A Autoafirmacao Macuxi de Julie Dorrico

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Dias ímpares, mai/jun, 2021

A autoafirmação Macuxi de
Julie Dorrico
Julie Dorrico
Doutora em Letras, escritora e autora de Eu sou macuxi e outras histórias

Vitor Cei, Letícia Malloy e André Tessaro Pelinser (organizadores)


Doutores em Estudos Literários e organizadores do livro Notícia da atual literatura: entrevistas

Julie Dorrico, escritora indígena e doutora em Letras pela PUCRS,


nasceu em Guajará-Mirim (RO) e atualmente vive em Porto Velho
(RO). Esta entrevista, concedida em julho de 2020 para publicação
no livro Notícia da atual literatura II: entrevistas (Cousa, no prelo), a
escritora avalia o conceito de literatura indígena, discute os proble-
mas enfrentados pelas populações indígenas brasileiras e comparti-
lha com os leitores outras reflexões éticas e estéticas

ORGANIZADORES: Cada escritora pos- mória e pelo pertencimento”. Comen- ras indígenas. Os sujeitos indígenas re-

sui um método e estilo de trabalho te as opções formais e temáticas que afirmam o caráter filial com a floresta,

próprios. Em seu livro de estreia, Eu norteiam seu projeto ético-estético. estabelecendo um paradigma e suas
Máscaras e codinomes

sou Macuxi e outras histórias (Caos & JULIE DORRICO: As opções formais que formas de dar sentido ao mundo a par-

Letras, 2019), percebemos caracterís- conduziram meu trabalho foram inspi- tir dela. A dissolução do par cultura e

ticas que marcam a literatura indíge- radas nas narrativas indígenas e na pes- natureza, ou homem versus natureza,

na brasileira contemporânea, como quisa de Lúcia Sá, autora não indígena, por sua vez, explicaria por que o autor

a autoafirmação e a autoexpressão que constata a literatura indígena das moderno (ou da tradição ocidental/mo-

identitárias, com mescla das pessoas Américas enquanto narração/resumo, derna em diante) descreveria as coisas

eu/nós em narrativas de cunho coleti- e não descrição. Em outras palavras, a e as pessoas, um paradigma assentado

vo. Nesse sentido, Daniel Munduruku literatura indígena não se vale da fer- na racionalização, portanto. Em outras

observou, no prefácio do livro, que ramenta da descrição porque isso im- palavras, ele só pode afastar o olhar,

“Julie Dorrico fez o caminho de esva- plicaria na dissolução do par cultura e porque se põe no centro do mundo e

ziar-se para ser preenchida pela me- natureza, que não acontece nas cultu- assim se vê como referencial, poden-

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do ser sujeito e todo o resto, obje- Importante destacar ainda que há mui- genas, e o reconhecimento-responsabi-

to. Diferentemente desse paradigma tos povos em etnogênese, isto é, povos lização político e cultural. Acredito que

ocidentalizado, as culturas indígenas que foram considerados extintos nos transformando o simbólico podemos

não são econômicas quando tratam séculos anteriores, mas que agora rei- arar um terreno como condição de pos-

de subjetividades, reconhecendo para vindicam sua existência e direitos. Por sibilidade para os direitos indígenas.

além do homem, do humano, nas fau- isso é muito importante ter cautela e Foi isso que aconteceu comigo, quando

nas e floras, no não humano também perceber a complexidade da identidade eu entendi e senti a questão indígena,

a subjetividade. Isso me inspirou for- indígena, encontrada em mais de 305 pude me engajar no estudo e no ativis-

malmente a escrever a obra. nações. mo em defesa dos povos e sujeitos, fí-

Como tema, escolhi minhas memó- sica ou simbolicamente. Claro que para

rias de infância, trajetória pessoal e ORG: Desde 2013, quando ingressou mim foi uma questão pessoal, mas in-

meu projeto de autoafirmação macu- no Mestrado em Estudos Literários sisto numa educação antirracista em

xi. No Brasil, para ser indígena existe da Universidade Federal de Rondônia, que educadores não indígenas possam

uma convenção estabelecida no ano você tem publicado uma série de ar- elaborar suas ementas incluindo e apre-

de 1989, a Convenção 169 da OIT em tigos sobre a literatura indígena. Em ciando uma literatura de autoria indíge-

Genebra, e posteriormente ratificada 2019, Eu sou Macuxi e outras histó- na, fugindo dos moldes euronorcêntri-

em decreto no ano de 2004 no país, rias foi contemplado com o Prêmio cos, não como favor, mas como aliados

em que o processo se dá pelo reco- Tamoios, da Fundação Nacional do numa luta ética e antirracista que mina

nhecimento do sujeito como indígena Livro Infantil e Juvenil. Como você de- as bases da branquitude racista que

e depois o reconhecimento do povo. fine a sua trajetória literária e o seu nega humanidade a outros povos.

Veja bem, um sujeito ao reconhecer autorreconhecimento como autora in- A minha carreira literária começou

a identidade indígena já automatica- dígena – houve um momento inaugu- muito recentemente para o mercado,

mente implica que há uma coletivida- ral ou o caminho se fez gradualmen- com a publicação de meu livro auto-

de presente, assim é muito importan- te? Nessa trajetória, como você avalia ral. Mas eu sempre escrevi desde muito

te saber que as autodeclarações são a recepção de sua obra? nova. Só não sabia elaborar o que es-

processos complexos e que devem ser J.D: A minha trajetória é antes de tudo tava dentro de mim. O sentimento que

respeitados, não bastando ter uma tri- acadêmica. Desde o fim de 2016 eu tenho hoje é de uma represa identitária,

savó, bisavó, ou mesmo avó indígena. passei a investigar mais seriamente as aberta pela literatura indígena, respon-

Ou seja, ter um parente indígena não questões indígenas, sobretudo na área sável por me dar autoconfiança e pau-

garante que automaticamente você da literatura indígena. Contudo, somen- tas pelo que lutar. Agora que sei elabo-

seja reconhecido como indígena, tem te quando eu passo a compreender po- rar as angústias, a dor, a revolta, mas

de se ligar ao povo e estar alinhado às liticamente as culturas e as literaturas sobretudo o orgulho do pertencimento

causas indígenas para que esse pro- indígenas é que minha produção acadê- étnico, sei que outras obras virão.
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cesso seja realizado. O que é o meu mica passa a ser volumosa. Isto porque Não posso falar da recepção crítica

caso, que estou vivendo esse proces- eu finalmente entendi o que queria di- de literatos, porém a recepção que te-

so junto à minha família. Mesmo que zer ao mundo: que a literatura indígena nho de parentes e alguns leitores tem

meu avô fale a língua macuxi, para e as culturas indígenas possuíam valor sido incrível. Partilhamos de alguns pro-

reivindicar direitos como indígena sociocultural e que não eram reconhe- cessos como autoafirmação, reconheci-

macuxi perante o Estado ele precisa- cidas, às vezes sequer conhecidas, nas mento da identidade indígena, orgulho

ria ser reconhecido a partir de uma ementas e programas acadêmicos. dos traços violentamente tripudiados

determinada comunidade e, via pajé Eu tenho fé na educação, da básica socialmente, e muito amor e acolhi-

primeiro e Funai depois, conseguir à universitária. Acredito que a decoloni- mento. Receber mensagens de outros

um documento de reconhecimento. zação da educação tem de passar pelo lugares do país falando desse afeto tem

estudo sério das culturas e povos indí- sido uma recompensa.

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ORG: Em 06 de abril de 2020, no con- taria de enfatizar que administram o ca- ORG: Gostaríamos que você co-

texto da pandemia de Covid-19, você nal comigo Carina Oliveira, mestranda mentasse suas principais inquie-

deu início a uma série de lives no Ins- pataxó, e Geni Núñez, doutoranda gua- tações e estímulos em face da

tagram e no Facebook, em que dialo- rani.


produção literária contemporâ-
ga com dezenas de autores indígenas,
O sentimento que te- nea. Diante do panorama da atu-
como Márcia Kambeba, Eliane Poti-
nho hoje é de uma al literatura brasileira, indígena e
guara, Daniel Munduruku, Kaká Werá
não-indígena, o que você vê?
e muitos outros. Como você avalia a
represa identitária,
J.D: A produção literária indígena
importância do registro de conversas aberta pela literatu-
contemporânea está em um momen-
com os escritores indígenas da atu- ra indígena, respon-
to, de onde vejo, de efervescência.
alidade? Qual seria o papel efetivo e sável por me dar au- Novos escritores surgem no merca-
potencial da literatura e, de modo es-
toconfiança e pautas do editorial e nas redes sociais, sen-
pecífico, da entrevista literária nestes
pelo que lutar. Ago- do potencialmente autores que se-
tempos de afastamento social?
ra que sei elaborar rão publicados. Muitos acadêmicos
J.D: Sim, as lives inicialmente realizadas

no Facebook e Instagram viraram um


as angústias, a dor, indígenas estreitando os laços com

a identidade indígena passam a dar


canal no YouTube, intitulado Literatu- a revolta, mas so-
ênfase às pesquisas voltadas à litera-
ra Indígena Brasileira, congregando as bretudo o orgulho
tura indígena, fortalecendo o siste-
entrevistas com os escritores indígenas do pertencimento ét-
ma educacional e literário indígena.
que vocês citaram. O papel efetivo e
nico, sei que outras
Sobre outros panoramas, acredi-
potencial da literatura indígena nesses
obras virão to haver um solo fértil para as ou-
tempos promove uma proximidade com
ORG: Complementando a pergunta tras narrativas, antes consideradas
a sociedade dominante, uma das fun-
anterior, e considerando as menções marginais ou sem valor. É um pra-
ções ensejadas pela literatura indíge-
que seu livro faz a uma série de auto- zer encontrar nas livrarias, e mes-
na mesmo. Diminuir o distanciamento
res indígenas, como Davi Kopenawa e mo em espaços culturais, literatura
em termos de conhecimentos culturais
Graça Graúna, gostaríamos que você
e tradicionais ajuda também na des- negra, LGBTQI+ e indígena, além de-
falasse um pouco das interlocuções
construção de preconceitos e estereó- las, a ribeirinha, camponesa, outros
que procura estabelecer com textos
tipos mantidos e retroalimentados pela segmentos que são potencialmente
de outros escritores, indígenas ou
branquitude, em nível pessoal ou insti- estéticos, mas que antes era impos-
não.
tucional. É preciso conhecer para des- sível encontrá-los mais acessíveis.
J.D: O meu norte teórico é predominan-
mistificar as imagens negativas que são Como nenhuma batalha está ganha,
temente indígena. Porém, o rol de escri-
Máscaras e codinomes

lançadas aos indígenas. A partir das en- precisamos insistir nessa diversida-
tores e teóricos é menor em relação à
trevistas foi possível constatar que mui- de que enriquece, como diz o mes-
teoria literária produzida no Brasil. Bus-
tos educadores ou apenas os leitores tre Ailton Krenak, nossa experiência
co, dessa maneira, citar os autores em
(ou seguidores das redes sociais) não de humanidade. Se esta entrevista
meus textos acadêmicos, e literários
conheciam mais que cinco escritores,
também, como forma de difundir essa chegar a algum/a educador/a, pedi-
às vezes menos. Com a iniciativa e a
produção. Para os indígenas que são ria gentilmente o apoio nessa luta,
criação do canal pudemos proporcionar
bombardeados com referências euro- ações mínimas como a escolha des-
um catálogo de referências mais amplo
cêntricas, encontrar um autor indígena sas referências nas salas de aula, lu-
para esse público, que agora pode co-
que dialoga com sua realidade pode ser gar onde ensaiamos uma sociedade
nhecer seus rostos, suas obras e suas
um fôlego na sua trajetória acadêmica e que sonhamos, podem ter um efeito
concepções de literatura indígena. Gos-
pessoal. solidário gigante.

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ORG: Boa parte dos seus textos críti- bilitado publicar em revistas com Qua- capítulos de livros, artigos acadêmicos,

cos e teóricos foram publicados em lis A, que é uma grande conquista para artigos de jornais, entre outros.

coautoria com os professores de fi- estudantes em formação de doutorado.


ORG: Você publicou recentemente sua
losofia Leno Danner e Fernando Dan- Por outro lado, pude levar a perspectiva
primeira obra de ficção, pela editora
ner, gaúchos que trabalham na Uni- dos autores indígenas e da filosofia in-
Caos & Letras, de Nova Lima (MG). Na
versidade Federal de Rondônia. Em dígena para eles, que passam a adotar
condição de estreante, como se deu o
que medida essa parceria traz im- em suas ementas e pesquisas o tema,
diálogo inicial com a editora? Quais
pactos ao restante de sua produção? que deixa de ser algo não convencional
são, a seu ver, os principais desafios
JD: A escolha de publicar coletivamen- para se tornar presente no dia a dia do
para a edição de novos escritores no
te com os professores Leno Francisco curso de Filosofia da Universidade Fe-
Brasil de hoje?
Danner e Fernando Danner potenciali- deral de Rondônia. Kaká Werá diz que
J.D: Nosso primeiro contato foi eu ter
zou minha pesquisa e o alcance dela. cada vez que publicamos uma obra
enviado uma mensagem perguntan-
Eles possuem uma formação técnica, multiplicamos a nossa voz vezes o nú-
do se eles tinham interesse em minha
filosófica e metodológica que eu não mero de impressão. Utilizando essa me-
obra. Eles pediram educadamente que
tinha no início do meu doutoramento. táfora, vejo a multiplicação da questão
eu enviasse o material para o e-mail. O
Com suas experiências pude aprimo- temática indígena vezes três, eu e os
que eu não esperava era que a resposta
rar essas áreas que antes não domi- pesquisadores, somando nessa rede. O
fosse tão rápida. O que me deixou fe-
nava, e que ainda estou aprendendo, resultado até o momento são dois livros
liz, claro. Eu não tenho nenhuma outra
por sinal. Sinto muita falta de não ter que versam sobre a temática, intitula-
experiência de publicação, então essa
tido em minha trajetória uma forma- dos Literatura indígena brasileira con-
é meu parâmetro. Os editores sempre
ção científico-filosófica, em termos de temporânea: criação, crítica e recepção
muito atenciosos, o Eduardo Sabino e
como justificar passos metodológicos, (Editora Fi, 2018) e Literatura Indígena
o Cristiano Rato, da Caos & Letras me
como construir uma teoria. Supri-la, Brasileira Contemporânea: autoria, au-
apoiaram desde sempre, me acompa-
ainda que aos poucos, tem me possi- tonomia e ativismo (Editora Fi, 2020),
nharam nas correções e nas orienta-
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ções de divulgação da obra. Fizeram escrevi Eu sou macuxi, tinha interesse nho, da mata, do rio, da vida no in-

uma capa linda e me dão o suporte de numa ilustração indígena porque elas terior da capital é o mais próximo e

que preciso dentro das limitações de traduzem o sentimento de orgulho e re- onde passei maior parte do tempo em

ser uma editora pequena. Mas sei que sistência. Não tinha ainda o resultado fi- contato com a mãe terra. Por isso eles

não é fácil ser publicado e ter esse su- nal, mas já imaginava que seria algo com aparecem mais na obra. O choque re-

porte todo. Talvez eu tenha tido sorte. uma sensibilidade à causa indígena, por latado na crônica não é só poético,

Vendo meus parentes escritores e po- isso acabei firmando uma parceria com é real, porque me dei conta de que

etas procurando editoras, vemos várias o Gustavo Caboco. Mas certamente sou tinha trocado uma floresta viva por

situações de espólio. Em que o máximo influenciada pelas produções de meus uma de pedra. Eu precisava urgente-

oferecido para os parentes são condi- parentes, e isso nas duas áreas. mente me reconectar com esse sagra-

ções de desconto na compra do próprio do violado pelo padrão urbano a que

trabalho intelectual. Estamos cada vez O choque relatado na tinha me sujeitado. No tempo desse

mais pesquisando a questão do direito crônica não é só po- acontecimento também tinha recente-

autoral para orientá-los em suas contra- ético, é real, porque mente voltado de Porto Alegre, cida-

tações futuras, para que os indígenas me dei conta de que de extremamente arborizada, e vinha

deixem de ser espoliados em seus bens tinha trocado uma me perguntando a ironia de viver na

imateriais. floresta viva por uma Amazônia e habitar uma capital não
de pedra arborizada. A comparação com as ci-
ORG: Eu sou Macuxi e outras histó- dades me fez perceber essa relação
rias foi ilustrado por Gustavo Caboco ORG: A contemplação das paisagens mais prática. Porém, atribuo aos inte-

e menciona outros artistas plásticos urbana e rural é um dos elementos e lectuais e lideranças indígenas a refle-

indígenas, como Denilson Baniwa, temas recorrentes em Eu sou Macuxi xão que me alimenta e de certa forma

Daiara Tukano, Yacunã Tuxá e Jai- e outras histórias, por vezes se apro- norteia a obra, de que a floresta tam-

der Esbell. Este ilustrou a capa do ximando da crônica para expressar a bém é gente e que por isso devemos

livro Literatura indígena brasileira dinâmica viva “De um porto a outro cuidá-la e protegê-la dos ataques ex-

contemporânea: autoria, autonomia, / De norte a sul”. Em verso ou pro- trativistas.

ativismo (Fi, 2020). Após essas expe- sa, a obra rememora desde a casa de

riências, você percebe mudanças, em pau-a-pique e palha até o passeio na ORG: Na apresentação do livro Lite-

seus textos, quanto à maneira de pen- Associação do Povo Indígena Karitia- ratura indígena brasileira contem-

sar e criar relações entre imagem e na, em Porto Velho. Em que medida porânea: autoria, autonomia, ativis-

linguagem verbal? De que modo as o choque entre as imagens da(s) ci- mo, você e os pesquisadores Leno

artes plásticas influenciam sua apro- dade(s) onde você vive(u) motivam a Danner e Fernando Danner afirmam

ximação ao objeto literário – ou vice- sua produção? que percebem, em todos os escri-
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-versa? J.D: À medida que gradativamente fui tores presentes na coletânea, uma

J.D: A arte indígena contemporânea tomando consciência das organizações crítica direta e pungente contra a

dialoga muito com a literatura indígena indígenas e de suas relações com a flo- tríade eurocentrismo-colonialismo-

brasileira contemporânea porque põe resta isso foi impactando minha forma -racismo, que silencia e invisibiliza

em evidência a autoria no agenciamen- de perceber o espaço da cidade e como o indígena. Como o machismo e o

to indígena, seja na arte visual ou na ele se organiza, rearranja para com- racismo afetam a sua escrita?

literatura. Assim, as artes disseminam portar casas e prédios, shoppings etc. J.D: O racismo é uma condição que

o orgulho do pertencimento étnico e de Entender a floresta como mãe, organis- nos acompanha desde 1492, quando

ser indígena no país, lugar de apaga- mo vivo, me fez procurar na memória passamos a ser racializados. Quando

mento, extermínio e silenciamento dos o tempo que passei mais próxima dela se trata de temas do homem branco

povos e sujeitos indígenas. Quando e minha relação hoje. O espaço ribeiri- ninguém fala “é do homem branco, é

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uma literatura do homem branco, o es- Isso já é uma conquista. sentes nesses es-

critor homem branco, o pesquisador Assim, se hoje pedimos o uso do ter- paços culturais, porque ainda somos

homem branco, a mulher atriz bran- mo “indígena” ao invés do termo “índio” em menor número. Assim nasceu a pá-

ca”. Essas marcas de raça, e mesmo estamos politizando a questão racial, gina no Instagram e Facebook do “Leia

de gênero, que são normativas, são estamos convidando para uma reflexão Mulheres Indígenas” (@leiamulheresin-

consideradas universais para a raça sobre a cadeia de associações negativas digenas), onde divulgamos as escri-

branca. No entanto, para os grupos que estão implicadas na palavra “índio”, toras e suas produções autorais, suas

minoritários não. Eles são eternamen- “índia”, bem como “Descobrimento”, formações e áreas de atuação. A página

te lembrados da condição racializada. “Novo Mundo”, “tribo”, incorretas, mas passou a contar depois com a colabora-

Desde a década de 1970 temos en- lugares-comuns na cultura nacional. As- ção de Mayra Sigwalt e Paolla Andrade

tendido essa condição como uma fer- sim, o uso do termo literatura indígena Vilela (do canal “Lola depois dos 30”),

ramenta política para assegurar direi- é estratégico e político. Falamos de um que colaboram na difusão e produção

tos, violados desde 1500 até os dias lugar demarcado simbolicamente. Utili- de material para a divulgação das au-

de hoje. Para além do sentimento pre- zamos a questão racial para combater toras. Também tenho a outra página

conceituoso, nos ensina bell hooks, o racismo, para lutar contra a ideia ra- no Instagram, o @leiaautoresindigenas,

estamos preocupados com nossos cista de que somos todos seres huma- porque sei que a questão do gênero é

direitos em níveis estruturais, institu- nos (onde nessa humanidade só a raça desigual para o homem indígena, que é

cionais. Garanti-los pode ser um cami- branca desfruta de privilégios), iguais antes de tudo racializado.

nho para a educação e transformação (mas quem tem direito são só os bran- Convém enfatizar aqui que a questão

social. Temos a lei 11.645/2008, que cos). do gênero nos oprime, mas não antes do

torna obrigatório o ensino das cul- O machismo é corolário. Enquanto racismo. Os autores indígenas não des-

turas indígenas e afro-brasileiras em mulher, cis, hétero, indígena, luto para frutam do mesmo privilégio dos homens

todo o currículo da educação básica. que outras parentas possam estar pre- brancos. Somos 60 autores indígenas em
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caráter individual atuando no mercado

editorial. Esse número é infinitamente

menor, se comparado aos dos homens

brancos. Por isso, nossa luta é direcio-

nada a combater o racismo, garantir que

o mundo saiba que temos humanidade

e direitos que precisam ser garantidos.

Nesse sentido também sou atravessada

pela questão e traduzo essa luta na mi-

nha escrita literária ou acadêmica.

ORG: Nas considerações iniciais da

coletânea Literatura indígena brasi-

leira contemporânea: criação, crítica

e recepção (Fi, 2018), você e os coor-

ganizadores afirmam que a literatura

indígena é um meio para uma práxis

político-pedagógica de resistência e

de luta. Nos últimos anos, o Brasil e

o mundo têm presenciado o fortale-

cimento de ondas reacionárias que

trazem matizes autoritários, opres-

sores, fascistas, racistas, misóginos e

homofóbicos. O que pode a literatura

contra a barbárie? O que você imagi-

na ou espera como desfecho do atual do ouvir os indígenas sobre as questões que a sociedade e grupos alinhados
estágio da humanidade? ecológicas porque já é entendido que o a pautas democráticas possamos nos
J.D: Há 520 anos lutamos contra a bar-
atual modelo extrativista e da merca- unir, porque queremos um mundo
bárie. Inicialmente de modo direto, hoje
doria, que denuncia Davi Kopenawa, já melhor e plural.
nas formas contemporâneas da colo-
não pode ser empurrado goela abaixo. Esses tempos de horror da pande-
nização traduzidas em colonialidades
Já não dá mais. A queda do céu, de Davi mia, que tem levado muitos parentes,
do saber e do ser. A literatura indíge-
Kopenawa, Ideias para adiar o fim do não só indígenas, mostra que preci-
na brasileira reivindica uma memória
mundo, de Ailton Krenak,Todas as ve- samos pensar e reformular nossas re-
e uma presença na história oficial que,
Máscaras e codinomes

zes que dissemos adeus, de Kaká Werá lações, em todos os sentidos. Espero
por si só, só pelo fato de existir, afron-
Jecupé, são obras que nos convidam a que coletivamente possamos perce-
ta as bases do estado nacional que se
pensar o mundo e seus regimes autori- ber que não dá para sair dessa expe-
constitui sobre os cemitérios indígenas.
tários e extrativistas, corolários do pa- riência catastrófica e permanecer os
Essa barbárie nós conhecemos bem. A
radigma ocidentalizado. mesmos. A terra se recupera da in-
literatura indígena, nesse sentido, vem
O que a literatura indígena nos pro- tervenção do homem, que possamos
diminuir as distâncias entre a sociedade
põe está para além de romper com es- também pensar que podemos nos re-
dominante e as culturas brasileiras nos
tereótipos, propõe uma mudança de pa- cuperar da intervenção colonial que
museus, espaços de exposições, livros
radigma, uma do respeito com a terra, opera nossos corpos e sentidos. Eu
didáticos, no audiovisual, fotografia, ci-
com a diversidade. Nossa luta contra espero isso. Caso não mude, continu-
nema etc. A sociedade tem se permiti-
essa barbárie é secular, por isso espero arei lutando para essa transformação.

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