Caio Fernando Abreu - Inventário de Um Escritor Irremediável (PDF) (Rev)
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SEOMAN
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Copyright 2008, Editora Seoman Coordenao Editorial MANOEL LAUAND Capa e Reviso HENRIQUE MINATOGAWA Projeto Grfico GABRIELA GUENTHER Foto da Capa e da Abertura do livro ADRIANA FRANCIOSI/AGNCIA RBS Checagem CLARA YWATA
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Publicao
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Callegari, Jeanne Caio Fernando Abreu: inventrio de um escritor irremedivel / Jeanne Callegari. So Paulo: Seoman, 2008. ISBN 978-85-98903-10-1 1. Abreu, Caio Fernando 2. Escritores brasileiros Biografia I. Ttulo 08-05638 CDD 928.699 ndices para catlogo sistemtico: 1. Escritores brasileiros : Biografia 928.699 EDITORA SEOMAN Rua Pamplona, 1465 cj. 72 Jd. Paulista So Paulo SP Cep 01405-002 Fone: 11 3057-3502 [email protected] www.seoman.com.br Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98. proibida a reproduo total ou parcial sem a expressa anuncia da editora. Foi feito depsito legal.
Para Caio F, pela paixo; Para Jonas Lopes, pelo apoio; e para Eduardo Nasi, com amor.
PREFCIO O perfil de Caio Fernando Abreu escrito por Jeanne Callegari pode ser lido como um romance. Um delicado romance que, cheio de paixo mas tambm de pudor, pisa devagar sobre a matria ardente. A estratgia narrativa de Jeanne combina com a estratgia existencial de Caio, que tambm viveu como se sua vida no passasse de um romance, um desses romances tensos, cheios de tristeza e de revolta, de atrao pelo risco mas tambm de fascnio pela beleza, em cujas pginas avanamos com o corao na mo. Jeanne comea imitando os romances clssicos. Ela parte dos extratos remotos, mas decisivos da infncia, das primeiras descobertas e dos primeiros sustos, para acompanhar, distncia, a formao difcil do escritor. "Desde muito pequeno, o menino Caio demonstrou uma inclinao para a arte", diz. Esta tendncia logo se revela uma disposio para a fermentao interior, movimento que o arrastou, desde cedo, para temas ameaadores como o erotismo, a fraqueza e o risco de morte. Nem mesmo a prtica do jornalismo, que se apia no concreto e na objetividade, lhe serviu para abrandar as turbulncias ntimas. Em um conto como Pequeno monstro, de Os drages no conhecem o paraso, nos mostra Jeanne, Caio j rascunha, atravs de um jovem ai ter ego e por vias tortas, um terrvel retrato de si. "Pernas e braos demais, plos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual a um pato, eu queria me esconder de todos". Viver no s suportar, mas sobretudo lutar contra o que se . Talvez se possa pensar que, com sua alma efervescente, Caio Fernando Abreu tenha sido um eterno adolescente e o livro
de Jeanne Callegari, por vezes, nos enche de argumentos a favor dessa idia. Mas Jeanne nos mostra tambm que, se o jovem rebelde persistia, grudado a ele, como um duplo, havia desde logo um poeta (pela postura, e no porque escrevesse versos, pois, se os escrevia, nunca publicou). Um homem que nunca desconheceu o peso do caminho que lhe coube atravessar. Mesmo amparando-se no recurso mais didtico da ordem cronolgica, nem assim a autora consegue organizar e domar a atmosfera de inconstncia e de desamparo que cercou a vida do escritor. Perodos fundamentais como aquele em que, fugindo da perseguio da ditadura militar, ele se escondeu no stio da escritora Hilda Hilst, na periferia de Campinas ajudam a fixar traos mais firmes. Em sua chcara, Hilda seguia a idia do escritor grego Nikos Kazantzakis, segundo quem, para entender a sociedade, preciso primeiro dela se afastar. Lio que o jovem Caio tratou logo no s de imitar, mas de incorporar como fundamento de sua existncia, e que o ajudou a delimitar, de vez, a figura de um sujeito margem, de um desviante, um rebelde. Pode-se dizer que foi na chcara de Hilda, escoltado por ela como uma parteira que de um corpo arrancasse no outro corpo, mas um esprito que o escritor adulto veio a nascer. "As vezes que tentei morrer foi por no suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo", Caio escreve em uma carta aos pais, datada do final dos anos 1960. Quando, no incio da dcada de 1970, vai para a Europa, j um homem que deseja abraar o mundo, perderse na esperana de, enfim, se achar. Leva ento uma existncia precria, faz bicos, lava pratos, sobrevive como pode, mas avana, na Sucia, na Holanda, na Inglaterra. A bissexualidade se abre, rompendo de vez os limites de uma vida burguesa. Mas, nos mostra Jeanne, quanto mais Caio se liberta e expande seus horizontes, mais afunda na dor. "Escrevo por uma espcie de incompatibilidade de gnios com a vida,
escrevo para reinventar, escrevo para organizar o caos, para no enlouquecer de impotncia, para re-fazer", ele mesmo descreve em uma crnica da poca. Dor e escrita se conectam de modo fatal, e nesse n que Jeanne Callegari puxa o fio de "um escritor irremedivel". E aqui se deve entender o irremedivel em dois sentidos: como uma condenao (algo que no tem remdio), e como um destino (algo em que ele se lana para a vida e com grande vigor). De volta a So Paulo, Jeanne reencontra Caio, aos 30 anos, "de cala de couro, jaqueta, gestos finos, elegantes", encostado em um carro. "O ser todo exalava algo de sexual, e de solitrio tambm", ela resume, em uma descrio que, mesmo rpida, fisga quase toda a alma de Caio Fernando Abreu. Um sujeito que, apesar da sensibilidade extrema e da volpia de viver sempre frustrada, nunca desiste de recomear. O medo da loucura, do desastre, do fracasso, se agiganta. A relao de amor e tenso que tem com a poeta Ana Cristina Csar que, depois de muita luta interior, termina por cometer suicdio uma sntese desses sentimentos. tambm o momento em que, em O tringulo das guas, mais especificamente na novela Pela noite, pela primeira vez, Caio menciona o terror da aids que naquela poca, de ignorncia e preconceito, ainda era chamada, muitas vezes, de "cncer gay". Mesmo cheio de terrores, Caio avana. Dedica-se cada vez mais a ler poesia sobretudo Adlia Prado, Fernando Pessoa e Mario Quintana. Sua escrita est cada vez mais impregnada de lirismo, um lirismo seco e doloroso, e tambm de um misticismo vago, que se acentua na atitude pessoal que cultiva com esmero de um bruxo. O anjo negro chega ao extremo at que ele mesmo, depois de uma doena longa e estranha, recebe a notcia de que soro-positivo. Fato, que comunica, de modo frontal, em uma srie de crnicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo. o momento da virada em que o positivo que indica a doena, negativo, portanto, convertido por Caio em algo positivo mesmo. A vida lhe abre uma nova face. Fraco, mas
cheio de coragem, ele volta a morar com os pais, no sul, e se dedica a rever seus livros, procurando extrair, dos mergulhos negativos, sentidos novos e vitais. A morte o pega quando vivia como um romntico jardineiro, quieto entre suas flores domsticas, apegado ao prazer de cuidar dos prprios espinhos. nesse andar das coisas pequenas que Jeanne o persegue at o fim. Seu livro tem a objetividade dos relatrios cientficos, mas tambm o encantamento das cartas de amor e, ainda, a reserva temerosa das grandes confisses. Jeanne se contm sempre, o mais que pode, porque sabe que aventurar-se na vida e na obra de Caio Fernando Abreu guarda sempre um grande risco, mergulhar no veneno terno da imperfeio.
Jos Castello
INTRODUO: CEM MIL CAIOS Um, nenhum e cem mil. O ttulo de Pirandello ronda as noites de quem se impe a tarefa, desde o incio condenada ao fracasso, de traduzir e dar unidade a todos os muitos que algum outro foi. Escrever sobre Caio Fernando Abreu, camaleo, estrangeiro, inquieto, no foi a exceo da regra. Ele foi milhares. O Caio obsessivo com o lado escuro de todas as coisas, mas apaixonado pela vida, sempre em busca da luz, das flores, da leveza. O Caio simptico com os outsiders, com quem, curioso e temerrio, gostava de andar no limite, nas noites mais perigosas, mas nunca a ponto de se perder, nunca a ponto de perder o caminho de volta, que marcava, como Joo e Maria da fbula, no com pedacinhos de po ou pedrinhas, mas com seus textos, a literatura. O Caio que usava as palavras como arma de sobrevivncia quando batia a depresso, a vontade de ficar sozinho, o desespero. O Caio do equilbrio sempre alm do comum, do banal, que alternava fases macrobiticas com costelas gordas, chs medicinais com whisky, cigarro com jardins e flores, sempre flores. Avencas, rosas, girassis. O Caio F, apaixonado sempre, de uma fidelidade canina com os amigos, de um humor implacvel e cido, do qual ele mesmo era um dos principais objetos. O Caio inclassificvel, que se recusava a fazer parte de movimentos, filosofias e seitas, mas que passeava e pairava por todas elas. O amigo difcil de conviver, fcil de amar; o escritor admirado e cheio de seguidores. O Caio erudito, o Caio pop, o Caio filosfico, o Caio abobrinha, o Caio deprimido. Com todos esses tive que lidar, e tambm com seus rfos, herdeiros e vivas, todos aqueles que ficaram carentes quando ele se foi, de aids, em 1996. Muitos no queriam falar, dar entrevista. Tinham cime e zelo de tocar em memrias to delicadas. Costuma ser assim, em uma tentativa como essa, de retrato; sempre algo fica de fora da moldura, oculto pela linha fina, reservado para poucos olhos. Muitos, pelo contrrio, queriam dividir sua viso do Caio, suas memrias. Achavam quase egosmo
deixar a beleza de anedotas e palavras para trs, queriam que o mundo conhecesse o homem por trs do texto, e que homem extraordinrio era esse!, pensavam. No h razo mais certa que a outra, e a todos agradeo a colaborao, a boa vontade, a delicadeza em retornar meus pedidos insistentes. Cansa forar a memria, buscar fatos muitas vezes esquecidos num cantinho das lembranas. Cansa reviver momentos tristes e a partida de algum que se amou. Por trs de depoimentos e histrias que marcaram, por trs de frases ditas e registradas em cartas, atravs de contos e romances, emergia aquilo que eu buscava, como o personagem de Pirandello: a unidade. Fui achando que entendia Caio, me sentindo ntima dele. Sobre o que conversaramos se ele estivesse aqui? Sobre a infncia em Santiago, a adolescncia em Porto Alegre. A vida adulta em So Paulo, no Rio. A triste e herica caminhada para o fim, em meio a suas rosas e a sua famlia. Sim, teramos sobre o que falar. Fiz algumas descobertas sobre esse jardineiroescritor marcante e apaixonado, personagem e autor da prpria vida. Se a importncia como escritor era flagrante desde o incio, a importncia como filho, amigo, jornalista e personalidade foi surgindo devagar, aparecendo como em uma revelao fotogrfica. Apesar dos tantos traos, do contorno esboado, faltam ainda detalhes. que esse relato no se pretende definitivo, uma biografia exaustiva. Antes um perfil, um recorte dessas milhares de faces. Ainda h muito a dizer sobre Caio Fernando Abreu. Muita gente para prosear a respeito, muitos arquivos a revirar, muitas fotografias para nos fazer lembrar. Mais cem mil para serem estudados. Partindo daqui, d para ir apreciando o caminho, cada nova nuance, detalhe. Pois o ponto de chegada no existe. Por definio, imperfeito.
Jeanne Callegari
As cartas de Caio citadas no livro foram extradas de Caio Fernando Abreu Cartas, organizado por talo Moriconi e publicado pela editora Aeroplano em 2002. A carta de Manuel Abreu para o filho Zal nunca foi publicada, faz parte do acervo da famlia e foi gentilmente cedida por ela, assim como algumas das cartas de Vera Antoun e os postais de Pedro Paulo de Sena Madureira.
PRLOGO Caio, voc vai fazer isso comigo? Se voc se matar, as coisas vo se complicar para mim, que estou aqui com voc grita Gil Veloso. Ele est ao lado da janela do andar de cima do duplex de um flat na Frei Caneca, em So Paulo. Ele argumentava com o escritor Caio Fernando Abreu, que se aproximava da janela e a abria, pela segunda vez naquela noite, com a vaga inteno de se jogar. H trs dias, o escritor tinha descoberto que era portador do vrus da aids. Para evitar que Caio fizesse uma besteira, o amigo Gil conversava, argumentando que se ele se jogasse l embaixo, a situao poderia complicar para o seu lado, que estava junto no apartamento. Gil sabia que Caio o queria bem: no faria nada que pudesse prejudicar o amigo. Alm disso, Caio no era um suicida; menosprezava e era contra as pessoas que tinham a indelicadeza de se matar, deixando os amigos morrendo de saudades do lado de c. A reao era, apenas, um reflexo da febre. O ano era 1994. Aos 45 anos, Caio Fernando Abreu era um escritor consagrado, ganhador de dois prmios Jabuti, traduzido na Frana, Alemanha, Inglaterra, Itlia e Holanda. Era tambm autor premiado de teatro. Como jornalista, tinha integrado a primeira equipe de reportagem da Veja, e depois disso passara por vrios veculos, como IstoE, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Nova, POP, Zero Hora, Gallery Around, Leia Livros, Correio da Manh. Viveu com intensidade as dcadas de 1970 e 1980 e, por ter retratado to bem experincias e emoes de sua poca, era considerado cone de uma gerao. Mas Gil Veloso no pensava em nada disso quando foi socorr-lo no flat, naquela segunda-feira. Outras pessoas haviam passado por l: no final da tarde, Da Martins e Gil se encontraram no elevador. Caio ligara para os dois, pedira para que levassem gua, e ambos chegaram com garrafas na mo. Subiram, viram que Caio no estava bem, conversaram sobre a situao, se seria melhor intern-lo ou no, e
combinaram de ir se falando. Da foi embora e Gil ficou cuidando do Caio. O escritor passara os ltimos trs dias ligando para os amigos, contando que estava com aids, dando a notcia. Estava recluso, como se digerisse a situao. Depois, ele diria que sua primeira reao foi de naturalidade, como se j esperasse: a doena o rondava fazia pelo menos dez anos, quando, em 1983, comearam a aparecer os primeiros casos no Brasil. No eram poucos os amigos que Caio tinha perdido para a aids: Vicente Pereira, Luiz Roberto Galizia, Paulo Yutaka, Lory Finocchiaro, Cazuza. Agora era a sua vez, e parecia natural que assim fosse. Mas, depois do fim de semana aparentemente sensato, algo mudou: ele finalmente pareceu assimilar, com toda a fora, o que estava acontecendo. Aids! Estou com aids, pensou Caio. Aids, doena, morte. No era mais fico; agora era de verdade. Fim da linha. Ento veio a febre, e ele no se lembrava de mais nada. Estava muito fraco, no queria comer. Recitou coisas sem sentido, delirou, teve alucinaes. Gil, que estava com ele, entrou no jogo, fingia estar vendo as borboletas imaginrias, para assim tentar trazer o doente de volta realidade. Mesmo assim, continuavam os delrios, os semsentidos que dizia. Gil decidiu ligar para uma mdica. Na primeira vez que desceu as escadas para alcanar o telefone, ouviu a janela se abrindo. Correu e pegou Caio, que se aproximava do parapeito. Deu um grito. Assustado, Caio paralisou; como uma criana, olhou para Gil e compreendeu o absurdo do gesto. Gil ficou conversando, acalmando o amigo at que pudesse descer novamente e pedir ajuda. Da segunda vez, conseguiu telefonar para alguns amigos e para a mdica antes que Caio abrisse novamente a janela e ele precisasse argumentar para evitar novas tentativas. No houve jeito seno chamar uma ambulncia e lev-lo para o hospital Emlio Ribas. Eram mais ou menos onze da noite. A essa altura, Caio estava j completamente nu, e
quem o vestiu e o colocou na ambulncia foi Gil, pois os enfermeiros tinham medo da contaminao. No hospital, no havia leitos. Caio ficou em uma maca enquanto aguardava que um quarto vagasse. Gil j havia ligado para Da, que tambm estava ali. No dia seguinte, Caio j estava em um quarto. No se lembrava de absolutamente nada. Os amigos foram visit-lo e sua irm Cludia chegou de Porto Alegre. O mdico disse a ele: Voc precisa agora de qualidade de vida. Era tempo de Caio realizar um sonho: voltar ao Rio Grande do Sul. Voltar a Porto Alegre, para a casa dos pais. Plantar roseiras, ter uma vida tranqila. Voltar s razes. Afinal, tinha sido no Rio Grande do Sul que tudo tinha comeado.
UM a dcada de 1940 em Santiago do Boqueiro, pequena cidade ao sul do Brasil. O comerciante Manuel Abreu, nascido em 1887, senta-se para escrever uma carta ao filho Zal, de 24 anos. Tendo escolhido a carreira militar, Zal fora morar em Itaqui, transferido junto com o primeiro batalho destacado para operar na cidade. O rapaz, normalmente tranqilo, tinha passado por uma fase bomia, de bebedeiras e namoricos. Coisa da idade, do contato com colegas farristas, amigos do copo e de mulheres bonitas. Por isso, quando, no final de 1945, seu Manuel recebe uma carta do filho pedindo autorizao para se casar, ele no nega, por dois motivos. Primeiro, porque Zal j era homem feito, emancipado e, portanto, nico responsvel por seus atos. Segundo, porque, mesmo sem conhecer a moa em questo, que tambm morava em Itaqui, seu Manuel acreditava que o
casamento seria uma boa maneira de tranqilizar a vida de Zal. No dia 15 de dezembro, o pai responde carta, dando seu consentimento para a cerimnia, dizendo que, com boa vontade e energia, seria possvel controlar a vida desregrada que o filho levara at ali. A carta; trazia tambm recomendaes para que Zal economizasse dinheiro a fim de poder se casar o mais rpido possvel, "porque no lcito tambm ficares noivo indefinidamente, prejudicando o futuro de uma filha alheia". No mais, Manuel esperava que as qualidades da noiva de Zal se confirmassem, e que ambos fossem dignos um do outro. Aproveitando para agradecer o lindo vidro de azeite que Otaclio e Jurema haviam mandado, ele termina a carta, com "saudades e abraos de todos, do teu pai e amigo, Manuel Abreu". Dois anos depois, Zal Menezes Abreu e Nair Ferreira Loureiro se casaram. E Manuel deve ter gostado da nora que aprovara mesmo antes de conhecer. Nair era mulher forte, decidida. Era ela que, com pulso firme e determinao, comandava a casa. Depois da entrada dela na vida de Zal, o jovem sossegou. Seria sempre conhecido como homem afvel, tranqilo. Zal e Nair se conheceram em Itaqui, onde ela nascera. Localizada na fronteira com a Argentina, Itaqui tinha pouco mais de 18 mil habitantes na poca e a base de sua economia era agropecuria. A famlia de Nair era das mais distintas: Alcina Alves Ferreira, me dela, era prima de Rodrigues Alves, o presidente. Eram descendentes de portugueses, provavelmente cristos-novos. "Por causa dos narizes", brincaria anos mais tarde uma das netas de dona Alcina. Quando Nair era pequena, porm, a situao financeira da famlia ficou complicada: com a morte do pai, a me comeou a costurar para fora para pagar as contas e, assim, poder mandar as crianas para a escola. Nair insistia em estudar: viria a ser professora. Assim, foi a nica dos sete filhos a cursar faculdade. Das outras meninas, trs se tornaram donas de casa. Vlter, um dos rapazes, se tornou
delegado de polcia, e o outro, Marciano, jogador de futebol chegou a fazer parte do Botafogo do Rio de Janeiro. A nica que tambm se tornou professora, como Nair, foi sua irm Flora. Aos 16 anos, Nair se formou na Escola Normal: ser professora era uma das nicas profisses possveis para uma mulher naqueles tempos. Aos 17, ela se mudou para uma fazenda em So Borja a cidade dos presidentes Getlio Vargas e Joo Goulart para dar aulas para os filhos de um rico fazendeiro. Um a um, os trs garotos viriam, anos depois, a se tornar prefeitos de So Borja. Depois da fazenda, Nair foi para outra das pequenas cidades da regio dar aula em uma escolinha, e assim foi at que conheceu Zal, em Itaqui. Provavelmente, o encontro se deu em algum dos bailes, freqentes na poca, ou na hora do footing, na Praa Central. As mulheres andavam para um lado e os homens, para o outro. Na troca de olhares, paixes nasciam e morriam. Quando Nair conheceu Zal, ele usava um enorme anel de ouro, com um Z gravado. Ela perguntou o que significava aquela inicial. Zal odiava profundamente o prprio nome, que, assim como o de sua irm Elza, fora inventado a partir de partes do nome de seus pais (ManuEL e AdeliZA). Resmungava sempre algo sobre isso, contrariado. Todo mundo confundia: Ismael, Israel; era difcil achar quem acertasse. Portanto, quando Nair perguntou o significado do Z, ele no teve dvidas e disse: Zeferino. A confuso foi desfeita, mas a anedota ficou na memria da famlia. Uma noite, enquanto ainda eram noivos, Zal discutiu com Nair. Mais tarde, ela iria a um baile no Clube Comercial de Itaqui, e ele queria porque queria entrar na festa para busc-la. Estava bbado. Queria entrar fardado e a cavalo no clube, mas os amigos do quartel o amarraram na cama, e ele no pde sair. Depois de casado, Zal sossegou. Seu humor, no entanto, permaneceria o mesmo: embora calado, de vez em quando soltava tiradas mordazes e engraadas. Assim que se casaram sem festa, pois no havia dinheiro para isso Zal foi transferido para Santiago e Nair
arrumou um emprego como professora em uma escola local. Santiago do Boqueiro, antiga So Tiago das Misses, perto da fronteira com a Argentina, no Rio Grande do Sul, se destacava das outras pequenas cidades da regio. No pelo tamanho ou pela prosperidade, ou pelas belezas, que certamente possua, mas pela quantidade de quartis. Santiago era polvilhada de quartis, e a maioria dos homens que ali moravam era militar. Sorte das mocinhas, que gostavam de namorar homens fardados. Achavam bonito. Nem s de quartis viveu Santiago, no entanto: houve um sambista, Tlio Piva, autor do sucesso de vero Tem que ser mulata, regravado em inmeras lnguas. L nasceu tambm o cartunista Santiago, que, batizado Neltair Rebs Abreu, tirou o apelido da cidade em que nasceu. O pai de Neltair era primo-irmo de Zal. E, em um pas apaixonado por futebol, tambm havia de existir um jogador vindo de Santiago: Anderson Polga. Houve, tambm, pelo menos um heri. Em 1936 dois anos antes de Santiago ser oficialmente promovida a "cidade" o juiz eleitoral Moyss Vianna morreu abraado a uma urna eleitoral, enquanto era cravejado de balas. Por defender a lisura da eleio naquela localidade com a prpria vida, o herico juiz virou medalha: a "Medalha do Mrito Eleitoral Moyss Vianna", concedida a todos aqueles que se destacassem pela atuao em matria de Direito ou Justia Eleitoral. Assim era Santiago, em 1948, quando Nair ficou grvida do primeiro filho: uma terra predominantemente militar, com seus heris e mrtires, seus costumes e lendas, como qualquer outra cidade. Santiago viria a ser a inspirao para Caio criar o Passo da Guanxuma, uma cidade fictcia, maneira da Macondo de Garcia Mrquez e da Santa Maria de Juan Carlos Onetti. O Passo aparece em vrios contos de Caio, e ele ambicionava um dia escrever um grande romance sobre a cidade. Embora o texto inteiro jamais tenha sido feito, o captulo introdutrio aparece em Ovelhas negras, coletnea lanada no fim da vida do escritor.
"Isso o que se conta, o que se diz, o que se v e no se v, mas se imagina do Passo. De tudo, o mais real, salpicadas entre as quatro patas da aranha no meio dos girassis do leste, beira dos lajeados ao sul, pelos descampados do norte e at mesmo entre os vos mais sombrios das areias a oeste o que mais tem em qualquer tempo de seca ou aguaceiro, caloro ou friagem, so touceiras espessas de guanxuma. [...]... de dois males jamais sofreu, sofre ou sofrer o Passo. De distrbios estomacais, que ch de guanxuma tiro e queda, nem de p acumulado, que os ramos servem pra fazer vassouras capazes de assentar at mesmo a poeira daquele deserto prximo que sopra e sopra noite e dia sem parar e, dizem, dizem tanto, ai como dizem nesse Passo, nunca pra de crescer." Eram oito e quinze da manh do dia 12 de setembro de 1948. Na rua Pinheiro Machado, 575, Nair de Abreu acabava de dar luz pela primeira vez. As parteiras Julia Jacques e dona Alcina, me de Nair, confirmavam: um menino. E um menino bem grande: Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu pesando notveis quatro quilos. No lbum do beb, algum tempo depois, o pai, Zal, anotaria, sobre os cabelos da criana: "apesar de escassos, nota-se que sero castanhos". Esse o beb Caio: ctis branca, olhos pretos, sem sinais particulares e "muito quietinho, quase no incomoda". Caio seria o nico dos cinco filhos de Nair a ter um lbum de beb. Ainda assim, no todo completo: seu Zal, que o preenchia, nem sempre tinha pacincia de escrever tudo que acontecia. Assim, por exemplo, est anotado, no primeiro aniversrio de Caio, na seo presentes: "Ganhou muitos presentes. O papai no vai enumer-los por ser muito longo e estar com preguia de escrever." Em 1954, morre Getlio Vargas. O falecido presidente era natural de So Borja, como o pai de Caio, que, com o passar dos anos, se tornara getulista convicto. Lia tudo que saa sobre Getlio nos jornais e tinha uma foto dele
pendurada na parede. Quando ele morreu, Zal ficou arrasado. Mas, se na poltica as coisas iam mal, em casa Zal s tinha motivos para alegrias. Desde muito pequeno, o menino Caio demonstrava uma inclinao para a arte que viria a desenvolver mais tarde, na sua trajetria de escritor. Com seis anos, o menino, j muito magro e muito alto, como seria a vida toda, de sobrancelhas grossas e bem desenhadas, escreve seu primeiro texto, a histria em quadrinhos de Lili Terremoto, uma menina louquinha que queria fugir de casa. Desde ento, o garoto continuou escrevendo e criando. O ambiente da casa dos pais era propcio para isso: Zal, homem sofisticado, de muita cultura, estava sempre com um livro na mo. As colees completas de rico Verssimo, Machado de Assis, do escritor de aventuras Karl May um alemo cujas histrias se passavam no faroeste norte-americano, embora ele mesmo nunca tivesse deixado seu pas enfeitavam as prateleiras da casa. Sendo professora, a me, D. Nair, tambm instigava os filhos a aprender. Nenhuma leitura era proibida em sua casa: de gibis de aventuras e revistas como O Cruzeiro, que eles assinavam, a livros de Monteiro Lobato e a coleo chamada O mundo da criana, as crianas podiam ler tudo. O colega Ruy Krebs, que seria um dos melhores amiguinhos do Caio a partir do primeiro ano ginasial, quando estudaram na mesma turma, dividia a paixo por livros, e no era s ele. Luiz Carlos Moura, o Beco (pronuncia-se Beco), vizinho e primo dos Abreu, grande amigo do Gringo, irmo de Caio, lia muitas coisas quando ia visitar a casa deles, pois seu pai era comunista e, em sua casa, s havia livros ideolgicos. De vez em quando, quando Caio tinha uns sete anos, ele, Beco e Gringo brincavam de deserto, ou osis, como Caio chamou a brincadeira anos depois, em um conto do livro O ovo apunhalado. O quartel no fim da rua era o osis: na frente da casa dos Abreu era onde o avio dos trs garotos tinha cado. Eles tinham que atravessar todo o deserto o espao entre a casa e o quartel e conseguir vveres e peas para consertar o avio. Aos poucos, iam faltando as coisas:
gua, comida. Em poucos quarteires, os meninos estavam cansados, suados, de cabea baixa. Tinham que sentir, fingir que era tudo verdade, atuar. E conseguiam. Quase sempre s os trs: a maioria dos outros garotos no conseguia ir at o final. O nico que s vezes participava da brincadeira era o negrinho Jorge, filho de camponeses, que de vez em quando aparecia por l. Na casa dos Abreu havia sempre uma empregada domstica. Naquela poca, os empregados dormiam em casa. Uma delas era tambm Nair, a Nairzinha, tratada com carinho pelos pais de Caio. Quando a moa se casou, D. Nair ajudou a fazer o enxoval. Houve tambm a Etelvina, pobre Etelvina! Certa vez, Caio resolveu brincar de circo. Montou toda a estrutura no galpo de casa. Armaram no teto um trapzio, e a Etelvina tinha que balanar pra l e pra c. Em um desses balanos, a pobre caiu de cabea no cho. No se machucou, apesar do tombo feio. Anos depois, Caio morreria de rir sempre que se lembrasse dessa histria. So duas da tarde. As crianas chegaram da escola. Ruy e Beco vo para a casa dos Abreu brincar. E os irmos Abreu, Caio, ento com dez anos, e Gringo, so os que gostam de brincar brincadeiras mais parecidas com as de que eles mesmos gostam. Nada de jogar futebol ou vlei: quando brincam de bola, so jogos que eles mesmos inventam, assim como inventam as brincadeiras de fantoche e de deserto. Como a turma gostava muito dos circos e teatros mambembes que de vez em quando passavam pela cidade, decidiram, certa vez, fazer um teatro. A sede era a garagem da casa do Sales Horcio, colega dos meninos. A noite, a turma percorria as obras em construo atrs dos sacos que embalavam o cimento para fazer os cenrios. Cobertores velhos faziam as vezes de cortinas. Ruy se lembra de que, por incrvel que parea, quem fazia os roteiros das peas que encenavam era ele, e no o Caio. Certa vez, decidiram fazer um teatrinho de fantoches. Caio encontra uma receita de massa para fantoches na antiga Revista do Globo, de Porto Alegre, escrita por Glnio
Bianchetti, que depois se tornaria artista plstico famoso. Eles fabricam os bonequinhos, as cabecinhas de papel mach, e inventam historinhas para as peas. De vez em quando, faziam tambm teatrinhos de sombra. No dava para imaginar que, anos e anos depois, Caio viria a escrever de verdade para o teatro. Faria suas prprias peas, adaptaria textos de outros escritores, chegaria mesmo a pisar no palco como ator, em Porto Alegre. Mas isso seria muito tempo depois. Por agora, so meados dos anos 50, a cidade Santiago, no h asfalto nas ruas, o fornecimento de luz eltrica intermitente e no h qualquer preocupao na cabea das crianas, a no ser brincar. Caio, s vezes, olha pela janela do quarto, sente o cheiro profundo de jasmins que vem do jardim l fora o cheiro era to forte que s vezes a me sentia tonturas e v a casa da frente. Uma casinha de madeira, escondida por plantas, um coqueiro. Oracy Dornelles, poeta, mora ali, em companhia da me. Da janela dele, escoava o som de msica clssica. Era um som novo para Caio. Que seria?, ele se perguntaria mais tarde. Beethoven? Wagner? Caio dizia para Ruy que Oracy conversava com as estrelas, porque tinha um telescpio para observar o cu. Sem nunca ter trocado uma palavra com Oracy, sentia com ele uma identificao. Era um poeta, diziam. E assim Caio descobriu que os poetas existiam. Em carta escrita a Oracy, muito tempo depois, nos anos 80, Caio se lembraria da afinidade que sentira pelo vizinho, mesmo sem nunca ter conversado com ele. 'Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou s aquela vibrao de silncio, muito forte. Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem sem que seja necessrio sequer falar sobre isso. Uma cumplicidade muda, e to secreta que, penso, talvez voc nunca tenha percebido. Na minha memria j to congestionada e no meu corao to cheio de marcas e poos voc ocupa um dos lugares mais bonitos. "A carta foi includa no livro O que importa em Oracy, organizado por Ftima Friedriczewski, Froilan Oliveira e Jlio Csar Prates. Alm dos textos, Oracy fez pinturas e esculturas em fios de
cabelo e gros de areia, e ficaria famoso pelo circo de pulgas que mantinha. Anos mais tarde, ele esclareceria: era Beethoven o som que Caio ouvia pela janela. F ardoroso do alemo, Oracy foi um dos fundadores do Clube de Beethoven, em que os membros se reuniam para ouvir concertos do compositor nas noites de gala, vestidos a rigor. No outro dia, de tarde, as crianas se renem de novo para brincar. Enquanto Beco e Gringo jogam xadrez Beco seria campeo amador da modalidade, quando crescesse , Caio e Ruy pegam cartolina e tinta nanquim. Caio desenha as misses de maio, uma para cada estado do Brasil: miss Rio Grande do Sul, miss Minas Gerais, miss So Paulo. Ruy pinta as modelos e desenha os trajes tpicos. Depois de meses de trabalho, uma a uma, lado a lado, as vinte e poucas bonequinhas vo surgindo no papel, as medidas inventadas, os nomes, as roupinhas, tudo. Que nem aquelas que vinham com as fotografias na revista O Cruzeiro, com a diferena de que aquelas eram reais e essas, inventadas, desenhadas, pequeninas. Depois que esto prontas, Caio e Ruy chamam Gringo e Beco. Os dois esto convocados: hora do desfile das misses, e eles vo ser os jurados. Mesmo que no estivessem muito interessados, afinal Caio tinha esse jeito de impor sua vontade na hora das brincadeiras, e acabava sempre conseguindo o que queria. Um divertimento que todos adoravam era ir ao cinema. Quando as crianas eram mais novas, s podiam entrar no cinema na matin de domingo, ou na sesso seguinte, s quatro da tarde. Havia apenas uma sala de projeo na cidade, o Cinema Imperial, e os meninos esperavam ansiosos o dia de assistir aos "filmes de mocinho". Beco sai de casa. Pega seu boneco do "mocinho" e se encontra com Caio e Gringo, que tambm esto com seus bonequinhos. Vo ao cinema, que est lotado. Comea o filme. Em determinada hora, o mocinho comea a perseguir o bandido. E a senha para a comoo geral: o pessoal todo do cinema comea a bater os ps no cho, fazendo uma algazarra, aos berros:
A, mocinho! A, mocinho! Caio, Gringo e Beco tambm gritam e batem os ps, ao mesmo tempo em que sacodem no ar seus bonequinhos de mocinho. Era uma festa. Quando Caio cresce e seu companheiro passa a ser Ruy, eles j podem ir ao cinema quase todos os dias, com exceo dos filmes censurados para menores. De tanto irem ao cinema, inventaram passatempos relacionados, como concursos de desenhos para os cartazes dos filmes da semana. Ruy e Caio desenhavam os cartazes e, assim como no concurso de misses, os jurados eram o Gringo, o Beco e a empregada da casa do Caio. Uma vez, tiveram a idia de fazer um alfabeto duplo, usando as iniciais dos nomes de artistas. Por exemplo, AA era Antnio Aguilar, um nome que acharam no elenco de filmes mexicanos; BB era Brigitte Bardot, CC, Claudia Cardinale, DD, Doris Day e Diana Dors. KK era Kay Kendall, MM, Marilyn Monroe e assim por diante. O problema surgiu quando chegaram as letras YeW: onde encontrar um nome cujas iniciais fossem essas letras dobradas? A questo obrigava os meninos a levar caderno e lpis para o cinema, para anotar caso aparecesse um YY ou WW. Caio e Ruy se consideravam os melhores desenhistas da turma. Um dia, porm, viram os desenhos de outro menino, e se espantaram. Os desenhos do Neltair, por acaso, primo de Caio, eram feitos com lascas de telha ou tijolo na calada, feita de lajes de pedra, como a maioria na cidade. Caio e Ruy se impressionavam, principalmente, com os gladiadores greco-romanos, pois assistiam a muitos filmes picos e bblicos no cinema. Os dois passavam na calada s para olhar os desenhos. O julgamento artstico dos meninos era bom. Afinal, Neltair cresceria, adotaria a alcunha de Santiago, em homenagem cidade, e seria cartunista famoso, dos bons. No vero, as famlias gostavam de acampar na beira dos rios. Havia uma praia muito bonita no distrito de Ernesto Alves, perto de Santiago, e tambm a praia de Jaguari, cidade vizinha. Dessas praias, Caio pode ter tirado a descrio da
praia do conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga, do livro Os drages no conhecem o paraso. As praias e fazendas prximas, de amigos e parentes, forneciam um contato com a natureza de que, anos mais tarde, morando nas metrpoles acinzentadas e sem verde, Caio sentiria falta. O verde estava presente em muitas brincadeiras, como quando os garotos passavam o dia no enorme quintal da casa dos Abreu, onde havia todo tipo de rvore frutfera: bergamoteiras, pitangueiras, goiabeiras. Podiam passar a tarde chupando bergamotas ou brincando na casinha que Caio improvisara com uns compensados de madeira da embalagem de uma geladeira que haviam comprado. A idia era que fosse um lugar s deles, um pouco inspirado no Clube do Bolinha e da Luluzinha. Na casinha, guardavam os brinquedos, os gibis, os fantoches. Houve uma brincadeira, no entanto, que D. Nair proibiu os filhos de fazer. A brincadeira, assim como seu nome, foi inventada por Caio: bailu. Os garotos subiam na cama, jogavam cobertores sobre as cabeas, de modo a no enxergarem nada, e comeavam a pular. Pulavam, pulavam, at cair no cho. Apesar de divertido, era muito perigoso, e a me, que comandava a casa, no permitiu mais que os garotos brincassem desse jeito. Havia sempre um cachorrinho pela casa, ou algum outro bicho. Certa vez, algum trouxe duas corujas. Era uma novidade, um acontecimento. Caio escreveu sobre isso no conto Corujas, de seu primeiro livro de contos, Inventrio do irremedivel: Cham-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando minha maneira de desej-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifrveis como elas, j perdidas no tempo, misteriosas at hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo.
Mas nem tudo era brincadeira. O jeito de Caio sempre fora um pouco diferente; desde pequeno, tinha traos ambguos, no gostava de futebol, preferia desenhar, escrever. A sociedade santiaguense da poca no estava preparada. O primo Neltair, que viria a se tornar o cartunista Santiago, se lembra do preconceito contra o menino Caio na escola, onde, certa feita, algum fez em um jornal-mural uma caricatura do futuro escritor, aludindo sua pretensa homossexualidade. Era a poca dos comentrios maldosos, velados. Caio tem oito anos. Est na aula de Educao Fsica. O professor, que tambm d aula de Matemtica, o Capito Pely, casado com a irm do pai de Caio, Elza. O capito vivia implicando com ele, talvez por ser cunhado de Zal e se sentir na obrigao de despertar no aluno um comportamento viril, msculo. Os alunos tm que subir em uma tbua suspensa, comprida e estreita. A subida era pelas laterais, que ficavam em um plano inclinado. A maioria dos meninos sobe; Caio no. Ele tem medo. O capito insiste para com que Caio suba, debocha do menino, o chama de cago. Sempre esse professor pegando no p, implicando, exigindo. Os outros meninos, que conseguem subir, riem da cara do Caio, que no consegue. E outro dia. Caio est no Crculo Militar, um clube da cidade. Tem quadra de tnis, de patinao, balanos. De vez em quando, passavam umas projees de filmes, e os meninos iam l: Santiago; o irmo de Santiago, Luiz Abreu, colega de Caio na 4a srie; Caio. Um dia, o futuro escritor se senta no balano. Outro menino, tambm chamado Caio, vem empurrar. Sabendo que Caio, o Abreu, era mais frgil, o outro menino comea a empurrar com fora, cada vez com mais fora. Caio, no balana que eu caio! berrava o Caio Abreu l do alto, apavorado. Anos depois, o tmido e retrado Caio aprenderia a lidar com essas situaes e seria mais enfrentativo. Chegaria mesmo a se envolver em brigas. Afinal, embora no fosse bom nos esportes, era competitivo: sempre
representava o colgio nas disputas de conhecimento sobre Geografia e Histria. Cerca de dois anos aps o nascimento de Gringo, D. Nair teve mais um filho. Esse, porm, morreu logo aps o nascimento. Anos depois, em 1957, nasceu Luiz Felipe, que cresceu saudvel. E sapeca. Luiz Felipe adorava provocar Caio. Sabendo que o irmo mais velho odiava cebolas, no podia nem v-las, nem sentir seu cheiro, nada, Felipe pegava algumas e arremessava nele. Caio ficava furioso: mais alto, mais velho, alcanava Felipe e batia, batia nele, mas o castigo no conseguia fazer com que o mais novo parasse. Valia a pena apanhar um pouquinho para ver a cara do irmo furioso. Mesmo com os garotos crescidos, as peas que Felipe e Caio costumavam pregar um no outro continuaram. Caio adorava assustar as pessoas: talvez por tdio, por falta do que fazer, quando ele estava em casa sempre pegava as pessoas de surpresa pelos corredores e arrancava gritos de todo mundo. Uma vez, quando as irms caulas Mrcia e Cludia j eram grandes, foram todos veranear na praia, na casa da famlia, em Tramanda. Era noite; quase todo mundo dormia, menos o Caio, que ficava acordado at tarde escrevendo. Em dado momento, ele saiu do quarto, desceu as escadas e foi at a cozinha pegar um copo de leite. Felipe, que acordara com a movimentao do irmo, escondeu-se no vo da escada e esperou. Quando Caio voltou com um copo de leite e um prato de bolachinhas, Felipe no disse nada: simplesmente estendeu os braos e colocou as mos em cima das costas do irmo, como se fosse um fantasma ou apario. O grito de Caio, apavoradssimo, acordou todo mundo na casa, ao mesmo tempo em que leite, copo e bolachinhas voavam para todos os lados. A dcada de 50 est terminando. Mrcia nasce em 1960, Cludia, em 1961. Por essa poca, a famlia Abreu tem uma posio distinta na sociedade santiaguense. No eram ricos, mas tinham algum prestgio. Zal era integrante da maonaria, e D. Nair estava sempre cotada entre as dez mais
elegantes da cidade nos vrios bailes e festas a que compareciam. Tanto ela quanto Zal eram muito vaidosos, muito finos, muito "adequados". A carreira de militar e a situao de professora conferiam certa diferenciao social na poca, e o casal era muito respeitado. Essa posio da famlia era estimada por Caio: uma vez, enfureceu-se com o irmo Gringo por ter entrado sem pagar no circo que estava na cidade. Gringo foi apanhado e expulso do lugar vista de todos, inclusive de Caio e Beco, que foram assistir ao espetculo de forma lcita. Caio brigou com Gringo por ter exposto o nome da famlia daquela maneira. Pela via da arte, a notoriedade de Zal e Nair se estenderia a Caio, o filho mais velho, que demonstrara uma personalidade forte e independente desde os primeiros anos. Aos 13 anos de idade, participou de um concurso literrio na aula. A idia do concurso era do professor Cavalcanti, figura importante nos primeiros anos do escritor: alm de organizar os concursos literrios, o professor promovia aos sbados as Horas de Leitura, em que os alunos liam textos e recitavam poemas, e criou os jornais-murais, aqueles mesmos em que Caio seria ironizado por colegas de outra turma, pois na sua ele e Ruy eram os responsveis. Para o concurso, Caio encheu um caderno inteiro com o pequeno romance A maldio dos Saint-Marie. Venceu. As meninas faziam fila para ler, como se lembraria o escritor anos mais tarde, quando incluiu o texto na coletnea Ovelhas negras, pouco antes de morrer. "E evidente que a histria cheia de clichs, influenciada por radionovelas, fotonovelas e melodramas mambembes do Circo-Teatro Serelepe, no presta, mas talvez possa render algumas risadas", escreve ele. Assim termina a histria de Adriana e de seu envolvimento com os SaintMarie, donos de um suntuoso castelo na Frana: Oh, George! soluou a moa. Como posso estar feliz? No mereo o seu amor. O meu corao estava cheio de dio por Fernando, eu s pensava em vingana. Voc me perdoa? Como resposta, o rapaz abraou-a e deu-lhe um leve
beijo nos lbios. Talvez agora eles possam ser felizes, a prfida Amlia no far mal a mais ningum. A aurora j pe os dedos cor-de-rosa no puro azul do firma-mento. Contra o horizonte destaca-se a outrora manso dos Saint-Marie, agora transformada em runas. Mais atrs v-se a silhueta de dois jovens abraados, parecendo uma promessa de esperana e f no futuro. Os meninos iam crescendo, comearam a aparecer as primeiras namoradinhas. Certa vez, Caio se apaixonou por uma menina muito bonita que morava perto de sua casa. Ela era aluna de D. Nair. Como prova de seu amor, Caio roubou uma prova de Histria e entregou para a garota. De alguma maneira, a me dele descobriu, e Beco presenciou a cena em que ela passava a maior bronca no filho primognito. Beco se espantou: s naquele momento que ele ficou sabendo que o amigo tinha uma queda pela garota. O espanto acompanharia Caio pela vida afora. Incapaz de se condicionar a algum rtulo, ele seria no um, mas muitos: o Caio tmido da infncia e da adolescncia, o Caio enfrentativo e ousado da juventude, o Caio mais sereno e maduro do fim da vida. Para cada pessoa que o conheceu, um Caio diferente, s vezes oposto ao que outros se recordam. Por isso que, por exemplo, algumas das pessoas que conheceram o escritor mais tarde, quando j tinha sua homossexualidade estabelecida, se espantam de que tenha tido namoradas. A primeira delas foi Tnia, que morreu de leucemia aos 15 anos. Depois dela, foi a Iara Nicola, filha de D. Lenita, a precursora dos sales de beleza em Santiago, onde as senhoras iam fazer os penteados da poca. A irm mais nova de Iara, Valria Nicola, e sua amiga Ndia Ahmad se lembram de como gostavam de escorregar nas longas pernas do Caio quando ele ia visitar Iara. As duas estavam sempre por perto a pedido de D. Lenita, que pedia que ficassem de olho no casal. Afinal, Caio, com seus cabelos compridos, era considerado avanado para a poca. Depois de um tempo, ele mandava as meninas comprarem balas
para namorar Iara, que acabaria por se casar com outro santiaguense, Luiz Carlos Fava, um oposto de Caio em todos os sentidos: esportista, msculo, jamais leria os livros do conterrneo. Com 15 anos, Caio muda-se para Porto Alegre para estudar no Instituto Porto Alegre (IPA). O colgio era caro e bom. Embora a mensalidade pesasse no oramento dos Abreu, o filho queria, e D. Nair concordava, e at mesmo insistia, que ele tivesse a melhor educao possvel. Afinal de contas, Caio tinha que seguir em frente. Ele queria conhecer novas coisas, novos lugares, e sabia que Santiago no poderia satisfazer seus anseios. Como escreveria depois em Limite branco, seu primeiro romance: Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ningum me conhecesse, onde no me tratassem com considerao apenas por eu ser "o filho de fulano" ou "o neto de beltrano". Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas so realmente fortes como imagino. E se no forem, mesmo que quebrassem no primeiro vo, mesmo que aps um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou. No internato, porm, as coisas no comeam bem para o primognito de D. Nair. Ele no se adapta, no consegue arrumar amigos, no entende as matrias. Caio fica doente e escreve uma carta medonha a seus pais, pedindo para irem busc-lo. Diz que esteve na enfermaria, com febre e sozinho, e que tem vontade de morrer. "[...] Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a senhora chegando; cada riso de criana que vinha l de fora eu julgava ser da Mrcia ou da Cludia. Confesso que tive vontade (e tenho) de morrer. [...]
A senhora vai dizer que isso normal, etc... Mas no no! Os outros que chegaram junto comigo j esto adaptados.[...] H vrias noites que no durmo e tenho pesadelos horrveis. Acho que at emagreci, ando sempre com olheiras e no como nada.[...] Pelo amor de Deus, me, eu no agento mais! Veja se a senhora d um jeito! Isso aqui um verdadeiro inferno. [...] Por favor, mezinha, no me deixe s! Responda logo. Agora que descobri o quanto gosto disso da. Gosto muito da senhora. Ajude-me!" A carta d a perceber uma faceta de Caio: o pendor para o dramtico, a teatralidade, o exagero. E tambm a sua personalidade, de notrios altos e baixos. Aps receber a carta, os pais alarmaram-se e Zal foi buscar o filho em Porto Alegre, de carro. Na poca, era tortuoso e demorado vencer a distncia de mais ou menos 500 km que separa Santiago da capital. Quando Zal chegou, Caio j estava muito melhor. A crise depressiva tinha passado, e ele acabou no voltando para Santiago. Depois de morar no internato do IPA, Caio vai para o Hotel Uruguay, no centro de Porto Alegre. Finalmente, muda-se para a penso de uma viva, D. Maria, que alugava quartos para estudantes. No ano seguinte sua vinda, o amigo Ruy, de Santiago, e seu irmo Antnio tambm foram morar na penso. Ruy passou a dividir o quarto com Caio, e Antnio com o Carlos Renato, irmo de Beco. Por coincidncia, morava no mesmo prdio o escritor Manoelito de Ornellas, que era amigo da famlia de Ruy, que, sempre muito extrovertido, foi logo se apresentando. Logo Manoelito conheceu tambm Caio e leu seus contos, que o impressionaram muito. A filha de Manoelito, esprita, enxergava uma aura azul ao redor do Caio, que comeou a freqentar o apartamento do escritor nessa poca. Manoelito lhe deu muito apoio: apresentou outros escritores, como rico Verssimo. Foi por intermdio dele que Caio ingressaria no Jornalismo. No ano seguinte, Caio publica seu primeiro conto em
um veculo da grande circulao: O prncipe sapo, na revista Claudia. A publicao foi uma surpresa de Carmen da Silva, psicloga e editora da seo A arte de ser mulher da Claudia, revista que inaugurou um novo estilo entre as revistas femininas da poca. Ela e Caio se correspondiam h algum tempo e, quando ele enviou o conto para ver o que ela achava, ela nada respondeu: preferiu manter segredo at que a revista sasse. O conto sobre uma mulher, Teresa, nica de uma longa fila de irms a no ter conseguido casar. Procurando consolo nos livros, Teresa se apaixona pela histria do Prncipe Sapo. Decide procur-lo nos homens que passam nas ruas, e acaba encontrando Francisco, um professor de piano. Ele est muito mais para sapo que para prncipe, mas ela tem esperanas: compra um piano e o convida para lhe dar aulas. O conto, nada feliz, j sintomtico dos primeiros textos de Caio, textos mais sombrios, tristes, depressivos. No comeo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezvel. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olh-lo com pena, depois com compreenso, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia suas mos tocaram-se rpidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mos. Uma semana mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem iluses. Em 1967, Caio entra para o curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Comemora o resultado na casa onde estava morando agora o amigo Ruy, que passara em Educao Fsica. Caio acabaria por trancar a matrcula e freqentar o curso de Arte
Dramtica (CAD). Nessa poca, sua melhor amiga Maria Ldia Magliani, artista plstica. Ela e Caio formavam uma dupla e tanto: ele alto, branquelo e magricela, ela baixinha, negra, volta e meia com tinta nos cabelos ou nas mos. Ambos vestidos de preto da cabea aos ps. No porque quisessem ser diferentes; havia uma dose de humor na postura existencialista dos dois, que estavam preocupados mesmo em ser fiis aos rumos que haviam escolhido. De vez em quando, andava com eles o futuro escritor Joo Gilberto Noll. Sentavam-se em um banco da praa em frente universidade e conversavam sobre filmes, livros, discos. Nessa poca, Noll ainda no sabia se escreveria prosa ou poesia, mas Caio, embora ainda se preocupasse em descobrir um estilo pessoal, que fosse s seu, parecia j ter definido desde muito cedo o que queria. Tanto que j tinha at escrito Limite branco, um romance de formao que s viria a ser publicado em 1971, e do qual Noll foi um dos primeiros leitores. Caio e Noll dividiam a paixo pelos livros: como no tinham dinheiro para compr-los, aproveitavam para roublos na Feira do Livro de Porto Alegre, uma feira a cu aberto realizada em uma praa no centro da cidade. A confuso de livros e pessoas nas barracas facilita que espertinhos ou estudantes sem dinheiro embolsem exemplares sem que ningum perceba. Caio era leitor voraz desde menino, e comeava a descobrir autores que viriam a marc-lo por toda a vida, como Clarice Lispector. Era capaz de discutir literatura como gente grande. Embora tivesse apenas 18 anos quando escreveu Limite branco, o livro j continha muito do estilo que viria a caracterizar o escritor ao longo de sua carreira. O escritor explora sua prpria angstia para dar densidade aos personagens, principalmente a Maurcio, o adolescente em crise que protagoniza o texto. A descoberta do sexo, a morte, em sua forma mais perversa o suicdio, a existncia de Deus, o desejo de viver um grande amor, a busca de uma identidade e o homoerotismo: vrios temas que reapareceriam depois na obra do escritor so tratados no livro, sob a tica
do adolescente. A histria de Maurcio tem vrios pontos em comum com a de Caio. Ele tem uma amiga pintora, Marlene, que parece ter sido inspirada em Magliani, mas no podia ser, porque os dois se conheceram depois que o livro j estava pronto. O jovem do livro se muda para a capital, assim como Caio fez, ao ir estudar no IPA. A me de Maurcio perde o beb, como Nair perdera um dia. A histria se passa em meio ao turbulento final dos anos 60; como diz Caio, porm, em prefcio para a uma reedio, vinte e cinco anos depois, "o momento histrico em que se passa mal e mal aparece no livro: ele intimista, voltado quase exclusivamente para dentro". Assim como os livros de Clarice, de Virgnia Woolf, de Hilda Hilst. Ele afirma ainda que foi quase impossvel reler o livro, mas que, quando o fez, ficou chocado com a inocncia do personagem. Comeou a caminhar em direo mancha esbranquiada do casaro. Enquanto caminhava, descobriu que aquela cor era quase a mesma das ptalas. E do cu. As coisas brancas so sempre meio enxovalhadas, pensou, sentindo-se confusamente feliz. Parou, repetiu a frase ao inverso: as coisas enxovalhadas so sempre meio brancas. A casa crescia medida que se aproximava. Ficava mais ntido o verde das janelas, definiam-se as roseiras em torno delas. De longe, as rosas pareciam palpitar com sua fartura, sua turgidez, sua beleza quase obscena. A poca era de ebulio cultural, comportamental e poltica. Em plena ditadura militar, alguns jovens se reuniam para discutir um futuro melhor, usar drogas, comentar autores proibidos pelo regime, ouvir msica; enfim, simplesmente, estar juntos. Por mais introspectivo que fosse, Caio no poderia fugir da poca. Participa das discusses, experimenta drogas, deixa o cabelo crescer. Quando visita os pais em Santiago, h sempre pequenas polmicas, discusses
polticas; nessa hora, talvez os pais sentissem saudade do tempo em que queria apenas brincar de fantoches com os amigos ou insistia em ser o Papai Noel no Natal, mesmo que todo mundo o reconhecesse, muito magro e desajeitado, por trs das roupas vermelhas. O filhinho de D. Nair estava crescendo e, embora os pais no o proibissem de fazer nada, j se podia perceber alguns comportamentos, ainda incipientes, talvez, mas que viriam a caracterizar o escritor ao longo de sua vida: o enfrentamento, a busca de uma identidade, a vivncia de experincias como busca de um significado maior na vida. E desses conflitos e angstias que Caio tira material para Limite branco, assim como para muitos de seus primeiros contos. Alm da Magliani, que era a amiga mais prxima, Caio se aproximou bastante da turma do teatro da universidade. Tanto que acabaria entrando, anos depois, para o curso de Direo Teatral do Centro de Arte Dramtica (CAD). Ele entrara nesse universo atravs de Irene Brietzke, que dava aula de ingls no Yzigi e tinha Caio como aluno. Irene o apresentara a toda a turma do teatro, um pessoal novo que seria importante para a renovao da arte no Rio Grande do Sul, com o grupo Provncia, que formariam em 1969. Um desses jovens era Luiz Arthur Nunes, futuro diretor teatral e um dos grandes amigos de Caio. Ele e o restante do grupo introduziram o escritor no universo do palco, nos autores, nas peas. E Caio foi o responsvel pelas emoes no aniversrio de Luiz Arthur, em agosto de 1967. Luiz estava ensaiando uma pea no teatro da universidade quando chegam Caio e Magliani com o presente, o livro Tutamia, de Guimares Rosa. Estavam os dois no foyer quando um integrante do elenco passou e ofendeu Magliani, fez comentrios racistas. Caio no pensou duas vezes e se jogou para cima dele. O tal rapaz, como alis todos j desconfiavam, era informante da ditadura. Em pouco tempo, estava todo mundo na delegacia: Caio, Magliani, Luiz Arthur, todo o elenco da pea e o diretor do curso de Arte Dramtica, Gerd Bornheim. Fizeram o
boletim de ocorrncia, mas, graas a um tio influente de Luiz Arthur, ex-vice-reitor da universidade, ningum ficou preso. Por medo de represlias, Caio foi passar uns tempos com Luiz Arthur na casa dos pais dele. Umas duas semanas depois, quando achou que j dava para voltar para casa, foi pego na rua e levou uma surra. Em 1967, a revista Realidade, da editora Abril, publicou um anncio convocando os interessados a fazer os testes para participar de uma revista nova, a Veja, que comearia a circular no ano seguinte. Embora no fosse formado em Jornalismo, Caio participou do exaustivo processo de seleo, que inclua testes de conhecimento geral, de conhecimento especfico, entrevista individual, entrevista conjunta com os outros candidatos. Vera Spolidoro, jornalista gacha, conheceu Caio na entrevista conjunta, depois de ambos passarem por todas as etapas. O jornalista que entrevistava o grupo vinha de So Paulo, e parecia achar que Porto Alegre era uma provncia; Vera notou um certo ar de desdm em seu rosto. Quando perguntaram a ela qual fora a pea mais recente a que tinha assistido, ela respondeu Depois da queda, de Arthur Miller. Era um texto sobre a recm-morta Marilyn Monroe, e o entrevistador parecia no acreditar em uma pea que ainda no havia sido encenada em So Paulo tivesse sido montada em Porto Alegre. Em dado momento, o jornalista perguntou a Caio sua opinio a respeito do grupo Abril. O escritor levantou-se, e, sem se preocupar se aquilo iria acabar com suas chances de trabalhar na Veja, fez um fervoroso discurso antiimperialista. Irado, falou que a Abril era ligada ao grupo TimeLife, e que ele era contra a colonizao cultural a que os Estados Unidos submetiam os outros pases. Chegou a chamar a editora de entreguista. Vera nunca se esqueceu da figura magra, de p, colrica, discursando. Quem passasse pela fase da entrevista conjunta iria a So Paulo fazer um curso, e a ento seriam definidos os nomes dos contratados. Em 1968, quando a revista comeou
a funcionar e os profissionais que iriam trabalhar na revista j estavam definidos, Caio estava entre eles.
DOIS
Grande demais. So Paulo era grande demais. E o asfalto, asfalto por todos os lados. Onde, as rvores? Onde, os bichos? Tudo era cinza. Nem mesmo o cu escapava do cinza; dava at pra ficar na dvida: So Paulo tinha cu? E a velocidade de tudo. Trabalho de segunda a sexta, das oito da manh s seis da tarde; vertigem. Os parentes, longe; os amigos, longe; uma sensao de desprotegimento, de desamparo. E ainda por cima aquela voz. A voz de criana, de adolescente, fina, feia, desafinada. Alguma coisa aconteceu no corao de Caio Fernando Abreu quando ele se mudou para So Paulo, e, fosse o que fosse, no parecia agradvel. O escritor, vindo dos rinces gachos para trabalhar na primeira equipe da revista Veja, no se adaptou de incio cidade grande. Um difcil comeo, como o fora tambm para Caetano Veloso, dolo de Caio, a quem ele dedicaria sua obra de maior sucesso o livro Morangos mofados, de 1982. Demoraria muito para o jovem escritor entender a poesia concreta das esquinas de So Paulo. Anos mais tarde, Caio diria que toda sua literatura seria fruto do choque, do contraste entre a vida interiorana em Santiago do Boqueiro e a vertigem causada pela velocidade da capital paulista. Era preciso trabalhar, trabalhar o dia todo. Sem costume de acordar cedo e batalhar de sol a sol, Caio gramou durante os meses em que trabalhou na Veja. Ele, que sempre fora muito magro, perdeu ainda mais peso. Ficava nervoso, irritado; chegou a ficar doente, com gripe, sem coragem de sair de casa. Era uma de suas fases depressivas: durante a vida toda, o humor de Caio oscilaria entre picos de euforia e
fundos-do-poo de melancolias insuportveis. Nessas ocasies, ele podia se recusar a ver qualquer pessoa ou mesmo a sair do quarto por dias seguidos. Ele costumava dizer sobre o choque que foi trabalhar como jornalista em So Paulo: Me estupraram at o ltimo hmen. E, para piorar tudo, havia a voz. Esganiada, odiosa, infantil. Com vinte anos de idade, a voz de Caio era um tormento para ele; no se desenvolvera; em conseqncia, ele tinha vergonha de falar com as pessoas. Consultara um mdico, que dissera que suas cordas vocais estavam viciadas no falar infantil. O tratamento, carssimo, Caio no tinha condies de bancar. A voz s fazia piorar a timidez do escritor, e aumentar seu isolamento e sua averso s sociabilidades. Muita gente tinha receio dele, nessa poca: parecia arrogante, irascvel, distante. A timidez, mais a vergonha da voz, aliadas a um certo senso de superioridade comum entre jovens intelectuais fazia de Caio uma figura no muito simptica, pelo menos primeira vista. A voz de Caio, junto com outras preocupaes tpicas da adolescncia, como a magreza excessiva, pode ter inspirado alguns contos do escritor em que os personagens se sentem feios, inadequados, at monstruosos. H o personagem Maurcio, de Limite branco, que anseia poder olhar-se no espelho um dia sem ter vontade de desviar os olhos. E h o garoto de Pequeno monstro, conto de Os drages no conhecem o paraso: Pernas e braos demais, plos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. S tardezinha saa de casa, na hora que as empregadas domsticas as dosas, o Pai dizia estavam voltando da praia. Ento caminhava quilmetros na beira do mar, me rolava na areia, vezenquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ningum te quer.
Se internamente Caio tinha problemas, no exterior as coisas no estavam melhores. Cinco anos antes, em 1964, os militares haviam instaurado a ditadura no pas. Com eles, veio a represso, que aumentou em 1968, com o decreto do Ato Institucional n5 (AI-5), e a censura aos organismos de mdia. Caio viria a escrever vrios contos sobre o clima asfixiante instaurado pela ditadura. Muitos deles de forma simblica, cifrada, metafrica, como em O ovo, conto de Inventrio do irremedivel. O ovo, l, representa tudo que aprisiona, tudo sobre o qual no se tem controle, a rigidez e o sufocamento agravados quando no se pode sequer mencionar o assunto. S ontem cheguei concluso de que se trata de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele. Mas um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, ns vamos ser todos esmagados por ele. No sei por que os homens no se armam de paus e pedras para furar a parede. Seria muito fcil, a casca de um ovo to frgil. Depois da descoberta do que o aprisiona, no h como escapar: Eu no sei. Tenho tanto medo. Estou esperando, cansei de escrever, a vela est quase apagando. Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais. um barulho leve, leve. Quase como um suspiro de gente cansada. Est muito perto. To perto que ningum vai-me ouvir se eu gritar. A paixo pela figura do ovo, como metfora e como objeto em si, Caio herdou de Clarice Lispector. Um de seus livros chegaria, mesmo, a ter o objeto no ttulo: O ovo apunhalado.
Novato em So Paulo, Caio chegou a freqentar passeatas e reunies de oposio ditadura; mas sempre sem se comprometer demais, sem levar o credo poltico s ltimas conseqncias. Politicamente, sua influncia era muito mais dos tropicalistas, como Gil e Caetano que ele sempre fez questo de afirmar que adorava que de qualquer outro movimento cultural esquerdista do pas. Ele preferia a maneira irnica, ambgua e debochada de protestar, e fez parte da turma que achava que "festa" e "subverso" podiam estar ligadas, e que a revoluo era individual, de comportamento. At porque, na poca da poesia populista, engajada, Caio ainda era um adolescente, morando em Porto Alegre sem os pais, cursando o ginsio. Sua tomada de conscincia se d em um perodo em que j existia o Tropicalismo, que surge no mesmo ano em que ingressa na universidade. Essa forma mais leve combinava com seu temperamento: Caio nunca foi muito de assumir compromissos, de se engajar, levantar bandeiras de qualquer tipo ou causa. Alm disso, o notrio senso de humor herdado do pai, Zal se encaixava perfeitamente com a proposta dos tropicalistas. Ele ia mais aos encontros contra a ditadura pela festa que se fazia, pela celebrao, pela oportunidade de ver pessoas. Para ver Norma Bengell vestida de Pao Rabanne diria anos mais tarde, e aquilo j no era pouco: Bengell foi uma atriz de interminveis pernas, belssimas; foi smbolo das mudanas culturais por que o Brasil passava na dcada de 60. Em tempos de AI-5, contudo, mesmo participaes ocasionais eram suficientes para que o servio de segurana do regime marcasse e perseguisse uma pessoa. Com Caio no foi diferente: ele afirmou ter recebido um telefonema da redao da Veja, dizendo que oficiais da DOPS estavam procurando por ele. Decidiu, ento, sumir por uns tempos, e foi se esconder na Casa do Sol, stio da amiga Hilda Hilst, em Campinas.
Em carta aos pais, enviada da outra casa de Hilda Hilst, maro de 1969, ele conta histria diferente. Diz que Veja est dando prejuzos enormes. A revista vende pouco, os anunciantes no querem saber de comprar espao. Para a editora inteira no fechar, teria sido necessrio demitir bastante gente, inclusive ele mesmo, que teria perambulado quase um ms pela cidade atrs de oportunidades sem conseguir nada. Teria ido para a casa de Hilda por no ter conseguido emprego. Caio conhecera Hilda por intermdio de Ana Lcia Vasconcelos, atriz, dramaturga e jornalista, sua colega na primeira equipe da Veja. Ana Lcia e Nello Pedra Gndara eram os grandes amigos de Caio na redao; iam a teatro, cinema, shows. Uma vez foram juntos a uma palestra de Lo Gilson Ribeiro sobre crtica literria. Ana perguntou a Lo o que achava de Hilda. Ela nascera em Campinas, onde a escritora morava, e as duas tinham se tornado muito amigas (dcadas depois, em 2005, Ana escreveria um livro sobre ela). Quando souberam disso, Caio, Nello e Lo ficaram entusiasmados: pediram a Ana que os apresentasse, e ela acabou levando todo mundo para conhecer a Casa do Sol. Caio voltaria muitas e muitas vezes. Nas primeiras, ficaria hospedado na casa de Ana, mas com o tempo ganhou intimidade e ia direto para a Casa do Sol. Aos 33 anos de idade, Hilda, uma das mulheres mais bonitas de seu tempo, tinha abandonado uma movimentada vida social para ir morar na fazenda que pertencera sua me, com o objetivo nico de construir uma obra literria. Ao ler Carta a El Greco, de Nikos Kazantzakis, que defende a idia de que para entender a sociedade preciso afastar-se dela, Hilda, que namorara Vinicius de Moraes e fora cortejada por Carlos Drummond de Andrade, decidiu abandonar a agitada capital paulista e se isolar no interior para escrever. Na Fazenda So Jos, a onze quilmetros de Campinas, Hilda construiria a Casa do Sol, onde viveria at a morte, em 2004, na companhia de seus noventa cachorros, de livros, muitos livros, e de fotografias de escritores espalhadas pelas paredes,
alm das fotos do pai, por quem sempre foi obcecada. Na Casa do Sol, Hilda passou a viver, em 1966, com o escultor Dante Casarini. Ali o casal recebia os amigos, que ficavam, s vezes, por temporadas inteiras, como Caio. Em 1968, quando ele vai para a Casa do Sol, Hilda e Dante j esto oficialmente casados, por imposio da me dela, Bedecilda. Algumas das rvores que circundam a Casa do Sol tm mais de cem anos: figueiras, palmeiras, dracenas. No alto, suas copas entrelaadas fazem uma sombra boa, que ajuda a amenizar o calor que faz, quase sempre, naquela regio do interior paulista. O silncio pesado quebrado somente pelo latido das dezenas de ces que moram no stio. Vira-latas, em sua maioria; seus semblantes esto agitados; o calor os deixa assim, inquietos. O Caio que entra na propriedade imponente e tranqila como a casa grande e antiga em que morou um dia, em Santiago, a centenas de quilmetros dali um rapaz tmido, entusiasmado por ser hspede daquela que ele considera uma das grandes escritoras do pas e, exatamente por isso, muito amedrontado tambm. Inseguro, calado. Queria aprender com Hilda tudo que pudesse, queria sugar dela, do conhecimento e do talento dela, tudo que pudesse, para ser, ele tambm, um bom escritor. Tinha j alguns contos escritos: faltava agora organiz-los, revis-los, fazer daquela massa informe uma obra coerente. E foi isso que fez, durante a pequena temporada que passou na Casa do Sol. Dali sairia com um livro praticamente pronto: o Inventrio do irremedivel, republicado depois como Inventrio do irremedivel, irremediavelmente influenciado por Clarice Lispector, na poca a escritora favorita de Caio, quase uma obsesso. A coisa chegou a um ponto, na verdade, que ele teve que se proibir de ler Clarice, pois, lendo-a, a sensao era de que tudo j estava escrito, e nada mais havia por fazer na literatura. Deprimia-se, desanimava. E, como dizia, s lia os livros dela escondido de si mesmo, de vez em quando.
Enquanto inventariava seus contos irremediveis, Caio funcionava tambm como uma espcie de secretrio de Hilda: ela escrevia, ele datilografava. No resto do tempo, estudavam juntos o movimento dos astros, quiromancia, coisas do tipo. Caio, como muita gente que viveu o sonho hippie, era um rapaz espiritualizado: acreditava em astrologia, / Ching, candombl, o que fosse. No se comprometia, claro, com nenhum desses credos; no tinha responsabilidade, disciplina, pacincia ou vontade para tanto. Circulava pelas vrias crenas, flertava com as vrias filosofias, estudava com afinco algumas delas e inclusive as utilizava na arquitetura de seus textos. Nessa relao com o divino, a influncia de Hilda foi, tambm, fundamental. Ela, que dizia ter visto anjos, conversado com os mortos e recebido em seu stio a visita de discos voadores, ajudou Caio a olhar o mundo buscando sempre algo mais, alm das aparncias. O inefvel, ela diria; a literatura de Hilda foi sempre uma busca do inefvel. De Deus. No era s o divino que Caio discutia com Hilda. Falavam muito sobre literatura, sobre o processo de criar. O escritor discorria sobre o assunto sempre que encontrava interlocutores. Gostava de trabalhar a lngua, como se nota em seus textos, sempre burilados, lapidados, reescritos. Tanto que, nos anos 80 e 90, revisou e reescreveu a maior parte de sua obra. Caio era capaz de discutir problemas de texto por horas a fio, de mincias como pontuao ao uso de certas palavras, ritmo, tudo que dizia respeito ao texto literrio. Procurava, sempre, inovar: fosse na estrutura, fosse na temtica, fosse na forma. Teorizava bastante a respeito dos assuntos, e isso explica, em parte, sua precocidade na literatura, ter escrito e publicado ainda jovem, com menos de 20 anos de idade. Uma de suas teorias, por exemplo, era a dos metmeros. Numa viagem ao stio de Hilda, nos anos 70, Caio a explicaria ao escritor Jlio Csar Monteiro Martins, que, maravilhado, jamais se esqueceu da teoria; at hoje d entrevistas explicando do que se trata. O termo vem da biologia:
metmero um anel da solitria, ou tnia, uma espcie de verme. Esse anel contm informaes sobre o verme inteiro; se uma pessoa come carne contaminada com um cisticerc, um desses anis, ele vir a se multiplicar e formar um animal completo. Na literatura, metmero era um esboo, de um conto ou de um romance, que continha informaes a respeito dos personagens, anotaes soltas sobre ambiente, trama, estilo. O texto permaneceria em estado de latncia literria, e o escritor poderia retom-lo um dia e, se quisesse, ampli-lo, formar um conto completo ou um romance. Ou ento, simplesmente, publicar uma coletnea desses metmeros, que o que Caio viria a fazer em Ovelhas negras. Ele seleciona dois esboos que lhe parecem melhores e introduz sua teoria aos leitores. O primeiro deles se chama A perda e foi escrito em 1985: Quando passo s vezes por aquela esquina, espio sempre a outra rua por trs da igreja. E mesmo sem querer, sem perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que fui visit-lo pela ltima vez, depois voltei caminhando pela rua cheia de rvores to altas que suas copas se encontram e se misturam no alto, como um tnel redondo, irregular, a pensar coisas que nem lembro mais. Quando passo por l assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se no deveria retom-la essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora uma tarde, noite ou manh quaisquer para refazer o percurso inverso at a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espio, contemplar a sacada daquele dcimo andar onde costumvamos nos debruar abraados para olhar aquela rua l embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copatnel das rvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do vero passado. As sombras, enfim.
Depois de passar algum tempo no stio de Hilda, de l ter visto, supostamente, um OVNI, discutido muita literatura e organizado o material de seu primeiro livro de contos, Caio achou que era hora de voltar a Porto Alegre. No trabalhava mais na Abril; no conseguira emprego em outros lugares; e havia, afinal, a faculdade de Letras esperando por ele. Era uma opo, que ele s abandonara pela perspectiva de integrar a primeira equipe de jornalistas de uma nova revista, que por enquanto ainda no estava bem das pernas. Conversou com Hilda; ela concordou que o melhor seria voltar para a casa dos pais; quando estivesse de diploma na mo, ele poderia voltar e tentar viver em So Paulo de novo. Deciso tomada, Caio acompanhou Hilda e Dante praia, em Massaguau; era a Casa da Lua, segundo refgio da escritora. De l, escreveu aos pais comunicando a sada da Abril, a volta para casa e a inteno de retornar universidade. A famlia de Caio estava morando em Porto Alegre desde 1969, quando Nair insistiu em ir, para que os outros filhos tambm pudessem estudar com facilidade. Ela mesma cursaria, ento, a faculdade de Filosofia. Zal, j militar reformado, teria preferido ficar em Santiago, onde era algum de posio, mas os argumentos da esposa foram mais fortes. Para Caio, voltar a Porto Alegre foi uma beleza: o cu azul, os morros, o verde das rvores. Ele amou Porto Alegre em tudo que ela era diferente de So Paulo: sem asfalto, sem loucuras; sem porralouquismos tambm. As pessoas doces, calmas; o sotaque familiar: o "tu". E o melhor: no ter que levantar cedo para trabalhar, nem sair de casa para comer. A me faz ps-graduao em Filosofia; o pai l romances de Norman Mailer. O quarto de Caio cor-de-rosa, os mveis so convencionais, sbrios, os irmos pequenos vem televiso na sala. No h, sequer, discos voadores; o ambiente convida a escrever ele conta, por carta, a Hilda, sua principal interlocutora, mentora literria e espiritual. Caio mantm sua deciso de escrever enquanto est na casa dos pais; a idia de voltar para a faculdade, porm,
morre nas dificuldades burocrticas que h para reabrir a matrcula. E tambm, principalmente, na inabilidade do escritor em se adaptar a um currculo, a horrios fixos: ele no consegue parar quieto, principalmente em Porto Alegre. A capital gacha podia ser bonita o quanto quisesse, cheia de cores, verdes rvores e cus azuis inigualveis. Mas isso no era, de modo algum, suficiente; Caio queria estar no olho do furaco, onde as coisas aconteciam. E, no Brasil de 1969, o Rio de Janeiro era um lugar onde as coisas aconteciam. L estavam os escritores que Caio queria conhecer: Clarice Lispector, Nlida Pion, Maria Alice Barroso, Walmir Ayala. Assim, apenas quatro meses depois de ter voltado para a casa dos pais, Caio faz uma visita cidade sempre maravilhosa. Havia sido convidado algumas vezes por Maria Helena Cardoso, irm do j ento falecido escritor Lcio Cardoso, com cuja obra a de Caio tinha alguns pontos de ligao Lcio, da mesma linhagem literria de Virginia Woolf e Clarice, o Dostoivski mineiro, como alguns crticos o chamam, fora um escritor que se rebelara contra a tradio do romance regionalista. No auge desse estilo de texto, ele escrevera de forma intimista, introspectiva, falando de personagens mineiros, sim, mas no de sua glria, e sim da sua degradao, da degradao de suas tradies. Caio aceitou o convite de Maria Helena, mesmo achando-a um pouco "fora da realidade" e "liriguelha demais"; a oportunidade era muito boa para ser desperdiada. Alm do que, a lngua ferina de Caio no poupava ningum, nem os amigos; e o fato de ele achar uma tolice as cartas em que Maria Helena falava dos "passarinhos que cantam nos galhos das rvores" e das "sombras de outono" no significa que ele no nutrisse, verdadeiramente, uma afeio por ela, ou a admirasse como escritora. O apartamento de Maria Helena fica em Ipanema. Quando v o quarto onde ficar hospedado, Caio se comove: o quarto que fora de Lcio Cardoso. Como ele foi parar ali? se pergunta. H pouco tempo, ele era s um rapaz vindo do Boqueiro, com problemas de relacionamento com os colegas
e que crescera rpido demais. Agora, ele estava no quarto de um dos maiores escritores brasileiros, autor de Crnica da casa assassinada, em uma cidade verdadeiramente esplendorosa, belssima, povoada por pessoas bondosas e simpticas, sendo tratado a po-de-l por uma velhinha pequenina e gil que, modesta, no aceita ser chamada de uma das melhores escritoras do pas ao lado de Ia Lispector. E ela no a nica a trat-lo bem: h Francisco Bittencourt, o Boroca, primo do pai de Caio; ele inteligente, srio, uma flor de pessoa; e alm disso um dos crticos de literatura mais respeitados do Rio e conhece todo mundo. H tambm Carmen da Silva, a editora que publicara o primeiro conto de Caio, O prncipe sapo, na revista Claudia, quando ele tinha 16 anos. Francisco e Carmen mostram os contos de Caio para outras pessoas, prometem arranjar editoras que publiquem seus livros, esto entusiasmados com 0 trabalho dele. Toda essa celebrao em torno de Caio o deixa feliz, orgulhoso. "As vezes que tentei morrer foi por no suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilo que gosto mesmo que muitos no compreendam ou no aceitem, " escreve aos pais, no dia 21 de agosto, enquanto Maria Helena assiste a uma novela na sala; em alguns minutos, Caio vai sair, a noite o espera: bares, cinemas, teatros, muita gente ao seu redor. "E as pessoas que passam por mim no sabero jamais que nasci em Santiago do Boqueiro e um dia fui estudar em Porto Alegre, que eu era tmido e agressivo, porque me achava horroroso com aquele bigodinho precoce (hoje, querem pintar retratos, me acham parecido com Cristo, dizem que tenho olhos lindos!). Acho graa, acho muita graa. To estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ningum suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros. " Cerca de um ms depois de sua chegada ao Rio, Caio viaja novamente para Campinas, junto com Hilda e Dante,
que tinham ido passar uma temporada na capital fluminense. Ao longo de sua vida, Caio mencionaria sua amizade com Hilda, dizendo que chegara a morar um ano em sua casa. Na verdade, porm, embora visitasse bastante a Casa do Sol, Caio no chegou a ficar tanto tempo l. Suas temporadas em Campinas eram intermitentes; duravam um ou dois meses, e em seguida Caio seguia de volta para Porto Alegre, ou para o Rio, ou para onde fosse. O momento era de inquietude, de viagens, de descobertas. Alm disso, a presena de Caio na casa era muito intensa; sua amizade, exigente; a admirao por Hilda beirava a reverncia. Chegava sempre o momento em que a escritora tinha que chegar para ele e dizer: Caio, sua hora chegou. E ento ele ia embora. Mas ele ainda estava na Casa do Sol quando, no final de outubro de 1969, aconteceu uma coisa misteriosa e impressionante; uma notcia maravilhosa, uma Boa Notcia, com maisculas. A partir daquele momento, ele deixaria de ser o jovem tmido, envergonhado de falar com os outros, e passaria a se assumir como adulto. A voz de Caio, tinha, finalmente, melhorado. A histria comeou quando ele ganhou um gravador de Hilda e Dante, e com ele ps-se a fazer exerccios e a gravar a voz, pensando em melhorar pouco a pouco. S que a voz, muito cheia de personalidade, tinha outros desgnios; assim como teimara at ali em ser uma voz normal, resolvera mudar de repente, do nada; e mudara no para ser uma voz comum, como as outras. A voz nova de Caio era grave, bonita, charmosa. A partir dali, sempre que ele abrisse a boca, sairia aquele vozeiro, marcante e inexplicvel, vindo no se sabe de que parte do corpo magricela do escritor. O ator Gilberto Gawronski, que conheceria Caio na dcada de 1980, ao encenar uma de suas peas, brincaria com a situao: Meu Deus, precisa ficar de p para ouvir voc ou posso ficar sentado mesmo? Ao longo dos anos, Caio e Hilda contariam a histria da figueira para explicar a mudana da voz. Havia uma figueira no terreno da chcara. Hilda teria dito ao escritor: "Cainho,
essa figueira mgica. Quando a gente tem um problema muito grave, fala com ela, e ela resolve". Ento ele teria abraado a figueira e pedido para a voz mudar. De volta ao quarto, teria pegado um livro de Fernando Pessoa e comeado a ler em voz alta; no terceiro verso, a voz teria mudado. H outras verses: a de que ele teria feito trs pedidos figueira: para que a voz melhorasse, para voltar logo ao Rio, onde estava decidido a morar, e para ganhar um concurso literrio de que estava participando. Os trs pedidos acabariam realizados: Caio voltou para o Rio, j de voz nova e sensual, e l soube que ganhara o Prmio Fernando Chinaglia por Inventrio do irremedivel, obra a que dera forma final ali mesmo, na Casa do Sol. Em um texto, Hilda afirma que o pedido no era para a mudana de voz, mas para Caio deixar de ser tmido. Tanto ela quanto Caio diriam que o terceiro pedido era, em vez de voltar ao Rio, conseguir ir logo para a Europa. H at quem diga, como o irmo do escritor, Felipe Abreu, que a voz no mudou de repente coisa nenhuma; mudou aos poucos, mas Caio preferia acreditar na verso romntica e mgica da figueira. Mas a verso mais prxima da realidade tambm de Caio, em carta aos pais logo que a mudana se opera. O escritor Jos Mora Fuentes, amigo de Hilda que at hoje vive na Casa do Sol, estava l. Era uma noite de lua cheia, belssima. Caio teria se sentado na rea da casa e olhado a Lua; ento ele teria sentido que podia fazer trs pedidos que eles se realizariam. Trs dias depois, a voz mudou. Os outros pedidos tanto o prmio literrio quanto a viagem ao Rio tambm logo se realizaram. De todas as verses, o que importa que, at os vinte anos, Caio teve uma voz infantil, esganiada; aos vinte e um, ela se tornou grave e lnguida e bela. Caio voltou ao Rio, decidido a se estabelecer por l; conheceu alguns hippies em uma praa de Ipanema, fez amizade, e considerava a hiptese de ficar por ali, trabalhando com artesanato; os empregos formais no apareciam. Em dezembro, porm, ele estava de volta a Porto
Alegre. "Decidi aceitar meu ser nmade, at segunda ordem", escreveria a Hilda. A carta no era das mais fceis de escrever: era a primeira depois de uma briga que tivera na fazenda com Dante. A coisa foi feia: as palavras "veado" e "doente" foram das mais leves que o escultor usou para caracterizar Caio no meio do entrevero, e sabe-se l o que este aprontara para causar tamanha reao, tamanha agressividade. Caio, no entanto, no se abalou demais: com a arrogncia prpria da idade, somada que lhe era prpria e mais uma espcie de certeza de que no havia nada de errado em sua condio, ele se sentia acima dos preconceitos burgueses; pairava, superior, sobre o moralismo e a decadncia da sociedade. Logo depois, a amizade com Dante foi retomada; ele chegou mesmo a visitar Caio e sua famlia em Porto Alegre, e o assunto da briga foi deixado de lado. Caio passaria todo o ano de 1970 na capital gacha. Ali, prestou exames para o curso de Direo Teatral, no Centro de Artes Dramticas (CAD). Desde criana, Caio gostava de teatro, de inventar e encenar historinhas com seus bonequinhos de papel mach; agora, ele podia desenvolver mais seriamente essa paixo. No chegou a terminar o curso, claro, assim como no conclura o de Letras. Mas se divertiu aprendendo algumas coisas. Descobriu, por exemplo, que era exigente demais com os textos a serem encenados. S queria saber de tragdias gregas e de Nelson Rodrigues; o resto achava descartvel. Isso mudaria alguns anos depois, quando, depois de rodar o pas e parar de novo em Porto Alegre, em 1973, Caio participou como ator de algumas peas. Entre algumas das que participou no perodo, estavam Serafim fim fim, The black grove e The last moment, que nada tinham de trgicas ou de rodrigueanas. Em Serafim, o papel era de Batman; em The black grove, vestira-se de mulher. E por a afora. Alguns amigos leais dizem que Caio era bom ator, mas ele mesmo costumava brincar, anos depois, j na dcada de 80, quando sua participao no teatro se restringia a escrever as peas, dizendo que era pssimo. Mas estamos em 1970. Caio ainda acredita que pode
completar o curso de Direo Teatral e mora com os pais em Porto Alegre. Nesse momento, desbundou por completo: experimentou mescalina, comeou a participar de festas malucas, orgisticas, regadas a maconha e drogas mais pesadas. Mas essas experincias, em vez de deixarem o escritor feliz, deprimiam-no ainda mais. A histria da mescalina foi descoberta pelos pais, o que causou o maior rebulio; as bacanais faziam Caio se sentir um lixo, no fim da noite. A nica rea em que as coisas iam bem era a profissional: Inventrio do irremedivel foi lanado com estardalhao; foram muitos os convites para entrevistas. Caio manifesta sua carncia, e reafirma sua determinao de ser escritor, em carta a Hilda Hilst: "Queria tanto que algum me amasse por alguma coisa que eu escrevi." A publicao do primeiro livro, badalada ou no, era um passo no sentido de Caio se firmar como escritor, e um escritor amado pela literatura que fazia. Mas embora Inventrio do irremedivel tenha sido o primeiro livro do escritor a ser publicado, no fora o primeiro a ser escrito: limite branco veio antes. E houve tambm um livro de contos chamado Trs tempos mortos, que ficaria para sempre indito, embora tivesse ganhado, em 1968, Meno Honrosa no Prmio Jos Lins do Rego. Como o escritor ainda tateasse seus prprios caminhos, no Inventrio que a influncia de Clarice Lispector se mostra maior e mais clara. Assim como ela, Caio trabalha muitas vezes com o conceito de epifania: uma revelao mgica no meio do cotidiano, algo que faz com que a pessoa mude, repense sua vida. Em alguns contos do Inventrio, essas revelaes acabam por trazer a morte dos protagonistas, como no conto que abre o livro, Os cavalos brancos de Napoleo. Nesse conto, a morte quase uma libertao, e a descoberta que os cavalos representam pode ser lida como qualquer descoberta, inclusive a do homossexualismo. O livro dividido em quatro partes, ou quatro
inventrios: da morte, da solido, do amor e do espanto, temas recorrentes na obra do escritor. H tambm um quinto inventrio, composto de um nico conto: o Inventrio do irremedivel. O final do conto, e do livro, traz uma esperana: a escolha pela vida. Por continuar. E a ltima frase define, bem, o texto de Caio, e a sua personalidade. Est sentado na cama, corpo nu, ps descalos, costas curvas. A lmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. S espera. A ateno fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E no corta. Joga a lmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braos se cruzam, enlaam os joelhos, a cabea afunda entre as pernas. No chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaa sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras no formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaa e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro. No fim do ano, a mar comea, mais uma vez, a soprar a favor de Caio. Ele passara um ano ruim, cheio de carncias e inseguranas. Para espantar a tristeza, resolveu ir para a praia com alguns amigos. Deu certo: depois de refletir muito sobre a vida, sobre sua relao com os amigos, voltou recuperado, de bem consigo mesmo; e, como que para coroar esse novo estado de esprito, ele chegou em casa e encontrou uma carta de Hilda, que h muito no lhe escrevia. Junto com a carta, um exemplar de Fluxo-floema, com a novela Lzaro dedicada a ele. Caio no cabia em si de tanta satisfao e orgulho. Escreveu uma exultante e empolgada carta a Hilda. Na mesma noite, porm, aconteceu algo que o faria retomar a carta e escrever mais um pouco. Caio conheceu Clarice Lispector. Personalidade magntica, misteriosa, Clarice fascinara leitores e crticos desde o primeiro livro, Perto do corao selvagem. Sua literatura diferente, estranha, marcada por sensaes; a ao ocorre sempre na cabea dos personagens. Moderna, revolucionou a linguagem. Quando o jornalista
Jos Castello perguntou a Otto Lara Resende sobre ela, Otto pediu a ele que tomasse cuidado com Clarice. "No se trata de literatura, mas de bruxaria", falou. Caio termina de escrever para Hilda. Pega o jornal para dar uma olhada, e l que Clarice Lispector herselfestaria autografando seus livros em uma estao de TV, noite. Engole o jantar que lhe oferecem e sai chispando feito um foguete para a televiso. "Cheguei l timidssimo, lgico. Vi uma mulher linda e estranhssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrvel. Era ela. " Caio chegou perto, entregou um exemplar de seu livro recm-publicado para ela. Quando ia saindo, um escritor que estava por ali decidiu apresent-lo direito. Caio fica nervoso, sai para o corredor; antes que v muito longe, porm, Clarice chega at a porta e chama: Fica comigo. Ele fica, conversam um pouco. De repente ela pra, diz que acha ele muito bonito, parecido com Cristo. "Tive 33 orgasmos consecutivos." Conversam mais. Falam de Nlida Pion, de Hilda. Caio aproveita o interesse dela e lhe entrega um exemplar sobres-salente do Fluxo-floema que, por acaso, ele tinha na bolsa. Ela lhe d seu telefone, pede para ligar quando for ao Rio. Caio vai embora meio aparvalhado e, nesse estado de xtase e perturbao, escreve a Hilda contando o episdio. "Ela exatamente como os seus livros: transmite uma sensao estranha, de uma sabedoria e de uma amargura impressionantes. lenta e quase no fala. Tem olhos hipnticos, quase diablicos. E a gente sente que ela no espera mais nada de nada nem de ningum, que est sozinha e numa altura tal que ningum jamais conseguiria alcanla.[...] Sinto que as coisas vo mudar radicalmente para mim teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia so, fora de dvida, um pressgio."
Era o dia 29 de dezembro de 1970. O ano novo chegava. Em 1971, Caio volta ao Rio. Totalmente imerso na cultura hippie, cabelos longos e tnicas indianas compridas, ele decide tentar um modo de vida diferente, em comunidade, bem de acordo com o sonho paz-e-amor da juventude da poca. Com trs garotas e um rapaz, aluga uma tranqila casa em Botafogo. Ele acredita que tudo pode dar certo, que morar em comuna a melhor maneira de se viver. Quanto ao seu trabalho, tudo vai bem: Caio est feliz beca com os novos textos que anda produzindo. "Acho que finalmente achei a minha forma", escreve a Hilda Hilst, em maro. "No sei se isso auto-elogio, mas acho que sou o nico cara no Brasil que est fazendo literatura pop MESMO'." Nessa fase de sua escrita, Caio namora o realismo fantstico dos autores latino-americanos como Cortzar, Garcia Mrquez, Carlos Fuentes. Nascido na fronteira com a Argentina, e falando bem o espanhol, Caio aprecia autores como Ernesto Sbato, Ricardo Piglia. E, utilizando ao mximo as vises que tem em suas viagens de LSD, mescalina ou ch de cogumelos , escreve textos fundindo o fantstico, fico cientfica e elementos da cultura pop. Surgem assim alguns dos contos de O ovo apunhalado, obra que s viria a ser publicada em 1975. Vrias histrias desse livro podem ser entendidas como crtica sufocante situao por que o pas passava na esfera poltica; a ditadura est em sua fase mais dura, e muito do material publicado, inclusive em livros, s sai sob censura. A estada no Rio o comeo do fim do sonho da contracultura para Caio. A vida na comunidade no d certo: ele e seus amigos se desentendem, ele sai da casa. Comea a perceber que a individualidade, s vezes, mais importante que a coletividade; que o ser humano egosta ele incluso, claro e que certas coisas funcionam melhor na teoria, na utopia, que na prtica. Para piorar um pouco mais as coisas, ele preso. Flagrante falso de maconha. Apanha da polcia e
s sai da priso porque Adolpho Bloch, dono da editora em que ele trabalhava, na revista Manchete, intercede por ele. Solto, Caio demitido; Bloch queria distncia de confuso, e foi por isso, mais que por benevolncia, que o tirou da priso e pagou a passagem de Caio para Porto Alegre. S de ida. Enfim, nem tudo eram flores. Mas Caio tem sorte. Entre a sada dele da comunidade e a volta envergonhada para Porto Alegre, ele encontra abrigo, carinho e amizade na casa de dois quase desconhecidos, os irmos Vera e Henrique Antoun. Vera tinha quatorze anos quando conheceu Caio, em 1971. Era o lanamento de Limite branco, primeiro romance do escritor, pronto desde 1968. Ficaram amigos, e at mais que isso: surgiu um clima, uma espcie de paixo entre os dois. Caio gostou muito de Vera; escrevia-lhe cartas amorosas; levou-a, junto com a me e o irmo Henrique, para Porto Alegre; foi visit-la no Rio algumas vezes; escreveu uma pea infantil, A comunidade do arco-ris, em que havia uma boneca inspirada na garota. Chega mesmo a considerar a hiptese de se assentar, casar, ter filhos, um lar, uma famlia. No entanto, a coisa no vai pra frente: quando est com Verinha, Caio s vezes se torna esquivo; depois de horas com ela, se divertindo e conversando e montando um clima apaixonado, ele pula fora, sai pela tangente, se afasta sem maiores explicaes. a sexualidade em conflito: ele, que j havia meio que definido que gostava de rapazes, ficava assustado com a possibilidade de se envolver com uma garota e, ainda por cima, de forma to profunda, com direito a sonhos pequeno-burgueses de casamento. O que viria em seguida?, ele pode ter pensado. Dali a pouco, ele teria um carro do ano, um apartamento com vista para o mar e estaria preocupado em pagar as prestaes e a mensalidade da escola das crianas. E esse quadro no combinava com a idia da vida que um escritor devia levar, pelo menos na imaginao romntica de Caio, forjada em plena dcada de 60. E a vida de escritor, seu trabalho, sua carreira, era tudo que importava. Vinha sempre em primeiro lugar, a nica
coisa qual Caio foi sempre fiel durante a vida. Assim, a relao com Vera no engrenou. No incio de 1973, no entanto, Caio ainda estava na fase de amor e empolgao pela garota, e lhe escreve: "Verinha-maravilha, por onde anda voc, to distanciada, to silenciosa? Em que nova galxia posso te encontrar outra vez, morena como uma princesa raptada por bedunos no deserto? Vezenquando baixa uma saudade, quase sempre clara como tem sido o ar verde-azulado desse vero, e fico sentindo falta do teu jeito lento de chegar pisando em nuvens, sempre azul." De Porto Alegre, Caio escrevia a Vera contando de suas experincias com cidos e demais drogas lisrgicas. Ele havia participado de algumas cerimnias de ch alucingeno com ela, em Santa Teresa, quando ainda morava com a comunidade hippie que montara naquele bairro. O ano de 1972 foi todo dedicado a essas experincias. Caio estava em uma de suas fases ruins, deprimido. Pensava constantemente em suicdio, no queria sair de casa nem ver ningum. No entanto, em uma viagem a Itaqui, onde moravam seus avs, ele voltou a ficar bem: ele sempre recuperava sua fora atravs do contato com a terra de sua infncia, atravs da viso de paisagens antigas. Pessoas sentadas na calada, olhando as estrelas, tudo muito parado, sem televiso, sem carros, sem movimento. Caio reencontrou-se. Em Porto Alegre, comeou a procurar alguns amigos, gente que tinha evitado durante o perodo em que sentia s escurido dentro de peito. Assustou-se, no entanto, com o que chamaria de "vampirizao" das pessoas: todo mundo s querendo saber de falar e falar, de fazer comentrios espertos, de mostrar um equilbrio que no possuam. A Caio passou a evit-las de novo, mas, dessa vez, no por incapacidade de contato, e sim por escolha. Preferia ver um filme antigo, ouvir msica e passear na beira do rio. Est reconciliado consigo mesmo, e no se arrepende de nada,
como escreve a Vera: "Nada errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. " Ou ainda: "No sei muito, tambm no tenho muito, tambm no quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas." Assim feliz, gostando de viver, Caio comea a trabalhar no jornal Zero Hora como copidesque, com o intuito de juntar dinheiro para viajar. Graa Medeiros, futura astrloga, que o conhecia havia cerca de quatro anos e seria uma das melhores amigas de Caio at o fim, voltava de uma temporada na Europa e insistia que ele devia ir tambm: a atmosfera poltica e cultural no Brasil estava insuportvel. Entre as horas de trabalho que passava no jornal, Caio planejava sua viagem e continuava a escrever. O conto Visita ganhou um prmio do Instituto Estadual do Livro (IEL) em 1973. Essa vitria foi motivo de muito orgulho para Caio: segundo ele conta, em carta a Hilda Hilst, toda a intelectualidade de Porto Alegre estava concorrendo, mas a comisso julgadora atribuiu o prmio apenas a ele, por achar que nenhum dos outros trabalhos tinha nvel. Alm disso, Caio escrevera o livro de contos O ovo apunhalado, j liberto de certa forma da influncia de Clarice Lispector. O ovo um livro que fala de violncia, de loucura; a influncia do realismo mgico dos latinos se faz notar em alguns textos, como no prprio conto-ttulo. O prefcio, assinado por Lygia Fagundes Telles, mostra o quanto o escritor j era estimado e admirado nos altos meios literrios do pas. Lygia o chama de "escritor da paixo", e diz: "Caio Fernando Abreu assume a emoo. Emoo esta que vertida para uma linguagem que em alguns momentos atinge a rara plenitude prxima de um estado de graa. [...] Quando nos seminrios de literatura os tericos pedantes acabam por condenar a palavra, minha vontade simplesmente mostrar-lhes um livro como este. Provar-lhes a atualidade da desacreditada palavra com a prpria palavra, quando a servio de uma tcnica rica de recursos. Aliada a uma imaginao cintilante".
Alguns contos de Caio falam da esperana de redeno. Em um mundo comum e medocre, algum de fora surge e promete a salvao, a mudana. Oferecem para quem quiser compreend-los, porm as pessoas tm medo do novo. Apenas uns poucos escolhidos se salvam. E os mrtires, os salvadores, sofrem, mas vencem no final. No conto Eles, por exemplo, uma bela prosa potica, quem aparece para mudar a rotina so seres de outro mundo. O que os seres dizem um atestado da maneira como Caio levava sua vida. O que eles deixaram foram estes trs postulados: importa a luz, mesmo quando consome; a cinza mais digna que a matria intacta e a salvao pertence apenas queles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias. Nessa poca, a turma de Caio em Porto Alegre era composta por Maria Ldia Magliani, Jaime Gargioni, Juarez Fonseca, Augusto Rigo, Sandra Laporta. Havia tambm Lucrcia, um gay espalhafatoso de quem Caio gostava muito, e Graa Medeiros. As pessoas saam juntas, fumavam maconha, iam a bares. Conversavam sobre os assuntos da poca: filmes, livros, discos. Falavam mal da ditadura. Caio era muito crtico, muito cido. Juarez Fonseca lembra de ouvi-lo comentar: Todo homem com mais de trinta anos um canalha. Juarez Fonseca freqentara a universidade na mesma poca de Caio, s que seu curso era outro; enquanto Caio cursava ou tentava cursar Letras, Juarez fazia Jornalismo. Na faculdade, Juarez era da equipe do jornal do centro acadmico, O coruja. Nessa poca, no entanto, no chegou a conhecer Caio: ele e Magliani formavam uma dupla quase hermtica, uma dupla estranha, e um dos poucos a conversar com eles de vez em quando era Joo Gilberto Noll. Os dois se conheceram quando Caio, j de volta a Porto Alegre depois de suas andanas por So Paulo e Rio, foi contratado pelo Zero Hora, onde Juarez j trabalhava. Juarez
tinha se tornado amigo de Magliani, que tambm trabalhava no jornal, como diagramadora. Caio comeou a colaborar nos projetos de que Juarez fazia parte, como o jornal Exemplar, influenciado por O Pasquim, Veja na poca ainda considerada inovadora e, principalmente, pela revista Bondinbo. Era a efervescncia da imprensa nanica, a efervescncia de uma gerao que no agentava a ditadura. Parecia que no Brasil no havia lugar para gente assim, que contestasse; a represso nas ruas aumentava, o clima era de parania, de medo. O pessoal queria mais era sair fora. E saram. Os dolos Caetano Veloso e Gilberto Gil j tinham ido em 1969. Chico Buarque tambm. A amiga Graa Medeiros j fora e voltara. Sandra Laporta, tambm amiga, estava l. Cada um em um pas a dupla de tropicalistas na Inglaterra, Chico na Itlia, Sandra na Sucia , o destino, na cabea dos brasileiros loucos para saltar fora, era um s: Europa. A questo era s escolher por onde comear, e a turma de Porto Alegre escolheu a Sucia. Era um grupo de seis pessoas. Juarez e sua esposa, Snia Azambuja, casados desde 1971. Mrcio, Aninha, Augusto Rigo, Caio. Cada um iria por um trajeto diferente, e se encontrariam todos na Sucia, mais ou menos na poca em que a temporada de trabalho comearia, em maio, que j estava chegando. No havia tempo a perder. O dia 28 de abril de 1973. No aeroporto do Galeo, no Rio de Janeiro, Caio est exultante. Vera e Henrique foram v-lo antes da viagem e, embora um vidro os separasse, foi muito bom encontrar os amigos. Do avio, Caio escreveria aos dois, ainda entusiasmado com o encontro: dizia que Vera tinha olhos de vaca jrsei, e que se casariam na Finlndia e teriam sete filhos com olhos de vaca jrsei, como os dela, e cabelos pretos e lisos de ndio, como os dele. De Henrique, dizia ter pressentido que ele tinha QI de gnio. "GRRRR: vontade de comer vocs dois com molho de chocolate. " Antes de partir, alm de se encontrarem com os irmos, Caio, Augusto e Ana, que haviam decidido fazer o percurso
juntos, escrevem do aeroporto do Galeo um telegrama a Graa Medeiros, cheios de boas expectativas e esperanas. Brincavam que o avio tinha sido seqestrado e que eles estavam em Beirute, "maravilhosos". Era assim que aquele trio se sentia, logo antes de deixar o Brasil rumo a aventuras desconhecidas. Por acaso o destino final era a Sucia, mas se fosse Beirute, bem, no importava. Caio, Ana e Augusto no vo direto para a Sucia. A escala em Madri, onde planejam ficar umas duas semanas. Caio quer tirar carteira internacional de estudante e ver Bosch no Museu do Prado. A obra do pintor holands nascido em 1450 tinha alguns pontos de contato com a do escritor. Alm do humor custico, com que retratava a vida de pecados do ser humano, e da dificuldade de salvao, a arte, que viria a influenciar os surrealistas mais tarde, era cheia de detalhes do fantstico. Lembremos que a prpria literatura que Caio fazia, nesse momento, estava impregnada desses elementos. Como no conto O ovo apunhalado, em que um ovo sai de uma moldura e persegue o personagem:
Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direo. Olhei para o outro lado, mordi o lbio inferior, mas nada aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem refletida nas vidraas, os carros corriam e a minha imagem mordia o lbio inferior. Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disselhe isso mas ele no parou -, voc no v que no tem a menor originalidade e ele no parou -, todos j disseram tudo sobre voc, qualquer cozinheira conhece seu segredo. [...] Mas ele no se move. Est parado minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. quando julgo perceber nele uma espcie de splica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora um ovo delicado, tenro, humilde, e no tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Ento estendo os meus muitos braos coloridos e toco no cabo de bronze do
punhal. A sua casca est manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos so janelas, minhas plpebras grades, minhas mos tentculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitao, depois empurro lento, firme. E sinto uma lmina penetrando fundo em minhas costas, at o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com fora, perdidos entre espduas. Lcia grita, mas tarde demais. Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo cho do banheiro. 0 sangue escorre e eu, agora, tambm estou no cu com diamantes.
Em Madri, Caio encontra, por acaso, Juarez Fonseca e sua mulher, Snia. O casal tinha ido at Lisboa de navio, e de l para Madri de trem. Estavam numa esquina da cidade quando viram passar Caio e os amigos que tinham ido com ele. Sua figura chamava a ateno: a Espanha um pas catlico, cheio de represses, e nesse sentido estava longe de ser o paraso dos costumes que Londres, Amsterd ou mesmo Estocolmo prometiam ser. Foram tomar um caf, e no se viram mais, at o encontro combinado na Sucia. Nessa poca, Caio e Juarez ainda no eram ntimos; andavam na mesma turma em Porto Alegre, trabalhavam no mesmo local, mas no trocavam confidencias e coisas do gnero. Sobre o encontro casual com o grupo de Caio, Juarez escreveu no dirio que estava fazendo da viagem, no dia 29 de abril: "Caio muito louco caminhando pelas ruas. Todo mundo olhando." De Madri, Caio, Augusto e Ana foram a Barcelona. Se hospedaram em um hotel na esquina da casa onde morou Picasso. Caio no achou mesmo muita graa na Espanha: a comida era horrorosa; as pessoas eram fechadas, rgidas, moralistas; as ruas de Barcelona eram sujas e poludas. Era ainda poca de ditadura no pas, e se ouviam relatos de torturas e fuzilamentos. Bonito mesmo Caio s achou o bairro gtico, com catedrais com mais de 500 anos e casas de 300.
De l, porm, o grupo seguiu para Paris, e a impresso que a capital francesa deixou foi de puro deslumbre. Harekrishnas andando sossegados pelas ruas; gente variada, com todos os cortes de cabelo e roupas que se possa imaginar. Bares charmosos, onde grupos de pessoas se reuniam para tomar vinho; mulheres elegantes, requintadas. Era o paraso. Passear pela capital francesa era como andar sobre sculos de histria, de cultura, de civilizao. Pisar nas ruas francesas era como "pisar no corao do mundo", diria Caio. Era noite em Itaqui, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Caio Fernando Abreu tinha nove anos de idade e estava passando uns dias na casa de seus avs. Em dado momento, ele vira para o av Aparcio Medeiros e diz: Um dia, quando eu for grande, vou morar na Sucia. O av, claro, morreu de rir. Qual seria a cara dele agora, que Caio estava mesmo indo morar em Estocolmo? Na Sucia, os grupos se juntaram e foram todos morar numa residncia estudantil minscula. Os estudantes estavam de frias, e os estrangeiros se hospedavam no que usualmente eram seus alojamentos. Ficaram uns seis dias nessa residncia, e depois se mudaram para outra, um pouco maior. Aos poucos, todos iriam se estabelecer, arrumar empregos: Juarez iria trabalhar no restaurante Catelin; Caio tambm iria lavar pratos, em outro lugar; Snia arrumaria emprego em um hotel, e Sandra Laporta em outro restaurante. Aos poucos, tambm, todos iriam se ajeitando e conseguindo moradias individuais ou em duplas. O grupo estava sempre junto, fosse na "casa" de um ou de outro. Encontravam-se depois dos respectivos trabalhos e iam beber, conversar, fazer comida. Augusto se revelou um exmio ladro de supermercados: vestia seu macaco Lee e enchia os bolsos de enlatados. Sandra tambm se saiu bem roubava camares do hotel onde trabalhava e trazia para casa. Era uma festa. Todo mundo se deliciava com os camares que, de outra forma, jamais poderiam comer,
carssimos que eram. Juarez nunca pegou nada. Era medroso demais e no conseguia levar um roubo at o final. Caio tambm tinha medo, mas pegou uma coisinha aqui e outra ali. Entre um delito e outro, o pessoal arrumava tempo tambm, nas horas vagas, para viver o sonho lisrgico de uma gerao. Era poca de maconha, de haxixe, de cido. E era um desses adorveis quadradinhos mgicos que fez Juarez anotar em seu dirio, no dia 24 de maio, trs ligeiras palavras: "Pintou um pink. "Para bom entendedor, meia palavra basta. No dia seguinte, Caio e Augusto tomaram o tal pink, e embarcaram numa viagem incrvel. Juarez pegou carona, e ficaram todos pirando cor-de-rosa, numa boa, at o efeito passar. A coisa foi to boa, na verdade, que logo comearam os planos para outra dessas excurses, digamos, coloridas. O dia 27 de maio caiu num sbado bonito, com sol e tempo bom. A primavera sueca est relativamente quente: d pra sair de manga curta tranqilamente. Os brasileiros reunidos em Estocolmo vo fazer um piquenique num bosque no bairro de Kungshara. Uma beleza de bosque: jardins cheios de amores-perfeitos e tulipas, esquilos passeando tranqilos, junto com ovelhas e cervos. Atmosfera mgica, de conto de fadas. Os cidos tomados s duas e meia da tarde nada mais fizeram que realar a magia natural do parque... Caio est vestido todo de branco, andando por debaixo das rvores. Juarez, com a cabea em rbitas insondveis, olha pelo visor da mquina fotogrfica. Uma caixa de TV est jogada no lixo, embaixo de um pequeno barranco. Caio vai at l e passa na frente do visor de Juarez. Esse tem um insight e grita, extasiado: Puxa, o Caio parece o Jesus Cristo! Sandra corre para a frente da mquina e diz, com medo de que aquilo fosse manifestao de alguma bad trip: Corta essa, cara. Nesse momento, Juarez pra de entender o que est
acontecendo. O mundo sua volta, o bosque, o fiorde ali do lado com o castelo do rei Gustavo Adolfo, tudo, tudo perde o significado. A viagem ruim comea pra valer. Caio, junto com os outros, vai consol-lo: Isso no nada, cara, passa logo. E passou mesmo. Depois de sete horas. Na volta terra, o grupo foi para a casa de um portugus ouvir discos. Cat Stevens, Jorge Ben, o disco Chico & Caetano, Novos Baianos. Comeram xis-brgueres com batatas fritas. Caio falava e falava, analisando a viagem do amigo, possveis significados, as descobertas de si mesmo e dos outros por que Juarez tinha passado. Ele mesmo era muito sujeito a badtrips, com seu temperamento depressivo, e tinha passado por umas terrveis em Porto Alegre. Mas ali, junto aos amigos, num pas distante, essas lembranas ruins pareciam distantes. Assim como parecia distante o tempo em que tinha morado em Santa Teresa, no Rio, em uma imitao malsucedida de comunidade hippie. Ali, longe do Brasil, as coisas pareciam possveis. At mesmo utopias que tinham escorrido pelo ralo por causa da dureza da realidade pareciam mais fceis de acontecer naquele pas, onde os jovens se deitavam seminus nos parques para tomar sol, tudo de forma muito pura, sem maldades ou malcias. A idia de paraso na terra deve ter desmoronado para Caio mais ou menos dois dias depois do piquenique no parque, quando ele encontrou o primeiro emprego, aquele de lavar pratos. Era em um bar, no centro de Estocolmo. No tinha sido fcil. Ele e Augusto rodaram vrios dias at encontrarem colocaes. Augusto foi parar numa fbrica, longe da cidade, e Caio se dedicou a ficar oito horas de p por dia, com luvas de borracha at o cotovelo, lavando pratos. E tambm garfos, facas, bandejas, copos, panelas. O detergente lavava tambm toda a arrogncia que Caio pudesse sentir. Ali, naquela cozinha onde todo mundo falava uma lngua que ele no entendia, ele no era melhor que ningum. Os livros que lera, os textos que escrevera e publicara, sua postura
"avanada", nada disso o distinguia de David, o boliviano, ou dos dois japoneses, ou do engraado africano que trabalhavam com ele. Que seu livro O ovo apunhalado tivesse ganhado Meno Honrosa em um concurso no Brasil, isso no importava. Ali, ele era um lavador de pratos que no falava sueco. Ponto. Claro que, quando aquela vontade de viver novas experincias passasse, e a temporada chegasse ao fim e chegaria, como todos sabiam , Caio poderia voltar para a casa dos pais e viver uma vida de odalisca outra vez, sem maiores preocupaes. Mas, por enquanto, o momento parecia duro demais para enfrentar. E Caio, dramaticamente, bem ao seu estilo, decidiria que o menino cheio de esperanas que ele fora um dia morrera ali, na cozinha de um bar no centro de Estocolmo, lavando loua. No dia 18 de julho, Juarez e Snia foram embora. Juarez estava triste. Caio foi se despedir deles. Chegaria tambm sua vez de partir, e ele tambm, talvez, se sentisse triste. Saudade de ficar com Augusto e outros malucos na praa, enquanto eles vendiam colares e um francs tocava violo. Sentiria falta, talvez, at dos guardas que vinham expuls-los sempre que comeava a sesso de violo. Falta de Nega Lu, o gay negro, enfrentativo, inteligente e bem informado, que debochava de todo mundo, mas de quem ningum debochava, pois era forte demais e seria capaz de pendurar pelo pescoo qualquer um daqueles intelectuais, cujo nico exerccio fsico era o levantamento de copo. Mas no, Caio no se sentiria triste; antes de chegar Sucia, a Sucia era para ele o paraso. Uma vez l, porm, e passado o impacto e a fascinao dos primeiros dias, ele comearia a achar a cidade um horror. Fora assim com So Paulo, com o Rio de Janeiro, com Porto Alegre. Fora assim com Madri. Estava sendo assim com Estocolmo e provavelmente seria assim com Londres, que ele tanto ansiava em ver. Esse era Caio: sempre achava um jeito de colocar defeito no lugar onde estava. Sentia-se um estrangeiro onde quer que fosse, sem possibilidade de cura.
Depois de ter dado um pulo na Holanda e na Blgica, Caio estava, finalmente, em Londres. A primeira impresso foi de xtase: cabelos coloridos andando pelas ruas, sem ningum olhar nem comentar, roupas dos anos 30, parques lindssimos, pessoas gentis. A cidade parecia sada de um livro de Virgnia Woolf, e era maravilhosa, bem diferente da dura Estocolmo, onde as pessoas eram fechadas demais. Todo o deslumbramento, claro, s duraria o tempo suficiente para que Caio escrevesse meia dzia de cartas para os pais e amigos; logo ele j estaria achando a cidade fria demais, cinzenta demais. Chuva a todo momento, uma chateao. E aquela histria de no ter dinheiro para nada e trabalhar em subempregos para sobreviver no era nenhuma maravilha. Fazer faxinas em casas de atores, trabalhar de modelo vivo em escolas de Belas-Artes, horas na mesma posio para que os alunos o desenhassem. No era isso que ele tinha sonhado; no era isso que os livros tinham prometido. Durante todo o tempo em que esteve viajando, Caio e Vera Antoun continuaram se correspondendo. Trocaram cartas amorosas, interessantes, em que ele contava suas experincias e suas mudanas de humor. Falava, por exemplo, de Nelson, um danarino cubano que ele estava meio que namorando. Depois de meses sozinho, Caio arrumara uma paixo que o fazia suspirar pelos cantos e cantar canes do Roberto Carlos (lembrem-se que o ano 74, e a fase brega do rei ainda no tinha comeado, com todas aquelas odes s mulheres pequenas-gordinhas-deculos). Mas Nelson, embora tenha tido seu momento, no viria a ser o grande amor da vida de Caio; como, alis, ningum seria. Ele era individualista ao extremo e no deixaria que algum entrasse em seu mundo; qualquer ameaa sua liberdade, ele saltava fora, soltando farpas para todo lado. Nesse ponto, era defensivo, incapaz de se comprometer. A relao com Vera, por exemplo, foi esfriando medida que chegava a hora de voltar ao Brasil e encar-la frente a
frente. Ele, que falara em casamento e filhotes com olhos de vaca-jrsei, j estava dizendo: opa, no bem assim. Primeiro, disse que casar no tinha nada a ver, que se duas pessoas se gostavam, no era preciso papel nenhum para afirmar isso. Segundo, ele no podia mais dizer que a amava; s teria certeza disso se estivesse com ela ao vivo e em cores, exatamente aquilo que ele estava tentando evitar. E terceiro, ele no tinha condio de pr um filho no mundo, no do jeito que vivia, sempre sem dinheiro, vendendo o almoo para comprar cigarros. Quarto: ele estava ficando careca, entradas enormes na cabea; o cabelo lindo e escorrido de ndio estava indo embora. Alm disso, estava branquelo demais de tanto no-sol que fazia em Londres. Ser que ela ia querer algum assim ao seu lado? Em abril de 1974: "Tenho medo de te ferir. Mas acho que precisamos 'falar seriamente'. Desculpe, mas acho que sim, sem fantasia, sem comicidade. Me pergunto sempre se voc no teceu em volta de mim uma poro de coisas irreais se voc no est projetando em mim qualquer coisa como um prncipe encantado esperando a minha volta como quem espera a salvao." Para quem queria comer a garota com molho de chocolate, era uma mudana e tanto. Caio escreveu muitos textos sobre o relacionamento entre duas pessoas, tanto sobre relaes hetero como homossexuais. Essa sempre foi uma de suas principais preocupaes: sempre quis viver um grande amor, uma paixo avassaladora. A seu modo, experimentou de tudo. Mas no deixava que ningum entrasse demais em sua intimidade. Assim, acabava, quase sempre, sozinho. A incomunicabilidade, comum entre pessoas que se gostam, foi explorada em um texto de O ovo apunhalado, Para uma avenca partindo:
Olha, antes do nibus partir eu tenho uma poro de
coisas pra te dizer, dessas coisas assim que no se dizem costumeira-mente, sabe, dessas coisas to difceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como sero ditas nem como sero ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu no te disser agora talvez no diga nunca mais, porque tanto eu como voc sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas no chegarem a ser ditas nem eu nem voc nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas no foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimenso em que permitido viver, no, no isso que eu quero dizer, no existe um dimenso permitida e uma outra proibida, indevassvel, no me entenda mal, mas que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que no se sabe se ter coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, isso mesmo, voc est acompanhando meu raciocnio? [...] [...] est bem, eu espero aqui do lado da janela, melhor mesmo voc subir, continuaremos conversando enquanto o nibus no sai, espera, as mas ficam comigo, muito importante, vou dizer tudo numa s frase, voc vai....................................................................sim, sei, eu vou escrever, no, eu no vou escrever, mas bom voc botar um casaco, est esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do nibus partir eu quero te dizer uma poro de coisas, ser que vai dar tempo? Escuta, no fecha a janela, est tudo definido aqui dentro, s uma coisa, espera um pouco mais, depois voc arruma as malas e as bolsas, fica tranqila, esse velho no vai incomodar voc, olha, eu ainda no disse tudo, e a culpa nica e exclusivamente sua, por que voc fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que voc no passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silncio e de muita concentrao para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de voc ir embora eu quero te dizer qu.
Alm de arrebentar esperanas e se engraar com rapazes cubanos, Caio continuou em Londres com os pequenos roubos em lojas. Coisa pequena. As lojas grandes de onde roubavam nem sentiriam o prejuzo. Mas a Inglaterra um pas onde o shopliting punido de forma mais severa
que no Brasil; os seguranas e policiais no queriam nem saber de conversa. Assim, quando Caio e o amigo Homero, que tambm morava no apartamento que ele dividia com Marisa e Augusto, entraram em uma livraria, roubaram livros e foram vistos, no houve meio de convencer os guardas de que, como diz Garcia Mrquez, roubar livros errado, mas no pecado. Por causa dos dois volumes de uma biografia imensa sobre Virgnia Woolf, Caio e Homero passaram a noite na cadeia e foram condenados a pagar 30 libras de multa. Era mais do que Caio ganhava por semana na escola de Belas-Artes; mas apertando aqui e ali, dava para pagar. Priso num pas estranho e 500 contos a menos: era at onde o amor literatura tinha feito Caio chegar. , estava na hora de voltar para casa.
TRS
T certo que o sonho acabou, mas tambm no precisa virar pesadelo, no ? A frase foi escrita por Caio Fernando Abreu no espelho de seu quarto em Porto Alegre, em julho de 1975. Cinco anos antes, John Lennon anunciara o fim do sonho de toda uma gerao, ao cantar que no acreditava mais em coisa alguma: mgica, Ching, Jesus, Buda, Elvis ou Beatles. Ele s acreditava nele mesmo e em Yoko Ono; o sonho acabara. "The dream is over, what can I say?" A msica era God, do primeiro bum de Lennon sem os Beatles, o Plastic Ono Band. Os besouros musicais j no existiam, e o mundo devia seguir em frente sem eles. O ano de 1968 ia longe. Os dias de Caio na Europa tambm. De volta ao Brasil, ele percebia o quando tinha reclamado de barriga cheia enquanto estava viajando. O clima claustrofbico da ditadura continuava, embora amenizado, com a abertura comeando a se esboar. O
Suplemento Literrio de Minas Gerais, em que Caio colaborava desde antes de viajar, avisou que s poderia publicar um conto dele se as palavras "merda" e "teso" cassem fora. As pessoas em Porto Alegre estavam mudadas: tinham feito coisas das quais ele nada sabia, porque estivera fora; elas tambm no sabiam nada das experincias por que ele passara. Ningum se entendia, as referncias eram outras. O clima estava ficando pesado tambm no quesito drogas: muita gente estava comeando a pirar, internaes em clnicas, coisas assim. No se podia andar pela rua com cabelos compridos e batas indianas sem chamar a ateno, como em Londres ou Amsterd. , era o Brasil. Por que mesmo ele tinha decidido voltar? A depresso veio pesada. Readaptar-se era difcil. Caio poderia consultar um psiquiatra amigo seu, Ernesto Bono, se o dinheiro no fosse to curto, e a necessidade de sobreviver maior que a de curar caraminholas da cabea. Bono era um psiquiatra diferente dos outros: era, na verdade, um antipsiquiatra. Acreditava que a psicanlise tradicional tinha algumas vantagens, mas que no geral s servia para reforar aquilo que ele considerava o grande problema do ser humano: o ego. Ele ia por um lado mais zen, mais de desapego; acreditava numa forma de conhecimento mais holstica, falava em macrobitica e, junto com o jornalista Luiz Carlos Maciel, queria fazer de Porto Alegre um centro de irradiao da contracultura para todo o Brasil. Caio gostava muito de Bono, mas no tinha condies, no momento, de pagar suas consultas. O milagre econmico dos militares no tinha chegado at a casa da famlia Abreu, como no chegara para a maioria dos brasileiros. E, mesmo que tivesse, no adiantaria nada: o milagre estava com os dias contados. S faltava aprontar o enterro. O sonho estava acabando, e no era s para os Beatles. Enquanto o enterro no vinha, Caio se virava para sobreviver em Porto Alegre. No precisava fazer faxina nem posar em escolas de Belas-Artes, mas algum trabalho ele
tinha que ter, e a sada era, como sempre, o Jornalismo. Escrever na imprensa era parte daquilo que ele chamava de "biscates culturais": resenhas e crticas para jornais, tradues e revises para editoras, oficinas de criao literria para alunos com ou sem talento, qualquer coisa que pudesse garantir algum dinheiro no fim do ms enquanto ele escrevia seus livros. E uma das coisas que havia para se fazer em Porto Alegre, na metade da dcada de 1970, era colaborar com a imprensa alternativa. Eram jornais que, justamente por serem independentes, podiam se dar ao luxo de dar espao a crticas e inovaes. No eixo Rio-So Paulo, ficaram famosos veculos como O Pasquim, Opinio, Movimento, Bondinho: cada um com sua opo formal, esttica e poltica, pois havia veculos para todos os gostos, tendo em comum apenas a condio de nanicos. A imprensa nanica, como a chamara Joo Antnio nas pginas de O Pasquim, no era privilgio de paulistas e cariocas. Entre 1967 e 1973 existiu, por exemplo, o jornal Exemplar, comandado por Juarez Fonseca, em que Caio Fernando Abreu chegou a colaborar algumas vezes. Tirando O Pasquim, com quem, alis, Caio compraria uma boa briga no final de 1976, ele colaborou em quase tudo que era nanico: Opinio, Movimento, Fico, Inditos, Versus, Escrita. Em 1976, Juarez comeou outro projeto que teria a participao de Caio: a revista Paralelo, que duraria apenas quatro nmeros. Dois meses antes da revista sair, Juarez pediu a Caio que entregasse uma crnica para o primeiro nmero da revista. Ele teria uma pgina s para ele, poderia escrever o que quisesse, um luxo. Mas Caio estava deprimido, sem idias, sem dinheiro nem para as anti-consultas com Bono, ainda no totalmente recuperado da experincia europia. Por dois meses, ele esperou que alguma idia aparecesse, alguma coisa bonita para oferecer aos leitores. Findo o prazo, porm, ele no estava melhor que antes, e nem as inspiraes brotavam com mais facilidade. O jeito foi ento escrever uma crnica falando exatamente desses sentimentos escuros que ele sentia, sem esconder nem maquiar nada.
Depois de consultar o amigo Giba Rocha, descobriu que muita gente tinha gostado de entrevistas que ele tinha dado, entrevistas veementes em que Caio assumia suas posies peculiares com firmeza. Viam nele uma espcie de porta-voz da gerao dos anos 70, o que, de certa forma, ele acabou se tornando mesmo, de forma no-planejada. Mas no momento, essa era uma responsabilidade grande demais para ele.
"Acontece que no sou [porta-voz] e no quero assumir esse papel, porque estou usando o mximo de, desculpem, sinceridade no sirvo nem pra porta-voz de mim mesmo. Nos ltimos tempos tenho me movimentado com dificuldade dentro dos meus escombros-de-dentro, por uma srie de razes demasiado pessoais para serem trazidas ao baile (trata-se de um baile?) ando com uma autocrtica violentssima e no consigo, simplesmente no consigo pensar organizadamente (?) ou ter idias claras ou/e precisas sobre as coisas, quaisquer que sejam. Eu disse: quaisquer. Nas cartas que tenho escrito ou nos meus rabiscos solitrios (e vis, talvez) no meio da noite, acabo sempre caindo na mais lamentvel das auto-lamentaes: di, tudo di, DI PRA CACETE, meu irmo; como uma nevralgia psico-espiritual (!), parece que alguma pea importante para o meu funcionamento simplesmente quebrou, e eu no sei o que fazer, e tenho conscincia de quanto isso parece ridculo e juvenil, s no estou mais afim de fingir que tudo-bem, voc me entende?, e isso mesmo que eu sou, esse "ter nascido me estragou a sade"ambulante e crnico."
A crnica segue e Caio menciona amigos, pessoas talentosas, todas mais aptas a escrever a pgina que ele: Tnia Faillace, Srgio Caparelli, Luiz Fernando Emediato. Fala de uma coisa e outra, cita Mario Quintana e Adlia Prado, reclama que as grandes sacanagens sociais continuam acontecendo, "apesar das nossas fices": "Escrevo por uma espcie de incompatibilidade-de-gnios com a vida, escrevo para reinventar, para organizar o caos, para no enlouquecer de impotncia, para refazer. Mas no pense que no sei do intil disso. " Fala tambm em revoluo sexual e de algum que ele queria encontrar, mas nunca est em casa. Cobra dos outros, referindo-se previso de Bono e de Luiz Carlos Maciel de que a Bahia j era e o novo plo de irradiao da
contracultura no Brasil seria o Rio Grande do Sul: "como que ? no era um lugar altamente esotrico? No aconteceriam coisas incrveis por aqui?" O texto termina: "Algum me disse, j faz tempo, num bar: "Um dia algum precisa virar a mesa ao invs de s pedir outra Brahma. "Arrotou, chamou o garom (seria o Isaac?) e pediu outra." E voil, uma crnica estava pronta. Se Caio estava mal, em parte a culpa era dele. Estava bebendo de sua taa, como gostava de dizer. Mas a taa destinada sua gerao nem sempre tinha s champagne; de vez em quando era cicuta, e das brabas, daquelas de matar filsofos. Se no havia dinheiro, um pouco era por causa da economia em crise, mas tambm porque Caio nunca se sujeitou a um emprego comum por muito tempo. Se ele no conseguia encontrar um nico e belo amor, talvez estivesse procurando nos lugares errados. Se havia bad trips, ora, era por causa das drogas. Se a ditadura existia, era porque... Bem, a ditadura era uma das coisas sobre as quais Caio no tinha controle algum. Era uma dose amarga que sua gerao tinha que engolir sem reclamar. Caio provou desse veneno em 1975, quando foi preso em Garopaba, no litoral catarinense. Ele j havia sido preso em 1971, no Rio de Janeiro, em um falso flagrante de drogas. Dessa vez, eram dez ou quinze pessoas, entre elas Graa Medeiros, Caio, Jaime. Tocavam flauta, entravam no mar, conversavam, riam. Em dado momento, Caio e Graa foram at a padaria, na cidade; ele de calo, ela de biquni. No caminho, algum apontou para eles: Olha l! Minutos depois, estavam presos. Na ocasio, Caio apanhou muito. Queriam que ele depusesse contra Graa, que era o verdadeiro alvo, a pessoa em quem realmente estavam de olho, por questes polticas. Como Caio, muito dignamente, se recusasse a falar, soltaram-no. Graa foi presa e condenada em um flagrante
falso de porte de maconha, armado na delegacia de Florianpolis dois dias depois de ter sido presa em Garopaba. O responsvel pela priso era o delegado Eli Gonalves, o mesmo que ficaria famoso, um ano depois, por prender Gilberto Gil e Chiquinho Azevedo por porte de maconha, em Florianpolis, s vsperas de um show dos Doces Brbaros. Gil e Chiquinho, assim como Graa, foram condenados a passar um tempo em clnicas psiquitricas. Essa histria serviu de inspirao a Caio para escrever o conto Garopaba mon amour, mistura de fatos com altas doses de inveno e fantasia, publicado pela primeira vez na revista Fico. Nessa ocasio, Graa tinha dado um jeito de escapar da clnica, e estava escondida. E a quem o boca-grande do Caio dedica o conto? A Graa Medeiros. E no s: fugitiva Graa Medeiros, que, claro, ficou furiosa, de modo que Caio acabou nunca mais dedicando texto algum a ela. Quando o conto foi publicado em livro, em Pedras de Calcut, a dedicatria foi suprimida. A epgrafe do texto um trecho do conto Garopaba meu amor, de Emanuel Medeiros Vieira, escritor catarinense. Depois de ter sido preso e solto na despedida de Jaime, Caio passou uns tempos na casa de Emanuel, em Garopaba.
Evitamos nos encarar por que sentimos vergonha ou piedade ou uma compreenso sangrenta do que somos e do que tudo ? , mas, quando os olhos de um esbarram nos olhos do outro, so de criana assustada esses olhos. Co batido, rabo entre as pernas. Mastigamos em silncio as chicotadas sobre nossas costas. E os coraes de vidro pintado estalam ainda mais alto que as ondas quebrando contra as pedras. Conta. -No sei. (Bofetada na face esquerda.) Conta. No sei. (Bofetada na face direita.) Conta. -No sei. (Pontap nas costas.)
Antes do episdio em Garopaba, Graa tinha sido uma das responsveis pela publicao de O ovo apunhalado. O
livro tinha ganhado, em 1973, meno honrosa do Prmio Nacional de Fico, mas s seria publicado dois anos depois, e com contos suprimidos pela censura, pelo Instituto Estadual do Livro, em parceria com a editora Globo. Na poca, Graa era assessora de Paulo Amorim no Departamento Cultural da Secretaria de Educao e Cultura do Rio Grande do Sul, ao qual o Instituto Estadual do Livro (IEL) era vinculado, e intercedeu junto a ele para que o livro sasse. Em 1975, alm de publicar O ovo, Caio receberia o Prmio Leitura do Servio Nacional de Teatro (SNT) pela pea Uma visita ao fim do mundo, que mais tarde, sabiamente, teria seu nome trocado para Pode ser que seja s o leiteiro l fora. Premiada, a pea foi indicada para leituras em vrias partes do pas; logo depois, porm, foi proibida, e s viria a ser encenada em 1983. O leiteiro... era a continuao do trabalho com teatro que Caio vinha fazendo desde que voltara da Europa. Em 1974, tinha trabalhado com o grupo Provncia na pea Sarau das 9 s 11. Aquela era uma pea de esquetes, e fora escrita a quatro mos por Caio e por Luiz Arthur Nunes, primeira de vrias parcerias da dupla. Os dois chegaram a morar juntos por um ano, em 1976, no apartamento de Luiz na rua Jernimo Coelho, de onde Caio s sairia para a famosa casa da rua Chile. A parceria com Luizar como Caio o chamava era boa, flua. Um escrevia uma frase, o outro mais uma, e assim sempre, na maior facilidade. Ou ento cada um escrevia uma cena, e o outro mexia, retocava. Como a experincia desse certo com o Sarau..., foi repetida em 1977: Luiz Arthur ia fazer um espetculo de esquetes, precisava de alguns textos, e Caio escreveu alguns dilogos curtos. Em Pode ser que seja s o leiteiro l fora, alguns amigos se escondem em uma casa abandonada, enquanto aguardam o fim do mundo chegar. Ao amanhecer do dia seguinte, descobrem que no h nuvens de radioatividade, que o sol ainda brilha e o mundo est a salvo, por enquanto.
JOO (Sem emoo.) Esto batendo na porta. ROSINHA Devem ser os trs reis magos que vm visitar o menino, trazendo ouro, incenso e mirra. Ou os quatro cavaleiros do Apocalipse. BABY Ou Mona. Quem sabe Mona com os extraterrestres? Eles vm nos buscar tambm. LEO a polcia. Tenho certeza que a polcia. ANGEL Puede ser algun vecino. CARLINHA Eu acho que so os sobreviventes da exploso. Os monstros, com aquela pele toda verde, apodrecendo e caindo... Eles vm nos matar porque ns sobrevivemos. Ns tnhamos o direito de sobreviver ao fim do mundo. ALICE Pirao, pirao, tudo pirao: pode ser que seja s o leiteiro l fora.
Por essa poca, metade dos anos 70, Caio j era, principalmente em Porto Alegre, um escritor reconhecido, de certa forma consagrado. Com trs livros publicados, ele era um dos integrantes do chamado boom literrio dos anos 70: uma turma nova que fazia fico, principalmente atravs do conto. Esses escritores se correspondiam, trocavam informaes, impresses, tentavam ajudar uns aos outros dentro de suas capacidades, mostrando o texto dos amigos para outras pessoas, escrevendo resenhas positivas em jornais e revistas. O esprito da poca era de solidariedade com os colegas, e nisso Caio no desapontou os amigos. Mais de uma vez, deu provas de sua fidelidade, escrevendo em jornais sobre os escritores que admirava, e que quase ningum conhecia, como a prpria Hilda Hilst, aclamada por um certo ramo da crtica mas desconhecida do pblico, e nem s do grande. Na poca, ningum lia Hilda Hilst. A escritora se magoava com isso; tanto que, j mais velha, decidiu que iria escrever livros erticos para ver se venderia mais. Iluso, claro: a pornografia de Hilda no era como outras pornografias, como qualquer pornografia, e ela no vendeu nem meio exemplar a mais por isso; alm disso, perdeu o respeito de uma parte da crtica, que passou a cham-la de velha safada, coisas assim. Outro em quem Caio deu um empurro foi o poeta Nei
Duelos, gacho de Uruguaiana e radicado na capital. Eles eram amigos de conversar sobre literatura, cinema. Nei era jornalista. Quando entrara na faculdade, Juarez Fonseca ainda andava por l, e foi ele que, na primeira reunio de estudantes a que o calouro Nei compareceu, chamou-o a um canto e explicou tudo: o movimento estudantil assim e assado. E seria Juarez tambm que, anos depois, junto com Caio, iria na casa de Nei e o ajudaria a editar o livro Outubro. Os trs separaram os poemas por tema, organizaram o livro. Caio sugeriu a troca de algumas palavras, e em geral estava certo: Nei acatava sua sugesto por achar que tinha ficado melhor. Caio leu um poema do qual gostou muito, e perguntou em quem o poeta estava pensando quando escreveu. No Mario Quintana disse Nei. Ento Caio sugeriu que ele colocasse o Mario Quintana no ttulo do poema. Ser?, perguntou o poeta. Estava em dvida. Caio o aconselhou a arriscar. Nada teria a perder. Nei seguiu o conselho e nomeou o poema Mario Quintana. No se arrependeria: quando o livro saiu, Quintana adorou o poema. Tanto que aceitou fazer o prefcio do livro seguinte de Nei. Antes de Mario Quintana ver o poema, porm, o livro tinha que ser publicado. Caio usou de sua influncia no IEL para conseguir a publicao de Outubro, o livro garimpado na papelada de Nei. Ele deu um parecer favorvel publicao do livro. Quando o livro saiu, foi um acontecimento: afinal, Nei no era ainda conhecido, como Caio, nem tinha nada publicado em lugar nenhum, a no ser em jornais mimeografados. Alguns conheciam sua poesia de v-la declamada nos encontros de estudantes, mas, no geral, ele era um autor marginal. V-lo publicado com capricho pelo governo do estado, em plena ditadura, era algo para se comentar. Os outros poetas podiam pensar: ei, se o Nei pode, eu tambm posso. Muitos dos autores publicados nessa poca pelo IEL, Caio inclusive, tinham muito a agradecer diretora do
instituto, Lgia Averbuck. Com uma viso aberta e democrtica do que devia ser a literatura, ela trouxe para o instituto e conseguiu publicar muitos autores considerados malditos, e muitos autores simplesmente novos, desconhecidos, que dificilmente conseguiriam espao em outras editoras. Era aquela velha histria: quem no fosse conhecido no seria publicado, mas como se tornar conhecido se no aceitavam public-los? Apesar do herosmo de Lgia Averbuck, ela no podia dar conta de toda a cena literria do Rio Grande do Sul. Mais coisas precisavam ser feitas. Assim, para combater a poltica conservadora das editoras, os autores comearam a se unir e a produzir antologias, algumas pagas do prprio bolso. Caio participou de vrias, entre elas Teia & Assim escrevem os gachos, ambas de 1976. Era uma maneira de divulgar a novssima literatura do pas: muita gente estava escrevendo coisa boa, e era preciso desovar essa produo de algum jeito. Uma dessas antologias, porm, iria causar a Caio uma enorme dor de cabea. E justo aquela que lhe daria mais visibilidade: a antologia publicada pela Codecri, editora de O Pasquim. Pouco tempo antes, o nanico mais influente do pas tinha decidido criar uma editora, a ser dirigida por Jeferson Ribeiro de Andrade. O primeiro livro que ele quis publicar foi uma histria policial de Otvio Ribeiro. Em segundo, viria uma antologia de doze contos de autores novssimos, gente que vinha se destacando pelo talento precoce. Entre os seis autores escolhidos estava Caio. Os outros eram o prprio Jeferson, bom jornalista, mas escritor "sem grande brilho", como escreveu em uma reportagem Luiz Fernando Emediato, que, aos 25 anos, tambm participaria da antologia; Antnio Barreto, poeta de 22 anos que dava seus primeiros passos na fico; Domingos Pellegrini, o mais velho da turma, com 28 anos (Caio tinha 27); o carioca Jlio Csar Monteiro Martins, com 21 anos e uma arrogncia tpica da idade. O mineiro Luiz Fernando Emediato era jornalista e
editava as revistas Silncio, que logo foi fechada pela polcia, e Inditos. Aos 19 anos, tinha ganhado o prmio Revelao de Autor e, por causa disso, fora considerado por muita gente uma espcie de garoto-prodgio da literatura brasileira. Isso at que o crtico Flvio Moreira da Costa o chamasse de Shirley Temple: surpreendente enquanto jovem, e ruim medida que fosse ficando mais velho. Anos mais tarde, Emediato, antes de retomar as atividades de escritor, diria que talvez Flvio tivesse razo. Naquela poca, ele editava suas revistas, escrevia seus romances e contos, se correspondia com outros autores. Um desses escritores era Caio Fernando Abreu. Os dois vinham lendo os textos um do outro h algum tempo, atravs de suplementos literrios diversos; Luiz gostara de um livro de Caio, O ovo apunhalado, e escreveu a ele pedindo um texto para a Inditos. Caio mandou, eles continuaram a se corresponder, ficaram amigos. E, em 1977, foram convidados para fazer parte da antologia Histrias de um novo tempo, da Codecri. A princpio, as coisas tinham tudo para dar certo. Os autores da antologia se correspondiam, trocavam impresses; todos amavam a literatura, todos se revoltavam contra alguma coisa, embora as semelhanas parassem a. "Jferson era naturalmente revoltado, por causa do mau humor; Barreto, Pellegrini e eu ramos marxistas e queramos derrubar a ditadura a qualquer custo, ainda que derramando sangue; Caio, infeliz, revoltava-se naturalmente contra a trgica condio humana; e Jlio Csar, um burgus liberal, cujo talento tinha o mesmo tamanho, enorme, da vaidade juvenil, revoltava-se contra o fato de, aos 21 anos, ainda no ser considerado o maior gnio da literatura brasileira de todos os tempos", escreveria Emediato, numa bela definio dos envolvidos na antologia, na reportagem que fez para a revista Gerao, da editora Gerao Editorial, que fundaria dcadas depois. Essas diferenas, no entanto, iriam se agravar com o tempo. Havia muitas coisas na viso de arte dos
companheiros com que Caio no concordava. Em maro de 1977, por exemplo, Emediato enviaria a ele uma cpia do Manifesto Neo-Realista, criado pelo grupo para dizer ao mundo o que eles pensavam sobre literatura. A prpria idia de um manifesto, de um conjunto de regras ou diretrizes, ou opinies, como se queira chamar, mas que no final viram regras mesmo a serem seguidas no podia ser agradvel para Caio, sempre independente, muito dono do prprio nariz. Emediato tinha mandado, por engano, duas vezes a segunda pgina do manifesto, e nenhuma da primeira. Assim, uma das primeiras coisas que Caio leu do documento foi a frase: "contra O individualismo". Ora, ele no era de forma alguma contra o individualismo. Suas influncias literrias s falavam do indivduo: Clarice Lispector, Virgnia Woolf, Mareei Proust. Alm disso, fazia um ano que ele estava fazendo anlise (tinha conseguido um emprego na Folha da Manh como crtico de teatro, e assim podia pagar as consultas) e, com isso, lentamente, emergia da depresso ps-Europa. Agora ele estava melhor, mas graas a qu? A analisar o ego. O eu, o indivduo. Imagina, ser contra o individualismo. Que idia. E esse era apenas o comeo da confuso. Caio usou de muito tato, em carta, para dar a entender a Emediato que no assinaria o manifesto. Afinal, ainda gostava muito do pessoal que sairia na antologia. Os seis eram os "paladinos do Oeste", como os chamaria na dedicatria de um livro anos depois Emediato, alis, o preferido de Caio. O mineiro tinha escrito alguns contos de temtica homossexual, embora fosse casado e hetero convicto. Sua nica experincia com um homem fora na adolescncia, e servira para mostrar que no era aquilo que ele queria. Mesmo assim, escrevia os tais contos, pouco preocupado com o que pudessem pensar; Caio lera alguns desses textos, e achou que havia esperana. Ali parecia estar uma alma-irm da sua, com a mesma sensibilidade. Caio ansiava pelo momento de conhec-lo
pessoalmente; no cara-a-cara, poderia ver se suas expectativas se confirmavam ou no. Foi visitar Emediato em sua casa, em Belo Horizonte. Tudo correu bem, a amizade se fortaleceu. Agora faltava encontrar o resto do grupo. O encontro com os outros paladinos aconteceu no lanamento da antologia, no Rio de Janeiro. Quatro deles Barreto e Pellegrini no puderam ir , que uns dos outros s conheciam palavras escritas, puderam se apertar as mos e se olhar nos olhos. Nada de mal at a. A confuso aconteceu mesmo quando os quatro foram dar entrevista a O Pasquim. Histrias de um novo tempo teve sua primeira edio, de 20 mil exemplares, esgotada em quinze dias. Mais dez mil exemplares saram, e acabaram logo. A coletnea era um sucesso, sob todos os pontos de vista. Os autores foram entrevistados pelo tablide, e o texto saiu. E saiu editado, com trechos cortados, para que coubesse no jornal, como todos os textos. S que Caio no gostou nem um pouco da tal edio. Na sua cabea, s trechos dos seus depoimentos tinham sido cortados; toda a parte em que ele falava de homossexualismo teria ficado de fora, por exemplo. Intempestivo, escreveu uma carta ao jornal, manifestando toda a sua raiva. E a resposta o deixou ainda mais irado: O Pasquim, bem ao seu feitio, mandava ele lamber sabo ou catar coquinho, coisas do gnero. Depois disso, a relao do grupo foi se esfacelando mais e mais. Implicou, por exemplo, com Jlio Csar, em quem no perdoava a vaidade juvenil. No final de 1977, Luiz Fernando Emediato ganhou um prmio literrio da revista Status. A grana era boa, e ele decidiu viajar com a esposa Sylvia. O filho de oito meses ficou com a av, em Minas. O plano era visitar Caio em Porto Alegre a relao entre eles sobrevivera aos entreveros com os demais paladinos e com O Pasquim e depois ir at Buenos Ares ver Eduardo Gudino Kieffer e Jorge Luis Borges. Nessa poca, Caio morava na casa da rua Chile, um chal de madeira agradvel, com um ptio bem grande. A casa estava alugada no nome de Graa Medeiros, mas ela mesma no ficou tanto tempo l. Os moradores amigos se sucediam,
como Caio e Sandra Laporta, que fora com ele para a Europa, em 1973, e sempre tinha gente visitando, como Emediato e Sylvia, ento. A relao entre Sylvia e Emediato no ia muito bem j h algum tempo. Ele mencionara o assunto em carta para Caio, que o aconselhou a no arrastar uma relao moribunda. O que Emediato no sabia que o amigo estava advogando em causa prpria: em Porto Alegre, na casa da rua Chile, Sylvia na cozinha, Caio disse a Luiz Fernando que o amava. Bem, dizer propriamente no disse, mas pegou suas mos, o olhou nos olhos... O suficiente para que Emediato entendesse a mensagem. A coisa no deu certo, claro. Emediato ficou constrangido, Caio decepcionado. Sua mania de se apaixonar por homens obviamente heterossexuais talvez fosse uma forma de defesa, de auto-sabotagem, de garantir desde o comeo que no daria certo, para que assim sua liberdade e individualidade fossem mantidas intactas. Ah, e claro: sofrendo bastante, vivendo e sangrando e amando, Caio teria vivncia para escrever. Teria assunto. O mito do artista sofredor parecia calar fundo no corao do escritor. A sede de amor, que levaria Caio a se apaixonar e se declarar vrias vezes na vida, como fizera a Emediato, teria sua traduo literria em vrios contos. Um exemplo At oito, a minha polpa macia, do livro Pedras de Calcut. O personagem uma mulher, j na beira dos trinta anos, sequiosa de amor:
[...] tomar banho e ficar na sacada sem olhar os plos molhados do suor do peito do moo da construo em frente, esperando o qu? esperando quem? Aqui-e-agora, esses pssaros idiotas sobrevoando essa ilha de loucos, aqui-e-agora, no consigo mais ler essa porcaria, espstica, es-ps-ti-ca, proparoxtona que tem acento na antepenltima? o pster de Burt Reynolds, que vontade, Densidades Inimaginveis, nem lembro mais, venha comigo, aqui-e-agora, cinco-seis-sete-oito: por favor, por favor POR FAVOR: crave seus dentes na minha polpa
maciaaaaaaaaaaaah.
Mesmo depois da declarao de amor no ser exatamente bem recebida, Caio e Emediato continuaram amigos, se escrevendo por vrios anos. Nos anos 80, Caio iria morar novamente em So Paulo, onde trabalharia com Emediato e o veria quase todos os dias. Mas a as coisas estariam mudadas: ele passaria a considerar Emediato careta demais, certinho demais para ser seu amigo. No o perdoaria por no ser louco como ele e seus dolos: Cazuza, Ney Matogrosso, Caetano Veloso. Pelo menos era essa a sensao que Emediato teria. Mas em 1977, Caio e Emediato ainda estavam muito ligados. Foram juntos a um congresso de escritores em So Paulo. A nata da nata da literatura brasileira estava l: Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Ferreira Gullar, entre vrios outros. Foi nesse encontro que Caio teve um bate-boca com Edla van Steen, a escritora, na poca esposa de Flvio Moreira da Costa e uma das organizadoras do congresso. Edla havia organizado um jantar fechado, do qual participariam apenas alguns escritores. Caio estava entre os convidados, era um dos oficialmente inscritos no evento. Mas a maioria de seus amigos estava l de farra: Emediato, Jlio Csar Monteiro Martins, Carlos Emlio Corra Lima. Quando o grupo tentou entrar no tal jantar, Edla vetou. Instalou-se a confuso, o bate-boca. Emediato e Carlos Emlio se lembram que Caio, muito indignado com o que ele considerava uma discriminao, se retirou do jantar junto com os amigos. Alm das confuses com tablides, declaraes de amores impossveis e congressos com escritores superestrelas, 1977 foi o ano do lanamento de Pedras de Calcut, terceira coletnea de contos de Caio. Coletnea talvez no seja a palavra correta. Caio sempre buscou em seus livros de contos uma unidade, tanto temtica quanto formal. Seus
livros, em geral, so divididos em partes, cada qual tratando de determinado tema ou enfocando os assuntos sob perspectivas especficas. Cada livro tem uma lgica prpria, e assim, para manter essa coerncia, muitos textos considerados bons pelo autor ficaram de fora, por no se adequarem proposta da obra que estivesse trabalhando no momento. Muitos desses textos seriam lanados mais tarde, na dcada de 90, quando Caio organizaria a a, sim coletnea Ovelhas negras, com textos escritos dos 14 aos 46 anos de idade. Pedras de Calcut talvez seja o livro que marca o amadurecimento de Caio como escritor. o domnio da palavra escrita. A partir desse livro, Caio se sair cada vez melhor nesse aspecto. A relao com a palavra aproxima-se da dos poetas, artesos, buscando sempre o termo exato, lapidando e burilando. O contedo do livro segue fazendo a biografia de uma gerao: j no se acredita mais na revoluo, o sonho acabou. O indivduo continua um estrangeiro em busca de um modo de estar no mundo, no mundo que estava to diferente nos ltimos tempos, nos ideais esfacelados. O mundo est esfacelado, como no conto Holocausto, de Pedras de Calcut:
H bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta ltima chama apagar um de ns ter de jogar-se ao fogo. [...] No nos falaremos, no nos olharemos dentro dos olhos. Apenas um de ns treze far o primeiro movimento, se jogar ao fogo, aquecer os outros por mais alguns momentos, depois se tornar cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criana entra dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas j no somos crianas e desaprendemos a cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no momento exato em que a ltima chama se desfizer e algum esboar o primeiro gesto. Mas eles no voltaro.
Como seus personagens, Caio se sentia um estrangeiro eterno, irremedivel. Estranho estrangeiro, sem paz fora da prpria terra, incapaz de viver nela. Em Porto Alegre, ele tinha emprego no jornal, escrevia suas coisas para teatro, encontrava alguns amigos. Ainda assim, faltava algo. Talvez o centro, estar no olho do furaco. Caio no podia esperar mais tempo. Era, mais uma vez, hora de levantar vo.
QUATRO Encostado no carro, estava aquele rapaz de cala de couro, jaqueta, gestos finos, elegantes. Alto, muito magro, cabelos escuros. A presena do rapaz era forte; no havia quem no a notasse. O ser todo exalava algo de sexual, e de solitrio tambm, como se uma tristeza infinita houvesse por trs dos olhos. Uma nuvem preta o acompanhava, uma nuvem de melancolia, aonde quer que fosse. O rapaz, que no era exatamente um rapaz, mas um homem de trinta anos de idade, era Caio Fernando Abreu, que estava de volta a So Paulo, pronto para partir coraes e ter o seu partido outras tantas vezes. E quem o via pela primeira vez, encostado no carro, e notava sua cala de couro preta, era Celso Curi, jornalista e agitador cultural. Caio no deve ter ficado menos impressionado com os cabelos louros e os modos doces de Celso, pois os dois, logo que se conheceram, viveram um apaixonado caso. Um breve caso, como se podia dizer sempre das relaes de Caio, mas intenso queriam engolir um ao outro, se tocar, se cheirar, como disse Celso, mais tarde. No meio de tanta paixo, havia lugar para o humor, que ningum era de ferro. Em alguma brincadeira cujas origens se perderam na histria, os dois comearam a se chamar de
Fraser e Gomide, por causa das atrizes Etty Fraser e Gergia Gomide. Semelhana menor no podia haver, os dois magros que nem papel, e as atrizes, digamos, cheinhas. Mas a brincadeira pegou. Al, Gomide ligava Caio. Ol, Fraser, como vai? Essa brincadeira de nomes no era exclusividade da relao de Caio e Celso. Permeando a obra e a vida de Caio, h o humor queer, uma espcie de humor prprio dos gays, que se traduz em signos, brincadeiras e palavras prprias. Caio chamava, por exemplo, a amiga Jacqueline Cantore de Marilene, ou Anthea, ou MVlen. Ele mesmo podia assumir um nome feminino, como Marilene mesmo, e a era Marilene falando com Marilene, uma loucura. E essas brincadeiras com as palavras no existiam s na maneira de chamar as pessoas. Havia verdadeiros cdigos, palavras inventadas por Caio e por seus amigos que acabavam virando termos correntes no vocabulrios desses grupos. "Jacira", por exemplo, sinnimo de bicha. "Lasanha" aquele homem bonito, massudo, forte; "rodenir" eqivale a coisa brega. Uma expresso surgida na noite, em alguma festa ou bar, podia ser utilizada por Caio no dia seguinte, em um conto ou crnica. Os amigos liam aquilo, se divertiam, e depois ligavam dizendo: Ei, vou cobrar direito autoral. Caio tinha voltado a morar em So Paulo em meados de 1978. Porto Alegre, mais uma vez, tinha se tornado insuportvel, pequena demais. Em So Paulo, morou em primeiro lugar com a amiga Maria Rosa Fonseca, na rua Capote Valente, no bairro de Pinheiros. Maria Rosa fora esposa de Valdir Zwetsch, amigo e colega de trabalho de Caio em Porto Alegre. Valdir e Caio agora repetiam a dose, trabalhando na revista POP, junto com Vnia Toledo, J.R. Duran, Okky de Souza. Caio e Maria Rosa se tornaram muito amigos. Ela se lembra dele ouvindo Velvet Underground o dia todo, bebendo baldes de caf e escrevendo, escrevendo,
escrevendo todos os dias. De vez em quando saam para jantar. No comeo da estada, Caio no conhecia tanta gente na cidade, e ela ia apresentando algumas pessoas. Em 1984, quando Laura, a filha de Maria Rosa, nascesse, Caio ajudaria a dar o primeiro banho. Lady Laura, ele a chamava. Quando Caio decidiu sair da casa de Maria Rosa, ele e Celso j haviam se tornado grandes amigos. Continuavam encantados, mas a paixo havia passado, sem rancores. Celso morava sozinho em um apartamento na Cristiano Vianna, havia um quarto sobrando. Por que no chamar Caio para morar com ele? Chamou. Caio topou na hora. E foi a que o encanto quase se desfez, e Fraser e Gomide correram perigo. Por que, preciso que se diga, Caio no era uma pessoa fcil de conviver. Tinha um gnio dos diabos, um temperamento explosivo, uma qualquer-coisa que de repente lhe subia e ele no conseguia medir palavras, e quem ficasse no caminho levava chumbo. Depois batia-lhe o arrependimento, ligava, murchinho, vira-lata com rabinho entre as pernas, pedindo mil desculpas, mil perdes. Ele tanto podia aparecer com flores ou mandando as pessoas para aquele lugar; era absolutamente impossvel prever seu comportamento. Cheio de manias, com a organizao dizem tpica dos virginianos, gostava de tudo no lugar, arrumado; mas nunca se lembrava de uma conta para pagar. Quando estava bem-humorado, todos se divertiam; sua capacidade de fazer rir, tiradas mordazes e irnicas, era infinita. E a ele era elegante, fino, um gentleman. Mas quando o mau humor resolvia dar as caras, era melhor manter uma distncia saudvel dele. Uma distncia, digamos, sanitria. Era mesmo difcil no se desentender com ele, no dia-adia. O mau humor, a dificuldade com coisas prticas, tarefas simples. E havia aquela estranha necessidade de ficar sozinho de vez em quando, que viria a ser um tormento a vida toda para quem dividisse casa com ele. Caio ficava dois, trs dias trancado no quarto, sem botar a cabea para fora para
nem dar um ol, e os de fora sem saber se estava vivo, se estava morto, se precisava de alguma coisa. As faxineiras enlouqueciam, porque no podiam entrar no quarto e limpar. Para Celso, eram momentos apreensivos. O que Caio fazia l dentro, se escrevia, chorava, dormia, Celso no sabia. Mas quando ele resolvia sair, Fraser e Gomide saam com ele, o bom humor nas alturas. A Caio podia contar piadas, falar de astrologia, botar o taro. Uma vez Caio botou as cartas para Celso. Mexeu com a cabea, como que lamentando, e comentou: Tenho uma pena de voc. Voc nunca vai enlouquecer. E a era legal de novo conviver com o Caio, e tudo ficaria bem at que a montanha-russa desse mais uma volta e ele ficasse down outra vez. Mesmo assim, j dava para ver que os dois, morando juntos, no davam certo; a coisa no funcionava. Quase um ano depois de ir morar com Celso, Caio saiu do apartamento. Foi aquela choradeira. E houve tenso tambm: problemas de dinheiro que ficaram mal resolvidos, Celso devendo alguma coisa a Caio. Nada que o passar do tempo no resolvesse; logo os dois estavam amigos de novo, Fraser e Gomide a vida inteira. E Caio prosseguiu sua vida nmade, morando onde desse, com quem calhasse. Depois de Celso, foi a vez de Rofran Fernandes, e depois dele outros ainda. Celso tambm se mudou, e abriu seu teatro, o Espao OFF, um lugar para apresentaes mais alternativas. Uma das primeiras interpretaes que Gilberto Gawronski fez de Dama da noite, de Caio, foi no OFF, em um palquinho de lxlm, destinado a apresentaes ainda mais experimentais que as do palco normal. Caio continuava o trabalho na POP, da editora Abril. O trabalho l era uma delcia: na descrio de Caio, vinte e cinco dias por ms o pessoal no fazia absolutamente nada, s se divertia. Na ltima semana, se mudavam para a redao, pediam pizza por telefone e fechavam a revista. A diverso era tanta que a turma da revista acabou virando a
turma de Caio em So Paulo por uns tempos. No terceiro andar do prdio da editora, na Abril Cultural, trabalhava Maria Adelaide Amaral, hoje conhecida escritora, dramaturga e autora de novelas. Apresentada por Celso Curi, que tambm trabalhou na POP por uns tempos, Maria Adelaide ficou amicssima de Caio. Um dia, o sempre muito magro Caio resolveu pegar Adelaide no colo, de brincadeira. Ela, na poca, pesava 42 quilos. Caio se espantou: descobriu que ela no era magra, era levssima, e o apelido ficou para sempre. Levinha, Levssima. Uma vez por dia, pelo menos, Caio subia do segundo andar, onde ficava a POP, para o terceiro, onde trabalhava Maria Adelaide, e eles conversavam; se divertiam, quando estavam bem; falavam de coisas pesadas, quando estavam mal; de coisas leves, quando tudo melhorava. Discutindo Katherine Mansfield, Proust, Lawrence Durrell, e demais escritores que amavam ou que estivessem lendo no momento, no viam o tempo passar. Na poca, Maria Adelaide escrevia o romance Lusa (quase uma histria de amor), que s viria a dar por terminado anos mais tarde, em 1987. Caio foi um dos primeiros leitores, e gostou do que leu: disse amiga que ela tinha muito talento. A amizade perdurou mesmo depois que deixaram de ser vizinhos de emprego. Outra amizade que veio daqueles tempos com a jornalista Paula Dip, que trabalhava na redao da revista Nova, vizinha POP. Paula era mais certinha, menos porralouca que Caio e alguns de seus amigos, e ele acabaria sendo muito protetor em relao a ela. A amizade seria selada por um episdio triste da vida de Paula. Tendo se descoberto grvida, ela optou por fazer um aborto. Contou a histria ao Caio, que deu seu apoio. Tempos depois, escreveu o conto Pela passagem de uma grande dor, do livro Morangos mofados. Dedicado Paula, o conto descreve uma conversa telefnica entre dois amigos. Lui, o homem, est entediado com a ligao da mulher. No meio de uma conversa aparentemente banal, em que ele parece ansioso por desligar, ela menciona, uma nica vez, que vai fazer um aborto.
T bom ela disse. T bom ele repetiu. E pensou que quando comeavam a falar desse jeito era sempre um sinal tcito para algum desligar. Mas no quis ser o primeiro. Vou tirar amanh ela falou de repente. Hein? Nada. Vai fazer teu ch. T bom. Aqui diz que tem vitamina E. Abriu a mo e olhou as manchas branquicentas na palma. No essa que boa para a pele?
A aparente frieza esconde, na verdade, a "grande dor" do ttulo: o assunto, na verdade, incmodo e doloroso para Lui. E para Caio. Ele mesmo passaria pela situao duas vezes na vida. Nas duas ocasies em que namoradas suas engravidaram, ele, em comum acordo com as garotas, optou pelo aborto. A justificativa, ele dizia, que as gestaes aconteceram em perodos loucos, em que todos usavam drogas; o medo da criana nascer deformada pelas substncias era grande. Caio falaria, em crnicas e entrevistas, dos filhos que no teve, de como seriam se tivessem nascido. Para ele, tambm, haviam sido grandes dores. A POP era a primeira revista brasileira voltada para a cultura jovem. At hoje lembrada por ter introduzido no pas o punk rock, com a coletnea de 1977 que trazia msicas de grupos estrangeiros do novo gnero musical. Embora hoje seja praticamente impossvel achar o disquinho, A revista POP apresenta o punk rock o marco histrico do gnero no Brasil. Embora em determinado momento da vida Caio tenha aderido esttica punk, assim como fizera com a hippie anos antes, em geral ele no tinha muito em comum com os assuntos tratados na revista. Mas era preciso "costurar pra fora" para sobreviver, como o pessoal da redao costumava brincar na poca, e ele fazia o que podia. Costurava tambm, de vez em quando, para a revista Nova, ou para edies
especiais, sobre a vida de John Travolta, ou como cuidar de bebs, ou culinria, ou o que viesse. Sendo todas as revistas da mesma editora, a Abril, havia grande rotatividade de jornalistas; em dias de fechamento, "emprestava-se" pessoal de outras redaes, pessoal que estivesse com o horrio mais folgado. Caio era contratado da POP, mas fazia free-lances para vrios outros veculos. Sempre a contragosto, de certa forma; o trabalho jornalstico era penoso para ele. No a parte de escrever, que isso ele fazia com facilidade, e muito bem; mas a questo dos horrios, e dos prazos, e de lidar com chefes; enfim, a parte prtica e pragmtica da coisa, a parte desinteressante de qualquer emprego, se era chata de agentar para qualquer um, mais dolorosa ainda era para Caio. Em fevereiro de 1979, por exemplo, ele tem uma pequena briga com o diretor da revista. O diretor marca a reunio para nove da manh, mas s aparece s dez e meia. E j chega falando grosso, dizendo que a revista est pssima. Era preciso reduzir os textos, aumentar as fotos, melhorar o lado visual. O leitor no gosta de ler justificou o diretor. Caio no concordava. E falou. Tinha duas irms adolescentes, supostamente o pblico-alvo da revista, e elas adoravam ler. E disse mais. A gente no deve colaborar com a alienao. O diretor chamou Caio de obsoleto, o que bastou para que este estourasse e abrisse a torneirinha de indignaes. A formao dele tinha sido feita antes de 1964; se o chefe achava que cultura e leitura eram coisas obsoletas, ento estavam indo muito mal. E se voc est a fim de colaborar com o processo de castrao mental da juventude brasileira ps-64, eu no estou. As penas continuaram voando. Em certo momento, o diretor comentou que os ttulos de Caio pareciam livro antigo de Histria. Aquilo foi demais para Caio.
Minha me professora de Histria, eu estudei muita Histria e se a juventude de hoje no sabe nem quem foi Getlio Vargas porque no se estuda mais Histria. No fim, depois de muito suar e gritar, todo mundo em volta quieto, olhando a briga, Caio calou a boca. "Afinal, como na fbula do lobo e do cordeiro: contra a fora no h argumentos", ele concluiria em carta me, em que contava o episdio. Caio estava nervoso, cansado, louco para dar uns pontaps nas pessoas e dizer umas verdades, mas no podia. Estressava-se. Talvez estivesse precisando de umas frias. As frias vieram. Caio resolveu ir a Olinda, lugar calmo, bonito, onde teria a paz necessria para escrever. Andava cheio de idias, idias ambiciosas, e no podia deix-las morrer s por causa dos trabalhos jornalsticos, dessa coisa de ganhar a vida. A literatura andava meio abandonada h um tempo, e ele ia aproveitar o perodo de folga para retomla. Uma semana depois de suas frias comearem, ele escreve uma carta ao amigo Jos Mrcio Penido, jornalista mineiro radicado em So Paulo. Se esperava notcias do esturricante calor nordestino, de belas praias e malemolncias, Jos Mrcio deve ter levado um susto. Nada de Olinda: a carta vinha de Porto Alegre mesmo. Logo no incio, Caio explica a mudana de planos:
"O que aconteceu? Bem, eu FUI at Olinda. A rodei por l um dia inteiro, sem encontrar lugar pra ficar. Acabei indo pra Recife, onde me instalei num hotel de oitava: o Sua Hotel, na Rua do Hospcio juro! Solucionados os problemas de acomodao, percebi que no conhecia vivalma (ai esse portugus castio!) na cidade. E toca subir rua, descer rua, atravessar Capibaribe, tropear em cantador, em retirante, comer tapioca, olhar, olhar, assistir filmes como Iracema ou O Super-Macho ou A ilha das cangaceiras virgens (descobri que Helena Ramos d de dez em qualquer Snia Braga, Ana Matos que me perdoe), voltar para o hotel, passar o dedo com desgosto em cima do quilo de poeira dos mveis, olhar, olhar olhar o qu, meu deus? Meu caro Garcia de Oliveira, me deu uma solido to grande que, menos de uma
semana depois, arrumei tudo e voltei pra Sampa. Passei uma noite l. Peguei as ls e peles e vim pra c. "
(Ana Matos era Ana Braga, irm da Snia Braga, amiga de Caio e de Jos Mrcio Penido. Caio a chamaria sempre de Ana Matos por causa do personagem Jlia Matos, interpretado por Snia em Dancin Days.) Em Porto Alegre, Caio pegou uma gripe violentssima resultado da mudana brusca de temperatura, Nordeste a 30 graus e Rio Grande a 2 graus negativos. Mais que a doena fsica, a cabea de Caio no est legal. Ele est deprimido. Sente-se solitrio. Saiu do Recife porque no havia ningum l, ningum absolutamente que se importasse com ele; foi procurar suprir essas carncias na cidade mais que conhecida, a amada e odiada Porto Alegre, mas nem l as coisas pareciam melhores. Depois das frias, Caio volta vida de jornalista em So Paulo. Em So Paulo, o amigo Jos Mrcio Penido tambm passava por suas prprias crises. Na poca, ele e Caio eram muito prximos; o mineiro funcionava como uma "referncia viva" de So Paulo para o gacho. Caio achava que se entendiam porque eram ambos de cidades do interior: ele de Santiago, Jos Mrcio de Cambuquira. Mas essa concepo era fruto da cabea romntica de Caio, porque Jos Mrcio, na verdade, s morara em Cambuquira at os trs anos de idade; depois disso, a famlia tinha se mudado para Belo Horizonte. Ele cresceu com asfalto nas veias; a situao era diferente da de Caio, que tinha morado em Santiago at ficar adolescente, e visitava a cidade sempre que podia. Ao final do ano, quando Caio volta a Porto Alegre para mais um perodo de frias, Z escreve uma carta triste para ele, cheia de interrogaes, dvidas; entre outros questionamentos, ele diz querer escrever, mas nem disso est to certo. Caio, de volta da praia, responde como pode. No h o que ensinar, o que aprender. Cita um poeta: "Caminante, no hay caminos. Pero se hace camino ai andar." Fala da dor que escrever, da dor que precisa ser mexida e remexida, do
quanto preciso sangrar se se quiser produzir algo bom. "A nica recompensa aquilo que Laing diz que a nica coisa que pode nos salvar da loucura, do suicdio, da auto-anulao: um sentimento de glria interior. Essa expresso fundamental na minha vida. " So sete da manh. Caio acorda, vai praia. Corre um pouco: trs, quatro quilmetros. Faz mais alguns exerccios, passeia um pouco. s dez da manh, volta para casa. Est na hora de cozinhar o arroz, que come com calma. Depois da refeio, descansa um pouco. Ento, somente ento, comear a escrever. O dia todo submerso, mergulhado nas palavras, s vezes falando sozinho. E o resultado dessa jornada um texto, um belo texto, dedicado a Jos Mrcio Penido e que daria ttulo ao prximo livro de Caio: o conto Morangos mofados:
Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras plidas, macilentas mas verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado e esse gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
Antes da publicao de Morangos mofados, Caio j era, de certa forma, considerado um guru de sua gerao. Era um paradoxo: Caio no estava ensinando ningum, mas as pessoas aprendiam com ele. Aprendiam sua maneira de ver o mundo, de forma espiritual e ao mesmo tempo intensa; sua maneira de encarar a arte com seriedade, e de transformar grandes dores em grandes textos. A vocao para guru, embora involuntria, estava em Caio, e ele no podia fugir dela. Com Morangos mofados, essa situao atingiu seu auge. Em 1981, enquanto terminava de escrever o livro, Caio pediu demisso da Nova, onde trabalhava, para poder termin-lo. E depois de pronto, o danado ainda custou a sair: ficou dois anos na Nova Fronteira, na gaveta, at que Luiz Schwarcz, na poca na Brasiliense, interveio: se o contrato fosse cancelado,
em um ms ele publicaria o livro. Caio pediu para rasgar o contrato e entregou o texto Brasiliense, que finalmente o lanou, em 1982. Publicado, o livro virou clssico instantneo: oito edies tiradas em seqncia, sucesso de vendas e de crtica. E sempre aquele rtulo ajudando o livro a vender: o retrato de uma gerao, do desencanto de uma gerao, que vira a revoluo acabar antes mesmo de ter qualquer chance de dar certo. E agora que uma nova dcada comeava, era hora de olhar para trs e rever o momento que passara, e tomar uma posio a respeito dele. Caio, em seu livro, no toma essa posio. Ele deixa as coisas em aberto, deixa apenas fotografadas, no ar, as emoes de uma poca. Mas seu livro, por mais triste, por mais melanclico, termina com uma esperana. Sim, o ltimo conto, Morangos mofados, aquele escrito na praia, entre caminhadas ao sol e pores de arroz integral, um atestado de que o mundo pode dar certo, apesar das iluses perdidas. Apesar dos pesares, hora de comear de novo:
Poderia talvez ser internado no prximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagrao da primavera. 0 gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabea, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recm-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os prprios ps, para deslizar as costas pela sacada at ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mos postas sobre o sexo. Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente s enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: ser possvel plantar morangos aqui? Ou se no aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim.
Um dos contos mais marcantes do livro, Sargento Garcia, teria sido inspirado na primeira experincia
homossexual de Caio. Ao menos foi isso que ele contou em entrevista Marie Claire, em 1995. Quando tinha 16 anos, em Porto Alegre, ele foi seguido por um homem, num domingo noite. O tal puxou papo com ele e marcou encontro para trs dias depois, no centro da cidade. Mesmo sem saber direito o que iria acontecer, Caio foi, morrendo de curiosidade. O homem o levou a um lugar horrvel, nojento, com lenis sujos e um rolo de papel higinico na cabeceira. "Me jogou em cima da cama, completamente sem romantismo", conta Caio. "Me fez segurar o pau dele e eu sa correndo". Como o conto dedicado Luiza Felpuda, travesti de Porto Alegre que mantinha uma casa de prostituio, possvel que o lugar a que o escritor se refere seja a casa dela, e Isadora, a mulher que aparece no conto, a prpria Luiza. No conto, porm, Caio transforma o tal homem em um sargento, o sargento Hermes. Quando Tutti Gregianin decidiu filmar o conto, em 1998, o escolhido para viver o sargento seria o ator Marcos Breda. O conto traz em si a histria dessa descoberta:
[...] barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o porto azul, algum gritando alguma coisa, mas longe, to longe como se eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando apanhar um farrapo de voz na plataforma da estao cada vez mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como uma lngua estrangeira, como uma lngua molhada nervosa entrando rpida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que no devia acordar nunca, que no devia abrir os olhos nem sentir cheiros para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens quieta domada fera esquecida da prpria ferocidade, para sempre e sempre assim. Embora eu soubesse que, uma vez desperta, no voltaria a dormir.
ela traz, na verdade, a libertao. O que descoberto um caminho, uma forma de viver, ainda que maldita:
Queria danar sobre os canteiros, cheio de uma alegria to maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas no sentia nada. Era assim, ento. E ningum me conhecia. Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho no cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, sentei, estiquei as pernas. Porque ningum esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender, debruado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu no o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta no voltar a dormir. 0 bonde guinchou na curva. Amanh, decidi, amanh sem falta comeo a fumar.
Morangos mofados consagra Caio. Como guru involuntrio de uma gerao e, tambm, como escritor respeitado, sucesso de crtica e pblico. Em So Paulo, todos querem ser seus amigos. Escritores, atores, artistas. Embora diga aos amigos que prefere se resguardar, que tem horror s rodinhas literrias, Caio circula bastante por essa poca. Ele j rodava bastante antes mesmo do livro sair, mudando de emprego e de casa como quem troca de par de meia. Em 1980, por exemplo, Caio fora morar numa casinha de vila na Melo Alves. Ficou sozinho por um tempo. De seu quintal, podia enxergar o apartamento de Cida Moreira, cantora, amiga de tempos antigos. Embora paulista, Cida ia bastante a Porto Alegre nos anos 70, por causa do relacionamento que mantinha com uma pessoa de l. s vezes, Caio dava um grito do quintal, chamando Cida para almoar, ou bater papo, qualquer coisa assim. As vezes, ela que chamava. Na casinha da Melo Alves, vieram morar Orlando Bernardes, e depois Jacquline Cantore. Ela era uma garota jovem, f de Caio. Tinham se conhecido no incio da dcada de 80, quando ela, ao ficar fascinada com o conto Eles, de O ovo apunhalado, escrevera uma carta e entregara junto com
um presente na casa dos pais de Caio, em Porto Alegre. Ele ligou para agradecer e desde ento comearam a se corresponder e ficaram amigos. Ficaram um ano e meio na casa, que adoravam. Embaixo da escada, guardavam cartas, papis, jornais; por causa disso, chamavam o lugar de O Inconsciente. Caio, s vezes, aprontava: ameaava se matar, se trancava no quarto dias e dias. Uma verdadeira drama queen. As tentativas de suicdio de Caio nunca foram levadas muito a srio por seus amigos mais antigos, ou mais ntimos: era parte do show, da cena, do teatro que Caio montava ao redor de si mesmo, sempre que tivesse platia. O escritor criava expectativas em torno das pessoas e das situaes, e claro que suas idealizaes iam muito alm da realidade, e ele sempre se frustrava. Mas era assim que ele gostava de viver, teatralmente. Intensamente, talvez. E isso muitas vezes o levava quelas depresses interminveis. No que ele gostasse de estar deprimido. Ele sofria muito, e fazia o que podia para se sentir bem, inteiro. Em Porto Alegre, fizera dois anos de psicoterapia com Mrio Bertoni. S que em 1977 Bertoni morreu em um acidente de carro; Caio ficou muito abalado. Talvez essa perda tenha apressado a ida de Caio para So Paulo, pois foi exatamente no final de 1977 que ele voltou para o Sudeste para trabalhar na POP. Em So Paulo, Caio retomou a psicoterapia, e depois a substituiu por dana. Gostava de danar, se sentia bem. As aulas ajudavam-no a sobreviver. Na poca da casa da Melo Alves, Caio tinha tambm uma moto. Ele no dirigia carros. Chegou a aprender, em Santiago do Boqueiro; o pai o deixava dirigir seu carro de vez em quando. Mas, em Porto Alegre, Caio no chegava perto do volante. Em So Paulo, ento, muito menos. Mesmo a moto, porm, ficava muito tempo sem ser utilizada. Caio preferia txis, quando podia pag-los, ou caminhar. nibus, ento, ele odiava. Em novembro de 1981, Caio Tlio Costa sai da edio do Leia livros, suplemento literrio publicado pela editora Brasiliense. Caio ento chamado para substitu-lo e aceita.
Morangos mofados j estava terminado, ele podia e devia voltar ao trabalho jornalstico. Em entrevista ao Estado, Caio conta que, quando o livro estoura, e um sucesso, Caio Graco, da Brasiliense, v ali um nicho interessante, e quer repertir a dose. Pede a Caio: Ei, por que voc no escreve outro livro na linha sexo, drogas e rock'n'roll. Caio ficou ofendidssimo. Imagina se ele ia se entregar desse jeito ao mercado. To ofendido ficou, que no s saiu da editora, como escreveu um livro totalmente diferente de Morangos mofados. Era o Tringulo das guas, o livro que pouca gente entendeu. Em maio de 1983, Caio decide se mudar para o Rio de Janeiro. So Paulo estava cansando, de novo. Ele tinha essa relao de amor e dio, ou de dio e dependncia, com So Paulo e Porto Alegre. Uma vez nelas, no as suportava; uma vez longe delas, sentia falta de tudo dos amigos, das coisas a se fazer, das folhas dos pltanos. O Rio de Janeiro, ele amava; mas no conseguia morar l por muito tempo. Mesmo assim, ele tentou, mais uma vez. Nessa poca, Caio estava muito prximo da poeta Ana Cristina Csar. Ela era muito amiga de Graa Medeiros, que por sua vez era grande amiga de Caio, e assim o crculo se completou. Alm de muito culta, grande ensasta e poeta, Ana era bela, belssima. Todos se deixavam hipnotizar por ela, que sabia o quanto era sedutora. Seu livro A teus ps foi um sucesso, mas as pessoas, mais que interessadas nos poemas, estavam interessadas no personagem Ana C, na deusa, na beldade. A beleza, da qual Ana era muito consciente, passou a ser uma maldio. E esse pode ter sido um dos motivos que contriburam para a depresso, violentssima, que a levou a se jogar da janela de seu quarto em outubro de 1983, aos 31 anos. Mas ainda maio. Ana Cristina est deprimida, Graa cuida dela. Caio se muda para o Rio para ajudar a cuidar, para estar perto, sabendo que a situao de Ana delicada.
Ana vai visit-lo, certo dia, no hotel em Santa Teresa que Caio escolhe como moradia um hotelzinho hippie, onde moraram Rita Lee e Raul Seixas. Ele descreve o encontro em carta a Jacqueline Cantore. "Ana C. MAL. Pe mal nisso. Magra, consumida, trmula, chorosa. No sei contar direito. Nunca vi ningum to frgil. Com toda minha gripe, eu era um poo de sade ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu). E lcida.[...] Parece Isabelle Adjani em Nosferatu, depois que comea a ser sugada. linda, naturalmente, mas troppo morbo." Caio e Graa Medeiros conversam, tm uma idia de terapia para Ana C. Caio s vezes gostava de falar, sempre irnico, zombando de si mesmo: Fala grosso, veado! E a terapia que ele imaginava para Ana C. ia mais ou menos nessa linha: "... somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns mates, dana uma chula, uma tirana do leno, te joga nua no aude na hora da sesta. Porque t uma crise sensvel demais, d pra entender? Recomendei uma brahma na esquina com uma coxinha e um dreherpra rebater. Something like that." A terapia Fala Grosso Veado. Se ele a usava para sair de suas prprias depresses, algo a se conjecturar, mas bem possvel; como os amigos sabiam, por mais natural e integral e macrobitico que Caio pudesse tentar ser, ele adorava um bom churrasco. Se houvesse um whisky pra completar, melhor ainda. Ainda que amasse muito Ana Cristina, e estivesse no Rio em parte para ajudar a cuidar dela, a situao entre os dois no era sempre um soneto de amor e paz. Caio se irritava, por vezes, com as depresses de Ana; corre uma histria em que ela, em crise, ameaa se jogar da janela, Caio a segura, e em seguida passa-lhe uma descompostura. E esse no seria o nico estremecimento entre os dois. H pelo menos um outro, relatado por Caio em carta a Jacqueline Cantore. Era aniversrio de Ana Cristina. Caio vai festa,
onde conhece um rapaz identificado apenas pela inicial T., no livro de cartas. T. est na festa com o namorado, L., com quem vive h quatro anos. No se importando muito com a longevidade da relao, Caio engata uma conversa animadssima com o tal T. Trs horas de conversa. As pessoas em volta olham, desconfiadas. De repente chega L.: T., vamos embora? Eu no estou gostando nada disso disso sendo, obviamente, o Caio. No ouvido de Caio, T. se despede com uma bomba: "te encontro amanh s quatro no Amarelinho". Caio vai ao banheiro. Na volta, Ana Cristina vem falar com ele. O que est acontecendo entre voc e T.? Achei ele timo, s isso. Vocs vo se ver mais? Marcamos um encontro amanh. Voc sabe que ele vive com L. h QUATRO anos? Sei, ele me disse. Me permite um conselho? Pode ser. No v a esse encontro. Sinto muito, mas vou mesmo. Ento, por favor, retire-se imediatamente. Voc est me expulsando. Estou. Ento tchau e feliz aniversrio. No a ltima vez que os dois se vem. No aniversrio de Caio, em setembro, Graa Medeiros leva Ana at o hotel em Santa Teresa, para ver se os dois voltam a se entender. Outras pessoas aparecem no hotel, amigos do Rio. A situao se ameniza, sem ressentimentos. o ltimo encontro dos dois. Alm de Graa e Ana, Caio tem muitos amigos no Rio. Como a atriz Kate Lyra, na poca esposa do compositor Carlos Lyra, que ficou famosa em programas humorsticos na TV pelo bordo "Brasileiro to bonzinho!". Ela achava o mximo que ele tivesse se mudado para um hotel para
escrever, e ele adorava o jeito dela, engraado, espontneo; alm de linda, Kate era inteligente, se interessava por filosofia, por literatura. Ficaram amigos imediatamente. Tanto que Mrio Prata e Caio, quando foram chamados para escrever uma novela com Jos Wilker, criaram um papel s para ela, de uma cantora de rock russa. A novela acabou no se concretizando, mas a amizade perdurou. Outra amizade importante o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. Pedro Paulo, que conhecera o escritor por indicao de Lygia Fagundes Telles, editou os livros de Caio na Nova Fronteira. Mais que editor, porm, era amigo de Caio, via nele a mesma unicidade, a mesma falta de ciso que havia em sua prpria personalidade: a biografia de Caio no era separada da obra. Caio no inventou um personagem; ele e seu texto eram uma coisa s. Havia muitas afinidades entre os dois, e Caio adorava visitar Pedro Paulo em seu apartamento no Leme, organizadssimo. Era louco por D. Maru, governanta, praticamente da famlia, que ao saber da visita do escritor j preparava o conhaquinho que ele adorava. Adorava tambm Carlos Henrique, companheiro de Pedro Paulo, e, claro, o prprio. Conversavam de literatura o lado pop escondia a conhecimento profundo que Caio tinha dos clssicos, Stendhal, Proust, Machado de Assis, Flaubert. E Pedro Paulo, que nunca tinha dado grande ateno aos beatniks, comeou a l-los por causa do Caio, que adorava ironizar a origem do amigo, que vinha de famlia tradicional e endinheirada. Ele gostava de criticar os amigos que comeavam a ganhar dinheiro: dizia que tinham se vendido ao sistema capitalista. No caso de Pedro Paulo, achava muito ftil todo aquele ambiente de coluna social, de alta sociedade. Em uma das ocasies que questionou esse lado de Pedro Paulo, este respondeu: Caio, nem parece que voc leu Proust. A Caio entendeu. No era futilidade; era frivolidade. Um dos aspectos do ambiente que permitira que Pedro Paulo, entre outras coisas, adquirisse tanta cultura. Madame Bovary era frvola. Proust tambm. E claro que o editor no levava
a srio toda aquela mise-en-scne. Caio era um escritor que no dava trabalho aos editores: entregava o texto praticamente pronto, sabia o que estava fazendo. Tinha grande domnio e preocupao com a forma. Quando Caio entregou O tringulo das guas, por exemplo, o livro estava pronto. S faltava o ttulo. Levou o material para Pedro Paulo, que disse: Caio, como que no tem ttulo? Chove nas trs histrias. So trs signos de gua. So os textos das guas emendou Caio. So trs? Tringulo. Tringulo das guas completou Caio. Um ttulo estava pronto. O tringulo das guas difere em tudo de Morangos mofados, a comear pelo tipo de texto; em Morangos, so contos, e no Tringulo, trs novelas. Morangos tem um realismo que as novelas do Tringulo no buscam, at por ser um livro construdo sobre uma estrutura astrolgica, sobre os arqutipos dos trs signos do elemento gua. A primeira novela, Dodecaedro, se refere ao signo de Peixes; a segunda, O marinheiro, a Escorpio. A terceira, Pela noite, a Cncer. O excesso de palavras do livro, em contraste com os contos mais diretos de Morangos, uma escolha de Caio: ele busca esse jorro de gua, esse fluxo de palavras. Por todas essas diferenas, O tringulo das guas causou estranheza. Mas assim que o livro foi sendo absorvido, e as comparaes com Morangos sendo deixadas de lado, a situao melhorou: o livro ganhou o Prmio Jabuti, um dos mais prestigiados do pas. Hoje em dia, o prmio, alm de prestgio, confere uma quantia em dinheiro aos ganhadores; Caio teria ficado muito feliz em receber uma quantia assim, na poca; mas como ainda no havia, ele ficou mais que feliz com sua estatueta. A primeira das trs novelas, Dodecaedro, narra a
histria de doze amigos juntos em uma casa, e as emoes que atravessam em determinada noite: as paixes e tendncias e medos de cada um vo se desvendando aos poucos. E ao contar-se a histria de cada um, conta-se como, tambm, mesmo cercado de amigos, o ser humano est sempre sozinho, solitrio. A segunda novela, O marinheiro, aborda tambm o tema da solido, atravs da vida do homem que decidiu se encerrar em casa, para fugir das dores e paixes do mundo, e que em certo dia recebe a visita de um marinheiro, que vem como um profeta, para lhe trazer a boa nova, uma mensagem.
Seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de quem, por muito tempo, todas as horas, durante todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar. Conquistara esse verde, imvel, inquieto, esse vagar. Tocou de leve na minha mo estendida. E se foi. [...] No estava triste, mesmo assim recomecei a chorar, enquanto ouvia, outra vez, o aviso guardado para sempre na memria das paredes: Abraa tua loucura, antes que seja tarde demais.
O tringulo das guas foi tambm o primeiro livro de Caio a mencionar a aids, na novela Pela noite. E provavelmente foi tambm o primeiro texto de um autor brasileiro a falar da doena. Dois amigos de infncia, vindos do Passo da Guanxuma muito parecida com Santiago, era a cidade fictcia a que Caio sempre se referia, como a Macondo de Garcia Mrquez se reencontram anos e anos depois, em So Paulo, em uma sauna gay. Combinam de se ver de novo. O dono do apartamento onde ocorre o encontro arma um jogo de seduo, um jogo em que eles assumem outras identidades, em que ele Prsio, por causa de um personagem de Cortzar, e o outro Santiago, por causa do personagem de Garcia Mrquez. Prsio fala e fala, suas palavras jorram incessantemente, revelando suas culpas, seus medos, suas inseguranas. Ele vive uma tumultuada vida amorosa, sem parceiro fixo, enquanto Santiago, depois de ter sido noivo de uma mulher por seis anos, foi para So
Paulo e ficou dez anos junto de um homem. Essa estabilidade, essa tranqilidade em lidar com a prpria identidade sexual, Prsio no a tem; ele no a entende, e talvez a inveje. Cheio de culpas e medos, ele que menciona, duas ou trs vezes, a aids. Desde o incio da dcada de 80, j se ouviam rumores sobre o que a mdia passou a chamar de "cncer gay", uma doena devastadora que s atingia homossexuais, para a qual no havia cura. As notcias chegavam rpido ao Brasil, embora ainda envoltas em suspense, suspense derivado, na verdade, da ignorncia: pouco se sabia sobre as formas de contgio, sobre o vrus causador da doena, e sobre como ele agia no organismo. Como a nica coisa em comum que as primeiras vtimas tinham era o fato de serem homossexuais, comeou-se a achar que a doena tinha algo a ver com esse "comportamento" ou com essa "identidade" homossexual. Quando mais pesquisas foram feitas e se descobriu que a contaminao tambm podia atingir heterossexuais, o estrago j estava feito. A aids parecia castigo divino, castigo aos gays, aos drogados, a todos que levavam uma vida libertria. A vida do pessoal egresso da contracultura estava mudada para sempre, a partir do momento em que se diagnosticou o vrus. Aqueles que tinham experimentado o amor livre, a vida em comunidades, as drogas, tudo a que tinham direito, estavam agora condenados a viver sob a parania da contaminao. E contaminados estavam todos, de certa forma, pelo medo. E no Brasil, o marco da chegada da aids foi a morte do estilista Markito. Quando soube da morte dele, Caio estava no hotelzinho em Santa Teresa, uma chuva abundante caindo, ningum podendo entrar nem sair do hotel. Ele e outros hspedes ficavam bebendo e conversando, lamentando a morte do estilista. A partir da, a parania s aumentou. Trs anos depois de acabar, a dcada de 70 chegava, realmente, ao seu final, marcada no s pela doena, mas tambm pela abertura poltica e pelo desvanecimento dos sonhos da contracultura.
Em seu perfil de Ana Cristina Csar, O sangue de uma poeta, talo Moriconi escreveu que a morte de Ana foi um marco, tambm, do fim da dcada de 70. Como se Ana no aceitasse, ou no pudesse aceitar a mudana, ela se matou, congelando sua Imagem nos doces anos em que se podia pensar em mudar o mundo. Porque era mais ou menos isso: mudar ou morrer. A maioria escolheu mudar, como Fernando Gabeira, por exemplo, que volta do exlio exibindo sunga de croch nas praias do Rio. Caio tambm escolheu mudar. H muito j no era o hippie de cabelos longos, parecido com Jesus Cristo. A escritora Clarice Lispector o chamara de Quixote, por causa de sua barbinha. Ao lado de Caio no lanamento de um de seus livros, madrinha da noite, ela ficava sussurrando para ele: voc Quixote! Voc Quixote! Agora, porm, o escritor assemelhava-se mais a um punk, cala e jaquetas de couro, ou a um dark, roupas sempre escuras. Ele viveu os anos 80 com a mesma intensidade com que vivera os 70. Acompanhava o teatro, a msica, era entusiasta das novas manifestaes. Era f, por exemplo, dos Tits. E do grupo teatral Asdrbal Trouxe o Trombone. Adorava Marina Lima, Cazuza. Estava ligado no seu tempo, nos novos acontecimentos. Infelizmente, havia a aids; para algumas pessoas, o medo dela era to parte dos anos 80 quanto qualquer msica da Legio Urbana. Em outubro de 1983, O tringulo das guas j tinha sido publicado, e Caio foi a Porto Alegre lan-lo na Feira do Livro. A feira, em barracas ao ar livre na praa, uma tradio em Porto Alegre, e um orgulho de seus habitantes. Alm de reunir muitos escritores, que vo lanar suas obras e autograf-las para o pblico, a grande oportunidade de comprar livros a preos mais baixos que no resto do ano. Muitas editoras organizam seus lanamentos em funo do evento em Porto Alegre, e todos os anos a escolha do patrono da feira causa grande expectativa na imprensa e nos crculos literrios locais.
Um dia depois de lanado o livro, Caio recebe um telefonema: Ana Cristina Csar est morta. Jogou-se da janela da casa dos pais, no stimo andar, onde se recuperava de outra tentativa de suicdio, feita na semana anterior, pela ingesto de remdios. Caio ficou desnorteado. O estado emocional de Ana, a dor que ela sentia, no era surpresa para ningum. Mas talvez Caio no imaginasse que a poeta chegaria ao ponto extremo da dor, ao gesto mximo do desespero. Talvez no imaginasse que ela conseguiria. De qualquer modo, Caio chorou, chorou convulsivamente. Precisava dividir o sentimento com algum, mas quem? Os amigos em comum com Ana Cristina estavam todos no Rio. Ento Caio se lembrou de Bruna Lombardi. A atriz tinha escrito alguns livros, dos quais Caio gostara muito, e desde ento tinham se tornado grandes amigos. Sempre que Caio estava em Porto Alegre e ela aparecia na cidade, ele a buscava no aeroporto, levava-a para sair, jantar, passear. Caio resolveu procurar Bruna, que estava na feira acompanhando Mario Quintana. Quando o viu, Bruna abriu a bolsa e disse: Olha que estranho: quando eu estava saindo de casa para pegar o avio, voc me veio na cabea dizendo 'Bruna, voc tem que ler esse livro' e puxou da bolsa um exemplar de A teus ps, o livro de poemas de Ana C. Bruna, eu vim aqui te contar que a Ana se matou. E assim a notcia foi dada a Bruna. Ao menos na verso que Caio contou para o jornalista Eduardo Sterzi, que o entrevistaria anos depois, quando o prprio Caio viria a ser o patrono da Feira do Livro. "Tinha um toldo, e o Mario Quintana lindo, e a Bruna linda, todo mundo transpirando, e aquela coisa estranha no ar. E uma lembrana triste, mas, ao mesmo tempo, mgica", ele diria ainda, na entrevista. A "mgica" da lembrana no aparece aqui por acaso. No incomum, quando se trata de histrias envolvendo o Caio, a presena de um toque estranho, meio mgico, de coincidncias inexplicveis. s vezes, ele parecia ser meio bruxo, meio mago. Nos anos 90, o jornalista Jos Castello viajaria para a Europa no mesmo avio de Caio. Ele conhecia
o escritor de vista. Ficou apenas observando, enquanto Caio botava o taro para as garotas sentadas a seu lado. Castello ficou fascinado pela figura do escritor: parecia um mago, muito misterioso. Tmido incurvel, Castello no se atreveu a cumprimentar Caio, mas ia ao banheiro com freqncia, e ao banheiro mais distante da sua poltrona, apenas para passar em frente ao escritor e poder dar uma boa olhada nele. Um bruxo, o Caio. Dizia-se um hedonista, e assim se desculpava antecipadamente por eventuais mentiras ou fantasias. Nem sempre possvel separar suas verses da verdade. Uma verdade incontestvel, no entanto, que a morte de Ana Cristina foi um fantasma que o perseguiu por muitos anos. Quando ela morreu, ele escreveu a Jacqueline: "E no conseguir dormir: na minha cabea, Ana C. parada beira de uma janela. Pensamentos mrbidos: o que ela teria sentido um segundo antes de se jogar no espao. Depois do choque, certa raiva. Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver a literatura , coisa que pouca gente tem." A imagem da morte perseguia Caio, se alojava em seu lado escuro. Talvez herana do romantismo, da poesia de Baudelaire, de Rimbaud; poetas amados por Caio, poetas malditos. Ecos de Edgar Allan Poe e sua literatura sombria, negra; ou mesmo de outros autores, para quem a morte foi sempre o grande tema, junto com o amor. Essa idia de morte romntica, que tanto apelo tem junto a certos tribos urbanas, como os gticos, calava fundo em Caio. Por mais que ele insistisse na vida, em seus incensos, suas macrobiticas, havia um lado seu que era obcecado pela morte. E foi esse lado que, de certa forma, se atormentou pelo fantasma de Ana C. E se apaixonou, tambm, pela aids, desde o comeo. Caio falava e falava nela, com tanto dio quanto freqncia; era uma obsesso, algo que o inquietava, que o interessava, que o tocava profundamente. A medida que o tempo passa, a obsesso fica mais forte: pessoas de quem s ouvimos falar comeam a morrer, depois amigos de amigos, por fim os
prprios amigos, as pessoas com quem dividimos casa e comida, comeam a ficar doentes. A doena espreita, ronda, como um ladro, esperando o momento certo de entrar na casa. Caio sente essa sombra se aproximando, se aproximando, e se revolta contra ela; a odeia, fala sobre ela; a nica coisa que no pode fazer ignor-la. Caio tinha um motivo a mais para ir a Porto Alegre em outubro, alm de lanar seu O tringulo das guas na feira do livro. O motivo tinha vinte e poucos anos de idade, era ator, Touro ascendente Capricrnio, e tinha uns olhos que mudavam de cor. Atendia pelo nome de Ivan Mattos, o motivo, e Caio estava perdidamente apaixonado. "....Tambm porque aconteceu uma coisa que, como Deus, eu pensava que no existia. Imagino que isso que chamamos de amor. Algo assim. Porque tudo que vivi e senti antes me parece agora bobagem, brincadeira. [...] Eu pensava que no existia. A beira dos 35 anos, eu estava certo de que no existia. Ou que, se existia, no era para mim", escreve a Maria Adelaide Amaral. No que Caio no se apaixonasse muito antes de conhecer Ivan. Ele se apaixonava muito, e sempre. Por vrias pessoas ao mesmo tempo, s vezes. Chegou a sustentar trs ou quatro casos ao mesmo tempo, em graus de comprometimento variados, em geral no muito alto o que no quer dizer que no estivesse perdidamente, loucamente apaixonado. Caio sofria, sofria, sofria de amor. Sofria de paixo. Sofria de rejeio, muitas vezes porque quem ele queria no o queria. Porque quem ele escolhia s gostava de mulheres. Porque quem ele queria gostava de homens tambm, mas s de vez em quando. Porque quem ele queria gostava de homens, mas no queria compromisso srio. H quem diga que, ao se apaixonar, Caio preferia os homens mais msculos, mais viris, e por isso s vezes acabava escolhendo algum que no era homossexual; mas para ficar, na noite, para se divertir, Caio ficava com vrios tipos de caras. Gays mais espalhafatosos, gays mais sbrios. E mulheres, sim. Havia mulheres. Caio chegou a namorar srio
algumas delas. Ele contaria em entrevista Marie Claire, em 1995, que sua primeira experincia sexual teria sido com uma mulher. Ele tinha 19 anos, j morava em So Paulo. Uma amiga veio at sua casa num domingo chuvoso. Caio abriu a porta, mas ela no o deixou falar uma palavra. "Me jogou na cama e me estuprou", contou o escritor. "Foi timo." Em muitas entrevistas, desde o incio dos anos 70 at o final da vida, Caio sempre repetiu que no acreditava em homossexualidade OU heterossexualidade: acreditava, isso sim, em sexualidade. Pessoas se apaixonam por pessoas, no por rtulos. Embora ele tenha tido clara preferncia por homens a maior parte da vida, houve algumas mulheres de quem gostou. Para uma delas, Maria Clara Jorge, a Cacaia, ele dedica o livro Morangos mofados. Esse tipo de homenagem era constante na literatura de Caio: todos os seus livros, e a maior parte dos seus contos, so dedicados a algum. Podia ser uma lembrana da pessoa que o inspirou a escrever a histria, ou do amigo com quem viveu fatos muito parecidos, ou simplesmente uma forma de expressar carinho, sem que nada no contedo do texto justificasse aquela dedicatria especfica. Na poca em que escreveu Morangos mofados, Caio vivia seu caso com Cacaia; nada mais natural que o livro fosse dedicado tambm a ela. Cacaia era amiga de Graa Medeiros, que a apresentou ao escritor. Houve tambm Vera Antoun, paixo que aconteceu mais por carta que pessoalmente, e com quem o escritor, sempre construindo castelos em cima de nuvens, pensara em se casar e ter filhos. Houve uma arquiteta, cujo apelido era Pifa. Houve Maria Emilia Bender. Houve mulheres. Houve homens. Houve paixes. E decepes, inclusive, e solido, como ele escreveu em vrios textos. Um exemplo o conto Alm do ponto, de Morangos mofados, em que o protagonista vai at a casa de algum, debaixo de chuva, levando cigarros e conhaque. Ele chega, ansioso, e bate na porta.
E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis cham-lo, mas tinha esquecido seu nome, se que alguma vez o soube, se que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idias misturadas, tremores, gua de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que no abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu no ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu s estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, to escuro agora que eu no conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ao, outro gesto alm de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que no abre nunca.
E em 1983 a paixo principal no se pode afirmar que fosse a nica, porque mais ou menos nesse perodo, em que Caio mora no Rio de Janeiro, que ele convive com Cacaia, por exemplo Ivan. O jovem ator na poca com vinte anos participava da montagem da pea Pode ser que seja s o leiteiro l fora, de Caio, dirigida por Luciano Alabarse, em Porto Alegre. A pea estava sendo encenada dez anos depois de ter sido proibida pela censura dos militares, e nas idas de Caio a Porto Alegre, ele acompanhou a montagem do amigo Luciano, que conhecia desde os tempos em que freqentava o Centro de Artes Dramticas (CAD). Caio conheceu Ivan, os dois se apaixonaram. Foi uma das mais longas relaes de Caio de que se tem notcia durou pouco mais de um ano e mesmo assim no foi uma relao fcil. Para a juventude de Ivan, as depresses de Caio eram um fardo pesado demais a carregar. O lado escuro, os poos profundos onde ningum entrava, isso tudo no fascinava Ivan, mas o assustava, e o afastava de Caio. Ele viajou com o escritor para o Rio, ficou alguns meses com ele, mas no final as diferenas de idade, de temperamento venceram. Os dois se separaram, e Caio voltou sua desastrosa vida afetiva de sempre. No sem antes pedir de volta a Ivan as
apaixonadas cartas que tinha escrito a ele, com medo, talvez, de que aquilo pudesse ser usado contra ele de alguma forma; nas cartas, Caio era sempre muito mais sensvel, frgil e aberto que pessoalmente. E ele era compulsivo em relao a escrever cartas: adorava conhecer pessoas novas, porque assim tinha mais gente com quem trocar correspondncia. Caio escrevia trs, quatro cartas por dia, s vezes; e eram cartas longas, de vrias pginas, em que ele se expunha muito. Ao vivo, era discreto, tmido e arredio. Nas cartas, era mais engraado, mais derramado, mais solto. Assinava, muitas vezes, como Caio F, numa referncia adolescente alem Christiane F, cuja histria contada no livro Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituda..., escrito pelos jornalistas Horst Rieck e Kai Hermann. Na pequena temporada que passou em Porto Alegre, Caio aproveitou para tentar uma coisa nova em seu trabalho: a adaptao do texto de outra pessoa. O texto era Reunio de famlia, de Lya Luft, que seria levado ao palco no ano seguinte, em 1984, com direo de Luciano Alabarse, que j dirigira a montagem de O leiteiro. Lya era amiga de Caio, assim como outras escritoras de renome, como Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Todas tinham grande apreo por ele e respeito por sua obra. A literatura de Caio tinha vrios pontos em comum com a delas, principalmente com a de Hilda. Entre os atores escolhidos para atuar em Reunio de famlia, estava, claro, Ivan; ele e Caio ainda namoravam quando o escritor comea a adaptar a obra, embora j no estivessem mais juntos quando o texto foi levado ao palco. A adaptao de Caio foi muito bem-sucedida; um pouco, talvez, pelas similaridades existentes entre seu universo e o de Lya Luft, um universo cheio de brumas, de mistrios, de questionamentos sobre a existncia. Ajudou tambm o fato de que, j sabendo quem seriam os atores de antemo Luciano os havia escolhido Caio podia escrever o papel de cada um pensando nas caractersticas de cada ator. Cada
fala, assim, era pensada para aquele ator especfico. Os papis escritos sob medida, alm de serem uma oportunidade rara para os atores de teatro, que poucas vezes tinham a chance de fazer um papel que se ajustasse plenamente s suas caractersticas e potencialidades, ajudaram no sucesso da pea. No livrinho que acompanhou a apresentao da pea, no ano seguinte, h textos de Lya Luft, elogiando o trabalho de Caio. Ela fala do medo que tinha de algum mexer em um texto seu, do receio que teve a princpio, mas a confiana que tinha em Caio venceu, e a autorizao foi dada. No final, Lya ficou mais que feliz com o resultado: "Nos dilogos, senti que aquelas personagens, agora j no unicamente minhas, mas nossas minhas e de Caio Fernando Abreu adquiriam uma nova vida, uma nova dimenso, a vida e a dimenso das figuras de teatro. Mas, nem por isso, deixavam de ser aquelas figuras torturadas que habitavam o livro original. Acho que Caio conseguiu uma coisa rara: uma adaptao que me pareceu, em muitas coisas, mais expressiva ainda que o livro." Caio tambm escreve um pequeno texto para o livreto. Nele, alude a acontecimentos de sua vida, alguns de forma direta, outros em linguagem cifrada. Fala do mergulho que deu numa histria de amor to linda que era como se fosse a primeira. Embora no cite o nome de Ivan, a ele que se refere. No texto, Caio mostra algumas de suas obsesses, a fascinao pela morte, todo o lado escuro que, embora no fosse o nico lado do escritor, Ivan alega no ter conseguido suportar. "Encurralado entre o salto pela janela de Ana Cristina Csar, a fuga incompreensvel de Carlinhos Hartlieb, a partida sbita de Lgia Averbuck, de volta ao quarto de onde sa para a estrada, no sobrado de meus pais, no Menino Deus, depois de anos, sozinho num vero escaldante, numa cidade deserta, todas as horas a morte rondava, emboscada entre objetos familiares de muitas geraes. [...] Nas noites, aos poucos, Carlinhos, Lgia e Ana C. foram deixando de assombrar. Decidi trocar este rido Porto pela
louca Sampa, assumindo minha caraj muito mais paulistana que fronteiria. Descobri dolorido que aquele amor no era especial nem para sempre: trocamos em midos pobres as juras de eternidade que, por acreditarmos em encontros, ainda somos capazes de fazer. To juvenis graas a Deus. Ento colei os cabelos eriados do punk sobre os cachinhos do arcanjo. E vim tona com o livro de Marilena Chau embaixo do brao." Os cachinhos do arcanjo so os cachos de Ivan, o amor que no era para sempre. Carlinhos Hartlieb era um importante cantor e compositor gacho, autor de Por favor, sucesso, e que ficou tambm conhecido por organizar as famosas Rodas de Som: espetculos meia-noite, nas sextasfeiras, com grupos desconhecidos, no Teatro de Arena, em Porto Alegre. Logo depois de gravar seu primeiro disco individual, Risco no cu, Carlinhos viajou para a Praia do Rosa, no litoral de Santa Catarina. No dia 3 de fevereiro de 1984, seu corpo foi encontrado na casinha de madeira que construra, uma das primeiras do local. Nunca se soube exatamente do que ele morreu. Lgia Averbuck era a protetora dos escritores gachos; lanara O ovo apunhalado de Caio em plena ditadura, quando coordenava o IEL. Ela tambm morreu em 1984. Era a morte, a morte que ele teve que enfrentar para lidar com os demnios do texto de Lya. E o livro de Marilena Chau, provavelmente, era Represso sexual, que Caio leu por essa poca. Cheio de culpas e amarguras, nem sempre Caio estava 100% feliz com sua sexualidade. Se a vida amorosa era o desastre de sempre, a profissional estava indo melhor que nunca. Enquanto ganhava a vida trabalhando na Isto, na poca editada por Zuenir Ventura, fazia uns lances para a Gallery Around, house-organ da casa noturna Gallery. Um dos donos da Gallery era Jos Pascowitch, irmo de Joyce Pascowitch. Ele chamou a irm para cuidar da revista, que, com o trabalho de Paula Dip e Antnio Bivar, se tornou um dos veculos mais
interessantes da poca, revelando talentos como Barbara Gancia e Jos Simo. A Gallery Around faria escola com seu estilo elegante e sofisticado, ligado nas tendncias. Caio comeou como colaborador, depois se tornou redator da revista. Mas isso era o ganha-po. A parte que interessava, a literatura, ia melhor ainda. Alm do lanamento do Tringulo, do sucesso ps-Morangos mofados, da adaptao de Pode ser que seja s o leiteiro l fora, Caio terminava o roteiro de um longa 35 mm que seria baseado em um conto seu, Aqueles dois. O filme, homnimo, foi dirigido por Srgio Amon, e tinha no elenco Pedro Wayne, Beto Ruas e Suzana Saldanha. Filmado em Porto Alegre, teve pr-estria em Gramado, em 1986. Muito premiado, o filme foi o nico brasileiro a concorrer ao 11 Festival de Cinema Gay e Lsbico em San Francisco (EUA), em 1987. Alm disso, Morangos mofados tambm estava sendo levado aos palcos, no teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro, e Caio deu uma fora na produo. E ele se preparava ainda para lanar o livro infantil As frangas. As frangas um livro de que Caio gostava muito. A histria surgiu da coleo que Caio tinha de galinhas pequeninas, pequenos enfeites de geladeira. Apaixonado pelas galinhazinhas, que ele s conseguia chamar de frangas, porque assim eram chamadas em sua infncia, em Santiago, Caio ganhou vrias de amigos ao longo da vida. O livro era tambm uma forma de homenagear Clarice Lispector, que tinha uma paixo tambm enorme por galinhas e ovos e escreveu vrios textos a respeito. Assim, cada franguinha do livro baseada em uma franga de verdade, que morava na geladeira do Caio, que aos poucos foi inventando personalidades para cada uma delas. O livro a histria desse galinheiro. Um dos projetos de Caio, antes de morrer, era escrever a continuao das frangas, j que muitas novas surgiram em seu galinheiro depois da publicao do livro. Em uma referncia a Rambo, e com muita ironia, o livro deveria se chamar Frangas 2 a misso. Caio no teve tempo,
entretanto, de concluir essa histria. Depois da morte de Ana C. e do fim da relao com Ivan, Caio volta a So Paulo, j um pouco esquecido da loucura que viver na cidade. Ele agora quer ficar ali por um bom tempo. Vai morar em uma casa alugada do ator Ricardo Blat, uma bela casa de dois quartos, com uma roseira no ptio. Detalhe singelo, mas no pouco importante: Caio era apaixonado por rosas. Era apaixonado por jardins e flores. Na casa nova, comea a trabalhar. Caio est envolvido agora com alguns projetos para televiso. Trabalha em um roteiro para Ronda, uma srie sobre So Paulo com Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli. Faz tambm dois roteiros para Regina Duarte, de quem se aproxima nessa poca. Ela faz a srie Joana, no momento. Os dois chegam a sair juntos; em uma ocasio, vo a um show de Caetano Veloso ("lindo, decadentssimo, bbado, analisado e blas", diz Caio, em carta a Luiz Arthur Nunes), que faz a msica de abertura da srie. Caio, sempre f de Caetano, agora convive com pessoas que o conhecem. Est cercado de estrelas, atrizes, escritores, diretores. Apesar de tudo, tenta se manter mais reservado; no quer virar "moda besta", diz. Ele no se deslumbra com as estrelas que esto a seu lado; se a pessoa fosse interessante, no importava se era famosa ou no. Assim, Caio era amigo de Regina Duarte e Lygia Fagundes Telles, duas mulheres respeitadas e famosas; ao mesmo tempo, adorava Claudia Wonder, travesti paulista, que manteria anos depois uma coluna na revista G Magazine. Ele a conheceu na noite e adorava conversar com ela sobre a vida. Quando comeou a escrever crnicas para o Estado, Caio chegou a falar de Claudia e seu trabalho, convidando os leitores a assistir ao seu show. Alm do trabalho com a TV, Caio faz uns free-lances de crtica teatral para a Isto. E reviso de originais para a Brasiliense. Com a educao impecvel que recebera no Rio Grande do Sul, Caio tinha o portugus timo e era um grande revisor. Nos jornais, era bom copidesque. Nas editoras, revisava livros. Um dos livros que revisou foi Feliz ano velho,
de Marcelo Rubens Paiva, publicado no mesmo ano de seu Morangos mofados. Corre a histria, pela boca de defensores fiis de Caio, que na verdade ele que teria escrito o livro, de tantas modificaes que foi obrigado a fazer. Marcelo teria entregado uns rascunhos toscos para Caio, e ele praticamente teria reescrito o livro. O prprio Caio, no entanto, teria contado a amigos, como Luiz Fernando Emediato, que a histria era um exagero; ele apenas poliu o texto de Marcelo, que, afinal, era um rapaz muito novo e inexperiente; Feliz ano velho era seu primeiro livro, e s foi escrito para contar a histria do acidente que, aos 20 anos de idade, deixara o rapaz para sempre paraltico. uma fase de intenso trabalho para Caio, tanto que a literatura fica meio em segundo plano: seu prximo livro de contos, Os drages no conhecem o paraso, s sair em 1988. Alm das revises de livros, faz tambm tradues. Uma de que gosta muito a de Sonhos de Bunker Hill, de John Fante, autor que admira. O primeiro que o fez chorar em muito tempo, dizia. Aos 36 anos, Caio j pode olhar para trs e ver que construiu uma obra. Ele , definitivamente, um escritor. E um escritor com pblico cada vez mais fiel. Reedies de seus primeiros livros, que foram publicados de forma quase artesanal quando ele ainda era adolescente, comeam a ser pedidas pelas editoras. Caio concorda em reeditar, desde que faa modificaes. Perfeccionista, quer mexer no texto, atualiz-lo, corrigir erros, melhorar o estilo. A base fica a mesma, mas preciso aparar algumas arestas. Ento, em 1984, para uma nova edio de O ovo apunhalado, ele retoma o livro escrito uma dcada antes, e o revisa todo. A edio sai pela Siciliano, onde trabalha agora o editor Pedro Paulo de Sena Madureira, que j lanara anteriormente o livro pela Salamandra. O ovo apunhalado era um livro que j tinha histria e fs ferrenhos. Grace Gianoukas, atriz gacha, leu o livro em 1982 e se apaixonou imediatamente. Ela estudava em Porto Alegre, fazia Artes Cnicas no CAD, e morava com mais dois
amigos do curso de Letras. Mas Grace era natural de Rio Grande, cidade que fica a quatro horas e meia de viagem de Porto, e numa das visitas que faria famlia, ela estava sem nada para ler. Um dos amigos que moravam com ela lhe mostrou O ovo, ela achou interessante. Quando leu, foi como uma bofetada: apaixonou-se pelo estilo, pelo autor, pelas coisas que ele dizia. Passou a semana de visita deitada na cama, lendo e relendo o livro. Em 1983, quando Caio foi lanar O tringulo das guas na Feira do Livro, Grace no tinha dinheiro para comprar o livro. Mesmo assim, entrou na fila de autgrafos, s para ver o Caio. Ele foi muito correto, muito blas, mas no lhe deu muita ateno. Na poca, Grace trabalhava em um restaurante de comida natural. Um dia ela vinha caminhando, os pratos na mo, quando abriram-se as portas vai-e-vem, tipo faroeste, e ela deu de cara com o Caio sentado em uma das mesas. Voltou imediatamente. Meu Deus, o Caio! O Caio t aqui, meu dolo, meu dolo, ai meu Deus, ai ai ai! Shell, irm de Augusto Rigo, o amigo de Santiago que fora com Caio para a Sucia, e tambm trabalhava no restaurante, arrastou Grace pelo brao e a levou at a mesa, apresentou-a ao Caio, eles conversaram um pouco. Grace convidou-o para assistir ao seu espetculo O Acre vai Rssia, que estava sendo muito elogiado na poca, um espetculo moderno, de vanguarda. Tempos depois, Caio vai ao espetculo. J estava tudo escuro, mas Grace o viu entrar. Ai meu deus, o Caio t a... Mas foi em frente. No final, os atores abraavam o pblico, agradeciam a presena, e l foi ela dar um jeito de abraar o Caio. Dias depois, encontram-se por acaso num bar. Ele passa, cumprimenta. Da a pouco, Grace recebe um bilhete. Adorei o espetculo de vocs, no fui ao camarim porque sou muito tmido, mas foi timo etc etc. Era do Caio. A foi aquela festa: Grace foi para a mesa dele, conversaram de verdade, de verdade mesmo, pela primeira vez, e desde ento se tornaram grandes amigos. Caio ia a festas na sua casa, saam juntos. Em 1984, quando Caio est morando na casa onde
antes morava Ricardo Blat, que se mudara para o Rio de Janeiro, Grace vem morar com ele. A faculdade ainda no terminara, mas s entrava em greve, sempre em greve. Caio foi crucial nesse momento: insistiu para que ela viesse, ofereceu sua casa, disse que Porto Alegre era pequena demais. Depois de uma visita a So Paulo junto com o irmo, Airton, em que se hospedaram na casa de Caio, Grace decidiu vir morar de vez, para alegria do escritor, que adorava sua companhia. Aos olhos de Caio, Grace era ainda uma menina, aos vinte e um anos de idade. Ele a protegia de todas as formas: lhe dava conselhos, apresentava-a a amigos, mostrava livros que deveria ler. Com Caio, Grace conheceu James Joyce, Ezra Pound, Clarice Lispector. Principalmente Clarice Lispector. Caio tambm apresentou Grace a Orlando, com quem ele morara na casa da Melo Alves. Orlando tinha um show-room de moda, onde Grace passou a trabalhar. De dia, trabalhava no show-room. A noite, era garonete. Por essa poca, Grace s conhecia o lado meigo do Caio, o lado gentleman, bem humorado. Um dia, porm, ela viria a conhecer seu lado agressivo. Numa tarde, apareceram dois homens alegando ser oficiais de Justia, querendo falar com Ricardo Blat. Grace disse para voltarem noite, quando Caio estivesse em casa, pois ele que conhecia o rapaz. Quando voltaram, Caio foi gentil. Disse que Ricardo no morava mais ali. Um dos homens pediu um copo d'gua. Caio deixou entrar, ainda sorrindo. Os dois se sentaram no sof. Tudo bem. Quando pediram para ir ao banheiro, Grace viu os olhos de Caio transformarem-se em frias. Ele comeou a mudar. O senhor Abreu? perguntou um dos homens. Eu tambm sou Abreu. Aham. Todo mundo Abreu. O Brasil inteiro Abreu. E vamos indo, vamos indo embora responde Caio, j empurrando os senhores porta afora. Grace no sabia onde se esconder de vergonha, a grossura com que Caio tratara os oficiais... Ento Caio se justificou.
Para ele, aqueles homens no eram oficiais coisssima nenhuma; eram de alguma polcia, e estavam ali para plantar alguma coisa contra o Ricardo, plantar drogas para um possvel flagrante, sabe-se l por qu. Quando percebeu isso, Caio quis mand-los logo embora. Parania ou verdade, Caio tinha antecedentes: por duas vezes, ele tinha sido preso por flagrante falso de drogas. Gato escaldado, no via muitos motivos para confiar na polcia brasileira. No que ele no usasse drogas. Usava, sim. No era viciado, no usava todo dia, no tinha nenhuma droga de sua preferncia, mas usava, de vez em quando, nas festas, na noite. s vezes cocana, para ficar acordado. Anfetaminas, pelo mesmo motivo. Comprimidos para dormir, quando decidia dormir. Maconha, s vezes, s vezes. lcool: sempre. Um bom whisky, uma cervejinha. Um strega flambado. Gostava do que era bom: quando podia, gostava de ir ao Ritz, um bar moderninho de So Paulo, e pedir um whisky doze anos. As vezes, chegava bem cedo ao bar, e ficava horas escrevendo, at os amigos comearem a chegar. Na maior parte das vezes, escrevia em casa mesmo. Caio est fazendo caf: hora de escrever. Ele arruma a mesa. De um lado, esquerda, a pilha de papis em branco, impecvel. Do outro, a pilha de textos escritos, sem uma ponta fora do lugar. No meio, a pequena mquina de escrever, cinza. Ao alcance da mo, a garrafa e a xcara de caf, o cinzeiro, o isqueiro e os cigarros. Tac-tac tac-tac, ele bate mquina, o montinho de papis da esquerda vai diminuindo, o da direita aumentando. Caio bebe um gole de caf, fuma um cigarro. Quando h uma ou duas bitucas no cinzeiro, ele o limpa, jogando as cinzas no lixo. Se anoitece, substitui o caf por Jack Daniels. E assim por horas e horas a fio, tac-tac-tac. Ao final, quando deixa a mesa, ela est intacta, exceto pela pilha maior do lado dos papis escritos. No final de agosto de 1984, Caio comea a trabalhar fixo na Around. Apesar dos gritinhos da mulherada e do ambiente
metido a chique, com pessoas cool entrando e saindo a todo momento, esse um trabalho que ele gosta de fazer: d a oportunidade a ele, por exemplo, de ir ao Rio de Janeiro entrevistar Ney Matogrosso, seu dolo. No Rio, surge tambm um novo amor: Pedrinho. "... depois de uma noite linda com Pedrinho, [...], a ltima imagem foi a ponta do dedo indicador dele acariciando a ponta do meu dedo indicador atravs das grades da janelinha do elevador. Cena de cinema. E a voz dizendo que vem a So Paulo daqui a uma, quem sabe duas ou trs semanas. Porta do elevador fecha enquanto sobem os crditos.", escreve a Luciano Alabarse. Esse homem ou no um romntico incurvel? Um sonhador, por mais ironia que tente imprimir s palavras. Antes que pudesse colocar a carta a Luciano no correio, entretanto, acontece uma coisa que deixa Caio muito impressionado. O escritor Reinaldo Moraes, autor dos romances Tanto faz e Abacaxis e amigo de Caio, foi visitar a me e encontrou-a morta, cada no cho da cozinha. No havia quem o ajudasse: o pai j havia morrido, ele era filho nico. Os amigos que foram dar uma fora, inclusive Caio. Ele, que nunca tinha visto ningum morto, exceto a cantora Elis Regina, que morava perto de sua casa e morrera h pouco tempo, estava ajudando a vestir a morta, providenciar caixo, enterro. Logo ele, to obcecado pela idia de morte. Ficou impressionadssimo, falou no assunto por semanas. E achou que tinha aprendido algo com a experincia: ficado realmente adulto, muito mais velho. Alguma coisa j no estava l, no corpo morto da mulher. "A alma? Pode ser." Caio conhecera Reinaldo em 1981, atravs de Maria Emilia Bender, que trabalhava junto com ele na Brasiliense. Caio e Maria Emilia foram namorados por algum tempo, e ele costumava visitar a moa no apartamento que dividia com Ruy Fontana Lopes e Reinaldo Moraes, no bairro de Higienpolis. O escritor Mrio Prata morava no mesmo prdio. De vez em quando, Reinaldo e Caio participavam de eventos literrios juntos, como o lanamento de livros e seminrios. Certa vez, em Porto Alegre, vendo que a fila era
grande na frente da sua mesa, mas que no havia ningum na mesa do Reinaldo, Caio chamou os amigos e parentes de lado e dizia para irem, que Reinaldo era timo. Nessas ocasies, a farra era grande. Os dois compartilhavam a porra-louquice e iam aos mesmos bares, como o Pirandello, na rua Augusta chegaram mesmo a participar da coletnea Contos Pirandellianos 7 autores procura de um bar, em que a idia era histrias que se passassem no bar de Antnio Maschi. Uma vez, em 1983, foram juntos a um evento em uma universidade em Londrina, para discutir a literatura dos anos 80. Na sesso de autgrafos, chegou um casal de namorados que era f dos dois. Conversa vai, conversa vem, Caio terminou a noite com o menino e Reinaldo com a garota, no hotel. No incio de 1985, Caio muda novamente de endereo. Ele decide ir morar com Srgio Bianchi, cineasta, amigo, para quem chegou a escrever alguns roteiros. Antes de mudar para l, porm, ele fica num apartamento pequenino, na verdade uma quitinete, por pouco mais de um ms. Grace, que morava com ele, decide ir para uma penso, j que o dono da casa no a alugaria para trs garotas. No queria fazer "repblica", disse ele a Grace e s amigas que dividiriam com ela a casa. Caio, porm, chama Grace para ficar com ele na quitinete at surgir alguma coisa. O espao era exguo, mas Caio era leal com os amigos, e mais ainda em relao a Grace. Situaes engraadas aconteceram no curto perodo da quitinete: s vezes, Grace chegava do trabalho, tarde da noite, e Caio estava acompanhado. Ele pedia para que ela fosse dormir na cozinha, e l ia ela, p ante p, deitar-se no espao mnimo entre a geladeira e a pia e a mesinha e o fogo. Se esticasse o brao, trombava em alguma coisa, mas era divertido mesmo assim. E as mudanas no aconteciam apenas na vida de Caio e Grace. No plano poltico, havia um clima de alvio: em janeiro daquele ano, Tancredo Neves fora eleito presidente do Brasil por um Colgio Eleitoral. As eleies no foram diretas, como a maioria pedia, mas pelo menos era um presidente
civil. Depois de mais de vinte anos de militares no poder, isso j era algo a ser comemorado. E foi: o tal namorado de Caio, Pedrinho, quebrou o p danando na festa de vitria do Tancredo. A alegria durou pouco, no entanto: o presidente morreu antes de tomar posse. Seu vice Jos Sarney assumiu. Sarney tambm era civil, mas apoiara os militares at quase o final da ditadura. Enquanto isso, a aids vai chegando mais perto de Caio. Luiz Roberto Galizia, diretor, autor de poesia, jornalista, uma pessoa de quem Caio gostava, embora nunca tivesse tido a chance de se aproximar muito, foi internado, aos 34 anos de idade. A parania aumenta um ponto. Caio tem umas pequenas doenas, infeces, aftas na boca, mas os mdicos dizem que no nada. Como se a possibilidade de doena no bastasse, Caio ainda quase morre queimado num incndio em seu apartamento, incndio causado por ele mesmo. Era o ms de maro, e Caio j estava morando com Srgio Bianchi. Em carta a Jacqueline Cantore, o escritor descreve o episdio. "Sas que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogo, mui lpida, assando umas coxas de franga, quando eis seno que sente um odor estranho vindo das bandas do dito fogo. Ela estava, mui poeticamente, de costas para o fogo, observando aquela pxa grvida no aqurio, que no se decide a parir (vo ser arianos, os demnios, eu esperava pxes de Pxes, sas?) Ento me viro (observe a mudana espontnea & natural da tercra para a primra pessoa) e eis que, atrs do fogo, vejo CHAMAS ENORMES AT QUASE O TETO. Joguei gua, a chamei o Sergio que telefonava da sala (Sergio disse: "Agora tenho que desligar porque minha casa t pegando fogo", bem natural), e ele comeou a me puxar pra fora da cozinha, aos gritos de "Vai explodir! Vai explodir! No joga gua que pior!". Marilene, ousadssima, queria avanar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO (ela no tinha grana para comer e sua maior preocupao era que as coxas ficassem inutilizadas,
isso , carbonizadas). Bueno, corremos para o corredor do prdio. Duas velhinhas saam do elevador. Sergio: "Corram, saiam depressa que vai explodir tudo!". Uma das velhinhas comea a desmaiar. Junta gente na porta do prdio. Seu Antnio, o zelador, vem com um extintor de incndio. Gritos, sussurros, gemidos, faniquitos. Fumaa, cheiro de gs, "apaguem os cigarros!" (Marilene correu para seu quartinho e, num sopro, apagou a vela de sete dias, juro), & LABAREDAS CADA VEZ MAIS ALTAS. Bom, o extintor apagou tudo: espuma branca por toda a cozinha e toda a sala. Enfim. Marilene foi espiar se a pxa tinha abortado: rauda, ela continua grvida. Ai, a tremedeira. Que medo!" O episdio terminou bem, e Caio o contou da maneira que sabia: com humor. Quando no h jeito, o melhor rir, ele pensava. Era adepto da "cultura das abobrinhas", que simplesmente falar bobagem. Ver filme cinemo de Hollywood, falar asneiras, essas coisas. Justificando essa maneira leve de ver a vida, ele vinha sempre com o trecho de um poema de Drummond: "Perdeste o melhor amigo, no tens sequer um co ... mas e o humourt" Afinal, poesia tambm era muito importante na vida de Caio. Ele lia Adlia Prado, Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Mario Quintana, e, principalmente, Drummond. Adorava a poeta Ledusha, paulista de alma carioca que era sua amiga, assim como Ana Cristina Csar. Todos eles eram influncias to grandes para sua prosa quanto os ficcionistas que ele amava. Caio tambm escrevia poesia: escrevia em seus dirios, que manteve por boa parte da vida. Mandou vrias em cartas para amigos, ao longo da vida. Como essa, que escreveu em fevereiro de 1974 e enviou a Vera Antoun: Estavam ali as portas
Janelas e varandas. Estavam ali Na fronteira do olhar Onde o de dentro encontra Justamente Com o de fora. Nesse ponto exato Elas estavam: Bastava um gesto. Mas o meu estar parado Era maior que eu. Estar parado Estar vivo: A mesma incompreenso E medo Entre mim E aquele estar das coisas. Estar ali Como nunca ter chegado. Estar ali Por estar ali E alm de mim 0 que eu no ousava. Ah Relembro a amplido dessas varandas intocadas Os pequenos raios de luz Nos vidros coloridos das janelas. Revejo a dura consistncia da porta Cerrando seu segredo. E me retorno Ali No imvel do gesto que no fiz. Como se pudesse Agora Escancarar portas e janelas
Para sair nu pelas varandas Desvairado e nu Profeta, louco, infante. Sair para o vento O sol, as tempestades, as neves, As quedas de estrelas e Bastilhas, O cheiro de jasmins Entontecendo os quintais. (pudesse retomar manhs, amigo, manhs perdidas como tudo que no fui) Mas continuo Ali. Aqueles espaos Permanecem mortos dentro de mim. Como um corpo que se ama E no se toca. Ou esse, sem data, reunido entre os dispersos publicados no livro Caio 3D o essencial da dcada de 1980, de 2005. No cantes, como eu, Os outros por bebedeira No sades A morte em literatura. Boa negra Voltada para as estrelas Ps de chumbo cravados na lama: O canho E sua escandalosa metafsica Caio nunca publicou em livro seus poemas. Talvez no os achasse bons, talvez no os levasse a srio. Brincava com
Mrio Prata que poesia era coisa para quem no conseguia chegar ao fim da linha. Mas a importncia de ter lido os poetas, em seus textos, era de fato inegvel, e aparece na preocupao com a forma, no lirismo, na exatido do uso das palavras. E as influncias para seus textos no vinham s da literatura: cinema, teatro, msica, tudo podia influenciar um texto. Caio chegou a dizer, certa vez, que devia ser insuportvel para Academia, e tambm para a crtica, lidar com um escritor que confessava que o trabalho do Cazuza e da Rita Lee foram influncias muito maiores que Graciliano Ramos. "Isso deve ser insuportvel. Voc compreende? Isso no literrio. E eu gosto de incorporar o chulo, o noliterrio", disse. Fosse o que fosse que o inspirasse, ele anotava sempre em caderninhos. Sonhos, frases-m. "Eu vou magnetizando coisas no inconsciente, coisas do dia-a-dia, coisas que magicamente as pessoas vo te dizendo", disse em uma entrevista. De forma intuitiva, pouco metdica, tudo ia fermentando, amadurecendo, at que surgia uma histria inteira, redonda. Como ele gostava de escrever com msica, s vezes tentava apanhar no texto o ritmo daquela msica, fazer uma "coreografia verbal" para ela. Muitos de seus contos vm com o aviso: para ler ao som de. Pode ser Keith Jarrett, Angela Ro Ro, Rolling Stones. E Caetano Veloso, sempre, cujo verso "como bom poder tocar um instrumento" Caio estava sempre repetindo. Ele adorava essa frase. Como era bom poder tocar um instrumento, pensava, como era bom poder escrever, ter essa arma para lutar contra as agruras do mundo. E o instrumento estava afinado, e tinha seu pblico. At cach adiantado estava recebendo: Luiz Schwarcz, ento na Brasiliense, props um adiantamento a Caio para que ele escrevesse um romance. Caio j ruminava a idia h trs anos, a idia para Onde andar Dulce Veiga. Era s sentar e escrever. Mas as coisas no eram bem assim com Caio; ele
tinha seu prprio ritmo, que por sua vez era ditado pelo ritmo do texto, quase uma entidade independente. Muitos escritores afirmam que o que fazem captar uma idia e escrev-la; so simples canais de transmisso da arte. Por mais que Caio trabalhasse duro, o texto viria quando tivesse que vir, e isso s foi acontecer em 1990, quando, depois de anos enrolando, escreveu o livro em dois meses e o publicou, j ento pela Companhia das Letras. Enquanto no escreve Dulce Veiga para a Brasiliense, Caio sofre mais uma decepo. Viaja a So Tome das Letras com Pedrinho, mas l discutem muito, brigam, diferenas saltam tona. Queriam ir embora, mas o pneu furou, o motor pifou, tudo errado. E a relao que durara nove meses acabava assim. E como m notcia sempre anda de mos dadas, Caio sabe da morte de Fernando Zimpeck, um ator gacho. Galizia j tinha ido. As informaes ainda eram poucas, as pessoas morriam muito rpido. E ser gay ainda era sinnimo da peste. Para piorar um pouco mais, amigos comeam a ligar, a deixar recados na secretria eletrnica, preocupados. Estava rolando o boato de que ele tambm estaria com aids. Baixo astral total, mas pelo menos as aftas sararam, os gnglios que tinham aparecido diminuram. Caio se sentia saudvel, parecia saudvel, e os boatos eram infundados ao menos aparentemente. Ruim mesmo era a falta de auto-estima que s vezes aparecia. Sempre com muito humor, mas dava para perceber uma certa tristeza, uma certa carncia por trs de suas brincadeiras. Em carta a Jacqueline: "Abobrinha 2 (somente para iniciados): Abobrinha 2a. S'as o que o Caio Fernando Abreu disse quando viu o Jaburu do outro lado da calada? Como que estou do outro lado, se estou aqui? Abobrinha 2b. S'as o que o Jaburu, do outro lado da calada, fez quando viu o Caio Fernando Abreu? Gritou: Jabur-!"
Em 1986, Caio abandona a Around que agora no se chama mais Around, e sim A-Z e vai trabalhar em O Estado de S. Paulo. Vai fazer o que sabe: crtica cultural, cinema, literatura, msica. a poca da criao do Caderno 2, o suplemento de cultura; pela primeira vez, o sisudo dirio recebia jovens para fazer um caderno do tipo, e o editor Luiz Fernando Emediato, paladino do Oeste, amigo dos tempos de ditadura e jornais nanicos. Emediato e Caio, que tinham perdido contato, comeam a se ver todo dia, mas naquela incmoda posio de chefe e subordinado. Caio no gostava de receber ordens, de cumprir deadlines, de se preocupar com horrios de fechamento. Emediato precisava fazer tudo isso, precisava botar o jornal na rua. E quando cobrava resultados de Caio, este era seco, mal-humorado, frio. Para ele, Emediato tinha se entregado, se vendido ao sistema, talvez; era o chefe engravatado e careta. O Caderno 2 no era fcil de se editar. Como era um caderno de cultura em geral, havia vrios grupinhos: o pessoal do teatro, o pessoal do cinema, da literatura, da msica. Ningum se misturava muito. Caio tinha sua turma: Jos Mrcio Penido, amigo de muito tempo, agora dividia a redao com ele. Havia outros. E Caio estava sempre pronto a defender seus amigos, mesmo os que no trabalhavam no jornal, quando achasse necessrio. E mesmo que no fossem amigos: ele rodava a baiana sempre que achava que algum estava sendo injusto. Emediato, por exemplo, gostava de implicar com o grupo de rock Tits. Em qualquer crnica ou texto, ele dava um jeito de enfiar os Tits no meio e fazer uma brincadeira, uma palhaadinha, uma alfinetada de leve. Caio, que adorava o grupo, se mortificava. Por qu?, perguntava. Por que essa implicncia com os Tits? Ele, sempre to bemhumorado, no tinha humor nenhum nessas questes; levava a srio demais a defesa do trabalho e da arte das pessoas que admirava. Por essa poca, Caio trabalha tambm na pea A maldio do vale negro, junto com Luiz Arthur Nunes. A pea inspirada no texto que Caio escrevera, aos 13 anos de
idade, para o concurso de redao em sua escola A maldio dos Saint-Marie, que foi publicado mais tarde, em Ovelhas negras. Caio e Luiz Arthur passaram todo o Carnaval de 1986 trabalhando e brincando com a idia de melodrama. Escreveram o texto e Luiz Arthur dirigiu a pea, que ganharia o Prmio Molire de teatro, em 1989. Nesse perodo, Caio escreve tambm o roteiro do longametragem Romance, dirigido por Srgio Bianchi. O escritor e Srgio, porm, j tinham desistido de morar juntos. Srgio era, s vezes, muito louco, muito intenso, e Caio tambm no era uma pessoa muito fcil... O escritor vai ento para um apartamento na Haddock Lobo, onde fica, finalmente, por vrios anos. Vai morar com Antnio Neto, um rapaz que no conhecia, mas que topara dividir apartamento com ele. Uma amiga em comum lhe pedira que acomodasse Caio por uns tempos, e Antnio disse que no se importava. Na verdade, ele se importava, mas quando soube que era o Caio, a coisa mudou de figura. Antnio era gacho e tinha morado no mesmo bairro do escritor em Porto Alegre. F de sua obra, achou o mximo ver o desfile de pessoas que se tornou comum no apartamento depois da vinda de Caio: "atores, atrizes, escritores, vagabundos, poetas, artistas plsticos, veados, lsbicas, gente famosa, gente annima, alcolatras annimos, alcolatras famosos, me-de-santo, pai-de-santo, travesti, garonete, guarda-costas, porteiro de boate, dona de boate", conta Antnio, talvez com certo exagero, na introduo de seu livro Me na zona. A idia para a histria surgiu em uma noitada que Caio, Cazuza e ele passaram em um bar. Caio comeara a dar uma de astrlogo e falar do mapa astral de Antnio. Sabia que o rapaz era ariano e que seu ascendente era Libra, mas era s. No sabia as outras coisas. Foi quando Cazuza interveio e comeou a brincar. Inventou que o Antnio tinha trgono na quarta casa da Lua em Saturno, o meio do cu em trgono em Urano, e mais um monte de coisas sem sentido. O rapaz entrou na brincadeira; disse que, alm da Lua e Saturno e Urano sabe l onde, ele tinha a me na zona. A expresso pegou, e os trs passaram
a noite toda discutindo o que era ter a me na zona, e por fim Caio sugeriu que o rapaz escrevesse um conto ou crnica que ele publicaria. Antnio escreveu, o conto Me na zona saiu na A-Z e fez muito sucesso. Caio insistia para que o rapaz escrevesse um livro: ele lhe daria toda fora. Apenas 19 anos depois, no entanto, Antnio tomou coragem e escreveu o livro. E, afinal, o que ter a me na zona? Segundo as primeiras frases do conto de Antnio, "me na zona errar, se foder, chorar e se arrepender profundamente. Depois, comear tudo de novo. Exatamente do mesmo jeito." Outro que morou com Caio nesse perodo, incio de 1987, foi o ator Marcos Breda, que conhecera Caio uns dois anos antes, em uma festa na casa da atriz Imara Reis. O ator, que era tambm gacho, de Porto Alegre, estava em So Paulo para participar do filme Feliz ano velho, baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva. Breda voltaria a So Paulo no ano seguinte, para fazer uma montagem da Electra de Sfocles, dirigida por Jorge Takla, e foi ento que dividiu o apartamento com Caio, durante seis meses. Ali, ele viu sarem da mquina de escrever vrios dos contos do livro Os Drages no conhecem o paraso, que seria publicado em 1988. O ator tambm se preocupava com os sumios de Caio, dois, trs dias sem aparecer, trancado no quarto. Ele ento bolou um estratagema: espalhou talco no cho entre o quarto de Caio e o banheiro. Assim, quando voltasse da rua, podia saber se Caio estava vivo ou morto: bastava ver se havia pegadas. Se o amigo havia sado para ir ao banheiro, ou cozinha, era porque estava vivo, e apenas queria ficar sozinho. Dois dias depois, porm, o talco continuava intacto. No terceiro dia, o ator tomou coragem e bateu na porta. L de dentro, uma voz cavernosa respondeu: Bom dia, Breda. O estratagema do ator era bom, e funcionaria com qualquer outra pessoa. O problema era que Caio tomava comprimidos para dormir e ficava dois dias literalmente apagado. Caio convivia bem com a heterossexualidade convicta de Breda. O apartamento era mais movimentado por causa das
namoradas que o ator levava que pelos casos de Caio. Por acaso, muitas das meninas que Breda namorava na poca eram bissexuais; Caio gostava de brincar com o amigo, dizendo que essa era sua forma de exercitar sua bichice sem culpa. Um dia, os dois vo a uma festa. Chega um amigo de Caio, que comea a dar em cima de Breda. Caio, sarcstico, enterra as esperanas do amigo: Desista, meu amor. Todas ns j tentamos. por influncia de Caio tambm que Breda vai morar no Rio de Janeiro, na metade de 1987. Mrio Prata estava escrevendo a novela Helena na Manchete e precisavam de alguns atores para certos papis. Caio, que estava trabalhando com Prata em uma novela de Jos Wilker que acabou no se concretizando, indicou Breda, e l foi ele. O ator foi para o Rio e no saiu mais. Representou em adaptaes de algumas obras de Caio, como O homem e a mancha, no teatro, e Sargento Garcia, um curta. Em 2004, viria a participar, dessa vez como ator e tambm co-produtor, junto com Camila Pitanga, da remontagem da peav4 maldio do vale negro, com direo de Luiz Arthur Nunes. O livro que Breda viu nascer enquanto morava com Caio, Os drages no conhecem o paraso, provavelmente o melhor trabalho do escritor. Os contos apresentam uma unidade temtica, segundo Caio nos diz, em uma pequena introduo. um livro sobre amor. So treze contos, e no toa treze um nmero cheio de significados msticos, mgicos, para quem acredita nessas coisas, e ele acreditava. J na primeira histria, Linda, uma histria horrvel, ele aborda o tema que o afligia: a aids. Sempre usando elipses, sem citar o nome da doena ou do vrus que a causa, ele fala dos sinais, da degradao do corpo. Um homem vai visitar a me. Doente, e pressentindo, talvez, seu fim, ele chega sem avisar, e encontra a me envelhecida, junto com a cadela tambm idosa, Linda.
Mas vai tudo bem? -Tudo, me. -Trabalho? Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem plo da cadela. Depois olhou outra vez direto pra ele: Sade? Disque tem umas doenas novas a, vi na tev. Umas pestes. Graas a Deus ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mos tremiam um pouco. E a dona Alzira, firme? Um por um, foi abrindo os botes. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, comeou a acariciar as manchas prpura, da cor antiga do tapete na escada-agora, que cor? -, espalhadas embaixo dos plos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoo. Do lado direito, inclinando a cabea, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos at o cho. Deus, pensou, antes de estender a outra mo para tocar no plo da cadela quase cega, cheia de manchas rosadas. Iguais s do tapete gasto da escada, iguais s da pele do seu peito, embaixo dos plos. Crespos, escuros, macios. Linda sussurrou. Linda, voc to linda, Linda.
Em todos os contos, o escritor aborda seus temas preferidos: o estranhamento, a solido, a dor. Seus personagens vo envelhecendo com ele. Sempre jovens em Inventrio do irremedivel, agora h homens de 40 anos como o prprio escritor. O estranhamento que sentiam em relao cidade grande, muito forte em seus primeiros contos, agora j aceito pelos personagens, que, mesmo solitrios, vislumbram esperanas. O texto do escritor est em sua melhor forma, e isso foi reconhecido: Caio ganha seu segundo Jabuti por Os drages. A repercusso do livro ultrapassa as fronteiras continentais e chega Inglaterra, onde John Gledson, o maior especialista ingls em literatura brasileira, escreve uma crtica muito elogiosa para o Times, de Londres. Essa crtica abre portas para Caio: tradutoras e agentes foram procur-lo; h interesse em publicar Os drages em francs, em italiano, em alemo. A carreira internacional de Caio comea a, e ele
no vai perder nenhuma chance de conseguir dar certo l fora. At porque isso significa viajar: Inglaterra, Frana, Alemanha... Dar uma descansada do Brasil. As possibilidades so imensas, mas no assim, imediatas Levaria tempo at que as coisas se ajeitassem, contratos, ajustes: Caio s viaja para a Europa no final de 1990. Enquanto a viagem no chega, ele acerta algumas contas consigo mesmo; depois de cinco anos de espera, a hora, finalmente, de se descobrir Onde andar Dulce Veiga.
CINCO
Eu deveria cantar. Caio est numa fila de banco, esperando sua vez. De repente, lhe ocorre a frase: Eu deveria cantar. Ele corre para casa, excitado. O comeo! Ele tem o comeo. E todo o resto. A idia, dele e do cineasta Guilherme de Almeida Prado, j existia h uns dez anos, os rascunhos j tinham uns seis, o quase-adiantamento para escrever j datava de uns quatro anos. A idia inicial era inscrever o roteiro do filme em um concurso e depois escrever o romance. No entanto, apesar do roteiro estar terminado, Dulce Veiga no saa. Recusava-se. Os drages desistiram de esperar, furaram a fila e foram publicados antes dela. Mas a idia para a primeira frase a singela "eu deveria cantar" detonou o processo criativo. Tudo aquilo que Caio vinha maturando h anos resolveu sair tona, com vrias mudanas em relao ao roteiro feito a quatro mos com Guilherme. Em dois meses, terminou o livro: escrevia dez, doze horas por dia. Das duas mil pginas que tinha escrito, no total, tirou umas duzentas. Escrevia, escrevia, escrevia. Resultado: um belo desvio na coluna. Alm do livro pronto.
O processo o mesmo que acontece a uma amiga escritora, Mrcia Denser. A mulher com pinta de fatal, a preferida de Paulo Francis, a devoradora de homens. Alter ego literrio: Diana Marini, a Diana caadora de seus contos. Mrcia era amiga de Caio desde os anos 70, quando se trombaram em algum lanamento de livro pela cidade, ambos com aquele qu de malditos, loucos, sem papas na lngua. Ambos precoces, apadrinhados desde cedo por grandes nomes: ele por Hilda Hilst, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles: ela, por Paulo Francis. Ambos belos: Caio com seu jeito de Quixote, alto, cabelos lisos, ela loira, loira fatal, rosto de boneca. Beldades perversas; ficaram amigos. Enquanto Caio escreveu Sapatinhos vermelhos, uma releitura para adultos do conto de Andersen, Mrcia escrevia sua verso da Branca de Neve. Ela era a Branca de Neve, cercada de anezinhos, cercada de homens por todos os lados. Ele era a mulher dos sapatos vermelhos, que conseguiu conquistar trs homens com seus sapatos, por mais que os ps doessem. Eram amigos, Mrcia e Caio; ela estava sempre no apartamento dele. Enquanto ele escrevia Dulce Veiga, uma aventura no terreno do romance, que ele s praticara uma vez, aos 18 anos de idade, com Limite branco, ela tambm se arriscava a um texto maior, o infantil A ponte das estrelas, e ela o escreveu em p, tambm de dez a doze horas por dia, numa tentativa de no engordar demais. O fato de os dois e no s eles, mas a maioria dos escritores brasileiros da poca estarem decididos, depois de tantos anos escrevendo contos, a fabricar romances, no era coincidncia. Talvez houvesse uma necessidade de provar que se conseguia fazer algo de maior flego, algo mais trabalhado, escrito mais com a cabea e menos com o corao, com o impulso para o nocaute que um conto deve ter. E, mais pragmaticamente, era uma exigncia do mercado mesmo, uma questo da poca. Os anos 70 foram todos dedicados ao conto. Havia revistas e jornais literrios, muitos deles nanicos, que os publicavam, que circulavam, que realmente eram lidos. Nos anos 80, com
o fim da ditadura, acabam os nanicos, e assim um veculo por onde escoar tanto texto curto. As editoras comeam a preferir romances, porque o leitor mdio est mais acostumado com eles. Rubem Fonseca, por exemplo, grande contista, publica vrios romances nessa poca, nem todos com o mesmo sucesso de crtica que seus livros anteriores de textos curtos. Dulce Veiga, a cantora, no era uma inveno de Caio. Quem a criou foi o escritor Marques Rebelo, que nos anos 30 escreveu A estrela sobe, com Dulce, ainda chamada Dulce Rodrigues, como personagem. Em 1974, Bruno Barreto faz a verso do romance para o cinema, e rebatiza a cantora, agora sim, de Dulce Veiga. O filme estrelado por Betty Faria e Odete Lara, que foi amiga de Caio. Assim, ao escrever sobre Dulce Veiga, Caio homenageia no s Marques Rebelo, um escritor urbano, como ele, mas tambm Odete Lara, que alis personagem do livro. O narrador de Onde andar Dulce Veiga um jornalista. Do a ele a tarefa de encontrar Dulce Veiga, cantora muito popular que desaparecera vinte anos antes. Ele segue as pistas, conhece a filha dela, Mrcia Felcio, vocalista de uma banda punk. Entremeando a histria, h as menes a Pedro, um amor do narrador, um amor que foi embora. Os enigmas vo se resolvendo, um a um. A busca de Dulce Veiga significa mais para o narrador que um simples trabalho, uma boa matria: a busca de si mesmo. A busca de seu passado, afinal a primeira entrevista que fez quando chegou na cidade grande, tantos anos atrs, foi com Dulce. No estou absolutamente seguro que, de algum lugar no interior do apartamento, viessem os acordes iniciais de Crazy, he calls me, na gravao de Billie Holiday, e poderia ser tambm Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer outra dessas canes roucas, gemidas. Naquele tempo eu no as conhecia, mas estou certo de que nessa ou na outra vez perguntei quem era e ela disse que era Billie, e eu anotei, to aplicado. Tudo isso que agora parece clich banal, naquele
tempo repito e no me canso, porque belo e mgico na sua melancolia: naquele tempo tudo era novo, eu nem suspeitava das marcas pelo caminho. Afirmo que havia msica, sem medo de mentir, pois mesmo que no houvesse nada e o silncio do apartamento fosse cortado apenas pelo rudo dos carros na avenida So Joo, l embaixo mesmo que no, que nada e nunca, repito: seria to perfeito se fosse exatamente assim como penso que lembro, tantos anos depois, que ficou como se tivesse sido. A busca de Pedro a busca de aceitao do presente. O narrador tem aids, assim como Pedro teve, e por isso foi embora; assim como tem Mrcia, a jovem cantora. E ela que d nome aos bois, e cita a doena nominalmente. Ela o faz encarar seus gnglios, seus sinais. O encontro com Dulce, afinal, acontece; mas no nada do que se esperava; h um choque. No h mistrio: ela apenas se tinha recolhido a uma cidade do interior, para viver de acordo com os preceitos da seita Santo Daime. Ela lhe d um gatinho de presente, o gatinho chamado Cazuza, e ele vai embora. E comea a cantar, enfim. O narrador comea a cantar. Ele faz, no final, o que deveria ter feito no comeo. Finalmente se aceita, e se compreende. A doena no o fim, mas a possibilidade de um novo comeo. Sem querer, pois ainda no sabia que estava doente, Caio intui em Dulce Veiga o que seria a sua postura, quando se descobrisse, finalmente, soropositivo: descoberta da possibilidade de vida.
Toda de branco, Dulce Veiga estava parada na porta da casa, ao lado do cachorro. Uma arara pousou na rvore perto dela. Os primeiros raios do sol faziam brilhar aquela estranha coroa -tiara, diadema que tinha entre os cabelos louros. Pisquei, ofuscado. Ela ergueu o brao direito para o cu, a mo fechada, apenas o indicador apontado para o alto, feito seta. Depois gritou qualquer coisa que se esfiapou no ar da manh. Parecia meu nome.
Mas estamos em 1989. Caio ainda no teve coragem de fazer o que ele chamava de O Teste. Ele via seus amigos sofrerem, perdeu muitos deles. Uma das perdas mais sofridas, mais choradas, foi Cazuza. No em vo, esse o nome do gatinho com que Dulce presenteia o narrador no livro. Cazuza e Caio foram amigos. Tiveram at um pequeno rolo, namorico, agarramentos de bastidores. Certa vez, em um show, Cazuza dedicou S as mes so felizes a Caio, que ficou todo orgulhoso. No final do show, vai at o camarim e d uns bons amassos no amigo. Eles se gostavam, se admiravam. Iam juntos a bares trash, como Vai Improviso, do travesti Andreia de Maio. O bar era o que se podia chamar de barra pesada: tiroteios, trfico de drogas. Muita gente no encarava, mas Caio preferia esse bar aos chamados guetos gays. Caio odiava esses guetos, odiava boates e saunas exclusivamente gays. Caio sofreu muito ao acompanhar a decadncia fsica do cantor, e foi um dos mais indignados com a capa da Veja que expunha uma foto de um magro e pequenino, porm altivo, Cazuza, com a manchete: "Cazuza: Uma vtima da aids agoniza em praa pblica". A tal manchete foi uma confuso, e o final da matria tambm, em que se desmerecia o trabalho do cantor, dizendo que ele no era gnio coisssima nenhuma. Vrios artistas e intelectuais elaboraram e assinaram um manifesto contra a revista. A jornalista que fez a entrevista se demitiu, afirmando que escrevera uma matria equilibrada; o final e a manchete problemtica seriam responsabilidade dos editores. Quando Cazuza morreu, Caio chorou potes. Viajou at o Rio para o enterro. Apareceu com uma coroa de flores enorme, e ficou em seu canto, chorando, chorando. Desde ento, sempre que fosse falar de aids, e da maneira de lidar com ela, citaria o cantor, a admirao que sentia pela forma
como ele encarara a doena -aberta, tentando eliminar os preconceitos. Foi mais uma das grandes perdas qu assombrariam Caio at o fim de seus dias, como o fora a perda de Ana Cristina Csar. Afora as tristezas, Caio ia tocando a vida. Apresentou, por uns tempos, um programa de crtica literria na TVMix, uma programao da TV Gazeta, dirigida por Fernando Meirelles, que ainda no era o aclamado diretor de cinema. Na literatura, saiu uma coletnea de seus contos chamada Mel & girassis, organizada por Regina Zilberman, uma estudiosa da obra do autor, pela editora Mercado Aberto. No teatro, novas adaptaes de Morangos mofados: j tinha havido a primeira, feita por Paulo Yutaka, amigo querido que tambm viria a morrer de aids. Luciano Alabarse tambm fizera a sua, em Porto Alegre. E agora era montada uma na Bahia. No apartamento da Haddock Lobo, os amigos continuavam a aparecer. Em 1989, andou pelo apartamento de Caio o ator gacho Renato dei Campo, que j conhecia o escritor desde a primeira montagem de O leiteiro, em 1983. Renato no atuava na pea, mas estava sempre com o grupo. Antes dessa poca, Renato j cruzara com Caio pela noite de Porto Alegre, mas tinha um certo medo dele: o comentrio geral era que o escritor era uma pessoa extremamente intelectual, fechada, sria; arrogante, para dizer em uma palavra. Na conversa de bar, anos depois, que Renato descobriu quo engraado Caio podia ser. De um humor negro, negrssimo, mas engraado. Renato descobriu tambm o lado temerrio de Caio, o lado que gostava de ir a bares barra pesada, freqentados por personagens do maior submundo da noite. Era nessas aventuras que Renato o acompanhava. Vamos pegar p?, dizia Caio. Vamos, respondia Campo, pronto para qualquer coisa. Vamos beber? Vamos pegar um mich? Vamos comer churrasquinho (s sete da manh, depois de passarem a noite bebendo) ? Vamos, dizia Campo; com ele no havia tempo ruim. Era isso que Caio apreciava nele: sua disposio
para aventuras. Em 89, ele convidara o ator para se hospedar em seu apartamento em So Paulo, prometendo arrumar um emprego na capital paulista para ele. Nessa poca, o apartamento de Caio era um lugar agitado: visitas a toda hora, amigos vindos de todas as partes, e a secretria eletrnica com os recados mais ilustres: Caio, aqui a Regina Duarte, me liga. Mesmo com tantos contatos, o emprego para Campo nunca veio. Caio se enrolou, mergulhou em uma de suas muitas crises depressivas, e menos de um ano depois de ter sado de Porto Alegre, Renato voltou. Por ser amigo mais de farras noturnas, Renato presenciou algumas cenas em que Caio, bbado, armava barracos escandalosssimos. Ele diz ter presenciado uma cena, uma vez em Porto Alegre, em 1987, no bar Lder. Ele e o escritor estariam conversando animadamente no balco, o lugar lotado. Caio gesticulava e falava alto, empolgado com o assunto que discutia. Atrs dele, havia uma mulher de cabelos compridos, que volta e meia batia sem querer a bunda em Caio. O escritor teria se irritado com aquilo, e em certo momento virado para a mulher e dito: sai daqui. Ela no deu bola. Algum tempo depois, ele viraria de novo: tu no vai sair daqui? Ela nada. Mais uma vez: tu no vai sair daqui? Como a mulher no saa, e continuava encostando em Caio, ele decidiu. Calmamente, enquanto conversava com Campo, o escritor acendeu o isqueiro, levantou-o atrs da cabea e ateou fogo nos longos cabelos da inconseqente figura, que no sabia manter o prprio traseiro no lugar. A mulher se ps a gritar, mas nada aconteceu a Caio. Ele continuou tranqilamente a conversa, e ela nada fez em represlia, talvez com medo de uma atitude ainda mais agressiva. A agressividade de Caio vinha tona, de vez em quando, at na relao com os fs. Por mais que adorasse ser lido, de vez em quando o mau humor o dominava. Muitas meninas e meninos o assediavam, admiravam sua obra, e vinham falar com ele. Uma vez, em Porto Alegre, uma garota veio dizer que
era f de Caio. Fazia um frio enorme, e ele e o amigo Luciano Alabarse saam do cinema. A resposta veio rpida e rspida: No quero fs, quero amantes. Em 1989, em outro perodo, tambm foi morar com Caio por uns tempos Ivan Mattos, o ator, namorado do incio dos anos 80. Moraram juntos por alguns meses agora bons amigos, apenas at que o gnio de Caio e o temperamento de Ivan se trombassem de vez e os dois brigassem feio, dessa vez para sempre. Ivan estava no apartamento. Caio chegou bbado em casa, ele e a amiga Da Martins, uma produtora de eventos tambm gacha, que ele conhecera poucos anos antes. Da era divertidssima, adorava Caio, e os dois se juntavam sempre para falar bobagens, e tambm para fazer loucuras, s vezes. Da presenciou a briga de Caio e Ivan, por causa da meno do escritor de chamar um mich pelo telefone. Caio deu um tabefe em Ivan, que ficou magoadssimo e foi embora no outro dia, sem dar mais notcias, enquanto o escritor se corroia em culpa. Todos esses conflitos Caio discutia com seu terapeuta, Ronaldo Pamplona. A terapia o ajudava demais. Tambm, sofrendo uma desiluso amorosa por semana, era preciso mesmo um pronto-socorro emocional de vez em quando. Porque por mais que dissesse que aquele tal era o ltimo amor, ele estava sempre se apaixonando de novo. E de novo. E quebrando a cara, bem, de novo. Houve alguns casos at duradouros, inclusive um que ele mencionaria mais tarde, numa entrevista Marie Claire, como sendo a provvel pessoa de quem ele pegara aids. Um bailarino, uma pessoa conhecida que viveu na Sucia, e que morrera em 1989 em decorrncia da sndrome. Desde ento, afirma Caio na entrevista, ele no se descuidou mais. Os amigos afirmam, no entanto, que era impossvel saber como Caio contrara a doena, porque, embora fosse recatado a maior parte do tempo, apaixonado por algum, de vez em quando tinha uns surtos de galinhagem, como dizia. E na noite, na loucura,
bbado, bem, difcil afirmar que ele se protegia sempre. Embora no fizesse o teste, ficava paranico sempre que aparecia alguma pequena doena. Primeiro, uma infeco nos ouvidos que no sarava nunca; depois, um herpes-zster. As pessoas diziam que era parania dele, que aquilo era apenas seu corpo colocando as inseguranas para fora, e assim ele seguia vivendo. Alm da terapia, Caio continuava a manter sua espiritualidade viva, atravs dos rituais mais variados. Falava sempre com sua me-de-santo, D. Snia, no Rio de Janeiro. Jogava taro, / Ching. A beleza dos rituais o fascinava, talvez mais que a f, crena em algo maior. E assim, pela beleza do ritual, ele chegou a freqentar tambm o Santo Daime, que virou moda entre os intelectuais e artistas do Rio e de So Paulo no final dos anos 80. O Daime uma substncia alucingena, em torno da qual se formou uma seita na Amaznia. Quem participou do ritual original afirma que o que se fazia no Rio era uma imitao tosca do que acontecia nas selvas amaznicas. Enfim, era uma forma de tentar contatar a divindade, e Caio tentava. O Santo Daime est presente em Onde andar Dulce Veiga; no por acaso, o livro dedicado a Cida Moreira, cantora e amiga de Caio, que participara dos rituais originais na Amaznia. Caio a entrevistou exaustivamente para saber como era tudo, e usou essas informaes no livro. O jornalismo at que servia para alguma coisa, afinal. Uma das pessoas que influenciou Caio a tentar o Santo Dai-me foi Vicente Pereira, dramaturgo, amigo e parceiro de trabalho de Mauro Rasi, ligado ao movimento do teatro besteirol que surgiria depois. Vicente foi um dos autores do famoso programa de humor TV Pirata. Ele e Caio foram grandes amigos; os melhores que se pode haver. Eram almas gmeas, de uma certa forma: o mesmo humor, a mesma espiritualidade, a mesma forma de encarar a vida. Quando Vicente morreu, de aids, anos depois, Caio diria que sua ausncia era a mais dolorida. Era seu melhor amigo, seu grande colega. Vicente tinha uma forma de encarar as coisas
voltada ao desapego: no acumulava coisas; acreditava que quanto mais desse, mais retornaria a ele. Com essa filosofia, influenciou pelo menos mais uma pessoa: Miguel Falabella, tambm ligado ao teatro. Caio, quando o conheceu, vivia esse desapego; talvez no de forma consciente, talvez no como filosofia de vida, mas era assim que ele era: no conseguia juntar nada, comprar um carro, um apartamento, acumular bens. Estava sempre trabalhando, e sempre sem dinheiro. Era um sucesso como escritor, dava oficinas de criao literria, fazia copidesques, tradues, free-lances, e estava sempre sem dinheiro. Generoso, dava constantemente presentes aos amigos; um livro, uma pintura, um anel; quando menos se esperava, ele podia virar e se oferecer para pagar a conta de todo mundo no bar. Era assim que ele era. E Vicente tambm. No poderiam deixar de ser amigos. A semelhana era to bvia que as pessoas em volta percebiam. Muito antes de Caio e Vicente se conhecerem pessoalmente, eles j se conheciam dos relatos dos outros. Jos Mrcio Penido dizia: Caio, voc precisa conhecer o Vicente. E ao Vicente: Vicente, voc precisa conhecer o Caio. Jos Mrcio fez a ponte, por muito tempo, entre os dois. Sabia que, no minuto em que se encontrassem, se adorariam. E assim foi. Amigos at o fim. H uma frase de Vicente, to repetida por Caio, que muita gente chega a achar que dele: "Quando duas ou mais pessoas estiverem reunidas em nome de Deus, eu estarei no meio delas. Mas sempre com um decote bem profundo." Caio brincava com Vicente, dizia que ele era a sacerdotisa do Daime. Era s o Vicente entrar em alguma seita, credo, filosofia ou religio e, dois meses depois, j estava comandando as reunies, com algum cargo ou posto importante. Sacerdote, sacerdotisa. A relao de Caio com essas coisas era sempre mais descompromissada. Ele no assumia que fazia parte da seita, estava sempre como visitante, como turista. No fazia parte de seu temperamento se comprometer a fundo com as coisas namoros, religies, empregos. Por um lado, isso era triste: lhe dava uma solido
tremenda, s vezes. Por outro, a liberdade que tinha lhe permitia ir aonde fosse sem dar satisfaes a ningum. E assim foi, quando Caio decidiu ir para a Europa, em 1990, para lanar seus livros. E como Caio queria ir para a Europa... Os tempos aqui, como sempre, no eram fceis. Collor tinha ganhado as eleies. Aquilo desanimava Caio, e muita gente tambm. Antes do segundo turno da eleio, em 1989, o Jornal do Brasil pediu a Caio que escrevesse um perfil de Collor; Mrcio Souza escreveria o de Lula. Caio escreveu o texto, mas ele nunca chegou a sair. Segundo o escritor, foi considerado ofensivo demais pela direo do jornal. Foi publicado depois pelo jornal alternativo Verve, e Caio o republicou, anos mais tarde, em Ovelhas negras. O texto era um conto. Falava de um menino, Fernando, que tinha um encontro com um outro menino, um ruivo, com todas as caractersticas de ser o demnio. O menino Fernando faria um acordo com o diabo para dominar a todos. Se fez bem ou no em no publicar o texto, no d para dizer; mas a direo do JB acertou, ao menos, em afirmar: era ofensivo, sim. E tinha que ser, diria Caio, se pudesse. Quase como se adivinhasse o que viria depois: a roubalheira, o impeachment, os caras-pintadas.
Para possuir todos, voc foi o escolhido o menino disse. E curvando-se mais: Pense bem, Fernando. Vou perguntar pela ltima vez. Tudo isso, voc quer? Ele voltou a cabea at mergulhar os olhos no verde sem limites dos olhos dos outro. E aceitou: Quero. [...] Voc o escolhido, Fernando. Dentes agudos picaram seu pescoo. Mais fundo-pediu. Daqui a trinta anos, meu bem-amado o menino ruivo gemeu. E num movimento mais brusco explodiu dentro dele, enchendo-o de ouro lquido. Aquele mesmo que, trinta anos mais tarde, sairia por sua boca escolhida
para chover sobre as cabeas e corpos de todos aqueles homens e mulheres que o aplaudiriam como o cavaleiro andante, um prncipe, um rei. Um deus coroado pelo lado mais negro de todas as coisas. Molhou as pedras num jato prolongado de prazer-o primeiro. Como seu nome? perguntou ento. Astaroth, imaginou ouvir. S imaginou. 0 menino ruivo tinha desaparecido ao sol do meio-dia em ponto, quase dezembro de uma segunda-feira, dia de Exu, nas pedras do Arpoador.
Em novembro de 1990, Caio finalmente viaja Europa. Vai a Londres lanar a traduo inglesa de Os drages no conhecem o paraso Dragons dont go to heaven em uma feira de cultura brasileira. Foi notcia por l: deu entrevista para a revista Time, para o jornal The Independent, para a Time Out, para a rdio BBC. Depois de divulgar seu livro, Caio foi correr atrs de lugar para morar e emprego. Quarenta e dois anos de idade, nove livros publicados, uma traduo inglesa, e l estava o Caio procurando emprego de garom, para conseguir passar mais um tempo na Europa, at o lanamento da edio francesa do livro, que s aconteceria dali a quatro meses, em maro. Por essas e outras que a figura de Caio to associada a de D. Quixote de La Mancha. Clarice Lispector, que primeiro lhe deu o apelido (voc Quixote! Voc Quixote!, Clarice lhe sussurrava no ouvido, ao seu lado, enquanto ele autografava livros, em algum lanamento), e provavelmente pensando em sua aparncia, sua barbinha, nem imaginava o quanto o termo colaria em Caio, lhe assentaria bem como uma roupa feita sob medida. O quixotismo dele estava presente em seus ideais, ideais nobres, de lealdade e busca de um mundo melhor, e tambm na maneira trpega de lutar por eles, a maneira errada, desajeitada. s vezes, combatia moinhos de vento, e a chance de sucesso parecia ser zero, mas ele continuava lutando. Na ida Europa, ele no tinha dinheiro nenhum; viajou com a passagem que havia ganhado do prmio Molire pela pea A maldio do vale negro. Se
quisesse ficar l, teria que batalhar um emprego, um subemprego qualquer, j que, com sua inabilidade em lidar com questes materiais, no tinha nenhum dinheiro guardado para segurar a barra nessa hora. No fim das contas, ele fez alguns free-lances para jornais no Brasil e, assim, quixotescamente, fez sua carreira internacional.
Em Londres, Caio estava feliz: visitou a casa onde morou Virgnia Woolf; foi at o rio Ouse, onde ela se matou; pegou uma pedrinha do jardim dela. Comprou um casaco, que seria seu companheiro por anos, um casaco de soldado alemo no mercado de Camden, por uma pechincha. Comprou uma mquina de escrever usada, uma SmithCorona, com a qual passou a escrever cartas aos amigos, sempre sem acentos o teclado era britnico. Seguindo o costume de dar nomes s suas mquinas de escrever, essa ele chamou de Dorothy. Caio fica uns tempos na casa de Ray, seu editor na Inglaterra. Ray, um irlands, mora num bairro negro, o Brixton, uma espcie de Harlem londrino, como Caio o descreve. "Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! Ill kill you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que no entendo, mas me soam mais para David Lynch do que para T.S. Eliot. ", escreve a Jacqueline Cantore. Ele sente que os tempos so difceis, que tudo perigoso, como So Paulo era; a nica diferena que na Inglaterra as pessoas sofrem a crise com mais estilo. Em Londres, alm de ver muitos filmes e ler muitos livros seu ingls vai se soltando mais e mais Caio fica na espera dos compromissos que tem a cumprir: algumas leituras e palestras na Inglaterra; depois, em maro de 1991, o lanamento da edio francesa de Os drages. Enquanto isso, ele sonha. Escreve a Magliani: "Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais comear a providenciar uma mudana de So Paulo. No sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso FUNDAMENTAL. Quero porque
quero cultivar roseiras." Nessa carta, ele conta ainda amiga que planeja escrever um livro chamada Histrias estrangeiras. Seriam histrias sobre a condio de ser um estrangeiro, e no s em outras cidades, mas no mundo. O livro viria a ser publicado, postumamente e incompleto, pela Companhia das Letras, com o ttulo j modificado por Caio de Estranhos estrangeiros. Porque ele era, acima de tudo, um estrangeiro. Em So Paulo, sentia que a cidade o sufocava, a violncia, a poluio. Em Porto Alegre, no agentava o moralismo das pessoas. Em Londres, quando se achava que tudo estaria bem, afinal, era a Europa, ele achava tudo frio demais. Havia sempre um motivo para no gostar do lugar, e Caio comeou a perceber que ele seria, sempre, um estrangeiro. Mesmo aprendendo a gostar do Brasil, ele jamais deixaria de ser um gacho, um gacho da fronteira, um homem sem lugar. "No fundo, nunca sa de Santiago do Boqueiro", escreve, na mesma carta, a Magliani. Assim que aceita sua condio de eterno estrangeiro, Caio pode parar e olhar ao redor e ver que os problemas, afinal, no esto em Santiago, em Porto Alegre, em So Paulo ou Londres; a confuso est nele mesmo. Assim, pode aprender a amar o lugar onde est, apesar de todos os pesares, apesar de todos os defeitos. E assim que Caio comea, finalmente, a amar o Brasil. Com todas as crises e dores e terceiro-mundismos, Caio ama e odeia o Brasil. Sobretudo ama. E o descreve muito bem, o seu Brasil, o Brasil urbano, das grandes cidades, em Onde andar Dulce Veiga. E isso que encantar os franceses, quando o livro for lanado l: o retrato de um Brasil urbano, violento, mas tambm potico; diferente, talvez, dos clichs que se costuma apregoar do pas. Como no trecho seguinte, em que a metrpole o pano de fundo para suas lembranas:
O motorista japons tentou puxar conversa, mas respondi com um grunhido, ele desistiu depois de comentar que ia cair a maior gua. Afastei o banco para trs, estendi
as pernas, abri mais o vidro. Ele ligou o rdio, rezei para que no sintonizasse num daqueles programas com descries hiper-realistas de velhinhas estupradas, vermes dentro de sanduches, chacinas em orfanatos. De repente a voz rouca de Cazuza comeou a cantar. Vai trocar de estao, tive certeza, mas ele no trocou. Isso me fez gostar um pouco dele, to oriental, talvez budista, e pedi que aumentasse por favor o volume, deitei a cabea no encosto de plstico pegajoso e por quase um segundo, muito rapidamente, enquanto o carro rastejava pelo trnsito difcil, sobre o asfalto em brasa, a camisa molhada, a pilha de laudas virando pasta entre meus dedos, fechei os olhos, o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por quase um segundo, outra vez, como quem de repente suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma mariposa que cruza subitamente o ar nas noites de vero, procura de luz acesa para girar em torno, como quem apaga ou acende uma dessas luzes para perceber no quarto vazio apenas a vibrao de asas que restou no ar, no o inseto que j foi embora, no fundo turvo do pensamento, eu queria ver no escuro do mundo, sem querer nem provocar ou conduzir, por quase um segundo, finalmente, dentro do txi que descia em direo ao Ibirapuera, lembrei ento de Pedro.
Com o sucesso do livro na Europa, Caio comea a sonhar alto. Dulce Veiga uma histria supercinematogrfica; e se algum diretor francs se interessa e resolve comprar os direitos? E se o Almodvar se interessa, l na Espanha? Caio est brincando quanto a isso, claro; mas ele brinca principalmente para convencer o amigo Guilherme de Almeida Prado, cineasta, a fazer o filme. O livro, afinal de contas, surgiu da idia dos dois para um filme. Caio chegou a pedir para uma amiga cantora, Laura Finocchiaro, musicar uma letra que ele fez. Laura fez a msica, e a gravou, anos depois. Chama-se Poltrona verde. Laura uma das trs irms Finocchiaro, gachas, todas artistas. Dbora atriz. Laura, cantora. A outra irm, Lory E, era roqueira, tinha a sua banda, a Lory E Band, e era muito, muito maluca, e muito amiga do Caio. Com trinta e poucos
anos, morreu de aids. O personagem Mrcia Felcio, filha de Dulce Veiga, vocalista da banda Vaginas dentatas, um pouco inspirada em Lory. Inspirao, e homenagem. Caio adorava cantoras. Era amigo de muitas delas: Laura, Cida Moreira, Adriana Calcanhoto. Escreveu releases para discos de Laura e de Cida, sem cobrar por isso. De Cida, era um dos melhores amigos. A Adriana Calcanhoto, "deusa", ele admirava demais; nas outras vezes em que esteve na Europa sim, porque Londres em 1990 era apenas o comeo escreveu algumas cartas a ela, contando de suas experincias, e sempre fazendo referncias ao lbum Senhas, da cantora. Caio amou o lbum; seria uma das nicas fitinhas que ele levaria para ouvir no walk-man, e a ouvia sem parar. Chorava sempre na parte do "eu ando pelo mundo, prestando ateno em cores..." Em homenagem a Caio, Adriana escreveria mais tarde a cano Alegre, gravada por Vnia Bastos. E Caio no gostava apenas de cantoras srias, como Adriana, Cida ou Marina Lima. Em uma de suas viagens Europa, ele levou a fita da dupla pop-humorstico-sertaneja Xicotinho & Salto Alto, que fez sucesso com a cano Doida demais. Stella Miranda, atriz paulistana, asfalto nas veias, fez a dupla com a cantora Katia Bronstein, apenas de farra. Nenhuma das duas tinha qualquer ligao com o interior ou com a msica caipira. Stella participou, como atriz, do primeiro besteirol da histria dos besteiris. Era a pea As 1001 encarnaes de Pompeu Loredo, escrita por Vicente Pereira e Mauro Rasi, em 1980. O teatro besteirol fazia crnicas sobre o cotidiano, comdia de costumes; tinha o humor contundente e criticava a sociedade. A crtica, no entanto, no assimilava. Diziam que era bobagem, besteira, e foi a que surgiu o nome "besteirol". Vinte anos depois, surgiria uma nova tropa de atores e autores de teatro inspirados no movimento. Grace Gianoukas, amiga de Caio, faria sucesso com o espetculo Tera insana. Em 2006, o espetculo entraria no quinto ano de apresentaes, sempre com mais e mais fs. O pblico e a crtica estariam prontos,
finalmente, para esse tipo de humor. Apesar da sua amizade com as cantoras, e com Laura, e de at a msica estar pronta, Caio no viu Dulce Veiga virar filme. Guilherme de Almeida Prado no conseguiu film-lo naquela poca; as dificuldades de se fazer cinema no Brasil eram imensas; no havia dinheiro. O projeto s foi iniciado em 2005, agora sim, com todo apoio das leis culturais, e com vrios atores consagrados nos papis principais: Mait Proena como Dulce Veiga, Carolina Dieckmann como Mrcia E O narrador, que no livro no tem nome, no filme se chama Caio uma singela homenagem ao amigo e vivido pelo ator Eriberto Leo. A relao de Caio com o cinema de Guilherme vem antes, porm, do projeto de Dulce Veiga. Caio fez uma pequena ponta no filme Perfume de gardnia, e tambm leu dois textos em off com aquela bela, lenta, cheia e grossa voz no filme A dama do Cine Xangai, ambos de Guilherme. E, como Dulce Veiga era um projeto dos dois, era natural que o amigo filmasse a histria, ainda que muitos anos depois. Seis meses depois de ter deixado o Brasil, e depois de passear tambm pela Frana, Caio est de volta. Renovado, decide visitar Maria Ldia Magliani, em Tiradentes, Minas. Vai acompanhado da amiga escritora Snia Coutinho. Caio inveja a vida que Magliani conseguiu montar para si, longe das capitais, numa cidade pequena, histrica, cheia de belos morrinhos. Ali Magliani, que artista plstica, pode pintar e desenhar com tranqilidade; alm disso, pode cultivar uma horta, que Caio acha maravilhosa. Ele colhe vrias ervas, suficientes para fazer litros de ch quando voltasse a Sampa. A tranqilidade da cidade, no entanto, no impede que Caio fique doente, com umas pequenas infeces. Quando ele volta a So Paulo, elas pioram ainda mais. Depois que voltou da Europa, Caio est com a sade meio arrebentada. L, no frio, na neve, 15 graus negativos, ele estava bem. Foi s na volta a So Paulo que seu organismo comeou a dar problemas. Primeiro, uma otite. Depois, feridas em dois dedos da mo esquerda e um da direita. A mdica chamou a infeco de
estreptococcia e achava que no, no era motivo para fazer O Teste. Mesmo com as infeces e os namoricos que eventualmente aparecem, Caio no consegue parar quieto. D palestras em vrias cidades de So Paulo, depois mais laboratrios de criao literria, em Curitiba. Ele fazia pelo dinheiro, principalmente, e s vezes comentava que preferia se dedicar somente sua literatura, mas nem por isso deixava de fazer o trabalho bem feito. Quem fez oficina com ele conta: Caio era um professor atencioso, lia o que a turma escrevia com carinho, sugeria mudanas, dava textos de Clarice Lispector, como o conto Tentao, para os alunos lerem, e os discutia depois. A experincia de ter aula com ele foi marcante para muita gente, mesmo que no tenham nascido da, necessariamente, escritores de renome. Um dos alunos de Caio foi o gacho Joo Batista, que o conheceu na oficina Anatomia do Conto, ministrada pelo escritor na Casa de Cultura Mrio de Andrade, em So Paulo. Joo e Caio se tornaram amigos; nas viagens Europa que fez, Caio mandava sempre um postal ou trazia uma lembrana para ele, como o pster de uma pea de teatro baseado em Clarice Lispector: La passion selon G.H, que estava em cartaz na Frana. Alm de Curitiba para a oficina literria, Caio passeia por So Lus do Maranho e passa o Natal de 1991 em Porto Alegre, com a famlia. Como sempre, volta renovado: uma viagem aos pampas, um contato com as razes, sempre fazem de Caio um pouquinho mais feliz. Ele volta preparado para enfrentar o passado e reescrever Limite branco, seu primeiro romance, escrito aos 18 anos. A segunda edio do livro sai em 1994, pela Siciliano. Escreve, tambm, crtica literria para a Playboy. Para a Playboy, alis, Caio escreve ainda um ensaio sobre a atriz gacha Luciene Adami, que atuou na novela Pantanal, amiga sua e de Ivan Mattos. Entre uma viagem e outra, o escritor acaba perdendo o
apartamento onde mora. O aluguel subira demais e ele no tinha como pagar; mesmo assim, enquanto a causa rolava na Justia, ele continuou morando no apartamento. Sem se preocupar demais, afinal, no final de 1992 j estava de viagem marcada para a Europa de novo. Dessa vez, com tudo pago: ele era convidado da Maison des Ecrivains Etrangers (Casa dos Escritores Estrangeiros), que fica em Saint-Nazaire, para uma bolsa de dois meses. Funcionava assim: ele ficava dois meses num apartamento todo montado, inclusive com faxineira, e vales para ir ao cinema e teatro e bares de graa, mais uma pequena mesada de 1500 dlares; sua nica obrigao era deixar um texto pronto, ao sair, para ser publicado pela editora Arcane XVII. Antes dele, passaram pela Maison o escritor argentino Ricardo Piglia, autor de Dinheiro queimado, e o chileno Reinaldo Arenas, entre outros. Arenas, na verdade, ficou apenas trs dias: tinha medo de se jogar da janela do apartamento que ficava num dcimo andar e foi embora. Seis meses mais tarde, ele realmente se atirou de uma janela e morreu, em Nova York. Depois de dez dias em Paris, Caio rumou para SaintNazaire, uma pequena cidade porturia, na Frana. Foi uma poca de glria para ele: bem tratado, bem alimentado, bem acompanhado, Caio viveu, por dois meses, um conto de fadas para escritores. Assim vontade, no dcimo andar de um prdio defronte ao mar, Caio escreve um timo texto, uma pequena novela chamada Bem longe de Marienbad, publicada na Frana e, anos depois, no Brasil, no pstumo Estranhos estrangeiros. O texto gira em torno de uma frase que perseguia o escritor h anos, uma frase de Camille Claudel numa carta a Rodin: "Il y a toujours quelque chose d'absente qui me tourmente." "H sempre alguma coisa de ausente que me
atormenta." A novela, em primeira pessoa, a histria de um homem que chega a uma pequena cidade na Frana para procurar um amor. Ele segue as pistas do homem, vai a seu apartamento, e por fim descobre a si mesmo, descobre a busca do outro por si. Originalmente, Caio chamou a novela de O leopardo dos mares, sendo o leopardo o prprio narrador da histria, o que s se descobre ao final. O texto, permeado de referncias a Arenas e cano de Barbara e F. Wertheimer, Marienbad, delicado e belo, e promete, ao final, a possibilidade do reencontro e da harmonia.
fcil descobrir o endereo dix-sept, rue du Port , que me soa romntico com seus erres rascantes ditos pela loura cinqentona da portaria. Mais difcil, e ela insiste, seria explicar por que me vou sem sequer passar uma noite aqui. No pelo quarto, madame, pela comida ou qualquer desses outros detalhes dos hotis, s'ilvous plaft, mas pelo horror imvel das enguias em sua jaula de vidro associado ao outro horror tambm imvel daquela palavra. Pelo risco da imobilidade eterna, madame, pelo perigo de eu mesmo permanecer para sempre aqui, igualmente imvel, congelado em inteis delicadezas enquanto tudo ou nada ou apenas qualquer coisa, mesmo insignificante, se agita e move e se perde em outro lugar, com certeza madame no compreenderia tanta nsia tropical, bien sr. Desvio o rosto, no devo me deter tempo demais em meus prprios olhos. Aumento o som da cano, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar sempre atento. Ainda no anoiteceu, e alguns dizem que h castelos pelo caminho.
Na temporada que passa em Saint-Nazaire, Caio grava um pequeno documentrio para a Maison, em que se entremeiam passagens de sua narrao de Bem longe de Marienbad em off, em portugus, com imagens dele andando pela cidade, no frio e nas brumas, com seu capoto inseparvel, e uma entrevista, em um francs bastante razovel, em que ele fala de suas influncias, de literatura, de
cinema, de poesia, de astrologia. nesse documentrio que Caio fala que, independentemente de se acreditar ou no, a astrologia importante para ele na criao dos personagens de seus textos; cada um tem seu mapa astral desenhado antes da escrita, e a personalidade bem formulada. Fala tambm da importncia do cinema em seus textos; diz que, quando est escrevendo, sempre pensa: onde est a cmera agora? Ele pensa o texto de uma forma cinematogrfica, com seus zooms, fade-ins e fade-outs, cortes e mudanas de perspectiva. O documentrio muito bem feito, e d a chance a Caio de falar de sua obra, de seus processos de criao; alguns anos depois, quando se descobrisse doente, ele seria chamado para muitas entrevistas, s que todas girando em torno do tema HIV/aids, e aquilo muito o chatearia. SaintNazaire, enfim, era um pequeno sonho, a realizao de um ideal: todo escritor deveria ter aquelas condies para escrever, pensava Caio. Enquanto no est escrevendo, ele vai ao cinema vrias vezes, com sua carteirinha de convidado. De vez em quando, participa de jantares e eventos com os outros escritores convidados da Maison, uma turma da Estnia, Letnia e Litunia, e uma dramaturga tcheca, Daniella, que, segundo ele afirma em carta, escreveu peas lindssimas. Faz tambm amizade com Marina, a filha de nove anos de idade de seu editor na Arcane XVII. Marina sabe tudo sobre Van Gogh e Caio adora conversar com ela. Ele, que nunca teve muita pacincia para crianas, comea a afrouxar. Conversa tambm com Isabelle, a gaivota que mora na janela da cozinha. Caminha na praia, l. Ouve o lbum Senhas, de Adriana Calcanhoto, repetidamente. Tudo na mais absoluta paz. Caio aproveita esse momento da melhor maneira que pode, porque no Brasil as coisas esto feias. Ele perdeu mesmo a causa judicial do seu apartamento, e no tem mais onde morar quando voltar. Quem cuida de tudo, em sua ausncia, Gil Veloso. As pessoas costumam se referir a Gil como secretrio de
Caio, porque ele exercia esse papel: ia na padaria, pagava contas, verificava contratos; fazia de tudo para o escritor. Na verdade, Gil nunca recebeu um centavo para cuidar do Caio. Eles eram amigos. Tudo que fazia nisso os amigos so unnimes em afirmar era sem esperar nada em troca, sem nenhuma segunda inteno. Os dois se conheceram na metade dos anos 80. Gil era f da obra de Caio. Tinha edies de obras do escritor que o prprio no tinha, que acabavam ficando para ele. Ficaram amigos. Caio achou aquele nome timo: Gil Veloso, mistura de Gilberto Gil com Caetano Veloso. Visitando Caio, convivendo com ele, Gil percebeu a dificuldade do escritor em lidar com as coisas prticas da vida, contas, bancos, papis. E foi ajudando, ajudando, at se tornar uma espcie de secretrio. Os dois foram sobretudo amigos, o que nem sempre era fcil: era preciso pacincia para lidar com o Caio, s vezes. O escritor dizia sempre que Gil era um anjo da guarda enviado pelos cus para cuidar dele. Gil brincava: anjo da guarda porque eu guardo suas coisas, isso? Afinal, foi Gil que desmontou o apartamento da Haddock Lobo e deu um jeito de guardar as coisas do amigo em sua prpria casa. O luxo na Maison acabara, mas nem por isso Caio deixou de voltar Europa. Em esquemas mais econmicos, ele viaja para divulgar seus livros, fazer leituras e palestras. Em janeiro, vai para a Holanda. Amsterd, depois Kln e Frankfurt. Para Amsterd, ele tem carona; o amigo Sappe Grootendorst vai busc-lo de carro. Em 1993, Sappe havia defendido uma tese sobre a literatura gay no Brasil, para a qual entrevistou 18 autores brasileiros, entre os quais estava Caio. Em seu estudo, Sappe constatou que os escritores brasileiros no gostavam muito que chamassem o que faziam de "literatura gay". Para Caio, por exemplo, isso no existia. Graciliano Ramos no era chamado de escritor hetero; porque ele deveria ser chamado de escritor gay. Em seu caso, a explicao que, embora no vestisse a camisa e sasse gritando palavras de ordem, ele escreveu alguns contos cujos
personagens eram gays ou em que havia sugestes de homoerotismo. Nada panfletrio, mas em algumas situaes os personagens apanhavam, eram criticados, se davam mal por sua condio. Saam feridos, mas moralmente vitoriosos. Um exemplo o conto Aqueles dois, de Morangos mofados. Dois rapazes, Saul e Raul, se conhecem ao serem contratados para trabalhar na mesma firma. A amizade dos dois irrita o pessoal da empresa e ambos acabam demitidos. Saul e Raul saem juntos, altivos. A derrota fica reservada para os que desaprovavam a amizade dos dois:
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do cu, ningum mais conseguiu trabalhar em paz na repartio. Quase todos ali dentro tinham a ntida sensao de que seriam infelizes para sempre. E foram.
Caio odiava o rtulo de escritor gay, assim como odiava quaisquer rtulos que pretendessem dar conta de sua literatura em uma palavra. Escritor introspectivo, escritor de gerao, escritor marginal, quais fossem. Ele no gostava, como em geral nenhum escritor gosta. Fosse como fosse, Sappe entrevistou Caio para seu trabalho, e anos depois traduziu alguns contos dele para o holands. Agora ele ia busc-lo para irem at a Holanda. Entre uma leitura e outra, Sappe e Caio arrumam tempo para se apaixonarem um pelo outro e viverem uma breve, porm bonita, histria de amor. Fazem juntos, e mo, um livrinho com um conto de Caio traduzido por Sappe, e vendem em vrias livrarias gays. Nessa viagem, Caio vai ainda Frana e Alemanha, para cumprir compromissos relativos sua carreira l fora. Depois volta ao Brasil. Sem a ajuda que esperava receber dos amigos, j que estava sem casa e sem dinheiro, segue direto para Porto Alegre, para fazer um tratamento dentrio com sua irm Cludia, que dentista. Em junho Caio volta Europa: Alemanha, para o Interlit
o Congresso Internacional de Escritores do III Mundo , depois Itlia, para fazer o lanamento da traduo italiana de Dulce Veiga em Milo, Gnova e Veneza. Alegria, alegria: um dos sonhos de Caio conhecer Veneza. Depois ainda, Berlim. Entre um compromisso e outro, Caio escreve aos amigos. Cartes para Adriana Calcanhoto, Luciano Alabarse. Um carto rpido, escrito a quatro mos por Caio e Gerd Hilger, seu tradutor na Alemanha, para Gilberto Gawronski. No carto, Caio conta a Gilberto das leituras de Dama da noite que ele e Gerd estavam fazendo Alemanha afora. Depois Caio diria a Gilberto, a respeito de sua performance: Acho que voc teria orgulho de mim. Dama da noite um conto de Caio, que Gilberto Gawronski, gacho, ator, adaptou para teatro e representou inmeras vezes. A primeira apresentao da pea foi em 1988, no teatro Crepsculo de Cubato, no Rio de Janeiro. Depois, a pea foi para o Espao OFF, de Celso Curi, em So Paulo. Ao longo dos anos, Gawronski a interpretaria ainda em Porto Alegre, Londres e no Rio. Em 1996, o ator a representou tambm na Frana, em Lyon. Gawronski dirigiu, montou e atuou tantas vezes nesse espetculo que difcil imaginar uma apresentao de Dama da noite sem o envolvimento dele; por isso que Caio disse a Gilberto que ele teria orgulho dele. O escritor considerava o personagem tanto do ator quanto dele mesmo, que a tinha escrito. O posto de musa inspiradora do conto reivindicado por vrias amigas de Caio. Vrias delas acreditam ter sido a fonte de inspirao para a mulher do conto, a dama da noite que conversa com um garoto, que ela chama de boy, e conta a ele sua histria, que a histria, na verdade, de todo outsider, de todos os que vivem margem da sociedade. O mais provvel, contudo, que a personagem seja um compsito, um amlgama da personalidade de todos essas amigas, como Claudia Wonder, Mrcia Denser a quem o conto dedicado e mais ainda um toque da imaginao do escritor.
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida.
A vida rolando por a feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam pra se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa rodagigante. Voc tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um cdigo, sei l. Voc fala qualquer coisa tipo b, por exemplo, ento o cara deixa voc entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar l t me entendendo, garoto? Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnvora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo do seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os lquidos, contaminar seu sangue com todos os vrus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy.
Verso do postal: "Com votos de Novo Ano LINDO p/ voc, e toda a troupe da Sabar, vai minha ltima foto. Te gusta?"
Na adaptao teatral, a dama da noite vira Dana de Avalon, um ser ambguo, mais que uma drag queen, uma pessoa com uma postura mais agressiva que a do conto, que fala apenas de uma quarentona que vive pelos bares caa de homens. Gawronski se equilibra sobre saltos plataforma de 14 centmetros, coloca a pesada jaqueta de couro negra, a peruca vermelha e os longussimos clios e faz o monlogo sem parar, andando pelo bar, subindo nas mesas ou correndo. Dana est sempre no controle, ela experiente, ela sabe o que faz, embora precise dessa platia, do boy que a escute. Foi com Gilberto Gawronski que Caio assistiu no cinema ao filme Filadlfia, de 1993, que retrata a histria de um homem com aids, demitido da firma onde trabalhava por estar doente. O homem, vivido por Tom Hanks, decide processar a firma, mas custa a achar um advogado que pegue o caso. Por fim, encontra um advogado homofbico vivido por Denzel Washington , que no entanto acha injusta a demisso de Hanks pela empresa. Enquanto corre o processo, pode-se ver a decadncia fsica do personagem. Uma das cenas clssicas era a de Tom Hanks ouvindo Maria Callas e danando, segurando a aparelhagem do soro. De chorar potes de lgrimas. Ao final do filme, assistido no cinema, Caio e Gilberto saem para a rua. Caio diz: Uma vodka pura, n. Caminham pela Av. Paulista at o Ritz, em silncio, e bebem duas doses. Pronto: agora podem conversar de novo, com o choque do filme amortecido pela bebida. No final de julho, Caio est de volta a So Paulo. Nos primeiros dias, fica hospedado na casa de Gil Veloso, mas logo arruma um lugar para morar, um flat na Frei Caneca. um pouco caro, mas o escritor faz questo de um mnimo de conforto. Preciso ter uma iluso de segundo mundo voc sabe que, embora Laika, tenho uma alminha trs chie", escreve a Gerd Hilger. Ao final da carta, um PS: "Falei com Zulmira
Ribeiro Tavares. Um desastre! Voc acredita que ela me acusou de ter sido injusto com a Raquel (sic) de Queiroz? Manda MATAR (as duas)!" O episdio a que ele se refere uma briga que teve na televiso, ao vivo, com a escritora Rachel de Queiroz, em julho de 1991. De vez em quando, Caio era chamado para ser um dos entrevistadores do Roda Viva, da TV Cultura, na poca um programa bastante influente. Naquele dia, a entrevistada era Rachel, e o apresentador, Jorge Escosteguy. J no comeo do programa, os entrevistadores questionam a escritora sobre suas posies polticas, pois Rachel colaborara com os trotskistas, em certa poca, mas depois apoiara o golpe militar de 1964. Caio j comea perguntando se ela reacionria ou comunista. Comea o bombardeio: Mas voc apoiou o golpe, Rachel? resposta afirmativa dela, ele pergunta: Mas voc no tinha noo das torturas? Rachel afirma que ela apoiou o golpe do Castello Branco, que era seu parente, muito amigo de seu marido. Segundo ela, Castello no torturara ningum; s os que vieram depois. Rachel era contra Joo Goulart e Brizola, que chamava de caudilhos. O programa segue. Caio pergunta sobre literatura, se ela acha que a literatura brasileira muito desprezada; a autora nega. A essa altura, o embate entre os dois claro. Embora Caio no faa muitas perguntas, quando as faz, so provocativas. Quando a escritora defende a presena de Jos Sarney na Academia Brasileira de Letras, da qual ela fazia parte, ele ironiza: Quem sabe no convidam o Collor para a Academia... Ele continua. Pergunta o que os membros realmente FAZEM na Academia; ela responde que vai lhe mandar o gibi com as notcias. Quando ela fala da propriedade que tem no Nordeste, ele pergunta se o latifndio produtivo ou improdutivo. Quando ela fala que o PT continua o que o Brizola e os caudilhistas tinham de pior, ele se d o direito de discordar. E pergunta do Collor:
Voc no acha que o Collor t dando continuidade ao que havia de mais lamentvel no golpe militar de 64, que voc ajudou? Ela diz que s ajudou o golpe do Castello; ele retruca, insiste. Se voc t perguntando isso em uma televiso oficial, quer dizer que h um grau de liberdade muito maior diz Rachel. Desde o Sarney que ns temos essa liberdade. Mas o mnimo. No o mnimo, no. porque voc muito jovem e no passou os tempos piores. Tenho 42 anos e estive preso em 68! Ento voc no aprendeu com o tempo, porque passamos tempos muito piores. Caio diz que ainda est aprendendo, mas antes que continue, o apresentador intervm. O programa segue, at que Caio faa sua ltima manifestao, a mais polmica. Quero falar uma ltima coisa. Estou me sentido muito constrangido de estar aqui. a ltima coisa, e eu no vou me tornar constrangedor. Por vrias coisas que voc falou, eu concluo que voc colaborou para coisas muito negativas nesse pas, no meu ponto de vista. Compreendo, todos ns somos humanos, erramos, nos equivocamos, coisa e tal. Mas eu estou me sentindo extremamente constrangido de estar na posio de render homenagem ao tipo de ideologia que eu profundamente desprezo. Caio, voc tem que fazer perguntas, e no render homenagens, desculpe intervm Escosteguy. No, eu s queria dizer isso, eu no tenho mais perguntas a fazer diz Caio. Eu gostaria de responder a voc que ns estamos num pas democrtico, eu respeito suas posies e espero que voc respeite as minhas... diz Rachel. Eu respeito, tanto que calo interrompe Caio. ... se as minhas posies so constrangedoras para voc, eu acho tambm as suas muito constrangedoras para mim. Realmente, estou sendo exigida de me pronunciar sobre
esses temas que eu no gostaria de me pronunciar, de discutir isso com voc. De forma que recproca nossa posio. O programa continua, Caio no fala mais nada; s olha para o papel e rabisca. A performance de Caio no programa suscitaria debates sobre o papel do entrevistador e do jornalista na entrevista; havia quem criticasse e quem defendesse sua posio. Alheio a tudo isso, Caio, depois de acertado o lugar para morar, batalha servios. O dinheiro que sobrou da Europa vai acabando aos poucos, e preciso sobreviver. J faz algum tempo que ele publica uma crnica quinzenal no Estado. A coluna faz bastante sucesso, mas o dinheiro insuficiente para Caio se manter. Ele ento faz trabalhos como revisar tradues mal-feitssimas, na opinio dele feita por catedrticos da USP O pagamento? Um tero do que o tradutor original ganha. "Laika laika, sempre ser", escreve a Gerd Hilger. Em setembro de 1993, depois de lutar contra a aids por meses, morre Vicente Pereira, o melhor amigo de Caio. Ele fica triste, triste, mas sente alvio pelo amigo, agora, possivelmente, em paz. O escritor se lembra de outros que foram: Orlando, que dividiu apartamento com ele; Galizia; Cazuza. Mas se lembra tambm de uma frase que Vicente repetia, parafraseando alguma atriz de cinema, que o anima um pouco: "Segura o turbante, meu bem, e sente o ritmo". Caio segurava o turbante, sentia o ritmo e ia vivendo. Em janeiro de 1994, Caio pega uma gripe que leva trs semanas para ir embora. Depois uma otite crnica, que se recusa a sarar. Ele passa o ms praticamente de cama, doente. Mesmo quando se cura, fica deprimido, sem querer sair de casa. Mas tem que se levantar logo: afinal, da a pouco hora de ir para a Frana de novo, lanar os livros. Afinal, como escreve a Gerd Hilger: "No se pode ser infeliz, no se pode morrer em vida, no se pode desistir de amar, de criar. No se pode: pecado, proibido verbotten, no assim em German? No possvel adiar a vida."
Em maro de 1994, Caio volta a Paris. Seus livros vo indo bem no pas, e ele vai divulg-los em um programa de TV sobre literatura, chamado Jamais sans mon livre (Jamais sem meu livro), comparado por Caio ao Programa do J, aqui no Brasil. E coincidncia das coincidncias: quando Caio, na entrevista, comparou Dulce Veiga cantora Maysa, o diretor do programa, um chileno "gordimenso", enlouqueceu: ele tinha sido amigo ntimo dela. Trocara fraldas do filho, o Jayme Monjardim. Por conta dessas e outras, a gravao do programa foi engraadssima. Apesar de muito requisitado para entrevistas, Caio sempre arruma um tempinho para ir ao cinema. Dessa vez, se apaixona por Short cuts, dirigido por Robert Altman e baseado no livro de Raymond Carver. Tendo assistido ao filme Kika, do diretor espanhol Pedro Almodvar, que ele odiou, Caio chega concluso de que o Altman um "Almodvar COM substncia". Tudo isso ele conta em carta a Maria Ldia Magliani, que continua em Tiradentes. Caio passa uns tempos em Paris, depois uma semana em Saint-Nazaire, depois volta capital francesa. Est feliz: at autgrafo na rua ele deu, para um garoto francs que viu a entrevista na TV, comprou os trs livros e deu vrios outros de presente aos amigos. No deixava de ser engraado. E h mais: sai matria sobre ele na LExpress, perfil em Les Inrockuptibles, foto em cores em Telrama... Ele faz tambm outro programa de TV, o Cercle de Minuit, tambm comparado ao J daqui, em que os outros convidados do dia so Isabella Rossellini e Jeff Bridges. Enfim, ele vende seu peixe, e os franceses esto comprando: Dulce Veiga indicado para o Prmio Laure-Bataillon, da Maison des crivains Etrangers, que premia o autor e o tradutor do melhor romance estrangeiro traduzido no ano. John Updike acaba vencendo o prmio em 1994, mas s a nomeao j deixou o brasileiro orgulhoso, com o ego nas alturas. Depois de dois meses na Frana, Caio resolve dar uma passeada. Vai at Lisboa, que est curioso por conhecer, e
para a Noruega, visitar Augusto, o amigo de infncia que foi para a Europa e no mais voltou. Casou-se com um noruegus, de papel passado e tudo, e por l ficou. "Ambos me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A frescura tanta, que, claro, no resisto", escreve a Luciano Alabarse. "Se algum perguntar por mim, diga que estou noivo de Isabelle Adjani mas no fiquei metido e mando beijos." Depois de Lisboa e Noruega, Caio volta ao Brasil, em junho. E foi s pisar em terras brasileiras para cair doente. Magro do jeito que era, perdeu mais oito quilos. D-lhe antibiticos e mais antibiticos, mas a danada da doena o vrus, bactria, o que fosse no o largava de jeito nenhum. Caio estava apavorado, com medo da aids. Falava e falava disso com os amigos. At que Graa Medeiros, sempre decidida, achou que era melhor fazer O Teste logo. A se tirariam as dvidas, e Caio poderia respirar aliviado, se desse negativo. Nesse caso, eles fariam a maior festa, mandariam fazer camisetas com EU SOU NEGATIVO! escrito bem grande, e sairiam pelas ruas jogando confete. Caio aceita a idia. Parece mesmo o melhor a fazer, j que as infeces no o abandonam. J faz quase dois meses que voltou da Europa, e no consegue melhorar. E ele tem trabalho a fazer, tem que voltar Alemanha em outubro, para a Frana de novo em novembro. No, ele tem que se livrar dessa dvida, de uma vez por todas. Na poca, os resultados do exame demoravam uma semana para sair. Uma semana de angstia, apreenso. E na hora de buscar o resultado, Caio no quis ir. Pediu para Graa buscar para ele. Ela foi. Chegou em casa, o envelope j aberto. Caio perguntou: E a? No vai dar para fazer camiseta respondeu ela.
SEIS
Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa to estranha que ainda no aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei tambm esse jeito. Ento serei claro, prometo. Para voc, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer. com terrvel esforo que te escrevo. E isso agora no mais apenas uma maneira literria de dizer que escrever significa mexer com funduras como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doa fisicamente, no corpo feito de carne e veia e msculos. Pois no corpo que escrever me di agora. Nestas duas mos que voc no v sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plsticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem lquidos que, dizem, vo me salvar. Di muito, mas eu no vou parar. [...] Assim Caio comea a contar ao seus leitores de O Estado de S. Paulo que estava doente. A crnica, publicada em 21 de agosto de 1994, chama-se Primeira carta para alm do muro, e no , ainda, muito explcita sobre o mal que o acomete. Ele apenas diz que di, di fisicamente escrever, deitado numa maa de hospital, os braos cheios de agulhas espetadas. Caio ainda no entendeu direito o que est acontecendo, est sob efeito de remdios, tudo ainda muito turvo. A princpio, ele encara a coisa toda bastante bem. Fazia sentido ele estar com aids: metade de seus amigos morrera em decorrncia da doena, outros tantos ainda lutavam contra ela. Ele passara mais de uma dcada com medo de estar contaminado, e no toa. Ele se encaixava perfeitamente naqueles grupos e comportamentos "de risco", embora
j se soubesse que o vrus no era exclusivista e atingia gente de todo tipo, no necessariamente gays, no necessariamente drogados, no necessariamente promscuos. A doena era a cara dele, Caio pensou. Era como se j soubesse. No se assustou. Pegou o telefone e calmamente ligou para os amigos, contando a notcia: Cida Moreira, Lygia Fagundes Telles, sua me. Ligou para mais gente. Durante o final de semana inteiro pegara o resultado numa sexta-feira ficou bem, ao telefone. Alguns amigos foram visit-lo, conversaram, viram que estava sereno. Graa, que estava cuidando dele, teve que voltar ao Rio para cumprir um compromisso de trabalho. Voltaria na segunda. Porm as coisas atrasaram, ela no conseguiu voltar na segunda, e ligou para ele. Caio no estava nada bem. De repente, cara a ficha: toda a irreversibilidade de sua doena, todo o absoluto que estava contido no resultado positivo do exame, todo o significado, enfim, de ser soropositivo, parecia descer sobre sua cabea e esmag-la como um trator. Era peso demais, era demais. Vou morrer, pensou ele. Vou morrer, tenho aids, acabou. Graa ficou preocupada, e no s ela. Da Martins e Gil Veloso tambm ficaram, e rumaram para o apartamento do Caio. Ele tivera, finalmente, o choque da descoberta. O choque de saber-se condenado. O organismo no agentou, veio a febre. Muito alta, a febre levou ao delrio. Nada incomum em casos assim: grandes traumas podem levar as pessoas a ficarem temporariamente perturbadas, doentes, delirantes. Os mdicos do a isso o nome de "quadro de dissociao mental". Foi o que aconteceu ao Caio, e Gil logo percebeu. Ele no falava coisa com coisa, recitava em alemo, francs. Tentou se atirar da janela, Gil segurou-o a tempo. No era inteno de Caio, provavelmente, se matar. Ele no sabia o que estava fazendo. No dia seguinte, no se lembraria de nada. Gil resolve que era melhor correr com ele para o hospital. Foram para o Emlio Ribas. Custaram a arrumar
um leito no hospital lotado. No dia seguinte, j muita gente tinha sido avisada: Cludia Abreu, sua irm, veio de Porto Alegre. Graa Medeiros tambm j estava na cidade. Outros amigos iam visit-lo. Graa tambm teve uma discusso com o mdico: ele dizia que Caio estava maluco. Ela dizia que no, era apenas o susto, o trauma. Logo ele voltaria ao normal. O mdico insistia em dizer que Caio estava mentalmente muito perturbado provavelmente com um tumor no crebro. Quando Gilberto Gawronski apareceu para visit-lo, o mdico alertou: Se prepara. Periga o teu amigo no te reconhecer. Gilberto entra no quarto com o corao apertado, esperando ver o amigo totalmente abalado, vegetativo, incomunicvel. Quando abre a porta e Caio o reconhece, diz: Bem-vindo Filadlfia! O mdico vira para Gilberto, discretamente: Eu no disse? A Gilberto relaxou. No s a memria de Caio estava intacta, como tambm o seu humor. "Bem-vindo a Filadlfia", claro, era uma referncia ao filme de Tom Hanks, que Caio e Gilberto haviam assistido juntos. Mas como o mdico podia saber disso? Ele pensou que o Caio achava estar, realmente, na Filadlfia. E o humor do Caio no parava. Ele ia para os exames e pedia aos amigos: segura a Maria Callas pra mim, por favor. A Maria Callas era o aparato do soro, que ele levava danando, exatamente como na cena de Filadlfia. Ele comps raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto inicial, ele ia descobrindo um jeito de lidar com a doena. Antes de ter descoberto esse jeito, porm, ele escreveu a Primeira carta para alm do muro, j fazendo referncia velada doena. Na crnica, ele se agarrava nica coisa que podia ajud-lo a viver: a literatura. E termina o texto, assim:
Tenho medo desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez no sejam maus, talvez eu apenas no tenha compreendido ainda a maneira como eles so, a maneira
como tudo ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvao. A nica coisa que posso fazer escrever essa a certeza que te envio, se conseguir passar essa carta para alm dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a nica coisa que posso fazer escrever, a nica coisa que posso fazer escrever.
Depois da primeira, vieram ainda uma segunda e uma terceira cartas. A segunda um pouco mais clara que a primeira, e fala dos anjos que Caio encontrara em sua descida ao inferno: anjos de branco, funcionrios do hospital; os anjos de negro, seus amigos que lhe trazem presentes e carinho. E os outros anjos, os que j foram.
Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plstico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas. Reconheo um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma cano de Freddy Mercury, coreografados por Nureiev, identifico os passos bailarinos-n de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrs da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraar Vicente Pereira, e outro Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyril Collard, enquanto Wilson Barras esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nelson Perlongher. Ao som de Lri Finokiaro, Herv Guilbert continua sua interminvel carta para o amigo que no lhe salvou a vida. Reina Ido Arenas passa a mo devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: "Quem tem um sonho no dana, meu amor."
A terceira crnica muito mais clara que as outras duas. Nela, Caio conta o que lhe tinha acontecido, detalhe por detalhe. O Teste, o resultado, as ligaes para os amigos, depois a febre e o delrio, e o hospital. Caio ficou 27 dias internado no Emlio Ribas. L aconteceu uma coisa inesperada: ele recebeu tanto carinho das pessoas, tantas
vibraes positivas, como comentaria sempre em entrevistas dali adiante, que ele foi, serenamente, comeando a aceitar. E que mais ele podia fazer? A doena era irreversvel demais para que se pudesse lutar contra; era preciso aceitar. E ele aceitava todo dia, como escreveu na Ultima carta para alm dos muros.
[...] O que importa a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly s vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beij-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive to bem.
A terceira crnica foi escrita j em Porto Alegre. O mdico recomendara a ele: voc precisa agora de qualidade de vida. Ento Caio decidiu: adeus, So Paulo. Fez uma festa de despedida na boate A Loca, na qual cantou Laura Finocchiaro e compareceram muitos amigos, como Paula Dip e o marido. Mrio Prata se lembra de ter visto Caio pela ltima vez nessa festa. Muitas luzes vermelhas, verdes, azuis, muita fumaa. Prata estava sentado em uma escada quando Caio passou a mo em sua cabea e subiu os degraus, leve, incorpreo, parecendo, por causa das luzes coloridas, uma figura sobrenatural, um anjo. Caio voltou, ento, ao Rio Grande do Sul, para morar com seus pais j to idosos, no sobrado colonial espanhol no bairro Menino Deus. H roseiras no jardim, como ele sempre sonhara em ter. E ele se dedica, ento, a cuidar de si, de suas flores, de sua obra. Nunca foi to fcil conviver com o Caio alguma coisa nele meio que serenou. O mau humor de antes, as alfinetadas, o gnio difcil, tudo isso foi substitudo por uma espcie de paz, de aceitao. Ele vivera os ltimos anos em constante acelerao, viajando de c para l, ParisBerlim-Londres-So-Paulo, e agora era obrigado a parar. Ele sempre quisera desacelerar; invejava a amiga Magliani e sua horta, l em Tiradentes. Agora era a hora. No haveria outra, ele pensava. A vida no era mais adivel.
Ele descobriu o que j sabia ainda com mais fora: amava a vida. Acalentava o sonho de fazer parte da primeira gerao de sobreviventes, os primeiros a driblar o vrus da aids. No a cura, que isso parecia impossvel, mas alguma maneira de estabilizar a doena, deix-la tipo a diabetes, algo crnico, porm no letal. Ele achava que, se conseguisse sobreviver mais um ou dois ou trs anos, essa "cura" podia aparecer, e ento ele poderia viver muitos anos mais. E estava certo: quando ele morreu, em 1996, j existiam os remdios que comporiam o famoso coquetel. Ainda no se sabia como dos-los, e administr-los nas doses certas para manter a doena em nveis controlados, mas j existiam. Em Porto Alegre, a rotina de Caio era simples: acordava cedo, tomava caf, ia cuidar das roseiras. Escrevia um pouco: crnicas para O Estado de S. Paulo e agora tambm para a Zero Hora, de Porto Alegre. No Estado, Caio escrevera crnicas de 1986 a 1989; depois de uma pausa de trs anos, retomara seu espao em 1992, e escreveu at dezembro de 1995. Uma seleo de suas crnicas para publicao em livro foi elaborada por Gil Veloso, quando Caio j estava doente. Pequenas epifanias foi publicado em maio de 1996, alguns meses depois da morte de Caio. A rotina leve na casa dos pais e as doses de AZT pareciam estar funcionando. Caio ganhara peso, os exames de sangue apontavam bons resultados de plaquetas, leuccitos e linfcitos. Quando precisou de um remdio mais caro, americano, que custava 4 mil dlares o grama, Lucinha Arajo, a me de Cazuza, e Scarlet Moon, esposa do Lulu Santos, conseguiram de graa para ele, conta Graa Medeiros. As coisas pareciam bem, e Caio decidiu que iria, sim, cumprir seus compromissos na Europa. Primeiro, a Alemanha. Em 1994, a Feira de Frankfurt foi dedicada ao Brasil; Caio foi participar da feira e depois seguiu por vrias cidades alems, fazendo leituras e palestras. Ele iria ainda Frana, passar duas semanas em Aries, numa mini-bolsa para escritores, mas no deu. Um teimoso
sarcoma de Kaposi resolveu brotar em Caio, e brotar bem na ponta do nariz. O sarcoma uma espcie de cncer de pele, uma leso arroxeada que acomete as pessoas contaminadas com HIV. um dos estgios mais adiantados da doena, e, segundo os clculos dos mdicos, Caio j devia estar contaminado h pelo menos uns dez anos. No foi surpresa, portanto, quando a leso apareceu. Mas na ponta do nariz era demais; Caio antecipou a volta ao Brasil. De volta a Porto Alegre, Caio recebeu um presente inesperado. Amigos de So Paulo Celso Curi, Maria Adelaide Amaral, Vnia Toledo e mais alguns fizeram uma vaquinha e compraram um laptop para ele. Celso Curi foi eleito para ir a Porto Alegre entregar o presente. Caio adorou, escreveu crnicas contando de seu novo Robocop, falou em cartas aos amigos que agora era um homem informatizado. Informatizado em termos: Caio no sabia muito bem mexer no computador. No sabia salvar os arquivos, por exemplo. E tambm no queria aprender. Assim que terminava de escrever, imprimia tudo. E corrigia as provas mo, como sempre fizera. Quando Celso esteve em Porto Alegre para entregar o computador, ele e Caio saram juntos para o teatro. Celso chorava o tempo todo, pensando no amigo que ia perder. Chorava de molhar a cala, uma cala clara. E Caio, ao lado dele, dando soquinhos em sua perna, mandando ele parar, porque estava incomodando. Celso estava muito mais triste que Caio, ou pelo menos assim parecia. Era, provavelmente, a ltima vez que se veriam. Alm do laptop levado por Celso, outras alegrias esperavam Caio: seu novo imunologista. Ah, o imunologista. Era lindo, o mdico. Lasanha. Belssimo. Tratara de Lory Finocchiaro e de mais tantos positivos que havia em Porto Alegre. Eduardo Sprinz, o nome do imunologista. E Caio ficou apaixonado por ele, apaixonado assim meio de brincadeira, meio a srio, achando que havia um motivo pelo qual ele pegara a doena, e o motivo era revelado agora: conhecer o
mdico. Sempre apaixonado, o Caio. E pelo mdico, um clich at justificvel: se muita gente se apaixonava pelo analista, ele se apaixonava pelo imunologista, que era quem, afinal, estava mais prximo dele agora, quem o tocava, quem lhe dava a promessa de vida. Caio escreve a Gerd Hilger: "Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor guloso! J pedindo foto da MINHA lasanha completamente pelado(a)... Para seu governo, honey, eu recm comecei a pegar amizade, ontem foi apenas a segunda vez que nos encontramos! Mas falando srio God! que homem GOSTOSERRIMO... Claro que estou achando que tudo era fatal, e que fiquei doente apenas para conhec-lo, e que natural e inevitavelmente ele tambm vai se apaixonar por mim, e que movido pelo amor descobrir algum medicamento fantstico que me salvar a vida e certamente logo depois iremos viver em alguma ilha do Pacfico Sul (ou norte, ou leste, oeste, tanto faz) onde seremos felizes para sempre e o senhor No ser convidado a nos visitar, a no ser que leve o Valdir junto, OK?" Por mais lindo que fosse o mdico, no entanto, Caio no estava disposto a apostar todas as suas fichas num nmero s. Alm da medicina clssica, ele se tratava tambm com proplis e lama de Arax. Ceclia Niesemblat, uma amiga antiga, a quem Caio dedicou alguns contos, o tratava com florais de Bach. E Caio descobriu um remdio que, segundo ele, era mais curativo que AZT: crianas. Ele passava o dia brincando com seus sobrinhos: Rodrigo, de onze anos, e Laura, de quatro, filhos de Cludia e Jorge; e o mais novo, o Felipinho, de um ano e meio, filho de Luiz Felipe. Caio comprou uma caixa de lpis de cor enorme para a Laura, que adorava desenhar, e gostava muito de Frida Kahlo queria sempre ver a foto daquela "mulher de bigode". E passava tardes inteiras sentado com ela, desenhando, desenhando. Felipinho, o mais novo, era incrivelmente louco por frangas. Via uma e comeava a gritar: gang-gang! E o mais velho, Rodrigo, virginiano como o Caio, tinha o temperamento do tio: s vezes se isolava, no
queria saber de ningum, principalmente em festas ou reunies familiares. Ao contrrio do tio, porm, era muito informtico, sabia lidar com computadores, impressoras e tecnologias. Caio estava ficando obsoleto. A sua principal preocupao era o jardim. Nas cartas aos amigos, nas crnicas, ele falava sempre das dificuldades que tinha em manter o jardim, onde tirou algumas das fotos mais famosas de sua vida, vivo, lindo, como queria. Eram caramujos canibais querendo devorar as flores, ou o inverno rigoroso que secava as plantas, ou ervas daninhas de todo tipo, ou a flor do girassol pesada demais para seu prprio caule "como se no suportasse o peso da prpria beleza que engendrou" , ou as formigas querendo devorar as anglicas; enfim, era difcil manter o jardim vivo. Era preciso trabalho, esforo. Horas e horas ele passava no jardim, cuidando, mexendo na terra. Conversava com os vizinhos, alguns deles loucos por jardinagem, como Irineu Garcia, artista plstico, cuja casa ficava em frente do Caio; ou Felipe, vizinho da casa ao lado, com quem o escritor trocava sementes e dicas e truques. Caio brincava: estava pensando em trocar suas credenciais de "jornalista e escritor" para "escritor e jardineiro". Havia as rosas, as roseiras que ele amava algumas das quais esto de p at hoje. E Caio gostava de viver assim. Conversava com D. Anita, octogenria, sua vizinha, que todos os dias passava em frente ao jardim, onde Caio passava a maior parte do tempo, para ir fisioterapia. Junto com o marido, D. Anita fora a primeira moradora da Oscar Bittencourt, rua onde os Abreu agora residiam. Ela vira cada casa ser construda, e sabia a histria de cada morador. Adorava conversar com Caio: ele lhe contava as histrias da Europa; descendente de italianos, D. Anita era fascinada pelo continente. Chegou a colocar na filha o nome de Itlia, mesmo nome de uma sua irm falecida. Caio ficava encantado em conversar com ela. De vez em quando, o escritor pegava a bicicleta e ia dar longos passeios no parque da Marinha. Podia tambm ver o pr-do-sol na usina do Gasmetro. Era calmo, tranqilo. E bonito.
Caio quase no saa do Menino Deus, o bairro onde morava. Escreveu em uma crnica, certa vez: "moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre apenas o que h em volta". Anos depois de sua morte, o chileno Carlos Aguirre Seplveda abriu uma pastelaria no bairro e, para homenagear os moradores e o escritor, fez uma faixa com a frase. Foi um sucesso. Os moradores do Menino Deus consideram Caio uma espcie de patrimnio local. Mesmo isolado, Caio no perdia o contato com os amigos. Sempre algum ligava, aparecia, escrevia. Como Amanda Costa, astrloga e amiga. Os dois se conheceram em agosto de 1985, na Jornada Literria de Passo Fundo. Caio estava l para falar como escritor e ela, que j era f e se lembrava de v-lo na rua, nos anos 70, com o casaco preto enorme, trabalhava na editora L&PM. Os dois tinham algo em comum: assim como Graa Medeiros, Caio e Amanda foram alunos de astrologia de D. Emma de Mascheville, uma alem que influenciou vrias geraes de astrlogos em Porto Alegre. Caio dedica alguns textos a D. Emy, como a chamavam. Amanda, de uma gerao mais nova que a do Caio, compartilhava seus interesses literrios e astrolgicos, e se deram bem de imediato. Trocavam clculos astrais e confidencias nas cartas; nos ltimos anos, sempre perguntava se ela no achava que as mudanas astrolgicas no poderiam trazer a cura da doena. Em 1995, ele precisava de uma caixinha de isopor para guardar os remdios. Amanda levou a tal caixinha em um almoo, foram comer camares no Tirol, um restaurante de que ele gostava muito. Caio se sai com essa: Obrigado. Agora vou forrar com papel de oncinha, para ficar mais bonitinho. Alm das crnicas, Caio continuava trabalhando em outras coisas. Fez a traduo de Assim vivemos agora, novela da ensasta americana Susan Sontag que descreve as reaes de um grupo de amigos quando um deles contrai aids. A traduo ter sido feita por Caio, portador do vrus, emocionou
a autora. Quando o livro foi publicado, em novembro de 1995, Maurcio Stycer, da Folha de S. Paulo, pergunta em entrevista se ela sabia que o tradutor tinha aids. "Sei e isso me emocionou muito. No s porque ele um conhecido escritor e a traduo, parece, est muito boa, mas porque ele leu a histria h algum tempo e sugeriu a sua publicao. O fato de essa histria significar algo para o Caio e que vai significar algo para outras pessoas porque ele fez a traduo me deixa muito feliz e agradecida a ele." Caio trabalha tambm na literatura, a todo vapor: revisou Morangos mofados, que saiu em nova edio pela Companhia das Letras. E mexeu em todos os seus guardados, papis antigos: selecionava textos para uma antologia, uma espcie de autobiografia ficcional, que conteria textos de todas as fases de sua vida. O resultado foi o livro Ovelhas negras, que saiu pela editora Sulina, em 1995. O livro traz desde A maldio dos Saint-Marie, escrita aos 13 anos de idade para um concurso escolar, at textos mais atuais, escritos j em Porto Alegre. Cada texto publicado na obra vem precedido de uma pequena explicao do escritor, contando as circunstncias em que escreveu o texto, o que gosta ou o que no gosta nele, porque no entrou em nenhum livro, enfim, comentrios gerais. Ovelhas negras era considerado por Caio um livro prpstumo. Ele estava selecionando seus inditos para que ningum o fizesse depois de sua morte. Repetia sempre: No quero que faam comigo o que fizeram com Ana Cristina Csar. Ele se referia publicao, depois da morte de Ana C, de vrios livros contendo inditos e dispersos, poemas inacabados, que jamais teriam sido publicados com o crivo da poeta. No entanto, esse medo de Caio referia-se sua fico; ele no fazia restrio, por exemplo, publicao de suas cartas. Pelo menos aquelas trocadas com outros escritores e artistas. Tanto que doou Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma parte de sua correspondncia
passiva. E ele escreve a Lucienne Samr, escritora e amiga, em fevereiro de 1995: "Ns nos escrevemos dezenas de cartas. No sei se voc guardou as minhas como eu guardei as suas. Se voc guardou, uma idia aps minha morte, claro voc public-las. Vamos que eu me torne um mito literrio (melancolicamente pstumo...) De qualquer forma, se voc as tem, so suas. E a minha herana para voc." Grande parte das cartas de Caio para Lucienne, infelizmente, se perdeu num incndio. Algumas das que sobraram foram publicadas no livro organizado por talo Moriconi Caio Fernando Abreu: Cartas, de 2002. A publicao da obra gerou polmica: alguns amigos de Caio no quiseram dar as suas cartas, por considerarem a publicao prematura. Muita gente citada nas cartas ainda estava viva, circulando, e a lngua ferina de Caio no costumava perdoar ningum. Os trechos mais pessoais, no entanto, foram suprimidos, alguns nomes substitudos por iniciais, e assim o livro saiu. Vrios amigos e leitores foram pegos de surpresa: que nas cartas Caio era muito mais engraado, e leve, e animado, que pessoalmente. Ao vivo, muitas vezes era irascvel e calado; nas cartas, podia falar mais livremente, e fazia piadas, e falava de sentimentos que no teria coragem de dizer cara a cara. No era a pessoa deprimida que se poderia apreender de seus contos.
Alm de organizar Ovelhas negras, Caio revisou outros de seus livros. Inventrio do irremedivel, publicado em 1970, ganhou mudanas drsticas. Oito contos foram excludos, por ele ach-los repetitivos demais. Fez algumas mudanas na pontuao, correes, melhorias nas frases, embora a estrutura permanecesse a mesma. E o ttulo passou a ser Inventrio do irremedivel; segundo o autor, para diminuir o carter definitivo do ttulo original. Caio esperava ter tempo de escrever tambm a volta das frangas e Estranhos estrangeiros. No teve. Assim como no
assistiu montagem de um texto de teatro seu, O homem e a mancha, um monlogo dirigido por Luiz Arthur Nunes e representado por Marcos Breda. A pea tinha sido escrita por encomenda de Carlos Moreno o garoto-propaganda do Bombril , mas ele nunca chegou a encen-la. A cena da apresentao da pea para ele, alis, foi constrangedora. Anos antes, Caio chamou Luiz Arthur, que estava em So Paulo, para acompanh-lo na leitura para Moreno e Fbio Namatame, que faria a cenografia. Caio faz uma bela leitura, com sua formao de ator e sua voz. Ao final, porm, ningum diz uma palavra. Luiz comea a falar compulsivamente para preencher o silncio, mas Moreno no disse absolutamente nada, nem ento e nem depois. Ao que consta, tambm no pagou um centavo pelo texto que encomendara. Caio ficou arrasado, chateado. Mas agora, finalmente, Breda e Luiz Arthur iam montar a pea. Ele pedia aos amigos que se apressassem, pois ele queria ver o texto encenado. Era uma pea complexa: de dentro de um personagem, saa outro na comparao do autor, como os bonecos de madeira russos, os baboushkas, em que um vai saindo de dentro do outro. Assim ele construiu O homem e a mancha, que , na verdade, uma releitura de D. Quixote. O personagem o perseguia desde que Clarice Lispector resolvera apelid-lo. Ele resolveu, ento, brincar com isso. De um ator procurando um personagem, nasce o personagem obcecado com a mancha uma aluso aids, mas tambm a qualquer espcie de parania ou obsesso, e tambm cidade do personagem de Cervantes, La Mancha e dele nasce D. Quixote, e desse nasce o Cavaleiro da Triste Figura, e assim os personagens se alternam, num interessante jogo de personalidades. O monlogo foi includo no livro Teatro completo, que rene todas as peas de Caio, inclusive a adaptao que ele fez de Reunio de famlia, de Lya Luft. Organizada por Luiz Arthur Nunes, a obra foi lanada depois da morte do escritor.
Desde a descoberta da aids, Caio decidira viver uma vida mais tranqila em Porto Alegre. Paradoxalmente, foi a que a mdia comeou a dar mais ateno a ele: choviam pedidos de entrevistas, muitas delas motivadas pela questo da doena. Caio se sentia desconfortvel com essa situao, embora reclamasse exagerada-mente. Quem o ouvisse falar, pensaria que a mdia jamais lhe dera qualquer ateno at o dia em que descobriram que ele tinha aids, o que no era verdade. Ele sempre foi um autor procurado, respeitado, muito popular em alguns meios. J desde os anos 70 ele tinha seus fs fiis; a partir de Morangos mofados, livrosmbolo de uma gerao, seu nome se tornou mais popular. Todo mundo tinha um exemplar em casa. No se pode dizer, portanto, que Caio fosse ignorado pela imprensa at 1994. De fato, porm, os pedidos de entrevista aumentaram. Ele foi convidado para ir ao programa do J Soares, por exemplo. E achava aquilo a ironia das ironias, porque ele tinha tentado, antes, ir ao programa divulgar algum de seus livros, mas fora vetado "por estar fora da mdia". Agora, no entanto, o queriam. E ele foi, com a desculpa de lanar Ovelhas negras e a reedio de Morangos mofados. Na maior simpatia, conversou com J, fez piada, brincou. Em dado momento, depois que a aids j tinha sido citada, J lhe pergunta se ele no pensava em escrever algum livro tratando da doena. Caio responde: No. Vai que eu no morro, com que cara eu vou ficar? Risadas, risadas. Depois ele explicou que, na verdade, a aids j aparecia em alguns textos seus: Onde andar Dulce Veiga uma histria de amor entre dois contaminados, o protagonista e Mrcia E A conversa segue, e ningum pode imaginar o quanto estar ali significa para Caio. A ironia da situao. Caio aparece tambm em um Globo Reprter sobre aids. Quem dirige o programa o amigo de longa data Jos Mrcio Penido. Em um depoimento muito bonito, Caio diz que no tem tempo para morrer. Ele tem planos, coisas a fazer. E ele
acredita na possibilidade de cura, sim. Diz que faz parte de uma gerao muito colonizada, que cresceu assistindo ao cinema americano, e que portanto sempre acredita que vai haver um beijo da Doris Day com Rock Hudson no final, e todos sero felizes para sempre. Na entrevista, Caio expe sua teoria de que, na verdade, o planeta que est doente: maltratada, a Terra comeou a reagir. Assim que se curar o planeta, se curar o ser humano. Ele v coisas piores que a aids vindo por a, se nada for feito era a poca em que se soube do vrus bola, muito mais letal que o HIV. Mas na poca no se sabia disso, e havia medo, e Caio estava, mais do que nunca, convencido de que era preciso mudar a maneira de tratar o planeta. E tambm a ns mesmos: embora, at o fim, no tenha desistido do cigarro, ele no queria mais maltratar o corpo, beber, se drogar. Mas claro que a aids no era como o bola. Na viso do escritor, a aids era uma doena cheia de estigmas, que talha o ser humano no que ele tem de mais delicado, que a sexualidade. E por isso era preciso desmistificar, no se envergonhar. Falar da doena era a melhor forma de combat-la, e principalmente de combater os preconceitos ligados a ela, os clichs associados aos soropositivos. Por isso, ele dava entrevistas; mesmo sabendo que o interesse maior no era em sua obra, e sim na doena, ele falava. Participa, por exemplo, junto com a jornalista Regina Echeverria, de um simpsio sobre aids, em 1994, no teatro do Maksoud Plaza, em So Paulo. Os dois, os nicos que no eram mdicos no evento, ficavam sentados de um lado do palco, e os debatedores do outro um deles era o dr. Druzio Varella, um dos primeiros mdicos a combater a aids no pas. Caio estava l para dar seu testemunho, assim como Regina, que fora falar da histria de seu marido, que morrera por causa da doena. O escritor falou do que se passava fsica e emocionalmente com ele, das dores e dos humores. Comoveu a platia e ajudou a diminuir, um pouco, o desconhecimento da doena.
Por estar de volta a Porto Alegre, por ser, realmente, um escritor reconhecido, que merecia a homenagem, e um pouco, claro, por ele estar doente e no poder, talvez, ter outra chance, Caio foi convidado para ser patrono de Feira do Livro de 1995. Jlio Zanotta Vieiras na poca presidente da Cmara Rio-grandense do Livro, insistiu para que assim fosse: a nomeao de Caio no era uma unanimidade. Os argumentos de Jlio venceram, porm, e Caio foi escolhido. De incio, quando convidaram o escritor, ele desconfiou. Mas isso no coisa para gente morta?, perguntou. Quando esclareceram que no, o patrono tinha que estar bem vivo, e muita gente legal j tinha aceitado antes, como Mario Quintana, ele relaxou e aceitou. Brincava, dizendo que achava solene demais a palavra patrono, e preferia ser chamado de padrinho da feira; se bem que, dizia, estava mais para padroeiro, um p do outro lado e outro aqui. Por essa poca, Mauro Castro, taxista, f de literatura, acompanhava as crnicas de Caio no jornal. Seu ponto de txi fica no Menino Deus, a dois quarteires da casa da famlia Abreu. Quando o escritor ia para o hospital Moinhos de Vento fazer radioterapia, para o cncer de pele, costumava caminhar at o ponto de txi e chamar Mauro para lev-lo. Caio preferia ir sem ningum da famlia para essas sesses no hospital. Um dia, Mauro comentou com Caio que tinha visto o ou-tdoor de seu livro Pequenas epifanias em uma rua. Caio pediu que o levasse at l. Foram. Por uns cinco minutos, sem descer do carro, o escritor olhou seu nome no alto, viu a capa do seu livro. E no deve ter gostado do que viu, pois ficou em silncio a maior parte do caminho, depois. Comentou algo sobre oportunismo, sobre acharem que ele j estava morto. E pediu para irem embora. Mauro, o taxista, hoje escreve colunas para o jornal Dirio Gacho, contando "causos" da vida de motorista. Influenciado por Caio, o taxista f de literatura comeou a escrever. E faz sucesso. No final de 1995, o mdico avisou a Caio que ele
precisaria extrair a vescula. Era urgente. Mas Caio decidiu adiar a cirurgia. Pediu a seu irmo Felipe que o levasse de carro at Santiago do Boqueiro. Queria despedir-se da cidade. No ia l h muitos anos, desde que fora homenageado, recebendo o ttulo de santiaguense ilustre. A temporada na terra natal foi tima: Caio conversou muito com as tias, principalmente tia Elcy Abreu, que ele adorava. Relembrou a infncia, descansou. Fez as pazes com essa parte do seu passado. Quando voltou, escreveu uma crnica para Zero Hora contando da viagem, da emoo que era voltar ao lugar onde nascera. Depois de retirar a vescula, Caio decidiu fazer outra viagem. Ele iria Praia do Rosa, em Santa Catarina. A me no poderia ir com ele: com 71 anos, j tinha sofrido duas isquemias cerebrais e no tinha sade. O pai, Zal, no abandonaria a esposa em casa. Os irmos tinham ocupaes. A companheira de viagem de Caio foi, ento, Da Martins, que estava morando em Porto Alegre na poca. Pegaram carona de carro com duas garotas amigas da famlia e foram. Chegando l, Caio e Da tiveram algumas briguinhas. Estavam os dois muito mal: ela saindo de um relacionamento, deprimida; ele, doente. Na pousada onde ficaram, havia um hibisco, aquela flor smbolo dos surfistas. Da olhou, perguntou: que flor essa? Foi o suficiente para Caio se irritar. Como assim, que flor essa? Ento voc no sabe o que um hibisco? Ficou irado. Estava muito abalado, muito sensvel, muito doente. Embora estivesse sereno a maior parte do tempo, s vezes era difcil lidar com Caio. Ele tinha a sensao de que tudo que ia fazer seria pela ltima vez. Quando foi ao cinema com Gilberto Gawronski, por exemplo, de passagem pela cidade, escolheu um filme longussimo, de trs horas. Tinha porque tinha que ver aquele filme. Gilberto pegou o carro, buscou-o, foram. Com cinco minutos de filme, Caio queria ir embora. No esse filme, no isso que eu pensava. Ele queria ver O Filme, algo marcante, significativo; ele no tinha tempo a perder. Gawronski discutiu com ele, mas no teve jeito: teve que lev-
lo embora. Em casa, a situao no era mais fcil. A me doente, e Caio implicava com ela. Dizia que ela o atordoava, no o deixava em paz, estava sempre atrs dele contando histrias interminveis. Ela o desgastava, lhe dava nos nervos. Ele explodia, brigava com ela. Depois se arrependia, cus, ela to velhinha e ele fazendo malcriao. Mas no dia seguinte brigava de novo. Parecia mais o hospital Abreu do que a casa da famlia, brincava o escritor. O pai, 74 anos; a me, 71, e ele, bem, ele doente at o osso. Da teve que partir mais cedo da praia; recebeu uma proposta de trabalho no Rio e voltou para l. Caio tambm antecipou sua volta a Porto Alegre: estava doente. Poucas semanas depois, pegou pneumonia. O amigo Luciano Alabarse, um dos poucos que acompanhou sua doena de perto at o fim, voltava do hospital e chorava. Chorava no hospital mesmo, mas Caio mandava ele ficar quieto: voc est mais deprimido que eu, Luciano. Anos antes, em 1984, Caio tinha escrito ao amigo: "Na minha lpide, quero alguma coisa mais ou menos assim: Caio F, que muito amou." Depois de vinte dias internado, o corpo do escritor no agentaria a presso. Os amigos o visitavam, e ele lhes dizia: estou cansado, estou muito cansado. Era como se ele j no coubesse mais em seu corpo. No dia 25 de fevereiro, uma e meia da tarde, Caio faleceu. Era um domingo. Mais ou menos na mesma hora, Reinaldo Moraes voltava de Buenos Aires de avio; ao passar por Porto Alegre, se sentiu muito mal. Quando chegou em So Paulo, soube da morte do Caio. Amanda Costa estava almoando em um restaurante rabe com uma amiga e comeou, do nada, a pensar nele, pensar nele, pensar nele. Quando chegou em casa, ouviu no rdio que tinha morrido. Do outro lado do mundo, no Egito, o jornalista Jos Castello, que, superada a timidez, entrevistara Caio algumas vezes, sentiu uma tristeza, uma dor no peito inexplicvel. Quando voltou ao Brasil e soube da morte do
escritor, fez as contas, fusos horrios e tal, e viu que Caio morrera exatamente na hora em que ele tivera a sensao estranha no Egito. As dez da noite do domingo, Hilda Hilst alega ter visto Caio, na Casa do Sol, em Campinas. Fora se despedir. Usava um cachecol com uma fita vermelha: os dois teriam combinado que vermelho significava que estaria tudo bem. Pesando menos de 40 quilos, Caio foi enterrado no cemitrio So Miguel e Almas. Sua me ficou inconsolvel; quatro meses depois, teve um acidente vascular cerebral (AVC) e no levantou mais da cama. Um ano depois, morreu. Um ano e dez meses depois dela, foi a vez de seu Zal. Em trs anos, filho, me e pai tinham falecido. Alguns anos depois da morte de Zal, os restos mortais dos trs foram transferidos para o Cemitrio Ecumnico Joo XXIII, onde ocupam o nmero 4352 07. Dias antes de morrer, Caio fizera seu testamento. sua maneira, claro: no registrara nada em cartrio. Escrevera, apenas, uma carta, para ser lida pelo seu pai, depois de sua morte. Na carta, ele fazia pequenos legados. Queria que Marcos Breda ficasse responsvel e recebesse os direitos de sua obra teatral; Gil Veloso da literria; Gilberto Gawronski da de cinema e audiovisual. A vontade de Caio no foi cumprida; quem administra a obra dele a famlia. Mas, sem saber que isso ia acontecer, sete dias depois da morte, na missa, os amigos se reuniram para a leitura da carta. Seu Zal srio, emocionado. Quando chega a parte de Gawronski, ele l, ele tem que ler: Betinho, se o Spielberg quiser filmar Dulce Veiga, voc vai ficar rica! Caio, onde quer que estivesse, estava dando risadas.
EPLOGO
Na praia do Rosa, com Da, em dezembro de 1995. O cu estava nublado, chuviscava, e Caio teimou que ia entrar no mar. No entra, cara, voc vai pegar uma pneumonia, t louco? Caio insistiu. Desde que chegara na pousada, ele estava usando um galho que catara na estrada como bengala. Pois bem, nem o galho ele queria. Era sua caminhada. Ele iria sozinho. Ia conseguir. Lentamente, foi andando at o mar, debaixo dos finos pingos de chuva. Atravessou a faixa de areia, entrou no mar. Mergulhou. Pediu ao deus das guas que o curasse. Jogou gua para cima, fez festa. E voltou. Lentamente, mas satisfeito.
Inventrio do irremedivel. Porto Alegre: Movimento, 1970; 2a ed. Sulina, 1995 (com o ttulo alterado para Inventrio do irremedivel). Limite branco. Rio de Janeiro: Expresso e Cultura, 1971; 2a ed. Salamandra, 1984; So Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992; Rio de Janeiro: 4a ed. Agir, 2007. O ovo apunhalado. Porto Alegre: Globo, 1975; Rio de Janeiro: 2a ed. Salamandra, 1984; So Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992; Rio de Janeiro: 4a ed. Agir, 2008. Pedras de Calcut. So Paulo: Alfa-Omega, 1977; 2a ed. Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2007. Morangos mofados. So Paulo: Brasiliense, 1982; 2a ed. Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2005. Tringulo das guas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; So Paulo: 2a ed. Siciliano, 1993; Porto Alegre: 3a ed. L&PM, 2005. Os drages no conhecem o paraso. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. Mel e girassis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. As frangas. Rio de Janeiro: Globo, 1988. A Maldio do Vale Negro. Porto Alegre: IEL/RS (Instituto Estadual do Livro), 1988.
Onde andar Dulce Veiga? So Paulo: Companhia das Letras, 1990; 2a ed. Planeta De Agostini, 2003; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2007. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1995; 2a ed. L&PM, 2002. Estranhos estrangeiros. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996; Rio de Janeiro: 2a ed. Agir, 2008. Girassis. So Paulo: Global Editora, 1997. Teatro completo. Porto Alegre: Sulina/IEL, 1997. Fragmentos. Porto Alegre: L&PM, 2002. Caio Fernando Abreu: Cartas. Org.: talo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. Caio 3D: o essencial da dcada de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005. Caio 3D: o essencial da dcada de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2006. Caio 3D: o essencial da dcada de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006. Melhores contos de Caio Fernando Abreu. So Paulo: Global Editora, 2006.
OBRIGADOS A Cludia, Felipe e Mrcia Abreu, pela generosidade com que compartilharam histrias, fotografias, vdeos, livros e documentos relativos ao irmo. A Jorge Cabral, cunhado, pelos mesmos motivos. A Evandro e Leandro Martins, e a sua me, Maria Aldina, pela ajuda em Porto Alegre; a Juliano, por ter sido um bom e divertido cicerone. A Mauro Castro, por ter me levado pra l e pra c em seu txi quando eu precisava. A Jacques, por rodar Porto Alegre inteira de bicicleta para me entregar um vdeo com entrevistas do Caio. A Lus Francisco Wasilewski, e a Fbio Fabretti, pelos conhecimentos sobre o Caio, pelas fontes que me passaram. Agradeo tambm a Alex Werner, a seu irmo, Bruno Werner, e a seu pai e a sua madrasta, por terem sido to bons anfitries no Rio de Janeiro. Em So Paulo, agradeo a minha irm, Liliane, no s pelo abrigo, mas por tudo, e sempre. A todos, agradeo por terem me ouvido falar e falar sobre o livro. Foram quatro anos monotemticos, eu sei. Esse livro comeou a nascer na Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeo Pr-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) pelo apoio dado. Aos professores Ricardo Barreto, Clvis Geyer e Tnia Rodrigues, agradeo as dicas e idias. A Luiz Alberto Scotto e Carlos Locatelli, os grandes planos e sugestes. A Digenes Fischer, por primeiro ter me apresentado obra de Caio F, emprestando-me seu Morangos mofados, que alis no devolvi nem pretendo. A Fbio Bianchini, grande amigo, por fazer o contato com uma das fontes. A Edir Ferreira e Paulo Vaz de Arruda, pelo papel importante em apoiar e ouvir. A Beatriz Tironi Sanson, por existir, apenas. A Paulo Camossa, por conseguir material ao qual eu no teria acesso de outra forma. A Wendel, Tadeu e Romeu Martins, por me ouvirem falar do trabalho, darem palpites, e me contarem o que eles mesmos andam fazendo. A Upiara Boschi, por ler o texto e opinar; sobretudo por gostar e me incentivar. A Marina
Darmaros, por trocar figurinhas e contatos. A minha famlia, especialmente tia Laura e minha me, Marisa, pela pacincia, pelo apoio. Por acreditar. Agradeo a Adriana Franciosi, a Ricardo Stefanelli e equipe do jornal Zero Hora, por terem gentilmente cedido fotografias importantes para este livro. A meu editor, Manoel, pela f no livro. Pelo mesmo motivo, meu obrigada a Carpinejar, Ricardo Lombardi, Rafael Franco e ao pessoal da revista Crescer. Cada um a seu modo, Gil Veloso e Luciano Alabarse cuidam com zelo da memria de Caio. Por isso, que no pouco, agradeo aos dois. Agradeo a todos os entrevistados, que me cederam seu tempo e suas memrias: Adriana Calcanhoto, Amanda Costa, Ana Braga, Ana Lcia Vasconcelos, Anna Gioconda Homem (D. Anita), Antnio Neto, Bruna Lombardi, Carlos Aguirre Seplveda, Carlos Emlio Corra Lima, Celso Curi, Cida Moreira, Claudia Wonder, Da Martins, Emanuel Medeiros Vieira, Gilberto Gawronski, Graa Medeiros, Grace Gianoukas, Guilherme de Almeida Prado, Irineu Garcia, Itlia Homem Ledur (D. Itlia), Ivan Mattos, Jacqueline Cantore, Jaime Gargioni, Joo Batista, Jos Castello, Jos Mrcio Penido, Jos Mora Fuentes, Juarez Fonseca, Jlio Csar Monteiro Martins, Kate Lyra, Laura Finocchiaro, Luiz Abreu, Luiz Arthur Nunes, Luiz Carlos Fava, Luiz Carlos Moura, Luiz Fernando Emediato, Luiz Schwarcz, Mrcia Denser, Marcos Breda, Maria Adelaide Amaral, Maria Ldia Magliani, Maria Rosa Fonseca, Mrio Prata, Nei Duelos, Paula Dip, Pedro Paulo de Sena Madureira, Regina Echeverria, Reinaldo Moraes, Renato Campo, Ruy Krebs, Santiago, Snia Azambuja, Stella Miranda, Vera Antoun, Vera Spolidoro. Quero agradecer, tambm, a Jonas Lopes, por me ensinar sobre disciplina. sua famlia, Leide, Fernanda, Joo: pelo apoio, sempre. E a Regina Carvalho, por estar sempre disponvel, por ler os textos assim que eu os mandava, pelo grande conhecimento de todos os assuntos e pela amizade, pelas batatas fritas e sukitas, agradeo demais.
Obrigada mesmo. A todos que me ajudaram de alguma forma, me apoiaram: seria longo citar todos os nomes, mas obrigada. E, finalmente, quero agradecer a Eduardo Nasi, o melhor marido, companheiro, amigo. Sem voc, no teria conseguido terminar o livro. Te amo, querido. Sempre.
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