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Roberto Camargos é Graduado (2008), Mestre (2011) e Doutor em História (2016) pela Universidade
Federal de Uberlândia. Atua como professor e desenvolve pesquisa nas áreas de artes e cultura (com
foco voltado para a história, memória, identidade, culturas urbanas e periféricas). Trabalha também
com cinema documental (diretor e montador). E-mail: [email protected]
O
videoclipe da música “Isso aqui é uma guerra” começa com o inconfun-
dível som de um helicóptero. A primeira cena traz a câmera passeando
sobre um mapa de São Paulo, com destaque para as regiões da zona leste,
como Vila Curuça e Itaim Paulista. Em poucos segundos, logo após uma passagem
em blur, o espectador é levado a sobrevoar favelas, vendo de cima a disposição das
casas e das ruas sem calçamento. Corta. Na sequência vê-se um homem negro, ma-
gro, de roupas largas, que caminha por entre casas simples de alvenaria e barracos de
todo tipo. Ele entra por becos e vielas até chegar ao seu destino: a morada de um
“parceiro”, também negro, que o recebe à porta com uma arma na cintura e outra na
mão. O próximo take é interno, dentro de um barraco onde duas pessoas discutem ou
conversam – não se ouve o diálogo, apenas o instrumental da música, um sampler de
“Jungle eyes”, de Gene Page (1974, LP) – em volta de uma mesa sobre a qual há ar-
mas e munição.
Os primeiros 30 segundos, montados com ingredientes típicos de filmes
de ação, são interrompidos por um close num rosto negro que dispara diretamente
para a câmera e, consequentemente, para o telespectador: “é uma guerra/ onde só
sobrevive quem atira/ quem assalta a mansão,/ quem trafica” (“Isso aqui é uma
guerra”, 2000). Nesse momento, quem acompanha a narrativa audiovisual já se acha
em um bairro de classe média, de frente a um sobrado. Duas pessoas surgem corren-
do e abordam, armadas, uma motorista branca e loira. Volta à tela o narrador que
afirma, taxativamente, em tom claramente ameaçador: “infelizmente o livro não re-
solve/ o Brasil só me respeita com um revólver/ aí o juiz ajoelha,/ o executivo cho-
ra/ pra não sentir o calibre da pistola” (“Isso aqui é uma guerra”, 2000).
Com um corte seco, o espectador é conduzido novamente para dentro do
barraco da sequência anterior. Dessa vez o narrador, o rapper Dum Dum, toma parte
na cena. Aparece sentado à mesa, de onde continua seu ataque — que serve como
uma justificativa do que se vai ver e escutar pelos próximos minutos — àqueles que
são considerados, pelos rappers, responsáveis pela desigualdade social que vitima
grande número dos brasileiros. Ele, como que a exprimir um misto de ódio e frustra-
ção decorrentes da falta de oportunidades, dispara:
O que é exposto durante todo o clipe não deixa dúvidas. Para o narrador,
a situação de miséria reinante em muitas áreas do Brasil, tem responsáveis e estes
sofrem com as consequências de um ordenamento social desigual, produzido em
última instância por eles mesmos. Os acontecimentos trágicos e indesejáveis mencio-
nados na composição seriam, portanto, uma espécie de efeito colateral da ordem ca-
pitalista, em especial da concentração de renda e riquezas. A essa altura do clipe, a
dupla de assaltantes (interpretada pelos rappers Eduardo e Dum Dum) que surpre-
endeu a motorista entra na residência da vítima e faz sua família de refém. As cenas
mantêm o tom dramático e uma estética hiper-realista. Elas destacam a violência pra-
ticada contra as pessoas: chutes, armas apontadas na cabeça, empurrões. São cenas
de revide social ou, numa palavra, de vingança:
1 Sobre a noção de “estruturas de sentimentos”, ver Williams (1990) e, mais especificamente, Williams
(1979, esp. p. 130-137). É preciso destacar, como fez Williams, que apesar do termo “sentimento” ser
de difícil decodificação, ele foi escolhido por alusão a “significados e valores tal como são sentidos e
vividos ativamente” (WILLIAMS, 1979, p. 134), distinguindo-se de conceitos como “visão de mundo”
e “ideologia”, pelos quais as crenças, ideias e valores são mantidos de maneira sistemática e formal.
Como chama atenção Maria Elisa Cevasco (2001, p. 153), tal noção visa “descrever a presença de ele-
mentos comuns em várias obras de artes do mesmo período histórico que não podem ser descritos
apenas formalmente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a
articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social”.
Assim, para comunicar sua visão das coisas e tentar convencer o ouvinte
acerca da legitimidade histórica da narrativa apresentada, uma das táticas utilizadas
pelos rappers é manter uma tensão realista para a trama e se desvencilhar do ficcional,
como se o videoclipe simplesmente transportasse para o mundo das pala-
vras/imagens a realidade em si. Tanto que eles narram tudo de dentro do aconteci-
mento, mandam seu recado sonoro enquanto as ações são visualizadas. É na pele do
sujeito da ação que o rapper Dum Dum explica ao “doutor” como, naquele momento,
ele passa a ser vítima das desigualdades sociais e, também, o rapper Eduardo prota-
goniza um assalto e argumenta que o fim da concentração de renda é a saída para
aqueles que querem ver seu filho “indo pra escola e não voltando morto” (“Isso aqui
é uma guerra”, 2000).
A ausência de efeitos especiais e a escolha dos cenários e figurinos ajudam
na construção do verossímil. Assim, os rappers caminham para um desfecho que vale
como advertência de que na sociedade da qual e para a qual falam, ninguém está a
salvo: para o boy, a classe média, em particular, não há proteção (“boy, quem te pro-
tege do oitão na cabeça?”, perguntam eles). Nas cenas finais, os protagonistas voltam
para dentro do barraco carregando os malotes de dinheiro de um assalto a banco e a
mulher das cenas iniciais (a motorista) aparece caída ao chão, morta, com o rosto co-
berto de sangue. Na sequência, vários takes com viaturas policiais, a prisão (de um
homem negro) e a exibição de um corpo algemado, abandonado em um terreno, sen-
do resgatado pelo Instituto Médico Legal (como a indicar uma possível execução por
parte da polícia). O final ambíguo aponta um fim trágico para os dois lados (pobres e
ricos) do mundo polarizado de “Isso aqui é uma guerra”.
***
“Isso aqui é uma guerra”, composição de Eduardo, então integrante do
Facção Central, veio a público em 1999 com o lançamento do terceiro disco do grupo,
intitulado Versos sangrentos. Em aproximadamente um ano o CD alcançou a marca de
doze mil cópias vendidas e a música em questão tocava repetidas vezes nas poucas
rádios brasileiras que abriam espaço para o gênero, geralmente em horários específi-
cos e em programas dedicados ao rap. O grupo, já naquela época, era considerado
CAMARGOS, R. Relatos sanguinários e sentimentos indigestos no rap de Facção Central.
Música Popular em Revista, Campinas, ano 5, v. 1, p. 70-94, jul.-dez. 2017.
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um dos mais importantes e influentes no Brasil e, possivelmente por essa razão, con-
seguiu articular a produção desse seu primeiro videoclipe, parte dele bancado pela
gravadora Five Special (que entrou com aproximadamente sete mil reais) e o restante
por outros envolvidos, como o diretor Dino Dragone.
O clipe, no entanto, não obteve, logo de cara, grande circulação. Após as
primeiras exibições (o diretor do filme declarou, em programa de TV, que não che-
gou a ser exibido dez vezes na íntegra), em 2000, no canal MTV Brasil, o filme gerou
muita insatisfação e incontáveis ataques ao Facção Central. Em pouco tempo, o gru-
po e o clipe eram assunto nos principais jornais do país, nos quais se acentuava — na
linha das considerações do assessor de direitos humanos do Ministério Público de
São Paulo, Carlos Cardoso — que “esse clipe, na prática, é um manual de instrução
para a prática de assaltos, sequestros e homicídios” (Jornal do SBT, s./d.). A mobiliza-
ção contra esse “rap que faz apologia ao crime” (BORBA, Janine, Jornal da Band, s./d.)
foi noticiada nacionalmente também pelo jornalista Hermano Henning: “justiça de-
termina a apreensão dos CDs do grupo de rap Facção Central. [...] os integrantes do
grupo são acusados de fazer apologia do crime no videoclipe ‘Isso aqui é uma guer-
ra’” (Jornal do SBT, s./d.).
O videoclipe — ainda que exibido em pequenos fragmentos em progra-
mas de televisão que repercutiram o caso — fez com que a música extrapolasse o
gueto cultural no qual circulava a menos de um ano e apavorou muitas pessoas. Sua
ofensiva verbal e suas imagens fortes dividiram opiniões, boa parte delas comparti-
lhando o ponto de vista de que “o negócio é muito agressivo” (João Gordo. In: GOR-
DO, s./d.) e “incita mesmo a violência” (Sônia Abrão. In: A CASA, s./d.). No calor
dos acontecimentos da instauração do inquérito policial para avaliar se os integrantes
do grupo estimularam ou não, publicamente, a prática de crimes, Eduardo comentou
o caso:
A música tocou sete meses na rádio e nunca teve nenhum problema, en-
quanto só a periferia tinha acesso tava da hora [...] quando passou na MTV,
que de repente a classe média, o rico, teve acesso, ele assistiu, aí ele se inco-
modou [...] o que ele entendeu?: “porra, os caras tão reivindicando o direito
e falando: ó, o cara que tá passando fome de repente vai roubar” (GORDO,
s./d.).
A polêmica, que certamente foi muito positiva para o Facção Central, colo-
cou o grupo em evidência fora do circuito no qual era conhecido e reconhecido pelo
trabalho que desenvolvia. O episódio o alçou à condição de o mais notório grupo na
abordagem de temas indigestos para o público que não é do rap, se bem que Eduardo
e Dum Dum não constituíssem uma voz isolada. Aliás, de há muito pouco a violên-
cia, a criminalidade e problemáticas semelhantes tinham se tornado temas comuns ao
rap. Por isso, por exemplo, uma matéria da Folha de S. Paulo, de maio de 1994, infor-
mava que músicos do gênero vinham “sendo acusados de incentivar o crime entre os
jovens” (BASTOS JUNIOR, 1994). Ela é indício de que a insatisfação, preocupação ou
medo de determinados setores sociais em relação a certos tipos de rap vinham sendo
gestados antes de instalar-se a polêmica em torno de “Isso aqui é uma guerra”.
As reportagens quase sempre lidavam com definições esquemáticas e co-
lavam rótulos que, mesmo não estando totalmente despregados da realidade, simpli-
ficavam as coisas e homogeneizavam práticas complexas a partir de um ou outro as-
pecto. Apropriavam-se de termos da gramática dos rappers e engessavam os concei-
tos em delimitações negativas. Daí que a visão das questões sociais encarnada em
“Isso aqui é uma guerra” foi associada — como no recorte acima — ao estilo gangsta
rap, tido, conforme explica o DJ do Racionais MC’s, como “o rap que promove a vio-
lência e o tráfico de drogas” (BASTOS JUNIOR, 1994). Embora sem necessariamente
levantar essa bandeira, os raps como o do Facção Central (no qual, de fato, a violência
e a criminalidade estão presentes) foram logo enquadrados nesse rótulo e, por isso,
sempre estiveram a um passo da criminalização.
Eduardo, porém, não pensa sua produção artística a partir desses códigos
que reduzem a complexidade de suas composições. Ele entende que apenas canta o
que presencia no seu cotidiano: “alguns rotulam como gangsta, [...] eu defino como
realista, e é essa a essência” (ENTREVISTA, nov. 2006). Para o MC, tudo se resume a
uma situação muito simples: “os boy não gosta de ouvir rap de violência, rap que é
contundente” (ENTREVISTA, jan. 2004). Não porque esse tipo de música incentiva
essas práticas, mas certamente porque as concebe como fruto da situação social exis-
tente e responsabiliza os componentes da elite por parte considerável do que aconte-
ce: “quando ela [a pessoa] não tem escola, quando ela não tem saúde, enfim, quando
O playboy vem lá da puta que o pariu e fala “ó, mano, é apologia ao crime”, e
nóis abaixa a cabeça e pá, fica pianinho, o que acontece? O público vai falar
“porra, os caras então tava falando merda mesmo”. Agora, a partir do mo-
mento que você tem uma personalidade, pode falar o filho da puta que for,
pode dar choque, nóis pode estar sendo torturado, vai ser assim, o que a
gente canta é o que a gente pensa” (ENTREVISTA, 2004).
Assim, não se importando se “o cara que é boy vai se sentir ofendido e vai
criticar”, continuaram com o ataque e as acusações à elite e à classe média brasileira
que “não gosta[m] de ouvir rap [...] que tem um discurso áspero” (ENTREVISTA,
***
O Facção Central produziu boa parte de sua obra partindo do princípio de
que o Brasil vive uma guerra. Por certo, uma guerra muito particular. Ela, que não é
declarada, envolve todos os segmentos da sociedade e gera vítimas cotidianamente,
em vários níveis. O episódio desencadeado com “Isso aqui é uma guerra” aguçou o
desejo dos rappers em converter os assuntos que exploram os conflitos sociais brasi-
leiros no centro de suas narrativas. Era, ao mesmo tempo, a prova mais contundente
de que expor (e, consequentemente, pensar) a questão era igualmente uma forma de
se fazer presente nessas batalhas.
As músicas, encaradas como portadoras de um potencial bélico, estavam
por aí para desnudar a perversidade das relações sociais. E, mais do que isso, para
pôr em julgamento os sujeitos aos quais se creditava toda a responsabilidade pelo
estado de coisas que produz vítimas (não do mesmo modo) em todos os fronts. É por
isso que, apesar da perseguição que sofreram, os rappers do Facção Central continua-
ram na luta e avisaram: “aí, promotor/ pesadelo voltou/ censurou o clipe,/ mas a
guerra não acabou” (“A guerra não vai acabar”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2001). Daí
baterem na tecla de que, em relação à “guerra que existe aqui [...] não tem como [...]
se omitir”2. O mais significativo, entretanto, consistiria no fato de que, no âmbito da
vida social,
não são meras fabulações ou críticas infundadas. Deixando aqui de lado o fato de
que, nesses relatos contundentes, as explicações em torno das asperezas da vida real
são, muitas vezes, simplistas e mecânicas, eles insistem em eleger como alvo — o que
é perfeitamente compreensível — a desigualdade social crônica que nos conduz à
barbárie que, traduzida em música, leva parte da população brasileira a conceber o
rap como um perigo em potencial:
Por se negar a fechar os olhos para as desgraças que infelicitam o país, en-
tendem, repito, que “Facção [Central] é o retrato da guerra civil brasileira” (“A guer-
ra não vai acabar”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2001). Nessa batida, seus integrantes
nunca esconderam sua aversão pelas classes médias: “Quero que o boy, digerindo
meu rap, sinta o gosto da morte”, registraram na música “A Bactéria FC” (FACÇÃO
CENTRAL, 2006). E mais: despejaram toda sua ira ao apontarem para os responsá-
veis pelo caos nosso de cada dia, em geral pessoas que, de um modo ou de outro,
podem ser enquadrados no perfil da “burguesa galinha”, do “empresário rico” ou do
“cuzão que não concorda com o holocausto brasileiro/ vive no condomínio, limpa o
rabo com dinheiro” (“A marcha fúnebre prossegue”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2001).
Os inimigos são invariavelmente os outros, aqueles que, ao contrário dos rappers e do
povo do qual dizem fazer parte, gozam de inúmeros privilégios e de boas condições
de vida.
Os rappers alegam que nem queriam tocar nesses assuntos polêmicos e in-
digestos. Se o fazem é por força de uma realidade implacável:
Como em outros raps, a menção ao “sistema” surge aqui como algo gené-
rico, embora se possa depreender que significa o modo de organização e reprodução
da sociedade capitalista. Ele, que é comandado pelos boys — de novo é como que su-
gerida a dimensão classista do problema —, constitui o grande entrave para que se
alcance a igualdade, a liberdade e a satisfação de desejos materiais e simbólicos. Os
rappers, falando como sujeitos que não dominam as estratégias necessárias ao jogo do
mundo capitalista, deixam mais ou menos claro que não ficarão simplesmente de
fora, como que a contemplar a própria miséria, que reconhecem ser consequência de
complexos mecanismos de exploração. Aos privilegiados, renovam a sua declaração
de guerra:
marginalizados outra saída que não a “justiça com as próprias mãos”. É o que pre-
gam em uma de suas músicas:
Nota-se aqui a aparente adesão aos valores dominantes nos versos do Fac-
ção Central, quando os rappers dizem que gostariam de entrar para a festa, ter o seu
próprio poço de petróleo. Isso, no entanto, mais aciona as contradições do mundo
que cantam (e para o qual cantam) do que os colocam sintonizados com ele. O que
fazem, a rigor, está permeado de inconformismo ante essa lógica que determina o
consumo e os seus valores como referências e estilo de vida. É o que deixam claro,
por exemplo, em “Há mil anos-luz da paz”, na qual afirmam que “não me conformo
em tá tentando erradicar a fome/ e [o] cu pagando de primeiro mundo porque tem
mais telefone” (“Há mil anos-luz da paz”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2003). De acordo
com essa composição, é a existência de situações socialmente extremas que desenca-
deia a violência que brota em todos os poros da vida social, seja na ação instituciona-
lizada que visa manter os marginalizados sob controle, seja na reação destes à opres-
são ou, o que costuma ser mais comum, na sua busca pelo acesso àquilo que não está
disponível para uma larga faixa da população. Na música, revelam plena consciência
de quanto o controle dos pobres é importante para a manutenção da ordem estabele-
cida: “o plano era meu exílio no campo de extermínio/ separatismo pro boy viver
tranquilo” (“Há mil anos-luz da paz”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2003). Mas, o que há
de mais importante nela é a constatação de “que o efeito colateral foi incontrolável/ e
o sangue derrubou o muro de Berlim do empresário” (“Há mil anos-luz da paz”. In:
FACÇÃO CENTRAL, 2003).
Os rappers, que desejam a “morte pra puta ostentando na Caras a garganti-
lha” (“Há mil anos-luz da paz”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2003), mostram que a per-
versidade social torna inevitavelmente irrealizável o sonho da elite e da classe média
de se sentirem a salvo. Na visão do grupo, esses sujeitos gozam, quando muito, de
uma aparente tranquilidade: cercados ou ilhados, com frequência, em suas cidadelas
de muro, levam a vida como reféns da possibilidade do pior e a segurança, jamais
absoluta, que desfrutam, inviabiliza em muito sua liberdade. Em outras palavras, não
existe paz para quem vive em estado de tensão e sob pressão constante da violência
urbana: “hoje morro e mansão têm uma relação diplomática/ lucrativo em todas as
estações pra agência funerária/ o filho joga em Roland-Garros, tá na escola de ator/
mas só vê a paz no filme que alugou” (“Há mil anos-luz da paz”. In: FACÇÃO CEN-
TRAL, 2003).
Nesse contexto, o conselho que oferecem aos seus inimigos de batalhas co-
tidianas não é nada alentador: “se conforme com a paz atrás da cerca elétrica/ se por
o pé pra fora, plá, plá, já era” (“Há mil anos-luz da paz”. In: FACÇÃO CENTRAL,
2003). Para todos os setores sociais agrupados sob o rótulo flexível de boy (o “dou-
tor”, o “empresário rico”, o “filho da madame”, o “gerente”, a “classe rica”, o “cu de
Audi”, o “dono do jato”, o “monstro do horário político”, a “mãe [que] só se preocu-
pa com plástica, joia, alta costura” e por aí vai), as mensagens do Facção Central en-
cerram algum tipo de constrangimento, a sensação de ataque ou de violência iminen-
te. O grupo, aliás, sabe que suas músicas são uma afronta para os boys e que seu pú-
blico-alvo é outro:
***
Como procurei evidenciar, os sentimentos que se exprimem nas composi-
ções do Facção Central tomam as relações entre os que vivem nas favelas e nas peri-
ferias e os que habitam em outros espaços sociais, como base para a elaboração de
quase todos os seus temas. Ao conectar esses dois (ou mais) mundos muito distintos,
sem falar daquele ocupado pelas classes médias, o grupo acentua, corretamente, que
esses universos são indissociáveis.
Assim, ao tratar de um mundo compartilhado, ele mostra que os valores
dominantes são, a todo o momento, tensionados por vozes destoantes. A voz dos
rappers desponta, então, como uma expressão difusa que prega ou clama por políticas
igualitárias e constitui uma resposta prática a experiências de subordinação e exclu-
são. E ela não é, como sinalizam alguns posicionamentos mencionados na parte inici-
al deste artigo, fruto de mero ressentimento. O que está em jogo é o entendimento de
que o rico explora o pobre, acostumou-se a vê-lo como inferior, cria mecanismos de
distinção social que o humilha e lhe impõe a pobreza por meio da força e da domina-
ção. Acontece que as experiências de rebaixamento social e moral, para as quais as
reações emocionais mais esperadas estariam associadas ao sentimento de vergonha
(de ser o que é, de estar na condição em que está), são convertidas, por meio da poé-
tica rap, em ódio e revanche.
Os rappers, como críticos do mundo contemporâneo, direcionam suas pa-
lavras impetuosas e estridentes ao mundo capitalista e excludente por não acredita-
rem nos valores que o sustentam. Eles, por sinal, muitas vezes situam seus ataques
no campo dos valores hegemônicos, como em “Cartilha do ódio”. Nessa composição,
ao retomarem os assuntos já destacados aqui, sinalizam que os sentimentos indiges-
tos que verbalizam se afinam com os ensinamentos propagados pela cultura do vale-
tudo tipicamente capitalista. Alegam que são escolados na cartilha dos boys e nos
seus princípios: “da sua cartilha aprendi todo o ABCD” (“Cartilha do ódio”. In:
FACÇÃO CENTRAL, 2006). Nessa lógica, quando a violência bate à porta e grita
“deita porra, quero dólar, brilhante, gargantilha”, é porque “tô seguindo os capítulos
da sua cartilha” (“Cartilha do ódio”. In: FACÇÃO CENTRAL, 2006).
CAMARGOS, R. Relatos sanguinários e sentimentos indigestos no rap de Facção Central.
Música Popular em Revista, Campinas, ano 5, v. 1, p. 70-94, jul.-dez. 2017.
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Para eles, seus “versos sangrentos”, por mais desconfortáveis que sejam,
conectam-se intimamente a outras práticas de violência que não são noticiadas, nem
criminalizadas ou contestadas. Daí afirmarem, sem tergiversar, que “o sangue é a
moeda corrente do seu capitalismo selvagem” (“Cartilha do ódio”. In: FACÇÃO
CENTRAL, 2006). E não hesitam em deixar às claras, uma vez mais, de onde tiram
suas lições de brutalidade e falta de compaixão:
***
Referências
CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
FACÇÃO CENTRAL. O espetáculo do circo dos horrores. São Paulo: Facção Central
Produções Fonográficas, 2006. CD.
______. A marcha fúnebre prossegue. São Paulo: Discoll Box, 2001. CD.
ISSO aqui é uma guerra. Direção: Dino Dragone. Intérpretes: Facção Central. Brasil:
Firma Filmes, 2000.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.