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EDUCAÇÃO INFANTIL NA

PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL:

Concepções e Práticas
para o Desenvolvimento Integral
da Criança

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Débora Cristina Sales da Cruz Vieira
Rhaisa Naiade Pael Farias
Simão de Miranda
(Organizadores)

EDUCAÇÃO INFANTIL NA
PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL:

Concepções e Práticas
para o Desenvolvimento Integral
da Criança

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Copyright © das autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e
autores.

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira; Rhaisa Naiade Pael Farias; Simão de Miranda
(Organizadores)

Educação infantil na perspectiva histórico-cultural: concepções e práticas


para o desenvolvimento integral da criança. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2020. 219 p.

ISBN 978-65-87645-59-9 [Impresso]


978-65-87645-90-2 [Digital]

1. Educação infantil. 2. Perspectiva histórico-cultural. 3. Desenvolvimento


integral da criança. I. Autoras/autores. II. Título.
CDD – 370

Capa: Felipe Roberto І Argila


Revisão: Christina Velho ([email protected])
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio Márcio
Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade
Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia
Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru); Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José
Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli
Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin (USP/Brasil)

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

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SUMÁRIO

Apresentação........................................................................................... 6

1. Fundamentos da Educação Infantil: marcos legais, conceitos da


Teoria Histórico-Cultural e práticas com a cultura escrita - Rhaisa
Naiade Pael Farias................................................................................... 14

2. Políticas de currículo para a Educação Infantil - Maria Aparecida


Camarano Martins ................................................................................. 45

3. Apontamentos teóricos sobre educação, cuidado e


desenvolvimento de crianças na Teoria Histórico-Cultural - Débora
Cristina Sales da Cruz Vieira .................................................................. 63

4. Apropriação de conceitos matemáticos e científicos na Educação


Infantil - Maria Auristela Barbosa Alves de Miranda ........................... 79

5. Planejamento, didática e avaliação na Educação Infantil na


perspectiva da Teoria Histórico-Cultural - Maria do Socorro Martins
Lima ........................ ............................................................................... 92

6. Naturalização da brincadeira: uma visão equivocada do brincar


como algo natural - Andréia Pereira de Araújo Martinez ................... 119

7.Educação infantil inclusiva: pelo direito à diversidade - Maria


Auristela Barbosa Alves de Miranda.................................................... 142

8. O Corpo e o movimento no contexto da educação infantil na


perspectiva da Teoria Histórico-Cultural: reflexões necessárias - Ivete
Mangueira de Souza Oliveira ............................................................... 163

9. Literatura, aprendizagens e desenvolvimento na Educação Infantil


à luz da Teoria Histórico-Cultural – Simão de Miranda ...................... 188

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6
Apresentação

Educação Infantil na Perspectiva Histórico-Cultural: Concepções e


Práticas para o Desenvolvimento Integral da Criança. Este livro,
coorganizado por mim e pelas professoras Débora Cristina Sales da
Cruz Vieira e Rhaisa Naiade Pael Farias, também autoras, por várias
razões é um marco na literatura de referência pedagógica brasileira
voltada a quem atua na Educação Infantil. Primeiro, por ter se
constituído a partir de um curso de Especialização em Educação
Infantil à luz da Teoria Histórico-Cultural, que reuniu estudantes já
profissionais na Educação Infantil com diferentes níveis de
conhecimentos teórico-práticos, mas ansiosos e exigentes por
experiências que arejassem seus fazeres na escola da infância. A
motivação pela produção desta obra legitimou-se pela necessidade de
oferecer, incialmente ao público participante do curso, produções
originais, autorais e contextualizadas das disciplinas que compunham
a referida Pós-Graduação, elaboradas pelo seu corpo docente.
Entretanto, sabíamos de antemão que atenderia igualmente um vasto
público interessado por esta perspectiva teórica na Educação Infantil
e, assim como nós, tem dificuldade em se repertoriar com o conteúdo
disponível no mercado livreiro.
Quando idealizei o curso de Especialização em Educação Infantil
à luz da Teoria Histórico-Cultural, um desconforto apontou para uma
demanda. Teríamos que empreender esforços intelectuais e, por que
não, braçais, para reunir textos avulsos de autores diversos que
atendessem às programações das disciplinas. O desafio se avolumava
dada a originalidade da nossa proposta: articular a docência na
Educação Infantil à Teoria Histórico-Cultural, nas suas dimensões
teóricas, metodológicas e epistemológicas. Este ineditismo é outra
razão que qualifica esta obra, ora ofertada aos profissionais na
Educação Infantil, assim como a estudantes de graduação em
Pedagogia e Psicologia, de pós-graduações em nível de lato e stricto
senso no campo da Educação, Psicologia e Psicopedagogia.
Assim, esta obra cobre uma formação ampla e consistente para
uma Educação Infantil em espaços de educação não doméstica, que
considere as crianças e suas aprendizagens e desenvolvimento nas

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suas dimensões mais plurais. Sua terceira razão sustenta-se nas
profundas implicações das autoras (e deste autor, docentes da Pós-
Graduação) com a Teoria Histórico-Cultural, como pesquisadoras
acadêmicas e, sobretudo, nas suas próprias práticas por também
atuarem em diversos outros espaços com e na Educação Infantil.
Portanto, aqui está Educação Infantil na Perspectiva Histórico-
Cultural: Concepções e Práticas para o Desenvolvimento Integral da
Criança. São nove capítulos que discutem o que há de mais
indispensável no contexto das aprendizagens e desenvolvimento da
criança em instituições educativas.
O capítulo 1, Fundamentos da Educação Infantil: marcos legais,
conceitos da Teoria Histórico-Cultural e práticas com a cultura, escrito
pela professora Rhaisa Naiade Pael Farias, está organizado em três partes:
a primeira dá ênfase à finalidade da Educação Infantil em promover o
desenvolvimento integral da criança conforme a legislação vigente
estabelece. A segunda aborda conceitos da Teoria Histórico-Cultural
(THC) que fortalecem a necessidade de se trabalhar com as crianças em
uma perspectiva de fomento integral de sua educação. A terceira parte
trata de uma dimensão prática do cotidiano da instituição educativa, o
trabalho com a cultura escrita. Essa etapa do texto evidencia as
possibilidades de articulação entre os conceitos da THC e os documentos
legais referentes à Educação Infantil. Por fim, considerações importantes
que buscam sintetizar em quatro aspectos as reflexões decorrentes da
relação teoria-prática abordada ao longo do texto.
O capítulo 2, Políticas de currículo para a Educação Infantil, da
professora Maria Aparecida Camarano Martins, discute a constituição
histórico-cultural dos marcos legais que impulsionaram a formulação
de políticas educacionais voltadas à Educação Infantil. A perspectiva
da abordagem é a da educação como um direito constitucional da
criança sujeito de direitos, sob um novo prisma em relação aos
processos formais de educação – o reconhecimento da Educação
Infantil como espaço coletivo educacional comprometido com o
desenvolvimento integral das crianças de 0 até 6 anos de idade. Desse
reconhecimento, busca-se efetivar a constituição de uma política
curricular para a Educação Infantil reveladora de um processo
educativo decorrente das relações sociais que as crianças estabelecem
com seus pares e com adultos no cotidiano dessas instituições. Tal
processo demanda a aceitação dos saberes produzidos pelas crianças

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e de experiências vivenciadas por elas em diferentes contextos
educativos e sociais. Nesse aspecto, os Campos de Experiências
presentes listados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da
Educação Infantil, fundados nas experiências das crianças em
diferentes situações da vida cotidiana e de saberes constituídos de
suas vivências, alinham-se à teoria histórico-cultural, provocando uma
reflexão por parte do/a professor/a em relação a sua prática
pedagógica. Essa organização curricular impulsiona a constituição de
novos percursos que viabilizem uma maior aproximação com as
experiências e saberes das crianças, com o objetivo de promover
novas experiências educativas, outros avanços. Além disso, possibilita
uma maior compreensão do que se depreende do cuidado e educação,
das interações e brincadeira em contextos de Educação Infantil.
O capítulo 3, Apontamentos teóricos sobre Educação, cuidado e
desenvolvimento de crianças na Teoria Histórico-Cultural, da
professora Débora Cristina Sales da Cruz Vieira, apresenta
apontamentos teóricos importantes sobre educação, cuidado e
desenvolvimento de crianças na Teoria Histórico-Cultural. O texto está
organizado em quatro tópicos: a) aprendizagem e desenvolvimento na
Teoria Histórico-Cultural, que apresenta conceitos primordiais para
uma aproximação teórica com a perspectiva; b) periodização do
desenvolvimento infantil, que apresenta a organização de estágios do
desenvolvimento partindo da atividade principal como norteadora do
desenvolvimento humano; c) a institucionalização na infância, que
apresenta a perspectiva da instrução na Educação Infantil de
orientação dialética e de caráter humanizador; d) a brincadeira de faz
de conta como atividade principal na infância. A reflexão deste texto
também contribui com a difusão da obra de Vigotski e colaboradores,
entre professoras e professores da Educação Infantil. Os conceitos do
autor são entendidos aqui como um campo específico da Pedagogia,
uma das ciências da Educação, concebendo-se que as ciências são
constituídas de perspectivas e abordagens teóricas sobre
determinado campo epistemológico.
O capítulo 4, Apropriação de conceitos matemáticos e científicos
na Educação Infantil, escrito pela professora Maria Auristela Barbosa
Alves de Miranda, é um alerta para a necessidade metodológica de
utilizar uma lupa sobre aspectos costumeiramente deixados de lado na
primeira etapa da Educação Básica. Com frequência discute-se sobre

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aspectos linguísticos e de apropriação da língua materna; sobre
alfabetizar ou não nessa etapa; até onde ir, e como fazê-lo, na
apresentação do sistema linguístico, na apropriação da leitura e da
escrita, mas pouco nos atemos às ciências e aos saberes matemáticos.
Todavia, à luz da Teoria Histórico-Cultural, a criança é um sujeito não
fragmentado, não divisível, e ao mesmo tempo em que desenvolve a
emoção, os afetos, aspectos cognitivos, motores, atencionais e
volitivos também são mobilizados. Assim como, de acordo com a Base
Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), as crianças na
escola da infância se apropriam da cultura humana a partir de campos
de experiências, que são inter-relacionados. Dessa forma, o capítulo
discute em específico a apropriação de conceitos matemáticos e
científicos, que estão direta e claramente relacionados ao campo de
experiências Espaços, tempos, quantidades, relações e
transformações, embora também se façam muito presentes no campo
Traços, sons, cores e formas, assim como em O eu, o outro e o nós.
Destaca que ainda identificamos esses saberes nos demais campos:
Escuta, fala, pensamento e imaginação e Corpo, gestos e movimentos.
Portanto, busca essas relações no sentido de não fragmentar o ser
humano, nem o patrimônio cultural da humanidade, nem as
experiências na escola da infância.
O capítulo 5, Planejamento, didática e avaliação na Educação
Infantil na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, produzido pela
professora Maria do Socorro Martins Lima, discute contribuições da
Teoria Histórico-Cultural para o planejamento, a didática e a avaliação
na Educação Infantil. O texto passa primeiramente, pela explicação
dos aspectos teóricos que envolvem estes processos, explorando
conceitos, etapas, funções e modalidades. Em seguida, apresenta as
ideias centrais desenvolvidas na Teoria Histórico-Cultural, como o
processo de desenvolvimento, o papel do meio, a relação
aprendizagem e desenvolvimento e o conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal, analisando sua contribuição para a
Educação Infantil. Procura destacar orientações das Diretrizes
Curriculares Nacionais, da Base Nacional Comum Curricular e do
Currículo em Movimento para a Educação Infantil no Distrito Federal,
no que diz respeito as suas especificidades e recomendações a serem
observadas no planejamento, didática e, em especial na avaliação,
alertando para a superação da concepção de seleção, classificação ou

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promoção, no segmento da Educação Infantil. Por fim, faz
considerações importantes acerca de como pensar, organizar e
desenvolver o planejamento, a didática e avaliação na Educação
Infantil, com amparo nesta proposta teórica.
O capítulo 6, Naturalização da brincadeira: uma visão equivocada
do brincar como algo natural, de autoria da professora Andréia Pereira
de Araújo Martinez, alerta para o equívoco de caracterizar a infância,
enquanto etapa da vida humana, como algo natural. Entendendo
assim, as crianças e suas brincadeiras são naturalizadas. O texto
transita em meio a discussões teóricas que divergem desse
pensamento, tendo por base a Teoria Histórico-Cultural, lançando
problematizações e um olhar reflexivo para tal debate, preconizando
que a existência humana extrapola as determinações naturais, pois é
engendrada pelas relações sociais e culturais, historicamente
constituídas. Realiza um esforço para diferenciar brincadeira,
brinquedo e jogo, e evidencia o papel da brincadeira para a percepção
das representações sociais pelas crianças. Além disso, traz à discussão
o conteúdo dos documentos curriculares nacionais acerca da
brincadeira e de sua importância para o desenvolvimento das crianças.
O capítulo 7, Educação infantil inclusiva: pelo direito à
diversidade, novamente da professora Maria Auristela Barbosa Alves
de Miranda, discute os marcos históricos e legais da Educação Especial
e sua constituição como inclusiva, sua transversalidade em todos os
níveis, etapas e modalidades da educação brasileira. Traz à baila o
pensamento de Vigotski a respeito da Educação Especial com uma
ótica inclusiva. Vale lembrar que, embora o autor tenha falecido
prematuramente, aos 38 anos de idade, no ano de 1934, é vastíssima
sua produção nesse campo, sendo considerado um de seus
fundadores na Rússia. Discute também o desenvolvimento infantil,
buscando abarcar sua diversidade e a importância da escola da infância
como garantidora do direito à educação para a emancipação e
desenvolvimento integral de todas as crianças. Assevera que a história,
de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, é uma totalidade que se
constitui dialeticamente, ou seja, em constante movimento, entre
contradições e mediações de signos e instrumentos, nas relações
entre os seres humanos. Tanto é assim que na entrada da segunda
década do século XXI ainda deparamos com experiências de
segregação, integração e inclusão no que diz respeito a práticas

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educativas em instituições não domésticas. Esperamos, com as
presentes discussões, fomentar um repensar e reorientar de ações
pedagógicas no sentido de construirmos, de fato, uma escola da
infância inclusiva, na qual as experiências sejam colaborativas e
emancipadoras; uma escola da infância onde a diversidade não seja um
problema, mas antes uma riqueza.
O capítulo 8, O Corpo e o movimento no contexto da Educação
Infantil na Perspectiva da Teoria Histórico-Cultural: reflexões necessárias,
da professora Ivete Mangueira de Souza Oliveira, proporciona reflexões
sobre o corpo e o movimento das crianças no âmbito da Educação Infantil
na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, evidenciando sua importância
para o desenvolvimento da criança nessa primeira etapa da educação
básica. Também destaca aspectos da prática pedagógica do professor
como organizador do ambiente educativo. Levanta questões fulcrais
norteadoras das discussões propostas: Qual o espaço e a atenção
destinada ao corpo da criança, especificamente, a sua potencialidade no
cotidiano da Educação Infantil? Qual importância do corpo e movimento
como experiência para o desenvolvimento das crianças? Como o corpo e
suas linguagens podem ocupar os espaços da escola da infância? Como a
prática pedagógica pode se constituir em relação ao corpo e movimento
das crianças considerando as especificidades da Educação Infantil?
O capítulo 9, Literatura, aprendizagens e desenvolvimento na
Educação Infantil à luz da Teoria Histórico-Cultural, escrito por mim,
propõe articulações entre literatura, aprendizagens e
desenvolvimento na Educação Infantil sob o prisma da Teoria
Histórico-Cultural. Inicia com uma retrospectiva histórica da origem da
literatura na antiguidade clássica, localizando suas origens e
desenvolvimento no Egito e nos estudos de Aristóteles sobre
narrativas e formas literárias que impactaram este tema em todo o
mundo ocidental. Discute os conceitos técnicos e teóricos para a
literatura infantil, passando pelas controvérsias acerca do seu
utilitarismo. Explora suas possibilidades com vistas ao incremento das
aprendizagens e desenvolvimento na Educação Infantil, à luz da Base
Nacional Comum Curricular e sob o prisma da Teoria Histórico-Cultural.
Para isso, discute, antes, o que são aprendizagens e desenvolvimento
nesta perspectiva. Em seguida, indaga como estas tramas podem se
concretizar na Educação Infantil, oferecendo sugestões de vivências
inspiradoras para professores e professoras alimentarem seus

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planejamentos com o amparo nesta proposta teórica. Ao final,
construímos e recomendamos um guia para avaliação e seleção de
literatura para a Educação Infantil.
Desejamos, eu e as colegas coorganizadoras e autoras,
professoras Débora e Rhaisa, que você faça bom proveito deste
trabalho concebido com muito zelo, respeito, dedicação e, sobretudo,
esperanças de que contribua com as revisões dos seus saberes e
práticas pedagógicas na sua atuação na Educação Infantil. É necessário
registrar especiais agradecimentos ao Instituto Saber, no Distrito
Federal, que acolheu e apostou na proposta desafiadora do curso, que
hoje se transforma em livro.
E você, prezada professora e prezado professor, receba o abraço
carinhoso deste seu companheiro, arquiteto de sonhos e engenheiro
de utopias.

Professor Dr. Simão de Miranda

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14
1.
Fundamentos da Educação Infantil: marcos legais,
conceitos da Teoria Histórico-Cultural e práticas
com a cultura escrita

Rhaisa Naiade Pael Farias

Naquele dia eu estava um rio.


O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
E escolhessem minhas árvores para cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.
Manoel de Barros (2010, p. 89)

Introdução

Este capítulo aborda aspectos gerais dos principais marcos legais


da Educação Infantil, concepções da Teoria Histórico-Cultural (THC)
que se articulam ao trabalho com as crianças, e discute um importante
tema prático, o trabalho com a linguagem escrita.
O tema dos fundamentos da Educação Infantil é algo comum a ser
estudado no curso de formação e envolve pensar as coisas pequenas
e cotidianas, assim como o poeta Manoel de Barros, autor da epígrafe
deste texto, faz em seus escritos. O poeta tem como característica
escrever sobre a simplicidade da natureza e das miudezas do dia a dia,
ele encanta e toca nossas vidas. Ao ler sua obra, nos convencemos de
que, pensar o corriqueiro, a própria rotina, têm sua importância, pois
é olhando para os acontecimentos e detalhes do habitual que
podemos solucionar as nossas ansiedades.

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Comecemos pensando sobre uma dessas questões banais… qual
vocabulário você utiliza ao falar sobre a Educação Infantil? Você usa
palavras como alunos, escola, sala de aula?
Vejam, a linguagem é um sistema de representação da realidade
e nos permite lidar com objetos ausentes; ela serve para nomear, nos
ajuda a abstrair e generalizar os elementos presentes no mundo. Cada
palavra representa algo, por isso, nossa fala marca posicionamentos e
nos define. Ao denominarmos tudo na Educação Infantil como
denominamos no Ensino Fundamental, isto é, se chamamos as crianças
de alunos, a instituição educativa de escola, a sala de atividade de sala
de aula, qual seria a diferença? Talvez esses usos equivocados guardem
relações com a grande confusão sobre o que é a Educação Infantil e o
trabalho que devemos desenvolver com as crianças.
Por isso é importante o uso de um vocabulário mais apropriado e
coerente com termos que marcam e definem uma identidade própria da
Educação Infantil. Nesta etapa da Educação Básica não temos aluno e sim
bebê, criança bem pequena e criança pequena; não temos sala de aula e
sim sala de atividade ou sala de referência; não temos escola e sim
instituição educativa ou escola da infância; a professora1 não dá aula, ela
desenvolve atividades educativas, organiza experiências significativas.
Esse vocabulário valoriza e corresponde às especificidades da educação
das crianças pequenas. Ao alinharmos essa primeira questão corriqueira,
buscamos uma “harmonia dos gorjeios”, assim como Barros (2010, p. 89)
propôs na epígrafe deste texto.
Para seguir com as discussões, este capítulo se organiza em três
partes. A primeira dá ênfase aos fundamentos da Educação Infantil
tendo em vista a legislação brasileira. A segunda aborda conceitos da
THC que contribuem para o desenvolvimento de uma prática
pedagógica coerente aos princípios expressos na primeira parte do
texto. A terceira parte trata sobre uma dimensão prática do cotidiano
da instituição educativa, trazendo o relato de parte do trabalho
realizado com uma turma de crianças pequenas e a cultura escrita. Por
fim, estão algumas considerações que buscam sintetizar em quatro

1Tenho clareza que homens e mulheres atuam na Educação Infantil e que a norma
culta de nossa língua prevê o uso genérico do masculino, contudo, reconheço e quero
aqui valorizar a grande maioria feminina que trabalha e luta nessa etapa. Assim, usarei
sempre “professoras”, “gestoras”, “profissionais” neste texto.

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aspectos que considero decorrentes da relação teoria-prática
abordada ao longo do texto.

A Educação Infantil e sua função nos documentos legais

Antes de tratarmos sobre a atual função da Educação Infantil


posta nos documentos oficiais nacionais mais recentes, gostaríamos
de brevemente pontuar a posição ocupada pelas crianças na legislação
anterior à Constituição Federal de 1988. Este exercício de olharmos
para as leis referentes às crianças nos faz perceber o grande avanço
alcançado com a legislação atual.
Conforme explica Perez e Passone (2010), as principais
normatizações em âmbito nacional referentes à criança começam
ainda no início do século XIX. Podemos citar como parte desse
arcabouço legal o Código Criminal do Império (1830), a Lei do Ventre
Livre (1871), o Código de Menores (1927), o Decreto Lei n. 2.024 de 1940
que instituiu a Departamento Nacional da Criança, o Decreto Lei n.
3.133 de 1957 que atualizou o instituto da adoção prescrita no Código
Civil. Tais documentos tratavam a infância como objeto de atenção e
controle do Estado. Nesse sentido, o aparato legal do País em relação
às crianças voltava-se aquelas das camadas pobres, tinha caráter
punitivo, destinava-se ao encarceramento e institucionalização das
mesmas. As crianças eram entendidas como menores, e o Estado por
meio de suas leis “infantis” buscava manter a ordem social
aprisionando meninos e meninas taxados/as como “delinquentes”. As
crianças abandonadas também tinham atenção nas leis e eram
atendidas nas áreas da filantropia e assistência social. Nesse sentido, a
criança ocupava a condição de objeto de intervenção do Estado.
No que tange ao atendimento das crianças em creches e pré-
escolas, podemos destacar que estas instituições não eram
regulamentadas por legislações nacionais. Funcionavam com caráter
assistencialista, higienista e sanitarista, tendo como objetivos
principais o combate do alto índice de mortalidade infantil e o
suprimento das carências culturais e nutricionais das crianças
(KUHLMANN JR., 1998). Na década de 1970 o discurso de uma
educação compensatória ganhou força no País, e as instituições
públicas visavam atender as crianças pobres que eram tidas como
carentes e deficientes em diversos aspectos de seu desenvolvimento,

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assim sua função era de promover a superação dessas carências de
saúde e nutrição. Por sua vez, as instituições privadas voltavam-se ao
atendimento das crianças em pré-escolas preparando-as para o ensino
regular (KRAMER, 1995).
Contudo, com a elaboração de uma nova Carta Magna, o Estado
sofreu inúmeras pressões de movimentos sociais em prol de uma
condição social mais digna às crianças. Resultado das negociações,
demandas e protestos, a Constituição Federal de 1988 é aprovada
garantindo uma série de direitos a TODAS as crianças,
independentemente de sua classe econômica ou condição social. A
criança passa então ao status de cidadã. Dois artigos, em especial,
merecem destaque para exemplificar essa nova posição infantil. O art.
227 assegura à criança a prioridade absoluta ao direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, à cultura e à convivência familiar e
comunitária, dentre outros direitos; e o art. 208 define a Educação
Infantil como direito da criança, e dever de o Estado ofertá-la
gratuitamente em creches e pré-escolas.
Passados dois anos, o Estado brasileiro aprova o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990, em consonância aos
direitos universais da Convenção dos Direitos das Crianças promulgada
pela Organização das Nações Unidas em 1989. O ECA (BRASIL, 1990)
consagra a doutrina da proteção integral da criança, estabelecendo em
seu art. 53 que o direito à educação se materializa mediante ao pleno
desenvolvimento da pessoa.
Outro importante marco legal é a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394 aprovada no ano de 1996. Em
seu art. 29 reconhece a Educação Infantil como primeira etapa da
Educação Básica, tendo como finalidade o desenvolvimento integral
da criança no que tange às dimensões física, psicológica, intelectual e
social, complementando a ação da família e da comunidade.
Após a aprovação da LDBEN (BRASIL, 1996) vários documentos
incluindo normas, parâmetros, orientações e diretrizes foram
publicados buscando delinear e instituir as funções da Educação
Infantil. Entretanto, vamos destacar somente mais dois documentos
para finalizarmos essa seção.
Em 2009 as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil (DCNEI) fixam princípios, fundamentos e procedimentos para
orientar a elaboração, organização, planejamento, execução e

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avaliação de propostas pedagógicas e curriculares. As DCNEI (2009)
estabelecem que a Educação Infantil acontece em espaços
institucionais não domésticos que educam e cuidam a criança
baseando sua a proposta curricular em dois eixos norteadores, as
interações e a brincadeira. As DCNEI (2009) afirmam ainda que a
criança é sujeito histórico e de direitos que produz cultura e o currículo
é compreendido como um conjunto de práticas que buscam articular
as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos
formais, para promover seu desenvolvimento integral.
Mais recentemente, em 2017, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) foi aprovada tendo como objetivo principal a formação integral
das crianças. A BNCC (BRASIL, 2017) reconhece a complexidade e a não
linearidade do desenvolvimento humano, defende a criança como um ser
diverso e singular, composto de dimensões e, ao mesmo tempo um ser
total em si mesmo, potente mas frágil também. Características essas que
não marcam ambiguidades e polaridades, mas que se apresentam como
uma visão global do ser humano. Por isso, a BNCC (BRASIL, 2017, p. 39)
estabelece que “parte do trabalho do educador é refletir, selecionar,
organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e
interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o
desenvolvimento pleno das crianças. ”
Quanto à etapa da Educação Infantil, a BNCC (BRASIL, 2017)
propõe que o trabalho com as crianças aconteça justamente na
perspectiva da integralidade do ser humano e por meio de
experiências que sejam significativas para as crianças. Assim, existem
seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento estabelecidos:
conviver, brincar, participar, explorar e expressar, conhecer-se. Esses
seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento garantem que as
crianças aprendam e se desenvolvam ativamente construindo sentidos
a respeito de si, daqueles que estão próximos dela, da sociedade e do
mundo natural.
Para a promoção dessas aprendizagens essenciais, a BNCC
estrutura o currículo da EI em cinco campos de experiências: o eu, o
outro e nós; corpo, gestos e movimentos; traços, cores, sons e formas;
escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações. Eis aqui uma questão que
pode trazer confusão, mas precisa ser dita de forma clara e com todas
as letras: os campos de experiências não representam disciplinas de

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Português, Matemática etc; eles também não devem ser vistos de
maneira isolada! Os campos de experiências significam um arranjo
curricular inter-relacionado e articulam as aprendizagens dos
conhecimentos científicos às práticas, vivências e saberes das crianças.
Por fim, em cada um dos cinco campos de experiências, existem
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento organizados em três
grupos por faixa etária, o que totaliza a indicação de 117 objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento. Outra questão a ser definida e
esclarecida é que esses 117 são apenas alguns dos objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento, mas não são todos! Cada
professora em seu contexto, e a partir dos arranjos e organizações que
seu município e o Projeto Político Pedagógico da sua instituição
educativa propuseram, pode estabelecer muitos outros.
Diante do aparato legal exposto até aqui temos esclarecida a
função primordial da Educação Infantil: a promoção da aprendizagem
e desenvolvimento nas dimensões física, intelectual, social, emocional
e simbólica da criança. Nesse sentido, não estamos falando mais de
uma educação tradicional preocupada com o ensino de conteúdos,
mas sim, que vise formar a criança de maneira integral, para ser crítica,
autônoma e responsável.

O desenvolvimento integral e o processo de humanização na


perspectiva da Teoria Histórico-Cultural

Se queremos uma Educação Infantil que propicie o


desenvolvimento integral da criança a THC pode contribuir para que
tenhamos uma prática docente nessa direção.

Quem é a criança?
No campo da Psicologia, a criança foi muito tempo entendida e
analisada apenas como um ser biológico e psicológico que se
desenvolvia por meio de estágios, fases. Freud (1926), por exemplo,
considera que o desenvolvimento humano acontece em uma série de
etapas. Contudo, essa perspectiva do desenvolvimento humano em
etapas e universal, foi contestado por Lev Vigotski (2010) e seus
companheiros de pesquisa. Vigotski (2010) foi um pioneiro na noção
de que o desenvolvimento integral das crianças ocorre em função das
relações sociais e condições de vida. Dessa forma, Vigotski não fala

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apenas de desenvolvimento intelectual, porque afeto e intelecto
formam uma unidade inseparável e, ao desenvolver o intelecto, o ser
humano desenvolve também as emoções, a vontade, a atenção, a
memória e as demais funções psicológicas culturais, as chamadas por
ele de funções psicológicas superiores. Para Vigotski, o
desenvolvimento humano deve ser compreendido em relação ao
período histórico vivido, à sociedade em que se habita e a cultura local.
Para o psicólogo russo, a criança é considerada um ser social. Ela
nasce situada em um determinado tempo cronológico delimitado por
características específicas de uma sociedade que tem costumes,
padrões de comportamento e valores próprios. Assim, a criança vai ao
longo das relações estabelecidas com os outros humanos, mediadas
pelos objetos e pela linguagem, transformando e aprendendo
diferentes significados e se apropriando de conceitos.
A criança se constitui então pelas relações que estabelece com os
outros, e tais relações caminham do plano social, para o plano
individual interno, permitindo à criança internalizar conhecimentos,
papéis e funções sociais, apropriar-se de significados e atribuir sentido
a tudo o que a cerca. E é através da mediação que tais relações se
estabelecem. Vigotski propõe dois elementos responsáveis pela
mediação: o instrumento, que determina as ações sobre os objetos, e
o signo, que determina as ações sobre o psiquismo, e serve como
auxílio à memória humana.
Associada à concepção de criança, queremos destacar o que é a
infância. Para tanto, tomamos de uma outra disciplina, também das
Ciências Sociais, a definição desse conceito importante.
Segundo James e James (2012, p. 14, versão própria) a infância
pode ser definida como “o começo da vida; um arranjo institucional
que separa crianças dos adultos e estrutura espaços criados por esses
arranjos para serem ocupados por crianças”. Apesar de ser definida
como fase inicial da vida do ser humano, portanto, inerente para todas
as crianças, independentemente de onde vivem, a infância não se
limita a questões biológicas, ela é uma construção social.
Prout e James (1990) explicam que a infância é uma categoria
socialmente construída, que pode ser discutida singularmente
(infância) e pluralmente (infâncias), isto porque, a consideram
histórica e social. Assim, cada sociedade a seu tempo, define para si de

21
que as crianças precisam nessa fase da vida e como devem ser
cuidadas, por exemplo, por isso, sua duração é bastante variável.

Como nos humanizamos?


Para a THC, tornar-se humano é um processo que envolve a
formação das qualidades humanas. As crianças, ao entrarem em
contato com o mundo vão conhecendo e apropriando-se de
capacidades, cultura e valores partilhados em seu meio social com os
sujeitos próximos, que podem ser mais velhos, da mesma idade, que
saibam coisas diferentes, ou seja, é no meio e nas relações sociais que
nos humanizamos.
Lembramos que, diferentemente de teorias interacionistas, que
entendem o meio como algo externo ao sujeito, na THC a criança faz
parte do meio – ela é o que é por causa do meio que, dialeticamente a
transforma e é transformado por ela. Por isso não falamos em
interações da criança com o meio, mas das relações, porque um está
implicado no outro. Nesse sentido, o meio, apesar de conter
determinados objetos e ter determinadas qualidades, não define por
si só o desenvolvimento da criança e nem mesmo o propicia
igualmente às crianças em diferentes faixas etárias. Vigotski (2018, p.
74) salienta que é na relação com o meio e o que nele existe que a
criança vai se desenvolver, por isso “o papel do meio no
desenvolvimento pode ser evidenciado apenas quando levamos em
consideração a relação entre a criança e o meio. ”
Assim, os elementos contidos no meio significam diferentes
relações com a criança dependendo de sua idade e, ao mesmo tempo,
a relação entre a criança e o meio muda conforme ela cresce. Isso
significa que a música cantada para um bebê de colo tem um
significado, a mesma música cantada para esse bebê anos depois será
entendida de outra maneira. Num primeiro momento, o bebê se liga
ao ritmo da música, ao embalo e acalanto que recebe enquanto a mãe
canta, posteriormente, a criança entenderá o que as palavras dessa
música dizem e o que nomeiam.
Vigostki (2018, p.75) ainda acrescenta que a vivência define a
influência do meio no desenvolvimento psicológico2:

2 O termo utilizado nos escritos em russo é perizhivanie e sua tradução não é


completamente linear com vivência, mas é a que adotamos por a entendermos mais
próxima.

22
A vivência de uma situação qualquer, de um componente qualquer do meio
define como será a influência dessa situação ou meio sobre a criança. Ou seja,
não é esse ou aquele momento, tomado independentemente da criança, que
pode determinar sua influência no desenvolvimento posterior, mas o momento
refratado através da vivência da criança.

Assim, a relação que cada criança estabelece com os


acontecimentos do meio é diversa, ou seja, ela vivencia esses fatos de
uma forma peculiar. Por isso, não basta a criança frequentar a
instituição de Educação Infantil, não basta a professora propor sempre
as mesmas atividades a todas as crianças esperando que todas
vivenciem o meio e a atividade de uma maneira igual.
A professora da Educação Infantil precisa ter a consciência que
cada menino e menina confere sentidos e se conecta com um
determinado fato ou atividade de maneira distinta. Portanto, sua
prática não pode ser a da mesmice, da repetição, ela deve ser baseada
em conhecimentos profundos e científicos para poder favorecer o
processo de humanização das crianças.
Ao mesmo tempo, as professoras precisam estar atentas pois,
segundo Vigotski (2010, p. 109):

[...] a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A


aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na
escola tem uma pré-história. Por exemplo, a criança começa a estudar aritmética,
mas já muito antes de ir à escola adquiriu determinada experiência referente à
quantidade, encontrou já várias operações de divisão e adição, complexas e
simples; portanto, a criança teve uma pré-escola de aritmética, e o psicólogo que
ignora este fato está cego.

Nesse sentido, a criança aprende em outras situações de seu


cotidiano, não somente naquelas que a professora organiza. A criança
aprende em outros espaços sociais, não somente os da instituição
educativa. Por esse motivo, a educação precisa acontecer de maneira
global, assim como os documentos legais brasileiros preveem, afinal a
criança está a todo o momento vivenciando sentimentos, sensações e
aprendizados por onde passa.
Ademais, como destacam Souza, Oliveira e Cruz (2018, p. 329) na
perspectiva da THC a professora “é responsável em garantir, os
objetos culturais, às crianças, para que possam se apropriar do
conhecimento”, entre eles, por exemplo, a linguagem escrita que é um
instrumento cultural complexo. Como a linguagem é algo central no

23
desenvolvimento humano e estamos aqui buscando apontar tópicos
fundamentais da Educação Infantil, por isso, decidimos abordar no
subitem a seguir o trabalho com a cultura escrita.

A cultura escrita e sua relação com o desenvolvimento do simbolismo na


criança
Diante das especificidades da Educação Infantil e à luz da THC,
como desenvolver o trabalho com a cultura escrita?
Como destacado por Souza e Mello (2017), quando falamos em
cultura escrita nos referimos não a um conjunto de letrinhas e suas
grafias, mas a escrita é um instrumento cultural complexo que serve
aos seres humanos para lembrar acontecimentos e registar seus
sentimentos, opiniões, dentre outras funções. Souza e Mello (2017)
ainda afirmam que a escrita é uma ferramenta de comunicação e a
leitura uma ferramenta de informação.
Vigotski (1993 [1931]) destaca que a escrita é uma representação
de segunda ordem e demanda uma função psíquica superior essencial,
a do simbolismo. E, a função simbólica é a capacidade do ser humano
de usar um objeto para representar outro. O autor continua
explicando que existe um simbolismo de primeira ordem, neste, os
sinais correspondem diretamente a objetos ou ações, e existe ainda, o
simbolismo de segunda ordem, que consiste no uso de sinais de escrita
para representar os símbolos verbais da palavra. Assim, Vigotski (1993
[1931], p. 137, tradução nossa) afirma que para criança escrever “ela
deve entender que não apenas as coisas podem ser desenhadas, mas
também a linguagem”, ou seja, a fala pode ser representada por sinais,
e a palavra escrita é a representação do nome do objeto e não o objeto
em si. Vigotski (1993 [1931], p. 138, tradução nossa) afirma ainda que:

A forma superior a que nos referimos de passagem é que a linguagem escrita -


de ser simbólica na segunda ordem, torna-se novamente simbólica da primeira
ordem. Os símbolos primários da escrita já são usados para designar o verbal. A
linguagem escrita é entendida através da oral, mas essa mudança está
diminuindo pouco a pouco; o elo intermediário, que é a linguagem oral,
desaparece e a linguagem escrita se torna diretamente simbólica, percebida da
mesma maneira que a linguagem oral. Basta imaginar a imensa virada que ocorre
em todo o desenvolvimento cultural da criança, graças ao seu domínio da
linguagem escrita, graças à possibilidade de ler e, consequentemente,
enriquecer-se com todas as criações da genialidade humana no campo da palavra
escrita.

24
Ou seja, o simbolismo de primeira e segunda ordem ocupam
diferentes momentos na escrita, fala e na leitura durante o processo
de desenvolvimento humano. Segundo Vigotski (1993 [1931]) ainda, a
função simbólica da consciência é formada e desenvolvida em
diferentes atividades, como no gesto, na brincadeira de faz de conta e
nos desenhos.
Vigotski observa que o gesto de apontar da criança é um
movimento que expressa algo, ou seja, representa algo que não está
de posse, e, a criança é capaz de fazer a indicação de um gesto que
comunique muito antes de aprender a falar palavras. Jobim e Souza
(2016, p. 16) esclarecem que a criança ao procurar criar relações e se
comunicar utiliza-se de todo seu corpo e esses movimentos são
“...sempre ampliados pelo sentido que a mãe ou as pessoas próximas
à criança lhes conferem, está contido o germe da constituição
simbólica da realidade”. Jobim e Souza (2016) salientam ainda que é
possível perceber que na criança o gesto sonoro se desprende do
gesto manual até se transformar em plenos signos linguísticos, em
palavras que têm sentido em seu meio social, mais uma vez, é na
relação com o meio e o outro que esses sentidos são construídos.
Vigotski (1993 [1931], p. 129) afirma que “o gesto é precisamente
o primeiro sinal visual que a escrita futura da criança contém, assim
como a semente contém o futuro carvalho. O gesto é a escrita no ar e
o sinal escrito é frequentemente um gesto que se firma”. O autor ainda
destaca dois pontos em que o gesto se une ao signo escrito. O primeiro
é retratado pelas garatujas infantis, o autor encara-as como gestos ou
uma continuidade do gesto, são rabiscos desenhados pela criança,
sendo o traço deixado pelo lápis o complemento do que ela representa
com o gesto. O segundo ponto é a brincadeira de faz de conta em que
um objeto significa outro, não por sua semelhança no aspecto físico,
mas pelo gesto que a criança imprime nele. Portanto, Vigotski (1993
[1931], p. 130, tradução nossa) salienta que “o mais importante não é o
objeto em si, mas seu uso funcional” é pelo movimento que a criança
faz que o objeto adquire um sentido, ou seja, representa algo que não
é. Da mesma forma, a linguagem escrita exige também essa
capacidade de abstração.
Vigotski (1993 [1931]) assinala também que, posteriormente, a
criança percebe que aquilo que ela risca ou desenha pode ter um
significado. O autor chama atenção de que há um momento em que a

25
criança passa a narrar o que são os desenhos, assim, aos poucos, o
desenho modifica-se de linguagem gráfica para um relato de algo.
Assim, para Vigotski (1993 [1931], p. 135) o desenho começa como a
marca do gesto, em seguida, está junto com sua fala e só depois atinge
o caráter de representação, “há um momento crítico em que ele passa
de um simples rabisco a lápis no papel para usar suas impressões como
sinais que representam ou significam algo”.
Também nas brincadeiras de faz de conta os objetos passam a ter
outro significado, a criança vai aprendendo a usar um objeto para
substituir ou representar outro objeto necessário à brincadeira e que
ela não tem na mão, por isso o simbolismo está também presente
nessa atividade tão peculiar na infância. Vigotski (1993 [1931], p. 131,
tradução nossa) afirma que há um momento na brincadeira em que o
objeto é separado de sua qualidade e do gesto, “o significado do gesto
é transferido para os objetos e, durante a brincadeira, as crianças
passam a representar certos objetos e suas relações convencionais,
mesmo sem os gestos correspondentes”.
Quanto aos apontamentos de Vigotski (1993 [1931]), Mello e
Bissoli (2015, p. 142) afirmam que é importante:

[...] perceber que antes de se apropriar da linguagem escrita, que é uma


representação que envolve uma maior abstração, a criança exercita e
desenvolve as representações pelos gestos, pelos desenhos, pelo faz de conta.
E, embora cada uma dessas formas de expressão possua uma história própria,
todas elas guardam entre si um elemento comum que prepara o caminho para a
escrita: pouco a pouco se transformam em representações simbólicas ou signos,
pois passam a ser utilizadas, pela criança, como formas de substituir os objetos
reais.

Por isso, Vigotski (1993 [1931]) ressalta que a história escrita da


criança começa muito antes da criança ir para a instituição educativa,
muito antes da professora oferecer um lápis e papel para a criança. A
formação do simbolismo é assim essencial para que as crianças
aprendam a ler e escrever.
Porém, as contribuições de Vigotski (1993 [1931]) não acabam aí.
O autor ainda afirma que devemos ensinar às crianças a linguagem
escrita e não somente as letras. Devemos ensinar as crianças a
expressar suas ideias por meio da escrita e a buscar na leitura do texto
do outro a intenção de comunicação do autor.

26
Por isso o papel da professora é apresentar a escrita para as
crianças de uma maneira que elas tenham vontade de escrever algo,
de se comunicar e expressar sua opinião para alguém. Isso é ensinar as
crianças o sentido social da escrita e tê-las como sujeitos ativos nesse
processo.
Nessa perspectiva, trabalha-se de maneira integral, assim não
falamos somente da letra sozinha que se copia ou se treina o seu
desenho por um pontilhado, mas deixamos que as crianças falem
sobre as palavras inteiras, sobre seus nomes, a professora vira sua
escriba para anotar suas falas, para escrever uma história
coletivamente ou para escrever um cartão. A escrita parte daquilo que
desperta a curiosidade e interesse das crianças.
E, quando lemos para as crianças, devemos ler de maneira a
instigá-las a buscar as informações e a perceber as ideias do autor do
texto, por vezes, podemos também instigá-las a interpretar essas
informações e criar suas próprias explicações. Assim, as crianças vão
compreendendo a função social da escrita e criando para si a
necessidade de ler e escrever.
Depois das considerações teóricas apresentamos o relato de
atividades com a cultura escrita desenvolvida por uma professora de
crianças da Educação Infantil. Nesse relato articulam-se tanto as ideias
da THC quanto aqueles contidos nos documentos legais referentes à
Educação Infantil.

Relatos de uma professora: o trabalho na Educação Infantil com a


cultura escrita

Para aprofundar mais a discussão a respeito do papel da


professora em contribuir com o processo de humanização das
crianças, em consonância com a proposta do desenvolvimento
integral exposta pelos documentos legais da Educação Infantil,
direcionamos nosso olhar para um direito de aprendizagem e
desenvolvimento que a BNCC (BRASIL, 2017, p. 38) aponta o direito da
criança em:

Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções,


transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza, na
escola e fora dela, ampliando seus saberes sobre a cultura, em suas diversas
modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia.

27
Esse direito perpassa todos os campos de experiência e garante à
criança desde cedo não somente o contato, mas também poder olhar
e sentir em profundidade, examinar, buscar conhecer melhor e tentar
descobrir diferentes aspectos, dentre os quais destacamos as
palavras, emoções e assim, ampliar seus saberes sobre a escrita.

Para início de conversa


Feita a introdução desta sessão, peço licença para escrever em
primeira pessoa do singular, pois vou contar da minha própria prática.
Em 2015, assumi o concurso de professora temporária na rede pública
do Distrito Federal. Fui alocada em uma Escola Classe da Regional do
Plano Piloto e pude escolher trabalhar com a turma do II Período,
crianças que tinham entre 5 e 6 anos.
Antes de descrever o trabalho mais voltado à cultura escrita sinto
a necessidade de fazer um preâmbulo que localiza historicamente,
socialmente e geograficamente meu trabalho, e a minha organização
pedagógica, uma vez que como já apresentado teoricamente
atividades com a linguagem escrita não acontecem de modo estanque
no cotidiano da Educação Infantil, elas fazem parte de todo um
processo que se articula a diferentes aspectos.
Em 2015, na minha primeira semana de trabalho em uma Escola
Classe da Asa Norte da Região Administrativa do Plano Piloto/Distrito
Federal, ainda quando estávamos fazendo os planejamentos anuais,
conheci a professora que trabalharia na mesma sala que eu, mas no
período matutino com a turma do I Período. Conversamos sobre vários
assuntos no decorrer daquela semana, contei que tinha acabado de
terminar meu mestrado, que estava animada para o trabalho naquele
ano letivo, que pretendia desenvolver essas e aquelas ideias. Ao final
dessa conversa, minha colega falou “você está animada assim porque
é o começo do ano, depois você vai descobrir que a teoria não tem
nada a ver com a prática”. Naquele momento senti-me desafiada e
mais motivada a desenvolver um trabalho que fosse coerente com as
teorias que conhecia e com os documentos legais que norteiam a
Educação Infantil.
A base do trabalho que desenvolvi dialoga com as teorias e
documentos expostos neste capítulo. As crianças, sujeitos capazes,
sociais e históricos foram o tempo todo o centro do meu planejamento.
Busquei desenvolver um trabalho em que o eixo norteador foram as

28
interações e a brincadeira. Procurei garantir experiências para minha
turma que promovessem seu desenvolvimento por meio de vivências
corporais, sensoriais, afetivas e intelectuais. Minha máxima era a
expressão e participação ativa das crianças.
Busquei propiciar o acesso das crianças aos bens culturais da
humanidade, organizando visitas aos museus, aos centro culturais, ao
conjunto urbanístico-arquitetônico de Brasília reconhecido pela
Unesco como Patrimônio Mundial, passeios pelas Superquadras,
ocupação dos espaços vazios, dos pilotis, do parque Olhos d’Água,
fizemos a leitura dos mais variados gêneros textuais (conto, poesia,
carta, bilhete, fábula, lista, convite, crônica, depoimento, piada, relato,
mapas etc). Priorizei a cultura popular ao invés daquela vinculada na
grande mídia de massificação, isso significa que não assistimos filmes
da Disney, mas assistimos documentários como “Território do
Brincar”, lemos grande parte da obra de Manoel de Barros,
conversamos sobre a cultura indígena, fizemos tintas naturais e nos
pintamos, apreciamos os grafites em paredes da Asa Norte e
conversamos com um grafiteiro chamado “Sheep”, as crianças até
mesmo produziram uma versão de lambe-lambe e grafitaram o muro
da escola também. Visitamos a organização da festa junina da nossa
Superquadra, comemos canjica e arroz doce que a coordenadora, Ana
Márcia3, preparou para nossa turma, e tantas outras foram as nossas
vivências ao longo do ano.
Dentre todo o trabalho que desenvolvi com as crianças, em
parceria com as famílias e os demais colegas da escola, quero destacar
alguns que podem ilustrar os tópicos anteriores deste texto,
evidenciando a articulação entre a teoria e prática, principalmente no
que diz respeito a criar nas crianças a necessidade de escrever. Preciso
ainda dizer, que o trabalho realizado teve início com a sensibilização
de toda a equipe da escola, começando pela direção, Soleima e Márcia
e coordenação, Ana Márcia, que acreditaram na minha proposta, me
apoiaram e autorizaram para que eu pudesse desenvolvê-la. Foi ainda
com o apoio e carinho da tia Déti, nossa merendeira, que pude
organizar piqueniques com as crianças. Ela preparava nossa bandeja
de lanche, levava e buscava onde estivéssemos. Contei também com a

3 Todos os nomes utilizados ao longo do texto são reais, tanto dos/as colegas quanto
das crianças, quero assim marcar e expressar minha gratidão ao grupo de trabalho que
tive no ano de 2015.

29
Luciana, nossa auxiliar de serviços gerais para fazer esse transporte do
lanche e/ou me ajudar em outros momentos com questões técnicas,
como ligar a mangueira no dia do banho de mangueira. Cativei
também, minhas colegas professoras de outras turmas e assim
pudemos implementar diferentes projetos ao longo do ano. Com a
professora do primeiro ano, Kenia, tinha companhia para idas ao
parque, com a professora do 4º ano, Renata, saímos para brincar nos
espaços vazios da Superquadra, visitamos um abrigo de crianças como
culminância do projeto em que discutimos os direitos infantis, com o
professor João, aprendemos mais da cultura africana, ao longo do ano
fiz muitas outras parcerias, todas especiais e significativas. A todos/as
os/as colegas dessa época, fica a minha gratidão.
O apoio das famílias foi essencial, ele pode não ter sido
materializado na presença física e contínua na escola dos pais, mães e
responsáveis, mas foi exercido pelas autorizações que me deram para
que eu trabalhasse da maneira que gostaria. Os pais, mães e
responsáveis assinaram autorizações concedendo-me o uso do direito
da imagem das crianças para fins acadêmicos. Eles concordaram em
receber de volta os cadernos pautados que haviam comprado para
serem usados naquele ano e ao longo do ano mandaram para a escola
os materiais que eu solicitava. A presença deles foi constante e senti
seu apoio ao meu trabalho.
Lembro-me da primeira reunião do ano quando expliquei ao
grupo de pais, mães e responsáveis porque eu devolveria os cadernos
e porque eu iria desenvolver atividades fora da escola. A primeira
reação foi a de me questionar e dizer que estas não eram propostas
adequadas, eles expressaram sua preocupação quanto ao
aprendizado da leitura e da escrita por seus/suas filhos/as. Depois de
ouvi-los, questionei sobre a idade que eles haviam ido à escola, a
resposta foi unânime, aos 7 anos para cursar a 1ª série, esse foi então
meu ponto de partida, expliquei a diferença da Educação Infantil e seus
objetivos. Um pai que estava na reunião me procurou dias depois e
disse que a frase que mais o marcou naquele dia foi quando eu disse a
eles que “as crianças vão crescer e escrever a vida toda, mas somente
serão crianças e poderão brincar enquanto viverem suas infâncias”.
Esse é nosso papel enquanto docente, precisamos dizer e esclarecer
aos pais, mães e responsáveis, o que a Educação Infantil é, como
trabalhamos. Nós professoras, somos as especialistas no assunto.

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Organização do trabalho pedagógico
Voltando então ao trabalho com as crianças, um primeiro ponto
que eu preciso ressaltar sobre como organizava minha rotina era que
sempre tínhamos atividades coletivas e individuais ao longo do dia, as
crianças também sempre tinham opções de atividades que poderiam
escolher em um mesmo horário. Essas atividades aconteciam
principalmente em dois momentos, o primeiro, na hora da entrada das
crianças, o segundo, mais tarde, quando fazíamos atividades de
registro sistematizadas/direcionadas em papel.
Eu organizava a sala de uma maneira que as crianças pudessem
ter diferentes atividades colocadas sobre as mesas que estavam
agrupadas em números distintos, ou seja, eu formava grupos de seis
crianças e colocava naquelas mesas blocos de encaixe, no grupo de
quatro mesas colocava massinha, no grupo de três mesas elas
poderiam desenhar livremente, nas mesas que estavam dispostas lado
a lado, geralmente o trabalho a ser realizado era mais sistematizado e
tratava de letras e números. Essas duas mesas centralizavam minha
atenção, e eu também acompanhava mais de perto a atividade de cada
criança. Nesse momento, tinha meu celular à mão, meu caderno e a
caneta para fazer o registro do que observava. Assim, conseguia
conhecer mais de perto cada uma das crianças com quem eu
trabalhava. As atividades que proporcionava nas mesas variavam, mas
também se repetiam.
Da mesma forma, quando trabalhava com atividades de registro
que exigiam maior auxílio, eu dividia a turma em grupos e propunha
atividades diferentes a cada grupo. Assim, eu poderia auxiliar melhor
o grupo que estava fazendo o registro e as demais crianças poderiam
com autonomia realizar outras atividades.
A depender do meu planejamento, eu colocava em cima da mesa
o nome das crianças onde eu gostaria que elas iniciassem suas
atividades. Em alguns dias em outros trabalhos, era livre a escolha de
onde se sentar. Quando terminávamos esse momento as crianças
eram convidadas a guardar os materiais, por isso tinham acesso aos
armários para devolvê-los ao lugar correto.
Ainda sobre ofertar mais de uma atividade ao mesmo tempo,
ressalto que sempre organizava para que as crianças da minha turma
nunca ficassem ociosas, elas sempre tinham opções de atividades para
desenvolver. Por exemplo, na hora da atividade diversificada poderiam

31
mudar de mesa quando sentissem necessidade, nenhuma criança era
obrigada a ficar na mesma mesa o tempo todo, ou ainda, ao terminar
de lanchar, as crianças devolviam os copos e pratos na bandeja da
escola ou guardavam suas lancheiras e poderiam ler um livro e esperar
o momento do intervalo.
A sala tinha sempre movimento. Poderia parecer bagunçada para
quem olhava de fora, mas era como as crianças se envolviam nas
atividades e, como elas faziam tudo com muita autonomia, eu tinha até
tempo para fazer registros fotográficos!

Direito de explorar: formas, texturas e cores


O trabalho com o desenho foi realizado a partir da minha
perspectiva de que existe um grande potencial no traço das crianças. O
desenho é um meio de comunicação, expressão e registro. Derdick
(1989) diz que o desenho da criança é decisão, criação, revelação e
reflexão é uma linguagem lúdica, uma maneira que ela tem de se
apropriar do mundo, por isso, vai além do desenvolvimento da
consciência do campo retangular do papel. Não se trata, portanto, de
copiar formas e figuras e também não é uma questão de escala e
proporção. Por isso, ao longo do ano não ofereci nenhuma atividade
xerocopiadas para que as crianças colorissem. O trabalho com o registro
em papel foi sempre em folhas em branco, prioritariamente de dois
tipos, papel sulfite tamanho A3, papel pardo em diferentes tamanhos.
Minha intenção ao deixar papel formato A3 e giz de cera todos os
dias para as crianças era o de encorajar que elas deixassem suas
marcas, criassem e fizessem um registro espontâneo. Como vimos em
Vigotski (1993 [1931]), conforme desenham, as crianças desenvolvem a
função do simbolismo e aprendem que podem passar do desenho de
coisas para o desenho de letras. Vigotski (1993 [1931]) afirma ainda
que, o domínio de um sistema de signos, como a cultura escrita, não
pode ser alcançado de uma maneira mecânica e externa, mas é o
resultado de um processo não linear, ou seja, que avança e retrocede.
O registro por meio de desenhos acontecia como já mencionado,
de duas maneiras, de forma livre quando a criança desenhava sobre
algo de seu interesse e quando eu solicitava que ela fizesse um
desenho. Narro a seguir duas situações de desenho em que eu solicitei
às crianças a responderem algo.

32
A primeira situação foi motivada a partir da leitura na roda
coletiva com toda a turma do livro Bichos do lixo, de Ferreira Gullar
(2013). No livro, o autor compartilha um exercício que fez de colagem
de papéis de diferentes texturas e tamanhos transformando o que era
lixo em imagens de bichos e outros desenhos. Após a leitura, discuti
com as crianças temas relacionados ao consumo sustentável e atitudes
como as de reciclar e reutilizar. Como proposta para que elas
pudessem desenvolver uma consciência sustentável a partir de ações
como reciclar folhas de jornal que iriam para o lixo para assim criarem
seus próprios bichos. Primeiro, em um grupo pequeno enquanto as
demais crianças trabalhavam com outras atividades, pedi para que as
crianças rasgassem o jornal, depois, a partir desses pedaços de papel
pedi que elas imaginassem um bicho e tentassem montá-lo a partir dos
papéis rasgados. Na sequência ofereci cola para que fixassem os
papéis na folha já no formato do bicho. Mariana montou um jacaré em
uma folha de sulfite tamanho A3, como se vê na Imagem 1. Depois, pedi
que as crianças pintassem com apenas uma cor de tinta seu bicho. Em
outro dia, depois que os bichos estavam secos, as crianças receberam
seus papéis de novo e solicitei que desenhassem com giz de cera uma
paisagem para seu bicho.
Com essa atividade, a turma pode renovar seu olhar, dar um novo
significado aos pedaços de jornal e propor sua transformação de modo
criativo. Todas estas etapas foram feitas exclusivamente pelas
crianças.
A segunda situação foi motivada a partir da leitura na roda
coletiva com toda a turma da obra Misturichos, de Renata Bueno
(2012) que apresenta poemas que explicam o que os bichos são e o que
fazem, mas esses não são bichos comuns, são uniões malucas de dois
bichos, como o ‘cachopolvo’, o ‘minhocurso’, dentre outros. Depois de
dividir as crianças em pequenos grupos que realizavam distintas
atividades, sentei-me com o grupo que faria um registro gráfico.
Primeiro, convidei aquele pequeno grupo de crianças a criar uma
mistura de bichos a partir de uma metade de bicho colada no centro
em uma folha de sulfite tamanho A3 e dar um nome para sua criação.
Cada criança pode escolher qual metade de bicho dentre as opções
que eu havia já colado, qual seria o seu. Após criarem seu bicho, pedi
que realizassem de giz de cera o desenho de uma paisagem para
completarem a folha. O bicho do Rafael foi feito a partir da metade de

33
um rato e seu resultado foi a junção de mais outros dois, da cauda de
um jacaré e da barriga de um tigre, o nome que ele deu ao seu bicho
foi Ratigrerá, como ilustra a Imagem 2.
Com essa atividade, a turma foi mais uma vez desafiada a
expressar-se, criar e imprimir sentido. Mesmo que eu tenha colado a
metade inicial do bicho, as crianças tiveram autonomia de realizar sua
atividade de maneira ativa.
As imagens abaixo ilustram essas situações:

Imagem 1 – Bicho do lixo de Mariana Imagem 2 – Misturibicho do Rafael


(09/09/2015) (17/04/2015)

Fonte: Acervo pessoal da autora (2015)

Ressalto que em ambas as atividades meu papel enquanto


docente foi o de realizar a seleção da história, planejar uma atividade
a partir da história, mas uma atividade que colocou as crianças como
ativas e capazes. Também fui responsável em preparar a sala, os
materiais e criar o sentido de estarmos realizando aquela e não outra
atividade, em tudo havia a minha intencionalidade.

Direito de explorar: palavras, emoções e histórias


O direito de explorar palavras, emoções e histórias vem
evidenciado ao trabalho com a cultura escrita. Este, por sua vez, foi
realizado tendo por base a expressão das crianças, partindo daquilo
que nessa fase mais lhes interessa, seus nomes e depois se ampliando.
Como já disse anteriormente, não existe como separarmos uma
atividade relacionada somente a um dos campos de experiência.
Então, a leitura de livros, a manifestação oral das opiniões e

34
proposições, e o registro das crianças sempre estiveram muito
imbricados.
Por ter clareza das colocações de Vigotski (1993 [1931]) de que
muitas vezes o ensino do mecanismo de escrita e leitura prevalece no
trabalho com as crianças pequenas, não queria algo artificial, por isso,
não propus às crianças atividades como cobrir letras tracejadas ou
cópias de frases criadas por mim. Dentre os temas que motivaram a
escrita em minha turma, saliento dois: nomes próprios e a
Superquadra.
Os nomes próprios foram trabalhados em várias situações, na
roda, estavam em fichas, crachás etc, mas estavam principalmente nos
materiais que envolviam letras confeccionados por mim. Assim, as
crianças da minha turma tinham a possibilidade de escrever o nome
dos colegas de diferentes maneiras com diferentes materiais. Como se
observa na Imagem 3, Pyetra está utilizando o alfabeto móvel para
escrever o nome de seus colegas, Gabriel e Arthur, impressos em
modo paisagem, com tamanho correspondente às peças do alfabeto
móvel em papel sulfite colorido.
Outro material que confeccionei era o da escrita dos nomes dos
colegas com prendedores, como mostra a Imagem 4. Os gabaritos com
os nomes eram feitos de EVA e tinham a largura dos prendedores.
A seguir as imagens mostram essas situações:

Imagem 3 – Pyetra desenvolvendo Imagem 4 – Atividades diversificadas


atividade (11/05/2015) para realização de registro (14/04/2015)

Fonte: Acervo pessoal da autora (2015)

35
Nessas atividades a criança desenvolve habilidades viso motoras,
a coordenação motora fina, além de realizar a escrita em outra
dimensão que não a do lápis e papel. Esses materiais eram oferecidos
às crianças em meio a outras possibilidades de atividades, e eu
procurava sempre estar perto da criança acompanhando-a, sentava-
me ao seu lado provocando-a com perguntas relacionadas ao que seria
escrito, quais as letras ela conhecia etc, por fim, pedia que ela lesse os
nomes.
As crianças aprenderam o nome dos colegas e depois escreviam
bilhetes para eles. Tínhamos uma caixa de correio para depositarmos
os bilhetes e um quadro de avisos em que os recadinhos poderiam ser
afixados e todo um material de apoio que servia a esse propósito
como: ficha com os nomes das crianças, letras de lixa, letras em relevo
feitas com cola-quente, giz de cera, papel em diferentes tamanhos,
formatos e cores.
Abaixo na Imagem 5, o bilhete que a Dafnny escreveu para a
Mariana, na parte da frente do bilhete, a letra M em relevo dava uma
pista do destinatário daquela correspondência.

Imagem 5 – Atividades diversificadas no horário da entrada (23/04/2015)

Fonte: Acervo pessoal da autora (2015)

Nos bilhetes havia a escrita espontânea, a cópia do nome do


colega e a assinatura da própria criança. A partir da leitura do livro O
carteiro chegou, de Allan Ahlberg (2007), expliquei a estrutura de
cartas e bilhetes, o próprio livro traz vários modelos de bilhetes e
cartas, salientei que esse tipo de texto deveria comunicar algo para
alguém e deveria vir assinado, orientei também quanto a necessidade
de se colocar a data, mas nem sempre as crianças lembravam. Segundo
Vigotski (1993 [1931], p. 141):

36
A criança deve sentir a necessidade de ler e escrever ... Portanto, ao mesmo
tempo em que se fala da necessidade de ensinar a escrever na idade pré-escolar,
surge a necessidade de que a escrita seja tão vital quanto a aritmética. Isso
significa que a escrita deve fazer sentido para a criança, que deve ser causada
pela necessidade natural, como uma tarefa vital que é essencial para ela. Só
então teremos certeza de que ela se desenvolverá na criança não como um
hábito de mãos e dedos, mas como um tipo de linguagem realmente novo e
complexo.

Os bilhetes eram uma escrita genuinamente do interesse das


crianças que queriam comunicar seus pensamentos e ideias aos colegas.
Dentro do tópico da Superquadra, o trabalho partiu da
exploração do espaço físico da própria sala e depois da escola. A
escolha por trabalhar com esse tema não foi aleatória, mas partiu dos
meus interesses pessoais de estudo, no mestrado trabalhei com o
tema criança e cidade (FARIAS, 2015). As discussões realizadas
permitiram-me entender que a cidade é um lugar de
compartilhamento, educação, respeito e de encontro, além de ser
direito de cada um de nós habitar, usufruir e fruir nela (WARD, 1978).
Quis, portanto, ocupar a cidade com a minha turma, mas
principalmente, quis levar as crianças a discussão sobre o direito à
cidade, a refletir sobre os espaços em que circulávamos e fazer
proposições a respeito deles. Nesse sentido, provoquei as crianças a
falarem sobre seus desejos, sentimentos e percepções, para depois de
gravar suas falas, ser escriba das mesmas.
Esse exercício de observação, exploração, ocupação, reflexão e
opinião aconteceu ao longo do ano de maneira integrada e contínua.
Foi um trabalho que partiu de ações simples como, piquenique, roda
de história, brincadeira, dança etc, cada uma dessas atividades foi
realizada diversas vezes em diferentes espaços, dentro da sala de
atividade, no pátio da escola, na quadra esportiva ao lado da escola,
nos pilotis dos prédios próximos à escola, nas calçadas, nos gramados
e no parque Olhos D’Água.
Em nossos passeios, explorei com as crianças seus sentidos
corporais, chamava sua atenção à paisagem, às texturas que podíamos
tocar, aos cheiros que sentíamos e aos sons que ouvíamos. O sentido
da visão foi muito experimentado na medida em que chamei a atenção
das crianças quanto às características arquitetônicas dos prédios,
observamos elementos naturais e de intervenção urbana,
principalmente o grafite.

37
Para fomentar as discussões com a turma a respeito do direito à
cidade, de outros direitos das crianças e a começar provocações para que
as crianças passassem a observar os espaços e fazer proposições em
relação aos mesmos, li alguns livros que considero chave nesse trabalho,
são eles Se a criança governasse o mundo, de Marcelo Xavier (2003);
Aventura animal, de Fernando Vilela (2013); Cocô de passarinho, de Eva
Furnari (1998) e Tem de tudo nesta rua, de Marcelo Xavier (2009).
Na roda, após a leitura de cada um desses títulos e, em outros
momentos também, conversava com as crianças sobre vários temas
relacionados à Superquadra, por exemplo, o que gostavam e não
gostavam, o que faltava, o que poderia ser feito para que fosse um
lugar melhor. Essas conversas eram sempre gravadas em meu celular
para que eu depois pudesse trabalhar com essas falas.
Como culminância do tema, escrevi um Manifesto do 2º Período B
à comunidade, o qual continha uma breve explicação do projeto e
frases das crianças a respeito do que observaram que poderia
melhorar na Superquadra. Abaixo o que as crianças pontuaram:

MANIFESTO DAS CRIANÇAS DA TURMA DO 2º PERÍODO B DA ESCOLA CLASSE


415 NORTE Projeto “Na superquadra, no pilotis, nas não ruas e não esquinas:
explorando Brasília”
O objetivo principal do projeto foi a vivência pelas crianças de maneira prática,
da organização da cidade de Brasília e seus diferentes espaços. E assim, fossem
consideradas protagonistas de sua aprendizagem para além de uma educação
institucionalizada, descobrindo, experimentando, observando e opinando a
respeito da superquadra 415 Norte.
Neste sentido, as crianças apontaram atitudes para a conservação e preservação
deste ambiente, as quais seguem:
“Não parar o carro no meio da rua” – Heloísa
“Quando formos atravessar o carro tem que parar” – Pyetra
“Não pode deixar cocô no chão” – Emanuelli
“Não jogar lixo na superquadra” – Mônica
“Levar a sacola para juntar o cocô do cachorro” – Mônica
“Limpar o parquinho” – Rafael
“O posto policial está vazio. Chamar os policiais” – Manuella
“Consertar o parquinho” – Manuella
“Colocar telhado na quadra de esporte” – Manuella
“Plantar frutas na superquadra” – Mônica
“Plantar mais flores” – Heloísa
Portanto, queremos por meio desta carta, deixar manifestas as preocupações e
opiniões das crianças esperando ser respondidas por meio de diálogo e ações de
parceria entre a prefeitura da superquadra e a Escola Classe 415 Norte.
Agradecemos a sua atenção e contamos com a sua colaboração,

38
Servi como escriba das crianças, ou seja, a partir do que elas falaram,
escrevi. Depois de digitar as falas, apresentei o manifesto impresso às
crianças e pedi que elas assinassem. Em seguida o reproduzi em folhas
coloridas para que fossem utilizadas como lambe-lambe.
Nesse trabalho, criei situações e promovi experiências em que as
crianças estavam em contato com os signos da escrita convencional,
levando-as a compreender os diversos papéis sociais que a escrita
assume. Eu estimulava a oralidade das crianças e registrava por meio
da linguagem escrita suas ideias.
Paralelamente, pedi que as crianças autoras que copiassem suas
frases em uma folha de papel A4; essas folhas também foram
xerocopiadas e utilizadas como lambe-lambe. Por fim, pedi que as
demais crianças ilustrassem uma frase que estava impressa em um
quarto da folha de papel A4, cada quadrante seria usado como um
panfleto. Abaixo as imagens ilustram o resultado dessas atividades:

Imagem 6 – Lambe-lambe com a Imagem 7 – Panfleto com a


reivindicação da Mônica (28/07/2015) reivindicação da Manuella (22/07/2015)

Fonte: Acervo pessoal da autora (2015)

Com todo o material impresso em mãos, organizei com a turma


para sairmos e colar o Manifesto nas portarias de todos os prédios da
Superquadra, colar também os lambe-lambe com as frases nas colunas
dos pilotis, enquanto um grupo de crianças colava os lambe-lambes,
outro grupo era responsável ainda por entregar os panfletos as
pessoas que encontrávamos. Essas crianças conversavam com a
pessoa sobre o nosso projeto e sobre os desejos que tinham para que
a Superquadra fosse um lugar melhor.

39
O Manifesto foi resultado da expressão oral, dos desejos das
necessidades e opiniões das crianças. Elas então puderam crescer em sua
consciência sobre a existência de textos escritos e sua função para
comunicar seus pensamentos e sentimentos. Afinal, os textos
reivindicavam o que elas queriam para que a Superquadra fosse melhor.
Aqui, o contexto da vida cotidiana traz o sentido da palavra, no
diálogo com as crianças, entre elas mesmas e com os espaços que
coabitavam estava a força e a singularidade das potencialidades das
crianças. Elas produziram e participaram de experiências significativas
com a escrita, o que as fortaleceu e as formou criticamente, assim,
usamos a palavra “[...] como possibilidade de criação de uma experiência
nova a ser compartilhada socialmente” (JOBIM E SOUZA, 2016, p. 19).
Desse modo, portanto, a cópia da escrita não foi trabalhada de
maneira mecânica, de fora, através de repetições do alfabeto, cópias
de textos de cartilhas, no caso da minha turma a escrita tornou-se algo
político, de expressão, de reivindicação por uma cidade melhor. As
crianças descobriram que as linhas que desenharam significavam algo,
não qualquer significado, mas um sentido peculiar, que veio da sua
própria fala.
Acredito que nessas atividades e nas demais que desenvolvi com
as crianças cumpri o papel que Vigotski (1993 [1931], p. 143) atribui as
pedagogas de:

organizar a atividade das crianças para passar de um modo de linguagem escrita


para outro, deve saber como conduzir a criança em momentos críticos e até a
descoberta de que ele não pode apenas desenhar objetos, mas também a
linguagem. Mas esse método de ensino de escrita pertence ao futuro.

O trabalho ganhou projeção e minha turma foi convidada a


participar da solenidade de assinatura do Projeto de Lei da Primeira
Infância, encaminhado pelo ex-governador do Distrito Federal,
Rodrigo Rollemberg, à Câmara Legislativa do Distrito Federal em 07 de
dezembro de 2015.

Considerações finais

Diante das reflexões postas neste capítulo, queremos retomar


algumas ideias e lançar questionamentos também.

40
Primeiro, pedimos que a atenção dos leitores se volte às coisas do
cotidiano, prezem por utilizar o vocabulário que caracteriza e reconhece
as especificidades da Educação Infantil e das crianças.
Segundo, chamo atenção para o fato de, apesar de desde a década de
1980 os marcos legais estabelecerem direitos e prioridade às crianças, no ano
de 2020 fomos surpreendidos com a pandemia de COVID-19. Como
enfrentamento à pandemia, tivemos a suspensão das atividades presenciais,
e o fechamento de instituições educativas trouxe à baila uma série de
Medidas Provisórias, Emendas Constitucionais, Notas Técnicas, Decretos e
etc, propondo ações absurdas que não respeitavam as especificidades e
legislações já existentes. Este tipo de proposição evidencia uma triste
realidade, existe ainda hoje uma descaracterização quanto ao propósito,
identidade, função e funcionamento da primeira etapa da Educação Básica.
O que nos leva às seguintes questões: muito já avançamos, mas o que falta
para a efetivação de nossas leis? Como garantir os direitos das crianças no
âmbito da educação? Qual o meu papel enquanto professora da EI frente aos
desafios cotidianos que temos enfrentado?
Terceiro, sobre o processo do desenvolvimento da linguagem escrita
na criança, ressaltamos que não é um processo linear, constante que se
apoia somente em uma atividade, por exemplo, a técnica de cópia de letras,
mas sim em um conjunto de experiências em que as crianças são
protagonistas e agem desenhando, falando de seus desenhos, tendo
tempo para brincarem de imaginar com seus pares e com adultos também.
Quarto, sobre as atividades realizadas destacamos que a palavra foi
trabalhada para além do código, ela foi para aquele grupo de crianças um
instrumento político de reivindicação pessoal e coletiva para o bem social.
Foi também a expressão das ideias e sentimentos das crianças e assim elas
puderam ampliar sua compreensão de que a escrita registra e comunica.
Por fim, retomamos Manoel de Barros e sua epígrafe, que possamos
ser rio, ter areia, conchas e os passarinhos possam pousar em nossas
margens para cantar seus belos gorjeios.

Referências

AHLBERG, Allan. O carteiro chegou. São Paulo: Companhia das


Letrinhas, 2007.
BARROS, Manoel de. Menino do mato. São Paulo: Leya, 2010.

41
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República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1998.
BRASIL. Lei N.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto
da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF,
1990.
BRASIL. Lei N.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação e dá outras providências. Brasília, DF,
1996.
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Educação. Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. Brasília. Resolução CEB n.1 de 07
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42
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fundamentos da pedologia. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018.
VILELA, Fernando. Aventura Animal. São Paulo: DCL, 2013.

43
XAVIER, Marcelo. Se criança governasse o mundo. São Paulo:
Formato Editorial, 2003.
XAVIER, Marcelo. Tem de tudo nesta rua. São Paulo: Formato
Editorial, 2009.

44
2.
Políticas de Currículo para a Educação Infantil

Maria Aparecida Camarano Martins

Introdução

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o


ordenamento jurídico brasileiro compreende que “O dever do Estado
com a educação será efetivado mediante a garantia de: educação
infantil, em creche e pré-escola, às crianças de até 05 (cinco) anos de
idade”, segundo art. 208, inciso IV (BRASIL, 1988)1. Desse modo, fica
instituído legalmente no capítulo da educação o reconhecimento
social das crianças, desde a mais tenra idade, como sujeito histórico de
direitos no nosso país.
Pensar a Educação Infantil como um direito da criança,
pressupõe, outrossim, considerá-la na perspectiva do dever do Estado,
que desde então precisa ofertar, no âmbito dos sistemas de ensino, o
atendimento a essas crianças em creches e pré-escolas. A inserção de
tais instituições no campo da educação foi também preconizada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), capítulo IV, Art. 54,
inciso IV, que considera ser dever do Estado garantir matrícula em
creche e pré-escola às crianças de zero a 05 anos de idade (Redação
dada pela Lei nº 13.306, de 2016).
Esse reconhecimento vem se constituindo historicamente e tem
possibilitado outros avanços na legislação brasileira, que imprimem
um novo olhar sobre os processos formais de educação, qualificando
os debates e intensificado as pesquisas acadêmicas. Segundo Oliveira
(2002), tal processo também impulsionou a realização de debates
entre diferentes segmentos da sociedade na busca pela garantia
constitucional do direito das crianças frequentarem creches e pré-

1 Redação dada pela Emenda Constitucional nº. 53 de 2006.

45
escolas de qualidade social, bem como em “defesa de um novo
modelo de Educação Infantil” (ibid, p. 117). Nessa nova matriz, a
intencionalidade educativa ultrapassa visões anteriormente presentes
no imaginário educacional brasileiro – que ora compreendiam que as
instituições de cuidado e educação possuiriam caráter meramente
assistencialista, ora pressupunham a preparação das crianças para a
escolarização futura (HADDAD, 2010).
A garantia desse direito constitucional e a busca por um novo
entendimento acerca da Educação infantil, culminaram em amplo
debate sobre qual proposta curricular poderia ser adotada (ou não)
pela área da Educação Infantil. Esse debate, impulsionado pela ação do
campo político, mas também de militantes, profissionais e
pesquisadores da área da Educação Infantil resultou na publicação de
vários documentos produzidos pelo Ministério da Educação (MEC),
desde o início da década de 1990. Tais produções se intensificaram a
partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB (BRASIL, 1996).
A LDB reafirma a importância de creches e pré-escolas como
espaços coletivos educacionais comprometidos com o
desenvolvimento integral das crianças, compreendendo que esse
processo ocorre por meio das relações sociais que elas estabelecem
com seus pares e com adultos distintos de seus familiares no cotidiano
dessas instituições, em especial, por meio do brincar.
A escolha das interações e brincadeira de meninos e meninas
como eixos estruturantes do currículo de creches e pré-escolas
implica, outrossim, diferentes concepções de criança, de infância e de
Educação Infantil que se potencializam quando conjugadas às funções
sociais que se consubstanciam nessa perspectiva. Ou seja: o
compromisso com o desenvolvimento das crianças presente nas ações
de cuidado e educação dirigidas às crianças, complementam à ação das
famílias e evidenciam novas concepções de currículo que permeiam
esse processo educativo.
Evidencia-se, nesse processo, um debate que busca compreender
a constituição histórico-cultural dos marcos legais da educação, seus
desdobramentos na elaboração e implementação do currículo para
creches e pré-escolas, e suas implicações no processo educativo. Esse
procedimento se dá a partir das experiências e saberes produzidos
pelas crianças em diferentes contextos sociais e educativos que se

46
articulam aos “conhecimentos que fazem parte do patrimônio
cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico” (BRASIL, 2010,
p. 12), e possibilitam o desenvolvimento das crianças de zero até 06
anos de idade. Esse contexto traz, assim, relevância aos estudos
ancorados na teoria histórico-cultural.

Educação Infantil no Brasil: entre conhecimentos, experiências e


saberes, cuidado e educação

A década de 1990 foi marcada por um grande avanço nas políticas


públicas para a Educação Infantil, em nosso país, com importantes
efeitos no âmbito da educação, sobretudo, no que se refere aos
cuidados e à educação destinados às crianças de 0 a 6 anos de idade.
O reconhecimento de creches e pré-escolas como instituições
educativas na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988),
impulsionou fortemente o atendimento, principalmente, nas creches,
antes restritas ao contexto de políticas públicas de caráter
assistencialista, que se estendeu durante algum tempo.
Importante destacar que a LDB (BRASIL, 1996) estipulou o prazo
de três anos para a integração das creches aos seus respectivos
sistemas de ensino, a contar da data de sua promulgação. Conforme
preconizado no Art. 89 dessa legislação, “As creches e pré-escolas
existentes ou que venham a ser criadas deverão, no prazo de três anos,
a contar da publicação desta Lei, integrar-se ao respectivo sistema de
ensino”, embora algumas delas tenham sido incorporadas muito anos
depois, como no caso das creches no âmbito do Distrito Federal, que
só foram integradas ao sistema de ensino em 2011.
Podemos atribuir grande parte desse reconhecimento às
reivindicações dos movimentos sociais em favor da democratização da
escola pública, ocorridos na década de 1980, conhecidos como “A
Criança e a Constituinte”. Luta essa que se estendeu e se articulou com
as pautas das mães trabalhadoras e militantes da área da infância, que
reivindicavam a expansão da oferta de vagas na Educação Infantil.
O reconhecimento desse direito possibilitou outros avanços na
legislação brasileira imprimindo um novo olhar sobre os processos
formais de educação, sobretudo para a Educação Infantil, primeira
etapa da Educação Básica, que valoriza a infância, a criança e sua
educação. Nessa perspectiva, a legislação vigente se ampara em outro

47
sentido: o do reconhecimento da criança enquanto sujeito histórico,
cidadão de direitos que vivencia suas experiências de infâncias em
diferentes contextos sociais e educativos.
Essa configuração atribuída à Educação Infantil provocou um
novo olhar sobre a criança, e sua infância, promovendo, um
refinamento nas formas de conceber a infância e sua educação no
campo pedagógico. Presencia-se, a partir desse período a emergência
de uma Pedagogia da Infância e da Educação Infantil que, ao
problematizar a organização de contextos educativos (creches e pré-
escolas), evidencia um compromisso didático-pedagógico que tem
como centralidade o desenvolvimento integral da criança (ROCHA,
1999). Esta, passa a ser pensada indistintamente de sua condição
socioeconômica, contribuindo desta feita para que a educação e o
cuidado das crianças pequenas também pudessem, de forma
complementar à família, coexistir em ambientes coletivos destinados
às creches e pré-escolas.
A intencionalidade pedagógica desses contextos educativos,
impulsionou o MEC a constituir vários documentos, tais como:
(BRASIL, 1994) Por uma Política de Formação do Profissional de
Educação Infantil; (BRASIL, 1994) Educação Infantil no Brasil: Situação
Atual; (BRASIL, 1995). Educação Infantil: Bibliografia Anotada (BRASIL,
1995) dentre outros, dos quais evidenciamos, a Política Nacional de
Educação Infantil (BRASIL, 1994). Publicada em sua primeira edição em
1994, estabeleceu objetivos, a médio e longo prazo, voltados à
expansão da oferta de vagas para a criança de zero a 06 anos de idade.
Esse documento também se ocupou do fortalecimento, nas instâncias
competentes, da disseminação da concepção de Educação Infantil que
visa à integração do cuidado e da educação nas ações dirigidas às
crianças, de modo complementar à ação das famílias2. Tal documento
muito contribuiu para a inserção da Educação Infantil no campo da
educação, o que é preconizado no Art. 29 da LDB (BRASIL, 1996).
Assim sendo, a Política Nacional de Educação Infantil e tantos
outros documentos produzidos pelo MEC, a partir da década de 1990,
inserem-se nas discussões em torno do processo de elaboração de

2 Cabe ressaltar que nessa perspectiva de complementaridade das ações de cuidado e


educação junto às famílias, exalta-se o reconhecimento dos diferentes arranjos
familiares, para além do sentido de família nuclear constituída de pai, mãe e filhos,
fruto das mudanças sociais, econômicas e culturais por que passam nossa sociedade.

48
políticas educacionais brasileiras voltadas à infância, à criança e sua
educação que, especificamente tratem das peculiaridades hoje em
relação ao atendimento educacional de bebês, crianças bem pequenas
e crianças pequenas em creches e pré-escolas (BRASIL, 2017). Ademais,
esse ordenamento jurídico buscou o estabelecimento de diretrizes
orientadoras das ações pedagógicas a serem consideradas no âmbito
das creches e pré-escolas, envidando condições necessárias para o
desenvolvimento de ações de modo que se efetive o cumprimento da
legislação vigente.
Os documentos publicados naquele período evidenciavam a
importância dessa fase da vida, assinalando o reconhecimento da
criança como sujeito de direitos. Para além, esses documentos
expressavam uma grande preocupação quanto à função social da
educação institucionalizada da infância, visando à promoção do
desenvolvimento infantil, bem como a melhoria da qualidade do
atendimento em creches e pré-escolas, refutando o paradigma
vigente, que se responsabilizava pela realização de atividades
educativas de preparação das crianças para a escolarização futura.
Dentre eles, referimo-nos à primeira versão do documento de
Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos
Fundamentais das Crianças3. (BRASIL, 1997). Esse documento
consolida as diretrizes orientadoras das ações pedagógicas a serem
consideradas no âmbito das creches e pré-escolas. Reitera, nesse
sentido, que o atendimento em creches e pré-escolas deve se pautar
nos direitos fundamentais da criança e no estabelecimento de critérios
que possam subsidiar as práticas educativas.
Com vistas a contribuir para a constituição de diretrizes
orientadoras das ações pedagógicas a serem consideradas no âmbito
das creches e pré-escolas, o documento intitulado Propostas
Pedagógicas e Currículo em Educação Infantil (BRASIL, 1996),
apresentou uma importante análise de propostas
pedagógicas/curriculares em vigor nos diversos estados da federação

3Em sua segunda versão, o documento Critérios para um Atendimento em Creches que

Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (CAMPOS, 2009), evidencia questões


relativas às práticas concretas adotadas no trabalho direto com as crianças, como
também em relação à definição de diretrizes e normas políticas, programas e sistemas
de financiamento, tanto governamentais como não governamentais, marcadas
fortemente pelos direitos fundamentais da criança ganharam corpo e marcaram as
relações políticas, sociais e econômicas tão presentes nos dias atuais.

49
e em municípios de capitais. O texto identificou “os pressupostos em
que se fundamentam as diretrizes, princípios que estabelecem, o
processo como foram construídas e como informam a prática no
cotidiano dos estabelecimentos de Educação Infantil” (BRASIL, 1996,
p. 8).
Após a promulgação da LDB 9394/1996 (BRASIL, 1996) outros
documentos foram produzidos no âmbito da legislação educacional
brasileira e objetivaram a mesma virada epistemológica: o
estabelecimento de diretrizes e orientações pedagógicas a serem
realizadas em creches e pré-escolas. O Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998) serviu de base para a
constituição de uma política curricular para a Educação Infantil, outro
documento oficial elaborado pós-LDB/96, com o objetivo de subsidiar
as instituições de Educação Infantil no desenvolvimento do trabalho
pedagógico. Em 1999, com a aprovação do Parecer CEB 22/98 em
17/12/1998 (BRASIL, 1998) que possibilitou a elaboração, discussão e
entendimento da Resolução CEB nº 01/1999 (BRASIL, 1999), foram
instituídas as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (Resolução CNE/CEB nº 01/1999). Neste documento
estão expressos os pressupostos de trabalho pedagógico para a
educação básica, no artigo 2º:

[...] Na doutrina sobre Princípios, Fundamentos e Procedimentos da Educação


Básica, definidos pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação, que orientarão as Instituições de Educação Infantil dos Sistemas
Brasileiros de Ensino, na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação
de suas propostas pedagógicas (BRASIL, 1999, p 18).

Passados 10 anos, essas DCNEI/1999 foram revisitadas para se


adequarem às mudanças ocorridas naquele período sendo que, em
2009, o Conselho Nacional de Educação – CNE – aprova as Novas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI –
(Resolução CNE/CEB nº 5, de 17 de dezembro de 2009). Tais diretrizes
são regidas por princípios, fundamentos e procedimentos voltados à
orientação de políticas públicas para creches e pré-escolas,
engendrados nas concepções que as constituem, e a serem
observados no processo de elaboração de propostas pedagógicas e
curriculares de Educação Infantil.
Desse modo, as DCNEI (BRASIL, 2009) consideram a organização
dos espaços coletivos, a seleção e o fortalecimento das práticas

50
pedagógicas, as ações voltadas às aprendizagens e ao
desenvolvimento das crianças, sem antecipação dos conteúdos a
serem trabalhados no Ensino Fundamental, como o grande objetivo
das instituições de Educação Infantil. Afasta-se, portanto, de um viés
assistencialista ou preparatório às etapas posteriores, embora, ainda
hoje, tais propostas, persistam na Educação Infantil.
Essas diretrizes reiteram um atendimento pautado nos direitos
fundamentais da criança e no estabelecimento de critérios que possam
subsidiar as práticas educativas, considerando-a:

Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas


que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,
fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói
sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010, p.
12).

Como plano orientador das ações das instituições de Educação


Infantil ancorado na concepção de criança sujeito histórico de direitos,
temos nas DCNEI art. 4º, a Proposta Pedagógica ou Projeto Político
Pedagógico. Este documento define as metas que se pretende para a
aprendizagem e desenvolvimento das crianças, educadas e cuidadas
nas instituições. Nesse direcionamento, o Currículo da Educação
Infantil é compreendido na acepção de um conjunto de práticas que
“buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,
ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o
desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade” (BRASIL,
2010, p. 12). Segundo Oliveira (2010),

Esta definição de currículo foge de versões já superadas de conceber listas de


conteúdos obrigatórios, ou disciplinas estanques, de pensar que na Educação
infantil não há necessidade de qualquer planejamento de atividades, de reger as
atividades por um calendário voltado a comemorar determinadas datas sem
avaliar o sentido e o valor formativo dessas comemorações, e também da ideia
de que o saber do senso comum é o que deve ser tratado com crianças pequenas
(ibid,p. 4).

Nesse entendimento, e em consonância às referidas DCNEI de


2009, o Currículo da Educação Infantil articula-se com os demais
elementos de uma Proposta Pedagógica ou de um Projeto Político-
Pedagógico (FARIA e SALLES, 2007, p.32), na medida em que “as

51
experiências a serem trabalhadas com as crianças na Instituição de
Educação Infantil, organizando todos os saberes, conhecimentos,
valores e práticas que possibilitam o cuidar e educar crianças de 0 até
6 anos de idade”.
Desse modo, os documentos produzidos pelo MEC (normativos
ou consultivos) materializam a constituição histórico-cultural do
atendimento à Educação Infantil no Brasil, que desde a Constituição
Federal de 1988, disseminam de modo intenso uma nova doutrina
jurídica, que toma a criança como sujeito de direitos e, de igual modo,
evidencia o caráter educativo das creches e pré-escolas. Esse novo
paradigma sinaliza indistintamente que o acesso, a permanência e o
processo de desenvolvimento das crianças nas instituições que se
dedicam a essa primeira etapa da educação básica, são orientados por
práticas formativas que têm como eixos estruturantes as interações e
a brincadeira. Conforme disposto no art. 5º das DCNEI (BRASIL, 2009),
uma virada conceitual se estabelece com a nova definição da educação
da criança de zero a 06 anos, pois, desde então compreende-se que:

A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches


e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não
domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados
que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em
jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente
do sistema de ensino e submetidos a controle social (BRASIL, 2009, p. 12).

No cumprimento da legislação vigente, a Lei nº 13.005, de 20 de


julho de 2014, institui o Plano Nacional de Educação – PNE (BRASIL,
2014), determinando que os currículos da educação básica devem ter
uma base nacional comum, trazendo em seu bojo a importância da
aprovação de uma base nacional comum com vistas à implantação de
metas e estratégias4 voltadas à melhoria da qualidade da educação
básica, referindo-se nessa perspectiva, ao fluxo escolar e à
aprendizagem em todas as etapas e modalidades.

4 Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades,

com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem [...]. Estratégia 7.1: estabelecer e


implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a
educação básica e a base nacional comum dos currículos com direitos e objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino
fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local.(BRASIL,
2014)

52
A constituição de uma base nacional comum estaria, desde sua
gênese, voltada à melhoria da qualidade da educação básica, já que se
trata de um documento orientador e de sustentabilidade à elaboração
dos currículos das instituições escolares, de forma participativa com a
comunidade escolar (TUTTMAN, AGUIAR, 2019). No tocante à
Educação Infantil, a correspondência da universalização da pré-escola
e ampliação gradativa da oferta de atendimento da Educação Infantil
no segmento creche, assim como educação em tempo integral às
crianças da educação básica alicerçadas na perspectiva da qualidade,
previstos no PNE/2014, ainda se constituem como grande desafio.
Nesse sentido, em meio a tensões e contradições, se deu a
aprovação da Base Nacional Comum Curricular – BNCC Lei nº 13.415, de
16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017).

[...] é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e


progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a
que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em
conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL
2017, p.7)

Cabe evidenciar, que mesmo havendo alterações significativas


das duas primeiras versões em todo o processo de discussão e
construção da BNCC (BRASIL, 2017), até a aprovação da terceira e
última versão, em relação à Educação Infantil, podemos considerar
que o referido documento decorre das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil DCNEI (BRASIL, 2009). Assim, as
especificidades dessa primeira etapa da Educação Básica foram
consideradas na BNCC da Educação Infantil como parte importante
desse processo histórico de constituição de uma política curricular
para a Educação Infantil brasileira. Dentre as últimas alterações da LDB
(BRASIL, 1996), em especial, as relativas à lei 12.796 de 2013 (BRASIL,
2013) que determina, em seu art. 26, que:

Os currículos da Educação Infantil, ensino fundamental e ensino médio, devem


ter uma base nacional comum, a ser complementada em cada sistema de ensino
e estabelecimento escolar por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos
educandos (BRASIL, 2013).

53
Nesse sentido, base não é currículo, como a própria legislação
afirma. Discutindo a esse respeito, Tuttman e Aguiar (2019) recorrem
ao artigo “Currículo, Conhecimento e Cultura”5 de Antônio Flavio
Barbosa Moreira e Vera Maria Candau, em que os referidos autores
afirmam que a palavra currículo foi usada no texto para se referir às
atividades organizadas pelas instituições escolares. Nesse sentido,
“não cabe a associação da expressão “base comum” a currículo [...].
Efetivamente, o que a legislação sinaliza é que deve haver uma base
nacional comum que oriente e dê sustentabilidade à elaboração dos
currículos escolares[...]” (TUTTMAN; AGUIAR, 2019, p. 85).
Assim sendo, entendemos que essas discussões em torno da
constituição da BNCC, e de suas especificidades, são basilares para o
processo de reestruturação e adequação dos currículos à legislação
vigente em todas as unidades da federação.
No Distrito Federal, a Secretaria de Estado de Educação– SEEDF,
inicia esse processo a partir da homologação do referido documento,
para adequação às exigências devidas da primeira edição do Currículo
em Movimento do Distrito Federal (BRASILIA, 2018) envolvendo nessa
discussão toda a rede de ensino. Esse documento foi aprovado pelo
Conselho de Educação Distrito Federal, Portaria nº 389, de 4 de
dezembro de 2018. Em relação à Educação Infantil, denominada 1º Ciclo
da Educação Básica, o Currículo em Movimento do Distrito Federal –
Educação Infantil se alinha, dentre outros documentos, às DCNEI/
2009, e à BNCC – Educação Infantil, na organização dos três grupos de
faixa etária, CRECHES: Bebês – zero a 1 ano e 06 meses; Crianças bem
pequenas - 1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses. PRÉ-ESCOLA: Crianças
pequenas – 4 anos a 5 anos e 11 meses, que se alinham aos objetivos
de aprendizagem e desenvolvimento correspondentes a cada uma
delas.
A Educação Infantil no Currículo em Movimento do Distrito
Federal também se organiza em consonância com a BNCC - Educação
Infantil na constituição dos Direitos de Aprendizagem e
Desenvolvimento, refletidos na concepção de criança sujeito de

5Indagações sobre currículo: educandos e educadores: seus direitos e o currículo /


[Miguel Gonzáles Arroyo]; organização do documento Jeanete Beauchamp, Sandra
Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. – Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2007.

54
direitos: direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar-
se e conhecer-se (BRASIL, 2017).
Do mesmo modo, baseando-se nesses direitos e no protagonismo
da criança, também estabelece cinco Campos de Experiências: O eu, o
outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e
formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações (BRASIL, 2017). Os campos de
experiências constituem uma organização curricular fundada nas
vivências das crianças em diferentes situações e saberes provenientes
da vida, entrelaçando-os aos conhecimentos que fazem parte do
patrimônio cultural, tendo como eixos estruturantes as interações e
brincadeira, conforme apontado nas DCNEI.
Nesse aspecto, o Currículo em Movimento da Educação Infantil
no Distrito Federal organiza-se em quatro eixos integradores
correspondentes às ações de educar e cuidar, brincar e interagir. Esses
conceitos se entrelaçam aos eixos transversais que se coadunam aos
Campos de Experiências vivenciados pelas crianças nas relações que
estabelecem com o meio: à Educação para a Diversidade, Cidadania e
Educação em e para os Direitos Humanos, e Educação para a
Sustentabilidade.
Buscando um maior entendimento a respeito dos campos de
experiências instituídos na BNCC Educação Infantil, vimos que

[...]constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as experiências


concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural. A definição e a
denominação dos campos de experiências também se baseiam no que dispõem
as DCNEI em relação aos saberes e conhecimentos fundamentais a ser
propiciados às crianças e associados às suas experiências (BRASIL, 2017, p.40).

Nesse sentido, em relação aos campos de experiência, presume-se a


importância de as instituições de Educação Infantil reconheceram as
situações vivenciadas pelas crianças em diferentes contextos relacionais
como constitutivos de suas experiências e saberes. Pois, partindo delas,
as crianças possam se apropriar dos “conhecimentos que fazem parte do
patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo
a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de
idade” (BRASIL, 2010, p. 12). Assim, para Santos (2018),

55
A proposição de uma Base Nacional Comum para a Educação Infantil, ao apresentar
e divulgar uma organização curricular por campos de experiência para creches e pré-
escolas tem produzido um novo desafio para a área: sensibilizar os/as profissionais
sobre a necessidade de produzir modos de se aproximar da experiência das crianças
para, a partir delas, elaborar novas experiências educacionais de modo
contextualizado e repletas de significados tanto para as crianças quanto para os
adultos – permitindo maior compreensão sobre as especificidades da docência em
instituições de cuidado e educação (ibid, p. 5).

Se para Vigotski (2003), “educar significa organizar a vida, [...]


resulta compreensível, portanto, o nexo da educação com a vida e [o
nexo] da escola com o sistema social que deve servir de ponto de
partida para a pedagogia” (ibid, p. 220), e nesse sentido o/a
professor/a, na constituição do processo educativo, é o “organizador
do meio social educativo”(ibid,76). Ou seja, na base do processo
educativo, o que constitui um desafio que se imprime ainda hoje diante
dessa possibilidade, em relação à formação docente e à prática
pedagógica que sugere uma aproximação com as experiências e
saberes das crianças refletidas na realidade social de cada uma delas.
Assim sendo, o autor ainda evidencia nessa perspectiva que,

Por isso, a passividade do aluno, bem como o menosprezo por sua experiência
pessoal, são, do ponto de vista científico, o mais crasso erro, assim como a falsa
regra de que o professor é tudo, e o aluno, nada. Pelo contrário, o critério
psicológico exige que se reconheça que, no processo educativo, a experiência
pessoal do aluno é tudo. A educação deve ser organizada de tal modo que não
se eduque ao aluno, mas que este se eduque a si mesmo (VIGOTSKI, 2003 p. 75).

Acreditamos que esse entendimento possa provocar uma reflexão


do/a professor/a em relação a sua prática pedagógica, impulsionando a
constituição de novos percursos que viabilizem uma maior aproximação
com o currículo a partir das experiências e saberes das crianças, num
contexto de novas experiências educativas, outros avanços, e uma maior
compreensão do que se depreende do cuidado e educação, das
interações e brincadeira em contextos de Educação Infantil.

Educação Infantil na Perspectiva Histórico-Cultural: diálogos entre o


currículo e a prática pedagógica

As instituições de Educação Infantil organizam-se em espaços de


educação e cuidado dos bebês e das crianças pequenas. Isso implica

56
reconhecer que diferentes crianças vivem suas infâncias em contextos
relacionais. Tais contextos de relações são constitutivos de suas
histórias na tessitura das relações sociais ali estabelecidas, que se
configuram numa lógica singular de compreensão e inserção no
mundo em que vivem, na situação social de desenvolvimento de cada
criança. Segundo Vigotski (1996):

[...] a relação que se estabelece ao início de cada período de idade entre a criança
e o entorno que a rodeia, sobretudo o social, é totalmente peculiar, específica,
única e irrepetível para cada idade. [...] é o ponto de partida para todas as
mudanças que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada
idade. Determina plenamente e por inteiro as formas e a trajetória que permitem
à criança adquirir novas propriedades da personalidade, já que a realidade social
é a verdadeira fonte do desenvolvimento, a possibilidade de que o social se
transforme em individual. (ibid, p. 264 – tradução nossa).

Para o autor, a realidade social constitui a verdadeira fonte do


desenvolvimento, encontra-se na relação pessoa-meio, menor
unidade indivisível, não dissociada da constituição biológica do ser
humano. Uma vez que meio e hereditariedade influenciam no
processo de desenvolvimento da criança, este “é sempre um processo
dinâmico, uma unidade de influências hereditárias e do meio. Contudo,
essa unidade não é constante, não é permanente, não é algo dado para
todo o sempre e sumariamente determinado” (VIGOTSKI, 2018, p. 73).
Assim, o desenvolvimento da criança se constitui, para Vigotski
(2018), como um processo dinâmico pautado na unidade
hereditariedade-meio. Não se dá de forma mecânica a fatores
externos, e tampouco determinada por eles, uma vez que no decorrer
de todo o processo, as mudanças ocorrem de forma dinâmica, não se
detendo somente em um determinado aspecto do desenvolvimento,
seja em uma perspectiva hereditária ou na sua relação com o meio.
Nesse sentido, de acordo com Martins (2020), em contextos de
desenvolvimento da criança,

suas vivências cotidianas se consubstanciam (ou deveriam) em experiências que


possibilitem o desenvolvimento de sua integralidade, que as reconheça na sua
cultura, compreenda e respeite sua realidade social, a partir das relações
socialmente constituídas entre elas e seus pares e com os adultos, com a
participação efetiva de todas nas escolhas e realização de atividades que
emerjam de seus interesses (ibid, p.65).

57
Ressaltando as experiências que possibilitem o desenvolvimento de
sua integralidade e que são oriundas das vivências cotidianas das crianças,
presume-se que se tratem de experiências que se constituem, ou devam
se constituir, de forma bem diversificadas, pelo reconhecimento e
respeito às crianças em suas diferentes culturas e realidades. E esse
reconhecimento deve ser revelado na elaboração de propostas
curriculares que, no âmbito da vida cotidiana, sejam organizadas por
profissionais, sob a égide de diretrizes e de orientações dos documentos
oficiais, respeitando as especificidades das crianças. Compreende-se,
portanto, que as ações pedagógicas realizadas em creches e pré-escolas,
com vistas à elaboração de propostas pedagógicas e de currículos sejam
efetivamente produzidas,

com a participação efetiva dos professores e da comunidade usuária,


reconhecendo a riqueza e a diversidade brasileiras, que acolhem realidades
extremamente diferenciadas. Contudo, as instituições devem respeitar as
normas comuns e as do seu sistema de ensino [...]. Respeitadas as normas
definidas em lei, teoricamente as instituições têm liberdade de desenvolver suas
próprias propostas pedagógicas (HADDAD, 2010, p. 419).

Pressupõe-se que o trabalho pedagógico movimenta os


processos educativos a partir do reconhecimento da situação social de
desenvolvimento em que as crianças se encontram em um
determinado tempo de vida, no entendimento de que, “a educação é
realizada através da própria experiência do aluno, que é totalmente
determinada pelo ambiente; a função do professor se reduz à
organização e à regulação de tal ambiente” (VIGOTSKI, 2003, p. 77).
Ao afirmar que a atividade pessoal da criança ou adolescente
constitui a base do processo educativo, Vigotski (2003), nos faz refletir
que a experiência se transforma na principal base do trabalho
pedagógico, capaz de provocar novas reações no organismo. À
educação cabe, portanto, o reconhecimento e a valorização de
diversas e distintas experiências vivenciadas pelas crianças, e suas
relações em outras realidades e contextos educativos distintos.

Para não concluir...

Buscamos nessa breve discussão trazer o entrelaçamento das


políticas públicas constituídas no âmbito da Educação Infantil, desde o
reconhecimento do dever do Estado, na Constituição Federal de 1998,

58
com a inserção de creches e pré-escolas como primeira etapa da
educação básica. Esse cenário gera a possibilidade de uma nova
configuração nesses contextos educativos, demandando uma
reorganização intencional dos processos voltados ao
desenvolvimento da criança, compreendida nessa chave como sujeito
de direitos. Institui-se, assim, um compromisso didático-pedagógico
ancorado nas especificidades da Educação Infantil que tem como
centralidade o desenvolvimento integral da criança (ROCHA, 1999;
HADDAD, 2010).
Com esse olhar, o Currículo da Educação Infantil desponta como
um dos elementos constitutivos de uma Proposta Pedagógica, ou de
um Projeto Político-Pedagógico. Assim, no cumprimento da legislação
vigente, todos os currículos devem partilhar de uma base nacional
comum, com vistas à melhoria da qualidade da educação básica,
referindo-se nessa perspectiva da qualidade, ao fluxo escolar e à
aprendizagem em todas as etapas e modalidades.
Nessa determinação, evidencia-se que a base não é currículo, e as
discussões em torno da constituição de uma BNCC são basilares para
o processo de reestruturação e adequação dos currículos à legislação
vigente em todas as unidades da federação, como fora em relação ao
Currículo em Movimento do Distrito Federal – Educação que se alinha,
dentre outros documentos, às DCNEI/ 2009.
Essa discussão refere-se aos Campos de Experiências instituídos
na BNCC da Educação Infantil. Reconhecemos que os campos de
experiências constituem uma organização curricular fundada nas
experiências das crianças em diferentes situações da vida cotidiana e
de saberes constituídos de suas vivências, entrelaçando-os aos
conhecimentos integrantes do patrimônio cultural, tendo como eixos
estruturantes as interações e brincadeira, conforme apontado nas
DCNEI (BRASIL, 2009). Nesse aspecto, tanto as DCNEI, quanto a BNCC
se alinham à teoria histórico-cultural, uma vez que as experiências são
oriundas das vivências cotidianas das crianças e possibilitam o
desenvolvimento de sua integralidade.
Nesse sentido o/a professor/a, na constituição do processo
educativo, é o “organizador do meio social educativo” (VIGOTSKI,
2003, p. 76). Ainda hoje essa possibilidade é um desafio em relação à
formação docente, e à prática pedagógica que sugere uma

59
aproximação com as experiências e saberes das crianças, refletidas na
realidade social de cada uma delas.
Pressupomos que esse entendimento possa provocar uma
reflexão do/a professor/a em relação a sua prática pedagógica,
impulsionando a constituição de novos percursos que viabilizem uma
maior aproximação com o currículo, a partir das experiências e saberes
das crianças, num pretexto de novas experiências educativas, outros
avanços, e uma maior compreensão do que se depreende do cuidado
e educação, das interações e brincadeira em contextos de Educação
Infantil.
À educação cabe, portanto, o reconhecimento e a valorização de
diversas e distintas experiências vivenciadas pelas crianças, e suas
relações em outras realidades e contextos educativos distintos,
possivelmente esse seja um dos nossos maiores desafios.

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60
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Fundamental. Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
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61
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Fundamentos da Pedologia. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018.

62
3.
Apontamentos teóricos sobre educação, cuidado e
desenvolvimento de crianças na Teoria Histórico-Cultural

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira

“Ao ler e reler os trabalhos de Lev Semionovitch


Vigotski, tenho sempre a sensação de que algo não
compreendi neles até o fim. Então, eu sempre tento
encontrar e formular com precisão a ideia principal que o
guiou desde o início de sua atividade científica.”
Daniil Elkonin citado por Zoia Prestes (2012)

Para começo de conversa

Escolho o texto em epígrafe para iniciar essa conversa, pois


traduz parte do meu sentimento em relação à obra de Lev
Semionovitch Vigotski (1896-1934), sendo a outra parte, o
encantamento que se deu quando conheci esse apaixonante e
revolucionário autor nas aulas de algumas professoras do curso de
Especialização em Educação Infantil na Universidade de Brasília há 10
anos, e que permanece comigo até os dias de hoje. De lá para cá, as
inúmeras leituras desse autor sobre diferentes temáticas
reorganizaram os meus saberes e fazeres como professora da
educação básica, nortearam o meu olhar como pesquisadora das
infâncias, têm me constituído como professora do ensino superior e
como eterna estudante de sua obra, pois faço parte do Círculo
Vigotskiano – Grupo de Estudos na Teoria Histórico-Cultural sediado no
Distrito Federal, que se dedica a estudar coletivamente obras
publicadas pelo teórico bielorrusso.
Lev Semionovich Vigotski apresentou novos marcos teórico-
metodológicos, referendando a dialética como lógica e teoria do
conhecimento. Acompanhado por um grupo de pesquisadores com o
qual constituiu estreita relação acadêmica na recém fundada União

63
Soviética ao longo das décadas de 1920 e até meados de 1930, Vigotski
rediscutiu o papel da instrução e da apropriação de conhecimentos e
elementos da cultura nos processos de aprendizagem e
desenvolvimento da cognição, da emoção e da individuação.
(BARBOSA; SOARES, 2018)
No sentido de contribuir com a difusão da obra de Vigotski e
colaboradores entre professoras e professores da Educação Infantil,
entendida aqui como um campo específico da pedagogia, uma das
ciências da educação, e compreendendo que as ciências são
constituídas de perspectivas e abordagens teóricas sobre
determinado campo epistemológico, o presente artigo tem como
objetivo apresentar alguns apontamentos teóricos sobre educação,
cuidado e desenvolvimento de crianças na Teoria Histórico-Cultural.
O texto está organizado em quatro tópicos, a saber: a)
aprendizagem e desenvolvimento na Teoria Histórico-Cultural, que
apresenta conceitos primordiais para uma aproximação teórica com a
perspectiva; b) periodização do desenvolvimento infantil, que apresenta
a organização de estágios do desenvolvimento, partindo da atividade
principal como norteadora do desenvolvimento humano; c) a
institucionalização na infância, que apresenta a perspectiva da instrução
na Educação Infantil de orientação dialética e de caráter humanizador; d)
a brincadeira de faz de conta como atividade principal na infância.

Aprendizagem e desenvolvimento na Teoria Histórico-Cultural

Tudo que nos cerca e foi feito pelas mãos do


homem, todo o mundo da cultura, diferentemente
do mundo da natureza, tudo isso é produto da
imaginação e da criação humana que nela se
baseia. (VIGOTSKI, 2009, p.14)

Embora o termo cultura seja um eixo central no construto teórico


de Vigotski (1896-1934), não foi objeto de sua atenção o
aprofundamento conceitual do termo (PINO, 2005). Vigotski citado
por Pino (2005) comenta que a “cultura é o produto, ao mesmo tempo,
da vida social e da atividade social do homem.” Segundo o autor, esta
foi uma das breves pistas deixadas por Vigotski e nesta frase, com a
palavra produto, percebe-se uma linha que separa cultura e natureza,
as une e passa pelo homem, um ser da natureza e agente de

64
transformação, “capaz de produzir cultura e incapaz de produzir
natureza”, retomando o debate filosófico sobre a natureza e a cultura
(PINO, 2005).

Desenvolvimento biológico (filogenético) e desenvolvimento cultural


(ontogenético)
O desenvolvimento humano tem uma base biológica, que é o
desenvolvimento filogenético relacionado à história da nossa espécie
humana, e um desenvolvimento cultural, chamado ontogenético, que
está relacionado à história construída pela humanidade através dos
bens e ferramentas culturais. Nesse sentido, destaco que essa
concepção de desenvolvimento exclui o caráter universal do
desenvolvimento, pois as realidades (biológica e cultural) pertencem a
ordens diferentes, sendo interdependentes e constitutivas de
dimensões de uma mesma e única história humana.
Entendemos que esta integração da criança ao ambiente cultural
se dá por meio da relação da criança com os espaços e os seres
humanos que os constituem. Pois, segundo o princípio de Vigotski
presente no livro Obras Escogidas Tomo III (2012a) tratando sobre a
origem social das funções psíquicas superiores, o ser humano
necessita de um nascimento cultural, pois apenas o nascimento
biológico não lhe assegura a condição de ser humano. Na obra 7 aulas
de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia (2018), Vigotski
explica que o desenvolvimento é sempre um processo dinâmico, uma
unidade de influências hereditárias e do meio. Contudo essa unidade
não é constante, não é permanente, sendo mutável, diferenciada e
constituída de diversas formas.

Vivência: unidade pessoa-meio


No mesmo livro, Vigotski (2018) conta a história de um caso clínico
acompanhado por sua equipe para explicar a vivência, um conceito basilar
na Teoria Histórico-Cultural. “A vivência é uma situação qualquer, de um
componente qualquer do meio define como será a influência dessa
situação ou meio sobre a criança, que pode determinar sua influência no
desenvolvimento posterior, mas o momento refratado através da
vivência da criança.” (VIGOTSKI, 2018, p.75).
O caso consiste na história de três crianças da mesma família que
viviam com a mãe que bebia e sofria transtornos nervosos e psíquicos.

65
Certo dia a mãe tentou atirar um filho pela janela, espancou e derrubou
as crianças no chão. Esse era o cenário cotidiano delas. As três crianças
foram levadas à clínica e cada uma delas apresentava um quadro
diferente em relação a mesma situação, sendo que a criança menor
reagia à situação com uma série de sintomas neuróticos e defensivos
como medo extremo, enurese, gagueira, silenciamento, e às vezes
perdia até a voz. A criança do meio desenvolveu um estado de extremo
sofrimento pela relação afetiva contraditória com a mãe, devido ao
choque da relação positiva e negativa, traduzida na relação afetiva
forte com a mãe e o ódio terrível dela. Então, ela queria voltar logo
para casa e ao mesmo tempo expressava pavor quando falavam do
retorno. A criança mais velha, era um menino tímido, mas que
apresentava traços de maturidade, seriedade e preocupações
precoces. Esse filho entendia que sua mãe era doente e sentia pena
dela, também se preocupava com os irmãos menores que ficavam em
perigo quando a mãe se enfurecia. Ele assumiu o papel de chefe da
família, acalmando a mãe, afastando-a para que não fizesse nada
contra os pequenos, e consolá-los.
Nesse sentido, o curso de seu desenvolvimento foi bruscamente
alterado, seus interesses e preocupações não eram os mesmos dos
seus colegas coetâneos. Podemos perceber que cada criança
vivenciou a mesma situação de uma forma diferente, pois se
constituíram três vivências distintas acerca da mesma situação, pois
cada uma toma consciência, atribui sentido e se relaciona
afetivamente com determinado acontecimento de forma singular.
Desse modo, “vivência é uma unidade na qual se representa de modo
indivisível, por uma lado o meio, o que se vivencia e por outro lado
como eu vivencio isso.” (VIGOTSKI, 2018, p. 78).

Aprendizagem e desenvolvimento
No texto Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade
escolar (VIGOTSKI, 2010a), Vigotski nos dirá que a aprendizagem e o
desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez no
ingresso da criança em instituições educativas, mas estão ligados entre
si desde os primeiros dias de vida dela. Opondo-se à concepção de
universalidade e prontidão do desenvolvimento para a aprendizagem,
Vigotski explica que a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento,
de modo que aprendizagem não é vista em si mesma como

66
desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da
criança conduz ao desenvolvimento mental, ativando uma gama de
processos de desenvolvimento, de modo que essa ativação não
poderia produzir-se sem a aprendizagem. “A aprendizagem é um
momento intrinsecamente necessário e universal para que se
desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais,
mas formadas historicamente.” (VIGOTSKI, 2010a, p.115) E como se dá
a aprendizagem na Teoria Histórico-Cultural?

Zona de desenvolvimento efetivo/ Zona de desenvolvimento potencial


Para pensarmos sobre como se dá aprendizagem, precisamos
relembrar que há uma dupla zona de desenvolvimento humano na Teoria
Histórico-Cultural. Sendo que a zona de desenvolvimento efetivo,
também chamada de zona de desenvolvimento atual/real (PRESTES,2012)
materializa aquilo que a criança já aprendeu ou consegue realizar sozinha
no momento, ou seja, seriam aqueles saberes já apreendidos por ela.
Contudo, nosso interesse como professoras e professores de crianças se
amplia para a zona de desenvolvimento potencial (VIGOTSKI, 2010),
também chamada de zona de desenvolvimento proximal (VIGOTSKI,
2012b ou zona de desenvolvimento iminente (PRESTES, 2012), que tratam
de processos de aprendizagem que no curso do desenvolvimento ainda
estão em estado embrionário. No entanto, com a colaboração de
parceiros mais experientes como adultos, ou seus pares criam
possibilidades para o desenvolvimento.
Cabe salientar que esse processo não se dá de modo direto, mas
que a diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos
parceiros mais experientes e o nível de tarefas que podem
desenvolver-se com uma atividade independente, define a área de
desenvolvimento potencial da criança. Desse modo, destaca-se ainda
que a aprendizagem e desenvolvimento da criança, ainda que
diretamente ligados, não se produzem de modo simétrico e paralelo.
Existe uma dependência recíproca, extremamente complexa e
dinâmica entre os processos de desenvolvimento e da aprendizagem.

Situação social de desenvolvimento


Vigotski (2012b) no texto O problema da idade explica sobre a
relação específica, mas abrangente, da criança com seu ambiente, a
partir do conceito de situação social de desenvolvimento. “A situação

67
social de desenvolvimento representa o momento inicial para todas as
mudanças dinâmicas que ocorrem no desenvolvimento durante um
dado período [etário]”; portanto, para estudar a dinâmica de uma
idade é preciso primeiramente explicar a situação social de
desenvolvimento (VIGOTSKI, 2012b).
Para o autor, cada período etário tem uma nova formação central
característica, relativa a quais funções psicológicas se desenvolvem, de
modo que essa nova formação é organizada na situação social de
desenvolvimento por uma contradição básica entre as capacidades
atuais da criança (que se manifestam nas funções psicológicas
verdadeiramente desenvolvidas), as necessidades e desejos das
crianças e as demandas e possibilidades do ambiente. Ao tentar
superar essa contradição (de forma a poder realizar sua atividade), a
criança se engaja em diferentes tarefas concretas e específicas
interações, que podem resultar na formação de novas funções ou no
enriquecimento de funções já existentes. E como estaria organizada a
periodização do desenvolvimento infantil à luz da Teoria Histórico-
Cultural?

A periodização no desenvolvimento infantil à luz da Teoria Histórico-


Cultural
Ao falar sobre a periodização no desenvolvimento infantil no
texto O problema da idade, Vigotski (2012b) refuta as concepções
universalizantes e rigidamente fixas e destaca uma nova abordagem
sobre o tema, apoiado nos estudos do psicólogo soviético Pavel
Petrovich Blonsky (1884–1941).

Desde este último ponto de vista não há nem pode haver nenhum outro critério
para distinguir os períodos concretos do desenvolvimento infantil ou das idades
a exceção de formações novas, graças a quais se determinam o essencial de cada
idade. Entendemos por formações novas o novo tipo de estrutura de
personalidade e de sua atividade, as mudanças psíquicas e sociais que se
produzem pela primeira vez em cada idade e determinam, no aspecto mais
importante e fundamental, a consciência da criança, sua relação com o meio, sua
vida interna e externa, todo o curso do desenvolvimento no dado período.
(VIGOTSKI, 2012b, p. 255, tradução livre)

Nessa perspectiva, os teóricos da Teoria Histórico-Cultural,


Elkonin e Leontiev afirmam que cada estágio de desenvolvimento da
criança é caracterizado por uma relação determinada, por uma

68
atividade principal que desempenha a função de principal forma de
relacionamento da criança com a realidade. Compreendendo que o
homem – a partir do desenvolvimento de suas atividades, tal como elas
se formam nas condições concretas dadas de sua vida – adapta-se à
natureza, modifica-a, cria objetos e meios de produção desses objetos,
para suprir suas necessidades. A criança, nesse caso, por meio dessas
atividades principais, relaciona-se com o mundo, e, em cada estágio,
formam-se nela necessidades específicas em termos psíquicos.
Leontiev citado por Facci (2004) enfatiza que o desenvolvimento
dessa atividade condiciona as mudanças mais importantes nos
processos psíquicos da criança e nas particularidades psicológicas da
sua personalidade.
Apoiado nessa construção teórica da atividade-guia, Elkonin
citado por Facci (2004), elenca os principais estágios de
desenvolvimento pelos quais os sujeitos passam como: a)
comunicação emocional do bebê abrange do nascimento ao 1 ano de
vida do bebê, e está relacionada a todo o processo de interação do
bebê com o meio; b) atividade objetal manipulatória, relacionada às
crianças bem pequenas de 1 a 3 anos de idade, na qual sua relação com
o mundo físico se dá através da exploração manual dos objetos; c)
brincadeira de faz de conta relacionada às crianças pequenas de 4 a 6
anos, que se constitui como a atividade principal do desenvolvimento
humano; d) atividade de estudo relacionada às crianças em idade
escolar de 7 a 12 anos, onde o estudo sistematizado e a
operacionalização de conceitos são características principais do
desenvolvimento; e) comunicação íntima pessoal relacional abrange a
puberdade enfocando as relações pessoais com seus pares
prioritariamente; f) atividade profissional de estudo relacionada ao
término da adolescência e o ingresso no mundo do trabalho. Essas
etapas podem ser dividas também em três grupos, sendo a) primeira
infância: comunicação emocional direta (primeiro grupo) e objetal
manipulatória (segundo grupo); b) segunda infância: brincadeira de
faz de conta (primeiro grupo) e atividade de estudo (segundo grupo)
e c) adolescência: comunicação íntima e pessoal (primeiro grupo) e
atividade profissional de estudo (segundo grupo). Ressalta-se que
essas etapas não são organizações rígidas e que há fluidez entre elas,
justamente pelo caráter cultural e histórico do desenvolvimento

69
humano, que considera as vivências da criança e como ela dá sentido
ao meio em que vive e as relações pessoais estabelecidas.
Vigotski (2012b) destaca que a transição de uma etapa de
desenvolvimento infantil para outra é caracterizada por crises, e estas
surgem no limite entre duas idades e assinalam o fim de uma etapa
precedente de desenvolvimento e o início da etapa seguinte. O autor
destaca que esses períodos de crise produzem mudanças bruscas,
rupturas na personalidade da criança, e que os períodos têm tempo
indeterminado, podendo durar vários meses, um ano, dois ao máximo.
Vigotski (2012b) enumerou algumas características presentes nesses
períodos de crise, como: a) os limites entre o começo e o final da crise
e as idades próximas são totalmente indefinidos; b) presença de
conflitos com outras pessoas e consigo mesmas; c) o negativismo
como uma característica acentuada desse período, contudo, cabe
ressaltar que os períodos de crise são distintos em diferentes crianças.
O autor identificou as seguintes crises: a) crises pós-natal –
primeiro ano (2 meses-1 ano); b) crise de 1 ano – infância precoce (1
ano-3 anos); c) crise de 3 anos – idade pré-escolar (3 anos-7 anos); d)
crise dos 7 anos – idade escolar (8 anos-12 anos); e) crise dos 13 anos –
puberdade (14 anos-18 anos); f) crise dos 17 anos.
No início de cada período de idade, a relação estabelecida entre a
criança e o meio que a rodeia, sobretudo o social, é totalmente
peculiar, específica, única e irrepetível para cada idade. Essa relação é
chamada de situação social de desenvolvimento da dita idade, é o
marco inicial para todas as mudanças dinâmicas que se produzem no
desenvolvimento durante cada período etário. Designa as formas e a
trajetória que permitem à criança adquirir novas propriedades da
personalidade, já que a realidade social é a verdadeira fonte de
desenvolvimento, a possibilidade de que o social se converta em
individual (VIGOTSKI, 2012b) .

A institucionalização na infância na Teoria Histórico-Cultural


Diante da constatação da hegemonia na literatura
contemporânea dedicada ao segmento da Educação Infantil de um
ideário antiescolar, que tem como um de seus pilares a negação do ato
de ensinar na infância, Pasqualini (2004) pautou-se pela hipótese de
que a produção teórica dos autores da psicologia histórico-cultural

70
sustenta a defesa do ensino como elemento fundante do trabalho do
professor que atua junto à referida faixa etária.
Nesse sentido, destaca-se a incoerência dos discursos que
apresentam a dicotomia entre o cuidar e o educar na Educação Infantil,
de modo que esses dois aspectos se interpenetram no fazer docente
no cotidiano das instituições educativas da infância, ao
compreendermos que há uma unidade entre os aspectos intelectivos
e emocionais que constituem os atos de ensinar e de aprender na
Teoria Histórico-Cultural.

A emoção não é um agente menor do que o pensamento. O trabalho do


pedagogo deve consistir não só em fazer com que os alunos assimilem geografia,
mas também sintam. Por algum motivo essa ideia não costuma vir à cabeça, e o
ensino de colorido emocional é entre nós um hóspede raro, o mais das vezes
relacionado a um amor impotente do próprio professor por seu objeto,
professor esse que desconhece os meios para comunicar essa matéria aos alunos
e por isso costuma passar por esquisitão (VIGOTSKI, 2010b, p. 144).

Por outro lado, as reações emocionais devem constituir a base do


processo educativo. De modo que antes de comunicar esse ou aquele
sentido, a professora e o professor devem suscitar a respectiva
emoção da criança e preocupar-se com que essa emoção esteja ligada
a um novo conhecimento (VIGOTSKI, 2010b). A professora e o
professor atuam como organizadores do espaço pedagógico, e nesse
sentido, é importante estabelecer vínculos afetivos com as crianças,
pois a partir do núcleo de interesses expressos por elas, nortearão a
ações pedagógicas de instrução, conforme:

Detenhamo-nos em que a criança em idade pré-escolar pensa por


representações gerais; ou em que seus interesses emocionais estão ligados ao
sentido e ao significado que ela atribui a determinada situação; detenhamo-nos
em que, em relação com isso, a esfera de comunicação da criança se estende —
de qualquer maneira, parece-me que uma conclusão será imposta por si só. Essa
conclusão é a de que uma criança em idade pré-escolar, por suas peculiaridades,
está apta a iniciar um novo ciclo de instrução que não estava aо seu alcance
anteriormente. Ela está apta а que esta instrução transcorra por certo programa.
Mas ela, ao mesmo tempo, por sua natureza, interesses, nível de pensamento,
pode assimilar este programa, na melhor das hipóteses, se for seu próprio
programa. (VIGOTSKI, 2020, p. 14)

A constatação de que as funções psicológicas que a professora e


o professor pretendem desenvolver na criança devem ser requeridas

71
por atividades em que esteja colocada, em alguma medida, a
intencionalidade da criança (a busca pela consecução de determinado
objetivo), evidencia que não basta expor a criança a estímulos
diversos, ou seja, não basta disponibilizar a ela os objetos da cultura –
para além disso, é preciso organizar sua atividade. (PASQUALINI,
2004). Leontiev, citado por Pasqualini (2004), não deixa dúvidas
quanto ao papel diretivo do trabalho da professora e do professor na
promoção do desenvolvimento da criança: a professora e o professor
operam sobre a atividade da criança e determinam o desenvolvimento
de seu psiquismo. Tal afirmação se mostra bastante relevante, pois se
opõe diretamente à concepção do professor como alguém que deve
limitar-se a “seguir as crianças”. Na perspectiva do autor, a análise da
atividade da criança visa justamente fornecer à professora e ao
professor subsídios para uma intervenção mais precisa e eficaz no
desenvolvimento infantil. (PASQUALINI, 2004)
Assim como Vigotski e Leontiev, Elkonin citado por Pasqualini
(2004), enfatiza o papel diretivo do adulto no processo educativo, pois
conforme o autor, o desenvolvimento psíquico das crianças tem lugar
no processo de educação e ensino realizado pelos adultos, que
organizam a vida da criança, criam condições determinadas para seu
desenvolvimento e transmitem a experiência social acumulada pela
humanidade no período precedente de sua história. À medida que a
experiência social é assimilada, se formam nas crianças distintas
capacidades.

Dessa forma, se entendemos o ato de ensinar em oposição ao imperativo de


“seguir as crianças...”, ou seja, como intervenção intencional e consciente do
educador que visa garantir a apropriação do patrimônio humano-genérico pela
criança, promovendo e guiando seu desenvolvimento psíquico, podemos
afirmar que os pressupostos de Vigotski, Leontiev e Elkonin sustentam a defesa
do ensino junto à criança de 0 a 6 anos. (PASQUALINI, 2004, p.)

Nessa perspectiva, a educação na Teoria Histórico-Cultural,


compreendida como organização intencional da vida, envolve
indissociavelmente o “o quê ensinar” e o “como ensinar” e para tal é
fundante que a professora e o professor da Educação Infantil
compreendam o objetivo de seu trabalho pedagógico. Desse modo, o
conceito de humanização amplia a gama de possibilidades docente, ao
passo que é “um processo de formação pelo sujeito de suas qualidades

72
humanas, a partir da internalização de aptidões, capacidades,
habilidades e valores que são vividos e experimentados na convivência
social com parceiros mais experientes.” (TEIXEIRA; MELO, 2018, p. 169)
Pino (2015) afirma que a humanização da espécie é uma “tarefa
coletiva” ao passo que a humanização de cada pessoa é “tarefa do
coletivo”, de modo que esse processo dialético se dá na interface do
social e do individual, no sentido que as crianças produzem cultura ao
terem contato com os bens culturais desenvolvidos ao longo da
história da humanidade.
Silva (2012) alerta quanto a posição que o adulto ocupa diante das
produções infantis, sobretudo nas atividades guiadas pela imaginação
como desenhos, narrativas, brincadeiras, que materializa sua visão
sobre o espaço pedagógico e reflete a forma como as próprias crianças
significam suas ações. Nesse sentido, a professora e o professor por
sua função social específica, podem garantir espaços de mediação que
encorajem manifestações criativas das crianças ou as inibam. É essa
atenção especial às maneiras de estes profissionais se colocarem
diante das produções infantis que os estudos na perspectiva histórico-
cultural se voltam para a caracterização da ação docente (SILVA, 2012).

A brincadeira como atividade principal para a aprendizagem e


desenvolvimento na infância
No livro Imaginação e Criação na Infância (2009), Vigotski explica
em que bases a imaginação da criança se manifesta e se desenvolve e
como a criação infantil se desenvolve de maneira singular à dos
adultos. Para Ribot, citado por Vigotski (2009), todos os objetos da
nossa vida cotidiana são imaginação cristalizada. Esta metáfora se
aplica bem na nossa analogia com toda a produção cultural em torno
das crianças e suas infâncias, que são materializadas via livros,
brinquedos, produções cinematográficas, produtos infantis, e nos
recontos das crianças, como uma atividade criativa.
Vigotski (2009) afirma que os processos de criação se manifestam
de modo explícito já na primeira infância, expressando-se melhor nas
suas brincadeiras. O autor explica que na brincadeira, as crianças
reproduzem muito do que viram ou vivenciaram, porém, esta
realidade não aparece na brincadeira de maneira integral, mas é
reelaborada criativamente pela criança.

73
A brincadeira da criança não é uma simples recordação do que vivenciou, mas
uma reelaboração criativa das impressões vivenciadas. É uma combinação
dessas impressões e, baseadas nelas, a construção de uma realidade nova que
responde às aspirações e aos anseios da criança. Assim como na brincadeira, o
ímpeto da criança para criar é a imaginação em atividade. (VIGOTSKI, 2009, p. 17)

A base da criação se constitui na capacidade de combinar o velho (o


que já existe) de novas maneiras, porém Vigotski (2009) alerta para a
complexidade da análise psicológica da atividade criadora de
combinação. Então, esclarece a relação entre a fantasia e a realidade no
comportamento humano, elencando quatro princípios para esta
diferenciação, conforme a) a atividade criadora da imaginação depende
da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque
essa experiência constitui o material com que se criam as construções da
fantasia; b) a relação entre fantasia e realidade é diferente, diz respeito
àquela relação entre o produto final da fantasia e um fenômeno
complexo da realidade; c) a relação entre a atividade de imaginação e a
realidade é de caráter emocional, e manifesta-se de dois modos. Por um
lado, qualquer sentimento, qualquer emoção parece possuir a capacidade
de selecionar impressões, ideias e imagens consonantes com ânimo que
nos domina num determinado instante, pois há um caráter emocional na
imaginação (VIGOTSKI, 1998).
Vigotski (2009) contesta a crença de que a imaginação da criança
é superior à imaginação dos adultos, inicialmente apresentando os
argumentos desta crença. O autor explica ainda a diferença da obra da
imaginação infantil em relação a do adulto, pois as crianças vivem mais
tempo num mundo fantasioso do que no mundo, tendo em vista que
são conhecidas “as imprecisões, as alterações da experiência real, o
exagero e finalmente, o gosto pelos contos e histórias fantásticas,
característicos da criança” (VIGOTSKI, 2009, p.44)
Vigotski (2009) compreende que a base do desenvolvimento da
imaginação, como do desenvolvimento da criança é o
desenvolvimento cultural, por isso, para ele a imaginação do adulto,
que vivenciou mais experiências e teve contato com mais elementos
da cultura, é superior à da criança. Do ponto de vista quantitativo,
como destacou o autor, a criança está em uma posição de inferioridade
em relação ao adulto, porém as suas produções apresentam uma
vantagem, devido a relação livre que a criança estabelece com as
mesmas.

74
A criança é capaz de imaginar bem menos do que um adulto, mas ela confia mais
nos produtos de sua imaginação e os controla menos. Por isso, a imaginação na
criança, no sentido comum e vulgar dessa palavra, ou seja, de algo que é irreal e
inventado, é evidentemente maior do que no adulto. (VIGOTSKI, 2009, 47)

Tratando sobre o brincar, destacam-se duas questões que


Vigotski (2008) evidencia: a) a origem da brincadeira na ontogênese; e
b) o papel do faz de conta nesse desenvolvimento. O teórico aponta
que a brincadeira acontece de forma diferenciada na infância e
expressa a relevância dessa atividade para o desenvolvimento do
processo de simbolização, que é criador e autoral por excelência
(ABREU; COSTA; SILVA, 2018).

A imaginação é o novo que está ausente na consciência da criança na primeira


infância, absolutamente ausente nos animais, e representa uma forma
especificamente humana de atividade da consciência; e, como todas as funções
da consciência, forma-se originalmente na ação (VIGOTSKI, 2008, p. 25).

Nesse sentido, a ação na brincadeira realizada pela criança na


primeira infância diferencia-se daquela que está em idade pré-escolar,
ao passo que os processos de simbolização da criança vão se tornando
mais complexos. Mukhina, citada por Abreu et al (2018), sinaliza que o
conteúdo das brincadeiras de faz de conta das crianças mais velhas
pauta-se nas relações entre as pessoas e na incorporação de papéis
sociais, e as menores agem de acordo com o objeto que tem à mão.
Abreu et al (2018) alertam quanto o olhar para a brincadeira como
possibilidade de desenvolvimento das crianças, e não devem se
configurar como premiação no cotidiano da instituição educativa, ao
passo que se constitui como um direito de aprendizagem das crianças na
Educação Infantil (DISTRITO FEDERAL, 2018). A vivência na brincadeira
requer atenção e cuidado dos profissionais da educação pois, organizar
os espaços e tempos para brincadeira, brincar com a criança, registrar do
quê ela brinca e como brinca, respeitando o caráter autônomo da
brincadeira são aspectos fundamentais para a prática pedagógica das
professoras e professores que trabalham na Educação Infantil.

Para não concluir

Como iniciei o texto de forma intimista contando um pouco das


minhas trajetórias nos estudos da Teoria Histórico-Cultural, sobretudo

75
da obra de Vigotski, retomo a citação de Daniil Elkonin para finalizá-lo
também, pois ele cita que há uma ideia principal norteadora da
produção teórica de Vigotski e de fato há. Pensando nessa ideia
principal organizei esses apontamentos teóricos sobre educação,
cuidado e desenvolvimento de crianças de 0 a 5 anos.
A tal ideia principal de Vigotski irradia para a revolucionária
abordagem de que a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento
das crianças; para as atividades principais de cada etapa do
desenvolvimento; para as crises que reestruturam a organização
psíquica de cada criança e a lançam para um novo lugar de significação
do mundo; para as relações das crianças estabelecidas entre seus
pares e os adultos que as cercam; para a brincadeira de faz de conta
como campo de criação e simbolização; para as ações intencionais de
instrução para as crianças pequenas, mas sobretudo para a
singularidade das vivências de cada uma delas, como cada criança
atribui sentido às experiências vividas de modo único e irrepetível.
Nesse sentido, pensar uma Educação Infantil de orientação
dialética, histórica e cultural nos desafia a vê-la como uma ciência e que
requer de nós professoras e professores da infância uma postura
epistemológica ativa, com aprofundamento teórico e sobretudo, uma
postura dialógica com as crianças. Vale frisar que não há uma criança
universal, mas crianças geográfica, política e culturalmente situadas,
com distinções de classe, raça e gênero que se interseccionam.
E será nos diálogos estabelecidos com as crianças reais das
instituições educativas que conheceremos o mundo que as cercam e
como elas dão sentido a ele, de modo que ser professora e professor
de crianças contribuirá para a tarefa coletiva de humanização,
partilhando os saberes historicamente constituídos, e de preferência
com um colorido emocional (VIGOTSKI, 2010). Pois, dialeticamente,
todo ato educativo está impregnado de cuidado, entendido aqui como
afeto, e todo ato de cuidado é um ato educativo.

Referências

ABREU, Fabrício Santos Dias de, COSTA, Marina Teixeira Mendes de


Souza e SILVA, Daniela Nunes Henrique. É preciso transver o mundo:
imaginação e faz de conta a partir das contribuições da perspectiva

76
histórico-cultural. Revista Com Censo – Estudos Educacionais do
Distrito Federal. Brasília. Vol.5. nº2. Maio de 2018.
BARBOSA, Ivone Garcia; SOARES, Marcos Antônio. Educação estética
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Estação MIR, Arquivos Digitais, 2020.

78
4.
Apropriação de conceitos matemáticos e científicos
na Educação Infantil

Maria Auristela Barbosa Alves de Miranda

Introdução

O título dessa reflexão é, na verdade, um alerta para a


necessidade metodológica de colocar uma lupa sobre aspectos
costumeiramente deixados de lado na primeira etapa da Educação
Básica.
Com frequência discute-se sobre aspectos linguísticos e de
apropriação da língua materna; sobre alfabetizar ou não nessa etapa;
até onde ir, e como fazê-lo, na apresentação do sistema linguístico, na
apropriação da leitura e da escrita, mas pouco nos atemos às ciências
e aos saberes matemáticos.
Todavia, entendemos, à luz da Teoria Histórico-Cultural, que a
criança é um sujeito não fragmentado, não divisível. Ao mesmo tempo
em que desenvolve a emoção, os afetos, aspectos cognitivos,
motores, atencionais e volitivos também são mobilizados. Assim
como, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular – BNCC
(BRASIL, 2017), as crianças na escola da infância se apropriam da
cultura humana a partir de campos de experiências, que são inter-
relacionados.
Dessa forma, analisamos neste artigo, em específico, a
apropriação de conceitos matemáticos e científicos, que estão direta
e claramente relacionados ao campo de experiências Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações, embora também se façam
muito presentes no campo Traços, sons, cores e formas, assim como
em O eu, o outro e o nós. Ainda identificamos esses saberes nos
demais campos: Escuta, fala, pensamento e imaginação e Corpo,
gestos e movimentos.

79
Portanto, buscamos essas relações no sentido de não fragmentar
o ser humano, nem o patrimônio cultural da humanidade, nem as
experiências na escola da infância.

O currículo da Educação Infantil organizado em campos de


experiências

Ainda causa estranheza a muitos a ideia de um currículo para a


Educação Infantil. Isso porque, via de regra, o currículo é entendido
como um conjunto ou lista de conteúdos agrupados em disciplinas dos
quais os estudantes têm que dar conta no percurso de um bimestre,
trimestre, semestre e ano letivo. E isso, definitivamente, não se aplica
à Educação Infantil.
Também porque a Educação Infantil, como primeira etapa da
Educação Básica, é muito recente. Apenas na Constituição de 1988
(BRASIL, 1988) a educação foi entendida como direito de todos – o que
inclui os bebês e as crianças pequenas. Passaram-se ainda oito anos
para que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB-EN
9394/96 (BRASIL, 1996), estabelecesse a Educação Infantil como
primeira etapa da Educação Básica. Antes disso, os bebês e crianças
bem pequenas (zero a 03 anos e 11 meses) eram assunto da assistência
social.
Como as mudanças não se materializam por decreto, as unidades
da Federação foram se organizando cada uma ao seu tempo. No caso
do Distrito Federal, somente em 2011 a Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal – SEEDF tomou para si a responsabilidade
da Educação dos bebês e crianças bem pequenas.
E qual é a diferença? Quando se pensa na atenção aos direitos da
primeira infância (zero a 06 anos de idade), é preciso ter em mente que
se trata de um assunto interdisciplinar. Diz o ditado africano que “é
preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” e isso é verdade.
É necessário a ação da rede de educação, da saúde, da assistência
social, da justiça, da infraestrutura. Mas cada um tem um papel
específico e de colaboração nesse processo. Então, compete à
educação educar.
É bom ainda lembrar que a referida LDB – EN (BRASIL, 1996)
trouxe o termo Educação Infantil e ainda hoje ouvimos, por exemplo,
na imprensa, as pessoas utilizarem o termo ensino infantil. Sabemos

80
que as palavras são carregadas de sentidos e, sim, faz muita diferença
o emprego deste ou daquele termo. Não se trata de ensino, porque a
lógica da Educação Infantil não se encerra na transmissão de
conhecimentos nem no desenvolvimento cognitivo. É educação
porque envolve a apropriação das práticas do cotidiano, do patrimônio
cultural – artístico, científico, filosófico, tecnológico – da humanidade,
com fins a se humanizar e não a ficar inteligente.
A definição de currículo para a Educação Infantil encontra-se nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI
(BRASIL, 2010, p. 12), como um “conjunto de práticas que buscam
articular as experiências e os saberes das crianças com os
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,
ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o
desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos”. Portanto, a
Educação Infantil, por ser uma etapa – a primeira – da Educação Básica,
tem um currículo, mas que não se organiza em conteúdos, disciplinas
nem áreas do conhecimento.
A BNCC (BRASIL, 2017) reafirmou essa ideia de currículo e
normatizou: o currículo da Educação Infantil se organiza em campos
de experiências. Não se trata, pois, de seguir com práticas que se
apoiam e imitam as do Ensino Fundamental, mas “compreender a
prática pedagógica como resultante de aprendizagens significativas
não só para as crianças, mas também para o professor” (BRASIL, 2018,
p. 11).
Da mesma forma, o Currículo em Movimento da Educação Infantil
(DISTRITO FEDERAL, 2018, p. 61) adotou essa ideia, no sentido de
assegurar que, “ao realizar atividades, desenvolver projetos, vivenciar
experiências nos âmbitos de formação pessoal e social e
conhecimento de mundo, e ao adotar as múltiplas linguagens
expressas pelos campos de experiências, a criança tenha o direito de
aprender”.
Para a Teoria Histórico-Cultural, a atividade pedagógica é sempre
colaborativa. O protagonismo é triplo: do sujeito que aprende, do
professor que propõe atividades e experiências planejadas com
intencionalidade de apropriação do patrimônio cultural e da própria
cultura, elemento a ser apropriado. Os três elementos estão em
relações dinâmicas, ativas e colaborativas.

81
Nessa teoria, cultura é entendida como o conjunto das produções
humanas, ou seja, “uma multiplicidade de coisas diferentes que têm
em comum o fato de serem constituídas dos dois componentes que
caracterizam as produções humanas: a materialidade e a significação”
(PINO, 2005, p. 92).
Dessa forma, é direito da criança apropriar-se da cultura humana.
Mas o faz de uma forma diferente daquilo que se convencionou – e
que tem sido questionada até mesmo em razão das avaliações de larga
escala – como modelo de escola: a transmissão de conhecimentos por
meio de aulas expositivas, em que um sujeito sabe e ensina e os outros
sujeitos aprendem. Na Educação Infantil, aprende-se por meio das
experiências e estas ocorrem nas interações e brincadeiras.
Mukhina (1996, p. 266), teórica da Educação Infantil na
perspectiva Histórico-Cultural, também defende que a criança aprende
pela experiência, não pela explanação: “O pré-escolar recorre à
‘experiência’ para compreender os problemas que lhe interessam e
extrai conclusões”.
Essas experiências, portanto, se destinam não a ensinar à criança
o que o professor sabe, mas a, colaborativamente, favorecer a
apropriação da cultura humana pela criança e também pelo professor,
pois nessa perspectiva, o professor tem a humildade de reconhecer
que não sabe tudo; ele aprende, muitas vezes, quando pesquisa junto
com a criança. São saberes que fazem sentido para ambos, não apenas
para o professor.
E mais, essas experiências são organizadas em campos, não são
isoladas, mas – assim como tudo na Teoria Histórico-Cultural – estão
em relação umas com as outras. Esses campos são: O eu, o outro e o
nós, Corpo, gestos e movimentos, Traços, sons, cores e formas, Escuta,
fala, pensamento e imaginação e Espaços, tempos, quantidades,
relações e transformações. Esses cinco campos são engendrados a
partir dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças:
conhecer-se, conviver, brincar, explorar, participar e expressar-se, os
quais, emergem dos princípios éticos, estéticos e políticos desenhados
nas DCNEI (BRASIL, 2010).
Vamos agora nos deter nas experiências organizadas com vistas
à apropriação das ciências e matemáticas, que, lembramos, não são
vividas de maneira estanque, isoladas dos demais saberes produzidos
pela humanidade.

82
A matemática está em tudo

A criança apreende o mundo a partir de seu corpo. E este tem dois


lados: um direito e um esquerdo, dois braços, duas pernas, duas mãos;
em cada mão tem cinco dedos. Alguns órgãos são unitários: uma boca,
um nariz, um umbigo; tem órgãos internos (do lado de dentro) e
órgãos externos (do lado de fora).
Percebe, desde muito cedo, que as pessoas se interessam pela
idade, estatura, peso, temperatura, endereço, número de telefone. Ao
brincar, certos conceitos matemáticos também são importantes:
amarelinha, esconde-esconde, boliche, jogos de cartas, futebol (ou
qualquer outro jogo que marque pontos) e tantas outras brincadeiras.
Dessa forma, é preciso “assumir a matemática como produto da
atividade humana que se constitui no desenvolvimento da solução de
problemas criados nas interações que produzem o modo humano de
viver socialmente num determinado tempo e contexto” (MOURA, s/d,
p. 1). Entender a matemática como fundamental para a solução de
problemas não significa apenas que ela se presta a favorecer a
ultrapassagem de situações difíceis, mas a mediar as atividades do
cotidiano.
O Currículo em Movimento da SEEDF (DISTRITO FEDERAL, 2018)
organizou-se de acordo com a BNCC (BRASIL, 2017), ou seja, em
campos de experiências, mas não descartou a forma anterior de
organização (DISTRITO FEDERAL, 2014), que eram as sete linguagens:
cuidado consigo e com o outro; linguagem corporal; matemática; oral
e escrita; artística; interações com a natureza e a sociedade, e
linguagem digital. Essas linguagens foram organizadas nos campos de
experiências, todavia não é possível – nem coerente – dizer que cada
uma dessas linguagens está em um campo específico, ao contrário, em
um mesmo campo nos expressamos em diversas linguagens.
Assim, pensar nas apropriações matemáticas e científicas nos
remete de imediato ao campo Espaços, tempos, quantidades, relações
e transformações, no entanto, os conceitos matemáticos se
manifestam também nos demais campos de experiências (BRASIL,
2017). Buscando uma forma didática de apresentar e discutir a questão,
vamos focar no referido campo, sem contudo esquecer os demais. Até
porque uma mesma experiência traz em si vivências e evoca ou
engendra conceitos de diversos campos.

83
Autores da Teoria Histórico-Cultural (CATANANTE; ARAÚJO, 2014;
MOURA, s/d), defendem que o surgimento da matemática deu-se
como resposta a necessidades humanas e é assim que devemos
propor para as crianças, desde a primeira infância, experiências que
tragam respostas – e mais perguntas – ao seu cotidiano, que
possibilitem “observar regularidades e permanências, diversidades e
mudanças na natureza e na vida social; a formular noções de espaço e
de tempo; e a fazer aproximações em torno da ideia de causalidade e
transformação” (BRASIL, 2018, p. 87).
Também as DCNEI (BRASIL, 2010) propõem que o currículo da
Educação Infantil garanta experiências, em contextos significativos,
em que as crianças estabeleçam relações quantitativas, de medidas,
formas e orientações espaço-temporais. Temos afirmado que, para a
Teoria Histórico-Cultural, os seres humanos se humanizam a partir da
educação e as instituições coletivas têm um papel primordial nesse
processo. Convém, pois, entender que a apropriação de conceitos
matemáticos, à luz dessa teoria, vincula-se à ideia de educação como
prática humanizadora.
Não se trata de aprender sobre formas geométricas, cores,
números de maneira artificial, como reflexo ou imitação das práticas
(questionáveis) do Ensino Fundamental, mas de lançar mão desses
conceitos na vida cotidiana. Que sentido tem para a criança bem
pequena os números e as formas geométricas como artigo de
decoração da sala de referência? Certamente, esses conceitos são
aprendidos nas interações e brincadeiras. Por exemplo, quando brinca
de amarelinha e precisa pôr o marcador no número ou forma
geométrica correspondente; quando precisa contar até o número
estipulado até que possa procurar os colegas companheiros de
brincadeira de esconde-esconde; quando precisa da tinta verde que
está na mesa ao lado e a pede emprestada.
A esse respeito, matemática e arte têm muito em comum. No
filme Donald no País da Matemágica (1959), Donald e sua equipe
mostram as relações da matemática com a natureza, a música, a
arquitetura e os jogos. Não abordaremos esses aspectos, mas, no
tocante à literatura infantil, comumente autores escrevem obras com
a intencionalidade de apresentar conteúdos matemáticos aos
pequenos.

84
Vale a nota de que, embora a literatura (enquanto ficcional) não
se preste ao papel direto de instrução, pois isso compete aos livros
didáticos ou paradidáticos, não impede que os professores planejem
intervenções pedagógicas com apoio nas obras literárias. Cabe,
todavia, o alerta de que, ao escolher a obra, essa seja de qualidade no
tocante à história, ao projeto gráfico, às ilustrações. Não precisa, nem
deve, ter como foco os conceitos matemáticos, mas ao contrário, que
sejam um pano de fundo que sustentem o roteiro.
De acordo com Krutetsky (1991), são características importantes
para as aprendizagens matemáticas a percepção, a memória, o
pensamento e a imaginação, chamadas por Vigotski de funções
psicológicas superiores ou culturais. Novamente alertamos, não se
trata de estudar os conceitos matemáticos tendo com finalidade sua
memorização, mas o desenvolvimento integral da criança.
Para Vigotski (2018b), as funções psicológicas culturais funcionam
em sistema, em que há um momento de preparação, um momento em
que cada uma está no cerne do desenvolvimento e, depois, um momento
de aperfeiçoamento. Assim, primeiro se desenvolve a percepção, depois
a memória, depois o pensamento. Todavia, não é um desenvolvimento
linear, dado que se trata de um sistema. As aprendizagens precisam estar
a favor do desenvolvimento desse sistema.
Os processos educativos que colaboram para o desenvolvimento
do sistema das funções psicológicas superiores são aqueles que são
propostos de acordo com a zona de desenvolvimento proximal da
criança. Ou seja, experiências desafiadoras, uma vez que a zona de
desenvolvimento proximal é exatamente aquilo que a criança não
consegue ainda fazer sozinha, mas o faz com ajuda. E que a criança
produza sentido.
Dessa forma, convém superar práticas que não condizem com a
Educação Infantil, e compartilhar com as crianças nessa etapa da
educação experiências em que elas se sintam desafiadas a medir,
contar, calcular, jogar, localizar, criar, imaginar e explicar.

Um mundo explicado pela ciência

Conforme enfatizamos, nossa organização neste capítulo se faz


de forma a que, didaticamente, tratemos de cada aspecto a que se
refere a disciplina de Apropriação de conceitos matemáticos e

85
científicos na Educação Infantil. Todavia, essa apropriação não se faz
em separado, mas em experiências comuns.
Assim como destacamos acerca da apropriação dos conceitos
matemáticos, o mesmo se aplica aos conceitos científicos: não
caracteriza o currículo da Educação Infantil uma lista de conteúdos que
os bebês e crianças tenham de aprender no campo das ciências físicas
e naturais, mas experiências com esse campo, que sim, cabem
experimentos, mas não apenas isso. Ainda, lembrar que as
experiências são vividas no cotidiano, em harmonia e em conjunto com
outros campos, e não exclusivamente o científico.
As DCNEI (BRASIL, 2010, p. 26), defendem experiências que
“incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamento, o
questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em
relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza”. Mais do que
qualquer outro, o objetivo central é apresentar a cultura humana às
crianças, dialogar com elas a respeito e instigá-las à curiosidade, a fazer
perguntas, a desenvolver o pensamento crítico.
A Teoria Histórico-Cultural é uma teoria da educação que se firma
na historicidade, na materialidade e na crítica. Tem como objetivo a
emancipação humana e não a obediência, o pensamento crítico, e não
a aceitação da história como algo linear e imutável em que os homens
não podem atuar porque são fantoches levados ao sabor dos séculos.
Portanto, a defesa é por uma educação que promova o
desenvolvimento integral, e não apenas do aspecto intelectual. As
experiências vividas na escola da infância precisam favorecer o
desenvolvimento da percepção, da memória, do pensamento, das
emoções, da vontade, da imaginação, da criação, do ser humano por
inteiro.
De acordo com Arce, Silva e Varotto (2011), as crianças pequenas
têm direito aos saberes da astronomia, biologia, química, geologia,
meteorologia, física. Elas têm interesse por descobrir o mundo ao seu
redor, a capacidade de investigar a vida e o mundo. Além disso, a
apropriação de conceitos científicos desenvolve um papel vital no
desenvolvimento da imaginação, conduzindo a processos de criação,
tão relevantes para a Teoria Histórico-Cultural.
Vigotski (2018a) defende a importância da imaginação como o
elemento que está na base de toda atividade criadora: artística,
científica, técnica. Apresenta, então, dois tipos principais da atividade

86
criadora: a primeira, denominada de atividade reprodutiva, ligada à
memória, que consiste em reproduzir ou repetir algo que já foi visto ou
vivido; a segunda, chamada de combinatória ou criadora, ligada à
imaginação, que consiste em criar algo que não foi visto nem vivido.
Esse autor ainda reforça a ideia de que, mesmo na atividade
reprodutiva, o cérebro “combina e reelabora, de forma criadora,
elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo
comportamento” (VIGOTSKI, 2018a, p. 15).
Fica, pois, evidente, a necessidade de experiências diversificadas
a fim de munir a criança de possibilidades de memória e imaginação
para exercer a atividade criadora. Essas experiências precisam se dar
por meio das brincadeiras e interações no cotidiano da escola da
infância. Costumeiramente se diz que a criança brinca porque tem
imaginação, mas para a Teoria Histórico-Cultural é o inverso: a criança
desenvolve a imaginação porque brinca (ELKONIN, 2009). Para
imaginar ela precisa ter experiências com a literatura infantil, com o
cinema, com a música, com a dança, com a matemática, com as
ciências, com os esportes, com a tecnologia.
Convém fomentar o hábito da experimentação, da indagação, do
levantamento de hipóteses, sem contudo deixar que as crianças
tomem como verdade aquilo que se passa pela sua imaginação. É
importante fomentar as experiências de questionar, para que as
crianças não se contentem com o que lhes dizem, não esperem as
respostas sobre o mundo à sua volta, mas desenvolvam uma postura
investigativa. Que não se fiem em respostas mágicas, mas ao contrário
busquem o que diz a ciência e assim não sejam ludibriadas.
De acordo com Mukhina (1996, p. 265), “sobre a base de um
pensamento prático forma-se o pensamento imaginativo”. Por
exemplo, pela inteligência imaginativa, a criança se torna capaz de
opinar se um objeto jogado na água flutua ou afunda, o que em alguns
casos acertará e em outros casos não. Somente quando se apropriar
do conceito do peso específico do corpo e do líquido que o suporta, e
de suas relações, acertará sempre.
No tocante ao uso da literatura, também há uma gama imensa de
livros ficcionais e não ficcionais que abordam temas relacionados às
ciências físicas, naturais e sociais. Cabe, portanto, reiterar o alerta. A
seleção do material para ofertar às crianças precisa ser atenta e
criteriosa, pois na Educação Infantil não se aplica o uso de livros

87
didáticos. Dessa forma, é preciso disponibilizar para os bebês e às
crianças livros literários, de boa qualidade, que respeitem a inteligência
e protagonismo infantil e tragam temas relacionados às ciências,
química, física, história, sociologia, biologia, astronomia, geografia, e
também livros não ficcionais (também não didáticos), como atlas,
mapas, manuais ilustrados, acessíveis às crianças desde a primeiríssima
infância.
Importante ainda tocar no aspecto de que esses materiais não se
destinam a ser usados pelos professores de crianças para dar aulas,
mas para que as crianças tenham acesso, despertem o interesse,
pesquisem, perguntem e, pelas interações mediadas por esses
materiais, apropriem-se da cultura humana.
Portanto, fica evidente que os campos de experiências são, de
fato, interligados. Ao pensar em apropriação de conceitos
matemáticos e científicos, remetemo-nos ao campo Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações, em interação com Traços,
sons, cores e formas, Escuta, fala, pensamento e imaginação, O eu, o
outro e o nós e Corpo, gestos e movimentos. Eis o currículo da escola
da infância, integrado para proporcionar o desenvolvimento integral
das crianças na primeira infância.

A título de síntese

Para a Teoria Histórico-Cultural, os filhos dos seres humanos não


nascem humanos, mas com o potencial para tal. Isso porque há duas
linhas do desenvolvimento: a natural (biológica) e a cultural (social e
histórica). De tal sorte que as qualidades humanas não são dadas pela
natureza, mas desenvolvidas nas relações de colaboração com outros
seres humanos com vistas à apropriação da cultura humana.
Vigotski e seus colaboradores atribuem à escola um papel muito
importante nesse processo de conferir aos mais jovens membros da
sociedade as marcas do humano (VIGOTSKI; LURIA; LEONTIEV, 2014).
É preciso, pois, que a escola em geral e a escola da infância em
particular, favoreça a apropriação do patrimônio cultural da
humanidade pelos bebês e crianças. Desse patrimônio faz parte tudo
o que foi produzido e sistematizado pelos seres humanos no curso da
história: filosofia, artes, tecnologia, esportes, artesanato, costumes,
tradições.

88
Apropriar-se é permitir que aquilo que foi aprendido faça parte de
nós, da nossa constituição. Assim, aprendemos arte, filosofia,
matemática, ciências, não para sermos mais inteligentes ou
considerados “gênios”, mas para que os saberes produzidos e
sistematizados no curso da história humana façam parte de nós.
De acordo com Moura (s/d), é papel da escola, e nós
acrescentamos: da escola da infância também, ofertar condições para
que os novos membros do gênero humano usufruam dos bens
culturais já produzidos. E mais, não se trata de apenas consumir o
conhecimento já produzido, mas, entendendo que a história é
dialética, feita em meio a contradições, a avanços e retrocessos, e que,
“a cada momento a sociedade produz em sua dinâmica, novos
problemas e novas soluções” (MOURA, s/d, p. 7), instrumentalizar as
crianças para que aperfeiçoem as soluções já inventadas, e criem
outras soluções para as necessidades atuais.
É preciso, pois, fomentar a capacidade de empregar aquilo que se
aprende, ou apropria, no cotidiano. Não ser um conhecimento apenas
intelectual, mas que, segundo Vigotski (2010), ascenda ao concreto,
isto é, parte do vivido e observado é estudado teoricamente e retorna
ao cotidiano, à vivência, enriquecido pelos estudos.
Concluímos, então, este capítulo, com um convite a
materializarmos o currículo da escola da infância desenhado nas DCNEI
(BRASIL, 2010), ou seja, como um conjunto de práticas que conjugam
os saberes do cotidiano, aqueles que as crianças trazem do seu dia a
dia, com o patrimônio cultural da humanidade, que é seu direito
acessar. E que essa apropriação se realize de acordo com as
especificidades da infância, por meio das interações e brincadeiras,
tendo sempre em foco os direitos das crianças: conhecer-se, conviver,
brincar, explorar, expressar-se e participar.
Que esses direitos sejam vividos na escola da infância por meio
dos campos de experiências, de modo que se evidencie o
desenvolvimento integral e não fragmentado das crianças, assim
como sua forma de conhecer e agir sobre o mundo. Reafirmemos,
pois, nosso compromisso e fidelidade para com as crianças,
assegurando-lhes no cotidiano da escola da infância aprendizagens
promotoras de desenvolvimento das qualidades humanas.

89
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91
92
5.
Planejamento, didática e avaliação na Educação Infantil na
perspectiva da Teoria Histórico-Cultural

Maria do Socorro Martins Lima

“Ser criança é dureza-


Todo mundo manda em mim-
Se pergunto o motivo,
Me respondem “porque sim”.
Isso é falta de respeito,
“Porque sim” não é resposta,
Atitude autoritária
Coisa que ninguém gosta!
Adulto deve explicar
Pra criança compreender
Esses “podes” e “não podes”,
Pra aceitar sem se ofender!
Criança exige carinho,
E sim! Consideração!
Criança é gente, é pessoa,
Não bicho de estimação!”
Ser criança
Tatiana Belinky

Introdução

O público da Educação Infantil, foco de nossos estudos, tem


características e demandas educacionais específicas, não se podendo
abrir mão de considerar os alunos reais, suas necessidades, e o maior
número possível de questões que o envolvem.
Assim, o planejamento das ações didáticas a serem desenvolvidas
nos espaços educativos e a execução destas ações devem ser
pensados tendo como primeira referência o conhecimento acerca da
criança atendida pela Educação Infantil. Devem ser consideradas as
suas características, o espaço social que a rodeia e outras informações
que possam favorecer o desenvolvimento de um processo pedagógico
capaz de contribuir para o seu caráter educativo.

93
A Educação Infantil, a partir da Constituição Federal de 1988,
supera o caráter de assistencialismo e ganha visibilidade educacional
e, novamente, ganha lugar na educação com o advento da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 9.394/96, quando foi
incluída como primeira etapa da Educação Básica. E de acordo com as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil – DCNEI (BRASIL,
2010) ela assume as ações de cuidado e educação, no entanto sem
assumir características e práticas da escola de Ensino Fundamental.
Mas, conforme Miranda (2020) explica, trata-se de:

possibilitar um conjunto de práticas articuladoras das experiências e saberes das


crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural,
artístico, ambiental, científico e tecnológico, buscando a promoção do
desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos e onze meses de idade (pp.
158-159).

A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) referenda as


ideias de cuidado e educação, presentes na DCNEI (BRASIL, 2010), e
define como objetivo da Educação Infantil, ampliar o universo de
experiências e conhecimentos das crianças, de forma complementar à
educação familiar. Ao mesmo tempo, reafirma as interações e a
brincadeira como eixos estruturantes das práticas pedagógicas no
cotidiano das instituições de Educação Infantil (BRASIL, 2017).
Nesta direção, os professores da Educação Infantil,
comprometidos com o caráter educacional, enquanto responsáveis
diretos pelo planejamento, execução e avaliação dos processos
educativos que se desenvolvem nas salas de atividades, precisam
contar com formação docente que funcione como sua aliada. Diante
disso, iniciamos nosso texto pela apresentação de aspectos teóricos
dos processos de planejamento, didática e avaliação.
Além disso, torna-se necessário também instrumentalizar
professoras e professores e a instituição de educação em que a criança
está inserida, com conhecimentos a respeito do desenvolvimento
dessa etapa da promoção humana, conforme Tacca (2008) ressalta:

Nas instituições que se organizam para este fim, há a preocupação em se


explicitar as escolhas e opções realizadas, o que aparece em um currículo como
o elenco de atividades a serem praticadas para que determinadas aprendizagens
sejam colocadas à disposição do cidadão, em diferentes momentos de sua vida.
Deve ficar claro que essas escolhas não são feitas aleatoriamente, mas reflete de

94
forma contundente uma necessidade social que está culturalmente delineada.
(p. 148).

Uma formação docente que assegure clareza em relação a estes


aspectos, com certeza, favorecerá o atendimento ao caráter
educacional assumido pela Educação Infantil, embora lembrando que,
nesse segmento, o foco está em seu processo de socialização, e não
no processo de ensino.
O presente texto tem o objetivo de oferecer as ideias gerais do
conteúdo a ser estudado na disciplina Planejamento, Didática e
Avaliação na Educação Infantil, procurando satisfazer as necessidades
e curiosidades dos alunos, servir como um registro para orientação de
seus estudos durante o curso, para auxiliá-los em sua prática, através
dos conceitos de planejamento, didática e avaliação e das ideias
centrais da Teoria histórico-cultural, bem como servir de material para
consultas posteriores e como fonte de indicações bibliográfica para
estudos posteriores, caso assim o deseje.
Iniciaremos nosso texto tratando dos conceitos e especificidades
dos processos de planejamento, de didática e de avaliação, temas de
nossa disciplina. Em seguida, passamos a uma breve apresentação,
revisada, dos princípios da Teoria Histórico-Cultural, considerando que
já foram explorados em capítulos anteriores desta obra.
Mais adiante, apresentaremos informações relevantes
constantes dos documentos legais que devem ser considerados nas
ações de planejamento, didática e avaliação para a docência na
Educação Infantil. Então, passaremos a explorar como é possível
pensar, organizar e desenvolver o planejamento, a didática e a
avaliação na Educação Infantil, com amparo na Teoria Histórico-
Cultural e nos documentos legais que a orientam.

Planejamento: aspectos teóricos

Qualquer ação pedagógica demanda organização, e o processo


de ensino é a base para o quê se deseja alcançar. O suporte está nas
concepções de mundo, de homem, de educação, de ensino, de
métodos e de avaliação presentes em cada concepção pedagógica
vigente nos diferentes momentos históricos.

95
Por meio do planejamento o homem “organiza e disciplina a sua
ação, partindo sempre para realizações mais complexas e
requintadas” (TURRA, ENRICONE, SANT’ANNA &, ANDRE 1992, p. 12).
Dror (1968, citado por TURRA, ENRICONE, SANT’ANNA &, ANDRE
1992) estabelece que o planejamento é o “processo que consiste em
preparar um conjunto de decisões tendo em vista agir,
posteriormente, para atingir determinados objetivos” (p. 13). Parra
(1972, citado por TURRA, ENRICONE, SANT’ANNA &, ANDRE 1992) o
define como sendo “uma tomada de decisões dentre possíveis
alternativas, visando atingir os resultados previstos de forma mais
eficiente e econômica” (p. 14).
Em Libâneo (2015), encontramos que o planejamento pedagógico
consiste em um “processo de racionalização, organização e
coordenação da ação docente, articulando a atividade escolar e a
problemática do contexto social” (p. 222). É uma atividade consciente,
de previsão das ações docentes, com base em opções político-
pedagógicas, tendo como referência situações didáticas concretas,
que envolvem a escola, os professores, os alunos, os pais, a
comunidade, que estão ligados ao processo de ensino.
Diante destas definições compreendemos que o planejamento
consiste em uma reflexão acerca de opções e ações, sobre a direção
que devemos dar ao trabalho pedagógico. Seus elementos essenciais
são objetivos, conteúdos e métodos, que por sua vez, terão
repercussões sociais e significado político. Se assim não for feito pela
professora, pelo professor, ele ou ela terminará assumindo o rumo dos
interesses presentes na sociedade de um modo geral.
Encontramos coincidência entre estudiosos em relação à ideia de
que o planejamento se refere à previsão da ação que se deseja
desenvolver, exigindo a racionalização dos meios a serem empregados
para atingir determinado objetivo. É pensar a respeito do processo de
mudança gradativa, de uma situação atual a outra, que se deseja
atingir e que deve ser formulado em termos de objetivos.
Ainda de acordo com Libâneo (2015), o ato de planejar não se
restringe ao preenchimento de formulários para controle
administrativo do trabalho do professor. É antes de tudo, uma
atividade consciente, uma previsão de ações docentes, baseadas em
opções político-pedagógicas, tendo por base situações didáticas

96
concretas que envolvem considerar questões econômicas, políticas e
culturais relativas a alunos, professores, família e comunidade.
Estas ações devem ser formalizadas em um plano de ensino, que
consiste em um guia de orientação ao professor onde “são
estabelecidas as diretrizes e os meios que serão utilizados para a
realização do trabalho docente” (LIBÂNEO, 2015, p. 222). Sua função é
orientar a prática, partindo de suas próprias exigências.
Baffi (2002), também declara que o passo seguinte deve ser a
elaboração do Plano de Ensino, documento utilizado para o registro
das decisões a respeito das indagações: o quê, como, quando, com quê
e com quem fazer. Esses são os processos que devem ser levantados
acerca do que é necessário realizar para o alcance dos objetivos
propostos na fase inicial do Planejamento. Respondidas as perguntas,
e a partir do percurso delineado, passa-se à etapa de decisões a
respeito do que deve ser feito para a realização da ação. Após a
execução das ações, devem ser descritas as realizações obtidas como
resultado das ações planejadas.
Também há um planejamento mais amplo do que o de ensino, o
educacional, composto pelas ações mais amplas que a professora e o
professor precisam ter como base para a elaboração do planejamento
do processo pedagógico sob sua responsabilidade. São as
determinações do sistema educacional para os rumos que a educação
deve seguir. Ele é compreendido como:

Um processo contínuo que se preocupa com o ‘para onde ir’ e quais as maneiras
adequadas para chegar lá, tendo em vista a situação presente e possibilidades
futuras, para que o desenvolvimento da educação atenda tanto as necessidades
do desenvolvimento da sociedade, quanto as do indivíduo” (COARACY, 1972,
citado por TURRA, ENRICONE, SANT’ANNA & ANDRÉ, 1992, p. 14).

O planejamento educacional é visto como um processo em que se


definem prioridades para os diferentes níveis de ensino, considerando
os problemas da educação e o que se deseja para o futuro do país,
cujos objetivos consistem em:

[...] relacionar o desenvolvimento do sistema educacional com o


desenvolvimento econômico, social, político e cultural do país, em geral, e de
cada comunidade em particular; estabelecer as condições necessárias para o
aperfeiçoamento dos fatores que influem diretamente sobre a eficiência do
sistema educacional (estrutura, administração, financiamento, pessoal,
conteúdo, procedimentos e instrumentos); alcançar maior coerência interna na

97
determinação dos objetivos e nos meios mais adequados para atingi-los;
conciliar e aperfeiçoar a eficiência interna e externa do sistema (COROACY, 1972,
citado por TURRA, ENRICONE, SANT’ANNA & ANDRÉ, 1992, p. 15).

De posse destes fundamentos, destacamos a necessidade


também de conhecimento das bases legais e dos documentos
elaborados pelo sistema de ensino nas esferas federal e local, que
regulam e determinam as orientações para o segmento do sistema
educacional em questão.
Na Educação Infantil, por exemplo, destacam-se a necessidade de
conhecimento das Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil
(BRASIL, 2010), das orientações propostas na Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017), assim como, em Brasília por exemplo, do
Currículo em Movimento da Educação Infantil do Distrito Federal
(DISTRITO FEDERAL, 2018), pois o professor não pode pensar em
planejar sem partir daquilo que foi pensado, de modo mais amplo, para
este segmento da Educação Básica.

A didática

É a área da Pedagogia que nos orienta como estruturar o


processo de ensino, definindo-o, a partir do conteúdo, da
compatibilização dos meios, dos métodos, do conhecimento das
características e necessidades das crianças sob a responsabilidade da
professora ou do professor de referência, no caso da Educação
Infantil. Na definição de Libâneo (2015):

A disciplina que estuda os objetivos, os conteúdos, os meios e as condições do


processo de ensino tendo em vista finalidades educacionais, que são sempre
sociais (p. 14). [...] A Didática é o principal ramo de estudos da Pedagogia. Ela
investiga os fundamentos, condições e modos de realização da instrução e do
ensino (p. 25).

Constitui-se como disciplina teórico-prática comprometida com a


organização da ação pedagógica que, com base nos conhecimentos
produzidos pela teoria, procura olhar para os desafios e demandas da
prática, apontando necessidades a serem consideradas, para propor o
percurso para fazer face aos desafios suscitados. É assim que “a
Didática se caracteriza como mediação entre as bases teórico-
científicas da educação escolar e a prática docente. Ela opera como

98
que uma ponte entre “o quê” e o “como” do processo pedagógico
escolar” (LIBÂNEO, 2015, p. 27).
Pimenta (2008, citado por FRANCO, 2012) distingue o papel da
Didática na imbricação dos saberes na/para a prática, conforme
descrito abaixo:

[...] entendemos que nas práticas docentes estão contidos elementos


extremamente importantes, tais como a problematização, a intencionalidade
para encontrar soluções, a experimentação metodológica, o enfrentamento de
situações de ensino complexas, as tentativas mais radicais, mais ricas e mais
sugestivas de uma didática inovadora, que ainda não está configurada
teoricamente. Esta vasta e complexa produção tende a ficar perdida, diluída ao
nível do senso comum (p. 106).

Desta forma, compreendemos que é a Didática quem faz a


tradução da teoria do ensino para a prática docente, auxiliando a
professora, o professor, responsável pela mediação entre aluno,
sociedade e entre as condições atuais da criança para sua inserção na
sociedade, “provendo as condições e os meios, conhecimentos,
métodos, organização do ensino que assegurem o encontro do aluno
com as matérias de estudo. Para isso, planeja, desenvolve suas aulas e
avalia o processo de ensino” (LIBÂNEO, 2015, p. 48).
Franco (2012) então alerta para a importância de o professor
compreender qual o sentido de sua prática, daquilo que ele faz, porque
o faz e para quem o faz! Acrescentamos um detalhe importante que
docentes devem ainda considerar, quando da organização e
estruturação das ações a serem desenvolvidas em sua prática: a
diversidade das crianças com as quais está trabalhando, sem pensar
em comparações, ou expectativas voltadas para a homogeneização
das crianças em suas ações, falas, emoções, etc.
Por sua vez, enfatizamos que as relações estabelecidas entre a
professora, ou o professor e a criança são dinâmicos, mas exigem um
grau de organização, de estruturação das diferentes partes dos
tempos em que se desenvolvem as atividades nas salas de referência,
que nos outros segmentos da Educação Básica, são chamadas de aula.
Ainda na opinião de Libâneo (2015), o processo de ensino deve ser
compreendido como “o conjunto de atividades organizadas do
professor e dos alunos, visando alcançar determinados resultados
tendo como ponto de partida o nível atual de conhecimentos,
experiências e de desenvolvimento mental dos alunos (p. 84). No caso

99
da Educação Infantil, o foco está na vivência de experiências e
brincadeiras.
Compreendemos que a contribuição mais importante da Didática
no segmento da Educação Infantil é precisamente ajudar a resolver a
contradição entre o mundo do adulto e o mundo da criança. É o apoio
para docentes identificarem as dificuldades enfrentadas pelos alunos
durante as experiências, e descobrirem procedimentos para que eles
próprios superem dificuldades e avancem em seu processo de
socialização.
À professora e ao professor cumpre a mediação entre a criança e
o mundo, a sociedade, pois é ela ou ele responsável por criar as
condições, os meios e a organização do processo pedagógico a
vivenciar com as crianças, formalizadas em seu plano de atividades. As
relações desenvolvidas entre professor, crianças e as atividades
desenvolvidas na jornada de experiências são dinâmicas, e requerem
estruturação dos momentos de desenvolvimento de sua ação
docente.

A avaliação

A palavra avaliação remete à ideia de refletir a respeito de


determinado processo realizado ou em andamento. Na educação
constitui-se como uma ação aliada do aperfeiçoamento do trabalho
pedagógico. E cumpre três funções, a pedagógico-didática, também
denominada formativa ou de acompanhamento, de diagnóstico e de
controle.
A função didático-pedagógica refere-se ao seu papel no
cumprimento dos objetivos gerais e específicos do ensino. Contribui
para a correção de falhas, permite o aprimoramento e o
aprofundamento de conhecimentos e habilidades.
Quando utilizada com a função de diagnóstico, serve para a
identificação das condições prévias dos alunos, em termos de
experiências, conhecimentos e habilidades que as crianças trazem
para a escola ou para aquela experiência educativa que está
vivenciando naquele momento. É chamada também de avaliação
iniciante na medida em que busca identificar o estado atual de
conhecimento das crianças em seu desenvolvimento, suas

100
necessidades para a partir daí, identificar que conteúdos e recursos
serão necessários para fazê-las avançarem.
A avaliação formativa ou de acompanhamento está voltada para
os resultados atingidos a cada momento do trabalho, a cada aula,
como condição para planejar as próximas intervenções, tendo como
norte o objetivo; ação pedagógica sequenciada, processual; o
professor tem que desafiar o aluno a alcançar um outro estágio de
desenvolvimento (PASQUALINI, 2010). Assume, assim, a função de
controle, de classificação, voltada para resultados e para a promoção.
Quando está relacionada à qualificação dos resultados escolares
por meio do emprego de instrumentos de mensuração, como provas
e testes, a avaliação cumpre a função de controle.
Vemos que a avaliação de processo, ao fornecer ao professor
informações relevantes sobre cada momento de seu trabalho, permite
o acompanhamento e a avaliação de seu trabalho, em lugar da
avaliação da criança. Desta forma, também se torna mais coerente
com o caráter de cuidado e socialização da Educação Infantil,
principalmente quando realizada a partir dos princípios da Teoria
Histórico Cultural em que compreendemos o sujeito em seu processo
de desenvolvimento não linear, que acontece em ciclos, com avanços
e retrocessos.
A Teoria Histórico Cultural traz à Educação Infantil a concepção
da criança em seu desenvolvimento integral, dinâmico e, portanto, não
admite um processo avaliativo com foco nos resultados mensuráveis,
no sentido geral que o termo enseja.
As DCNEI alertam que as instituições de educação infantil devem
“criar procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico
e para avaliação do desenvolvimento das crianças, sem objetivo de
seleção, promoção ou classificação” (BRASIL, 2010, p. 29).
Cabe destacar que a proposta de avaliação no Currículo em
Movimento da Educação Infantil do Distrito Federal fundamenta-se
nos princípios da Teoria Histórico-Cultural. Portanto, entende que ao
escutar as crianças “pode-se contribuir para torná-las cidadãs
responsáveis por meio da autorregulação e do automonitoramento
das próprias aprendizagens” (p. 53). As informações fornecidas pelas
crianças serão fundamentais na garantia do estreitamento e
fortalecimento dos vínculos entre crianças e adultos. O documento
afirma:

101
A visão educacional proposta neste Currículo entende que, ao dessilenciar as
crianças, escutando suas vozes, pode-se contribuir para torná-las cidadãs
responsáveis por meio da autorregulação e do automonitoramento das próprias
aprendizagens. Diante dessa perspectiva, compartilha-se do entendimento de
que o uso ético e encorajador dos dados emanados pela autoavaliação podem
garantir estreitamento e fortalecimento dos vínculos entre crianças e adultos
(DISTRITO FEDERAL, 2018, p. 55).

A avaliação das crianças, conforme previsto neste documento,


adquire um caráter de acompanhamento, no sentido de compreender
os processos, e não os produtos das atividades e, como citado
anteriormente, não deve assumir finalidades seletivas e
classificatórias, nem tampouco uma prática para avanços de estudos
para a promoção (DISTRITO FEDERAL, 2018). Estabelece, ainda, que
este acompanhamento aconteça:

por meio das brincadeiras e interações, os profissionais da educação


acompanham como as crianças recepcionam suas propostas e como se
apropriam do patrimônio cultural da humanidade, como se posicionam nas
relações sociais, como desenvolvem a criatividade, a imaginação, as
experimentações e vivências e o fazem não para atribuir notas ou atestar
fracassos ou avanços, mas para, de acordo com Vigotski (2012a), atuar na zona
de desenvolvimento iminente, a fim de colaborar com o desenvolvimento de
novas formações nas crianças (DISTRITO FEDERAL, 2018, p. 54).

A avaliação educacional, por sua vez, aparece neste documento


com o objetivo de assegurar a qualidade de atendimento às crianças
matriculadas na educação infantil, por meio do atendimento de
Indicadores de Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009), com
base nas dimensões abaixo relacionadas:

1) planejamento institucional; 2) multiplicidade de experiências e linguagens; 3)


interações; 4) promoção da saúde; 5) espaços, mobiliários e materiais; 6)
formação e condições de trabalho dos professores e demais profissionais da
educação; 7) cooperação e troca com as famílias e/ou responsáveis e
participação na rede de proteção social. (DISTRITO FEDERAL, 2014, p. 53).

O documento propõe a realização de avaliação periódica destes


aspectos como parâmetro para a busca de melhorias na oferta de
Educação Infantil.
A Teoria Histórico-Cultural trata do ser humano integral,
considerando-o situado em um contexto cultural, onde o

102
conhecimento é construído na interação sujeito-objeto, a partir de
ações socialmente mediadas. Desse modo oferece informações
relevantes que contribuem para a preparação da ação didática do
professor, em termos do planejamento, seleção de atividades a serem
desenvolvidas e sobre como pensar a avaliação na Educação Infantil.
Conceber estas atividades a partir da Teoria Histórico Cultural
demanda a compreensão de seus conceitos centrais, que
apresentamos a seguir.

Aspectos relevantes da Teoria Histórico-Cultural para a Educação


Infantil

Vigotski1 foi um dos principais responsáveis pelo


desenvolvimento da Teoria Histórico Cultural, na antiga União
Soviética, no início do Século XX. A preocupação central de seus
estudos foi a tentativa de compreender o psiquismo e explicar como
se dá o desenvolvimento humano.
A publicação das obras de Vigotski foi proibida na URSS por
aproximadamente 20 anos, entre os anos de 1936 e 1956, o que
dificultou a disseminação de suas ideias. Alguns de seus seguidores
mais próximos como, Leontiev, Luria, Elkonin e Davidov deram
continuidade a seus estudos, após sua morte precoce, no ano de 1934.
No Brasil, a difusão de suas obras demorou a acontecer, iniciando-se
com a publicação das obras Pensamento e Linguagem e Formação
Social da Mente, com tradução de língua inglesa, e chegou às nossas
mãos, subtraída de trechos em que estivessem evidenciadas ideias
pretensamente marxistas. O que, sem dúvida, comprometeu a
compreensão integral de suas ideias.
Duarte (1996), por exemplo, trata destas dificuldades de
compreensão e de interpretação da obra de Vigotski. Em sua opinião,
nota-se a interpretação escolanovista da obra de Vigotski quando a
importância da transmissão do saber historicamente acumulado pela
educação é deslocada a segundo plano. E também quando não se dá
ênfase ao papel da professora ou do professor na gestão das
interações entre sujeitos e entre estes e os objetos, o que compete ela

1 Adotamos, neste trabalho, a grafia Vigostski, conforme tem sido usado em


publicações recentes no Brasil (DUARTE, 2011). No entanto, nas Referências
Bibliográficas, manteremos a forma utilizada nas edições consultadas.

103
ou a ele, tendo em vista que é são os maiores conhecedores das
funções que estas interações devem adquirir no contexto educacional.
Ao denunciar a insustentabilidade desta leitura da obra de
Vigotski, Duarte (1996) destaca dois indicadores que se diferenciam
desta interpretação. O primeiro é a importância que os estudos de
Vigotski atribuiu à apropriação, pelo indivíduo, da experiência
histórico-social, dos conhecimentos produzidos historicamente e já
existentes, objetivamente, no mundo no qual o indivíduo vive. O
segundo consiste em que a Psicologia Histórico Cultural considera os
processos de aprendizagem, conscientemente dirigidos pelo
educador, como qualitativamente superiores aos processos
espontâneos de aprendizagem (DUARTE, 1996, p. 33).
As ideias centrais desenvolvidas nesta Teoria se voltam para a
explicação da atividade consciente do ser humano. Nessa concepção,
o desenvolvimento não se realiza de maneira linear, mas em saltos
qualitativos, na interação dialética entre os fatores biológicos e
culturais, em dois momentos diferentes. Inicialmente, ocorrem no
estágio interpsíquico, entre os indivíduos, quando agentes externos
fazem a mediação entre a criança e o meio sociocultural. Esses
processos são, de certa forma, levados para a área intrapsíquica por
meio de um processo ativo de internalização. Neste processo:

se quisermos acompanhar o desenvolvimento de qualquer particularidade das


crianças [...] teremos sempre que mostrar uma linha ondulada que segue
elevações, quedas e se move para cima, ou seja, se desenvolve em ciclos. O
tempo desse desenvolvimento não é uma constante. Períodos de elevação se
alternam com períodos de desaceleração, de retração. O desenvolvimento se
apresenta sob a forma de uma série de ciclos distintos, uma série de épocas
distintas, de períodos distintos, dentro dos quais o tempo e o conteúdo se
manifestam diferentemente. (VIGOTSKI, 2018, p. 23).

Essa teoria não nega o papel do biológico, mas entende que o


desenvolvimento se dá por meio de novas formações que vão se
complexificando e adquirindo outra qualidade. O desenvolvimento,
determinado pelas condições histórico-sociais do contexto que
envolve o sujeito, ocorre numa ação coletiva, onde “a influência de
cada elemento do meio dependerá não do que ele contém, mas da
relação que tem com a criança. O significado de um mesmo elemento
do meio será diferente dependendo de sua relação com a criança”
(VIGOTSKI, 2018, p. 46).

104
Essa relação se modifica por meio da atividade guia do
desenvolvimento da criança. Em cada degrau etário, sua participação
é diferente. Esta informação oferece à professora ou ao professor a
possibilidade de compreender a ação da criança nos diferentes
momentos da Educação Infantil. Em determinado momento, por
exemplo, ela escuta algo, mas ainda não é capaz de compreender; em
outro, passa a ser capaz de fazê-lo. Nesse caso, a relação que
estabelece com o meio tem outra qualidade, pois:

O meio exerce influência pela vivência da criança – dependendo de como ela


elaborou internamente sua relação com determinado momento. O meio define
o desenvolvimento da criança dependendo do grau de sentido que ela atribui a
ele. Chegamos à conclusão que o meio não pode ser analisado como um
ambiente imóvel, deve ser compreendido como mutável e dinâmico. Não é
apenas a criança que muda, mas também a sua relação com o meio, que começa
a influenciá-la de uma nova maneira (p. 83).

Os processos que constituem as linhas principais de


desenvolvimento em uma idade convertem-se em linhas acessórias na
fase seguinte e o oposto também é verdadeiro. O estado atual da
criança, em termos do período do desenvolvimento em que se
encontra, não tem caráter estático, é sempre um momento de um
processo mais amplo. As funções existem em unidade umas com as
outras, nenhuma função se desenvolve isoladamente. Cada função
tem seu período preferencial de desenvolvimento; as funções mais
importantes amadurecem antes. Assim:

a diferença entre certas idades consiste não simplesmente em que, no degrau


inferior, estejam menos desenvolvidas as especificidades que se apresentam
mais desenvolvidas nos degraus superiores. [...] em cada uma dessas etapas, a
criança se apresenta como um ser qualitativamente específico que vive e se
desenvolve segundo leis diferentes, próprias para cada idade (VIGOTSKI, 2018, p.
30).

A compreensão da dinâmica entre linhas centrais e acessórias de


desenvolvimento, revela para o educador, a sensibilidade de
determinados períodos do desenvolvimento a determinados tipos de
influência educativa (PASQUALINI, 2009). Por exemplo a respeito da
influência do meio podemos destacar que:

105
A influência de cada elemento do meio dependerá não do que ele contém, mas
da relação que tem com a criança. O significado de um mesmo elemento do meio
será diferente dependendo de sua relação com a criança. (p. 46) [...] Se gosta de
falar, de se comunicar com os que estão à sua volta, tem necessidade da fala, é
uma coisa. Se tem uma relação tensa com os que estão à sua volta, fecha-se e
cada palavra soa de forma desagradável, é outra coisa completamente diferente
(VIGOTSKI, 2018, p. 47).

O ser humano movimenta-se e se constitui no interior de um


sistema simbólico. Daí o grande interesse de Vigotski em estudar as
funções psicológicas superiores, particularmente o pensamento e a
linguagem, pois são elas que, em última instância, têm um papel
central na definição da forma como o homem é capaz de se constituir
e se comunicar utilizando signos.
O pensamento infantil, inicialmente guiado pela fala e por
modelos de comportamentos presentes no meio vai adquirindo,
gradativamente, maior independência em termos das interações
estabelecidas no “aqui e agora”, assumindo uma progressiva
capacidade de se autorregular. Mesmo que no contexto da criança não
estejam presentes modelos de comportamento, ainda assim ocorrerá
desenvolvimento, embora de modo primário e elementar, tendo em
vista que a presença desses modelos, funciona para ela, como fontes
de desenvolvimento.
Para Vigotski (2018), educação gera desenvolvimento, e não é
necessário que se espere que a criança atinja determinado estágio de
desenvolvimento para que a educação seja iniciada. Ele vê a educação,
a aprendizagem, como forças motrizes do desenvolvimento. Entre
aprendizagem e desenvolvimento existem relações complexas. O
aprendizado das crianças começa muito antes delas frequentarem a
escola. Aprendizado e desenvolvimento estão inter-relacionados
desde o primeiro dia de vida da criança.
Eidt e Tuleski (2007) declaram que “aprendizagem e o
desenvolvimento constituem uma unidade dialética, onde a
aprendizagem impulsionando o desenvolvimento, por sua vez gera
novas aprendizagens mais complexas, infinitamente” (p.7). Isso
significa que a aprendizagem é a força impulsionadora do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores no indivíduo.
Nesse contexto, o conceito de Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP) foi criado para designar a distância entre o que a
criança ainda não pode realizar sozinha, pois ainda não domina por si,

106
denominado desenvolvimento real, e aquilo que ela consegue realizar
com a ajuda de um “outro” mais experiente. Este é um conceito
pedagogicamente importante, que vai ter repercussões na prática
pedagógica. A ZDP constitui-se em um espaço fundamental, onde o
professor deve ter uma atuação atenta, cuidadosa, a partir da
observação daquilo que o aluno já consegue realizar e de suas
possibilidades para que, em conjunto, com pares mais experientes em
determinada habilidade ou conhecimento, possa ser desafiado e
avançar com a ajuda deles.
Entre estudiosos da obra de Vigotski são encontrados diferentes
termos para referir-se à Zona de Desenvolvimento Proximal. Por
exemplo, o termo Zona de Desenvolvimento Iminente é usado nas
traduções e estudos desenvolvidos por pesquisadores como Zoia
Prestes e Elizabeth Tunes.
Na obra Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem, de
Vigotski, Luria e Leontiev, tradução de Maria da Pena Villalobos, edição
de 2013, por sua vez, encontra-se a opção pelos termos, Nível de
Desenvolvimento Efetivo e Área de Desenvolvimento Potencial, como
se confere na transcrição da obra:

Recentemente, a atenção concentrou-se no fato de que quando se pretende


definir a efetiva relação entre processo de desenvolvimento e capacidade
potencial de aprendizagem, não podemos limitar-nos a um único nível de
desenvolvimento. Tem-se de determinar pelo menos dois níveis de
desenvolvimento de uma criança [...] Ao primeiro destes níveis chamamos nível
de desenvolvimento efetivo da criança. Entendemos por isso o nível de
desenvolvimento das funções psicointelectuais da criança que se conseguiu
como resultado de um específico processo de desenvolvimento já realizado. [...]
Neste momento, entram em jogo os conceitos fundamentais necessários para
avaliar o âmbito de desenvolvimento potencial (p. 111) [...] Portanto, o estado de
desenvolvimento mental da criança só pode ser determinado referindo-se pelo
menos a dois níveis: o nível de desenvolvimento afetivo e a área de
desenvolvimento potencial (VIGOTSKII 2014, p. 113)2.

O arranjo das condições que envolvem a aprendizagem é


relevante para a construção do conhecimento de forma progressiva e
consistente no contexto interativo da sala de aula, contribuindo para
que a criança se perceba como parte daquele grupo e merecedora do
cuidado e da atenção do adulto que o dirige.

2 O nome “Vigotskii” está grafado nesta referência, conforme constante da obra.

107
Com fundamentação nestas concepções, ao planejar seu trabalho
pedagógico, o professor tem condições de selecionar atividades e
organizar sua ação, de acordo com o período de desenvolvimento em
que ela ganhar maior relevância para este processo de
desenvolvimento da criança, considerando a relação que cada
elemento do meio terá com ela.
A seguir apresentaremos algumas considerações a respeito de
como podemos pensar o Planejamento, a Didática e a Avaliação,
quando assumimos a perspectiva da Teoria Histórico Cultural na
Educação Infantil.
O Planejamento, a Didática e a Avaliação são temas que precisam
ser estudados por professores da Educação Infantil, uma vez que se
constituem instrumentos para garantir a intencionalidade, a
organização das ações e a qualidade do trabalho pedagógico a ser
desenvolvido com as crianças.

O planejamento a partir da Teoria Histórico-Cultural

O planejamento, quando encarado como um aliado no momento


da organização da prática pedagógica, permitirá ao professor de
referência um tempo para pensar, tomar decisões, escolher atividades,
formular um plano sobre como pretende desenvolver seu trabalho em
sua sala de atividades, durante a jornada de experiências. Esta
organização acontecerá a partir das informações sobre a criança, das
propostas educacionais recomendadas nos documentos legais que
regulamentam a Educação Infantil. Não se constituindo apenas em
mais uma formalidade a ser cumprida, como algo rígido, definido por
instância hierárquica superior, que limita a ação docente.
Ao contrário, o planejamento constitui-se numa ferramenta de
apoio, que pode auxiliar a professora ou o professor, quando
disponibiliza um tempo, uma parada no trabalho, para articular
saberes da pedagogia, das crianças e do seu contexto social, em favor
da estruturação daquilo que será uma orientação para o
desenvolvimento de sua prática. Permite alterações e ajustes à medida
que o processo pedagógico vai se desenvolvendo, portanto, é flexível.
No entanto, o que vai determinar o papel que esta ferramenta terá na
prática é a capacidade da professora ou do professor, em decorrência

108
de sua formação para assumi-lo. Para desenvolver um bom trabalho,
não basta ao professor declarar seu interesse ou:

A concordância com pressupostos vigotskianos de que o papel da escola é a


humanização dos sujeitos, de que o conteúdo escolar é importante para essa
finalidade ou de que é sua função mediar esses conhecimentos; é necessário
também que ele domine os instrumentos necessários para fazê-lo (SFORNI, 2015,
p. 377).

A prática exigirá dele a capacidade de planejar ações


intencionalmente pensadas para desafiar a criança ao alcance de
novos patamares, que vão se tornar cotidianos e integrar-se a sua
maneira de ser, a sua personalidade, a partir daquilo que o seu
cotidiano lhe disponibilizou. A partir desse processo a criança vai se
tornando mais apta a atingir novos objetivos, e assim, sucessivamente.
Onde aquilo que é zona de desenvolvimento próximo e/ou proximal
hoje, se torne amanhã, pela mediação da professora ou do professor,
nível de desenvolvimento real, num movimento dialético.

A Didática a partir da Teoria Histórico-Cultural

A Teoria Histórico Cultural quando enfatiza que desenvolvimento


e aprendizagem são processos interligados que não se separam, vem
nos alertar que a professora ou o professor precisam ter um olhar não
apenas para o grau de conhecimento das crianças, mas para o ser
humano integral que se desenvolve em um contexto cultural.
O papel da didática na Educação Infantil consiste em orientar o
professor na organização do processo pedagógico, com base nas
condições das crianças, procurando acompanhar suas dificuldades e
oferecendo as condições para que eles progridam em sua inserção
social e em seu desenvolvimento. A Base Nacional Comum Curricular
refere-se à criança como:

ser que observa, questiona, levanta hipóteses, conclui, faz julgamentos e


assimila valores e que constrói conhecimentos e se apropria do conhecimento
sistematizado por meio da ação e nas interações com o mundo físico e social [...]
impõe a necessidade de imprimir intencionalidade educativa às práticas
pedagógicas na Educação Infantil, tanto na creche quanto na pré-escola.
(BRASIL, 2017, p. 34).

109
A concepção de criança presente nos documentos que orientam
a Educação Infantil é o ponto de partida para o planejamento das
atividades a serem trabalhadas em sua jornada de experiências na
instituição de Educação Infantil.
A respeito desta jornada de trabalho, Libâneo (2015) por sua vez,
define a aula como a forma didática básica de organização do processo
de ensino, se consideramos o processo de ensino como uma ação
conjunta da professora ou do professor e dos alunos, onde compete
ao professor dirigir as atividades em direção à aprendizagem dos
alunos. Na Educação Infantil não se cogita a concepção de aula, como
no Ensino Fundamental, onde serão trabalhados conteúdos formais,
pois tem um outro papel, conforme enfatizado por Miranda (2020):

o papel da Educação Infantil é primordialmente introduzir os bebês e crianças


pequenas nas práticas sociais, assim sendo, urge proporcionar-lhes experiências
diversas, como visitas a museus, teatros, cinemas e bibliotecas; é na vivência
dessas situações que se aprende a valorizar, respeitar e apropriar-se, tomar
como seu o patrimônio cultural da humanidade (p. 165).

Admite-se que este é um tempo em que a professora, o professor,


deverão promover à criança a vivência de experiências. A Base
Nacional Comum Curricular define como eixos estruturantes das
práticas pedagógicas as interações e a brincadeira quando declara que
“é possível identificar, por exemplo, a expressão dos afetos, a
mediação das frustrações, a resolução dos conflitos e a regulação das
emoções” (BRASIL, 2017, p. 35).
Cada jornada de trabalho constitui uma situação diferente,
preparada de modo intencional, para proporcionar às crianças,
experiências únicas, de conhecimento do espaço em que vive, criação,
fantasia, uso da linguagem, participação, sempre guiadas por um fio
condutor: sua socialização e desenvolvimento. Esta tarefa demanda
criatividade, flexibilidade e segurança da professora ou do professor
de referência, para lidar com as diferentes situações que se
desenvolvem na jornada de atividades, com as crianças. Nesta direção,
Miranda (2020) convida docentes “para que se aventurem e percam o
medo do lobo mau e se aventurem pelos caminhos da arte, nas suas
diversas expressões, no cotidiano com os bebês e as crianças” (p. 166).
Conhecer e seguir as orientações propostas no Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil, considerando-as em seu

110
planejamento, é tarefa indispensável e auxilia a professora e o
professor a exercerem com comprometimento e possibilidades de
sucesso o seu papel.
Embora essa teoria não tenha sido produzida com a finalidade
pedagógica de orientar a ação docente, Nascimento (2010, citado por
SFORNI, 2015), destaca que podemos extrair dela alguns princípios
educativos:

A concepção de homem como um sujeito histórico; a compreensão da formação


social da consciência; a definição da educação como um processo de apropriação
da experiência social da humanidade; a defesa do desenvolvimento do
psiquismo como resultado da atividade prática humana, mediada pelos signos e
instrumentos; o entendimento de que as funções psíquicas superiores são
primeiro compartilhadas entre os sujeitos (interpsíquicas) e posteriormente
internalizadas (intrapsíquicas) e a defesa de que a apropriação dos
conhecimentos é sempre uma atividade mediada por meio da colaboração de
outras pessoas mais experientes, o que foi definido como Zona de
Desenvolvimento Social, que aparece como ZDP em muitos textos (p. 379).

Em que estes princípios podem nos ajudar em relação ao trabalho


na Educação Infantil? Podemos compreender que o homem não é
apenas um ser biológico, mas um sujeito situado historicamente no
espaço social, cuja educação consiste em um processo de apropriação
da experiência social da humanidade. Ao chegar à escola a criança já
vivenciou muitas experiências, tem um saber anterior, que entrelaçado
com aquele historicamente acumulado pela humanidade, vai produzir
um novo saber.
O planejamento, a definição dos objetivos, a forma de trabalhar
com a criança, deve ser pensada a partir destas informações e
vivenciadas pelas crianças com a mediação da professora ou do
professor.
A informação acerca da Zona de Desenvolvimento Proximal,
quando expressa que a apropriação dos conhecimentos é uma
atividade mediada por um outro mais experiente, oferece ao
professor, à professora, informação que poderá servir para orientar a
sua prática. Com isto, poderá fazer opção por atividades que
promovam o trabalho entre crianças de diferentes estágios de
desenvolvimento, por meio do diálogo, possibilitando que, no trabalho
de cooperação umas com as outras, elas sejam desafiadas e avancem
em termos de suas possibilidades de novas descobertas, habilidades,

111
saberes. Ciente disso, o professor ou a professora, serão capazes de
desenvolver um trabalho pedagógico que abarque literatura, diálogo
e experiências que envolvem a criança em suas dimensões biológica,
intelectual e emocional em sua inteireza, em suas possibilidades e, não,
em suas faltas.
De acordo com as DCNEI (BRASIL, 2017), os eixos estruturantes
das práticas pedagógicas são as interações e a brincadeira. Nessas
experiências as crianças estabelecem sua relação com o conhecimento
por meio das ações e interações que desenvolverão com seus pares e
com os adultos, o que possibilita aprendizagens, desenvolvimento e
socialização. Ao planejar sua jornada de atividades, a professora ou o
professor deve considerar características, interesses, necessidades e
possibilidades das crianças e, ao mesmo tempo, em situá-la como uma
ação em favor de sua inserção na social no mundo.
Em direção a orientar a professora, ou o professor, no
planejamento de sua ação, destacamos a seguir, alguns princípios
didáticos, derivados da teoria de Galperin3, do enfoque histórico-
cultural de Vygotsky, e da teoria da atividade de Leontiev que podem
contribuir com o processo de ensino:

1 - A educação escolar tem como objetivo o desenvolvimento da personalidade


integral dos alunos. Para tanto, deverá organizar um processo didático
pedagógico que valorize a cultura histórica e social; 2 - O caráter científico do
ensino, em que a educação dá primazia aos aspectos teóricos, considerando o
desenvolvimento científico e tecnológico da atualidade. Este princípio permite
que o aluno desenvolva uma atitude criadora diante da realidade ao realizar
generalizações; 3 – A Zona de Desenvolvimento Próximo (Vigotski); 4 - O caráter
consciente da aprendizagem em que os alunos se apropriam dos conteúdos
desenvolvendo estratégias de aprender a aprender; 5 - O caráter objetal que
identifica as ações específicas a serem realizadas com os objetos da assimilação
para revelar o conteúdo do conceito em estudo. (NÚÑEZ, 2009, p. 132 - 139).

Estes são princípios que reúnem elementos importantes para o


planejamento, o desenvolvimento e a reflexão crítica acerca da prática
educativa científica, necessários para a postura do profissional da
educação.

3Piotr Yakovlevich Galperin (1902 – 1988), um dos colaboradores da obra de Vigotski


e Leontiev, criador da Teoria da Teoria da Assimilação da Atividade, que explica o
processo de internalização por meio do estudo do mecanismo de interiorização das
ações externas em internas (Nunéz, 2009).

112
Abaixo, apresentamos os princípios didáticos da teoria de
Galperin conforme descritos por Núñez (2009):

1. Princípio do caráter objetal. Refere-se à descoberta e a construção de


princípios a partir do manuseio de objetos, considerados fundamentais na
atividade de aprendizagem.
2. Caráter seletivo da percepção. A criança tem atitude seletiva diante dos
estímulos, assim é necessário despertar seu interesse pelo objeto de assimilação,
estabelecer relações afetivas positivas com ele.
3. O caráter ativo da assimilação. A aprendizagem é vista como um tipo
específico de atividade.
4. Vinculação da aprendizagem com a vida. A escola cria as condições para que
a criança relacione o que está aprendendo com a experiência que já possui.
5. Da ilustratividade da materialização. Combinação do objeto com sua
representação de forma externa que serve para orientar a ação.
6. Enfatiza a passagem do plano ilustrativo para o verbal. Onde as palavras
adquirem o sentido dos objetos, evitando o verbalismo esvaziado de conteúdo.
7. Da retroalimentação. Enfatiza a aprendizagem como um processo contínuo,
estabelecendo a organização do ensino, de forma que o aluno aprenda a
aprender. Onde o erro é considerado necessário à aprendizagem.
8. O caráter sistêmico do objeto de assimilação. O conteúdo deve ser
estruturado sobre uma lógica de estruturação, e nunca casualmente ou
fragmentado.
9. Da sistematização do ensino. Compreende a aprendizagem como um
processo que visa sistematizar os conteúdos utilizando tarefas que promovam a
formação das habilidades e hábitos, de forma planejada e em uma sequência
adequada ao processo de aprendizagem, seguindo parâmetros qualitativos das
atividades definidas nos objetivos.
10. Da aprendizagem criativa. O processo de assimilação das habilidades supõe
uma atividade produtiva, baseada na necessidade de que o aluno trabalhe na
solução de novos problemas utilizando a criatividade (pp. 139-148, com
adaptações).

Estes princípios didáticos oferecem orientações para a prática


pedagógica no contexto escolar e articulam a didática com a
aprendizagem. Podem servir de guia para a ação. No entanto,
demandam reflexão e deliberações por parte do professor, ou da
professora, em como utilizá-los em sua prática. É recomendável avaliar
o grau de ensino em que atua, as características das crianças e exige,
ainda, criatividade para adaptá-los à sua situação pedagógica.
Sforni (2015), por sua vez, explica que para levar as crianças à
elaboração do pensamento teórico “é preciso que o ensino de
conceitos científicos esteja assentado em procedimentos didáticos
voltados para a apropriação do conceito como atividade mental, o que

113
em muito se diferencia do modelo de ensino conceitual, próprio da
tradição escolar” (p. 377).
Organizar o ensino nessa perspectiva constitui-se um desafio,
pois implica andar por caminhos diferentes da concepção de Educação
Infantil de caráter puramente assistencialista e se dedicar também ao
seu caráter educativo, conforme recomenda as Diretrizes Nacionais
Curriculares para a Educação Infantil quando define, que nos dias
atuais:

a educação da primeira infância em instituição coletiva não mais se contenta com


processos assistencialistas, mas percebe-se, de acordo com as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Infantil (BRASIL, 2010), como oferta de
atendimento à primeira infância em ações indissociáveis de cuidado e educação
(MIRANDA, 2020, p. 158).

Chamamos atenção para a importância que ganha a Educação


Infantil e o trabalho pedagógico docente para o desenvolvimento
integral das crianças de 0 a 5 anos e 11 meses de idade, sob sua
responsabilidade, quando este segmento passa a ter caráter
educativo, para além do assistencialismo.
Ao planejar sua ação a partir da perspectiva Histórico-Cultural, a
professora ou o professor, devem considerar desde o planejamento
até a avaliação de sua ação, o desenvolvimento psicológico e social da
criança. Só desta forma ele estará evitando a adoção de
procedimentos que desconsiderem as crianças reais, matriculadas na
instituição de Educação Infantil e colocadas sob sua responsabilidade.
O trabalho docente de acordo com a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017) consiste em “refletir, selecionar, organizar,
planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações,
garantindo a pluralidade de situações que promovam o
desenvolvimento pleno das crianças” (p. 17).

A avaliação a partir da Teoria Histórico-Cultural

As DCNEI (BRASIL, 2010) definem que a avaliação impõe uma


forma da professora, do professor, se relacionar com o aluno
concretizada por meio de sua prática pedagógica.
Entendemos que a avaliação, quando tarefa de diagnóstico, e
observadas as Diretrizes Curriculares da Educação Infantil, é um

114
processo sensível, sistemático e cuidadoso. Essa avaliação é a que
permite ao professor e à professora o conhecimento da bagagem
trazida pelas crianças para a escola, que serve de base para orientar a
decisão do professor, ou da professora, sobre como estabelecer
contatos com a criança e os pontos de partida para orientar a sua
prática na Educação Infantil.
Nesse contexto, a avalição se torna mais coerente com os
princípios da Teoria Histórico Cultural pois na opinião de Pasqualini
(2010), parte da compreensão de que o desenvolvimento intelectual é
produto da relação que a criança estabelece com o conteúdo, e de que
a apropriação desse conteúdo promove o desenvolvimento das
funções psicológicas, entre elas o pensamento. Compreendido este
conteúdo, na Educação Infantil, não como conteúdo forma, mas
aquele que estão presentes nas práticas, das escolhas e do acesso
propiciado à criança nas diversas atividades selecionadas e
experiências vivenciadas, por meio do contato com a literatura, a
música, o teatro, o cinema, entre outras.
A avaliação quando utilizada em sua função de processo, ao
assumir o caráter de acompanhamento do desenvolvimento, no
sentido de sinalizar tropeços, necessidades, mudanças, entre outros
aspectos vai fornecer elementos importantes para a melhoria da ação
pedagógica, sem deixar de olhar a criança, em seu processo de
desenvolvimento. O foco é mantido na promoção de cada criança, em
suas dimensões afetiva, social e cognitiva. Sem, contudo, estabelecer
rótulos, julgamentos, mas em observar e promover diferentes formas
de apoiá-las, de provocá-las, desafiá-las em novas tentativas, na
interação com diferentes pares, considerando-se o conceito de Zona
de Desenvolvimento Proximal.
A avaliação adquire sentido quando permite ao professor, à
professora, analisar sua ação, observar determinados aspectos
relacionados à criança e efetuar mudanças em seu planejamento de
modo que permita investigar questões demandadas pelo
desenvolvimento de cada criança. Destarte, serve muito mais para
oferecer informações ao professor e à professora, do que para uma
avaliação de resultados alcançados pelas crianças. Enfim, o foco deve
estar no acompanhamento da criança, no processo de atendimento à
criança, e funcionar como ponto de partida para a reorganização das
ações pedagógicas, em função do desenvolvimento da criança.

115
Sintetizando algumas ideias e partindo para novos desafios

Nesta reflexão, acreditamos que cumprimos nossa proposta de


analisar as contribuições da Teoria Histórico Cultural ao Planejamento,
à Didática e à Avaliação. Fizemos isto quando explicamos conceitos e
especificidades dos processos de planejamento, de didática e de
avaliação; apresentamos os princípios da Teoria Histórico-Cultural, na
condição de revisão, considerando sua exploração em capítulos
anteriores desta obra, relativos aos temas que antecederam a nossa.
Destacamos ainda, orientações relevantes, constantes dos
documentos legais relacionados às especificidades e recomendações
a serem consideradas no planejamento, didática e avaliação para a
docência na Educação Infantil. Estas orientações não foram
apresentadas em um item específico, mas ao longo dos temas, à
medida do necessário para esclarecer determinadas questões.
O texto perseguiu ainda o objetivo de oferecer as ideias gerais do
conteúdo a ser estudado na disciplina, procurando despertar o interesse
pelo tema, satisfazer necessidades e curiosidades dos alunos.
Sugerimos, por fim, àqueles que se dispuserem a aprofundar, ainda
mais, o estudo destes temas, a leitura das obras constantes das
Referências Bibliográficas, contatos com professores, colegas. A
interação com autores que estudem o tema, a procura por grupos de
estudos, programas de Pós-graduação Stricto Senso (mestrado e
doutorado), também são investimentos importantes. A escrita de artigos,
em que se desenvolvam aspectos dos temas aqui estudados, é
igualmente um exercício que desperta o interesse por investigar e se
especializar em aspectos tratados durante a experiência vivenciada.
Assim como nos exercitamos aqui, na busca da difusão de conceitos e na
sua motivação, esperamos que os próximos textos sejam os seus, a
motivar mais profissionais da Educação Infantil pelo melhor exercício da
profissão.

Referências

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

116
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Brasília: MEC/SEB, 2010.
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Educação/Secretaria da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2009.
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de 20 de dezembro de 1996. Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013.
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lobo mau? Educação estética na primeira infância In: PEDERIVA,
Patrícia L. M.; GONÇALVES, Augusto C. A. B.; ABREU, Fabrício S. (Org)
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& João editores, 2020.

117
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teoria de P. Ya. Galperin, do enfoque histórico-cultural de Vygotsky e
da teoria da atividade de A. N. Leontiev In: Vygotsky, Leontiev,
Galperin: formação de conceitos e princípios didáticos. Brasília, Liber
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PASQUALINI, Juliana Campregher. Princípios para a organização do
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Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista
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SFORNI, Marta Sueli de Faria. Interação entre didática e Teoria
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LURIA, A. R. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São
Paulo: Ícone, 2014.

118
6.
Naturalização da brincadeira: uma visão equivocada do
brincar como algo natural

Andréia Pereira de Araújo Martinez

Introdução

Uma manhã no meio do cerrado. O sol em sua plenitude brilha


envolvido pelo céu azul. O rio corre seu percurso entre as pedras. O
som da água desenha a paisagem. O cheiro do mato, dos galhos, da
terra, completa a imagem. À margem do rio há uma criança. Ela olha,
cheira, toca, sente. Ela recolhe algumas pedras, de vários tamanhos e
formatos. Ela faz pequenos grupos, empilha, joga na água, enterra na
terra, conta uma história. As pedras tornam-se personagens, que são
levadas pelas mãos pequenas a se movimentarem. A fala da criança
permite que cada pedra tenha a sua voz. As pedras ocupam o espaço,
fazem barulho, viram diferentes objetos e diferentes contextos.
Narrativas são imaginadas, histórias são inventadas, e brincadeiras são
vivenciadas. Segundos, minutos e horas se passam. A manhã dá lugar
a outro período do dia. E a criança continua sua criação com as pedras.
Ela brinca, e a cada momento é algo diferente, é algo novo...
Ao observarmos tal cena é possível que algumas pessoas expressem
que a criança brinca, e que seu brincar é natural, que a brincadeira faz
parte das crianças e de suas infâncias de forma instintiva. Mas será que
isso é um fato que não podemos questionar e problematizar?
A discussão aqui realizada parte do olhar para as infâncias, que no
senso comum são compreendidas como algo único, natural e universal,
ignorando as diversas infâncias que existem em cada contexto cultural, e
assim, negando o percurso histórico da humanidade.
Do mesmo modo, as crianças e suas brincadeiras também sofrem
essa naturalização. As crianças são encaradas como seres incapazes que
precisam ser preparadas para o futuro, vivenciando um presente
incompleto, pois o foco não está no momento atual de suas vivências,

119
mas em prepará-las para viver o amanhã. Assim, a brincadeira é permeada
pelo esforço de naturalização da atividade infantil, o que favorece uma
percepção naturalizada da existência do ser humano.
A naturalização da vida é fundamentada em perspectivas
metafísicas que traduzem como natural os fatos e os acontecimentos,
negando que a constituição humana se dá em movimento, constituídos
social e historicamente. Desde a mais tenra idade a criança e a suas
brincadeiras desenvolvem-se em meio às relações e experiências sociais.
A visão naturalista nega a interferência do contexto cultural e histórico,
pois percebe os bebês, as crianças bem pequenas e as crianças pequenas,
bem como o seu brincar, como produtos naturais e instintivos.
Esse modo de perceber as crianças, suas infâncias e sua atividade,
caracteriza-se como um esforço em transformar a atividade humana em
algo natural. Isso é muito perigoso, pois essa perspectiva torna as
possibilidades de mudança inalcançáveis, limitando a ação humana a algo
estático, tornando os modos de olhar, sentir, pensar e agir na sociedade,
em algo sem movimento, sem possibilidade de transformação.
A naturalização da vida humana não é algo simplório, e precisa ser
problematizado para provocar reflexões acerca da realidade concreta.
Segundo Freire (1996), o esforço de naturalização da vida humana é
motivado por uma estratégia de perpetuação da invisibilidade das
situações opressoras existentes. Marx (2013) também nos provoca a olhar
e questionar a perspectiva naturalista, que constantemente ressurge nas
discussões no cenário social. Este autor nos instiga a analisar a existência
humana como um processo dialético, capaz de oportunizar mudanças
que transpõe a aparência na busca da essência. Na mesma linha de
pensamento, Vigotski (2012a) nos provoca a olhar as crianças como seres
de possibilidades, capazes de perceber e compreender a realidade que as
envolve, que se relacionam com seu meio social, internalizam a cultura
existente, que aprendem e se desenvolvem nas mais diversas áreas do
conhecimento humano de múltiplas maneiras.
Vigotski (2009) elucida que as crianças se desenvolvem a partir de
suas experiências que são vivenciadas e internalizadas na relação com
o mundo existente. Essas experiências são percebidas pelas crianças
de modo diferenciado, afetando-as de diversas maneiras. As
experiências são armazenadas no cérebro. “Nosso cérebro e nossos
nervos, que possuem uma enorme plasticidade, modificam com
facilidade sua estrutura mais tênue sob diferentes influências”

120
(VIGOTSKI, 2009, p. 12). As experiências provocam influências na
atividade cerebral, que são armazenadas, reproduzidas ou sofrem
transformações, permitindo que o ato imaginativo e criativo da
atividade humana se consolide. “O cérebro não é apenas o órgão que
conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também, o que
combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência
anterior, erigindo novas situações e novo comportamento”
(VIGOTSKI, 2009, p. 14). Sendo assim, a realização e o desenvolvimento
da brincadeira das crianças se dão a partir da diversidade de
experiências que vivenciam em meio à sociedade humana.

Se for esse o nosso entendimento, então notaremos facilmente que os


processos de criação se manifestam com toda a sua força já na mais tenra
infância. Uma das questões mais importantes da psicologia e da pedagogia
infantis é a da criação na infância, do desenvolvimento e do significado do
trabalho de criação para o desenvolvimento geral e o amadurecimento da
criança. Já na primeira infância, identificamos nas crianças processos de criação
que se expressam melhor em suas brincadeiras (VIGOTSKI, 2009, p. 16).

Portanto, este artigo problematiza as discussões que permeiam a


percepção das crianças, suas infâncias e suas brincadeiras,
questionando o discurso naturalista do comportamento humano,
evidenciando a atividade do brincar infantil como uma constituição
que permeia a existência humana em meio à cultura, com base nas
experiências vivenciadas pelas crianças. Discute as representações
sociais que são percebidas, internalizadas e externalizadas pelas
crianças. Realiza uma tentativa de diferenciar brincadeira, brinquedo e
jogo. E debate o que os documentos curriculares nacionais tratam
acerca do brincar para o desenvolvimento das crianças. Tais aspectos
foram tratados na disciplina “Brincadeiras na infância: aprendizagem e
desenvolvimento”, que compõe o curso de Especialização em
Educação Infantil na Perspectiva Histórico-Cultural.

A possível origem histórica da brincadeira

Segundo a Teoria Histórico-Cultural, é um equívoco considerar


que o brincar é uma ação natural e instintiva das crianças, que surge e
se desenvolve de maneira espontânea, pois há uma inconsistência do
enfoque naturalista da brincadeira que se contrapõe ao enfoque

121
histórico-cultural da origem do desenvolvimento do ser humano em
meio às relações sociais.
Marx (2013), em seu estudo sobre o modo de produção
capitalista, realiza a investigação analisando a mercadoria,
percebendo-a como a unidade que preserva as propriedades do todo,
e em que consta as características e contradições internas do modo
capitalista de produção. O método marxista realiza sua análise a partir
da unidade, o que encontramos, também, em Spinoza (2007), que em
seus estudos da filosofia, rompe com o dualismo cartesiano. De modo
semelhante, Vigotski (2012b), ao investigar a relação entre fala e
pensamento, aplica na psicologia o método de análise que parte da
unidade, compreendendo que a fala é a unidade que possui as
propriedades fundamentais do todo.
Seguindo esses passos, Elkonin (2009) realiza sua investigação
partindo da análise da brincadeira de faz de conta, compreendendo-a
como a unidade, que pode contribuir para os estudos da origem e da
função da brincadeira entre as crianças na sociedade. É importante
mencionar que o referido trabalho de investigação do autor originou o
livro “Psicologia do Jogo”, que segundo Prestes (2014) foi traduzido
erroneamente, pois sua pesquisa não tratou do jogo, e sim da
brincadeira, mais precisamente, da brincadeira de faz de conta.

As teorias biológicas da [brincadeira], que partem dos instintos e impulsos


primários da criança, não podem explicar de maneira satisfatória seu conteúdo
social.
Em nossa opinião, o singular impacto que a atividade humana e as relações
sociais produzem na [brincadeira] evidencia que os temas [das brincadeiras] não
se extraem unicamente da vida das crianças, porquanto possuem um fundo
social, e não podem ser um fenômeno biológico. A base [da brincadeira] é social
devido precisamente a que também o são sua natureza e sua origem, ou seja, a
que [a brincadeira] nasce das condições de vida da criança em sociedade. As
teorias [da brincadeira] que a deduzem dos instintos e dos impulsos internos
marginalizam, de fato, a questão de sua origem histórica. Ao mesmo tempo, a
história do surgimento [da brincadeira de faz de conta] é justamente aquela que
pode revelar-nos a sua natureza (ELKONIN, 2009, p. 37).

As crianças nascem em diferentes épocas do desenvolvimento da


humanidade, em que existem diferentes produções culturais. Diante
dessa afirmação, é ingênuo considerar que o brincar infantil não sofreu
modificações ao longo da história, imaginando que ele se expressa de
modo natural e instintivo entre as crianças. Pois, “um dos paradoxos

122
do desenvolvimento infantil assenta precisamente em que, vindo a
este mundo [...] percorrem nas sociedades, que se encontram em
níveis distintos de produção e cultura, um caminho evolutivo
totalmente diverso, alcançando por diferentes vias e em tempos
diferentes sua maturidade social e psicológica” (ELKONIN, 2009. p.
42).
Elkonin (2009) esclarece que o brincar das crianças está
relacionado com a vida que elas vivenciam em meio à sociedade, e sua
afirmação parte da análise da atividade laboral realizada pelos adultos
e o lugar das crianças no contexto social.
O autor utilizou dados fornecidos por etnógrafos e antropólogos
para estudar a origem histórica e a função social da brincadeira de faz
de conta, relacionando as transformações que ocorreram na divisão
social do trabalho que provocaram as mudanças do lugar das crianças
na sociedade. Tal perspectiva de pesquisa baseia-se nos pressupostos
marxistas, como já anunciados anteriormente, enfatizada a
importância de analisar os dados históricos e culturais associados à
divisão social do trabalho.
As informações utilizadas por Elkonin (2009) evidenciam a
participação precoce das crianças no trabalho juntamente com os
adultos, sendo que a educação estava associada em introduzir, o
quanto antes, as crianças nos costumes e obrigações que permeavam
a vida dos mais velhos. Isso se confirmou em diferentes comunidades,
em que as crianças já participam das atividades laborais, tais como:
usar os utensílios domésticos, realizar tarefas da casa, costurar,
apascentar as cabras, levar as vacas para o pasto, cuidar dos cães,
colher ervas silvestres comestíveis, plantar, pescar, caçar, colocar
armadilhas, cortar lenha, entre outras atividades.

Nas condições da sociedade primitiva, com os meios e formas de trabalho


relativamente elementares, até as crianças de três ou quatro anos podiam
participar nas formas simples de trabalho doméstico, na coleta de plantas, raízes,
larvas, caracóis e outros comestíveis, na pesca primitiva com simples cestos ou
até à mão, na caça de animais pequenos e pássaros, e nas formas rudimentares
de agricultura. A independência que a sociedade exigia das crianças encontrava
sua expressão natural no trabalho comum com os adultos. A vinculação direta
das crianças a toda a sociedade, mediante o trabalho comum, excluía qualquer
outro vínculo entre a criança e a sociedade. Nesse grau de desenvolvimento da
sociedade, e com esse status dentro dela, a criança não tinha nenhuma
necessidade de reproduzir o trabalho nem de entabular relações especiais com

123
os adultos, não necessitava [da brincadeira de faz de conta] (ELKONIN, 2009, p.
59 e 60).

A participação das crianças nessas atividades produtivas dos


adultos ocorria muito cedo, na medida de suas forças, o que contribuía
para a constituição da independência e autonomia das crianças
precocemente. Nessas comunidades não se demonstrava uma divisão
marcada entre as crianças e os adultos, pois compartilhavam dos
mesmos ambientes e atividades, e partilhavam dos mesmos direitos.
Porém, “os etnógrafos e exploradores que se ocuparam de povos num
nível de desenvolvimento próximo do acima mencionado, indicam que
as crianças brincam pouco, sempre do mesmo jeito, dos afazeres dos
adultos, e [suas brincadeiras] não são protagonizadas” (ELKONIN,
2009, p. 57).
Com o passar dos tempos, surgem novos meios e modos de
produção da agricultura e da pecuária, com maior complexidade das
formas de plantio, caça e pesca. Isso ocasionou uma nova divisão social
do trabalho provocando, paulatinamente, o afastamento das crianças
das atividades laborais. “Às crianças pequenas foram confiadas apenas
alguns aspectos do trabalho doméstico e os afazeres mais simples”
(ELKONIN, 2009, p. 61).
Até então, as crianças utilizavam equipamentos de tamanho
reduzidos ou adaptados, especialmente para atender as suas
possibilidades de manipulação, em que preservavam as funções de uso
semelhante aos utilizados pelos adultos, como por exemplo, o uso do
facão, que em algumas comunidades era utilizado desde a primeira
infância.

O facão, o machado, o arco e as flechas, os caniços de pesca, as agulhas, as


rasouras e outros equipamentos semelhantes são ferramentas cujo manejo as
crianças devem aprender para poder participar no trabalho dos adultos. É claro
que elas não podem descobrir por si mesmas os modos de emprego desses
equipamentos, e os adultos têm de lhes ensinar seu manejo com eficácia,
indicando-lhes o que devem fazer, controlando e estimulando nelas a
assimilação desses instrumentos, necessários onde e quando existem (ELKONIN,
2009. p. 68).

Com as forças produtivas se desenvolvendo e tornando mais


complexas as ferramentas e o seu uso, novas divisões do trabalho
alteraram a situação que as crianças ocupavam na sociedade,

124
reduzindo-se, cada vez mais, as possibilidades de inclusão das crianças
no trabalho produtivo.

Ao mesmo tempo, a complicação dos instrumentos de trabalho dava lugar a que


as crianças não pudessem aprender o manejo das ferramentas com modelos
reduzidos. Ao ser diminuída, a ferramenta perdia suas funções fundamentais,
conservando apenas a aparência exterior das ferramentas de trabalho
empregadas pelos adultos. Assim, por exemplo, enquanto o arco reduzido não
perdia sua função principal, podendo disparar-se com ele uma flecha e acertar
num objeto visado, um rifle reduzido não passava de uma figura de rifle, com a
qual não se podia fazer um disparo, mas apenas simulá-lo (ELKONIN, 2009, p. 77).

Perdeu-se a razão de ser da realização de atividades laborais com


ferramentas de tamanhos reduzidos, pois não tinham mais as mesmas
funções, e com isso, a aprendizagem da utilização de equipamentos
mais complexos é delongada para as idades subsequentes. Conforme
as crianças foram afastadas das atividades laborais que realizavam
conjuntamente com os adultos, a infância se prolonga, e também,
surge a necessidade de realizar a brincadeira de faz de conta. Nessa
atividade, desempenham papeis e ações que não vivenciam
diretamente, mas que observam na sociedade em que vivem, e passam
a interpretar o que observam, transformando sua realidade a partir da
ação da imitação, imaginação e criação.
Vale mencionar que nesse contexto em que são produzidas
ferramentas menores e desprovidas das funções dos equipamentos de
tamanho real utilizados pelos adultos, possibilitando apenas que as
crianças simulem sua utilização, é que começa a surgir o brinquedo.
Essas são as ferramentas culturais utilizadas pelas crianças em suas
brincadeiras, que contribuem para compor o cenário imaginário para a
realização dessa atividade infantil, que simula a vida dos adultos.
Portanto, a brincadeira de faz de conta se caracteriza em uma
atividade peculiar das crianças, que tem como objeto de interesse
aquilo que elas não realizam diretamente. Mais precisamente, a
atuação do adulto na sociedade, que envolve suas atividades e o
sistema que constitui suas relações com as demais pessoas. Por meio
dessa atividade, as crianças são capazes de perceber, internalizar e
elaborar seu comportamento a partir do que observam do conteúdo
social, e das regras socialmente estabelecidas. Na brincadeira de faz de
conta as crianças assumem novos papeis realizando interpretações, e
assim, transformam sua ação diante da realidade. Essa atividade se

125
estrutura em papeis que as crianças assumem, e ao realizar as ações
pertinentes a esses papeis, desenvolvem a interpretação própria do
que observam.
Na discussão trilhada até aqui, percebe-se que a atividade da
brincadeira de faz de conta nasce no percurso do desenvolvimento
histórico da sociedade, provocado pelas mudanças do lugar das
crianças no sistema de relações sociais, evidenciando que a origem
dessa atividade se dá em meio aos processos de desenvolvimento
social e cultural ao longo da história da humanidade, o que diverge de
uma percepção naturalista.

Representações sociais por meio da brincadeira

Para desenvolver essa discussão, compartilhamos uma narração


do episódio “Casinhas no Vale do Jequitinhonha”, retirado do
documentário “Territórios do Brincar”.
As crianças se agrupam em pequenos grupos. Alguns meninos
buscam folhas de bananeira para colocá-las sobre a estrutura de
galhos que já foram previamente enterrados na terra. As folhas de
bananeira serão o telhado da casa. Algumas meninas varrem o terreno
em que a casa será estruturada com galhos de árvores que foram
previamente selecionados. Tecidos são envolvidos entre os galhos e
amarrados por barbantes e cipós, delimitando o espaço interno da
casa. As meninas penduram enfeites, tais como, pequenos objetos,
tampas, garrafas, cestas, flores, entre outros. Pedaços de madeiras se
transformam em móveis. Diferentes copos, garrafas, pratos, panelas,
utensílios vão constituindo a arrumação da casa. Tijolos são
organizados de forma a dar origem a um fogão à lenha. As crianças
conversam e decidem as combinações para a decoração da casa, de
cada detalhe. Várias bonecas são colocadas entre os móveis, que
podem ser camas, sofás, banheiras. As bonecas possuem roupas feitas
pelas meninas. São enroladas por diferentes tecidos. As mais diversas
bonecas são as filhas e filhos e as meninas tornam-se as mães que irão
cuidar delas. Alguns meninos brincam com animais de brinquedo
semelhante a boi e vaca. Algumas crianças buscam pequenos pedaços
de galhos, para colocar fogo de verdade no fogão à lenha feito de
tijolos. O fogo é de verdade, mas a comida é uma invenção da
imaginação, composta por bolos de terra molhada, caldo de terra

126
marrom e uma fervura feita com água e algumas folhas retiradas do
mato. A mesa é posta e a comida é servida na bandeja com toda a
elegância da imaginação infantil. As mães meninas embalam suas filhas
e filhos que são bonecas no colo. Embalam e acalantam. Falam ao
telefone. Contam histórias.
Nessa descrição da brincadeira de faz de conta, em que as
crianças brincam de casinha, fica perceptível que elas assumem papeis,
em que compõem uma estrutura familiar e relações sociais são
estabelecidas. Atreladas a esses papeis, as crianças realizam ações, ao
construir e decorar a casa, ao cuidar das filhas e filhos, ao cuidar dos
animais, ao fazer comida, ao servir a comida, entre outras ações. São
situações em que as crianças observam a realidade que as permeia, e
que elas imitam, imaginam e reconstroem a partir da atividade do
brincar. Imaginando e elaborando novas situações e novos diálogos
entre seus pares. O principal objetivo ao realizar a brincadeira de faz
de conta é assumir e representar o papel adotado, em que as crianças
se empenham com rigor em cada detalhe na realização das ações.
Na descrição da brincadeira de faz de conta percebe-se que as
ações estão associadas aos papeis que as crianças percebem de sua
observação da organização social. Nesse caso, evidenciou-se os papeis
assumidos pelos meninos e pelas meninas. Os meninos contribuíram
na construção da casa e as meninas cuidaram de sua decoração. As
meninas varreram a casa e lavaram a louça. Os meninos saíram para
buscar lenha para fazer o fogo e as meninas fizeram a refeição,
serviram a refeição na bandeja e colocaram a mesa. Os meninos
cuidaram do gado, talvez uma representação da figura masculina que
sai para trabalhar como boiadeiro ou alguma profissão semelhante, e
as meninas cuidaram das filhas e filhos, embalando-os nos braços,
alimentando e vestindo, enquanto conversavam ao telefone e
conversavam com as amigas.
As mudanças na divisão social do trabalho elucidadas
anteriormente não ocorreram apenas em relação às crianças, mas
também, em relação ao papel do homem e da mulher na sociedade.

O desenvolvimento da produção, manifestado na passagem para a agricultura


de arado, e o início da pecuária tiveram o importantíssimo resultado
socioeconômico que Engels denominou a primeira grande divisão social do
trabalho, ou seja, a divisão entre agricultores e criadores de gado com todas as
suas consequências, concretamente, com o desenvolvimento da indústria

127
doméstica e do intercâmbio regular. Essas profundíssimas mudanças tiveram
resultado socioeconômico que se expressou na nova divisão de trabalho
segundo o sexo, na mudança do lugar do homem e da mulher na produção social.
A divisão sexual do trabalho existiu, como disse Engels, com ‘uma origem
puramente natural’, já no matriarcado. Agora adquiriu um caráter
incomparavelmente mais profundo e uma transcendência econômica e social
muito maior. A criação de gado tornou-se um afazer masculino. As mudanças
operadas na economia geral deram lugar a que a economia doméstica, ‘que foi
esfera principal da mulher’, se separasse como ramo peculiar da produção
(KOSVEN, 1951, p. 84 e 85, apud ELKONIN, 2009, p. 60 e 61).

A partir da narrativa da brincadeira de faz de conta percebe-se


que o papel assumido pelas crianças, em relação a cada membro da
família, está relacionado às ações que esses personagens
desempenham na sociedade, do que elas observam. Portanto, as
crianças interpretam esses papeis e fazem relações com suas
respectivas ações a serem desempenhadas.
Vale ressaltar que nos últimos tempos vivenciamos novas
mudanças na divisão social do trabalho, pois a mulher não está mais
reclusa aos afazeres domésticos. Há, também, muitas mulheres que
são as principais mantenedoras econômicas de seus lares,
ocasionando a inversão dos papeis sociais de homens e mulheres
descritos anteriormente. A inserção da mulher no mercado de
trabalho, os estudos realizados por elas, as profissões assumidas, a
estrutura familiar, a situação socioeconômica, constituem uma nova
realidade que é perceptível às crianças, e que podem externar por
meio de suas brincadeiras. Todavia, é importante destacar que mesmo
ocorrendo uma nova realidade em relação ao papel da mulher na
sociedade, muitas vezes, as crianças realizam brincadeiras
estereotipadas em relação a real situação da mulher, pois ainda existe
muito preconceito a esse respeito.
Nesse sentido, é importante provocar indagações às crianças
acerca de suas brincadeiras, ou até mesmo, fazer sugestões de ações
que podem estar associadas aos papeis interpretados por elas, pois as
representações socias que são vivenciadas pelas crianças em suas
brincadeiras são externalizadas por meio de ações que emergem de
diálogos, perguntas e respostas, que verbalizam e materializam o que
elas observam, imaginam e criam. Esses diálogos podem ocorrer entre
as crianças e seus pares, mas oportunamente, os adultos também
podem provocar tais problematizações, sobretudo, em espaços

128
coletivos de educação, em que se reúnem várias crianças, que
vivenciam diferentes realidades em seus contextos sociais. É
importante, deixar as crianças brincarem, mas também, provocar
questionamentos e novos olhares entre as crianças, acerca da
realidade social existente.

Imaginação e criação na brincadeira

Além dos papeis assumidos e das ações relacionadas a esses


papeis que as crianças interpretam em suas brincadeiras, os objetos
também se transformam, desencadeando a alquimia da fantasia. Uma
boneca torna-se a filha, uma tampa de garrafa assume a função de um
copo, a terra molhada ganha status de bolo, a grama seca é percebida
como uma apetitosa refeição, entre outros processos imaginativos
que são desencadeados. Pedra, folha, papel, papelão, madeira, lata,
qualquer objeto pode ser transformado em algo novo, provocando a
transferência do significado de um objeto por outro. A imaginação é
uma ação que surge a partir da ideia que a criança quer representar, a
partir de sua vontade de se transformar em algo que ela não é, e
também, em ter o domínio sobre objetos que ela não possui ou que
não pode manipular.

Essa atividade, mais intensa e ampla, da fantasia nos entretenimentos infantis


explica-se pelo desejo muito recôndito que a criança sente de, por meio [da
brincadeira], ser algo, representar algum papel. Ao protagonizar Robinson
Crusoé ou algum outro personagem, a criança que busca aventuras foge do seu
Eu verdadeiro e do seu mundo cotidiano. Ao representar um papel, transmuda
em sua imaginação tudo quanto a rodeia, e isso adquire o aspecto e o sentido de
que, no momento dado, essa representação necessita (ELKONIN, 2009, p. 26).

A realidade que circunda a criança pode ser percebida por ela


entre duas esferas. A primeira relacionada às atividades
desempenhadas pelas pessoas na sociedade, os papeis e as ações
relacionadas, tais como, as representações, profissões e situações
existentes. E a segunda está relacionada aos objetos, naturais ou
produzidos pelas mãos humanas, e que no imaginário das crianças,
podem ser transformados pelo que elas desejarem, quebrando as
barreiras do que eles são de fato.
As temáticas que podem ser vivenciadas pelas crianças em suas
brincadeiras de faz de conta podem ser as mais variadas possíveis e

129
estão associadas a sua realidade histórica e cultural. Ou seja, uma
criança do nosso tempo pode se imaginar como astronauta que faz
uma viagem à Lua, mas as crianças que viveram há 100 anos não tinham
como imaginar tal situação, pois não fazia parte daquela realidade. As
brincadeiras de faz de conta refletem as condições concretas da vida
das crianças.
A brincadeira de faz de conta é uma atividade que pode
desencadear os processos imaginativos e criativos das crianças.
Vigotski (2009) esclarece que a atividade criadora é aquela em que se
cria algo novo, sendo que a base de toda atividade criadora é a
imaginação, que por sua vez, emerge das experiências vivenciadas
anteriormente. Quanto mais as crianças viram e ouviram, quanto mais
experiências elas vivenciaram, mais material disponível elas terão para
utilizar em seus processos imaginativos e criativos.

É claro que, em suas brincadeiras, elas reproduzem muito do que viram. Todos
conhecem o enorme papel da imitação nas brincadeiras das crianças. As
brincadeiras infantis, frequentemente, são apenas um eco do que a criança viu e
ouviu dos adultos. No entanto, esses elementos da experiência anterior nunca
se reproduzem, na brincadeira, exatamente como ocorreram na realidade. A
brincadeira da criança não é uma simples recordação do que vivenciou, mas uma
reelaboração criativa de impressões vivenciadas. É uma combinação dessas
impressões e, baseadas nelas, a reconstrução de uma realidade nova que
responde às aspirações e aos anseios da criança. Assim como na brincadeira, o
ímpeto da criança para criar é a imaginação em atividade (VIGOTSKI, 2009, p. 18).

Como já elucidado, a atividade criadora tem por base a


imaginação, que se constitui do acúmulo de experiências vivenciadas
pelas crianças. Vigotski (2009) esclarece que a imaginação é uma
atividade com função vital e necessária aos seres humanos. É
importante considerar que existe uma relação entre a imaginação e a
realidade, que pode ocorrer, principalmente, de quatro formas. A
primeira versa acerca do fato de que toda obra da imaginação se
constitui de elementos tomados da realidade e da experiência anterior
da própria pessoa, que se apropria desses elementos e realiza novas
combinações, provocando processos imaginativos. A segunda diz
respeito à experiência alheia ou experiência social, ou seja, são
experiências que as crianças não vivenciaram diretamente, mas que
tiveram contato por meio do compartilhamento de alguém ou por
meio das ferramentas culturais. A terceira é que a realidade possui um

130
caráter emocional. E a quarta é que a imaginação pode adquirir uma
concretude material, tornando-se real, para além do imaginário. Todas
essas formas de relação entre a realidade e a imaginação podem ser
experienciadas pelas crianças por meio de suas brincadeiras.
É importante esclarecer que, para Vigotski (2008), a brincadeira
de faz de conta foi um objeto de pesquisa que provocou muitas
reflexões, pois é nessa atividade que surge a “neo” formação, que
surge o que ainda não existia no desenvolvimento, que é suscitado
pelo processo de imaginação na realização dessa atividade.
Nas brincadeiras as crianças imaginam e interpretam as
experiências que vivenciaram ou que foram compartilhadas com elas
de diferentes maneiras. Essa interpretação pode se dar por meio da
imitação, todavia, o que as crianças expressam na brincadeira é fruto
de sua reelaboração acerca do que elas captaram da realidade. As
crianças realizam uma atividade combinatória, em que criam uma nova
situação, uma nova realidade imaginária. Todos os elementos dessa
criação, os papeis sociais, as ações interpretadas, a transformação dos
objetos, são conhecidos pelas crianças de suas experiências
anteriores, mas o modo como elas realizam a combinação desses
elementos é fruto de sua imaginação e criação.
Vigotski (2008) explica que a brincadeira de faz de conta surge de
uma realização imaginária, em que as crianças realizam desejos
irrealizáveis em seu cotidiano. A imaginação representa uma
configuração da atividade da consciência. E como todas as funções da
consciência emergem na ação, a brincadeira desencadeia a ação
criadora, e assim, as crianças aprendem a ter consciência de suas
próprias ações.

A brincadeira e o desenvolvimento da fala das crianças

Ao realizar a brincadeira de faz de conta as crianças se utilizam da


própria fala para comunicar os papeis que serão assumidos, as ações
que serão realizadas e para transformar os objetos em algo novo. Na
brincadeira o barro transforma-se em um bolo apetitoso. Para a
criança pronunciar essa ideia, realiza a separação do objeto da palavra.
O barro deixa de ser barro. Transforma-se em outra coisa, em um bolo.
Muda a palavra e seu significado. “A transferência dos significados é
facilitada, pois a criança recebe a palavra como se fosse uma

131
característica do objeto; a criança não vê a palavra, mas vê por detrás
desta o objeto que ela significa” (VIGOTSKI, 2008, p. 32). Na
brincadeira, as crianças veem o objeto e o transformam em algo novo
a partir da palavra e do novo significado que é atribuído a ele.
A brincadeira na idade escolar desloca-se para os processos
internos, pois as crianças desenvolvem a fala interna, a memória lógica
e o pensamento abstrato. As crianças atuam atribuindo novos
significados que são deslocados dos objetos. O barro que se
transforma em bolo, em que as crianças o manipulam, simulando que
realmente é um bolo, representando as ações necessárias, como servir
no prato, cortar com algum objeto cortante, oferecer para as visitas,
entre outras ações. Em meio as ações, palavras são entoadas, como
por exemplo, “Aceita um pedaço de bolo? Ele está uma delícia!”. Essa
ação imaginária com o objeto que emerge da brincadeira constitui uma
etapa transitória e necessária para atuar com os significados e com as
palavras.

Ou seja, a criança opera antes com os significados da mesma forma que com os
objetos; depois, toma consciência deles e começa a pensar. Isto é, assim como
antes da fala gramatical e da escrita, a criança possui saberes, mas ela não sabe,
não tem consciência de que os possui e não os domina voluntariamente, na
brincadeira, ela usa inconsciente e involuntariamente o significado que pode ser
separado do objeto, ou seja, ela não sabe o que o objeto faz, não sabe que fala
em prosa, fala sem perceber a palavra (VIGOTSKI, 2008, p. 32).

Ocorre uma relação entre a fala das crianças, a brincadeira, os


objetos e as ações que são realizadas durante a atividade do brincar,
ocasionando a compreensão da fala pela criança por meio da
brincadeira. Para a fala humana existir, ela precisa do outro, precisa da
relação social, pois é no convívio com os demais seres humanos que a
criança percebe, compreende, internaliza e externaliza a fala humana
e desenvolve seu pensamento.

Pensamento e fala tem uma origem que nasce separada, não nascem juntas, mas
em um determinando momento se juntam. Toda função psíquica superior surge
em cena duas vezes: primeiro no campo coletivo e depois no campo individual.
A fala é uma função superior e para ela surgir como função superior ela tem que
surgir como uma fala comunicativa e para ela surgir como fala comunicativa ela
tem que surgir no coletivo (PRESTES, 2014, p. 345).

132
E ainda, por meio da brincadeira, a criança regula seu próprio
comportamento, quando estabelece regras para si. “A criança fala a si
mesma: tenho que me comportar assim e assim nessa brincadeira. Isso
é totalmente diferente de quando lhe dizem que pode fazer isso e não
pode fazer aquilo” (VIGOTSKI, 2008, p. 29). A criança aprende a regular
seu comportamento quando começa a usar a fala egocêntrica, sendo
que este é um momento de transição entre a fala comunicativa e a fala
individual, essa análise demonstra o pensamento dialético de Vigotski
(2012b). O autor discute sobre a contribuição de Jean Piaget, pois ele
tratou da fala egocêntrica, mas sua contribuição parou por aí, ao
afirmar que ela desaparece e que não tem nenhum papel importante.
Vigotski (2012b) esclarece que ela não desaparece, mas que passa por
uma transição, transformando-se na fala individualizada, na fala
interna, momento em que se evidencia o desenvolvimento do
pensamento verbal da criança.
A atividade da brincadeira também contribui nesse processo, pois
a criança desenvolve sua fala e seu pensamento, o que corrobora com
sua constituição como ser social, cultural e histórico, tomando
consciência da realidade existente.
Vale destacar que para a Teoria Histórico-Cultural há três atividades
centrais que guiam o desenvolvimento das crianças. Essas atividades são
denominadas de atividades guia, pois em cada período da infância há
atividades mais proeminentes e significativas, que desempenham um
papel condutor para o desenvolvimento das crianças em relação a outras
atividades que elas realizam. As atividades guias são as que ficam em
primeiro plano e que direcionam o desenvolvimento das funções
psíquicas superiores, as funções culturais que caracterizam o
comportamento consciente e que favorecem a aprendizagem. Portanto,
para cada estágio do desenvolvimento mental das crianças há uma
atividade dominante que oportuniza à criança se relacionar com o mundo
a sua volta e se desenvolver.
A primeira atividade guia, que acontece logo após o nascimento
do bebê, é a relação com os demais seres humanos. E trazendo a
questão da fala, “a primeira coisa é pensar que a fala não começa
quando a criança pronuncia a primeira palavra, a fala começa muito
antes disto: quando a criança ouve a gente falar com ela” (PRESTES,
2014, p. 345). Na relação com os demais seres humanos, os bebês se
relacionam afetivamente, por meio do contato emocional direto, e

133
desenvolvem observações das mais diversas expressões e
comportamentos, e começam a descobrir o mundo a sua volta.
A segunda atividade guia é a relação com os objetos sociais que
envolve a aquisição de modos de ação socialmente estabelecidos no
manuseio dos objetos. “Conforme a criança aprende os modos de ação
socialmente desenvolvidos com objetos, ela está sendo formada como
um membro da sociedade por um processo que inclui suas forças
sociais, cognitivas e intelectuais” (ELKONIN, 2012, p.160).
E a terceira atividade guia, mais presente durante a idade pré-
escolar, é a brincadeira de faz de conta. “O significado do brincar no
desenvolvimento mental da criança nessa idade tem muitos aspectos.
Seu significado primário repousa no fato de que no brincar a criança
está modelando relações humanas devido a artifícios especiais do
brincar” (ELKONIN, 2012, p. 164). Ressalta-se que o fato de haver uma
atividade guia, ela não exclui a existência de outras atividades, mas
apenas desempenha uma ação dominante no desenvolvimento das
crianças.

Brinquedo, brincadeira e jogo

No Brasil, em relação a Teoria Histórico-Cultural, é perceptível que


existe uma grande confusão em relação à compreensão e definição acerca
dos termos: brinquedo, brincadeira e jogo. Na tentativa de clarear um
pouco essa nebulosidade, compartilhamos um trecho de uma entrevista
realizada com Prestes (2014), em que a pesquisadora e tradutora do idioma
russo para o português, debate sobre os erros de tradução das obras de
Vigotski e de seus colaboradores para o nosso idioma.

O problema é que no russo há uma palavra para brinquedo, no entanto, as palavras


“brincadeira” e “jogo” merecem atenção. No russo é uma palavra só. Então, para
você diferenciar, por exemplo, uma brincadeira de faz de conta (brincadeira de
casinha) ou um jogo (de xadrez), você vai ter que entender o contexto. Não foi isso
que o tradutor ao traduzir a “Formação social da mente” fez. O que estava no inglês?
Play! E ele traduziu como se fosse brinquedo. O tradutor ainda coloca na primeira
frase: “o brinquedo é uma atividade”. Olha o conflito! O brinquedo é uma atividade?
Não soa esquisito? (PRESTES, 2014, p. 348).

Prestes (2014) esclarece que, de fato, no Brasil existe uma


confusão acerca desses termos, apesar de no português haver uma
clareza de ideia sobre o que cada um desses termos quer dizer, pois

134
em nosso idioma, é praticamente elucidativo o significado para
brinquedo, brincadeira e jogo. A confusão surgiu no processo de
tradução, pois no português há uma palavra para cada coisa, mas no
russo e no inglês, isso não acontece, sendo a mesma palavra para
brincadeira e jogo. Para traduzir corretamente, de forma a considerar
o que o autor da obra traduzida queria transmitir, era necessário
compreender o contexto a que se referia a escrita.
Em relação ao brinquedo e a brincadeira é mais perceptível a
diferença, pois o brinquedo é o objeto, e a brincadeira é a atividade. Na
primeira parte desse artigo, compartilhamos a possível origem
histórica da brincadeira, em que se evidenciou o provável surgimento
do objeto brinquedo, a partir da divisão social do trabalho e da
mudança do lugar das crianças na sociedade. Portanto, os brinquedos:

[...] aprecem em determinados graus de desenvolvimento da sociedade, e seu


surgimento foi precedido da invenção dos respectivos utensílios de trabalho. A
história da origem de alguns brinquedos seria apresentada em tal pesquisa como
reflexo da história das ferramentas de trabalho dos homens e dos utensílios
sagrados (ELKONIN, 2009, p. 44).

O brinquedo é um objeto que contribui para as crianças realizem


atividades que simulam a realidade existente na sociedade e que elas
não participam diretamente, originalmente, provocado pelo
distanciamento das crianças das atividades laborais. “O brinquedo
tampouco possa ser outra coisa senão uma reprodução simplificada,
sintetizada e de alguma maneira esquematizada dos objetos da vida e
da atividade da sociedade, adaptados às peculiaridades das crianças de
uma ou de outra idade” (ELKONIN, 2009, p. 42). E nesse sentido,
percebe-se o caráter histórico do uso dos brinquedos entre as crianças:

O quarto da criança contemporânea está cheio de brinquedos que não puderam


existir na sociedade primitiva, e o uso dos mesmos é incompreensível para a
criança daquela sociedade. Pode alguém imaginar entre os brinquedos da
sociedade primitiva os automóveis, trens, aviões, satélites artificiais, materiais de
construção, pistolas etc.? [...] Nessa mudança do caráter [das brincadeiras]
infantis no decorrer dos tempos reflete-se de maneira clara a verdadeira história
do brinquedo e sua dependência causal do desenvolvimento da sociedade, da
história da criança na sociedade” (ELKONIN, 2009, p. 43).

A brincadeira e o jogo, por sua vez, em muitos idiomas possuem


a mesma palavra para traduzi-los. De acordo com Prestes (2014), esse

135
é um dos motivos para a propagação da confusão existente entre
esses dois termos, pois ao traduzir a obra escrita, não se observou
detalhadamente o contexto do enunciado.
Diferentemente do esclarecimento entre brinquedo e
brincadeira, em que o primeiro é um objeto e o segundo uma atividade,
no caso da brincadeira e do jogo, a explicação não fica tão explícita,
pois os dois são atividades que possuem semelhanças, mas há um
aspecto central que destaca o significado de cada um. “No jogo vai ter
as regras às claras e a situação imaginária oculta. E na brincadeira isto
está invertido” (PRESTES, 2014, p. 349). Este é o aspecto central que
permite diferenciar essas duas atividades humanas. Na brincadeira, os
processos de imaginação que as crianças desenvolvem impulsionam a
realização dessa atividade. A imaginação fica em primeiro plano e se
destaca, enquanto as regras que são estabelecidas pelas crianças na
realização dessa atividade é um fator secundário. E justamente, por
conta do destaque que a imaginação desempenha na brincadeira, que
ela se torna a atividade guia do desenvolvimento da criança na idade
pré-escolar, por ser uma atividade que impulsiona e corrobora para o
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, associada ao
comportamento consciente das crianças.
No jogo, a imaginação não tem a mesma importância e o mesmo
destaque, pois é um aspecto secundário que fica subordinado as
regras, que é o aspecto central dessa atividade.

O que tratam os documentos curriculares nacionais sobre a


brincadeira?

Apesar das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil


– DCNEI (2009) e a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017) não
assumirem uma fundamentação teórica, os dois documentos
curriculares nacionais que regem a Educação Infantil tratam da
importância da brincadeira para o desenvolvimento das crianças, e
nesse sentido, consideramos pertinente destacar o que estabelecem
esses documentos legais. As DCNEI (BRASIL, 2009, p. 87) elucidam:

Uma atividade muito importante para a criança pequena é a brincadeira. Brincar


dá à criança oportunidade para imitar o conhecido e para construir o novo,
conforme ela reconstrói o cenário necessário para que sua fantasia se aproxime

136
ou se distancie da realidade vivida, assumindo personagens e transformando
objetos pelo uso que deles faz.

E a BNCC (BRASIL, 2017) corrobora ao destacar o brincar como um


direito de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, no sentido de
assegurar as condições necessárias para que elas aprendam em
circunstâncias nas quais possam desenvolver sua autonomia em
ambientes educativos que as convidem a vivenciar desafios e a sentirem-
se instigadas a buscar resolvê-los, nas quais possam elaborar significados
sobre si, os outros e o mundo social, cultural, histórico e natural.

Brincar cotidianamente de diversas formas, em diferentes espaços e tempos,


com diferentes parceiros (crianças e adultos), ampliando e diversificando seu
acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua
criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas,
cognitivas, sociais e relacionais (BRASIL, 2017, p. 38).

As DCNEI (BRASIL, 2009), em seu artigo 4º, definem a criança


como “sujeito histórico e de direitos, que, nas interações, relações e
práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e
coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa,
experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e
a sociedade, produzindo cultura”. Essa concepção de criança é
referendada pela BNCC (BRASIL, 2017), o que se evidencia que além de
vários aspectos, a criança é um ser que brinca e que se desenvolve em
meio às brincadeiras que realiza.
Esses dois documentos curriculares nacionais destacam o brincar
e o interagir como eixo estruturante das práticas pedagógicas da
primeira etapa da Educação Básica, em que as crianças podem
apropriar-se de conhecimentos e práticas sociais por meio de
experiências vivenciadas com seus pares e com os adultos,
contribuindo para a constituição de suas aprendizagens e
possibilitando o seu desenvolvimento. Nisso, a professora ou
professor tem um importante papel, e vale mencionar que para
Vigotski (2003), esse profissional é o organizador do espaço social
educativo, que vai além de pensar o espaço físico, mas no sentido de
oportunizar um contexto propício para a vivência de experiências
diversificadas. Pensando no papel da professora ou professor nesse
contexto de educação coletiva da primeira infância, as DCNEI (BRASIL,
2009, p. 87) destacam:

137
Também as professoras e os professores têm, na experiência conjunta com as
crianças, excelente oportunidade de se desenvolverem como pessoa e como
profissional. Atividades realizadas pela professora ou professor de brincar com
a criança, contar-lhe histórias, ou conversar com ela sobre uma infinidade de
temas, tanto promovem o desenvolvimento da capacidade infantil de conhecer
o mundo e a si mesmo, de sua autoconfiança e a formação de motivos e
interesses pessoais, quanto ampliam as possibilidades da professora ou
professor de compreender e responder às iniciativas infantis.

Voltando a concepção de criança destacada pelas DCNEI (BRASIL,


2009), percebe-se que as crianças são seres que observam, sentem,
questionam, levantam hipóteses, investigam, dialogam, e que
elaboram se apropriam do conhecimento constituído pela
humanidade por meio das relações sociais que estabelece com o
mundo natural, social, cultural e histórico. Sendo assim, as crianças não
estão confinadas a um processo de desenvolvimento natural,
espontâneo ou instintivo. Pelo contrário, as crianças se desenvolvem
na cultura, na relação com o mundo existente, e isso impõe a
necessidade de produzir intencionalidade educativa às práticas
pedagógicas na Educação Infantil com os bebês, as crianças bem
pequenas e as crianças pequenas, seguindo os termos utilizados pela
BNCC (BRASIL, 2017) para evidenciar as especificidades de cada
período da infância. Ao se pensar na intencionalidade educativa da
professora ou do professor na escola da infância, é importante
destacar essa ação docente em relação às brincadeiras, sendo assim,
Tunes e Tunes (2001, p. 87) apontam três eixos de como podem ser
organizadas as atividades educativas, e lançam alguns
questionamentos:

Assim, entendemos que uma proposta pedagógica para a educação infantil deve
contemplar três eixos de atuação da criança na instituição:
1. Aquele que diz respeito às oportunidades e aos incentivos para a
participação da criança em atividades do adulto: que atividades tipicamente
suas, os adultos podem fazer na instituição, e, ao mesmo tempo, permitir que a
criança, à sua moda, faça junto com eles e por eles regida?
2. O que se refere às atividades tipicamente infantis das quais o adulto deve
participar, porém, regidos pela criança: que atividades a criança gosta de fazer
junto com os adultos, regendo-os?
3. Finalmente, o que se liga às atividades tipicamente infantis, sem a
participação dos adultos: o que as crianças gostam de fazer sozinhas e o que
gostam de fazer apenas com seus pares?

138
As autoras nos convidam a olhar o espaço social educativo no
sentindo de oportunizar um contexto propício para as brincadeiras, que
podem ser organizadas seguindo três eixos norteadores: brincadeiras
organizadas pelos adultos com a participação das crianças, brincadeiras
organizadas pelas crianças com a participação dos adultos, e, sobretudo,
brincadeiras organizadas pelas crianças com seus pares.
Assim a recomendação é favorecer diferentes situações em que
as brincadeiras se façam presentes no contexto da escola da infância,
de diferentes modos, nos mais diversos ambientes, utilizando
materiais diversificados, e capazes de promover a autonomia das
crianças, em meio as relações sociais.

Considerações finais

Neste texto discutimos sobre as representações sociais que as


crianças externalizam por meio de suas brincadeiras, de como elas
demonstram o que percebem acerca do papel do homem e da mulher
na sociedade. E de que maneira, a professora ou professor, como
organizador do espaço social educativo, pode provocar as crianças a
refletirem sobre essas questões.
Dando continuidade, o artigo trouxe uma breve diferenciação
entre o brinquedo, a brincadeira e o jogo, que por motivos de erros de
tradução, provocou confusões em relação à uma discussão central da
Teoria Histórico-Cultural, a brincadeira. Isso ocorreu porque os
primeiros textos do Vigotski foram traduzidos do russo para o inglês,
e do inglês para o português, ou seja, além de não ter sido uma
tradução direta de um idioma para outro, esses dois idiomas (russo e
inglês) possuem uma mesma palavra para duas atividades distintas
(brincadeira e jogo), e ao traduzir para o português, em que há uma
palavra para cada atividade, se faz necessário analisar o contexto
escrito para discernir do que se trata. Em relação ao brinquedo, é mais
fácil fazer a diferenciação, pois trata-se de um objeto.
E, por fim, analisamos o que os documentos curriculares nacionais
– Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) e a
Base Nacional Comum Curricular (2017) – tratam acerca da importância
da brincadeira para o desenvolvimento das crianças, pois por meio das
brincadeiras, as crianças fazem uma leitura do mundo e interpretam o

139
que compreendem da realidade existente, imaginando e criando,
aprendendo e se desenvolvendo.
Portanto, por meio do que foi exposto neste artigo, percebe-se
as contradições existentes, e as evidências de que a brincadeira é uma
atividade engendrada nas experiências vivenciadas pelas crianças e no
lugar que elas ocupam na sociedade.
A infância não é uma fase da vida pré-definida biologicamente,
pois se constitui em movimento dialético diante da realidade do
contexto cultural e das atividades humanas compartilhadas
socialmente. A infância não é única, mas várias, pois elas emergem das
experiências de cada grupo social e se movimentam em constante
processo de transformação, de múltiplas maneiras.
Igualmente, as crianças se desenvolvem desde a mais tenra
infância, logo ao nascer, quando ainda são bebês, convivendo entre os
demais seres humanos, compartilhando da vida social e cultural,
vivenciando e trocando experiências. As crianças aprendem em meio
às relações sociais, internalizando os conhecimentos produzidos ao
longo da história humana.
A naturalização da brincadeira é uma negação da concepção de
criança como ser histórico, social e cultural, e da constituição histórica das
infâncias em meio aos mais diversos grupos sociais ao longo dos tempos.
Essa visão que naturaliza a brincadeira e seu processo de desenvolvimento
histórico apoia-se em uma concepção limitada, impondo uma interpretação
equivocada da existência humana, desconsiderando o processo histórico e
cultural engendrado pelos humanos.
Tais percepções se estabelecem em um critério metafísico, de
naturalização da atividade infantil da brincadeira, algo que precisa ser
repensado na sociedade, de forma a provocar um olhar sensível e
coerente à potencialidade existente em cada criança e nas atividades
infantis que realiza.

Referências

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.


Brasília: Conselho Nacional de Educação: 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base
Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, SEB, 2017.

140
ELKONIN, Daniil Borissovitc. Psicologia do jogo. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2009.
ELKONIN, Daniil Borissovitc. Enfrentando o problema dos estágios no
desenvolvimento mental das crianças. Educar em Revista, Editora
UFPR, Curitiba, n. 43, p. 149-172, jan./mar. 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 36ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. Livro 1: O
processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
PRESTES, Zoia. Entrevista. Revista Zero a seis, Florianópolis, v. 16, n.
30, p. 340-352, jul./dez. 2014.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu.
Edição bilíngüe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.
TUNES, Elizabeth; TUNES, Gabriela. O adulto, a criança e a
brincadeira. Em Aberto, Brasília, v. 16, n. 73, p. 78-88, jul. 2001.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia Pedagógica. São Paulo:
Artmed Editora, 2003.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. A brincadeira e o seu papel no
desenvolvimento psíquico da criança. Revista Virtual de Gestão de
Iniciativas Sociais. Junho, 2008.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Imaginação e criação na infância. São
Paulo: Ática, 2009.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas V: Fundamentos de
defectología. Madrid: Machado Libros, 2012a.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Pensamiento y habla. Buenos Aires:
Colihue, 2012b.

141
142
7.
Educação infantil inclusiva: pelo direito à diversidade

Maria Auristela Barbosa Alves de Miranda

Introdução

A Educação Infantil, assim como a educação inclusiva, constitui-se


a partir de lutas por efetivação de direitos. A primeira, das mulheres,
que cada vez mais assumindo atividades laborais não domésticas
precisam de um lugar seguro para sua prole; a segunda, das pessoas
com deficiência pelo direito de acesso aos bens culturais e serviços em
geral, em igualdade de condições com as demais pessoas. Mas pensar
na inclusão requer o olhar aberto e dinâmico sobre toda a diversidade
humana, que não se encerra nas minorias ou nas pessoas
historicamente invisibilizadas, como mulheres, crianças, migrantes,
indígenas, pessoas pretas ou pessoas com deficiência.
No Brasil, a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva
da Educação Inclusiva – PNEEPEI (BRASIL, 2008), apresentou como
público da Educação Especial pessoas com deficiência sensorial (visual,
auditiva), física ou intelectual, além das pessoas com transtornos do
espectro autista1. Esta escolha se deu por algumas razões, como o fato
de que anteriormente já se produzia materiais e equipamentos
voltados para atender a essas necessidades. Além disso,
costumeiramente, estas são as pessoas mais esquecidas pelas políticas
públicas e, portanto, mais alijadas da sociedade. Todavia, a orientação
do Ministério da Educação ainda antes da referida política versava
sobre a educação para a diversidade.
É conveniente e necessário, pois, entender que há diferentes
modos de desenvolvimento humano e diversas possibilidades e modos
de existir, portanto, não se trata de buscar meios para a normalização

1 Por ocasião da implementação da Política, em 2008, o termo utilizado era transtornos

globais do desenvolvimento (TGD), que foi alterado para transtornos do espectro


autista (TEA) em 2013, em razão da publicação do DSM – V.

143
– com a ilusão de que as crianças na escola da infância se desenvolvam
e se comportem de maneira homogênea. Mas, ao contrário,
compreender que somos todos diferentes e que aprendemos e nos
desenvolvemos nas relações colaborativas, e que todas as pessoas
têm potencial para aprender e se desenvolver.
Neste artigo discorremos sobre os marcos históricos e legais da
Educação Especial e sua constituição como inclusiva, sua
transversalidade em todos os níveis, etapas e modalidades da
educação brasileira. Trazemos à baila o pensamento de Vigotski a
respeito da Educação Especial com uma ótica inclusiva, pois embora
ele tenha falecido prematuramente, aos 38 anos de idade, no ano de
1934, é vastíssima sua produção nesse campo, tendo sido considerado
um de seus fundadores na Rússia. Discutimos também sobre o
desenvolvimento infantil, buscando abarcar sua diversidade e a
importância da escola da infância como garantidora do direito à
educação para a emancipação e desenvolvimento integral de todas as
crianças.
Asseveramos que a história, de acordo com a Teoria Histórico-
Cultural, é uma totalidade que se constitui dialeticamente nas relações
entre os seres humanos, ou seja, em constante movimento, entre
contradições e mediações de signos e instrumentos. Tanto é assim
que, na entrada da segunda década do século XXI, ainda deparamos
com experiências de segregação, integração e inclusão no que diz
respeito as práticas educativas em instituições não domésticas.
Esperamos, com as presentes discussões, fomentar um repensar e
reorientar de ações pedagógicas no sentido de colaborar,
efetivamente, para a construção de uma escola da infância inclusiva,
na qual as experiências sejam colaborativas e emancipadoras; uma
escola da infância na qual a diversidade não seja um problema, mas
antes uma riqueza.

Breve passeio pela história, legislação da Educação Especial e sua


constituição como inclusiva

A forma de olhar a pessoa com deficiência e sua inclusão nos


espaços coletivos de educação passou por diversas etapas, cada uma,
evidentemente, com concepções e conotações peculiares. De acordo

144
com Miranda e Sá (2020) foram as seguintes etapas: abandono;
segregação; integração e inclusão social e educacional.
Na antiguidade clássica, egípcios, romanos, gregos e hebreus
entendiam a deficiência como sinal de maus espíritos, castigo ou
vingança dos deuses ou ainda consequência do pecado dos
antepassados. Com base nessas ideias, matavam, abandonavam à
própria sorte ou segregavam em instituições assistencialistas as
pessoas com desenvolvimento diferente.
No auge do cristianismo, a deficiência ainda era entendida como
consequência do pecado dos antepassados, todavia, o assassinato era
inadmissível, então, difundiu-se o acolhimento por instituições de
caridade, especialmente conventos e mosteiros, que recebiam os
enjeitados – não apenas em razão de deficiência. Eram acolhidos por
meio das rodas dos expostos, a portinhola giratória que se abria para
receber a criança mas mantinha o renunciante no anonimato. Criadas
em Portugal a partir de 1498, no Brasil, recebeu crianças no período
compreendido entre 1825 e 1960.
As escolas surgiram durante o século XIII, na França, destinadas à
instrução dos filhos das camadas abastadas das sociedades. Depois,
com a revolução industrial na Inglaterra, abriu suas portas aos filhos
dos trabalhadores. Somente no século XIX começaram a surgir as
escolas especiais, em internatos, caracterizadas pela segregação,
disciplinamento e tratamento médico.
Em 1948 a Organização das Nações Unidas publicou a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que se configurou como marco na
busca do entendimento da diferença como valor e da educação como
direito, não favor, de todas as pessoas e não de alguns privilegiados.
Mas as ideias não se tornam políticas públicas nem se efetivam da
noite para o dia. Assim, as escolas especiais permaneceram com um
caráter assistencialista, caritativo e medicalizador, com vistas à cura e
reabilitação, na busca da normalização, do enquadramento no padrão
entendido como “normal”.
Cabe evocar aqui o mito grego do leito de Procusto. Reza a lenda que
Damastes ficava na estrada que levava a Elêusis e, quando um viajante se
aproximava, convidava-o a deitar-se sobre seu leito de ferro. Se o viajante
fosse maior que a cama, cortava-lhe os pés, as pernas, as partes que
sobravam da medida da cama; se o viajante fosse menor, esticava-o. Isso
lhe rendeu o apelido de Procusto, que significa “o esticador”. A ideia de

145
Procusto era que, para entrar na cidade, a pessoa deveria ter a exata
medida do leito. Essa história serve como uma boa metáfora, pois
ainda nos dias de hoje, perdura a ilusão da homogeneidade, de
padrões humanos ideais e se segrega quem não cabe neles.
Mas seguindo o curso da história, na década de 1970, embora não
tivesse sido superado o modelo segregador, em que as pessoas com
deficiência eram obrigadas a conviver apenas com outras pessoas que
também tivessem deficiência – em geral a mesma: instituições apenas
para pessoas com cegueira ou baixa visão, outras exclusivas para
pessoas com surdez, outras para pessoas com deficiência intelectual e
assim por diante – o mundo começou a experimentar o modelo de
integração. As escolas regulares permitiam o ingresso (matrícula) de
pessoas com deficiência, mas não nas classes comuns. O pressuposto
era de que as pessoas com deficiência ou com alguma síndrome ou
outras intercorrências no desenvolvimento, que lhes negasse o ideal
da normalidade, iriam se adaptar à convivência e ao ambiente escolar.
Todavia, relatos dessa época (STAINBACK; STAINBACK, 1999)
denunciam que essa convivência não existia. As crianças das salas
comuns sabiam da existência das crianças das salas especiais e vice-
versa, mas ficavam curiosas para saber quem eram, o que faziam,
como brincavam, como estudavam, porque não se relacionavam.
Ainda hoje, em lugares que mantêm – paralela e concomitantemente
– o paradigma da inclusão (porque essa é a política nacional para a
Educação Especial) e o da integração, é possível perceber como tantas
vezes as crianças das salas especiais são isoladas, convivem apenas
entre si ou, quando muito, poucas horas por semana brincam nos
mesmos espaços (pátios ou parques). Brincar no mesmo espaço não
significa brincar com outras crianças que não as do convívio cotidiano
na sala especial.
Na década de 1990, a ideia da educação como direito de todas as
pessoas começou a ganhar vulto no cenário mundial. As convenções
internacionais – com suas declarações, ratificadas por diversos países
– desempenharam importante papel na divulgação e defesa da
diversidade humana e da inclusão educacional e social.
Miranda e Sá (2020) enfatizam algumas dessas Convenções e
Declarações: de Jomtien, na Tailândia, em 1990; de Salamanca, na
Espanha, em 1994; da Guatemala, em 1999. Em 2002 ocorreram várias
Convenções: em Madri, na Espanha; em Sapporo, no Japão e Caracas,

146
na Venezuela. Em 2006, em Nova Iorque. E por fim a Declaração de
Incheon, na Coreia do Sul, em 2015.
O Brasil é signatário dessas Declarações e, por vias legais, tem
procurado implementar uma política nacional inclusiva. Vejamos,
também brevemente, a história brasileira da constituição do
paradigma inclusivo na Educação Especial. Por aqui, o atendimento
educacional às pessoas com deficiência iniciou-se no século XIX, com a
criação do Instituto Benjamin Constant, em 1854, e logo depois do
Instituto Nacional da Educação dos Surdos, em 1857, ambos no Rio de
Janeiro. Quanto à legislação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB-EN n. 4.024/1961 (BRASIL, 1961) defendia o direito dos
“excepcionais” à educação, preferencialmente dentro do sistema
geral de ensino. Um texto vanguardista, dado que ainda se vivia sob a
égide das escolas especiais segregadoras. Chama a atenção a
terminologia com que se identificava as pessoas com deficiência à
época: excepcionais, também deficientes ou defeituosos.
A LDB-EN n. 5.692/1971 (BRASIL, 1971) orientou um “tratamento
especial” para discentes da Educação Especial e reforçou o
encaminhamento destes para as escolas especiais e para as classes
especiais, uma vez que a década de 1970 implementava a integração.
Naquela época, o termo predominantemente utilizado para designar a
pessoas com deficiência era “portador de deficiência”.
A Constituição Federal (BRASIL, 1988) apresentou como um de
seus princípios fundamentais a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras
formas de discriminação. Defendeu a educação como direito de todos
e afirmou como dever do Estado a oferta do atendimento educacional
especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.
A atual LDB-EN n. 9.394/1996 (BRASIL, 1996) normatizou que os
sistemas de ensino devem assegurar currículos, métodos, recursos e
organização específicas para atender às necessidades dos alunos.
Estabeleceu que a Educação Especial seja ofertada preferencialmente
na rede regular de ensino e que, quando necessário, seja ofertado
atendimento educacional especializado. Nessa época, o termo
utilizado era “especiais” e, enquanto o mundo falava de inclusão, no
Brasil ainda pensávamos na integração e admitíamos a educação
substitutiva ao ensino regular.

147
O Plano Nacional de Educação – PNE, Lei n. 10.172/2001 (BRASIL,
2001) defendeu a construção de uma escola inclusiva que garantisse o
atendimento à diversidade humana. Outros marcos importantes
foram a Lei de Libras, nº 10.436/2002 (BRASIL, 2002a); a Portaria nº
2.678/2002 (BRASIL, 2002b), que aprovou diretrizes e normas para uso,
ensino, produção e difusão do sistema Braille; o programa Educação
Inclusiva: direito à diversidade, implementado pelo Ministério da
Educação em 2003 (BRASIL, 2003).
No ano de 2006, deu-se a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, em Nova Iorque, estabelecendo que os
estados-parte assegurassem um sistema de educação inclusiva em
todos os níveis de ensino. A partir daí, se enfatiza que o termo correto
a se utilizar é “pessoa com deficiência”, pois não se trata de a pessoa
ser deficiente ou portar uma deficiência, mas de ser uma pessoa com
várias características, dentre elas a deficiência, que é importante, mas
não é a única nem a mais importante. Essa definição está em profundo
acordo com o pensamento de Vigotski (2012a), para quem, a criança
com deficiência é antes de tudo uma criança, portanto, não devem os
professores, os pais ou a sociedade olhar para ela e ver apenas a
deficiência.
Outros documentos importantes que seguiram: a PNEEPEI
(BRASIL, 2008); Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com Transtorno do Espectro Autista, nº 12.764/2012 (BRASIL, 2012); Lei
Brasileira de Inclusão, nº 13.146/2015 (BRASIL, 2015), também
conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
É importante, pois, afirmar que essa história é traçada por lutas,
não é fruto do transcurso natural dos dias, meses e anos. Também,
lembrar o que já expusemos: um modelo não deixa de existir quando
surge outro. Ainda hoje temos no Brasil experiências de segregação
(escolas especiais), integração (classes especiais nas escolas
regulares) e inclusão (classes comuns nas escolas regulares). Essa
situação implica visões de homem, de educação e de sociedade
específicas. Compete a nós, profissionais da educação, empenhar
esforços para que no cotidiano da escola da infância haja lugar para
todas as crianças, porque todas são diversas, todas têm direito à
educação e potencial para aprender e se desenvolver.

148
As diferentes crianças – e seu desenvolvimento – na escola da infância

Vigotski2 viveu e morreu antes que a humanidade iniciasse as


discussões e lutas pela inclusão – escolar e social, mas na sua obra encontra-
se a crítica à escola especial segregadora, aos processos educacionais
apoiados na filantropia e no modelo médico, à busca pela
normatização do comportamento.
Para este autor e sua escola, a diversidade é a regra. Todas as
pessoas são diferentes e podem seguir por caminhos alternativos
(VIGOTSKI, 2012a) no percurso do desenvolvimento. Nas palavras de
Tunes (2018, p. 74) trata-se de “um gênio que se adiantou, talvez, em
séculos, a nossa utopia de uma sociedade livre e justa”.
Retomemos agora as concepções de crianças e de Educação
Infantil com base na Teoria Histórico-Cultural, dado que nossa defesa
é que a Educação Especial seja, como normatizado pela PNEEPEI
(BRASIL, 2008), uma modalidade que perpassa, atravessa,
transversaliza as demais modalidades, etapas e níveis educacionais.
A criança de idade pré-escolar é, de acordo com Zaporózhets
(apud SHUARE, 2017) capaz de raciocinar, tirar conclusões, agir com
objetos diversos, e essa ação é a base do domínio dos significados das
palavras, está na gênese do processo de generalização, ou seja, antes
de generalizar a palavra, generaliza a ação sobre os objetos, atividade
fundamental no desenvolvimento do pensamento. Essa ideia
encontra-se de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil – DCNEI (BRASIL, 2009), que nos artigos 3 e 4
definem a criança como sujeito ativo e capaz.
A Educação Infantil é definida pela LDB-EN (BRASIL, 1996) como a
primeira etapa da Educação Básica. Para as DCNEI (BRASIL, 2009), não
compete à instituição de Educação Infantil antecipar experiências,
como a alfabetização, mas ampliar as necessidades de conhecimento,

2 Vigotski é um autor russo, fundador da Teoria Histórico-Cultural, cujo nome em


português é grafado de modos diversos, a depender dos tradutores: Vigotski,
Vigotskii, Vygotsky, Vigotsky ou Vygotski. Assim, neste artigo usaremos a primeira
forma, seguindo a orientação da ABNT NBR 6023, de 2018, segundo a qual, deve-se
padronizar os prenomes e sobrenomes para o mesmo autor, quando aparecerem de
formas diferentes em documentos distintos. Nossa escolha se baseia na explicação de
Prestes (2012, p. 101), segundo a qual “há uma forma portuguesa de transliteração dos
nomes russos. Por isso, o nome do autor deve ser grafado em português como Lev
Semionovitch Vigotski”.

149
apropriação dos bens culturais, artísticos, científicos, filosóficos,
tecnológicos, com vistas ao desenvolvimento integral da criança.
A Teoria Histórico-Cultural confirma essa concepção, defendendo
duas linhas do desenvolvimento humano: o natural (biológico) e o
cultural (social, histórico). Outras teorias do desenvolvimento
defendem o interacionismo, isto é, que o desenvolvimento biológico é
influenciado pelas interações com o meio em que vive a criança. Mas
para Vigotski (2018) não se trata de influência nem de interação. Antes,
a criança se constitui como pessoa numa cultura e tempo específicos.
Assim como o Materialismo Histórico-Dialético define que, ao mudar a
natureza, o homem muda a si mesmo, para a Teoria Histórico-Cultural
a criança muda e é mudada pelas relações com as outras pessoas,
mediadas por instrumentos e signos, num processo de apropriação da
cultura humana.
Esse processo é educativo – entendendo que a educação pode se
fazer em qualquer lugar onde haja relações humanas de apropriação
da cultura, mas que hoje, a escola em geral – e a escola da infância em
particular – tem um papel preponderante. Sobretudo quando
pensamos na rede pública de educação, em que muitas das famílias
por ela atendidas não têm condições materiais – tempo, instrução,
recursos financeiros – para apresentar o patrimônio cultural a sua
prole. Assim, a educação em instituições coletivas não domésticas
desempenha um papel preponderante no desenvolvimento cultural
das crianças.
Acerca do papel do professor, de acordo com a Teoria Histórico-
Cultural, Mello (2015, p. 10) indicou um caminho:

o professor de criança pequena não dá aulas, mas propõe vivências que


provoquem a atividade das crianças, organiza situações que promovam o
encontro das crianças com a cultura em suas diversas formas de manifestação,
sem descartar as formas mais elaboradas. Para isso, observa, acompanha,
interpreta as necessidades das crianças e oferece níveis diferentes de ajuda
sempre que a criança solicita; interfere na atividade para ampliar as
possibilidades de vivência e aprendizagem; organiza intencionalmente o espaço
para provocar a curiosidade e a atividade infantil; procura as condições
adequadas para que a criança esteja sempre em atividade.

Nessa esteira, Martins (2012) conclama os profissionais da


Educação Infantil a superar práticas espontaneístas e, ao contrário,
organizar ações educativas que promovam as relações da criança com

150
seu entorno físico e social com vistas a explorar suas máximas
possibilidades de desenvolvimento.
De acordo com Vigotski (2012b; 2018), o desenvolvimento é um
processo dinâmico, que contém sempre, em unidade, aspectos da
hereditariedade e do meio e se assenta exatamente no surgimento de
novas particularidades, novas qualidades, novas formações, que não
afloram como a semente pré-existente que cresceu nem surgem “do
nada”. Ao contrário, estas qualidades novas se engendram no que já
havia se construído anteriormente, naquele processo de preparação,
centralidade e aperfeiçoamento. Isto é, em cada idade, cada qualidade
ocupa um papel secundário ou central e nessa relação o organismo e a
personalidade (o ser inteiro) vão se desenvolvendo, forjando o ser
humano.
Vigotski (2012b) sugeriu algumas idades ou períodos do
desenvolvimento que se diferenciam por seus tempos e conteúdos
específicos. Organizou-as através da alternância entre idades estáveis,
caracterizadas por mudanças graduais e lentas, e de crise, com
mudanças bruscas e fundamentais na personalidade: Crise pós-natal;
Primeiro ano; Crise de um ano; Primeira infância; Crise dos três anos;
Idade pré-escolar; Crise dos sete anos; Idade escolar; Crise dos 13 anos;
Puberdade; Crise dos 17 anos.
À luz dessas ideias, Leontiev (2014) desenvolveu a teoria da
atividade principal, aquela em que os processos psíquicos tomam
forma e se organizam, ou seja, que guiam as principais mudanças na
personalidade; e Elkonin (1987), descreveu a periodização por que
passa a criança no seu processo de desenvolvimento pontuando,
especificando qual é a atividade que guia o desenvolvimento em cada
período. Vigotski, Leontiev e Elkonin reafirmaram que esses períodos
do desenvolvimento guardam mais relações com as experiências do
que com a passagem cronológica do tempo.
Dessa forma, segundo Elkonin (1987), logo ao nascer, a atividade
que guia o desenvolvimento é a comunicação emocional direta entre
bebê e adulto. A criança, no primeiro ano de vida, tem a necessidade e
o interesse no outro humano, que vai cuidar de sua sobrevivência e
apresentar a forma de estar nesse mundo, como humano, na cultura
específica e no tempo determinado em que nasceu. Martins (2012, p.
102) afirma que é preciso proporcionar ao bebê “acesso a diferentes
espaços físicos, mostrar-lhe objetos, falar com ele etc. Enfim, o adulto

151
deve estar com ele para apresentar-lhe o mundo”. Assim como
oportunizar situações que favoreçam o surgimento de interesses
sociais.
Em seguida, a criança passa a ter como guia do seu
desenvolvimento a atividade objetal manipulatória. Todavia, a relação
emocional com o adulto não desaparece, apenas fica em segundo
plano. A criança necessita do adulto para lhe apresentar os objetos da
cultura, dizer-lhe o que são, como se chamam, para que servem, como
manipulá-los. Martins (2012, p. 116) orienta acerca da intervenção do
adulto fornecendo “modelos concretos de análise/síntese,
comparação e generalização, acompanhados de sua representação
verbal”.
O período seguinte é caracterizado pela atividade da brincadeira
de papéis. Por meio dessa atividade a criança de idade pré-escolar
apropria-se da cultura, compreende as relações sociais e não apenas
imita, mas reinventa – alimentada pela imaginação e pela criação – as
formas dessas relações. O professor ou a professora desempenham
papel fundamental na organização de espaços, materiais e tempos
para que as crianças brinquem e desenvolvam a imaginação, e se
apropriem das relações humanas. Daí a importância de experiências
diversas com a literatura infantil, as produções musicais, plásticas,
visuais, fotográficas, cinematográficas, artísticas de um modo geral,
bem como com as ciências, os esportes, as tecnologias, enfim, o
patrimônio cultural da humanidade.
Importante relembrar que a Teoria Histórico-Cultural entende o
desenvolvimento humano como um processo que se faz em duas
linhas: a natural (biológica) e a cultural (social, histórica). Segundo
Vigotski (2012b), do ponto de vista biológico, o desenvolvimento é
mais rápido na primeira infância, do ponto de vista psicológico, mais
lento. Portanto, o professor ou a professora que trabalha na Educação
Infantil, não pode desconsiderar a importância dessas duas linhas, nem
deve considerar que uma é mais importante que a outra.
Discutimos anteriormente sobre as críticas à educação pautada
em modelos médicos. No entanto é necessário diferenciar a busca pela
normalização ou administração de medicamentos, ou expectativa de
que os profissionais da área de saúde nos digam como colaborar nos
processos de aprendizagem e desenvolvimento das nossas crianças.

152
Cada área tem papel específico e estes são complementares, não
substitutivos.
Dessa forma, nós docentes, precisamos conhecer um pouco da
anatomia humana, identificarmos os marcos referenciais do
desenvolvimento (VICENTINI; STEFANINI; VICENTINI, 2012), pois, uma
vez que fazemos parte de uma espécie, embora tenhamos nossas
particularidades (ontegênese) que podem tornar nosso
desenvolvimento peculiar, alguns aspectos são considerados e
esperados de maneira comum (filogênese): uma gestação entre 37 e
40 semanas; sustentar a cabeça aos dois meses; sentar-se com apoio
aos três meses e sem apoio entre o quinto e o sexto mês; engatinhar
entre o sexto e o sétimo mês; ficar em pé com apoio aos seis meses;
caminhar com apoio aos nove meses e sem apoio aos 11 meses.
Como dissemos, são marcos de referência, que podem acontecer
um pouco antes ou um pouco depois dessas idades. De acordo com
Vigotski (2012b), é preciso observar não apenas o ciclo do
desenvolvimento já concluído, mas também os processos em curso;
compreender a dinâmica e não se restringir aos sintomas (FUHR, 2019).
Ou seja, um diagnóstico que não se limite a descrever o momento
atual, aquilo que a criança já consegue fazer sozinha. Um diagnóstico
prospectivo é aquilo que podemos chamar da atuação na zona de
desenvolvimento proximal (VIGOTSKI, 2012b), diagnosticar o que a
criança consegue fazer com ajuda, e não necessariamente de um
adulto, por vezes, a parceria mais producente é exatamente com outra
criança (KRAVTSOV, 2019).
Vigotski (2011, p. 869) alerta para o fato de que a psicologia da
criança com deficiência “foi construída, em geral, pelo método da
subtração das funções perdidas em relação à psicologia da criança
normal”. Porém, na sua concepção, não se trata de medir
quantitativamente o que tem ou o que falta, mas de observar
qualitativamente as possibilidades de cada criança e, por meio da
educação, ajudá-la no processo de desenvolvimento.
A criança, tenha ou não alguma deficiência, síndrome ou qualquer
intercorrência no seu desenvolvimento que a distancie daquelas
referências filogenéticas, precisa ser olhada a partir das possibilidades
e não dos limites, daquilo que é capaz com ajuda e não daquilo que não
consegue fazer sozinha. Nas palavras de Vigotski (2012b, p. 269): “ao
investigar o que a criança pode fazer sozinha, investigamos o

153
desenvolvimento do dia anterior, porém quando investigamos o que
ela pode fazer em colaboração determinamos seu desenvolvimento de
amanhã”.
Esse processo colaborativo tem relação com o conceito de
situação social do desenvolvimento. Segundo Vigotski (2012b, p. 264),
“a realidade social é a verdadeira fonte do desenvolvimento, a
possibilidade de que o social se transforme em individual”. Assim
como, para esse autor (VIGOTSKI, 2012a), a deficiência é social. Para
ele, a condição orgânica, biológica, física ou intelectual existente
engendra um desenvolvimento diferente, mas a deficiência se
manifesta quando a sociedade impede sua participação, seu usufruto
dos bens culturais, suas relações em condições de igualdade com os
meios, instrumentos e demais seres humanos.

Os bebês e as crianças bem pequenas atendidas na Educação Especial

Como temos anunciado, a PNEEPEI (BRASIL, 2008) define a


Educação Especial como uma modalidade que perpassa todos os
níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional
especializado, disponibiliza recursos e serviços e orienta quanto a sua
utilização nas turmas comuns do ensino regular.
Afirma a perspectiva da inclusão, logo não admite a educação
substitutiva àquela ofertada pela rede regular. Declara a
transversalidade, ou seja, que a Educação Especial não é uma
modalidade à parte, ao contrário, perpassa as demais modalidades,
etapas e níveis da educação, subsidiando o trabalho nas turmas
comuns. E oferece o Atendimento Educacional Especializado.
Pensemos, agora, sobre a situação dos bebês, crianças pequenas e
crianças bem pequenas – público da Educação Infantil – no
atendimento da Educação Especial.
A Nota Técnica nº 2 (BRASIL, 2015), que orienta sobre a
organização e oferta do atendimento educacional especializado na
Educação Infantil, afirma que:

O AEE na educação infantil é fundamental para que as crianças, desde os seus


primeiros anos de vida, usufruam da acessibilidade física e pedagógica aos
brinquedos, aos mobiliários, às comunicações e informações, utilizando-se da
Tecnologia Assistiva como uma área que agrega recursos e estratégias de
acessibilidade.

154
Segundo a referida Política (BRASIL,2008), do nascimento aos
três anos, o atendimento educacional especializado realiza-se por
meio de serviços de estimulação precoce, objetivando a otimização
dos processos de aprendizagem e desenvolvimento em interface com
os serviços de saúde e assistência social.
De acordo com Miranda e Sá (2020), frequentemente os serviços
de estimulação precoce, estimulação essencial e educação precoce
são entendidas como sinônimos, até mesmo nos documentos dos
Ministérios e Secretarias de Educação e de Saúde, assim como na
literatura da área. Todavia, há diferenças entre eles. Educação Precoce
objetiva a educação integral da criança – cognição, afeto, emoção,
motricidade, atenção, volição (BRASIL, 2009); é ofertada por
profissionais da educação; a criança recebe dupla matrícula – na creche
(0 a 3 anos e 11 meses) ou na pré-escola (quatro anos a cinco anos e 11
meses) e outra no Atendimento Educacional Especializado. Portanto
não há perspectiva de “alta” ou liberação do serviço, que se dará ao
longo da vida. Nos termos da Política, “deve ser realizado no turno
inverso ao da classe comum, na própria escola ou centro especializado
que realize esse serviço educacional”.
Diferentemente, os serviços de estimulação precoce ou estimulação
essencial caracterizam-se como serviços médicos, clínicos, terapêuticos,
ofertados por profissionais da saúde. Importantíssimos e
complementares ao serviço educacional. De fato, segundo o provérbio
africano, “é preciso toda uma aldeia para educar uma criança”, ou seja, o
trabalho intersetorial precisa de fato tornar-se realidade, posto que,
embora a criança seja um ser unitário, uma totalidade impossível de
compartimentalizar, há especificidades que são próprias de cada área:
educação, assistência social, saúde, mobilidade urbana e arquitetônica, e
uma não suplanta a outra, mas complementa.
No Distrito Federal, desde 1987, temos o programa de educação
precoce ofertado pela Secretaria de Estado de Educação, por
professores e professoras de educação física e pedagogos, às crianças
de zero a três anos e 11 meses que tenham deficiência física, sensorial
(visual, auditiva), intelectual, transtorno do espectro autista,
síndrome, nascimento prematuro ou qualquer intercorrência no
desenvolvimento. Está presente em todas as Coordenações Regionais
de Ensino. Outras Secretarias de Educação que trabalham nessa
perspectiva da educação são as do Rio de Janeiro e Curitiba.

155
Atendo-nos à realidade em que estamos inseridos, pensemos no
atendimento aos bebês e crianças bem pequenas no Distrito Federal,
em específico, na educação precoce e na sala comum. Faz-se
necessário apontar algumas contradições, no sentido de, quem sabe,
melhorar a oferta. O programa de educação precoce atende aos bebês
e crianças bem pequenas (zero a três anos e 11 meses), muitos dos
quais não têm matrícula na Educação Infantil, portanto, atua como
substituto à rede regular; esse fato contraria a PNEEPEI (BRASIL, 2008)
e a Resolução nº 4 (BRASIL, 2009b).
Podemos pensar ainda a respeito da necessidade de
encaminhamento médico para ingresso das crianças no programa.
Segundo a Nota Técnica nº 4 (BRASIL, 2014), “não se pode considerar
imprescindível a apresentação de laudo médico (diagnóstico clínico)”
para assegurar matrícula no atendimento educacional especializado.
Portanto, essa exigência vai na contramão da orientação nacional.
Quanto aos instrumentos utilizados nos atendimentos, os
pedagogos aplicam escalas de desenvolvimento comportamental
elaboradas por Gesell na década de 1960 revisadas, cujo objetivo é
determinar o nível evolutivo da criança. Uma vez que se trata de um
serviço educacional prestado pela Secretaria de Educação, cujo
currículo se fundamenta na Teoria Histórico-Cultural (assim como na
Pedagogia Histórico-Crítica), o uso dessas escalas seria coerente com
o diagnóstico prospectivo de Vigostki (2012b) ou ainda com as duas
linhas do desenvolvimento – natural e cultural? O olhar está sobre o
que o bebê ou a criança já desenvolveram ou sobre o que podem
realizar com ajuda (zona de desenvolvimento proximal)?
Podemos ainda conjecturar sobre o mecanismo de estudo de caso,
quando uma equipe composta pelos profissionais que atendem nos
serviços de AEE, coordenadores da instituição, da Coordenação Regional
de Ensino e familiares encontram-se para avaliar o percurso escolar da
criança e planejar ações futuras. De acordo com a Nota Técnica nº 2
(BRASIL, 2015), este deve ocorrer no início do processo, com o objetivo
de elaborar o plano de atendimento educacional especializado, mapear
as necessidades e possibilidades das crianças, identificar barreiras de
acessibilidade a fim de derrubá-las. Entretanto, no Programa de Educação
Precoce do Distrito Federal, ocorre ao final da idade limite de
permanência no programa (três anos e 11 meses). As equipes reúnem-se
para definir o destino da criança: se sua matrícula seguirá em uma classe

156
comum, em uma classe especial ou em uma escola especial. Entendendo
que aos quatro anos de idade a criança ainda pertence a Educação Infantil,
não seria lógico que o sentido do estudo de casos deveria ser analisar e
projetar ajudas para a criança na classe comum e assegurar-lhe o
atendimento educacional especializado na sala de recursos?
Outro aspecto digno de nota – e indagação – é a exigência de
adaptação curricular para as crianças matriculadas na Educação
Infantil, de responsabilidade do professor e da professora da sala
comum, com assessoria e colaboração de professor ou professora do
AEE. Mesmo sem discutir o mérito do documento que tratava das
adaptações curriculares ser de 1999, antecessor da PNEEPEI (BRASIL,
2008), uma vez que atualmente o debate é se essas adaptações não
são apropriadas a qualquer etapa, categoria ou modalidade, vale
lembrar que se embasa na ideia de que alguém – a professora ou o
professor da sala comum ou do AEE – determinará as capacidades de
cada criança e dirá o que cada um pode ou não aprender. Sobretudo
um currículo vigotskiano, que acredita indelevelmente no potencial do
ser humano, é uma contradição alguém dizer o que o outro é capaz ou
não de aprender. O que é necessário são as organizações de
metodologias, espaços, tempos e materiais para que todos se
apropriem do mesmo currículo, que é direito de todos.
Segundo as DCNEI (BRASIL, 2009), as práticas pedagógicas que
compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como
eixos norteadores as interações e as brincadeiras. Ideia mantida pela
Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), que
organizou o currículo da Educação Infantil em campos de experiências,
portanto, podemos afirmar que as brincadeiras e experiências vividas
na escola da infância devem ser acessíveis a todas as crianças.
Compete ao professor e à professora organizar os espaços, tempos e
materiais de modo que todas possam brincar em colaboração,
considerando que a diversidade é uma característica humana, não
exclusiva às crianças que tenham necessidades específicas.

Concluindo – provisoriamente

A luta pelos direitos à educação desde a primeiríssima infância e


pela inclusão escolar e social continuam em marcha. No cenário
brasileiro, nos dias hodiernos menos de 50% dos bebês têm acesso aos

157
serviços de educação em espaços não domésticos. Quanto à Educação
Especial, embora a PNEEPEI a defina como transversal, isto é, que
precisa ser ofertada em todos os níveis (Educação Básica e Ensino
Superior), etapas (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino
Médio) e modalidades (Educação Especial, Educação de Jovens e
Adultos, Educação Profissional e Tecnológica, Educação do Campo,
Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola e Educação
a Distância) e de caráter inclusivo, em espaços comuns, nas redes
regulares de ensino, ainda estamos distantes de efetivar esse direito.
Esta Política apresenta como público da Educação Especial
pessoas com deficiência física, sensorial (auditiva ou visual), intelectual
e pessoas com transtorno do espectro autista. Todavia, ela se situa no
contexto da luta internacional pelo direito de todos à inclusão social e
educacional. Portanto, a inclusão diz respeito ao entendimento da
diversidade (étnico-racial, de gênero, de idade, de classe social, de
credo, de hábitos, costumes e valores) humana como valor e não como
problema. Essa visão encontra eco na Teoria Histórico-Cultural, que
entende o desenvolvimento humano como um processo singular e que
se faz nas relações sociais.
Pensar na diversidade de idade é fundamental para quem trabalha
na escola da infância. Temos ouvido a voz dos pequenos? Ouvimos
quando nos falam dos seus interesses ou desinteresses? Construímos e
negociamos nossos planejamentos ou fazemos do nosso jeito aquilo que
entendemos ser mais importante, mesmo que desconsidere as
motivações, que para Leontiev (2014) são demarcadas pelas necessidades
das crianças? Respeitamos seus direitos no cotidiano da instituição?
Entendemos que o direito das crianças requer atenção ao direito das
famílias, portanto elas são bem-vindas, podem falar e participar
ativamente da gestão da instituição, como nossas parceiras?
Os bebês e crianças têm direito à convivência comum, a aprender
e se desenvolver em espaços não domésticos, através das brincadeiras
e interações. E as escolas da infância não se preparam previamente
para recebê-las – discurso que insiste ainda hoje – previamente. As
necessidades se apresentam quando as crianças chegam, e juntos:
familiares, professores e demais profissionais da educação, crianças e
entorno da escola da infância precisam planejar e executar as
estratégias que derrubem as barreiras e permitam, de fato, o acesso e
a inclusão de todas as pessoas, na educação, na sociedade, na vida.

158
O convite, portanto, da Teoria Histórico-Cultural é para que
derrubemos as barreiras, pois, “se criamos um país onde o cego e o surdo
encontrem um lugar na vida, onde a cegueira não signifique uma
insuficiência, ali a cegueira não será um defeito” (VIGOTSKI, 2012a). Por
meio de propostas emancipadoras, de experiências colaborativas
intencionalmente planejadas para promover aprendizagens e
desenvolvimento, construamos uma escola da infância verdadeiramente
inclusiva, na qual a diversidade seja um valor e não um problema.

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Veresk, p. 75-84.
VICENTINI, Carlos A.; STEFANINI, Maria Aparecida; VICENTINI, Irene B.
F. Considerações morfofuncionais do desenvolvimento do sistema
nervoso. In: ARCE, Alessandra; MARTINS, Lígia M. (org.). Ensinando
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n. 4, p. 861-870, dez. 2011.
VIGOTSKI, Lev S. Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos
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VIGOTSKI, Lev S. Obras Escogidas V – Fundamentos de defectología.
Madrid: Antonio Machado Livros, 2012a.
VIGOTSKI, Lev S. Obras Escogidas IV – Paidología del adolescente;
Problemas de la psicologia infantil. Madrid: Antonio Machado, 2012b.

162
8.
O corpo e o movimento no contexto da Educação Infantil
na Perspectiva da Teoria Histórico-Cultural:
reflexões necessárias

Ivete Mangueira de Souza Oliveira

O corpo em movimento na Educação Infantil: ser e estar no mundo

“Somente o vivido sobrevive. [...]. É por esse vivido apenas


que nós podemos agir sobre o mundo que nos rodeia.”
Gitta Mallasz1

Ao longo da história da humanidade muitas versões foram


produzidas pela cultura para nos falar sobre o corpo. O que é, afinal, o
corpo? A forma como nos movimentamos, criamos, desejamos,
agimos, sentimos, pensamos, tudo isso é o corpo? O que pode o corpo?
O que você já experimentou fazer com o seu corpo? E nos espaços
educativos, qual é a atenção destinada ao corpo dos bebês e das
crianças, especificamente a sua potencialidade no cotidiano da
Educação Infantil? Qual a importância do corpo e do movimento como
experiência para o desenvolvimento dos bebês e das crianças? Como o
corpo e suas linguagens podem ocupar os espaços da escola das
infâncias? Como a prática pedagógica pode se constituir em relação ao
corpo e ao movimento dos bebês e das crianças, considerando as
especificidades da Educação Infantil? Estas são questões norteadoras
deste texto, que tem como objetivo proporcionar reflexões sobre o
corpo e o movimento dos bebês e das crianças no âmbito da Educação
Infantil na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, de Lev
Semionovich Vigotski (1896-1934). Evidenciamos duas questões: a
importância do corpo e do movimento para o desenvolvimento dos
bebês e das crianças nessa primeira etapa da educação básica, e os

1 Citado em PEREIRA (2013, p. 125).

163
aspectos da prática pedagógica do professor como organizador do
ambiente educativo (VIGOTSKI, 2003).
Poderíamos começar tecendo críticas aos domínios do corpo,
historicamente, presentes nos espaços sociais, em especial nos
espaços das instituições educativas onde as crianças, desde bebês, são
ensinadas a ficarem quietas, sentadas, fazerem e andarem em fila,
ficarem caladas, serem obedientes. Essa é a instrução que reflete o
entendimento de que crianças educadas e comportadas são aquelas
que obedecem, não se movem, ou de forma acrítica, repetem o que o
professor ou a professora, como “detentor e transmissor do
conhecimento”, determina que elas façam como modelo de ser e estar
no mundo.
Segundo estudos e reflexões de Silva (2012, p. 217), esses espaços
e práticas sobre o corpo em movimento na Educação Infantil,

(...) salvo raras exceções o corpo das crianças é educado, treinado e disciplinado
por meio das “rotinas”, da regulamentação do tempo, espaço e movimentos da
vida cotidiana que institui e normatiza os tempos fixos, tais como “hora de...” e
os espaços como “locais para...”: dormir, comer, brincar, fazer tarefas escolares
etc.

Buss-Simão (2009), buscando identificar as concepções de corpo,


criança e educação na produção acadêmica, tomando como o corpus
de análise de dissertações de mestrado produzidas em diferentes
áreas de conhecimento no período compreendido entre 1997 a 2003,
nos reporta que:

É sobre o corpo que se exerce o controle, a repressão e o castigo. Em vários


momentos, as ações ou não ações das crianças são restringidas; até mesmo
aquelas ações que parecem comuns, como correr, pular, rolar, experimentar;
querer ou não dormir, querer ir ao banheiro, querer ficar sentada em silêncio ou
expressar-se através das múltiplas linguagens que as constituem. (BUSS-SIMÃO,
2009, p. 130).

As pesquisas realizadas por Silva (2012) e Buss-Simão (2009)


apontam para uma estrutura impregnada de limitações e padrões
regulatórios, determinando os espaços educativos onde, além da
conformação e fragmentação dos corpos, há também uma
conformação e fragmentação dos tempos, dos espaços e da própria
infância.
Em relação a essa estrutura, Tunes (2011, p. 10) acrescenta que:

164
Na escola, a regra máxima é uniformizar. Uniformiza-se o conteúdo que será
apresentado para todos, isto é, cria-se um currículo. Definem-se a priori os
conteúdos específicos que serão ensinados, o modo como serão ensinados – as
estratégias e os tempos de sua apresentação –, a sequência que os conteúdos
guardarão entre si, os momentos e os modos com que se verificará o grau de
penetração deles na cabeça dos alunos. Na escola, tudo pode ser ensinado,
desde que submetido a uma estruturação específica.

Esta é uma realidade que ainda podemos evidenciar no cotidiano


de muitos espaços educativos, o que nos desafia a ampliar nosso olhar
sobre nossas práticas em torno da Educação, principalmente na
educação das infâncias, tendo como base o respeito aos interesses,
necessidades, desenvolvimento e singularidades dos bebês e das
crianças.
Segundo Mello (2005), a busca por compreender como nos
desenvolvemos como seres humanos, como aprendemos e como nos
humanizamos, é uma das principais contribuições da Teoria Histórico-
Cultural para a Educação Infantil – e para a Educação, de modo geral.
Para a autora, Vigotski, ao “defender a ideia de infância como o tempo
da apropriação ativa das qualidades humanas formadas socialmente
ao longo da história”, rompe e desafia velhas concepções de
desenvolvimento humano, bem como fórmulas pedagógicas
excludentes e segregadoras.

(...) Ao fazer isso possibilitou compreender como esse processo acontece na


infância: como a criança aprende, como se desenvolve e forma suas capacidades
psíquicas, ou seja, como forma o pensamento, a fala, a memória voluntária,
como aprende a controlar sua vontade, como forma capacidades, habilidades e
aptidões, como forma seus sentimentos, sua moral, sua ética, enfim, como
constitui sua inteligência e como forma sua personalidade. (MELLO, 2015, p. 2).

Fazendo uma ponte com a Teoria Histórico-Cultural, vamos nos


convidar a olhar, sentir e brincar com os nossos corpos? Podemos
começar sentindo a nossa respiração. Como? Respirando! Se quiser,
coloque uma música para tocar. Outra sugestão é escutar o silêncio ou
os sons do espaço onde você pode buscar harmonia com os sons do
seu próprio corpo. Vamos começar? Espere! Antes de começar,
procure um lugar, um cantinho, e sente-se confortavelmente com
postura ereta ou na posição em que se sentir melhor. Pronto? Vamos
contar até três? Um, dois, três! Começando! Respire fundo! Expire!
Inspire! L e n t a m e n t e! Mais uma vez! Outra vez! Sinta sua respiração,

165
preste atenção nela, no seu coração e em todo seu corpo, começando
por onde você quiser, e sinta-se bem! Use sua imaginação e toque cada
parte de seu corpo. Uma a uma. Continue respirando. Expire! Inspire!
Mais uma vez! Outra vez! Sentiu? Como se sente? Quer registrar suas
sensações? Escreva-as, se quiser, e reflita sobre esse momento com
você.
É curioso começar um texto acadêmico em que pretendemos
trazer estudos e reflexões sobre o corpo, o movimento dos bebês e
das crianças e práticas pedagógicas no contexto da Educação Infantil,
brincando com a nossa respiração, uma vez que o ato de respirar é tão
natural e automático? É exatamente devido a essa naturalidade que
este convite é tão necessário, já que muitos de nós nem nota mais a
entrada e a saída do ar do nosso corpo.
Uma boa respiração, de acordo com Bassoli (2008), citado por
Possignolo (2012, p. 32), os pranayamas2 (técnicas respiratórias do
Yoga), além de favorecer o aumento da capacidade pulmonar, maior
vitalidade para os tecidos do corpo, liberação da via respiratória, entre
outros, também apresentam efeitos sobre o estado psíquico. Ou seja,
o ato de respirar consciente é tão essencial para a vida que nele pode
estar o segredo para melhorar nosso bem-estar, nossas emoções e
relações. Sugere-se que uma boa respiração seja plena de atenção a
cada movimento, sem interferências da mente, para se alcançar um
estado de plenitude.
Será que podemos convidar os bebês e as crianças para esta
experiência? De modo a que sintam a própria respiração, seu corpo,
seus movimentos, suas emoções, o espaço ocupado por seus corpos?
Será que experiências como esta podem favorecer o desenvolvimento
dos bebês e das crianças? Nesse sentido, as perguntas podem se
ampliar, esticando nossos olhares e o movimento dos nossos próprios
corpos e os corpos dos bebês e das crianças.
A sala de atividades é um ambiente propício para o bebê e a criança
sentir e explorar o seu corpo e o espaço? Ou ela é demarcada muito mais
por proibições do que pela liberdade e autonomia? Vamos pensar e fazer
um exercício sobre o que os bebês e as crianças podem fazer no cotidiano

2 Pranayama define um conjunto de técnicas respiratórias em que o elemento comum


é a atenção plena à inspiração e à expiração. O Pranayama é uma técnica eficiente,
pois funciona muito bem na questão do controle da mente e das emoções. Ver:
SIMÕES (2017).

166
desse espaço de experiências? Podem se movimentar? Qual a qualidade
desse movimento? Quais são os limites desse movimento para o
conhecimento e reconhecimento da potencialidade de seus corpos e das
relações com seus pares, da exploração dos espaços, ambientes,
brinquedos, materiais, jogos, brincadeiras e descobertas? Esses limites
são construídos com a participação dos bebês e das crianças? As
dimensões do humano potencializadas nos bebês e nas crianças – o
imaginário, o lúdico, o afetivo, o cognitivo, o corporal, o social, o cultural,
o político, o estético etc., e a condição de fazer escolhas e decidir – sobre
o que lhes interessa são consideradas? Como ficaria a lista de combinados
“pode/não pode” se inventássemos uma balança de encantamento com
olhos curiosos dos bebês e das crianças? Vamos fazer esse exercício?
Como podemos fazer uma educação em que os bebês e as
crianças possam vivenciar, de modo relacional, seus corpos, seus
movimentos, de modo autêntico, livre, sensível e respeitoso,
reconhecendo-as como sujeitos de direitos, considerando a
docilização e o disciplinamento a que os nossos corpos foram
submetidos ao longo da história – dentro e fora da escola? Como
profissionais da Educação, seremos capazes de superar os desafios
que uma educação para a corporalidade dos bebês e das crianças nos
propõe? Será que podemos construir uma educação em que as
infinitas e criativas possibilidades de expressões corporais e
movimento dos bebês e das crianças possam pertencer ao cotidiano
da Educação Infantil?

A Teoria Histórico-Cultural e o desenvolvimento humano: um campo


de possibilidades

“Há um passado no meu presente


O sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão.”
(“Bola de meia, bola de gude” - Milton Nascimento/Fernando Brant.)

Para a Teoria Histórico-Cultural, somos seres históricos e culturais


e desenvolvemo-nos por meio das relações sociais, permeadas pela
cultura. Sob essa perspectiva, o desenvolvimento é considerado como
um processo dinâmico e dialético entre a pessoa e a realidade, em que
os seres humanos, em constante relação com o social mediado pela

167
cultura, transforma-se e transforma a realidade na qual está inserido
(PEDERIVA, 2017).
Assim, a criança é considerada capaz de estabelecer relações com
o mundo que a rodeia, atribuindo valor ao que vivencia, desde os
primeiros momentos do seu nascimento, ou seja, o mundo é um
campo de possibilidades aberto para a criança imaginar, criar,
aprender, se movimentar, experimentar e se desenvolver. Nesse
sentido, a criança é capaz de descobrir e aprender com todo o seu
corpo, principalmente se tiver a oportunidade de experimentar o
movimento, a imaginação e a criação desde a mais tenra idade. Para
Vigotski (2018), o desenvolvimento humano resulta das experiências
vividas, e são as aprendizagens que impulsionam a formação e o
desenvolvimento das qualidades humanas, rompendo, desta forma,
com a teoria determinista e puramente biológica da constituição do
ser humano.
Kaiser (2017, p. 103), em consonância com a Teoria Histórico-
Cultural, propõe reflexões sobre as práticas pedagógicas e curriculares
dos professores da Educação Infantil partindo do princípio de que

(...) é nessa fase que a criança se constitui enquanto sujeito histórico-cultural e


que nesta perspectiva está clara a necessidade de ampliar dentro dos espaços
educativos oportunidades para o desenvolvimento de potencialidades criativas,
críticas e reflexivas na busca de alternativas e possíveis estratégias de
enfrentamento de problemas. Na continuidade desse pensamento, a
intencionalidade pedagógica do professor não se restringe apenas aos estudos
e seu envolvimento com os processos de saber, mas também na utilização de
estratégias metodológicas que considerem a cultura da comunidade educativa
como um todo e que favoreçam a aquisição de uma competência crítica em prol
do desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e criativo e sua consequente
aplicação prática. (KAISER, 2017, p. 103).

Nesse entendimento, a autora sugere que:

Usar de elementos artísticos e estéticos para sensibilizar novos olhares, suscitar


questionamentos, problematizar ações e promover um processo dialógico dos
processos educativos e criativos da criança no que se refere à produção de
sentidos da compreensão do processo de conhecimento e criação, deve ser uma
ação constante do professor de educação infantil, a fim de qualificar uma
experiência. Essa ação dependente do processo dialógico e do nível de
conscientização e intencionalidades do professor quanto ao seu papel deve estar
ancorada em um aporte teórico que sustente o protagonismo criativo infantil e
social para a transformação qualitativa da realidade. (KAISER, 2017, p. 103)

168
Sob essa ótica, Kaiser (2017) nos remete para a importância do
professor, ou da professora, como quem organiza o ambiente
educativo (VIGOTSKI, 2003, p. 76), mas sem abdicar da
intencionalidade educativa. Ou seja, criar com a participação dos bebês
e das crianças espaços de múltiplas possibilidades, onde elas, como
sujeitos de sua história e desenvolvimento, tenham a oportunidade de
envolver-se integralmente e em diálogo com a vida, em todas as
experiências que merecem e têm o direito de vivenciar no universo da
escola das infâncias.
Madalena Freire (2014) defende que a vida não pode ficar de fora
da escola, porque o ato de conhecer é tão vital como comer ou dormir,
e não podemos “comer ou dormir por alguém”. E que quando tiramos
a possibilidade de a criança conhecer este ou aquele aspecto da
realidade, estamos alienando-a da sua capacidade de construir seu
conhecimento. É construindo representações, símbolos, que a criança
pensa e lê o mundo. Essa mesma autora ressalta a importância das
descobertas das crianças, e afirma que é fundamental que elas tomem
consciência do que estão fazendo e conquistando, porque nessa ação
elas se apoderam do seu processo do conhecimento. Destaca ainda
que o professor ou a professora, igualmente com as crianças, são
sujeitos desse processo na busca do conhecimento, não havendo
compartimentos estanques entre as áreas do conhecimento, pois as
descobertas abrangem e ocupam todas as áreas e aprendemos com o
corpo inteiro.
Segundo Vigotski (2018, p. 24), temos, desde muito cedo, a
capacidade de imaginar e criar, e “(...) quanto mais rica a experiência
da pessoa, mais material está disponível para a sua imaginação. (...). A
imaginação origina-se exatamente desse acúmulo de experiência”.
Para ele:

A conclusão pedagógica a que se pode chegar com base nisso consiste na


afirmação da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso queira-se
criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação. Quanto mais
a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; maior é a quantidade
de elementos da realidade de que ela dispõe em suas experiências; sendo as
demais circunstâncias as mesmas, mais significativa e produtiva será a atividade
de sua imaginação. (VIGOTSKI, 2018, p. 24).
Martinez (2015), em estudo sobre a criança, a escola e a educação
estética na perspectiva histórico-cultural, concorda com Vigotski
(2018), quando este afirma que a imaginação é a base para a atividade

169
criadora, e a base da imaginação é a experiência, e neste sentido,
Martinez (2015, p. 19) afirma que:

Quanto mais experiências a criança tiver, mais material ela terá para imaginar e
criar. Assim, para a criança criar algo, primeiro precisa experimentar e depois
imaginar, para em seguida concretizar sua imaginação por meio do ato criador.
(MARTINEZ, 2015, p. 19).

Ainda de acordo com Martinez (2015, p. 18), “(...) a cada atividade


realizada no convívio social e cultural a criança desvenda algo novo. A
cada atividade, o mundo é descortinado perante os olhos infantis.”
Assim, considerando a potencialidade humana, podemos afirmar a
importância de espaços favorecedores de experiências mobilizadoras
do imaginário e da criação dos bebês e das crianças, ressaltando que
as experiências corporais se incluem nessa potencialidade, uma vez
que, quanto mais experiências, mais possibilidades de criação,
reinvenção e desenvolvimento dos bebês e das crianças.
Chamamos a atenção também para a necessidade de ampliarmos
nosso olhar sobre os espaços e ambientes, e ver o mundo com os olhos
dos bebês e das crianças. Você já experimentou pisar no chão, sentir o
barulhinho das folhas no chão, no ar, tocar numa flor, abraçar uma
árvore, esticar os braços para o céu, arrastar-se, correr, pular, fazer e
soprar bolinhas de sabão, brincar debaixo da mesa, dar asas às
cadeiras, tocar a terra, sentir o cheiro da terra, do chá, do perfume,
cantar, dançar, andar devagarinho, empilhar objetos, derrubá-los,
organizá-los, criar, inventar, reinventar brincando etc., como se fosse
um bebê ou uma criança? Podemos experimentar! Para nós, adultos,
estas experiências com o corpo movimentando nossas mais íntimas
sensações e memórias podem, erroneamente, até não serem
valorizadas, mas para as crianças são atividades que podem favorecer
o seu desenvolvimento, a expressão e a comunicação, e também
proporcionar a elas experimentar e ampliar suas relações com as
pessoas e com o mundo que a cercam, ampliando suas possibilidades
não só cognitivas, mas também as corporais, afetivas, emocionais,
éticas, estéticas, culturais e políticas.
Martinez e Pederiva (2014, p. 94) evocam explicações na obra de
Zoia Prestes, Quando não é quase a mesma coisa (2012), de que Vigotski
sempre chamava a atenção em seus estudos para o que nominava de

170
“unidade pessoa-meio em relação ao desenvolvimento da criança”, ou
seja, o estudo da pessoa e do meio como unidade.

A criança e o meio não se desenvolvem de forma independente um do outro,


mas sim, intimamente interligados, pois se trata de uma unidade. Sua premissa
é de que somos seres sociais, que nos constituímos em meio à relação com os
outros, por meio de trocas de experiências. (MARTINEZ; PEDERIVA, 2014, p. 94).

Por esse ângulo, podemos entrar no mundo infantil, lembrando


que os bebês e as crianças são seres em formação, e que nós,
professores e professoras, organizadores do ambiente educativo
(VIGOSTSKI, 2003), podemos criar, junto com elas, um fazer
pedagógico marcado pelas inúmeras possibilidades que este ambiente
pode favorecer por meio das relações sociais e culturais imbrincadas
nesse processo.
Para Gatti (2017), pensar e fazer educação são ações que não
podem estar desvinculadas das histórias de quem pensa e faz
educação, tendo em vista a dinâmica própria do processo educativo e
a formação dos bebês e das crianças em um tempo cultural e histórico.

Pensar e fazer educação – como ato intencional – envolvem considerar os


porquês, o para que, o para quem e onde ela será realizada, portando condições
teórico-práticas para pensá-la com fundamentos orientadores, planejá-la com
flexibilidade e realizá-la assumindo compromissos éticos e sociais. (GATTI, 2017,
p. 13).

Podemos destacar também o posicionamento dessa autora


quanto à importância da formação do professor e a compreensão ética
e política dos objetivos e intencionalidades desse fazer educativo, com
vistas aos objetivos que se pretende alcançar no tocante à educação
na escola das infâncias.
Segundo Paulo Freire (2014), a escola é um espaço de encontro,
de concepções de vida, de educandos, de educadores, de outros
igualmente envolvidos e responsáveis. Para a escola convergem vários
fatores que, possivelmente quando adequadamente trabalhados,
podem favorecer ao educando o desenvolvimento da criticidade,
autonomia e protagonismo. Para Freire (1998, p. 31), “(...) uma das
bonitezas de nossa maneira de estar no mundo, como seres históricos,
é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo”.
Acorsi (2007, p. 49) escreve sobre a escola destacando que:

171
A compreensão tempo-espaço traz à tona, de forma bastante significativa, as
relações de poder que agem na sua produção, refletidas tanto pela capacidade
de mobilidade quanto pela capacidade de controle, colocando os sujeitos como
colaboradores em um momento e como prisioneiros em outro.

Corroborando as perspectivas de Gatti (2017), Paulo Freire (2014;


1998), Acorsi (2007) e Pulino (2014, p. 3) retrata o espaço educativo
como um espaço de construções coletivas e de aprender a conviver:

A escola é um lugar para se viver e conviver, e não um espaço para se ensaiar a


vida. Uma escola plena de vida, de concretude, de relações efetivas, deve ser
uma escola autônoma, que assuma a autogestão, que, mais do que proporcionar
a participação de todos e todas numa estrutura já dada, abre-se para as
transformações que as pessoas julguem importantes.

Por estas considerações, os bebês e as crianças têm o direito de


espaços onde o humano e as dinâmicas sociais, políticas e culturais
estão presentes, podendo ser conflituosas ou antagônicas, mas a
imbricação dessas variáveis cria as possibilidades para as tensões,
diálogos e também os encontros, o que se comunica com a Teoria
Histórico-Cultural.
Segundo Mello (2017), com base na Teoria Histórico-Cultural, as
crianças aprendem quando são sujeitos de suas experiências. A autora
nos aponta resultados de pesquisas realizadas com crianças pequenas
educadas em creche – no Brasil e em outros países –, confirmando que,

(...) a inteligência e a personalidade dos pequenininhos se formam com as


experiências vividas e dependem do lugar que eles ocupam nessas experiências:
do quanto atuam, participam das escolhas que permitimos que façam, do
quando decidem, exploram e experimentam. Isto porque, só por meio de sua
atividade – de seu agir ativo –, sua aprendizagem e seu desenvolvimento
avançam. (...) O desenvolvimento é uma possibilidade e depende daquilo que os
bebês e as crianças pequenininhas vivem e de como se sentem nas experiências
que vivem. (MELLO, 2017, p. 42).

Barros e Pequeno (2017), também considerando a potencialidade


dos seres humanos, conforme preconiza a Teoria Histórico-Cultural,
defendem um espaço organizado onde as crianças possam imaginar e
vivenciar experiências significativas, dada a importância para o
desenvolvimento delas:

172
Por isso, nós professoras e professores, organizamos o espaço educativo de
maneira que este seja todo tempo um espaço promotor de novas experiências,
de novas trocas e criações. Fazemos isso quando compreendemos que todas as
crianças são ricas em possibilidades. Fazemos isso quando compreendemos,
também, que são iguais em seu direito a se desenvolver, mas são diferentes
como seres e que percorreram caminhos diferentes, em contextos, famílias e
experiências diferentes, com necessidades diferentes e especificidades. (...) a
organização do espaço deve expressar nossa intenção educativa de maneira que
este ambiente permita diálogo com a vida no seu aspecto real. (BARROS;
PEQUENO, 2017, p. 83).

Ao considerarem o papel do professor como organizador do


ambiente educativo, definição proposta por Vigotski (2003), Barros e
Pequeno (2017) trazem a importância de um ambiente múltiplo de
experiências, contando com a participação da criança no processo,
que, aliando experiências individuais e coletivas, as crianças são
convidadas a observarem e refletirem sobre seu lugar no mundo, suas
emoções, seus direitos, situações, experiências, como partícipes do
processo, extrapolando limitações, inclusive as relacionadas ao corpo.
Reconhecer o espaço educativo como um lugar de ser e de práticas em
que todos podem ser protagonistas da ação e da criação do saber,
implica romper com práticas pedagógicas deterministas, prontas e
acabadas, e mobilizar ações para a construção de espaços de
potências como essenciais ao processo criativo e educativo. Promover
e garantir a participação dos bebês e das crianças nos diferentes
contextos sociais em que vivem, construindo com elas a possibilidade
de conhecer e vivenciar as mais diversas experiências com seus corpos
e movimentos, pode favorecer as descobertas e, assim, ampliar suas
linguagens e formas de expressão na relação consigo mesmas, com
seus pares e com o mundo.
Barbosa e Horn (2001, p. 67), ao pesquisarem sobre a organização
do espaço e do tempo na escola infantil, afirmam que:

Organizar o cotidiano das crianças da Educação Infantil pressupõe pensar que o


estabelecimento de uma sequência básica de atividades diárias é, antes de mais
nada, o resultado da leitura que fazemos do nosso grupo de crianças, a partir,
principalmente, de suas necessidades.

As autoras destacam a importância do olhar que o professor lança


sobre as crianças: quem são elas, o que gostam de fazer, do que elas
brincam, como as brincadeiras se desenvolvem, em que espaços

173
preferem ficar, o que lhes chama mais a atenção, em quais momentos
do dia estão mais tranquilas ou mais agitadas. Essas observações
apoiam uma estruturação espaço-temporal que atenda às
necessidades dos bebês e das crianças, favorecendo suas
aprendizagens e desenvolvimento. Atentamos para a importância de
considerar os contextos sociais e culturais nos quais a proposta
pedagógica se sustenta, bem como a participação dos bebês e das
crianças no processo de construção dessa proposta e dos espaços e
rotinas.
Acorsi (2007, p. 57) contribui descrevendo que:

(...) a disposição do espaço e a organização do tempo permitem que a escola não


apenas ensine e regule através do currículo, mas também de sua arquitetura,
seus espaços e tempos, fazendo com que a aprendizagem não se dá apenas por
aquilo que a escola possibilita, mas também por aquilo que não tem lugar, por
aquilo que está silenciado em seu interior.

Podemos observar que a história que contamos ou o futuro que


imaginamos pode se refletir no que ensinamos no cotidiano dos
espaços educativos. Não só pelo que dizemos ou fazemos, mas
também pela configuração estética dos espaços, que, segundo a
autora, podem estar presentes não só com elementos pedagógicos do
ponto de vista material, mas, também, de elementos ocultos, como os
ideológicos, os políticos, os sociais, os econômicos e os culturais, que
trazem reflexos para a vida em sociedade, inclusive o silenciamento e
o apagamento dos bebês e das crianças.
Assim, o corpo, o movimento, as emoções, as aprendizagens dos
bebês e das crianças podem ocupar lugares para além do que é visto
ou dito, uma vez que a seleção das experiências e conhecimentos a
serem vivenciados em uma instituição educativa é fruto de escolhas.
Quando organizamos esse espaço, definindo o que ensinar, para quem
ensinar, seus objetivos e a forma como vamos ensinar, estamos
delineando, de certa maneira, a configuração desta sala ou desta
instituição, e estas escolhas não são neutras, nem tão pouco
imparciais; são, sobretudo, políticas (FREIRE, 2001, p. 91).
E como podemos definir espaço, ambiente e lugar diante de
contextos tão diversos? Para Pulino (2016, p. 75), citado por Moreira,
Vasconcelos e Pulino (2011), espaço, ambiente e lugar são assim
interpretados:

174
Ambiente e espaço são frutos de processos culturais que interagem com os
elementos naturais presentes num determinado meio. (...). O espaço é sempre
potencial, estando sempre disponível a se transformar em ambiente. O ambiente
é o espaço com contornos da cultura; o lugar é o espaço experienciado
individualmente. Um ambiente torna-se lugar a partir da dimensão humana, isto
é, quando ele é afetado singularmente pelo homem.

Entende-se, assim, que os espaços educativos podem ser um


meio privilegiado de aprendizagens e desenvolvimento, pois desde os
primeiros meses de vida os bebês e as crianças frequentam seus
espaços, ambientes e lugares e se desenvolvem diariamente,
aprendendo sobre si mesmas e sobre o mundo nas relações com seus
pares, com os adultos, nas experiências, por meio das rotinas diárias,
e na própria organização do ambiente educativo, incluindo seus
espaços e tempos.

Corpo e movimento: reconhecer-se e ser reconhecido pelo outro

“Há um menino, há um moleque


Orando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão”.
(“Bola de meia, bola de gude” - Milton Nascimento/Fernando Brant.)

Em Vigotski (2001), encontramos a força do social permeado pela


cultura como determinante na nossa formação como sujeitos
históricos e sociais, pois desde o nosso nascimento estamos inseridos
em um mundo social, que nos é apresentado dia a dia por nossos pares
por meio da linguagem. A forma como o outro se relaciona,
compartilha, nomeia, significa esse mundo simbólico-emocional para
os bebês e para as crianças, permite que eles e elas compreendam e
participem das dinâmicas sociais, contribuindo para seu
desenvolvimento como ser humano.
Para Vigotski (2003b), o desenvolvimento psicológico da criança
é um processo de natureza cultural, ou seja, a criança desenvolve suas
funções psicológicas superiores quando estabelece relações com a
cultura de seu grupo social. Assim, aos poucos a criança vai se
apropriando das significações que nós adultos atribuímos às coisas e,
em particular, às próprias ações.
Abraçar, tocar, cantar, dançar, chorar, dramatizar, falar, sorrir,
desenhar, escrever e tantas outras formas de linguagem pautam nossa

175
comunicação e nossas relações com o outro. Portanto, a comunicação é a
teia que nos movimenta enquanto sujeitos histórico-culturais. Essa
comunicação se dá por meio de diferentes meios, linguagens e
expressões. Quando bebês choramos e usamos o nosso corpo. Aos
poucos essa comunicação vai se transformando e se aprimorando e
singularmente ampliando esse universo de relações, em que cada um
interpreta e traduz o mundo nos seus mais diversos e particulares modos.
Assim, desde a mais tenra idade, nos relacionamos com o nosso corpo na
sua inteireza e multiplicidade de movimentos, ampliando nossos
conhecimentos nas relações com o outro e com o mundo.
Se pararmos um pouco para observar os bebês e as crianças em
diferentes contextos ou momentos, poderemos perceber suas
múltiplas formas de expressão, desde os gestos, balbucios, olhares,
choro, emoções, brincadeiras etc., e compreender que o bebê e a
criança, a partir de suas experiências, transforma em símbolo aquilo
que pode experimentar corporalmente. Para isso, a criança utiliza a
movimentação do seu corpo como linguagem para compreender,
expressar e comunicar seus conhecimentos, saberes, ideias,
entendimentos, desejos, medos, intenções, emoções.
Para explicar esse processo de incorporação simbólica, Vigotski
(1996) pontua o gesto como um importante meio de comunicação nas
dinâmicas sociais em que o bebê está inserido, pois o gesto de apontar,
por exemplo, marca a importância do outro no processo de
significação. Inicialmente, a ação do bebê se resume ao movimento
direcionado a um objeto que a criança ainda não consegue pegar
sozinho, por exemplo. À medida que o outro percebe e interpreta o
gesto de apontar, esse gesto do bebê ganha outra significação, uma
vez que passa a ser significado pelo outro, assumindo uma função
simbólica, e dessa forma o gesto se transforma em uma maneira visual
e simbólica de comunicação.
Para Strazzacappa (2001, p. 69), agimos sobre o mundo através
do nosso corpo, mais especificamente através do movimento. A
autora afirma que:

É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem,


trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos. No entanto, há
um preconceito contra o movimento. (...). Os adultos, em sua maioria, não se
movimentam e reprimem a soltura das crianças. Isso começa em casa e se
prolonga na escola. Embora conscientes de que o corpo é o veículo através do

176
qual o indivíduo se expressa, o movimento corporal humano acaba ficando
dentro da escola, restrito a momentos precisos como as aulas de educação física
e o horário do recreio. Nas demais atividades em sala, a criança deve permanecer
sentada em sua cadeira, em silêncio e olhando para a frente.

O movimento corporal, nesse entendimento, é uma importante


dimensão do desenvolvimento e da cultura humana, e se apresenta
como uma linguagem em que os bebês e as crianças podem aprender,
se comunicarem, se expressarem das mais diversas formas e agirem
no meio em que estão inseridas. Quando os bebês ou as crianças têm
a liberdade de movimentar o seu corpo, vivenciam a oportunidade de
ter experiências que podem contribuir para o seu desenvolvimento.
Marques (2014, p. 76), concordando com Johnson (1991), afirma
que:

Não “temos” um corpo, nós “somos” nossos corpos, corpos estes constituídos
a partir das relações que estabelecemos conosco mesmos, com os outros e com
o meio ambiente. De fato, somos (nossos corpos são) atravessamentos de
gênero, idade, orientação sexual, etnia, crença espiritual, classe social,
nacionalidade; somos o cruzamento de todas essas categorias, o que nos faz
sermos únicos e, ao mesmo tempo, coletivos – sociais.

Estas considerações nos permitem refletir e repensar sobre


nossas práticas pedagógicas, que ainda imobilizam os bebês em
berços, cercados etc., e as crianças em suas cadeiras e salas quando há
um universo a explorar. Esse olhar busca valorizar o corpo na sua
integralidade e o movimento corporal, não é só uma necessidade
físico-motora do desenvolvimento infantil, mas, também, uma
capacidade expressiva, cheia de intenções e mobilizadoras do
humano. Garanhani (2004) afirma que para a criança compreender e
expressar significados presentes no contexto histórico-cultural em que
se encontra ela necessita agir sobre esse contexto, ou seja,
movimentar-se corporalmente.

A especificidade da Educação Infantil: bases legais – o que elas


determinam?

“Ele fala de coisas bonitas que


Eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade, alegria e amor.”

177
Bola de meia, bola de gude
Milton Nascimento/Fernando Brant

Os bebês e as crianças, como “sujeitos históricos e de direitos e


produtores de cultura” (BRASIL, 2010), além de cuidados, necessitam
e devem ser inseridos em situações educativas que promovam seu
desenvolvimento intelectual, social, emocional e corporal, ou seja, sua
integralidade como ser humano em desenvolvimento. Assim, o cuidar
e o educar são ações indissociáveis no processo educativo dos bebês e
das crianças, que têm igual importância para a Educação Infantil. No
Brasil, esse segmento da educação é orientado por documentos legais
que buscam integrar ações práticas às propostas teóricas de educação
e, ao mesmo tempo, ofertar uma educação que esteja comprometida
com o desenvolvimento integral da criança.
Dentre o conjunto dos marcos legais, a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018), documento que regulamenta quais
são as aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas nas escolas
públicas e particulares de todo o País, determina o conjunto de
competências que os bebês e as crianças devem desenvolver ao longo
da Educação Básica. Na Educação Infantil, primeira etapa da Educação
Básica, a escola das infâncias deve garantir seis direitos de
desenvolvimento e aprendizagem, de forma que os bebês e as crianças
tenham oportunidades de aprender e se desenvolver: conviver,
brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se (BRASIL, 2018).
De acordo com a BNCC, são eixos da Educação Infantil:

Interações e brincadeiras são os eixos de sustentação de toda a prática


pedagógica: as interações com pessoas (seus pares e com os adultos) e objetos
em diferentes contextos e situações, que favorecem a ampliação do repertório
cultural das crianças, potencializando as aprendizagens e o desenvolvimento. As
brincadeiras, pois é brincando que as crianças representam o mundo e simulam
as relações existentes imitando, repetindo, transformando e ampliando suas
experiências. (BRASIL, 2018).

Adotando como referência as Diretrizes Curriculares Nacionais da


Educação Infantil (DCNEI), a BNCC propõe uma organização curricular
considerando a maneira como os bebês e as crianças aprendem e se
desenvolvem a partir de experiências cotidianas. São cinco os campos
de experiências: o Eu, o Outro e o Nós; Corpo, Gestos e Movimentos;
Traços, Sons, Cores e Formas; Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação;

178
Espaços, Tempos, Quantidades, Relações e Transformações (BRASIL,
2018).
Cada campo de experiências propõe objetivos de aprendizagem
e desenvolvimento específicos para três diferentes grupos etários:
bebês (de 0 a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas (de 1 ano e 7
meses a 3 anos e 11 meses), e crianças pequenas (de 4 anos a 5 anos e
11 meses).
O arranjo curricular por campos de experiências, segundo a BNCC,
permite:

Organização de práticas abertas às iniciativas, desejos e formas próprias de agir


das crianças, que são mediadas pelos professores; Imersão da criança em
vivências que promovem aprendizagem e desenvolvimento, sempre tomando as
interações e a brincadeira como eixos estruturantes; Mudança de foco do
currículo da perspectiva do/a professor/a para a perspectiva da criança, que
empresta um sentido singular às situações que vivencia e efetiva aprendizagens
(BRASIL, 2018).

Nesse sentido, o currículo da Educação Infantil deve ser


observado como um “conjunto de práticas que buscam articular as
experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos
historicamente acumulados” (BRASIL, 2010, p. 10), superando as
versões que concebem listas de conteúdos obrigatórios, ou disciplinas
estanques e também a ideia de que o saber do senso comum é o que
deve ser tratado com os bebês e com as crianças. Para efeitos do
ordenamento legal o currículo da Educação Infantil é organizado em
centros, módulos ou campos de experiência que precisam estar
articulados aos princípios, condições e objetivos expressos nas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI), de
modo a promover o desenvolvimento integral das crianças de 0 a 5
anos de idade (BRASIL, 2010).
A intencionalidade educativa está enunciada na BNCC para ser
trabalhada nos campos de experiências. Isso significa planejar
atividades que integrem o que está sendo proposto no currículo com
os interesses e necessidades dos bebês e das crianças, sendo trabalho
do professor ou da professora, como organizador do ambiente
educativo, refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar
as práticas e relações que vão promover o aprendizado e
desenvolvimento dos bebês e das crianças (VIGOTSKI, 2003). Desta
forma, ao pensarem na organização dos tempos e espaços das creches

179
e pré-escolas, é fundamental que sejam planejadas atividades
significativas, nas quais os bebês e as crianças possam imaginar e
vivenciar diferentes experiências.
Barbosa (2006), em pesquisa realizada a partir de revisão
bibliográfica de propostas pedagógicas e trabalho de campo em
creches e pré-escolas acerca das rotinas na Educação Infantil, afirma
que:

As rotinas podem tornar-se uma tecnologia de alienação quando não consideram


o ritmo, a participação, a relação com o mundo, a realização, a fruição, a
liberdade, a consciência, a imaginação e as diversas formas de sociabilidade dos
sujeitos nela envolvidos; quando se tornam apenas uma sucessão de eventos, de
pequenas ações, prescritas de maneira precisa, levando as pessoas a agir a
repetir gestos e atos em uma sequência de procedimentos que não lhes
pertence nem está sob seu domínio. É o vivido sem sentido, alienado, pois está
cristalizado em absolutos. Ao criar rotinas, é fundamental deixar uma ampla
margem de movimento, senão encontraremos o terreno propício à alienação
(BARBOSA, 2006, p. 39).

O estudo apresentado por Barbosa (2006) demonstra a


importância de compreendermos, nós profissionais da Educação, as
rotinas como uma das categorias centrais das pedagogias da Educação
Infantil. A discussão central de sua pesquisa transcende concepções
binárias sobre a rotina: positiva ou negativa, deslocando as discussões
para a complexidade desta rede de práticas educacionais como
possibilidade de transformação.
Madeira-Coelho (2017) alerta que os estudos voltados para a
compreensão do desenvolvimento infantil têm se organizado a partir
de dinâmicas e aspectos isolados: nos âmbitos biológico, cognitivo,
emocional, social, cultural e ecológico, como grupos estanques de
análise. Ainda para a autora, linhas investigativas, como, por exemplo,
a abordagem da psicologia sociocultural construtivista, destacam às
interações que ocorrem na relação histórica “indivíduo-contexto
sociocultural” como instâncias construtoras e constitutivas do
desenvolvimento infantil, ignorando a emocionalidade que permeia as
relações humanas. Estes estudos fragmentados da criança, conforme
expresso por Madeira-Coelho (2017), têm conduzido,
equivocadamente, a educação a desenvolver práxis pedagógicas
igualmente fragmentadas que não atendem nem aos interesses da
criança, nem as suas necessidades (MADEIRA-COELHO, 2017).

180
Aguiar (2020, p. 128), em sua dissertação de mestrado A criança
na Educação Infantil: a roda de conversa como espaço/tempo de infância,
criação e experiência, levanta a importância da formação continuada
dos professores:

(...) uma formação substancial de professores, não com uma formatação ou


treinamento (...), mas como um processo de tornar-se; um processo que nunca
se interrompa e que se abra para ações coletivas de estudos e reflexões que
assumam o ser humano em processo de tornar-se e, portanto, educador/a e
criança como pessoas que se constituem uma relação na temporalidade
aiônica[3] de sua experiência de ensinar e aprender, numa perspectiva crítica e
criativa, contextualizada nas suas vivências e nos seus desejos, sonhos e
interesses.

Estas reflexões nos permitem pensar e acreditar na possibilidade


da existência e/ou construção de espaços de educação, em que
docentes, notadamente na Educação Infantil, podem fazer da escola
territórios, não de conformidades, mas de potentes produções
subjetivas, numa ética que afirma essencialmente a vida presente em
cada ser – bebês e crianças - em sua singularidade e relação com o
mundo, e se expressando com liberdade (TUNES, 2011).
Assim, os espaços devem ser criados considerando-se as
dimensões do humano, em que as experiências e as vivências se
firmem em observância à amplitude de sua significação numa
perspectiva de que podemos, com a parceria dos bebês e das crianças,
desterritorializar nossos corpos contra os rigores de uma sociedade
que busca nos enquadrar e nos moldar de acordo com papéis sociais
em sutis e arraigadas opressões.

Reflexões finais: por uma educação em que o corpo esteja e seja


presente

“Bastava um dia de sol, um pincel na mão, e logo


o corpo ocupava o lugar do papel, e a brincadeira se iniciava.”
(PEREIRA, 2013, p. 97).

As reflexões aqui propostas nos convidam para o exercício de um


novo olhar sobre nossos corpos e nossos movimentos nos espaços

3 “Tempo intenso, não medido, que flui, e que, como fluxo, escapa ao compasso do
dever e se movimenta no devir.” (PULINO, 2016, p. 79).

181
educativos, inclusive que nos arrisquemos a ver o mundo e suas
relações com os olhos dos bebês e das crianças, considerando os
contextos sociais e culturais repletos de singularidades e
possibilidades.
Um olhar que favoreça a construção de espaços abertos às
experiências, às descobertas e aos desafios dos bebês e das crianças
no cotidiano da Educação Infantil. Espaços em que os bebês e as
crianças vivenciem as mais diversas experiências corporais, expressem
sentimentos, emoções e pensamentos, ampliando as possibilidades de
aprendizagem e se desenvolvam. Espaços onde seus corpos, suas
potencialidades, tempos e limites sejam respeitados e estejam
ancorados no entendimento de que são seres de possibilidades e
subjetividades.
Reflexões que consideram a especificidade da Educação Infantil e
apontam para a importância da formação continuada dos profissionais
que atuam nessa importante etapa da Educação, como autores e
atores que são, no processo de desenvolvimento próprio, dos bebês e
das crianças, bem como para a construção de um espaço coletivo da
Educação Infantil favorável às experiências e por conseguinte, ao
desenvolvimento de todos os envolvidos. Um convite à inteireza de
nossos corpos e superação de concepções e práticas pedagógicas
pautadas na fragmentação dos corpos e do conhecimento.
Para Moreira (1995, p. 85),

A criança é movimento em tudo o que faz, pensa e sente. O seu corpo presente
é ativo em todas as situações e em todos os momentos. Ele, o corpo, dialoga
todo o tempo com todos que o cercam. Desde uma brincadeira como pega-pega,
até as formações em roda ou em colunas, posso notar que o corpo, por meio dos
movimentos, denota sentimentos e emoções.

Assim, evidenciamos a importância de compreendermos e


valorizarmos a potencialidade dos corpos, movimentos dos bebês e
das crianças, dos espaços e tempos no âmbito da Educação Infantil à
luz da Teoria Histórico-Cultural. Produzindo, na educação das
infâncias, um tempo de descobrir, explorar e aprender, pois é nos
ambientes acolhedores e favoráveis às relações, às experiências e
aprendizagens, que os bebês e as crianças podem se desenvolver: um
espaço social que deve caber o inesperado para o “novo surgir e o
inusitado surpreender”. (PULINO, 2016, p. 76).

182
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187
188
9.
Literatura, aprendizagens e desenvolvimento na
Educação Infantil à luz da Teoria Histórico-Cultural

Simão de Miranda

Quem começa pela menina da capinha vermelha


pode acabar nos Diálogos de Platão,
mas quem sofre na infância os estragos
dos livros instrutivos e cívicos,
não chega até lá nunca.
Não adquire o amor da leitura.
Lobato (1964, p. 250)

Introdução

A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é sem


dúvida um momento fulcral na história de vida de todos nós. Fase que
desenha os primeiros rumos de um duradouro percurso do nosso ciclo
vital. Quanto mais sólida, ajustada e proveitosa, provavelmente serão
qualitativamente melhores as implicações futuras. Nossas primeiras
aprendizagens alicerçam todas as demais e orientam nosso
desenvolvimento. Dentre estas aprendizagens, a da linguagem,
poderoso instrumento social, é basilar. Entendemos que as primeiras
histórias da infância, sejam as da tradição oral ou as lidas dos livros para
crianças, não apenas favorecem a aprendizagem da língua materna,
mas plasmam todas as dimensões do desenvolvimento humano.
Carregadas da força arrebatadora das ancestralidades e dos afetos, a
literatura infantil vai constituindo amálgamas das nossas histórias
pessoais e sociais.
Assim, este texto propõe articular os processos de aprendizagens
e desenvolvimento da criança em idade escolar com uma teoria que
entende as funções dos instrumentos da cultura e da linguagem como
mediadoras no desenvolvimento das funções mentais superiores,
também denominados culturais, e que são estas que favorecem nossa

189
humanização, a denominada Teoria Histórico-Cultural. Para tanto,
faremos um retrospecto histórico e nos familiarizaremos com
conceitos fundamentais no campo da literatura no plano geral e da
literatura infantil de forma específica. Exploraremos suas
possibilidades na Educação Infantil, discutiremos o que são
aprendizagens e desenvolvimento na perspectiva da Teoria Histórico-
Cultural, especularemos como estas articulações podem se efetivar na
Educação Infantil. Também vamos repertoriar as professoras1 com
exemplos de atividades que podem inspirá-las no trabalho com esta
proposta teórica e, ao final, proporemos um guia para avaliação e
seleção de literatura para a Educação Infantil.
Tendo como objetivo situarmos a literatura no contexto da
Educação Infantil sob o prisma da Teoria Histórico-Cultural,
decomporemos o tema nas dimensões que o constituem.

O que é literatura?

A literatura é uma das manifestações humanas mais antigas. O


Livro dos Mortos do Antigo Egito, para lá de 1.000 a.C. é um destes
exemplos de datação histórica milenar. Obviamente elaborado em
rolos de papiro, produzidos a partir do talo da planta Cyperus papyrvs,
abundante às margens do rio Nilo. Reunia uma antologia de poesias,
feitiços, orações e hinos que era colocada com as múmias nos seus
túmulos, a fim de amparar o defunto em sua jornada para o além. Vale
lembrar que o papiro foi uma invenção genial para o registro do texto
escrito sendo sua principal vantagem a maleabilidade que permitia
enrolá-lo e acondicioná-lo. Todavia havia desvantagens imensas: era
muito quebradiço, irresistente à umidade e pegava fogo com
facilidade.
Outras civilizações antigas igualmente tiveram a literatura como
forma de expressão e comunicação. Encontramos também suas raízes
na Torá, escrituras religiosas judaicas produzidas em pergaminho lá
pelos 450 a.C., que, diferente do papiro, era produzida a partir de peles
de ovinos. Temos o Velho Testamento, coletânea de escrituras

1Embora saibamos que há também professores na Educação Infantil, adotaremos a


expressão “professoras” pela predominância feminina na Educação Infantil e também
como nota da desigual representatividade em termos de gênero nos níveis centrais e
decisórios da política educacional brasileira.

190
hebraicas, também como marco histórico da literatura, por volta de
200 a.C., igualmente em pergaminho. Esta técnica, inventada na cidade
grega de Pérgamo, onde hoje é a Turquia, permitiu flexibilidade à
manipulação e acondicionamento em rolos, superando em vantagens
o papiro: resistia à umidade, era menos inflamável, mais duradouro e
podia ser raspado para ser reescrito várias vezes.
Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), na sua obra Poética
(ARISTÓTELES, 2015), já definira a literatura como imitação da
realidade pelo uso da palavra. A Poética foi o pioneiro e mais
extraordinário estudo sobre narrativas e formas literárias do ocidente.
Desde lá, diferentes conceitos foram elaborados a partir de distintos
prismas teóricos e culturais. A teoria literária contemporânea nos diz,
dentre outras coisas e de modo genérico, que a literatura é uma
manifestação linguística cujo objetivo é a expressão estética.
Didaticamente falando, é uma manifestação artística, em prosa
ou verso, que emprega palavras para produzir arte. Aristóteles (2015),
no conceito proposto, ao classificar a literatura em três grandes
gêneros: o lírico, enquanto palavra cantada; o épico, a palavra narrada
e o dramático, a palavra representada, destaca especialmente a
palavra representada, isto é, encenada teatralmente, o caráter
catártico desta arte. Para ele, portanto, o texto literário proferido
dramaticamente permitia a purgação humana, a purificação espiritual.
Assim, a literatura está, dentre outas coisas, para nos produzir catarse,
esta libertação aristotélica. De forma mais aproximada, a literatura é
uma ação humana no campo das linguagens que, além de comunicar,
também nos sensibiliza e nos humaniza.
Vigotski, cujas pesquisas iniciaram-se na crítica literária na obra
Psicologia da Arte, finalizada em 1925, quando tinha 19 anos, e
somente publicado na Rússia 40 anos depois, utiliza o conceito da
catarse aristotélica para explicar nossa reação estética como uma
descarga nervosa ao impacto de uma obra de arte: “nossa reação
estética se nos revela antes de tudo não como uma reação que
economiza mas como reação que destrói a nossa energia nervosa,
lembrando mais uma explosão do que uma economia de centavos”
(VIGOTSKI, 1999, p. 257). Portanto, aqui já sinalizava para a articulação
desse fenômeno à perspectiva histórico-cultural.

191
O que é literatura infantil?

Ainda há quem estranhe esta nomenclatura, uma vez que o termo


“literatura infantojuvenil” pretendia contemplar crianças e jovens.
Embora não seja fácil definir e estabelecer uma cronologia de infância
e juventude, pois variam de cultura para cultura, o fato é que o
mercado livreiro foi definindo um segmento particularizado, o dos
livros voltados exclusivamente às crianças, sobretudo as menores,
chegando aos bebês. O que denominamos como literatura infantil
destaca-se das demais pelas temáticas, pela reduzida extensão do
texto e tamanho das letras, ou ausência deste, pelo padrão linguístico,
pelos apelos visuais etc. Enquanto a juvenil rompe, extrapola estas
características. Nos deteremos melhor neste aspecto mais adiante.
Tecnicamente, literatura infantil é um segmento da produção
literária cujos textos são classificados como adequados à leitura pelas
crianças. Teoricamente, alguns linguistas, como Cadermatori (1991),
consideram-na como um gênero literário de natureza interdisciplinar,
que precisa prever as competências linguística e textual, assim como
as experiências de vida da criança. Mas, muito mais do que isso, desde
nosso ponto de vista, literatura infantil é em primeiro plano
“literatura”, onde coabitam fantasia e realidade, razão e emoção,
criaturas e criadores, tão imprescindíveis ao bem-estar e ao
desenvolvimento da criança. Para que sejamos leitores críticos,
precisamos antes sermos leitores que amam livros. Todavia, conduz no
seu íntimo um infinito universo de outros saberes. Por isso concordo
com Cadermatori (1991) que a literatura infantil “proporciona uma
reorganização das percepções do mundo e, desse modo, possibilita
uma nova ordenação das experiências existenciais da criança. A
convivência com textos literários provoca a formação de novos
padrões e o desenvolvimento do senso crítico” (p. 18-19).
A literatura infantil é um território onde as possibilidades não se
esgotam, ao contrário, se multiplicam sempre que as experiências com
ela se estendem e se aprofundam. Extrapola sua função utilitária, ou
seja, o “para que serve”, e se apoia em um fluxo recursivo, pois em
outro movimento ela objetiva, e subjetivamente, sempre “serve” para
“algo”. Entretanto vive o difícil dilema “hamletiano”: ser ou não ser
utilitário.

192
É oportuno sabermos que a literatura infantil, como a
conhecemos hoje, “partiu do livro escolar, do livro útil e funcional, de
objeto eminentemente didático” (ARROYO, 1990, p. 97). Isto é, entre
teor utilitário e conteúdo de deleite, há muito território para discussão.
Entendemos que não é prudente radicalizar para qualquer dos
extremos. A literatura infantil não pode ser, sob qualquer hipótese,
didática, doutrinária ou moralizante. Mas se, no bojo de uma
encantadora história, o pequeno leitor ou ouvinte da história narrada,
voluntariamente elaborar suas conclusões, será extremamente
louvável. E se não o fizer, continuará sendo literatura.
A arte literária é espaço abissal, oceano gigante, terras sem
fronteiras convidando leitores para incursões sem fim, explorações
ilimitadas. Pobreza nossa, limitarmo-nos às bordas, que na verdade
não existem. Por outro lado, seria igualmente empobrecedor reduzi-la
a dever de casa. Estou de pleno acordo com o genial Monteiro Lobato,
pioneiro na literatura infantil brasileira, criador da primeira editora
nacional, a “Monteiro Lobato e Cia” em 1918, ao asseverar que “quem
começa pela menina da capinha vermelha pode acabar nos Diálogos
de Platão, mas quem sofre na infância os estragos dos livros instrutivos
e cívicos, não chega até lá nunca. Não adquire o amor da leitura”
(LOBATO, 1964, p. 250). Concordo também com o que diz lindamente
Tavares (2020) que literatura infantil é, sobretudo, “estranhamento,
provocação para os sentidos, ampliação das percepções
condicionadas pela rotina, alargamento das margens que restringem o
olhar, encontro de vozes plurais” (s/l). Portanto, garantamos que as
crianças construam livremente seus juízos de valor, exercitem suas
idiossincrasias nas suas relações com o objeto chamado livro.
Como se vê, não é complexidade menor estabelecer um conceito
razoável para literatura infantil, pois assim como literatura, como
explanamos de forma mais geral, variam a partir das óticas
mercadológicas, teóricas, históricas, pedagógicas etc. Entretanto,
independente delas, fica aqui uma séria advertência: não se pode
nomear qualquer produção textual de literatura infantil, aquilo que
muitas vezes nem arte, nem literatura é, se não produzir a conquista,
o encantamento e as exclamações deste público leitor.

193
Quais as possibilidades da literatura na Educação Infantil?

Buscando superar as controvérsias apontadas no tópico anterior,


sobretudo quanto servir ou não servir a algo, passamos a discutir suas
possibilidades nos espaços da escola da infância. Alertamos para as
ressalvas feitas quanto a esta discussão, sobretudo em relação aos
requisitos necessários para a sua adequada exploração.
A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica brasileira,
segundo a Lei Federal número 9394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB, atende crianças de 0 a 3 anos e 11 meses na
creche e de 4 e 5 anos e 11 meses na pré-escola. Conforme o artigo nº
29, seu escopo é o “desenvolvimento integral da criança em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a
ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996). Assim já
entendamos que a literatura infantil pode ser uma estratégia
pedagógica favorecedora dos processos de desenvolvimento
apontados no texto legal.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil – DCNEI,
no artigo 4º consideram a criança como “sujeito histórico e de direitos,
que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói
sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja,
aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos
sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2009). Da
mesma forma, temos na literatura infantil um rico instrumento para a
atuação nos campos das interações, relações, práticas cotidianas,
construção de identidade, brincadeiras, fantasia, aprendizagens,
observações, experimentações, narrativas questionamentos e
construção de sentidos sobre natureza e sociedade.
A Base Nacional Comum Curricular – BNCC, Resolução do
Conselho Nacional de Educação – CNE número 2 (BRASIL, 2017a),
estabelece seis Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento para a
Educação Infantil: conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se,
conhecer-se. Além disso, estrutura a organização curricular em cinco
Campos de Experiências: O eu, o outro e o nós; corpo, gestos e
movimento; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento e
imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações e
transformações. Tanto os Direitos de Aprendizagens quanto os
Campos de Experiências convidam às parcerias da literatura infantil

194
por mobilizar, todos, estes aspectos propostos. A propósito, a BNCC
respeitando as diferentes peculiaridades das faixas etárias na
Educação Infantil, organizou os objetivos de aprendizagem e
desenvolvimento em três grupos:
Bebês: 0 a 1 ano e 6 meses;
Crianças bem pequenas: 1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses;
Crianças pequenas: 4 anos a 5 anos e 11 meses.
Vale observar que esta organização se equipara à classificação
proposta por Davidov (1986), veremos suas características
desenvolvimentais mais adiante, e que prevê:
Primeiro ano: desde as primeiras semanas de vida até por volta de
1 ano.
Primeira infância: de cerca de 1 a 3 anos aproximadamente.
Idade pré-escolar: de 3 a 6 anos aproximadamente.
Em quaisquer das situações propostas pelos cinco Campos de
Experiências e seus respectivos Objetivos de Aprendizagem e
Desenvolvimento, as professoras podem recorrer à literatura infantil
como auxílio à instrumentalização de seus planejamentos. Todavia, é
aqui que reside toda a diferença, entre utilizá-la de forma aleatória, e a
de situá-la em planejamentos sistemáticos e com sustentações
teóricas para os fins pretendidos. As professoras, além da paixão pela
literatura, precisam assumir o papel de organizadoras desta ação junto
às crianças.
A exiguidade de espaço neste artigo não nos permite ampliar esta
discussão, mas deseja construir as pontes possíveis para aproximar
literatura, aprendizagens e desenvolvimento na Educação Infantil. Até
aqui já é possível depreender que a literatura, sendo uma das mais
antigas manifestações da humanidade, constitui-se em legados
históricos, idiossincráticos, característicos de cada sociedade e de cada
cultura, configurando-se como conjuntos de bens culturais produzidos
e acumulados pela humanidade. Portanto, implica decisivamente nos
processos de nosso desenvolvimento, pelos quais tais conteúdos nos
ensinam de formas interpsíquicas e intrapsíquicas, conceitos que
desenvolverei mais adiante. Em decorrência desta compreensão,
temos que, de forma específica, a literatura infantil assume papéis
insubstituíveis nas aprendizagens e desenvolvimento das crianças.
Obviamente, a partir das concepções sociais de criança e infância
vigentes, assim como de que sociedade se quer construir.

195
O que são aprendizagens e desenvolvimento na perspectiva da Teoria
Histórico- Cultural?

Aprendizagem e desenvolvimento são construtos de múltiplas


compreensões, sob diferentes proposições. Teorias de aprendizagens
e de desenvolvimento articulam-se entre si e interpenetram-se. Temos,
por exemplo, as concepções inatista, empirista, gestaltista,
psicanalítica, behaviorista, cognitivista, construtivista, histórico-
cultural etc. Como a opção teórico-epistemológica desta proposta é
pela Teoria Histórico-Cultural, exploraremos em rápidas tintas este
importante binômio, sob tal perspectiva.
Esta teoria entende uma linha de desenvolvimento: a natureza
(biológico) e a cultura (social). Esta perspectiva, com forte base no
Materialismo Histórico-Dialético, postula a perspectiva histórica do
desenvolvimento e das raízes sociais deste processo aliadas às ações
humanas coletivas (DAVIDOV; SUARE, 1997). Surgiu na União Soviética
entre os anos de 1920 e 1930 com as investigações do trio de
pesquisadores Lev Semenovich Vigotski, Alexander Romanovich Luria
e Alexei Nikolaievich Leontiev, sob a liderança do primeiro, e até hoje
tem servido a diversas áreas do conhecimento para compreendermos
o funcionamento humano nas suas aprendizagens e desenvolvimento
e, sobretudo, os instrumentos da cultura e a linguagem enquanto
mediadores no desenvolvimento das funções mentais superiores.
Nesta linha, aprendizagem e desenvolvimento estão relacionadas as
nossas experiências sociais sustentadas nas relações.
Para nos aproximarmos mais alguns passos da compreensão de
aprendizagem e desenvolvimento em Vigotskii (2014), é necessário
estabelecer o princípio de que a “aprendizagem da criança começa
muito antes da aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar nunca
parte do zero. Toda aprendizagem da criança na escola tem uma pré-
história” (p. 109). Este pressuposto é importante para nós porque as
atividades com literatura, contações e mediações de leitura com
crianças na Educação Infantil, considerando especialmente critérios
sólidos de seleção de obras, precisa respeitar o conjunto de saberes
histórica e socialmente acumulados por elas antes do ingresso na
escola da infância e, em hipótese alguma, devem ser ignorados ou
menosprezados. Em diversas situações notificamos professoras nas

196
suas relações literárias com as crianças adotando padrões
interacionais muitíssimo aquém do que elas já dominam.
Precisamos levar em conta, também, que aprendizagem não
garante desenvolvimento, gera possibilidades. Isso é importante por
várias razões, dentre elas o fato de as professoras não produzirem
expectativas, anteciparem conclusões e definirem rótulos no decorrer
ou no fim de determinados percursos quanto aos objetivos
estabelecidos nos seus planejamentos de atividades literárias.
Vigotskii (2014) adverte que aprendizagem,

não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organização da


aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo
de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a
aprendizagem. Por isso a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário
e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não-
naturais, mas formadas historicamente (p. 115).

Assim, é de importância fulcral que as professoras tenham a clareza


de que não há uma relação direta, causal, tampouco garantida, entre
aprendizagem e desenvolvimento. Há, inclusive, aprendizagens que não
implicam em desenvolvimento. Entretanto, o planejamento sistemático e
intencional voltado às aprendizagens pode favorecer o desenvolvimento
psicológico, que por sua vez aciona um conjunto de processos
desenvolvimentais. E a aprendizagem é a chave que ativa tais processos.
Como nossa discussão trata de crianças em processos de
aprendizagem em instituições coletivas de educação, e buscando
coerência com as faixas etárias na Educação Infantil indicadas pela BNCC
em termos de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento apontadas
anteriormente, recorremos à Davidov (1986). Esse autor pode situar-nos
sobre as etapas evolutivas do desenvolvimento psíquico da criança, e as
atividades que guiam seu desenvolvimento. Tal periodização pode nos
apoiar na construção de possíveis parâmetros para a avaliação e seleção
de obras de literatura infantil para o trabalho na escola da infância neste
prisma teórico. Assim destaca:

Primeiro ano: a comunicação emocional direta com os adultos é própria do bebê


desde as primeiras semanas de vida até por volta de um ano aproximadamente.
Graças a tal comunicação, no pequeno se forma a necessidade de comunicação
com outras pessoas, uma atitude emocional para as mesmas, a preensão como
base das ações humanas com as coisas, uma série de ações perceptivas.

197
Primeira infância: a atividade objetal é característica da criança entre cerca de um
e três anos aproximadamente. Realizando a atividade de manipulação de objetos
(primeiro em colaboração com os adultos como parceiros mais experientes), a
criança reproduz os procedimentos de ação com os objetos, elaborados
socialmente; surge a linguagem, a designação com sentido dos objetos, a
percepção categorial generalizada do mundo objetal e o pensamento concreto
em ações. A neoformação central desta idade é o surgimento na criança da
consciência.
Idade pré-escolar: a atividade de brincadeira é a mais característica para a criança
por volta de três a seis anos aproximadamente. Em sua realização surge no
pequeno a imaginação e a função simbólica, a orientação no sentido geral das
relações e ações humanas; também se formam as vivências generalizadas e a
orientação consciente (DAVIDOV, 1986, p. 73-74).

Importa lembrarmos da observação feita anteriormente que tal


classificação coincide com a organização dos grupos etários proposto
pela BNCC (BRASIL, 2017) que apresentamos. A partir destas
contribuições, elaboramos e apresentamos na parte final deste texto
um Guia para Avaliação de Literatura para a Educação Infantil, de
modo a prover alguma segurança para a desafiadora tarefa de avaliar,
selecionar e incluir obras de literatura infantil no planejamento das
suas atividades na perspectiva histórico-cultural. Como temos
discutido, para a Teoria Histórico-Cultural a educação exerce um papel
indispensável na constituição da criança como ser humano. Assim, a
escola da infância deve ofertar experiências que possibilitem a
aprendizagem e o desenvolvimento. Portanto, não é qualquer livro
que serve, pois não se trata de apenas passar o tempo.
Importa-nos agora apresentar as categorias essenciais na Teoria
Histórico-Cultural para entendermos as relações entre aprendizagem
e desenvolvimento e os possíveis espaços para o trabalho com a
literatura na Educação Infantil.

Funções Mentais Superiores


São funções psicológicas que caracterizam nosso
comportamento consciente favorecedoras dos processos de
aprendizagem (percepção, memória, pensamento, linguagem,
atenção voluntária). Com destaque de nosso interesse às relações
entre pensamento e linguagem, amplamente discutidas por Vigotski
(2009) e Luria (1986). A literatura infantil oferece condições para que,
na produção escrita do autor, na contação e mediação de histórias
pelas professoras, nos processos de apropriação, de fruição pelas

198
crianças se potencialize as atuações destas e nestas funções. As
funções mentais superiores assumem papel essencial nos processos
de aprendizagem e desenvolvimento na criança em idade escolar.
Vigotskii (2014) trata disso ao definir uma “lei fundamental do
desenvolvimento das funções mentais superiores: todas as funções
psicointelectuais superiores na criança aparecem duas vezes no
decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades
coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas;
a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do
pensamento da criança, como funções intrapsíquicas” (p. 114).

Mediação
Nossas interações com o mundo natural e social ocorrem
mediadas por sistemas simbólicos, que podem ser instrumentos, como
um bastão utilizado para alcançarmos um objeto ou quando usamos
objetos para fazer conta; ou signos, símbolos utilizados para
representação de ideias, com estreitas relações com a memória e a
atenção. A mediação é fundamental para o desenvolvimento das
funções mentais superiores, portanto fulcral para as aprendizagens.
Assim como nosso funcionamento psicológico, social e histórico, “os
elementos mediadores das relações humanas com o mundo são
fornecidos pelas relações entre os homens, sendo a linguagem o
principal meio de comunicação e de estabelecimento de significados
compartilhados que nos permitem interpretar objetos, eventos e
situações do mundo real” (OLIVEIRA, 1997, p. 40). Aqui as
intervenções pedagógicas podem se dar na mediação da leitura com
vistas ao processo de formação de leitores, que vão desde a escolha
do livro às discussões sobre a obra, com o uso de estratégias didáticas
criativas. As ações de mediação de leitura com as crianças oferecem
campo fértil para fluxo de signos e instrumentos.

Zona de Desenvolvimento Proximal


É aquilo que a criança não domina por si (desenvolvimento real),
mas o faz com a ajuda de um parceiro mais experiente. É neste campo
que as intervenções do professor devem ocorrer, pois as
aprendizagens de qualquer natureza não ocorrem espontaneamente.
Atuando assim, as professoras favorecerão o avanço da criança de sua
Zona de Desenvolvimento Proximal ao Nível de Desenvolvido Real.

199
Aqui a literatura infantil deve ser incentivada como promotora da Zona
de Desenvolvimento Proximal, vivenciando experiências desafiadoras
das funções mentais superiores com a exploração de obras que
ofereçam tais condições.

Imaginação
Esta categoria é bem explorada na obra Imaginação e Criação na
Infância (VIGOTSKI, 2009), que utilizamos neste trabalho. A
imaginação é a base de toda atividade criadora e a literatura infantil,
selecionada sob critérios razoáveis, planejada e vivenciada com as
crianças pode promover uma gama de processos imaginativos e
criadores. Para Vigotski (2009, p.8), “o desenvolvimento da criança
encontra-se intrinsecamente relacionado à apropriação da cultura”.
Neste sentido, as professoras podem privilegiar obras cujos conteúdos
favoreçam vivências das (e nas) suas culturas, que deem condições
para se percebem nas suas identidades pessoais e sociais. Para o autor
(2009, p.9) “a imaginação se apoia na experiência, a experiência se
apoia na imaginação, a emoção afeta a imaginação, a imaginação
provoca emoções”. Desta forma, um dos critérios essenciais na
seleção é o fato da obra que não apresentar um conteúdo pronto e
acabado. Vigotski (2009) refere-se ao caráter ativo e criativo da
brincadeira, afirmando que é na brincadeira onde a criança “começa a
agir independentemente do que vê” (p.110). Compreendemos a
literatura infantil como brincadeira quando a criança, interagindo com
a história, organiza seu jogo simbólico, seu cenário de desempenho de
papéis. Com este norte as professoras devem considerar livros-
brinquedo os que têm potenciais para uso como brinquedos ou
brincadeiras. Vigotski estabelece que “se a vida ao seu redor não o
coloca diante de desafios, se as suas reações comuns e hereditárias
estão em equilíbrio com o mundo circundante, então não haverá base
alguma para a emergência da criação” (2009, p. 40). Portanto, é
oportuno utilizar obras que desafiem a imaginação e os processos
criativos da criança, nos seus aspectos estéticos, éticos e físicos.
Vigotski (2009) afirma que, segundo Tolstoi, “para educar um escritor
na criança deve-se desenvolver nela um forte interesse pela vida à sua
volta (p. 70)”. É preciso privilegiar livros que apresentam aspectos das
suas vidas cotidianas, que possam produzir os sentimentos de
pertencimento, que produzam sentidos. Ainda nesta obra Vigotski

200
ressalta sugestões do escritor russo Tolstoi para estímulos à criação
literária nas crianças, “oferecer a maior variedade de temas para
escolha” (p. 70). Desta forma, destacamos a importância da abertura
do universo de oportunidades, de ampliar a oferta do repertório de
obras, para que nesta amplitude e diversidade a criança possa assumir-
se protagonista do seu ato de ler e aprender. Convém ainda lembrar
que a brincadeira, atividade que guia o desenvolvimento da criança em
idade pré-escolar, acontece porque ela imagina. Então, é
imprescindível a experiência diversificada da criança com a literatura
para repertoriar sua imaginação e enriquecer sua brincadeira.

Linguagem
Embora integre o grupo das funções mentais superiores, este
construto merece destaque no contexto das aprendizagens e
desenvolvimento porque sem linguagem o ser humano não seria
social, nem histórico, nem cultural. Além disso, no universo da
literatura infantil a linguagem, nas suas múltiplas formas (texto
escrito, texto narrado e ilustrações) é o motor da ação.

Como estas articulações se efetivam na Educação Infantil?

Antes de entrarmos no núcleo da questão, há uma condição


primária para que as pretendidas articulações se efetivem, que
precisamos enfatizar: o gosto legítimo das professoras pela leitura, a
paixão genuína pelos livros. O que já é um desafio hercúleo, pois somos
cônscios de que, lamentavelmente, esta não é uma realidade habitual.
Sabemos que há um contingente expressivo de professoras de
crianças, como já alertara um dos ícones da literatura infantil brasileira,
Ana Maria Machado, que “não leem, não vivem com os livros uma
relação boa, útil, importante. Sem isso, não dão exemplo e não
conseguem verdadeiramente passar uma paixão pelos livros, e sem
paixão, ninguém lê de verdade” (MACHADO, 2001, p. 118).
Com a proposta de aproximar este conjunto de articulações à
dimensão didático-pedagógica, trouxemos para este tópico a obra
Literatura e Educação Infantil: Livros, Imagens e Práticas de Leitura –
volume 1, organizada pelas professoras e pesquisadoras da
Universidade Estadual Paulista - Unesp de Marília – SP, Cyntia Graziella
Simões Girotto e Renata Junqueira de Souza. Embora o volume 2,

201
organizado pelas mesmas autoras, cujo título é Literatura e Educação
Infantil: Para Ler, Contar e Encantar, seja igualmente recomendável.
Consulte as referências ao final do texto. Ambas as obras são
exemplos de articulações teórico-práticas da literatura, aprendizagens
e desenvolvimento na Educação Infantil na perspectiva da Teoria
Histórico-Cultural. Da obra selecionada para esta abordagem, dada a
limitação de espaço para exploração do tema, escolhemos dois
capítulos:
1. Os bebês e os livros: a comunicação afetiva. De Ana Laura
Ribeiro da Silva e Aletéia Eleutério Alves Chevbotar.
2. O mundo do faz de conta e os livros: a criança de 3 a 6 anos.
De Amanda Valiengo e Silvana Paulina de Souza.

Vamos ao primeiro, Os bebês e os livros: a comunicação afetiva


(SILVA; CHEVBOTAR, 2016).
O texto em questão vem ao encontro das questões teórico-
práticas deste nosso trabalho, explora as possibilidades da literatura
com as crianças de 0 a 3 anos, ou seja, bebês e crianças bem pequenas,
de acordo com a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL,
2017a). O ponto de partida está em lembrar que para a Teoria Histórico-
Cultural não nascemos humanos, nos humanizamos pela apropriação
da cultura acumulada histórica e socialmente pelas gerações passadas.
Neste sentido Silva; Chevbotar (2016) ressaltam que:

ao nascer a criança não traz consigo as habilidades, capacidades e aptidões


humanas – percepção, pensamento, linguagem, memória, atenção, inteligência,
personalidade. Estas qualidades humanas são externas a ela e serão formadas pela
atividade que ela realiza em seu convívio com a cultura e com as pessoas (p. 58).

O livro é um objeto lúdico poderoso no desenvolvimento infantil,


sobretudo como estimulador das suas dimensões sensoriais e da
comunicação que a criança estabelece com os que a rodeiam. Ou seja,
“o desenvolvimento intelectual da criança inicia-se com a formação e
desenvolvimento da percepção tátil, visual e linguística no seu
primeiro ano de vida, quando ela começa a relacionar aquilo que vê
com suas ações” (SILVA; CHEVBOTAR 2016, p. 58). O livro constitui-se
em um precioso instrumento para o desenvolvimento do bebê, por
meio de duas vivências importantes: “ao ouvir uma história vai
conhecendo os sons da língua materna, inicia a atribuição de

202
significado/compreensão das palavras e, ao manusear o objeto livro,
conhece suas propriedades pela exploração e tem a possibilidade das
imitações das ações que presenciou o adulto fazendo e neste ato
imitativo aprende as formas de utilização deste objeto” (2016, p. 61).
O livro, como já dissemos, é um objeto cultural e o mundo adulto
deve assumir o compromisso de possibilitar seu acesso aos bebês, às
crianças bem pequenas e pequenas. As professoras devem atuar como
mediadores desta prodigiosa relação. Silva; Chevbotar (2016) alertam
que “esses acessos passam pela percepção visual e linguagem formal,
não infantilizada. Seu sistema auditivo acostuma-se a ouvir e
reconhecer esta linguagem e seu aparelho fonador acostuma-se a
produzi-la” (p. 64-65).
Outro fator relevante são as relações afetuosas presentes nas
vivências dos bebês com os livros e paralelamente com a professora,
sobretudo quando com o bebê no colo ambos compartilham o mesmo
ângulo do livro. Destacamos também o contato corporal que ocorre
quando “o manuseio do livro se dá no colo do mediador. Esse contato
físico, o aconchego e as sensações corpóreas agradáveis que
permitem contato com o livro nesta primeira fase da infância
favorecem a construção e apropriação desse momento vinculado ao
prazer” (SILVA; CHEVBOTAR, 2016, p. 70).
Há um grande número de formas criativas de livros para bebês,
crianças bem pequenas e pequenas, desde o tradicional, que para
crianças pequenas deve ter formato gráfico grande, letras graúdas,
pouco texto ou a depender da faixa etária, só imagens, e que essas
sejam atraentes. O nosso Guia para Avaliação de Literatura para a
Educação Infantil no final deste texto poderá auxiliar as professoras
nesta tarefa. Há livros de plástico que podem fazer companhia no
banho, assim como os de tecidos laváveis, livros que emitem sons e
luzes, acartonados, pop-ups e livros-brinquedo. Todos são
possibilidades que precisam ser avaliadas pelas professoras em termos
de conteúdo, linguagem, segurança na manipulação etc. O livro-
brinquedo merece destaque, pois a criança, por entendê-lo brinquedo,
terá um contato ainda mais sensorial, além da manipulação, poderá
morder, jogar para o alto, cheirar etc. No contexto de escola da
infância as professoras devem mediar estas ações, adotando atitude
pedagógica, seja contando e mediando a história, seja conversando
com as crianças sobre a ação vivenciada.

203
Sugestões de atividades com crianças de 0 a 3 anos
No campo pedagógico, após as professoras terem estudado o
livro e averiguado sua pertinência, e aqui o Guia para Avaliação de
Literatura para a Educação Infantil que elaboramos se faz valioso, e
terem elaborado o planejamento com bases teóricas consistentes,
vem o cuidadoso preparo prévio do espaço, de modo que permita
experimentações completas do livro. Silva; Chevbotar (2016) sugerem
que se “coloque tapetes, emborrachados, almofadas coloridas, livros
para manusear, morder, apertar, bonecos de pano, fantoches,
brinquedos que apareçam na história. As professoras mediando,
fazendo das suas vozes diferentes melodias, devem ir também ao
tapete, colocar criança no colo, mostrar livro, contar história, cantar
música relacionada a algum dos livros” (p. 72-73). As autoras oferecem
importantes recomendações com sustentações teórico-
metodológicas para tais ações.
Com crianças de 1 a 2 anos, as professoras podem colocar caixas
ou cestos com imagens de personagens para se apoiarem ao caminhar,
e nesta ação podem potencializar o desenvolvimento motor das
crianças. Neste sentido as professoras podem também dispor as
estantes com livros à altura dos olhos e das mãos das crianças, como
convites informais para tais possibilidades.
Para crianças de 2 a 3 anos, as caixas e cestos permanecem no
espaço e as professoras já podem levá-las para o ar livre, criar uma
tenda com tecido colorido em um espaço seguro, arejado e agradável.

Vamos ao segundo texto, O mundo do faz de conta e os livros: a


criança de 3 a 6 anos (VALIENGO; SOUZA, 2016).
O texto explora as relações da criança com o livro e o mundo da
imaginação por meio do jogo de faz de conta. Partindo do pressuposto da
Teoria Histórico-Cultural de que o jogo influencia a imaginação e o
pensamento, as autoras nos lembram que a “leitura de literatura infantil
pode ser conteúdo para novos jogos e desenvolvimento da imaginação e
criação” (VALIENGO; SOUZA, 2016, p. 103). Ao resgataram o importante
conceito de Atividade2 em Leontiev, ressaltam o pressuposto de que as
mudanças no desenvolvimento psíquico são promovidas pelas atividades
humanas realizadas nas práticas sociais. Dizendo de outra forma, são elas

2Em Leontiev, tal conceito refere-se à ação motivada para se atingir um objetivo que
garanta a transformação do sujeito (LEONTIEV, 2001).

204
que nos conectam ao contexto, que ligam o sujeito ao objeto. Assim, logo
de partida, deduz-se que a literatura, configurando-se como jogo, exerce
este papel no cenário das aprendizagens e desenvolvimento da criança.
Em Leontiev (2001) para cada estágio do desenvolvimento há uma
atividade principal, aquela “cujo desenvolvimento governa as mudanças
mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da
personalidade da criança em certo estágio de seu desenvolvimento” (p.
121). Desenvolvendo a ideia do jogo do faz de conta como atividade
principal da criança de 3 a 6 anos Valiengo e Souza (2016) destacam que
na Teoria Histórico-Cultural, “em cada fase da vida a experiência é melhor
desenvolvida por uma atividade principal. Por exemplo, entre os três e
seis anos a criança tem o jogo de faz de conta como atividade principal
enquanto representação da realidade que a envolve” (p. 105). Neste
sentido, dialética e recursivamente, a literatura infantil possibilita
incrementos para a brincadeira que a criança realiza, assim como é um
próprio elemento da brincadeira.
Importa destacar também as possibilidades que a literatura
infantil oferece para aproximar a criança de 3 a 6 anos da linguagem
escrita, a partir da contação e mediação pelas professoras, tendo a
brincadeira de faz de conta como estratégia motivadora.

Sugestões de atividades com crianças 3 a 6 anos

Contações e proferições de histórias:


Antes de apresentar as propostas, é importante destacar a
distinção conceitual entre contação e proferição de histórias, já que
este texto se propõe a ser um material de estudos. Portanto, como já
dissemos em outros momentos, bases teórico-conceituais são
primordiais. Bajard (2012, Apud Valiengo; Souza, 2016) define contação
como “narrativa veiculada pela língua do contador que não está ligada
diretamente a um texto fixo, portanto é flexível e se modifica nas
apresentações” (p. 116). Proferição, por sua vez, é o pronunciamento
do texto escrito, “manifestação sonora de um texto fixo para que
chegue até a criança que ainda não é leitor experiente e autônomo”
(VALIENGO; SOUZA, 2016, p. 119). Neste nosso contexto, a mediação
de leitura pode (e deve) ocorrer tanto nas contações quanto nas
proferições de histórias.

205
Assim, contando ou proferindo histórias mediadas e propondo
brincadeiras de faz de contas as professoras favorecerão o
desenvolvimento de funções mentais superiores da criança,
características do comportamento consciente humano, como
percepção, atenção voluntária, pensamento e memória. Por isso, estas
ações devem integrar a rotina da turma em periodicidade regular.
As professoras devem se preparar dedicadamente, pesquisar,
estudar e ensaiar a narração da obra selecionada. Valiengo; Souza
(2016) recomendam o preparo do espaço com almofadas, tatames,
tapetes, músicas e objetos relacionados à história; sugerem que
durante a atividade de contação ou proferição com mediação, as
professoras façam rodas e realizem brincadeiras. Devem mostrar o
livro às crianças, dizendo que a história saiu de lá, informar quem a
escreveu, quem a ilustrou, quem a editou; durante a atividade, fazer
perguntas guiando a história do tipo “– O que será que vai acontecer
agora?”, “– Quem chegará?”; usar materiais diversificados, como
fantoches, dedoches, tecidos, bichos de pelúcia; desafiar as crianças a
recontarem a história, favorecendo o desenvolvimento da memória,
linguagem oral e corporal; podem produzir figurinos como asas de
borboleta para colocar em alguma criança ou as próprias professoras
se caracterizarem de personagens e ao final da atividade, fazerem uma
roda de conversa ou uma brincadeira para encerrar em grande estilo.
Especificamente para a proferição de textos literários com
práticas de mediação, Valiengo; Souza (2016) propõem ações
motivadoras para que as crianças expressem hipóteses sobre o
assunto do livro, mediando esta estratégia por meio da capa do livro,
das ilustrações, do autor, da editora; a oferta do livro para manuseio
da turma; a seleção de obras objetivando a ampliação dos
conhecimentos, mas mantendo relações com os conhecimentos
prévios das crianças; no momento do planejamento para a proferição
do texto, é importante prever perguntas que possam fazer para ativar
os conhecimentos prévios das crianças.

Guia para avaliação e seleção de literatura para a Educação Infantil

Este guia, aberto e provisório, ancorado teórica, pedagógica e


didaticamente no conjunto de discussões apresentada neste texto,
tem como finalidade sinalizar pistas para a avaliação e seleção de livros

206
para o trabalho pedagógico na Educação Infantil, isto é, com crianças
de 0 a 4 anos e 5 anos e 11 meses, conforme as normatizações em vigor.
Parte de dois referenciais importantes e constrói um conjunto de
princípios elementares para esta tarefa complexa e que exige grande
responsabilidade.
O primeiro referencial é a Base Nacional Comum Curricular – BNCC
(BRASIL, 2017a) que, conforme comentamos, respeitando as
especificidades das faixas etárias na Educação Infantil, organizou os
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento em três grupos:

Bebês: 0 a um 1 e 6 meses;
Crianças bem pequenas: 1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses;
Crianças pequenas: 4 anos a 5 anos e 11 meses.

O segundo, é o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD


Literário 2018, Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017 (BRASIL, 2017b),
que se apoia na Base Nacional Comum Curricular – BNCC e estabelece
parâmetros técnicos e pedagógicos para nortear o certame junto às
editoras.
Amparando-nos na classificação da BNCC e considerando as
etapas evolutivas do desenvolvimento psíquico da criança, segundo os
conceitos de Davidov (1986) apresentados anteriormente, podemos
assim propor:

Bebês (0 a 1 ano e 6 meses)


Em Davidov (1986), desde as primeiras semanas de vida, a
principal característica é a comunicação emocional, uma necessidade
premente de se comunicar com o mundo circundante. Neste sentido a
indicação é por livros que propõem comunicação visual imediata, livros
sem palavras, livros-brinquedo com destacado apelo visual, com
distintos formatos, materiais, texturas, sons, que favoreçam a
interação com a criança. Aqui cabem livros de tecidos laváveis,
acartonados com cantos arredondados, plástico etc., em tamanho
adequado à manipulação da criança.

Crianças bem pequenas (um 1 e 7 meses a 3 anos e 11 meses)


Esta faixa, em Davidov (1986), é marcada pelo aprimoramento da
linguagem, quando prevalece a atividade objetal, a necessidade de

207
manipulação de objetos. Portanto, o livro brinquedo pode se fazer mais
presente e cabem outros formatos com ilustrações grandes e coloridas,
preferencialmente de elementos que fazem parte do seu cotidiano. Os
livros podem ser acartonados ou em papel mais resistente em tamanho
que favoreça as possibilidades de brincar. É recomendável que desafiem
o sensorial com texturas e cheiros. As histórias já podem ser apresentadas
em frases curtas e diretas, ilustradas de forma que traduzam o texto. O
uso de rimas é bastante recomendável, além de poderem ser divertidas,
apuram a memória da criança.

Crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses)


Estágio que Davidov (1986) denomina como idade pré-escolar
quando acentuam-se o desenvolvimento da imaginação e o jogo
simbólico. Aqui as histórias continuam curtas e as rimas em alta, mas
devem com criatividade e originalidade desafiar o campo imaginativo
da criança. As ilustrações devem ser mais conotativas que denotativas.
O Programa Nacional do Livro Didático – PNLD Literário (BRASIL,
2017b), estabelece que o livro infantil deve ter:

1. Qualidade do texto
É essencial a atenção ao aspecto estético do texto, a beleza na
linguagem para impactar o leitor. Conforme o PNLD Literário de 2018
“a exploração de recursos expressivos da linguagem; a consistência
das possibilidades estruturais do gênero literário proposto; a
adequação da linguagem ao público-alvo; e o desenvolvimento do
tema em consonância com o gênero literário em questão” (BRASIL,
2017b).

2. Complexidade do texto
É necessário o desafio à intelecção do pequeno leitor. Não se
pode banalizar o texto apenas porque é para crianças pequenas.
Trata-se do equilíbrio, pois não se pode propor um texto
extremamente erudito também.

3. Volume da obra
É importante notar a extensão da obra relacionada com o público
a que se destina. Devem ser mais curtas e ter mais imagens para as
crianças que se iniciam no mundo da leitura.

208
4. Estética da obra
É importante guardar a coerência entre texto e ilustração. Esta
deve ir além do texto e não meramente repetir o que o texto diz. Além
disso, deve ter qualidade estética.

5. Adequação dos formatos


O livro infantil é uma experiência sensorial, sobretudo táctil e
visual. Por isso é importante uma oferta com diferentes formatos e
tipos de papel.

Princípios elementares para avaliação e seleção de livros infantis


para o trabalho pedagógico na Educação Infantil
Apresentamos a seguir a proposta de um instrumento que constrói
um perfil qualitativo de uma obra que atenda às necessidades
apresentadas. Resista à tentação de relacionar padrão linguístico da obra
ao suposto estágio de desenvolvimento dos leitores. Este é campo de
atuação da mediação da leitura, que viabilizará as necessárias
provocações para que as crianças descubram o universo apresentado.
Colocando-se tais questões em segundo plano, tem absoluta utilidade
para os processos de escolhas para usufruto extraescolar, com vistas ao
livre deleite nas famílias. Neste caso, pode-se estender sua aplicabilidade
com algumas ponderações até os 12 anos.
A proposta para o uso deste guia consiste em, ao final da avalição
da obra, você perceber quais aspectos marcados nas escalas SIM –
TALVEZ – NÃO mais predominam. São seis tópicos, com o total de 26
itens, não radicalize pelo fato de a obra não auferir majoritariamente
SIM, mas, insisto, observe a tendência prevalente. Comecemos pela
identificação da obra.

Dados técnicos da obra


Título avaliado:
Autor(a):
Ilustrador(a):
Editora:
Número de páginas:
Ano de publicação:
Dimensões (altura x largura):
Encadernação: Canoa/Grampo ( ) Lombada quadrada ( )

209
1. Características e qualidade textual da obra
a) O título traduz o conteúdo da obra?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
b) A intencionalidade do autor está clara?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
c) Interessaria à criança, pelo que você conhece dela?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
d) O texto permitiria à criança interpretar?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
e) O tema é abordado de forma criativa e desafiadora em oposição à
convencional e banal?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

2. Grau de complexidade da história


a) Desfiaria a criança, respeitando seus conhecimentos prévios?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

3. Aspectos éticos
a) Evita a perspectiva predominantemente moralizante?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
b) Favorece, de alguma forma, o espírito crítico-reflexivo da criança?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
c) Os conteúdos textual, linguístico e ilustrativo respeitam a criança?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

4. Aspectos estéticos
a) O texto é sensível/empático/simpático?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
b) Há uma boa articulação entre texto e ilustração?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
c) Provocariam intervenções da criança ao ouvir a história?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

5. Formato
a) Favoreceria a manipulação pela criança de acordo com a faixa
etária, ampliando suas experiências sensoriais com o objeto livro?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

210
6. Ilustrações
a) Tem valor artístico, são sensíveis/empáticas/simpáticas?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
b) São mais conotativas que denotativas?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
c) Possibilitariam o desenvolvimento da imaginação da criança?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
d) Há harmonia entre cores e formas?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
e) Fogem de estereótipos?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

7. Projeto gráfico
a) A fonte (tipo de letra) da capa é agradável, articula-se com o tema
e a ilustração?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
b) A ilustração da capa é atraente e traduz o conteúdo da obra?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
c) A capa (fonte, ilustração, cores) dialoga com o projeto gráfico
como um todo?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
d) O miolo tem fonte de tamanho, legibilidade e contraste
agradáveis, adequadas à idade e que favoreçam a leitura, caso se
aplique?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
e) Favoreceria as relações de aproximação da criança com a obra?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
f) Suas texturas, formatos, sons, favoreceriam a interação com a
criança?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
g) As relações entre texto, imagem e espaço são criativas e
equilibradas?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO
h) A gramatura e tipo de papel de capa, do miolo e acabamento –
textura na capa, encadernação (se grampo ou lombada), implicam
positivamente na qualidade artística do livro?
( ) SIM – ( ) TALVEZ – ( ) NÃO

211
TABULAÇÃO (máximo 26 pontos)
Sim:
Talvez:
Não:

Ponto de chegada para novas partidas

As discussões relacionadas às presumíveis funções da literatura


na vida humana e especialmente do que se nomeia como literatura
infantojuvenil são antigas, inesgotáveis e de difícil consenso. Quando
especificamos este debate no campo do que comumente se conceitua
como literatura infantil, as dificuldades se agudizam ainda mais. E
quando trazemos estas conversas para o universo das crianças em
início de educação em instituições coletivas, exige-nos além de bom
senso e sensibilidade, vivências práticas e conhecimentos teóricos
consistentes sobre pelo menos quatro importantes dimensões:
literatura infantil, pedagogia, infância e criança, muito
especificamente as de 0 a 6 anos, que compõem a Educação Infantil.
Mas, há um cenário poderosamente desafiador: a educação de
crianças para um outro mundo possível, e para tanto urge uma
educação na qual a função social da escola da infância nos ajude a
tornarmo-nos mais humanos.
Nesta direção, somos cônscios dos limites deste trabalho, a
começar pela extensão prevista para o texto e, em função disto, a
impossibilidade de ampliar e aprofundar as altercações apresentadas,
além da inviabilidade de trazer outros temas correlatos e necessários
para a mesa. Entretanto acreditamos que legamos contribuições que
podem representar pontos de partidas para novas veredas,
provocações para que você faça os desdobramentos necessários para
desempenhar este desafio e compromisso.
De modo geral, consideramos que a literatura, enquanto bem
cultural, histórica e socialmente produzido milenarmente, precisa ter
acesso garantido a todos as pessoas. A literatura infantil,
especificamente, por potencializar aprendizagens e diversas
dimensões do desenvolvimento nesta etapa da vida humana. É um
direito que não pode ser negado às crianças. É também uma valiosa
estratégia pedagógica, que não pode ser ignorada pelos currículos e
negligenciada pelas instituições de educação e professoras nos seus

212
planejamentos. Nossa contribuição se assenta na perspectiva teórica
que entendemos mais favorável aos esforços da conquista de
determinadas utopias humanas, enquanto condições ideais e viáveis,
sobretudo as da democracia, emancipação, inclusão, igualdade,
justiça, cidadania e superação do status quo vigente. E neste contexto,
tal prisma teórico é a Teoria Histórico-Cultural. Esperamos que você se
envolva com este texto, motive-se a partir dele e estabeleça
compromissos por uma educação de qualidade social, que deve
começar na Educação Infantil, e que seja a diferença nos “hojes” e nos
amanhãs de todas as nossas crianças desde o início de suas
experiências na escola da infância.
Por fim, a literatura está para nos divertir, enquanto nos educa;
nos emocionar, enquanto nos conscientiza; nos humanizar, enquanto
nos liberta. A literatura é, sobretudo, fruição. Mas, precisa ser
compreendida como um poderoso instrumento de educação e
emancipação.

Referências

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ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo:
Melhoramentos, 1990.
BAJARD, Élie. Da escuta de textos à leitura. São Paulo: Cortez, 2007.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Decreto nº 9099, de 18 de
julho de 2017. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro e do
Material Didático - PNLD. Brasília: MEC, 2017b.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Resolução CNE/CP nº 2, de
22 de dezembro de 2017. Estabelece a Base Nacional Comum
Curricular – BNCC. Brasília: MEC, 2017a.
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 5/2009. Fixa
as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil – DCNEI.
Brasília: MEC, 2009.
BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei no 9394/96, de 20
de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação
Nacional. Brasília: MEC, 1996.

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CADEMARTORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. São Paulo:
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FREIRE, António. A catarse em Aristóteles. Braga: Edições APPACDM,
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GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira
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LEONTIEV, Alexis. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da
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LOBATO, Monteiro. Conferências, artigos e crônicas. São Paulo:
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OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: Aprendizado e
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SILVA, Ana Laura Ribeiro da; CHEVBOTAR, Aletéia Eleutério Alves. Os
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Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira de. (Orgs). Literatura e
educação infantil: livros, imagens e práticas de leitura (volume 1). São
Paulo: Mercado das Letras, 2016.
TAVARES, Cristiane. Entrevista para o portal Lunetas: Múltiplos
olhares sobre as múltiplas infâncias. Afinal, para que ‘serve’ a

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literatura infantil? Disponível em: https://lunetas.com.br/afinal-para-
que-serve-a-literatura-infantil/#menu.
VALIENGO, Amanda; SOUZA, Silvana Paulina de. O mundo do faz de
conta e os livros: a criança de 3 a 6 anos. In GIROTTO, Cyntia Graziella
Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira de. (Orgs). Literatura e
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VIGOTSKI, Lev Semenovich. Imaginação e criação na infância. São
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VIGOTSKI, Lev Semenovich. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins
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VIGOTSKII, Lev Semenovich. Aprendizagem e desenvolvimento
intelectual na idade escolar. In: VYGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA,
Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2014.

215
216
Quem escreveu

Rhaisa Naiade Pael Farias, Doutora e Mestre pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação, da Universidade de Brasília. Possui pós-
graduação lato sensu em Educação Infantil pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul e graduação em Pedagogia Licenciatura -
Habilitação em Educação Infantil pela mesma universidade.
E-mail: [email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6078430473123792.

Maria Aparecida Camarano Martins, Pedagoga, mestre e


doutora em Educação pela Universidade de Brasília-UnB. Tem
experiência em docência na educação básica, universitária (Faculdade
de Educação-FE/UnB e Universidade Aberta do Brasil) e no Curso de
Especialização em Docência na Educação Infantil para professoras e
professores da SEEDF (FE/UnB/MEC). Atualmente é membro do
Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação Infantil e do
Fórum de Educação Infantil do Distrito Federal- FEIDF. Integra o Grupo
de Pesquisa em Práticas Educativas (GEPPE-CNPq) da Faculdade de
Educação da UnB realizando pesquisas relacionadas a crianças,
infâncias, Educação Infantil e crianças em situação de risco e
vulnerabilidade social.
Email: [email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1837526657340557.

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira, Professora da Secretaria


de Estado de Educação do Distrito Federal. Doutoranda em Artes
Cênicas (UnB). Mestre em Educação e Especialista em Educação
Infantil (UnB). Licenciada em Letras (UNICEUB). Membro do grupo de
pesquisa Imagens e(m) Cena (Cnpq/UnB). Membro do Círculo
Vigotskiano – Grupo de estudos em Teoria Histórico-Cultural (UnB).
Membro do Fórum de Educação Infantil do Distrito Federal e do
Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil. E-mail:
[email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8507221898695817

217
Maria Auristela Barbosa Alves de Miranda, mestre e
doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília –
UnB. Professora de Educação Infantil da Secretária de Estado de
Educação do Distrito Federal – SEEDF. Pesquisadora do Grupo
Aprendizagem Lúdica: Pesquisas e Intervenções em Educação e
Desporto (CNPq/UnB) e do Círculo Vigotskiano – Grupo de Estudos em
Teoria Histórico-Cultural (UnB). Compõe o comitê gestor do Fórum de
Educação Infantil do Distrito Federal – FEIDF e faz parte do Movimento
Interfóruns de Educação Infantil do Brasil – MIEIB.
Email: [email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0067081777770735.

Maria do Socorro Martins Lima, doutora em Educação pelo


Programa de Pós-Graduação em Educação, UnB (2018), mestre em
Psicologia do Desenvolvimento Humano no Contexto Cultural, UnB
(2000), licenciada em Pedagogia Plena, UFPi, Habilitação Supervisão
(1983) e Habilitação Magistério (1984). Possui especialização em
Pesquisa Educacional, UFPi, (1986) e em Psicopedagogia, Instituto
Fátima (2012). Professora da disciplina Planejamento, didática e
avaliação na Educação Infantil na Teoria Histórico-Cultural, no Curso de
Especialização em Educação Infantil do Instituto Saber. Membro do
grupo de pesquisa Círculo Vigotskiano – Grupo de Estudos em Teoria
Histórico-Cultural (UnB).
Email: [email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4131332725336353.

Andréia Pereira de Araújo Martinez, mestre e doutora em


Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Brasília - PPGE/UnB, Atualmente, é professora da
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal - SEEDF, atuando
como Diretora na Diretoria de Educação Infantil - DIINF/SEEDF.
Compõe o Movimento Pró-BNCC do MEC como coordenadora de
etapa da Educação Infantil, na revisitação do Currículo em Movimento
do Distrito Federal, no processo de implementação e formação
docente. Faz parte do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do
Brasil - MIEIB. Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas
Educativas - GEPPE, registrado no CNPq. Tem experiência no campo da
Educação, discutindo Música, Arte, Práticas Educativas, Teorias da

218
Educação, Didática, Currículo, com ênfase nos seguintes temas: Bebês,
Crianças, Infâncias, Educação Infantil, Arte na infância, Educação
Musical na Infância, tendo a perspectiva histórico-cultural como base
teórica.
E-mail: [email protected].
Lattes http://lattes.cnpq.br/0239839493499639.

Ivete Mangueira de Souza Oliveira, Mestranda em Educação


pela Universidade de Brasília (UnB). É graduada em Pedagogia e
Especialista em Docência na Educação Infantil pela mesma instituição.
Pesquisa a educação, as infâncias, subjetividades e protagonismo
infantil. Professora na Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal (DF), com experiência na Educação Infantil. Compõe o comitê
gestor do Fórum de Educação Infantil do Distrito Federal (FEIDF) e faz
parte do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil
(MIEIB).
Email: [email protected].
Lattes http://lattes.cnpq.br/4038061170138413.

Simão de Miranda, Pós-Doutor em Educação, Doutor em Psicologia


Escolar e do Desenvolvimento Humano, autor de 58 livros em
educação e literatura para crianças, Cidadão Honorário de Brasília,
formador de professores na Subsecretaria de Formação Continuada
dos Profissionais da Educação da Secretaria de Educação do Distrito
Federal - EAPE e Coordenador da Especialização em Educação Infantil
na Perspectiva Histórico-Cultural do Instituto Saber, em Brasília – DF.
Email: [email protected].
Lattes http://lattes.cnpq.br/8703438253643655.

219

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