Relatório Dos Abusos Sexuais Na Igreja Católica Portuguesa
Relatório Dos Abusos Sexuais Na Igreja Católica Portuguesa
Relatório Dos Abusos Sexuais Na Igreja Católica Portuguesa
silêncio
RELATÓRIO FINAL
Sumário Executivo
3. Definiu como objetivo o estudo dos abusos sexuais de crianças por membros
e/ou colaboradores da Igreja, entre 1950 e 2022, para um melhor conhecimento do
passado e adequada ação preventiva e de intervenção futura.
4. Tomando como referência de abuso sexual todos os tipos previstos na lei penal
portuguesa, a Comissão fez uma opção metodológica de fundo: colocar no centro do
seu estudo a pessoa vítima, encorajá-la a testemunhar e dar-lhe voz, tornando-a
protagonista de uma experiência traumática que interessava conhecer, caracterizar e
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interpretar. Não se tratou, portanto, de uma análise institucional nem se perspetivou
trazer para o estudo as experiências ou trajetórias das pessoas abusadoras.
Cruzou-se uma abordagem qualitativa e quantitativa do tema. Qualitativa,
pois através dos testemunhos das vítimas, dos seus relatos individuais (captados ao longo
das entrevistas presenciais e da análise dos discursos diretos nas perguntas abertas do
inquérito) procurou-se aprofundar e interpretar as experiências singulares do abuso.
Entrevistaram-se ainda bispos diocesanos e superiores e superioras gerais de Institutos
Religiosos portugueses. Mas também ótica quantitativa, através de uma análise de todo
o material resultante da aplicação de um inquérito com perguntas de resposta
padronizada, para um tratamento extensivo da informação recolhida (estatística bi e
multivariada), construindo-se indicadores numéricos e cruzando-os entre si, tendo em
vista a caracterização dos abusos em diversas dimensões.
A Comissão fez ainda uma análise de conteúdo de notícias da imprensa, nacional
e local, e, após autorização escrita do Vaticano, o Grupo de Investigação Histórica
desenvolveu um estudo exploratório dos arquivos históricos da Igreja portuguesa, quer
em todas as dioceses quer em alguns institutos religiosos.
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O perfil dos abusadores é variado. Predominam adultos jovens com
estruturas psicopatológicas, agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau
controlo de impulsos. Destacam-se as perturbações de personalidade, com facetas
socialmente integradas, revelando capacidade de sedução e manipulação. É raro
reconhecerem os atos praticados, sem consciência crítica, sendo vulgar darem
continuidade aos mesmos. As respostas com sucesso terapêutico são escassas, mas é
fundamental ditar o afastamento de cargos ou atividades que impliquem contacto com
crianças. No caso de abusadores em contexto religioso, o acompanhamento espiritual,
embora muito importante, não é suficiente. É necessária uma intervenção psiquiátrica e
psicológica intensiva e duradoura.
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criminal. Desde o primeiro momento, ficou explícito que seriam remetidas para o MP
informações extraídas dos testemunhos que revelassem a prática de crimes deste tipo,
praticados em data situada dentro do prazo para o exercício do respetivo procedimento
criminal. A Comissão não assumiu, em tais casos, a condição de sujeito processual, mas
sim de elemento de ligação entre o testemunho recolhido e a magistratura com
competência exclusiva para lhe dar o respetivo tratamento jurídico. Neste âmbito, foram
enviados 25 casos para o Ministério Público. Não deve surpreender que nestes casos
exista um escasso número de resultados, semelhante, aliás, ao ocorrido em outros países
e/ou comissões que realizaram estudos idênticos. A Comissão recebeu um número
importante de testemunhos em que constam nomes e locais de alegados abusadores e
abusos. Algumas das pessoas neles referenciadas faleceram, outras estão vivas e mantêm
as suas funções religiosas. Destas, a Comissão decidiu dar conhecimento ao MP,
enquanto, de ambas, foi constituído um anexo a este relatório, a entregar à CEP.
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Em vários casos, foi a primeira vez que as vítimas falaram sobre o sucedido e
algumas pediram para se fazerem acompanhar por pessoa próxima.
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de residência); e ainda sobre a sua família de origem. De um tempo passado, solicitava-
-se à pessoa para recuar ao momento da infância e adolescência em que foi abusada e
nos desse um conjunto detalhado de informações sobre o seu contexto de vida na altura,
a modalidade de abuso que sofrera e a pessoa agressora que o praticara.
12. Para a validação cuidada dos testemunhos, procurou-se a sua consistência
narrativa e a triagem de falsas informações, excluindo casos que correspondessem a
categorias de idade fora do estipulado, discursos de distorção da memória traumática ou
mesmo a confabulações sobre a realidade.
14. Embora o centro de gravidade da análise desta Comissão fosse a pessoa vítima
de abuso sexual na infância e adolescência, pareceu-nos importante ouvir, através de
entrevistas, os atuais líderes da Igreja Católica portuguesa (bispos no ativo,
superiores e superioras gerais de Institutos Religiosos). Falando a partir da sua posição
cimeira na instituição, eram informadores privilegiados sobre o tema em análise, desde
logo porque foi graças à sua iniciativa que, na prática, este Estudo foi encomendado.
Tornou-se interessante reconstituir as suas histórias de vida, moldadas pelo
tecido social e cultural envolvente. O conhecimento dos seus contextos de partida
pareceu-nos uma peça preciosa para entender o modo como exercem e como pensam
hoje o seu papel dentro da Igreja Católica. Desde cedo nos apercebemos, aliás, de que
esta não falava, implícita ou explicitamente, a uma só voz e essa pluralidade
interna merecia ser aprofundada.
As entrevistas duravam, em média, uma hora e foram todas realizadas (com
exceção de uma, por imprevisto) por dois membros da Comissão — a esmagadora
maioria delas por duas mulheres. O guião da entrevista era propositadamente aberto e
pouco diretivo. Foi realizado um total de 32 entrevistas (19 bispos, 13 superiores e
superioras gerais).
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15. Uma outra frente de trabalho consistiu no estudo exploratório dos arquivos
históricos da Igreja. Pela primeira vez, um grupo de cientistas sociais, o Grupo de
Investigação Histórica (GIH), teve acesso aos arquivos das dioceses e institutos religiosos
portugueses com a finalidade de analisar documentos que indiciassem situações de
abuso sexual de crianças entre 1950 e 2022.
O estudo implicou a consulta de várias séries documentais e com graus diferentes
de confidencialidade: documentos institucionais, como as fichas com as nomeações de
párocos, documentação mais reservada como a correspondência eclesiástica, as
investigações prévias e os processos administrativos penais. Alguma desta
documentação encontra-se nos arquivos secretos das dioceses e institutos. Realizou-se
um primeiro mapeamento da estrutura (variável) dos arquivos eclesiásticos com o
objetivo de identificar onde se poderiam encontrar indícios e provas de abusos sexuais.
Para além do arquivo secreto — onde as investigações prévias e os processos
administrativos penais são guardados —, a prioridade foi dada aos processos individuais
do clero e à correspondência eclesiástica.
O acesso do GIH a documentação com um tal grau de sigilo foi discutido e
acordado previamente entre as hierarquias católicas e entre estas e o GIH. A carta do
secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, de 9 de junho de 2022, permitiu
agilizar a abertura dos arquivos eclesiásticos portugueses ao GIH.
A partir de junho de 2022, o GIH iniciou contactos com os bispos diocesanos e os
superiores dos institutos, com vista à deslocação da equipa aos arquivos, apresentando
as suas notas metodológicas, validadas pelo Vaticano. Foram assinados acordos de
confidencialidade, comprometendo-se o GIH a anonimizar toda a informação recolhida
na documentação.
Uma primeira etapa do processo de pesquisa consistiu no pedido, às 21
dioceses e aos 127 institutos religiosos membros da CIRP (Confederação dos Institutos
Religiosos de Portugal), da realização de um levantamento de casos de abuso sexual de
crianças nos respetivos arquivos entre 1950 e 2022. Todos os bispos e institutos
responderam ao inquérito. Numa segunda fase, o GIH deslocou-se aos arquivos com
vista à consulta da documentação relativa aos casos identificados pelas dioceses e
institutos. Foi consultada, também, documentação referente a eclesiásticos sobre os
quais tinha obtido, por outras vias, indícios de eventuais abusos sexuais (ex.:
testemunhos recebidos pela Comissão e imprensa). Foram sistematicamente localizados
esses testemunhos no quadro eclesiástico, identificando as dioceses e os institutos
envolvidos. Em certos arquivos, o GIH fez pesquisas aleatórias pontuais ou sistemáticas.
Em alguns casos, não existiam verdadeiros processos individuais de sacerdotes que
reunissem toda a documentação a seu respeito, mas apenas copiadores de
correspondência expedida e correspondência recebida arquivada cronologicamente, cuja
dimensão (centenas de dossiers) tornou impossível uma análise aprofundada no prazo
estabelecido para a entrega do presente relatório.
Embora o GIH tenha sido mandatado pela Comissão Independente para iniciar a
pesquisa a partir de 29 de março de 2022, o debate interno por parte da Igreja Católica
portuguesa relativamente às modalidades de abertura dos seus arquivos levou a que o
contacto do GIH com a documentação só se tenha iniciado a partir do início de outubro.
Deste modo, o GIH realizou apenas uma primeira abordagem arquivística a um
fenómeno pouco estudado em Portugal. Mesmo assim, este estudo de carácter
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exploratório permitiu gerar conhecimento significativo sobre o tema e certamente irá
abrir caminho para investigações futuras com um maior alcance, profundidade e grau de
sistematização.
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Quanto ao local geográfico onde ocorreu o primeiro episódio de abuso, encontra-
-se uma significativa dispersão por 129 dos 308 concelhos do País. Os distritos com
maior número de ocorrências, em ordem decrescente, são: Lisboa, Porto, Braga,
Santarém e Aveiro.
À data do abuso, a maior parte das vítimas estudava (88,1%) e frequentava o 1.º
e o 2.º ciclos (58,5% dos casos).
Predominam as modalidades com manipulação de órgãos sexuais, masturbação,
sexo oral e sexo anal, bem como cópula completa.
A modalidade de abuso varia entre géneros, destacando-se o predomínio dos
casos de abuso envolvendo sexo anal, a manipulação de órgãos sexuais e a masturbação
em rapazes e dos casos de insinuação em raparigas.
Ao longo das décadas, há aumento das formas de abuso que implicam a
masturbação e o sexo oral, bem como o visionamento e pornografia infantil.
Quanto aos locais mais comuns de abuso, destacam-se por ordem decrescente:
seminários (23% dos casos), igreja sem outra especificação (18,8%), confessionário
(14,3%), casa paroquial (12,9%) e escola religiosa (6,9%). Ao longo das décadas existe um
declínio dos seminários enquanto local preferencial; surgem picos de casos em locais
externos à igreja, como nos agrupamentos de escuteiros, entre os anos de 1991 e 2010.
Quanto à frequência dos abusos, em 57,2% dos depoimentos estes ocorrem mais
do que uma vez. «Mais do que um ano» foi o tempo de duração referido por 27,5% dos
respondentes: os abusos são múltiplos e continuados. O seu final é descrito como
ocorrendo por «afastamento da vítima» do local e/ou da pessoa em causa (31,6%),
seguindo-se a referência a «maior capacidade de defesa física e psicológica» da vítima
em 31,4% das situações.
No perfil da pessoa abusadora, existem destaques: em 96,9% dos testemunhos é
do género masculino, em 77% dos testemunhos é referida com o estatuto de «Padre» e
em 46,7% das situações aquela já era anteriormente conhecida da vítima.
Há uma relação entre a idade dos abusadores, as modalidades de abuso e os locais
onde o mesmo tem lugar. Os abusadores mais jovens, com maior frequência, praticam
abusos com recurso à penetração e em espaços isolados/de retiro. Quando os abusadores
são de meia-idade, há uma maior diversidade tanto nas modalidades do abuso, como nos
contextos onde o mesmo ocorre. Em idades mais avançadas, predominam as
modalidades de abuso sem toque no corpo e no espaço do confessionário ou da igreja.
No tempo que se sucedeu ao abuso, 51,8% dos inquiridos afirmam que revelaram
mais tarde a situação, e em 48,2% dos casos a participação neste estudo constituiu a
primeira vez em que a situação é descrita a outrem.
O abuso foi revelado sobretudo em meio familiar (51,7%). Os rapazes tendem a
contar ao cônjuge e a amigos; as raparigas aos ascendentes, em especial às mães. Em
54% das situações, a revelação só surgiu em idade adulta (maiores de 18 anos) e mais
cedo no grupo das raparigas. A idade de revelação tem vindo a diminuir ao longo das
décadas.
A reação dos outros perante a revelação foi a de «acreditarem» em 56,2% dos
casos, embora com maior expressão quando a vítima já era adulta e/ou pertencia ao sexo
feminino. No tempo posterior ao abuso, nota-se a ausência de resposta externa: em
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65,8% dos depoimentos, nenhuma medida foi tomada para afastar o abusador, 77% das
vítimas nunca apresentaram queixa a pessoas ou estruturas da própria Igreja e só 4,3%
formalizaram queixa em tribunal.
Em 58,5% dos casos, as vítimas referem ter conhecimento de outras situações de
abuso, embora com graus muito variáveis de precisão e rigor. Numa estimativa grosseira,
por defeito, calculamos que as 512 pessoas vítimas conheçam ou tenham estado em
contacto com perto de 4300 outras vítimas.
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abusadores mais jovens, membros consagrados de ordens religiosas e/ou educadores,
enquanto as vítimas com idades acima dos 14 anos aparecem associadas a escuteiros e a
colaboradores do clero.
Atrás de cada número, há uma vida e uma experiência concreta que, embora
partilhe elementos com tantas outras histórias, tem aspetos singulares, únicos e
irrepetíveis. Partindo dos lugares onde ocorreram os abusos, procurámos depois dar voz
à diversidade de situações, seja em termos do género das vítimas, da década em que
ocorreram os abusos ou da desigualdade socioeconómica entre famílias de origem. São
os abusos contados na primeira pessoa.
Seguindo os eixos da cartografia, construiu-se assim uma galeria de quarenta
e nove retratos, estruturados em torno dos sete espaços de abuso identificados,
partindo de narrativas concretas que chegaram à Comissão.
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21. Apesar de centrado na pessoa vítima, através do inquérito conseguimos
também «ouvir falar» a pessoa abusadora. A propósito do tema da aproximação à
vítima, retirámo-la do seu silêncio e demos-lhe voz através da narrativa da pessoa que
responde. O que lhe dizia para abusar de si?
Foram registados muitos testemunhos em que antes, durante e após o abuso
sexual, existiram formas de abuso e maus-tratos emocionais a vítimas, contidos
nas próprias palavras que lhes eram dirigidas pelo abusador, com implicações na
facilitação do abuso sexual e a sua continuidade; no silenciamento por parte da vítima;
na impunidade da pessoa agressora e a culpabilização da vítima ou na distorção da
imagem individual ou de relação de si própria; no impacto traumático do abuso, quando
aconteceu, tal como nas consequências posteriores.
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significado ou negando o seu acontecimento, projetando para outro, incluindo a figura
ou a vontade de Deus, a sua hipotética causa e concretização. Noutras, o abuso é
imputado à criança como sendo, afinal, uma vontade sua, algo que deseja ou que vai
valorizar positivamente no futuro. Por fim, uma parte significativa dos testemunhos
demonstram como alguns abusos se escudam na transmissão de supostos
ensinamentos «científicos» e didáticos acerca do corpo humano (ex.: o funcionamento
dos órgãos sexuais).
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Na amostra obtida, em casos descritos na imprensa ou obtidos por testemunho
de outrem (familiar, por exemplo), surge um número elevado de casos que terminaram
em suicídio consumado, num total de sete.
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sexuais de crianças praticados pelos seus membros. O mesmo tem efeito extensivo a
outros que, não diretamente abusados, se solidarizam com o sofrimento das vítimas
diretas. Num segundo grupo, constam os relatos de vítimas que fizeram uma distinção
entre a pessoa abusadora e a instituição Igreja, diferenciando assim a «parte» do «todo»
e, embora com crítica ativa, prosseguiram católicos e praticantes. Há um último grupo
que cortou definitivamente com o sentido de crença e fé, tornando-se agnóstico ou ateu.
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elite. Posição defensiva face ao risco de eventuais suspeitas e acusações de ocultação?
Ilustração de clericalismo e da prioridade concedida, antes de tudo, à defesa da reputação
da instituição? São perguntas em aberto. Mas talvez a estas se junte outro fator: a criação
da Comissão, a visibilidade pública do problema, o crescendo de notícias sobre casos de
«pedofilia na Igreja» gerou, a partir de um certo momento, um processo de constatação
irreversível e irrefutável do problema junto da sua hierarquia.
Em que famílias crescem e encontram a fé estes e estas dirigentes? Que trajetória
formativa os/as marca? Como caracterizam as dioceses que tutelam ou a ação da sua
congregação? Qual o seu entendimento da relevância do problema dos abusos sexuais na
Igreja Católica portuguesa? Que experiência possuem de contacto direto com casos de
abusos sexuais de menores praticados por pessoas, consagradas ou leigas, ligadas à
Igreja Católica portuguesa? O que pensavam, no momento da entrevista, do trabalho da
Comissão Independente? Estas eram as perguntas que estruturavam o guião.
O reconhecimento do problema dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica
portuguesa é descrito como muito recente. Emerge uma posição de «fora para dentro»,
diante de casos e escândalos sucedidos de grande dimensão pública, e ainda
hierarquicamente vivida de «cima para baixo», atribuindo-se ao Papa Francisco o
movimento mais profundo deste processo de confronto com a realidade.
Embora se registassem graus de desconhecimento diferente no interior do grupo
de bispos e na comparação entre bispos e superiores e superioras gerais, ao tempo das
entrevistas a questão é ainda aparentemente negada pela maioria enquanto algo de que
possam ter tido vivência direta, quer durante a sua formação quer já no âmbito das
respetivas atividades pastorais.
Alguns — muito poucos — já introduzem na sua narrativa o evoluir recente da
própria representação da infância, da sua vulnerabilidade e dos seus direitos, bem como
de formas anteriores de lidar com os acontecimentos, em que uma atitude clericalista
denegava ou projetava defensivamente a ocorrência da situação, resultando numa total
paralisia real de reconhecer e responder adequadamente ao problema. Acresce a
referência a práticas de menorização da importância ou da ocultação desses abusos
sexuais, ou ao expediente de «mudança de paróquia» da pessoa abusadora,
explicitamente reconhecidas por alguns dos entrevistados, tanto bispos como superiores
e superioras gerais.
No que respeita à dimensão formativa da elite masculina, consolidada nas
suas etapas iniciais durante o período da ditadura, podemos constatar, em primeiro
lugar, a importância decisiva que a formação adquiriu na construção de notáveis
percursos individuais de mobilidade social ascendente, face às famílias de origem.
Para além dos fatores espirituais na origem da decisão, «ir para padre» implicou «ir
estudar» e obter um diploma de ensino superior, facto muito raro entre os filhos das
classes desfavorecidas da época (de onde a maioria provém). Depois, e focando-nos agora
nas experiências subjetivas que estão por detrás de tais «trajetórias improváveis»,
das entrevistas masculinas parece deduzir-se uma enorme contenção de vivências
emocionais e afetivas próximas (físicas e psíquicas) a partir da entrada em formação no
seminário, bem como a incapacidade de abordar o tema e a vivência da sexualidade em
geral (a própria e a dos outros) ou o reconhecimento de que cada padre, bispo, religioso
ou religiosa é, antes de o ser, uma pessoa, homem ou mulher, marcado pelas suas
próprias vivências, a visão do outro e de um mundo em abrupta mudança. Mundo este
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tão distante daquele que conheceram durante a própria infância, vivida em famílias ditas
hoje «tradicionais», orientadas por princípios morais vigorosos, inseridas em pequenas
comunidades rurais, onde os valores religiosos do catolicismo eram sólidos e praticados
nos gestos e ritmos, privados e coletivos, do dia a dia.
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enveredando pelo encobrimento público (e eventualmente admoestação interna) e, em casos
considerados mais graves, como o «desfloramento», forçando acordos para o pagamento de
indemnizações. Domina um entendimento da Igreja Católica como entidade lesada pela
divulgação dos casos, o que conduz à hostilização de quem não aceita o silêncio. O sofrimento
da vítima não está no centro das medidas adotadas. Nas investigações dos últimos anos
parece haver uma inversão. A pesquisa já não indicia o encobrimento, embora a atenção à
vítima dependa muito de cada contexto eclesiástico e das respetivas Comissões de Proteção
de Menores e Pessoas Vulneráveis.
Para terminar, uma advertência. Também os dados apurados nos arquivos
eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como
a «ponta do iceberg»: ficou cabalmente demonstrado que um número indeterminado de
vítimas não reportou os abusos à Igreja Católica; muitas das queixas terão sido tratadas
informalmente, não deixando qualquer rasto documental; com algum grau de
probabilidade, a eventual prática de expurgos dos arquivos sem respeitar as normas
impostas pela legislação canónica terá sido praticada (convicção partilhada com muitos
clérigos contactados). Acresce a ambiguidade que caracteriza uma parte significativa da
correspondência eclesiástica do século XX. É frequente o problema dos abusos sexuais
não ser referido explicitamente. A documentação regista transferências internas ou
mesmo de país sem explicitar a razão, ou simplesmente referindo de maneira vaga a
necessidade de evitar escândalo público. O investigador vai diligentemente atrás desses
indícios, sem sucesso. Muitas vezes, não encontra nada, noutras as formulações são tão
ambíguas que podem referir-se a casos de outra natureza seja desvio de dinheiro, seja
homossexualidade ou envolvimento com mulheres adultas e casadas. Perante este
silêncio dos arquivos, estamos ante um nó górdio. E a nossa quantificação e análise fica
irremediavelmente condicionada.
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de perfis de vítimas e de suas famílias, de perfis de pessoas abusadoras, no caso
esmagadoramente padres, e pertencentes a franjas etárias distintas. Num tratamento
estatístico mais sofisticado, propusemos uma cartografia dos abusos.
Algumas daquelas pessoas abusadoras referenciadas ainda permanecem em
atividade eclesiástica.
Em alguns contextos, os abusos tiveram carácter sistémico, isto é, ancoravam-se
na estrutura de funcionamento de certas instituições da própria Igreja. Uma atitude
clericalista, a ignorância ou a desvalorização dos direitos da criança, o fechamento aos
olhares de fora, tudo ditou a perpetuação dos abusos e reforçou o silenciamento das
vítimas. O carácter sistémico dos abusos não pode, porém, generalizar-se a toda a Igreja,
pois diz respeito a uma minoria percentual da totalidade dos seus membros. Sistémica
foi a ocultação desde logo ditada pelos próprios, bem como dos superiormente
colocados na hierarquia que deles tiveram conhecimento.
O trabalho dos meios de comunicação social para a divulgação do apelo a
«dar voz ao silêncio», bem como algum jornalismo de investigação revelaram-se
fundamentais para a adesão de pessoas vítimas ao Estudo. A visibilidade mediática
crescente que o tema foi adquirindo ao longo dos meses contribuiu também, de certa
maneira, para a correspondente tomada de consciência por parte de muitos bispos e
outros membros da Igreja que, no início dos trabalhos da Comissão, pareciam mostrar-
-se ainda alheados e distantes do problema.
SOCIEDADE CIVIL:
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— Necessidade da realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de
crianças nos seus vários espaços de socialização.
— Reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança.
— Empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola.
— Aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes.
— Celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça.
— Reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema.
— Aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do
desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual.
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