Ensaios Antoine+Berman Zazie+Edicoes 2018
Ensaios Antoine+Berman Zazie+Edicoes 2018
Ensaios Antoine+Berman Zazie+Edicoes 2018
ANTOINE
BERMAN
Cartas para Fouad El-Etr
Tradução Simone Petry
ZAZIE EDIÇÕES
Cartas para Fouad El-Etr
2018 © Antoine Berman
COLEÇÃO
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
TÍTULO ORIGINAL
Lettres à Fouad El-Etr sur le Romantisme allemand
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Laura Erber
EDITORES
Laura Erber e Karl Erik Schøllhammer
TRADUÇÃO
Simone Petry
REVISÃO TÉCNICA
Maria Angélica Deângelia
REVISÃO DE TEXTO
Denise Pessoa e Rafaela Biff
DESIGN GRÁFICO
Maria Cristaldi
Bibliotek.dk
Dansk bogfortegnelse-Dinamarca
ISBN 978-87-93530-15-7
Zazie Edições
www.zazie.com.br
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
ANTOINE
BERMAN
Cartas para Fouad El-Etr
Tradução Simone Petry
ZAZIE EDIÇÕES
Cartas para Fouad El-Etr
ANTOINE BERMAN
Meu caro,
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No seu texto, Berman apresenta um modo peculiar de citação quando
opta por não fazer uso de aspas. Seu texto original é escrito todo em
itálico e as citações aparecem em letra normal com fonte um pouco
maior que a utilizada para a escrita autoral; algumas vezes nos informa
seus autores, mas sem as indicações formais de texto, página etc. Esse
modo não convencional de citação vai produzindo uma sensação de
“dissolução” da distinção entre as vozes que se manifestam ao longo do
ensaio. No texto traduzido optamos por marcar as citações com aspas
para preservar o conforto da leitura no formato digital. (N. T.)
6
mente por essa maneira de atar a poesia na poesia
e de juntar tudo nela.
É curioso que nessa empreitada eles tenham toma-
do Goethe por modelo. Goethe me parece, ao con-
trário, o exemplo perfeito da prudência e da econo-
mia em poesia. O excesso ou a superabundância, que
ignora a si mesma, lhe são igualmente estrangeiros.
Eu diria que ele não deixou de cumprir à risca o con-
selho de seu amigo Merck: “Teu inelutável destino é
emprestar à realidade um aspecto poético. Os outros
procuram dar uma realidade à poesia; disso não re-
sulta nada além de tolices...”. Emprestar à realidade
um aspecto poético! Isso significa haurir insensivel-
mente dessa realidade pretextos, ocasiões de poe-
mas, fundamentar-se nessas ocasiões idealizando-
-as. Eckermann conservou estes dizeres de Goethe:
“Meus poemas são todos poemas de circunstância,
eles se inspiram na realidade, é nela que se embasam
e repousam. Não quero saber de poemas que não
repousem em nada...”. O que não se deixa idealizar
de forma alguma – o trivial e o demoníaco – precisa
ser descartado, sem demora, da esfera da poesia. A
salvação do poeta está na limitação. Ora, você não
acredita que exista uma grande diferença entre os
poetas que buscam, sem cessar, pretextos na realida-
de e aqueles que precisam somente de um estímulo
para que o canto desperte neles com toda a força?
Novalis e Friedrich Schlegel, desde que se uni-
ram em “simpoesia” e “sinentusiasmo”, na embria-
guez da comunicabilidade absoluta, seguiram por
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um caminho oposto ao de Goethe: eles queriam,
de todas as maneiras possíveis, “realizar a poesia”.
Novalis escreve a Caroline Schlegel que “é preciso
formar um mundo poético em torno de si e viver
na poesia”. Sem dúvida, em Novalis, a poesia nas-
ceu de uma circunstância. Essa única circunstância,
você sabe, é a morte de sua noiva. Mas Novalis não
quer se contentar em cantar esse acontecimento em-
prestando-lhe arbitrariamente um aspecto poético.
O acontecimento é somente esse não eu, o choque
inicial que auxilia o eu do poeta a tomar consciência
de si mesmo (falo aqui a língua dos românticos, que
colocam o eu em todas as coisas). A poesia não pode
permanecer uma poesia de circunstância: ela deve
afastar toda ideia de limitação, absorver a realidade
(na qual não há nada de trivial nem de demoníaco)
e repousar apenas em si mesma. O que assim repou-
sa é absoluto. Realizar a poesia é torná-la absoluta.
“Coração produtivo” despertado pelo amor, ele nas-
ce “quando o coração, afastado de todos os objetos
singulares existentes – sente a si mesmo – transfor-
ma a si mesmo em objeto ideal – todas as inclinações
singulares se unem em uma só – cujo objeto maravi-
lhoso – é um ser superior – uma divindade...”.
Mas em que condições a poesia pode tornar-se
real e absoluta? Essas palavras não são árduas demais
para ela? Você desconfiará, sem dúvida, da minha
tendência para a especulação assim como do emprego
dessas expressões abstratas e filosóficas. Aquele que
se aventura no universo de Novalis se expõe necessa-
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riamente a esse deboche especulativo; aqui a filosofia
se tornou puro jogo, ou serviçal muda da poesia. Na
mesma época em que ela edifica fervorosamente seus
sistemas, e se pretende uma palavra universal, a poe-
sia desperta e afirma-se como a única realidade ver-
dadeira. Ao absoluto do saber responde o absoluto
da poesia. O romantismo alemão é antes de tudo: a
afirmação da poesia. Aqui e agora. Às vezes te ouço
dizer: “Os poetas devem tomar as próprias rédeas”.
Esse é o espírito romântico que vive em você. Não é
preciso para isso usar uma linguagem idealista: é o
teu palacete que é poético, teus banquetes, tuas ami-
zades, tuas ninharias, ou os problemas financeiros
que nos afligem diariamente. É La Délirante2 que é
poética. Foi você, ou Novalis, quem escreveu estas
linhas: “Também é possível tratar poeticamente os
negócios. Para realizar essa metamorfose é necessária
uma profunda reflexão poética...”.
Eis a hora sagrada, a hora da refeição. Dessa re-
flexão romântica que metamorfoseia os negócios e
ata a poesia em si mesma, eu tentarei te falar uma
outra hora.
Teu
Antoine
2
Revista fundada por Antoine Berman e Fouad El-Etr, em 1967, com
intuito de publicar textos inspirados no romantismo alemão bem como
traduções dos textos românticos. Berman foi diretor de publicação da
revista até sua quinta edição, quando partiu para viver um período na
Argentina. Atualmente, La Délirante é uma editora parisiense e conti-
nua sob a direção do poeta franco-libanês Fouad El-Etr. (N. T.)
9
Paris, 6 de setembro de 1967, noite
Caro Fouad,
Antoine
18
Paris, 9 de setembro de 1967, dez horas
Caro,
Teu
Antoine
29
Paris, 12 de setembro de 1967
Caro,
Antoine
33
Paris, 15 de setembro de 1967
Meu caro,
Nove horas
Antoine
Caro Fouad,
49
20 de setembro de 1967
Antoine
51
ANTOINE BERMAN (Argenton-sur-Creuse, 1942-1991),
graduado em filosofia e doutor em linguística, foi um tradu-
tor e teórico da tradução francês. É conhecido por sua atuação
política de resistência ao etnocentrismo e ao conservadoris-
mo linguístico – imposto pelo classicismo na França – tanto
na sua reflexão histórico-crítica sobre a tradução quanto na
sua prática tradutória. Dentre seus trabalhos sobre o tema,
que têm como base o Romantismo alemão, além de sua expe-
riência na Argentina durante a ditadura militar (entre 1970 e
1975), destacam-se L’épreuve de l’étranger (1984), La traduc-
tion et la lettre ou l’auberge du lointain (1985), Pour une criti-
que des traductions (1995) e Jacques Amyot, traducteur français
(2012), os dois primeiros já traduzidos para o português.
A produção intelectual de Berman, à diferença do que
frequentemente se divulga, tem início antes da década de
1980. Em 1967, ele e o poeta franco-libanês Fouad El-Etr de-
cidem juntos fundar a revista La Délirante, com o intuito de
promover um movimento de resgate crítico do pensamento
do primeiro Romantismo alemão, que havia sido obliterado
no pós-Guerra. Em La Délirante, os dois editores publica-
vam traduções, para o francês, dos fragmentos de Schlegel
e Novalis, assim como textos contemporâneos escritos sob
inspiração romântica. Entre 1967 e 1969, enquanto atuou
como diretor da revista, Berman publicou traduções e tam-
bém produções autorais, a exemplo do diálogo La tâche de
la poésie est simplement... (traduzido para português) e destas
Cartas para Fouad El-Etr (1968). Nesse ensaio epistolar, além
de apresentar uma leitura aguda das propostas teórico-refle-
xivas do primeiro romantismo alemão, especialmente tocado
pelo pensamento de Novalis, o autor e teórico francês realiza
uma romantização de seu próprio texto, em que várias vozes
se entrelaçam na tentativa de um exercício radical de escrita.
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