PIMENTA Denise A Epidemia Do Amor
PIMENTA Denise A Epidemia Do Amor
PIMENTA Denise A Epidemia Do Amor
Denise Pimenta1
A "LOVE" EPIDEMIC:
AN ETHNOGRAPHY OF DANGEROUS CARE IN SIERRA LEONE
Cidacs-Fiocruz/BA.
exilium 2 (2021)
Amie Musa (7) e irmão (à esq.). / Amie Keifala (30) e filho (à dir.).
Acervo pessoal, Komende-Luyama, Serra Leoa, 2017.
70
A epidemia do “amor”
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 13-14.
3
71
exilium 2 (2021)
72
A epidemia do “amor”
cuidado quanto mulheres cisgêneros. Sendo assim, para além de todas as evidências
já apontadas por tantos estudos, o ato de cuidar vem confirmar a legitimidade de
transexuais femininas serem entendidas como mulheres no que diz respeito a
exercer – frente à família e à sociedade – o árduo trabalho do cuidado e todas as
responsabilidades financeiras, físicas e mentais que isso compreende. No entanto,
de forma contraditória, na maioria das vezes, são violentamente referenciadas como
sendo homens, o que, de maneira alguma, é condizente com o papel que exercem nas
redes de afeto e cuidado.
73
exilium 2 (2021)
mas não faz delas um grupo comum ou uma identidade, nem mesmo
iguala mulheres brancas, negras, indígenas e amarelas, transgêneros e
cisgêneros, deficientes e não deficientes. Pois, como sugeriu Lugones9,
para seguirmos o feminismo decolonial como uma saída possível à
“colonialidade dos gêneros”, faz-se imprescindível entender que se o ato
de cuidar atravessa a vida de toda mulher, ele não o faz da mesma forma
e com a mesma violência em relação a todas elas. Como é frisado pela
historiadora e cientista política francesa Françoise Vergès10, “o trabalho
perigoso”, aquele mais pesado e sujo, é um fardo maior para mulheres
racializadas e migrantes. Vergès chama a atenção para a “economia do
desgaste” e a “fadiga dos corpos racializados”, e acrescenta ainda:
74
A epidemia do “amor”
epidemia do ebola contada por mulheres, vivas e mortas). 2019. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
DAS, Veena. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India.
13
nome de seus pais como sobrenome. Além disso, são entendidas como pertencentes
à etnia deles, mesmo que residam com as mães e falem a língua da família materna.
75
exilium 2 (2021)
Por lá esteve não mais que três semanas, visto que o tempo médio
de recuperação de um enfermo afetado pelo vírus é de aproximadamente
21 dias. Voltou para Komende-Luyama considerada curada; já sua
filha seguiu para o Cemitério da Cruz Vermelha, visto que não resistiu à
doença. Binta-Bah, mãe de outras crianças que dela dependiam, seguiu
seu árduo cotidiano de cuidados domésticos, gestando a escassez da
casa e a quase fome dos filhos. Sem marido ou companheiro, além de
cuidar de suas crianças, ainda realizava tarefas para sua mãe, dona de
uma pequena venda na comunidade. Dessa forma, Binta sempre esteve
atarefada cuidando dos seus, mas também das amigas, das vizinhas
76
A epidemia do “amor”
77
exilium 2 (2021)
78
A epidemia do “amor”
Para entender o lugar das crianças pobres [...] [n]os casos de insta-
bilidade familiar, por separação e mortes, aliada à instabilidade
econômica estrutural e ao fato [de] que não existem instituições públicas
que substituam de forma eficaz as funções familiares, as crianças
passam a não ser responsabilidade exclusiva da mãe e do pai, mas
de toda a rede de sociabilidade em que a família está envolvida. [...]
[H]á uma coletivização das responsabilidades pelas crianças dentro
do grupo de parentesco, caracterizando uma “circulação de crianças”
[...] [O]s conflitos entre os filhos e o novo cônjuge podem levar a mulher
a optar por dar para criar seus filhos, ou alguns deles, ainda que
temporariamente17.
A mulher deve, então, dividir seus filhos da mesma forma com que deve
compartilhar alimentos, bens materiais e informações. Num sistema
matrifocal, toda produção feminina é criadora e mantenedora das
relações, e a mobilidade das crianças é um componente desta prática:
reproduz a centralidade feminina e aumenta o número de mulheres às
quais um indivíduo deve lealdade18.
LOBO, Andréa de Souza. Um filho para duas mães?: Notas sobre a maternidade em
16
79
exilium 2 (2021)
Doris e Benita
Certa feita, no ano de 2017, tendo estado em uma dessas feiras que
vende de alimentos cultivados nas roças das famílias até roupas, comprei
algumas tiaras para cabelo, sortidas. Como vivia no posto de saúde/
maternidade com diversas meninas, além de ser visitada por tantas outras,
desejei fazer um pequeno e simples agrado para aquelas garotas com
as quais eu mais convivia e tão pacientemente me ensinavam a língua
80
A epidemia do “amor”
81
exilium 2 (2021)
82
A epidemia do “amor”
83
exilium 2 (2021)
84
A epidemia do “amor”
85
exilium 2 (2021)
86
A epidemia do “amor”
87
exilium 2 (2021)
88
A epidemia do “amor”
IBRAHIM, Aisha Fofana. War’s Other Voices: Testimonies by Sierra Leonean Women.
22
dominant war story. Their testimonies made me realize that much of what has been
written about war, history, memoirs, autobiographies, and novels alike, has been
written by men and from a male perspective. Theses texts focus on conquests,
battles fought and won, military and political tatics and great leaders and heroes;
they are rarely about women and how they present the dailiness of war [...]. As a
result, women are denied a voice in the “oficial version” of the war story because first,
they are assumed not to be in the war and second, what they have to say about war
is relegated to the domestic sphere. [...] I argue that the western approach to post-
conflict psychological support, which focuses mainly on rape/war trauma, has not
89
exilium 2 (2021)
been appropriate or effective in Sierra Leone because the prevalent form of trauma
experienced by many is directly connected to economic survival. Most of the women
are traumatized by the violence of living abject poverty, becoming heads of household
and having no homes in which to raise their families”.
Cheguei a Serra Leoa em 13 de outubro de 2015. Apesar da forte militarização,
24
90
A epidemia do “amor”
pequenas hortas ao redor das casas, para o consumo familiar, e as farms, roças de
cacau, banana, arroz, dentre outros produtos destinados ao comércio em feiras locais
ou cidades maiores.
KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do
26
91
exilium 2 (2021)
Minha mãe tem somente uma ideia na cabeça, o mesmo projeto para
todos os dias, uma única razão de viver: salvar os filhos. Para isso, ela
elaborava estratégias, experimentava táticas. [...] Mamãe não deixava
nada nas mãos do acaso. Normalmente, quando anoitecia, fazia um
ensaio geral. Assim, sabíamos exatamente como entrar no matagal
cheio de espinhos, como nos esconder debaixo do mato seco... [...]
[S]eguindo as instruções de mamãe, tínhamos aprendido a nos esconder.
[...] Sempre havia batata-doce, banana e uma pequena cabaça de cerveja
de sorgo enrolada em um pedaço de pano. Essa trouxa ficava pronta
para quem conseguisse escapar... [...] Todos os dias, ela dava um jeito
de trapacear o destino implacável a que, por sermos tutsis, estávamos
condenados. Seus filhos continuavam vivos, estavam ali ao seu lado.
Ela tinha conseguido evitar a morte27.
MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017. p. 12,
27
14, 16 e 20.
92
A epidemia do “amor”
Hajariatu e filhas.
Acervo pessoal, Devil Hole, Serra Leoa, 2017.
93
exilium 2 (2021)
Because of love
94
A epidemia do “amor”
95
exilium 2 (2021)
outra moléstia humana –, mas também era transmitida através das redes
de mulheres. Assim, a cura e o adoecimento passavam pelo trabalho do
cuidado, colocando a maioria das mulheres em risco, visto que eram as
responsáveis pelos afazeres do zelo.
A pesquisadora serra-leonense Aisha Fofana Ibrahim28 afirma:
IBRAHIM, Aisha Fofana. “I am a woman. How can I not help?”: Gender Performance
28
and The Spread of Ebola in Sierra Leone. In: ABDULLAH, Ibrahim; RASHID, Ismail (ed.).
Understanding West Africa’s Ebola Epidemic: Towards a Political Economy. London:
Zed Books, 2017. p. 169. (Tradução minha.)
96
A epidemia do “amor”
Fɔ sɔri at
O cotidiano do cuidado doméstico, que sustenta as comunidades,
passa por carregar água, acender o fogo, cozinhar, cuidar das crianças,
da família e dos mais velhos, e passa também pela relação de atenção às
necessidades da vizinhança. Foi assim que Aunt Loup, mais conhecida
por Mama32 Fish, por vender peixes, foi contaminada pela vizinha, na
IBRAHIM, Aisha Fofana. “I am a woman. How can I not help?”: gender performance
29
and the spread of Ebola in Sierra Leone. In: ABDULLAH, Ibrahim; RASHID, Ismail (ed.).
Understanding West Africa’s Ebola Epidemic: Towards a Political Economy. London:
Zed Books, 2017.
DOUGLAS, Mary. Pureza e castigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
30
97
exilium 2 (2021)
comunidade de Devil Hole. Quando Isha Tullah adoeceu, Mama Fish tratou
de sua enfermidade limpando vômitos e excreções. Quando questionada
do porquê de ter se dedicado à vizinha naquelas condições, ainda mais se
responsabilizando pelo care33 enquanto “imundice”, “trabalho repugnante”,
ela responde que o fez Fɔ sɔri at. Em uma tradução literal do krio, at
significa “coração” e Fɔ sɔri quer dizer “por sentir muito”. O que pode ser
interpretado como “compaixão”.
Mama Fish.
Acervo pessoal, Devil Hole, Serra Leoa, 2017.
Para além disso, era um trabalho que precisava ser feito, como bem
salienta a psicóloga e pesquisadora francesa Pascale Molinier:
98
A epidemia do “amor”
Pwɛl at
MOLINIER, Pascale. Ética e trabalho do care. In: HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya
34
Araújo et al. (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do Care. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 35.
99
exilium 2 (2021)
100
A epidemia do “amor”
Referências
ABDULLAH, Ibrahim; RASHID, Ismail. Understanding West Africa’s Ebola
epidemic: Towards a Political Economy. London: Zed Books: 2017.
ABRAMOWITZ, Sharon Alane. How the Liberian Health Sector Became a Vector
for Ebola. Cultural Anthropology, out. 2014. Disponível em: https://culanth.
org/fieldsights/how-the-liberian-health-sector-became-a-vector-for-ebola.
Acesso em: 1 dez. 2020.
AGUILAR, Mario I. (ed). The Politics of Age and Gerontocracy in Africa. Eritrea:
African World Press, 1998.
MOLINIER, Pascale. Ética e trabalho do care. In: HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya
35
Araújo et al. (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do Care. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 35.
101
exilium 2 (2021)
DAS, Veena. The Event and the Everyday. In: ______. Life and Words: Violence
and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press,
2007.
102
A epidemia do “amor”
DAS, Veena. Three portraits of grief and mourning. In: ______. Life and Words:
Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California
Press, 2007.
FORDE, Daryll. African Worlds: Studies in the Cosmological Ideas and Social
Values of African Peoples. London: Oxford University Press, 1954.
103
exilium 2 (2021)
org/2018/03/23/black-issues-in-philosophy-the-african-decolonial-
thought-of-oyeronke-oyewumi. Acesso em: 1 dez. 2020.
KLEINMAN, Arthur. The Violences of Everyday Life: The Multiple Forms and
Dynamics of Social Violences. In: DAS, Veena et al. Violence and Subjectivity.
Berkeley: University of California Press, 2000.
LOBO, Andréa de Souza. Um filho para duas mães?: notas sobre a maternidade
em Cabo Verde. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, n. 1, p. 117-145,
2010.
104
A epidemia do “amor”
105
exilium 2 (2021)
RICHARDS, Paul. Fighting for the Rain Forest: War, Youth and Resources in
Sierra Leone. Oxford: James Currey, 1996.
106
A epidemia do “amor”
WALKER, Alice. Coming Apart. In: ____. You Can’t Keep a Good Woman Down:
Stories. London: The Women’s Press Ltd., 1982. p. 41-53.
107