Censo Psicologia Vol2
Censo Psicologia Vol2
Censo Psicologia Vol2
CONDIÇÕES DE TRABALHO,
FAZERES PROFISSIONAIS E
ENGAJAMENTO SOCIAL
QUEM
FAZ A
PSICOLOGIA
BRASILEIRA?
Um olhar sobre o presente
para construir o futuro
Parceria:
VOLUME 2
CONDIÇÕES DE TRABALHO,
FAZERES PROFISSIONAIS E
ENGAJAMENTO SOCIAL
QUEM
FAZ A
PSICOLOGIA
BRASILEIRA?
Um olhar sobre o presente
para construir o futuro
Novembro de 2022
© 2022 Conselho Federal de Psicologia
É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a fonte.
ORGANIZAÇÃO:
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos
Realização:
Conselho Federal de Psicologia
Parceria:
Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho
Coordenação Geral:
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos
Coordenação Adjunta:
Hugo Sandall
APOIO NA PREPARAÇÃO
E ORGANIZAÇÃO DO
BANCO DE DADOS
Débora Severo Sica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Flavia Noro de Lima
Icléia Santos Dorea Soares C755 Conselho Federal de Psicologia (Brasil) .
Letícia Duarte de Cerqueira Quem faz a psicologia brasileira? : um olhar sobre o presente
para construir o futuro : formação e inserção no mundo do trabalho : volume II :
Nana Caroline Cunha De Jesus condições de trabalho, fazeres profissionais e engajamento social / Conselho
Federal de Psicologia. — 1. ed.— Brasília : CFP , 2O22.
288 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-89369-24-0
CDD22: 150.981
Equipe: 1ª Tesoureira
André Martins, Augusto Henriques, Priscilla Atalla, Raphael Gomes e Thais Ribeiro Juliana Camilo
2ª Tesoureira
XVIII Plenário – Gestão 2019/2022 Júlia Gonçalves
DIRETORIA 1ª Secretária
Silvia Amorim
Presidente
Ana Sandra Fernandes Arcoverde Nóbrega 2ª Secretária
Eveli F. de Vasconcelos
Vice-Presidente
Anna Carolina Lo Bianco Clementino
Gestão 2020-2022
Secretária
Losiley Alves Pinheiro - Presidentes:
(a partir de 20 de maio de 2022) Maria Nivalda de Carvalho-Freitas
Daiane Rose Cunha Bentivi
Tesoureira
Norma Celiane Cosmo 1ª Tesoureira
Melissa Machado de Moraes
CONSELHEIROS EFETIVOS
Robenilson Moura Barreto - Secretário Região Norte 2ª Tesoureira
Alessandra Santos De Almeida - Secretária Região Nordeste Sabrina Cavalcanti Barros
Marisa Helena Alves - Secretária Região Centro Oeste
Dalcira Pereira Ferrão (até 11 de setembro de 2021) - Secretária Região Sudeste 1ª Secretária
Neuza Maria De Fátima Guareschi - Secretária Região Sul Elisa Maria Barbosa de Amorim-Ribeiro
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos - Conselheiro 1
Maria Juracy Filgueiras Toneli (até 11 de setembro de 2021) - Conselheiro 2 2º Secretário
Fabián Javier Marin Rueda (até 5 de fevereiro De 2021) - Secretário Raphael Henrique Castanho DiLascio
Izabel Augusta Hazin Pires (Secretária de 6 de fevereiro de 2021 até 19 de maio de 2022)
CONSELHEIROS SUPLENTES
Katya Luciane De Oliveira
Izabel Augusta Hazin Pires
Rodrigo Acioli Moura
Adinete Souza Da Costa Mezzalira - Região Norte
Maria De Jesus Moura - Região Nordeste
Tahina Khan Lima Vianey - Região Centro Oeste
Célia Zenaide Da Silva - Região Sudeste
Marina De Pol Poniwas - Região Sul
Ana Paula Soares Da Silva
Isabela Saraiva De Queiroz - (até 11 de setembro de 2021)
Índice
apresentação 06
I O QUE FAZEMOS
12 O Trabalho em Psicologia:
em que áreas de atuação nos inserimos?
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos, Isabel Fernandes de Oliveira e Icléia Santos Dorea Soares
13
15 A Psicologia e as práticas
integrativas e complementares 76
Alexandre Franca Barreto, Ana Cristina de Sá e Tahiná-Khan Lima Vianey
Daniela Sacramento Zanini, Evandro Morais Peixoto, Josemberg Moura de Andrade, Lucila Moraes
Cardoso e Monalisa Muniz
17 Sobre teorias,
coerências, dispersão 104
Ana Maria Jacó-Vilela, Waldomiro J. Silva Filho e Maria Virgínia M. Dazzani
II CONDIÇÕES DE TRABALHO
24 Direitos humanos e a
Psicologia no Brasil 214
Maria de Jesus Moura, Wanderson Vilton N. da Silva e Robenilson Moura Barreto
IV AVALIAÇÃO E PERSPECTIVAS
26 Avaliação da profissão
e perspectivas futuras 253
Jairo Eduardo Borges-Andrade e Adriano de Lemos Alves Peixoto
APRESENTAÇÃO
A realização do CensoPsi foi um compromisso mais intensamente recursos tecnológicos que ga-
assumido pela atual gestão do XVIII Plenário, es- rantissem a continuidade dos serviços prestados à
tando prevista na plataforma da chapa e no nosso população. No entanto, para além de compreender
planejamento estratégico. Ele se insere nos marcos os impactos da conjuntura atual, o CensoPsi nasce
comemorativos dos 60 anos de regulamentação da com a proposta de ser um instrumento para acom-
nossa profissão e, assim, oferece mais do que simples panhar as transformações em curso na formação e
dados, reflexões cruciais para compreender a nossa no exercício profissional da Psicologia, de modo a
trajetória histórica, a nossa configuração presente disponibilizar informações relevantes para o sistema
como base para pensarmos o nosso futuro. Conselho, para o conjunto de entidades da áreas, para
Uma profissão é algo dinâmico e construído co- a comunidade acadêmica que possam contribuir na
tidianamente por uma comunidade de interessados luta história por termos uma categoria profissional
– docentes, pesquisadores, alunos, profissionais – e, sintonizada com as necessidades mais prementes da
portanto, algo que se altera com o tempo e com as nossa sociedade e, ao mesmo tempo, apoiada nos
transições econômicas, sociais e políticas por que avanços mais significativos que a ciência lhe oferece.
passa o nosso país. Ou seja, a nossa profissão mudou Podemos afirmar que estamos diante da maior
muito, se ampliou, se desenvolveu, se interiorizou pesquisa já realizada sobre a profissão, o maior le-
e ter uma caracterização de como ela se configura vantamento brasileiro, quiçá do mundo, tanto pela
no presente, como se relaciona com esse complexo amostra de mais de vinte mil psicólogas e psicólogos
entorno social é fundamental tanto para o Conselho, como pela extensão de aspectos relacionados ao seu
que é a autarquia que a orienta, acompanha e fiscaliza, exercício profissional que foram alvo de estudo.
como para a sociedade, que é a principal beneficiária Para tarefa com tamanha envergadura, o Conselho
do desenvolvimento da Psicologia. Federal de Psicologia contou com uma rede robus-
Realizar o CensoPsi, com a amplitude que o ta de parcerias. De início vale ressaltar a parceria
caracterizou – tanto em termos de abrangência da com a SBPOT (Associação Brasileira de Psicologia
categoria participante quanto da amplitude das ques- Organizacional e do Trabalho) e, de forma específica,
tões de abordou – foi um grande desafio em tempos com o GT83 da Anpepp – Configurações do trabalho
de uma crise econômica e sanitária sem precedentes na contemporaneidade e a Psicologia Organizacional
que vivemos nos últimos anos e da qual ainda não e do Trabalho.
nos livramos efetivamente. A pandemia alterou o O interesse em estudar as condições de trabalho
nosso modo de vida e de trabalho, afetou a saúde, de psicólogas e psicólogos, em avaliar em que medi-
ceifou vidas de milhares de pessoas, muitas(os) psi- da o processo de precarização do trabalho também
cólogas(os). Afetou, certamente, as nossas condições nos atinge, foi o alicerce que viabilizou o presente
de trabalho, jogou profissionais no desemprego e projeto. Contamos com um grupo de pesquisadores
subemprego e, ao mesmo tempo, o desafiou a usar com experiência prévia em estudos sobre a profissão
6
Apresentação
que foi fundamental na estruturação do instrumento que deles necessita. Esse segundo volume se estrutura
de coleta de dados, do processo de coleta e análise em quatro segmentos.
de dados. Precisamos destacar também que, inter- O primeiro segmento – O QUE FAZEMOS –
namente ao Conselho Federal de Psicologia, foram é composto por seis capítulos. O Capítulo 12 (O
unidos os esforços da CCAP (Comissão Consultiva trabalho em Psicologia: em que áreas de atuação
de Avaliação Psicológica) e da CDH (Comissão de nos inserimos?) inicia a caracterização do nosso
Direitos Humanos), que tinham projetos específicos exercício profissional a partir de um conceito clássico
de pesquisa que foram incorporados ao CensoPsi. e que nos é muito familiar: o de áreas de atuação.
Para além disso, contamos com o apoio da rede Partindo-se das especialidades definidas pelo CFP,
de Conselhos Regionais de Psicologia e a rede de o capítulo traça um detalhado quadro da distribui-
entidades nacionais da Psicologia que integram o ção das psicólogas e psicólogos pelas diversas áreas
FENPB (Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia e como essas se combinam. Mais do que fronteiras
Brasileira). Todos se engajaram na divulgação da rígidas há um intenso hibridismo que se traduz nas
pesquisa nas suas redes, chamando todas(os) a parti- mais diversas combinações entre áreas. Para além
ciparem do censo. Sem esse esforço coletivo – e com do exame de como essas áreas são combinadas, o
o apoio que a área administrativa do CFP – seria capítulo avança em indicações do movimento entre
impossível, no curto espaço de tempo que tivemos, áreas, considerando a área de ingresso na profissão e
dar conta de tarefa tão complexa e de tamanho porte. a(s) área(s) atual(is). São, também, apontadas algumas
As informações geradas pelo CensoPsi são, neste condições de trabalho que se diferenciam entre áreas,
momento, apresentadas no presente livro que se es- como é o caso da remuneração.
trutura em dois volumes, pela amplitude de questões O Capítulo 13 (Os processos de trabalho em
abordadas e sobre as quais se pode construir reflexões Psicologia: uma nova estratégia de descrever o nosso
significativas sobre o que caracteriza o exercício campo de atuação profissional), por seu turno, traz
da psicologia no Brasil de hoje. Construir os 26 um novo conceito para examinar o nosso campo de
capítulos distribuídos nos dois volumes envolveu atuação – a noção de processos de trabalho, que foi
o esforço coletivo de um grupo bem mais extenso consagrada nas Diretrizes Curriculares para os Cursos
do que aquele que conduziu a pesquisa. Assim, de Graduação em Psicologia, como estratégia para
colegas foram convidados e aceitaram o desafio de pensar as ênfases curriculares não como especiali-
se debruçar sobre um conjunto específico de dados dades, mas como eixos transversais de aprofunda-
e deles extrair elementos que nos permitiram traçar mento da formação. Também aqui os processos são
esse amplo painel sobre o exercício da Psicologia. descritos, partindo-se das definições constantes no
Outros colegas trouxeram informações adicionais, citado marco legal na sua versão mais atual de 2009
não coletadas pelo CensoPsi, mas que caracterizam o já aprovada pelo Conselho Nacional de Educação,
contexto histórico e institucional em que a profissão quando novos processos foram incorporados ao rol
está inserida. inicialmente definido. Os resultados revelam, de
O segundo volume do livro – Condições de tra- forma ainda mais nítida como, no seu cotidiano de
balho, fazeres profissionais e engajamento social trabalho a(o) psicóloga(o) transita por diferentes
– dá continuidade à apresentação dos resultados do processos de trabalho, que se articulam em uma rede
CensoPsi, agora com um olhar mais interno às nossas bastante complexa de interações.
práticas, nossos fazeres, nossas formas de trabalhar e O Capítulo 14 (O exercício profissional em
nas condições de trabalho que nos são oferecidas para Psicologia: práticas e atividades que o caracterizam)
assegurar que nossos serviços cheguem à população aprofunda a análise no nível das atividades, práticas
7
Apresentação
ou fazeres implicados no exercício profissional. na garantia da qualidade com que cada profissional
Diferentemente de estudos anteriores, quando uma lida com instrumentos que são privativos de seu uso.
lista de atividades era oferecida ao participante para Encerra esse primeiro segmento do livro o Capítulo
escolher, no CensoPsi deu-se a oportunidade de a(o) 17 – Sobre teorias, coerências, dispersão – que discute
participante indicar até cinco atividades principais tema de grande relevância para a nossa área e que
desenvolvidas em cada um dos trabalhos desempe- fortemente se associa com a discussão sobre a nossa
nhados e que exigiam a formação em Psicologia. diversidade teórico-metodológica. Os referenciais
O enorme conjunto de descrições de atividades teóricos mais proeminentes foram oferecidos para
foram categorizadas, podendo-se identificar aquelas que a(o) participante escolhesse aquele(s) com os
mais frequentes, no geral e por área de atuação. quais se identificasse e fundamentasse o seu trabalho.
Há também uma análise de como tais atividades Deixou-se, também, a possibilidade de referenciais
se combinam, numa análise de redes, mostrando a não constantes da lista pudessem ser acrescentados.
complexa teia de associações entre práticas presentes Assim, o capítulo trata das diferentes abordagens
na categoria. mais citadas pelas psicólogas no CensoPsi, narrando
O Capítulo 15 (Psicologia e as Práticas Integrativas a história de sua apropriação e desenvolvimento no
e Complementares) se volta para uma questão delicada Brasil, entrelaçando-as com os autores mais referidos.
e que está exigindo pesquisa, estudo e reflexão pela Este capítulo apresenta a rica diversidade de referên-
área – as denominadas práticas integrativas com- cias teóricas no campo psi e o surpreendente diálogo
plementares, previstas no Sistema Único de Saúde das diferentes abordagens da prática das psicólogas e
e que são facultadas aos profissionais da Psicologia. psicólogos como inerente à constituição deste campo
O capítulo contextualiza as denominadas PICS no na nossa comunidade.
cenário nacional e global e a forma como o Sistema O Segmento 5 – CONDIÇÕES DE TRABALHO
Conselho vem tratando a questão em termos de – examina em profundidade as nossas condições
afinidades e distanciamentos. Em seguida, pela pri- de trabalho em dois principais eixos. O Primeiro,
meira vez, nos são oferecidos dados da extensão com envolvendo os capítulos 18 e 19, avalia em que me-
que esse conjunto de práticas é desenvolvido, além dida temos um trabalho precário ou um trabalho
de análises que nos permitem identificar contextos decente. Enquanto no Capítulo 18 (Condições de
e áreas em que elas aparecem com maior frequência. trabalho – Indicadores de precarização no exercício
Tais reflexões são base para aprimorar o processo de da Psicologia), partimos da noção de insegurança no
regulação da oferta de tais práticas à sociedade. trabalho que se associa às condições de renda, carga
O Capítulo 16 – O que as(os) psicólogas(os)têm horária e tipo de vínculo que fragilizam a condição de
a dizer sobre suas práticas de avaliação psicológica trabalhador. O quadro do segmento da categoria que
– teve como objetivo caracterizar a prática dos(as) possui condições precárias de trabalho é caracteriza-
psicólogos(as) que atuam na área da AP. Primeiramente do, mostrando como ela se apresenta em diferentes
exploraram-se dados para descrição do perfil dos parti- momentos da carreira, nas diferentes regiões do país
cipantes e, em seguida, foram abordadas informações e distintas áreas de atuação.
sobre as principais técnicas utilizadas no processo de O Capítulo 19 (Trabalho decente: reflexões a
AP, sobre as dificuldades encontradas pelos profissio- partir da percepção de profissionais da Psicologia)
nais na prática da AP e, por fim, sobre o conheci- toma o conceito de trabalho decente, entendido
mento e utilização do Satepsi. Especialmente sobre como aquele que assegura condições seguras tanto no
o SATEPSI, os dados se revelam de grande impor- ambiente físico como social, que garante equilíbrio
tância para potencializar o impacto desse dispositivo entre tempo livre e de descanso, adequado sistema de
8
Apresentação
9
Apresentação
que se direcionam aos temas da interseccionalida- ção de políticas e projetos para o Conselho Federal.
de nos direitos humanos e outros elementos que Constitui-se numa síntese inicial que cumpre a função
corroboram para o campo de problematizações dos de deslanchar, no âmbito da autarquia, os necessá-
Direitos Humanos e a psicologia no país. rios debates para ampliar os impactos que o retrato
Finalmente o Capítulo 25 – A psicologia brasileira traçado pelo CensoPsi nos apresenta nesse momento.
e a defesa da democracia: cenários de práticas no es- O CensoPsi foi pensado como uma grande bússola
tado democrático de direito – aborda a complexidade para o Sistema Conselho, no sentido de embasar suas
das inserções da profissão no campo democrático políticas a partir de um conhecimento mais profundo
durante os últimos anos, tendo-se analisado aspectos sobre as mudanças profissionais de uma maneira
de nossa inserção e apontado algumas possibilidades mais concreta. Afinal, nossa profissão é dinâmica,
e desafios para os próximos anos, compreendidos não é estática. Nossa produção científica também
em um projeto de psicologia comprometido com a está avançando e se consolidando como uma das
pluralidade de vidas e com a democracia brasileira mais expressivas do hemisfério sul. Fatores conjun-
em construção. Trata de apresentar os resultados turais e estruturais afetam a nossa empregabilidade
do Censo da Psicologia Brasileira de 2021 sobre o e as condições em que exercemos a nossa profissão;
engajamento democrático, central ao exercício pro- por outro lado, as ferramentas e os processos de
fissional de nossa profissão na contemporaneidade. trabalho também vão se alterando nesse movimento
O quinto segmento dessa obra – AVALIAÇÃO E contínuo de reconfiguração do mundo do trabalho,
PERSPECTIVAS – é integrada por dois capítulos. O cada vez mais impactado pelos avanços tecnológicos
Capítulo 26 – Avaliação da Profissão e Perspectivas e pela dinâmica do capitalismo no seu atual estágio
futuras – como seu título informa com precisão, histórico. Nesse sentido, o Censo dá uma atenção
se debruça sobre a avaliação que a(o) psicóloga(o) especial ao segmento recém ingresso na profissão e que
faz sobre a imagem da Psicologia como profissão, a dificuldades cercam esse momento inicial da carreira.
partir de um conjunto de afirmações que lhes foram Outro eixo fundamental para análise são as trans-
oferecidas. Essa avaliação, em grande medida, incluiu formações que estão ocorrendo na profissão com o
itens usados na primeira pesquisa dos anos 1980 e na avanço das tecnologias de informação e comunica-
pesquisa de 2010, de modo que podemos ter uma ção (TICs). Estamos aí, certamente, diante de duas
perspectiva das mudanças que ocorreram na imagem questões que exigem desde já a ação consistente do
que a categoria tem da própria profissão no Brasil. Conselho Federal de Psicologia. Por outro lado, temos
Esse quadro é analisado entre segmentos das(os) pela primeira vez um amplo conjunto de informações
participantes da pesquisa de modo a aprofundar sobre como a categoria estrutura sua concepção da
a compreensão de potenciais diferenças entre seus profissão, dos seus desafios gente a uma das socie-
segmentos. Para além da avaliação da imagem, o dades mais desiguais do mundo e, em decorrência,
capítulo também apresenta e discute os projetos de como se compromete e se engaja em ações em defesa
futuro que as(os) participantes apontam. da democracia e dos direitos humanos. Estamos aí
Finalmente o Capítulo 27 (Censo da Psicologia diante de dois valores centrais ou estruturantes da
Brasileira: base para políticas e ações do Sistema forma como a Psicologia se concebe como ciência e
Conselhos de Psicologia), escrito pela diretoria do prática profissional na atualidade.
Conselho Federal da Bahia, apresenta esforço inicial Assim, é, para nós, uma imensa satisfação pre-
de sistematizar o conjunto extremamente amplo de sentear não apenas psicólogas e psicólogos, mas toda
informações reveladas ao longo dos capítulos do a sociedade com este censo, precisamente no ano
livro, buscando extrair as implicações para a defini- em que comemoramos 60 anos da Psicologia como
10
Apresentação
11
I
O QUE FAZEMOS
I. O Que Fazemos
12 O Trabalho em Psicologia:
em que áreas de atuação nos inserimos?
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos1
Isabel Fernandes de Oliveira2
Icléia Santos Dorea Soares3
As áreas de atuação na Psicologia compõem um que acaba tornando sua compreensão mais complexa.
debate presente desde os primeiros estudos acerca da Tal complexidade nos conduz a dimensões diversas
profissão, mas, ainda não há um consenso sobre o que refletem tanto na prática profissional como nas
tema. Ao longo dos anos, várias foram as interpreta- pesquisas e definições de especialidades, razão pela
ções do que seria área e várias foram as classificações qual é importante avançarmos nesse debate.
utilizadas nos mais variados estudos conduzidos O presente capítulo se dedica a apresentar e dis-
tanto por entidades de representação, a exemplo do cutir os resultados relacionados às áreas de atuação
Conselho Federal de Psicologia (CFP) e regionais, das(os) profissionais de Psicologia, buscando evidên-
quanto por pesquisadoras(es) que debateram a con- cias de possíveis transformações ao longo do tempo
formação da profissão (Bastos, 1988; Botomé, 1979; que sinalizam, certamente, transformações na forma
Mello, 1975). Na verdade, a legislação que regulamen- como a profissão atende as demandas sociais. Ele se
ta a profissão estabelece “atividades” privativas das(os) estrutura em três partes. Na primeira, discute-se, com
psicólogas(os) e não áreas: diagnóstico psicológico, base na literatura, a própria noção de áreas de atuação,
orientação e seleção profissional, orientação psico- retomando a forma como as pesquisas trataram tal
pedagógica, e solução de problemas de ajustamento questão ao longo do tempo. Na segunda parte são
(Lei n. 4.119/1962). Apesar da Lei, a prática tem se apresentados os resultados obtidos no Censo; para
estruturado de forma ampliada sob áreas, mas seu além dos dados descritivos, analisa-se o movimento
conceito tem sido abordado sob diferentes ângulos, o entre áreas ao longo da carreira e a forma como as(os)
1 Psicólogo. Mestre em Educação (UFBA,1984). Doutor em Psicologia (UnB,1994). Prof. Titular aposentado Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador I-A do CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFBA. Dedica-se a pesquisa no campo
da Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase no estudo dos vínculos do indivíduo com diversas facetas do seu mundo
de trabalho. Dedica-se, também, ao estudo sobre a formação e exercício profissional na Psicologia, tendo coordenado e conduzido
pesquisas de âmbito nacional sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no Brasil. Atualmente é membro do XVI Plenário do Conselho
Federal de Psicologia.
2 Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre (2001) e Doutora (2005) em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo; graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1993). Membro da Diretoria
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP (2010-2012). Editora de Revista Estudos de Psicologia
(1999-2020). Coordenador do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação da UFRN (Diretório CNPq). Bolsista de Produtividade
CNPq.
3 Psicóloga e mestra em psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Atua como consultora, facilitadora, palestrante e designer
educacional para formações corporativas. É professora da Escola SESI de Gestão em Saúde e Segurança do Trabalho, consultora do
Centro de Prevenção da Incapacidade para o Trabalho do SESI-BA e tutora pedagógica EAD do Instituto Federal do Espírito Santo.
Possui publicações na área e estuda temas como: fatores psicossociais do trabalho e cultura organizacional.
13
I. O Que Fazemos
14
I. O Que Fazemos
outras áreas que não tiveram tantas inserções e foram O primeiro deles diz respeito à manutenção de um
colocadas numa categoria não identificada. mesmo modelo de atuação disseminado pelas agên-
Witter, Bastos, Bonfim e Guedes (1992), ao rea- cias formadoras, o que conduz a práticas ofertadas a
lizarem um balanço sobre a ciência e a profissão na um mercado de trabalho que consistem em tarefas
obra do CFP publicada em 1992, mencionam áreas tradicionalmente destinadas às(aos) psicólogas(os),
de conhecimento e áreas de atuação profissional. quais sejam, as da Clínica. Portanto, antes de falar de
Apesar de separá-las, os autores apontam que elas se área, é preciso debater porque, independentemente de
interligam e dependem do evoluir do conhecimento qualquer definição de área, a Clínica permanece sendo
científico, das necessidades sociais e da apropriação referência em todas elas. O segundo deles refere-se
dos saberes pelas(os) profissionais que as(os) utilizam. ao fato de que é preciso considerar a dinamicidade
A Psicologia como profissão recente e cujo conhe- histórica da sociedade, que produz mudanças também
cimento científico ainda estava em consolidação no na Psicologia, com abertura de novos campos, moda-
Brasil sofria os efeitos dessa “instabilidade”, pois lidades, fazeres. Práticas se ajustam, se ampliam novos
suas bases científicas ainda estavam em formação. fundamentos e concepções sobre a atuação ganham
Nesse percurso, áreas de conhecimento surgiram e realce, novos públicos emergem. Então, qualquer
permaneceram como tal e outras se desenvolveram debate sobre área precisa abarcar tais mudanças, sob
como campos de exercício profissional. Algumas o risco de se criar uma profusão de especialidades
delas se fundiram e agregaram conhecimento e apli- e subespecialidades que perdem de vista o objetivo
cação. Os autores apontam, portanto, que as esferas prioritário das respectivas ações. É preciso considerar,
conhecimento e aplicação não são intrinsecamente então, que a diversidade da Psicologia não se esgota,
conectadas para se definir uma área a partir de um como afirmam Gondim, Bastos e Peixoto (2010),
referencial teórico, por exemplo. Essa dificuldade no conceito de área, qualquer que seja ele, e analisar
expressa-se mais claramente na estratégia metodo- os desdobramentos da profissão requer considerar a
lógica utilizada para coleta dos dados do estudo de multiplicidade teórico-metodológica que fundamenta
19924, a qual já delimitou como foco de análise sua prática de pesquisa e sua intervenção profissional.
três áreas tradicionais e mais a social. No estudo Possivelmente, uma solução para as questões que
do campo clínico, os pesquisadores usaram termos cercam a definição do que são e quais são as áreas de
como: atuação, prática, atividade, trabalho, mercado atuação na Psicologia, seja partir para um novo olhar
de trabalho, demanda do psicólogo, acompanhado sobre as variadas formas pelas quais a Psicologia se
ou não de um descritor referente à área em questão. apresenta. Barros (2011), ao propor a perspectiva dos
Embora não haja na produção mencionada uma campos disciplinares, lança luz ao debate acerca do
definição de área, ela parece estar subentendida a que caracterizaria (ou não) um novo campo do saber.
partir dos descritores apontados alhures, que não Seu debate parte da indagação acerca do significado
incluíram o local de trabalho. Esse é um exemplo atribuído a cada conjunto de práticas, concepções e
de que local não foi um definidor, pelo menos não objetos de estudo que emergem ao longo do tempo
da área Clínica, no estudo de 1992. como um campo específico de conhecimento. O
Diante desse debate aparentemente insolúvel, primeiro elemento destacado pelo autor diz respeito
Bastos e Achcar (1994) atentaram para elementos ao caráter histórico de um campo disciplinar. Ele
que parecem mais importantes na discussão de área. surge e desde então se mantém num perpétuo mo-
4 A pesquisa conduzida pelo CFP em 1992 relacionou-se ao tema “demanda social do psicólogo” e foi realizada a partir de um
levantamento bibliográfico de produções publicadas entre 1980-1992 sobre as tendências já consolidadas, em consolidação e
emergentes na profissão.
15
I. O Que Fazemos
vimento de mudança, de redefinição, de atualização, de trabalho utilizados por cada campo disciplinar.
percebendo-se de formas diferentes e se inserindo Em seguida emerge a Psicanálise, com um método
em âmbitos diversos do campo da produção de co- muito específico e, junto com a Psicologia e com a
nhecimento ou de práticas específicas. Cada campo Psiquiatria, compõe o tripé dos saberes “psi”, por
disciplinar tem seu próprio ritmo e processo, sendo meio de um processo de aproximação e afastamento.
alguns mais antigos, outros mais recentes, e alguns Por fim, um campo disciplinar em sua história
outros até mesmo já extintos. O sentido histórico a pode se ampliar e complexificar de tal forma que gera
ele atribuído diz respeito não só à sua trajetória de em seu interior novos desdobramentos “intradiscipli-
surgimento e evolução, mas também dos seus pro- nares”, diferentes campos de aplicação ou qualquer
cessos de modificação de práticas, objetos e objetivos outro tipo de organização interna que corresponda
no decorrer dessa evolução. mais ou menos a uma espécie de divisão do trabalho
Um campo disciplinar não raramente se forma a intelectual e prático. Essa tendência à especialização
partir de certos desdobramentos de um campo disci- é bastante frequente nos campos disciplinares na
plinar já existente, ou mesmo em consequência de um contemporaneidade, mas também impele a um mo-
apartamento do seu campo originário ou, ainda, de vimento de combate à hiperespecialização por meio
elementos agregados de vários outros campos, numa de movimentos interdisciplinares e transdisciplinares.
confluência ou conexão de saberes. É comum que Como análise que pode contribuir para um novo
as várias ciências compartilhem interesses, mas cada olhar sobre a Psicologia e seu embate entre áreas,
uma delas tem seu próprio nível de profundidade, um campo disciplinar deve necessariamente agregar
sua identidade própria, ou o que o autor denomina Teoria, Método e Discurso. Um campo disciplinar
de singularidade, não agrega somente uma orientação teórica ou me-
todológica, mas um repertório teórico-metodológico
aqui entendida como o conjunto dos seus parâ- de conhecimento, apropriação, avaliação e críticas
metros definidores, ou como aquilo que a torna de seus adeptos. Também desenvolve linguagem
realmente única, específica, e que justifica a sua própria compartilhada entre seus expoentes, estu-
existência – em poucas palavras: aquilo que diosos, praticantes e teóricos, implementando um
define a Disciplina em questão por oposição ou Discurso particular. Ainda, na definição de um campo
contraste em relação a outros campos disciplina- disciplinar, existe um critério daquilo que ele não é
res. Em um pólo oposto, será preciso entender ou o que não permite, mesmo considerando esses
o fenômeno inverso: embora cada campo de interditos também como parte de um processo his-
saber apresente certamente uma singularidade tórico, sendo, portanto, passíveis de transformação.
que o faz único e lhe dá identidade, não existe As modificações do campo clínico são um exemplo
na verdade um só campo disciplinar que não na Psicologia de interditos que se modificaram ao
seja construído e constantemente reconstruído longo do tempo.
por diálogos (e oposições) interdisciplinares. Diante do cenário apresentado é possível avaliar
(Barros, 2011, p. 256.) que o debate tradicional de área foi frutífero, mas in-
suficiente para “organizar” os movimentos de expansão
Ao mencionar a Psicologia, o autor relata seu pas- teórico-metodológica e prática da Psicologia, e todas as
sado de desprendimento, de um lado, da Filosofia, e classificações efetuadas ao longo de sua história aponta-
de outro, de aproximação da Psiquiatria, com a qual ram esses limites. Portanto, considerar a Psicologia como
passaria a compartilhar alguns de seus objetos de um ou vários campos disciplinares pode ser um caminho
investigação e prática, apesar dos diferentes processos para uma análise menos fragmentada ou baseada em
16
I. O Que Fazemos
outras dimensões que apreendam da melhor forma os que assumem uma linguagem, um discurso, concei-
movimentos históricos da ciência e da profissão. tos, modos de atuação particulares, mas que não se
Considerando os debates até aqui apresentados, desconectam dos campos originários, porque deles
entendemos que no campo da Psicologia, área não levam uma herança de fundação, mas que também
pode ser definida como referência a local (mas sem fazem fronteiras com outros campos, de dentro e de
desprezá-lo), ou referencial teórico, ou um único es- fora da Psicologia, de onde importam um arsenal
quema teórico-conceitual. Consideramos a Psicologia de contribuições para a sua constituição específica.
então como um campo disciplinar e, sendo assim, Considerando essa definição de campo disciplinar,
ela compartilha um passado com outros campos e o Censo ora apresentado utilizou as definições da
em seu presente deve ser concebida na diversidade de Resolução de Especialidades CFP 23/2022, docu-
seus chamados campos interdisciplinares. Isso implica mento mais avançado do debate acerca do tema e que
dizer que embora compartilhem uma base comum da é base para a atribuição dos títulos de Especialista. A
ciência e da profissão, a Psicologia alcançou um nível Figura 1 demonstra a divisão proposta pelo referido
de complexidade que gerou especializações teóricas, Conselho e é sob esse prisma que concebemos área
práticas e de aplicação, com desdobramentos internos para efeitos deste capítulo.
Figura 1: Categorias de especialidades do Conselho Federal de Psicologia conforme Resolução CFP 23/2022
17
I. O Que Fazemos
18
I. O Que Fazemos
Figura 2: Áreas de atuação das(os) psicólogas(os) brasileiras(os) brasileiros/as nas três condições de inserção profissional.
Clínica 68,7%
Clínica 73,1% Saúde 28,2%
Social 20,1% Social 27,2%
Hospitalar 23,7%
Saúde 19% Educacional 20,1%
Docência 18,3% (8,2%) Docência 18,7%
Aspiram Organizacional &Trabalho 16,9%
Organizacional &Trabalho 12,1% Avaliação Psicológica 15,9%
atuar na
Avaliação Psicológica 11,8% Jurídica 11,7%
Psicologia
Educacional 11,2% 1.657
Neuro 11,2%
Outras 2,2%
Hospitalar 6,2%
Jurídica 5,7% Clínica 61,6%
Neuro 5,7% Organizacional &Trabalho 34,2%
Outras 2,2% Docência 23,6%
Social 20,5%
Tráfego 0,7% (3,7%) Avaliação Psicológica 16,7%
Esporte 0,5% Atuaram na Educacional 15,2%
Saúde 14,4%
Ambiental 0,1% Psicologia Hospitalar 12,5%
(85%) Atuam na Psicologia 1.657 Jurídica 5,3%
Outras 1,5%
17.176 Neuro 1,1%
uma constante em todos os levantamentos feitos sobre 2006), não captou as mudanças ainda muito recentes
o exercício profissional, desde o primeiro e clássico em decorrência da implementação do Sistema Único
trabalho de Melo (1975), cujo número de áreas era de Assistência Social. Atualmente o SUAS está pre-
extremamente reduzido. Além de mudanças que de- sente em todo o território nacional e, de acordo com
correm da própria dinâmica da profissão (emergência o último Censo SUAS publicado em 2020, apenas
de novos campos, como é o caso da Saúde, impulsio- na proteção social básica havia 10.802 profissionais
nado com a criação do SUS ou a Social, incrementado de Psicologia. Por outro lado, vale destacar a parti-
vertiginosamente após a constituição do SUAS), o cipação bem mais reduzida da área organizacional e
fato de se ter tomado as especialidades previstas pelo do trabalho, algo que merece exame mais específico
Conselho Federal de Psicologia como áreas, implicou, (como visto, foi uma área com perda mais expressiva
por exemplo, que a Avaliação Psicológica deixasse de de profissionais), possivelmente pela crise que o país
ser considerada uma atividade transversal a todas as atravessa e seus índices elevados de desemprego.
áreas e assumisse a posição de uma área própria. Na Pode-se discutir o porquê de ser a Clínica uma
pesquisa imediatamente anterior (Bastos & Gondim, das mais concorridas, para além do fato de ser a ocu-
2010), considerando a estratégia de captação dos pação mais tradicional em Psicologia. Para tanto, é
dados que mesclou a identificação por parte da(o) importante considerar que os percentuais mostrados
profissional dos seus locais de trabalho e das atividades na Figura 2 não indicam atuação exclusiva, ou seja,
que desempenhava em cada um deles, a Avaliação é possível haver combinações entre atuações, como
Psicológica aparecia diretamente vinculada apenas à veremos mais adiante. O fato é que a dinâmica de
Clínica, mas quando analisadas as atividades das(os) funcionamento da prática Clínica, que permite uma
profissionais em seus mais diversos locais e campos certa flexibilidade de horários, bem como autono-
de atuação, a avaliação esteve presente em todos eles, mia na escolha das tarefas envolvidas no trabalho,
razão porque, agora, a Avaliação Psicológica emerja pode favorecer uma atuação dividida entre a Clínica
como área independente. Outro destaque importante e outras áreas. Em estudos anteriores (CFP, 1988),
é o amplo campo social, que no momento da coleta de as(os) profissionais que atuavam prioritariamente
dados da pesquisa publicada em 2010 (com coleta em na Clínica, relataram mais flexibilidade de tempo,
19
I. O Que Fazemos
embora tivessem uma carga horária de trabalho mais 61,8% dos casos, dado que a distância da Região
extensa. Então, a pretensa flexibilidade revela que a Sudeste, onde atinge 76,6% da categoria. As áreas
atratividade da Clínica de certa forma escamoteia sua Social, Saúde e Docência continuam como aquele
precarização. Tal consideração pode explicar também bloco com percentuais em torno de 20% em todas as
o fato de ela ser a área mais popular entre os 8,2% (N regiões. Vale registrar, contudo, que a Saúde apresenta
= 1657) que aspiram atuar e os 3,7% (N = 740) que percentuais mais elevados no Nordeste (20,2%) e no
atuaram em Psicologia. Norte (24,2%), sendo relativamente menos presente
Em que medida esse quadro geral da distribuição no Sudeste (17,7%). Outra diferença a registrar é a
por áreas varia nas regiões do país? Quando estreita- menor presença da área Organizacional e Trabalho
mos o olhar e segmentamos por região (Figura 3), no Nordeste (10,1%), sendo mais expressiva a sua
constatamos que não há profundas alterações, ou presença no Centro-Oeste (16,5%). A área Jurídica
seja, o perfil de distribuição das áreas de atuação não é mais presente no Norte (9,8%) e Sul (7,5%), em
parece ser afetado pelas diferenças sociais e econômi- contraposição ao Nordeste (4,7%) e Sudeste (4,8%).
cas das diferentes regiões do Brasil. Assim, a Clínica A Avaliação Psicológica é menos atuante no Nordeste
continua sendo, sempre, a área mais presente e com (9,7%), a Escolar no Sudeste (9,9%). A área Hospitalar
patamares bem distantes das demais áreas. Na Região é bem mais presente no Norte (13,9%) do que no
Norte é onde ela é menos presente, com patamar de Sudeste (5,3). Tais diferenças pontuais, no entanto,
20
I. O Que Fazemos
não alteram de forma significativa a hierarquia com percentuais que variam de 51,8% (Escolar/Educacional)
que essas áreas se distribuem no país. a 63,7% (Avaliação Psicológica). Tal resultado indica um
Ainda traçando o quadro geral de atuação por forte investimento da categoria na sua formação após a
áreas, um dado relevante é o nível de formação as- conclusão da graduação, como já discutido no Capítulo
sociado ao exercício em cada uma dessas áreas. Os 6. Os percentuais de pós-graduação stricto sensu também
resultados obtidos encontram-se na Figura 4. são expressivos, quase sempre em patamares acima de
20% dos participantes. Aqui é importante informar
Figura 4: Nível de formação após a graduação por Áreas que docentes, no geral, indicam, além da Docência,
de Atuação. uma segunda área finalística de atuação; ou seja, o
professor de disciplinas de Psicologia Educacional ou
Avaliação 14,6% Organizacional ou da Saúde também se consideram
Psicológica 63,7%
21,7% inseridos nessas áreas (quer porque nelas atuam de fato
2,3% em combinação com o ensino, quer porque apesar
Docência 21,9%
75,8% de estarem na Docência desenvolvem pesquisas ou
5,7%
trabalhos de extensão naquele campo).
Neuropsicologia 66,8%
27,5%
O movimento ao longo da carreira
19,8%
Clínica 55,1% Dois conjuntos de dados nos permitem analisar
25,1% como se dá o movimento da(o) psicóloga(o) entre as
12,3% áreas, ao longo de sua carreira. O primeiro conjunto
Jurídica 56,7%
31% envolve o exame de como se distribuem as áreas nos
21,3% diferentes estágios de carreira, cujos dados podem ser
Social 54,5% vistos na Figura 5. De alguma forma, embora sem
24,3%
variações abruptas, são verificadas algumas diferenças
11%
Hospitalar 64,3% importantes na medida em que há mais maturação
24,6% profissional. Essas mudanças podem decorrer de
14,4% condições externas do mercado de trabalho (períodos
Saúde 56%
29,6% históricos onde houve maior ou menor oportuni-
15,6% dades de inserção nas diferentes áreas), assim como
Escolar/Educacional 51,8% pode decorrer de projetos mais pessoais, nos quais se
32,7%
busca concretizar um ideal de exercício profissional
Organizacional 12,7%
59,7% construído ao longo da vida. A Clínica, por ser o
&Trabalho 27,6% “cartão de visita” da Psicologia, alcança um percentual
alto (82,8%, N = 1967) entre as(os) recém-gradua-
Cursos livres de aperfeiçoamento das(os), que reduz progressivamente até alcançar
70% (N = 6.667) no estágio III de carreira. Ou seja,
Lato Sensu
a Clínica, área que, em tese, requer maior experiên-
Stricto Sensu
cia e formação, constitui a maior porta de entrada
na profissão hoje, o que pode dever-se, em parte, a
Com exceção da Docência, em todas as áreas predo- restrições de empregabilidade em outras áreas. Esse
mina o nível de formação pós-graduada lato sensu (cur- é o caso da saúde, que está absorvendo bem menos
sos de especialização ou residências profissionais), com novas(os) profissionais (14,1% no estágio I contra
21
I. O Que Fazemos
percentuais próximos a 20% nos demais estágios; ou Há trinta anos, nem todas as áreas aqui discuti-
ainda, com menor intensidade, o que acontece na das estavam consolidadas e ou ofereciam imediatas
área Organizacional e do Trabalho, com percentuais oportunidades de trabalho, o que pode explicar a
em torno de 9% nos dois primeiros estágios, quando relativa mais baixa participação da área Social no
chega a 14,4 no quarto estágio). estágio IV (mais de 26 anos), que apresenta 7,6% (N
= 371) quando comparada com o estágio I (21%, N =
Figura 5: Áreas de atuação por estágio de carreira 500). Nesse sentido, observando que outras atuações
requerem um tempo de formação e preparo maiores,
Estágio 1: até 2 anos a Docência é uma das áreas cujo maior percentual
Docência 5% encontra-se, justamente, entre profissionais mais
Clínica 82,8% maduras(os) (30%, N = 899), com uma diferença
Jurídica 2,5%
Organizacional & Trabalho 9,8% de 15% para o estágio I (5%, N = 119). Todas as
Social 21% demais áreas, ainda que com algumas flutuações,
Hospitalar 4,9% mantiveram-se com o mesmo percentual entre os
Saúde 14,1%
Escolar/Educacional 10,3% diferentes estágios, com exceção da área Social, que
reduziu em 7,6% (N = 371) a participação entre
Estágio 2: 3 a 5 anos as(os) psicólogas(os) do estágio IV, quando compa-
Docência 9,2% rada com o estágio I (21%, N = 500).
Clínica 78,6% Um segundo conjunto de dados envolve a com-
Jurídica 2,8%
Organizacional & Trabalho 9,1%
paração entre a área em que ingressou na profissão
Social 23,8% e a área atual. Esses dados encontram-se na Figura
Hospitalar 6,4% 6, que sistematiza um conjunto rico de informações
Saúde 18%
Escolar/Educacional 11,1% sobre as mudanças entre a primeira inserção e as
inserções atuais.
Estágio 3: 6 a 25 anos A Figura 6 apresenta os dados daquelas áreas com
Docência 20,1% contingente mais expressivo de casos que permitiram
Clínica 70% a análise de trajetória. Tais áreas estão ordenadas por
Jurídica 7,1% ordem de absorção de novos profissionais no início
Organizacional & Trabalho 12,7%
Social 21,5% de carreira. A Clínica é a primeira área de atuação
Hospitalar 6,3% para 43,9% dos casos, seguida da Social (14,7%)
Saúde 20,4% e Organizacional e do Trabalho (14,4%). Saúde e
Escolar/Educacional 11,8%
Escolar têm respectivamente 7,8 e 6,8%. Docência e
Estágio 4: 26 anos ou + Hospitalar ainda apresentam contingentes menores
Docência 30%
(4,2 e 3,9%) como primeiro trabalho. A partir desse
Clínica 71,8% patamar de ingresso, podemos observar diferenças
Jurídica 6% bem importantes na trajetória, algumas delas des-
Organizacional & Trabalho 14,4%
Social 12,4% tacadas a seguir.
Hospitalar 7,1% A impressionante porcentagem de 89,9% das(os)
Saúde 19% que ingressam na Clínica nela permanecem, e dentre
Escolar/Educacional 10%
essas(es) 49,5% acrescentam novas áreas. A Docência
e a Saúde são as duas áreas que mais são agregadas
à Clínica ao longo da carreira. O contingente de
22
I. O Que Fazemos
INGRESSARAM
AREAS MOVIMENTO NA CARREIRA N % Exemplos N %
N %
23
I. O Que Fazemos
perda na área Clínica, portanto, é bem reduzido áreas do que a simples mudança de uma área para
(4,6% deixam a área, indo especialmente para a outra. A(o) psicóloga(o) inicia em uma área, mas
área Social e Saúde; e 5,9% deixam a Psicologia). vai acrescentando outras, quer por questões ligadas
As áreas da Docência, Saúde e Social apresentam às condições de trabalho (mais trabalhos para obter
um perfil similar, com índice de permanência ligei- rendimentos mais significativos), quer por buscar
ramente superior a 50%, o que revela uma distância realizar seu ideal de atuação profissional. Ou ambas
significativa em relação à Clínica, nesse particular. as coisas simultaneamente.
Embora 52,5% das(os) que ingressam na área Social
nela permaneçam, apenas 19,2% continuam atuando Como as áreas se combinam
exclusivamente nela (33,3% agregam novas áreas, no exercício da profissão
especialmente a Clínica e a Saúde). No caso da Saúde, Como visto no segmento anterior, a trajetória
52,8% permanecem, embora 42,3% agreguem novas de carreira, para a maioria das(os) que trabalham
áreas (sobretudo a Clínica). A Docência, que é uma na Psicologia, envolve o acréscimo de novas áreas
área que absorve menos profissionais no primeiro de atuação, fazendo com que, na situação atual, o
trabalho, apresenta 56,7% de permanência, sendo contingente das(os) que possuem mais de uma área
que 45,4% agregam novas áreas, sobretudo a Clínica. (59%) supere aquela(e) que atua em apenas uma
As três áreas restantes caracterizam-se por índices (41%). Esses dados, assim como a frequência das áreas
de perda maiores que os de permanência. Na área e suas combinações, podem ser vistos na Figura 7.
Organizacional e do Trabalho 46,7% permanecem, Houve uma significativa mudança no número
sendo que 31,2% agregam uma outra área (nova- de áreas de atuação por cada profissional quando
mente a Clínica é a mais frequente), 45,2% mudam se comparam as pesquisas disponíveis. No primeiro
de área ao longo da carreira, a maioria saindo para a estudo nacional, em 1988, 73% das(os) profissionais
Área Clínica (15,6%). Na área Escolar essa perda é atuavam em apenas uma área; 22% em duas áreas e
bem maior (57,4%), sendo que a Clínica é o destino apenas 5% em três áreas (Bastos, 1988). Na pesquisa
da maioria das(os) que a abandonam. Finalmente a de 2010 já se verificou alguma alteração, com a de-
área Hospitalar apresenta um índice de permanência dicação exclusiva a uma área caindo para 66%, 29%
de 48,6% contra 51,4% que deixam a área. Tanto com duas áreas e 4% com três áreas (Gondim, Bastos,
na Escolar quanto na Hospitalar, apenas algo em & Peixoto, 2010). Agora a mudança foi bem radical,
torno de 10% permanecem exclusivamente na área com a queda para 41% e o crescimento elevado de
em que ingressaram. quem atua em duas áreas (passou para 32%) e em três
Esses movimentos revelam o forte poder de atração áreas (passou para 27%). O crescimento expressivo
da Clínica que, além de ser a área que mais absorve da categoria na última década e, possivelmente, as
profissionais no momento da sua inserção no mer- condições mais adversas do mercado de trabalho,
cado, recebe mais profissionais de outras áreas (que podem ser hipóteses a serem verificadas para expli-
as abandonam ou que simplesmente as agregam), car tal mudança no perfil do exercício profissional
o que explica o percentual de aproximadamente em Psicologia.
73% das(os) psicólogas(os) com alguma inserção na Se tomarmos a atuação em uma única área como
Clínica. Na realidade, todas as áreas, com exceção da um indicador de dedicação exclusiva a um campo de
Organizacional e do Trabalho, recebem mais profis- atuação, vemos que a ordem das áreas varia bastante
sionais e ampliam a sua participação na distribuição quando se toma, como se fez no início do capítulo,
das áreas de atuação. Isso porque esse movimento ao o percentual de profissionais que atuam em cada
longo do tempo envolve muito mais o acréscimo de área. A Clínica continua sendo a primeira, só que
24
I. O Que Fazemos
Uma área
Três áreas 41%
27% Uma Área (N = 7090; 41,3%)
N % Área
4314 25,1 Psicologia Clínica
25
I. O Que Fazemos
em apenas 25% dos casos; essa dedicação exclusiva ria (N=158) é efetivada, o que significa dizer que
à área era de 64% em 1988 e já caíra para 50,8% na 87% das áreas de atuação existentes em Psicologia
pesquisa de 2010. Em seguida temos as áreas Social são ocupadas por profissionais que se dividem em
e Organizacional e do Trabalho, com percentuais diferentes atuações. Esse é o indicador de densida-
bem mais reduzidos. A área Social, embrionária de da rede, que também se caracteriza por não ter
nos anos 1980, tinha um percentual de dedicação nenhuma comunidade ou subgrupo que se destaca
exclusiva de apenas 16% em 2010 e hoje chega a por mais intensa interação.
4,7%. A área Organizacional e do Trabalho, que Um segundo ponto envolve o conceito de cen-
nos anos 1980 apresentava o mais elevado índice de tralidade dos atores (áreas) que compõem a rede.
dedicação exclusiva, de 75,5%, já caíra para 61,2% Neste caso, mede-se a partir do quanto um ator é
em 2010 e agora fica em apenas 2,8%. Embora seja capaz de se vincular aos demais, seu grau de atra-
a sexta área em termos de absorção de profissionais, tividade e popularidade. De longe, a Clínica foi a
a Avaliação Psicológica é, sobretudo, uma área que mais buscada como uma opção de área de atuação
complementa outras (o percentual cai de 11,8% para em combinação com outras. É possível imaginar
apenas 0,3%). A Docência também cai de 18,3% para que, além do fato de esta ser uma das áreas mais
apenas 1,8%. Ou seja, são áreas em que a atuação se tradicionais e mais fortemente vinculada à identi-
dá, na sua grande maioria, em conjunção com outras dade profissional em Psicologia, a flexibilidade de
áreas. Isso fica evidente quando se examinam quais tempo que ela oferece e a autonomia na condução
são os perfis de combinação de áreas mais frequentes das tarefas sejam facilitadoras de uma atuação
nos dois outros gráficos que integram a Figura 7. A combinada com outras áreas. Social/Comunitária,
Clínica é a área que mais aparece como segunda ou Docência e Ensino de Psicologia e Saúde ocupam,
terceira área nos mais diferentes arranjos possíveis, nesta ordem, as posições seguintes. Com níveis
seguida da Docência, Social e Saúde. de centralidade próximos e um pouco menores,
A visualização dessas múltiplas combinações é estão a Organizacional e do Trabalho e a Escolar/
mais perceptível quando se examina a rede de inte- Educacional. Já Psicologia do Tráfego, Ambiental
ração entre as áreas, cuja fotografia encontra-se na e do Esporte apresentam as menores centralidades,
Figura 8. Utilizando a ferramenta de Análise de Redes congruente com a sua presença bem mais reduzida
Sociais (ARS) e o software Ghefi, foi possível traçar entre as(os) profissionais. No mapa, a centralidade
a rede de interações entre as áreas (que aparecem de grau está destacada no tamanho dos atores,
como nós), e cuja espessura das raias ou laços que sendo que quanto maior for o ator, mais central
as unem expressa o quantitativo (que também pode em grau ele é.
ser visto na Figura 8) de profissionais que combinam Por fim, nota-se também na imagem uma dife-
as respectivas áreas. Três resultados dessa análise rença na largura das raias que conectam os atores.
merecem destaque. As mais grossas indicam relações mais fortes, mais
O primeiro é que temos uma rede bastante frequentes e representam o valor quantitativo que
integrada e articulada. Tanto a coesão quanto a também se vê na Figura 8. Nesse sentido, as combi-
interatividade entre os atores pode ser fácil e vi- nações de áreas mais comuns, considerando apenas
sualmente identificada no mapa da rede, visto que díades, são as entre Clínica e Social (n=1.714), Clínica
a Figura 8 é atravessada por muitas raias ou laços, e Docência (n=1.694) e Clínica e Saúde (n=1.616).
que interligam os nós ou áreas. Dos 182 possíveis Clínica e Organizacional e do Trabalho contam com
laços para o total de atores (considerando que uma 968 interações; Clínica e Escolar contam com 950
área não mantém relação consigo mesma), a maio- interações. Ainda merece destaque a combinação
26
I. O Que Fazemos
entre Clínica e Avaliação Psicológica, com 788 in- precauções com os anteriores. Na realidade, cada um
terações. Como se pode ver, o elevado contingente desses estudos foi realizado num determinado mo-
de profissionais que atua na Clínica o faz, na sua mento histórico, que exigiu definições específicas de
grande maioria, tendo uma ou mais áreas adicionais. área a partir do conhecimento acumulado até então
e do cenário de expansão das práticas em Psicologia.
Considerações Finais Isto posto, cada estudo partiu de um leque distinto de
Embora o conceito de área de atuação tenha áreas ou utilizou estratégias diferentes de classificação.
sido alvo de debate em inúmeras pesquisas sobre o Na maioria dos casos, foi oferecida uma lista de op-
exercício profissional da Psicologia, inclusive aque- ções consideradas pertinentes naquele momento para
las de abrangência nacional realizadas pelo e com o que a(o) psicóloga(o) identificasse em quais atuava.
apoio do Conselho Federal de Psicologia (Bastos & A evolução dos debates e da própria conformação
Gondim, 2010; CFP, 1988, 1992, 1994), os presentes da profissão provoca uma mudança metodológica
resultados não podem ser comparados sem as devidas no último estudo nacional, o de Bastos e Gondim
27
I. O Que Fazemos
(2010), que inovou ao não partir de uma classificação Verifica-se, agora, essa pulverização de áreas em
predeterminada de área e sim de uma organização termos do crescimento de profissionais que combi-
delas a partir da indicação de locais e atividades nam diferentes áreas. Tal mescla sempre existiu, mas
identificadas pelas(os) profissionais. Só isso já seria não de forma majoritária; agora, a inserção variada
suficiente para não se fazer uma comparação linear caracteriza o perfil de trabalho da maioria das(os)
da distribuição da Psicologia pelos seus respectivos psicólogas(os). Como assinalado anteriormente,
campos teóricos e de aplicação. esse fenômeno requer análises mais cuidadosas so-
Essa dificuldade não impede, entretanto, a per- bre o possível efeito do processo de precarização
cepção de alterações bem significativas na forma do exercício profissional, associado ao crescimento
como a profissão se estrutura em termos de área de vertiginoso do número de profissionais de Psicologia
atuação. Elas são apresentadas a seguir. que a cada ano ingressam ou buscam ingressar no
O predomínio da Clínica é indiscutível e aparece mercado de trabalho. No entanto, é possível que
em todos os estudos. É um traço de identidade da área. esse crescimento de áreas que se combinam deva-se
Essa predominância acentuou-se no presente Censo a esse movimento de Clínica Ampliada, que a fez
e o elevado contingente de psicólogas(os) que atuam sair do clássicos consultórios, fazendo com que mui-
na Clínica o fazem, cada vez mais, em associação a tos profissionais que atuam em Saúde, Social e até
inserções em outras áreas. É interessante apontar que o mesmo na área Organizacional na sua vertente de
crescimento das áreas de Saúde e Social, com as quais a saúde do trabalhador, vejam-se também atuando na
Clínica mais se combina, mostra alguma sobreposição área Clínica. Da mesma forma, a Neuropsicologia
em termos de atividades com psicoterapia, oficinas e a Hospitalar, que em pesquisas anteriores não
terapêuticas, entre outras, que pode levar a uma apareciam como áreas (e sim como atividades e/ou
identificação profissional com o campo da Clínica contextos na área da Saúde), também ganharam o
ou de uma Clínica Ampliada. Ou seja, no passado, status de área e ampliaram a sobreposição com a área
a Clínica estava fortemente associada ao trabalho Clínica. Outro fator que pode ter contribuído na
em consultório; hoje, muitos trabalhos acontecem mesma direção é o fato de se ter tratado como área
em contextos institucionais, os mais diversos, e até de atuação, em conformidade com a Resolução que
mesmo em contextos sociais abertos. estabelece as especialidades da Psicologia, a Avaliação
Quando se comparam com estudos anteriores, Psicológica. Ela deixou de ser tratada apenas como
outro resultado muito marcante é a consolidação da uma atividade transversal a todas as áreas, como foi
área Social. Ela praticamente não existia em termos feito nas pesquisas anteriores, e ganhou o status de
numéricos na primeira pesquisa. Na segunda ela área. Assim, ela é praticamente, na sua totalidade,
aparece ainda de forma bem tímida, por ter sido exercida em conjunto com outras áreas de atuação.
conduzida quando se davam os primeiros passos para Não é desprezível o fato de, mesmo com contin-
a implantação do SUAS. Agora ela aparece como a gente bem menor, já se ter hoje a presença das áreas
segunda área em termos de absorção de profissionais, Jurídica, Ambiental, Esporte e Tráfego aparecendo
superando inclusive a Saúde, cujo crescimento já em levantamentos gerais como esse. Tais áreas não
remonta à implantação do SUS na última década apareceram nas pesquisas anteriores. Isso significa
do século XX. A consolidação dessa área, apesar de que tais domínios estão em expansão e tendem a ser
limites ainda pouco nítidos em relação à própria fronteiras de crescimento da profissão.
Clínica e à Saúde, fica mais evidente quando se Finalmente, vale destacar a necessidade de que
examina o conjunto de atividades desempenhadas a profissão desenvolva estudos mais específicos que
(vide Capítulo 13). definam quais frações do seu campo de atuação ou do
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I. O Que Fazemos
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I. O Que Fazemos
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I. O Que Fazemos
Witter, G. P., Bastos, A. V. B., Bonfim, E. M., & Guedes, M. C. (1992). Atuação do
Psicólogo: espaços e movimentos. In Conselho Federal de Psicologia [CFP] (Org.),
Psicólogo Brasileiro: construção de novos espaços (pp. 161-177). Campinas: Átomo.
31
I. O Que Fazemos
1 Psicólogo. Mestre em Educação (UFBA,1984). Doutor em Psicologia (UnB,1994). Prof. Titular aposentado Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador I-A do CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFBA. Dedica-se a pesquisa no campo
da Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase no estudo dos vínculos do indivíduo com diversas facetas do seu mundo
de trabalho. Dedica-se, também, ao estudo sobre a formação e exercício profissional na Psicologia, tendo coordenado e conduzido
pesquisas de âmbito nacional sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no Brasil. Atualmente é membro do XVI Plenário do Conselho
Federal de Psicologia.
2 Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/2020) na linha de pesquisa “Indivíduos e Processos Micro-
organizacionais”. Supervisora de estágio profissionalizante no Centro universitário Jorge Amado (UNIJORGE) e consultora de
empresas na área de Gestão de pessoas (Potencialize Pessoas - soluções em RH). Possui mestrado pelo Programa de Pós Graduação em
Psicologia da Saúde na linha de pesquisa “Processos Psicossociais do trabalho” na Universidade Metodista de São Paulo (2013-2015).
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do São Francisco (UNIVASF/ 2011). Docente em ensino superior desde 2015 e em
pós-graduação desde 2017. Possui interesse em estudos multidisciplinares sobre política, psicologia, sociologia e o mundo do trabalho.
3 Psicóloga Graduada pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Mestra em Psicologia (UNIVASF), linha de
pesquisa em Processos Psicossociais. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), linha de pesquisa Indivíduo e Trabalho: Processos Micro-Organizacionais. Especialista em Gestão em Saúde (UNIVASF) e
em Gestão de Pessoas com Ênfase em Gestão por Competências no Setor Público (UFBA).
32
I. O Que Fazemos
33
I. O Que Fazemos
FINALIDADE
OU
OBJETIVOS
Uma(um) trabalhadora(or)
ou conjunto de Constituem a “matéria
trabalhadoras(es) que PROCESSO prima” a ser transformada,
AGENTES OU
definem objetivos e DE OBJETOS incluindo estados ou
SUJEITOS
estabelecem os meios TRABALHO condições pessoais e
necessários para sociais.
transformar os objetos.
MEIOS E
CONDIÇÕES
ou sujeitos correspondem à equipe de trabalho ou a que os seus componentes estabelecem uma relação
pessoa trabalhadora que irá determinar os objetivos a recíproca entre si. Além disso, no campo da saúde
serem alcançados e escolher os artefatos indispensáveis existem instrumentos materiais e não-materiais nos
para transformar o objeto em questão. processos de trabalho, correspondendo os primeiros
Assim conceituado, os processos de trabalho não a equipamentos, medicamentos, instalações, entre
se restringem a transformação de um objeto em outros, e os segundos aos saberes que se articulam
produto, mas inclui também objetivos existenciais entre os agentes do trabalho (Gonçalves, 1992).
e sociais, ou seja, são atravessados por subjetividades Assim, os processos de trabalho em saúde envolvem
que se manifestam no exercício de capacidades, na incertezas e descontinuidades que impossibilitam a
realização pessoal e no desenvolvimento de relações completa normatização de funções técnicas e exi-
interpessoais, padrões de comportamento e valores ge variadas autonomias dos profissionais (Peduzzi,
compartilhados nos diferentes contextos de trabalho 2002). Ademais, os processos de trabalho em saúde
(Farias et al., 2009). são caracterizados por uma maior autonomia do tra-
Tomemos, apenas a título de exemplo, como balhador na condução do seu trabalho, o que implica
essa reflexão vem se desenvolvendo no campo da na necessidade de utilizar criatividade, experimentar
saúde, com o qual a nossa profissão tem forte rela- de soluções e integrar o usuário na produção de sua
ção. Nesse campo, os processos de trabalho precisam própria saúde, tornando-se esse contexto de trabalho
ser compreendidos de forma articulada, uma vez um lugar de micropolítica (Franco, 2015).
34
I. O Que Fazemos
35
I. O Que Fazemos
Posto isto, os processos de trabalho em Psicologia nários adversos (CFP, 2020). Essas informações foram
devem perceber o indivíduo como um ser integral, estruturadas na Figura 2 para melhor compreensão
levando em consideração as dimensões biológica, do que foi exposto neste parágrafo.
social e psicológica correlacionando todas essas variá- Conforme apresentado na Figura 2, é possível
veis aos aparatos técnicos, instrumentais e relacionais observar que cada processo de trabalho pode estar
referentes a execução do seu trabalho - que serão associado a um ou mais contextos de atuação com
discriminadas a seguir. atividades distintas ou interrelacionadas, de modo
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para que a(o) psicóloga(o) que está inserido no contexto
os cursos de graduação em Psicologia, em sua versão de trabalho organizacional, por exemplo, pode estar
atualizada pela Resolução CNE/CES N. 05/2011, realizando em seu cotidiano de trabalho, além de
apresentam os processos de trabalho em Psicologia processos de gestão e desenvolvimento de pessoas no
como aspectos a serem considerados na definição das trabalho, também processos clínicos, de promoção
ênfases curriculares dos cursos de Psicologia. Além de saúde e bem-estar, de educação, de orientação e
disso, uma cartilha de recomendações para os estágios aconselhamento, entre outros. Desse modo, torna-
em Psicologia durante a pandemia, desenvolvida pelo -se imprescindível compreender a relação entre os
Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria contextos e os processos de trabalho em Psicologia.
com a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia A tabela 1, a seguir, sintetiza os processos de tra-
(ABEP) enfatiza a necessidade de pensar novas formas balho, suas definições e os contextos em que eles
de execução dos processos de trabalho, diante de ce- podem ocorrer.
Contexto 2
Contexto 3
Contexto 4
Contexto 5
Contexto 6
Contexto 7
Contexto 8
Contexto 9
3 Processos educativos
6 Processos clínicos
7 Processos de orientação e aconselhamento
8 Processos organizativos de coletivos sociais
36
I. O Que Fazemos
Consistem na concentração em
conhecimentos, habilidades e Base para as ações diagnósticas envolvidas
competências de pesquisa para nas intervenções profissionais em Psicologia.
INVESTIGAÇÃO
analisar criticamente diferentes Trata se de um processo de trabalho que
CIENTÍFICA
estratégias de pesquisa, conceber, corta transversalmente todos os campos,
conduzir e relatar investigações fenômenos e contextos da Psicologia.
científicas de distintas naturezas.
Implicam a concentração em
competências referentes ao uso e
ao desenvolvimento de diferentes Base para as ações diagnósticas envolvidas
recursos, estratégias e instrumentos nas intervenções profissionais em Psicologia.
PROCESSOS DE
de observação e avaliação úteis para a Trata se de um processo de trabalho que
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA
compreensão diagnóstica em diversos corta transversalmente todos os campos,
domínios e níveis de ação profissional fenômenos e contextos da Psicologia.
(avaliação individual, institucional,
social, educacional, por exemplo).
37
I. O Que Fazemos
38
I. O Que Fazemos
Figura 3: Porcentagem de psicólogas(os) brasileiras(os) por da saúde que delimitam esse processo e que, ao não
processos de trabalho que executam serem considerados pelos respondentes, expande
a presença desse processo para além daquelas(es)
profissionais efetivamente envolvidos com esses dois
Proteção social e níveis básicos de intervenção na saúde.
29,1%
desenvolvimento O processo de orientação e aconselhamento é o
Mediação de 28,9%
conflitos terceiro mais desenvolvido, sendo relatado por 57,6%
Organizativos de das(os) participantes. Trata-se de uma intervenção
10,4%
coletivos sociais clássica da Psicologia e que corta transversalmente
Orientação e 57,6% diversas áreas e contextos de trabalho, pois abarca
aconselhamento
Avaliação o desenvolvimento humano como todo e pode ser
psicológica 30,7%
um processo empregado na clínica, na educação, no
Clínicos 72,4% trabalho, entre outros.
Promoção da
Um segundo bloco de processos se encontra com
saúde e bem-estar 73,0% percentuais de profissionais entre 20 e 42%: educati-
Gestão de pessoas em vos (41,9%), avaliação psicológica (30,7%), proces-
contextos de trabalho 17,7%
sos de proteção social e desenvolvimento (29,1%),
Educativos 41,9% os processos de mediação (28,9%) e investigação
Investigação 22,0%
científica (22%). Vale destacar a maior frequência
científica de engajamento em processos educativos que supera
a participação da área escolar educacional, mais uma
Congruente com o que se observou em termos de vez revela que tais processos extrapolam os limites
área de atuação, o processo de promoção da saúde e clássicos das áreas de atuação. O mesmo ocorre com
bem-estar e o processo clínico são aqueles desenvol- a avaliação psicológica. O processo de proteção social
vidos pela expressiva parcela de profissionais, com e desenvolvimento, por seu turno, encontra-se em
respectivamente 73% e 72,4%. O percentual dos que patamar bem próximo ao da participação da área
afirmam trabalhar processos clínicos é praticamente social, assim como o processo de investigação cien-
idêntico às(aos) que dizem atuar na área clínica; no tífica se aproxima bastante do percentual dos que se
entanto, em relação à promoção da saúde há um inserem na área da docência e pesquisa.
crescimento muito expressivo em relação aos que Os processos de gestão de pessoas (17,7%) são menos
afirmam atuar na área da saúde. Ou seja, o processo comuns, superando levemente a quantidade das(os)que
de promoção da saúde e bem-estar talvez esteja sendo indicam atuar na área organizacional. Segundo Gondim,
compreendido como um rótulo geral para a atuação Bastos & Peixoto (2010), a menor inserção das(os)
da(o) profissional de Psicologia, possivelmente pelo profissionais no campo da Gestão de Pessoas pode estar
objetivo que a define e que, de fato, nos torna agentes relacionada ao aumento das possibilidades de atuação em
de promoção da saúde nos mais diversos contex- outras áreas, as mudanças socioeconômicas e políticas
tos em que estejamos inseridos. Isso, no entanto, que têm incentivado a atuação das(os) psicólogas(os)
se distancia do escopo da definição desse processo como consultores organizacionais na forma de presta-
que, como apresentado na Tabela 1, o delimita com ção de serviço terceirizado e a pejotização. Finalmente
ações de caráter de prevenção e promoção e não de o processo menos relatado – organizativo de coletivos
remediação. Prevenção e promoção são dois con- sociais – envolve apenas 8,1%, que apesar de menos
ceitos centrais na estruturação das ações no campo expressivos, quando comparados aos demais processos,
39
I. O Que Fazemos
desempenha papel relevante na conscientização dos exceções a menor dedicação aos processos clínicos
grupos a partir, por exemplo, do empoderamento dos nas regiões Norte e Centro-Oeste (cai para 64,6%
indivíduos pertencentes aos movimentos sociais. e 67,4%, respectivamente). O terceiro processo, em
Em que medida esse quadro geral se modifica todas as regiões, continua sendo o de orientação e
nas diferentes regiões do país? A Figura 4 mostra os aconselhamento que chega a se aproximar do processo
percentuais de profissionais que atuam nos proces- clínico na Região Norte(62,5%).
sos de trabalho por cada região do Brasil. No geral, No grupo de processos de índices medianos de
pode-se afirmar que o quadro nacional não se alte- envolvimento de profissionais, vale destacar uma
ra de forma significativa quando se consideram as presença ligeiramente menor dos processos educativos
realidades regionais. A hierarquia entre os processos entre profissionais do Sudeste e Sul. Não há variações
mais presentes na atuação é praticamente mantida, importantes quando se olha a presença dos processos
com pequenas alterações nos índices percentuais. de investigação, de mediação, de proteção social e
Assim, os processos de promoção da saúde e clínico os processos organizativos de coletivos sociais. Os
se mantêm isoladamente como os mais presentes, processos de gestão, no entanto, são mais presentes
em patamares quase sempre superiores a 70%. São na Região Centro-Oeste, superando a média nacional.
NORTE NORDESTE
Proteção social e desenvolvimento 35,1% Proteção social e desenvolvimento 28,8%
Mediação de conflitos 32,2% Mediação de conflitos 30,3%
Organizativos de coletivos sociais 10,0% Organizativos de coletivos sociais 9,9%
Orientação e aconselhamento 62,5% Orientação e aconselhamento 57,8%
Avaliação 37,7% Avaliação 28,9%
Clínicos 64,6% Clínicos 72,7%
Promoção da saúde e bem estar 75,9% Promoção da saúde e bem estar 74,6%
Gestão de pessoas 19,9% Gestão de pessoas 16,0%
Educativos 44,2% Educativos 45,5%
Investigação científica 19,3% Investigação científica 19,2%
CENTRO-OESTE SUDESTE
Proteção social e desenvolvimento 29,5% Proteção social e desenvolvimento 28,1%
Mediação de conflitos 32,6% Mediação de conflitos 29,2%
Organizativos de coletivos sociais 10,4% Organizativos de coletivos sociais 9,9%
Orientação e aconselhamento 56,7% Orientação e aconselhamento 58,9%
Avaliação 34,5% Avaliação 32,8%
Clínicos 67,4% Clínicos 75,2%
Promoção da saúde e bem estar 72,5% Promoção da saúde e bem estar 72,2%
Gestão de pessoas 21,3% Gestão de pessoas 17,2%
Educativos 40,2% Educativos 37,8%
SUL
Investigação científica 19,2% Investigação científica 20,4%
Proteção social e desenvolvimento 30,5%
Mediação de conflitos 33,0%
Organizativos de coletivos sociais 9,3%
Orientação e aconselhamento 58,5%
Avaliação 33,0%
Clínicos 73,2%
Promoção da saúde e bem estar 74,3%
Gestão de pessoas 17,1%
Educativos 39,0%
Investigação científica 20,3%
40
I. O Que Fazemos
Quando se trata da distribuição dos processos de vale considerar que a clínica autônoma tem sido a
trabalho pelas regiões do país, o panorama é bastante principal porta de entrada no mercado de trabalho,
similar à quando se avalia as áreas de atuação. Ambos o que pode sugerir dificuldades para se inserir em
revelam um padrão bastante homogêneo de como outras áreas. Esse mesmo padrão, com maior pre-
a profissão se estrutura e se insere no mundo do sença em estágios iniciais da carreira, se encontra
trabalho, apesar das disparidades socioeconômicas nos processos de proteção social e de mediação de
entre as regiões brasileiras. A Psicologia se consolida conflitos. Nesse ponto, é possível ressaltar que a
fortemente como uma profissão da saúde, não só pelo política de assistência social também tem sido outra
maior peso dos processos intuitivamente mais ligados fonte de empregabilidade para jovens profissionais.
a essa missão de promover a saúde e a qualidade de
Figura 5: Relação entre os processos de trabalho e o
vida de pessoas, grupos e instituições. Trata-se de
estágio na carreira de psicólogas(os)
um campo que, para além da forte presença do tra-
balho clínico na condição de autônomo, se junta à 22,0%
Proteção 30,1%
inserção em uma política pública na qual se inseriu social e
desenvolvimento 33%
há mais tempo e na qual atua em uma capilaridade 30,9%
maior no país. A presença já mais expressiva tanto da 27,4%
Mediação de 31,7%
área social quanto dos processos de proteção social conflitos 29,8%
e desenvolvimento, algo bem menos expressivo em 30,8%
41
I. O Que Fazemos
Interessante verificar que essa ordem se inver- as(os) profissionais que atuam apenas com 2 (10,1%).
te quando se toma os processos de orientação e Por fim, apenas 6,6% atuam em um único processo.
aconselhamento, educativos, avaliação psicológica, Quem atua em apenas um processo, os processos
investigação científica e gestão de pessoas. Nesses clínicos continuam sendo o mais frequente. No entan-
quatro casos, eles são exercidos por profissionais to, os processos de gestão superam outros processos
em estágios mais avançados de suas carreiras, sendo mais frequentes na amostra geral. Quem combina
bem menos presentes no estágio inicial de até dois dois processos, verifica-se que os processos clínicos
anos de graduação. Essa realidade pode se dever a e de promoção da saúde estão entre as combinações
maiores restrições de oportunidades de inserção em mais frequentes e que absorvem mais profissionais.
trabalhos que assegurem tais tipos de intervenção Esse mesmo padrão se repete na combinação de 3, 4 e
para jovens profissionais. Pode também significar 5 processos. A presença da investigação científica em
que são processos que requerem, por serem exerci- várias combinações de processos se deve à presença
dos em empregos mais formais, maior experiência de um expressivo contingente de docentes do ensino
acumulada na sua carreira. superior, assim como de profissionais que estavam
realizando cursos de pós-graduação e, portanto,
Como se combinam esses desenvolvendo investigações científicas.
processos de intervenção no Essa multiplicidade de processos em que estão
trabalho da(o) psicóloga(o)? envolvidos na sua prática profissional pode decorrer
O interesse em conhecer o perfil da(o) psicólo- das múltiplas inserções profissionais (vide o capítulo
ga(o) brasileira(o) e as nuances de sua atuação é algo 9 que mostra a quantidade de trabalhos em média
presente no cenário brasileiro desde a formalização por profissionais). Assim, uma vez que muitos estão
da profissão no país, sempre considerando a reali- inseridos em mais de um contexto de trabalho, as
dade cultural e os diversos cenários emergentes no demandas laborais exigem habilidades e competências
Brasil (Piasson & Freitas, 2020). Até então, essas para o desenvolvimento de diferentes processos de
análises estavam restritas às áreas de atuação e que trabalho. Há, também, a hipótese de certa fluidez nos
coadunam com os dados obtidos nesta pesquisa limites que definem tais processos de trabalho, cujo
que mostram que cada profissional, em grande conceito ainda não está amplamente disseminado
parte, possui mais de um tipo/forma de vinculação sequer no meio acadêmico responsável pela forma-
profissional. Em relação aos processos de trabalho ção no nível de graduação. Isso fica muito evidente
também se verificou que eles são combinados pela quando se tomam os três processos mais frequentes:
maior parte das(o) profissionais brasileiras(o). O mesmo em uma atividade clínica individual, como
questionamento que se segue é qual o perfil da(o) a psicoterapia, a(o) profissional pode enxergar nesse
psicóloga(o) quando se comparam aquelas(es) psi- processo, a promoção da saúde ou mesmo o proces-
cólogas(os) que atuam em apenas um, ou dois, so de orientação e aconselhamento (em função da
ou três, quatro e até cinco distintos processos. Os diversidade de orientações teóricas com impactos na
resultados encontram-se na Figura 6. forma de atuação), ou ainda mediação de conflitos
Um primeiro dado significativo é que mais de (quando está lidando, por exemplo, com terapia
2/3 dos participantes do CensoPsi combinam 4 ou de casal, terapia familiar). Embora, como visto, na
5 distintos processos de trabalho. Mais precisamente, definição, o processo de promoção da saúde e bem-
40,6% atuam em cinco diferentes processos e 23,1% -estar está circunscrito a um nível de intervenção no
atuam em 4 processos. Além disso, 19,6% realizam 3 campo da saúde que não é o remediativo (Sícoli &
processos, e um menor percentual é identificado entre Nascimento, 2003).
42
I. O Que Fazemos
N % N % Um Processo
Promoção da saúde e bem-estar - 483 3,4 Clínicos
Clínicos - Orientação e aconselhamento 441 3,1
- Educativos - Avaliação psicológica 101 0,7 Promoção da saúde e bem-estar
Promoção da saúde e bem-estar - Clínicos 98 0,7 Proteção social e desenvolvimento
- Orientação e aconselhamento - Avaliação 356 2,5
psicológica - Mediação de conflitos 97 0,7 Avaliação psicológica
Promoção da saúde e bem-estar - 70 0,5 Educativos
Clínicos - Orientação e aconselhamento 343 2,4
- Educativos - Mediação de conflitos 39 0,3 Gestão de pessoas em contextos
de trabalho
Promoção da saúde e bem-estar -
Clínicos - Orientação e aconselhamento 315 2,2
- Educativos - Proteção social N % Dois Processos
Promoção da saúde e bem-estar -
Promoção da saúde e
Clínicos - Orientação e aconselhamento 309 2,2 560 4,0
bem-estar - Clínicos
- Mediação de conflitos - Proteção social
Promoção da saúde e bem-estar - Clínicos - Orientação e
113 0,8
Clínicos - Orientação e aconselhamento 250 1,8 aconselhamento
- Educativos - Investigação científica
1 processo 98 0,7 Clínicos - Avaliação psicológica
Promoção da saúde e bem-estar - 940
Clínicos - Orientação e aconselhamento 214 1,5 79 0,6 Investigação científica - Educativos
- Avaliação psicológica - Proteção social
6,6%
2 processos
1423
10,1%
5 processos
5741
40,6%
3 processos
2780
19,6%
N % N % Três Processos
Promoção da saúde e bem-estar - Clínicos - 4 processos Promoção da saúde e bem-
332 2,3
Orientação e aconselhamento - Educativos 3273 655 4,6 estar - Clínicos - Orientação
Promoção da saúde e bem-estar - 23,1% e aconselhamento
Clínicos - Orientação e aconselhamento 298 2,1 Educativos - Promoção da
- Avaliação psicológica 207 1,5
saúde e bem-estar - Clínicos
Promoção da saúde e bem-estar -
Promoção da saúde e bem-estar
Clínicos - Orientação e aconselhamento 241 1,7 188 1,3
- Clínicos - Avaliação psicológica
- Mediação de conflitos
Promoção da saúde e bem-estar - Clínicos - Promoção da saúde e bem-
Orientação e aconselhamento - Educativos 157 1,1 138 1,0 estar - Clínicos - Proteção
- Proteção social e desenvolvimento social e desenvolvimento
43
I. O Que Fazemos
Uma segunda estratégia para se analisar a forma Observa-se que a rede de processos de trabalho em
como esses processos de trabalho são combinados Psicologia formou uma única comunidade. Isso quer
na prática profissional, envolveu uma análise de dizer que esses processos estão bastante integrados,
redes. Segundo Loiola et al. (2013) redes sociais pois na análise de redes sociais, uma comunidade
são vistas como conjuntos de atores que, inseridos diz respeito a um conjunto de vértices ou nós que
em um determinado contexto social, conectam-se estão altamente conectados. Essa integração da rede
entre si. No caso do presente estudo, cada processo pode estar relacionada ao fato de a maioria das(os)
de trabalho em Psicologia constitui um ator (nó) profissionais de Psicologia estarem envolvidos em 4
na rede, os quais estabelecem conexões com outros ou 5 processos de trabalho ao mesmo tempo, como
processos de trabalho, podendo ou não formar sub- foi apresentado na Figura 6. Além disso, é possível
grupos (comunidades). A Figura 7 representa a rede observar na rede que o número de conexões entre
de processos de trabalho em Psicologia. os atores demonstrou um maior peso entre as co-
44
I. O Que Fazemos
nexões dos processos clínicos (CLI) e dos processos psicológica, com 192 relações. Interessante, também,
de promoção de saúde e bem-estar (PRO), havendo destacar que o processo de gestão de pessoas apresenta
10.276 conexões entre os dois processos. Vale ressaltar maior interação com o processo de promoção da
ainda a relação entre os processos clínicos (CLI) e saúde e bem-estar com 1.782 interações, mostrando
os processos de orientação e aconselhamento (ORI), a presença mais forte das atividades ligadas à saúde
com 7.106 conexões. São expressivas também as do trabalhador.
conexões entre os processos clínicos e de avaliação Em relação às estatísticas estruturais da rede, foi
psicológica (AVA), com 5.940 relações, e entre pro- possível evidenciar que todos os processos de traba-
moção de saúde e avaliação com 5.140 interações. lho se relacionam entre si e que o diâmetro da rede
São fortes também as conexões entre os processos aponta ser necessário apenas uma relação para que
educativos (EDU) com a clínica (7.106 interações); os processos de trabalho mais distantes possam se
com promoção da saúde (3.842 interações) e com relacionar, enfatizando a integração da rede. Ademais,
orientação e aconselhamento (2.708 interações). Por a rede representa uma alta densidade, retratando sua
outro lado as menores interações observadas na rede potencialidade de fluxo de informação. A Tabela 2
envolveram os processos organizativos de coletivos apresenta as estatísticas relacionadas à centralidade
sociais (ORG) e suas interações com os processos de dos atores na rede.
investigação científica (CIE), com apenas 118 cone- Observa-se que não houve diferenças nas cen-
xões, com os processos de gestão de pessoas (GEP), tralidades de grau, que indica o prestígio dos atores
com 174 interações, e com os processos de avaliação na rede, e a centralidade de intermediação, corres-
45
I. O Que Fazemos
pondente a atores que intermediam caminhos na base, podemos identificar que muitas das mudanças
rede. Porém, no que diz respeito ao grau pondera- entre contextos e a decorrente interpretação de que
do, que considera o peso das arestas no cálculo da está se mudando de área, podem ser, na realida-
centralidade, foi possível observar que os processos de, continuidade na intervenção em determinados
clínicos (CLI) obtiveram maior grau ponderado, processos. Apenas um exemplo para ilustrar: quem
correspondente a 34.518, seguido dos processos de trabalha com processos educativos em uma instituição
promoção de saúde e bem-estar (PRO), com 33.536, educacional, ao ir trabalhar em uma empresa na área
e dos processos de orientação e aconselhamento, de treinamento e desenvolvimento de pessoas, muda
com 27.138. Esse dado é relevante, pois demonstra de contexto, muda de área, mas continua intervindo
o prestígio que esses processos têm, especialmente sobre o mesmo processo de trabalho.
os clínicos, na prática profissional das(os) psicólo- Nesse sentido, e considerando que o conceito de
gas(os), articulando de modo significativo com todos “processos de trabalho em Psicologia” não deve ser de
os demais processos de trabalho. amplo domínio da categoria, os resultados obtidos
no CensoPsi nos permite concluir:
Considerações finais
Este capítulo se propôs a descrever, pela pri- a. A quantidade de trabalhos que são desenvolvi-
meira vez, como os 10 processos de trabalho em dos simultaneamente por parte expressiva da
Psicologia identificados como centrais na formação categoria, leva à combinação de vários processos
em Psicologia estão sendo exercidos pelas(os) pro- de trabalho, assim como ocorre com as áreas e
fissionais. Estamos diante, portanto, de dados que com contextos de atuação. Isso se traduz em
são novos e que não nos permitem comparações um leque bastante abrangente de atividades ou
com estudos anteriores para capturar tendências fazeres profissionais (ver Capítulo 1). Como
de mudança ao longo do tempo. visto, o maior contingente de participantes da
A novidade introduzida pelas Diretrizes pesquisa aponta 4 ou 5 processos com os quais
Curriculares para os Cursos de Psicologia – ênfases trabalha. É bem verdade que entre alguns dos
definidas a partir de processos de trabalho que re- processos os limites são mais tênues e nada im-
querem um aprofundamento de uma formação que é pede que eles sejam combinados (por exemplo,
generalista, nos fornece um novo modelo para descre- promoção de saúde, clínica e orientação e acon-
ver a diversidade que caracteriza o campo de atuação selhamento). Por outro lado, a própria noção de
profissional na Psicologia. Isso nos coloca desafios e, processos de trabalho, ao romper com a noção
ao mesmo tempo, abre possibilidades de análises e, de área de atuação é exatamente para permitir
sobretudo, de qualificação para a atuação profissional. capturar como, em um mesmo contexto ou em
Embora nossos cursos de graduação nunca tenham uma mesma área, a(o) profissional pode estar
oferecido uma formação específica para atuar em intervindo em diferentes processos.
uma área da Psicologia, o que se observa ao longo
da história é que a(o) profissional transita por di- b. Como a noção de processos de trabalho veio
ferentes áreas e contextos de trabalho – ao mesmo para superar a noção que largamente associa
tempo ou ao longo da carreira. Certamente, ao fazer áreas de atuação a determinados contextos, não
tais transições busca complementar e aprofundar as se pode fazer essa equivalência com facilidade.
suas competências para desempenhar atividades que Um exemplo é o caso da área organizacional e
requerem conhecimentos e habilidades específicas. Ao do trabalho. O envolvimento em processos de
tomarmos a noção de “processos de trabalho” como gestão e desenvolvimento de pessoas é inferior ao
46
I. O Que Fazemos
contingente de quem atua na área. No entanto, e condição de planejamento de sua carreira. Isso
nessa área, pode-se estar atuando nos processos se reflete na necessidade de combinação de vários
de promoção da saúde e bem-estar, ou mesmo trabalhos, muitos deles precários (ver Capítulos
de mediação de conflitos e assim por diante. 7, 8 e 9) e termina demandando o envolvimento
com diferentes processos de trabalho, todos com
c. O número expressivo de profissionais envolvi- suas especificidades em termos de recursos pessoais,
dos nos processos de promoção da saúde assim habilidades e competências.
como na proteção social e desenvolvimento já Essa realidade decorrente, em grande parte, da
são reflexos da inserção da Psicologia nas polí- forma como o mercado de trabalho se estrutura,
ticas públicas de saúde e assistência social. Isso tem implicações sobre o processo de formação. Os
configura uma mudança expressiva em relação processos de trabalho foram concebidos como pos-
à primeira pesquisa realizada nos anos 1980 sibilidades de aprofundamento em um curso de
(CFP, 1988). graduação que é generalista. O que se vê, nos re-
sultados aqui apresentados sugerem a necessidade
d. A rede de processos de trabalho em Psicologia de estudos complementares que analisem como as
se apresenta integrada, destacando as interações ênfases curriculares estão sendo implementadas nos
entre os processos clínicos e os demais processos diversos cursos de graduação. Ou, em que medida a
de trabalho, especialmente os de promoção de lógica de processos de trabalho está sendo utilizada
saúde e bem-estar. Em contrapartida, os processos na estruturação dos currículos dos cursos. Nossa
organizativos de coletivos sociais foram os que suposição é que tal lógica ainda está muito distante
tiveram menor interação na rede, o que indica a de guiar o processo formativo, não só pela novidade
necessidade de maior articulação com os demais que ele representa na nossa história, como pelos li-
processos de trabalho. mites cada vez mais evidentes de precarização desse
processo de formação.
Ao tomar os processos de trabalho como objeto Assim, vale assinalar que a noção de processos de
de análise e olhando para os resultados obtidos, duas trabalho está apenas no seu início de utilização no
reflexões finais são relevantes. O primeiro diz respeito nosso campo e que há ainda demandas para que ele
à forma como o mundo do trabalho se encontra es- seja cada vez mais aprimorado, definido e socializado
truturado no atual estágio das sociedades capitalistas. no âmbito do exercício profissional. n
O segundo se relaciona com as implicações para o
processo de formação em Psicologia.
Os processos de trabalho se constituem em um
trajeto a percorrer junto com uma série de tarefas,
procedimentos que são interligados e envolvem in-
divíduos, equipamentos, tecnologias, entre outros
fatores, com o objetivo de realização de determinada
tarefa (Araújo, Ciampa & Melo, 2014). Vivemos
num período de fragilização do mundo do trabalho,
com perda de direitos e garantias e avanço de uma
lógica que permite a reprodução do capital com a
redução de custos associados a condições de trabalho
que deveriam garantir mais segurança, bem-estar
47
I. O Que Fazemos
Referências
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trabalho: fundamentos, avanços sociais e tecnológicos e atenção à saúde. São Paulo: Érica.
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Psicologia brasileira: uma análise de seu desenvolvimento. Universitas Psychologica, 14(3), pp. 865-880.
Franco, T.B. (2015). Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos
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Gondim, S. M. G., Bastos, A. V. B., & Peixoto, L. S. A. (2010). Áreas de atuação, atividades
e abordagens teóricas do psicólogo brasileiro. In: A. V. B. Bastos, & S. M. G. Gondim,
(Orgs.). O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 174-199). Porto Alegre: Artmed.
Loiola, E., Bastos, A.V.B., Macambira, M. O., Neiva, E. R. & Machado, J. A. P. (2013). Redes
sociais em contextos organizacionais: ferramenta de análise e intervenção. Brasil: Porto Alegre.
48
I. O Que Fazemos
Piasson, D.L. & Freitas, M.H (2020). A identidade do psicólogo brasileiro: produções
de 2008 a 2019. Boletim Academia Paulista de Psicologia, 40(99), 271 - 284.
Sícoli, J. L. & Nascimento, P.R. (2003). Health promotion: concepts, principles and
practice. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 7(12), pp. 91-112.
49
I. O Que Fazemos
1 Psicólogo. Mestre em Educação (UFBA,1984). Doutor em Psicologia (UnB,1994). Prof. Titular aposentado Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador I-A do CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFBA. Dedica-se a pesquisa no campo
da Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase no estudo dos vínculos do indivíduo com diversas facetas do seu mundo
de trabalho. Dedica-se, também, ao estudo sobre a formação e exercício profissional na Psicologia, tendo coordenado e conduzido
pesquisas de âmbito nacional sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no Brasil. Atualmente é membro do XVI Plenário do Conselho
Federal de Psicologia.
2 Mestrado e Doutorado em Psicologia cursados na Universidade de Brasília. Em 2009 realizou estágio pós doutoral na Universidade
de Valencia (Espanha). Contando com mais 70 trabalhos publicados, entre artigos científicos e capítulos de livros, possui como foco
central de interesse o estudo dos processos protagonizados por equipes de trabalho. Em relação a esses, busca investigar e elucidar
as transformações ocorridas nos atributos individuais, os quais dão lugar ao surgimento de fenômenos coletivos. Seus estudos atuais
abordam temas como aprendizagem de equipes, liderança, competências coletivas, entre outros. Atua como docente e pesquisadora no
programa de pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) da Universidade de Brasília (UnB).
3 Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia. Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Organizacional e do Trabalho.
Coordenadora do Colegiado de Psicologia no Instituto Multidisciplinar em Saúde da UFBA desde 2018. Professora na área de POT
(Psicologia Organizacional e do Trabalho) desde 2003. Atualmente, interessa-se pela pesquisa e extensão principalmente com os
seguintes temas: voz e silêncio do trabalhador, psicologia positiva nas organizações, gestão do trabalho remoto, gestão de carreiras nas
organizações e no trabalho.
50
I. O Que Fazemos
A contextualização da atuação profissional neste está dividido em três grandes seções. Na primeira,
capítulo tem como referência delimitadora as áreas apresentamos uma breve descrição do quadro de
de atuação, abordadas em profundidade no Capítulo atuação profissional da Psicologia, apontando algu-
1 desta obra. Tal parâmetro tem se revelado útil mas das principais características de nossa atuação
para caracterizar a atuação profissional da Psicologia profissional, como a multiplicidade e complexidade
nas pesquisas anteriores, considerando-se não ape- das atividades, a identidade profissional, e o trabalho
nas os critérios técnicos, mas também sociológicos. em equipes uni e multiprofissionais. Em seguida,
Estas áreas são concebidas como verdadeiras culturas os resultados relacionados às atividades da(o) psi-
profissionais, sendo definidas por “um conjunto cóloga(o) levantados na atual edição do CensoPsi
de relações sociais, valores e papéis, dentro do am- 2022 são abordadas, trazendo à tona comparações
biente de trabalho, que se traduzem em cultura pertinentes entre o quadro atual da profissão e as
própria” (Bastos, 1988, p. 167). A título de análise, mudanças ocorridas nos últimos anos. Por fim, são
aqui, as áreas de atuação se constituem em campos tecidas ponderações e discutidos os achados em
demarcados no âmbito dos quais as atividades pro- relação à profissão, abordando aspectos centrais
fissionais são realizadas, estabelecendo as fronteiras que nos mostram o estado atual de atuação das(os)
para atividades que são exclusivas de algumas áreas psicólogas(os) brasileiras(os), buscando desenhar
(como, por exemplo, recrutamento e seleção na uma visão de futuro para a profissão que permita
POT e psicodiagnóstico na clínica), mas também identificar as demandas e desafios que precisam ser
possibilitando que se observem atividades que se enfrentados pelos profissionais.
mantém fora de quaisquer fronteiras, pois são eixos
estruturantes da identidade profissional da Psicologia O quadro das atividades
(como a testagem psicológica). profissionais da(o) psicóloga(o)
No âmbito das áreas de atuação, o capítulo traz à no Brasil: uma breve descrição
tona uma dimensão de análise das atividades realiza- O retrato da atuação profissional da Psicologia
das, na qual se investigam as tarefas desempenhadas no Brasil entre 1962 e 2010 caracteriza-se por duas
em cada área de atuação, e em que medida estas peculiaridades, sendo a primeira, a multiplicidade
atividades, ou tarefas, continuam sendo realizadas de áreas de atuação e abordagens teóricas que as
estritamente no nível individual, ou se elas se ampliam fundamentam e a segunda, a manutenção de um
para o nível das equipes de trabalho. O fato de uma núcleo central de atividades que são próprias da nossa
tarefa ser realizada individualmente ou em equipe profissão. As duas pesquisas anteriores mencionam
implica em tipos diversos de competências reque- estas características, sendo apontada, desde a primei-
ridas à(ao) profissional psicóloga(o), especialmente ra pesquisa, a diversidade de áreas e de atividades
na relação com outros profissionais. Quando tais realizadas por estas(es) profissionais (Bastos, 1988;
atividades se dão em nível de equipe multiprofissio- Carvalho, 1998). A ampliação do escopo de atividades
nal, requerem combinações de competências socioe- desenvolvidas pela(o) profissional continua sendo
mocionais de comunicação que podem introduzir constatada na segunda pesquisa, tendo em vista a
maior complexidade ao nosso exercício profissional multiplicidade de abordagens e perspectivas a partir
e, adicionalmente, requerer maior investimento na das quais os seus fazeres são realizados (Gondim,
formação profissional. Bastos e Peixoto, 2010). Paralelamente, atividades
Para abordar as questões antes apontadas, rela- como lidar com problemas tradicionalmente tidos
tivas às atividades da(o) profissional da Psicologia como psicológicos, a exemplo os que dependem de
e às especificidades da sua atuação, este capítulo aplicação de testes ou impliquem em um auxílio a
51
I. O Que Fazemos
pessoas com sofrimento mental, continuam presentes profissional que faz de tudo, uma vez que a profissão
nas duas edições e, provavelmente por este motivo, possui um escopo delimitado de atuações, ainda que
tendem a permanecer como núcleo de representações esse venha sendo ampliado paulatinamente.
de nossa categoria (Bastos, 1988; Carvalho, 1998; Nesse sentido, deve ser considerada a existência de
Gondim et al., 2010). atividades que somente podem ser desempenhadas
De maneira adicional à análise da ampliação pela(o) psicóloga(o), como é o caso da aplicação de
constante das atividades da psicóloga e do psicó- testes psicológicos ou ainda a avaliação psicológica.
logo, devemos refletir se a diversidade de atuações Assim, embora a multiplicidade de atividades possa
molda também de maneira diversa a identidade ser vista como atributo característico da profissão,
do profissional, como já manifestado por Malvezzi a exclusividade de desempenho de certas tarefas
(2010). A este respeito cabe apontar que a(o) pro- também constitui aspecto que deve ser destacado.
fissional se refaz a cada passo, mudando não so- Buscando exemplificar a relevância das atividades ex-
mente as áreas em que atua, mas também a forma clusivas da(o) psicóloga(o) no seu campo de atuação,
como ela(ele) se vê e como ela(ele) é vista(o) nos cabe apontar que na pesquisa de 2010, independente
cenários em que se insere. Focando nas exigências da área de atuação (clínica, escolar, organizacional,
que o contexto traz para a(o) psicóloga(o), Piasson saúde ou docência), existia uma porcentagem signi-
e Freitas (2020) destacam que, tendo em vista a ficativa (pelo menos 50%) de profissionais dedicados
complexidade da realidade social do Brasil, é natural à aplicação de testes psicológicos, excetuando as(os)
que sejam complexas também as demandas trazidas profissionais dedicadas(os)à docência, em cujo caso
para a(o) profissional, vistas muitas vezes na forma a porcentagem daquelas(es) que declararam desem-
de competências exigidas para o adequado exercício penhar essa atividade apenas supera o 12%. Logo, os
da sua profissão, mas ainda se consideramos que o dados levantados à época revelavam a centralidade
fazer da(o) psicóloga(o) é um fazer com pessoas e das atividades de desempenho exclusivo na atuação
para pessoas, seja de maneira individual ou coletiva. da(o) psicóloga(o).
Essa visão da diversidade de demandas que o campo Paralelamente, é importante analisar que o fato
impõe à(ao) profissional é descrita como aspecto a de existirem atividades exclusivas da(o) profissional
ser considerado desde a fase de formação, quando o não significa que trabalhem sozinhas(os), pois boa
domínio das competências necessárias deve buscar parte afirma trabalhar em equipes. A este respeito
contemplar, ao máximo, a gama de possibilidades cabe lembrar também que na pesquisa de 1988 foi
da Psicologia, conforme pontuam Bobato, Stock verificado que, salvo raras exceções representadas por
e Pinotti (2016). certos estados (Rio Grande do Sul e Santa Catarina),
O conjunto de aspectos ora mencionados torna na grande maioria das localidades o trabalho da(o)
pertinente defender que a profissão pode ser legitima- psicóloga(o) era desempenhado de maneira indivi-
mente descrita como complexa, pois é amplo o leque dual. Por outro lado, na pesquisa do ano 2006 foi
de atividades desempenhadas, que buscam responder verificado que mais de 50% daqueles que participa-
em certa medida a demandas psicossociais de uma ram do estudo relataram atuar em equipes, seja de
sociedade em constante transformação. Ainda assim, psicólogas(os) ou equipes multiprofissionais, sendo
constata-se que tanto na edição da pesquisa do ano esta última modalidade prioritariamente reportada
1988, como na de 2006 pode ser identificado um à época. Assim, no transcurso de aproximadamente
núcleo central que outorga à profissão identidade, 18 anos (1988 a 2006) houve uma clara mudança
centrado sobretudo no fazer clínico. Esse fato torna no modo de atuação profissional, em que o trabalho
pertinente afirmar que a(o) psicóloga(o) não é a(o) coletivo passou a ser destaque marcante da profissão.
52
I. O Que Fazemos
A partir dessas constatações, ao conjunto de ativi- desafios postos às(aos) profissionais. Contudo, pre-
dades que caracteriza a profissão e que engloba tanto cisamos ainda analisar como está a profissão nos dias
atividades privativas da(o) psicóloga(o) como outras de hoje. Para isso, a próxima seção traz um conjunto
de natureza mais ampla, deve-se acrescentar o atri- de achados extraídos dos dados levantados na edição
buto de serem executadas em equipes, especialmente 2022 do censo da profissão, com foco especificamente
multidisciplinares. A este respeito vale destacar que nas atividades e na natureza da atuação.
no trabalho desenvolvido por Bobato et al. (2016) é
defendido que a(o) futura(o) psicóloga(o) deve estar Atividades profissionais:
preparada(o) para atuar em equipes multidiscipli- o que nos revela o CensoPsi
nares. Assim, esse modo coletivo de atuação não se Para além de áreas, contextos e processos de trabalho
constitui em achado isolado, mas trata-se de aspecto desenvolvidos no exercício profissional, que tivemos
que deve ser considerado desde a formação, pois esse oportunidade de ver nos capítulos que antecedem o pre-
constitui um dos possíveis modos de trabalho. sente capítulo, uma dimensão crítica para se caracteriza
O fato de muitas(os) psicólogas(os) atuarem em tal exercício e analisar potenciais mudanças ocorridas
equipes, especialmente multidisciplinares, elicia refle- ao longo do tempo são as atividades desenvolvidas, as
xões relativas ao fato de ser outra fonte de demandas práticas efetivadas ou fazeres que configuram a identi-
profissionais que pode repercutir na ampliação do seu dade profissional nos mais diversos contextos em que
escopo de competências. Isso porque nesse arranjo é atua. Assim, o CensoPsi levantou uma descrição, feita
necessário, não apenas o domínio de saberes do pró- pela(o) própria(o) psicóloga(o) de quais eram as suas
prio campo, como também a compreensão, ainda que práticas em cada uma de suas inserções profissionais.
não na mesma profundidade, dos saberes dos outros Os resultados serão apresentados em três segmen-
integrantes. Nessas condições é necessário que o mem- tos: as atividades profissionais e suas frequências, na
bro possua a visão do todo, da meta compartilhada e amostra geral; as atividades e suas frequências, por
do objetivo pelo qual são corresponsáveis. Para tanto, áreas de atuação; e, por fim, a natureza individual
precisa ser capaz de articular as suas contribuições às ou em equipe que caracteriza o nosso exercício pro-
das(os) outras(os) participantes. Logo, a necessidade fissional. Vale registrar que a descrição das atividades
de compreensão do fazer do outro pode ser uma es- foi feita por cada participante do CensoPsi, de forma
pecificidade do trabalho que impulsiona a ampliação aberta, sem lhes serem oferecidas alternativas de res-
do escopo de competências da(o) psicóloga(o). postas pré categorizadas. Isso difere a atual medida
Essa suposição é suportada pelos achados da pesqui- das medidas anteriores quando uma lista de atividades
sa do ano 2010 quando foi reportado que aquelas(es) foi oferecida para escolha, sendo aberta a alternativa
que desempenhavam atividades em equipes uniprofis- outras. Para cada trabalho em Psicologia, a(o) partici-
sionais elencavam um conjunto menor de atividades, pante do Censo poderia descrever até três atividades
se comparado ao apresentado pelas(os) que afirmavam mais características. Esse limite não foi respeitado
trabalhar em equipes multiprofissionais (Martins & por todas(os), de modo que há casos com muito
Puente-Palacios, 2010). Assim, parece ser pertinente mais atividades do que outros. As respostas abertas
defender que a inserção em equipes está associada a foram categorizadas buscando-se respeitar ao máximo
maior diversidade de atividades do profissional. a forma como a(o) profissional descreveu, mesmo
O conjunto de informações ora recopiladas e os sabendo que se poderia avançar para categorias mais
dados visitados sobre o exercício da profissão iden- inclusivas. Ao todo se trabalhou com 110 categorias
tificado em estudos anteriores mostram a evolução de atividades, número considerado adequado para
vivenciada pelo campo, mas também mostram os descrever o conjunto das informações disponíveis.
53
I. O Que Fazemos
Triagem 1,0%
Preparação/registros
1,0%
prontuários
Trabalho com grupos/
1,0%
prevenção ou promoção
saúde/campanhas
1,0%
matriciamento
54
I. O Que Fazemos
A atividade de longe mais frequente, que ocupa fortemente associada ao ensino aparece no segundo
o topo dos percentuais, e compõe quase metade das bloco com 7,8%, assim como aparece a extensão no
atividades desempenhadas, é a psicoterapia. 49,3% terceiro bloco (2,3%). Supervisão de colegas (7,1%),
das atividades desempenhadas por psicólogas(os) no conferências e palestras (5,2%) complementam o rol
Brasil, à qual deve ser agregado o percentual da se- das atividades mais ligadas à docência e formação
gunda mais frequente que é exatamente a psicoterapia que são transversais a todos os campos de atuação.
individual (12,6%). Na realidade, a psicoterapia ainda Há que se destacar, também, o peso das ativi-
aparece entre as mais frequentes quando qualificada dades no campo da avaliação psicológica que, com
por psicoterapia de grupo, psicoterapia breve. Há, denominações diferentes aparecem no segundo bloco
ainda, a psicoterapia de casal, de família. Tudo isso faz de atividades mais frequentes: avaliação psicológica
com que a psicoterapia seja a atividade que, de longe, (9,4%), produção de documentos psicológicos (5,3%)
absorve o maior contingente de profissionais. Esta e aplicação de testes (5,0%).
hegemonia das atividades relacionadas à Psicologia Finalmente, a partir do terceiro bloco, começam
Clínica merece destaque por ser um dado que vem a aparecer um conjunto de atividades mais ligadas
se repetindo em todas as pesquisas, sendo que, na a áreas específicas e clássicas de atuação. No caso
primeira delas, em 1988, as atividades em Clínica da área organizacional temos treinamento (3,3%),
representavam mais de 40% do total (Bastos, 1988). seleção (2,9%), orientação profissional (2,1%); na
A clínica, com sua hegemonia, se mantém como área educacional aparecem psicoeducação (2,7%)
atividade que contempla de forma mais plena o ideal e outras intervenções no contexto escolar (2,1%).
de atuação na Psicologia, o que é atribuído, dentre Um outro olhar possível sobre as atividades mais
outras coisas, à construção da formação profissional frequentes diz respeito às combinações entre as ati-
(Bastos, 1988; Gondim et al., 2010). vidades pelas(os) psicólogas(os). Aqui utilizou-se a
As atividades de acolhimento psicológico também análise de redes sociais que mostram as conexões
aparecem entre as mais frequentes (10,3%). Esta entre as atividades desenvolvidas, no conjunto de
atividade vem sendo primordialmente realizada no itens apontado por cada profissional. A Figura 1
âmbito das políticas públicas de saúde, de assistência é uma representação da extensa rede de conexões
social, nas clínicas-escola e, mais recentemente, de entre as atividades, em função do grande número
forma on-line, crescido em oferta na modalidade de categorias de atividades extraída do conjunto de
de plantão psicológico on-line, com o aumento descrições abertas feita pelas(os) respondentes.
da demanda psicossocial devida ao isolamento A rede de atividades em Psicologia é composta por
social imposto pela pandemia da Covid-19 (CFP, 110 nós, que representam cada uma das atividades
2020; Quadros, Cunha & Uziel, 2020; Pereira et desenvolvidas por psicólogas e psicólogos, e 2.846
al., 2021). Ela guarda relação com a denominada arestas, que representam as conexões entre todas
“escuta”, termo usado para descrever uma atividade as atividades. Em relação as estatísticas estruturais
por 9,9% das(os) participantes. da rede, observa-se uma densidade média, corres-
Neste primeiro bloco, o ensino também aparece pondendo a 0,475, em uma escala entre 0 e 1. O
como uma atividade frequente, demonstrando o diâmetro da rede, que diz respeito à maior distância
avanço de oportunidades de ensino, com o aumento entre dois atores (nós) na rede, correspondeu a 2,
do número de cursos de Psicologia no Brasil ocor- de modo que são necessárias 2 conexões para que
rido de forma mais intensa no início dos anos 2000 os atores mais distantes possam se relacionar. Assim,
(Macedo et al., 2018), mas que continua se amplian- o comprimento médio do caminho entre os atores
do e absorvendo novas(os) docentes. A pesquisa, na rede foi de 1,525. Além disso, vale destacar que
55
I. O Que Fazemos
se trata de uma rede integrada em um único com- de centralidade aparecem: supervisão de outras(os)
ponente conectado. A modularidade da rede foi profissionais (SUPCPROF), palestras, aconselha-
correspondente a 0,126, formando 3 comunidades mento e orientação psicológica (ACPSI), escuta e
que foram representadas no sociograma pelas cores produção de documentos psicológicos (DOCPSI).
roxo, verde e laranja. Vale destacar ainda que a Psicoterapia, a Avaliação
Em relação à centralidade de grau, que diz respeito Psicológica e a Psicoterapia Individual, fazem parte
ao quanto determinados atores se destacam na rede, da mesma comunidade na rede, ou seja, fazem parte
observou-se um grau médio correspondente a 51.745. de um conjunto de atividades que estão altamente
Ademais, foi possível identificar que a atividade conectadas e que envolve o maior número de atividades
Psicoterapia teve a maior centralidade de grau na (os nós representados na cor lilás). Essa comunidade
rede (grau 1), que corresponde a atividade com maior engloba atividades que se espalham pelas diversas áreas
prestígio na rede, seguido da Avaliação Psicológica de atuação. As duas outras comunidades que emergem,
(0.95), a psicoterapia individual (PSICIND, 0.94) e indicam alguma especificidade que as distinguem
o ensino (0.93). Ainda com níveis próximos a 0,90 daquela comunidade maior. A segunda comunidade
56
I. O Que Fazemos
4 Para efeito de análise das atividades, excluímos as áreas cuja participação no CensoPsi forma bem residuais (Tráfego, Esporte e
Ambiental) todas com menos de 1% das(os) participantes da pesquisa. Também foi excluída a área de Avaliação Psicológica que
tem atividade em todas as demais áreas, não apresentando algo que a diferencie em termos de atividade para o reduzido número de
profissionais que afirmam atuar apenas nela.
57
I. O Que Fazemos
Psicoterapia 55,0%
Psicoterapia individual 14,8%
Escuta 11,6%
Acolhimento psicológico 10,9%
Avaliação psicológica 10,3%
Ensino 9,0%
Supervisão de colegas profissionais 7,9%
Pesquisa 6,0%
Palestras/conferências/workshops/seminários 5,5%
Aplicação de testes e outros instrumentos psicológicos 5,2%
Produção de documentos psicológicos 4,8%
Orientação psicológica 3,6%
Psicoeducação 3,1%
Anamnese 2,7%
Psicodiagnóstico 2,5%
Orientação profissional/vocacional 2,5%
Supervisão de estágios 2,3%
Grupo de estudos/estudo de casos 2,3%
Acompanhamento psicológico 2,2%
Avaliação/atenção/atendimento/intervenção psicossocial 1,9%
Psicanálise 1,8%
Avaliação/reabilitação neuropsicológica 1,7%
Psicoterapia breve 1,7%
Psicoterapia de casal 1,3%
Trabalho/assistência/atendimento a idosos 1,1%
Aconselhamento/orientação psicológica 1,1%
Psicoterapia de família 1,1%
Psicoterapia em grupo 1,0%
Avaliação e preparação para cirurgias/acompanhamento pós cirúrgico 0,5%
Intervenções em luto 0,3%
58
I. O Que Fazemos
(CFP, 2008), até as práticas sociais em instituições Aqui, o ensino e a pesquisa aparecem com 7,3%
do terceiro setor. O público atendido também é cada um. A presença destas atividades na área social
bastante diverso. Uma atividade específica descrita pode refletir tanto a presença de profissionais da área
é a do acompanhamento familiar (8,7%), o que social em IESs quanto a presença de docentes das IESs
compõe uma das possibilidades do que se discute nos dispositivos do SUAS. Já as atividades de avaliação
na literatura como “clínica ampliada” (Silva & psicológica e produção de documentos psicológicos
Bonatti, 2019). Tais fatores em conjunto chamam somam, cada uma, 5,4 e 5,5%, respectivamente. Estas
a atenção para esta diversidade de contextos, ins- atividades, que visavam inicialmente tão somente a
tituições e usuários dos serviços, indicando que o elaboração de pareceres e laudos psicológicos, vêm se
acolhimento, a escuta e a intervenção psicossocial ampliando, propondo intervenções com referenciais
podem compreender protocolos e processos de mais nítidos nas áreas sociais. Observa-se que este
trabalho diversificados. aumento pode ter se dado com o interesse pela área
59
I. O Que Fazemos
que vem se renovando, se expandindo para além da que afirmaram realizar psicoterapia individual, se
clínica e abrangendo novos constructos e fenômenos assemelhando bastante ao que foi encontrado na
psicológicos que se constituem não apenas em fer- análise da área Clínica. Essa estreita sobreposição
ramentas de avaliação e diagnóstico, como também com a área clínica em termos de atividades mais fre-
em subsídios para intervenção (Bastos, Gondim & quentes pode sinalizar: a) que essas duas áreas são de
Peixoto, 2010). fato estreitamente relacionadas já que, em contextos
de promoção da saúde, por exemplo, também estão
Saúde sendo desenvolvidas com elevada frequência práticas
As(os) psicólogas(os) que atuam na área de Saúde psicoterápicas; ou b) que expressivo contingente
totalizaram 3.261 (19% do total de participantes), de profissionais que atuam na clínica e, portanto,
sendo que apenas 351 profissionais referiram atuar com psicoterapia, também consideram-se atuando
nesta área de forma exclusiva. Isto é importante no campo da saúde, o que não deixa de ser uma
porque, dentre as atividades mais frequentes en- interpretação correta.
contra-se a atividade de psicoterapia, com 49,0% As atividades consideradas típicas da área de
das citações das(os) profissionais, seguida de 19,0% Saúde – aqui entendida como englobando sobretu-
Psicoterapia 49,0%
Psicoterapia individual 19,9%
Acolhimento psicológico 12,9%
Avaliação psicológica 9,9%
Ensino 8,8%
Escuta 8,3%
Pesquisa 7,8%
Supervisão de colegas profissionais 6,9%
Palestras/conferências/workshops/seminários 6,0%
Matriciamento 3,9%
Produção de documentos psicológicos 3,4%
Orientação psicológica 3,4%
Psicoterapia breve 3,1%
Psicoeducação 3,0%
Oficinas terapêuticas 3,0%
Acompanhamento psicológico 2,8%
Acompanhamento familiar 2,7%
Supervisão de estágios 2,6%
Avaliação/atenção/atendimento/intervenção psicossocial 2,6%
Psicoterapia em grupo 2,5%
Aplicação de testes e outros instrumentos psicológicos 2,5%
Grupo de estudos/estudo de casos 2,4%
Clínica hospitalar em enfermarias e UTI 2,2%
Extensão 2,1%
Articulações na rede de serviços assistenciais/articulação intersetorial 2,1%
Atividades de gestão/gerência de unidades/orgãos/setores/equipes 2,0%
Trabalho com grupos/prevenção ou promoção saúde/campanhas 1,8%
Psicodiagnóstico 1,8%
Anamnese 1,7%
Interconsulta/atendimento multiprofissional 1,6%
Atendimento ambulatorial 1,6%
Avaliação/reabilitação neuropsicológica 1,3%
Aconselhamento/orientação psicológica60
1,3%
Trabalho/assistência/atendimento a idosos 1,2%
Trabalho com equipes profissionais em contextos de saúde 1,2%
Atendimento pacientes terminais 0,9%
I. O Que Fazemos
do uma atuação nos níveis primário e secundário, das outras áreas. A atividade de seleção de pessoal
especialmente em contextos de instituições de saúde, se mantém como central nesta área desde a pesquisa
especialmente nas políticas públicas de saúde – en- de 1988 (Bastos, 1988). Trata-se, como se sabe, do
contram-se, entretanto, em percentuais muito baixos tripé mais clássico que define a área Organizacional
de citações. É o caso das atividades de matriciamento e do Trabalho.
(3,9%), psicoeducação (3,0%), oficinas terapêuticas As atividades, citadas pelas(os) profissionais, de
(3,0%), acompanhamento familiar (2,7%), avaliação/ aplicação de testes e outros instrumentos (11,3%) e
intervenção psicossocial (2,6%), psicoterapia em avaliação psicológica (11,1%) vêm em seguida, assim
grupo (2,5%), grupo de estudos/estudos de casos como a produção de documentos psicológicos (6,5%),
(2,4%) etc. em certa medida reforçando a atividade principal, de
Aqui, a atividade de avaliação psicológica se se- seleção, mas também podendo ser realizada em outras
gue às atividades mais frequentes com 9,9%, sendo atividades de gestão aqui citadas, como a avaliação de
considerada em conjunto com a aplicação de testes e desempenho, a orientação de carreira, o psicodiagnós-
outros instrumentos psicológicos (2,5%) e a produção tico e o diagnóstico/desenvolvimento organizacional.
de documentos psicológicos (3,4%). Observa-se, assim, que as atividades relacionadas à
De maneira semelhante às outras áreas de atua- aplicação de testes e outros instrumentos na área de
ção expostas até aqui, há um destaque para as áreas POT, se sobrepõem a outras atividades aqui citadas,
de ensino (8,8%), pesquisa (7,8%) , supervisão de pois são essenciais ao seu desenvolvimento.
colegas profissionais (6,9%) e palestras/conferências/ Outras atividades que se destacam com percentuais
workshops/seminários (6,0%). Juntas, estas atividades significativos são a pesquisa (9,7%) e o ensino (9,0%).
se aproximam de 30%. Conforme já comentado ante- Tais atividades se alinham com as atividades de pales-
riormente nas áreas Clínica e Social, há uma interface tras/conferências/workshops/seminários (6,4%) que
entre as atividades específicas das áreas de atuação e as se realizam em parte na área da pesquisa e ensino em
atividades de formação dos profissionais de Psicologia. parte nas próprias organizações de trabalho. Também,
No caso da área de Saúde, as interfaces são realizadas próximo à área de ensino está a atividade de supervisão
entre as IESs e os dispositivos do Ministério da Saúde, de colegas profissionais (4,8%). Juntas, estas atividades
e muitas vezes, as atividades de formação das IESs configuram os esforços de formação da(o) psicólo-
são realizadas no âmbito da rede de Saúde local em ga(o) em POT e nelas, incluem-se as(os) profissionais
diversos níveis (graduação, supervisão de estágios, que atuam no ensino em IESs Públicas e Privadas
residência, aprimoramento, pós-graduação stricto (graduação, supervisão de estágio, pós-graduação
sensu), dentre outras modalidades. stricto e lato sensu) e em pesquisa nas IESs Públicas,
configurando a área de docência e pesquisa em POT,
Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT) que vem se desenvolvendo ao longo das décadas mais
Do total de profissionais participantes do CensoPsi, recentes após a implantação e consolidação das DCNs
2.078 afirmaram atuar em POT (12,1% dos casos de Psicologia, a partir das quais a formação passou a
participantes), das(os) quais apenas 477 atuando de ser generalista (MEC, 2004; 2011), e também após a
forma exclusiva na área. As atividades mais frequentes criação da SBPOT (Associação Brasileira de Psicologia
da área de POT são as atividades de seleção de pessoal Organizacional e do Trabalho).
(18,0%), treinamento, desenvolvimento e educação A atividade de gestão de pessoas e RH aparece com
(17,2%) e recrutamento de pessoas (12,5%). Isto 6,4% das citações, e as atividades de gerência e gestão
reforça a grande especificidade desta área, pois as de equipes com 3,3%, indicando tanto a inserção em
atividades mais frequentes são claramente distintas equipes quanto a ocupação, pelas(os) psicólogas(os),
61
I. O Que Fazemos
de cargos de gestão em organizações de trabalho. desenvolvendo de maneira mais recente, não tendo
Observa-se que, embora significativa, esta atividade aparecido nas pesquisas anteriores, mesmo quando
ainda é tímida. Analisando de forma conjunta com as havia esta opção de resposta (Bastos et al., 2010).
demais atividades, observa-se que a(o) psicóloga(o), Embora tenham sido citadas aqui, sugerem um de-
na área de POT, ainda desempenha atividades consi- senvolvimento bastante inicial, que podem estar se
deradas em um nível mais técnico do que estratégico dando tanto no interior de algumas organizações de
(Zanelli, Borges-Andrade & Bastos, 2014). trabalho quanto em dispositivos das PNSST (Política
Atividades menos frequentes sugerem aqui o Nacional de Saúde e Segurança do Trabalhador e
despontar de novas atuações na área, como a saú- da Trabalhadora) que objetivam promover a saúde
de do trabalho, a segurança e higiene do trabalho, e qualidade de vida do trabalhador, assim como
que juntas totalizam 3,6%. Estas atividades vêm se prevenir acidentes de trabalho e passaram a inserir
62
I. O Que Fazemos
em suas equipes, em nível municipal, profissionais Educação. São docentes que podem, certamente,
de Psicologia. para além do ensino e da produção de conhecimento
na área, se envolver com trabalhos de extensão e ou
Escolar/Educacional intervenção no campo educacional.
Os dados levantados das(os) participantes do A análise dos resultados mostra exatamente a pre-
CensoPsi 2022 revelam que 1.920 (11,2% dos casos valência de um primeiro conjunto de atividades no
participantes) declaram atuar na área de Psicologia qual sobressaem as descritas como sendo de ensino
Educacional e, dessas(es), 310 afirmam trabalhar (14%), seguidas em porcentagens similares pelas de
exclusivamente nessa área. Uma característica desse acolhimento psicológico (13,1%) e intervenções no
conjunto de participantes que se disseram atuando âmbito escolar (12,6%). Um segundo conjunto,
na área Escolar/Educacional é a forte presença de condensando concentrações de ao redor de 10%,
docentes que lecionam no campo da Psicologia da engloba atividades voltadas para pesquisa (10,1%),
Ensino 14,6%
Acolhimento psicológico 13,1%
Intervenções no âmbito escolar 12,6%
Pesquisa 10,1%
Avaliação psicológica 9,8%
Escuta 9,7%
Palestras/conferências/workshops/seminários 9,6%
Orientação psicológica 6,5%
Psicoeducação 5,7%
Supervisão de colegas profissionais 5,3%
Orientação profissional/vocacional 4,9%
Aplicação de testes e outros instrumentos psicológicos 3,9%
Produção de documentos psicológicos 3,5%
Acompanhamento psicológico 3,4%
Treinamento/formação/educação/qualificação no trabalho 3,0%
Extensão 2,8%
Anamnese 2,7%
Supervisão de estágios 2,6%
Orientação a pais 2,5%
Acompanhamento familiar 2,3%
Psicodiagnóstico 2,1%
Avaliação/atenção/atendimento/intervenção psicossocial 2,0%
Atendimento a crianças com dificuldades de aprendizagem 2,0%
Trabalho com grupos/prevenção ou promoção saúde/campanhas 1,8%
Rodas de conversa 1,8%
Orientação acadêmica 1,8%
Elaboração/planejameanto e execução de projetos 1,6%
Dinâmica de grupo 1,6%
Assessoria técnica/apoio técnico 1,6%
Avaliação/reabilitação neuropsicológica 1,4%
Atividades de gestão/gerência de unidades/orgãos/setores/equipes 1,4%
Psicopedagogia/psicomotricidade/educação/reeducação motora/neuropsicopedagogia 1,0%
Intervenções no sistema educacional 0,5%
63
I. O Que Fazemos
64
I. O Que Fazemos
65
I. O Que Fazemos
conjunto que condensando duas atividades atinge os colegas (6,1%), perícias (6,1%), pesquisas (5,4%), e
maiores valores. São elas de produção de documentos palestras e seminários (5,2%). As demais atividades
psicológicos (25,5%), seguida pela de avaliação psi- aparecem em porcentagens inferiores, razão pela qual
cológica (22,8%); a esse conjunto deve se agregar a não são descritas individualmente, mas constam na
aplicação de testes e outros instrumentos, citada por figura a seguir.
7,0% dos que atuam na área. Esse dado pode nos
levar a caracterizar que a inserção da Psicologia na Neuropsicologia
área se dá, sobretudo, pela tarefa de avaliar e redigir Por fim, uma última área a ser analisada corres-
documentos para subsidiar decisões da justiça. O ponde à de Neuropsicologia em que se congregam
segundo conjunto de atividades deste grupo apresenta 979 profissionais (5,7% do total de participantes) que
porcentagens inferiores, não chegando a 10%. Fazem participaram do CensoPsi 2022 e, dessas(es), apenas
parte dele atividades como ensino (8,2%), acolhimen- 28 manifestam atuar exclusivamente nela. A respeito
to psicológico (8,2%) escuta (7,1%), supervisão de das(os) profissionais que declaram atuar nesta área,
Psicoterapia 49,8%
Avaliação/reabilitação neuropsicológica 22,6%
Aplicação de testes e outros instrumentos psicológicos 14,7%
Avaliação psicológica 13,2%
Ensino 9,7%
Produção de documentos psicológicos 8,9%
Psicoterapia individual 7,8%
Supervisão de colegas profissionais 7,3%
Pesquisa 7,0%
Anamnese 6,4%
Acolhimento psicológico 6,4%
Escuta 6,1%
Orientação psicológica 5,2%
Palestras/conferências/workshops/seminários 4,6%
Psicoeducação 4,2%
Orientação profissional/vocacional 2,9%
Trabalho/assistência/atendimento a idosos 2,6%
Psicodiagnóstico 2,3%
Atendimento a crianças com dificuldades de aprendizagem 2,1%
Acompanhamento familiar 2,1%
Orientações a pais 2,0%
Extensão 2,0%
Supervisão de estágios 1,7%
Orientação acadêmica 1,7%
Psicoterapia breve 1,6%
Acompanhamento psicológico 1,5%
Intervenções no âmbito escolar 1,3%
66
I. O Que Fazemos
cabe destacar o escasso quantitativo, pois o grupo concentração bastante inferior, mas ainda relevante,
não atinge sequer as(os) mil profissionais. Assim, é aparece a avaliação/reabilitação neuropsicológica
importante atentar para este fato, pois é pouco pro- (22,6%), seguida à certa distância pela aplicação de
vável ter uma representação acurada das atividades testes (14,7%) e pela avaliação psicológica (13,2). Por
desempenhadas pelas(os) psicólogas(os) dessa área. último aparece um conjunto de diversas atividades
Com relação às informações levantadas, a diferen- que aparecem em porcentagens bastante similares,
ça do visto nas áreas anteriores, as declaradas pelos razão pela qual são relatadas em conjunto. São elas
psicólogos se concentram majoritariamente em uma relativa a: ensino (9,7%), produção de documentos
específica, qual seja a relativa à psicoterapia (49,8%) e psicológicos (8,9%), supervisão de colegas profissio-
psicoterapia individual (7,8%) e, conforme os dados nais (7,3%), pesquisas (7,0%), anamnese (6,4%),
revelam, ela faz parte das atividades declaradas pela acolhimento psicológico (6,4%), escuta (6,1%) e
metade das(os) participantes deste estudo inseridos orientação psicológica (5,2%). Este conjunto de
na área da Neuropsicologia (em parte por ser muito dados, assim como os relativos às atividades que
elevado o compartilhamento das área clínica e neu- apareceram em concentrações inferiores estão re-
ropsicologia). Em segundo lugar, e mostrando uma presentados na figura a seguir.
ORGANIZACIONAL ESCOLAR/
ATIVIDADES CLÍNICA SOCIAL SAÚDE JURÍDICA HOSPITALAR NEURO
E TRABALHO EDUCAIONAL
Psicoterapia
Escuta
Acolhimento psicológico
Avaliação psicológica
Aplicação de testes e outros instrumentos
Anamnese
Psicodiagnóstico
Produção de documentos psicológicos
Aconselhamento/Orientação psicológica
Acompanhamento pscicológico
Ensino
Pesquisa
Palestras/conferências/workshops/seminários
Supervisão de estágios
Sim>10%
Sim - >5% a <10%
Sim - >3% a <5%
Sim - >1% a <3%
0 a menos de 1%
67
I. O Que Fazemos
Para concluir essa apresentação descritiva do con- contextos em que ocorre. Anamnese teve frequência
junto de atividades que estão mais presentes nas insignificantes nas áreas Social e Organizacional e
principais áreas de atuação em Psicologia, a Figura 10 psicodiagnóstico apenas na área Social.
sintetiza num quadro aquela atividades que estão de O terceiro bloco são as atividades de docência,
forma mais frequentemente incluídas nas diferentes também tratada como uma área própria pelo fato da
áreas, podendo se constituir num grupo básico que formação e produção de conhecimento serem pro-
assegura a identidade profissional nos diferentes cessos específicos e se darem em contextos próprios
contextos ou áreas em que se insere. Para tal análise (instituições de ensino). No entanto, a docência
resolvemos identificar tais atividades a partir de sua (como já se viu no Capítulo 12) é uma área que se
presença em percentuais, discriminando algumas vincula a todas as demais. Ou seja, as áreas incor-
faixas que mostram a força de cada atividade em poram as atividades dos profissionais assim como
cada uma das áreas selecionadas. as atividades relacionadas ao campo da formação e
Essas atividades, na Figura 10, compõem cinco produção científica. Ou seja, a comunidade acadê-
pequenos blocos, que serão comentados um a um. mica também se descreve como atuando em áreas
O primeiro bloco reúne três atividades que são bas- profissionais a partir do campo de conhecimento em
tante fortes na identidade da atuação em clínica e que se inserem. E, de fato, tal inserção pode ocorrer
saúde: psicoterapia, escuta, acolhimento psicológico. via trabalhos de extensão e prestação de serviços.
Apenas a psicoterapia (em todas as formas como Finalmente duas últimas atividades são também
foram descritas) não aparece como central nas áreas transversais a todas as áreas. A primeira é a supervi-
Organizacional, Escolar/Educacional e Jurídica. Isso são de colegas profissionais. Há uma forte tradição
não significa, como vimos, que profissionais que de que profissionais mais experientes atuam como
atuam nessas três áreas não tenham, também, conco- mentores ou supervisores de profissionais mais jovens.
mitantemente, inserção em áreas em que desenvolvem E isso ocorre em todas as áreas, sendo menos forte
atendimentos clínicos. Assim, escuta e acolhimento na área Organizacional e do Trabalho. A segunda é
psicológico constituem um eixo que identifica a(o) o desempenho de tarefas gerenciais ao assumirem
profissional em todas as suas inserções e se reportam postos de comando de unidades, órgãos, setores nos
mais à postura básica que orienta o contato da(o) mais diversos espaços de inserção. Tal fato coloca a
psicóloga(o), com a demanda que lhe chega. necessidade de que nossas(os) profissionais possam
Um segundo bloco se refere ao conjunto de ativi- ter uma formação que lhes permita atuar de forma
dades no campo da avaliação psicológica com as dife- adequada como gestores.
rentes denominações recebidas: avaliação psicológica,
aplicação de testes e outros instrumentos, anamnese, A natureza das atividades:
psicodiagnóstico e produção de documentos psico- individuais ou em equipes?
lógicos. A larga presença dessas atividades em quase Após a análise das áreas de inserção da(o) psicó-
todas as áreas, mostra o quanto essa competência básica loga(o), associada às atividades majoritariamente
em avaliação é algo central na definição dos fazeres desempenhadas pelas(os) participantes do CensoPsi
profissionais em Psicologia, o que guarda relação com 2022, a seguir são abordadas as questões relativas
o fato de ser a sua única atividade privativa. Assim, a ao fato da(o) psicóloga(o) atuar ou não inserido em
Avaliação Psicológica é, de fato, uma especialização equipes de trabalho.
(pelo que requer de formação específica e experiência), A este respeito, os dados levantados evidenciaram
mas não seria talvez pertinente tratá-la como uma uma distribuição equitativa, em termos de porcen-
área de atuação, pela multiplicidade de objetivos e tagens daqueles que declaram trabalhar em equipes
68
I. O Que Fazemos
(49,5%) ou de maneira individualizada (50,5%), compostas apenas por psicólogas(os), mas, destaca-se
não sendo possível falar, assim, em uma tendência a necessidade de cuidado com essa apreciação, pois na
que caracterize toda a profissão. Esse mesmo dado pesquisa do ano 2010 as análises desses aspectos foram
também mostra estabilidade em relação ao dado le- executadas com um total de 640 respondentes, o que
vantado em edição anterior deste estudo (Martins & demanda prudência na generalização dos achados.
Puente-Palacios, 2010) quando 54% manifestaram
trabalhar em equipes. Portanto, os dados permitem Figura 12: Configuração das equipes em que a(o)
afirmar que a inserção em equipes é atributo presente psicóloga(o) trabalha
nos profissionais da Psicologia.
Equipe de
Figura 11: Inserção da(o) psicóloga(o) em equipes de trabalho psicólogas(os)
25,8%
Individual
50,5%
Equipe
multiprofissional
74,2%
Equipe
49,5%
Um terceiro aspecto investigado quanto a atuação
das(os) psicólogas(os) em equipes refere-se à natureza
Ainda a respeito da atuação profissional em equi- das atividades que desempenham. Especificamente
pes de trabalho, foi levantada informação das(os) foram inquiridos quanto ao fato de realizarem ati-
participantes a respeito dessas equipes serem multi- vidades restritas à(ao) psicóloga(o). O conjunto de
profissionais ou estarem compostas exclusivamente respostas fornecido demonstra que a esmagadora
por psicólogas(os). As respostas dadas revelam que a maioria das(os) participantes do CensoPsi 2022
maior parte dessas equipes condensam profissionais (87,9%) afirmou que o trabalho que desempenha
de diversas áreas e, desse modo, podem ser descritas nessas equipes é exclusivo das(os) psicólogas(os) e
como multiprofissionais (74,2%) enquanto apenas não poderia ser executado por pessoas com outras
uma parcela menor atua em equipes compostas exclu- formações. A porcentagem de profissionais que des-
sivamente por psicólogas(os) (25,8%). Ao comparar creveram o seu trabalho como não sendo restrito
estes dados com a edição anterior do estudo com os às(aos) profissionais da Psicologia atingiu 12,1%.
profissionais da Psicologia, visando desenhar uma linha Esses dados são mostrados na figura que segue.
histórica de evolução do trabalho da(o) psicóloga(o), O conjunto de achados relativos à atuação das(os)
constata-se que naquela edição a porcentagem dos psicólogas(os) em equipes, à natureza dessas equipes
que trabalhavam em arranjos uni disciplinares era e a especificidade do trabalho, oferece dados que
de 12% (Martins & Puente-Palacios, 2010). Esse permitem caracterizar o trabalho das(os) psicólo-
valor pode aparentemente mostrar um incremento gas(os) e descrevê-lo como profissão desempenhada
da quantidade de profissionais inseridos em equipes em equipes por uma boa parte dos participantes do
69
I. O Que Fazemos
estudo; apontar que essas equipes são prioritariamente do Trabalho em que foram observadas porcentagens
multiprofissionais e destacar que, nelas, o trabalho do de 50,8% e 48,2% para inserção em equipes e tra-
psicólogo é restrito à sua área de formação, de sorte balho individual, respectivamente. Situação similar
que não poderia ser desempenhado por profissional pode ser vista na área de Docência e ensino em
com outra formação. que as porcentagens também são bastante próximas
(Equipes - 54,7%; Individual 45,3%).
Figura 13: Natureza do trabalho das(os) psicólogas(os) Dando continuidade à análise das áreas de in-
inseridos em equipes serção da(o) psicóloga(o) destacam-se a seguir os
dados observados ao realizar comparações a partir
Não exclusivo da natureza das equipes em que as(os) profissionais
12,1% atuam, sendo essas formadas exclusivamente por
psicólogas(os) ou equipes multiprofissionais.
Os resultados obtidos revelam que existem di-
ferenças acentuadas, tendo em vista que em todos
os casos, maiores porcentagens são encontradas nas
equipes multiprofissionais. As mais salientes ocorrem
em Social/Comunitária, Saúde e Forense/Jurídica
Exclusivo em que as concentrações para essa modalidade de
87,9% trabalho superam 80%. Em quase todos os casos, a
diferença de porcentagem chega a ser até o dobro
Além da caracterização ora apresentada, os dados ao comparar o trabalho feito em equipes só de psi-
levantados também permitiram analisar de maneira cólogas(os) versus o realizado em equipes compostas
mais detalhada as áreas em que a(o) profissional por pessoas com diferentes formações. Exceções à
atua. Assim, em primeira instância, o foco de inte- afirmação antes realizada estão presentes nas áreas de
resse recai na comparação deste aspecto entre as(os) Trânsito e na Docência, em que as diferenças, ainda
profissionais que trabalham em equipes e os que que presentes, são menos severas. Esses achados estão
atuam de maneira individual. Conforme a Figura apresentados na Figura14.
13 mostra, são claras as diferenças entre os grupos Por fim, foram realizadas comparações de natureza
que laboram em cada modalidade. Concentrações similar com relação às tarefas executadas nas equipes.
maiores, em termos percentuais, podem ser vistos O aspecto efetivamente indagado foi relativo ao fato de
entre as(os) profissionais que atuam em equipes, em as(os) profissionais da Psicologia inseridos em equipes
áreas como Psicologia Ambiental (63,6%), Social/ multiprofissionais desempenharem atividades exclusivas
Comunitária (62,7%) ou, ainda, Hospitalar (60,4). da(o) psicóloga(o) ou se essas poderiam ser realizadas
Já para o grupo que trabalha de maneira individual, por outras(os) profissionais. Os resultados mostram a
as maiores frequências de áreas de atuação ocorrem presença de diferenças ainda mais salientes, e comparadas
na Psicologia do Trânsito (64,4%), Neuropsicologia às do tópico anterior, uma vez que foram observadas
(60,2%) ou Avaliação Psicológica (59,2%). Logo, a grandes concentrações de respostas relativas ao desem-
inserção em equipes mostra-se relacionada a certas penho de tarefas que são atribuições exclusivas das(os)
áreas de atuação. Entretanto, também foram identifi- psicólogas(os) e essas respostas, na maioria dos casos,
cadas algumas em que a participação em equipes ou superam os 80%. Destaca-se em especial as áreas de
individual não mostra discrepâncias tão acentuadas, Trânsito (93,5%), Hospitalar (93,5%), Esporte (92,1%)
como ocorre no caso de Psicologia Organizacional e e Neuropsicologia (91,0%). No extremo oposto, portan-
70
I. O Que Fazemos
43,4%
Esporte 56,6%
64,4%
Trânsito
35,6%
36,4%
Ambiental 63,6%
43,3%
Forense/Jurídica 56,7%
Neuropsicologia 39,8% 60,2%
39,8%
39,6%
Hospitalar 60,4%
Escolar/Educacional 43,8%
56,2%
Avaliação Psicológica 59,2%
40,8%
Organizacional e do Trabalho 49,2%
50,8%
Docência e Ensino de Psicologia 45,3%
54,7%
40,0%
Saúde 60,0%
37,3%
Social/comunitária 62,7%
Clínica 57,2%
42,8%
Esporte 67,9%
32,1%
Trânsito 54,7%
45,3%
Ambiental 76,2%
23,8%
Forense/Jurídica 80,5%
19,5%
Neuropsicologia 72,6%
27,4%
Hospitalar 75,7%
24,3%
Escolar/Educacional 80,2%
19,8%
Avaliação Psicológica 68,2%
31,8%
Organizacional e do Trabalho 72,8%
27,2%
Docência e Ensino de Psicologia 60,8%
39,2%
Saúde 81,3%
18,7%
84,2%
Social/comunitária 15,8%
71,2%
Clínica 28,8%
71
I. O Que Fazemos
to, mostrando as menores concentrações, estão as áreas profissionais da Psicologia que atuam inseridos em
Ambiental (69,2%) e Organizações e Trabalho (79,1%), equipes de trabalho tendem a desempenhar atividades
ainda que em ambas seja observada uma porcentagem que podem ser descritas como atribuições restritas à(ao)
elevada para a categoria de trabalho exclusivo das(os) profissional da Psicologia. A figura a seguir mostra esses
psicólogas(os). Esse conjunto de dados revela que os dados de maneira condensada.
Esporte 7,9%
92,1%
Trânsito 6,5%
93,5%
Ambiental 30,8%
69,2%
11,3%
Forense/Jurídica
88,7%
9,0%
Neuropsicologia 91,0%
Hospitalar 6,5%
93,5%
14,3%
Escolar/Educacional 85,7%
10,4%
Avaliação Psicológica
89,6%
20,9%
Organizacional e do Trabalho 79,1%
13,9%
Docência e Ensino de Psicologia 86,1%
11,1%
Saúde 88,9%
13,5%
Social/comunitária 86,5%
10,6%
Clínica 89,4%
Natureza da tarefa em equipe: Não Exclusiva Natureza da tarefa em equipe: Exclusiva da Psicologia
72
I. O Que Fazemos
disso, três conclusões podem ser apontadas do quadro Em síntese, quando comparamos o quadro aqui
descrito em detalhes ao longo do presente capítulo. descrito com estudos anteriores, naquilo que é pos-
Temos um campo amplo, diversificado que se sível comparar, pode-se concluir que a expansão do
mostra muito distinto daquele descrito há vinte ou exercício profissional da Psicologia, visível em termos
trinta anos. O tripé – clínica/escolar/trabalho apoiado de contextos de trabalho, de áreas de atuação, de
na avaliação psicológica como base para as interven- processos de trabalho também se revela no tocante
ções – se alterou profundamente pela expansão dos às atividades ou serviços prestados. Evidente que
contextos e áreas, pela diversificação da clientela ou tal expansão não se dá pela diminuição ou desapa-
usuárias(os) da Psicologia. Isso pode ser visto nas recimento de atividades que são clássicas, que nos
atividades que definem a área social e a área jurídi- acompanham desde o nascimento da profissão e
ca, por exemplo. Mas também aparece nas áreas da que, por certo, são definidoras da nossa identidade
saúde, da neuropsicologia e hospitalar. Apesar dessa profissional. Esse núcleo básico de atividades que são
mudança evidente, não se pode desconsiderar que o tão centrais e que cortam transversalmente as mais
núcleo central que define a nossa profissão desde a diversificadas formas e contextos de inserção, como
sua regulamentação, continua com bastante força, vimos anteriormente, constituem um núcleo ao
como é o caso da avaliação psicológica. qual se agregam muitas outras atividades formando
O peso da Psicoterapia é outro dado que merece a complexa rede também descrita anteriormente.
destaque. Nas diferentes formas ou modalidades com Embora o CensoPsi concentre os seus esforços
que é descrita essa atividade, vemos que ela se transfor- em caracterizar aquilo que é dominante no exercício
mou na grande fonte de identidade profissional. Essa profissional, é possível se lançar luz sobre aquilo que
ampliação em relação a pesquisas anteriores também aparece de forma reduzida ou pouco frequente. Tais
se associa, possivelmente, ao processo de ampliação casos podem apontar para novidades, inovações,
da atuação clínica, naquilo que se chama de “clínica coisas emergentes que podem ir reconfigurando o
ampliada”. Rompe-se os muros dos consultórios e exercício profissional no futuro.
a terapia se espraia por diferentes contextos que lhe Por fim, vale destacar a possibilidade de que aná-
exige adequações, mas sem mudar a atividade na sua lises futuras venham a explorar como uma mesma
essência (objetivo e resultados almejados). atividade pode se configurar em práticas distintas,
Somos uma profissão dividida em termos do quando se consideram os contextos em que são de-
trabalho individual e o trabalho em equipe. Aquela senvolvidas e, também, o referencial teórico que as
imagem da(o) psicóloga(o) isolada(o) no seu próprio embasam. Certamente, levar esses dois elementos em
consultório certamente não corresponde, hoje, ao consideração nos fornecerá um quadro ainda mais di-
exercício profissional para grande parte da categoria, versificado dos serviços que prestamos à sociedade. n
mesmo tendo a psicoterapia como a atividade mais
largamente desempenhada. Mais significativo é ainda,
o fato de que essa inserção se dá, majoritariamente,
em equipe multiprofissional. Nessas equipes, como se
viu, as tarefas são vistas como exclusivas da Psicologia.
Todavia, o trabalho passa a exigir uma complexa
habilidade para trabalhar em conjunto com outras
culturas profissionais. Esse quadro, com diferenças
de intensidade, não se altera nas diversas áreas de
atuação em Psicologia.
73
I. O Que Fazemos
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74
I. O Que Fazemos
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75
I. O Que Fazemos
15 A PSICOLOGIA E AS PRÁTICAS
INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES
Alexandre Franca Barreto1
Ana Cristina de Sá2
Tahiná-Khan Lima Vianey3
1 Psicólogo, Especialista em Psicologia Clínica com formação Internacional em Análise Bioenergética, Mestre em Antropologia, Doutor
em Educação. Professor Adjunto do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco e docente do Programa
de Residência Multiprofissional em Saúde da Família UNIVASF/SESAB.
2 Ana Cristina de Sá possui graduação em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade de São Paulo (1981), graduação em Psicologia
pela Universidade Paulistana (1995), graduação em Pedagogia pela Faculdade Campos Salles (1989), Doutorado em Enfermagem pela
Universidade de São Paulo (2001) e Mestrado em Enfermagem Fundamental pela Universidade de São Paulo (1995). Atualmente é
Psicanalista de linha Junguiana . Integrou o GT PICS da Secretaria Estadual de Saúde de SP (SES-SP) e CES-SP (Conselho Estadual
de Saúde de São Paulo), para implantação de Políticas Públicas (SUS) no Estado de SP. Coordenou o GT de PICS do COREN-SP. É
membro da CPICS COFEN (Comissão Nacional de PICS do Conselho Federal de Enfermagem) e da CTAPICS-MS (Câmara Técnica
de PICS do Ministério da Saúde). Atuou como docente de cursos da área da Saúde (Enfermagem, Medicina, Nutrição, Fisioterapia,
Farmácia, Psicologia, Pedagogia) e de Bioética nos níveis de Graduação, Pós Graduação Lato e Stricto Senso por 20 anos. No campo
prático reúne 26 anos de experiência nas áreas de Enfermagem e Psicologia. Ênfase de pesquisa: aspectos emocionais do trabalhador
da área da Saúde , enfermagem, bioética, humanização , Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, em especial na modalidade
Imposição de Mãos com o Toque Terapêutico pelo Método Krieger-Kunz (formação nos EUA e Canadá), no qual é referência sul
americana. Vice-Líder do GEPHUS (Grupo de Estudo e Pesquisa em Humanização em Saúde - CNPq), pesquisadora do Grupo de
Estudos em Terapias Complementares do CNPq EEUSP; autora de livros e artigos na área da Saúde, dentre os quais, o best seller “O
Cuidado do Emocional na Saúde”, em sua 4a edição (Nova Práxis Editorial) e “O Toque Terapêutico: harmonização energética através
da imposição de mãos”, 2.ed. Foi conteudista em PICS do Ministério da Saúde. Conteudista do Conselho Federal de Psicologia do
livro, no prelo, Censo de Psicologia. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/3850056733257356
3 Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás - 2008), mestrado em Psicologia Social
pela Universidade de Brasília (UnB - 2013) e está concluindo especialização lato sensu em Avaliação Neuropsicológica pelo Núcleo
de Ensino e Pesquisa em Neuropsicologia (NEPNEURO). Atua como Professora Assistente na PUC Goiás na Escola de Ciências
Sociais e da Saúde desta Universidade. É integrante do Grupo de Pesquisa e Estudos em Saúde Mental (Mentalize - PUC Goiás). Está
conselheira no Conselho Federal de Psicologia (CFP).
76
I. O Que Fazemos
(2005), em decorrência de uma grave deficiência “desenvolvidos” como uma escolha pessoal de parte
na área da saúde, ocasionada também por aumento significativa da população que busca itinerários tera-
das desigualdades sociais e suas consequências ao pêuticos diferentes, com base em suas necessidades
agravamento das condições de saúde. A Organização de saúde (OMS, 2002, 2014).
Mundial da Saúde (OMS) identificou a incapacidade Dados demonstram que, no início do século XXI,
da “medicina convencional”, pautada no modelo em países de África, 80% da população adotava as
biomédico, em prestar atendimento de saúde para MTCI nos cuidados para satisfazer suas necessidades
toda a população, o que resultou no incentivo aos sanitárias (OMS, 2002). Na China, as MTCI conta-
países membros da OMS a utilizarem recursos cul- bilizavam aproximadamente 40% de todo o cuidado
turais de cuidado, de forma a atender à demanda da em saúde, ou seja, cerca de 200 milhões de pacientes,
população mais ampla e economicamente vulnerável, anualmente, faziam uso desses recursos. Na América
com suas práticas terapêuticas tradicionais (LUZ, Latina, dados revelam que 71% da população do
1997). Estimulou, ainda, a realização de pesquisas Chile e 40% da população da Colômbia utilizam
com o intuito de conferir credibilidade e segurança tais recursos de saúde (OMS, 2002). Na América do
às(aos) profissionais/terapeutas e à população no Norte, Europa e Oceania, a população que usa ou
emprego dessas terapias (Brasil, 2015). usou pelo menos uma vez os recursos das medicinas
Desde a década de 1970, a OMS criou o Departamento tradicionais e complementares também apresenta
de Medicina Tradicional e Complementar, que reco- dados bastante expressivos: 71% no Canadá, 49%
nhece a importância destas medicinas para o cuidado na França, 48% na Austrália, 42% no Reino Unido
global da saúde. Nos últimos anos, este Departamento e 31% na Bélgica (OMS, 2002).
reformulou seu nome para Departamento de Medicinas A OMS incentiva e fortalece a inserção, reco-
Tradicionais, Complementares e Integrativas (MTCI). nhecimento e regulamentação destas práticas, de
O seu trabalho, ao longo destas décadas, tem sido, por produtos e de seus praticantes nos Sistemas Nacionais
um lado, incentivar iniciativas de trabalho integrado e de Saúde. Neste sentido, atualizou as suas diretrizes
complementar entre a biomedicina e as práticas tradi- a partir do documento “Estratégia da OMS sobre
cionais (modelo integrativo e interdisciplinar como, por Medicinas Tradicionais para 2014-2023” (OMS,
exemplo, integrar o cuidado de gestantes com parteiras, 2014). Adicionalmente, a OMS observou uma grande
enfermeiras obstétricas e médicos ginecologistas e o expansão nos últimos 20 anos de políticas e regu-
olhar do indivíduo como um todo) e, por outro lado, lações dessas diferentes práticas. No ano de 1995,
estimular os Estados signatários da OMS para que havia apenas 25 Estados-membros com Políticas
possam formular políticas, legislações e normas que Nacionais que regulavam o exercício das MTCI. Já
garantam a segurança, a regulação e o uso racional no em 2018, este número era de 98 Estados, dos quais
cuidado com diferentes práticas de saúde. o Brasil é um deles (OMS, 2019).
Por meio de diferentes documentos produzidos ao A Política Nacional de Práticas Integrativas e
longo dos anos, a OMS construiu dados que mostram Complementares (PNPIC) surge no Brasil em 2006,
a significativa presença das MTCI no mundo. Sua tanto por esta recomendação internacional da OMS,
presença compreende parte importante da demanda como por uma reivindicação dos movimentos sociais
de cuidado em saúde em países nos quais o acesso ao da saúde, presentes desde a 8ª Conferência Nacional
cuidado com olhar pautado no modelo biomédico é de Saúde que estabelece as bases para o Sistema Único
limitado (como único modo de cuidado para parte de Saúde. Nos relatórios desta Conferência, já existe
expressiva da população, como no caso de países do recomendação para incluir práticas de cuidado que
continente africano, por exemplo), e em países ditos adotem racionalidades médicas diversas do modelo
77
I. O Que Fazemos
biomédico como referencial teórico-prático. O Brasil, cionais que já vinham ocorrendo no SUS em diver-
sob o aspecto de estado signatário da OMS, com base sos municípios e estados e instituiu as práticas de
nas recomendações internacionais e reivindicações Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Medicina
nacionais, deve promover orientações políticas e Antroposófica, Fitoterapia e Crenoterapia. Informações
mecanismos de regulação que favoreçam o bom uso oriundas do Programa Nacional de Melhoria do Acesso
das PICS, de forma racional e segura. e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e dados
O que na OMS é denominado por MTCI, no do Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos
Brasil e no Ministério da Saúde recebe o nome de de Saúde (SCNE) mostraram a multiplicidade de PICS
Práticas Integrativas e Complementares (PICS) e ofertadas pelos municípios brasileiros, o que resultou,
são definidas como: em 27 de março de 2017, na publicação da Portaria
nº 849 pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2017), re-
[…] sistemas e recursos que envolvem abor- conhecendo mais 14 modalidades de PICS como
dagens que buscam estimular os mecanismos pertencentes à PNPIC. Estas práticas são: Arteterapia,
naturais de prevenção de agravos e recuperação Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação,
da saúde por meio de tecnologias eficazes e Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia,
seguras, com ênfase na escuta acolhedora, no Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária
desenvolvimento do vínculo terapêutico e na Integrativa e Yoga.
integração do ser humano com o meio ambiente No ano de 2018, a nova Portaria nº 702 (21 de março,
e a sociedade. Outros pontos compartilhados pe- 2018; Ministério da Saúde) ampliou a PNPIC com mais
las diversas abordagens abrangidas nesse campo 10 (dez) modalidades, a saber: Aromaterapia, Apiterapia,
são a visão ampliada do processo saúde-doença Bioenergética (Análise Bioenergética), Constelação
e a promoção global do cuidado humano, espe- familiar, Cromoterapia, Geoterapia, Hipnoterapia,
cialmente do autocuidado. (Brasil, 2015 p. 13) Imposição de mãos, Medicina Antroposófica/antro-
posofia aplicada à saúde, Ozonioterapia, Terapia de
No Brasil, ao mesmo tempo que são alvo de polê- florais e Termalismo social/crenoterapia.
micas, as PICS estão aos poucos sendo reconhecidas A PNPIC define, no âmbito nacional, responsa-
pelo poder público e vêm conquistando a credibili- bilidades institucionais para a implantação e imple-
dade entre órgãos governamentais pelos resultados mentação das PICS e orienta estados, distrito federal
positivos na melhoria da qualidade de vida das(os) e municípios a instituírem suas próprias normativas,
usuárias(os), no uso racional de medicamentos e na trazendo para o SUS práticas que atendam às necessi-
manutenção da saúde nos diversos níveis de atenção dades regionais com o desenvolvimento das Políticas
(Andrade, & Costa, 2010, Barros, Siegel, & Simoni, Públicas Estaduais (PEPIC) de PICS.
2007, Ischkanian, & Pelicioni, 2012, Freitag, & Estados em diferentes regiões do país e o distrito
Badke, 2019). O Ministério da Saúde, pela Portaria federal já têm políticas estaduais de PICS, a exemplo
nº 971/GM/MS, de 3 de maio de 2006, publicada da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco,
no Diário Oficial da União nº 84, de 4 de maio de Rio Grande do Sul; e inúmeros municípios já têm
2006, Seção 1, p. 20, instituiu a PNPIC a fim de suas políticas municipais, como por exemplo, São
apoiar e orientar a implementação das PICS no SUS Paulo, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa e Natal.
em âmbito nacional. Cada um desses municípios apresenta terminologias
A PNPIC (Brasil, 2015), com vistas a solidificar específicas e modalidades de PICS que abrangem,
ações de promoção da saúde e a integralidade da por vezes, uma diversidade ampliada em relação às
assistência, legitimou algumas práticas não conven- dispostas pela PNPIC e que abarcam, pelo caráter
78
I. O Que Fazemos
transversal das PICS, a Saúde Mental e o acolhimento da população que busca as PICS no Brasil. Uma
dos usuários. Esses aspectos estão diretamente ligados amostra populacional complexa, com mais de 94
a um cenário que coloca a profissional psicóloga em mil pessoas, demonstrou que o perfil predominante
destaque pela natureza de sua profissão. de usuárias das PICS são de mulheres brancas, com
Nos 16 anos de PNPIC, apesar da falta de recurso escolaridade elevada (graduação ou pós-graduação),
específico para a implementação de suas metas, é com renda per capita elevada (acima de 2 salários
visível a ampliação e a capilarização das PICS no mínimos) e possuem plano de saúde privado. Este
âmbito do SUS. De acordo com dados colhidos no perfil sugere que são pessoas que têm mais facilidade
SCNES em junho de 2015, 4.936 estabelecimentos de acesso aos serviços que ofertam PICS e que, apesar
de saúde do SUS, distribuídos em 906 municípios dos avanços, ainda há limitado acesso a estes serviços
brasileiros, ofertavam alguma modalidade de PICS no SUS. Outro fator significativo do estudo é a alta
nos cuidados à saúde. Já os dados obtidos no segundo prevalência de busca por PICS relacionada ao campo
ciclo do PMAq-AB, no mesmo ano de 2015, havia da saúde mental, especificamente por sintomas e
mais de 5.666 equipes de saúde, distribuídas em 1.230 queixas depressivas (Faisal-Cury; Rodrigues, 2022).
municípios que ofertavam PICS na atenção primária Um debate recorrente diz respeito ao mérito
à saúde no SUS, representando cerca de 20% dos científico das PICS, que pode envolver tanto ar-
serviços de atenção primária do território nacional. gumentos epistemológicos quanto argumentos re-
Dados mais atuais do Relatório da Coordenação lativos à gama de evidências científicas que se tem
Nacional de PICS do Ministério da Saúde, apresen- disponível. É possível observar, atualmente, uma
tados em julho de 2020, evidenciaram que as PICS tentativa de captura da ideia de saúde e cuidado
estavam presentes em 17.335 serviços de saúde do de qualidade estar associada exclusivamente a um
SUS; destes, 15.603 (90%) são serviços da Atenção tipo de conhecimento produzido pelos modelos de
Primária à Saúde (APS). As PICS estavam presentes “saúde baseada em evidência”. Esta vertente que tem
em 4.296 municípios (77% do total de municípios se afirmado no mainstream acadêmico das ciências
do território nacional) em todos os níveis de atenção da saúde nas últimas cinco décadas, disputa espaço
à saúde. As PICS também estiveram presentes em com modelos epistemológicos divergentes, dos quais
todas as capitais do país. Foram ofertados, ao longo inclusive muitas abordagens clássicas da Psicologia
de 2019, 693.650 atendimentos individuais em melhor afinam.
PICS, 104.531 atividades coletivas; com o total de Quanto às evidências científicas disponíveis, um dos
942.970 participantes e 628.239 procedimentos. trabalhos que a Organização Panamericana de Saúde
Com demanda tão grande destes atendimentos, (OPAS) tem feito é de desenvolver uma biblioteca vir-
as dificuldades de regulação das práticas, em especial tual de saúde exclusivamente de MTCI com milhares
na formação de profissionais que as usam, é algo que de publicações acadêmicas do campo (BVS-MTCI;
precisa ser discutido, visto que pode haver impacto Biblioteca Virtual de Saúde – MTCI). Neste site, existe
na qualidade da assistência e na segurança de sua um link específico que trata de mapas de evidência de
oferta à população. Por este motivo, estamos falan- diferentes PICS para diversas problemáticas de saú-
do de um campo emergente na saúde com diversos de, nas quais podemos ver resultado de estudos com
dilemas que demandam atenção. métodos da saúde baseada em evidência. A OPAS,
Independentemente do avanço das PICS no SUS, com a Coordenação de PICS do Ministério da Saúde
um estudo desenvolvido com base nos dados da e pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, desde
Política Nacional de Saúde de 2019 (Faisal-Cury, & 2022, vem desenvolvendo projetos como as oficinas
Rodrigues, 2022) procurou analisar o perfil prevalente do Laboratório de Inovação em Saúde sobre PICS
79
I. O Que Fazemos
Figura 1: Percentual de psicólogas(os) que adotam ao menos uma PICS por região do País
Norte
18% Nordeste
(N=164) 18%
(N=616)
Centro-Oeste
13%
Sudeste
(N=167)
14%
Sul (N=889)
Brasil
15% 12%
(N=2.100) (N=264)
80
I. O Que Fazemos
profissionais de Psicologia que adotam as PICS são o Figura 3: Distribuição de psicólogas(os) que adotam PICS por
Norte e o Nordeste do Brasil (18% em cada região). identidade de gênero e orientação sexual
No que diz respeito à análise por raça/cor, é impor-
Identidade de Gênero
tante explicitar que as porcentagens são apresentadas
em relação ao total de respondentes da mesma raça/
Feminino 15%
cor. Por exemplo, do total de respondentes que eram
indígenas, 24% relataram utilizar PICS. O mesmo Masculino 15%
pode ser dito em relação à identidade de gênero. Foi
possível observar que existe adesão percentual maior Não-Binário 19%
em não brancos (24% indígenas, 18% amarelos,
17% pardos e 15% pretos), pessoas com identidade Orientação Sexual
de gênero não-binária (19%) e bi/pansexuais (17%).
Estes dados parecem sinalizar maior uso das PICS Heterossexuais 14%
por grupos sociais e em territórios nos quais há pre-
servação de culturas e identidades não hegemônicas, Homossexuais 13%
resistências decoloniais e menor incidência política
e econômica da medicina convencional. Entretanto, Bi-Pansexuais 17%
as diferenças são pequenas entre categorias socio-
demográficas, o que pode sugerir, por sua vez, que, No que se refere ao estágio de carreira, observamos
de forma análoga à institucionalização das PICS no que em números absolutos a maioria tem experiência
SUS, essas vêm se expandindo em toda a extensão profissional de no mínimo 6 a 25 anos.
territorial e envolvendo profissionais com diferen-
tes características sociodemográficas. Em números Figura 4: Distribuição de psicólogas(os) que adotam PICS por
absolutos, observamos que a maioria das pessoas estágio de carreira
que usam PICS são mulheres cisgênero, brancas,
situadas na Região Sudeste, talvez em decorrência de
características gerais da própria categoria profissional. Até 2 anos 13%
Amarela 18%
Brasil 15%
Parda 17%
Preta 15% Outro dado relevante que não foi exposto nas tabelas
refere-se ao percentual de profissionais com deficiência que
Branca 14% (N=264)
(N=889)
(N=167)
(N=616)
(N=164)
adotam as PICS. Nessa população, 20% (132) utilizam
Brasil 15% PICS, apontando para uma adesão mais ampla por parte
desses profissionais, em comparação com outros grupos.
81
I. O Que Fazemos
Não foi possível, em decorrência da grande ex- Figura 5: Percentual de psicólogas(os) por PICS que adotam na
tensão do questionário, incluir questões relativas às sua prática profissional.
motivações que levam tais profissionais a adotar uma
ou mais PICS como recurso da oferta de cuidados Arteterapia 34,6%
integrativos ou complementares à prática profissio-
nal. Publicações sugerem que este tipo de adoção Meditação/Mindfulness 22,7%
pode estar relacionado à necessidade de respostas
às demandas em seu território de trabalho, como Musicoterapia 21,3%
por exemplo, as PICS responderem bem a diversas
Yoga 6,7%
demandas de cuidado à saúde no contexto público
do SUS (Luz, 2005, Barreto, 2018). Acupuntura 5,8%
Ao todo foram apresentadas 37 diferentes modali-
dades de PICS adotadas pela categoria e algumas(uns) Auriculoterapia 5%
profissionais relatam utilizar até 6 diferentes tipos de
Exercícios de
PICS. Podemos observar que a polissemia de sentidos relaxamento 4,7%
e definições sobre as PICS parece também permear a
Aromaterapia 4,3%
comunidade profissional de Psicologia que, em um
universo de cerca de 2.105 praticantes, observamos Reiki/Imposição das
4,1%
mãos
uma diversidade enorme de práticas, algumas delas
que extrapolam o próprio escopo da PNPIC. As Constelação Sistêmica 3,5%
PICS mais utilizadas estão dispostas na Figura 5.
Detalhar cada uma destas PICS não cabe no escopo Terapia com Florais 3,1%
deste capítulo, mas vale destacar que algumas dessas
Hipnose 3%
práticas apresentam ou já tiveram regulações específicas
no âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia para Exercícios respiratórios 2,7%
o seu exercício, a exemplo da Hipnose e Acupuntura.
Outras se vinculam a especialidades clínicas a exemplo Exercícios físicos 2,2%
da Arteterapia e Análise Bioenergética com debates
sobre serem especialidades privativas ou não de de- Técnicas de massagens 2,1%
terminadas categorias. A meditação parece ter um
Análise Bioenergética 2%
destaque específico, uma vez que ela passou a ser ado-
tada na atualidade por abordagens ditas “psicologias Terapia Comunitária
1,6%
Integrativa
científicas”, mas vale frisar que, apesar de permear com
certa marginalidade, a prática da meditação ocorre de
forma pioneira em abordagens transpessoais desde a adotam o recurso de imposição das mãos, trabalhos
década de 1970 (Pereira Simão, 2010). corporais (como Yoga, exercícios respiratórios e fí-
As PICS são transdisciplinares, portanto com- sicos), o uso de manipulação e manobras corporais
plexas para enquadrá-las a um campo de saber pelas massagens, terapias prescritivas com florais e
específico da saúde e, neste aspecto, extrapolam o óleos essenciais (aromaterapia) são alguns destes
âmbito “convencional” da prática psicológica. As exemplos que sinalizam o largo horizonte das PICS.
terapias energéticas como o toque terapêutico, o Sobre a Terapia Comunitária Integrativa, vale
reiki e uma diversidade de “escolas formativas” que mencionar que é uma abordagem criada pelo psiquia-
82
I. O Que Fazemos
tra cearense Adalberto de Paula Barreto (2008), que as PICS como recurso de cuidado no seu trabalho, ou
já foi difundida como tecnologia social para diversos seja, 15% do total de profissionais que responderam
outros países no mundo, contudo sem ter reconhe- ao censo. O CFP ter incluído no censo profissional
cimento ainda no âmbito da Psicologia brasileira, perguntas relativas às PICS é um passo importante
impedindo a criação de um espaço importante de para se investigar a presença destas práticas de saúde
participação direta de psicólogas no desenvolvimento no exercício da profissão atual, entendendo que estes
dessa e de outras práticas integrativas. recursos são utilizados de forma complementar ou
O caso da Constelação Familiar tem sido bastante integrativa à atuação profissional. A existência deste
controverso e questionado por parte da categoria, capítulo no Censo da Psicologia é de extrema im-
em especial no âmbito jurídico. Em nosso país, portância para efetivar e promover o debate sobre as
esta prática ganhou uma diversidade de usos por regulamentações das práticas e das suas formações.
distintos atores profissionais, antes mesmo de ter É importante mencionar que toda e qualquer
critérios únicos e mínimos para sua formação. Sua prática profissional no âmbito da Psicologia, seja
difusão na sociedade é visível, mas sabemos por PICS ou não, deve seguir os preceitos éticos contidos
meio dos veículos de comunicação publicitária e no Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP,
pelas redes sociais que existem consteladores que CFP, 2005), bem como as resoluções já publicadas
oferecem cursos de curtíssima duração, já outros pelo CFP. Vale mencionar que, antes da profissional
apresentam extensa carga horária. Este cenário da Psicologia utilizar alguma prática, esta deverá se
complexo também é evidente nas inúmeras críticas atentar para os princípios fundamentais do CEPP,
que têm despontado na grande mídia sobre o uso a começar pelo princípio I: “O psicólogo baseará
inadequado e avesso aos direitos humanos e a saúde o seu trabalho no respeito e na promoção da liber-
mental no âmbito do Judiciário. Este aspecto chama dade, da dignidade, da igualdade e da integridade
a atenção para a necessidade urgente de se debater do ser humano, apoiado nos valores que embasam
a formação e o uso desta e de outras práticas. a Declaração Universal dos Direitos Humanos.”,
Vale destacar que, neste capítulo, as PICS são ou seja, cabe à profissional da Psicologia analisar
consideradas como um recurso integrativo e com- em cada caso se uma prática fere ou não Direitos
plementar da atuação da Psicologia, como o próprio Humanos da pessoa que está sendo cuidada, e não
nome sugere, uma vez que muitas destas práticas realizá-la, caso julgue que a prática fere algum di-
não têm reconhecimento da categoria como prática reito. O princípio II também trata desta temática
psicológica, não têm normativa específica da profissão relatando que a profissional deve atuar no sentido
e seu universo inter e transdisciplinar envolve a arena de eliminar de sua atuação quaisquer práticas que
ampla da saúde. Parece-nos válida nesse sentido a caracterizem violência, crueldade e opressão. Além
reflexão de como podemos, como categoria, apontar de analisar a prática em si que será escolhida, deve-se
critérios e regulações que construam nossa prática também analisar se o contexto em que será aplicada
profissional de forma inclusiva, politicamente com- e se a demanda da pessoa que está sendo cuidada é
prometida, eticamente alinhada ao cuidado humano adequada para tal prática.
e às necessidades atuais. Ainda nesse contexto, um outro aspecto especi-
ficado do CEPP que é interessante ser mencionado
Sistema Conselhos de é o art. 1º, que versa sobre os deveres fundamentais
Psicologia e as PICS dos profissionais de Psicologia, em especial alínea
O CensoPsi 2022 indica que uma parcela signifi- “c”, que diz que é dever fundamental das psicólogas:
cativa de profissionais da Psicologia tem incorporado “prestar serviços psicológicos de qualidade, em con-
83
I. O Que Fazemos
dições de trabalho dignas e apropriadas à natureza como questões envolvendo as práticas populares e
destes serviços, utilizando princípios, conhecimentos tradicionais de cuidado e o exercício da profissão.
e técnicas reconhecidamente fundamentadas na As resoluções que parecem nortear a regulação do
ciência psicológica, na ética e na legislação profis- exercício profissional de psicologia com as PIC são:
sional”, ou seja, independentemente de a prática a a Resolução do CFP n° 13/2000, que regulamenta
ser empregada, a profissional deverá buscar estudos a hipnose como recurso auxiliar do profissional de
que demonstrem a sua validade, deverá atuar em psicologia; a Resolução do CFP n° 13/2007, que traz a
coerência com as bases epistemológicas e pesquisar Arteterapia como uma subespecialidade da Psicologia
produções técnicas e científicas que subsidiem tal Clínica; e a Resolução do CFP n° 05/2002, que regu-
prática. Também é fundamental certificar-se de que lamenta a Acupuntura como recurso complementar
está apta para executar tal prática e que esteja bem ao exercício profissional da(o) psicóloga(o), mas que
treinada e qualificada para tanto. sofreu revogação pelo Supremo Tribunal Federal em
É importante reconhecer que há limitada quan- 2013 pelo entendimento de que o CFP não pode
tidade de debates sistematizados no interior da regular o exercício da Acupuntura, contudo seu efeito
Psicologia acerca das PICS e isso se reflete em termos não impede que profissionais da Psicologia exerçam
de dificuldades de se regulamentar o exercício profis- a Acupuntura enquanto não há legislação específica
sional das PICS como atividade complementar e/ou para regular a profissão de Acupunturista.
integrativa da(o) psicóloga(o). Parte da dificuldade É importante mencionar que há regulamentações
em se regulamentar o exercício profissional das PICS específicas para as PICS em 9 (nove) das 14 (qua-
está na falta de consenso dentro da própria categoria. torze) profissões de nível superior de saúde em seus
Os debates acerca da regulamentação podem au- respectivos Conselhos Federais, a saber: Enfermagem,
xiliar na fiscalização de formações e oferta de serviços Farmácia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional,
por parte da categoria que atendam de forma mais Nutrição, Odontologia, Biologia, Fonoaudiologia
adequada à sociedade em suas múltiplas demandas por e Assistência Social, o que confere segurança e limites
cuidado, além de contribuir para instaurar no âmbito aos profissionais e à população no uso das PICS.
da própria Psicologia um debate mais qualificado e Algumas gestões do CFP, até o momento presente
aprofundado sobre diferentes PICS e seu próprio (2022), participaram da Comissão Intersetorial
campo político e epistêmico. Há ainda um grande de Promoção, Proteção e Práticas Integrativas
desconhecimento sobre essas práticas por parte da e Complementares em Saúde (CIPPSPICS) do
comunidade profissional e limitado ou nulo espaço Conselho Nacional de Saúde (CNS). Além disso,
em seu processo de formação generalista, apesar de tem participado de reuniões com o Ministério da
muitos as utilizarem. Saúde desde o final de 2021 para discutir legislação,
É importante fazer uma autoanálise histórica do regulamentação e formação em PICS, discussões
Sistema Conselhos em relação às PICS. O último estas ainda incipientes.
evento público que aconteceu, antes da pandemia O Sistema Conselhos de Psicologia tem o papel
da Covid-19, específico para debater a questão das de verificar se a psicóloga está desenvolvendo sua
PICS e sua interface com o exercício da Psicologia função conforme determina a legislação profissional,
ocorreu no ano de 2011. Este evento procurou dis- independentemente da teoria adotada no trabalho de
cutir alguns pontos importantes como as aproxima- cada profissional. Quando uma técnica é desenvolvida
ções e distanciamentos entre as PICS e a Psicologia, pela ciência (seja de qual epistemologia for, seja PICs
à luz de conceitos fundamentais no campo como ou não) e esta passa a compor o repertório profis-
o de “racionalidades médicas” (Luz, 2005), bem sional das psicólogas, ela passa também a ser objeto
84
I. O Que Fazemos
de orientação e fiscalização do Sistema Conselhos tos da OMS também demonstram presença expressiva
de Psicologia. Com o objetivo de se avaliar práticas das PICS no campo da saúde global. Mesmo sendo
psicológicas no âmbito do exercício profissional, o questionada quanto ao mérito científico de inúme-
CFP criou no segundo semestre de 2022 o Sistema ras de suas práticas, em um cenário em que não há
de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes recurso indutor para implementação de políticas e
de Brito (SAPP). Este sistema abre possibilidade para de pesquisas de PICS, os dados sugerem que uma
a análise de práticas psicológicas e para o reconhe- quantidade expressiva de profissionais da Psicologia
cimento científico destas práticas, sejam elas novas tem adotado as práticas no seu trabalho.
ou utilizadas há bastante tempo. A presença das PICS no CensoPsi 2022 é um
É importante ressaltar que o conceito de “novas importante avanço para investigar sua presença no
práticas” psicológicas não é exatamente sinônimo interior da comunidade da Psicologia. A adoção de
de PICS. Pode haver PICS que são novas práticas PICS no cotidiano da atuação da psicóloga, apesar
psicológicas, mas nem todas são. Novas práticas de contra hegemônica, parece ser uma realidade,
são aquelas advindas da experiência profissional embora acredite-se que ainda não haja consenso den-
da(o) psicóloga(o). tro da categoria acerca do seu uso. As características
Alguns dos critérios que deverão ser apresentados sociodemográficas destas(es) profissionais afirmam
nas propostas enviadas ao SAPP são: 1) apresentação uma pluralidade de novas identidades étnicas, raciais,
da concepção de desenvolvimento humano em que se sexuais, de gênero e de pessoas com deficiência. Os
baseia a prática; 2) apresentação da fundamentação dados encontrados no Censo indicam a importância
epistemológica em termos dos processos psicológicos do debate acerca das possibilidades de regulamentação
envolvidos no uso da prática; 3) apresentação das destas práticas na qualidade de integrativas e com-
relações entre os problemas relativos ao fenômeno plementares, em especial em termos de formação. n
psicológico e psicossocial alvo e as estratégias de
intervenção envolvidas na prática e outras (vide
Resolução nº 18/2022). As pareceristas que farão
as avaliações serão escolhidas por meio de edital,
entre pesquisadoras e psicólogas de notório saber,
a partir do exame de seus currículos e que possam
contribuir com as seguintes temáticas: fundamentos
filosóficos e epistemológicos em geral e da Psicologia
em especial, entre outros.
Faz-se importante pontuar que, quanto menos
reguladas e pesquisadas, mais a sociedade pode sofrer
com o uso inadequado de determinadas práticas,
bem como estas práticas se tornarem apenas um
produto de consumo para uma determinada parcela
da população (Luz, 2005).
Considerações finais
Os dados que o Ministério da Saúde tem divulgado
não deixam dúvidas sobre a evolução do campo das
PICS, bem como os dados obtidos pelos levantamen-
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I. O Que Fazemos
Referências
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88
I. O Que Fazemos
89
I. O Que Fazemos
1 Professora Associada do Programa de Mestrado em Psicologia e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Estadual de Londrina. Conselheira
Federal Coordenadora da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica, Presidenta eleita do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica. Coordenadora do GT da
ANPEPP Pesquisa em Avaliação Psicológica. Bolsista Produtividade em pesquisa 2/CNPq.
2 Doutora em Psicologia pela PUC do Rio Grande do Sul, Estágio de doutorado pela California School of Professional Psychology (AIU), em San Diego, Califórnia, Pós-
doutorado pela Universidade Federal de São Paulo, Docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC Goiás. Presidente da Associação Brasileira de
Rorschach (ASBRo) de 2018-2022. Pesquisadora em avaliação psicológica com ênfase em métodos projetivos. Membro da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica do
Conselho Federal de Psicologia.
3 Psicóloga (1990), Mestre em Psicologia Escolar (1995) e Doutora em Psicologia (1999) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Tem o título de especialidade
em Avaliação Psicológica pelo Conselho Federal de Psicologia. É editora associada da Psico-USF e da Psicologia Ciência e Profissão. Foi presidente do Instituto Brasileiro de
Avaliação Psicológica e da Associação Brasileira de Editores Científicos da Psicologia. É bolsista produtividade em pesquisa 1A do CNPq.
4 Psicóloga (2000), mestre (2002) e doutora (2006) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado em Psicologia (UFRGS), em
avaliação Psicológica (USF) e em Psicologia da Educação (Un. do Minho/Portugal). Tem o título de especialista em avaliação psicológica pelo CFP. Professora Associada
IV da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Avaliação Psicológica/UFCSPA. Membro do Conselho
Deliberativo do IBAP e da ABP+ (Associação Brasileira de Psicologia Positiva). Vice-coordenadora do GT Avaliação em Psicologia Positiva e Criatividade da ANPEPP.
Membro da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (CCAP/SATEPSI) (2010-2013; 2017-2022). Bolsista Produtividade em
Pesquisa do CNPq – 1D.
5 Psicóloga. Doutrora em Psicologia em Psicologia Clínica e da Saúde pela universidad de Barcelona (Espanha), pós doutorado pela mesma universidade (2008) e pela
Universidade do Porto (2020). Professora da Pontifícia Universidade Catolica de Goiás. Presidente do Instituto brasileiro de Avaliação Psicóloga (Ibap), membro da
Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP) do Conselho Federal de Psicologia. Membro do grupo de trabalho em psicologia positiva e criatividade da. ANPEPP.
Bolsista produtividade do CNPq.
6 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco USF. Mestre e Doutor em Psicologia como Profissão e Ciência pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2012/2016), com estágio doutoral PDSE desenvolvido na Université du Québec à Trois-Rivières - Canadá. Estágio Pós-
Doutoral desenvolvido na USF. Membro da CCAP (gestão atual) e do grupo de trabalho Avaliação Psicológica em Psicologia Positiva e Criatividade na ANPEPP. É bolsista
produtividade em pesquisa 2 do CNPq. Possui experiência na área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Avaliação Psicológica, Psicometria, Psicologia
do Esporte.
7 Possui formação em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (2002) e os títulos de mestre (2005) e de doutor (2008) em Psicologia Social e do Trabalho na área
de Avaliação e Medida pela Universidade de Brasília (UnB). É especialista em avaliação psicológica pelo CFP. Atualmente é professor Associado III do Departamento de
Psicologia Social e do Trabalho (PST) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) - nível mestrado
e doutorado - ambos na UnB. É membro da Comissão Assessora de Especialistas em Avaliação de Políticas Educacionais do INEP/MEC e membro da CCAP do CFP
(Gestão 2017-2019; gestão atual).
8 Psicóloga (2003), mestre (2007) e doutora (2012) em Psicologia, ênfase em Avaliação Psicológica, pela Universidade São Francisco. É especialista em avaliação psicológica
pelo CFP. Professora do curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro da diretoria da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBRo) por quatro gestões (2014-
2022). Membro da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP/SATEPSI) por duas gestões (2017-2022). É bolsista produtividade em pesquisa 2 do CNPq.
9 Psicóloga (2004), Mestre (2006) e Doutora (2008) em Psicologia, ênfase em Avaliação Psicológica, pela Universidade São Francisco. Professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Membro da gestão do Instituto Brasileiro
de Avaliação Psicológica-IBAP (2009-2011; 2011-2013; 2013-2015; 2015-2017; 2017-2019/Presidente; 2019-2021; 2021-2023/Conselho Deliberativo) e do GT Pesquisa
em Avaliação Psicológica da ANPEPP. Foi conselheira titular do Conselho Regional de Psicologia da região 06-Estado de São Paulo- na gestão 2016-2019. Membro da
Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP/SATEPSI) na gestão 2020-2022.
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I. O Que Fazemos
91
I. O Que Fazemos
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I. O Que Fazemos
rados favoráveis ou desfavoráveis para uso profissional ciso ter novos conhecimentos e desenvolver novas
e; d) a divulgação dessas informações à comunidade. competências para lidar com o processo de AP e a
A construção dos critérios mínimos para que testes pessoa atendida nesse novo ambiente.
psicológicos pudessem ser utilizados em processos Diante do exposto, o presente capítulo objeti-
avaliativos impõe um rigor ao processo de construção va caracterizar a prática dos(as) psicólogos(as) que
dos testes. Em alguma medida, quanto mais rigoro- atuam na área da AP. Primeiramente serão expostos
sos os critérios, mais pesquisas científicas precisam dados para descrição do perfil das(os) participantes
ser realizadas. Com o aumento das pesquisas sobre e, em seguida, serão abordadas informações sobre
os testes e, consequentemente, com o aumento do as principais técnicas utilizadas no processo de AP,
número de publicações, mais chances as(os) psicólo- sobre as dificuldades encontradas pelos profissionais
gas(os) tiveram de ficar bem-informados e realizarem na prática da AP e, por fim, sobre o conhecimento
avaliações mais qualificadas. e utilização do Satepsi.
No entanto, em que pese o fato de que a AP do
século XXI ser mais qualificada que a do século XX, Perfil das(os) respondentes
muito avanço ainda se faz necessário. Especialmente A partir do Censo da Psicologia Brasileira
dois pontos serão destacados. O primeiro se refere (CensoPsi 2022), realizado pelo CFP em 2021, foi
ao aprimoramento teórico e metodológico da prática possível acessar dados sobre a trajetória de forma-
de avaliação, que resultou na atualização de novos ção e a prática das(os) psicólogas(os) em relação a
instrumentos e na ampliação dos contextos nos área de AP. Ao responder no formulário on-line a
quais a(o) psicóloga(o) se insere. O segundo ponto pergunta: “Em que áreas da Psicologia você atua?”,
diz respeito aos avanços urgentes da AP que a crise caso fosse assinalada a opção Avaliação Psicológica,
sanitária impôs a partir de 2020. Essa crise revelou a(o) profissional era direcionada(o) às questões da
que os recursos avaliativos não estavam em confor- avaliação. Neste caso, das(os) 20.207 respondentes,
midade com as exigências das novas configurações 2.344 (11,6%) indicaram atuar em AP.
de trabalho. Um novo cenário foi apresentado à No sentido de compreender o contexto de atuação
Psicologia como um todo e a AP não se furtou aos das(os) respondentes que declararam trabalhar com
seus efeitos. É imprescindível olhar para as novas AP, optou-se por identificar a distribuição das(os)
tecnologias e poder elucidar seus benefícios nos participantes conforme região geográfica do país,
processos de avaliação, assim como as limitações. Por tipo de Instituição de Ensino Superior (IES) onde
exemplo, os instrumentos de avaliação psicológica estudou e ano de conclusão da graduação. Os dados
devem ser pesquisados, em suas diferentes formas podem ser visualizados na Tabela 1.
de aplicação e devem ser aprimorados quanto a Conforme Tabela 1, a maioria das(os) responden-
opções que atendem públicos diferentes (Zanini tes atua na Região Sudeste (41,9%), seguido pelas
et al., 2021). regiões Nordeste (22,0%) e Sul (17,4%). Ao somar
Em síntese, o que se pode afirmar é que a AP os respondentes do eixo Sul-Sudeste, observamos
tem que ser aprimorada, de modo que instrumentos que a maioria (59,30%) das(os) respondentes está
mais qualificados, que tenham formas diferentes nessas duas regiões. Outro dado que chama a atenção
de aplicação e que atendam públicos variados, são é a contribuição das Instituições de Ensino Superior
metas para as novas investigações. Quanto às demais (IES) do tipo privadas para a oferta de profissionais da
técnicas e métodos em AP, também é necessário que Psicologia no mercado de trabalho. Como podemos
a(o) psicóloga(o) entenda que não é simplesmente observar, 73,4% das(os) respondentes do Censo de
mudar do formato presencial para o on-line, é pre- Psicologia foram formadas(os) nessas instituições.
93
I. O Que Fazemos
Tabela 1: Frequência e porcentagem da distribuição das(os) ao período de criação do Satepsi, que conforme já
respondentes segundo região do país, tipo de IES onde realizou a dito, contribuiu para avanços importantes na área.
graduação e ano de conclusão da graduação Adicionalmente, a década de maior percentual de
psicólogas(os) formadas(os) foi a de 2010 a 2019
Variável Frequência Porcentagem com 39,4%, seguida da década de 2000 e 2009 com
Regiões do País
26,8% das(os) psicólogas(os) formadas(os).
Por fim, destacam-se os investimentos de formação
Sudeste 982 41,9
complementar realizados pelas(os) profissionais da
Nordeste 516 22,0
Psicologia que fazem uso da AP, uma vez que 59,6%
Sul 409 17,4 declararam ter realizado curso de especialização ou
Centro-oeste 260 11,1 MBA, 17,3% cursos livres de aperfeiçoamento, 13%
Norte 167 7,1 mestrado, 2,5% doutorado e 1,1 residência profissio-
Fora do país 10 0,4 nal. Embora tais cursos não tenham sido realizados
especificamente na área da AP, é esperado que méto-
Tipo de IES
dos e técnicas de acesso aos fenômenos psicológicos
Privadas 1.721 73,4
tenham sido explorados nesses cursos como base
Públicas 420 17,9 para planejamento de intervenções e monitoração
Combinadas 203 8,7 das consequências destas intervenções.
Ano de conclusão
da graduação Como a(o) psicóloga(o)
2020 e após 191 8,1 percebe e realiza a AP
2010 a 2019 923 39,4 Ao abordar as perguntas específicas contidas no
2000 a 2009 629 26,8 CensoPsi 2022, foi questionado quais técnicas os(as)
psicólogos(as) utilizam no processo de AP. Na Tabela
1990 a 1999 313 13,4
2 são apresentadas a frequência e porcentagem de pro-
1980 a 1989 225 9,6
fissionais que declararam usar cada uma das técnicas
até 1979 63 2,7 em sua prática profissional. Destacamos que as(os) psi-
Formação cólogas(os) poderiam indicar mais de uma técnica.
complementar
Conforme consta na Tabela 2, 98% dos(as) psicó-
Especialização logos(as) que responderam indicaram utilizar a técnica
1.256 59,6
ou MBA
da entrevista psicológica. A observação (78,7%) e os
Cursos livres de
393 17,3 testes psicológicos (72,5%) foram indicadas por uma
aperfeiçoamento
porcentagem elevada de profissionais. O checklist
Mestrado 303 13,3
(21,4%) e a dinâmica de grupo (16,4%) também
Doutorado 142 6,2 foram técnicas recorrentemente indicadas na prática
Pós-Doutorado 57 2,5 da AP pelos respondentes. Mas chama a atenção tam-
Residência bém a porcentagem de profissionais que indicaram
24 1,1
multiprofissional usar técnicas não exclusivas da Psicologia (22,1%).
No CensoPsi 2022 também foram abordadas
Ainda, a Tabela 1 aponta para o fato de que a as dificuldades que as(os) psicólogas(os) enfrentam
maioria das(os) respondentes (74,3%) concluiu a na prática de AP. Os resultados são apresentados na
graduação a partir dos anos 2000, o que corresponde Tabela 3.
94
I. O Que Fazemos
Tabela 2: Frequência e porcentagem de uso das Técnicas de Tabela 3: Frequência e porcentagem das dificuldades com a
Avaliação Psicológica. Avaliação Psicológica.
95
I. O Que Fazemos
na elaboração de documentos oriundos do processo Tabela 4: Frequência e porcentagem das respostas relacionadas
de AP. Essa informação denuncia uma questão de ao Satepsi
caráter mais complexo, como a compreensão da
AP como um processo, composto por diferentes F %
procedimentos e instrumentos que, ao terem seus Sobre o Satepsi…
resultados integrados, darão base às(aos) profissionais Conheço e consulto o sistema
730 31,5
quando preciso
para responder suas hipóteses diagnósticas.
Já ouvi falar, mas não me aprofundei 112 4,8
As(Os) respondentes poderiam ainda mencionar
Tive conhecimento durante
outras dificuldades vivenciadas na prática profissional. 65 2,8
a minha formação
Entre essas, destacam-se: a dificuldade de acesso aos É a primeira vez que ouço falar 58 2,5
materiais e à formação continuada em função da Não responderam 1.379 58,8
localização geográfica da cidade onde a profissional Conheci o Satepsi…
mora; tomar conhecimento de profissionais que Na graduação 46 2.0
atuam em desacordo com as orientações técnicas e Em cursos de complemento à formação 11 0,5
Por fim, foi perguntado sobre o conhecimento Uso para consultar os pareceres
dos testes psicológicos…
das(os) psicólogas(os) em relação ao Satepsi, bem
Sim 428 18,3
como sobre sua utilização para embasar a prática da
Não 295 12,6
AP. Os resultados podem ser observados na Tabela 4. Não responderam 1.621 69,2
Conforme a Tabela 4, nota-se que as(os) par- Uso para consultar a situação dos testes
ticipantes desse censo tiveram dificuldade de res- Sim 680 29,0
ponder a questões sobre o Satepsi, visto que uma Não 43 1,8
porcentagem alta de psicólogas(os) abstiveram-se Não responderam 1.621 69,2
de responder aos itens sobre o tema (entre 58,8% Uso para leitura das fontes técnicas
a 97,4%). Considerando aquelas(es) que responde- sobre avaliação psicológica
Sim 524 22,4
ram, observou-se que a maioria das(os) profissionais
Não 199 8,5
reconhecem a importância do Satepsi para consultar
Não responderam 1.621 69,2
a situação dos testes psicológicos, isto é, se os testes
Uso para leitura das fichas-síntese
são favoráveis ou desfavoráveis para uso profissional. dos testes psicológicos
Entretanto, uma menor porcentagem de respondentes Sim 504 21,5
usam o site para ter acesso a outras informações sobre Não 219 9,3
a AP, tais como as fontes técnicas sobre a AP, materiais Não responderam 1.621 69,2
produzidos pelo CFP à orientação da categoria pro- Uso para consultar as dúvidas frequentes
fissional e dúvidas frequentes que as(os) profissionais Sim 529 22,6
podem ter. Neste sentido, destaca-se que o Satepsi, Não 194 8,3
para além de divulgar a lista dos testes psicológicos Não responderam 1.621 69,2
com parecer favorável ou desfavorável, também é útil Uso para leitura dos materiais
produzidos pelo CFP sobre o tema
para a(o) profissional da área ao centralizar todas as
resoluções relacionadas a AP na aba legislação do Sim 428 18,3
Não 295 12,6
site, bem como publicizar todas as ações orientativas
sobre a área pelo CFP desde 2018. Não responderam 1.621 69,2
96
I. O Que Fazemos
97
I. O Que Fazemos
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I. O Que Fazemos
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I. O Que Fazemos
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102
I. O Que Fazemos
103
I. O Que Fazemos
17 Sobre teorias,
coerências, dispersão
Ana Maria Jacó-Vilela1
Waldomiro J. Silva Filho2
Maria Virgínia M. Dazzani3
Neste capítulo iremos discutir o mosaico de re- Backhouse & Fontaine, 2010), a Psicologia, sem-
ferências e teorias encontradas no CensoPsi 2022, pre esteve associada a um debate sobre seu status de
realizado pelo Conselho Federal de Psicologia em cientificidade. A própria psicanálise que traçou uma
2021 – aquele referente às abordagens e autoras(es) história fora das instituições universitárias e recusa o
citados pelas respondentes como representando sua modelo da ciência, nasceu reivindicando e desafiando
orientação teórica e/ou sua prática profissional. o modelo científico do século XIX (Garcia-Roza,
Antes de qualquer coisa, é importante destacar 1991). Além disso, do fato de que há uma tensão
que a Psicologia é, possivelmente, o campo disci- essencial sobre o estatuto científico da Psicologia,
plinar que melhor expressa as tensões e disputas também há claramente a ausência de uma unidade
teóricas na universidade e na ciência contemporâ- conceitual e metodológica tanto na prática da inves-
neas. Diferentemente das ciências categoricamente tigação em Psicologia quanto na prática profissional.
sociais, como antropologia, economia e sociologia, Porém, como muito bem declarou Luiz Alfredo
que estabelecem cânones e princípios epistêmicos Garcia-Roza (1977) em um breve texto que se tornou
autônomos em relação às ciências categoricamente um clássico, “Psicologia: um espaço de dispersão do
naturais (Delanty, 1997; Kuper & Kuper, 2009; saber”, há uma gravíssima confusão entre discutir a
1 Psicóloga, doutora em Psicologia (USP) com pós-doutorado em História e Historiografia da Psicologia (Universidad Autònoma de
Barcelona). Pesquisadora 1D do CNPq. Professora titular da Uerj, onde coordena o Laboratório de História e Memória da Psicologia
– Clio-Psyché e atualmente é Diretora do Instituto de Psicologia. Dedica-se à investigação, ensino e extensão em história da Psicologia
no Brasil, tema sobre o qual tem inúmeras publicações. Foi membro do XI Plenário do Conselho Federal de Psicologia; membro
da Comissão de Avaliação da Capes; presidente da Abrapso, da Anpepp e da Divisão 18 (History of Psychology) da International
Association of Applied Psychology. Ocupou vários cargos na Sociedade Interamericana de Psicologia, da qual recebeu o Premio
Interamericano Rogelio Díaz-Guerrero. Recebeu também o Premio Internacional da Sociedad Chilena de Historia de la Psicología.
2 Natural de Camacã, Bahia, é Professor Titular do Departamento de Filosofia da UFBA. Foi visiting scholar na Harvard University
(2009-201), no MIT (2015-2016) e na Universität zu Köln (2017-2018, 2019). Atualmente é Pesquisador do CNPq e guest
researcher do Cologne Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition (Alemanha). Seus campos de interesse são
epistemologia, psicologia moral e filosofia das ciências. Publicou, entre outros, As Consequências do Ceticismo (com Plínio Smith,
2012), Sem Ideias Claras e Distintas (2013), Thinking about Oneself (com Luca Tateo, 2019), Tolerância Intolerante, de Mal a
Pior (com Lilia Schwarcz e Ailton Krenak, 2020), Porque a Filosofia Interessa à Democracia (2020, segundo colocado no Prêmio da
Associação Brasileira de Editoras Universitárias), Procurando Razões (2022) e A Calamidade (2022).
3 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1994), mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal
da Bahia (2000 e 2004). Realizou estágio de pesquisa com bolsa sanduíche (Capes) na Purdue University (Indiana, Estados Unidos) e
pós-doutorado na Clark University, Estados Unidos, com bolsa Capes em 2009-2010 e com bolsa CNPq em 2015-2016. É professora
e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Educação (UFBA). Desenvolve pesquisas na interface das áreas da
Psicologia Cultural, da Psicologia Escolar/Educacional e Psicologia do Desenvolvimento. Atualmente é professora visitante na Università
Degli Studi di Salerno (Itália) através do Capes-PRINT e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão intitulado Investigações em
Psicologia Cultural: Cultura, Linguagem, Transições e Trajetórias Desenvolvimentais (CULTS). Email: [email protected]
104
I. O Que Fazemos
cientificidade da Psicologia à luz do ideal das ciências Tabela 1: Abordagens de acordo com as regiões do país
naturais e discutir a relevância da Psicologia como
campo disciplinar e de produção de conhecimento.
Br N NE SE S CO
Em geral, a primeira parte da confusão (se a Psicologia
atende o ideal das ciências naturais) está associada a Psicanalítica 37% 30% 30% 42% 38% 31%
uma perspectiva reducionista em ciência, qual seja, Comportamental 25% 36% 25% 24% 26% 26%
que um conjunto de eventos e leis descritos por uma
Fenomenológica/
teoria podem ser reduzidos e explicados com base em 24% 24% 29% 22% 18% 25%
Humanista
eventos e leis de uma teoria mais básica (algo como leis Existencialista 8% 7% 8% 9% 6% 7%
psicofísicas onde um evento psicológico é explicado de
Cognitivista 23% 27% 25% 20% 23% 22%
acordo com um vocabulário fisicalista (Davidson, 1970;
1974). A segunda parte (a relevância da Psicologia como Sócio-histórica 16% 16% 15% 15% 18% 19%
105
I. O Que Fazemos
blicou o primeiro livro com este tema alguns anos sociedades psicanalíticas (Sociedade Psicanalítica do
depois (Franco da Rocha, 1920). No Rio Grande do Rio de Janeiro e Sociedade Brasileira de Psicanálise
Sul, Martim Gomes publicou em 1930 “A Criação do Rio de Janeiro) que existiam na cidade.
Estética e a Psicanálise”, onde relata e interpreta Mas, sem dúvida, o interesse das psicólogas(os)
seus sonhos a partir da psicanálise (Mokrejs, 1993). foi incrementado pela chegada ao Rio de Janeiro e
A primeira Sociedade de psicanálise foi criada em a São Paulo de psicanalistas argentinos do grupo
1927 por Durval Marcondes (1899-1981), em São Plataforma, autoexilados da ditadura em seu país.
Paulo, e teve Juliano Moreira (1873-1933), do Rio A presença de Gregorio Baremblit (1960-2021)
de Janeiro, como seu presidente, mas teve pequena e outros possibilitou o forte desenvolvimento do
duração (Russo, 2002). movimento institucionalista no país. Neste êxodo,
Ou seja, os psiquiatras, a par de suas perspectivas Emilio Rodrigué (1923-2008) se fixou na Bahia,
teóricas embasadas nos grandes nomes do século XIX contribuindo intensamente para o crescimento da
e começo do XX, como Phillippe Pinel (1745-1826) abordagem naquele estado. Mas também houve um
Jean-Étienne Esquirol (1772-1840) ou, ainda, Emil outro grupo, de formação lacaniana, que se radicou
Kraepelin (1856-1926), também se utilizavam da no Rio Grande do Sul.
psicanálise e, como uma das poucas profissões reco- Por outro lado, a abordagem de Jacques Lacan
nhecidas na primeira metade do século XX, facilmente (1901-1981) permitiu um florescer de novas so-
mantiveram o controle sobre sua transmissão e sua ciedades psicanalíticas nos anos 1980, fundadas e
prática, sendo que esta última começou a ocorrer na compostas, principalmente, por psicólogas(os). Esta
Liga Brasileira de Higiene Mental (Russo, 2002), expansão levou também à criação de Programas de
no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo. Este Pós-graduação em Psicanálise, tanto estrito senso
cenário só começou a mudar entre as décadas de quanto profissionais, todas(os) elas(eles) vinculados
1970 e 1980 quando, por um lado, há um retorno a Departamentos ou Institutos de Psicologia de suas
da hegemonia organicista no âmbito médico e, por instituições, quais sejam, UERJ, UFRJ, UFRGS e a
outro, um interesse cada vez maior de psicólogas(os), Universidade Veiga de Almeida.
pertencentes a uma profissão recém regulamentada, Do Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
pela abordagem psicanalítica. Este interesse variou, Gerais), além do Sul (Rio Grande do Sul), aos poucos, a
temporalmente, nas diferentes regiões do país, até psicanálise se espraiou para as outras regiões, tanto por
porque os cursos de Psicologia ainda eram recentes e migração de psicanalistas, principalmente sudestinos,
não estavam amplamente distribuídos. Assim, havia quanto pela criação de cursos de Psicologia nas demais
maior demanda no Rio de Janeiro – supomos que regiões. Já no final do século XX a psicanálise estava
em decorrência do primeiro curso de Psicologia, presente no Nordeste, seguindo para o Centro-Oeste
criado em 1953 na PUC-Rio, apresentar a psicanálise e, finalmente, chegando ao Norte. Esta penetração
em sua grade curricular, graças aos esforços de seu está bem representada nos dados do Censo, no qual
coordenador, Pe. Antonius Benkö (1920-2013). Isto é a abordagem mais citada no cômputo geral (37%),
favoreceu também que, já em 1971, Yonne Caldas bem como nas diferentes regiões (com exceção da
(1942-2006), aluna da terceira turma da PUC-Rio, Região Norte, como veremos mais adiante).
criasse, junto com outros, uma associação destinada Correspondendo a esta grande presença na orien-
a oferecer formação psicanalítica para psicólogas(os), tação teórica das respondentes, há uma alta concen-
a Sociedade de Psicologia Clínica da Cidade do Rio tração na citação de autores – 57% das referências a
de Janeiro. Esta iniciativa ocorreu em função de não autores são a nomes da Psicanálise, como podemos
ser permitido o ingresso de psicólogas(os) nas duas ver na Tabela 2, a seguir. Freud, o mais citado no
106
I. O Que Fazemos
cômputo geral (28%), é seguido por Lacan (11%), se estendeu a outros fins, como seleção de pessoal
Jung (8%), Winnicott (7%), e Melanie Klein (3%).4 (Instituto de Organização Racional do Trabalho –
Idort, Instituto de Seleção e Orientação Profissional
Tabela 2: Autores de referência – Isop), psicodiagnóstico em manicômios judiciários
e, mesmo, a clínicas de orientação infanto-juvenil.
Tabela 2 – Autores de referência N % Neste processo, a abordagem Fenomenológica-
Freud 3745 28%
Humanista se apresentou entre nós. No CensoPsi
2022 estão englobadas sob esta roupagem diferentes
Aaron Beck 1941 14%
autores e tendências, perfazendo 24% das citações,
Lacan 1546 11%
não sendo possível, por isso, determinar se há predo-
Carl Rogers 1170 9% mínio de alguma tendência em alguma região especí-
Skinner 1097 8% fica. Há uma distribuição razoavelmente equilibrada
Jung 1019 8% nas diferentes regiões, embora esteja mais presente
Winnicott 953 7% no Nordeste (29%) e menos no Sul (18%). Por
outro lado, os autores pertencentes a esta abordagem
Judith Beck 821 6%
recebem um total de 21% das citações, conforme
Friedrich Pearls 772 6%
discriminamos melhor adiante.
Vygotsky 733 5% Foi nas clínicas de orientação infanto-juvenil e
Melanie Klein 354 3% nos diferentes cursos de Psicologia que emergiu a
Martin Heidegger 319 2% proposta de Carl Rogers (1902-1987) da Abordagem
Foucault 317 2% Centrada na Pessoa (ACP). As fontes são unânimes
Jeffrey Young 310 2%
em reconhecer suas múltiplas recepções por meio
de personagens diversos: Pe. Antônio Benkö e Ruth
Viktor Frankl 284 2%
Scheeffer (1923-2008) na PUC-Rio e esta também
Jacob Moreno 260 2%
na UFRJ; Irmão Justo (1922 - …), na PUC-RS;
Steven Hayes 233 2% Mariana Alvim (1909-2001), tanto na Clínica de
Silvia Lane 226 2% Orientação Juvenil (COJ), criada em 1946, quanto
Robert Leahy 225 2% no ISOP, criado em 1947, ambos no Rio de Janeiro
Jorge Ponciano Ribeiro 212 2% (Jacó-Vilela et al., 2017); Rachel Rosenberg (1931-
1987) e Oswaldo de Barros Santos (1918-1998) no
Sartre 205 2%
Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Entretanto, a prática psicológica que já existia (IPUSP), criado em 1969 (Morato, 2008). Nos anos
em alguns estados desde o final dos anos 1920 – Rio seguintes, a ACP ocupou um território fértil nos
de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande cursos de Psicologia que então iam sendo criados.
do Sul, Pernambuco, Bahia – era, principalmente, Parecia, neste período, que a clínica psicológica era,
relacionada ao uso de testes para avaliação da inteli- basicamente, rogeriana, atuando na perspectiva do
gência de escolares e de internos em hospícios. Aos Aconselhamento Psicológico que, inclusive, fazia
poucos, entre as décadas de 1940 e 1950, esta prática parte dos currículos de inúmeros cursos como dis-
4 É importante sinalizar aqui que no CensoPsi 2022 são citados 1.695 autores. Fazemos referência neste texto somente àqueles que
obtiveram pelo menos 2% das citações, o que representou 21 autores.
107
I. O Que Fazemos
ciplina específica. Rogers esteve no Brasil na década especializadas, ela figura hoje entre as abordagens
de 1970, contribuindo ainda mais para o prestígio de maior penetração no país.
da abordagem (Tassinari & Portela, 2002). Hoje em Outro autor com 2% de citações no campo da
dia, embora a ACP não tenha mais uma participação abordagem Fenomenológica-Humanista é Jacob
tão proeminente nos currículos dos cursos, continua Moreno (1889-1974), conhecido como o criador
sendo bem expressiva, como podemos observar pelo do psicodrama. Sua recepção entre nós ocorreu de
quantitativo de citação a Rogers no CensoPsi 2022 maneira completamente distinta, pois foi fora da
- 9% das/dos respondentes o referenciam, o que Psicologia. Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982),
faz com que ocupe o quarto lugar entre os autores sociólogo, negro, criador do Teatro Experimental do
mais citados. Negro (TEN), “apresentou as ideias morenianas, criou
Dentro ainda da abordagem Fenomenológica- possibilidades novas, deu cursos sobre psicodrama e
Humanista, encontramos 8% de citação a auto- sociodrama, escreveu artigos, ensinou psicodrama”
res considerados como pertencentes ao campo da (Motta, 2010), projeto que foi interrompido com seu
Gestalt-terapia: Friedrich Perls (1893-1970), com exílio após o advento da ditadura militar em 1964.
6% e Jorge Ponciano Ribeiro (1933 - …), com Mas o psicodrama ocupou também outro lugar,
2%, perfazendo, portanto, um número de citações com Pierre Weil (1924-2008), francês que atuava,
próximo ao de Rogers. Cabe destaque aqui o ín- desde 1958, no Departamento de Orientação e
dice de citações a Jorge Ponciano Ribeiro, um dos Treinamento do Banco da Lavoura, em Minas Gerais,
únicos dois autores brasileiros que aparecem na experiência que depois levou ao curso de Psicologia
listagem dos 21 autores mais citados no CensoPsi da Universidade Federal de Minas Gerais. É dele
2022. Este índice sugere uma forte penetração da também o primeiro livro sobre Psicodrama publicado
Gestalt-terapia na prática profissional, embora sua no Brasil (Weil, 1967). Entretanto, apesar de seu
presença nos cursos de graduação seja limitada, prestígio, e da realização de um importante congresso
estando diluída no conteúdo de disciplinas como em 1970 (Motta, 2010), o psicodrama ocupa hoje
Teorias e Técnicas Psicoterápicas. um lugar secundário nos cursos de psicologia e na
A primeira publicação sobre Gestalt-terapia no prática profissional.
Brasil data de 1972, um artigo de Thérèse Amelie Ainda dentro da abordagem Fenomenológica-
Tellegen publicado no Boletim de Psicologia de Humanista outro autor com 2% de citações é o
São Paulo (Esch & Jacó-Vilela, 2019). Therezinha filósofo Martin Heidegger (1889-1976). Segundo
Melo da Silveira e Eleonôra Prestêlo descrevem sua Gomes, Holanda e Gauer (2004), a apropriação da
recepção no Rio de Janeiro, por meio da presença de proposta fenomenológica pela Psicologia foi realizada
chilenos (Adriana Schnacke e Francisco Huneuus) por Giorgi e seus colegas da Duquesne University
e de uma assistente de Rogers, Maureen Miller na década de 1970, sendo estes trabalhos traduzidos
(Silveira & Prestrelo, 2009). Seu caráter libertário, no Brasil por Riva Schwartzman, em 1978. Outros
sua ênfase na dimensão sensível da experiência, bem trabalhos se seguiram no Rio de Janeiro, em São
como suas técnicas, em um momento de predo- Paulo, no Rio Grande do Sul, no Ceará e no Rio
mínio de ortodoxia psicanalítica e de fechamento Grande do Norte. Com a expansão da pós-graduação
do regime político brasileiro, representou, sem em Psicologia e a criação da Associação Nacional de
dúvida, condições férteis para sua receptividade Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp),
entre nós. Sua expansão decorreu da realização de hoje existem 3 (três) Grupos de Trabalho (GTs) nesta
encontros e workshops; com a criação de revistas associação referidos à fenomenologia.
108
I. O Que Fazemos
Distinta, mas próxima da abordagem Fenomenológica- seu livro “Introdução ao Estudo da Escola Nova”
Humanista, encontra-se a Existencialista. É a menos (Lourenço Filho, 2004) –, o behaviorismo radical
referida pelas respondentes do CensoPsi 2022 – somente teve sua recepção oficial no país por meio da estada de
8% a listam como sua abordagem. Em termos de distri- Fred Simmons Keller (1899-1996) na Universidade
buição regional, este percentual se mantém, variando de de São Paulo, em 1961. Seus alunos, dentre eles os
9% no Sudeste a 6% no Sul. Entre os autores citados, professores Carolina Bori e Rodolpho Azzi, deram
somente dois, cada um com 2% de citações: Viktor continuidade ao seu legado, seja na própria USP,
Frankl (1905-1997) e Jean-Paul Sartre (1905-1980). seja na recém-criada Universidade de Brasília, para
Isto possivelmente se relaciona com a imprecisão do que onde Bori e Azzi foram cedidos. Lá, planejaram
seja especificamente existencialismo, ou melhor, o que o curso de Psicologia, que implicaria no uso do
é o existencialismo estadunidense – que se aproximou, Sistema Personalizado de Ensino, “uma metodologia
via Rollo May (1909-1994), do humanismo – em con- de ensino idealizada pelos professores Fred Keller,
traposição ao existencialismo de marca europeia, que se Carolina Martuscelli Bori, John Gilmour Sherman
origina em Sartre, com influência decisiva de Heidegger e Rodolpho Azzi” (Todorov & Moreira, 2009). A
(Sá, 2013). Sua apropriação no campo Psi, de forma crise na UnB em 1965, com a demissão de profes-
sistemática, também é mais recente, possivelmente a soras(es) consideradas(os) “subversivas(os)” durante
partir da década de 1980. intervenção militar na instituição, dentre eles Azzi, e
Em síntese, Humanismo, Fenomenologia, o consequente pedido de demissão de outras(os) 200
Existencialismo são correntes que, quando apro- professoras(es), fez com que esta experiência – que
priadas pela Psicologia, muitas vezes se entrelaçam, havia ocorrido em somente um semestre – tivesse
não havendo uma clara linha demarcatória entre as seu fim (Todorov & Hanna, 2010).
diversas abordagens, apesar de autores brasileiros Destes dois espaços iniciais e em função da
de linhagem fenomenológica se posicionarem con- formação de novas(os) pesquisadoras(es), a análise
trários à aproximação com o Humanismo (Feijoo experimental do comportamento seguiu para o
& Mattar, 2016). Pará, de onde se expandiu para outros lugares do
Optamos aqui por analisar estas abordagens logo Nordeste e, aos poucos, do Norte. Da USP, seguiu
após a psicanálise por serem as mais antigas no meio também para o interior de São Paulo, para Minas
da Psicologia. Entretanto, em termos quantitativos Gerais e para o Paraná, mostrando-se, hoje, presente
a abordagem comportamental está mais presente: em todo o território nacional, apesar de pouquís-
é reportada pelas respondentes em segundo lugar, sima penetração em alguns lugares, como o Rio
logo após a psicanálise, representando 25% das afi- de Janeiro. Atualmente, além da forte presença na
liações. Os percentuais se mantêm nas diferentes pós-graduação (UFPA, PUC-SP, UEL), a análise
regiões, variando de 24 a 26%, com a exceção da experimental do comportamento tem associações,
Região Norte, onde sobe para 36%. Isto se deve, sem realiza congressos e publica revistas bem-conceitua-
dúvida, ao Programa de Pós-graduação em Teoria e das. Na USP, tanto na pós-graduação em Psicologia
Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal Experimental na cidade de São Paulo, quanto na
do Pará (UFPA). Burrhus Skinner (1904-1990) é o pós-graduação em Psicobiologia de Ribeirão Preto,
único autor citado, com 8% das citações, indicando o comportamentalismo não é exclusivo, mas parte
a fidelidade dos comportamentalistas ao seu legado. importante das linhas de pesquisa, participando
Se bem a perspectiva comportamental já fosse co- também de linhas de pesquisa em outros Programas.
nhecida no Brasil desde os anos de 1930 – Lourenço A abordagem cognitivista refere-se à perspectiva
Filho (1930) cita John Watson (1878-1958) em em Psicologia que cuida do tratamento de informa-
109
I. O Que Fazemos
ções, desde sua recepção (a percepção), passando Uma outra abordagem citada é a sócio-histórica,
por sua elaboração, armazenamento, utilização. Ela referida por 16% das respondentes. Sua dispersão
pressupõe uma mudança no enfoque do que era até regional é mais equilibrada, embora se destaque no
então denominado Psicologia Experimental: não Sul e Centro-Oeste (18 e 19%), com menor presença
mais no método, mas na compreensão do que seria no Nordeste e no Sudeste (15%). Esperávamos que
a natureza das atividades mentais. Soares (2009) a maior citação fosse no Sudeste, tendo em vista
nomeia alguns grupos que considera “significativos sua origem estar bem demarcada, na PUC-SP, via
e expressivos” no desenvolvimento da área, localiza- o trabalho de Silvia Lane (1933-2006). Supomos
dos na UFRGS, UFPE, UNICAMP, UNESP, UFF que a pouca presença no Rio de Janeiro e em Minas
e UFRJ. Entretanto, nos últimos dez anos a área se Gerais deve ter contribuído para esta diminuição na
expandiu. Se, no CensoPsi 2022, ela é citada por 23% Região Sudeste. Espraiar-se para o Sul e Centro-Oeste
das respondentes (com variação entre 20% no Sudeste mostra o poder de disseminação desta abordagem
e 27% no Norte), observamos que não há nenhum a partir de um único núcleo inicial. Neste sentido,
autor referido pertencente a esta abordagem. Por também pode ser verificada a fidelidade das(os)
outro lado, autores considerados como pertencentes à seguidoras(es) da abordagem às fontes de seu pensa-
Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) têm um mento via as citações a Lev Vigotsky (1896-1934),
nível elevado de citações: Aaron Beck (1921-2021) cujo pensamento se tornou mais conhecido no Brasil
é citado por 14% das respondentes, sendo o segun- por sua apropriação e divulgação por Silvia Lane. O
do autor mais referido, situando-se logo abaixo de pensamento sócio-histórico recebe 7% da citação
Freud; Judith Beck (1954 - …) tem 6% das citações de autores, sendo 5% das citações a Vigotsky e 2%
enquanto Jeffrey Young (1950 - …), Steven Hayes a Lane. É relevante apontar que Silvia Lane é uma
(1948 - …) e Robert Leahy (1946 - …) recebem, das duas únicas personagens brasileiras citadas neste
cada um, 2% das citações. Observe que todos são quesito de autoria.
autores mais novos, da segunda metade do século Por último, chegamos às “outras abordagens”, si-
XX. Em nosso caso, a TCC totaliza 26% das citações, tuação em que são enquadrados, pelo CensoPsi 2022,
sendo a segunda abordagem mais citada, embora na 4% das abordagens citadas pelos respondentes, com
nomenclatura utilizada no CensoPsi 2022 não esteja grande variação regional: 2% no Nordeste e 8% no
caracterizada como uma abordagem específica. Sul. Seria interessante conhecer esta multiplicidade
A forte presença da TCC talvez explique um dado de abordagens que, mesmo com poucas(os) seguido-
paralelo encontrado no CensoPsi 2022: o fato de res- ras(es) (neste momento; quem sabe dentro de alguns
pondentes que indicam sua abordagem como sendo a anos?) indicam a grande dispersão da Psicologia que
Comportamental também indicarem a Cognitivista, mencionamos ao início do texto. Talvez um futuro
e vice-versa. Rangé, Falcone & Sardinha (2007) trabalho do CFP possa mapear melhor esta diversi-
explicam esta mescla ao apontarem que as(os) psi- dade. De qualquer forma, é possível citar um autor
cólogas(os) que posteriormente se dedicaram ao como fazendo parte destas “outras abordagens”:
movimento cognitivo-comportamental iniciaram seus Michel Foucault (1926-1984) recebe 2% das cita-
trabalhos na abordagem comportamental. Foi com o ções. Não é possível enquadrá-lo em uma abordagem
interesse no estudo dos transtornos de ansiedade na específica, pois seu trabalho é apropriado no Brasil
década de 1980 que este grupo consolidou a TCC em diferentes espaços, o que justifica estar incluído
entre nós, a partir do Rio de Janeiro e de São Paulo. neste quesito no Censo. Este conseguiu captar sua
É importante sinalizar esta altíssima expansão em presença, que para alguns de nós parece muito forte,
tão pouco tempo, basicamente 40 anos. no fazer teórico-prático de nossa Psicologia.
110
I. O Que Fazemos
Esta ampla fotografia que analisamos acima nos 2014). No desacordo epistêmico, a pessoa deve estar
diz muito sobre a história das ideias em Psicologia numa posição de reconhecer o lugar das razões para
no Brasil, mas também revela um importante traço si próprio e para o seu par e, por causa disso, deve
que caracteriza a prática da Psicologia contempo- ter a disposição de examinar com apuro as posições
rânea. A comunidade de psicólogas(os) entre nós é e razões do seu par e, consequentemente, de rever as
formada por um corpo plural de ideias e referências suas próprias posições e razões. Ao fazer isso, deve
que se reflete na vida universitária, na pesquisa, nas avaliar a confiabilidade do seu trabalho intelectual
instituições, nas políticas públicas e na clínica. Isto e do trabalho intelectual do seu par, deve rever as
está muito longe de ser um aspecto intrinsecamente realizações epistêmicas de ambos, deve saber apresen-
negativo ou de denotar uma debilidade da Psicologia. tar melhores argumentos ou renunciar aos próprios
A epistemologia e filosofia das ciências contempo- argumentos, deve ser capaz de refletir sobre o que
râneas (Goldman, 1986; Battaly, 2008; Elgin, 2017; ambos fazem. Isso tudo envolve um tipo especial de
Grimm, Baumberger & Ammon, 2017; Grimm, competência epistêmica chamada de autonomia epis-
2018) protagonizaram uma guinada radical na re- têmica ou autonomia intelectual (Korsgaard, 1996).
flexão sobre o conhecimento em geral e sobre o A autonomia epistêmica não é um tipo de exercício
conhecimento científico. Enquanto a análise clás- de plena liberdade e total autodeterminação; ela tem
sica do conhecimento esteve centrada na natureza relação com uma capacidade ou competência ou
da crença e no critério de demarcação entre o que disposição que uma pessoa pode ter e que lhe torna
é conhecimento e o que não é conhecimento, a apta a ser um interlocutor competente em contextos
epistemologia contemporânea passou a ficar cen- de desacordo epistêmico.
trada nas habilidades, competências e no caráter do Nós elogiamos as(os) pesquisadoras(es), cientis-
agente (Battaly, 2008). Com isso, o conhecimento tas, intelectuais, profissionais dos diferentes cam-
deveria deixar de ser analisado em termos de repre- pos disciplinares que são competentes no uso das
sentação e de crença verdadeira justificada e passar informações, técnicas e métodos e que produzem
a ser interpretado como uma forma de performance bons resultados do seu trabalho. Mas também nós
bem-sucedida. E performance significa algum tipo as(os) elogiamos em virtude de outros valores para
de ação que visa um fim – e no caso da atividade além dessa competência técnica. Como sabemos,
epistêmica, esse fim não poderia ser outro senão o pelo menos no campo da ciência, não é apenas a
conhecimento. O que realmente importa é o modo verdade que importa – ela importa, mas não ape-
como as pessoas, epistemicamente virtuosas, são nas ela. Que alguém tenha a capacidade de rever
capazes de avaliar criticamente seus pressupostos criticamente uma teoria ou um procedimento, que
conceituais, enfrentar os inescapáveis desacordos alguém procure soluções inovadoras para velhos
com seus pares, conduzir um pensamento aberto, problemas, que alguém tenha a capacidade de re-
não vicioso (vícios que incluiriam a arrogância, a fletir sobre o próprio trabalho, que alguém esteja
precipitação e a ignorância de posições contrárias) disposta(o) a se confrontar com críticas ao seu
e lidar com o natural pluralismo epistêmico (Coliva trabalho, que alguém enxergue em outra pessoa um
& Pedersen, 2017). par epistêmico, isso não envolve necessariamente a
Sobre esse último aspecto, o pluralismo epistêmi- verdade, mas outros objetivos epistêmicos, como
co não significa o relativismo que aceita que todas a curiosidade, manter-se com a mente aberta, ser
as versões são igualmente verdadeiras. Significa, tolerante e bem-informada(o), empenhar-se em
outrossim, que devemos estar abertos à pluralidade formar um amplo panorama do que já se sabe e
de abordagens e ao desacordo intelectual (Frances, assim por diante. Por isso, nós também elogiamos
111
I. O Que Fazemos
112
I. O Que Fazemos
Referências
Battaly, H. (2008). Virtue Epistemology. In J. Greco & J. Turri. (2012). (eds.). Virtue
Epistemology: Contemporary Readings. Cambridge (MA), London: MIT Press (pp. 3-32).
113
I. O Que Fazemos
Gomes, W.B., Holanda, A. F. & Gauer, G. (2004). História das abordagens humanistas em Psicologia
no Brasil. In Massimi, M. (org.). História da Psicologia no Brasil do Século XX. São Paulo: EPU.
Grimm, S. (ed.) (2018). Making Sense of the World. Oxford: Oxford University Press.
Kuper, A.; Kuper, J. (eds.) (2009). The Social Science Encyclopedia. (vol. 1, 3ed). London: Routledge.
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Rangé, B. P.; Falcone, E. M. O. & Sardinha, A. (2007). História e panorama atual das
terapias cognitivas no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 3(3), pp. 53-68.
Roxo, H. B. B. (1901). Duração dos atos psíquicos elementares nos alienados. Tese
(Doutorado). Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
115
II
Condições
de trabalho
II. Condições de Trabalho
A extensão da precariedade do trabalho constitui Ainda cabe destacar que o trabalho precário não en-
um tema que tem chamado mais a atenção nas últi- volve, apenas, formas flexíveis de contratação. Engloba
mas décadas, em diversas latitudes geográficas, ainda concepções do que seja o trabalho e as bases em que
que essa não seja uma nova realidade. Isso explica a se sustentam as relações de trabalho. Assim, ao falar
presença de estudos sobre esse fenômeno oriundos de trabalho precário está se focando na presença de
de países como Espanha (Juià et al., 2017), Estados condições de instabilidade para a(o) trabalhadora(or),
Unidos (Oddo et al., 2021), Canadá (Rose, 2020), pelo exercício de atividades temporárias. Também in-
ou em regiões como América Latina (Vives-Vergana clui escassas recompensas materiais, tanto na forma de
et al., 2017), e Asia (Chin, 2019). ganhos salariais como de benefícios. A fragilização dos
A precarização do trabalho se expande como direitos sociais e de organização coletiva das(os) traba-
resultado de diversas variáveis contextuais, mas des- lhadoras(es) são atributos presentes naquilo descrito
taca-se a mudança no mundo do trabalho, em que como trabalho precário, do que deriva a usurpação do
modos mais flexíveis de arranjos entre empregado- poder de barganha e de contestação perante aqueles
ras(es) e empregadas(os) são adotados, na busca de que as(os) submetem a essas condições. Por fim, deve
maximizar as vantagens financeiras, especialmente ser acrescentado o fato de o trabalho precário colocar
das(os) primeiras(os). Contudo, as consequências a(o) trabalhadoras(or) em condições de insegurança e
esperadas por uns vieram acompanhadas de uma incerteza. Assim, trata-se de fenômeno complexo que
severa deterioração das condições de trabalho para se estende para além de modo de contratação ou de
outros, as quais se tornaram mais visíveis para as(os) temporalidade dos empregos.
trabalhadoras(es), tanto pelo modo e condições nas Para analisar adequadamente as implicações de-
quais as suas atividades devem ser desempenhadas, rivadas de trabalhar nessas condições, é importante
como pelas consequências danosas que geram. relembrar o caráter estruturante do trabalho na vida
1 Mestrado e Doutorado em Psicologia cursados na Universidade de Brasília. Em 2009 realizou estágio pós doutoral na Universidade
de Valencia (Espanha). Contando com mais 70 trabalhos publicados, entre artigos científicos e capítulos de livros, possui como foco
central de interesse o estudo dos processos protagonizados por equipes de trabalho. Em relação a esses, busca investigar e elucidar
as transformações ocorridas nos atributos individuais, os quais dão lugar ao surgimento de fenômenos coletivos. Seus estudos atuais
abordam temas como aprendizagem de equipes, liderança, competências coletivas, entre outros. Atua como docente e pesquisadora no
programa de pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) da Universidade de Brasília (UnB).
2 Psicólogo. Mestre em Educação (UFBA,1984). Doutor em Psicologia (UnB,1994). Prof. Titular aposentado Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador I-A do CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFBA. Dedica-se a pesquisa no campo
da Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase no estudo dos vínculos do indivíduo com diversas facetas do seu mundo
de trabalho. Dedica-se, também, ao estudo sobre a formação e exercício profissional na Psicologia, tendo coordenado e conduzido
pesquisas de âmbito nacional sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no Brasil. Atualmente é membro do XVI Plenário do Conselho
Federal de Psicologia.
117
II. Condições de Trabalho
das pessoas e das sociedades. A presença do trabalho tipicamente feminina, como evidenciado no capítulo
precário afeta não apenas o indivíduo ou o grupo 2 desta obra, em que pode ser constatado que cerca
mais atingido mas também impacta de maneira ge- de 80% das(os) participantes do CensoPsi 2022
neralizada a sociedade. Assim, nada mais verdadeiro são do sexo feminino e esse perfil representa ade-
do que a afirmação “trabalho precário, vida precária, quadamente a profissão caracterizada pela presença
sociedade precária” (ILO, 2011, p. 13). A respeito esmagadora de pessoas desse sexo (CFP, 2022). Desse
da centralidade do trabalho na vida das pessoas, modo, discutir a presença do trabalho precário entre
também deve ser enfatizado que ele não gera apenas profissionais da Psicologia pode ser considerado não
um valor financeiro que pode oportunizar o acesso apenas adequado como também necessário.
a diversos bens, mas, em um sentido mais amplo, o Qualquer discussão dessa natureza deve ser prece-
trabalho está associado à própria dignidade humana, dida da clara conceituação do fenômeno em questão.
à percepção que o sujeito e o seu entorno constroem Contudo, em relação ao trabalho precário, essa parece
sobre ele. E, desse modo, impacta na qualidade de não ser uma tarefa muito simples. Isso porque, embora
vida e na forma como se experiencia a vida (Seubert diversos estudos e relatórios abordem essa temática,
et al., 2021). constata-se que reiteradamente as publicações descre-
Embora a presença de trabalhos precários seja vem as condições que o caracterizam, sem explicitar
mais comumente vista como atributo da atividade um conceito (Kreshpaj et al., 2020). A este respeito,
laboral de certos grupos, como mulheres, pessoas ainda cabe destacar que o conceito de trabalho precário
de nível educacional mais baixo, jovens e migran- é visto como vago e multifacetado, e a razão por trás
tes (Julià et al., 2017), pesquisadores deste campo disso é a existência de variáveis contextuais que fazem
mostram o seu incremento de modo generalizado com que certos modos de trabalho sejam interpretados
(Oddo et al., 2021). Assim, é pertinente defender como usuais em umas localidades, já em outras sejam
que a precarização do trabalho tem se estendido e vistos como evidências de precariedade (ILO, 2011).
alcançado diversos segmentos ocupacionais, trazendo De maneira adicional, autores da área defendem que,
à cena as suas consequências deletérias. Um exem- por ser um tema com claros contornos políticos,
plo claro dessa ampliação pode ser visto no relato econômicos e sociológicos e uma visível vinculação
de precarização do trabalho das(os) professoras(es) a movimentos sociais, a ausência de uma definição
universitárias(os), como resultado de um proces- consensual pode ser esperada (Betti, 2019).
so descrito como “corporatização” (tradução livre Buscando delimitar os atributos teóricos do fenô-
de corporatization) das universidades canadenses meno, recorremos à definição dada pela Organização
(Rose, 2020). A este respeito, Betti (2018) afirma Internacional do Trabalho (2011), que descreve o
que a precarização do trabalho, no século XXI, pode trabalho precário como atividade laboral que envolve
atingir tanto a(o) profissional como a(o) sem teto, baixo salário, contratos temporários de curta duração,
nas grandes cidades cuja economia é regida pelo presença de intermediários nos processos de contra-
modelo capitalista, por exemplo Nova York, Detroit tação (subcontratação) e escassez de proteção legal e
ou Milão, bem como nas comunidades pobres na laboral para a(o) trabalhadora(or). Complementando
África ou América Latina. Assim, o trabalho precário o anterior, o trabalho precário também pode ser
não é apenas um atributo de certos pequenos grupos caracterizado pela incerteza, instabilidade e insegu-
periféricos mas também uma característica cada vez rança, no qual as(os) trabalhadoras(es) estão sujeitos
mais presente no mundo do trabalho. a riscos, ao mesmo tempo em que recebem escassos
A respeito da relação entre a Psicologia e o trabalho benefícios e limitada proteção social e legal, como
precário, é importante relembrar que essa profissão é defendido por Rose (2020). Ainda é enfatizado que
118
II. Condições de Trabalho
trabalhadoras(es) atuando sob essas condições são específicas contra certas práticas como assédio moral
colocadas(os) em situação econômica de insegu- ou sexual, trabalhadoras(es) que laboram em condições
rança e em situação social de marginalidade (Chin, precárias podem ser mais facilmente vítimas desses
2019). Desse modo, embora uma única conceituação abusos. Por fim, uma quinta especificidade aponta-
amplamente aceita não esteja disponível, parece ser da diz respeito à exposição da(o) trabalhadora(or) a
clara a compreensão do que seja o trabalho precário. condições insalubres, tanto físicas como psicológicas.
Visitando a literatura da área, também é possível As definições antes visitadas, assim como os atri-
encontrar a descrição de um conjunto de atributos butos referidos, descritos na forma de dimensões e
considerados dimensões constitutivas. Essas fazem de características diferenciais, ajudam a estabelecer
referência a aspectos como salários, temporalidade de maneira mais clara as especificidades a partir das
do trabalho, relações contratuais e direitos, todos os quais o trabalho precário pode ser identificado. Desse
quais são aderentes aos elementos contidos na defini- modo, constituem-se em elementos de sustentação
ção antes reportada. Ainda podem ser identificadas teórica do aspecto central focado neste capítulo.
segmentações em facetas específicas, mas, em geral, Também esse conjunto de atributos evidenciam
os aspectos mencionados englobam boa parte daquilo que o trabalho precário é, em si, uma contraposição
que parece ser central na estruturação do fenômeno. ao chamado trabalho decente já reconhecido como
A adequada compreensão do que seja o trabalho destaque na agenda da ILO desde os anos 1990. Isso
precário também pode se beneficiar da descrição das porque a sua prática corrói os direitos básicos das(os)
suas diferenças se comparado com um trabalho não trabalhadoras(es) como: proteção legal, acesso ao
precário, como apresentado por Allen et al. (2021). emprego, proteção social, aceso à saúde e à aposen-
Uma delas diz respeito à temporalidade dos contratos tadoria, e os coloca em condições de vulnerabilida-
ou vínculos de trabalho estabelecidos, associada à in- de, instabilidade e incerteza laboral (Edralin, 2014).
certeza de continuidade. Essa especificidade pode ser Estudiosos da área apontam que o déficit do trabalho
vista em arranjos descritos como flexíveis, contingentes decente desencadeia reflexos negativos para a(o) tra-
(por demanda), trabalho intermitente e similares. Um balhadora(or) que se vê obrigado, por necessidade e
segundo atributo que diferencia o trabalho precário por um contexto propício, a laborar em condições
é a insegurança econômica dele derivada, tendo em de insegurança física e psicológica e de elevada vul-
vista o baixo salário resultante do seu exercício, como nerabilidade, o que é condizente com a descrição de
também a falta de acesso da(o) trabalhadora(or) a be- trabalho precário (Santilli et al., 2021). Ao ser levado
nefícios que trazem vantagens de natureza financeira a atuar sob essas condições, abrem-se as portas para
(plano ou seguro de saúde, por exemplo). a erosão do bem-estar físico e psicológico do indiví-
Um terceiro ponto abordado para marcar as dife- duo, o que torna ainda mais saliente o lado nocivo
renças do trabalho precário diz respeito ao limitado da ocorrência do trabalho precário no mundo do
poder e controle da(o) trabalhadora(or), usualmente trabalho e na sociedade. A(O) leitora(or) interessado
derivado da ausência de vinculação coletiva entre em adentar em uma discussão mais detalhada sobre
das(os) trabalhadoras(es) que lhes permita barganhar o trabalho decente e o exercício da Psicologia deve
melhores condições de trabalho. Por outro lado, pode fazer a leitura do Capítulo 18 desta obra, em que esse
se manifestar na inviabilização de acesso do trabalha- aspecto é abordado.
dor a centros ou canais de proteção ou denúncia, ainda Com relação à avaliação ou mensuração do traba-
dentro da organização. Em quarto lugar, os autores lho precário, essa pode abordar dimensões objetivas
apontam a falta de proteção e de preservação dos di- que mostram se tratar de uma atuação em condições
reitos da(o) trabalhadora(or). Ainda que existam leis aderentes às descritas, como ocorre, por exemplo, ao
119
II. Condições de Trabalho
se constatar a presença de um trabalho temporário de Figura 1: Eixos que estruturam a discussão sobre
curta duração, que se renova periodicamente, mas que trabalho precário
não dá à(ao) trabalhadora(or) acesso aos benefícios de
uma contratação sem tempo definido. Por outro lado,
estão as condições subjetivas que também podem ser
acessadas. Para tanto, a(o) trabalhadora(or) é chamado
a opinar e descrever a sua experiência pessoal de tra-
Sindicalização Rendimentos
balhar nas condições descritas como precárias (Allen
et al., 2021). O aspecto enfatizado nesta abordagem
é a vivência da(o) trabalhadora(or). Isso não significa Número de
Trabalhos fora vínculos de
que sejam as condições objetivas ou as subjetivas mais da Psicologia trabalhos e
ou menos importantes, mas aponta-se a pertinên- carga horária
cia de atentar tanto para os atributos concretos do
trabalho, como dar espaço para o relato da vivência
única e particular da(o) trabalhadora(or) submetido
a essas condições. Auto percepção de precariedade do trabalho
Em capítulos anteriores (principalmente os
Capítulos 9, 10 e 11), tivemos a oportunidade de Rendimentos obtidos com o trabalho
analisar diversos aspectos da inserção da(o) psicólo- No Capítulo 9 tivemos o acesso aos dados sobre
ga(o) no mercado de trabalho (emprego, desemprego, rendimentos obtidos, oportunidade em que consta-
rendimentos, número de vínculos de trabalho, carga tamos que parte importante da categoria combina
horária, trabalhos dentro e fora da Psicologia). No vários trabalhos, dentro e fora da Psicologia, o que
presente capítulo, vamos retomar tais informações faz com que o rendimento total seja ampliado. Em
para identificarmos em que nível o processo de pre- síntese, os dados sobre renda estão resumidos na
carização de trabalho que atinge todas(os) as(os) Figura 2.
trabalhadoras(es), também se manifesta no exercício Os dados expressos na Figura 2 mostram que
profissional da Psicologia. quase 60% da categoria recebem dos seus trabalhos
Assim, a partir das descrições teóricas e contextuais em Psicologia entre 1 e 6 salários mínimos, entre os
antes apontadas, a Figura 1 sintetiza os principais quais 26,8% não ultrapassam três salários mínimos.
eixos de análises que serão retomadas em segmentos Também não é desprezível o percentual de 7,4% que
específicos desse capítulo para desenhar um mapa que recebe até um salário mínimo. Em parte, isso explica
revele em que nível a precariedade faz parte ou não da que trabalhos fora da Psicologia são buscados como
realidade de trabalho das(os) profissionais da Psicologia. estratégia para complementação de renda. Tais traba-
São, assim, retomados os dados sobre emprego/ lhos, como se vê na Figura 1, na sua maioria (51%)
desemprego, rendimentos, número de trabalhos propiciam rendimentos até três salários mínimos, o
dentro e fora da Psicologia e dados sobre o processo que faz, proporcionalmente, diminuir o número de
de sindicalização. Além de tais dados, o CensoPsi in- profissionais cuja renda total se situa nos estratos
vestigou como a(o) psicóloga(o) avalia a sua condição mais baixos da distribuição de renda. É verdade que
de trabalho em termos de alguns indicadores que trabalhos fora da Psicologia são exercidos também
o caracterizariam como precário. É o que estamos, por profissionais com rendimentos superiores, o que
na Figura 1, denominando de “autopercepção de também implica a ampliação da renda naqueles estra-
precariedade do trabalho”. tos mais elevados (complementando as duas rendas,
120
II. Condições de Trabalho
Figura 2: Percentual de profissionais de Psicologia por faixas de rendimentos e trabalho na Psicologia ou fora do campo
De De De De
Até Mais que
R$1101,00 a R$3301,00 e R$6601,00 a R$9901,00 a
R$1100,00 R$13200,00
R$3300,00 R$6600,00 R$9900,00 R$13200,00
(Até 1sm) (>12sm)
(1 a 3sm) (3-6 sm) (6 - 9 sm) (9-12 sm)
Renda de trabalhos em
7,4% 26,8% 32,5% 15,2% 9,8% 8,3%
Psicologia (n-13.037)
Renda de trabalhos fora
20,9% 34,2% 24,7% 9,7% 6,3% 4,2%
da Psicologia (N=4.137)
Renda total (n-16.070) 5,3% 26,3% 33,6% 15,9% 10,1% 8,9%
19% das(os) profissionais ganham acima de nove profissionais, têm rendimentos elevados (menos
salários mínimos por mês). Outro aspecto importante de 8% nas duas faixas mais elevadas de renda).
a registrar é que há um conjunto de profissionais cuja A combinação de trabalhos em Psicologia e fora
renda fora da Psicologia é a única renda que possui, dela diminui o contingente de profissionais nas
já que não atuam como psicóloga(o). duas faixas mais baixas e aumenta nas duas faixas
Nesse sentido é importante examinarmos os resul- mais elevadas, mostrando que nesses casos o tra-
tados que mostram os rendimentos por condição de balho fora é certamente uma complementação de
inserção ou não no campo profissional da Psicologia. renda. Assim, pode-se afirmar que estar fora da
Os dados encontram-se na Figura 3. Psicologia e combinar Psicologia com atuações
Os dados apontam que a maioria das(os) que, fora dela podem ser tomados como indicador de
embora graduadas(os) em Psicologia e inscritas(os) condições mais precárias do exercício profissional.
no sistema Conselho (o que as(os) habilita para o Por outro lado, aqueles que atuam exclusivamente
exercício profissional), estão com trabalhos fora do na Psicologia apresentam percentual maior nas
nosso campo profissional possuem rendimentos faixas mais altas, podendo indicar que não há
bem baixos (2/3 com renda até 3 salários míni- necessidade de complementação fora da área e que
mos). É reduzido o percentual daquelas(es) que, essa inserção ocorre como forma de complementar
atuando fora da Psicologia, em outros campos o rendimento.
121
II. Condições de Trabalho
Todavia, para tomar a dimensão rendimento complementação da renda. Isso seria compreensível
como base para a análise da precarização do trabalho apenas nos casos em que há o exercício simultâ-
em Psicologia, resolvemos dividir as(os) partici- neo de duas profissões, como se verifica em parte
pantes do CensoPsi entre os que recebem menos e desse grupo.
mais do que o piso salarial que está sendo proposto Praticamente a metade das(os) nossas(os) pro-
pelo Projeto de Lei nº 2.079/2019, que tramita no fissionais estão recebendo abaixo do piso, ou seja,
Congresso Nacional e que estabelece um piso salarial menos do que 4,23 salários mínimos. Quem são e
de R$ 4.650,00. Em termos do salário mínimo vi- onde se encontram as(os) psicólogas(os) inseridos
gente em 2021 (quando os dados do CensoPsi foram nesse grupo e que poderíamos, na dimensão de rendi-
coletados), isso equivale a 4,23 salários mínimos.3 mentos, afirmar que vivenciam condições precárias de
A Figura 4 apresenta o percentual de profissio- trabalho? Para traçarmos esse perfil, vamos trabalhar
nais que estão acima e abaixo do piso, considerando com três faixas de rendimento: a primeira reunindo
os rendimentos que advêm da Psicologia e a sua as duas faixas de rendimento mais baixas que atinge
renda total. até 3 salários mínimos; a segunda, mantendo a faixa
entre 3 a 6 salários mínimos que significa valores
Figura 4: Distribuição do percentual de psicólogas(os) com em torno do piso salarial desejado; e finalmente a
rendimentos abaixo e acima do piso salarial proposto pelo PL terceira, com as três faixas de renda mais elevadas
nº 2.070/2019 (acima de 6 salários mínimos).
A Figura 5 apresenta o perfil desses três estratos
de renda da categoria, apontando que segmentos se
diferenciam e cada um deles.
40,1%
50,5% O que os dados evidenciam: quase metade (40,8%)
das profissionais nordestinas encontram-se numa fai-
xa de trabalho precário (até três salários mínimos).
Nessa faixa estão, também, aquelas(es) nos estágios
59,9% iniciais de carreira; temos aí mais autônomas(os) do
49,5% que assalariadas(os), mais quem trabalha no terceiro
setor ou na iniciativa privada do que no setor públi-
co. Proporcionalmente atuam em maior proporção
Renda: Psicologia (%) Renda Total (%) na clínica e na social. Em oposição, temos quatro
áreas em que a maior proporção de profissionais
Abaixo do Piso proposto(R$4.650.00)
está nas faixas mais elevadas de renda (esses são
Acima do Piso proposto (R$4.650.00) maioria entre as(os) que atuam na docência e na
área jurídica). Estágios mais avançados de carreira
Vamos tomar para reflexão apenas a renda que também colocam a(o) profissional na condição de
advém dos trabalhos em Psicologia, já que não seria um trabalho digno em termos de remuneração. Tais
esperado que grande contingente de psicólogas(os) profissionais se encontram em maior proporção nas
tivesse que buscar trabalhos fora com o objetivo de regiões Centro-Oeste e Sudeste.
3 No Congresso Nacional tramitam dois Projetos de Lei que fixam piso salarial para profissionais de Psicologia. O PL nº 2.079/2019,
de autoria do Mauro Nazif – PSB/RO, fixa o valor mais elevado de R$ 4.650,00, aqui tomado como referência para a nossa análise.
O segundo é o PL nº 1.015/2015, de autoria do Dr. Jorge Silva (PROS-ES), que altera a Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962, e fixa
um piso salarial de R$ 3.600,00.
122
II. Condições de Trabalho
Abaixo do piso (até 3 s.M) Na faixa do piso (de 3 a 6 s.M) Acima do piso (mais de 6 s.M)
Centro-Oeste (39,5%)
Região do país Nordeste (40,8%) Sul (36,7%)
Sudeste (36,2%)
Até 2 anos (71,2%) De 6 a 25 anos (38,5%)
Estágios de carreira De 6 a 25 anos (36,3%)
De 3 a 5 anos (53.2%) Mais de 25 anos (55,8%)
Instituição da Privadas (37.1%) Privadas (32,5%) Públicas (40,9%)
formação Públicas (26.6%) públicas (32.5%) privadas (30.3%)
Assalariados (23,7%) Assalariados (36,6%) Assalariados (39,6%)
Vinculo de trabalho
autônomos (36,1%) autônomos (31.3%) autônomos (32,6%)
Serviço público (26,8%) Servico público (37.0%) Serviço público (36,1%)
Setor de inserção inciativa privada (33,9%) Inciativa privada (31,6%) inciativa privada (34,5%)
terceiro setor (37,6%) terceiro setor (35,2%) terceiro setor (27.2%)
Número médio
2,36 2,53 2,85
de trabalhos
Docência (57,9%) jurídica
Social (41,1%) hospitalar
(55,2%) neuropsicologia
Áreas de atuação Clínica (36,9%) social (35,4%) (40,5%) saúde (38,6%)
(46,4%) organizacional
escolar (38,4%)
&trabalho (41,5%)
Esse quadro traçado a partir apenas dos rendi- Carga horária e indícios de precarização
mentos auferidos como psicóloga(o) nos mostra A Figura 6 sintetiza os dados da carga horária
uma categoria profissional que se diversifica entre de trabalho, incluindo aquelas(es) que combinam
um contingente maior de pessoas que obtém re- trabalhos em Psicologia e fora da Psicologia e sua
muneração digna e compatível com o seu nível de relação com rendimentos obtidos e número de tra-
formação (mesmo considerando a desvalorização do balhos que desenvolve.
fator trabalho na nossa sociedade) e um contingente, Dois segmentos são aqui destacados para discussão.
não desprezível, de psicólogas(os) que vivem situação Aquele contingente de 15,7% de profissionais que
de precariedade do trabalho. têm carga horária reduzida (até no máximo 20 horas
Também, para compreender as condições pro- semanais) que pode significar um subaproveitamento
fissionais da(o) psicóloga(o), em relação à renda, é da capacidade laborativa de muitos delas(es) em que
importante destacar que, na pesquisa realizada em esse nível de dedicação não é uma escolha pessoal
2010, foi constatado que 60% das(os) profissionais em termos de demandas de outras esferas da vida.
recebiam até 9 salários mínimos (Heloani et al., O que se verifica é que, em média esse grupo precisa
2010). Fazendo uma comparação desses dados com ter até 1,9 trabalhos para receber uma renda total
os da edição atual da pesquisa, observa-se que porcen- de pouco menos de 3 salários mínimos. Por outro
tagem similar corresponde ao grupo que recebe até lado, temos o grupo de 18% de profissionais que
6 salários mínimos (veja figura 6). Assim, os dados dedicam ao trabalho uma carga horária semanal su-
evidenciam que em pouco mais de dez anos houve perior a 50 horas, numa clara evidência de sobrecarga
recuo nos ganhos salariais da profissão. que pode implicar um reduzido equilíbrio entre as
123
II. Condições de Trabalho
Figura 6: Dados sobre carga horária e perfil da categoria por número de trabalhos e rendimentos
diferentes esferas da vida pessoal. Esse grupo, com entre as(os) autônomas(os) a carga horária semanal
essa elevada carga de trabalho, tem em média 3,37 média era de 14 horas (Macedo et al., 2010). Assim,
trabalhos para obter uma renda total de sete salários diversidade de quadros podia ser vista, contudo
mínimos em média. menos horas não evidenciavam melhores condições
A necessidade de ampliar o número de trabalhos de trabalho. Portanto, os achados obtidos na edição
para obter uma renda mais elevada fica também evi- atual da pesquisa mostram que em termos de carga
dente quando se consideram os casos que estão nas horária, a situação pode ser confortável para um
faixas intermediárias de tempo semanal de trabalho. grupo profissional, mas essa não é a realidade que
Os dois extremos destacados sinalizam, portanto, caracteriza a profissão como um todo.
condições de trabalho que são adversas e indicadoras
de precariedade. Trabalhos fora da Psicologia como
A respeito da carga horaria, edição anterior da dimensão de precarização do trabalho
pesquisa revelava que ao redor de 35% de profissio- A terceira vertente para a busca de possíveis in-
nais do setor púbico e privado trabalhavam 40 horas dícios de precarização do trabalho em Psicologia
semanais. Contudo diferenças relevantes apareciam ao concentra-se na combinação de trabalhos que não
comparar as porcentagens daqueles que trabalhavam exigem a graduação em Psicologia, ou seja, apesar do
30 horas (30,7% – serviço público; 17,7% – setor diploma e da inscrição no sistema Conselho, há um
privado). Também nessa edição uma elevada porcen- contingente de profissionais que mantém trabalhos
tagem de profissionais relatou ter uma carga de até 20 fora do campo. Parte deles se deve ao fato de ter uma
horas semanais (terceiro setor) e já era apontado que segunda ou até terceira graduação e, portanto, ter
o estudo da profissão feito em 1988 sinalizava que outro curso de nível superior (que pode, inclusive,
124
II. Condições de Trabalho
anteceder a formação em Psicologia). Outra parte, O quarto grupo, com 85 citações, merece destaque
no entanto, se deve a ter inserções em atividades de por ser atividades de gestão de recursos humanos ou
trabalho que não requerem formação universitária. administração de pessoal. Embora seja uma área clás-
Os resultados podem ser vistos na Figura 7. sica de atuação da(o) psicóloga(o), chama a atenção
Como visto na Figura 7, 17,5% das(os) respon- esse número de citações como um trabalho fora da
dentes do CensoPsi combinam algum trabalho em Psicologia. Em seguida vêm as citações de ocupar
Psicologia com outro ou outros por elas(es) conside- cargos de gerência ou direção de unidades, depar-
rado como fora da Psicologia. Temos, ainda, 5,3% tamentos, setores que não envolvem a prestação de
de respondentes que só atuam fora da Psicologia. Os serviços em Psicologia. Foram diretorias financeiras,
resultados do exame dos trabalhos descritos como administrativas, de projetos, de unidades escolares que
fora da Psicologia estão sumarizados na nuvem de totalizaram 84 citações. Com números bem próximos,
palavra em que alguns grupos de trabalho se destacam. aparecem um conjunto de trabalhos técnicos que exi-
O grupo mais numeroso foi o de trabalhos “admi- gem apenas o ensino médio (83 citações, tais como:
nistrativos” (auxiliares administrativos, funcionários técnico em contabilidade, técnico em enfermagem,
públicos, almoxarife, auxiliar de escritórios etc.), técnico em saúde, entre outros) e outras profissões de
totalizando 250 citações. Consistem de atividades nível superior (82 citações, incluindo administração,
correlatas o grupo que atua como recepcionistas ou engenharia de segurança, pedagogo, sanitarista, advo-
como secretárias, que aparecem com citações menos gado). Vale também incluir nesse grupo, os trabalhos
frequentes, respectivamente 18 e 26. de assessoria, citados por 15 profissionais.
Em seguida, vêm as atividades docentes ou de en- Em um campo distinto, encontramos 43 cita-
sino, com 146 citações incluindo: bancas, ensino no ções de trabalhos artísticos (poeta, atriz, escritores)
primeiro e segundo grau e alguns casos de ensino em ou de trabalhos como artesãos. De alguma forma
outros cursos que não de Psicologia. O terceiro grupo ligados a um tipo de artesanato, há um conjunto
mais numeroso, com 117 citações, envolve atividades de 22 trabalhos incluídos na categoria “culinária”
de venda, comércio, atendimentos, aí incluídos caixas, (cozinheira, trabalho em cafés, confeitaria, fábrica
vendedoras de lojas, balconistas, atendentes em geral. de doces e bolos).
Figura 7: Trabalhos fora da Psicologia (nuvem de palavras) para as(os) psicólogas(os) que
trabalham fora ou combinam trabalhos fora e em Psicologia
Trabalha na
Psicologia e em
outros campos
17,5%
da Psicologia 5,3%
Trabalha fora
125
II. Condições de Trabalho
Há, embora com frequência mais reduzida, a cita- por regiões do país. Quando se examinam os estágios
ção de vários trabalhos que mostram uma diversidade de carreira, as(os) psicólogas(os) em início de carreira
de inserções ocupacionais, muitas das quais podem apresentam os menores índices de sindicalização
ser consideradas precárias considerando o nível de (em torno de 95% não é sindicalizado). Outro dado
formação superior obtido na Psicologia. Além de importante é a pulverização dos sindicatos a que se
auxiliares de cozinha, temos motoristas de aplicativos vinculam. As(Os) docentes parecem ser as(os) mais
e taxi (10 citações), trabalhos categorizados como sindicalizadas(os), assim como aquelas(es) que atuam
“beleza” (cabelereira, consultora de beleza, consultora no serviço público nas mais diferentes esferas. O
da Natura, instrutora de manicure etc.) que totali- quantitativo de profissionais vinculados a sindicatos
zaram 20 citações. Há também trabalhos incluídos de Psicologia é significativamente menor quando
na categoria “cuidador/a” (cuidar de idosos e babá comparado com a grande quantidade de sindicatos
predominam nessa categoria que teve 25 citações). que são citados.
Finalmente existem 16 citações de trabalho classi- Em relação à sindicalização, buscou-se verificar
ficados como de “baixa qualificação”, que incluem: a associação com a carga horária e com a renda ob-
encadernação, faxineiro, mensageiros, pedreiro, ope- tida. Quanto à renda, os resultados apresentados na
rador de fotocopiadora, trabalho braçal, entre outros. Figura 8 se referem aos rendimentos obtidos com o
São casos residuais, mas que indicam dificuldades trabalho em Psicologia.
de inserção no campo da Psicologia, o que leva tais Os achados representados na Figura 8 mostram que,
profissionais a se manterem nessas atividades. apesar do reduzido percentual de profissionais sindi-
Em síntese, o exame das atividades fora da calizadas(os), esse percentual é bem mais expressivo (e
Psicologia revela uma quantidade de casos que, em- superior à média na amostra total de 17,8%) nas faixas
bora não seja expressivo no conjunto da amostra, de renda mais elevadas, que tingem 28,9% na faixa que
têm inserção muito precária no campo da Psicologia. vai de 9 a 12 salários mínimos. Nas duas outras faixas
mais elevadas, esse percentual se mantém próximo e
Sindicalização: o poder para reivindicar superior a 25%. Por outro lado, é bem mais reduzida
melhoria nas condições de trabalho a sindicalização entre aqueles que se encontram nas
Um quarto aspecto focado nas análises realizadas duas faixas mais baixas de rendimento (apenas 8,1%
diz respeito à filiação sindical, pois, desde uma pers- entre quem ganha até 1 salário mínimo e 10,1% entre
pectiva teórica, a ausência da possibilidade de exercí- os que ganham entre 1 e 3 salários mínimos).
cio desse direito se constitui em uma das evidências Como destacado, esses estratos mais elevados de
de condições precárias de trabalho. Todavia, cabe renda se encontram entre profissionais da Psicologia
relembrar que a filiação sindical, no Brasil, constitui inseridas(os) na gestão pública, especialmente na
um ato voluntário. Essa análise foi operacionalizada condição de docentes de instituições universitárias
indagando às(aos) participantes do censo quanto à ou em funções nos poderes Legislativo e Judiciário.
sua vinculação sindical. Há também um expressivo contingente de quem
Os resultados desse questionamento mostram que atua na clínica como autônomas(os), mas que não
a grande maioria das(os) respondentes afirma não são sindicalizadas(os).
manter vinculação sindical, pois 16.892 (83,6%) de A análise de natureza similar foi realizada com
um total de 20.307 participantes declarou não estar relação à quantidade de horas semanais trabalha-
filiado a nenhuma entidade sindical, apenas 15,7% das. Novamente os achados mostram presença de
revelaram manter esse tipo de vinculação. Esse percen- diferenças estatisticamente significativas, as quais
tual de sindicalização não se altera significativamente relevam maior quantidade de horas semanais de
126
II. Condições de Trabalho
Figura 8: Comparação de faixas salariais entre trabalho para o grupo com filiação sindical (Média
sindicalizadas(os) e não sindicalizadas(os) 41,73 horas; dp = 14,41), se comparado ao grupo
sem essa filiação (Média 37,36 horas; dp = 16,36).
Também nesta comparação, podem ser observadas
Até discrepâncias relevantes em cada grupo, razão pela
R$1.100,00 8,1% 91,9% qual uma análise segmentada é necessária, uma vez
(Até 1sm)
que ela contribui à melhor compreensão da distri-
buição desses dados, como mostra a figura que segue.
De
R$1.101,00 Figura 9: Comparação de carga horária entre
a 10,1% 89,9% sindicalizadas(os) e não sindicalizadas(os)
R$3300.00
(1 a 3sm)
8,5%
15,1% 17,4%
De 20,9% 20,5%
R$3.301,00
e 17% 83%
R$6.600,00
(3-6 sm)
De
R$6.601,00
a 25,4% 74,6%
R$9.900,00 91,5% 84,9% 79,1% 79,5% 82,6%
(6 -9 sm) Até 21 a 36 a Mais Total
20h 35h 50h de 50h
127
II. Condições de Trabalho
um contingente muito expressivo de profissionais da Figura 10: Percentual de profissionais por níveis em que se
Psicologia que, por sua condição de trabalho ou pelo sentem inseguras(os) frente a cada dimensão de insegurança
tipo de vínculo de trabalho, não encontra o suporte no trabalho
oferecido pelos sindicatos profissionais.
6,6%
Autopercepção da precariedade
do trabalho em psicologia Manutenção de 15,2%
Dando continuidade à análise do trabalho da(o) meu vínculo de
trabalho/clientes 55,4%
psicóloga(o), foi abordada, de maneira específica,
a percepção das(os) profissionais quanto ao grau 22,7%
de precariedade do seu trabalho. Para tanto, as(os)
participantes do CensoPsi 2022 responderam a
um conjunto de quatro perguntas em que foram
Minhas 5,4%
questionados a respeito do quanto o trabalho que condições de
desempenham as(os) faz sentir-se inseguras(os). Os exercício 13,8%
aspectos focados foram relativos à insegurança sobre profissional
(riscos de 50,4%
manutenção do vínculo de trabalho (ou manutenção acidente e/ou
dos clientes), riscos de acidentes, possibilidade de adoecimento) 30,4%
defesa dos direitos como trabalhadoras(es), e exercí-
cio das habilidades e aplicação dos conhecimentos.
As respostas foram dadas em uma escala de quatro
16,9%
pontos que ia de sempre (1) a nunca (4). Assim, Possibilidade de
quanto maior o valor relatado, menor a percepção defesa de meus 24,8%
direitos como
de precariedade. Os resultados obtidos frente a esses categoria 41,3%
quatro itens podem ser vistos na Figura 10. profissional
Nos quatro indicadores utilizados para se avaliar 17%
a percepção de insegurança no trabalho, pode-se
perceber que a maioria das(os) psicólogas(os) se
sentem apenas algumas vezes insegura(o) ou nunca
2,1%
se sentem insegura(o). Os percentuais nessas duas Possibilidade de
exercer minhas
categorias que indicam menores níveis de insegurança 7,4%
habilidades e
se aproximam ou superam os 80%, com exceção aplicar meus
conhecimentos 46,6%
do item que avalia o quanto se sente insegura para profissionais
defender seus interesses como categoria profissional. 43,9%
Frente a esse item, é bem maior o percentual dos que
se sentem sempre inseguras(os) (16%), assim como Sempre inseguros/as/es Muitas vezes inseguros/as/es
também é o mais elevado percentual entre os quatro Algumas vezes inseguros/as/es Nunca inseguros/as/es
128
II. Condições de Trabalho
Para termos uma visão de conjunto de como Essa medida global de percepção de insegurança
cada profissional respondeu aos quatro itens, foi no trabalho nos revela a existência de grupos bem
calculado um escore médio que podia variar de 1 reduzidos que se localizam nos extemos (total insegu-
(respondeu “sempre inseguro” para os quatro itens rança ou total segurança, com respectivamente 5,0%
até 4 se respondeu “nunca inseguro” para todos os e 3,9%), ou seja, a maioria da categoria vivencia um
itens). A partir desses escores médios, agrupamos nível apenas moderado de insegurança no trabalho
em quatro categorias que indicam o nível geral de (55,8%), para 35,3% essa insegurança é mais presente
insegurança no trabalho. Tais resultados podem ser no seu cotidiano de trabalho.
vistos na Figura 11. Considerando tais níveis de insegurança, buscamos
verificar em que segmentos da categoria eles poderiam
Figura 11: Percentual de profissionais por níveis em que se apresentar alguma diferença significativa. Assim, a
sentem inseguras(os) no trabalho Figura 12 apresenta a associação entre os níveis de
insegurança e a região, estágio de carreira e níveis de
Nunca Sempre
insegura(o) insegura(o)
remuneração da(o) psicóloga(o).
5% 3,9% Os resultados observados mostram uma consistên-
Muitas vezes cia entre aqueles indicadores objetivos de precarização
insegura(o)
35,3% do trabalho e a autopercepção da precariedade. Um
exame mais cuidadoso dos dados permite verificar:
a) que as(os) profissionais da região nordeste se di-
55,8% ferenciam com níveis mais elevados de percepção de
Algumas vezes
insegura(o)
insegurança; nesse sentido as demais regiões apre-
sentam percentuais muito próximos; b) em relação
Sempre insegura(o) Muitas vezes insegura(o) Às vezes insegura(o) Nunca insegura (o)
Até 2 anos (5,9%) Até 2 anos (40,8%) Até 2 anos (49,2%) Até 2 anos (4,1%)
Estágios de De 3 a 5 anos (6,8%) De 3 a 5 anos (44,4%) De 3 a 5 anos (45.3%) De 3 a 5 anos (3.5%)
carreira De 6 a 25 anos (3,4%) De 6 a 25 anos (35,7%) De 6 a 25 anos (56,4%) De 6 a 25 anos (4,4%)
26 anos ou mais (1,3%) 26 anos ou mais ( 22,3%) 26 anos ou mais (67,9%) 26 anos ou mais (8,4%)
Até 1 S.M. (5,0%) Até 1 S.M. (40,9%) Até 1 S.M. (50,7%) Até 1 S.M. (3,5%)
De 1 a 3 S.M. (5,1%) De 1 a 3 S.M. (42,0%) De 1 a 3 S.M. (48,8%) De 1 a 3 S.M. (4,1%)
Renda da De 3 a 6 S.M. (3,4%) De 3 a 6 S.M. (38.7%) De 3 a 6 S.M. (54,9%) De 3 a 6 S.M. (2,9%)
Psicologia De 6 a 9 S.M. (3,0%) De 6 a 9 S.M. (33,0%) De 6 a 9 S.M. (60,0%) De 6 a 9 S.M. (4,0%)
De 9 a 12 sm. (2.3%) De 9 a 12 sm. (26,1%) De 9 a 12 sm. (64,5%) De 9 a 12 sm. (7,0%)
Mais de 12 S.M. (0,9%) Mais de 12 S.M. (23,6%) Mais de 12 S.M. (66,9%) Mais de 12 S.M. (8,6%)
129
II. Condições de Trabalho
ao estágio de carreira, também aqueles que estão Figura 13: Percentual de profissionais por níveis em que se
iniciando a sua trajetória profissional se sentem sentem inseguros no trabalho por áreas de atuação na Psicologia
mais ameaçadas(os) e inseguras(os). Aquelas(es) que
estão em estágios mais avançados vivenciam menos 2,6%
Avaliação 32,1%
tal sentimento, embora, para todos haja sempre um psicológica 59,2%
nível moderado de insegurança vivenciada; e, c) 6%
também há uma forte associação entre os níveis de
2,8%
rendimentos obtidos com trabalhos em Psicologia 30,3%
e a percepção de insegurança que é mais fortemente Docência 61,4%
5,5%
sentida nas duas faixas que chegam até 3 salários
mínimos. Nessas duas faixas, os níveis mais elevados 4%
de insegurança são mais elevados e se aproximam 31,7%
Neuropsicologia 58,7%
de 50% daquelas(es) que estão nessa condição. Em 5,6%
oposição, é nos níveis mais elevados de rendimentos
que vamos encontrar mais de 70% das pessoas nos 3,6%
35,5%
dois níveis mais elevados de segurança no trabalho. Clínica 56,2%
Ainda com relação à percepção de precariedade das 4,7%
condições de trabalho foram realizadas comparações
2,1%
de acordo com a área de inserção da(o) profissional. 38,9%
Os resultados encontram-se na Figura 13. Jurídica 55,7%
3,3%
O perfil geral é o predomínio do sentimento
de um nível moderado de insegurança em todas 5,1%
as áreas de inserção profissional. Há, no entanto, 41,1%
Social 49,7%
algumas diferenças que merecem destaque. A área
4,1%
Social é que apresenta o maior percentual das(os)
que sentem níveis mais elevados de insegurança no 3,7%
38,5%
trabalho. Somando-se os percentuais das duas faixas Hospitalar 52,6%
de maior insegurança nesta área, ela atinge 46,2% 5,1%
das(os) profissionais. Em seguida vem quem atua na
4,5%
área de Saúde, na qual esse mesmo percentual atinge 39,7%
44,2%. É interessante assinalar que se trata das duas Saúde 51,8%
áreas em que a Psicologia mais se insere nas políticas 4%
130
II. Condições de Trabalho
nas duas faixas de menor insegurança. Em seguida Também cabe enfatizar que o trabalho é uma forma
temos a área Organizacional e do Trabalho com de expressão da(o) trabalhadora(or), uma forma de
66,8% nessas mesmas duas faixas de baixa insegurança laborar, e dela deriva uma forma de ser e de viver.
ou total segurança. A terceira área nessa condição Desse modo, discutir a questão da prevalência ou
é a Avaliação Psicológica, que atinge 65,2% nessa não da precariedade no trabalho da(o) psicóloga(o) se
condição mais positiva. constitui em importante contribuição para a melhor
Tendo em vista as teorizações relativas ao trabalho compreensão da profissão.
precário e ao trabalho decente trazidas na introdução Os resultados das análises realizadas revelam que,
deste capítulo, encerramos a apresentação dos dados em termos gerais, a atividade laboral é vista pelas(os)
descrevendo os achados relacionados à associação profissionais como caracterizada por condições par-
desses dois aspectos. Para tanto, foram realizadas ciais de precariedade. Isso significa dizer que as(os)
análises de correlação que mostraram que, como psicólogas(os) atuam vivenciando medianamente
era de esperar, os relatos das(os) participantes do insegurança, seja quanto à continuidade do seu
CensoPsi 2022, relativos à insegurança percebida trabalho, à possibilidade de sofrer acidentes, à pre-
no seu trabalho, estiveram inversamente associados à servação dos seus direitos ou insegurança quanto à
percepção de um trabalho que pode ser descrito como aplicação de suas competências e expertises. O fato
decente. Assim, quanto mais saliente a percepção de de ter sido atingido um valor médio geral de 2,97 em
realizar um trabalho decente (visto no Capítulo 16), uma escala que vai até o ponto 4, e um desvio padrão
menos declarações foram feitas sobre condições de de 0,58 mostra tanto a pertinências das afirmações
precariedade no trabalho. Contudo, cabe apontar ora realizadas, como também revela que essa opinião
que essas associações foram de mediana magnitude é uma tendência entre as(os) profissionais.
(r entre 0,32 e 0,46). Portanto, as medidas adotadas Os dados relativos a trabalho precário devem ser
para avaliar ambos os atributos do trabalho não analisados em conjunto com os achados referentes à
constituem opostos exatos de um mesmo construto, renda declarada pelas(os) profissionais e a carga de
razão pela qual a informação fornecida e discutida trabalho semanal, com vistas a construir um panora-
nos capítulos correspondentes pode ser considerada ma geral da profissão. Em primeira instância, quanto
complementar e importante para depreender de ao salário, constata-se que o cenário profissional,
melhor maneira a situação laboral da(o) psicóloga(o) desde a perspectiva adotada neste capítulo, merece
brasileira(o), a partir das informações fornecidas atenção, uma vez que 62,6% das(os) profissionais
pelas(os) participantes do CensoPsi 2022. recebem até 3 salários mínimos, valor que dificil-
As implicações de todo o conjunto de dados mente pode ser considerado adequado para cobrir
são discutidas na seção que segue, buscando tecer as necessidades de uma família nem ser compatível
considerações quanto à realidade do trabalho atual, com uma formação de nível superior que requer
suas transformações e consequências. cinco anos de formação e uma dedicação intensa
para se manter atualizado ao longo da carreira.
Considerações finais: como estão as Com relação à carga horaria de trabalho, os dados
condições do trabalho na Psicologia? demonstram que a situação das(os) profissionais
Será que é um trabalho precário? é diversa, evidenciando múltiplas condições. Isso
Como ponto de partida, é importante destacar porque metade das(os) profissionais afirma trabalhar
que o trabalho se constitui em aspecto estruturante, até 40 horas e quase 25% afirma possuir uma carga
não somente da vida do indivíduo mas também do horaria semanal entre 21 e 35 horas. Entretanto, uma
seu grupo imediato e da sociedade como um todo. análise atenta revela, também, que ao redor de 18%
131
II. Condições de Trabalho
das(os) profissionais declara trabalhar acima de 50 dições mais desfavoráveis possam ser as prevalentes.
horas, o que certamente está longe de ser uma carga Por essa razão, a leitura de outros capítulos desta
de trabalho adequada. obra em que se apesentam análises mais setorizadas
Analisando esses dados sob a perspectiva do trabalho pode contribuir para a melhor compreensão das
precário, deve ser relembrado que esse é caracterizado peculiaridades que podem estar presentes em certos
por um leque de condições que fazem referência a segmentos da profissão.
diversos aspectos, entre eles, a duração da jornada de Quanto à avaliação da condição de precariedade
trabalho. Por ser elevada, ela gera sobrecarga na(o) do trabalho, conforme Allan et al. (2021) argumen-
trabalhadora(or). Contudo, trabalho precário também tam, deve-se levar em consideração as avaliações
envolve arranjos laborais com menos carga, mas que subjetivas da(o) trabalhadora(or). Como descrito
estão longe de ser benéficos para a(o) profissional, na seção correspondente, isso não significa que essa
como os contratos por hora ou por demanda. Essa avaliação seja melhor ou pior que a realizada a partir
especificidade deve ser considerada ao evidenciar baixa da análise das condições concretas e reais a que a(o)
caga horaria semanal, que nem sempre pode ser vista trabalhadora(or) está submetida(o). Significa apenas
como algo benéfico para a(o) trabalhadora(or). que tão importante como a obtenção de indicadores
Todavia, quanto aos dados globais relativos à concretos é a apreciação que a(o) própria(o) traba-
renda e horas semanais de trabalho, ainda que esses lhadora(or) faz da sua situação e na qual entram
não mostrem uma situação particularmente negativa em jogo inúmeros elementos que o indivíduo traz à
para as(os) profissionais, é importante fazer uma cena para concluir a respeito da sua situação laboral.
análise mais ampla do contexto de trabalho. Isso Como visto pelos dados trazidos neste capítulo,
porque nos últimos anos tem se testemunhado um a situação da(o) profissional da Psicologia, longe de
acirramento das condições gerais de exploração da desenhar um panorama ideal, mostra a existência
classe trabalhadora. A situação das(os) chamadas(os) de inúmeras conquistas a serem alcançadas. Mas
trabalhadoras(es) “uberizadas(os)”, sem contrato fixo, o primeiro passo para viabilizar essas realizações é
atuando em situação de grande vulnerabilidade, sem conhecer a situação atual em que se encontra, em
acesso a condições mínimas de segurança ou prote- termos de precariedade do seu trabalho. Nessa aná-
ção podem ser elementos que contribuem para uma lise tanto deve ser dado espaço à análise objetiva de
avaliação pessoal de trabalho mais benevolente. Isso atributos concretos do trabalho como aos aspectos
porque os dados disponibilizados relativos à carga subjetivos a partir do qual a(o) profissional constrói
horaria e ao salário são fatos claros que podem ser a sua imagem e a projeta nos diversos âmbitos de
utilizados pela(o) profissional da Psicologia como fiel atuação em que se insere.
da balança na comparação da sua condição com a Por fim, cabe encerrar esta discussão destacando
do restante da população. Fazendo um julgamento que os dados trazidos reiteradamente evidenciaram
a partir dessa perspectiva, a(o) psicóloga(o) pode se a presença de diferenças entre as(os) profissionais a
perceber em situação não desalentadora. Contudo, respeito de aspectos como renda ou carga horária. A
ao serem indagadas(os) quanto às percepções indi- partir deles, talvez seja prudente concluir que não é
viduais de insegurança laboral, os achados mostram possível fazer um resumo da existência de um único
uma situação menos benevolente, pois se declaram perfil, mas que seja reconhecido que existem diversas
em situação média de insegurança. realidades na Psicologia, as quais foram evidencia-
A este respeito ainda cabe relembrar a existência das nas análises trazidas por este capítulo. Assim, a
de grandes divergências, razão pela qual não seria busca por melhores condições de trabalho deveria
estranho identificar nichos profissionais em que con- iniciar com a investigação dessas diferenças de sorte
132
II. Condições de Trabalho
133
II. Condições de Trabalho
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135
II. Condições de Trabalho
Um trabalho precisa satisfazer não apenas as ne- pessoal e integração social, liberdade para que
cessidades básicas de um indivíduo, mas também as os indivíduos expressem suas opiniões, se or-
de realização, promovendo o seu bem-estar. Essa é ganizem e participem das decisões que afetam
a premissa que tem sido defendida pela Psicologia suas vidas e a igualdade de oportunidades e
e por organismos internacionais como as Nações tratamento para todos, mulheres e homens
Unidas, a partir dos esforços do Internacional Labour (ILO, 2022).
Office - ILO (International Labour Organization,
2008; Kim et al., 2021). Esse princípio subjaz ao Quando esses elementos são incorporados por dis-
presente capítulo que pretende avaliar a qualidade ciplinas como a Psicologia do Trabalho, o conceito de
do trabalho na Psicologia. trabalho decente, é compreendido como “condições
O conceito de trabalho decente está presente de trabalho seguras física e interpessoalmente, horas
na Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de trabalho que permitem tempo livre e de descanso
2030 desde 2015 e se destaca nesse contexto na adequado, valores organizacionais que completam os
expectativa de unir esforços das nações em prol da valores sociais e familiares, compensação adequada
redução da pobreza e inclusão social. Para a ILO, e acesso ao sistema de saúde adequado” (Duffy et
trabalho decente al., 2016, p.130).
A agenda da ILO destaca quatro aspectos centrais
sintetiza as aspirações das pessoas durante sua para promover o trabalho decente: a geração de
vida de trabalho; Significa a oportunidade de empregos com qualidade, proteção social, direitos
ter acesso a um emprego produtivo que gere no trabalho e diálogo social, com a igualdade de
uma remuneração justa, segurança no lugar gênero sendo um aspecto transversal (ILO, 2022).
de trabalho e proteção social para as famílias, Esses princípios têm guiado, principalmente, as
melhores perspectivas de desenvolvimento políticas públicas a partir de análises de dados
1 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia (UnB,2004). Prof. Associada da Universidade de Brasília. Pesquisadora I-D do CNPq.
Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações/UnB. É pesquisadora
na área de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações. Seus principais temas de pesquisa são: ética no trabalho, valores pessoais
e do trabalho, cultura organizacional, compatibilidade indivíduo-organização e bem-estar no trabalho. Atualmente, é presidente da
Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho/SBPOT.
2 Psicóloga, Doutora em Psicologia (UnB, 2009). Atualmente é pesquisadora da Université de Lorraine (desde 2021). Atuou como
docente (2011-2021) ministrando principalmente disciplinas de Psicologia Organizacional e do Trabalho (teórico-prática e supervisão
de estágio com foco em subsistemas de gestão de pessoas) e Psicometria. Seus principais temas de pesquisa são: desempenho e
bem-estar sustentável no trabalho, fatores associados ao desempenho (desenho do trabalho e percepção de discriminação), processos
metodológicos associados à qualidade de instrumentos de mensuração (tradução de escalas, estimação de indicadores por meio da
aplicação do modelo de Rasch). Atuou na Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho/SBPOT como tesoureira
(2014-2016), vice-presidente (2016-2018) e presidente (2018-2020).
136
II. Condições de Trabalho
em nível nacional ou regional, mas iniciativas de no segundo trimestre de 2022. Também se observa
avaliação da percepção dos trabalhadores também que entre os desocupados em 2022, a maioria era
têm sido empreendidas para avaliar aspectos sobre de mulheres (51,7%) (IBGE, 2022). Em resumo,
a experiência individual no trabalho (Duffy et al., a queda na taxa de ocupação e o aumento na taxa
2017; Ferraro et al., 2018; Ribeiro et al., 2019). À de desemprego, traz alguns indicadores objetivos de
medida que o conceito vem se refinando e ganhando uma possível diminuição do trabalho decente no país
sustentação de diversas disciplinas, o que se nota quando se consideram esses aspectos de geração de
é um esforço no sentido de relacionar o trabalho emprego e o contexto da pandemia.
do indivíduo com seu contexto socioeconômico, O trabalho decente está associado positivamente
incluindo foco no papel do significado e do pro- a um maior engajamento no trabalho e a uma menor
pósito no trabalho. exaustão emocional (Ferraro et al., 2018). Também
O foco de análise do trabalho decente tem sido promove saúde física e mental (Duffy et al., 2019) e
nos grupos minoritários e vulneráveis da sociedade, motivação para o trabalho (Ferraro et al., 2018). Essas
mas também no estudo de outras carreiras como pesquisas reforçam os efeitos positivos da promoção
profissionais da educação. A importância do tema do trabalho decente e a importância de se estudar
fica evidenciada com a deterioração das condições a percepção da categoria profissional de Psicologia
de trabalho em função do aumento e incentivo a sobre o seu trabalho.
contratos de trabalho temporários e de baixo salário A pesquisa sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no
(Duffy et al., 2016) e com o processo de flexibiliza- Brasil realizada em 2005/2006 já apresentava indícios
ção das leis trabalhistas no Brasil e fragilização dos de precarização do trabalho dessas(es) profissionais.
sindicatos (Ribeiro et al., 2019). Adicionalmente, a Foi observado que 22,1% atuavam na Psicologia com-
pandemia da Covid-19 piorou a economia do Brasil e binada com outro campo de atuação, 9,1% atuavam
região, com uma recuperação que se prevê mais lenta fora do campo e 5,2% estavam desempregados. A
do que nos países desenvolvidos, com maior inflação falta de empregos no campo, aliada aos baixos salários
e menor espaço fiscal (OIT, 2021). Os impactos foram os principais motivos alegados por aqueles que
negativos desse contexto para o mercado e condições não trabalhavam em Psicologia. Adicionalmente,
de trabalho são evidentes. Considerando os indica- a maioria (53,7%) possuía dois ou mais vínculos
dores da PNAD Contínua, a taxa de ocupação que de trabalho, sinalizando uma remuneração baixa e
vinha numa trajetória de crescimento desde 2012 sobrecarga de trabalho (Heloani et al., 2010). Esses
apresenta uma queda durante a pandemia e começa resultados instigaram a análise das condições de tra-
a se recuperar em 2022. A taxa de ocupação era de balho vivenciadas pelas(os) psicólogas(os) a partir da
57,3% no início de 2012, cai para 49,0% no terceiro percepção de trabalho decente na Psicologia.
trimestre de 2020 e retorna para 56,8%% no segundo A partir de uma versão reduzida do questionário
trimestre de 2022. Em sintonia com esses dados, a de trabalho decente3 levantou-se a percepção das(os)
taxa de desocupação também tem crescido saindo de psicólogas(os) sobre a qualidade do seu trabalho que
8,0% em 2012 para 14,9% no terceiro trimestre de será apresentada a seguir. O questionário contém
2020 no auge da pandemia e retornando para 9,3% 21 itens organizados em sete dimensões (Queiroga
3 Foi utilizado uma adaptação do Questionário de Trabalho Decente originalmente desenvolvido por Ferraro et al.(2018) e reduzido
para o contexto brasileiro por Queiroga et al. (2022). Esse instrumento adotou procedimentos transculturais na sua elaboração e
contou com amostra brasileira de profissionais de nível superior desde o momento da sua elaboração. Trata-se de uma medida que
busca identificar características universais do fenômeno e extrapola o contexto político e legal que usualmente pertencem ao escopo das
medidas de Trabalho Decente.
137
II. Condições de Trabalho
et al., 2022) conforme apresenta a Figura 1. Cada 2 apresenta a percepção da categoria como um todo
item deveria ser avaliado por uma escala de cinco para cada uma delas. Observa-se que o fator Trabalho
pontos, sendo que 1 corresponde a nada e 5 a to- significativo e produtivo é o que apresenta maior
talmente presente no trabalho. Assim, quanto mais média, seguido pelo fator Princípios fundamentais e
alta a média melhor a percepção daquela dimensão. valores no trabalho. Os fatores com menores médias
são Proteção social e Remuneração adequada para o
Qual a percepção das(os) psicólogas(os) exercício da cidadania.
sobre trabalho decente? Avaliar o trabalho como elevadamente significativo
A percepção de trabalho decente é composta pelo assim como seus princípios fundamentais também
conjunto das sete dimensões apresentadas. A Figura foi o padrão expressado por outras(os) profissionais
138
II. Condições de Trabalho
de nível superior, conforme apresenta a pesquisa de Figura 3: Média nos fatores de Trabalho Decente considerando
Ferraro et al. (2018) com participantes predominan- a situação de atuação profissional das(os) psicólogas(os)
temente professores e pesquisadores (público também
elevado no CensoPsi 2022). A avaliação de Proteção Princípios 3.94
social como o aspecto com pior avaliação também é fundamentais
3.6
e valores do
um ponto comum entre as duas pesquisas. Entretanto, trabalho 3.68
Oportunidades e Remuneração adequada aparecem
em terceira e quarta ordem para as(os) profissionais
3.5
em geral, enquanto para a amostra do CensoPsi 2022, Carga e tempo
de trabalho 3.32
esses aspectos ficaram em antepenúltimo e penúltimo adequados
lugar, respectivamente. Assim, pode-se afirmar que 3.35
3.77
Oportunidades (dp = 0.88) 3.43 Saúde e
3.57
Segurança
3.55
Proteção social (dp = 0.99) 2.53
139
II. Condições de Trabalho
(Borges & Yamamoto, 2010; Heloani et al., 2010). Trabalho Decente de acordo com as áreas de inserção.
Os resultados aqui apresentados vão nessa mesma Quando se observa a percepção desses grupos nos
direção. Adicionalmente, a comparação dos fatores fatores de trabalho decente, os grupos de Docência e
de trabalho decente entre profissionais que atuam Ensino em Psicologia, Psicologia Organizacional e do
na área daquelas que não atuam, reforçam a cone- Trabalho, Psicologia Escolar e de Psicologia Forense
xão das profissionais com o seu trabalho, conforme obtiveram avaliações mais positivas que as demais
apresentado na Figura 3. áreas nos fatores Remuneração adequada (embora não
A Figura 3 indica que as percepções de Carga e tem- seja uma avaliação muito elevada), Proteção Social,
po de trabalho adequados e Proteção Social foram as Oportunidades e Saúde e Segurança. A avaliação
únicas que não apresentaram diferenças significativas. mais negativa nesses mesmos fatores foi do grupo de
Para os demais fatores de trabalho decente, a percepção Psicologia Social/Comunitária.
das(os) que atuam na Psicologia é sistematicamente Para Princípios fundamentais, a atuação em
mais positiva do que os demais, reforçando o papel Psicologia Clínica e Docência apresentam as médias
social estruturante do trabalho para esses profissionais. mais altas e que são diferentes das demais com signi-
Uma vez analisados os dados gerais da amostra, ficância estatística. O mesmo ocorreu para Trabalho
buscou-se aprofundar a compreensão do trabalho significativo e produtivo. Para carga de trabalho, a
decente considerando as categorias ocupacionais da atuação em Psicologia Clínica também apresenta
amostra. A Tabela 1 apresenta a média dos fatores de uma avaliação melhor do que nas demais áreas.
Tabela 1: Percepção dos respondentes nos fatores de Trabalho Decente de acordo com as áreas de inserção – Média e DP
Tempo/Carga Trabalho
Princípios Remuneração Proteção Saúde e
Área de Inserção de trabalho significativo Oportunidades
fundamentais adequada Social Segurança
adequada e produtivo
Psicologia Clínica 4,02 (0,75) 3,58 (0,98) 4,33 (0,63) 3,24 (1,02) 2,45 (0,97) 3,53 (0,85) 3,87 (0,87)
Psicologia Social/
3,71 (0,75) 3,26 (0,97) 4,11 (0,71) 2,98 (0,95) 2,45 (0,93) 3,23 (0,89) 3,34 (0,92)
Comunitária
Psicologia da Saúde 3,74 (0,76) 3,25 (0,98) 4,18 (0,66) 3,14 (0,96) 2,49 (0,95) 3,26 (0,88) 3,42 (0,94)
Docência e Ensino
3,96 (0,72) 3,35 (0,94) 4,40 (0,58) 3,63 (0,93) 2,80 (1,00) 3,48 (0,86) 3,85 (0,82)
de Psicologia
Psicologia Organizacional
3,95 (0,73) 3,46 (0,96) 4,26 (0,69) 3,52 (0,96) 2,90 (1,01) 3,59 (0,87) 3,97 (0,78)
e do Trabalho
Avaliação Psicológica 4,03 (0,73) 3,58 (0,94 4,37 (0,61) 3,34 (0,97) 2,59 (0,98) 3,60 (0,86) 3,93 (0,86)
Psicologia Escolar/
3,89 (0,74) 3,37 (0,95) 4,24 (0,64) 3,23 (0,98) 2,67 (1,00) 3,41 (0,87) 3,69 (0,85)
Educacional
Psicologia Hospitalar 3,73 (0,79) 3,26 (1,01) 4,18 (0,66) 3,16 (0,93) 2,52 (0,95) 3,28 (0,87) 3,52 (0,88)
Psicologia Forense/
3,75 (0,75) 3,36 (0,98) 4,17 (0,71) 3,34 (0,96) 2,83 (1,02) 3,27 (0,88) 3,53 (0,90)
Jurídica
Neuropsicologia 4,01 (0,77) 3,46 (0,97) 4,40 (0,60) 3,44 (0,98) 2,60 (0,98) 3,71 (0,81) 3,96 (0,83)
Outra área 3,98 (0,78) 3,58 (0,94) 4,30 (0,68) 3,25 (1,01) 2,47 (1,03) 3,41 (0,93) 3,85 (0,93)
*Nota: Células em lilás são as avaliações mais positivas em cada fator e células em cinza são as avaliações mais negativas
em cada fator. Comparações de média realizada por meio da ANOVA one-way. Para a comparação de médias foram
consideradas as áreas apontadas como primeira área de inserção pelos respondentes. Por isso, Avaliação Psicológica
e Neuropsicologia ficaram fora dessa comparação por não apresentarem tamanho de amostra suficiente.
140
II. Condições de Trabalho
Figura 4: Média nos fatores de Trabalho Decente considerando Com relação ao número de áreas de atuação, é
a quantidade de áreas de atuação das(os) psicólogas(os) interessante perceber que, apesar de agravar a per-
cepção de carga de trabalho, a quantidade de áreas
Princípios 4 de atuação realça uma tendência de avaliações mais
fundamentais
3.88
positivas dos grupos que atuam em mais de uma
e valores do área, conforme mostra a Figura 4.
trabalho 3.91
A atuação em apenas uma área tem efeitos mais
positivos para fatores como Princípios fundamentais,
Carga e 3.63 Tempo/Carga de trabalho adequada e na percepção
tempo de sobre Saúde e Segurança. Por outro lado, a atuação
3.43
trabalho
adequados 3.37 em três áreas fez esse grupo demonstrar percepções
mais positivas em Realização e significado do tra-
balho, Remuneração adequada, Proteção Social e
4.24
Trabalho Oportunidades. Pode-se supor que a atuação em
significativo 4.24 mais áreas permita uma visão menos fragmentada da
e produtivo
4.34 Psicologia ao se perceber todas as suas possibilidades
de contribuição social e pessoal nos diversos cam-
Remuneração pos. O estudo anterior de Gondim e colaboradores
3.18
adequada (2010), ao discutir a identidade da(o) psicóloga(o),
para o 3.24
exercício da ressaltava que a homogeneidade da identidade varia
cidadania 3.34
da classe mais ampla (Psicologia) para as subclasses
(Psicologia Social, Escolar, Organizacional etc.). Eles
2.47 defendiam que a homogeneidade da identidade da
Proteção subclasse estaria mais enfraquecida por forçar uma
2.53
Social
nova configuração de identidade da classe mais ampla
2.63
que unificasse os diferentes grupos. Considerando
esses aspectos, é possível supor que a atuação em mais
3.43 áreas favorece uma identidade mais integrada desses
Oportunidades 3.41 profissionais que estudos futuros deveriam explorar.
3.51 Com relação ao estágio na carreira, observa-se
uma influência do tempo de atuação na melhoria
da remuneração, proteção social e uma redução
3.86
Saúde e
na percepção de oportunidades, conforme mostra
3.7
Segurança a Figura 5. O grupo que ingressou recentemente
3.73 no mercado de trabalho, ou seja, ainda durante a
pandemia (até 2 anos), é o que tem melhor per-
cepção sobre as Oportunidades de trabalho e tem
Uma área Duas áreas Três áreas avaliação sobre Saúde e Segurança equivalente aos
que atuam há mais tempo (26 anos ou mais). Da
mesma forma, o grupo dos mais experientes são
*Nota: Médias comparadas por meio da ANOVA one-way
os que percebem maior Trabalho significativo e
(p < 0,001). produtivo. Esses resultados apontam claramente
141
II. Condições de Trabalho
Figura 5: Média nos fatores do construto Trabalho Decente para o crescimento na carreira proporcionado pelo
considerando o estágio na carreira das(os) psicólogas(os) tempo de experiência e pela possibilidade de inser-
ções mais gratificantes e com melhores condições
Princípios 3.89 de trabalho. Resultados semelhantes tinham sido
fundamentais 3.82
e valores do
encontrado para significado do trabalho e idade
3.88
trabalho 4.16 (Borges & Yamamoto, 2010), reforçando essa rela-
ção positiva entre tempo e qualidade do trabalho.
3.56
Um resultado inesperado foi a maior percepção de
Carga e
tempo de 3.43 Saúde e Segurança para os que entraram no mercado
trabalho 3.42 de trabalho durante a pandemia. Talvez essas inser-
adequados 3.69 ções tenham garantido isolamento físico suficiente
para a não disseminação do SARS-COV2 entre os
4.22 profissionais, reforçando essa percepção de segu-
Trabalho 4.17
significativo rança. Entretanto, essa informação não foi avaliada
e produtivo 4.19
na pesquisa e fica como uma hipótese explicativa.
4.4
Foram avaliadas também as diferenças por regiões
(Figura 6) e vínculos empregatícios (Tabela 3). Um
Remuneração 2.8
adequada dos pontos que chama a atenção são as médias mais
2.91
para o modestas na região Nordeste para Remuneração,
exercício da 3.3
cidadania 3.64 Proteção social e Oportunidades. Norte e Nordeste
também são as regiões que apresentam menores per-
2.26 cepções em Saúde e Segurança. Todavia, a diferença
Proteção 2.23 entre as regiões é menor quando se observa os fatores
Social 2.57 de Princípios fundamentais e Realização no trabalho.
2.87
Esses resultados sinalizam para o efeito das condições
concretas de trabalho nas percepções dos profissionais.
3.62 A taxa de desocupação na Região Nordeste é de 14,7%
3.48
Oportunidades na Norte 11,2%, enquanto no Sudeste é 11,2%, Sul,
3.4
3.32 6,7%, e Centro-Oeste, 8,4%, ao final de 2021. A taxa
de ocupação, por outro lado, é de 48,0% no Nordeste,
3.82
53,4% no Norte 53,4%, mas no Sudeste é de 59,4%, no
Saúde e 3.64 Sul, 62,3% e no Centro-Oeste, 63,2% (IBGE, 2022).
Segurança 3.7 Para os vínculos de trabalho (Tabela 2), quando
4 se observa a média em cada fator, a percepção das(os)
Até 2 anos 3 a 5 anos que atuam como Empresárias(os) é mais positiva
6 a 25 anos 26 anos ou mais para quase todos os aspectos de trabalho decente. A
única exceção ocorre para o fator de Proteção Social
em que a média das(os) Concursadas(os) e das(os)
*Nota: Médias comparadas por meio da ANOVA one-way (p <
0,001). Para realizar a comparação de médias o tamanho do Estatutárias(os) é significativamente maior. No ge-
grupo dos que atuam entre 6 e 25 anos foi reduzido por meio de ral, salvo a percepção nesse fator, Estatutárias(os),
um sorteio aleatório para se equilibrar com os demais grupos.
Contratos temporários e trabalhadoras(es) informais
são as(os) que tem percepções menos positivas nos
142
II. Condições de Trabalho
Figura 6: Média nos fatores do construto Trabalho Decente Figura 7: Média nos fatores do construto Trabalho Decente
considerando as regiões do país das(os) psicólogas(os) considerando a identidade de gênero das(os) psicólogas(os)
Princípios 3.81
3.76 Princípios 3.9
fundamentais e fundamentais
3.9 4
valores do e valores do
4.05
trabalho 4.03 trabalho 4.01
3.42
Carga e tempo 3.37 Carga e 3.47
de trabalho 3.49 tempo de
3.57
adequados 3.6 trabalho
3.52 adequados 3.59
4.16 4.22
Trabalho 4.14 Trabalho
significativo e 4.23 significativo 4.23
produtivo 4.29 e produtivo
4.34
4.34
2.94 2.5
2.72 Proteção
2.66
Proteção Social 2.93 Social
2.76 2.33
2.89
3.42
3.52
3.37 Oportunidades 3.45
Oportunidades 3.51
3.46 3.44
3.48
3.75
3.54 Saúde e
3.58 3.8
Saúde e Segurança
3.79
Segurança 3.62
3.88
3.88
Feminino Masculino Não-binário
Norte Nordeste Centro-oeste
Sudeste Sul
*Notas: Médias comparadas por meio da ANOVA one-way (p *Notas: Médias comparadas por meio da ANOVA one-way (p
< 0,001). Para realizar a comparação de médias o tamanho < 0,001). Para realizar a comparação de médias o tamanho
do grupo das regiões Nordeste, Centro-oeste, Sudeste do grupo feminino foi reduzido por meio de um sorteio
e Sul foram reduzidos por meio de um sorteio aleatório aleatório para se equilibrar com o grupo masculino. Devido à
para se equilibrar com o tamanho da Região Norte. discrepância em relação ao tamanho (N = 69), o grupo não-
binário não foi considerado para a comparação de médias.
143
II. Condições de Trabalho
Tempo/
Trabalho
Princípios Carga de Remuneração Proteção Saúde e
Tipo do vínculo N significativo Oportunidades
fundamentais trabalho adequada Social Segurança
e produtivo
adequada
Bolsistas 126 3,51 (0,74) 2,86 (1,04) 4,15 (0,67) 2,96 (0,89) 1,90 (0,80) 3,24 (0,90) 3,40 (0,94)
Cargos públicos
170 3,71 (0,71) 3,30 (0,93) 4,11 (0,76) 3,00 (0,96) 2,59 (0,92) 3,33 (0,89) 3,45 (0,91)
comissionados*
CLT* 1430 3,70 (0,76) 3,13 (0,96) 4,09 (0,78) 3,30 (0,97) 2,75 (0,95) 3,38 (0,87) 3,73 (0,84)
Concursadas(os)* 1599 3,68 (0,73) 3,26 (0,91) 4,00 (0,74) 3,34 (0,97) 2,95 (0,96) 3,10 (0,87) 3,31 (0,89)
Contratos
68 3,92 (0,71) 3,32 (0,96) 4,10 (0,69) 3,04 (1,05) 2,45 (0,97) 3,31 (0,84) 3,62 (0,80)
intermitentes
Contratos
497 3,63 (0,78) 3,25 (1,01) 4,10 (0,77) 2,78 (0,95) 2,14 (0,87) 3,29 (0,94) 3,29 (0,92)
temporários*
Empresárias(os)* 260 4,37 (0,63) 3,7 (0,96) 4,52 (0,55) 3,71 (0,97) 2,78 (1,08) 3,89 (0,80) 4,35 (0,65)
Estatutárias(os)* 331 3,65 (0,73) 3,18 (0,88) 3,99 (0,75) 3,23 (0,95) 2,92 (0,87) 3,05 (0,84) 3,22 (0,86)
Informais* 394 3,92 (0,74) 3,63 (0,96) 4,13 (0,76) 2,76 (1,02) 2,18 (0,99) 3,41 (0,88) 3,73 (0,88)
MEIs ou Eirelis* 177 4,17 (0,68) 3,55 (0,94) 4,43 (0,63) 3,50 (0,96) 2,40 (0,98) 3,63 (0,89) 4,08 (0,83)
Autônomas(os) * 3510 4,17 (0,69) 3,7 (0,92) 4,42 (0,58) 3,30 (1,03) 2,36 (0,94) 3,63 (0,80) 4,07 (0,78)
Voluntárias(os)* 212 3,98 (0,80) 3,75 (0,96) 4,34 (0,59) 2,80 (1,13) 2,30 (1,12) 3,39 (0,98) 3,82 (0,87)
*Notas: Médias comparadas por meio da ANOVA one-way (p < 0,001). Para realizar a comparação de médias os
grupos maiores foram reduzidos por meio de um sorteio aleatório para se equilibrar com o tamanho. Por isso,
foram considerados apenas os grupos marcados com asterisco (*). Nota: Células em lilás são as avaliações
mais positivas em cada fator e células em cinza são as avaliações mais negativas em cada fator.
fatores relacionados às condições de trabalho (i.e., entre os homens. Esses também são os fatores em
remuneração, proteção social e saúde e segurança). que se observa diferenças significativas em relação
Por outro lado, Autônomos, Voluntários e MEIs à orientação sexual cujas médias são apresentadas
ou EIRELIs tem percepções tão positivas quanto os na Figura 8.
Empresários nos fatores de Princípios fundamentais Nesse caso, os heterossexuais têm percepções
e Trabalho significativo e produtivo. mais positivas que os bissexuais nos fatores de Carga
Por fim, foram realizadas comparações entre os gru- de trabalho e Remuneração adequada. No fator de
pos de minoria e vulneráveis (Siqueira & Castro, 2017), Proteção social, os heterossexuais têm percepção mais
tais como sexo, orientação sexual e raça. Mulheres e ho- positiva tanto em relação aos bissexuais quanto em
mens têm percepções equivalentes quanto ao Trabalho relação aos homossexuais. Percepções mais negativas
significativo e produtivo e quanto às Oportunidades, entre os grupos mais vulneráveis também se confir-
Saúde e segurança no trabalho (diferenças de médias mam quando se considera raça, conforme pode ser
não significativas), conforme mostra a Figura 7. observado na Figura 9.
Por outro lado, a percepção de Carga de traba- As Oportunidades foram percebidas de maneira
lho, Remuneração e Proteção social é mais positiva equitativa entre os grupos comparados (p > 0,05), mas
144
II. Condições de Trabalho
Figura 8: Média nos fatores do construto Trabalho Decente para os demais fatores as diferenças são significativas.
considerando a orientação sexual das(os) psicólogas(os) Neles, as médias de brancas(os) são mais elevadas que
as médias de pretas(os) e pardas(os), confirmando que
3.94 o contexto adverso para esses grupos se estende às(aos)
Princípios
fundamentais e 3.92 psicólogas(os). Assim, aqui também fica evidenciada
3.9
valores do 3.87 a desigualdade de gênero, raça e orientação sexual. Se
trabalho 3.88 consideramos os dados da PNAD para a população em
geral, observamos que essas discrepâncias em termos
3.48
Carga e tempo 3.49 salariais se apresentam objetivamente. O rendimen-
de trabalho 3.39 to médio real do trabalho principal das mulheres
adequados 3.41
3.67 aumentou de 73% do rendimento dos homens em
2012 para 77% no segundo trimestre de 2022. No
4.26 caso de raça, pessoas pretas ou pardas recebiam 57%
Trabalho 4.22
significativo e 4.2 das brancas em 2012 e esse resultado se manteve ao
produtivo 4.17
4.11 final de 2021 (IBGE, 2022), demonstrando pouca
evolução na redução da desigualdade racial.
Remuneração 3.24
3.24
adequada para
3.13 Em síntese, o que se depreende da
o exercício da
cidadania
2.87
2.95
percepção de trabalho decente?
A promoção do trabalho decente para todas e
2.53 todos faz parte da agenda mundial adotada pela
2.56 Cúpula das Nações Unidas para o desenvolvimento
Proteção Social 2.29
2.18 sustentável. Um diagnóstico da situação vivenciada
2.27
pelos grupos profissionais específicos é fundamental
3.46
para subsidiar intervenções nessa direção. Assim,
3.43 o objetivo principal deste capítulo foi descrever a
Oportunidades 3.41
3.29 percepção de trabalho de decente para profissionais
3.48 de Psicologia, a partir de um levantamento em todo
o país por meio de questionário.
3.75
3.77 Os resultados apresentados indicam claramente
Saúde e
3.71 a alta percepção das(os) profissionais com relação
Segurança 3.71
3.71 ao significado do seu trabalho e à possibilidade de
atender aos princípios fundamentais. Esses aspec-
Homossexuais Heterossexuais Bissexuais
tos praticamente não se diferenciam em relação às
Pansexuais Assexuais
variáveis ocupacionais e demográficas, reforçando
o papel social do trabalho para esta categoria. Esses
resultados são animadores por destacar a gratificação
*Notas: Médias comparadas por meio da ANOVA one- pessoal alcançada na realização da profissão.
way (p < 0,001). Para realizar a comparação de médias Por outro lado, a proteção social e a remunera-
o tamanho do grupo heterossexuais foi reduzido por
meio de um sorteio aleatório para se equilibrar com os ção adequada são desafios que permanecem. Como
demais. Devido à discrepância em relação ao tamanho, apontava a pesquisa de 2010, já havia uma discre-
os grupos pansexuais (N = 66) e assexuais (N = 34) não
foram considerados para a comparação de médias. pância entre a expectativa e as condições existentes
145
II. Condições de Trabalho
Figura 9: Média das(os) respondentes nos fatores para a atuação em Psicologia (Borges & Yamamoto,
do construto Trabalho Decente considerando a 2010). Essas percepções são ainda mais presentes
declaração de raça das(os) psicólogas(os) quando se compara minorias como gênero, raça e
orientação sexual. Assim, ações de inclusão ainda se
Princípios 3.96 fazem necessárias para a redução das desigualdades,
fundamentais e 3.98 meta importante da Agenda 2030 no que se refere
3.65
valores do 3.82 ao trabalho decente.
trabalho 3.75
Outro aspecto se refere aos índices medianos para a
3.61 percepção de oportunidades e sobrecarga de trabalho.
Carga e tempo 3.51 A categoria percebe que não há muitas oportunidades
de trabalho 3.47
adequados 3.44 de trabalho. Cabe refletir sobre o equilíbrio entre a
3.4
oferta desses profissionais e a demanda da sociedade,
aspecto que foi discutido ao longo do Volume 1.
4.13
Trabalho 4.26 Por fim, conclui-se que o trabalho em Psicologia
significativo e 4.36
produtivo 4.17 apresenta características bem positivas que apontam
4.13 para um trabalho decente. Entretanto, deve-se refletir
para desigualdades dentro da categoria, em especial
Remuneração 3.3
adequada para 3.34 nos aspectos referentes à remuneração, proteção social
2.99
o exercício da 3.03 e carga de trabalho, que promovem experiências bem
cidadania 2.98 diferentes para diferentes grupos profissionais. n
2.56
2.57
Proteção Social 2.44
2.47
2.41
3.43
3.43
Oportunidades 3.4
3.43
3.44
3.74
Saúde e 3.85
3.41
Segurança 3.6
3.57
146
II. Condições de Trabalho
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148
II. Condições de Trabalho
149
II. Condições de Trabalho
As transformações sociais diante dos avanços um computador capaz de realizar um sem número
tecnológicos são uma das características marcantes de tarefas que até pouco tempo atrás eram inima-
da espécie humana. Desde o uso da pedra como gináveis. Isso sem falar dos usos e aplicações que
ferramenta de trabalho até os usos recentes da inte- não estão diretamente perceptíveis. Uma verdadeira
ligência artificial, a cada novo avanço tecnológico, revolução baseada em coisas como inteligência ar-
observamos impactos expressivos também na socie- tificial, machine learning, internet e capacidade de
dade e, especificamente, no mundo do trabalho. Esse processamento.
processo de transformação social vem se acelerando É nesse contexto, que o vírus SARS-COV-2 se
nos últimos anos, com desdobramentos cada vez difunde e se apresenta como um divisor de águas. Por
mais profundos em nossa forma de interagir com o conta das medidas de distanciamento social necessá-
mundo que nos cerca (próximo e distante) e com rias para contenção do vírus, muitas atividades que se
outras pessoas (Bentivi, Bastos & Carneiro, 2021). desenvolviam em um formato presencial, passaram a
Para observarmos o impacto e o potencial de ser realizadas de forma virtual, mediadas por algum
transformação social produzido pelo atual nível de tipo de tecnologia. Nesse contexto, a única maneira
desenvolvimento tecnológico, basta olharmos ao possível de seguir funcionando, disponibilizando os
nosso redor. O streaming de música e vídeo revolucio- bens e serviços necessários à vida, ao mesmo tempo
nou a forma de entretenimento, e mais diretamente que permitiu a manutenção das interações e trocas
as indústrias de livros, música, cinema e televisão. sociais nesse momento tão difícil. A pandemia de
Ou ainda, o Smartphone, que já há muito tempo Covid-19 intensificou o processo de adoção e uso
transformou o celular – de um telefone móvel, em da tecnologia, que já era intenso, trazendo para o
1 Possui graduação em Administração pela Universidade Salvador (1989), graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
(1999), mestrado em Administração pela Universidade Federal da Bahia (2003) e doutorado em Psicologia - University of Sheffield
(2008). Tem experiência na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: práticas
de gestão de pessoas, gestão do trabalho, gestão no setor de serviços e gestão universitária. Professor permanente do programa de
Pós Graduação do Instituto de Psicologia da UFBA. Presidente da SBPOT - Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do
Trabalho para o período de 2014-2016 e reeleito para o período de 2016-2018. Atualmente é o Coordenador de Desenvolvimento
Institucional da Universidade Federal da Bahia.
2 Psicóloga Organizacional e do Trabalho, com mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2012) e doutorado em Sociologia pela Universidade do Porto (2019). Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia
Organizacional e do Trabalho (SBPOT) nas gestões 2018-2020 e 2020-2022, exercendo os cargos de 2ª tesoureira, vice-presidente
e presidente. Participa do Grupo de Trabalho de Psicologia Organizacional e do Trabalho (GT POT) da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Realiza pesquisas e intervenções na área de Psicologia Social, do Trabalho e das
Organizações, com ênfase nas temáticas: relações de trabalho, empregabilidade, inovação, empreendedorismo, formação e qualificação
profissional, diversidade e responsabilidade socioambiental empresarial.
150
II. Condições de Trabalho
agora o que originariamente se esperava apenas para mos anos, como por exemplo: o ritmo acelerado de
alguns anos mais adiante. adoção de tecnologias; potencialização da recessão
Abundam na literatura científica estudos sobre econômica trazida pela Covid-19 que, aliada ao au-
os impactos da tecnologia nas mais diversas áreas mento da automação, produzem elevados níveis de
da vida e do conhecimento. Da mesma forma, são desemprego; a diminuição de postos de trabalho,
inúmeros os trabalhos que avaliam as consequên- por conta da complexificação do trabalho realizado
cias da introdução de novas tecnologias sobre a por máquinas; as mudanças no perfil das habilidades
subjetividade, sobre as interações pessoais, sobre o básicas exigidas pelo mercado de trabalho, tendo
trabalho. Curiosamente, são menos frequentes as como principais demandas o pensamento crítico, a
discussões sobre a adoção de tecnologia em nossos capacidade de resolução de problemas, a autogestão,
próprios campos de atuação profissional e como a a aprendizagem ativa e flexibilidade; a digitalização
tecnologia transforma as nossas práticas. Parece haver dos processos de trabalho e ampliação do trabalho
uma tendência a imaginar que os nossos campos remoto; o aumento das desigualdades; a ascensão
profissionais estão protegidos do avanço tecnológico dos treinamentos on-line, com ênfase em cursos de
(Susskind & Susskind, 2015) em função de algum desenvolvimento pessoal e aprendizado de habilidades
tipo de necessidade ou característica específica do digitais; e a restrição da possibilidade de requalificação,
tipo de atividade que desempenhamos. principalmente por parte das(os) trabalhadoras(es)
Este capítulo se volta para discutir como a tec- desocupadas(os) (World Economic Forum, 2020).
nologia tem se inserido na atuação profissional de Diante dessa realidade/contexto, emerge uma
psicólogas(os). Para isso, ele encontra-se dividido em grande questão: qual o perfil da(o) trabalhadora(or)
três seções para além desta introdução: na primeira, atual? Mais especificamente na Psicologia, quais os
apresentaremos um panorama do uso de tecnologias conhecimentos, habilidades e atitudes que uma(um)
de informação e comunicação (TICs) na prática da psicóloga(o) precisa ter para atuar no mercado de
Psicologia; na segunda, resgatamos legislação produ- trabalho contemporâneo? Certamente, a resposta a
zida pelo Conselho Federal a fim de compreender essa pergunta inclui o domínio no uso das TICs. A
um pouco mais do contexto e a relação que nossa tecnologia, especialmente a tecnologia das comu-
profissão estabelece com as tecnologias, a partir de seu nicações, exerce uma profunda influência sobre a
órgão regulador; logo em seguida, apresentaremos os interação humana, a educação e a pesquisa e a prática
resultados básicos levantados no Censo da Psicologia psicológica (APA, 2009).
em relação ao uso e a adoção da tecnologia pelas(os) Algumas atividades se adaptam de forma mais
profissionais de Psicologia; e por fim, encerramos com rápida. Outras, incorporam o uso de tecnologias de
uma discussão sobre possíveis desdobramentos dessa forma mais lenta, mantendo suas práticas pratica-
relação para um futuro próximo. mente imutáveis ao longo do tempo. A dificuldade
– ou facilidade – de adaptação de uma profissão ao
A Psicologia é uma profissão longo do tempo às transformações nas demandas
tecnológica? sociais, é um fator fundamental para a manutenção
O mundo do trabalho contemporâneo é marcado de sua relevância frente à sociedade.
pela volatilidade e insegurança, que foi ampliada Especificamente em relação à Psicologia, vimos
pelo contexto pandêmico. Apesar da incerteza da um despertar da profissão, de forma coletiva, para a
conjuntura atual, o Fórum Econômico Mundial importância, uso e impacto potencial da tecnologia
aponta as principais tendências que impactarão de em suas práticas. Entretanto, a relação institucional
forma significativa o mundo do trabalho nos próxi- da profissão com atividades de base tecnológica que
151
II. Condições de Trabalho
contribuam e impactem de forma direta e efetiva na certos tipos de demandas e de indivíduos (Titov et
atuação profissional, parece ser limitada e de natureza al., 2013; Andersson, 2014).
nitidamente restritiva. Parece haver uma atenção Independente dos modos, diversos benefícios
especial à questão do uso da tecnologia na mediação podem ser observados com o uso das TICs na prática
audiovisual que se volta para o atendimento clíni- da Psicologia. O mais significativo é a acessibilidade
co. É esse comedimento que ajuda a compreender, aos serviços, sendo possível atingir um público mais
mesmo diante da necessidade de manutenção do amplo, principalmente aqueles que não possuem aces-
suporte psicológico posto no período da pandemia, so a profissionais na localidade (Emmelkamp, 2005).
a desconfiança das(os) profissionais em relação ao Consequentemente, essa acessibilidade também é
uso de tecnologia (Araújo et al., 2020). positiva para a(o) profissional, que pode desfrutar
Apesar ter se difundido no Brasil durante a pan- de flexibilidade espacial e temporal na realização de
demia, o uso de TICs pela Psicologia não é algo sua atividade laboral.
recente, tendo se tornado popular desde os anos Outro ponto positivo diz respeito à eliminação
1990 nos Estados Unidos (Andersson, Titov, Dear, de empecilhos para a participação de processos te-
Rozental & Carlbring, 2019), caminhando nos dias rapêuticos ligados aos estigmas com tratamento/
atuais para sua maturidade teórica e empírica. A acompanhamento psicológico (Calam, Cox, Glasgow,
diversidade de formatos, aspectos, objetivos, mé- Jimmleson & Larsen, 2000). Por fim, há ainda ques-
todos e soluções tecnológicas fazem com que as tões relacionadas à diminuição do custo do atendi-
intervenções psicológicas com uso de TICs apareçam mento, visto que a estrutura para atendimento on-line
com diversas nomenclaturas, dificultando a coesão é menos onerosa que para atendimento presencial.
de termos e a consequente consolidação da litera- Em relação aos pontos negativos do uso de TICs
tura (Smoktunowicz et al., 2020). Além disso, há a para intervenções psicológicas, a principal preocupação
pluralidade de possibilidades de uso, que vai desde diz respeito às intervenções assíncronas realizadas de
utilização de aplicativos de marcação de consultas/ modo automatizado por robôs, por conta de sua inter-
atendimentos e de comunicação síncrona e assíncrona venção ter como característica a generalização, diante
(e-mails, mensagens de texto e ligações de áudio/ da limitação dos algoritmos. Além disso, questões
vídeo), passando pelo uso de instrumentos de ava- referentes à desumanização do processo terapêutico
liação psicológica, e até tratamentos automatizados e impossibilidade de analisar o comportamento não
(Andersson, 2016). verbal da(o) paciente são questões negativas referentes
No que tange aos modos primários de transmis- ao uso de tecnologia (Lovejoy, Demireva, Grayson &
são para intervenção, as duas possibilidades são o McNamara, 2009; Jermone e Zaylor, 2000).
formato síncrono e o assíncrono (Perle, Langsam & Por fim, as questões éticas ligadas a esse tipo de
Nierenberg, 2011). Embora haja evidências de que uso devem ser levadas em consideração, bem como
tratamentos síncronos produzem efeitos maiores, as diretrizes específicas de atuação com o uso de
menos desistências do que tratamentos automatizados TICs, regulamentadas pelo Conselho Federal de
(Baumeister, Reichler, Munzinger & Lin, 2014) e Psicologia, que apresentaremos e discutiremos bre-
maior honestidade nas trocas, em especial em clientes vemente a seguir.
que se sentem desconfortáveis em interações (Mora,
Nevid & Chaplin, 2008), também é possível iden- A regulamentação do uso das
tificar na literatura diversos estudos empíricos que TICs pela Psicologia no Brasil
apontam tratamentos totalmente automatizados que Temos a impressão de que a relação da Psicologia
são tão eficazes quanto intervenções guiadas para com a tecnologia no Brasil foi historicamente pautada
152
II. Condições de Trabalho
por um certo cuidado com a sua utilização, o que sobre um tipo de suporte específico utilizado para
a luz da história pode parecer exagerado. O antigo armazenar a informação pessoal. A indicação não se
código de ética profissional, aprovado pela resolução estende ao registro que tem o papel como suporte.
002/87 (CFP, 1987), por exemplo, já fazia menção Nos anos 90 tivemos a privatização e a expansão
e já mostrava alguma preocupação com a utilização dos serviços de telefonia. Houve um barateamen-
de registros audiovisuais. É importante destacar que to das linhas, dos custos de telecomunicação, ao
nessa época as tecnologias de informação e comu- mesmo tempo em que surgiu uma gama extensa de
nicação - TICs (tal como atualmente concebemos) serviços de telecomunicação, com tarifas próprias e
ainda engatinhavam no país e seu uso era bastante diferenciadas, que iam desde coisas simples como
restrito. Então, não é propriamente disso que trata o ouvir piadas, horóscopo e previsão do tempo, até
código. De qualquer forma, no seu artigo 25, havia a serviços “mais complexos”, como o tele-sexo que
indicação que a pessoa ou grupo que estivesse sendo se aproveitavam das possibilidades oferecidas pela
atendido por profissional de Psicologia deveria ser tecnologia e que fizeram muito sucesso à época. É
informado do uso e arquivamento das informações nesse contexto que surge a resolução 02/1995 que
pessoais, que fossem obtidas/registradas por meio reforça um entendimento já constante no código de
de recursos áudio visuais. Interessante observar que ética da profissão e proíbe qualquer tipo de atendi-
a orientação não trata da autorização ou consenti- mento do tipo tele-ajuda ou teleatendimento (por
mento do registro, apenas sobre dar conhecimento via telefônica) por psicólogas(os).
Figura 1: Histórico das normativas do Conselho Federal de Psicologia sobre o uso de TICs
Fonte: Elaborado pelos autores.
153
II. Condições de Trabalho
Na virada do século XXI já vivíamos a chamada outras. De acordo com Santos (2003), [...] a nor-
revolução digital cujos impactos se fazem sentir mativa do CFP teve como efeito a desaceleração da
tanto na economia quanto na sociedade (Peixoto adoção dessas práticas (p.11).
& Bastos, 2021). O computador já era uma reali- As restrições, ou melhor, as disposições da
dade. Já tínhamos a internet, o correio eletrônico Resolução CFP 03/2000 aplicavam-se à
e os mecanismos de busca. As salas de bate papo
(chats) eram uma febre, ainda que a forma básica Art. 04 [...] todas as formas de atendimento
de acesso a internet fosse por sinal discado (tele- psicoterapêutico mediado por computador
fone). Nessa época, o CFP edita uma resolução, a realizado por psicólogo, independente de sua
de número 03/2000 (CFP, 2000), regulamentando nomenclatura, como psicoterapia pela Internet,
especificamente o atendimento psicoterapêutico ou quaisquer termos que designem abordagem
mediado por computador. É razoável supor que psicoterapêutica pela Internet [...], e outras já
a própria elaboração da resolução já fosse uma existentes ou que venham a ser inventadas. São
reação a um movimento – ou ao menos a uma também igualmente válidas quando a mediação
tendência – possível de ser observada na categoria computacional não é evidente, como o acesso
em direção ao uso da tecnologia na mediação do à Internet por meio de televisão a cabo, ou
atendimento. Um indicativo dessa tendência pode em aparelhos conjugados ou híbridos, bem
ser inferido a partir das múltiplas denominações como em outras formas possíveis de interação
que estão presentes na resolução: psyberterapia, mediada por computador, que possam vir a
psyberpsicoterapia, psyberatendimento, cyberte- ser implementadas (CFP, 2000a).
rapia, cyberpsicoterapia, cyberatendimento, e-te-
rapia, webpsicoterapia e webpsicanálise. Na sua Ou seja, parece que o espírito da época foi, na
dissertação de mestrado, produzida nesse contexto, prática, a de uma vedação total ao uso de tecnologias
Santos (2003) se refere a um número expressivo de no atendimento psicoterápico – o núcleo mais sig-
divulgações de psicoterapeutas e sites que ofereciam nificativo da identidade e da prática profissional de
serviços psicológicos via net. então. Já para as demais áreas de atuação a situação
A linha argumentativa básica da resolução é a se apresentava de forma um pouco mais suave. O art.
que este tipo de prática ainda não era reconhecida 5º, dessa mesma resolução, por exemplo, reconhece
pela Psicologia. É interessante observar que a reso- uma série daquilo que será chamado de “serviços
lução não regulamenta, disciplina ou orienta o uso psicológicos mediados por computador, desde que
dos computadores ou das TICs por profissionais da não psicoterapêuticos, tais como orientação psico-
Psicologia, propriamente dito. O que ela faz é estabe- lógica e afetivo-sexual” (CFP, 2000a). Esses serviços,
lecer padrões éticos para a pesquisa sobre atendimento só podem ser desenvolvidos por profissionais de
psicoterapêutico com o uso de computadores. Vale psicologia de forma pontual e informativa, desde
ressaltar que as normativas principais relativas à ética que não firam o código de ética e tenham feito um
em pesquisa já haviam sido editadas pelo Conselho cadastro (e obtido um selo) específicos junto aos
Nacional de Saúde (CNS) (nesse período estava em Conselhos de Psicologia para esse tipo de prática.
vigor a Resolução 196/96). Os critérios adotados Aliás, a lógica do cadastro para utilização das TICs
então eram os mesmos em vigor até os dias atuais: continuará marcando a relação da Psicologia com as
protocolo de pesquisa aprovado com comitê de tecnologias até os dias atuais. De um modo geral,
ética em pesquisa, consentimento da(o) usuária(o), esses serviços psicológicos se referem aos demais
possibilidade de desistência da(o) usuária(o) dentre campos da prática profissional tais como:
154
II. Condições de Trabalho
[...] orientação profissional, orientação de De qualquer forma, essa resolução traz duas novi-
aprendizagem e Psicologia escolar, orientação dades básicas: permite uma abertura para a cobrança
ergonômica, consultorias a empresas, reabili- desses serviços mediados por computador (art.8º),
tação cognitiva, ideomotora e comunicativa, ainda que para o atendimento psicoterapêutico essa
processos prévios de seleção de pessoal, utili- vedação seja mantida (Art. 1º, inciso IV); e estabele-
zação de testes informatizados devidamente ce prazos para burocracia dos Conselhos Regionais
validados, utilização de softwares informativos relativa ao cadastramento de sites. A título apenas
e educativos com resposta automatizada, e de comparação, três anos antes, em 2002, o CFP
outros [...] (CFP, 2000a). reconhece o uso da acupuntura como recurso com-
plementar ao trabalho da(o) psicóloga(o) (resolução
Podemos dizer que essa resolução consolida o en- CFP 05/2002) estabelecendo como único requisito
tendimento que caracterizou a relação entre Psicologia formal para a sua prática profissional, a comprova-
e tecnologia nesse primeiro quarto de século: vedação ção de um curso de capacitação adequado na área,
ao uso na psicoterapia, (relativa) liberalização, sem sem que se diga expressamente o que se entende
orientação específica, nas demais áreas/campos de por adequado.
atuação e burocracia (via cadastro). Essa motivação O novo código de ética profissional, publicado em
de avaliação dos usos e alcances da tecnologia, por julho de 2005, que entrou em vigor em 27 de agosto
parte do nosso Conselho Profissional, antes de uma do mesmo ano, mantém e reforça o que parece ser
autorização para sua aplicação de forma generalizada, uma relação ambígua. Se por um lado, a ausência
pode ser entendida como uma relação de descon- de pesquisas justifica a vedação na psicoterapia,
fiança, uma vez que a interação cliente profissional por outro, ainda não encontramos um conjunto de
tradicionalmente se baseou em um contato direto, orientações técnicas à categoria em relação ao uso nos
pessoal, não mediado. chamados serviços psicológicos. No código lemos a
Em 17 de agosto de 2005, uma semana antes seguinte previsão:
da entrada em vigor de um novo código de ética
profissional, o CFP lança uma nova resolução, a de Art. 16 – O psicólogo, na realização de es-
número 12/2005 (CFP, 2005a), regulamentando tudos, pesquisas e atividades voltadas para a
o atendimento psicoterapêutico e outros serviços produção de conhecimento e desenvolvimento
psicológicos mediados por computador. A resolução de tecnologias:
reafirma, cinco anos após a primeira norma específica a. Avaliará os riscos envolvidos, tanto pelos
sobre o tema, em seu artigo 1º, que o atendimento procedimentos, como pela divulgação dos
psicoterapêutico mediado por computador continua resultados, com o objetivo de proteger as
sendo uma prática não reconhecida pela profissão pessoas, grupos, organizações e comuni-
(CFP, 2005a). Da mesma forma, mantêm as restri- dades envolvidas;
ções já presentes na resolução anterior e mantém b. Garantirá o caráter voluntário da parti-
a possibilidade de uso restrito ao âmbito exclusivo cipação dos envolvidos, mediante con-
da pesquisa. Em grande medida, os artigos centrais sentimento livre e esclarecido, salvo nas
desta resolução são uma cópia da resolução anterior, situações previstas em legislação específica
inclusive no que diz respeito aos serviços psicológicos e respeitando os princípios deste Código;
mediados por computador, referidos principalmente c. Garantirá o anonimato das pessoas, grupos
aos demais campos de atuação profissional, como ou organizações, salvo interesse manifesto
já mencionamos. destes;
155
II. Condições de Trabalho
d. Garantirá o acesso das pessoas, grupos ou 21 de junho de 2012. Aqui o foco não está apenas
organizações aos resultados das pesquisas no atendimento psicoterapêutico, com as demais
ou estudos, após seu encerramento, sempre práticas aparecendo de forma periférica. A resolução
que assim o desejarem (CFP, 2005). apresenta uma perspectiva um pouco mais ampla
com a “regulamentação dos serviços psicológicos
Nos parece óbvio que deve sempre existir um realizados por meios tecnológicos de comunicação a
cuidado no desenvolvimento e na aplicação de distância e o atendimento psicoterapêutico em caráter
qualquer técnica e em qualquer abordagem, na experimental” (CFP, 2012). Entretanto, passados
prática profissional. Da mesma forma, os códigos doze anos desde a primeira resolução sobre o tema,
de ética em pesquisa estabelecem uma série de parâ- o núcleo básico dessa resolução mantém as linhas
metros para a condução de pesquisas e experimentos gerais já anteriormente identificadas. O atendimento
com seres humanos. Assim, o que se destaca é a psicoterapêutico com uso de TICs só seria permitido
nominação específica da tecnologia no código de em caráter experimental, só podendo ser realizado/
ética e a limitação do uso em um dos campos mais praticado sob forma de pesquisa aprovada em comitê
praticados da Psicologia – a psicoterapia – sendo de ética e sem remuneração (Art. 9º e seus incisos)
seu uso restrito apenas às pesquisas, e não à atua- (CFP, 2012). O que, na prática, inviabiliza o seu uso
ção profissional. É como se o uso em si mesmo da na prática profissional em psicologia.
tecnologia trouxesse embutido algum tipo de risco Entretanto, essa resolução traz duas novidades
ético específico que a(o) profissional psicóloga(o) básicas: ela reconhece a possibilidade de realização
não fosse capaz de lidar. de alguns serviços psicológicos desempenhados por
De qualquer forma, a comunidade acadêmica meios tecnológicos de comunicação à distância, ainda
parece não corresponder às expectativas e o nível de que com um conjunto de restrições. Por exemplo,
produção de pesquisas nacionais sobre o tema parece limitado ao máximo de vinte sessões para a orientação
ser baixo. Por exemplo, uma busca no google acadê- psicológica; em etapas iniciais do processo de seleção
mico com base nos termos indicados na resolução de pessoal; apenas como atuação complementar na
03/2000, acrescido da descrição da terapia on-line e supervisão profissional; ou atendimento eventual
as variações sobre o tema, relativo ao período anterior de clientes em trânsito (art. 1º e seus incisos) (CFP,
a 2010, recupera um número bastante limitado de 2012). Uma segunda novidade é a existência de um
resultados. É possível que essa dificuldade se refira anexo que amplia as informações e a burocracia em
à não digitalização do material produzido nesse torno da ideia de registro/cadastramento dos sites que
período. E certamente que existem esforços de pes- oferecem este tipo de serviço. Ou seja, é possível usar,
quisa e esforços de difusão de conhecimento na área mas sempre de forma pontual, eventual, limitada e
muito importantes no período. Apenas a título de mediante cadastramento; não sendo, portanto, aceita
exemplo, podemos citar o trabalho de Sayeg (2000); ou mesmo reconhecida como algo corriqueiro na
as Jornadas do Núcleo de Pesquisa em Psicologia e prática profissional.
Informática (NPPI) da PUC-SP; e o PsicoInfo - Vale ressaltar que são legítimas as preocupações
Seminário Brasileiro de Psicologia e Informática. De relacionadas à questões técnicas, como, por exemplo,
qualquer forma, o material produzido parece não ter qualidade da conexão e sua manutenção sem inter-
sido suficiente para permitir e orientar o trabalho do rupções. Alguns problemas que ainda hoje podem
profissional de psicologia no uso das TICs. ser percebidos. Porém, a manutenção no corpo das
O CFP voltou a se debruçar sobre a utilização resoluções de uma mesma redação, que se manifesta
de TICs na sua resolução de número 11, datada de sempre no sentido de somente permitir ao pesqui-
156
II. Condições de Trabalho
sador a realização de determinados tipos de atendi- do total de testes favoráveis para a utilização de
mento, reforça a impressão de que se quis manter, psicólogas(os). A expectativa é de que esse número
de forma geral, elementos fundamentais da prática cresça de forma acelerada nos próximos anos.
profissional distante do uso de TICs. Em um trabalho Finalmente, chegamos à legislação atual: a re-
que busca avaliar justamente os pontos críticos dessa solução 11/2018, que regulamenta a prestação de
resolução, Sigmund, Jansen, Gomes e Gauer (2015) serviços por meio de TICs. Pela primeira vez em
já mostravam que diversos estudos internacionais quase vinte anos, o foco não são as restrições às
e revisões de literatura apontavam para os efeitos práticas profissionais, mas a liberação para uso das
positivos de intervenções on-line de diversos tipos ferramentas tecnológicas. A ideia de ter cadastramento
e que esse campo de estudo já contava com mais de para usar esse tipo de ferramenta é mantido, sendo
cinquenta anos de tradição. instituído o sistema e-Psi, na verdade uma plataforma
Em 2016, o CFP emite sua primeira nota técnica de cadastramento de psicólogas(os) para utilização
(02/2016) sobre processos informatizados relacio- de TICs. Essa legislação será complementada pela
nados ao exercício da profissão: ela versa sobre a nota técnica n. 5/2019/GTEC/CG que orienta psi-
utilização de plataformas informatizadas e testes psi- cólogas(os) sobre a utilização de testes psicológicos
cológicos. Não podemos nos esquecer que a resolução em serviços realizados por meio de tecnologias de
03/2000 (acima mencionada) já previa a utilização informação e da comunicação, mais especificamente
de testes informatizados. Aqui, a nota técnica orienta sobre a necessidade de avaliação e aprovação dos
psicólogas(os), editoras e laboratórios responsáveis testes pelo SATEPSI. É com essa resolução, e esse
sobre a utilização mindset, que a Psicologia encontrará a pandemia
da Covid-19 em 2020 e essa é a norma em vigor,
[...] de resultados de testes psicológicos, no ainda que algumas restrições expressas nos artigos
todo ou em parte, direta ou indiretamente 3º, 4º,6º, 7º e 8º tenham sido suspensas de forma
coletados, em plataformas informatizadas... emergencial pela resolução 04/20204.
sendo que o núcleo da Nota refere à necessi- No final do ano de 2018, a plataforma e-Psi conta-
dade de obtenção e manutenção de termo de va com um total de 2.608 profissionais de Psicologia
compromisso assinado pelo usuário e psicólogo registrados. Esse número sobe muito rapidamente para
para utilização de dados provenientes da pres- 18.739 no ano seguinte. Um crescimento de 718,5%,
tação de serviços realizada. Além disso, a nota o que mostra que havia uma demanda reprimida da
traz como condição necessária [...] o projeto categoria pelo uso desse tipo de ferramenta. E a demanda
de pesquisa na plataforma informatizada ter explode em 2020, uma vez que o uso de tecnologia se
obtido autorização de Comitê de Ética em mostrou a única opção viável para a manutenção dos
Pesquisa (Sistema CEP/CONEP) (CFP, 2005). serviços e atendimentos psicológicos tão necessários à
população no período da pandemia. Na Figura 2 abaixo
No momento em que esse capítulo está sendo vemos a evolução recente dos registros na e-Psi.
escrito3, dos 164 instrumentos psicológicos valida- Nos últimos vinte anos a tecnologia avançou de
dos pelo SATEPSI, apenas 15 possuem aplicação forma considerável e seu uso se ampliou nos mais
informatizada (on-line remoto), totalizando 9,14% diversos aspectos da vida cotidiana. As discussões
4 Os artigos citados se referem à necessidade de cadastro e vedação ao uso de tecnologia em situações de violência, emergência e
desastres.
157
II. Condições de Trabalho
atuais se dão em torno de ideias como inteligência ar- Censo. Iniciamos com uma visão mais panorâmica
tificial, realidade aumentada, conexão 5G. O Google sobre a intensidade de uso das TICs pelas(os) psicólo-
já apresentou um programa capaz interagir, durante gas(os) em sua atuação profissional. Com as medidas
uma ligação telefônica, no nível de uma conversa de isolamento social, necessárias para contenção da
cotidiana com uma pessoa sem que ela percebesse que disseminação do vírus da Covid-19, a sociedade
se tratava de uma máquina5. Apesar da importância se viu forçada a transferir para o ambiente virtual
dessa temática e do seu impacto potencial sobre a parte significativa de suas interações e trocas, em um
prática profissional (e a quantidade de resoluções grande experimento natural. E não foi diferente na
sobre o tema dá testemunho disso), ao longo de todo Psicologia. Novas formas de trabalho, comunicação
esse tempo nenhum relatório, cartilha ou publicação e aprendizagem emergiram. É razoável supor que a
com orientação do CREPOP especificamente sobre o pandemia se apresenta como um divisor de águas em
uso de tecnologias de informação e comunicação na relação ao uso de TICs. Ainda que neste período pós
prática profissional foi identificado no site do CFP. pandêmico tenhamos retomado a maioria de nossas
atividades cotidianas, muitas delas se transformaram
Panorama do uso de TICs por de forma significativa e nunca mais se darão da mesma
psicólogas(os) no Brasil forma que antes.
Nesta seção, apresentaremos os principais resul- Pedimos às(aos) participantes que avaliassem6 a
tados relacionados ao uso de tecnologias pelas(os) intensidade do uso que estimavam estar fazendo de
profissionais de Psicologia, conforme identificado no TICs na sua prática profissional antes da pandemia
Figura 2: Cadastro e-Psi: quantidade de aprovações e reprovações por ano (todas as regiões)
Fonte: Elaborado pelos autores, a partir de dados do Conselho Federal de Psicologia. Atualizados em: 27/06/2022.
120000
100000
80000
60000
40000
20000
5 A própria palavra máquina utilizada para definir um equipamento eletrônico atual, já sinaliza uma defasagem do nosso arcabouço
conceitual para uma adequada compreensão do uso e alcance da tecnologia no nosso cotidiano.
6 Com base em uma escala que variava de 0 a 100.
158
II. Condições de Trabalho
(N=6.060), o uso no momento da resposta (segundo Os resultados sugerem que tínhamos até pouco
semestre de 2021) (N=5.899) e a expectativa uso tempo uma profissão com baixa apropriação de
projetado para o período futuro na sua atividade novas tecnologias e provavelmente muito fechada
profissional (N=7.110)7. É importante observar que à inovação. É o que podemos depreender de uma
nesse ponto não apresentamos uma definição especí- baixa média de uso tanto por mulheres quanto por
fica do tipo de ferramentas específicas que poderiam homens, para o período anterior ao da pandemia.
ser entendidas como TICs, apenas indicamos, a título O dado sugere uma prática baseada em métodos,
de exemplo, um pequeno conjunto de aplicativos e técnicas e ferramentas (provavelmente) muito
programas. Diante desse quadro, precisamos entender tradicionais, ainda que algum uso de tecnologia
que, em termos práticos, as respostas apresentadas estivesse presente.
podem se referir tanto ao uso de um aplicativo de Nesse aspecto, a pandemia realmente se apresen-
comunicação disponível no smartphone, (como o ta como um divisor de águas ao forçar a categoria
WhatsApp, por exemplo) até um programa de análise a reinventar para enfrentar esse período. Assim, o
de dados baseado em inteligência artificial, passando percentual de intensidade do uso de TICs cresce
pela utilização de uma plataforma de correção de significativamente para 78,17%8, com as psicólogas
instrumentos de avaliação psicológica. Como esse é apresentando uma tendência de uso mais intensa do
um levantamento exploratório, optamos por manter, que os psicólogos. Questionados sobre a perspectiva
neste momento inicial, um espectro de possibilidades de continuidade do uso de TICs no futuro, a média
bastante amplo e propositadamente aberto. de uso ficou em torno de 68,5%, indicando um
pequeno decréscimo em relação ao momento pan-
Figura 3: Projeção temporal do uso de TICs na prática dêmico, mais ainda apresentando o dobro do uso
profissional, por gênero realizado antes da pandemia. Ainda que existe uma
expectativa de retorno aos formatos tradicionais,
houve uma aprendizagem e a profissão parece ter se
transformado de alguma maneira. Nas três situações
34,1 identificadas, as psicólogas parecem que apresentam
Antes uma maior tendência ao uso de tecnologia quando
33,9
79 comparadas com os psicólogos.
Durante Quando voltamos nosso olhar para o uso de TICs
75
por idade, não parece haver diferenças significativas
Depois 69,2
66,2 entre as diversas faixas etárias. De qualquer forma,
percebemos uma ligeira tendência aos grupos mais
0 10 20 30 40 50 60 70 80
idosos (50-59 e 60+) de fazerem um uso um pou-
Mulher Homem
co mais intenso de tecnologias nas suas práticas
profissionais. É possível que isso seja um efeito da
pandemia que tinha nas faixas etárias mais elevadas
um dos maiores grupos de risco.
7 As diferenças no tamanho da resposta são devido ao fato de que as perguntas não estavam marcadas como obrigatórias.
Adicionalmente, em algum momento da pesquisa os participantes eram divididos em duas trilhas com questões/seções distintas. Isso
explica o tamanho das respostas dessa parte do Censo quando comparadas com a amostra mais ampla.
159
II. Condições de Trabalho
Tabela 1: Projeção temporal do uso de TICs na prática Figura 4: Projeção temporal do uso de TICs na prática
profissional, por faixa etária, em % profissional, por área de atuação
34,4%
76,2%
Forense/Jurid́ ica
Já em relação ao uso por região geográfica, poucas 66,9%
da pandemia, passou a ser a área com uso menos 6 a 25 anos 26 anos ou mais
160
II. Condições de Trabalho
Figura 5: Finalidade de uso de TICs antes e durante a pandemia predominância dos homens antes da pandemia e um
equilíbrio durante.
73 O recorte geográfico parece sugerir um padrão no
Comunicação
81,1 qual o uso de TICs se mostrou mais intenso antes e
durante a pandemia nas regiões mais pobres do país
60,7 (Tabela 2). Dos sete aspectos investigados, o Nordeste
Capacitação
75,6 tem maior intensidade de uso antes da pandemia em
três e durante a pandemia em quatro deles. Já a Região
Rede de 45 Sudeste não se encontra entre as que apresentam maior
Contatos 54,2 para nenhum dos aspectos analisados. Da mesma for-
ma, parece haver uma tendência na direção de quem
41,8
Organização apresentava uso mais intenso, tende a se manter dessa
50,4 forma, assim como quem fazia uso mais baixo antes da
Atividade 35,1 pandemia, tende a permanecer nessa posição durante
Laboral o período pandêmico. O que esses dados parecem
82,5
sugerir é que a maior disponibilidade de recursos nas
Criação de 30 regiões Sul e Sudeste tende a manter os profissionais
conteúdo 43,8% de Psicologia em uma posição mais tradicional. Já a
busca por mercado/cliente no Norte/Nordeste levaria
a uma inovação na prática profissional como forma
Antes Durante de compensação das dificuldades experimentadas.
possível observar que o crescimento generalizado do Tabela 2: Finalidade de uso das TICs, por região geográfica
uso durante a pandemia em todos os aspectos avaliados,
o que sugere que a adoção das tecnologias se estendeu Maior Menor
intensidade Intensidade
para além das ferramentas de comunicação que medeia
Antes Durante Antes Durante
interação profissional/cliente. Entre os destaques,
temos o uso de tecnologia para a capacitação, que NE CO N N
Comunicação
0,75 0,84 0,72 0,80
pode ser entendido como a participação em cursos
on-line/EAD; a criação de conteúdos, que sugere uma N NE SE SE
Capacitação
0,67 0,79 0,58 0,73
presença mais forte nas redes sociais; e uma utilização
CO CO NE NE
na atividade laboral, propriamente dita, o que sugere Organização
0,46 0,56 0,39 0,50
alterações na forma de trabalhar.
Ampliação de NE NE S S
Quando introduzimos um recorte de gênero para rede de Contatos 0,48 0,58 0,40 0,50
compreensão das finalidades de uso das TICs antes e
Produção de NE NE S S
durante a pandemia, identificamos que as principais Conteúdo 0,33 0,48 0,26 0,41
distinções se encontram nos aspectos de capacitação,
Atividades S S NE N
com as mulheres indicando uma ligeira maior inten- laborais 0,37 0,85 0,32 0,78
sidade antes (34,1%) e durante a pandemia (79%)
CO NE S N
quando comparado com os homens (33,9% e 75% Renda
0,1 0,35 0,06 0,26
respectivamente). Já para os demais aspectos existem
pequenas diferenças entre os dois grupos com ligeira NE=Nordeste; N= Norte; CO= Centro Oeste; SE=Sudeste; S=Sul
161
II. Condições de Trabalho
Buscando compreender um pouco mais que tipo de Figura 6: Tecnologia de uso mais frequente
ferramentas os profissionais de Psicologia efetivamente
estão utilizando, lhes foi perguntado qual o tipo de Reuniões
77,2%
e aulas
tecnologia mais utilizadas em sua prática profissional.
As principais respostas, em termos de frequências, Vídeo
67,8%
sessão
são: uso em reuniões e aulas (77,2%), sessões utili-
zando videoconferência (67,8%), comunicação de Comunicação 64,7%
texto (64,7%), supervisão utilizando videoconferência de texto
(46,8%), agendamento on-line (44%), treinamento uti- Vídeo
lizando videoconferência (36,2%), prontuário on-line 46,8%
Supervisão
(28,6%) e utilização de plataforma de testes psicológicos
Agenda
e de auxílio para avaliação psicológica (18,5%). On-line 44%
No passo seguinte, solicitamos às(aos) profissionais
que indicassem o impacto da tecnologia em diversos Video
36,2%
treinamento
aspectos relacionados ao trabalho e à forma como
ele é executado. Os resultados podem ser vistos na Prontuário
On-line 28,6%
tabela 3. Sem sombra de dúvidas, os profissionais
que relatam o maior impacto são aqueles ligados à Plataforma de testes e
avaliação psicológica 18,5%
docência. Eles atingiram a maior média em quase
todos os aspectos avaliados. Com uma única exceção:
as(os) profissionais de clínica relataram ter tido o expandir o seu atendimento para além do seu espaço
maior impacto em termos de remuneração em função físico de atuação, ampliando renda por expansão da
do uso das TICs. A explicação para esses resultados é base de clientes. Em seguida à docência encontra-
bastante direta. O ensino foi, provavelmente, a área mos os campos Escolar/educacional e POT como
mais afetada e uma das que mais pressão sofreu na os mais afetados. Já os campos da saúde e da social/
pandemia para usar tecnologias em suas práticas. Já comunitária são os que referem menor impacto das
os clínicos tiveram com as TICs a possibilidade de tecnologias nas suas práticas profissionais.
Social / Educacional/
Clínica Saúde POT Docência
Comunitária Escolar
Local de Trabalho 63,8 58,8 55,4 67,0 68,0 76,3
Forma de realização
do trabalho 58,8 57,8 53,7 63,2 63,7 69,4
Tipo de produto
ou serviço 48,0 48,8 44,9 52,1 53,4 55,4
Carga de trabalho 53,2 47,9 45,4 53,3 56,4 62,2
Remuneração 42,3 23,5 29,1 34,4 29,7 34,2
Tempo livre 52,4 46,5 45,4 53,7 53,1 58,8
N 5.320 1.438 1.419 866 768 1.412
162
II. Condições de Trabalho
Para uma adequada utilização de TICs, é ne- amigas(os) (43%). Uma pequena parcela (22,5%)
cessário um certo grau de domínio e familiaridade indicou ter aprendido a usar algum tipo de tecnologia
da(o) profissional com as ferramentas de trabalho, durante o período de sua formação (nos cursos de
o que passa necessariamente por um processo de graduação, mestrado ou doutorado). Esses resultados
qualificação/aprendizagem. Esse processo que apontam para dois problemas fundamentais: uma
ocorre no nível do indivíduo pode ser tanto de possível utilização das ferramentas de tecnologia de
natureza formal quanto informal. Ele pode ocorrer uma maneira sub-ótima, o que permite inferir que
de forma estruturada, em um espaço específico a(o) profissional não se beneficia do maior potencial
para isso, como pode ocorrer ao longo da pró- que a tecnologia possibilita; que talvez os cursos de
pria realização da atividade de trabalho (Abbad formação não estejam sendo capazes de acompanhar
& Borges-Andrade, 2014). Daí o interesse em o acelerado ritmo de transformação social ou não
conhecer como se desenvolveu esse processo de enxerguem como a tecnologia pode vir a impactar
aprendizagem. Nesse ponto, foi pedido que os no exercício profissional. Essas questões seguem em
respondentes indicassem a(s) principal(is) forma(s) aberto pedindo um investimento mais específico para
de qualificação. Mais de uma resposta poderia ser a sua compreensão.
marcada. Os resultados podem ser vistos na Figura Esses dados corroboram, por exemplo, uma indica-
6 (N=6.068). ção de Mora et al. (2008) que sugere que muitas(os)
psicólogas(os) fazem uso de inovações tecnológicas
Figura 7: Como aprendeu a utilizar a tecnologia sem estarem devidamente familiarizadas(os) e pre-
paradas(os) para isso. Desse modo, ressaltamos a im-
Conta
portância da educação continuada de psicólogas(os)
81,1% para se manterem atualizadas(os) e preparadas(os)
própria
para os avanços e inovações da profissão.
Ajuda de
43% Como já discutido anteriormente, sempre hou-
amigos
ve um certo descrédito, e mesmo um receio, em
Cursos e vídeos relação ao uso de TICs pela profissão (no Brasil).
na internet 40%
Assim, consideramos relevante conhecer um pou-
Cursos co mais sobre as principais objeções ao uso de
27,1%
aperfeiçoamento tecnologias na prática profissional. Os resultados
Treinamento podem ser encontrados na Figura 7. Por ordem
26,6% de importância, as maiores resistências se referem
específico
a possibilidade de as TICs tornarem as relações
Curso
20,6% mais impessoais (56,5%), seguida de perto pela
específico
percepção de que existe uma dificuldade de cons-
Graduação trução de vínculos (49,6%) entre a(o) profissional
15,5%
e a(o) usuária(o)/cliente. A falta de contato direto
Mestrado/ facilita mal-entendidos e reações negativas que
Doutorado 7%
teriam sido observadas durante uma sessão de
terapia presencial (Lovejoy et al., 2009; Jermone
& Zaylor, 2000). Esses achados são compatíveis
O padrão básico de aprendizagem é a autoins- com a literatura que trata sobre o tema, sendo uma
trução/conta própria (81,1%), seguido de ajuda de questão que não é propriamente nova. De qualquer
163
II. Condições de Trabalho
Receio de
substituição
7,5%
Falta de
preparo 16,2%
Custo
elevado 19,1%
Pouca familiaridade
com tecnologia
19,1%
Segurança/
sigilo 47,5%
Dificuldade de
consstrução de vínculos
49,6%
Tornam relações
impessoais 56,5%
164
II. Condições de Trabalho
165
II. Condições de Trabalho
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168
II. Condições de Trabalho
169
II. Condições de Trabalho
21 PSICÓLOGAS(OS) CLÍNICAS(OS)
BRASILEIRAS(OS) EM TRABALHO REMOTO:
TECNOESTRESSE, DEMANDAS E RECURSOS
Marina Greghi Sticca1
Mary Sandra Carlotto2
Maria do Carmo Fernandes3
Lilia Aparecida Kanan4
Este capítulo tem o objetivo de apresentar dados tórico e conceituação do tecnoestresse, da relação
de um estudo empírico com delineamento de mé- entre tecnoestresse, demandas e recursos; por fim, a
todo misto realizado com psicólogas(os) clínicas(os) partir dos resultados, são apresentadas implicações
brasileiras(os) que realizam trabalho remoto, de práticas. Os principais referenciais teóricos adota-
forma a identificar o tecnoestresse, demandas e dos pelos autores deste capítulo foram os modelos
recursos presentes no trabalho destas(es) profis- de Trabalho Demanda-Recurso (JD-R) proposto
sionais e de que forma estes impactam sua saúde e por Demerouti et al. (2001) e o de tecnoestresse
bem-estar. Para tanto, apresenta-se um breve his- proposto por Salanova (2007).
1 Psicóloga e Administradora, Mestre e Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos. Professora
do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Psicologia Organizacional e do Trabalho (LabPOT/USP).
Editora Chefe da Revista Paidéia. Participa do Grupo de Trabalho de Psicologia Organizacional e do Trabalho na Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Realiza pesquisas na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase em
Psicologia do Trabalho. e-mail: [email protected]
2 Psicóloga, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Luterana do Brasil, doutora em Psicologia pela Universidade de Santiago de
Compostela/Espanha. Pesquisadora bolsista de produtividade em pesquisa, nível 1C. Membro da equipe de investigação da Unidad de
Investigación Psicosocial de la Conducta Organizacional (UNIPSICO) - Universidade de Valencia - Espanha. Membership of Society
for Occupational Health Psychology (EUA).International Affiliate Member of European Academy of Occupational Health Psychology
(EAOHP). Atual membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Editora associada da
Quaderns de Psicología/Barcelona. Pesquisadora na área de Psicologia da Saúde Ocupacional. Principais temas de pesquisa são:
Síndrome de Burnout, Adição ao Trabalho, Tecnoestresse, Transtornos Mentais relacionados ao Trabalho.
3 Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Foco central de interesse no estudo dos fenômenos
psicossociais do trabalho como resiliência no trabalho, conflitos intragrupais, clima organizacional, bem-estar no trabalho, autoeficácia
e engajamento no trabalho e suas relações com fenômenos micro, meso e macro organizacionais. Pesquisadora FAPESP. Docente
aposentada da Universidade Federal de Uberlândia (2008) onde implantou e coordenou o Programa de Pós-graduação em Psicologia.
Docente e pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)
desde 2009, programa que coordenou de 2016 a 2021. Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Metodista de São
Paulo desde abril de 2022. Membro da ANPEPP e da Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT).
4 Psicóloga, Mestra em Administração, Doutora em Psicologia e Pós Doutora em Administração, com ênfase em fatores de proteção
e riscos psicossociais relacionados ao trabalho. Educadora, pesquisadora, escritora, consultora e conferencista. Docente em cursos de
Graduação, Especialização Lato Sensu e MBAs e dos Programas de Pós Graduação Stricto Sensu em Ambiente e Saúde e em Educação.
Coordenou o Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ambiente e Saúde. Pró-Reitora de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação
da UNIPLAC/SC no período de 2015-2016 e no período de 2019-2022(atual). Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Psicologia-ANPEPP. e-mail: [email protected]
170
II. Condições de Trabalho
171
II. Condições de Trabalho
a partir de seus estudos, destacam ainda que as(os) Estudo longitudinal realizado por Békés et al.
trabalhadoras(es) sentem menor satisfação com o (2021), com 1.257 psicoterapeutas que trabalharam
trabalho e apresentam menor desempenho. on-line em razão da pandemia, identificou como
O tecnoestresse durante a pandemia de Covid-19 desafios à capacidade de se conectar emocionalmente
tornou-se mais prevalente como resultado das me- com os pacientes e gerenciar a distração durante as ses-
didas preventivas globais aplicadas para limitar a sões, e lidar com problemas técnicos/internet. Outra
propagação do contágio (Gabr et al., 2021). Ainda, investigação longitudinal, realizada por Camacho e
segundo os autores, o surto de Covid-19 impôs a Barrios (2022), com trabalhadoras(es) que migraram
adoção de medidas extraordinárias de contenção, para o teletrabalho devido ao bloqueio do Covid-19,
incluindo a necessidade de limitar o contato inter- destacou o efeito cumulativo do tecnoestresse ao
pessoal e a adoção do trabalho remoto compulsório longo do tempo e, dois tecnoestressores: conflito
realizado em casa por trabalhadoras(es) de organi- trabalho-casa e sobrecarga de trabalho.
zações públicas e privadas. Pesquisa realizada por Rodriguez-Ceberio et al.
Especificamente sobre o trabalho de psicólogas(os), (2021) com 491 trabalhadoras(es) de saúde mental
Pierce et al. (2021), em pesquisa com 2.619 ppsicó- revelou que 50% indicaram adaptação muito alta
logas(os) americanas(os), apresentam a dimensão da ou alta e apenas 11% baixa adaptação ao formato
mudança imposta pela pandemia: 7,1% destes utiliza- remoto. Do total de participantes, 92,87% reali-
vam a telepsicologia como modalidade de atendimento zavam atendimento online e 91,45% trabalhavam
clínico antes da Covid-19. Este número aumentou em casa, total ou parcialmente. As principais difi-
12 vezes, passando para 85,5% durante a pandemia. culdades relatadas foram relacionadas aos aspectos
Portanto, neste cenário de intensas mudanças, a(o) tecnológicos e interrupções domésticas, enquanto as
psicóloga(o) clínica(o), ao realizar atendimentos de principais vantagens foram relacionadas à economia
forma on-line, buscou responder à necessidade de de tempo e despesas, além dos aspectos preventivos
garantir a continuidade terapêutica e a possibilidade da Covid-19. Os autores concluem que, devido à
de alcançar pessoas que pudessem se beneficiar de boa adaptação das(os) participantes e à rentabilidade
apoio psicológico extra (Poletti et al., 2021). dessa modalidade de atendimento, é possível que ela
As(Os) psicólogas(o) clínicas(os) tiveram que persista mesmo com a reativação da presencialidade
buscar soluções rápidas para garantir a continuidade ao trabalho, e sugerem que seja incluída na forma-
do tratamento e atender novos pacientes, indivíduos ção de psicoterapeutas o atendimento on-line com
e famílias, que desenvolveram sofrimento psíquico suas particularidades.
por causa da emergência sanitária (Cantone et al.,
2021). De acordo com os autores, as(os) psicotera- Tecnoestresse e Modelo JD-R
peutas precisaram ter maior flexibilidade em alguns O JD-R é um modelo de estresse ocupacional
aspectos práticos para desenvolver seu trabalho, que pode ser aplicado a várias ocupações, indepen-
tais como: local, horários e frequência das sessões dentemente das demandas e recursos particulares
e, também, lidar com a necessidade de maior aten- envolvidos, sugerindo que toda ocupação pode ter
ção e concentração nos atendimentos. Além disto, seus próprios fatores de risco específicos associados ao
padrões e cuidados éticos na transição de formatos estresse no trabalho (Bakker, & Demerouti, 2007).
presenciais para virtuais também representaram Tal modelo propõe que as condições de trabalho
preocupações à atuação de psicólogas(os) clínicas(os) podem ser classificadas em duas categorias: demandas
nesse período (Chenneville, & Schwartz-Mette, de trabalho e recursos de trabalho. Embora as deman-
2020; Farmer et al., 2020). das de trabalho não sejam necessariamente negativas,
172
II. Condições de Trabalho
173
II. Condições de Trabalho
A coleta foi realizada por meio de formulá- “quando termino de trabalhar com TIC, sinto-me
rio eletrônico entre os meses de maio e julho de esgotado”), Ansiedade (α = 0,77, ex.: “sinto-me
2021. As(Os) participantes foram recrutados por tenso e ansioso ao trabalhar com tecnologias”) e
redes sociais como Facebook, LinkedIn e e-mail de Ineficácia (α = 0,80, ex.: “sinto-me inseguro de
contatos das pesquisadoras utilizando-se a técnica finalizar minhas tarefas eficazmente quando utilizo
bola de neve (Dusek et al., 2015), na qual as(os) as TICs”). A pontuação final de cada dimensão
participantes convidaram outras(os) colegas que se é dada pela média das respostas de seus itens.A
adequavam aos requisitos do estudo para solicitar tecnoansiedade consiste nos escores médios das
colaboração para o preenchimento do instrumen- dimensões ansiedade, descrença e ineficácia, e a
to. O acesso à pesquisa ocorreu somente após a tecnofadiga consiste nas dimensões fadiga, descren-
leitura e aceite do Termo de Consentimento Livre ça e ineficácia; (iii) Versão média do Copenhagen
e Esclarecido (TCLE). O estudo foi aprovado pelo Psychossocial Questionnaire (COPSOQ) desen-
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do volvida por um grupo de pesquisadores do Centro
Planalto Catarinense (UNIPLAC) sob o número Nacional de Pesquisa Dinamarquês para estudos do
4.670.884, em 26 de abril de 2021. ambiente de trabalho e adaptada para uso no Brasil
por Silva et al. (2017). A versão média abrange 29
Participantes dimensões, mas para este estudo foram utilizadas
A amostra não probabilística constituiu-se de 139 as escalas referentes a exigências no trabalho, re-
psicólogas(os) que atuavam há, no mínimo, seis meses cursos do trabalho e interface trabalho-indivíduo.
em psicoterapia na modalidade on-line. A maioria Todas as escalas foram avaliadas por meio de uma
declarou-se pertencente ao sexo feminino (73,4%), pontuação que variou de um para nunca a cinco
integrava a faixa de idade de 26 a 35 anos (51,1%), para sempre.
casado(a)/concubinato (50,4%) e não tinham filhos
(70,5%). Em relação ao local de atendimento, tam- Procedimento de análise dos dados
bém, a maioria atendia na sua residência (82,7%), Foi realizada Análise de Regressão Linear
de forma particular (82%), com rendimentos entre Múltipla (método Stepwise), considerando as
3 e 10 salários mínimos (56,9%). duas dimensões do tecnoestresse como variáveis
dependentes e como variáveis independentes as
Instrumentos duas subdimensões do Copenhagen Psychossocial
Os instrumentos utilizados no estudo foram: (i) Questionnaire: exigências no trabalho e recursos
Questionário de dados sociodemográficos (sexo, do trabalho. Na análise de regressão, a magnitude
faixa de idade, filhos, estado civil) e laborais (local do efeito foi obtida pelos coeficientes de regressão
de atendimento, forma de atendimento, remunera- padronizados e calculados no modelo final, de
ção); (ii) Escala de Tecnoestresse (RED/TIC), de- acordo com Marôco (2007).
senvolvida pela equipe de investigadores da Work, A análise dos dados qualitativos foi realizada
Organization & New Technologies [WONT] por meio de análise de conteúdo seguindo os
e adaptada para o uso no Brasil por Carlotto pressupostos de Bardin (1977). Foram criadas
e Câmara (2010). A RED/TIC consiste em 16 categorias e subcategorias, a partir dos dados co-
questões distribuídas em quatro dimensões, cada letados na integra, estas foram validadas por dois
uma com quatro itens: Descrença (α = 0,74, ex.: pesquisadores. Foram criadas as seguintes catego-
“com o passar do tempo, tenho perdido o inte- rias: (i) recursos; (ii) demandas no teletrabalho; e
resse sobre as tecnologias”); Fadiga (α = 0,89, ex.: (iii) TICs e saúde.
174
II. Condições de Trabalho
Tabela 1: Pontuação mínima e máxima, média, desvio padrão e alfa das variáveis de estudo (n = 139)
175
II. Condições de Trabalho
Variaveis R2 R2 Adj B SE β t
Tecnofadiga
Sintomas de depressão 0,19 0,18 0,49 0,13 0,29 3,73**
Desenvolvimento no trabalho 0,29 0,28 -0,43 0,10 -0,31 -4,20**
Estresse somático 0,32 0,30 0,19 0,08 0,17 2,23*
Tecnoansiedade
Sintomas de depressão 0,16 0,15 0,46 0,12 0,30 3,89**
Desenvolvimento no trabalho 0,23 0,22 -0,35 0,12 -0,22 -2,83**
Satisfação no trabalho 0,27 0,25 -0,26 0,10 -0,20 -2,58*
176
II. Condições de Trabalho
ao modelo remoto de contato profissional. A utili- nos níveis de bem-estar das(os) profissionais em
zação de TICs marcou a expressividade, amplitude teletrabalho (Hu, & Subramony, 2022).
e profundidade destas mudanças. A respeito dos resultados relativos aos estressores
O primeiro objetivo do presente estudo foi iden- sobrecarga de trabalho e excesso de informações e
tificar o poder preditivo das variáveis sociodemo- hiperestimulação, é pertinente considerar que, ainda
gráficas e das demandas (quantitativas, cognitivas que as(os) psicólogas(os) clínicas(os) precisassem
e emocionais) e recursos (satisfação no trabalho, atenuar o sofrimento de pacientes, estavam também
possibilidade de desenvolvimento) sobre as duas sujeitos às alterações comportamentais provocadas
dimensões do tecnoestresse (tecnofadiga e tecnoan- pelo estresse proveniente das condições pandêmicas
siedade). A análise dos preditores da tecnofadiga e de outras mais, algo que pode ampliar substancial-
evidenciou que sua elevação está associada a maiores mente a qualidade do relacionamento, o cuidado com
índices de Sintomas de depressão e Estresse somático o outro (Pietromonaco & Overall, 2021) e contribuir
e a diminuição do Desenvolvimento no trabalho, ou para o surgimento de conflitos trabalho-família e
seja, duas demandas e um recurso. trabalho-vida pessoal.
Ao se considerar que este tipo de tecnoestresse Soma-se a tais entendimentos o fato de que as(os)
envolve a fadiga, diferentemente da tecnoansiedade, psicólogas(os) precisaram ampliar seus conhecimentos
é possível que as(os) psicólogas(os), ao iniciarem em tecnologias, por exemplo, nas plataformas de aten-
atendimentos remotamente, podem ter se sentido dimento. Tiveram ainda outras preocupações como a
sobrecarregadas(os) ao ter que trabalhar, por conta da disponibilidade do hardware necessário (computador,
pandemia, em casa, além da necessidade de terem que webcam, fones de ouvido, microfone) e conexão
se adaptar à modalidade de trabalho sem nenhuma de internet segura, entre outras. O conjunto destes
preparação prévia. Os dados qualitativos também fatores podem explicar a somatização do estresse e
evidenciam esta percepção de sobrecarga e falta de sentimentos de depressão frente ao exercício profis-
limite entre trabalho e vida pessoal, apesar de vários sional nesta nova modalidade de trabalho.
relatos positivos em relação ao teletrabalho, quando Quanto à dimensão de Tecnoansiedade, os re-
comparado ao trabalho presencial. sultados evidenciam que, à medida que aumentam
Depreende-se que a percepção de sobrecarga tenha os sintomas de depressão, considerado como uma
decorrido do aumento de demandas de saúde mental demanda de trabalho, aumenta esta dimensão. De
e da procura pelo atendimento on-line nos meses de acordo com Mendonça et al. (2022), o teletrabalho
maior isolamento social (Viana, 2020). Isto porque pode provocar a sensação de isolamento e desmo-
a ampliação da necessidade de atendimentos clíni- tivação, afetando a saúde das(os) trabalhadoras(es).
cos refletiu a busca ou problemas de reestruturação Ainda conforme os autores, estas(es) trabalhadoras(es)
pessoal e profissional das pessoas, que se somaram às podem apresentar maior vigilância, sobrecarga de
incertezas, inseguranças, perdas e temores impostos comunicação e sentimentos de aprisionamento, au-
à população em razão da pandemia. Este expressivo mentando seus níveis de depressão.
aumento da busca por ajuda profissional on-line, Sob o mesmo foco, mas outra perspectiva de
conforme Ghislieri et al. (2017), pode gerar conflito análise, pode-se observar que à medida que o isola-
trabalho-família e trabalho-vida pessoal, uma vez mento provocado pela Covid-19 interferiu na vida
que há uma sobrecarga de trabalho ocasionada pela profissional e nas rotinas diárias das(os) teletrabalha-
flexibilidade do uso da tecnologia. A insatisfação doras(es), passou a exigir mais tempo para a criação de
decorrente destes conflitos, ao longo do tempo, traz sentido e adaptação aos novos ambientes de trabalho
consigo a possibilidade de intervirem negativamente e vida (Hu, & Subramony, 2022), algo que prediz
177
II. Condições de Trabalho
sofrimento e enuncia sintomas que se associam à tivos para conhecer como se desenvolve o processo
tecnoansiedade experienciada, por exemplo, por de tecnoestresse na categoria profissional investigada.
psicólogas(os) em teleatendimento. Além da ampliação de estudos com amostras estrati-
Verificou-se também que o aumento no desen- ficadas probabilísticas de diferentes estados do Brasil
volvimento no trabalho e na satisfação diminuiu a seriam importantes para verificar a influência cultural
dimensão de tecnoansiedade. Os dados qualitativos nos resultados obtidos. Por fim, sugere-se a inclusão
também indicaram que muitas(os) psicólogas(os) esta- de outras variáveis para a análise do tecnoestresse,
vam satisfeitos com o trabalho remoto e que as TICs como comportamento proativo, engajamento nas
não afetavam de forma negativa sua saúde mental, suas dimensões afetiva, cognitiva e comportamental,
além de que tiveram a oportunidade de aprender novas estratégias de enfrentamento ao estresse, características
formas de trabalhar. Este resultado vai ao encontro de personalidade, entre outras.
dos resultados obtidos por McBeath et al. (2020) no Em relação às implicações para a prática, em
qual as(os) psicoterapeutas relataram que, embora termos de prevenção, é fundamental o treinamen-
tenham tido dificuldades iniciais, a experiência foi, to de futuras(os) psicólogas(os), por exemplo, em
para a maioria, considerada como desafiadora. As(Os) gestão do tempo, uso de tecnologias de informação
participantes tiveram que reconfigurar a dinâmica e comunicação no atendimento clínico, estratégias
relacional e pessoal da aliança terapêutica. No geral, saudáveis de enfrentamento de estresse, entre outros,
as(os) terapeutas responderam positivamente para e profissionais para realização de atendimento remoto;
manter o seu bem-estar e de seus pacientes. pois, independentemente de pandemia, esta é uma
realidade que poderá permanecer como uma das
Conclusão formas de atendimento clínico.
Uma das forças do presente estudo é a utilização Verificou-se também a importância de ações vol-
de um consistente modelo teórico dos construtos tadas para o adequado manejo dos tecnoestressores,
avaliados e a magnitude do efeito do modelo preditor a fim de evitar o desenvolvimento do tecnoestresse.
identificado. Outra é a utilização de instrumentos Verificou-se como estressores a sobrecarga de traba-
validados para o contexto nacional e que obtiveram lho, o excesso de informações e hiperestimulação.
adequados índices de confiabilidade na amostra in- Torna-se importante identificar sinais de fadiga e
vestigada. Também se pode destacar a especificidade adotar estratégias de restauro, tais como: pausas
da amostra constituída de psicólogas(os) clínicas(os) para recuperação de energia, práticas e momentos
que trabalhavam remotamente, ainda pouco estudada de lazer, realização de atividades fora do contexto do
no Brasil. trabalho que envolvem desafios e/ou aprendizagem,
O estudo, todavia, apresenta algumas limitações como por exemplo, passatempos ou hobbies (Perez-
que devem ser consideradas na leitura de seus re- Nebra et al., 2020).
sultados. Uma delas é seu delineamento transversal São evidentes os esforços empreendidos por psicó-
que impede a análise de relações causais, e a outra é logas(os) em teletrabalho, como também por muitas
o tipo de amostra não probabilística que impede a outras categorias profissionais, para equilibrar as
generalização dos seus resultados. prioridades do trabalho e de suas casas/famílias.
A partir da investigação realizada, algumas áreas O que se observa, contudo, é que o teletrabalho
potenciais para pesquisas futuras foram identifica- compulsório durante a pandemia da Covid-19 teve
das. Assim, sugerem-se estudos de delineamento rebatimentos importantes em sua capacidade de
longitudinal misto para avaliar o comportamento e enfrentamento e adaptação. Transversalizando tal
estabilidade do modelo preditivo e estudos qualita- entendimento e de modo a se prevenir o tecnoestresse
178
II. Condições de Trabalho
179
II. Condições de Trabalho
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183
II. Condições de Trabalho
22 CONDIÇÕES DE TRABALHO
DE PSICÓLOGAS E PSICÓLOGOS
DURANTE A PANDEMIA DE CORONAVÍRUS
Evandro Morais Peixoto1
Katya Luciane de Oliveira2
Lucila Moraes Cardoso3
Antônio Virgílio Bittencourt Bastos4
Anna Carolina Lo Bianco5
A World Health Organization (WHO, 2020), após em âmbito mundial, decretou, em março de 2020,
verificar uma escalada vertiginosa da Severe Acute a pandemia do Covid-19. Schmidit et al. (2020)
Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Sars-Cov2) observaram que em 2020 também houve uma crise
1 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco USF. Mestre e Doutor em
Psicologia como Profissão e Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2012/2016), com estágio doutoral PDSE
desenvolvido na Université du Québec à Trois-Rivières - Canadá. Estágio Pós-Doutoral desenvolvido na USF. Membro da CCAP
(gestão atual) e do grupo de trabalho Avaliação Psicológica em Psicologia Positiva e Criatividade na ANPEPP. É bolsista produtividade
em pesquisa 2 do CNPq. Possui experiência na área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Avaliação Psicológica,
Psicometria, Psicologia do Esporte.
2 Professora Associada do Programa de Mestrado em Psicologia e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade
Estadual de Londrina. Conselheira Federal Coordenadora da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica, Presidenta eleita
do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica. Coordenadora do GT da ANPEPP Pesquisa em Avaliação Psicológica. Bolsista
Produtividade em pesquisa 2/CNPq.
3 Psicóloga (2003), mestre (2007) e doutora (2012) em Psicologia, ênfase em Avaliação Psicológica, pela Universidade São Francisco.
É especialista em avaliação psicológica pelo CFP. Professora do curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro
da diretoria da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBRo) por quatro gestões (2014-2022). Membro da Comissão
Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP/SATEPSI) por duas gestões (2017-2022). É bolsista produtividade em pesquisa 2 do CNPq.
4 Psicólogo. Mestre em Educação (UFBA,1984). Doutor em Psicologia (UnB,1994). Prof. Titular aposentado Universidade Federal da
Bahia. Pesquisador I-A do CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFBA. Dedica-se a pesquisa no campo da
Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase no estudo dos vínculos do indivíduo com diversas facetas do seu mundo de trabalho.
Dedica-se, também, ao estudo sobre a formação e exercício profissional na Psicologia, tendo coordenado e conduzido pesquisas de âmbito
nacional sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) no Brasil. Atualmente é membro do XVI Plenário do Conselho Federal de Psicologia.
5 Cursou a graduação de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1973), o mestrado em Psicologia (Psicologia
Clínica) na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975) e o doutorado em Sociologia da Saúde Mental na University of
London (1983). Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica. Usa como referências os trabalhos de Freud e Lacan e sua pesquisa gira em torno dos temas de tradição, transmissão, religião,
ensino, teoria da clínica e ato psicanalítico. Desde 2013 vem se dedicando à área de pesquisa de Psicanálise na Saúde, desenvolvendo
atualmente pesquisa sobre a impossibilidade de trabalho de luto, a atitude de irreverência diante da morte e a ameaça à vida em sociedade.
Agradecemos a colaboração do Prof. Dr. Fabián Javier Marín Rueda e do Técnico Mateus de Castro Castelluccio no processo de
estruturação do questionário e coleta de dados da pesquisa.
184
II. Condições de Trabalho
185
II. Condições de Trabalho
gação do link para participar da pesquisa foi feita pelas Tabela 1: Distribuição geográfica dos participantes por estado
mídias sociais CFP e participaram voluntariamente
da pesquisa 4.795 psicólogas(os). Esse capítulo tem Estado Frequência Percentual Percentual cumulativo
como principal objetivo apresentar os resultados desta SP 976 20,4 20,4
pesquisa, com enfoque na caracterização das condi- RS 561 11,7 32,1
ções de trabalho da(o) psicóloga(o) brasileira(o) e nas MG 467 9,7 41,8
consequências da pandemia à sua prática profissional. RJ 466 9,7 51,5
CE 276 5,8 57,3
Caracterização dos respondentes SC 229 4,8 62,0
Ao analisar a distribuição das(os) participantes
PR 212 4,4 66,5
pelos estados geográficos brasileiros, verificou-se
PE 206 4,3 70,8
maior número (percentual e absoluto) de respon-
ES 193 4,0 74,8
dentes em São Paulo (20,4%), Rio Grande do Sul
BA 178 3,7 78,5
(11,7%), Rio de Janeiro (9,6%) e Minas Gerais
DF 170 3,5 82,0
(9,4%). Três estados da Região Norte foram os que
PI 114 2,4 84,4
tiveram menor número de participantes: Amapá,
GO 89 1,9 86,3
Roraima e Tocantins, com 0,3% cada.
Quase metade das(os) profissionais informaram MA 85 1,8 88,1
186
II. Condições de Trabalho
Minas Gerais com maior número de participantes fica posto que os corpos são produções sociais e como
na pesquisa quando comparados ao Rio de Janeiro. tal não podem ser encarados com determinismos.
A pesquisa do CFP já destacava a Psicologia como
uma profissão feminina, as mulheres representam 90% Características institucionais
das(os) profissionais da área no país. Adicionalmente, Ao explorar sobre a instituição onde as(os) pro-
observa-se que é uma área que conta com muitas(os) fissionais atuavam, 50,7% trabalhavam em institui-
profissionais jovens, neste caso, menos de 35 anos. ção de Administração Pública (Federal, Estadual,
No que se refere à diversidade de raça e de gênero, a Municipal, Distrital), 40,5% em Iniciativa Privada
Psicologia ainda tende a reproduzir os recortes sociais e 8,8% no Terceiro Setor (OSCIP, ONGs, OS,
desiguais. Conforme apontado por Carvalhaes, Silva OSC, entidades sem fins lucrativos). 33% eram
e Lima (2020), as condições sociais brasileiras fazem concursadas(os)/estatutárias(os), 26,2% trabalha-
aumentar a desigualdade na população, pois se 24,5% vam com carteira de trabalho assinada, 25,3% sem
das(os) autodeclaradas(os) brancas(os) apresentam vínculo empregatício e 11,5% com contrato tem-
curso superior completo, entre os autodeclarados porário. As(Os) demais foram distribuídas(os) entre
negros apenas 10,26% apresentam curso superior. Microempreendedor Individual (MEI) / Recibo de
Importa esse dado, pois a Psicologia é diversa e como Pagamento de Autônomo (RPA), Cadastro Nacional
tal se constitui território que permite descontruir a de Pessoas Jurídicas (CNPJ), Voluntária(Voluntário),
premissa de que os corpos devem apresentar uma Bolsista e Cargo Comissionado. Na continuidade da
mera divisão sexual “macho” e “fêmea”. Assim como análise sobre o vínculo de trabalho, 60,5% tinham
nos estudos de Carvalhaes (2015) e Butler (1998), um único vínculo de trabalho, 16,8% tinham dois,
187
II. Condições de Trabalho
cumulativamente, e 2,5% tinham três ou mais em- a 4 salários mínimos). Enquanto para as profissio-
pregos, cumulativamente. Por fim, 20,1% declararam nais pardas os maiores percentuais (24%) de salário
não ter vínculo de trabalho. foram de R$ 2.090,01 até R$ 3.135,00 (de 2 a 3
Ao investigar sobre a renda individual da(o) psi- salários mínimos) e 20,9% entre R$ 1.045,00 até
cóloga(o), 36,2% ganhavam entre R$ 2.090,01 até R$ 2.090,00 (de 1 a 2 salários mínimos). Já entre
R$ 4.180,00 (de 2 a 4 salários mínimos), 21,3% as profissionais pretas destacam-se 22,8% que com
ganhavam entre R$ 1.045,00 até R$ 2.090,00 (de renda de R$ 2.090,01 até R$ 3.135,00 (de 2 a 3
1 a 2 salários mínimos), 19,6% de R$ 5.225,01 até salários mínimos), e 20,7% entre R$ 1.045,00
R$ 10.450,00 (de cinco a dez salários mínimos) e até R$ 2.090,00 (de 1 a 2 salários mínimos). Tais
3,2% informaram estar sem renda. Esse resultado resultados sugerem haver diferença para o percen-
revela uma realidade na qual a maior parte das(os) tual de psicólogas com melhores remunerações
psicólogas(os) tem uma renda relativamente baixa (e, porventura, também em atuação em funções
para a função considerando as funções que exercem de destaques).
e o nível de formação exigida para estas atuações Esses resultados são coerentes com o que vem
profissionais. Na Tabela 2, é exposta a distribuição sendo observado na história do Brasil, nas áreas de
da renda em função da raça. atuação, em que a desigualdade racial de renda é tão
Conforme observado na Tabela 2, observou-se demarcada e persistente (Souza, 2021). Nessa direção,
que entre as(os) profissionais brancas(os) o maior MBembe (2018) reflete que somente atingiremos
percentual de respondentes (21,8%) indicou renda uma maturidade racial, quando tirarmos de fato
individual entre R$ 5.225,01 até R$ 10.450,00 (de o negro desse lugar de desqualificação moral, um
4 a 10 salários mínimos), seguido por 18,9% que lugar que não permite ser igual e, portanto, um ser
recebiam entre R$ 2.090,01 até R$ 4.180,00 (de 2 “não merecedor”.
Sem De 1 a De 2 a De 3 a De 4 a De 5 a Mais de
1SM
renda 2 SM 3 SM 4 SM 5 SM 10 SM 10 SM
Outros 4,4% 2,2% 22,2% 33,3% 8,9% 13,3% 13,3% 2,2%
Trans/Travestis 0,0% 18,2% 0,0% 54,5% 9,1% 9,1% 9,1% 0,0%
Mulher cis 3,2% 6,3% 15,5% 20,4% 16,2% 13,8% 19,1% 5,4%
Homem cis 3.2% 5,7% 12,8% 18.6% 14,0% 12,9% 23,1% 9,7%
188
II. Condições de Trabalho
189
II. Condições de Trabalho
190
II. Condições de Trabalho
Essa situação agrava-se ao pensar nesse período o profissionais foram as de renda mensal de R$ 1.045,01
Brasil acumulou inflação de dois dígitos em diferentes até R$ 2.090,00 (de um a dois salários mínimos) e de
momentos ao longo da pandemia. Além disso, no até R$ 1.045,00 (1 salário-mínimo), demostrando a
primeiro semestre de 2020, 11,2% iniciaram nova alta vulnerabilidade dessas(es) profissionais as condições
atividade remunerada como psicóloga(o) e 2,7% da pandemia. Adicionalmente, essas(es) profissionais
fora da Psicologia. E, sem conseguir alternativas de foram as(os) que mais sentiram diminuição da renda
renda, 10,9% chegaram a solicitar auxílio emergencial no período da pandemia (60,8%).
recebendo pelo menos uma parcela, 3,7% tiveram Já ao tratar do local de trabalho durante o contexto
o auxílio negado e 1,2% não conseguiram efetivar a pandêmico, 58,6% passaram a trabalhar em casa (te-
solicitação ou obter respostas sobre o pedido. letrabalho), 16,7% passaram a trabalhar em sistema
Chama atenção que, entre as(os) profissionais de escala/revezamento e 16,2% tiveram as ativida-
da clínica, esse percentual de solicitação de auxílio des presenciais mantidas. Entre as(os) que passaram
emergencial foi muito discrepante, correspondendo a para o teletrabalho, 39,7% em atendimento on-line
27,4% das(os) profissionais. Vale ressaltar que as faixas conforme previsto na Resolução CFP no 11/2018 e
salariais com maior percentual apresentada por essas(es) as(os) demais informaram que passaram a trabalhar em
*Notas: 1Itens que possibilitem lavar as mãos, limpar e desinfetar objetos e superfícies tocados com frequência,
2
com condições de ventilação, 3como luvas, óculos ou protetor facial e aventais descartáveis), 4tais como
contenção respiratória, Máscara cirúrgica, luvas, óculos ou protetor facial e aventais descartáveis.
191
II. Condições de Trabalho
casa sem especificar a atividade realizada. Das pessoas a oferta de cursos ou treinamentos voltados para
que passaram a trabalhar em casa, 6,4% tiveram a atuação durante a pandemia. Potencialmente, esse
estrutura parcial ou integralmente provida pela(o) número seja influenciado pelo fato de que a pande-
empregadora(o). As demais tiveram que providenciar mia em si foi uma situação inusitada que abalou o
a estrutura necessária por conta própria; do total de mudo inteiro e fez com que as pessoas tivessem que
participantes, 14,3% informaram ter estrutura insa- ir aprendendo a lidar com ela enquanto vivenciavam
tisfatória/insuficiente para o teletrabalho. as experiências consequentes da pandemia.
As pessoas que continuaram trabalhando pre- Outro dado que chama atenção na Tabela 3 é que,
sencialmente também responderam a perguntas ao tratar dos equipamentos de proteção individual
sobre as medidas necessárias para continuidade do para pacientes e assistência psicológica, o número de
trabalho no ambiente presencial. Vale destacar que profissionais insatisfeitas(os) é maior do que a soma-
36,8% informaram não ter tido contato com pessoas tória de satisfeitas(os) e plenamente satisfeitas(os),
suspeitas/confirmadas de estarem com Covid-19, demonstrando que esse foi um aspecto que gerou
enquanto 33,7% tiveram contato com suspeitos e insatisfação entre as(os) profissionais. Além disso,
28,1% com casos confirmados. Na Tabela 3, é possível houve número elevado de profissionais insatisfeitos
analisar a satisfação com as condições de trabalho com os equipamentos de proteção individual para
presencial que foram oferecidas à(ao) profissional, trabalhadoras(es), alimentação no local de trabalho
considerando o contexto da pandemia. e apoio ou suporte social do chefe ou gestor.
Ao tratar da satisfação com as condições de tra- Ao perguntar às(aos) profissionais diretamente
balho presencial, conforme Tabela 3, destaca-se que, sobre a percepção que tinham sobre os impactos
ao responder ao questionário, em agosto de 2020, da pandemia nos contextos de trabalho em médio
35% das(os) profissionais consideraram insatisfatória e longo prazo, os resultados indicaram que a maior
192
II. Condições de Trabalho
parte das(os) profissionais acreditam que terão que para manter aspectos básicos de funcionamento de
reestruturar fortemente os processos de trabalho subsistência familiar.
em função da pandemia, que esses processos serão Ainda que haja o reconhecimento do impacto da
impactados pelas novas tecnologias de trabalho e pandemia na saúde mental da população em geral
que as consequências da pandemia farão com que (Schmidit et al., 2020), bem como no desgaste
a Psicologia seja mais reconhecida pela sociedade na vida pessoal, no bem-estar subjetivo e na vida
(Figura 3). Contudo, vale destacar que 35,4% das profissional dos profissionais de saúde (Fiocruz,
respondentes acreditam que enfrentarão condições 2021), o que se observa é que para 59% das(os)
de trabalho mais difíceis e precárias. psicólogas(os) participantes da pesquisa houve di-
Em relação aos impactos da pandemia nas condi- minuição/estagnação da carga horária de trabalho.
ções de trabalho, os resultados da presente pesquisa Esses dados mais vez parecem revelar descuido das
permitem observar as maiores dificuldades enfrenta- políticas públicas de saúde mental da população,
das pelas psicólogas autônomas. Pois foi justamente haja vista que não se observou nesse período novas
entre essas profissionais a percepção de maior in- demandas para contratação de profissionais. Pelo
tensificação do trabalho e perda total do trabalho. contrário, mais uma vez foi preciso a(o)s profissionais
Estes resultados estão em acordo com a literatura que se organizarem em coletivos para fornecer atendimen-
apontam para os desafios experienciados pelas(os) tos gratuitos, via voluntariado, para atender a essa
profissionais liberais que não puderam contar com o demanda negligenciada pelo poder público. Nesse
respaldo organizacionais (Araújo & Brandão, 2021), sentido, destaca-se que 24% informaram participar
ficando assim expostas(os) às dificuldades financeiras de serviços criados à população em geral e 19,2%
(Messias et al., 2022). Nesse sentido, Souza e Abagaro participavam de serviços criados para atendimento
(2021) discutem sobre a uberização do trabalho psicológico à profissionais de saúde.
entre as(os) profissionais de saúde, com o advento As condições e carga de trabalho das psicólogas
dos atendimentos por meio das TDICs, e todo o e psicólogos têm sido tema de discussão e ações
potencial de precarização das condições de trabalhos do CFP. Uma das pautas prioritária do conselho
e direitos trabalhistas dessas(es) profissionais. atualmente é a luta por jornada laboral de até
Nessa linha, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 30 horas semanais para psicólogas e psicólogos
em 2021, realizou pesquisa sobre as condições de (ver, https://site.cfp.org.br/psicologia30horas/).
trabalho das(os) profissionais de saúde no contexto Nesta direção, articulações foram estabelecidas
da Covid-19, entre as categorias pesquisadas estavam com as entidades da área para reunir esforços para
profissionais médicos e enfermeiros. Nessa pesquisa, aprovação do projeto de Lei nº 1.214/2019 pelo
detectou-se a precarização das condições de traba- Congresso Nacional. Embora sejam evidentes a
lho devido a baixos salários, gastos extras, perda de relevância deste projeto, bem como dos potenciais
renda, desemprego e perda de direitos trabalhistas. benefícios às condições de trabalho e a saúde das(os)
Esse dado de certo modo reflete que a pandemia profissionais da Psicologia, compreende-se que a
não somente precarizou a condição de trabalho mas lei pode limitar os benefícios às(aos) profissionais
também refletiu na precarização da manutenção que atuam em instituições de saúde que deve-
da vida das(os)profissionais de saúde, assim como rão, no caso da aprovação, respeitar a nova carga
os resultados do presente estudo realizado com a laboral dessas(es) profissionais. Contudo, faz-se
categoria profissional de psicólogas(os). Os dados necessário o desenvolvimento de políticas públicas
revelam que as(os)profissionais de Psicologia tam- que ofereçam respaldos às(aos) profissionais autô-
bém têm a percepção de que tiveram dificuldades nomas(os), quem de acordo com os resultados da
193
II. Condições de Trabalho
presente pesquisa mostrou-se mais vulneráveis às ria dedicada ao trabalho em regime de home office,
consequências da pandemia. sendo que 32,3% consideraram que aumentou muito
e 24,2% que aumentou um pouco.
Impactos da pandemia nas O aumento das demandas familiares concomitante
condições pessoais/familiares ao aumento da carga-horária dedicada ao trabalho pos-
Considerando-se que a pandemia impactou dire- sivelmente contribuiu para o fato de que 65,7% das(os)
tamente no cotidiano das pessoas em geral e que as participantes consideraram que o desgaste/esforço
preocupações pessoais e familiares também podem para realização do trabalho aumentou quando com-
impactar no cotidiano profissional, as(os) profissionais parado ao período anterior ao da pandemia e 36,2%
também responderam sobre suas vivências pessoais. admitiram que a qualidade do trabalho era inferior ao
Na Tabela 4, são apresentados dados sobre possíveis realizado antes da pandemia (ou seja, afetando o seu
dificuldades (ou atrasos) para gerenciar despesas bem-estar subjetivo sobre seu trabalho). Faz-se mister
familiares no período pandêmico. relacionar essa informação com o fato de que 59,4%
Conforme observado na Tabela 4, 31,1% infor- das(os) profissionais relataram que a carga horária de
maram dificuldade para dar suporte aos familiares, trabalho se manteve ou diminuiu, evidenciando os
27,2% adquiriram dívidas financeiras, tais como impactos da pandemia na prática profissional.
empréstimos ou cartão de crédito, e 20,8% com as Quando questionados sobre os casos de Covid na
despesas telefônicas. Entre os fatores apontados como família, 74,8% informaram que nenhum membro do
menor influência, foram as despesas educacionais núcleo familiar recebeu diagnóstico de coronavírus.
com dependentes, possivelmente, pelo fato de que, Entretanto, ao refletir sobre as demandas emocionais
como já mencionado, somente 21,7% têm filhas(os). surgidas no período, 35% consideraram que afetou
Ainda sobre os cuidados familiares no período o cotidiano de vida, mas não gerou demandas emo-
pandêmico, 67% das(os) respondentes informaram cionais fortes, 31,1% criaram demandas emocionais
que a carga-horária dedicada ao cuidado da família, muito fortes, mas estavam conseguindo lidar com
das(os) filhas(os), pais, demais familiares e afazeres a situação e manter-se sem a necessidade de apoio
domésticos aumentou, sendo que 42,2% disseram psicológico e 28,8% criaram demandas emocionais
que aumentou muito e 25% aumentaram um pouco. muito fortes, necessitando de apoio psicológico para
Além disso, 56,5% relaram aumento da carga-horá- lidar com essa nova situação.
194
II. Condições de Trabalho
Tais resultados sugerem que as(os) profissionais Fica posto que há muitos aspectos que se fazem
da Psicologia vivenciaram sobrecargas para além do urgentes discutir para uma melhor compreensão da
contexto profissional. Nessa direção, Dantas (2021) prática profissional em contextos de crises sanitárias,
destaca a relevância da Rede de Atenção Psicossocial respeitando-se as subjetividades de nossa categoria
(Raps) como uma estratégia para ampliação dos profissional, bem como não normalizando a precari-
pontos de apoio às(aos) profissionais mais afetados zação do trabalho. Temos que pensar que as práticas
por todos esses níveis de exigências. Desta forma, empregadas para atendermos à situação emergen-
destaca que devido ao baixo número de ações de cial e pandêmica não podem ser normalizadas sem
assistências às(aos) profissionais das áreas da saúde questionamentos que ajudem refletir sobre quais
é importante que ações sejam implementadas com as condições queremos para assegurar, em médio e
cautela e que iniciativas desta natureza precisam ser longo prazo, condições mais favorecedoras e que não
documentadas e divulgadas para aprimoramento e perpetuem desigualdades estruturais.n
consolidação da Atenção à Saúde de cada profissional.
Considerações finais
O presente capítulo não pretendeu findar as refle-
xões acerca da nossa profissão; mas, ao contrário de
esgotar o assunto, permite trazer destaques e reflexões
acerca da prática profissional. Ficou evidente com
os dados que o fazer psicológico foi afetado nesse
período pandêmico. Por um lado, há um avanço no
emprego e manejo das tecnologias da comunicação
nas práticas psicológicas e, por outro, o cenário
pandêmico trouxe fragilidades e, muitas vezes, pre-
carização, tanto pela via do trabalho quanto da saúde
mental da(o) profissional da Psicologia.
Os elementos trazidos fizeram emergir muitos
aspectos que ainda necessitam ser mais bem com-
preendidos em seus desdobramentos em análises
de contextos dos impactos à prática profissional da
categoria em médio e longo prazo. Algumas questões
surgem, quais sejam, haverá mudanças nos para-
digmas da prática do psicólogo com os impactos
massivos do emprego das TDICs? O quanto também
deve-se olhar para a formação em Psicologia (pois
as formações de um modo geral não preparam para
enfrentamento da situação pandêmica, tão pouco
para lidar com as tecnologias empregadas a prática)?
O quanto precisamos refletir o quanto ainda há que
se avançar em diversos aspectos (ligados as condições
de trabalho, racialidade, transgeneralidade, represen-
tatividade regionais, entre outros)?
195
II. Condições de Trabalho
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198
II. Condições de Trabalho
199
III
COMPROMISSO
E ENGAJAMENTO
SOCIAL
III. Compromisso e Engajamento Social
O Censo foi realizado em período de pandemia trabalhar (taxa de desemprego igual a 11,1%), no
da Covid-19, que trouxe repercussões para a saúde primeiro trimestre de 2022 (IBGE, 2022).
pública, a economia, a educação e para todas as Esse contexto ecoou também dentro da Psicologia.
esferas sociais, tanto no Brasil quanto no mundo. Um exemplo importante desse reflexo foi a ação
Época marcada por medidas sanitárias, distancia- popular movida por um grupo de psicólogas(os)
mento social, lockdowns e milhões de mortes em defensoras(es) do uso de terapias de reversão sexual.
que a desigualdade social teve seu papel. Para além Ação que levou o Supremo Tribunal Federal a con-
do par de anos complexo, este censo deu-se em ceder liminar mantendo a íntegra da Resolução do
período histórico que tem sido marcado por proble- CFP nº 1/1999, que veta o exercício de qualquer
mas climáticos, de imigração, desmatamento e uma atividade profissional que favoreça a patologização de
divisão mais acirrada entre ideologias de esquerda e comportamentos ou práticas relacionadas à orientação
de direita, entre outros problemas sociais. No ano sexual. Outro exemplo foi a demissão de inúmeros
de 2020, 49,6% da riqueza do Brasil concentrava-se docentes nas universidades privadas no Brasil, di-
na mão de 1% da população mais rica, o pior nível minuição dos investimentos públicos em educação,
de concentração de renda desde 2000. Além disso, o notadamente na educação superior, e a exclusão das
nível de desigualdade subiu para 89, numa escala em ciências humanas (entre elas a Psicologia) de vários
que quanto maior o indicador pior a desigualdade editais de fomento.
(Research Institute, 2021). A taxa de desemprego no Por outro lado, na última década tem havido
Brasil atingiu 11,9 milhões de pessoas em idade de intensificação da utilização das mídias sociais, com
1 Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (UnB, 2010). Professora do departamento de psicologia e sociologia da
Universidad de Zaragoza, Espanha. Filiada à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), à Associação
Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT) e à International Association of Applied Psychology (IAAP). Editora
associada da Revista de Administração do Mackenzie (RAM). Coordena em conjunto o Núcleo de Pesquisa em Processos Laborais
Sustentáveis e membro do Grupo de Pesquisa de Bienestar y Capital Social da UniZar.
2 Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (1987), mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (2000), doutorado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e Pós-Doutorado
em Psicologia pela University of Greenwich - Inglaterra (2015). Atuou na área de Recursos Humanos durante 11 anos e atualmente
é professora associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. Foi membro da Câmara de
Assessoramento da FAPEMIG - área de Ciências Sociais, Humanas, Letras e Artes (2008 a 2012). Editora-geral da Gerais: Revista
Interinstitucional de Psicologia (2010-2011). Coordenou o Programa Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ (2015-2017). Ocupou
o cargo de Presidente da SBPOT - Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (Junho 2020 a Janeiro 2022).
É líder do Núcleo de Pesquisa em Acessibilidade, Diversidade e Trabalho (NACE). Suas pesquisas contemplam a área de Psicologia
Organizacional e do Trabalho, com foco nas relações entre os seguintes temas: diversidade nas organizações de trabalho, especialmente
inclusão e gestão do trabalho de pessoas com diferença funcional (deficiência), satisfação no trabalho e socialização organizacional.
201
III. Compromisso e Engajamento Social
o aparecimento de novas formas de trabalho em social garantindo acesso qualificado à saúde mental
que o conteúdo midiático se reverte em seguidores por parte da população historicamente excluída; e
e, consequentemente, em reconhecimento social e (3) na construção de intervenções mais aderentes às
financeiro, com valorização das identidades e prá- características da população, (Bock, 1999; Miron
ticas vinculadas ao mundo da mídia (Campanella, & Guareschi, 2017).
2019), com seus ônus e bônus. A individualização da Os debates sobre o compromisso social da pro-
busca por reconhecimento e o culto às celebridades fissão contribuíram para rever pressupostos episte-
midiáticas por um lado; e a luta pela emancipação mológicos importantes e ampliar possibilidades de
das camadas periféricas da população, por exemplo, construção do conhecimento, colocando sob júdice
a mobilização em função da morte de jovens negros conceitos como neutralidade científica e a própria
e das favelas do Rio de Janeiro em 2020, por outro compreensão do objeto da Psicologia (Bock, Ferreira,
(Azevedo, 2021). Gonçalves, & Furtado, 2007, Costa, & Machado,
Nesse contexto, cabe-nos perguntar: o quanto nós, 2020), além de colocar a profissão em movimentos
psicólogas, estamos fazendo um trabalho engajado de busca de garantia de direitos e também em ne-
em bandeiras sociais? O quanto nos debruçamos gociação com o Estado para ampliar seu campo de
sobre as temáticas que podem ser relevantes para uma atuação profissional, via políticas públicas (Miron,
grande, se não a maior parte da população brasileira: & Guareschi, 2017, Yamamoto, 2007). Nesse senti-
as minorias de poder? Em outras palavras, o que do, entende-se que o compromisso social apenas se
estamos falando é de comportamentos coletivos e concretiza no engajamento com a realidade social,
movimentos sociais. Embora os movimentos sociais isto é, na ação profissional concreta com vistas à
no Brasil vejam-se por vezes enfraquecidos (Pérez- transformação social.
Nebra, & Andrade, 2022), eles são um importante
marco de mudança. Engajamentos em movimentos sociais
Nesse sentido, nosso objetivo é apresentar um Os movimentos sociais podem ser considera-
panorama do engajamento em questões sociais, da dos como uma forma de comportamento coletivo,
área de atuação, da clientela atendida e temas emer- porque compartilham com este os traços básicos
gentes na conjuntura social do país, que são de maior que são extrainstitucionais e emergentes. Assim, o
interesse das(os) psicólogas(os), a fim de contribuir movimento social desafia a ordem do que está esta-
para ampliar a compreensão sobre a profissão no país. belecido, preconiza uma mudança social ou resiste
Apresentaremos um breve referencial teórico sobre ante o que está estabelecido e, ao menos na sua fase
compromisso e movimento social e como isso resulta inicial, o movimento social apresenta caráter infor-
em ações sociais, discutimos com os resultados do mal, não estruturado (Javaloy Mazón et al., 2007).
censo e apresentamos considerações finais. Implica dizer que é preciso perceber que o que está
estabelecido incomoda, é injusto, gera sofrimento. O
Compromisso Social movimento social opõe-se à ordem social, assumindo
As discussões sobre o compromisso social são uma dimensão política e ideológica; vale ressaltar que
parte importante da profissão da(o) psicóloga(o) no o comportamento coletivo difere do movimento social
Brasil. São alguns critérios definidores do compro- porque o primeiro é não institucional, já o último é
misso social o exercício profissional ancorado: (1) anti-institucional (Javaloy Mazón et al., 2007). Ele
na compreensão do contexto social da produção do ou ela quer mudar a instituição posta e imposta.
sofrimento psíquico em contraposição à individua- Portanto, uma atuação profissional que seja apolítica
lização da doença; (2) na busca por transformação é impraticável, ela demanda posicionamento político
202
III. Compromisso e Engajamento Social
para a mudança social do que está estabelecido e do (Briñol et al., 2019; Shen, 2004). Em outras palavras,
que gera sofrimento. o fato de a pessoa trabalhar com determinados públi-
O movimento social, quando se desenvolve, ama- cos ou se expor a determinados conteúdos em redes
durece, apresenta um comportamento organizado, sociais, que se chama agenda setting na literatura de
demanda tempo para ser profissionalizado e estru- comunicação social (Pérez-Nebra, Dias, & Torres,
turado. Este movimento processual de estruturação 2014), pode(ria) explicar o engajamento que ele
tem um caráter intencional, propositivo e instru- ou ela tem em determinados grupos sociais. Vamos
mental, e seu comportamento muda de expressão, verificar isso também neste capítulo, mais adiante.
passa a ser menos espontâneo e mais politizado, A última explicação, de que a participação vem por
adquirindo caráter de maior institucionalização. um gatilho pessoal, é de pouco controle, ou seja, é
De certa forma, burocratiza, mas pouco a pouco se pouco gerenciável, mas é importante saber se pessoas
entendem os mecanismos de mudança, os agentes, se engajam porque são pessoalmente atingidas, pois
e que parte do que funciona para esta atuação está isso tem relação com o nível de engajamento no mo-
na relação política (Javaloy Mazón et al., 2007) (não vimento social, ou seja, será que o fato da psicóloga
necessariamente politizada ou política partidária, ser uma pessoa com deficiência a faz engajar-se mais
mas de política pública). em movimentos sociais desse grupo? Ou a atender
Ocorre que os movimentos sociais são variados e públicos assim? Ou buscar matérias de alguma forma
o que explicaria as pessoas se engajarem em determi- em particular? Esta é outra pergunta que vamos tratar
nados movimentos e não em outros? Por exemplo, de responder neste capítulo. Além disso, é importante
relativos a gênero, raça, LGBTQIA+ ou deficiências? sublinhar que o movimento social anti-institucional
Há três linhas explicativas para que as pessoas, portan- pode gerar uma ação coletiva quando uma situação
to, as psicólogas, se engajem em movimentos sociais: for percebida ou interpretada como injusta.
a. há certas características psicológicas comuns; b.
compartilham atitudes e valores afins ao movimento; Ações coletivas
c. gatilhos da própria vida do indivíduo (história A base da ação coletiva é um conjunto de cren-
pessoal) (Javaloy Mazón et al., 2007). ças e valores que orienta, no sentido de legitimar,
Um ponto interessante sobre as características ações empreendidas por um movimento social, que é
psicológicas é que as pesquisas não têm clareza se as composta por 3 eixos: injustiça, identidade e eficácia
pessoas com certas características psicológicas enga- (Javaloy Mazón et al., 2007). A injustiça surge de
jam-se no movimento ou se o movimento social é uma indignação moral com a percepção de priva-
que tem um efeito sobre as características psicológicas ção de certos direitos que o indivíduo crê que lhe
dos participantes. Entretanto, o compartilhamento correspondem e, no geral, é acompanhada de emo-
de atitudes e valores com o movimento social parece ções intensas, particularmente a raiva. A identidade
ter maior sustentação empírica, pois se a pessoa não refere-se a uma identificação mútua, a construção
tem uma atitude favorável e relativamente forte a de um “nós” que implica a construção de um “eles”.
alguma ação, não tem porque ela se engajar nela Finalmente o sentido de eficácia é a crença de que
(Luttrell, Petty, & Briñol, 2020). a situação de injustiça pode ser mudada graças a
Um dado relevante no movimento social e tenta- uma ação coletiva (Javaloy Mazón et al., 2007).
tivas de explicação desse engajamento é o fato de a Assim, a situação deve ser percebida como injusta,
acessibilidade de uma atitude aumentar a probabilida- essa percepção de injustiça é compartilhada por um
de de que ela se converta em um comportamento e, grupo que contém uma identidade social e deve gerar
portanto, aumenta a relação atitude-comportamento confiança na ação social para mudá-la; portanto, se
203
III. Compromisso e Engajamento Social
não houver qualquer uma dessas 3 condições, a ação descreveremos com dados do Censo-Psi o quanto
coletiva não ocorre (Jost, & Kay, 2010). a pessoa se engaja em diferentes questões sociais,
Para que a ação coletiva ocorra, há uma vasta sua área de atuação, a clientela atendida por ela e o
literatura mostrando que se a pessoa percebe-se como agendamento midiático a que ela se expõe.
membro daquele grupo social, aumenta a chance Organizamos a apresentação do conteúdo em
de se engajar nela (Brown, 2000, Souza et al. 2019; algumas etapas. A primeira delas será comparando
Yzerbyt, & Demoulin, 2010); portanto, volta-se as regiões do país. Nela, começamos descrevendo a
ao ponto de que se a(o) psicóloga(o) é pertencente questão do engajamento nas questões sociais, que é
a algum grupo de minoria (ou em desvantagem, o tema central deste capítulo. Depois descrevemos a
privado de algum direito social), ela ou ele mais área de atuação, a clientela atendida pela psicóloga,
provavelmente se engajará em um movimento social seguido da agenda setting. A Figura 1 descreve o
e em uma ação para mudança do status quo. Assim, esquema de organização do capítulo.
Gênero
13 áreas
Grupos
Saúde
Raça
minorizados e física-mental
LGBTQIA+
SUS e problemas
Deficiência
climáticos
Estratos
populacionais, Saúde
violência física-mental e
e grupos entretenimento
minorizados
Saúde
Clientela não
física-mental
vulnerável e violência
Violência,
Questões
assistência econômicas,
social, SUS e políticas,
LGBTQIA+ violência e
problemas
climáticos
* Notas: N=8.280. 1. Análise fatorial com boas qualidades psicométricas, alfas >0,87. 2. Descrição de área de
atuação do psicólogo que pode ser mais de uma. 3 e 4. agrupamento realizado com procedimento de análise de
cluster two-step em que o número de grupos é delimitado a partir da similaridade de resposta dos participantes.
204
III. Compromisso e Engajamento Social
Clientela atendida
A clientela atendida pela psicóloga é bastante
Sudeste variada e, no geral a psicóloga tende a atender a mais
do que um grupo identitário. Para compreender este
fenômeno, utilizamos uma técnica de “combinar
dados”: cluster. Ela nos ajuda a agrupar as psicólogas
Sul
por tipos de clientes com quem trabalham. Portanto,
0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,6 por exemplo, a psicóloga pode relatar que atende
usuários de álcool e outras drogas, mas além disso:
Gênero Raça LGBTQIA+ Deficiência usuários do SUS, população negra e LGBTQIA+ e
pessoas com deficiência (este foi o grupo que chama-
mos de Clientela 1 que agrupa 45,5% das psicólogas
Dentre as diferenças de região que se poderia que relatam atender estas pessoas). Entretanto, a
destacar, no Nordeste o engajamento em questões psicóloga que atende a estes grupos, usualmente não
de raça é ligeiramente superior, coerente com o que atende a comunidades de campo, florestas e/ou áreas
tem sido encontrado na literatura (Pérez-Nebra, & úmidas, comunidades tradicionais, povos quilom-
Andrade, 2022); por outro lado, no Sul, esse engaja- bolas entre outros (Clientela 2 que contém 10,5%
mento é menos frequente. Vale comentar que 74,6% das psicólogas). Em outras palavras, o que queremos
205
III. Compromisso e Engajamento Social
Figura 3: Engajamento em questões sociais e áreas de atuação dizer é que as psicólogas, com o tempo, tendem a se
especializar e a atender a determinados grupos, até
por uma demanda social da sua comunidade e de
Avaliação onde ela vive, onde trabalha etc.
Psicológica Os clusters (agrupamentos) das clientelas atendidas
que encontramos são os seguintes:
Docência e
Ensino de
Psicologia • Clientela 1 – Grupos minorizados e SUS,
contendo 45,5% das psicólogas que atendem
Neuropsicologia usuários de álcool e outras drogas, usuários do
SUS, população negra, pessoas LGBTQIA+
e pessoas com deficiência.
Psicologia
Clínica
• Clientela 2 – Estratos populacionais, violên-
cia e grupos minorizados, contendo 10,5%
Psicologia
Forense/Jurídica das psicólogas que atendem a Comunidades
do campo, florestas e/ou áreas úmidas, comu-
Psicologia nidades tradicionais, crianças e adolescentes
Organizacional
e do Trabalho em situação de violência, mulheres em situação
de violência, pessoas em situação de rua, po-
Psicologia pulação indígena, povos quilombolas, usuário
Social/Comunitária de álcool e outras drogas, população negra,
pessoas LGBTQIA+ e pessoas com deficiência.
Psicologia do
Trânsito
• Clientela 3 – Clientela não vulnerável, repre-
sentando 10,1% das psicólogas que responde-
Psicologia ram que não trabalhavam com estas populações.
Hospitalar
206
III. Compromisso e Engajamento Social
Figura 4: Descrição por região do agrupamento de o engajamento em todas as bandeiras atende mais a
clientela atendida clientela dos agrupamentos 2 e 4, respectivamente
Estratos poulacionais, violência e grupos minoritários
e Violência, assistência social, SUS e LGBTQIA+.
39,6%
28,5% Embora a Clientela 1, de grupos minorizados e SUS,
Norte
6,7% seja a mais atendida pelas psicólogas no geral, não
25,2%
é onde estão as psicólogas mais engajadas. Aquelas
44,2% que atendem (Clientelas 2 e 4) comunidades do
13% campo, florestas e/ou áreas úmidas, comunidades
Nordeste
9,5%
33,3% tradicionais, crianças e adolescentes em situação de
violência, mulheres em situação de violência, usuários
43,1% de álcool ou outras drogas são as mais engajadas.
16,4%
Centro-oeste
10%
30,5% Figura 5: Nível de engajamento por bandeira social e por
agrupamento de clientela atendida
48%
5,5%
Sudeste
11,2%
35,3%
Gênero
44,3%
10,7%
Sul
8,6%
36,4%
Clientela 1 Clientela 2
Raça
Clientela 3 Clientela 4
207
III. Compromisso e Engajamento Social
208
III. Compromisso e Engajamento Social
Figura 7: Nível de engajamento com bandeira de a psicóloga preferir manchetes do Agenda 1, que
social por cada cluster de agendamento agregam saúde física e mental e atualidades.
De maneira geral, quanto maior o engajamento
em questões sociais, menor a chance de a psicóloga
Gênero
se interessar por manchetes que estão no Agenda 2
que agrega Saúde física e mental e entretenimento.
Depois de descrever por região o que encontramos
em termos de engajamento às bandeiras sociais, área
de atuação, clientela atendida e agendamento, a com-
Raça binação destas variáveis com o perfil da psicóloga era
importante para uma compreensão desta psicóloga.
209
III. Compromisso e Engajamento Social
3 (Clientela não vulnerável). Não há diferença sig- lacionais, violência e grupos minorizados) o grupo
nificativa para nenhuma outra clientela. sem deficiência aparece com maior frequência.
O agenda setting, diferente dos demais, emerge
com uma diferença de identidade de gênero. Há uma Raça
diferença entre homens e mulheres, em que elas se O engajamento com questões de raça aumenta e
identificam com as Agendas 1 e 2 (Saúde física e o engajamento com questões de deficiência diminui
mental e atualidades, Saúde física e mental e entrete- quando a pessoa se descreve negra. Ademais, os que
nimento) e os homens com as Agendas 3 e 4 (Saúde se descrevem como indígenas, pardos e pretos são
física e mental, cultura e violência, Questões econô- os que mais atendem a clientela 2, ou seja Estratos
micas, políticas, violência e problemas climáticos). Os populacionais, violência e grupos minorizados quando
não binários não apresentam diferenças significativas comparados a quaisquer outros grupos.
com as outras duas identificações de gênero. Os grupos de identificação pretas e pardas apare-
cem com maior frequência para a Agenda 1, de Saúde
Orientação sexual física e mental e atualidade. A Agenda 2, de Saúde
O engajamento com questões LGBTQIA+ au- física e mental e entretenimento os/as brancos/as, es-
menta ligeiramente para os que se descrevem com tão em maior frequência proporcional, quando com-
orientação sexual homossexuais e pansexuais. Nota- parados aos demais grupos. Vale ressaltar que, como
se também que este grupo tem menos engajamento mencionado em capítulos anteriores, a Psicologia é
com raça e deficiência. Com relação à clientela aten- exercida predominantemente por mulheres brancas.
dida, há uma diferença para o Clientela 2 (Estratos
populacionais, violência e grupos minorizados), em Idade
que os heterossexuais os atendem menos quando A idade não apresenta diferença significativa
comparados aos homossexuais, bissexuais, pan- de média com nenhum dos tipos de engajamento.
sexuais e assexuais. Nenhuma outra diferença de Portanto, o nível de engajamento independe da idade
clientela aparece nos dados. (todas as correlações com magnitude abaixo de 0,1).
De forma similar, o agenda setting apresenta uma Nota-se, no entanto, que a Clientela 2, de Estratos
diferença de orientação sexual, os heterossexuais populacionais, violência e grupos minorizados é mais
estão mais frequentes na Agenda 1 de manche- atendida pelo público mais jovem quando comparado
tes, ou seja, Saúde física e mental e atualidades. a todos os demais clusters.
Homossexuais mais frequentes na Agenda 4 que A idade também diferencia os mais jovens com
contém Questões econômicas, políticas, violência e relação ao agendamento; neste caso, os mais jovens
problemas climáticos. Os bissexuais mais frequen- proporcionalmente escolhem mais as manchetes da
tes na Agenda 3 que agrega saúde física e mental, Agenda 2, Saúde física e mental e entretenimento,
cultura e violência. quando comparados aos demais grupos.
210
III. Compromisso e Engajamento Social
e movimentos coletivos, mas que este engajamento Comunidades do campo, florestas e/ou áreas úmidas,
varia de intensidade e objeto conforme a região do comunidades tradicionais (grupo Clientela 2). Este
país, a área de atuação, a clientela atendida, o agenda- dado sugere que nessa região a formação da psicóloga
mento e o próprio perfil da psicóloga e do psicólogo. possa acompanhar a necessidade desta região.
A ação social, retomando, ocorre quando se per- O Agendamento se manteve estável entre regiões.
cebe injustiça, há identidade e se percebe eficácia. Ademais, embora a maioria das psicólogas leia as
A psicóloga, nós acreditamos, faz parte de um mo- matérias relativas à sua profissão, os mais engajados
vimento social “silencioso”, ou seja, talvez menos são aqueles que leem sobre cultura, assassinatos de
explícito, mas que se nota nas evidências empíricas pessoas negras (Agenda 3 – Saúde física e mental,
que temos aqui. Este engajamento variar de acordo cultura e violência), crise econômica e climática
com a região do país é relativamente esperado, o Brasil (Agenda 4 – Questões econômicas, políticas, violência
é um país continental e há diferenças entre as cinco e problemas climáticos).
regiões que se veem refletidas nas suas necessidades Finalmente, a área de atuação também parece atuar
sociais e na abertura para o trabalho. As bandeiras como um moderador na bandeira social de maior
de gênero e raça são as bandeiras mais antigas do engajamento, visto que as psicólogas distribuem-se
país e ainda estão presentes pela sua necessidade, em tipos de atuação e sabe-se que algumas áreas de
mas outras bandeiras estudadas estão sendo incluí- atuação muitas vezes ocorrem em conjunto, como
das e apresentam uma atuação da psicóloga nelas. Avaliação Psicológica e Trânsito.
Nota-se também que embora fosse esperado que Portanto, percebe-se que há uma ação coletiva
quando o psicólogo fosse pessoalmente implicado na da(o) psicóloga(o), orientada a diferentes bandeiras
bandeira social ele ou ela tendesse a aumentar o seu sociais e que percebe injustiças, identifica-se com
engajamento, tal expectativa é apenas parcialmente elas, mas também identifica o grupo social com o
confirmada. Ela ocorre, mas com menor frequência qual ela trabalha e se percebe como ser atuante e
do que se poderia esperar, ou seja, independente da que pode transformar o status quo com sua atuação.
pessoa se identificar como A ou B, ela se engaja. Portanto, é uma categoria que se engaja; resta agora
A área de atuação clínica ser a prevalente também avançar para um movimento social mais institucio-
era esperado, não apenas pelo último censo que já nalizado, mais atuante nas esferas políticas que dão
demonstrava isso, mas a representação social da trabalho, mas são relevantes para a transformação
psicóloga ainda é ancorada na clínica e talvez seguirá desse status quo.n
sendo. Seguida da Psicologia Clínica estão a Psicologia
Social e a Psicologia da Saúde; vale comentar que
a maioria das linhas de pesquisa dos programas de
pós-graduação em Psicologia no Brasil concentra-se
exatamente na Psicologia Social e na Psicologia da
Saúde (Bastos et al., 2017).
A Clientela 1, denominada Grupos minorizados
e SUS, atendida com maior frequência, agrega um
grupo muito variado de pessoas, o que pode expli-
car a distribuição deste agrupamento em várias das
bandeiras sociais, mas centrando-se mais em gênero e
deficiência. Ademais, chama a atenção que no Norte
a clientela atendida seja mais diversa, incluindo
211
III. Compromisso e Engajamento Social
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213
III. Compromisso e Engajamento Social
24 Direitos Humanos e a
Psicologia no Brasil
Maria de Jesus Moura1
Wanderson Vilton N. da Silva2
Robenilson Moura Barreto3
O tema de direitos humanos demarca sua presen- os efeitos psicológicos que constituem sua vertente
ça no sistema conselhos de psicologia depois que a subjetiva; e intervir em situações concretas em que
comissão nacional foi criada em caráter permanente, existam violações dos direitos humanos que este-
em 1997. Ele foi, aos poucos, se ampliando nas jam produzindo sofrimento mental. Estes objetivos
comissões regionais e ganhando força teórico-po- apontam para a principal meta da CDH: sensibilizar,
lítica nas articulações e na constituição de nossas mobilizar e motivar a categoria na defesa dos direi-
práticas profissionais. tos humanos, compreendendo ser este um desafio
São objetivos e atribuições da Comissão de permanente para a prática, ensino e pesquisa das
Direitos Humanos (CDH) do Conselho Federal psicólogas e psicólogos.
de Psicologia (CFP) e dos Conselhos Regionais: Ao longo de sua história, a psicologia se alinhou
incentivar a reflexão e o debate sobre os direitos a um projeto da modernidade, entorno de uma con-
humanos inerentes à formação, à prática profissio- cepção de indivíduo, individualista, demorando-se
nal e à pesquisa em psicologia; estudar os múltiplos nessa ideia, a psicologia demorou-se em questionar-se
processos de exclusão como fonte de produção de sobre seu engajamento social e político, contribuin-
sofrimento mental, evidenciando não apenas seu do para um projeto de sociedade que privilegiou o
modo de produção socioeconômico como também indivíduo, culpabilizando-o e responsabilizando-o
1 Psicóloga e psicoterapeuta antirracista. Mestra em Psicologia pela UFPE, pós-graduação em Psicologia Clínica de Orientação Analítica
pela UNICAP. Docente da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire). Esteve na coordenação da Comissão de Direitos Humanos do
CFP/CRPPE, Enfrentamento ao Racismo do CRPPE, colaboradora da Comissão de Avaliação Psicológica. Atualmente conselheira na
gestão do CFP(2020/2022); Fundadora e coordenadora nacional da ANPSINEP - Articulação Nacional de Psicólogas/os Negras/os
e Pesquisadoras/es; Associada a ABRASME - Associação Brasileira de Saúde Mental, ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia
Social e a ABPN - Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Faz parte do coletivo Ilê Psi.
2 Psicólogo. Formado em Psicologia pela UFAL (2011), com Mestrado em Psicologia pela mesma Instituição (2013) e Doutorado em
Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (2018). Atualmente sou docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE
na condição de pós-doutorando (PNPD/CAPES). Tenho meus estudos vinculados ao Grupo de Pesquisa: Processos Culturais, Políticas
e Modos de Subjetivação (UFAL) e sou integrante do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades (GEMA) da UFPE. Associado
à ABRAPSO desde 2011, atualmente integro a coordenação do Núcleo ABRAPSO-PE. Tenho desenvolvido atividades como Editor
Associado e Assessor de Edição da Revista Psicologia e Sociedade.
3 Psicólogo, Psicanalista, Especialista em Educação Especial e Inclusiva. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP-UFPA). Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental
da Universidade Federal do Pará (LPPF/UFPA). Formação em Psicanálise pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA). Atualmente
integrante da Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (as) e Pesquisadoras (os) (ANPSINEP) região Norte e docente de
Psicologia na Universidade CEUMA (Brasília - DF).
214
III. Compromisso e Engajamento Social
pela sua pobreza e miserabilidade. Cecília Coimbra Na psicologia, o conceito de indivíduo muitas
(2001) mostra-nos como a psicologia inserida em vezes apresenta-se como um a priori não problema-
uma discussão individualista e culpabilizadora acaba tizado, tanto nas suas formulações teóricas, quanto
por centrar-se em uma noção de indivíduo que passa em seus desdobramentos prático-profissionais. Muitas
a ser medida de todas as coisas. discussões travadas sob a égide de dicotomias como
indivíduo/sociedade, natural/social, inato/adquirido,
Ou seja, além da forma como são produzidos pressupõem a existência de um indivíduo naturaliza-
os “bandidos”, os “marginais”, os “criminosos” do e desenvolvem-se sem uma reflexão devida sobre
de todos os tipos, eles são ainda construídos esses pressupostos.
para se responsabilizar por sua miséria, margi- Assim, Mancebo (2002, p. 103) ressalta que “a
nalidade e criminalidade. No capitalismo uma teorização que eleva o conceito de indivíduo ao
das mais competentes produções prende-se à nível de bandeira política e realidade econômica é
individualização das responsabilidades – atri- o liberalismo dos séculos XVII e XVIII”, por meio
buindo à natureza humana, à sua história de de uma elevação da liberdade individual frente à
vida ou ao seu meio ambiente certos dons ou coletiva,; a ideia de igualdade entre todas as pes-
defeitos. O indivíduo passa a ser medida de soas na esfera pública e privada,; por uma ideia de
todas as coisas e o único responsável por suas consciência individual centrada na razão; e, por
vitórias ou fracassos. (Coimbra, 2001, p. 64) último, a autora destaca a centralidade da ideia de
homem como base da sociedade, sendo este um ser
A partir desse projeto de modernidade, a psico- único, racional, proprietário de si e sem mediações
logia forjada nessa construção indivíduo-centrada na participação social.
passou a interessar-se construir conhecimentos que
pouco estranhavam ou questionavam esta realidade, Retomando as matrizes componentes da subje-
uma vez que aos poucos iniciamos uma construção tividade, emergentes nos dois séculos passados,
político-social que questiona e interroga tais natura- tem-se nos dias que correm um homem movido
lizações, especialmente a partir da década de 1980, pelo individualismo competitivo, pela intimi-
ganhando força na década de 1990, início da primeira zação exacerbada, pela disciplina e docilidade
redemocratização do país. imposta aos corpos, ou por todas essas dinâmicas
Para Deise Mancebo (2002, p. 2), combinadas, mas submetido ao império de uma
microética que o impede de formular e agir
Em outros termos, um dos universais da mo- em prol de acontecimentos globais (Mancebo,
dernidade ocidental é a suposição dominante 1999b). Finalizando, a produção do homem
de que o homem, na sua constituição mais movido por seus estritos interesses, e indiferente
íntima, é o centro e o fundamento do mundo. à esfera pública, assume dimensões de controle
Ao longo dos tempos, construiu-se a expectati- e regulamentação da vida das populações, cen-
va de cultivo e respeito à interioridade, através tral para o projeto neoliberal em curso. E neste
da proteção da privacidade e instituiu-se uma ponto, é preciso relembrar Foucault (1994)
nítida separação entre as esferas públicas e para quem “a integração dos indivíduos a uma
privadas da vida. No entanto, esse processo comunidade ou totalidade resulta de uma cor-
de constituição da subjetividade moderna foi relação permanente entre uma individualização
longo e continua sofrendo modificações in- sempre mais avançada e a consolidação desta
tensas até a atualidade. totalidade” (p. 827). (Mancebo, 2002, p. 107)
215
III. Compromisso e Engajamento Social
Neste sentido, a categoria historicamente apre- para profissionais éticos e comprometidos com os
sentou dificuldades em aderir à temática, muito direitos humanos.
frequentemente por uma visão do senso comum sobre O tema sugere algumas reflexões que podem con-
o que de fato significam direitos humanos e por não tribuir para a formação profissional em Psicologia e
entender a relação com a psicologia. Esta questão como ponto de partida é importante acessar as con-
sempre foi uma preocupação daquelas(es) que com- cepções de humano e de direito. São surpreendentes
puseram as comissões. As campanhas surgiram como as concepções distintas do que seja humano, aqui
uma estratégia de aproximar psicólogas, psicólogos incluindo todas as referências de humano binário
e psicólogues de todo país ao tema. Certamente a (mulher, homem) e não binário. Não abordaremos as
repercussão das campanhas, dos eventos, das publi- referências de humano com base na religião por con-
cações, fizeram a diferença nestes quase 25 anos de siderarmos que a psicologia é definitivamente laica.
existência da CDH. Vimos os desdobramentos das O ser humano também é chamado de indivíduo,
campanhas, nos regionais, a cada gestão. No entanto, como singular e único – na filosofia o “iindivisum
a grande parte da categoria continua apresentando re- in se”, sentido que é dado dentro da filosofia que
sistências ao tema dos direitos humanos. Percebemos fundamenta o liberalismo. Esse é o ser humano
também alguns posicionamentos nas redes sociais do que vale por si e não tem nada a ver com o outro
CFP, demonstrando falta de empatia e de aderência (CFP, s.d.), “a ética aqui é individualizante e ego-
ao tema, principalmente a prática de garantia dos centrada, que busca apenas seu próprio interesse,
direitos humanos como responsabilidade ética da sem se preocupar com o outro” (Guareschi, 2008,
prática profissional. Compreendemos também que o p. 29). O indivíduo, o específico, a diferença aqui
momento político nacional também gerou incentivo não interessa, o foco é no coletivo (CFP, s.d.), assim,
para a distorção e falta de credibilidade ao tema. “não interessa o ser humano em si, o que interessa
Frente a esse cenário, a CDH, da atual gestão, é o grupo, a organização, a instituição, o partido, o
iniciou um debate com as comissões regionais sobre Estado” (Guareschi, 2008, p. 30).
ações para ampliar ou mobilizar um maior número de E o ser humano como pessoa/relação, ou seja, o
psicólogas, psicólogos e psicólogues. A preocupação que é singular (indivíduo) mas que não existe sem
era pensar novas estratégias para acessar a categoria. relação. Compreende-se a relação como “ordo ad
Mas, para tal, entenderam que precisavam de mais aliquid” – ordenação intrínseca de uma coisa em
informações sobre o conhecimento das psicólogas direção a outra ou “algo que não pode ser, sem que
sobre direitos humanos e democracia. Surge assim a haja o outro”. É uma unidade pessoa/relação, algo
proposta de agregar essa demanda à consulta pública que existe porque o outro o constitui (CFP, s.d.).
do Censo da Psicologia no Brasil, contribuindo com Para chegarmos aos Direitos Humanos, preci-
a elaboração das questões apresentadas. samos compreender a que direito nos referimos.
A categoria apresentou respostas importantes e Em latim, “direito” é “jus”, relativo a justo, justiça,
que sinalizam para os caminhos que as próximas jurídico. “O Direito é a norma das ações humanas
gestões das CDHs poderão utilizar para pensar novas na vida social, estabelecida por uma organização
estratégias de atuação do sistema conselhos ao agregar soberana e imposta coativamente à observância de
e aproximar mais profissionais de psicologia ao tema todos”, segundo Ruggiero e Maroi (em Istituzioni
dos direitos humanos. Assim como as instituições di diritto privato, 8. ed., Milão, 1955, v. 1, § 2º).
de ensino superior, pensar os cursos de psicologia Aqui falaremos do direito como algo concreto, que
é refletir se os componentes curriculares utilizados se materializa e que pode assumir diversos sentidos
oferecem a aprendizagem que a formação precisa ao se relacionar aos vários sentidos do ser humano.
216
III. Compromisso e Engajamento Social
A exemplo, o direito como adjetivo ou predicado múltiplos como as forças que se encontram
é o direito de uma pessoa de se alimentar, mas nem no mundo.
todos possuem esse direito garantido. Se nesse caso
o humano aqui é concebido como parte de um todo, Direitos humanos fundamentados na ética da
os seus direitos só poderão ser garantidos quando o justiça são direitos a que todos têm direito, não
direito de todos forem garantidos. De maneira geral, importa quem sejam, nem onde vivam, são direi-
não interessa se alguém não tem alimento, se alguém tos para viver com dignidade, com liberdade, com
passa fome, se o Brasil está bem, vai tudo bem. O segurança. Como vimos, ao longo de nossa história
povo com fome seria, para aquela perspectiva, apenas recente, são direitos que precisam ser conquistados,
um detalhe. Uma ética que vai investir na garantia pois pertencem a cada um de nós, na medida em que
de direitos humanos individuais, cada um por si. Já seríamos reconhecidos como seres humanos, portanto,
a ética coletiva vai desprezar as diferenças, as sub- provisórios e descontínuos. Por isso, é importante
jetividades e se contentar com soluções totalizantes a luta para que tais direitos não sejam retirados e
ou uma ética justa que vai considerar os indivíduos, ninguém possa privar qualquer pessoa deles.
as diferentes subjetividades e a relação destes com Temos visto que, ao sairmos de uma concepção
o coletivo e promover direitos que decorrem dessas de direito natural, aquele a partir do qual ao nas-
relações de justiça. cermos enganosamente já estaríamos cobertos por
Para Cecília Coimbra (1999, p. 2), eles, tornamos necessária articulação e luta política,
especialmente no que diz respeito ao campo de
Em vez de afirmá-los enquanto essência uni- consolidação das políticas públicas no país. Neste
versal do homem, poderíamos através de outras sentido, cabe a importância de interseccionar vul-
construções, garantir e afirmá-los, enquanto nerabilidades e marcadores sociais de diferença para
diferentes modos de sensibilidade, diferentes compreendermos os diversos nuances de luta pelo
modos de viver, existir, pensar, perceber, sen- acesso e pela garantia de direitos humanos para
tir; enfim, diferentes modos e jeitos de ser e homens, mulheres e crianças, considerando raça/
estar neste mundo. Entretanto, essas garantias etnia, diversidade sexual e de orientação de gênero,
e afirmações da vida são ainda vistas como classe econômica, gênero e condições de saúde física
estando fora dos direitos humanos, pois não e psíquica.
estão presentes nos modelos condizentes com Neste capítulo retomaremos uma série de questões
a essência criada e defendida pelo capitalismo que têm marcado nossa atuação no campo dos direi-
do que é humano. Assim, a afirmação de que tos humanos, principalmente, a partir da pesquisa
a luta pelos direitos humanos é uma espécie do Censo da Psicologia no Brasil em sua interface
de conservadorismo, de apaziguamento toma com os cenários de práticas da psicologia brasileira
corpo entre muitos críticos do capitalismo e nos últimos anos.
é o que Deleuze nos aponta. Se não enten-
demos esses direitos com um objeto natural, Breve revisão de literatura sobre
obedecendo a determinados modelos que lhes direitos humanos e a Psicologia
seriam inerentes, podemos produzir outros di- Recentemente o Programa das Nações Unidas para
reitos humanos: não mais universais, absolutos, o Desenvolvimento (PNUD) divulgou um relatório
contínuos e em evolução. Afirmar, portanto, que lista o Índice de Desenvolvimento Humano
direitos locais, descontínuos, fragmentários, (IDH) dos países. O Brasil teve a sua 2ª queda
processuais, em constante movimento e devir, consecutiva. A taxa global registrou queda por dois
217
III. Compromisso e Engajamento Social
anos consecutivos pela 1ª vez desde 1990, quando tória de diversidade epistemológica. Neste contexto,
a série histórica foi iniciada. O país hoje ocupa a destacamos o tema dos Direitos Humanos como um
87ª posição no ranking de desenvolvimento entre campo de trabalho que passa a ser explorado por
191 países, com um IDH de 0,754. O IDH global diversos profissionais da Psicologia. Contudo, mais
segue em queda por causa dos reveses causados pela do que isso, pode-se afirmar que, frente aos novos
pandemia da Covid-19, da guerra na Ucrânia, das rumos de nossa ciência e da sociedade brasileira, a
mudanças climáticas, além das ausências da garantia Psicologia tem se ocupado com as demandas expressas
de políticas públicas no estado para a população. pelo conceito de Direitos Humanos.
Também foi denunciada pelo relatório do PNUD a Pedro Paulo Bicalho, Luan Kassal, Kely Magalhães
extrema condição de desigualdade social e o aumento e Janaína Geraldini (2009) afirmam que os Direitos
significativo da concentração de renda e ampliação Humanos são dispositivos relacionados à produção de
vertiginosa do número de pessoas em situação de subjetividades e que a Psicologia é uma importante
pobreza e extrema pobreza no Brasil (PNUD, 2022). agenciadora dessas subjetividades por meio dos sa-
Olhar para esta realidade e buscar entendê-la é beres e práticas efetivas. Deste modo, postulam que
um exercício imprescindível ao trabalho desenvol- os direitos humanos não são dados, não são naturais,
vido no âmbito dos Direitos Humanos. Essa é uma mas efeito de certos contextos históricos.
condição social importante para colocar a Psicologia Pensar Direitos Humanos como produção de
como ciência e profissão com a sociedade e a sua subjetividade é a afirmação de direitos locais, des-
prática vinculada ao compromisso social decorrente contínuos, fragmentários, processuais, em constante
dessa atual realidade na defesa da vida das pessoas e, construção, produzidos pelo cotidiano de nossas
sobretudo, das populações em condições de extrema práticas e ações. Deste modo, não entendemos a
vulnerabilidade. Nesse sentido, a construção da noção de direitos humanos a partir de uma história
psicologia na atualidade caminha para uma prática linear assinalada por grandes eventos marcados e
que necessita estar conectada às demandas polí- discriminada em períodos históricos, mas a partir
ticas, sociais, econômicas da sociedade. Sob essas da noção de acontecimento, como condições de
perspectivas, historicamente a suposta neutralidade possibilidade que assinalam formas diferentes de
científica da Psicologia dificultou a compreensão e saber e poder, que representam rupturas na forma
aproximação do compromisso social da profissão com de conhecer as coisas ou na forma das relações de
a sociedade e a categoria profissional. Os princípios poder. A proposta é trabalhar, enfim, a história dos
norteadores da Declaração Universal dos Direitos direitos humanos por analisadores históricos. (Bicalho
Humanos compreendem uma prática e uma leitura et al., 2009, p. 25)
crítica da política e dessa realidade social atrelada Deste modo, estamos situados em uma deter-
às diversidades. minada forma de pensar os direitos humanos não a
Essa dificuldade gerou uma dívida histórica com partir de sua normalização ou da naturalização deles,
as demandas sociais e, com isso, a necessidade de mas sim considerando-os efeito de uma história que
convocação ao compromisso social, que foi ganhando lhes permite efetividade e existência, sendo neces-
força na década de 1990 nos sistemas conselhos. Por sário colocá-los continuamente em contato com
um lado, por conta da desigualdade e exclusão sociais as relações de poder e de saberes que os põem em
que se evidenciam a cada novo suspiro capitalista; relação no mundo.
e, por outro, devido à peculiar característica de a Neste sentido estes autores colocam em destaque
Psicologia ser uma disciplina científica em constante o modo como, por exemplo, ocorrem as práticas da
processo de avaliação, em razão de sua própria his- Psicologia direcionadas às homossexualidades, sobre
218
III. Compromisso e Engajamento Social
os modelos hegemônicos que delineiam a normali- evolução ou uma origem primeira, mas emergem em
dade e/ou a anormalidade da infância, a relação da certos momentos, de certas maneiras bem peculiares.
Psicologia com o sistema prisional e as melhorias Devem ser, assim, entendidos não como um objeto
desse sistema, mesmo a própria discussão que em natural e a-histórico, mas forjados pelas mais variadas
nossa profissão se propõe anticapacitista. Esses autores práticas e movimentos sociais. (p. 142)”. (Schwede,
assinalam que é preciso compreender sobre quais Barbosa, & Schruber Jr., 2008, p. 308)
humanos ou sobre quais sujeitos falamos ao tratarmos Neste sentido, a discussão sobre direitos humanos
de direitos humanos, pois mesmo essa concepção não predispõe uma discussão situada dos processos de
está dada. As concepções de cidadania e dignidade subjetivação históricos, estando atravessados pelos
que permeiam as discussões das pautas de direitos movimentos sociais e pelas práticas políticas e so-
humanos precisam ser colocadas em análise histórica, ciais que a compõem. Estamos aqui nos referindo
a ponto de compreendermos as diversas construções e às diversas modalidades de práticas e de teorizações
apropriações que foram sendo construídas em torno que desempenham função de desnaturalização e de
desses conceitos, também considerando a Declaração uma desneoliberalização das demandas por direitos
Universal dos Direitos Humanos da Organização das humanos, compreendendo, conforme destacam as
Nações Unidas (1948/2006), apontam a importância autoras e os autores citados, que precisamos reincidir
de construção de crítica e de sua desnaturalização. nas práticas de direitos humanos sua historicidade e
O reconhecimento dos Direitos Humanos de seu aspecto democrático, relacionado às diferentes
caráter mais amplo, observando suas dimensões cul- forças que os constituíram, especialmente relacionadas
tural, econômica e social, iniciou, conforme aponta aos movimentos sociais.
Comparato (1999), por meio das reivindicações dos Para Cássia Rosato (2011, p. 24), no Brasil, “os
movimentos de trabalhadores socialistas no século primeiros sinais de movimentos sociais pelos Direitos
XIX. Contudo, as organizações supranacionais e Humanos datam da década de 60 e 70, período
seus trabalhos de institucionalização dos Direitos político mais conhecido como os anos de chumbo.
Humanos, como o documento da ONU (1948/2006) […], principalmente a partir de movimentos liga-
citado anteriormente, ressaltam já no século XX a dos à Igreja, à esquerda e ao sindicalismo”. Assim,
fragilidade e as limitações de uma noção universal no segundo a autora, é necessário reconhecer que, ao
que concerne ao tema, atentando-se para o fato de longo da história da psicologia brasileira, a atuação
que tal noção está intrinsecamente ligada à maioria profissional sempre esteve ligada ao compromisso
dos discursos e práticas que vemos até hoje no que com os direitos humanos. E neste sentido também
tange aos Direitos Humanos. As dificuldades em se afirma que “uma intervenção [prática] psicológica
manter este pensamento ocorrem porque, ao genera- pode contribuir para construir ou não os Direitos
lizar os Direitos Humanos, acaba-se naturalizando-os, Humanos de uma determinada sociedade” (p. 25).
retirando-lhes seu caráter histórico, que é exatamente Conceituados como necessidades humanas fun-
o que justifica sua necessidade de existência. Neste damentais para que as pessoas sobrevivam e se de-
sentido, Cecília Coimbra (2001) destaca que, em se senvolvam (Bicalho, 2013b), os direitos humanos
tratando de Direitos Humanos, os diferentes momen- devem ser protegidos não somente por ordenamentos
tos históricos que motivam práticas sociais diversas: jurídicos que proponham “um mínimo de regras
“…vão produzindo diferentes ‘rostos’, diferentes para evitar absurdos, a partir da questão de como
‘fisionomias’; portanto, diferentes objetos, diferen- coibir novas atrocidades” (Bicalho et al, 2009, p. 22).
tes entendimentos do que são os direitos humanos. Direitos humanos, para além de tratados, convenções
Estes, produzidos de diversas formas, não têm uma e legislações, devem ser transversalizados às práticas
219
III. Compromisso e Engajamento Social
profissionais, pressupondo o seu efetivo exercício no que garantam a existência de vidas em pluralidade,
cotidiano. (Bicalho, & Vieira, 2018, p. 149) articuladas a uma força que pense e conecte coleti-
Conforme Pedro Paulo Bicalho e Erick Vieira vidades em um projeto de mundos possíveis.
(2018, p. 149), Feito esse breve levantamento, seguiremos para
os dados do Censo da Psicologia no Brasil na seção
A Psicologia, no período pós-regulamentação relacionada ao campo dos direitos humanos.
e atravessada pelo contexto de redemocra-
tização do país, assume o discurso do com- Censo da Psicologia no Brasil
promisso social como norte político (Bock, e direitos humanos
1999), aproximando-se para a perspectiva de Ao longo dos últimos anos, temos visto a impor-
um campo de saber politizado e engajado, tância dos alinhamentos entre Psicologia e Direitos
acompanhando as mudanças na conjuntura Humanos, tanto no que diz respeito aos cenários
política nacional e internacional (Yamamoto, de práticas na micropolítica do cotidiano, quanto
2007), sempre marcada pela contradição de às políticas públicas e ações macropolíticas de nossa
ter sido estabelecida como prática intimista e profissão. Tal inserção tem garantido a construção de
individualizada (Bicalho, & Barbosa, 2014b). componentes ético-políticos e o atravessamento teóri-
A crítica trazida à época no debate interno da co-metodológico de uma série de questões que estaria
Psicologia dizia respeito a que população o relacionada a uma ampla construção de cidadania e
psicólogo e a psicóloga deveriam atender e a dignidade na sociedade, considerando marcadores
que projeto de sociedade serviam. sociais de gênero, raça/etnia, diversidade, identidade e
orientação sexual, além de questões relativas a aspectos
Neste sentido, temos a inscrição de uma profissão de saúde física e mental compostos pela discussão
que se compromete com o exercício ético e político, sobre acessibilidade e por práticas anticapacitistas.
ocupada na construção de uma sociedade plural, Essa pauta relacionada ao campo democrático
capaz de questionar suas prerrogativas e cuidar de estaria ampliada pela construção cotidiana e pela efe-
suas atividades cotidianas de modo a garantir direitos tivação de uma política estrutural de enfrentamento e
humanos, circunscrevendo um campo ético-político cuidado de modo que direitos fundamentais possam
para suas formulações teórico-metodológicas. ser acessados e garantidos por qualquer um(a), con-
Para Caique Silva e Pedro Paulo Bicalho (2022, forme suas necessidades e vulnerabilidades.
p. 2.012) Neste sentido, podemos dizer que a proposta fe-
minista negra de interseccionalidade é condição para
isso significa que nós, psicólogos e psicólogas pensarmos a forma como gênero, raça, etnia, classe
que atuamos nesse campo de alguma forma, social, entre outras; essas criam zonas de vulnerabili-
precisamos amadurecer uma perspectiva de dades às quais devemos nos manter atentos (Collins,
atuação que seja articulada à tal realidade (que & Sirma, 2016, Crenshaw, 2002, Gonzalez, 1988,
é muito tentacular) e também tecer muitas Kerner, 2012). Pois, conforme diversas autoras do
reflexões sobre quais mundos nossas práticas feminismo negro, ao não visibilizarmos as dinâmicas
podem fortalecer ou criar. de opressão que se somam, podemos incorrer no
encobrimento das desigualdades que marcam certos
Deste modo, tratamos de pensar a forma como a grupos sociais.
dimensão ético-política de nossa profissão está atre- Deste modo, seguiremos para pensarmos os dados
lada aos modos como construímos mundos possíveis construídos sobre os cenários de práticas das psicólo-
220
III. Compromisso e Engajamento Social
gas(os)(es) brasileiras, considerando suas inserções e podemos dizer que as nossas profissionais psi no
conhecimento de/em direitos humanos no país. Em país conhecem a discussão de Direitos Humanos,
um primeiro momento iremos nos debruçar sobre o mas ainda resta aprofundar conceito e formação
quanto nossas interlocutoras conhecem de direitos nessa direção, embora ao todo somam 59% de
humanos por região geográfica. Em seguida, sobre psicólogas que marcaram os números 7 e 6, temos
em que momento específico aprendeu sobre direitos visto que parece que o tema de direitos humanos
humanos, se na graduação, antes ou depois dela etc. ainda cumpre uma agenda à parte da formação
Numa terceira situação nos debruçaremos sobre profissional, o que parece ter melhorado em rela-
como nossas interlocutoras definem ou que tipo de ção a outros momentos, mas ainda temos algumas
associação fazem à ideia/noção de direitos humanos. questões a avançar.
Depois disso abordaremos as formas com que o en- Ao considerarmos as respostas por região, há
gajamento de psicólogas(os)(es) ocorre no tocante uma variação pequena entre as respostas de nossas
às práticas de direitos humanos no país, sobre como interlocutoras, mantendo-se em geral entre as médias
ocorre essa atuação por região geográfica, quais grupos nacionais descritas, o que pode ressaltar uma certa
se destacam na atuação da psicóloga brasileira con- uniformidade das formações sobre a temática e sua
forme região geográfica e outras questões, conforme especificidade ainda um pouco restrita na agenda
sinalizamos a seguir. nacional, ainda a ser pensada e reformulada em
termos de seu alcance à sociedade.
Figura 1: Quanto conhecem sobre Direitos Humanos por A seguir veremos alguns dados relacionados à
Região Geográfica qual momento da vida nossas profissionais apren-
deram sobre direitos humanos, fizemos a pergunta
Br 13% 25% 31% 28% remetendo às seguintes alternativas de respostas:
antes da graduação, na graduação, em cursos de
N 20% 21% 29% 27% aperfeiçoamento, na minha prática profissional,
por iniciativa própria, por estímulo do Sistema
NE 14% 26% 31% 27% Conselhos. As respondentes podiam marcar mais
de uma alternativa. Como podemos visualizar no
SE 12% 25% 31% 29% Quadro 23.2, 70% das pessoas marcaram a opção
por iniciativa própria, 58% marcaram que apren-
S 12% 27% 34% 25% deram na sua própria prática profissional, 55%
marcaram que foi na graduação que aprenderam
CO 12% 27% 29% 29% sobre direitos humanos, 41% marcaram a opção
em cursos de aperfeiçoamento, 26% dizem ter
1 2 3 4 5 6 7
aprendido antes da graduação e 21% por estímulo
do Sistema Conselhos.
Ao serem perguntadas sobre o quanto conhecem Os dados por região indicam uma variação que
sobre Direitos Humanos, as psicólogas brasileiras se mantém próxima a essas médias nacionais des-
atribuíram uma nota de 1 a 7, indicando de for- critas. De relance podemos chamar atenção para
ma crescente seu conhecimento sobre o assunto, dois dados que podem, a princípio, parecer irri-
28% das respondentes atribuíram nota máxima, sórios, mas nos deixam alguns questionamentos.
31% nota 6, 25% nota 5, 13% marcaram nota 4, Retomemos os dados de 70% que marcaram ter
e 1% marcou nota 3 ou 2 cada. De certo modo, aprendido sobre direitos humanos por iniciativa
221
III. Compromisso e Engajamento Social
Figura 2: Quando aprenderam sobre Direitos Humanos Figura 3: Concordam que a defesa dos DH implica…
conforme a Região Geográfica
Defender práticas
26% inclusivas de segmentos
25% minoritários nos mais 69%
Antes da 26% diversos âmbitos do
graduação 27% trabalho em psicologia
25%
25%
Lutar por assegurar a
todas(os) condições de 77%
vida saudáveis e dignas
55%
57%
57%
Na graduação
52% Lutar por condições de
57% trabalho dignas para
54% todas(os) 63%
trabalhadoras(es)
41%
Buscar assegurar a
43% todas(os) o acesso
Em cursos de 40% igualitário aos serviços de 84%
aperfeiçoamento 42% saúde, educação,
43% assistência social e cultura
38%
Proteger pessoas
58% vitimizadas por indivíduos 57%
ou pela sociedade
55%
Na minha prática 56%
profissional 58%
61% Contribuir para eliminação
58% de quaisquer formas de
discriminação, negligência, 90%
exploração, violência,
crueldade e opressão
70%
67%
Por iniciativa 68% Proteger pessoas que
própria 71% vitimizam outros indivíduos 21%
69% ou a sociedade
72%
Assegurar o acesso de
21% todas(os), sem distinção, a
20% bens e benefícios na 66%
Por estímulo do sociedade
21%
Sistema
21%
Conselhos
23%
17%
Br N NE SE S CO
222
III. Compromisso e Engajamento Social
própria e os logo em seguida 58% que aprenderam pessoas vitimadas por indivíduos ou pela sociedade
na prática profissional deles, cruzando esses dados (57%); e 8. Proteger pessoas que vitimam outros
com os do Figura 1, podemos nos questionar sobre indivíduos ou a sociedade (21%).
a qualidade dessa aprendizagem solo, ou mesmo É importante destacarmos nos resultados que
sobre como a prática profissional pode ser um am- construímos que (embora a categoria ressalte e
biente que facilite ou favoreça a aprendizagem em concorde hegemonicamente que direitos humanos
direitos humanos, dada a complexidade de questões são para todas(os)(es), inclusive determinando como
que os diversos autores e autoras, que trouxemos função ou atribuição deles a luta contra quaisquer
inicialmente, nos apresentaram sobre os direitos formas de discriminação, negligência, exploração,
humanos e sua historicidade. Ao mesmo tempo, preconceitos, violência, crueldade e opressão) a mé-
vemos que a graduação possui uma relevância que se dia de menos de um terço (- de 1/3) das respostas,
destaca na formação e aprendizagem sobre direitos cerca de 21% da média nacional, afirmou que os
humanos no país. direitos humanos deveriam proteger pessoas que
Ao mesmo tempo, podemos dizer que o sistema vitimam outros indivíduos ou sociedade. Embora
conselhos têm ganhado uma expressividade nas saibamos o quão polêmico seja esse tema, cabe
respostas, considerando que ele atua especialmente ressaltarmos como ele se constituiu ao longo da
com profissionais em exercício, seria necessário história da psicologia brasileira como uma questão
para termos uma exatidão maior do alcance de importante de nossa atuação profissional, espe-
nossas ações, ampliarmos nossa amostra também cialmente nas discussões sobre encarceramento no
para estudantes, uma vez que atualmente as ações sistema penal brasileiro.
dos conselhos regionais também têm ocorrido com Ao mesmo tempo, podemos dizer que essas ques-
a formação criando e construindo atuação com tões podem ser entendidas a partir dos dados sobre
estudantes de psicologia. quando houve aprendizagem sobre direitos humanos,
Como visualizamos na Figura 3, pedimos às reavivando a pergunta sobre como temos pensado
nossas respondentes que marcassem sobre o que a formação e as ações nesta área. Ao considerarmos
concordam que a defesa dos Direitos Humanos a complexidade das discussões que apresentamos, é
implica. Elas tiveram oito opções para marcar, em importante demarcar o compromisso ético-político
ordem decrescente indicamos aquelas que foram da psicologia brasileira na construção de uma socie-
percentualmente mais marcadas pela categoria: dade mais justa para todas(os)(es). E isso acontece
1. Contribuir para a eliminação de quaisquer de modo a pensarmos outras formas e modelos de
formas de discriminação, negligência, exploração, justiça que não estejam atrelados a um punitivismo
violência, crueldade e opressão (90%); 2. Buscar desmesurado, principalmente ao considerarmos as
assegurar a todas e todos o acesso igualitário aos populações que historicamente têm sido alvo desse
serviços de saúde, educação, assistência social e punitivismo de maneira estrutural: pessoas pobres
cultura (84%); 3. Lutar por assegurar a todas(os) e negras de nosso país. Além disso, esse resultado
(es) condições de vida saudáveis e dignas (77%); reflete o quanto a categoria está alinhada às prer-
4. Defender práticas inclusivas de segmentos mi- rogativas dos princípios norteadores do Código de
noritários nos mais diversos âmbitos do trabalho Ética da Psicologia.
em psicologia (69%); 5. Assegurar o acesso de Sobre o engajamento de psicólogas(os)(es) em
todas/os/es, sem distinção, a bens e benefícios na ações em defesa de Direitos Humanos por região
sociedade (66%); 6. Lutar por condições dignas geográfica, temos uma média global de engajamen-
para todas as trabalhadoras (63%); 7. Proteger to no país de 22% para o pleno engajamento (7) e
223
III. Compromisso e Engajamento Social
Figura 4: Quanto se engajam em ações em defesa de Direitos organizadas por região geográfica e seccionadas nas
Humanos conforme a Região Geográfica seguintes categorias: gênero, raça, LGBTQIA+ e de-
ficiência. Pedimos que em cada categoria indicassem
o tipo de atuação com que se envolveram e em que
Br 5% 7% 21% 21% 21% 22%
seengajaram: engajei-me em iniciativas; dediquei
tempo; assisti a eventos no tema; usei ferramentas
N 5% 6% 20% 22% 23% 22% on-line; doei horas de trabalho.
Sobre gênero, como podemos visualizar na Figura
NE 5% 6% 23% 22% 20% 23% 5, 72% marcaram que assistiram a eventos no tema;
61% marcaram ter usado ferramentas on-line; 42%
dizem ter se engajado em iniciativas; outros 41%
SE 5% 7% 21% 20% 21% 23%
dizem ter dedicado tempo ao tema; e 32% doaram
horas de trabalho à temática, ao considerarmos a
S 5% 7% 21% 22% 21% 21%
média nacional.
Quando falamos em raça, o engajamento é aponta-
CO 4% 6% 20% 23% 22% 23% do da seguinte forma, do maior para o menor: assisti
1 2 3 4 5 6 7
Figura 5: Atuação com grupos
224
III. Compromisso e Engajamento Social
a eventos no tema (65%); usei ferramentas on-line Figura 6: Nos últimos dois anos, você trabalhou com alguma
(57%); engajei-me em iniciativas (34%); dediquei clientela listada abaixo? Conforme a Região Geográfica
tempo (34%); doei horas de trabalho (26%).
Sobre a temática LGBTQIA+, houve a seguin-
te construção de dados: assisti a eventos no tema
Criança ou
(59%); usei ferramentas on-line (51%); engajei-me adolescentes em 40%
em iniciativas (29%); dediquei tempo (29%); doei situação de violência
Usuários de álcool
ou outras drogas 44%
Também fizemos a seguinte pergunta: "Nos últi-
mos dois anos, você trabalhou com alguma clientela
listada abaixo?”. As respostas foram organizadas da Pessoas LGBTQIA+ 46%
seguinte forma em ordem decrescente: Mulheres em
situação de violência (48%); Pessoas LGBTQIA+ Pessoas com
deficiência 43%
(46%); Usuários de álcool ou outras drogas (44%);
Pessoas com deficiência (43%); Usuários do SUS
225
III. Compromisso e Engajamento Social
(42%); Criança ou adolescentes em situação de violên- compreensão importante relacionada a ela. De modo
cia (40%); População preta (39%); Usuários e egressos a entender como as vulnerabilidades se agravam e
dos serviços de assistência social (28%); Pessoas em incidem sobre os efeitos socioeconômicos da miséria
situação de rua (20%); Usuários e egressos do siste- e da pobreza.
ma prisional e de medidas socioeducativas (18%);
Comunidades tradicionais (14%); Comunidades do Figura 7: Quem defendemos
campo, de floresta ou áreas úmidas (5%); População
indígena (5%); Povos quilombolas (4%).
Nesta construção de dados, podemos destacar um Pessoas pobres 43%
aspecto que destoa de outros pontos abordados no
Censo da Psicologia Brasileira em relação aos direitos LGBTQIA+ 43%
humanos, que está relacionado a não presença de Infratoras(es)s e
atenção a indivíduos que perpetram violência con- criminosas(os) 29%
226
III. Compromisso e Engajamento Social
Crenshaw (2002) afirma que os eixos de discri- de solidariedade e pelo ativismo que se ocupe com o
minação e de subordinação são historicamente enfrentamento aos modos de subordinação de vidas
constituídos e não operam igualmente em e de subjetividades.
todos os tempos e lugares. A autora também Neste sentido, podemos dizer que atualmente
alega que aqueles que se sobressaem e com- temos a construção de uma série de questões e de
binam-se em cada contexto variam. Por isso, um campo de possibilidades que permite à psico-
defende que a interseccionalidade seja utilizada logia brasileira consolidar-se na defesa dos direitos
para a construção de modelos provisórios, que humanos, construindo práticas e um conjunto de
produzam análises contextuais e “de baixo para constructos teórico-metodológicos que visam à con-
cima”, ou seja, que partam da realidade de solidação de direitos e a sua garantia. Especialmente
grupos marginalizados e vulneráveis em uma com a sua entrada nas políticas públicas, a partir
dada sociedade para a apreensão de categorias do final dos anos 1990 e sua crescente participação
de discriminação relevantes, evitando-se assim na elaboração delas ao longo dos anos 2000, temos
a imposição de categorias analíticas a uma visto a psicologia engajada em questões sociais e
dada situação. políticas, aproximando-se dos temas relacionadas
às mulheres, pessoas pobres e negras, na discussão
Ao longo de sua carreira, Crenshaw vem res- sobre capacitismo, racismo, lgbtfobia e tantas outras
saltando que nunca pretendeu que o conceito temáticas e públicos necessários à luta política e
se desdobrasse em uma teoria geral da opressão enfrentamento das violências e violações de direitos
e que o seu compromisso está no emprego de pessoas e populações construídas, historicamen-
prático da interseccionalidade, voltado para te, a partir de sua vulnerabilização. Isso se deve
a análise e o enfrentamento a desigualdades especialmente à entrada da psicologia nas políticas
concretas. Contudo, ele se tornou “o tropo públicas no país, entre outras questões com a con-
feminista mais difundido para falar tanto de solidação do Centro de Referências Técnicas em
identidades quanto de desigualdades múltiplas Psicologia e Políticas Públicas dos sistemas conselhos
e interdependentes” (Viveros Vigoya 2016, de Psicologia (CREPOP/CFP).
5, tradução minha), e adquiriu vida própria. Conforme Bicalho e Vieira (2018), a partir de
estudo nos anos 2000, houve crítica expressiva ao
Uma vez formulado, o termo foi incorporado público que seria atendido pela psicologia, até aquele
rapidamente pelo feminismo negro estaduni- momento majoritariamente atrelada à clínica, para
dense, de onde se disseminou. Atualmente, a estes autores:
“interseccionalidade” é utilizada para referir-se
não apenas a desigualdades e opressões, mas Um estudo expressivo na época (Yamamoto,
também à construção de identidades coleti- 2007) constata que apenas 15% da população
vas, laços de solidariedade entre grupos e aos brasileira tinha acesso à área de maior expressão
ativismos políticos mobilizados em oposição da Psicologia na época, a clínica, e questiona:
a processos de subordinação (Biroli e Miguel “os demais 85% não necessitam desse serviço?”
2015). (Pereira, 2021, p. 448) (Yamamoto, 2007, p. 30). Vê-se, a partir de
então, um crescente questionamento à predo-
Assim, vemos também como a atuação no campo minância da clínica e à pouca participação da
dos direitos humanos e na psicologia pode ser atraves- Psicologia como área do saber na construção
sada e construída pela criação de laços comunitários
227
III. Compromisso e Engajamento Social
228
III. Compromisso e Engajamento Social
Referências
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III. Compromisso e Engajamento Social
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230
III. Compromisso e Engajamento Social
231
III. Compromisso e Engajamento Social
Se pudéssemos recorrer a um jargão bastante e desconstruído pelas nossas inserções mais recentes
utilizado no meio negro – e eu preciso in- nos espaços democráticos de exercício profissional.
formar-lhes que existe um meio negro, pelo Aos poucos vem sendo construída uma consciência
menos no Brasil – eu diria: “agora é que vocês e uma práxis problematizadora que ativa a coletividade
perceberam que a democracia está em verti- de nossas práticas, incidindo sobre a forma como a
gem? Para a maior parte da população deste Psicologia no Brasil constitui uma ação política. À me-
país, ‘essa senhora’, a Democracia, lembra o dida que se integra à constituição de um pensamento
‘Caviar’ cantado pelo cantor brasileiro Zeca e de um fazer sobre o mundo e, principalmente, sobre
Pagodinho: ‘nunca vi, não comi, eu só ouço o mundo que queremos viver ao estabelecer nossas
falar’”. (Faustino, 2019, p. 87) relações como sujeitos de direito capazes de atuação
social e política, mas também na qualidade de pessoas
Ao longo de nossa história, temos visto serem am- integradas ao campo de atividades que atuam sobre a
pliados os campos e cenários de atuação da Psicologia construção de subjetividades, de governo e de resis-
brasileira como ciência e profissão. A atuação de tência em nossos territórios existenciais.
psicólogas e psicólogos em políticas públicas no A atividade política constitui-se, ou constituímo-la
país tem sido consolidada, ao mesmo tempo em que nas últimas décadas, como o que nos articula à plu-
crescem os desafios para a solidez de nossa democra- ralidade da vida social. É interessante pensarmos que
cia recente. A Psicologia brasileira tem uma história a democracia esteja/seja pensada como esse campo
democrática que versa sobre a pluralidade e a cons- de um compromisso social com as vidas plurais que
trução de participação política em diversas esferas da estão dispostas à vida coletiva organizada. Podemos,
prática profissional em espaços de controle social, de neste sentido, pensar a Psicologia nesse campo de
participação institucional e em movimentos sociais. engajamento político articulada às vidas socialmente
Embora ainda estejamos circunscritas(os) em um afetadas pela confluência de suas forças criativas.
campo de atuação situado por uma noção de clínica Neste capítulo, abordaremos a complexidade
privada dos consultórios, isso vem sendo ampliado dessas inserções de nossa profissão nos últimos anos,
1 Psicólogo. Formado em Psicologia pela UFAL (2011), com Mestrado em Psicologia pela mesma Instituição (2013) e Doutorado em
Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (2018). Atualmente sou docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE
na condição de pós-doutorando (PNPD/CAPES). Tenho meus estudos vinculados ao Grupo de Pesquisa: Processos Culturais, Políticas
e Modos de Subjetivação (UFAL) e sou integrante do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades (GEMA) da UFPE. Associado
à ABRAPSO desde 2011, atualmente integro a coordenação do Núcleo ABRAPSO-PE. Tenho desenvolvido atividades como Editor
Associado e Assessor de Edição da Revista Psicologia e Sociedade.
232
III. Compromisso e Engajamento Social
tendo por objetivo analisar aspectos de nossa inserção Temos visto um cenário de ameaças à democracia
democrática, apontando algumas possibilidades e e uma sistemática onda de ódio como modo de fazer
desafios para os próximos anos, compreendidos a política, por meio de disseminação de mentiras e de
partir de um projeto de Psicologia comprometido desinformação. Também temos visto ataques à ciên-
com a pluralidade de vidas e com a democracia cia e ao exercício democrático do ensino, pesquisa
brasileira em construção. e extensão, bases de nossas universidades públicas,
Para isto, inicialmente retomaremos algumas além das ofensivas também frequentes às organizações
autoras e autores que nos auxiliarão na construção sociais e à participação da sociedade civil nos espaços
de nossas análises neste capítulo, em seguida tra- de controle social. com isso, a Psicologia brasileira tem
taremos de apresentar os resultados do Censo da encontrado nos últimos anos desafios democráticos
Psicologia Brasileira de 2021 sobre o engajamento para seu exercício profissional, frente aos ataques
democrático central ao exercício profissional de que tem sofrido nas capilaridades que a sustentam:
nossa profissão na contemporaneidade; para em a ciência, a formação profissional e a permanência
seguida apresentarmos algumas conclusões deste e manutenção da estabilidade democrática no país.
estudo sobre nossa participação e consolidação da Gostaria de sinalizar nesta seção, como a estabili-
democracia no país. Não por acaso, sabemos que dade democrática é condição plena para o exercício
sempre que a democracia foi colocada em risco de nossa profissão. Deste modo, irei retomar alguns
no país, nossa profissão fora severamente atacada autores e autoras que nos permitiram destacar as
e tiveram seus direitos violados populações de ne- questões que vêm constrangendo e coagindo o campo
gras(os), pobres, povos originários, mulheres cis e democrático de direito; logo, incidindo sobre nossa
trans, gays, lésbicas, bissexuais e travestis, além de profissão de forma a impedi-la, ao que temos res-
pessoas com deficiências. pondido historicamente com organização política e
social. Daí a relevância do campo político para pen-
A Psicologia brasileira e o exercício sarmos a indissociabilidade entre a atuação técnica
profissional na democracia profissional e as questões políticas da democracia em
contemporânea: uma revisão da literatura que estamos inseridas(os).
É cada vez mais difícil deslocar do exercício pro- Ao longo de sua história, a Psicologia brasileira
fissional da Psicologia brasileira o Estado político comprometeu-se com o estado democrático de di-
que vivemos. Ao longo de nossa curta história, temos reito e com os direitos humanos, por intermédio de
vislumbrado a forma com que o Estado democrático resoluções, seu código de ética e de sua constituição
de direito é uma condição para nossa existência plena profissional. Isto tem reverberado no nosso exercício
como ciência e profissão. Em 2018, a Comissão de profissional por meio de uma contundente defesa da
Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia pluralidade e da diversidade; atuando nos últimos
fez 20 anos de existência. Naquele momento, fora anos em políticas públicas, a Psicologia construiu e
realizado o VIII Seminário Nacional de Psicologia e tem construído possibilidades de questionar e definir
Direitos Humanos com o tema Psicologia e Democracia: princípios de atuação que defendem a democracia
nenhum direito a menos. Simbolicamente, mas tam- no país e se comprometem com ela. Neste sentido,
bém de forma efetiva, tivemos uma discussão e par- conforme nos afirma Deivison Faustino (2019, p.
ticipação política importantes em um momento de 84), “é válido dizer que o tema racismo é recalcado
tensões democráticas que se estendem até o mo- na produção teórica sobre saúde mental no Brasil”, o
mento da escrita deste texto (Seminário Nacional que nos sinaliza sobre a necessidade de abrir caminhos
de Psicologia e Direitos Humanos, 2019). para uma discussão que, como este autor, também
233
III. Compromisso e Engajamento Social
sinaliza, está circunscrita a como todas as práticas A democracia pode ser entendida como o
antidemocráticas, mas especialmente o racismo, tem compromisso com o reconhecimento, conside-
produzido adoecimento em nossa sociedade. ração e respeito às diferenças entre indivíduos
Deste modo, conforme nos sugere Cida Bento e grupos sociais. Esta diferença pode remeter
(2002), é preciso que as pessoas brancas também a diversos marcadores sociais, entre os quais a
se posicionem frente ao racismo e às desigualdades condição étnico-racial, de sexo, de religiosida-
sociais decorrentes dele no país. Assim também, de, de cultura, de regionalidade, de orientação
Lélia Gonzalez (1983) já havia mencionado como sexual, de identidade de gênero etc. (Lionço,
o racismo tem produzido sofrimento para crianças, 2017, p. 212)
mulheres e homens negras(os) no país, por meio
da naturalização de uma série de violências raciais, Deste modo, temos inscrito tanto no Sistema
seja em práticas institucionalizadas, seja em relações Conselhos de Psicologia como na história da
micropolíticas no cotidiano. Psicologia brasileira, especialmente a partir dos anos
Temos assistido a uma série de questões histó- 1980, com a fundação da Associação Brasileira de
ricas que datam não somente do período ditatorial Psicologia Social (ABRAPSO), uma série de críti-
mas também naquilo que Deivison Faustino (2019) cas ao tecnicismo teórico e aos saberes psicológicos
tem chamado de interdição do reconhecimento de trazidos de outros países que vinha a despolitizar
autores e autoras negras(os) e sua intelectualidade nossa profissão e ciência, por vezes individualizando
para o ocidente em diversas áreas de conhecimen- práticas e questões sociais com um apelo adaptativo
to, especialmente no campo da saúde mental e das dos sujeitos sem quaisquer críticas ao status quo (Hur,
discussões democráticas no país. & Lacerda, 2017, Bernardes, 1998, Guareschi, 2012,
Assim também, Tatiana Lionço (2017) assegura Lane, 1987).
que a Psicologia brasileira, ao afirmar seus compro- Como sabemos, houve movimentação na Psicologia
missos democráticos, tem sido um importante ator brasileira, desde a sua regulamentação na ditadura
político e social na redemocratização do país. Ela militar e da incidência no país e na América Latina
acrescenta a isto destaque à defesa da laicidade e à re- de teorias psicológicas acríticas e individualizantes,
cusa aos fundamentalismos como aspecto estratégico oriundas dos Estados Unidos em um viés substan-
da defesa da democracia brasileira. A este cenário ela cialmente neoliberal compreendido por uma lógica
associa às ofensivas recentes a nossa profissão por parte de neutralidade duramente criticada posteriormente
de fundamentalistas em temas caros à democracia, por diversos autores e autoras que retomaram uma
colocando em risco a dignidade da pessoa humana, postura crítica sobre esse estado de coisas.
questão fundamental de nossa soberania popular. Tal movimento crítico na Psicologia brasileira vi-
Neste sentido, a laicidade do Estado e da Psicologia sava a territorializar e politizar a Psicologia, de modo
é posta como um valor inalienável do jogo democrá- a efetivar uma Psicologia atrelada à nossa realidade
tico. Para a autora, este princípio coaduna com os e que possibilitasse uma crítica às questões sociais,
princípios de nossa democracia, na medida em que trabalhando pela redemocratização do país naquele
permite organizar nossas “práticas na lógica da pro- período mas também a feitura teórico metodológica
teção da diversidade social” (Lionço, 2017, p. 211). de uma Psicologia brasileira comprometida social-
mente. E que se propunha ao que, nas décadas de
A laicidade é um dispositivo de proteção da 1980 e 1990, fora chamado de transformação social
diferença, sendo, assim, um princípio de pro- pelas(os) nossas(os) psicólogas(os). Tratava-se – dife-
moção da valorização da diversidade social. rentemente de uma mera submissão ao status quo ou
234
III. Compromisso e Engajamento Social
de uma simples disseminação de teorias oriundas de regulada por uma lei altamente centralizadora e
uma Psicologia norte-americana e desconhecedora de autoritária, estudantes e profissionais foram persegui-
nossa realidade política e social – de uma Psicologia das(os) e criaram articulações políticas e científicas
com forte compromisso social relacionada à trans- questionadoras daquele sistema de opressões.
formação das condições de opressão e de violações Assim, conforme dos Reis e Guareschi (2010),
de direitos, com vistas à dignidade da pessoa em suas
diversas formas de ser e estar no mundo. qualquer intervenção realizada com os su-
Este percurso histórico foi sendo fortalecido e jeitos produz efeito no coletivo, sempre
cuidado ao longo dos anos em nossa profissão. Deste havendo uma implicação política, pois essa
modo, Leonardo Avritzer (2016) pontua diversos im- prática é sempre uma ação sobre a vida des-
passes à democracia no Brasil, especialmente ligados ses sujeitos. Estar atento a isso é o que vai
a um incômodo relacionado aos desafios institucio- diferenciar os profissionais que se colocam
nais pautados pelas existências plurais e diversidades em uma postura ético-política, ou seja, que
sociais. Ao que o autor sugere um aprofundamento se comprometem com o cuidado relativo
democrático no país que estaria atrelado à sociedade à vida dos sujeitos que afetam. (Reis, &
civil, esta deveria se posicionar seja para a manutenção Guareschi, 2010, p. 857)
desses impasses ou para a construção de soluções que
aprofundem nossa democracia. Ao mesmo tempo, alguns autores e autoras nos
Por esta via, vemos como a Psicologia brasileira assinalam a forma com que desde a ditadura militar
tem atuado historicamente nesta direção democrática, a formação em Psicologia é alvo de disputas e de
operando para a qualificação de nossa democracia relações de poder que tentam influir sobre o estado
e construindo alianças e um exercício profissional democrático e o caráter crítico da formação de fu-
atrelado aos direitos sociais da diversidade de vidas turos profissionais. Coimbra (2012) assinala como
e de existências possíveis. a formação profissional no período ditatorial refletia
Correia e Dantas (2017) afirmam que há uma este viés antidemocrático, ao qual estava atrelada a
relação intrínseca entre Psicologia e política, de formação destas(es) profissionais.
modo tal que aparecem como indissociáveis ao Ao mesmo tempo, Jefferson Bernardes (2012)
longo de nossa história, construindo condições assinala avanços na formação de psicólogas(os) nos
de atuação profissional que interferem na vida últimos anos. No entanto, demonstra como esta
social e política do país. Por esta razão, pensam a formação orienta-se por um viés de competências
dimensão ética associada à democracia em nossa e habilidades de viés internalista, a partir do qual
profissão e como isto se liga ao compromisso com a(o) estudante é responsabilizada(o) pela sua for-
a sociedade brasileira. mação. Ele refere-se a uma mudança na concepção
Domenico Hur (2012) e Cecília Coimbra (2011) de aprendizagem nos últimos anos em nossos cur-
afirmam que embora a Psicologia tenha sido regu- rículos, ao considerar as reformas curriculares em
lamentada e sido criados o Conselho Federal e sete curso naquele período, apontando uma mudança de
regionais durante a ditadura militar brasileira, ela um paradigma ambientalista para outro cognitivista
foi construída, naquele período, a partir de diversas que aprofunda aspectos de uma dicotomia no pro-
formas de resistência a este regime antidemocrático. cesso de aprendizagem e da formação profissional.
Segundo Coimbra (2011), ainda que de modo mais Pois, ainda que tenhamos avançado em modelos
geral a Psicologia tenha cooperado em partes com teóricos que rompem de forma radical com tais
o sistema de opressões e violência ditatorial, sendo dicotomias científicas e políticas, sujeito-objeto,
235
III. Compromisso e Engajamento Social
sujeito-sociedade, vemos crescer paradigmas de delos formativos de nossa profissão nas formas
formação, refletidos em currículos e em modelos com que construímos parâmetros democráticos
de aprendizagem de cursos de Psicologia em todo para nossa atuação profissional, uma vez que essa
país, atrelados ao aprofundamento das relações racionalidade prática, ou esse tecnicismo, permite
entre competências e habilidades em um modelo um afastamento das profissionais em seus cená-
individualista e internalista de aprendizagem e rios de práticas de uma ética democrática e do
relações de poder. compromisso com os direitos humanos: aspectos
O que este autor ressalta é que tais modelos de amplamente difundidos e consolidados em nossa
currículos atendem a uma lógica neoliberal de for- ciência e profissão no país em discussão ampla
mação. Segundo Bernardes (2012, p. 224), “essa com a sociedade civil organizada.
concepção de competências e habilidades localiza- Teríamos, deste modo, uma Psicologia brasileira
das no indivíduo também explicita formas de uma que concorre e efetiva aspectos de uma afirmação
racionalidade prática”, dito de outra forma, estamos e luta pela democracia e pelos direitos humanos,
situadas em uma lógica de formação que acolhe o no entanto ainda perfaz uma lógica curricular for-
caráter tecnicista como elemento fundante da for- mativa atrelada a um campo dicotômico entre
mação profissional, uma herança do pragmatismo sujeito e objeto, sujeito e sociedade, bem como
em nossa profissão, que não permitiria a construção uma aprendizagem ligada a uma racionalidade
de uma crítica da realidade, apenas uma ação técnica prática tecnicista com um prejuízo às discussões
frente a uma necessidade irrefletida, circunscrita ao éticas da pluralidade e diversidade de vidas e de
simples domínio de procedimentos, tecnologias e direitos para elas.
instrumentais profissionais.
A conjuntura atual sinaliza como a defesa da
As diretrizes curriculares atuais fazem parte democracia é parte constituinte das lutas para
da herança da tendência liberal tecnicista, a manutenção de direitos sociais e a criação
orientada para a cientificidade e a compe- de melhores condições sociais e políticas para
tência e para as técnicas e os métodos que a classe trabalhadora, que é a maior parte da
aumentam a eficiência da aprendizagem. população brasileira. No ano de 2017, durante
Oliveira (1999) afirma que o que resta ao as manifestações que ocorreram no Distrito
psicólogo, nessa tendência de ensino, é co- Federal contra as reformas da previdência e
nhecer e dominar a tecnologia educacional e trabalhista, o Exército foi utilizado para repri-
os procedimentos instrucionais. (Bernardes, mir violentamente manifestações pacíficas de
2012, p. 225) dezenas de milhares de pessoas. […]
Ao que estamos nos direcionando ao longo Deste modo, a discussão sobre a função política
deste texto, uma vez que estaríamos falando sobre da Psicologia torna-se ainda mais relevante em
democracia, não necessariamente sobre formação? face do atual quadro macropolítico enfrentado.
A questão que vai nos orientando para pensarmos Consideramos que a luta pelos direitos huma-
a formação é a frequente menção a ela por parte nos e contra a exploração e opressões não é algo
de autoras(es) da história da Psicologia brasileira que ficou no passado, mas sim que se atualiza
no período ditatorial (Hur, 2012; Coimbra, 2011; com os desafios colocados pelo presente. (Hur,
Jacó-Vilela, 2010; Guareschi et al, 2010). Como & Lacerda, 2017, p. 5)
vimos, estas autoras têm razão em evocar os mo-
236
III. Compromisso e Engajamento Social
237
III. Compromisso e Engajamento Social
cenários democráticos, chamarei mais adiante esta seção o que levantamos em nossa revisão de literatura e
de engajamento democrático da Psicologia brasileira. segue sendo nossa aposta analítica neste capítulo.
Neste item foram perguntados: e) em que medida você
se engaja em ações para a defesa da democracia, no seu Gráfico 1: Proporção conforme a Região Geográfica
cotidiano? e f) conte-nos sobre alguma dessas ações de Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquisa
defesa da democracia nas quais você se engaja.
Apresentadas as questões mais gerais que nos in- *6% *8%
teressam para a descrição dos nossos dados e a forma
como trabalharei com elas neste capítulo, seguirei
com a apresentação dos resultados.
A) A democracia como um
requisito da prática profissional
Neste item fora perguntado às(aos) psicólogas(os)
se acham que viver em uma democracia é um requisito
de nossa prática profissional em que grau, variando 72%
75% 75% 77% 75% 75%
entre totalmente, muito, parcialmente, pouco ou
nada. Como verificaremos a seguir, as respostas foram
organizadas por região do país, há variação percentual 18% 16% 17% 19% 18% 22%
insignificante entre as respostas quando consideramos 5% 7% 5% 4% 6% 5%
as diferentes cinco regiões geográficas do país. Br N NE SE S CO
No Gráfico 1, uma média de 75% das res-
pondentes marcou exclusivamente a democracia Nada Pouco Parcialmente
238
III. Compromisso e Engajamento Social
diversas formas de representatividade e atuação ético- Podemos destacar que, embora cerca de 72% de
-política e técnico-científica em defesa da democracia nossas respostas estejam concentradas no aprendizado
e de suas bases no campo dos direitos sociais no país. por iniciativa própria sobre democracia, os dados
indicam a relevância de que haja incentivo e espaços
b) A aprendizagem sobre democracia de diálogo e formação sobre democracia em espaços
Quando questionadas(os) sobre onde/quando institucionais de formação profissional, sejam eles
aprenderam sobre democracia, nossas(os) respon- na graduação, em cursos de aperfeiçoamento ou em
dentes variaram de forma importante suas respostas. outros espaços formativos anteriores à graduação, daí
Sendo que 72% afirmaram ter aprendido por inicia- a importância da temática em cursos do ensino mé-
tiva própria e 61% na própria prática profissional. dio, redes sociais e outras instâncias de disseminação
As outras percentagens de respostas estiveram em de conhecimento e informação, tais como jornais,
41% nos cursos de aperfeiçoamento, 39% durante revistas, documentários, audiovisuais, etc.
a graduação e 36% antes da graduação. Somente Neste sentido, somos levadas(os) a pensar a im-
25% responderam que houve aprendizagem por portância da Psicologia como ciência e profissão
estímulo do Sistema Conselhos, 46% marcaram a nos mais variados cenários de práticas e de ensino
opção parcialmente para este item relacionado. e pesquisa, no sentido de promover discussões que
levem a cargo uma discussão sobre democracia em
Gráfico 2: Quando aprenderam sobre democracia diferentes formas de divulgação, sendo nossa profissão
Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquisa não somente vetor de livre exercício democrático mas
também de disseminação dos valores da democracia
Antes do meu curso em nossa sociedade, compreendendo a complexidade
de graduação 15% 49% 36%
dos dados construídos nos dois itens apresentados
até aqui.
Partiremos para o nosso próximo item relacionado
No meu curso de
graduação 12% 49% 39% ao entendimento construído pelas(os) psicólogas(os)
sobre democracia a partir de nossas(os) respondentes
neste censo de 2021.
Em cursos de
especialização / 18% 41% 41%
aperfeiçoamento
C) O entendimento sobre o conceito de democracia
Neste item, iremos repercutir os dados construídos
Na minha prática
quanto ao entendimento sobre democracia pelas res-
profissional, em 6% 33% 61%
contato com colegas postas marcadas pelas(os) nossas(os) psicólogas(os) em
2021 no Censo da Psicologia brasileira. Demarcamos
Por iniciativa própria aqui sobre como estas(es) profissionais entendem o
(leituras, mídia, 2% 25% 72%
imprensa) conceito ou a ideia de democracia.
Destacamos, a partir do Gráfico 3, que 85% de
Por estímulo de
nossas respostas afirmam que a democracia requer que
ações e publicações 29% 46% 25% o povo, além de votar, exerça a participação, o controle e a
do sistema Conselho
fiscalização das políticas públicas, além disso 83% delas
Pouco Parcialmente Muito afirmam que a democracia requer a diversidade das
pessoas e dos grupos sociais. Como podemos vislumbrar,
há uma compreensão majoritária para a qual a demo-
239
III. Compromisso e Engajamento Social
Gráfico 3: Democracia… conforme a Região Geográfica cracia é entendida como participação, controle social e
Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquisa fiscalização de políticas públicas, também entendemos
que essa mesma democracia assume a diversidade como
É um regime político em que o componente indispensável para sua atuação.
povo, em eleições livres,
escolhe os seus governantes 76% Os dados construídos e apresentados sobre este
e representantes
item assumem uma singularidade, a partir da qual
Requer que o povo, além de a participação política ampliada é condição para a
votar, exerça a participação, o
controle e a fiscalização das 85% democracia em nosso país. Junto a isto vemos que
políticas públicas esse elemento democrático também está diretamente
associado à liberdade de imprensa e de expressão
Exige liberdade de expressão
77%
(77%), o respeito a todos os direitos da dignidade
e de imprensa
da pessoa humana (72%), às eleições livres (76%),
à representação de diversos segmentos sociais em
Requer respeito à diversidade instâncias de poder (65%) e à constituição do
das pessoas e dos grupos 83%
sociais país (60%).
Essa diversidade de questões está diretamente
Impõe que todas as pessoas relacionada à luta político-social de nossa profissão,
sejam iguais perante a lei e 58% elas incidem sobre os modos de participação e atuação
assim sejam tratadas
política, elementos que coadunam com um projeto
político para o país que tem na democracia e nos
É plena quando há o respeito
a todos os direitos universais 72% direitos sociais uma base para sua sustentação.
da pessoa humana Assim também estamos situadas(os) em uma
determinada forma de fazer Psicologia, e as ciências
Requer que os diferentes
segmentos sociais estejam psicológicas, que estaria habituada à diversidade
representados nas instâncias 65%
de vidas, mas também a sua representatividade no
dos poderes
horizonte das instituições e da participação efetiva
É o governo da maioria, mas nas decisões de nossos poderes democráticos. Neste
que respeita os direitos das 36% sentido, a democracia compreendida pelas(os) psicó-
minorias
logas(os) brasileiras(os) está constituída como elemen-
to fundante de práticas que não somente regulam e
Tem como foco os direitos e fiscalizam as relações entre Estado e populações mas
não os deveres dos cidadãos 5%
também daquelas referente à participação ativa nas
decisões políticas, garantindo a diversidade na parti-
Pode ser fonte de tensão e cipação democrática e nas instâncias deliberativas de
discórdias no país 12%
nossas políticas públicas e demais espaços de poder.
Cabe assinalar também que 12% das respostas
Significa respeito à
afirmam que a democracia pode ser fonte de tensão e
Constituição do país 60% discórdias no país. Isso sem dúvidas reflete ou sinaliza o
momento político em que estamos situados, no qual
Nem sempre é o melhor há uma onda antidemocrática em curso com ataques
regime de governo para um
país em algum momento da 3% veementes ao processo eleitoral, às instâncias de par-
sua história. ticipação e controle social, bem como à diversidade
240
III. Compromisso e Engajamento Social
de vidas por intermédio da disseminação de ódio e nosso país, considerando as famílias LGBTs e outras
discórdia como modo de fazer política no país. Temos formações familiares que destoam da cisheteronor-
assistido e vivenciado esta proliferação de preconceitos e matividade. Como mencionamos em nossa revisão
ódio em uma determinada forma que se assemelha aos de literatura, cabe à sociedade civil organizada po-
regimes autoritários, conforme sugerem alguns autores sicionar-se em momentos tão tensos de atividades
e autoras (Pereira, Torres & Almeida, 2003, Adorno, antidemocráticas. Por isso, segunda a autora,
1950, Billig, 1993).
Neste sentido, Domenico Hur e Fernando Lacerda não haverá mais retrocesso, pelo menos no
(2017) afirmam que aspecto social, pois essas famílias já saíram do
armário e estão nas ruas, nas escolas, viven-
Infelizmente, as violências retratadas no período ciando e experienciando seus modos de fazer
da ditadura civil-militar não ficaram restritas ao família e reivindicando os direitos das mesmas.
passado. As opressões, os ataques à democracia Como enfrentaremos retrocessos legais em
e aos direitos sociais ocorrem a todo momento, afronta à democracia já conquistada, cabe a
atingindo outro ápice na atualidade. [...] denotam nós, cidadãos, cidadãs e movimentos sociais,
o recrudescimento de posições conservadoras, ser resistência. (Niching, 2020, p. 13)
coercitivas da vida e que prejudicam as maiorias
sociais e as liberdades de se expressar e de ser. Feito isto, seguiremos para o próximo item de
(Hur, & Lacerda, 2017, p. 5). análise, referente à democracia e sua relação com o
bem-estar, qualidade de vida e saúde psíquica na vida
Assim temos um cenário de práticas psicológicas que social. Buscaremos construir essa análise entendendo a
estão situadas não somente em uma simples afeição pelo construção de subjetividades na relação com a democra-
trabalho técnico mas também numa Psicologia que está cia ou com a vivência em ambiente social democrático.
atrelada ao cenário ético-político de uma democracia
em construção, bem como associada à diversidade de D) A democracia e o bem-estar,
gênero e de sexualidades, comprometida com direitos qualidade de vida e saúde psíquica das
sociais que estão referidos a participação política e pessoas na vida em sociedade
democrática de pessoas negras, indígenas, mulheres cis Há atualmente uma crescente de estudos que
e trans, pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e associa a produção de saúde e de bem-estar aos pro-
travestis, além de pessoas com deficiência, entre outras. cessos políticos e democráticos de uma sociedade.
Estamos com nossas práticas circunscritas e am- Não é nenhuma novidade que a contemporaneidade
pliadas por um aparato democrático que versa sobre e sua aceleração neoliberal e capitalista tem criado
a pluralidade de segmentos sociais na participação diagnósticos psiquiátricos e psicológicos preocupantes
política. Assim também marcamos a importância de para os organismos de saúde mundiais. Tem havido
que haja a participação política de diversas formas de aumento considerável de transtornos depressivos, de
viver e estar no mundo na forma de compreender a ansiedade e de uma série de sofrimentos psíquicos.
participação política em diversidade, incluindo tam- Este quadro tem nos preocupado de forma direta,
bém as diferentes formas de famílias e de contemplar especialmente com a utilização mais recente das
essas diferenças na vida e na participação democrática redes sociais para manipulação e formação de sub-
de decisões nos poderes públicos do país. jetividades que interessa a estes quadros capitalistas
Neste sentido, conforme Claudia Niching (2020), e neoliberais mais recentes (Saflate, Silva Junior, &
a família é um tema de disputa democrática em Dunker, 2020).
241
III. Compromisso e Engajamento Social
Deste modo, autores como Vladimir Saflate, Silva populações desejam viver: uma política de vida e
Júnior e Christian Dunker (2020) reforçam elementos de resistência.
para pensarmos como a economia, compreendida a Junto a isto, temos pensado em como esta luta
partir do neoliberalismo contemporâneo é uma forma política organizada produz uma série de construções
de fazer Psicologia, no sentido mesmo de construir que visa aos processos de saúde mental: ao tratarmos
subjetividades, acarretando também sofrimento psí- da forma como são construídos os enlaces democrá-
quico, a partir de uma economia moral das relações ticos da atualidade, estamos nos referindo aos modos
e das subjetividades. como produzimos saúde de nossas populações.
Atrelado a isto, temos também visto como o colo- Deste modo, seguiremos para a descrição do Gráfico
nialismo também tem tido seus efeitos em nossa recente 4, no qual reunimos as respostas de psicólogas(os) refe-
democracia, por meio, principalmente, da constituição rentes ao que consideram importante para o bem-estar,
de práticas racistas, misóginas e LGBTfóbicas, cen- qualidade de vida e saúde psíquica das pessoas na vida
tradas no homem branco cisheteronormativo e em em sociedade. As respostas foram reunidas por região
práticas e saberes baseados no eurocentrismo. geográfica, mas reunidas no gráfico a seguir conforme
o quadro nacional, conforme poderemos verificar.
Se olhássemos com mais cuidado para a his-
tória do Brasil, poderíamos nos perguntar o Gráfico 4: É parte da Democracia…
que representou em termos subjetivos para as Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquisa
diversas populações indígenas aqui existentes
Direito de votar livremente
verem, geração após geração, o genocídio quase e escolher seus 79%
completo – embora nunca assumido como governantes
tal – de sua população, cultura, divindades e
Acesso igualitário a
epistemologias. O que significou para as popu- saúde, educação e 97%
lações africanas, e posteriormente amefricanas trabalho dignos
242
III. Compromisso e Engajamento Social
243
III. Compromisso e Engajamento Social
que tal projeto já encontra um país dilacerado constituindo uma resposta à seguinte pergunta: em
pela crise econômica e social. (Boschetti, & que medida você se engaja em ações para a defesa da
Behring, 2021, p. 68) democracia, no seu cotidiano? Àquelas(es) que res-
ponderam poucas vezes e nunca ou raramente não
Para estas autoras, é necessário construir estraté- fora apresentada a seguinte questão: conte-nos sobre
gias políticas e sociais que permitam enfrentamento alguma dessas ações de defesa da democracia nas quais
destas situações que têm colocado em risco nossa você se engaja. Essa diferença de resposta repercutiu
saúde, bem-estar e qualidade de vida. Nesta medida, na formulação do Gráfico 6 e da Tabela 2 quando
o capitalismo tem sido um importante vetor de cons- comparada numericamente com o Gráfico 5. A ou-
trução de ameaças a este estado de saúde de nossas tra questão que quero destacar é a forma com que
populações, uma vez que se organiza de tal modo que organizamos estas respostas buscando contemplar a
práticas antidemocráticas tenham espaço em vista ao variedade regional das cinco regiões geográficas do
lucro e à exploração capitalista de forma acirrada. país, a saber, Norte (N), Nordeste (NE), Centro-
No entanto, o que nossas(os) autoras(os) têm nos Oeste (CO), Sul (S) e Sudeste (SE).
sinalizado é que o lugar da Psicologia frente a tais Esta organização dos dados permite-nos alguns
avanços antidemocráticos, que não cessam em incidir recortes e discussões sobre o grau de engajamento
sobre nossa organização democrática, precisa estar ar- democrático das(os) psicólogas(os) brasileiras(os)
ticulado à postura crítica, democrática e não tecnicista na contemporaneidade. De modo geral e à primeira
simplesmente. Estas questões, apontadas ao longo deste vista, podemos destacar que o grau de engajamento
capítulo, ganham notoriedade à medida que podemos em defesa da democracia brasileira está entre o grau
pensar sobre as formas com que a Psicologia tem se 3 e 5, havendo certa insignificância das respondentes
articulado historicamente à luta por direitos sociais, que tenham objetado poucas vezes e nada ou rara-
mas também por meio da construção de participação mente como resposta que se encaixe nos graus 1 e
efetiva de populações e grupos sociais vulnerabilizados, 2, referentes, respectivamente a nunca ou raramente
ampliando nosso rol de cenários de práticas. e poucas vezes. Portanto, o engajamento de nossa
Nesta direção, apresentarei a seguir o que cha- Psicologia encontra-se nos graus 3 a 5, de às vezes,
maremos de engajamento democrático da Psicologia muitas vezes e constantemente. Especialmente se
brasileira, a partir dos dados construídos em nosso visualizarmos a Tabela 2 e o Gráfico 6, apresentados
Censo da Psicologia Brasileira de 2021. a seguir.
Podemos pensar que a democracia tem sido um
E) Engajamento democrático espaço profícuo para a atuação e consolidação de nossa
da Psicologia brasileira profissão diante de nossas mais recentes atividades de
Na organização dos dados construídos para este orientação, fiscalização, atuação científica e profissional.
item de nosso censo há algumas particularidades que Assim, a democracia e o nosso grau de engajamento
buscarei destacar. A primeira questão organizativa está têm sido um campo fértil para a construção de ativi-
relacionada aos graus de engajamento de nossas(os) dades que reverberam sobre a construção de saúde,
respondentes. Foi feita uma organização na qual as bem-estar e qualidade de vida no país.
respostas ancoravam-se em 5 graus de engajamento, Como podemos visualizar no Gráfico 5, os dados
foram eles: constantemente, muitas vezes, às vezes, por região variam pouco, há uma maior percenta-
poucas vezes e nunca ou raramente (no Gráfico 5 gem de grau de participação nas regiões Nordeste
estão destacadas com cores diferentes e legendadas); (27%) e Sudeste (27%), quando o grau analisado
esta parte diz respeito à um tipo de autoavaliação, está relacionado a constantemente (grau 5); mas essa
244
III. Compromisso e Engajamento Social
variação é pouco significativa se comparada às demais (grau 2) e os 6% para nunca ou raramente (grau 1)
regiões e à média nacional neste mesmo grau, que é no grau de engajamento em atividades democráticas,
de 26%. Quando nos referimos ao grau 4 – muitas representem, ou melhor, apontem para a necessidade
vezes –, o destaque é para a região Norte com 30% de de ampliar as formas e espaços para a discussão sobre
engajamento democrático neste nível, considerando democracia, a partir da Psicologia brasileira. É um
que a média nacional neste grau é de 26%. Quando pouco inconcebível que esse número percentual de
consideramos o gráfico e seus dados referente ao grau respondentes se justifique, ainda que reduzido, se
3 – às vezes –, a região Sul se destaca das outras regiões comparados aos demais graus, posto que a nossa
e a média nacional é de 32%. Podemos dizer que as profissão esteja diretamente associada aos princípios
variações são pouco significativas, o que demonstra democráticos ligados aos direitos sociais.
que há pequenas particularidades que precisam ser Podemos associar a isto tanto o elemento forma-
visibilizadas em outros momentos de análise, ao mes- tivo que ainda pode estar atrelado a uma formação
mo tempo em que podemos dizer que há uma certa tecnicista e privativa conforme nos assinalou Jefferson
uniformidade no grau de engajamento democrático Bernardes (2012), ou mesmo para alguns dados de
de psicólogas(os) no país entre nossas regiões. nosso censo de 2021 que ressalta uma expressiva
presença de psicólogas(os) clínicos em um modelo
Gráfico 5: Grau de engajamento em ações em defesa da ainda privado e individualista de consultório; no
Democracia conforme a região geográfica entanto, também há apenas 1.462 profissionais da
Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquisa Psicologia (respondentes deste censo) filiadas(os) a
sindicatos trabalhistas, o que representa o número
preocupante de 17% apenas, sendo que 6.949 psicólo-
26% 25% 27% 27% 24% 24%
gas(os) brasileiras(os) que foram nossas respondentes
não têm atividade sindical, o que representa 83%
de nossa amostra.
26% 26% 25%
25% 27% Tais dados preocupam, na medida em que uma
30%
das atividades democráticas importantes de nosso
sistema político é a organização sindical, considerando
que uma porção importante de nossa profissão está
32% 31% 31% 34% 32% composta por profissionais autônomos, seria nada
31%
mais politicamente explicável e esperado que houvesse
busca ativa para participação em grupos de direitos
10% 10% 10% 10% 10% trabalhistas tais como os sindicatos, especialmente
10%
6% 3% 6% 7% 6% 7% se considerarmos a entrada contundente de nossa
profissão no quadro efetivo das políticas públicas
Br N NE SE S CO
do país, o que parece não ocorrer.
Nunca ou raramente Poucas vezes A seguir apresentarei alguns outros dados construí-
Às vezes Muitas vezes dos, que sinalizam e trazem algumas contribuições
Constantemente para nossas discussões.
Trataremos de descrever a Tabela 2 (Como se
Embora tenha destacado que os graus 1 e 2 este- engajam) e o Gráfico 6 (Sobre o grau de engajamento
jam com certa insignificância em termos de dados, democrático da Psicologia brasileira). Estes dados
podemos dizer que aqueles 10% para poucas vezes foram construídos, a partir de outras respostas ao
245
III. Compromisso e Engajamento Social
questionário, por isso há discrepância quando con- Tais descrições podem ser vistas e visualizadas no
sideradas ou comparadas ao Gráfico 5. Neste último Gráfico 6, apresentado a seguir.
gráfico mencionado (5), não foram relacionadas as As principais questões que quero destacar é essa
atividades de engajamento, o que resultou nessa presença forte da Psicologia em atividades democráti-
discrepância aparente de número de respondentes. cas, havendo engajamento profícuo e crescente nessas
Ao responderem sobre se se engajavam constante- atividades, ao mesmo tempo em que possibilita uma
mente, muitas vezes, às vezes, poucas vezes e nunca ou confluência de forças políticas e de uma outra forma
raramente, nossas(os) respondentes estavam fazendo de construir Psicologia na América Latina, associada
autoavaliação, ao que na listagem das atividades que a uma retomada e crescente fortalecimento das for-
se engajam pudemos verificar que há um nível de ças democráticas do país. Nossos dados constroem
exigência considerável de nossas(os) respondentes, no condições para pensarmos que há constante direção
sentido de que podem fazer mais pela democracia do da Psicologia brasileira para a consolidação de nossa
que já realizam, posto que na listagem de atividades democracia recente.
que desempenham o grau de engajamento real sobe
para às vezes, muitas vezes e constantemente, respec- Gráfico 6: Sobre os graus de engajamento democrático da
tivamente correspondentes aos graus 3, 4 e 5. Não Psicologia brasileira
há percentagem nem número de respondentes que Fonte: Elaboração da equipe responsável pela pesquis
se encaixe nos graus 1 e 2 de engajamento devido o
que mencionamos e retomaremos a seguir.
Outra explicação para essa discrepância é que a Grau 3 30%
listagem de atividades de engajamento democrá-
tico foi uma pergunta que somente apareceu para
aquelas(es) respondentes que marcaram as opções Grau 4 32%
3, 4 e 5 na pergunta sobre como autoavaliariam seu
engajamento. Ainda assim, nenhuma das análises
postas até aqui pode ser dispensada, apenas contex- Grau 5 38%
tualizadas no ínterim da construção dos dados em
nossa pesquisa.
246
III. Compromisso e Engajamento Social
247
III. Compromisso e Engajamento Social
Referências
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249
III. Compromisso e Engajamento Social
Saflate, V., Silva Junior, N. da, & Dunker, C. (Orgs.). (2020). Neoliberalismo
como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, MG: Autêntica.
250
III. Compromisso e Engajamento Social
251
IV
AVALIAÇÃO E
PERSPECTIVAS
IV. Avaliação e Perspectivas
26 AVALIAÇÃO DA PROFISSÃO
E PERSPECTIVAS FUTURAS
Jairo Eduardo Borges-Andrade1
Adriano de Lemos Alves Peixoto2
O bem-estar e o desempenho dependem da for- de 2021, obtidos pela pesquisa que dá origem ao
mação profissional recebida e das condições objetivas presente livro.
dos contextos dos postos de trabalho, das organiza-
ções empreendedoras e das comunidades onde atua Avaliação (ou imagem) da
a(o) psicóloga(o). Muitas dessas condições e muitas profissão em 1986 e 2006 e as
particularidades dessa formação foram abordadas (então) perspectivas futuras
nos capítulos incluídos nas partes “Nosso Percurso Em 1986, havia um pouco mais de sessenta mil
Histórico”, “A Formação”, “Onde Estamos”, “O que pessoas inscritas nos oito Conselhos Regionais de
Fazemos” e “Condições de Trabalho” do Volume I e Psicologia (CRPs) então existentes (Rosas, Rosas &
do presente Volume II. Mas ainda existem aspectos Xavier, 1988). Em estudo realizado por esses CRPs
subjetivos, que podem mediar as relações entre essas e pelo Conselho Federal Psicologia (CFP), sobre
formação e condições e aqueles bem-estar e desempe- a formação e atuação profissional, 2.478 daquelas
nho. Dentre esses aspectos, podem ser mencionadas pessoas responderam um questionário entre o final
as avaliações (ou imagens) que se faz da profissão e de 1985 e o início de 1987 (D’Amorim, 1988). A
as intenções que se tem sobre o exercício dela, no avaliação que faziam – do exercício profissional e das
futuro. O objetivo deste capítulo é descrever tais suas perspectivas futuras – foi registrada em termos
avaliações. Na próxima seção, sintetizamos as infor- do status do exercício profissional percebido, as di-
mações coletadas – entre psicólogas(os) brasileiras(os) ficuldades encontradas nesse exercício e os desejos
– sobre essas e outras avaliações – em 1986 e 2006. de mudança relativos a emprego, campo de atuação
Em seguida, apresentamos e discutimos os achados e profissão (Borges-Andrade, 1988).
1 Graduado (1972) em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre (1977) e Doutor (1979) em Sistemas Instrucionais pela
Florida State University. Estágios de pós-doutorado: International Food Policy Research Institute, EUA (1990), University of Sheffield,
Inglaterra, e Rijksuniversiteit Gröningen, Holanda (2001) e Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Portugal (2010).
Pesquisador da Embrapa (1979-1993), onde desenvolveu atividades ligadas a gestão de pessoas e de ciência e tecnologia. Professor
Titular na UnB (1993-2019), onde realizou atividades de pesquisa, ensino de Graduação, Mestrado e Doutorado e extensão, em
Psicologia Organizacional e do Trabalho. Está aposentado e é Professor Emérito pela UnB, onde continua realizando atividades de
pesquisa e ensino. Em curtos períodos, foi professor visitante nas Universidades de Bolonha (Itália), Coimbra (Portugal), Valencia
(Espanha), Johanesburg (África do Sul), Cali e Del Norte (Colômbia). Gestão realizada em entidades científicas e profissionais: Capes
(Psicologia), CNPq (Psicologia), ANPEPP, SBPOT, CFP e CRP-01. É Bolsista de Produtividade Sênior do CNPq.
2 Possui graduação em Administração pela Universidade Salvador (1989), graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
(1999), mestrado em Administração pela Universidade Federal da Bahia (2003) e doutorado em Psicologia - University of Sheffield
(2008). Tem experiência na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: práticas
de gestão de pessoas, gestão do trabalho, gestão no setor de serviços e gestão universitária. Professor permanente do programa de
Pós Graduação do Instituto de Psicologia da UFBA. Presidente da SBPOT - Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do
Trabalho para o período de 2014-2016 e reeleito para o período de 2016-2018. Atualmente é o Coordenador de Desenvolvimento
Institucional da Universidade Federal da Bahia
253
IV. Avaliação e Perspectivas
A percepção de status foi obtida pela coleta da seis categorias, conforme Borges-Andrade (1988).
opinião sobre a imagem que a Psicologia teria, en- As razões mais frequentes foram associadas a pro-
quanto profissão, considerando seis situações. Para blemas de natureza econômica e de remuneração,
cada uma delas, no questionário eram solicitadas seguidas por razões psicológicas e de insatisfação
avaliações sobre intensidade de ocorrência, em uma com as características sociais da profissão. Em síntese,
escala de cinco pontos. A mais intensa foi referente o status da Psicologia enquanto profissão, entre os
à relevância da profissão junto à comunidade e as que nela atuavam em 1986, não era muito elevado,
duas menos intensas foram relativas aos recursos segundo esse autor. Acreditavam que a remuneração
disponíveis para o exercício profissional e a remu- e os recursos para essa atuação eram menores do que
neração decorrente desse exercício. Esses resultados sua importância ou relevância social. As maiores
sugeririam uma crença mais elevada no papel social dificuldades específicas eram atinentes à formação e
da profissão do que na disponibilidade de remunera- experiência profissionais e às condições sociais, eco-
ção adequada e de recursos para nela atuar, segundo nômicas e culturais. Um quarto das(os) respondentes
Borges-Andrade (1988). Ambas as crenças alcançaram desejavam mudar de emprego, mas não de profissão
as melhores médias nos Estados da Região Sul do ou de seus campos de atuação. Discrepâncias foram
Brasil. Na amostra como um todo, essas avaliações encontradas – relativas a status, dificuldades e desejos
variaram pouco em função dos campos de atuação de mudança – ora entre esses campos, ora entre UFs.
da Psicologia, embora a disponibilidade de insumos Em 2006, havia mais de duzentos mil profissio-
tenha sido mais bem avaliada em “organizacional” que nais inscritos nos dezesseis CRPs então existentes
em “comunitária”. Por outro lado, entre as pessoas (Bastos, Gondim & Rodrigues, 2010). Os dados
que atuavam em “pesquisa”, foram identificadas as sobre a imagem da profissão e as perspectivas que
melhores avaliações concernentes àquele papel social. 1.685 dessas(es) profissionais possuíam para o futuro
Os desejos de mudança na (ou de) profissão foram discutidos sob os prismas dos vínculos com
não emergiram com intensidade elevada. Foram suas carreiras, seu trabalho e seu emprego e das suas
expressos por respostas “sim”, às opções de “em- intenções de abandoná-las (Puente-Palacios, Abbad
prego” (25,2%), “campo de atuação da Psicologia” & Martins, 2010). A suposição dessas autoras era de
(13,6%) e “profissão” (5,6%). Este último valor que “percepções, atitudes, crenças sobre o trabalho
poderia estar subestimado, pois as(os) extremamente são variáveis explicativas ou antecedentes de com-
insatisfeitas(os) provavelmente teriam cancelado portamentos futuros” (Puente-Palacios et al., 402).
suas inscrições nos CRPs e, portanto, não teriam As perspectivas futuras de manutenção daqueles vín-
feito parte da amostra de respondentes do ques- culos estariam associadas à satisfação com o trabalho
tionário. Ocorreram mais respostas concernentes a e a uma imagem positiva da profissão. Esses dados
mudanças de emprego no Espírito Santo e Minas foram coletados durante seis meses, entre 2005 e
Gerais, e de campo de atuação na Bahia e Sergipe. 2006, por um grupo de trabalho (GT) da Associação
Os maiores desejos de mudança de emprego apare- Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
ceram no campo de atuação “comunitária”, embora (ANPEPP), cujo projeto de pesquisa teve financia-
não desejassem sair dele ou abandonar a profissão. mento do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Os maiores desejos de mudança de campo de atua- Científico e Tecnológico (CNPq) e apoio dos CRPs
ção e de profissão apareceram em “organizacional”. e CFPs (Bastos & Gondim, 2010).
As(Os) psicólogas(os) que afirmaram que gostariam Os dados da pesquisa, obtidos por escalas de
de mudar de profissão puderam explicitar as razões concordância de cinco pontos, revelaram percepções
para isso. Suas respostas livres foram agregadas em favoráveis dos seus participantes, relativas à credibi-
254
IV. Avaliação e Perspectivas
255
IV. Avaliação e Perspectivas
de faixa etária das(os) respondentes, estão na Figura na, é possível que homens tenham melhores rendi-
1 (N=4.328). mentos, oportunidades e experiências profissionais,
Dois aspectos principais chamaram nossa atenção. fortalecendo a ideia de padrões de discriminação no
Primeiro, há uma nítida diferença na avaliação que mercado de trabalho. Assim, eles tenderiam a ocupar
as(os) profissionais fazem em relação a Psicologia em melhores espaços e a desenvolver mais prestígio no
função da idade. A faixa etária mais jovem tende a ter âmbito da profissão, o que explicaria a sua melhor
uma percepção mais negativa. Muito provavelmente avaliação. Não foram identificadas diferenças em
isso se dá em função de um conjunto mais amplo termos de região geográfica ou campo de atuação,
de experiências positivas e uma melhor inserção no no que concerne à dimensão admiração.
mercado de trabalho, que vai se consolidando com o A percepção da remuneração recebida, em função
passar do tempo, razão pela qual a avaliação se torna dos investimentos necessários para formação e atua-
gradativamente mais positiva. Entretanto, mesmo lização profissionais, foi o segundo aspecto avaliado.
acima dos sessenta anos, a avaliação da admiração Os resultados obtidos com 13.900 participantes
pela sociedade é muito negativa, pois somente 26,7% são geralmente bastante negativos, corroboram as
dessa faixa etária concordam com a afirmação de que análises que anteriormente fizemos e replicam os
a profissão é admirada pela sociedade. Não temos resultados das pesquisas feitas em 1986 e 2006. Na
elementos que permitam uma análise específica dessa Figura 2 os resultados, organizados por faixa etária,
situação. Supomos que aspectos como dificuldades de são apresentados. Essa percepção é muito frequente
inserção no mercado de trabalho, disputa de mercado nas faixas etárias mais jovens e diminui até atingir
com outros grupos ocupacionais presentes em campos o seu menor valor no grupo de 60+, que ainda está
de atuação próximos/limítrofes e baixos rendimentos ligeiramente acima da metade das(os) respondentes.
(ver capítulos 9 e 17) expliquem essa situação. A elevada quantidade de respostas obtidas nesse as-
pecto, em comparação com o anterior, parece ser um
Figura 1: A profissão é... admirada na sociedade, por indicativo da importância atribuída a essa questão
faixa etária pelas(os) participantes da pesquisa.
50-59 62%
256
IV. Avaliação e Perspectivas
e, por último, da região Sul (62,7%). Diferenças O gênero parece ter pouco impacto nesta avalia-
importantes também foram encontradas em função ção de status em equipes multiprofissionais: homens
do campo de atuação profissional. A má remuneração (38,9%) e mulheres (36,6%). Algumas diferenças
teve percentuais mais elevados em social/comunitária foram identificadas entre os campos de atuação. A
(77,3%) e saúde (77%), seguidos de clínica (70,5%) e percepção de inferioridade foi relatada por 40% de
escolar/comunitária (69,3%). O campo de atuação em quem atua na saúde e 34,5% entre profissionais com
organizações e trabalho teve os menores percentuais atuação em educacional/escolar. Entre esses extremos,
(65,3%). É possível que essas diferenças entre os cam- ainda há: 38,5% em organizações e trabalho e em
pos se expliquem pelo tipo de inserção, setor público clínica, 36,5% em social comunitária e 34,5% em
ou privado, na qual a atuação profissional ocorre. Os educacional/escolar. Não foram observadas diferenças
achados, no seu conjunto, fortalecem a impressão de em termos de região geográfica.
que a profissão é percebida como precarizada, confor- A percepção sobre o compromisso da profissão
me já apresentado e discutido, principalmente, nos para resolver problemas sociais foi o quarto aspecto
capítulos 9 e 17, e socialmente desvalorizada. investigado e foi respondido por 10.670 pessoas
Um terceiro aspecto de imagem profissional inves- (Figura 4). Embora exista uma pequena queda no
tigado diz respeito à percepção de status em equipes número de respondentes, com a idade, há um ligeira e
multiprofissionais (N=8.388). O resultado da análise em relativamente mais acentuada diminuição entre 40-49
termos de idade é apresentado na Figura 3. Parece-nos anos. Não temos uma explicação plausível para isso.
que nesse ponto já podemos fazer referência a um padrão: Se assumirmos que concordar com a afirmativa apre-
nas faixas etárias mais jovens estão concentradas as que sentada é um indicativo positivo, podemos concluir
pior avaliam a profissão em todos os aspectos. Enquanto que quase metade das(os) respondentes discordam que
27,5% de profissionais da faixa de 60+ concordam sua profissão ajuda a solucionar problemas sociais.
com a afirmação de que a profissão tem status inferior, É possível que esse resultado esteja sob influência
esse número sobe para 43,5% na faixa até 29 anos de de uma interpretação muito estreita (restrita) do
idade. Essa é uma questão importante que precisa ser que seja problema social. Por exemplo: atender uma
melhor investigada. Por exemplo, como essa avaliação pessoa na clínica individual seria entendido como
negativa impacta na qualidade do serviço prestado e na colaborar para solução de problemas sociais? Ou essa
persistência no campo de atuação? Chegaria a afetar a compreensão dependeria de algum tipo de atendi-
autoestima de quem presta esse serviço? mento especificamente vinculado ao setor público,
no SUS ou SUAS? Essas questões merecem algum
Figura 3: Possui status inferior em equipes multiprofissionais, tipo de investigação posterior.
por faixa etária
Figura 4: ...ajuda a solucionar problemas sociais, por
Até 29 43,6% faixa etária
60+ 52,8%
257
IV. Avaliação e Perspectivas
Homens e mulheres diferem ligeiramente em onde encontramos uma maior concordância com a
suas respostas sobre a profissão solucionar problemas afirmativa de banalização da profissão (33,6%) e o
sociais. Enquanto 56,2% dos psicólogos concordam Nordeste apresentou a menor concordância (30,1%).
com a afirmação apresentada, este número cai um O grupo que atua em organizações e trabalho tem o
pouco para 52% entre as psicólogas. Uma diferença mais elevado percentual de concordância (33,7%)
ainda menor é encontrada entre regiões brasileiras. e o menor percentual está no grupo que atua em
No Sul do país, 54,5% concordam, mas esse número escolar/educacional (29,8%).
cai para 52,2% na região Sudeste. As demais regiões Para análise do sexto aspecto, foi verificada a
se encontram entre esses dois valores. concordância com a afirmativa de que a profissão se
Um quinto aspecto avaliado foi o da banalização confunde com práticas sem embasamento científico.
da profissão, associada à existência de muitos maus As respostas de 8.721 participantes, agrupadas por
profissionais. Nesse ponto, o olhar da(o) profissional faixa etária, são apresentadas na Figura 6. Como em
se volta para o conjunto dos seus pares que, de uma aspectos anteriores, a faixa mais jovem é majorita-
forma ou outra, teriam uma atuação inadequada, sem riamente negativa em sua avaliação. Esse percentual
que seja mencionada falta ética. Os resultados em ainda é bastante elevado entre 30-39 anos (quase
termos das faixas etárias dos participantes (N=6.397) metade) e 40-49 anos (42,1%). Para as duas faixas
são mostrados na Figura 5. Embora em nenhuma acima de 49 anos, cerca de um terço da(o)s respon-
delas a maioria apresente uma avaliação negativa, dentes (34,1% e 28,5%) concordam que a Psicologia
o maior pessimismo é da faixa com até 29 anos e se confunde com práticas sem embasamento cientí-
diminui gradativamente nas demais faixas etárias. O fico. Entretanto, mesmo assim, pode ser considerado
percentual daquela (39,9%) é o dobro do percentual elevado, como discutiremos em seguida.
da faixa de 60+ (19,8%).
Figura 6: ....se confunde com práticas sem embasamento cientí-
fico, por faixa etária
Figura 5: ....é banalizada, tendo muitos maus profissionais, por
faixa etária Até 29 52,4%
30-39 49,5%
Até 29 39,9%
40-49 42,1%
30-39 36,1%
50-59 34,1%
40-49 29,6%
60+ 28,5%
50-59 25,3%
258
IV. Avaliação e Perspectivas
Ou ainda, segundo o seu artigo 2º, alínea f.. entre 40 e 59 anos, embora as discrepâncias sejam
bem pequenas. Há que investigar que razões, possi-
Ao Psicólogo é vedado [...] f ) Prestar serviços velmente relativas à formação e atuação profissionais,
ou vincular o título de psicólogo a serviços de poderiam ter produzido os percentuais mais baixos
atendimento psicológico cujos procedimentos, nessas faixas intermediárias. De qualquer forma,
técnicas e meios não estejam regulamentados predomina (>60%), em todas as faixas etárias, a
ou reconhecidos pela profissão (Conselho percepção de complexidade associada à profissão.
Federal de Psicologia, 2005). Discrepâncias muito pequenas de percepção sobre
essa complexidade – que demanda muitas habilidades
Ora, se parte expressiva de participantes da pes- e conhecimentos – foram encontradas entre homens
quisa (entre um terço e metade) avalia que a profissão (59,9%) e mulheres (62,2%). Encontramos distin-
não se distingue de práticas não científicas, é possível ções de percepção sobre ela quando comparamos as
que exista trânsito, com frequência relativamente regiões geográficas onde atuam as(os) participantes
elevada, por tênues limites éticos de atuação. Ou, da pesquisa. O maior percentual de percepção de
pelo menos, parte importante de nossa comunidade complexidade emergiu na região Sul (67,5%) e o
avalia de forma negativa a ética de muitos pares que menor na região Norte (56,1%). Entre elas, ficaram
atuam profissionalmente. as regiões Nordeste (58,4%), Centro-Oeste (61,3%)
Quando comparamos os campos dessa atuação, e Sudeste (63,1%).
encontramos discrepâncias pequenas: social/comu-
nitária (43%), saúde (44,2%), escolar/educacional Figura 7: ....é complexa, demandando muitas habilidades e
(45,6%), clínica (46,4%) e organizações e trabalho conhecimentos, por faixa etária
(46,9%). Os homens tendem a concordar mais com
aquela afirmativa (46%), expressando uma avalia- Até 29 63,1%
ção ligeiramente mais negativa, que as mulheres
30-39 63,2%
(42,8%). As percepções de uma confusão com práticas
sem embasamento científico outrossim discrepam 40-49 58,6%
mais, especialmente entre três das cinco regiões do
50-59 61%
Brasil: Norte (36,5%) e Sul (47,2%) e Centro-Oeste
(49,3%). Os valores intermediários estão no Nordeste 60+ 63,5%
(40,6%) e Sudeste (43,9%). Algumas dessas discre-
pâncias são expressivas. Por isso, e porque os valores
são relativamente elevados, merecem investigação As(Os) respondentes da pesquisa foram convida-
adicional, visando formulação de políticas por parte das(os) a refletir e avaliar a sua profissão: a diversifica-
do Sistema Conselhos de Psicologia. ção, em relação a inúmeras possibilidades de atuação.
O sétimo aspecto investigado se refere à per- Os resultados iniciais (N=13.200), desse oitavo aspecto,
cepção sobre o nível de complexidade da profissão, podem ser observados na Figura 8, por faixa etária.
por demandar um número elevado de habilidades Há uma elevada concordância com esse aspecto, com
e conhecimentos. Os resultados das avaliações de variações entre faixas. O maior percentual se encontra
12.436 respondentes são agrupados por faixa etária entre as(os) mais jovens (67,5%) e o menor entre
na Figura 7. As duas menores faixas e a de idosos as(os) mais idosos (63,3%), embora a diferença seja
têm percentuais mais elevados de percepção dessa pequena. Diferenças ainda menores foram observadas
complexidade, quando comparadas às duas faixas entre mulheres (66,2%) e homens (64,4%).
259
IV. Avaliação e Perspectivas
As regiões onde as(os) participantes atuavam relativas a cinco desses planos profissionais, por faixa
revelaram pequenas diferenças na forma como per- etária, são apresentadas na Figura 9.
cebem e se relacionam com a sua profissão. O maior
percentual de concordância sobre a diversificação da Figura 9: Planos para futuro próximo, por faixa etária
mesma ocorreu no Sul (67,6%) e o menor no Sudeste
(64,9%). As demais regiões tiveram percentuais ainda 9,1%
mais semelhantes: Norte (67,5%), Nordeste (66,4%), 20,9%
Manter o que
e Centro-Oeste (65,7%). As diferenças foram um 24,8%
estou fazendo
31,3%
pouco maiores, entre os campos de atuação. Social/co-
44,1%
munitária teve os percentuais mais elevados (72,2%) e
clínica os mais baixos (67,5%). Entre esses extremos, 61,8%
Investir na 45,7%
ficaram os campos de escolar/educacional (70,9%), minha
42,1%
organizações e trabalho (70,3%), e saúde (69,4%). formação em
psicologia 31,6%
20,4%
Figura 8: ...é diversificada, oferecendo inúmeras possibilidades
de atuação, por faixa etária 6,3%
Mudar de área 6,1%
de atuação
4,3%
Até 29 67,5% dentro da
psicologia 3%
1,1%
30-39 66,9%
8,5%
40-49 64,5% Incorporar 11,3%
atividades de
50-59 66,2% 12,1%
outras áreas da
psicologia 10,9%
60+ 63,3% 8,9%
260
IV. Avaliação e Perspectivas
Dois desses cinco planos parecem estar associados Figura 10: Planos para o futuro, por gênero
à idade: o de manter o que já está sendo feito cresce
com ela e o de investir na própria formação diminui
com ela. Este plano foi escolhido pelo maior número 24%
Manter o que
de respondentes. Os resultados são compatíveis com a estou fazendo
percepção de imagem anteriormente descrita, de uma 24,1%
261
IV. Avaliação e Perspectivas
Figura 11: Planos para o futuro, por região geográfica a região Centro-Oeste tem um valor intermediário
(42,9%). Tomando esses resultados e os anteriores
17,2% em conjunto, é possível supor que parte da decisão
de investir na formação pode estar associada à per-
Norte 47,3%
cepção de que melhor qualificação levaria a melhores
7,5% oportunidades de emprego e renda. Isso explicaria a
decisão de se manter, ou não, no que está fazendo.
As proporções de intenção de mudar de campo de
16,1%
atuação dentro da própria Psicologia pouco variam
entre as regiões. Isso igualmente ocorre para as três
Nordeste 49,6% outras opções de planos – preparar para aposenta-
4,7%
doria, incorporar atividades de outros campos de
atuação da Psicologia e de outra profissão.
Finalmente, analisamos as diferenças entre as
disposições reveladas, pelas seis opções de planos
22,1%
para o futuro, entre as(os) participantes que atuam
Centro-Oeste 42,9% nos distintos campos da Psicologia (Figura 12). Os
resultados de duas dessas opções pouco variaram
5,4%
entre estes campos e não são apresentados na Figura.
As(Os) profissionais de social/comunitária são as(os)
que isoladamente apresentam a maior frequência de
28% intenção de manter o que estão fazendo atualmente
Sudeste 38,9% (49,4%). Provavelmente o mais elevado comparti-
lhamento com os valores e os objetivos desse campo
4,4% expliquem resultados tão expressivos. Frequências
menores aparecem nos campos de organizações e tra-
balho (27,2%) e clínica (26,3%) e ainda mais baixas
29,6% em escolar/educacional (23,2%) e saúde (22,7%).
Quanto à disposição para investir na formação
Sul 39,8%
em Psicologia, a maioria dos campos revela quan-
4,1% tidades de respostas entre 42-45%. A exceção é
organizações e trabalho, em que somente 34,5%
Manter o que estou fazendo das(os) profissionais sinalizam planos para investir
Investir na minha formação em Psicologia nessa formação. Uma possível explicação para essa
Mudar de campo de atuação dentro da Psicologia discrepância talvez possa ser encontrada nos limites,
muitas vezes, tênues que esse campo estabelece com
outras áreas profissionais das ciências sociais aplicadas,
A disposição – ou o plano de investir na formação especialmente a Administração. Assim, se desenvolver
– segue o padrão inverso da disposição de manter o profissionalmente não significaria necessariamen-
que já se faz. Esses planos são menos frequentes no te desenvolver novas competências específicas da
Sul (39,8%) e no Sudeste (38,9%) e mais frequentes Psicologia. Por outro lado, a frequência relativamente
no Nordeste (49,6%) e no Norte (47,3%). Outra vez, mais elevada, de intenção de incorporar atividades
262
IV. Avaliação e Perspectivas
Figura 12: Planos para o futuro, por campo de atuação de outros campos de atuação da Psicologia, ocorre
da Psicologia entre pessoas que atuam em organizações e trabalho
(15%). A pouca oferta de disciplinas voltadas para
organizações e trabalho, nos cursos de graduação
26,3%
em Psicologia, pode ser pelo menos parcialmente
45,1%
responsável por esse estado de coisas. Isto é, essas
Clinica 3,8%
pessoas teriam sido convencidas de que esse campo
9,9%
não disporia de fundamentação teórica e metodo-
5,7%
lógica oriunda da Psicologia e teriam investido em
formação fundamentada em outras áreas de interface,
27,2%
tais como Administração e Educação.
34,5% Ao analisarmos a disposição para mudar de campo
POT 5,1% de atuação, o de social/comunitária – que mostrou
15% um elevado compromisso – é o que apresenta a
6,7% maior quantidade de profissionais dispostas(os) a
mudar de campo (8%). Talvez essa aparente con-
tradição possa ser explicada por condições sociais e
49,4% econômicas, considerando os tipos de vínculos e as
42,9% baixas remunerações possivelmente existentes em
Social/Comunitária 8% social/comunitária.
12,7% Os campos de atuação parecem ser bastante re-
7,7% levantes para formar uma compreensão das dinâ-
micas/planos de futuro entre as(os) profissionais
da Psicologia. Isso pode ser explicado pelo tipo de
22,7% inserção profissional que caracteriza cada um desses
42,3% campos e pela prioridade que recebem na formação
Saúde 4,9% oferecida durante os cursos de graduação.
11,6%
6,4% Conclusão
Os dados coletados nas pesquisas realizadas em
1986 e 2006 incluíram as percepções de status ou
23,2%
da imagem do exercício profissional e as intenções
45,2%
ou desejos de mudança desse exercício (Borges-
Escolar 5%
Andrade, 1988; Puente-Palacios et al., 2010). As
10,2%
percepções foram coletadas por meio de respostas
7,4%
a escalas de cinco pontos e as intenções foram
Manter o que estou fazendo
obtidas por escalas nominais (respostas “sim”).
Somente essas escalas nominais foram utilizadas
Investir na minha formação em psicologia
em 2021. Além disso, nesse ano, os enunciados
Mudar de campo de atuação dentro da psicologia
das afirmativas, para as quais foram solicitadas
Incorporar atividades de outros campos da psicologia
respostas, foram bastante alterados, quando com-
Incorporar uma outra profissão em paralelo à psicologia
parados aos enunciados daqueles dois anos. Essas
263
IV. Avaliação e Perspectivas
diferenças metodológicas dificultam comparações Figura 13: Sintese das avaliações da profissão
e impedem um aprofundamento na interpretação
teórica dos achados. Sem embargo, fizemos algumas
Nossa profissão é
comparações que julgamos possíveis. admirada na sociedade
21,6%
As percepções positivas sobre o status ou imagem
da profissão, medidas pelos indicadores que podem
Nossa profissão é mal
ser comparados, eram bastante intensas em 1986 e remunerada,
2006 e alcançaram frequências de respostas baixas considerando os 69,3%
investimentos de
em 2021. Porém, o indicador relativo à remuneração formação e atualização
do exercício profissional permaneceu baixo, nas
coletas de dados realizadas nos últimos 35 anos. A Nossa profissão possui
status inferior, sendo 37,3%
região Sul tinha indicadores de imagem melhores ainda desvalorizada
que as demais regiões do Brasil, mas isso recente-
mente deixou de diferenciá-la. Por outro lado, tinha Nossa profissão tem
respondentes que melhor avaliavam a remuneração compromisso com
questões político-sociais, 53,1%
do exercício profissional e continua com a menor contribuindo na sua
solução.
quantidade de profissionais que consideram essa
remuneração como ruim, quando comparada às
Nossa profissão é
demais regiões. Em 2006, as imagens mais negativas banalizada, tendo muitos 31,8%
da profissão apareceram entre respondentes mais maus profissionais
264
IV. Avaliação e Perspectivas
brasileira e campo de atuação profissional – também gênero. Depende enfim da qualificação recebida e
se associaram com algumas percepções e precisam de condicionantes macroeconômicos e sociais, como
ser levadas em consideração. Dentre os seis planos os que caracterizam as regiões geográficas brasileiras.
para o futuro, a(o)s participantes de 2021 preferiram Além daquelas intenções, o desempenho e o bem-estar
escolher, em ordem decrescente de frequência: o de no trabalho resultam desse conjunto de variáveis.
investir na sua própria formação, o de manter o que Algumas dessas variáveis - os planos, as percepções,
estão fazendo e o de incorporar atividades de outros os campos, a idade, o gênero e as regiões – foram
campos da Psicologia (Figura 14). Duas variáveis objeto de análise no presente capítulo. Muitas rema-
investigadas – idade e campo de atuação – estão nescentes são abordadas em capítulos anteriores do
principalmente associadas à escolha desses planos presente Volume e do Volume I. Esperamos que essas
informações – reunidas e organizadas –, fundamen-
Figura 14: Síntese dos planos futuros tem políticas que orientem a formação e o exercício
profissionais da Psicologia no Brasil.n
Investur na Minha
Formação em Psicologia
42,7%
Mudar de área de
Atuação dentro da 4,7%
Psicologia
Incorporar atividades de
outras áreas da 10,6%
Psicologia
Me preparar para a
aposentadoria
6,3%
Outros 4,5%
265
IV. Avaliação e Perspectivas
Referências
Rosas, P., Rosas, A. & Xavier, I. B. (1988). Quantos e quem somos. In Conselho
Federal de Psicologia. (Ed.), Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 32-48). Edicon.
266
IV. Avaliação e Perspectivas
267
IV. Avaliação e Perspectivas
Ao longo do presente livro, um amplo conjunto medida do possível, dados de estudos que, mesmo
de informações geradas pelo Censo da Psicologia sem ter o mesmo recorte do CensoPsi, nos permitem
Brasileira, esse profundo esforço para caracterizar capturar continuidades e descontinuidades relevan-
o nosso exercício profissional no início da segun- tes para pensarmos os desafios que são postos ao
da década do século XXI, nos coloca o desafio de Sistema Conselho.
escutar as(os) psicólogas(os) e, dessa escuta, extrair Não se pretende, neste capítulo conclusivo, abor-
linhas e diretrizes que possam potencializar as ações dar todos os riquíssimos aspectos trazidos pelos
do Conselho Federal de Psicologia no sentido de autores dos capítulos precedentes, assim como não
termos uma profissão cada vez mais forte, social- seria pertinente meramente repeti-los. Na realidade,
mente reconhecida pelos impactos sociais da sua embora seja possível extrair muitas conclusões dos
ação e comprometida com os nossos mais elevados dados obtidos, consideramos salutar circunscrever
princípios e valores éticos. Pretende-se, assim, que esta análise final a seis eixos principais, expressos
este censo desdobre-se em diretrizes fundamentadas na Figura 1.
e, portanto, mais seguras, para implementação de No primeiro eixo, vamos nos deter em resgatar
políticas públicas por parte do Sistema Conselhos os dados que traçam o retrato de uma profissão
de Psicologia. Para tanto, é fundamental que os re- diversa ou plural nos mais diferentes aspectos ou
sultados apresentados em capítulos anteriores sejam dimensões em que for analisada. Essa diversidade,
amplamente discutidos, debatidos, fornecendo as característica tão reconhecida e enfatizada ao longo
bases para irmos além dos números e da descrição da nossa história, é fundamental de ser reconheci-
que dados de um censo permitem, de modo a am- da pela entidade a quem cabe preservar a unidade
pliar a compreensão dos problemas e desafios que se e assegurar que tal diversidade seja um elemento
colocam para a Psicologia brasileira – como ciência potencializador da nossa contribuição à sociedade.
e profissão – na atualidade. Só a partir de discussões Calibrar as nossas políticas e as nossas ações de modo
efetivas e de debates nas instâncias deliberativas a que toda a Psicologia – cientificamente embasada e
autárquicas que podemos pensar em ações transfor- eticamente responsável – se sinta incluída é um dos
madoras e propositivas. grandes desafios para a gestão do Sistema Conselhos.
Certamente uma pesquisa como a realizada ga- O segundo eixo se debruça sobre as condições
nha um significado ainda mais importante quando de trabalho, mais especificamente à sua diversa for-
repetida com alguma periodicidade, permitindo ma de inserção no mundo do trabalho que, como
identificar tendências de mudança no exercício pro- sabemos, está se tornando cada vez mais hostil aos
fissional. No presente capítulo, busca-se resgatar, na trabalhadores em geral. O exame das condições
268
IV. Avaliação e Perspectivas
I - A DIVERSIDADE
DA NOSSA
CATEGORIA
VI - VISÃO E II - A INSERÇÃO NO
AVALIAÇÃO DA MUNDO DO TRABALHO:
PRÓPRIA PROFISSÃO contextos, condições
IV - AS TRANSFORMAÇÕES
NO EXERCÍCIO
PROFISSIONAL
269
IV. Avaliação e Perspectivas
As diferentes opções teóricas podem, aparente- Galgamos um nível mais elevado em nossa
mente, ser incluídas nos grandes “approaches” capacidade de planejar o nosso futuro como
clássicos da Psicologia, sem maiores cuida- ciência e profissão apoiados em bases realistas,
dos: as vertentes “Behaviorista”, “Existencial sem perder nossos anseios de sonhar com uma
humanística” e “Psicanalítica”. Entretanto, a Psicologia que seja cada vez mais plural, que
variedade das autodenominações – da Terapia abrigue a diversidade e que seja mais valorizada
Reichiana a Transpessoal, da Biodança a Teoria socialmente por sua capacidade de operar e dar
Sistêmica – parece confirmar uma velha sus- respostas àqueles que depositam sua confiança
peita: o universo “Psi”, universo em eufórica no nosso trabalho. (Capítulo 2, Volume I)
expansão, fragmentou-se irremediavelmente.
Não é tanto a diversidade das autodefinições Quanto à questão de gênero, que tanto caracteriza
decorrentes de um quesito não diretivo do a forma como a Psicologia se insere, atua, é remu-
questionário de pesquisas, que assinala a frag- nerada e vista no Brasil, há corolários fundamentais
mentação, mas o indício, alusivamente presente a serem depreendidos a partir dos dados obtidos
nos resultados e na própria estruturação do nas pesquisas promovidas pelo Conselho Federal
questionário, de que a heterogeneidade habita de Psicologia nestas décadas. Vale repetir reflexões
até mesmo as orientações teórico-metodoló- levantadas à época do censo de 1986, quando se
270
IV. Avaliação e Perspectivas
constatou que, “no Brasil, a psicologia é uma ‘profissão médias salariais são das pessoas com deficiên-
feminina’” (CFP, 1986, p. 40) e 91% da categoria cia intelectual (1654,73 reais), seguido pelas
profissional era formada por mulheres: pessoas pretas (2.280,44 reais), pessoas pardas
(2.309,91 reais), pessoas com deficiência múlti-
Efetivamente, a cultura reforça a especificidade pla (2.484,94 reais), indígenas (2.630,33 reais),
de certas profissões “próprias para homem” – pessoas com deficiência auditiva (2.890,67
e que, via de regra, concentram mais poder, reais), mulheres (3.042,98 reais), reabilitados
desfrutam status mais elevado e “fazem jus” (3.137,70 reais), pessoas com deficiência vi-
a melhores salários – das profissões “próprias sual (3.267,50 reais), pessoas com deficiência
para mulher”, as quais ordinariamente impli- física (3.294,76), pessoas brancas (3.368,44
cam papéis subalternos, reduzido prestígio e reais), homens (3.484,21) e pessoas amarelas
salários “compatíveis” com seu nível. (CFP, (4.223,30 reais).
1986, p. 42)
A questão racial, aliás, reflete-se na Psicologia de
A questão do gênero foi levantada, novamente, modo assimétrico: este censo constata, mais uma vez,
pelo Conselho Federal de Psicologia em 2013, quando que a profissão continua a ser constituída por 64%
se notou que o percentual da participação do gênero de brancos, embora, em geral, cerca de metade da
feminino variou pouco, para 89% (CFP, 2013). população brasileira seja de brancos. O número de
Desta vez, em que o censo pergunta à categoria sobre psicólogas autodeclaradas pretas, amarelas e indígenas
a identidade de gênero, temos que 79% de profis- continua pequeno, e vale, aqui, referenciar estudos
sionais identificadas com o gênero feminino, 20% anteriores de composição da categoria profissional.
com o gênero masculino e 0,7% de não-binários. Posto que o censo de 1988 não tenha analisado a
Parece haver, portanto, redução gradual da diferença questão racial, de deficiência nem de orientação sexual
de gênero na profissão. Mas o censo atual assevera, na categoria profissional, ele sinaliza a elitização da
com precisão, que, quando se trata de renda, em Psicologia, e afirma criticamente:
uma profissão constituída majoritariamente pelo
gênero feminino, os homens que a integram têm Apesar de originados de famílias com instrução
renda nitidamente maior. “Esse resultado espelha os pelo menos equivalente ao 1° grau em todas
resultados das estatísticas nacionais em que a renda as regiões, registram-se casos – sempre pou-
das mulheres é 24,2% inferior à renda dos homens” co numerosos – de psicólogos filhos de pais
(Oliveira, 2022) (Capítulo 3). analfabetos. O fato de certas regiões, como
Nesse quesito, aliás, o da diferenciação de rendas, as situadas no Nordeste, reconhecidamente
o censo esmiúça outras realidades em relação às de- mais pobres e apresentarem mais elevados
sigualdades sociais brasileiras, também refletidas na percentuais de analfabetismo, não apareceu
Psicologia. Vale destacar aqui o panorama apurado na composição da amostra, o qual foi forma-
no Capítulo 3 deste censo: da por sorteio aleatório. Este é um resultado
coerente. Não são os filhos de analfabetos que
Diante do panorama de grande diversidade têm acesso à Universidade – ou somente uma
e de múltiplas desigualdades apresentado e reduzida quantidade entre eles chega a fazê-lo,
considerando os impactos da intersecciona- sobretudo quando se sabe que o psicólogo é
lidade nas remunerações médias por gênero, formado pela escola particular e paga. (CFP,
raça e deficiência, verifica-se que as menores 1986, p. 46)
271
IV. Avaliação e Perspectivas
272
IV. Avaliação e Perspectivas
tem a obrigação de não se deixar esclerosar, há mais de mil cursos de Psicologia autorizados e/
de renovar-se, de compreender e de lutar pela ou implantados no Brasil de acordo com o portal
superação de suas insuficiências” (CFP, 1988, do e-Mec. Neste momento, 67% das psicólogas são
p. 41). oriundas de instituições privadas. Esse é um dado
relevante, pois a oferta de cursos não parece coadunar-
A diversidade etária, outra matéria que se expõe -se com a necessidade social e mercado de trabalho,
à Psicologia, apresenta um dado importante. Há mas, talvez, com interesses empresariais educacionais.
indiscutível envelhecimento da categoria profissional Esse aspecto, o da formação, precede evidente-
quando comparamos a média de idade atual de 41 mente a questão da inserção no mundo do traba-
anos à média de idade estabelecida pelo censo de lho e está diretamente ligada a ele, pois parâmetros
1988, que apontava uma média etária de 33,6 anos. educacionais mínimos correspondentes às Diretrizes
Se quase 90% da categoria profissional era formada Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em
por pessoas de 22 a 39 anos em 1988, atualmente Psicologia devem alicerçar eticamente a futura psi-
mais de um quarto da categoria é formada por pessoas cóloga. E mesmo que não caiba ao Conselho Federal
acima de 50 anos. de Psicologia a função de regulamentar o Sistema
Em um país cujo sistema previdenciário é conti- Educacional, é de profundo interesse da autarquia
nuamente prejudicado em relação à necessidade dos que os estudantes, os quais futuramente fiscalizarão
usuários em nome do dito Estado mínimo, preocupa como profissionais, estejam oportunamente prepara-
ao Conselho Federal de Psicologia a realidade de dos para oferecer serviços psicológicos de qualidade.
psicólogos aposentados que tiveram, durante boa Essa apreensão com a formação já aparece de modo
parte de sua vida, relações trabalhistas incertas. Vale límpido no censo de 1988, quando, ao constatar
trazer à luz das discussões políticas da Psicologia a existência de 81 cursos de Psicologia no Brasil,
essa realidade invisibilizada e fomentar, inclusive, procurou-se averiguar o destino dos formandos em
o crescimento da própria área de psicogerontologia Psicologia e o modo como se expandia:
que parece ser, ainda, bastante incipiente no Brasil.
Haveria possibilidade de abordar várias diver- O rápido crescimento da quantidade de cursos
sidades da Psicologia, como a regional, a urbana e de Psicologia não poderia ocorrer sem um sério
rural, a privada e a pública. O que foi tratado ao sacrifício da qualidade, já que o número de
longo do presente livro é suficiente para dar suporte psicólogos com formação específica e experiên-
ao princípio de que o Sistema Conselhos fortaleça cia em pesquisa e ensino era insuficiente para
ainda mais as suas ações por respeito à diversidade atender a demanda de cursos criados em tão
e pela necessidade de políticas inclusivas. curto intervalo. Impunha-se a improvisação
de professores, muitas vezes mal saídos dos
II – A inserção no mundo do trabalho: os bancos escolares. (CFP, 1988, p. 37)
desafios de compatibilizar a relevância
da profissão com as condições que A proliferação de cursos de Psicologia em todo
são ofertadas às(aos) profissionais o país, principalmente de escolas particula-
De acordo com o censo há, atualmente, 428.272 res, levou-nos a buscar diferenças, caso estas
psicólogos em atividade no Brasil. A expansão do existam, entre as Universidades Públicas e as
quantitativo está diretamente ligada à ampliação Faculdades Particulares. Existem 56 cursos de
dos cursos de formação em Psicologia. Conforme Psicologia em Faculdades Particulares (incluin-
apresentado no Capítulo 5 do Volume I deste censo, do as PUCs) e 25 cursos em Universidades
273
IV. Avaliação e Perspectivas
Públicas (ver Tabela 1), ou seja, 70% do ensino A área da Psicologia clínica é também a prin-
de Psicologia do país está concentrado nas cipal porta de entrada das(os) psicólogas(os) no
Faculdades Particulares. (CFP, 1988, p. 78) mundo do trabalho, a grande maioria dos egres-
sos (82,8%) procuram atuar nessa área. Nota-se,
Há uma variação considerável no número de contudo, que a dedicação exclusiva à clínica di-
egressos dos cursos de Psicologia, de modo que não minui conforme a progressão da carreira ocorre:
é possível dizer com exatidão quantos novos psicó- “A impressionante porcentagem de 89,9% das(os)
logos entram no mercado de trabalho anualmente, que ingressam na Clínica nela permanecem, e
mas vale destacar que o censo de 1988 quantificou dentre essas(es) 49,5% acrescentam novas áreas”.
58.277 psicólogos inscritos. (Capítulo 11, Volume I)
Uma ponderação deste censo é que as possibi-
lidades de inserção da Psicologia se diversificaram Esses dados contrastam significativamente com o
consideravelmente, mas que há um denominador censo de 1988: “Na área clínica ingressam quase
comum para a atuação profissional: metade dos psicólogos (46,1%) no seu início
de carreira; essa tendência majoritária aparece
A Psicologia – as psicologias – e suas múltiplas nas diversas regiões com pequenas variações
formas de inserção nos setores de atuação que merecem destaque” (Autor, ano, p. 178).
profissional preservam, entretanto, elementos
em comum: o exercício cotidiano pautado em A área da Psicologia Clínica também tem um
conhecimentos científicos e em prol da demo- número maior de permanência quando comparada à
cracia, combate às violências e, especialmente, área social, saúde e docência. Mas há uma tendência
produção de saúde de maneira ampliada, res- que parece ter-se agravado com o tempo, qual seja a
peitando, sempre, as diferenças e a garantia necessidade de conciliar o trabalho em áreas diversas
do acesso e operacionalização dos direitos. da Psicologia a fim de complementar a renda. Isso
(Capítulo 11) já fora registrado no censo de 1988:
Em linhas gerais, o censo também demonstrou Ao escolher uma área de atuação, o psicólogo
que a iniciativa privada seguida do setor público são revela-se dividido entre a que mais o realiza
os principais contextos em que o exercício profis- pessoal e profissionalmente (a clínica), a que
sional da Psicologia se dá, sendo que, com exceção melhor remunera (a organizacional) e a que
da Região Norte, a maior parte da categoria está na confere maior significado social ao seu trabalho
iniciativa privada. No âmbito privado, a clínica, a (escolar e comunitária). Nesta divisão residiria
educação superior e atuação em empresas privadas a necessidade de experienciar trabalhos em
e organizações se destacam. No setor público, a diferentes áreas? É possível que fatores destas
saúde, a assistência social e a educação superior duas ordens interatuem explicando esta ex-
aparecem na sequência. Apesar do aumento de cam- periência diversificada ao longo da carreira.
pos de atuação, sobretudo por conta das políticas (CFP, 1988, p. 173)
públicas, a Psicologia Clínica continua a atrair a
maior parte das(os) psicólogas(os), sobretudo as(os) Nesse sentido, o censo atual assinala:
recém-formadas(os), de modo que ao menos 73%
das psicólogas(os) ativas(os) trabalham no contexto No primeiro estudo nacional, em 1988, 73%
clínico, ainda que não exclusivamente nele. das(os) profissionais atuavam em apenas uma
274
IV. Avaliação e Perspectivas
área; 22% em duas áreas e apenas 5% em três que mais de 25% dos profissionais recebem
áreas (Bastos, 1988). Na pesquisa de 2010 já até 3 salários-mínimos, valor que dificilmente
se verificou alguma alteração, com a dedicação pode ser considerado adequado para cobrir as
exclusiva a uma área caindo para 66%, 29% necessidades de uma família. Também cabe men-
com duas áreas e 4% com três áreas (Gondim, cionar que na edição anterior desta pesquisa foi
Bastos, & Peixoto, 2010). Agora a mudança constatado que 60% dos profissionais recebiam
foi bem radical, com a queda para 41% e o até 9 salários-mínimos (Heloani et al., 2010).
crescimento elevado de quem atua em duas Fazendo uma comparação desses dados com os
áreas (passou para 32%) e em três áreas (pas- da edição atual da pesquisa observa-se que essa
sou para 27%). O crescimento expressivo da porcentagem corresponde ao grupo que recebe
categoria na última década e, possivelmente, até 6 salários-mínimos (59,4%). Assim, os dados
as condições mais adversas do mercado de evidenciam que em pouco mais de dez anos
trabalho, podem ser hipóteses a serem verifi- houve recuo nos ganhos salariais da profissão.
cadas para explicar tal mudança no perfil do (Capítulo 18; Volume II)
exercício profissional em Psicologia.
Quanto à percepção em relação às condições
Assim, de modo geral, apenas 18% da categoria de trabalho, “pode-se afirmar que os participan-
trabalha exclusivamente no setor público, 43% se tes do CensoPsi 2022 declaram enfrentar situações
dedicam exclusivamente à iniciativa privada, 21% caracterizadas por certa insegurança em relação às
intercalam iniciativa privada e setor público e 10% condições de trabalho em que atuam” (Capítulo 18;
iniciativa privada e terceiro setor. A necessidade de Volume II), os maiores indícios de precarização estão
atuar em áreas distintas reflete-se, por conseguinte, na área da Psicologia Social. Houve, a propósito,
na carga horária semanal de trabalho: “Os resultados um aumento significativo da inserção da psicologia
obtidos demonstram que, em média, a carga semanal na área social, que era praticamente inexistente na
é de 38,13 horas (dp = 16,12) e 50% das(os) psicó- primeira pesquisa, mas há participação pujante das
logas(os) afirmam trabalhar até 40 horas, embora psicólogas no Sistema Único de Assistência Social,
possam ser encontrados relatos de jornadas de até ultrapassando, inclusive, a área da Saúde em termos de
80 horas” (Capítulo 18, Volume II). contingente. Também áreas como Psicologia Jurídica,
Constatou-se que quase 1/5 da categoria profis- Esporte, Tráfego e Ambiental emergem neste censo,
sional faz uma jornada semanal acima de 50 horas revelando a expansão profissional para outras searas,
semanais. Quanto à média salarial nacional obtida ainda que de modo não contundente.
no censo, temos o valor de R$ 5.130,00, mas é Em contrapartida, uma área que parece ter-se
preciso entender que: contraído em relação às pesquisas anteriores foi a
área de Psicologia Organizacional. Essa parece ser
Em primeira instância, quanto ao salário, consta- uma área com expressiva perda de profissionais, talvez
ta-se que o cenário profissional, desde a perspec- pela atual conjuntura de desemprego no Brasil. Além
tiva adotada neste capítulo, merece atenção, uma disso, muitos formados em psicologia parecem não
vez que a metade dos participantes do CensoPsi considerar a função que exercem na área organizacio-
2022 afirma receber até 5.000 reais (aproxima- nal como atinente a serviços privativos de psicólogos.
damente), o que pode passar a impressão de não
ser tão ruim. Contudo, a análise da distribuição Entre os que atuam, hoje, em organizacional,
por faixas salariais revela mais pontualmente encontramos a mais elevada taxa de “dedicação
275
IV. Avaliação e Perspectivas
exclusiva” – 75,5%, mantendo a tendência A melhoria das condições de trabalho cabe não
observada entre os que ingressaram nesta área aos órgãos de classe, responsáveis legais pela fiscali-
e nela permaneceram. Verificamos que, dentre zação e zelo ético-profissionais, mas aos sindicatos.
os que chegam para a área, há um predomínio Nesse caso, o censo revela que apenas 15,7% das(os)
daqueles que abandonam a primeira área de psicólogas(os) têm vinculação sindical. Isso não
atuação, o que faz com que cresça o percentual quer dizer, contudo, que não caiba ao órgão de
de trabalho exclusivo nesta área. (CFP, 1988, classe fomentar a articulação sindical e, também,
p. 184) propor ações que minorem as mazelas que assolam
a categoria profissional. Outro dado interessante
É preciso ter em conta, entretanto, um aponta- é que a sindicalização é muito pulverizada por
mento levantado no capítulo 11 deste censo, que sindicatos de múltiplas categorias profissionais
afirma que a própria configuração das áreas da psi- (docentes, servidores públicos os mais diversos), não
cologia se transformou consideravelmente, de modo se limitando a sindicatos específicos da categoria
que não se pode associar mais necessariamente a área de psicólogas(os), o que também pulveriza a sua
ao local de trabalho, como parecia ser a realidade de força de atuação.
outrora. Isso porque um psicólogo organizacional Nesse sentido, é preciso que a autarquia estabeleça
poderia, por exemplo, trabalhar em uma clínica de políticas e materiais de subsídio voltados aos que ini-
psicologia com vários funcionários, ao passo que ciam a carreira em Psicologia, sobretudo na Psicologia
um psicólogo educacional poderia trabalhar em Clínica. Um programa de isenção, de orientações a
um hospital. Assim, mesmo que haja um referencial locais que contam com serviços clínicos de Psicologia
comum, o de Psicologia Clínica, tanto no censo de e eventual fluxo de denúncias aos órgãos de controle,
1988 como no atual, é preciso considerar que a área como o Ministério Público, poderia ser estudado pelo
não permaneceu estática nestes mais de 30 anos, de Sistema Conselhos de Psicologia, nos termos da lei,
modo a não ser possível fazer comparações lineares. em parceria com os sindicatos locais e os Poderes
Cabe, pois, em relação a este eixo, considerar as Legislativos. Para além disso, é importante manter a
ações que o Conselho Federal de Psicologia poderia forte articulação que o Sistema Conselhos já possui,
fazer para melhorias na inserção da categoria pro- no interior do Fórum das Entidades Nacionais da
fissional no mundo laboral. Inicialmente, é preciso Psicologia (FENPB), de modo a fortalecer a ação
elucidar que a autarquia como um todo é regida pelo política das entidades que, por missão, assumem a
direito administrativo público, de modo que não se tarefa de lutar por condições dignas de trabalho para
podem extrapolar as funções legais restringidas pela a(o) profissional de Psicologia.
Lei nº 5.766, de 1971. Mesmo que haja incidência
no Congresso Nacional para regulamentar a psico- III – Os serviços psicológicos
terapia, por exemplo, ou mesmo a jornada semanal prestados à sociedade: a marca
de 30 horas e o piso salarial da categoria, é preciso da ampliação e diversificação
reafirmar que o Conselho Federal de Psicologia não Ao averiguar a ampliação das áreas de atuação da
é dotado de poderes legislativos para determinar essa Psicologia, o censo procura desvendar a natureza dos
natureza normativa, cabendo-lhe a diminuta função serviços prestados dissecando o rol de atividades ou
de procurar articular-se e pressionar o Parlamento serviços, para explorar o quanto nos afastamos da
brasileiro para que promulgue marcos legais que ve- realidade que caracterizou o início da nossa profissão,
nham a favorecer o exercício da Psicologia no Brasil, considerado bastante limitado – tanto em termos de
algo que tem sido feito de forma intensa e incessante. atividades como de população atendida.
276
IV. Avaliação e Perspectivas
Entre as atividades oferecidas pelas(os) psicólo- exercício profissional da Psicologia, também as usadas
gas(os) à sociedade, em seus vários campos de atuação, no contexto psicoterápico. Essa é outra tentativa de
a Psicoterapia, quando considerada na diversa gama qualificar a prática profissional de Psicologia de modo
de rótulos usados pelas(os) profissionais (individual, objetivo e ético, a fim de distingui-la de práticas
grupo, família, casal etc.), é uma atividade desen- fraudulentas e não científicas.
volvida por mais de ⅔ da categoria. O acolhimento Já no âmbito da Psicologia Organizacional e do
psicológico, escuta e atividades caracterizadas como Trabalho, as atividades mais citadas pelos profissio-
avaliação, atendimento, atenção, intervenção psicos- nais são “as atividades de seleção de pessoal (18,0%),
social também são respostas que descrevem vários treinamento, desenvolvimento e educação (17,2%)
dos serviços psicológicos no contexto da Psicologia e recrutamento de pessoas (12,5%)”, tarefas que
Clínica. A psicoterapia parece ter-se tornado uma sempre embasaram a área. Atividades realizadas por
identidade da Psicologia, pois é transversal a pratica- psicólogos em recursos humanos respondem por
mente todas as áreas da psicologia, não se restringindo 6,4% das respostas.
mais absolutamente à Psicologia Clínica. Na Psicologia Escolar e Educacional destacam-se
Em relação à psicoterapia, há dois trabalhos atividades de ensino (14%), de acolhimento psicoló-
implantados neste ano pelo Conselho Federal de gico (13,1%) e intervenções escolares (12,6%). Há
Psicologia, resultado de anos de debates exaustivos. O uma grande expansão a ser feita. Nota-se que essa
primeiro desses trabalhos, conforme dito no Capítulo área também sofreu drástica mudança em relação ao
11 do Volume I, foi o estabelecimento da Resolução censo de 1988, quando 47,6% das(os) psicólogas(os)
CFP nº 13, de 2022, que dispõe sobre diretrizes e escolares e educacionais se dedicavam exclusivamente
deveres para o exercício da psicoterapia por psicóloga à área (p. 182), em contraste significativo com os
e por psicólogo. Há grande exigência, por parte da apenas 10% que se dedicam exclusivamente a essa
categoria profissional, de que a autarquia torne a área na atualidade (Capítulo 12, Volume II).
prática de psicoterapia privativa de psicólogas(os). Esse dado nos causa certa estranheza, dado o
Isso porque há aumento exponencial, sobretudo nas empenho federal tanto para aprovação da Lei nº
redes sociais, de prestadores de serviços psicoterápicos 13.935, de 2019, como para efetiva implementação
e coachings, sem qualquer tipo de formação basilar, dela nos entes federados. A lei torna obrigatória a
que adentraram no mercado de trabalho. prestação de serviços de Psicologia educacional em
Acontece que cumpre ao Conselho Federal de cada rede pública de ensino. Passados três anos da
Psicologia cumprir a lei, que determina a fiscali- aprovação, é preciso assegurar que as(os) psicólo-
zação de psicólogas(os), e não criar leis gerais para gas(os) sejam também consideradas(os) profissionais
todos os brasileiros. Essa função cabe ao Congresso da área da educação, a fim de as contratações, me-
Nacional, e é ali que a autarquia incide para quali- diante concurso público, aconteçam no arcabouço
ficar minimamente o grande vilipêndio do que tem do Fundeb.
sido chamado, hoje, de psicoterapia. A resolução é, Na Psicologia Social, os serviços psicológicos mais
assim, uma tentativa de minorar essa desqualificação comumente oferecidos são “acolhimento psicológico
contínua dos serviços psicoterápicos. (13,7%), a escuta (13%) e um conjunto de atividades
Paralelamente, o Conselho Federal de Psicologia englobadas como avaliação/atenção/atendimento/
estatuiu o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas intervenção psicossocial, que compõem 9,6% das
Aluízio Lopes de Brito (SAPP), por meio da Resolução respostas”, visto que “Uma atividade específica des-
CFP nº 18, de 2022. O SAPP tem por finalidade crita é a do acompanhamento familiar (8,7%)”.
a avaliação de práticas psicológicas no âmbito do Também a avaliação psicológica e a produção de
277
IV. Avaliação e Perspectivas
documentos psicológicos aparecem no rol de ativi- aparecer como base para intervenções no exercício
dades do psicólogo social. profissional da Psicologia. Dos respondentes do
É forçoso recordar aqui o problema conhecido censo “98% dos(as) psicólogos(as) indicaram uti-
como “transbordo do Judiciário”, em que um ma- lizar a técnica da entrevista psicológica, seguido da
gistrado determina a servidores psicólogos de CRAS observação (78,7%), testes psicológicos (72,5%)
e CREAS, ou outros equipamentos de assistência e técnicas não exclusivas da Psicologia (22,1%) e
social, que façam laudos de supostas vítimas de checklist (21,4%)”. Entre esses, 36,4% relatam a
abuso, como se a realidade da avaliação psicológica “escassez de instrumentos psicológicos nas minhas
fosse peremptória, como se o discurso de uma criança necessidades” como maior dificuldade relacionada
fosse incomplexo, como se a(o) psicóloga(o) não à Avaliação Psicológica.
tivesse dotado de autonomia. É justo que o Conselho Nesse quesito, está a importância do Sistema
Federal de Psicologia articule-se com o Conselho de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), que
Nacional de Justiça para explicar, não apenas as con- escrutiniza com rigor científico os instrumentos
dições laborais indignas de trabalho das psicólogas na psicológicos que podem ser usados pelas(os) psi-
Assistência Social, mas os excessos da magistratura cóloga(os), bem como seus respectivos manuais de
que parece desconhecer o desenvolvimento infantil, aplicação. Além disso, após o contexto pandêmico,
os instrumentos psicológicos e a diversidade de áreas o Conselho Federal de Psicologia apressou-se em
na Psicologia. apresentar estudos sobre possibilidade de aplicação de
A área da Psicologia em Saúde teve respostas testes on-line, conforme previsão estrita dos manuais
muito semelhantes à da Psicologia Clínica. Quanto de instrumentos já aprovados, a fim de salvaguardar
à Psicologia Jurídica, a prática mais comum é a da a garantia científica e condições de sigilo adequadas.
“produção de documentos psicológicos (25,5%), Uma importante novidade deste censo relacio-
seguida pela de avaliação psicológica (22,8%); a na-se às Práticas Integrativas e Complementares
esse conjunto deve se agregar a aplicação de testes (PICS). Estima-se que cerca de 15% da categoria
e outros instrumentos, citada por 7,0% dos que profissional faça o uso desse recurso como estratégia
atuam na área”. de cuidado, dos quais três se destacam entre as 37
A Psicologia Hospitalar é caracterizada sobre- práticas mencionadas na pesquisa, a saber, arterapia
tudo pelo acolhimento psicológico (15%), clínica (35%), meditação (23%) e musicoterapia (21%). Um
hospitalar em enfermaria e UTI (12,2%) e avaliação recorte racial interessante evidencia que as psicólogas
psicológica (12,2%). A Neuropsicologia, cuja amostra indígenas recorrem mais às PICs que as demais raças
foi exígua neste censo, mostra sobretudo “avaliação/ (24%). Certamente, o mencionado SAPP terá função
reabilitação neuropsicológica (22,6%), seguida à seletiva para averiguar a cientificidade e ética de cada
certa distância pela aplicação de testes (14,7%) e uma das práticas oferecidas por um(a) profissional
pela avaliação psicológica (13,2%)”. como psicóloga(o).
Houve diminuta participação de profissionais da O censo demonstrou, também, que há divisão
Psicologia de Tráfego. Isso, talvez, possa ser atribuído nítida entre o trabalho individual e o em equipe, em
ao reconhecimento da especialidade de Avaliação que há prevalência do trabalho multiprofissional. A
Psicológica em 2019, uma prática transversal a todas psicoterapia não pode mais ser vista simplesmente
as especialidades. como um atendimento clínico individual, conforme
Quanto à Avaliação Psicológica, estima-se que as respostas explicitam.
11,6% da categoria profissional considere pertencer Faz-se necessário, agora, envidar esforços na
a essa área (Capítulo 16, Volume II), e esta continua direção legislativa de qualificar o que é chamado
278
IV. Avaliação e Perspectivas
psicoterapia na sociedade atualmente, bem como Cursos de Graduação em Psicologia. Tais DCNs
na qualificação das práticas oferecidas à sociedade, definiram uma estratégia para considerar de forma
esta última sobretudo é uma função executiva das simultânea a necessidade de uma formação generalista
instâncias de controle responsáveis pela formação. e mais aprofundada no domínio de alguns processos
O conjunto de dados sobre atividades desenvolvi- de trabalho. Qualificar a formação que se expande
das na prática da Psicologia apontam, sem dúvidas, de forma tão veloz e tão submetida aos interesses do
que ao longo do tempo houve alargamento do escopo capital privado será um dos maiores desafios para a
das nossas práticas, sem, contudo, abrir mão daquele Psicologia brasileira.
núcleo clássico que nos caracteriza desde o início da
profissão. Atividades de avaliação continuam sendo IV – As transformações no exercício
largamente usadas de forma transversal nos mais profissional: são visíveis e significativas
diferentes contextos e áreas de atuação. É importante as mudanças que estão configurando
lembrar que essa é a atividade considerada privativa o nosso exercício profissional
pela Lei nº 4.119/1962. Essa expansão – de contextos As transformações no exercício profissional são
e de atividades – faz com que os limites entre eles bastante contundentes, sobretudo quando há com-
venham se tornando mais tênues. Só para citar um parações com as pesquisas pretéritas. Inicialmente,
exemplo, tomemos o caso da crescente preocupação é importante notar que, mesmo que o eixo Rio-
com a saúde em contextos de trabalho, ampliando o São Paulo continue relevante, a Psicologia deixou
escopo das atividades de PO&T e, ao mesmo tempo, de ser uma prática exclusiva desses dois grandes
criando forte intersecção com a área da saúde. Esse, centros. Para se ter dimensão da transformação
certamente não é um exemplo único. profissional, vale repetir o seguinte excerto do
Esse alargamento de atividades – contextos, censo de 1988:
áreas – coloca, é bom lembrar, o desafio da quali-
ficação para o exercício profissional. Se o campo Somos 58.277 psicólogos em atividade profis-
profissional cresce e se diversifica, cada vez se torna sional. Cerca de 75% desse total são vinculados
mais complexo o desafio de assegurar uma formação aos CRPs 04, 05 e 06 e trabalham sobretudo
generalista que assegure qualidade de serviços para em São Paulo (26.336), Rio de Janeiro (11.396)
quem é recém-egresso. Faz, portanto, todo sentido, e Minas Gerais (6.449). Juntos, esses Estados
o conjunto de dados apresentados no Capítulo abrigam 44.181 dos 58.277 psicólogos traba-
6, Volume I que mostra o enorme investimento lhando na profissão em todo o País.
das(os) profissionais na busca de qualificação após
concluírem a sua graduação – investimentos que Além disso, há uma forte concentração dos
vão além de cursos de aperfeiçoamento, especiali- psicólogos nas capitais. Em algumas Unidades
zação, mestrado e doutorado e que envolvem, tam- da Federação (Acre, Roraima e Amapá) todos
bém, o seu desenvolvimento pessoal (psicoterapia, os psicólogos trabalham nas capitais. Salvo os
supervisão etc.). casos particulares do Maranhão, onde 37 sobre
Nesse sentido, o Sistema Conselhos, junto com 52 profissionais trabalham no interior (71%),
as Entidades Nacionais da Psicologia, em especial e de Santa Catarina, onde 51% dos psicólogos
com aquelas mais voltadas para a formação, como é o também atuam fora de Florianópolis, em todos
caso da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia os demais Estados os psicólogos se encontram
(ABEP), precisam intensificar a luta pela efetiva nas capitais, sempre acima de 60 pontos per-
implementação das Diretrizes Curriculares para os centuais. Na totalidade do Brasil, 69% dos
279
IV. Avaliação e Perspectivas
psicólogos têm nas capitais seu ambiente de esse uso de TICs desde 1987 (Capítulo 20, Volume
trabalho. (CFP, 1988, p. 39) II). Essa política constante relacionada ao resguardo
e à confidencialidade da Psicologia exercida mediante
Quando foi criado o Sistema Conselhos de TICs foi duramente provada com a pandemia da
Psicologia em 1971, o Brasil todo era dividido Covid-19. O curso inexorável dos usos de TICs
em sete Conselhos Regionais. Hoje, o Sistema impôs-se por questão de sobrevivência, e não parece
Conselhos de Psicologia é dotado de 24 Conselhos haver retorno ao “mundo” pré-Covid.
Regionais dotados de autonomia político-admi- Isso pôde ser averiguado igualmente dentro dos
nistrativa. Isso reflete a presença da Psicologia não próprios trabalhos tipicamente administrativos do
apenas nos estados e seções, mas também no inte- Conselho Federal de Psicologia antes mesmo da
rior, onde há presença de subseções permanentes pandemia. Desde 2013, por exemplo, a avaliação
ou itinerantes para atender demandas das(os) psi- de testes psicológicos é feita integralmente de modo
cólogas(os). Alguns CRPs contam, inclusive, com digital, por meio do já mencionado Satepsi. Durante
comissões de interiorização. Isto posto, a Psicologia a pandemia, o CFP teve de suprimir reuniões pre-
deixou de ser uma realidade exclusiva do Sudeste senciais, e o trabalho remoto foi temporariamente
e deixou de ser uma profissão liberal circunscrita garantido. Mesmo as chamadas reuniões telefônicas,
às capitais. bastante comuns há poucos anos, deixaram de existir
A interiorização da Psicologia pode ser faci- permanentemente, como uma tecnologia morta,
litada pelo uso das Tecnologias de Informação e plenamente substituída por aplicativos, assim foi
Comunicação (TICs), que é, aliás, outra modificação desfeito o setor de telefonia. Os próprios julgamen-
considerável no exercício profissional da Psicologia. tos administrativos éticos sofreram modificação no
No censo de 1988, muito antes da popularização da rito para possibilitar o uso de TICs. Nesse ínterim,
internet, há um apontamento preambular intitulado a plataforma e-Psi teve aumento exponencial de
“tecnologias geradas”: 718,5% em poucos meses da pandemia.
Conforme apontado no Capítulo 20 do Volume
A nosso ver, o melhor da Psicologia, em termos II, se antes da pandemia havia média de uso de TICs
tecnológicos, seria o trabalho de assessoria em pelas psicólogas(os) de 34,01%, durante a pande-
equipes multidisciplinares. O melhor desem- mia esse recurso alcançou patamares da ordem de
penho tecnológico do psicólogo é no papel 78,17%. Atualmente, o uso de TICs aparece em
de intermediador entre diferentes técnicos, torno de 68,5%. Abre-se, então, uma discussão de
cientistas e profissionais. No Brasil, porém, fundamental relevância ética, pois, mesmo que haja
essa vocação ainda está por se realizar. (CFP, também a tendência de retornar a modos tradicionais,
1988, p. 119) sobretudo na psicoterapia, o uso de tecnologias pa-
rece ser uma realidade posta. É preciso, assim, rever
Essa vocação, de certo modo, realizou-se. No prê- quesitos éticos de divulgação de trabalho psicológico,
mio profissional de Práticas Inovadoras em Psicologia, sobretudo com o uso das redes sociais como instru-
promovido pela autarquia, há considerável sub- mento de divulgação.
missão de trabalhos em aplicativos desenvolvidos O trabalho realizado por este censo revela que
por psicólogas(os). as maiores objeções da categoria profissional rela-
O Conselho Federal de Psicologia, preocupado cionadas ao uso de TICs está na possibilidade de
com a ética e o sigilo profissional, algo muito caro ao esses recursos tornarem as relações mais impessoais
exercício da nossa profissão, estabeleceu regras para (56,7%). Em seguida aparece o receio da dificuldade
280
IV. Avaliação e Perspectivas
de construção de vínculos (49,6%) e, na sequência, aprofundem temas sensíveis e para os quais um Censo
o problema da segurança digital e sigilo (47,5%). não permite o nível de aprofundamento necessário.
(Capítulo 20, Volume II) A busca do equilíbrio entre o clássico e o inovador
Para além das ressalvas quanto ao uso indis- é sempre um desafio para qualquer profissão. Estar
criminado e antiético das TICs, há um novo fato abertos a incorporar as inovações é tão importante
duramente observado durante a pandemia: o tec- quanto não descartar práticas e modelos de atuação
noestresse. Mesmo que haja vantagens relacionadas que possam vir a ser caracterizados como antigos ou
ao teletrabalho, como redução de deslocamentos e ultrapassados. Tudo isso requer o contínuo escrutínio
despesas pessoais, maior flexibilidade e conforto da da comunidade científica da Psicologia. Aqui, mais
casa, há contrapesos como alta demanda emocional uma vez, o Sistema Conselhos precisa estar articulado
do próprio trabalho, falta de limites trabalho-casa, e atuar com as entidades científicas da Psicologia,
carga horária excessiva. (Capítulo 21, Volume II) como as que estão integrando o FENPB e, nesse
Assim, conceitos como tecnofadiga e tecnoansiedade caso específico, com ênfase na Associação Nacional
merecem atenção da Psicologia. de Programas de Pós-Graduação em Psicologia
A velocidade com que as transformações tecnoló- (ANPEPP), que constitui o locus privilegiado so-
gicas acontecem e impactam o mundo do trabalho bre o que está avançando na pesquisa psicológica
certamente demandará do Sistema Conselhos de no Brasil. Essa ação articulada passa, por exemplo,
Psicologia a discussão, no seu interior, dos seus pro- pelos esforços para restabelecer o nosso portal de
cessos de fiscalização, inscrição, orientação e, por que periódicos científicos da Psicologia (PEPSIC), dis-
não dizer, de deliberações que, em média, demoram positivo que demonstrou, ao longo do tempo, seu
anos, a fim de procurar acompanhar o ritmo de papel indispensável de propulsor do desenvolvimento
transformação digital ocorrida na Psicologia brasileira. e consolidação dos nossos periódicos científicos.
É preciso que a formação dos futuros profissionais
também contenha instruções éticas sobre o uso de V – O engajamento e compromisso social
TICs, já que essa aprendizagem tem sido conduzida Se não há um axioma científico único capaz
pela(o) própria(o) profissional. de agregar todas as múltiplas correntes teóricas da
Além disso, parece-nos haver um problema grave Psicologia, de modo a prever, com exatidão, quais
que precede o uso de TICs, constatado na função são os procedimentos distintamente técnicos e ad-
ética do Conselho Federal de Psicologia, qual seja a missíveis profissionalmente, há inequívoca certeza
imperícia no modo de escrever documentos. Parece de que o exercício profissional da Psicologia deve-se
haver dificuldade básica com o próprio idioma escrito, firmar sobre a égide dos direitos humanos. Não é de
quando, na tentativa de muitos profissionais respon- agora que esse princípio é visto como fundamental
derem ao censo, procuram descrever suas atividades. para o nosso exercício profissional. Desde a ruptura
Cremos ser oportuna outra recomendação rela- com o regime militar nos anos 1980, a Psicologia
cionada à questão tecnológica. É preciso conduzir afirma o seu compromisso com a vida e a superação
estudos mais aprofundados para averiguar quem das profundas desigualdades sociais que marcam a
são as(os) psicólogas(os) que trabalham em condi- nossa sociedade e que se traduziu, historicamente,
ções precárias mediante o uso de TICs, saber quem na exclusão de segmentos sociais vulnerabilizados
está na ponta dessa tecnologia, adotar uma postura ao acesso aos serviços da Psicologia.
pragmática, e não saudosista. Assim, seria elementar O uso da ciência não compromissada com a inte-
continuar estudos acerca dessa nova realidade pro- gridade do ser humano sempre foi visto pelo Conselho
fissional e promover estudos complementares que Federal de Psicologia como perpetradora de injustiças
281
IV. Avaliação e Perspectivas
e, portanto, infração ética. Assim, essa premissa de que se engaja em questões sociais é aquela
respeito deve ser o projeto comum da Psicologia nas que pertence a algum grupo em particular? A
mais amplas áreas de atuação. Ao se deparar com o resposta é que no geral, sim, ou seja, a identi-
sofrimento das pessoas, ao perceber que muitos deles dade potencializa o indivíduo a se engajar em
são semelhantes entre si, não seria possível a profis- uma ou outra questão, ademais, engajar em
sionais sensibilizados, para perceber e questionar a todas as bandeiras é difícil, a identidade acaba
origem de conflitos, permanecerem inermes. orientando para um ou outro tipo. (Capítulo
Parece-nos um caminho natural que uma psi- 23, Volume II)
cóloga(o) que trabalhe no Sinase, por exemplo, em
tese treinada a observar criticamente causas sócio- Por se tratar de uma ciência comprometida com
-histórico-culturais durante a formação profissional, a defesa de direitos humanos, o censo perguntou o
constate que os usuários de seus serviços são, em sua nível de conhecimento desse tema às(aos) profissio-
avassaladora maioria, de origem social paupérrima e nais. Em uma escala de 1 a 7, “28% das respondentes
de cor negra. Parece-nos, aliás, que saltaria aos olhos, atribuíram nota máxima, 31% nota 6, 25% nota 5,
inclusive do mais distraído dos espectadores, que a 13% marcaram nota 4, e 1% marcou nota 3 ou 2,
conclusão quase sempre invariável acerca da origem cada”. Quando instadas(os) a responder sobre onde
de situações de violência é a de que o Estado que aprenderam sobre direitos humanos,
falhou em garantir a proteção integral e a prioridade
absoluta à Criança e ao Adolescente comumente 70% das pessoas marcaram a opção por iniciati-
falha em garantir sua reinserção social. va própria, 58% marcaram que aprenderam na
Assim, o tipo de clientela vulnerabilizada comu- sua própria prática profissional, 55% marcaram
mente atendida pelas(os) psicólogas(os) gera, no que foi na graduação que aprenderam sobre
bojo da categoria profissional, bandeiras de luta. O direitos humanos, 41% marcaram a opção
engajamento da categoria profissional em questões em cursos de aperfeiçoamento, 26% dizem
sociais emerge neste censo; a questão de gênero, ter aprendido antes da graduação e 21% por
raça e LGBTQIA+ são as mais frequentes (Capítulo estímulo do Sistema Conselhos.
23, Volume II). O censo também evidencia um
dado interessante de engajamento social relacio- Uma dedução encorajadora desta pesquisa mostra
nado às áreas de atuação: “A Avaliação Psicológica, que, em geral, “temos uma média global de enga-
Neuropsicologia, Trânsito, Escolar e Educacional jamento em causas sociais no país de 22% para o
são mais engajadas com a Deficiência, enquanto pleno engajamento (7) e 21% para o engajamento
a Docência, Clínica, Forense, Organizacional e quase pleno (6), médio (5) e quase médio (4), o que
Trabalho, Social e Comunitária, Hospitalar, Saúde, delimita que nossa profissão tem se inserido de forma
Esporte e Ambiental mais com Gênero”. (Capítulo bastante profícua em práticas de direitos humanos”.
23, Volume II). (Capítulo 24, Volume II). Acrescente-se uma per-
Salienta-se um questionamento pertinente gunta que indica o grau de vulnerabilidade social
feito anteriormente: das pessoas beneficiadas por serviços psicológicos:
Uma pergunta que nos intrigava era saber se Nos últimos dois anos, você trabalhou com
o fato de a psicóloga pertencer a algum grupo alguma clientela listada abaixo, as respostas
de minoria ou minorizado estaria relaciona- foram organizadas da seguinte forma em or-
do a seu engajamento. Ou seja, a psicóloga dem decrescente: Mulheres em situação de
282
IV. Avaliação e Perspectivas
violência (48%); Pessoas LGBTQIA+ (46%); Acesso igualitário à saúde, educação e trabalho
Usuários de álcool ou outras drogas (44%); dignos (97%); segurança de que terá um trata-
Pessoas com deficiência (43%); Usuários do mento igualitário perante a lei (86%); liberdade
SUS (42%); Criança ou adolescentes em si- de ir e vir no território (86%); liberdade de
tuação de violência (40%); População preta expressar suas posições políticas e ideológicas
(39%); Usuários e egressos dos serviços de (85%); liberdade de professar diferentes cre-
assistência social (28%); Pessoas em situação dos religiosos (84%); liberdade de associação
de rua (20%); Usuários e egressos do siste- e mobilização para conquista de direitos sociais
ma prisional e de medidas socioeducativas e políticos (79%); direito de votar livremente
(18%); Comunidades tradicionais (14%); e escolher seus governantes (79%); e livre cir-
Comunidades do campo, de floresta ou áreas culação de informações nos diferentes tipos de
úmidas (5%); População indígena (5%); Povos mídias (65%). (Capítulo 25, Volume II)
quilombolas (4%). (Capítulo 24, Volume II)
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e
Um princípio fundamental adotado pelo Sistema Políticas Públicas (CREPOP) aborda, também, te-
Conselhos é o democrático. Em que pese a Lei nº mas comumente relacionados ao engajamento social
5.766, de 1971, refletir eleições indiretas, reproduzin- e democrático do Conselho Federal de Psicologia.
do o modelo militar do período em que a lei foi pro- Fortalecer e expandir a ação dos CREPOP parece
mulgada, o Sistema Conselhos logrou fazer consultas ser algo importante pelo espaço que ainda se tem
nacionais, que reproduzissem o voto direto e, também, a conquistar, não apenas de apoio para a inserção
a participação democrática direta. Instâncias como da(o) psicóloga(o) nas políticas públicas mas também
o Congresso Nacional de Psicologia e a Assembleia de disseminar uma cultura de efetivo compromisso
de Políticas Administrativo Financeiras, em que o com a construção de uma sociedade democrática em
Conselho Federal de Psicologia é apenas organizador toda a sua radicalidade e que requer a superação das
em um caso e delegado em outro, procuram garantir profundas desigualdades que separam a nossa popu-
a voz direta das(os) psicólogas(os) brasileiras(os). lação, com uma grande maioria jogada em condições
O Conselho Federal de Psicologia participou, de vida absolutamente indignas e inaceitáveis para o
também, ativamente do processo de redemocratiza- tamanho e riqueza dessa nossa nação. Há, também, que
ção, não como mero espectador, mas nas várias lutas se fomentar, com outras entidades da Psicologia, que
que, à época, os movimentos sociais protagonizaram, essa discussão penetre cada vez mais profundamente o
como a Luta Antimanicomial. A situação nefasta processo de formação das(os) nossas(os) profissionais.
dos hospitais psiquiátricos foi e é continuamente Democracia, direitos humanos e profunda compreen-
combatida por profissionais imbricados na promoção são de como nos constituímos como sociedade são
da saúde mental. fundamentais para entender quaisquer aspectos da
Nesse tema, “uma média de 75% das responden- subjetividade humana e, portanto, atuar sobre as suas
tes marcou exclusivamente a democracia como um demandas pelas Psicologia.
requisito totalmente importante para o exercício de
nossa profissão” (Capítulo 25, Volume II). Quando VI – A visão e avaliação por
questionado sobre o que consideram importante parte dos psicólogos do próprio
para o bem-estar, qualidade de vida e saúde psíquica exercício profissional
das pessoas na vida em sociedade, a(o) psicóloga(o) A percepção sobre a própria profissão foi abor-
participante do censo responde: dada no censo de 1988: “O ‘status’ da profissão
283
IV. Avaliação e Perspectivas
dos psicólogos, segundo eles próprios, não é muito Cerca de 18% dos psicólogos nunca atuaram
elevado, embora acreditem que sua importância ou na profissão, ou por não terem experiência de
relevância para a comunidade ainda seja maior do trabalho (1,9%), ou por terem preferido outro
que a remuneração e os recursos de que dispõem tipo de atividade, quer no passado, quer no
para atuar” (CFP, 1988, p. 269) momento da pesquisa (15,9%). Estes dados in-
Os achados no censo sobre a percepção da dicam que os psicólogos encontram dificuldade
própria profissão revelam, no geral, percepções em atuar nas atividades para as quais foram
favoráveis relativas ao status da profissão, sobre- preparados na graduação. Deve-se notar que, ao
tudo em equipes multiprofissionais, embora haja responderem acerca das dificuldades encontra-
uma diferenciação significativa com a variação da das no exercício profissional, os respondentes
idade: “Enquanto 27,5% de profissionais da faixa apontaram como principal impedimento à
de 60+ concordam com a afirmação de que a pro- sua atuação, o desconhecimento por parte dos
fissão tem status inferior, esse número sobe para outros profissionais, do que a Psicologia pode
43,5% na faixa até 29 anos de idade”. (Capítulo oferecer, tendo esta afirma,;iio sido endossada
26, Volume II) por psicólogos de todas as regiões atuando nos
Há, também, uma informação diferenciada em mais diversos campos da Psicologia. (CFP,
relação à faixa etária surpreendente: 1988, p. 143)
Dois aspectos principais chamaram nossa O censo de 1988 aferiu inclusive que: “Dos
atenção. Primeiro, há uma nítida diferença psicólogos que não se encontram trabalhando no
na avaliação que os profissionais fazem em momento, 90,9% afirmam não ter recebido remu-
relação a Psicologia em função da idade. A neração, por atividades ocasionais anteriores” (CFP,
faixa etária mais jovem tende a ter uma per- 1988, p. 143).
cepção mais negativa. Muito provavelmente Atualmente, na mesma linha das pesquisas ante-
isso se dá em função de um conjunto mais riores, há uma avaliação bastante negativa acerca do
amplo de experiências positivas e uma melhor retorno dos investimentos necessários de formação
inserção no mercado de trabalho, que vai se profissional e a remuneração recebida. A(o) psicó-
consolidando com o passar do tempo, razão loga(o) parece ser também pessimista em relação à
pela qual a avaliação se torna gradativamente banalização da profissão, comumente associada por
mais positiva. (Capítulo 26, Volume II) profissionais ruins e também em relação à confusão
de práticas sem quaisquer embasamentos científicos.
Parece-nos que a dificuldade de inserção no mer- A área que mais apresenta queixas e intenções
cado de trabalho das(os) egressas(os) dos cursos de de mudança atualmente é a Psicologia Social. É im-
Psicologia reaparece nessa informação. Apesar de possível deixar de associar as condições de trabalho
parecer ter-se agravado nesta pesquisa, essa realidade descritas com a percepção das(os) psicólogas(os) da
não constitui um fenômeno recente, pois em 1985 própria profissão. Mas, mesmo aos inúmeros percalços
apenas um pouco mais de 50% das(os) diplomados relatados aqui, a Psicologia parece continuar a ser
em Psicologia solicitavam inscrição no respectivo marcada por uma asserção ainda do censo de 1988:
Conselho Regional de Psicologia (CFP, 1988, p. 147).
Além dessa enorme proporção de egressas(os), que As insatisfações ligadas às condições de trabalho
sequer se inscreveram para fazer funções privativas não parecem ter como resultado o abandono
de psicóloga(o), notou-se que: da profissão. Ao avaliar o desempenho pro-
284
IV. Avaliação e Perspectivas
fissional, os psicólogos afirmam o desejo de Atentar para a avaliação que as(os) profissionais
mudar de emprego ou mesmo de área dentro fazem da profissão abre uma avenida de possibili-
da Psicologia, mas têm intenção de permanecer dades de ação que podem ser pensadas no sentido
na profissão. (CFP, 1988 p. 147) de tornar a Psicologia uma profissão cada vez mais
reconhecida socialmente, cada vez mais sintonizada
Quer-se dizer que, apesar das objeções relacionadas com as necessidades da nossa população e atuando,
ao mundo do trabalho da Psicologia, há apreço e um cada vez mais, dentro dos princípios éticos e com a
forte vínculo por parte das(os) psicólogas(os) com a base científica lhe oferece.
profissão. Esse é um aspecto que precisa ser valori-
zado e que guarda forte relação com os motivos que Conclusão
fundamentam a Psicologia como campo de escolha Na arte referente aos sessenta anos da Psicologia,
para trabalhar, aspecto abordado no Capítulo 4 do o Conselho Federal de Psicologia optou por usar
Volume I. Essa escolha é guiada, fortemente, por o sankofa, um ideograma adinkra que apresenta
valores de solidariedade, pela preocupação em ajudar um pássaro que se volta para trás. Originário da
as pessoas, pela busca do autoconhecimento. E tudo mitologia dos povos acãs na África Ocidental, esse
isso cria um vínculo de identidade com a profissão símbolo antiquíssimo sintetiza a sabedoria popular
que leva os profissionais a suportarem condições nem ganesa e, na língua twi ou acã, significa literalmente
sempre dignas de trabalho. “volte e pegue”. O desenho expressa também a ideia
A conclusão do Capítulo 4 é bem ilustrativa do presente no provérbio “Se wo were fi na wo sankofa
desafio que os dados sobre a avaliação da profissão a yenkyi”, que poderia ser traduzido como “Não é
colocam para o sistema Conselhos de Psicologia: errado voltar atrás para buscar o que esqueceste”.
O sankofa figura, assim, o esforço de buscar o que
"A construção de uma carreira bem-sucedida na há de bom no passado para trazê-lo ao presente.1
psicologia é resultante de uma confluência de Não se trata, entretanto, apenas de uma mitolo-
interesses e habilidades pessoais, ambientes de gia remota. O símbolo do sankofa foi encontrado
trabalho que facultem o desenvolvimento deste em vários artigos de ferro do Brasil escravocrata,
repertório individual, a qualidade da gradua- bem como em cemitérios de negros na América do
ção e pós-graduação e os marcos regulatórios Norte. Em vários locais maculados pela escravidão,
sociais e econômicos capazes de resistir a um a sabedoria ancestral dos negros foi, de algum modo,
movimento de reduzir o trabalho a um meio preservada das tentativas de destruição de todas as
de exploração. Em um mundo tão adverso é práticas que conectavam os povos escravizados a sua
preciso recuperar a capacidade de fazer com terra originária. Assim, além desse altíssimo valor
que o trabalho cumpra a sua função de ser uma cultural imaterial condensado no sankofa, agrega-se
atividade essencial de promoção de desenvol- também esse valor social histórico de superação,
vimento pessoal e social, conciliando-o com resiliência e luta.
outras tantas esferas da vida que dignificam a Nesse sentido, o sankofa também sintetiza o es-
humanidade. (Gondim e Barros, p.81. capítulo forço que o Conselho Federal de Psicologia procurou
4, Volume I) fazer neste censo: olhar para trás, aprender com a
história, entender os erros e acertos, reconhecer a
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IV. Avaliação e Perspectivas
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IV. Avaliação e Perspectivas
Referências
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (1986). Título da obra: Subtítulo. Brasília, DF: CFP,
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2013). Título da obra: Subtítulo. Brasília, DF: CFP.
Center for Teaching & Learning. (2011). African Tradition, Proverbs, and Sankofa
[Post]. Disponível em: https://web.archive.org/web/20110420131901/http://
ctl.du.edu/spirituals/literature/sankofa.cfm. Acesso em: 27 out. 2022.
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ISBN 978-65-89369-24-0
9 786589 369240
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