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Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0
Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0
Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0
E-book614 páginas7 horas

Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0

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Sobre este e-book

Organizada por Ricardo Antunes, professor da Unicamp e sociólogo do trabalho, a obra é uma coletânea de artigos que desbrava os temas do trabalho digital, da uberização e plataformização do trabalho e do fenômeno da Indústria 4.0 e suas consequências para o universo laborativo e para a vida dos trabalhadores e trabalhadoras. O livro traz dezenove artigos de importantes pesquisadores e pesquisadoras, brasileiros e estrangeiros, que investigam, em diferentes setores, os impactos sociais decorrentes da expansão do universo maquínico-informacional-digital.

A uberização, conceito abordado, definido e expandido na obra, é um processo de individualização e invisibilização das relações de trabalho, que assumem a aparência de "prestação de serviços", obliterando relações de assalariamento e de exploração. O livro investiga como a introdução das tecnologias de informação e comunicação (TIC) no mundo produtivo funciona para aumentar o cenário de precarização do trabalho – prescindindo de salários e reduzindo pagamentos, ampliando o controle sobre e a competição entre os trabalhadores – por meio de análises de diferentes setores produtivos impactados pelo trabalho digital e pela Indústria 4.0, como o trabalho de entregadores de aplicativos, a indústria automobilística, o setor bancário e os setores de telemarketing e call-center.

Os artigos também enfatizam a importância dos movimentos de resistência à precarização, dos quais o "Breque dos Apps", a paralisação nacional dos entregadores de aplicativos ocorrida em 1º de julho de 2020, é o mais recente exemplo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de out. de 2020
ISBN9786557170120
Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0

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    Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 - Ricardo Antunes

    1

    Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0

    Ricardo Antunes

    Intermitência e uberização

    A uberização é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de prestação de serviços e obliterando as relações de assalariamento e de exploração do trabalho.

    Como pude desenvolver na obra O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital[1], contra a rigidez taylorista e fordista vigente nas fábricas da era do automóvel durante o longo século XX, nas últimas décadas, as empresas liofilizadas e flexíveis, impulsionadas pela expansão informacional-digital e sob comando dos capitais, em particular o financeiro, vêm impondo sua trípode destrutiva sobre o trabalho.

    A terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global[2]. E, com elas, a intermitência vem se tornando um dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho, que foi resultado de lutas históricas e seculares da classe trabalhadora em tantas partes do mundo.

    Vejamos alguns exemplos do tipo de trabalho que mais se expande sob o capitalismo de nosso tempo. Um deles, o zero hour contract [contrato de zero hora], por exemplo, nasceu no Reino Unido e se esparrama pelo mundo ao permitir a contratação de trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas atividades, que ficam à disposição de uma plataforma.

    Eles e elas ficam à espera de uma chamada por smartphone e, quando a recebem, ganham estritamente pelo que fizeram, nada recebendo pelo tempo que ficaram esperando. Essa modalidade de trabalho abrange um universo imenso de trabalhadores e trabalhadoras, de que são exemplos médicos, enfermeiros, trabalhadoras do care (cuidadoras de idosos, crianças, doentes, portadores de necessidades especiais etc.), motoristas, eletricistas, advogados, serviços de limpeza, consertos domésticos, entre tantos outros. Tudo isso facilitado pela expansão do trabalho on-line e pela expansão dos aplicativos, que invisibilizam ao mesmo tempo que ampliam exponencialmente uma parte expressiva da classe trabalhadora, em especial, mas não só no setor de serviços.

    Outro exemplo encontramos na Uber: trabalhadores e trabalhadoras com seus automóveis arcam com as despesas de seguros, gastos de manutenção de seus carros, alimentação, limpeza etc., enquanto o aplicativo se apropria do mais-valor gerado pelo sobretrabalho dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho. A principal diferença entre o zero hour contract e o sistema Uber é que, neste último, os/as motoristas, ao recusarem as solicitações, correm o risco de serem demitidos. A relação de trabalho é, então, ainda mais evidente. Dos carros para as motos, destas para as bicicletas, patinetes etc. A engenhosidade dos capitais é, de fato, espantosa.

    Vimos mais um exemplo recentemente na Itália, onde se desenvolveu, até o início de 2017, uma nova modalidade de trabalho ocasional, o trabalho pago a voucher. Essa modalidade de trabalho é assim denominada porque os assalariados recebiam vouchers pelas horas de trabalho realizadas e podiam trocá-los pelo equivalente monetário, segundo o salário mínimo legal pago por hora trabalhada.

    Se não bastasse esse vilipêndio (que, em Portugal, denomina-se trabalho pago por recibos verdes), os trabalhos excedentes muitas vezes são oferecidos por fora do pagamento oficial por vouchers, isto é, pagando-se ainda menos do que o salário mínimo oficial, o que significa uma precarização ainda maior do trabalho ocasional e intermitente. É como se existisse uma precarização legal e outra ilegal[3].

    Por tal sentido de exploração intensificada em seus ritmos, tempos e movimentos, essas formas precarizadas de trabalho[4] devem ser intensamente combatidas pelos trabalhadores e trabalhadoras (dada a importante divisão sociossexual, racial e étnica do trabalho), tanto por seus movimentos de resistência nos locais de ­trabalho quanto pelas ações do sindicalismo de perfil mais crítico. A tentativa de greve mundial dos motoristas da Uber em maio de 2019 demonstrou que aquilo que parecia o paraíso do trabalho precarizado começou a desvanecer, de modo que os caminhos da confrontação tendem a se ampliar nos próximos anos.

    É importante acentuar também que essas tendências em curso, implementadas por corporações globais nesta era agudamente destrutiva do capital[5], não encontram precedente em nenhuma fase recente do capitalismo pós-Segunda Guerra.

    Assim, se esse modus operandi não for confrontado, ele se consolidará como um elemento cada vez mais central do sistema de metabolismo antissocial do capital, em escala global, particularmente no setor de serviços, mas com potencial de expansão para parcelas ampliadas do mundo industrial e do agrobusiness, bem como na interconexão entre eles.

    Indústria 4.0: rumo à escravidão digital?

    As tecnologias de informação e comunicação configuram-se, então, como um elemento central entre os distintos mecanismos de acumulação criados pelo capitalismo financeiro de nosso tempo.

    Ao contrário do que ditava a equivocada previsão do fim do trabalho, da classe trabalhadora e da vigência da teoria do valor, o que temos, de fato, é uma ampliação do trabalho precário, que atinge (ainda que de modo diferenciado) desde os trabalhadores e trabalhadoras da indústria de software até os de call-center e telemarketing – o infoproletariado ou cibertariado[6] –, alcançando de modo progressivo os setores industriais, da agroindústria, dos bancos, do comércio, do fast-food, do turismo e hotelaria etc., e incorporando até mesmo trabalhadores imigrantes, cujos números se expandem em todas as partes do mundo. É quase impossível, hoje, encontrar qualquer trabalho que não tenha alguma forma de dependência do aparelho celular.

    Tal cenário crítico se acentuará com a expansão da chamada Indústria 4.0. Essa proposta nasceu na Alemanha, em 2011, concebida para gerar um novo e profundo salto tecnológico no mundo produtivo (em sentido amplo), estruturado a partir das novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), que se desenvolvem de modo célere. Sua expansão significará a ampliação dos processos produtivos ainda mais automatizados e robotizados em toda a cadeia de valor, de modo que a logística empresarial será toda controlada digitalmente.

    A principal consequência da Indústria 4.0 para o mundo do trabalho será a ampliação do trabalho morto, para recordar Marx[7], tendo o maquinário digital – a internet das coisas, a inteligência artificial, a impressora 3D, o big data etc. – como dominante e condutor de todo o processo produtivo, com a consequente redução do trabalho vivo, viabilizada pela substituição de atividades tradicionais e mais manuais por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o comando informacional-digital.

    Assim, cada vez mais, a força de trabalho de perfil mais manual, ou que exerce atividades em processo de desaparição, tornará o trabalho vivo mais residual nas plantas tecnológicas e digitalmente mais avançadas. Sabemos que essa processualidade não levará à extinção da atividade humana, pois, além das enormes diferenciações, por exemplo, entre Norte e Sul e entre ramos e setores de atividade cujo trabalho manual é insubstituível, há outro elemento ontológico fundamental: sem alguma forma de trabalho humano, o capital não se reproduz, visto que as máquinas não criam valor, mas o potencializam[8].

    Isso, porém, não elide o fato de que a produção, em ramos e setores de tecnologia de ponta, tende a ser cada vez mais invadida por robôs e máquinas digitais, encontrando no mundo digital, na inteligência artificial, nos algoritmos etc., o suporte maquínico dessa nova fase de subsunção real do trabalho ao capital. Isso porque, para que ocorra tal avanço tecnodigital, um conjunto expressivo de trabalhos manuais deve se expandir globalmente e, em particular, no hemisfério Sul.

    Como consequência dessa nova empresa flexível, liofilizada e digital, os intermitentes globais tendem a se ampliar ainda mais, uma vez que o processo tecnológico-organizacional-informacional eliminará de forma crescente uma quantidade incalculável da força de trabalho, a qual se tornará supérflua e sobrante, sem empregos, sem seguridade social, sofrendo riscos crescentes de acidentes e mortes no trabalho[9], sem nenhuma perspectiva de futuro.

    É certo que uma parcela de novos trabalhos será criada entre aqueles com mais aptidões, mais inteligência, mais capacitações (para recordar o ideário empresarial), amplificando o caráter de segregação societal existente. Contudo, é impossível não deixar de alertar, com todas as letras, que as precarizações, as subutilizações, o subemprego e o desemprego tenderão a aumentar celeremente.

    Sem tergiversações: com a Indústria 4.0 teremos uma nova fase da hegemonia informacional-digital, sob comando do capital financeiro, na qual celulares, tablets, smartphones e assemelhados cada vez mais se converterão em importantes instrumentos de controle, supervisão e comando nesta nova etapa da ciberindústria do século XXI.

    Tudo isso, também é imperioso dizer, acontece por conta da necessidade de autovalorização das corporações globais, sem nenhum compromisso humano-societal. Ou será que a guerra entre a Huawei e a Apple tem como objetivo a melhoria das condições de vida da humanidade? Um breve olhar para as condições de trabalho da terceirizada global Foxconn em suas unidades na China, onde produz a marca Apple, nos ofereceu dezessete tentativas de suicídio em 2010, das quais treze lamentavelmente se concretizaram. Podemos lembrar também as rebeliões contra o denominado sistema 9-9-6, praticado pela Huawei (e tantas outras empresas chinesas do ramo digital, como a Alibaba), que significa: trabalhar das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, 6 dias por semana.

    Que melhorias humano-societais teremos com as práticas desenvolvidas pela Amazon e pela Uber, ambas com um leque de operações-padrão que vai desde a exploração e espoliação ilimitadas da força de trabalho até a extinção completa do trabalho humano, a exemplo dos carros sem motoristas presentes no projeto da Uber do futuro, ou ainda nas lojas da Amazon, já existentes nos Estados Unidos, que funcionam sem trabalhadores e trabalhadoras?

    O que essas plataformas digitais globais têm a oferecer estando crescentemente robotizadas, automatizadas, e cada vez com menos trabalho vivo? Se esse padrão vier a ser totalmente implementado, o que acrescentam de positivo para a humanidade?

    É necessário acentuar que esse vilipêndio em relação ao trabalho não é uma possível remissão ao futuro porque, no presente, a monumental expansão do trabalho digital, on-line, vem demolindo a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele, uma vez que vem apresentando, como resultado perverso, o advento daquilo que denominamos escravidão digital[10].

    Assim, se essa tendência destrutiva em relação ao trabalho não for fortemente confrontada, recusada e obstada, sob todas as formas possíveis, teremos, além da ampliação exponencial da informalidade no mundo digital, a expansão dos trabalhos autônomos, dos empreendedorismos etc., configurando-se cada vez mais como uma forma oculta de assalariamento do trabalho, a qual introduz o véu ideológico para obliterar um mundo incapaz de oferecer vida digna para a humanidade. Isso ocorre porque, ao tentar sobreviver, o empreendedor se imagina como proprietário de si mesmo, um quase-burguês, mas frequentemente se converte em um proletário de si próprio, que autoexplora seu trabalho.

    Esse conjunto de mudanças vem ocorrendo desde os anos 1970, quando os serviços passaram a ser crescentemente invadidos pela lógica do capital imbricado com o mundo informacional e comando financeiro[11], que se intensificou enormemente neste início de século, com a explosão das tecnologias informacionais e digitais.

    A esse movimento atual do capital somou-se a terceirização, que também se tornou um instrumento fundamental para o aumento dos lucros, nos setores de telemarketing, call-center, hotelaria, fast-food, hipermercados etc., ao ampliar o proletariado gerador de lucro e, frequentemente, de mais-valor[12].

    Há outra consequência a tirar dessa derrelição, porém: como tudo que interessa aos capitais vem sendo privatizado (hospitais, previdência, educação e tantas outras atividades que, no passado, prestavam um serviço público e se transformaram em empresas lucrativas com a avalanche neoliberal), a consequência mais importante, no plano das lutas sociais, é o advento de um novo proletariado de serviços.

    Como fazer a confrontação?

    É contra esse conjunto heterogêneo e polimorfo de pragmáticas precarizantes de trabalho no capitalismo atual que estão nascendo novas formas de representação. Em Milão, na Itália, essa mobilização foi uma das pioneiras, gerando uma forma de representação autônoma, de que é exemplo o San Precario, que luta pelas conquistas dos direitos do precariado, incluindo, naturalmente, os imigrantes.

    No mesmo país teve vigência, durante alguns anos, o movimento denominado Clash City Workers, da juventude precarizada e desprovida de direitos. Segundo sua própria definição,

    Clash City Workers é um coletivo de trabalhadores e trabalhadoras, desocupados e desocupadas, denominados jovens precários. A tradução de nosso nome significa algo como trabalhadores da cidade em luta. Nascido na metade de 2009, o movimento é ativo particularmente em Nápoles, Roma, Florença, Pádua, Milão e Bérgamo, e procuramos seguir e sustentar as lutas que estão em curso na Itália.[13]

    Foi esse processo de intensa precarização do proletariado italiano que originou, anteriormente, a criação de novas formas de representação sindical, como é o caso da Confederazione Unitaria di Base (CUB), criada há vários anos como uma proposta alternativa ao sindicalismo mais tradicional. Outro exemplo encontramos no SI-Cobas, organismo de trabalhadores auto-organizados, pela base, que procura representar esse amplo segmento de assalariados e operários por fora da estrutura sindical oficial, incluindo os trabalhadores imigrantes. Vimos mais recentemente a ampliação da ação do movimento Nuove Identitá di Lavoro (NIdiL), vinculado à Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL) e voltado a representar os trabalhadores que fazem parte do denominado precariado[14].

    Precariado, juventude sem trabalho, imigrantes-trabalhadores/as, foi esse mesmo contingente que organizou, também em Portugal, o movimento de trabalhadores/as precarizados denominado Precári@s Inflexíveis. Elucidativo em seu modo de ser, conforme consta em seu Manifesto, esse movimento afirma:

    Somos precári@s no emprego e na vida. Trabalhamos sem contrato ou com contratos de prazos muito curtos. Trabalho temporário, incerto e sem garantias. Somos operadores de call-centers, estagiários, desempregados, trabalhadores a recibos verdes, imigrantes, intermitentes, estudantes-trabalhadores […].[15]

    Um dos primeiros desafios dos sindicatos e dos movimentos sociais de classe é compreender a nova morfologia do trabalho, com sua maior complexificação e fragmentação: uma classe trabalhadora que se reduz em vários segmentos e se amplia em outros simultaneamente; que é muito mais segmentada, heterogênea, com clivagens de gênero, raça e etnia, acarretando fortes consequências em sua ação concreta, em suas formas de representação e organização sindical.

    Outro exemplo dessa nova realidade presente no mundo do trabalho encontramos na cidade de São Paulo, onde vem se organizando o movimento Infoproletários, que assim se apresenta:

    Somos um movimento social composto por trabalhadores e trabalhadoras da área de informática reunidos com o objetivo de denunciar e combater a exploração e os abusos que sofremos em nossa categoria e no conjunto da classe trabalhadora.[16]

    E acrescentam:

    São muitas as promessas que os patrões e a mídia nos fizeram sobre o mundo do trabalho, sobretudo em nossa área. Bem-vindos à sociedade da informação, nos disseram. E, como num conto de fadas, todos seríamos iguais, livres e fraternos, teríamos autonomia e liberdade de criação; não haveria mais distinção entre patrões e empregados, todos seriam donos do negócio. A realidade, no entanto, é bem diferente.[17]

    Transparece, desde logo, seu traço de proletarização e precarização:

    Enfrentamos baixos salários. Enfrentamos longas jornadas, assédio moral e sexual. Na hora do batente, todo o encanto se acaba e reina a exploração. É claro, não poderia ser de outra forma. Não vivemos em uma sociedade da informação. Vivemos em uma sociedade da exploração. Por isso não devemos esperar nada dos patrões e dos empresários. A eles não interessa nada senão o lucro.[18]

    O reconhecimento da necessidade de organização aflora:

    É para fazer frente a isso que nos reunimos. Acreditamos que apenas os Infoproletários, trabalhadores de TI unidos, é que podem apresentar alternativas para os próprios problemas e defender seus interesses políticos e econômicos. Juntos, estamos nos organizando para reivindicar nossos direitos e lutar por melhores condições de trabalho e vida.[19]

    Não são poucos, portanto, os desafios: como mobilizar esse novo proletariado (que, na Europa, vem se autodenominando precariado)? Como organizar sindicalmente essas amplas parcelas jovens da classe trabalhadora, que ingressam no mundo digital, às vésperas da Indústria 4.0, com relações de trabalho em franco processo de corrosão e enorme retrocesso[20]?

    Como os sindicatos conseguirão ressoldar esses laços de pertencimento de classe? Como poderão se contrapor, de modo solidário, orgânico e como classe, à uberização, à individualização, ao falso empresariamento, às falácias do empreen­dedorismo e à impulsão para a intermitência, a qual, esta sim, se mostra como o futuro mais próximo da classe-que-vive-do-trabalho?

    Uma nota adicional necessária (e três hipóteses)

    Este livro já se encontrava em processo avançado de edição quando eclodiu a pandemia global da covid-19. O que se apresentava como um cenário social dilacerado redesenhou-se como também pautado pela letalidade. Assim, na impossibilidade de fazer ampliações neste livro – que ficarão para um próximo volume –, faço aqui uma indicação preliminar do que podemos vivenciar no período pós-pandêmico, particularmente no que concerne ao trabalho.

    Vimos que o mundo principiou, neste ano de 2020, de modo diferente. Se não bastasse a recessão econômica global e em curso acentuado no Brasil, já visualizávamos sinais de expressivo aumento dos índices de informalidade, precarização e desemprego, quer pela proliferação de uma miríade de trabalhos intermitentes, ocasionais, flexíveis etc., quer pelas formas abertas e ocultas de desemprego, subocupação e subutilização, todos contribuindo para a ampliação dos níveis já abissais de desigualdade e miserabilidade social.

    Em paralelo a esse quadro social crítico, o discurso empresarial que se expandia no universo informacional-digital estampava muita euforia: platform economy, crowdsourcing, gig economy, home office, home work, sharing economy, on-demand economy, entre tantas outras denominações.

    Essa nova gramática do capital somou-se àquela já consolidada, que operava metamorfoses nos reais significados etimológicos das palavras: manter sempre a resiliência, atuar com muita sinergia, converter-se em autêntico colaborador e em verdadeiro parceiro, vangloriar-se da nova condição de empreendedor, entre tantos outros usos da linguagem, agora com novas significações.

    Mas a pandemia parece ter comprometido essa nomenclatura: colaboradores estão sendo demitidos aos milhares e os parceiros podem optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego. É bom recordar que, mesmo antes da pandemia, a realidade do labor já vinha expressando, conforme indicamos anteriormente, um inteiramente outro: pejotização, trabalho intermitente, infoproletariado, cibertariado, professor delivery, frilas fixos, precári@s inflexíveis etc., terminologia essa que florescia no próprio universo laborativo. E foi assim que o trabalho uberizado adquiriu o mesmo traço pejorativo que a walmartização do trabalho ostentou quando se falava das condições laborais presentes nos hipermercados dos Estados Unidos.

    Alguns dados em nosso país estampam essa realidade. Na mensuração referente ao primeiro trimestre de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou uma intensificação das condições de vida desumanas da classe trabalhadora: atingimos o contingente de 12,9 milhões de desempregados, sendo que a informalidade atingiu 40%, com aproximadamente 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras à margem da legislação social protetora do trabalho.

    E vale ressaltar que esses dados não refletem o que vem se passando nos meses seguintes à pesquisa, com o avanço da pandemia no Brasil, mas tão somente o que era visível nos primeiros dias de março, visto que o desemprego (tanto o aberto quanto aquele por desalento) estava parcialmente invisibilizado pela paralisação de amplos setores da economia, permitindo tão somente uma aproximação da realidade. Se a esses dados somamos os subocupados (que trabalham menos de quarenta horas) e ainda os subutilizados (que, segundo o IBGE, englobam tanto os subocupados como os desocupados e a força de trabalho potencial), tem-se uma ideia mais precisa do tamanho da tragédia social que não para de se amplificar no país.

    Foi nessa contextualidade, caracterizada pela simultaneidade da crise econômica, social e política, que a pandemia nos atingiu. E as corporações globais sabem melhor do que ninguém que a força de trabalho é uma mercadoria especial, uma vez que é a única capaz de desencadear e impulsionar o complexo produtivo presente nas cadeias produtivas globais que hoje comandam o processo de criação de valor e de riqueza social; mas sabemos também que os capitais aprenderam a lidar com (e contra) o trabalho.

    Assim, sua engenharia social está cada vez mais focada em reduzir ao máximo o trabalho humano necessário à produção, substituindo-o pelo uso crescente das tecnologias de informação e comunicação (TIC), internet das coisas, impressão 3D, big data, inteligência artificial etc. Se assim caminhava o mundo do trabalho antes da explosão da covid-19, quais são, então, algumas das experimentações do trabalho que estão sendo gestadas nos laboratórios do capital, em plena pandemia do capital, para serem intensificadas e amplificadas no mundo pós-pandêmico?

    Nossa primeira hipótese é que a principal forma experimental se encontra no trabalho uberizado ou naquele vigente nas plataformas digitais. Utilizando-se cada vez mais da informalidade, flexibilidade e precarização, traços que particularizam o capitalismo no Sul (mas que se expandem também no Norte), coube às grandes plataformas digitais e aplicativos como Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Facebook, Airbnb, Cabify, 99, Lyft, iFood, Glovo, Loggi, Deliveroo, Rappi etc. dar um grande salto pela adição das tecnologias informacionais.

    Utilizando-se largamente dos algoritmos, da inteligência artificial e de todo arsenal digital, canalizado para fins estritamente lucrativos, tudo isso vem possibilitando a criação de novas modalidades de trabalho que, como já indicamos, passam ao largo das relações contratuais vigentes. Os trabalhos assalariados transfiguram-se, então, em prestações de serviços, o que acaba por resultar na sua exclusão da legislação social protetora do trabalho.

    Realizando jornadas de trabalho frequentemente superiores a oito, dez, doze ou mais horas por dia, muitas vezes sem folga semanal; percebendo salários baixos; vivenciando demissões sem qualquer justificativa; arcando com os custos de manutenção de veículos, motos, bicicletas, celulares, equipamentos etc. – parece que começam a se desenvolver, nos laboratórios do capital, múltiplos experimentos que podem ser generalizados, depois da pandemia, para um amplo leque de trabalhos, nas mais distintas atividades, intensificando o processo de escravidão digital.

    Assim, se esse instrumental do capital continuar se ampliando exponencialmente, teremos mais informalização com informatização, o que será justificado pela necessidade de recuperação da economia pós-pandemia. E a existência de uma monumental força sobrante de trabalho, que não para de se ampliar, intensificando essa tendência destrutiva em relação ao trabalho.

    Foi por constatar essa tendência destrutiva em relação ao trabalho que venho desenvolvendo uma segunda hipótese: em plena era do capitalismo de plataforma, plasmado por relações sociais presentes no sistema de metabolismo antissocial do capital, ampliam-se globalmente formas pretéritas de exploração do trabalho, que remetem aos primórdios da Revolução Industrial. O que significa dizer que, em pleno século XXI, estamos vivenciando a recuperação de sistemáticas do trabalho que foram utilizadas durante o que podemos denominar protoforma do capitalismo, isto é, os primórdios do capitalismo.

    Podemos indicar, como expressão do que estamos argumentando, as jornadas diárias frequentemente superiores a oito, dez, doze, catorze horas; remuneração salarial rebaixada, em contraposição ao aumento e intensificação do trabalho (traço que vem se agudizando na pandemia); crescimento de um contingente sem acesso a qualquer direito social e do trabalho; entre tantos outros elementos que remetem aos inícios do capitalismo, à sua fase de acumulação primitiva.

    Há ainda outros exemplos ilustrativos das experimentações do capital em curso nas décadas e anos mais recentes. A simbiose entre trabalho informal e mundo digital vem permitindo que os gestores possam também sonhar com trabalhos ainda mais individualizados e invisibilizados. Ao perceber que o isolamento social realizado sob a pandemia vem fragmentando ainda mais a classe trabalhadora, assim dificultando as ações coletivas e a resistência sindical, procuram avançar também na ampliação do home office e do teletrabalho. Desse modo, além da redução de custos, abrem novas portas para maior corrosão dos direitos do trabalho, acen­tuando a desigual divisão sociossexual, racial e étnica do trabalho e embaralhando de vez o tempo de trabalho e de vida da classe trabalhadora.

    Os bancos, que exercitam uma pragmática de enorme enxugamento há décadas, utilizando-se intensamente do arsenal digital, já estão escolhendo as melhores formas de implantação do home office.

    Outro exemplo emblemático encontramos no ensino à distância (EAD), prática que se intensificou durante a pandemia (tanto no ensino privado quanto no público), especialmente nas faculdades privadas, com o objetivo de reduzir custos e aumentar os lucros. Recentemente, como noticiou amplamente a imprensa, houve demissão em massa de professores, chegando-se até mesmo à utilização de robôs para fazer a correção de trabalhos, sem que os alunos tivessem conhecimento.

    Esses elementos nos permitem, então, apresentar nossa terceira hipótese: estamos ingressando em uma nova fase de desantropomorfização do trabalho, agora caracterizada pela intensificação da subsunção real do trabalho à nova máquina-ferramenta-informacional, processualidade que é, objetiva e subjetivamente, ainda mais complexa quando comparada àquela vivenciada pela introdução da maquinaria durante a primeira fase da Revolução Industrial.

    Com a expansão global da chamada Indústria 4.0, em curso ainda mais acentuado durante a pandemia, se não forem criadas barreiras e confrontações sociais fortes, teremos uma ampliação exponencial de trabalho morto, por meio do crescimento do maquinário informacional-digital. Tais alterações trarão, além da redução quantitativa do trabalho vivo, profundas transformações qualitativas, uma vez que o trabalho morto, ao ampliar seu domínio sobre o trabalho vivo, aprofundará ainda mais a subsunção real do trabalho ao capital, nessa nova fase digital, algorítmica e financeira que pauta o mundo corporativo de nosso tempo.

    Assim, por meio desses e de outros mecanismos, novas modalidades de trabalho vêm ganhando forte impulsão, uma vez que está em curso um laboratório de experimentações do trabalho uberizado, que tende a ser intensamente ampliado no período pós-pandemia para as mais diversas atividades econômicas, tanto nas empresas privadas quanto nas públicas.

    Entretanto, é importante destacar, como já pude indicar anteriormente, que a nova morfologia do trabalho possibilita também o florescimento de uma nova morfologia das lutas sociais, de auto-organização e de novas formas de representação. O Breque dos Apps, como sugestivamente foram denominadas as duas primeiras greves dos trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos no Brasil, em julho de 2020, sinaliza o início de uma nova fase de lutas sociais desencadeadas pelo novo proletariado de serviços da era digital.


    [1] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (São Paulo, Boitempo, 2018, coleção Mundo do Trabalho).

    [2] Idem, Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (São Paulo, Cortez, 1995); Sadi Dal Rosso, Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea (São Paulo, Boitempo, 2008, coleção Mundo do Trabalho); idem, O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor (São Paulo, Boitempo, 2017, coleção Mundo do Trabalho); Danièle Linhart, A desmedida do capital (trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant, São Paulo, Boitempo, 2007, coleção Mundo do Trabalho); Graça Druck e Tânia Franco, Terceirização e precarização: o binômio antissocial em indústrias, em Graça Druck e Tânia Franco (orgs.), A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização (São Paulo, Boitempo, 2007, coleção Mundo do Trabalho).

    [3] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão, cit.

    [4] Pietro Basso, Tempos modernos, jornadas antigas: vidas de trabalho no início do século XXI (trad. Patrícia Villen, Campinas, Editora da Unicamp, 2018); Judy Wajcman, Esclavos del tiempo: vidas aceleradas en la era del capitalismo digital (Barcelona, Paidós, 2017).

    [5] István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa, São Paulo, Boitempo, 2002, coleção Mundo do Trabalho).

    [6] Ricardo Antunes e Ruy Braga (orgs.), Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (São Paulo, Boitempo, 2009, coleção Mundo do Trabalho); Ursula Huws, The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World (Nova York/Londres, Monthly Review Press/Merlin, 2003); idem, Labor in the Global Digital Economy: The Cybertariat Comes of Age (Nova York, Monthly Review Press, 2014).

    [7] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013, coleção Marx-Engels).

    [8] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (São Paulo, Boitempo, 1999, coleção Mundo do Trabalho); Nick Dyer-Witheford, Cyber-Proletariat: Global Labour in the Digital Vortex (Londres, Pluto, 2015); Ursula Huws, The Making of a Cybertariat, cit.; idem, Labor in the Global Digital Economy, cit.; Guglielmo Carchedi, High-Tech Hype: Promises and Realities of Technology in the Twenty-First Century, em Jim Davis, Thomas Hirschl e Michael Stack (orgs.), Cutting Edge: Technology, Information, Capitalism and Social Revolution (Londres/NovaYork, Verso, 1997); George Caffentzis, Why Machines Cannot Create Value: Or Marx’s Theory of Machines, em Jim Davis, Thomas Hirschl e Michael Stack (orgs.), Cutting Edge, cit.

    [9] Luci Praun, Reestruturação produtiva, saúde e degradação do trabalho (Campinas, Papel Social, 2016).

    [10] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão, cit.

    [11] François Chesnais, A mundialização do capital (trad. Silvana Finzi Foá, São Paulo, Xamã, 1996); Jean Lojkine, A revolução informacional (trad. José Paulo Netto, São Paulo, Cortez, 1995).

    [12] Ursula Huws, The Making of a Cybertariat, cit.; idem, Labor in the Global Digital Economy, cit.; Ricardo Antunes, O privilégio da servidão, cit.; Nick Dyer-Witheford, Cyber-Proletariat, cit.

    [13] Tradução nossa. No original, "Clash City Workers è un collettivo fatto di lavoratrici e lavoratori, disoccupate e disoccupati, e di quelle e quelli che vengono comunemente chiamati ‘giovani precari’. La traduzione del nostro nome suona un po’ come ‘lavoratori della metropoli in lotta’. Siamo nati alla metà del 2009 e siamo attivi in particolare a Napoli, Roma, Firenze, Padova, Milano e Bergamo ma cerchiamo di seguire e sostenere tutte le lotte che sono in corso in Italia. Ver Chi siamo", Portal do Clash City Workers, s.d.; disponível em: ; acesso em: 11 jun. 2018.

    [14] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão, cit.; Ruy Braga, A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (São Paulo, Boitempo, 2017, coleção Mundo do Trabalho).

    [15] Ver Manifesto Precário, Associação de Combate à Precariedade, 18 jul. 2007; disponível em: ; acesso em: 16 ago. 2020.

    [16] Ver Somos os Infoproletários, Portal dos Infoproletários, s.d.; disponível em: ; acesso em: 25 jul. 2018.

    [17] Idem.

    [18] Idem.

    [19] Idem.

    [20] Ricardo Antunes, O privilégio da servidão, cit.

    2

    O panóptico algorítmico da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle

    [a]

    Jamie Woodcock

    Introdução

    A Deliveroo é uma plataforma de entrega de alimentos que usa o modelo da Uber, o qual se tornou o arquétipo desse tipo de organização. As plataformas cresceram rapidamente nos anos recentes, algo capturado nas típicas caracterizações de que novas companhias serão a Uber de X[1]. Como a Uber, a Deliveroo é designada como uma plataforma que conecta clientes com comida e com os condutores que a entregam. A Deliveroo pode, portanto, ser considerada a Uber da entrega de comida, a despeito do fato de que ela também compete com a oferta da Uber Eats, plataforma da própria Uber. A Deliveroo se tornou uma grande parte da chamada "gig economy" de Londres, na qual o trabalho tem se tornado cada vez mais fragmentado entre diferentes gigs, ou arranjos precários de trabalho. A empresa está rompendo (disrupting) o setor de entrega de alimentos, para usar o linguajar dessas companhias. Em suas próprias palavras[2], ela conecta centenas de cadeias de restaurantes e muitos dos melhores restaurantes independentes para entregar as comidas feitas por eles com um fantástico time de condutores. O aspecto de plataforma está relacionado ao fato de que a Deliveroo classifica os condutores como contratantes independentes autônomos (self-employed independent contractors), afirmando que ela reúne restaurantes e condutores em vez de empregar alguém diretamente. Isso é similar à afirmação da Uber de que ela é uma companhia de táxi que não emprega condutores e que não possui nenhum carro.

    O objetivo deste capítulo é intervir nos debates em torno do uso de algoritmos nas plataformas do trabalho. Há um número crescente de pesquisas sobre algoritmos[3], mas há um foco menor em como eles são utilizados, na prática, como formas de gestão algorítmica[4]. Na Deliveroo, os algoritmos são usados para medir e supervisionar o trabalho. Entretanto, como se sabe pouco, comparativamente, a respeito de como eles funcionam na prática, há o risco de exagerar o poder e a sofisticação dessas técnicas. Este capítulo irá abordar o uso dos algoritmos na ­Deliveroo por meio de uma versão atualizada da metáfora do panóptico. Para fazer isso, traçaremos o desenvolvimento de diferentes formas de mensuração e supervisão na fábrica e no call-center. Esses dois exemplos ressaltam como as técnicas se desenvolveram em termos de novos métodos, mas também oferecem elementos para explorar o que a perda de um supervisor humano – que caminha no chão de fábrica ou que escuta no call-center – significa para a gestão na Deliveroo.

    A contribuição deste capítulo é apresentar uma intervenção nos debates sobre o trabalho de plataforma e o papel da mensuração, vigilância e controle. A intenção é ressaltar como o algoritmo opera na Deliveroo partindo da perspectiva do trabalhador da plataforma. Para tanto, o artigo usa a enquete operária como abordagem metodológica, apoiando-se em observação, entrevistas e elementos de copesquisa. Os resultados revelam como a gestão algorítmica é vivenciada pelos trabalhadores, ao lado de uma expressão dupla da precariedade na Deliveroo – tanto para os trabalhadores como para a plataforma. Isso é discutido em termos da necessidade da Deliveroo de manter uma ilusão de controle gerencial, ainda que apoiada em supervisão detalhada e atos disciplinares ocasionais. A aparência de um método onipresente e automático de supervisão e disciplinamento dos trabalhadores é a de um método de controle com ótimo custo-benefício, mas como os participantes mostram neste capítulo, essa aparência está longe de ser absoluta.

    Mensuração do trabalho

    I. A fábrica

    A mensuração do trabalho é uma preocupação central da gestão, claramente identificável no regime fabril. O gerenciamento do trabalho envolve a compra do tempo das pessoas e, então, seu uso efetivo. A relação de trabalho capitalista tem como premissa a existência do que Marx[5] ironizou como uma liberdade dos trabalhadores em um duplo sentido: os trabalhadores são livres para escolher a quem eles irão vender seu tempo, mas também estão libertos de qualquer outra forma de ganhar a vida. O problema aqui, que preocupa há muito tempo os gestores (assim como, por sua vez, os teóricos do processo de trabalho), é a contradição entre o interesse dos vendedores da força de trabalho (trabalhadores) e os compradores (capitalistas). No capítulo 10 de O capital, Marx[6] explora isso por meio das tensões sobre a extensão da jornada de trabalho. No contexto da fábrica, os capitalistas procuram aumentar seus lucros mediante o incremento da extração de mais-valor dos trabalhadores. Marx explora como o aumento da jornada de trabalho consegue realizar esse objetivo, aumentando o mais-valor absoluto que é produzido. No entanto, esse método resulta em ganhos marginais, uma vez que exaure o trabalhador no processo de extensão dos turnos. Em vez de tornar o período de trabalho absoluto maior, o mais-valor relativo pode ser aumentado fazendo com que os trabalhadores produzam mais durante o mesmo período. Ambas são tentativas de resolver a indeterminação da força de trabalho (como obter o máximo possível da compra da força de trabalho), mas o aumento do mais-valor relativo tem sido o mais efetivo. Contudo, conseguir isso é uma prática complicada, porque implica exercer controle sobre os trabalhadores. Como Richard Edwards[7] argumentou, o controle torna-se problemático porque, diferentemente de outras mercadorias envolvidas na produção, a força de trabalho está sempre incorporada nas pessoas, que têm seus próprios interesses e necessidades e que retêm o poder de resistir a serem tratadas como uma mercadoria.

    Na fábrica, a mensuração da performance do trabalhador, portanto, se torna um ponto de partida importante para aumentar os lucros. A mensuração sistemática do processo de trabalho se tornou uma obsessão para Frederick Taylor[8], que argumentou que os gerentes assumem o fardo de reunir todo o conhecimento tradicional que era detido pelos trabalhadores no passado e classificá-lo, tabulá-lo e reduzi-lo a regras, leis e fórmulas. Ao estudar o trabalho na companhia Midvale Steel, Taylor desenvolveu um conhecimento acurado da produção, desmembrando e medindo cada aspecto. A gerência científica (ou taylorismo, como ficou conhecida) desenvolveu-se em um método com três princípios. Primeiro, compilação e desenvolvimento de conhecimentos sobre o processo de trabalho, que implica uma mensuração detalhada do trabalho. Segundo, a concentração desse conhecimento como competência exclusiva da gerência. Terceiro, o uso desse monopólio sobre o conhecimento para controlar cada passo do processo de trabalho e seu modo de execução[9]. Esses três princípios, junto à prevalência dos estudos sobre tempo e movimento, foram além de apenas uma mensuração para se tornarem o que ­Harry Braverman[10] argumenta ser uma teoria que é nada menos que a verbalização explícita do modo capitalista de produção.

    A mensuração é, assim, parte essencial da gestão do processo de trabalho. Ela fornece a base para os gestores abordarem a indeterminação da força de trabalho, garantindo que a compra desta tenha um uso eficaz. Na fábrica, isso requer supervisores que caminhem por todo o corredor central da fábrica, executando a supervisão, que é tanto geral quanto individual[11]. Esse processo tornou a fábrica um local de trabalho vigiado, mensurando o trabalho mediante a supervisão direta para garantir que os trabalhadores façam o máximo de esforço. Entretanto, o aspecto geral da supervisão é também aquele da ameaça, uma vez que o supervisor não pode observar todos os trabalhadores ao mesmo tempo. Esse aspecto da supervisão é discutido com frequência por meio da metáfora do panóptico, que era o modelo arquitetônico de uma prisão na qual um único observador, a partir de um ponto central, poderia vigiar simultaneamente todos os prisioneiros. O panóptico tinha a intenção de internalizar a função supervisória, já que um prisioneiro individual não poderia saber quando o observador o estaria vigiando, assumindo, portanto, que isso poderia acontecer a qualquer momento. A despeito de Jeremy Bentham[12] ter discutido a utilidade disso nas prisões, ele também argumentou que qualquer que seja a indústria, a utilidade do princípio é óbvia e incontestável em todos os casos em que os trabalhadores são pagos por seu tempo. Ele previu como o panóptico poderia ser também uma ferramenta para superar a indeterminação da força de trabalho. Entretanto, Bentham continuou a argumentar que, nos cenários em que os trabalhadores eram pagos por peça, o interesse que [o trabalhador] tem no valor de [seu] trabalho supera o uso da coerção e de qualquer expediente calculado para dar força a ele. Assim, a subordinação dos trabalhadores fez uso, cada vez mais, do pagamento por peça na produção concomitantemente à supervisão. Ambos envolvem tentativas de fazer com que os trabalhadores internalizem os objetivos dos gestores.

    O pagamento por peça é uma ferramenta poderosa para os gestores encorajarem uma maior produtividade. Se, por um lado, a gerência se torna obcecada por encontrar maneiras de aumentar a produtividade, Michael Burawoy[13] investigou o porquê dos trabalhadores, por outro lado, trabalharem tão intensamente como o fizeram. Em seu estudo, ele encontrou práticas semelhantes a jogos para completar e ultrapassar as metas de trabalho esperadas. A abordagem do pagamento por peça se tornou bem-sucedida e, como Tony Cliff[14] argumentou, antes de 1970, no Reino Unido, em torno de dois quintos da classe trabalhadora atuavam em sistemas de pagamento por peça. Entretanto, tal sistema – junto a fortes redes de representantes sindicais – forneceu múltiplos caminhos para os trabalhadores resistirem efetivamente à gerência. Em resposta à militância da classe trabalhadora, os sistemas de pagamento por peça foram progressivamente substituídos por acordos de produtividade, em que os trabalhadores concordam com trabalhar por salários maiores e não restringir as medidas de produtividade. Isso significou, novamente, o desenvolvimento de novas formas de controle dos trabalhadores, não dependendo mais de um incentivo financeiro direto.

    II. O call-center

    O próximo desenvolvimento de controle gerencial veio depois do declínio da indústria no Reino Unido. No Norte global, essa reestruturação significou que a maioria das pessoas passou a trabalhar no setor de serviços. O que diferencia o serviço do trabalho fabril são quatro características principais: intangibilidade, variabilidade, perecibilidade da produção e simultaneidade de consumo e produção[15]. Isso cria novos desafios para os gestores porque os serviços são mais intangíveis, qualidade e produtividade são difíceis de mensurar, o que significa que é difícil estabelecer objetivos específicos para os empregados e avaliar sua performance com base nesses objetivos[16]. Uma maneira de superar tal empecilho tem sido aplicar novos tipos de tecnologia ao processo de trabalho em serviços. A despeito de afirmações contrárias, isso levou a um tipo de trabalho pós-industrial que Enda Brophy[17] descreveu como sendo não o sonho de Daniel Bell, mas o pesadelo de Harry Braverman.

    O call-center tornou-se o símbolo de muitas dessas mudanças, assim como o foco de muitos debates sobre mensuração, vigilância e controle. Como Miriam Glucksmann[18] sumarizou, os call-centers são uma das mais pesquisadas formas de trabalho contemporâneo, fornecendo "material para debates sobre ‘vigilância versus resistência’, degradação do trabalho e relevância de uma analogia eletrônica com o panóptico. Isso ressaltou como o trabalho emocional[19] estava sendo organizado nos call-centers[20]. Esse aspecto qualitativo do processo de trabalho é difícil de quantificar e de mensurar, devido a suas características subjetivas e efêmeras. Phil Taylor e Peter Bain[21], assim, conceitualizaram a demanda para que os trabalhadores de call-center sorrissem pelo telefone, dentro de um local de trabalho marcado por níveis extremos de vigilância, monitoramento e aceleração"[22].

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