Influência Da Tradição Religiosa Na Fundamentação Dos Direitos Humanos

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A Influência da tradição

religiosa na fundamentação
dos direitos humanos

Eli Vagner Francisco Rodrigues1

Resenha de: JOAS, Hans. A sacralidade da pessoa: nova genealogia dos


direitos humanos. São Paulo, Editora da UNESP, 2012.

A história da consolidação dos direitos humanos e a questão de sua fun-


damentação estão relacionadas a fatores sociais, históricos e filosóficos. A
forma de como a ideia de dignidade humana universal se desenvolveu e
teve sua efetiva aplicação em normas nas diversas sociedades é fundamen-
tal para a compreensão da própria história dos direitos humanos.
Hans Joas – professor de Sociologia e Pensamento Social da Universidade de Chi-
cago e diretor do Centro Max Weber de Estudos Culturais e Sociais Avançados da Uni-
versidade de Erfurt, na obra “A sacralidade da pessoa”, publicada em 2012 com tradução
em português de Nélio Schneider pela editora da UNESP – não oferece ao leitor, como ele
próprio afirma, uma história abrangente das ideias ou do direito, e não pretende apresentar
uma nova fundamentação filosófica da ideia de dignidade humana. O caminho traçado
no estudo de Joas une uma exposição rigorosa dos argumentos e conceitos que fundamen-
tam a ideia de dignidade em paralelo a uma apurada reflexão de cunho histórico-social.
Para tanto o autor se vale das análises Durkheim, Weber, Nietzsche e Parsons. Hans Joas
propõe uma tese de certa forma inusitada nos estudos sobre a fundamentação dos direitos
humanos tendo como palavras-chave os conceitos de “sacralidade” e “santidade”. O autor
propõe conceber a crença nos direitos humanos e na dignidade humana universal como
resultado de um processo específico de sacralização. O núcleo argumentativo de Joas parte
do pressuposto de que existiu um processo a partir do qual, gradativamente, com motiva-
ção e sensibilização cada vez mais intensas, o ser humano individual passou a ser enten-
dido como sagrado e essa compreensão foi institucionalizada no direito. O que se destaca,

1 Doutor em Filosofia e professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e


Comunicação da UNESP, campus de Bauru - SP.

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A Influência da tradição religiosa na fundamentação dos direitos humanos

porém, é que o termo sacralização não deve ser concebido como se tivesse um significado
exclusivamente religioso. Os conteúdos seculares também podem assumir as qualidades
características da sacralidade, ou seja, “evidência subjetiva” e “intensidade afetiva”.
O pensamento central da obra de Joas institui um ponto de vista, em certa medida
desconsiderado pelos estudos relativos à formação e consolidação dos direitos humanos na
história do ocidente, a ideia de que estes se constituíram a partir precisamente da história
da sacralização da pessoa. O desafio de Joas é sustentar que a “sacralização” e a “genealogia
afirmativa” ocorreram por meio de processos nos quais muitas vezes a adesão aos direitos
humanos não surgiu de ponderações racionais.
O aspecto sociológico-histórico inicia-se no primeiro capítulo no qual o autor en-
foca a gênese da primeira declaração dos direitos humanos no final do século XVIII. Joas
coloca à prova a visão convencional das origens da declaração como resultado exclusivo da
força das ideias iluministas. Analisa-se também a tese de Weber de que os direitos humanos
constituem uma “carismatização” da razão.
As análises relativas à gênese da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
do século XVIII, são seguidas de uma fundamentação que diverge, em vários sentidos, de
uma visão de afirmação iluminista e também da narrativa foulcaultiana. Joas lança mão
de uma análise histórica do processo de eliminação e marginalização da tortura na Europa
do século XVIII como fator de influência na sacralização da ideia de indivíduo humano.
No terceiro capítulo Joas estabelece uma contundente relação entre a importância
das experiências de violência para a preservação e a difusão dos direitos humanos. O argu-
mento, a partir do qual se afirma que o entusiasmo e adesão das pessoas em relação a va-
lores se dão por uma característica de sensibilização “afetiva”, encontra, a meu ver, no caso
analisado, forte comprovação histórica. O objeto de análise do terceiro capítulo é o movi-
mento antiescravista como modelo de mobilização moral. Segundo Joas não há como não
perceber o caráter religioso do movimento. Os movimentos abolicionistas da Grã-Bretanha
e dos EUA foram carregados principalmente por atores que finalmente queriam levar a sé-
rio exigências morais que já estavam embutidas no cristianismo. A escravidão, afirma Joas,
foi declarada como pecado; sendo assim a resistência abolicionista era vista como um sinal
de que realmente havia a intenção de viver de acordo com as exigências morais de Cristo.
A autorreflexão metodológica, que segue estes capítulos de cunho histórico-socio-
lógicos, nos remete ao conceito de “genealogia afirmativa”. Para a fundamentação desta
perspectiva de análise, afirma Joas, é importante um estudo de elementos básicos da tradi-
ção cristã que estariam diretamente relacionados com a sustentação dos direitos humanos.
O primeiro destes elementos seria a concepção de alma imortal de cada ser humano como
núcleo sagrado de cada pessoa. O segundo elemento seria a concepção de vida do indivíduo
como dom, do qual resultam deveres que limitam o direito de autodeterminação de nossa
vida. Joas desenvolve uma complexa e contundente reflexão sobre a possibilidade de se con-
ferir uma nova plausibilidade a esses dois elementos da perspectiva cristã do ser humano,
relacionando-os aos direitos humanos no pensamento atual.

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A Influência da tradição religiosa na fundamentação dos direitos humanos

Joas afirma, a título de conclusão, que – assim como a história e afirmação dos valo-
res cristãos está diretamente relacionada com a formação dos direitos humanos no ocidente
e que representaram novas articulações e adaptações de fundamentos da teologia cristã
– outras tradições religiosas que possuem elementos de sacralização do ser humano como
base de suas crenças encontrariam, sob novas condições, um elo entre a afirmação dos di-
reitos humanos e a visão religiosa com relação ao indivíduo.
O tema da generalização dos valores, de cunho mais filosófico, é abordado no ca-
pítulo final como uma transposição da teoria sociológica da transformação social para o
campo da axiologia. Por fim, o processo de gênese da declaração dos direitos humanos
da ONU de 1948 é examinado como exemplo bem sucedido de generalização dos direitos
humanos.
De extrema relevância – por seu conteúdo filosófico, histórico e sociológico – a obra
de Joas figura como um dos mais profundos e abrangentes estudos sobre a genealogia dos
direitos humanos na atualidade e nos surpreende por sustentar com extremo rigor con-
ceitual e metodológico uma relação que, de maneira geral, tem sido alvo de preconceitos e
equívocos por parte de determinadas teorias histórico-sociológicas, a saber: a relação entre
a ideia religiosa de sacralidade da pessoa e a consolidação dos direitos humanos.

Abril de 2015

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