Livro Abrapso 2013
Livro Abrapso 2013
Livro Abrapso 2013
da
Universidade Federal de Santa Catarina
P912
Sumrio
A Coleo
Apresentao
Origens
Uma histria sociotcnica do Laboratrio do Insituto de
Psicologia
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Marcos Vieira-Silva
A dimenso subjeiva da desigualdade social: questes
metodolgicas e implicaes pricas
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85
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Daniele Mariano Seda, Carlos Eduardo Senareli Teixeira e Rafael Nuernberg Lauer
A fronteira vivida e os processos de subjeividade
120
144
157
II
176
196
225
242
261
280
III
A coleo
Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos rene trabalhos oriundos do XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de
Psicologia Social - ABRAPSO, realizado na Universidade Federal de Santa
Catarina em outubro de 2013. Comemorando 30 anos, ao realizar esse
evento que aliou ensino, pesquisa e atuao proissional em Psicologia
Social implicada com o debate atual sobre problemas sociais e policos do
nosso pas e sobre o coidiano da nossa sociedade, a ABRAPSO reairmou
sua resistncia polica cristalizao das insituies humanas.
A ABRAPSO nasceu compromeida com processos de democraizao do pas, a parir de uma anlise crica sobre a produo de conhecimento e atuao proissional em Psicologia Social e reas ains. O horizonte de seus ailiados a construo de uma sociedade fundamentada
em princpios de jusia social e de solidariedade, compromeida com a
ampliao da democracia, a luta por direitos e o acolhimento diferena.
Nossas pesquisas e aes proissionais visam a crica produo e reproduo de desigualdades, sejam elas econmica, racial, tnica, de gnero,
por orientao sexual, por localizao geogrica ou qualquer outro aspecto que sirva para oprimir indivduos e grupos. Os princpios que orientam as pricas sociais dos ailiados ABRAPSO so, portanto, o respeito
vida e diversidade, o acolhimento liberdade de expresso democrica,
bem como o repdio a toda e qualquer forma de violncia e discriminao. A ABRAPSO, como parte da sociedade civil, tem buscado contribuir
para que possamos de fato avanar na explicitao e resoluo de violncias de diversas ordens que atentam contra a dignidade das pessoas.
Os Encontros Nacionais de Psicologia Social promovidos pela ABRAPSO consistem em uma das estratgias para esse im. Foi um dos primeiros
eventos nacionais realizados na rea de Psicologia (em 1980) e se caracteriza atualmente como o 3 maior encontro brasileiro de Psicologia, em nmero de paricipantes: nos limos encontros congregou em mdia 3.000
paricipantes e viabilizou a apresentao de mais de 1.500 trabalhos.
Apresentao
ram-se. No estudo, com base em documentos e sites oiciais, foram contabilizados 510 cursos no pas. Se antes os psiclogos eram em sua maioria
formados em cursos diurnos, em insituies pblicas de ensino sediadas
nas capitais e grandes cidades; hoje so predominantemente estudantes
da rede privada, no raro estudaram noite, enquanto trabalhavam. Em
grande nmero, foram formados no interior do pas. Da fronteira nacional
pequena cidade, deiniivamente no somos mais um proisso restrita
elite urbana. Esse novo contexto formaivo nos impe acurada relexo
sobre nossas novas pricas, saberes e espaos de atuao.
A nova formao em psicologia, onde esteja, provocada crica,
reinveno. As pricas de estgio e interveno so o foco dos dois captulos seguintes. Pesquisas empricas e implicadas, procuram enfrentar temas tradicionais em nosso percurso formaivo, em um contexto e espao
novos, que requerem novas epistemes, tcnicas e didicas.
A primeira, Anlise das pricas desenvolvidas em estgios obrigatrios do curso de psicologia na rea social, uma pesquisa paricipante
realizada em uma insituio paricular frente aos desaios de uma prica
de estgio em Psicologia Social Comunitria. Analisa os relatrios dos discentes. signiicaivo que pretenda ideniicar a parir destes documentos
a natureza epistemolgica, ica, ontolgica e metodolgica de suas intervenes.
Em O Pr-sade e o contexto universitrio: os achados de uma pesquisa-experincia, novamente as pricas da psicologia em sua interface com
a sade so colocadas em xeque. Aqui, mais especiicamente naquilo que
concerne nossa formao. Embora hoje ns psiclogos estejamos mais
do que nunca radicados como proissionais da sade, e inseridos no SUS,
ainda h muito a avanar. A pesquisadora, engajada no programa governamental Pr-sade, em Minas Gerais, sinteiza o desaio: Romper com a
centralidade do modelo biomdico e hospitalar para uma ateno em sade focada na promoo e educao exige de trabalhadores, professores e
cidados uma mudana de paradigma que relita nos processos de ensino
e de trabalho, nas relaes de saberes, na atuao em redes integradas de
sade e na paricipao social. Todo esse contexto clama por produo de
conhecimentos e mudana cultural, para outro fazer na sade.
O sistema universitrio mudou muito nas duas limas dcadas.
Novas modalidades de cursos, expanso da oferta de vagas, novos perfis
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de estudantes ingressaram na educao superior. Em Heranas militantes: perspecivas estudanis sobre os Bacharelados Interdisciplinares na
Universidade Federal da Bahia, so confrontadas duas experincias de estudantes sobre a implantao dos BIs, nova estrutura universitria, com
suas potencialidades e contradies, campo de tenses que coloca a universidade e seus preconceitos em evidncia.
O captulo seguinte, Graduandos em Psicologia e preconceito, racionalidade tecnolgica e narcisismo, enfoca esse novo espao de formao,
virtual, e seus impactos na relao intersubjeiva. Novamente a teoria crica da sociedade trazida enquanto referencial em um campo atual e
emergente de relexes.
Talvez o mais novo e contraditrio espao da educao superior seja
a EAD. o campo do captulo seguinte, Desigualdade educacional: o caso
do EAD no Brasil. Nele, o grupo de pesquisadores coordenado por Deise Mancebo, pertencentes Rede Universitas/BR, Associao Nacional
de Ps-graduao e Pesquisa em Educao (ANPED) e ao Observatrio da
Educao (CAPES/INEP), no faz concesses, apontando as contradies
dos discursos oiciais e de mercado que procuram fundament-la. Airma,
com base em levantamento documental e estasico rigoroso: Trata-se
de uma dinmica de excluso includente; isto , um processo mediante
o qual os mecanismos de excluso educacional se recriam. Em uma feliz
expresso, trata-se de uma universalizao sem direitos.
O limo captulo, Da epistemologia s ecologias cogniivas: recolocando o problema do conhecer e do conhecimento psi, traz outro referencial terico, enfoca uma preocupao epistemolgica implicada na
formao dos psiclogos: o problema do conhecer e do conhecimento
psi em nosso percurso na graduao. Defrontamo-nos h tempos com
essa temica, colocada em trs eixos pelo captulo: nossa relao com as
diferentes psicologias; nossas escolhas tericas; e a relao que estabelecemos entre teoria e prica, cincia e experincia. Tema rido, representaivo do desaio intelectual que temos e da necessidade de enfrent-lo em nossa formao.
A ABRAPSO, como em 2001, faz jus a sua tradio acadmica e militante. Novamente Florianpolis, novamente nossa histria retomada.
Em xeque, nossa formao em sua relao com nossos saberes e pricas.
Em ano de intensas manifestaes sociais, de incertezas nacionais, vamos
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Introduo
Este trabalho se dedica a discorrer sobre a histria do anigo Laboratrio do Insituto de Psicologia da UFRJ, fechado no incio dos anos
1990. Porm, antes de iniciarmos esta jornada, que remonta ao incio
da dcada de 1920, precisamos lanar mo do prprio senido de uma
histria desse gnero. Qual seria a importncia de uma histria acerca
de um laboratrio que j acumula quase vinte anos de desaivao? Certamente no seria apenas pela importncia de documentar os acontecimentos que levaram a tal situao. H tambm a peculiar condio do
Laboratrio do Insituto de Psicologia (IP) da UFRJ: junto com os anigos
instrumentos, h um intenso trnsito de personagens, locaes e razes,
bem como interesses diversos, colaboradores e decretos de lei que decidiram os rumos do laboratrio at o im de seus dias, no Campus da
Praia Vermelha da UFRJ. Esse laboratrio, portanto, confunde-se com a
prpria histria do Insituto de Psicologia e pode servir para uma interessante relexo acerca da regulao da Psicologia, enquanto saber, no
Rio de Janeiro e, talvez, no Brasil. Iniciaremos nosso percurso releindo
sobre a posio do historiador em relao ao seu objeto, passando pelas ferramentas necessrias para o trabalho histrico e terminando com
a histria do Laboratrio, percorrendo seu trajeto desde 1924 at seu
fechamento nos anos 1990, numa histria marcada por muitos personagens, lugares, instrumentos e leis, todos misturados num amlgama que
ainda hoje caracteriza esse objeto chamado Laboratrio do Insituto de
Psicologia.
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A ideia de uma fabricao da histria pelo historiador comum na Escola dos Annales, coleivo de historiadores franceses que era composto por Jaques Le Gof, Lucien Febvre, Georges
Duby, dentre outros.
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Frente a essas relexes propostas por Michel de Certeau, entendemos, portanto, que a historiograia no se faz do passado ao presente,
mas justamente com o movimento contrrio: do presente ao passado, em
busca de material para manufaturar e transform-lo em Histria. Mais do
que apenas inverter o senido de um pensamento comum e corrente, Certeau atenta que a operao historiogrica produz uma histria vinculada
ao tempo do historiador. Seus problemas e suas questes iro norte-lo
em sua pesquisa, e esta ser a marca indelvel de seu trabalho.
Nossa marca indelvel ser, ento, o fechamento do laboratrio,
que foi uma igura cara para a psicologia em geral por ter dado incio a
uma tradio experimental que supostamente a alicerou ao status de cincia. Pariremos dele para buscar e entender exatamente aquilo que no
est dado em sua desaivao: o que aconteceu? Havia aividade? Que
ipo de aividade? Era relevante? Sobretudo, e de algum modo ousando
fechar a questo, qual foi o moivo do fechamento desse disposiivo? Para
responder tais perguntas, precisaremos de ferramentas especicas para
analisar o material de nossa histria (documentos, textos e testemunhos
da poca) que viro na terceira seo deste arigo. Por ora, iremos nos
deter em precisar os modos de anlise do material histrico bruto para
depois fabric-lo e historiograf-lo.
Das ferramentas: um laboratrio que circula
crucial escolher ferramentas conceituais para conduzir nossa anlise. Tomaremos, neste caso, do modelo de Sistema Circulatrio proposto
por Bruno Latour (2001). Este autor fornece uma anlise histrica de um
caso especico da Fsica na Frana: a tentaiva de construo, por parte
do sico Frederic Joliot, de uma bomba de nutrons. Em suas diversas
negociaes(que classiicaramos tanto como tericas quanto como pol-
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icas e econmicas), Joliot busca alicerar seu projeto da bomba de nutrons. Latour analisa tais negociaes sob cinco eixos, listados a seguir:
Eis a cinco ipos de aividades que os estudos cienicos tm de descrever
em primeiro lugar caso pretendam comear a entender, de um modo realista, o que determinada disciplina cienica procura: instrumentos, colegas,
aliados, pblico e, inalmente, o que eu chamo de vnculos ou ns, a im de
evitar a bagagem histrica que vem com a expresso contedo conceitual. Cada uma destas cinco aividades to importante quanto as outras,
cada uma nutre-se de si mesma e das demais. (Latour, 2001, pp. 117-118)
Latour (2001) denomina, mais detalhadamente, os cinco componentes da circulao dos conceitos da cincia (aos quais ele d o nome
de ns ou vnculos): Mobilizao do Mundo, Autonomizao, Alianas, Representao Pblica e Vnculos e Ns. Trata-se de analisar o
empreendimento cientfico a partir de suas tcnicas de inscrio, sua
comunidade cientfica, aqueles nela interessados, os modos com que a
populao a percebe e, por fim, o que amarra esses demais componentes:
os conceitos.
Mobilizao de mundo [trata-se de] se deslocar em direo ao
mundo, de torn-lo mvel, de encaminh-lo para o lugar das controvrsias, de assegurar a sua manuteno e de o tornar prprio para um uso
retrico (Latour, 2001, p. 146). O socilogo neste ponto trata dos instrumentos dos quais a cincia se vale para criar suas inscries e proposies.
Entram os inscritores, ou seja, os artefatos que o cienista usa para
transformar o mundo em proposies mveis: medidores (como balanas
e termmetros), contadores (como o Geiger, de radiao), separadores
(como centrfugas em laboratrios de bioqumica), planilhas (como quesionrios nas cincias sociais) etc.; tudo aquilo que transforma a realidade
em dados mobiliza o mundo. Neste caso, o laboratrio um grande mobilizador, e para nossa anlise este exemplo no ser toa: o laboratrio em
questo seria outrora um grande mobilizador de mundo, portanto, parte
do circuito por onde pode circular um modo de fazer cincia.
Porm, no apenas dos instrumentos se valem as cincias. Na produo de seus contedos e leis, existem tambm as marcas da prpria
comunidade cienica. Ao propor como circuito do sistema circulatrio a
autonomia dos cienistas, Latour deine-o assim porque ele diz respeito
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Dentro da Sociologia da Cincia e do campo CTS, muitos outros autores iro uilizar este termo, como Michel Callon, Vinciane Despret e, especialmente Isabelle Stengers, sempre com o
senido de estar-entre. Optamos por uiliz-lo, pois acreditamos ser um conceito-chave para
nossa anlise.
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Dessa forma, atravs de seus contatos e intensas negociaes (espao na colnia, inanciamento da Gafre-Guinle, busca por colaboradores
e produo cienica), Radecki ampliou o laboratrio a ponto de jusiicar
a criao do Insituto. Este, porm, duraria apenas sete meses, tendo sua
curta durao dentro do ano de 1932, quando o Insituto de Psicologia foi
fundado e fechado. Centofani (1982) sugere que o Insituto foi fechado
por no ser capaz de se manter inanceiramente, bem como por no interessar a alguns setores especicos, como a Psiquiatria da poca e grupos
catlicos ligados Psicologia.
Ao longo desse perodo, o laboratrio apresentou-se basicamente
como instrumento para a Colnia de Psicopatas e, aos poucos, como
base para as pesquisas do psiclogo polons Waclaw Radecki. Tivemos
acesso a parte de seus escritos e alguns sugerem um uso aivo do laboratrio para fomentar seu Discriminacionismo Afeivo, sistema que levou
adiante nos anos seguintes. Aps o fechamento do Insituto de Psicologia, mudou-se para a Argenina e para o Uruguai, para onde levou seus
escritos, publicou um Tratado de Psicologia advindo, em grande parte,
das pesquisas realizadas na Colnia e, por im, fundou um centro de estudos que culminaria em outro Insituto de Psicologia, na Universidade
do Brasil.
Segundo perodo: resgate, desaivao e mudana (1937 1964)
Na trilha cheia de sinuosidades seguida pelo laboratrio, h um
momento de interrupo de cinco anos aps o seu fechamento, em
1932. O espao perde o seu senido inicial, vinculando-se ao centro de
psiquiatria da Colnia e usado para aulas demonstraivas pelos exauxiliares de Radecki.
Mas essa situao de retrocesso encontra seu im na iniciaiva de
Jaime Grabois e Euralo Cannabrava de (re)criar o Insituto de Psicologia
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A tulo de curiosidade, alguns temas e seus autores: Antnio Gomes Penna escrevia sobre
Histria da Psicologia e sistemas psicolgicos; Eliezer Schneider sobre Psicologia Social; Nilton Campos sobre Fenomenologia e Filosoia; Octvio Soares Leite sobre Posiivismo Lgico
e Filosoia; Ued Maluf sobre Psicometria e Fenomenologia. Havia inclusive tradues como
do De Anima de Aristteles.
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Infelizmente, enquanto esta pesquisa estava em curso, o professor Nilton veio a falecer, em
julho de 2013. Tal acontecimento apenas reforou a diiculdade de nossa pesquisa.
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Introduo
Com base em problemaizaes surgidas ao longo de pesquisa anterior, voltada para a caracterizao das cinco visitas de Michel Foucault
ao Brasil, o presente texto visa a delimitar, como aspecto fundamental de
uma invesigao em curso, um modo singular de aproximao aos efeitos
e s ressonncias do pensamento do ilsofo francs em nosso pas.
Para tanto, algumas categorias de cunho sociolgico (melhor dizendo, ligadas sociologia de inspirao durkheimiana) recepo, penetrao e difuso , habitualmente empregadas em invesigaes do mesmo
ipo, estaro sob visada crica. Como alternaiva, ser priorizada uma
abordagem fundada em disperses, anexaes e permeabilizaes, conforme sugerida pelo prprio Michel Foucault ao longo de entrevistas e
debates. Nesse intuito, categorias como profanao da sociedade como
um todo, acontecimentalizao, problemaizao e temporalidades
no cronolgicas sero postas em discusso na qualidade de ferramentas virtualmente aptas a conferir novo estatuto aos estudos de histria
dos sistemas de pensamento.
Passos e descompassos
Em pesquisa concluda, Michel Foucault no Brasil: presena, efeitos
e ressonncias, foram exploradas as cinco visitas do ilsofo a nosso pas
(1965, 1973, 1974, 1975 e 1976). Para tanto, trs diretrizes nos serviram
de ancoragem: a consituio de uma audiograia, ou seja, de uma caracterizao do modo como Foucault ocupou, entre ns, os espaos de
fala (Arires, 2006); uma avaliao crica da funo desempenhada pelas
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viagens na produo foucauliana (Gondra & Kohan, 2006); e, em especial, uma nfase nos disposiivos de poder em que Foucault se viu imerso,
levando-se paricularmente em considerao que todas as visitas ocorreram durante os anos da ditadura militar (Foucault, 1979a). Apresentaremos, de incio, alguns aspectos invesigados com apoio em tais diretrizes
que, paralelamente, abriram caminho elaborao de categorias analicas, objeivos e procedimentos para uma nova pesquisa, ainda em curso,
a serem detalhados na sequncia do texto.
Em 1965, a Faculdade de Filosoia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (FFCL-USP) recebeu Foucault como uma coninuidade
do que ali h muito se praicava: a anlise interna de textos ilosicos e literrios, ento posta na ordem do dia como mtodo estrutural. Mais perturbadoras do que as famosas epistemes de As palavras e
as coisas livro em preparo, sobre o qual versaram as conferncias do
ilsofo eram as frequentes incurses do aparato repressivo sobre a
Universidade.
No entanto, essa presumida coninuidade com os cnones defendidos pela misso francesa, to importante para a consolidao da FFCL-USP entre as dcadas de 1930 e 1960, rompe-se mediante alguns acontecimentos. Segundo fontes documentais, Foucault quem airma, talvez
ironicamente, ser a faculdade paulistana um bom departamento francs
de ultramar (Ribeiro, 2005; Rodrigues, 2010a). Com isso, convida a que
obras como a de Arantes (1994) ponham em questo as certezas ali vigentes, principalmente quando comparadas s pricas do grupo Clima uma
ilosoia uspiana voltada anlise do coidiano (Pontes, 1998) e s do
Insituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) organizao carioca interessada em formular projetos policos para o Brasil, dizimada com o golpe
de 1964 (Toledo, 1982).
Porm, Foucault no conviveu sequer com o grupo Clima, que poca se encerrava (Rodrigues, 2012a). E vale lembrar que Histria da Loucura apenas comea, ento, a deixar as empoeiradas prateleiras da seo de
Histria das Cincias em direo s ruas, carregado pelos anipsiquiatras
ingleses. Sendo assim, Foucault mais absorvido, naquele momento, pelas polmicas epistemolgicas em torno do Estruturalismo, por exemplo,
do que por suas explosivas contribuies aos movimentos de desinsitucionalizao psiquitrica.
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Em 1973, quando retorna ao Brasil, ele j outro: cheiara o Departamento de Filosoia da Universidade de Vincennes, fora eleito para o
Collge de France, criara o Grupo de Informao sobre as Prises (GIP).
Conquanto a Literatura j no o entusiasme como na dcada anterior, o
convite ao Rio de Janeiro provm do Departamento de Letras da Ponicia
Universidade Catlica (PUC-RJ), atravs de seu diretor, Afonso Romano
de SantAnna.
Muito se falou, nos limos tempos, das desordens promovidas pelo
ilsofo nessa temporada carioca: escapadas Lapa, contatos extra-oiciais com estudantes e esdrxulas consultas, com ar de mistrio, sobre o
Estruturalismo (SantAnna, 2010). Mas h surpresas maiores: a srie de
conferncias A verdade e as formas jurdicas pouco se assemelha ao
epistemolico As palavras e as coisas, remetendo decididamente aos disposiivos de saber-poder (Foucault, 1974/1996); o grupo que se acerca
de Foucault e com ele desenvolve uma mesa redonda incorpora muitos
psi e outros interessados no tema da subjeividade, dentre os quais Helio
Pellegrino, Chaim Katz, Roberto Machado, Lus Felipe Baeta Neves, Lus
Alfredo Garcia Rosa e Magno Machado Dias.
Acrescente-se que Foucault j no , entre ns, um ilustre desconhecido: as editoras Tempo Brasileiro (Foucault, 1968; 1971a; 1972) e
Vozes (Foucault, 1971b; 1971c) haviam se encarregado de publicar entrevistas, arigos e livros. Histria da Loucura se tornara referncia corrente,
mediante a traduo para o espanhol e/ou via divulgadores brasileiros.
Assim, em lugar de aparecer como austero ilsofo, ele convocado a
debater temicas candentes da atualidade (o poder psiquitrico, a indstria da loucura, a suposta revoluo psicanalica), passa a interessar a um
pblico bastante diversiicado e torna-se cada vez mais enigmico para as
classiicaes disciplinares insitudas.
A viagem de 1973 prossegue com trs dias em Belo Horizonte. Pesquisa na imprensa e entrevistas facultaram-nos minuciosa apreciao
dessa estada (Penzim & Rodrigues, 2011), durante a qual Foucault fez
conferncias em hospitais psiquitricos e realizou uma apresentao na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De modo ainda mais intenso do que ocorrera no Rio, reluzem as aproximaes ao ilsofo que tm
por base a crica da psiquiatria. Ainda que a imprensa belorizonina exibisse uma aitude entre o total desconhecimento e o repdio, professores
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e estudantes preservaram memrias desse momento capazes de desencaminhar o tempo cronolgico (Cronos), produzindo inlexes em direo
ao tempo oportuno (Kairs) e ao jorro imanente do tempo (Ain). Nesse
caso, a presena de Foucault em BH costuma ser associada de Franco
Basaglia, datada de 1979.
A visita de 1974 talvez seja a mais conhecida, pelos impactos produzidos no movimento sanitrio, que tentava resisir s tendncias privaizantes que prevaleciam sob o governo ditatorial. Paradoxalmente, os
focos resistenciais inham por locus privilegiado cursos de ps-graduao
em medicina social, medicina preveniva etc., cuja abertura fora favorecida pelo mesmo governo (Pcaud, 1990; Rodrigues, 2010b).
No Insituto de Medicina Social da Universidade do Estado da Guanabara - UEG (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ),
Foucault pronuncia seis conferncias, que sem demora circularam, mimeografadas. Dentre elas, O nascimento da Medicina Social pode ser considerada a de maior impacto: o ilsofo defende que a medicina moderna
sempre fora social, sendo o colquio mdico-paciente apenas um, e no
o mais importante, de seus aspectos; medicina e corpo so ditos realidades biopolicas (Foucault, 1979b, p. 80), no que hoje reconhecido
como primeira meno a esse famoso conceito.
No ter sido fcil acatar tais postulaes, pois elas obrigavam os
adeptos da medicina social, cujas palavras de ordem incluam um radical
contraponto medicina individual, a reconhecer que seus discursos, projetos e pricas talvez ivessem por solo aquilo mesmo que diziam combater, ou seja, a produo de corpos teis, dceis, de fora polica reduzida.
Mesmo a tese de Sergio Arouca, que abordava o dilema prevenivista
(Arouca, 2003), defendida em 1976 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no se arrisca a incluir uma autocrica fundamentada em
O nascimento da medicina social. Embora Foucault seja um dos autores
de referncia do trabalho, suas contribuies restringem-se anlise do
discurso prevenivista; para a anlise das pricas, apela-se a um marxista,
Louis Althusser. H, aparentemente, outro dilema em pauta: como acolher Foucault sem abandonar o marxismo?
A despeito disso tudo, a parir de ento o pensamento foucauliano
se espraia por mbitos ainda mais variados. Conquanto os historiadores
tardem a acolh-lo (Rago & Rodrigues, 2011), os primeiros trabalhos vol31
tados realidade brasileira logo viro, pela pena dos psi e de ilsofos
a eles prximos: Da(na)o da norma (Machado et al., 1978) e Ordem
mdica e norma familiar (Costa, 1979). Tambm ao inal da dcada de
1970 ser publicada a coletnea Microsica do poder (Foucault, 1979c),
composta de arigos, entrevistas e aulas.
Mas no nos apressemos em estabelecer um tranquilo diagnsico
de recepo, penetrao e difuso do pensamento de Foucault no Brasil.
Em 1975, quando, de novo a convite da USP ele retorna, as obras acima mencionadas ainda no vieram a pblico e, aparentemente, o que
fora previamente combinado o aborrece, soando a repeio e mesmice:
Freud e Marx ao ininito escreve ento a Daniel Defert (2002, p. 48).
Uma srie de acontecimentos logo desmenir essa apreciao. O
avano da linha (mais) dura do regime sobre pessoas suspeitas de ligaes com o Parido Comunista conduz o ilsofo, em 23/10/1975, assembleia estudanil. No dia seguinte, a Folha de So Paulo noicia: Michel Foucault... fez um pronunciamento de solidariedade aos estudantes.
Disse, ainda, que pretendia suspender as aulas que est dando (FSP,
24/10/1975, p. 17). No mesmo dia 24/10, agentes da represso vo TV
Cultura para prender o jornalista Vladimir Herzog. Este consegue autorizao para apresentar-se somente no dia seguinte tristemente famosa
Rua Tutia e efeivamente o faz, na manh de 25/10. No meio da tarde,
de to torturado, est morto. Se Foucault j pensava em suspender seu
curso, no mais hesita em faz-lo: em 27/10, irrompe uma greve na USP
e ele l um texto sobre o assassinato do jornalista, transformado em panleto pelos estudantes. Em 31/10, est presente s exquias de Herzog na
Praa da S.
Embora se considerasse, desde ento, seguido pelas foras de segurana, Foucault permaneceu no Brasil at 11 de novembro. Sabe-se, hoje,
que estava sob vigilncia mesmo antes do envolvimento nos protestos.
Documento obido no Arquivo Nacional, oriundo do Servio Nacional de
Informaes (SNI), assim registra sua presena na assembleia universitria: O nominado ... pertence corrente ani marxista conhecida na Frana como Democrata Socialista. Foi manobrado a tomar posio contrria
ao governo ... por Maria Sylvia de Carvalho Franco Moreira e Marilena
Chau ... conhecidas pela ao esquerdista na Faculdade. Soa no mnimo paradoxal perceber que enquanto a intelectualidade brasileira discute
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Tambm a professora Mariza Corra (2001), em arigo de tom memorialsico, evoca essa presena em Campinas:
Foucault teve um grande impacto terico sobre os pesquisadores brasileiros desde aquela visita e provocou tambm grande impacto em Dona Lola,
empregada domsica de minha casa, uma senhora negra, ao levantar-se
cortesmente da almofada em que estava sentado, sua passagem. (p. 16)
J Plinio Wander Prado Jnior, ento aluno da UNICAMP e hoje professor da Universidade de Paris VIII, assim se dirige, por e-mail, a Mariza
Corra:
naquele clima terriicante de inimidao sob o qual vivamos, Foucault teve
a coragem de denunciar o crime [assassinato de Herzog] publicamente. A
soire que passamos com ele na casa de vocs resta para mim memorvel
... A um dado momento ... ira do seu bolso um pedacinho de papel ordinrio e amarrotado, desdobra-o e ... me pergunta se eu conheo os nomes
escritos na folha, e se eles so realmente bons; no papel iguram, anotados mo, trs ou quatro nomes, eu me lembro de dois: Cartola e Nlson
Cavaquinho2.
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Entrevista concedida a Heliana Conde e Maria Izabel Pitanga, 14/09/2011, Rio de Janeiro.
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A idelidade da assistncia no pde garanir a sobrevivncia desses ditos foucaulianos na Universidade Federal do Par (UFPA): Tivemos um jantar de despedida em um restaurante ... Ainda havia uma
moa paulista que nos acompanhava sempre, e todas as itas gravadas
das palestras do Foucault foram roubadas do carro dela. (p. 22)
Talvez certa decepo se tenha seguido a essa ocorrncia. Mas
houve riscos de desaparecimentos outros:
Menos de uma semana depois ... fui chamado pelo diretor ... me dizendo
que o SNI estava pedindo a relao dos frequentadores. Eu disse: eu no
dou a relao. Sa de l e fui diretamente falar com o reitor. Ele foi muito
correto, e at corajoso. Ele me disse para no dar a lista ... Havia uma
vigilncia at nesse ponto. (p. 22)
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Disponvel em htp://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1095978,
acesso em 5/3/2012.
em relao a esse pressuposto nos dedicaremos de agora em diante, lanando mo, para tanto, de novas peas ou ferramentas.
Alguma coisa de intermdio
A construo das categorias analicas a empregar na pesquisa hoje
em curso, relaiva aos efeitos e s ressonncias do pensamento de Michel Foucault no Brasil, foi em muito favorecida pela leitura da tese-livro
De vagos y maleantes. Michel Foucault en Espaa (Galvn, 2010). Chama
ateno, inicialmente, a apresentao do trabalho, a cargo de Francisco
Vazquez Garcia, que arrisca um contraste: coexisiriam em solo espanhol
duas sries de intelectuais interpelados pelo pensamento de Foucault,
apelidveis, respecivamente, foucaulistas e foucaulianos. Os primeiros estariam empenhados em decifrar os textos do mestre, visando a
enquadr-lo em algum dos ismos que fazem a fortuna da histria oicial
da Filosoia; j os limos uilizariam a caixa de ferramentas montada
por Foucault para efetuar pesquisas empricas em conexo com uma interrogao crica do presente. Conquanto essa diferenciao soe demasiado deiniiva, excessivamente acabada, ela evoca alguns dos pontos
levantados ao longo da seo precedente: tambm no Brasil, agentes,
disciplinas e movimentos sociais eventualmente reivindicam, quanto a
Foucault, prioridades e/ou idelidades, por mais que este sempre tenha
procurado manter-se sem um rosto, inclassiicvel.
Em lugar da ciso consumada entre foucaulistas e foucaulianos
proposta por Garca, Valenin Galvn prefere outro caminho: seu ensaio,
como o chama, tem por meta analisar as leituras e os leitores que acolheram a obra de Foucault na Espanha, nos mbitos extra-acadmico e acadmico. Trata-se, por conseguinte, de um estudo de recepo, penetrao
e difuso categorias que, se no so de todo ms, parecem-nos algo
perigosas. Galvn est ciente dos riscos que corre. Mais, no entanto, das
armadilhas implicadas na separao entre a academia e seu outro, como
nos adverte desde a introduo:
Autores e temas que eram extra-acadmicos foram enobrecidos, oicializados e converidos em acadmicos medida que declinava a existncia de
uma srie de publicaes extra-acadmicas da esquerda alternaiva, ao passo
que esses jovens professores conseguiam fazer valer suas estratgias no campo acadmico, adquirindo posies de presgio e poder. (Galvn, 2010, p. 12)
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Essa sagaz desmisiicao da sociedade como um todo na qualidade de instncia soberana da pesquisa histrica aricula-se produivamente defesa foucauliana da prica da acontecimentalizao:
Ali onde se estaria bastante tentado a se referir a uma constante histrica,
ou a um trao antropolgico imediato, ... trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que no era to necessrio assim. ... Alm disso, a
acontecimentalizao consiste em reencontrar as conexes, os encontros,
os apoios, os bloqueios, os jogos de foras, as estratgias etc. que, em um
dado momento, formaram o que, em seguida, funcionar como evidncia,
universalidade, necessidade. (Foucault, 2003b, p. 339)
A nosso ver, tal proposta vem antes tarde do que nunca expresso que se tornou tulo de um livro de Eduardo Viana Vargas (2000).
maneira de chiste, ela serve ao socilogo brasileiro (e a ns) para reaivar o derrotado Gabriel Tarde. Em face do triunfo de mile Durkheim e
dos durkheimianos em impor determinados padres conceituais e metodolgicos justamente os do social-bloco , a ponto de serem vistos
como pais-fundadores da sociologia, Tarde foi por muito tempo relegado
ao ostracismo, desqualiicado como psicologista. A retomada contempornea de seus trabalhos (Deleuze & Guatari, 1996; Latour, 2004; Themudo, 2002), entretanto, faculta divisar usos outros que no a totalidade (e
a inrcia a ela associada) para o pensamento sociolgico e/ou a histria
social.
Ao que se saiba, diferentemente de Deleuze e Guatari7, Foucault
pouco se interessou por Gabriel Tarde pensador que, atravs dos conceitos de inveno, imitao e oposio, sempre tentou dar conta daquilo
que, ao ver dos durkheimianos, supostamente daria conta de tudo, isto ,
as constncias sociais. Porm o nexo que estabelecemos entre Foucault
e Tarde nos auxilia a forjar nova diretriz para o estudo dos efeitos e das
ressonncias do pensamento do primeiro no Brasil, passvel de ser assim
sinteizadas: praicar uma anarqueologia (Foucault, 2010), ou melhor,
aproximar-se das constncias sociais sem naturalizar os resultados dos
exerccios de poder, pois so esses exerccios que ixam presumidas constncias (transcendncias) campos, disciplinas, instncias, nveis etc. ,
por intermdio dos quais deixamos de pensar e passamos, meramente, a
re-conhecer o insitudo.
Periodizar versus problemaizar
Na direo dessa crica a procedimentos reconhecedores, retornemos ao trabalho de Galvn (2010). Diz o pesquisador que no pretende comentar Foucault, mas analisar o modo como se vai forjando um
Foucault made in Spain atravs das interpretaes dos leitores. Logo
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blemas que ele pode causar. A outra ... consiste em tratar um problema e
em determinar, a parir da, o domnio de objeto que preciso percorrer
para resolv-lo (Foucault, 2003a, p. 327).
Uma sustentvel leveza
A Histria eventualmente pesa como um fardo, inclusive quando remete aos desinos de pensamentos. Pois mal algo da ordem do novo se
anuncia, apressa-se o historiador em dizer: Precisamos historicizar isso!.
Se posiivista, quaisquer issuras na sequncia do tempo lhe parecem impensveis e devem ser imediatamente preenchidas. Se historiador social,
embora possa (e mesmo queira) acolher tais desconinuidades, suas sries documentais quase sempre redundam em contextos sequenciais rigorosamente encadeados tempo como Cronos, em suma.
Desses inconvenientes no estamos livres ao pesquisar sobre Foucault no Brasil. Nas pginas iniciais do presente arigo transparecem,
como contextos de historicizao, os anos da ditadura militar, a situao
da Universidade em tal regime, a rigidez na apreciao dos paradigmas
ento defendidos (como armas da revoluo) ou atacados (como muralhas da resignao) etc. Algo sempre escapa, todavia, a essa razo histrica quase-clssica, diramos, trazendo luz senidos outros para o
tempo: Kairs, termo que designa, para a aniguidade grega, o tempo
oportuno, o bom momento para decidir e agir, por vezes se descorina
via entusiasmos pelo efeito-Foucault e seus prolongamentos; Ain,
que para a mesma aniguidade remete ao jorro imanente do tempo,
eventualmente resplandece em uma virtualidade-Foucault que, embora
passado cronolgico, a cada instante pode atualizar-se diferentemente
(Plbart, 1998).
No desenrolar de nossa invesigao anterior, as narraivas obidas
com a prica da Histria Oral pareceram singularmente aptas a evitar a
submisso aos modos homogeneizantes de Cronos. No h, claro, garanias quanto a isso, pois a oralidade no est livre de ser submeida a
formas asspicas e apaziguadoras. Entre outros procedimentos, contudo,
voltamos a trabalhar, na pesquisa em curso, com entrevistas de Histria
Oral, apostando numa permeabilizao seja qual for, por sinal, a fonte
uilizada a diferentes senidos do tempo.
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Precises desassossegadas
A apresentao precedente, dedicada ao estabelecimento de diretrizes de trabalho, abre caminho a alguma singularidade na deinio dos
objeivos a aingir e dos procedimentos stricto sensu a empregar em nossa
atual invesigao.
Quanto aos objeivos, se as novidades no so grandes, vale atentar
para certa esilsica na formulao, a qual aspira justamente a acolher as
perspecivas anitotalizadoras deinidas na seo anterior: trata-se de estabelecer os efeitos e as ressonncias do pensamento de Michel Foucault
em nosso pas, nos mbitos acadmico e extra-acadmico, privilegiando
tanto as modulaes interdisciplinares propiciadas quanto a relaivizao
da distncia entre a academia e seu outro tudo isso, vale dizer, sem deixar de ideniicar e analisar ocasionais entraves a tais processos de permeabilizao.
Tambm no que tange aos procedimentos stricto sensu a serem postos em jogo, a tradicional trade pesquisa bibliogrica, documental e de
campo pouco traz de novo caso se ignorem as consideraes cricas anteriormente expostas. Levando-as em conta e prevendo a interceptao
recproca desses trs procedimentos, preciso ainda acrescentar que,
neste caso, preferimos o termo cartograia ao termo classicamente uilizado para design-los, ou seja, mtodo. Entendemos este limo como
um mapeamento daquilo que j est consitudo, ao passo que a cartograia procura captar os movimentos de consituio do territrio ou da paisagem e, se ocasionalmente focaliza tambm os resultados das batalhas,
tenta mant-los vinculados a uma processualidade coningente, incerta e
mutante (Rolnik, 1989).
Feitas tais ressalvas e sem nos estendermos em demasia sobre
cada um dos procedimentos, assinalamos que, no caso da pesquisa
bibliogrfica, temos por propsito a elaborao de uma anlise crtica
das consequncias que, em investigaes anteriores sobre o mesmo
tema (Gondra, 2005; Gondra & Kohan, 2006; Groppa Aquino, 2013;
Muchail & Fonseca, 2011; Vieira, 1996), os paradigmas sociohistricos
empregados pelos pesquisadores tiveram sobre o rosto de Foucault
resultante.
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Tratando-se da pesquisa documental, aspira-se a apreender as relaes historicamente estabelecidas em nosso pas entre o pensamento
de Michel Foucault e os campos: Filosoia, Histria, Cincias Sociais, Cincias Policas, Sade Coleiva, Psicologia, Psicanlise, Psiquiatria, Educao
e Direito, bem como a acompanhar as transformaes dos movimentos
sociais correlacionveis ao emprego de uma ferramentaria foucauliana.
Nessa direo, entende-se por documentos aqueles traos (escritos, fonogricos, imagicos etc.) de que no nos separamos monumentos,
em suma , com os quais se montam sries de diferentes nveis polico,
econmico, social, cultural, militante, acadmico etc. a im de compor
sries de sries, estabelecer correlaes e assinalar desconinuidades
categoria que, segundo Foucault (1987, p. 10), simultaneamente alvo e
instrumento do historiador. Existem focos documentais previamente ideados, que se estendem de raros originais da imprensa alternaiva, depositados em arquivos, a portais da Internet de fcil acesso, que renem publicaes de variados mbitos. A eles se somaro os encontrados em funo
dos sempre desejveis acasos que permeiam um processo de pesquisa.
Como forma de aproximao a esse material, acolhemos a anlise
de discurso, mas a qualiicamos, em acrscimo, como anlise estratgica de discurso. Por tal expresso, designamos: o estabelecimento de conexes entre o discursivo e o no discursivo, sejam elas de ariculao
e/ou conlito; uma ateno especial aos ordenadores do discurso autor, obra, disciplina, comentrio, sociedades de especialistas etc. e s
eventuais rupturas com tais ordenadores, dando lugar aos perigos da
linguagem; um enfoque que extrapola o carter denotativo dos discursos,
trazendo cena o performativo o que eles fazem ver, pensar e ser; o
afastamento radical quanto a perspectivas que entendem os discursos
como expresso de intenes subjetivas, apreendendo-os, ao contrrio,
em sua positividade fala-se, escreve-se, na qualidade de exerccios
annimos, produtores de real.
A pesquisa de campo, por sua vez, exige consideraes um pouco
mais extensas. J nos reportamos ao singular valor das narraivas orais
no que tange emergncia de temporalidades no cronolgicas. No
apenas por esse moivo, entretanto, que nos propomos a prosseguir o
trabalho com uma certa Histria Oral. Essa insistncia tampouco se deve
primordialmente ao crescente presgio atribudo oralidade no seio da
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Consideraes inais
Mediante a exposio, que ora se encerra, das ideias norteadoras
de uma pesquisa em andamento, ivemos a pretenso de contribuir para
as relexes relaivas produo de conhecimento em Psicologia Social.
No obstante inmeros pesquisadores brasileiros recorram, em anlises e intervenes ligadas a esse campo de estudos, s ideias de Foucault, estas limas, em contraparida, tm sido subuilizadas como diretrizes metodolgicas. Sem airmar, evidentemente, que Foucault deva
ser visto como um metodlogo, importa ressaltar a indissociabilidade
entre seus conceitos e seus procedimentos invesigaivos. Ignor-lo pode
nos conduzir a reforar, no mbito da pesquisa em Psicologia Social, aquilo que se alega foucaulianamente combater, ou seja, naturalizaes,
essencializaes, reducionismos, estraiicaes, linearidades, coninuidades e transcendncias.
Nesse senido, aproximaes ainda pouco exploradas entre as perspecivas de Michel Foucault e de Gabriel Tarde consituram uma das inspiraes principais do presente texto razo do subtulo para alm das
categorias sociolgicas (ou durkheimianas), que se convida a subsituir
pelas associolgicas (ou tardeanas).
Embora no hegemnicas, no so totalmente inditas as aproximaes entre Michel Foucault e Gabriel Tarde. Descobri-lo tem a vantagem
de nos deslocar de posturas presumidamente originrias ou pioneiras,
relanando-nos em um campo de lutas, alianas, conlitos e convergn-
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cias. Assim sendo, ao lado da surpresa experimentada, muito nos agradou encontrar em Berten (2011), entre outros, o seguinte assinalamento:
Certamente, Foucault no pretende propor uma nova ilosoia da histria
para explicar o nascimento da modernidade. (...) De qualquer maneira, se
existe uma explicao histrica, ela se deve antes coningncia ou ao
contgio, um pouco aos modos de Tarde (p. 144).
Vale concluir, portanto, o presente arigo, reproduzindo o fragmento
de Vigiar e Punir escolhido por Berten para jusiicar a airmao acima.
Por mais que ocasionais, as nidas convergncias entre Foucault e Tarde
nele presentes sustentam o entusiasmo com as direes de pesquisa que
vimos privilegiando.
A inveno dessa nova anatomia polica no pode ser entendida
como uma sbita descoberta. Mas como uma muliplicidade de processos
frequentemente menores, de origem diferente, de localizao esparsa,
que se entrecortam, se repetem ou se imitam, buscando apoio uns sobre
os outros, se disinguem segundo seu campo de aplicao, entram em
convergncia e esboam, pouco a pouco, a depurao de um mtodo geral. (Foucault, citado por Berten, 2011, p. 145 grifos nossos)
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A busca pela produo de subjeividades autnomas, atuantes no coidiano dos movimentos sociais, e pela construo social de uma cidadania
emancipatria parte fundamental de nossos objeivos e de nossas pretenses de transformao dos indivduos em sujeitos. Do ponto de vista da
ao comunitria, o desaio a produo de processos de paricipao social crica e transformadora no seio de uma sociedade que ainda no conseguiu se libertar totalmente do autoritarismo e da apaia. Nosso papel
principalmente o de sermos provocadores dos grupos comunitrios e insitucionais, no senido de que eles sejam atuantes, cricos e quesionadores.
Se quisermos a produo de subjeividades autnomas, devemos funcionar
como provocadores de processos de paricipao e mobilizao social, pois
sabemos que as comunidades nem sempre esto tomando iniciaivas nesta
direo. Por outro lado, sabemos que o protagonismo das comunidades e
que o tempo de relexo e de ao delas tem que ser respeitado.
Pensando em nossas categorias temicas e em como cada uma delas vem sendo invesigada/trabalhada nos vrios grupos e movimentos
sociais, apresentamos, a seguir, alguns quesionamentos relacionados ao
modo como cada grupo vem lidando com elas, ou ao modo como as uilizamos na abordagem de cada um desses grupos.
Idenidade, afeividade e cultura
Temos nos perguntado: como vem ocorrendo a produo das formaes idenitrias nas corporaes musicais (bandas e orquestras) de
So Joo del-Rei e regio? Quais tm sido suas ariculaes com o desenvolvimento da formao musical e com o coidiano do fazer musical,
tanto do ponto de vista tcnico quanto do ponto de vista da construo de
uma relao de afeividade no desenvolvimento do processo de criao
musical? Como o fazer musical vem promovendo o reconhecimento e a
produo da idenidade cultural na cidade e na regio? Uma regio que
to marcada pela msica, seja a dos instrumentos musicais, seja a dos
sinos e dos coros, vem produzindo uma tradio cultural que se mantm
viva, por cerca de trezentos anos, alternando momentos de expresso de
uma tradio histrica culivada por corporaes musicais centenrias e
bicentenrias, com produes contemporneas executadas por msicos
de todas as idades, grupos sociais e formaes musicais.
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Esses processos so indicadores da dialica intergrupal que se produz historicamente em cada sociedade e trazem informaes das vinculaes que os grupos tm com os interesses de uma dada classe social.
Em nossos trabalhos temos percebido que quanto mais o grupo
capaz de releir criicamente sobre o seu modo de ser grupo, sobre o
desenvolvimento do seu processo grupal, mais ele crico em relao s
contradies sociais s quais est sujeito, mais ele capaz de reivindicar
transformaes sociais e melhorias em suas condies de existncia, mais
ele capaz de exercer sua paricipao social.
Ser msico em So Joo del-Rei ou na Regio dos Campos das Vertentes projeto de vida para muitos jovens msicos que fazem sua formao inicial em bandas como a Meninos e Meninas de Dom Bosco, ou
no Conservatrio Estadual de Msica Padre Jos Maria Xavier, uma escola
pblica de ensino mdio, voltada para a formao de nvel tcnico de msicos e coralistas, que atende jovens oriundos de todos os grupos socioeconmicos da cidade e da regio.
Sade pblica e processos paricipaivos
Temos provocado nossos alunos das disciplinas de Tcnicas Grupais
e de Psicologia Comunitria com questes que dizem respeito aos trabalhos desenvolvidos com a temica das relaes entre sade/doena,
sade pblica e processos paricipaivos em sade. No caso especico do
trabalho com os portadores de diabetes, temos nos perguntado e provocado nossa clientela sobre como lidar coleivamente com as implicaes
psicossociais do diabetes. So questes como: De que maneira a paricipao e o envolvimento dos associados com as aividades da APD fortalecem o grupo na busca de melhorias no atendimento pblico do programa
de tratamento e preveno do diabetes? Como os programas de educao
nutricional contribuem para manter uma dieta que ajude no bom controle
do diabetes?
A caminhada entre a idenidade individual de portador de diabetes
e a idenidade coleiva de associado da APD Associao dos Portadores
de Diabetes de So Joo del-Rei passa pela mudana dos hbitos alimentares, pela assuno de um compromisso com a realizao de aividades
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mao dos grupos, de sujeitados para sujeitos, de conidos ou conformados para envolvidos e paricipantes.
Programas pblicos de desenvolvimento social, de educao, de
sade pblica, s podem se tornar efeivos se contam com a mobilizao
e o envolvimento das comunidades s quais se desinam e aos movimentos sociais de maneira geral.
Em funo disso o trabalho com as categorias citadas, do nosso ponto de vista, s pode ser realizado na direo de provocar as comunidades
na busca da construo de sua autonomia e autogesto. A conquista da
cidadania paricipaiva, crica, um processo coleivo, lento e coidiano,
diretamente relacionado com o modo de exerccio das relaes de poder
pelos gestores pblicos e pelos representantes populares nos legislaivos
municipais, estaduais e federais.
Para os que trabalham com Psicologia Comunitria no pode bastar
a incluso socioeconmica. Demandamos a incluso psicossocial. Os indivduos precisam se senir parte integrante e signiicaiva do processo de
construo da sociedade, sujeitos desse processo, e s a perspeciva de
incluso socioeconmica no garante isso. A incluso que nos interessa
tem que considerar a subjeividade plenamente desenvolvida, individual e coleivamente, passando pelo bem estar, pelo acesso ao prazer e
cultura, pelo acesso educao de qualidade, pelo acesso a condies
dignas de sade, de moradia, trabalho e renda, pela preservao de um
ambiente saudvel.
Porm, esse processo pleno de contradies. A comear pela questo do tempo. O tempo de ao, reao e resultados das policas pblicas
diretamente proporcional ao tempo de gesto dos ocupantes dos cargos
de direo das instncias municipais, estaduais e federais. Muitas vezes
os governantes esto mais preocupados com a reeleio do que com a
melhoria das condies de vida da populao atendida, enquanto ns estamos preocupados com o tempo da relexo, da possibilidade de mudanas de concepo, de valores, de projetos e de busca por futuros, ou
seja, o tempo do desenvolvimento de processos efeivamente educaivos.
fato que um dos nossos maiores problemas que enquanto queremos
o tempo de Kairs, para os nossos trabalhos, insistem em nos dar ou em
nos cobrar o tempo de Kronos. A sociedade atual, de maneira geral, tem
muita pressa. Tenho insisido muito com meus alunos, tanto na graduao
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Introduo
Reconhecida por todos, a desigualdade social no Brasil tem, entretanto, diferentes compreenses, ocupando diferentes lugares no rol de
prioridades de pesquisa e de interveno e chamando a ateno de formas diversas no campo das policas pblicas sociais. No contexto da psicologia ocorre o mesmo. Ou seja, so diversas maneiras de compreender
e lidar com o fenmeno.
Dois aspectos so diferenciais da leitura que fazemos do fenmeno em relao a outras produes da rea. Um deles a perspeciva de
desnaturalizao e o outro a prpria desigualdade social que tomada
como objeto da psicologia em nossas pesquisas.
Com relao ao primeiro aspecto, a parir do referencial da abordagem sociohistrica, trabalhamos com a categoria historicidade. Isso quer
dizer que tomamos os fenmenos sociais na sua produo e consituio
processual, a parir da materialidade da vida e das relaes humanas, historicamente determinadas.
Com relao ao segundo aspecto, procuramos tratar a desigualdade
no como pano de fundo ou um dos fatores explicaivos dos fenmenos
psicolgicos, mas ela mesma como o fenmeno a ser compreendido na
sua dimenso subjeiva.
Apresentamos uma breve discusso desses dois aspectos, seguida
da exposio de alguns elementos da pesquisa A Dimenso Subjeiva da
Desigualdade Social um estudo da vivncia da desigualdade na cidade
de So Paulo, que vem sendo desenvolvida por um grupo de professores
pesquisadores e alunos bolsistas de iniciao cienica na PUCSP.
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Assim, podemos airmar que a realidade a expresso do campo de valores que a interpretam e ao mesmo tempo o desenvolvimento concreto das
foras produivas. H uma dinmica histrica que coloca os planos subjeivo
e objeivo em constante interao, sem que necessariamente se possa indicar claramente a fonte de determinao da realidade. Isso nos leva a airmar que a realidade um fenmeno mulideterminado, e isso inclui uma
dinmica objeiva (sua base econmica concreta) e tambm uma subjeiva
(o campo de valores) (Furtado, 2002, p. 92).
A noo de dimenso subjeiva dos fenmenos sociais procura, ento, resolver duas questes: a dicotomia indivduo-sociedade e a necessidade de que os fenmenos sociais sejam eles prprios objeto da Psicologia Social. Por isso, no trabalhamos com perspecivas naturalizantes e
individualizantes no senido de considerar a desigualdade social como fator determinante do indivduo (concepo sociolgica); ou de considerar
o indivduo e suas caractersicas como, de alguma forma, explicao da
desigualdade social, por exemplo, jusiicando-a pelas diferenas individuais, tais como diferenas nas capacidades individuais de enfrentamento
dessa situao social (concepo psicolgica). Nos dois casos termina por
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Nesse senido, importante reconhecer, juntamente com esses autores, que aspectos culturais, morais e subjeivos acompanham e explicam a desigualdade para alm de aspectos materiais, tornando necessrio conhecer a dimenso subjeiva da desigualdade social.
A dimenso subjeiva da desigualdade social em So Paulo
A pesquisa A Dimenso subjeiva da desigualdade social um estudo da vivncia da desigualdade na cidade de So Paulo 1 vem sendo desenvolvida por um grupo de professores pesquisadores e alunos bolsistas
de iniciao cienica na PUC-SP.
Seu objeivo geral caracterizar a dimenso subjeiva do fenmeno social da desigualdade. Como referncia para a ideniicao da
desigualdade social em So Paulo, trabalhou-se com o Atlas da Excluso Social, de Campos, Pochmann, Amorim e Silva (2004). Os autores
produziram, a parir de dados do IBGE (2000), um conjunto de sete
ndices (pobreza, emprego formal, desigualdade social, alfabeizao,
escolaridade, juventude e violncia), depois sinteizados em um oitavo
ndice (excluso social), cada um com quatro nveis, representando da
pior para a melhor situao em cada ndice. Os ndices foram calculados
por municpio e, em algumas metrpoles, por distrito administraivo da
cidade. Cada localidade (municpio ou distrito) foi colorida, no mapa,
de acordo com o resultado no ndice (vermelho para a pior condio,
laranja e amarelo para os nveis intermedirios e verde para a melhor
situao), produzindo o Atlas da Excluso.
Podemos dizer, de acordo com essa referncia inicial, que o objeivo
da pesquisa produzir o mapa subjeivo, por meio da descrio de aspectos da experincia individual e social de viver em uma cidade desigual.
A abordagem da questo, bem como sua anlise, pressupem a dialica
objeividade-subjeividade e indivduo-sociedade, qual j nos referimos
acima.
Trabalhou-se, em uma primeira etapa da pesquisa, com entrevistas
em grupo, nas quais os paricipantes falavam sobre a vivncia da desi1
Pesquisa realizada pelas professoras Maria da Graa M. Gonalves, Ana M. B. Bock e Sandra
Gagliardi Sanchez e por grupos de alunos de iniciao cienica. Teve o apoio do CNPq. O projeto foi submeido ao Comit de ica em Pesquisa, tendo sido aprovado e est cadastrado na
Plataforma Brasil (n. CAAE 1775301.8.0000.5482).
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Exemplo de questo: Q.6) Como voc explicaria o sucesso proissional de alguma pessoa?
Voc acha que tem sucesso proissional a pessoa que: (Escolha apenas uma alternaiva, a
que voc considera a mais importante) (a) Tem boas oportunidades de estudo; (b)Trabalha
desde cedo e adquire experincia; (c) Tem bons contatos; (d) Se esfora e se dedica ao que
faz; (e) Tem famlia que a apoia; (f) O sucesso depende principalmente da classe social a que
a pessoa pertence.
Outra caractersica que vai nessa mesma direo tem relao com o
contedo das alternaivas, que procura abarcar a diversidade de posies
sobre os diferentes temas, encontrada nos resultados da primeira etapa,
sendo que algumas vezes a diferena entre as possibilidades de resposta
suil3.
A verso inal do quesionrio foi obida aps um longo processo
em que verses preliminares foram experimentadas, em uma sondagem
e em dois pr-testes. Na primeira verso, aplicada na sondagem, havia
dois ipos de quesionrio: um deles inha, nas questes fechadas, a alternaiva Outros, aberta; no outro ipo, no havia essa alternaiva. Os
resultados obidos na sondagem reforaram a tendncia a se ter questes
que criassem a necessidade de o sujeito posicionar-se, o que levou reirada da alternaiva Outros. Essa se mostrou uma alternaiva que no
trazia novos contedos de resposta, repeindo, de alguma forma, contedos das alternaivas existentes. Isso foi interpretado pelos pesquisadores
como diiculdade dos sujeitos em escolher uma alternaiva e, nesse caso,
o mais adequado seria solicitar a escolha, o que poderia criar condies
para uma relexo antes da escolha.
Os dois pr-testes foram oportunidade de lidar tambm com outros
aspectos: a extenso do quesionrio e a linguagem uilizada. Entre as vrias verses trabalhou-se para diminuir o quesionrio e para adequar a
linguagem uilizada, considerando-se que o mesmo instrumento deveria
ser aplicado a diferentes grupos da populao, com nveis diferentes de
informao, escolaridade e familiaridade com pesquisa.
A verso inal do quesionrio tem 15 questes, sendo 11 fechadas e
4 abertas. As questes so precedidas de itens de caracterizao do peril
do sujeito: sexo, idade, bairro em que mora, escolaridade dos pais, escolaridade prpria, renda e nvel socioeconmico.
Ainda em relao ao quesionrio, pode-se fazer uma anlise do
contedo abordado nas questes, em funo dos aspectos metodolgicos apontados acima. Nessa direo, possvel ideniicar questes cujo
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Exemplo de questo: Q.10) (Escolha apenas uma alternaiva) Na seguinte situao: voc
bem atendido em um servio pblico de sade, voc: (a)Ficaria feliz porque seus direitos
esto sendo atendidos; (b) Ficaria feliz porque acha que um bom atendimento em sade
direito de todos; (c) Ficaria feliz porque v que alguns proissionais de sade so pessoas
dedicadas ao prximo; (d) Acharia normal, porque isso que deveria acontecer sempre.
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contedo refere-se mais diretamente ao fenmeno invesigado, a desigualdade social, por meio da caracterizao da experincia do sujeito em
relao a ele. Outro conjunto de questes levanta informaes sobre as
mediaes presentes na consituio do fenmeno.
No primeiro conjunto, referente experincia da desigualdade, as
questes abordam: a relao com a cidade; os senimentos em relao
cidade; a noo de desigualdade social (o que , como aparece, como
vivida, que senimentos provoca). No segundo conjunto, referente s
mediaes consituivas do fenmeno, as questes levantam informaes
sobre: noo de esforo pessoal e quando aparece; noo de desigualdade (como se explica, como se resolve); noo de direitos (se existe e quais
direitos); concepes de educao e famlia; comparao entre homens e
mulheres. Entende-se que tais contedos abarcam mediaes ideolgicas
de relaes sociais e de gnero, que consituem a vivncia da desigualdade social.
Alm disso, esses contedos tambm expressam os indicadores levantados na primeira etapa.
A anlise dos resultados dever estabelecer relaes entre esses
dois conjuntos, procurando apreender aquelas caractersicas apontadas
pela abordagem metodolgica adotada: a muliplicidade, a processualidade e a historicidade dos fenmenos invesigados.
A elaborao do instrumento de coleta representou, ento, o desaio metodolgico de levantar informaes sem perder os sujeitos alvo da
pesquisa, sem perd-los como sujeitos. A deciso sobre os procedimentos
de coleta caminhou na mesma direo. Todas as situaes de coleta (sondagem, pr-testes e aplicao deiniiva), nas quais foi sendo detalhada
e consolidada a maneira de conduzir a aplicao dos quesionrios, revelaram aspectos muito interessantes do envolvimento dos sujeitos com
a temica da pesquisa, os quais serviram tambm de indicaivo de que
as caractersicas do instrumento poderiam estar aingindo os objeivos
apontados acima.
Foram frequentes as observaes dos sujeitos sobre a importncia
do tema da pesquisa, sobre o fato de o quesionrio fazer pensar sobre
o assunto e sobre a diiculdade em responder, no porque no esivessem claras as questes, mas porque o assunto era dicil de ser pensado.
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Introduo
Primeiramente clamo aos tambores herdeiros do banzo que se
unam ao toque do meu corao. Clamo igualmente s estrelas que cinilam tatuando o corpo preto do cu noturno, para que juntos, tambores e
estrelas, abram os caminhos de comunicao e dilogo como portulanos1
deste arigo, que pretende em poucas linhas releir sobre o senido e o
signiicado de futuro para jovens pretas residentes na regio do Capo Redondo e Jardim ngela, periferia do lado Sul do municpio de So Paulo2.
Torna-se oportuno informar que as relexes e os resultados que seguem so parciais, porque se trata de um estudo de mestrado em fase
de concluso3. Contudo, creio que as discusses que se seguiro podero
colaborar com um olhar, ainda que panormico, para algumas das jovens
pretas que vivem em uma realidade marcada pela penria, pela violncia
e por outras tantas manifestaes de desrespeito de direitos, mas que
amam, que esperam e que ajudam a virar as pginas de lamento de tantas
dores por excluso e extermnio, para o canto de uma equidade dicil,
porm, possvel.
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Penso que todo estudo acadmico revela o envolvimento do pesquisador com seu objeto de pesquisa. Esse envolvimento ica claro quando o
invesigador descreve o procedimento e o mtodo uilizados. O interessante, porm, que para cada pesquisador h uma inspirao que varia,
no meu entendimento, de trs maneiras frequentes. Para alguns a fora
gravitacional de seus estudos vem de uma hiptese. Para outros o visgo da
inspirao est nas teorias acadmicas. Contudo, h pesquisadores, com
os quais me ideniico, que a fonte inspiradora uma regio, um grupo com
sua dinmica psicossocial e cultural especica.
Na regio do Capo Redondo e Jardim ngela, ica a impresso que a
idenidade tnica/racial alude cultura, espiritualidade, s aes sociais
e luta por reconhecimento (Honneth, 2007). Conforme os dados levantados pelo Insituto Brasileiro de Geograia e Estasicas (IBGE), em 2012,
a regio do Capo Redondo e Jardim ngela uma das regies onde a
somatria dos declarantes pretos e pardos supera o nmero total de brancos. Os levantamentos do Programa de Desenvolvimento de rea (PDA,
2008) revelaram que se trata de uma regio, dentre outros quatros bairros, considerada uma das maiores em termos populacionais na faixa de
16 a 19 anos, na cidade de So Paulo. Apontaram, ainda, que os jovens do
sexo masculino so mais numerosos que as do sexo feminino at a faixa de
15 anos de idade. Todavia, por moivos adversos, em especial em virtude
de morte violenta e de envolvimento com o narcotrico, a quanidade de
jovens do sexo feminino quase dobra em relao aos do sexo masculino a
parir dos 16 anos.
A juventude nos bairros Capo Redondo e Jardim ngela, como revelam Cardia e Schifers (2002), os levantamentos do Programa de Desenvolvimento de rea (PDA, 2008) e os estudos das Subprefeituras do Campo Limpo e Mboi Mirim (2011), vive em meio aos problemas de acesso a direitos
sociais e econmicos. Destacam-se a falta de capital social e a superposio
de desvantagens da exposio aos riscos naturais, como: doenas curveis;
riscos do meio ambiente, como deslizamentos de encostas e os trasbordamentos de crregos e enchentes; riscos de morte por causas externas, tais
como acidentes de carro ou motocicleta; morte por bandidos e policiais;
trico de drogas; fatores ligados a eventos e experincias da vida. Concomitantemente, so negados de forma sistemica e simultaneamente os
direitos sade, educao, cultura e ao lazer (Cardia & Schifers, 2002).
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Desse modo, a regio que abrange as subprefeituras do Campo Limpo e M Boi Mirim, o que expressa quase um milho de habitantes, foi o
cadinho do ouro de cada um dos depoimentos. Pela oralidade, a cada palavra, pela fora biogrica de 11 jovens negras a quebrada emergiu em
meus estudos, como nos argumentos de Peter Spink (2003, p. 22): no
como um lugar especico, mas como a situao atual de um assunto, a
justaposio de materialidade e sociabilidade.
A ambio de invesigar o tempo por vir dessas jovens me possibilitou navegar em meio ao sopro vvido das vidas que do esprito para aquela regio. Isto porque, como relata Preta, de 21 anos de idade: Nossa, ns
convivemos dias intensos juntos! O foco era estar nos meses de julho a
outubro de 2013 o mais prximo possvel da roina delas para promover
um espao rico de relao que permiisse, desse modo, falarem de futuro.
Isto , falarem de como veem e o que esperam do tempo vindouro.
Esta opo de estar junto das jovens e do mundo que elas habitam
e conhecer e analisar suas projees de futuro no demorou a clariicar
que mesmo coisas aparentemente pouco signiicaivas poderiam ajudar
na hermenuica de suas projees do futuro, que elas do senido com
os ps bem incados nas exigncias e emergncias das contradies que
apagam direitos, causam receios, reiicam, dividem e fragmentam seres
humanos na periferia e em muitas sociedades do nosso globo. Como observou Thais, de 28 anos:
a palavra futuro d medo, d insegurana, ansiedade. Porque a gente planeja, planeja o futuro pra depois tanta coisa que aparece urgente, que no
tem como deixar pra l... leva a gente, sei l. Foi assim que eu decidi no
pensar nele mais... sabe? S que voc pensa... eu tenho uma ilha, a voc
volta a pensar no futuro. Ela o meu n? Minha coninuao sabe?
Discusso
Diante das depoentes que vivem em condies complexas de vida,
no vi outro caminho seno o de ser radical. Com elas pude compreender
melhor que Ser radical tomar as coisas pela raiz. Ora, para o ser humano, a raiz o prprio ser humano (Marx citado por Lukcs, 1974, p. 97).
Nesse senido, optei por trabalhar lado a lado, por uma pesquisa parici-
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Esse encontro foi pautado por muita emoo. Teve a durao de trs
horas porque a jovem chorava muito. O encontro com Madalena foi de
tal forma assinalado pela comoo que envolveu tanto os pesquisadores
como a colaboradora. As lgrimas da jovem ali em nossa frente eram senidas com tamanha angsia que, no intuito apressado de proteg-la, mas
principalmente de proteger-nos, repeidamente insisamos que poderamos interromper a conversa e retom-la em outro momento, mas Madalena se manifestava contrria a ter que parar seu depoimento. Ela insisia que queria coninuar falando. Assim, momentos de fortes emoes
se sucederam em toda a entrevista, mas consideramos mais contundente
quando Madalena relata um acidente na infncia.
Mas assim, tem uma coisa que aconteceu comigo quando eu inha 12 ou 13
anos de idade eu sofri um acidente, eu fui atropelada por uma bicicleta, a
pessoa conseguiu ser atropelada por uma bicicleta. E foi um impacto feio,
foi to feio que eu quebrei trs dentes da frente, os trs. E como eu falei pra
voc o meu pai inha aquela coisa de ser uma pessoa muito acomodada
de achar a no, vamo trabalhar e comer t bom. Porque assim, na hora do
acidente eu no vi que eu inha quebrado os dentes, a minha boca icou
muito inchada, eu tenho at uma cicatriz. No vi na hora, s fui ver quando
eu cheguei em casa porque eu tava vindo da casa do meu av na poca e a
s vi quando cheguei em casa. E a eu fui, minha me me levou no denista
no pblico mesmo pra ver se no inha machucado nenhum osso ou alguma
coisa assim, mas foi s isso e meus pais no izeram nada quanto a eu ter
perdido os dentes. E eu iquei assim at os 15 anos de idade, e voc imagina
uma menina negra, pobre e ainda sem os dentes na escola, adolescente,
cara isso foi foda.
Pesquisador: Imagino.
Madalena: Isso me afetou durante muito tempo, eu no falava, no falava.
Tipo assim eu saa, ia pras baladas e tal, mas assim eu no falava com ningum, eu era mudinha porque eu inha vergonha n? bvio, inha vergonha. E a voc j tem aquela coisa da adolescncia e no ica com ningum
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porque voc preta e ainda sem a denio piorou a situao, ento isso
foi muito.
Pesquisador: Forte pra voc.
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histria e a inluncia da frica negra no Brasil. Ela diz com muita convico que no brasileira, mas uma africana que nasceu nesta inveno que
chamamos de Brasil.
Naninha, 21 anos:
Primeiro no futuro eu quero est viva (risos). Eu quero fazer um curso de
Servio Social distncia, para poder atuar e trabalhar aqui na regio mesmo. Aqui a violncia, a falta de moradias e tantas coisas que precisa de
gente aqui. Entende? Eu quero me formar e trabalhar com gente como eu e,
no para os burguesinhos como a maioria faz. Estudar distncia tambm
me ajuda a icar perto da minha ilha.
Consideraes inais
As jovens negras deste arigo arquitetam seus futuros sobre as
pranchetas e os compassos do enfrentamento e da resistncia, diante dos fatores de riscos (eventos negaivos da vida, como problemas
sicos, psicolgicos e sociais). Partem de um presente que se revela
com tenses, como estarem prximas de um em cada dez assassinatos
que ocorrem na capital e de biqueiras4 ao lado de delegacias onde
policiais geralmente causam tanto medo quanto os bandidos (Baista
Jr., 2012). Esto em um lugar onde, como ocorre em toda a cidade de
So Paulo, os bitos daqueles de cor preta ocorrem de infortnios por
uma morte desgraada (Baista, Escuder, & Pereira, 2004) e onde o desemprego e a baixa escolaridade iliam mais mulheres do que homens,
com um nmero de preferncia para as mulheres de pele negra e parda
(PDA, 2008).
Contudo, essas jovens esto centradas na posiividade, da cor, do
suor de quem traz no corpo uma marca, numa mania de ter f na vida5.
De uma gente, como ressalva Gonalves Filho (2007), cuja sensibilidade
parece carrear no o senimento de indivduos inferiores, mas sim de cidados socialmente humilhados.
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Bia, 21 anos:
Na minha cerido est branca, mas fui crescendo e as pessoas me diziam
que eu era parda. Eu inha vergonha do bairro, de ser homossexual, de num
bar perto de casa sempre ter algum morto l, de tudo. Ento eu conheci
a Preta, uma grande amiga que me ajudou a estudar as questes sociais e
polica dos negros, a adeus a chapinha (risos). Eu amo minha negritude, e
no meu futuro formada em artes cnicas vou ajudar a resgatar os meus que
ainda no sabem como bom ser preta.
Entre o mistrio de onde veio a vida que vivemos e a certeza da morte que nos espera, se ediicam os objeivos e planos para sua realizao.
Portanto, planejar uma ao humana de construo de uma espcie de
vara para alcanar o fruto que a rvore, caprichosamente, sem torn-lo totalmente impossvel, protege na altura de sua copa. Planejar formar uma
trilha para algo que se deseja suspenso no futuro. Nesse senido, Scrates,
via Os dilogos de Plato (1979), em Fdon, se posiciona: Sim, possvel
que exista uma espcie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o
raciocnio nos acompanha na busca (do objeivo). E este ento o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que ivermos o corpo (65
e)6. Scrates e Plato, como sabemos, so conhecidos como os ilsofos da
subjeividade, por postularem que a essncia de cada objeto est no senido e signiicado relegados a ele pela pessoa que o descobre. Logo, o senido
da vida do ilsofo se preparar para o futuro inevitvel com a certeza da
morte.
A vida no Capo Redondo se d sob a sombra de uma rvore enorme, cuja altura e complexidade dos galhos tornam dicil a confeco da
vara, ou da trilha para alcanar o fruto suspenso. Alcanar o objeivo
impossvel de forma solitria, ao de uma s vara no tem eiccia, o que
faz do desejo de um, muitas vezes ser o desejo de outros tantos. Por isso,
invesigar os desejos das jovens negras da regio do Capo Redondo e Jardim ngela teve a relevncia de possibilitar compreender como o desejo
para o futuro de um pode se tornar, ao mesmo tempo, de vrios, em uma
luta comum para alcan-lo. Algo ordinrio entre os pobres. Eduarda, 21
anos, assim se expressa:
Sabe antes eu inha vergonha do Capo ele era muito violento. Tinha ver6
Plato se refere ao objeto de desejo dos ilsofos, que a virtude. Esta por sua vez traz a boa
preparao para a morte. A ocupao maior do ilsofo preparar para morrer (Fdon 64 a).
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Introduo
A linguagem do futebol universal. A inal da Copa do Mundo o
evento mais transmiido e de maior audincia do globo. O melhor jogador
de futebol do sculo pela Fdraion Internaionale de Football Associaion (FIFA), Pel, tambm foi outorgado o atleta do sculo e o mais premiado de todos os tempos, o rosto mais reconhecido no mundo e foi de
suma importncia sua contribuio na divulgao e promoo do Brasil no
cenrio mundial. A relevncia social e esporiva do futebol algo inegvel
e, enquanto organizao esporiva, revela isso em nmeros: a FIFA possui
208 pases associados, trs a mais que o Comit Olmpico Internacional
(COI) e dezesseis a mais que a Organizao das Naes Unidas (ONU).
Guy Debord, escritor francs, em seu livro A sociedade do espetculo, de 1967, assim o deine: o espetculo no um conjunto de imagens,
mas uma relao social entre pessoas, mediada por imagens (Debord,
1967/1997, p. 14). Isto , ele no apenas a veiculao de imagens, mas
sim seus desdobramentos nas relaes sociais, consituindo hoje a base
da sociedade de consumo e capitalista, a qual forja a realidade e por ela
forjado.
A televiso um dos principais meios da sociedade do espetculo,
um veculo de imagens e, tambm, importante instrumento da chamada
indstria cultural. Tal conceito foi cunhado pelos ilsofos alemes Adorno e Horkheimer, no livro Dialica do Esclarecimento (1947/1985), para
designar o processo de massiicao, globalizao e mercadorizao da
cultura. A indstria cultural difunde uma cultura produzida para as massas
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Entrevistas semiestruturadas com uma amostra de dez jovens de treze e quatorze anos que
paricipavam de uma equipe de futebol na Vila Olmpica da Mangueira. As mesmas podem
ser lidas na ntegra em: Seda, D. M. (2012). Por que voc no olha pra mim?: invisibilidade
social de jovens em situao de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento.
Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
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povo se junta com um sonho de se emocionar e se entusiasmar. Ento, o jogador no pode desisir ou se deixar levar pelo sucesso. Porque o futebol
impulsionado por outras coisas. Ele prospera por ser um grande espetculo.
Se o jogador no se compromete com este espetculo est traindo a origem
e a natureza do futebol. O mundo dos negcios do futebol no deve alterar
o tempo do futebol. O tempo do futebol, o jogo, uma coisa e o tempo
do futebol, o negcio, outro bem diferente. (A Histria do Futebol, 2001)
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Portanto, o jogador de futebol que tambm faz parte desse cenrio e que teve sua origem social e cultural contrastante quela qual foi
elevado, muitas vezes saindo de uma situao de invisibilidade social, se
encontra no cerne de uma luta por reconhecimento e adquire signos, para
assim legiimar sua ascenso social, ainal, quase tudo est venda, tal
como potencialidades, o prprio reconhecimento e at competncias. Em
uma sociedade na qual consumir est imbricado com fatores idenitrios
no h disino em seu alcance, mesmo aqueles que no possuem condies de entrar na lgica do mercado so inluenciados por ela:
Numa sociedade sinpica de viciados em comprar/ assisir, os pobres no
podem desviar os olhos, no h mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentaes que emanam das
vitrines, e mais profundo o senido da realidade empobrecida, tanto mais
irresisvel se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o xtase da escolha. Quanto mais escolhas parecem ter os ricos,
tanto mais a vida sem escolha parece insuportvel para todos. (Bauman,
2001, p. 104)
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izera Pel com o Santos) - declarou que a maior diiculdade que passou
no foi a de lidar com a badalao da imprensa, mas sim a de se livrar do
esigma de uma infncia pobre e da origem laina (Kusturica, 2008).
O futebol, portanto, na sociedade do espetculo, explorado ao extremo e provoca mudanas nas subjeividades das pessoas, nas relaes
com o mundo e na imagem dele. Isso vale para aqueles que vivem do futebol para os que desejam viver dele ou para os que o consomem, enim,
quase todo habitante do planeta Terra.
No Brasil no diferente, mas possui peculiaridades. O papel social
do jogador de futebol ser cone, heri nacional, arista e celebridade e o
papel vicrio ser produtor de coleividades e pertencimento nas subjeividades dos que o consomem como torcedores.
O jogador e o mito do heri
O futebol pode ser visto como instrumento de integrao social,
provedor de uma sensao de coleividade, democracia e integralidade
que mobiliza milhes. Por meio do futebol, os brasileiros podem quebrar
simbolicamente as relaes coidianas de poder e experimentar igualdade
e jusia. Ele torna possvel uma conversa entre um execuivo e um porteiro quando o primeiro, ao passar pela portaria, pergunta o placar de algum
jogo e os dois trocam comentrios sobre as limas atuaes.
Trata-se de um desporto que consegue mobilizar o maior nmero de
brasileiros em prol de um objeivo comum. assim de quatro em quatro
anos. E ele prov uma idenidade nacional, um diferencial do brasileiro.
Tanto que a camisa canarinho traz na parte de dentro da gola a frase:
Nascido Para Jogar Futebol, como se fosse uma traduo do DNA brasileiro.
Para Guedes (1998), as idenidades nacionais penetram nas idenidades individuais de modo afeivo e emocional, de forma resistente a
qualquer crica. Elas oferecem algo de posiivo, algo para se ter orgulho.
O caso entre futebol e Brasil nico, como comenta a autora:
O ponto a observar simples, mas, a meu ver, decisivo para uma sociologia
dos esportes no Brasil: se rigorosamente qualquer esporte pode produzir
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a ideniicao coleiva atravs das vitrias, apenas o futebol o faz permanentemente, nas vitrias e nas derrotas. Por isso, at aqui, o Brasil coninua
sendo o pas do futebol. (Guedes, 1998, p. 41)
Dicil no tecer uma relao com a Copa das Confederaes no Brasil, em junho de 2013, quando muitas manifestaes tomaram as ruas,
em sua maioria em prol de um Brasil melhor para todos. Paralelamente
a isso, com o avano da seleo na compeio, o povo foi sendo reconquistado pela seleo e as manifestaes foram rareando, como se a atuao primorosa de nossa seleo fosse aos poucos provendo um sopro de
autoesima e esperana nas subjeividades individuais. O orgulho de ser
brasileiro fora resgatado.
No campo do futebol, o orgulho de ser brasileiro pode se restringir apenas amarelinha, pois, apesar de pairar no imaginrio de que
possumos uma ginga nacional que vem no sangue e na cerido de
nascimento, nossos melhores jogadores s se tornam melhores se passam boa parte de suas carreiras em campos europeus, uma vez que
os campeonatos e as condies oferecidas l possibilitam desenvolvimento sico, tcnico e tico aos futebolistas. Quando so convocados
a usarem a amarelinha, o peso da responsabilidade e da cobrana
muito grande, j que depende deles a autoesima de quase 200 milhes
de brasileiros, que apesar de diversos moivos para se orgulharem de
serem brasileiros projetam no futebol a supremacia nacional, ainal,
por muito tempo foi o nico campo em que sempre iguramos como
melhores do mundo.
Esse papel do jogador de futebol na subjeividade dos brasileiros
funciona, muitas vezes, como receptculo de desejos de realizaes, que
faz com que o torcedor se realize nas conquistas de seu ime e as viva
como suas. Faz tambm com que seu lugar seja almejado e desejado por
muitos e a fama se faz de odes imortalidade, como o ilsofo canadense
Charles Taylor comenta:
A aspirao moderna ao senido e substncia na vida tem bvias ainidades com aspiraes mais anigas a um exisir superior, imortalidade. E a busca por esse exisir completo que a imortalidade, ... assumiu
ela mesma vrias formas: a aspirao fama aspirao a uma forma de
imortalidade, a de que nosso nome seja sempre lembrado pelas pessoas.
(2005, p. 65)
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Em grande parte, a imortalidade simblica proporcionada pela superexposio da vida dos craques de futebol atravs da indstria cultural,
anteriormente discuida, que tem na mdia televisiva seu principal cone
e que valora os sujeitos na medida de sua exposio midiica: o culto s
celebridades alimenta os sonhos narcisistas de fama e glria do homem
comum que, ideniicado com esse discurso, sente diiculdade em aceitar
a banalidade da existncia coidiana (Valle & Guareschi, 2003, p. 245).
O futebol, desse modo, se presta totalmente para preencher esses
sonhos narcisistas, uma vez que se calca na espetacularizao. Como um
fenmeno de massa, axiomaicamente, necessita da presena de heris
para manter-se interessante e compeiivo, para assim ser uma fonte de
ideniicao para as pessoas, que consumiro cada vez mais futebol e
possibilitaro sua manuteno.
O futebol, como espelho da dinmica social, relete a lgica da sociedade contempornea, para a qual a vitria vlida a qualquer custo e
somente ela leva ao reconhecimento social, ascenso social e ao sonho
da permanncia, prevalecendo sempre e somente o mais forte, habilidoso
e vitorioso para a imortalidade. E de imortal o jogador pode ser igualado a
um heri. Muitas histrias de vida de jogadores se aproximam do caminho
percorrido por um heri, que inclui sua parida (separao), a realizao,
o retorno (Campbell, 1997; Rubio, 2001) e as transformaes. Superar sua
prpria realidade de pobreza, de invisibilidade e de escassas possibilidades j seria um ato heroico, mas a que tudo comea. Normalmente,
para realizar seu feito, o heri tem que parir do seu local de origem para
depois realizar o caminho de volta para ensinar uma lio e fechar seu
ciclo com maestria. Exemplos como Ronaldo, que se superou vrias vezes e refez sua histria, fechando-a aqui no Brasil; Maradona, que de to
idolatrado virou religio na Argenina, j que existe a Igreja Maradoniana;
e o que dizer daquele moo com a bola no p? ( o Rei Pel) A bola lhe
deu dinheiro /lhe deu nome, lhe deu fama/ A bola lhe colocou / Entre os
maiores dos homens (Jackson do Pandeiro, 1974)3.
So histrias de parida de uma origem humilde, quase invisvel,
dedicao modalidade seguida de conquistas de posies em imes e
selees e depois um retorno para uma nova vida, sempre associada ao
mundo esporivo, como comenta Rubio:
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No apenas a disputa que faz o atleta ideniicar-se com o heri. O caminho para o desenvolvimento dessa idenidade envolve etapas comuns
ao mito: h uma chamada para a prica esporiva, que em muitos casos
signiica deixar a casa dos pais e enfrentar um mundo desconhecido e, por
vezes, cheio de perigos. Sua chegada ao clube representa a iniciao, propriamente dita, um caminho de provas que envolve persistncia, determinao, pacincia e um pouco de sorte. A coroao dessa etapa a paricipao na Seleo Nacional, seja qual for a modalidade, lugar reservado aos
verdadeiros heris, onde h o desfrute dessa condio. E, inalmente, h o
retorno, muitas vezes negado, pois devolve o heri sua condio mortal,
e na tentaiva de refutar essa condio so tentadas fugas mgicas (como a
desmoivao em retornar ao seu clube de origem), porm, por paradoxal
que seja, apenas nesse momento que ele encontra a liberdade para viver.
(2001, pp. 99-100)
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O desejo de uilizar a esima social como forma de promover mudanas sociais aparece no discurso de alguns jovens entrevistados, quando comentam sobre o que fariam caso se tornassem jogadores de futebol: incluem criar um projeto ou escolinha para auxiliar outros a galgarem
o sonho comparilhado.
Em uma sociedade regida pelas lgicas do mercado e do espetculo, na qual a mdia ocupa papel de destaque nos processos de subjeivao, com o jogador de futebol muitas vezes sendo tratado como
celebridade e heri, a esima social deste muito bem cotada. Por isso,
comum os jovens em situao de vulnerabilidade buscarem o reconhecimento social pelo futebol para, alm de conseguirem existncia social
por meio dele, obterem fama, a qual pode propiciar mudanas profundas
na autoesima desses sujeitos. Da estar presente nas entrevistas como
algo desejado, s vezes como principal moivao para se tornar jogador
proissional, passaporte para conseguir imagem, reputao e prova de
ser uma pessoa importante e, sobretudo: fama. Muitos atrelam ser famoso, aparecer na mdia com benesses que para eles esto diretamente
ligadas, como ganhar dinheiro, ter mais amigos, sade, ser mais amado
por torcedores, amigos e familiares.
Consideraes inais
Dada a importncia social do futebol, ele pode ser uilizado como
ferramenta de anlise da dinmica social e de seus desdobramentos na
subjeividade dos sujeitos. Esta caractersica permiiu durante o presente trabalho expandir as anlises cricas e realizar algumas inferncias sobre o contexto social atual no Brasil.
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O contexto o de uma sociedade capitalista, imediaista, consumista, sociedade do espetculo, extremamente compeiiva e individualista,
que promove mudanas na cultura do futebol e do papel social do esporte
e que muitas vezes faz com que os jovens em situao de vulnerabilidade
(pobreza, residncia em favelas e afrodescendncia) se tornem invisveis
socialmente, por serem ignoradas as diiculdades impostas pela origem,
pela indiferena inligida, ou ainda por projees de esigmas.
Como as experincias de reconhecimento deinem como a pessoa
se percebe e percebe o mundo, uma vez isso ser mediado por suas relaes intersubjeivas, quando estas so negaivas ou precrias, podem
produzir sofrimento e promover uma luta por reconhecimento.
Nesse nterim, a luta se d nos campos de futebol, onde jovens sonham em ascender socialmente de forma rpida, se tornarem consumidores, auxiliarem suas famlias e conquistarem fama midiica.
Apesar de no completamente proscritos do universo social, pois
passeiam por diversos lugares, no possuem conjunto de recursos, competncias e conhecimentos disponveis e mobilizveis em matria de cultura
dominante e tampouco tempo hbil para invesir na educao formal para,
de forma honesta, conseguir os smbolos vicrios que subsituem idenidades, que so os objetos de consumo. Essas diiculdades, somadas ao senso
comum de que esses jovens negros apresentam predisposies e talento
para as reas do crime, do futebol e da msica4, fazem com que no futebol
sejam depositadas todas as esperanas de mudana do status quo.
Quando um jovem em situao de vulnerabilidade deseja se tornar
um jogador de futebol, o que o mobiliza intrinsecamente se tornar um
sujeito com direito ao reconhecimento social. Esse jovem, invisvel na teia
social, est exposto a diversas situaes de injusia social, desrespeito e
precrias experincias de reconhecimento.
Da a busca pelo futebol, que ganha contornos de luta por reconhecimento. O sujeito obteria uma mudana na representao de si mesmo
e passaria a ser reconhecido socialmente, recebendo respeito cogniivo e
sendo muito bem esimado socialmente, podendo at se tornar exemplo
e heri para a sociedade e produtor de solidariedade.
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Como aparece em tom de denncia na msica Negro Drama (Racionais MCS. Negro Drama.
So Paulo: Cosa Nostra, 2006).
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A ascenso social e a idenidade de ser um jogador de futebol so almejadas pelo desejo de obteno de experincias de reconhecimento posiivas nas trs esferas do reconhecimento e que, assim, possam promover
mudanas em suas respecivas autorrelaes pricas: na dedicao emoiva, sendo mais amados por seus familiares e amigos (autoconiana); no
respeito cogniivo, obtendo cidadania que lhes roineiramente negada
(autorrespeito); e na esima social, ao serem elogiados pela performance
esporiva, por terem fama e visibilidade e exercerem uma funo social
respeitada e digna de admirao (autoesima). Em suma, esta pesquisa
busca apontar o futebol como instrumento para anlise da dinmica social e contribui por conectar o contexto esporivo ao social e este com o
individual (Seda, 2012).
Repousa, assim, no futebol, o nico caminho possvel na dimenso subjeiva desses jovens - que possa prover reconhecimento social de
forma rpida e plena de realizao pessoal. Possibilita expandir a teia de
relaes do sujeito; favorece o consumo, o qual pode prover uma determinao atravs de objetos feichizados que funcionam como cones idenitrios; e proporciona visibilidade pblica, situao antagnica de sada
e que nesta sociedade espetacular medida de sucesso e esima social.
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Introduo
Nosso problema terico e prico reconstruir o espao para que
ele no seja o veculo de desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, reconstruir a sociedade para que no crie ou preserve as desigualdades sociais (Milton Santos, 2012, p. 81).
O presente projeto pretende, pela via da Psicologia e da Geograia
Humana, compreender como se desenvolvem os processos de subjeividade das populaes habitantes das regies de fronteiras.
Podemos analisar os processos de desenvolvimento de subjeividade a parir de aspectos referentes ao mundo vivido coidiano das pessoas,
pois fato que o ambiente que nos cerca fator determinante em nossas
construes subjeivas (Veronese, 2007).
Por subjeividade se entende o apanhado de elementos implcitos e
explcitos que consituem nossa forma de perceber, julgar e agir sobre o
mundo que nos cerca. Senimentos, emoes, experincias vividas e cargas genicas adquiridas so alguns dos principais elementos consituivos
da subjeividade e da personalidade humana (Titoni, 1994).
Por sua vez, territrio de fronteira um espao peculiar de vida, pois
abrange uma srie de elementos diferenciais que dizem respeito a um intenso intercmbio cultural, miscigenao de aes pblicas, peris tnicos
diferenciados e normas sociais que, apesar de diferentes, convivem no
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Resultados parciais
Apresentamos a seguir alguns resultados parciais, selecionados dentre um vasto universo de dados coletados, a im de exclusivamente contextualizar o leitor nas discusses promovidas ao longo deste texto.
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Assumimos para o estudo da fronteira tabainguense uma concepo sobre trs eixos bsicos, desenvolvida por Nogueira (2007): a fronteira vivida, a percebida e a controlada. Contudo, as trs concepes
mostram-se extremamente interligadas, podendo, portanto, ser a fronteira compreendida a parir das relaes entre esses eixos.
A parir desse contexto foram desenhadas as anlises sob tais
perspecivas: A respeito da Fronteira Vigiada o intuito deu-se em observar como a realidade fronteiria inlui nas leis nacionais, pois a permeabilidade dos territrios fronteirios abre um leque para variados ipos de
ilegalidades. Foi abordada a percepo da populao fronteiria sobre
a atuao dos rgos governamentais, a saber, como estes tendem a
fazer a segurana e o controle na fronteira, assim como o senimento de
segurana, no coidiano, daqueles que a vivem.
No tocante Fronteira Percebida, encontram-se em curso as anlises dos rgos de comunicao do estado do Amazonas e suas midiaizadas percepes a respeito do territrio fronteirio, assim como a
percepo da populao fronteiria sobre as nocias veiculadas pelos
canais a respeito de tal fronteira.
Por im, analisando elementos voltados educao, condio de
sade, moradia e segurana, habitao, perspeciva de futuro e moivao no que toca Fronteira Vivida, buscamos compreender como as pricas espaciais coidianas do um contedo de vida aos que nela vivem.
Passemos a alguns dados ilustraivos:
Em relao s motivaes para viver na cidade, 2% moram em
Tabatinga por falta de opo, 51% nasceram no local e possuem familiares na cidade, 22% moram na fronteira devido aos estudos, 10%
por motivo de trabalho, 7% pelo acesso a bens e comrcio, 6% pelas
condies de vida.
Quanto aos principais benecios que a fronteira proporciona aos
fronteirios 4% citaram emprego, 4% disseram os estudos, 20% as compras, 6% a sade, 8% os preos baixos, 7% o livre comrcio, 26% o contato com outras culturas, 13% citaram o idioma, 3% citaram outros fatores
e 9% no opinaram.
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No tocante perspeciva de futuro, os moradores assinalam o desejo da casa prpria, a melhoria na qualidade do comrcio, melhores condies de trabalhos, mais segurana, que o ensino seja mais valorizado e a
sade funcione de maneira mais eiciente.
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teira (apontados na igura 3), nos quais emprego e estudo somam apenas
8%. Isto nos leva implcita compreenso de que as expectaivas que
mobilizam as moivaes para viver na fronteira, muitas vezes, no so
alcanadas ou correspondidas pelas possibilidades do territrio.
Essa hiptese se comprova quando somamos as opinies de todos
entrevistados a respeito do fato de a cidade fronteiria brasileira suprir
as necessidades de infraestrutura (habitao, transporte e saneamento),
cultura, sade, trabalho, segurana e educao.
Figura 4. A respeito de que Tabainga supre as necessidades da populao
fronteiria
No entrelaamento entre a Fronteira Percebida e Vigida os principais relatos apontam para a ideia de que, para se desenvolver melhor e
suprir as necessidades da populao, deve ser feita uma aliana entre os
pases vizinhos para solucionar os problemas de violncia, emprego e na
estrutura da cidade.
Em vista desses problemas Tabainga vista e retratada de forma
pejoraiva em muitos veculos de comunicao do estado do Amazonas
e tambm nas conversas informais e no imaginrio da populao da capital, apontando Tabainga como uma cidade de medo, do pnico, do
trico.
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importante ressaltar que o primeiro esforo foi o de analisar separadamente os contedos relatados pelos naivos de Tabainga, os migrantes e os imigrantes que se originam de outros estados ou cidades do
Alto Solimes. Tal diviso se mostra propcia para a possibilidade de um
estudo comparaivo das informaes e a criao de categorias de anlise,
colocando em maior evidncia as diferenas e semelhanas do que signiica perceber e viver na fronteira a parir de diferentes pontos de vista.
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O primeiro ponto a ser ressaltado foi o interesse da equipe em buscar elementos da infncia e da adolescncia dos entrevistados. Tal categoria teve como intuito descobrir se a vida na fronteira oferece, para
essas faixas etrias, elementos disintos de vivncia daqueles que cresceram em outros centros urbanos e rurais, do pas ou do exterior.
Dessa forma, analisando a categoria Vida Passada: Procedncia e
Origem percebemos que no existem diferenas signiicaivas nas vivncias dos grupos de naivos, migrantes e imigrantes. Todos relatam uma
infncia posiiva, com jogos, brincadeiras e um signiicaivo contato com
a natureza, mesmo aqueles que cresceram em grandes centros urbanos.
Da mesma forma, tanto para uns quanto para outros a adolescncia signiica a descoberta do mundo social, a independncia dos laos familiares, a introduo no mundo noturno, o primeiro contato com as bebidas
alcolicas e as primeiras experincias de relacionamentos sexuais.
Assim, apontamos que viver a infncia e a adolescncia na fronteira
signiica, igualmente, como em muitos outros lugares, passar por ritos de
passagem que vo avanando do ponto inicial de descobertas bsicas do
mundo, de maneira gradaiva, para a insero em contextos sociais mais
abrangentes, aos quais se acrescentam elementos de independncia e
responsabilidades sociais.
O nico elemento que demostra certa dissonncia refere-se a uma
leve tendncia de as crianas da fronteira passarem mais tempo livre na
rua, enquanto o grupo de migrantes de outros estados do Brasil relata vivncias ldicas em lugares mais fechados, como parques, circos, campings,
etc. No que se refere ao contedo latente dessas falas encontramos, por
um lado, a falta de espaos de lazer e recreao na fronteira e, por outro,
uma noo de periculosidade para crianas nos grandes centros urbanos.
A respeito dos elementos referentes categoria Fronteira Vigiada,
o acesso base de dados oiciais dos rgos de segurana da fronteira
apontava que exisia uma queda de quase 80% nos ndices de assassinato
na regio. Alm disso, nos limos 3 anos (2010-2013) houve aumento
do ndice de apreenses no caso das drogas e armas e a temica da segurana veio melhorando signiicaivamente. Nosso objeivo foi, ento, o
de confrontar os dados oiciais com a percepo das pessoas sobre este
assunto.
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Nesta perspeciva, compreendemos que, para todos os entrevistados, a imagem relevante de fronteira apresenta-se dentro do conceito Es131
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um deles, em separado, possa deinir exausivamente. Essa incompletude torna os limites vulnerveis ideia de seus prprios limites e abertos
possibilidade de interpenetrao e combinao com outros limites. No
campo da hibridao, quanto mais limites, menos limites (Santos, 2007,
p. 355).
Percebemos cabotagem e hibridao no coidiano fronteirio, em
nossas pricas acadmicas fronteirias, enim, na formao das subjeividades que surgem a parir dos territrios de fronteira. Releimos sobre
alguns exemplos:
Economicamente, podemos pensar em certa ginga da fronteira,
no senido de saber colocar-se sempre de maneira mais favorvel frente
s diferenas cambiais na compra de insumos do dia a dia, pois existem
bens e produtos mais econmicos em determinado ponto do territrio
fronteirio, da mesma forma que existem diferenas cambiais que, quando bem manejadas, diminuem o custo do comprador. Alm disso, como
a fronteira apresenta-se muito mais como um territrio vivencial do que
sico so inmeras as possibilidades comerciais de estrangeiros, mesmo
em territrio vizinho.
A linguagem tambm se coloca como elemento fundador da subjeividade que assume no chamado portunhol sua melhor expresso integraiva. A fronteira tem o poder e a permisso de tornar oicial aquilo que
no reconhecido.
Na fronteira, como territrio de todos, de aparente luxo descontrolado, o senso comum de ineicincia das Foras Armadas e da Polcia
naturalizado e, se releirmos sobre as colocaes de nossos entrevistados, percebemos que a nica funo do exrcito, para a populao local,
gerar trabalho e renda para grande parcela da populao jovem que de
outra forma estaria ociosa na cidade.
Contudo, percebemos que viver em um contexto hipermilitarizado
traz outras consequncias, como a falta do senimento de organizao e
de revolta popular, que abafado frente ao imaginrio de que em qualquer desordem pblica existe macia presena do exrcito para retomar
a ordem. Isto percebido no clssico caso de Tabainga com a falta de luz
constante. Uma nica vez que o povo se revoltou e tomou as ruas, foi dispersado pelas Foras Armadas. O problema segue acontecendo, mas no
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Para o autor, a fronteira um espao privilegiado a parir do momento em que nos possibilita os seguintes elementos: o uso seleivo e
instrumental das tradies, a inveno de novas formas de sociabilidade,
as hierarquias fracas, a pluralidade de poderes e das ordens jurdicas e a
luidez das relaes sociais.
Mas ser que isso ocorre na trplice fronteira em questo?
O uso seleivo das tradies - refere-se liberdade que a pessoa, ao
chegar fronteira, possui, de escolher partes de seu passado que deseja
assumir publicamente e outras que deseja deixar para trs. No nosso caso,
cada imigrante ou migrante, ao chegar, possui um quadro em branco referente ao seu passado e pode preench-lo como bem entende. Pelo lado
negaivo, este um dos pontos que torna o territrio to atraivo para
ladres e fugiivos, que de alguma forma retroalimentam a dinmica da
ilegalidade.
Inveno de novas formas de sociabilidade - sugere a necessidade
de reinventar a forma de viver, pois como territrio nico e peculiar toda
bagagem trazida pelo viajante deve se readequar ao novo espao de vida.
Nesse senido, a equilibrao de novas formas de ser no mundo gera um
processo de transformao subjeiva.
Hierarquias fracas - signiica dizer que quanto mais longe do centro
do sistema maior a independncia frente s lgicas impostas, contudo,
maior tambm a diiculdade de consituir uma forte idenidade cultural.
A cultura do centro- atraivo corrompe o potencial idenitrio local.
Os povos da fronteira repartem sua lealdade com um pluralismo de
poderes, diferentemente dos rgos governamentais. Os lderes comunitrios, religiosos e os prprios lderes das esferas ilegais comparilham a
determinao das ordens sociais.
A luidez nas relaes sociais - tambm est presente na trplice
fronteira na medida em que leis, regras e condutas de imigrao e rela-
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nistas. Uilizamos tal metfora para referir-nos s subjeividades que possuem o desejo de explorar as capacidades emancipatrias da transio
paradigmica.
Cita o autor: A relaiva ausncia do poder central confere ao barroco um carter aberto e inacabado que permite autonomia e criaividade
das margens e das periferias (Santos, 2007, 356).
Na realidade estudada da trplice fronteira, signiica produzir subjeividades que ultrapassem os esigmas da pirmide social, que incorporem a tradio indgena, ribeirinha, haiiana, brasileira, peruana e colombiana em uma mesma forma de ser, sem disines excludentes. Signiica
promover senso de coleividade suiciente para transformar ou pelo menos isolar as vises negaivas dos atores externos sobre tal fronteira. Signiica tambm reinventar a relao com o militarismo, promover outras
formas de qualiicar a educao e, acima de tudo, mudar de patamar as
concepes externas, de um senso comum acrico para um olhar crico
e autocrico da realidade. Essas transformaes devem assim afetar a esfera domsica e pblica de maneira a poder, na fronteira, de fato, gerar
subjeividades fronteirias.
Se analisarmos a fronteira em questo sob os trs principais aspectos que segundo Milton Santos (2012) compem o territrio (ideologia,
polica e economia) perceberemos uma complicada relao do povo com
seu territrio, mas atravs dela tambm podemos pensar em caminhos
viveis para o desenvolvimento e a transformao paradigmica.
Na esfera ideolgica, como j apontamos, necessrio superar o esigma inferiorizante da periferia frente ao centro. Garanir autonomia do
espao, que segue suas lgicas prprias, garanir uma ideologia prpria
embasada na realidade concreta.
Poliicamente, o fortalecimento de subjeividades fronteirias acabaria com a subordinao irracional e, imbudos dos conceitos de comunidade e zona de integrao, tomariam posse frente ao protagonismo
social, garanindo, inclusive, a representao tnica de todas as realidades existentes na fronteira dentro dos rgos deliberaivos existentes no
territrio.
Por im, a questo econmica, de trabalho e renda s pode ser pensada dentro do conceito comunitrio de emancipao e autonomia e no
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reconhecimento das riquezas especicas de cada realidade e cultura, embasada na qualiicao produiva que garanta autonomia frente s perversas lgicas globais de assistencialismo, produo e consumo que aingem
as populaes indgenas e ribeirinhas em especial.
Mostra-se imprescindvel o imperialismo de uma lgica endgena
de desenvolvimento nos territrios de fronteira.
Apresentamos algumas das anlises parciais da pesquisa A Fronteira
Vivida e os Processos de Subjeivao, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Educao e Diversidade Amaznica- GPEDA- CSTB UEA, que segue
em fase de coleta e anlise de dados. Nesse senido, esperamos ter logrado, mais do que apresentar resultados especicos ou respostas airmaivas sobre todas as questes levantadas ao longo do texto, comparilhar
com o leitor algumas das relexes em curso.
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Introduo
A formao de psiclogos no Brasil tem atravessado mudanas
desde que foi regulamentada em 1962, com a Lei n 4.119/1962, que
garantiu a criao do currculo mnimo para os cursos, alm de definir
os limites profissionais e as funes exclusivas do psiclogo. Os primeiros sinais de mudana ocorreram entre meados dos anos 1970 e
incio dos anos 1980, com apenas o acrscimo de disciplinas. A partir
de 1990, adensam-se os debates sobre a funo e o compromisso social da profisso, alm das discusses sobre a redefinio de papis
do psiclogo no mercado profissional, especialmente com a ampliao
e criao de novos servios no mbito das polticas pblicas (Rocha,
1999). Isso resultou na aprovao, em 2004, das Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN) para os Cursos de Graduao em Psicologia, objetivando tornar a formao do psiclogo um processo contnuo e permanente, com base generalista e uma slida formao nos conhecimentos bsicos da cincia psicolgica e de outras reas de conhecimentos
(fundamentos biolgicos, filosficos, socioculturais, etc.). Alm disso,
buscou-se com essas mudanas o desenvolvimento de uma postura
crtica, reflexiva e investigadora, valorizando a interdisciplinaridade e
a formao prtica e produo tcnico-cientfica, bem como o respeito
multiplicidade de concepes tericas e metodolgicas, originadas
em diferentes paradigmas, modos distintos de compreender a cincia
e a relao homem-mundo, sem perder a diversidade de prticas e
contextos de atuao, especialmente nas polticas pblicas (Conselho
Nacional de Educao - CNE, 2004).
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Tais discusses foram impulsionadas pela prpria insero dos psiclogos no setor da sade pblica, ainda na dcada de 1980, alm de
outras policas como a educao e assistncia criana e ao adolescente. A parir da insero nesses novos contextos de atuao, a proisso
passou a receber outras demandas de trabalho e ao proissional, o
que possibilitou a ampliao de seu leque de ao, bem como garanir
a ampliao do mercado de trabalho e o futuro da proisso. Esse percurso de imerso em outros espaos de interveno, associado a novas
demandas de uma populao de certa forma ainda desconhecida para
a maioria dos psiclogos, considerando o carter eliista da nossa proisso, ser senido e cobrado nos cursos de formao de psiclogos no
Brasil.
Assim, alm das transformaes em torno dos currculos, chamamos ateno para um novo momento de mudanas que atravessa a formao de psiclogos na atualidade: trata-se da interiorizao e internacionalizao do ensino superior no Brasil, e, consequentemente, dos
cursos de psicologia. O rpido avano na abertura de novos cursos, especialmente em cenrios que diferem dos tradicionalmente reconhecidos
pelos psiclogos, evidencia um acontecimento que reposiciona nossa
proisso, diferentemente de dcadas anteriores, no mais como uma
proisso hegemonicamente urbana, como tradicionalmente era conhecida (Rosa, Rosa, & Xavier, 1988).
Desse modo, pretendemos atualizar as informaes sobre o movimento de interiorizao da formao dos psiclogos no Brasil (Macedo
& Dimenstein, 2011), considerando que em 2011 j sinalizvamos para
o fenmeno de expanso dos cursos de graduao em todo o territrio
nacional, com especial ateno para os municpios de menor porte. Nosso
objeivo destacar um elemento novo para esse processo de interiorizao da formao do psiclogo brasileiro, que o fato de os cursos estarem procurando se instalar no apenas em cidades consideradas polos de desenvolvimento regional, mas em municpios cada vez menores,
aproximando a psicologia no Brasil dos contextos rurais. Por outro lado,
objeivamos evidenciar um dado novo dessa expanso, ou seja, a internacionalizao dos cursos com a aquisio de insituies de ensino superior
(IES) por grupos educacionais estrangeiros, que tm invesido na inanceirizao da educao no Brasil. Pretendemos introduzir esse debate sobre
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na expanso e interiorizao do setor pblico no ensino superior brasileiro, com a criao de 14 novas universidades federais, ampliando-se o
quadro para 274 campi distribudos em 237 municpios. Antes do REUNI,
havia 148 campi em insituies federais localizados em 114 municpios,
preferencialmente nas capitais e grandes centros urbanos.1 Em relao
formao tecnolgica e proissional, alcanou-se em 2010 o total de 354
campi em Insitutos Federais instalados em 521 municpios. No setor privado, afora o expressivo aumento de novas insituies em todo o Pas,
ampliou-se o Programa de Financiamento Estudanil para os cursos de
graduao, por meio do FIES, inclusive para estudos de ps-graduao, e
criou-se o PROUNI com concesso de bolsas de estudo integrais e parciais
em IES privadas.
Sobre o crescimento da formao em Psicologia no Brasil, registra-se
que os primeiros cursos surgiram ainda na dcada de 1950, sendo que nas
dcadas de 60 e 70 houve um nmero expressivo quanto abertura de
novos cursos (por volta de 69) nesse perodo, sendo 70% deles no setor
privado (Gomide, 1988).
Na dcada de 1980, ocorreu uma desacelerao no processo de
expanso causada pela crise econmica nacional, expressa em um grave
quadro inlacionrio e no aumento das taxas de desemprego no Pas, e,
mesmo assim, 20 novos cursos foram abertos nesse perodo. Em meados
dos anos 1990, o setor voltou a crescer, devido aos esmulos governamentais para abertura de insituies privadas, com o saldo de 80 novos
cursos criados, sendo a grande maioria no setor privado. Nos anos 2000,
mesmo com a expanso do setor pblico, a escalada de privaizao do
setor foi intensiicada, com a criao de 163 novos cursos, sendo 86,7%
no setor privado.
Com relao interiorizao dos cursos de psicologia, 36,5% deles
esto localizados nas capitais e 63,5% em municpios do interior. Na Figura
2, constatamos que as regies Sul e Sudeste contam com maior nmero
de cursos no interior do que nas capitais, enquanto no Centro Oeste essa
proporo est equilibrada; no Nordeste e no Norte, h mais cursos nas
capitais que no interior.
1
htp://portal.mec.gov.br/expansao
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Tais transformaes nos cenrios da formao dos psiclogos repercutem diretamente no modo como nossa cincia e proisso tm se
posicionado frente realidade brasileira, que por demais mlipla, heterognea e complexa. Diferente de tempos outros, constatou-se, nos
ltimos anos, uma realidade completamente diversa daquela tradicionalmente percebida pela proisso, em que os psiclogos e suas agncias
formadoras se concentravam hegemonicamente nos grandes centros
urbanos e capitais. Isso aponta a necessidade de releirmos sobre a maneira como nossas teorias e pricas psicolgicas tm se preocupado (ou
mesmo se ocupado em suas intervenes) com a realidade dos municpios de menor porte. Certamente, em tais realidades, as condies de
vida e as relaes sociais, simblicas e culturais logo, os processos de
subjeivao, as relaes de idenidade, a formao dos sujeitos e suas
relaes familiares , demandam respostas da psicologia que seguramente no so as mesmas do mundo urbano. Por isso, a importncia de
nossa categoria proissional e, especialmente, dos cursos de formao de
psiclogos, principalmente aqueles localizados no interior do Brasil, com
destaque para os municpios de menor porte (que tm interface direta
com os contextos rurais) possam superar os modelos de psicologia que
ainda mantm vesgios de seu passado eliista, urbano, alienado da realidade social. Esses modelos coninuam a formar psiclogos nos moldes
de uma psicologia tradicional, tendo em vista que o campo de atuao
diverge de seu campo terico-metodolgico-praico de formao (Yamamoto, 2012).
Sobre a internacionalizao do ensino superior no Brasil, o cenrio
vem se efeivando desde o incio dos anos 2000, com a chegada dos primeiros grupos estrangeiros no Pas: Apollo Internaional, Laurete Internaional Universiies, Whitney Internaional University System e a Devry
University. Tal processo encontra um aparato jurdico favorvel, devido
aplicao do receiturio neoliberal, que resultou em mudanas na legislao para promover o acesso ao mercado internacional de ensino (Ribeiro, 2006), aliado estabilidade econmica brasileira, alm da enorme
demanda de novos alunos (at ento reprimida) por ingresso no ensino
superior, com o aumento do poder de consumo da populao brasileira.
Isso tudo consolida o Brasil como um efervescente mercado educacional,
aberto iniciaiva privada e ao capital, seja ele nacional ou estrangeiro
(Sguissardi, 2008).
151
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transformaes do modo de vida da populao que se conigura nos municpios menor porte, ou simplesmente nossas formaes tm repeido
nosso feito histrico de selecionar e adaptar pessoas, visando melhorar
seu padro de respostas s exigncias da vida moderna e civilizada?
O quadro da expanso do mercado transnacional no setor universitrio e as exigncias de aplicao de sua lgica s insituies brasileiras, com estratgias de internacionalizao e globalizao do ensino, tm
acarretado avanos no senido de fortalecer a mobilidade estudanil e de
docentes, criar mecanismos de cooperao insitucional e redes de pesquisadores, insituir acordos de reconhecimento mtuo na validao de
diplomas. Citam-se, alm disso, abertura de iliais de insituies de ensino consolidadas internacionalmente, criao de redes transnacionais
de universidades e educao superior virtual transnacional (Van Damme,
2001). Entretanto, de acordo com Morosini (2006), a aplicao das exigncias do mercado transnacional s insituies brasileiras tambm apresenta novos desaios para educao superior no Pas. Talvez a maior delas, de
acordo com esse autor, seja, de um lado, os efeitos que podem advir da
educao superior como servio comercial em vez de bem pblico, e, de
outro, o perigo da internacionalizao dos currculos, sem considerar seus
efeitos nos processos de ensino-aprendizagem, na construo da idenidade e na adaptao social do aluno frente s novas demandas e exigncias do mercado global e local (Morosini, 2006).
Assim, cabe indagarmos: sob que parmetros e princpios tem se
consitudo o debate sobre o alinhamento de currculos entre os cursos
que compem a rede de grupos internacionais? E a pesquisa e as parcerias
de cooperao, desenvolvimento e transferncia tecnolgica, como tm
ocorrido? Sem dvida, so questes importantes para se considerarem
os efeitos do processo de internacionalizao e globalizao da educao
superior no Pas, e como isso tem se dado nas formaes em Psicologia
nas IES que integram grupos internacionalizados. Por essa razo, h necessidade de aprofundamento do tema e a realizao de pesquisas futuras,
que possam acompanhar os efeitos desse processo na formao do psiclogo brasileiro, mormente porque os contextos em que atualmente nos
inserimos so os das policas pblicas nos municpios de menor porte.
Por im, necessrio alertar para a marca da mercanilizao do
ensino, como veriicado nos resultados encontrados, e j apontados no
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estudo de Lisboa e Barbosa (2009), ao se constatar que a maior parte dos cursos de Psicologia de mbito privado, quer interiorizados ou
internacionalizados. Isso pode reforar a expanso da formao do psiclogo em uma lgica de mercado, como tradicionalmente tem se manido,
com pouca ateno para a promoo do ensino, da pesquisa e da extenso voltados s demandas e necessidades locais do curso, o que acaba por
manter a formao conservadora da Psicologia dirigida exclusivamente
aos problemas intrapsquicos individualizantes e privaizantes, distante de
uma postura crica e relexiva e pouco compromissada com a realidade
social da maioria da populao brasileira.
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156
Apresentao
O presente arigo se baseia no estudo realizado em uma Iniciao
Cienica que teve incio em agosto de 2013 com previso de trmino
para agosto de 2014. Esta pesquisa inanciada pelo CNPQ e visa dar
seguimento pesquisa de Doutorado de Fiedler (2007), em que se objeivou compreender como so construdas as policas pblicas de gesto
de extenso em universidades privadas no municpio de So Paulo.
Esta pesquisa visa caracterizar e compreender como so construdas as prticas desenvolvidas nos Estgios de Ncleos Especficos
denominados Estgio Supervisionado em Projetos Sociais e Estgio
Supervisionado em Comunidades, bem como o enfoque dado s intervenes executadas nestes espaos a partir do enfoque terico-prtico
da Psicologia Social Comunitria e da Pesquisa Participante.
Especificamente este artigo apresenta os dados quantitativos
que descrevem as atividades que foram realizadas nestes estgios durante o ano de 2012 em uma universidade privada no municpio de
So Paulo.
Faz-se necessrio contextualizar os referidos estgios numa temporalidade semestral e enquadrados nas Diretrizes Curriculares de
Graduao em Psicologia, datadas 2004 e reeditadas na Resoluo n.
05, de 15 de maro de 2011 (com novidades na rea da licenciatura).
Antes de 2004 as normatizaes das graduaes do ensino superior
eram elaboradas a partir da aprovao de currculos mnimos.
Tal resoluo transforma-se no marco das relexes sobre a formao do psiclogo que os conselhos regionais e federais, bem como os
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Fruns de Enidades da Psicologia - que acabaram por fundar a Associao Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) em 1998 - j vinham sinalizando h muitos anos. Legiima-se o discurso ico-polico da formao
que deveria estar voltada para a compreenso crica dos fenmenos
sociais, econmicos, culturais e policos do pas, descentrado do modelo mdico-assistencial-privaista vigente.
Assim, nosso interesse pelos fazeres compreendidos nos estgios
obrigatrios especicos da rea social est no fato de que nestes estgios os atores sociais envolvidos na consolidao das pricas proissionais (universidade, corpo docente, corpo discente e mercado de
trabalho - nas suas mais variveis insituies sociais) se corporiicam
e enunciam novos problemas que suscitam novas atuaes PSI (Fiedler,
2007). atravs destes espaos de estgio que inmeras relexes podem se fomentar: como o corpo docente e o discente planejam e executam aividades de interveno social? Que cartograias acontecem a
parir do conhecimento produzido? Como se concebe uma interveno
psicossocial: assistencialista ou emancipatria? H a possibilidade de
formao e relexo crica do alunado nestes espaos?
Esta pesquisa ainda se faz interessante na medida em que, apoiados em Becker (1999), releimos que as cincias sociais (podemos incluir a Psicologia Social) tm se dedicado mais a apontar ao pesquisador
o que ele deveria estar fazendo e que ipos de mtodos deveria estar
usando e menos ao exame dos mtodos de fazer pesquisa sociolgica,
de analisar o que pode ser descoberto atravs delas e o grau de coniabilidade do conhecimento assim adquirido (Becker, 1999, p. 17).
Fundamentao terica
Este estudo fundamenta-se na urgente reflexo que demanda a
atual situao da graduao em Psicologia no Brasil, que cada vez mais
amplia seu espao de atuao, mas que ainda carece de legitimao
social para consolidar-se como uma cincia de transformao social.
Utilizamos como referencial os pressupostos terico-prticos da Psicologia Social Comunitria e da Pesquisa Participante por acreditarmos
que estes representam norteadores eficazes na anlise de intervenes sociais.
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Na dcada de 1960, nos EUA, os primeiros psiclogos que realizavam intervenes comunitrias concebiam a comunidade como apenas
um lugar de interveno, assim, desenvolviam pricas assistencialistas,
numa postura que visava manter o equilbrio social (uma prica que
patologizava a pobreza e os pobres). Nesse cenrio, a comunidade no
era o foco dos estudos, apenas o local de interveno, o que eliminava a
questo histrica e processual dos processos intervenivos. Newbrough
(1973) e Rappaport (1977) construram os primeiros conceitos com essa
viso de Psicologia Comunitria.
As intervenes comunitrias surgem na Amrica-Laina na dcada
de 60, quando proissionais das cincias humanas e sociais viram-se envolvidos, se no direta, indiretamente, nos movimentos populares que
insurgiam contra as policas ditatoriais dos governos. Esse foi o caminho
percorrido pela sociologia, pelo servio social e pelas cincias sociais.
Na Psicologia, a dcada foi importante para que se desenvolvesse, com
base na psicologia sociohistrica, uma nova concepo de Homem, de
sociedade e de complementaridade dos conceitos.
A concepo marxista de homem como um ser aivo, dinmico,
construdo e construtor da sociedade deiniivamente passa a fazer muito senido no momento polico por que passavam os pases da Amrica Laina. A parir dessa concepo, baseou-se o interesse pelos novos
campos de atuao do psiclogo, centrado nas relaes sociais, intersubjeivas e construtoras da materialidade histrica: a comunidade, a
sade pblica, os movimentos sociais, as populaes oprimidas e desfavorecidas e as relaes de desigualdade social.
Entretanto, essa nova concepo de homem vai deparar-se com
diversos obstculos na prpria cincia: a tradio da prtica clnica da
psicologia, seguindo um modelo mdico de assistncia a uma elite da
populao, no s era percebida como nica forma de atuao, mas
tambm seu entendimento baseava-se numa explicao individualizada de subjetividade humana. Advindo desse primeiro obstculo, o
segundo era a falta de modelo terico-prtico que sustentasse uma
interveno intersubjetiva no auxlio s transformaes sociais urgentes. Tal era a situao da Psicologia nos vrios continentes e mostrava
a limitao da prpria ao aliar cincia e vida cotidiana (Paulo Neto,
2012).
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Dcadas se passaram at a consolidao da Psicologia Social Comunitria como campo cienico. Na produo laino-americana, adotou-se
um fazer baseado no fortalecimento dos espaos democricos e paricipaivos que inclusse a discusso do polico ao romper com os paradigmas clssicos do conhecimento cienico que, por sua vez, construam um
modelo cienico eliista e excludente. No entanto, o paradigma individualista no deixou de ser imperioso no entendimento do fenmeno social
e as pricas desenvolvidas nesse contexto ainda carecem de anlise. Por
isso a importncia desta pesquisa.
Na Amrica laina, as pricas libertrias em Psicologia Comunitria
estavam aliadas aos movimentos aniditatoriais. Assim, se desenvolviam
com uma perspeciva militante de conscienizao popular. Fals Borda
(1959, 1978), Freire (1969, 1983, 1989, 1992), Montero (1984) e Serrano-Garcia (1986) desenvolveram os primeiros conceitos voltados para construir uma prica comunitria baseadas nas metodologias paricipaivas.
Neste trabalho, necessrio elucidar sinteicamente as implicaes
terico-pricas, ontolgicas, epistemolgicas, metodolgicas, icas e
policas, baseadas em um paradigma de construo e transformao crica, conforme Montero (2004). Essas implicaes da rea da Psicologia
Social Comunitria, fundamentadas nas metodologias paricipaivas, serviro de suporte para analisarmos os discursos produzidos pelas intervenes de estgio e retratadas nos Relatrios Finais de Estgio:
Implicao terica: ocupa-se de construir um corpo de conhecimentos que explicita o produto de uma prxis que gera ao, modos de interveno, explicaes e interpretaes da comunidade. O modelo paradigmico da construo e transformao crica (Montero, 2004, p. 90),
gerado nos pases da Amrica Laina, uiliza as metodologias paricipaivas
para fazer cincia, j que elas atendem as necessidades especicas das
populaes dos pases subdesenvolvidos.
Implicao ontolgica: deine a natureza aiva do sujeito cognoscente, tanto o sujeito pesquisador como os sujeitos objeto da pesquisa de
campo. Eles so concebidos como atores sociais e agentes de transformao pessoal e social. Os sujeitos pesquisadores/interventores no so
neutros de valores e senidos sociais e no se veem como especialistas
que garantem o sucesso da interveno. Concebem-se como invesiga-
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Implicao polica: a interveno espao de publicizao das formas de opresso vividas no mundo coidiano privado. lugar de libertao, de desnaturalizao e de paricipao polica. lugar sntese de
expresso das diferentes vozes sociais e da negociao advinda da experincia de paricipao. Assim, pretende-se um campo terico em que o
prprio fazer seja emancipatrio da prpria cincia, do pesquisador e
da comunidade.
Implicao metodolgica: trata de metodologias inovadoras, criaivas e paricipaivas, nas quais a autoria coleiva origina-se da problemaizao da vida coidiana dos grupos comunitrios. A questo que se apresenta no senido metodolgico que seja desenvolvida com intervenes
transformadoras, no plano coleivo, a comunidade, e, no plano individual,
o ator social, protagonista deste coleivo. Busca-se construir uma metodologia dialgica, dinmica e transformadora. Uma interveno previamente
construda sem conhecimento das necessidades e objeivos da comunidade seria no s incorreta como inil (Montero, 2006).
Consideraes metodolgicas
Neste texto apresentaremos os resultados de uma pesquisa quanitaiva acerca dos Relatrios Finais de Estgio das disciplinas de Comunidades e Projetos Sociais, muito embora nossa pesquisa de Iniciao
Cienica esteja caminhando para uma pesquisa hbrida, associada pesquisa qualitaiva, baseada na anlise de contedo dos Relatrios Finais de
Estgio Supervisionado em Psicologia Comunitria e em Projetos Sociais,
confeccionados no ano de 2012.
Falamos em pesquisa hbrida por ela caminhar no senido de captar
as materialidades, pois no levantamento de dados quanitaivos podem
emergir dados qualitaivos (a anlise do contedo dos documentos produzidos por discentes em superviso). Compreendemos tais materialidades como lugares de produo de senido sobre as demandas e expectaivas sociais, a proisso e as crenas que fundamentam suas pricas.
Flick (2005) deiniu como mtodo hbrido no s a uilizao de metodologias qualitaivas e quanitaivas na coleta de dados, mas tambm
a possibilidade de analisar dados quanitaivos de forma qualitaiva ou
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Os dados revelam o quanto as Organizaes Sociais, que gerem Projetos Sociais, esto centralizando o atendimento populao no que diz
respeito a enidades de assistncia social, como Centros de convivncia
para crianas e adolescentes, Centros de acolhida para adultos em situao de rua, entre tantos outros. O alto ndice de alunos estagiando na rea
do Terceiro Setor revela a importncia que esse setor tem na sociedade e
na gesto da coisa pblica nas duas limas dcadas.
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aes inconsistentes. Seus proissionais tm relaes empregacias instveis, com alta rotaividade e baseada em vnculos de coniana, ao invs
de competncia proissional. Da qualquer anlise que se faa da atuao
proissional no campo deve considerar que no h modelos de trabalho
predeinidos que norteiem a execuo das aes, nem um consenso sobre
os princpios ico-policos da prica. (Yamamoto & Oliveira, 2010)
O item (c), que se refere ao pblico atendido, dispe de dados equitaivos na distribuio dos interesses de estgio: o estgio com o pblico
idoso consituiu 26% das atuaes, assim como os trabalhos com mulheres
vimas de violncia e o trabalho com crianas e adolescentes. Apresentou
variedade entre o atendimento a pessoas com dependncia qumica (5%),
em situao de rua (9%), pais (4%) e portadores de deicincia visual (4%).
A maior parte do pblico atendido consiste em idosos, mulheres,
crianas e adolescentes, todos inseridos num contexto de vulnerabilidade, excludos das esferas de paricipao polica, sendo acolhidos, em sua
maioria, por insituies de assistncia social. Essas experincias de estgio so, em sua totalidade, mediadas por uma Insituio, nas quais se
organizam grupos de interveno.
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dadeiramente ocupar dentro da insituio e a prpria segurana terico-prica que os atores (professores, alunos e insituio) envolvidos com o
estgio apresentam.
Pricas como a de Aconselhamento Psicolgico ou Planto Psicolgico respondem ao estereipo social do que deveria ser uma interveno
PSI e muitas vezes a nica alternaiva de interveno negociada com a
insituio concedente do estgio. Mas tambm podem releir uma genuna necessidade levantada no local de estgio. Sobre isso poderemos nos
ceriicar na sistemaizao dos dados qualitaivos da pesquisa que ora se
desenvolve.
A incongruncia encontrada localiza-se nos relatrios que no especiicam uma fundamentao terica para o exerccio da prica. Acreditamos que esses relatrios remetam s atuaes dos alunos em campo de
estgio cujo programa esteja em andamento, coordenado pelo professor
supervisor, tendo o aluno encontrado o projeto pronto ou suas linhas gerais j estabelecidas pelo prprio corpo docente ou diretamente pela coordenao do servio-escola com as insituies concedentes de estgio.
Cabe-nos, ento, o quesionamento se estas atuaes em projetos j esta-
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belecidos proporcionam uma experincia inovadora, quer seja para a comunidade acadmica, quer seja para a insituio concedente do estgio.
Ser que as aes semestrais conseguem atualizar as demandas daquela
populao paricipante?
Considerando que a pesquisa se baseia nos pressupostos da Psicologia Social Comunitria e Pesquisa Paricipante como base para uma
construo de olhar crico do Psiclogo em formao, as duas limas
categorias deinidas consolidam uma interpretao de como tem sido gerada e executada a prica. A primeira revela os encontros que determinam o levantamento da demanda (e). Nela, as duas maiores metodologias uilizadas para o levantamento de demanda consistem em entrevistas
associadas com a observao (35%) e apenas a realizao de entrevistas
(31%). Foi encontrada tambm uma forma de levantar as necessidades da
comunidade atravs da observao (13%) e da observao com aplicao
de quesionrios, em uma quanidade menor (5%). Os limos trs modos
ideniicados de levantamento de demanda foram atravs de entrevista
com o grupo de funcionrios (4%) deiniu-se a interveno com usurio
do servio a parir do olhar do funcionrio que o assiste -, entrevista e
divulgao do projeto estabelecido (4%) e uma demanda na comunidade,
sem deinio de como foi encontrada (4%). A mdia dos encontros que
possibilitaram o levantamento da demanda de 2,5 encontros, nos relatrios, acerca dos trabalhos realizados.
Grico 5. Tcnicas para levantamento de demanda
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Concluso
Ao proceder anlise desses dados, icamos atentos para os debates que eles suscitam, mas o trabalho de nossa pesquisa no se en171
cerra aqui, ao contrrio, a parir das leituras exploratrias que nossa anlise do contedo dos RFEs comea a se dirigir para as questes
qualitaivas. Os nmeros acima alimentam ainda mais nosso quesionamento de pesquisa, pois foram realizados 2,5 encontros insitucionais
para levantamento e deinio da demanda e 7 encontros diretos para
executarem uma interveno assim deinida. Pensamos que a realidade
das universidades privadas no contexto paulistano apresenta um sistema de avaliao que se fragmenta pela semestralidade. Isso signiica
que se tem cerca de 5 meses para todo o processo de contato com a
insituio concedente, levantamento das necessidades, interveno e
inalizao do trabalho. Podemos supor que o entendimento da demanda se faz de forma supericial e sem a paricipao efeiva dos membros
que iro paricipar do processo de interveno, no qual o espao de
coconstruo de saberes com a comunidade ica limitado, devido ao
escasso tempo e excesso de uilitarismo para a execuo do estgio no
campo concedente. Como estes dados no so conclusivos, temos esperana de que as questes supracitadas sejam discuidas no decorrer
das leituras qualitaivas, o que garaniria um posicionamento crico a
essa prica.
Grande parte dos RFEs que apontavam a pesquisa paricipante
como de base terico-prica, que sustentariam as intervenes de estgio, uilizou entrevistas e observaes para levantamento da demanda
insitucional/comunitria, demonstrando coerncia metodolgica. No
entanto, o tempo uilizado para os procedimentos (entrevista e observaes) foi, em mdia, 2,5 encontros, revelando que o pouco tempo do estgio obrigatrio tambm limita o desenvolvimento do olhar do alunado
frente concepo da comunidade como ator social, no apenas mais
como o objeto de uma invesigao - como na concepo tradicional de
cincia -, mas como lugar de produo de senido, de cincia e de transformao. A limitao do tempo de estgio resulta num dado concreto
de restrio dos dilogos amplos para compreenso em conjunto do que
se demanda naquele espao.
Os meios de interveno atravs de dinmica, relexes, grupos e
aconselhamento psicolgico, conforme vimos, possibilitam uma interveno direta com a comunidade. Entretanto s uma anlise qualitaiva destes espaos de interveno poder nos revelar se tais pricas estariam
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Introduo
Diante do retrato de pricas de sade ainda vericalizadas e com
enfoque na doena, tem-se reivindicado cada vez mais que o Sistema nico de Sade (SUS) assuma seu papel de ordenar e orientar no apenas
as estratgias e modos de cuidar, tratar e acompanhar a sade individual
e coleiva da populao, mas tambm a formao de proissionais para
atuar na sade.
Romper com a centralidade do modelo biomdico e hospitalar para
uma ateno em sade, focada na promoo e educao, exige de trabalhadores, professores e cidados uma mudana de paradigma que relita
sobre os processos de ensino e de trabalho, as relaes de saberes, na
atuao em redes integradas de sade e na paricipao social. Todo esse
contexto clama por produo de conhecimentos e mudana cultural, para
outro fazer na sade.
Visando consolidao do Sistema nico de Sade, o Ministrio
da Sade (MS) tem desenvolvido aes e programas voltados para a formao de trabalhadores em servio e tambm de futuros proissionais
pautados no novo1 modelo de assistncia. Com a elaborao da Polica
Nacional de Educao Permanente em Sade (PNEPS) e com a criao da
Secretaria da Gesto do Trabalho e Educao em Sade pelo Ministrio da
Sade, do Governo Lula, nos anos de 2003 e 2004, a formao em sade
ganha corpo e visibilidade insitucionais.
Ainda que as diretrizes curriculares dos cursos de sade j apontassem a necessidade de reorientar a formao, o Ministrio da Sade,
1
O Sistema nico de Sade, mesmo com mais de 20 anos de existncia, apresenta um proposta nova de assistncia ainda em consolidao que se diferencia do modelo tradicional
biomdico, centrado nos hospitais, exames e medicalizaes.
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novo modelo de assistncia em sade, bem como o prprio desenvolvimento de aes e programas nas universidades pblicas e privadas2.
O estudo prope uma anlise dos movimentos e relaes policas e insitucionais, alm das percepes sobre a formao em sade
durante o processo de implantao do Pr-Sade, desenvolvido pela
PUC Minas, na cidade de Belo Horizonte, entre 2008 e 2012. Inspirada
na tese de Feuerwerker (2002), que retratou processos e resultados do
Programa UNI3 no Brasil, de forma geral, e mais especiicamente nas
cidades de Marlia e Londrina, esta pesquisa visa caracterizar o cenrio
atual de mudana na formao de proissionais para a sade, a parir
da anlise das aes ministeriais, principalmente do seu programa mais
recente: o Pr-Sade.
A PUC Minas teve projetos aprovados nos trs editais do Pr-Sade
abertos nos anos de 2005, 2007 e 2011. O primeiro edital, chamado Pr-Sade I, contemplou dois projetos desenvolvidos pelos cursos de Odontologia e Enfermagem, em parceria com as prefeituras dos municpios de
Belo Horizonte e de Beim, respecivamente. Esse edital dirigia-se apenas
aos cursos de Medicina, Odontologia e Enfermagem do Pas. J no segundo edital Pr-Sade II , amplia-se a paricipao para todos os cursos
de graduao do Pas, e a PUC Minas teve aprovado um projeto nico,
envolvendo cinco cursos de sade: Fisioterapia, Enfermagem e Fonoaudiologia e dois cursos de Psicologia (PUC - Minas, 2007). Com durao
prevista de trs anos, o projeto PUC Minas foi implantado em 2008, agregando o curso de Odontologia do Pr-Sade I, todos localizados em Belo
Horizonte. No limo edital, com dois anos de durao para os projetos,
outros cursos da PUC Minas foram agregados, como os cursos de Nutrio
e Educao Fsica.
Focado no Edital Pr-Sade II, este estudo retrata aspectos gerais
do programa na PUC Minas em seus cinco cursos envolvidos. A parir
dessa experincia singular, foram sendo ideniicadas aproximaes e
2
Ainda que a grande maioria das universidades aprovadas pelos editais do Pr-Sade seja
pblica, a pesquisa elege uma universidade privada para estudar um programa interministerial que busca fortalecer as Diretrizes Nacionais Curriculares dos cursos de Sade que regem
todo o ensino superior brasileiro.
Programa UNI Uma Nova Iniciaiva na educao dos proissionais de sade foi uma proposta de mudana nas graduaes de sade, desenvolvida em universidades brasileiras e
demais pases da America Laina na dcada de 1990, com apoio da Fundao Kellogg. Foram
23 projetos em 11 pases, que pariciparam por quase uma dcada do programa.
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latrios de rgos governamentais4 e da universidade, memrias registradas de reunies, projetos de lei, entre outros, so importantes fontes de
informao, bem como as produes sociais releidas na reviso bibliogrica. Todos esses documentos so irmados em contextos e vnculos
determinados, tornando toda compreenso localizada sujeita a se transformar, consituindo a pesquisa com vises provisrias de mundo.
Os documentos so produtos sociais, construdos para transmiir
e legiimar valores, saberes, em determinada poca e numa sociedade
especica. Os registros so criados com inluncias, e contribuies diversas e esse sistema so percebidas como uma totalidade, construda
socialmente5. A anlise de documentos possibilita elucidar a processualidade de acontecimentos em contextos especicos com tempos, ritmos e
espaos diferentes e que podem ser apreendidos na procura de conexes
e divergncias que atravessam os registros em seu sistema coerente internamente. Tm-se tambm padres discursivos nessa produo e nessa
escrita, que representam valores ou posturas sociais aceitos (Borrione &
Chaves, 2004). Nos discursos produzidos nas entrevistas com professores
do programa estudado essa anlise no diferente.
Para Le Gof (1990), os documentos so compreendidos como monumentos que exercem as relaes de poder da sociedade do passado
sobre a memria e o futuro. Para esse autor, no h inocncia nos documentos, visto que, para serem analisados, preciso desmont-los, desestrutur-los, reirando-os da condio de estatutos de verdades. Pesquisar/
analisar documentos , pois, interrog-los quanto s suas lacunas, esquecimentos e silncios, buscando o jogo de embates e o cenrio de tenses
e disputas que os consituem.
4
Barroso et al. (2007) aborda o papel do conhecimento na construo e regulao da ao polica (pblica) buscando responder como so mobilizados diversos conhecimentos e fontes
de informao nas decises policas ou no processo de governar. Em sntese, apresenta trs
eixos de anlise complementares: (a) a posio do ator polico na relao e acesso ao conhecimento e seus produtores; (b) o papel do conhecimento e de seus produtores na orientao
e elaborao da agenda polica; (c) a uilizao de instrumentos que incluam a produo
e a disseminao de conhecimento, como livros, relatrios, pricas exitosas, ideniicando
concepes e tambm reaes e (re)apropriaes daqueles que so pblico-alvo desses materiais.
Borrione e Chaves (2004) recorrem a Minayo e a Spink, apresentando uma abordagem psicossocial da produo e anlise dos documentos como produtos signiicaivos de um contexto, de um tempo, de processos, normas, acordos e disputas sociais.
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Analisar as relaes dialgicas presentes nos documentos ministeriais e outros regulamentadores de policas pblicas (produes discursivas) permite compreender a quem esse discurso responde e para quem se
desina, alm de problemaizar os no ditos do prprio discurso, respondendo ao jogo de foras que consituem os enunciados e abrindo possibilidades para outros. Assim, a anlise possibilita avaliar como os princpios
e diretrizes das policas de sade esto sendo deinidos, analisados, avaliados e, de certa forma, obtendo signiicado. Ou ainda, permite visualizar
qual o lugar social ocupado pelo(s) autor(es) do documento, a que outros
ele(s) se desina(m) e com que inalidade, ou seja, quais pricas sociais se
prope(m) consolidar. Ou seja, facilita compreender quais pricas proissionais, metodolgicas e ideolgicas se pretende produzir a parir dos discursos normaivos e regulamentadores dos programas governamentais.
Portanto, na anlise dos textos e dos documentos, evidenciam-se pricas
sociais que almejam ser consolidadas. Os documentos oiciais, na maioria
das vezes, buscam a normaizao das pricas proissionais nas policas
pblicas, o que, para Bakhin, seria uma tentaiva de monologizao.
O contexto polico e social, os movimentos e as insituies, as temicas e os argumentos trazidos pelos textos, entrevistas e observaes
revelam uma pluralidade de concepes de educao, sade, trabalho e
de sociedade, permeados pelo discurso oicial que permanece em debate,
sendo ora reeditado, apontado de outros ngulos, ora modiicado.
Por exemplo, a Polica Nacional de Educao Permanente em Sade
(PNEPS), ao deinir diretrizes, aes e formas de operacionalizar capacitaes e desenvolvimento de proissionais da sade, determina e direciona
concepes tericas e metodolgicas, que, por sua vez, so coladas ou
agluinadas por essa polica, tornando-se unssonas ou, ainda, a educao
permanente insitucionalizada pela polica em um discurso monolgico,
caractersico da lei e da polica (Baista, 2013). Mesmo assim, esse discurso dialoga com outros, como a integrao ensino-servio, a formao
pelo trabalho, a educao no formal ou no escolar.
Nos variados documentos e entrevistas analisados neste estudo, h
uma trama discursiva diante dos diferentes endereamentos e procedncias. As intencionalidades, foras e efeitos presentes na sua produo, situados em diferentes esferas, de variados modos, consituem a polica.
Ela, pois, como lei, no se sustenta sozinha e no encerra uma proposta,
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O termo adotado no programa e presente nos documentos e na literatura integrao ensino-servio, entretanto defendemos uma interao entre duas insituies escola e servio
pautada na ariculao entre educao e trabalho. Ampliando esse debate, Kind e Coimbra
(2011) apresentam o eixo teoria-prica como um sistema de revezamento na relao entre
as duas insituies defendendo uma via de mo dupla do fazer-saber.
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no discurso de distncia entre universidade e as necessidades da populao, e defende, como lema da mudana, a integrao escola-servio.
Com o SUS, permanece o discurso de inadequao da formao e de
distncia entre universidade e servios de sade para esse novo modelo;
e as iniciaivas de mudana encontram razes em movimentos e processos histricos, que, com o SUS, assumida pelo Estado. Desse modo, o
governo tem papel indutor central na garania de policas e programas
connuos para efeivar as mudanas. Ou ainda, o horizonte de mudanas
vislumbrado depende de interesses e arranjos policos bem especicos,
no garanindo mudanas deiniivas, mas instaurando processos em diferentes tempos e formatos, provocando alteraes e apontando caminhos.
Com isso, Ministrio da Sade e Ministrio da Educao apresentam as Diretrizes Curriculares Nacionais como estratgias de mudana na
formao universitria de proissionais de sade. E mais: movimentos de
formao e programas governamentais reconiguram-se para tal mudana
como os programas de Residncia Muliproissional em Sade e os Programas de Educao pelo Trabalho na Sade (PET - Sade); ainda que com
pouca paricipao do Ministrio da Educao, mantm a estratgia de
interao escola-servio com incenivo pblico, mesmo que restrito aos
aprovados em editais e em condies de trabalho bem desiguais, e por
vezes, precrias.
A interao entre universidade e servio de sade colocada pelo
programa gera tensionamentos no desaio conjunto colocado a disintas
insituies: de formar proissionais de sade reorientados pelo modelo
assistencialista, reorganizar o servio e construir o SUS. A prpria dicotomia entre teoria e prica, quem conceitua e quem faz, acirra a relao
entre escola e servio de sade. Contudo, essa super tarefa no cabe
apenas universidade ou ao campo da formao, pois esse campo de foras e lutas, como airma Bourdieu (2004), se conecta a outros campos.
O processo de mudana da formao sofre outras interferncias de
campos, no apenas da educao e da polica, mas tambm do mercado,
dos servios de sade, da sociedade. Dessa forma, os pontos de resistncia dessa mudana no esto apenas no campo da formao, exigindo
tempo e invesimentos em reas diversiicadas.
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Consideraes inais
Para avanar, no basta invesir na universidade e na formao proissional. Mudanas culturais e insitucionais so imprescindveis nesse
processo, que exige, ento, modiicar a organizao e processo de trabalho de sade, valorizar os proissionais, tanto dos servios quanto das
universidades, implantar uma polica de cargo, carreira e salrios decente
para os proissionais, invesindo de fato em infraestrutura, equipamentos
e servios de sade.
Voltada mais internamente aos programas, observa-se a necessidade de gesto comparilhada, com a presena dos ministrios no acompanhamento sistemico dos projetos, de suas aes, equipes e gesto
dos recursos, a ampliao do acesso informao, da comunicao e dos
espaos de paricipao, a considerao da gesto da mudana pautada
no ciclo de vida dos projetos, revendo desconinuidades e princpios tcnicos, policos e sociais e a prpria relao/tenso entre a induo governamental e autonomia insitucional da universidade e dos servios.
O caso estudado da polica de formao em sade, a parir de um
programa indutor de mudana no ensino superior, revela elementos universais fundamentais para coninuarmos ampliando e aprofundando as
anlises desse programa e similares. Ainda que a apreenso do objeto
no se esgote, algumas contribuies foram elaboradas e sistemaizadas,
engrossando o debate sobre o papel do Estado e seu modo de induzir a
formao em sade, suas relaes com a universidade e dela com o mercado de trabalho, conigurando um campo complexo de anlise, importante para as avaliaes dos programas.
Referncias
Almeida, L. P. G. & Ferraz, C. A. (2008). Policas de formao de recursos humanos em sade e enfermagem. Rev. Bras. Enferm., 61(1), 31-35.
Bakhin, M. (2010). Marxismo e ilosoia da linguagem (14 ed.). So Paulo:
Hucitec.
Barroso, J., Carvalho, L. M., Fontoura, M., & Afonso, N. (2007). As policas
educaivas como objecto de estudo e de formao em administrao educacional. Ssifo - Revista de Cincias da Educao, 4, 5-20.
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Introduo
Esta pesquisa tem como base entrevistas com duas militantes estudanis da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A primeira paricipou
dos anos iniciais da reforma universitria, das mobilizaes em torno da
aprovao e implantao dos Bacharelados Interdisciplinares (Bis) na
Universidade Federal da Bahia, no contexto do REUNI1; lembra o tenso
processo de aprovao e implementao da nova estrutura universitria,
os impasses e contradies testemunhados e enfrentados por ela e seus
companheiros. A segunda militante pertence primeira entrada de estudantes no BI e narra as diiculdades, potencialidades e contradies do
novo projeto, bem como a tenso desse novo espao inaugural frente
UFBA e s suas estruturas tradicionais.
A UFBA teve papel protagonista no processo de reformulaes das
universidades brasileiras disparado pelo governo Lula. Antes do surgimento e regulamentao do REUNI, em 2007, ocorriam, em Salvador,
discusses e apresentaes em torno do projeto Universidade Nova, de
autoria do ento Reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho. Uma srie de
textos e documentos fundamentava a proposta (Almeida, 2007; Almeida & Sousa Santos, 2008). Paria-se ento de asseriva crica do sistema
universitrio e da educao superior brasileira. Destacava-se a concepo
fragmentadora do conhecimento subjacente s insituies, alienada da
complexidade dos problemas da natureza, da sociedade, da histria e da
subjeividade, alm de sua inspirao em modelos da universidade europeia do sculo XIX, superados em seus contextos de origem e exgenos
realidade brasileira. Percebiam-se tambm os resultados da reforma uni1
Programa de Apoio a Planos de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais, regulamentado pelo Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007.
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Como consequncia mais percepvel de tais determinaes, segundo Almeida Filho, implantou-se uma estrutura curricular confusa, bem
como um sistema de itulao desariculado, com numerosas denominaes. Destaca tambm a excessiva precocidade nas escolhas de carreira
proissional, a seleo limitada, pontual e traumica para ingresso na
graduao, o vis monodisciplinar, com currculos estreitos e bitolados,
alm do enorme fosso entre graduao e ps-graduao e a incompaibilidade quase completa com modelos de arquitetura curricular vigentes em
outras realidades universitrias (Almeida, 2007).
Os documentos e apresentaes de autoria do reitor e de seus colaboradores mencionavam tambm, na ocasio, os modelos vigentes na
atualidade e as recentes transformaes operadas nas universidades estrangeiras. O modelo norte-americano e o recente processo de Bolonha
eram trazidos como interlocutores da proposta sugerida, salvaguardadas
suas caractersicas locais. Outra referncia em relao s inspiraes para
o projeto proposto foi a reforma universitria protagonizada por Darcy
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O REUNI
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais (REUNI) concomitante e consonante s discusses
sobre a Universidade Nova e os BIs. Segundo Oliveira,
percepvel que algumas IFES estejam adotando a proposta de Bacharelados Interdisciplinares (BI`s) semelhantes proposta da UFBA. Alm disso,
as formulaes da equipe tcnica, especialmente do Reitor desta insituio Naomar Almeida, que elaborou o PP BI`s UFBA, repercutem diretamente no prprio Ministrio da Educao - MEC - e aprofundam diversos
fundamentos conceituais adotados por ambos os planos. (2010, p. 16)
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200
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Nas audincias pblicas relatadas no documento, estudantes e professores apontam, alm da precariedade estrutural e das contradies da
proposta, o carter truculento e anidemocrico com que as reformas
foram impostas. A crica endossada por diversas moes de enidades
estudanis e docentes.
Durante a implantao dos projetos vinculados ao REUNI nas universidades federais, o ME protagonizou intensas e efervescentes mobilizaes pelo Pas, talvez experimentando uma de suas pocas mais aivas
na histria nacional. Foram ocupadas as reitorias da UFBA, UFPE, UFRural
do RJ, UNIRIO, UFC, UFSCar, UFSC, UFF, UNIR, UNIFESP, UFPR, UFRJ, USP,
entre outras mobilizaes, no raramente seguidas de fortes intervenes
policiais.2 Nesse contexto, no dia 1 de outubro de 2007, estudantes da
Universidade Federal da Bahia ocupam a Reitoria da UFBA, acontecimento
que ser lembrado com destaque por Flvia.
2
Informaes sobre esses acontecimentos podem ser acessadas atravs dos blogs das ocupaes. Cf.: htp://ocupacaouba.blogspot.com.br/. Acesso em 12/02/2014.
202
Os nomes so iccios.
203
estudanis no contexto de transformaes atuais das universidades brasileiras. Procurou-se tambm releir, com base em tais perspecivas,
sobre o prprio BI e o que ele traz como desaio e promessa para seus
habitantes.
Experincias militantes
Flvia
Flvia formou-se em 2009. Foi estudante de um curso de humanidades na UFBA; fez parte do centro acadmico e engajou-se aivamente nas
movimentaes de ocupao da Reitoria em 2007. Os relatos da militante
referem-se principalmente a esse acontecimento, sugesivo nos senidos
que assumiu para seus paricipantes e para a universidade.
Para contextualizar o evento, Flvia retoma experincias iniciais de
embates, protestos e mobilizaes frente s primeiras propostas para a
educao superior e as universidades durante os anos iniciais do governo
Lula.
At ento, dizia-se que no inha reforma universitria, at como estratgia para desaricular o movimento. O setor mais governista dizia que a
reforma estava em discusso, mas j havia trs ou quatro projetos de lei.
At ento, inha o combate ao governo FHC, contra o sucateamento da universidade... Entrei em 2002.2, mas como teve uma greve de professores,
entrei em 2003.
A greve de 2004 dura 4 meses. Teve ocupao de 17 dias na Reitoria, para
garanir que os estudantes no reprovassem por falta, e garanir assim o direito greve. Tem assembleias com cinco mil pessoas, tem pea teatral que
circula durante a greve... No teve s a pauta da reforma universitria, mas
a do Restaurante Universitrio, que estava fechado h dez anos. A pauta
dos transportes dentro da universidade, e pautas das unidades.
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mento, em nome dos estudantes da UFBA, a favor da reforma. Isso era todo
o tempo durante a greve de 2004.
Uma boa quanidade de estudantes vai comear a ser contra esses grupos.
Cria-se uma cultura ani-reitor, e uma cultura ani-Flores de Maio e PC do B.
Da minha parte, quando teve s eleies, apoiava sempre um setor que inha
condio de desbanc-los.
Vai se criando esse clima de fora paridos entre os independentes. Por
exemplo, inha uma galera pra quem perguntaram: vocs so de que grupo?. Eles respondem: melancia (riso): vocs querem um nome, ento
toma um nome para vocs. Tinha isso de no gostar de uma polica centralizadora, autoritria. Uma parte dessa galera vai desisir das enidades
e vai fazer militncia com os movimentos sociais. Passou a no entrar em
eleio de CA, DA, nada disso. Essa galera vai virar o centro da ocupao
em 2007.
Nesse contexto de movimentaes, gestado o projeto Universidade Nova. Surgem as discusses em torno dos Bis, e so expostas as primeiras verses do projeto. A militante asseriva em suas cricas..
A primeira verso do Universidade Nova supersincera, vai dizer coisas que
esto ainda hoje no BI: que a universidade deve preparar trabalhadores polivalentes para o mercado de trabalho, que a universidade forma trabalhadores muito especializados, e que no essa a demanda do mercado hoje.
Isso vai casar depois com o debate sobre interdisciplinaridade: precisa ser
algum com vrias habilidades, algum que vai operar mquinas, mas no
necessariamente um engenheiro. Vai dizer que h pessoas vocacionadas,
que precisam ir para a universidade; e as que devem seguir carreira acadmica, que so as excepcionalmente vocacionadas. Isso foi naturalizado
nos debates sobre Universidade Nova, BI etc. Que ideia de vocao essa?
Quem so os excepcionalmente vocacionados? Quem tem condies de fazer mestrado e doutorado em uma universidade que no d assistncia estudanil, em que algumas pessoas precisam trabalhar e estudar? Esses so
os que no so excepcionalmente vocacionados, porque no podem icar
oito anos na universidade.
A militante aponta o carter anidemocrico atravs do qual as propostas de reestruturao foram implementadas e conduzidas, culminando no REUNI e nos BIs. asseriva agora em relao Reitoria e aos seus
apoiadores.
206
A Reitoria viu que no teria condies de aprovar na UFBA toda o im da entrada pelo vesibular direto nos cursos. E era necessrio aprovar correndo,
direto, sem dilogo; porque estava para acabar a gesto. H uma visibilidade gigantesca do reitor nesse momento. No era interessante que ivesse
resistncia na universidade. Como implantar no Brasil inteiro uma coisa que
a UFBA no aceita? O processo vai ser super anidemocrico, porque era
preciso aprovar esse projeto de qualquer forma.
Era grana nova em uma universidade que vinha sendo sucateada desde a
era FHC. Era impossvel convencer os departamentos irem contra o REUNI:
essas coisas aqui, d-se um jeito; uma grana que esta entrando. Depois
a gente v o que faz.
O Reitor passou em todas as unidades, vai ingir que est ouvindo, e vai
lanar umas fotos para dizer que as pessoas foram ouvidas. Dito e feito.
Apresentao ridcula, falando das contradies da educao superior, de
como isso est desalinhado com as coniguraes internacionais da universidade. E o pessoal entrando na dele. E a soluo no tem nada a ver com
o que est sendo apresentado. As pessoas vo fazendo perguntas muito
signiicaivas sobre a viabilidade, sobre as promessas no cumpridas, a precariedade dos prdios, e ele no responde. Foi amplamente apresentado
talvez, mas discuido, no.
Esse debate da reforma universitria est desgastado, tambm por causa
da forma anidemocrica que ele foi conduzido. O BI vem nesse contexto.
Pouco depois, com o projeto dos BIs encaminhado, acontece a ocupao da Reitoria da UFBA. A militante recorda o acontecimento, desde o
comeo inusitado at seus desdobramentos.
Em 2007, tem o Movimento dos Sem Residncia Universitria. Tinham aprovado as cotas, ento inha uma demanda de residncia necessria. Tem um
vazamento de gs, um funcionrio se contamina. Eles vo fazer um panelao na Reitoria. L, algum grita: cuidado, eles vo ocupar!. E os estudantes gostaram da ideia e ocuparam (riso).
De repente, o PSTU, a APS, colam na ocupao, e comeam a puxar o debate do REUNI. Um debate que, em tese, j havia sido feito. O DCE, o CEB
(Conselho de Enidades de Base), a galera do PT e do PC do B, icaram tentando acabar logo com isso, encerrar a ocupao: terminamos a pauta da
residncia, acabou a ocupao. Mas a galera que era contra o REUNI icou.
O PSTU e milhes de independentes que estavam entrando na UFBA.
207
O pessoal que ocupou inha muito p atrs com essa coisa insitucional, de
disputar DCE. Tinha outro ipo de militncia. Tinha anarquistas tambm, vai
ter doido na ocupao, tem de tudo.
No nhamos direo. Tinha umas iguras que eram mais ouvidas, mas no
sentavam, deiniam a polica. O que juntava mesmo era lutar para no
aprovar o que o Reitor queria.
A ocupao funcionava por assembleia. Todo mundo que estava l podia paricipar. Tinha suas comisses, grupos de teatro etc. Tinha uma srie de estratgias mais arsicas. Isso vai ser um desaio para o DCE, que tem estratgias
mais tradicionais de militncia. Eles vo passar em sala e falar contra. A gente
vai com uma pea, e com a rdio ocupao, que ia informando as coisas. Tinha outra estica da polica que tambm estava em jogo.
Aqui j era governo Lula, total. Agora, governista ou no governista.
Est acontecendo o REUNI no Brasil inteiro nesse perodo. Vo ser 15 ocupaes. Todas essas aconteceram depois da nossa, e se comunicavam, trocavam informaes. Ento, comeou um movimento contra o REUNI. Aquilo
que j estava dado comea a virar um movimento nacional, que a UFBA
inha sido a primeira a comear.
O 12 de outubro foi lindssimo. O pessoal de teatro preparou os Clawns e
foram para o Campo Grande. Fazem toda uma brincadeira e levaram um
monte de pais e mes para dentro da Reitoria. Projetamos Os sem loresta
como se fosse cinema. Depois teve cachorro quente, salada de fruta. As
crianas icaram l brincando com a gente. Umas 40, 50 crianas, uns 50
pais. E explicamos o que era a ocupao, pedimos o apoio deles. Foi muito
legal, porque eu nunca inha visto aquela Reitoria no ser apenas da universidade. Foi a primeira vez que vi pessoas comuns entrarem ali naquele
espao. Momentos muito bonitos, muito democricos, muito diversos da
universidade.
Tinha cursos, todo mundo era professor: curso de massoterapia, curso de
forr. Tinha algo de se organizar, se gostar, estar junto ali, e de inverter um
pouco as lgicas da universidade, de ter um professor que ensina. Algum
estudava o REUNI e marcava uma oicina para explicar o que era. Movimentos sociais vinham dar aula pra gente. Teve o Encontro Brasileiro de
Marxismo e Educao (EBEM), que a gente pediu para ser aqui, porque j
inha sado a reintegrao de posse. As principais palestras do EBEM foram
para a ocupao.
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O momento de aprovao do REUNI na UFBA foi ilmado e est disponvel na internet em matria da TV
UFBA: htps://www.youtube.com/watch?v=sSR5FVSRUho. Acesso em 09/04/2014.
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Para a militante, restam tambm questes sobre o BI, ainda no respondidas, e que foram anunciadas durante as mobilizaes anteriores
sua aprovao.
Muito legal a interdisciplinaridade, muito legal a pessoa no ter que escolher to cedo, ter grandes reas e depois ingressar... E como vai ser o
ingresso nos cursos? Escore uma coisa quesionvel. Muitas vezes quem
tem bons escores so pessoas que tem uma condio para dedicao que
outros no tm.
Tambm o clima de compeio que voc cria dentro do BI. Voc passou
por isso no vesibular e vai viver isso l dentro. E de fato isso ocorre. O BI
disponibiliza os escores de todo mundo e classiica as pessoas. Isso pblico. Como assim? Voc ica ranqueado? Leva esse ipo de cultura que o ME
sempre foi contra, de criar uma cultura no da solidariedade.
A outra questo a assistncia estudanil. Como a universidade se prepara
para garanir a permanncia das pessoas?Sem uma boa assistncia estudanil, voc mantm as desigualdades. Sem isso, quem vai chegar nesse
segundo momento? Provavelmente so as pessoas que j chegavam antes
na universidade. E a gente j inha vivido a experincia de democraizar, de
garanir as cotas de carter racial e social. E era preciso garanir a permanncia dos estudantes. As cotas foram aprovadas, mas a polica de assistncia estudanil no mudou o suiciente.
Tem uma srie de perguntas que eram colocadas e que nunca foram respondidas. A resposta da insituio era que isso ia ser discuido um dia. No se
tratava de dar essa ou aquela resposta, mas de abrir espaos para pensar
nessas questes, para que isso fosse amadurecido.
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Flvia prossegue e inaliza, indicando as barreiras para que tais questes sejam enfrentadas: barreiras policas radicadas tanto em seu processo de implantao quanto na oposio que o BI encontra na UFBA.
Acho que 99% dos problemas do BI vm da forma como ele foi implantado.
No foi fruto de acordo entre diversas reas, do que se via como problema e
poderia ser mudado. Ainda que seja um projeto bom, ele foi implementado
com um componente de violncia: no ser discuido de fato, ser votado da
forma que foi, envolver uma reintegrao de posse.
O BI icou muito ensimesmado. Sinto que algumas pessoas l no se sentem
parte da UFBA, e a UFBA tambm no os acolheu como deveria, como se
no izessem parte dos seus planos. com o se ivesse um fosso entre as
partes.
Por um lado, tem esse discurso de que eles no foram queridos aqui. Isso
coninua sendo contado para eles, faz parte do ritual de nascimento de cada
estudante do BI. Por outro lado, quando esses estudantes topam em disciplinas com professores que no concordam com o BI, se deparam com
situaes de preconceito.
O plano era que fosse para toda a universidade, e hoje a UFBA tem um formato esquizofrnico. No tem senido que algumas pessoas cursem direto
histria, e outras passem por uma vivncia toda interdisciplinar para depois
cursar. Voc tem duas formaes. Isso que ajuda a diferenciar UFBA e BI.
De fato, no era para ter UFBA e BI. Era para no ter BI, ou ter BI para todo
mundo.
Hoje o BI mais um lugar da UFBA. Um lugar com estrutura, com muitos
professores bem intencionados, mas que no dialoga com o resto da UFBA.
Acho que um lugar desconfortvel para as duas partes.
Beatriz
Beatriz entrou no BI em 2009. me de uma menina, nascida em
seu primeiro ano no novo projeto. Antes, em 2007, ingressara em um curso na rea de sade na UFBA. Militante engajada, procura conciliar a condio de me com a de estudante e militante, o que a coloca com especial
sensibilidade em relao aos direitos da mulher e assistncia estudanil,
temas to caros ao projeto.
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A entrevista de Beatriz focada no presente, em sua vivncia coidiana de militante, estudante e me. Na ocasio, ela integrava o centro
acadmico do BI em Humanidades. So explcitas, em suas falas, a ideniicao e a admirao pelo projeto. Seu discurso frequentemente faz referncias e contraposies experincia universitria anterior na UFBA.
No sabia exatamente o que fazer. Por uma srie de dvidas, acabei fazendo um curso na rea de sade. Tentei me envolver com o curso. No consegui por no concordar com a forma que era estruturado, com a forma como
a docncia lidava com o curso.
Na verdade, no me sinto vontade de fazer outro curso na universidade
sem ser o BI, justamente por essa inlexibilidade da grade curricular. Voc
entra sabendo que tudo daquela forma, com vrios pr-requisitos. Se voc
perde um, atrasa um ano, um semestre. Voc no consegue conhecer outras
reas, porque at as disciplinas eleivas foram reiradas na reformulao
dos currculos. No tem espao de escolha e de autonomia dos estudantes.
Tem sempre aquela educao bancria, o professor colocando o contedo
para fora e voc tendo que decorar para fazer uma prova. No inha outras
formas de avaliar que no fossem provas, decoreba. E eu queria construir
conhecimento, pensar sobre, debater.
Cheguei na UFBA e no era a viso que eu inha, que me falavam. No inha
sala, no inha equipamento, no inha professor para a matria... Tinham
212
Sua fala, sintica em relao a uma srie de vcios dos cursos tradicionais das universidades, entra em consonncia com aquilo que o BI promete resolver. A experincia concomitante aos seus primeiros contatos
com o projeto, e com as cricas a ele feitas pelo ME. A militante ideniica
a proposta no contexto geral, e aposta em suas virtudes.
Nesse perodo que conheci o BI, foi quando teve a greve contra o REUNI.
Desde aquela poca eu no concordava com os quesionamentos que eles
faziam. No entendia porque eram contra: havia garania de verba, garania de reestruturao, reestruturao curricular, ampliao do espao
sico... OME, que sempre pautou ampliao de vagas, democraizao, naquele momento estava sendo contra um projeto que, por mais que ivesse
todas as suas cricas, garania ampliao e democraizao da universidade pblica, do ensino superior.
Na verdade, os coleivos paridrios todos eram contra, um ou dois a favor.
Independente do que quesionavam na poca, independente de ser ou no
ser proissional, era uma forma de algum que no inha o ensino superior
entrar na universidade, conseguir um diploma, e ganhar duas ou trs vezes mais. Mesmo que no ivesse garania de passagem para um curso de
progresso linear. Era tambm a possibilidade de algum de 16, 17 anos
entrar na universidade e conhecer seu curso antes. Lembrei o que eu inha
passado. A meu ver, perdi tempo. Tive que sair e entrar novamente. Tem a
questo interdisciplinar, que para mim coerente. Por mais que no tenhamos no prprio IHAC ideniicado o que ser interdisciplinar.
Para mim, era um projeto que, com todas as cricas de aparelhamento paridrio, de estratgia polica para ganhar voto, da forma atropelada como
foi o processo de implantao, ter sido por decreto, no ter havido debate...
Com tudo isso, achava que se deveria apoiar.
Escolhi o BI pelo projeto, por essa possibilidade de construir, de mudana.
No s na UFBA, mas na educao superior do pas. Em termos de regime
de ciclos, possibilidade de democraizao, peril diferenciado de egressos,
213
tudo isso. Tinha um curso que eu podia estar construindo, intervindo, para o
que eu sempre acreditei. Era muito mais interessante e coerente com meus
senimentos naquele momento.
No BI, compromeida com seu projeto, Beatriz relata sua experincia como militante. semelhana de Flvia, crtica em relao ao ME
tradicional, protagonizado pelos grupos paridrios, CAs e DCE. Valoriza
iniciaivas de construo de novas formas de paricipao dos estudantes,
em sua perspeciva necessrias e coerentes com o prprio BI.
Sempre izemos a discusso interna que importante valorizar aquele estudante que milita, e no aquele militante que estuda. Nosso primeiro espao
de militncia a sala de aula, onde temos contato com os professores e
estudantes.
Temos algumas cricas a essa forma que a gente encara como aniga de
militar: inscrio, tempo de fala... A gente tenta quebrar um pouco isso,
mas tem a resistncia daquele movimento que convive com a gente: outros
cursos, DCE, militantes paridrios, que j so enquadrados dessa forma.
dicil para a gente, que prefere reunies na grama. A gente tem que tentar
conviver, tentar inserir coisas novas, at porque o BI pede para a gente uma
nova forma de militar.
Os espaos do jovem para militar so outros. So coleivos, so ONGs, na
internet, em torno de temicas especicas, e no em torno de paridos.
Existem muitos jovens aivos na universidade que no so reconhecidos
pelo ME. quem verdadeiramente atua, modiica a realidade de comunidades, do seu prprio curso, mas que no esto inseridos no CA, no DCE, em
parido. Isso se relete em todos os lugares e no jovem em geral. So novos
espaos de militncia que no so reconhecidos.
214
disputar o BI, conseguindo 600 votos frente. Mesma coisa foi uilizada
na campanha de Dilma e na campanha de eleio para reitor: a gente tem
que votar em fulana, porque ela a nica candidata que apoia o BI. Dos
dois mil estudantes, quem no ia votar?
215
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217
abertas. Por mais que a inteno seja suscitar o trabalho narraivo do paricipante em torno daquilo que viveu, de sua experincia, supondo nesse
trabalho sua autoria e autenicidade, esperado que se imponha tambm
a fora do grupo, do conjunto de suas opinies e consensos (Bosi, 1992).
Isso no diferente para as militantes. Se acompanharmos Flvia
em suas observaes sobre o BI, ideniicamos opinies por vezes mais
fundamentadas e sedimentadas em seu grupo de militantes do que em
efeivo conhecimento do projeto. Beatriz, contudo, expressa por vezes
uma viso esquemica sobre o grupo de militantes supostamente opositor, e maniquesta em relao ao BI sua famlia , em oposio s outras
unidades da UFBA e aos cursos tradicionais.
A inteno inicial subjacente escolha das militantes era estabelecer um contraponto entre as perspecivas das militantes e torno do BI e
do REUNI. Em posies policas divergentes, estudantes que ocuparam a
Reitoria em 2007 e discentes do BI sustentariam argumentos contrrios
radicados em suas experincias. Tal expectaiva seria sustentada em uma
leitura supericial das entrevistas, atenta apenas s suas estereotipias e
pertenas grupais.
Em uma escuta limitada das opinies de Flvia, seria talvez possvel
reconhecer uma leitura parcial do projeto, limitada e contaminada pela
sua implantao e por antagonismos em relao a grupos policos que o
sustentam. Do outro lado, uma leitura igualmente limitada das opinies
de Beatriz poderia reconhec-la como acrica, excessivamente aderida
ao projeto. Embora haja pontos opostos, opinies divergentes entre as
militantes, no foi isso que os depoimentos destacaram como elemento
central. O antagonismo de posies mostra-se secundrio se repararmos
outros elementos das entrevistas.
fcil perceber, mesmo em uma anlise inicial dos contedos trazidos por Flvia e Beatriz, que elas trazem os mesmos temas e as mesmas
expectaivas. Divergncias em relao ao BI so secundrias, margeiam
pautas e reivindicaes convergentes e histricas entre os estudantes,
manifestas tanto naquilo que disparou a ocupao, como na atual
implementao e construo do projeto por seus estudantes.
H aqui, na experincia e na fala de ambas, questes e demandas
relaivas assistncia estudanil, que dispararam a ocupao e e trans-
218
219
220
As experincias das militantes lembram, da autora, a condio radical da experincia estudanil que sedimentou a paricipao polica da
categoria nos anos 1960, em contraparida tendncia atual para o seu
esvaziamento, sua perda de senidos, na transformao da educao superior em negcio ou formao de mo de obra (Mortada, 2008). signiicaivo que Foracchi (1972) considere o ME como movimento adulto.
Para a autora, negar essa disino faz parte da ideologia dominante, cujo
objeivo desqualiicar as reivindicaes do movimento, como se fossem
sintomas prprios a uma fase, espcie de etapa de descontentamento e
rebeldia naturais.
Desejo de vida dos estudantes, que lembra outros momentos de
exploso da universidade brasileira: de demandas de reforma pela base,
pelos estudantes. Inevitvel aqui lembrar 1968. O relato de Mariinha, militante estudanil daqueles tempos, encontra aqui impressionante atualidade e consonncia. Lembra a ocupao do anigo prdio das Cincias
Humanas da USP, na Rua Maria Antonia.
O pessoal morou na Faculdade, e quando no pde mais morar, icou na rua.
Era uma insituio clat, que estava estourando para gerar uma nova vida.
um conceito da psicanlise de esquerda francesa. Era uma manifestao
selvagem. No era esse caminho orgnico do Gramsci, de que havia a relexo, a militncia, o trabalho: Uma coisa que no de massa, mas tem um
grupo numa insituio que relete, e dali sai uma postura orgnica. Na Maria
Antonia era mais, era selvagem: estourou e nasceu uma coisa viva. Uma insituio em nascimento, em insituio. A maravilha da liberdade, de se criar
algo novo. A Faculdade de Filosoia viveu o estouro de uma insituio aniga,
e as mesmas pessoas que estavam na aniga estavam na nova. Mas ela no
nasceu de novo porque no foi legiimada, foi destruda pela Ditadura. Mas
uma Faculdade de Filosoia viveu ali meses. As pessoas faziam comida, dormiam... Uma universidade viva, revolucionria! (Mortada, 2008, p. 95)
221
222
223
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224
Introduo
Este arigo tem como base a dissertao initulada A experincia
de relao com o outro de alunos de graduao em Psicologia e o uso da
internet (Zampronha, 2012). A pesquisa teve como inteno invesigar
as relaes que podem ser estabelecidas entre os hbitos do uso da internet de alunos de graduao em Psicologia e suas aitudes referentes
forma como se relacionam com o outro. Parte, portanto, da seguinte
pergunta: podem, favorecidas pelo uso da internet, a falta de relexo
crica e o tecnicismo estarem presentes nesses alunos, inluenciando sua
atuao proissional?
Na rea da informao e comunicao, o desenvolvimento tecnolgico acontece cada vez mais rapidamente, especialmente em relao
internet, que tem grande insero nas nossas vidas e vem modiicando
nossos hbitos, o que tem sido objeto de estudo de pesquisas acadmicas. Nesse contexto, a presente pesquisa visa releir sobre o uso paricular que os indivduos fazem da rede, e quais nexos podem ser estabelecidos entre esse uso e a forma como os alunos de graduao em Psicologia
se relacionam com o outro. J que o objeto de estudo da Psicologia o
indivduo, considerado em suas relaes sociais, espera-se que, ao longo
de sua formao, o aluno tenha experincias que lhe permitam o contato
com facetas do humano e a relexo crica acerca da sociedade e dos
indivduos que a compem, incluindo o prprio aluno. Espera-se que o
psiclogo seja capaz de ideniicar suas prprias necessidades e desejos,
de diferenciar-se dos outros indivduos, de perceb-los e diferenci-los
entre si e releir criicamente acerca dos contextos social, econmico,
cultural e polico em que est inserido.
225
O objeivo da pesquisa foi analisar o uso que os graduandos de Psicologia fazem da internet, estabelecendo possveis relaes entre o ipo
de uso e aitudes expressas na relao com o outro no que diz respeito a
trs categorias de anlise: racionalidade tecnolgica, preconceito e narcisismo. Essas categorias foram deinidas a parir de conceitos da teoria
crica da sociedade e so apresentadas a seguir.
De acordo com Marcuse (1998), a tecnologia um processo social,
do qual a tcnica um elemento, assim como os indivduos, que so inventores e deinem sua aplicao e uilizao. A tecnologia e a tcnica exigem uma compreenso dialica. A tcnica, dependendo da forma como
empregada, pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade,
tanto a escassez quanto a abundncia, tanto o aumento quanto a abolio
de trabalho rduo (Marcuse, 1998, p. 74). A tecnologia um modo de organizao que pode tanto perpetuar quanto modiicar as relaes sociais,
podendo consituir um instrumento de dominao ou um avano que promove a liberdade (Horkheimer & Adorno, 1969/2006). Da perspeciva da
teoria crica, a relexo deve ter como foco o uso que se faz da tcnica e
as suas determinaes. Ou seja, aquilo que tornou possvel e condicionou
o processo de emprego da tcnica na produo material e nas relaes
sociais. Isso, porm, no quer dizer que a tcnica seja neutra, pois sua
inveno e aplicao so direcionadas por grupos sociais, conforme ressaltam Marcuse (1998), Horkheimer e Adorno (1969/2006).
O progresso tecnolgico fez com que se disseminassem uma nova
racionalidade e novos padres de individualidade. O ideal de indivduo
forjado pela revoluo burguesa era considerado como unidade fundamental e im principal da sociedade, detentor de padres e valores que
no sucumbiam frente a nenhuma autoridade externa. O indivduo dos
sculos XVI e XVII seria capaz de criicar o que no lhe parecesse verdadeiro, sendo aquele que agiria em favor de seu interesse racional, capaz
de superar o sistema de ideias e valores impostos por autoridades externas. Isto , aquele que criicava estes padres, buscava padres verdadeiros e promovia sua realizao (Marcuse, 1998, p. 75). Para Marcuse, a racionalidade individualista desenvolve-se em um ambiente social
e econmico adequado: a sociedade liberal. Isso aconteceu at que a
mecanizao, racionalizao e compeiividade tomaram tais caractersicas, e a racionalidade individualista converteu-se na racionalidade tec-
226
para garanir sua sobrevivncia, aceitando o que os meios de comunicao de massa lhe ofertam. De acordo com os autores da escola de Frankfurt, a falta de relexo leva o indivduo a usar clichs dados pela cultura
para se posicionar polica e economicamente. Desse modo, o indivduo
no precisa da experincia, pois pode usar os clichs, pensando e agindo
conforme as determinaes da ideologia. Essa conigurao favorvel ao
preconceito.
Horkheimer e Adorno (1969/2006) discorrem a respeito desse ipo
de aceitao sem ponderao e apoiada na submisso. De acordo com os
autores, trata-se de uma aceitao em bloco de pontos ideolgicos, o que
causa a impresso de que a opinio pessoal no to incua. o que denominam de mentalidade do icket. Ao dizer sim ao icket, o sujeito deixa
de paricipar do processo de percepo e adere a conceitos vazios, reunidos de maneira rgida e sem mediao. Trata-se de um novo ipo de ajustamento, necessrio na sociedade mecanizada e burocraizada, em que o
enfrentamento das exigncias surgidas em qualquer setor da vida exige
que os indivduos tambm se mecanizem e se padronizem. A conscincia
ica reduzida a uma norma ixa. S seria livre quem oferecesse resistncia antecipada a processos e inluncias que predispem ao preconceito
(Horkheimer & Adorno, 1956/1973).
Com isso, ica evidente a perspeciva da teoria crica da sociedade
em relao ao preconceito: sua anlise e compreenso recaem sobre o
sujeito preconceituoso e no sobre o alvo do preconceito. preciso compreender os processos pelos quais um sujeito que tende ao preconceito
desenvolve esse senimento em relao a determinados grupos.
O uso de clichs e a impossibilidade de relexo conduzem generalizao e, assim, supostas caractersicas de um determinado grupo so
atribudas a todos os indivduos a ele pertencentes. Ao se relacionar com
as categorias em que classiica os grupos, o indivduo prescinde da experincia pessoal. Esse fato torna evidente que o preconceito no precisa ter
conexo com a experincia ou com a realidade (Horkheimer & Adorno,
1969/2006).
O preconceito consiste na projeo de impulsos do prprio sujeito, que ele no admite como seus, sobre o outro, e caracterizado por
uma conduta rgida frente a diversos objetos (Horkheimer & Adorno,
1969/2006). Para Crochk (2011), o problema do preconceito no a pro228
229
Crochk (1999) retoma Freud e suas postulaes acerca da psicologia das massas e dos liderados: a unio de indivduos em uma massa se
sustenta pelas pulses libidinais; a conigurao do ego e do ideal de ego
depende da coleividade; a relao dos indivduos com o lder ocorre pela
ideniicao dos liderados com aquele que aparenta ter os mesmos desejos que eles e mais fora para realiz-los. O autor conclui que a anlise
do narcisismo no pode prescindir das questes sociais nem da psicologia dos liderados. Ocorre uma dupla ideniicao dos liderados com
o lder e dos liderados entre si, pois h pouca diferenciao entre ego e
ideal de ego individuais dentre aqueles que aderem massa. Da relao
entre o lder e as massas surge o narcisismo das pequenas diferenas a
hosilidade dentro do grupo cessa quando h um alvo externo ao qual a
hosilidade ento dirigida.
Crochk (1999) cita duas formas de expropriao do indivduo, que
acontecem na relao entre o narcisismo individual e o ideal coleivo. Primeiro, o narcisismo individual uma reao ao no reconhecimento de
si prprio nos objetos da cultura, o que gera o senimento de impotncia
frente realidade e a defesa em relao hosilidade presente na cultura.
Desse modo, o narcisista v a coleividade como ameaadora e no como
algo que lhe possibilite a liberdade. A primeira expropriao , portanto,
em relao ideia de coleividade. A segunda ocorre quando a coleividade aparece na forma de dominao sobre o indivduo, que se sacriica
pela saisfao narcisista de pertencer coleividade. Isso acontece em
oposio ao j citado indivduo do Iluminismo, aquele que representa tanto a coleividade quanto a possibilidade de crica a ela, embora de modo
contraditrio, pois apenas alguns poucos podiam se desenvolver nessa
direo. De qualquer modo, e retomando o que se disse sobre o papel
da experincia na consituio do eu, o andoto ao narcisismo a libido
voltada para outras pessoas ou para a produo da cultura.
230
Objeivos e hipteses
O objeivo da pesquisa aqui apresentada veriicar a relao entre
o ipo de uso que esses sujeitos fazem da internet, durante sua formao
e suas aitudes no que diz respeito ao relacionamento com o outro, e a
possibilidade de relexo crica, considerando trs categorias de anlise:
racionalidade tecnolgica, preconceito e narcisismo. A hiptese de que
existe uma forte correlao entre uso da internet e aitudes expressas na
relao com o outro.
Aqui, aitude entendida conforme Adorno et al. (1969), descrevem na pesquisa sobre a personalidade autoritria. Opinies, aitudes e
valores so expressos mais ou menos abertamente em palavras, porm
quando esto em discusso minorias ou questes policas, por exemplo,
o grau de abertura das pessoas se modiica, podendo haver maior discrepncia entre o que dizem, o que pensam e o que realmente fazem. Embora considerem a discrepncia entre o que se diz em diferentes situaes
(entre amigos, em pblico, ou o que se pensa e no se diz em voz alta,
por exemplo) e o que se faz, os autores concebem esses fenmenos como
consituintes de uma nica estrutura a personalidade , que contm
contradies e consistncias, mas organizada e mais ou menos persistente, pois suas partes consituintes relacionam-se de modos psicologicamente signiicaivos e conferem consistncia ao comportamento. Sendo
assim, entende-se que as aitudes veriicadas na pesquisa no so os comportamentos efeivos dos sujeitos, mas expresso de sua pronido, isto ,
de sua potencialidade de ao.
Os objeivos especicos e hipteses derivadas so descritos a seguir.
Objeivo 1
Ideniicar hbitos de uso da internet de alunos do curso de graduao em Psicologia.
Hiptese 1
O uso da internet pelos graduandos em Psicologia est mais relacionado comunicao e busca de solues para problemas imediatos que
uilizao como ferramenta de formao.
231
Objeivo 2
Ideniicar aitudes de alunos de graduao em Psicologia em relao manifestao de preconceito, adeso a racionalidade tecnolgica
e manifestao de narcisismo.
Hiptese 2
Os graduandos em Psicologia tendem a obter baixo escore na subescala de preconceito; entretanto, tendem a obter alto escore nas demais
subescalas de narcisismo e de racionalidade tecnolgica.
Objeivo 3
Examinar a correlao existente entre as trs categorias de anlise:
preconceito, racionalidade tecnolgica e narcisismo.
Hiptese 3
Existe correlao forte entre a racionalidade tecnolgica e narcisismo, e correlao fraca entre essas categorias e o preconceito.
Objeivo 4
Estabelecer relao entre as trs categorias de anlise e hbitos de
uso da internet.
Hiptese 4
Quanto maior o uso da internet para aividades relacionadas informao, menor a manifestao das trs categorias de anlise (racionalidade tecnolgica, preconceito e narcisismo).
Mtodo da pesquisa
O mtodo compreende a aplicao de um quesionrio de hbitos
de uso da internet e de uma escala Likert de aitudes e opinies, denominada escala de experincia com o outro (escala E), e o tratamento estasico dos resultados obidos. Ambos os instrumentos quesionrio e
escala foram criados para esta pesquisa. A escala recebeu esse nome,
232
porque a avaliao das aitudes, como expresses das categorias de anlise deste estudo, indica o modo como acontece a experincia com o outro.
De acordo com Adorno et al. (1969), uma escala de aitudes e opinies composta por uma srie de proposies acerca de um determinado
tema, e o sujeito deve responder informando se concorda ou discorda
dos itens. As respostas so converidas em pontos, de modo que uma alta
pontuao indica alta intensidade do que se mede, e uma baixa pontuao signiica o oposto. Assim como nos estudos sobre a personalidade autoritria (Adorno et al., 1969), optou-se por uma escala do ipo Likert, que
mede a intensidade de opinies e aitudes, pois o sujeito indica seu grau
de concordncia ou discordncia em relao a cada item, o que permite
a determinao mais adequada das diferenas suis entre grupos e indivduos. Baquero (1968) ressalta que uma escala do ipo Likert tem poucos
itens e mantm um bom nvel de preciso e validade.
A parir das pesquisas de Adorno et al. (1969) e de Crochk (1999),
foi construda a escala E. Assim como nas citadas pesquisas, a escala E
dividida em subescalas cujos itens referem-se a temas especicos. A
concordncia com vrias airmaes indica a presena das categorias de
anlise pesquisadas. Quanto maior o escore do sujeito em cada subescala,
maior a tendncia de adeso ideologia da racionalidade tecnolgica, a
expresso de caractersicas de personalidade narcisistas e o nvel de preconceito respecivamente.
A escala E avalia as aitudes e opinies dos sujeitos em relao s
trs categorias de anlise, compreendendo que tais elementos podem
permear e interferir na experincia com o outro e na experincia de autoconscincia. Quem obiver alto escore na escala E tem sua experincia
marcada por essas caractersicas. Considera-se que quanto maior a pontuao na escala, menores a espontaneidade, a percepo das diferenas
individuais e culturais e, tambm, das contradies sociais, a tolerncia
diferena, a possibilidade de crica ao existente e de vislumbrar, ou buscar, formas alternaivas de organizao social, maiores a rigidez do pensamento, o apego tcnica, a impessoalidade e a tendncia a evitar contato,
com afeto, com outros e consigo, a valorizao de relacionamentos supericiais e o desprezo pela subjeividade.
De acordo com Adorno (1971/2011), a falta de crica em relao
aos problemas sociais, policos e educacionais faz com que a responsa233
Subescala
Racionalidade
tecnolgica
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
Preconceito
234
Preconceito
Narcisismo
Preconceito
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
Racionalidade
tecnolgica
10
11
12
Preconceito
13
Narcisismo
14
Narcisismo
15
Preconceito
16
Preconceito
17
18
Narcisismo
Racionalidade
tecnolgica
Racionalidade
tecnolgica
Narcisismo
235
19
20
21
Preconceito
22
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
23
Racionalidade
tecnolgica
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
24
25
Preconceito
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
26
Preconceito
27
Narcisismo
28
Racionalidade
tecnolgica
Preconceito
Resultados
Todos os sujeitos declararam ter o hbito de acessar a internet. Quase a totalidade dos sujeitos acessa a internet, pelo menos 5 vezes por semana, e grande parte (0,74 da amostra) acessa todo dia. A maior parte dos
236
237
238
experincia , ento, mediada e no espontnea, condizendo com a caractersica presente no preconceito de abrir mo da experincia com o
objeto.
Por outro lado, o narcisismo, manifestado em menor nvel em relao s demais categorias, no um resultado surpreendente, pois, lidar com afetos e com o olhar para o outro so exerccios constantes na
formao do psiclogo e, mesmo que haja diiculdade pessoal, o aluno
incenivado a fazer tais exerccios. Ao mesmo tempo, pode-se compreender porque a amostra manifestou uma tendncia a responsabilizar o
indivduo pelas condies objeivas. Os resultados parecem indicar que o
olhar dos alunos tende a se voltar para o indivduo e sua histria pessoal,
fazendo com que ele seja visto como responsvel pela manuteno ou
transformao social, de modo que aspectos sociais, policos, econmicos e histricos no parecem ser considerados pelos sujeitos. Tal resultado corroborado pela concordncia com a naturalizao da violncia
e agressividade.
De acordo com Adorno (1971 / 2011), a falta de crica em relao
aos problemas sociais, policos e educacionais faz com que a responsabilidade seja subjeivada, isto , atribuda aos indivduos. A subjeivao da
impotncia, no lugar da conscincia clara e emancipada, contribui para
que as condies objeivas permaneam inalteradas. Tal subjeivao, na
prica dos psiclogos, descrita por Mello e Pato (2008), que destacam
uma crena comum entre esses proissionais, fundamentada em teorias
da prpria Psicologia, de que essa uma sociedade de oportunidades sociais iguais e que as capacidades individuais so diferentes, de modo que
h indivduos aptos e inaptos, capazes e incapazes, superiores e inferiores.
Com isso, pode-se pensar que o proissional recorre cincia e
normaizao, o que caractersica da racionalidade tecnolgica, para
jusiicar problemas sociais. Apartando o indivduo da sociedade e buscando explicaes psicolgicas, especialmente fundamentadas em pesquisas cienicas, o indivduo se poupa de quesionar a sociedade vigente
e as consequncias de sua atuao proissional como ao que reproduz e
mantm a sociedade, conformando e adoecendo o indivduo.
Ao conformar o indivduo a essa situao, o psiclogo deixa de contribuir para a resistncia, o esclarecimento e a mudana do clima social.
239
Entretanto, esse comportamento decorre de sua prpria formao acadmica e tambm escolar , o que remete ao conceito de pseudoformao. A formao a apropriao subjeiva da cultura e s possvel
numa sociedade autnoma, sem status e sem explorao. Sendo assim,
na sociedade de classes, a formao no possvel. Nessa sociedade, a
conscincia renuncia autodeterminao, se limita a elementos culturais
aprovados e fortalece a ideologia (Adorno, 1972). Por isso, a relexo crica sobre o que se estuda fundamental. Cricas aos atuais cursos de graduao em Psicologia deinem tais cursos como transmissores de conhecimentos sobre teorias e tcnicas de avaliao psicolgica e psicoterapia,
que deixam de lado a formao intelectual dos psiclogos (Mello & Pato,
2008; Ramos, 2012). Tal prica contrria concepo de educao de
Adorno (1971/2011), que deine seu objeivo como o de produzir uma
conscincia verdadeira, que um requisito da democracia que, por usa
vez, requer pessoas emancipadas.
Os resultados obidos na pesquisa aqui apresentada mostram que
os alunos parecem conseguir se relacionar com o outro, mas sua experincia permeada pelo preconceito e pelo uso da tcnica. Com tais resultados, cabe perguntar o quanto a experincia com o outro (quando ela
possvel nesta sociedade), guarda de espontaneidade e de seu carter genuno e, consequentemente, como os psiclogos podem contribuir para
o esclarecimento, especialmente para a conscienizao de mecanismos
que levam ao preconceito, quando eles prprios manifestam preconceito
e parecem ter pouca conscincia crica em relao a temas importantes
como a polica e o uso da tecnologia.
A principal caractersica indicada por um escore alto na escala E a
ausncia da conscincia crica, pois ela permite que a atuao do psiclogo contribua para o esclarecimento. Acredita-se ser fundamental uma
formao que fortalea a capacidade de relexo crica dos sujeitos, tanto
no senido de autoconscincia quanto de crica das condies objeivas
da sociedade.
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241
Introduo
Este captulo pretende apontar como o modelo de ensino a distncia (EaD), atualmente hegemnico no processo de expanso da educao
superior no pas, parece se imbricar em um processo de reproduo de
profundas desigualdades educacionais e sociais que s pode ser visibilizado a parir da problemaizao da categoria excluso e de uma relexo
sobre a desigualdade social, considerando especialmente a paricularidade brasileira. Para tanto, as anlises propostas neste trabalho se apoiaro
em uma reviso bibliogrica contemplando (a) o conceito de excluso, de
desigualdade e de desigualdade educacional e (b) o atual modelo de EaD
e suas reverberaes sobre o trabalho e a formao docentes. Sero apresentados e problemaizados, ainda, dados levantados em pesquisa que
atualmente desenvolvemos, sob o tulo A EaD na expanso da educao
superior ps-LDB: o caso do CEDERJ.
O captulo est organizado em trs partes: a primeira apresenta e
discute as noes de excluso e de desigualdade, enfrentando o debate
que permite pensar a complexidade dos projetos e das policas educacionais em curso na Amrica Laina e, em paricular, no Brasil, buscando
ressaltar seus senidos e suas contradies. A segunda parte problemaiza as relaes entre desigualdade e educao, enfrentando o desaio de
pensar a insero do modelo de EaD, na expanso da educao superior,
como um elemento que se relaciona a um complexo jogo de reproduo
e de ampliao de desigualdades sociais e educacionais, dando margem a
processos e modelos de formao humana profundamente desiguais. Por
242
limo, apresenta-se um panorama sobre a expanso da educao superior no pas, para as policas que a subsidiam e para as consequncias em
termos da desigualdade educacional, colocando em discusso o modelo
de EaD presente na expanso no pas.
Excluso e desigualdade
No bojo da mundializao do capitalismo e do avano de policas de
cunho neoliberal, a parir dos anos 1970, a noo de excluso social ganhou destaque nos debates sociolgicos, policos e educacionais. Nesse
senido, como mostra Frigoto (2010), ela pretenderia traduzir, explicitar e
circunscrever os processos colocados em tela pelo capitalismo tardio, especialmente no senido de apontar para um conjunto de diversos fenmenos que se referem expropriao mais ou menos completa de direitos
econmicos, sociais e subjeivos.
Entretanto, Frigoto (2010) e uma srie de autores cricos apontam
para os limites heursicos dessa noo. Castel (2000), por exemplo, analisa que a noo de excluso recobre fenmenos muito heterogneos, diferenciados entre si, no dando conta de suas especiicidades e, portanto,
no se conigurando como uma noo analica, capaz de designar posiivamente do que fala. Airma Castel (2000, p. 21): Falar em termos de
excluso rotular com uma qualiicao puramente negaiva que designa
a falta, sem dizer no que ela consiste nem de onde ela provm. Ou seja,
a rigor, uma situao de excluso teria seus traos consituivos fora dela
mesma.
Uma segunda razo para quesionar o termo excluso que ele autonomiza situaes que s ganham senido quando inseridas na anlise
dos processos nas quais se desenvolvem. Como consequncia, o uso do
termo, raramente, atenta para a sua base primria, as relaes sociais capitalistas. Nesse senido, segue o apontamento de Frigoto (2010, p. 419):
Em termos epistemolgicos, a excluso social no se consituiria num
conceito. Vale dizer, no apreenderia as mediaes consituivas da materialidade histrica atual da forma capital, cujo escopo de ampliao
e radicalizao de sua natureza intrnseca a desigualdade. A indicao
desse autor encaminha-se no senido de no apenas apreendermos as
situaes de excluso como sintomas da desigualdade, mas permite ainda
243
problemaizar certos processos de incluso que, por sua natureza desigual, se consituem em processos de incluso degradada que, no limite,
reproduzem desigualdades, ainda que paream resolver problemas de excluso.
Cabe destacar que, para Frigoto (2010), bem como para ns, a desigualdade estruturante do modo de produo capitalista e, como tal, s
pode ser superada por um processo amplo de emancipao humana. Assim, a desigualdade, estruturante das relaes sociais capitalistas (embora
no exclusiva desse modo de produo), um componente fundamental
para a compreenso dos sujeitos e das subjeividades.
Deinimos desigualdade social como o resultado da interao entre
sujeitos sociais, o que inclui tanto o acesso diferenciado riqueza econmica como a um sistema de relaes de senido e poder que geram disino, esigma, vulnerabilidade e at excluso, tanto no nvel individual
como no nvel coleivo, como o caso do sistema educacional. Compreendemos, em consonncia com o postulado por Bourdieu (2007), que as
relaes desiguais marcam e delineiam o esilo de vida paricular, conformam o habitus estraiicado por classes sociais e legiimam, de forma
invisvel e subliminar, o acesso diferencial aos recursos materiais e ideais.
Nas melhores pginas da obra A disino, Bourdieu (2007) logra demonstrar, com o uso de farto material emprico, que mesmo as escolhas
consideradas mais pessoais e recnditas desde a preferncia por carro,
compositor ou escritor at a escolha do parceiro sexual so, na verdade,
frutos de ios invisveis que interligam interesses de classe, frao de classe ou, ainda, de posies relaivas em cada campo das pricas sociais.
Esses ios tanto consolidam ainidades e simpaias - que consituem as
redes de solidariedade objeivamente deinidas - como forjam anipaias
irmadas pelo preconceito. Ou seja, de certo modo, Bourdieu aponta para
os ios, muitas vezes invisveis, que atam indivduo e sociedade.
Por outro lado, atentar para o fato de que a desigualdade estruturante da vida coleiva e dos sujeitos, da vida social e subjeiva tambm implica reconhecer que esta se amplia ou diminui, dada determinada
conjuntura no modo de produo capitalista, dadas as paricularidades
dos regimes de acumulao e dado o seu impacto em uma determinada
paricularidade. Assim, desde o incio da dcada de 1970, os processos
de produo e reproduo de desigualdades se ampliaram na medida em
244
Ou seja, se, em momentos anteriores da histria brasileira e laino-americana a desigualdade se expressava na drsica limitao ou negao da entrada dos mais pobres no sistema escolar, no incio do sculo
XXI, a situao diferente. As formas de marginalizao se tornaram mais
245
Assim, a expanso de sistemas escolares no necessariamente conduz sua democraizao, mas pode, por vias tortuosas, criar novas formas discriminatrias, produzir uma incluso educacional desigual e, talvez
mais grave, pois mascarada. Impe-se, portanto, discuir e compreender
qual o senido da educao superior brasileira, em seus mliplos ciclos
de expanso, o que ser desenvolvido a seguir, sinteicamente, desde o
perodo da ditadura militar.
A expanso da educao superior no Brasil: alguns apontamentos
Historicamente, a expanso no senido de aumento da quanidade
de vagas acompanhada pela estrutura insitucional e por condies de
trabalho dos sistemas educacionais foi uma bandeira dos movimentos
sociais mais progressistas, democricos e igualitrios que se gestam no
im dos anos 1950 e incio dos anos 1960, bem como uma luta das classes
populares. Democraizar e efeivar o direito educao seria um processo
que dependeria, em alguma medida, da expanso quanitaiva dos sistemas educacionais em geral. Com a ampliao das taxas de matrcula do
ensino mdio, a presso pela expanso da educao superior obteve sustentao e passou a fazer parte da pauta de reivindicaes, com especial
vigor, no Brasil, nos anos 1960 (Marins, 2009).
Entretanto, a expanso conduzida sucessivamente por governos autoritrios e democricos, nesse mesmo perodo, no teve como seni-
246
247
qual se insituem e evoluem as diferenciaes entre o setor pblico e o setor privado da educao superior no Brasil; e (b) a conservao do padro
brasileiro de escola superior, ainda que sob outras condies. Assim, o resultado da Reforma de 1968 foi paradoxal, modernizou autoritariamente
a estrutura das insituies universitrias, mas, coetaneamente, criou um
ensino privado mercadologicamente orientado cujas insituies conservaram a forma de escolas isoladas e de faculdades conglomeradas.
Alm disso, o ciclo de expanso, que se inicia com a ditadura civil-militar, foi marcado pela represso e desorganizao do movimento pela reforma universitria, tanto pela coero aos docentes quanto ao movimento estudanil. Por outro lado, engendrou um processo de modernizao
conservadora que, no limite, no redundou, no caso das IES pblicas, numa
expanso signiicaiva da oferta de vagas. Como analisou Marins (2009):
A expanso do sistema, como indicam os dados, ocorreria em grande medida atravs do sistema privado. A esse respeito, deve-se assinalar que no perodo de implantao da reforma universitria o setor privado contava com
apenas nove universidades, sendo que oito dessas pertenciam ao grupo
das catlicas e apenas uma, a Universidade Mackenzie, era confessional de
outra denominao (presbiteriana). No entanto, no foram as insituies
confessionais que esiveram frente do processo expansionista veriicado
a parir do inal dos anos 60. Um dos traos marcantes do funcionamento
do campo das insituies de ensino superior brasileiro contemporneo diz
respeito, exatamente, emergncia de um novo ensino superior privado,
de peril laico, comandado por uma lgica de mercado e por um acentuado ethos empresarial que foi se consituindo a parir do inal dos anos
1960. Esse segmento laico passou a pressionar pela abertura de novas insituies, guiado pela percepo da existncia de uma demanda reprimida,
na qual se destacavam os excedentes e tambm uma crescente clientela
potencial, resultante da ampliao da rede de segundo grau. (Marins &
Velloso, 2002, pp. 811-812, grifos nossos)
Percebe-se, assim, que a expanso da educao superior nesse perodo se realizou prioritariamente pelo setor privado, com muitas consequncias em termos de reproduo das desigualdades, a comear pela
necessidade de renda sobrante para pagamento das mensalidades, o que
j se consitui como um grande obstculo. No caso brasileiro, esse problema torna-se bastante visvel quando se considera a criao do Programa
248
de Crdito Educaivo CREDUC -, ainda em meados dos anos 1970, exatamente quando o ciclo de expanso comeava a se esgotar. Mas no s:
como mostra Marins (2009), criou-se, para a maioria das matrculas na
educao superior que passam a se concentrar neste segmento, um ipo
de insituio de ensino desvinculada do imperaivo da ariculao entre
ensino e pesquisa, da preservao da autonomia dos docentes, do compromisso com o interesse comum, concreizando a transformao dos alunos em consumidores educacionais (Marins, 2009, p. 17), diferentemente do que acontecia no setor das pblicas, especialmente das federais e de
algumas confessionais. Importa ainda ressaltar o fato de que as IES privadas no apenas introduziram uma lgica empresarial no ensino superior,
mas, ainda, trouxeram baila formas de controle de comportamentos e
de vigilncia de posies ideolgicas cricas, limitando sobremaneira a
produo de conhecimento crico nessas insituies.
Em sntese, embora tenha exisido uma modesta ampliao das IES
pblicas, nos anos da ditadura militar, a entrada massiva dos estudantes
egressos do ensino mdio se fez nas IES privadas, paulainamente hegemonizadas pelo segmento privado-mercanil, que ofertava, em geral, um
ensino acrico e conformista, desvinculado da pesquisa e das transformaes sociais mais amplas. Boa parte dessas IES, por outro lado, surgiu
sob a forma de estabelecimentos isolados, aos quais foram sendo agregados novos cursos por uma orientao mercanil , ao que se seguiu sua
transformao em faculdades integradas e, posteriormente, universidades, pela percepo de seus proprietrios de que a existncia de estabelecimentos maiores [lhes traria] vantagens compeiivas no interior do
mercado do ensino superior (Marins, 2009, p. 23).
Na dcada de 1980, ocorre uma desacelerao da expanso, dada a
crise econmica, releida em altas taxas de inlao e no aumento do desemprego, seguida por uma nova onda expansiva inaugurada nos anos 1990.
Nessa dcada, o acontecimento histrico que se impe o ano de
1995, ano da Reforma Administraiva do Aparelho de Estado Brasileiro,
posta em movimento pelo ento ministro Bresser Pereira, e em curso at
os dias atuais. Esse marco temporal destacado por diversos autores por
entenderem que a reforma do Estado produziu a matriz polica, terica e ideolgica para a reforma das demais insituies (Oliveira, 2001,
p. 10), o que incluem as profundas transformaes ocorridas na escola e
249
250
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
251
Nesse processo de expanso, as insituies pblicas e privadas inserem-se de forma diferenciada, como se pode apreciar no Grico 2.
Grico 2. Evoluo das matrculas dos cursos de graduao a distncia
no Brasil, por organizao acadmica - 2000-2012
1.000.000
900.000
800.000
700.000
600.000
500.000
400.000
300.000
200.000
100.000
0
EAD Pblicas
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
EAD Privadas
252
253
Alm disto, Barreto (2004) demonstra como tal discurso sustenta importantes efeitos de senido, sendo um deles fundamental, tomado como
paradigma, inclusive em vrias aes do MEC: o posicionamento das tecnologias como sujeito dos processos educaivos, em um modelo que alia
subsituio tecnolgica e racionalidade instrumental presente na lexibilizao do trabalho, desqualiicando o trabalho humano em nome da
presena tecnolgica. Essa lgica, segundo Barreto (2004), suporta a tese
de que no h problema em ter menos professores e mais alunos chancelando essa modalidade da expanso , uma vez que o mais importante
seriam os materiais educacionais disponibilizados.
Ao se analisar a pesquisa realizada por Helene (2012), pode-se quesionar ao menos trs das jusiicaivas anteriormente citadas para um uso
to abusivo do EaD. O primeiro argumento discuido pelo autor o de
que o EaD uma soluo para a falta de proissionais no pas. Helene
(2012) comprova, a parir de extensa anlise das estasicas oiciais, que a
maior parte das vagas oferecidas no EaD vai, de fato, para reas com menor presgio social, com menor controle por parte de conselhos de classe
e de outros rgos ou ministrios, alm do MEC, e para cursos mais vendveis. Em sntese, a abertura de vagas no ocorre, necessariamente, no
senido de suprir reas nas quais faltam proissionais e, portanto, no est
relacionada s necessidades brasileiras de proissionais. Em contraparida, no caso das insituies de ensino privado, h um enorme interesse
no senido de explorar as possibilidades mercanis do EaD, especialmente
os ganhos de escala que o EaD permite. E, para isso, nada melhor do que
disfarar esse interesse na forma de uma preocupao social: a formao
de proissionais de que a nao necessita.
Helene (2012) quesiona ainda o argumento que designa o EaD como
uma soluo para a falta de professores no pas. Novamente, suas anlises
so contundentes. Para ele, a falta de professores no ocorre devido a
uma real inexistncia de pessoas formadas e nem mesmo falta de vagas
em cursos de licenciatura presenciais ou de jovens interessados pela proisso (p. 3). Mesmo nas duas reas nas quais a carncia de professores
maior, Qumica e Fsica, o que se veriica a existncia de um grande
nmero de formados fora das salas de aula (75% a 80%). O autor conclui
que h jovens interessados; entretanto, e possivelmente alertados pelas
condies salariais e de trabalho que encontraro pela frente, grande par-
254
te deles abandona seus sonhos (p. 4). Barreto (2004) complementa esta
anlise, ao destacar que o que est em jogo, disfarado nas simpliicaes
e deslocamentos presentes nos discursos das propostas oiciais de EaD,
o esvaziamento da prpria formao de professores. O quadro enfrentado
pelos professores, em suas recentes mobilizaes, demonstra a fora da
luta, mas, tambm, a ausncia de resposta s demandas por melhores
condies de trabalho, ensino e formao.
O terceiro argumento desconstrudo por Helene (2012) refere-se ao
EaD como uma soluo para a extenso geogrica brasileira. O argumento uilizado na defesa do EaD baseia-se na hiptese de que potenciais estudantes no tm acesso educao presencial, em funo da distncia
geogrica. No entanto, as anlises apresentadas por Helene (2012) indicam que o EaD est sendo oferecido, basicamente, populao urbana.
Alm disso, os dados do Censo da Educao Superior evidenciam que a
maior parte das matrculas de EaD esto nas regies Sul e Sudeste, como
o Grico 3 indica, e no nas regies historicamente mais deicientes em
termos de oferta de ensino superior.
Grico 3. Nmero de matrculas nos cursos de graduao a distncia,
segundo as regies geogricas 2012
41.343
83.681
Norte
473.037
150.657
Nordeste
Centro Oeste
Sudeste
365.132
Sul
255
Consideraes inais
Preliminarmente, devemos considerar que nos processos de estudo, ensino e aprendizado no devemos abrir mo de nenhuma possibilidade ou recurso. Assim, consideramos importante o uso de aulas exposiivas, laboratrios, estudos individuais ou em grupo, leituras variadas,
listas de exerccio, visitas a museus, consultas a bibliotecas e at recursos do EaD (Helene, 2012). O problema com as policas de uso do EaD,
ou seja, com o modelo hegemnico de EaD, reside exatamente no fato
de pretender que o processo de ensino/aprendizagem ocorra somente
atravs dessa estratgia, ignorando, como mostra Barreto (2004), o ponto fundamental: as condies necessrias para a apropriao das TICs.
Airma a autora: o horizonte precisa ser a interao maior: a discusso
(das informaes coletadas e dos processos vividos) para o confronto
dos diferentes percursos (individuais), visando produo (coleiva) de
snteses integradoras que extrapolem contedos especicos previstos
(Barreto, 2004, p. 1192).
Considerando o que Barreto (2004) alerta, possvel criicar alguns
aspectos no uso do EaD, que, inclusive, aprofundam a desigualdade
educacional:
1. O fato de o EaD se desenvolver fora do ambiente universitrio
onde ocorre uma srie de aividades extremamente importantes para a
formao geral (seminrios, palestras, eventos culturais etc.), embora se
reconhea que, no que tange ao ensino presencial, o acesso e a vivncia
dessa cultura universitria no esteja, tambm, igualmente acessvel a todos os matriculados. o caso dos alunos dos cursos noturnos que trabalham durante o dia, por exemplo, ou mesmo dos estudantes matriculados
em IES no-universitrias.
256
2. O fato de o EaD privar os estudantes, muitas vezes, de boas bibliotecas, do contato pessoal com outros estudantes e professores da mesma
rea de formao ou de outras reas. O que se airma no o contato
presencial por si mesmo, mas o convvio com outras concepes, outras
vises, a prica social e coleiva estabelecida no coidiano de uma insituio escolar.
3. A pressuposio de que o processo de ensino e aprendizado ocorra, majoritariamente, na casa do estudante, que raramente detm um
bom ambiente de estudo boa conexo com a internet, um bom equipamento, um espao para estudar sem interferncias de qualquer ipo , em
especial jovens das camadas menos favorecidas.
4. A desconsiderao da situao de precariedade da formao que
a imensa maioria dos jovens recebeu no ensino mdio, o que lhes impede
de coninuar seus estudos em nvel superior sem slida ajuda presencial,
o que pode, de alguma forma, ajudar a explicar os problemas de terminalidade encontrados, em pesquisa que realizamos no mbito do Consrcio
CEDERJ, por exemplo.
5. O fato de o EaD quebrar a unidade consituda por ensino-aprendizagem, em nome de uma suposta valorizao do segundo elemento do
par, apagando o territrio do ensino, do exerccio coidiano do trabalho
docente (Barreto, 2003, p. 282).
Como vimos, o EaD, no discurso oicial, apresentado como uma
modalidade de ensino que pode resolver a desigualdade. Ao contrrio,
concordamos com autores que consideram que o uso do EaD, do modo
como est sendo praicado no pas, levar a reduzir ainda mais o aproveitamento da capacidade intelectual de estudantes a ele submeidos e no
resolver o problema da desigualdade, mas introduzir novos processos
em sua reproduo.
Trata-se de uma dinmica j denominada por alguns de excluso
includente, como bem deine Genili (2009). Com esse conceito, o autor
pretende chamar a ateno para a importncia de se pensar o conjunto
de dimenses que esto presentes em todo processo de discriminao,
de desigualdade e, consequentemente, a relevncia de se construir processos de incluso atravs de decises policas, que estejam orientadas
257
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Getulio Vargas/ CPDOC.
259
260
Introduo
O presente trabalho discute a contribuio dos estudos das ecologias e policas cogniivas na colocao e recolocao do problema do conhecer e do conhecimento psi. Parte dos estudos da cognio e do conhecimento de Virgnia Kastrup, Francisco Varela, Humberto Maturana, Pierre
Lvy, Bruno Latour e da pesquisa de mestrado realizada pela autora sobre
as experincias de formao de estudantes de graduao em psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesta pesquisa,
inspirada pelo mtodo da pesquisa-interveno e pelas metodologias de
primeira pessoa, solicitou-se aos oito estudantes paricipantes que descrevessem o que faziam nas diferentes pricas de formao de estudos,
pesquisa, estgio a parir da escrita desta experincia e posterior comparilhamento em grupos coordenados pela pesquisadora1.
A parir das disines dos estudantes e do dilogo com os autores
referidos, foram produzidas ariculaes em torno de trs problemas que
permeiam o conhecer e o conhecimento nesse campo: a relao dos psiclogos com as diferentes psicologias e as escolhas tericas; a produo
dos planos da teoria e da prica na formao proissional e a relao entre cincia e experincia na pesquisa em psicologia.
As peculiaridades da relao teoria e prica na Psicologia
Na teoria uma coisa, j na prica.... Esse um enunciado coidiano em diferentes situaes, contextos e lugares. Ao seguirmos o modo
1
Parte da pesquisa aqui apresentada foi publicada em Araldi, E., Maraschin, C., e Diehl, R.
(2014). Por um modo mais incorporado de explicar o fazer do psiclogo. Revista Psicologia:
Cincia e Proisso, 34(2), 420-443.
261
como esse e outros discursos sobre a teoria e sobre a prica so uilizados, encontramos algumas signiicaes possveis para uma e outra palavra. A teoria, por exemplo, ora aparece como a parte prescrita de um
trabalho, aquilo que deve ser feito, como em enunciaes em teoria,
assim, contrastando com a prica, associada ao vivido e quilo que poderamos denominar como o trabalho real; ora converte-se num plano
abstrato, isso apenas terico, correspondendo quilo que no existe
concretamente.
No campo das discusses sobre a formao acadmica proissional,
a prica costuma expressar o plano do trabalho, em oposio ao do estudo. Associa-se a teoria universidade e a prica aos estgios, ao trabalho
e proisso. A prica como , a teoria como deveria ser. A prica
real, a teoria, ideal. Dizer na prica quase como dizer: na realidade
ou na verdade, ou ainda, parte as idealizaes tericas, na prica
funciona assim. Mas, sobretudo, o que esses discursos produzem a
ideia de que teoria e prica so coisas, fazeres, registros diferentes. Entretanto, diz-se que deveriam coincidir, aproximarem-se, como preconiza
o discurso que trata como problema a distncia entre teoria e prica,
em seus mais variados nveis e esferas da vida.
Na psicologia, essa relao (teoria e prica) toma uma forma bastante peculiar. Dada a ambiguidade do objeto e da tcnica do psiclogo,
somada diviso do campo entre diferentes psicologias, cada qual com
concepes epistemolgicas e metodolgicas especicas, acostumou-se
a aceitar que a teoria a prica do psiclogo, sendo os conceitos ferramentas de trabalho e a escolha terica um passo necessrio para que o
proissional se consitua enquanto tal e para que suas intervenes sejam
legiimamente designadas psi. Por vezes, tambm se considerar que o
prprio psiclogo a sua teoria, quando esses proissionais acrescentam,
aos seus sobrenomes, o dos autores com os quais trabalham: freudiano,
piageiano, foucauliano. E, no raro, um psiclogo confrontado com a
pergunta: t, e voc humanista, psicanalista ou cogniivista?.
Supe-se, ainda, que as pricas desse proissional s podem ocorrer amparadas por uma teoria. Os pressupostos direcionariam as pricas,
no sendo possvel prescindir da teoria nessa proisso. Na referida pesquisa realizada com os estudantes de graduao, em dado momento, uma
estudante chega seguinte constatao:
262
263
265
Diferentes autores contemporneos, como Bruno Latour, tm retomado a crica feita por Dewey (1929) e buscado, assim como ele, recolocar o problema do conhecer e do conhecimento3 no mais em termos
de representao, e, sim, de ao. o que faz, no campo da cognio, a
teoria da enao de Francisco Varela e, sobretudo, a biologia do conhecer
de Humberto Maturana, em parte desenvolvida em parceria com Varela.
Como modo de deslocar-se daquilo que Dewey (1929) expressou
com sua teoria do espectador do conhecimento, Maturana (1999) prope a invesigao das origens biolgicas do observador e do observar.
Embora Maturana no faa referncia a Dewey em seu trabalho, sua caracterizao do caminho explicaivo da objeividade sem parnteses
remete quilo que Dewey denominou como teoria do espectador do conhecimento. Segundo Maturana, quando o observador aceita suas habilidades cogniivas enquanto tais como suas propriedades consituivas
(Maturana, 1999, p. 248) e no invesiga suas origens biolgicas, acaba
por assumir que a existncia acontece independentemente do que ele
ou ela faz, que as coisas existem independentemente de se ele ou ela as
conhece.
Contrariamente a esse modo de colocar o problema do conhecer
e do conhecimento, Maturana postular a importncia da considerao
do observador. Segundo o autor, j estamos na experincia de observar
quando comeamos a observar nosso observar (Maturana, 2001, p. 125).
Levar em conta essa recursividade importante, porque no podemos
nos situar em algum lugar fora da nossa experincia para explic-la. Mesmo se quisermos explicar algo que esteja supostamente fora de ns,
essa impossibilidade se impe, porque s podemos observar a parir da
nossa condio de seres humanos. E, segundo Maturana (2001, p. 125),
3
Uilizamos a expresso recolocar o problema com o senido trabalhado por Kastrup (1999)
em seu trabalho sobre a cognio, enquanto possibilidade de, mais do que solucionar problemas dados, buscar as condies de sua formulao e reformulao.
266
essa condio a de seres biolgicos imersos na linguagem, a qual impede que acessemos qualquer mundo independente de nossa experincia:
ns j nos encontramos na linguagem, fazendo disines na linguagem,
quando comeamos a releir na linguagem sobre o que fazemos, e como
fazemos o que fazemos ao operar como animais linguajantes.
J Francisco Varela, em sua teoria da cognio enaiva, retoma os
termos uilizados por John Dewey no incio do sculo XX para abordar
aquilo que, para ele, seriam diferentes ipos de conhecimento: a disino
know how e know what. Para Varela (1996), a maior parte de nossa vida se
consitui por meio de conhecimentos do ipo saber como: falamos, andamos, comemos de forma imediata, sem necessariamente realizarmos
um juzo racional prvio a cada uma dessas aes. No entanto, tambm
experimentamos um ipo de conhecimento que se d pelo julgamento
abstrato, por uma espcie de saber sobre, que se pergunta sobre as
coisas (ou mesmo sobre si) e tenta explic-las por meio de uma aitude
relexiva e racional. No entanto, segundo o autor, embora esse ipo de conhecimento racional, consciente e intencional (o know what) seja acionado apenas em situaes nas quais nosso conhecimento de ipo imediato
(o know how) falhe, a cultura ocidental convencionou compreender este
limo como aitudes relexas, simples, como conhecimento tcito, hierarquicamente inferior ao nosso conhecimento de ipo abstrato e lgico.
Desse modo, a crica epistemolgica que acompanha a teoria da
enao se dirige idealizao que Varela (1996) atribui cultura ocidental moderna da abstrao, da generalizao, enim, da funo transcendental (no senido de ir alm das experincias comuns e coidianas)
que supomos como caractersicas dos bons e verdadeiros conhecimentos. Segundo Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 46): pelo fato
da relexo em nossa cultura ter sido apartada de sua vida corporal que o
problema mente-corpo tornou-se um tpico central da relexo abstrata.
... A relexo ida como sendo estritamente mental, e assim surge o problema de como ela pode estar ligada vida corporal.
Na descrio de Flvio, vemos o fazer psi ser descrito em termos
de racionalizao, leitura, ruminao, parecendo que no seria o corpo
do psiclogo que estaria presente nas situaes de interveno psi. Ao
contrrio, seria uma mente relexiva e desincorporada, habitada por suas
leituras e conceitos. Tudo se passaria como se o conhecimento fosse um
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produto individual que incorporado a parir de uma exterioridade terica/abstrata que fornece lentes para ler uma realidade independente.
Uma passagem de nossos encontros com os estudantes expressa
como a disino entre os planos da teoria e da prica pode coincidir com
a diferena entre saber sobre4 e saber como. Em determinada ocasio,
um estudante contava aos demais sua observao sobre o saber psi prico que inham os neurologistas de seu local de estgio, enquanto ele inha
mais o terico. Ao ser quesionado pela pesquisadora sobre qual seria a
diferena entre esses dois saberes, responde: pra mim at bem claro, o
saber terico aquilo que eu li em algum lugar, e o prico o que eu precisei senir na carne, assim (Agamenon). Coninua dizendo que, naquela
situao com os neurologistas, tambm inha senido o que eles seniam,
mas, como tambm j inha lido sobre aquilo, achava que seu saber era
mais claro que o deles, porque inha lido e inha visto aquilo acontecer, e
eles diicilmente leram sobre:
Algum pode at ter falado pra eles, mas foi um troo meio... Sabedoria
oral, assim, sabedoria popular na neurologia. E a diferena entre o meu conhecimento terico e o prico deles era uma certa informao: o que eles
viram em 20, 30 anos de neurologia, eu vi resumido em alguns livros e que
eu poderia explicar teoricamente, e certamente os caras poderiam explicar
teoricamente tambm, eles tm estudo, mas possivelmente no com essa
mesma clareza que eu... Mas, ao mesmo tempo, eu acho que tem coisas
que eles aprenderam na prica e eu no, que eles saberiam ideniicar com
muito mais clareza do que eu, mesmo que eu ivesse lido, porque aquela
coisa do incorporar, t no organismo isso, eu vejo e j bateu, j sei o que
fazer... No tem muita dvida. E para mim algo: eu nunca vi isso na vida,
que que eu fao? Ah, mas eu li... Tem que ter um certo piloto automico,
acho que essa a questo. (Agamenon, Grupo 2, primeiro encontro, em
09/06/11)
Sabemos que a traduo correta de know what saber o qu, mas parece-nos que a expresso saber sobre traduz melhor, em nossa lngua, aquilo a que Varela (1996) se refere
em sua conceitualizao acerca desse modo de conhecer.
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escrita como necessidade, sendo ela, tambm, marcada pelo tempo linear
da agricultura. Sem esses acontecimentos, bastante objeivos, teria surgido a Histria como forma de conhecimento? Possivelmente no.
A parir da anlise de exemplos como esse, Lvy (1993, p. 133) lana
a questo: qual a relao entre o pensamento individual, as insituies
sociais e as tcnicas de comunicao?. Sua proposio que a inteligncia humana seja sempre situada dentro de uma ecologia cogniiva, que
agencia sujeitos, insituies e tecnologias.
As consideraes do autor levam-nos a atentar, com relao disino entre saber prico e saber terico, para as diferentes tecnologias
da inteligncia envolvidas em um domnio e outro. No fazer acadmico e
terico, percebe-se fortemente a predominncia de tcnicas como a leitura e a escrita, que exigem uma aitude mais solitria, introspeciva e,
por que no, ruminante. J no fazer do trabalho psi e dos estgios, os encontros com o outro ganham fora, poucas ferramentas concretas entram
em jogo, levando a crer que o instrumento do trabalho psi seu corpo
nu e cru. E, de fato, pode-se dizer que . Mas tambm existe o outro, as
insituies, os quais, curiosamente, pouco so considerados quando o
assunto o problema do conhecer e do conhecimento psi, especialmente
quando ele tratado como questo de teoria e conceitos. Em diferentes
momentos, e de diferentes modos, os estudantes trouxeram a percepo
da adoo de uma postura analica e relexiva que nem sempre os ajudava a intervir nas situaes concretas de trabalho, como se pode observar
nos dois excertos de dilogo que seguem:
EXCERTO 1:
Fenix: Eu ia dizer, essa coisa do encontro, que a gente tava dizendo... Porque
muito mais dicil na prica, n? E da eu iquei pensando que a gente
na formao v muito, estuda muito e tal, sobre ouvir, n? Sobre ouvir...
Sobre como tu escuta aquilo, e um pouco sobre como tu devolve, mas no
muito tambm, n? [risos] Escutar importante, como tu escuta, como tu
interpreta, como tu analisa, como tu relaciona... Tu pode fazer vrias coisas
com aquilo que tu t escutando, n? Como tu pergunta, at, n? Pra invesigar outras coisas e tal... Mas como que tu vai devolver isso pra pessoa,
entendeu? Alguma coisa, alguma coisa, entendeu? A pessoa vai buscando
alguma coisa... No que tu vai dar o que ela t buscando, porque isso tambm faz parte do processo terapuico ali, n e tal, mas... Sabe... Um gesto,
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assim, mnimas coisas, assim, como que tu vai falar pra pessoa? Porque
s vezes eu me vi, assim, falando e a pessoa dizia: oi? [risos] tu pode falar,
assim, numa lngua que eu entenda?. Porque no, porque s vezes a gente
comea a falar em demanda e bla bla bla, daqui a pouco sai uns termos
tcnicos, que tu no percebe, sabe? Ou fala rpido... Eu falo meio embolado
assim... Porque tu t falando para ela um monte de coisa nova, sabe? Diferente pra ela, num palavreado que no muito o que ela t acostumada
a ouvir... Sabe? Por que a gente no tem uma cadeira de expresso, por
exemplo? Expresso corporal, de fala, de devoluo, de... Sabe? Psiclogo
no pode ser uma mmia, n! Ele tem que ser assim meio socializado, no
sei. (Fenix, Grupo 1, primeiro encontro, em 06/06/11)
EXCERTO 2:
Fenix: Eu acho, tambm, que o tempo inteiro a gente ica tentando achar o
signiicado... s vezes no tem, sabe? No tem!
Regina: Exatamente! Ou tem e a gente no precisa olhar pra ele...
Fenix: A gente tem que tentar parar de analisar o tempo inteiro.
Regina: , porque, quando tu t analisando... Questes grupais, por exemplo, tu t num outro plano, tu t vendo de cima... [fala um pouco mais dessa
condio de coordenador que tem que ter a viso ampla, de cima, mas
que tambm t ali dentro] E isso eu acho muito complicado.
Fenix: O problema que isso aiva um monte de coisas... Quando tu comea a perceber essas nuances... Mas te d raiva tambm, sabe? E da isso
enlouquecedor, porque o que que tu faz com tudo isso, n? Tu sabe o que t
errado, tu sabe ideniicar, s que... T, segunda parte, como que tu vai...
Que que tu faz com isso, entendeu?
Fenix: Como tu acessa? Como tu acessa acho que o dicil.
Flvio: O que eu acho mais curioso que no tem muita gente preocupada
com isso na psicologia... Com o acessar... Mas eu no sei disinguir, assim...
Acho que pra mim isso uma grande questo... Descobrir, assim, qual o
alcance da tua interveno? Porque eu acho que a maior parte das intervenes que a gente faz tende pra essa coisa do entendi, ah, eu entendi...
Bom, e quantos entendimentos tu tem que ter pra que um dia tu chegue
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a um acesso, digamos assim? Que alguma coisa ali opere, que gere uma
transformao mesmo, assim... E talvez isso no dependa da nossa prica
s, mas do sujeito que t na tua frente... Mas , no sei, assim... No sei
avaliar. (Grupo 1, segundo encontro, em 14/06/11)
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Na presente pesquisa, uilizamos, como modo de compreenso das experincias de formao em psicologia, o conceito de polica cogniiva de Kastrup (1999), deinido pela autora
como o modo de relao do observador comum com a aprendizagem. No caso de uma polica inveniva da cognio, reconhece-se sua capacidade de, mais do que solucionar problemas, produzi-los, invent-los.
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Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-interveno e a produo de novas anlises. Psicologia: Cincia e Proisso, 23(4), 64-73.
Varela, F. (1996). Quel savoir pour lique? Paris: La Dcouverte.
Varela, F., Thompson, E., & Rosch, E. (2003). A mente incorporada: cincias
cogniivas e experincia humana. Porto Alegre: Artmed.
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Autores
Andra Araujo do Vale Doutora em Policas Pblicas e Formao Humana,
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da
Universidade Federal Fluminense e ps-doutoranda no Programa de Psgraduao em Policas Pblicas e Formao Humana - UERJ.
Email: [email protected]
Andressa Veras de Carvalho possui graduao em Psicologia pela Universidade Federal do Piau. Email: [email protected]
Arthur Arruda Leal Ferreira Doutor em Psicologia Clnica pela Ponicia
Universidade Catlica de So Paulo. Professor do Insituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de produividade do
CNPq. Email: [email protected]
Carlos Eduardo Mendes doutorando do Insituto de Psicologia Social e
do trabalho na Universidade de So Paulo - bolsista do CNPQ.
Email: [email protected]
Carlos Eduardo Senareli Teixeira doutorando em Psicologia Social pelo
Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: [email protected]
Cssia Beatriz Baista Doutora em Psicologia pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Professora da Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ, Minas Gerais. Email: [email protected]
Daniele Mariano Seda doutoranda em Psicologia Social pelo Programa
de Ps-Graduao em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Email: [email protected]
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Deise Mancebo Doutora em Educao pela Ponicia Universidade Catlica de So Paulo e ps-doutora pela Universidade de So Paulo. Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro .
Email: [email protected]
Eiane Araldi Mestre em Psicologia Social e Insitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
Heliana de Barros Conde Rodrigues Doutora em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano pela Universidade de So Paulo (2002). Professora Associada e procienista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]
Joo Paulo Macedo Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piau.
Email: [email protected]
Luiz Felipe Barboza Lacerda Psiclogo, doutorando em Cincias Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Docente e
Coordenador do Grupo de Pesquisa: Educao e Diversidade Amaznica
(GPEDA) da Universidade do Estado do Amazonas - UEA, Tabainga.
Email: [email protected]
Luiz Fonseca mestrando do Programa de Ps-Graduao em Histria das
Cincias, das Tcnicas e Epistemologia (HCTE) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Email: [email protected]
Luiza de Carvalho Vilas Boas acadmica do curso de Psicologia na Universidade Cruzeiro do Sul. Bolsista de Iniciao Cienica pelo CNPq.
Email: [email protected]
Magda Dimenstein Doutora em Sade Mental pelo Insituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: [email protected]
Marcos Vieira-Silva Doutor em Psicologia (Psicologia Social) pela Ponicia Universidade Catlica de So Paulo. Professor Associado III da Univer-
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Organizadores
Ana Mercs Bahia Bock Doutora em Psicologia Social pela Ponicia Universidade Catlica - SP. Atualmente professora itular da mesma Universidade. Email: [email protected]
Lcia Maria Ozrio Barroso Doutora pela Universidade Paris VIII (2001),
revalidado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em Psicologia
Social. Ps-doutorado : Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 20112012. Ps-doutorado em curso, na Universidade Paris 13/Nord. Pesquisador snior- Fundao Carlos Chagas de Amparo Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro. Email: [email protected]
Rafael Diehl Doutor em Informica na Educao e Ps-doutorando
no PPG Psicologia Social e Insitucional pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Professor Adjunto no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]
Samir Prez Mortada Doutor em Psicologia Social pela Universidade de
So Paulo. Professor do Insituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia da Bahia Email: [email protected]
Coordenadoras da Coleo
Ana Ldia Campos Brizola Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do INCT CNPq Brasil Plural - IBP. Editora execuiva do Ncleo de Publicaes do Centro de Filosoia e Cincias
Humanas - CFH/UFSC e da ABRAPSO Editora. E-mail: [email protected]
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Andrea Vieira Zanella doutora em Educao pela Ponicia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP. Professora do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista em
produividade do CNPq. E-mail: [email protected]
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