Enfrentando o Problema Da Consciência - D. Chalmers
Enfrentando o Problema Da Consciência - D. Chalmers
Enfrentando o Problema Da Consciência - D. Chalmers
David J. Chalmers
Australian National University/ New York University
1
Artigo publicado originalmente no Journal of Consciousness Studies, 2 (3), p. 200-19, 1995.
Agradeço a Francis Crick, Peggy DesAutels, Matthew Elton, Liane Gabora, Christof Koch, Paul
Rhodes, Gregg Rosenberg e Sharon Wahl por seus comentários.
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1. Introdução
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2 A noção de reportability tem difícil tradução para o português. Seu equivalente direto é
“relatabilidade”, embora esta não seja uma palavra muito usual. O termo está relacionado a
report, que pode ser traduzido como “relato” ou, em certos contextos, “relatório”. O verbo “to
report” equivale em português a “relatar”. Quando falamos de reportability em filosofia da
mente, referimo-nos à habilidade que seres conscientes têm de relatar ou comunicar seus
próprios estados mentais ou, mais especificamente, do fato de que estados mentais são passíveis
de serem relatados por tais seres. Ainda que a palavra “relatabilidade” possa causar
estranhamento, preferimos utilizá-la aqui por dois motivos principais. Primeiro, trata-se de um
termo técnico recorrente em investigações sobre a consciência. Mas também porque, ao usar
uma única palavra em vez de uma expressão como “habilidade de relatar” ou algo similar, não
nos vemos obrigados a impor adaptações demasiadamente extensas ao discurso original do
autor (Nota do Tradutor [N. do T.]).
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esse organismo, e um estado mental é consciente se há algo que é estar nesse estado. Às
vezes, termos como “consciência fenomênica” e “qualia” também são usados aqui, mas
acho mais natural falar em “experiência consciente” ou simplesmente “experiência”.
Outra maneira útil de evitar confusão (usada, por exemplo, por Newell 1990; Chalmers
1996) é reservar o termo “consciência” para os fenômenos da experiência, usando o
termo menos carregado “estado de ciência” (awareness) 3 para os fenômenos mais
diretos descritos anteriormente. Se tal convenção fosse amplamente adotada, a
comunicação seria muito mais fácil. Como as coisas estão hoje, frequentemente, aqueles
que falam sobre “consciência” estão conversando sem se entender.
A ambiguidade do termo “consciência” é frequentemente explorada tanto por
filósofos quanto por cientistas que escrevem sobre o assunto. É comum vermos um
artigo sobre consciência começar com uma invocação do mistério da consciência,
notando a estranha intangibilidade e inefabilidade da subjetividade e preocupando-se
que até então não tenhamos nenhuma teoria do fenômeno. Aqui, o tópico é claramente o
problema difícil – o problema da experiência. Na segunda metade do artigo, o tom se
torna mais otimista, e a teoria da consciência do próprio autor é delineada. Ao examiná-
la, essa teoria acaba sendo uma teoria de um dos fenômenos mais diretos – o da
relatabilidade, do acesso introspectivo, ou qualquer outro. No fim das contas, o autor
declara que a consciência acabou se revelando tratável, mas, ao leitor, resta o
sentimento de ter sido vítima de uma propaganda enganosa (bait-and-switch). O
problema difícil permanece intocado.
3. Explicação funcional
Por que os problemas fáceis são fáceis, e por que o problema difícil é difícil? Os
problemas fáceis são fáceis precisamente porque eles concernem à explicação de
habilidades cognitivas e funções. Para explicar uma função cognitiva, precisamos
apenas especificar um mecanismo que pode desempenhar a função. Os métodos da
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ciência cognitiva são bem adequados para esse tipo de explicação e, assim, são bem
adequados para os problemas fáceis da consciência. Em contraste, o problema difícil é
difícil precisamente porque não é um problema sobre o desempenho de funções. O
problema persiste mesmo quando o desempenho de todas as funções relevantes é
explicado. (Aqui “função” não é usada no sentido teleológico estreito de algo que um
sistema é projetado para fazer, mas no sentido mais amplo de qualquer papel causal que
um sistema pode desempenhar na produção de comportamento).
Explicar a relatabilidade, por exemplo, é apenas explicar como um sistema
poderia executar a função de produzir relatos sobre estados internos. Para explicar o
acesso interno, precisamos explicar como um sistema poderia ser afetado de maneira
apropriada por seus estados internos e usar a informação sobre esses estados no
direcionamento de processos posteriores. Para explicar a integração e o controle,
precisamos explicar como os processos centrais de um sistema podem reunir os
conteúdos de informação e usá-los na facilitação de vários comportamentos. Todos
esses são problemas que dizem respeito à explicação de funções.
Como explicamos o desempenho de uma função? Especificando um mecanismo
que desempenha a função. Aqui, modelagens neurofisiológicas e cognitivas são
perfeitas para a tarefa. Se quisermos uma explicação detalhada de baixo nível, podemos
especificar o mecanismo neural que é responsável pela função. Se quisermos uma
explicação mais abstrata, podemos especificar um mecanismo em termos
computacionais. De uma forma ou de outra, o resultado será uma explicação completa e
satisfatória. Uma vez que tenhamos especificado o mecanismo neural ou computacional
que desempenha a função do relato verbal, por exemplo, a maior parte do nosso trabalho
de explicação da relatabilidade chega ao fim.
De certa forma, o ponto é trivial. É um fato conceitual sobre esses fenômenos
que sua explicação envolve apenas a explicação de várias funções, uma vez que os
fenômenos são definíveis funcionalmente. A relatabilidade estar instanciada em um
sistema significa apenas que o sistema é capaz de gerar relatos verbais de informações
internas. Um sistema estar acordado significa apenas que ele está adequadamente
receptivo a informações do ambiente e que é capaz de usá-las para guiar o
comportamento de maneira apropriada. Para entender que esse tipo de coisa é um fato
conceitual, note que alguém que diz “você explicou o desempenho da função do relato
verbal, mas não explicou a relatabilidade” está cometendo um erro conceitual trivial
sobre a relatabilidade. Para explicar a relatabilidade, a única coisa possivelmente
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explicou como elas são experienciadas”, ela não está cometendo um erro conceitual.
Essa é uma questão adicional não trivial.
Essa questão adicional é a questão chave no problema da consciência. Por que
todo esse processamento de informações não ocorre “no escuro”, livre de qualquer
sensação interior? Por que acontece que, quando formas de onda eletromagnéticas
colidem com uma retina e são discriminadas e categorizadas por um sistema visual, essa
discriminação e categorização são experienciadas como uma sensação de vermelho
vivo? Sabemos que a experiência consciente realmente surge quando essas funções são
desempenhadas, mas o fato mesmo de ela surgir é o mistério central. Há uma lacuna
explicativa (um termo que devemos a Levine 1983) entre as funções e a experiência, e
precisamos de uma ponte explicativa para atravessá-la. Uma mera descrição das funções
permanece em um lado da lacuna, de forma que os materiais para a ponte devem ser
encontrados em outro lugar.
Isso não quer dizer que a experiência não tenha função. Talvez se revele que ela
desempenha um papel cognitivo importante. Mas para qualquer papel que ela possa
desempenhar, haverá mais na explicação da experiência do que uma simples explicação
da função. Talvez se revele mesmo que, ao longo da explicação de uma função, seremos
levados ao insight chave que nos permitirá explicar a experiência. No entanto, se isso
acontecer, a descoberta será uma recompensa explicativa extra. Não há nenhuma uma
função cognitiva tal que possamos dizer antecipadamente que a explicação dessa função
explicará automaticamente a experiência.
Para explicar a experiência precisamos de uma nova abordagem. Os métodos
explicativos usuais da ciência cognitiva e da neurociência não são suficientes. Esses
métodos foram desenvolvidos precisamente para explicar o desempenho de funções
cognitivas e eles são bons para isso. Mas, na forma em que eles são, são equipados
apenas para explicar o desempenho de funções. Quando se trata do problema difícil, a
abordagem padrão não tem nada a dizer.
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focam e quais aspectos eles acabam explicando, descobrimos que o alvo final da
explicação é sempre um dos problemas fáceis. Vou ilustrar isso com dois exemplos
representativos.
O primeiro é o da “teoria neurobiológica da consciência”, esboçado por Crick e
Koch (1990; ver também Crick, 1994). Essa teoria está centrada em certas oscilações
neurais de 35 a 75 hertz no córtex cerebral. Crick e Koch levantam a hipótese de que
essas oscilações são a base da consciência. Isso ocorre em parte porque as oscilações
parecem estar correlacionadas com o estado de ciência (awareness) em várias
modalidades diferentes (nos sistemas visual e olfativo, por exemplo) e também porque
elas sugerem um mecanismo pelo qual a ligação (binding) de conteúdos de informação
pode ser alcançada. A ligação é o processo pelo qual parcelas de informação sobre uma
única entidade representadas separadamente são reunidas para serem usadas em um
processamento posterior, como quando informações sobre a cor e a forma de um objeto
percebido são integradas a partir de rotas visuais separadas. Seguindo outros (por
exemplo, Eckhorn et al., 1988), Crick e Koch levantam a hipótese de que a ligação pode
ser alcançada pelas oscilações sincronizadas de grupos neuronais que representam o
conteúdo relevante. Quando duas informações devem ser unidas, os grupos neurais
relevantes oscilam com a mesma frequência e fase.
Os detalhes de como essa ligação pode ser alcançada ainda são pouco
compreendidos, mas suponha que eles possam ser resolvidos. O que a teoria resultante
poderia explicar? Claramente, ela poderia explicar a ligação dos conteúdos de
informação e poderia, talvez, gerar uma descrição mais geral da integração da
informação no cérebro. Crick e Koch também sugerem que essas oscilações ativam os
mecanismos da memória de trabalho, de forma que no futuro pode haver uma descrição
dessa e, talvez, de outras formas de memória. Em algum momento, a teoria poderia
levar a uma descrição geral de como a informação percebida é vinculada e armazenada
na memória para uso em processamento posterior.
Essa teoria seria valiosa, mas não nos diria nada sobre por que os conteúdos
relevantes são experienciados. Crick e Koch sugerem que essas oscilações são os
correlatos neurais da experiência. Essa afirmação é discutível – a ligação também não
ocorre no processamento inconsciente de informação? Mas mesmo que ela seja aceita, a
questão explicativa permanece: por que as oscilações dão origem à experiência? A única
base para uma conexão explicativa é o papel que eles desempenham na ligação e no
armazenamento, mas a questão de por que a ligação e o armazenamento devem eles
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próprios ser acompanhados pela experiência nunca é abordada. Se não soubermos por
que a ligação e o armazenamento devem dar origem à experiência, contar uma história
sobre as oscilações não pode nos ajudar. Por outro lado, se soubéssemos por que a
ligação e o armazenamento deram origem à experiência, os detalhes neurofisiológicos
seriam apenas a cereja do bolo. A teoria de Crick e Koch ganha seu terreno assumindo
uma conexão entre a ligação e a experiência e, portanto, não pode fazer nada para
explicar esse link.
Não creio que, em última instância, Crick e Koch estejam abordando o problema
difícil, embora alguns tenham lhes interpretado como afirmando isso. Uma entrevista
publicada com Koch fornece uma declaração clara das limitações das ambições da
teoria.
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sobre sua estrutura, fornecendo uma espécie de explicação não redutiva de seus aspectos
estruturais (falarei mais sobre isso adiante). Isso é útil para muitos propósitos, mas não
nos diz nada sobre por que, antes de mais nada, a experiência deve existir.
Uma quinta estratégia que é razoável é isolar o substrato da experiência. Afinal,
quase todo mundo admite que a experiência surge de um modo ou de outro a partir dos
processos cerebrais, e faz sentido identificar o tipo de processo do qual ela surge. Crick
e Koch apresentam seu trabalho como isolando o correlato neural da consciência, por
exemplo, e Edelman (1989) e Jackendoff (1988) fornecem argumentos relacionados. A
justificação desses argumentos requer uma análise teórica cuidadosa, especialmente
porque a experiência não é diretamente observável em contextos experimentais, mas,
quando aplicada criteriosamente, essa estratégia pode lançar uma luz indireta sobre o
problema da experiência. Ainda assim, a estratégia é claramente incompleta. Para uma
teoria satisfatória, precisamos saber mais do que quais processos geram a experiência:
precisamos de uma descrição do porquê e do como. Uma teoria da consciência completa
deve construir uma ponte explicativa.
5. O ingrediente extra
Vimos que existem razões sistemáticas de por que os métodos usuais da ciência
cognitiva e da neurociência falham em explicar a experiência consciente. Eles são
simplesmente o tipo errado de método: nada do que eles nos dão pode produzir uma
explicação. Para explicar a experiência consciente, precisamos de um ingrediente extra
na explicação. Isso cria um desafio para aqueles que levam a sério o problema difícil da
consciência: qual é o seu ingrediente extra e por que isso deveria explicar a experiência
consciente?
Não faltam ingredientes extras. Alguns propõem uma injeção de caos e dinâmica
não linear. Alguns acham que a chave está no processamento não-algorítmico. Alguns
apelam para futuras descobertas em neurofisiologia. Alguns supõem que a chave para o
mistério estará no nível da mecânica quântica. É fácil entender por que todas essas
sugestões são apresentadas. Nenhum dos antigos métodos funciona, então a solução
deve estar em algo novo. Infelizmente, todas essas sugestões sofrem dos mesmos
antigos problemas.
O processamento não-algorítmico, por exemplo, é apresentado por Penrose
(1989; 1994) por causa do papel que pode desempenhar no processo de insight
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estruturas e funções, e esse é o tipo de coisa que uma descrição física pode implicar.
Quando se trata de um problema que está para além da explicação de estruturas e
funções, esses métodos são impotentes.
Isso pode parecer remanescente do argumento vitalista de que nenhuma
descrição física poderia explicar a vida, mas os casos não são análogos. O que motivou
o ceticismo vitalista foi a dúvida de que os mecanismos físicos pudessem desempenhar
as muitas funções notáveis associadas à vida, tais como o comportamento adaptativo
complexo e a reprodução. O argumento conceitual de que a explicação de funções é o
que é preciso foi aceito implicitamente. Mas por carecerem de um conhecimento
detalhado sobre os mecanismos bioquímicos, os vitalistas duvidaram que algum
processo físico pudesse desempenhar as funções relevantes e apresentaram a hipótese
do espírito vital como uma explicação alternativa. Depois que se revelou que os
processos físicos podiam desempenhar esse papel, as dúvidas dos vitalistas
desapareceram.
Com a experiência, por outro lado, a explicação física das funções não vem ao
caso. Em vez disso, a chave aqui é a questão conceitual de que a explicação das funções
não é suficiente para a explicação da experiência. Essa questão conceitual básica não é
algo que uma investigação neurocientífica adicional afetará. De maneira semelhante, a
experiência não é análoga ao élan vital. O espírito vital foi apresentado como um
postulado explicativo para explicar as funções relevantes e, portanto, poderia ser
descartado quando essas funções fossem explicadas sem ele. A experiência não é um
postulado explicativo, mas sim um explanandum por si só, e, portanto, não é um
candidato a esse tipo de eliminação.
É tentador notar que vários tipos de fenômenos intrigantes acabaram se
mostrando explicáveis em termos físicos. Mas todos eles eram problemas sobre o
comportamento observável de objetos físicos, os quais se resumiam a problemas na
explicação de estruturas e funções. Por esse motivo, esses fenômenos sempre foram o
tipo de coisa que uma descrição física poderia explicar, mesmo que em alguns
momentos houvesse boas razões para suspeitar que essa explicação não se concretizaria.
A indução tentadora a partir desses casos falha no caso da consciência, a qual não é um
problema sobre estruturas físicas e funções. O problema da consciência é desconcertante
de uma maneira totalmente diferente. Uma análise do problema nos mostra que a
experiência consciente não é exatamente o tipo de coisa que uma descrição totalmente
redutiva poderia explicar de forma bem-sucedida.
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Neste ponto, alguns se sentem tentados a desistir, defendendo que nunca teremos
uma teoria da experiência consciente. McGinn (1989), por exemplo, argumenta que o
problema é difícil demais para nossas mentes limitadas: somos “cognitivamente
fechados” no que diz respeito ao fenômeno. Outros argumentaram que a experiência
consciente se encontra totalmente fora do domínio da teoria científica.
Eu acho que esse pessimismo é prematuro. Este não é o momento de desistir, é o
momento no qual as coisas ficam interessantes. Quando métodos de explicação simples
são descartados, precisamos investigar as alternativas. Uma vez que a explicação
redutiva falha, a explicação não redutiva é a escolha natural.
Embora um número considerável de fenômenos tenha se mostrado inteiramente
explicável em termos de entidades mais simples que eles próprios, isso não é universal.
Na física, por vezes acontece que uma entidade deve ser considerada como fundamental.
Entidades fundamentais não são explicadas em termos de nada mais simples. Em vez
disso, elas são consideradas básicas, e é apresentada uma teoria de como elas se
relacionam com tudo o que resta no mundo. Por exemplo, no século XIX, descobriu-se
que processos eletromagnéticos não podiam ser totalmente explicados em termos dos
processos inteiramente mecânicos aos quais as teorias físicas anteriores apelavam, então
Maxwell e outros introduziram a carga eletromagnética e as forças eletromagnéticas
como novos componentes fundamentais de uma teoria física. Para explicar o
eletromagnetismo, a ontologia da física precisou ser expandida. Novas propriedades e
leis básicas foram necessárias para fornecer uma descrição satisfatória dos fenômenos.
Outros elementos que a teoria física considera como fundamentais incluem a
massa e o espaço-tempo. Não se fez tentativa nenhuma de explicar esses elementos em
termos de algo mais simples. Mas isso não exclui a possibilidade de uma teoria da
massa ou do espaço-tempo. Existe uma teoria complexa de como esses elementos se
inter-relacionam e das leis básicas nas quais eles se inserem. Esses princípios básicos
são usados para explicar muitos fenômenos familiares que concernem a massa, o espaço
e o tempo em um nível superior.
Eu sugiro que uma teoria da consciência deva considerar a experiência como
fundamental. Nós sabemos que uma teoria da consciência requer a adição de algo
fundamental à nossa ontologia, uma vez que tudo na teoria física é compatível com a
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sobre como se pode alcançar o estado de ciência. Por exemplo, Crick e Koch sugerem
que as oscilações de 40 Hz são a porta de acesso (gateway) pela qual as informações são
integradas na memória de trabalho e, assim, disponibilizadas para processos posteriores.
Da mesma forma, é natural supor que a atividade estendida temporalmente de Libet seja
relevante precisamente porque somente esse tipo de atividade atinge a disponibilidade
global. O mesmo se aplica a outros correlatos sugeridos, como o “espaço de trabalho
global” de Baars (1988), as “representações de alta qualidade” de Farah (1994) e as
“entradas seletoras (selector inputs) para os sistemas de ação” de Shallice (1972). Todos
eles podem ser vistos como hipóteses sobre os mecanismos do estado de ciência: os
mecanismos que desempenham a função de disponibilizar a informação de maneira
direta para o controle global.
Dada a coerência entre consciência e estado de ciência, segue-se que um
mecanismo do estado de ciência será ele próprio um correlato da experiência consciente.
A questão de exatamente quais mecanismos no cérebro governam a disponibilidade
global é empírica – talvez haja muitos desses mecanismos. Mas se aceitarmos o
princípio da coerência, temos motivos para acreditar que os processos que explicam o
estado de ciência serão ao mesmo tempo parte da base da consciência.
Este princípio afirma que quaisquer dois sistemas com a mesma organização
funcional de baixa granularidade terão experiências qualitativamente idênticas. Se os
padrões causais da organização neural fossem duplicados no silício, por exemplo, com
um chip de silício para cada neurônio e os mesmos padrões de interação, então as
mesmas experiências surgiriam. De acordo com esse princípio, o que importa para a
emergência da experiência não é a composição física específica de um sistema, mas o
padrão abstrato de interação causal entre seus componentes. Este princípio é
controverso, é claro. Na opinião de alguns (e.g., Searle, 1980), a consciência está ligada
a uma biologia específica, de modo que um isomorfo de um humano feito de silício não
é necessariamente consciente. Contudo, acredito que o princípio possa receber um apoio
significativo da análise de experimentos mentais.
Muito brevemente: suponha (a fins de uma reductio ad absurdum) que o
princípio seja falso e que pudesse haver dois sistemas funcionalmente isomórficos com
experiências diferentes. Talvez apenas um dos sistemas seja consciente, ou talvez
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ambos o sejam, mas possuem experiências diferentes. Para fins de ilustração, digamos
que um sistema é feito de neurônios e o outro de silício, e que um experiencia vermelho,
enquanto o outro experiencia azul. Os dois sistemas têm a mesma organização, então
podemos imaginar que um se transforme gradualmente no outro, talvez substituindo-se
os neurônios, um por um, por chips de silício com a mesma função local. Assim,
adquirimos um espectro de casos intermediários, cada um com a mesma organização,
mas com uma composição física ligeiramente diferente e com experiências ligeiramente
diferentes. Nesse espectro, deve haver dois sistemas, A e B, entre os quais substituímos
menos de um décimo do sistema, mas cujas experiências diferem. Esses dois sistemas
são fisicamente idênticos, com a exceção de que um pequeno circuito neural em A foi
substituído por um circuito de silício em B.
O passo chave no experimento mental é identificar o circuito neural relevante
em A e instalar ao lado dele um circuito de silício causalmente isomórfico, com um
interruptor entre os dois. O que acontece quando ligamos o interruptor? Por hipótese, as
experiências conscientes do sistema mudarão – digamos, para fins de ilustração, que do
vermelho para o azul. Isso decorre do fato de que o sistema após a mudança é
essencialmente uma versão de B, enquanto antes da mudança é apenas A.
Mas considerando as suposições, não há como o sistema perceber as mudanças!
Sua organização causal permanece constante, de forma que todos os seus estados
funcionais e disposições comportamentais permanecem fixos. Até onde ele sabe, nada
de anormal aconteceu. Não há espaço para o pensamento: “Hum! Algo estranho acabou
de acontecer!” De maneira geral, a estrutura de qualquer pensamento desse tipo deve ser
refletida no processamento, mas aqui a estrutura do processamento permanece constante.
Se houvesse tal pensamento, ele deveria flutuar totalmente livre do sistema e seria
totalmente incapaz de afetar o processamento posterior. (Se ele afetasse o
processamento posterior, os sistemas seriam funcionalmente distintos, ao contrário da
hipótese). Podemos até ligar e desligar o interruptor várias vezes, de forma que as
experiências de vermelho e de azul dancem em alternância diante do “olho interno” do
sistema. Segundo a hipótese, o sistema nunca pode perceber esses “qualia dançantes”.
Considero que essa é uma reductio da suposição original. É um fato central
sobre a experiência, muito familiar do nosso próprio caso, que sempre que as
experiências mudam significativamente e estamos prestando atenção, podemos perceber
a mudança. Se não fosse esse o caso, seríamos levados à possibilidade cética de que
nossas experiências estão dançando diante dos nossos olhos o tempo todo. Essa hipótese
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tem o mesmo status da possibilidade de o mundo ter sido criado há cinco minutos:
talvez seja logicamente coerente, mas não é plausível. Dada a suposição extremamente
plausível de que mudanças na experiência correspondem a mudanças no processamento,
somos levados à conclusão de que a hipótese original é impossível e que quaisquer dois
sistemas funcionalmente isomórficos devem ter o mesmo tipo de experiências. Para
colocar em termos técnicos, as hipóteses filosóficas dos “qualia ausentes” e dos “qualia
invertidos”, embora logicamente possíveis, são empírica e nomologicamente
impossíveis.
(Alguns podem desconfiar que um isomorfo de silício de um sistema neural
possa ser impossível por razões técnicas. Essa questão está aberta. O princípio da
invariância diz apenas que se um isomorfo for possível, então ele terá o mesmo tipo de
experiência consciente).
Há mais a ser dito aqui, mas isso já dá um primeiro sabor da ideia. Mais uma vez,
esse experimento mental se baseia em fatos familiares sobre a coerência entre a
consciência e o processamento cognitivo para chegar a uma conclusão forte sobre a
relação entre a estrutura física e a experiência. Se o argumento vingar, sabemos que as
únicas propriedades físicas diretamente relevantes para o surgimento da experiência são
as propriedades organizacionais. Isso atua como mais uma forte restrição a uma teoria
da consciência.
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4 Termo de difícil tradução para o português, em geral “it from bit” aparece em textos
especializados no original, em inglês. Em tradução livre, “coisas a partir de bits” (N. do T.).
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natureza do mundo. Por exemplo, é comum notar que a física caracteriza suas entidades
básicas apenas extrinsecamente, em termos de suas relações com outras entidades, que
são elas próprias caracterizadas extrinsecamente, e assim por diante. A natureza
intrínseca das entidades físicas é deixada de lado. Alguns argumentam que tais
propriedades intrínsecas não existem, mas então nos resta um mundo que é puro fluxo
causal (um puro fluxo de informações), sem propriedades com as quais a causalidade
pode se relacionar. Se admitirmos que existam propriedades intrínsecas, uma
especulação natural, dado o que foi dito acima, é que as propriedades intrínsecas do
físico (as propriedades com as quais, em última instância, a causalidade se relaciona)
são elas próprias propriedades fenomênicas. Podemos dizer que propriedades
fenomênicas são o aspecto interno da informação. Isso poderia responder uma
preocupação com relação à relevância causal da experiência – uma preocupação natural,
dada uma teoria na qual o domínio físico é causalmente fechado e na qual a experiência
é suplementar à física. A visão informacional nos permite entender como a experiência
pode ter um tipo sutil de relevância causal em virtude de seu status como a natureza
intrínseca do físico. Provavelmente, é melhor ignorar essa especulação metafísica
quando o propósito é de desenvolver uma teoria científica. Mas ao abordar algumas
questões filosóficas, ela é bastante sugestiva.
8. Conclusão
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cuidadosas. O problema difícil é um problema difícil, mas não há razão para acreditar
que ele permanecerá perpetuamente sem solução.
Leitura adicional
Bibliografia
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