(SCHELLING, F. W. J.) Preleções Privadas de Stuttgart

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PRELEÇÕES PRIVADAS DE STUTTGART

F. W. J. SCHELLING
Preleções privadas de Stuttgart

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling


Preleções privadas de Stuttgart

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling

Tradução, introdução e notas de

Luis Fellipe Garcia

Editora Clandestina Ltda.


Editora Clandestina São Paulo, SP
e-mail: [email protected]
site: aclandestina.com.br
Corpo Editorial
Juliana Ferraci Martone
Luís Fernandes dos Santos Nascimento
Márcio Suzuki
Mario Spezzapria
Oliver Tolle
Pedro Fernandes Galé
Vinicius de Figueiredo
Preparação: Rodney Ferreira
Projeto Gráfico: Editora Clandestina Ltda.
Capa: Juliana Ferraci Martone

T 651n
Schelling, Friedrich W. J. (1775-1854)
Preleções privadas de Stuttgart;
introdução, tradução e notas de Luis Fellipe Garcia.
— São Paulo: Editora Clandestina, 2020. p. 165.

ISBN 978-85-5666-013-8
1. Filosofia. 2. Idealismo alemão.
1. Título

CDD: 190
Sumário

Introdução histórico-sistemática 7

Preleções privadas de Stuttgart 41

Léxico 159
Introdução
histórico-sistemática

I - Sobre a renovação do interesse por


Schelling

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) é um


pensador cuja presença na paisagem intelectual interna-
cional tem se tornado cada vez mais notável nos últimos
anos. Se o juízo sobre a sua filosofia na segunda me-
tade do século XIX foi fortemente marcado pelas ácidas
críticas dos jovens hegelianos e de Søren Kierkegaard,
redigidas após um célebre curso ministrado por Schelling
na Universidade de Berlim em 18411 , o século XX teste-
1 Para uma reconstrução da polêmica em torno das lições mi-
nistradas por Schelling em Berlim, ver Tilliete Xavier, Schelling

7
8 Introdução

munhou um renascimento do interesse pelo pensamento


desse autor que antecipou alguns problemas que se tor-
nariam centrais na filosofia contemporânea. O primeiro
sinal, ainda que tímido, desse renascimento consiste pro-
vavelmente nos cursos ministrados por Martin Heidegger
em Freiburg em 1936, em que o autor chama a atenção
para o fato de que as Investigações filosóficas sobre a
essência da liberdade humana publicadas por Schelling
em 1809 constituem uma das maiores realizações da filo-
sofia ocidental, comparável à Fenomenologia do Espírito
de Hegel, e acrescenta que Schelling é “o pensador mais
criativo e abrangente” do período, na medida em que
conduz o idealismo alemão para além de sua própria
posição fundamental2 . Quase vinte anos mais tarde, em
1954, Jürgen Habermas, em sua dissertação doutoral
sobre a totalidade do percurso filosófico schellingiano,
destaca a originalidade do modo como Schelling formula
o problema da relação entre Absoluto e História, a qual
antecipa não apenas elementos da crítica de Marx a
Hegel, como ainda abre caminho para questões contem-
porâneas sobre os limites constitutivos da consciência

– Biographie, Paris: Calmann-Lévy, 1999, pp. 335-359.


2 Heidegger Martin, Schelling: Vom Wesen der menschlichen
Freiheit, Frankfurt am Main: Vittorio Klosterman, 1988, pp. 3-6.
Luis Fellipe Garcia 9

histórica oriundos da finitude radical da razão3 . Estudos


como estes abrem caminho para o influente trabalho de
Walter Schulz, que em 1955 propõe a tese segundo a
qual a filosofia tardia de Schelling constituiria o verda-
deiro coroamento do idealismo alemão, na medida em
que ela põe em evidência a incapacidade constitutiva
da razão de apreender o princípio ativo e positivo de
seu próprio movimento, de modo que a dialética, nos
moldes hegelianos, seria apenas uma filosofia negativa
para a qual o fato positivo da finitude permaneceria um
abismo4 .
É contudo apenas a partir de 1976 que os estudos
sobre Schelling recebem seu estímulo mais determinante
com o brilhante trabalho editorial da Academia de Ci-
ências da Baviera, que iniciou a publicação, ainda em
curso, das obras completas do autor, disponibilizando
assim uma grande quantidade de material ausente da pri-
meira edição da obra de Schelling, realizada por seu filho
Karl Friedrich August entre 1856 e 1861. Desde então,
articulou-se uma rede internacional de pesquisadores
3 Habermas Jürgen, Das Absolute und die Geschichte. Von
der Zwiespältigkeit in Schellings Denken, Bonn: Bouvier, 1954.
Essa leitura de Schelling é retomada pelo autor em Teoria e práxis:
Estudos de filosofia social, tradução de Rúrion Melo, São Paulo:
UNESP, 2013.
4 Schulz Walter, Die Vollendung des deutschen Idealismus in
der Spätphilosophie Schellings, Stuttgart: Kohlhammer, 1955.
10 Introdução

dedicados ao pensamento do autor – como a Interna-


tionale Schelling-Gesellschaft, a Schelling-Gesellschaft
Japan e, mais recentemente, a North American Schelling
Society –, novas edições e traduções de obras importan-
tes surgiram, assim como se multiplicou o número de
trabalhos especializados sobre este autor por vezes sur-
preendentemente contemporâneo, dentre os quais se
destacam o grande interesse despertado por sua filosofia
da natureza5 e por sua filosofia da mitologia6 .

II – Sobre a obra traduzida

Esta tradução disponibiliza para o público lusófono


o texto de publicação póstuma Preleções privadas de
Stuttgart (Stuttgarter Privatvorlesungen), oriundo das
lições ministradas por Schelling na casa do Conselheiro

5 Grant Iain Hamilton, Philosophies of Nature after Schelling,


London / New York: Continuum, 2006. Dois textos importantes
de Schelling sobre a filosofia da natureza foram aliás recentemente
traduzidos no Brasil e estão à disposição do leitor lusófono: Afo-
rismos para introdução à filosofia da natureza e Aforismos sobre
filosofia da natureza. Tradução, introdução e notas de Márcia
C. F. Gonçalves. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora da PUC /
Loyola, 2010.
6 Gabriel Markus, Der Mensch im Mythos: Untersuchungen
über Ontotheologie, Anthropologie und Selbstbewusstseinsgeschi-
chte in Schellings „Philosophie der Mythologie“, Berlim/Nova
Iorque: Walter de Gruyter, 2006.
Luis Fellipe Garcia 11

de Justiça e à época Presidente da Alta Câmara de Fi-


nanças, Eberhard Friedrich von Georgii, entre fevereiro
e julho de 1810. As conferências, apresentadas diante
de um seleto grupo da elite intelectual de Stuttgart,
constituem uma espécie de visão geral do sistema de
Schelling, que recupera o vocabulário e a abordagem
da filosofia da identidade (1801-1809), a qual trouxe ao
primeiro plano a filosofia da natureza como o paralelo
complementar da filosofia transcendental do espírito de
Fichte, para tratar agora de temas que serão centrais na
fase intermediária de seu percurso (1809-1821), como a
exploração das características fundamentais do humano
na sua relação com o divino – é nesta segunda fase que
questões como a liberdade (Freiheitsschrift, o texto de
1809 comentado por Heidegger) e a temporalidade (Wel-
talter, o grande projeto inacabado de Schelling iniciado
em 1810 e do qual conhecemos apenas um manuscrito
de publicação póstuma) adquirem um protagonismo
conceitual antes ausente. As preleções contudo não se
restringem ao tema da relação entre o humano e o divino,
mas fornecem uma visão da totalidade dos domínios do
pensamento de Schelling: (i) ontologia fundamental; (ii)
filosofia da história da filosofia; (iii) filosofia da natu-
reza; (iv) filosofia do espírito. Pode-se dizer assim que,
juntamente com o Sistema de toda a Filosofia de 1804
12 Introdução

(também de publicação póstuma), trata-se de um dos


únicos textos em que Schelling esboça uma visão de
todo de seu pensamento – com a vantagem decisiva em
relação ao sistema de 1804 de que Schelling situa agora
dentro de sua abordagem sistemática as novas questões
que o ocuparão em sua fase intermediária e que deixarão
traços em sua filosofia tardia (1821-1854). As preleções
de Stuttgart oferecem assim uma visão privilegiada do
pensamento schellingiano como um todo, assim como da
articulação entre as etapas de seu percurso filosófico7 .
As Preleções foram publicadas pela primeira vez
em 1860 pelo filho de Schelling na primeira edição das
Sämmtliche Werke (SW), volume VII, que contém os
escritos de 1805 a 1810, páginas 417-4848 . A pedido
de Schelling para o seu filho, a versão estabelecida e
publicada da obra se baseia em suas notas preparatórias
para as lições, cotejadas com as anotações de Georgii,
as quais foram corrigidas e revisadas pelo próprio Schel-
ling. Sobre esse cotejamento, o filósofo dá as seguintes
instruções a seu filho: “o manuscrito anexo feito pelo

7 Nas palavras de Xavier Tilliette, esse texto “placé au croise-


ment de deux époques” é “une véritable aubaine pour l’historien”,
cf. Tilliette Xavier, Schelling – une philosophie en devenir, vol.
I, Le système vivant (1794-1821), Paris: Vrin, 1970, p. 544.
8 Schelling F. W. J., Sämmtliche Werke (SW), editadas por
K. F. A. Schelling, Stuttgart / Augsburg: Cotta, 1856-1861.
Luis Fellipe Garcia 13

Presidente Georgii pode servir como instrumento de


decodificação [das minhas notas]. Se ele deve ser usado
inteiramente ou parcialmente, penes vos judicium sit” 9 .
Ocorre contudo que a versão do manuscrito-Georgii re-
visada e anotada por Schelling se perdeu no incêndio
da biblioteca de Munique oriundo do ataque aéreo de
1944 – o original, não corrigido, foi posteriormente en-
contrado na biblioteca de Marbach. Como não dispomos
da versão corrigida por Schelling do “instrumento de
decodificação” de suas notas, é difícil avaliar a dimensão
exata do trabalho realizado por seu filho no estabeleci-
mento da versão final do texto publicada nas Sämmtliche
Werke.
O manuscrito-Georgii na sua versão original, não cor-
rigida, foi editado pela primeira vez em 1973 por Miklos
Vetö, que, em uma coleção coordenada por Luigi Parey-
son, publica o original do manuscrito em paralelo com o
texto das SW precedido por uma excelente introdução
às Preleções de Schelling, que é aliás até hoje um dos
melhores textos sobre a obra10 – Vetö acrescenta ainda
9 Fuhrmanns Horst, “Dokumente zur Schellingsforschung IV.
Schellings Verfügung über seinen literarischen Nachlaß”, in: Kant
Studien, vol. 51 (1), 1959-1960, 14-26, p. 15.
10 Schelling F.W.J., Conférences de Stuttgart / Stuttgar-
ter Privatvorlesungen. Version inédite accompagnée du texte
des Œuvres, publiée, préfacée et annotée par Miklos Vetö, Paris:
L’Harmattan, 2009 [primeira edição: Turim: Bottega d’Erasmo,
14 Introdução

em anexo a correspondência de Schelling com Georgii a


respeito do texto e o calendário de leituras de Schelling
à época da concepção da obra. Em 2017, a Academia de
Ciências da Baviera dedicou todo o volume 8 da série
II da Historisch-kritische Ausgabe (HKA) à edição do
texto das Preleções privadas de Stuttgart; mais uma vez,
o texto das SW foi publicado em paralelo com o de Ge-
orgii (SW nas páginas pares, 68-184; manuscrito-Georgii
nas páginas ímpares, 67-187), contendo um certo nú-
mero de correções em relação à edição de Vetö; ademais,
uma completa introdução histórico-sistemática foi acres-
centada ao texto, além de um grande número de notas
que auxiliam na identificação das fontes conceituais de
Schelling no momento da composição das preleções11 ; a
correspondência de Schelling com Georgii foi igualmente
anexada ao volume.
O texto aqui traduzido tem por fonte o texto estabe-
lecido pelas SW (vol. VII, pp. 417-484) e retomado pela
recente edição da HKA, (série II, vol. 8, pp. 68-184);

1973] – doravante citado como “Version inédite”.


11 Schelling F. W. J., Historisch-kritische Ausgabe der Baye-
rischen Akademie der Wissenschaften (HKA), editada por Tho-
mas Buchheim, Jochem Hennigfeld, Wilhelm G. Jacobs, Jörg
Jantzen e Siegbert Peetz, Série I: obras (Werke); Série II: obras pós-
tumas (Nachlass); Série III: cartas (Briefe), Stuttgart: Frommann-
Holzboog, 1976ss. (24 volumes publicados, 10 em preparação –
para um total previsto de 34 volumes).
Luis Fellipe Garcia 15

a paginação de ambas as edições é retomada ao longo


do texto para que o leitor possa se localizar e citar com
base nas edições-padrão das obras de Schelling.

III – Contexto das Preleções


Os anos de 1809 e 1810 foram particularmente con-
turbados na vida de Schelling, à época um jovem filósofo
de 34 para 35 anos. Desde 1806, ele vivia com sua es-
posa Caroline em Munique, onde ele tinha um posto de
secretário geral na Academia de Ciências da Baviera 12 .
Em setembro de 1809, durante um período de estadia
do casal Schelling em Maulbronn na casa dos pais do
filósofo – tempo que ele contava dedicar a seus proje-
tos filosóficos13 – Caroline é atacada por uma severa
disenteria que se agrava e acaba por lhe interromper
tragicamente a vida, aos 46 anos. A morte de Caroline
tem um efeito devastador sobre o jovem filósofo, cujo es-
tado geral de saúde se deteriora nos meses subsequentes,
a ponto de se tornar um objeto de preocupação para a
12 À época não havia universidade em Munique, a Ludwig-
Maximilians-Universität, fundada em 1472 em Ingolstadt, foi
transferida para Munique apenas em 1826, quando Schelling pas-
sou a lecionar nessa universidade – cf. Tilliette Xavier, Schelling
– une philosophie en devenir, vol. I, Le système vivant (1794-
1821), Paris: Vrin, 1970, p. 501.
13 Tilliette Xavier, op. cit., p. 541.
16 Introdução

família. Schelling não retorna a Munique e permanece


na casa de seus pais até janeiro de 1810 quando, sob
insistência de seus familiares, decide passar uma tempo-
rada em Stuttgart, onde moram três de seus irmãos. A
presença de Schelling na cidade se torna rapidamente
notícia nos círculos eruditos, e o Alto Conselheiro de
Justiça Georgii, provavelmente por intermédio do irmão
de Schelling Karl Eberhard14 , solicita ao pensador um
ciclo de conferências privadas sobre a sua filosofia, a
serem realizadas na casa do próprio Conselheiro.
Schelling aceita o convite e, entre os meses de fe-
vereiro e julho de 1810, ministra as oito conferências
que constituem o material das Preleções privadas de
Stuttgart. Georgii reuniu em sua casa um seleto público
da elite intelectual de Stuttgart para ouvir Schelling.
Este grupo era composto por: Karl August von Wange-
nheim (1773-1850), à época presidente da Alta Câmara
de Finanças; Constantin von Neurath (1777-1817), presi-
dente do Alto Colegiado de Justiça; coronel Friedrich von
Lindenau (1786-1829); Carl von Werneck (1786-1829),
conselheiro da Alta Câmara de Finanças; Johann Georg
August von Hartmann (1764-1849), jurista e contador; o
poeta e bibliotecário Johann Christoph Friedrich Haug
(1761-1829); os médicos da corte Karl Christoph Frie-
14 HKA, II, 8, pp. 21-22.
Luis Fellipe Garcia 17

drich von Jäger (1773-1828) e Ludwig Storr (1780-1813);


o bibliotecário e Professor Karl Friedrich von Lebret
(1764-1829); o poeta e professor de língua alemã Ge-
org Reinbeck (1766-1849); além, é claro, do conselheiro
Georgii, anfitrião dos encontros15 .
As duas primeiras sessões ocorreram em sequência
nos dias 14 e 22 de fevereiro, com uma pausa entre
ambas maior do que a prevista em razão de uma gripe de
Schelling. Após o segundo encontro, as preleções tiveram
de ser contudo interrompidas e só seriam retomadas
em julho, quando Schelling apresenta as seis últimas
conferências em um curto espaço de tempo – nos dias 16,
18, 19, 21, 23 e 24. Não se sabe as razões pelas quais as
conferências foram interrompidas por tanto tempo; sabe-
se apenas que Schelling esteve na cidade de seus pais
entre o fim de abril e o início de julho16 . A sequência
condensada de encontros em julho sugere que essas
conferências não foram preparadas individualmente, mas

15 A lista dos presentes nas Preleções e os detalhes sobre as


respectivas personalidades são descritos em: HKA, II, 8, pp. 15-17.
16 HKA, II, 8, p. 25. Miklos Vetö sugere que Schelling, ao
longo dessa pausa, tenha dedicado parte de seu tempo à redação
de seu romance Clara: ou da relação da natureza ao mundo dos
espíritos, composto entre 1809 e 1811 e publicado postumamente,
no qual a questão da morte é um tema central e onde se vê de
modo mais claro o impacto do recente falecimento de Caroline
sobre o espírito de Schelling – cf. Version inédite, pp. 18-22.
18 Introdução

que constituíam um todo já previamente delineado; a


respeito dessas conferências de julho, diz o presidente
Wangenheim em carta a um amigo que Schelling se
atém nelas ao “puramente essencial”, cuja “consequência
notável é que não se pode deixar de ter a coisa [toda]
diante dos olhos” 17 .

IV – Fontes conceituais do texto

Graças ao diário (Jahreskalendar ) mantido por Schel-


ling, é possível identificar os textos por ele lidos no pe-
ríodo de preparação das Preleções. No dia 23 de janeiro
de 1810, Schelling começa “as leituras e preparações
necessárias para a conversa filosófica [philosophisches
Gespräch]”; nesse mesmo dia, ele inicia a leitura dos “es-
critos de Hahn [Hahn’s Schriften]” 18 – isto é, do teólogo
Philipp Matthäus Hahn (1739-1790). Desde esse dia
até o fim do mês de janeiro, Schelling registra no seu
diário a leitura de mais três obras, todas elas do mesmo
autor, o teólogo, padre e médico Friedrich Christoph
Oetinger (1702-1782). Os escritos lidos são, por ordem
17 K. A. Wangenheim para J. Niederer, fim de julho de 1810 –
HKA, II, 8, pp. 19-20.
18 O Jahreskalendar de 1810 foi reproduzido por Vetö na sua
publicação das Preleções e do manuscrito Georgii – cf. Version
inédite, pp. 213-216.
Luis Fellipe Garcia 19

de entrada no diário: (i) Swedenborgs und anderer Irr-


dische und himmlische Philosophie (A filosofia celeste
e terrena de Swedenborg e de outros); (ii) Die Lehrta-
fel der Prinzessin Antonia (O quadro de aprendizado
da princesa Antônia); e (iii) Metaphysik und Chemie
(Metafísica e Química). A única leitura mencionada
no mês de fevereiro, antes do começo dos encontros no
dia 14, é a obraAussichten in die Ewigkeit (Perspecti-
vas da eternidade) do teólogo Johann Kaspar Lavater
(1741-1801)19 .
Dentre esses textos, aqueles de Oetinger, tanto pela
quantidade como pela influência sobre Schelling, mere-
cem destaque. A influência de cada um dos textos de
Oetinger sobre o vocabulário conceitual das Preleções é
reconstruída com riqueza de detalhes na introdução do
volume da Historisch-kritische Ausgabe. Retomaremos
aqui apenas alguns dos principais conceitos oriundos
das leituras de Schelling dessas obras. O Lehrtafel der
Prinzessin Antonia é uma obra que reconstrói os ensina-
mentos da doutrina da Cabala a partir de uma pintura
que se encontrava na igreja de Bad Teinach e que foi
utilizada na instrução da princesa Antônia de Würt-
temberg (1613-1679); a importância desse escrito para
Schelling reside no fato de que Oetinger faz uma rica
19 Version inédite, pp. 213-214.
20 Introdução

apresentação da mística de Jacob Böhme (1575-1624)


e da doutrina da Cabala. É de se ressaltar sobretudo
a reconstrução da tese cabalista da criação, segundo a
qual o Ein Sof ou Ain Soph (P‫ – אינסו‬sem limite, infinito)
dá origem às criaturas finitas através de uma espécie
de autolimitação – o que nas Preleções é expresso como
uma autorrestrição de Deus, que voluntariamente deixa
de ser tudo e, por esse ato, institui o começo do tempo
(SW, VII, p. 428 / HKA, II, 8, p. 85).
A obra Swedenborgs und anderer Irrdische und himm-
lische Philosophie constitui uma apresentação da dou-
trina escatológica do visionário sueco Emanuel Sweden-
borg (1688-1772), que teve um impacto fundamental
nas obras intermediárias de Schelling, em particular nas
Investigações sobre a essência da liberdade, no romance
Clara e nas Preleções aqui traduzidas20 . Nas Preleções, a
presença das teses de Swedenborg é particularmente no-
tável nas discussões sobre o que acontece com o homem
após a morte e na doutrina da essencilização, segundo a
qual, nas palavras de Schelling, a morte seria “não uma
negação [...], mas uma essencialização do físico”, isto

20 Uma reconstrução completa e detalhada da influência de


Swedenborg sobre Schelling encontra-se em: Horn Friedemann,
Schelling und Swedenborg. Ein Beitrag zur Problemgeschichte
des deutschen Idealismus und zur Geschichte Swedenborgs in
Deutschland, Zurique: Swedenborg, 1954.
Luis Fellipe Garcia 21

é, uma redução do corpo à sua essência fundamental,


de modo que não apenas a alma, mas também o corpo
sobreviveriam à morte (SW, VII, p. 476 / HKA, II, 8,
p. 172). Por fim, no escrito Metaphysik und Chemie,
em que se explora a relação entre Deus e a Natureza,
encontra-se de modo significativo a doutrina da dupla
queda (a primeira oriunda da criação; a segunda, do
pecado original), igualmente presente nos “escritos de
Hahn” 21 e retomada nas Preleções (SW, VII, pp. 480-
481 / HKA, II, 8, p. 179).
Vê-se assim que a influência de Oetinger sobre Schel-
ling deve-se também ao fato de que ele se torna um
intermediário entre o filósofo e autores da tradição mís-
tica que tiveram um impacto considerável sobre o seu
percurso intelectual, em especial Emanuel Swedenborg e
Jacob Böhme, pois, com efeito, como nota a introdução
do volume da HKA, uma parte essencial do trabalho
de Oetinger consistia na “coleção, tradução, resumo e
comparação de manuscritos e textos raros da mística
judaica e cristã” 22 . E é assim através de Oetinger que
Schelling entra em contato com os autores dessa tradição
que terá um impacto considerável nas grandes obras do

21 Presente na obra: Etliche Aufsätze von Gottes Dreyeinigkeit


und von der Versöhnung, Winterthur, 1779.
22 HKA, II, 8, p. 31.
22 Introdução

período intermediário de sua produção.

V – Posição das Preleções no percurso


filosófico de Schelling

O percurso filosófico de Schelling pode ser dividido


em três grandes períodos: (I) o primeiro período é com-
posto por (a) uma fase inicial de gestação (1794-1800)
– na qual um produtivo intercâmbio conceitual com os
trabalhos de Fichte conduzem Schelling a explorar os
meandros da filosofia transcendental da consciência e a
buscar complementá-la com uma filosofia da natureza –
e por (b) uma fase em que Schelling afirma a origina-
lidade de seu próprio empreendimento filosófico que se
apresenta como uma filosofia da identidade (1801-1808);
(II) o segundo período, chamado de fase intermediária,
é iniciado com a publicação da Freiheitsschrift em 1809
e se estende até as lições de Erlangen de 1821 – esse pe-
ríodo, como já notado, é marcado pela preocupação com
temas como a liberdade e a temporalidade, os quais se
articulam de modo paradigmático na exploração do ho-
mem como ser histórico23 ; (III) finalmente, como marco
23 Fernando Rey Puente propõe uma frutífera reconstrução de
todo o percurso schellingiano a partir de suas concepções antro-
pológicas e assinala o período intermediário como uma fase em
Luis Fellipe Garcia 23

de inauguração do terceiro e último período, pode-se


tomar as lições de Schelling sobre a filosofia da mitolo-
gia de 1821 ainda em Erlangen, tema que receberá um
extensivo tratamento ao longo dessa etapa derradeira
do pensamento do filósofo e que culminará com a série
de lições ministradas em Berlim entre 1847 e 1852 –
o traço característico da Spätphilosophie é a explora-
ção dos limites da filosofia racional, caracterizada como
filosofia negativa (da qual a Lógica hegeliana seria o
exemplo mais bem acabado), cujo fracasso conduz à fi-
losofia positiva, que articula elementos que ultrapassam
a racionalidade negativa, como a mitologia, a arte e a
revelação.
As Preleções privadas de Stuttgart, que datam de
1810, encontram-se assim na fase intermediária do pen-
samento de Schelling e nos oferecem um observatório
privilegiado do desenvolvimento de sua constelação con-
ceitual. Com efeito, a estrutura tripartite da filosofia
da identidade – na qual a identidade como indiferença
é o alicerce por um lado da filosofia transcendental da
consciência e por outro lado da filosofia da natureza – é
retomada nas Preleções, mas dessa vez com uma inova-
que homem será tratado sobretudo como ser (proto-)histórico,
por oposição ao tratamento cosmológico da fase inicial e teoló-
gico da fase final – cf. Puente Fernando Rey, As concepções
antropológicas de Schelling, São Paulo: Edições Loyola, 1997.
24 Introdução

ção fundamental que anuncia os desenvolvimentos por


vir, a saber, a substituição da filosofia transcendental
da consciência (o saber do saber) por uma filosofia do
espírito concebida como antropologia. Grosso modo, a
tríade identidade-natureza-transcendentalismo converte-
se na tríade identidade-natureza-espírito na qual a parte
dedicada ao espírito assume os contornos de uma antro-
pologia em que a historicidade do homem será a questão
fundamental. Essa transformação, e a importância ad-
quirida pela terceira parte da tríade, é evidenciada pela
própria estrutura das conferências, nas quais a parte
dedicada ao espírito tem a mesma extensão que as duas
outras partes somadas. Vê-se assim o vocabulário da fase
inicial adquirir uma nova complexidade ao ser aplicado
ao tema central da fase intermediária, a historicidade do
homem – mudança esta que conduzirá aos poucos, como
diz Tilliette, a uma espécie de “solstício da identidade” 24 ,
na medida em que ela será desarticulada em virtude de
uma nova compreensão da relação entre o humano e o
divino. Tal transformação desaguará posteriormente na
distinção entre filosofia negativa, razão humana e seus
limites, e filosofia positiva, revelação.
Essa transformação, assim como todas as mudanças

24 Tilliete Xavier, Schelling – Biographie, Paris: Calmann-


Lévy, 1999, pp. 133-158.
Luis Fellipe Garcia 25

que ela acarreta ao tratamento do espírito, não é, bem


entendido, a única novidade das Preleções. Com efeito,
Schelling introduz uma discussão sobre a transição da
identidade à diferença, que ganha contornos aqui de
uma narrativa do começo do tempo – tema este que
se converterá em questão central no projeto dos Wel-
talter, o qual ocupará Schelling desde o fim de 1810 e
estará ainda fortemente presente no seu horizonte de
reflexão em 182725 – na qual se distingue a influência de
seus estudos da Cabala, particularmente na ideia de que
Deus teria operado uma autorrestrição, uma retração,
pela qual a diferença surgiria a partir da identidade.
Essa alteração indica duas importantes mudanças: (i)
a primeira relativa ao método, pois Schelling abandona
a estratégia spinozista de definição e explicação, ainda
onipresente em sua fase inicial, em prol de uma apre-
sentação narrativa do ser, cujo ponto de culminação é,
sem dúvida, os Weltalter ; (ii) a segunda diz respeito ao
próprio alicerce da estrutura tripartite, que será dora-

25 Em 1827, Schelling refere-se aos Weltalter como a obra à


qual ele dedicou “os mais belos anos” de sua vida, e intitula seu
novo curso a ser ministrado em Munique de System der Weltalter
(cf. Fuhrmans Horst, “Schelling-Briefe aus Anlaß seiner Berufung
nach München im Jahre 1827”, in: Philosophisches Jahrbuch, 64,
1954, p. 291), ainda que o curso não tenha sido conduzido “de
acordo com o plano original” como afirma seu filho na edição das
Sämmtliche Werke – SW, VIII, p. vi.
26 Introdução

vante assinalado não simplesmente enquanto identidade


como indiferença, mas também enquanto identidade da
unidade e da oposição, introduzindo destarte, à maneira
hegeliana, o problema da oposição no coração mesmo da
identidade, e oferecendo um caminho para lidar com a
difícil questão da relação entre o absoluto e a realidade
fenomenal. O tratamento de Schelling acrescenta ainda
que essa oposição não é oriunda apenas da forma da
identidade, mas do ser da própria identidade absoluta,
no qual se encontra a oposição entre ser originário, Deus,
e existência, aquilo que surge em função da autorestrição
divina – tal questão é tratada de modo paradigmático
na Freiheitsschrift.
Da articulação entre essas duas novidades – a com-
preensão da passagem da identidade à diferença como
(i) uma espécie de narrativa do ser cujo motor é (ii) a
presença da oposição no coração da identidade absoluta
– surge o que Miklos Vetö chama de uma “armadura
especulativa de uma filosofia histórica”, na qual a rela-
ção entre categorias e esquemas da imaginação (como
modos de temporalização da racionalidade) da filoso-
fia kantiana será reavaliada nos termos de uma relação
entre categorias (entendidas como estrutura da tempora-
lidade) e potências (como períodos históricos nos quais
a estrutura da temporalidade se manifesta progressi-
Luis Fellipe Garcia 27

vamente)26 . Essas transições indicam a importância


central que a temporalidade e a história vão adquirir
nessa fase intermediária do pensamento de Schelling.
Uma outra novidade notável do texto é a introdução
no interior do esboço de sistema de um excurso em que
Schelling propõe uma verdadeira filosofia da história
da filosofia, começando por Descartes e passando por
Spinoza, Leibniz, materialismo francês, Kant e Fichte,
até a sua própria filosofia – esse tema já tinha sido abor-
dado por Schelling em seus cursos em Würzburg e seria
retomado em Erlangen e, posteriormente, em Munique
em 1827 (onde ele acrescenta ainda uma leitura de sua
própria filosofia da natureza e das filosofias de Hegel
e Jacobi)27 . A novidade das Preleções é a introdução
dessa discussão no interior do próprio esboço de sistema
– ela aparece na parte dedicada à natureza quando se
explora a relação entre o Absoluto e o mundo natural, e
Schelling se vale dela para mostrar a incapacidade dos
sistemas anteriores de tratar de modo adequado as três
partes da filosofia: absoluto, natureza e espírito28 .

26 Version inédite, pp. 31-35.


27 Schelling F.W.J., Zur Geschichte der neueren Philosophie
– Münchner Vorlesungen, SW, X, pp. 1-200
28 No manuscrito Georgii, essa filosofia da história da filosofia
é deslocada para a primeira parte, mais especificamente, para
o interior da discussão que se segue à apresentação do primeiro
28 Introdução

Todas essas novidades, a respeito do método, do


primeiro princípio e da filosofia da história da filoso-
fia, associam-se à grande novidade da qual as Preleções
constituem uma apresentação paradigmática, a saber:
a já mencionada importância adquirida no interior da
estrutura tripartite pela parte dedicada ao espírito, a
qual assume os contornos de uma verdadeira antropolo-
gia. Com efeito, não é exagero dizer que a antropologia
– em suas dimensões ético-teológica, onto-psicológica e
escatológica devidamente desmembradas e analisadas
ao longo da terceira parte – constitui o ponto alto das
Preleções, que podem ser consideradas, nas palavras de
Miklos Vetö, como “o monumento mais importante e a
melhor formulação da antropologia schellingiana” 29 .
O protagonismo adquirido pela antropologia nas Pre-
leções constitui igualmente um observatório privilegiado

princípio como identidade do real e do ideal.


29 cf. Version inédite, p. 25. É importante sublinhar que Schel-
ling dedica ainda dois pequenos textos à antropologia, nos quais
os temas elaborados nas Preleções são retrabalhados e enrique-
cidos com algumas novidades como a teoria dos temperamentos,
estes textos são: (i) o fragmento Anthropologisches Schema de
1837/1838 (SW, X, pp. 289-294 – ainda não publicado pela
HKA); e (ii) uma carta remetida ao rei Maximilian II da Baviera
de janeiro de 1854 (König Maximilian von Bayern und Schelling,
Briefwechsel, 1890, p. 252 – igualmente ainda em processo de
edição pela HKA).
Luis Fellipe Garcia 29

dessa “filosofia em devir” 30 . Com efeito, se o percurso


schellingiano, como mostra Fernando Rey Puente, pode
ser reconstruído a partir de suas concepções antropoló-
gicas – cosmológica (fase inicial), proto-histórica (fase
intermediária) e teológica (fase tardia)31 –, é na fase
intermediária que se testemunha uma transformação
pela qual o homem, outrora um elemento dentro da
cosmologia tripartite focada em desenvolver uma filoso-
fia da natureza, torna-se agora o protagonista de uma
abordagem do ser onde ele aparece simultaneamente
como o coroamento da natureza e como a abertura para
uma construção escatológica conduzindo ao Absoluto
compreendido como revelação. O Homem enquanto ser
proto-histórico não é mais apenas um dos elementos
do todo cosmológico, mas é ele mesmo compreendido
como o microcosmo, no qual o absolutamente objetivo
coincide com o absolutamente subjetivo, de modo que
ele pode ser entendido simultaneamente como corpo
carnal e como mundo (SW, VII, p. 457 / HKA, II, 8,
p. 136); no interior desse microcosmo, as camadas da
psiquê humana (ânimo, espírito e alma) ganham uma

30 Expressão feliz de Xavier Tilliette para caracterizar a tota-


lidade do percurso filosófico de Schelling em seu célebre livro já
mencionado: Schelling – une philosophie en devenir.
31 Puente Fernando Rey, As concepções antropológicas de Schel-
ling, São Paulo: Edições Loyola, 1997.
30 Introdução

espessura ontológica na medida em que revelam graus


de potencialização da vontade, que se manifestam no
indivíduo abrindo o horizonte de uma escatologia da
revelação no interior da qual desvios, potencializações
ilegítimas (o mal), são sempre possíveis. O Homem
torna-se assim o ponto de articulação e de transição
entre uma filosofia cosmológica da identidade e uma
filosofia positiva da revelação (que se manifesta, como
mostra a filosofia tardia, na mitologia, na arte e na
religião revelada).

VI – Estrutura da obra

“Em que medida um sistema é em geral possível?


Resposta: já existe um sistema desde há muito, antes
mesmo de o homem ter pensado em fazer um – o sis-
tema do mundo” (SW, VII, p. 421 / HKA, II, 8, p.
68). Assim começam as Preleções privadas de Stuttgart.
A pergunta a respeito do sistema e a asserção de sua
existência independentemente do pensamento humano
adianta duas características fundamentais da aborda-
gem de Schelling: (i) primeiro, trata-se de desvelar um
sistema e não apenas construir um; e (ii) segundo, tal
sistema não é um sistema epistemológico, no qual a
razão humana é o ponto de partida, mas um sistema
Luis Fellipe Garcia 31

ontológico no interior do qual a racionalidade humana


se inscreve. Tal sistema, adianta Schelling, deve ter três
características: (a) ele deve ter um princípio que se sus-
tenta e se manifesta em cada uma de suas partes, isto é,
ele deve ser propriamente um sistema; (b) ele não pode
excluir nenhuma dimensão do ser, como a natureza por
exemplo; e (c) seu método deve ser tal que ele se adeque
ao sistema, que não deve portanto ser tratado como um
efeito do método – em outras palavras, não se trata de
um sistema transcendental da consciência finita, mas de
um sistema ao qual a consciência finita deve ela mesma
se adaptar para expressá-lo adequadamente.
A estrutura desse sistema é desvelada pela própria
estrutura tripartite da obra: (I) a primeira parte apre-
senta (a) o primeiro princípio e (b) a passagem para a
oposição no interior da qual a complexidade do todo se
manifesta – esta parte pode ser considerada como uma
ontologia fundamental ; (II) a segunda parte é a filosofia
da natureza no interior da qual se insere o excurso sobre
a filosofia da história da filosofia, de Descartes a Schel-
ling; e (III) a terceira parte é a filosofia do espírito, que
se apresenta aqui como uma antropologia. Deus, Natu-
reza, Homem é a estrutura do sistema do mundo que
as Preleções pretendem desvelar nas suas articulações
principais.
32 Introdução

A primeira parte retoma as definições do primeiro


princípio elaboradas pelo próprio Schelling nas etapas
anteriores de seu percurso filosófico com algumas im-
portantes nuances. Três são as definições do princípio,
a saber: (i) a identidade absoluta, entendida aqui não
como mera indiferença entre sujeito e objeto – tal como
o fazia a filosofia da identidade – mas como a unidade
orgânica de todas as coisas; (ii) a identidade do real e do
ideal, a qual, adianta o filósofo, já introduz o problema
da diferença, dado que se manifesta aqui uma identidade
que não é uma mera tautologia (real = real ou ideal
= ideal), mas uma identidade entre, por assim dizer,
duas esferas: real = ideal, e assim a identidade de uma
dualidade32 ; e (iii) o Absoluto, ou Deus, que Schelling
apresenta aqui como uma espécie de transcendental on-

32 Esta tensão entre identidade e dualidade fornece a ocasião


para o manuscrito Georgii introduzir o excurso sobre a filosofia
da história da filosofia, de Descartes a Schelling – que só aparece
no interior da filosofia da natureza no texto das SW. O motivo
para ela ser introduzida nesse ponto do manuscrito é que os
filósofos anteriores a Schelling não teriam sido capazes de resolver
o problema da tensão entre identidade absoluta e dualismo (real
x ideal) – a HKA desloca o excurso do manuscrito Georgii para
o lugar onde ele aparece originalmente na edição das SW, a fim
de facilitar a leitura paralela dos textos (das páginas 73-77 para
as páginas 115-119); já na edição Vetö, o excurso aparece onde
Georgii o colocou, logo após a apresentação da segunda definição
do primeiro princípio como identidade do real e do ideal (cf.
Version inédite, pp. 106-107).
Luis Fellipe Garcia 33

tológico para a filosofia, pois a própria existência da


filosofia como saber manifesta que “ela vive e se move”
no Absoluto (SW, VII, p. 423 / HKA, II, 8, p. 72) –
nas palavras de Schelling: “Assim como o geômetra [. . . ]
nunca prova o ser-aí do espaço mas apenas o pressupõe,
do mesmo modo, a filosofia não prova o ser-aí de Deus,
mas apenas reconhece que sem um Absoluto ou Deus
nada estaria presente” (SW, VII, p. 423 / HKA, II, 8,
p. 74).
As definições do princípio servem como ponto de
transição para a segunda questão fundamental da pri-
meira parte: a passagem da identidade para a diferença.
Tal passagem só é possível se a identidade real-ideal
se manifesta não apenas em seu conceito (idealmente),
mas efetivamente como identidade em ato (realmente)
– em outras palavras, a identidade real-ideal tem de se
manifestar ela mesma como identidade ideal, no con-
ceito, e como identidade real, em ato. Por isso, é preciso
que haja uma cisão na identidade – entre idealidade e
realidade – graças à qual ela poderá se revelar como
identidade de ambos. A distinção formal entre real e
ideal é feita através da noção de potência – o real é a
posição do ser; o ideal é a posição do real, e portanto
a posição da posição do ser, isto é, uma posição de se-
gunda potência; a identidade entre ambas é associada
34 Introdução

por Schelling à terceira potência. Essa diferença me-


ramente formal só se converte em diferença efetiva se
a simultaneidade das três potências é rompida, o que
ocorre através do ato divino de autorrestrição, pelo qual
Deus se retrai à primeira potência e institui, por esse
mesmo ato, um “começo do tempo” (SW VII, p. 428
/ HKA, II, 8, p. 84). A questão central da primeira
parte, que pode ser caracterizada como uma ontologia
fundamental, é assim a relação entre o Absoluto e o
tempo.
A segunda parte – oriunda da cisão em Deus pela
qual surge a distinção entre o ser divino (o real não-
consciente associado à natureza) e o sujeito do ser divino
(o ideal consciente) – é dedicada ao ser divino, isto
é, à natureza, a qual é explorada em sua progressiva
ascendência da “parte sem consciência de Deus”, da
matéria (SW, VII, p. 435 / HKA, II, 8, p. 98), à
consciência. O desvelamento dessa dualidade no coração
da unidade serve de ocasião para Schelling introduzir
o já mencionado excurso sobre a história da filosofia,
no interior do qual ele busca mostrar que as filosofias
anteriores, a partir de Descartes, foram incapazes de
lidar com essa tensão entre unidade e dualidade, seja
por uma separação radical entre duas esferas que faz
com que ambas sejam mal compreendidas (Descartes),
Luis Fellipe Garcia 35

seja por uma incompreensão da “interpenetração viva”


entre os dois domínios (Spinoza), ou ainda pela simples
redução de um domínio ao outro (do espírito à natureza
– materialismo francês; da natureza ao espírito – um
problema presente em graus variados, segundo Schelling,
em Leibniz, Kant e, de modo paradigmático, em Fichte).
O desenvolvimento do argumento central da filosofia
da natureza se faz após esse excurso de filosofia da his-
tória da filosofia. Para tanto, Schelling retoma os temas
desenvolvidos em seus trabalhos anteriores, sobretudo
na Darstellung meines Systems der Philosophie (Exposi-
ção do meu sistema da filosofia) de 1801. Ele apresenta
assim uma subdivisão da natureza em três potências
ascendentes – cada uma delas subdividida em três subpo-
tências – que conduzem da não-consciência à consciência.
Essa abordagem surpreendente, típica da filosofia da
natureza de Schelling, apresenta a transição para a cons-
ciência como um movimento que sai da unidade fechada,
passa pela oposição e alcança uma forma na qual as
duas etapas anteriores se articulam em um todo. Assim,
(i) a primeira potência da natureza é a matéria, que
tem como primeira subpotência a unidimensionalidade
a qual se desenvolve na bidimensionalidade e alcança
sua subpotência mais elevada na tridimensionalidade,
que articula as duas anteriores. A matéria alcança um
36 Introdução

nível mais elevado na (ii) oposição que surge no interior


da segunda potência da natureza, o processo dinâmico,
o qual tem como primeira subpotência o magnetismo
que manifesta um campo de atração-repulsão em torno
de si, desenvolve-se na eletricidade, onde a polarização
se revela, e alcança sua subpotência mais elevada no
galvanismo, que articula as duas anteriores. Finalmente,
(iii) a terceira potência, articuladora da matéria e do
processo dinâmico, é o organismo, cuja primeira subpo-
tência é a reprodução do mesmo, a qual se desenvolve no
crescimento como processo de oposição a si mesmo e al-
cança sua subpotência mais elevada na sensibilidade, na
qual o mesmo e o outro se articulam em um prenúncio
do surgimento da consciência. Essa elevação da natu-
reza através de suas sucessivas potências, da matéria
unidimensional ao organismo sensível, tem seu ponto
mais elevado no corpo carnal do homem, que é como um
microcosmo que manifesta todas as potências anteriores
(SW, VII, p. 457 / HKA, II, 8, p. 136). O Homem é
o locus em que a natureza alcança a consciência, isto é,
em que o totalmente objetivo (o real corpóreo) se iguala
ao totalmente subjetivo (o ideal consciente) e manifesta
o ponto de passagem da natureza para o espírito.
A terceira e última parte é dedicada ao espírito e
consiste em uma verdadeira antropologia. O argumento
Luis Fellipe Garcia 37

pode ser subdividido em três partes. A primeira parte


(i) analisa a noção de liberdade e sustenta que ela deve
ser compreendida como independência tanto em relação
à natureza como em relação a Deus – retomando assim
um tema central da Freiheitsschrift. O homem, diz o
filósofo, é um ser de dupla raiz, uma raiz natural inde-
pendente e uma raiz divina: pela primeira, ele é livre
em relação à Deus; pela segunda, ele é livre em relação à
natureza. Tal reflexão conduz Schelling à introdução do
tema do pecado original, um ato do homem pelo qual
o tecido cósmico é rompido e o domínio da natureza
se separa radicalmente do domínio divino. A segunda
parte do argumento (ii) visa a desvelar as estratégias
humanas para, por intermédio de suas instituições, res-
tabelecer a harmonia rompida: a primeira estratégia
é uma busca de instauração de uma unidade natural
através de um mecanismo da “segunda natureza” exteri-
ormente imposto, o Estado (SW, VII, p. 461 / HKA,
II, 8, p. 146) – o Estado resta contudo uma unidade
precária e temporária. A falha sistemática do Estado,
afirma Schelling, confirma a incapacidade do Homem
de, sozinho, cobrir o fosso oriundo da separação entre
natureza e espírito; tal possibilidade só se manifesta
quando Deus se faz homem e mostra que a superação
do fosso Natureza-Espírito por intermédio do homem
38 Introdução

carece ela mesma de um intermediário para a relação


Deus-Homem, este intermediário se manifesta na Reve-
lação: o Cristo. A Revelação funda assim a segunda
estratégia de restabelecimento da harmonia, não mais
como unidade exterior, mas doravante como unidade
interior, unidade do ânimo humano – a instituição que
busca estabelecer a unidade interior é a Igreja. Por ter
contudo permitido que o Estado se introduzisse nela
(SW, VII, p. 464 / HKA, II, 8, p. 152), a Igreja também
falha, de modo que as duas tentativas de produção da
unidade – exterior, através do Estado; interior, através
da Igreja – não obtiveram sucesso. Seja qual for o propó-
sito final, sustenta Schelling, a reconstrução da unidade
em uma suprema aliança entre os povos deve repousar
sobre o alicerce das convicções religiosas.
A terceira parte do argumento (iii) consiste em uma
reflexão sobre o modo como indivíduo se inscreve no
interior desse horizonte ético-teológico e como ele pode
ultrapassar a espécie humana, de modo a “antecipar
para si o que há de mais elevado”. Esta parte é dedicada
à exploração da inserção do humano no interior da
estrutura das potências oriundas da oposição real x ideal.
A primeira potência (o real) diz respeito à inscrição da
psiquê humana no interior do todo; ela se dá, segundo
Schelling, ela mesma a partir das três potências, que são
Luis Fellipe Garcia 39

novamente divididas em três subpotências: (a) o ânimo


(o real no homem), cujo nível inferior é a melancolia,
que se desenvolve no desejo e alcança seu nível mais
elevado no sentimento; (b) o espírito (o ideal no homem),
cujo nível inferior é a vontade própria (ou egoísmo)
que se desenvolve em entendimento e atinge seu nível
mais elevado na vontade verdadeira; e (iii) a alma (a
identidade real=ideal no homem), que é o nível mais
elevado de desenvolvimento do humano, ela é “o céu
interior do homem” (SW, VII, p. 471 / HKA, II, 8, p.
164) – ela não apresenta mais nenhuma gradação em si,
mas pode se manifestar como arte, filosofia e sabedoria.
A segunda potência (o ideal) pela qual o humano
se inscreve no todo diz respeito à sua passagem para o
mundo dos espíritos, pois “a verdadeira segunda potên-
cia começa para o homem apenas depois da morte” (SW,
VII, p. 474 / HKA, II, 8, p. 168). Schelling apresenta
aqui a passagem do mundo natural ao mundo espiritual
como um processo no interior do qual tanto o espírito
como corpo carnal são reduzidos ao que eles têm de
essencial, eles são “essencializados” – uma tese, como
já mencionado, inspirada nos trabalhos do visionário
sueco Emanuel Swedenborg, tais como eles foram lidos
e interpretados por Friedrich Oetinger. Este ser espírito-
carnal, reduzido à sua essência, é chamado por Schelling
40 Introdução

de demoníaco [Dämonisches]. Essa passagem desvela a


presença de “um mundo dos espíritos”, dentro do qual
haveria a mesma estrutura de potências do mundo na-
tural (SW, VII, p. 478 / HKA, II, 8, p. 176), desta vez
contudo compreendidas não como realidade, idealidade
e identidade no mundo natural, mas como realidade,
idealidade e identidade divinas. Finalmente, a potência
mais elevada consiste na ligação do mundo natural com
o mundo dos espíritos (o real=ideal), que constitui a reu-
nião de todas as potências em uma identidade absoluta
em cujo horizonte de realização encontra-se a “completa
encarnação de Deus, na qual o infinito torna-se intei-
ramente finito sem prejuízo à sua infinitude” – aqui se
poderá finalmente dizer, conclui Schelling, que “Deus é
realmente tudo no todo , [e] o panteísmo [é] verdadeiro”
(SW, VII, p. 484 / HKA, II, 8, p. 184).
F.W.J. Schelling 41

Preleções privadas de
Stuttgart (1810)33

I.

Em que medida um sistema é em geral possível?


Resposta: já existe um sistema desde há muito, antes
mesmo de o homem ter pensado em fazer um – o sistema
do mundo. Encontrar esse sistema é a verdadeira tarefa.
O verdadeiro sistema não pode ser inventado, ele pode
apenas ser encontrado como algo em si já subsistente
[bereits vorhandenes] no entendimento divino. A maior
parte dos sistemas filosóficos não são nada mais do
que obras – bem ou mal engendradas [ersonnene] – de
seus autores [Urheber ], quase como nossos romances
33 A paginação entre colchetes (pp. 68-184) se refere ao volume 8
da série II (textos de publicação póstuma) da Historisch-kritische
Ausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, tradicio-
nalmente citado do seguinte modo: HKA, II, 8, pp. 68-184. Já
a paginação entre parênteses (pp. 421-484) se refere ao volume
7 das Sämmtliche Werke, editadas pelo filho de Schelling, cuja
referência usual é: SW, VII, pp. 421-484. (NT)
42 Preleções

históricos (por exemplo, o leibnizianismo)34 . Querer


afirmar que um sistema assim compreendido seja o único
possível é altamente iliberal – sistema escolástico. Eu
asseguro que não quero fazer nenhuma contribuição a
esse tipo de prática.
Tampouco pode o verdadeiro sistema ser encontrado
em sua totalidade empírica, como algo que exigiria o
conhecimento de tudo, até mesmo de suas partes mais
singulares.
Para que o sistema a ser encontrado seja de fato um
sistema do mundo, então: 1) é necessário que, como sis-
tema do mundo, ele tenha um princípio, que se sustenta
[sich trägt], que se constitui em si e por si, [e] que se
reproduz em cada parte do todo; 2) ele não pode excluir
nada (como por exemplo a natureza35 ), não pode subor-
dinar nem reprimir nada unilateralmente; 3) ele deve
ter um método de desenvolvimento e de progressão que
possa nos garantir que nenhuma parte essencial pode
ser omitida.
Qual é o princípio do meu sistema? Este princípio
34 Miklos Vetö, em sua edição do texto de Schelling, sublinha a
ressonância dessa passagem com a ideia de Voltaire segundo a qual
“la métaphysique... est souvent le roman de l’esprit” (Dictionnaire
Philosophique IV. Œuvres Complètes 20, Paris: Ed. Garnier,
1879, 76) – cf. Version inédite, p. 242. (NT)
35 Alusão a Fichte, que teria excluído a natureza de seu sistema
filosófico. (NT)
F.W.J. Schelling 43

foi exprimido de diferentes maneiras:

a) Como princípio da identidade absoluta simples-


mente, a ser bem distinguido da absoluta indiferença
[Einerleiheit]; a identidade aqui referida é uma uni- (422)
dade orgânica de todas as coisas. Em todo orga-
nismo há unidade, sem que por isso se possa tomar
suas partes por indiferentes. Assim, por exemplo,
todas as diferenças dos órgãos e funções resolvem-se
no corpo humano em uma vida indivisível, de tal
modo que a sensação [Empfindung] de sua indivisi-
bilidade e harmonia é a sensação de bem-estar; e
entretanto não se pode dizer que as partes e funções
que formam esse todo orgânico sejam indiferentes –
o estômago por exemplo não desempenha as funções [70]
do cérebro, etc.

b) Mais precisamente, este princípio foi expri-


mido como a identidade absoluta do real e do ideal.
A ideia [Meinung] aqui não é que o real e o ideal
sejam numericamente ou logicamente indiferentes.
Referimo-nos na verdade a uma unidade essencial ;
trata-se, de fato, de uma e da mesma coisa posta
em ambas formas, mas ela é em cada uma dessas
44 Preleções

formas algo único, e não uma essência [Wesen]36


indiferente. Se Jacó também se chamasse Israel, en-
tão se trataria sempre do mesmo indivíduo referido
através de diferentes nomes, mas não propriamente
individualizado de modos distintos. O mesmo não
se dá com a identidade do real e do ideal. Seja
A
por exemplo B=C , aqui B e C são idênticos, já que
ambos são essencialmente A, mas ao mesmo tempo
distintos um do outro, se considerados como formas
ou por si; B nunca poderá ser C, nem C tornar-se B,
do mesmo modo A em B e em C constitui, a cada
vez, uma essência única. Justamente na medida
em que em cada um deles esta essência é a mesma,
há entre eles uma unidade essencial (i.e., não sim-
plesmente formal, lógica ou nominal), e contudo há
ao mesmo tempo ali uma verdadeira oposição ou
dualismo, na medida em que não se pode suprimir
[aufheben] um no outro. Pois, pelo fato de A se in-
dividualizar em B e em C, ambos recebem o mesmo
direito à existência.

36 Wesen pode ser traduzido tanto por “ser” como por “essência”;
para evitar a confusão com Sein, que constitui um dos conceitos
fundamentais das Preleções, optamos pelo termo essência. Fa-
remos contudo uma exceção a essa opção para a fórmula freier
Wesen (SW, VII, pp. 461-462 / HKA, II, 8, pp. 146-148), cuja
tradução usual “ser livre” deixa a leitura mais fluida. (NT)
F.W.J. Schelling 45

Por que então o primeiro princípio foi determi-


nado como identidade do real e do ideal? – De
início justamente para indicar que nem o real nem
o ideal são o primeiro ou o absoluto, mas ambos são
apenas formas subordinadas da verdadeira proto-
essência [Ur-wesens]. Isso deve então ser formulado
também de modo positivo: em ambos, trata-se da
mesma essência. Meu princípio é melhor esclarecido (423)
quando comparado ao fichtianismo. Fichte faz o
seguinte raciocínio: [não há] nenhum ser-aí [Dasein]
que não seja por si mesmo; ora, apenas o Eu está
por si mesmo aí [ist... da]; logo, etc. Ora, eu nego a
premissa menor. Com efeito, sujeito e objeto cons-
tituem a forma universal tanto na matéria como no
Eu (aquilo, por outro lado, em que ambos diferem [72]
é algo que só poderá ser mostrado na sequência):
assim, por exemplo, no corpo [Körper ], a força de
repulsão é o objetivo, a de atração é, da perspectiva
do corpo, aquela que volta para si, ela é então a
força subjetiva. Fichte desconhece esse dualismo
associado à identidade.

c) Em uma terceira expressão, o princípio da mi-


nha filosofia foi denominado simplesmente Absoluto
ou Deus. Ora, o Absoluto é aqui o princípio de toda
46 Preleções

a filosofia; ela só existe na medida em que forma um


todo, ela vive e se move [lebt und webt]37 em Deus
– opomo-nos neste ponto ao sistema dogmático ou
leibniziano-wolfiano, e também ao de Kant, pois
eles só introduzem Deus depois de tudo o mais. A
diferença da minha filosofia e da filosofia em geral
em relação à teologia, com a qual ela se assemelha,
é que a teologia é como um abstractum [Abstrac-
tum] da filosofia; ela toma Deus como uma espécie
de objeto [Objekt] particular, enquanto a filosofia
considera Deus como o mais alto fundamento de
explicação de todas as coisas e estende assim a ideia
de Deus também a outros objetos [Gegenstände]. A
este ponto se liga a investigação que se segue.

A pergunta seguinte é uma pergunta usual: se a


filosofia faz de Deus seu fundamento, então como alcan-
[74] çamos o conhecimento de Deus ou do Absoluto? – a
essa pergunta, não há resposta. A existência do incondi-
cionado não pode ser provada como a do condicionado.
O incondicionado é o elemento no qual todas as demons-
trações são possíveis. Assim como o geômetra, quando

37 Alusão a Ezequiel 47:9: “Ja, alles, was darin lebt und webt,
dahin diese Ströme kommen, das soll leben [E toda criatura vivente
que passar por onde quer que entrarem estes rios viverá]”. (NT)
F.W.J. Schelling 47

ele se põe a provar suas proposições, não prova primeiro


o ser-aí [Dasein] de um espaço, do mesmo modo a filo-
sofia não prova o ser-aí [Dasein] de Deus, mas apenas
reconhece que sem um Absoluto ou Deus nada estaria
presente [gar nicht vorhanden wäre]. Tudo só se deixa
apresentar no Absoluto; o incondicionado não aparece
antes do ser-aí [Dasein] da filosofia, mas toda filosofia se (424)
ocupa com este ser-aí [do incondicionado], toda filosofia
é na verdade uma prova contínua do Absoluto, o qual
não pode portanto ser exigido no começo dela. Se o
universo não pode ser nada mais do que a manifestação
do Absoluto, e a filosofia nada mais é do que a apre-
sentação espiritual do universo, então toda a filosofia
é também apenas a manifestação, i.e., a evidenciação [76]
contínua [fortgehende Erweisung], de Deus.
Ora, nós partimos da proposição [Satz ]: a proto-
essência [Urwesen] é necessariamente e por sua natureza
a identidade absoluta do real e do ideal. Mas com essa
proposição ainda não se diz nada: nós temos simples-
mente o conceito da proto-essência, mas não a temos
ainda como uma essência em ato, efetiva. Do mesmo
modo, quando dizemos por exemplo que a essência do
homem é uma identidade absoluta da liberdade e da
necessidade – que um princípio necessário e um princípio
livre estão nele intimamente [innigst] unidos –, temos
48 Preleções

aqui certamente um conceito do homem, mas não temos


ainda nenhum homem vivo e efetivo; para tanto (para
termos um homem efetivo), devemos considerar em que
medida esses princípios são concebidos nele como efetiva-
mente em oposição, em luta. Para dizê-lo de outro modo:
a proto-essência como identidade absoluta do real e do
ideal é posta ela mesma apenas subjetivamente, mas
devemos concebê-la também objetivamente: ela deve
ser identidade absoluta do real e do ideal não apenas
em si, mas também fora de si, i.e., ela deve se revelar
como tal, atualizar-se – ela deve se mostrar também
na existência [Existenz ] como algo que é essencialmente
identidade absoluta do real e do ideal. Ora, nada pode
ser revelado a não ser no seu oposto, assim a identidade
[só pode ser revelada] na não-identidade, na diferença,
na distinguibilidade [Unterscheidbarkeit] do princípio.
Não estamos falando ainda de como isso seria possível
em Deus, mas apenas do fato de que, se queremos pas-
sar da essência para a existência [Existenz ], então uma
[78] separação [Trennung], uma diferença, deve ser posta.
Vê-se frequentemente essa passagem da identidade
para a diferença como uma supressão [Aufhebung] da
identidade; isso porém não ocorre de modo algum assim,
como vou em breve mostrar. Trata-se antes de uma
(425) duplicação [Doublirung] da essência, [de] uma acentu-
F.W.J. Schelling 49

ação [Steigerung] da unidade, o que novamente deve


ser melhor determinado através de uma analogia com
nós mesmos. A consciência se constitui através de uma
cisão [Scheidung] de princípios, que estavam antes im-
plicite no homem, por exemplo o racional e o irracional.
Nenhum dos dois deve ser eliminado [vertilgt]. É justa-
mente no combate e na reconciliação de ambos que nossa
humanidade deve se confirmar. Quando nós tomamos
consciência – quando luz e sombra se cindem em nós –,
não saímos para fora de nós mesmos, ambos princípios
permanecem em nós em sua unidade. Não perdemos
nada de nossa essência, mas nós nos possuímos agora
sob uma dupla configuração [Gestalt], enquanto unidade
e enquanto bipartição [Entzweiung]. O mesmo [vale a
respeito] de Deus.
Pomos A = A como o estado do ser engolido em si
[in sich verschlungenen]; desse modo, nesse A = A já
se pode notar uma triplicidade, a) A como objeto, b) A
como sujeito, c) A como identidade de ambos; e tudo
isso como realmente indistinguível. Ora, a diferença do
princípio deve ser posta: dado que A enquanto sujeito
e A enquanto objeto são distinguíveis, segue-se que A [80]
= A transforma-se em A = B; e como a unidade da
essência subsiste, segue-se que a expressão da diferença
A A
não é A=A , mas antes A=B , i.e., um e dois: A = B é
50 Preleções

a bipartição, A é a unidade, o todo [da fórmula] é a


proto-essência viva e atual, A tem em A = B um objeto,
um espelho. Assim, a proto-essência é sempre a unidade
– a unidade da oposição e da bipartição [Entzweiung].
Agora perguntamos: como tal cisão é possível em
Deus? Ora, dado que o elo [Band ] dos princípios em
Deus não pode ser dissolvido [unauflöslich], parece então
que uma cisão é impossível – e todavia ela é necessária
para a revelação. Como podemos então resolver essa
contradição?
Se a proto-essência em A e em B é novamente o
todo, então A e B podem ser cindidos [geschieden], sem
que o elo [Band ] absoluto dos princípios seja suprimido
[aufgehoben]. Devemos então supor que a proto-essência
(426) permaneça como o todo em cada [termo] separado, i.e.,
que [ela] se ponha neles como o todo – e que assim
seja concebido sob B tanto o B, i.e., o real, como o
A, i.e., o espiritual, como ainda também a unidade de
ambos. E que o mesmo se dê sob A. Mas teríamos nesse
caso uma distinção real já posta? De modo algum. Na
A
fórmula A=A , o A superior é a essência em si. Como
porém essa identidade é também a cópula em A = A
(na forma), então denominamos a identidade, na medida
em que ela está viva na forma, de a essência na forma.
Temos assim 1) a essência em si e 2) a essência na
F.W.J. Schelling 51

forma. Mas a essência na forma, enquanto a forma é


este A = A (em que os princípios não se diferenciam),
é idêntica com a essência em si e não é distinguível
dela. Ora, a distinguibilidade devia ser posta através da
diferenciação da forma em duas formas subordinadas
da seguinte maneira:
A= Essência em si
A=A= Essência na forma absoluta.

 A  B
A A
A=B A=B
Como em cada uma dessas formas encontra-se o
mesmo elo [Band ] que na forma absoluta, então cada
uma delas se dissolve de novo na essência da forma
absoluta, e através dela, na essência em si.
Encontramo-nos então de novo onde estávamos antes.
Mas agora, ao invés dos fatores simples A = B, temos
as duas unidades; i.e., temos apenas uma unidade mais
desenvolvida, mas nenhuma diferença.
Todavia essa transformação [Umwandlung] da forma
absoluta em duas formas subordinadas, ou, o que dá
no mesmo, essa uni-formação [Einbildung] completa de [82]
toda a proto-essência no real e no ideal é o caminho
necessário para a diferenciação finita e efetiva.
52 Preleções

Se consideramos de modo mais preciso, vemos que


entre ambas unidades predomina uma diferença efe-
tiva, mesmo que ela não seja ainda posta como efetiva.
A unidade real (aquela designada sob o expoente B)
(427) comporta-se como o ser, a ideal (designada sob o ex-
poente A) como a posição do ser. Ora, o ser por si
também já é posição: segue-se então que a posição
do ser é uma posição da posição, i.e., uma posição da
segunda potência.
Aqui se constitui pela primeira vez o conceito das
potências, um conceito altamente importante para o
todo. Temos pela primeira vez um superior [Höheres] e
um inferior [Niedereres] – uma distinção de dignidade.
O ideal é por sua dignidade superior ao real. Quando
exprimido na fórmula, isso se apresenta do seguinte
modo.
a) B, o ser, não pode ser por si. De fato, em razão
do elo que não pode ser dissolvido, nem A nem B podem
existir por si. O ser real é assim sempre A em B ou sob
o expoente B; expressamos isso assim:
A = B = primeira potência
b) A não pode tampouco ser por si, mas deve, como
posição da primeira potência, conter esta última em si
como ideia [idealiter ]; e assim:
A2 = segunda potência
F.W.J. Schelling 53

Ambas unidades ou potências são novamente o Um


na unidade absoluta, a qual é, enquanto posição conjunta
da primeira e da segunda potência, A3 ; e assim [segue-se
que] a expressão completamente desenvolvida do A =
A inicial é:

A3
A2 = (A = B)
Ora, aqui é dado contudo mais do que uma mera
distinção de dignidade. A primeira potência deve por
sua própria natureza preceder [vorangehen] a segunda;
entre ambas potências há assim uma prioridade e uma
posterioridade; o real é naturâ prius, o ideal naturâ
posterius. O inferior é assim sem dúvida posto antes [84]
do superior, mas não segundo a sua dignidade, o que
conteria uma contradição, mas segundo a sua existência
[Existenz ].
Desse modo a prioridade da primeira potência aqui
desenvolvida é apenas uma prioridade ideal ou lógica
do real em relação ao ideal, e não ainda uma prioridade
efetiva. Nós apenas mostramos que e como uma dife- (428)
renciação é possível. Mas como alcançamos [gelangen] a
sua efetividade?
O fundamento dessa efetividade só pode repousar
na proto-essência ou em Deus mesmo. O meio porém já
54 Preleções

é dado. Com efeito, justamente como vimos, a primeira


potência, mesmo quando é absolutamente considerada
em Deus, precede a segunda em ideia – uma é naturâ
prior, a outra posterior. Se a proto-essência quer a bipar-
tição das potências, então ela deve pôr essa prioridade da
primeira potência como algo efetivo (transformar aquela
prioridade meramente ideal ou lógica em uma prioridade
efetiva), i.e., ela deve restringir-se voluntariamente à
primeira [potência], [e] suprimir [aufheben] a simulta-
neidade dos princípios que se apresenta originariamente
nela. Esta supressão [Aufhebung] da simultaneidade não
é contudo nem uma supressão da unidade (essencial)
interna, pois esta não repousa de modo algum sobre a
simultaneidade, nem uma supressão do elo [Band ] das
potências, pois, tão logo a primeira potência é posta,
também devem ser postas imediatamente a segunda e a
terceira. Se a prioridade da primeira potência torna-se
efetiva, então a identidade das potências no absoluto
não é suprimida, mas ela se transforma apenas em um
encadeamento [Verkettung] ou coesão [Cohärenz ] delas.
Antes disso, os princípios repousam nela em completa in-
diferença ou indistinguibilidade. O tempo igualmente re-
pousa nela implicite, como unidade ou como eternidade.
Na medida em que Deus se restringe voluntariamente à
primeira potência – sendo assim voluntariamente apenas
F.W.J. Schelling 55

um, enquanto ele poderia ser tudo – ele institui destarte


um começo do tempo (NB [Nota bene] não no tempo).
Por intermédio de seu retrair-se [sein sich Zurückziehen]
à primeira potência, é posta certamente uma restrição
[Beschränkung] nele, mas na medida em que isso contra-
diz sua essência, pois ele é segundo a sua natureza todas
as potências, constitui-se então um progredir [Fortsch-
reiten] da primeira à segunda, e assim [se constitui] um
tempo. As potências são destarte igualmente postas [86]
como períodos da auto-revelação de Deus.

Observação geral sobre esse ponto:

1) Uma restrição passiva é sem dúvida uma imper-


feição, uma privação [Mangel ] relativa de força; mas
restringir-se a si mesmo, encerrar-se em um ponto, e (429)
retê-lo com todas as forças, não esmorecer [ablassen],
até ele se expandir em um mundo, eis o que constitui a
força mais elevada e a perfeição. Goethe diz:

Quem quer grandeza, deve se recolher,


Na restrição mostra-se o mestre38 .
38 Soneto de Goethe publicado sem título em 1800 “Natur und
Kunst, sie scheinen sich zu fliehen. . . ”; Schelling cita aqui a última
estrofe: “Wer Großes will, muß sich zusammenraffen; / In der
Beschränkung zeigt sich erst der Meister, / Und das Gesetz nur
56 Preleções

Na força de se encerrar repousa a verdadeira origi-


nalidade, a força da raiz [Wurzelkraft]. Em A = B, B
é justamente o princípio contraente [contrahirende] e
se Deus restringe-se à primeira potência, então se tem
um motivo a mais para chamar isso de uma contração
[Contraktion]. A contração é o início de toda a reali-
dade. Por isso, os homens retraídos [die contraktiven
Menschen] – e não os homens expansivos – são nature-
zas fundamentalmente e originariamente fortes [ur- und
grundkräftige]. Entretanto, o início da criação é também
uma condescendência [Herablassung] de Deus39 ; ele se
deixa em realidade rebaixar ao real, ele se contrai todo
no real. Mas não se encontra aqui nada de que Deus seja
ele mesmo indigno. Justamente essa condescendência
de Deus é o que há de mais grandioso, mesmo no cristi-
anismo. Um Deus metafisicamente fixado nas alturas
[hinaufgeschraubter ] não é adequado nem para as nossas
cabeças nem para os nossos corações.

kann uns Freiheit geben.” – Goethes Werke, Hamburger Ausgabe,


I, p. 245. Essa mesma passagem é citada por Hegel: “Rede”,
Werke IV, Suhrkamp, p. 350. (NT)
39 Como destaca Vetö, essa ideia da criação como condescen-
dência divina vem do filósofo Johann Georg Hamann, para quem
“die äußere Schöpfung ist ein Werk der größten Demut [a criação
exterior é uma obra da mais elevada humildade]”. Kleebatt hel-
lenistischer Briefe, Sämmtliche Werke II, Viena, 1951, p. 171.
(NT)
F.W.J. Schelling 57

2) Esse ato de restrição ou de condescendência de


Deus é voluntário. Não há assim nenhum fundamento
de explicação do mundo a não ser a liberdade de Deus.
Apenas Deus ele mesmo pode romper [brechen] a ab-
soluta identidade de sua essência e abrir espaço para
uma revelação. Ora, toda liberdade verdadeira, i.e.,
absoluta, é ela mesma uma necessidade absoluta. Com
efeito, de um ato de liberdade absoluta não se pode dar [88]
nenhum outro fundamento – ele é, porque é, i.e., ele é
pura e simplesmente, e nesta medida, necessário. Habi-
tualmente se vê a liberdade apenas lá onde se tem uma
escolha, onde um estado de dúvida precede a decisão
que é finalmente tomada. Mas quem sabe o que quer
agarra [a ocasião] sem escolha. Quem escolhe, não sabe
o que quer, e por isso mesmo tampouco quer. Toda
escolha é a consequência de uma vontade não esclare-
cida. Se Deus age ex ratione boni, então ele tem uma
liberdade muito subordinada. Deixar que ele escolha
inteiramente o melhor dos mundos dentre infinitas pos-
sibilidades significa conferir-lhe o mais baixo grau de
liberdade. Um tal ato absoluto é em nós aquele que (430)
funda o nosso caráter. O caráter se constitui a partir
de uma espécie de contração, por intermédio da qual
nós nos damos justamente uma determinidade: quanto
mais intensiva ela for, mais caráter. Ninguém afirmará
58 Preleções

que um homem escolheu seu caráter; o caráter não é


uma obra da liberdade no sentido habitual – e todavia
ele é imputável. Aqui se encontra essa identidade da
liberdade com a necessidade.
3) Apenas por intermédio da autorrestrição de Deus,
é posto um começo do tempo, mas não um começo que
é posto no tempo. Por isso, Deus ele mesmo não é posto
[90] no tempo.
O tempo é posto no real, mas o real não é Deus,
ainda que esteja inseparavelmente ligado a ele. Pois o
real em Deus é o ser ou a existência [Existenz ], o ideal
é o existente, e aquilo em que o real e o ideal são um só
[é] o Deus efetivamente existente e vivo.
O tempo é posto no real (no ser de Deus). Mas o
ser de Deus ele mesmo em seu todo não está no tempo.
Apenas o particular restrito nele progride e se desenvolve.
“Então esse tempo seria posto no real para Deus, e o
tempo [seria], por assim dizer, amalgamado com Deus?”
Resposta: na medida em que a diferença – e assim o
tempo – é posta no real, a posição dessa diferença =
A2 é novamente posta em Deus, no qual está contido
conjuntamente e de modo eterno tudo o que em A =
B se desenvolve de modo temporal. Na medida em que
em Deus considerado absolutamente, i.e., em Deus na
medida em que ele não é nem meramente existência (o
F.W.J. Schelling 59

real) nem meramente existente (o sujeito) – e assim em


Deus como A3 –, A2 e A = B estão em uma articulação
permanente, segue-se então que A = B considerado
nele como sujeito (A2 ) ou na sua consciência se dissolve
igualmente de modo imediato na eternidade de sua
essência.
A2 (Deus como sujeito) é o ponto focal ou a unidade
do tempo.
A3 ou Deus considerado absolutamente não é eterni-
dade nem tempo, mas identidade absoluta da eternidade
e do tempo. Tudo o que está no tempo, está eterna- (431)
mente nele como sujeito, e tudo o que está eternamente
nele como sujeito é temporalmente nele como objeto.
Pergunta 1. Esse ato da autodiferenciação está no
tempo? Ele precede um tempo determinado ou um
tempo infinito? – Resposta: nenhum dos dois. Ele
não está de modo algum no tempo, está acima de todo
tempo e é por sua natureza eterno.
Pergunta 2. O universo tem ou não tem um começo?
Ele tem um começo (porque ele é dependente), mas não
um começo no tempo. Todo tempo está nele, e fora dele
não há tempo.
Na verdade cada coisa [jedes Ding] (não apenas o
universo) tem o tempo em si mesma. Não há nenhum
tempo externo, universal; todo tempo é subjetivo, i.e.,
60 Preleções

algo interno que cada coisa tem em si mesma e não fora


[92] de si. Como porém toda coisa particular tem outras
coisas diante e fora de si, segue-se então que o tempo de
cada coisa pode ser comparado com o tempo de outras
coisas, na medida em que cada uma tem de fato apenas
um tempo subjetivo. Apenas por esse intermédio –
ou seja, por intermédio da comparação, da medida –
constitui-se então o abstractum [das Abstractum] do
tempo. Em si mesmo porém não existe tempo algum. O
real no tempo consiste apenas em diferentes restrições
passadas por um ser. Assim, filosoficamente falando,
podemos apenas dizer: uma coisa passou por essa e essa
restrição, mas não que ela viveu tanto e tanto tempo [so
und so lang]. Esta determinação “tanto e tanto tempo”
só pode se constituir por comparação; mas quando eu
considero um ser por comparação, não o considero em
si mesmo, i.e., não o considero filosoficamente. No
universo, caem por terra todas as possibilidades desse
tipo de ilusão, pois todas as coisas estão nele, e nenhuma
fora dele, de modo que ele não pode ser medido a partir
do tempo de outra coisa que estivesse fora dele.
F.W.J. Schelling 61

II.

Várias expressões que utilizei, como por exemplo


a de uma “contração em Deus” e outras similares, são
sem dúvida estranhas para vocês. Permitam-me então
fazer um esclarecimento geral sobre esse ponto, o qual
projetará uma nova luz sobre o sentido do meu modo [94]
de ver [Ansicht].
(432)
Se queremos formar uma ideia da proto-essência, de
seu ser e de sua vida, então só se pode escolher entre
dois pontos de vista.
a) Ou bem a proto-essência é um subsistente [vorhan-
denes] já pronto e imutável. Este é o conceito habitual
de Deus – da assim chamada religião racional e de todos
os sistemas abstratos. Só que quanto mais fixamos esse
conceito de Deus nas alturas [hinaufschrauben], tanto
mais ele perde em vitalidade para nós, e tanto menos
ele pode ser concebido como um ser efetivo, pessoal e
vivo – similar a nós. Se queremos um Deus que pode-
mos ver como um ser pessoal, vivo, então devemos vê-lo
também como humano, devemos admitir que sua vida
tem a maior analogia possível com a vida humana, que
há [assim] nele ao lado do ser eterno também um devir
eterno, que ele tem em suma tudo em comum com o
62 Preleções

homem, exceto a dependência (dizeres de Hipócrates)40 .


Tendo pressuposto isso, quero lhes dizer agora em
um registro humano comum o que foi exprimido até
aqui de modo mais científico:
Deus é um ser efetivo que não tem nada diante ou
fora de si. Tudo o que ele é, ele é através de si mesmo;
ele parte de si para terminar de volta puramente em si.
Em uma palavra: Deus faz-se a si mesmo, e tão certo
quanto é o fato de que ele se faz a si mesmo, também
é certo que ele não é algo pronto e subsistente desde o
princípio; pois, do contrário, ele não precisaria fazer-se
a si mesmo. – Ora, qual é então o estado originário no
qual se encontra a proto-essência enquanto ela é apenas
em si mesma e não tem nada fora de si?
Todo ser-aí [Dasein] vivo começa pela falta-de-consci-
ência [Bewusstlosigkeit], pelo estado em que se encon-
tra inseparavelmente junto tudo o que depois evolui
somente a partir dali; [neste estado,] não há ainda ne-
nhuma consciência com cisão e distinção [mit Scheidung

40 Passagem de Hipócrates no texto Da doença sagrada, em


que ele afirma a respeito das enfermidades que "πάντα θεία και
ανθρώπινα πάντα [Elas todas são divinas e todas elas são huma-
nas]” – cf. Hipócrates, Da doença sagrada, cap. 18 – a tradu-
ção brasileira deste texto, feita por Henrique Cairus, está dispo-
nível online no endereço: http://books.scielo.org/id/9n2wg/
pdf/cairus-9788575413753-06.pdf (consultado em 29/12/2018).
(NT)
F.W.J. Schelling 63

und Unterscheidung]. Também a vida divina começa


de modo semelhante. Ela contém tudo em si mesma,
ela é uma plenitude [Fülle] infinita, não apenas do ho-
mogêneo, como também do heterogêneo, em completa
não-cisão [Ungeschiedenheit]. Deus é ali apenas como
uma meditação [Sinnen] silenciosa sobre si mesmo – sem
qualquer exteriorização ou revelação. Este é o estado (433)
que designamos como indiferença das potências nele. Ele
já é em si identidade absoluta do subjetivo e do objetivo,
do real e do ideal, mas ele não o é para si mesmo, ele o
seria apenas para um terceiro observador externo, mas
algo assim, como se pode facilmente ver, não existe. Po-
demos apenas antecipar que na verdade todo o processo
de criação do mundo, o processo sempre contínuo na
natureza e na história, não é na verdade nada mais do
que o processo da tomada de consciência completa [der
vollendeten Bewusstwerdung], da completa personaliza-
ção, de Deus. Essa observação surpreendente pode ser [96]
esclarecida do seguinte modo:
Há em nós dois princípios, um inconsciente, obscuro,
e um consciente. O processo de nossa auto-formação
[Selbstbildung] – seja no que diz respeito ao conhecimento
e à ciência, seja eticamente ou mesmo de modo geral no
que concerne a formação ao longo da vida e para a vida
– consiste sempre em elevar à consciência o subsistente
64 Preleções

inconsciente em nós, em elevar à luz a escuridão inata a


nós: melhor dizendo, em alcançar a clareza. O mesmo
[acontece] em Deus. A escuridão vem antes, [e] a clareza
irrompe da noite de sua essência.
Deus tem em si os mesmos dois princípios que nós
temos em nós mesmos. A partir do momento em que
percebemos os dois princípios em nós, que nos cindi-
mos, que nos opomos a nós mesmos, elevamo-nos com
a melhor parte de nós sobre a parte inferior – a partir
desse momento, começa a consciência, mas, justamente
por isso, não [há] ainda a consciência completa. Toda a
vida é na verdade um tornar-se consciente sempre mais
elevado, a maioria [dos seres humanos] fica no nível mais
baixo, e dentre aqueles que se esforçam, a maior parte
não alcança a clareza, e talvez nenhuma vida presente
possa alcançar a clareza absoluta – sempre sobra um
resto de escuridão (ninguém alcança o pico de seu bem
ou o abismo de seu mal).
O mesmo é válido de Deus. O começo da consciência
nele consiste em que ele se cinde de si, se opõe a si. Ele
(434) tem com efeito um superior e um inferior em si – o que
designamos justamente pelo conceito de potências. Deus
tem, em um estado ainda inconsciente, os dois princípios
em si, mas sem se pôr como um ou como outro, i.e., sem
se reconhecer em um ou em outro. Com o despertar
F.W.J. Schelling 65

da consciência, essa cognição [Erkennung] ocorre, i.e.,


Deus põe-se (em parte) como primeira potência, como
não-consciente [als Bewusstloses], mas ele não pode se
contrair como real sem se expandir como ideal, não pode
se pôr como real, como objeto, sem se pôr igualmente
como sujeito (sem liberar desse modo o ideal); e ambos
constituem um ato, ambos são absolutamente simultâ-
neos; com a sua contração efetiva no real é posta sua
expansão efetiva no ideal.
O superior em Deus repele [drängt... hinweg] por
assim dizer o inferior com o qual ele se encontrava até
então em estado de indiferença ou de mistura, e, inver-
samente o inferior, através de sua contração, isola-se
do superior – e isso, tanto no homem como também
em Deus, é o que constitui o começo da consciência, da
personificação [Persönlichwerden].
Mas assim como o homem, no processo de sua auto-
formação ou autoconscientização [Selbstbewusstwerdung],
opõe-se à escuridão e exclui de si o não-consciente
[Bewusstlose], não exatamente para deixá-lo de modo [98]
eterno nessa exclusão, nessa escuridão, mas antes para
elevar esse excluído, esse obscuro, progressivamente à
claridade, para formá-lo [hinausbilden] ao grau do ser
consciente [zu seinem Bewussten], do mesmo modo,
Deus também separa em sua essência o inferior do su-
66 Preleções

perior, e se ele por assim dizer repele [o inferior] de si,


não é exatamente para deixá-lo nesse não-ser, mas para
erguê-lo a partir dali, a partir do não-divino excluído
de Deus – a partir daquilo que Ele mesmo não é, e
daquilo que ele justamente por isso separou de si, a
fim de educar, formar [herausbilden] e produzir o que é
similar e igual a si. A criação consiste assim em suscitar
[Hervorrufen] no excluído o mais alto e verdadeiramente
divino.
Ora, naturalmente esse não-consciente de Deus é,
assim como ele mesmo, um infinito, que não pode por-
tanto ser tão rapidamente esgotado [erschöpft], eis a
origem da duração do processo de criação do mundo
[Weltschöpfung].
Para expandir desde já o horizonte para vocês: esse
(435) ser subordinado [untergeordnetes Wesen], essa escuridão,
essa não-consciência, que Deus busca constantemente
expulsar de seu verdadeiro interior enquanto ser [als We-
sen], que ele exclui de si, é a matéria (certamente não
aquela já formada); a matéria assim nada mais é do que
a parte sem consciência de Deus. Mas na medida em que
ele, de um lado, busca excluí-la de si, ele busca também,
por outro lado, atraí-la para si, formá-la elevando-a para
si, transfigurá-la – ainda que enquanto subordinada –
no seu superior superior, suscitar o consciente a partir
F.W.J. Schelling 67

da não-consciência [aus diesem Bewusstlosen], a partir


da matéria. Segue-se que o processo da criação só cessa
quando a consciência é criada e despertada das profun-
dezas da matéria, i.e., nos homens; e apesar do fato
de que uma imensa massa de privação-de-consciência
[Bewusstlosigkeit] é promovida com os homens ao mais
alto nível para logo ser decomposta e fornecer o material
para novas criações, é de fato no [dia seguinte à criação
do] homem que Deus repousa; sua finalidade principal é
alcançada no homem.
É certamente surpreendente para a maneira abstrata
de considerar, que é a mais usual, que deva haver em
Deus um princípio que não é Deus, [um princípio] que
é sem consciência e menor do que Deus. Quem pensa
Deus como uma identidade vazia, certamente não pode
conceber [tal princípio]. A prova da necessidade dessa
hipótese repousa na lei fundamental da oposição. Sem
oposição não há vida. No homem, assim como em todo
ser-aí em geral, é assim. Também em nós, há um ra-
cional e um irracional. Cada coisa precisa, para se
manifestar, de algo que ela mesma sensu stricto não é.
(Essa concepção opõe-se apenas ao conceito abstrato de
Deus como ens realissimum – illimitatissimum, Deus
certamente não é limitado exteriormente, mas interna-
mente ele o é, de modo tão certo quanto ele é uma
68 Preleções

[100] natureza determinada).


Para nos aproximarmos mais dessa simultaneidade
de um superior e de um inferior em Deus, vale o seguinte.
O real, a não-consciência é o ser de Deus, puro como
tal. Agora, o ser de Deus não é igual [einerlei ] a Deus,
mas efetivamente distinto, tal como no homem. Por isso,
o ideal é o Deus ente ou o Deus existente ou ainda o
(436) Deus sensu eminenti. Pois, em sentido estrito, todos nós
sempre entendemos Deus como o Deus ente. Todavia,
ambos os princípios relacionam-se em Deus do mesmo
como como o ente e o ser. O ideal ou o consciente é
o sujeito do ser, o não-consciente é apenas predicado
desse sujeito, do ente, e assim ele é apenas em função
do ente.
Se também Deus cindiu-se em si mesmo, então ele se
cindiu do seu ser como ente: o que também no homem
constitui justamente o ato moral mais elevado. Nosso ser
é apenas [um] meio, [um] instrumento para nós mesmos.
O homem que não pode se separar de seu ser (que não
se torna independente, que não se liberta dele), que
é fechado e permanece idêntico a seu ser, é o homem
afundado em sua ipseidade [Selbsheit], incapaz de se
elevar – moral – e intelectualmente. Para aquele que
não se separa de seu ser, o ser é o essencial, e não a sua
essência interior, superior, verdadeira. Do mesmo modo,
F.W.J. Schelling 69

se Deus permanecesse encerrado em seu ser, então não


haveria nenhuma vida, nenhum crescimento. Por isso ele
se separa de seu ser, pois este é apenas um instrumento
para ele.
Uma segunda expressão da relação dos princípios
oriunda da primeira [é a seguinte]: eles se comportam
como ente e não-ente.
Explorar a essência do não-ente é justamente o ponto
mais difícil, a cruz, de toda filosofia. Tenta-se sempre
agarrá-lo [greifen], mas nunca se consegue retê-lo firme-
mente.
Uma má compreensão desse conceito é a representa-
ção de uma criação que se origina do nada. Ora, todas
as essências finitas são criadas a partir do não-ente, mas
não a partir do nada. Nem o οὐκ ὄν dos gregos é um
nada, tampouco o μὴ φαινόμενα do Novo Testamento;
trata-se apenas do não-subjetivo, do não-ente, mas justa-
mente por isso do ser ele mesmo. Um não-ente impõe-se
a nós muitas vezes como algo que em outra relação é
um ente. Por exemplo, o que é a doença? Um estado
contra a natureza, e nessa medida um estado que não
poderia ser mas que mesmo assim é, [um estado] que
não tem nenhuma realidade como fundamento e mesmo
assim [tem] inegavelmente uma realidade pavorosa. O
mal é no mundo moral o que a doença é no mundo (437)[102]
70 Preleções

corpóreo; considerado por um lado, ele é a não-essência


mais resoluta, e mesmo assim por outro lado ele tem
uma realidade terrível.
Todo não-ente é apenas relativo – claro, em relação
a um ente superior – mas ele tem também em si mesmo
novamente um ente; B e A não podem assim se separar
em nada.
Por conseguinte, se B = ao puro não-ente, então B
não poderia ser para si; ele tem novamente um A em
si e é assim (A = B); mas esse todo (A = B) relaciona-
se a um superior novamente como um não-ente, como
simples alicerce [Unterlage], mero material, mero órgão
ou instrumento, ainda que por sua vez ele seja em si
mesmo um ente. Apliquemos isso agora àquilo que
chamamos de ser em Deus: ora, em relação ao ente de
Deus o ser é um não-ente, isto é, o ser se relaciona a
ele originalmente como mero suporte, como algo que
enquanto tal não É, [e] que é meramente para servir
como base [Basis]41 ao verdadeiro ente. E contudo ele
é por sua vez mesmo assim um ente em si mesmo.
Em outras palavras, e como já o expressei anterior-

41 Como reconhece o próprio Schelling em uma carta do dia 28


de abril de 1809 (Briefe III, p. 596), a origem dessa noção de
Basis encontra-se na obra do naturalista alemão Gotthilf Heinrich
von Schubert. Ver em especial Ahndungen einer allgemeinen
Geschichte des Lebens, I, Leipzig, 1806, p. 52ss. (NT)
F.W.J. Schelling 71

mente: não há nada que seja pura e simplesmente ob-


jetivo em Deus, pois isso não seria nada; mesmo o que
é objetivo em Deus relativamente ao mais alto é, em si
mesmo, novamente subjetivo e objetivo, não meramente
B, mas A e B.
Ainda por um outro lado.
O mero ser em Deus não é nenhum ser morto, mas
também em si novamente um [ser] vivo, que contém
em si novamente um ente e um ser. Deus ele mesmo
está acima da natureza, a natureza é seu trono, sua
subordinada; mas nele tudo é tão cheio de vida, que
mesmo essa subordinada irrompe por sua vez em uma
vida própria, a qual considerada puramente para si
é uma vida completa, ainda que em relação à vida
divina ela seja uma não-vida. Foi assim que Fídias
retratou a luta dos Lápitas e dos Centauros à sola dos
pés de seu Júpiter. Desse modo – talvez guiado por esse
maravilhoso instinto que se encontra em todas as obras
gregas – o artista insuflou uma vida vigorosa [kräftig] (438)
mesmo na sola dos pés de Deus, de modo que mesmo o
mais externo e distante de Deus é ainda em si mesmo
repleto de uma vida vigorosa.42 [106]
Pela teoria dos dois princípios que em Deus são

42 Para a manutenção do paralelo com o manuscrito Georgii, a


página 104 da HKA foi deixada em branco. (NT)
72 Preleções

um, evitamos dois desvios [Abwege] pelos quais se cos-


tuma errar [verriren pflegen] na doutrina de Deus. Com
efeito, dois erros são cometidos em relação à ideia de
Deus. Segundo a visão dos dogmáticos, a qual é tida
por ortodoxa, Deus é tomado como uma essência auto-
subsistente, particular, isolada, individual, de modo
que mesmo a criatura é dele excluída. A visão geral
panteísta, por outro lado, não atribui a Deus nenhum
ser-aí auto-subsistente, particular e único; ela antes o
dissolve em uma substância universal, que é apenas o
suporte [Träger ] das coisas. E contudo Deus é na ver-
dade ambos; ele é antes de tudo [zuvörderst] a essência
das essências, mas enquanto tal ele também deve existir,
i.e., ele deve, como essência de todas as essências, ter
uma sustentação [Halt], um fundamento [Fundament]
para si. Assim: Deus é em sua mais alta dignidade a
essência universal de todas as coisas, mas essa essência
universal não flutua no ar, ela é na verdade fundada
e por assim dizer sustentada por Deus como essência
individual – o individual em Deus é assim a base ou o
alicerce [Unterlage] do universal.
Assim, também dessa perspectiva, há dois princípios
em Deus. O primeiro princípio ou primeira proto-força
[Urkraft] é aquela pela qual ele é uma essência indivi-
dual, singular e particular. Podemos chamar essa força
F.W.J. Schelling 73

de ipseidade [Selbstheit] ou de egoísmo em Deus. Se


essa força estivesse sozinha, então existiria apenas Deus
como essência particular, isolada, singular, e não ha-
veria nenhuma criatura. Não haveria nada senão um
eterno encerramento e aprofundamento em si mesmo, e
essa força própria [Eigenkraft] de Deus, sendo sempre
uma força infinita, consistiria em um fogo consumidor
[verzehrende] no qual nenhuma criatura poderia viver.
(Devemos pensá-lo segundo a analogia da força do ânimo
[Gemüth] que se exterioriza [sich äußert] em um homem
altamente fechado ao qual atribuímos um sentimento
obscuro, e que justamente por isso chamamos de som-
brio). Esse princípio está porém em uma oposição eterna
a outro princípio, o princípio do amor, através do qual
Deus é verdadeiramente a essência de todas as essên- (439)
cias. O mero amor por si mesmo porém não poderia
ser, não poderia subsistir, pois justamente na medida
em que ele é por sua própria natureza expansivo e infi-
nitamente comunicativo [mitteilsam], ele iria se diluir
se uma proto-força contrativa não estivesse nele. Nem
o homem pode ser composto de mero amor, nem Deus.
Se há um amor em Deus, então há também uma cólera
[Zorn], e essa cólera ou a força própria em Deus é o que
dá sustentação, fundamento e constância ao amor.
Mas essas designações dos dois princípios agora en-
74 Preleções

contradas são apenas as expressões humanas para as


[expressões] abstratas: ideal e real. O amor é o ideal em
[108] Deus, e o egoísmo é o real.
Do mesmo modo o amor é Deus ele mesmo, o ver-
dadeiro Deus, o Deus, que é por meio da outra força.
O egoísmo divino por outro lado é a força, que não é
a mesma, mas aquela por meio da qual o amor, i.e., o
verdadeiro Deus, é. Também poderíamos pensar inici-
almente esses princípios em uma certa indiferença em
Deus, mas justamente se eles permanecessem nessa indi-
ferença, então não poderia se desenvolver nem o próprio
Deus nem o que quer que seja. A verdadeira realidade
de Deus consiste precisamente na atividade e na deter-
minação recíproca desses dois princípios.
O primeiro passo para tanto é também aqui a cisão:
Deus cinde o amor em si, i.e., cinde o seu próprio e
verdadeiro si [Selbst] do [seu si ] impróprio. Essa cisão
só pode acontecer de tal modo que ele eleve [erhöht] um
princípio sobre o outro, e subordine inversamente esse
outro. A subordinação do egoísmo divino sob o amor
divino é o começo da criação [Creation]. O egoísmo é
= primeira potência, o amor = segunda potência ou
potência superior. A partir do mero egoísmo não existi-
ria nenhuma criatura. Na medida porém em que ele é
subordinado ao amor, ele é ultrapassado pelo amor, e
F.W.J. Schelling 75

essa ultrapassagem do egoísmo divino pelo amor divino


é a criação [Schöpfung] (Natureza = força curvada [ge-
beugter ]). O egoísmo divino é a essência fundamental
da natureza – eu não digo: ele é a natureza, pois a ver-
dadeira natureza viva, como nós a vemos diante de nós,
já é o egoísmo divino atenuado e neutralizado pelo amor
divino. Mas ele [o egoísmo] é a essência fundamental da
natureza, o material do qual tudo é feito. (440)
Agora voltemos novamente aos conceitos precedentes
do ser em Deus (que se relaciona a Deus do mesmo modo
que o não-ente se relaciona ao ente).
O ser em Deus é = o egoísmo divino, a força pela qual
Deus subsiste como uma essência própria. Assim, ele é
o Deus inteiro, apenas na forma da egoidade [Egoität].
A egoidade é por conseguinte apenas a potência ou o
expoente sob o qual a essência divina é posta. Se a esse
expoente ou potência não houvesse uma outra oposta,
então Deus permaneceria, em função dessa potência,
em um eterno encerramento e contração – como na
natureza exterior, se uma outra força não agisse contra a
proto-força contrativa no sol, a Terra seria fria, sombria,
completamente oclusa [verschlossen] e sem criaturas. Do
fato porém de que a essa potência do amor = A opõe-se
uma outra potência, a da egoidade = B, desperta-se no
próprio B, que contém todo o absoluto apenas no estado
76 Preleções

de involução (de oclusão), a oposição nele obliterada e


não-revelada e, com ela, simultaneamente o divino. Pois
o que é o divino? Resposta: o elo vivo (que contém
uma oposição em si) do ideal e do real. Se então no
próprio B são despertados um A e um B, de tal modo
B
que A=B , i.e., [de modo que] A e B estão sob B, então há
também agora em B um elo (uma identidade) do ideal
[110] e do real, i.e., o divino, despertado. Há assim aqui um
divino desenvolvido a partir do não-divino, do não-ente
B
(B). A=B = Natureza. Aqueles que estão familiarizados
com os fenômenos físicos podem pensar de modo mais
claro essa vivificação [Belebung] da natureza por meio
do exemplo da divisão [Verteilung] magnética.
Deus exclui B de si, i.e., de A; mas ele não pode
excluir B sem lhe opor A, [e] não [pode] opor A sem
B
excitar B, e assim A=B .
(441) Esse A que está na natureza não se introduz nela, ele
está nela desde o princípio, pois Deus inteiro está nela,
mas em estado germinal; ela é Deus em sua involução,
ou também o Deus potencial, na medida em que o ideal
é o Deus atual.
A criação continuada consiste justamente no fato
de que esse estado de involução em B é continuamente
superado [aufgehoben], que o por assim dizer divino
adormecido [schlummernd ] é nele despertado e evoluído
F.W.J. Schelling 77

[evolvirt]; a natureza [é] assim um divino, mas um divino


de natureza inferior, um divino [que é], por assim dizer,
despertado da morte, um divino elevado do não-ser ao
ser, de modo que ele permanece certamente sempre
cindido do divino proto-inicial [von dem urfänglichen
Göttlichen], o qual não é despertado do não-ser para o
ser.
Em uma palavra, essa natureza visível é natureza
apenas segundo a forma, por sua essência contudo ela é
divina. Ela é a essência divina, contudo, não no ente,
no A, mas a essência divina apresentada no não-ente.
Desse modo seria então esclarecida também a relação
da natureza com Deus. Objetaram a este sistema que
ele deifica a natureza. Eu aceitaria essa objeção, se não
se supusesse aqui que B é inicialmente um não-divino-
absoluto, que seria em seguida deificado. Mas ele já
é originalmente um princípio divino e [ele é] apenas
relativamente (em relação a A) um não-divino. Na
medida contudo em que ele é içado dessa relativa não-
divindade ao divino, i.e., ao ente, segue-se que é o próprio
Deus (e não nós) que deifica a natureza.
Uma outra objeção que se faz a este sistema é que ele
identificaria Deus com a Natureza. Mas aqui a distinção
é clara. Por Natureza se entende primeiramente o mero
B, aquela proto-força obscura, que, em sua totalidade,
78 Preleções

é o fundamento de toda a existência, o ineliminável


que não pode ser dissolvido por nenhum menstruum
(solvente universal)43 . Ora, poder-se-ia dizer que, de
acordo com o meu sistema, este B seria Deus em sen-
tido estrito? De modo algum, ele é apenas o ser de
Deus (distinto do ente; sob Deus como tal entende-se
sempre o Deus ente). Deveríamos então denominá-lo
divino? Sem dúvida, pois ele é uma proto-força divina,
(442) mas não em sentido estrito (no sentido de que ele per-
tenceria ao verdadeiro sujeito divino, à sua essência
[112]
interior). Ele é divino, porque ele pertence a Deus, por-
que permanece ainda em Deus mesmo na cisão inicial,
como o próprio princípio obscuro em nós que é chamado
igualmente de humano, mesmo que ele não seja nossa
verdadeira essência, e que deva na verdade ser por ela
dominado. – Por outro lado, o A em B é sem dúvida
divino e certamente já em um sentido mais elevado do
que o B, que pode ser chamado de divino apenas em
sentido amplo. Todavia, também o A em B é de tal
modo suficientemente distinto do A absoluto, que ele
43 O conhecido dicionário de física da época de Schelling Physi-
kalisches Wörterbuch define Menstruum como um meio de dissolu-
ção, um solvente (Auflösungsmittel), e acrescenta: "denominam-se
menstrua, menstrues, os corpos capazes de diluir outros corpos, so-
bretudo os líquidos utilizados na diluição de sólidos", cf. GEHLER
Johann Samuel Traugott, Physikalisches Wörterbuch, Leipzig:
Schwickert 1787, t. I, p. 181. (NT)
F.W.J. Schelling 79

é apenas um espiritual despertado e suscitado em B,


no não-ente. Se por Natureza entendemos não A nem
B, mas o todo A = B, então deve ser feita aqui antes
de tudo a distinção entre [i] A = B, enquanto o ligado
em A e em B, e [ii] A = B na medida em que ele sig-
nifica o elo vivo de ambos, ou na medida em que se
considera o ligante. Aquele [o ligado] é a natureza como
produto ou a proto-matéria [Urmaterie], a qual ainda
une espírito e corpo absolutamente, e a qual não se pode
dizer que tenhamos identificado com Deus, salvo por
desconhecimento dos primeiros elementos do sistema.
Se consideramos porém o elo entre ambos, então este [o
ligante] não é simplesmente divino, mas ele é Deus; não
o Deus absolutamente considerado, mas o Deus engen-
drado [erzeugte] no não-ente, cujo genitor é justamente
o Deus absolutamente considerado ou o Deus ente. O
elo em A = B (se o tomamos justamente por toda a
natureza) é assim sem dúvida Deus, mas é Deus como
engendrado por si mesmo, Deus como filho, do qual diz
com razão a Escritura, na medida em que ele é a essência
da natureza, que tudo é feito por ele, [e que] sem ele
nada foi feito. Essas ideias da Escritura foram proscritas
porque não foram entendidas, algo similar ao mistério
dos defensores das "luzes"[Aufklärerei ], que, pelo menos
em sua maioria, fizeram da limitação de suas faculdades
80 Preleções

intelectuais uma virtude 44 . Eu não quero provar nada


com essas expressões, e tampouco [quero assim] tornar
o meu sistema ortodoxo. Este elo foi chamado muito
expressivamente de a Palavra [das Wort]45 , a) pois nela
e com ela surge pela primeira vez toda distinguibilidade;
(443) b) pois nela são pela primeira vez organicamente ligados
o ser-mesmo e o não-ser-mesmo, o si-soante [vogal] e o
44 Auklärerei é um neologismo de sentido pejorativo formado a
partir da palavra Aufklärer (iluminista). A tradução resultaria em
algo como "alumiação", "lumaréu". O termo, como explicado por
Schelling na sequência, é uma ironia contra aqueles que, a partir
de uma certa compreensão abusiva do iluminismo (Aufklärung),
faziam das limitações intelectuais humanas uma virtude, ao invés
de tomá-las como o motor da busca de outros métodos, outras
abordagens e outros modos de saber. A Aufklärerei seria assim
uma espécie de degeneração da Aufklärung. Fichte é um dos pri-
meiros autores a empregar o termo em um texto polêmico contra
Friedrich Nicolai, um dos principais representantes do iluminismo
de Berlim (Berliner Aufklärung), publicado em 1801 sob o título
Friedrich Nicolais Leben und sonderbare Meinungen. No texto,
Fichte fala de uma "Aufklärerei der Bibliotekare"(as "luzes"dos
bibliotecários), que aplicam indiscriminadamente neologismos e
neo-modismos a todo tipo de saber, resultando frequentemente em
meras banalidades - Fichte, Gesamtausgabe der Bayerischen Aka-
demie der Wissenschaften, ed. por Erich Fuchs, Hans Gliwitzky,
Reinhard Lauth e Peter K. Schneider, Reihe I: Werke; Reihe II:
Nachgelassene Schriften; Reihe III: Briefe; Reihe IV: Kollegnachs-
chriften, Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1962-2012, Reihe I, vol.
7, p. 396 e p. 443 (doravante GA). (NT)
45 Schelling refere-se ao célebre primeiro versículo do Evangelho
segundo João, “᾿Εν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος” usualmente traduzido em
português por “No começo era o verbo”. O termo Λόγος contudo
contém uma riqueza semântica que permite diversas traduções,
como “Palavra (Wort)” que é a tradução usual em alemão. (NT)
F.W.J. Schelling 81

com-soante (A = si-soante [vogal]; B = consoante, o ser


por si mudo e que, pela primeira vez por meio do ideal
ou A, é elevado à compreensibilidade)46 . [114]
Eu esclareço meu sistema através da seguinte visão
geral da nova filosofia.

O dualismo absoluto
de
Descartes:

A B
O espiritual, o simples, i.e., O Material ou corpóreo,
o não composto (conceito totalmente morto, meca-
totalmente insuficiente) nismo

Spinoza A = B = Identidade absoluta de todos os


princípios.
46 Como destacam Vetö e os tradutores franceses Jean-François
Courtine e Emmanuel Martineau, essa imagem da associação
entre vogal e consoante, cujo desdobramento em outras obras
do período é reconstruído com grande erudição por Miklos Vetö
(op. cit., pp. 246-248), é oriunda muito provavelmente de uma
carta de Hamann a Kant de dezembro de 1759 em que se lê “Die
Natur ist [. . . ] ein hebräisch Wort, das mit bloßen Mitlautern
geschrieben wird, zu dem der Verstand die Puncte setzen muß [A
natureza é uma palavra hebraica escrita apenas com consoantes
a que o entendimento deve atribuir a pontuação]” (AA, X, p.
28) – cf. Schelling F.W.J., Œuvres Métaphysiques (1805-1821),
traduites de l’allemand et annotées par Jean-François Courtine et
Emmanuel Martineau, Paris: Gallimard, 1980, pp. 369-370. (NT)
82 Preleções

Quando se fica apenas na generalidade do sistema


spinozista, pode-se até pensar que ele seja o mesmo
que o novo sistema da identidade ou que eles sejam o
mesmo quanto ao fundamento. Digo-lhes rapidamente
a diferença:
a) Spinoza tem de fato a identidade absoluta dos
princípios, mas esses princípios estão em completa ina-
tividade um em relação ao outro, eles não fazem nada
um ao outro, não agem um sobre o outro, eles são;
não há entre eles nenhuma oposição viva, nenhuma in-
terpenetração viva. ([Trata-se de uma] mera ligação
[Zusammenknüpfung] de ambas as substâncias de Des-
cartes).
b) A física de Spinoza é toda mecânica – somente este
fato já deveria mostrar para todo aquele que refletisse um
pouco sobre o assunto que há uma diferença de origem
entre os princípios fundamentais da filosofia da natureza
e o spinozismo. (Sobretudo a falta de movimento no
sistema de Spinoza, sua falta de ânimo [gemüthlos]).
c) Spinoza diz acertadamente que a substância pen-
sante e [a substância] extensa (= Ideal e Real) pertencem
a uma e mesma substância, da qual elas são atributos,
mas em seguida ele ignora esta substância da qual elas
são atributos, determina-a fundamentalmente apenas
pelo conceito vazio de identidade (pois ele a apreende
F.W.J. Schelling 83

como falta de oposição), e a põe inteiramente de lado ao


invés de fazer dela o seu objeto principal. Justamente (444)
aqui, onde Spinoza nada busca, repousa o conceito do
Deus vivo, [o conceito] de Deus como personalidade mais
alta; por isso, não se pode negar que Spinoza ignora,
ou mesmo nega positivamente, a personalidade da mais
alta essência. [116]
Leibniz tem de A e B apenas o A; o B, justamente o
obscuro, o ser, o existente é totalmente apagado, total-
mente dissolvido no poder de representar. Há decerto
ali uma identidade, mas ela é inteiramente unilateral e
não bilateral. Entretanto Leibniz tem certamente sob A
novamente A e B, i.e., ele nega sem dúvida a realidade
do mundo corpóreo em geral e no todo, pois ele toma
tudo por mônadas capazes de representação, mas atribui
por outro lado realidade ao que chamamos de mundo
corpóreo na medida em que este é composto de forças
representativas, como no caso por exemplo da árvore,
etc.
Em oposição ao intelectualismo encontra-se o materi-
alismo superior, o hilozoísmo [Hylozoismus] (que existia
sem dúvida já há muito tempo, mas [cuja presença se fez
sentir] sobretudo a partir de Leibniz). O hilozoísmo tem
apenas B, mas sob esse B encontra-se novamente um A
e um B. Poder-se-ia considerar o hilozoísmo e a filosofia
84 Preleções

da natureza como similares. Contudo, a diferença é a


seguinte: o hilozoísmo afirma uma vida originária da
matéria, nós não. Nossa afirmação na verdade é: a
matéria contém certamente uma vida, contudo não actu,
mas potentiâ, não explicite, mas implicite – tudo nela
está sob o selo [Siegel ] do ser, da morte. (Eu preciso
de fato dessa palavra: deve-se reconhecer também uma
morte, mas uma morte tal que contém em si a vida). A
matéria só é despertada para a vida explícita, verdadei-
ramente avivada, por meio do ideal, do divino. Assim
de certo modo o hilozoísmo começa lá onde a minha
filosofia geral termina. (Ação vantajosa do hilozoísmo
na física: Bruno, Kepler, e outros).
Uma vez iniciado o processo de desarticulação, no
sentido de uma regressão, tudo decaiu ainda mais. Com
efeito, de A e B sob B excluiu-se o A, e assim sobrou
apenas B – uma substância morta, sem qualquer interi-
(445) oridade, dividida em seguida, e com razão, em átomos,
em uma poeira de corpúsculos que agem apenas por
meio de sua figura (algo exterior, sem nenhuma qua-
lidade própria); e a partir disso deveria ser explicada
não só a natureza, como também o ser-aí, o mecanismo
do espírito – [este é o] Système de la nature, o materia-
lismo francês, [que é] o materialismo mais baixo47 . Seu
47 Alguns dos primeiros leitores da filosofia da natureza de
F.W.J. Schelling 85

polo oposto é o idealismo estabelecido na Alemanha por


Kant e Fichte. Ora [o texto de] Kant permite muitas
interpretações. A interpretação de Fichte exclui B de A
e B sob A, de modo que não há intelectualidade fora de
nós, não há nada fora de nós, há apenas um Eu subje-
tivo, apenas a espécie humana está aqui. Golpe mortal
à natureza – aliás, o mais estranho é que Fichte deve
sempre se assegurar de que a natureza não é subsistente
e, ao mesmo tempo, ele deve sempre novamente supô-la
como subsistente (explicação teleológica; ação sobre a
natureza). [118]
Desse modo, como a decomposição prosseguiu até
o nível mais baixo, não restou mais nada a ser feito, a
não ser voltar à oposição fundamental a partir da qual
começou toda a nova filosofia, e que era a única que
não tinha sido dissolvida – a saber, a oposição entre
identidade e dualidade. E foi isso o que tentei. Eu

Schelling associaram-na ao materialismo francês – formado por


autores como o Barão de Holbach, Julian Offray de La Mettrie,
Denis Diderot, Claude-Adrien Helvétius, dentre outros – cujas
reflexões sobre a natureza tinham alcançado certo destaque na
segunda metade do século XVIII. Lê-se por exemplo em um
artigo anônimo publicado na revista Aurora em 7 de maio de
1805 “neuesten Natur-System – Système de la Nature – einiger
Deutschen. . . ” [o mais novo Natur-System – Système de la Nature –
de alguns alemães...] in: Von Görres J., Gesammelten Schriften
III, p. 492. Ver também: An das Publicum (1805), in: Fuhrmans
H., Schelling, Briefe und Dokumente I, Bonn, 1962, p. 324. (NT)
86 Preleções

sempre disse que a identidade absoluta para mim não


é mera identidade, mas a identidade da unidade e da
oposição.
Seguem-se pois:
a) dois princípios distintos A e B, e portanto
um dualismo. Mas
b) desconsiderada a oposição, os dois princí-
pios são um.
No que diz respeito à relação do meu modo de ver a
natureza à física e à filosofia dominantes de nosso tempo,
o essencial é que segundo a minha visão não haveria
nenhuma natureza pura e meramente objetiva, nenhuma
natureza que seria meramente ser, i.e., não-ente. Eu
chamei essa relação – segundo a qual nada é meramente
subjetivo ou objetivo, mas sempre ambos ainda que em
diferentes relações – de simples diferença quantitativa.
Isso quer dizer que entre os princípios como tais, entre
A e B, não há nenhuma diferença quantitativa simples,
pois entre eles se encontra a [diferença] qualitativa mais
categórica; porém em todo efetivo, seja ele de que espécie
(446) for, estão reunidos o subjetivo e o objetivo, o ideal e o
real, em graus distintos. Isso foi esclarecido através do
esquema (magnético) na Revista de física especulativa,
II, 2, §46, à qual eu me refiro na sequência.
Basta sobre o geral. Agora vamos ao específico da
F.W.J. Schelling 87

natureza, ainda que eu me restrinja ao mais indispensá-


vel.
A expressão geral da natureza é, como já sabemos,
B
A=B , ou ainda, como já pusemos A = B como a pri-
meira potência, então = B: a natureza, em relação a
todo o universo do qual ela é apenas como uma parte
subordinada, é = na primeira potência = (A = B). Isso
não impede porém que ela contenha novamente em si
todas as potências e, como já foi observado, que ela se
cinda tanto quanto uma cisão é em geral possível. Vê-se
a natureza perder-se nas coisas corpóreas, por exem-
plo nos metais. Estas coisas estão assim no polo B de
nossa linha. Como porém cada reino forma novamente
um todo para si, também os metais, que por um lado
se perdem ainda mais na corporeidade, por outro lado
se tornam voláteis, talvez mesmo dissolvendo-se no ar.
Todo o reino do material [des Materiellen] expande-se
assim em duas direções, dentre as quais em uma predo-
mina o corpóreo e em outra o espiritual. Todavia, em
oposição a todo esse reino do corpóreo, encontra-se em
toda a natureza um reino espiritual, ao qual pertencem [120]
a aparição da luz, do calor, da eletricidade e de tantos
outros [elementos]. Finalmente, surge um reino em que
o espiritual e o carnal [Leibliches] interpenetram-se, o
reino da natureza orgânica, e nesta aparecem as plantas
88 Preleções

e os animais.
Mas, como já o vimos, aqui neste todo se encontra
apenas a primeira potência A = B. E mesmo se o A2 é
extraído da própria natureza, ele se constitui somente
no limite da natureza, no homem. Assim, ainda que
toda a natureza = primeira potência, ela se desdobra
mesmo assim em três potências, através das quais nós a
observaremos brevemente.
(447) A primeira potência é a do ser dominador ou da
corporeidade dominadora – mas de tal modo que tam-
bém neste ponto mais extremo da série estão postos:
o espiritual, o corpóreo [Körperliches] e a unidade de
ambos. Como se sabe, a corporeidade baseia-se no ser-aí
das três dimensões. Essas três dimensões não são de
fato nada mais do que as três potências em uma única:
1) a dimensão egoísta, pela qual uma coisa se põe como
si mesma = comprimento, linha, ou, o que é o mesmo,
coesão[Cohärenz ]. Por meio apenas da coesão, cada
coisa progrediria ao infinito, se ela não fosse justamente
limitada por outra dimensão. Por isso 2) a dimensão
ideal (limitante da dimensão egoísta) = largura. 3)
Indiferença = terceira dimensão.
O dominante dessa potência em seu todo é B, i.e., A e
B são de novo postos conjuntamente sob B; este B, sob o
qual A e B são de novo conjuntamente postos, e que é por
F.W.J. Schelling 89

assim dizer B2 , é a força que tudo constrange [zwingt] e


une – a gravidade [Schwere]. A gravidade na natureza
[é] a noite, o princípio obscuro, eternamente evadido da
luz, mas que fornece, por meio dessa sua evasão, suporte
e permanência às criações da luz. (Se não houvesse
algo inalcançável oposto à luz e ao pensamento, então
não haveria nenhuma criação e tudo seria dissolvido em
puros pensamentos.)
Também na matéria, na medida em que ela está
simplesmente sob a potência do ser, estão igualmente
ligados o ser e a atividade (pois podemos expressar o
ideal também assim, i.e., como atividade), mas ser e
atividade estão ainda ambos engolidos [verschlungen]
no ser, e A = B, ou o corpóreo da primeira potência,
comporta-se em relação ao espiritual ou ao ideal do
mesmo modo como o B inicial o fazia – ele é justamente
a indiferença que o espiritual ou ideal busca diferenciar,
polarizar, desmembrar [zerlegen].
Por meio desse diferenciar aparece pela primeira vez
a diferença de qualidades: como essa diferença é fun-
damentalmente inesgotável, e como uma apresentação
científica própria exige somente que ela seja apresentada
em suas ramificações mais próximas, vou me ater ao
mais simples, a saber, à mais antiga divisão segundo [122]
os quatro elementos, à qual a nova química continua
90 Preleções

sempre a remeter.
(448) Em A = B, B é o elemento da terra – o verdadeiro
princípio da terra. Se o todo A = B é polarizado na
direção de B, então se constitui ali o reino do princípio
dominante da terra, o qual tem novamente dois lados
(metais e terras).
O elemento oposto à terra, ou A, é o ar, por assim
dizer o elemento espiritual, ideal. Fora da oposição de
A e B temos que considerar ainda uma outra oposição.
Trata-se da oposição entre o elo [Band ] e os ligados
[Verbundenen]. O elo se comporta como o producente,
os ligados como o produzido, assim também aqui se
encontra novamente um ativo e um passivo, um ideal e
um real.
Ora, o producente, ou o elo, quando ele está unido ao
produto, não é de fato nada mais do que o viver e mover-
se interior, a chama suave e abrandada da vida que
arde em cada ser, até mesmo nos aparentemente mortos
(como os clarividentes podem vê-lo): porém, [quando
o producente está] em oposição e contradição com o
produzido, ele se torna o fogo consumidor [verzehrende].
O elemento do fogo é hostil à individualidade [Ei-
genheit] ou ipseidade das coisas. Enquanto o produto
permanece como o não-ente em relação a ele, i.e., como
a base, como o subordinado, ele é pacífico. Contudo,
F.W.J. Schelling 91

quando o produto quer se atualizar em oposição à essên-


cia, [quando] o não-ente quer insurgir-se contra o ente,
então surge o fogo da cólera.
O elemento do qual o fogo carece [sucht] como da-
quilo que lhe é apropriado, o único no qual ele repousa, é
a água. Fogo e água constituem assim as duas oposições
mais elevadas, mas justamente aquilo que é mais oposto
é sempre também aquilo que é mais ligado. A água é
apenas o fogo fluido; [já] o fogo in concreto, a flama, a
qual de fato nunca surge sem a ação conjunta da água,
[é] apenas a água ardente, incandescente. Uma afini-
dade mais próxima de ambos: 1) os meteoros aquosos,
2) a força consumidora [verzehrende] que repousa na
água. Além disso, ela contém, por um lado, a essência
inflamável e, por outro lado, o Menstruum universale, o
oxigênio. A água na sua vivacidade (no mar) está por
toda parte unida com o fogo48 .

48 Como sublinha Vetö, o fluido é o produto primordial da


natureza que mais se aproxima de sua pura produtividade como
destruição-criação incessante, sua primeira manifestação fenome-
nal é a matéria-quente como princípio universal da fluidificação,
matéria na qual fogo e água se articulam – cf. Version inédite,
p. 248. Algumas fontes de Schelling para tal concepção do fluido
encontram-se em Jakob Böhme – De Tribus Principiis (1619)
Mysterium magnum (1623) – Friedrich Cristoph Œtinger – Swe-
denborgs und anderer Irrdische und himmlische Philosophie (1765)
– e Franz Xaver von Baader – Vom Wärmestoff (1786). Essa
mesma articulação entre fogo e água encontra-se aliás em Hegel que
92 Preleções

(449) Os antigos admitiam ainda, não sem razão, um


quinto elemento, uma quinta essentia. Ela não é nada
mais do que a própria proto-matéria, [a qual é] intei-
ramente espiritual e inteiramente corpórea [körperlich]
[124] – o elemento carnal [leiblich] (pois a carne [Leib] já é
= identidade de A e B49 ). Sobre este elemento em sua
pureza, o fogo não tem nenhum poder. Entre ele e o
fogo há uma verdadeira identidade – não como a água,
[que lhe é idêntica] somente pelo negativo, pela negação
de todas as propriedades, mas [ele o é] pela positividade
mais alta ou [pela] perfeição. Trata-se daquela carnali-
dade [Leiblichkeit] indestrutível pelo fogo. O elemento
que dele mais se aproxima é o elemento que perma-
nece ainda altamente enigmático, e que a nova química

trata a água como “das indifferente Ineinander-Aufgenommensein


der Momente der Totalität des Feuers” (Hegel, Jenenser Realphi-
losophie I, Leipzig, Felix Meiner, 1932, p. 44) e que afirma ainda
que “Die Neutralität, worin das Feuer versinkt, das erloschene
Feuer, ist das Wasser” (Hegel, Enzyklopädie, §283, Zusatz, in:
Werke VII, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 193). (NT)
49 Leib é uma designação do corpo de animais e de homens (ver:
Das Wortauskunftssystem zur deutschen Sprache in Geschichte
und Gegenwart, disponível online em: https://www.dwds.de/wb/
Leib), trata-se de um corpo ao qual a vida é associada, um corpo-
vivo, corpo-articulado ou corpo-de-carne. Nesse sentido, ele difere
de Körper, que é um termo mais geral para designar qualquer
corpo. Por isso, adotaremos a tradução carne e carnalidade para
Leib e Leiblichkeit a fim de marcar a diferença com Körper e
Körperlichkeit – que traduziremos por corpo e corporeidade. (NT)
F.W.J. Schelling 93

designa como nitrogênio [Stickstoff ], a base do reino


natural animal. O nitrogênio tem um teor altamente
incombustível, mesmo diante da chama mais violenta;
apenas por meio de faíscas elétricas é possível [inflamá-
lo] ou então através da mistura com um elemento pior
capaz de fazê-lo decair. Pois tudo o que arde no fogo
tem em si algo de imperfeito, de ruim, de corrompido. –
Agora a passagem para a segunda potência.
A atividade antes posta apenas implicite ou potenci-
almente é agora explicite ou atualmente: a vida efetiva
da matéria – o processo dinâmico.
A primeira potência, dizíamos já anteriormente, com-
porta-se como involução [Involution] – o princípio dessa
involução é a gravidade [Schwere].
À gravitação [Schwerkraft], que é dominante em A
= B, opõe-se um A2 , que se comporta em relação à
gravidade do mesmo modo que o ente absoluto, o A
absoluto, [se comporta] em relação ao B inicial, i.e.,
em relação à natureza. Do mesmo modo que este [o A
absoluto] desperta na natureza a oposição e, com ela,
a vida, do mesmo modo o A2 da natureza desperta a
oposição na gravidade e, com ela, a vida. Este A2 =
éter, o imaterial no material. Nas qualidades em repouso
da matéria, a oposição já foi despertada. A gravidade
contudo não se comporta passivamente, ela resiste actu
94 Preleções

à evolução – escuridão positiva. Por meio desse conflito


em ato, surge pela primeira vez uma vida efetiva na
matéria. Este é o processo dinâmico. Também sobre
(450) este ponto me restrinjo às considerações mais gerais.
Distinguimos: 1) os processos ou formas de atividades
que se encontram mais no corpóreo ou no produto, e
2) a figura [Gestalt] espiritual desses mesmos processos.
Os três processos fundamentais da primeira espécie são:
a) o magnetismo = primeira dimensão = ipseidade,
egoidade, b) a eletricidade = polaridade ou oposição
entre o producente e o produto, entre o ativo e o passivo
– dois corpos, dos quais um é sempre passivo e o outro
o ativo. (No que diz respeito à Terra, é através destes
dois processos que são determinados os pontos cardeais
[Weltgegenden]), c) a totalidade de todos os processos
= quimismo [Chemismus] ou galvanismo (na verdade
somente o quimismo vivo no qual a eletricidade é ainda
reconhecida como coativa). Finalmente, processo de
combustão.
No que concerne à figura espiritual desses processos,
tem-se o seguinte: a) o processo espiritual que corres-
ponde ao magnetismo = o som; b) o [processo espiritual]
que como ideal corresponde à eletricidade = o processo
[126] da luz (a luz [é] uma matéria espiritual), c) o [processo
espiritual] correspondente ao quimismo, na medida em
F.W.J. Schelling 95

que o producente permanece idêntico ao produto = pro-


cesso térmico (calor penetrante). Em conflito categórico
com o produto = o fogo (o fogo [é] assim de fato [a]
substância fundamental – Vesta50 , por isso ele é incluído
entre os elementos).
Em todos esses processos, o espiritual é desenvolvido
a partir das profundezas da matéria, o que é justamente
a intenção de toda a criação. Tudo é suscitado no
princípio obscuro pelo mais elevado princípio criador, o
qual denominamos éter, que é o verdadeiro espírito vital
da natureza: como mostramos que o elo presente no
produto é em seu lado ideal, i.e., na medida em que ele
está virado para [gegen... gekehrt] o ideal absoluto, =
luz, então a luz é a aparição imediata desse espírito vital.
Por isso, a luz deve ser compreendida como vivificante –
evolvente [Evolvirende] – universal, e nada se poderia
objetar se nessa relação opuséssemos a luz à gravitação,
ao invés de éter à gravitação. – Agora a terceira potência.
Até agora a gravitação afirmava ainda a sua subs-
tancialidade em oposição à luz (A2 ). Como ela porém,

50 Vesta é a deusa do lar da religião romana, ela é usualmente


representada pela imagem do fogo sagrado do qual ela é a casta
guardiã. Ela desempenha um papel similar ao da deusa Héstia
na religião grega. Vetö nota que Schelling, assim como Baader,
Novalis e Hegel esboça uma aproximação etimológica entre Vesta,
Feste, Feuer e Fundament – Version inédite, p. 249). (NT)
96 Preleções

(451) assim como a luz, é apenas uma forma subordinada a


A3 , e como também no B inicial repousa o A3 em es-
tado involuído [involvirt], segue-se assim que a mais alta
potência da natureza é necessariamente aquela na qual
luz e gravitação (ou matéria: pois estas são correlatas)
são conjuntamente postas sob A3 , sendo apenas formas
subordinadas de A3 .
Que isso acontece de fato no organismo, pode-se
ver a partir do fato de que apenas nele a matéria, que
anteriormente parecia ser uma substância, é subordinada
a algo maior – a saber, à vida em si, que é justamente
A3 . Prova disso é que no organismo a matéria não tem
validade por sua substância, e que é na verdade a sua
forma que se torna ali o essencial; em outras palavras,
[a matéria] se tornou ela mesma essencialmente forma.
O que é A3 ? Resposta: é a substância mais íntima do
próprio B, que contém em si implicite todas as potências.
As potências de A não expressam nada mais do que
a elevação sucessiva do não-ente = B ao ente ou [a]o A.
Assim, na natureza, A3 não expressa nada mais do
que o mais alto ente soerguido a partir do não-ente –
logo, o mais íntimo [Innerste] da natureza.
Se eu quisesse tornar as fórmulas mais misturadas,
então eu poderia justamente designar também B por
potências de acordo com os distintos graus nos quais ele
F.W.J. Schelling 97

se torna igual (=) a A, i.e., torna-se ente. Eis como se


pode fazê-lo.
A expressão fundamental da natureza é A = B, [o
que significa] que nela o B inicialmente dominante –
i.e., o não-ente inicialmente dominante – torna-se ente.
Nos níveis mais profundos, o ente está completamente [128]
perdido no corpóreo. Aqui é o não-ente que tem o poder
maior, de modo que se poderia expressar essa primeira
potência da natureza pela [fórmula] A1 = B3 . Mesmo lá
onde B se encontra na mais alta potência, encontra-se
necessariamente também A na mais baixa. Assim [a
fórmula] A1 = B3 é a expressão da gravitação . – No (452)
processo dinâmico, onde a substância previamente muda
já dá sinais de vida, ela já é enquanto B, i.e., enquanto
não-ente, diminuída em uma potência, e assim ela é =
B2 , ao passo que o ente já se eleva em uma potência;
segue-se que o todo é assim: A2 = B2 . Aqui, não-ente e
ente preservam o equilíbrio – daí o processo dinâmico
na natureza, o período da luta – no qual ainda não se
chega a nenhum produto estável (mesmo no tempo essas
potências se sucedem. Potência = Período).
No organismo, o não-ente é rebaixado à mais pro-
funda potência, o ente por outro lado sobe novamente
uma, de modo que aqui a expressão do B [é] B1 e do A
[é] A3 .
98 Preleções

No processo orgânico, as formas são todas similares


às do processo dinâmico, com a diferença de que agora
elas são elevadas a um nível bem mais elevado. Também
aqui indico brevemente apenas o essencial. O mais
essencial é que A2 e A = B são um. A luz pode agora
se associar à matéria apenas na primeira dimensão,
de tal maneira que é a ela pelo menos que tudo está
subordinado. Isso = reprodução (dimensão real, egoísta),
crescimento = (coesão), rebentos [Sprossen], vegetação.
Essa associação ocorre igualmente na segunda dimensão
(que corresponde à eletricidade, mas [àquela] penetrada
[gedrungen] na substância = eletricidade substancial),
assim tem-se = irritabilidade, na qual se repetem de
novo todas as dimensões: a) circulação, b) respiração,
c) movimento voluntário (mistério supremo).
Se luz e matéria interpenetram-se também na ter-
ceira dimensão, onde agora todo o ser, que antes se
comportava como um conhecido, torna-se um cognos-
cente [erkennend ], isso é assim = sensibilidade.
No segundo nível [Stufe], descerrou-se [aufschliessen]
sem dúvida um mundo exterior para a essência orgâ-
nica, todavia de tal modo que ela ainda permanece em
uma relação de diferença com respeito a esse mundo. A
terceira etapa da vida orgânica se constitui quando o
produto contém em si a possibilidade de outras coisas
F.W.J. Schelling 99

sem estar em relação de diferença com elas, quando ele


as intui [anschaut] em si mesmo (sensibilidade, capa-
cidade animal de intuição); aqui o B, que no começo
exercia o poder mais elevado na matéria inorgânica, é (453)
ultrapassado, e por isso, [ele passa da condição de] co-
nhecido como ele o era anteriormente, e se transforma
agora no cognoscente. Na sensibilidade, o B eleva-se [130]
até o A3 . Ora aqui, se admitimos a quintuplicidade
dos sentidos, a repartição seria: 1) um polo ideal e um
polo real – visão e tato; 2) correspondendo àqueles três
processos fundamentais: a) o sentido para o magnetismo
= audição, b) para a eletricidade = olfato, c) para o
quimismo = gosto.
Depois que o A3 é introduzido através dos sentidos,
a natureza estaria na verdade concluída. Anunciam-se
ainda contudo praesagia do espírito – como o instinto
[Instinkt], o impulso artístico [Kunsttrieb] – dos quais
[trataremos quando explorarmos] a passagem para o
mundo dos espíritos. Primeiro [tratemos] da natureza
orgânica como produto.
O B elevado a A3 cinde-se novamente, diferencia-se.
O polo real = planta, o ideal = animal. A indiferença
entre planta e animal (quanto à figura externa e à for-
mação interna), a coroa da criação = Homem (formação
das dimensões). Mas no individual [surge] novamente a
100 Preleções

mesma oposição, por meio do gênero (Mulher = Planta,


Homem = Animal). O mistério [Geheimnis] da separa-
ção dos gêneros não é nada mais do que a apresentação
da relação originária entre ambos os princípios, dos quais
cada um é em si mesmo real e dessa forma independente
do outro, ainda que, mesmo assim, um não possa ser
sem o outro. O mediador entre essa dualidade que não
exclui a identidade e essa identidade que não exclui a
dualidade é o amor. O próprio Deus é ligado à natu-
reza pelo amor voluntário, ele não precisa dela, mas
não quer viver sem ela. O amor não está lá onde duas
essências necessitam uma da outra, mas lá onde cada
uma poderia ser para si, como por exemplo Deus, que
é já em si mesmo – suâpte naturâ – o ente; [ele está]
lá onde cada um poderia ser para si, [onde] não seria
considerado nenhuma usurpação ser para si51 , e ainda
assim [um] não quer ser e não pode moralmente ser sem
o outro. Essa é a verdadeira relação de Deus à natureza
– e não se trata de uma relação unilateral. Também a
natureza é atraída a Deus pelo amor e esforça-se por
isso com ardor incessante para produzir frutos divinos.
A terra ama o céu e tem nostalgia [Sehnsucht] cons-
51 Filipenses, 2:6 “Que, sendo em forma de Deus, não teve por
usurpação ser igual a Deus”. A expressão empregada por Schelling
é a mesma que é utilizada na Bíblia de Lutero “für keinen Raub
achtet” – literalmente: não considerou um roubo. (NT)
F.W.J. Schelling 101

tante dele, como a mulher tem nostalgia do homem. (454)


Deus ama o que é inferior, menor do que ele, como a
si mesmo, [ele ama] a natureza, pois é apenas a partir
dela que ele pode engendrar algo de semelhante a si –
espíritos.
Contudo, uma determinação da natureza ainda não
foi levada em consideração. A saber, este produto da
natureza que é um A e um B, a identidade, o próprio
real originário, tal como ele é progressivamente obrigado
a sair da escuridão, ser introduzido à luz e mostrar-se no
orgânico sucessivamente como gravitação, como coesão
– como som – como luz – como calor – finalmente como [132]
fogo, e mesmo como A3 , como a verdadeira alma.
Como ocorre então que este elo não é eterno como
seria de se esperar? De onde vem a corruptibilidade
universal na natureza? Essa pergunta não podia de
fato ser respondida antes deste momento; sua resposta
contudo se apresenta juntamente com a passagem para
o mundo dos espíritos. Assim:
1) toda a natureza é apenas o umbral [Staffel ], o
alicerce [Unterlage] do mundo espiritual, e assim, ainda
que ela seja em si mesma um ente vivo supremo, ela
não é com vistas a si mesma [um ihrer selbst willen];
em relação ao mundo dos espíritos, ela deve aparecer
novamente como um não-ente. Assim, como ela é apenas
102 Preleções

por causa do mais elevado – por causa do A2 absoluto


–, ela precisa de um reforço oriundo dele, e ela só pode
suportar esse reforço na medida em que ela se submete
a ele e se lhe torna meio da existência e da manifestação
como ente.
Ora, a natureza ou o não-ente pode ser elevado
apenas progressiva e gradativamente até o ponto em que
ela é capaz de acolher o A2 em si, e tornar-se assim a
sua manifestação imediata, [ou,] por assim dizer, a sua
carne [Leib].
A natureza só é capaz disso se ela tem nela mesma
algo semelhante ao A2 , i.e., se o seu B inicial é transfi-
gurado até o ponto em que ele mesmo se torna A2 (em
sentido absoluto).
Ora, trata-se de saber qual é o ponto da natureza
em que esse será o caso = ponto de transfiguração [Ver-
klärungspunkt] da natureza.
Até aqui conduzimos a nossa investigação até o ponto
(455) em que o B inicial é elevado até o A3 . Como esse A3 é
ainda relativamente – em relação ao todo – um objetivo,
então, ainda que ele seja em relação à natureza o A
absoluto, ele se comporta novamente como um B em
relação a um A ainda mais elevado. Este A ainda mais
elevado não pode mais repousar dentro da natureza,
pois, quando a terceira potência é alcançada, tudo nela
F.W.J. Schelling 103

é perfeito. Assim, ele repousa acima e fora da natureza.


Poderíamos, se quiséssemos fazer as potências progre-
direm, designá-lo por A4 , pois já tínhamos um A3 na
natureza, porém não iríamos expressar com isso nada
mais do que [o fato de que] em relação a toda a natureza,
ele é um A2 . Este A2 absoluto assim, em relação ao qual
mesmo o A3 da natureza, cuja atividade suprema encon-
tramos na faculdade de intuição, comporta-se como um
B, está fora ou acima da natureza; ele age contudo na
natureza, ele não é cortado [abgeschnitten] dela, pois, em
sua oposição a ela, ele é antes um estimulante universal
da mesma. [134]
Sua primeira relação ao A3 da natureza é novamente
como o subjetivo e o objetivo, o estimulante e o estimu-
lado. Ou: a sua primeira relação com ele é a oposição. O
que interessa agora é encontrar as manifestações dessa
oposição. Elas não são nada mais do que os fenômenos
do instinto animal, que para todo ser humano refletido
[nachdenkenden Menschen] pertencem às manifestações
mais elevadas – verdadeira pedra de toque de toda filo-
sofia autêntica.
O próprio [Eigentümliches] do instinto: a) atos que
são similares àqueles que são realizados racionalmente,
e que mesmo assim b) são realizados sem nenhuma
ponderação, [ou] reflexão [Überlegung, Reflexion], sem
104 Preleções

nenhuma razão subjetiva, e como a razão subjetiva =


entendimento, sem nenhum entendimento. Esclareci-
mentos sobre isso: Descartes com o mecanismo – os
animais como máquinas. Leibniz pelas representações
obscuras – certamente o instinto é algo dessa espécie,
mas a explicação é muito geral. Mais recentemente,
designou-se o instinto como um analogon ou como um
grau da razão.52 Isso não quer dizer nada, é um con-
trassenso. A explicação repousa sobre a oposição entre
A3 – que se comporta aqui novamente como B, i.e.,
(456) como gravidade na mais alta potência – e A4 , ou o A2
absoluto. O A3 é para o A4 um material no qual ele
bem gostaria de despertar um A2 (como ele anterior-
mente despertou na natureza sempre o similar), mas
nos animais ele não consegue; todavia, como o A3 foi
estimulado pelo princípio espiritual absoluto, ele age
como se nele um tal (princípio) estivesse presente; em
suma, o A4 é o entendimento dos animais; ou como os
antigos já expressavam de modo bastante correto: Deus
est anima brutorum. O divino os anima [beseelt], e por
isso eles agem, ou melhor, o A3 age neles já de acordo
com o princípio espiritual, como se ele fosse ele mesmo
um [princípio] espiritual (no sentido de que ele já o é

52 Cf. Locke John, An Essay Concerning Human Understan-


ding, Londres: T. Basset / E. Mory, 1690, livro II, §§5-11.
F.W.J. Schelling 105

implicite ou potencialmente). No homem todavia esse


não é o caso. O divino não é a alma do homem, mas o
homem é ele mesmo a sua própria alma.
Três níveis do instinto devem ser distinguidos. 1) a
autopreservação como indivíduo e como espécie (o amor
à cria [zu den Jungen]), – pássaros migratórios. 2) o
impulso artístico – um produzir de algo fora de si – (em
parte uma compensação do impulso de procriação). É
notável que as duas artes, arquitetura e música, as quais
se aparentam mesmo sem isso, já estejam representa-
das no instinto, de modo que a arquitetura, entre as
artes plásticas, corresponde verdadeiramente à música
(Vitrúvio)53 . 3) Divinação. Caráteres – o tranquilo
ser-em-si-mesmo – (o que não deve de modo algum ser
negligenciado). A unilateralidade desses caráteres deve
desaparecer no mundo dos homens.
Pela ação de A4 sobre A3 , inflama-se nele parcial-
mente um A4 , mas apenas parcialmente, e assim não um
A4 absoluto – parcialmente, pois sempre apenas em uma
relação determinada. O instinto mesmo é sempre ligado
a certos órgãos e é por eles intermediado; apenas em [136]
casos particulares agem os animais de modo entendível
53 Vitrúvio: arquiteto romano que viveu no século I a.C. e ao
qual Schelling se refere aqui em função de sua tese sobre as propor-
ções harmoniosas das colunas expressa na obra De architectura,
Livro III, cap. 1-2. (NT)
106 Preleções

[verständig], mas trata-se de um entendimento genérico


[allseitiger Verstand ].
Apenas no homem o A2 , longamente procurado e
longamente aspirado, é finalmente soerguido a partir do
B – o ente em si ou naturâ suâ a partir do não-ente.
O ente suâ naturâ é o espírito [Geist], e o ente
erguido a partir do não-ente – aquele que se transformou,
(457) mas que é mesmo assim um ente naturâ suâ – é o
espírito finito. (Trata-se aparentemente da mais alta
contradição, mas de tais contradições a natureza está
cheia). O espírito é a) o ente naturâ suâ no homem,
b) mas apenas a partir do não-ente, [e] assim espírito
criado, finito – eterna diferença em relação a Deus.
Há somente mais uma pergunta a ser formulada: por
que no homem o ideal absoluto ou o A2 absoluto é posto
atualmente, mas em toda parte apenas potencialmente?
Eis a tarefa de uma ciência especial, a antropologia, cujo
conceito é assim fixado. – Acrescento apenas o seguinte.
O A2 absoluto despertado na natureza relaciona-se
à natureza na qual ele foi despertado novamente como
o subjetivo em relação ao objetivo, o cognoscente [em
relação] ao conhecido. Mas o absolutamente subjetivo
está apenas lá onde o absolutamente objetivo, i.e., o
objetivo em sua completude, em sua totalidade, também
está. Isso ocorre somente no homem, se devemos crer
F.W.J. Schelling 107

no dito antigo que afirma que o corpo carnal [Leib] do


homem é o mundo em miniatura, um microcosmos54 .
Há apenas uma única espécie de essência da qual a
mesma coisa poderia ser dita, trata-se desses grandes
todos que, tais como [os homens], são ao mesmo tempo
corpos [Körper ] e mundos [Welten] e que por isso podem
ser chamados de corpos celestes [Weltkörper ]55 . [138]

III.
O ente por sua própria natureza é também o único
que é, em si mesmo ou segundo o seu conceito, livre.
Toda dependência vem apenas do ser. Mas o ente em si
mesmo e por força de sua própria natureza é aquele que
simplesmente não pode ser determinado por outro (pois
todo ser determinado é uma paixão, i.e., um não-ser).
Deus enquanto ente absoluto é por isso absolutamente
livre, o homem que foi elevado do não-ente ao ente
54 Esta tese remonta a Demócrito: ἐν τῶι ἀνθρώπωι μικρῶι
κόσμωι ὄντι [no homem que é um microcosmo], Fragmento B34
de acordo com a numeração canônica estabelecida por Hermann
Diels e Walther Kranz. (NT)
55 Weltkörper (lit. corpo-mundo) é um sinônimo de Him-
melskörper (lit. corpo celeste) usado com frequência nos séculos
XVIII e XIX. Schelling se vale aqui da estrutura semântica da
palavra – Welt e Körper – para fazer uma analogia com a noção
de microcosmos, associada tanto ao corpo do homem (na frase
anterior) como aos corpos celestes. (NT)
108 Preleções

adquire também, por meio dessa dupla relação de sua


essência, uma liberdade própria.
Na medida em que ele é alçado do não-ser, ele tem
[140] uma raiz independente do ente como tal. O divino é
certamente aquele que alça, o criador de seu espírito, mas
aquilo de que ele é alçado é sem dúvida algo distinto do
(458) que aquilo que alça. Ele se relaciona assim a Deus como
a flor se relaciona ao sol. Como a flor que de fato apenas
pela ação do sol eleva-se da terra sombria e ilumina-se
na luz, mas na qual permanece mesmo assim uma raiz
independente. Se a relação do homem a Deus não fosse
assim, então ele não teria nenhuma liberdade diante de
Deus. Ele seria como um raio no sol, uma centelha no
fogo. Vocês podem ver que nesse nível da investigação o
princípio de que deve haver algo em Deus que não é Ele
mesmo impõe-se novamente como algo necessário. Isso
é chocante à primeira vista, particularmente a partir
dos conceitos abstratos dominantes da assim chamada
religião racional, mas isso é inevitável se a liberdade
deve ser afirmada.
Os defensores da liberdade pensam habitualmente
apenas em mostrar a independência do homem em re-
lação à natureza, o que é certamente fácil. Mas eles
deixam de lado a questão de sua independência interior
de Deus, de sua liberdade também em relação a Deus,
F.W.J. Schelling 109

pois isso é justamente o mais difícil.


Como o homem está assim no meio entre o não-ente
da natureza e o ente absoluto = Deus, ele é livre de
ambos. Ele é livre de Deus na medida em que ele tem
uma raiz independente na natureza, e livre da natureza
na medida em que o divino é despertado nele, [o qual
se encontra] tanto na natureza como acima da natureza.
A sua liberdade de Deus pode ser chamada de a parte
(natural) própria do homem, pela qual ele é uma essên-
cia pessoal e individual; por outro lado, a sua liberdade
da natureza é a sua parte divina. Ele é livre – no sen-
tido humano – na medida em que ele está no ponto de
indiferença. É manifesto que a vida física progride até
o homem, [e] que há assim uma sequência constante de
ascensões e crescimentos, na qual Ele constitui o ponto
de onde parte verdadeiramente a vida espiritual – Ele
[que é] a criatura na qual o carnal como suporte brando
deveria se subordinar ao espiritual e ser justamente por
isso erguido à estabilidade, não apenas em si mesmo,
mas também em função da constante conexão das obras
da natureza com todo o resto da natureza. Assim como
o homem que, ao invés de subordinar a sua vida natural
à divina, ativou em si mesmo – despertado à atividade –
o princípio (natural, próprio) que era antes determinado (459)
à relativa inatividade, assim também a natureza foi for-
110 Preleções

çada, por causa do obscurecido ponto de transfiguração,


a despertar justamente esse princípio em si, e a ser no-
lens volens [querendo ou não] um mundo independente
do mundo espiritual.
Tudo nos convence de que algo assim se passou. 1) A
figura atual da natureza a) em relação à conformidade
[142] oculta a leis (senão tudo seria evidente e claro); b) o
poder do acaso que se manifesta – a natureza não aparece
de modo algum como um todo necessário; c) a inquietude
da natureza em sua reclusão [Geschlossenheit], dado
que, se ela tivesse alcançado a sua unidade suprema, ela
deveria estar na verdade em repouso. 2) particularmente
a presença do mal, e assim a vista [Anblick ] do mundo
moral. Pois o mal nada mais é do que o não-ente relativo
que se erige como ente, e assim aquilo que reprime o
verdadeiro ente. Há assim, de um lado, um nada e,
de outro lado, uma essência supremamente real. – Na
natureza também há um mal, o veneno por exemplo, a
doença, e aquilo que é a prova suprema da efetividade de
tal recaída de toda natureza e em particular do homem:
a morte.
Por meio disso alcançamos igualmente uma nova
visão da natureza. Até agora designamo-la como a
primeira potência. Mas na medida em que ela não
alcança a eternidade, e afunda assim no tempo, ela é o
F.W.J. Schelling 111

primeiro período. Assim, toda a natureza, tal como ela


é agora, é apenas o primeiro período da vida, não ainda
a vida suprema, mas a sua antessala. O próprio homem
permanece sem dúvida como espírito, mas sob a potência
de B. O homem enquanto espírito, enquanto essência
da mais alta ordem, é posto novamente no nível do ser,
no nível da primeira potência. O processo que começou
na natureza começa nele novamente do princípio. E
assim o próprio homem deve, por meio de seu trabalho
a partir do não-ente, reprimir em si o obscuro, e evocar
da escuridão de mais alto grau, da escuridão do mal, do
errôneo e do perverso, a luz do bem, da verdade e da
beleza. A prova dessa preponderância [Übermacht] do
ser sobre o homem, de sua nova submersão na primeira
potência, repousa principalmente na violência [Gewalt]
que o exterior exerce nessa vida sobre o interior. Depois (460)
que o ser-aí da natureza foi ameaçado pelo homem e a
natureza foi forçada a constituir-se como mundo próprio,
tudo parece doravante direcionado somente à proteção
desse alicerce exterior da vida. Tudo o que com ela
colide – inclusive o mais nobre – afunda, e mesmo o que
há de melhor deve por assim dizer fazer uma aliança
com esse poder externo para ser tolerado. Certamente
aquele que atravessa essa luta, que se afirma contra essa
preponderância do exterior como algo divino, fez como
112 Preleções

que sua prova de fogo [ist wie durchs Feuer bewährt], [e]
deve haver nele algo como uma força divina.
Entretanto a maior prova dessa nova submersão do
homem na natureza e na primeira potência repousa no
seguinte.
O homem não está sozinho no mundo, há uma plu-
ralidade de homens, há um gênero humano, uma huma-
[144] nidade.
Do mesmo modo que a multiplicidade das coisas na
natureza aspira [strebt] a uma unidade na qual somente
ela se completa e, por assim dizer, sente-se feliz, o mesmo
se dá com a multiplicidade no mundo dos homens.
A verdadeira unidade da natureza teria sido contudo
o homem e por meio dele o divino e o eterno. A natureza
contudo perdeu essa terna unidade por culpa do homem;
agora ela deve buscar uma unidade própria. Como
porém a verdadeira unidade não pode repousar nela mas
apenas em Deus, então, precisamente em razão dessa
separação de Deus, ela está entregue a lutas constantes.
Ela busca a unidade e não a encontra. Se ela tivesse
alcançado o ponto de transfiguração e de unidade, então
ela seria toda orgânica, ela teria sido elevada ao nível
mais elevado do ente, e o espírito despertado no homem
teria se derramado sobre ela. Ora, ela não alcançou
essa unidade orgânica, e o anorgismo surgiu [erhob der
F.W.J. Schelling 113

Anorgismus sein Haupt – lit. o anorgismo ergueu a


cabeça]56 . O anorgismo também pertence ao gênero do
não-ente que se elevou ao ente. É uma contradição [falar
em] um reino do anórgico [Anorgischen], pois reino é
uma unidade, ao passo que anorgismo = não-unidade.
Mas justamente o não-ente tornou-se agora o ente e
deve, por força de necessidade, querer ser o ente. [146]
Do mesmo modo que a natureza perdeu o seu ponto
(461)
de unidade, a humanidade também o perdeu. Para ela,
ele repousava no fato de que ela permanecia um ponto
médio ou de indiferença – de modo que o próprio Deus
seria a sua unidade – e [de fato] apenas Deus pode ser
a unidade de seres livres.
Há contudo certamente seres livres, mas separados
de Deus.
Eles devem agora buscar essa unidade mas não po-
dem encontrá-la.
Deus não pode mais servir-lhes de unidade; eles

56 Anorgismo é o contrário de organismo, trata-se da palavra


alemã utilizada no fim do século XVIII e início do século XIX
para se referir ao domínio do inorgânico. O termo, já criticado
à época por sua etimologia inusitada (“Anorgismus (wie lange
wird man sich dieses unethmologischen Wortes noch bedienen)
[Anorgismo (por quanto tempo ainda vamos nos servir deste
termo não-etimológico)] – in: Hartenkeil J.J. (org.), Medicinisch-
chirurgische Zeitung, vol. 2, Salzburg: Mavrischen, 1810, p. 8”),
caiu em desuso. (NT)
114 Preleções

devem então buscar uma unidade da natureza, a qual


porém, na medida em que ela não pode ser a verdadeira
unidade para seres livres, é apenas um elo temporal e
efêmero, como o elo de todas coisas, um elo que mantém
a natureza inorgânica junta.
A unidade da natureza, essa segunda natureza [er-
guida] sobre a primeira, na qual o homem é forçado a
sustentar a sua unidade, é o Estado; o Estado é por isso,
para dizê-lo sem rodeios, uma consequência da maldição
que pesa sobre a humanidade. Como o homem não pode
ter Deus como a sua unidade, ele deve então se submeter
a uma unidade física.
O Estado tem uma contradição em si. Ele é uma
unidade da natureza, i.e., uma unidade que só pode
agir por meios físicos. Certamente o Estado, quando
ele é governado com um mínimo de racionalidade, sabe
bem que ele não realiza nada por meios puramente
físicos, [e] que ele deve recorrer a motivos superiores e
espirituais. Mas ele não pode simplesmente impô-los,
pois [tais motivos] vão além de sua autoridade [Gewalt],
o que não o impede de se gabar de poder produzir um
estado ético [sittlichen Zustand ], e de ser assim um poder
[Macht] como a natureza. Contudo, para espíritos livres,
nenhuma unidade natural é o bastante; para tanto, é
preciso um talismã mais alto, segue-se por isso que essa
F.W.J. Schelling 115

unidade [natural], mesmo essa que se constitui em um


Estado, resta sempre precária e temporária.
Sabe-se bem quanto esforço se empregou, particu-
larmente desde a Revolução Francesa e os conceitos
kantianos, para mostrar a compatibilidade entre a uni-
dade e a existência de seres livres [individuais], e assim (462)
a possibilidade de um Estado que seria na verdade so-
mente a condição da mais alta liberdade possível dos
indivíduos. Isso é contudo impossível. Ou bem a força
necessária para tanto é retirada ao poder do Estado ou
bem ela lhe é atribuída e nesse caso tem-se um despo-
tismo. (A Inglaterra é uma ilha. A Grécia é também
em parte um Estado-ilha). Por isso, é bem natural que
agora, no fim desse período em que não se falou de outra
coisa que não seja de liberdade, as cabeças consequen-
tes, quando elas buscam a ideia de um Estado perfeito, [148]
cheguem à teoria do mais odioso despotismo (o Estado
Comercial Fechado de Fichte57 , etc.).
Minha opinião é que o Estado enquanto tal não pode
encontrar nenhuma unidade verdadeira e absoluta, [e]
que todos os Estados são apenas tentativas de encon-
trar tal unidade, tentativas de se tornar uma unidade
orgânica, sem poder de fato tornar-se uma, ou ainda

57 Obra de Fichte publicada em 1800 – Fichte, GA, I, 7, pp.


3-142. (NT)
116 Preleções

[tentativas] com o destino de florescer, amadurecer, final-


mente envelhecer e ao cabo morrer juntamente com essa
essência orgânica [buscada]. Como se deve conceber a
ideia de um Estado racional [Vernunftstaat], o ideal de
um Estado, [é algo que] foi mostrado por Platão, ainda
que ele não tenha usado tal expressão. O verdadeiro
Estado pressupõe um céu sobre a terra, a verdadeira
Πολιτεία existe apenas no céu58 ; liberdade e inocência,
eis a única condição do Estado absoluto. O Estado de
Platão59 pressupõe de fato esses dois elementos. Mas
Platão não diz: realizem este Estado tal como eu des-
crevo, mas antes: se um Estado absolutamente perfeito
pudesse existir, então ele deveria ser assim, i.e., ele pres-
suporia liberdade e inocência – cabe a vocês ver se tal
Estado é possível.
A mais alta complicação surge da colisão de Estados
entre si, e o sintoma mais característico da unidade não
encontrada e de que a unidade não pode ser encontrada
é a guerra, a qual é tão necessária quanto a luta entre
os elementos da natureza. Aqui os homens entram em
uma relação recíproca característica dos seres naturais
[Naturwesen].

58 Filipenses 3:20: “A nossa cidade está nos céus [τὸ πολίτευμα


ἐν οὐρανοῖς]”. (NT)
59 Platão, República, 472e-473b. (NT)
F.W.J. Schelling 117

Se [à nossa descrição] acrescentamos ainda todos os


vícios que o próprio Estado desenvolve – a pobreza, o
mal em grandes massas – completa-se então a imagem
da humanidade totalmente submergida em sua condição
física e mesmo na luta por sua existência. (463)
Até aqui consideramos o rebaixamento do homem.
Vejamos agora o seu reerguimento]. Sua degradação
repousa sobre o fato de que o elo entre A2 e A = B
foi suprimido [aufgehoben], e que o homem caiu sob o
poder do mundo exterior. Este abismo [entre A2 e A =
B] não pode permanecer, pois ele mancharia a própria
existência de Deus. Mas como podemos suprimir este
abismo? Através dos homens em seu estado atual, isso
não é possível. Assim, apenas através do próprio Deus –
apenas Deus pode produzir o elo do mundo espiritual e
do mundo natural, e certamente apenas através de uma
segunda revelação [Offenbarung], similar à primeira – a
da criação inicial. Aqui se encontra o conceito de revela-
ção em sentido estrito como um conceito filosoficamente
necessário. A revelação tem diferentes níveis: o mais
elevado é aquele no qual o divino se faz completamente
finito [sich selbst ganz verendlicht], i.e., aquele no qual
ele mesmo se torna homem, o homem por assim dizer
segundo e divino, o intermediário entre Deus e o homem,
do mesmo modo como o primeiro homem deveria ser o
118 Preleções

intermediário entre Deus e a natureza. – Através desta


[primeira] revelação, não se podia estabelecer a relação
[150] imediata entre Deus e o mundo do ser. Isso não poderia
se produzir sem que fosse negado este mundo próprio
que tinha se constituído. Se Deus quisesse isso, então
ele não precisaria de revelação alguma. A revelação
pressupõe antes o estado corrompido do mundo. Para a
natureza, o homem existia como intermediário, e este
lhe falhou [gefehlt] (faltou [manquirt]). Agora, era o
homem quem na verdade precisava de um intermediário.
Na medida em que a vida espiritual foi restituída ao
homem, ele se tornou novamente capaz de ser o inter-
mediário entre Deus e a natureza – e especialmente na
aparição de Cristo mostrou-se aquilo o que o homem
originalmente deve ser em relação à natureza. Cristo foi,
por sua mera vontade, senhor da natureza, ele estava
com a natureza nessa ligação mágica na qual o homem
[152] originariamente deveria estar.
Em oposição ao Estado enquanto tentativa de produ-
zir uma unidade meramente exterior, encontra-se uma
outra instituição [Anstalt], fundada na revelação, que
busca a produção de uma unidade interior ou do ânimo:
a Igreja. A Igreja é uma consequência necessária da
(464) revelação, ela é mais precisamente o reconhecimento
desta. Ela não pode contudo, depois da introdução da
F.W.J. Schelling 119

separação entre mundo exterior e interior, tornar-se um


poder exterior [äußere Gewalt], e, enquanto essa sepa-
ração existir, ela vai ser sempre mais empurrada pela
força [Macht] do exterior para o interior.
O erro que foi cometido nas épocas hierárquicas mais
antigas da Igreja não consistiu no fato de que ela inter-
veio no Estado, mas ao contrário, no fato de que ela
permitiu ao Estado que se introduzisse nela, ela se abriu
a ele, adotou as formas do Estado, ao invés de permane-
cer em sua pureza de toda exterioridade. Com efeito, o
verdadeiro e divino não deve ser exigido por um poder
exterior; e assim, quando a Igreja começou a perseguir
os infiéis, ela já tinha perdido a sua verdadeira ideia.
Ela deveria antes, consciente de seu conteúdo oriundo
do céu, permitir magnanimamente a incredulidade [e]
não se colocar em posição de ter inimigos, de reconhecer
inimigos.
Se consideramos a história moderna, que começa
fundamentalmente com o advento do cristianismo na
Europa, o gênero humano teve de passar por duas tenta-
tivas de encontrar ou produzir uma unidade: primeiro,
a tentativa de produzir uma unidade interna por meio
da Igreja, a qual tinha contudo de falhar, pois ela que-
ria valer simultaneamente como unidade externa; e em
seguida a unidade externa por meio do Estado. Foi
120 Preleções

apenas a partir do colapso [Sturz ] da hierarquia que


o Estado adquiriu esse significado, e está claro que a
pressão da tirania política sempre aumentou na mesma
proporção em que se acreditou poder prescindir dessa
[154] unidade interior, e [que ela] vai sempre aumentar até o
seu máximo no qual talvez então, depois dessas tentati-
vas unilaterais, a humanidade vai finalmente encontrar
o bom caminho.
Seja qual for o propósito final, é certo ao menos
que a verdadeira unidade só é alcançável pelo caminho
religioso, e que apenas o desenvolvimento mais elevado
e multilateral do conhecimento religioso na humanidade
será capaz, se não de tornar o Estado prescindível ou
de suprimi-lo, ao menos de fazer com que ele se liberte
(465) progressivamente do poder cego pelo qual ele mesmo
é governado e [de fazer com que ele] se transfigure em
inteligência. Não que a Igreja domine o Estado, ou
Estado a Igreja, mas que o Estado mesmo desenvolva
em si o princípio religioso e que a suprema aliança
de todos os povos repouse no alicerce das convicções
religiosas tornadas universais.
Seja qual for o destino da espécie na Terra, é possível
para o indivíduo (como o foi para o homem no começo
em relação a toda a Terra) antecipar agora a espécie e
tomar para si de antemão o que há de mais alto.
F.W.J. Schelling 121

Isso nos conduz a considerar o espírito humano não


em seus destinos e tentativas exteriores, mas em a sua
essência interna e segundo as forças e potências que
repousam no indivíduo.
No espírito humano enquanto tal encontram-se tam-
bém três potências ou lados [Seiten]. A primeira é a
aquela pela qual ele está voltado para o mundo real, do
qual ele não pode se libertar. Em contraposição a ela,
encontra-se a ideal, o lado de sua mais alta transfigura-
ção, de sua espiritualidade mais pura. A intermediária
(ou segunda) é aquela pela qual ele se introduz no meio
entre o mundo ideal e o real a fim de, desenvolvido
pela liberdade, produzir novamente em si o elo entre os
mundos, ou perpetuar a bipartição [Entzweiung].
Estes três lados ou potências do espírito em geral
são designados de modo excelente na língua alemã atra-
vés das [palavras] ânimo [Gemüth], espírito [Geist] e
alma [Seele]. Em cada uma dessas três, encontram-se
novamente três potências que se comportam novamente
como ânimo, espírito e alma.
I. O ânimo é o princípio obscuro do espírito (pois
“espírito” é também a expressão geral), pelo qual o
espírito está, pelo lado real, em relação com a natureza
e, pelo lado ideal, em relação com o mundo mais elevado
– mas apenas em uma relação obscura. [156]
122 Preleções

O mais obscuro e por conseguinte o mais profundo


da natureza humana é a nostalgia [Sehnsucht], que é por
assim dizer a gravitação interna do ânimo [die innere
Schwerkraft des Gemüths], força cuja manifestação mais
profunda é a melancolia [Schwermuth]. É sobretudo por
meio dela que a simpatia do homem com a natureza
(466) é mediada. O que há de mais profundo na natureza é
igualmente melancolia; também ela [a natureza] está em
luto por um bem perdido, de modo que uma melancolia
indestrutível se associa [anhängt] a toda vida, pois a
vida tem sob si algo de independente (o sobre si [das
über sich] eleva, o sob si [das unter sich] puxa para
baixo).
A próxima potência do ânimo é a aquela que nele
corresponde ao espírito – ou seja, [que corresponde] em
geral ao caráter do espírito. Espírito é o ente naturâ suâ,
uma flama que queima por si mesma. Uma vez que o ser
se opõe ao espírito enquanto ente, o espírito não é nada
mais do que a ânsia de [Sucht] ser, do mesmo modo como
a flama anseia pela matéria. A essência mais profunda
do espírito é portanto ânsia [Sucht], desejo, apetite
[Lust]. Quem quer apreender o conceito de espírito na
sua raiz mais profunda, deve em particular iniciar-se
corretamente na essência do desejo. No desejo, mostra-
se primeiro algo que é completamente a partir de si
F.W.J. Schelling 123

mesmo, o desejo é algo inextinguível [Unauslöschliches];


em relação a cada desejo, a inocência só pode ser perdida
uma vez. Ele é uma fome de ser, e cada satisfação
dá a ele apenas uma nova força, i.e., uma fome ainda
mais violenta. Aqui se pode ver pela primeira vez o
inextinguível do espírito. É fácil observar o quanto se
pode elevar esse desejo, essa fome de ser no homem,
depois que ele mesmo se isolou do ser, e não tem mais
nenhuma influência sobre ele, pondo-se assim lá onde
apenas o ente está.
A terceira potência do ânimo é o sentimento (a
sensibilidade, a qual na natureza orgânica corresponde à
irritabilidade); o sentimento é o mais elevado no ânimo,
o que há de mais magnífico no ânimo do homem e que
ele deve apreciar acima de tudo.
O ânimo é na verdade o real do homem, com o qual
e no qual ele deve fazer [auswirken] tudo o que faz. Sem
ânimo, mesmo o maior espírito permanece infrutífero
e não pode engendrar nem criar nada. – Aqueles que
querem fundar a ciência no sentimento, fundam-na de
fato na mais elevada potência, mas na mais elevada
potência do grau mais baixo. [158]
II. A segunda potência do espírito é aquilo que cha-
mamos de espírito no sentido mais estrito, l’esprit – o
verdadeiramente pessoal no homem, e assim também a
124 Preleções

(467) verdadeira potência da consciência.


O mais geral do espírito segundo o que vimos até aqui
é que ele é desejo, ânsia [Sucht], fome de ser. Na primeira
potência, no ânimo, que é ainda o não-consciente do
homem, ele aparece como mero desejo ou apetite [Lust];
já aqui ele aparece como desejo consciente, em uma
palavra, como vontade [Wille]. A vontade é assim o
mais íntimo [Innerste] do espírito.
A vontade porém tem dois lados, um real, que se
relaciona à individualidade do homem, a vontade pró-
pria [Eigenwillen], e outro lado universal ou ideal, o
entendimento.
Assim, também o espírito em sentido estrito tem
três potências. a) A primeira é a potência da vontade
própria, do egoísmo, o qual seria cego sem o entendi-
mento [Verstand ]. (A vontade própria deve ser. Ela não
é em si mesma o mal, mas apenas quando ela se torna
dominante. A virtude sem nenhuma vontade própria
ativa60 é uma virtude sem mérito. Por isso, pode-se

60 Eigenwille, que significa literalmente vontade própria, é a


expressão alemã utilizada para traduzir o termo latino arbitrium,
contumacia – in: Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und
Wilhelm Grimm, Erstbearbeitung (1854–1960), digitalisierte Ver-
sion im Digitalen Wörterbuch der deutschen Sprache, disponí-
vel online em: https://www.dwds.de/wb/dwb/eigenwille (con-
sultado em 13/11/2019) – de modo que tal termo tem igualmente
o sentido de uma vontade que se faz passar de modo arbitrário na
F.W.J. Schelling 125

dizer que o bem encerra o mal em si. Um bem, quando


ele não tem em si um mal superado, não é nenhum bem
vivo real. A vontade própria mais ativa e contudo a
mais subordinada, eis o que há de mais elevado). b) A
ela se opõe a [potência] mais elevada, que é justamente
o entendimento. Do entendimento e da vontade própria
juntos produz-se a potência intermediária, c) a vontade
verdadeira, que aparece aqui novamente no ponto de
indiferença. Essa relação sozinha contudo, esse interme-
diário entre o entendimento e a vontade própria, não
constitui ainda a liberdade do espírito, a qual é oriunda
na verdade da relação entre a primeira e a terceira po-
tências, entre a mais baixa e a mais alta. Por isso, para
conhecer plenamente a essência da liberdade, devemos
necessariamente considerar a terceira potência.
De fato, segundo a opinião comum, o espírito é o
[que há de] mais elevado no homem. E apenas do fato
de que o homem não pode ser espírito completamente,
segue-se que ele está sujeito à doença, ao erro, ao pecado,
ou ao mal. Como a doença, o erro e o mal constituem-se
sempre a partir do erguimento [Erektion] de um não-
ente relativo acima de um ente, segue-se que o espírito

frente de tudo o mais, obstinação, contumácia, teimosia – donde a


origem do adjetivo de uso contemporâneo eigenwillig que significa
obstinado, contumaz. (NT)
126 Preleções

humano deve ser igualmente um não-ente relativo em


relação a um ente mais elevado. Se assim não fosse,
então não haveria nenhuma diferença entre a verdade
e o erro. Pois todo mundo e ninguém estaria de algum
(468) modo certo, se não houvesse uma instância mais elevada
acima do espírito. De fato, o espírito não pode ser
o juiz mais elevado, uma vez que as suas sentenças
[Aussprüche] não permanecem iguais a si mesmas. Mas
[160] tampouco o erro é uma mera privação da verdade. Ele
é algo altamente positivo. Ele não é falta de espírito,
mas espírito desviado. Por isso, o erro pode ser pleno
de espírito e ainda assim ser um erro. Do mesmo modo,
o mal não é mera privação do bem, não é uma simples
negação da harmonia interna, mas uma desarmonia
positiva. O mal tampouco vem da carne [Leib], como
tantos ainda agora o pensam. O corpo carnal é uma
flor, da qual uns extraem mel e outros veneno. Não é o
espírito que é infectado pela carne, mas ao contrário é
a carne que o é pelo espírito. O mal é sob certo aspecto
o espiritual mais puro, pois ele conduz à guerra mais
violenta [heftigsten] contra todo o ser, na medida em
que ele gostaria com efeito de suprimir [aufheben] o
fundamento de toda a criação. Quem está iniciado nos
mistérios do mal61 ainda que apenas parcialmente (pois
61 Apocalipse 2:24: “os segredos de Satanás [τα βάθη του σα-
F.W.J. Schelling 127

deve-se ignorá-lo com o coração, mas não com a cabeça),


sabe que a mais elevada corrupção é precisamente a mais
espiritual, pois nela desaparece todo o natural e ao fim
mesmo a sensibilidade e até a volúpia, que se transforma
em crueldade, de tal modo que o mal demoniacamente
diabólico é mais estrangeiro ao gozo do que o bem. E
assim, se tanto o erro como a maldade são espirituais e
se originam no próprio espírito, então ele não pode ser
o que há de mais elevado. Assim[:]
III. o mais elevado, a terceira potência: é a alma.
Já no uso comum da língua distinguimos homens de
espírito de homens de alma. E de fato alguém pleno de
espírito pode ser privado de alma.
A alma é o verdadeiramente divino no homem, e
assim [ela é] o impessoal, o verdadeiro ente sob o qual o
pessoal como um não-ente deve estar submetido. Dúvi-
das sobre este ponto. A) Fala-se em doenças da alma.
Porém isso não existe. Apenas o ânimo ou o espírito
pode estar doente, assim como mostrarei de modo mais
claro logo em seguida. B) Diz-se também de um ho-
mem na vida corriqueira: ele tem uma alma má, negra,
falsa. Do mesmo modo como se fala de uma virtude
falsa. Não se pode contudo dizer que um homem que (469)
age viciosamente ou como um celerado [lasterhaft oder
τανά]”. (NT)
128 Preleções

ruchlos], age com alma. E, por conseguinte, ter uma


alma negra significa não ter alma nenhuma. (Do mesmo
modo, há um erro pleno de espírito, mas não um erro
pleno de alma).
Assim, a alma é o impessoal. O espírito sabe; a
alma contudo não sabe, mas é a ciência. O espírito,
precisamente porque ele contém em si a possibilidade
do mal, pode apenas ser bom, i.e., participar no Bem,
já a alma não é boa, mas ele é o Bem ele mesmo.
Do ânimo – e mais precisamente de sua nostalgia
mais profunda – há uma série contínua que nos conduz
até a alma. A saúde do ânimo e do espírito repousa
no fato de que esta série seja ininterrupta, de que se
encontre por assim dizer um duto contínuo da alma
até o mais profundo do ânimo. Pois a alma é aquilo
por meio do qual o homem está em relação com Deus,
[162] e sem essa relação com Deus nenhuma criatura, e em
particular o homem, pode existir sequer por um piscar
de olhos. Por isso, assim que este duto é interrompido,
aparece a doença, e mais precisamente a doença do
ânimo, sobretudo quando a nostalgia triunfa sobre o
sentimento, o que representa por assim dizer a alma no
ânimo. Assim 1) se o duto do sentimento é interrompido,
então se constitui a doença do ânimo. 2) Se o duto
do entendimento é interrompido, então [se constitui a]
F.W.J. Schelling 129

estupidez [Blödsinn]. Homens desse tipo têm usualmente


muita força de ânimo e particularmente uma vontade
própria forte, a qual contudo é inofensiva, pois ela não
é conduzida pelo entendimento e visa somente o gozo
e similares. 3) mas se o duto entre o entendimento e a
alma é interrompido, então se constitui o mais terrível, a
saber, a loucura. Na verdade, eu não deveria ter dito que
ela se constitui, mas que ela se manifesta [tritt hervor ].
Para esclarecer este ponto, observo o seguinte.
O que é o espírito do homem? Resposta: um ente,
mas a partir do não-ente, e assim o entendimento a
partir do sem entendimento. O que é então a base
[Basis] do espírito humano, no sentido em que tomamos
a palavra “base”? Resposta: o sem-entendimento. E
como o espírito humano se comporta também em relação
à alma como um não-ente relativo, [ele se comporta em (470)
relação] a ela como o sem-entendimento. A essência
mais profunda do espírito humano, NB [nota bene],
quando ele é considerado em sua separação em relação
à alma e a Deus, é a loucura. A loucura não se constitui
mas ela se manifesta [tritt hervor ], quando aquilo que
é na verdade um não-ente, i.e., o sem-entendimento,
atualiza-se, quando ele quer ser ente, essência.
A base do entendimento assim é a loucura. Por isso,
a loucura é um elemento necessário, que apenas não
130 Preleções

deve vir ao primeiro plano [zum Vorschein], atualizar-se.


O que chamamos entendimento, quando ele é de fato
entendimento efetivo, vivo, ativo, nada mais é do que a
loucura regrada. O entendimento assim só pode se mani-
festar, mostrar-se, no seu oposto, no sem-entendimento.
Os homens que não têm nenhuma loucura em si são
os homens de entendimento vazio e infrutífero. Daí o
provérbio invertido: nullum magnum ingenium sine qua-
dam dementia [nenhum gênio sem um grão de loucura]62 ;
daí a loucura divina da qual Platão e da qual os poe-
tas falam. Com efeito, quando a loucura é regida pela
influência da alma, então ela é uma loucura verdadeira-
mente divina, [ela] é então o fundamento do entusiasmo,
da eficácia [Wirksamkeit] em geral. – Mas em geral
também o mero entendimento, quando ele é ao menos
forte e vivo, é somente a loucura dominada, contida e
ordenada. Porém há casos em que o entendimento não
pode mais controlar [bewältigen] a loucura adormecida
que repousa nas profundezas de nossa essência. Tam-
pouco no caso de uma dor violenta pode o entendimento
[164] fornecer consolo. Nesse caso, quando espírito e ânimo
estão sem a doce [sanft] influência da alma, irrompe a

62 Dito atribuído a Aristóteles por Sêneca “nullum magnum


ingenium sine mixtura dementiae fuit” – cf. De Tranquilate
Animi, XVII, p. 10. (NT)
F.W.J. Schelling 131

essência inicial obscura e arrasta consigo [fortreissen] o


entendimento como um não-ente relativo em relação à
alma. A loucura se manifesta [tritt hervor ] como um si-
nal assustador daquilo que é a vontade em sua separação
de Deus.
De maneira similar nasce o erro, quando as forças
subordinadas, o entendimento, a vontade, o desejo, a
nostalgia, querem ser por si e não [querem] se submeter
ao mais elevado.
A verdadeira liberdade humana consiste justamente
em que o espírito está por um lado submetido à alma,
mas por outro lado encontra-se acima do ânimo. Na (471)
medida em que o espírito, i.e., a vontade (pois a vontade
é no espírito novamente o espírito), segue as inspirações
de cima, i.e., as inspirações da alma, ou as inspirações
de baixo, i.e., as inspirações da vontade própria, ele faz
de seu princípio, ou bem o mais elevado, ou bem o mais
inferior, e por conseguinte ele age bem ou mal. Se a
vontade quer por assim dizer pôr-se sobre sua própria
base, então ela se torna necessariamente estranha à alma
e assim ao bem; se ela contudo se submete à alma, então
ela se torna alheia à vontade própria e assim ao mal.
A alma como o absolutamente divino não tem na
verdade nenhuma gradação [Stufen] mais em si. Ela é o
céu interior do homem. Mas ela é capaz de diferentes
132 Preleções

relações com o subordinado, e assim de diferentes ma-


nifestações. A alma pode 1) relacionar-se ao real das
potências subordinadas, [e] assim à nostalgia e à força
de si [Selbstkraft] ou vontade própria. Esse é o caso
na arte e na poesia. Nostalgia e força de si constituem
na verdade a ferramenta na arte. Aqui se mostram
ambas bastante livres, em sua realidade completa, mas
subordinadas à alma de maneira tal como deve ser. Sem
a força de si de um lado ou a nostalgia profunda de
outro constituem-se obras sem realidade; sem a alma,
obras sem qualquer idealidade. O mais elevado na arte
é contudo a interpenetração do ideal e do real (a obra
de arte bem idealista é ainda assim tão real como uma
obra da natureza – eis a inocência de novo).
A alma pode 2) relacionar-se ao sentimento e ao
entendimento, as duas potências correspondentes nas
duas primeiras potências. Dessa maneira, constitui-se a
ciência em seu sentido mais elevado, aquele justamente
que é imediatamente dado pela alma – a filosofia.
Eis o lugar para se falar da essência da razão.
Afirma-se [wird statuirt] comumente uma oposição
entre entendimento e razão. Isso é incorreto. Entendi-
mento e razão são o mesmo, apenas visto de diferentes
maneiras. Usualmente a razão é posta como mais ele-
vada do que o entendimento. Isso é verdadeiro contudo
F.W.J. Schelling 133

apenas em certo sentido. No entendimento, há mani- (472)


festamente algo mais ativo, agente; na razão, algo mais
[166]
passivo, algo que se entrega [hingebendes]63 . Por isso,
são coisas muito diferentes dizer de um homem que
ele é um homem entendido [verständiger ] ou que ele
é razoável [vernünftiger ]. Quando se diz de alguém
que ele demonstrou bastante razão, significa-se em ge-
ral com isso que ele demonstrou submissão a motivos
mais elevados e não tanto que ele tenha demonstrado
atividade. Como na essência da razão repousa manifes-
tamente algo que se entrega [hingebendes], algo passivo,
[e como] por outro lado entendimento e razão só podem
ser um, então temos de dizer: a razão nada mais é do
que o entendimento em sua submissão ao mais elevado,
63 Este contraste entre entendimento e razão se manifesta tam-
bém na etimologia das palavras: Verstand (entendimento) vem
de ver-stehen, e stehen significa estar de pé, pôr de pé, de modo
que verstehen remete a uma compreensão que põe algo de pé, que
erige; Vernunft (razão), por outro lado, vem de ver-nehmen e
nehmen significa tomar, aceitar, receber, de modo que Vernunft
seria uma faculdade de compreensão que recebe, que acolhe. Para
uma exploração deste contraste entre os dois termos, ver a obra
de Jacobi Über das Unternehmen des Kritizismus, die Vernunft
zu Verstand zu bringen (1801). Um esboço de reconstrução do
histórico dessa distinção na obra de Schelling é fornecido por Vetö,
op. cit., p. 253. Para uma análise da constituição da terminologia
de Schelling por reação a Kant, ver: Klein G. M., Betrachtung
über den gegenwärtigen Zustand der Philosophie in Deutschland
und über die schellingische Philosophie im Besonderen, Nürnberg,
1813, p. 78ss. (NT)
134 Preleções

à alma. Por isso, a razão se comporta como efetivamente


passiva também na ciência verdadeira, e é a alma que
na verdade é ativa. A razão é apenas a acolhedora da
verdade, o livro onde as inspirações da alma são escritas,
mas ao mesmo tempo [ela é] igualmente uma pedra de
toque da verdade. O que a razão não acolhe, o que ela
repele, o que ela não deixa registrar em si, isso não é
inspirado pela alma, isso vem da personalidade. Ela é
nessa relação para a filosofia, o que o espaço puro é para
a geometria. O que é falso na geometria, um conceito
incorreto, não é acolhido pelo espaço, ele o repele; por
exemplo, um triângulo no qual o lado maior se opõe ao
ângulo menor.
A todas as produções pertence um princípio obscuro;
este é o material [Stoff ] do qual são extraídas as criações
da essência mais elevada. Para a filosofia, este princípio
obscuro é o sentimento; logo, sem sentimento não se
pode alcançar nada, o que não significa que ele seja o
que há de mais elevado.
De alma, razão e sentimento compõem-se assim a
verdadeira filosofia, e por conseguinte a filosofia é con-
duzida aqui à sua construção própria.
A alma pode 3) se relacionar com a vontade e com
o desejo. Se estes últimos estão inteiramente subordi-
nados à alma e em uma relação [Rapport] constante,
F.W.J. Schelling 135

então advém daí não uma boa ação isolada, mas a cons-
tituição moral da alma ou a virtude no sentido mais
elevado, a saber, como virtus, como pureza, excelên- (473)
cia e força do querer. – Deixa a alma agir em ti, ou
age absolutamente como um homem santo, eis segundo
penso o princípio mais elevado no qual se encontra o
que há de verdadeiro em diferentes sistemas morais, do
epicurismo ao estoicismo. Kant dispõe meramente da
expressão formal desse princípio. “Age de acordo com a
alma” significa o seguinte: age não como um ser pessoal,
mas antes como [um ser] impessoal, não obstrui em ti
mesmo pela tua personalidade a influência da alma. O
mais elevado em todas as obras, inclusive na arte e na
ciência, surge justamente do fato de que o impessoal age
nelas. Chama-se isso em uma obra de arte por exemplo
de objetividade, palavra pela qual designa-se apenas
a oposição à subjetividade. Se posso usar a expressão [168]
de meu irmão em um ensaio sobre a alma, essa obje-
tividade é alcançada “pelo verdadeiro artista em suas
obras, pelo verdadeiro herói em seus feitos, pelo filósofo
em suas ideias” 64 . Quando tal cume é alcançado, tudo

64 Grundsätze zu einer künftigen Seelenlehre por Karl Eberhard


Schelling, in: Jahrbücher der Medezin als Wissenschaft, t. II,
fasc. 2, p. 190ss (Nota de K. F. A. Schelling). K. E. Schelling
(1783-1854) é irmão de Schelling, médico da corte de Wurtemberg,
e autor de trabalhos sobre filosofia da natureza e filosofia da
136 Preleções

o que é temporal e toda a subjetividade humana são


apagadas, de tal modo que surgem obras das quais se
gostaria de dizer que a alma as realizou sozinha sem
nenhuma intervenção do homem. Apenas pelo divino
pode o divino ser criado, conhecido, realizado.
Por fim, a alma pode também agir de modo intei-
ramente puro, sem nenhuma relação particular e de
maneira completamente incondicionada. Este reino
[Walten] incondicionado da alma é a religião, não como
ciência, mas como a mais elevada beatitude do ânimo e
do espírito. Virtude, ciência e arte estão assim relaciona-
das à religião, elas têm de fato uma mesma raiz (ainda
que, justamente por isso, elas não sejam uma coisa só).
A alma é o que corresponde ao A3 , o A3 porém
é o amor divino, na medida em que ele é o elo da
criação = Identidade do não-ente e do ente, do finito e
infinito. Também a essência da alma é amor, e amor
é igualmente o princípio de tudo aquilo que surge da
alma. Que um sopro quente do amor deva insuflar e
metamorfosear a obra de arte, eis algo que é comumente
(474) reconhecido. Dizemos das obras mais belas que elas
foram feitas com amor, e mesmo que o amor enquanto
tal as produziu. Também a ciência em sua potência
mais elevada é uma obra do amor, e porta por isso
medicina. (NT)
F.W.J. Schelling 137

com todo o direito o belo nome de Filosofia, i.e., o


amor da sabedoria. O homem que nasceu para ser
filósofo experimenta em si mesmo precisamente este
amor que o divino experimenta [quando ele não quer]
deixar a natureza repelida e excluída, mas transfigurá-
la [verklären] novamente no divino e fusionar todo o
universo em uma grande obra do amor.
Conduzimos assim o homem ao ponto mais alto que
ele é capaz de alcançar nessa vida. Não nos resta assim
nada mais do que dizer ainda alguma coisa sobre o
destino [Schicksal ] do homem em uma vida futura.
Tudo o que sobreveio até aqui pertencia na verdade
apenas à primeira potência. A verdadeira segunda po-
tência começa para o homem apenas depois da morte.
Nós procedemos aqui de tal modo que começamos pela
vida: falemos então da passagem do homem da pri-
meira potência de sua vida à segunda, [falemos] assim
da morte. [170]
A necessidade da morte pressupõe dois princípios
absolutamente inconciliáveis cuja cisão é a morte. Incon-
ciliável não é aquilo que se opõe, mas o que se contradiz;
por exemplo, ente e não-ente não são inconciliáveis, mas
ao contrário eles se combinam [zusammengehören]: [a in-
compatibilidade surge] apenas quando o não-ente como
tal quer ser um ente e quer fazer do verdadeiro ente um
138 Preleções

não-ente. Esta é a relação do bem e do mal. O conflito


entre bem e mal é universal por culpa do homem, o que
significa que ele é igualmente suscitado independente-
mente do homem e fora do homem. Essa contrariedade
na natureza, da qual o homem participa através de sua
carne [Leib], torna necessário que o espírito não possa
aparecer nessa vida completamente no seu Esse, mas
deva aparecer também parcialmente no seu non-Esse.
O espírito do homem é assim necessariamente algo de
decidido 65 (mais ou menos decidido, naturalmente, o que
(475) não impede que a indecisão seja ela mesma novamente
decisão, ou seja, a decisão de querer o bem apenas con-
dicionalmente) – logo, o espírito do homem é bom ou
mau. Somente a natureza não é fruto de uma decisão;
a sua configuração atual parece sem dúvida repousar
sobre a constante ação recíproca do bem e do mal, de
tal modo que, se o bem ou o mal lhe fossem extraídos,

65 O termo “entscheiden [decidir]” é composto pelo verbo “schei-


den [cindir, dividir]” e pelo prefixo ent-. Tal prefixo exprime
tanto a noção de extração ou eliminação similar ao português des-
como em ent-fetten (desengordurar), ent-waffnen (desarmar), ent-
hüllen (desvendar, descobrir), quanto um sentido de origem como
em ent-stammen (descender), ent-springen (provir); ent-scheiden
nesse sentido significa tanto o ato de eliminar uma cisão como
uma ação que se origina de uma cisão prévia. Cabe notar que a
palavra portuguesa de-cisão contém essa mesma carga semântica
do termo alemão Ent-scheidung (ent- = de- ; Scheidung = cisão).
(NT)
F.W.J. Schelling 139

ela não seria de modo algum a mesma, mas antes per-


deria totalmente as suas propriedades. No entanto, a
natureza já teria há muito desintegrado por meio desse
conflito interno se ele não tivesse uma origem tardia, se
a bipartição não fosse posterior à unidade: agora ela
está certamente fragmentada, mas ela é ainda contida
por meio da unidade originária. Assim como na natu-
reza há uma mistura entre bem e mal, há também uma
mistura semelhante naquilo que o homem e a natureza
têm em comum e através do qual ele está em relação
com ela – a carne e o ânimo (por isso, o mal busca acima
de tudo abater [morden] o ânimo, pois nele há ainda
um resto de bem). Por essa razão, o homem não pode
aparecer nesta vida completamente tal como ele é, ou
seja, segundo o seu espírito, de tal modo que surge uma
distinção entre o homem exterior e o homem interior, o
homem aparente e o homem ente. O homem ente é o
homem tal como ele é segundo o seu espírito, o homem
que aparece por outro lado é recoberto pela oposição
involuntária e inevitável. Seu bem interno é encoberto
pelo mal que lhe é apendido por natureza, sua maldade
interna é por sua vez recoberta e ainda atenuada pelo
bem involuntário que ele tem por natureza. Um dia
porém o homem deve alcançar o seu verdadeiro Esse e
ser libertado do non-Esse relativo. Isso ocorre quando o
140 Preleções

homem é transportado para o seu próprio A2 , [quando


ele é] separado, certamente não da vida física em geral,
[172] mas desta [vida], em uma palavra, através de sua morte
ou de sua passagem para o mundo dos espíritos.
Mas o que acompanha o homem no mundo dos es-
píritos? Resposta: tudo o que ele mesmo já era aqui,
e apenas aquilo que ele mesmo não era fica para trás.
Assim, o homem não vai ao mundo dos espíritos apenas
com o seu próprio espírito no sentido mais restrito da
(476) palavra, mas com o que ele mesmo era na sua carne,
com o que na sua carne era espiritual, demoníaco [Dä-
monisches]66 . (Por isso, é tão importante reconhecer: 1)
que também a carne contém em si e para si um princípio
espiritual, 2) que não é a carne que infecta [inficirt] o
espírito, mas antes o espírito [que infecta] a carne: o
bem contamina a carne com o bem do espírito; o mal
contamina a carne com o mal do espírito. A carne é um
solo que acolhe toda semente, um solo no qual tanto o
66 Como observa Philipp Schwab, o termo Dämonische, tal
como Schelling o emprega, comporta uma tensão semântica: por
um lado, ele é associado à concepção do mal como na Freiheitssch-
rift (S.W. VII, p. 355); e, por outro lado, ele se refere ao espiritual
em geral, ao δαίμων, que, os estudos de etimologia da época associ-
avam às noções de Geist [espírito] e Seele [alma] – cf. Schwab P.,
“Das ‘höchst-wirkliche Wesen’ und die ‘Verschlossenheit’ – zum
Begriff des Dämonischen bei Schelling und Kirkegaard”, in: Das
Dämonische: kontextuelle Studien zu einer Schlusselkategoria
Paul Tilichs, Berlin / Boston: De Gruyter, 2018, pp. 11-39. (NT)
F.W.J. Schelling 141

mal quanto o bem podem ser semeados. E assim tanto


o bem que o homem cultivou na sua carne quanto o mal
que ele aí semeou seguem-no na morte).
A morte não é portanto nenhuma separação abso-
luta do espírito em relação à carne, mas apenas uma
separação daquele elemento da carne que contradiz o
espírito, i.e., do bem em relação ao mal e do mal em
relação ao bem (por isso, o que resta da separação não é
denominado carne, mas cadáver). Por conseguinte, não
é apenas uma parte do homem que é imortal, mas o
homem inteiro segundo o seu verdadeiro Esse, a morte
[sendo assim] uma reductio ad essentiam. O ser que
não é deixado para trás na morte – pois este é o caput
mortuum – mas que é nela formado [gebildet], que não é
meramente físico nem meramente espiritual, o espiritual
do físico e o físico do espiritual, este ser, para jamais
confundi-lo com o puramente espiritual, chamamos de
demoníaco. Assim, o imortal no homem é o demoníaco,
não uma negação do físico, mas uma essencialização do
físico [das essentificirte Physische]67 . Esse demoníaco

67 Essencializar (essentifiziren) é um termo de Friedrich Chris-


toph Œtinger, que assim o explica: “Gott allein ist der Essentiator:
Er fügt die Dinge zusammen, daß der Stoff zu Geist werde; Er ma-
cht, daß alles im ewigen Wort simplificirt werde, was materialisch
ist; daher wird die Seele nicht aus Kräfften componirt, sondern
essentificirt. Essentificiren heißt, ad Inexistentiam & Intensitatem
142 Preleções

é assim um ser supremamente efetivo, e mesmo muito


mais efetivo do que o homem nessa vida; ele é aquilo
que na língua do povo é chamado não de o espírito,
mas de um espírito (aqui vale de fato o dito de que vox
populi vox Dei ): quando por exemplo se diz que um
espírito apareceu para um homem, designa-se assim este
ser supremamente efetivo e essencializado.
Na morte, o homem não é transportado para o A2
absoluto ou divino, mas para o seu próprio A2 . O A2
divino como ente absoluto é necessariamente o bem ab-
soluto, e nessa medida somente Deus é bom68 . Fora dele,
é bom apenas aquilo que, enquanto não-ente relativo,
(477) tem uma participação no ente; naquilo porém que se lhe
opõe está [presente] o espírito do mal. Assim, o bem,
na medida em que ele é transportado ao seu próprio
A2 , é também transportado ao A2 divino; todavia, o

bringen. [Somente Deus é o essencializador. Ele une as coisas de


tal modo que o material torna-se espírito; Ele faz com que tudo
seja simplificado na Palavra eterna, que é material; por isso, a
alma não é composta a partir de forças, mas essencializada. Es-
sencializar significa trazer ad Inexistentiam & Intensitatem.]”, in:
Swedenborgs und anderer Irrdische und himmlische Philosophie,
Zweiter Teil, Frankfurt e Leipzig, 1765, p. 184. Para um estudo
mais aprofundado das origens do termo, ver Benz E., Les sources
mystiques de la philosophie romantique allemande, Paris: Vrin,
1987. (NT)
68 Lucas 18:19: “ ‘Por que você me chama bom?’, respondeu
Jesus. ‘Não há ninguém que seja bom, a não ser somente Deus.’ ”
(NT)
F.W.J. Schelling 143

mal, quando ele é transportado ao seu próprio A2 , é


justamente por isso expelido do A2 divino, no qual ele
ainda participava pela mediação da natureza. O bem é [174]
com efeito elevado acima da natureza, o mal submerge
sob a natureza.
Usualmente representa-se o homem após a morte
como um ser semelhante ao ar, ou abstratamente como
pensamento puro e genuíno [ein pures, lauteres Denken].
Mas ele é na verdade, como já o dissemos, um ser supre-
mamente efetivo, e mesmo mais robusto e mais efetivo
do que [ele o era] aqui. – Prova: a) toda fraqueza é
oriunda da divisão do ânimo. Se houvesse um único
homem no qual a divisão fosse totalmente eliminada,
e que tivesse em si apenas o bem, ele poderia mover
montanhas. Por isso, vemos que os homens que já nesta
vida alcançam o demoníaco (e essa resolução [Entschie-
denheit] é mais usualmente alcançada no mal do que no
bem), têm algo de irresistível em si; eles fascinam tudo
o que se lhes opõem, particularmente quando o que se
lhes opõe tampouco é algo bom, mas o mal, que todavia
não tem a coragem ou a força para se mostrar. Pois o
mestre e o virtuose decidido triunfam em todas as áreas
sobre o trapalhão e o incompetente. b) Justamente na
medida em que aqui (nesta vida) algo de contingente
entra na mistura, o essencial é enfraquecido. Por isso, o
144 Preleções

espírito libertado desse contingente é vida pura e força,


[na qual] o mal [é] ainda pior e o bem ainda melhor69 .
No que concerne a particularidade do estado interior,
sabe-se que ele é comparado ao sono, o qual é entendido
como a dissolução do interior pela preponderância do
exterior. Tal estado deveria ser pensado, contudo, como
um despertar adormecido ou um sono desperto = clair-
voyance [clarividência], um estado no qual [ocorre] uma
transação direta com os objetos sem a intermediação
de nenhum órgão. – Mas isso é válido também para
o mal? Resposta: também a escuridão tem a sua luz,
assim como o ente tem um não-ente em si. Aliás, a mais
(478) elevada oposição à clairvoyance é a loucura. A loucura
é assim o estado do inferno. – Uma pergunta: o que se
passa com a faculdade de recordar [Erinnerungskraft]?
Ela se estenderá tanto menos a todo o campo do possível,
dado que um homem correto já daria muito para poder
esquecer-se no momento adequado. Haverá um esqueci-
mento, uma Léthê, mas com um efeito diferente70 : os

69 Apocalipse, 22:11, na tradução de Lutero “Wer böse ist, der


sei feinerhin böse. . . wer fromm ist, der sei feinerhin fromm”
[Aquele que é mau continue a ser mau... aquele que é santo
continue a ser santo]. (NT)
70 Léthê (Λήθη), que significa literalmente esquecimento, é um
dos cinco rios do Hades (inferno) e tem seu nome igualmente
associado à deusa do esquecimento. Segundo a crença dos gregos
antigos, as almas bebiam das águas do Léthê antes de reencarnar
F.W.J. Schelling 145

bons que ali chegaram terão um esquecimento de todo


o mal, e assim também de todo o sofrimento e dor; os
maus, ao contrário, sofrerão o esquecimento de todo o
bem. Aliás, não se trata de uma faculdade de recor-
dar como aquela da qual dispomos, pois aqui devemos
primeiro interiorizar tudo71 , [ao passo que] lá tudo já
é interioridade. A designação “faculdade de recordar”
é assim muito fraca. Diz-se de um amigo, de um ser
amado, com o qual estamos unidos de coração e alma, [176]
que deles nos recordamos, eles vivem constantemente
em nós, eles não vêm ao nosso ânimo, ele estão lá, e
assim também a recordação estará lá.
Por meio da morte, o físico (aquilo que nele é essen-
cial) e o espiritual são reunidos. Nela, então o físico e o
espiritual juntos serão o objetivo (a base), ao passo que
a alma, ainda que somente para os bem-aventurados,
aparecerá como o subjetivo, como o verdadeiro sujeito,
o que implica que eles irão até Deus, serão ligados a
Deus. A desventura [Unseligkeit] consiste justamente no
fato de que a alma, por causa da revolta do espírito, não
pode aparecer como sujeito, o que resulta na separação
da alma e de Deus.
a fim de esquecer suas vidas passadas. (NT)
71 Schelling joga com a proximidade etimológica das pala-
vras: Erinnerungskraft (faculdade de recordar), sich erinnern
(recordar-se) e innerlich machen (interiorizar). (NT)
146 Preleções

Na medida em que o homem é transportado para o


seu próprio A2 , ele é transportado para o mundo dos
espíritos. Aqui a construção do mundo dos espíritos
encontra o seu lugar. Do mesmo modo que há uma
filosofia da natureza, há também uma filosofia do mundo
dos espíritos. Sobre este ponto limitemo-nos ao seguinte.
Desde o começo, quando Deus cindiu o real e o ideal,
ele teve de pôr o ideal como um mundo próprio. Tal
como no real encontrava-se o real, o ideal e a indiferença
de ambos, do mesmo modo [também] no ideal, apenas
sob a potência do ideal. Assim, no ideal de Deus, há
novamente algo que corresponde à natureza, com a di-
ferença de que se trata de algo inteiramente ideal. O
real no ideal é, conforme o que encontramos em nossas
investigações sobre o homem, o ânimo. Também em
(479) Deus há um ânimo, e este ânimo é no Deus espiritual
novamente o real; ele se relaciona ao espírito em Deus,
ao ente absoluto, também novamente como primeira po-
tência, como base, como princípio obscuro. O ânimo em
Deus é assim o material [Stoff ] do mundo dos espíritos,
assim como o verdadeiramente real era o material do
qual o mundo físico e o homem foram criados. Assim,
os espíritos puros são criados a partir do ânimo divino,
e de modo tão certo como há um mundo natural há um
mundo dos espíritos também independente do homem.
F.W.J. Schelling 147

Nós obtemos o nosso ânimo da natureza, os espíritos


obtêm-no de Deus mesmo.
Como há dessa maneira também nos espíritos puros
que foram criados do ânimo de Deus (o qual é relativa-
mente independente do espírito em Deus, i.e., do ente
absoluto) – como há assim neles um não-ente e um ente
relativos, eles [os espíritos] também são capazes de liber-
dade e por conseguinte do bem e do mal. Uma vez que a
intenção de Deus era que a natureza obtivesse por meio
do homem – a mais elevada criatura do mundo natural
– uma ligação com o mundo dos espíritos, também era
provavelmente a sua intenção que, por meio da mais
elevada criatura do mundo dos espíritos, este [mundo]
obtivesse a ligação com a natureza. Se essa criatura
falhasse, então ocorreria necessariamente no mundo dos
espíritos a mesma queda que se verificou no mundo
visível, e por conseguinte uma separação dos espíritos
bons e maus. Sem dúvida, essa criatura suprema do [178]
mundo dos espíritos que, assim como o homem do lado
da natureza, estava destinada a ser senhor do mundo,
quis ser, a partir de seu próprio poder [Macht], o senhor
desse mundo sem Deus, e assim ela caiu. Naturalmente,
o interesse supremo desse espírito criado mais elevado
deve ter sido o de agir [bewirken] para que esse mundo se
tornasse efetivamente um [mundo] próprio separado de
148 Preleções

Deus, pois apenas assim ele poderia esperar dominá-lo.


Assim, supondo que sua queda precedeu à do homem,
sua maldade deveria se direcionar contra o homem, pois
nele ainda estava presente a única possibilidade de que a
natureza e o mundo dos espíritos pudessem se encontrar,
e assim a possibilidade de que se obtivesse um reino
independente de Deus, como ele justamente buscava.
(480) Como o homem antes da queda estava ainda em uma
relação mais próxima com o mundo dos espíritos, esse
espírito mais elevado podia ter sobre o homem uma
influência mais imediata do que agora; pois agora o
homem é, como de hábito, muito ruim mesmo para o
Diabo; o ruim [Schlechte] é o misturado; o mau genuíno
[lautre Böse] é a seu modo algo puro. Assim se pode-
ria provavelmente recompor, de modo aproximado, a
explicação cristã da queda.
Isso basta sobre os habitantes originários do mundo
dos espíritos, i.e., sobre os que aí foram criados. Ora,
o mundo dos espíritos é um mundo também sob ou-
tra perspectiva, a saber, [ele é] um sistema de objetos
[Gegenstände] e mesmo um sistema tal como a natu-
reza. Pois natureza e mundo dos espíritos não são em
geral mais distintos do que – para usar um exemplo
um pouco grosseiro mas ainda assim capaz de tornar a
coisa intuitiva – o mundo da escultura e o mundo da
F.W.J. Schelling 149

poesia, cujas formas não se manifestam de modo visível


mas devem ser reproduzidas em cada um por meio de
uma atividade, [sendo] assim intuíveis apenas interior-
mente. O mundo dos espíritos é a poesia de Deus, a
natureza sua escultura. No homem, constitui-se um
intermediário, que é o drama visível, pois este apresenta
suas criaturas espirituais simultaneamente na realidade
[Wirklichkeit]. Por isso, o modo mais adequado de ver
a história é como uma grande tragédia, que é encenada
no cenário de tristezas deste mundo, o qual fornece
apenas o palco para os atores (i.e., para as pessoas ali
representadas) oriundos de um mundo completamente
diferente. Naquele mundo encontra-se tudo o que há
neste mundo, porém de modo poético, i.e., espiritual, e
pode assim ser comunicado muito mais perfeitamente,
também de maneira espiritual (o espírito inteiramente
visão [Gesicht]72 , inteiramente sentimento). Ali estão as

72 O termo “Gesicht” é um derivado etimológico do verbo ver


(sehen, Sicht, Gesicht) e cobre um campo semântico bastante rico.
Ele significa usualmente (i) “rosto”, “face” isto é, a parte frontal
da cabeça humana, mas ele significa igualmente: (ii) o aspecto
exterior de algo, como em “Gesicht unserer Zeit” [semblante de
nosso tempo]; (iii) a “capacidade de ver”, como em “er hat das
Gesicht verloren” [ele perdeu a capacidade de ver, ele ficou cego];
(iv) “uma visão” como na tradução da Bíblia de Lutero “Und er
sprach: Hört meine Worte: Wenn unter euch ein Prophet ist, dann
will ich, der HERR, mich ihm kundmachen in Gesichten oder mit
ihm reden in Träumen” [e ele disse: "Ouçam as minhas palavras:
150 Preleções

proto-figuras [Urbilder ], aqui, as reproduções [Abbilder ].


A ligação imediata da natureza com o mundo dos
espíritos é na verdade interrompida pelo homem; mas
nem por isso deixam eles de ser simultaneamente Um
mundo e de se relacionar um ao outro pelo menos à
distância. Uma certa simpatia permanece sem dúvida
entre eles, como se verifica entre as cordas de diferentes
[180] instrumentos quando se toca um tom em um, a corda
correspondente do outro ressoa simpaticamente. Assim,
esta relação do mundo dos espíritos com a natureza
(481) persiste, ela está fundada no ser mesmo do universo,
e é indissolúvel. E tal como o mundo dos espíritos
em seu todo está ligado à natureza por um necessário
consensus harmonicus, o mesmo ocorre com os objetos
individuais do mundo dos espíritos e do mundo natural.
Destarte, deve haver sociedades no mundo dos espíritos
que correspondem às do mundo [sensível], mas que lá
associam o semelhante ao semelhante, enquanto aqui há

Quando entre vocês há um profeta do Senhor, a ele me revelo em


visões [in Gesichten], em sonhos falo com ele] – Números, 12, 6.
Essa riqueza que cobre uma dimensão exterior (aspecto exterior
de algo), interior (visão de algo que se revela espiritualmente) e
cognitiva (capacidade de ver), faz com que Fichte declare em seus
Discursos à Nação Alemã que o termo alemão Gesicht seria a
tradução ideal do termo grego ιδεα que é igualmente um derivado
do verbo ver (ἰδεῖν) que significa tanto o objeto de uma visão
sensível como de uma visão cognitiva (Fichte, Discurso à nação
alemã, Quarto discurso, in: GA, I, 10, p. 125). (NT)
F.W.J. Schelling 151

uma mistura. Por isso, a nação que mais se privou de


toda mistura, i.e., a que excluiu de si ao máximo o mal
ou o bem, e que é assim ou bem a mais feliz e virtuosa
ou a mais infame e perversa, é a que tem mais poder,
pois ela é a mais demoníaca. Povos, nos quais ainda
habita a liberdade, a inocência, a pureza dos costumes,
a pobreza, i.e., justamente a separação em relação às
coisas deste mundo, estão em uma relação com o céu e
com o bom mundo dos espíritos; aqueles nos quais há o
oposto, com o inferno.
Do mesmo modo, cada homem particular, se nele o
bem ou o mal chegou à mais elevada pureza, está em
relação com o mundo espiritual bom ou mau. O homem,
pelo processo vital contínuo da espécie, torna-se alter-
nadamente sensível e insensível ao mundo dos espíritos.
O homem que em si mesmo cindiu o bem inteiramente
do mal seria capaz sem dúvida de se relacionar com
bons espíritos, os quais se esquivam da mistura, e que,
como diz a Bíblia, encontram um prazer constante em
escrutar o mistério da natureza exterior73 , – [uma natu-
reza] na qual se prepara o segredo mais elevado, a saber,
a completa encarnação [Menschwerdung] de Deus, do
qual apenas o começo já aconteceu. Do mesmo modo,

73 Pedro 1:12: “εἰς ἃ ἐπι θυμοῦσιν ἄγγελοι παρακύψαι [Mesmo


os anjos desejam debruçar-se sobre essas coisas]”.(NT)
152 Preleções

quem tivesse cindido em si o mal de todo o bem, estaria


em relação com espíritos maus. É inconcebível como se
pôde duvidar dessa conexão. Nós vivemos em meio a
inspirações constantes; quem presta atenção a si mesmo,
pode perceber isso [der findet es]. Particularmente em
casos difíceis tais inspirações nunca faltam ao homem, e
quando ele não as tem, então é por sua própria culpa.
O homem nunca é completamente abandonado, e, nas
muitas tristezas que cada um experimenta, pode-se es-
(482) tar certo de que se tem amigos invisíveis – uma crença
heroica que torna o homem capaz de fazer muito e de
sofrer muito.
Assim como cada homem tem uma relação com o
mundo dos espíritos, do mesmo modo, cada coisa da
natureza tem, pelo seu lado bom, uma relação com o
céu, e, pelo seu lado mau, uma relação com o outro
lado do mundo dos espíritos. Por isso, o homem deve
ter muita cautela em seu trato com a natureza e, em
particular, em seu trato com outros homens. (Preceitos
dietéticos dos antigos filósofos). O mundo dos espíritos
[182] não pode penetrar no mundo atual apenas por causa
da mistura. Se fosse possível, por exemplo, encobrir
totalmente, exorcizar ou superar o bem em alguma
coisa, então os espíritos maus poderiam operar nela. Eis
o fundamento da magia negra ou da feitiçaria [Zauberei ].
F.W.J. Schelling 153

– Isso já parece ser o bastante, e talvez até mais do que


o bastante, sobre o mundo dos espíritos.
Finalmente, o mundo dos espíritos e a natureza de-
vem ser ligados, e a potência mais elevada da vida
verdadeiramente eterna e absoluta deve aparecer. As
razões para [que] isso [ocorra] são [as seguintes]. 1) A
bem-aventurança espiritual mais elevada certamente
ainda não é a absoluta. Desejamos ter algo que não é
nós mesmos, assim como Deus tem algo para poder aí
nos contemplar como em um espelho. 2) A natureza é
submetida de modo inocente ao estado atual (passagem
de Paulo74 ), ela anseia pela [sie sehnet sich nach] liga-
ção; 3) e assim também Deus [anseia] pela natureza. Ele
não deixará que ela permaneça eternamente como ruína.
4) É de fato necessário que todas as potências sejam
reunidas em uma. Até aqui são apenas dois períodos: a)
o presente, no qual [se encontram] naturalmente todas
as potências, mas subordinadas ao real; b) a vida dos
espíritos, na qual [há] também todas as potências, mas
subordinadas ao ideal. Haverá então uma terceira, c) na

74 Romanos 8:19-21: “Porque a ardente expectação da criatura


espera a manifestação dos filhos de Deus. / Porque a criação ficou
sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a
sujeitou, / Na esperança de que também a mesma criatura será
libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos
filhos de Deus.” (NT)
154 Preleções

qual todas estão subordinadas à identidade absoluta – e


assim o espiritual e o ideal não excluem o físico e o real;
de modo que ambos estão conjuntamente subordinados
ao mais elevado como igualmente válidos. Esse restabele-
cimento porém é impossível antes que essa mesma cisão
não ocorra na natureza. Mas na natureza ela ocorre de
modo mais lento, pois ela tem uma força vital bem mais
profunda. O homem é aqui uma oferenda [Opfer ] para
a natureza, do mesmo modo que no início ela foi uma
oferenda [Opfer ] para ele. Com o seu ser-aí perfeito, ele
(483) deve esperar pelo ser-aí dela. Por fim, deve ocorrer sem
dúvida a crise da natureza, pela qual a longa doença se
decidirá. Toda crise é acompanhada por uma repulsa.
Esta crise é a última da natureza, e portanto “o juízo
final”. Toda crise é um juízo também no [domínio] físico.
Por meio de um verdadeiro processo alquímico, o bem é
separado do mal, o mal repelido do bem, [e] dessa crise
advirá uma natureza totalmente sadia, genuína, pura
e inocente. Nada alcançará essa natureza pura a não
ser o ente verdadeiro, que apenas na sua proporção cor-
reta pode ser um ente; a natureza será assim libertada
do falso ente, do não-ente. Por outro lado, o não-ente
que nela se elevou a ente ser-lhe-á subordinado como
base, este não-ente (o mal) será transposto nas profun-
dezas mais profundas, sob a natureza, e como esta [a
F.W.J. Schelling 155

natureza] já é ela mesma o egoísmo divino amenizado,


ele afundará no fogo ardente deste [egoísmo], i.e., no
inferno. Depois dessa última catástrofe, o inferno seria
o fundamento da natureza, assim como a natureza seria
o fundamento do céu, i.e., do presente divino. Assim,
o mal não é mais subsistente em relação a Deus e ao [184]
Universo. Ele o é apenas em si mesmo. Ele tem agora o
que ele queria, o ser inteiramente em si mesmo, i.e., a
separação do mundo universal, do mundo divino. Ele
é abandonado aos suplícios de seu próprio egoísmo, à
fome de sua busca de si.
Pela cisão na natureza cada um de seus elementos
obtém a relação mais imediata e mais próxima com o
mundo dos espíritos. Por isso, a ressurreição dos mortos.
O mundo dos espíritos entra no mundo efetivo. Os
espíritos maus obtêm o corpo carnal deles a partir do
elemento do mal, os bons a partir do elemento do bem
– a partir daquele quinto elemento, a matéria divina.
O propósito mais elevado da criação é agora realizado,
a) Deus inteiramente efetivado, visível e carnal, assim
A3
A2 =(A=B) , b) o mais baixo alcançou o mais elevado
(percurso circular) – o fim no princípio – mas agora tudo (484)
o que anteriormente era implicite passa a ser explicite, c)
particularmente o mistério [Geheimnis] da humanidade.
No homem estão ambos extremos exteriores articulados.
156 Preleções

Por isso, diante de Deus, ele é mais respeitado [höher


geachtet] do que os anjos75 . O homem é [constituído]
do [que há de] mais baixo e do [que há] mais elevado. A
humanidade, que já foi divinizada pelo Deus encarnado,
é agora universalmente divinizada graças ao homem – e
com ele a natureza também o é.
Para sermos consequentes, deveríamos reconhecer
também no terceiro período novos períodos ou potências.
Mas eles estão tão distantes de nosso horizonte espiritual
como (para usar uma figura bem fraca) o mais longínquo
nevoeiro que nenhum telescópio pode dissolver, exceto
o nosso telescópio carnal. Assim, se aqui também há
ainda períodos, então eles devem ser postos em um
reino [Regiment] sucessivo: a) o reino do Deus encarnado
(talvez ainda um reino do mundo natural e do mundo dos
espíritos, porém sem separação), b) o reino do espírito, c)
e finalmente [o reino em que] tudo [é] confiado ao pai76 .
Isso talvez em um momento em que tampouco haja

75 Hebreus 1:3-4: “O Filho é o resplendor da glória de Deus e a


expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua pa-
lavra poderosa. Depois de ter realizado a purificação dos pecados,
ele se assentou à direita da Majestade nas alturas, tornando-se
tão superior aos anjos quanto o nome que herdou é superior ao
deles.” (NT)
76 I Coríntios 15:24: “Então virá o fim, quando ele entregar
o Reino a Deus, o Pai, depois de ter destruído todo domínio,
autoridade e poder.” (NT)
F.W.J. Schelling 157

inferno; e nesses períodos da eternidade ocorre ainda a


remissão do mal na qual devemos crer. O pecado não é
eterno, e assim tampouco sua consequência.
Este último período no último [período] é o da mais
perfeita realização [Verwirklichung] – e assim a com-
pleta encarnação de Deus, na qual o infinito torna-se
inteiramente finito sem prejuízo à sua infinitude.
E assim Deus é realmente tudo no todo77 , [e] o
panteísmo verdadeiro.

77 Alusão a I Coríntios 15:28 “ἵνα ᾖ ὁ θεὸς [τὰ] πάντα ἐν πᾶσιν”–


“a fim de que Deus seja tudo em todos”. Ver também I Coríntios
12:6 e Efésios 1:23. (NT)
Léxico

Abbild, das – reprodução


ablassen – deixar escapar
Abweg, der – desvio
Anorgismus, der – anorgismo
anschauen – intuicionar, ver
Ansicht, die – modo de ver
Anstalt, die – instituição
aufheben – suprimir, superar
Aufhebung, die – supressão
aufschliessen – descerrar
Band, das – elo
Basis, die – base
Belebung, die – vivificação
Beschränkung, die – restrição
beseelen – animar

159
160 Léxico

Bewusstlose, das – não-consciente


Bewusstlosigkeit, die – falta-de-consciência, privação-de-
consciência
Bewusstwerdung, die – tomada de consciência
Blödsinn, der – estupidez
brechen – romper
Chemismus, der – quimismo
Cohärenz, die – coesão
contrahirende – contraente
Contraktion, die – contração
Dämonische, das – demoníaco
Dasein, das – ser-aí
Doublirung, die – duplicação
Egoität, die – egoidade
Eigenwille, der – vontade própria
Einbildung, die – uni-formação
Einerleiheit, die – indiferença
Eingenheit, die – individualidade
Eingenkraft, die – força própria
Empfingung, die – sensação
Entzweiung, die – bipartição
Erektion, die – erguimento
Erinnerungskraft, die – faculdade de recordar
erkennend – cognoscente
Erkennung, die – cognição
F.W.J. Schelling 161

Erweisung, die – evidenciação


essentificiren – essencializar
evolviren – evoluir
Evolvirende, das – evolvente
Existenz, die – existência
fortschreiten – progredir
Fülle, die – plenitude
Gegenstand, der – objeto
Geheimnis, das – mistério
Geist, der – espírito
Gemüth, das – ânimo
Geschlossenheit, die – reclusão
Gesicht, das – visão
Gestalt, die – configuração
Gewalt, die – poder, violência (dependendo do contexto
– a palavra original aparece contudo sempre entre col-
chetes ao lado da tradução)
Halt, der – sustentação
Herablassung Gottes, die – condescendência de Deus
hervorrufen – evocar
hinaufschrauben – fixar nas alturas
hinwegdrängen – repelir
inficiren – infectar
Innerste, das – o mais íntimo
Instinkt, der – instinto
162 Léxico

Involution, die – involução


involviren – involuir
Körper, der – corpo
Körperliche, das – corpóreo
Leib, der – carne, corpo carnal
Leibliche, das – carnal
Leiblichkeit, die – carnalidade
Lust, die – apetite
Mangel, der – privação
Menschwerdung, die – encarnação
mitteilsam – comunicativo
Offenbarung, die – Revelação
Persönlichwerden, das – personificação
Rapport, der – relação
scheiden – cindir
Scheidung, die – cisão
Schicksal, das – destino
Schöpfung, die – criação
Schwere, die – gravidade
Schwerkraft, die – gravitação
Schwermuth, die – melancolia
Seele, die – alma
Sehnsucht, die – nostalgia
Selbstbewusstwerdung, die – autoconscientização
Selbstbildung, die – auto-formação
F.W.J. Schelling 163

Selbstheit, die – ipseidade


Selbstkraft, die – força de si
sich äußern – exteriorizar-se
sich hingeben – entregar-se
sich verendlichen – fazer-se finito
sich vortreten – manifestar-se
Spross, der – rebento
Staffel, die – umbral
Steigerung, die – acentuação
Stickstoff, der – nitrogênio
Stoff, der – material
Stufe, die – nível
Sucht, die – ânsia
Träger, der – suporte
Trieb, der – impulso
Übermacht, die – preponderância
Umwandlung, die – transformação
Ungeschiedenheit, die – não-cisão
Unseligkeit, die – desventura
Unterlage, die – alicerce
Urbild, das – proto-figura
urfänglich – proto-inicial
Urkraft, die – proto-força
Urmaterie, die – proto-matéria
Urwesen, das – proto-essência
164 Léxico

Verkettung, die – encadeamento


Verklärungspunkt, der – ponto de transfiguração
verschliessen – encerrar
verschlingen – engolir
Verstand, der – entendimento
Verteilung, die – divisão
verzehrend – consumidor
vorangehen – preceder
Vorhandene, das – subsistente
Walten, das – reino
Weltschöpfung, die – criação do mundo
Wesen, das – essência
Wille, der – vontade
Wirksamkeit, die – eficácia
Wurzelkraft, die – força da raiz
zerlegen – desmembrar
Zorn, der – cólera
zurückziehen – retrair

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