"Sindicato de Ladrões": o Método Como Um Campo de Disputa em Hollywood
"Sindicato de Ladrões": o Método Como Um Campo de Disputa em Hollywood
"Sindicato de Ladrões": o Método Como Um Campo de Disputa em Hollywood
Z31s
Livro em PDF
ISBN 978-65-5939-727-3
DOI 10.31560/pimentacultural/2023.97273
CDD 410
I. Linguística.
PIMENTA CULTURAL
São Paulo . SP
Telefone: +55 (11) 96766 2200
[email protected]
www.pimentacultural.com 2 0 2 3
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras
Agradecimentos............................................................................. 11
Introdução
Consciência de classe, solidariedade
e outras ideias contagiosas – um percurso
para a arte de esquerda no século XX................................................ 13
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Reorganizando a categoria:
o filme como campo de disputa..................................................... 225
Cristo no cais, Judas no Calvário...................................................... 235
Conclusão
Desenvolvimento técnico e autonomia
do intérprete como herança para
o cinema pós-macartismo................................................................. 252
sumário 11
Agradeço, muito e profundamente, a Marcus Maello, meu
companheiro de reflexão sobre esse mundo convulso que nos cabe
viver e transformar.
sumário 12
INTRODUÇÃO
1 “Five Myths About the CPUSA”, postagem no blog do site oficial do CPUSA, de
14/04/2020 (http://www.cpusa.org/article/five-myths-about-the-cpusa/, acessado em
17/04/2020, em tradução livre).
sumário 13
pelas instituições responsáveis pelo funcionamento da democracia e
da liberdade que fundamentam a estrutura do estado Americano?
sumário 14
no momento, o esforço possível de realização de cinema político em
Hollywood, já que o foco no combate à ameaça global levava os pro-
dutores a não aprovarem roteiros que discutissem as próprias con-
tradições internas dos EUA – tinham uma característica em comum:
eram escritos, dirigidos e estrelados por membros ou ex-membros
do Communist Party of The United States of America (o CPUSA), ou
por artistas de perfil politicamente independente, e que participavam
dos atos e eventos promovidos pelo partido por simpatizarem com
o pensamento e as demais causas progressistas que compunham
o seu ideário. Em sua grande maioria democratas ou liberais, esses
simpatizantes eram conhecidos como “fellow travellers” (ou “com-
panheiros de viagem”) e formavam o grosso do caldo da esquerda
estadunidense à época. A sentença do teórico da literatura Kenneth
Burke, escrita em Permanence and Change, de 1935, serve como
um termômetro do espírito de transformação que animava a classe
artística e intelectual no período: “Até onde eu posso ver, o único
movimento coerente e organizado que está buscando a sujeição do
gênio tecnológico para fins humanos é o movimento do Comunismo,
seja qual for o nome que deva ao fim prevalecer para isso”.2
sumário 15
um terreno propício para que ideias mais “perigosas” se espalhas-
sem e gerassem uma onda de crescimento contrária aos objetivos
almejados pela hegemonia capitalista. Em outras palavras, após o
abalo causado pela Segunda Grande Guerra, o temido espectro do
comunismo voltava a rondar pelo mundo todo, se disseminando e
levando a promessa da revolução – ou ao menos da reforma, o que,
no contexto de meados do século XX já era uma possibilidade aterro-
rizadora demais para o conservadorismo de mercado. A partir de en-
tão, e para as próximas duas décadas, surgiriam os movimentos que
redesenharam as fronteiras políticas e ideológicas na geopolítica glo-
bal até hoje: a Revolução Chinesa (a partir de 1948), Cubana (1959),
e as Guerras da Coreia (1950 a 1953) e do Vietnã (1955 a 1975).
Assim como eclodiram, por reação contrária, as ditaduras militares
latino-americanas que abafaram o levante popular em seus países,
escrevendo as páginas mais sangrentas da história do continente.
sumário 16
perante a HUAC, confessar seu antigo envolvimento com as causas
radicais e ainda por cima delatar antigos companheiros de viagem. O
processo era estabelecido como um espetáculo público midiático em
nível nacional e o simples gesto de qualquer tipo de resistência a seu
funcionamento era visto e divulgado como um perigo para a manu-
tenção do bem-estar social do Estado democrático estadunidense.
sumário 17
a alegoria política montada pelo filme. Seu diretor, Elia Kazan, era ele
mesmo um imigrante cuja origem profissional foi nos grupos de teatro
de esquerda que eclodiram nos ardentes anos 1930.
3 Os títulos originais dos filmes de Elia Kazan citados acima são: Boomerang (“O Justicei-
ro”, 1947), Gentleman´s Agreement (“A Luz É Para Todos” 1947), Pinky, (“O Que a Carne
Herda”, 1949), A Tree Grows in Brooklyn, (“Laços Humanos”, 1945) e The Sea of Grass,
(“Mar Verde”, 1947).
sumário 18
Porém, assim como a ficção não era capaz de refletir o conturba-
do momento político sem que se exigisse ao fim uma tomada de posi-
ção imediata e objetiva por parte dos realizadores, também a esperteza,
a criatividade ou mesmo a aposta de que os laços de solidariedade
seriam capazes de conter a dissolução do sentimento de coletividade
e consciência de classe se mostraram frágeis perante os devastadores
efeitos colaterais da epidemia histérica que o Macartismo disseminava.
Diante da pressão burocrática do sistema (com a conivência silencio-
sa dos grandes produtores de Hollywood) o que se testemunhou foi a
execução perfeita de um bem traçado plano de erradicação de todo e
qualquer pensamento progressista que havia feito a glória do cinema
político, e da arte como um todo, como efeito dos anos dourados da
Frente Popular. Diante desse cenário, não havia opções medianas ou
relativas: ou os artistas concordavam em fazer o jogo proposto pelo
sistema, e assim garantiam livre acesso aos estúdios e outros meios de
produção da cultura de massas nos EUA, ou aceitavam sua condição
de párias sociais, figuras tão indesejadas e combatidas quanto um cri-
minoso foragido ou um doente altamente infeccioso.
4 Segundo conta em sua autobiografia, Kazan consultou quase todas as pessoas que iria
delatar em seu depoimento à HUAC, antes de fazê-lo. A maioria delas eram os artistas
que formaram, nos anos 1930, a célula do CPUSA dentro do Group Theatre. Algumas,
como o dramaturgo Clifford Odets, também estavam sendo intimadas para depor e am-
bos acordaram em citarem-se mutuamente. Ainda, Kazan entregou os nomes de mem-
bros do Partido com função de recrutar jovens afiliados, o de um outro ator que atuava
como infiltrado dentro do Actors Equity Association (espécie de sindicato da categoria de
atores de teatro) e ainda os três produtores responsáveis pela Frontier Films, com quem
Kazan realizou o curta-metragem de documentário People of the Cumberlands, em 1937.
Segundo Kazan, porém, ele apenas os citou pelo fato de a produtora como um todo ser
listada como subversiva. Mas ele não tinha certeza se havia relação entre os produtores
e o CPUSA, sendo inclusive um deles abertamente anticomunista.
sumário 19
de sua carreira enquanto diretor de cinema e teatro – ele havia recen-
temente consolidado sua glória tanto na Broadway quanto em Holly-
wood após o sucesso retumbante das versões de “Um Bonde Cha-
mado Desejo” (A Streetcar Named Desire) respectivamente em 1947
e 19515 – seu nome não era apenas mais um na longa lista de artistas
e intelectuais convocados para prestarem depoimento. Kazan estava
no foco das atenções tanto do público quanto da indústria. Ainda,
tendo fundado em 1947 o Actor´s Studio, ele estava à frente de um
movimento de modernização de Hollywood através da prática de um
estilo de direção de cena que havia amadurecido após quase duas
décadas de trabalho no teatro. Estilo que se baseava, quase que
principalmente, em um novo espaço de colaboração ativa entre dire-
tor, ator e autor, através do uso do Método de interpretação realista
no trabalho de encenação de seus filmes. O sucesso de Kazan não
era individual, mas devia-se a toda uma geração do teatro dos EUA.
Não à toa, o aspecto colaborativo de seu trabalho não se restringia
a apenas uma produção ou outra, mas revelava-se na parceria contí-
nua com colaboradores que o acompanhavam desde os tempos do
Group Theatre ou que, ainda que iniciantes, através de seus profes-
sores e sua formação representavam um fio dessa mesma linhagem
(caso de Marlon Brando, aluno de Stella Adler e cuja escalação para
o papel de Stanley Kowalski na montagem original de “Um Bonde...”
foi uma sugestão direta de Harold Clurman, diretor do Group Theatre,
quando Brando era ainda um desconhecido).6
sumário 20
Assim, Kazan tinha consciência do grande interesse público
de seu nome para a HUAC. E, mesmo no auge de sua carreira, sua
situação não estava tranquila. Seu último filme, “Viva Zapata!” (1952),
com roteiro de John Steinbeck7, era uma justificativa perfeita para o
Comitê levantar desconfianças em relação às posições políticas do
diretor: contava a história de um revolucionário – e, ainda por cima,
um ícone latino-americano – o mexicano Emiliano Zapata (vivido no
filme por Marlon Brando). Para Kazan, porém, duvidar de seu antico-
munismo com base nesse filme era um grande equívoco, justamente
por esse ser supostamente (segundo seu depoimento à HUAC) um
filme “anticomunista”. Afinal de contas, o filme mostra que Zapata
teria sido traído por um personagem que era uma espécie de revolu-
cionário profissional, ou seja, alguém que se ocupa em esquematizar
e manipular revoltas, seguindo orientações de sua organização parti-
dária, negociando posteriormente o resultado desses movimentos de
acordo com interesses externos. Assim, para Kazan, mais do que um
equívoco, era uma espécie de afronta à sua visão de mundo ter seu
nome confundido com uma organização com a qual ele mesmo havia
nutrido no passado profundas esperanças e, posteriormente, gran-
des desilusões, e da qual ele tinha, no momento, a pior consideração.
Mas, diante das contínuas desconfianças da HUAC, que começavam
a emperrar sua carreira, ele sabia que arriscava tanto falando quan-
to permanecendo em silêncio, e ao fim a balança de sua indecisão
pesou para o seu inflado anticomunismo, ainda que isso significasse
colaborar com o Macartismo. Anos mais tarde ele relatou:
Eu sempre vi os dois lados de todo assunto e todo julgamento.
Então, no corpo da minha convicção surgiu o verme da dúvida.
Eu ainda acreditava que o que eu tinha feito era correto, mas
não importava que as minhas razões haviam sido fundamenta-
das com sinceridade e cuidadosamente pensadas, havia algo de
indecente – era assim que eu sentia, como uma vergonha – no
que eu havia feito, e algo de obscuro em minhas motivações.
sumário 21
O que eu fiz era correto, mas era o certo? Qual forma de egoísmo
estava escondido em todas as palavras bonitas, quão poderoso
foi o papel que o meu amor por fazer filmes, que eu estava des-
contando do assunto, representou no que eu fiz? Eu me sentia
não resolvido, alternadamente humilhado e então ressentido por
todos os que me criticaram. É por isso que eu permaneci reserva-
do e em silêncio por tanto tempo. Meu refúgio foi o que eu sempre
fiz, afogar os sentimentos tristes no meu trabalho.8
sumário 22
O projeto, desacreditado pelo agente do diretor (que não achou o mo-
mento muito propício para um filme de temática política) passou de
mão em mão entre os grandes produtores de Hollywood até ser final-
mente aceito por Sam Spiegel, figura que tentava construir sua carreira
como produtor independente, desvinculado de um grande estúdio10.
Só depois de um longo processo de discussão e reescrita do roteiro
a seis mãos (por Kazan, Schulberg e Spiegel), foi levantado o dinheiro
para o filme ser rodado em locação – ou seja, fora do estúdio e con-
sequentemente longe da vistoria constante de seu produtor no set de
filmagens, o que garantiu uma maior liberdade de realização a seus
autores – e fechado um acordo de distribuição pela Columbia Pictures.
Assim, o sucesso arrebatador de “Sindicato de Ladrões” foi todo pos-
terior, e em um cenário completamente desfavorável, contrariando as
expectativas de todos os envolvidos em sua produção.11
10 À época ele ainda assinava suas produções como Sam S. P. Eagle, por medo de que o
antissemitismo atrapalhasse sua carreira. Segundo Kazan conta em sua autobiografia, foi
com “Sindicato...” que, pela primeira vez, o produtor abandonou o nome de sonoridade
americanizada e assumiu a grafia judaica original.
11 “Revendo os velhos recortes de jornais eu encontrei uma página com nossas fotografias
ao receber o prêmio [o Oscar]. Meu rosto tem uma expressão que o de ninguém mais
tinha. E não era bonita. Eu não me sentia orgulhoso dela. Mas você consegue ver que eu
estava experimentando a vingança naquela noite, e estava gostando disso. “Sindicato
de Ladrões” era a minha própria história; e a cada dia que eu trabalhei nesse filme eu
contava ao mundo qual era a minha posição, e mandava os meus críticos se foderem.”
Op. Cit., pg. 570 (em tradução livre).
sumário 23
Hoboken, periferia de Nova Iorque. Desconfortável com sua situação e
seu envolvimento nos negócios escusos e criminosos de seu patrão,
Terry se apaixona pela irmã de um dos estivadores mortos pelo sindi-
cato, executado por quebrar o código de silêncio que os criminosos
impõem para garantir a fidelidade e o medo dos trabalhadores. Movido
por essa relação, Terry acaba por delatar, diante da Comissão do Crime
que investigava a máfia nos portos da cidade, seus antigos compa-
nheiros de sindicato, abrindo assim o caminho para que as autoridades
tentassem quebrar a influência da máfia no cais. E, como efeito de sua
atitude, Terry experimenta de princípio o desprezo de seus colegas de
trabalho por ter traído esse código de silêncio que constitui a ética do
lugar. Ao final do filme, ele caminha vitorioso, ainda que alquebrado
pela briga com os capangas de Friendly, ao encontro do representan-
te da companhia de navios que contrata os serviços dos estivadores,
fazendo com que todos os seus colegas o sigam, o que indicaria uma
suposta nova mediação das relações de trabalho no cais.
sumário 24
se aproveitava das conquistas estéticas que essa mesma geração
engendrou – como o Método de interpretação – absorvendo essas
técnicas e artistas para modernizar a expressão de seus filmes. Em
outras palavras, mesmo o trabalho dessa geração, e as relações inter-
nas entre seus realizadores, havia se tornado um campo em disputa.12
sumário 25
emancipação criativa da categoria dos intérpretes, elevando-os à po-
sição de coautoria da obra cinematográfica, oferecendo de quebra à
indústria uma ferramenta decisiva no aprimoramento da produção de
seus filmes. Ao atentarmos para o fato de que a ação do Macartismo
representou uma operação de reorganização das relações criativas na
indústria cultural (fortalecendo o estabelecimento da nova ordem eco-
nômica que se ergueu durante a Guerra Fria) conseguimos ao fim elu-
cidar o papel de grande representatividade simbólica que “Sindicato
de Ladrões” tem para os caminhos do cinema nos EUA.
13 Em seu livro The Cultural Front – The Laboring of The Cultural Front – The Laboring of
American Culture in the Twentieth Century de 1989, grande fonte de referência para essa
pesquisa (Ver bibliografia).
sumário 26
de força, fica evidente o descompasso entre a atitude individual das
personagens – essencial para o desenvolvimento exigido pela tradi-
ção da forma dramática – e a responsabilidade com a esfera coletiva
– cuja representação quebra o desenvolvimento dramático ao trazer
para a cena um movimento mais amplo, configurado pela presença
dos grandes grupos, tema primordial do gênero épico. Desse modo,
a percepção dos conflitos principais que elaboram o filme evidencia,
na composição de seus quadros e cenas, um padrão constante de
registro do descolamento entre as figuras individuais e a representação
grupal. Esse padrão de composição das cenas pode indicar, através
da expressão estética, os conflitos que turvavam a sociabilidade dos
artistas no período, tentando refletir a dinâmica de dissidências e dis-
solução dos laços de solidariedade e consciência de classe.
14 Tomo de empréstimo, para essa ideia, o conceito de “alinhamento” tal qual discutido por
Raymond Williams, grosso modo, o de uma conexão entre um artista e sua expressão
temático-formal com suas origens sócio-históricas. Esse conceito é apresentado e discu-
tido no capítulo 02.
sumário 27
pelo teatro nova-iorquino dos anos 1930, com base no sistema do
diretor russo Constantin Stanislavski.
sumário 28
durante o Macartismo e um resultado do trabalho coletivo realizado
por esses mesmos artistas através da técnica de interpretação.
sumário 29
1
Capítulo 1
Luta corporal
na beira do cais:
a crise do sentimento
de coletividade
na cultura política
dos anos 1950
JOE – Mas eu fiz isso! Esse é o ponto, eu fiz isso. O que meu
pai vai dizer quando souber que eu matei um homem? Eu sei o
que eu fiz. Eu matei a mim mesmo também! Eu estive andando
em círculos. Mas agora eu fui esmagado! Essa é a verdade.
Sim, eu não passo de um pardal, e eu sempre quis ser uma
águia! Mas agora eu estou suspenso – eu não sou bom – meus
pés não tocam mais o chão!
Eu acho útil que alguns de nós tenhamos tido esse tipo de ex-
periência com os comunistas, pois caso contrário não os co-
nheceríamos tão bem. Qualquer um que tenha passado por isso
não será enganado por eles novamente. Hoje, quando o mundo
todo teme a guerra, e eles pedem por paz, nós já sabemos o
quanto esse pedido vale. Nós sabemos que amanhã eles terão
um novo slogan. O fato de ter experimentado em primeira mão o
espírito autoritário e o controle de pensamento, me deixou com
um ódio permanente disso. Me deixou com um ódio permanen-
te da filosofia comunista e de seus modos de atuação.
sumário 31
Imagem 1 – O primeiro quadro de “Sindicato de Ldrões”
sumário 32
Além de apresentar uma informação típica a essa paisagem – o cais
do porto de Nova Iorque – o navio estabelece uma ponta da cadeia
de relações nesse ambiente de trabalho. Afinal, ele transporta pelo
mundo todo as mercadorias que, depois de desembarcadas aqui e
em outros portos, serão distribuídas por todo o país, demarcando
esse espaço como fundamental dentro do sistema de circulação de
bens e valores que alimentam o mercado internacional. O gigantismo
conferido à embarcação pela composição do quadro sugere a impor-
tância do elemento na rotina do lugar: sabemos que a chegada dos
navios estabelece a necessidade do trabalho para os estivadores,
assim como o volume de mercadorias que ele transporta determina
a quantidade de trabalhadores que serão necessários para descarre-
gá-lo; por outro lado, dentro da estrutura das relações no ambiente,
o navio representa os empregadores, ou seja, o grupo que demanda
a força de trabalho e que regula a remuneração devida a essa – por
assim dizer, determina o valor mesmo dessa força de trabalho. Assim,
o espaço ocupado pelo navio no quadro faz referência a esse poder
estabelecido por dentro da estrutura dessas relações.
sumário 33
factual de um ramo do movimento sindicalista dos EUA que era, sabi-
damente à época, um dos maiores braços do crime organizado em um
país onde todos os meios de organização burocrática e financeira têm
algum tipo de relação com o crime, seja no Estado (em Washington, no
centro do país), na bolsa de valores (em Manhattan, na costa Oeste)
ou no coração da indústria do cinema (em Hollywood, na costa Leste).
15 “Now you take it, slugger!”. Todas as falas citadas aqui são traduções minhas, a partir do
áudio do filme original em inglês. Por motivos de economia textual, anotarei também a fala
em inglês apenas nos casos que envolvam algum tipo de termo ou gíria cujo sentido seja
importante para a construção do discurso simbólico do filme.
sumário 34
esperam na cobertura. Ainda incorporando o olhar de Terry (que depois
de ter cumprido seu papel no plano se torna apenas um espectador) a
cena continua seguindo o rapaz até ele se encontrar com um pequeno
grupo de três gangsters que esperam por notícias da operação.
sumário 35
A sequência da cena confirma essa suposição ao mostrar Edie
(Eva Marie Saint), irmã de Joey, também em contraste com a passivida-
de do grupo de estivadores que cercam o corpo da vítima – dentre eles
seu próprio pai. Recém-formada em um colégio de freiras, Edie acaba
de voltar ao bairro de sua infância, trazendo na bagagem o fator sim-
bólico de uma nova consciência que a instrução formal representaria
para as perspectivas da nova geração de uma família de trabalhado-
res, à época. Diante da relação de trivialidade que todos demonstram
ter com o assassinato – denotada pela ação mecânica dos policiais,
pelo silêncio dos outros estivadores, pela reza conformada do padre
e pelo comentário de uma vizinha que passa dizendo que “a mesma
coisa aconteceu com o meu Andy há cinco anos atrás” – Edie apre-
senta uma força de resistência. Ela está raivosa, e desafia até mesmo a
passividade do consolo oferecido pelo Padre Barry (“Você já ouviu falar
de algum santo que houvesse se escondido em uma igreja?”). A fúria
de Edie acusa igualmente a atitude silenciosa dos presentes ao esta-
belecer a ideia de que o silêncio perante as ações da máfia é, antes de
tudo, uma conivência, ou mesmo uma cumplicidade, com o crime. Na
sequência, ao arrancar de cima do cadáver de seu irmão as folhas de
jornal com o qual o haviam coberto, ela ainda evidencia sua preocu-
pação em não deixar que a morte de Joey se transforme em mais uma
notícia sem importância perdida no mar de letras e imagens que todos
os dias tingem de preto e branco o cotidiano do lugar. A referência ao
jornal paga tributo à inspiração do filme, que partiu de uma longa série
de reportagens escritas pelo jornalista Malcolm Johnson, denunciando
o esquema de corrupção no cais de Nova Iorque – o que à época lhe
rendeu várias ameaças de morte, mas também um prêmio Pulitzer.
sumário 36
ter escolhido quebrar a ética de trabalho ao se tornar um delator. Edie,
cujo rosto furioso em primeiríssimo plano encerra a cena com ênfase
dizendo “Eu quero saber quem matou o meu irmão!”, já apresenta o
temperamento responsável pelo seu deslocamento do grupo ao qual
está inserida (os estivadores e seus familiares), da mesma forma que
a falta de conhecimento e o desconcerto de Terry o descola do grupo
de gangsters. Essa postura de resistência contaminará depois o padre
Barry – comprovando para ele o fato de que nenhum santo consegue
ajudar aos seus confiando apenas na eficácia do tempo e no poder da
fé – para depois chegar em Terry, dando-lhe finalmente algum tipo de
conhecimento e levando-o a também resistir ao sindicato através de
sua delação, quebrando o código de silêncio como fez Joey.
sumário 37
expressão ser uma engrenagem a mais na produção das narrativas
desenvolvidas pelo grande cinema. Elia Kazan foi um dos principais
divulgadores do Método, reunindo nesse filme um elenco composto por
diferentes gerações e abordagens da técnica, todas se encontrando
na linhagem de pesquisa que se inicia com o Group Theatre, nos anos
1930, e vai dar no Actor´s Studio, fundado pelo diretor em 1947 (mesmo
ano do início das atividades do Macartismo em Hollywood).17
sumário 38
compreender os sentidos dessa obra como testemunho de uma clas-
se em um momento histórico específico, assim como as influências
que esse testemunho legou para as próximas gerações de artistas.
sumário 39
pela aposentadoria compulsória de diversos artistas dos estúdios de
cinema, pelo exílio de alguns – como a atriz mexicana Rosario Re-
vueltas, protagonista do filme “O Sal da Terra” (Salt of the Earth, EUA,
1954, Herbert Biberman,) – e até pela morte de outros – como o ator
John Garfield, vítima de um enfarte provocado pela tensão de seu en-
volvimento com o Comitê. Ainda assim, os piores anos da presença
do Comitê para Atividades Antiamericanas em Hollywood já haviam
passado. Se em 1947, durante a primeira grande investida da HUAC
ao coração da indústria cinematográfica a opinião pública assistiu ao
julgamento e prisão dos famosos “10 de Hollywood”, durante a se-
gunda investida, em 1951, centenas de artistas foram intimados a de-
por. Como motivo para a intimação, bastava que uma figura houvesse
simplesmente participado de qualquer tipo de ato ou manifestação de
fundo político em um momento qualquer de sua trajetória profissional.
sumário 40
pública como um todo, que poderia boicotar as produções que se
mostrassem solidárias com algum possível inimigo da democracia.
É óbvio que esse estado de vigilância perpétua havia se estabele-
cido e era mantido através de uma ação conjunta dos setores bu-
rocráticos governamentais e das agências envolvidas na indústria
– produtores, distribuidores e mesmo a grande mídia. Mas (e isso
não era segredo para ninguém) o que estava em jogo no processo
que ficou conhecido como “caça às bruxas” era a sustentação de
um estado de histeria coletiva suportado por cidadãos que estavam
atentos para que nenhum tipo de “ameaça externa” atacasse a so-
berania política do Estado – e do livre mercado. Assim, de acordo
com o senso comum o ato de delatar era visto como uma espécie
de obrigação moral: era a quebra de um pacto de silêncio que servi-
ria apenas para ocultar possíveis agitadores que, caso assumissem
a postura de defender o direito pessoal de se manterem calados (di-
reito esse garantido pela própria constituição) estariam dessa forma
automaticamente declarando que tinham algo a esconder...
sumário 41
contramão da resistência à essa organização, fortalecendo o processo
de perseguição e condenação da liberdade de expressão individual e
alimentando o clima de histeria estabelecido. A delação se tornou um
tabu, um assunto capaz de destruir amizades, parcerias e casamentos.
E se, perante os produtores de Hollywood o delator era bem-visto, (o
que garantia seu livre acesso aos estúdios) diante da classe artística
como um todo e de círculos mais independentes da pressão da opi-
nião pública (como na Broadway, por exemplo) o delator se tornava
com frequência uma figura execrável.
20 Algumas produções teatrais da época abordam o tema da solidariedade como uma pro-
blemática que deveria estar em pauta nas relações à época. Esse é o pano de fundo da
discussão apresentada por Arthur Miller em “Um Panorama Visto da Ponte”, (A View From
the Bridge , 1955-56), por exemplo, onde o delator em questão é um estivador que recebeu
sobre seus cuidados dois imigrantes ilegais, parentes de sua esposa, mas que, por ciúmes
da relação de um deles com sua sobrinha, os denuncia ao Departamento de Imigração.
Um outro texto de Miller, esse muito pouco conhecido, a peça em um ato A Memory of Two
Mondays (1955, sem tradução no Brasil)) retrata o círculo de proteção que se forma ao redor
de um funcionário alcoólatra, por seus colegas de trabalho, em uma oficina mecânica em
meio à Grande Depressão, para tentar garantir que o patrão não o demita.
sumário 42
“testemunho pessoal”, e que Terry Malloy, no fundo, era ele. Porém
(e isso é o que deve ocupar o trabalho de leitura) não é assim tão
evidente a postura que o filme representa diante dos tempos. Não se
pode dizer de forma alguma que “Sindicato...” é uma obra proselitista
e de propaganda automaticamente reacionária – como se assume
com facilidade em obras muito comuns no período, como “Nuvens de
Tempestade” (I Married a Comunist ou The Woman On Pier 13, Robert
Stevenson, EUA, 1949) ou “A Ameaça Vermelha” (The Red Menace, R.
G. Springsteen, EUA, 1949). Antes, é um filme complexo onde os sig-
nificados levam a um discurso ambivalente, pois sua filiação política
não é assim tão clara quanto o inventário de seus temas mais diretos
– a delação, o Macartismo, a corrupção moral dentro de movimentos
políticos ou mesmo o tema da corrupção e do crime no sindicato dos
trabalhadores dos portos, tema que garante uma primeira leitura do
filme como obra de “problemática social”. Se, por um lado, o filme
pode ser taxado de colaboracionista, por outro, a ênfase na problema-
tização do processo de formação da resistência de Terry, Edie e padre
Barry complexifica o direcionamento unilateral dessa colaboração.
sumário 43
e espiritualista.21 Antes, invoca um papel social que a Igreja pode ter
como espaço de voz e defesa de seus fiéis para as batalhas da vida
terrena extramuros, e não somente contra os inimigos “internos”, como
o vício, o pecado ou outras coisas do tipo22.
21 O senador Joseph McCarthy, que teve seu nome usado para batizar, perante a opinião
pública, o período hoje conhecido como “macartismo”, foi notoriamente um católico fer-
voroso e atuante dentro da Igreja.
22 A personagem do padre Barry foi inspirada em uma figura real, o Padre John M. Corri-
dan, conhecido como “the Waterfront Priest” (algo como “o padre do cais”). Padre John
foi extremamente influente no cais de Nova Iorque durante os anos 1950, e ajudou o
jornalista Malcolm Johnson em suas pesquisas durante a elaboração das reportagens
que denunciaram as práticas criminosas no cais, sendo ele também uma figura bas-
tante combativa. É sabido que o roteiro de Budd Schulberg cita trechos inteiros de um
famoso discurso do Padre Corridan em uma das mais emblemáticas cenas do filme –
que será analisada ainda nesse capítulo.
sumário 44
anos 1930 uma cultura de expressão mais diretamente política. Nos
EUA, como agravante à quebra da bolsa de valores, devemos tam-
bém ressaltar a execução dos imigrantes italianos Saco e Vanzetti em
1927 (acusados, sem provas convincentes, de estarem envolvidos
em um assalto seguido de duplo homicídio) como um estopim para
a indignação dos artistas e intelectuais do país, inscrevendo as con-
dições das classes trabalhadoras e das comunidades de imigrantes
como um assunto candente de preocupação nacional, fortalecendo
o impulso de coletivização, ou união em torno de uma mesma pauta.
23 Termo cunhado por Raymond Williams, que revela a possibilidade do exercício da crítica
cultural de captar um sentimento, ou posicionamento que estruture a expressão de deter-
minada geração diante da experiência histórica, através da relação dinâmica entre forma
e conteúdo na obra de arte: “A correspondência de conteúdo entre um escritor e seu
mundo é menos significativa do que essa correspondência de organização e estrutura.
A relação de conteúdo pode ser mera reflexão, mas a relação de estrutura, muitas vezes
ocorrendo onde não há uma aparente relação de conteúdo, pode mostrar para nós o
princípio organizador pelo qual uma visão particular de mundo, e daí a coerência do grupo
social que a mantém, opera realmente na consciência.” (WILLIAMS, 1980, pg. 23)
sumário 45
e das lutas políticas da ala esquerda no New Deal. Nascida
dos levantes políticos de 1934 e coincidindo com o período de
maior influência do Partido Comunista na sociedade dos EUA,
a Frente Popular se tornou um bloco radical histórico unindo
sindicalistas industriais, comunistas, socialistas independen-
tes, ativistas e líderes comunitários e emigrados antifascistas
em torno de uma social-democracia trabalhista, do antifascis-
mo e dos direitos civis anti-linchamento.24
sumário 46
Awake and Sing (1936, traduzida no Brasil como “A Vida Impressa
em Dólar”) e Golden Boy (1937), todos textos de Clifford Odets, ex-
pressões formais de uma espécie de drama proletário praticado pelo
dramaturgo. Nessas peças, os protagonistas são imigrantes e traba-
lhadores cindidos entre, de um lado, as necessidades de manuten-
ção da vida cotidiana e as ambições pessoais de escalada social,
e de outro lado os compromissos coletivos que a ética pessoal im-
põe, como a luta pelos ideais políticos, a solidariedade de classe, e
a crença na conquista de melhores condições de vida. Geralmente,
esses conflitos eram encenados em ambientes familiares em proces-
so de desestruturação por conta do embate com elementos externos
– como o mundo dos negócios, o crime, a indústria cultural, as novas
relações afetivas e etc. – e expostos na forma de dramas psicológicos
que conduziam seus protagonistas a uma jornada de autodestruição,
ainda que acenando, ao fim, para uma pálida esperança na recons-
trução da experiência social – ou a conquista de uma nova espécie de
dignidade pessoal – através da reafirmação da força coletiva.
sumário 47
– assim como grande parte do teatro nos EUA – é a vinculação a uma
tradição dramatúrgica de terreno fortemente dramático, e onde a forma
do drama se desenvolveu com força cada vez mais crescente, ainda que
buscando se “modernizar” ou mesmo se flexibilizar diante dos novos
assuntos que os tempos apresentavam.27
27 Esse processo é, aliás, bem similar ao descrito por Szondi como motivo para a crise do
drama europeu na passagem do século XIX para o XX em Teoria do Drama Moderno
(SZONDI, 2003). Da mesma forma, muitos dos temas apontados pelo teórico alemão
como motivadores da transformação da forma dramática também se relacionavam com
a realidade experimentada nos EUA dos anos 1910, 1920 e 1930. Basicamente, uma
nova configuração social impulsionada por massas migratórias, movimentação sindical,
crises no sistema de produção capitalista, fatores, enfim, que redefiniam a tessitura do
terreno social assim como, em consequência dessa redefinição, traziam novos conflitos,
personagens e situações para serem retratados pelo drama. Diante desses novos mate-
riais, a forma dramática teve então que se reorganizar internamente de modo a continuar
existindo enquanto instrumento de representação da experiência.
sumário 48
o Método significou uma forma de emancipação do ator dramático
(e principalmente em um primeiro momento, do ator alinhado com as
camadas mais populares do estrato urbano) enquanto profissional.
Um conjunto de ferramentas técnicas altamente elaboradas capaz de
possibilitar, ao ator, um domínio mais completo de sua expressão físi-
co-psicológica para ser utilizado, de forma consciente e propositiva,
na elaboração de personagens, colaborando assim com o esforço de
readequação da cena a uma expressão mais coerente, do ponto de
vista realista, da experiência social. Não por acaso, o Group foi celeiro
dos primeiros mestres americanos do Método, como Stella Adler, Lee
Strasberg e Sanford Meisner. Nas décadas seguintes, essa técnica
seria levada para o cinema pelos mesmos artistas que aperfeiçoaram
seu domínio nos anos 1930, em um processo de renovação da ex-
pressão do ator de Hollywood que culminaria na criação, em fins de
1940, do Actor´s Studio, espécie de continuador do legado do Group
Theatre, fundado pelos ex-membros Elia Kazan, Robert Lewis (atores
e diretores) e Cherryl Crawford (produtora).
28 Segundo DENNING explica na introdução de The Cultural Front: “O núcleo desse cul-
tural front foi uma nova geração de artistas e intelectuais plebeus que cresceram nos
bairros das classes trabalhadoras negra e imigrante nas metrópoles modernistas. Eles
foram a segunda geração da segunda onda de imigrantes: italianos, judeus, polone-
ses, mexicanos, sérvios, croatas, eslavos, japoneses, chineses e filipinos, tanto quanto
afro-americanos que migraram para o norte do país. Filhos da educação pública, eles
se encontravam entre as memórias e histórias de seus pais e a realidade urbana das
ruas e lojas. Alguns se aliaram à pequena e militante Young Communist League; outros
se filiaram aos minúsculos partidos revolucionários que foram dissidência do Partido
Comunista; muitos não pertenciam a nenhuma organização política, mas apenas ado-
taram o nome; todos eram ‘comunistas’”. DENNING, pg. xv.
sumário 49
Foi durante seu período como ator do Group Theatre que Elia
Kazan teve uma breve passagem pelo CPUSA em 1936, sendo o
grupo também o motivo de seu desligamento do Partido. Segundo
Kazan, ele esteve envolvido no esforço de aumentar o poder de
influência do CPUSA dentro do Group Theatre, através das ações
de uma célula secreta formada por atores da companhia (inclusive
ele próprio). O objetivo era dar mais poder de decisão aos atores
na definição dos rumos do Group, que era gerenciado por três figu-
ras principais (Harold Clurman, Lee Strassberg e Cherryl Crawford).
Com isso – sempre segundo os depoimentos de Kazan – o CPUSA
acreditava que as produções do grupo poderiam estar mais afina-
das com um projeto de arte diretamente política. Perante o partido,
Kazan não foi bem-sucedido em sua missão, o que gerou uma ce-
rimônia de julgamento e exposição de sua conduta por meio de um
membro anônimo da alta cúpula do CPUSA (o “Homem de Detroit”,
segundo as memórias do diretor). Ainda que esse evento tenha le-
vado ao desligamento definitivo de Kazan do partido, foi essa ativi-
dade que justificou sua intimação para depor perante a HUAC em
1951. Foi essa memória que, segundo Kazan, o levou a colaborar
publicamente com o Comitê, por defender que o CPUSA era uma
espécie de inimigo a ser evitado, relacionando a organização a uma
prática política autoritária e oposta à liberdade de expressão – e, por
assim dizer, contrária à ideia de democracia que, supostamente,
forma as bases da sociabilidade dos EUA. Segundo o diretor:
Ao invés de trabalhar honestamente para o bem do povo ameri-
cano, descobri que eu estava sendo usado para colocar poder
nas mãos de pessoas pelas quais, individualmente ou em gru-
po, eu não sentia nada a não ser desprezo, e cujos padrões de
conduta me faziam sentir horror genuíno. Desde aquela noite,
eu nunca mais tive qualquer tipo de relação com o Partido.29
29 Trecho do depoimento escrito entregue por Kazan diante do Comitê. Página 2411 da
publicação oficial do governo dos EUA contendo as atas dos depoimentos da HUAC
(ver bibliografia).
sumário 50
A colaboração pública voluntária de Kazan com a HUAC em
1951, quando ele delatou os nomes de seus ex-companheiros de par-
tido nos anos 1930 (depois de ter prestado um depoimento a portas
fechadas meses antes e não ter informado nenhum nome) tornou-o,
para a classe artística em geral, uma figura símbolo da capitulação do
artista engajado perante as forças de repressão ideológica nos EUA
dos anos 1950. Se por um lado seus antigos companheiros de teatro
o evitavam por ele ter se utilizado da delação para garantir acesso
livre aos estúdios de Hollywood, por outro lado, dentro dos estúdios o
seu nome havia sido manchado pelo envolvimento em um escândalo
político que estava na pauta da opinião pública, o que lhe garantia
propostas de trabalho, porém nenhuma credibilidade, por parte dos
produtores, para seus projetos e vontades pessoais.30
sumário 51
em cena). Esse ambiente pode ser percebido ainda em histórias sobre
discordâncias a respeito de escolhas de repertório (como na decisão
por incorporar o agitprop Waiting for Lefty ao repertório do grupo, que
dividiu Strasberg e o elenco, tendo a decisão final de Harold Clurman
pesado para a vontade do coletivo de atores) ou mesmo nos motivos
que levaram à dissolução da companhia após dez anos de trabalho, e
que se deveu também à ausência cada vez maior de seus colabora-
dores devido aos convites que recebiam de Hollywood – e com isso,
inscrevemos a história da arte engajada dos anos 1930 nos EUA no já
conhecido ciclo do conflito entre ideal artístico coletivo versus as opor-
tunidades de ganho individual maior com a indústria cultural, que tanto
marcou a história da arte no Ocidente...31
31 Sobre os conflitos que, de maneira geral, determinam a história dos grupos de teatro
nos EUA, Mark Fearnow explica, em texto que escreveu para a Cambridge History of
American Theatre: “Parte da história da experiência dos grupos no teatro estadunidense
do século XX é a da tensão individual entre identidade grupal e os impulsos em direção
à fama pessoal e a fortuna.” E depois: “(...) as questões de administração e organização
social dentro do grupo iriam surgir novamente como o grande motivo de disputa entre
os seus membros (...) essa crise de poder na organização grupal provaria estar atrás
apenas do colapso financeiro como as principais causas para a desintegração dos
grupos.” FEARNOW, pgs. 343 e 344 (em tradução livre).
sumário 52
Para entender a significação do filme de Kazan para a indústria,
não é preciso ir muito longe. Basta citar a avalanche de indicações
ao Oscar que o filme recebeu, doze no total, tendo vencido em oito e
se tornado quase que automaticamente uma referência incontornável
para a história dos grandes filmes de Hollywood, a despeito do amplo
complexo de problematização política que o filme apresenta.32 Diante
desse cenário, não espanta que, por outro lado, um filme como “O
Sal da Terra” (produzido no mesmo ano) que aposta, pelo contrário,
na experiência de coletivização como um caminho de emancipação
individual através justamente da mobilização sindical dos trabalha-
dores, tenha sido boicotado por toda a cadeia de distribuição de
filmes no país, sendo a obra como um todo colocada na blacklist
e seus principais realizadores perseguidos, e mesmo condenados,
pela HUAC. Esse exemplo, cujo discurso político é oposto ao filme
de Kazan (e que teve também uma história bem diferente de recep-
ção pública e crítica) ilustra de modo bastante preciso uma certa
tendência encontrada na produção de filmes políticos em Hollywood:
um choque entre um alinhamento por assim dizer mais progressista
por parte de seus realizadores, e um aparelhamento reacionário e
conservador por parte dos produtores e distribuidores, o que cria um
espaço ideológico difícil e ambivalente, que dobra ao meio a capaci-
dade do cinema Hollywoodiano de enfrentar diretamente e de forma
livre as questões sócio-políticas que a experiência histórica estadu-
nidense produz – como veremos no terceiro capítulo, a discussão
sobre a validade da organização sindical é essencial para compreen-
der as dinâmicas das relações de trabalho no sistema de produção
de filmes na época. É o posicionamento e a reação a esse tipo de
choque, ou de dobra ideológica, que parece determinar a tessitura,
a recepção e a tradição de um filme como “Sindicato de Ladrões”.
32 O filme foi vencedor do Oscar nas categorias melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro,
melhor fotografia (Boris Kaufman), melhor direção de arte em preto e branco (Richard Day),
melhor edição (Gene Milford), melhor ator (Marlon Brando) e melhor atriz coadjuvante (Eva
Marie Saint). Foi ainda indicado para melhor trilha sonora (Leonard Bernstein), e mais três
indicações para melhor ator coadjuvante (Lee J. Cobb, Karl Malden e Rod Steiger). A consi-
deração dessa lista total de indicações e vitórias, com cinco citações para o elenco (e para
todos os seus personagens principais), é mais um dado para atestar o papel fundamental
que o filme tem na história do estabelecimento do Método em Hollywood.
sumário 53
Para entendermos o modo como esse filme dialoga com uma
tendência de produção de cinema político nos EUA, precisamos ana-
lisar com detalhes as já anunciadas tensões formais que o filme apre-
senta. Será que essas tensões, tanto na estrutura quanto no enredo,
apontariam para a configuração de uma espécie de forma híbrida, ou
negociadora? Esse aspecto que aqui chamo de “negociador” decorre
do fato de que essa forma tente incorporar elementos e ferramentas
técnicas mais elaboradas, imbuindo-se de um certo caráter progres-
sista – como o domínio do Método, ou a incorporação de múltiplos
pontos de vista na elaboração do desenvolvimento narrativo, através
da presença do coletivo como uma instância de força que desequilibre
o espaço do protagonista, que tem precedência garantida na tradição
do enredo dramático convencional. Porém, essa mesma forma deve
refrear o impulso de seus avanços técnicos ao ceder às exigências de
produção do esquema de Hollywood, ou negociar com elas (por exem-
plo, optando por promover o desenvolvimento dramático do enredo
através do enquadramento de uma história de romance entre os prota-
gonistas) visando atingir assim um retorno mais garantido de bilheteria
ou mesmo a obediência política e ideológica de seus realizadores aos
interesses dos grandes estúdios em tempos de Macartismo e blacklist.
Essa vinculação poderia, ao fim, lhe conferir um caráter conservador,
ainda que o filme apresente elementos técnicos que negariam – a prin-
cípio, ou em tese – esse mesmo conservadorismo.
sumário 54
“O QUE HÁ DE ERRADO
COM O NOSSO GAROTO ESSA
NOITE, CHARLEY?”
33 Trecho do romance O Que Faz Sammy Correr? Publicado em 1941 por Budd Schulberg,
roteirista de “Sindicato de Ladrões” (SCHULBERG, 1994).
sumário 55
Imagem 2 – Capangas assistem à execução de Joey
sumário 56
interna na relação das figuras, ainda que não seja tão evidente de prin-
cípio os termos e motivos dessa contradição. Em relação ao grupo de
estivadores, o quadro é composto por figuras distintas: três estivadores,
no canto esquerdo, virados em direção ao policial, que do canto direi-
to os aborda. Esse contraste demarca a situação entre trabalhadores
civis por um lado, e um oficial de polícia de outro, cujo estrangeirismo
a esse lugar vai ficando cada vez mais evidente no decorrer do filme
pelo aspecto óbvio de que, por mais que se trate de um filme sobre
gangsterismo e combate à criminalidade, a polícia, enquanto instituição
oficial de controle do crime e manutenção da ordem, não exerce uma
presença marcante como força de atuação no cais. Se por um lado
o temor instaurado pelos gangsters faz com que os estivadores não
procurem proteção policial, dificultando a ação dessa força, por outro a
impassibilidade dos trabalhadores diante da polícia evidencia um certo
desconforto nessa relação, o que nos informa de uma ideia de “falso
coletivo” que a noção de pertencimento ao Estado significa. Ora, se a
polícia é, teoricamente, a instituição que zela pelo bem e a seguran-
ça do cidadão, mas se os cidadãos retratados nesse ambiente não
estão à vontade para confiar nessa garantia de segurança, algo está
errado nessa relação. E sabendo do histórico de repressão e controle
que a força policial tem junto às manifestações da classe trabalhadora
estadunidense – assim como da violência histórica e estruturante do
sistema penal dos EUA – esse desconforto pode ser mais facilmente
compreendido sem que sejam necessárias maiores explicações.
sumário 57
com a lei naquele ambiente dominado pelas regras de conduta do
sindicato criminoso. É justamente por falar muito sem ser perguntada
que a figura da mulher se diferencia do resto dos estivadores, pois ao
contrário desses ela quer dizer tudo o que eles não se atrevem (assim
como Edie depois, confirmando internamente no filme essa possível
tendência feminina de quebrar a apatia dos homens). A cena é, ao fim,
bruscamente interrompida pela evasão final de Pop Doyle, que sai de
cena em resposta à insistência do policial.
sumário 58
se expressar através apenas da expressão de sua subjetividade, de
forma independente dos outros ao seu redor. Assim, por meio das
cenas de conjunto Kazan evidencia para a câmera um espaço de
desconforto desse indivíduo em relação ao coletivo do qual faz par-
te, demonstrando, quase que de forma geométrica, Terry como um
literal ponto fora dos ângulos tão milimetricamente montados pela
posição dos atores no espaço. Essa tendência de composição já
apresenta um primeiro entrave para a concepção ideal de herói dra-
mático, portador de uma subjetividade autônoma e autossuficiente.
sumário 59
o ambiente de relações internas da quadrilha do sindicato é apresentado
com mais detalhes, através da representação de sua rotina de trabalho.
sumário 60
ponto de fuga no fundo da imagem, com a diferença que, aqui, essa com-
posição é feita com figuras humanas, e não apenas através da geografia
do cenário. No caso do bar, o ponto de fuga vai dar em um dos capangas
que estão agrupados ouvindo no rádio a uma luta de boxe. Curiosamente,
esse capanga é o tesoureiro do grupo, que vem dar a Jhonny a notícia de
um empregado que está dando problemas para pagar sua contribuição,
justificando que o mesmo é favorecido porque é parente de Big Mac (o
capanga que administra o shape up, o esquema da distribuição de pos-
tos de trabalho). Assim, o assunto da fala do tesoureiro reforça o caráter
problemático dos laços de familiaridade direta. No caso, problematiza a
mistura de interesses pessoais (esfera individual) com trabalho (esfera
coletiva), sendo que as relações consanguíneas, íntimas, de certa forma
desequilibram os acordos estipulados pela família “de adoção”. O apro-
veitamento dessa situação para o enredo se dá justamente pela “rima”
que é criada com a relação entre os irmãos Terry e Charley, conforme cita-
do acima, e a subserviência de ambos ao chefão da gangue. Na mesma
cena, Jhonny pede para Terry contar o dinheiro recolhido das contribui-
ções ao sindicato, o que se revela uma brincadeira do chefe com a falta
de capacidades intelectuais do rapaz – ele perde a conta logo no começo.
Charley então continua o serviço para proteger Terry.
sumário 61
Imagem 5 – Jhonny Friendly
sumário 62
Imagem 8 – Terry e Charley com capangas
sumário 63
evidência (imagem 05) seja por ocupar o centro do quadro (imagem
06). No caso da imagem 05, é interessante perceber que seu rosto é
sobreposto ao mesmo plano que já foi apresentado no início da cena
(imagem 04). O perfil de seu rosto ocupando toda a extensão do qua-
dro, em sobreposição à imagem diminuta dos capangas ao fundo,
estabelece seu domínio sobre o grupo e sobre o espaço, o bar, que
mais do que um mero ambiente de diversão é um reduto de reuniões
e atividades da gangue. Ainda é interessante perceber que o rosto
de Jhonny é colocado em relação ao televisor que transmite a luta de
boxe e que atrai a atenção do grupo de capangas. Esse espelhamen-
to do rosto do chefão da gangue com o televisor confere para Jhonny
um certo magnetismo, uma condição de atenção e difusão midiática
de sua imagem e sua voz, que o personificam como uma espécie de
grande líder (algo bem próximo da composição da imagem de uma
espécie de ditador). É Jhonny, aliás, quem tem o domínio até mesmo
da difusão da informação que o televisor veicula, pois ele desliga o
aparelho quando se cansa da luta, independente de todos os outros
capangas estarem ainda interessados.34
34 Vale lembrar que essa estratégia de demarcar poder através do espaço que uma figura
ocupa no quadro é a mesma observada, na abertura do filme, com o tamanho do transa-
tlântico em relação aos outros elementos, conforme mostrado na imagem 01.
sumário 64
compõe com o homem dormindo do outro lado, a imagem de Jhonny
como o grande pai que cuida e zela pela paz de seus filhos (ecoando,
assim, a figura de Jhonny como um ditador, já estabelecida na relação
dele com o televisor na imagem 05). A criança e o homem dormindo,
ambos na retaguarda de Jhonny Friendly e alheios ao andamento geral
da cena, por assim dizer “naturaliza”, para aquele ambiente, a condição
já observada de inconsciência de Terry, que age cegamente de acordo
com as ordens do chefe da quadrilha, e sob sua proteção.
sumário 65
apenas para a figura de Terry) o filme consegue explicitar melhor para
o espectador o descolamento de sua figura em relação ao coletivo.
Por não apresentá-lo como um elemento incômodo para os outros (o
que faria sentido se aderisse ao ponto de vista dos capangas), mas
antes como uma figura incomodada com o ambiente onde circula (um
reduto de contraventores) o filme tenta dinamizar nossa simpatia para
Terry e seus conflitos. Resta a dúvida, ainda, se esses enquadramentos
servem para estabelecer como certa a aderência do ponto de vista do
filme como um todo ao centro de consciência representado por Terry.
sumário 66
a carreira de Terry se encerrou justamente porque, constrangido pelas
ordens de seu irmão Charley em acordo com os interesses do esque-
ma de apostas de Friendly, Terry foi obrigado a perder uma luta a qual
tinha todas as condições para ganhar.35
35 Esse tema da carreira interrompida de Terry no boxe faz referência direta ao texto Golden
Boy, um dos maiores sucessos do Group Theatre, e expressão do desconforto de seu
autor, Clifford Odets, assim como dos demais membros do grupo, divididos entre se-
guir o comprometimento com um teatro engajado ou abraçar de vez as oportunidades
que Hollywood já lhes oferecia à época, “roubando-os” de sua atividade na Broadway.
Golden Boy encena a história de Joe Bonaparte, um jovem filho de imigrantes italianos
que sonha em ser violinista, mas que, aproveitando-se de sua excelente forma física,
acaba entrando no pugilismo em busca de dinheiro fácil. A despeito da insistência do
pai em seguir sua verdadeira vocação, Joe torna-se um excelente lutador até o momen-
to em que quebra sua mão nocauteando um oponente que, sob efeito do golpe, acaba
morrendo. Desesperado por ver-se como um possível criminoso e, ainda por cima,
impossibilitado de continuar a tocar violino, Joe passa a lutar cada vez mais desconcen-
trado e, ao fim, se suicida ao dirigir à toda velocidade o automóvel que comprou com o
dinheiro ganho com o boxe. Kazan, Lee J. Cobb e Karl Malden estiveram envolvidos na
montagem original de Golden Boy pelo Group Theatre, em 1937.
sumário 67
é mostrada de forma inequívoca através da marcação da cena: en-
quanto todos os outros capangas prestam atenção ao chefe, Terry se
debruça sobre a mesa de bilhar de costas para Jhonny, contando o
dinheiro ganho de contravenção. Jhonny se coloca por trás do garoto
e se apoia, de frente, em suas costas, segurando-o pelo quadril en-
quanto gargalha e, dando tapas fortes, movimenta o corpo dele para
frente e para trás. A erotização da cena, em uma sugestão rápida,
porém explícita, a um ato de penetração anal (através da posição dos
dois atores) evoca uma relação de dominação e posse de Terry por
Jhonny onde, através da acumulação de significados denotados pela
mesa de bilhar (o jogo de azar), o dinheiro nas mãos de Terry (fruto
de extorsão dos trabalhadores do cais) e a rememoração de quando
Terry era um lutador (quando tinha sua força física negociada nos
interesses do esquema de apostas de Jhonny) compõe uma imagem
nada lisonjeira para o ex-boxeador – ao fim da cena Jhonny dá uma
gorjeta ao rapaz enfiando dinheiro dentro da sua blusa pela gola,
remetendo a um gesto típico de pagar uma prostituta.
sumário 68
teatro nos anos 1940, a cena ganha o caráter desconfortável de uma
“passagem de bastão” entre duas gerações de intérpretes.
36 Nos anos 1950 a censura moral era um forte determinante nas produções de Holly-
wood, oferecendo, do ponto de vista da opinião pública, manifestações de desagravo
e mesmo de boicote a filmes considerados imorais ou que supostamente incitassem à
perversão. Kazan foi um dos diretores que, à época, assumiu para seu trabalho o risco
de enfrentar tanto o escritório de censura de Hollywood, o famoso Breen Office (con-
tribuindo para a queda do código moral que estipulava o que podia e o que não podia
ser mostrado nos filmes, em vigência desde a década de 1930) quanto a ira do conser-
vadorismo da plateia. O lançamento de “Um Bonde Chamado Desejo”, que manteve
cenas aconselhadas de corte pelo Breen Office, foi um dos episódios mais famosos da
desobediência de Kazan à censura interna da indústria.
sumário 69
forma castrado, a imagem de uma potência física do passado (através
tanto da lembrança de Brando no imaginário do público quanto da
menção de Terry como um ex-campeão do boxe) cumprindo um papel
passivo e incômodo na relação de subserviência para com uma figura
cuja força não é erótica ou física no geral, mas hierárquica. Terry é, de
certa forma, um boneco, um corpo para usufruto exclusivo de Jhonny
Friendly, cafetinado pelo seu próprio irmão, Charley – cuja força, por
sua vez, é intelectual, conquistada através dos estudos. Se pensarmos
que também o seu processo de rebeldia ao sindicato será, de certa for-
ma, tutorado por padre Barry e Edie, então temos inequivocamente Ter-
ry como um protagonista inconsciente dos processos que atravessa,
sem qualquer apreensão organizada do sentido de sua experiência.
sumário 70
perturbam, ou deslocam, essa centralidade. Ainda, o fato de Terry
estar sempre de costas, com o rosto – logo suas intenções, reações e
mesmo a direção do seu olhar – escondido na imagem, o coloca como
uma figura de intenções misteriosas, o que complexifica ainda mais o
incômodo que ele sente em relação ao coletivo, pois não nos é dado
como certas as causas imediatas desse incômodo – antes, essas são
explicadas por terceiros, de forma alheia à vontade e à subjetividade
de Terry, como veremos mais adiante na resposta de Charley para a
pergunta de Jhonny sobre a postura do rapaz. Basta adiantar que a
sequência final, quando Terry caminha com dificuldade em direção ao
galpão de trabalho depois de ter sido espancado pelos capangas de
Jhonny Friendly, é o único momento no qual o seu ponto de vista é
assumido de forma explícita através do uso de um plano subjetivo.
sumário 71
gera necessariamente uma emancipação subjetiva, cria marcas para o
desenvolvimento formal da narrativa.
37 Como veremos no decorrer desse trabalho, as referências de adjetivos animais para qua-
lificar Terry se acumulam ao longo dos diálogos do filme.
sumário 72
informado por Charley que joga luz sobre esse traço de caráter do irmão.
Ainda na cena do bar, estranhando as atitudes confusas de Terry, Jhonny
pergunta a Charley “o que aconteceu com nosso garoto hoje à noite?”.
Charley diz que o irmão está mexido pela morte de Joey Doyle, e para ali-
viar a tensão justifica para o chefe o temperamento “exagerado” de Terry:
“É apenas muito Marques de Queensbury na cabeça. Isso o amolece”.
sumário 73
de Jhonny Friendly – ou seja, forjando resultados para dar lucro ao
seu “empresário”, em uma transação onde era negociado como uma
mercadoria pelo seu próprio irmão – Terry se preocupava com as re-
gras do jogo, tentando conduzir suas lutas dentro da legalidade. Isso
pode sugerir um primeiro dado que ilustra uma capacidade interna
(ainda que em estado bruto) de Terry questionar o que acontece ao
seu redor, ao invés de somente agir por impulso e irracionalidade.
Assim, a simbologia do boxe, que havia sido introduzida na cena
como um aspecto negativo do passado de Terry, vai ganhando no de-
correr do filme uma valência positiva, caracterizando-o como alguém
com potencial de lutar por algo através de um “jogo limpo”, garantido
pela honestidade e clareza nas relações. Terry, assim, surge como um
trabalhador desse negócio informal (o crime) que tem consciência do
que significa sua força de trabalho, mas não tem muita clareza do que
fazer com essa consciência que, mais do que adquirida, é quase que
um instinto treinado pelas regras de sua prática.
sumário 74
a presença de um possível foco narrativo de abrangência mais ampla,
que não se reduz ao ponto de vista de uma única figura.
sumário 75
Eddie e por Padre Barry. Porém, o desenrolar desse “processo de apren-
dizado” de Terry nos mostra que o filme não adere ao discurso de uma
narrativa de esclarecimento pessoal através da conscientização políti-
ca, no sentido de comprometimento com o coletivo. Afinal de contas, a
trajetória de Terry é toda pautada por essa experiência de deslocamen-
to diante dos grupos com os quais circula (conforme identificamos na
cena do bar). Gradativamente, Terry assume sua distância perante os
mafiosos, mas não é abraçado pelo grupo de estivadores, que o veem
primeiro como um criminoso e, depois de sua delação, como um traidor.
Ainda, o que o motiva a se opor aos mafiosos também não é um senso
de justiça coletiva, ou de defesa dos interesses de uma classe, mas uma
espécie de peso na consciência, agravado pelo fato de se apaixonar
pela irmã de uma das vítimas do sindicato. Mesmo a atitude de final-
mente se decidir pela delação vem como vingança à sua dor pessoal de
perder o irmão, Charley, assassinado por Jhonny Friendly.
sumário 76
explicando a Jhonny, por Terry, o motivo do incômodo do irmão com a
morte de Joey). Como já foi mostrado, estamos sempre olhando suas
ações mediados por um ponto de vista externo, capaz de enquadrar
Terry em relação ao ambiente maior do qual, à primeira vista, ele parece
se deslocar. A existência desse ponto de vista é geralmente indicada
no próprio filme pela presença, em cena, de um outro personagem que
também se descola do grupo principal da ação (na cena analisada aci-
ma, como já foi mostrado, Terry é enquadrado do ângulo de visão dos
capangas que o observam, e diante dos quais Charley o defende). No
decorrer do filme, como veremos em seguida, essa função narrativa vai
ser assumida por figuras que passam a servir de instância de media-
ção entre nós e as situações encenadas diante das câmeras.
sumário 77
“O QUE PARA ELES
É DELATAR, PARA VOCÊS
É DIZER A VERDADE”
sumário 78
mais eloquente. É o dia seguinte, ao que tudo indica, da execução
de Joey Doyle. A cena abre com um plano aberto dos estivadores
esperando a distribuição das fichas que dão acesso ao galpão.
A delação de Joey e seu assassinato monopoliza a conversa dos
trabalhadores. Big Mac, o responsável pela seleção dos homens, se
coloca a postos, observando o grupo reunido à sua volta. Para além
desse movimento, Padre Barry e Edie aparecem para assistir à rotina
e averiguar sobre uma possível ligação do sindicato com a morte de
Joey. Ainda, entram em cena dois membros da Comissão do Crime
do Estado de Nova Iorque que começam suas investigações, o que
nos informa da abertura de um inquérito policial.
sumário 79
Imagem 12 – Big Mac escolhendo os estivadores
sumário 80
forma narrativa. Porém, isso já apresenta um entrave para o desen-
volvimento dramático ao jogar atenção para um aspecto formal – ou
seja, exterior à convenção de realidade estabelecida pelo drama – de
composição da cena, no caso, o entrecruzamento de distintos pontos
de vista sobre a situação. Assim, a cena vai aos poucos “montando o
cenário” no qual irá se desenvolver (a praça do cais) através da apre-
sentação desses pontos de vista envolvidos. Uma por uma surgem
as figuras principais que, com seu movimento de entrada em cena
– cada uma vindo de uma direção oposta e cruzando com o caminho
da outra – demonstra visualmente no espaço a formação dessa rede
composta pelas diferentes linhas de observação. Essa exposição da
estrutura formal revela a existência de uma espécie de narrador exter-
no agenciando a exposição desses múltiplos pontos de vista.
sumário 81
a entrada, da esquerda para a direita, de Pop Doyle, a quem pas-
samos a acompanhar agora. A câmera então mostra a chegada de
Pop diante do mesmo grupo com o qual Terry cruzou anteriormente.
Pelo fundo, entram agora dois outros capangas que ameaçam Pop
Doyle e seus amigos se eles continuarem espalhando que Joey foi
assassinado. Depois da saída deles, o assunto da execução de Joey
continua a reverberar. Pop presenteia Kayo com o casaco que foi de
seu filho. Esse detalhe é importante para a narrativa, pois Kayo será o
próximo estivador a delatar e ser também executado. O filme estaria,
assim, construindo um certo suspense sobre o destino da persona-
gem que tem a atitude de “falar demais”. Afinal, acabamos de ver
Kayo sendo ousado em sua resposta à provocação dos membros
do sindicato, demonstrando um certo nível de consciência crítica em
relação às condições de trabalho, o que lhe rendeu a ameaça dos ca-
pangas de Friendly.41 Então, com a saída de Pop um outro estivador
entra em cena pelo lado oposto e é parado por Kayo, com quem fica-
mos no quadro, e que oferece a essa outra figura o seu velho casaco.
41 Posteriormente, esse mesmo casaco será dado por Edie a Terry, e aí haverá uma reversão de
expectativas já que, ao contrário de Joey e Kayo, Terry não será executado pelo sindicato.
sumário 82
assim a instauração de uma espécie de interrogatório informal em meio
ao cais que, da mesma forma como o casaco antecipou o destino de
Kayo, antecipa o testemunho de Terry diante da Comissão do Crime – e
é preciso nunca perder de vista que a plateia que assistiu ao filme no
momento de sua estreia já estava mais do que informada sobre a co-
laboração de Kazan à HUAC, três anos antes, assim como da relação
entre esse evento e a produção de “Sindicato de Ladrões”.
sumário 83
Seguindo com a cena, o assunto da delação continua presente
ao vermos Pop Doyle no meio de uma discussão com o tesoureiro do
sindicato que veio lhe oferecer uma espécie de prêmio de consolação
pela perda do filho, ao que parece comprando seu silêncio (mesmo
contrariado, o velho aceita a transação). Então, Kayo interrompe a Pop
mostrando para ele a entrada da última personagem que faltava para
a composição do conjunto da cena: Edie, sua filha, que se mantem de
fora observando, junto com padre Barry. Com isso, após montar essa
teia de relações e pontos de vista diversos sobre a situação, a rotina
de trabalho pode começar. O foco da cena é novamente colocado em
uma atitude de observação: um close no rosto de Big Mac mostra o
capanga olhando de um lado para o outro, escolhendo quem, dentre
os estivadores, será merecedor de trabalhar naquele dia (imagem 12).
42 Em seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis define ação na dramaturgia como estando ligada
“ao surgimento e à resolução das contradições e conflitos entre as personagens e entre uma
personagem e uma situação. É o desequilíbrio de um conflito que força a(s) personagem(s)
a agirem para resolver a contradição; porém sua ação (sua reação) trará outros conflitos e
contradições. Esta dinâmica incessante cria o movimento da peça.” PAVIS, 2003, pg. 4.
sumário 84
A atitude do capanga, que à primeira vista pode parecer de-
sesperada, revela-se então estratégica por dois motivos. Primeiro por-
que, diante da chance de uma revolta dos estivadores na presença
da polícia, ele dispersa o grupo, evitando com isso qualquer suspeita
ou atenção sobre o sindicato. E o segundo é que, quando o grupo
começou a se organizar de maneira coletiva, colocando-se como uma
força contestadora, Big Mac reverte a situação ao jogar o poder de
escolha dos poucos postos de trabalho nas mãos do próprio grupo,
que se revela, então, incapaz de administrar o problema. A luta que se
inicia entre os trabalhadores acusa a falta de organização do coletivo
e confirma, para nós, o quanto essa desorganização concorre para
manter intocado o poder que a quadrilha de Jhonny Friendly exer-
ce. Diante dessa cooptação do seu sindicato (entidade que deveria
conduzir a organização da categoria) pelo crime, os estivadores não
possuem nenhuma outra estratégia ou capacidade de representarem
a si próprios e lutarem juntos pela mudança da situação dentro da
qual trabalham – essa falta de unificação dos trabalhadores mostrada
pela cena problematiza ainda mais o assunto do enfraquecimento das
relações coletivas, que nos dava notícias da experiência da classe ar-
tística durante o Macartismo, e reafirma a tensão entre ação individual
e pertencimento ao grupo, estabelecida desde o início do filme.43
43 A título de curiosidade, vale dizer que essa passagem foi inspirada em um evento real
que teria acontecido no cais de Nova Iorque na década de 1930, e que é relatado
tanto por Malcolm Johnson quanto por Budd Schulberg nas reportagens que ambos
escreveram sobre o assunto. Segundo o depoimento de um estivador que vivenciou a
situação, o chefe de distribuição de fichas de trabalho teria tomado essa atitude por não
saber como administrar a pressão da massa de estivadores ansiosos por conseguirem
trabalhar. Ver sobre em JOHNSON, 2005, págs. 152 e 241.
sumário 85
focos narrativos. Mesmo Edie, que se mantinha a distância, abandona
seu posto de observadora e se mistura à ação direta, tentando conseguir
uma posição para seu velho pai. É nesse momento que ela e Terry se
encontram pela primeira vez, disputando uma ficha que encontram no
chão. A luta corporal entre os dois, marcada por um tapa que Edie dá
em Terry, é interrompida quando ele descobre que ela é a irmã de Joey
Doyle, o que faz soar mais uma vez a corda da culpa na consciência do
capanga, que deixa então Edie “vencer” a briga pela ficha.
sumário 86
elementos da “teia” de observações montada no início da sequência.
Perceberemos daqui para a frente, aliás, que Barry começa a ganhar
uma presença mais determinante no desenvolvimento das cenas. Se
até então o filme vinha manipulando os pontos de vista, passando ora
de Terry para os capangas, para Edie e de volta a Terry – seguindo
sempre uma certa lógica de precedência do protagonista – a partir
de agora Barry vai surgir como uma figura de força na condução do
enquadramento da narrativa. Essa posição do padre pode explicar,
assim, sua presença como observador logo na primeira cena, ofere-
cendo a extrema unção sobre o cadáver de Joey e controlando a fúria
de Edie diante do silêncio dos estivadores e da própria polícia, assim
como justifica também a sua rápida tomada de consciência depois
do desafio que a menina lança à sua própria passividade, cobrando
dele envolvimento com os problemas da paróquia e na relação entre
os trabalhadores e o sindicato. O envolvimento assumido pelo padre
na luta contra o sindicato é já anunciado ainda no shape up, quando
ele é agredido por engano pelos capangas que tentam dissolver o
ajuntamento, como se fosse mais um dos estivadores.
sumário 87
sindicato. O silêncio do grupo é desafiado pelas falas de Barry, que os
tenta convencer a quebrar o código do “deaf and dumb”. A ausência
de respostas dos estivadores oferece, então, uma oportunidade para
Barry discursar. Essa cena, aliás, nos evidencia um outro aspecto de
emperramento da forma dramática presente na estruturação do rotei-
ro. Como consequência do silêncio exigido pelo sindicato, que desin-
centiva a liberdade de manifestação individual dos trabalhadores, eles
não discutem livremente o assunto principal do filme (a delação), pois
mal dialogam. Com isso, a forma dramática não pode estabelecer,
por si, o encaminhamento convencional utilizado pela tradição do dra-
ma na discussão de qualquer ideia, através do clássico esquema de
oposição de uma tese por uma antítese, gerando um embate capaz
de produzir, ao fim, uma síntese que com sua formulação seja capaz
de apaziguar o conflito motivador do desenvolvimento dramático da
ação.44 Sem diálogo, a exposição das ideias contrastantes deve se
dar por outros expedientes – é desse modo, ainda, que podemos en-
tender o registro da expressão silenciosa dos diversos personagens
envolvidos nas cenas, através de uma sucessão de closes.
44 Segundo SZONDI, 2003, pg. 34: “Enfim, a totalidade do drama é de origem dialética. Ela
não se desenvolve graças à intervenção do eu-épico na obra, mas mediante a superação,
sempre efetivada e sempre novamente destruída, da dialética intersubjetiva, que no diálo-
go se torna linguagem. Portanto, também nesse último aspecto o diálogo é o suporte do
drama. Da possibilidade do diálogo depende a possibilidade do drama.”
sumário 88
atitude de delação) ganha forma concreta ao ser expressa pelo padre
em todas as letras quando ele diz: “O que para eles é delatar para
vocês é dizer a verdade”. Dessa forma, o filme evidencia a função de
Barry como porta voz da tese que vem tentando defender.
sumário 89
Quando os capangas de Friendly interrompem a reunião jogan-
do pedras para dentro da Igreja e atacando os trabalhadores na saída,
Terry e Edie terão sua primeira conversa. Esse diálogo já nos indica a
relação afetiva que surgirá entre o casal, que será o motivo para Terry
se aliar à resistência do padre e da garota contra Jhonny Friendly.45
sumário 90
de registro da vida no porto tal qual ela é, o filme não mostra em
nenhum momento uma rotina de trabalho sem entraves.47 Se no
shape up a briga pelo acesso ao galpão institui um embate cor-
poral que rouba o foco do registro da rotina de trabalho, agora o
andamento da função de descarregar o navio é interrompido pela
morte de Kayo. Ao constatarmos que ambas as interrupções são
causadas por membros do sindicato, isso serve para estabelecer
um paradoxo interessante: o “trabalho” do sindicato, que deveria
idealmente se ocupar com a defesa e salvaguarda dos direitos dos
estivadores, emperra o ofício que deveria proteger, propiciando,
assim, a representação de uma noção enviesada da ideia de tra-
balho: no ambiente do cais dominado pelos gangsters, ao invés da
dinâmica esperada (o descarregamento dos navios e a distribuição
das cargas), a única atividade bem sucedida que o filme registra
é a ação do sistema criminoso, que garante a exploração da força
de trabalho dos estivadores. Esse sistema é mantido, como já foi
apontado, por uma “ética” interna (a do “deaf and dumb”) através
do terror e da ameaça constante a quem pretende romper tal éti-
ca, estruturando uma lógica de repressão. Assim, a despeito – ou
por conta – de ser um espaço importante para a organização do
mercado interno nacional através do acesso ao trânsito global de
mercadorias e informações (sendo o cais porta de entrada e saída
do país por via marítima), esse ambiente produz de fato, segundo o
registro do filme, apenas a manutenção da criminalidade. Essa ideia
se apoia no dado concreto de que, à época, a máfia que controlava
47 O estudo de Leo Braudy sobre o filme, publicado em 2005 pelo British Film Institute
na forma de um pequeno livro, atesta o desejo de Kazan de realizar a obra “segundo
o modelo de um filme neorrealista”. (BRAUDY, 2005. Ver bibliografia). À luz do que
estamos apontando acima, essa informação nos ajuda a entender, inclusive, o quanto
o filme de Kazan se distancia desse modelo. Afinal, era muito comum os cineastas
ligados a essa estética registrarem extensivamente a rotina de trabalho dos perso-
nagens de seus filmes, como podemos observar em obras como “A Terra Treme” (La
Terra Trema, 1948) de Luchino Visconti, ou “Stromboli” (1950) de Roberto Rossellini,
ambos capturando com detalhes o trabalho dos pescadores em vilarejos na Itália, em
um intuito expressamente “documental” ou que, em outras palavras, buscava fazer a
realidade do local falar quase que “por conta própria”.
sumário 91
o sindicato dos estivadores era um dos braços mais desenvolvidos
do crime organizado nos EUA.48
48 O poder desse sindicato foi capaz inclusive de interferir na aceitação, pela Columbia Pictu-
res, do roteiro original do projeto que originou “Sindicato de Ladrões”, de autoria de Arthur
Miller. Intitulado The Hook, o roteiro foi submetido a uma espécie de censura pelos repre-
sentantes sindicais, que então acusaram o roteiro de “antiamericanismo”. Após se recusar
a alterar seu texto, o dramaturgo se retirou do projeto, fazendo com que Kazan se juntasse
a Schulberg, que já demonstrava interesse em adaptar as reportagens de Malcolm Johnson
para o cinema. Essa história é recontada tanto por Kazan em sua autobiografia (A Life, KA-
ZAN, 1997) quanto por Miller em seus ensaios, mais especificamente no texto “The Crucible
in History”, escrito em 1999. Os ensaios de Miller foram consultados em Echoes Down the
Corridor, Collected Essays 1944-2000 (MILLER, 2001, ainda não traduzido no Brasil)
sumário 92
de forma burocrática através do funcionamento da estrutura da orga-
nização partidária (assim como a lógica de controle do sindicato, no
filme) e manteria seus afiliados presos à obrigação de contribuírem com
as estratégias de divulgação da ideologia política do partido por meio
de suas produções artísticas. Essa prática, várias vezes acusada por
Kazan como um dos motivos de sua repulsa ao CPUSA se daria através
da imposição de postulados formais pré-estabelecidos e da dinâmica
de exigência de leitura e consultoria prévia, por especialistas apontados
pelo Partido, das obras assinadas por seus afiliados. Em sua autobio-
grafia, Kazan cita ainda o fato de que também Budd Schulberg teria so-
frido, na escrita de seu romance de estreia “O Que Faz Sammy Correr?”
(What Makes Sammy Run?, de 1941) a exigência de cortes e alteração do
enredo por parte dos leitores do Partido. São esses dados recorrentes
nos discursos das duas figuras envolvidas na elaboração do filme que
nos permitem essa interpretação, ao tentar sempre ler “Sindicato de La-
drões” na lógica alegórica proposta pelos seus realizadores, e em sua
relação direta com os eventos do Macartismo.
sumário 93
tempo em que deixa sempre evidente a sua distância dos outros es-
tivadores. Assim, Barry discursa nessa cena como se executasse seu
ofício de pregador, transformando o interior do navio em púlpito.
sumário 94
ouro” do sindicato, a estratégia sonora adotada pela cena, ao encobrir
a conversa entre os capangas, se mantém coerente com a lógica do lu-
gar (já que as palavras dessa comunicação não se ouvem, encobertas
pelos sons de apitos, chaminés e ferragens). Ainda, essa expressão da
“voz do espaço”, sendo construída por sobre a voz individual das figu-
ras, representa um novo entrave para o desenvolvimento da sequência
do ponto de vista exclusivamente dramático – logo, dialógico.
sumário 95
ao gesto cotidiano, que por assim dizer é desnaturalizado, tornando-se
um elemento que se desloca de sua função especificamente referencial
(a representação do trabalho) e gera um significado que joga a atenção
do espectador para algo que está além da referência, e que a cena ain-
da vai desenvolver – ou seja, o tema da delação (no sentido de “revelar
uma informação”).49 Esse gesto ecoa, de certa forma, a atitude de Kayo,
cuja consequência é o assunto da cena, ao mesmo tempo que remete
diretamente a Terry, que também já está sendo sondado pelos agentes
da Comissão do Crime para realizar seu testemunho (o que acontecerá
ao fim do filme). Esse momento nos permite flagrar o rigor no trabalho
de Marlon Brando ao construir a expressão gestual de seu personagem
(citado anteriormente na análise da cena do bar, onde discutíamos o con-
traste entre a ignorância da personagem e o controle do trabalho do ator).
Vemos então um uso altamente produtivo da técnica de representação,
onde o filme consegue concentrar um grande teor de sentido através de
uma expressão apenas imagética, não verbal, empreendida nesse caso
pelo registro preciso do trabalho do ator, sem recorrer a estratégias de
montagem e outras formas de composição audiovisual que se interpo-
nham a esse último.
49 Anatol Rosenfeld, em O Teatro Épico: “O gestus social é aquele que nos permite tirar
conclusões sobre a situação social”. (ROSENFELD, 2004, pg. 63). Ou ainda, segundo
Carl Weber, o gestus deve ser entendido como “o processo total, a encenação de todo
comportamento físico que o ator exibe enquanto nos apresenta um “personagem” no
palco por meio de suas interações sociais. (...) tal Gestus deve ser memorável para a
plateia e, consequentemente, citável” (WEBER, 2000, pg.43, em tradução livre).
sumário 96
Imagem 15 – Barry vendo os estivadores
sumário 97
Se a entrada de Terry na sequência foi através do gestus de revelar
o que se esconde por baixo da dinâmica das relações cotidianas, essa
ação vai se manter como um assunto subliminar, culminando com a mor-
te do delator. Assim, é como se toda a cena fosse uma comprovação da
necessidade da delação como a única atitude capaz de transformar as
relações, ainda que ela conduza o delator a um sacrifício – por conta da
reação do sindicato. Vemos então Kayo comentando que o “bom Deus”
estava olhando para eles por ter mandado um carregamento de uísque
irlandês, “revelando” em seguida uma garrafa roubada escondida em
seu casaco. Esse é, justamente, o casaco que foi de Joey Doyle (dado a
Kayo por Pop na cena do shape up) e que depois da morte de Kayo vai
ser entregue a Terry por Edie, simbolizando uma espécie de “veste do
delator”. Ou seja, ao usar o casaco para revelar o que escondia, Kayo
ajuda a acumular mais um elemento relacionado ao assunto da delação.
Ainda, a atitude de transmitir o casaco de um delator a outro se torna
também uma espécie de gestus que o filme como um todo constrói, ao
transmitir, com o casaco, a função de delatar, “revelar” através do teste-
munho a lógica do sindicato. Com isso, é também transmitido o destino
de martírio para aquele que toma a atitude de enfrentar publicamente
essa lógica, tornando-se por isso mesmo uma espécie de herói – ainda
que esse caráter heroico esteja relacionado a um sentido mais morali-
zante do que necessariamente político, ao ser expresso através do tema
cristão do sacrifício individual em nome do coletivo.50
sumário 98
personagem).51 Então, Terry grita “Watch it!”, o que pode ser traduzido
como “Cuidado!”, mas que se expressa através do verbo “to watch”
(“olhar”), de novo reiterando a ação de olhar como um tema recor-
rente no filme. Essa atitude de Terry fecha o círculo de significação do
gestus de revelação que o personagem iniciou quando tirou a lona de
sobre as caixas de uísque no princípio da cena.
51 Essa cena remete à execução de Joey na abertura do filme, onde o momento da execu-
ção se dá através de um plano rápido que mostra algo caindo (seja a vítima ou seja por
sobre a vítima), tendo seu clímax marcado pelo grito de agonia do executado. Da mesma
forma, ela é pontuada por uma frase de efeito de um personagem que assiste à cena.
Assim como um capanga comentou, sobre Joey, que “o canário poderia até cantar, mas
não sabia voar”, agora é Pop Doyle quem comenta, diante da urgência de buscar socorro
para Kayo, que “ele não precisa de um médico, ele precisa de um padre”.
sumário 99
a lógica da sequência do shape up, onde Barry figurou como plateia:
dessa vez Barry é o único no centro da ação enquanto o grupo (que
fora antes observado pelo padre) se mantém, pelo menos a princípio,
como a plateia para a qual Barry monologa. Porém, essa relação aqui
mistura observadores e observado em uma mesma ação conjunta, que
se cumpre através da ideia de congregação espiritual – já que Barry se
utiliza do espaço para pregar como se estivesse na igreja, onde prega-
dor e ouvintes se ocupam da execução de um mesmo ofício.
sumário 100
Imagem 18 – Terry ouve o sermão de Barry
sumário 101
Imagem 21 – Terry ferido, na cena final
sumário 102
Novamente, como ocorreu depois de Big Mac jogar para o alto as
fichas no shape up, o andamento da narrativa problematiza a estrutu-
ra de registro dos diversos pontos de vista entrecruzados na compo-
sição de uma cena de caráter tão coletivo. Essa mistura de espaços
e pontos de vista ecoa, na forma do filme, a mesma dificuldade de
valoração das atitudes individuais que a obra vai manipular até o fim
(entre os papéis de protagonismo e audiência da cena, herói e objeto
de manipulação, resistência e subserviência ao sistema através da
delação, e assim por diante). Vale dizer ainda que essa dificuldade
de valoração confere ao filme a leitura de ser uma obra que se sus-
tenta sobre ambiguidades, o que dificultaria uma avaliação imediata
de seu discurso, capaz de dar conta de todas as suas contradições.
É como se o encaminhamento das cenas conduzisse sempre para
esse momento de embaralhamento das perspectivas, onde elas se
confundem. Precisamos responder, ao longo do trabalho de análise,
se essa lógica aponta, no fim, para a defesa de uma ideia ou perspec-
tiva única em relação aos problemas levantados, ou se ela mantém
em aberto a discussão que implica no decorrer de sua duração.
sumário 103
pelo golpe da garrafa de uísque, é evidente o contraste com a reação
de Terry, por exemplo, que diante da provocação perde a razão e
parte para cima do capanga que atirou a garrafa. Esse contraste de
Barry em relação às demais figuras, aliás, é registrado pelo ângulo de
enquadramento da câmera ao dar o close. Ao fim da cena, Barry, no
auge de seu discurso, é mostrado visto de baixo (assim como Edie
foi focada ao fim da cena do shape up, depois de ouvir a promessa
do padre em ajudar os estivadores) o que provoca uma representa-
ção engrandecida de sua figura (imagem 19). Os outros estivadores,
ao contrário, são sempre focalizados no mesmo plano do ângulo de
visão (como Terry, na imagem 18). Esse contraste chama a atenção
por não condizer, de forma alguma, com o ponto de vista de nenhuma
figura envolvida na cena, pois todos os ouvintes de Barry o assistem
de cima, posicionados em planos superiores ao padre (na relação
espacial interna da cena). Assim, esse enquadramento corresponde
a um olhar exterior à cena que o filme adota para registrar a presença
de Barry, e que produz o efeito de engrandecer sua imagem.
sumário 104
dessa ao revelar um personagem complexo, contraditório e ambíguo
ele próprio, capaz de errar, mas ainda assim se manter firme em seus
propósitos – que são os mais bem intencionados em relação ao futuro
dos trabalhadores explorados. Isso garante para o espectador, ao fim,
uma espécie de relação de confiança com sua figura, que representa
sempre um ponto de ponderação e sabedoria, estendendo para nós a
mesma capacidade de aconselhamento ou acolhimento que ele desti-
na aos estivadores que tenta, a todo instante, conduzir.
sumário 105
Assim, essa mudança de tom na postura de Barry com o per-
sonagem de Brando no decorrer do filme pode ser programática,
servindo para construir a nossa identificação com o protagonista de
forma calculada, sempre através da mediação do padre. A imagem
de Terry ao longo de todo o filme – ainda reverberando, talvez, o olhar
de Barry sobre ele – é sempre enquadrada como uma personagem
impulsiva e bruta, incapaz de pensar antes de agir, ou de traçar es-
tratégias para agir de forma mais acertada (veremos isso melhor na
análise das cenas finais do filme). E essa consideração justificará a
necessidade de uma espécie de aconselhamento, ou condução ex-
terna dos atos de Terry, seja por Edie, seja pelo padre. Ao fim, talvez
Barry sirva não apenas como um guia para as ações de Terry, mas
também como um ponto de apoio para que a narrativa do filme cons-
trua a relação do espectador com os conflitos apresentados.
sumário 106
obra de discussão e comprovação de uma tese específica a respeito
de uma ideia central, tese cuja discussão o organiza.
Isso pode explicar a opção por colocar esse ponto de vista me-
diador em um membro da Igreja, o que revela a tentativa de constituir
um olhar que se organize através de uma referência de congregação,
introduzindo uma outra noção de coletivo que se opõe à ideia de
organização mostrada até então, não por acaso todas relacionadas
com formas tradicionais de atividade política (como o sindicalismo,
no interior do enredo do filme ou a organização partidária, na relação
extra fílmica). Ao mesmo tempo, o poder de aderência do grande pú-
blico com a Igreja conferiria ao discurso do filme uma autoridade de
representação que pode atrair, para a ideia de ação política de resis-
tência que ele defende, a simpatia do espectador. A personagem do
padre Barry encontra ressonância imediata na experiência que serviu
de inspiração ao roteiro pelo fato de a figura do padre John M. Cor-
ridan ter assumido a função de liderar, em sua paróquia, o combate
contra a máfia do sindicato dos estivadores em um porto de Nova Ior-
que, conforme foi registrado pelas reportagens de Malcolm Johnson.
O discurso que Barry professa após a execução de Kayo no interior
do navio é uma transcrição quase literal de um discurso real do pa-
dre Corridan, onde ele estabelece a ideia de que toda vez que um
trabalhador sofre ou é eliminado tentando lutar pela melhoria de suas
condições de vida, Cristo está no cais (“Christ is in the shape-up”),
construindo assim uma imagem de resistência através da jornada de
martirização do pequeno trabalhador, cuja tragédia é ignorada pelos
interesses oficiais da grande política do país.
sumário 107
sobre a corrupção nos sindicatos dos estivadores (durante suas pes-
quisas para a elaboração do roteiro de “Sindicato de Ladrões”) deixa
evidente a admiração do roteirista pela figura de Corridan, justificando
assim a representação de Barry como um militante inflexível:
Um economista extremamente atualizado, um político astuto,
um lutador incansável pelos direitos humanos, um homem que
vive sua cristandade e guia como um pastor os homens brutos,
beberrões e briguentos da selva do cais do porto – esse é Padre
Corridan. Seu trabalho nas docas pode estar só começando.52
52 Trecho de um artigo escrito para o The New York Times Magazine em 1953. Em JOHN-
SON, Op. Cit, pg. 250 (em tradução livre).
53 Op. Cit., pg. 250 (em tradução livre).
sumário 108
da insatisfação desses últimos para ganhar força de representação
política no país. Da mesma forma, desde os fins dos anos 1930 a Igreja
foi estabelecendo nos EUA uma aproximação com grande parte da
classe trabalhadora, principalmente nas categorias majoritariamente
formadas por homens de origem cultural católica, como é o caso da
presença massiva de irlandeses entre os estivadores.
sumário 109
mafiosos capturem seus locais de trabalho, e que não precisam,
nem querem, que comunistas vençam, por eles, suas batalhas.55
sumário 110
radical, o CPUSA, está alegorizado na formação da quadrilha mafiosa
que comanda o sindicato. Ao que parece, o resultado que chegamos
ao fim de toda essa equação é que o filme relaciona a prática de
organização sindical com uma atividade generalizada de repressão
da liberdade de manifestação individual dos trabalhadores concorren-
do, inclusive, para a exploração de sua força de trabalho através do
silêncio e do terror. Por outro lado, a Igreja, instituição que por conta
de seu antagonismo histórico com o comunismo na Europa liderava a
cruzada ideológica armada pelo Macartismo nos anos 1950 nos EUA,
surge através da figuração de padre Barry como um novo espaço de
resistência. Um espaço capaz de promover o reencontro do indivíduo
com sua liberdade de voz roubada pela coletivização sindical. Se o
sentido do termo “religião” vem diretamente da ideia de “religação” da
humanidade com uma ordem superior perdida pelo desenvolvimento
da vida mundana, o filme elabora, através do Padre Barry (ecoando a
figura do padre Corridan) o discurso da necessidade de formação de
novos laços entre os indivíduos, ou seja, novas formas de pensar a
organização coletiva, segundo novas ideias.
sumário 111
Porém, ao fazer uso do vocabulário e da concepção de mun-
do cristã, sua fala confere à ação política um aspecto moralizante.
Apoiando-se em uma noção salvacionista de redenção pessoal atra-
vés do sacrifício (a ideia do martírio presente nos símbolos que o
filme elabora), o discurso do padre aponta para a atitude individual (a
delação como forma de oposição ao sindicato) como solução para o
impasse criado pelos acordos sociais (a passividade dos estivadores
diante dos desmandos da máfia):
BARRY – Algumas pessoas acham que a crucificação só acon-
teceu no Calvário. É melhor eles ficarem espertos. Matar Joey
Doyle para impedi-lo de depor é crucificação. Esmagar Kayo Du-
gan porque ele estava pronto para abrir a boca amanhã, isso é
crucificação. E toda vez que a máfia mata um homem bom para
impedi-lo de cumprir seu dever como um cidadão, é crucificação!
(...) Sabe o que está errado aqui no nosso cais? É o amor pelo
dinheiro fácil. É fazer o amor pelo dinheiro – o trabalho fácil – mais
importante do que o amor pelo homem. (...) Mas lembrem-se,
irmãos, Cristo está sempre com vocês. Cristo está na seleção de
trabalhadores, está na estiva, está no sindicato, está de joelhos
bem aqui ao lado de Dugan (...) E apenas vocês, apenas VOCÊS,
com a ajuda de Deus, têm o poder de acabar com isso de vez!
sumário 112
(no testemunho perante a Comissão do Crime) para desafiar a lógica
do sindicato, seu sacrifício individual visa a salvação de seus irmãos, e
será recompensado no além (à imagem e semelhança de Cristo, que
segundo o padre está lá no cais, sofrendo junto com os estivadores).
Assim, o Padre acusa os trabalhadores de serem, através de seu silên-
cio, coniventes com os crimes cometidos pelo sindicato. Por isso, em
seu discurso ele já ameniza as dores que certamente virão para aque-
les que se decidirem a delatar (e nesse momento, não por acaso a câ-
mera focaliza Terry). Ainda que eles caminhem “no vale das sombras”
da represália do sindicato através do assassinato, os delatores terão
sempre o conforto de Deus ao seu lado, pois terão “feito a coisa certa”.
56 Em um ensaio publicado nos anos 1970 sobre o filme, Peter Biskind também explora
essa dinâmica política moral que o filme estabelece: “(...)a noção de que a extorsão pode
ser endêmica mais do que incidental (...) A corrupção era vista exclusivamente como um
problema moral, um pecado cometido por homens maus (o enquadramento de referência
teológica é reforçado pelo papel predominante ocupado pelo Padre Barry), mais do que
uma forma de mútuo benefício, e um conluio politicamente conveniente entre sindicatos, o
empresariado e a máquina do Tammany Hall”. O Tammany Hall foi uma espécie de organi-
zação com representantes da sociedade civil criada para aconselhar a gestão LaGuardia
na prefeitura de Nova Iorque. Em BISKIND, 1975, pg. 28 (em tradução livre).
sumário 113
o mau será curado, como se a dinâmica de trabalho no cais não fosse a
ponta de todo um sistema de relações que deve ser combatido. E como
se, apenas com a denúncia dos capangas de Friendly os estivadores
fossem capazes de recuperar a dignidade perdida.
57 O filme foi lançado no Reino Unido com o título de Gives Us This Day, citando a versão em
inglês da famosa oração do Pai Nosso (“... gives us this day our daily bread”). Nos EUA o
filme foi lançado com o título do romance que lhe deu origem. No Brasil foi traduzido como
“O Preço de Uma Vida”.
sumário 114
cinema de gangster “Anjos de Cara Suja” 58, filme que fez a fama de
James Cagney como o fora da lei terrível e cruel, porém simpático,
cuja trajetória se encontra em ressonância com os desejos de vitória
no sonho americano da classe trabalhadora imigrante nos EUA. Essa
relação, aliás, nos ajuda a entender a ambivalência que a figura do
Padre Barry estabelece em sua significação extra fílmica.
58 Angels With Dirty Faces, 1939, EUA, Michael Curtiz. Por sinal, um filme também dirigido
por outro imigrante em Hollywood.
sumário 115
de esquerda dentro da indústria do entretenimento, ajuda a explicar
uma nova condição de existência, ou possibilidade de resistência, que
a arte engajada deveria descobrir. Afinal de contas, dada a ideologia
hegemônica que figurava os EUA como o país da prosperidade diante
do caos e da miséria na qual o fascismo e, supostamente, também o
comunismo haviam jogado a Europa do pós-guerra, a arte, ao querer
revelar e problematizar abertamente as complexidades e ambivalên-
cias estruturais da própria sociedade estadunidense, se tornaria auto-
maticamente (sempre do ponto de vista conservador) uma expressão
de antipatriotismo, e uma ameaça à democracia que aparentemen-
te assegurava a posição privilegiada da nação aos olhos do mundo.
Para não incorrer nesse risco, os artistas relacionados ao grande ci-
nema Hollywoodiano tiveram que revestir seus criminosos com uma
roupagem mais cruel e parcial, e eleger como seus protagonistas os
heróis da resistência a essa criminalidade. No caso de “Sindicato de
Ladrões”, isso pode explicar a escolha de Terry como seu protagonista,
ou seu “herói”. Assim, diante do universo montado pelo filme, o silêncio
é uma prática de controle imposta pelo grupo que representa a orga-
nização do CPUSA (a gangue de Jhonny Friendly). O que soa irônico
é que, ao fim, o gesto “heroico” de Terry resultaria em uma atitude de
subserviência ao sistema, representado pela Comissão do Crime.59
59 Elia Kazan, em sua autobiografia, ponderando sobre os motivos que o levaram a cola-
borar com a HUAC em 1951: “Eu era realmente um “esquerdista”? Eu já fui algum dia?
Eu realmente quis mudar o sistema social sob o qual eu estava vivendo? Aparentemente,
isso foi o que eu defendi por algum tempo. Mas que merda! Todas as coisas que tinham
valor para mim eu conquistei sob esse sistema. Depois de dezessete anos assistindo a
União Soviética se tornar uma potência imperialista, era isso o que eu verdadeiramente
queria para nós? Não estaria eu me agarrando a pactos antigos que já não tinham mais
nenhuma validade?” KAZAN, 1988, pg. 493 (em tradução livre).
sumário 116
sua figura – no caso, como um mártir – e que por isso cumpre a fun-
ção de instância narrativa que media nossa relação com a história.
Ao mesmo tempo, a recorrência da representação do silêncio como
elemento de estruturação interna que emperra o desenvolvimento das
relações nos afasta, também, da leitura precipitada de que o filme
defenderia essa ideia de um heroísmo (agora no sentido de um mo-
delo, uma figura exemplar) manipulado. Essa consciência pode ser
evidenciada se lembrarmos de todas as vezes em que um certo có-
digo de silenciamento já foi apontado, nessa análise, como elemento
que impossibilita a realização plena da forma dramática no filme, por
impossibilitar a expressão livre do sujeito – e, como veremos adiante,
mesmo nas cenas em que Terry finalmente se confessa ou delata, sua
fala é silenciada pelo filme de forma brusca. O silêncio, afinal, repre-
senta aqui uma espécie de tabu que emperra o desenvolvimento das
relações interpessoais ou mesmo o espaço da intimidade. Sem auto-
nomia subjetiva e capacidade de expressão da intimidade do sujeito
não há herói dramático no sentido convencional, assim como sem o
desenvolvimento das relações intersubjetivas não há drama. E por fim,
sem um desenvolvimento dramático plenamente realizado, o envol-
vimento catártico do espectador com o destino das protagonistas é,
ainda que sugerido no filme através da trilha sonora ou da condução
climática na sequência final, dificultado internamente pela sua forma.
sumário 117
realizando um filme de problemática social produzido para um grande
estúdio de Hollywood, estabelecendo assim o enredo com base em
uma trajetória convencional de superação pessoal (portanto de ótica
individualista), o filme arma um nó cego. Afinal, “Sindicato de Ladrões”
não é apenas a narrativa do combate da classe de estivadores contra
o sindicato (duas ideias de coletivo em conflito). A obra estabelece
ainda uma narrativa paralela sobre o desenvolvimento de uma relação
amorosa entre o casal de protagonistas, Terry e Edie, que se mistura
ao desenvolvimento da trajetória do protagonista em se decidir pela
delação, e assim possivelmente interferir na organização da rotina de
trabalho de sua categoria. De modo que, assim, um percurso se torna
a motivação do outro: a resistência de Terry ao sindicato é fruto de seu
envolvimento pessoal com Edie, irmã da vítima do crime do qual fora
cúmplice e que lhe acarretou sua discordância com a organização, o
que o leva, assim, a querer combater o sindicato para poder se ligar
definitivamente a Edie – sempre sob a condução de padre Barry.
sumário 118
anseio provoca na forma do filme um retorno, ou por assim dizer, um
“realinhamento” a convenções narrativas mais propriamente dramáti-
cas e de caráter mais subjetivista, tergiversando o enquadramento de
abrangência coletiva (ou épica) pelas ferramentas comuns à expres-
são emotiva do enredo romântico e passional.
sumário 119
2
Capítulo 2
Romance na
beira do cais:
o método como
possibilidade de
organização diante de
uma nova cultura política
a causa [da dissolução do Group Theatre] se encontra na pe-
culiar condição econômica-moral de nossa sociedade hoje em
dia, especialmente no modo como isso afeta o teatro e outros
fenômenos culturais semelhantes. Eu não estou usando o ter-
mo “condição econômica-moral” como um eufemismo para o
capitalismo; como eu já disse, estamos presenciando o flores-
cimento de culturas teatrais em diversos países capitalistas.
Porém, não deve haver dúvidas de que a ênfase quase que ab-
soluta no lucro em relação ao teatro – que mais se intensificou
do que diminuiu nos últimos anos – impediu todo o progresso
nessa direção. Isso não é apenas significativo em si, mas tam-
bém em vista do fato de que, nos anos 1930, desenvolveu-se
uma forte consciência ávida por um mundo espiritualmente
ativo, uma arte relevante e humanamente significativa. No en-
tanto, o desenvolvimento socioeconômico peculiar dos anos
1930, que de bem-sucedido a princípio levou a uma crise no
início da guerra, trouxe uma dissolução do movimento do qual
o Group Theatre foi uma das principais vozes.
sumário 121
Como discutimos no capítulo anterior, “Sindicato de Ladrões”
problematiza o caráter heroico de seu protagonista ao constantemente
roubar sua autonomia de fala ou expressão, e mesmo sua consciên-
cia sobre o processo de emancipação que atravessa – e que seria a
trajetória principal de seu enredo, culminando na escolha de Terry por,
finalmente, delatar os negócios da máfia que controla o sindicato dos
estivadores. Ao fim do filme, ainda que alguns elementos de encena-
ção pareçam nos sugerir uma vitória de Terry sobre Jhonny Friendly,
não conseguimos saber exatamente o que de fato mudará nas rela-
ções de trabalho, na organização dos estivadores ou na relação de
Terry com os seus colegas após a delação.
sumário 122
desde a esfera das suas relações de produção. Porém, parece que
apesar dessa discordância, há o estabelecimento de um espaço que
ainda assim possibilita a colaboração entre os artistas conflitantes no
momento da criação da obra. Essa contradição parece interferir no
produto final, ajudando a explicar o caráter ambíguo que complexifica
o exercício de interpretação final da obra. Esse exercício se encontra
então preso em um movimento pendular entre a percepção de uma
defesa do colaboracionismo através da delação, e o reconhecimento
de uma obra que, dado o refinamento de sua realização formal, pode
representar por si só uma conquista para certos grupos de artistas e
linguagens oriundas da expressão da arte política dos anos da Frente
Popular. O que talvez configure essa obra como um eco distante do
espírito contestador ou dialético que animava essa geração.
sumário 123
possível (mesmo que utópica) de coletividade, ou do estabelecimento
de novos acordos, novas formas de relação de trabalho, como meio de
solucionar essa crise. É através dessa ideia que podemos redimensio-
nar o peso das relações pessoais de Terry (com Edie e com seu irmão
Charley), e tentar construir pontes de sentido que ligariam, em chave
alegórica, as duas narrativas centrais do filme (o caminho de Terry até
a delação e o desenvolvimento de sua relação com Edie) com a expe-
riência atravessada pela classe artística durante o Macartismo.
sumário 124
de Padre Barry. Dessa forma, pode ser que a adoção de aspectos de
enredo convencional de Hollywood (como o entrecho amoroso, o en-
quadramento do enredo pelo foco da vida subjetiva ou um certo tom
sentimental e mesmo melodramático em certas passagens) possa
significar mais do que uma simples concessão aos padrões dos mol-
des narrativos da indústria, iluminando assim novos entendimentos
sobre o caráter negociador, ou híbrido, da forma do filme.
sumário 125
categoria que nos EUA se conhece por “white collars”) pode também
ser reconhecido como um legado das mudanças nas relações sociais
ocorridas nos anos 1930 por conta dos efeitos da Depressão. Além
disso, é sabido que nos anos 1940, durante a Segunda Guerra, hou-
ve uma intensificação da presença feminina nas esferas de produção
pelo fato de muitos homens estarem nos campos de batalha. Assim, a
postura de Edie encontra ressonância nas transformações pelas quais
a organização da estrutura familiar passou em meados do século XX.62
sumário 126
um papel específico de liderança, ou ao menos de aconselhamento, dos
outros membros da família – imigrantes simples que possuem, quando
muito, a instrução básica para executar o seu trabalho e administrar a
rotina das relações. As três figuras que detêm essa autoridade advinda
da instrução intelectual são Charley, Edie e o Padre Barry. Não por acaso,
são as figuras que, de certa forma, servem como “guias” de Terry em
toda sua trajetória. Ao longo do filme Terry passa dos cuidados de seu
irmão mais velho, advogado do sindicato e burocrata que mantém as
transações do esquema criminoso de Jhonny Friendly fora do alcance
da lei, para as mãos de Edie e Barry, ambos ligados diretamente com a
Igreja (Edie acaba de voltar de seus estudos em um internato católico).
As novas relações de Terry moldam sua oposição ao sindicato.
sumário 127
tem como fator de orientação moral da comunidade (mesmo em um
país, os EUA, majoritariamente protestante). As referências à identida-
de cultural dos estivadores se espalham pelo filme, e se encontravam
de forma ainda mais explícita no roteiro, em momentos que foram cor-
tados na filmagem. A cena em que Edie vai atrás de Terry no pombal
que foi de seu irmão, por exemplo, tinha em sua abertura a presença
de um casal tocando e dançando nos telhados uma canção folclórica
irlandesa. Na cena seguinte, Terry convida Edie para um primeiro en-
contro mais íntimo, levando-a em um bar (“salloon”) com uma “entrada
especial para mulheres”. E segundo o roteiro, a primeira imagem do
bar seria a de uma irlandesa de meia idade (“a tipsy Irish biddy”) em-
briagada sendo escorraçada para fora. Em outro momento um bêbado
passaria cantando uma “velha balada de marinheiros irlandeses”. Sem
deixar de fora o detalhe, já na versão filmada, da execução de Kayo
se dar em meio a um carregamento de caixas e mais caixas de uísque
irlandês, motivo que leva Pop Doyle a exclamar, no começo da cena,
que “o bom Deus zela por nós o tempo todo”.
sumário 128
na festa, também uma forma de expressão cultural identitária, a dança
se inicia como uma brincadeira de Terry, mas logo se desenvolve a uma
intensidade que chega a quebrar o ritmo da melodia lenta e sentimental
que se ouve ao fundo. Vemos então um plano aberto que mostra Terry
e Edie girando rapidamente pelo salão onde casais dançam sob um
compasso mais lento, contrariando a orientação da música e a dinâ-
mica geral do grupo ao redor (imagem 22). Esse destaque do casal de
protagonistas confirma o padrão, já reconhecido no capítulo anterior,
de compor quadros com a formação de grandes grupos, registrando o
deslocamento entre indivíduo (figuras protagonistas) e coletivo.
sumário 129
Porém, no próximo quadro surpreendentemente a música e
todo o salão se rendem ao ritmo da dança do casal gerando assim,
pela primeira vez no filme até então, uma harmonização que reverte o
conflito estabelecido: os componentes da cena formam uma imagem
de conjunto, sendo que o grupo maior se rende aos indivíduos des-
locados, e não o contrário como se poderia supor, projetando uma
possibilidade de harmonia quase que utópica. Ouve-se uma melodia
agitada, que rememora uma espécie de polca, ou outra dança típica
de origem europeia para ser dançada em grandes grupos – os passos
da dança do casal e o ritmo da música evocam esse tipo de interação.
Se pensarmos ainda que o ritmo tocado anteriormente, uma música
romântica, é uma forma de expressão da indústria cultural que é assim
interrompida, ou substituída, pela melodia mais tradicional, podemos
adicionar mais um elemento na configuração dessa utopia, também
ela de caráter ambivalente: a expressão cultural étnica identitária se so-
brepõe ao produto de cultura de massas, ou é incorporado por essa?
sumário 130
à típica celebração de um matrimônio irlandês, aponta para a promes-
sa de um novo pacto social que o casamento, em tese, representa.
sumário 131
palco, clamavam pelo estabelecimento da greve contra os desmandos
dos dirigentes do sindicato, que tentavam manipular o resultado da as-
sembleia para a direção oposta. Coincidentemente ou não, o persona-
gem que na montagem original puxava o coro de greve ao final da peça
era interpretado por um jovem Elia Kazan, recém integrado ao Group.
sumário 132
estarem sempre associadas com o excesso da bebida. A passagem
do roteiro, logo no início dessa cena (cortada do filme), em que a mu-
lher irlandesa é escorraçada do bar por estar bêbada, sugeria já esse
movimento ambíguo de liberação que a bebida pode significar: se por
um lado ela quebra a rigidez das convenções sociais estabelecidas,
por outro ela pode resultar em uma válvula de escape da realidade
que, no seu limite, leva à alienação através da perda da consciência.64
sumário 133
Então, primeiro Terry recebe através deles a convocação de
Friendly para discutir o caso da possível delação de Kayo (o que signi-
fica uma falha de Terry em seu serviço de espionar a reunião da Igreja).
Depois, ao se desvencilhar dos capangas, ele é abordado pelos dois
oficiais da Comissão do Crime que entregam uma intimação oficial
para depor. Como resultado de todas essas intervenções, Edie tam-
bém o coloca contra a parede ao cobrar uma resposta sobre o envolvi-
mento do sindicato na morte de seu irmão. Após ela ter experimentado
por um breve momento a leveza e a alegria que a embriaguez da cele-
bração lhe ofereceu, Edie volta a se desencantar com Terry e abandona
o bar, em um plano onde, com os noivos dançando alegres ao fundo,
ela corre desesperada em direção à câmera, abrindo caminho pelos
corpos na festa como se fugisse de algo (imagem 23).
sumário 134
teatral dos anos 1950) se faz presente no filme. Isso nos leva a supor
então que, diante das relações internas que a obra estabelece, o peso
conferido à história de amor (uma convenção narrativa de Hollywood)
seja utilizado como uma tentativa de fortalecer a ideia de exposição de
uma crise do alinhamento ao coletivo. Assim, o filme poderia apostar
no desejo de reconstrução do laço entre o indivíduo e o grupo ao qual
pertence através da necessidade de um “realinhamento” ao coletivo,
que diz respeito à necessidade de estabelecer novos pactos de solida-
riedade diante dos novos tempos – uma nova conjuntura política que
exigia outras formas de posicionamento do artista perante a indústria,
e dos artistas entre si, para continuarem a produzir.
sumário 135
de pertencimento a um grupo específico). Diz respeito ao processo
através do qual os artistas são formados, e a como, e por quais meios,
adquirem suas ideias e se vinculam a um projeto estético através do
reconhecimento da interferência direta e obrigatória desse processo de
vinculação social em suas obras. Dessa forma, a obra de arte se politiza
em um sentido que vai além do mero falar sobre uma causa pública,
pois essa politização é implicada pela totalidade das escolhas formais
e das relações de trabalho. A experiência se inscreve na obra de arte
de modo inequívoco, pois é parte inalienável de sua condição de exis-
tência. E ainda, torna mais evidente o nexo entre a obra e a experiên-
cia social, vínculo obrigatório em uma compreensão necessariamente
histórica – e historicizada – do processo artístico e de suas formas de
expressão. Segundo Williams, o processo de alinhamento:
é um reconhecimento da ligação radical e inevitável entre
as relações sociais reais do escritor (consideradas não só
individualmente, mas em termos das relações sociais gerais
da ‘literatura’ numa sociedade e períodos específicos, e den-
tro destes as relações sociais existentes em determinados ti-
pos de literatura) e o ‘estilo’, ou ‘formas’, ou ‘conteúdo’ de
sua obra, agora considerados não abstratamente, mas como
expressões dessas relações.66
sumário 136
sua maioria, por artistas oriundos das ditas camadas populares da
sociedade estadunidense (trabalhadores e imigrantes), que traziam
para as páginas, palcos, telas e canções a elaboração formal de um
conteúdo que constituía o tecido de suas próprias vidas e relações
sociais. Nesse sentido, podemos entender esse esforço de trazer a
experiência histórica para o centro da cena, como o pano de fundo
que motivou e orientou as realizações e conquistas estéticas dessa
geração de artistas. No caso do teatro, é esse intuito que pode nos
ajudar a compreender o movimento que levou à conquista de um refe-
rencial técnico de interpretação, o Método, capaz de possibilitar a ins-
tauração de uma ideia de realismo, no trabalho do ator em cena, que
fosse mais fiel com a experiência e o cotidiano da classe proletária
dos EUA, cujos personagens compunham os enredos que marcaram
a dramaturgia (e a ficção como um todo) criada no período – como
os dramas proletários de Clifford Odets criados para o Group Theatre.
sumário 137
de colaboração desmontadas pelo Macartismo. É a esse anseio que
estou chamando, aqui, de uma tentativa de realinhamento.
sumário 138
Porém, nessa negociação, na qual Hollywood estava interessa-
da em adquirir as novas formas técnicas que a geração da década
de 1930 tinha para oferecer em sua bagagem, quem teria que pagar
o preço mais caro seria, justamente, a parte que estava oferecendo
o “produto” em questão. Se o conhecimento técnico que os artistas
traziam em seu repertório permitiu um nível de modernização evidente
na conquista de uma nova qualidade para os resultados dos filmes de
estúdio, Hollywood tinha a oferecer aos artistas o acesso aos meios
de produção e, principalmente, de distribuição do cinema, uma lin-
guagem que, dado os seus altos custos e complexidade de realização
e circulação, depende de um esquema comercial, ou mesmo indus-
trial, de produção. O preço a pagar, ao que parece, era abandonar os
compromissos com as velhas formas mais radicais de mobilização e
engajamento artístico, e aceitar os termos de colaboração impostos
pelo próprio sistema, que no caso significava o testemunho “amigável”
perante a HUAC e, consequentemente, a delação.
sumário 139
o coloca em um dilema que exige um posicionamento. Não é mais
possível continuar dos dois lados. Ou Terry mantém-se fiel a Friendly,
seguindo o caminho de seu irmão Charley, ou rompe definitivamen-
te com a quadrilha, quebrando também o laço com seu único pa-
rente consanguíneo, para construir um novo laço familiar com Edie.
Em todo caso, não importa qual lado escolha, sua decisão tem ainda
consequências maiores, pois dada a sua condição de informante pri-
vilegiado, ele pode influenciar no andamento das investigações sobre
as ações da quadrilha no controle do sindicato dos estivadores.
sumário 140
isso, deixa claro que corta relações com Friendly para não se impli-
car no processo. Já a confissão pessoal de Terry a Edie se torna um
momento nevrálgico. Assim, as esferas privadas e coletivas da vida,
e suas consequências nos assuntos principais do filme (a corrup-
ção no sindicato dos estivadores/ a dinâmica de relações da classe
artística de esquerda nos EUA/ a colaboração com o Macartismo)
encontram-se inevitavelmente embaralhadas.
sumário 141
Imagem 25 – Barry “atrás das grades”
sumário 142
Imagem 28 – Close em Terry se explicando a Edie
sumário 143
Imagem 31 – Barry desorientado, Edie fugindo ao fundo
sumário 144
evocar os cenários montanhosos que se encontram na Paixão de Cristo
em momentos cruciais de sua trajetória: o início no Monte das Oliveiras,
onde Judas confessa a Cristo sua traição e onde o mártir é preso, e o
Monte do Calvário, onde Cristo é crucificado, ambos momentos signifi-
cativos em sua relação com a cena e a situação de Terry perante Edie.
sumário 145
sua cabeça para cima, emulando o movimento da tampa da chaminé
aberta para liberar a fumaça. A entrada da música extradiegética – o
acorde agudíssimo de violinos que pontua as passagens mais tensas
no decorrer do filme – encerra a cena. Quando a imagem volta para o
outro lado da grade, onde está o padre, vemos que ele também está
desorientado com o andamento do encontro, tentando, sem sucesso,
colocar um cigarro todo amassado na boca (imagem 31).
sumário 146
uma interposição dinâmica de imagens e sons que se apoia, também,
no trabalho de interpretação dos atores. O som do ambiente de trabalho
assume o primeiro plano, sobrepondo-se às falas das personagens.
Essa espécie de engrenagem em funcionamento como pano de fundo
da cena faz lembrar uma das ideias primordiais do conceito do drama
enquanto forma: a partir de quando a maquinaria do enredo é posta em
movimento, ela não pode mais ser interrompida a não ser pelo desfecho
definitivo de seus conflitos principais, quando então a forma dramática
alcança novamente a “estase” – ou situação de pausa, de ausência de
conflitos – do qual ela partiu no início da peça.67 Essa noção de movi-
mento é capturada, além do som, através dos elementos do ambiente
ao redor, que não param de se movimentar ao fundo do quadro que
focaliza Terry e Edie: navios indo e vindo, um grupo de pessoas que
caminham na paisagem e um pequeno trem de carga que, na duração
da cena, atravessa o quadro da direita para a esquerda.
sumário 147
sobreposição de “cenas diferentes em uma mesma cena” cria, por
comparação, um complexo simbólico de sentidos que revela a estraté-
gia de “dizer” coisas através das imagens distribuídas pelo filme.
sumário 148
Terry e Edie sendo observados pelo padre através das grades, e por
outro o próprio padre quando é focalizado do ponto de vista de fora
das grades onde ele se encontra; podemos também lembrar alguns
outros momentos já citados, por exemplo o beijo apaixonado de Terry
em Edie, escondido atrás da quina da parede, depois que ele invade
a casa dela; ou mesmo, a imagem que finaliza o filme, quando a porta
do galpão para onde a massa de trabalhadores entrou seguindo Terry
se fecha e sobre a porta é ainda projetado o letreiro de “Fim”.
sumário 149
nos informa do trabalho que organiza as relações no cais, ao mesmo
tempo que funciona como um símbolo de expressão da subjetividade
do protagonista, pressionada por conta dos acordos feitos em nome
da manutenção do andamento desse mesmo trabalho.
sumário 150
Do mesmo modo que, como vimos, a cena atropelou o desen-
volvimento dramático “empurrando” a progressão através da dinâmica
da relação entre imagem e som, o registro dos atores nesse momen-
to vai além de uma expressão apenas subjetiva, do ponto de vista
das emoções e ideias (registro que seria também coerente com uma
dramaturgia mais convencionalmente dramática). A imagem formada
pela conjugação de gestual e expressão facial bem desenhados, exe-
cutados por Marlon Brando e por Eva Marie Saint e capturados com
precisão pela câmera, serve ao trabalho de edição com a mesma efi-
cácia que o som de uma chaminé apitando ou o recorte da imagem
dessa chaminé. O gestual e a expressão de Edie e Terry se valem,
assim, de um registro amplificado quase que ao exagero, recuperando
uma expressão mais identificada com a tradição da pantomima, que
foi hegemônica no teatro dramático antes da instituição do Método de
interpretação realista – assim como no cinema mudo, sendo largamen-
te utilizada pelo cinema expressionista.
sumário 151
cunhou, para o cinema nos EUA, um ideal a ser buscado pelo exercício
de interpretação. Em outras palavras, o ator deveria interpretar de modo
a tornar invisível o seu esforço de representação, agindo diante das câ-
meras como se fosse a si mesmo, em sua vida cotidiana.69
sumário 152
É evidente que o encaminhamento do trabalho na cena se deu
de acordo com as convenções do Método. Os planos de Terry falan-
do mostram as características de um diálogo realista em desenvolvi-
mento: sua máscara facial está neutralizada; os olhares se desviam
durante a fala, como se enfrentasse um assunto difícil; a respiração
se altera de acordo com o tensionamento do diálogo; a fala dos ato-
res envolvidos na cena é entrecortada, uma sobrepondo-se à outra
como no fluxo de uma conversa da “vida real”, dando a impressão
de não estar seguindo um roteiro pré-definido, mas agindo de forma
“natural”; por fim, a famosa postura física “relaxada” de Brando, se
movimentando excessivamente através de tiques e reações enquanto
fala, como se estivesse em uma situação cotidiana. Porém, o resul-
tado expressivo ao qual os atores chegam no auge da cena tem um
caráter ampliado que condiz muito mais com um filme mudo dos
anos 1920 do que com uma cena da Hollywood dos anos 1950 (ou
do Group Theatre, ou do Teatro de Arte de Moscou...).
sumário 153
em direção à interpretação invisível, nos convidando a ir além
da expressão exterior, como se vozes estivessem nos levando
para dentro das regiões íntimas e revelando os traços “naturais”
dos indivíduos. Ironicamente, porém, quando os filmes falados
queriam enfatizar a habilidade de performance, às vezes faziam
reversões estratégicas para o silêncio melodramático: os atores
então interpretavam personagens mudos (...) ou empregavam o
Método, que sempre suspeitou de palavras aleatórias.70
sumário 154
produção hollywoodiano, essa conquista vai de encontro ao sentido de
“laborização” que Michael Denning apresenta como marca do efeito dos
anos 1930 na arte dos EUA. Afinal, o sentido primeiro e mais imediato
do termo “laborizar” é justamente criar uma classe de profissionais, e
instruir esses trabalhadores sobre suas especificidades enquanto pro-
fissionais, assim como sobre as especificidades de seu ofício, gerando
consequências para a dinâmica das relações de produção e para a ima-
gem de determinado setor no conjunto da sociedade.
sumário 155
ENTRE A CONSCIÊNCIA
E A EMOÇÃO: O MÉTODO COMO
UM CAMPO DE DISPUTA
sumário 156
Essa ideia do Método como uma linguagem comum revela a
compreensão da técnica como um conjunto de práticas e ferramentas
que possibilitam ao ator dramático construir a sua expressão de forma
mais objetiva, de acordo com as necessidades e exigências de cada
trabalho. Se, por exemplo, a dramaturgia tem à sua disposição a teoria
dos gêneros literários ou as convenções para a divisão de um texto em
atos e cenas, ou se a arte da encenação baseia-se em um estudo da
ocupação do espaço a partir da ideia de linhas retas imaginárias cuja
consideração garante um bom uso do palco, o trabalho de interpreta-
ção também necessitaria de uma técnica básica capaz de nomear e ca-
tegorizar as partes que compõem, em seu conjunto, o processo dessa
forma de expressão. Em outras palavras, um conjunto de ferramentas
que auxiliem o intérprete a subdividir as etapas de seu processo de cria-
ção e dominar a mecânica de seu instrumento expressivo – corpo e voz
–, para que ele possa usar esse instrumento a seu favor, construindo de
forma sempre consciente a aparência, em seu corpo, das emoções e
de outros estados interiores, e repeti-los a cada apresentação da forma
mais adequada para a sua comunicação com o público.
sumário 157
a esse referencial técnico facilita aos intérpretes a repetição, noite após
noite, das mesmas cenas, com seu gestual, entonações e expressões
emotivas pré-marcadas, em uma rotina de temporadas que às vezes se
estendiam por seis ou sete apresentações ao longo da semana, sen-
do o resultado de processos de ensaios que duravam, quando muito,
um mês. Ou seja: para uma arte produzida em ritmo de mercado, são
necessários profissionais técnicos altamente apropriados de seu ofício.
sumário 158
Se os textos de Tchekhov, na esteira da expressão de outros dra-
maturgos contemporâneos como Strindberg ou Ibsen (esse último tam-
bém encenado por Stanislavski) apresentavam uma tentativa de explora-
ção das contradições da vida interior do indivíduo burguês, quebrando a
lógica objetiva do desenvolvimento dramático por meio da expressão da
subjetividade, autores como o também russo Máxim Gorki ou o alemão
Gerhart Hauptmann introduziram em seu trabalho personagens que,
convencionalmente, estavam de fora do alcance do repertório dramá-
tico: operários, trabalhadores informais, desempregados e sem tetos,
a chamada “ralé” (na expressão que intitula um dos dramas de Gorki
montado por Stanislavski em 1901). A invasão de personagens oriun-
dos das classes mais baixas da sociedade como protagonistas da cena
dramática, espaço de representação por excelência do cotidiano da vida
burguesa, provoca uma necessidade de revisão da técnica de interpre-
tação do ator treinado para representar nesse gênero de encenações.
sumário 159
No que toca à interpretação, o ofício dos atores dos dramas
burgueses do século XIX baseava-se em um conjunto cifrado de
posturas e expressões físicas, registrado em manuais de atuação
que compunham, em parte, a tradição conhecida como pantomima.
A pantomima – cuja origem remonta à arte dos mímicos dos teatros
de feira, mas que no século XIX passou a ser identificada como a
expressão do ator dramático quando seu repertório técnico foi absor-
vido pelos manuais de atuação da época – baseia-se, como dito na
sessão anterior, em um entendimento pré-determinado da expressão
humana. Segundo o pensamento que fundamentava a técnica, as
emoções e estados de alma do ser humano são facilmente classificá-
veis e reproduzíveis através de posturas e expressões faciais comuns
(conforme foi exemplificado nas imagens 32 e 33). Essa compreen-
são baseia-se em uma concepção universal e idealista do comporta-
mento, não levando em conta as especificidades capazes de orientar
e formar, por assim dizer, o caráter dos indivíduos. Essa ideia univer-
salista fundamentava a expressão do drama burguês como forma
cênica que pretendia dar conta da totalidade da vida através de um
mesmo ponto de vista comum e restrito, entre atores e plateia, sobre
esse cotidiano: a concepção burguesa de sociedade, expressa na
repetição dos cenários dos dramas – quartos ou salas de casa de
famílias – e de seus personagens e conflitos principais – pais e filhos,
noivos e jovens casados à volta das preocupações que compunham
a organização da vida das famílias da média burguesia europeia.
sumário 160
Ao tentar descrever a mudança que o sistema de interpretação
realista trouxe para o trabalho do ator, principalmente no cinema, Ja-
mes Naremore estabelece a ideia de passagem de um conceito de
interpretação “retórica” para uma interpretação mais “expressiva”.73
Por interpretação retórica, Naremore identifica o trabalho de ator ba-
seado em uma representação exteriorizada, cujo foco maior estava
na própria execução, no sentido de garantir sua reprodução imediata
através de um código gestual pré-determinado e facilmente apreen-
dido. Por assim dizer, uma “interpretação semiótica”, no sentido de
que baseava-se na repetição de posturas pré-definidas funcionando
como símbolos gestuais que, por si próprios, independente dos con-
textos específicos de cada peça ou personagem, já trariam um sig-
nificado preciso para a expressão de sentimentos como tristeza, dor,
angústia, alegria, paixão e assim por diante. A ideia de “interpretação
expressiva”, por outro lado, corresponde a um trabalho de ator que
se baseia na expressão, por meio do comportamento físico-gestual,
das especificidades subjetivas e objetivas que formam o conjunto
de situações e conflitos inerentes ao universo de cada personagem
– considerando tanto seu histórico de vida quanto sua posição so-
cial – de modo a expressar com mais veracidade o resultado dessas
condições determinantes nas ações do indivíduo representado.
73 NAREMORE, 1988.
sumário 161
para o desenvolvimento da peça como um todo, em todo o seu com-
plexo de relações e interações – logo, servindo sempre à dramaturgia.
sumário 162
comum, e partindo da intenção de abranger os diversos pontos de
vista que constituem esse espaço.
75 Naremore comenta também sobre essa dialética na relação entre a tradição de inter-
pretação realista (ou naturalista, como ficou conhecida) e outros estilos retóricos ou
semióticos, comprometidos com uma visão mais diretamente política de teatro: “Por um
lado, como Brecht e seus sucessores apontaram, a representação naturalista restringe
as possibilidades instrumentais da performance; ao esconder o fato de que os atores
produzem signos, ela oculta o trabalho da ideologia. Por outro lado, como Brecht reco-
nheceu também, certos tipos de expressão naturalista são importantes para um teatro
engajado, ajudando a livrar a interpretação de afetações estilizadas e pretensamente
eruditas” NAREMORE, 1988, pág. 49 (em tradução livre).
sumário 163
conta do histórico do uso da técnica no teatro e posteriormente no cinema,
ao longo do século XX – principalmente nos EUA.
76 Em A Criação do Papel, o terceiro de seus livros, ele diz: “(...) emprego a palavra ultrana-
turalístico para definir o estado de nossas naturezas espiritual e física, que nós considera-
mos inteiramente natural e normal, e no qual acreditamos sinceramente, organicamente.
Só quando estamos nesse estado é que nossa fonte espiritual abre-se completamente, e
emanações quase imperceptíveis desses mananciais alcançam a superfície: insinuações,
nuanças, o aroma daquele sentimento verdadeiro, orgânico, criativo, que é tão tímido e
tão fácil de assustar”. STANISLAVSKI, 2002, pg. 280.
sumário 164
meio para chegar a um fim, podemos aceitá-lo. (...) nem toda espécie
de verdade pode transferir-se ao palco. O que lá usamos é a verdade,
transformada em um equivalente poético.”77 Ou seja, a compreensão de
“realismo” para Stanislavski já era, nesse momento, dependente de uma
capacidade do artista criador em selecionar o que, da realidade, o inte-
ressava e, a partir dessa seleção, editar sua expressão.
sumário 165
A ideia que fundamentava o sistema de Stanislavski no início
de sua formulação era, em primeiro lugar, a busca por atingir a ver-
dade artística subconsciente através de uma técnica consciente. Seu
objetivo era “a estimulação natural da criatividade da natureza or-
gânica e de sua subconsciência”. Essa ideia deveria orientar todo
o processo de construção da personagem e a obtenção de sua ex-
pressão cênica final. Para conquistar essa capacidade de afetação
entre a fisicalidade e a emotividade, Stanislavski defendia o que ele
chamava de “princípio de atividade”, ou seja, o ator deveria estar
constantemente em prática de experimentação e treino para manter
ativa a sua capacidade de estímulo da vida interior. Finalmente, ao
executar o trabalho de construção de uma personagem específica o
ator deveria se ocupar do estudo e da compreensão do que ele cha-
mava de “circunstâncias dadas”, ou seja, as situações específicas
que atuam como condicionantes do comportamento da personagem
enquanto parte de um todo formado pelo universo da peça – coisas
como sua origem social, tempo histórico, idade, características físi-
cas, ocupação, ideias sobre a vida, mas também as pessoas que
estão ao seu redor, as ações que acontecem ao longo da peça, e
etc. Caberia ao ator, assim, exercitar a sua imaginação a ponto de
ser capaz de imaginar-se a si mesmo nas condições específicas que
produzem a personagem que representa, de modo a compreender o
resultado dessas condições nas atitudes da personagem.
sumário 166
Nessa etapa entra o famoso “SE mágico”. Para Stanislavski,
o exercício da imaginação é tão essencial para um ator quanto a ati-
vidade constante de seu corpo. A imaginação, assim compreendida,
seria uma espécie de músculo como qualquer outro de sua estrutura
física, e como tal deve ser constantemente exercitado. O “se” é a
pergunta que o ator deve fazer para encontrar, como resposta, a me-
lhor forma de agir em cena: “Se eu fosse essa personagem, vivendo
nessas condições específicas, como eu agiria?”
78 A tradução desse conceito em português tem sido atualmente revista por estudiosos da
obra de Stanislavski, que sugerem o termo “supertarefa” (como podemos ver em VÁS-
SINA, Elena e LABAKI, Aimar, Stanislavski, Vida, Obra e Sistema, Rio de Janeiro, Funarte,
2015). Porém, para facilitar as citações, continuarei usando “superobjetivo” conforme a
corrente edição brasileira das obras do encenador russo, que se baseia na mesma tradu-
ção em inglês que foi difundida nos EUA.
79 Em A Construção da Personagem, Stanislavski define o que chama de “subtexto”: “É a
expressão manifesta, intimamente sentida de um ser humano em um papel, que flui inin-
terruptamente sob as palavras do texto, dando-lhes vida e uma base para que existam.
O subtexto é uma teia de incontáveis, variados padrões interiores, dentro de uma peça
e de um papel, tecida com ses mágicos, com circunstâncias dadas, com toda sorte de
imaginações, movimentos interiores, objetos de atenção, verdades maiores e menores,
a crença nelas, adaptações, ajustes e outros elementos semelhantes. É o subtexto que
nos faz dizer as palavras que dizemos numa peça.” E mais para diante: “a palavra falada,
no texto de uma peça, não vale por si mesma, porém adquire valor pelo conteúdo do
subtexto e daquilo que ele contém.”. STANISLAVSKI, 2001, págs. 163-165.
sumário 167
a partitura de tempo-ritmo utilizada pelo ator para a expressão física
dos gestos e das falas da personagem em cena.
sumário 168
Portanto, o objetivo a ser alcançado resume-se nisto: respon-
da cada ator, honestamente, à pergunta sobre qual ação física
executaria, como agiria (não sentiria; a esta altura, pelo amor de
Deus, nada de sentimento deve entrar em jogo) nas circunstân-
cias determinadas criadas pelo dramaturgo, pelo diretor da peça,
pelo cenógrafo, pelo próprio ator, através da sua imaginação, do
técnico de luz, e assim por diante. Quando essas ações físicas
estiverem claramente definidas, tudo o que resta a fazer, para o
ator, é executá-las. (Observem que eu digo executar as ações
físicas, e não senti-las, porque se elas forem feitas com correção
os sentimentos serão gerados espontaneamente).80
sumário 169
postumamente em 1961). Assim, o conjunto dessas obras – às vezes
contraditórias entre si – apresentam conceitos e ideias que não esta-
vam amadurecidos, por exemplo, nos anos iniciais de seu trabalho,
na passagem do século XIX para o XX, época na qual alguns de seus
colaboradores mais famosos entraram em contato com suas pes-
quisas no Teatro de Arte de Moscou e, depois da Revolução Russa
de 1917, disseminaram as propostas iniciais do sistema pelo mundo
ocidental, conforme sua própria compreensão da técnica.
sumário 170
Nos EUA o processo de transformação das convenções da arte
do intérprete deu-se através de um percurso que envolve, de certa
forma, o teatro e o cinema em uma mesma linha do tempo, reprodu-
zindo um ambiente de relações e trocas, colaborações e disputas que
simboliza o histórico da convivência entre as duas formas de arte no
país, ao longo do século XX. Se a montagem do texto As Três Irmãs,
de Tchekhov, em 1901, é considerada o marco inicial das pesquisas de
Stanislavski com o sistema de interpretação realista, foi só na década
de 1920 que a técnica chegou de fato aos EUA. Em 1922 o Teatro de
Arte de Moscou fez uma excursão em Nova Iorque com algumas pe-
ças de seu repertório – dentre elas, os textos de Tchekhov. O impacto
causado pela nova forma de representação foi imediato. Para fazer a
ponte entre seu trabalho e a classe artística estadunidense, Stanislavs-
ki convidou o ator Richard Boleslavski, antigo colaborador, para acom-
panhar a turnê como intérprete e apresentar, ao seu lado, uma série de
palestras sobre o seu sistema. Boleslavski, depois de imigrar da Rússia
por conta da revolução de 1917 e de ter rodado por alguns países da
Europa, havia chegado aos EUA já com experiência no cinema, tendo
trabalhado em filmes do cineasta dinamarquês Carl Theodore Dreyer.
sumário 171
É interessante perceber que, assim como nas obras de Stanis-
lavski, a abordagem do trabalho de interpretação não se dá na forma
de uma escrita de caráter mais técnico, como um manual, mas atra-
vés de textos que, se utilizando da linguagem ficcional do romance ou
do diálogo livre (como na tradição dos escritos de Platão) permitem
uma reflexão mais aberta sobre os assuntos abordados, menos en-
gessada pelas exigências de uma literatura técnica. Isso evidencia,
mais uma vez, o caráter do sistema como uma pesquisa em anda-
mento, aberta a experimentações e desenvolvimentos – assim como
contradições. No caso de Boleslavski, seu principal objetivo com a
fundação do American Laboratory Theatre era se utilizar do sistema
elaborado pelo mestre russo para encontrar uma forma de expressão
própria do ator estadunidense. Em outras palavras, adaptar o sis-
tema para o “temperamento” e modo de comportamentos próprios
da sociabilidade dos EUA, que seria, segundo esse pensamento, de
caráter mais pragmático e objetivo do que a expressão cultural euro-
peia e, especificamente russa, idealmente mais propensa à reflexão
e à expressão da subjetividade. Se o “novo mundo” era fundamen-
tado em uma concepção mais pragmática de sociabilidade – desde
a cosmovisão puritana da vida regrada pelo ritmo do trabalho até
o desenvolvimento contemporâneo frenético da economia industrial
capitalista nas primeiras décadas do século XX – as artes performa-
tivas deveriam encontrar uma técnica capaz de responder com mais
veracidade e realismo a essa concepção de vida.81
sumário 172
Ou seja, mais que uma técnica exterior à qual o ator deveria se adap-
tar, o sistema era um conjunto de prática e pensamento que levaria o
ator a compreender melhor sua própria expressão pessoal como pro-
duto do complexo cultural do qual faz parte, e não apenas da sua his-
tória individual – por mais que, por conta do recorte fundamentalmente
dramático da técnica, algumas abordagens acabe privilegiando mais
a vida interior do que outros aspectos na composição da persona-
gem. Se essa tendência mais subjetivista construiu a fama do trabalho
de Lee Strassberg, a concepção da técnica como um instrumento de
compreensão do comportamento social também atravessou a histó-
ria do Método nos EUA. No livro Técnica da Representação Teatral,
escrito já na forma de um manual de exercícios em 1988 por Stella
Adler, uma das sessões é dedicada a traçar uma espécie de breve
descrição do comportamento geral de cada classe social, levando
em consideração sua formação e expressão ao longo da tradição ar-
tística ocidental, como forma de material de trabalho para os atores
comporem seus personagens. No caso, o Método continua a ser uma
técnica preocupada com um trabalho de construção psicológica da
personagem, por parte do intérprete, mas revela-se capaz de tecer a
ideia de uma “psicologia social” (nas palavras de Harold Clurman).82
sumário 173
deu de forma mais contundente ainda no espaço da sala de ensaio e
na prática de ensino, nos anos iniciais do American Laboratory Theatre,
onde alguns artistas que se reuniriam em 1931 para fundar o Group
Theatre iniciaram sua formação profissional no teatro, dentre eles os
próprios Lee Strasberg, Stella Adler e Harold Clurman.
sumário 174
Foi no Group Theatre que, pela primeira vez, o projeto de Boles-
lavski de forjar um modo de representação para o ator estadunidense
ganhou forma e começou a tradição daquilo que foi sendo chamado,
nos EUA, de “Método de interpretação realista”. O início das atividades
do grupo dava conta dessa preocupação. Depois de levantar o dinhei-
ro para a produção de suas primeiras peças, sua equipe de artistas se
refugiou em uma fazenda no interior do estado de Nova Iorque, onde
mergulharam em uma rotina cotidiana de experimentação e prática
nas técnicas do sistema Stanislavskiano – já orientada por Lee Strass-
berg, que assumiu a coordenação dos atores – conforme aprendido
no American Laboratory Theatre. Assim, Strassberg foi o responsável
por estabelecer e unificar a linguagem de interpretação do grupo. Ha-
rold Clurman assumiu a direção artística e o trabalho de encenação e
Cherryl Crawford, a terceira fundadora da companhia, era produtora.
Stella Adler, esposa de Clurman, era integrante do elenco junto com
seu irmão, Luther Adler, ambos oriundos de uma tradicional família de
atores, famosos na comunidade artística judia de Nova Iorque.
sumário 175
mecanizada no ambiente de criação dos sets de filmagem foi o que
inspirou a fundação do Actor´s Studio em 1947, pelos ex-membros do
Group Elia Kazan, o ator Robert Lewis e a produtora Cherryl Crawford
– oferecendo para a indústria, com isso, uma reserva de mão de obra
tecnicamente especializada. Como resultado, Hollywood conheceu uma
nova geração de intérpretes que trouxeram para os filmes o mesmo im-
pulso de novidade na interpretação que marcou o teatro dos anos 1930.
E os filmes de Elia Kazan serviram de grande vitrine para a nova técnica.
Nesse momento, porém, o Método já tinha seu histórico estabelecido
sobre formas diversas de compreensão e aplicação do conjunto de prá-
ticas que formavam sua tradição. Práticas com focos tão diversos quan-
to o entendimento de seus professores sobre a técnica. E essas contra-
dições remontam à própria origem do Método, ainda no Group Theatre.
sumário 176
opinião, o Método operaria como uma técnica para “treinar” atores a
reagir de formas pré-determinadas, seguindo estímulos específicos –
como ratos numa caixa de Skinner – ao invés de pensar independen-
temente e atingirem seus objetivos cênicos por conta própria. Assim, a
proposta da receita da junção entre Stanislavski e Freud se justifica por
conta do enfoque cada vez mais comprometido com a exploração da
interioridade dos intérpretes que foi se assumindo como a visão hege-
mônica do Método, em decorrência do sucesso que a técnica atingiu
como meio de trabalho no cinema Hollywoodiano.83
83 “Já em meados dos anos 1930, divergências e discussões começam a surgir com relação
ao “método” ensinado por Lee Strasberg nos Estados Unidos, principalmente quanto ao
aspecto “behaviorista” e ao caráter de adestramento que tinham ali se transformado na
“única verdade” do sistema de Stanislavski.” CAVALIERI e VÁSSINA, 2011, pg. 212.
84 ZARETSKY, 1997.
sumário 177
plano (ou para debaixo do tapete). Postura que, no decorrer de sua
divulgação e incorporação principalmente nos EUA, foi também coop-
tada e aproveitada em nome de um projeto de educação ideológica do
comportamento. Como explica Zaretsky:
O alcance do significado da vida pessoal, para além e contra
a ênfase do século XIX na família [burguesa], foi expresso em
uma nova forma de cultura – a cultura de massas. Sua ca-
racterística principal era uma aparente capacidade inclusiva.
Refletindo uma característica transformadora do capitalismo
corporativo, a nova forma de cultura idealizou a liberdade indi-
vidual, o consumo de massas e a cooperação. “Dime novels”,
parques de diversão, filmes, o esporte, tudo refletia as tradi-
ções imigrantes e da classe trabalhadora com importantes
elementos democratizantes, mas isso tudo também refletiu a
elaboração de um novo imaginário social, que agia na base
do desejo por uma solução ideal tanto para os problemas pes-
soais quanto para os conflitos sociais: a reconciliação harmo-
niosa desses conflitos em uma esfera imaginária.85
sumário 178
responder a uma transformação que entrava, no teatro, pela porta da
dramaturgia, mas que noticiava, em uma escala maior, um redimen-
sionamento da relação entre vida individual e processo social (através
de autores como Ibsen, Strindberg, Tcheckhov e Gorki). É importante
considerar que a obra fundadora da teoria psicanalítica, A Interpreta-
ção dos Sonhos, escrita por Freud, foi publicada no mesmo ano que
estreou a montagem do TAM para As Três Irmãs: o ano de 1900. Em
relação às pesquisas de Stanislavski com o sistema, seu ambiente de
trabalho já refletia também os efeitos de todas essas discussões, atra-
vés das abordagens distintas que, imediatamente começaram a surgir
sobre as ideias iniciais do diretor russo – o que faz com que os confli-
tos de abordagem do Método nos EUA nas décadas seguintes sejam
ecos de um debate que se iniciou no próprio ninho da técnica. Não por
acaso, um foco mais psicológico do trabalho do ator tem origem nes-
sas disputas. Nossos já conhecidos Ouspenskaya e Boleslavski, os
artistas responsáveis pela maior divulgação do sistema nos EUA, es-
tavam próximos das ideias de Leopold Sulerzhitski, colaborador direto
de Stanislavski na fundação do Estúdio do Teatro de Arte de Moscou,
ainda nos primeiros anos do século XX.
87 No início, a resistência se dava por parte dos atores mais antigos da companhia, figuras trei-
nadas e acostumadas com uma prática mais convencional, e que consideravam excessivas
as preocupações de Stanislavski com a busca de uma expressão mais “realista” do ator em
cena, e a formação de uma nova compreensão do trabalho do intérprete. Esse fato nos faz
reafirmar a necessidade de sempre historicizar todo e qualquer assunto ou técnica, quan-
do falamos em práticas de criação artística. Pois, como estamos exaustivamente tentando
mostrar aqui, mesmo as técnicas de representação derivadas do trabalho de Stanislavski,
já foram também, a seu tempo, uma ruptura com formas mais conservadoras de expressão.
sumário 179
exemplo, que Meyerhold iniciou as inquietações que o levaram, após se
desligar do TAM, a desenvolver suas pesquisas com técnicas como a
biomecânica, na busca de uma expressão mais fortemente exteriorizada
do intérprete, partindo do domínio de seu equipamento físico-sensório,
em uma compreensão quase que atlética do trabalho do ator. Meyerhold
se envolveu na defesa cada vez mais radical de um teatro de representa-
ção simbólica, com inspiração na commedia dell´arte, em detrimento da
pesquisa realista. Foi baseado nesse entendimento que as artes cênicas
e performáticas continuaram a se desenvolver na Rússia pós-revolução,
através das encenações de Meyerhold, sua parceria com Maiakovski, e
no trabalho do próprio Teatro de Arte de Moscou, então sob a direção
de Eugene Vakhtangov, outro ex-aluno de Stanislavski – assim como no
cinema de realizadores como Eisenstein e Pudovkin – mas, foi também
por conta do comprometimento de sua visão de teatro em relação com
a política que Meyerhold foi executado por Stalin em 1940.
88 “Stanislavsky respondeu aos sinais dos tempos com extraordinária consistência e cora-
gem. Ele engendrou a cooperação de artistas de vanguarda (Gordon Craig, Benoit) e por
si próprio também desenhou cenários surrealistas e visionários. Em colaboração com Su-
lerzhitski, discípulo de Tolstói (que injetou vários elementos do tolstoísmo nas ideias de
Stanislavski), e com Meyerhold, que havia cortado suas relações com o Teatro de Arte de
Moscou alguns anos antes por causa de sua aversão ao naturalismo, Stanislavski fundou
vários estúdios experimentais. Nessa época, Stanislavski também sofreu influências do mis-
ticismo indiano, então em voga na Rússia, com efeitos importantes em sua metodologia de
atuação. (...) Interpretar, ele então acreditava, não era apenas uma imitação da realidade,
mas uma penetração na esfera do subconsciente, o que se tornava possível apenas em um
ambiente autêntico, em uma situação concreta.” RUEHLE, 1959, págs. 12 e 13.
sumário 180
a uma tendência crescente de mergulho na interioridade do intérprete.89
É talvez esse estágio das pesquisas de Stanislavski com o sistema que
influenciou Boleslavski e, por consequência, seus primeiros discípulos
nos EUA. Essa tendência, de forma um pouco mais radical e polêmica,
é a base que fundamenta o trabalho de Lee Strassberg.
89 “Todo o trabalho que executamos em nós mesmos e em nossos papeis visa a preparar o
terreno para dar início e crescimento a paixões vivas e à inspiração, que jaz adormecida
no reino do superconsciente. Há quem acredite que a inspiração vem espontaneamente,
independente do que faça o ator, e que ela mesmo fornece o seu próprio estado interior
criativo. Mas a inspiração é uma criatura caprichosa. Só consente em aparecer dentro de
circunstâncias preparadas; e qualquer desvio delas a assusta e faz esconder-se, refugian-
do-se nos recessos do superconsciente.” STANISLAVSKI, 2002, pg. 105.
90 Sobre o conceito de substituição e o uso da memória emotiva por Strasberg, conferir em
GORDON, 2010, pág. 53.
sumário 181
Um famoso exercício de Strassberg ilustra bem essa concepção
– assim como a tendência algo “psicoterapêutica” reconhecida por
Clurman no trabalho do diretor. Conhecido como “quarto da infância”,
trata-se de um laboratório onde o intérprete realiza um mergulho nas
suas memórias mais antigas através de uma atualização do cômo-
do onde passou sua infância. Via de regra, a operação era sempre
a mesma: Strassberg propunha um ambiente intimista, geralmente
com poucas luzes e silêncio absoluto. Então, depois de uma etapa de
concentração e relaxamento físico e sensório, o intérprete assumia a
posição central no palco ou na sala de ensaio e, com objetos trazidos
previamente de casa, montava no espaço uma réplica do seu quarto
da infância tal como guarda em sua memória, e tal como se lembra
também, se ocupa em reproduzir ações e relações que constituíam
o cotidiano de sua infância no ambiente imaginado. O exercício não
tinha a princípio uma duração pré-determinada, e o tempo de sua exe-
cução se estendia tanto quanto o intérprete continuasse encontrando
e expressando materiais novos e a prática continuasse ativa. Quem
determinava a duração, assim como conduzia o intérprete através de
uma série de perguntas e respostas como estímulo para a reação da
figura em cena, era o preparador de elenco que, oculto nas sombras
da sala de ensaio, servia como uma espécie de farol para o intérprete
à deriva no oceano tempestuoso de suas memórias indomadas.91
91 Mais sobre a importância dessa pesquisa de Strassberg com o que passou a ser cha-
mado de “private moment”, ou “momento privado”, no trabalho do ator, pode ser lido em
GARFIELD, David, A Player´s Place – The story of the Actor´s Studio,1980, Nova Iorque:
Macmillan Publishing.
sumário 182
durante sua passagem por Paris em 1934 ela procurou Stanislavski
em pessoa para que ele pudesse ajudá-la. Stella Adler dizia que, por
conta do sistema, havia se transformado em uma má atriz que “não
sabia mais atuar”. Ao que um já idoso e doente Stanislavski (conforme
ele escreveu em seu diário) convidou-a para realizar uma semana de
treinamento intensivo em seu apartamento, nem que fosse para “re-
cuperar a reputação” de seu nome e seu trabalho perante o mundo.92
92 Essa passagem é descrita por Stanislavski em seu livro Minha Vida na Arte, espécie de
autobiografia do diretor.
93 “(…) é preciso fazer uma distinção entre o [Actor´s] Studio e o Group Theatre (...) Em
anos posteriores Strassberg tirou a ênfase da base política do Método e, como muitos
‘Stanislavskianos’ sempre desvalorizou performances com registros alternativos, mais
propensos ao cômico, ou ao modernista (...). Ainda, sua abordagem quase que analítica
em direção à intimidade dos atores era diferente do foco que o Group Theatre colocava
no conjunto e na relação entre os atores enquanto indivíduos e a sociedade como um
todo” NAREMORE, 1988, pg. 199. Podemos assim reafirmar a tendência que o Group,
enquanto coletivo, tinha de abordar o Método mais como um estudo de uma “psicologia
social” (relembrando o termo de Harold Clurman), do que uma exploração da psicologia
individual das personagens e dos intérpretes.
sumário 183
1940, foi professora no Dramatic Workshop, escola fundada por Erwin
Piscator, então emigrado nos EUA, e ligada à New School for Social
Research, uma instituição de ensino superior privada que reunia, à
época, professores comprometidos com uma visão mais progressis-
ta de educação e sociedade (não podemos esquecer que Piscator foi
o diretor que lançou as bases de fundação da ideia de um teatro épi-
co na Alemanha dos anos 1920.) Posteriormente, Stella Adler fundou
a sua própria escola de formação de atores, a Stella Adler Studio of
Acting, em funcionamento até hoje em Nova Iorque. Porém, foi ainda
no Dramatic Workshop que ela se tornou “mestra” de um jovem ator
que se tornaria, a partir do final da década de 1940, uma das figuras
mais importantes para a divulgação do Método: Marlon Brando.
sumário 184
Assim como um facilitador para que o intérprete pudesse encontrar,
com mais rapidez, o melhor momento de expressão a ser capturado
em detalhes pela câmera e aproveitado pelo diretor na montagem.94
sumário 185
Brown chamou de ‘a aposentadoria das categorias políticas que
formaram o pensamento e a ação liberal nos anos 1930’95
sumário 186
e escondidos na memória mais profunda, mantendo inacessíveis tam-
bém as respostas emocionais mais intensas, logo, mais desejáveis.
sumário 187
Sob os efeitos da identificação e da catarse, estamos no âmbito
da expressão e manipulação de estados emotivos em abstrato, desco-
nectados, a princípio, das condicionantes objetivas de cada persona-
gem em cada situação. Assim, se a figura de um intérprete torna-se tão
verdadeira, magnética e, por assim dizer, mais “humana” do que outras
diante dos olhos do espectador, o trabalho do ator passa a oferecer
uma capacidade de identificação idealmente absoluta com o público,
seja em qual personagem e em qual situação for. E, de certa forma, a
obra perde o controle sobre esse processo de identificação. Ou, por
outro lado – e se entendemos que o mundo da subjetividade também
é regido por condicionantes históricas e, por assim dizer, objetivas – a
obra passa então a operar esse processo de forma mais perversa e au-
toritária, algo manipuladora, conduzindo o público, de maneira quase
que irracional, a identificar-se com quem quer que seja sem que se dê
conta do processo que está experienciando (assim como o preparador
de elenco é capaz de fazer ao conduzir o intérprete em seu processo
de pesquisa, manipulando, com suas orientações e sem a resistência
desse último, a expressão de sua emotividade e vida subjetiva).
96 “Para um alarmante número de jovens atores, Kowalski era Brando e Brando era incrível!
O fato de que Kowalski era largamente um crápula que assustava mais do que fascinava o
próprio autor – a peça pretendia mostrar que, caso não fôssemos cuidadosos, tais crápu-
las poderiam vir a dominar a nossa sociedade – esse fato escapou à horda de imitadores
de Brando. Eles colocaram em uma mesma escala o cara durão, o aspecto delinquente
da caracterização, com uma negligência, uma rebeldia, uma “liberdade” e um senso de
força bruta que a performance parecia a eles simbolizar. Através disso, eles achavam
combinado um ideal inconsciente: forte poder criativo na atuação com uma revolta cega
contra todas as formas de conformidade na vida e no palco.” CLURMAN, 1974, pg. 79.
sumário 188
o magnetismo que o trabalho do ator nos exerce é tão forte que, ao
fim, todos desejaríamos de certa forma estar, como Stanley, subju-
gando a arrogância impertinente e elitista de Blanche através da cena
do estupro; ou ser, como Blanche, dominada nos braços de Marlon
Brando. Ou, dialética e paradoxalmente, ocupando ambos os lugares
da relação de força que se estabelece em cena – e, o que é pior, in-
conscientes de como fomos envolvidos nesse processo de identifica-
ção que nos coloca em tal posição. Logo, incapazes de nos distanciar
(tomando de empréstimo o termo brechtiano) da situação encenada
pelo drama e, com isso, reconhecer os limites e contradições dessa si-
tuação, adquirindo um novo grau de consciência sobre ela. Em outras
palavras, esse uso irrestrito do poder de identificação impediria não só
a emancipação do intérprete enquanto profissional, mas também do
público – e, no limite, essa emancipação em relação ao domínio que
a obra exerce leva à esfera de uma emancipação de ordem política.
sumário 189
Recuperando, porém, a citação de Brecht sobre as conquistas
do trabalho de Stanislavski em relação à simpatia provocada pelo des-
tino de personagens de origem proletária, a identificação possível do
público com Stanley é a vitória do protagonismo de um imigrante po-
lonês trabalhador de uma fábrica em Nova Orleans sobre uma mulher
oriunda da aristocracia rural branca do sul estadunidense (e se torna
essencial considerar aqui que o acento britânico da interpretação de
Jessica Tandy e Vivien Leigh deixa essa expressão aristocrática ainda
mais evidente). E Leigh, não devemos esquecer, estava marcada para
sempre no imaginário do púbco como Scarlet O´Hara, heroína do épico
sulista “E o Vento Levou...”, que foi um sucesso arrebatador de público
e crítica dez anos antes...97 A própria situação de falência de Blanche,
e sua dependência material da hospitalidade da irmã no cortiço onde
mora com o cunhado, já a coloca nessa relação “desprotegida”, tor-
nando-a presa fácil tanto para a manipulação de Stanley no seu jogo
de desmascarar a falsidade por trás de suas afetações, quanto para o
desejo de “desforra” de um público em relação às suas elites históricas.
sumário 190
Ainda que o Método tenha entrado de vez no cinema de Holly-
wood apenas na passagem dos anos 1940 para os 1950, a adoção da
fala através do som no início dos anos 1930 já revelou a capacidade
do cinema de ampliar a imagem que um país possuía de si próprio, ou
transmitia de si para o mundo. Enquanto a comunicação gestual cor-
rente no cinema mudo era baseada (como já foi mostrado através da
pantomima) na execução de um repertório físico pré-determinado que
facilitava a construção de estereótipos conhecidos, o som revelou para
as plateias mais distintas os mais diferentes sotaques e modos de falar
que compõem a diversidade da expressão verbal no país, revelando a
influência inequívoca do uso do idioma por ex-escravos negros e imi-
grantes europeus na constituição geral da língua falada nas ruas das
grandes cidades. Levando em consideração o tamanho e a complexi-
dade de um país como os EUA, podemos entender certo caráter demo-
crático que sempre foi conferido ao cinema por registrar a existência e
garantir a reprodução das mais diversas formas de expressão através
das novas estrelas de cinema que surgiram a partir dos anos 1930.98
98 Vale sempre ressaltar, no entanto, que essa representatividade não pode ser nunca
entendida de forma generalizada, sendo evidente o reconhecimento dos limites do ci-
nema hollywoodiano ao tentar abordar, de forma mais radical, os conflitos estruturantes
da organização social dos EUA. Afinal de contas, nem Stanley Kowalski nem Marlon
Brando são, por exemplo, negros, latinos ou asiáticos, o que nos faz pensar na política
de segregação racial que engrossa o caldo do cenário da luta de classes na socieda-
de estadunidense. Porém, discutir a abrangência do Método em relação à inserção e
consequente possibilidade de construção da identificação do público com persona-
gens de um espectro étnico-racial que fuja ao padrão branco europeu demandaria um
aprofundamento bem maior do que cabe, por ora, nos limites desse livro, ficando como
sugestão para uma continuidade dessa discussão, em um outro momento.
sumário 191
surgidas nessa década teve para estabelecer a adesão das massas
aos novos produtos da indústria cinematográfica – figuras como Ja-
mes Cagney ou John Garfield, com suas feições características e seu
modo de falar e agir mais colado com o cotidiano das classes trabalha-
doras. O mesmo papel que, nos anos 1950, facilitou a adesão do pú-
blico a atores como James Dean, Montgomery Clift ou Marlon Brando.
99 “Quando rejeitou a capa preta de Hamlet e o verso dramático pela jaqueta de couro e
o balbucio feroz de seus mais famosos personagens nas telas, Brando deixou para trás
uma tradição de mais de três séculos, em que um sério candidato pelo posto de “maior
ator vivo” era testado nos maiores papéis do repertório dramático. Ao escolher trabalhar
em Hollywood não apenas pelos grandes salários (motivo que arrastou atores para o
Oeste por décadas) mas também pelas oportunidades artísticas e impacto social dos
filmes, Brando fez mais do que qualquer outro ator para legitimar a atuação no cinema”.
JONES, 1986, pg. 168.
100 NAREMORE, 1988, pg. 205.
sumário 192
Um personagem que expressa, em sua trajetória, uma postura e um
anseio típicos de toda uma geração, tanto de espectadores quanto
de artistas, que tinham em comum a experiência de tentar viver na
contramão de uma cultura direcionada pelo lucro, pelo sucesso pes-
soal espontâneo e pela exigência de seguir as regras de um sistema
desigual, perverso e persecutório.101
sumário 193
devem, e geralmente não são realizadas só por você. Outros
artistas, os quais você escolheu, os quais você guia, irão te aju-
dar a solucionar os problemas que você não consegue. Mas
você deve saber o suficiente para apontar na direção precisa,
para ser capaz de fazer as perguntas certas. Você deve saber o
básico de cada ofício, o bastante para guiar e determinar – ou
seja, para dirigir – esse processo tão multifacetado.103
sumário 194
encontra desde o projeto de realização desse filme em particular, atra-
vés da cisão entre as posturas antagônicas dos artistas perante o Ma-
cartismo, pode também marcar a expressão e desenvolvimento técnico
de toda a geração de artistas na qual seus realizadores se inserem.
sumário 195
no ambiente de produção e filmagem (ainda, as filmagens de “Um
Bonde...” carregam consigo o histórico da relação entre seus artistas
desde a montagem teatral da obra na Broadway, que estreou quatro
anos antes da produção do filme). Porém, esse ambiente de relações
não é o mesmo no período entre a produção das duas obras.
sumário 196
sendo alvo do processo Macartista – discussão que pode, talvez,
estar sendo feita pelo próprio filme.
sumário 197
como um todo. Para isso, Kazan fazia a cada ator a seguin-
te pergunta: “O que você quer?” Essa pergunta, direcionada
diretamente ao personagem, deveria ser sempre respondida
através de uma frase simples, com um verbo de ação no infi-
nitivo, de modo a permitir que o intérprete responda de forma
concreta, evitando a fluidez dos humores ou das emoções.
Esse trabalho constituía um período de análise propriamente
dita dos movimentos que compunham a trajetória da persona-
gem, onde cada cena era decomposta em vários pedaços, ou
“batidas” (“beats”). Cada pedaço corresponde a um momento
do interesse e da ação imediata da personagem que, em seu
conjunto e sequência, formam a trajetória daquela figura em
cada cena, e no enredo como um todo;
sumário 198
• finalmente, caberia à equipe descobrir o “como” cada perso-
nagem age para atingir seus objetivos. Se as duas etapas an-
teriores (os objetivos de cada personagem e as circunstâncias
dadas nas quais eles agem) configuram, em sua relação, os
conflitos que montam e movimentam a estrutura dramática, é
nessa terceira etapa que os atores podem colocar em prática
esses conflitos, no momento de realização concreta da cena.
E essa realização não se dá de forma pré-determinada ou ime-
diata. Antes, depende de um trabalho de pesquisa da cena in
loco, e essa pesquisa é realizada através da dinâmica de impro-
visação sobre as situações da cena. É através desse trabalho,
realizado também no processo de gravação (que passa a ter um
caráter mais de pesquisa do que de reprodução) que a cena co-
meça a ganhar concretude, e que a colaboração do ator como
propositor de imagem e ação para o filme é sentida.
sumário 199
seu núcleo e através das quais ele define sua linha de ação. A ideia,
com essas cenas, é capturar uma trajetória no desenvolvimento de
Terry justamente por meio das relações que ele estabelece, e também
captar como essas relações revelam o seu percurso, de um capanga
manipulado por Charley sob as ordens de Friendly, para alguém que
entra em conflito com o sistema de relações no cais: primeiro, Terry
com Edie no diálogo que o casal estabelece na saída de reunião com
padre Barry na igreja, quando Terry começa a desenhar uma nova re-
lação através da qual ele pode redefinir sua postura perante os laços
que tinha com Jhonny Friendly e o ambiente de trabalho no cais; de-
pois, Terry com Charley na cena do táxi, no momento em que Charley,
a mando de Jhonny, tenta dissuadir Terry de depor na Comissão do
Crime – ameaçando-o com a morte, caso ele se negue a cooperar
– e que de certa forma configura um acerto de contas de Terry com
seu passado e suas velhas relações, através da exposição do conflito
com seu irmão; por fim, poderemos discutir a relação de Terry com o
Padre Barry, para compreender como o pároco se torna uma espécie
de condutor de Terry, aconselhando-o a agir de forma mais estratégica
para atingir seus objetivos – os de Terry e os do Padre que, percebe-
remos, talvez não sejam necessariamente os mesmos.
sumário 200
TERRY E EDIE
sumário 201
à possível vigilância de todos. Não por acaso, esse cenário vivo às
vezes se vale de outras figuras para interagir com o casal, como o
mendigo que os aborda para pedir dinheiro e reconhece que Terry
esteve presente no momento da morte de Joey Doyle, quase o de-
nunciando para Edie como cúmplice. Ainda, há um outro elemento
muito importante na constituição desse cenário: a presença da igreja
ao fundo da cena, o lugar de onde Terry e Edie fugiram na sequência
anterior, quando estavam na reunião promovida pelo padre Barry e
que foi interrompida pelos capangas de Friendly. A igreja se encontra
presente também na notícia da formação de Edie em um colégio de
freiras em Tarrytown, o que reafirma, de maneira indireta, a presença
e a influência de padre Barry. E o desenvolvimento futuro da relação
entre Terry e Edie, mediados pelo padre, só vem a confirmar essa in-
fluência como algo que, mesmo que se afirmando no filme mais para
frente, já se encontrava indicada desde antes.
105 Como nos informa Kenneth Hey no ensaio “Ambivalence as a theme in On the Waterfront
(1954): An interdisciplinary approach to film study”, 1979, American Quarterly, Vol. 31, nº
5, Special Issue: Film and American Studies, pags. 666-696.
sumário 202
Com todo esse ambiente armado, o diálogo de Terry e Edie
torna-se um ponto de conflito evidente. Sabemos que ele envolve a
irmã da vítima e alguém que esteve relacionado, indiretamente, com o
assassinato que abre o filme. Assim como sabemos da tensão envol-
vida nesse diálogo, já que Edie está lutando para trazer à luz os cul-
pados pelo crime e Terry está em franco debate com sua consciência.
Porém, é nesse momento que o interesse afetivo entre o casal começa
a se desenhar. Isso traz um outro ponto de consideração do uso do
plano americano. Mesmo que sendo uma cena romântica, ela não
segue o uso convencional da técnica de campo e contracampo, que
possibilita um enfoque dos enamorados por enquadramentos mais
fechados. Como o jogo entre as figuras está se desenvolvendo de
forma subtextual, não dita – já que as palavras propriamente expres-
sam um diálogo mais amistoso de conhecidos antigos que voltam a
se encontrar depois de um tempo – o plano americano dinamiza a
força de expressão da cena. É levando isso em consideração que po-
demos entender o momento mais significativo, que ocorre justamente
por conta de um ato fortuito e aparentemente sem importância.
Quando Edie vai vestir o seu par de luvas, uma das mãos cai
no chão, e Terry a recolhe. Mas, ao invés de devolvê-la para a me-
nina, ele continua andando com a luva, para o desconforto de Edie,
que a todo instante olha para as mãos de Terry, enquanto segue o
diálogo. Terry fica limpando a luva, e em determinando momento a
veste. Curiosamente, nesse momento eles não se olham muito, ape-
nas falam enquanto toda uma outra forma de contato é virtualmente
estabelecida entre os dois através das luvas que eles compartilham,
estando uma peça do par na mão de cada um dos envolvidos na
cena. A luva, aqui, adquire a função de um objeto expressivo pelo
fato de concentrar em seu uso uma gama de sentidos acumulados
que, a princípio, ela por si só não carrega enquanto objeto inanimado.
O contato efetuado através dela pelo casal que está começando a se
aproximar já indica essa espécie de máximo de intimidade permitida,
dando-se de forma quase que cifrada em meio à praça pública.
sumário 203
Ainda, quando Terry veste a luva de Edie o que vemos, em
chave simbólica, é uma espécie de invasão (ou penetração) por meio
da expressão do contraste de suas mãos brutas, assim como toda
sua figura, com a delicadeza do acessório feminino – ainda por cima
branco, cor da pureza – de Edie. Se lembrarmos que Terry é um ex-
-boxeador, o gesto dele ao vestir as luvas traz para a cena, ao mesmo
tempo, uma agressividade que corrobora com o quase estupro que
sua atitude simboliza (o que reverbera ainda o grau de contato íntimo
que Terry é habituado, já que o vimos sendo dominado por trás por
Jhonny Friendly, no bar), mas também um certo elemento patético, já
que agora ele só é capaz de vestir luvas como essa, de uma jovem
solteira, ao invés de luvas de boxe. Ao mesmo tempo, paradoxalmen-
te, Terry é delicado com a luva de Edie, limpando-a com calma e a
vestindo com cuidado, até o momento em que, para compor ainda
mais a contradição dos gestos, é Edie quem executa uma ação vi-
gorosa ao arrancar o acessório das mãos de Terry de forma brusca.
sumário 204
de cena. Ele aconteceu durante a gravação, seguindo a dinâmica de
improvisação. Brando então aproveitou a deixa e rapidamente pe-
gou a luva do chão para sua colega, continuando a desenvolver o
encontro levando em consideração a interferência, e a oportunidade,
que o evento representou para o andamento do trabalho de ambos
enquanto intérpretes. Desse modo, produz-se um maior acúmulo de
sentidos através da colaboração dos atores, que trazem uma inter-
ferência criativa que se realiza pela operação de uma inteligência in-
terior ao desenvolvimento cênico, própria do ofício dos intérpretes,
constituindo, nas palavras de James Naremore, “uma escolha muito
mais de um ator do que de um roteirista”.106
sumário 205
apenas por olhares – acompanhados pelo jogo de enquadramentos
em primeiro plano no rosto dos intérpretes. Ou mesmo a fala, quando
vem, é precedida por um tempo de reação de Edie, no caso, que re-
vela, através de sua expressão facial, seu embraço e dúvida quando
Terry pergunta se voltará a vê-la, ao que ela responde apenas, “Para
que?”. Esse tipo de tempo de resposta preenchido pela atividade da
expressão facial da atriz é um exemplo de demonstração do pensa-
mento (subtexto) possibilitada pela técnica de interpretação. A cena,
assim, constrói-se até o fim através de uma dinâmica que depende
tanto quanto, ou até mais, do jogo dos atores do que necessariamente
apenas das palavras escritas no roteiro.
sumário 206
Com essa postura Edie não apenas confronta Terry, mas ofe-
rece para ele um ponto de apoio. O fato de o rapaz ainda estar
vestindo a luva durante esse diálogo já estabelece uma conexão
entre ambos, e reverte a ideia inicial de que, através do uso do ade-
reço, ele apenas a mantém presa na conversa. É como se, ao vestir
a luva de Edie enquanto ouve suas ideias, Terry experimentasse
um vislumbre do ponto de vista dela, e pudesse, por um momento,
vislumbrar também a possibilidade de enxergar a vida como ela.
Após recuperar o objeto de forma brusca, Edie ainda oferece uma
chance de aprendizado – ou de reaprendizado – ao criticar a pos-
tura pedagógica que Terry relata ter recebido das freiras no colégio
onde estudou na juventude. Segundo conta, elas batiam muito nele
tentando dominá-lo, e ele as enganava (revelando uma formação
pessoal que se construiu na base da mentira e da desconfiança até
mesmo dentro do colégio). O diálogo segue da seguinte maneira:
EDIE – Talvez elas não soubessem como lidar com você.
sumário 207
se referir a Terry antes de fugir do bar estabelece a imagem comum
do rapaz como uma figura aparentemente irracional, um animal que
apenas age por instinto e que reage somente à fisicalidade. Ela o
chama de “vadio” (“bum”), uma gíria que tem uma conotação muito
específica no original em inglês, e está relacionada a gatos de rua,
algo como “vira-latas”. Terry, nessa mesma passagem justificou-se
por não depor na Comissão dizendo que não iria morder o “queijo”
na “ratoeira” que estava sendo armada – recusando-se assim a agir
como um “rato” (no filme aparece também a expressão “cheese ea-
ter”, ou “comedor de queijo”). Essas duas qualificações se juntam à
recorrência do termo para delator (“pigeon”, ou “pombo”) no estabe-
lecimento de uma representação nada lisonjeira de Terry, como toda
forma de animal urbano rasteiro, marginal (mesmo o pombo sendo
uma ave, é uma ave suja, que é chamada popularmente de “rato de
asas”). E, não por acaso, essa mesma simbologia animal era usada
nas gírias para se referir ao delator (juntando-se ainda à “canary”, que
ouvimos para qualificar Joey Doyle na primeira cena do filme).
sumário 208
TERRY E CHARLEY
sumário 209
Imagem 36 – Plano inicial aberto, com clima amistoso
sumário 210
Imagem 39 – Charley ouvindo Terry
sumário 211
Quando o assunto toca diretamente a intimação recebida por
Terry para depor, o enquadramento da cena se fecha no rosto dos
dois atores, mas ainda assim abrangendo a ambos em um mesmo
plano. Daqui para frente, a cena seguirá nesse registro, através de
um esquema de planos de campo e contracampo que, ao invés de
mostrar a frontalidade de um rosto em contraste com as costas da ca-
beça do interlocutor, vai estabelecer um jogo de registrar, no mesmo
quadro, um rosto de frente e o outro de perfil (conforme as imagens
38 e 39). Dessa forma, o quadro mantém em evidência a expressão
da figura que ouve, registrando a reação dessa figura através dos
olhares, reações e respiração. Depois, enquanto Charley apresenta
a proposta de Friendly para comprar o silêncio de Terry, é esse quem
vemos de perfil em silêncio, no canto direito da tela, reagindo ao que
ouve de forma dinâmica, o que possibilita a expressão de um “monó-
logo interior” tão eloquente quanto a fala de Rod Steiger.
sumário 212
de Terry, torna-se mais verborrágico, falando sem parar enquanto Ter-
ry permanece reagindo em silêncio, compondo um diálogo mudo que
nos permite inclusive perceber uma espécie de comentário, ou crítica,
à atitude desesperada de Charley. Essa ação por reação, ou resposta
silenciosa, mas eloquente, da parte de Terry o coloca imediatamente
em uma situação de domínio da cena. Diante do aparente descontrole
executado por Rod Steiger, o gestual medido de Brando assume uma
eloquência tão forte, ou ainda mais poderosa, que as palavras. Isso é
evidente no momento em que Charley aponta uma arma para o irmão,
para forçá-lo a se decidir por colaborar com Friendly. Com um gesto
apenas, repetindo o nome de Charley enquanto balança a cabeça in-
crédulo com o que se passa, Terry abaixa a arma, desarmando seu in-
terlocutor. Desse modo, toda a perplexidade de Terry para com a atitude
do irmão consegue caber em apenas uma interjeição: “Uau, Charlie...”
sumário 213
a análise da cena da confissão de Terry a Edie. Porém, no diálogo en-
tre Terry e Charlie o filme não adota a mesma estratégia da sobreposi-
ção dinâmica de sons e imagens para representar o momento através
dos efeitos da montagem (condensando toda a escalada da tensão
em pouco mais de um minuto de cena). Ao contrário, a montagem
abre espaço para o desenvolvimento, em forma dramática (ou seja,
através da dinâmica do diálogo) do acerto de contas necessário.
sumário 214
através do qual expõe pela primeira vez sua mágoa, e as reverbera-
ções dessa na sua condição atual. Com a situação invertida, agora é
Charley quem ouve em silêncio enquanto sua reação é expressa pelo
seu rosto em primeiro plano, produzindo também, por sua vez, um
monólogo interior capturado pela câmera.
sumário 215
TERRY E PADRE BARRY
107 Talvez ele acabaria como na versão romanceada da história, que Budd Schulberg pu-
blicou após o lançamento do filme: seu cadáver boiando nas águas do cais do porto
de Hoboken, depois de ser também executado pelos capangas de Friendly. Porém, a
Columbia, distribuidora do filme, exigiu que o final fosse alterado, pois achou que não
seria de bom tom uma história como essa terminar com uma possível “vitória” dos
homens maus, e uma derrota da legalidade. Não devemos ignorar aqui o peso que o
Macartismo ainda pode ter nessa decisão.
sumário 216
quadrilha de Friendly como reféns de sua arma. A intervenção de Barry
na cena quebra o ritmo alucinado da sequência de ação – que acu-
mulou momentos de fuga de Terry e Edie sendo perseguidos por um
carro, a descoberta do cadáver de Charley e a entrada de Terry no bar
todo ferido e fora de si, ameaçando a todos com sua arma enquanto se
embriaga. Barry entra em cena, assim, para mediar uma situação cujo
único desenlace possível seria a troca de tiros. A chegada do padre
interrompe o desenvolvimento esperado da cena.
sumário 217
o papel de testemunha perante a Comissão – emulando na tela
o mesmo ritual público no qual Kazan aceitou participar, e que foi
o motivo de sua subsequente execração profissional. O momento
pede solenidade por parte do filme, e talvez seja por isso também
que tantos fatores extremos e pessoais foram criados para que Terry
finalmente aceitasse o seu “destino”. Afinal, se Charley não tivesse
sido morto, talvez Terry ainda oscilasse na linha fina da dúvida. Não
por acaso, esse é um dos grandes motivos apontados pela tradição
crítica do filme para qualificar um suposto egoísmo de Terry Malloy,
agindo apenas pelo impulso pessoal de vingança ao invés de estar
engajado de fato em uma luta maior pela causa coletiva da categoria
dos estivadores.108 Porém, é preciso que não nos esqueçamos que,
mesmo não sendo essa a luta de Terry, é o projeto de padre Barry
para a sua paróquia. Fica evidente, então, que a agência da decisão
pelo testemunho, e consequentemente para o golpe desferido no
esquema das relações através da exposição pública de Jhonny
Friendly, não está nas mãos de Terry, o protagonista, mas do padre.
108 Em relação a isso, conferir o já citado artigo de Peter Biskind, onde ele contradiz a ideia
de trajetória de “socialização” de Terry, defendida pelo filme, com o que na verdade se-
ria, nas palavras do autor, um “processo de individuação aparentemente contraditório”
(BISKIND, 1975, pg. 31)
sumário 218
Imagem 41 – Mesma relação, com posições invertidas diagonal
sumário 219
com Terry – cujo comportamento ainda se mostrava descontrolado, ou
“irracional” – para convencê-lo a seguir a intimação para depor. Dessa
forma, Barry não só movimenta o impasse criado pela entrada de Terry
armado no bar, como recoloca o objetivo do filme de volta aos trilhos
que rumam para o momento da delação.
BARRY – ...Pelo que ele fez com Charley e com uma dezena
de homens que eram melhores que Charley? Então não se
sumário 220
comporte como um bandido aqui no meio da selva porque
isso é exatamente o que ele quer. Ele vai te acertar e alegar
legitima defesa. Você vai enfrentar ele amanhã na corte com
a verdade. A verdade que você conhece.
BARRY – Agora se livre dessa arma. A não ser que você não te-
nha coragem, e se não tiver mesmo, então é melhor ficar com ela.
sumário 221
Ao mesmo tempo que executando um gesto de violência (atirar
o revólver no retrato a ponto de quebrá-lo), Terry expressa finalmente
sua aliança com Barry (ao escolher agir do jeito do padre, através da
estratégia da delação), o que confere ao seu gesto uma carga simbó-
lica, por não ferir a Friendly diretamente, mas a um retrato seu. Isso
configura, de uma vez por todas, a quebra de sua antiga relação com
a quadrilha criminosa. Através de todo esse complexo de significados
contido no gesto de Terry podemos entender o momento como mais
um exemplo eloquente do uso, pelo filme, da ideia de ação física.
sumário 222
filme, com a reação de Edie à morte de Joey. Isso dá mais uma volta
no ciclo de execuções onde Terry, que foi uma espécie de cúmplice
do primeiro assassinato, se encontra agora mais próximo da posição
de vítima – não podemos esquecer que o fato de Charley ter sido
executado como um aviso final para que ele não delatasse pode, de
certa forma, configurar essa morte como “responsabilidade de Terry”.
sumário 223
Dessa forma, até mesmo a aposta do filme na criação dos no-
vos laços de sociabilidade através da relação entre Terry e Edie pode
se configurar como uma espécie de ação simbólica que expressa
bem mais do que um simples discurso de redenção pessoal através
do amor. A presença de Barry conduzindo a relação do casal, assim
como o aproveitamento que ele faz dessa relação (desde seu esforço
por unir Terry a Edie até a ajuda para que Terry processasse de uma
forma “produtiva” para o enredo o seu luto pela morte do irmão) con-
figuram a atitude do padre, também, como o cumprimento de um su-
per objetivo – ou a “espinha” de seu personagem – que denota, como
estamos acompanhando até aqui, mais do que um simples impulso
por transformação das relações de trabalho para os estivadores: um
objetivo elaborado pelo filme como um todo através das ações de
padre Barry ao longo do enredo.
sumário 224
3
Capítulo 3
Reorganizando a categoria: o
filme como campo de disputa
Reorganizando
a categoria:
o filme como campo
de disputa
PROCTOR – Se conforme! Agora o Céu e o Inferno lutam nas
nossas costas e toda a nossa falsidade foi arrancada... Se con-
forme! (...) Concorde. É a providência, e nada muda muito. Nós
somos o que sempre fomos, só que agora nus.
sumário 226
Imagem 42 – Estivadores seguem Terry para o
galpão, no último quadro do filme
sumário 227
Assim, o cruzamento entre materiais, realização formal e a expe-
riência histórica confere múltiplos sentidos à narrativa: primeiro, o per-
curso de Terry Malloy, enquanto sujeito emancipado dos acordos que
emperravam sua realização pessoal, em contraste com a organização
da categoria de estivadores, a quem o processo individual de Terry
influencia, mas que não alcança, enquanto coletivo, a mesma eman-
cipação; em paralelo a esse percurso, a decisão pessoal de Kazan
(ou Schulberg, como tantos outros) pela delação, em contraste com o
processo de emancipação coletiva da categoria dos atores – processo
no qual Kazan foi uma figura essencial. No entanto, entre Terry Malloy e
Elia Kazan, há uma terceira instância de determinação da obra que não
permite que o ponto de contato entre personagem e diretor seja esta-
belecido sem alguma fricção. Sem o desenvolvimento do Método, o
filme não seria o mesmo, seja por conta da trajetória dos artistas que o
realizaram, e da qual esse filme é devedor, seja por conta das técnicas
adotadas diretamente em sua elaboração. Assim, para podermos des-
fazer o nó estabelecido entre a multiplicidade de pontos de vista que
elaboram a trama de “Sindicato de Ladrões”, é preciso ter em mente
que entre Terry e Kazan existe Marlon Brando – e quando cito Brando
não estou considerando sua existência singular enquanto profissional,
seguindo a determinação do star system. Pelo contrário, uso seu nome
para evocar todo o elenco de intérpretes que surgem, como já foi reco-
nhecido, como coautores do discurso da obra cinematográfica.
sumário 228
da recuperação da utopia de um espaço experimental que permitisse
o estudo constante do ofício do ator. Esse desejo nos informa de um
caráter fundamental na constituição do repertório da técnica.
sumário 229
o filme acaba por capturar o registro de outros olhares sobre as si-
tuações, internas e externas à sua fábula, que dificultam um pouco a
defesa pretendida por Kazan através de Terry. Levando em considera-
ção tudo o que já foi informado e discutido a respeito da participação
dos atores na constituição das cenas, em colaboração direta com
o diretor e demais realizadores, entendemos que sua atuação pode
gerar consequências para a representação das personagens, em sua
relação com a obra como um todo. O que nos leva possivelmente a
identificar, no trabalho dos atores, a elaboração de um outro ponto de
vista interno à obra. Essa diversidade de opiniões pode encontrar res-
sonância no registro da multiplicidade de olhares na constituição das
cenas e pode nos ajudar a compreender, ao fim, que a convivência
de posições diversas diante do assunto da delação e do Macartismo
(conforme já foi relatado sobre as discordâncias entre Kazan e Bran-
do) é mais do que uma mera curiosidade dos bastidores de produção,
mas revela uma condição específica na produção desse filme, influen-
ciando, significativamente, sua constituição formal.
sumário 230
interpretadas por seus atores, oferecendo à direção materiais diver-
sos que exigiam serem harmonizados na montagem final. Essa con-
vivência de ideias distintas sobre a matéria do filme pode ser o que
alimenta, por exemplo, o descompasso sentido na última cena, entre
o clímax sugerido pela trilha sonora enquanto vemos a expressão de
vitória de Barry e Edie, e a caminhada silenciosa e algo passiva de
Terry e dos demais estivadores, diante do representante dos donos
do navio, rumo à escuridão do galpão de trabalho.
sumário 231
essa relação de maneira imediata, automática e proselitista. Afinal
de contas, a luta de Terry, Edie e do padre Barry é legítima dentro do
universo criado pelo enredo. Esse tema de “problemática social” co-
necta o filme ao “espírito dos anos 1930” que formou a geração dos
realizadores da obra, inscrevendo a narrativa de usurpação do sin-
dicato da categoria pelos esquemas da máfia em uma debate sobre
as possibilidades de organização coletiva diante do desmanche do
sentimento de coletividade que o Macartismo opera – como se o filme
quisesse nos dizer que, dada a dinâmica das relações na época (os
anos 1950), aqueles ideais que animaram as realizações dos artistas
de esquerda nos anos 1930 não eram mais tão permitidos, ao menos
dentro de Hollywood, exigindo para a classe repensar suas estra-
tégias de ação e organização. Contudo, esse debate encontra no
Método a linguagem para ser encenado, afirmando, através da forma
do filme e pelo trabalho colaborativo entre atores e direção, uma vitó-
ria da mesma geração que estava sendo perseguida, em detrimento
dos efeitos devastadores do “caça às bruxas”. Talvez, diante de um
certo sentimento de falência dos projetos políticos da classe artística
sob o Macartismo, a técnica representava ainda uma conquista, pos-
sibilitando um caminho de desenvolvimento e realização profissional
no diálogo com os grandes estúdios. E isso nos leva à uma segunda
instância da obsessão do padre Barry pela “verdade”.
sumário 232
Ainda que você consiga – e muitos atores efetivamente con-
seguem – se dar bem falseando, fazendo posturas e demons-
trando os sentimentos no palco, é muito difícil, para não dizer
impossível, fazer um bom trabalho trazendo qualquer coisa
que seja falsa diante da câmera. Um close-up exige verdade
absoluta; é um julgamento severo e maravilhoso. Atuar para as
telas é um ofício mais honesto.110
sumário 233
e Malden (no caso dessa cena) enquanto intérpretes, da trajetória de
seus personagens, revelando para nós as escolhas realizadas por eles
para configurar essa relação ao longo da obra.
sumário 234
que Terry, ao fim, não seja necessariamente apenas um exemplo a ser
seguido. E o que podemos perceber através do trabalho de análise
que realizamos até então é que esse desvio na consideração da figura
de Terry pode ser fruto do trabalho dos atores ao longo de todo o filme.
sumário 235
Imagem 43 – Terry entrando (à direita, ao alto)
para atravessar a linha de estivadores
sumário 236
mutuamente – ou como se Terry furasse o conjunto de homens da
mesma forma que uma bala, ou uma lâmina, perfura um corpo.
sumário 237
reação do sindicato, mas expõe para o coletivo de estivadores a possi-
bilidade do desafio que ele protagonizou. Ele também se coloca, diante
de todos, como um exemplo. O enquadramento da cena completa esse
descolamento do grupo ao explicitar, na imagem, sua nova situação. Ter-
ry não é mais enquadrado através do contraste de sua figura em relação
ao grupo. Agora, temos a composição de dois quadros independentes
e opostos: o primeiro com os estivadores silenciosos observando a Terry
(imagem 44), que é mostrado para nós solitário, em um segundo quadro
(imagem 45), com sua figura em primeiro plano devolvendo o olhar de
forma decidida para o grupo compacto que o observa.
sumário 238
Esse registro evidencia, assim, o resultado de um percurso de
individuação de Terry em relação ao coletivo. O close em sua figura,
a ser observada tanto pelos estivadores, espectadores internos da
cena, quanto por nós, espectadores externos do filme, concretiza o
ponto de chegada do percurso de formação atravessado por ele ao
longo do enredo. Da mesma forma, a sua reação à provocação de
Big Mac continua a nos dar notícia da mudança em seu comporta-
mento, mostrando um aparente amadurecimento e valorizando o seu
caráter enquanto figura emancipada dos hábitos da sociabilidade no
cais. Ao invés de partir para o enfrentamento físico, como sempre
fez, Terry continua a seguir uma estratégia de enfrentamento público
ao sindicato, e de expor a situação agora frágil na qual se encontra
a organização. Quando caminha em direção à cabana flutuante que
serve de escritório para Friendly, Terry já tem garantida a atenção de
todos os presentes no cais. Assim, o próximo plano mostra o grupo
seguindo Terry para acompanhar o desenvolvimento da cena – como
se os polos dos imãs, que antes se repeliram, agora se atraíssem
diretamente, ou ao menos os estivadores caminhassem como uma
massa compacta na direção de Terry.
sumário 239
elemento na margem do quadro que mostra a caminhada de Terry
em direção à cabana do sindicato serve de legenda para a cena que
acompanhamos, já expressando um juízo: Terry é a figura que ousou
se rebelar contra a ordem estipulada pela quadrilha de Friendly. Esse
juízo confere um certo caráter heroico à ação de Terry – ainda mais
se lembrarmos que ele foi preparado por Barry, o padre irlandês com
conhecimento de táticas de mobilização política.
sumário 240
mesmo caráter rebelde de Barry, assumindo junto dos estivadores
um posto que apenas o padre ocupava antes, diante do sindicato.
sumário 241
forma, e isso não passa despercebido pelos estivadores. Como mais
um efeito da ação de Terry no coletivo, o grupo passa a reagir (“O ga-
roto luta como ele era acostumado a fazer!”, os estivadores comentam
entusiasmados entre si, pela primeira vez falando desde o começo da
cena). Enfim, o grupo se interessa em aderir à rebeldia de Terry, e se
engajar na luta para ajudá-lo. Ele continua a representar um exemplo
de ação para os demais trabalhadores, e dessa vez um exemplo posi-
tivo. Porém, a imposição dos mafiosos impedindo o grupo de avançar
não apenas frustra a ação coletiva, como também impossibilita a vitória
de Terry – já que ele não está mais lutando apenas contra Friendly, que
abandonou a disputa, mas é espancado pelos capangas. A ironia des-
se momento de emancipação de Terry, através da reconquista de sua
força e seu poder de ação como lutador, está no fato de que, mesmo
quando ele competia no boxe profissional (lembrança celebrada pelos
estivadores nesse momento), ainda assim não possuía controle sobre
sua força de trabalho – como já vimos, o filme processou longamente
a sua frustração por ter sido apenas um instrumento do esquema de
apostas de Friendly, manipulado pelo próprio irmão, Charley.
sumário 242
Porém, o anticlímax gerado com a descoberta que ele não foi
espancado até a morte contraria a expectativa gerada, torcendo ain-
da mais o nó de nossa identificação com as figuras em cena – seja
com Terry e seu percurso de individuação, seja com os estivadores
e seu anseio por transformação do ambiente de trabalho, o que nos
faz, em todo caso, quase respirar aliviados pelo fato de que o he-
rói não foi abatido. O aspecto problemático desse momento é que
o silêncio compassivo dos estivadores diante da possível execução
de Terry o confirma como a única esperança de ruptura com esse
ambiente, personalizando o processo de emancipação política que
deveria se dar no âmbito do coletivo. Caso contrário, os estivadores,
que sempre foram em número maior do que os capangas (que nes-
se momento, ainda por cima, estavam desarmados já que Friendly
trancou todas as armas em um cofre para evitar problemas com a lei)
teriam reagido ao ataque e defendido Terry.
sumário 243
descarregá-lo. A conjunção dessas duas presenças na cena vai ser
essencial para encaminhar o filme para sua conclusão, já que, como
descobriremos, suas ações se focam em atingir um mesmo objetivo,
mesmo que de forma indireta.
sumário 244
as orientações de um novo líder, ao invés de continuar obedecendo
às ordens de seu sindicato, que se revela então com sua estrutura de
poder abalada. Porém, ainda assim, os trabalhadores não seguirão
as ações decididas por um dos seus, ou por um conjunto de re-
presentantes. Ao contrário, eles realizarão um movimento conduzido
pelo padre, que, como já dissemos, assume a direção da cena.
sumário 245
de Charley, e Pop Doyle fazendo o mesmo para se vingar da mor-
te de Joey. E em segundo lugar, é resultado de descontrole (Terry
aceitando a provocação para lutar) ou de impulso (Pop empurrando
Friendly como resposta a esse querer arrastá-lo de volta ao galpão).
Nesse momento, a rebeldia que o exemplo de Terry espalhou em
todos os estivadores como uma corrente elétrica necessita de uma li-
derança capaz de canalizar essa força em uma mesma direção, caso
contrário ela se dissipará. Diante da pressão do dono do navio em
descarregar suas mercadorias e reestabelecer o andamento do tra-
balho, Barry age para conseguir direcionar a ação dos trabalhadores.
Não devemos esquecer, aliás, que essa rebelião também se deve
indiretamente ao padre, já que foi ele quem orientou Terry a se opor
publicamente ao sindicato, além de todo o seu esforço de, desde o
início do filme, tentar plantar nos estivadores a ideia da resistência.
sumário 246
Mais uma vez, Terry vai agir por reação às coordenadas rece-
bidas por Barry. Fazendo aqui uma pequena digressão, já vimos na
curta cena que registrou o depoimento de Terry perante a Comissão
do Crime o seu despreparo em assumir o protagonismo da situação.
Incapaz de articular a informação que possuía, e que o motivava a
testemunhar colaborando com o trabalho de investigação, ele ape-
nas repete as palavras que o promotor de acusação lhe pergunta –
em uma atitude de quase ventriloquismo. Por sua vez, os capangas
do sindicato mostraram-se muito mais organizados do que Terry, dis-
simulando perante o promotor, “interpretando”, de certa forma, sua
inocência enquanto tentavam convencer o tribunal (e a opinião públi-
ca, já que a audiência estava sendo transmitida pela TV) a fantasiosa
história de que o livro caixa do sindicato havia sido coincidentemente
roubado do escritório na noite anterior ao depoimento.
Terry, por sua vez, está lá para revelar a verdade que suposta-
mente é ocultada pela encenação dos capangas do sindicato. Porém,
sumário 247
ele não tem controle sobre sua expressão, sendo incapaz de coorde-
nar suas palavras. Antes, foi “preparado” por Barry para mostrar pe-
rante o tribunal sua “verdade interior”. Ao expor as informações que
possui (revivendo através do seu testemunho o dia da morte de Joey
para vingar a sua dor pessoal por perder seu irmão, Charley) Terry evi-
dencia em seu depoimento uma motivação inteiramente subjetiva, que
foi aproveitada pelo padre para tornar efetivo o intuito maior de atacar o
esquema mafioso do sindicato – assim como um bom diretor aproveita
as reações surgidas da memória emotiva do ator para compor a cena.
sumário 248
se autoincriminarem no jogo de gato e rato armado pela rotina dos
inquéritos (alegando a primeira e quinta emendas da constituição,
tentando desconversar e dando volteios argumentativos ao invés de
apenas responder “sim” ou “não”) outras pessoas assumiam sem
amarras ou dissimulação toda a verdade exigida pelos promotores –
e diante das câmeras de TV. O próprio Kazan assumiu essa postura.
Ao contrário de Terry, porém, ele não agiu por impulso, ou levado por
um terceiro. Antes, premeditou seu testemunho, escrevendo-o cuida-
dosamente, preparando-se para um espetáculo público assim como
os capangas de Jhonny Friendly, que evidentemente combinaram o
que responder – não devemos nos esquecer, ainda, que Kazan já
havia se apresentado antes ao Comitê de portas fechadas, dessa vez
escondendo nomes, o que fez seu primeiro testemunho ser conside-
rado inválido, e manteve seu nome na lista de pessoas que mereciam
desconfiança da HUAC e, por consequência, dos grandes estúdios.
sumário 249
um imã, estabelece uma nova referência de liderança – para além da
força representada no momento pelo rapaz. Afinal de contas, essa fi-
gura que se apresenta quase como um típico capitalista de caricatura
(um homem velho, gordo, de paletó completo e chapéu) posiciona-se
no mesmo ponto que sempre coube a Big Mac, como representante
do sindicato, enquanto escolhia a dedo quem deveria trabalhar a cada
dia. Sua presença, por fim, concentra o foco da expectativa de Terry e
de todos os outros estivadores envolvidos na cena. A conjunção dos
planos subjetivos com a imagem expectante dos trabalhadores nos
posiciona, nesse momento, colados ao grupo dos estivadores – Terry
agora entre eles – querendo nos colocar no papel de aprender uma
lição: o valor final da atitude da delação e do empreendimento da tra-
jetória de martírio do herói, que ainda que sofrendo suas consequên-
cias imediatas colherá frutos para todo o coletivo. Com isso, somos
também, enquanto audiência, de certa forma educados por Barry (que
atinge, nesse momento, aquele desejo expresso por Kazan e Schul-
berg ao querer justificar, com o filme, a necessidade da delação).
Porém, ainda assim o filme parece terminar com uma nota dis-
sonante desafinando a grandiloquência da trilha sonora. Se, por um
lado, ao que tudo indica os estivadores não mais sofrerão a mediação
de Friendly e sua organização criminosa no controle de seu sindicato
(por mais que o mafioso continue gritando impotente “Eu voltarei!”),
sumário 250
por outro lado não é prometido, ou ao menos anunciado, uma nova
forma de mediação entre os empregadores e os trabalhadores, na
negociação de sua força de trabalho. Por mais que algumas figuras
ligadas ao grupo haviam expressado a expectativa de se reorganizar
coletivamente – “Nós vamos caminhar com você Terry (...) Então eles
nos darão de volta nosso sindicato, para que nós possamos contro-
lá-lo” – a imagem do galpão escuro engolindo os estivadores que se-
guem silenciosos a ordem do patrão causa um certo estranhamento,
relativizando o caráter vitorioso anunciado pela trilha sonora e pelos
sorrisos largos de padre Barry e Edie.
sumário 251
CONCLUSÃO
sumário 252
mediada – ou seja, mais facilmente manipulável, já que a categoria não
se organiza coletivamente através de um sindicato.
112 Sobre esse assunto, conferir também o trabalho de Michael Denning em The Cultural
Front. No capítulo 11, “Who´s affraid of big bad Walt?” Disney´s Radical Cartoonists, o
autor remonta a história da greve realizada pelos desenhistas do estúdio no ano de 1941.
Da mesma forma, o livro ainda relata uma paralisação da categoria dos cenotécnicos de
cinema no ano de 1945. Em 05 de outubro desse ano o movimento foi cruelmente repe-
lido pela polícia por meio de um ataque aos piquetes montados nos portões da Warner
Brothers, em uma passagem que ficou marcada, para a história do sindicalismo dos EUA,
como “Hollywood Black Friday” (ou a “Sexta-feira sombria de Hollywood”).
sumário 253
Através da correlação entre a ficção e a realidade, podemos
ver representadas duas formas de um sequestro da força de trabalho
e da voz dos coletivos. No filme, o sindicato (como era controlado por
Friendly) roubava aos estivadores uma possibilidade de representa-
ção diante das relações de trabalho no cais. Já em Hollywood, os
grandes estúdios exigiam dos artistas submissão total às condições
da HUAC, tornando a colaboração com o comitê condicionante de seu
acesso, ou não, às possibilidades de trabalho. E ainda que comba-
tendo ativamente aqueles que, nas décadas anteriores, construíram a
tradição da arte de esquerda nos EUA, Hollywood apropriava-se das
conquistas técnicas desenvolvidas por essa mesma geração, para
efeito de modernização e desenvolvimento da qualidade artística de
suas produções – como atesta a história da inserção do Método na
grande indústria do cinema. Essa apropriação da técnica também
pode ser compreendida como uma forma de sequestro da força de
trabalho e do histórico da classe artística – ainda que, ao fim, esse
sequestro tenha sido operado com a cumplicidade de pessoas que
fizeram parte da construção dessa mesma história.
sumário 254
Isso não significa ainda, porém, uma emancipação coletiva da
categoria. Pelo contrário, não é preciso ir muito longe para entender
que essa relação impulsionou a lógica do star system, conferindo au-
tonomia de decisão de contrato como moeda de troca pela fama e o
alcance publicitário das celebridades, que agregavam grande interes-
se e valor aos filmes. Assim como nem todo intérprete tinha o prestí-
gio de Brando em Hollywood, essas condições não se tornaram uma
conquista para toda a categoria, mas um privilégio de suas figuras de
destaque (o que nos faz ainda ressoar a imagem de Terry caminhando
para dentro do galpão, à frente e quase que à parte da massa de esti-
vadores, literalmente figurantes de sua trajetória pessoal).113
sumário 255
Ainda que seja tradicionalmente interpretado como uma defesa aberta
do discurso de colaboração com o Macartismo, não se pode ignorar
que há uma certa ironia em seu desfecho. Ao invés de celebrar a so-
brevivência do protagonista como uma vitória perante a máfia, e por
consequência o vislumbre de uma alternativa de libertação da classe
dos estivadores de um sistema opressivo de organização, a obra pare-
ce revelar uma consciência maior sobre esse processo. Como vimos,
o registro de múltiplos pontos de vista sobre a situação; a relação entre
a falta de autonomia de Terry, a condução do padre Barry e a reação
passiva da massa de trabalhadores, exploradas ao longo de todo o
filme; assim como a imagem final de bloqueio que pontua a trajetória
dos estivadores (no fechamento da porta do galpão) reconhecem, na
conclusão da obra, um impasse para a organização do coletivo.
sumário 256
estabelecendo uma narrativa que atesta, por contradição, uma con-
quista da categoria dos intérpretes no desenvolvimento das relações
de trabalho que estruturam o filme. Conseguimos, com isso, propor
uma resolução possível para a equação montada pela coexistência, na
mesma obra, do desejo de defesa da delação por Kazan e Schulberg,
e da postura contrária a essa defesa, reconhecidamente representa-
da por Brando, encabeçando o elenco como figura de ponta do star
system à época, e que configurou na relação com os outros atores
em cena seu testemunho sobre a personagem que representou e so-
bre a obra como um todo. De outra forma, não conseguiríamos con-
siderar o poder de escolha do intérprete sobre os modos de executar
seu trabalho (ao determinar como representar seu personagem), nem
compreender o sentido de um processo de criação colaborativa entre
direção e elenco, no resultado final da obra. Com isso, fica claro que
o caráter negociador que conduz a elaboração formal do filme não
se resume apenas à relação entre seus realizadores de um lado e os
representantes do sistema de produção (grandes estúdios, financia-
dores, distribuidores, a própria HUAC, etc) do outro. Pelo contrário, a
necessidade de negociação entre interesses e pontos de vista distintos
determina as próprias relações internas entre os artistas que, de for-
ma colaborativa, executam a criação, gerando materiais, discursos e
imagens que o diretor precisa considerar no trabalho de edição final.
sumário 257
de uma simulacro de “verdade”, com a exploração cada vez maior da
expressão íntima dos intérpretes (segundo algumas abordagens). Ain-
da assim, não se pode ignorar o potencial criativo que a técnica repre-
sentou para o cinema na sua chegada em Hollywood, reformulando as
relações de trabalho no ambiente de produção cinematográfica. Dessa
maneira, não é possível categorizar um ponto de visto unilateral sobre
o Método, mas compreender que essas contradições não se resolvem
a partir da defesa específica de uma ou outra abordagem. Mais do que
isso, fazem parte do desenvolvimento de seu repertório.
sumário 258
já se encontrava em andamento na história da formação da indústria
cultural dos EUA, se infiltrando nesse cenário e aproveitando dessas
divergências. Por fim, essa ação do Macartismo ofereceu à indústria
a oportunidade para conseguir eliminar as tendências consideradas
politicamente mais subversivas, ao mesmo tempo em que absorvendo
referenciais e informações técnicas que aprimoraram e modernizaram
as linguagens do cinema em Hollywood.
sumário 259
Podemos perceber, assim, uma dialética na tradição do Método
de intepretação realista ao longo de toda sua história, desde os anos
1930 até os dias de hoje. Ao proporcionar uma ferramenta capaz de
produzir, no espaço ficcional do filme, uma sensação de verdade ab-
soluta que dinamiza a relação de identificação entre o espectador e a
figura do intérprete na tela, e através dessa, a relação entre o espectador
e a obra – que é, ao fim, o objetivo principal da estrutura dramática – ,
o Método tornou-se uma técnica a serviço do sistema. O sucesso de
algumas linhas de trabalho, como a desenvolvida por Lee Strassberg,
principalmente nas décadas em que esteve à frente do Actor´s Studio
(de 1951 até 1982, ano de sua morte), ou mesmo a de Sanford Meisner,
cujo método se tornou uma verdadeira febre hoje em dia em cursos para
atores iniciantes, estabeleceu o repertório comum da linguagem que
formou alguns dos principais astros do grande cinema Hollywoodiano.
O segredo do sucesso dessas abordagens – uma profunda explora-
ção e apropriação do material emotivo mais íntimo dos atores – criou,
como vimos, uma dependência de certos profissionais aos estímulos e
direcionamentos do preparador de elenco, ou da direção, na condução
de seu trabalho. Essa prática evoluiu na contramão da autonomia al-
mejada – e conquistada – pelos atores no início do desenvolvimento da
técnica. É famosa, por exemplo, a história de dependência absoluta de
Marilyn Monroe na presença de sua professora de interpretação, Paula
Strassberg (esposa de Lee) em todo set de filmagens em que trabalhou
desde quando começou a frequentar sessões no Actor´s Studio, com o
objetivo de ser reconhecida como uma atriz “mais séria”.
sumário 260
A continuidade dessa história pode ser percebida no desenvolvimento
imediatamente posterior dos filmes estadunidenses, assim como nos
caminhos que construíram, na década de 1960 em diante, um cinema
independente aos esquemas da grande indústria. Essa história pode
ser interpretada como uma continuação daquele espírito de estudo e
pesquisa constantes que, como vimos, animou a geração que, desde
os anos 1930 até a década de 1950, estabeleceu as bases de funda-
mento da técnica, no percurso que vai do trabalho do Group Theatre à
fundação do Actor´s Studio – e de tantos outros estúdios de formação
de atores criados por outros antigos colaboradores do Group.
sumário 261
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sumário 266
ÍNDICE REMISSIVO
sumário 267
opinião pública 18, 40, 41, 42, 44, 51, 69, S
185, 237, 247 Segunda Guerra Mundial 14, 109, 137, 185
P sistema capitalista 14, 115, 159
sociabilidade 27, 28, 50, 125, 172, 224, 239
panorama histórico 26
socialismo 13, 14
pensamento político 14
solidariedade 9, 13, 19, 27, 42, 45, 47,
pós-macartismo 10, 252
134, 135
proporções globais 14
T
R
terceiro mundo 15
reorganização política 26
Romance 9, 120
sumário 268
SOBRE O AUTOR
sumário 269