A Democracia em Claude Lefort
A Democracia em Claude Lefort
A Democracia em Claude Lefort
1) Olá, Luciano, seja bem-vindo a este espaço do IEPfD, Lições de Democracia. Hoje
vamos conversar sobre seu livro O Enigma da Democracia – o pensamento de Claude
Lefort. Eu gostaria, para iniciarmos nossa conversa, que você nos apresentasse Claude
Lefort e quais os principais conceitos sobre democracia desenvolvido por ele.
Como você sabe, gostamos muito de teóricos estrangeiros, de preferência europeus, para
legitimar nossas opções acadêmicas. Lefort, valorizando a democracia, caiu bem naquele
momento em que todo um movimento de defesa dos direitos humanos tinha aparecido no
ambiente da esquerda. Era o ocaso da ditadura militar e precisávamos de novas
orientações. Sai Althusser, entra Lefort! Eu, que cursara a universidade nos “anos de
chumbo” e tivera alguns colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a
idéia de escrever uma tese sobre a questão dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido sob
um regime que fazia da violação de tais direitos um de seus pilares, tinha-nos ensinado,
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Texto publicado na revista eletrônica Será?, edição de 03.02.2023, e no site do Instituto de
Estudos e Pesquisas para o fortalecimento da Democracia, www.iepfd.org.
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a mim e à minha geração, a valorizar, na prática, o que significava a sua vigência. Havia,
entretanto, um problema teórico a resolver.
Mas o que haveria de novo no que dizia Lefort? Até aí, nada que não pudesse ser subscrito
por um jurista convencionalmente liberal. Qual, então, a novidade? Ocorre que nas
reflexões que em seguida fazia sobre o significado político de uma sociedade que acolhe
os direitos do homem como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada
convencional, e sua visão da democracia, um tanto desconcertante para o senso comum.
Comentando a Declaração, Lefort lembrava que contrariamente ao que acontecia no
Antigo Regime – fundado sobre o “direito divino dos reis” –, “um novo ancoradouro é
fixado: o homem”. E em seguida se perguntava: “Mas que ancoradouro é esse?” É aqui
onde começam os problemas: tão logo fazemos um esforço no sentido de pensar
empiricamente o que é esse homem, verificamos que essa imagem se esvanece. O próprio
Lefort se põe a questão: “Se julgamos que há direitos inerentes à natureza humana
podemos economizar uma definição daquilo que é próprio do homem?” E prudentemente
esquiva-se de propor tal definição, observando que, “sem dúvida, a resposta se
esconderia.” “Ora – continua Lefort –, a idéia de homem sem determinação não se
dissocia da [idéia] do indeterminável. Os direitos do homem reenviam o direito a um
fundamento que, a despeito de sua denominação, não tem figura”. Essa indeterminação,
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além disso, percorre também outras tantas figuras míticas como o Povo – que são, nas
democracias, “entidades indefiníveis”. Ou, dizendo de uma maneira mais exata, a sua
“definição” está sempre sujeita ao questionamento, num debate público que é sem fim.
Ao ir coerentemente até o fim nessa vertente de pensamento, Lefort valer-se-á de
fórmulas que na ocasião de minhas primeiras leituras recepcionei com estranhamento.
Por exemplo, a da democracia como um regime que se institui – o que à primeira vista
parece um paradoxo – em oposição à “boa sociedade”, ou seja, a uma sociedade que
pretendesse ter abolido os “conflitos” e a “divisão social”, empreendimento que, por onde
passou, degenerou em totalitarismo.
LO – Na verdade ela começa um pouco antes dos anos 50. O percurso intelectual e
político de um Lefort ainda jovem, como era inevitável naqueles anos, encontrou o
pensamento marxista, do qual tornou-se um ativo militante. E em 1948 (quando estava na
faixa dos 25 anos), juntamente com Castoriadis, fundou o grupo Socialismo ou Barbárie,
cuja revista com o mesmo nome tornou-se uma referência no debate contemporâneo em
torno do marxismo, tendo sido a primeira publicação de esquerda na França a fazer uma
crítica sistemática e qualificada do stalinismo então no apogeu. O grupo recusava a tese
do socialismo soviético como um regime simplesmente pervertido pelo personalismo de
Stalin, vendo ali, ao contrário, um regime sui generis, onde uma nova camada social, a
burocracia, tinha se tornado uma nova classe dominante.
Mas dez anos se passam e, em 1958, Lefort abandona o grupo. Por quê? Porque o grupo
Socialismo ou Barbárie, mesmo recusando o socialismo de tipo soviético, tinha a
pretensão de ser um instrumento de “orientação revolucionária”, como anunciava o
subtítulo da revista. Mas nessa ocasião – ou seja, no final dos anos 1950 –, Lefort
simplesmente já não acreditava mais na “mitologia bolchevique, da qual Socialismo ou
Barbárie era [...], apesar de tudo [...], um último filhote.” A essa altura, ele tinha chegado
a um ponto de não retorno. Como relata ele próprio ao fazer um resumo do seu percurso
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intelectual, “durante um tempo acreditei ver desenhar-se uma revolução que seria obra
dos próprios oprimidos e que ela saberia se defender contra os que pretendessem dirigi-
la.” Mas, na sequência, faz uma drástica revisão desse projeto: “Atualmente, sei que
estava enganado. Essas ilusões começaram a se dissipar em 1958, assim que se deu minha
ruptura com Socialismo ou Barbárie, e desde então me empenhei em destruí-las” – diz
ele com certa aspereza.
3) JR – Mais tarde, Lefort vai mergulhar na obra de Maquiavel, de onde saí convencido
de que as divisões da sociedade são insuperáveis e fazem parte da sua própria
constituição, cabendo à democracia avançar em outras instâncias como os direitos
humanos e as desigualdades sociais. Eu gostaria que você falasse um pouco mais sobre
esta influência da obra de Maquiavel sobre o pensamento de Claude Lefort.
Mas, retomando sua pergunta, você menciona o avanço na luta contra as desigualdades
sociais como uma das missões da democracia. No que me diz respeito, não tenho qualquer
dúvida quanto a isso! Tenho a dizer, porém, que, se nos colocamos dentro do pensamento
de Lefort, essa é uma questão a meu ver não muito bem resolvida. Voltemos ao contexto
do aparecimento d’A Invenção Democrática. Lembro que, na época, ainda pairava na
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Mas devo lembrar que esse problema – o das desigualdades sociais – não é o centro das
preocupações lefortianas. Quando ele aborda essa questão é apenas en passant, mas, como
que não podendo fugir dela (quem, escrevendo depois da Revolução Francesa, pode fugir
da “questão social”?), ele faz uma série de considerações que de certa forma compromete
sua visão acerca da indeterminação democrática. Como vimos, Lefort insiste na visão da
democracia como um regime que aceita a legitimidade dos conflitos, num debate que é
sem fim. “Debate necessariamente sem fiador e sem termo”, como ele acrescenta. Ora,
essa ausência de fiador e de termo cauciona de certa forma a injustiça social. Lefort tem
plena consciência dos riscos e das cobranças a que sua concepção de democracia está
exposta. Como – se pergunta ele – “mensurar o que significa no totalitarismo a denegação
da divisão social [...] sem ter medo de me ver eu mesmo legitimar as divisões de fato que
caracterizam os regimes democráticos [...] nos quais vivemos? Como fazer entrever a
finalidade mortífera do totalitarismo sem justificar as condições de [...] desigualdade
próprias dos nossos regimes?”. É na resposta que ele dá que aparece, a meu ver, uma certa
inconsistência no seu pensamento.
Ocorre que, apoiando-se em dados factuais fornecidos pela história da Europa Ocidental,
ele argumenta que a democracia vale a pena porque ela é capaz de mudar a sorte dos mais
desfavorecidos... Ou seja: é como se o seu apego às “liberdades formais”, sob a égide das
quais viceja a “divisão social”, não fosse gratuito; como se ele fosse condicionado pela
perspectiva – que no caso da Europa Ocidental foi uma experiência concreta – de que tais
liberdades não são puramente formais, porque, por onde passaram, provocaram conteúdos
concretos: foram elas, afinal, que tornaram “possível as reivindicações que conseguiram
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fazer evoluir a condição dos homens.” É por isso que, se ouso assim dizer, Lefort parece
demonstrar uma espécie de “preferência” pelos direitos civis e políticos clássicos em
relação aos direitos sócioeconômicos, pois, mesmo que esses deixem de ser garantidos,
ou mesmo reconhecidos: “a lesão não será mortal, o processo continua reversível, o tecido
democrático é suscetível de ser refeito, não somente graças a circunstâncias favoráveis à
melhora da sorte do maior número, mas pelo próprio fato de serem preservadas as
condições de protesto.” Nos seus próprios termos, “Tudo se passa como se os novos
direitos viessem retrospectivamente incorporar-se ao que foi considerado constitutivo das
liberdades públicas.”
Mas o que deduzir disso? Que a indeterminação democrática não seria tão indeterminável
assim? – já que se a democracia “vale a pena” é à condição de resolver a “questão social”?
É o que a abordagem concreta do caso da Europa Ocidental parece sugerir. Nesse caso, o
que dizer de situações como a nossa em que, apesar de existirem as condições de protesto,
a sorte dos miseráveis parece imutável, como se vivêssemos numa espécie de “eterno
retorno” da miséria?... Não sei o que responder e, infelizmente, Lefort não está mais entre
nós para fazê-lo.
4) JR – “A Verdade efetiva das coisas”. Esta frase de Maquiavel, talvez seja a que melhor
defina o pensamento dele, e que Claude Lefort a toma como inspiração para sua inquirição
filosófica sobre os fenômenos da política. Minha pergunta tem um tom provocativo: esta
frase não é algo que nos escapa, posto que as ideologias têm suas “verdade efetiva das
coisas”?
LO – Quando Lefort fala nisso, ele está falando dos autores clássicos (Platão, São Tomás
etc.) que tinham um modelo de regime a apresentar aos seus concidadãos, enquanto
Maquiavel, ao contrário, via os regimes políticos como eles de fato são (“a verdade efetiva
das coisas”) e procurava tirar disso os ensinamentos para o que veio muito tempo depois
a ser chamado da “ciência política” (daí aquele pequeno mas instrutivo livro “Tudo
Começou com Maquiavel”, de Luciano Gruppi). Ora, atento a essa “verdade das coisas”,
Lefort construiu seu pensamento à margem e na contramão das grandes correntes que
empolgaram a filosofia francesa na segunda metade do século XX: o marxismo, o
estruturalismo, o pós-estruturalismo etc. Apesar de contemporâneo de autores como
Althusser, Foucault, Derrida etc., a reflexão de Lefort sempre passou ao largo da suspeita
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tão típica de certo pensamento francês que esses autores representam. De uma forma ou
de outra, todos eles se filiam à linhagem dos famosos “mestres da suspeita”, como se
designam os três grandes nomes que nos tempos modernos trouxeram a investigação
sobre os fenômenos sociais e humanos para o terreno do escondido, do bas-fond, do
inconfessável: Marx, Nietzsche e Freud. Há nesses autores e seus sucessores uma
sistemática desconfiança em relação à realidade visível, vivida, frente à qual os cultores
da suspeição costumam fazer a conhecida pergunta: “mas o que é que está por trás disso?”
As respostas são conhecidas: o modo de produção, no caso de Marx; a vontade de poder,
no caso de Nietzsche; o inconsciente, no caso de Freud.
É claro que esses são princípios heurísticos valiosos, não resta dúvida. Mas (e aí há certo
perigo), à força de ir ver o que está por trás das coisas, não corremos o risco de não ver o
que está na nossa frente? ─ ou seja, as coisas mesmas? Foi o que Lefort fez com a
democracia, ou, se preferirmos, o fenômeno democrático, exercendo uma reflexão, por
assim dizer, mais fenomenológica do que propriamente sociológica. Há uma conclamação
sua que vale a pena ser citada:
aceitar ver no presente outra coisa que não apenas o mal, decidir-se a decifrá-lo para
nele aprender o sentido dos nossos projetos, nele buscar as condições do nosso
pensamento e da nossa ação, e à medida que nos tornamos sensíveis à exploração e
à exigência de denunciá-la, permanecer conscientes de que falamos ainda no interior
da sociedade presente e que é dela, nas condições que nos são dadas, que temos de
extrair a verdade, em lugar de nos evadirmos no mito do bom passado ou no do
socialismo futuro.
LO – Essa é uma das fórmulas lefortianas mais famosas – “o poder como um lugar vazio”.
Mas como, “vazio”, se ele está sempre ocupado? – perguntar-se-ia. Mas aí é que está:
aqueles que o exercem são “simples mortais que só o ocupam temporariamente”.
Voltemos ao texto sobre direitos humanos: “Os direitos do homem reenviam o direito a
um fundamento que, a despeito de sua denominação, não tem figura”. Isso não é um
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simples detalhe. Adotando uma metodologia comparativa, a maneira que Lefort adota
para destacar os traços característicos da “matriz simbólica” da democracia é contrastá-
los com aqueles característicos do regime que a antecedeu – a monarquia absoluta – e
aquele outro que, no século XX, pretendeu substituí-la e constitui permanentemente uma
ameaça potencial para ela: o totalitarismo. Num como noutro caso – a monarquia absoluta
a montante, o totalitarismo a jusante –, o que ele próprio chamará de “imagem do corpo”
constitui uma espécie de “matriz simbólica” de uma e outra formações sociais. Cito-o:
questionar sua identidade”. Nessa vertente, ele vai dizer que a democracia não é um
regime que traz consigo uma solução definitiva para o problema da convivência humana,
colocando o “povo” no poder e instituindo assim a “boa sociedade”. O estranhamento que
se sente ao ler Lefort em momentos como esse é mais do que compreensível: o abandono
da idéia de “boa sociedade”, afinal, não seria exatamente o oposto do que se entende por
democracia? A resposta lefortiana, surpreendente e original, é não! Por quê?
Iliberais. Você acha que o pensamento de Claude Lefort sobre totalitarismo e democracia,
pode nos ajudar a lidar com tais fenômenos?
LO – Sem dúvida, e sobre esse perigo ele adverte constantemente. O seu último livro, A
Complicação (publicado em 1999 e não traduzido entre nós), trata incisivamente disso,
ao lembrar que se o comunismo está morto, as questões que ele levanta não naufragaram
junto. Entre outras razões porque no mundo globalizado do século XXI a insegurança é
um dos elementos cruciais do nosso tempo. Cito-o:
Como lembra ele n´A Invenção Democrática, o princípio da desincorporação que anima
esse regime não se limita ao âmbito da política propriamente dito, pois se infiltra e atua
também no conjunto da chamada “sociedade civil”, tornando possível a “emergência de
relações sociais” que escapam ao domínio do poder – relações “não apenas econômicas,
mas jurídicas, pedagógicas, científicas” etc. que têm nelas mesmas seus próprios critérios
de validade. Contrariamente a isso, no totalitarismo a sociedade civil perde seu
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Tudo isso é grave e perigoso, e não devemos levar esses movimentos na brincadeira. Mas,
ainda me valendo da tipologia de Rosanvallon, a “democracia polarizada” instalada nos
países que você cita se diferenciaria do que o historiador chama de “democracia
essencialista”, que teve sua maior expressão nas experiências totalitárias do comunismo
e do nazismo no século XX. Certo, a “democracia polarizada” compraz-se na denúncia
de “inimigos” como imigrantes, comunistas imaginários, usuários de drogas, militantes
pela legalização do aborto, gays etc., todos denunciados como pondo em risco as tradições
e a “comunidade orgânica” da nação. Em que pese isso, parece ainda estarmos longe da
“democracia essencialista” adotada pelo nazismo e pelo comunismo.
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Para argumentar, vou pular fora do que ocorre nesses países, cuja dinâmica desconheço
quase inteiramente, e me reportar ao que aconteceu no nosso próprio país durante os
quatro anos da presidência de Bolsonaro. Foi, sem dúvida alguma, uma “democracia
polarizada”. Uma divisa que apareceu no 7 de Setembro de 2021 entre os apoiadores do
presidente em manifestações claramente golpistas – “Eu autorizo!” – é uma boa ilustração
da hostilidade dos adeptos da democracia polarizada às instituições da democracia formal
e do próprio estado de direito. Mas, para mim, importa destacar que, apesar desse
plebiscitarismo típico das democracias polarizadas, entre nós conseguiu-se por um dique
às pretensões autoritárias do presidente Bolsonaro pela atuação dos outros atores em jogo,
notadamente o Poder Judiciário, certamente, mas também parte relevante da imprensa e
da comunidade científica. Aqui, a vontade do presidente Bolsonaro – ou seja, o poder –
não conseguiu prevalecer contra o saber e a lei. Darei, em seguida, dois exemplos, ambos
referidos à questão da pandemia da Covid e, respectivamente, dizendo respeito a uma e
outra instâncias.
A instância da lei. Quando, alguns meses depois de instalada a pandemia, ficou evidente
que a estratégia da União era, como diria Michel Foucault, “deixar morrer” para que
pudéssemos chegar à chamada imunidade de rebanho, o STF decidiu que os outros entes
federativos, Estados e Municípios, tinham competência concorrente para legislar sobre a
matéria, liberando prefeitos e governadores (que viam pessoas morrendo em corredores
de hospitais superlotados, enquanto o presidente tentava administrar cloroquina às emas
do Alvorada) para assumir tarefas independentemente do poder. Por essas e outras é que,
malgrado tudo, pode-se considerar que a sociedade brasileira permaneceu democrática
durante o quadriênio tenebroso do presidente Bolsonaro, porque, voltando a usar um
termo lefortiano, ela se mostrou “indomesticável”.
Isso não significa dizer que não corremos perigo – que, aliás, continua nos rondando,
como prova essa tentativa de golpe no dia 8 de janeiro último, onde uma malta
aparentemente constituída em sua maioria por uma massa de manobra de idiotas úteis
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tentou tomar de assalto a Praça dos Três Poderes. É uma turba herdeira dos gritos de “Eu
autorizo!” de 2021. Mas o quê?
Pensando livremente em alguns dos feitos mais notáveis (utilizando o termo no sentido
literal daquilo que mais se nota) do então governo Bolsonaro, na época me perguntei a
que se referia essa “autorização”: liberar irrestritamente as armas de fogo? Prender
comunistas? Matar bandidos? Privatizar as estatais? Incentivar a devastação ambiental?
Escrachar o movimento LGBT? Cooptar militares oferecendo-lhes “boquinhas”? Livrar
a cara da “república das rachadinhas”? Continuar a desacreditar a eficácia das medidas
sanitárias contra a Covid? Tudo sempre me pareceu muito insensato e confuso. Tanto
mais que o ultraliberalismo de Guedes sempre foi impopular, o próprio Bolsonaro nunca
a ele aderiu, e não resistiu à gastança que foi necessário promover na tentativa de se
reeleger. Pensando bem, a única política pública de Bolsonaro que deu certo foi a do
liberô geral da armas de fogo no país, medida que nunca contou com o apoio do
contingente eleitoral evangélico, o seu forte. De um ponto de vista simbólico, o nosso
equivalente da “raça ariana” no caso do nazismo e da “classe proletária” no caso
comunismo foi (e continua sendo) uma vaga noção de “cidadãos de bem”! Mas, apesar
disso tudo (ou seria graças a isso tudo?), o candidato Bolsonaro, com um “programa”
desses, perdeu as eleições de 2022 por menos de 2% do eleitorado... Foi por pouco. Mas
é isso. Como Lefort sempre advertiu, é próprio dos regimes democráticos serem
permanentemente postos à prova pela “tentação totalitária. Parodiando Guimarães Rosa,
viver em democracia é muito perigoso!
Isso dito, e para concluir, acho que se faz necessária uma reflexão final sobre a
legitimidade da “divisão social” e dos “conflitos” numa sociedade democrática. A meu
ver, a perspectiva lefortiana da legitimidade do debate sobre o que é legítimo, ou não, nos
deixa de certa forma desarmados diante de uma questão importante: que demandas não
seriam legítimas numa sociedade democrática? Esse não é um assunto que ele explore
teoricamente. Na prática, entretanto, ele riscou uma linha no chão quando se defrontou
com uma questão concreta: as eleições legislativas na Argélia em 1992, interrompidas
por um golpe de estado naquele país.
seus porta-vozes não escondia seu desprezo pela chamada soberania popular: “Se o povo
vota contra a lei de Deus, isso nada mais é do que uma blasfêmia. É preciso matar esses
incréus pela simples razão de que eles querem substituir a vontade de Deus pela deles”.
Resultado: o exército interveio e acabou com a festa, anulando as eleições. Para minha
surpresa inicial, Claude Lefort, numa entrevista, apoiou o golpe! E não hesitou em
assumir o apoio com todas as letras:
E disse mais:
Passado o susto inicial, concordei e concordo com ele. Foi frente a uma “verdade efetiva
das coisas”, e não num plano meramente teórico, que Lefort enunciou um limite que, nas
democracias, não pode ser ultrapassado: não é legítimo valer-se de suas instituições para
dar cabo dela.