Platão: “o bem significava o objeto do desejo, aquilo que mais vale a pena ter,
aquilo que nós mais queremos. [..] Na filosofia grega e no pensamento popular, era uma espé-
cie de verdade que o home é um ser que vive por algo, isso é dizer que ele possui um bem.”571
Isso é de suma importante para a apropriação platônica dessa noção ética grega. ARepública
procede com esse adensamento conceitual, que vai da ética à teleologia, da epistemologia à
ontologia, sempre em vistas à construção do paradigma de pólis justa e harmoniosa.

568
FERRARI, F. ‘L’idea del bene: collocazione ontologica e funzione causale’, p. 290-1. In: Platone. La
Repubblica vol.V , Traduzione e commento di M.Vegetti. Napoli: Bibliopolis, 2003.p.287-325.
569
VEGETTI, M. ‘Megiston Mathema. L´idea del ´buono´e le sue funzione’, p.256. In: PLATONE. La
Repubblica. vol.V Traduzione e commento di M.Vegetti. Bibliopolis, 2003.pp.253-286.
570
Cf. Ibid.,p.254.
571
NETTLESHIP, R.L. Lectures on the Republic of Plato. Londres: MacMillan, 1967. p.218-9
212

Para entender a natureza do bem precisamos ter em mente que o homem é um ser raci-
onal. Ele é uma criatura de fins e meios. O que ele faz é sempre considerado um meio para
alcançar o que ele considera como fim, como bem. O homem não pode evitar almejar, a todo
instante, alguma coisa, ainda que disso não tenha consciência. Por isso, o homem é um ser
moral, porque ele nunca está restrito ao momento presente, mas sempre pensa em algo além
do momento, e é por causa da razão que ele age deste ou daquele modo, sempre com vistas à
consequência de sua ação. A moralidade é atributo da racionalidade humana, a sua razão
compele o homem a agir, necessariamente, considerando um escopo, mais ou menos consci-
ente. Por isso, tal como registrado de forma definitiva na Ética a Nicômaco de Aristóteles, o
problema fundamental da filosofia moral grega é sempre determinar o verdadeiro fim para o
qual o homem deve viver. É isso que Platão apresenta com o conhecimento dialético da ideia
do bem: a finalidade da vida, considerada em sua inteireza, em vista da qual se deve executar
todos os atos, particulares e públicos 572.No passo 505d, Platão expressa de forma clara a natu-
reza teleológica de toda ação: o bem é aquilo que toda alma persegue e em vista do que reali-
za cada ato (505d-e). É a ideia do bemque dará utilidade às outras virtudes políticas, numa
dimensão essencialmente prática, por definir a sua finalidade, a sua função. Finalidade e fun-
ção são noções correlatas à noção de bem.
A racionalidade do homem permite-lhe pesquisar a causa, o objetivo não só da sua
ação, mas a teleologia da realidade como um todo, isto é, não só o fim último de sua ação
como o telos de cada coisa, a sua razão de ser, a causa pela qual é feita e para a qual tende,
por natureza. Segundo Nettleship, nisso consistea visão teleológica dos gregos, todo objeto ou
ação humana contém e expressa algum bem ou fim, uma função específica que lhe cabe por
natureza. Quanto mais se conhece esta sua função ou bem, mais se compreende o ente ou a
ação. Em outras palavras, o bem é o principio de inteligibilidade de cada coisa. Compreender
o bem de uma coisa implica compreender a sua razão de ser, a sua causa. A racionalidade do
homem concede-lhe, ainda, relacionar as causas particulares à causa última de tudo. Para Pla-
tão, essa causa última de tudo é exatamente a ideia do bem, a estrutura teleológica das coisas.
É a partir deste contexto de convergência da dimensão prática e cognitiva implícita na
noção de agathon que Platão desenvolverá, nas imagens da Linha, Sol e Caverna, o aspecto
onto-epistemológico da filosofia moral e política da República. Esclarece Nettleship:

572
“Doch während es für Aristoteles je nach den verschiedenen Handlungen auch verschiedene Güter bzw. Ziele
gibt (vgl. EN.A1.1094a3-9), so für Plato im Siebten Buch der Republik nur ein Ziel, worauf zielend man alles
tun muss, sei es in eigenen oder in öffentlichen Angelegenheit (vgl.519c). Das gute als das eine Ziel des
Handelns ist somit auch das Gut schlechtin, das höchste Gut.” FERBER, Rafael. Platos Idee des Guten. Sankt
Augustin: Academia Verlag, 1989. p.51.
213

a palavra ‘bem’ [agathon] significa aquilo que algo é destinado a fazer ou ser. O uso
da palavra implica certa hipótese fundamental sobre a natureza das coisas, nomea-
damente que há uma razão operando no mundo, no homem e na natureza. Essa razão
se mostra por toda parte no mundo neste modo particular, que sempre há, em um
número de elementos coexistentes, certa unidade, certo principio que os correlacio-
na, pelo qual exclusivamente eles são o que são, e por cuja luz exclusivamente eles
podem ser compreendidos. Por isso, o bem torna-se para Platão tanto a condição de-
finitiva da moralidade e a condição definitiva do conhecimento. Essas não são duas
coisas, mas uma e a mesma mostrando a si mesma em dois aspectos diferentes.573

Como podem os futuros governantes - os melhores da cidade, em cujas mãos tudo se


entregará na kallipolis– ignorar este fim último, fundamento da vida pública e privada (505e-
506a)? Com efeito, o problema central desta passagem é a perplexidade diante do que seja,
realmente, o bem, o fim em vista de que todos agem (505d-e). Os homens não o conhecem
suficientemente, afirma Sócrates (505a); dele têm apenas opiniões (doxai). Contudo, em se
tratando da ideia fundamental para a consecução não só da justiça como de tudo o que pode
ser belo e bom (505b), não basta apreendê-lo apenas em sua aparência, deve-se concebê-lo
em sua realidade (505d). A reflexão sobre o bem como ideia é o que ensejará o desvio da
questão prática à questão metafísica, de como conhecer aideia do bem, de acordo com a com-
preensão de qual seja a sua natureza ontológica.

2.7A ideiado bem e a onto-teo-logia metafísica

A incursão no contexto em que a ideia do bem é postulada n’ARepública é importante


para ressaltar o alcance ético-político articulado à dimensão teleológico-ontológica que Platão
lhe confere, como conhecimento indispensável à consecução da justiça na polis e na alma
humana. Mais do que isso, a ideia do bem se torna, com a analogia do sol, a fonte ontológica
da realidade e a base epistemológica do conhecimento humano. Nas preleções sobre Nietzs-
che, Heidegger se interessa primordialmente pelo significado metafísico que essa ideia adqui-
re, como onto-teologia hegemônica na tradição ocidental, como fonte metafísica do idealismo
que caracteriza o primeiro início da filosofia. Nesse momento da investigação, é necessário
compreender a dimensão teológica inerente à metafísica da ideia do bem.
Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que Heidegger não compreende a teologia da
ideia do bem do modo cristão, criacionista, mas a partir da noção grega de theion. Com efeito,
ele afirma que a acepção grega de agathon, elucidada no item anterior, faz com que fracassem
“todos os artifícios teológicos e pseudoteológicos”, como os que, na era cristã, interpretam o

573
NETTLESHIP, R.L., Lectures on the Republic of Plato. Londres: MacMillan, 1967. p.225.
214

agathon como o summum bonnun, o Deus creator574. A teologia identificada por Heidegger é
metafísica e não religiosa, diz respeito à divindade da idealidade do ser, da essência do ente; a
ideia do bem é divina por ser a “causa suprema”, o “ente máximo”. Como ontologia, a metafí-
sica interroga o ser - a essência, a entidade (ousia) - do ente. Essa ontologia metafísica, na
verdade, reduz o ser ao ente, e não o questiona em si mesmo, mas sempre em relação ao ente
a que serve de fundamento. Portanto, ao parecer de Heidegger, não é uma ontologia autêntica
que considera o ser em si mesmo.
Essa é a razão do projeto inicial de Heidegger de realizar uma ontologia fundamental,
uma ontologia que realmente considere o ser nele mesmo. Posteriormente, Heidegger percebe
que esse projeto, ainda que baseado na destruição da história da ontologia, ainda permanecia
preso às categorias metafísicas do primeiro início, o qual deve ser superado mediante o salto
ao outro início. Esse salto busca o impensado no já-pensado, exigindo um aprofundamento no
que resta a ser pensado no primeiro início. Nesse contexto, a dimensão onto-teo-lógica da
metafísica desponta como um dos temas fundamentais do pensamento do Ereignis. Em que
medida, afinal, a metafísica platônica não é apenas ontológica, mas também teológica?
Para Heidegger, a metafisica platônica é teológica na medida em que não se limita a
investigar o ser do ente (função primordial da ontologia inautêntica, denominada metafísica),
mas visa a fundar o próprio ser (a ideia), ele mesmo, em um princípio supremo, não causado,
incondicionado, an-hipotético. Essa é precisamente a fundamentação teológica da ideia do
bem, é ela que funda a idealidade das ideias, a essência do ser. Boutot estabelece uma síntese
bastante precisa a esse respeito: a ideia do bem não é apenas “fundamental” (ontológica), mas
também “fundadora” (teológica)575. Heidegger atenta sobremaneira a essa fundamentação
metafísica da filosofia platônica, em sua dupla essência, ontológica e teológica, radicada na
ideia do bem.
Em ‘A teoria platônica da verdade’ – texto que ainda será estudado no próximo capítu-
lo -, Heidegger remonta a uma noção recorrente em sua obra, a de que a metafísica começa
quando Platão direciona o olhar do filósofo para o “ser do ente”, sendo esse ser a idea, fixa e
imutável, a ser captada por um olhar sensível. Na alegoria da caverna, a filosofia torna-se cla-
ramente meta-física, pois o filósofo deve libertar-se do universo das sombras e acostumar-se a
contrastá-las com as ideias: “o pensar vai met’ekeina, ‘além’ daquilo que é experimentado

574
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
p.169.
575
BOUTOT, A. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.p.
178.
215

apenas sob a forma de sombra e cópia, para além eis tauta, ‘em direção’ a essas, a saber, às
ideias.”576
As ideias respondem pela consistência ontológica dos entes sensíveis, assim como ga-
rantem a solidez epistemológica do filósofo que as contempla. Mas o que garante o funda-
mento das próprias ideias? Diane desse desafio ontológico e teológico, Platão postula a ideia
do bem, que é o “mais elevado no âmbito do suprassensível”, “a ideia das ideias”, “a causa
originária de toda consistência [Bestand] e aparecimento [Erscheinen] de todo ente. Porque
essa ‘ideia’ é deste modo a causa de tudo, ela também é a ideia que se chama ‘o bem’” 577. É
esse gesto platônico de fundamentar a idealidade da ideia em uma supra-ideia que confere
dimensão teológica à ontologia. A noção aqui de theion para qualificar “essa causa suprema e
primeira” remente propriamente a Aristóteles, mas Platão já se refere, na esteira do pitagoris-
mo, à divindade das formas ideias. Segundo Heidegger, “teologia significa aqui interpretar a
‘causa’ do ente como Deus e deslocar o ser para essa causa, que contém em si e dispensa a
partir de si o ser, uma vez que é o que há de maximamente ente do ente.”578
Nessa passagem importante de Heidegger, fica claro os dois elementos analisados nes-
te item, o teológico e o ontológico-entificador. A dimensão teológica da metafísica diz respei-
to à fundamentação do ser-ideia em uma causa suprema, a ideia do bem. Por sua vez, a di-
mensão entificadora da metafísica diz respeito à compreensão do ser a partir da maximização
e superlativização do ente, ou seja, o ser considerado como “o que há de maximamente ente”,
o mais ente dos entes. Essas duas características essenciais da metafísica podem ser identifi-
cadas na alegoria platônica da caverna, situada no núcleo de uma das obras mais influentes e
decisivas da tradição ocidental, A República. A dimensão entificante da metafísica é apontada
por Heidegger como sendo a causa fundamental do niilismo da tradição metafísica.
Ao lado dessa dimensão teológica – que é, na verdade, uma meta-ontologia, na medida
em que funda o ser da ideia, a sua essencial ideal, a sua idealidade, numa causa primeira anhi-
potética -, ontologia e epistemologia estão intrinsecamente ligadas na alegoria do sol, com a
qual se explica a ideia do bem. Como se sabe, a alegoria do sol e a analogia da linha, antece-
dem a alegoria da caverma. Essas três imagens compõem o tríptico que condensa a metafísica
d’A República. A ligação da ontologia e da epistemologia na alegoria do sol se dá pelo caráter
eidético da ideia, que a torna dotada de um aspecto visual específico e a conforma à visuali-

576
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 247. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250.
577
Ibidem.
578
Ibidem.
216

dade de um olhar noético. O que torna os entes noeticamente visíveis é a sua ideia; e o que
permite que as ideias tenham essa força desveladora, essa capacidade de conformar o aspecto
do entes é a ideia do bem. Terceiro elemento do ato cognitivo, a ideia do bem não se confunde
nem com a alma que contempla nem com a ideia que se oferece à contemplação. Como o sol
em relação à visão sensível, a ideia do bem é a luz que torna a ideia visível, isto é, que lhe
confere a dimensão eidética de aspecto visual, iluminado pela ideia do bem e luminoso em
relação ao ente de que participa inteligivelmente. Do mesmo modo, a ideia do bem permite
que a alma humana se abra, fenomenologicamente, para a mostração eidética do ente, visando
a sua ideia manifesta.
Como analisado na seção anterior, a noção de agathon encerra o sentido de função
primordial de uma coisa, aquilo para que ela existe. Nesse sentido, a função ontoepistemoló-
gica a ideia do bem é o que torna as ideias eidéticas, essenciais. É ela que as torna visíveis, ou
seja, inteligíveis. E Heidegger explica isso na mesma chave metafórica platônica, a partir ana-
logia da luz, que franqueia visibilidade e mostração das coisas, ou seja, a sua desocultação
veritativa – relativa ao processo de desvelamento da aletheia -, que as retira de um horizonte
obscuro, que é o da sensibilidade. Como explica Heidegger em ‘A teoria platônica da verda-
de’: “Toda idea, o aspecto de alguma coisa, proporciona a visão daquilo que um ente a cada
vez é. Por isto, pensadas de maneira grega, as ‘ideias’ prestam-se para que alguma coisa apa-
reça naquilo que é e, assim, possa vigorar em sua consistência.” 579 Mas, uma vez estabelecida
a função das ideias em relação aos entes sensíveis, deve-se projetar essa mesma relação de
fundamentação onto-epistemológica à função desempenhada pela ideia do bem em relação às
ideias, elas mesmas. Heidegger articula, no seguinte excerto, a dimensão de agathos da ideia
do bem, como fundamento do espaço de mostração e possibilitação das ideias em geral, as
quais, por sua vez, franqueiam a visibilidade teleológica e ontológica dos entes sensíveis:
Assim, expressando isto de maneira platônica, aquilo que faz com que uma ideia,
enquanto ideia, se preste para..., a ideia de todas as ideias, consiste em possibilitar o
aparecer de tudo que vigora em sua visibilidade. A essência de toda ideia já reside
em uma possibilitação e faz com que algo se preste a aparecer, um aparecer que ga-
rante uma visão do aspecto. É por isto que a ideia das ideias é pura e simplesmente
aquilo que dá préstimo, to agathon. É esse [o to agathon] que faz com que tudo
aquilo que aparece apareça e é ele mesmo [o to agathon], então, o que mais aparece
em seu aparecer. É por isto que Platão (518c,9) também chama o agathon de tous
ontos to phanotaton, ‘o que mais aparece (o mais resplandecente) do ente.’580

579
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 239. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250.
580
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 239-240. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250.
217

É a ideia do bem que fornece às ideias aquilo que as caracteriza essencialmente, o fato
de serem luminosas, isto é, o fato de reluzirem eideticamente. É a ideia do bem que lhes dar o
poder de brilhar para além dos entes sensíveis que delas participam. Enquanto os entes sensí-
veis são marcados pelo obscurecimento de sua essência, porque contaminados pela dimensão
errante da sensibilidade, as ideias reluzem permanentemente, de modo a servirem de para-
digmas aos entes sensíveis que são por elas plasmadas. A ideia do bem concede-lhes essa luz
onto-epistemológica brilhando, isto é, sendo a ideia das ideias, sendo-lhes o que elas são aos
entes sensíveis, o fundamento ontológico e epistemológico. As ideias só são e só são conheci-
das por causa da ideia do bem. A ideia do bem faz com as ideias aquilo que elas fazem com
os entes sensíveis: “empresta visibilidade àquilo que se apresenta”. Já se viu que, para Heide-
gger, ser é manifestar-se, é presentificar-se, é apresentar-se. Para tanto, é necessário uma
ideia que já sempre seja, que apresente o ente no campo possível de mostração, que é a pró-
pria luz da ideia. É a ideia que fornece ao ente o campo de manifestação em que ele pode se
fazer presente. Heidegger explica isso nos seguintes temos:
A ideia suprema é a origem, isto é, a causa originária de todas as ‘coisas’ e de seu
caráter coisal. ‘O bem’ garante o resplendor do aspecto, é aquilo onde o que se pre-
senta encontra sua consistência naquilo que ele é. É por essa garantia que o ente é
mantido e ‘salvo’ no ser enquanto conteúdo.581

E a ideia do bem, ela mesma, como é conhecida? A resposta de Platão, que pode ser
claramente compreendida pela estrutura analógica da Linha (República 509d-511e), remonta a
própria relação ente-ideia, ou seja, tal como a ideia se apresenta e resplandece como o aspecto
eidético e ontológico do ente, a ideia do bem presentifica o aspecto ideal da ideia, essencia o
seu ser. Heidegger evidencia a ontologia das ideias e a teologia da ideia do bem como causa
suprema. Ambas comportam a “presença presentificante”, seja dos entes sensíveis (ideias),
seja das ideias (ideia do bem). Essa “presença presentificante” passa não raro despercebida,
tanto quanto a luz solar que permite a contemplação dos entes sensíveis pode ser descurada
quando se volta a esses entes. A ideia do bem é, portanto, “o nome daquela ideia excelente,
que continua sendo enquanto ideia das ideias o que dá préstimo a tudo.”582. Desse modo, Hei-
degger sublinha que “essa ideia, que só pode chamar-se ‘o bem’, permanece uma idea teleu-
taia, porque nela se consuma a essência da ideia e isto significa, começa a se essenciar, de tal
modo que é só a partir dela que surge a possibilidade de todas as outras ideias.”583

581
Ibid., p. 240-241. (As passagens gregas citadas por Heidegger foram omitidas, preservando-se apenas as ne-
cessárias para a compreensão de sua interpretação-tradução do texto platônico).
582
Ibid., p. 240.
583
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 240. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250.
218

Nesse texto decisivo do pensamento tardio de Heidegger, ‘A teoria platônica da ver-


dade’, o filósofo já trabalha conscientemente com a noção de verdade como essenciação, co-
mo processo alethético de abertura do ente na totalidade a partir do desvelamento do ser no
ente. Nessa esteira, a ideia do bem é pensada como ideia das ideias, como horizonte prévio de
abertura eidética em que as ideias podem vir à luz, iluminado o ser dos entes que delas parti-
cipam. É por isso que, como ideia suprema, o bem,
de certo modo, já se encontra por toda parte e sempre em vista, onde quer que se
mostre um ente. Mesmo ali onde se olha apenas para as sombras, em sua essência
ainda veladas, já é preciso que esteja brilhando um lume de fogo para que isso acon-
teça, mesmo que esse lume não seja apreendido propriamente nem seja experimen-
tado como doação do fogo, mesmo que aqui, acima de tudo, se continue ignorando
que esse fogo é apenas um rebento (engonon, VI 507a, 3).584

O que Heidegger chama, aqui, de “doação do fogo” é a abertura précia do espaço de


mostração dos entes sensíveis, propiciada pela luz eidética da ideia. Mesmo as sombras se
alimentam da luz do sol, de forma derivativa. Por isso é tão importante ter-se sempre em men-
te a analogia da linha, que articula os paralelos dos âmbitos sensível e inteligível, com suas
respectivas divisões internas (o eikástico e o âmbito sensível-crível da pistis; o dianoético e o
noético). É o fogo da caverna que possibilita a apreensão das sombras, só que esse saber es-
pontâneo é totalmente desprovido de autoconsciência filosófica. Essa apreensão sensível “não
conhece a si mesma”, “serve de imagem para o fundamento desconhecido daquela experiência
do ente, que mesmo referindo-se ao ente, não o conhece como tal.” 585 Heidegger ressalta esse
caráter irrefletido, porque voltado aos entes iluminados, e não à luz que os ilumina. Quando se
desdobra essa estrutura, percebe-se que o campo de mostração dos entes, por ser transparente,
é ignorado em nome daquilo cuja mostração ele permite. A luz do fogo e do sol - que resplan-
decem, respectivamente, o âmbito sensível e âmbito inteligível – compõem a claridade que
confere a visibilidade das coisas e das ideias. Além da visibilidade epistemológica, a luz pro-
move a “‘desocultação’ de tudo que aparece”, ou seja, “seu brilho irradia igualmente o calor
e, com sua incandescência, possibilita tudo quanto ‘surge’ emergir em meio àquilo que se
pode visualizar em sua consistência (509b).”586
No pensamento heideggeriano posterior da viragem, a verdade é pensada como ale-
theia, como um processo de desocultação que abre o ente na totalidade. E esse processo é

584
Ibidem.
585
Ibidem.
586
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 240. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes. pp.215-250..
219

levado a cabo pelas ideias e, em última instância, pela ideia do bem. O que interessa observar
é o seguinte: Heidegger recorre a Platão não só porque este filósofo grego configurou a meta-
física do primeiro início, mas porque também conservou, ainda que inconscientemente, vestí-
gios da compreensão originária do ser, vigente entre os pensadores originários. Nesse sentido,
a aletheia é um processo de desocultação do ente com que o próprio ser se oculta. Há sempre
um velamento em todo o desvelamento veritativo. A mostração da aletheia é sempre uma re-
velação, porque o ser torna a se ocultar tão logo desoculta o ente na totalidade. Do mesmo
modo, o sol, que é percebido pela luz que irradia, é logo desapercebido em proveito daquilo
que ilumina. O sol, ele mesmo, não é contemplado, e nem pode sê-lo diretamente, porque
ofusca a visão que o enfoca. Do mesmo modo, o ser se retrai ao conhecimento que franqueia
ao ente.
No núcleo dessa argumentação que visa a esclarecer a natureza ontológica (que confe-
re ser e essência às ideias) e teológica (princípio supremo de tudo) da ideia do bem, Heidegger
reforça a motivação ético-política de Platão, ressaltando que o conhecimento supremo (megis-
ton mathema) da ideia do bem, como causa originária de tudo, permite a compreensão da jus-
tiça e da beleza das ações, ou seja, a excelência das virtudes e a harmonia da pólis, consoante
a adequação da alma individual ao seu telos. O que se pretende sublinhar é a articulação da
ontoteologia com a teleologia ético-política, pois o interesse primordial do diálogo platônico,
em que essa argumentação ocorre, é a explicação da essência da justiça, na alma humana,
vista analogicamente nas letras expandidas da pólis.
Como toda essa eminência filosófica, que a torna uma ideia superior às demais, a ideia
do bem detém também uma superioridade que se pode denominar – com Boutot – topológica,
ou seja, figura em um lugar inteligível superior às demais, pois “excede de muito a essência,
em poder e dignidade” (509b). Como compreender essa transcendência “essencial” da ideia
do bem, à qual é negada a condição de “essência” (entidade)? Primeiramente, segue a debati-
da passagem de Platão: “O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que não recebem do bem
apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência, conquan-
to o bem não seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignida-
de.”587
O mérito da interpretação de Heidegger é superar a aparente contradição do pensamen-
to platônico, mostrando que a ideia do bem é perfeitamente compatível com a estrutura teleo-
lógica e ontológica da hipótese metafísica das ideias como tal. É claro que a ideia do bem

587
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. p. 313 (Livro VI,
509b).
220

concede a essa hipótese uma dimensão teológica como princípio supremo do ente na totalida-
de, mas a lógica da relação entre a ideia do bem e as ideias permanece a mesma, isto é, meta-
física. Isso quer dizer que se pode traçar um paralelismo estrutural, uma cadeia de quatro pon-
tos com analogia de posição e função, no modelo A está para B como C está para D. Nesse
quadro lógico, a ideia do bem excede ontologicamente as ideias que dela participam para que
possam ser ideias, já que a ideia do bem é a essência delas e a essência está sempre para além
daquilo de que é essência. A transcendência da ideia do bem sobre as ideias reproduz, em
estrutura analógica, a transcendência das ideias sobre os entes sensíveis, o que quer dizer que
ela é a “essência propriamente dita da entidade”, a “possibilitação” e o “condicionamento”
das ideias. Isso porque, como explica Heidegger em Nietzsche II:
A essência da idea é tornar apto, isto é, possibilitar o ente enquanto tal: possibilitar
que ele ganhe a presença em meio ao desvelado. Por meio da interpretação platônica
da idea como agathon, o ser se transforma naquilo que torna apto que o ente seja um
ente. O ser mostra-se sob o caráter de possibilitação e do condicionamento.588

O mesmo raciocínio aplicado à possibilitação fenomenológica do ente sensível, cuja


mostração se dá com base na abertura prévia da ideia, deve-se ter em relação à essenciação da
ideia a partir da ideia do bem. Ao questionar o que é a ideia do bem, Heidegger desvia-se da
pergunta fundamental formulada (“Em que consiste essa essência da entidade?”) em direção à
pergunta correlata (“Em que consiste a visibilidade da ideia?”), como se as duas fossem a
mesma. A ideia do bem é assim explicada pela característica agathoide – aquilo que torna
alguma coisa apta a ser aquilo que é e deve ser - das ideias como tais, exatamente porque a
ideia do bem é essencialmente boa (agathoide). Heidegger apenas inverte a ordem de explica-
ção, do mesmo modo como Platão prefere mostrar a luz artificial da fogueira antes de apontar
para a autêntica luz do sol. Ou seja, são as ideias, no plano inteligível que é o delas, que re-
produzem o ser da ideia do bem, que é o de presentificar o ente em seu aspecto eidético, tor-
nando-o idealmente inteligível. Do mesmo modo, a ideia do bem essencializa as ideias, tor-
nando-as eidéticas para que possam desempenhar o telos que lhes é próprio, telos esse que é
estabelecido pela própria ideia do bem. Pela ideia do bem, as ideias tornam-se cognoscíveis,
resplandecentes em sua natureza de essência dos entes sensíveis. É com isso que a ideia do
bem torna as ideia boas, aptas a presentificar e essencializar os próprios entes sensíveis.
Heidegger segue a explicação analógica de Platão ao compreender a transcendência da
ideia do bem em relação às ideias a partir da transcendência das ideias em relação aos entes
sensíveis. Desse modo, fica claro por que ele considera niilista a fundação ontoteológica da
metafísica na ideia do nem. Por um lado, tem-se a consideração do ser como essência ideal do

588
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.170.
221

ente, como entidade; esse gesto entifica o ser e o reduz a nada, visto que, pela diferença onto-
lógica, ele não é nada de ente. Por outro lado e analogicamente, a consideração da ideia do
bem como essência das entidades, “ideia das ideias”, não transcende, em absoluto, o plano
ôntico em que estão radicadas as próprias ideias meta-físicas, que estão para além da física,
mas que, de algum modo, permanecem, entificadas, presas a ela.
Esquecimento da verdade do ser, o niilismo é o aprisionamento metafísico do funda-
mento ontológico no interior do próprio ente a ser fundamentado: o ser não é senão o máximo
do ente, o melhor dos entes, o mais digno dos entes, a essência superlativa dos entes. Em pou-
cas palavras, o ser não deixa de ser um ente. Para Heidegger, a ideia do bem é uma prova elo-
quente de que a metafísica platônica é niilista, já que a investigação da essência do fundamen-
to poderia tê-la conduzido à diferença ontológica, o que não ocorreu por conta da renovação
do “erro metafísico” de considerar o fundamento o máximo do ente, a entidade. Esse erro é
renovado quando Platão projeta o mesmo modelo eidético entificante que servira de explica-
ção do fundamento do ente para a explicação do fundamento das ideias. Em vez de afirmar o
ser em sua radicalidade ontológica, autônomo em relação ao ente, Platão considera a ideia do
bem um paradigma das ideias, o maximamente ideal, eidético.
Três passagens da República, identificas por Boutot589, corroboram a leitura heide-
ggeriana de que a ideia do bem, por ser ideia, não transcende o nível ôntico do ente, pois se
trata de uma transcendência meramente metafísica e não radicalmente ontológica. Com efeito,
no livro VII, Sócrates afirma que:
essa faculdade é inata à alma, como também o órgão do conhecimento; [...] esse ór-
gão, juntamente com toda a alma, terá de virar-se das coisas perecíveis, até que se
torne capaz de suportar a vista do ser [to on] e da parte mais brilhante do ser [tou on-
tos to phanotaton]. A isso damos o nome de bem, não é verdade?590

Em seguida, ao tratar das ciências geométricas que dinamizam a faculdade intelectual


da alma, contribuindo decisivamente para “a visão da ideia do bem”, Sócrates considerao bem
“o mais feliz dos seres (to eudaimonestaton tou ontos)” (526e). Por fim, mais adiante nesse
mesmo argumento da formação científica, referindo-se tacitamente à ideia do bem, Sócrates
assegura que
o estudo das artes [geométricas]... leva a parte mais nobre da alma à contemplação
do mais excelente dos seres [tem tou aristou em tois ousi thean], tal como vimos an-

589
Cf. BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism Paris: Presses Universitaires de Fran-
ce,1987. p.160.
590
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. p. 324 (Livro
VII, 518c).
222

tes com referência ao órgão mais claro do corpo, que se eleva à contemplação do
que há de mais lúcido no mundo material e visível.591

Nessas três passagens, o bem é pensado como um ente (on). É verdade que é reforçada
a sua dimensão privilegiada, única e incomparável; todavia, continua sendo um ente, algo que
é. É por essa razão, inclusive, que o filósofo é capaz de alcançar e definir dialeticamente a
ideia do bem como uma “essência”, do mesmo modo como faz com as essências das virtudes
e dos entes em geral:
Não denominas dialético o individuo que sabe encontrar a explicação da essência de
cada coisa? [...] passa em relação ao bem. Quem não for capaz de determinar concei-
tualmente a ideia do bem e separá-la das demais ideias, [...] de semelhante individuo
não dirás que conhece o bem em sim ou qualquer outro bem, pois até mesmo no ca-
so de chegar a alcançar uma espécie de simulacro do bem, só o fará por meio da
opinião, não do conhecimento, não passando a vida de um sonho e modorra contí-
nuos, sem que jamais venha a despertar de tudo aqui na terra; antes disso baixará pa-
ra o Hades e dormirá o sono eterno.592

Com esse excerto, não resta dúvida de que a ideia do bem é uma ideia entre outras,
uma entidade essencial que pode ser conceituada dialeticamente. Com efeito, ao explicar a
natureza intelectual da dialética, Sócrates afirma ser ela capaz de alcançar a “essência do
bem”:
O mesmo acontece com quem se vale da Dialética: sem nenhuma ajuda dos sentidos
externos e com o recurso exclusivo da razão, tenta chegar até à essência das coisas,
sem parar enquanto não apreende com o pensamento puro o bem em si mesmo [auto
ho estin agathon – a essência do bem]. Com isso, atinge o limite do cognoscível,
como o outro, naquele caso, o do mundo sensível.593

Agora, explora-se a dimensão niilista desse idealismo metafísico de Platão, por meio
da sua inversão radical, do pensamento nietzschiano que a conduziu ao seu limite e que aca-
bou por revelar o que o caráter infundado do seu fundamento. Essa inversão é o fastígio do
primeiro início, que aponta para a necessidade do salto ao outro início.

2.8A dimensão deveniente, valorativa e niilista da metafísica

Para Heidegger, o primeiro início descortina um horizonte essencialmente niilista,


porque descuida do ser, em si mesmo considerando. Há uma continuidade entre as etapas do
esquecimento platônico e do abandono nietzschiano, entretanto pode-se entrever uma prece-

591
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. p. 344-345 (Li-
vro VII, 532c).
592
Ibid., p. 347 (Livro VII, 534b)
593
Ibid., p. 324 (Livro VII, 518c). p. 344-345 (Livro VII, 532a-b).
223

dência de Platão nesse processo, pois foi nas suas palavras fundamentais que se configurou a
metafísica idealista e niilista. Ainda que esta tese não trate especificamente do tema do niilis-
mo, relacionando Platão e Nietzsche, deve-se observar a linha fundamental do argumento
heideggeriano sobre esse desdobramento da tradição do primeiro início, servindo de modelo
de meditação histórica que identifica essas filiações filosóficas.
A natureza niilista da ideia do bem é enfatizada em Introdução à metafísica, quando o
processo de inversão que caracteriza o platonismo é explicado a partir da transcendência do
devir sobre o ser. Essa transcendência paradoxal é observada por Heidegger exatamente na
elaboração conceitual da ideia do bem.
Platão pensa o ser como ideia no âmbito da relação paradigmática explicada: a ideia é
o modelo dos entes sensíveis, a fonte capaz de causá-los e o critério capaz de medi-los e jul-
gá-los. Mas como a causação do ente é pensada pela ideia paradigmática, a ideia, ela mesma,
será pensada com base no mesmo modelo paradigmático, precisando, portanto, de uma su-
praideia, que culminará numa espécie de meta-metafísica, ou seja, uma renovação do tipo de
fundamentação do sensível no âmbito inteligível. A ideia não é o fundamento de si mesma,
apenas dos entes sensíveis que dela participam. Ela precisa de uma instância superior que lhe
dê a medida daquilo que deve ser, e essa instância deve ter em relação à ideia a mesma rela-
ção que a ideia tem em relação ao ente sensível: a relação paradigmática de fundamento e
modelo. Essa instância inteligível superior é precisamente a ideia do bem, que torna as ideias
eidéticas, que as essencializa.
Ora, se o ser é ideia, o ser é condicionado pela ideia do bem, ele deve ser aquilo que a
ideia do bem lhe indica. Portanto, o ser não é, ele deve ser. O ser é idealmente, metafisica-
mente condicionado pelo devir, por aquilo que deve ser e que ainda não é. Para Heidegger, a
ideia do bem é a culminância do niilismo ínsito à metafísica platônica e registra a transcen-
dência do devir sobre o ser, pensado como cópia imperfeita de um modelo a ser atingido, no
contexto de uma relação paradigmática. Ou seja, o próprio ser, que Parmênides elevara a uma
dignidade ontologicamente superior ao ente, é “rebaixado” à entidade, à idealidade parado-
xalmente imperfeita de uma cópia daquilo que a ideia do bem lhe determina a ser. Em Intro-
dução à metafísica, Heidegger explica esse aparente paradoxo pela investigação da natureza
da relação paradigmática de dependência mútua entre ideia do bem e ideias, baseada no mo-
delo originário de implicação entre ideias e entes sensíveis.
O argumento de Heidegger é o seguinte. O primeiro início é marcado pela priorização
do pensar sobre o ser, uma vez que o pensamento (a lógica) conquista primazia sobre o ente
desvelado (logos). Essa mudança funda, principalmente, a mutação na essência da verdade, de
224

desvelamento do próprio ser (aletheia) para a correção-adequação do juízo (adequatio). Hei-


degger percebe que esse processo filosófico também prioriza o dever sobre o ser, pois, exata-
mente pela dimensão paradigmática da ideia, discorrida neste capítulo, o ser é o modelo a ser
atingido pelos entes. Os entes não são efetivamente, mas devem ser aquilo que a respectiva
ideia lhes prescreve. Por sua vez – seguindo analogicamente a relação entes-ideia -, as ideias
não são efetivamente, porque elas também requerem uma supra-ideia que lhes determine o
que devem ser. Explica Heidegger:
O Ser já não é mais o decisivo e a norma. Todavia ele não é a ideia, o modelo? Mas
justamente pelo seu caráter de modelo também as ideias já não são mais o decisivo e
normativo. É que entendida como o que dá o aspecto e, assim, de certa maneira, é
um ente (on), a ideia requer, por sua vez, enquanto ente, a determinação de seu ser,
i.é. exige também um aspecto. A ideia das ideias, a suprema ideia, é para Platão a
ideatou agathou, a ideia do Bem.594

Como condição de possibilidade da existência das ideias, a ideia do bem as subordina


também em relação ao que devem ser para atingirem o seu escopo, o seu telos. Como os en-
tes, as ideias não estão “prontas”, por assim dizer. Precisam ser plenificadas pela ideia do
bem, que lhes determina como devem ser, tornando-as aquilo que as aperfeiçoa e plenifica.
Heidegger insiste nessa dimensão imperfeita das ideias, quando se tornam dependentes da
plenificação teleológica da ideia do bem. Com isso, elas são rebaixadas a entes, com a mesma
relação subordinacionista que os entes têm com a ideias em geral. “O agathon constitui o
normativo como tal, aquilo que confere ao ser a faculdade de viger e vigorar, como ideia, co-
mo modelo.”595.
Sem a ideia do bem, as ideias sequer existiriam, pois é a ideia do bem que lhes confere
ser e existência, como visto acima. Também é a ideia do bem que lhes confere valor, validade
paradigmática em relação aos entes que delas participam, extraindo delas o seu modelo ideal.
Desse modo, o ser como ideia propriamente não é, pois tem um déficit ontológico propiciado
pela ideia do bem que o encaminha para o que deve ser. O ser como ideia não é completo, não
é pleno, não é perfeito, mas está sempre a caminho, como um ente, do que deve ser mas e
ainda não é. É o caráter exemplar do ser-ideia que o torna sempre aquém do que deve ser,
sempre errante porque imperfeito em relação à ideia do bem. Como arremata Heidegger: “A
ideia suprema é o exemplar originário de todos os exemplares”, pois

o Ser mesmo traz consigo a referência com o que é modelar (Vorbild-hafte) e deve
ser. Na medida em que o Ser mesmo se afirma e impõe em seu caráter de ideia, na

594
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 215.
595
Ibidem.
225

mesma medida ele compele também a reparar o seu rebaixamento assim verificado.
O que, porém, só poderá ocorrer, pondo-se algo acima do Ser, algo que o Ser ainda
não é e que cada vez deve ser.596

Essa passagem fundamental da interpretação heideggeriana de Platão merece atenção.


Em primeiro lugar, deve-se observar que a consideração do bem como “dever ser” é ímpar na
história das interpretações do platonismo e relaciona-se à análise que Heidegger faz da vonta-
de de poder de Nietzsche. Todavia, ela é coerente na medida em que Platão claramente subor-
dina toda a realidade ao telos que a torna inteligível. Sem esse telos conferido pela ideia do
bem, a realidade sensível e a realidade inteligível são incompreensíveis, não chegam sequer a
ser. Desse modo, para que as ideias sejam eidéticas e realizem o seu ser, elas precisam de um
modelo normativo: o bem. Heidegger percebe que esse gesto desloca o centro ontológico da
realidade do ser-ideia para o dever ser enquanto finalidade (telos) indicada pelo bem. Assim
se explica por que nem o ser nem as ideias sejam mais “o decisivo e a norma” no contexto da
teleologia do dever ser que instaura a primazia do devir. A transcendência excepcional do
bem, de que fala Platão na República (509c) é, na verdade, uma forma radical de imanência,
do império do devir sobre o ser, de predomínio da ideia do bem como o telos ainda não atin-
gido da ideia, ou seja, ainda por vir. Consoante o modelo paradigmático, a cópia (ideia) nunca
realiza plenamente o telos do modelo (ideia do bem), pois nisso reside a distinção ontológica
entre elas. A partir da referência paradigmática da ideia do bem, o que era modelo fixo e imu-
tável torna-se entidade que deve ser aquilo que ainda não é. Entificado e incompleto, o ser-
ideia torna-se um dever ser, portanto insere-se no âmbito mutável do devir. Fica clara a dire-
ção para a qual Heidegger aponta a sua argumentação, para a filosofia dos valores do século
XIX, com suas consequências niilistas: “Platão concebeu o Ser como ideia. A ideia é o mode-
lo e, como tal, também normativa. O que será mais sugestivo do que se compreender, então,
as ideias de Platão no sentido de valores e interpretar o ser do ente a partir do que vale?” 597
Como explicar esse “rebaixamento” do ser à entidade eidética? E de que modo, per-
gunta correlata, pensou Platão poder “reparar”, compensar (wettmachen) essa degradação?
Para Heidegger, o niilismo da metafísica platônica se dá a partir do momento em que o ser é
considerado como ideia. Como ideia, ele não se basta a si mesmo, pois só pode existir no inte-
rior de uma relação de dependência ao ente de que é causa e medida. Por sua vez, o próprio
ser precisa de uma ideia que o fundamenta e o avalia: a ideia do bem, a super-ideia, a ideia
das ideias. Sem ela, o ser não se essencia, carece de existência e não vem à presença como
596
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 215.
597
Ibid., p. 217.
226

aspecto no ente que dele participa. Por precisar de um paradigma eidético que lhe seja a causa
e o modelo, o ser, ele mesmo, não tem existência autônoma, nem consistência verdadeira,
porquanto depende de outro para que seja. Percebe-se, desse modo, que o ser está em relação
de dependência com duas realidades diversas, os entes sensíveis e a ideia do bem. Essa impli-
cação o aliena, no sentido de submetê-lo a uma alteridade sem a qual ele não pode ser. Isso
significa que a relação de “contraposição a uma outra coisa” 598, a que se refere Heidegger,
rebaixa o ser ao ente e o submete ao devir pelo modelo que ele deve ser e ainda não é, modelo
esse que lhe é determinado pela ideia do bem.
Como visto, Heidegger interpreta Platão sempre em duas direções: retrospectivamente,
com o olhar voltado para a physis originária, e, prospectivamente, com a atenção detida nas
consequências históricas da tradição metafísica. No primeiro caso, sobressaem Parmênides e
Heráclito; no segundo, Aristóteles, Descartes, Kant e Nietzsche. Nesse contexto, o rebaixa-
mento metafísico do ser, que caracteriza o primeiro início da filosofia, é facilmente observado
quando comparado à physis originária.
Em seu desabrochar espontâneo na presença do desvelado, a physis não tem nenhuma
necessidade de uma medida, de uma norma a partir da qual se decida o que ela deve ser. Ao
contrário, ela mesma fornece a medida de todas as coisas ao manifestar-se nos fenômenos em
geral, no acontecimento veritativo que essencializa a aletheia599. Ao promover a passagem do
ser-physis ao ser-idea, Platão busca compensar o rebaixamento operado ao postular a ideia do
bem como dever ser das ideias. Com isso, ele cinde radicalmente o ser do dever ser, em pro-
veito deste último. Mais uma marca do chorismos, essa cisão atravessa toda a história do pen-
samento; é uma consequência direta da interpretação idealista do ser e confere prioridade ao
devir, instância temporal em que o dever ser pode se dar. Aqui entra a visão prospectiva de
Heidegger, que identifica a fonte idealista no processo platônico da metafísica que encontra
seu zênite e seu cumprimento em Kant, com o primado da razão prática sobre a razão teórica,
e, em seguida, em Nietzsche com a redução do ser ao valor.
Quando o ser é considerado como ideia, ele se torna dever ser. No interior desse pro-
cesso de mutação do sentido essencial da verdade, que se distancia do emergir espontâneo da
physis, “o pensar, entendido como Logos enunciativo e predicativo (dialegesthai), entra a

598
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 215.
599
BOUTOT, A. Heidegger et Platon: le probleme du nihilisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.p.
166.
227

desempenhar um papel decisivo e normativo.”600. A meditação histórica heideggeriana reco-


nhece que, na modernidade, essa hegemonia do logos sobre o ser se estabelece de modo defi-
nitivo, com a autonomização do pensamento representativo, “enquanto razão independente e
posta em si mesma”601.
O apogeu desse processo se dá com Kant, que, sob a influência de Newton, considera
o ente como a natureza determinável pelo pensamento físico-matemático. “À natureza, deter-
minada pela razão, se contrapõe o imperativo categórico. Muitas vezes o próprio Kant o cha-
ma de Dever Ser e o faz, enquanto o imperativo se refere ao simplesmente ente no sentido de
natureza instintiva.”602. Experimentável, o ente cognoscível pelas ciências naturais se estende
às ciências históricas e econômicas, todas elas marcando o predomínio da dimensão ôntica da
realidade. Com essa hegemonia do ente, o dever ser, que antes lhe servia como paradigma
determinante, vê-se ameaçado como elemento normativo do real, reagindo ao naturalismo
moderno pela afirmação incondicional de si mesmo, de modo autônomo e autolegitimado, isto
é, como imperativo categórico. Em Kant, Heidegger observa que a axiologia supera a ontolo-
gia, pois o valor não é, mas vale pois o valor torna-se o fundamento do dever ser, que se con-
trapõe ao que simplesmente é, ao que está onticamente dado, ao ente em si mesmo. Ora, a
ciência natural-experimental contempla o ente do modo como ele se manifesta, sem impor-lhe
um paradigma eidético ao qual ele deva se adequar. Explica Heidegger:
Pelo predomínio do ente, o Dever Ser se sente ameaçado em sua função de norma. E
reagiu para afirmar-se em sua exigência. Para isso teve que tentar fundar-se a si
mesmo. O que quer afirmar-se, impondo-se, como um dever, tem que se credenciar
e legitimar para tal, a partir de si mesmo. Toda pretensão de dever ser só se pode
impor, como tal, na medida em que traz e é em si um valor. Os valores em si tor-
nam-se então o fundamento do Dever Ser. Visto, porém, se contraporem ao ser do
ente, entendido como o que é de fato, os valores mesmos não podem ser. Por isso se
diz: os valores não são, eles valem. Para todas as esferas do ente, i.é do objetivamen-
te dado, os valores são o normativo. A História não é outra coisa do que a realização
de valores603.

Em uma seção fundamental das preleções Nietzsche II, intitulada ‘O ser enquantoidea,
enquantoagathone enquanto condição’, Heidegger enfatiza essa ascendência platônica da filo-
sofia niilista que submete o ser à valoração subjetiva, submissão essa que encontra em Nietzs-
che sua consumação definitiva. Ora, é claro que a noção moderna de valor é totalmente alheia
ao pensamento de Platão, tanto quanto lhe é estranha a noção de subjetividade. Mas a metafí-
600
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 216.
601
Ibidem.
602
Ibidem.
603
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução E.C.Leão. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999. p. 216-217.
228

sica platônica do ser como ideia inaugura o desenvolvimento do niilismo que submete o ser
ao ente, processo esse que acaba por esfumaçar o ser em nome do ente, ainda que o ente tenha
sido inicialmente possibilitado, fundado e valorado pelo ser. Ou seja, trata-se, aos olhos de
Heidegger, de uma inversão: o que Platão apontou como fundamento (ser) é, na verdade, fun-
dado pelo ente, que permanece o lastro ontológico de derivação metafísica no interior da rela-
ção paradigmática modelo-cópia. Dito de outro modo, o que deveria ser modelo (ser-ideia)
torna-se cópia da ideia do bem. O ser-ideia não é, mas deve ser aquilo que a ideia do bem lhe
impõe para ser. Esse niilismo consumado, plasmado de modo inigualável na filosofia de Ni-
etsche, se dá exatamente na imposição do ente sobre o ser, o qual se retrai e permanece esque-
cido, tolerado como condição de possibilidade do ente e posteriormente neutralizado como
valor subjetivo. Para Heidegger, no fundo, Nietzsche permanece ironicamente enredado na
metafísica platônica, mesmo quando se esforça para superá-la e invertê-la, quando se contorce
para renegar a herança que o afoga.
Conforme explica Heidegger, Nietzsche concebe os valores como condições de possi-
bilidade da vontade de poder, que é o caráter fundamental do ente. Desse modo, “Nietzsche
pensa a entidade do ente [a ideia] essencialmente como condição, como possibilitador, como
capacitador, como agathon.”604 Ou seja, mesmo quando Nietzsche “pensa o ser de maneira
inteiramente platônica e metafísica – mesmo como aquele que inverte o platonismo, mesmo
como antimetafísico”605. Isso significa, para Heidegger, que Nietzsche permanece no interior
do horizonte platônico aberto pelo primeiro início do pensamento, porque “concebe os valores
como condições, e, em verdade, como condições do ‘ente’ enquanto tal (melhor ainda, do
real, do que vem-a-ser)”606. Por isso, “ele pensa platonicamente o ser como entidade”, já que
os valores (o ser) são condições a priori que possibilitam a essencialização dos entes valora-
dos, que devem ser. Ora, os valores atuam ontologicamente como as ideias, como agathon,
como o elemento possibilitador e como condição de possibilidade, isto é, como aquilo que os
entes devem ser para que se tornem o que essencialmente são. Tanto quanto a ideia, o valor
atua como paradigma, como modelo ideal a ser alcançado para que o ente seja o que deve ser,
mas ainda não é. Esse é o sentido da essenciação eidética presente na noção nietzschiana de
valor. Daí porque pode Heidegger afirmar que: “O delineamento prévio para o pensamento do

604
HEIDEGGER, M. Nietzsche. v.2.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 170.
605
Ibidem.
606
Ibid., p. 171.
229

valor foi levado a cabo no começo da metafísica. O pensar valorativo torna-se a realização
consumada da metafísica.” 607
A consequência dessa subjetivação da ideia efetuada pela filosofia dos valores é a evi-
denciação da ambiguidade característica da metafísica, que não é estudo do ser, mas do ente,
do qual se parte e para o qual se retorna. Ao fim do processo, “o ente se antepõe, atrai para si
e requisita todos os comportamentos do homem, o ser precisa retrair-se em favor do ente”608,
sendo apenas tolerado como condição de possibilidade e posteriormente esquecido. Niilismo é
esquecimento do ser e isso só é possível pela metafísica platônica do primeiro início que he-
gemoniza o ente.
Consoante a dimensão agathoeides da ideia, ela é o elemento que confere bondade, o
telos dos entes. Por isso, o ser é essencialmente o “elemento possibilitador” do ente. Ou seja,
“o ser é, em certa medida, a pura presença e é ao mesmo tempo a possibilitação do ente.”609
Mas como ente é sempre incompleto pela dimensão de valor que ele deve ser, ele “atrai para
si e requisita todos os comportamentos do homem”610, fazendo com que o ser se retraia em
favor do ente. Aqui, Heidegger nota a inversão da metafísica platônica, por ela mesma propi-
ciada:
O ser permanece possibilitador e, em um tal sentido, o precedente, a priori. A ques-
tão é que esse a priori não possui, apesar de não poder ser negado, de maneira ne-
nhuma o peso daquilo que ele a cada vez possibilita, do ente mesmo. O a priori, no
começo e em essência do pre-cedente, torna-se ulterior, aquilo que em face do pre-
domínio do ente é tolerado como condição de possibilidade do ente.611

Tanto quanto o sentido de idea, que inicialmente entafiza o âmbito objetivo do aspecto
visualizado e posteriormente concentrado no polo subjetivo do homem que representa esse
aspecto, o ser como valor passa por uma inversão que evidencia o caráter niilista da metafísi-
ca, que antepõe o ente ao ser. O ente é o que deve ser conhecido, transformado. É o ente que
deve ser, sendo o ser apenas esse valor a ser instaurado no ente. Assim, o próprio ser torna-se
dependente do ente que o realiza como valor. Ou seja, o ser torna-se o valor referido ao ente.
Nesse momento, convém sintetizar o argumento de Heidegger a partir do conceito de
derivação (Austrag), com que se pode conceber a essência niilista da metafísica. Esse conceito
é tratado de modo consistente na seção ‘A relação com o ente e a ligação com o ser. A dife-

607
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.171.
608
Ibidem.
609
Ibid., p. 173.
610
Ibidem.
611
Ibidem.
230

rença ontológica’, das preleções Nietzsche II. Nela, Heidegger percebe que Platão não só não
realiza uma ontologia fundamental, no sentido de pensar o e ser em si mesmo, mas a impede,
pela imposição do ente como elemento primordial da realidade, aquele que verdadeiramente
quer se entender. Dele, do ente, a metafísica parte e a ele, retorna. Isso pode ser comprovado
com a interpretação do ser como ideia, cuja existência e essência não é pensada de forma au-
tônoma, mas sempre referida ao ente. O ser não é compreendido por sua autoimposição, por
sua evidência luminosa, por sua autodação, pela manifestação que o desvela (physis). Para
afirmar isso, Heidegger tem em vista a forma originária como os gregos teriam concebido o
ser, “como physis, como despontar-a-partir-de-si, e assim, essencialmente, como um colocar-
se-no-despontar, como manifestar-se-aberto.”612
Pensado como ideia, o horizonte do ser é restringido exclusivamente à condição do en-
te, é limitado à função de fundamento do ente. Esse processo de fundamentação, porém, é
obtido pela abstração do próprio ente, num exercício de determinação das suas características
a partir da afirmação das qualidades opostas às qualidades próprias do ente: se o ente se carac-
teriza pela mutabilidade e temporalidade, o ser, ao contrário, é imutável e eterno. Ora, assim
concebido, o ser é extraído de modo conceitual e abstrativo, não em si mesmo, mas de forma
derivada. E é exatamente essa a censura heideggeriana à metafísica do primeiro início: o ser
como ousia significa que o ser é entidade, o universal abstrato do ente. Desse modo, o ser
permanece arraigado ao ente, cujas características empresta de modo generalizante, abstrativo
e opositivo. Em uma palavra, a metafísica apreende o ser de modo meramente conceitual, não
efetivo, e descura a diferença ontológica entre ser e ente:
A distinção entre ser e ente parece repousar aqui no fato de se desviar o olhar (‘abs-
trair’) de todas as particularizações do ente, a fim de manter, então, o mais universal
como o ‘que há de mais abstrato’ (retirado). Em meio a essa distinção do ser em re-
lação ao ente, não se diz nada sobre a essência de conteúdo do ser. Só damos a en-
tender como o ser é distinto do ente, a saber, por sobre o caminho da ‘abstração’,
que também é, de resto, usual na representação e no pensamento ligados a coisas e
ligações entre coisas quaisquer e que não é de maneira alguma reservada à apreensão
do ‘ser’. [...] por meio da interpretação do ser como o que há de mais universal não
se diz nada sobre o próprio ser, mas apenas sobre o modo como a metafísica pensa o
conceito de ser.613

A metafísica despontada no primeiro início é uma pesquisa que busca a essência do


ente, e essa entidadeé pensada como ideia, que é o ser do ente. O ser é concebido de modo
abstrativo e conceitual, isso quer dizer que ele reúne as características ideais do ente, genera-
lizadas e abstraídas das particularidades que singularizam cada ente. Essa generalização ideal

612
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p.
162.
613
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.p.
158-159.
231

constitui a ideia, que se oferece à compreensão dialética do homem. Com isso, o ser não é
tematizado de modo autônomo, e a autêntica divergência entre ser e ente é esquecida, uma vez
que o ser é pensado exclusivamente no interior de uma relação de fundamento e fundado, na
qual o fundamento é concebido como abstração progressiva das características essenciais que
especificam o fundado. Ou seja, a partir do fundado (o ente) se chega ao ser (a entidade). Essa
relação de copertinência que estrutura a metafísica é a “referência”, o nexo que vincula o ser
ao ente e que impede a afirmação da verdadeira diferença ontológica, uma vez que o ser só é
pensado em função e a partir do ente. Nessa chave heideggeriana de leitura, como explica Le
Moli, Platão não “tematiza o ser na sua autoimposição, ou seja no seu efetivo ‘distinguir-se’
do ente sendo ontologicamente ‘primeiro’”, mas o pensa “a cada vez unicamente como ‘es-
sencialidade’ (entidade) do ente do qual o ser se diferenciaria apenas por ‘graus’ de ‘perfei-
ção’”614. Na realidade, Platão concebeu o ser “por via de ‘abstração’ do material sensível.”615
O núcleo da leitura heideggeriana da metafísica platônica reside, portanto, nessa rela-
ção de derivação, que é compreendida como entificação do ser. O ser é derivado do ente por
meio de um processo abstrativo; não é pensado autonomamente, em si, mas como condição,
fundamento do ente, de que é a abstração perfeita, a “entidade” (ousia, Seineiendheit). Em
poucas palavras, a diferença metafísica entre ser e ente é conceitual, de graus, não é de modo
algum uma diferença verdadeiramente ontológica. Com efeito, Le Moli nota que essa diferen-
ça de graus entre o fundamento e o fundado prepara a articulação escolástica “da recondução
da multiplicidade do criado (ente) à singularidade de um princípio que possui em sumo grau e
por essência (summum ens) o ‘ser’ de todas as outras coisas que dele participam.”616
Esse desenvolvimento ulterior da metafísica platônica ajuda muito a entender o que
Heidegger quer dizer quando afirma que a relação paradigmática de deferimento (Austrag)
constitui mais uma “distinção” do que uma “diferença”. Uma “distinção” é o produto de um
ato intelectual, ao passo que a “diferença” é o reconhecimento que ser e ente são distintos em
si mesmos. Nada obstante, a “diferença ontológica” propriamente dita é algo até hoje inques-
tionado, um “solo desconhecido e infundado”, daí a necessidade premente de pensar o seer
nele mesmo, no seio de uma meditação histórica do acontecimento apropriativo do seer, tal
como explicado no capítulo anterior, principalmente no item 1.6., denominado “Passo de vol-
ta e epoché do seer”.

614
LE MOLI, A. Heidegger e Platone – Essere, Relazione, Differenza. Milano: Vita e Pensiero, 2002. p. 137.
615
Ibidem.
616
LE MOLI, A. Heidegger e Platone – Essere, Relazione, Differenza. Milano: Vita e Pensiero, 2002. p. 137.
232

Em Nietzsche II, Heidegger explica que a noção de ontologia funda-se na distinção en-
tre ser e ente, mas essa distinção deve ser precisada ontologicamente pelo termo “diferença”,
“no qual se indica que ser e ente são transportados um para fora do outro, que eles estão cin-
didos e, contudo, ligado um ao outro; e isso, em verdade, por si mesmos, não somente com
base em um ‘ato’ de ‘distinção’” 617. O termo utilizado para traçar o paralelo entre “distinção”
intelectual e “diferença” ontológica é ex-portação (Austrag) entre ser e ente.
Essa noção central de Austrag evidencia o sentido niilista que Heidegger atribui à tra-
dição metafísica platônica. A metafísica encerra uma ambiguidade fundamental: fundada na
excedência do ser sobre o ente, ela não logra ultrapassar o próprio ente de que parte, limitan-
do-se a conceber o ser como entidade (ideia) do ente. Por causa desse deferimento ao ente, a
metafísica permanece circunscrita ao horizonte do ente, sem transcendê-lo. O reconhecimento
desse horizonte limitado permite que se investigue propriamente a questão do ser nele mesmo;
a inteligência dessa inversão metafísica é pressuposta para que a reflexão sobre a distinção
autêntica entre ser e ente, caso contrário essa suposta diferença encobre a possibilidade mes-
ma de o ser vir a ser questionado em sua essência não entificada.
Reduzido à ideia, ao aspecto exterior e manifestante do ente, o ser é degradado e pos-
teriormente reduzido à dimensão epistemológica do sujeito que o representa, na fase moderna,
cartesiana e kantiana, da história da metafísica platônica. O salto ao outro início afasta-se da
compreensão de que o ser se reduz à unidade noética da consciência ou à intuição categorial
de um sujeito. O mais importante, porém, é que ao longo da produção de Heidegger no fim da
década de 1930 e no começo da de 1940, o niilismo como esse esquecimento do ser passa a
ser concebido muito menos como um erro da tradição, um arbítrio da metafísica, do que como
uma plena expressão da estrutura do próprio ser. Ou seja, é o próprio ser, com base em sua
verdade essencial, que se destina e se manifesta nas formas de seu possível aniquilamento, de
seu esquecimento. O primeiro início responde ao envio alienado do próprio seer que se retrai
ao desvelar o ente na totalidade. A diferença ontológica é marca do acontecimento apropriati-
vo, da abissal fuga e retração do seer que se esconde ao doar o ente.
A natureza ama esconder-se: esse fragmento de Heráclito siginnfica que o ser se mani-
festa na retração, no seu próprio velamento. No interior do pensamento do Ereignis, o “aban-
dono” passa a ser constitutivo da própria verdade do ser, e não é considerado um ato de ori-
gem humana ou histórica. Segundo Le Moli, esse abandono significa que, do ponto de vista
da origem essencial da metafísica, o próprio ser se subtrai do plano da manifestação, consen-

617
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II.Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
156.
233

tido que o ente apareça como ideia. Além disso, do ponto de vista do pensamento histórico-
ontológico do seer, a situação niilista hodierna, na qual o ser é esquecido, anulado na dimen-
são metafísico-representativa não pode ser simplesmente “superada”, mas deve ser acolhida
no interior da história mesma do seer como resultado de um ato de renúncia, de abandono da
metafísica da parte do próprio seer618.
Ou seja, o niilismo da tradição metafísica é, para Heidegger, o resultado da verdade
essencial do seer, do modo como ele mesmo se dá, retraindo-se, negando-se, abandonando-se
no ente, na entidade da ideia. No niilismo contemporâneo, consumação da metafísica idealista
e representativa, o próprio ser se dá como Nihil, mas não porque a tradição desviou-se da sua
essência verdadeira, que errou na compreensão da ontologia. O niilismo em que se funda e
domina toda a compreensão entificante e nadificante da metafísica revela, ao contrário, a
identidade originária de ser e nada. Pensada como capítulo conclusivo do primeiro início da
história do seer, a metafísica reflete e acena para o novo início, em que o ser é reconhecido
como acontecimento apropriativo (Ereignis) de subtração, negação e abandono. Se a noção de
Ereignis foi explorada no primeiro capítulo, agora se deve articulá-la, novamente, à noção
correlata de aletheia, o processo de essenciação da verdade que caracteriza o pensamento ori-
ginário da physis. Marco do primeiro início, Platão registra uma transição, uma mudança es-
sencial no sentido da verdade, da aletheia à adequatio. Mas, na verdade, Platão, como pensa-
dor essencial, ressoa a voz do seer, que sempre se dá como aletheia, abandonando o ente que
desvela na totalidade.

618
LE MOLI, A. Heidegger e Platone – Essere, Relazione, Differenza. Milano: Vita e Pensiero, 2002. pp. 155-
156.
234

3ALETHEIA

3.1O arco reflexivo sobre a verdade

A pergunta pela essência da verdade pode ser considerada um fio condutor da investi-
gação heideggeriana, especialmente a partir da década de 1930. Como visto no primeiro capí-
tulo, a compreensão da noção de aletheia é decisiva para a viragem ao pensamento histórico-
ontológico do seer, desenvolvido mediante o salto ao outro início do pensamento. No contex-
to da superação da metafísica do primeiro início, essa viragem pode ser percebida - de acordo
com a emblemática formulação de Heidegger em ‘A essência da verdade’(1930) - pela inver-
são do sentido da investigação filosófica: da “essência da verdade” – verdade como caracterís-
tica do conhecimento (adequatio) - à “verdade da essência” – essência enquanto essencializa-
ção, no sentido verbal do “velar iluminador” do seer (aletheia como clareira) 619.
Da extensa produção heideggeriana sobre essa temática, que perpassa praticamente to-
dos os escritos tardios Heidegger, as seguintes obras são imprescindíveis para o propósito
desta Tese: o curso Da Essência da verdade – aproximação da ‘alegoria da caverna’ e do
Teeteto de Platão, ministrado em 1931-1932620; o ensaio ‘Teoria platônica da verdade’, publi-
cado em 1940 (inserido em Marcas do caminho); e o curso Parmênides, de 1942-1943.
Esses três textos são estudados sucessivamente neste capítulo, a partir da contextuali-
zação do pensamento do acontecimento apropriativo que caracteriza a viragem na obra de
Heidegger. Sem essa contextualização, incorre-se no erro hermenêutico de isolar as interpre-
tações heideggerianas de Platão do âmbito investigativo em que elas se inserem. Como discu-
tido no primeiro capítulo, é inaceitável que se analise, por exemplo, o importante ensaio ‘A
teoria platônica da verdade’ (1931-1932 / 1940) separadamente do ensaio ‘A essência da ver-
dade’ (1930) – ambos compilados, sequencialmente, em Marcas do caminho. Essa divisão
arbitrária implica a demissão da possibilidade de compreender o projeto filosófico de Heide-
gger e o papel que Platão desempenha na constituição metafísica do primeiro início da filoso-
fia, considerado a partir do acontecimento apropriativo da verdade do seer.
619
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘A essência da verdade’, p.213. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.189-214.
620
No semestre de inverno de 1933-1934, Heidegger ministrou novamente um curso denominado Da essência da
verdade, no qual ele renova, de modo sintético, as análises do curso de 1931-1932. Como não há nenhum ele-
mento significativo que altere a sua compreensão, este capítulo concentra-se no curso mais extenso e conhecido
de 1931-1932. Cf. HEIDEGGER, Martin. Being and truth. Trad. G.Fried; R.Polt. Indiana: Indiana University
Press, 2010.
235

A análise da transformação da noção de aletheia é fundamental para a compreensão do


primeiro início da filosofia no âmbito do salto para o outro início. Sem essa contextualização
hermenêutica, torna-se ociosa a análise das interpretações heideggerianas de Platão. Para tan-
to, é necessário abordar esses três textos em que Platão é diretamente confrontado sob a luz
dos escritos do mesmo período, que elucidam o acontecimento apropriativo (Ereignis), a cla-
reira do seer que permite a essenciação da verdade, o desvelamento do ente pelo retraimento
ocultante do seer. Nesse sentido, refere-se, principalmente, a Contribuições à filosofia (Sobre
o acontecimento apropriativo), Meditação, Questões básicas da filosofia - problemas seletos
de “lógica”, O acontecimento apropriativo e Heráclito. Isso sem prejuízo de outros textos,
que acorrem na compreensão da temática da aletheia, como os artigos ‘A essência da verda-
de’ (1930), ‘A essência do conceito de physis em Aristóteles – Física B, 1’ (1939), ‘Hegel e
os gregos’ (1958) – incluídos em Marcas do caminho -, ‘O fim da filosofia e a tarefa do pen-
samento’ (1966) – constante de Sobre a questão do pensamento - e ‘Aletheia (Heráclito, fra-
gmento 16)’ (1943) – enfeixado em Ensaios e conferências.
Importa ter em mente a transição e transitividade, que marcam a superação da metafí-
sica platônica do primeiro início, pela recuperação do pensamento originário da physis. De
fato, Heidegger aproxima-se do texto platônico d’A Repúblicapara sondar a alegoria da caver-
na como locus filosófico onde se dá a mudança da noção de verdade. Em linhas gerais, pode-
se dizer que a noção da verdade enquanto desvelamento (aletheia)é originária em relação à
metafísica da idea, responsável pela transformação e redução da noção de verdade à correção
do juízo ao ente tratado. Por sua vez, o mito de Er, contido no Livro X d’A República, é anali-
sado, no curso Parmênides,sob a ótica da ambiguidade constitutiva do acontecimento da ver-
dade, que é sempre desvelamento e velamento-esquecimento, consoante a pertença inelutável
da lethe à aletheia621.
Em poucas palavras, o objetivo deste capítulo é a articulação de verdade (concernente
à correção e ao desvelamento), acontecimento apropriativo do seer e clareira (Lichtung). Só
com essa complexa concatenação se atinge a “verdade da verdade”, “a clareira do seer como
abertura do em-meio-ao ente”, como formulado em Contribuições622. O primeiro passo para
se compreender a verdade como clareira é superar a noção corrente da verdade como atributo
do juízo (do logos), que se adequa ou corrige de acordo com a coisa. Com a dinâmica da vi-

621
Cf. FRANCK, Didier. ‘De l’aletheiaà l’Ereignis’. In: MATTÉI, Jean-François (org.). Heidegger – l’énigme
de l’être. Paris: Presses Universitaires de France, 2004. pp.105-130.

622
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 265 (§204: ‘A essência da verdade’).
236

ragem, Heidegger busca a verdade do próprio seer, considerado nele mesmo, deixando para
trás essa concepção metafísica, lógica. A correção do juízo é apenas um “tipo” de verdade,
que sempre fica aquém em relação à sua essência ontológica originária 623. O conceito metafí-
sico de correção, portanto, não acede à verdade originária, sendo necessário um outro cami-
nho para atingi-la.
Por isso, a investigação da aletheia condensa todo o movimento especulativo de Hei-
degger, comportando a destruição da história da ontologia (no que toca a noção de verdade
como correção, também pensada a partir da analítica existencial de Ser e tempo e da herme-
nêutica da facticidade do curso sobre o Sofista), a meditação histórico-ontológica sobre o pri-
meiro início (a transformação da noção originária de verdade como des-velamento, a-letheia)
e o salto ao impensado do outro início (a noção da aletheia como clareira, acontecimento
apropriativo de velamento e desvelamento do seer).
Para acompanhar o arco filosófico da obra de Heidegger, analisa-se a compreensão
inicial de verdade baseada na hermenêutica da facticidade e na analítica existencial, a fim de
notar a intuição da verdade como des-velamento (aletheia), a ser posteriormente desenvolvida
pela inserção de elementos reflexivos novos, mas também pela conservação de uma noção
fundamental: a de que a verdade não se relaciona ao juízo, mas o antecede, sendo uma instân-
cia mais originária em relação à compreensão encurtada que a tradição lógico-metafísica le-
gou. Por isso, primeiramente, analisa-se o despontar da crítica à noção reificada e entificada
de verdade do juízo (correção) no curso que Heidegger ministrou sobre o Sofista, entre 1924 e
1925, na época em que redigia a obra-prima de sua primeira fase, Ser e tempo, publicado em
1927.

3.2Aletheia e logos: velamento sofístico e desvelamento dialético

Tema central de sua investigação filosófica e que protagoniza a viragemdo seu pensa-
mento, o interesse de Heidegger pela verdade não começa na década de 1930, e não surge
exclusivamente como modo de se pensar o acontecimento apropriativo (Ereignis). Ao contrá-
rio, desde os cursos de Marburgo, na década de 1920, Heidegger estuda esse conceito e sua
transformação metafísica no interior da filosofia platônica. Nessa primeira fase de seu pensa-
mento, seu interesse volta-se à necessária intermediação do logos e ao seu caráter apofântico
(também chamado de delótico por Heidegger), ou seja a capacidade que o logos tem de dizer,

623
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 265 (§204: ‘A essência da verdade’).
237

de tornar transparente as coisas, deixando-as aparecer na sua essência, provocando a sua ma-
nifestação ontológico-veritativa. Nesse contexto, a verdade é produto de uma ação verbal de
desvelamento que atua sobre as coisas, permitindo-lhes que se manifestem tal como são em
seu ser, rompendo o velamento do falatório cotidiano que marca a existência decaída e que se
torna explícito pela exploração sofística da insubstancialidade ontológica da fala humana de-
senraizada. O logos dialético mobiliza o ser dos entes e os expõe na abertura do desvelado.
Essa é a função mostradora, aletético-delótica do logos.
No curso sobre o Sofistade Platão (1924-1925), estudado neste item, Heidegger afirma
o alcance apofântico do logos filosófico, ao defender a unidade das duas partes do diálogo, a
dialética-metodológica e a ontológica-fenomenológica. Na época em que Heidegger ministrou
esse curso, a compreensão em voga do Sofistaasseverava que o diálogo era desprovido dessa
unidade interna, podendo ser as suas duas partes separadas: por um lado, há as sete definições
dialéticas do sofista e, por outro, o núcleo propriamente ontológico. Essa divisão baseia-se na
arbitrariedade de considerar o núcleo ontológico como que envolto por uma casca metodoló-
gica secundária e desnecessária que o adorna e que não é fundamental para a articulação filo-
sófica principal. Desse modo, o exercício dialético das divisões é considerado mera prática
escolar de raciocínio discursivo, exemplos didáticos de definições e, por isso, despidos de
valor filosófico substancial. A diaresis, no Sofista, pertenceria à ordem autonomizada da me-
todologia, sem vínculo de interdependência com a “doutrina do ser” da parte principal. Ocio-
sa, a parte dedicada às divisões poderia ser ignorada sem comprometimento da compreensão
da ontologia, porque era atribuída.segundo Schüssler 624, à “mania” de “cortar os cabelos em
quatro, de sutilezas dialéticas vazias e formais, desprovidas de sentido ou de objeto propria-
mente ditos”. Essa maneira esvaziada e formalista de compreender a dialética remeteria a cer-
ta interpretação da dialética hegeliana e da teoria neokantiana do conhecimento. Tal camada
formalista da tradição histórica deve ser “destruída” para se alcançar o sentido originário da
dialética platônica, no contexto da ontologia fundamental que caracteriza o projeto filosófico
inicial de Heidegger.
Nesse contexto, Heidegger sublinha a unidade do diálogo, ressaltando que a dialética
das divisões (o método da diairesis) tem como correlato intencional as formas inteligíveis
(eide):

624
Cf. SCHÜSSLER, I. ‘Le Sophiste de Platon dans l’interpretation de Martin Heidegger’, p. 396. In: NESCH-
KE-HENTSCHKE, A (org.) Images de Platon et lectures de ses oeuvres – les interpretations de Platon à travers
les siècles. Louvain-Paris: Peeters, 1997. pp.395-415.
238

não podemos esquecer de que esse diarein (essa cisão) é designada como legein (di-
zer) e de que o logos (discurso) possui, por sua vez, o caráter do deloun, do tornar
manifesto, de tal forma que o teunein (o cortar) não é nenhuma operação abstrata,
que tem de ser considerada como idêntica ao corte e à destruição físicos. Ao contrá-
rio, se nós nos ativermos ao fato de que esse temunein (corte) mesmo e esse diarein
(cindir) possuem a função do mostrar, do tornar manifesto. O ente experimenta um
corte diametral na medida em que vem à tona em seu conteúdo substancial: as eide
(os aspectos). 625

O que se percebe nessa significativa passagem de Heidegger é que o logos alcança o


ser, as ideias. O logos dialético será verdadeiro quando se relacionar intencionalmente às idei-
as dos entes dialeticamente divididos. A divisão dialética serve para se aceder às ideias dos
entes, para mostrá-los naquilo que têm de essencial. O que Heidegger percebe é que, em Pla-
tão, não há ontologia – logos sobre o ser – sem dialética das ideias. Isso se deve à considerá-
vel influência da fenomenologia husserliana sobre ele nesse período626, pois reconhecer o ca-
ráter apofântico do logos significa pensá-lo na estrutura intencional que o caracteriza, isto é,
como capaz de trazer à luz o fenômeno, de evidenciar o ente em sua mostração. Em outras
palavras, interessa-lhe apresentar a dialética em seu relacionamento direto com “as coisas elas
mesmas”, na sua dimensão de “Sachbezug”, o que significa dizer, ressaltar a intencionalidade
presente na estrutura relacional do dizer algo. Com efeito, Heidegger ressalta que “todo dis-
curso é, segundo seu sentido mais próprio, descoberta de algo. Com isso, fixa-se uma nova
koinonia (comunhão), a koinonia (comunhão) de cada logos (discurso) com o seu on (en-
te).”627
A despeito dessa dimensão fenomenológica-veritativa, o logos não acede ao modo es-
sencial da verdade. Desde esse momento inicial de sua reflexão, Heidegger reconhece que o
logos possui uma ambiguidade intrínseca, que o torna inapto a ser o portador definitivo da
verdade, ou mesmo de ser essencialmente verdadeiro.
O sentido fenomenológico do dizer intencional é registrado por Heidegger ao articular
legein (dizer, enunciar)e a-letheia (des-cobrir, des-velar) na ampla parte introdutória do curso,
dedicada a Ética a Nicômaco e a Metafísica, de Aristóteles. O logos, pensado intencionalmen-
te como logos ti kata tinos, como enunciado de algo sobre algo, tem como escopo a verdade,

625
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.312 (§44).
626
Cf. CIMINO, Antonio. Ontologia, storia, temporalità. Heidegger, Platone e l’essenza della filosofia. Pisa:
ETS, 2005.
627
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.660 (§80, c).
239

mas nem sempre a alcança em função da ambiguidade radical que o caracteriza, de ser enco-
bridor e revelador, podendo ser utilizado de modo inautêntico ou genuíno. Mesmo quando o
logos apresenta o ente de que trata, ele ainda não é a possibilidade suprema de desvelamento,
de aletheuin. Na verdade, o logos não acede à forma suprema de desvelamento veritativo por-
que, na medida em que diz, revela a coisa falada como algo a partir da outra coisa usada como
predicado. Ou seja, o logos é incapaz de revelar a coisa nela mesma, independente do modo
como ela é conceituada a partir de outra coisa. Consoante sua estrutura enunciativa e intenci-
onal, o logos une uma coisa à outra que a conceitua, que a define, não sendo capaz de revelar
a coisa em si mesma (kata autó). O logos mostra com palavras a coisa, mas a partir de outra
coisa verbalmente apresentada.
O objetivo de Heidegger é mostrar, com base em Aristóteles, como o logos não é a
forma máxima de desvelamento aletético: “o ser-verdadeiro, o desvelamento, não está assen-
tado originariamente no logos (na proposição)”628; isso porque “o discurso não é nem o porta-
dor primário, nem o único do alethes (verdadeiro); ele é algo no qual o alethes (verdadeiro)
pode ocorrer, mas não precisa ocorrer”629. O logos é a possibilidade de que haja a falsidade,
por projetar de forma derivada a mostração da coisa; derivada porque o logos associa discur-
sivamente uma coisa à outra, sem permitir que a coisa emerja por si mesma, como aconteci-
mento dos seer, à maneira como posteriormente compreenderá o fenômeno de eclosão da
physis.
Pela sua natureza predicativa, o logos também é a possibilidade do erro, fato esse
plasmado dramaticamente no diálogo pela figura do sofista, produtor de imagens discursivas
falas, propositadamente ilusórias e enganosas. A existência do sofista, tanto quanto a do filó-
sofo, é pensada por Heidegger do ponto de vista da hermenêutica da facticidade, como moda-
lidades existenciais do ser-aí humano no uso inautêntico ou autêntico do logos que o constitui
ontologicamente. Ora, a sofística baseia-se, segundo Platão, como pseude legein, como técni-
ca de dizer aquilo que é falso, como logos pseudes, discurso falso (Sofista, 236e, 241a). É
com base nessa habilidade discursiva que o sofista detém o poder sobre os homens da cidade,
não pelo eu legein, o bem falar da retórica tradicional, mas pelo antilegein peri panton, o con-
tradizer sobre tudo (cf. Sofista, 232b), a controvérsia, em sentido erístico, sobre todos os te-
mas possíveis, fazendo parecer que ele sabe de tudo. É um pretenso saber, uma vez que é im-
possível a um homem mortal saber efetivamente a respeito de tudo. É uma forma ilusória de

628
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p. 213 (§26, b).
629
Ibid., p. 206 (§26, b).
240

conhecimento a que ele oferece aos seus alunos, pois não é um conhecimento fundado nas
coisas elas mesmas, mas um saber sem referência à coisa discursada. Por esse motivo, Heide-
gger denomina esse saber “sach-los”, desprovido de coisa, de objeto referido no plano objeti-
vo. Nada obstante, o saber sofístico apresenta-se, retoricamente, como sendo consistente.
O sofista não poderia existir faticamente se não explorasse uma possibilidade existen-
cial de seu ser, que é constituído pelo logos. Como se viu, o logos tem uma estrutura intencio-
nal que o liga ao ser das coisas visadas, que as torna manifestas. Além disso, o logos é predi-
cativo, pois relaciona um ente a outro. É esse “outro” termo associado a uma coisa pelo logos
o que pode torná-lo falso, pois isso descortina, ao ser-aí que o utiliza, a possibilidade de ins-
trumentalizá-lo para fins enganosos, meramente retóricos. Ou seja, o logos pode provocar a
disjunção de coisas antes unidades, ou associar duas coisas de forma errônea. Em relação à
possibilidade do logos falso, Heidegger explica que ela advém exatamente da sua estrutura de
apophainesthai (mostração), de tratar de “algo como algo”:
É justamente porque esse logos (discurso) é tal mostração, justamente porque ele
deixa ver aquilo sobre o que ele fala como algo, que existe a possibilidade de que is-
so se encubra por meio do “como”, que haja ilusão. Algo só pode ser encoberto se
ele é concebido a partir de um outro. Somente onde o aletheuein (desvelamento) se
realiza sob o modo do como-algo pode ocorrer o fato de algo ser dado como algo
que ele não é. No simples desencobrimento, na aisthesis (percepção) tanto quanto
no noein (pensamento), não há mais nenhum legein (dizer), nenhuma interpelação
discursiva de algo como algo. Por isso, não há aqui tampouco nenhuma ilusão.630

Ao comparar o logos com outras duas formas cognitivas, a percepção (aisthesis) e a


intelecção (noein), com base na classificação aristotélica, Heidegger ressalta a ligação pro-
movida pelo discurso veritativo, que une dois objetos pensados numa sentença predicativa. O
nome dessa operação verbal de conjunção, segundo Aristóteles, é síntese. E é a partir dessa
união sintética que pode haver a falsidade, pois, ao coposicionar dois objetos no discurso,
pode-se falsear a realidade, aproximando dos entes que não são, de fato, unos. Ao exemplifi-
car um juízo que postula um quadro negro, fazendo o quadro aparecer de forma una com sua
cor, Heidegger articula a mostração apofântica e a dimensão de síntese presente na essência
filosófica do logos: “É o falar sobre isso que faz com que o visto se torne pela primeira vez
propriamente visível. O previamente dado é destacado no ‘como’ de tal forma que ele é visto
e compreendido como um precisamente ao atravessar a articulação que irrompe” 631. Ou seja, o
logos é um “deixar-ver” junto, que destaca um ente – trazendo-o à vista - e o coposiciona sin-
teticamente ao lado de outro, com que se relaciona como uma unidade.

630
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
p. 207 (§26, b).
631
Ibid., p. 208.
241

O escopo de Heidegger com essa argumentação é delinear a estrutura fenomenológica


do discurso como junção sintética de dois entes numa conceituação apofântica. Somente desse
modo pode haver falsidade, quando um ente é vinculado a outro com o qual não tem ligação
efetiva no plano da realidade. É exatamente a manipulação verbal operada pelo sofista no con-
texto da pólis grega que aponta para a existência fática do falso. O problema filosófico da
sofística é a possibilidade ontológica de “isolamento” do logos em relação às coisas faladas.
A atuação fática do sofista atesta que o logos pode ser livremente manipulado. Por ser
livre, o logos se autonomiza do fundamento ôntico de que trata e pode, por isso, infundir um
saber suposto, que nenhuma relação tem com as coisas. Nesse momento fenomenológico,
aristotélico-husserliano, de sua obra, Heidegger pretende distinguir o logos - e a dialética que
lhe é correlata - do ver imediato (theoria), da visão que apreende a coisa nela mesma, sem o
intermédio verbal que a encobre632. A primazia da visão torna o logos derivado, depende da
visão prévia que o desperta. É como se primeiro o homem visse as coisas ao seu redor, con-
templasse-as, e, depois, falasse sobre elas. É claro que a fala abre o horizonte de mostração
das coisas, portanto é também uma forma de desvelamento veritativo, de aletheuin. No entan-
to, seu caráter derivado da visão imediata a torna secundária. O mais importante é o seu des-
colamento da visão que a gerou, deslocamento esse que a faz sentir-se livre em relação às
coisas, podendo explorar o falso, a positividade do não-ser. Heidegger condensa essa noção
na seguinte passagem:
Ficou claro que o logos (discurso) depende do orav (do que é visto), que ele, portan-
to, possui um caráter derivado, que ele, por outro lado, na medida em que é realiza-
do isoladamente, na medida em que é o único modo no qual se fala sobre as coisas,
ou seja, no qual se dá o falatório sobre as coisas, é precisamente aquilo no ser do
homem que lhe encobre a possibilidade de ver as coisas, que ele em si, na medida
em que é livre, possui justamente a propriedade de difundir um suposto saber na re-
petição da fala que não possui ela mesma nenhuma relação com as coisas mes-
mas.633

A consequência deletéria criticada por Platão no Sofista é, segundo Heidegger, exata-


mente a reversão do logos em seu oposto: de desvelador das coisas, consoante sua capacidade
apofântica e delótica, o logos torna-se propulsor de velamento, de engodo, que oblitera dis-
cursivamente o acesso aos entes. Para entender o logos dialético no que tem de desvelador,
Platão precisa, antes, criticar a apropriação inidônea do logos pela retórica sofística: “A com-

632
Cf. PARTEINE, C. ‘Imprint: Heideger’s interpretation of Platonic Dialectic in the Sophist Lectures (1924-
1925)’,p.45. In: PARTENIE, C.; ROCKMORE, T. Heidegger and Plato: Toward Dialogue. Illinois: Northwest-
ern University Press, 2005. pp. 42-71.
633
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
pp.369-370 (§54, a).
242

preensão da fundação do bem falar no dilegesthai (na dialética) dá a Platão, portanto, ao


mesmo tempo o horizonte para apreender o logos (discurso) em certa medida em seu poder
oposto”634. Por causa dessa perversão sofística do logos, “o homem é mantido distante justa-
mente do acesso ao ente”635.
Essa compreensão da força oposta do logos se dá exatamente pela existência fática do
sofista, ou seja, pela reflexão sobre as bases filosóficas de sua atuação falseadora da realidade
por intermédio do discurso. Mas essa não deve apenas ser considerada uma apropriação espú-
ria do sofista que deturpa o sentido original do logos pela “ausência de substancialidade e de
consonância com a coisa como despreocupação com o conteúdo material do dito”636 Ao con-
trário, a própria fala, considerada em si mesma em sua “facticidade originária”, não é desve-
lamento, mas precisamente velamento, pois é essencialmente “falatório", que obstrui a possi-
bilidade de se ver as coisas, instituindo “uma autossuficiência peculiar, uma estagnação na-
quilo que assim se diz. O domínio do falatório nos cerra precisamente para o ser-aí e deixa
cegos em relação ao que é desencoberto e em relação ao próprio desencobrir possível.” 637
Consoante a articulação da hermenêutica da facticidade, o caráter formal e insubstan-
cial do discurso vincula-se à existência humana inautêntica, sendo o falatório independente do
conteúdo material das coisas faladas uma característica originária do ser-aí desenraizado. Ou
seja, o sofista apenas se apropria de um modo originário do logos fundado na existência inau-
têntica do homem. Explica Heidegger, referindo-se ao logos sofístico falseador: “Não se trata
de uma ausência de substancialidade causal, arbitrária, ocasional, mas, sim, de uma ausência
de substancialidade principial.” 638 A facticidade da existência do sofista, que explora de modo
positivo a fluidez do logos, o seu caráter desprendido de vínculo ontológico com a coisa fala-
da, permite que se perceba, de modo positivo, a ausência de substancialidade primordial da
fala. Ou seja, o sofista manifesta, evidencia a liberdade e a independência do logos, ao fazer
da palavra falada um instrumento de poder e domínio, tanto particular, quanto político. É isso
que Heidegger afirma, nesse passo do curso: “ausência de materialidade coisal, ou seja, uma

634
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
p. 370.
635
Ibidem.
636
Ibid., p. 256 (§34).
637
Ibid., p. 223 (§28,).
638
Ibid., p. 256 (§34).
243

ausência de substancialidade e consonância com a coisa que está fundada em algo positivo:
em uma apreciação do domínio do discurso e do homem que discursa.” 639
Assim, Heidegger vincula a essência insubstancial do logos à forma inautêntica em
que o ser-aí se encontra, de início, inserida. Em seu estado primeiro, a língua falada domina
tanto o individuo quanto a comunidade em que ele se encontra necessariamente jogado (ser-aí
é ser-no-mundo, é ser-com640). A existência comunitária do homem grego é definida pela fala.
Com efeito, Heidegger parte da experiência grega elementar do homem como animal político
(zoon politkon), o animal que fala, que pensa, que fornece razões (o zoon logon echon). Como
ser lógico-político, o logos humano é político, comunitário, pertencente à sociedade e geral.
Pela linguagem, o indivíduo vincula-se indissociavelmente aos outros homens. Tanto quanto
não existe homem que possa viver isolado, falando e pensando em uma língua própria, autô-
noma, não há homem idiota, isolado da comunidade que lhe fornece a linguagem que o abre
para o mundo. É por essa dimensão linguística do homem que Aristóteles o denomina um
“animal político”, um ente cuja existência se dá na pólis e, por conseguinte, no logos. Para
Heidegger, está claro na experiência grega essa junção entre pólis e logos, que é a forma de
afirmar o ser-com-outros do homem (Miteinandersein). Nesse contexto, Heidegger sintetiza o
argumento central da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, do seguinte modo: na medida em que
o homem não está jamais isolado, sozinho, a politiké (arte política) é a ciência suprema, e ela
radica-se no logos641.
Portanto, estar com os outros é falar com os outros, comunicar-se na polis em vista da
manutenção da vida. Ora, esse logos é desde sempre falaz, e a existência nele fundada, inau-
têntica. Nas palavras de Partenie, “a existência humana comunitária, sendo determinada pela
fala, que promove uma despreocupação com o conteúdo substantivo, não é uma existência
genuína.”642 Ou seja, o logos insubstancial é responsável pelo desenraizamento do ser-aí que
flui aletoriamente no falatório, imerso que está desde sempre na comunidade política a que
pertence. Como o explica Heidegger, “o discurso é o modo fundamental do acesso e da lida

639
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
p. 256.
640
Cf. §§25-27 de HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de
M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.
641
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.151 (§19).
642
PARTEINE, C. ‘Imprint: Heideger’s interpretation of Platonic Dialectic in the Sophist Lectures (1924-1925)’,
p.44. In: PARTENIE, C.; ROCKMORE, T. Heidegger and Plato: Toward Dialogue. Illinois: Northwestern
University Press, 2005. pp. 42-71.
244

com o mundo, na medida em que ele é o modo no qual o mundo se encontra de início presen-
te”643. Mas não é apenas o mundo que se faz presente pelo discurso, mas também os outros
homens e, principalmente, o próprio particular. Desse modo, o próprio indivíduo aliena-se de
si, pois não se encontra mais diretamente consigo, mas intermediado pelo falatório que tem
vinculação ontológica com os entes de que trata. Ou seja, “a ausência de coisidade do discurso
significa o mesmo que a inautenticidade e o desenraizamento da existência humana” 644, pois
o ser-aí imerso no falatório comunitário perde-se a si mesmo, pois ele mesmo se pensa e se
diz a partir do que se diz a respeito dele, assim como das coisas em geral. Esse ser-aí desen-
raizado está tão distante de si como esta distante do mundo em geral, pois permanece enco-
berto pelo logosinsubstancial e impessoal.
Essa articulação evidencia o quanto esse curso sobre o Sofista é determinante para a
reflexão de Heidegger em Ser e tempo, que inicia exatamente com uma citação desse mesmo
diálogo platônico. No tratado publicado dois anos depois do curso, em 1927, Heidegger anali-
sa com profundidade o alcance ontológico desse falatório, condição existencial decaída explo-
rada pelo sofista. Com efeito, em Ser e tempo, onde se condensam as hipóteses fundamentais
da primeira fase do pensamento de Heidegger, o falatório é “o modo de ser do compreender e
da interpretação dor ser-aí cotidiano”, que “regula e distribui as possibilidades do compreen-
der mediano e de sua disposição.”645 Nesse domínio do impessoal - em que o “a gente” (man)
determina a compreensão de todos, sem ser ninguém individualizável, e que configura a exis-
tência inautêntica do ser-aí -, fala-se o que se ouve, fala-se como todos falam, sem se compre-
ender aquilo de que se fala. A fala de todos é a fala de ninguém.
Conformado pelo caráter autoritário do que é “público”, o falatório é marca da com-
preensão mediana, em que o ser-aí compreende sem jamais se colocar em contato com a refe-
rência ontológica primária do que se fala, “contentando-se com repetir e passar adiante a
fala.”646, reforçando e mesmo intensificando a falta de solidez intrínseca a essa modalidade
existencial. O falatório “é a possibilidade de compreender tudo sem se ter apropriado previa-
mente da coisa”647, dispensando, assim, a necessidade de um compreender autêntico pela ma-

643
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p.256 (§34).
644
Ibidem.
645
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p.231 (§35)
646
Ibid., p. 232.
647
Ibidem.
245

nutenção da indiferença ontológica quanto ao referencial primário da fala. O falatório é uma


forma decaída e impessoalizada da fala, que pertence à constituição ontológica do ser-aí, for-
necendo-lhe a abertura de mundo pela linguagem.
É importante anotar, porém, que, diferente da deliberação sofística de valer-se da es-
trutura apofântica e predicativa do logos para ludibriar o interlocutor, o falatório analisado em
Ser e tempo transforma a abertura originária da fala em fechamento, que tranca e encobre os
entes intramundanos, por sua total ausência de solo e fundamento, pela “abstenção de retornar
à base e ao fundamento do referencial”; ou seja, “não necessita da intenção de enganar”, pre-
sente na caracterização platônica do sofista, para provocar o encerramento, com que se retarda
e reprimi “toda e qualquer questão e discussão”648.
Prescrevendo a disposição e a determinação do quê (was) e do como (wie) se vê, a di-
mensão repressiva da compreensão mediana impede o ser-aí de sentir a estranheza da oscila-
ção e da falta de solidez de sua existência desenraizada. Isso porque essa compreensão enco-
bre o desenraizamento e a superfluidade existenciais sob o manto da auto-evidência e autocer-
teza, com que os ser-aí “sempre é e está junto ao ‘mundo’, com os outros e consigo mes-
mo”649.
Dessa maneira, fica clara a relação intrínseca entre o logos cotidiano e impessoalizado
e a sua exploração sofística na retórica, que nada mais faz que elevá-lo a um nível de articula-
ção intelectual que explora as suas potencialidades latentes, quais sejam, a de falsear as coisas
pela fala, uma vez reconhecido e compreendido o descompromisso prévio do logos com as
coisas tratadas. Em poucas palavras, interessa a Heidegger ressaltar que os sofistas não inven-
tam uma nova forma de lidar com o logos, apenas potencializam o modo cotidiano e decaído
do logo falaz.
Estabelecida a natureza do logos retórico a partir da fala cotidiana, instauradora do
modo cotidiano e decaído do ser-aí desenraizado, cabe entender o poder da dialética de rom-
per com esse modo inautêntico de comunicação, voltando-se às coisas faladas propriamente
ditas; ou seja, a dialética como uso autêntico e apofântico do logos.
No comentário ao Fedro, que compõe uma parte importante da exploração heideggeri-
ana do logos sofístico e filosófico, Heidegger acredita que a crítica de Platão à escrita é, na
verdade, um ataque à fala pública, como um “logos (discurso) que paira livremente”650. O

648
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de M.S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p.232 (§35).
649
Ibid., p. 234.
246

logos escrito e público é inautêntico porque despersonalizado, disperso no mundo do falatório


cotidiano e impessoal. Ao valer-se desse tipo delogos, o autor-orador não considera o interlo-
cutor, mas apenas a massa amorfa, abstrata e impessoal dos leitores ou dos ouvintes anôni-
mos. Ou seja, é um logos unilateral, monológico, destinado a um receptor desconhecido e cuja
identidade não interessa, ou interessa apenas retoricamente, passivamente, e não como inter-
locutor efetivo.
Por que, então, o logos autêntico é dialético? Porque reconhece a estrutura dialógica
da fala, estrutura essa perdida no desenvolvimento da escrita e da fala publicizada do falatório
impessoal. A escrita e a fala pública não consideram os interlocutores a que se destinam, ao
passo que o logos autêntico da dialética atenta para a personalidade do interlocutor (para sua
alma) e transmite-lhe o conteúdo de acordo com a sua vontade e capacidade de compreendê-
lo. O logos dialético é autêntico, também, porque é uma “fala viva”, “viva na medida em que
deixa o outro ver”, uma vez que pressupõe que a alma do interlocutor encontra-se inclinada ao
“ver”651. Vivo também porque “vive da relação com a coisa mesma”, sendo logos escrito
“mera imagem” dele652. O logos dialético encaminha para a visão imediata da coisa, ao invés
de falseá-la e obstrui-la. Segundo a interpretação aristotélica de Heidegger, a dialética tem
como função promover a visão direta das coisas, por isso é uma forma intermediária de co-
nhecimento, além da retórica e aquém da contemplação noética.
Por conseguinte, o logos genuíno é o dialético, porque é substantivo, ou seja, vincula-
do com as coisas elas mesmas. Além disso, é genuíno porque franqueia o desvelamento dos
entes, no qual a existência autêntica reside. Como se dá então a dialética, enquanto logos exis-
tencialmente autêntico e veritativamente desencobridor? Como já visto, o logos é primordial-
mente encobridor, estando o ser-aí nele enredado facticamente por conta de sua existência
originariamente comunitária, política. Como então pode o ser-aí desvencilhar-se do logos en-
cobridor do falatório? Somente mediante o próprio logos, mas dessa vez o logos em sua di-
mensão dialética:
Mas se o logos impera de início sobre o ser-aí nessa facticidade como falatório, o
avanço em direção ao desencobrimento do ente precisa passar precisamente por ele.
Ele precisa ser tal fala que leva no dizer a favor e contra cada vez mais para junto
daquilo de que trata o discurso e faz com que o vejamos 653.

650
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p. 373 (§54, b).
651
Ibid., p. 378(§54, d).
652
Ibid., p. 376 (§54, b).
653
Ibid., p. 223 (§28, a).
247

A dialética, portanto, “atravessa” o falatório a fim de purificar o logos à coisa de que


ele trata. Com esse “atravessar discursivo” (Durchsprechen) a dialética conduz o logos de seu
aspecto encobridor e cotidiano à sua dimensão reveladora. E faz isso purificando dialetica-
mente a fala cotidiana, apropriando-se de sua capacidade autenticamente comunicativa, isto é,
aquela que a liga à coisa falada. Heidegger considera essa passagem dialética a superação do
“dito” pelo “enunciado”, o qual é um discurso “sobre o ente mesmo em sentido autêntico”, ou
seja um “logos alethes (discurso verdadeiro) sobre o discutido”654. Por isso, o dialegesthai “é
um diaporeuesthai dia ton logon (cf. 253b10[do Sofista]), um passar por aquilo que é dito; e,
em verdade, de tal modo que ele mostra o que poderia estar sendo visado aí.” 655. Ou seja, o
filósofo dialético não se afasta do mundo linguístico decaído, cotidiano e impessoal para refu-
tá-lo, mas parte dele e, atravessando-o no seu íntimo, alcança o que ele pretende exprimir, o
que ele encobria com sua fala, transformando, assim, um dito em um enunciado apofântico
autêntico. O fim da dialética é falar de modo efetivo, para além das cristalizações falsificado-
ras do logos decaído e sofístico, enunciar “algo propriamente sobre o tema” 656
Essa característica discursiva da dialética é, num primeiro momento, considerada po-
sitivamente, como a virtude capaz de transcender o falatório: só o logos dialético rompe o
falatório do logos retórico, atravessando-o e purificando-o, remetendo-o à coisa mesma, con-
ferindo-lhe substancialidade coisal, vida material, em uma palavra, mostrando a coisa falada.
Essa mesma característica discursiva, porém, é considerada negativamente, como o motivo de
sua limitação, pois a torna incapaz de alcançar a forma suprema de conhecimento, que - nesse
momento de influência de Aristóteles e Husserl no seu pensamento - Heidegger não considera
um conhecimento discursivo, mas uma visão intuitiva e imediata da coisa mesma. Nesse sen-
tido, a dialética só pode apontar e encaminhar a essa forma cognitiva que a supera, a visão
noética. De fato, Heidegger reconhece que o exame dialógico “possui em si mesmo a tendên-
cia imanente para umnoein (pensamento), para um ver”657, mas, por mais que consiga superar
a forma decaída de fala (o falatório), a dialética permanece arraigado no logos. Com efeito,
ainda que permaneça no âmbito circunscrito do dizer (legein), a dialética rompe e controla o
falatório, apontando, pela primeira vez, à substancialidade e a coisalidade da fala em sua refe-
rencialidade ontológica. O sentido primordial da dialética platônica é o de oferecer “as coisas
654
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
p. 222.
655
Ibidem.
656
Ibidem.
657
Ibid., p.223.
248

discutidas em uma primeira indicação de maneira primordial e em seu aspecto mais imedia-
to”658. Por isso, a dialética “não chega ao puro noein (pensamento)”, pois a sua natureza dis-
cursiva a impede de alcançá-lo. Por outro lado, ela o prepara, sem a dialética não haveria con-
templação teórico-noética, a “intuição originária autêntica” 659.
Como se vê, é ambíguo o estatuto discursivo da dialética, tendo uma dimensão positi-
va – a de transcender o logos cotidiano encobridor – e uma dimensão negativa – a de não al-
cançar a imediatidade da visão noética. Nada obstante, a dialética tende naturalmente à visão,
que é a apreensão não intermediada pelo logos da coisa em si mesma. O logos retém a dialéti-
ca na estrutura relacional de considerar algo como algo e não em si mesmo. Nessa estrutura
primária e determinante, a dialética não atinge a consecução de seu objetivo cognitivo funda-
mental, o desencobrimento total do ente visado, o que só pode ser feito pela intuição noética.
Como explica Partenie660, a dialética efetivamente alcança a coisa em discussão, dife-
rente do falatório que encobre tudo do que trata. Mas a dialética nos dá apenas uma indicação
elusiva do que a coisa realmente é. A coisa ela mesma só pode ser inteiramente desvelada por
uma apreensão intelectual direta, uma visão (theoria). Essa visão é individual e não passa pela
intersubjetividade do diálogo. Precisa-se do interlocutor para romper com a monologia da fala
cotidiana, mas depois se segue sozinho na contemplação da coisa nela mesma. Incluir um
interlocutor nessa apreensão é torná-la medida pelo logos, o que impede de ver a coisa dire-
tamente tal como ela é em si mesma. Ou seja, uma vez cumprida a função da dialética de su-
plantar a unilateralidade do falatório, ela aponta para aquilo que a transcende, a visão indivi-
dual do objeto contemplado, e fica para trás no progressivo percurso cognitivo total.
Como se pode perceber, no contexto da analítica existencial e da hermenêutica da fac-
ticidade – que juntamente com a destruição da história da ontologia, compõem os já explica-
dos subprojetos do projeto da ontologia fundamental661 -, a verdade é atrelada ao logos. O
logos dialético é o único capaz de alcançar a verdade discursiva da coisa falada, e tem como
características principais o fato de ser apofântico, intencional, predicativo e sintético. Desse
modo, a verdade é lógica, depende do desvelamento provocado pelo poder mostrador da fala

658
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p. 224 (§28, a).
659
Ibidem.
660
PARTEINE, C. ‘Imprint: Heideger’s interpretation of Platonic Dialectic in the Sophist Lectures (1924-1925)’,
p.45. In: PARTENIE, C.; ROCKMORE, T. Heidegger and Plato: Toward Dialogue. Illinois: Northwestern
University Press, 2005. pp. 42-71.
661
Cf., acima, o item 1.3, que trata da destruição da história da ontologia, e CASANOVA, Marco Antônio. Com-
preender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.p. 79.
249

autêntica, que, enquanto logos dialético, rompe com a inautenticidade e o ludibrio do vela-
mento verbal do sofista.
Dessa reflexão inicial de Heidegger sobre a natureza a-lethética do logos, o que per-
manece ao longo de sua reflexão é o caráter de velamento e desvelamento da verdade, mas
essa noção será redimensionada para além do logos humano. A noção de verdade como cor-
respondência não delimita o sentido da verdade grega, na qual se pode perceber o sentido
originário de verdade como desvelamento, como manifestação da própria coisa em sua eclo-
são espontânea. Partindo do solo da ontologia fundamental, a investigação posterior de Hei-
degger encaminha-se exatamente para a compreensão dessa transição que caracteriza o pri-
meiro início da filosofia: como em Platão se dá a mudança metafísica da verdade-
desvelamento da physis (aletheia) para a verdade-adequação do logos à ideia. Se a ontologia
fundamental apontava para a essência existencial e metafísica da verdade - intuindo que a
verdade-correção deriva do sentido originário da verdade-desvelamento (aletheia) -, com a
viragem, pergunta-se pela essência da essência, o processo de essenciação do seer enquanto
acontecimento apropriativo (clareira). Agora, a verdade é indissociável do Ereignis (aconte-
cimento apropriativo) e da Lichtung (clareira).
No contexto de superação da metafísica do primeiro início da filosofia, a meditação
histórico-ontológica busca a natureza originária da verdade, contida no acontecimento apro-
priativo de desvelamento (aletheia), verdade essa que, como clareira, não depende da ação
verbal humana, mas de um acontecimento que é próprio do seer que se desoculta, que se retira
do retraimento que o caracteriza essencialmente. Qual é, então, a essência desse desvelamento
do seer (da verdade como aletheia)? Com a viragem, essa é uma pergunta fundamental para
Heidegger, sendo a confrontação com Platão indispensável para interrogá-la radicalmente,
pois é na alegoria da caverna que se delimitam os traços da pergunta metafísica diretriz do
primeiro início, ao mesmo tempo em que se conserva, no dizer da palavra fundamental ale-
theia, a reminiscência do sentido originário da physis dos pensadores originários, Parmênides
e Heráclito. É para análise da alegoria da caverna, então, que se parte, porque nela o sentido
ontológico originário do seer e o sentido metafísico derivado do ser ainda ecoam.
O objetivo de Heidegger nos estudos posteriores, a partir da viragem na década de
1930, é a superação do caráter derivado e secundário da concepção lógica da verdade, que
restringe a verdade ao logos apofântico, à correção do juízo que se adequa à coisa enunciada.
No curso sobre o Sofista, a verdade ainda é atributo do logos, a adequação dele à coisa visada.
É essa noção derivada que se torna problemática aos olhos de Heidegger à medida que ele
promove a viragem do seu pensamento em direção a uma dimensão mais originária da verda-
250

de, não mais centrada no juízo, mas no próprio insurgir do ser do ente no campo de abertura
luminosa da clareira. Para acompanhar essa viragem, é necessário perceber como a verdade-
adequação provém da verdade-desvelamento (aletheia).

3.3Da homoiosis (adequatio) à aletheia

No curso Da essência da verdade – aproximação da ‘alegoria da caverna’ e o Teeteto


de Platão (1931-1932), Heidegger persegue a questão da essência da verdade mediante um
retorno a um momento específico da história do seer, o momento platônico em que se confi-
gura a transição do pensamento ontológico originário – em que há uma unidade essencial
entre physis e logos - para o primeiro início da filosofia – em que a verdade se torna a adequa-
ção lógico-metafísica do juízo à idea. Herdando as palavras fundamentais dos pensadores
originários, como Parmênides, Heráclito e Anaximandro, Platão as redimensiona pela metafí-
sica da idea, acarretando uma transformação essencial no sentido da verdade (aletheia). A
verdade torna-se correção porque o juízo (dimensão lógica) deve se adequar à idea (dimensão
metafísica), que é o ser do ente visado. A meditação histórica que se confronta com o primei-
ro início busca compreender como Platão, núcleo da metafísica desse primeiro início, trans-
formou a essência da verdade originária, vigente no universo da physis. Quando o ser é pen-
sado como physis, a verdade se essencia como aletheia (desvelamento). Em Platão, o ser pas-
sa a ser pensado como idea, e a verdade se essencia como correção. Como observa Heide-
gger, em Introdução à metafísica, é a insurgência da idea como representação que visa à cor-
reção e adequação do olhar que possibilita esse processo de mutação histórica:
A verdade da physis, a aletheia, entendida como re-velação vigente no vigor impe-
rante do que brota, torna-se homoiosis e mimesis, conveniência e adequação, um re-
gular-se com, converte-se em correção (Richtigkeit) da visão, da percepção, como
representação.662

Como se explicou no primeiro capítulo, a mudança na essência da verdade não pro-


vém de uma mudança intelectual realizada pelo mérito ou demérito de Platão, individualmen-
te considerado como autor. Antes, provém do acontecimento apropriativo do seer que se envia
epocalmente de modo retraído no primeiro começo da filosofia, deixando-se confundir com o
ente que ele mesmo abre na totalidade, com a idea pensada como entidade do ente. Por outro
lado, a compreensão do pensamento originário dos pré-socráticos contribui para a compreen-

662
HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução de E.C. Leão. 4ª ed. Rio de Janei-
ro:Tempo Brasileiro, 1999. p.204.
251

são da natureza do acontecimento apropriativo, isto é, um movimento que vai da Aletheia ao


Ereignis663. O gesto de alcançar o pensamento originário da physis e da aletheia coincide com
a superação da metafísica do primeiro início da filosofia, mediante o salto ao outro início do
pensamento, em que se percebe o nexo da aletheia com a clareira (Lichtung).
Percebe-se, claramente, portanto, que Heidegger não tem qualquer finalidade histori-
cista – de reconstituir a determinação própria de um passado específico -, historiográfica – de
escrever os fatos decisivos de uma época passada, ainda que sejam as concepções filosóficas
ou eventos intelectuais -, ou filológica – de retraçar o sentido de um texto a partir de uma exe-
gese da língua grega antiga. Sua intenção é muito mais a de retroceder ao horizonte originário,
anterior à consolidação platônica da metafísica, para haurir, nas palavras fundamentais, a voz
do seer que se enviou epocalmente. Ou seja, a confrontação com o primeiro início da filosofia
constitui a meditação histórico-ontológica, a confrontação com a coisa mesma do pensamento.
Por essa razão, pode-se assegurar, com Casanova, que “confrontar-se com a história da meta-
física é, em outras palavras, entrar no espaço mesmo do acontecimento apropriativo”, “acon-
tecimento oriundo da tensão entre abertura do ente na totalidade e retração do ser no abismo
da sua diferença”664, que unifica a história do Ocidente.
Nesse contexto, Heidegger se volta ao momento platônico dessa transição epocal, em
que o ser-physis essencia-se como ser-idea, com a consequente transformação da essência da
verdade, agora homoiosis, adequatio, e não mais aletheia. No entanto, Platão ainda usa a pa-
lavra aletheia, herdada do desvelamento originário ocorrido nos versos de Parmênides e He-
ráclito. Essa mudança no horizonte hermenêutico, agora condicionado pela viragem ao pen-
samento histórico, faz com que a leitura heideggeriana de Platão seja consideravelmente
transformada, em relação ao modo como ela se configura, cinco anos antes, no curso Concei-
tos fundamentais da filosofia antiga. Neste curso, Heidegger ainda se encontra vinculado à
historiografia que via em Platão um desenvolvimento do questionamento grego inicial, cuja
culminância se dá com Aristóteles. De fato, o curso é divido em três seções sucessivas, as
quais pressupõem o desenvolvimento progressivo da filosofia antiga, sendo a primeira seção
dedicada aos pensadores “até Platão” – incluindo os milesianos, Heráclito, Parmênides e os
elatas, Empédocles, Anaxágoras e os atomistas, e, enfim, Sofistas e Sócrates -, a segunda de-
dicada a Platão, e a terceira, a Aristóteles.

663
Cf. FRANCK, Didier. De l’aletheia à l’Ereignis. In: MATTÉI, Jean-François (org.). Heidegger – l’énigme de
l’être. Paris: Presses Universitaires de France, 2004. pp.105-130.
664
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009, pp. 187-188.
252

Nessa linha sucessiva, se Sócrates logrou questionar a essência desse ou daquele ente
– com a pergunta pelo conceito das virtudes, mediante o método elêntico-refutatório da per-
gunta ti estin -, Platão, cuja filosofia se caracterizaria essencialmente pela “teoria das ideias”,
eleva a pergunta a uma dimensão propriamente ontológica, ao perguntar-se pela essência do
ser, em si mesmo considerado665. Essa pergunta ontológica é formulada explicitamente por
Platão no diálogo Sofista, que Heidegger estuda no curso já estudado, em 1924 e 1925, e que
serve de referencia inicial para a Ser e tempo, publicado em 1927.
Para enfrentar esse questionamento ontológico, no curso Conceitos fundamentais de
filosofia antiga, de 1926, Heidegger analisa a alegoria da caverna, notando os diferentes ní-
veis de verdade e compreensão escalonada do ser, culminando na visão dianoética das ideias
e, por fim, na contemplação noética da ideia do bem, análogo inteligível ao sol no âmbito sen-
sível666. Além d’A República, Heidegger também analisa o Teeteto, concentrando-se na sua
dimensão ontológica. Contra a interpretação neokantiana vigente – que se pautava na dimen-
são epistemológica -, Heidegger postula que o Teeteto trata, sobretudo, da questão do ser,
sendo que a epistemologia que ele desenvolve a ciência do ser, o método dialético que discer-
ne a conexão das estruturas do ser, visto que o ser não é simples, mas uno, comportando uma
pluralidade interna articulada com os entes que dele participam. Dado o caráter intencional do
conhecimento – todo o conhecimento é “conhecimento de algo” -, o objeto de Platão ao pro-
blematizar as formas epistêmicas da aisthesis e da doxa é compreender ontologicamente o
problema do não ser (me on) e do movimento (kinesis)667. Heidegger chega a afirmar que o
diálogo não trata de epistemologia, mas, ao contrário, enfrenta a questão do não-ser e do de-
vir, para a qual o problema do conhecimento converge668.
Outra é a aproximação hermenêutica de Heidegger no curso Da essência da verdade.
Nele, Heidegger parte da essência do ser para a essência da verdade. Com efeito, há uma vi-
ragemno questionamento e no sentido da indagação. A viragem também diz respeito a intui-
ção, de origem nietzschiana, de que Platão e Aristóteles representam uma decadência do hori-
zonte auroral dos pensadores originários. Com efeito, a própria denominação “pré-socráticos”
para pensadores como Parmênides, Heráclito e Anaximandro, indica a perspectiva cronologi-
camente evolutiva dos que antecederam o despontar platônico-aristotélico, como se os pré-
665
HEIDEGGER, Martin. Basic Concepts of Ancient Philosophy. Tradução R.RojcewiczBloomington: Indiana
University Press, 2007. p. 79 (§33).
666
Cf. ibid., p. 84 (§34).
667
Ibid., p. 93 (§38).
668
Ibidem.
253

socráticos houvessem apenas preparado o caminho plenamente trilhado por Platão e Aristóte-
les, sendo esse caminho a questão do ser, ele mesmo. Presente no curso sobre O Sofista – em
que há a compreensão de que Aristóteles teria elevado a filosofia platônica a um nível superi-
or de cientificidade - essa perspectiva evolutiva é abandonada por Heidegger com a viragem,
pelo reconhecimento da unidade da tradição ocidental a partir do primeiro início platônico,
consoante o envio epocal do seer que o caracteriza.
No curso sobre O Sofista, Heidegger parte de Aristóteles para compreender Platão -
chegando a afirmar que “Não há nenhuma compreensão científica, isto é, nenhum retorno
histórico a Platão sem passar por Aristóteles”669 -, baseado no principio histórico-
hermenêutico que estabelece começar pelo mais claro e mais científico ao mais obscuro e
confuso (“ainda não desdobrado”)670. Por isso, antes de começar a análise d’O Sofista de Pla-
tão, Heidegger realiza uma alentada digressão na filosofia aristotélica, com o estudo do livro
VI e X da Ética a Nicômaco e do livro IV (capítulos 1 e 2) da Metafísica, sem prejuízo de
remissões e comentários a vários outros textos aristotélicos ao longo do curso, como o De
anima e a Retórica. Sinteticamente, pode-se resumir o princípio hermenêutico da primazia de
Aristóteles sobre Platão com quatro critérios, vinculados entre si: o estilístico-expressivo
(“clareza”), o filosófico (“cientificidade”), o cronológico (“os que vem depois”, os pósteros) e
o do legado direto (“aquilo que Platão lhe entrega nas mãos”). Em poucas palavras, Aristóte-
les teria apenas elevado a uma “cunhagem mais radical, mais científica” “aquilo que Platão
lhe entrega em mãos”, a partir da exploração das tendências imanentes daquilo que, na filoso-
fia platônica, ainda é “confuso”, isto é, a situação em que “as diversas direções do ver e do
questionar em Platão ainda se encontram entrelaçadas” 671.
Com a viragem, ao contrário, Heidegger volta-se para o pensamento matinal dos pen-
sadores originários para traçar o que se perdeu na transformação platônica e como ela pode
ser considerada uma decadência no sentido de um obscurecimento a respeito da essência da
verdade do ser. Para tanto, Heidegger postula a hipótese de que a noção lógica da verdade-
homoiosis – como acordo da preposição e a coisa – é tardia e derivada em relação à noção
ontológica da verdade-aletheia – como des-velamento (Unverborgenheit).
A noção de verdade como correção, adequação (homoiosis, cuja tradução latina é ade-
quatio) tornou-se hegemônica na tradição metafísica ocidental, sendo a única que nos parece

669
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.p. 215 (§27)
670
Cf. ibid., p.11 (§1, b).
671
Ibid., p. 216 (§27).
254

possível hoje em dia. Ela é o próprio fundamento da metafísica idealista que caracteriza a
tradição filosófica platônica-ocidental. Referindo-se a uma passagem decisiva do Teeteto
(184-187), Heidegger nota, que, nesse texto, se dá claramente a “viragem”, na qual os gregos
abandonam a origem do pensamento e o convertem em metafísica, isto é, fundam “a doutrina
do ser enquanto idea e da verdade enquanto homoiosis. Só nesse momento, pode-se afirmar
que a ‘filosofia’ começa” 672.
Com a idea platônica, e a noção de verdade respectiva, Platão instaura o primeiro iní-
cio da filosofia como metafísica. Mas, consoante desenvolvido no primeiro capítulo, no inte-
rior da metafísica não se pode conhecê-la a contento. Por isso, faz-se necessário destruí-la,
reconhecê-la como derivada e secundária quando considerada em confrontação histórica com
o desvelamento aletético da physis originária. Isto é, deve-se saltar para o impensado do outro
início – que se pode entrever na noção de aletheia, a qual aponta para a noção de Ereignis -- e
conquistar a alteridade pela confrontação com esse primeiro início. É só com a confrontação
que a identidade e a alteridade conformam-se e ganham contornos delineáveis. E é esse o solo
que Heidegger visa a preparar.
Nos dois parágrafos que compõem as Considerações introdutórias do curso Da essên-
cia da verdade – aproximação da ‘alegoria da caverna’ e o Teeteto de Platão (1931-1932),
Heidegger explicita o significado filosófico de essência, colocando em cheque o sentido meta-
físico comum que a obscurece. Esse sentido metafísico corrente conforma a pré-compreensão
da tradição ocidental e obstrui a compreensão efetiva do significado filosófico da noção de
essência. Desse modo, no segundo parágrafo, Heidegger explica que sua motivação de retor-
nar ao núcleo da noção de verdade tende a recuperar a experiência grega original da verdade
como aletheia, que significa des-velamento, a “abertura sem retraimento” (Unverborgenheit).
Ou seja, a tradução hermenêutica da palavra grega a-letheia como desvelamento (Un-
verborgenheit), reconhecendo o prefixo alfa privativo – que, em português, corresponde ao
prefixo “des”, de des-velamento -, remete ao velamento e à ocultação do seer, instaurando a
copertença essencial entre verdade e inverdade (Warhreit e Unwahrheit, Aletheia e Lethe).
Nesse sentido, a verdade será uma suspensão provisória de um estado intrínseco de velamento
do seer, que se retraí no ato mesmo de desvelar o ente. Nesse momento de sua obra, Heide-
gger encaminha-se para o pensamento do acontecimento apropriativo do ser que se retrai (le-
thé) em toda essencialização do ente.

672
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.364 (Apêndice 10).
255

Note-se que a tradução portuguesa da palavra alemã Unverborgenheitpor desvelamen-


to merece duas ressalvas complementares, uma de Zarader e outra de Boutot. Em primeiro
lugar, deve-se observar que as opções de tradução que trazem o sufixo “-mento” ou “-ção”,
como em des-velamento, des-encobrimento ou des-ocultação, denotam uma dimensão de pro-
cesso e desenvolvimento ausente no termo alemão, cujo sufixo “heit”, ao contrário, significa
o caráter de estado, o fato de algo estar desvelado, de não estar ocultado. Por isso, Zarader
elucida que a forma convencional da noção de “desvelamento” deve ser lida como um “estar-
não-velado” ou “estar-desvelado”. O uso do particípio passado, com o sufixo “-ado” contribui
para o significado de um estado fixo, de uma condição atual do que está ocultado, desvelado,
desencoberto673.
Nessa mesma linha de pensamento, Boutot questiona as traduções de Unverborgenheit
que – como “desvelamento”, “desocultação”, “não-latência”, “não-dissimulação”, “de-
críptico”, e assim por diante – fazem parecer que há um véu sobre o ser dos entes que precisa
ser removido. Assim, “desvelamento” seria retirar o véu, “descobrimento” no sentido de tirar
o cobertor ou a cobertura, pressupondo que o ser do ente estivesse lá, escondido, e que agora
pudesse aparecer em sua plenitude descoberta. Essa não é uma articulação em consonância
com o pensamento heideggeriano, uma vez que o ser não preexiste ao seu desvelamento, ele
não é nada antes desse despontar, dessa manifestação com que ele emerge e eclode do seu
caráter retraído. Para tentar superar essa dificuldade hermenêutica de tradução, Boutot segue
J.Beaufret - a quem Heidegger redigiu a importante Carta sobre o humanismo em 1946 -,
traduzindo Unverborgenheit por “aberto sem retraimento”, ou mesmo “não retraído”, atentan-
do para preservar o caráter de um estado ou condição correspondente ao contrário de Verbor-
gen, que é o estado de retração, ou simplesmente o “retraído” 674. A relação da verdade-
desvelamento (aletheia) com a abertura da clareira (Lichtung) será discutida a seguir, quando
se articular a noção de physis com a palavra alemã Entbergung (desabrigo, desencobrimento),
intrinsecamente relacionada a Unverborgenheit(desvelamento; estado do desvelado). Por ora,
retoma-se o curso Da essência da verdade, para se compreender o problema da própria noção
da essência, a qual será, ela mesma, transformada a partir da mutação da verdade.
Num gesto tipicamente platônico, no curso Da essência da verdade, Heidegger indica
que a análise da essência da verdade começa pela pergunta “o que é a verdade”? Mas tal como

673
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.77 (nota 35).
674
BOUTOT, Alain. Préface du traducter, p. 11. In: HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche
de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. pp.7-15.
256

Sócrates evidencia nos diálogos platônicos iniciais, comumente chamados de socráticos e


baseados exatamente na pergunta “o que é x” (ti estin)?, essa pergunta volta-se sempre de
algo já conhecido, de que já se tem uma pré-compreensão específica. Esse é o motivo de Só-
crates interpelar especialistas nas respectivas áreas de atuação da virtude em questão. Mas
Heidegger refere-se, neste primeiro parágrafo do curso, à generalidade, àquilo que as coisas
particulares têm em comum. Em uma palavra, a essência aponta para a universalidade sintéti-
ca de todas as coisas particulares, à idea comum dos entes, como se viu no capítulo anterior.
Ora, o que se evidencia com essa exposição sumária é o caráter tardio da apreensão da
essência, que vem a posteriori em relação à compreensão imediata que se tem dos entes sin-
gulares. Ou seja, o conceito geral da essência é secundário. No que concerne à verdade, con-
cebê-la de imediato na dimensão abstrata conduz à sua invalidação no plano prático: não se
conhece primeiro a verdade geral e absoluta, mas a verdade particular de coisas específicas,
como a verdade fatual (por exemplo, a verdade de que em 1914 começou a primeira guerra
mundial) e a verdade racional (a soma de dois e um é três). Essas assertivas particulares são
verdadeiras, sem que com isso se precise asseverar qualquer tipo de consideração geral sobre
a natureza essencial da verdade em geral.
Heidegger atenta para o fato que o locus em que se dá a verdade incialmente, como
evidenciado nesses exemplos, é a assertiva (Satz). Na proposição que predica a verdade de
algum ente, entretanto, pode-se entrever a essência da verdade como “concordância”, confor-
midade precisamente entre a coisa e aquilo que dela se diz numa frase (enunciado ou juízo).
Compreender a verdade como correspondência significa localizá-la na assertiva, a partir do
reconhecimento prévio que o ato verbal de proferir uma sentença permite adequá-la à coisa
tratada. Ou seja, a verdade como concordância se funda na possibilidade de uma sentença
conformar-se à coisa visada, tal como se viu no item anterior, que articula logos e aletheia,
sendo esta um propriedade daquele. Assim, diz Heidegger: “A verdade é um acordo. Esse
acordo vale porque o enunciado se ordena àquilo de que fala. A verdade é precisão (Richti-
gkeit). Assim, a verdade é acordo, fundado na precisão, do enunciado com a coisa.”675
Desta compreensão da essência da verdade emerge uma segunda noção, mais originá-
ria, pois o fato assegurado, “verificado” pela proposição é uma verdade que a antecede, já
dada, antes mesmo de a sentença tê-la pronunciado. Mesmo que ninguém tenha afirmado o
ano do começo da primeira guerra mundial, esse ano foi, de fato, 1914. Ainda que ninguém
formule verbalmente a operação matemática de soma de dois e um, o resultado não deixa de

675
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.18 (§1).
257

ser três. Ou seja, a verdade antecede o juízo que a proclama. Heidegger aponta para o aconte-
cimento de que resulta a afirmação verbal que corresponde a ele.
Entre a verdade lógica (entenda-se, do logos)e o fato (seja qual for a sua natureza) há
uma distância. Usa-se essa noção lógica de verdade no cotidiano exatamente pela funcionali-
dade que lhe é própria; ninguém precisa interrogá-la filosoficamente para neutralizá-la ou
torná-la secundária, uma vez que ela serve muito bem para a comunicação corrente. Usa-se
esse noção de verdade independente da compreensão de que ela é secundária e antecedida por
um acontecimento veritativo originário.
Com efeito, esse uso corrente reveste-se do caráter de obviedade e autoevidência, do
qual, desde Ser e tempo, Heidegger tenta extrair o significado essencial, destruindo as cama-
das de sentido cristalizadas com o tempo. A verdade é um conceito ambíguo, se é que pode
ser considerada um conceito: demonstrar isso é um dos objetivos de Heidegger, principalmen-
te na segunda fase de sua obra. Evidenciar a ambiguidade, a equivocidade do conceito comum
de verdade implica torná-lo estranho, destitui-la do caráter familiar e óbvio do seu uso cotidi-
ano. O que importa, nesse momento, é provar que a essência da verdade é digna de ser posta
em questão (Frag-würdigkeit), distanciando-a da proximidade cotidiana que a torna refratária
ao questionamento filosófico. Tão próxima está a verdade-correspondência, que não se pode
mirá-la com o espaço necessário para vê-la tal como ela de fato é em si mesma, a sua essên-
cia. Assim, explica Heidegger:
A verdade faz precisamente parte, em um certo sentido, das coisas que usamos coti-
dianamente, e assim nós sabemos naturalmente também o que visamos com ela. Ela
nos é tão próxima que nós não temos nenhuma distância do seu entorno, e por con-
sequência nenhuma possibilidade de adquirir dela uma visão de conjunto e de pene-
trá-la com o olhar fixo.676

O reconhecimento da ambiguidade da noção de verdade deriva de sua irredutibilidade


à noção de correspondência ou correção, que é apenasum dos significados atribuíveis à ver-
dade. Se a essência da verdade fosse a correspondência, dever-se-ia buscar a essência dessa
essência (a essencialidade) da verdade, que tornaria essa primeira concepção essencial um
caso particular de essência em relação à essência geral da verdade.
Tanto no uso cotidiano e absorvente da comunicação corrente, quanto no uso científi-
co e filosófico, a universalidade e a imperatividade que normalmente se atribui à noção cor-
rente de verdade não é capaz de demonstrar que ela tenha apenas um único sentido; isto é, a
universalidade e a imperatividade da verdade no uso cotidiano não garante a sua unicidade.

676
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 23 (§1).
258

Ora, como argumenta Heidegger no referido curso sobre O Sofista, “algo pode ser universal-
mente válido e, de qualquer modo, não ser verdadeiro. A maioria dos preconceitos e das obvi-
edades são tais validade universais, que se distinguem pelo fato de encobrir o ente.”677 Como
se vê, Heidegger passa a desconfiar das sedimentações cotidianas, plasmadas na fala corrente,
que, em vez de liberar a verdade dos entes, de desvelá-los em seu ser, mais contribui para
encobri-los. Isso porque “a verdade, o desvelamento, o ser desencoberto, orienta-se (retifica-
se) muito mais pelo ente mesmo, e não por um determinado conceito de cientificidade.” 678
Por outro lado, não se pode negar que há verdade em experiências religiosas, éticas e
estéticas, mas que não podem ser comprovadas cientificamente ou socialmente. Pode-se afir-
mar, portanto, com Peluso, que “a verdade é um conceito pré-científico, pré-filosófico, uma
experiência, antes ainda de ser uma construção intelectual, que cada ser-aí faz na relação com
outros seres-aí e em geral com o mundo”679. Diante do reducionismo moderno, que pretende
reduzir o conceito de verdade ao âmbito científico da comprovação experimental, deve-se
reconhecer a dimensão pré-teórica da verdade, que evidencia outras formas de conceber a
verdade, relacionadas à experiência, crença, alma, e assim por diante.
Diante dessa ambiguidade e equivocidade, desse aprisionamento na proximidade de
um conceito que se impõe como autoevidente e que não merece ser questionado, Heidegger
propõe uma história do conceito de verdade, desenvolvido no segundo parágrafo do curso.
Antes, porém, de se adentrar nas duas principais concepções identificadas pela historiografia
filosófica, deve-se sublinhar que tal investigação não configura, de modo algum, uma indaga-
ção estéril, como se fosse “um passeio nos velhos jardins das ideais e doutrinas anteriores”
como “meio cômodo de se esquivar da toda responsabilidade diante das exigências do dia, um
luxo intelectual a se distanciar” 680. Ao contrário, compreender as transformações por que pas-
sou o conceito de verdade diz respeito ao ser do homem em sua totalidade, e concerne especi-
ficamente ao homem contemporâneo, que se encontra no crepúsculo de uma transformação
epocal. O que está em jogo nessa mutação histórico-ontológica são as “forças do Dasein” e as
“potências do ser”: “Nossa questão sobre a essência da verdade não é uma questão acessória
ou supérflua, mas engaja nossa vontade e nosso Dasein sobre todas as outras vias e em todos

677
HEIDEGGER, Martin. Platão: O sofista. Tradução M.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
p. 24(§4).
678
Ibidem.
679
PELUSO, Rosalia. Logica dell’altro. Heidegger e Platone. Napoli: Gianni Editori, 2008. p. 35.
680
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 23 (§1).
259

os outros domínios”681. Como já explicado no primeiro capítulo desta tese, a investigação das
palavras de origem, como aletheia, não tem, para Heidegger, conotação de erudição filológi-
ca, mas de compreensão da verdade do ser que se manifesta na língua.
Recuperar a história do conceito de verdade não tem, portanto, qualquer pretensão pe-
dantesca ou evasiva. Tampouco tem como intenção legitimar noções próprias a partir da anti-
guidade gloriosa de um termo. Ao contrário, retornar à história evidencia que o presente é
algo de muito antigo: “só o retorno ao coração da história permite aceder ao que se dá propri-
amente hoje. Finalmente, a ideia segundo a qual a história é algo ‘passado’ não é, ela mesma,
que uma opinião banal, em si suspeita.”682
A recuperação da história do conceito de verdade apresenta, aos olhos de Heidegger, a
já referida ambiguidade que pode ser compreendida como uma decadência do sentido grego
originário de aletheia como desvelamento ao sentido derivado e lógico de adequatio. A noção
de verdade como adequatio, concordância, é expresso de forma lapidar na Idade Média pela
expressão tomista: “veritas est adequatio rei et intellectus sive enuintiationis, a verdade é a
adequação do pensamento, ou do enunciado com a coisa, ou seja o acordo com ela, - ou ainda
commensuratio, co-mensuração, o fato de medir algo, de medir-se a partir de algo”683 Essa
concepção se consolidou na época medieval e dominou a metafísica moderna, permanecendo
intacta até hoje. Na verdade, essa noção tomista deriva da noção platônica-aristotélica de ho-
moiosis, sendo a essência considerada o gênero universal, o ghenos, que tem o seu correspon-
dente latino-medieval na noção de quidditas. Essa noção de verdade centrada no enunciado,
no pensamento e no conhecimento, parece possuir uma consistência e validade que a preser-
vou inalterada, imune às transformações da história.
Na recuperação da história do conceito de verdade, encontra-se a noção originária de
aletheia de que deriva a noção secundária de adequatio. Como visto acima, Heidegger consi-
dera o suposto sentido literal da palavra como sendo formada por um alfa privativo: a-letheia,
motivo pelo qual a traduz como des-velamento, des-ocultação, significando o não esconder-
se, o não retrair-se das coisas. Aletheia é Aufdecken, Unverborgenheit, Entdecken, desvela-
mento, não-escondido, ser-descoberto, mas também Erschlossenwerden, tornar-se aberto,
Durchsichtigkeit, transparência do ente. O verdadeiro (alethes), o desvelado quer dizer “não
mais velado”, “aquilo que é livre do velamento”. A possibilidade de se pensar a verdade como

681
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.360-361 (Apêndice 1).
682
Ibid., p.26 (§2).
683
Ibid., p.24 (§2).
260

des-velamento, como aquilo que ocorre quando o ente é des-coberto, é posto em manifesto,
pressupõe que ele se retraia, se esconda, exatamente para que possa ocorrer o fenômeno da
verdade, que é o não-retraimento, o momento em que o ente deixa de se retirar e se apresenta
na transparência de seu ser.
Diferente das suas variantes (veritas e suas variações neolatinas como verdade,
Thruth,Wahrheit), o aspecto relevante da expressão grega é exatamente essa experiência de
privação registrada na etimologia da palavra, seu alfa privativo. Essa condição privativa não é
irreversível, mas, ao mesmo tempo, é insuperável, porque concerne à própria natureza retraída
e evasiva do seer, sua dimensão suspensiva (epocal) enquanto acontecimento apropriativo. Ou
seja, para que a verdade possa ocorrer, sempre historicamente, como evento de des-
velamento, deve haver, como correlato permanente, a retração, o encobrimento do seer. Per-
cebe-se o recorrente antagonismo heideggeriano da copertença do velamento-desvelamento
(aletheia e lethe), um termo não podendo subsistir sem o outro, o que significa afirmar a ex-
periência do velado no seu desvelamento. O desvelado não elide o velamento originário, co-
mo a clareira não suprime a escuridão que a ronda, sendo uma fogueira na florestaque alcança
a luminosidade de uma senda, ressaltando, pelo contraste, o caráter obscuro que a cerca. O
verdadeiro é marcado por uma originária relação com a não verdade, como a luz traz consigo
a experiência complementar do obscurecimento prévio e constitutivo. Por isso, a verdade é
pensada, por Heidegger, como clareira (Lichtung). Explicao filósofo essa irredutível contrapo-
sição:
O que então os gregos chamavam de alethes (sem-retraimento, verdade)? Não o
enunciado, não a proposição e muito menos o conhecimento, mas o ente ele mesmo,
a totalidade que forma a natureza, a obra dos homens e a operação de deus. Desde
que Aristóteles diz que, na filosofia, trata-se peri tes aletheias, ‘da verdade’, ele não
quer dizer com isso que a filosofia deveria produzir proposições corretas e válidas,
mas ele quer dizer: a filosofia busca o ente no seu sem-retraimento enquanto ente.
Por consequência, o ente deve estar antecipada e simultaneamente experimentado
em seu retraimento – o ente como algo que se põe em retraimento. Essa experiência
fundamental do retraimento do ente é manifestamente o solo sobre o qual nasce a
pesquisa do que não está em retraimento. É somente quando o ente é em primeiro
lugar experimentado em seu retraimento e no movimento de se retrair, quando o re-
traimento do ente abraça o homem e, por inteiro, de cima para baixo, o oprime, so-
mente então que o homem pode e deve se colocar no movimento de arrebatar o ente
para fora desse retraimento, para colocá-lo na abertura sem retraimento, o que é,
também, instalar-se a si mesmo no ente assim liberado do retraimento.684

Segundo esse significado, que Heidegger qualifica como “fundamental” e “originá-


rio”, a verdade não é um predicado universal do sujeito de uma assertiva. É uma característica
do ente: o ente verdadeiro, desvelado é o ente que se mostra na sua essência, naquilo que é,

684
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. pp. 29-30 (§2).
261

por aquilo que é. Os testemunhos filosóficos com os quais Heidegger pretende fundamentar
essa sua hipótese são fragmentos poéticos de Parmênides e aforismos de Heráclito. Mas antes
que se censure o caráter críptico desses fragmentos, a sua forma lacônica corresponde apro-
priadamente à natureza sempre parcial da verdade desvelada, que nunca se desencobre por
inteiro, mas que sempre re-vela e reencobre ao des-cobrir. A natureza poética e fragmentária
dos textos originários mobilizados por Heidegger conserva o seu liame originário com a des-
velamento que é a essência da verdade, por isso o dizer veritativo não pode nunca ser a expli-
citação total e definitiva, mas sempre mediante uma fala atravessada e fragmentária, consoan-
te uma intuição provisória, parcial e tateante. Os textos de Heráclito e Parmênides se valem de
símbolos mesmo quando preservados na íntegra. Isso é importante para não se objetar que o
caráter fragmentário deles advém de um fator extrínseco à sua composição, às vicissitudes da
preservação história dos documentos que os contêm.
Nesse contexto, Heidegger analisa a alegoria da caverna de Platão como locus privile-
giado da compreensão da transição da noção originária de verdade como aletheia à noção
derivada e dominante de verdade como adequatio. A forma simbólica da alegoria é o que lhe
confere a possibilidade de registrar a transição entre as duas concepções de verdade. Somente
a imagem possui a elasticidade e a polissemia capaz de expressar um tipo de transição epocal
como essa. Conceito algum, por mais compreensivo e exaustivo que seja, seria capaz de evi-
denciar a verdade como desvelamento, até porque ela se retrai por completo de um conceito
assim limitador, que queira desvelá-la por completo, sem permitir que ela se retraia no movi-
mento mesmo de desencobrimento. Em poucas palavras, a imagem conserva a dinâmica de
abertura da verdade como desvelamento, ao passo que o conceito, ao querer encerrá-la na
definitividade de seus termos unívocos, acaba por neutralizar a ambiguidade do processo veri-
tativo, que se desvela e encobre ao mesmo tempo. Um conceito que se quer unívoco, fecha-se
à abertura inerente ao jogo de claro-escuro da verdade. Ao querer encerrar conceitualmente
um ente qualquer em uma assertiva, no fundo ocorre um empobrecimento essencial do ser
desse ente que se priva de suas possibilidades latentes, retraindo-se em sua abertura ignorada.
Nesse momento, deve-se observar o método exegético de Heidegger, que é o de isolar
a alegoria da caverna do contexto dramático a que ela pertence. De fato, os mitos e as alegori-
as subsistem sem a elucidação alegórica que lhes preenche o sentido. Até porque a explicação
racional de uma imagem sempre permanece aquém dela. A imagem é sempre inesgotável e
prescinde da explicação discursiva que a elucida. É verdade ainda, que, no caso de um diálogo
platônico, a força da imagem resiste ao aparato conceitual e dramático que a cerca, podendo
se falar de certa autonomia da alegoria nos diálogos platônicos: pode-se, por exemplo, intuir o
262

mito escatológico do Górgias, sem a discussão sobre a ética do discurso retórico; ou visuali-
zar a imagem das parelhas aladas do Fedro, sem debater a natureza da alma e do amor, e as-
sim por diante.
Por outro lado, o essencial da alegoria só é compreensível quando articulado no con-
texto argumentativo e dramático a que pertencem e de que servem de elucidação imagética e
analógica. No caso d’A República, a alegoria da caverna só é plenamente inteligível a partir
das duas imagens que lhe são imediatamente anteriores, a do sol e a da linha, assim como a
partir do contexto de definição da filosofia e do filósofo a partir do livro V da República. Ou
seja, é sempre necessário encadear a força didática e intuitiva que a alegoria encerra com o
contexto dramático específico em que está inserida, a fim de compreender a sua inserção na
complexa urdidura do diálogo. Isso porque o tema da alegoria da caverna continua sendo a
justiça, a ação do filósofo-educador que se liberta, ascende à dimensão inteligível da realida-
de, reconhece a fonte promordial e anhipotética de tudo e retorna à pólis, onde vige a retórica,
para libertar-educar outros cidadãos, tornando-os filósofos capazes de transcender o reino
coercitivo das opiniões.
Essa contextualização é um postulado hermenêutico fundamental, irrenunciável desde
que Schleiermacher demonstrou a unidade textual de cada diálogo platônico, a sua coerência
interna, a sua autonomia em relação ao corpus em geral. Ou seja, consoante a noção de círcu-
lo hermenêutico, pode-se provisoriamente isolar um diálogo do conjunto a que ele pertence,
articulando todo e parte, que se iluminam reciprocamente. Do mesmo modo, pode-se separar
uma parte do diálogo para reinseri-lo posteriormente no todo que o elucida e é por ele eluci-
dado.
Mas essa noção hermenêutica não está em jogo para Heidegger, pois sua leitura de
Platão não é esclarecimento hermenêutico ou filológico do sentido imanente de um texto, mas
a escuta meditativa-confrontativa com a voz do seer que ressoa nas palavras fundamentais dos
pensadores decisivos da tradição filosófica. Por isso, Heidegger procede com a propositada
descontextualização de um trecho do diálogo, a alegoria da caverna, considerando a sua fala
de modo autonomizado. Tal como procede na conferência ‘Teoria platônica da verdade’, es-
tudada a seguir, Heidegger justifica aqui o princípio hermenêutico da meditação histórico-
ontológica relacionado à leitura do texto platônico:
Na interpretação que segue, deixaremos de lado deliberadamente o contexto imedia-
to onde aparece a alegoria no diálogo. Além disso nós ficaremos em silêncio em re-
lação a todas as explicações do diálogo como um todo. Para nós, é determinante, e
isso é um traço característico da alegoria da caverna, que essa alegoria possa ser to-
263

mada inteiramente por ela mesma, que nós possamos a extrair do seu contexto sem
diminuir nem alterar o que quer que seja o seu conteúdo e significação. 685

Com a interpretação de verdade como ato de desvelamento do ente – e não do homem


capaz de assertivas corretas -, Heideger se distancia da tradição moderna da ciência que pre-
tende uma verdade exaustiva plasmada num conceito logicamente perfeito, apodítico. A expe-
riência grega originária da verdade é, simultaneamente, o desencobrimento do ser e a sua re-
tração, sendo esta última o retorno do ente ao encobrimento. O fragmento de Heráclito – a
natureza ama esconder-se – exprime exatamente esse movimento. Movimento aqui, para
Heidegger, é o “caminho” que, segundo Parmênides, conduz “para fora dos sentimentos habi-
tuais dos homens”686. Toda experiência da verdade vela, ao mesmo tempo em que desvela.
Conforme a noção grega de amor (philia), a natureza (physis) ama esconder-se, porque, mes-
mo que saia do retraimento, a ele retorna, por amá-lo. Não há modo de expor definitivamente
a verdade da physis, de deixá-la estática no campo descoberto, de descobri-la definitivamente,
conceitualmente e deixá-la exposta para sempre. Há uma ambiguidade fundamental nessa
concepção heideggeriana, mas que não é ambiguidade de Heidegger, mas da própria verdade
como aletheia, tal como vivida pelos pensadores originários e testemunhada nas suas palavras
fundamentais.
Note-se que Heidegger fala sempre em transição, jamais em desenvolvimento ou pro-
gresso, quando compara a insurgência da noção platônica de verdade. Na verdade, o sentido é
o inverso: o que ele percebe é uma decadência da noção originária e mais profunda de verda-
de, uma regressão, um afastamento do modo mais verdadeiro de compreender a verdade. In-
versamente à dimensão progressista do pensamento moderno, que vincula o transcurso tempo-
ral à evolução filosófica, Heidegger acredita que o presente normalmente não tem capacidade
de alcançar a grandeza constante do passado originário.
Com efeito, o passado não passou, mas permanece velado nas possibilidades do pre-
sente que o despreza por ignorância e decadência. Heidegger, na verdade, distingue as ativi-
dades humanas entre essências, em que o surgimento encerra uma grandeza inaudita e incom-
parável, e inessenciais, em que evoluem e se distanciam do passado. Sendo uma atividade
essencial, a filosofia tem em sua origem uma culminância inexistente no seu desenvolvimento
ulterior, que não pode senão ser uma decadência quando comparado com essa origem supre-
ma. Nesse sentido, o começo não deve jamais ser considerado primitivo, obscuro, incerto; ao

685
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 34 (§2).
686
Ibid., pp.30-31 (§2).
264

contrário, é dele que emerge o que de mais vital e profundo existe na filosofia. Explica Hei-
degger:
Em tudo o que é inessencial e sem importância, o começo é o que pode ser superado,
e é superado; no que é inessencial, há, por consequência, o progresso. No que é es-
sencial, ao contrário, e a filosofia faz parte disso, o começo não pode jamais ser su-
perado – não somente ele não é superado, mas ele não pode jamais ser atingido. No
que é essencial, o começo é inacessível, o maior, e é porque nós não compreende-
mos mais nada disso que, entre nós, tudo é assim inteiramente degradado, ridículo,
assim desregrado e pleno de ignorância. Filosofar sem esse começo passa hoje por
uma marca de superioridade. A filosofia obedece a uma lei que lhe é própria; suas
apreciações são outras.687

Como se pode perceber, a transição da verdade como aletheia para a verdade como
correção comporta uma barbarização do surgimento originário da filosofia. A noção derivada
de adequação diz respeito ao juízo, que deve se adequar à coisa visada; a aletheia, por sua
vez, concerne o próprio ente, e não uma fala que lhe é exterior. Aletheia é a verdade do ente,
que se manifesta em seu ser. O inaugural é o maior, o superior, o inatingível. Ao contrário do
que se pode pensar a partir da noção científica e metafísica de um conceito adequado e cor-
reto, o derivado é aproximativo, incerto, parcial; também é contaminado em relação à pureza
originária. É como se a verdade desveladora da aletheia não sofresse nenhuma ingerência
epistemológica do homem que a contempla, mas apenas permitisse que o ente se manifestasse
puramente em seu ser, sendo esse evento independente do homem, à revelia da sua vontade ou
capacidade intelectual de compreendê-lo. Trata-se de duas experiências fundamentais, irredu-
tíveis entre si: a primeira, originária, é um dar-se do ente na sua transparência, seu vir ao des-
coberto; a segunda, derivada, uma concordância entre a mente e a coisa no interior de uma
proposição lógica. A primeira é a verdade do ente; a segunda, verdade do juízo. Esta última só
pode se originar da primeira, que ocorre primeiro quando o ente se faz presente desvelando-se
e pondo-se na abertura que o torna inteligível688.
Ao distinguir claramente essas formas com que a verdade é compreendida na tradição
ocidental, Heidegger não pretende afastá-las por completo, mas perceber exatamente como
elas podem ser pensadas por derivação. Ou seja, como do desvelamento do ente pode ter sur-
gido a correção do juízo. Sem dúvida, trata-se de uma virada (Wendung) epocal, que ocorre
no interior da história da própria verdade, da essenciação do próprio seer que se envia de mo-
dos diferente, configurando uma época histórica diversa no primeiro início da filosofia meta-
física. Mas, como se tem insistido nesta tese, essa história não é produto da ação humana –

687
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 31 (§2).
688
PELUSO, Rosalia. Logica dell’altro. Heidegger e Platone. Napoli: Gianni Editori, 2008. p. 38.
265

não é historiografia -, mas um “evento” que é a mudança essencial da verdade: de desvela-


mento à adequação. E a alegoria da caverna de Platão registra precisamente essa transição, a
mudança da essência da verdade. O não-dito de Platão, contido em toda imagem filosófica
autêntica, permite perceber essa transição, que uma leitura apressada simplesmente ignora. A
verdade é o dar-se do ser, que doa o ente no desvelamento da sua essência sempre retraída. No
texto platônico, porém, essa o processo de transição pode ser observado plenamente, pois ele
conserva o momento anterior e o posterior. Na alegoria, o ser se dá tanto como desvelamento
(aletheia) quanto como adequação (homoiosis). O ser se dá como ser e se dá como modo de
ser de um ente, ou como ente em geral. A história da verdade se inscreve na história do seer.
O modo como se diz a verdade torna-se o modo como se diz o ser. Nesse momento de sua
obra, Heidegger imerge no horizonte do acontecimento apropriativo.

3.4A coerção da liberdade: a verdade das sombras

Neste item, entra-se propriamente na análise da alegoria da caverna, tal como desen-
volvida por Heidegger no curso Da essência da verdade. Heidegger divide a alegoria em qua-
tro estágios: 1. o âmbito das sombras, 2. o âmbito do fogo, 3. O âmbito da luz e 4. o retorno às
sombras. O que mais importa, para Heidegger, não são esses estágios isoladamente considera-
dos, mas as transições entre eles. São essas passagens que registram a dinâmica da educação e
da liberdade humana e que são a consecução da filosofia na existência humana. A essência da
verdade e a essência da liberdade humana são correlatas; o ser-aí humano não conquista a
liberdade senão atravessando etapas gradativas de zonas mais ou menos iluminadas pela ver-
dade. A educação, por sua vez, é exatamente o processo que liberta o homem das trevas da
ignorância ontológica, apresentando-lhe a esfera iluminada dos entes desvelados, a esfera da
verdade que se desvela ao seu olhar “correto”, “corrigido”, “direcionado” e “convertido” ao
espaço luminoso do ser. Essa “correção” é a “verificação”, a insurgência da verdade, que li-
berta o homem das sombras da caverna, pelo reconhecimento do caráter obscuro dos entes
visados no seu interior, consoante o horizonte cerrado em que se encontra. É necessário, en-
tão, libertar-se da caverna para aceder ao seu exterior, em que o horizonte luminoso franqueia
entes desvelados pela luz do sol, análogo estrutural da ideia do bem. Ou seja, a primeira noção
que Heidegger articula na alegoria da caverna é a relação entre verdade e liberdade, sendo que
a educação filosófica é o vinculo que as une, pois é a educação filosófica que conduz o ho-
mem à liberdade, à libertação da caverna.
266

Como se pode notar nessa breve caracterização, a alegoria da caverna articula o pro-
blema ontológico ao epistemológico a partir da questão da liberdade e da educação humana. A
transição da noção de verdade como fenômeno de desvelamento do ente para a noção de ver-
dade como correção do pensamento-olhar é central nesse contexto. Além disso, o modo como
o homem transita por essas etapas, valendo-se da educação libertadora, autenticamente filosó-
fica, desempenha papel central. A liberdade só se perfaz quando o libertado torna-se um liber-
tador de outros prisioneiros, quer dizer, quando o filósofo torna-se educador. O que está em
questão na alegoria da caverna é a possibilidade de o homem ter um mundo e existir ontologi-
camente, isto é, como um ser (ser-aí) para o qual o seu próprio ser torna-se um assunto rele-
vante, existencialmente decisivo. Esse aspecto liga o curso Da essência da verdade direta-
mente à problemática da analítica existencial de Ser e tempo, embora o curso enfatize que a
verdade como aletheia não dependa do homem, pois não é uma verdade subjetiva ou episte-
mológica, mas um desvelamento da essência do próprio ser. Para Heidegger, “ser-homem
significa também, entre outras coisas: manter-se no que se desvela, estar entorno ao desvela-
do”689.
O homem está sempre, desde sua infância, imerso no verdadeiro, no desvelado (to ale-
thes). Esse é um aspecto que singulariza a interpretação heideggeriana. Segundo ela, o ser-aí
sempre tem sempre uma concepção de verdade à sua frente, sempre vive a partir dela. Expli-
cando o modo veritativo do primeiro estágio da alegoria - em que os prisioneiros estão detidos
no interior da caverna, com as cabeças e pernas acorrentadas e virados para os reflexos proje-
tados no fundo escuro da caverna -, Heidegger afirma que, mesmo nessa situação, o homem é
posto diante do desvelado, do não-escondido, do sem-retraimento (to alethes). Heidegger ob-
serva que Platão não usa a verdade como adjetivo, como qualidade de algo, mas como subs-
tantivo: “a verdade”, “o não-retraído”. O que é, a cada momento, desvelado, desencoberto, é
outra questão. O homem está sempre no verdadeiro, na verdade. Para Heidegger, ser-homem
significa ter uma relação com o desvelado, mesmo na situação insólita e rebaixada da caver-
na690.
O primeiro estágio da caverna é, portanto, uma ilustração do ser-aí em seu cotidiano
pré-teórico, habituado e enraizado no mundo das ocupações triviais; o ser-aí sente-se em casa
nesse mundo que lhe solicita respostas sedimentadas e socialmente óbvias. Os prisioneiros
tomam como medida de verdade e realidade o mundo circundante imediato; eles desconhe-

689
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.43 (§3).
690
Ibidem.
267

cem outras dimensões da realidade, não reconhecem que estão presos, não imaginam a fonte
de luz de que emanam os reflexos de sombra que os absorvem por completo. Em poucas pala-
vras, não sabem que estão diante de sombras, mas as tomam por realidade e, principalmente,
por verdadeiras (desveladas). As sombras lhes são o desvelado, o aparente, o desencoberto: a
única coisa que têm diante da vista. O ser-aí sempre tem algo em vista, diante de si, que lhe
abre o mundo e o enraíza no solo da linguagem corrente. Diz Heidegger no texto ‘A teoria
platônica da verdade’, que serve de complemento e desenvolvimento sintético do curso anali-
sado, Da essência da verdade:
O que os circunda ali [na caverna] e o que lhes con-cerne é ‘o real’, isto é, o ente.
Nessa morada em forma de caverna, eles se sentem ‘no mundo’ e ‘em casa’ e aqui
encontram o elemento confiável. [...] no interior da caverna se está sob a posse plena
e inequívoca do real. O homem da caverna, ávido de sua ‘visão’, nem sequer suspei-
ta da possibilidade de que o seu real seja apenas algo com caráter de sombra.691

Como Platão diz claramente na alegoria, os prisioneiros jamais viram nada além de
sombras projetadas, de modo que as consideram necessariamente o desvelado, o verdadeiro
(Rep. 515c). Quando libertado e obrigado a fitar as coisas cuja sombra antes contemplava de
modo exclusivo, o recém-liberto as considera menos verdadeiras do que os reflexos, com os
quais os seus olhos se habituaram ao longo da vida inteira. O processo todo é marcado por
dores e gradativa adaptação do olhar; cada passo de conversão implica redimensionar o está-
gio anterior, a princípio considerado mais verdadeiro, para depois ser rebaixado numa nova
hierarquia que se impõe progressivamente. A vontade do prisioneiro libertado é, assim que
possível, voltar ao estágio anterior, em que seus olhos viam com mais facilidade coisas que
lhes pareciam mais claras, mais fáceis de serem divisadas. É por causa dessa vontade incoer-
cível de escapar de um processo árduo e aparentemente arbitrário, “de voltar-se, fugindo (de
volta), para aquilo que as suas forças conseguem ver” 692, que Platão reforça o caráter obriga-
tório e violento dessa dinâmica pedagógico-libertadora. Em nenhum momento é perguntado
ao prisioneiro se ele deseja libertar-se, se é da sua vontade passar por um processo gradativo
de superação de estágios cognitivos pelo reconhecimento de dimensões mais verdadeiras,
mais iluminadas de ente.
Do mesmo modo, quando o prisioneiro voltar à caverna, depois de ter reconhecido a
fonte de tudo, o sol, sua visão novamente estaria inapta a contemplar as sombras refletidas

691
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 226-227. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
692
PLATÃO, A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. revisada. Belém: Ed.Ufpa, 2000. pp. 320-321
(Livro VII, 515e).
268

pela luz do fogo, agora totalmente obscurecidas e menos verdadeiras do que os objetos ilumi-
nados pela luz do sol. Com efeito, o prisioneiro que retorna à caverna é alvo de zombaria,
considerado como tendo a visão estragada, incapaz de reconhecer as coisas como elas são.
Toda a alegoria é marcada pela inversão de olhares e comparação de estágios diferen-
tes de saber e de ser, em uma palavra, de verdade na sua dupla valência, epistemológica e
ontológica. Na direção ascendente, o passo superior é sempre considerado menos vedadeiro,
uma vez que se trata da libertação de um prisioneiro cujo olhar ainda não foi “refiticado”,
“convertido” à luz superior dos objetos efetivamente mais iluminados. No caminho ascenden-
te, o prisioneiro ignora os estados superiores, dos quais nunca tinha tomado conhecimento.
Tudo lhe é novidade e somente a muito custo ele consegue superar, “ser curado” da sua ce-
gueira, que corresponde ao seu estado educacional.
Por outro lado, o caminho de volta, de descida(katabasis), caracteriza-se pela dificul-
dade de ver o que antes lhe parecia claro e verdadeiro, exatamente por ter o homem livre al-
cançado um grau muito mais transparente e real de contemplação, contemplação de coisas
mais verdadeiras e translúcidas. Eis como Heidegger ressalta, ainda no texto ‘A teoria platô-
nica da verdade’, esses “processos” de transição, do “’real’ habitual e mais próximo” à luz do
sol das ideias, e de volta às sombras cavernosas:
As transições da caverna para a luz do dia e daí de volta para a caverna exigem uma
readaptação da vista, do escuro para a claridade e da claridade para o escuro. A cada
vez, os olhos são aí perturbados, e, em verdade, por razões sempre opostas [...]

Isto significa o seguinte: a partir de um não-saber quase não percebido, o homem


pode chegar até lá onde o ente se lhe mostra de maneira mais essencial, lá onde, de
imediato, ele não está amadurecido o suficiente para o essencial; ou o homem tam-
bém pode decair da atitude de um saber essencial, descendendo para o âmbito no
qual predomina a presumida realidade, sem estar em condições de reconhecer como
o real o que aqui é corriqueiro e usual.693

O movimento descendente é marcado pela consciência do homem livre,que se sente,


paradoxalmente, obrigado a retornar à caverna. Dessa vez, ele sabe que descende, que rebaixa
o seu olhar, pois já contemplou uma área muito mais luminosa, desvelada, do ente, e isso lhe
causa extremo desconforto, de modo que, se pudesse escolher, não retornaria à caverna. De
fato, ele só retorna à caverna porque é obrigado. Aqui, percebe-se, mais uma vez, o elemento
coercitivo do processo pedagógico: tanto no sentido ascendente, como no sentido descenden-
te, o homem não quer mudar o seu estágio cognitivo. Há uma espécie de força gravitacional
de inércia que o impele a permanecer onde está. A aderência do estágio inicial se dá por igno-
rância pura e simples da existência de dimensões superiores da realidade. Quando conquista o

693
HEIDEGGER, M. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 228. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
269

estágio elevado, fora da caverna, o filósofo não quer rebaixar-se e conviver com cegos que
não o entendem, zombam dele e que desejam matá-lo por constituir uma ameaça à sedimenta-
ção do seu mundo, da estabilidade da linguagem e a estabilidade das imagens projetadas. O
filósofo entre filodóxos - o dialético entre retóricos, o clarividente entre os cegos, o cão entre
lobos – constitui uma afronta que pode lhe custar a vida. Note-se aqui a contraposição entre o
filósofo singular e a pluralidade, os muitos que o oprimem por não entendê-lo, por sentirem-
se ameaçados por ele.
Naturalmente, toda a alegoria é uma representação imagética da existência das ideias,
“o propriamente ente do ente”, “o aspecto”, não como mera “aparência exterior”, mas como
aquilo que “vem à tona”, que se “apresenta”, que se faz presente, que se “presentifica”. Diz
Heidegger: “Postando-se em seu ‘aspecto’ [eidos ou idea], o próprio ente se mostra.”694 É só a
partir dessa outra dimensão da realidade e da verdade, a metafísica-eidética, que se pode re-
conhecer o caráter derivado e secundário dos entes sensíveis. Sem a apreensão da ideia, o ente
sensível sempre se apresentará como primordial, como primeiro, como único. Quer dizer, um
filósofo não pode simplesmente afirmar a um prisioneiro da caverna, cujo conhecimento ex-
clusivo é o desvelado pelas sombras, que tudo aquilo que ele vê não passa de sombras, porque
o prisioneiro nunca apreendeu uma ideia, sequer sabe que ela existe. Daí a dominância desse
estado primeiro em que todos os homens se encontram desde que nascem. Explica Heidegger:
Segundo Platão, se o homem não tivesse em vista essas ideias, isto é, o respectivo
‘aspecto’ das coisas, seres vivos, homens, número, deuses, então jamais conseguiria
apreender isto ou aquilo como uma casa, como uma árvore, como um deus. É muito
comum o homem imaginar que está vendo diretamente esta casa e aquela árvore e,
assim, cada ente. De imediato e na maioria das vezes, o homem nem desconfia que
tudo o que para ele vale corriqueiramente como ‘o real’, ele o vê sempre apenas sob
a luz das ‘ideias’. O que se presume ser a única coisa real, o real de modo próprio, o
imediatamente visível, audível, apreensível, calculável, segundo Platão, continua
sendo sempre apenas o assombreamento da ideia, e, por conseguinte, uma sombra.
Isto, que lhe é o mais próximo e que possui, no entanto, o caráter de sombra, man-
tém o homem cotidianamente em um cativeiro. Ele vive em uma prisão, deixando
atrás de si todas as ‘ideias’. E visto que de modo algum reconhece essa prisão como
tal, considera o âmbito cotidiano sob a abóbada celeste como o espaço de jogo da
experiência e do julgamento, o único que fornece uma medida para todas as coisas e
relações e o único a normatizar seu processo de preparação e estabelecimento.695

O que Heidegger ressalta nessa passagem importante é a autossuficiência da caverna.


Nela, os prisioneiros não se perguntam pelo grau de desvelamento dos entes que lhes são
apresentados cotidianamente. Eles não sentem falta de nada, não sabem de seu estado cativo.
Como os prisioneiros não têm qualquer relação com o fogo atrás deles – pelas correias nas

694
HEIDEGGER, M. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 228. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 226-250.
695
Ibid., p. 226-250.
270

pernas e nos pescoços que os direcionam ao fundo projetado da caverna -, eles não estabele-
cem a relação de original e cópia, sendo essa relação o fundamento do paradigma eidético que
estrutura o pensamento metafísico de Platão. Com efeito, no curso Da essência da verdade,
Heidegger observa que os prisioneiros não tem nenhuma relação com a luz enquanto tal, sen-
do, portanto, incapazes de discernir entre luz e escuridão, porque não estabeleceram a diferen-
ça entre fogo e claridade. O fogo é a fonte da luz, o que fornece a claridade, embora com ela
não se confunda (do mesmo modo como a ideia do bem não se confunde com a essência que
ela confere às ideias)696. Por isso, o ser das sombras não é e não pode ser questionado por
eles.
Ou seja, a verdade das sombras é a abertura prévia do modo como os entes podem ser
visualizados e apreendidos pelos homens acorrentados. Na imagem de Platão, Heidegger intui
a verdade como clareira (Lichtung), como a abertura ontológica que permite a mostração dos
entes em geral, sendo que a verdade dos entes (verdade ôntica) depende da verdade do ser
(verdade ontológica). Mas a noção de clareira, com que Heidegger desenvolve ulteriormente
a especulação sobre a essência da verdade, retrocede ainda aquém da verdade ontológica do
ser, em direção a um horizonte ainda mais original, que é a abertura “onde o ser se dá o ho-
mem o pode receber”, “onde o ser se abriga e o homem pode velar por ele” 697. Ou seja, a es-
sência da aletheia é a clareira (Lichtung), que é a abertura prévia que permite que ser e ser-aí
sejam e se reúnam.
Na alegoria da caverna, os prisioneiros se encontram imersos no desvelado, mas são
incapazes de ir ao encontro da essência dos entes. Tomam espontânea e irrefletidamente o
desvelado como o ente (ta onta) e isso lhes basta; vivem a funcionalidade e a disponibilidade
das coisas cotidianas, no interior da linguagem comum por todos compartilhada e vivida. Não
carecem de qualquer indagação que os faça transcender essa vivência cotidiana, essa experi-
ência comum e pré-concebida, pré-determinada.
Para Heidegger, a liberdade é sempre ontológica; o cativeiro é uma relação degrada
com o ser, uma relação que não o alcança, que se restringe ao ente e o toma como totalidade.
Para usar a terminologia de Ser e tempo, os prisioneiros vivem num mundo significativo e
inteligível, mas nunca se perguntam o quetorna esse mundo significativo e inteligível; eles
não se questionam por que as coisas fazem sentido para eles do modo como o fazem. Eles

696
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.44 (§3).
697
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.101.
271

estão totalmente inseridos num mundo que lhes parece uma totalidade perfeita, de tal modo
que são incapazes de questioná-la ou pensá-la como parcial ou redutora. Vivem num mundo
inteiramente “pré-ontológico”, pois o ser dos entes que os cercam não é jamais questionado.
Eles convivem com uma pré-compreensão de ser sem se dar conta disso, porque nunca ques-
tionam o ser dos entes, muito menos o ser em si mesmo. Se os prisioneiros desconhecem a
existência do fogo, como poderiam intuir a existência do sol? Não há nada no estado dos pri-
sioneiros que lhes permita reconhecer o caráter derivado dos entes que se lhe desvelam como
sombras; toda tentativa de convencê-los do contrário é considerada uma desordem mental.
Como diz Heidegger, não há nada dentro da caverna “que fale de adequação, de retificação,
nem de acordo.”698
Esse horizonte circunscrito e restringente só é rompido quando, de repente, um prisio-
neiro é libertado. Algo acontece com o homem, diz Heidegger: o que é admite gradações, a
realidade é aprofundada, redimensionada. A mudança de estado do homem, concernente à sua
liberdade, diz respeito principalmente à verdade que lhe é desvelada, à abertura que lhe de-
sencobre os entes cujas sombras antes ele contemplava. Quando desacorrentado e virado para
trás, em direção ao fogo, o prisioneiro se acanha, sofre com a luz do fogo que lhe turva a vi-
são e deseja voltar ao lugar originário, pois seus olhos estão acostumados com aquele nível de
luz, é dizer, aquele grau de desvelamento.
Nada obstante, agora a realidade se lhe apresenta de modo dual, há as sombras e há os
entes sensíveis, cada qual com um nível claramente distinto de realidade e de verdade, com
uma relação própria com a luz que as tornam visíveis, que as posicionam no descoberto. Hei-
degger nota que a totalidade se cinde naquilo que é “mais ente” e naquilo que é “menos ente”.
A proximidade ou o distanciamento em relação ao ente altera o próprio ente, que se desvela
mais ou menos, a depender de onde esteja o ser-aí e para onde ele olha. Agora, nesse segundo
estágio, em que desponta a ameaçadora liberdade ontológica, já se pode falar em retificação
do olhar, do obscuro e encoberto ao mais luminoso e desvelado. Em outras palavras, há o
mais e menos verdadeiro, mais ou menos desvelado (alethes). A transformação na essência da
verdade se baseia na relação de dependência e derivação da verdade-adequação à verdade-
desvelamento. Esse é o núcleo da interpretação heideggeriana sobre a dupla essência da ver-
dade:
a ‘retificação’ entra em cena, e na verdade sob a mesma forma comparativa [como a
verdade], no seio de uma escala: ela comporta graus. A retificação da visão e da
consideração das coisas, e por consequência da determinação e da enunciação, se

698
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.48 (§3).
272

funda sobre o nosso modo de estar a cada vez voltado ao ente e perto dele, ou seja
depende da maneira com que, a cada vez, o ente se põe a descoberto. A verdade co-
mo retificação se funda sobre a verdade como abertura sem retraimento. Nós vemos
agora, ainda que grosseiramente, surgir pela primeira vez uma conexão entre as duas
formas essenciais (os dois conceitos de verdade) que nós simplesmente justapomos e
identificamos separadamente no começo. A verdade como retificação do enunciado
não é absolutamente possível sem a verdade como des-velamento do ente. Pois aqui-
lo sobre o que o enunciado deve se adequar para poder ser correto já deve estar pre-
viamente desvelado. [...] É isso que significa esta frase simples e límpida de Platão:
‘aquele que está voltado ao que detém mais ente vê e fala de modo mais correto’. 699

Com base nesse importante excerto de Heidegger, percebem-se três dimensões de


transformação: 1. na liberdade do homem, em cuja existência se dá o não-velamento veritati-
vo (nível existencial); 2. nos entes desvelados (nível ontológico) e 3. no modo de conhecê-los
(nível epistemológico). No entanto, o tipo de relação do ser-livre do homem, a visão na luz e
o grau de verdade do ente só serão percebidos no próximo estágio da alegoria, que trata da
liberação propriamente dita do homem à luz original. Nesse momento, Heidegger afirma ape-
nas que o des-velamento se dá e solicita a liberdade do homem para enfrentá-lo, para adaptar-
se ao seu novo modo, mais luminoso, de apresentação. A liberdade do homem é necessária
para a consecução da verdade porque, de imediato, o homem a reprime e a nega, demonstran-
do a sua incapacidade de diferenciar as sombras das coisas sensíveis das quais as sombras
provêm. Esse é um passo decisivo da interpretação heideggeriana, passo que marcará a dife-
rença aletética e metafísica entre o segundo e o terceiro estágio.
O homem, ele mesmo, não promove a diferenciação aletética entre os entes e as som-
bras, mas, num primeiro momento, se depara violentamente com essa diferença. Nessa etapa,
ele não percebe e chega a negar a diferença, recusando-se a contemplá-la, exatamente porque
seus olhos não são capazes de divisá-la apropriadamente. Heidegger ressalta que o homem
recém-libertado não é capaz de suportar a diferença metafísica que se instaura sob os seus
olhos porque ele está inserido no acontecimento que a origina, que é propriamente o aconte-
cimento da verdade: “Mas a diferença tem lugar na efetuação da diferenciação. Efetuar a dife-
renciação, isso seria ser-homem, existir.”700 Ou seja, a verdade não é um ato cognitivo huma-
no propriamente dito, mas a exposição da existência no campo do desvelado, a capacidade de
resistir à clareira que num primeiro momento enceguece, capacidade de permanecer no hori-
zonte da distinção, presenciando o modo com a verdade redimensiona os entes em sombras a
partir da presentificação dos entes mais reais, mais verdadeiros. Só então, depois de presenci-
ar esse acontecimento de desvelamento, o homem pode corrigir seu olhar, adequar seu juízo

699
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.53 (§4).
700
Ibid., p. 56 (§4).
273

ao ente mais verdadeiro, conceituando e analisando as estatuetas (entes sensíveis) e não as


sombras projetas no fundo da caverna. Mas isso não se dá no segundo estágio, pois, libertado
à revelia da sua vontade, o homem não participa dessa sua primeira libertação, não a deseja –
ele é como que arrastado e coagido a desprender-se. Ao contrário, se puder escolher prefere
retornar ao estado anterior de cárcere, de visão das sombras. Heidegger diz que “ele não quer
participar da sua própria libertação”, pois:
A retirada das correntes, por consequência, não é uma libertação efetiva do homem.
Essa retirada permanece exterior, ela não alcança o homem no seu Si-mesmo mais
próprio. Somente o ambiente muda sem que seu estado íntimo, sua vontade sejam
transformados. Depois de ter sido libertado, o prisioneiro tem realmente uma vonta-
de, mas é a de retornar ao cárcere. Desejando isso, ele não quer ver: ele não quer
participar da sua própria libertação. Ele se furta e recua diante da intimação que lhe
ordena de abandonar por completo sua situação anterior. Ele está, aliás, muito longe
de entender que o homem não é senão aquilo que tem a força de se intimar a ele
mesmo, e não é senão por isso que ele tem essa força.

O segundo estado se cumpre com a frustração dessa libertação. A libertação é encur-


tada porque aquele a quem ela se destina não a compreende. A libertação não pode
ser genuína senão quando o libertado se liberta a si mesmo, ou seja se ele consegue
conquistá-la a si mesmo e consegue preservar-se no fundo da sua essência.701

E por que o homem reluta em afirmar a liberdade de enfrentar a verdade? Por que he-
sita e quer voltar para a situação anterior? Exatamente porque a verdade ainda não perfez o
arco que atravessa a liberdade humana e a orienta ao âmbito do desvelamento pleno. Por en-
quanto, “ele é simplesmente colocado diante das coisas que cintilam na luz, longe do que an-
tes ele via.”702 Essas novas coisas são imediatamente comparadas às coisas que ele via anteri-
ormente. Essa alteração provoca apenas uma distração, pois o que lhe é mostrado não adquire
nenhuma determinação ou clareza. Por não ter protagonizado a sua libertação, o homem ainda
não pode ser considerado efetivamente livre, ele não reconhece o que realmente o acorrenta-
va. Sem reconhecimento da patologia, não se pode apreciar corretamente a doença, muito
menos prescrever o remédio. O que está em jogo, para Heidegger, é a descrição do estado
decaído do ser-aí, acomodado aos grilhões da caverna. Esse cárcere é, a um só tempo, ontoló-
gico e social. Na caverna que o aprisiona, o prisioneiro não supõe o que pode lhe acontecer
quando contemplar a luz, seus olhos não ardem diante da escuridão a que está submetido. Em
meio às sombras, a realidade circundante não lhe demanda grandes esforços, tudo acontece
por si só, numa maré opressiva de cotidianidade. Como diz Heidegger, “nos grilhões, ele en-
contra o seu solo familiar, diante das coisas que ocorrem por si mesmas, e que compõem o

701
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.55 (§4).
702
Ibidem.
274

conjunto das ‘coisas correntes’” 703. Essas coisas correntes não lhe causam qualquer descon-
forto, não provocam qualquer contrariedade ou apresentam qualquer contradição: sobre elas,
todo o mundo está de acordo. “O critério essencial para determinar o que é mais ou menos
descoberto é a preservação da tranquilidade [da imperturbabilidade] das ocupações cotidianas,
ao abrigo de toda reflexão, de toda exigência e todo comando.”704
Como observa Ralkowski705, a noção de liberdade ínsita à imagem da libertação do
prisioneiro da caverna remete à discussão sobre a autenticidade, central em Ser e tempo, sobre
a tendência do ser-aí de recusar a sua responsabilidade de escolher seu futuro, ou seja, de as-
sumir a responsabilidade que lhe é própria, de decidir quem ele pode ser, a partir das possibi-
lidades que lhe descortinam o horizonte em que está inserido 706. Ao contrário, a inclinação
decadente – decadente do ponto de vista ontológico, não meramente social ou cultural -, dizia-
se, essa inclinação ontologicamente decadente do ser-aí corresponde à sua preferência de dei-
xar-se absorver no mundo das preocupações convencionais, evidenciadas principalmente na
linguagem desgastada do cotidiano, o falatório que circunscreve as suas possibilidades, como
refletido no item 3.2., quando se tratou do velamento do logos cotidiano no curso sobre o diá-
logo O Sofista.
No âmbito do curso Da essência da verdade, essa decadência tem seu sentido alargado
e é ainda mais decisiva, pois ela obstrui a efetivação inicial da verdade em sua plenitude. A
diferença aletética entre as sombras e os entes sensíveis apenas se anuncia, mas não se efeti-
va, porque não encontra a correlata afirmação da liberdade humana capaz de acolhê-la. Ao
contrário, o prisioneiro é afetado pela violência do fenômeno da verdade que lhe arde os olhos
e deseja recuar ao seu estado anterior, impedindo que a verdade reluza plenamente, ou seja,
encontre seu solo epistemológico. Mais uma vez, percebe-se a conexão veritativa de ente des-
velado, conhecimento verdadeiro e liberdade do ser-aí.
Em relação a Ser e tempo, a decisão fundamental não é mais entre o que o próprio ser-
aí faz e o que eles fazem (o que a gente, impessoalmente, comumentefaz). Agora, no curso Da
essência da verdade, a decisão é entre expor-se ao mais desvelado ou recuar ao menos desve-

703
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.54 (§4).
704
Ibidem.
705
RALKOWSKI, M. Heidegger’s platonism.Londres-Nova Iorque: Continuum, 2009.p. 68.
706
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2ª edição. Tradução revisada e apresentação de S.C.Schuback. Petró-
polis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. p. 241 (§38).
275

lado. De todo modo, como nota Ralkowski707, há um claro paralelismo entre essas escolhas
fundamentais: ambas enraízam-se na familiaridade com um mundo sedimentado e dependem
de uma imersão do homem em si mesmo, na radicalidade de suas possibilidades, no reconhe-
cimento de seu poder-ser. Ambas implicam uma ruptura com as atividades normais, social-
mente aceitas e culturalmente cristalizadas. Nos dois casos, a resistência à liberdade é com-
preensível pela “enfermidade” que caracteriza o estado originário de decadência, sendo a li-
bertação autêntica uma espécie de cura.
Por enquanto, a libertação é uma forma de coerção, o prisioneiro não a interiorizou,
não a assumiu como sua determinação mais própria e essencial, não redirecionou a sua visão,
não se converteu à fonte de luz. Ou seja, o prisioneiro não exerceu a capacidade de liberdade e
verdade que caracteriza essencialmente a sua ek-sistência, tal como exposto de forma lapidar
no texto ‘A essência da verdade’, comentado acima no item 1.4. O sucesso da libertação só se
dá quando o prisioneiro se expõe, ele mesmo, à luz do desvelamento e enfrenta a claridade da
verdade.

3.5A consecução filosófica da liberdade humana

O item anterior tratou dos dois primeiros estágios em que Heidegger divide a sua aná-
lise da alegoria platônica da caverna. Os títulos das partes e dos parágrafos do curso Da es-
sência da verdade estudados até aqui servem de recapitulação dos tópicos tratados: A. O pri-
meiro estágio (514a2 - 515c3): a situação do homem na caverna subterrânea, §3. O que é des-
velado na caverna: as sombras que se mostram aos prisioneiros; B. O segundo estágio (515c4
– 515e5): uma ‘libertação’ do homem no interior da caverna, §4. Novos traços da aletheiare-
velados pelo fracasso da tentativa de libertação. O título desse último parágrafo – que registra
o insucesso e a insuficiência da primeira forma de libertação - é particularmente importante
para o presente item, pois é somente nesse terceiro estágio que se dá a libertação propriamente
ditado homem à luz originária do sol (ideia do bem). Diferente da primeira forma, extrínseca
de liberdade, a liberdade autêntica conduz o homem para fora da caverna, onde ele pode con-
templar a fonte verdadeira de toda luz, o aberto (das Offene) da clareira, em que o ser se des-
vela (aletheia).
Para Heidegger, a essência do homem é a existência (Ex-istenz), o que significa sair de
si em direção à verdade. Entretanto, como há gradações de desvelamento veritativo, há níveis

707
RALKOWSKI, M. Heidegger’s platonism. Londres-Nova Iorque: Continuum, 2009. pp. 68.-69.
276

de liberdade com que o ser-aí percorre do menos ao mais descoberto. Ser-livre é um percurso
de libertação, um movimento direcionado à luz da inteligibilidade - ao fogo, num primeiro
momento -, em seguida para além dele – para a luz do dia. O escopo é sempre os entes mais
desvelados, que são também mais entes, ou seja, entes dotados de mais ser por estarem mais
iluminados. São entes ontologicamente superiores, dotados de mais substância porque mais
desvelados. Nesse momento, trata-se de uma “libertação genuína”, que liberta o prisioneiro da
ditadura do impessoal e das categorias reificantes de seu horizonte, além de permitir o discer-
nimento do caráter derivado das sombras, isto é, de considerá-las como sombras, como aspec-
tos menos desvelados da realidade, revelações parciais do que real e efetivamente é.
Essa libertação autêntica se dá quando o prisioneiro é arrastado, súbita e violentamen-
te, da caverna até o seu exterior, por uma “rampa rude e empinada” (Rep. 515e). Quando atin-
ge o exterior da caverna, não sem intensa dor – mais ainda do que sofrera na primeira liberta-
ção -, o prisioneiro passa por uma “lenta familiarização”, nem tanto com as coisas, mas com a
iluminação e com a luz mesma. Do mesmo modo como quando se voltou ao fogo pela primei-
ra vez, acostumando-se gradativamente à luz que dele emana, nesse momento o prisioneiro
custa ainda mais a habituar-se ao clarão do sol, precisando de bastante tempo para ver as coi-
sas ainda mais desveladas e intensamente iluminadas. Após essa longa habituação que lhe
franqueia um novo ponto de referência e “morada”, o libertado reconhece a prioridade e a
superioridade da região em que se encontra e não deseja retornar à caverna - reino do ilusório
e da opinião infundada. A liberdade autêntica compromete a existência como um todo, de-
manda coragem e perseverança para ultrapassar todos os passos da subida íngreme e farpada;
a verdadeira libertação não permite o desvio de qualquer etapa – o que corresponderá, analo-
gicamente, a formação integral nas ciências matemáticas (embora esse tema seja mencionado
apenas de passagem no curso, que não aprofunda a questão da formação científica propria-
mente dita). Heidegger enfatizaa necessidade da virtude da coragem de enfrentar cada etapa
da subida, assim como de resistir à dor que a luz abundante causa.
A interpretação de Heidegger dessa passagem crucial do diálogo concerne à liberdade
autêntica, que é não só uma liberdade da sedimentação e da falsa evidência da inteligibilidade
cotidiana da caverna; mas é uma liberdade que se expõe à fonte primordial da luz, o sol – fi-
lho-análogo da ideia do bem -, que desvela ao prisioneiro o seu caráter de pode ser, ou seja,
revela-lhe que ele é o seu poder-ser, seu campo de possibilidade. O caráter de poder-ser que
caracteriza essencialmente o ser-aí humano não é reconhecido pelo horizonte restringente e
encurtado pela linguagem da caverna. Do mesmo modo, a ideia do bem, analogicamente, o
sol, permite que os entes sejam desencobertos, sendo aquilo que são. Isso significa que o ser-
277

aí se desvencilhardas cristalizações impessoais da caverna, rompendo com a dominância “me-


tafísica” da compreensão corriqueira do falatório. Agora, a liberdade é redimensionada, de
negativa passa a ser positiva. Mas o que isso significa?
A primeira libertação, que caracteriza o segundo estágio divisado por Heidegger, é
marcada pelo desvencilhar-se dos grilhões, o que pressupõe um estado prévio de avassala-
mento, de dependência a alguma coisa. Essa é a essência da liberdade negativa para Heide-
gger, não estar preso a algo, a ausência de qualquer vínculo. Ora, não estar vinculado a nada
gera incerteza; o homem não se encontra a si mesmo, se sente perdido, desnorteado. É exata-
mente esse estado de falta de apoio e direção que leva o prisioneiro a querer retornar ao mun-
do fixo e estável das sombras, onde ele se reconhecia e interagia sem dificuldade com os ou-
tros homens. A liberdade negativa é marcada pela instabilidade, pela ausência de fundamento.
Mas, se o prisioneiro retornar ao mundo das sombras, ele abdica da sua liberdade. Apenas se
ele der um passo adiante e superar a negatividade da primeira dimensão da liberdade, é que
ele pode afirmar a liberdade positiva, a que pertencem a segurança e a constância. A liberdade
positiva é autêntica porque é ser-livre-para – em vista de algo não previamente determinado
por ninguém senão pelo próprio ser-aí. A liberdade positiva difere da negativa, que é apenas
ser-livre-de. Como explica Heidegger:
A relação com o que libera (com a luz) é,ele-mesma,libertação. A libertação propri-
amente dita consiste em se-vincular a um projeto, - não apenas aceitar simplesmente
estar ligado a um vínculo, mas se-conceder-a-si-mesmo-por-si-mesmo-um-vínculo,
e em verdade um vínculo que permanece obrigatório desde já e antecipadamente de
tal modo que todo comportamento ulterior particular não pode ser e tornar-se livre
que por esse meio708.

O símbolo da liberdade positiva e autêntica, portanto, é a ascensão à luz do dia e à


contemplação do sol, denotando o caráter ativo que reforça a diferença em relação à liberdade
negativa, cujo símbolo é a simples retirada dos grilhões, sem que o recém-liberto participe
desse processo e o entenda. Como visto, essa incompreensão o faz querer retornar ao estado
anterior de cativeiro. Na verdade, tornar-se positivamente livre significa ver na luz e, princi-
palmente, deter um olhar “portador de luz” (Lichtblick), iluminador. Isso significa o olhar que
projeta, que abre espaço, que desvenda rumos. Heidegger utiliza, nesse passo da argumenta-
ção, a expressão “clareira na floresta”, que significa a abertura que a luminosidade provoca
numa passagem antes obstruída pela escuridão. A noção de clareira (Lichtung)é articulada
como a própria essência da verdade, do desvelamento do seer enquanto acontecimento apro-
priativo. Isso porque a obscuridade impede, dissimula que as coisas se mostrem, ao passo que

708
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.78 (§7).
278

a luz – a verdade, o desvelamento – libera a passagem, esclarece os caminhos possíveis. Essa


noção heideggeriana aponta para a libertação das possibilidades latentes do ser para a pro-
vocação que o homem livre é capaz de efetuar. Essas possibilidades permanecem, antes, aco-
bertadas pela obscuridade das sedimentações semânticas da linguagem cotidiana.
Tomando as palavras e expressões do próprio Heidegger, a relação entre ser e liberda-
de pode ser entendida do seguinte modo: É somente a partir e no interior da luz que o ente
torna-se mais ente, que o seu ser é liberado para tornar o ente o que ele pode ser e ainda não é.
Tornar-se livre é acordar-se com o ser, considerado em si mesmo, e isso permite que o ente
seja ente como tal. O fato de o ente tornar-se mais ou menos ente depende da liberdade do
homem, e a grandeza da liberdade se mede pela originaridade, pela amplitude e pela firmeza
da obrigação que o homem se estabelece. Isso se compreende unicamente no interior do ser-
aí, que supera a solidão e o estar-jogado de sua proveniência e seu advir historial. Quanto
mais a obrigação é originária, mais a proximidade em relação ao ente é grande. 709 Para Heide-
gger, tornar-se livre para o ente é vê-lo na luz, o que significa efetuar um projeto de ser onde
o aspecto, a figura do ente é projetada, colhida e presentificada antecipadamente.
Para ilustrar essa liberdade do ser-aí em relação às possibilidades do ser, essa liberda-
de que é entendida como o projeto de ser que esboça de antemão o seu aspecto eidético, Hei-
degger apresenta três exemplos emblemáticos: a ciência moderna, a ciência histórica e a poe-
sia. Convém retomar esse último exemplo, por concernir - além da grande poesia de Homero,
Virgílio, Dante, Shakespeare e Goethe - exatamente à “filosofia originária”, categoria com
que Heidegger parece compreender a filosofia de Platão.
Em primeiro lugar, deve-se afastar toda compreensão-redução estética da arte, conso-
ante o projeto posterior de destruição da estética que corresponde à destruição da história da
ontologia. Nesse curso, Heidegger limita-se a explanar que a essência da arte não é a expres-
são da “vida da alma” de um dado momento histórico, posteriormente reconhecida e admirada
por outras épocas. Tampouco a essência da arte corresponde à reprodução exata e rigorosa da
realidade, nem a produção, a-presentação de algo para a aprovação ou a provocação de prazer.
Nada disso. A essência da arte, para Heidegger, consiste, ao contrário, no fato de o artista ter a
visão livre e luminosa, voltada ao possível e plasmada na obra. O que, no ente, é possibilidade
retraída, latente, ainda não-verdadeira porque velada, ao artista sobressai como verdade a ser
provocada, a ser figurada na obra. A essa essência veritativa da obra de arte, Heidegger cha-

709
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.80 (§8).
279

ma de “descoberta do efetivo” e é a expressão máxima da liberdade do ser-aí. “A poesia torna


o ente mais ente”, assevera Heidegger710.
Mas o que simboliza e significa essa luz da verdade e da liberdade? A dimensão exis-
tencial até aqui explorada é indissociável da dimensão ontológica das ideias, sem as quais os
entes não podem ser conhecidos. É a ideia que o libertado passa a contemplar; a ideia é a ver-
dade, o ser do ente, aquilo que o torna o que ele é, a sua essência, a sua quididade. Natural-
mente, a ideia é vista com a razão, com o pensamento (nous), sendo o olho sensível uma me-
táfora para exprimir essa faculdade puramente intelectual. Heidegger afirma que o olho sensí-
vel jamais viu efetivamente um ente, a menos que tenha antes contemplado, intelectualmente,
a sua ideia. Sem essa contemplação intelectual prévia, não se sabe que o ente é um ente, não
se tem a dimensão ontológica da dimensão inteligível que o fundamenta. O prisioneiro da
caverna só vê entes, acha que só há entes, por isso não os compreende; não os compreende
porque desconhece a existência do ser, está totalmente incapacitado de contemplá-los efeti-
vamente; não supõe que existem ideais inteligíveis que são paradigmas eidéticos que lhe for-
necem critérios de juízo e existência 711. Como Heidegger articula exatamente a relação entre
ideia e luz, como luz que desvela o ser do ente (aletheia)?
A ideia é o que expõe o ser do ente, o que torna o ser visível, o que permite a visão in-
telectual alcançá-lo, iluminando-o. Trata-se de uma a-presentação, uma presentificação da
essência do ente aos olhos intelectuais do homem, que, desse modo, divisa claramente o ser
do ente712. É essa clareza no olhar que está em jogo, o olhar só pode contemplar o que está
banhado com a luz eidética da ideia do bem – metaforizada pelo sol.
As ideias são o ser, o que é de mais ente nos entes. Correlativamente, as ideias são o
mais verdadeiro, o mais luminoso. Como Heidegger explica essa dupla caracterização, das
ideias como o que há de mais ente e como o que é mais verdadeiro? Trata-se da íntima relação
que entretêm idea e aletheia, núcleo do platonismo segundo Heidegger. O mais verdadeiro, o
mais desvelado: esse superlativo significa que a ideia é o que, em primeiro lugar, subtrai-se ao
velamento, o que se antecipa em desvelar-se, em expor-se, o que consegue romper com a es-
curidão. Retomando a metáfora da clareira na floresta, que abre espaço para a visão da verda-
de e para o caminho da liberdade – pois não há aletheia sem Lichtung -, a ideia é o mais des-

710
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 83-84 (§8).
711
Ibid., p.71-72 (§6, a).
712
Ibid., p. p. 77 (§6, c).
280

velado exatamente porque abre o caminho, precedendo-os, para que os entes sejam e sejam
vistos. Como isso se dá?
Ontologicamente: isto é, sendo o que há de mais ente nos entes, sendo-lhes o funda-
mento de ser. Só o ser pode desvelar o ente, de outro modo ele permanece obscurecido, restri-
to ao seu aspecto meramente sensível, visual. Sem a intelecção da essência, um ente permane-
ce obscuro, pois reduzido à sua dimensão sensível. É esse o sentido da metáfora visual para
Heidegger. Conhecer empiricamente, ou melhor, apreender apenas com os sentidos é o modo
restritivo com que os prisioneiros vivem na caverna, um mundo escuro e fluído ao extremo,
sem qualquer sedimentação metafísica, totalmente dúctil e suscetível de ser explorado retori-
camente pelos sofistas – o que confere a dimensão política à alegoria. Heidegger explica que
o não-velado do ente fulgura do seu ser, da ideia, da verdade. O mais manifesto expõe, evi-
dencia o ente, nele mesmo, isto é, o seu ser. O ser é a verdade do ente, o que equivale dizer
que a verdade de um ente é seu ser; não há aletheia sem idea e reciprocamente. Na ideia, res-
plandece ontologicamente a verdade do ente. Como sublinha Heidegger, a ideia é o originari-
amente desvelado, não-retraído. É a própria manifestação da verdade desvelada do ente. A
ideia não pode senão ser verdadeira, pois é, em si mesma, luminosa.713
Conforme explicado no capítulo anterior, a idea platônica relaciona-se intimamente
com a visão que a engendra. O caráter acentuadamente fenomenológico da interpretação de
Heidegger se faz presente na compreensão da ideia como não sendo algo nem objetivo, nem
subjetivo. A ideia não é objetiva porque não preexiste autonomamente em relação ao olhar
que a desvela, em algum lugar obscuro ou desconhecido. Tampouco a ideia é um produto sub-
jetivo, um construto do sujeito que a projeta intelectualmente.
Heidegger insiste que essas duas formas de pensamento, no fundo correspondentes,
são faces invertidas da mesma moeda errônea, que impede a compreensão efetiva da verdade
da ideia. Como não se sabe onde estaria a ideia antes de conhecê-la, postula-se que se trata de
um “valor em si”, disfarçando seu caráter subjetivo, como Nietzsche soube mostrar. Quando
considerada subjetiva, a ideia não passa de uma suposição, de um “como se”, “um simples
produto fantasmagórico da imaginação”714.
Segundo Heidegger, a distinção entre sujeito-objeto é a distinção mais problemática
que pode haver, e foi a essa mistificação que a filosofia se entregou ao longo de sua história.
Dada essa confusão do problema central da filosofia, o caminho dessa tradição metafísica

713
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.90 (§9, a).
714
Ibid., p. 92 (§9, b).
281

rendeu-se à assimilação não-filosófica das ideia platônica ao pensamento criador do Deus


cristão, como em Santo Agostinho. Do mesmo modo, o crepúsculo da metafísica se dá, em
grande estilo, com o idealismo do Espírito absoluto de Hegel.
Mas só é possível pensar o ser em termos de sujeito-objeto? A fenomenologia visa
exatamente a reagir contra essa delimitação redutora, pensando-o na unidade categorial do ato
intencional, que visa o universal no particular, sem abstraí-lo ou hipostasiá-lo. No curso em
análise, Heidegger promove uma penetrante interpretação fenomenológica da ideia platônica
ao considerá-la una em relação ao ato pré-figurador da visão que a divisa. A noção-chave para
compreender a ideia platônica é a dimensão eidética, isto é, visual. A ideia é o que é visto, o
que é contemplado, é o aspecto exterior que é divisado por um olhar; a forma eidética que o
olhar contorna e delimita. O decisivo para Heidegger é a unidade originária entre o que con-
templa e o que é contemplado. Nenhum dos dois preexiste ou subsiste fora da relação eidéti-
ca-fenomenológica que os constitui. Fora da intelecção eidética, o homem não existe em sua
essência. A essência do homem - que é a transcendência da sua existência - é estar voltado ao
ser do ente, à sua ideia. Essa visão noética configura o aspecto eidético-visual que contempla,
na verdade, o prefigura num projeto em que o próprio ser do homem é mobilizado 715. O ho-
mem jamais é um sujeito científico, neutro e imparcial – Heidegger censura essa concepção
como pueril ou mentirosa. O homem é sempre pro-jetado, enraizado num mundo que é o seu,
num contexto em que a coragem, a escolha, o engajamento e o fortalecimento do seu ponto de
vista são decisivos. A alegoria da caverna é o símbolo do homem em direção à existência au-
têntica que só pode ser alcançada pela coragem filosófica de se projetar no ser, de abrir-se ao
acontecimento de desvelamento da verdade de que provém o clarão da ideia. Desse modo, a
aletheia é o espaço aberto (das Offene) em que ser-aí (filósofo) e ser (ideia) podem se encon-
trar.
A compreensão da ideia platônica como luz que franqueia o ser dos entes, no interior
do fenômeno veritativo do desvelamento, corresponde à essência da liberdade humana como
existência projetada (extática) e desencobridora. Constante da seção intitulada ‘Desencobri-
mento como ocorrência fundamental da ex-istencia do homem’ (Parte I, Seção C, §9, b), esse
é um passo complexo e decisivo da argumentação de Heidegger: como a verdade acontece na
unidade indissociável da ideia e do olhar prefigurador que a divisa? Mais ainda, como esse
“encontro” se dá no interior do homem sem que com isso se recaia nos humanismos antropo-
centristas dos quais Heidegger pretende se alijar?

715
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 92 (§9, b).
282

Como visto desde o item 1.4., quando se analisou a viragem heideggeriana a partir do
texto ‘Essência da verdade’, a liberdade humana é correlata à verdade. A essência da verdade
revela a essência do homem, que é, ipso facto, ser-desvelador, capaz de prefigurar o aspecto
da ideia que desencobre o ser do ente. Isso significa que o homem é apropriado em meio ao
acontecimento desvelante do seer que se destina na abertura do ente na totalidade. Sem o ser-
aí, o seer não pode desvelar-se, ainda que não possa ser considerado dependente do ser-aí para
despontar veritativamente.
Sem ser protagonista, o homem participa da constituição do ser que não preexiste a es-
se desvelamento. A verdade se dá no e pelo homem, sem que seja dele. Não se trata de verda-
de subjetiva, humanista ou antropológica – é, ao contrário, longe desse modernismo que Hei-
degger pretende situar o seu pensamento histórico do seer. Estar desencoberto é a consecução
da libertação. Para o homem libertado - que conseguiu sair da caverna obscura em que o ser
não desponta, não é desvelado pela luz veritativa da ideia do bem -, estar desencoberto é pôr-
se em contato com o ser do ente, e com o seu próprio ser – que é poder-ser quem se é. A libe-
ração do homem é a sua capacidade de desencobrir (Ent-bergen), de remover o encobrimento
do seer. E isso se dá pela ideia que o homem é capaz de visar, quando se ex-põe ao desenco-
berto da clareira, em cujo interior se dá o desvelamento da verdade (aletheia). A característica
primordial da ideia é o des-encobrimento, é o fato de que ela é des-encobridora (ist entber-
gend).
Ao realizar esse olhar eidético que contempla as ideias, o homem assume o risco da
sua liberdade e se vincula ao ser do ente, expõe-se ao iluminado da clareira e participa do
acontecimento da verdade, como ser-aí em que se dá o seer que o apropria. O olhar eidético é
pré-figurante e liga o ser-aí ao seer que se deixa iluminar pela clareira da aletheia. A liberação
é que permite o desencobrimento do ser que se retrai e se abriga na zona do velamento, isto é
na obscuridade da caverna. Para Heidegger, o símbolo platônico da luz, ausente na caverna e
resplandecente no seu exterior, diz respeito ao olhar eidético que ilumina e é iluminado pela
clareira em que o seer se desvela, é arrancado do encobrimento que o caracteriza. Isso se dá
na forma de um acontecimento apropriativo em que o seer é trazido à luz, é des-encoberto
pela liberdade do ser-aí que realiza a contemplação eidética. Resultante da liberdade do olhar
eidético do homem, a ideia é des-encobridora porque arranca o seer do encobrimento que é o
dele.
A libertação é o cuidado (Sorge), no sentido essencial: tornar-se livre se ligando à
ideia, o que implica se deixar guiar pelo ser. Nesse sentido, elucida Heidegger que: “tornar-se
livre, perceber as ideias, compreender antecipadamente o ser e a essência das coisas – tudo
283

isso implica uma capacidade de desencobrimento (Entbergsamkeit)”716. Em seguida, comple-


menta: “Desencobrir é a natureza mais íntima da visão que vê no coração da luz.” 717
O desencobrimento (Entbergsamkeit) - ato existencial e eidético do homem que prefi-
gura o ser ao contemplar a ideia banhada de luz ontológica - é o desvelamento (aletheia). Só
que esse desvelamento acontece (es ereignet) na ex-istência do homem, ocorre “com o ser
humano”718. Ou seja, não é provocado voluntariamente pelo homem, não passa por uma espé-
cie de escolha subjetiva mais ou menos arbitrária, como se o homem pudesse decidir-se a res-
peito de uma verdade que lhe pertence. O que está em jogo para Heidegger, nesse momento, é
a articulação entre desvelamento do ser e desencobrimento promovido pela visão eidética. O
que se denomina capacidade de desencobrimento (Entbergsamkeit) é o que reúne os fenôme-
nos da visão e da ideia, da luz e da liberdade. Trata-se da unidade da visão, que “cria” o que é
passível de ser eideticamente visto em sua conexão mais íntima. Que um ente seja projetado
no desvelado, isso depende da capacidade de desencobrimento da visão eidética. Quando o
ser-aí vale-se da sua liberdade e se volta ao ser de um ente, iluminando-o, colocando-o no
desvelado da clareira da verdade, ele o desencobre, pela provocação do ser antes encoberto,
retraído. É a visão eidética que traz o ser para a luz, que o retira do encobrimento (lethe). Pen-
sar a aletheia como desencobrimento (Entbergsamkeit) significa reconhecer que o ser está,
desde sempre, encoberto, retraído, escondido. É por essa razão que Heidegger afirma que: o
desvelamento (Unverborgenheit) acontece no e através do desencobrimento (Entbergung)719.
Com efeito, como explica Zarader720, o termo desencobrimento (Entbergung) pode ser
considerado um sinônimo de desvelamento (Unverborgenheit), sendo que o primeiro pode ter
surgido como modo de clarificação do sentido do segundo. Como analisado acima, o termo
desvelado (Unverborgenheit) é composto pelo sufixo “heit”, que significa o estado do ser, o
fato de ele estar desvelado, de não estar ocultado, por isso a sua tradução por um substantivo
formado pelo particípio passado do verbo “desvelar”, o que denota um estado fixo: desvelado.
Essa condição atual do que está ocultado, desencoberto, é resultante de um processo de desve-

716
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 93-94 (§9, c).
717
Ibid., p. 94 (§9, c).
718
Ibidem.
719
Ibidem.
720
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.77 (nota 35), 85 (nota 57), 86.
284

lamento. Portanto, para explicitar o sentido da verdade como aletheia, Heidegger recorre a um
termo correlato, desencobrimento (Entbergung), cujo sufixo “-ung” denota exatamente o cará-
ter de movimento, de processo que corresponde ao ato humano de exercício da liberdade, a
visão eidética que desencobre o ser do ente, que o retira do velamento com que ele se retrai.
Por isso, Heidegger afirma que a essência do desvelamento (Unverborgenheit) é o desenco-
brimento (Entbergung)721. O desvelamento é o estado do ser desvelado, o qual resulta de um
ato humano de desencobri-lo, pela liberdade do homem de enfocar a ideia do ente, que é a sua
dimensão ontologicamente iluminada, exposta à clareira da verdade (Lichtgung). Ou seja, o
desvelamento do ser acontece por meio de alguém que o desencobre. Esse alguém é o ser-aí
em sua visão eidética que o projeta em meio à luz da clareira, em que a verdade pode se dar.
A verdade é o encontro do ser-aí com o ser-ideia do ente.
Mas a verdade não deve, com isso, ser considerada algo de humano, no sentido antro-
pocêntrico e humanista do termo, como algo extraído da liberdade criadora e autossuficiente
da personalidade humana individual, ou da personalidade humana de um povo ou era históri-
ca. Não, a verdade não é humana, mas é o que permite o homem sair (transcender) ao encon-
tro do desvelado, ou seja, ex-istir autenticamente: “o ser humano está ‘na’ verdade. A verdade
é muito maior do que o homem.” 722
Não se trata, aqui, de homem no sentido de sujeito kantiano dotado de categorias
transcendentais, ou no sentido jurídico de sujeito de direitos. A partir da crítica platônica ao
relativismo ético-epistemológico de Protágoras, no Teeteto – analisado nas preleções sobre
Nietzsche723 -, Heidegger rechaça todo tipo de redução da verdade a um padrão meramente
humano, o que lhe parece uma forma radical de niilismo. Ora, a verdade é buscada pelo ho-
mem como norma à qual ele pode se vincular permanentemente. A verdade relaciona-se à
estabilidade e à permanência, com algo que está acima do homem. Como pode ele mesmo ser
a referência daquilo em que ele busca se apoiar? Heidegger questiona o absurdo da pretensão
do antropocentrismo humanista de tornar o homem a medida de todas as coisas, ecoando a
censura platônica a essa hipótese de Prótagoras, no Teeteto e nas Leis. Deve-se permanecer
vigilante contra o “ameaçador relativismo” que esse subjetivismo antropocêntrico comporta:

721
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 94 (§9, c).
722
Ibid., p.96 (§9, c).
723
Cf. HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Vol. II. Trad.M.A.Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2007. p.100 e ss.
285

“O que é o ser humano para que ele possa se tornar a medida de tudo? Podemos abandonar a
essência da verdade ao homem? [...] uma cana vacilante no vento!”724
Como conciliar, então, essas duas hipóteses aparentemente contraditórias: por um la-
do, a verdade acontece no homem; por outro, ela não é uma ocorrência humana. A resposta de
Heidegger reside na compreensão do homem como ser-aí, como ser existente em meio ao
ente, e que se abre ao ser que,nele, se desvela. O ser pode ser provocado pelo homem que se
liberta da sedimentação entificada e entificante da decadência cotidiana, mas é o próprio ser
que se desvela no homem livre que ousa filosofar, perguntando pela essência do ente. A filo-
sofia é a consecução da liberdade humana, é a atitude do homem ontologicamente interrogan-
te que se abre ao desvelamento do ser. A percepção de ideias é o ato cognitivo e existencial do
homem que se volta ao ser do ente. Esse ato eidético permite o ser fulgurar no ente, o que se
dá pari passu com a transcendência que caracteriza a existência do homem. Ao desvelar o ser
– enfocando a ideia do ente -, o homem desvela-se a si mesmo, transcendendo a sua existência
decaída e inautêntica e colocando-se no espaço luminoso da clareira, em que a verdade pode
acontecer. Ao compreender o ser, o homem existe, imerge no desvelao do ente, permanece
exposto ao ente em sua totalidade, confrontando-se com o ser desvelado do ente e consigo
mesmo. Esclarece Heidegger:
Mas quem é esse homem da alegoria da caverna? Não o homem em geral e como tal,
mas o ente perfeitamente determinado que se comporta com o ente como desvelado
e que, nesse comportamento, é o próprio homem desvelado. Mas esse desvelamento
do ente, no qual ele se encontra e se preserva, acontece no olhar que, projetando,
descobre o ser, ou seja, para Platão, as ideias. Mas esse olhar que é projetivo ocorre
como e pela liberação que faz o homem aceder a ele mesmo. O homem é esse ente
que compreende o ser e que, sobre o fundamento dessa compreensão do ser, existe, o
que quer dizer, entre outras coisas, relaciona-se ao ente como o ente desvelado.
‘Existir’ [Existieren] e sobretudo ‘ser-aí’ [Dasein] não são simplesmente utilizados
aqui em um sentido qualquer e vago, no sentido de acontecer [Vorkommen] e estar
presente, mas num sentido bem definido e adequadamente fundado: ex-sistere, ex-
sistens: colocar-se diante do desvelado do ente, estar exposto ao ente em sua totali-
dade, e, por isso mesmo, estar em confronto com o ente e consigo mesmo; não fe-
chado em si como as plantas, não prisioneiro de si mesmo como os animais no seu
ambiente; não simplesmente encontrado ali, como as pedras. [...] Somente entrando
na região perigosa da filosofia é possível ao homem compreender sua essência como
transcendência de si mesmo em direção ao desvelamento do ente. Apartado da filo-
sofia, o homem é totalmente diverso.725

Nessa passagem, síntese do seu argumento, a existência do ser-aí é pensada como


transcendência, como consecução filosófica da liberdade do homem que contempla a ideia do
ente, projetando seu aspecto eidético. Essa prefiguração é o acontecimento da verdade que se

724
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.94-95 (§9, c).
725
Ibid., p. 97-98 (§9, c).
286

dá nele e que lhe permite aceder ao ser do ente, assim como lhe mostra a sua própria essência,
como sendo livre para questionar o ser do ente. A essência do homem é a liberdade que lhe
permite questionar o ser, iluminar o ente ao projetá-lo no espaço luminoso da clareira em que
a verdade pode ocorrer. A clareira é a região livre, o espaço prévio de mostração e aparição
de tudo que se faz presente e se ilumina. O ser-aí é o ente ao qual a pergunta pelo ser faz sen-
tido e é premente. Mas só o filósofo, que ousa expor-se ao risco da liberdade, reconhece essa
premência e a enfrenta com a sua existência, mesmo que isso lhe custe a própria vida. O filó-
sofo é aquele que resiste à dor da subida da caverna, afirmando a sua liberdade filosófica de
busca de sua essência, de exercer a sua existência como liberdade e transcendência. A exis-
tência humana se funda sobre essa transcendência do homem que se alça sobre si em direção
ao desvelado do ente, cujo ser-ideia ele projeta e contempla eideticamente, a partir da sua li-
berdade filosófica fundamental.
Como se pode notar na espiral argumentativa desse curso heideggeriano, a essência da
verdade concerne diretamente à essência do homem e à essência da liberdade humana, e é
essa articulação que instiga Heidegger na sua leitura da alegoria da caverna. Para Heidegger,
entender essa alegoria é “compreender a história essencial do homem, ou seja compreender a
si mesmo na sua história mais própria”. Para tanto, para entender a essência do homem, Hei-
degger recorre à decisiva etapa do método fenomenológico, a suspensão, pondo entre parênte-
ses os conceitos e os não-conceitos de homem, por mais óbvios e correntes que sejam. A
questão concerne à essência da verdade, e não pode ser reduzida a um humanismo qualquer.
Portanto, Heidegger diz que a verdade é a essência da liberdade do homem, e não o contrário.
Não há fundamento antropológico da verdade, pois é ela que lhe concede existir. Desse modo:
“O primeiro passo para a compreensão dessa questão é ver claramente que o homem volta-se
a si mesmo, e encontra o fundamento para o seu ser-aí, no evento de desencobrimento que
constitui o desvelamento dos entes [aletheia].”726
Ainda que o estado de transcendência descrito acima seja o passo decisivo da existên-
cia humana, ele ainda não é o fim último da “liberdade autêntica”. Isso porque há um quarto
estágio, no qual o libertado retorna à caverna com o intuito de libertar outros prisioneiros.
Heidegger o considera o mais importante para compreender a essência da aletheia, exatamen-
te porque atesta que a inverdade é uma parte constitutiva da verdade. Esse ponto é muito im-
portante na argumentação heideggeriana, e será explorado no curso sobre Parmênides, tratado
a seguir, em que a aletheia é pensada conjuntamente com a lethe, o esquecimento-velamento

726
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 96 (§9, c).
287

que a constitui. Desde já deve ficar claro que não se trata da não-verdade, de um polo antitéti-
co e inconciliável com a verdade. Como explica Boutot, Unwahrheit é composto pelo prefixo
“um-”, correspondente ao “in-” na língua portuguesa. Isso significa que a inverdade não é
não-verdade, a alteridade e o contrário absoluto da verdade, compondo um domínio diame-
tralmente diverso, com o qual a verdade tem um relação de incompatibilidade e oposição ex-
cludente. Ao contrário, a inverdade é a “inimiga íntima” da verdade, “sua antagonista mais
profunda”, por isso a determina, mantendo-a reservada e abrigando sua essência 727. A verdade
(aletheia) não é plenamente experimentada sem a inverdade (lethe) que constitui sua essência.
A experiência de inverdade está sempre contida em toda experiência de verdade, porque essa
ambiguidade e alternância constitui o acontecimento apropriativo do seer, que se envia retraí-
do, que se revela e se esconde ao mesmo tempo. O seer não é nunca plenamente iluminado
pela clareira em que emerge; sempre uma parte do seer permanece obscurecida. Nem a clarei-
ra pode iluminá-lo por completo – já que ela é uma picada de abre um espaço luminoso em
meio à escuridão e cerramento da floresta -, nem ele se entrega por inteiro, pois sempre per-
manece retraído e abrigado no abismo da sua diferença, no não-ser que o constitui. Do mesmo
modo, a verdade sempre preserva em sua essência algo de inverdade, dessa retração constitu-
tiva do ser.
Como visto no primeiro capítulo, designadamente no item 1.6.,‘Passo de volta e epo-
ché do seer’, o mesmo se dá com o impensado. Heidegger explica, em ‘Identidade e diferen-
ça’, que o impensado, diversamente do não-pensado, não é estranho e alheio ao pensado, mas
é o que resiste ao pensamento e permanece velado no interior de todo pensado, sendo, assim,
a essência de todo pensado. Isso porque é do impensado que o “pensado recebe seu espaço
essencial.”728 O impensado deve ser buscado no já pensado, em cujo interior se reserva o que
ainda resta a pensar. O impensado está contido, em oculta latência, no já pensado pela tradi-
ção. É em virtude disso que Heidegger afirma que: “somente o já pensado prepara o ainda
impensado que sempre de modos novos se manifesta em sua superabundância.” 729 É dessa
mesma forma que se deve aproximar da inverdade que constitui a verdade.
O quarto estágio da alegoria trata da fatídica volta do libertado à caverna. Por ter con-
templado o ente no interior da luz da ideia, o libertado torna-se filósofo, autenticamente livre e

727
BOUTOT, A. Préface du traducter, p. 11. In: HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité . Approche de
l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. pp.7-15.
728
HEIDEGGER, Martin. ‘Identidade e diferença’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensado-
res. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 192.
729
Ibidem.
288

capaz de discernir a verdade aparente da verdade efetiva. Ele é autenticamente livre, pois vive
do e no desvelamento veritativo que a contemplação eidética lhe proporciona. Ele é filósofo
porque é capaz de transcender a si mesmo em direção ao desvelado dos entes, como explicado
acima. Mas ele não perfaz a sua natureza até que volte à caverna e reconheça as sombras co-
mo sombras. Um dos pontos mais importantes da leitura heideggeriana de Platão é que o filó-
sofo não pratica a filosofia como uma espécie de educação geral, ou cultivo erudito de huma-
nidades, mas como consecução da sua natureza íntima, do traço existencial fundamental do
seu ser, da liberdade que o vincula ao projeto de vida que é o seu próprio. Trata-se de uma
concepção não apenas ética de filosofia, tal comom no ideal helenístico de sabedoria desonto-
logizada. Heidegger identifica que, de acordo com a imagem d’A República estudada, a vida
do filósofo é substantiva, e que a ontologia é a forma mais elevada de prática de vida, uma
ética substancial.
O filósofo, portanto, atua concretamente no e sobre o mundo, transformando-se e
transformando os outros. Essa transformação, porém, não pode ser compreendida do ponto de
vista político; o filósofo não é um reformador político, um legislador de novas instituições
jurídicas. Tampouco o filósofo atua no esclarecimento intelectual e cultural da população, em
uma espécie de “iluminismo popular à Kant”730. O filósofo é, acima de tudo, um educador, no
sentido pleno da palavra, aquele capaz de franquear novos mundos ao desvelar a verdade do
ente e livrar os homens da ditadura do impessoal que os aprisiona nas categorias reificadas
das sombras. Ao atuar pedagogicamente, o filósofo, como um poeta originário, ex-põe, a-
presenta aos prisioneiros novas possibilidades existenciais e novas possibilidades dos entes,
desamarrando-os das representações entificadas convencionais e aparentes. Isso se dá pelo
desvelamento da fonte de luz, da ideia-ser do ente, o que os ajuda a ter o olhar essencial, a
tornarem-se quem eles são: entes cuja essência é a Existenz. Como isso se dá?
Principalmente, pela capacidade de o filósofo distinguir entre o ser e o ente, o ente e a
aparência, o deslevado e o encoberto, ele é capaz de libertar os outros. É esse poder de discer-
nimento que atesta a sua liberdade. Mas essa diferenciação ontológica registra outro fato fun-
damental: a copertença entre desvelamento e velamento, entre ser e ente, entre verdade e apa-
rência. Com isso, fica claro que a verdade como desvelamento é a superação do velamento
originário, o que significa que o desvelamento preserva, sempre e inelutavelmente, um víncu-
lo essencial com o velamento e o encobrimento 731. Como explica Heidegger , só no interior

730
ZUCKERT, C.H. Postmodern Platos – Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Strauss, Derrida. Chicago: The
University of Chicago Press, 1996. p. 50.
289

dessa pertença recíproca se pode compreender o alfa privativo que constitui a palavra funda-
mental a-letheia. Considerada separação dissociativa (Auseinander-setzung), a verdade dis-
tingue o que antes estava unido, revelando a unidade originária do (des)velamento. Percebe-se
nessa caracterização heideggeriana a ascendência de Heráclito, de quem Heidegger absorve o
antagonismo fundamental do ser: os polos antagônicos se opõem sem compor um terceiro
termo que os exclua ou neutralize. Eis como Heidegger explica essa dimensão heraclítica do
(des)velamento:
Desvelamento, a superação do velamento, ocorre somente mediante luta primordial
contra o encoberto. Uma luta primordial (não apenas polêmica) é o tipo de luta que
primeiro cria o seu inimigo e concede-lhe o mais incisivo antagonismo. Desvela-
mento não é apenas um lado do rio e o velamento, outro, mas a essência da verdade
como desvelamento é a ponte, ou melhor, é o estiramento da ponte de um lado para
e contra o outro.732

Desse modo, a verdade não é algo que se alcança inteiramente, de uma vez por
todas. A verdade é a luta primordial e, por isso, o filósofo vive nesse conflito de distinção en-
tre o velado e o desvelado, na dinâmica ininterrupta de desvelamento; por isso, a vida do filó-
sofo é extremamente agitada e perigosa. Não há nada da quietude ascética no filósofo platôni-
co-heideggeriano, ao contrário, ele deve constantemente trabalhar em si mesmo e nos outros.
Deve lutar pela verdade, viver em meio à clareira que sempre comporta escuridão. O retorno à
caverna não é, evidentemente, uma possibilidade adventícia ou secundária ao filósofo, mas
uma obrigação íntima da liberdade a que ele se vincula, uma fidelidade ao projeto que é o
dele. Só assim ele perfaz a liberdade positiva, não bastando estar desagrilhoado, livre das
sombras. Ele precisa estar livre para vincular-se ao projeto que é o seu.
Ao apontar o aspecto derivado e ilusório das sombras, ao querer mostrar o fogo como
fonte da luz, e depois o árduo caminho de subida da caverna, o filósofo neutraliza as opiniões
correntes na caverna, ameaçando a autoridade dos que a governam e, principalmente, destru-
indo a sedimentação semântica da linguagem cotidiana de que se valem os retóricos que a
dominam “culturalmente”. Essa crítica ontológica – que não é meramente uma crítica políti-
co-ideológica - é motivo de grande desestabilização, de crise. Excêntrico porque deslocado do
núcleo veritativo que se dá na caverna, o filósofo na caverna está efetivamente fora de lugar
(atopos), não fala como os outros, não valoriza o que é apreciado por todos; dificilmente o
filósofo se faz entender, pois precisa do horizonte das sombras para denunciá-las como fictí-
cias (o que corresponderia, hoje, a ir à televisão criticar, do ponto de vista essencial e filosófi-

731
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p.112-113 (§11).
732
Ibid.,p. 113 (§11).
290

co, os meios de comunicação de massa como a própria televisão). Como pode o filósofo se
valer da dialética em meio à hegemonia da retórica? Como dispor de um logos apofântico se o
logos corrente é reificado? Não é difícil concluir que a morte será o maior dos desafios do
filósofo, não apenas a morte futura, prospectiva, a que todo mortal está submetido por nature-
za, mas “a constante presença da morte diante de si durante a existência”733.
Heidegger refere-se não apenas ao sentido comum de morte física, de extinção pura e
simples da vida corporal, mas a um sentido alegórico de matar o seu próprio ser, de torná-lo
nulo e sem poder, quer dizer, de neutralizar o que é de mais vivo e decisivo na vida de um
filósofo: sua capacidade de converter os outros, de responder aos ditames da sua liberdade
autêntica, que o direciona à pedagogia ontológica. “O filósofo verdadeiro é impotente no inte-
rior do domínio das evidências reinantes.” 734 O que está em jogo para Heidegger é o letal en-
venenamento a que está sujeito o filósofo que tenta sobreviver se integrando aos meios inte-
lectuais correntes na cidade, como o jornal e a revista – hoje principalmente a televisão e a
internet, ou mesmo a conferência cultural ou a academia universitária, cuja linguagem decaída
impede qualquer lida autêntica e desvelante-aletética com o ser do ente. Como o filósofo não
é entendido, não fala nos termos retóricos das sombras aparentes, ele é cooptado pelo meio
usual de comunicação, passando a participar do “interesse” comum. Quanto mais lhe são con-
cedidos prêmios e honrarias, fama e admiração, tanto mais a filosofia é vulgarizada, aniquila-
da e descaracterizada em sua essência, tornando-se indefesa, impotente, inofensiva e estéril.
Com isso, os prisioneiros intentam “traduzir” o filósofo e reduzi-lo ao seu horizonte
estreito e falso de compreensão, neutralizando por completo a transformação provocada pelo
desvelamento filosófico de mundo e do ser. A consequência disso é a corrupção da natureza
filosófica, que é a decadência da natureza humana como tal, visto que Heidegger considera a
filosofia a consecução da liberdade humana, a “virtude” capaz de plenificar o telos da essên-
cia humana.
Desse modo, fica claro que, se o filósofo resistir ao “interesse” da caverna, se resistir
ao envenenamento da linguagem retórica hegemônica, ele terá uma existência solitária na
caverna. Pertence ao seu destino, como Heidegger enfatiza, não conseguir reformara a caver-
na em bloco, mas concentrar-se em uma pessoa, ou em poucos homens capazes de acolher a
sua intervenção pedagógica. Somente esses sofrem a sua violenta condução para fora da ca-
verna. O tema que, então, se descortina é o da formação (Bildung), do modo pedagógico com

733
HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète de
Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001.p. 105 (§10).
734
Ibidem.
291

que isso se dá. Essa questão não é tratada no curso Da essência da verdade, mas no ensaio ‘A
teoria platônica da verdade’.

3.6‘A teoria platônica da verdade’:a metafísica humanista da paideia ocidental

Em 1942, Heidegger publica o texto ‘A teoria platônica da verdade’, possivelmente a


mais conhecida e controversa confrontação-apropriação da filosofia de Platão. A marcação
cronológica entre parênteses depois do título, na publicação posterior do texto em Marcas do
caminho, indica os anos de 1931-1932 e 1940, indicando que, em 1940, Heidegger teria retra-
balhado as ideias desenvolvidas nos anos de 1931-1932, quando ministrou o curso sobre o
mesmo tema. De fato, o texto parte de várias hipóteses fundamentais do curso estudado,Da
essência da verdade, principalmente a noção de aletheia como desvelamento e a sua trans-
formação platônica como correção do olhar. Nesse curso, Heidegger constata que a mutação
da essência da verdade se dá em Platão, e isso se pode perceber na ambiguidade do termo na
alegoria da caverna. Além disso, deve-se notar que a compreensão da filosofia platônica como
um todo é redimensionada a partir da interpretação intercorrente de Nietzsche, realizada na
segunda metade da década de 1930, que considera a essência niilista do idealismo platônico,
tal como estudado acima, no primeiro capítulo desta tese. Ou seja, Heidegger tem em vista o
começo platônico e o esgotamento nietzschiano, exaurimento (anti)platônico da metafísica
ocidental. Por outro lado, o tema geral do texto, correlato à questão da verdade, é a paideia, a
formação, núcleo do humanismo metafísico ocidental. Verdade e formação entretêm uma “re-
lação essencial” e, mais ainda, uma “unidade essencial” 735. Este item elucida a questão a partir
dessa relação de essência.
Incialmente, pode-se explicar essa relação do seguinte modo: a formação é a transfor-
mação pela qual o homem transita por diversos níveis hierárquicos de desvelamento do ser,
em um processo ascensional que vai do menos desvelado – o fundo obscuro em que o ser-aí
se encontra jogado - ao mais desvelado – o exterior da caverna, conquistado mediante o exer-
cício da liberdade que compromete a existência como um todo, a transcendência e a iminência
da morte, como visto no item anterior. Na alegoria da caverna, esses níveis compõem uma
“sequência de quatro diferentes moradas em uma graduação ascendente e descendente especí-

735
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 230-231. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
292

fica.”736 As diferenças entre esses estágios e graus de transições “fundamentam-se na diversi-


dade do altethes que lhe fornece a cada vez a medida, na diversidade do modo como a cada
vez impera a ‘verdade’.” 737 Desse modo, a verdade – o desvelado (alethes) – será pensado e
nomeado de modo diverso em cada estágio pedagógico-existencial.
Cada etapa pedagógica corresponde a uma dimensão existencial própria em que o ente
se desvela de modo diverso. A formação é uma conversão que franqueia modos veritativos
diferentes, divididos em número de quatro. Em primeiro lugar, tem-se o estado cativo e menos
desvelado em que as sombras constituem a totalidade do que o prisioneiro pode ver. Para ele,
as sombras são a única verdade, o horizonte máximo de desvelamento que pode alcançar.
Em seguida, quando lhe são desacorrentados os grilhões, o prisioneiro fica em estado
de cegueira, não sendo capaz de acostumar-se de imediato com a luz do fogo que agora o con-
funde. Essa confusão é uma inversão, pois ele acha que as sombras são “mais verdadeiras”,
“mais desveladas” do que as suas fontes, isto é, os instrumentos sensíveis que elas refletem.
Isso se dá por lhe faltar o pressuposto com que pode avaliar a relação entre os objetos e as
suas sombras, qual seja, a liberdade, que só é alcançada no terceiro nível. Sem a liberdade ek-
sistencial, o prisioneiro não logra alcançar o ser que desponta no aberto da clareira. Só a li-
berdade do ser-aí permite-lhe receber o desvelamento do ser.
Se o segundo nível era formado pela luz artificial do fogo no interior da caverna escu-
ra – “o lume artificial e desnorteador do fogo dentro da caverna” -, o próximo nível é marcado
pela luminosidade solar, pelo “espaço livre” em que se contemplam as ideias das coisas. “As
próprias coisas estão aí na concisão e vinculação de seu próprio aspecto”738. A ideia é a forma
que circunscreve o aspecto da coisa, é a “concisão limitante” que constitui aquilo que a pró-
pria coisa é, a essência com que o ente singular se mostra de maneira desvelada e acessível
em seu ser. Naturalmente, o estado mental do liberto não é mais de confusão, porém de luci-
dez e clareza. A ideia é o que há de mais nítido e cristalino nos entes, o que os torna transpa-
rentes. O olhar do libertado é clarividente porque os entes que contempla são iluminados pela
luz eidética do sol, a ideia do bem, que garante à ideia o seu ser e essência. A ideia é a mos-
tração da quididade, do “que-é” do ente. Há uma saliente dimensão moral nessa conquista
pedagógico-existencial, consoante a dificuldade desse estágio. Longe de ser uma libertação
automática das correntes e uma ascensão imediata ao espaço livre do exterior da caverna, esse

736
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p.233. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
737
Ibidem.
738
Ibidem.
293

nível exige “máxima paciência e empenho”, “um habituar-se perseverante em firmar o olhar
nos nítidos limites das coisas que se mantêm firmes em seu aparecer.” 739
Essa contemplação eidética pressupõe, portanto, uma ação do ser-aí, uma libertação
que seja o ato consciente de posicionar-se no desvelamento do ser-ideia. Como a alegoria é
um símbolo, a mudança de “lugar” significa, muito mais, a mudança de “estado”, de condição
existencial do homem que passa a contemplar a zona desvelada do ente, a sua ideia. A paideia
se perfaz com a afirmação da liberdade existencial do ser-aí em se deter na região aletética da
clareira, no aberto do desvelado, em que o ser do ente se manifesta. “A libertação verdadeira é
a perseverança neste voltar-se para aquilo que se mostra em seu aspecto e o que nesse aspecto
se mostra é o mais verdadeiro. A liberdade só se enraíza como esse voltar-se assim articula-
do.”740
Desse modo, quando Heidegger afirma que “a essência da ‘formação’ tem suas raízes
na essência da ‘verdade’” 741, isso significa que a formação (paideia) é a libertação do homem
que se volta ao âmbito da verdade, do mais verdadeiro (alethestaton) no ente, isto é, seu ser.
A verdade do ser é conquistada quando a ideia do ente é visada, a partir da região da clareira
que a ilumina, metaforicamente a luz da fogueira e do sol, quando se trata dos entes sensíveis
e inteligíveis, respectivamente. Cada nível da realidade tem uma dimensão “mais verdadeira”,
conforme seja mais ou menos iluminado pela clareira da verdade que é projetada pela con-
templação eidética do ser-aí. Como visto acima, isso não implica qualquer hipótese subjetivis-
ta de representação moderna que “cria” ou “estabelece” o objeto contemplado.
Tanto quanto a verdade-desvelamento é indissociavelmente vinculada ao velamento, a
formação permanece intrinsecamente relacionada à ausência de formação (apaideusia). Trata-
se de uma “remissão essencial”, constitutiva: uma não é pensável sem a outra. Com efeito, a
alegoria da caverna é introduzida com a elucidação de que a “imagem” proposta concerne à
existência ou à ausência de formação. Para Heidegger, esses estados não são claramente dis-
tintos e delimitáveis; o homem que alcançou a liberdade não está para sempre isento das som-
bras da apaideusia; ao contrário, a educação filosófica é uma constante conversão às formas
inteligíveis, uma guinada ininterrupta de superação da ignorância. Quer dizer, não se supera a
ignorância de uma vez por todas: o homem é essencialmente ignorante, tendo que superar essa
dimensão constitutiva a todo momento. Alegoricamente, isso significa que a existência huma-

739
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 233-234. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 215-250.
740
Ibid., p. 234.
741
Ibidem.
294

na se dá na caverna, na dimensão sensível da aparência, na esfera do opinar humano inconsis-


tente, no logos decaído e reificado que mais oculta do que desvela. O filósofo libertado e edu-
cado deve converter seu olhar incessantemente à forma inteligível, ao que há de mais desvela-
do do ente. Caso contrário, as sombras voltam a encobri-lo, a ele e os entes ao seu redor.
Mas o processo de transições pedagógicas não acaba com a contemplação máxima da
ideia do bem, simbolizada pelo sol, no exterior da caverna. O retorno à caverna, que constitui
o quarto e último nível da formação, é marcado pelo conflito do libertador com os prisioneiros
que resistem à sua ação emancipatória, como explicado na seção anterior. Além dessa dimen-
são social conflituosa, que opõe o filósofo portador de uma verdade maior (mais luminosa) do
que a verdade vigente na caverna, a luta em questão é uma luta ontológica-aletética, pelo ar-
rancamento do desvelado no interior do velado:
Só que o essencial para o desvelado não é essencial apenas pelo fato de tornar aces-
sível de algum modo o que aparece, mantendo-o aberto em seu aparecer, mas sim
pelo dado de o desvelado superar constantemente um velamento do velado. O desve-
lado deve ser arrancado ao velamento, de certo modo deve ser roubado. [...] o vela-
mento perpassa e domina a essência do ser como um velar-se, determinando, assim,
também o ente em sua presença e acessibilidade (‘verdade’) [...] Verdade significa,
de início, aquilo que foi arrancado ao velamento. Verdade é, portanto, esta conquista
pela luta, a cada vez sob a forma do desencobrimento.742

Como se pode observar nesse trecho importante, a verdade não é uma descoberta está-
tica, algo que se desvela por já estar de antemão pronto, à espera de ser conhecido. Ao contrá-
rio, a verdade é um embate. Há algo de agônico nesse processo de provocação, de desterro do
ser que é impelido a “vir para fora”, a ser subtraído do seu estado de retraimento e velamento.
O desvelamento (Unverborgenheit) depende, portanto, do desencobrimento (Entbergung)743,
que é a ação existencial eidética de arrancar o ser do seu estado de velamento, de desencobri-
lo pela visada do sua ideia.
Importa ressaltar que, para Heidegger, Platão só pôde retratar a essência da verdade
com uma alegoria porque, de fato, a palavra registra uma experiência fundamental, autoevi-
dente para os gregos. Se não fosse essa facticidade fundamental, a alegoria careceria de um
lastro determinado para a “concretização plástica” que efetua 744. Quer dizer, a alegoria opera a
partir de um símbolo que toma uma dimensão ontológica e existencial específica para metafo-
rizá-la em uma imagem plástica que a torne imediatamente visível. A luta do filósofo na ca-
742
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 233-234. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
743
Cf. HEIDEGGER, Martin. De l’essence de la vérité. Approche de l’ “allégorie de la caverne” et du Théétète
de Platon. Trad. A.Boutot. Paris: Gallimard, 2001. p. 94 (§9, c).
744
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 236. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
295

verna alegoriza o conflito intelectual daquele que, efetiva e existencialmente, volta-se cons-
tantemente às ideias e rechaça o aspecto ilusório e aparente das sombras com que se defronta
diariamente, assim como refuta a opinião delas decorrentes. Deve-se notar, ainda, que essa
experiência fundamental seria inacessível se não permanecesse, ela mesma, velada no interior
da semântica da palavra aletheia. De outro modo, as gerações posteriores jamais intuiriam
essa dimensão ontológica essencial desencoberta pelos gregos.
Nesse contexto, o que vem a ser efetivamente a educação filosófica baseada nesse
desencobrimento-desvelamento da verdade? Heidegger esclarece que não se trata, de modo
nenhum, da transmissão reificada de conhecimento, um “entulhar a alma despreparada com
meros conhecimentos, como se faz com um recipiente vazio, que se apresenta arbitrariamen-
te.”745 Nessa caracterização se faz sentir a crítica platônica à pedagogia sofística, que se limi-
tava a incutir argumentos retóricos e métodos refutatórios na alma dos alunos.
Com efeito, na chegada de Sócrates ao Banquete(175d), Agatão deseja reclinar-se ao
lado dele a fim de sorver o “pensamento excelso” em que se deteve, demoradamente, antes de
adentrar no recinto da celebração. Sócrates refuta veemente a possibilidade de se alcançar o
pensadosem a reflexão de que ele é o resultado, isto é, sem o pensamento. Ou seja, não se
pode aprender simplesmente o resultado doutrinário sem a investigação filosófica que o ge-
rou. Ao convite erótico de Agatão, Sócrates condena, simultaneamente, a pedagogia pederasta
assimétrica – que apresenta um polo fálico, ativo e masculino em contraposição a um polo
passivo, feminino que recebe o conhecimento por pura assimilação – e a noção reificada de
conhecimento – que alega ser possível transmiti-lo como uma coisa que é transportada de um
recipiente para o outro, esvaziando o primeiro e preenchendo o receptor, consoante a metáfora
obscena de Sócrates:
Seria bom, Agatão, lhe falou, se com a sabedoria acontecesse isso mesmo: pela sim-
ples ação de contato, passar de quem tem muito para quem está vazio, tal como se dá
com a água, que escorre por um fio de lã, da copa cheia para a que tem menos. 746

Distante dessa concepção coisifica de saber, a pedagogia platônica é uma conversão


de toda a alma (periagoge holes tes psyches): “a guia que conduz para a transformação de
todo o homem em sua essência” 747, como Heidegger traduz essa passagem fundamental da

745
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 233-234. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
746
PLATÃO, O Banquete. Tradução e introdução Carlos Alberto Nunes. Coordenação Benedito Nunes e Victor
Sales Pinheiro. Edição bilíngue. Belém: Ed.Ufpa, 2011. p. 83 (175d).
747
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p. 228. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
296

alegoria da caverna, em que a formação (paideia) é conceituada. A educação diz respeito a


uma “transformação [que] concerne ao ser homem e, por isto, se realiza no fundo da sua es-
sência.”748 Se não houvesse a possibilidade de o homem aceder às formas inteligíveis, isto é,
de aceder à essência eidética que se desvela nos entes, não haveria educação. A educação não
confere a vista a um homem antes cego, mas a converte ao lugar luminoso, liberta-a da caver-
na dos sentidos em que está aprisionada.
É da essência da liberdade do próprio homem a possiblidade de ver na claridade onto-
lógica da verdade, do desvelado. Mas é da natureza do homem, também, encontrar-se preso
na caverna dos sentidos. A educação filosofia da liberdade é uma “guinada” que infunde uma
“postura”, um “comportamento firme”, a partir de um “empuxo que já sustenta a essência do
homem.”749 Educação é a conversão que concede ao homem a liberdade de contemplar a ver-
dade, o desvelado dos entes, o seu ser, a sua essência eidética, a ideia. É por isso que Heide-
gger denomina esse estado pedagógico como um “deter-se no constante”, constante como
aquilo que se presenta, e permanece estável ao olhar eidético, ou seja, a ideia. Essa sophia
conquistada a cada vez que se contempla a ideia – deve-se contemplá-la recorrentemente, pois
ela não é vista e adquirida de uma vez por todas, como já assinalado – torna-se o “padrão de
medida” da caverna, pois só o estável e constante pode servir de critério sólido para avaliar o
que é incerto e variável. Se um padrão de medida fosse mutável, que segurança se teria no
juízo que dele provém? Heidegger elucida a natureza dessa sophia como o “desejo de ultra-
passar o que imediatamente se presenta e alcançar amparo no constante que se mostra por si
mesmo.”750 Ora, como se tem visto, a essência do ser é a ideia, o aspecto constante do que se
retém no desvelado da clareira. Por isso, “essa sophia é em si uma predileção e uma amizade
(philia) pelas ‘ideias’, que garantem o desvelado.”751
Desse modo, a educação é um processo contínuo e jamais plenamente realizado, exa-
tamente porque o homem sempre habita a caverna, mesmo que dela se tenha “libertado”. A
perseverança e a constância acima aludidas, consoante a consolidação do caráter filosófico,
dizem respeito a essa necessidade e coragem de preservar o olhar fixo nas ideias e não se dei-
xar confundir com as opiniões sensíveis que absorvem os prisioneiros da caverna. É por isso
que Heidegger afirma que a essência da paideia consiste em “libertar e consolidar os homens
748
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p. 228. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
749
Ibidem.
750
Ibid., p. 246.
751
Ibidem.
297

para a constância clara do olhar essencial.” 752 Portanto, para realizar a forma perfeita, o para-
digma de filósofo, deve-se, antes de tudo contemplar as ideias, agindo num mundo determi-
nado por elas753.
A alegoria da caverna - que Heidegger chama de “concretização plástica” de uma “ex-
periência fundamental” de ordem existencial e filosófica – é também exemplar e edificante,
porque é da natureza da formação paidêutica conformar o homem a um “paradigma normati-
zador”754, que, nesse caso, é o filósofo socrático, o qual se liberta da caverna e alcança a ideia
suprema do bem. Formação é “conformação prévia a uma visão normatizadora, que se chama
justo por isto de paradigma”, ao mesmo tempo, formação também significa “cunhagem e guia
por meio de uma imagem” 755. Ora, a alegoria da caverna é a imagem sensível dessa “postura
fundamental” almejada pela formação filosófica, a liberdade do ser-aí em contato com as
ideias. É por isso que a educação franqueia o “olhar essencial”, pois “apanha e transforma a
própria alma na totalidade, alocando o homem antes de tudo em seu lugar essencial e com ele
acostumando-o.”756 Esse lugar essencial é a clareira, em que a verdade pode se dar, como en-
contro do ser – que se desvela no horizonte eidético da luz – e ser-aí – que o desencobre pela
liberdade e transcendência do olhar eidético.
O mais importante para Heidegger, o que lhe parece ter consequências verdadeiramen-
te decisivas para a história da filosofia ocidental, é que esse “olhar essencial” voltado para as
ideias transforma a essência da verdade como desvelamento para o “olhar reto”757. O que sur-
ge, nesse primeiro início, é a correção da vista que se fixa no que é “mais ente do que as som-
bras”, isto é, os entes sensíveis. Heidegger traduz do seguinte modo essa noção central de sua
leitura da alegoria da caverna: “voltado, porém, ao que é mais ente, se-lhe-ia outorgado olhar
de maneira mais reta” (Rep. 515d 3-4). Em Platão, afirma-se a primazia da idea e do idein
frente à altheia; nele, a verdade torna-se orthotes, “a retidão do notar e enunciar”. Segundo

752
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p. 241. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
753
Ibidem.
754
Ibid., 229.
755
Ibidem.
756
Ibidem.
757
Ibid., p. 242.
298

Heidegger, “o notar iguala-se àquilo que deve ser visto”, resultando em uma homoiosis, “uma
concordância do conhecimento com a coisa mesma”758.
Ou seja, a ênfase não é mais no processo de desvelamento da coisa mesma (aletheia),
do modo como ela vem ao encontro do homem; ao contrário, a prioridade agora reside no
olhar corrigido à essência, que passa a ser considerada estaticamente como idea, como aspec-
to fixo e pronto para ser visualizado pelo olhar eidético. A verdade não é mais desvelamento,
porém correção – como explicado ao longo deste capítulo. O acontecimento essencial, do
ponto de vista da história do seer, que se dá com essa mutação platônica é o que Heidegger
chama de “processo tácito do assenhorar-se da idea sobre a aletheia”759. Tácito porque, como
afirma Heidegger no primeiro parágrafo do ensaio, a “doutrina de um pensador é o não-dito
em seu dizer”760, ou seja, embora não se encontre expressa essa transição, é possível aferi-la
pela ambiguidade de que se reveste o sentido de aletheia na alegoria: como desvelamento
(aletheia) - ela é um traço fundamental do ser que se desvela – e, também, como retidão do
olhar(orthotes, homoiosis), ela “torna-se uma caracterização do comportamento humano fren-
te ao ente.”761
A consequência de Platão ter “localizado” a verdade na visão eidética é, para dizê-lo
em termos da teoria moderna do conhecimento, a primazia da epistemologia sobre a ontolo-
gia. É o “enunciar judicativo” que será o locus da verdade e da falsidade; a veracidade será
menos da própria coisa – consoante um modelo de realismo ontológico - do que do juízo que
a exprime – conforme um modelo de adequação epistemológica. Segundo Heidegger, essa
determinação essencial da verdade como adequação e homoiosis baliza todo o pensamento
ocidental, de Aristóteles a S.Tomás, de Descartes a Nietzsche. Na verdade, a mudança que
culmina com a inversão nietzschiana se realiza na determinação do próprio ser do ente, no
modo como o se presenta o que se desvela, o ser, agora considerado como o aspecto exterior e
visual, a ex-posição da idea para um olhar retificado capaz de alcançá-lo. Ora, a ideia ainda
preserva algo da essência originária da verdade, na medida em que não é, ela mesma, a repre-
sentação judicativa, mas o que a torna possível, o que a fundamenta.
A ideia é “o resplandecer (mostrar-se)” que se refere ainda ao processo de desvela-
mento do ser do ente; ao mesmo tempo – e é isso que lhe confere a ambiguidade sublinhada
758
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p. 242. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
759
Ibidem.
760
Ibid., p.215.
761
Ibid., p. 243.
299

por Heidegger -, a ideia é o aspecto visual que se a-presenta e ex-põe para uma visualização
retificada, corrigida para direção dessa ideia. Portanto, a ideia é prova do desvelamento em
que a essência de um ente vem à tona e, simultaneamente, o aspecto visual fixo que se mostra
a um olhar reto, corretamente “posicionado”. Como se observa, trata-se de uma mudança on-
tológica, que concerne à determinação do ser do ente e que tem como consequência a instau-
ração da compreensão metafísica do ser do ente, agora experimentado como aquilo que está
“além” (met’ekeina) do que é considerado sombra e cópia. Em poucas palavras, “aaletheia
põe-se sob o jugo da idea”762, como se depreende também da explanação do capítulo anterior.
Para Heidegger, essa dominância ontológica da ideia é o fundamento do humanismo
metafísico que se inaugura com Platão. A paideia humanista ocidental é baseada no “esforço
em favor do ser-homem e a localização [de hegemonia] do homem no meio do ente” 763, que
domina a metafísica. Como explica Heidegger, traça-se um círculo que determina a essência
deontológica do homem, como ser que deve conquistar a sua natureza:
Isto acontece pela cunhagem de uma postura ‘ética’, como redenção da alma imor-
tal, como desenvolvimento das forças criativas, como aperfeiçoamento da razão,
como cuidado da personalidade, como despertar do senso comum, como disciplina
do corpo ou como acoplamento adequado de um ou de todos esses ‘humanismos’. A
cada vez traça-se um círculo determinado metafisicamente ao redor do homem...764

Do ponto de vista da história do seer, base de toda a meditação confrontativa de Hei-


degger com Platão, o mais importante é que essa “decisão” a respeito da essência da verdade
não foi tomada pelo homem. Pela destinação epocal do ser, o homem foi colocado no centro
do ser, neutralizando, assim, a essência originária da verdade. Mas isso ocorre à revelia do
homem, pois não foi ele quem se projetou no interior da clareira a fim de dominá-la. Não foi
Platão ou os gregos que fizeram isso. O primeiro início da filosofia é uma destinação histórica
da epoché do seer. Os gregos apenas testemunham essa viragem histórica do próprio seer. E
essa decisão do seer, que se deixa confundir com a entidade do ente, domina o próprio ho-
mem, que não pode superá-la por um ato de inteligência ou vontade. O homem está submetido
à metafísica humanista – e seus correlatos de formação filosófica e liberdade existencial - que
lhe foi imposta. A alegoria da caverna condiciona a “história da humanidade cunhada pelo
Ocidente”, segundo a qual “o homem pensa na perspectiva da essência da verdade como a

762
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. Ibid., p.242. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
763
Ibid., p. 247.
764
Ibid., p. 248.
300

retidão do representar de todo o ente segundo ‘ideias’ e avalia todo o real segundo valores” 765.
Importa menos saber quais as ideias e valores são instituídos do que reconhecer essa forma de
determinação metafísica da realidade do mundo, que é visualizado em ideias suprassensíveis e
é sopesado por valores. É o destino do Ocidente que foi decidido com essa viragem ocorrida
em Platão – a qual não é dele, de sua autoria, mas do ocorrida no interior da história destina-
mental do seer que nele ecoa:
O desvelamento concebido platonicamente continua subjugado à referência à visua-
lização, à notação, ao pensamento e à enunciação. Seguir essa referência significa
abandonar a essência do desvelamento. Não há nenhuma tentativa de fundamentar a
essência do desvelamento na ‘razão’, no ‘espírito’, no ‘pensamento’, no ‘logos’, em
qualquer espécie de ‘subjetividade’ que possa algum dia salvar a essência do desve-
lamento. Isto porque aquilo que aqui deve ser fundamentado ainda nem sequer foi
questionado suficientemente.766

A intenção geral de Heidegger por Platão não é de modo algum de fazer história da fi-
losofia ou propiciar o cultivo humanista do espírito clássico. O que está em jogo, de forma
condensada nesse pequeno texto heideggeriano, é a história do seer, a compreensão da história
da metafísica instaurada pela tradição platônica do primeiro início.

Nesse contexto, Heidegger enfatiza que o pensamento de Platão não é “histórico” no


sentido de pertencer ao conjunto de acontecimentos marcantes do passado, mas é “atualidade
histórica” que continua a irrigar o solo em que se movimenta a filosofia ocidental, pois é voz
do acontecimento apropriativo do seer, que nunca é “passado” no sentido de ser acabado, mas
sempre presente e vigente como destino epocal da histórica ontológica. A consequência do
Ocidente ainda depende daquele gesto inaugural da metafísica, “ainda inabalável e tudo do-
minando”767, o que a torna absolutamente imprescindível num momento em que a necessidade
de superá-la é iminente, urgente, isto é, quando o salto ao outro início se impõe diante do nii-
lismo que comporta o esgotamento final do platonismo metafísico. Desse modo, a essencia-
ção histórica da verdade em Platão não pode ser simplesmente inventariada historiografica-
mente, como uma concepção doutrinária passada, pertencente à arqueologia das ideias filosó-
ficas, ou do repertório helênico da cultura clássica, porque: “Aquela mudança da essência da
verdade está presente e atual como aquela realidade fundamental - de há muito firmada e, por

765
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p.249. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
766
Ibidem.
767
Ibid., p.248.
301

isto, ainda inabalável e tudo dominando – da história universal planetária que se desenvolve
em sua mais nova modernidade.” 768

Esse gesto inaugural do seer evocado por Platão impede o questionamento do ser, em
si mesmo considerado, o questionamento da diferença ontológica, porque o próprio seer envi-
ou-se alienado e retraído, permitindo ser confundido com a entidade do ente, a ideia como
presença constante. Ou seja, o próprio seer, retraindo-se e escondendo-se, desvelou-se como
idea, subjugando o fenômeno originário da aletheia como eclosão e desabrochar espontâneo
da physis à correção do juízo que se adequa, retifica à idea (orthotes, homoiosis, adequatio).
Todo esforço especulativo de Heidegger direciona-se para a evidenciação do caráter impensa-
do desse primeiro início, mediante um salto que proceda ao outro início não-metafísico do
pensamento. Para tanto, é necessário explicitar o impensado no já-pensado, sendo o texto pla-
tônico de fundamental importância como locus em que essa mudança essencial e epocal da
verdade do seer foi registrada. Desse modo, o objetivo da meditação histórica, no contexto da
viragem ao pensamento histórico-ontológico do seer, é demonstrar a necessidade de o seer vir
a ser questionado não somente como a entidade-idea do ente, mas pela primeira e única vez
em seu próprio ser, isto é, no abismo de sua diferença.

Heidegger conclui esse texto-chave assim: “E visto que essa necessidade [de pensar a
diferença ontológica] é iminente, a essência inicial da verdade ainda repousa em seu início
velado.”769 O caráter velado desse início é a physis que é mais originária à consolidação pos-
terior da verdade como idea. Por isso, Heidegger recorre aos pensadores originários, para es-
cutar essa destinação originária do seer que foi velada no primeiro início da filosofia com Pla-
tão. Mas a riqueza de Platão se dá no fato de a sua obra registrar a passagem, permitindo não
só a visão prospectiva do que lhe sucedeu, mas, também, a visada retrospectiva do que a ante-
cedeu. Estudando Parmênides e Heráclito, Heidegger não perde Platão de vista. Ao contrário,
é mais uma vez o ateniense que atrai a meditação histórica do seer, pois o outro início é arran-
cado do impensado no primeiro início. Sem o esquecimento e a retração do seer (lethe), a ver-
dade (aletheia) não pode eclodir (physis), essenciando uma épocahistórica.

768
HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade. p.248. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 215-250.
769
Ibid., p. 250.
302

3.7História essencial da verdade do seer: o dizer mítico da lethe

No semestre invernal de 1942-1943, dois anos depois da composição do ensaio decisi-


vo ‘A teoria platônica da verdade’, Heidegger ministra um curso denominado Parmênides.
Em dois parágrafos centrais deste curso (§§6 e 7), Heidegger centraliza a discussão em torno
do mito de Er, constante do Livro X d’ARepública de Platão, no que concerne à questão do
desvelamento (aletheia)e do velamento-esquecimento (lethe). Tal como explicitado ao longo
do curso, o mito de Er condensa os elementos centrais da meditação histórico-ontológica de
Heidegger sobre a verdade: o desabrochar da physis, o desencobrimento do olhar eidético
(idea), a retração inerente à destinação histórica do seer (lethe) e a clareira (Lichtung) como
espaço-tempo de mostração dos entes (aletheia).
Em consonância com a natureza agônica e conflitiva da compreensão da verdade co-
mo clareira, que não elide a escuridão que a rodeia, a intuição central do curso é a de que não
se pode compreender a essência da verdade (aletheia) sem a sua contra-essência, a não-
verdade (lethe). A lethe configura-se como o esquecimento da verdade oriundo do retraimento
e auto-encobrimento do seer que se dá no ato mesmo de a verdade se desvelar como clareira.
No primeiro parágrafo do curso, Heidegger sintetiza essa intuição fundamental: “Na essência
da verdade como do des-encobrimento vige uma espécie de luta com o encobrimento e com o
retraimento.”770 Em seguida, o autor reforça que “‘verdade’ não é jamais, ‘em si’, apreensível
por si, mas necessita ser ganha na luta. O desencobrimento é conseguido do encobrimento, em
luta agônica com ele.”771 Essa essência agônica da verdade diz respeito à verdade desvelante-
ocultante da essenciação do seer. Com efeito, toda a meditação histórica heideggeriana con-
cerne à ambiguidade essencial da a-letheia, que revela o “aclaramento ocultante” do aconte-
cimento apropriativo do seer, conforme fórmula lapidar de Contribuições772.
Essa ambiguidade fundamental e constitutiva é registrada de maneira única no mito de
Er, que complementa e desenvolve a reflexão sobre a essência da verdade realizada a partir da
alegoria da caverna. Nesse mito final d’A República, a mútua pertença da verdade (aletheia) e
encobrimento (lethe) é exposta de modo essencial, epocal, permitindo a experiência da verda-
de originária, mediante o salto ao impensado do outro início. Só assim se pode “experimen-

770
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.30 (§1,b).
771
Ibid., p. 35 (§2,a).
772
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.284 (§227: Acerca da essência da verdade).
303

tar” a verdade do seer ele mesmo, “a luta que acontece na essência da verdade” 773, para além
da reificação da tradição metafísica do primeiro início. Como diz Heidegger: “Todo empenho
de pensar a a-letheia de modo adequado, mesmo a distancia, decai para a futilidade, quando
não ousamos tentar pensar a lethe, para a qual a aletheia provavelmente remete.”774 Ou seja,
pensar a verdade como lethe é uma provocação do próprio seer que se envia retraído no acon-
tecimento apropriativo que instaura o espaço-tempo da clareira enquanto “aclaramento ocul-
tante”.
Para entender a complexidade dessa questão – o pensamento do acontecimento apro-
priativo do seer enquanto clareira da aletheia que preserva antagonisticamente o encobrimen-
to que a constitui -, convém remontar à discussão desenvolvida no primeiro capítulo e acom-
panhar os dois elementos fundamentais do parágrafo introdutório do cursoParmênides. Nele,
explica-se por que a intuição da essência conflitante da verdade como des-encobrimento não
diz respeito 1. a uma hipótese historiográfica e 2. a uma hipótese filológica. Além disso, é
necessário compreender a dimensão histórico-essencial da palavra fundamental do mito, com
que o seer ganha voz e expõe, assim, a sua natureza alethética, é dizer, desvelante-ocultada.
Autora de obra imprescindível sobre esse tema, Zarader lembra que a “exatidão histó-
rica, ou mesmo filológica” importa menos do que “a verdade da origem”, pois a intenção de
Heidegger é “clarificar aquiloa partir do qual eles [os filósofos originários] falavam e pensa-
vam”775. Para tanto, ele delineia o “espaço de inteligibilidade dos nossos próprios conceitos,
dos nossos próprios pensamentos – numa palavra, da nossa própria história, já que esta foi
inaugurada por essas palavras, e por nenhumas outras.”776
A essência conflitiva da verdade não pode ser pensada ou compreendida do ponto de
vista historiográfico, da ciência histórica, em que vige a metafísica da verdade como correção.
O curso sobre Parmênides se insere, de modo intenso, na fala essencial do pensamento do
acontecimento apropriativo, no qual o próprio pensamento é mobilizado pelo seer e o ecoa
verbalmente. Para além de uma fala representativa e objetiva, a fala do acontecimento apro-
priativo aponta, mostra e experimenta a clareira da verdade, em meio ao obscurecimento que
lhe pertence. Como adverte Heidegger em ‘Tempo e ser’: “não se trata de ouvir uma série de

773
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.35 (§2,a).
774
Ibid., p.27 (§1,b).
775
ZARADER, Marlène. Heidegger e as palavras de origem. Trad. J. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
p.106.
776
Ibidem.
304

frases que enunciam algo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar” 777. Só assim
se pode superar a metafísica do juízo enunciativo e predicativo que pressupõe o predomínio
da fundamentação do ser a partir do ente.
Com efeito, as primeiras palavras das preleções nomeiam os pensadores originários,
Parmênides e Heráclito, considerados “pensadores essenciais”, uma vez que lograram pensar
e experimentar o verdadeiro em sua essência, numa “co-pertença única no início do pensar
ocidental”778. Ora, esse verdadeiro é exatamente a aletheia do seer, que só pode ser experi-
mentada em meio ao acontecimento apropriativo (Ereignis), a partir da meditação histórica
sobre o inicial (Anfängliche). O pensado nesse pensar essencial é sempre histórico, mas não
no sentido de ser cronologicamente delimitável ou organizável na descrição científica dos
fatos passados, num intento historiográfico qualquer. A história essencial é refratária a toda
redução cientificista dos eventos que a constituem, ao pensamento calculador que pretende
manipulá-los e sistematizá-los. O início visado pelo pensar essencial é histórico porque “pre-
cede e antecipa toda a história sucessiva” 779. O início não se dá em um determinado momento
temporal e se esvai, como um fato fugidio sem significação posterior. O início instaura uma
época pela destinação epocal do seer.
Por isso, o início é o que vem por último, só sendo pensável no termo do processo his-
tórico que consuma a sua destinação retraída. No início, o princípio aparece de modo oculta-
do, vindo a manifestar-se historicamente, mesmo que seja sob a forma invertida de seu esque-
cimento. A intensificação do esquecimento-retração (lehte) é atributo essencial da verdade
(aletheia) do seer. Ou seja, só o futuro pode delimitar o que, desde o princípio, permanece
latente e velado. Como diz Heidegger em ‘Carta sobre o humanismo’, “o advento do ente re-
pousa no destino do ser”780. Pensar o início, o princípio (arché), é confrontar-se com a coisa
mesma do pensamento a partir das palavras fundamentais que verbalizam o seer que se envia
na configuração de uma época histórica. Os pensadores essenciais, portanto, confrontam-se
com a origem epocal e ontológica da história do seer, denominando-se “pensadores originá-
rios” (anfängliche Denker)781.

777
HEIDEGGER, Martin. ‘Tempo e ser’. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os pensadores. Trad.
Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.260.
778
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.13 (§1,a).
779
Ibid., p. 14 (§1,a).
780
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein.
Petrópolis, Vozes, 2008. p. 343.
305

Normalmente denominados “pré-socráticos” ou “pré-platônicos” por uma historiogra-


fia que os considera antecâmara (anteaurora) de Platão e Aristóteles, esses pensadores são
Anaximandro, Parmênides e Heráclito. A confrontação com a coisa mesma do pensamento,
com a destinação histórico-epocal do seer, exige a meditação histórica em diálogo com esses
pensadores originários. Só assim pode-se realizar a meditação história do seer, pois só nas
suas palavras fundamentais o início encontra-se latejante e é pensado de modo radical, origi-
nário. Por essa razão, Heidegger dedica um curso a Parmênides, em seguida um a Heráclito 782
e um alentado ensaio sobre Anaximandro 783, além de inúmeras referências esparsas ao longo
nas obras depois da viragem de seu pensamento.
No contexto da história essencial do seer, interessa-lhe escutar as palavras fundamen-
tais desses pensadores originários, principalmente a noção de physis e logos em Heráclito,
aletheia em Parmênides e khreon em Anaximandro. É a confrontação histórica com essas
palavras fundamentais que permite pensar o que é efetivamente pensado por esses pensadores,
uma vez que o distanciamento em relação a eles não se deu somente do ponto de vista crono-
lógico, mas, primordialmente, do ponto de vista filosófico. Isto é, a tradição metafísica que se
interpôs entre o pensamento do presente e o pensamento originário impede uma confrontação
adequada com essas palavras, que devem ser perscrutadas mediante o procedimento da des-
truição da história conceitual tradicional que as neutraliza.
Com efeito, com o retorno meditativo aos pensadores originários, Heidegger perfaz o
projeto de destruição da história da ontologia, imergindo na tradução originária nas palavras
fundamentais que ecoam o acontecimento apropriativo do seer como physis e logos, e da ver-
dade do seer como aletheia. O binômio destruição e tradução franqueia o acesso à experiência
do primeiro início do pensamento ocidental, assim como a compreensão da mudança na es-
sência da verdade operada em Platão e Aristóteles. Como assinala Benedito Nunes, a destrui-
ção – projeto de Ser e tempo que, redimensionado pela temporalidade do ser, se completa no
segundo Heidegger - é um “meio de desobstruir a tradição, para reconquistar as fontes origi-
nárias que ela encobre ou disfarça” 784. Ao neutralizar a semântica consolidada da tradição, a

781
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.14 (§1,a).
782
Cf. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heraclítica do
logos. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
783
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de flo-
resta. Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
784
“A ‘destruição’ da História da Ontologia, que suspende a vigência da tradição cristalizada, encontra nesse
veio a fonte da historialidade autêntica, de que emerge, em contraposição ao curso histórico-filosófico das dou-
306

destruição aponta para uma tradução originária, que acompanhe o eco do seer na língua tradu-
zida, uma vez que o pensamento depositado nas palavras essenciais é reatualizável hermeneu-
ticamente quando a fonte de que ele provém for novamente mobilizada, isto é, o próprio acon-
tecimento do seer785. Ou seja, o caráter poético dessas palavras essenciais precisa ser recupe-
rado na língua em que elas são hoje recuperadas e repensadas, mas com base no mesmo acon-
tecimento que caracterizou o primeiro início do pensamento. Pois “o que é pensado” precisa
“vir à fala”, e isso se dá quando a palavra é falada em um “dito” (Spruch), que lhe confere
dimensão ontológica. Por sua vez, o “dito” provém da convocação (Anspruch) da palavra rea-
lizadora do pensamento. Como explicado no primeiro capítulo, é o próprio seer que convoca e
provoca o pensamento ontológico essencial. Por ser “exigência do ser”, “o ‘saber’ essencial
não domina sobre o que lhe é dado saber, mas é tocado por ele.” 786.
Heidegger entaiza sobremaneira esse aspecto receptivo e auditivo do pensamento es-
sencial, a fim de se afastar do “conhecimento de dominação” e “objetivação” da ciência mo-
derna, “um assalto técnico ao ente” que intervém na realidade em vista de uma orientação
ativa, produtiva, operosa e comercial787. O apoderamento técnico da ciência moderna - deri-
vação remota da tradição metafísica do primeiro início platônico da filosofia - impede o saber
essencial que se volta para o fundamento do ente, o ser.
Como o ser convoca o pensamento do “dito” das palavras essenciais, a meditação his-
tórica é inseparável da tradução poético-hermenêutica dos pensadores originários. O caráter
hermenêutico aqui significa exatamente que “a tradução adjunta já contém uma interpretação
do texto”788. Essa observação decisiva vale igualmente para a tradução comentada de Heide-
gger do mito de Er nesse mesmo curso sobre Parmênides, assim como procede no texto ‘A
teoria platônica da verdade’, em que o não-dito precisa vir à tona a partir do que é dito no
texto789. Esse procedimento implica a paráfrase e a tradução de uma palavra por uma locução
ou oração.

trinas e sistemas, o momento inicial, principativo, de uma História do ser.” NUNES, Benedito. Passagem para o
poético – Filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992, p. 214, 216.
785
Ibid., p. 216.
786
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.16 (§1,a).
787
Ibid., p. 16-17.
788
Ibid., p. 16.
789
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘A teoria platônica da verdade’. p. 215 ss. In: Marcas do caminho. Trad.
E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.215-250.
307

Tal como delineado no item 1.8, o pensamento essencial se volta ao início (Anfang),
que é a origem, o princípio de todo acontecimento histórico 790. Trata-se da arché, do princípio
que permanece vigente ao longo do processo histórico desencadeado, e não o começo (Be-
ginn)791 que se esvai e é superado tão logo a marcha do tempo se afasta dele. O pensamento
essencial desenvolvido na confrontação com os pensadores originários visa ao histórico, que é
o próprio seer. “O ser é a origem”792, é o que é efetivamente pensado pelos pensadores origi-
nários. O pensamento essencial é, portanto, o pensamento do ser. O pensar essencial é a con-
frontação com a história do seer do qual o pensador originário emerge, “diz sua palavra e,
assim, funda um lugar para a verdade no interior de uma humanidade histórica.” 793 Ao pensar
o seer, o pensador originário o acolhe, retrai-se diante da convocação dele e verbaliza a essen-
ciação do seu acontecimento que a ambos – ser e pensador - apropria. O pensador originário
“não ‘toma’ a origem como um pesquisador ‘agarra’ uma coisa”, tampouco a considera uma
“construção autoproduzida pelo pensamento”, para produzir algo ou agir de certa maneira 794.
A origem ontológica (o seer) não depende do pensador originário, mas, ao contrário, a origem
o origina. É o pensador originário que é originado (An-gefangenen) pelo princípio (An-
fang)795. Ser originado pelo seer é retrair-se diante dele e deixar-se apropriar por ele em meio
ao acontecimento apropriativo. É isso que Heidegger quer dizer ao afirmar que o pensador é
alcançado, “colhido” pelo ser e para dentro do ser, reunido a partir do ser796.
O pensamento originário nos é distante, remoto demais para ser alcançado com uma
simples consulta a um manual de história da filosofia que elucide o pensamento de Heráclito,
Parmênides e Heráclito. Tampouco pode-se alcançá-lo mediante a tradução filológica dos
fragmentos legados por eles, a fim de atualizá-los diretamente ao contexto contemporâneo.
Para se confrontar com os pensadores originários é necessário compreender a tradição que os
liga até nós. Tradição é transmissão, herança, passagem sucessiva do pensamento à geração
posterior. Ainda que seja dinâmica, a tradição filosófica consolida-se em formas e estruturas

790
Cf. HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Trad. L.Nahodil. Lisboa: Piaget, 2004. p.11.
791
Em consonância com o primeiro capítulo, traduz-se Anfang por “início” e Beginn, por “começo”, diferente do
tradutor brasileiro, S.M. Wrublevski.
792
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.21 (§1,1).
793
Ibidem.
794
Ibid., p. 22.
795
Ibidem.
796
Ibidem.
308

mais ou menos fixas, estabilizadas por palavras que registram modos de abertura histórica do
ente na totalidade. Essa abertura provém do acontecimento apropriativo do seer que configura
uma época histórica. Portanto, para chegar até o pensamento originário deve-se considerar a
intermediação histórica da tradição, que encerra uma “mudança essencial da verdade”797.
Como já visto, essa mudança essencial se dá na obra de Platão, sendo especificamente obser-
vável na alegoria da caverna. Essa camada tradicional que obstrui o caminho ao pensamento
originário deve ser destruída,para liberar a convocação do seer retraído nas palavras funda-
mentais.
Desse modo, a meditação histórica do pensamento originário é histórico, não num sen-
tido historiográfico, que elenca conceitos variados de verdades e os analisa conforme um cri-
tério de correção ou incorreção, o qual, por sua vez, já se baseia na vigência de uma essência
da verdade. A meditação heideggeriana é histórica porque fundamenta-se na essência do pró-
prio ser, que essencializa a verdade. Com efeito, Heidegger afirma que: “História ‘é’ a trans-
formação da essência da verdade” 798. Isso porque a história essencial (Geschichte) é aconte-
cimento (Geschehen): destino, envio do seer (Geschicht). O seer se destina no tempo, essenci-
ando a verdade temporalmente. A verdade de essencia como história, destinação do ser. Esse
envio do seer é epocal, porque ele se envia retraído, suspenso, ocultado. A história é, então, a
transformação epocal da essência da verdade. Essa é a formulação precisa de Heidegger: “’A
história’, concebida essencialmente, isto é, pensada em termos do fundamento da essência do
próprio ser, é a transformação da essência da verdade.”799. Ora, o envio retraído do ser que
abre o ente na totalidade é sempre anterior a todo acontecimento factual, que aparentemente
condiciona o curso da história quando o tempo é objetivado pela historiografia. Formada pe-
los eventos “e realizações, os dados (Sachen) e ações (Taten), em uma palavra, os fatos (Tat-
sachen)”800, a historiografia é a objetivação, leia-se, entificação do tempo. Volta-se ao ente, e
não ao ser que o desvela. A historiografia é ontologicamente inessencial e passa ao largo do
acontecimento apropriativo que fundamenta a possibilidade mesma de referir-se à correção
discursiva dos fatos descritos e narrados.
No contexto dessa fala essencial, a palavra mítica desponta como modalidade primor-
dial do pensamento originário. Heidegger considera a permanência do mito na filosofia platô-
797
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 85 (§3, 3).
798
Ibidem.
799
Ibidem.
800
Ibid., p. 86.
309

nica um dado extremamente relevante, que o caracteriza como pensador da transição, ainda
arraigado no pensamento originário que ecoa poeticamente a voz do ser em palavras essenci-
ais, como lethe. Por plasmar e configurar o seer, o acontecimento apropriativo da aletheia só
pode ser pensado a partir das palavras fundamentais. Nesse sentido, despontam os fragmentos
poéticos de Parmênides, Heráclito e Anaximandro, assim como a alegoria da caverna e o mito
de Er de Platão, os quais registram a dimensão poética da verdade do seer.
O mito conserva a “recordação do pensar primordial”, uma vez que a palavra mítica só
pode ser dita e ouvida “em sua forma propriamente essencial” 801. Por isso, só o mito pode
tratar do “lá”, da dimensão escatológica do que se passa depois da morte terrena, do lugar
daimônico em que se revela a aletheia. Heidegger se esforça para afastar as representações
hebraico-cristãs de céu, inferno, limbo e purgatório, uma vez que a concepção grega de “aqui”
e “lá”, que estruturam os “lugares” do mito de Er, são diferentes “em forma” e “existência”,
consoante um modo de experiência diversa do ser. Como se verá no próximo item, esses luga-
res não são transcendentes, não estando o “lá” em um plano religioso ou metafísico diverso,
“acima” da terra de modo religioso. O extraordinário desponta no ordinário, é uma forma di-
versa de iluminá-lo, de revelá-lo, ao mesmo tempo de encobri-lo. Só o mito pode falar a ver-
dade do desvelamento desse plano extraordinário, que os gregos chamavam divino.
O fato de a verdade ser uma deusa no poema de Parmênides responde exatamente à
vinculação ao mítico e ao divino. Não se trata de mero recurso poético-alegórico de personifi-
cação de um conceito abstrato, uma espécie de hipostasiação filosófica 802, mas de convocação
do próprio ser. Com efeito, a dimensão do divino presente na fala essencial de Parmênides e
Platão indica o lugar essencial em que o pensador originário se encontra ao deixar-se apelar e
convocar pelo seer. Esse lugar é o daimonios topos.
Referindo-se às invocações à “musa” no principio dos poemas homéricos - ao refletir
sobre o princípio de essencialização da poesia enquanto “preservação originária do ser”
(Mnemosyne) -,Heidegger afirma que: “O poeta não invoca a deusa, o poeta, antes mesmo de
dizer a primeira palavra, já é convocado e posto sob o apelo do ser e assim um salvador do ser
diante do retraimento ‘demoníaco’ do encobrimento.” 803 Ou seja, o mítico nunca é uma in-
venção poética, uma atividade de criação (poiesis), nem pode ser o resultado de uma busca
intelectual. A palavra mítica sempre é uma “resposta” ao apelo do seer que se apropria do ser-

801
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 143 (§6,c).
802
Cf. ibid p. 19 (§1, a).
803
Ibid., p. 183 (§7, 1).
310

aí do homem como o seu local de essenciação verbal. Como dizer fundamental e essenciante,
a saga mítica de Er, portanto, é a resposta “à palavra que o próprio ser dirige à essência do
homem e somente assim aponta para as veredas de uma busca e investigação no âmbito do
que se lhe descobriu previamente.”804.
Para que o homem possa ser o local de verbalização do seer, é necessário que seja do-
tado de logos, que seja essencialmente caracterizado como zoo logon echon, expressão aristo-
télica cuja tradução essencial de Heidegger é: “o ente que emerge no nomear e dizer, e que, no
dizer, mantém sua essência.”805 O homem mantém a sua essência ao nomear o seer, porque
esse é o modo como ser e ser-aí se essenciam em meio ao acontecimento apropriativo (clarei-
ra). Ao nomear o seer, o homem reside na clareira do desvelamento. Pensado a partir da es-
sência do desencobrimento, “o encobrimento que se retrai [o seer] é aquilo que, em grau mais
elevado, acorda, afina e sintoniza a essência do homem com a conservação e a fidelidade.” 806
O acontecimento do seer – que apropria o ser do homem e se essencializa na verbali-
zação das palavras fundamentais pronunciadas pelo homem - é o “encobrir-se que retrai e se
retrai”807. Segundo Heidegger, a essência do homem, tal como pensada pelos gregos, é deter-
minada a partir da relação com o “ser auto-emergente”, que se retrai no apelo silencioso ao
homem. A resposta do homem, de que depende a sua essência, é a palavra, enquanto “ação de
deixar aparecer o ser, nomeando-o segundo a vigência da palavra.” 808 O que está em questão
aqui, para Heidegger, é o poder apofântico do logos, pois “o nome, como a primeira palavra,
deixa o que é designado aparecer na sua presença primordial.” 809 A essência do homem de-
pende do acolhimento do seer em meio ao acontecimento verbal de nomeação ontológica com
que o ser se essencia historicamente. Diz Heidegger: “A palavra como ação de nomear o ser,
o muthos, nomeia-o no seu ver primordial a partir do interior e no seu brilhar” 810, ou seja,
quando se põe no espaço de desencobrimento da aletheia.

804
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 184.
805
Ibid., p. 162 (§6, f).
806
Ibid p. 184 (§7, 1).
807
Ibidem.
808
Ibid., p. 162.
809
Ibidem.
810
Ibidem.
311

Esse espaço é denominado daimonios topos, porque, nele,o divino se desvela, ou seja,
o âmbito extraordinário da realidade ordinária é desencoberto pelo olhar desencobridor. E o
único modo adequado de verbalizar o desencobrimento do seer – que sempre se retrai e se
vela no abismo da sua diferença – é o mito. O mítico, portanto, é o divino (to theion, to dai-
monion), que verbaliza a essenciação do ser que aparece desencoberto na clareira (aletheia).
A essência do seer é determinada com base no desencobrimento, “por isso o divino, como a
ação de aparecer, e como o que é percebido no aparecer, é o que há que ser dito e o que é dito
na saga.”811
Como se pode perceber, a essência do homem depende do envio desvelado e retraído
do seer na clareira, que é o espaço daimônico de aparição do extraordinário. O ser que se de-
sencobre é o divino, o extraordinário, que apela a essência do homem para que seja essencia-
do na palavra que o nomeia primordialmente. Situado no interior do espaço daimônico do
extraordinário (clareira), o homem nomeia o divino do seer que se desencobre na palavra fun-
damental do acontecimento apropriativo. A essência do homem diz respeito à sua capacidade
de responder ao apelo verbal do seer, de torna-lo palavra ontofântica, mediante a palavra fun-
damental do mito sobre o divino, o extraordinário. Essa essenciação só pode se dar no interior
da clareira, do espaço daimônio em que o seer se envia retraído, como lethe. Nesse sentido, a
essência do ser provoca a essência da divindade e da humanidade. Argumenta Heidegger:
É por isso, então, que o homem na experiência grega, e somente ele, em sua essência
e de acordo com a essência da aletheia, é aquele que diz o divino. Porque é assim,
isso somente pode ser entendido e pensado com base na essência da aletheia, na
medida em que esta vige de antemão através da essência do próprio ser, através da
essência da divindade e da essência da humanidade, e através da essência da relação
do ser com o homem e do homem com os entes.812

O mito de Er, portanto, não é uma invenção criativa ou alegórica de Platão, mas é a
imersão do pensamento do acontecimento apropriativo do seer, que se dá no dinamismo anta-
gônico de aletheia e lethe. Com efeito, “o muthos da lethe, aliás silenciado, ainda está em
vigor”, de modo que o mito platônico da lethe “continua sendo pensamento em, e não apenas
um pensamento ‘sobre’ a lethe.”813. Esse mito “é um “dizer pensante” que invoca a verdade
do ser como aletheia, “preserva e resguarda o desvelamento originário da lethe”814. O silenci-

811
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.162.
812
Ibidem
813
Ibid., p.185.
814
Ibidem.
312

amento do mito se dá com a sua subjugação pelo logos metafísico-representativo, hegemônico


na tradição do primeiro início. Essa é o traço mais saliente do esquecimento do ser.
Heidegger identifica, no mito de Er, a mudança epocal na essência da verdade, do ser
e do homem, característica do primeiro início da metafísica. Se o mito evidencia a correlação
essencial entre aletheia e lethe, em Platão ainda vigora a experiência fundamental da verdade
como desvelamento – que resulta em uma compreensão específica da essência do esqueci-
mento com retraimento do próprio seer (lethe). Por outro lado, no mesmo mito a noção de
verdade está em vias de ser transformada em uma noção “metafísica” e antropocêntrica de
correção, uma vez que lethe passa a ser considerada, também, como ato psicológico de es-
quecimento humano. A mudança é, simultaneamente, na essência da verdade e na essência do
homem que a recebe num ato de desvelamento ou a projeta num ato de representação correta,
adequada, retificada. Mas a aletheia-adequação provém essencialmente da aletheia-
desvelamento, de modo que a lethe-esquecimento é a derivação metafísica da lethe-
autoencobrimento-do-seer. Trata-se de uma consequência epocal do próprio envio retraído do
seer que provoca a nomeação mítica com que se realiza a essência do homem. Isso significa
que “a história da Grécia se inclina para a completude das possibilidades de sua essência” 815,
pois, como explica Heidegger, “a lethe já não é experimentada puramente num e por um acon-
tecimento de apropriação de um envio, mas pelo comportamento e atitude do homem, pensa-
dos no sentido do ‘esquecimento’ posterior”.816
Com a insurgência do pensamento metafísico, memória e esquecimento perdem a sua
dimensão propriamente ontológica, de acompanhamento do acontecimento do seer que se
manifesta (retenção da memória) e se esquiva no retraimento (caindo em esquecimento). Se o
esquecimento for compreendido de modo autenticamente ontológico, a memória também re-
cupera sua dimensão essencial, pois a aletheia é “preservação e conservação do que se salva
da perda”817, isto é, do seer que é lembrado, que é trazido à memória, que não se deixa se en-
cobrir no olvido. “Desencobrimento e conservação, aletheia e menemai, vigem e reinam jun-
tos.”818 Nesse contexto, memória e esquecimento tornam-se a essência do homem; é por isso
que o princípio de essencialização da poesia, enquanto Mnemosyne, é “a salvação originária

815
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p.187 (§7, Recapitulação 2).
816
Ibidem.
817
Ibidem.
818
Ibidem.
313

da liberdade e a preservação originária do ser”819. A liberdade é a essência do homem, é a


preservação do espaço extraordinário da clareira em que o ser se desencobre. A retenção desse
espaço divino, em que o homem verbaliza o ser, constitui salvação originária da liberdade do
homem. Essa é a “conexão essencial entre ser e desencobrimento, entre desencobrimento e
salvação contra o encoberto, entre salvação e preservação, entre ser e palavra, entre palavra e
saga, entre saga e poesia, entre poesia e pensamento”820 O desencobrimento do ser depende da
disposição livre do homem de deixar-se apropriar pelo seer em meio ao acontecimento alethé-
tico. Com isso, o homem preserva o ser no desencoberto da clareira, nomeando-o essencial-
mente na palavra pensante do mito. Do mesmo modo, o homem salva o ser do desencoberto
que o circunda essencialmente (lethe), preservando-o na palavra mítica que o essencializa. É
por isso que o mito de lethe “preserva e resguarda o desvelamento originário da lethe”821e, ao
mesmo tempo, nos ajuda a pensar a aletheia do ser.
Segundo Heidegger, a razão do uso de mitos em Platão, motivo de incessante contro-
vérsia entre os estudiosos de filosofia antiga, se dá exatamente pela necessidade de o pensa-
mento metafísico inicial preservar a recordação do pensamento primordial (mítico). Essa é a
ligação de Platão a Parmênides, ao mesmo tempo em que Platão se vincula a Aristóteles, que
lhe segue os passos do pensamento metafísico, excluindo o mito da filosofia. Platão é o inters-
tício entre o mítico e o metafísico, ocupando, portanto, um papel epocal absolutamente in-
comparável na história do primeiro início da filosofia ocidental.
Como “essência do logos”, do seer que vem à fala, a palavra mítica “pode ser dita e
ouvida somente em sua forma propriamente essencial” 822. Ou seja, o mito resiste ao desgaste
semântico, à corrosão de sentido que o uso instrumental cotidiano promove às palavras em
geral. Correspondente à natureza da aletheia (Ereignis), o mito é uma proteção da palavra do
seer, ocultando-a. O mito não abandona a palavra essencial que profere no “vazio do mero
entretenimento e do palavrório sem compromisso”823, em que ela é dissipada e reificada em
meio às vicissitudes do pensamento metafísico do ente e das ciências ônticas em geral. Imune
à entificação, a palavra do mito alberga o seer que se retrai da curiosidade barulhenta, da ver-

819
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 183.
820
Ibidem.
821
Ibid., p. 185.
822
Ibid., p. 144.
823
Ibidem.
314

borragia prosaica da maquinação técnica, isto é “resiste à importunidade da explanação ordi-


nária”824. O mito conserva o extraordinário da intromissão alienadora da fala ordinária que
tudo acachapa à sua bitola instrumental e entificada.
Por essa razão, deve-se recorrer à própria palavra de Platão, deixá-la falar. Isto é, não
se pode aliená-lo em uma doutrina platônica posterior. Nesse sentido, Heidegger demonstra
preocupação em pensar Platão de modo autenticamente “grego”, sem confundi-lo com qual-
quer projeção “platonista” posterior825. Na confrontação com a coisa do pensamento da medi-
tação histórica, Heidegger confronta-se com a palavra mítica fundamental de Platão (ale-
theia), para remontar a experiência originário do acontecimento do seer que ela essencializa.
Conforme o pensamento do acontecimento apropriativo da verdade do seer, o mito é a
palavra essencial do seer, pois “unicamente na palavra o ser se revela”826. A palavra mítica
acompanha o movimento que caracteriza o acontecimento histórico-epocal do seer, isto é de
encobrimento e desencobrimento. Em virtude disso, quando o seer se manifesta na palavra
mítica, ele também se esconde nela. A palavra mítica do pensamento originário guarda cor-
respondência a essa característica evasiva e retraída do seer, motivo pelo qual é irredutível a
qualquer paráfrase interpretativa que a traduza a uma forma científica e enunciativa. A pala-
vra mítica do seer é intraduzível. Nela, “o ser ‘vem’ ‘à palavra’ em um sentido eminente” 827,
como explica Heidegger referindo-se ao âmbito extraordinário, o lugar daimônico do “lá”, de
que provém o relato de Er:
Segundo a vigência originária e integradora de todo encobrimento e desencobrimen-
to, a palavra é de igual e originária essência que o desencobrimento e encobrimento.
A essência própria da palavra é que ela deixa os entes aparecerem no seu ser e pre-
serva o que aparece, isto é, o descoberto como tal. O ser se manifesta, primordial-
mente, na palavra.828

Nesse passo da argumentação, Heidegger divisa das três etapas que constituem a “his-
tória essencial escondida do Ocidente”829. Essencial aqui diz respeito ao acontecimento apro-
priativo que essencializa a história do primeiro início, com base no envio retraído do seer que
desvela o ente na totalidade. Essa história é escondida, porque o ser sempre se vela ao mani-

824
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008 p. 144.
825
Cf. ibid., p.138, 142 (§6, b).
826
Ibid., p. 145 (§6, d).
827
Ibid., p.114 (§5 ,1).
828
Ibidem.
829
Ibidem.
315

festar-se em tudo o que é. Como aletheia, o seer sempre permanece oculto (lehte) em meio à
clareira de que desponta. O caráter velado e escondido concerna à dimensão epocal, em que o
seer se doa retraído e velado na abertura alethética da verdade. A delimitação do ocidente é
menos geográfica do que filosófica, pois o Ocidente é o destino epocal da metafísica platônica
do primeiro início, em que o seer se enviou alienado e foi confundido com a entidade do ente,
sendo esquecido desde o começo, para ser abandonado no niilismo consumado do fim de filo-
sofia. Essa delimitação histórica é essencial também porque se estriba na relação essencial
entre ser e palavra, no modo como o ser é essencializado e verbalizado nas épocas históricas
(que, como já visto, não são eras cronologicamente delimitáveis, mas momentos ontológicos
de destinação e essenciação do seer).
O primeiro início dessa história intitula-se “ser e palavra”, em que o próprio ser se faz
palavra, isto é, se deixa emergir verbalmente. A conjunção aditiva “e” deve ser entendida de
modo essencial, como a relação em que o ser se torna palavra para trazer a sua essência ao
espaço luminoso de mostração da verdade (aletheia). Esse primeiro momento, porém, é suce-
dido pela época da metafísica, inaugurada por Platão e Aristóteles, denominada “ser e ratio”.
Deve-se notar que a verdade como descobrimento ainda se faz presente em Platão e Aristóte-
les, que estão no limiar do primeiro início da metafísica, mas essa noção genuína de aletheia
se perde por completo quando, na fase romana da metafísica ocidental, a verdade se tornará
rectitudo830.
Nessa segunda fase da história essencial do Ocidente, a palavra mítica, ontológica e
essencial se torna logos no sentido de asserção, para, posteriormente, desdobrar-se em ratio,
razão e espírito. É dessa redução metafísica do logos que surgem tanto o “irracional” – cate-
goria na qual se insere o mítico – e o “vivencial” – como o anterior ao racionalizado conceitu-
almente, que alimenta, por exemplo, a reflexão sobre o artístico e o poético na modernidade.
Denominada “ser e tempo”, a terceira fase é o momento da pertença da palavra ao ser,
porque o tempo é o “nome prévio [Vorname] para o fundamento primordial da palavra” 831.
Marcada pelo salto ao impensado do primeiro início, a noção de “ser e tempo” alude o acon-
tecimento apropriativo do seer, em que “o próprio ser envia uma experiência mais originária
para a humanidade ocidental”, ou seja, o início mais originário(outro início) que desponta do
primeiro início. Desse modo, percebe-se o arco que liga o termo ao princípio: o essencialmen-
te histórico da história epocal só se revela no fim, pois a destinação que a perfaz recupera o

830
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 79 (§3 , d).
831
Ibid., p.115.
316

princípio fundamental de que proveio. Com isso, apenas na terceira fase, “ser e tempo”, o ser
se faz palavra no sentido essencial do termo, como aletheia do Ereignis, como essenciação
verbal do seer na palavra.
É importante reforçar a importância que Heidegger confere à forma com que os gregos
trataram da lethe, porque essa forma revela sua essência mesma e comprova a experiência
efetiva que os gregos tiveram dela. Esse discurso sobre a lethe, não toma a forma de um trata-
do científico, composto por assertivas organizadas em premissas e conclusões lógicas, uma
vez que não se trata de um objeto delimitável em um conceito, de um ente exposto no desve-
lamento, mas, ao contrário, algo que se retrai e esconde no velamento. O único discurso (lo-
gos) capaz de apreendê-lo é o essencial, aquele que o desvela ao mesmo tempo que o vela,
que o desencobre respeitando o inelutável encobrimento, que pertence à sua natureza mais
íntima. Em poucas palavras, um discurso que, na sua fala, preserve o silêncio. Esse discurso é,
propriamente, o mito (muthos), sem o qual a lethe jamais poderia ser intuída.
O mitonão é de modo algum um modo primitivo, pré-científico de pensamento, que
deve ser superado pela razão discursiva e proposicional. Mito e lethe complementam-se mu-
tuamente, de modo que a interpretação da fala como assertiva lógico-proposicional torna a
experiência da lethe inacessível por trás de uma concepção de inverdade como incorreção. O
que aqui está em jogo para Heidegger é a impossibilidade de objetificar a lethe e a aletheia,
de torná-las objetos manipuláveis por conceitos, estabilizados e fixos diante dos olhos neutra-
lizados de um cientista que se assegura das suas assertivas pelo método autorreferido da ra-
zão. Nesse sentido, “quandoaletheia e lethe são mencionadas explicitamente no âmbito da
fala reflexiva dos gregos, lá essa fala tem o modo da saga primordial e é muthos.”832
Isso quer dizer que os gregos não tematizaram essas palavras fundamentais na forma
de um tratado científico conceitual, em linguagem unívoca, uma vez que essa forma é incapaz
de registrar o dinamismo ambivalente que as essencializa. Reduzir aletheia a um conceito
implica dispensar a possibilidade mesma de compreendê-la, uma vez que toda presentificação
e toda conceituação já se dão no interior de uma abertura prévia que delimita as possibilidades
visuais, o modo como os entes emergem e se revelam na totalidade, assim como os homens
podem contemplá-los e verbalizá-los. Heidegger diz que os gregos não chegaram a pensar de
modo explícito a essência e o fundamento da essência de aletheia e lethe. Explicitar significa
conceituar, discorrer dialeticamente, submeter o ente à análise lógica. A essência da aletheia
resiste a esse reducionismo metafísico, porque a sua essenciação é anterior à cristalização

832
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 129.(§5, c, Recapitulação 2)
317

metafísica da idea, como presença constante à vista, estável para o olhar eidético. Segundo
Heideger, “os gregos pensam, poetizam e ‘agem’ no interior da essência da aletheia e lethe,
mas eles não pensam e poetizam sobre essa essência e eles não a ‘manuseiam’. Para os gre-
gos, é suficiente ser tocado e circundado pela própria aletheia.”833 Com as palavras míticas, a
experiência originária da aletheia pode ser experimentada, mas não como um conceito racio-
nal que descreve as características ônticas de um ente presente à vista, como uma idea.
Heidegger reconhece que a potência vertitativa, desveladora do mito foi neutralizada
na modernidade, com a prevalência da noção romana de verdade como rectitudo. Com a he-
gemonia desta noção de verdade como adequatio(homoiosis), o logos metafísico sobrepõe-se
ao mito e, no máximo, pode extrair dele uma compreensão alegórica da realidade. Mas o que
importa sublinhar é a relação hierárquica que os distingue. Esse processo da mitologia, que
pressupõe a superioridade do logos sobre o mito e implica a oposição entre eles, impede por
completo a compreensão do mítico, do falar essencial que se desvela na palavra originária do
mito. Quando logos e muthos são associados para a composição da palavra mitologia, “ambas
perdem sua essência primordial”, pois esse logos entificante da tradição metafísica é total-
mente inapto para a apreensão da verdade que emerge do mito, em sua irredutível alteridade e
singularidade poética. Heidegger compara esse procedimento como equivalente a tirar água
com a ajuda da peneira, pois “‘o mítico’ – o muth-ico [o caráter do muthos, muthos-hafte] - é
o desencobrir e o encobrir [Entbergen und Verbergen] salvaguardados na palavra que revela e
oculta a manifestação primordial da essência fundamental do próprio ser.”834 Ou seja, o dizer
mítico é a linguagem que acompanha o movimento próprio ao acontecimento alethético do
seer, de simultâneo encobrimento e desencobrimento, irredutível à proposição lógico-
metafísica que estabiliza definitivamente em um conceito correto e adequado o fenômeno.
Embora Heidegger mencione a literalidade da tradução de aletheia como desencobri-
mento, deve-se observar que não se trata de uma hipótese filológica levada às últimas conse-
quências filosóficas. Com efeito, Heidegger observa que traduzir não se reduz, de modo al-
gum, a algo externo, “técnico-filológico”, da transposição de uma linguagem para o interior
de outra. Traduzir já é interpretar, mas a interpretação só se dá com a escuta da palavra tradu-
zida835, a qual exprime, na linguagem em que foi transposta, a coisa do pensamento, o próprio
ser que veio à fala na linguagem do pensador originário. Essa mesma experiência de verbali-

833
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 129.(§5, c, Recapitulação 2).
834
Ibid., p. 106 (§4, Recapitulação).
835
Ibid., p. 23 (§1, 1).
318

zação do seer é que fundamenta a tradução originária, que é guiada por uma interpretação
ontológica que lhe permite “falar por si mesma” 836.
Ao traduzir e comentar as palavras do poema de Parmênides e o mito de Er de Platão,
Heidegger não se detém em uma “clarificação formal dos fragmentos e dos versos individu-
ais”837, mas pensa a própria essência da verdade do ser, ele mesmo. Isto é, o filósofo não está
diante de um objeto filológico a ser analiticamente traduzido e explicitado por uma técnica
interpretativa qualquer, filológica ou historiográfica. Ao ocupar-se com as palavras funda-
mentais, o pensamento histórico-ontológico não se ocupa com “meras palavras”, mas efeti-
vamente com o “dito” (Spruch), com o “que a palavra diz” 838. Assim começa o pensamento
do seer a partir das palavras. O interesse pelas palavras fundamentais não é um interesse gra-
matical ou literal. As palavras fundamentais não são um objeto de conhecimento científico.
Esse é o sentido da afirmação de Heidegger: “Na atenção com o ‘literal’ parece que tomamos
a palavra a sério. No entanto, desrespeitamos as palavras, na medida em que somente temos
interesses pelas ‘palavras’.” 839 Se não se pensa o ser nas e pelas palavras fundamentais, o seu
alcance ontológico é neutralizado em nome de um cientificismo filológico tão censurável
quanto à reificação ordinária das palavras utilizadas como “um meio de troca e um instrumen-
to de comunicação ao lado de outros”840.
No contexto da meditação histórica, a tradução de uma palavra fundamental se volta
não à letra, mas à coisa do pensamento (o ser) que a configura. Como visto no item 1.6., a
tradução é transposição da experiência apropriativa do pensamento do ser, não da simples
palavra que a registra. Por isso, em ‘O dito de Anaximandro’, em que se analisa o fragmento
desse outro pensador originário e essencial do ser, Heidegger assevera que: “Uma tradução só
é fiel às palavras quando as suas palavras forem palavras que falem a linguagem [Sache] das
próprias coisas. [...] é a própria coisa que, na tradução de uma língua [Sprache] para outra,
deve ser traduzida.”841

836
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 24 (§1, 1).
837
Ibid., p. 31 (§1, 2).
838
Ibid., p. 32 (§1, 2).
839
Ibidem.
840
Ibid., p. 31 (§1, 2).
841
HEIDEGGER, Martin. ‘O Dito de Anaximandro’, pp. 371-440, trad. J.Constâncio. In: Caminhos de floresta.
Trad.A.Franco de Sá et all. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. pp. 372-373.
319

Desse modo, para compreender o sentido autêntico de uma palavra, mesmo que ela se-
ja da nossa própria língua, é necessário experimentá-la, vivê-la por meio de um processo de
tradução originária. Não há aqui duas situações, a original e a derivada, mas um só processo
de essenciação do seer que emerge à fala. No âmbito da tradução originária, não se transpõem
as palavras de uma língua a outra, em busca de correspondências semânticas ou contextos
linguísticos afins. A palavra transposta deve colocar o ser-aí no âmbito e no modo da experi-
ência que trouxe o seer à fala na palavra fundamental de Parmênides e Platão, aletheia. “Falar
e dizer é, em si, um traduzir”, assinala Heidegger 842. Mesmo um diálogo realizado em uma
língua comum, ou um solilóquio, comporta um traduzir originário do próprio seer que emerge
à fala, pois, “constantemente, já estamos traduzindo nossa própria língua, a língua materna,
para sua palavra própria, genuína” 843, isto é, a palavra do seer. A tradução originária é o ad-
vento verbal do próprio seer que emerge em meio ao acontecimento apropriativo.
Desse modo, a tradução de uma palavra originária não resulta em uma variante lin-
guística correspondente em outro vernáculo, mas deve ressoar o acontecimento originário de
que provém a palavra originária. A palavra desencobrimento (Unverborgenheit), tanto quanto
a palavra clareira (Lichtung), não são traduções filológicas, que podem ser aferidas por crité-
rios de adequação linguística. Isso se dá exatamente porque o critério de adequação pertence
ao âmbito posterior da lógica, que é o modo metafísico, característico do primeiro início, de
lidar com a linguagem. O pensar essencial desenvolvido por Heidegger antecede ao impensa-
do desse primeiro início, ao pensamento originário dos pensadores do seer. Nesse contexto
hermenêutico, não se pode impor às palavras que eles testemunham a lógica da correição me-
tafísica, que pertence a um momento derivado da história essencial da verdade, momento esse
que impede a efetiva compreensão de sua origem, da sua proveniência da verdade como des-
velamento encobridor.
Ou seja, todo o alcance filológico da meditação histórica heideggeriana deve ser enfo-
cado sob o aspecto dessa tradução originária, irredutível à delimitação linguístico-metafísica,
que pressupõe a simples adequação da palavra ao ente, e não a voz do próprio seer que se
plasma na palavra. Com efeito, para efetuar a tradução originária é necessário ouvir a voz do
ser e plasmá-la na palavra que a configura. E isso a partir da “transposição de todo o nosso ser

842
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 28 (§1, b).
843
Ibidem.
320

para dentro do âmbito de uma verdade transformada”844, qual seja, a verdade do próprio seer
(e não a verdade reificada do ente, pensada como correção). “Somente se já nos deixamos
apropriar por esta transposição, nos encontramos no cuidado da palavra” 845. O ser-aí é o pas-
tor do seer, precisa abrigá-lo na vigilância da escuta para que possa traduzi-lo originariamen-
te, deixando-o falar por si mesmo nas palavras originárias. Essas palavras são caminhos para a
transposição da experiência da verdade do seer.
Como visto no primeiro capítulo (item 1.4), em que se analisa a viragem do pensa-
mento heideggeriano a partir do importante texto ‘Carta sobre o humanismo’, a ek-sistência
do homem é o “estar postado na clareira do ser” 846, pois é a abertura eksistencial do ser-aí à
interpelação do ser que essencializa a essência do homem. O homem é na medida em que ek-
siste, expõe-se à clareira do ser. O que está em jogo é a reciprocidade entre ser e ser-aí, cuja
unidade advém do acontecimento apropriativo que a ambos apropria. Por isso, diz Heidegger:
“é só quando a clareira do ser acontece apropriativamente, que sobrevém o ser ao homem.” 847.
Ao doar-se ao homem, o ser se apropria do homem. Nisso consiste a essência do homem, em
poder receber o envio do ser.
Com efeito, no curso sobre Parmênides, Heidegger explica que: “Se a essência do ho-
mem se funda no fato de que ele é aquele ente para o qual o ser, ele próprio, se revela, então a
destinação (Zu-schiscking) essencial e a essência ‘do destinar-se’ é o desocultamento do
ser.”848 Em consonância com a história essencial, o desocultamento do ser é a essência da
verdade, isto é, a destinação desocultante e epocal do seer configura a essenciação da história,
que é a essenciação temporal da verdade (aletheia). Assim conclui Heidegger o raciocínio que
articula as noções de ser, essência, verdade e história:
Se, no entanto, o desocultamento é a essência da verdade, e se, segundo a transfor-
mação cada vez nova desta essência da verdade, a destinação doser também se trans-
forma, então a essência ‘da história’ é a transformação da essência da verdade.”849

844
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 28 (§1, b).
845
Ibidem.
846
HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Pe-
trópolis, Vozes, 2008. p. 336.
847
Ibid., p. 349.
848
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 85-86 (§3, 3).
849
Ibid., p. 86 (§3, 3).
321

Enviando-se epocalmente, o ser se oferece ao pensar ontológico na linguagem das pa-


lavras fundamentais que o essencializam. O ser sempre mora na linguagem. Apropriado pelo
seer, o ser do homem também reside nessa linguagem850, custodiada pela pelos poetas e os
pensadores. A linguagem essencial das palavras fundamentais é a tradução originária da expe-
riência do seer realizada pela abertura à clareira do acontecimento apropriativo. Por ek-
sistirem no aberto da clareira do ser, poetas e pensadores logram ressoá-lo nas palavras fun-
damentais que o preservam. Essa é a essência verbalizante da tradução originária de aletheia
que está em questão no curso que trata de um pensador-poeta originário, Parmênides, assim
como do resquício dessa fala originária no mito de Er de Platão. O pensamento essencial é,
portanto, tradução originária, que se dá com a escuta dos pensadores originários, em confron-
tação histórica com eles.
O que está em jogo na investigação heideggeriana é a “pesquisa em relação aos signi-
ficados fundamentais” das palavras que verbalizam o seer. A noção de “significado funda-
mental das palavras” é o que lhe é originário (ist ihr Anfängliches), que não aparece no início,
mas somente no fim, no cumprimento do arco histórico da destinação epocal do seer. Como
explica Heidegger, esse significado fundamental “nunca se mostra como uma formação sepa-
rada, um exemplar que poderíamos representar como algo em si mesmo”, pois “vige escondi-
do em todos os modos de dizer da respectiva palavra fundamental.” 851
Ou seja, como envio retraído do seer à palavra que o verbaliza e essencializa, o signi-
ficado fundamental de uma palavra é encoberto ao longo da história pelas cristalizações da
tradição metafísica que a desvirtua. Por isso, perdeu-se o sentido originário da contra-essência
de aletheia como lethe, encobrimento, preterido pela noção de pseudos, como se verá a se-
guir. Mas isso se deu não só por conta do seu uso impróprio, mas principalmente porque esse
significado já se apresentou, desde sempre, velado, auto-ocultado. Mas o que significa o “ori-
ginário” que permanece velado mas que desponta somente no fim?
Ora, como explica Sallis, o originário na linguagem não é senão o mundo, a aletheia,
o local aberto da auto-mostração852. É esse espaço da clareira da verdade que deve iluminar o

850
“A linguagem é a morada do ser. Na habitação da linguagem mora o homem. Os pensadores e os poetas são os
guardiões dessa morada. Sua vigília consiste em levar a cabo a manifestação do ser, na medida em que, por seu
dizer, a levam à linguagem e nela a custodiam.” HEIDEGGER, Martin. ‘Carta sobre o humanismo’. In: Marcas
do caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis, Vozes, 2008. p. 326.
851
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 41 (§2, b).
852
SALLIS, John. ‘Le sens à la dérive’, p. 273. In: Délimitations. La phenomenology et la fin de la métaphysique.
Tradução M. de Beistegui. Paris: Aubier, 1990. pp. 261-274.
322

sentido fundamental da palavra, e esse espaço é marcado pela ambiguidade constitutiva do


claro-escurso, da iluminação ocultante, do ocultamento desvelante. Disposto na luz da ale-
theia, a palavra fundamental conquista sua dimensão originária pelo reconhecimento da sua
contra-essência, que sempre emerge quando se medita essencialmente sobre a verdade do
seer, ele mesmo, encoberto na palavra fundamental. O sentido fundamental da aletheia, per-
seguido por Heidegger ao longo do curso, só é plenamente compreendido a partir do mito de
Er, em que a sua contra-essência (lehte) a elucida no que tem de originário, sua inelutável
ambivalência, consoante o acontecimento apropriativo de seer que a configura.
Por isso, a pergunta pela essência da verdade – que, como já explicado, se inverte co-
mo pergunta pela verdade da essência 853 - não se dá pela mera modificação de um conceito
lógico-metafísico, mas pelo “salto ao essenciar-se da verdade”, em que o ser humano é fun-
dado pelo ser-aí (Da-sein) como o fundamento requerido pelo seer ele mesmo, para sua pró-
pria verdade854. Na quarta fuga de Contribuições, denominada ‘A fundação’), Heidegger de-
dica uma série de parágrafos – enfeixados na seção de letra “c” – sobre a essência da verdade,
vinculando-a ao acontecimento apropriativo do seer.
Nesse contexto, a única possibilidade de apreender a lethe da aletheia é deixar-se
apropriar pelo acontecimento histórico de destinação epocal do seer. No interior da clareira
(Lichtung), desponta a “ambiguidade essencial” do “ocultamento clarificante do acontecimen-
to” do seer: “o ocultamento mesmo tanto mais claro, transluzindo a profundidade da oculta-
ção”855. A causa da pergunta pela verdade é o próprio seer, que requisita o homem como fun-
damento do ser-aí856. Este fundamento é, na verdade, o próprio acontecimento como essenci-
ar-se do seer857. Somente quando o ser-aí está na clareira, ele pode experimentar o ocultar-se
do seer, já que a verdade nunca é um “sistema” composto por proposições, a ser logicamente
deduzidas. Com efeito, no começo de Contribuições, Heidegger antecipa toda a problemática
da linguagem pós-metafísica do pensamento em transição ao outro início, ressaltando que o
“mal uso das palavras fundamentais” acarretou “a destruição da autêntica referência à pala-

853
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘A essência da verdade’, p.213. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.189-214.
854
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p.273 (§213): ‘Do que se trata a pergunta pela verdade’).
855
Ibid., p. 284 (§227: ‘Acerca da essência da verdade’).
856
Ibidem.
857
Ibid., p. 279. (§222: ‘Verdade’).
323

vra”858, que é a referência ao acontecimento apropriativo de essencialização do seer, que se


verbaliza na ambiguidade constitutiva da clareira. Ora, para instaurar esse pensamento transi-
tório, já não se trata mais de tratar de ou sobre um tema, nem de representar algo objetivo,
como a ciência linguística intenta realizar, considerando a linguagem um objeto científico a
ser analisado com uma técnica adequada. A insurgência do salto implica a transformação do
homem, de animal racional – como na tradição metafísica do primeiro início - a ser-aí, o que
significa: deixar o homem ser apropriado e se apropriar do acontecimento histórico e verbal
do seer859.
Assim, é com o acontecimento apropriativo que se pode experimentar historicamente
o caráter originário da aletheia que é a dissimulação do verdadeiro e suas variações 860. O ver-
dadeiro (aletheia)da clareira é, ao mesmo tempo, o não-verdadeiro (lethe). Mas não se trata de
dois fenômenos paralelos e conjugados. A contra-essência é a própria essenciação do seer,
pois ambos, clareira e ocultamento, são a verdade, ela mesma 861. Ou seja, “o negativo perten-
ce intrinsecamente à verdade, mas de modo algum como carência, mas como resistência, co-
mo o ocultar-se que vem à clareira como tal.” 862
Portanto, a verdade não é nunca algo estático, presente à vista, permanente. Ao contrá-
rio, a essência da verdade implica uma contenda fundamental contra o velamento que a cons-
titui. A verdade (desvelamento) não se opõe à não-verdade (velamento) como em uma antíte-
se inconciliável. O velamento (lethe) pertence à essência do desvelamento (aletheia). Nisso
consiste a essência de combate (agon) identificada por Heidegger na dinâmica da claridade-
obscuridade, subida-descida, prisão-liberdade que caracteriza a alegoria da caverna. Como
explica Sallis, a verdade é sempre arrastada, arrebatada da não-verdade a que pertence e à
qual retorna indelevelmente863. O desvelamento nunca é definitivo: o prisioneiro nunca torna-
se libertado para sempre e de uma vez por todas, mas precisa retornar ao velamento da caver-
na. Ou seja, a essência verdade da verdade encerra relação de oposições (“gegensätzliche

858
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofia (acerca del evento). 2ª ed. Trad. D.Picotti. Buenos Aires: Biblos,
2011. p. 21 (‘O título público: Contribuições à filosofia e o título essencial: sobre o acontecimento apropriativo
[Ereignis]’)
859
Cf. ibidem.
860
Ibide., p. 278 (§220: ‘A pergunta pela verdade’).
861
Ibid., p. 281 (§225: ‘A essência da verdade’).
862
Ibid., p. 286 (§228. ‘A essência da verdade é a não-verdade’).
863
SALLIS, John. ‘Le sens à la dérive’, p. 270. In: Délimitations. La phenomenology et la fin de la métaphysique.
Tradução M. de Beistegui. Paris: Aubier, 1990. pp. 261-274.
324

Beziehungen”). Portanto, deve-se ir ao encontro da contra-essência (Gegenwesen) da aletheia,


para que o seu sentido fundamental venha à tona. Sem essa contra-essência (lethe), toda refle-
xão sobre a verdade será parcial e limitada.
A questão das palavras fundamentais é elucidada com propriedade quando contextua-
lizado o pensamento do acontecimento apropriativo. Percebe-se facilmente que as palavras
ontológicas não têm uma espécie de “significado fundamental puro”, que se perdeu com o
tempo, podendo ser recuperado por uma potência filosófica determinada. As ciências da lin-
guagem, como a filologia, que investigam, historiográfica e etimologicamente, a suposta sig-
nificação original de uma palavra, identificando as suas derivações posteriores, baseiam-se na
tradição metafísica da lógica, que reduz a linguagem a uma teoria de preposições, em que a
preposições são formadas de palavras, e as palavras designam conceitos, sendo os conceitos o
conteúdo real do que é significado pelas palavras. As derivações significativas seriam as par-
ticularizações do caráter geral do conteúdo significativo fundamental da palavra.
O fato de a intuição heideggeriana partir de uma elucidação filológica acerca da com-
posição da palavra grega a-letheia, valeu-lhe a importante e conhecida ressalva crítica de
Friedländer, publicada em 1964864. O eminente filólogo alemão não se opõe à tradução heide-
ggeriana de aletheia como des-velamento, ou des-encobrimento, identificando essa acepção
em Parmênides e Heráclito, assim como em Homero e Hesíodo. Na verdade, em Platão e nes-
ses filósofos pré-socráticos, convivem as duas possibilidades semânticas da palavra, desvela-
mento e correção da percepção e do juízo, exatamente a noção originária ontológica e a no-
ção derivada metafísica, segundo a meditação histórica de Heidegger. Por isso, Friedländer
contraria a interpretação de que,em Platão, e somente nele, se opera uma mutação interna da
essência da verdade, pela qual a verdade e o ser são subjugados à ideia, que passa a ser a no-
ção metafísica e filosófica por excelência.
O que conquista indiscutível primazia n’ARepública de Platão é a ideia do bem, o
princípio anhipotético que é a fonte ontológica da essência eidética dos entes e a fonte episte-
mológica da capacidade noética dos homens. As ideias como tais permanecem em relação
íntima às coisas sensíveis que delas participam, sendo “vistas” num ato intelectual de apreen-
são eidética, o que permite a veracidade do juízo. Ora, a verdade é tanto da ideia contemplada
– do ente que se desvela seu ser-ideia -, quanto do juízo que a exprime corretamente. Segundo
Friedländer, isso não acarreta qualquer contradição. Ao contrário, há uma complementarieda-
de semântica de origem filosófica. Platão sempre se apropria de termos arcaicos como esse –

864
Cf. FRIEDLÄNDER, P. “Aletheia. Un confronto critico dell’autore con se stesso e con Martin Heidegger”, p.
251-261. In: Platone. Tradução A. Le Moli; Introdução G.Reale. Milano: Bompiani, 2004.
325

a exemplo do eros n’OBanquete-, para compreender suas múltiplas dimensões filosóficas. A


dimensão epistemológica da verdade não elide, de modo algum, a base ontológica de que pro-
vém.
Friedländer explica que essas duas acepções distintas e irredutíveis da verdade – des-
velamento e correção - podem ser sintetizadas de três modos: a verdade do dizer e do pensa-
mento (logos e noein), a verdade do ser (on e physis) e a verdade da existência humana do
filósofo libertado-libertador (bios). Essa triplicidade de acepções torna o conceito variado e
polissêmico, mas não necessariamente ambíguo. Por outro lado, essa equivocidade constituti-
va é explorada por Heidegger para refletir sobre a transição histórica em questão no primeiro
início. Isso porque a ambiguidade só surge quando se reconhece o caráter originário e domi-
nante de um dos sentidos em detrimento dos outros, que se tornam derivados e desviantes.
Mas, conforme Friedländer, essa precedência não pode ser aferida do ponto de vista filológi-
co, não havendo qualquer evidencia textual nos diálogos platônicos que a comprovem. Ao
contrário, é a convivência equilibrada desses sentidos no texto platônico o que o torna rico e
capaz de articular, harmonicamente, as dimensões ontológicas e epistemológicas sob a potên-
cia filosófica da ideia do bem.
Por essa razão, Friedländer prefere falar de “bilateralidade” entre “realidade desvelada
do ser” e “precisão do ver”, ou seja, de uma conexão reciprocamente intercambiável. Isso
significa exatamente a fundação da epistemologia baseada na ideia do bem que garante o vín-
culo entre a visão e o visto, entre o conhecimento e a ideia. Por sua vez, Heidegger enfatiza a
sujeição da aletheia pela idea, descurando o jogo de união presente no texto. Para Friedlän-
der, “Platão não corrompeu, como supõe Heidegger, o conceito de aletheia, mas o precisou,
colocou em um sistema e elevou.”865
Nas edições posteriores de sua obra – designadamente na terceira edição alemã (1964)
e na segunda inglesa (1969) -, Friedländer reconhece que a dimensão de desvelamento, apon-
tada por Heidegger, está presente desde os escritos arcaicos da Grécia antiga e que, portanto, a
sua crítica a Heidegger foi injustificada. Nada obstante, reconhecer que a noção de desvela-
mento estava presente desde os primórdios da literatura grega não significa abonar a hipótese
heideggeriana de que houve uma transição, especificamente na obra de Platão, para a noção
de adequação. Ao contrário, como mencionado acima, há uma bilateralidade, um equilíbrio
das duas noções – desvelamento e adequação – em jogo desde o começo.

865
FRIEDLÄNDER, P. “Aletheia. Un confronto critico dell’autore con se stesso e con Martin Heidegger”, p.
261. In: Platone. Tradução A. Le Moli; Introdução G.Reale. Milano: Bompiani, 2004.pp. 251-261
326

Por sua vez, Heidegger identifica nessa ambiguidade exatamente a essência conflitiva
da aletheia. Como se pode perceber, essa crítica filológica não ataca o ponto central do pen-
samento heideggeriano, a essência autoconflitiva da verdade, consoante o acontecimento
apropriativo do seer que a caracteriza. Como nota Sallis, a ressalva de Friedländer incorre na
ingenuidade das distinções metafísicas – como realidade, ser, epistemologia contraposta à
ontologia, e assim por diante -, distinções essas destruídas pela meditação histórica866. Além
disso, no texto ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, escrito depois da crítica de Frie-
dländer, Heidegger considera que sua insistência obstinada em traduzir aletheia por desvela-
mento não se dá por “amor à etimologia”, mas pela atenção à coisa mesma do pensamento
(die Sache des Denkens), que se impõe no momento terminal da filosofia. Ou seja, a questão
da clareira, o único elemento em que ser e pensar podem se dar em seu comum-pertencer 867.
Como explica Heidegger, “A aletheia é, certamente, nomeada no começo da Filosofia, mas
não é propriamente pensada como tal pela Filosofia nas eras posteriores.” 868 Daí a necessida-
de de recorrer aos pensadores originários para experimentar, nas suas palavras fundamentais,
a verbalização do seer como clareira, em sua essência autoconflitiva.
O que interessa a Heidegger não é a correção etimológica do nome que designa o fe-
nômeno da verdade, mas aquillo que o constitui, o espaço de mostração em que esse fenôme-
no pode imergir. A esse espaço aberto, Heidegger denomina clareira (Lichtung), que é um
acontecimento histórico anterior a qualquer cristalização linguística e registro historiográfico.
A palavra fundamental não um conceito, “um nome capaz de plasmar (constituir) uma no-
ção”869; não instaura uma experiência, ela é resultado de um acontecimento apropriativo ante-
rior que se essencializa verbalmente. A cristalização posterior da voz do seer em uma palavra
conceitualizada, reificada e instrumentalizada impede a experiência originária de que ela pro-
vém.

866
SALLIS, John. ‘Le sens à la dérive’, p. 287. In: Délimitations. La phenomenology et la fin de la métaphysi-
que. Tradução M. de Beistegui. Paris: Aubier, 1990. pp. 261-274.
867
Cf. HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’,p.79. In: Heidegger – Os pensado-
res. Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 65-81.
868
Ibidem.
869
PINHEIRO, Paulo. ‘Sobre a noção de aletheia em Platão (a tradução heideggeriana)’. p.59-60. In: O que nos
faz pensar. n.11, abril de 1997. Revista do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. pp. 45-64.
327

Tanto quanto Platão ironiza a pretensão etimológica no diálogo Crátilo870, Heidegger


busca algo anterior à palavra, a experiência que a nomeia, e não que é nomeada por ela, como
a verdade-adequação do logos metafísico supõe. A compreensão da verdade como Lichtung
promove o passo de volta em direção à abertura ontológica em que o fenômeno da correção
lógico-veritativa pode se dar. Ora, a experiência do primeiro início, da verdade como orthotes,
como retitude da representação e enunciação (a hegemonização da idea sobre a aletheia), se
dá exatamente pelo fato de o homem habitar, ekstaticamente, no aberto da clareira, na qual ele
se faz presente, sem questionar-se, porém, o que garante a presentificação dos entes visados.
A clareira, que garante a presença dos entes iluminados, não é considerada: ela mesma se
oculta ao desvelar o ente na totalidade. A verdade do seer retrai-se em nome do ente ilumina-
do, permitindo a presentificação do ente, mas retraindo-se no abismo de sua diferença. Esse
ocultar-se, o velamento é, propriamente, a lethe da aletheia, o fato de a verdade ser equivo-
camente desviada à presença do ente, pela retração do seer que se vela e se retrai na abertura
mesma do ente na totalidade. Note-se, porém, que a pertença da lethe a aletheia é essencial e
não adventícia. Não se trata de uma dialética de opostos que se complementam bilateralmente.
Não se trata de um “puro acréscimo, não como a sombra faz parte da luz, mas como o coração
da Aletheia”871. Nesse sentido, indaga Heidegger: “E não impera neste ocultar-se da clareira
da presença até mesmo um proteger e conservar, único âmbito no qual o desvelamento pode
ser garantido, podendo só assim manifestar-se, em sua presença, aquilo que se presenta?” 872
Com a crítica de Friedländer, Heidegger revisa sua intuição inicial, explicando, no tex-
to ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’(1966), que “não é sustentável a afirmativa de
uma transformação essencial da verdade, isto é, a passagem do desvelamento para a retitu-
de.”873. Isso porque, nem mesmo os gregos chegaram a experimentar efetivamente o aconte-
cimento apropriativo do seer, a verdade como clareira. O próprio ser se enviou retraído, de
modo que “a Aletheia, o desvelamento no sentido da clareira da presença, foi imediatamente e
apenas experimentada como orthotes.”874 A clareira enquanto o espaço-tempo que franqueia a

870
Cf. PINHEIRO, Paulo. ‘Sobre a noção de aletheia em Platão (a tradução heideggeriana)’. p.59-60. In: O que
nos faz pensar. n.11, abril de 1997. Revista do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. pp. 45-64.: interessante aproximação de Heidegger e Platão na pesquisa de algo anterior e consti-
tutivo ao ato de nomear, a onto-logia que antecede qualquer logo-logia.
871
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p.80. In: Heidegger – Os pensadores.
Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.pp. 65-81
872
Ibidem.
873
Ibidem.
328

presença e a presentificação no pensar e dizer, desde sempre foi apreendida como adequação,
como concordância entre o representar e o que se presenta. Ou seja, segundo essa reformula-
ção da noção heideggeriana de aletheia, não houve a transição no primeiro início platônico da
verdade-desvelamento da physis originária para a verdade-correção da idea metafísica.
A seguir, a tensão se volta à discussão sobre Platão no curso sobre Parmênides, em
que a verdade como clareira é analisada com referência à alegoria da caverna, no desenrolar
histórico de compreensão acerca da luz desvelante-ocultante que permite a essencialização da
presença, do ver e do ser visto.

3.8 Aletheia e Lethe; Physis e Ereignis

Como já introduzido no item anterior, a questão primordial do curso Parmênides é a


essência da verdade e sua mutação (Wandel), que deve ser pensada a partir da sua contra-
essência (lethe ou pseudos). No contexto da história essencial do seer, Heidegger delineia
quatro momentos ou direções fundamentais que a tradução da palavra aletheia como desen-
cobrimento indica.
Em primeiro lugar, pode-se enfatizar a noção de encobrimento, o qual é suspenso pelo
prefixo des. Nessa primeira noção, escreve-se des-encobrimento, sublinhando a segunda pala-
vra do termo, a fim de conceber o encobrimento como a essência primordial da verdade. Num
segundo momento, enfatiza-se o prefixo privativo des, que indica que a verdade é extraída a
partir do encobrimento e com ele está em permanente e inexorável luta. Ou seja, “a essência
primordial da verdade é conflitante”875, permanecendo a “luta”, o agon sempre em questão.
Esses dois momentos indicam o caráter agônico, a impossibilidade de pensar a aletheia sem a
lethe de que ela provém, que é suspensa para que ela possa emergir. Isto é, a verdade está in-
serida na ambiguidade dialética de opostos mutuamente implicados, sendo a verdade irredutí-
vel a qualquer um desses polos sem a interação simbiótica com o outro.
No terceiro momento, porém, opera-se uma transformação radical, quando “a ‘não-
verdade’ [a-letheia] é identificada com ‘falsidade’ [pseudos], a qual, entendida como incorre-
ção, forma o contrário de ‘correção’.”876 Com isso, instauram-se os polos antiéticos de verda-

874
HEIDEGGER, Martin. ‘O fim da filosofia e a tarefa do pensamento’, p.80. In: Heidegger – Os pensadores.
Trad. E.Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.pp. 65-81.
875
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 47 (§2 , Recapitulação).
876
Ibidem.
329

de e falsidade(aletheia kai pseudos, vertias et falsitas). Quando a verdade se transforma em


correção, a não-verdade torna-se incorreção. Essa oposição falseia a essência originária da
verdade, restringindo-a à representação errônea de um sujeito que deve “corrigir” seu pensa-
mento ou fala a fim de “verificá-lo”, isto é, “retificá-lo” e “adequá-lo”.
A hegemonia da verdade como correção, presente no pensamento moderno, simples-
mente obstrui a compreensão originária da verdade como desencobrimento. Além da não-
verdade tornar-se pseudos, Heidegger observa a mudança, igualmente significativa, da perda
da dimensão ontológica da lethe, quese reduz a um simples fenômeno psicológico de esque-
cimento. Essa mudança já é prefigurada em Platão, no mito de Er. O que importa, para Heide-
gger, é destruir essa camada posterior da tradição – que associa lethe a pseudos e a esqueci-
mento - para saltar ao impensado do primeiro início, em que a verdade desponta como clarei-
ra, o quarto momento da história essencial da aletheia.
Essa divisão em quatro momento é programática no que concerne à intenção do curso
ministrado por Heidegger: compreender a essência originária da verdade como a-letheia a
partir do seu oposto genuíno, ou seja, lethes, imperfeitamente traduzido por esquecimento.
Heidegger percebe que a consideração do falso como sendo o oposto da verdade já a toma
num sentido secundário, derivado, o de correção. É preciso, então, afastar essa noção deriva-
tiva e inautêntica de inverdade como falsidade, recuperando o sentido originário de inverdade
como encobrimento. É só considerando a não-verdade como encobrimento que a verdade po-
de ser realmente tida como des-encobrimento. É dessa realidade testemunhada na palavra
fundamental aletheia que Heidegger parte para a compreensão da experiência fundamental
plasmada na língua grega: verdade se diz a-letheia, que pertence à raiz lath, que significa
“encobrir”.
Heidegger se pergunta por que, então, se traduz uma palavra como lanthonomai, que é
derivada dessa raiz, por “esquecer”? É que o homem moderno “esqueceu a essência do esque-
cimento”, não somente porque sua vida seja “inconstante” (marcada pela Fluchtigkeit), mas
porque o próprio esquecimento, em sua essência, “se retrai e se encobre” 877. Mas o esqueci-
mento decisivo para Heidegger é o esquecimento do ser, pensado nele mesmo, em sua verda-
de intrínseca: “a verdade do ser e, não somente, como toda a metafísica, que considera o ente
com respeito ao seu ser.”878

877
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 50 (§2 , Recapitulação).
878
Ibidem.
330

Além de o seer ser esquecido pelo homem – o seer é o objeto do esquecimento -, o


seer ele mesmo se faz esquecer, porque ele se retrai. Segundo Heidegger, o que se esquece na
cristalização da metafísica platônica é o próprio encobrimento (de que resulta o esquecimen-
to) do seer. O esquecimento psicológico que o homem tem do ser é resultado do retraimento
ontológico que o próprio ser se impõe. O ser nunca se revela integralmente, consoante a es-
sência mesma da aletheia879. É por isso que Heidegger diz que, sem uma experiência da es-
sência do esquecimento enquanto retraimento do ser, não se pode experimentar a essência da
aletheia, que concerne ao acontecimento apropriativo do seer. O mais comum é confundi-la
com o esquecimento psicológico, que pode ser superado pela simples lembrança que corrija a
inadequação de um juízo impreciso porque baseado na vagueza da lembrança humana. Quan-
do Heidegger fala do “esquecimento do esquecimento”, ele refere-se ao esquecimento huma-
no do encobrimento do seer. Mas a causa disso, como se verá a seguir, não é a falibilidade do
intelecto ou da memória humana, mas a própria retração do seer que caracteriza o aconteci-
mento apropriativo (Ereignis).
O esquecimento do ser é o retraimento do seer, a retração do próprio seer que desvela
o ente na totalidade, esvaindo-se no abismo de sua diferença. Para que a experiência da lem-
brança do ser irrompa e se torne necessária, é “necessário, antes de tudo, uma experiência da
essência do esquecimento. E os gregos experimentaram o esquecimento como um evento que
passava pelo encobrimento”.880 Essa noção fundamental de esquecimento como acontecimen-
to do seer, como essência originária da inverdade que franqueia a lembrança do ser, conduz
Heidegger à obra platônica, ao que ele considera ser o núcleo do Mito de Er, no livro X
d’ARepública. Mais uma vez, Heidegger o pensa a partir da experiência do Ereignis, palavra
central do seu pensamento depois da viragem.
Acima, falou-se que compreender pseudos como falsidade implica considerar a verda-
de opsta a ele como sendo a verdade-correção, e não a verdade como desvelamento. Porém,
Heidegger argumenta que o sentido originário de pseudos ainda relaciona-se diretamente à
experiência da verdade como desvelamento, porque significa velamento, encobrimento, e não
apenas falsidade como oposição diametral de adequação. Para demonstrá-lo, Heidegger evoca
a palavra “pseudônimo”, a qual não significa simplesmente “nome falso”, mas o nome que
encobre a verdade natureza de um autor, mas é que capaz de revelá-lo a quem o conheça, ou
revelar um aspecto essencial da sua natureza, antes encoberto. “Esse nome simplesmente en-

879
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 50 (§2 , Recapitulação).
880
Ibidem.
331

cobre algo que não deve de modo algum aparecer”881. Além de um nome falso e fictício, o
pseudônimo é um nome insidioso, que revela algo ao esconder o nome do autor. Ou seja, o
significado de pseudos, na expressão ‘pseudônimo’, não é precisamente “falso”, pois “temos
aqui um encobrimento que, ao mesmo tempo, desvela algo recôndito” 882 Heidegger identifica,
filosoficamente, na palavra grega pseudos grego a noção de encobrir e velar ou retrair, e, si-
multaneamente, de “deixar aparecer”.Assim, diz Heidegger: “Pseudos pertence ao âmbito
essencial da ação de encobrir, sendo um modo, portanto, de velar. Mas o encobrimento implí-
cito no pseudos é sempre, ao mesmo tempo, um desvelar, um mostrar e fazer aparecer.” 883
Ora, como se pode perceber, mesmo a noção derivada e aparentemente enganadora de
inverdade como pseudos conserva a essência originária da verdade como desvelamento.
Apoiando-se nos testemunhos de Homero e Hesíodo, Heidegger conceitua pseudos como um
“encobrimento dissimulador” (ver-setellendes), que “desloca” e “desfigura, sendo o seu opos-
to, to a-pseudes, exatamente o não-dissimulador”, “o que livra toda dissimula-
ção[Enthehlende]”884. Nota-se, portanto, que a essência do a-pseudes é determinada em refe-
rencia ao alethes, ao “descoberto” (Unverborgenen)885. Desse modo, Heidegger consegue
articular as duas maneiras gregas de conceber a inverdade – lethes e pseudos – à experiência
originária da verdade como desvelamento (a-letheia). Se mesmo a noção de pseudos ainda
remete ao descobrimento que revela ao encobrir, ao falsear, então o que causou a compreen-
são atual de inverdade como falsidade?
É nesse momento que se observa uma relevante questão no pensamento de Heidegger
sobre a essência da verdade: a percepção de que a alteração radical dessa essência se deu na
passagem do mundo grego ao mundo romano, alteração essa que se plasmou na tradução, na
conversão da palavra grega aletheia para veritas, e seus correlatos antitéticos, pseudos e
falsum. Em contraste com o seu argumento do curso Da essência da verdade, de 1931-1932,
Heidegger agora acredita que foi essa tradução romana que obscureceu em definitivo o senti-
do originário de verdade como desvelamento. Segundo Heidegger, a origem etimológica lati-
na de “falso” é “cair e está relacionada com a palavra grega sphalon, isto é, levar à queda,

881
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 52 (§3 ,a).
882
Ibidem.
883
Ibidem.
884
Ibid., p. 56.
885
Ibid., p. 56.
332

fazer cair de modo titubeante”.886 O decisivo nessa tradução-interpretação é a dimensão filo-


sófica da experiência romana do império, que se torna linguisticamente normativa na compre-
ensão da realidade como tal.
No sentido estrito e original, imperium, noção que expressa a essência da experiência
romana, significa “comando”, a cujo âmbito pertence o “direito” romano: “O comando é a
razão essencial da dominação do iustum, compreendido no latim como ‘ser no direito’ e ‘ter
direito’.”887 Essa alteração faz com que a iustitia seja inteiramente diferente do fundamento da
noção grega de diké, que surge da aletheia. A essência do direito passa a ser a juris-dição -
literalmente dizer o direito, o justo -, a ordenação imperativa do correto a partir da medida da
lei. A essência dessa imperatividade é o dizer, o enunciar que, para os romanos, não consiste
mais no desvelamento ou na manifestação do ente em si, como se dá para gregos. Imperar é
julgar (o judicium) que avalia, que mensura a partir de critérios ditados, ordenados e decreta-
dos. Nessa perspectiva, o imperium é o que se sustenta imponentemente - o que se impõe, o
que comanda sobrelevando-se por cima dos que domina. Em sentido contrário, o falsum -
particípio do verbo fallere, que significa “cair, trazer para baixo” - é o que é experimentado
como o “truque” que derruba, que leva à ruína como subterfúgio enganador: “o falsum é o que
engana de modo pérfido: ‘o falso’.” 888
Correlativamente, a verdade não é mais o que era para Platão e Aristóteles, uma “cor-
respondência”, mas um “regrar-se por” (ein Sichrichten nach). Dizer o verdadeiro é julgar
corretamente, conforme o direito (jus). Como sintetiza Boutot, “a verdade consiste na justiça
ou na retidão da ratio que se regra pelo justo. A verdade não é mais homoiosis, mas rectitudo
e justitia.”889 Essa determinação da verdade, extraída da experiência romana fundamental do
império, é agora a alteração fundamental da verdade e do ser, aos olhos de Heidegger. O deci-
sivo não é mais, portanto, como no curso Da essência da verdade, a alteração ocorrida no
interior do mundo grego, com o nascimento da metafísica platônica, mas uma mudança entre
as culturas grega e romana, mas precisamente com a latinização da cultura grega. Essa mu-
dança é essencial porque é histórica, diz respeito ao modo como a verdade “se torna presen-

886
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008. p. 65 (§3 ,b).
887
Ibid., p. 67.
888
Ibid., p. 67-68.
889
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism. Paris : Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987. p. 209.
333

ça”, para além dos modos de objetivação historiográfica 890. Foi essa concepção romana que
determinou as ulteriores concepção de verdade na história do pensamento ocidental.
Ao conceber a verdade como rectitudo, os romanos preparam a determinação moderna
e cartesiana da verdade como certeza. “Para aceder ao verdadeiro enquanto o direito e o justo
– explica Boutot –, o homem deve se assegurar e ter certeza do bom uso (usus rectus) de sua
razão. O verdadeiro torna-se o correto.”891 Herdeira direta dessa tradição romano-cartesiana
de verdade é a “justiça” da vontade de poder de Nietzsche, com que se perfaz o círculo da
justitia romana como capacidade de império, de imposição, de determinação da verdade. O
importante para Heidegger, entretanto, é que essa determinação de verdade como rectitudo
obscurece por completo o desvelamento ainda claramente perceptível na palavra platônico-
aristotélica homoiosis, o que corresponde dizer que “o falsum latino é algo estranho para o
pseudos grego.”892 A ruptura no conceito de verdade não é mais, como em Da essência da
verdade e A teoria platônica da verdade, de Parmênides e Heráclito a Platão e Aristóteles, o
que confere a ambiguidade nas filosofias desses pensadores de transição, mas da Grécia a
Roma. É a latinização da experiência originária dos gregos que torna a verdade como aletheia
imperceptível, assim como se torna inevitável o esquecimento do ser.
Isso não significa que Heidegger tenha abandonado a intuição de que uma transforma-
ção decisiva se deu em Platão e Aristóteles, porém o que os caracteriza é a presença ainda
marcante das palavras fundamentais do pensamento originário do seer. Ao enfatizar a mudan-
ça latina, Heidegger valoriza a continuidade da experiência originária nas filosofias de Platão
e Aristóteles. A homoiosis presente nesses filósofos determinantes relaciona-se mais à essên-
cia originária da aletheia do que ao juízo que a exprime.
Nesse contexto, Heidegger enfatiza a importância da noção de “comportamento reve-
lador” do homem que se atém “ao descoberto e permanece numa concordância com ele” 893. A
homoiosis aristotélica não é mais simplesmente o juízo correto, mas o “ater-se de modo reve-
lador ao descoberto num falar que deixa aparecer” 894. Nessa definição da dimensão alethética,

890
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p.70.
891
BOUTOT, Alain. Heidegger et Platon: le probleme du nihilism. Paris : Presses Universitaires de Fran-
ce, 1987. p. 209.
892
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p.69.
893
Ibid., p.78 (§3, d).
334

desveladora da verdade, notam-se os seguintes elementos: 1. o homem atém-se de modo reve-


lador, 2. o descoberto que se dá a ele e 3.o falar apofântico, delótico que manifesta, que faz
aparecer.
Há uma clara expansão na compreensão heideggeriana da verdade em Platão e Aristó-
teles à medida em que se ressalta a perda dessa dimensão desveladora na experiência romana
imperial. Por isso, Heidegger prefere sublinhar a continuidade, reservando a ruptura à experi-
ência romana: “Essa correspondência reveladora se atém e se realiza ainda completamente no
espaço essencial da atletheia enquanto desencobrimento”895. A noção de homoiosis acarreta a
“igualitarização do dizer revelador com o ente que se mostra e se deixa descobrir.”896
Prefigurada por Platão e Aristóteles, essa dimensão “representativa” da homoiosis –
que equipara o logos apofântico ao fenômeno do desvelamento – é essencialmente assimilada
pela rectitudo romana, segundo a qual “a correção de uma asserção é o conformar-se com um
direito corretamente instituído e firmemente estabelecido” 897. Essa assimilação é chamada por
Heidegger de adequatio, noção medieval, herdeira da conversão romana da homoiosis grega
em rectitudo imperial. O que se perde na transformação romana é a dimensão de desvelamen-
to, mas a dimensão de adequação é preservada.
Como recapitulação, pode-se condensar o núcleo do pensamento de Heidegger no cur-
so Parmênides, articulando os três passos decisivos explicados: 1. a aletheia originária, 2.a
homoiosis derivada porém preservadora do sentido originário de aletheia e 3. a perda latina da
essência originária da aletheia em nome da rectitudo que fundamenta a metafísica ocidental.
De Platão a Nietzsche, a metafísica é dominada pelo acontecimento apropriativo que essencia-
lizou a verdade como correção. Ao tornar-se rectitudo, a homoiosis grega desvincula-se do
âmbito da aletheia, desencobrimento, vínculo esse ainda presente em Platão e Aristóteles. 898
O motivo fundamental de se ouvir a verbalização ontológica das palavras fundamentais de
Platão e Aristóteles é o eco das reminiscências do pensamento originário do seer nelas plas-
madas.

894
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p.78 (§3, d).
895
Ibidem.
896
Ibidem.
897
Ibid., p. 79 (§3, d).
898
Ibidem.
335

Como desenvolvido no item 1.2., Heidegger compreende a metafísica como pensa-


mento representativo, porque o conceito metafísico de verdade como correção fundamenta-se
na ratio do homem. Trata-se do “auto-ajustar-se calculativo da ratio”, que determina o futuro
“caráter tecnológico do moderno, isto é, da técnica de máquinas” 899. Esse caráter advém dire-
tamente da experiência imperial de domínio, que “surge da verdade como correção no sentido
do auto-ajustar-se indicador, garantia da segurança da dominação.”900 Nisso se fundamenta
efetivamente a metafísica cartesiana da modernidade, voltada ao “correto uso da razão, à “ca-
pacidade de julgar”, em que “a questão acerca do verdadeiro se torna a questão acerca do uso
seguro, assegurado e autoassegurador da ratio.”901 Nesse contexto, o decisivo aos olhos de
Heidegger é que: “A essência do falar e do proferir asserções já é, há muito tempo, não mais o
logos grego, isto é, apophainesthai, o deixar aparecer do desencoberto. A essência do falar é
agora o iudicium romano, dizer o reto, isto é, ater-se, com certeza, ao que é reto.”902
A culminância desse processo metafísico, o de subjugação do ente ao juízo que o en-
cerra, se dá com Nietzsche, por ser o último metafísico, aquele que inverte o platonismo, sem
poder efetivamente superá-lo e abandoná-lo. Para Nietzsche, que se insere totalmente na ex-
periência romana de verdade, a justiça é a adequação ao “decreto da vontade de poder”, é
conformação, retificação ao real e à verdade, isto é, ao império da vontade de poder.903.
O impasse epocal em que Heidegger se sente imerso é o da (im)possibilidade de ter
novamente a experiência da essência da verdade como aletheia, o que significa a irrupção da
necessidade de se pensar a questão do ser em si mesmo. O que obstrui essa possibilidade é
que a concepção romana de verdade domina a história do Ocidente desde sua insurgência.
Essa hegemonia não é facilmente contornável; ela configura um “enorme bastião” metafísico
que exclui a aletheia do círculo que agora se esgota, mas nem por isso permite a compreensão
e a experiência da essência originária da verdade como desvelamento. Diante dessa clausura,
da coerção metafísica que a veritas como rectitudo imperial provoca na interpretação da ver-
dade, Heidegger se indaga:
Como podemos ainda experimentar a aletheia, ela mesma, em sua própria essência
primordial? Se isso nos é negado, como então podemos ver, no interior dos confins

899
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p.79.
900
Ibidem.
901
Ibid.,p. 81.
902
Ibidem.
903
Ibid., p. 82.
336

da dominação de veritas e rectitudo, que esse domínio da veritas, ele mesmo está
fundado na região de essência da aletheia, e constantemente se refere a ela, mesmo
não tomando conhecimento ou recordando-se dela?904

A resposta a essa pergunta passa pela compreensão da não-verdade originária pensada


como lethes, a “contra-essencialização” (das wechselweise Gegenwesen) da aletheia-
desvelamento, ou seja, a não-verdade como encobrimento, como retraimento. Compreender a
essência de lethes é um grande desafio, pois os gregos a experimentaram mas não a exprimi-
ram claramente. Mas isso diz respeito, conforme explicado acima, à própria natureza da le-
thes, que, ao esquivar-se e retrair-se, não se deixa elucidar por completo em um conceito ine-
quívoco. A palavra do seer sempre plasma a sua ambiguidade e retraimento originários. O
máximo que se pode alcançar a respeito dela é um “silêncio essencial”, que, calando, aponte
para a sua natureza encoberta. O fato de os gregos terem silenciado e não refletido diretamen-
te sobre lehtes e seu correlato aletheia demonstra o quão enraizados eles estavam no seu solo,
o quanto eles viveram no interior dela. No uso do mito que expõe o essencial pelo silêncio,
Platão soube retratar a verdade epocal e histórica do seer.
Narrado no livro X da República, omito de Erconclui o diálogo platônico sobre a pólis
tratando da essência da lethe, que é a essência contrária de aletheia. Não se trata de outra es-
sência que se contrapõe dialeticamente à essência da aletheia, mas a contra-essência que cons-
titui a sua essencialidade dual e agônica. A história narra a experiência do guerreiro Er que,
depois de ter completado a sua vida “aqui” na terra, conta o que se passa “lá”, depois da mor-
te. Juntamente com muitos outros homens, Er foi conduzido por um longo caminho que se
deve percorrer antes de experimentar novamente a vida na terra, assim como foi obrigado a
tomar a decisão fundamental antes desse retorno ao platno terrestre. É nessa travessia que se
encontra, no seu lugar mais extremo, a planície de lethes (cuja tradução convencional, repen-
sada por Heidegger, é esquecimento). Os homens que passaram por essa planície, pela experi-
ência de presenciar o que se passa com eles depois que morrem, esquecem-se do que viram e
viveram, por serem obrigados a beber do rio Ameles 905. Ao filósofo é dada a prudência (phro-
nesis) de beber na medida certa, de modo a não se esquecer do essencial que contemplou.
Nessa descrição sumária, notam-se os elementos fundamentais destacados por Heide-
gger: 1. o caráter extraordinário do “local” em que se dá essa viagem (daimon topos), 2. o

904
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008.p. 84.
905
Para uma caracterização geral do mito e seus fundamentos religiosos cf. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e
pensamento entre os gregos. 2ª ed. Trad. H.Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p.167 e ss. Para uma leitu-
ra global do mito e sua relação com a totalidade d’A República cf. BARACCHI, C. Of myth, life and war in
Plato’s Republic. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2002.
337

esquecimento a que são submetidos os viajantes (anamnesis), consoante 3. o rio da despreo-


cupação (Ameles)de cujas águas devem beber e 4. a prudência (phronesis) do filósofo ao be-
ber com medida desse rio.
Heidegger dedica atenção considerável à compreensão do local para onde Er vai de-
pois de sua morte: um daimonios topos, um lugar “demoníaco”. Esse lugar - que não se rela-
ciona com nada de diabólico, como o inferno da tradição hebraico-cristã - não está nem na
terra, nem no céu, é um lugar “extra-ordinário” (das Um-geheure), “dos deuses”. Nessa loca-
lidade, encontram-se os que vêm de cima e os que vêm de baixo, é uma intercessão entre o
sobreterrâneo e o subterrâneo; entretanto, não é a terra. Os homens encontram-se nesse “lo-
cal” antes de atravessarem uma nova viagem mortal sobre a terra. De algum modo, portanto,
esse local antecede e transcende a experiência do homem sobre a terra sem com ela se con-
fundir.
“Extra-ordinário” aqui não é o espetacular, o exagerado, o excêntrico, o impressio-
nante ou excitante, mas o “simples que brilha no ordinário, que não surge do ordinário, mas
que, no entanto, aparece de antemão em tudo o que é ordinário. [...] está baseado no deixar os
entes virem ao seu brilho, na autoapresentação, em grego: daio”906. Ou seja, o extra-ordinário
não é pensado como o não-natural, ou como super-natural, mas como o que é “mais natural”
no sentido de physis. Como nota Gonzalez, todo o aprofundamento de Heidegger sobre a no-
ção de lugar extraorindário (topos tis daimonios) corresponde à sua reflexão a respeito da
physis: Se esses entes que existem naturalmente (physei) são “o ordinário”, então a physis é o
extra-ordinário de que o ordinário emerge e a partir do qual é desvelado 907. Portanto, antes de
continuar a elucidação do sentido do daimon, convém aprofundar essa noção de physis, a par-
tir de três textos fundamentais do pensamento tardio de Heidegger, Acontecimento apropriati-
vo, ‘A essência e o conceito de physis em Aristóteles (Física B,1)’ e ‘Aletheia (Heráclito, fra-
gmento 16)’.
A questão da physis é decisiva no pensamento do acontecimento apropriativo, tendo
sido tratada acima, no item 2.4., o qual discute a relação essencial de ser e aparência, aquém
da cisão metafísica (chorismós) que os divorcia radicalmente. Physis é a palavra fundamental
do pensamento originário, é a aletheia do seer enquanto Ereignis. Sem ela, não se pode com-
preender o alcance filosófico da mutação essencial da aletheia no primeiro início da filosofia.

906
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p. 154 (§6, Recapitulação 2).
907
GONZALEZ, Francisco. Plato and Heidegger: A Question of Dialogue. Pennsylvania: The Pennsylvania
State University Press, 2009.p. 236.
338

Com efeito, em Acontecimento apropriativo - escrito póstumo de 1941-1942, contem-


porâneo ao curso Parmênides -, Heidegger esclarece que o pensamento rememorante do pri-
meiro início precisa recuperar “a inicialidade do ser junto à physis e retirar em primeiro lugar
essa physis da falsa interpretação até aqui” 908. A falsa interpretação da physis a que Heidegger
se refere é a interpretação que lhe deu Platão, cindindo o ser da sua aparência e rebaixando
ontologicamente esta aparência como gerado de mera opinião (doxa). Platão estabiliza o di-
namismo epocal e histórico da physis com a cristalização da entidade do ente, a idea, a partir
da qual a verdade deve ser corrigida e adequada.
Do mesmo modo, Platão separa o ser do devir, impedindo qualquer compreensão his-
tórica da physis, a “presentação emergente” do ser que é ‘devir’” 909. Ser é devir porque é
“emergência, desvelamento, mostrar-se”, não há ser sem aparência deveniente910. “A doxa é
presentação do que se presenta, a emergência entregue a si mesma, que impera e penetra so-
bre tudo o que se presenta tomado por si. A doxa é a physis (mas a essência da physis é a ale-
theia).”911 O pensamento originário é anterior e refratário ao chorismos platônico, pois não se
pode instaurar uma cisão no que é essencialmente uno, ser e aparência: “Tudo aquilo que
emerge ganha necessariamente a essência da doxa.” É essa aparência (doxa) que caracteriza o
acontecimento do seer, a essenciação que presentifica, apresenta o ente na toalidade. Todo ser
é emergente, pertence essencialmente à aletheia. O aspecto (idea) aparente (doxa) dessa pre-
sentação que desponta aletheologicamente será cristalizada e estabilizada por Platão como a
entidade do ente.
Ora, Heidegger argumenta que, no primeiro início do pensamento (não confundi-lo
com o primeiro início da filosofia metafísica), “a doxa é a aparência mais imediata da physis-
aletheia”912, cuja emergência apresenta o ente, isso é, faz o ente aparecer. “O ente mesmo é
considerado aquilo que se mostra”913, que vem ao desvelado do espaço aberto pela clareira. A
aparição do ente na doxa será tomada como mera “aparência” por Platão, que precisará estabi-
lizar o perfil do aspecto daquilo que aparece em uma hipóstase substantiva denominada idea,

908
HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2013. p.11.
909
Ibid., p.24.
910
Ibid., p. 33.
911
Ibid., p. 36.
912
Ibid., p. 74.
913
Ibidem.
339

como aquilo que é eterno e imutável, irredutível ao devir e à aparência enganadora e ilusória
que as percepções sensíveis podem causar. Heidegger articula, portanto, doxa e idea:“por in-
termédio da doxa, o ser (physis) se transforma em idea. Uma vez que agora só se continua
apreendendo o ser a partir do ente e não mais como inicialmente o ente a partir do ser.” 914
Lembrada em meio ao salto ao outro início, a experiência originária do seer revela-o como
aletheia-physis, em que “o encobrimento mesmo se encobre, de tal modo que a pura emer-
gência aparece e a emergência se mostra como se fosse pura presença.” 915
Mais uma vez, Heidegger enfatiza o fato de a metafísica não ser um erro de pensado-
res como Platão e Aristóteles, mas o autovelamento do seer que esconde a sua natureza enco-
bridora e se deixa confundir com o ente que desvela na totalidade “como se fosse pura pre-
sença”. Ao doar o ente na totalidade, ao deixá-lo emergir no espaço aberto da clareira, o seer,
ele mesmo, se retira. A permanência da aparência do ente na totalidade converte a doxa da
emergência sempre transitória da physis em idea metafísica, eterna e imutável. A metafísica
esquece o processo de emergência de que provém toda a entidade fixada como idea. A ale-
theia da physis, portanto, é anterior e mais originária do que a fixação eidética da entidade do
ente em um aspecto definitivo. É isso que Heidegger quer dizer quando afirma que: “A dota-
ção de constância no fixado é sempre e a cada vez em si isolamento, delimitação, particulari-
zação, um arrancar da presentação essenciante.”916 Isso significa a objetivação do ser do ente,
a consideração do ser como um objeto a ser contraposto a um sujeito. Essa delimitação e par-
ticularização é o estabelecimento da idea do ser, do “elemento objetivo” que é “a estrutura
fundamental da verdade do ente no sentido da metafísica.” 917
Da mesma forma, ao estudar o conceito de physis em Aristóteles, Heidegger percebe a
fixação do dinamismo emergente da physis na entidade, na ousia, como “aquilo que caracteri-

914
HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Foren-
se, 2013. p. 74.
915
Ibidem.
916
Ibid., p. 77.
917
Ibidem. Cf. também p. 15: “O ente só é um ente que se encontra contraposto e um objeto possíveis (anti)
perante alguém, porque ele se essencia no aberto do ser. Precisamente onde se dá um ‘contraposto’essencia-se
algo mais originário, a clareira do entre. [...] precisamente lá onde o ente se transforma em algo objetivamente
contraposto, isso só acontece porque o ser do ente não é mais ao mesmo tempo dignificado, mas é considerado
como puramente decidido, a saber, como o certo, como o que é fletido na reflexão e, assim, assegurado de ma-
neira retesada. Essa não dignificação do ser aponta, sob o modo do esquecimento do ser, para um modo próprio
da verdade do ente, verdade essa que atesta com maior razão a essenciação do ser, isto é, o desencobrimento do
aberto.”
340

za um ente como tal, precisamente o ser.”918 O mesmo processo observado em Platão, vale
para a Aristóteles, com quem compõe o primeiro início da filosofia enquanto metafísica. O
decisivo nesse momento epocal da história do seer é que a constância da emergência configu-
rou-se em estado. Para a (meta)física artistotélica, ser significa “presença”, “postar-se em si”,
hypostasis (substantia), ou mesmo “encontrar-se defronte”, hypokeimenon (subjectum)919.
Ambas as noções provêm da noção originária de physis como “aquilo que se presenta a partir
de si, o presentar-se”920, como o que “não é meramente algo dado, nem sequer e sobretudo
aquilo que se esgota na constância, mas o ganhar a presença no sentido do vir à florescência
no desvelado, do colocar-se no aberto”921. Neste texto central que marca a viragem na con-
frontação com Aristóteles, Heidegger articula a verdade do ser a partir da physis heraclítica:
“Ser é o desvelar-se que se vela – physis em sentido inicial. O desocultar-se é emergir no des-
velamento; e isto significa abrigar primeiramente o desvelamento como tal na essência: deso-
cultação significa a-letheia”922. Se a essência do ser é aletheia, enquanto desocultar-se, vir à
tona no desvelado (physis), ela é, também, predileção pela ocultação, por esconder-se, abri-
gar-se e retrair-se (krypstesthai). A essenciação do seer consiste na união do desocultar-se e
do esconder-se no acontecimento mesmo dessa desocultação ocultante (Ereignis).
Como se pode perceber, a presença de Heráclito é determinante para a compreensão
do destino ulterior da physis grega. De fato, esse texto sobre Aristóteles conclui com uma re-
flexão sobre o fragmento de Heráclito: physis krypstesthai philei. Ora, o pensamento da physis
só pode ser conquistado mediante o confronto com os pensadores originários, cujos fragmen-
tos falam “apenas da physis”923. Ou seja, a análise de Platão e Aristóteles não pode jamais vir
desacompanhada do confronto com Anaximandro, Parmênides e Heráclito, pois estes autores
ecoam, mais originariamente, a voz do seer que se destinou nos primórdios do pensamento,
antes da consolidação da filosofia metafísica que dele se afasta, esquecendo-se do ser e sendo
responsável pelo consequente abandono do ser na época do niilismo consumado da metafísica
moderna da vontade.

918
HEIDEGGER, Martin. ‘A essência e o conceito de physis em Aristóteles (Física B,1)’. p. 272. In: Marcas do
caminho. Trad. E.P.Giachini; E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 251-314.
919
Ibid., p. 273.
920
Ibidem.
921
Ibid., p. 285.
922
Ibid., p. 314.
923
Ibid., p. 313.
341

A physis é a essenciação epocal do seer, a palavra fundamental do acontecimento


apropriativo do pensamento originário, deturpado e apequenado com o primeiro início da filo-
sofia, a metafísica eidética de Platão. Faz-se necessário, portanto, pensar novamente o impe-
sado dos pensadores originários – Anaximandro, Parmênides e Heráclito – para atender ao
apelo apropriativo do acontecimento alethético do seer. Ao responder a esse apelo do seer, o
homem é, junto com ele, apropriado em meio ao acontecimento histórico da verdade: “o ho-
mem é a-colhido pelo ‘ser’, [...] como incluído para o ser (tudo a partir da aletheia como o
‘mesmo’).”924 A essência do homem depende disso, essência essa que Heidegger denomina,
justamente, “essência apropriativamente acontecencial do homem”925, já que o homem é
apropriado em meio a esse acontecimento histórico-verbal de essenciação do seer em palavras
fundamentais.
Heidegger afirma que “Ser lembrado disso [da história epocal da verdade do seer] já é
o acontecimento da apropriação.”926 É por isso que pensamento rememorativo só pode ser
antecipativo do outro início porvir, a partir do salto no impensado do primeiro início. Essa é
uma experiência de deixar-se apropriar-se pelo requisição apelativa do seer que emerge no seu
acontecimento de essenciação histórica: “Experimentar esse acontecimento significa, sem
apoio e sem sustentação no ente, suportar o ser, o fato de que ele se clareia, de que a clareira
se essência, em sua cesura abissalmente fundadora, sem ser um dizer.” 927 Sem apoio no ente,
não há nenhuma estabilidade eidética para retificar o dizer representativo. O pensamento re-
memorante afasta-se do “dizer” porque se desprende do “ente”, o qual é representado metafi-
sicamente conforme se adeque à idea do ente. No pensamento antecipativo rememorante que
experimenta a história do seer por imergir no acontecimento apropriativo de que ela provém,
é o ser mesmo e sua essenciação que protagonizam essa experiência pensante, “não ‘nós’ e
um quem qualquer”928.
Assim, a falsa interpretação platônica impede que se aceda à physis originária, expres-
são primordial da aletheia do ser que se encobre ao se desvelar na totalidade da clareira. A
meditação histórica visa à libertação da physis e da aletheia “dos grilhões da metafísica”, para

924
HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2013. p. 73.
925
Ibidem.
926
Ibid., p. 63.
927
Ibid., p. 73.
928
Ibid., p. 30.
342

alcançar “a inicialidade do início e sua historicidade”929. Essa inicialidade é a originariedade,


a essenciação da verdade do seer, que se doa e se subtrai nesse dom, isto é, se vela no desve-
lado. Liberados mediante o salto para o outro início, os grilhões da metafísica constituem os
conceitos petrificados pela tradição do primeiro início platônico da filosofia que impedem a
experiência originária do acontecimento do seer em sua verdade essencializante: “A presenta-
ção precisa ser experimentada alehteologicamente, e não metafisicamente a partir do que é
constante e do que se encontra presente à vista” 930Ou seja, nada que seja ente – como a enti-
dade constante da idea - pode servir de base para a experiência do seer. Com efeito, é a hege-
monia da idea que reduz a physis à constância ôntica da “natureza”, cujas leis regulares e pre-
visíveis configuram o objeto científico da pesquisa exploratória da técnica moderna. No inte-
rior do pensamento metafísico, é o ente que dá a medida do ser, por isso, a abertura prévia do
ente, a clareira da aletheia, cai no impensado e inquestionado 931. É a repetição da questão do
seer, a partir da destruição da histórica do primeiro início da ontologia, que permite o pensa-
mento histórico do seer, que é a confrontação com coisa mesma do pensamento.
Ora, Heidegger ressalta que o primeiro início “só aparece em seu acontecimento inici-
al na transição para o outro início.”932 Ou seja, sem o salto para o outro início, o acontecimen-
to histórico do seer, que marca o primeiro início, não pode despontar em sua essencialidade
originária. Em seguida, continua Heidegger no mesmo ponto de Acontecimento apropriativo:
“Essa transição é experimentada na vivência do acabamento da metafísica. Isso, porém, só
acontece apropriativamente no saber de sua essência histórica.” 933 A superação da metafísica
em jogo no pensamento da história do seer é essencialmente transversão, “que gira a metafí-
sica para o interior da coroa da viragem” 934, isto é, que a insere na dinâmica do acontecimento
de que ela provém, sem nunca ter tido consciência disso. A transversão é a consideração do
seer que determina a essência da verdade metafísica. E essa consideração é, segundo Heide-
gger, uma “veneração da dignidade do seer” que acontece apropriativamente 935. Superação

929
HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2013. p.12.
930
Ibid., p. 38.
931
Ibid., p.61.
932
Ibid., p. 74.
933
Ibidem.
934
Ibid., p. 53.
935
Ibidem.
343

aqui não implica rebaixamento, derrubada, afastamento ou degradação. Superação “não é o


triunfo de uma intelecção melhor e de uma inteligência superior, mas um acontecimento
apropriativo do próprio seer.”936 Por isso, a confrontação histórica com o primeiro início mos-
tra-se completamente alheia a um registro historiográfico que elenca as ideias dos filósofos, a
modo de uma historiografia dos conceitos, ou das visões de mundo. Tudo depende da ale-
theia, do envio destinamental do seer (Ereignis), “a emergência que se essencia nela e a cla-
reira assim produzida no desvelado: a physis.”937.
Na verdade, como já visto no primeiro capítulo, o pensamento histórico-ontológico
não dialoga com os pensadores, mas com a coisa mesma do pensamento, com o próprio seer
que se essencia verbalizando-se nas palavras fundamentais que o ressoam938. Isso porque as
filosofias dos grandes pensadores são o reflexo do seer que se destina epocalmente, e não o
resultado de suas inteligências individuais. A ontologia não é a produção da mente filosófica
de homens iluminados, tampouco o progressivo desvendar das leis científicas que regem a
natureza. Não. Os pensadores acompanham, com um gesto acolhedor, o que emerge (physis)
no acontecimento apropriativo de essenciação da verdade do seer (aletheia). Heidegger sinte-
tiza essa noção, ao dizer: “porque o pensamento dos pensadores só pensa com vistas àquilo
que já ‘veio à tona’ e, portanto, se essencia constantemente no que já veio à tona antes de
todos os resultados e de tudo o que é produtivo. O vir à tona mesmo é a aletheia, o ser.”939
Por isso, o pensamento originário rechaça a historiografia que sistematiza artificiosamente os
conceitos e os seus respectivos autores como se o pensar dependesse da erudição das ideias
filosóficas. Pensar não é organizar “resultados” de pensamento anteriores, mas imergir no
“espaço do qual a cada vez tudo provém – aletheia”940
Em consonância com esse pensamento, Heidegger afirma, no texto ‘Aletheia (Herácli-
to, fragmento 16)’, que as observações traçadas “não levam a nenhum resultado. Elas acenam

936
HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Foren-
se, 2013. p. 53.
937
p. 54.
938
Cf. ibid., p. 79 e ss., que tratam da importante noção de “ressonância”, “o primeiro e mais imediato aceno do
outro início”, que “mostra a metafísica como o caso intermediário entre o domínio do ente e sua verdade”, quan-
do a metafísica é experimentada em termos de história do seer.
939
Ibid., p. 45.
940
Ibid., p. 46.
344

para o acontecimento apropriador”941. Esse é um texto decisivo para a elucidação da natureza


ambígua e agônica da aletheia, exatamente porque enfatiza a sua contra-essência (lethe). O
esquecimento que constitui a lethe provém do retraimento do seer, é o “destino do encobri-
mento”942. A physis é “surgência”, “emergência” enquanto desencobrimento, mas que não
pode ser fixada definitivamente, pois é essencialmente composta pelo encobrimento. Segundo
Heidegger, o desencobrimento e o encobrimento que constituem a essência de aletheia e le-
the não são “dois acontecimentos distintos e reunidos por uma simples ordem sucessiva”, mas
“um e o mesmo acontecimento”943, porque o surgir da physis tende a uma retração. Tanto
quanto o pensamento de Anaximandro e Parmênides, o pensamento originário de Heráclito é
imprescindível para a compreensão do Ereignis. Pensado no sentido verbal da essenciação da
aletheia-lethe, o seer é simultanemanente physis (surgir, desencobrir-se) e krypstesthai (enco-
brimento), é a philia que os une reciprocamente em uma unidade indissolúvel e sincrônica.
Todo desencobrir-se do ser é um encobrimento de si mesmo. Heidegger explica que:
physis e krypstesthai não estão separados um do outro. Um tende para o outro numa
reciprocidade. São o mesmo. É somente nessa tendência que um favorece ao outro o
seu vigor próprio. Esse favorecimento recíproco é o vigor essencial de philein e phi-
lia, A plenitude vigorosa da physis reside nesse tender um para o outro de surgir e
encobrir-se.944

Nesse contexto, a compreensão do lugar demoníaco enquanto physis está ligada à no-
ção de aletheia e de ser, tal como Heidegger desenvolve nos outros textos estudados acima.
Ora, voltando à argumentação baseada no curso Parmênides, o que permite a eclosão da ver-
dade nos entes é o ser; é o ser que “deixa os entes virem ao seu brilho” 945. A relação entre
daimon, ser e verdade começa a ficar clara, no contexto do desvelamento da essência do ente
que eclode no extra-ordinário da experiência corrente dos entes. Não se trata de uma trans-
cendência religiosa, de uma visão mística da experiência depois da morte. Não há nada de
escatológico na leitura heideggeriana do mito de Er; ao contrário, há uma tentativa de com-
preendê-lo no âmbito da experiência da verdade como aletheia, como clareira, como abertura
do ente na totalidade pela transparência da luz em que o ente emerge no desvelado. Experi-
mentado em sua essência, o “lugar daimônico” reluz no ordinário e se apresenta como o ser
941
HEIDEGGER, M. ‘Aletheia (Heráclito, fragmento 16)’, p. 231. In: Ensaios e conferências. Trad. E.C.Leão;
G.Fogel; M.S.C.Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Vozes, 2008. pp.227-249.
942
Ibid., p. 233.
943
Ibid., p. 238.
944
Ibid., p. 240.
945
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p. 154 (§6, Recapitulação 2).
345

dos próprios entes expostos à clareira. Nesse sentido, a essência da aletheia é o desencobri-
mento, a emergência do ser que eclode originariamente. Como diz Heidegger, “na medida em
que o ser vige a partir da aletheia, pertence a ele o emergir autodesvelante. Nós denominamos
isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira.”946
Com isso, a leitura heideggeriana do mito de Er afasta qualquer “transcendência”,
qualquer possiblidade de considerá-lo para além da experiência corrente – ainda que não seja
cotidiana no sentido da decadência no impessoal. O extra-ordinário do lugar demoníaco é a
dimensão abrangente e pervasiva deste mundo, o mundo do “aqui”. Para Heidegger, não há o
outro mundo, o “lá” é uma dimensão do “aqui”. O extra-ordinário, de que emerge, brilhando,
o ordinário e no qual o ordinário está enraizado para poder “ser”, está sempre presente. O lu-
gar demoníaco é onde o ente tem seu ser desvelado, onde é visto como desvelado a partir da
emergência da verdade que, nele, se dá. O que brilha e se expõe no daimonios topos é o extra-
ordinário do ser, ele mesmo, a physis. Em outras palavras, é a essenciação do ser do ente que
se oferece à vista do homem, o lugar onde o desvelamento da aletheia se faz presente. O tema
central que move Heidegger, nesse curso, é a aletheia. Ele chega a sugerir que, ao nomear a
deusa Aletheia, Parmênides alude a esse daimonios topos. Esse daimonios topos é o ente ex-
tra-ordinário na auto-mostração do seu ser, auto-emergência da physis e auto-desvelamento da
aletheia. Em poucas palavras, a clareira do acontecimento apropriativo do seer.
O daimonios topos é o local de lethe, do esquecimento que se esquece de si mesmo, o
completo retraimento-encobrimento do seer. Ora, a lethe surge no horizonte especulativo co-
mo a oposição originária, a contra-essência da aletheia, em polo diametralmente oposto à
physis, como eclosão do manifesto. Na passagem 621a d’A República, Platão indica clara-
mente que a planície de lethe não tem árvores ou o qualquer outra coisa que a terra possa ge-
rar, e o verbo utilizado por Platão aqui é phuei. A lethe não permite que nada emerja (phuei)
do velamento, do interior da terra; como retraimento e oclusão, a lethe é o oposto da auto-
emergência da physis, é por isso que Heidegger denomina a lethe a contra-essência (das Ge-
genwesen) da physis. Isso demonstra a ambivalência da essenciação do seer, que, como
physis, permite a presentificação do ente, mas, ao retrair-se simultanemanente, priva e obscu-
rece o horizonte aberto pela clareira. A clareia comporta escuridão. Não é uma zona de ilumi-
nação plena e definitiva, é muito mais uma área eclipsada, cuja luz atravessa as trevas, com
elas se confundindo.

946
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p. 155 (§6, Recapitulação 2).
346

Por essa razão,o mito de Er deve ser lido em consonância com a alegoria da caver-
na947, pois a lethe é impensável sem a aletheia, e ambas ganham sentido na noção central de
clareira do seer. No diálogo que trata da essência da polis, “lugar originário da essência do
homem histórico”, onde “os entes se deixam, no todo, desencobrir e encobrir” 948, a aletheia
sempre comporta um retraimento (lehte). Com efeito, a alegoria da caverna, que tem como
tema a essência da verdade como clareira, pois trata da dissimulação, do encobrimento e do
descobrimento. A partir da alegoria da caverna, Heidegger articula as noções de aberto da
clareira e da luz, aletheia e physis:
A luz é o esplendor determinante, o brilhar e o aparecer [physis]. ‘A luz’, em sentido
eminente, brilha como luz do sol. Com base na ‘alegoria da caverna’ de Platão, po-
demos aferir imediatamente a conexão entre sol, luz, desencobrimento e desvela-
mento, por um lado, e entre escuridão, sombras, encobrimento e caverna, por ou-
tro.949

Num circunlóquio virtuoso, Heidegger reforça a intuição fundamental do curso: a uni-


dade originária e essencial dos polos antagônicos intrinsecamente vinculados na noção de
aletheia. Trata-se de uma compreensão heraclítica, de “co-pertinência”: a-letheia e lethe per-
tencem-se reciprocamente, por isso habitam o mesmo espaço essencial e presença e retrai-
mento do ser. Aletheia é a verdade do seer (clareira), pensado como acontecimento apropriati-
vo (Ereignis).
Desse modo, Heidegger afirma que, “onde a co-pertinência é de essência, a passagem
de um para o outro é sempre ‘repentina’, o que, cada vez, só se dá num átimo e a partir de um
instante”950. Ou seja, não há mediação ou trânsito, “uma vez que ambas, em si mesmas, se
pertencem reciprocamente de modo imediato.”951 O distante da lethe vem à presença no mes-
mo campo demoníaco e extra-ordinário da aletheia, e vem à presença subitamente, não como
“nada”, como nadificação ou aniquilação, mas como prevalência do retraimento do próprio
seer que se destina velado, latente. O seer não pode jamais privar-se do encobrimento com
que se essencia, característico do acontecimento apropriativo. O desvelamento só pode se dar
porque há uma tendência de as coisas se velarem, se encobrirem no esquecimento do ser oca-
sionado pela lethe. Essa é a implicação mútua de aletheia e lethe que Heidegger evidencia.

947
Cf. HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p. 135 (§6, b).
948
Ibidem.
949
Ibid., p. 207 (§7, b).
950
Ibid., p. 180 (§7, b).
951
Ibidem.
347

Estamos diante de duas dimensões constitutivas do mesmo lugar, e não de lugares diferentes.
Por pertencer à essência da a-letheia, a lethe não é simplesmente excluída e superada quando
se dá o desvelamento. O desvelamento precisa do esquecimento e do encobrimento para poder
se dar, sempre e cada vez renovadamente. Como já dito acima, o desvelar é um revelar.
A aletheia precisa da lethe, e só a linguagem essencial do mito pode mostrar essa rea-
lidade ambígua, pois “o muthos não tira um desencoberto do encobrimento, mas fala a partir
do âmbito onde surge a unidade originária da essência de ambas, onde mora o originário” 952.
Como explicado no item anterior, o originário é o acontecimento apropriativo do seer, a es-
senciação da verdade como aletheia.
É nesse contexto que surge a questão da anamnesis. Já que a relação com o ser dos en-
tes é um salvar e preservar o desvelamento contra a ameaçadora, constante e repentina insur-
gência do velamento-esquecimento, esse ato de reter a verdade desvelada é considerado
anamnesis. Anamnesis é pensar, de modo grego, a referência ao ser do ente. Essa palavra-
chave do pensamento platônico é normalmente traduzida como “lembrança” ou “recordação”.
Nada obstante, Heidegger ressalta que essas traduções induzem ao erro de psicologizar a filo-
sofia grega, como se a lembrança do ser em questão fosse lembrar-se de algo esquecido, um
mero ato psicológico de recuperação de uma informação ou uma imagem perdida no interior
da consciência de um sujeito.
A anamnesis em questão não diz respeito à lembrança de entes como um número, um
nome, uma rua, um autor, uma frase, uma fase da infância, uma cena da adolescência, e assim
por diante. A memória platônica é a memória de uma visão essencial, intrinsecamente ligada à
natureza eidética, visual da idea. Anamnesis é todo apreender autêntico, todo vir à presença de
uma ideiaa uma visão intelectual. O ser de um ente só pode ser conhecido eideticamente, isto
é, pela anamnesis. Toda ideia está velada por lethes, pelo esquecimento essencial do ser dos
entes. Esse esquecimento significa que o ser se vela, se retrai e, por isso, permanece esqueci-
do. O modo de lembrá-lo não é esforçando-se por recuperar no fundo da memória subjetiva
uma informação perdida – como algo visto há muito tempo atrás que permanece latente na
memória, podendo ser provocado pela associação de algo relacionado -, mas de salvá-lo e
conservá-lo dessa evasão da lethe. E isso se dá pela resistência da contemplação da ideia. A
essência da anamnesis é a luta e mútua pertença de aletheia e lethe, inserida no interior da
idea que eclode e resplandece no ente.

952
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008.p.181.
348

Segundo Heidegger, como a lethe pertence à essência da aletheia, o des-encobrimento


que configura a aletheia não pode reduzir-se ao simples alijamento do encobrimento. A
anamnesis não é uma memória estática - como a de Funes, o memorioso, no conto de Jorge
Luis Borges -, que simplesmente recupera informações passadas e as impede de cair no es-
quecimento definitivo, no vão escuro da mente humana. Ao contrário, a noção de aletheia,
correlata à noção de physis, comporta um dinamismo incessante. Como o retraimento do que
aparece é um modo necessário à preservação e à retenção do des-encoberto953. Sem essa re-
tenção do seer, não haveria a necessidade de preservá-lo e conservá-lo na clareira do desenco-
berto. Como elucida Heidegger, “Tal conservação do desencoberto acontece e se dá com pu-
reza e transparência da essência, quando o homem se empenha livremente pela conquista do
desencoberto, de modo ininterrupto e ao longo de toda a viagem mortal sobre a terra.” 954
A anamnesis é essa preservação do que é pensado e conservado no desencoberto pela
contemplação eidética do ser do ente. Como visto acima, a essência do ente é seu ser eidético,
aquilo que, no ente, permanece desvelado. O olhar eidético fixa a atenção na essência imutá-
vel do ente. O ente é o que se mostra, e “ao mostrar-se, chega ao desencobrimento”955. O ser
do ente é o que se apresenta à visão eidética, o que desabrocha como o aspecto essencial do
sente, seu perfil, isto é seu eidos. Nesse contexto, anamnesis, idea, physis e aletheia são indis-
sociáveis:
eidos é o ‘perfil’ em que, inserindo-se, uma coisa vige e vigora desencoberta, em
que ela é. E idea diz a visão e a vista que uma coisa oferece, a feição em que e com
que encara o homem. Pensando no sentido que Platão pensou, o desencobrimento
acontece [aletheia] e se dá em sua propriedade como idea e eidos. É nelas e por elas
que o ente, a saber, o vigente, vige em seu vigor [physis]. A idea é a feição com que
e em que o ente, desencobrindo-se cada vez, encara o homem. A idea é a vigência
do vigente: o ser do ente. Todavia, porque a aletheia é a suspensão da lethe, por isso
o desencoberto há de ser preservado no desencobrimento e nele conservado e res-
guardado. O homem só pode comportar-se com o ente, com o desencoberto, por
continuamente remeter-se ao desencobrimento do desencoberto, isto é, por pensar a
idea e o eidos, e desse modo resguardar o ente de retrair-se para o encobrimento.956

Heidegger destaca o fato de Platão ser um pensador de transição, mas que, mesmo as-
sim, conserva o originário nas palavras essenciais da sua filosofia. A filosofia de Platão pode
ser interpretada tanto em vista dos pensadores originários que o antecederam, quanto em vista
da tradição posterior, principalmente a da modernidade subjetivista. Nesse caso, com a trans-

953
Cf. HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p. 179 (§7, b).
954
Ibidem.
955
Ibidem.
956
Ibid., p.178-179.
349

formação da essência da verdade em Platão – quando a verdade se torna a correção do juízo,


uma propriedade da visão e da fala humana -, isso acarreta a mudança da essência da anamne-
sis, que se torna puramente psicológica, quando pensada “apenas a partir do que veio depois,
falando modernamente, a partia do ‘sujeito’” 957. Quando a verdade se torna adequação (ho-
moiosis), a lethe e o seu contrário essencial, a anamnesis, também se transformam, tornando-
se, assim, estados subjetivos, respectivamente, de esquecimento e lembrança: “O aconteci-
mento que retrai o próprio do encobrimento se transpõe e transforma no comportamento hu-
mano de esquecer e esquecimento. Igualmente, o que se contrapõe e contraria a lethe torna-se
uma recuperação e retomada da parte do homem.”958 Heidegger assinala essa transformação
essencial ressaltando o caráter de acontecimento do próprio, isto é, do seer. Permanecer retido
no desvelado é acontecimento do próprio seer e não da memória humana que o preserva. A
faculdade psíquica do homem que vê no desvelado é derivada da verdade (aletheiai) do acon-
tecimento apropriativo do seer (Ereignis). A psicologização moderna da ontologia epifânica
da physis originária baseia-se na subjetivação da idea.
Quando se pergunta pela noção originária de psiché, percebe-se o quanto ela está inti-
mamente relacionada à noção de physis – de mostração do ser do ente no desvelado - e o
quanto ela está distante da faculdade de representação do sujeito moderno. Segundo Heide-
gger, psiché, cuja tradução convencional é “alma”,significa “a essência do que é vivo”, “o
fundamento e o modo de uma relação com os entes” 959 Essa relação com os entes e consigo
mesma, exige, da psiché, a palavra com que ela possa receber o desvelamento do seer. Sem o
logos, a “coisa vivente” não entretém qualquer relação com o descoberto do ser (aletheia), à
maneira das plantas e dos animais. Só a alma dotada de logos habita o espaço daimônico de
desvelamento do seer, que é, como explicado acima, “o extra-ordinário como o ser que brilha
em cada coisa ordinária”, “a emergência e o encobrimento que mora em todos os entes emer-
gentes, isto é, o próprio ser”960 . O extraordinário do daimonion não é o que transcende e se
afasta do ordinário, mas o “mais natural” no sentido originário da physis, isto é, “de onde todo
ordinário emerge, no que todo ordinário está suspenso”961 Somente quando se compreende a

957
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008.p. 179.
958
Ibidem.
959
Ibid., p. 145 (§6, d)
960
Ibid., p. 148.
961
Ibid., p. 149.
350

essência da aletheia, pode-se compreender a essência simples da ação de mostrar-se (daio) do


que se mostra no espaço de mostração daimônico. Nesse sentido, os entes cujo ser se re-vela
são os daimones, “que acenam, são aqueles que são assim como são, somente no âmbito es-
sencial do desencobrimento e do auto-descobrir-se do próprio ser. Noite e dia têm sua essên-
cia a partir do que encobre e do que se desencobre, e é auto-iluminante.”962
A noção do daimonion concerne ao modo grego originário de compreender o divino e
o olhar que o recebe contemplativamente. Nesse sentido, desponta a noção de “thean”, “ver”
(blicken), que é o “oferecer o vislumbre, ou seja, o vislumbre do ser dos entes”. Ou seja, “esse
vislumbrar que mostra o próprio ser não é algo humano, mas pertence à essência do próprio
ser como pertencendo à aparência no descoberto.”963 Com essa noção, mais uma vez, Heide-
gger distancia-se da noção moderna de representação, em que o homem experimenta o ver
como atividade subjetiva, “desde si”, em termos de um ego que se contrapõe a um objeto,
instaurando-o intelectualmente no ato mesmo de representá-lo. Diferentemente, o pensamento
originário pensa o ser e a essência a partir da noção de physis, como autodescobrir-se e auto-
mostração. Pensada a partir da aletheia da physis, o ver é o modo fundamental de acolhimento
do aparecer da essência que emerge no vigor de sua presentificação, de sua saída do desvela-
do.
Somente no interior desse pensamento originário é que se pode compreender a radica-
lidade da palavra fundamental de Platão, idea. Com essa palavra, pensa-se o ser a partir da
“vista” (Anblick) do “perfil” (Aussehen) daquilo que se mostra a si mesmo, em sua essência
eidética, em sua “fisionomia” (Gesicht) ontológica. “O ser – idea – é o que em todos os entes
mostra a si mesmo e o que a partir dele brilha através deles; esta é a razão precisa pela qual o
homem pode apreender os entes como tais.” 964 É a idea (ser) do ente que desponta no desve-
lado da clareira (aletheia). Essa idea que se mostra, o extraordinário que brilha em todo ordi-
nário, o que emerge para a presença, é o divino (teion), o descoberto do ser. Diferente do uni-
verso da religião cristã, “os deuses gregos se originam da ‘essência’ (‘vigência’) e o ser se

962
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p.149.
963
Ibid., p.151.
964
Ibidem.
351

‘essencializa’ (‘vige’)”965. O divino é determinado pela essência do ser, pela “irrupção do pró-
prio ser na emergência de sua essência.”966
Esse despontar teofântico do ser precisa ser acolhido por uma visão eidética do ho-
mem, que se abre à luz da clareira e se insere no aberto da verdade. O ser emerge a um olhar
eidético que pode acolhê-lo e contemplá-lo, colocando-se no espaço de mostração e desvela-
mento da clareira. Por isso, a contemplação do ser essencia o ser do homem que o acolhe e se
desvela em meio ao acontecimento alethético que a ambos apropria. Nesse sentido, Heide-
gger explica que: “o homem, ele próprio, é esse ser que tem a característica, o que o distingue,
de ser tocado pelo próprio ser, de tal maneira que no mostrar-se do homem, no seu ver e na
sua vista, o próprio extraordinário, o deus, aparece. “967 Em seguida, Heidegger condensa,
ainda, a verbalização essencianate do ser com o mito (saga): “Essa ‘exigência’ do divino, fun-
dada no próprio ser, é acolhida pelo próprio homem no dito e na saga, porque a ação de des-
cobrir o desencoberto e de resgatar o descoberto toma lugar apenas e somente na lingua-
gem.”968
No fim do mito, Sócrates assevera que o mito foi salvo do esquecimento (lethe), por-
que Er não tomou da aguá do rio Ameles. E Sócrates acrescenta uma informação decisiva para
a dimensão edificante e pedagógica do diálogo: é esse mito lembrado, não-esquecido que po-
de nos salvar (República, 621b). A história de Er é, então, ela mesma, uma anamnesis, uma
lembrança do esquecimento originário a que homem está submetido. Essa lembrança do es-
quecimento, o desvelamento do que vela e encobre é o que capacita o filósofo a passar pelo
rio Ameles sem beber de suas águas de esquecimento ao ponto de esquecer-se do esquecimen-
to. Para Heidegger, essa travessia consciente e filosófica da planície de lethe pelo rio Ameles
significa o cuidado de lembrar-se do que causa a amnésia e de como ela é autoimune, pois os
que se esquecem sequer sabem o que devem lembrar. Do ponto de vista do mito, isso é ex-
presso pelo saber beber na medida correta do rio Ameles, cujas águas provocam o esqueci-
mento.
Heidegger pensa esse problema a partir do significado originário, colhido de uma
hermenêutica etimológica, do nome do rio que atravessa a planície de Lethe, A-meles – sem-
cuidado. Heidegger atenta para diferenciar a planície de lethe e o rio Ameles que a atravessa.
965
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008.p. 160.
966
Ibidem.
967
Ibidem.
968
Ibid., p. 165.
352

A lethe é a planície, o prado, o lugar da estada, “que, na condição e como desencobrimento do


ente, envolve e rege a viagem mortal do homem.”969 Por sua vez, o rio é a “única coisa que
pode preencher o vazio e o ermo do campo do encobrimento, que tudo retrai” 970, por constitu-
ir sua água a essência do campo. Por isso, só se pode atravessar o campo pelo seu rio, ou seja,
imergindo na sua natureza evasiva e dispersiva, de modo que esse próprio ato de esquecimen-
to causado pela bebida é esquecido. O homem que se entrega ao descuido do esquecimento
sequer sabe do quê deve lembrar. Ao interpretar essa passagem, Heidegger retoma o paradoxo
socrático de que é preciso saber da ignorância (conhecimento formal), antes de poder saber
alguma coisa de positivo (conhecimento substancial). Antes de saber a respeito de um conteú-
do específico, é necessário reconhecer, formalmente, a necessidade de conhecer algo. Do
mesmo modo, é preciso saber-se esquecido, lembrar-se do esquecimento, para entrar no pro-
cesso de lembrança, o qual caracteriza o cuidado do filósofo que contempla a ideia, o desve-
lado do ser que fulge no ente. É assim que Heidegger interpreta a “travessia devida”, como
bebida na “medida certa”, na “porção destinada” 971. A essência do homem só será salva se, e
na medida em que, ele se colocar à escuta da saga do encobrimento, isto é, do mito de lethe
que o relembra daquilo que não pode se esquecer: do acontecimento apropriativo do seer que
se desvela no aberto da clareira (aletheia), retraindo-se e fazendo-se esquecer (lethe). “Pois
somente assim é que [o homem] poderá seguir aquilo que o descobrimento do desencoberto e
o próprio desencobrimento em si exige e requer de sua essência.” 972 Ou seja, a essência do
homem é deixar-se apropriar pelo acontecimento do seer que se desvela em meio a um apelo
verbal ao homem.
O cuidado que impede o esquecimento é o cuidado com o desvelamento, com a reten-
ção e preservação do desencoberto do ente, seu ser. Ora, sabe-se que esse ser é esquivo, que
se retrai no velamento do esquecimento; porém, o filósofo que tem sempre presente esse dado
constitutivo de realidade “cuida” de contemplá-lo sem cessar, sabendo que isso diz respeito à
sua liberdade, à sua essência que é a sua existência. Como sintetiza Gonzalez, o cuidado é
trazer o ser ao desvelamento e mantê-lo descoberto973. O rio Ameles provoca a despreocupa-

969
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p.180.
970
Ibidem.
971
Ibid., p. 182.
972
Ibidem.
973
GONZALEZ, Francisco. Plato and Heidegger: A Question of Dialogue. Pennsylvania: The Pennsylvania
State University Press, 2009.p. 243.
353

ção que permite o retraimento do ser ele mesmo. Mas esse cuidado não garante a ausência
total de retração do ser. Não há jamais um estado de lembrança completa, de desvelamento
absoluto, de verdade definitiva, de luz que elimine a escuridão. A verdade (aletheia)sempre se
dá no aberto da clareira, circunda pela cesura da escuridão. Tanto quanto o desvelamento co-
pertence ao encobrimento, preocupação e despreocupação convivem numa relação de impli-
cação mútua e insuperável, exatamente porque, segundo o mito de Er, beber, em alguma me-
dida, das águas desse rio é precondição necessária para ingressar na vida novamente.
Deve-se esquecer de algo, não se pode reter o conhecimento completo e perfeito nessa
vida mortal, o que é condizente com a natureza filosófica e aproximativa dos diálogos de Pla-
tão. Todo cuidado em preservar o ser desvelado requer certa medida de despreocupação em
deixá-lo encobrir-se novamente. A ausência de cuidado significa não cuidar da verdade do
desvelamento, permitindo que a lethe prevaleça retraindo e encobrindo o ser. Nesse caso, a
própria lethe cuida do ser, velando-o. Ou seja, Heidegger pensa em uma inversão constante do
cuidado, tanto da verdade quanto do esquecimento. Sempre há um cuidado, o qual, a depender
do ângulo enfocado, será descuidado também do lado oposto. O que não existe é uma supera-
ção definitiva dessa dualidade constitutiva de verdade e esquecimento. Dito de modo simples,
toda lembrança pressupõe um esquecimento que jamais é superado por completo, mas que a
cerca e ameaça a todo instante, constituindo-a essencialmente.
Agora, pode-se compreender adequadamente o significado de beber na “medida exata”
da água do esquecimento. Ora, o mito só foi salvo porque Er teve o cuidado de retê-lo em sua
memória e contá-lo. Er não se esqueceu dele, porque reteve história no desvelado e não a dei-
xou esvair-se, encobrindo-se e velando o ser que ela desvela, ou melhor, o ser que, nela, se
desvela. Como Diotima, por cuja boca Sócrates narra a alegoria de Eros no Banquete, Er é o
símbolo do filósofo memorialista, não porque não se esquece de nada, mas porque não se es-
quece do essencial, da ideia. Enquanto todos bebem para além da medida, o filósofo bebe “na
medida”, precisamente porque é dotado de percepção, de phronesis. Percepção que vê por
dentro, que “constitui o visível e o desencoberto”, é a phronesis que delimita, a cada vez, a
medida certa do esquecimento. Esse conhecimento phronético da medida não é um conheci-
mento teórico definitivo, que, uma vez apreendido, conserva-se intacto na memória estática de
um erudito bem “informado”.
Segundo Heidegger, a phronesis é a vida filosófica, é a própria filosofia, entendida
como “ter a visão do e para o essencial” 974. O essencial é o desvelado do ente, o ser, a ideia, a

974
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora
Universitária São Francisco, 2008. p. 173 (§7, a).
354

verdade do desencobrimento. Ora, o não-esquecimento do ser é que “salva” o homem do es-


quecimento de quem ele é, do esquecimento da liberdade que é a sua. Salvar o fenômeno, o
que aparece, é “reter e resguardar no desencobrimento o que se mostra, na condição em que se
mostra e tal como se mostra, a saber, preservá-lo contra o encobrimento e deslocamento cor-
ruptor.”975 Isso, só a filosofia pode fazer, se compreendida existencialmente como visão eidé-
tica do essencial: “Filosofia é o estar interpelado e desafiado pelo próprio ser. A filosofia já é
em si mesma o modo fundamental de ser em que o homem no meio dos entes se comporta e
atém ao ser.”976
Heidegger discerne radicalmente a filosofia autêntica da ocupação com a filosofia, da
atividade intelectual que trata de filosofia, que se interessa por questões filosóficas. Filosofia
não é erudição, não é tomar conhecimento de doutrinas filosóficas, mas viver com os olhos
voltados ao desencobrimento, acontecimento do seer. “Com atenção ao apelo que o ser faz ao
homem, a ‘filosofia’ é primordialmente o cuidado do ser e nunca uma questão de ‘cultura’ e
conhecimento.”977 Ou seja, a filosofia não é “mera ocupação profissional do pensamento com
conceitos gerais”978 que permanece na epiderme intelectual de quem , ao praticá-la, não pre-
sencia o acontecimento de nada de essencial, ou seja, que não se depara com o acontecimento
do próprio seer. Por isso, Heidegger afirma que: “Os despossuídos e destituídos da filosofia
são os ‘desprovidos de visão e per-cepção’”979, pois podem até voltar-se a assuntos filosóficos
e lerem os filósofos, mas não vêem, a partir do diálogo com o pensamento, o seer que está em
jogo. Ao contrário, os destituídos da filosofia, permanecem no âmbito movediço do devir,
sem reter o desvelamento sub-reptício do seer, entregando-se e abandonando-se “ao que a
cada instante aparece e com igual velocidade também desaparece. Acham-se dedicados ao
esvair-se e encobrir-se do ente, do que é e está sendo. Bebem além da medida da água do rio
‘Sem-cuidado’”980 São os “descuidados”, desmemoriados, que se sentem confortáveis na au-
sência de pensamento ontológico, não sentido falta da questão essencial sobre a clareira.

975
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p. 173-174.
976
Ibid.,p. 174.
977
Ibidem.
978
Ibidem.
979
Ibidem.
980
Ibidem.
355

Para Heidegger, o diálogo platônico que trata dessa essência phronética da filosofia é
A República, (Politeia), pois “um diálogo centrado no pensar fala sempre do ser dos entes”981.
Isso quer dizer que a investigação platônica sempre é primordialmente ontológica. Portanto,
politeia é a reflexão sobre o ser da pólis, a sua essência, a “constituição” da cidade em suas
relações estruturais e no interior da totalidade. Por ser ontológica, e não ôntica, essa politeia
filosófica e essencial não existe em nenhum “lugar: no âmbito dos entes, como se fosse uma
de suas partes”982. Ou seja, essa cidade não existe no sentido de poder ser identificada em um
lugar qualquer da terra, numa ilha ou numa país distante, como se fosse uma “utopia” de
quem imagina projetivamente um não-lugar ideal – ideal no sentido da imaginação das melho-
res possibilidades da sociedade humana, e não na ordem eidética das ideias platônicas. Tam-
pouco essa politeia é um mito a ser interpretado alegoricamente a fim de extrair essa ou aque-
la verdade. Para Heidegger, ao contrário, a politeia platônica “é precisamente o topos para
todos os entes”, “o topos determinado metafisicamente da essência da polis. A Politéia de
Platão é uma recordação do essencial e não um plano para o factual.” 983
Como “abóbada essencial do homem histórico”, a polis é o “onde” a que pertence o
homem dotado de logos: este local metafísico é o lugar a partir do qual cada ordem politica é
ordenada ao homem, a partir do desvelamento do ser. O homem não é o protagonista político
da polis, ao contrário, ele acompanha o movimento do ser que, nela, se dá. Contra todo tipo
de humanismo antropocêntrico, Heidegger assevera que todas as dimensões essenciais da filo-
sofia são dependentes do ser e de seu desvelamento, que atua como uma força centrípeta que
tudo centraliza e domina. “A essência da polis, e isso significa politeia, ela mesma, não é de-
terminada ou determinável ‘politicamente’.” 984 Contra toda a tradição que se habitou a consi-
derar os gregos o povo político por excelência, Heidegger os considera essencialmente impo-
líticos, “porque sua humanidade é primordial e exclusivamente determinada a partir do pró-
prio ser, isto é, a partir da [reunião e a conservação da] aletheia”985.

981
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p. 139 (§6, 1).
982
Ibidem.
983
Ibid., p.140.
984
Ibidem.
985
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Trad. S.M.Wrublevski. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: ditora Uni-
versitária São Francisco, 2008. p. 141 (§6, 1).
356

Embora o próprio Heidegger declare ser Ereignis a palavra diretriz de seu pensamento
depois da viragem986, pode-se incluir ao lado dela a noção de aletheia, que constitui a própria
essenciação do acontecimento apropriativo do seer, a partir do que tudo se dá e muito se vela.

986
Cf. HEIDEGGER, Martin. “Carta sobre o humanismo”, p. 329. In: Marcas do caminho. Trad. E.P.Giachini;
E.Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.326-376.
357

CONCLUSÃO

Desde o século XIX, muitos pensadores sentenciaram o fim da filosofia, atividade in-
telectual que teria esgotado sua capacidade de explicar o mundo. A ocasião do fim remete ao
início, de modo que a natureza e a identidade da filosofia se torna uma questão recorrente,
agora que ela se encontra ameaçada de sucumbir em proveito da hegemonia exclusiva da for-
ma científica de pensamento. Nesse contexto, a história da filosofia foi reescrita várias vezes,
sendo o seu prólogo e o epílogo motivo de grande controversia. Muitos reconsideraram o pa-
pel de Platão e Aristóteles como os iniciadores da filosofia, voltando-se para os primeiros
pensadores e poetas, como Parmênides e Heráclito, para perceber o que aconteceu na Grécia,
pela primeira vez, quando o logos interrogouo ser. Da mesma forma, questionou-se se a filo-
sofia acabara mesmo com Hegel ou Nietzsche. Ainda estamos no epílogo da filosofia, em
pleno século XXI? Por que ela teve as suas forças exauridas? Trata-se de uma corrosão inter-
na ou um ataque exterior da ciência que a condenou a uma contemplação estéril porque inca-
paz de ombrear com o avanço técnico-científico? Ainda se faz filosofia hoje em dia? Em que
termos? Independente das respostas que se esbocem a essas perguntas, nenhuma delas pode
prescindir o vulto de Heidegger, o filósofo mais influente do século XX e cujo questionamen-
to alcançou um nível de radicalidade poucas vezes constatado na tradição filosófica.
Heidegger se insere no questionamento radical sobre o que é a filosofia, quando e por
que razão ela despontou no horizonte intelectual grego. O problema da origem da filosofia, da
metafísica, do pensamento, da poesia e da história: todas essas são questões relevantes à vasta
obra heideggeriana. Por isso, Heidegger é um interlocutor necessário para a investigação filo-
sófica atual, e é o seu pensamento o objeto desta: acompreensão a respeito do primeiro início
da filosofia, que se deu em Platão, que é o autor no qual a filosofia, pela primeira vez, ganha
formas claras e passa a ser uma atividade intelectual bem delimitada: a metafísica, a pergunta
pelo ser do ente. A resposta de Platão a essa pergunta é amplamente conhecida e debatida: o
ser do ente é a idea, é na idea do ente que se encontra a sua verdade (aletheia).
Confrontar-se com Platão importa sobremaneira para compreender o esgotamento fi-
nal da metafísica, o exaurimento derradeiro de sua força intelectual no niilismo que, ao invés
de negá-la, manifesta-a na sua essência, na negatividade que a caracteriza ontologicamente.
Como visto ao longo desta tese, a metafísica é essencialmente niilista, pois descura da questão
do ser, nele mesmo considerado, ao aliená-lo à entidade do ente, ao entificá-lo na pergunta
metafísica pelo ser do ente.
358

Toda investigação histórica de Heidegger é contemporânea. Seu interesse é a compre-


ensão do modo como o ser se enviou desapropriado na história da ontologia ocidental. A filo-
sofia enquanto metafísica não responde à questão do ser, não é capaz sequer de formulá-la.
Aqui, desponta a necessidade da meditação histórica do seer.
Problematizando radicalmente a metafísica platônica, Heidegger não se satisfaz com a
historiografia tradicional que narra as eras filosóficas linearmente, em uma simplificadora
solução de continuidade, influência ou ruptura. A história da filosofia se torna uma questão
para ele. Heidegger não é um historiador da filosofia, mas um interlocutor de filósofos, con-
frontando-se com eles diante da coisa mesma do pensamento: o acontecimento apropriativo
do ser (Ereignis). É digna de nota a força dessa especulação ontológica em confronto com
outros filósofos, notadamente com Platão. Como descreve Hannah Arendt, o diálogo de Hei-
degger com os gregos torna-os contemporâneos, renovando radicalmente o sentido dos seus
textos:
O decisivo do método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se ex-
punha sua doutrina das ideias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um
semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemá-
tica altamente contemporânea. Hoje em dia, isso sem dúvida nos parece totalmente
familiar: agora muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A no-
vidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser vivo, ele faz com que falem
tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que eles propõem coisas to-
talmente diferentes do que desconfiadamente se julgava. Há um mestre; talvez se
possa aprender a pensar.987

O modo como se escreve a filosofia, ou melhor, a origem histórica e ontológica da fi-


losofia mobiliza a especulação de Heidegger, principalmente depois da viragem (Kehre) de
seu pensamento. Portanto, antes de explicar a compreensão heideggeriana das duas palavras
fundamentais da metafísica inaugurada com Platão – idea e aletheia -, esta tese precisou in-
vestigar o projeto filosófico heideggeriano, principalmente o que se configura depois da vira-
gem de seu pensamento. É esse projeto que legitima a reflexão sobre aquelas duas palavras
fundamentais que plasmam o acontecimento apropriativo do seer. Platão não é o autor do sig-
nificado filosófico dessas palavras fundamentais, na medida em que não as concebeu autono-
mamente, como resultado de uma atividade especulativa própria, desprovida de bases históri-
co-ontológicas. Platão é o pensador que dá voz ao seer que dele se apropria em meio a um
acontecimento epocal de destinação histórico-ontológica.
Intitulado ‘Confrontação histórica com o primeiro início’, o primeiro capítulo é dedi-
cado ao projeto heideggeriano da hermenêutica histórica do seer, ao significado da confronta-

987
ARENDT, Hannah. ‘Martin Heidegger faz oitenta anos’, p. 279. In Homens em tempos sombrios. Trad.
D.Bottman, São Paulo: Cia das Letras, 2008.pp. 277-290.
359

ção de Heidegger com os autores da tradição em geral e Platão em particular. O que significa
confrontação? Trata-se de uma metodologia de exegese da história da filosofia? Em que me-
dida essa confrontação é histórica? Que papel desempenha Platão na história da filosofia?
Essas são questões imprescindíveis para compreender o diálogo confrontativo que Heidegger
estabelece com Platão. Sem a compreensão, incorre-se nos erros comuns dos que criticam, de
fora, a hermenêutica heideggeriana de Platão, considerada violenta, abusiva, projetiva e infiel
ao significado do texto.
Esse tipo de crítica é recorrente entre os estudiosos de filosofia antiga, interessados em
defender Platão dos desvirtuamentos a que ele teria sido submetido no interior da filosofia de
Heidegger. Nada obstante o valor heurístico desse tipo de análise, que elucida os contextos
argumentativos dos diálogos platônicos, ela é insuficiente, uma vez que ignora o sentido da
aproximação de Heidegger aos filósofos da tradição. É reducionista considerá-lo um historia-
dor da filosofia ou um filólogo, uma vez que ele nunca pretendeu ser nem um, nem outro.
Consoante a meditação histórica do ser, o modo como Heidegger procede diante de Platão,
assim como diante de qualquer filósofo da tradição, responde a uma compreensão da dimen-
são histórica do ser, trata-se de uma ontologia epocal, que se concentra nas palavras funda-
mentais que ecoam o acontecimento apropriativo do seer.
A confrontação heideggeriana é sempre com a coisa do pensamento, isto é, com o pró-
prio ser. O ser é histórico, é um evento temporal, que só pode ser compreendido no âmbito de
uma meditação essencialmente histórica. A história da filosofia não está fora do tempo histó-
rico do seer, ela é sempre apropriada pelo próprio seer que, nela, é verbalizado. O confronto
de Heidegger com os autores da tradição é marcado por essa atenção ao acontecimento apro-
priativo de que eles fazem parte. Ora, isso implica a destruição da história da ontologia, a des-
truição da camada consolidada de conceitos e encrostamentos que imobilizam as palavras
ontológicas, isto é, as palavras que ecoam o ser. A historiografia da filosofia é reflexo da tra-
dição metafísica que precisa ser implodida para que se abra o horizonte do acontecimento
desapropriante do seer que a sustenta. A metafísica não tem autocompreensão, é incapaz de
pensar a si mesma, de entender o seu fundamento infundado, o seer. Somente mediante o salto
ao outro início é que o primeiro início pode vir à tona, uma vez destruída a camada tradicional
que reduz a ontologia (a pergunta pelo ser) à metafísica (a pergunta pelo ser do ente). A meta-
física é uma forma derivada de questionamento filosófico, porque parte do ente para aceder ao
ser, e não do ser, ele mesmo. A confrontação com Platão é, antes de tudo, a confrontação com
a metafísica idealista inaugurada na sua filosofia, metafísica essa que domina a interrogação
filosófica ocidental.
360

Compreendida a necessidade do salto ao outro início do pensamento, o segundo capí-


tulo analisa as características metafísicas da palavra fundamental de Platão: idea. Idea é a
palavra com que Platão responde pelo ser do ente, pela essência das coisas, pelo que há de
fixo, permanente e transcendente na realidade sensível. Em Platão, Heidegger percebe a fixa-
ção metafísica do aspecto eidético do ente, de sua entidade. O caráter ótico da ideia se dá pela
relação a um olhar dianoético que a contempla. Isto é, a existência das ideias pressupõe a ca-
pacidade inteligível do homem de contemplá-las, de aceder dialeticamente a elas, alçando-se,
para além da singularidade dos sentidos, à dimensão inteligível da realidade. Por conta dessa
interdependência ontoespistemológica, o ser-ideia foi, na modernidade, considerado um valor
do homem que projeta uma dimensão axiológica na realidade ao conhecê-la e contemplá-la. A
filosofia dos valores é resultado do idealismo platônico, segundo Heidegger, uma vez que a
metafísica da ideia entifica o ser, ao reduzi-lo à entidade do ente. Com isso, o ser é incluído na
dimensão deveniente da realidade, que passa a ser dominante com a consumação nietzschiana
da metafísica.
O que é determinante para a meditação histórica heideggeriana, ao confrontar-se com a
metafísica da idea, é a cisão da realidade em dois planos superpostos, a dimensão sensível e a
dimensão inteligível, que instaura o chorismos, a divisão entre ser e aparência, entre ser e de-
ver ser. O ser subtraído à mudança temporal é anterior ao ente temporal e singular que nele se
baseia. O caráter apriorístico da ideia é outra característica essencial da metafísica platônica
sublinhada por Heidegger. Ser e tempo, ontologia e história, estão sempre presentes na refle-
xão heideggeriana. E isso fica claro na análise desenvolvida no terceiro capítulo da tese, que
trata de outra palavra fundamental da filosofia: aletheia.
O questionamento acerca do sentido da verdade perpassa toda a filosofia de Heide-
gger. Platão é decisivo para pensá-la, porque, na sua filosofia, Heidegger identifica uma mu-
dança epocal de sentido, da verdade-desvelamento à verdade-correção. A instauração da me-
tafísica da ideia, do ser como presença constante, transforma o sentido originário da aletheia,
como era considerada pelo pensamento da physis. Propulsora do primeiro início, a obra de
Platão registra uma ambiguidade, semântica porque ontológica, que permite vislumbrar ambas
as conotações da aletheia: tanto o processo de eclosão do ser na aparência, consoante a noção
de physis, quanto a fixação eidética que estabiliza o ser do ente, como entidade que abrange
uma pluralidade de particulares (idea).
No curso sobre Parmênides, Heidegger articula a noção de aletheia com a noção de
Ereignis, a partir da noção de physis. O núcleo platônico dessa correlação encontra-se no mito
de Er, n’A República. A questão do dizer mítico, cujas palavras fundamentais tem alcance
361

ontofântico, exigiu uma reflexão sobre o envio histórico-destinamental do seer. Aletheia é


impensável sem a sua contra-essência, lethe, o retraimento que constitui todo envio do seer. O
seer nunca se envia totalmente, sua destinação histórica é sempre uma epoché, figurando na
clareira (Lichtung) do acontecimento apropriativo. O terceiro e último capítulo da tese, por-
tanto, fecha um arco iniciado pelo primeiro capítulo. Pode-se afirmar, concluindo a pesquisa
que resultou nesta tese, que o pensamento tardio de Heidegger tem como eixo gravitacional a
noção de acontecimento apropriativo, que se torna a palavra fundamental de sua filosofia.
Toda a órbita de sua especulação move-se entorno do conceito de Ereignis, em suas múltiplas
acepções. Ao investigar a confrontação de Heidegger com Platão, esta tese encontrou-se na
necessidade de, a todo momento, recorrer a essa noção-chave de Heidegger para entender o
modo como ele compreende a filosofia platônica. A confrontação de Heidegger com Platão é
ininteligível sem o aprofundamento da noção de Ereignis, e é por isso que esta tese o desen-
volve do começo e ao fim.
Note-se, porém, que esta tese não esgota toda a confrontação de Heidegger com Pla-
tão, porque concentrada no pensamento tardio do filósofo alemão. Dois momentos da con-
frontação de Heidegger com Platão ainda podem ser explorados: o primeiro encontro de Hei-
degger com Platão na década de 1920, no âmbito do projeto da ontologia fundamental e da
hermenêutica da facticidade988, e a influência de Platão na reflexão política de Heidegger,
principalmente na época do reitorado nazista989.
A questão nuclear estudada nesta tese é a interrogação heideggeriana da natureza enti-
ficante da metafísica, que perdurou por toda história da filosofia ocidental até Nietzsche, em
que essa metafísica exaure sua força filosófica. Na consumação do niilismo, Heidegger perce-
be a inversão final do platonismo idealista, que evidencia o caráter alienado da metafísica
inaugurada por Platão, consoante o acontecimento desapropriante do ser que se deixa confun-
dir com a entidade do ente, com sua idea. Como consequência, a verdade (aleheia) passa a ser
a adequação do juízo (logos) à ideia do ente, aquilo que o fundamenta. O pensamento do
acontecimento apropriativo visa a superar essa noção derivada, destruindo a história da onto-

988
Cf. CIMINO, Antonio. Ontologia, storia, temporalità. Heidegger, Platone e l’essenza della filosofia. Pisa:
ETS, 2005; e PELUSO, Rosalia. Logica dell’altro. Heidegger e Platone. Napoli: Gianni Editori, 2008.

989
Cf. KISIEL, Theodore. ‘On the purported Platonism of Heidegger’s Rectoral Address’. In: PARTENIE,
Catalin; ROCKMORE, Tom (ed.).Heidegger and Plato: Toward Dialogue. Illinois: Northwestern University
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362

logia que a sustenta, e imergindo na clareira da physis, em que o ser eclode verbalmente em
palavras fundamentais.
Como Nietzsche, Heidegger não abandona Platão, mas o conversa como antagonista,
na confrontação que os une diante da coisa mesma do pensamento. Se toda filosofia trata do
ser, ainda que desapropriado e entificado, Platão continua sendo um filósofo insuperável. O
acontecimento apropriativo do pensamento originário da physis ainda ressoa nas palavras pla-
tônicas fundamentais, idea e aletheia. O confronto com Platão cumpre, assim, uma necessida-
de atual de compreensão da história da metafísica como primeiro início, em meio ao salto ao
outro início, em que se baseia a filosofia tardia de Heidegger. O salto é o trânsito para o im-
pensado no já pensado, do futuro que se descortina como outro início, excedentário do primei-
ro início metafísico. A rememoração da meditação histórica é, também, antecipação. Platão é
o passado essencial que deve ser liberado para o futuro histórico do seer. Não se trata sim-
plesmente de superar Platão, mas de ir além dele, a partir dele.
363

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