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A Mesa dos Ricos

Se nos vissem sentados na nossa mesa de


cozinha, feita à mão e toda arranhada, saberiam
logo que não somos ricos. Mas o meu pai está a
tentar fazer-nos ver que somos.
Será que não vê os meus sapatos gastos? Ou
que o meu irmãozinho tem remendos nas calças que
leva para a escola? E como explicará ele aquela
carrinha a desfazer-se, estacionada à nossa porta?
(Carrinha: Caminhonete pequena, fechada ou
aberta, usada no transporte de passageiros e
mercadorias).
- Não consegues enganar-me – digo-lhe. –
Somos pobres. Será que os ricos se sentariam a
uma mesa como esta?
A minha mãe, como que acariciando a mesa,
diz:
- Bem, nós somos ricos e sentamo-nos aqui
todos os dias.
Às vezes, penso que sou a única pessoa
sensata na família. Diga-se de passagem que os
meus pais fizeram esta mesa com madeira que
outras pessoas deitaram fora. Até festejaram quando
a terminaram. Não me interpretem mal: eu gosto
desta mesa. Só digo que se vê logo que não veio de
uma loja de mobílias. Não tem ar de ser uma mesa à
qual os ricos se sentariam.
Mas a minha mãe pensa que, se todos os
governantes do mundo se sentassem em redor de
uma amigável mesa de madeira na cozinha de
alguém, resolveriam os seus diferendos em metade
do tempo. E o meu pai diz que não fazia mal se
houvesse um lindo prato azul com muitos bolinhos
empilhados, que todos pudessem tirar, mesmo sem
ter de pedir.
(Diferendos: Desacordados, desentendimentos).
Hoje, porém, trata-se da nossa cozinha, da
nossa discussão, da nossa reunião familiar, dos
nossos bolinhos de gengibre com especiarias,
empilhados no melhor prato de flores azuis da minha
mãe, colocado exatamente no centro da mesa. Fui
eu que convoquei a reunião, cujo tema é dinheiro; o
meu ponto de vista é que não temos dinheiro que
chegue. Digo aos meus pais que devem ambos
arranjar empregos melhores, para podermos
comprar muitas coisas novas e boas. Digo-lhes que
faço má figura na escola diante dos outros.
- Não gosto de ter de falar disto, mas era bom
que fossem ambos mais ambiciosos.
Ficam surpreendidos. Vê-se bem que nunca
pensam nas coisas que necessitamos. Devo dizer
desde já que os meus pais têm umas ideias
estranhas acerca do trabalho. Pensam que os únicos
empregos que interessam são empregos ao ar livre.
Querem ter rochedos, desfiladeiros, desertos ou
montanhas em redor deles, onde quer que estejam a
trabalhar. Até querem ver bem o céu. Trabalham
sempre juntos e a sua ocupação favorita é procurar
ouro. Enfiam-nos naquela carripana e lá vamos nós
em direção às montanhas rochosas e desertas ou
em direção a alguma ravina estreita, onde todas as
estradas se assemelham a trilhos de cointes.
(Carripana: Veículo velho ou em má qualidade usado
para transporte coletivo).
(Ravina: Escoamento de grande concentração de
águas pelas encostas).
(Cointes: Semelhante ao lobo, porém menor e mais
comprido e magro, com orelhas proporcionalmente
mais compridas, encontrando do malasca ao
Panamá).
Adoram caminhar pelas amplas margens de rios
agora secos, onde se podem encontrar pequenos
salpicos de ouro. Costumavam dizer-nos que a
carrinha sabia exatamente que tipos de estrada
bater, e que os cointes lhes indicavam onde procurar
ouro, mas eu nunca acreditei neles. Depois de
passarem lá um mês ou dois, traziam sempre um
pouco de minério para vender, mas vê-se bem que
nunca enriqueceram.
Pelo que me é dado ver, tratava-se apenas de
um pretexto para acampar de novo num lugar
selvagem e belo. Não se importam de plantar
campos de milho doce ou de alfafa. Gostam de
apanhar pimento-de-cheiro, abóbora e tomate.
Conseguem construir vedações fortes ou domar
potros selvagens. Mas dizem que não aguentam
ficar engaiolados em casa.
(Vedações: Ato de cercar, fechar).
(Potros: Cavalo novo com menos de 30 meses).
Por isso, o meu pai pergunta:
- Quantas pessoas há que sejam tão
afortunadas como nós?
Mas como fui eu quem convocou esta reunião,
respondo:
- Aposto que fariam mais dinheiro se
trabalhassem num escritório na cidade.
- Lembras-te da nossa regra número um –
insiste o meu pai.
- Temos de poder ver o céu.
- Podiam vê-lo através de uma janela – sugiro.
Mas eles nem querem ouvir falar disso. Já
percebem por que digo que sou o único membro
sensato da família? Finalmente, a minha mãe diz:
(Sensato: Que tem juízo; equilibrado).
- Está bem, Filha da Montanha. Vamos explicar-
te como fazemos contas. Hoje, vais ser a nossa
contabilista.
Distribui um lápis e uma folha de papel amarelo
por cada um de nós, o meu irmão incluído, embora
ele só finja que escreve enquanto nós escrevemos,
ou desenhe pessoas a dançar no céu. Já agora, o
meu nome não é Filha da Montanha. Chamam-me
assim porque nasci numa cabana na encosta de
uma montanha, no Arizona, num verão em que os
meus pais tinham ido em busca de ouro. Dizem que
era um lugar mágico, a mais bela montanha que
alguma vez escalaram. Talvez fosse, mas sabemos
bem o quanto eles gostam de exagerar. Como
queriam que a primeira coisa que eu visse fosse
aquela encosta, quando tinha apenas oito minutos
de vida levaram-me a ver o nascer-do-sol. A verdade
é que ainda gosto muito do nascer-do-sol.
Quanto ao meu irmão, chamam-lhe Filho do
Oceano. Como eu tinha tido a melhor montanha
como primeira paisagem da minha vida, acharam
que deviam encontrar o oceano mais belo para
quando ele nascesse. Penso que percorreram o
México todo para encontrar um lugar onde o oceano
e a selva se encontrassem. Queriam que o céu
estrelado fosse azul-púrpura e que as ondas do mar
fossem da cor verde e que eles preferem. Ergueram-
no bem alto, para que aquelas ondas fossem a
primeira paisagem da sua vida.
Havemos de voltar um dia àquele oceano verde
e à minha montanha alta. Por ora (embora os meus
pais digam que são ricos), não há dinheiro para
irmos a lado algum.
Por isso, não admira que eu tenha tido de
convocar esta reunião. Acreditam que o meu pai me
olha bem nos olhos e me diz:
- Mas, Filha da Montanha, eu estava persuadido
de que sabias o quanto somos ricos.
(Persuadido: Convencido).
Respondo-lhe:
- Esta conversa só vai resultar se admitirmos
que somos pobres.
O meu pai continua:
- Vou provar-te agora mesmo o que disse.
Façamos uma lista do dinheiro que ganhamos por
ano.
- Quanto é? – pergunto.
- Preciso de anotar.
- Calma aí – adverte o meu pai. – Temos de
pensar em montes de coisas antes de somarmos
tudo.
- Que coisas?
A minha mãe contribui:
- Sabes que não recebemos o nosso salário
apenas em papel-moeda. Temos um plano especial
que nos permite ser pagos em pores-do-sol, em
tempo para escalar desfiladeiros e procurar ninhos
de águia.
Não desarmo:
- Não podem dar-me uma quantia só para que
eu possa anotar?
Começamos com vinte mil dólares. É quanto o
meu pai diz que vale poder trabalhar ao ar livre, ver
o sol durante todo o dia, sentir o vento e cheirar a
chuva, uma hora antes de ela cair realmente. Diz
que é quanto vale estar num sítio onde pode cantar
alto quando lhe apetecer, sem incomodar ninguém.
(Apetecer: Desejar).
Mal escrevo vinte mil, a minha mãe acrescenta:
- É melhor escreveres trinta mil, porque poder
ouvir cointes a uivar nas colinas vale, pelo menos,
mais dez mil dólares.
Escrevo trinta mil. A minha mãe lembra-se de
que também gostam de viagens longas e de
montanhas distantes que mudam a cor dez vezes ao
dia.
- Para mim, isto vale mais cinco mil dólares.
O que não me surpreende, já que a minha mãe
afirma ser uma especialista em sombras de
montanha no deserto. Diz que consegue saber as
horas pela forma como as cores das sombras variam
do nascer ao pôr do sol. Apago o que escrevi antes
e escrevo trinta e cinco mil dólares. O meu pai
lembra-se, então, de outra coisa.
- Quando um cato floresce, temos que lá estar
porque podemos não voltar a ver aquela cor em
mais dia algum na nossa vida. Quanto pensas que
vale essa cor?
(Cato: Espécie de planta tipo cacto).
- Cinquenta cêntimos? Pergunta o meu irmão.
(Cêntimos: A centésima parte da moeda em diversos
países).
Decidem-se por acrescentar cinco mil à lista.
Já vamos em quarenta mil dólares.
Mas eu tinha me esquecido do quanto o meu pai
gosta de imitar os sons dos pássaros. Consegue
imitar qualquer um, mas a sua melhor imitação são
as pombas de asas brancas, os corvos, os falcões
de cauda ruiva e as codornizes. Também é bom a
imitar águias e corujas de grandes bicos. Por isso, lá
temos nós de acrescentar mais dez mil por termos a
sorte de conviver com aves diurnas e noturnas.
Risco a soma que tinha escrito e assento
cinquenta mil dólares.
- Agora vejamos quanto vale a nossa Filha da
Montanha.
Decido entrar no jogo e sugiro que valho dez mil
dólares, embora o meu irmão tenha começado a rir-
se.
- Não te subestimes – diz o meu pai. – Lembras-
te daquelas listas fabulosas que nos fazes.
Tem razão. Faço listas dos melhores livros que
cada um de nós leu, e dos que cada um de nós quer
ler de novo. Também fiz uma lista de todos os
animais que cada um de nós viu e daqueles que
mais queremos ver – ao ar livre, não num jardim
zoológico. O animal que eu mais gostava de ver é o
leão da montanha. Já sonhei com ele quatro vezes e
também já lhe vi o rasto. O meu pai escolheu o urso-
pardo da América. A minha mãe quer ver um lobo e
ouvi-lo uivar. O meu irmão hesita entre um golfinho e
uma baleia. Lembro-me de todos porque sou eu que
faço as listas.
(Rasto: Pegada, vestígio deixado por animal ou
pessoa no seu caminho).
(Hesita: Mostra dúvida).
Acabam por achar que valho um milhão de
dólares. Protesto, mas anoto a soma. Acabamos por
decidir que cada um de nós vale um milhão de
dólares. A soma de toda a nossa riqueza totaliza
agora quatro milhões e cinquenta mil dólares. Dou-
me conta de que quero adicionar cinco mil dólares
pelo prazer que me causa vaguear pelo campo,
sozinha, livre como um lagarto, sem ter de seguir
trilhos, sem ter um plano, apenas pelo prazer de
andar ao sabor do vento. A minha família acha que
isso vale cinco mil. O que totaliza quatro milhões e
cinquenta e cinco mil dólares.
Por fim, o meu irmão quer ainda juntar sete
dólares por todas as noites em que adormecemos ao
ar livre, sob as estrelas. Pensamos que sete dólares
são insuficientes e convencemo-lo a arredondar para
cinco mil. A minha folha registara agora quatro
milhões e sessenta mil dólares – e ainda nem sequer
começamos a contar o nosso dinheiro em papel-
moeda. Para ser franca, esse tipo de riqueza já não
conta muito neste momento. Sugiro que nem faça
parte da nossa lista de riquezas.
E, assim, a reunião chega ao fim.
A família foi até lá fora ver o novo quarto de lua.
Mas eu fiquei sentada à nossa querida mesa
feita à mão, sobre a qual o prato de flores azuis da
minha mãe conserva ainda um bolinho, escrevo este
livro sobre nós.
Acaricio a mesa e fico contente por a termos.
Acho que o título deste livro vai ser A Mesa dos
Ricos.
Fonte: Byrd Baylor. The Table Where Rich People
Sit. New York. Aladdin Paperbacks, 1998 (Tradução
e adaptação).
PONTINHOS, Ano LXIII, Nº 381, Abril/Junho de
2022.

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