A Autoafirmacao Macuxi de Julie Dorrico
A Autoafirmacao Macuxi de Julie Dorrico
A Autoafirmacao Macuxi de Julie Dorrico
A autoafirmação Macuxi de
Julie Dorrico
Julie Dorrico
Doutora em Letras, escritora e autora de Eu sou macuxi e outras histórias
ORGANIZADORES: Cada escritora pos- mória e pelo pertencimento”. Comen- ras indígenas. Os sujeitos indígenas re-
sui um método e estilo de trabalho te as opções formais e temáticas que afirmam o caráter filial com a floresta,
próprios. Em seu livro de estreia, Eu norteiam seu projeto ético-estético. estabelecendo um paradigma e suas
Máscaras e codinomes
sou Macuxi e outras histórias (Caos & JULIE DORRICO: As opções formais que formas de dar sentido ao mundo a par-
Letras, 2019), percebemos caracterís- conduziram meu trabalho foram inspi- tir dela. A dissolução do par cultura e
ticas que marcam a literatura indíge- radas nas narrativas indígenas e na pes- natureza, ou homem versus natureza,
na brasileira contemporânea, como quisa de Lúcia Sá, autora não indígena, por sua vez, explicaria por que o autor
a autoafirmação e a autoexpressão que constata a literatura indígena das moderno (ou da tradição ocidental/mo-
identitárias, com mescla das pessoas Américas enquanto narração/resumo, derna em diante) descreveria as coisas
eu/nós em narrativas de cunho coleti- e não descrição. Em outras palavras, a e as pessoas, um paradigma assentado
vo. Nesse sentido, Daniel Munduruku literatura indígena não se vale da fer- na racionalização, portanto. Em outras
observou, no prefácio do livro, que ramenta da descrição porque isso im- palavras, ele só pode afastar o olhar,
“Julie Dorrico fez o caminho de esva- plicaria na dissolução do par cultura e porque se põe no centro do mundo e
ziar-se para ser preenchida pela me- natureza, que não acontece nas cultu- assim se vê como referencial, poden-
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do ser sujeito e todo o resto, obje- Importante destacar ainda que há mui- genas, e o reconhecimento-responsabi-
to. Diferentemente desse paradigma tos povos em etnogênese, isto é, povos lização político e cultural. Acredito que
ocidentalizado, as culturas indígenas que foram considerados extintos nos transformando o simbólico podemos
não são econômicas quando tratam séculos anteriores, mas que agora rei- arar um terreno como condição de pos-
de subjetividades, reconhecendo para vindicam sua existência e direitos. Por sibilidade para os direitos indígenas.
além do homem, do humano, nas fau- isso é muito importante ter cautela e Foi isso que aconteceu comigo, quando
nas e floras, no não humano também perceber a complexidade da identidade eu entendi e senti a questão indígena,
a subjetividade. Isso me inspirou for- indígena, encontrada em mais de 305 pude me engajar no estudo e no ativis-
Como tema, escolhi minhas memó- sica ou simbolicamente. Claro que para
rias de infância, trajetória pessoal e ORG: Desde 2013, quando ingressou mim foi uma questão pessoal, mas in-
meu projeto de autoafirmação macu- no Mestrado em Estudos Literários sisto numa educação antirracista em
xi. No Brasil, para ser indígena existe da Universidade Federal de Rondônia, que educadores não indígenas possam
uma convenção estabelecida no ano você tem publicado uma série de ar- elaborar suas ementas incluindo e apre-
de 1989, a Convenção 169 da OIT em tigos sobre a literatura indígena. Em ciando uma literatura de autoria indíge-
Genebra, e posteriormente ratificada 2019, Eu sou Macuxi e outras histó- na, fugindo dos moldes euronorcêntri-
em decreto no ano de 2004 no país, rias foi contemplado com o Prêmio cos, não como favor, mas como aliados
em que o processo se dá pelo reco- Tamoios, da Fundação Nacional do numa luta ética e antirracista que mina
nhecimento do sujeito como indígena Livro Infantil e Juvenil. Como você de- as bases da branquitude racista que
e depois o reconhecimento do povo. fine a sua trajetória literária e o seu nega humanidade a outros povos.
Veja bem, um sujeito ao reconhecer autorreconhecimento como autora in- A minha carreira literária começou
a identidade indígena já automatica- dígena – houve um momento inaugu- muito recentemente para o mercado,
mente implica que há uma coletivida- ral ou o caminho se fez gradualmen- com a publicação de meu livro auto-
de presente, assim é muito importan- te? Nessa trajetória, como você avalia ral. Mas eu sempre escrevi desde muito
te saber que as autodeclarações são a recepção de sua obra? nova. Só não sabia elaborar o que es-
processos complexos e que devem ser J.D: A minha trajetória é antes de tudo tava dentro de mim. O sentimento que
respeitados, não bastando ter uma tri- acadêmica. Desde o fim de 2016 eu tenho hoje é de uma represa identitária,
savó, bisavó, ou mesmo avó indígena. passei a investigar mais seriamente as aberta pela literatura indígena, respon-
Ou seja, ter um parente indígena não questões indígenas, sobretudo na área sável por me dar autoconfiança e pau-
garante que automaticamente você da literatura indígena. Contudo, somen- tas pelo que lutar. Agora que sei elabo-
seja reconhecido como indígena, tem te quando eu passo a compreender po- rar as angústias, a dor, a revolta, mas
de se ligar ao povo e estar alinhado às liticamente as culturas e as literaturas sobretudo o orgulho do pertencimento
causas indígenas para que esse pro- indígenas é que minha produção acadê- étnico, sei que outras obras virão.
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cesso seja realizado. O que é o meu mica passa a ser volumosa. Isto porque Não posso falar da recepção crítica
caso, que estou vivendo esse proces- eu finalmente entendi o que queria di- de literatos, porém a recepção que te-
so junto à minha família. Mesmo que zer ao mundo: que a literatura indígena nho de parentes e alguns leitores tem
meu avô fale a língua macuxi, para e as culturas indígenas possuíam valor sido incrível. Partilhamos de alguns pro-
reivindicar direitos como indígena sociocultural e que não eram reconhe- cessos como autoafirmação, reconheci-
macuxi perante o Estado ele precisa- cidas, às vezes sequer conhecidas, nas mento da identidade indígena, orgulho
ria ser reconhecido a partir de uma ementas e programas acadêmicos. dos traços violentamente tripudiados
determinada comunidade e, via pajé Eu tenho fé na educação, da básica socialmente, e muito amor e acolhi-
primeiro e Funai depois, conseguir à universitária. Acredito que a decoloni- mento. Receber mensagens de outros
um documento de reconhecimento. zação da educação tem de passar pelo lugares do país falando desse afeto tem
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ORG: Em 06 de abril de 2020, no con- taria de enfatizar que administram o ca- ORG: Gostaríamos que você co-
texto da pandemia de Covid-19, você nal comigo Carina Oliveira, mestranda mentasse suas principais inquie-
deu início a uma série de lives no Ins- pataxó, e Geni Núñez, doutoranda gua- tações e estímulos em face da
lançadas aos indígenas. A partir das en- precisamos insistir nessa diversida-
tores e teóricos é menor em relação à
trevistas foi possível constatar que mui- de que enriquece, como diz o mes-
teoria literária produzida no Brasil. Bus-
tos educadores ou apenas os leitores tre Ailton Krenak, nossa experiência
co, dessa maneira, citar os autores em
(ou seguidores das redes sociais) não de humanidade. Se esta entrevista
meus textos acadêmicos, e literários
conheciam mais que cinco escritores,
também, como forma de difundir essa chegar a algum/a educador/a, pedi-
às vezes menos. Com a iniciativa e a
produção. Para os indígenas que são ria gentilmente o apoio nessa luta,
criação do canal pudemos proporcionar
bombardeados com referências euro- ações mínimas como a escolha des-
um catálogo de referências mais amplo
cêntricas, encontrar um autor indígena sas referências nas salas de aula, lu-
para esse público, que agora pode co-
que dialoga com sua realidade pode ser gar onde ensaiamos uma sociedade
nhecer seus rostos, suas obras e suas
um fôlego na sua trajetória acadêmica e que sonhamos, podem ter um efeito
concepções de literatura indígena. Gos-
pessoal. solidário gigante.
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ORG: Boa parte dos seus textos críti- bilitado publicar em revistas com Qua- capítulos de livros, artigos acadêmicos,
cos e teóricos foram publicados em lis A, que é uma grande conquista para artigos de jornais, entre outros.
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ções de divulgação da obra. Fizeram escrevi Eu sou macuxi, tinha interesse nho, da mata, do rio, da vida no in-
uma capa linda e me dão o suporte de numa ilustração indígena porque elas terior da capital é o mais próximo e
que preciso dentro das limitações de traduzem o sentimento de orgulho e re- onde passei maior parte do tempo em
ser uma editora pequena. Mas sei que sistência. Não tinha ainda o resultado fi- contato com a mãe terra. Por isso eles
não é fácil ser publicado e ter esse su- nal, mas já imaginava que seria algo com aparecem mais na obra. O choque re-
porte todo. Talvez eu tenha tido sorte. uma sensibilidade à causa indígena, por latado na crônica não é só poético,
Vendo meus parentes escritores e po- isso acabei firmando uma parceria com é real, porque me dei conta de que
etas procurando editoras, vemos várias o Gustavo Caboco. Mas certamente sou tinha trocado uma floresta viva por
situações de espólio. Em que o máximo influenciada pelas produções de meus uma de pedra. Eu precisava urgente-
oferecido para os parentes são condi- parentes, e isso nas duas áreas. mente me reconectar com esse sagra-
trabalho intelectual. Estamos cada vez O choque relatado na tinha me sujeitado. No tempo desse
mais pesquisando a questão do direito crônica não é só po- acontecimento também tinha recente-
autoral para orientá-los em suas contra- ético, é real, porque mente voltado de Porto Alegre, cida-
tações futuras, para que os indígenas me dei conta de que de extremamente arborizada, e vinha
deixem de ser espoliados em seus bens tinha trocado uma me perguntando a ironia de viver na
imateriais. floresta viva por uma Amazônia e habitar uma capital não
de pedra arborizada. A comparação com as ci-
ORG: Eu sou Macuxi e outras histó- dades me fez perceber essa relação
rias foi ilustrado por Gustavo Caboco ORG: A contemplação das paisagens mais prática. Porém, atribuo aos inte-
e menciona outros artistas plásticos urbana e rural é um dos elementos e lectuais e lideranças indígenas a refle-
indígenas, como Denilson Baniwa, temas recorrentes em Eu sou Macuxi xão que me alimenta e de certa forma
Daiara Tukano, Yacunã Tuxá e Jai- e outras histórias, por vezes se apro- norteia a obra, de que a floresta tam-
der Esbell. Este ilustrou a capa do ximando da crônica para expressar a bém é gente e que por isso devemos
livro Literatura indígena brasileira dinâmica viva “De um porto a outro cuidá-la e protegê-la dos ataques ex-
ativismo (Fi, 2020). Após essas expe- sa, a obra rememora desde a casa de
riências, você percebe mudanças, em pau-a-pique e palha até o passeio na ORG: Na apresentação do livro Lite-
seus textos, quanto à maneira de pen- Associação do Povo Indígena Karitia- ratura indígena brasileira contem-
sar e criar relações entre imagem e na, em Porto Velho. Em que medida porânea: autoria, autonomia, ativis-
linguagem verbal? De que modo as o choque entre as imagens da(s) ci- mo, você e os pesquisadores Leno
artes plásticas influenciam sua apro- dade(s) onde você vive(u) motivam a Danner e Fernando Danner afirmam
ximação ao objeto literário – ou vice- sua produção? que percebem, em todos os escri-
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-versa? J.D: À medida que gradativamente fui tores presentes na coletânea, uma
J.D: A arte indígena contemporânea tomando consciência das organizações crítica direta e pungente contra a
dialoga muito com a literatura indígena indígenas e de suas relações com a flo- tríade eurocentrismo-colonialismo-
brasileira contemporânea porque põe resta isso foi impactando minha forma -racismo, que silencia e invisibiliza
em evidência a autoria no agenciamen- de perceber o espaço da cidade e como o indígena. Como o machismo e o
to indígena, seja na arte visual ou na ele se organiza, rearranja para com- racismo afetam a sua escrita?
literatura. Assim, as artes disseminam portar casas e prédios, shoppings etc. J.D: O racismo é uma condição que
o orgulho do pertencimento étnico e de Entender a floresta como mãe, organis- nos acompanha desde 1492, quando
ser indígena no país, lugar de apaga- mo vivo, me fez procurar na memória passamos a ser racializados. Quando
mento, extermínio e silenciamento dos o tempo que passei mais próxima dela se trata de temas do homem branco
povos e sujeitos indígenas. Quando e minha relação hoje. O espaço ribeiri- ninguém fala “é do homem branco, é
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uma literatura do homem branco, o es- Isso já é uma conquista. sentes nesses es-
critor homem branco, o pesquisador Assim, se hoje pedimos o uso do ter- paços culturais, porque ainda somos
homem branco, a mulher atriz bran- mo “indígena” ao invés do termo “índio” em menor número. Assim nasceu a pá-
ca”. Essas marcas de raça, e mesmo estamos politizando a questão racial, gina no Instagram e Facebook do “Leia
de gênero, que são normativas, são estamos convidando para uma reflexão Mulheres Indígenas” (@leiamulheresin-
consideradas universais para a raça sobre a cadeia de associações negativas digenas), onde divulgamos as escri-
branca. No entanto, para os grupos que estão implicadas na palavra “índio”, toras e suas produções autorais, suas
minoritários não. Eles são eternamen- “índia”, bem como “Descobrimento”, formações e áreas de atuação. A página
te lembrados da condição racializada. “Novo Mundo”, “tribo”, incorretas, mas passou a contar depois com a colabora-
Desde a década de 1970 temos en- lugares-comuns na cultura nacional. As- ção de Mayra Sigwalt e Paolla Andrade
tendido essa condição como uma fer- sim, o uso do termo literatura indígena Vilela (do canal “Lola depois dos 30”),
ramenta política para assegurar direi- é estratégico e político. Falamos de um que colaboram na difusão e produção
tos, violados desde 1500 até os dias lugar demarcado simbolicamente. Utili- de material para a divulgação das au-
de hoje. Para além do sentimento pre- zamos a questão racial para combater toras. Também tenho a outra página
conceituoso, nos ensina bell hooks, o racismo, para lutar contra a ideia ra- no Instagram, o @leiaautoresindigenas,
estamos preocupados com nossos cista de que somos todos seres huma- porque sei que a questão do gênero é
direitos em níveis estruturais, institu- nos (onde nessa humanidade só a raça desigual para o homem indígena, que é
cionais. Garanti-los pode ser um cami- branca desfruta de privilégios), iguais antes de tudo racializado.
nho para a educação e transformação (mas quem tem direito são só os bran- Convém enfatizar aqui que a questão
social. Temos a lei 11.645/2008, que cos). do gênero nos oprime, mas não antes do
torna obrigatório o ensino das cul- O machismo é corolário. Enquanto racismo. Os autores indígenas não des-
turas indígenas e afro-brasileiras em mulher, cis, hétero, indígena, luto para frutam do mesmo privilégio dos homens
todo o currículo da educação básica. que outras parentas possam estar pre- brancos. Somos 60 autores indígenas em
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político-pedagógica de resistência e
na ou espera como desfecho do atual do ouvir os indígenas sobre as questões que a sociedade e grupos alinhados
estágio da humanidade? ecológicas porque já é entendido que o a pautas democráticas possamos nos
J.D: Há 520 anos lutamos contra a bar-
atual modelo extrativista e da merca- unir, porque queremos um mundo
bárie. Inicialmente de modo direto, hoje
doria, que denuncia Davi Kopenawa, já melhor e plural.
nas formas contemporâneas da colo-
não pode ser empurrado goela abaixo. Esses tempos de horror da pande-
nização traduzidas em colonialidades
Já não dá mais. A queda do céu, de Davi mia, que tem levado muitos parentes,
do saber e do ser. A literatura indíge-
Kopenawa, Ideias para adiar o fim do não só indígenas, mostra que preci-
na brasileira reivindica uma memória
mundo, de Ailton Krenak,Todas as ve- samos pensar e reformular nossas re-
e uma presença na história oficial que,
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zes que dissemos adeus, de Kaká Werá lações, em todos os sentidos. Espero
por si só, só pelo fato de existir, afron-
Jecupé, são obras que nos convidam a que coletivamente possamos perce-
ta as bases do estado nacional que se
pensar o mundo e seus regimes autori- ber que não dá para sair dessa expe-
constitui sobre os cemitérios indígenas.
tários e extrativistas, corolários do pa- riência catastrófica e permanecer os
Essa barbárie nós conhecemos bem. A
radigma ocidentalizado. mesmos. A terra se recupera da in-
literatura indígena, nesse sentido, vem
O que a literatura indígena nos pro- tervenção do homem, que possamos
diminuir as distâncias entre a sociedade
põe está para além de romper com es- também pensar que podemos nos re-
dominante e as culturas brasileiras nos
tereótipos, propõe uma mudança de pa- cuperar da intervenção colonial que
museus, espaços de exposições, livros
radigma, uma do respeito com a terra, opera nossos corpos e sentidos. Eu
didáticos, no audiovisual, fotografia, ci-
com a diversidade. Nossa luta contra espero isso. Caso não mude, continu-
nema etc. A sociedade tem se permiti-
essa barbárie é secular, por isso espero arei lutando para essa transformação.
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