"Sindicato de Ladrões": o Método Como Um Campo de Disputa em Hollywood

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Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Z31s

Zaniolo, Bruno Gavranic.


“Sindicato de Ladrões”: o Método como um campo de disputa
em Hollywood/ Bruno Gavranic Zaniolo. Coordenação: Mayumi
Ilari, Daniel Ferraz. – São Paulo: Pimenta Cultural, 2023.

Coleção Estudos Linguísticos e Literários em Inglês.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-727-3

DOI 10.31560/pimentacultural/2023.97273

1. Linguística. 2. Hollywood. 3. Macartismo. 4. Anticomunista.


I. Zaniolo, Bruno Gavranic. II. Ilari, Mayumi (Coordenadora).
III. Ferraz, Daniel (Coordenador). IV. Título.

CDD 410

Índice para catálogo sistemático:

I. Linguística.

Jéssica Oliveira – Bibliotecária – CRB-034/2023


Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.
Copyright do texto © 2023 o autor.
Copyright da edição © 2023 Pimenta Cultural.

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PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES
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Alexandre João Appio Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
Bianka de Abreu Severo Marcos de Souza Machado
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Eduardo Damian Leite Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil Universidade Paulista, Brasil
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Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os textos que compõem esta obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem
como revisados por pares, sendo indicados para a publicação.
“Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às
exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa.
Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade
humana diante do aparelho. O interesse nesse desempenho é
imenso. Porque é diante de um aparelho que a esmagadora
maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade,
nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as
mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingan-
ça que o intérprete executa em nome delas, na medida em que
o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade
(ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como
coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo.”

Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua


reprodutibilidade técnica (1935-1936)
SUMÁRIO

Agradecimentos............................................................................. 11

Introdução
Consciência de classe, solidariedade
e outras ideias contagiosas – um percurso
para a arte de esquerda no século XX................................................ 13

Capítulo 1

Luta corporal na beira do cais:


a crise do sentimento de coletividade
na cultura política dos anos 1950..................................................... 30
Cultura política, do alinhamento
à criminalização................................................................................... 39
“O que há de errado com o nosso
garoto essa noite, Charley?”................................................................ 55
“O que para eles é delatar,
para vocês é dizer a verdade”............................................................. 78
“Se vocês acham que Cristo
não está aqui no cais, então
vocês estão enganados!”.................................................................... 90

Capítulo 2

Romance na beira do cais: o Método


como possibilidade de organização
diante de uma nova cultura política................................................ 120
“As pessoas não deveriam
se importar umas com as outras?”.................................................... 124
“’Consciência’... essa coisa
pode te deixar louco”......................................................................... 139
Entre a consciência e a emoção:
O Método como um campo de disputa............................................ 156
a) Um novo modo de interpretar
o drama – e o mundo – em crise..............................................................156
b) Uma forma de expressão
para o ator estadunidense:
o Método no teatro e no cinema...............................................................170
c) Kazan na beira do cais: entre a liberdade
do trabalho colaborativo e o controle
da autonomia de ação..............................................................................193

Capítulo 3

Reorganizando a categoria:
o filme como campo de disputa..................................................... 225
Cristo no cais, Judas no Calvário...................................................... 235
Conclusão
Desenvolvimento técnico e autonomia
do intérprete como herança para
o cinema pós-macartismo................................................................. 252

Bibliografia consultada................................................................. 262

Índice remissivo............................................................................ 267

Sobre o autor................................................................................ 269


AGRADECIMENTOS

Em todo processo de construção de conhecimento há sempre


muitas pessoas envolvidas. Da mesma forma que vários acontecimen-
tos se relacionam com a trajetória de um trabalho de pesquisa. Esse
livro é resultado de minha história pessoal de estudos e trabalhos,
desde minha formação na Escola de Arte Dramática, passando pelos
grupos com os quais trabalhei como ator, diretor e dramaturgo, as sa-
las de aula onde orientei processos formativos como “ensaiador”, até
chegar na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde
realizei o projeto de mestrado que originou esse texto.

Assim, agradeço a todas as pessoas que participaram desse


processo. Em primeiro lugar minha família, que desde sempre enxer-
gou e estimulou meu desejo por trabalhar com arte e educação, me
dando as primeiras bases de referência.

À todas as pessoas que estiveram em minha trajetória como


professoras e professores: à memória de Edna Portari, minha primei-
ra professora de teatro; a todo o corpo docente da Escola de Arte
Dramática, cujos 75 anos de atividade atestam o poder de resistência
que os projetos de formação de profissionais da arte têm no contexto
de nosso teatro latino-americano; às professoras e professores e às
funcionárias e funcionários do curso de letras da FFLCH; em especial,
agradeço Ana Paula Pacheco, quem me abriu os caminhos da pesqui-
sa e Marcos César de Paula Soares, que mais do que orientador é um
companheiro de jornada que foi essencial para esse trabalho, e que
me ensina, mais do que a pesquisar, a ser professor.

Agradeço à CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-


soal de Nível Superior, pelo auxílio concedido através da bolsa, sem
a qual essa pesquisa não poderia ter sido realizada com a mesma
dedicação e cuidado.

sumário 11
Agradeço, muito e profundamente, a Marcus Maello, meu
companheiro de reflexão sobre esse mundo convulso que nos cabe
viver e transformar.

Por fim, agradeço à todas e todos os profissionais de teatro


com quem já atuei, meus companheiros do Grupo Pé de Moleque e
da Cia. Do Fubá, cujos trabalhos me possibilitaram continuar estu-
dando, perseverar no ofício da cultura e encontrar muito prazer nas
horas passadas nas salas de ensaio, nos palcos e nas estradas. Esse
trabalho é dedicado a vocês.

sumário 12
INTRODUÇÃO

CONSCIÊNCIA DE CLASSE, SOLIDARIEDADE


E OUTRAS IDEIAS CONTAGIOSAS
– UM PERCURSO PARA A ARTE DE
ESQUERDA NO SÉCULO XX

Nós ainda não sabemos exatamente como esse processo irá


se realizar, mas as condições da luta irão determinar como será
conquistado e sobre quais condições. Nós escolhemos os mais
pacíficos, democráticos (e mais curtos) caminhos para o socia-
lismo. Nós somos antibelicistas e não queremos que as vidas
dos trabalhadores sejam perdidas em mais conflitos violentos,
se possível. Essa abordagem tática e estratégica na luta pela
estrada do socialismo é o que nós chamamos de estratégia an-
timonopólio. Uma Carta de Direitos do socialismo é o nosso
objetivo, uma vez que as liberdades parcialmente garantidas na
Carta de Direitos e na Constituição serão somente verdadeira-
mente conquistadas e totalmente implementadas sob o socia-
lismo. Nós sabemos muito bem das limitações da democracia
capitalista, e queremos levar a democracia burguesa até sua
conclusão: o socialismo. Mas, vocês podem imaginar a vida
sob o socialismo sem uma “carta de direitos” socialista ou uma
constituição socialista atualizada? Grande parte dos trabalhado-
res estadunidenses não podem, então esse é o nosso objetivo.1

Durante os anos 1950 um vírus altamente contagioso estava à


solta. Ou na verdade se tratava de uma invasão alienígena vinda do
outro lado da galáxia – ou do nosso planeta? Ou a eminência da explo-
são de uma bomba nuclear capaz de destruir completamente o mundo
– ou pelo menos a ordem do bem-estar social mantida a tanto custo

1 “Five Myths About the CPUSA”, postagem no blog do site oficial do CPUSA, de
14/04/2020 (http://www.cpusa.org/article/five-myths-about-the-cpusa/, acessado em
17/04/2020, em tradução livre).

sumário 13
pelas instituições responsáveis pelo funcionamento da democracia e
da liberdade que fundamentam a estrutura do estado Americano?

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria impôs


uma estratégia de isolamento não só entre dois lados de uma fronteira
difícil de divisar – o que se entende em parte por mundo ocidental
e mundo oriental, e que se tornou mais concreta com a divisão da
Alemanha pelo muro de Berlim – mas entre duas concepções de so-
ciedade: o sistema capitalista e o socialismo. Se, como sabemos, no
embate ideológico promovido entre EUA e URSS estava em questão
o domínio de ideias e espaços de ação que poderia definir uma nova
ordem mundial, algumas décadas antes, porém, nos intensos anos
1930, o mundo atravessou uma fase de politização e proletarização da
cultura capaz de unir, em um mesmo esforço, diversas bandeiras. Sob
o efeito devastador da Grande Depressão de 1929 e do crescimento do
nazifascismo na Europa, socialistas, comunistas, liberais, democratas
e progressistas em geral uniram-se em um mesmo grande movimento
coletivo de esquerda como forma de tentar contornar a crise mundial e
evitar a catástrofe de um novo conflito armado de proporções globais.

Se por um lado a economia e o pensamento político das socie-


dades ocidentais entraram em uma era de crescimento e democrati-
zação, através principalmente da intervenção do Estado nas esferas
privadas de atividade social (como atestam o New Deal nos EUA ou
a Era Vargas no Brasil, dentre outros), por outro a eclosão e os anda-
mentos da Segunda Grande Guerra levaram a uma aliança estraté-
gica entre os países aliados e a URSS. Com a ajuda do Exército Ver-
melho, o mundo ocidental conseguiu deter o crescimento do domínio
nazista na Europa. Nos filmes de guerra hollywoodianos, saudava-se
o espírito globalista de união dos povos e das ideias políticas huma-
nitárias como o antídoto necessário capaz de erradicar de uma vez
por todas a ameaça do nazifascismo. Diante da voltagem política
do período, e como consequência direta da efervescência dos anos
1930, quase todos os grandes filmes de guerra – que concentravam,

sumário 14
no momento, o esforço possível de realização de cinema político em
Hollywood, já que o foco no combate à ameaça global levava os pro-
dutores a não aprovarem roteiros que discutissem as próprias con-
tradições internas dos EUA – tinham uma característica em comum:
eram escritos, dirigidos e estrelados por membros ou ex-membros
do Communist Party of The United States of America (o CPUSA), ou
por artistas de perfil politicamente independente, e que participavam
dos atos e eventos promovidos pelo partido por simpatizarem com
o pensamento e as demais causas progressistas que compunham
o seu ideário. Em sua grande maioria democratas ou liberais, esses
simpatizantes eram conhecidos como “fellow travellers” (ou “com-
panheiros de viagem”) e formavam o grosso do caldo da esquerda
estadunidense à época. A sentença do teórico da literatura Kenneth
Burke, escrita em Permanence and Change, de 1935, serve como
um termômetro do espírito de transformação que animava a classe
artística e intelectual no período: “Até onde eu posso ver, o único
movimento coerente e organizado que está buscando a sujeição do
gênio tecnológico para fins humanos é o movimento do Comunismo,
seja qual for o nome que deva ao fim prevalecer para isso”.2

Após o fim da guerra, no entanto, tudo mudou. Com o nazismo


derrotado, a Europa (antiga potência do mundo ocidental) arrasada
e o resto do mundo traumatizado, os EUA se viram com uma opor-
tunidade única de estabelecer de uma vez por todas seu domínio
como nação hegemônica diante do mercado mundial. Enquanto ofe-
reciam a ajuda financeira que permitiu a reconstrução do velho con-
tinente, através das políticas do conhecido Plano Marshall, os EUA
olharam para os países em desenvolvimento – o chamado terceiro
mundo – como um terreno fértil para que novas ideias e projetos de
crescimento se enraizassem e gerassem frutos. Porém, ao mesmo
tempo que eram construídos nações e mercados aliados aos inte-
resses hegemônicos estadunidenses, as especificidades históricas
da América Latina e de países de terceiro mundo na Ásia forneciam

2 Citado por DENNING, 2008, pg.xv (em tradução livre).

sumário 15
um terreno propício para que ideias mais “perigosas” se espalhas-
sem e gerassem uma onda de crescimento contrária aos objetivos
almejados pela hegemonia capitalista. Em outras palavras, após o
abalo causado pela Segunda Grande Guerra, o temido espectro do
comunismo voltava a rondar pelo mundo todo, se disseminando e
levando a promessa da revolução – ou ao menos da reforma, o que,
no contexto de meados do século XX já era uma possibilidade aterro-
rizadora demais para o conservadorismo de mercado. A partir de en-
tão, e para as próximas duas décadas, surgiriam os movimentos que
redesenharam as fronteiras políticas e ideológicas na geopolítica glo-
bal até hoje: a Revolução Chinesa (a partir de 1948), Cubana (1959),
e as Guerras da Coreia (1950 a 1953) e do Vietnã (1955 a 1975).
Assim como eclodiram, por reação contrária, as ditaduras militares
latino-americanas que abafaram o levante popular em seus países,
escrevendo as páginas mais sangrentas da história do continente.

Nos EUA, nação modelo da prosperidade e da liberdade abso-


luta do indivíduo, a repressão às ideias radicais de esquerda não se
deu, pelo menos de forma geral, de modo sangrento ou beligerante.
Se no resto do mundo a intervenção estadunidense era com tanques
de guerra e bombardeios aéreos, a contenda doméstica se resolveu
de forma mais burocrática. Utilizando-se de um expediente institu-
cional criado nos anos 1930 para tentar conter o avanço das ideias
comunistas após a Grande Depressão, a House of Unamerican Acti-
vities Committee (ou Comitê de Atividades Antiamericanas), a reação
conservadora estabeleceu um novo Red Scare (“medo”, ou “pânico
vermelho”) gerando a histeria nacional que configurou o período do
Macartismo. A partir de 1947 até meados dos anos 1950, quando
começou a perder força e virar uma piada nacional, o Macartismo
estabeleceu o processo de perseguição pública chamado, à época,
de “caça às bruxas”, em referência ao conhecido episódio de conde-
nação das supostas feiticeiras em Salém, Nova Inglaterra, em 1692.
Ao invés de bruxas e acólitos do Diabo, intelectuais e artistas comu-
nistas, ou simples liberais “fellow travellers”, eram intimados a depor

sumário 16
perante a HUAC, confessar seu antigo envolvimento com as causas
radicais e ainda por cima delatar antigos companheiros de viagem. O
processo era estabelecido como um espetáculo público midiático em
nível nacional e o simples gesto de qualquer tipo de resistência a seu
funcionamento era visto e divulgado como um perigo para a manu-
tenção do bem-estar social do Estado democrático estadunidense.

No thriller de cinema noir “Pânico Nas Ruas” (Panic in the


Streets), dirigido em 1950 pelo cineasta Elia Kazan, um vírus altamente
contagioso ameaça afundar a cidade de Nova Orleans em uma epi-
demia capaz de matar os cidadãos através de uma grave pneumonia
fatal. Kochak, o “paciente zero”, é um imigrante sérvio recém-chega-
do de forma clandestina ao país que se envolve em uma briga com
um perigoso contrabandista, Blackie, também ele imigrante. Diante
do perigo, o Dr. Clinton Reed, um jovem médico, tem apenas uma
noite para, auxiliado por um chefe de polícia turrão e incrédulo (um
típico funcionário da lei do sul estadunidense), encontrar os envol-
vidos, decifrar a rota de contágio e evitar que tanto o vírus quanto a
notícia de sua existência se espalhem, afundando a cidade num misto
de paranoia e pandemia. Diante do esforço do médico em encontrar
Poldi, o primo de Kochak e que poderia também estar contaminado,
Blackie acredita se tratar de uma corrida das autoridades em busca de
alguma mercadoria valiosa, e persegue Poldi para tentar lucrar com a
situação antes que a polícia o encontre. Na sequência final, enquanto
fogem da polícia, Blackie e seu capanga trapalhão Fitch espalham
pelas mercadorias nos galpões do porto o vírus do qual já são tam-
bém hospedeiros, ameaçando contaminar, de quebra, as cargas que
serão espalhadas por todo o território americano, caso o esforço do
Dr. Reed e de seu amigo detetive não o interrompam a tempo. A jun-
ção, fácil de perceber nessa sinopse rápida, de elementos tais como
imigrantes do Leste europeu, submundo da criminalidade, autorida-
des descrentes e/ou despreparadas, um herói civil no qual ninguém
acredita a princípio, mas cuja inteligência é capaz de salvar a socieda-
de de um grande mal e o gênero de filme noir, já nos permite perceber

sumário 17
a alegoria política montada pelo filme. Seu diretor, Elia Kazan, era ele
mesmo um imigrante cuja origem profissional foi nos grupos de teatro
de esquerda que eclodiram nos ardentes anos 1930.

Em 1950 a HUAC já havia se instalado em Hollywood. Data


de 1947 o famoso processo que condenou os Dez de Hollywood à
prisão por desacato à autoridade, quando eles se negaram a cola-
borar com o Comitê. O Macartismo já era uma realidade, e o anti-
comunismo uma nova obsessão nacional. Elia Kazan, à época um
dos principais diretores em ascensão em Hollywood, era a figura
certa para dirigir filmes com alta voltagem política, utilizando-se da
estrutura convencional dos filmes de gênero. Em sua breve carreira,
ele já havia lidado com temas espinhosos da realidade nacional da
época, como a injustiça do sistema punitivo penal dos EUA (em “O
Justiceiro”, de 1947), o antissemitismo (“A Luz É Para Todos”, tam-
bém de 1947) e o racismo sulista (“O Que a Carne Herda”, de 1949).
Mesmo tendo experimentado diversos gêneros, como o melodrama
social (“Laços Humanos”, sua estreia no cinema em 1945) e o fa-
roeste (“Mar Verde”, de 1947)3, foi na tradição dos filmes de gangster,
atualizada e redimensionada pelo cinema noir, que Kazan encontrou
a linguagem para tentar refletir o período de perseguição e paranoia
que contaminava a opinião pública, e produzia uma legião de artistas
desempregados por efeito da blacklist. Por exemplo, o comediante
de origem judaica Zero Mostel, que após ter sido listado por não
colaborar com a HUAC foi contratado por Kazan para viver Fitch em
“Pânico Nas Ruas” – seu personagem nesse filme é um atrapalhado
criminoso ocasional que não sabe lidar nem com o submundo onde
se enredou em negócios escusos, nem com a oficialidade da lei,
onde não se encaixa e da qual tenta se livrar na base da esperteza.

3 Os títulos originais dos filmes de Elia Kazan citados acima são: Boomerang (“O Justicei-
ro”, 1947), Gentleman´s Agreement (“A Luz É Para Todos” 1947), Pinky, (“O Que a Carne
Herda”, 1949), A Tree Grows in Brooklyn, (“Laços Humanos”, 1945) e The Sea of Grass,
(“Mar Verde”, 1947).

sumário 18
Porém, assim como a ficção não era capaz de refletir o conturba-
do momento político sem que se exigisse ao fim uma tomada de posi-
ção imediata e objetiva por parte dos realizadores, também a esperteza,
a criatividade ou mesmo a aposta de que os laços de solidariedade
seriam capazes de conter a dissolução do sentimento de coletividade
e consciência de classe se mostraram frágeis perante os devastadores
efeitos colaterais da epidemia histérica que o Macartismo disseminava.
Diante da pressão burocrática do sistema (com a conivência silencio-
sa dos grandes produtores de Hollywood) o que se testemunhou foi a
execução perfeita de um bem traçado plano de erradicação de todo e
qualquer pensamento progressista que havia feito a glória do cinema
político, e da arte como um todo, como efeito dos anos dourados da
Frente Popular. Diante desse cenário, não havia opções medianas ou
relativas: ou os artistas concordavam em fazer o jogo proposto pelo
sistema, e assim garantiam livre acesso aos estúdios e outros meios de
produção da cultura de massas nos EUA, ou aceitavam sua condição
de párias sociais, figuras tão indesejadas e combatidas quanto um cri-
minoso foragido ou um doente altamente infeccioso.

Em 1951, ao decidir se apresentar diante da HUAC para refazer


o testemunho sobre suas atividades políticas nos anos 1930 (presta-
do anteriormente de portas fechadas) agora de forma pública e co-
laborando com o Comitê – ou seja, entregando os nomes de antigos
companheiros de partido – Elia Kazan sabia a que tipo de processo
burocrático estava se submetendo. Sua decisão não foi impulsiva, e
nem movida por uma brusca mudança de opinião.4 Estando no auge

4 Segundo conta em sua autobiografia, Kazan consultou quase todas as pessoas que iria
delatar em seu depoimento à HUAC, antes de fazê-lo. A maioria delas eram os artistas
que formaram, nos anos 1930, a célula do CPUSA dentro do Group Theatre. Algumas,
como o dramaturgo Clifford Odets, também estavam sendo intimadas para depor e am-
bos acordaram em citarem-se mutuamente. Ainda, Kazan entregou os nomes de mem-
bros do Partido com função de recrutar jovens afiliados, o de um outro ator que atuava
como infiltrado dentro do Actors Equity Association (espécie de sindicato da categoria de
atores de teatro) e ainda os três produtores responsáveis pela Frontier Films, com quem
Kazan realizou o curta-metragem de documentário People of the Cumberlands, em 1937.
Segundo Kazan, porém, ele apenas os citou pelo fato de a produtora como um todo ser
listada como subversiva. Mas ele não tinha certeza se havia relação entre os produtores
e o CPUSA, sendo inclusive um deles abertamente anticomunista.

sumário 19
de sua carreira enquanto diretor de cinema e teatro – ele havia recen-
temente consolidado sua glória tanto na Broadway quanto em Holly-
wood após o sucesso retumbante das versões de “Um Bonde Cha-
mado Desejo” (A Streetcar Named Desire) respectivamente em 1947
e 19515 – seu nome não era apenas mais um na longa lista de artistas
e intelectuais convocados para prestarem depoimento. Kazan estava
no foco das atenções tanto do público quanto da indústria. Ainda,
tendo fundado em 1947 o Actor´s Studio, ele estava à frente de um
movimento de modernização de Hollywood através da prática de um
estilo de direção de cena que havia amadurecido após quase duas
décadas de trabalho no teatro. Estilo que se baseava, quase que
principalmente, em um novo espaço de colaboração ativa entre dire-
tor, ator e autor, através do uso do Método de interpretação realista
no trabalho de encenação de seus filmes. O sucesso de Kazan não
era individual, mas devia-se a toda uma geração do teatro dos EUA.
Não à toa, o aspecto colaborativo de seu trabalho não se restringia
a apenas uma produção ou outra, mas revelava-se na parceria contí-
nua com colaboradores que o acompanhavam desde os tempos do
Group Theatre ou que, ainda que iniciantes, através de seus profes-
sores e sua formação representavam um fio dessa mesma linhagem
(caso de Marlon Brando, aluno de Stella Adler e cuja escalação para
o papel de Stanley Kowalski na montagem original de “Um Bonde...”
foi uma sugestão direta de Harold Clurman, diretor do Group Theatre,
quando Brando era ainda um desconhecido).6

5 No Brasil, a adaptação cinematográfica da peça de Tennessee Williams foi lançada como


“Uma Rua Chamada Pecado”.
6 Sobre o trabalho de colaboração entre Kazan, Tennessee Williams e o elenco da montagem
original de “Um Bonde Chamado Desejo”, em 1947: “Observa-se, a partir desses depoi-
mentos, que a colaboração entre “autor-diretor-ator” foi fundamental para o sucesso do
resultado final. A luta de Kazan por alterar os moldes de produção na Broadway no proces-
so de criação da montagem, assim como a disponibilidade de Williams de se embrenhar
nesse processo, lapidando o texto original e recebendo interferências inclusive por parte
dos atores, e o entendimento de Brando em relação a um novo estilo de atuação, revelou
uma dinâmica de criação semelhante aos primeiros passos de Stanislavski com Tchekhov,
concretizando um novo modo de fazer teatral nos Estados Unidos.” GREVE, 2017, pg. 78.

sumário 20
Assim, Kazan tinha consciência do grande interesse público
de seu nome para a HUAC. E, mesmo no auge de sua carreira, sua
situação não estava tranquila. Seu último filme, “Viva Zapata!” (1952),
com roteiro de John Steinbeck7, era uma justificativa perfeita para o
Comitê levantar desconfianças em relação às posições políticas do
diretor: contava a história de um revolucionário – e, ainda por cima,
um ícone latino-americano – o mexicano Emiliano Zapata (vivido no
filme por Marlon Brando). Para Kazan, porém, duvidar de seu antico-
munismo com base nesse filme era um grande equívoco, justamente
por esse ser supostamente (segundo seu depoimento à HUAC) um
filme “anticomunista”. Afinal de contas, o filme mostra que Zapata
teria sido traído por um personagem que era uma espécie de revolu-
cionário profissional, ou seja, alguém que se ocupa em esquematizar
e manipular revoltas, seguindo orientações de sua organização parti-
dária, negociando posteriormente o resultado desses movimentos de
acordo com interesses externos. Assim, para Kazan, mais do que um
equívoco, era uma espécie de afronta à sua visão de mundo ter seu
nome confundido com uma organização com a qual ele mesmo havia
nutrido no passado profundas esperanças e, posteriormente, gran-
des desilusões, e da qual ele tinha, no momento, a pior consideração.
Mas, diante das contínuas desconfianças da HUAC, que começavam
a emperrar sua carreira, ele sabia que arriscava tanto falando quan-
to permanecendo em silêncio, e ao fim a balança de sua indecisão
pesou para o seu inflado anticomunismo, ainda que isso significasse
colaborar com o Macartismo. Anos mais tarde ele relatou:
Eu sempre vi os dois lados de todo assunto e todo julgamento.
Então, no corpo da minha convicção surgiu o verme da dúvida.
Eu ainda acreditava que o que eu tinha feito era correto, mas
não importava que as minhas razões haviam sido fundamenta-
das com sinceridade e cuidadosamente pensadas, havia algo de
indecente – era assim que eu sentia, como uma vergonha – no
que eu havia feito, e algo de obscuro em minhas motivações.

7 Um dos escritores mais icônicos da literatura realista da geração de 1930, principalmente


por conta de romances como “Sobre Ratos e Homens” (Of Mice and Men), de 1937, ou o
épico “As Vinhas da Ira” (The Grapes of Wrath) publicado em 1939.

sumário 21
O que eu fiz era correto, mas era o certo? Qual forma de egoísmo
estava escondido em todas as palavras bonitas, quão poderoso
foi o papel que o meu amor por fazer filmes, que eu estava des-
contando do assunto, representou no que eu fiz? Eu me sentia
não resolvido, alternadamente humilhado e então ressentido por
todos os que me criticaram. É por isso que eu permaneci reserva-
do e em silêncio por tanto tempo. Meu refúgio foi o que eu sempre
fiz, afogar os sentimentos tristes no meu trabalho.8

O reflexo desse conflito foi que, mesmo colaborando com a


HUAC, sua situação não melhorou. Por um lado, os produtores sen-
tiam que seu nome estava um pouco “manchado” perante o público
por conta de seu envolvimento nos processos políticos da HUAC, e
deixaram de dar crédito a seus projetos pessoais, relegando para ele
propostas de filmes menores e de um certo caráter proselitista em seu
anticomunismo – como o drama “Os Saltimbancos” (Man on a Tightro-
pe, 1953) produzido para a 20th Century Fox, que conta a história real
da fuga de uma trupe de circo da Tchecoslováquia após sua anexação
à URSS. Por outro lado, Kazan tornou-se um pária no meio de seus
antigos colegas de profissão. Pessoas mudavam de lado na calça-
da para não cruzarem com ele, mandavam mensagens de desprezo
pelo correio ou ligando em sua residência, e mesmo os membros do
Actor´s Studio o ignoravam dentro da instituição, ou falavam com ele
apenas para deixar expresso seu descontentamento.9

Por isso que, ainda que realizando uma espécie de relato de


vingança pessoal contra seus detratores (no que era secundado
pelo roteirista Budd Schulberg, que também havia colaborado com a
HUAC e experimentado o mesmo desprezo por parte de antigos co-
legas) ao filmar “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront) em 1954,
Kazan não possuía uma experiência tão vitoriosa assim para con-
tar. A própria história da produção do filme dá conta dessa situação.

8 KAZAN, A Life, 1988, pg. 500 (em tradução livre).


9 Conta-se que a reação de Marlon Brando ao saber do depoimento de Kazan foi querer
socá-lo na primeira oportunidade que tivesse de se encontrar com o diretor nos corre-
dores do Studio.

sumário 22
O projeto, desacreditado pelo agente do diretor (que não achou o mo-
mento muito propício para um filme de temática política) passou de
mão em mão entre os grandes produtores de Hollywood até ser final-
mente aceito por Sam Spiegel, figura que tentava construir sua carreira
como produtor independente, desvinculado de um grande estúdio10.
Só depois de um longo processo de discussão e reescrita do roteiro
a seis mãos (por Kazan, Schulberg e Spiegel), foi levantado o dinheiro
para o filme ser rodado em locação – ou seja, fora do estúdio e con-
sequentemente longe da vistoria constante de seu produtor no set de
filmagens, o que garantiu uma maior liberdade de realização a seus
autores – e fechado um acordo de distribuição pela Columbia Pictures.
Assim, o sucesso arrebatador de “Sindicato de Ladrões” foi todo pos-
terior, e em um cenário completamente desfavorável, contrariando as
expectativas de todos os envolvidos em sua produção.11

O filme, que se inscreve na tradição do cinema de gangster, oriun-


da do filão de filmes de problemática social produzida por Hollywood
nos anos 1930, parte da premissa básica de discutir a questão, canden-
te à época, do domínio da máfia sobre os sindicatos dos estivadores
nos portos de ambas as costas dos EUA (não é difícil de imaginar o
papel primordial que a atividade portuária exercia então na política e na
economia mundial, por ser a porta de entrada e saída das mercadorias
que iriam abastecer a circulação de produtos, em um cenário mundial
que estava ainda em vias da globalização). Terry Malloy, seu protagonis-
ta, é um ex-boxeador que trabalha como “faz-tudo” para a organização
criminosa que comanda o sindicato dos estivadores de um porto em

10 À época ele ainda assinava suas produções como Sam S. P. Eagle, por medo de que o
antissemitismo atrapalhasse sua carreira. Segundo Kazan conta em sua autobiografia, foi
com “Sindicato...” que, pela primeira vez, o produtor abandonou o nome de sonoridade
americanizada e assumiu a grafia judaica original.
11 “Revendo os velhos recortes de jornais eu encontrei uma página com nossas fotografias
ao receber o prêmio [o Oscar]. Meu rosto tem uma expressão que o de ninguém mais
tinha. E não era bonita. Eu não me sentia orgulhoso dela. Mas você consegue ver que eu
estava experimentando a vingança naquela noite, e estava gostando disso. “Sindicato
de Ladrões” era a minha própria história; e a cada dia que eu trabalhei nesse filme eu
contava ao mundo qual era a minha posição, e mandava os meus críticos se foderem.”
Op. Cit., pg. 570 (em tradução livre).

sumário 23
Hoboken, periferia de Nova Iorque. Desconfortável com sua situação e
seu envolvimento nos negócios escusos e criminosos de seu patrão,
Terry se apaixona pela irmã de um dos estivadores mortos pelo sindi-
cato, executado por quebrar o código de silêncio que os criminosos
impõem para garantir a fidelidade e o medo dos trabalhadores. Movido
por essa relação, Terry acaba por delatar, diante da Comissão do Crime
que investigava a máfia nos portos da cidade, seus antigos compa-
nheiros de sindicato, abrindo assim o caminho para que as autoridades
tentassem quebrar a influência da máfia no cais. E, como efeito de sua
atitude, Terry experimenta de princípio o desprezo de seus colegas de
trabalho por ter traído esse código de silêncio que constitui a ética do
lugar. Ao final do filme, ele caminha vitorioso, ainda que alquebrado
pela briga com os capangas de Friendly, ao encontro do representan-
te da companhia de navios que contrata os serviços dos estivadores,
fazendo com que todos os seus colegas o sigam, o que indicaria uma
suposta nova mediação das relações de trabalho no cais.

Porém, ainda que sob o efeito da grandiosidade da trilha sono-


ra, o filme monta ao fim uma situação ambígua, difícil de interpretar
de forma tão automática quanto a leitura de que Terry termina como
vencedor, ou como um novo líder de sua classe. As complexidades da
discussão da delação como atitude de validade política, as ambigui-
dades envolvidas na relação entre os artistas e a indústria, assim como
a dúvida sobre os caminhos a seguir diante do desmantelamento das
relações pessoais e de colaboração profissional marcou, de certa for-
ma, a classe artística como um todo em sua tentativa de se organizar
e, até mesmo, se defender, durante o período do Macartismo. Essa
ambiguidade colocava a própria classe também em uma corda bamba
(tal qual os circenses no título do filme dirigido por Kazan em 1953)
cujo equilíbrio era difícil de encontrar: o Estado condenava toda uma
geração de artistas por conta de seu posicionamento político e suas
atividades durante os anos 1930 e início dos 1940, tentando com isso
erradicar da cultura política do país qualquer tendência minimamente
subversiva; ao mesmo tempo, porém, a grande indústria de Hollywood

sumário 24
se aproveitava das conquistas estéticas que essa mesma geração
engendrou – como o Método de interpretação – absorvendo essas
técnicas e artistas para modernizar a expressão de seus filmes. Em
outras palavras, mesmo o trabalho dessa geração, e as relações inter-
nas entre seus realizadores, havia se tornado um campo em disputa.12

O objetivo desse livro é, através da análise formal de “Sindicato


de Ladrões”, compreender a obra para além de um mero discurso
alegórico de defesa da delação (como a tradição crítica determinou
sua recepção para a história do cinema), mostrando que o filme rever-
bera, em sua fatura, um ambiente de contradições que pressionavam
a relação entre as demandas do sistema de produção e os artistas –
levando em consideração, nesta análise, o histórico de conquistas e
pesquisas estéticas da geração de 1930 (geração à qual se ligam os
realizadores do filme). Para isso, reconhecemos no desenvolvimento
do Método de interpretação realista uma chave de compreensão da
obra, ao se revelar como um campo de disputa entre a tendências
e ideias que formavam o ambiente desse ramo da classe artística
estadunidense à época. Assim, partimos de uma reflexão sobre os
nexos indissolúveis entre a obra e seu tempo – aqui entendido como
o terreno histórico que possibilitou sua realização – buscando com-
preender, ao mesmo tempo: o modo como os artistas envolvidos com
a indústria do cinema de Hollywood se posicionaram diante da ex-
periência histórica comum (o Macartismo) e o impacto decisivo que
significou para a indústria o desenvolvimento do Método.

Como veremos, a técnica tornou-se um marco fundamental


nas relações de produção do cinema em Hollywood ao permitir uma

12 Abrindo o capítulo dedicado à análise do trabalho de Brando em “Sindicato de Ladrões”


no livro Acting in the Cinema, o crítico James Naremore diz: “Sem dúvidas, Hollywood
enxergou valor comercial em associar suas estrelas com um novo estilo (mesmo um estilo
que promoveu a criação da imagem de outsiders “artísticos” que desprezavam a publi-
cidade usual), mas criticamente falando, o termo “Método” tem sido sempre um pouco
vago, passível de ser associado a uma variedade de fenômenos”. NAREMORE, James,
1988, pg. 197 (em tradução livre). Como discutirei ao longo dessa obra, o Método foi uma
das principais colaborações da geração de Kazan para o desenvolvimento das relações
de trabalho na produção dos filmes de Hollywood.

sumário 25
emancipação criativa da categoria dos intérpretes, elevando-os à po-
sição de coautoria da obra cinematográfica, oferecendo de quebra à
indústria uma ferramenta decisiva no aprimoramento da produção de
seus filmes. Ao atentarmos para o fato de que a ação do Macartismo
representou uma operação de reorganização das relações criativas na
indústria cultural (fortalecendo o estabelecimento da nova ordem eco-
nômica que se ergueu durante a Guerra Fria) conseguimos ao fim elu-
cidar o papel de grande representatividade simbólica que “Sindicato
de Ladrões” tem para os caminhos do cinema nos EUA.

Esse livro se organiza através de um exercício de leitura dos


materiais do filme, ao longo do desenvolvimento de seu enredo. Assim,
no primeiro capítulo procura-se mapear os conflitos e situações que a
obra arma para desenvolver a sua discussão, partindo do reconheci-
mento de que o período (os anos 1950) oferece uma experiência de
crise nas relações produtivas da geração de 1930. Para isso, apre-
sentamos um panorama histórico que explica as peças e movimentos
principais em ação durante o Macartismo, assim como é apresentado
o histórico de colaboração entre os artistas envolvidos na realização
durante os “anos efervescentes” da década de 1930 – identificada pelo
crítico cultural Michael Denning13 como a geração do “cultural front” (ou
a “frente cultural”) – e a herança dessa atividade para os anos 1950.

A ideia perseguida é a possibilidade de que o Macartismo pos-


sa ter exigido dos artistas um exercício de reavaliação da experiência
estético-política dos anos 1930 para que fosse possível definir a forma
de colaboração desses mesmos realizadores com a indústria cinema-
tográfica no período de reorganização política que o mundo atraves-
sava durante a Guerra Fria. Assim, o exercício de leitura do filme nesse
primeiro capítulo foca na análise de como a obra é estruturada em sua
dramaturgia e encenação. Ao realizar o levantamento dos temas cen-
trais do filme, assim como identificar seus protagonistas e perceber o
jogo de relações estabelecido através do conflito entre esses campos

13 Em seu livro The Cultural Front – The Laboring of The Cultural Front – The Laboring of
American Culture in the Twentieth Century de 1989, grande fonte de referência para essa
pesquisa (Ver bibliografia).

sumário 26
de força, fica evidente o descompasso entre a atitude individual das
personagens – essencial para o desenvolvimento exigido pela tradi-
ção da forma dramática – e a responsabilidade com a esfera coletiva
– cuja representação quebra o desenvolvimento dramático ao trazer
para a cena um movimento mais amplo, configurado pela presença
dos grandes grupos, tema primordial do gênero épico. Desse modo,
a percepção dos conflitos principais que elaboram o filme evidencia,
na composição de seus quadros e cenas, um padrão constante de
registro do descolamento entre as figuras individuais e a representação
grupal. Esse padrão de composição das cenas pode indicar, através
da expressão estética, os conflitos que turvavam a sociabilidade dos
artistas no período, tentando refletir a dinâmica de dissidências e dis-
solução dos laços de solidariedade e consciência de classe.

O segundo capítulo, por sua vez, aponta para uma possível


aposta que a obra realiza na necessidade de reencontrar, ou refazer,
os laços e acordos capazes de garantir a manutenção de um senti-
mento possível de coletividade entre a classe artística dos EUA. É o
que chamo, aqui, de um impulso de “realinhamento”14, como forma
de tentar reconstruir os laços desfeitos – ou desalinhados – durante
o Macartismo. Esse impulso se dá não somente pela temática das
obras, mas também pelas formas de expressão, repertório técni-
co e, principalmente, pela tentativa de construção de um espaço
verdadeiramente colaborativo nas relações de produção do filme,
dentro da indústria onde a regra, para o sucesso, estava sendo a
colaboração com o “caça às bruxas”. Através de uma discussão
das relações pessoais de Terry na obra – primeiro rompendo com
a influência de seu irmão Charley e depois se unindo afetivamente
com Edie, formulando assim uma nova ideia de família – abre-se a
necessidade de discutir as consequências da adoção, por Holly-
wood, do famoso Método de intepretação realista que foi moldado

14 Tomo de empréstimo, para essa ideia, o conceito de “alinhamento” tal qual discutido por
Raymond Williams, grosso modo, o de uma conexão entre um artista e sua expressão
temático-formal com suas origens sócio-históricas. Esse conceito é apresentado e discu-
tido no capítulo 02.

sumário 27
pelo teatro nova-iorquino dos anos 1930, com base no sistema do
diretor russo Constantin Stanislavski.

O Método, que representa uma das maiores contribuições de


Hollywood para o cinema mundial, surge como um tema primordial para
a compreensão das influências que a geração da Frente Popular legou
para a cultura ocidental do século XX. Se o Macartismo operou uma
dinâmica de dissolução da consciência de classe e instaurou um cli-
ma de traição e desconfiança generalizada no meio artístico, a história
do Método, desde as pesquisas do Group Theatre nos anos 1930 até
sua entrada na indústria dos filmes pelo Actor´s Studio no fim dos anos
1940, é marcada pela aposta na manutenção de um espaço de trabalho
colaborativo nas relações de produção da obra cinematográfica, ainda
que inserida no grande sistema de Hollywood. Através de “Sindicato
de Ladrões” – filme considerado um dos marcos definitivos da eficácia
da adoção da técnica pelo cinema – podemos remontar o histórico da
dinâmica das relações entre os artistas de teatro e cinema no país, ao re-
cuperarmos o percurso de contendas entre as várias compreensões que
moldaram o Método como um grande campo de disputa entre pontos
de vista diversos sobre as relações entre a arte, a indústria e a política.

Por fim, o terceiro capítulo discute a avaliação final que o filme


realiza. Através da análise da última sequência (e levando em consi-
deração os pontos levantados nos dois capítulos anteriores) procu-
ramos discutir de que modo as ambiguidades internas da obra infor-
mam das contradições inerentes à prática das relações no período.
Nesse sentido, mostramos como a consideração do uso do Método
e a colaboração do elenco atuando como coautor do filme determi-
na, de maneira inequívoca, sua leitura final, revelando em sua fatura
camadas de sentido que contradizem a ideia que reduz “Sindicato
de Ladrões” a apenas uma alegoria automática da delação. Através
disso, poderemos reconhecer o conflito entre os diversos pontos de
vista diante da experiência histórica como sendo, ao mesmo tempo,
um diagnóstico da sociabilidade permitida pela indústria aos artistas

sumário 28
durante o Macartismo e um resultado do trabalho coletivo realizado
por esses mesmos artistas através da técnica de interpretação.

Se levarmos em consideração que “Sindicato de Ladrões” é um


filme que se estabelece como um fruto das conquistas da tradição
da arte de esquerda nos EUA em seu período de maior politização
(os anos 1930), a análise e discussão dessa obra nos permitem com-
preender os caminhos que a arte de voltagem política optou por seguir
em sua relação com a grande indústria cultural no século XX como
um todo. O que estabelece um testemunho da relação de, ao mesmo
tempo, resistência e concessão, que atesta o que chamo aqui de um
certo caráter negociador da forma artística diante da grande indústria,
e do desafio de dialogar com o público em geral. Assim como um tes-
temunho também das escolhas que os realizadores fazem ao estabe-
lecer os termos de sua colaboração com o sistema que regulamenta a
produção e a distribuição de obras de arte dentro da indústria cultural,
em diálogo constante com os movimentos da política e do mercado.

sumário 29
1
Capítulo 1

Luta corporal na beira do cais: a


crise do sentimento de coletividade
na cultura política dos anos 1950

Luta corporal
na beira do cais:
a crise do sentimento
de coletividade
na cultura política
dos anos 1950
JOE – Mas eu fiz isso! Esse é o ponto, eu fiz isso. O que meu
pai vai dizer quando souber que eu matei um homem? Eu sei o
que eu fiz. Eu matei a mim mesmo também! Eu estive andando
em círculos. Mas agora eu fui esmagado! Essa é a verdade.
Sim, eu não passo de um pardal, e eu sempre quis ser uma
águia! Mas agora eu estou suspenso – eu não sou bom – meus
pés não tocam mais o chão!

Clifford Odets, Golden Boy

Eu acho útil que alguns de nós tenhamos tido esse tipo de ex-
periência com os comunistas, pois caso contrário não os co-
nheceríamos tão bem. Qualquer um que tenha passado por isso
não será enganado por eles novamente. Hoje, quando o mundo
todo teme a guerra, e eles pedem por paz, nós já sabemos o
quanto esse pedido vale. Nós sabemos que amanhã eles terão
um novo slogan. O fato de ter experimentado em primeira mão o
espírito autoritário e o controle de pensamento, me deixou com
um ódio permanente disso. Me deixou com um ódio permanen-
te da filosofia comunista e de seus modos de atuação.

Elia Kazan, ezm seu depoimento à HUAC em 1951

sumário 31
Imagem 1 – O primeiro quadro de “Sindicato de Ldrões”

Estamos na beira do cais de Hoboken, Nova Iorque. Ainda que


à beira-mar, pouco se vê do oceano, e mesmo a prometida visão do
famoso skyline que deveria estar ao fundo, desenhando a moldura ma-
jestosa dos arranha-céus da badalada ilha de Manhattan, não passa
de um detalhe furtivo. Ao invés de uma composição de paisagem aber-
ta, o plano é dominado por linhas retas, diagonais e ângulos formados
pelos materiais brutos que delimitam esse ambiente do trabalho, como
a madeira, o ferro e as cordas formando cercas, pequenas constru-
ções flutuantes, guindastes e um gigantesco transatlântico que domina
a maior parte do quadro. Esse último monopoliza a atenção na imagem
forjando com seu corpo de ferro um ponto de fuga que aponta justa-
mente para o pequeno trecho onde se vê o topo dos prédios ao fundo.

Ressoando as batidas sincopadas da bateria no jazz frenéti-


co composto por Leonard Bernstein, a cena apresenta, logo nesse
primeiríssimo plano, as linhas de força que estarão em conflito no
desenvolvimento de “Sindicato de Ladrões”. Ocupando a maior parte
do quadro está o transatlântico, que com sua presença obstrui tanto o
acesso à vista do horizonte quanto a trilha pelo oceano, estabelecen-
do o ambiente de trabalho do processo de importação e exportação
de mercadorias nesse que é um dos “maiores píeres no maior porto
do mundo” (segundo a fala de uma personagem ao longo do filme).

sumário 32
Além de apresentar uma informação típica a essa paisagem – o cais
do porto de Nova Iorque – o navio estabelece uma ponta da cadeia
de relações nesse ambiente de trabalho. Afinal, ele transporta pelo
mundo todo as mercadorias que, depois de desembarcadas aqui e
em outros portos, serão distribuídas por todo o país, demarcando
esse espaço como fundamental dentro do sistema de circulação de
bens e valores que alimentam o mercado internacional. O gigantismo
conferido à embarcação pela composição do quadro sugere a impor-
tância do elemento na rotina do lugar: sabemos que a chegada dos
navios estabelece a necessidade do trabalho para os estivadores,
assim como o volume de mercadorias que ele transporta determina
a quantidade de trabalhadores que serão necessários para descarre-
gá-lo; por outro lado, dentro da estrutura das relações no ambiente,
o navio representa os empregadores, ou seja, o grupo que demanda
a força de trabalho e que regula a remuneração devida a essa – por
assim dizer, determina o valor mesmo dessa força de trabalho. Assim,
o espaço ocupado pelo navio no quadro faz referência a esse poder
estabelecido por dentro da estrutura dessas relações.

Prosseguindo na descrição do quadro, vemos no canto inferior


direito uma pequeniníssima embarcação de cor clara, fazendo contras-
te com a magnitude do transatlântico, e que forma com as linhas cruza-
das de seu mastro uma cruz branca. Esse símbolo, como reconhecere-
mos depois, faz alusão a uma força atuante no campo de embate das
relações do filme: a presença da igreja, através da qual o padre Barry
(Karl Malden), pároco da região, tenta mobilizar os estivadores para
reagir aos desmandos da máfia que domina o sindicato, estabelecen-
do a mediação entre estes e os empregadores. Finalmente, ainda no
canto inferior, mas ao centro, uma pequena cabana flutuante com uma
placa onde se lê “Yacht Club” e que serve como sede do sindicato dos
estivadores, um dos lugares onde Jhonny Friendly (Lee J. Cob) e seus
capangas se reúnem para administrar os interesses de sua corporação
mafiosa, negociando com as condições de trabalho e vida da catego-
ria à qual deveriam representar. Esse detalhe corresponde a um retrato

sumário 33
factual de um ramo do movimento sindicalista dos EUA que era, sabi-
damente à época, um dos maiores braços do crime organizado em um
país onde todos os meios de organização burocrática e financeira têm
algum tipo de relação com o crime, seja no Estado (em Washington, no
centro do país), na bolsa de valores (em Manhattan, na costa Oeste)
ou no coração da indústria do cinema (em Hollywood, na costa Leste).

Assim, desde seu início o filme já nos coloca diretamente no


centro do conflito. Se durante a exibição dos créditos na abertura,
onde o “Waterfront Theme” – faixa sóbria executada num “Andante
digníssimo” (“with dignity”) – acompanhava com suntuosidade os no-
mes da ficha técnica, o primeiro plano é apresentado por uma quebra
de atmosfera. Sob o som da “Murder Theme”, a imagem estática do
quadro formado pelas linhas e ângulos é quebrado por uma fila de
homens que sai da cabana flutuante. Então, a primeira fala do filme
indica que um esquema está sendo executado: “Agora é com você,
campeão!”15. A gíria, remetendo ao mundo do boxe (slugger), soa irô-
nica ao vermos um desajeitado Marlon Brando ocultando sua famosa
exuberância física no casaco acolchoado que os estivadores usam
para quebrar o vento cortante do cais, escondendo no casaco algo
que descobriremos depois ser um pombo.

Vemos no rosto de Brando que Terry Malloy, sua personagem, está


vacilante, incomodado. Ele olha para os lados, faz caretas, mas ainda
assim consegue atrair Joey para a cobertura, sob a desculpa de lhe de-
volver um dos seus pombos, que estava perdido – Joey Doyle, depois
descobriremos, é um pigeon (“pombo”), gíria usada para delator, além
de ser também um criador de pombos-correio. O andamento da cena
acompanha o ponto de vista de Terry, ainda inconsciente do que irá acon-
tecer. Seguindo o seu olhar, a câmera se movimenta em contra-plongée
desde a janela do apartamento de Joey e revela dois capangas que o

15 “Now you take it, slugger!”. Todas as falas citadas aqui são traduções minhas, a partir do
áudio do filme original em inglês. Por motivos de economia textual, anotarei também a fala
em inglês apenas nos casos que envolvam algum tipo de termo ou gíria cujo sentido seja
importante para a construção do discurso simbólico do filme.

sumário 34
esperam na cobertura. Ainda incorporando o olhar de Terry (que depois
de ter cumprido seu papel no plano se torna apenas um espectador) a
cena continua seguindo o rapaz até ele se encontrar com um pequeno
grupo de três gangsters que esperam por notícias da operação.

Somos então surpreendidos pelo grito de Joey, que interrompe


o andamento da trilha sonora, marcando o clímax da cena. Os gangs-
ters, junto com Terry, olham subitamente para a direção do grito, e a
câmera acompanha o movimento desse olhar registrando a queda do
corpo, com um certo aspecto teatralizado: diante da pequena plateia
formada pelos quatro homens, a câmera mostra em panorâmica o
prédio, uma espécie de cenário bidimensional de onde um bone-
co imóvel representando o corpo de Joey é arremessado. Porém, o
envolvimento dessa plateia com o espetáculo ao qual assiste não é
uniforme. Já sabemos que Terry foi surpreendido com a execução de
Joey. Já seus companheiros, mostrando o envolvimento frívolo e dis-
tanciado típico para a plateia ideal de um esquete épico (ainda mais
se considerarmos que eles já sabiam o final da história) arrematam o
assassinato com uma piada de mau gosto – ao dizer que “o canário16
podia até mesmo cantar, mas não voar” – e saem gargalhando para
beber ao sucesso da missão. Terry é deixado sozinho do lado de fora
do bar, desorientado pela descoberta do crime do qual foi cúmplice.

Essa pequena cena já nos apresenta um conflito fundamental


do filme ao mostrar logo de início o descolamento de Terry em relação
ao restante da quadrilha, devido à constante situação de ignorância
(no sentido de falta de informação) por parte do protagonista com os
processos nos quais se vê envolvido. Podemos supor, então, que esse
contraste entre a figura individual e o coletivo ao seu redor, captado
por enquadramentos mais abertos da câmera de modo a deixar essa
relação sempre em evidência, pode ser assumido como um elemento
estruturante na composição do filme.

16 “Canary”, outra gíria comum para delator.

sumário 35
A sequência da cena confirma essa suposição ao mostrar Edie
(Eva Marie Saint), irmã de Joey, também em contraste com a passivida-
de do grupo de estivadores que cercam o corpo da vítima – dentre eles
seu próprio pai. Recém-formada em um colégio de freiras, Edie acaba
de voltar ao bairro de sua infância, trazendo na bagagem o fator sim-
bólico de uma nova consciência que a instrução formal representaria
para as perspectivas da nova geração de uma família de trabalhado-
res, à época. Diante da relação de trivialidade que todos demonstram
ter com o assassinato – denotada pela ação mecânica dos policiais,
pelo silêncio dos outros estivadores, pela reza conformada do padre
e pelo comentário de uma vizinha que passa dizendo que “a mesma
coisa aconteceu com o meu Andy há cinco anos atrás” – Edie apre-
senta uma força de resistência. Ela está raivosa, e desafia até mesmo a
passividade do consolo oferecido pelo Padre Barry (“Você já ouviu falar
de algum santo que houvesse se escondido em uma igreja?”). A fúria
de Edie acusa igualmente a atitude silenciosa dos presentes ao esta-
belecer a ideia de que o silêncio perante as ações da máfia é, antes de
tudo, uma conivência, ou mesmo uma cumplicidade, com o crime. Na
sequência, ao arrancar de cima do cadáver de seu irmão as folhas de
jornal com o qual o haviam coberto, ela ainda evidencia sua preocu-
pação em não deixar que a morte de Joey se transforme em mais uma
notícia sem importância perdida no mar de letras e imagens que todos
os dias tingem de preto e branco o cotidiano do lugar. A referência ao
jornal paga tributo à inspiração do filme, que partiu de uma longa série
de reportagens escritas pelo jornalista Malcolm Johnson, denunciando
o esquema de corrupção no cais de Nova Iorque – o que à época lhe
rendeu várias ameaças de morte, mas também um prêmio Pulitzer.

A passividade dos estivadores, mesmo o silêncio acomodado


de seu pai ao olhar para o cadáver do filho, se deve ao fato de o jovem
ter quebrado um código moral que rege as relações no cais, e é conhe-
cido como D&D, ou deaf and dumb (de “surdo e mudo”). Traduzindo:
não se deve ouvir nem falar nada, apenas trabalhar e aceitar as ordens
do sindicato. A obediência a esse código estabelece a rotina de reco-
nhecer, na própria vítima, a culpada pelo crime cometido contra ela por

sumário 36
ter escolhido quebrar a ética de trabalho ao se tornar um delator. Edie,
cujo rosto furioso em primeiríssimo plano encerra a cena com ênfase
dizendo “Eu quero saber quem matou o meu irmão!”, já apresenta o
temperamento responsável pelo seu deslocamento do grupo ao qual
está inserida (os estivadores e seus familiares), da mesma forma que
a falta de conhecimento e o desconcerto de Terry o descola do grupo
de gangsters. Essa postura de resistência contaminará depois o padre
Barry – comprovando para ele o fato de que nenhum santo consegue
ajudar aos seus confiando apenas na eficácia do tempo e no poder da
fé – para depois chegar em Terry, dando-lhe finalmente algum tipo de
conhecimento e levando-o a também resistir ao sindicato através de
sua delação, quebrando o código de silêncio como fez Joey.

Porém, o filme não parece desenvolver automaticamente uma


defesa absoluta da delação como resultado imediato de um processo
de conscientização como o apontado acima. Pelo contrário, “Sindicato
de Ladrões” torna-se uma experiência problemática para o cinema dos
EUA justamente por não contornar as contradições e ambivalências nas
relações que estruturavam o sistema de produção do cinema à época
(auge da Guerra Fria e do período conhecido como Macartismo) e, pelo
contrário, incorporá-las à sua estrutura. Nesse mesmo momento, Holly-
wood estava absorvendo grande parte do manancial técnico desenvol-
vido por artistas que, nas décadas anteriores, buscaram construir uma
tradição estética mais alinhada com o debate das contradições sociais
do país. Dentre as diversas transformações geradas por essa absorção
de novas ferramentas, uma delas possibilita a toda uma categoria de
profissionais do sistema de produção, os atores, a conquista de uma
inédita capacidade de consciência e autonomia no desenvolvimento
de seu trabalho. Isso se dá por conta da absorção, por Hollywood, do
famoso “Método” de interpretação realista, que possibilitou o estabe-
lecimento de uma linguagem técnica comum entre os profissionais da
atuação do cinema. O Método foi responsável por elevar os intérpretes
a muito mais do que rostos conhecidos e amados pelo grande públi-
co, transformando-os em trabalhadores conscientes do fato de sua

sumário 37
expressão ser uma engrenagem a mais na produção das narrativas
desenvolvidas pelo grande cinema. Elia Kazan foi um dos principais
divulgadores do Método, reunindo nesse filme um elenco composto por
diferentes gerações e abordagens da técnica, todas se encontrando
na linhagem de pesquisa que se inicia com o Group Theatre, nos anos
1930, e vai dar no Actor´s Studio, fundado pelo diretor em 1947 (mesmo
ano do início das atividades do Macartismo em Hollywood).17

Assim, a consideração de um filme como esse, desde sua pri-


meiríssima cena, parece nos apontar que o movimento prometido
pela coletivização da classe (através da incorporação da técnica co-
mum de trabalho representada pelo advento do Método) esbarrava
na tendência a uma certa individualização do comportamento provo-
cada pelo movimento histórico (por conta da ação do Macartismo)
o que criou um impasse que marcaria a história do filme desde sua
conhecida premissa de realização: uma espécie de testemunho de
Elia Kazan e Budd Schulberg, diretor e roteirista, após terem aceito
colaborar, em 1951, com as investigações da HUAC. Como efeito
desse testemunho, ambos os realizadores foram desprezados por
seus antigos companheiros de atividade artística – e política, no caso
do diretor – desde os anos 1930, quando iniciaram suas carreiras em
meio ao ambiente de produção artística mais engajada que marcou o
pensamento intelectual hegemônico nos EUA de então. A experiência
de descolamento e embate entre indivíduo e grupo, que reconhece-
mos na abertura do filme pela apresentação de Terry Malloy e Edie
Doyle, encontra assim ressonâncias na própria situação dos artistas
diretamente envolvidos em sua produção, desde já revelando pistas
valiosas para começarmos a perseguir de que maneira esse embate
reverbera na relação estabelecida entre forma e conteúdo na elabora-
ção da obra como um todo. Essa relação pode também nos ajudar a
17 O elenco principal de “Sindicato de Ladrões” é composto por ex-colaboradores do Group
Theatre (Lee J. Cob, Karl Malden e Rod Steiger, além do próprio Kazan que também foi
ator e diretor na companhia) e novíssimos membros do Actor´s Studio (Eva Marie Saint,
que foi aluna de Lee Strasberg dentro do Studio) tendo como seu protagonista Marlon
Brando, discípulo de Stella Adler (outra famosa atriz do Group Theatre junto com seu
irmão Luther, membros de um das famílias mais tradicionais no teatro estadunidense).

sumário 38
compreender os sentidos dessa obra como testemunho de uma clas-
se em um momento histórico específico, assim como as influências
que esse testemunho legou para as próximas gerações de artistas.

CULTURA POLÍTICA, DO ALINHAMENTO


À CRIMINALIZAÇÃO

A literatura proletária emancipou uma geração de escritores


de origem étnica e da classe trabalhadora; ela lhes permitiu
representar – no sentido de falar por, e retratar – suas famí-
lias, vizinhanças, aspirações e seus pesadelos. Mesmo que
muitos desses romances e roteiros cinematográficos sejam
hoje meramente lembrados, seu efeito cumulativo transformou
a cultura estadunidense, tornando suas infâncias no gueto,
seus vagabundos e desempregados, sua prosa vernacular,
seus gângsters e prostitutas, mesmo seus ocasionais líderes
sindicais, em parte da mitologia dos Estados Unidos, parte da
imaginação nacional-popular.18

Em 1954, ano do lançamento de “Sindicato de Ladrões”, o Ma-


cartismo ainda estava no auge de suas forças. Suas consequências
eram sentidas na vida pública e cultural dos EUA, assim como nas
marcas que havia deixado nas relações da classe artística, principal-
mente da esquerda. A essa altura a blacklist19 já havia sido responsável

18 DENNING, Michael, 1998, pg. 229 (em tradução livre).


19 A principal fonte de referência para informações sobre o período do Macartismo em Holly-
wood consultada nesse trabalho é o livro The Inquisition In Hollywood – Politics in the film
community (1930-60) de Larry Ceplair e Steve Englund (Ver bibliografia). Em Hollywood,
os artistas que se negavam a colaborar com as investigações eram automaticamente
colocados em uma “lista proibida” (opto aqui por uma tradução livre do termo blacklist,
utilizado na época) acordada entre os produtores dos grandes estúdios, e ficavam assim
impossibilitados de trabalhar. Dezenas de atores, roteiristas e diretores tinham de encon-
trar meios, ou mesmo trabalhos, alternativos para conseguir se manter. Entre os escrito-
res, foi muito comum a prática do ghostwriting, através da qual eles contratavam pessoas
que se passavam por “testas de ferro” (ou fronts) que assumiam publicamente a autoria
dos trabalhos de artistas listados. Essa situação é abordada de maneira cômica no filme
“Testa de Ferro Por Acaso” (The Front, Martin Ritt, EUA, 1976), onde o personagem de
Woody Allen começa a trabalhar como testa de ferro para vários roteiristas listados e
acaba envolvendo-se cada vez mais com o processo de perseguição Macartista. O filme
reúne um time de artistas que nos anos 1950 foram colocados na “lista proibida”, como
o diretor Martin Ritt, o roteirista Walter Bernstein e o ator Zero Mostel.

sumário 39
pela aposentadoria compulsória de diversos artistas dos estúdios de
cinema, pelo exílio de alguns – como a atriz mexicana Rosario Re-
vueltas, protagonista do filme “O Sal da Terra” (Salt of the Earth, EUA,
1954, Herbert Biberman,) – e até pela morte de outros – como o ator
John Garfield, vítima de um enfarte provocado pela tensão de seu en-
volvimento com o Comitê. Ainda assim, os piores anos da presença
do Comitê para Atividades Antiamericanas em Hollywood já haviam
passado. Se em 1947, durante a primeira grande investida da HUAC
ao coração da indústria cinematográfica a opinião pública assistiu ao
julgamento e prisão dos famosos “10 de Hollywood”, durante a se-
gunda investida, em 1951, centenas de artistas foram intimados a de-
por. Como motivo para a intimação, bastava que uma figura houvesse
simplesmente participado de qualquer tipo de ato ou manifestação de
fundo político em um momento qualquer de sua trajetória profissional.

A grande questão é que, durante os anos dourados da década


de 1930 quando a pesquisa de uma estética proletária de esquerda se
desenvolveu largamente nos EUA, grande parte da intelectualidade e
da classe artística nacional se viu engajada em um esforço conjunto
de oposição ao crescimento do fascismo europeu, tentando impedir
também que suas influências se fortalecessem no solo americano. Com
essa pauta em comum, radicais e liberais se uniram no movimento que
ficou conhecido como Frente Popular – emulando as ações de resistên-
cia semelhantes que surgiram na França e se espalharam pela Europa.
Assim, bastava que uma celebridade houvesse participado, digamos,
de um jantar organizado com o fim de angariar fundos para ajudar as
vítimas da Guerra Civil Espanhola em 1936 para que, 15 anos depois,
fosse intimada a comparecer perante a HUAC com o objetivo de es-
clarecer suas atividades por assim dizer políticas – sob a exigência de,
como forma de cooperação, delatar antigos companheiros de ação.

A colaboração com o Comitê era o único meio de garantir a um


artista intimado a depor que sua vida profissional estaria assegurada,
já que o acordo da blacklist, primeiramente estabelecido entre os
produtores de Hollywood, havia se tornado uma pressão da opinião

sumário 40
pública como um todo, que poderia boicotar as produções que se
mostrassem solidárias com algum possível inimigo da democracia.
É óbvio que esse estado de vigilância perpétua havia se estabele-
cido e era mantido através de uma ação conjunta dos setores bu-
rocráticos governamentais e das agências envolvidas na indústria
– produtores, distribuidores e mesmo a grande mídia. Mas (e isso
não era segredo para ninguém) o que estava em jogo no processo
que ficou conhecido como “caça às bruxas” era a sustentação de
um estado de histeria coletiva suportado por cidadãos que estavam
atentos para que nenhum tipo de “ameaça externa” atacasse a so-
berania política do Estado – e do livre mercado. Assim, de acordo
com o senso comum o ato de delatar era visto como uma espécie
de obrigação moral: era a quebra de um pacto de silêncio que servi-
ria apenas para ocultar possíveis agitadores que, caso assumissem
a postura de defender o direito pessoal de se manterem calados (di-
reito esse garantido pela própria constituição) estariam dessa forma
automaticamente declarando que tinham algo a esconder...

Diante disso, todo o ritual instituído pelo Comitê, de intimação,


confissão do intimado e delação de outros nomes para futuramente se-
rem também intimados, era um espetáculo encenado necessariamen-
te para ser visto e apreciado por essa mesma opinião pública. Ter um
nome apontado não ofereceria ao comitê nenhum tipo de informação
nova. Como Ceplair e Englund mostram em seu longo estudo sobre
os efeitos do Macartismo em Hollywood, muito dificilmente um nome
delatado já não estaria no foco das investigações. A atitude da delação
era, assim, o cumprimento de um gesto burocrático, ou de uma etapa
bem ensaiada no espetáculo midiático.

Por outro lado, e certamente também considerando o real signifi-


cado desse processo, a delação era vista entre a classe artística como
um gesto de traição. De certa forma, o delator se tornava responsável
pelas consequências que sua atitude acarretaria para os nomes en-
volvidos. Além disso, colaborar com o esquema do comitê era agir na

sumário 41
contramão da resistência à essa organização, fortalecendo o processo
de perseguição e condenação da liberdade de expressão individual e
alimentando o clima de histeria estabelecido. A delação se tornou um
tabu, um assunto capaz de destruir amizades, parcerias e casamentos.
E se, perante os produtores de Hollywood o delator era bem-visto, (o
que garantia seu livre acesso aos estúdios) diante da classe artística
como um todo e de círculos mais independentes da pressão da opi-
nião pública (como na Broadway, por exemplo) o delator se tornava
com frequência uma figura execrável.

É inegável o quanto o Macartismo foi bem-sucedido em deses-


tabilizar as relações dos grupos de artistas alinhados à esquerda, ge-
rando um clima de desconfiança generalizado, tornando movediço o
solo onde a base de sustentação desses grupos estava fincada. Como
resposta a isso, a solidariedade se tornou um tema candente, marcan-
do algumas produções da época. Era vista como uma atitude capaz
de garantir uma rede de resistência provocando de fato um movimento
de empatia, onde os artistas se ajudavam mutuamente, seja com seu
silêncio diante de uma força de opressão maior, seja com qualquer tipo
de ajuda prática, como oferecer trabalho para quem estivesse listado.20

Para se aproximar de um filme como “Sindicato de Ladrões”


é essencial compreender esse pano de fundo histórico, assim como
entender a obra como uma tentativa de fazer um balanço desse perío-
do. Isso não é novidade nem motivo para tese de leitura. Ao contrário,
esse é o ponto de partida. Muito já se foi publicado e repetido sobre
as declarações do próprio Kazan de que o filme era uma espécie de

20 Algumas produções teatrais da época abordam o tema da solidariedade como uma pro-
blemática que deveria estar em pauta nas relações à época. Esse é o pano de fundo da
discussão apresentada por Arthur Miller em “Um Panorama Visto da Ponte”, (A View From
the Bridge , 1955-56), por exemplo, onde o delator em questão é um estivador que recebeu
sobre seus cuidados dois imigrantes ilegais, parentes de sua esposa, mas que, por ciúmes
da relação de um deles com sua sobrinha, os denuncia ao Departamento de Imigração.
Um outro texto de Miller, esse muito pouco conhecido, a peça em um ato A Memory of Two
Mondays (1955, sem tradução no Brasil)) retrata o círculo de proteção que se forma ao redor
de um funcionário alcoólatra, por seus colegas de trabalho, em uma oficina mecânica em
meio à Grande Depressão, para tentar garantir que o patrão não o demita.

sumário 42
“testemunho pessoal”, e que Terry Malloy, no fundo, era ele. Porém
(e isso é o que deve ocupar o trabalho de leitura) não é assim tão
evidente a postura que o filme representa diante dos tempos. Não se
pode dizer de forma alguma que “Sindicato...” é uma obra proselitista
e de propaganda automaticamente reacionária – como se assume
com facilidade em obras muito comuns no período, como “Nuvens de
Tempestade” (I Married a Comunist ou The Woman On Pier 13, Robert
Stevenson, EUA, 1949) ou “A Ameaça Vermelha” (The Red Menace, R.
G. Springsteen, EUA, 1949). Antes, é um filme complexo onde os sig-
nificados levam a um discurso ambivalente, pois sua filiação política
não é assim tão clara quanto o inventário de seus temas mais diretos
– a delação, o Macartismo, a corrupção moral dentro de movimentos
políticos ou mesmo o tema da corrupção e do crime no sindicato dos
trabalhadores dos portos, tema que garante uma primeira leitura do
filme como obra de “problemática social”. Se, por um lado, o filme
pode ser taxado de colaboracionista, por outro, a ênfase na problema-
tização do processo de formação da resistência de Terry, Edie e padre
Barry complexifica o direcionamento unilateral dessa colaboração.

Se é certo que a figuração do sindicato criminoso se apresente


como possível alegoria direta a um tipo de organização política como
o Partido Comunista, ao mesmo tempo em que a encenação da estru-
tura da Comissão do Crime do Estado de Nova Iorque tenta emular a
dinâmica de funcionamento da HUAC, por outro lado é evidente que o
tipo de obscurantismo e opressão à capacidade de pensamento e rea-
ção individual que o filme combate é o mesmo que era fomentado pelo
clima de histeria que o Macartismo implantou no país. Se, por um lado,
a Igreja Católica se transformou, durante os anos 1950, em símbolo
moral de combate à ameaça comunista por conta de sua histórica opo-
sição aos movimentos de esquerda e sua aliança com os governos de
direita, por outro lado a figura do padre Barry não se cola ao discurso
oficial da instituição, e nem se liga a uma teologia meramente abstrata

sumário 43
e espiritualista.21 Antes, invoca um papel social que a Igreja pode ter
como espaço de voz e defesa de seus fiéis para as batalhas da vida
terrena extramuros, e não somente contra os inimigos “internos”, como
o vício, o pecado ou outras coisas do tipo22.

Elia Kazan faz parte de uma geração de trabalhadores e imi-


grantes que, nos anos 1930, através dos estudos e da formação es-
pecializada, alcançou um lugar na produção artística e intelectual que
possibilitou uma nova representação da experiência social popular
dos EUA. Segundo o crítico Michael Denning, esse movimento de-
terminou um novo aspecto da cultura estadunidense, de certa forma
redefinindo seus temas, formas e abordagens de representação ao
deslocar não somente o objeto de interesse das narrativas, mas tam-
bém o ponto de vista de quem as produz, para a classe trabalhadora
e suas questões. Em outras palavras, pela primeira vez os trabalha-
dores foram representados a partir de um ponto de vista interno às
suas condições de cotidiano e trabalho. Isso não se deu de forma
aleatória, e deve-se muito ao espírito que rondava o mundo nesse
período de entreguerras, como reação imediata à queda da bolsa de
valores em 1929, e diante do crescimento da influência do nazifascis-
mo na Europa. Assim, a situação socioeconômica foi determinante
para que o interesse das artes se voltasse mais para a realidade ime-
diata de seu público e artistas. Além disso, as políticas de incentivo à
educação, formação técnico-profissional assim como de estímulo ao
desenvolvimento artístico no governo Roosevelt, todas constituintes
do plano do New Deal, estabeleceram como hegemônica durante os

21 O senador Joseph McCarthy, que teve seu nome usado para batizar, perante a opinião
pública, o período hoje conhecido como “macartismo”, foi notoriamente um católico fer-
voroso e atuante dentro da Igreja.
22 A personagem do padre Barry foi inspirada em uma figura real, o Padre John M. Corri-
dan, conhecido como “the Waterfront Priest” (algo como “o padre do cais”). Padre John
foi extremamente influente no cais de Nova Iorque durante os anos 1950, e ajudou o
jornalista Malcolm Johnson em suas pesquisas durante a elaboração das reportagens
que denunciaram as práticas criminosas no cais, sendo ele também uma figura bas-
tante combativa. É sabido que o roteiro de Budd Schulberg cita trechos inteiros de um
famoso discurso do Padre Corridan em uma das mais emblemáticas cenas do filme –
que será analisada ainda nesse capítulo.

sumário 44
anos 1930 uma cultura de expressão mais diretamente política. Nos
EUA, como agravante à quebra da bolsa de valores, devemos tam-
bém ressaltar a execução dos imigrantes italianos Saco e Vanzetti em
1927 (acusados, sem provas convincentes, de estarem envolvidos
em um assalto seguido de duplo homicídio) como um estopim para
a indignação dos artistas e intelectuais do país, inscrevendo as con-
dições das classes trabalhadoras e das comunidades de imigrantes
como um assunto candente de preocupação nacional, fortalecendo
o impulso de coletivização, ou união em torno de uma mesma pauta.

Michael Denning denomina a expressão desse período da his-


tória do pensamento e da produção artística nos EUA como “cultural
front” (ou “frente cultural”), reconhecendo o que seria uma estrutura
de sentimento23 da época da Frente Popular. Segundo Denning, esse
impulso vigorou durante os anos 1930 e 1940 e durou até os anos
1950 e começo de 1960, quando essa mesma geração, definitiva-
mente inserida no aparato de produção da grande indústria cultural
dos EUA – cinema, televisão, jornais, mercado livreiro, universidades,
etc. – depois de amadurecer as conquistas estéticas dos anos 1930,
precisou rever e reavaliar sua experiência como forma de estabe-
lecer novos pactos para seguir existindo e produzindo diante dos
novos tempos (Guerra Fria, Macartismo, e assim por diante). Porém
– e como fruto direto das conquistas dos anos 1930 – a imagem
simbólica que os EUA tinham de sua configuração social já estava
completamente alterada. Como sintetiza Denning:
A Frente Popular foi um movimento insurgente forjado a partir
da militância trabalhista da recém surgida CIO [Congress of In-
dustrial Organizations], da solidariedade antifascista com a Es-
panha, Etiópia, China e os refugiados da Alemanha de Hitler

23 Termo cunhado por Raymond Williams, que revela a possibilidade do exercício da crítica
cultural de captar um sentimento, ou posicionamento que estruture a expressão de deter-
minada geração diante da experiência histórica, através da relação dinâmica entre forma
e conteúdo na obra de arte: “A correspondência de conteúdo entre um escritor e seu
mundo é menos significativa do que essa correspondência de organização e estrutura.
A relação de conteúdo pode ser mera reflexão, mas a relação de estrutura, muitas vezes
ocorrendo onde não há uma aparente relação de conteúdo, pode mostrar para nós o
princípio organizador pelo qual uma visão particular de mundo, e daí a coerência do grupo
social que a mantém, opera realmente na consciência.” (WILLIAMS, 1980, pg. 23)

sumário 45
e das lutas políticas da ala esquerda no New Deal. Nascida
dos levantes políticos de 1934 e coincidindo com o período de
maior influência do Partido Comunista na sociedade dos EUA,
a Frente Popular se tornou um bloco radical histórico unindo
sindicalistas industriais, comunistas, socialistas independen-
tes, ativistas e líderes comunitários e emigrados antifascistas
em torno de uma social-democracia trabalhista, do antifascis-
mo e dos direitos civis anti-linchamento.24

Por mais que a história oficial da cultura trabalhasse para ocultar


o aspecto mais especificamente popular de sua expressão estética,
com o intuito de tentar barrar toda e qualquer manifestação de cons-
cientização e formação política, não havia mais volta:
A cultural front é assim o terreno onde o movimento social da
Frente Popular encontrou o aparato cultural durante a era do
CIO. A partir dessa conjuntura e conflito veio o “sabor” de Frente
Popular da cultura de massa nos EUA, que eu irei denominar de
laborização da cultura estadunidense.25

Diante desse cenário, não é difícil entender, então, o significado


profundo que a delação adquiriu, durante os anos 1940 e 1950, como
atitude primordialmente de traição de classe.

A trajetória de Elia Kazan ilustra bem esse processo de “labo-


rização da cultura estadunidense”, explicado por Denning. Depois de
colaborar no Works Laboratory Theatre, coletivo que produzia peças
de agitprop26 (onde foi parceiro do também futuro cineasta Nicho-
las Ray) Kazan entrou para o lendário Group Theatre. Lá, integrou o
elenco de grandes sucessos do grupo, como Waiting for Lefty (1935),

24 Op. Cit., pg. 04 (em tradução livre).


25 Op. Cit., pg. 50 (em tradução livre).
26 Em linhas gerais, o agitprop (de “agitação e propaganda”) foi uma forma de teatro surgi-
da na Rússia pré-revolucionária com objetivos fundamentalmente políticos. Sua aparen-
te simplicidade cênica buscava instaurar eventos teatrais em qualquer lugar onde uma
assembleia pudesse estar reunida para, através das situações encenadas, propor uma
discussão coletiva. Uma boa definição do gênero é dada por Claudine Amiard-Chevrel:
“(...) uma forma acessível a um público amplo e que possa ser representada em qualquer
lugar e em qualquer momento, empregar todos os meios de expressão possíveis com a
condição de que contenham todos os procedimentos de interpretação capazes de levar
o espectador à ação, basear o espetáculo no ritmo!”. AMIARD-CHEVREL, pg. 132.

sumário 46
Awake and Sing (1936, traduzida no Brasil como “A Vida Impressa
em Dólar”) e Golden Boy (1937), todos textos de Clifford Odets, ex-
pressões formais de uma espécie de drama proletário praticado pelo
dramaturgo. Nessas peças, os protagonistas são imigrantes e traba-
lhadores cindidos entre, de um lado, as necessidades de manuten-
ção da vida cotidiana e as ambições pessoais de escalada social,
e de outro lado os compromissos coletivos que a ética pessoal im-
põe, como a luta pelos ideais políticos, a solidariedade de classe, e
a crença na conquista de melhores condições de vida. Geralmente,
esses conflitos eram encenados em ambientes familiares em proces-
so de desestruturação por conta do embate com elementos externos
– como o mundo dos negócios, o crime, a indústria cultural, as novas
relações afetivas e etc. – e expostos na forma de dramas psicológicos
que conduziam seus protagonistas a uma jornada de autodestruição,
ainda que acenando, ao fim, para uma pálida esperança na recons-
trução da experiência social – ou a conquista de uma nova espécie de
dignidade pessoal – através da reafirmação da força coletiva.

Assim, o teatro produzido pelo Group Theatre foi fruto direto do


período de engajamento cultural descrito por Michael Denning, tornan-
do-se, para a posteridade, no grande incentivador da expressão de pon-
ta da moderna dramaturgia estadunidense das décadas seguintes. Não
por acaso, o Group foi referência direta ou indireta para autores como
Arthur Miller e Tennessee Williams, em sua relação com os diretores,
atores e demais profissionais do palco (nomes como os já citados Kazan
e Odets, mas também os diretores Harold Clurman e Lee Strassberg, o
cenógrafo Mordecai Gorelik, os atores John Garfield, Lee J. Cobb, Karl
Malden, entre outros). Seguindo o objetivo de atingir uma representação
cênica mais eficaz da realidade social popular nos EUA, o foco da pro-
dução do Group Theatre foi a preocupação de fazer um teatro capaz de
falar sobre a classe trabalhadora para a classe trabalhadora. Um teatro,
por assim dizer, comprometido com a realidade e ponto de vista tanto
dos seus realizadores quanto de seu público. Mas, um aspecto funda-
mental que define a experiência do trabalho desenvolvido pelo Group

sumário 47
– assim como grande parte do teatro nos EUA – é a vinculação a uma
tradição dramatúrgica de terreno fortemente dramático, e onde a forma
do drama se desenvolveu com força cada vez mais crescente, ainda que
buscando se “modernizar” ou mesmo se flexibilizar diante dos novos
assuntos que os tempos apresentavam.27

Como consequência direta do esforço de profissionalização e


aperfeiçoamento da representação da experiência social em cena, e
de acordo com as exigências formais do drama enquanto gênero de
representação da realidade, as experimentações com um “método”
de interpretação realista, com base no sistema de interpretação do
diretor russo Constantin Stanislavski encontraram, no Group Thea-
tre, uma expressão cênica mais bem-acabada dentro de sua trajetó-
ria de influência das artes performáticas nos EUA. Esse acabamento
se devia à união da ênfase no processo de experimentação e pes-
quisa laboratorial do ator em sala de ensaio ao compromisso de
um resultado maduro no produto da peça pronta diante do público.
Se já durante os anos 1920 o sistema de Stanislavski começou a
ser difundido nos EUA pelo trabalho de Richard Boleslavski (antigo
colaborador do Teatro de Arte de Moscou emigrado para os EUA),
foi com o Group Theatre durante os anos 1930 que pela primeira
vez um coletivo profissional se debruçou sobre as lições do mestre
russo para adaptar esse modo de compreender o trabalho do ator
às especificidades do intérprete estadunidense.

Seguindo aquele impulso de “laborização” da cultura dos EUA


e de seus trabalhadores, conforme identificado por Michael Denning,

27 Esse processo é, aliás, bem similar ao descrito por Szondi como motivo para a crise do
drama europeu na passagem do século XIX para o XX em Teoria do Drama Moderno
(SZONDI, 2003). Da mesma forma, muitos dos temas apontados pelo teórico alemão
como motivadores da transformação da forma dramática também se relacionavam com
a realidade experimentada nos EUA dos anos 1910, 1920 e 1930. Basicamente, uma
nova configuração social impulsionada por massas migratórias, movimentação sindical,
crises no sistema de produção capitalista, fatores, enfim, que redefiniam a tessitura do
terreno social assim como, em consequência dessa redefinição, traziam novos conflitos,
personagens e situações para serem retratados pelo drama. Diante desses novos mate-
riais, a forma dramática teve então que se reorganizar internamente de modo a continuar
existindo enquanto instrumento de representação da experiência.

sumário 48
o Método significou uma forma de emancipação do ator dramático
(e principalmente em um primeiro momento, do ator alinhado com as
camadas mais populares do estrato urbano) enquanto profissional.
Um conjunto de ferramentas técnicas altamente elaboradas capaz de
possibilitar, ao ator, um domínio mais completo de sua expressão físi-
co-psicológica para ser utilizado, de forma consciente e propositiva,
na elaboração de personagens, colaborando assim com o esforço de
readequação da cena a uma expressão mais coerente, do ponto de
vista realista, da experiência social. Não por acaso, o Group foi celeiro
dos primeiros mestres americanos do Método, como Stella Adler, Lee
Strasberg e Sanford Meisner. Nas décadas seguintes, essa técnica
seria levada para o cinema pelos mesmos artistas que aperfeiçoaram
seu domínio nos anos 1930, em um processo de renovação da ex-
pressão do ator de Hollywood que culminaria na criação, em fins de
1940, do Actor´s Studio, espécie de continuador do legado do Group
Theatre, fundado pelos ex-membros Elia Kazan, Robert Lewis (atores
e diretores) e Cherryl Crawford (produtora).

Assim, para toda essa geração de artistas que atravessaram o


período entre os anos 1930 e 1950 produzindo e ampliando o repertório
técnico das artes nos EUA, discutir os problemas da classe trabalhadora
era discutir a própria condição enquanto trabalhadores das artes oriun-
dos da classe proletária do país. Essa analogia entre experiência social
direta e temática proletária pode nos ajudar também a compreender os
conflitos temáticos e formais que estruturam “Sindicato de Ladrões”28.

28 Segundo DENNING explica na introdução de The Cultural Front: “O núcleo desse cul-
tural front foi uma nova geração de artistas e intelectuais plebeus que cresceram nos
bairros das classes trabalhadoras negra e imigrante nas metrópoles modernistas. Eles
foram a segunda geração da segunda onda de imigrantes: italianos, judeus, polone-
ses, mexicanos, sérvios, croatas, eslavos, japoneses, chineses e filipinos, tanto quanto
afro-americanos que migraram para o norte do país. Filhos da educação pública, eles
se encontravam entre as memórias e histórias de seus pais e a realidade urbana das
ruas e lojas. Alguns se aliaram à pequena e militante Young Communist League; outros
se filiaram aos minúsculos partidos revolucionários que foram dissidência do Partido
Comunista; muitos não pertenciam a nenhuma organização política, mas apenas ado-
taram o nome; todos eram ‘comunistas’”. DENNING, pg. xv.

sumário 49
Foi durante seu período como ator do Group Theatre que Elia
Kazan teve uma breve passagem pelo CPUSA em 1936, sendo o
grupo também o motivo de seu desligamento do Partido. Segundo
Kazan, ele esteve envolvido no esforço de aumentar o poder de
influência do CPUSA dentro do Group Theatre, através das ações
de uma célula secreta formada por atores da companhia (inclusive
ele próprio). O objetivo era dar mais poder de decisão aos atores
na definição dos rumos do Group, que era gerenciado por três figu-
ras principais (Harold Clurman, Lee Strassberg e Cherryl Crawford).
Com isso – sempre segundo os depoimentos de Kazan – o CPUSA
acreditava que as produções do grupo poderiam estar mais afina-
das com um projeto de arte diretamente política. Perante o partido,
Kazan não foi bem-sucedido em sua missão, o que gerou uma ce-
rimônia de julgamento e exposição de sua conduta por meio de um
membro anônimo da alta cúpula do CPUSA (o “Homem de Detroit”,
segundo as memórias do diretor). Ainda que esse evento tenha le-
vado ao desligamento definitivo de Kazan do partido, foi essa ativi-
dade que justificou sua intimação para depor perante a HUAC em
1951. Foi essa memória que, segundo Kazan, o levou a colaborar
publicamente com o Comitê, por defender que o CPUSA era uma
espécie de inimigo a ser evitado, relacionando a organização a uma
prática política autoritária e oposta à liberdade de expressão – e, por
assim dizer, contrária à ideia de democracia que, supostamente,
forma as bases da sociabilidade dos EUA. Segundo o diretor:
Ao invés de trabalhar honestamente para o bem do povo ameri-
cano, descobri que eu estava sendo usado para colocar poder
nas mãos de pessoas pelas quais, individualmente ou em gru-
po, eu não sentia nada a não ser desprezo, e cujos padrões de
conduta me faziam sentir horror genuíno. Desde aquela noite,
eu nunca mais tive qualquer tipo de relação com o Partido.29

29 Trecho do depoimento escrito entregue por Kazan diante do Comitê. Página 2411 da
publicação oficial do governo dos EUA contendo as atas dos depoimentos da HUAC
(ver bibliografia).

sumário 50
A colaboração pública voluntária de Kazan com a HUAC em
1951, quando ele delatou os nomes de seus ex-companheiros de par-
tido nos anos 1930 (depois de ter prestado um depoimento a portas
fechadas meses antes e não ter informado nenhum nome) tornou-o,
para a classe artística em geral, uma figura símbolo da capitulação do
artista engajado perante as forças de repressão ideológica nos EUA
dos anos 1950. Se por um lado seus antigos companheiros de teatro
o evitavam por ele ter se utilizado da delação para garantir acesso
livre aos estúdios de Hollywood, por outro lado, dentro dos estúdios o
seu nome havia sido manchado pelo envolvimento em um escândalo
político que estava na pauta da opinião pública, o que lhe garantia
propostas de trabalho, porém nenhuma credibilidade, por parte dos
produtores, para seus projetos e vontades pessoais.30

O que podemos perceber, então, é que as discordâncias político-


-ideológicas que durante os anos 1950 marcaram radicalmente as posi-
ções assumidas pelos artistas diante do Macartismo não foram uma no-
vidade, mas reverberavam um ambiente de debates que já existia nos
anos 1930. Apesar do senso de comunidade que mantinha os membros
de uma organização como o Group Theatre unidos sobre um mesmo
ideal artístico, seu ambiente era também composto pelo convívio de di-
ferentes opiniões e filiações. Sejam essas no âmbito da construção das
relações de trabalho – como se pode perceber da história da interferên-
cia do partidarismo de Kazan nas suas práticas internas no grupo – ou
na compreensão das técnicas do trabalho – o que é exemplificado pelo
famoso embate entre as concepções sobre o Método de interpretação
que opunha, de um lado, Lee Strasberg (de tendência mais subjetiva,
apostando na exploração de uma psicologia profunda do ator) e de
outro Stella Adler (que tendo se encontrado com Stanislavski estava a
par das pesquisas do mestre russo a respeito das ações físicas e de
toda uma abordagem mais objetiva do comportamento da personagem

30 O testemunho de Kazan em relação a essas, assim como a outras passagens de sua


vida profissional e pessoal, pode ser consultado no livro A Life, sua autobiografia (KAZAN,
1997). Além disso, Kazan passou o resto de sua vida recontando e reavaliando, em entre-
vistas e depoimentos, os motivos que o levaram a colaborar com a HUAC em 1951.

sumário 51
em cena). Esse ambiente pode ser percebido ainda em histórias sobre
discordâncias a respeito de escolhas de repertório (como na decisão
por incorporar o agitprop Waiting for Lefty ao repertório do grupo, que
dividiu Strasberg e o elenco, tendo a decisão final de Harold Clurman
pesado para a vontade do coletivo de atores) ou mesmo nos motivos
que levaram à dissolução da companhia após dez anos de trabalho, e
que se deveu também à ausência cada vez maior de seus colabora-
dores devido aos convites que recebiam de Hollywood – e com isso,
inscrevemos a história da arte engajada dos anos 1930 nos EUA no já
conhecido ciclo do conflito entre ideal artístico coletivo versus as opor-
tunidades de ganho individual maior com a indústria cultural, que tanto
marcou a história da arte no Ocidente...31

Retomando a tensão entre indivíduo e grupo já reconhecida na


apresentação da sequência inicial de “Sindicato de Ladrões” e con-
siderando-a em relação ao movimento de reformulação das relações
conflagrado pelo Macartismo, seria possível então compreender os
anos 1950 em Hollywood como um momento de revisão da experiên-
cia estético-política acumulada pela geração de artistas de Kazan?
Uma geração que, tendo se formado no período de engajamento da
arte popular nos anos 1930, atingiu maturidade e prestígio nos anos
1950, quando encontraram uma estrutura do aparato de produção
que exigia deles um realinhamento ideológico, ou uma revisão de
suas posturas, ao mesmo tempo em que esse aparato se beneficiava
das conquistas técnicas que esses artistas introduziam no cinema –
conquistas essas que foram frutos da mesma tradição de arte política
que o sistema queria, através do Macartismo, silenciar.

31 Sobre os conflitos que, de maneira geral, determinam a história dos grupos de teatro
nos EUA, Mark Fearnow explica, em texto que escreveu para a Cambridge History of
American Theatre: “Parte da história da experiência dos grupos no teatro estadunidense
do século XX é a da tensão individual entre identidade grupal e os impulsos em direção
à fama pessoal e a fortuna.” E depois: “(...) as questões de administração e organização
social dentro do grupo iriam surgir novamente como o grande motivo de disputa entre
os seus membros (...) essa crise de poder na organização grupal provaria estar atrás
apenas do colapso financeiro como as principais causas para a desintegração dos
grupos.” FEARNOW, pgs. 343 e 344 (em tradução livre).

sumário 52
Para entender a significação do filme de Kazan para a indústria,
não é preciso ir muito longe. Basta citar a avalanche de indicações
ao Oscar que o filme recebeu, doze no total, tendo vencido em oito e
se tornado quase que automaticamente uma referência incontornável
para a história dos grandes filmes de Hollywood, a despeito do amplo
complexo de problematização política que o filme apresenta.32 Diante
desse cenário, não espanta que, por outro lado, um filme como “O
Sal da Terra” (produzido no mesmo ano) que aposta, pelo contrário,
na experiência de coletivização como um caminho de emancipação
individual através justamente da mobilização sindical dos trabalha-
dores, tenha sido boicotado por toda a cadeia de distribuição de
filmes no país, sendo a obra como um todo colocada na blacklist
e seus principais realizadores perseguidos, e mesmo condenados,
pela HUAC. Esse exemplo, cujo discurso político é oposto ao filme
de Kazan (e que teve também uma história bem diferente de recep-
ção pública e crítica) ilustra de modo bastante preciso uma certa
tendência encontrada na produção de filmes políticos em Hollywood:
um choque entre um alinhamento por assim dizer mais progressista
por parte de seus realizadores, e um aparelhamento reacionário e
conservador por parte dos produtores e distribuidores, o que cria um
espaço ideológico difícil e ambivalente, que dobra ao meio a capaci-
dade do cinema Hollywoodiano de enfrentar diretamente e de forma
livre as questões sócio-políticas que a experiência histórica estadu-
nidense produz – como veremos no terceiro capítulo, a discussão
sobre a validade da organização sindical é essencial para compreen-
der as dinâmicas das relações de trabalho no sistema de produção
de filmes na época. É o posicionamento e a reação a esse tipo de
choque, ou de dobra ideológica, que parece determinar a tessitura,
a recepção e a tradição de um filme como “Sindicato de Ladrões”.
32 O filme foi vencedor do Oscar nas categorias melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro,
melhor fotografia (Boris Kaufman), melhor direção de arte em preto e branco (Richard Day),
melhor edição (Gene Milford), melhor ator (Marlon Brando) e melhor atriz coadjuvante (Eva
Marie Saint). Foi ainda indicado para melhor trilha sonora (Leonard Bernstein), e mais três
indicações para melhor ator coadjuvante (Lee J. Cobb, Karl Malden e Rod Steiger). A consi-
deração dessa lista total de indicações e vitórias, com cinco citações para o elenco (e para
todos os seus personagens principais), é mais um dado para atestar o papel fundamental
que o filme tem na história do estabelecimento do Método em Hollywood.

sumário 53
Para entendermos o modo como esse filme dialoga com uma
tendência de produção de cinema político nos EUA, precisamos ana-
lisar com detalhes as já anunciadas tensões formais que o filme apre-
senta. Será que essas tensões, tanto na estrutura quanto no enredo,
apontariam para a configuração de uma espécie de forma híbrida, ou
negociadora? Esse aspecto que aqui chamo de “negociador” decorre
do fato de que essa forma tente incorporar elementos e ferramentas
técnicas mais elaboradas, imbuindo-se de um certo caráter progres-
sista – como o domínio do Método, ou a incorporação de múltiplos
pontos de vista na elaboração do desenvolvimento narrativo, através
da presença do coletivo como uma instância de força que desequilibre
o espaço do protagonista, que tem precedência garantida na tradição
do enredo dramático convencional. Porém, essa mesma forma deve
refrear o impulso de seus avanços técnicos ao ceder às exigências de
produção do esquema de Hollywood, ou negociar com elas (por exem-
plo, optando por promover o desenvolvimento dramático do enredo
através do enquadramento de uma história de romance entre os prota-
gonistas) visando atingir assim um retorno mais garantido de bilheteria
ou mesmo a obediência política e ideológica de seus realizadores aos
interesses dos grandes estúdios em tempos de Macartismo e blacklist.
Essa vinculação poderia, ao fim, lhe conferir um caráter conservador,
ainda que o filme apresente elementos técnicos que negariam – a prin-
cípio, ou em tese – esse mesmo conservadorismo.

Com o intuito de flagrar esse “movimento de negociação” em


atividade no filme e corroborar com essa hipótese, é necessário ana-
lisar o aspecto temático que, ao que parece, o problematiza logo na
sequência de abertura, ou seja, a já identificada tensão entre indivíduo
e coletivo na composição das cenas. Ao que parece, essa tensão de-
termina não só o desenvolvimento do enredo, mas a própria estratégia
de enquadramento e composição visual do filme como um todo, de-
marcando sua linguagem.

sumário 54
“O QUE HÁ DE ERRADO
COM O NOSSO GAROTO ESSA
NOITE, CHARLEY?”

Regenerar-se. Essa é uma das palavras favoritas de Holly-


wood. Talvez seja uma heresia, mas ainda estou para conhe-
cer alguém que conseguiu regenerar-se. Tampouco vi heróis
cem por cento puros correndo por aí. Todo mundo parece
fazer o melhor que pode para se dar bem e divertir-se, e se
isso significa guardar o que conseguiram, eles são capazes
de se tornarem fascistas; e se isso significa tentar conseguir
o que precisam e não têm, existe uma boa chance de apren-
derem a Internacional.33

O enquadramento das cenas de composição coletiva, uma


das mais famosas marcas do trabalho de Elia Kazan no cinema
(pelo menos nos seus primeiros filmes na passagem das décadas
1940 para 1950) são uma influência incontornável de sua forma-
ção como diretor teatral nos anos 1930, atividade que continuou
exercendo ao longo de sua carreira. Assim, a opção por enquadra-
mentos de enfoque mais amplo, ao invés de centrar o foco em um
personagem ou uma dupla através do jogo de planos em campo e
contracampo (marca da precedência dramática na narrativa Holly-
woodiana convencional), abrange os protagonistas da cena em re-
lação às outras figuras que estão ao seu redor. Isso faz do discurso
visual de “Sindicato de Ladrões” uma composição de grupos, tanto
para demonstrar e fortalecer a inserção de uma personagem espe-
cífica dentro do coletivo com o qual ela se relaciona, quanto para
estabelecer seu deslocamento em relação a esse coletivo. Por isso,
ao menos nas sequências iniciais, percebemos que o filme esta-
belece uma preferência pelo plano americano para enquadrar os
conjuntos de personagens.

33 Trecho do romance O Que Faz Sammy Correr? Publicado em 1941 por Budd Schulberg,
roteirista de “Sindicato de Ladrões” (SCHULBERG, 1994).

sumário 55
Imagem 2 – Capangas assistem à execução de Joey

Imagem 3 – O grupo de estivadores e o policial

Logo na sequência de abertura esse enquadramento é a op-


ção para apresentar a relação diversa dos dois grupos conflitantes
diante da morte de Joey Doyle: de um lado, o conjunto de capan-
gas que, diante da porta do bar de Jhonny Friendly assistem ao
desenrolar da ação (imagem 02); de outro, o grupo de estivadores
ao redor de Pop Doyle que olham para o cadáver de Joey, enquanto
são interrogados por um policial (imagem 03).

Ainda que supostamente constituindo dois coletivos opostos no


plano narrativo do enredo (capangas versus estivadores), esses dois
quadros já apresentam, cada um em si, um espaço de contradição

sumário 56
interna na relação das figuras, ainda que não seja tão evidente de prin-
cípio os termos e motivos dessa contradição. Em relação ao grupo de
estivadores, o quadro é composto por figuras distintas: três estivadores,
no canto esquerdo, virados em direção ao policial, que do canto direi-
to os aborda. Esse contraste demarca a situação entre trabalhadores
civis por um lado, e um oficial de polícia de outro, cujo estrangeirismo
a esse lugar vai ficando cada vez mais evidente no decorrer do filme
pelo aspecto óbvio de que, por mais que se trate de um filme sobre
gangsterismo e combate à criminalidade, a polícia, enquanto instituição
oficial de controle do crime e manutenção da ordem, não exerce uma
presença marcante como força de atuação no cais. Se por um lado
o temor instaurado pelos gangsters faz com que os estivadores não
procurem proteção policial, dificultando a ação dessa força, por outro a
impassibilidade dos trabalhadores diante da polícia evidencia um certo
desconforto nessa relação, o que nos informa de uma ideia de “falso
coletivo” que a noção de pertencimento ao Estado significa. Ora, se a
polícia é, teoricamente, a instituição que zela pelo bem e a seguran-
ça do cidadão, mas se os cidadãos retratados nesse ambiente não
estão à vontade para confiar nessa garantia de segurança, algo está
errado nessa relação. E sabendo do histórico de repressão e controle
que a força policial tem junto às manifestações da classe trabalhadora
estadunidense – assim como da violência histórica e estruturante do
sistema penal dos EUA – esse desconforto pode ser mais facilmente
compreendido sem que sejam necessárias maiores explicações.

Porém, entre o grupo de trabalhadores, ao fundo e mal ilumi-


nada, uma mulher se dirige também ao policial, cortando o diálogo
entre esse e os estivadores, querendo se fazer ouvida por ter sofrido
algo parecido com, pelo que parece, seu filho. No centro do quadro,
quebrando a direcionalidade da comunicação que o diálogo estabe-
lece, Pop Doyle olha para baixo, para o corpo do filho, e desconversa
para não responder às perguntas que o policial lhe faz. A atitude de
Pop Doyle é reforçada pelo silêncio dos seus companheiros, o que
torna o pequeno grupo uma espécie de coro, que através do silêncio
fala com bastante eloquência sobre a relação que eles têm, ou não,

sumário 57
com a lei naquele ambiente dominado pelas regras de conduta do
sindicato criminoso. É justamente por falar muito sem ser perguntada
que a figura da mulher se diferencia do resto dos estivadores, pois ao
contrário desses ela quer dizer tudo o que eles não se atrevem (assim
como Edie depois, confirmando internamente no filme essa possível
tendência feminina de quebrar a apatia dos homens). A cena é, ao fim,
bruscamente interrompida pela evasão final de Pop Doyle, que sai de
cena em resposta à insistência do policial.

Em relação ao quadro que representa o grupo de capangas, a


contradição é colocada pela figura de Terry Malloy. Em primeiro lugar,
ele se distingue dos demais por vestir um casaco comum de trabalho
na beira do cais, ainda por cima surrado e velho, em oposição a seu
irmão Charley (Rod Steiger) e os outros dois capangas, que vestem ca-
sacos de alfaiataria, chapéu e fumam displicentemente seus cigarros.
Além do vestuário, há uma diferença de postura e gestual que com-
põe imediatamente quase que duas situações distintas: os criminosos
tranquilos, olhando de cima e com uma postura muito à vontade, ainda
que se mantendo eretos em uma emulação de elegância burguesa, o
que contrasta fortemente com o desconforto de Terry, que não sabe o
que fazer com as mãos nem para onde ou quem olhar exatamente. Es-
ses diferentes comportamentos gestuais refletem também uma contra-
dição de segundo plano entre as figuras. Diante da ignorância confusa
de Terry sobre o destino de Joey, os três capangas apenas esperam a
execução final do plano cujos detalhes eles conhecem bem.

Essa forma de enquadrar Terry em relação ao grupo de ca-


pangas estabelece uma relação que ajuda a apresentar o protago-
nista como esse indivíduo deslocado, que se define, logo à primeira
vista, por seu contraste com o grupo ao qual pertence. Se a tensão
entre o anseio individual e o movimento coletivo é o que lhe ca-
racteriza, por outro lado fica evidenciada a função essencial que a
composição do grupo no quadro possui para ajudar a estabelecer
esse conflito do protagonista (figura individual) que não consegue

sumário 58
se expressar através apenas da expressão de sua subjetividade, de
forma independente dos outros ao seu redor. Assim, por meio das
cenas de conjunto Kazan evidencia para a câmera um espaço de
desconforto desse indivíduo em relação ao coletivo do qual faz par-
te, demonstrando, quase que de forma geométrica, Terry como um
literal ponto fora dos ângulos tão milimetricamente montados pela
posição dos atores no espaço. Essa tendência de composição já
apresenta um primeiro entrave para a concepção ideal de herói dra-
mático, portador de uma subjetividade autônoma e autossuficiente.

A mesma estratégia de deslocamento da figura individual


perante o grupo será também utilizada, em momento oportuno, no
posicionamento da figura de padre Barry nas cenas em que ele in-
tervém na rotina do trabalho no cais. Porém, ao contrário de Terry,
o padre investe conscientemente para desarticular essa rotina, bus-
cando romper o fluxo de relações e negócios escusos do local. Em
Terry flagramos um movimento ainda inconsciente, uma espécie de
resistência mal formulada cuja força de mobilização da situação vai
ser, ao longo do enredo, quase que dirigida por padre Barry como
instrumento capaz de transformar a rotina de trabalho (discutiremos
melhor mais adiante a presença do padre no filme).

Por ora, pensando à luz da situação evidenciada na seção anterior


– das relações desestabilizadas da classe artística de esquerda do país
durante o Macartismo – e considerando o histórico da delação de Kazan
e sua alienação dos círculos de seus antigos companheiros de teatro,
seria possível ler essa estética de composição de cena, que marca o
filme como um todo, como uma tentativa de expressão plástica que cap-
ture e traduza a experiência histórica, plasmando-a na composição visual
da cena dramática? Dessa maneira, a realização formal do filme poderia
apontar para a expressão do desconforto de classe do qual é fruto.

Para responder a essa suposição, vamos olhar para a composi-


ção dos quadros na cena seguinte ao assassinato de Joey Doyle, onde

sumário 59
o ambiente de relações internas da quadrilha do sindicato é apresentado
com mais detalhes, através da representação de sua rotina de trabalho.

O cenário é o bar onde o grupo se reúne e que leva o nome


do chefe, J. Friendly´s Bar. Sendo uma cena coletiva (uma reunião
da gangue em um espaço público) mas ao mesmo tempo de caráter
privado (eles tratam de assuntos secretos, só para os integrantes,
pois estão na esfera da ilegalidade e da contravenção) traz a noção
de grupo fechado, do pertencimento a alguma espécie de comuni-
dade que no caso se confunde, muitas vezes, com uma noção fami-
liar – comum na estrutura convencional das narrativas de gangster
ou de máfia, onde geralmente o traço étnico confere um caráter de
parentesco automático. Jhonny Friendly (Lee J. Cob) é uma espécie
de pai de todos, ou um grande irmão mais velho, que lutou sozinho e
subiu na vida a muito custo e, mais do que simplesmente empregar,
toma conta de todos os seus. Sua autoridade é absoluta. Aliás, o
sentido de pertencimento familiar entre os membros da quadrilha é
muito mais forte do que os que são encontrados entre laços consan-
guíneos. Quando estes se fazem presentes, como no caso de Terry,
essa relação de parentesco é um problema. Seu irmão biológico mais
velho, Charley, tem um cargo de prestígio dentro da hierarquia do
sindicato, e a todo tempo estabelece a mesma relação de proteção
com Terry que Jhonny diz estabelecer com aqueles que lhe são fiéis.
Porém, essa mesma relação já figura Terry como estando em desvan-
tagem, deslocado no seu pertencimento a essa família, em relação à
adequação de seu irmão mais velho dentro do esquema.

Esse deslocamento é já evidente, como foi dito, através da carac-


terização de Terry, que veste agora apenas uma camiseta esporte preta
de manga comprida e calça jeans, bem mais informal do que os outros
membros, que trajam paletó e chapéu. Essa figuração ajuda a evidenciar
a alienação de Terry em relação ao grupo em cenas coletivas como essa.
O primeiro plano no interior do bar (imagem 04) nos lembra o plano inicial
do filme, com sua composição em retas e ângulos conduzindo para um

sumário 60
ponto de fuga no fundo da imagem, com a diferença que, aqui, essa com-
posição é feita com figuras humanas, e não apenas através da geografia
do cenário. No caso do bar, o ponto de fuga vai dar em um dos capangas
que estão agrupados ouvindo no rádio a uma luta de boxe. Curiosamente,
esse capanga é o tesoureiro do grupo, que vem dar a Jhonny a notícia de
um empregado que está dando problemas para pagar sua contribuição,
justificando que o mesmo é favorecido porque é parente de Big Mac (o
capanga que administra o shape up, o esquema da distribuição de pos-
tos de trabalho). Assim, o assunto da fala do tesoureiro reforça o caráter
problemático dos laços de familiaridade direta. No caso, problematiza a
mistura de interesses pessoais (esfera individual) com trabalho (esfera
coletiva), sendo que as relações consanguíneas, íntimas, de certa forma
desequilibram os acordos estipulados pela família “de adoção”. O apro-
veitamento dessa situação para o enredo se dá justamente pela “rima”
que é criada com a relação entre os irmãos Terry e Charley, conforme cita-
do acima, e a subserviência de ambos ao chefão da gangue. Na mesma
cena, Jhonny pede para Terry contar o dinheiro recolhido das contribui-
ções ao sindicato, o que se revela uma brincadeira do chefe com a falta
de capacidades intelectuais do rapaz – ele perde a conta logo no começo.
Charley então continua o serviço para proteger Terry.

Imagem 4 – Primeiro plano do bar

sumário 61
Imagem 5 – Jhonny Friendly

Imagem 6 – Jhonny com capangas ao fundo

Imagem 7 – Saída de Terry do bar no fim da cena

sumário 62
Imagem 8 – Terry e Charley com capangas

Imagem 9 – Com Jhonny, contando as notas

Ainda sobre a composição visual do espaço de relações da


quadrilha, podemos perceber que a estratégia de composição de
planos americanos onde uma figura se destaca em relação ao gru-
po no qual está inserida servirá tanto para determinar a integração
dessa figura ao grupo, quanto seu descolamento. No primeiro caso,
é o modo como Jhonny Friendly é colocado em relação aos capan-
gas, sempre em primeiro plano nos quadros, seja por meio de sua
proximidade com a câmera, o que deixa sua figura engrandecida em

sumário 63
evidência (imagem 05) seja por ocupar o centro do quadro (imagem
06). No caso da imagem 05, é interessante perceber que seu rosto é
sobreposto ao mesmo plano que já foi apresentado no início da cena
(imagem 04). O perfil de seu rosto ocupando toda a extensão do qua-
dro, em sobreposição à imagem diminuta dos capangas ao fundo,
estabelece seu domínio sobre o grupo e sobre o espaço, o bar, que
mais do que um mero ambiente de diversão é um reduto de reuniões
e atividades da gangue. Ainda é interessante perceber que o rosto
de Jhonny é colocado em relação ao televisor que transmite a luta de
boxe e que atrai a atenção do grupo de capangas. Esse espelhamen-
to do rosto do chefão da gangue com o televisor confere para Jhonny
um certo magnetismo, uma condição de atenção e difusão midiática
de sua imagem e sua voz, que o personificam como uma espécie de
grande líder (algo bem próximo da composição da imagem de uma
espécie de ditador). É Jhonny, aliás, quem tem o domínio até mesmo
da difusão da informação que o televisor veicula, pois ele desliga o
aparelho quando se cansa da luta, independente de todos os outros
capangas estarem ainda interessados.34

Já na imagem 06, vemos uma composição onde Jhonny ocupa o


centro do quadro, tendo ao fundo cinco figuras que se colocam em sua
retaguarda, lançando atenção não necessariamente para Jhonny, mas
para quem o chefe se dirige (no caso, Terry). O interessante nessa ima-
gem está em perceber que, ainda que compondo um grupo uniforme
obediente a Jhonny, esse grupo apresenta também distinções internas.
Ao lado esquerdo um dos capangas sentados dorme encostado na pa-
rede, enquanto do lado direito uma figura feminina se coloca sentada
de costas para Jhonny, balançando o que percebemos ser um berço,
para o qual Jhonny depois se dirige. Ao mesmo tempo em que reafirma
a configuração da quadrilha mafiosa como um ambiente que se organi-
za de forma familiar, a presença do berço reforça, através da rima que

34 Vale lembrar que essa estratégia de demarcar poder através do espaço que uma figura
ocupa no quadro é a mesma observada, na abertura do filme, com o tamanho do transa-
tlântico em relação aos outros elementos, conforme mostrado na imagem 01.

sumário 64
compõe com o homem dormindo do outro lado, a imagem de Jhonny
como o grande pai que cuida e zela pela paz de seus filhos (ecoando,
assim, a figura de Jhonny como um ditador, já estabelecida na relação
dele com o televisor na imagem 05). A criança e o homem dormindo,
ambos na retaguarda de Jhonny Friendly e alheios ao andamento geral
da cena, por assim dizer “naturaliza”, para aquele ambiente, a condição
já observada de inconsciência de Terry, que age cegamente de acordo
com as ordens do chefe da quadrilha, e sob sua proteção.

O enquadramento da relação de Terry com o grupo é oposto


ao de Jhonny. Terry nunca se integra ao coletivo na composição dos
quadros, o que de certa forma evidencia sua função dentro da organi-
zação. Ele está sempre deslocado do grupo. Ainda, no mais das vezes
ele se encontra sempre de costas para o resto do grupo (imagens 07,
08 e 09) ou para a câmera (imagem 08). E o grupo está sempre olhan-
do diretamente para ele, e de maneira pouco amistosa (ao contrário de
quando são enquadrados com Jhonny Friendly). Interessante perceber
que quando Terry é mostrado de costas para a câmera, de certa forma
o enquadramento coloca o nosso posicionamento, enquanto especta-
dores, colado ao ângulo de visão da quadrilha. Seguindo a lógica de
que iniciamos a cena acompanhando a figura de Jhonny, e testemu-
nhando seu domínio sobre o ambiente, essa forma de ver Terry, a prin-
cípio, como um estranho, é coerente com o movimento estabelecido.
Isso porque, mesmo que já configurado como protagonista do filme
– por assim dizer, apresentando com seu alheamento o ponto de vista
ao qual já estamos mais próximos desde a primeira sequência, a morte
de Joey – ainda não sabemos ao certo quem é Terry Malloy, como pen-
sa e age. É através dessa cena que começamos a compreender seu
passado e os motivos que o fazem desconfortável com a execução de
Joey Doyle, da qual se viu cúmplice.

Assim, ao mostrar Terry de forma distanciada, em relação com


o espaço aberto e visto quase que “pelos olhos” da quadrilha (evi-
tando qualquer tipo de close ou enquadramento que jogaria o foco

sumário 65
apenas para a figura de Terry) o filme consegue explicitar melhor para
o espectador o descolamento de sua figura em relação ao coletivo.
Por não apresentá-lo como um elemento incômodo para os outros (o
que faria sentido se aderisse ao ponto de vista dos capangas), mas
antes como uma figura incomodada com o ambiente onde circula (um
reduto de contraventores) o filme tenta dinamizar nossa simpatia para
Terry e seus conflitos. Resta a dúvida, ainda, se esses enquadramentos
servem para estabelecer como certa a aderência do ponto de vista do
filme como um todo ao centro de consciência representado por Terry.

Seguindo o rastro de suas relações, Terry vai sendo mostra-


do em função de sua ligação com o irmão, com Jhonny Friendly e
com a própria organização da quadrilha. Ele não tem uma posição
determinada dentro do esquema de trabalho. É apenas um prote-
gido, uma espécie de “faz tudo” desprovido de qualquer talento ou
conhecimento específico, sendo dotado apenas de um temperamen-
to nervoso e impulsivo, o que o torna ainda mais como uma criança
crescida. Ainda por cima, é a única figura que ousa se incomodar
com a forma com que Jhonny administra seus negócios, e quando é
desafiado não consegue dialogar, apenas reage com agressividade.
Essa propensão à fisicalidade já é justificada também logo na sua
entrada, por conta de seu passado no boxe.

No início da cena, Jhonny Friendly reclama da luta que assis-


te na TV lamentando não haver ninguém mais “valente” como Terry
era. Entendemos então o porquê ele sempre se refere a Terry como
“slugger” (“campeão”). Assim também como, na chegada de Terry,
Jhonny o saúda com socos, em uma brincadeira de pugilismo. Ao fim,
Jhonny encerra a graça desferindo em Terry o famoso clinch, um golpe
em que um lutador abraça o adversário imobilizando os braços desse,
como forma de forçar o encerramento de um round. Jhonny ainda pega
Terry no colo e o levanta do chão, configurando essa atitude de posse
sobre o passe de Terry (ele o carrega, o domina) e de infantilização do
ex-boxeador (ele o pega no colo). Descobriremos mais para frente que

sumário 66
a carreira de Terry se encerrou justamente porque, constrangido pelas
ordens de seu irmão Charley em acordo com os interesses do esque-
ma de apostas de Friendly, Terry foi obrigado a perder uma luta a qual
tinha todas as condições para ganhar.35

O tema do boxe e a derrota de Terry estabelecem um pon-


to nervoso em seu passado, um evento que foi reprimido, mas não
resolvido, em consequência do qual seu presente está paralisado.
Isso emperra sua relação com Charley, seu irmão, gerando uma obe-
diência cega e ranzinza, que ecoa a submissão de ambos a Jhonny
Friendly. Esse conflito entre os irmãos vai interferir diretamente no
desdobramento da trajetória de Terry (como veremos no final do se-
gundo capítulo). Na cena que estamos analisando, a relação tensa
entre ambos e Friendly é capturada pela composição do quadro das
imagens 08 e 09, onde em primeiro plano vemos Charley (sentado
no canto direito), Terry (ao centro, de pé) e depois Jhonny, que rouba
a centralidade da imagem deslocando Terry para a esquerda inferior,
no movimento do rapaz contar as notas sobre a mesa de bilhar. A
subserviência de Terry às ordens externas na condução de sua carrei-
ra como boxeador determinou para o presente sua dependência ao
esquema de Jhonny Friendly. Para o chefão, Terry é um objeto, uma
mercadoria que lhe garantia lucro. Assim, enquanto Terry tenta contar
as notas, Jhonny se delicia ao lembrar do dinheiro que ganhou por
conta de uma vitória do rapaz no passado. A relação de dominação

35 Esse tema da carreira interrompida de Terry no boxe faz referência direta ao texto Golden
Boy, um dos maiores sucessos do Group Theatre, e expressão do desconforto de seu
autor, Clifford Odets, assim como dos demais membros do grupo, divididos entre se-
guir o comprometimento com um teatro engajado ou abraçar de vez as oportunidades
que Hollywood já lhes oferecia à época, “roubando-os” de sua atividade na Broadway.
Golden Boy encena a história de Joe Bonaparte, um jovem filho de imigrantes italianos
que sonha em ser violinista, mas que, aproveitando-se de sua excelente forma física,
acaba entrando no pugilismo em busca de dinheiro fácil. A despeito da insistência do
pai em seguir sua verdadeira vocação, Joe torna-se um excelente lutador até o momen-
to em que quebra sua mão nocauteando um oponente que, sob efeito do golpe, acaba
morrendo. Desesperado por ver-se como um possível criminoso e, ainda por cima,
impossibilitado de continuar a tocar violino, Joe passa a lutar cada vez mais desconcen-
trado e, ao fim, se suicida ao dirigir à toda velocidade o automóvel que comprou com o
dinheiro ganho com o boxe. Kazan, Lee J. Cobb e Karl Malden estiveram envolvidos na
montagem original de Golden Boy pelo Group Theatre, em 1937.

sumário 67
é mostrada de forma inequívoca através da marcação da cena: en-
quanto todos os outros capangas prestam atenção ao chefe, Terry se
debruça sobre a mesa de bilhar de costas para Jhonny, contando o
dinheiro ganho de contravenção. Jhonny se coloca por trás do garoto
e se apoia, de frente, em suas costas, segurando-o pelo quadril en-
quanto gargalha e, dando tapas fortes, movimenta o corpo dele para
frente e para trás. A erotização da cena, em uma sugestão rápida,
porém explícita, a um ato de penetração anal (através da posição dos
dois atores) evoca uma relação de dominação e posse de Terry por
Jhonny onde, através da acumulação de significados denotados pela
mesa de bilhar (o jogo de azar), o dinheiro nas mãos de Terry (fruto
de extorsão dos trabalhadores do cais) e a rememoração de quando
Terry era um lutador (quando tinha sua força física negociada nos
interesses do esquema de apostas de Jhonny) compõe uma imagem
nada lisonjeira para o ex-boxeador – ao fim da cena Jhonny dá uma
gorjeta ao rapaz enfiando dinheiro dentro da sua blusa pela gola,
remetendo a um gesto típico de pagar uma prostituta.

O interessante nessa imagem está (ainda trabalhando sobre


seu acúmulo de significados) no fato de que o homem que está na
posição passiva da relação é Marlon Brando, ator que à época o star
system codificou como um símbolo máximo de erotização da força e
da beleza masculinas no cinema, em grande parte por conta de suas
colaborações com Elia Kazan, que se utilizou da exuberância física
de Brando para compor personagens tão díspares quanto Emiliano
Zapata (o rebelde mexicano caracterizado de forma vigorosa em “Viva
Zapata!”, de 1952) e, talvez mais emblemático, o bruto e machista,
porém irresistível, Stanley Kowalski de “Um Bonde Chamado Dese-
jo” (1951). Isso demonstra uma consciência do aproveitamento da
imagem pública do ator envolvido no processo do star system para a
construção de significados do filme, que manipula, assim, esse sis-
tema de forma produtiva. Se atentarmos ainda que Brando, então já
conhecido como o grande ator de sua geração, está sendo dominado
por Lee J. Cobb, que no auge de sua carreira foi um grande astro do

sumário 68
teatro nos anos 1940, a cena ganha o caráter desconfortável de uma
“passagem de bastão” entre duas gerações de intérpretes.

O desconforto, ou surpresa, em ver Brando nessa situação cola-


bora com o sentido de inadequação e inabilidade do protagonista. Em
“Sindicato de Ladrões”, mesmo ainda estando no auge de seu vigor, a
beleza física de Brando é completamente oculta sob o figurino que lhe
cobre dos pés até o pescoço, por conta da camiseta preta de gola alta,
que termina exatamente na linha do queixo do ator. Ou senão, ele está
vestido com o típico casaco de trabalho dos estivadores que, por conta
do forro térmico para enfrentar os ventos gelados do cais, deforma sua
imagem tornando os contornos de seu corpo – e sua famosa muscula-
tura – imperceptíveis. Esse dado de caracterização da personagem é
demarcado mais fortemente ao atentarmos que, mesmo apresentando
uma história de amor como um dos fios condutores principais do enre-
do, o filme quase não desenvolve nenhuma cena de intimidade entre o
casal Terry e Eddie. Até mesmo a única cena de beijo mais longo ente
os dois se dá depois de uma luta corporal onde Eddie tenta se libertar
dos braços de Terry, que a abraça à força (lembrando o clinch dado em
Terry por Jhonny, formando uma rima desse gesto de dominação), e
quando ela finalmente cede à força de seus braços o casal se esconde
atrás da parede, sendo o beijo oculto do alcance da câmera.36

Ao que parece, um certo puritanismo que envolve a caracte-


rização da personagem de Brando e o desenvolvimento da relação
entre Terry e Eddie é mais intencional do que fruto do espírito moral do
tempo. Nessa primeira cena Terry é figurado como um homem de certa

36 Nos anos 1950 a censura moral era um forte determinante nas produções de Holly-
wood, oferecendo, do ponto de vista da opinião pública, manifestações de desagravo
e mesmo de boicote a filmes considerados imorais ou que supostamente incitassem à
perversão. Kazan foi um dos diretores que, à época, assumiu para seu trabalho o risco
de enfrentar tanto o escritório de censura de Hollywood, o famoso Breen Office (con-
tribuindo para a queda do código moral que estipulava o que podia e o que não podia
ser mostrado nos filmes, em vigência desde a década de 1930) quanto a ira do conser-
vadorismo da plateia. O lançamento de “Um Bonde Chamado Desejo”, que manteve
cenas aconselhadas de corte pelo Breen Office, foi um dos episódios mais famosos da
desobediência de Kazan à censura interna da indústria.

sumário 69
forma castrado, a imagem de uma potência física do passado (através
tanto da lembrança de Brando no imaginário do público quanto da
menção de Terry como um ex-campeão do boxe) cumprindo um papel
passivo e incômodo na relação de subserviência para com uma figura
cuja força não é erótica ou física no geral, mas hierárquica. Terry é, de
certa forma, um boneco, um corpo para usufruto exclusivo de Jhonny
Friendly, cafetinado pelo seu próprio irmão, Charley – cuja força, por
sua vez, é intelectual, conquistada através dos estudos. Se pensarmos
que também o seu processo de rebeldia ao sindicato será, de certa for-
ma, tutorado por padre Barry e Edie, então temos inequivocamente Ter-
ry como um protagonista inconsciente dos processos que atravessa,
sem qualquer apreensão organizada do sentido de sua experiência.

Para concluir a análise de apresentação de Terry em relação à


quadrilha, a imagem 07, na saída de Terry do bar ao fim da cena, espelha
por contraste a imagem 06. Assim como Jhonny, Terry está ao centro
do quadro com membros da quadrilha ao seu redor, tendo exatamente
também duas figuras à esquerda e três à direita. Porém, a relação do
grupo com a figura no centro do quadro está totalmente invertida. Todos
os capangas agora estão de costas para a câmera, em primeiro plano,
olhando em direção à Terry, que se encontra ao fundo (invertendo tam-
bém a relação dos capangas ao fundo de Jhonny, em primeiro plano,
na primeira imagem). Assim, se até agora víamos Terry pelas costas,
passamos também a ver os capangas pelas costas, observando Terry,
que assume definitivamente o centro da organização do quadro.

O interessante nessa inversão é que, ainda assim, o enquadra-


mento mantém um ângulo de visão externo em relação ao protagonis-
ta. Ainda enxergamos Terry à distância, quase como se estivéssemos
no meio dos capangas, de dentro do bar, assistindo Terry sumir na
penumbra, para fora do estabelecimento. Dessa maneira, o filme pro-
blematiza a representação de seu protagonista/astro (Terry/Brando)
como foco central da cena, através da utilização de um modo de ence-
nação que, na dinâmica estabelecida pela composição dos quadros,

sumário 70
perturbam, ou deslocam, essa centralidade. Ainda, o fato de Terry
estar sempre de costas, com o rosto – logo suas intenções, reações e
mesmo a direção do seu olhar – escondido na imagem, o coloca como
uma figura de intenções misteriosas, o que complexifica ainda mais o
incômodo que ele sente em relação ao coletivo, pois não nos é dado
como certas as causas imediatas desse incômodo – antes, essas são
explicadas por terceiros, de forma alheia à vontade e à subjetividade
de Terry, como veremos mais adiante na resposta de Charley para a
pergunta de Jhonny sobre a postura do rapaz. Basta adiantar que a
sequência final, quando Terry caminha com dificuldade em direção ao
galpão de trabalho depois de ter sido espancado pelos capangas de
Jhonny Friendly, é o único momento no qual o seu ponto de vista é
assumido de forma explícita através do uso de um plano subjetivo.

A percepção desse ponto de vista por vezes distanciado e ex-


terno ao protagonista, que a análise dos enquadramentos da cena do
bar nos mostra, apresenta um problema conceitual para a constituição
da forma dramática na narrativa do filme. Ao mostrar às vezes o herói
“de fora”, através de um olhar exterior que o observa e o enquadra não
como foco único de visão, mas em relação de dependência direta com
o grupo ao seu redor, o filme possivelmente busca estabelecer uma
espécie de multiplicação dos pontos de vista. Essa disseminação do
referencial de enquadramento da ação do filme, que afasta Terry do
controle do foco narrativo, de certa forma “des-heroiciza” o protagonis-
ta, evidenciando um caráter de inconsciência e de não autonomia de
sua parte em relação à sua trajetória e ao processo de esclarecimento
e amadurecimento que vai empreender, no caminho de sua resistência
ao sindicato. Essa percepção nos ajuda a enquadrar de que forma a
trajetória se estabelece e quem, além de Terry, é também o agente de
seu desenvolvimento. Isso nos ajuda a prosseguir na caracterização
que o filme faz de Terry como um protagonista inconsciente, que do
começo ao fim continua sempre a depender de outros para empreen-
der – e compreender – os passos de sua jornada. Esse processo de
agenciamento externo do “esclarecimento” de Terry, que ao fim não

sumário 71
gera necessariamente uma emancipação subjetiva, cria marcas para o
desenvolvimento formal da narrativa.

Para compreender essa questão, vamos atentar, em primeiro


lugar, ao suposto caráter positivo do processo que a trajetória de
Terry aparentemente configura, ou seja, a formação de sua consciên-
cia. É inegável que grande parte do filme se baseia nesse processo.
Terry aprende a ser um novo indivíduo, a crer em novas ideias e ter
novos valores morais, através de sua relação com Edie e com o padre
Barry. Os processos de formação e educação, no sentido mesmo de
uma trajetória de aprendizado, ganham repercussão simbólica para
o desenvolvimento do filme. Afinal de contas, ele vai passar por um
processo como esse, aprendendo a “enxergar com outros olhos” o
seu envolvimento nos esquemas do sindicato e sua capacidade de
intervenção nesses esquemas. Terry não é propriamente “alguém”
antes de conhecer Edie e Padre Barry. Ele é um objeto, um animal
de estimação37, incapaz de ser dono de seu destino, sempre agindo
segundo as ordens e os interesses do grupo ao qual ele, de maneira
desajeitada, tenta fazer parte. Apenas ao ser capaz de assumir essa
inadequação e se estabelecer enquanto oposição é que Terry se tor-
na alguém. Ao se reconhecer, assim, enquanto indivíduo político em
contraposição ao ambiente de relações criminosas onde circula.

De certa forma, podemos entender essa “formação de cons-


ciência” como um eco da experiência que Michael Denning discute no
movimento que formou a geração de artistas de Kazan, ainda nos anos
1930. Dessa forma, Terry se alinharia aos interesses dos estivadores
contra os desmandos do grupo de mafiosos que dominam o sindicato
que os deveria representar.

Esse processo de Terry não surge do nada, mas é amparado por


uma espécie de senso de ética pessoal que ele carrega em potência,
e que diz respeito ao seu passado como lutador de boxe. Há um dado

37 Como veremos no decorrer desse trabalho, as referências de adjetivos animais para qua-
lificar Terry se acumulam ao longo dos diálogos do filme.

sumário 72
informado por Charley que joga luz sobre esse traço de caráter do irmão.
Ainda na cena do bar, estranhando as atitudes confusas de Terry, Jhonny
pergunta a Charley “o que aconteceu com nosso garoto hoje à noite?”.
Charley diz que o irmão está mexido pela morte de Joey Doyle, e para ali-
viar a tensão justifica para o chefe o temperamento “exagerado” de Terry:
“É apenas muito Marques de Queensbury na cabeça. Isso o amolece”.

A resposta de Charley faz menção à história do boxe enquanto


prática esportiva. Em sua origem nos subúrbios de Londres, o boxe era
uma atividade considerada ilegal, até mesmo criminosa. As lutas eram
bem mais agressivas: os lutadores não utilizavam luvas, e os embates
poderiam se estender por um número indefinido de assaltos, até que
um oponente estivesse completamente desacordado, ou morto, no
chão. Para combater a ilegalidade, a saída foi transformar a prática em
esporte, o que foi feito no final do século XVIII com a instituição do Lon-
don Prize Ring Rules. Porém, o boxe apenas conseguiu se estabelecer
de fato como um esporte quando, em fins do século XIX, John Graham
Chambers, um atleta do remo e entusiasta das lutas, criou um conjunto
de regras que traziam o espírito de fair play para o pugilismo. Cham-
bers era muito amigo de John Douglas, o nono Marquês de Queens-
bury, também um grande entusiasta do boxe, que cedeu o prestígio de
seu nome ao conjunto de regras que deram origem ao boxe moderno.
De início, houve resistência dos lutadores para seguirem esse código
de conduta, mas ele foi se estabelecendo aos poucos e, em sua maio-
ria, compõe as regras da prática do boxe até hoje.38

O contraste entre legalidade e ilegalidade que essa referência


evoca, e o fato de Charley justificar a fraqueza no caráter de Terry
como influência de sua absorção dessas regras, demonstra que Terry
desde sempre possuiu algum tipo de senso de justiça, ou desejo de
fazer as coisas do jeito “certo”. Mesmo que no passado Terry pra-
ticasse o esporte segundo os interesses do esquema de apostas

38 As informações referentes à história do boxe foram consultadas em VIEIRA, Sílvia e FREI-


TAS, Armando, O Que é Boxe, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2007.

sumário 73
de Jhonny Friendly – ou seja, forjando resultados para dar lucro ao
seu “empresário”, em uma transação onde era negociado como uma
mercadoria pelo seu próprio irmão – Terry se preocupava com as re-
gras do jogo, tentando conduzir suas lutas dentro da legalidade. Isso
pode sugerir um primeiro dado que ilustra uma capacidade interna
(ainda que em estado bruto) de Terry questionar o que acontece ao
seu redor, ao invés de somente agir por impulso e irracionalidade.
Assim, a simbologia do boxe, que havia sido introduzida na cena
como um aspecto negativo do passado de Terry, vai ganhando no de-
correr do filme uma valência positiva, caracterizando-o como alguém
com potencial de lutar por algo através de um “jogo limpo”, garantido
pela honestidade e clareza nas relações. Terry, assim, surge como um
trabalhador desse negócio informal (o crime) que tem consciência do
que significa sua força de trabalho, mas não tem muita clareza do que
fazer com essa consciência que, mais do que adquirida, é quase que
um instinto treinado pelas regras de sua prática.

Retomando a percepção do fato de Terry ser sempre visto ex-


ternamente, é interessante notar como essa explicação de Charley ad-
quire uma dupla função: se a primeira vista ela justifica para Jhonny
o comportamento de Terry, garantindo que isso não passa de uma
possível fraqueza de caráter do irmão mais novo, para o âmbito da
narrativa como um todo Charley nos fornece o que se revelará, na ver-
dade, a grande força de Terry, ou seja, um senso de justiça que o leva
a ficar desconfortável com o crime cometido contra Joey Doyle e a
se aliar a Edie e Barry na batalha para quebrar o poder do sindicato.
À revelia de Charley (quem disse a fala) e, ao que tudo indica, sem que
Terry (o assunto da fala de Charley) se dê conta, o desenvolvimento da
cena explica, ou ao menos aponta para nós o sentido da confusão e
do incômodo do protagonista, ainda que este não se expresse de for-
ma autônoma (tendo inclusive, em alguns momentos, sua expressão
facial escondida do olhar da câmera). Assim, ao manipular as palavras
e ações das personagens, tirando um sentido e consequência que es-
capa de seu domínio e consciência, essa passagem parece confirmar

sumário 74
a presença de um possível foco narrativo de abrangência mais ampla,
que não se reduz ao ponto de vista de uma única figura.

Essa discussão sobre o caráter de consciência de Terry deve


ser entendida também do ponto de vista da técnica de trabalho do
ator, recuperando o histórico da utilização do Método de interpretação
pelos realizadores do filme. O interessante aqui é perceber como essa
inconsciência, ou inabilidade da personagem em ter domínio de seus
processos pessoais é expressa através de um trabalho, por contraste,
totalmente consciente do ator que o representa, e que usa da técnica
que domina (o Método) para garantir a expressão clara dessa ignorân-
cia da personagem, tomada então como um elemento fundamental na
estruturação do enredo. Se Terry age de forma inconsciente e impreci-
sa, o mesmo não pode ser dito, de forma alguma, sobre Marlon Brando
ou qualquer outro intérprete do elenco principal39.

Continuando a analisar a representação de Terry como um ex-lu-


tador, ficamos sabendo na cena seguinte que a gangue que ele criou
com os garotos do bairro chama-se Golden Warriors, ou “Guerreiros
Dourados”. É com esses garotos, através da atividade de treinar pom-
bos-correios, que Terry se mostra como também capaz de servir de
modelo, de ensinar algo a alguém. A atividade da criação de pombos
– que é por sinal o motivo que Terry usou para atrair Joey Doyle até o
telhado e que depois vai ser o símbolo da conexão entre os dois pi-
geons (delatores) quando Terry passa a cuidar do pombal deixado por
Joey – se relaciona também com o assunto do treino, da orientação de
um terceiro sob determinado conjunto de códigos ou leis, assim como
o boxeador orientado para respeitar o conjunto de regras que orienta
as relações de seu esporte – ou um ator treinado segundo um conjunto
de regras de seu ofício, novamente nos levando a pensar no Método...

Da mesma forma, Terry, que até o momento era uma espécie de


animal de estimação de Jhonny Friendly, vai também ser treinado por

39 Faremos essa discussão de forma mais abrangente no segundo capítulo.

sumário 75
Eddie e por Padre Barry. Porém, o desenrolar desse “processo de apren-
dizado” de Terry nos mostra que o filme não adere ao discurso de uma
narrativa de esclarecimento pessoal através da conscientização políti-
ca, no sentido de comprometimento com o coletivo. Afinal de contas, a
trajetória de Terry é toda pautada por essa experiência de deslocamen-
to diante dos grupos com os quais circula (conforme identificamos na
cena do bar). Gradativamente, Terry assume sua distância perante os
mafiosos, mas não é abraçado pelo grupo de estivadores, que o veem
primeiro como um criminoso e, depois de sua delação, como um traidor.
Ainda, o que o motiva a se opor aos mafiosos também não é um senso
de justiça coletiva, ou de defesa dos interesses de uma classe, mas uma
espécie de peso na consciência, agravado pelo fato de se apaixonar
pela irmã de uma das vítimas do sindicato. Mesmo a atitude de final-
mente se decidir pela delação vem como vingança à sua dor pessoal de
perder o irmão, Charley, assassinado por Jhonny Friendly.

Essa tensão constante entre indivíduo e coletivo concorre para


a problematização do desenvolvimento dramático: a presença do gru-
po no espaço de ação individual emperra o sucesso da autonomia
subjetiva do indivíduo perante esse desenvolvimento; por outro lado, a
insistência do indivíduo em se destacar do grupo dificulta a construção
da ação coletiva, que é uma temática de abrangência majoritariamente
épica, mas que aqui se mostra como um tema indissociável da expe-
riência que o filme pretende abordar.

Ainda, a ausência de autonomia do protagonista, que não se


constitui como um indivíduo independente, com domínio e consciên-
cia total de suas ações, cria para a narrativa dramática um problema
formal. Afinal, Terry não parece ter a autonomia necessária para se
constituir como foco narrativo do filme. Todo o seu processo de eman-
cipação esbarra sempre no fato de que ele nunca se decide por conta
própria, mas sempre motivado por alguém. No decorrer de sua trajetó-
ria outras figuras vão também enxergando-o e dessa maneira dando-o
a enxergar a nós, conferindo sentido às suas ações (como Charley

sumário 76
explicando a Jhonny, por Terry, o motivo do incômodo do irmão com a
morte de Joey). Como já foi mostrado, estamos sempre olhando suas
ações mediados por um ponto de vista externo, capaz de enquadrar
Terry em relação ao ambiente maior do qual, à primeira vista, ele parece
se deslocar. A existência desse ponto de vista é geralmente indicada
no próprio filme pela presença, em cena, de um outro personagem que
também se descola do grupo principal da ação (na cena analisada aci-
ma, como já foi mostrado, Terry é enquadrado do ângulo de visão dos
capangas que o observam, e diante dos quais Charley o defende). No
decorrer do filme, como veremos em seguida, essa função narrativa vai
ser assumida por figuras que passam a servir de instância de media-
ção entre nós e as situações encenadas diante das câmeras.

Essa espécie de multiplicação do foco narrativo aponta, na pró-


pria estrutura do filme, para lacunas na construção dramática conven-
cional, trazendo para sua constituição tendências que, não por acaso,
são motores da cena épica, como a multiplicidade de focos de aborda-
gem de uma narrativa e a implicação da presença do grupo no espaço
de desenvolvimento da autonomia subjetiva.

Ao que parece, essa insistência nas constantes situações de


descolamento do indivíduo perante os grupos e a problematização do
processo de formação de uma consciência política autônoma, aspec-
tos do âmbito temático, assim como essa espécie de multiplicação dos
focos narrativos através de um ponto de vista de abrangência ampla,
marcando um aspecto essencial do âmbito formal, parecem traduzir
um questionamento que o filme propõe sobre o fruto das experiências
de coletivização que marcaram a cultura dos EUA. Para seguir essa
leitura é preciso então compreender como o filme agencia o desenvol-
vimento desses vários pontos de vista que coabitam na narrativa: se
eles se expressam independentemente como linhas soltas ou se, ao
contrário, existe algum personagem que possa servir como mediação
entre as diversas instâncias narrativas em conflito, fazendo-as funcio-
nar como várias pontas de um mesmo nó.

sumário 77
“O QUE PARA ELES
É DELATAR, PARA VOCÊS
É DIZER A VERDADE”

Faz anos já que, não apenas a discussão política, mas a discus-


são de assuntos essenciais em todos os níveis, tem sido feita de
maneira tímida ou enfraquecida. Tais discussões podem nos levar
à divergência. Hoje em dia nós mal sabemos a que se opor, a
não ser monstruosidades tais como o totalitarismo, os insultos do
poder inimigo, drogas ou assassinatos de adolescentes. Geral-
mente, divergir envolve ser crítico ao nosso país, o qual não existe
nenhum melhor no planeta. Divergir, além disso, nos aproxima
perigosamente de sermos simpáticos com ideologias estrangei-
ras. Nós já tivemos muito disso durante os anos 1930.40

Diante da complexidade de realizar um filme sobre a delação


em meados dos anos 1950, quando essa era ainda uma pauta po-
lêmica para a classe artística, “Sindicato de Ladrões” se estabelece
como uma tentativa de discussão do assunto, talvez reverberando a
diversidade de opiniões de seus realizadores. Ao que parece, por mais
paixão e projeção do diretor na figura de Terry (o que sempre foi alega-
do por Kazan) o filme vai estabelecendo uma relativização de opiniões
em uma época de oposições extremadas – ao invés de simplesmente
defender a delação ou condenar o delator. Essa suposição é baseada
na tentativa de compreender a opção da obra por encenar os confli-
tos, em sua maioria, em cenas em que há muito pouco espaço para
a representação da intimidade ou para a configuração de espaços de
privacidade das figuras, sempre enquadradas em relação ao grupo ao
seu redor. Como já foi dito, esse enquadramento permite que a estru-
tura de algumas cenas seja montada como uma rede tecida com os
diversos pontos de vista que estão envolvidos na situação.

A sequência que mostra o shape up (a rotina de seleção de


estivadores para descarregar os navios que chegam no porto) é uma
das cenas onde esse movimento pode ser percebido de maneira

40 CLURMAN, 1974, pg. 192 (em tradução livre).

sumário 78
mais eloquente. É o dia seguinte, ao que tudo indica, da execução
de Joey Doyle. A cena abre com um plano aberto dos estivadores
esperando a distribuição das fichas que dão acesso ao galpão.
A delação de Joey e seu assassinato monopoliza a conversa dos
trabalhadores. Big Mac, o responsável pela seleção dos homens, se
coloca a postos, observando o grupo reunido à sua volta. Para além
desse movimento, Padre Barry e Edie aparecem para assistir à rotina
e averiguar sobre uma possível ligação do sindicato com a morte de
Joey. Ainda, entram em cena dois membros da Comissão do Crime
do Estado de Nova Iorque que começam suas investigações, o que
nos informa da abertura de um inquérito policial.

Imagem 10 – Terry e os oficiais da Comissão

Imagem 11 – Padre Barry e Edie assistem

sumário 79
Imagem 12 – Big Mac escolhendo os estivadores

Imagem 13 – Padre Vincent na Igreja

O primeiro ponto que merece nossa atenção é a recorrência do


olhar como uma ação das figuras envolvidas na cena. Se lembrarmos
que nas cenas analisadas anteriormente – tanto no assassinato de
Joey quanto na reunião dos capangas dentro do bar – há também
a presença de plateias internas à ação, a cena do shape up torna
agora evidente que, de certa maneira, o olhar assume a função de
uma ação motivadora da estrutura dramática. O que essa cena nos
evidencia é que o filme incorpora a atitude de olhar – e os diversos
olhares envolvidos nas cenas – como meio de estruturação de sua

sumário 80
forma narrativa. Porém, isso já apresenta um entrave para o desen-
volvimento dramático ao jogar atenção para um aspecto formal – ou
seja, exterior à convenção de realidade estabelecida pelo drama – de
composição da cena, no caso, o entrecruzamento de distintos pontos
de vista sobre a situação. Assim, a cena vai aos poucos “montando o
cenário” no qual irá se desenvolver (a praça do cais) através da apre-
sentação desses pontos de vista envolvidos. Uma por uma surgem
as figuras principais que, com seu movimento de entrada em cena
– cada uma vindo de uma direção oposta e cruzando com o caminho
da outra – demonstra visualmente no espaço a formação dessa rede
composta pelas diferentes linhas de observação. Essa exposição da
estrutura formal revela a existência de uma espécie de narrador exter-
no agenciando a exposição desses múltiplos pontos de vista.

O primeiro quadro mostra um homem escrevendo em uma


lousa o horário e o número de trabalhadores necessários para aque-
le dia, o que nos dá a conhecer uma informação sobre a rotina de
trabalho do local, informando também, diante da desconexão entre
a grande oferta de mão de obra e a demanda escassa de trabalho,
o poder que o sindicato tem nas mãos. Como veremos, esse poder
é utilizado como estratégia de opressão, através do castigo para os
estivadores que não se comportam conforme o esperado, como ve-
remos quando nenhum dos envolvidos com a família Doyle (tanto o
pai de Joey quanto seus amigos mais próximos) for chamado para
trabalhar naquela manhã. Diante disso, o primeiro personagem a en-
trar é Big Mac, membro do sindicato, que caminha observando os
estivadores antes de receber a caixa com as fichas que distribuirá.

Do lado oposto entra Terry, a quem seguimos com a câme-


ra, atravessando a grande massa de estivadores. Quando ele passa
pelo grupo de amigos de Joey Doyle, ouvimos, com Terry, um trecho
da conversa do conjunto sobre o fato da delação de Joey ter moti-
vado seu assassinato. Após olhar para o grupo, que imediatamente
silencia, Terry segue seu caminho e sai do quadro pela esquerda com

sumário 81
a entrada, da esquerda para a direita, de Pop Doyle, a quem pas-
samos a acompanhar agora. A câmera então mostra a chegada de
Pop diante do mesmo grupo com o qual Terry cruzou anteriormente.
Pelo fundo, entram agora dois outros capangas que ameaçam Pop
Doyle e seus amigos se eles continuarem espalhando que Joey foi
assassinado. Depois da saída deles, o assunto da execução de Joey
continua a reverberar. Pop presenteia Kayo com o casaco que foi de
seu filho. Esse detalhe é importante para a narrativa, pois Kayo será o
próximo estivador a delatar e ser também executado. O filme estaria,
assim, construindo um certo suspense sobre o destino da persona-
gem que tem a atitude de “falar demais”. Afinal, acabamos de ver
Kayo sendo ousado em sua resposta à provocação dos membros
do sindicato, demonstrando um certo nível de consciência crítica em
relação às condições de trabalho, o que lhe rendeu a ameaça dos ca-
pangas de Friendly.41 Então, com a saída de Pop um outro estivador
entra em cena pelo lado oposto e é parado por Kayo, com quem fica-
mos no quadro, e que oferece a essa outra figura o seu velho casaco.

Depois, entram as personagens por assim dizer estranhas ao lu-


gar. Primeiro, Padre Barry, que pelo jeito nunca testemunhou a rotina
de trabalho e para quem, assim como para nós, espectadores, aquele
acontecimento cotidiano não é nada familiar. Isso já nos coloca, de certa
forma, bem próximos do ponto de vista do padre, pelo menos bem mais
do que qualquer outro personagem mostrado até então – já que a cena
cumpre, de certa forma, a função de apresentar a rotina de trabalho e a
maneira como o sindicato administra as relações nesse cotidiano. De-
pois, entra um oficial da Comissão do Crime do Estado de Nova Iorque
que está investigando o assassinato de Joey. Ele atravessa a massa
de estivadores procurando por Terry Malloy, a quem aborda. Depois da
tentativa de Terry em passar despercebido (ocultado pelo silêncio coni-
vente dos colegas com quem conversava) o oficial o reconhece pelo seu
passado como boxeador, e tenta tirar dele alguma informação. Vemos

41 Posteriormente, esse mesmo casaco será dado por Edie a Terry, e aí haverá uma reversão de
expectativas já que, ao contrário de Joey e Kayo, Terry não será executado pelo sindicato.

sumário 82
assim a instauração de uma espécie de interrogatório informal em meio
ao cais que, da mesma forma como o casaco antecipou o destino de
Kayo, antecipa o testemunho de Terry diante da Comissão do Crime – e
é preciso nunca perder de vista que a plateia que assistiu ao filme no
momento de sua estreia já estava mais do que informada sobre a co-
laboração de Kazan à HUAC, três anos antes, assim como da relação
entre esse evento e a produção de “Sindicato de Ladrões”.

O enquadramento desse breve diálogo (imagem 10) é um


exemplo interessante de como a cena dramática é atravessada pela
presença do grupo. Terry e o oficial são focados no meio de um mar de
rostos de estivadores envolvidos em conversas distintas, e que com-
põe todo o fundo da cena. Não há, dessa maneira, nenhum espaço
para sigilo na abordagem de Terry pelos oficiais da lei. Pelo contrário,
vemos ao fundo do quadro, à esquerda alta, o rosto de um capanga
do sindicato que observa atentamente a conversa. Ainda, por entre
os estivadores surge um segundo oficial que se coloca atrás de Terry
e que sempre o interpela com uma pergunta sobre cada resposta
dele ao primeiro oficial, obrigando-o a se virar constantemente para
falar com ele, fazendo assim com que Terry esteja o tempo todo, de
certa forma, encurralado, tendo que dialogar com os dois oficiais em
direções opostas. Ao mesmo tempo que essa relação quebra a fixidez
do quadro – e o estabelecimento de um terceiro foco de atenção no
diálogo impossibilita a utilização da técnica convencional do campo
e contracampo, o que eliminaria o registro do movimento coletivo ao
redor da cena – essas interrupções obstruem também a linha do ra-
ciocínio de Terry, impossibilitando que ele desenvolva plenamente o
diálogo com o primeiro oficial. Essa quebra da continuidade dialógica,
através da constante interrupção de um terceiro, reforça o emperra-
mento tanto do desenvolvimento dramático quando da autonomia de
ação de Terry, que não consegue completar nenhum raciocínio e, mais
uma vez, é incapaz de se explicar por si mesmo (assim como, na cena
anterior, seu irmão falou por ele perante Jhonny Friendly).

sumário 83
Seguindo com a cena, o assunto da delação continua presente
ao vermos Pop Doyle no meio de uma discussão com o tesoureiro do
sindicato que veio lhe oferecer uma espécie de prêmio de consolação
pela perda do filho, ao que parece comprando seu silêncio (mesmo
contrariado, o velho aceita a transação). Então, Kayo interrompe a Pop
mostrando para ele a entrada da última personagem que faltava para
a composição do conjunto da cena: Edie, sua filha, que se mantem de
fora observando, junto com padre Barry. Com isso, após montar essa
teia de relações e pontos de vista diversos sobre a situação, a rotina
de trabalho pode começar. O foco da cena é novamente colocado em
uma atitude de observação: um close no rosto de Big Mac mostra o
capanga olhando de um lado para o outro, escolhendo quem, dentre
os estivadores, será merecedor de trabalhar naquele dia (imagem 12).

Porém, a cena não prosseguirá como um mero registro do am-


biente. É impossível manter a rotina diante da intromissão dos olhares
estranhos a ele (Barry, Edie e os oficiais da Comissão do Crime) pois
a execução de Joey e a presença do espectro da delação a ameaçar
tanto o esquema do sindicato quanto os estivadores que suposta-
mente se decidam por ela já estabeleceram um conflito que está em
pleno andamento. Diante da necessidade de desenvolver e compli-
car esse conflito, o filme continuará tensionando a situação. Com a
revolta dos trabalhadores que não conseguem um posto de trabalho,
Big Mac então quebra o ritmo das observações pela iminência de um
gesto que introduz uma ação mais fortemente motivadora, do ponto
de vista dramático42. Ao ser pressionado pelos estivadores nervosos,
o capanga se esquiva do conflito jogando para o alto as fichas que
sobraram em suas mãos, interrompendo assim o controle que manti-
nha sobre a situação, o que faz com que o grupo todo mergulhe em
uma luta desenfreada em busca do trabalho.

42 Em seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis define ação na dramaturgia como estando ligada
“ao surgimento e à resolução das contradições e conflitos entre as personagens e entre uma
personagem e uma situação. É o desequilíbrio de um conflito que força a(s) personagem(s)
a agirem para resolver a contradição; porém sua ação (sua reação) trará outros conflitos e
contradições. Esta dinâmica incessante cria o movimento da peça.” PAVIS, 2003, pg. 4.

sumário 84
A atitude do capanga, que à primeira vista pode parecer de-
sesperada, revela-se então estratégica por dois motivos. Primeiro por-
que, diante da chance de uma revolta dos estivadores na presença
da polícia, ele dispersa o grupo, evitando com isso qualquer suspeita
ou atenção sobre o sindicato. E o segundo é que, quando o grupo
começou a se organizar de maneira coletiva, colocando-se como uma
força contestadora, Big Mac reverte a situação ao jogar o poder de
escolha dos poucos postos de trabalho nas mãos do próprio grupo,
que se revela, então, incapaz de administrar o problema. A luta que se
inicia entre os trabalhadores acusa a falta de organização do coletivo
e confirma, para nós, o quanto essa desorganização concorre para
manter intocado o poder que a quadrilha de Jhonny Friendly exer-
ce. Diante dessa cooptação do seu sindicato (entidade que deveria
conduzir a organização da categoria) pelo crime, os estivadores não
possuem nenhuma outra estratégia ou capacidade de representarem
a si próprios e lutarem juntos pela mudança da situação dentro da
qual trabalham – essa falta de unificação dos trabalhadores mostrada
pela cena problematiza ainda mais o assunto do enfraquecimento das
relações coletivas, que nos dava notícias da experiência da classe ar-
tística durante o Macartismo, e reafirma a tensão entre ação individual
e pertencimento ao grupo, estabelecida desde o início do filme.43

Esse embate desorganiza também a estrutura narrativa da cena,


quebrando a teia dos diversos pontos de observação organizados ante-
riormente e misturando-os no mesmo movimento da luta pelo trabalho.
É como se, no frigir dos ovos, até mesmo a capacidade de observação
e registro da experiência fosse negada aos estivadores que, assim como
Terry, não possuem autonomia ou conhecimento algum sobre as reais
condições em que vivem, sendo incapazes de estabelecerem-se como

43 A título de curiosidade, vale dizer que essa passagem foi inspirada em um evento real
que teria acontecido no cais de Nova Iorque na década de 1930, e que é relatado
tanto por Malcolm Johnson quanto por Budd Schulberg nas reportagens que ambos
escreveram sobre o assunto. Segundo o depoimento de um estivador que vivenciou a
situação, o chefe de distribuição de fichas de trabalho teria tomado essa atitude por não
saber como administrar a pressão da massa de estivadores ansiosos por conseguirem
trabalhar. Ver sobre em JOHNSON, 2005, págs. 152 e 241.

sumário 85
focos narrativos. Mesmo Edie, que se mantinha a distância, abandona
seu posto de observadora e se mistura à ação direta, tentando conseguir
uma posição para seu velho pai. É nesse momento que ela e Terry se
encontram pela primeira vez, disputando uma ficha que encontram no
chão. A luta corporal entre os dois, marcada por um tapa que Edie dá
em Terry, é interrompida quando ele descobre que ela é a irmã de Joey
Doyle, o que faz soar mais uma vez a corda da culpa na consciência do
capanga, que deixa então Edie “vencer” a briga pela ficha.

Em passagens como essa, aliás, podemos ver como Kazan e


Eva Marie Saint conferiram a Edie uma força de resistência e articula-
ção bem mais ativa do que o roteiro original de Budd Schulberg esta-
belecia, onde a personagem possuía um caráter mais passivo e, por
assim dizer, “comportado”. Única personagem feminina em um elenco
principal majoritariamente masculino, ela desafia de igual para igual
todos os homens com os quais, de alguma forma, se relaciona, desa-
fiando dessa maneira o estabelecimento da ordem do lugar. O registro
dessa ousadia de Edie encerrará a sequência quando, depois de Barry
oferecer aos estivadores a igreja como lugar de reunião, a câmera cap-
tura um plano da garota enquadrada de cima para baixo, olhando em
silêncio e com expressão desconfiada a promessa de ajuda do padre.
Essa imagem demarca sua força de ação, sendo ela, como vimos na
sequência de abertura do filme, a personagem que primeiro cobrou
resistência à estratégia de silenciamento imposta pelo sindicato.

Diante da confusão geral estabelecida, a única personagem


que se manteve o tempo inteiro no posto de observação é padre Barry.
Apenas em um breve momento nós o vemos se misturando aos traba-
lhadores para ajudar Pop Doyle a se levantar do chão, para logo em
seguida sair do quadro (e do meio do combate). Esse distanciamento
de Barry, ou melhor dizendo, esse agenciamento consciente de sua
relação com o conflito principal, através do qual ele se aproxima e se
afasta estrategicamente confere ao seu personagem, neste momento,
uma certa proeminência como foco narrativo em relação aos outros

sumário 86
elementos da “teia” de observações montada no início da sequência.
Perceberemos daqui para a frente, aliás, que Barry começa a ganhar
uma presença mais determinante no desenvolvimento das cenas. Se
até então o filme vinha manipulando os pontos de vista, passando ora
de Terry para os capangas, para Edie e de volta a Terry – seguindo
sempre uma certa lógica de precedência do protagonista – a partir
de agora Barry vai surgir como uma figura de força na condução do
enquadramento da narrativa. Essa posição do padre pode explicar,
assim, sua presença como observador logo na primeira cena, ofere-
cendo a extrema unção sobre o cadáver de Joey e controlando a fúria
de Edie diante do silêncio dos estivadores e da própria polícia, assim
como justifica também a sua rápida tomada de consciência depois
do desafio que a menina lança à sua própria passividade, cobrando
dele envolvimento com os problemas da paróquia e na relação entre
os trabalhadores e o sindicato. O envolvimento assumido pelo padre
na luta contra o sindicato é já anunciado ainda no shape up, quando
ele é agredido por engano pelos capangas que tentam dissolver o
ajuntamento, como se fosse mais um dos estivadores.

Talvez, nesse momento, fica evidente a tendência de estabele-


cer Barry como uma espécie de mediador dos diversos pontos de vista
envolvidos. Podemos comprovar essa instância mediadora se obser-
varmos de que maneira o filme se aproveita dela para aprofundar a dis-
cussão do assunto em torno do qual, ao que parece, se organiza, ou
seja, a validade da delação como forma de ação política, e suas impli-
cações éticas para o indivíduo, em relação ao coletivo do qual faz parte.
Na sequência da cena do shape up, aquela espécie de relativização
que a forma do filme revela ao expor os diversos pontos de vista sobre
um mesmo assunto (discutida acima), é tematizada pelas palavras de
Padre Barry quando o vemos, pela primeira vez, proferindo um sermão
para sua comunidade e, não por acaso, sobre o tema da delação.

Após o shape up, Barry convoca uma reunião dentro da igreja


para tentar motivar os estivadores a se oporem organizadamente ao

sumário 87
sindicato. O silêncio do grupo é desafiado pelas falas de Barry, que os
tenta convencer a quebrar o código do “deaf and dumb”. A ausência
de respostas dos estivadores oferece, então, uma oportunidade para
Barry discursar. Essa cena, aliás, nos evidencia um outro aspecto de
emperramento da forma dramática presente na estruturação do rotei-
ro. Como consequência do silêncio exigido pelo sindicato, que desin-
centiva a liberdade de manifestação individual dos trabalhadores, eles
não discutem livremente o assunto principal do filme (a delação), pois
mal dialogam. Com isso, a forma dramática não pode estabelecer,
por si, o encaminhamento convencional utilizado pela tradição do dra-
ma na discussão de qualquer ideia, através do clássico esquema de
oposição de uma tese por uma antítese, gerando um embate capaz
de produzir, ao fim, uma síntese que com sua formulação seja capaz
de apaziguar o conflito motivador do desenvolvimento dramático da
ação.44 Sem diálogo, a exposição das ideias contrastantes deve se
dar por outros expedientes – é desse modo, ainda, que podemos en-
tender o registro da expressão silenciosa dos diversos personagens
envolvidos nas cenas, através de uma sucessão de closes.

Por outro lado, também se justificaria – e reconhecendo aqui


um esforço de tentar garantir o funcionamento da ordem dramática – a
eleição de um olhar interno à fabula, como o agenciador de todos os
outros pontos de vista. É como se esse olhar, que estou identificando
já como sendo o de padre Barry, organizasse a expressão dos demais
e assim tentasse comprovar a sua tese sobre o assunto discutido. As-
sim, diante do silêncio dos estivadores, o padre discursa livremente,
pregando e proferindo sermões em diversas cenas, aconselhando per-
sonagens como resultado de ouvi-los em confissão e determinando
suas atitudes (como passará a fazer com Terry). Nesse movimento, a
ideia que vem sustentando o filme até então (sobre o valor relativo da

44 Segundo SZONDI, 2003, pg. 34: “Enfim, a totalidade do drama é de origem dialética. Ela
não se desenvolve graças à intervenção do eu-épico na obra, mas mediante a superação,
sempre efetivada e sempre novamente destruída, da dialética intersubjetiva, que no diálo-
go se torna linguagem. Portanto, também nesse último aspecto o diálogo é o suporte do
drama. Da possibilidade do diálogo depende a possibilidade do drama.”

sumário 88
atitude de delação) ganha forma concreta ao ser expressa pelo padre
em todas as letras quando ele diz: “O que para eles é delatar para
vocês é dizer a verdade”. Dessa forma, o filme evidencia a função de
Barry como porta voz da tese que vem tentando defender.

Porém, os estivadores não se movem diante dessa insistência.


Ainda, duas figuras externas à reunião observam de fora sem se en-
volverem na ação principal, mas de certa forma comentando-a com
sua observação (mais uma vez, uma plateia “interna” assiste à cena
de fora da ação principal). A primeira é o padre Vincent (mostrado na
imagem 13) que, sentado no altar aos pés de uma imagem (logo, qua-
se “escondido entre as batinas dos santos”, como Edie acusou Barry
na primeira cena) assiste incrédulo ao esforço do seu colega. Vincent,
saberemos depois, defende que a Igreja não deveria se misturar com
esses assuntos e revela mesmo um argumento um tanto quanto egoís-
ta para tentar convencer Barry a não se envolver – quando comenta
que o colega vai ser transferido para uma colônia na Abissínia se for
descoberto pela diocese, o que mais uma vez recoloca o embate en-
tre força do grupo e vontade do sujeito ao apresentar um argumento
individualista como determinação da omissão no engajamento com o
problema de ordem coletiva. Ao se contrapor à Barry, porém, padre
Vincent reitera a lógica de relativização dos pontos de vista que o filme
opera – já que não temos assim estabelecida uma postura unilateral da
Igreja diante do problema que o filme discute.

A segunda figura a observar a reunião é Terry Malloy, que foi man-


dado por Charley segundo ordens de Jhonny Friendly para espionar o
encontro. Sentado em um banco no fundo da igreja ele ri despreocu-
pado, e sua presença interrompe, ao ser notado por Kayo, a exortação
que Barry faz aos estivadores. Esse breve encontro serve para, aos
olhos do padre Barry, apresentar Terry Malloy como uma figura de aces-
so privilegiado às informações sobre o funcionamento do sindicato. Se
os estivadores não falarão nada, Terry é quem vai, depois de um longo
processo de convencimento de Barry, delatar a organização.

sumário 89
Quando os capangas de Friendly interrompem a reunião jogan-
do pedras para dentro da Igreja e atacando os trabalhadores na saída,
Terry e Edie terão sua primeira conversa. Esse diálogo já nos indica a
relação afetiva que surgirá entre o casal, que será o motivo para Terry
se aliar à resistência do padre e da garota contra Jhonny Friendly.45

“SE VOCÊS ACHAM QUE CRISTO


NÃO ESTÁ AQUI NO CAIS, ENTÃO
VOCÊS ESTÃO ENGANADOS!”

Até que sejamos capazes de trazer o espírito de Deus Todo Po-


deroso para dentro da rotina das esferas econômicas, políticas
e sociais de nossas vidas, nossa cidade não irá prosperar. Nós
temos aqui uma batalha mais longa e mais dura do que a bata-
lha contra o comunismo. Comunismo é apenas a versão russa
do materialismo. No cais, nós temos a versão estadunidense.46

Se as sequências do shape up e da reunião na Igreja estabele-


cem a dinâmica narrativa feita a partir do entrecruzamento de diversos
pontos de vista, e apontam a figura de Barry como possível mediador
entre esses vários olhares, uma outra cena, também passada no am-
biente de trabalho, evidencia essa posição privilegiada do padre. Mais
do que isso, ela nos mostra de que maneira ele faz uso dessa função
ao dialogar, simultaneamente, com todas essas outras instâncias. É a
cena da execução de Kayo, após ele ter delatado o sindicato para a
Comissão do Crime. Essa cena nos interessa por alguns motivos.

A essa altura, podemos compreender já a escolha do filme


em representar o trabalho dos estivadores como um ambiente pro-
blematizado: mesmo com suas pretensas intensões “documentais”

45 Essa cena será analisada em detalhes no segundo capítulo desse livro.


46 Padre John Corridan, o “Waterfront Priest” da vida real, citado por Budd Schulberg em
artigo escrito para o Saturday Evening Post em 1963. Publicado em JHONSON, Op. Cit.,
pág.301 (em tradução livre).

sumário 90
de registro da vida no porto tal qual ela é, o filme não mostra em
nenhum momento uma rotina de trabalho sem entraves.47 Se no
shape up a briga pelo acesso ao galpão institui um embate cor-
poral que rouba o foco do registro da rotina de trabalho, agora o
andamento da função de descarregar o navio é interrompido pela
morte de Kayo. Ao constatarmos que ambas as interrupções são
causadas por membros do sindicato, isso serve para estabelecer
um paradoxo interessante: o “trabalho” do sindicato, que deveria
idealmente se ocupar com a defesa e salvaguarda dos direitos dos
estivadores, emperra o ofício que deveria proteger, propiciando,
assim, a representação de uma noção enviesada da ideia de tra-
balho: no ambiente do cais dominado pelos gangsters, ao invés da
dinâmica esperada (o descarregamento dos navios e a distribuição
das cargas), a única atividade bem sucedida que o filme registra
é a ação do sistema criminoso, que garante a exploração da força
de trabalho dos estivadores. Esse sistema é mantido, como já foi
apontado, por uma “ética” interna (a do “deaf and dumb”) através
do terror e da ameaça constante a quem pretende romper tal éti-
ca, estruturando uma lógica de repressão. Assim, a despeito – ou
por conta – de ser um espaço importante para a organização do
mercado interno nacional através do acesso ao trânsito global de
mercadorias e informações (sendo o cais porta de entrada e saída
do país por via marítima), esse ambiente produz de fato, segundo o
registro do filme, apenas a manutenção da criminalidade. Essa ideia
se apoia no dado concreto de que, à época, a máfia que controlava

47 O estudo de Leo Braudy sobre o filme, publicado em 2005 pelo British Film Institute
na forma de um pequeno livro, atesta o desejo de Kazan de realizar a obra “segundo
o modelo de um filme neorrealista”. (BRAUDY, 2005. Ver bibliografia). À luz do que
estamos apontando acima, essa informação nos ajuda a entender, inclusive, o quanto
o filme de Kazan se distancia desse modelo. Afinal, era muito comum os cineastas
ligados a essa estética registrarem extensivamente a rotina de trabalho dos perso-
nagens de seus filmes, como podemos observar em obras como “A Terra Treme” (La
Terra Trema, 1948) de Luchino Visconti, ou “Stromboli” (1950) de Roberto Rossellini,
ambos capturando com detalhes o trabalho dos pescadores em vilarejos na Itália, em
um intuito expressamente “documental” ou que, em outras palavras, buscava fazer a
realidade do local falar quase que “por conta própria”.

sumário 91
o sindicato dos estivadores era um dos braços mais desenvolvidos
do crime organizado nos EUA.48

Ao fim, a obra apresenta uma problematização das relações pro-


dutivas corroborando com a ideia de que, ao buscar a obtenção de lucro
a partir da exploração da força de trabalho, a lógica de funcionamento
do mercado faz uso de práticas criminosas que necessitam do silêncio e
da opressão para funcionarem. Afinal de contas, ainda que a encenação
do cotidiano do cais seja sempre através das interferências dos mem-
bros do sindicato na prática dos estivadores (como a briga pelas fichas
no shape up e agora com o assassinato de Kayo) o fluxo de circulação
das mercadorias nunca é interrompido. Navios vêm e vão, produtos são
descarregados e distribuídos diariamente. Esse dado, que garante ao
filme um conteúdo de certo tom progressista serve para afastar de vez
o foco narrativo total da obra de uma possível aderência aos pontos de
vista relacionados tanto ao sindicato quanto a outras instâncias regula-
doras do trabalho (como as empresas transportadoras), pelo menos não
mostradas ainda. E, o que é mais interessante, essa categorização do
Estado burguês e do mercado como instâncias que garantem seu fun-
cionamento basicamente através do crime e da contravenção cola-se,
em grande parte, a uma análise materialista da sociedade.

Porém, (e nos permitindo aqui um pequeno salto interpretativo)


seria possível, a esta altura, relacionar a noção problematizada de uso
da força produtiva, assim como a manutenção do controle dessa força
através da exploração e regulação do trabalhador, com a crítica de Ka-
zan à interferência do Partido Comunista nas práticas profissionais de
seus afiliados artistas e intelectuais? Essa interferência seria realizada

48 O poder desse sindicato foi capaz inclusive de interferir na aceitação, pela Columbia Pictu-
res, do roteiro original do projeto que originou “Sindicato de Ladrões”, de autoria de Arthur
Miller. Intitulado The Hook, o roteiro foi submetido a uma espécie de censura pelos repre-
sentantes sindicais, que então acusaram o roteiro de “antiamericanismo”. Após se recusar
a alterar seu texto, o dramaturgo se retirou do projeto, fazendo com que Kazan se juntasse
a Schulberg, que já demonstrava interesse em adaptar as reportagens de Malcolm Johnson
para o cinema. Essa história é recontada tanto por Kazan em sua autobiografia (A Life, KA-
ZAN, 1997) quanto por Miller em seus ensaios, mais especificamente no texto “The Crucible
in History”, escrito em 1999. Os ensaios de Miller foram consultados em Echoes Down the
Corridor, Collected Essays 1944-2000 (MILLER, 2001, ainda não traduzido no Brasil)

sumário 92
de forma burocrática através do funcionamento da estrutura da orga-
nização partidária (assim como a lógica de controle do sindicato, no
filme) e manteria seus afiliados presos à obrigação de contribuírem com
as estratégias de divulgação da ideologia política do partido por meio
de suas produções artísticas. Essa prática, várias vezes acusada por
Kazan como um dos motivos de sua repulsa ao CPUSA se daria através
da imposição de postulados formais pré-estabelecidos e da dinâmica
de exigência de leitura e consultoria prévia, por especialistas apontados
pelo Partido, das obras assinadas por seus afiliados. Em sua autobio-
grafia, Kazan cita ainda o fato de que também Budd Schulberg teria so-
frido, na escrita de seu romance de estreia “O Que Faz Sammy Correr?”
(What Makes Sammy Run?, de 1941) a exigência de cortes e alteração do
enredo por parte dos leitores do Partido. São esses dados recorrentes
nos discursos das duas figuras envolvidas na elaboração do filme que
nos permitem essa interpretação, ao tentar sempre ler “Sindicato de La-
drões” na lógica alegórica proposta pelos seus realizadores, e em sua
relação direta com os eventos do Macartismo.

Um outro interesse que a sequência da execução de Kayo des-


perta é por ela demarcar o momento em que o padre deixa de ser um
observador distanciado dos problemas do cais para se envolver direta-
mente no rumo dos acontecimentos. Afinal, é ele quem convence Kayo
a delatar o sindicato e ser, em consequência disso, executado. Então, a
cena evidencia a ação de Barry ao dialogar com os diversos pontos de
vista envolvidos na estruturação da narrativa, como meio de os mobili-
zar, com interesses específicos destinados a cada nível dessa organi-
zação: se por um lado ele deseja convencer os estivadores a reagirem
ao sindicato, reafirmando a simpatia dos que já concordam com sua
visão e mudando a ideia de quem ainda o olha com desconfiança, por
outro lado ele se apresenta para Jhonny Friendly como uma força de
oposição, se utilizando da exposição desse desafio, inclusive, como
estratégia de convencimento dos estivadores. Para conseguir atingir
seu objetivo sem colocar-se também em risco tanto quanto qualquer
outro estivador rebelde, Barry nunca abandona a sua posição como
membro da Igreja, o que lhe garante uma certa proteção, ao mesmo

sumário 93
tempo em que deixa sempre evidente a sua distância dos outros es-
tivadores. Assim, Barry discursa nessa cena como se executasse seu
ofício de pregador, transformando o interior do navio em púlpito.

Mas vamos seguir a cena passo a passo. A essa altura, já pode-


mos identificar a recorrência dos mesmos elementos problematizadores
da representação dramática que viemos discutindo até aqui. Em primei-
ro lugar, a tensão identificada entre ação individual e movimento coletivo
demarca a sequência como um todo: no reaparecimento do assunto da
delação individual como forma de quebrar o acordo coletivo de silêncio;
na tentativa de Terry em contrariar os planos do sindicato ao avisar Kayo
sobre a emboscada, agindo assim por conta própria; no discurso do
padre, que se coloca diante do grande grupo formado pela junção dos
estivadores e dos capangas do sindicato. Além disso, a sequência é
também composta por um entrecruzamento de vários pontos de vista
sobre a situação (culminando todos eles na figura de Barry).

Um outro elemento que vai se mostrando recorrente na cons-


trução narrativa do filme – e ainda não apontado por essa leitura – é a
construção de uma ambientação sonora que traz para o primeiro plano
uma espécie de discurso do espaço, expresso através da justaposição
de sons relativos ao trabalho no cais, que se sobrepõem à comunica-
ção dialógica. Essa ambientação abre a sequência, e já apresenta de
cara o conflito entre o trabalho produtivo e a ação criminosa. Como
já foi dito, essa é a segunda sequência que tenta registrar a rotina de
trabalho dos estivadores, e novamente a precedência do andamento
do trabalho é roubada pela atividade dos membros do sindicato. Essa
relação é posta logo de princípio ao vermos Jhonny e seus capangas
se comunicarem por sinais, do píer para o topo do navio, e deste para
o controle do guindaste que carrega a carga no interior da embarca-
ção. É estabelecido assim um ponto de vista de entrada na sequência,
formado pelo percurso da informação dentro dessa rede silenciosa
entre os capangas, acompanhado pela câmera que traça, assim, o fio
condutor que nos leva do exterior do navio para o seu interior, onde os
estivadores estão trabalhando. Lembrando que o silêncio é a “regra de

sumário 94
ouro” do sindicato, a estratégia sonora adotada pela cena, ao encobrir
a conversa entre os capangas, se mantém coerente com a lógica do lu-
gar (já que as palavras dessa comunicação não se ouvem, encobertas
pelos sons de apitos, chaminés e ferragens). Ainda, essa expressão da
“voz do espaço”, sendo construída por sobre a voz individual das figu-
ras, representa um novo entrave para o desenvolvimento da sequência
do ponto de vista exclusivamente dramático – logo, dialógico.

Então, a sequência prossegue. O primeiro plano que conduz


a cena para dentro do navio é um plano focado de cima – do pon-
to onde estão os membros do sindicato – mostrando Terry, diante de
um conjunto de cargas coberto por uma lona, assistindo ao movimen-
to dos capangas e tentando compreender o que está se passando.
O registro do olhar de Terry à distância tentando decifrar o conteúdo da
comunicação que acontece no topo do navio, justifica o enquadramento
inicial da cena que, assim como a Terry, não nos permitiu ouvir o que eles
conversavam. O fato de vermos Terry trabalhando (e não apenas sentado
lendo uma revista erótica como já foi mostrado antes) intensifica o seu
alienamento das ações do sindicato, ao apontar que algo está mudando
em sua relação com o ambiente de trabalho e com os privilégios que
sempre recebeu por conta de seu envolvimento com Jhonny Friendly – a
cena anterior mostrou o ex-boxeador levando uma bronca do chefão por
seu descuido na função de espionagem ter deixado passar a informação
de que Kayo pretendia testemunhar perante a Comissão do Crime.

No andamento desse plano Terry executa uma ação que, dado o


seu aproveitamento para a economia narrativa, pode ser lido como ten-
tativa de constituir um gestus que introduza o tema geral da cena – a
necessidade da delação – e aponte Terry como um futuro delator: com um
gesto preciso e bem executado ele retira a lona de cima das caixas, “reve-
lando” o que está oculto (imagem 14). A ação ganha esse caráter de con-
verter-se em um gestus – segundo a ideia brechtiana, de demonstração
de toda uma atitude social por meio da execução de um gesto cotidiano
específico – , justamente ao ser executado com um cuidado quase que
coreográfico, pré-ensaiado: sua execução confere um caráter simbólico

sumário 95
ao gesto cotidiano, que por assim dizer é desnaturalizado, tornando-se
um elemento que se desloca de sua função especificamente referencial
(a representação do trabalho) e gera um significado que joga a atenção
do espectador para algo que está além da referência, e que a cena ain-
da vai desenvolver – ou seja, o tema da delação (no sentido de “revelar
uma informação”).49 Esse gesto ecoa, de certa forma, a atitude de Kayo,
cuja consequência é o assunto da cena, ao mesmo tempo que remete
diretamente a Terry, que também já está sendo sondado pelos agentes
da Comissão do Crime para realizar seu testemunho (o que acontecerá
ao fim do filme). Esse momento nos permite flagrar o rigor no trabalho
de Marlon Brando ao construir a expressão gestual de seu personagem
(citado anteriormente na análise da cena do bar, onde discutíamos o con-
traste entre a ignorância da personagem e o controle do trabalho do ator).
Vemos então um uso altamente produtivo da técnica de representação,
onde o filme consegue concentrar um grande teor de sentido através de
uma expressão apenas imagética, não verbal, empreendida nesse caso
pelo registro preciso do trabalho do ator, sem recorrer a estratégias de
montagem e outras formas de composição audiovisual que se interpo-
nham a esse último.

Imagem 14 – O gestus de Terry

49 Anatol Rosenfeld, em O Teatro Épico: “O gestus social é aquele que nos permite tirar
conclusões sobre a situação social”. (ROSENFELD, 2004, pg. 63). Ou ainda, segundo
Carl Weber, o gestus deve ser entendido como “o processo total, a encenação de todo
comportamento físico que o ator exibe enquanto nos apresenta um “personagem” no
palco por meio de suas interações sociais. (...) tal Gestus deve ser memorável para a
plateia e, consequentemente, citável” (WEBER, 2000, pg.43, em tradução livre).

sumário 96
Imagem 15 – Barry vendo os estivadores

Imagem 16 – Barry visto da “plateia”

Imagem 17 – Plateia de estivadores

sumário 97
Se a entrada de Terry na sequência foi através do gestus de revelar
o que se esconde por baixo da dinâmica das relações cotidianas, essa
ação vai se manter como um assunto subliminar, culminando com a mor-
te do delator. Assim, é como se toda a cena fosse uma comprovação da
necessidade da delação como a única atitude capaz de transformar as
relações, ainda que ela conduza o delator a um sacrifício – por conta da
reação do sindicato. Vemos então Kayo comentando que o “bom Deus”
estava olhando para eles por ter mandado um carregamento de uísque
irlandês, “revelando” em seguida uma garrafa roubada escondida em
seu casaco. Esse é, justamente, o casaco que foi de Joey Doyle (dado a
Kayo por Pop na cena do shape up) e que depois da morte de Kayo vai
ser entregue a Terry por Edie, simbolizando uma espécie de “veste do
delator”. Ou seja, ao usar o casaco para revelar o que escondia, Kayo
ajuda a acumular mais um elemento relacionado ao assunto da delação.
Ainda, a atitude de transmitir o casaco de um delator a outro se torna
também uma espécie de gestus que o filme como um todo constrói, ao
transmitir, com o casaco, a função de delatar, “revelar” através do teste-
munho a lógica do sindicato. Com isso, é também transmitido o destino
de martírio para aquele que toma a atitude de enfrentar publicamente
essa lógica, tornando-se por isso mesmo uma espécie de herói – ainda
que esse caráter heroico esteja relacionado a um sentido mais morali-
zante do que necessariamente político, ao ser expresso através do tema
cristão do sacrifício individual em nome do coletivo.50

O terceiro elemento que mantém o tema da revelação/delação


como tônica da cena, esse trazido de forma bastante eloquente, se
dá logo após Kayo ser soterrado pelas caixas que caem do guindaste
sobre a sua cabeça. A execução é encenada através de um plano
rápido do ponto de vista da vítima, mostrando a queda das caixas
tendo, ao fundo, um grito que se segue ao blecaute da tela (signi-
ficando aqui o apagamento desse ponto de vista, com a morte da

50 A pronúncia do nome “Kayo” em inglês é similar ao termo “K.O.”, de “knock out”, ou


“nocaute” em português. Essa referência ao mundo do boxe reafirma a necessidade de
colocar a trajetória de Kayo em relação a Terry, sua história e seu percurso até finalmente
se decidir a delatar o sindicato como forma de oposição a Jhonny Friendly.

sumário 98
personagem).51 Então, Terry grita “Watch it!”, o que pode ser traduzido
como “Cuidado!”, mas que se expressa através do verbo “to watch”
(“olhar”), de novo reiterando a ação de olhar como um tema recor-
rente no filme. Essa atitude de Terry fecha o círculo de significação do
gestus de revelação que o personagem iniciou quando tirou a lona de
sobre as caixas de uísque no princípio da cena.

Porém, o assunto não está resolvido, pois com a morte de Kayo,


Terry ainda não se convenceu a delatar o sindicato perante a Comissão
(assumindo com o casaco o mesmo manto do martírio que passou de
Joey a Kayo). É preciso ainda que o padre continue sua pregação de
resistência para que, depois dessa cena, Terry o procure para confes-
sar sua cumplicidade, iniciando o percurso até a delação. A sequência
prossegue, então, com uma nova incursão de Padre Barry ao ambiente
de trabalho, assumindo o foco de interesse da cena.

Estamos no interior de um imenso navio de carga, um ambiente


opressivo onde, ainda por cima, jaz um homem morto (em parte como
resultado do estímulo de Barry para que a vítima delatasse). Para o
padre, essa é uma espécie de descida aos infernos, e ele pregará o
tempo todo assistido pelos seus “demônios” (os capangas de Jhonny
Friendly) que se mantém no topo do navio. O quadro abre direto no iní-
cio de seu discurso, após ele dar a extrema-unção para Kayo. Não só
os capangas e os estivadores – Terry inclusive – ouvem, mas Edie tam-
bém está agora presente (assim como estava no shape up). Mantendo
o padrão de descolamento de uma figura do coletivo (que já vimos
na cena do bar com Terry e o resto da gangue), Barry prega sozinho
diante do imenso grupo silencioso que o ouve, e que configura, uma
vez mais, a presença de uma plateia interna à cena. Porém, esse em-
bate é representado aqui de forma diferente. Primeiro, vemos invertida

51 Essa cena remete à execução de Joey na abertura do filme, onde o momento da execu-
ção se dá através de um plano rápido que mostra algo caindo (seja a vítima ou seja por
sobre a vítima), tendo seu clímax marcado pelo grito de agonia do executado. Da mesma
forma, ela é pontuada por uma frase de efeito de um personagem que assiste à cena.
Assim como um capanga comentou, sobre Joey, que “o canário poderia até cantar, mas
não sabia voar”, agora é Pop Doyle quem comenta, diante da urgência de buscar socorro
para Kayo, que “ele não precisa de um médico, ele precisa de um padre”.

sumário 99
a lógica da sequência do shape up, onde Barry figurou como plateia:
dessa vez Barry é o único no centro da ação enquanto o grupo (que
fora antes observado pelo padre) se mantém, pelo menos a princípio,
como a plateia para a qual Barry monologa. Porém, essa relação aqui
mistura observadores e observado em uma mesma ação conjunta, que
se cumpre através da ideia de congregação espiritual – já que Barry se
utiliza do espaço para pregar como se estivesse na igreja, onde prega-
dor e ouvintes se ocupam da execução de um mesmo ofício.

A forma da encenação também altera a opção de enquadrar


o embate entre indivíduo e grupo em um mesmo quadro (como foi
mostrado na cena do bar com o uso do plano americano). Antes, o
descolamento de Terry dos capangas se dava visualmente através de
um jogo de contrastes estabelecido pelo posicionamento das figuras
no quadro. Agora, não há mais essa tentativa de apreensão, em uma
mesma imagem, da totalidade das relações postas em cheque (quan-
do essa ocorre, é apenas para nos mostrar o ângulo de visão de um
dos lados, do orador ou da plateia, como se pode ver nas imagens 15 e
16). Diante da enorme massa formada pela junção de estivadores e ca-
pangas (ao contrário do pequeno grupo seleto formado pela quadrilha
no bar), Barry não é enquadrado junto ao coletivo. A cena se constrói,
em sua maior parte, através de um jogo de planos do padre falando
e dos diversos grupos que o ouvem: os estivadores que o assistem
do mesmo nível, no piso do navio; outros estivadores que estão em
um nível acima, empoleirados em uma espécie de suporte de carga
de madeira, sendo por isso captados pela câmera de baixo para cima
(imagem 17); e por fim, os membros do sindicato, que assistem do
nível mais alto, de fora do buraco de entrada de cargas no navio. Como
consequência dessa polarização maior entre as posições, o filme faz
uso, de forma mais extensiva, de closes em figuras específicas, o que
dinamiza a multiplicação dos pontos de vista ao registrar a reação de
personagens que já estamos acompanhando no decorrer da história
(Terry, Edie, Pop Doyle, Charley e Jhonny Friendly).

sumário 100
Imagem 18 – Terry ouve o sermão de Barry

Imagem 19 – Barry visto de baixo, já ferido na cabeça

Imagem 20 – Kayo ferido na saída da igreja

sumário 101
Imagem 21 – Terry ferido, na cena final

Os closes estabelecem comentários pontuais da ação, como


quando Charley e Jhonny reagem apenas com o olhar ou uma infle-
xão de cabeça, tanto ao discurso do padre como às atitudes de Terry,
que já começa a explicitar o início de sua oposição ao sindicato: Terry
defende o padre ao bater no capanga que tentou atingi-lo com gar-
rafas de uísque, conferindo ao sacerdote a mesma ferida na cabeça
que Kayo havia ganho ao fim da cena da igreja (imagens 19 e 20).
Ainda sobre essa ferida, ela ajuda a acumular significados no assunto
da delação, já que Terry, depois de delatar, vai também caminhar na
sequência final com a cabeça sangrando (imagem 21). O eco dessa
imagem do ferimento na figura do padre Barry reforça a simbologia
do delator como mártir, lembrando mesmo uma espécie de “estig-
ma”, como aquele ostentado por Jesus Cristo por causa da coroa de
espinhos que ganha “de presente” ao, ironicamente, ser condenado
à morte pelo mesmo povo ao qual tentava defender – assim como
Terry será condenado pelos estivadores após sua delação.

Vemos, dessa forma, que em determinado momento da inte-


ração entre grupo e figura descolada, entre os agentes passivos (ob-
servadores) e o ativo (orador), os papéis se misturam: quem observa
começa a agir e vice e versa, pois, diante da fúria dos capangas, Bar-
ry interrompe sua fala para observar o que está causando na plateia.

sumário 102
Novamente, como ocorreu depois de Big Mac jogar para o alto as
fichas no shape up, o andamento da narrativa problematiza a estrutu-
ra de registro dos diversos pontos de vista entrecruzados na compo-
sição de uma cena de caráter tão coletivo. Essa mistura de espaços
e pontos de vista ecoa, na forma do filme, a mesma dificuldade de
valoração das atitudes individuais que a obra vai manipular até o fim
(entre os papéis de protagonismo e audiência da cena, herói e objeto
de manipulação, resistência e subserviência ao sistema através da
delação, e assim por diante). Vale dizer ainda que essa dificuldade
de valoração confere ao filme a leitura de ser uma obra que se sus-
tenta sobre ambiguidades, o que dificultaria uma avaliação imediata
de seu discurso, capaz de dar conta de todas as suas contradições.
É como se o encaminhamento das cenas conduzisse sempre para
esse momento de embaralhamento das perspectivas, onde elas se
confundem. Precisamos responder, ao longo do trabalho de análise,
se essa lógica aponta, no fim, para a defesa de uma ideia ou perspec-
tiva única em relação aos problemas levantados, ou se ela mantém
em aberto a discussão que implica no decorrer de sua duração.

Nesse momento específico, podemos perceber que o regis-


tro do olhar de Barry ganha uma relevância extrema para a cena,
por ele captar, com sua observação, bem mais do que os outros
personagens olham. Ao contrário deles, o padre parece ser o único
personagem que tem uma visão global do ambiente, e sua expressão
evidencia que ele tem consciência do que o momento lhe proporcio-
na. Os closes nessa figura cumprem assim a função de comunicar
para nós espectadores uma espécie de “monólogo interior” silencio-
so da personagem, enquanto avalia a situação que tem diante de si.
Barry é, o tempo todo, o personagem que pensa antes de agir e que
age a partir da consideração do que observa, mais do que por mera
reação imediata ao que vê. Sua fala, através do discurso que profere,
é ponderada e cheia de pausas, ainda que proferida de forma apai-
xonada em determinados momentos. É a expressão de um mestre
da arte da oratória. Mesmo quando se exalta após ter sido acertado

sumário 103
pelo golpe da garrafa de uísque, é evidente o contraste com a reação
de Terry, por exemplo, que diante da provocação perde a razão e
parte para cima do capanga que atirou a garrafa. Esse contraste de
Barry em relação às demais figuras, aliás, é registrado pelo ângulo de
enquadramento da câmera ao dar o close. Ao fim da cena, Barry, no
auge de seu discurso, é mostrado visto de baixo (assim como Edie
foi focada ao fim da cena do shape up, depois de ouvir a promessa
do padre em ajudar os estivadores) o que provoca uma representa-
ção engrandecida de sua figura (imagem 19). Os outros estivadores,
ao contrário, são sempre focalizados no mesmo plano do ângulo de
visão (como Terry, na imagem 18). Esse contraste chama a atenção
por não condizer, de forma alguma, com o ponto de vista de nenhuma
figura envolvida na cena, pois todos os ouvintes de Barry o assistem
de cima, posicionados em planos superiores ao padre (na relação
espacial interna da cena). Assim, esse enquadramento corresponde
a um olhar exterior à cena que o filme adota para registrar a presença
de Barry, e que produz o efeito de engrandecer sua imagem.

Essa representação é fortalecida pelo tom da intepretação de


Karl Malden. Barry sempre traz uma expressão segura: olhar firme e
penetrante, boca rígida, muito atento, e a voz grave e poderosa, muito
bem articulada, que fala a todo instante como se estivesse pregando
uma verdade inquestionável. Seus gestos são precisos e, no mais das
vezes, capazes de adicionar um comentário pontual ao fim de uma
ação – como quando leva, de diferentes formas, o cigarro à boca (com
um gesto seguro ao fim dessa cena, mas logo depois confuso, após
a confissão de Terry a Edie) ou pede energicamente uma cerveja (no
bar de Jhonny Friendly, após a morte de Charley, quando ele final-
mente convence Terry a delatar o sindicato). Ainda que atravessan-
do momentos de dúvida ou mesmo de preocupação ao ver que suas
atitudes conduziram a desfechos desastrosos (como a execução de
Kayo), Barry expressa, com sua expressão sempre controlada, uma
firmeza de caráter. Seus momentos de fraqueza, aliás, mais do que nos
“indispor”, enquanto espectadores, com sua figura, nos aproximam

sumário 104
dessa ao revelar um personagem complexo, contraditório e ambíguo
ele próprio, capaz de errar, mas ainda assim se manter firme em seus
propósitos – que são os mais bem intencionados em relação ao futuro
dos trabalhadores explorados. Isso garante para o espectador, ao fim,
uma espécie de relação de confiança com sua figura, que representa
sempre um ponto de ponderação e sabedoria, estendendo para nós a
mesma capacidade de aconselhamento ou acolhimento que ele desti-
na aos estivadores que tenta, a todo instante, conduzir.

Esse registro do movimento de raciocínio do personagem ao


longo da cena, assim como das decisões tomadas por ele (e que
movimentam a cena e o enredo como um todo), é que pode confir-
mar o caráter de Barry como mediador das relações e dos demais
pontos de vista envolvidos nas situações que o filme representa. Em
outras palavras, Barry é constituído como uma espécie de instância
narrativa mediadora que, no limite, interfere na relação do filme com o
espectador. Ele serve como uma figura externa ao ambiente do cais,
a qual nós, também externos àquele ambiente, em alguns momen-
tos acompanhamos para nos introduzir em seus conflitos e enxergar
de forma direcionada – ou seja, de acordo com um ponto de vista
específico – seu desenvolvimento. O aproveitamento que o filme faz
dessa instância narrativa pode ser percebido de forma evidente no
desenvolvimento da relação entre Barry e o protagonista, Terry Malloy.
Ainda que a princípio o padre veja Terry de forma pouco simpática,
como mais um capanga do sindicato, sua relação com o rapaz vai
se tornando mais próxima à medida que a consciência de Terry tende
para se opor à organização criminosa, por conta do estreitamento de
sua relação com Edie. É como se, através dos olhos de Barry, o filme
fosse desvendando – mais uma vez promovendo um processo de
revelação – o caráter real de Terry Malloy, sendo o padre a figura que
vai ajudá-lo a agir da maneira mais condizente com sua ética pessoal,
sempre preocupada em fazer “o que é certo” (como já descobrimos
na cena do bar, através da citação das regras do jogo de boxe).

sumário 105
Assim, essa mudança de tom na postura de Barry com o per-
sonagem de Brando no decorrer do filme pode ser programática,
servindo para construir a nossa identificação com o protagonista de
forma calculada, sempre através da mediação do padre. A imagem
de Terry ao longo de todo o filme – ainda reverberando, talvez, o olhar
de Barry sobre ele – é sempre enquadrada como uma personagem
impulsiva e bruta, incapaz de pensar antes de agir, ou de traçar es-
tratégias para agir de forma mais acertada (veremos isso melhor na
análise das cenas finais do filme). E essa consideração justificará a
necessidade de uma espécie de aconselhamento, ou condução ex-
terna dos atos de Terry, seja por Edie, seja pelo padre. Ao fim, talvez
Barry sirva não apenas como um guia para as ações de Terry, mas
também como um ponto de apoio para que a narrativa do filme cons-
trua a relação do espectador com os conflitos apresentados.

Curiosamente, assim como a opção de Arthur Miller ao contar


sua história sobre estivadores como um “Panorama Visto da Ponte”
(No texto A View From the Bridge, de 1955) – através da figura de
um narrador explícito também externo (um advogado) o que no caso
evidencia formalmente de modo mais radical essa postura épica, já
que Alfieri narra diretamente para a plateia – Kazan igualmente man-
tém explícita e consciente a postura distanciada que o olhar de sua
câmera estabelece perante a matéria do filme. Diante da expressão
e da significação que a ação organizadora dessa instância narrativa
confere ao enredo, essa matéria então descola-se definitivamente da
intenção de realizar apenas um filme de registro de “problemática
social” sobre a realidade dos estivadores, lançando as pontes de
sentido que alegorizam o conflito desses trabalhadores com a situa-
ção estabelecida nas relações da classe artística da época através da
ação do Macartismo. A discussão sobre a necessidade da delação
se torna, assim, uma discussão sobre o problema da ação política
do indivíduo diante da falência de uma possibilidade de representa-
ção coletiva enquanto classe – seja através da instância partidária ou
da organização sindical. E o filme se posicionaria, assim, como uma

sumário 106
obra de discussão e comprovação de uma tese específica a respeito
de uma ideia central, tese cuja discussão o organiza.

Isso pode explicar a opção por colocar esse ponto de vista me-
diador em um membro da Igreja, o que revela a tentativa de constituir
um olhar que se organize através de uma referência de congregação,
introduzindo uma outra noção de coletivo que se opõe à ideia de
organização mostrada até então, não por acaso todas relacionadas
com formas tradicionais de atividade política (como o sindicalismo,
no interior do enredo do filme ou a organização partidária, na relação
extra fílmica). Ao mesmo tempo, o poder de aderência do grande pú-
blico com a Igreja conferiria ao discurso do filme uma autoridade de
representação que pode atrair, para a ideia de ação política de resis-
tência que ele defende, a simpatia do espectador. A personagem do
padre Barry encontra ressonância imediata na experiência que serviu
de inspiração ao roteiro pelo fato de a figura do padre John M. Cor-
ridan ter assumido a função de liderar, em sua paróquia, o combate
contra a máfia do sindicato dos estivadores em um porto de Nova Ior-
que, conforme foi registrado pelas reportagens de Malcolm Johnson.
O discurso que Barry professa após a execução de Kayo no interior
do navio é uma transcrição quase literal de um discurso real do pa-
dre Corridan, onde ele estabelece a ideia de que toda vez que um
trabalhador sofre ou é eliminado tentando lutar pela melhoria de suas
condições de vida, Cristo está no cais (“Christ is in the shape-up”),
construindo assim uma imagem de resistência através da jornada de
martirização do pequeno trabalhador, cuja tragédia é ignorada pelos
interesses oficiais da grande política do país.

Ao que parece, Budd Schulberg tomou essa imagem como


base de referência a partir da qual construiu, em seu script, a trajetória
de Terry Malloy. Assim sendo, se o caminho do protagonista se constrói
como um percurso de martírio, é de fato necessário que uma figura
como a de um “pastor de almas” oriente esse mártir para que sua fé
não se enfraqueça na jornada. A descrição que Schulberg faz do padre
Corridan nos artigos que ele próprio também escreveu para os jornais

sumário 107
sobre a corrupção nos sindicatos dos estivadores (durante suas pes-
quisas para a elaboração do roteiro de “Sindicato de Ladrões”) deixa
evidente a admiração do roteirista pela figura de Corridan, justificando
assim a representação de Barry como um militante inflexível:
Um economista extremamente atualizado, um político astuto,
um lutador incansável pelos direitos humanos, um homem que
vive sua cristandade e guia como um pastor os homens brutos,
beberrões e briguentos da selva do cais do porto – esse é Padre
Corridan. Seu trabalho nas docas pode estar só começando.52

Confirmando a influência de Corridan entre as “ovelhas de seu


rebanho”, no mesmo artigo Schulberg registra a fala de Tim McGlyn,
estivador que era braço direito do Padre John Corridan, servindo, atra-
vés dos conselhos do pároco, como uma espécie de liderança de sua
classe na oposição contra o sindicato (como Terry também se tornará
na última cena do filme): “Com certeza a máfia é durona, mas o Padre
John é mais. Um dia desses ele vai lançar todos eles no rio. Esse Padre
John – ele realmente sabe das coisas.”53

Porém, em comparação com outras formas de organização co-


letiva, a ideia de congregação apresentada pela Igreja, de união em
torno da mesma fé, carrega um outro peso simbólico, e uma noção
mais fortemente moralizante de ética pessoal e dos compromissos
do indivíduo em sua relação com os grupos aos quais pertence. Do
ponto de vista das relações históricas, a personagem de Barry entra
em acordo tanto com a referência imediata de sua criação (o Padre
Corridan) quanto com a postura da Igreja Católica à época enquanto
instituição, na relação com os seus fiéis da classe trabalhadora. Padre
Corridan, como Budd Schulberg faz questão de informar (e repetir a
todo instante) em seus artigos, era um anticomunista ferrenho que via
o combate pela autonomia dos estivadores como uma luta necessária
também contra o CPUSA, que segundo o padre, poderia se aproveitar

52 Trecho de um artigo escrito para o The New York Times Magazine em 1953. Em JOHN-
SON, Op. Cit, pg. 250 (em tradução livre).
53 Op. Cit., pg. 250 (em tradução livre).

sumário 108
da insatisfação desses últimos para ganhar força de representação
política no país. Da mesma forma, desde os fins dos anos 1930 a Igreja
foi estabelecendo nos EUA uma aproximação com grande parte da
classe trabalhadora, principalmente nas categorias majoritariamente
formadas por homens de origem cultural católica, como é o caso da
presença massiva de irlandeses entre os estivadores.

Além de auxiliar na luta por melhores condições de trabalho, con-


tra o poder das máfias que dominavam os sindicatos, a Igreja, sempre
aliada do governo, batalhou também contra a infiltração comunista e da
esquerda como um todo nas organizações sindicais. Nos anos 1950,
essa relação já estava mais do que fortalecida, garantindo quase que
automaticamente a simpatia da classe trabalhadora ao serviço de er-
radicação do pensamento da esquerda radical operado pelo Macartis-
mo. Como explica Stanley Aronowitz em False Promises (trabalho que
debate a história da formação do pensamento da classe proletária nos
EUA): “A Igreja trabalhou junto a sindicalistas católicos para prevenir a
formação de partidos socialistas e trabalhistas, argumentando que tais
organizações como a IWW [Industrial Workers of the World] eram infiéis
e indignas de receber afiliação dos trabalhadores”. E depois:
Recentemente, ainda mais depois da Segunda Guerra Mundial,
clérigos católicos foram se tornando onipresentes em seu en-
volvimento com os sindicatos. O papel significativo cumprido
pelos padres católicos em combater os supostos sindicatos “de
esquerda” dentro da CIO [Congress of Industrial Organizations]
foi uma das grandes marcas do embate ideológico interno ao
movimento trabalhista que precedeu o advento do Macartismo
como uma grande força política nacional.54

Esse posicionamento é ilustrado através de uma fala do Padre


John Corridan registrada por Schulberg em um de seus artigos:
Os homens que andam pelas docas protestando contra uma for-
ma de contratação votada para eles, mas não por eles, são leais
e decentes. Americanos tementes a Deus, que não querem que

54 ARONOWITZ, 1992, pg. 168 (em tradução livre).

sumário 109
mafiosos capturem seus locais de trabalho, e que não precisam,
nem querem, que comunistas vençam, por eles, suas batalhas.55

Esse complexo criado pela mobilização em torno de pautas


progressistas (a luta pela melhoria das condições de trabalho dos es-
tivadores) operado por uma instituição de fundo conservador (a Igre-
ja) visando um objetivo claramente alinhado ao sistema (na confusão
entre combate à criminalidade e cruzada anticomunista) estabelece
um campo de embate ideológico que deixa marcas na elaboração de
“Sindicato de Ladrões”. Durante o discurso de Barry após a execução
de Kayo fica explicitamente gravado na constituição da própria cena,
como em nenhum outro momento até então, a complexidade do emba-
te de forças montado pelo filme: o navio é o ambiente de trabalho, mas
agora também se tornou literalmente um túmulo para os trabalhadores,
já que o corpo de Kayo jaz no seu fundo ladeado das centenas de cai-
xas de mercadorias que, nesse ambiente, tem um valor muito maior do
que o corpo de quem as manipula; dentro dessa estrutura, a relação de
valência entre o trabalhador e a mercadoria deveria ser mediada pelo
sindicato, que no caso apenas corrobora com o sacrifício advindo do
labor que, para os criminosos que comandam a organização, é apenas
uma fonte lucrativa operada através da exploração e da criminalidade;
diante desse desamparo, a figura que assume a função de lutar pelos
direitos dos trabalhadores é o padre, representante da Igreja; então,
mais do que mera congregação para salvaguarda espiritual de seus
membros, a igreja torna-se uma espécie de sindicato, com ação igual
à luta dos movimentos trabalhistas organizados que, em seu auge nos
anos 1930, empreenderam os congressos e as greves que marcaram a
era de ouro da proletarização da sociedade estadunidensea, sob certa
permissividade do sistema (o governo Roosevelt).

No ambiente de “Sindicato de Ladrões” esse sistema oficial


(o Estado) não tem nenhum tipo de força de controle ou presença
efetiva, e a organização que, nos anos 1930, serviu de berço da ar-
ticulação do pensamento intelectual da esquerda mais propriamente

55 Schulberg, citado em JOHNSON, Pág. 249 (em tradução livre).

sumário 110
radical, o CPUSA, está alegorizado na formação da quadrilha mafiosa
que comanda o sindicato. Ao que parece, o resultado que chegamos
ao fim de toda essa equação é que o filme relaciona a prática de
organização sindical com uma atividade generalizada de repressão
da liberdade de manifestação individual dos trabalhadores concorren-
do, inclusive, para a exploração de sua força de trabalho através do
silêncio e do terror. Por outro lado, a Igreja, instituição que por conta
de seu antagonismo histórico com o comunismo na Europa liderava a
cruzada ideológica armada pelo Macartismo nos anos 1950 nos EUA,
surge através da figuração de padre Barry como um novo espaço de
resistência. Um espaço capaz de promover o reencontro do indivíduo
com sua liberdade de voz roubada pela coletivização sindical. Se o
sentido do termo “religião” vem diretamente da ideia de “religação” da
humanidade com uma ordem superior perdida pelo desenvolvimento
da vida mundana, o filme elabora, através do Padre Barry (ecoando a
figura do padre Corridan) o discurso da necessidade de formação de
novos laços entre os indivíduos, ou seja, novas formas de pensar a
organização coletiva, segundo novas ideias.

O discurso de Barry é eloquente e em total acordo com os va-


lores mais progressistas de liberdade de expressão e ação do indiví-
duo, assim como da necessidade de equalização das condições de
vida da sociedade. O fato de Barry ser pároco de uma comunidade
formada majoritariamente por imigrantes irlandeses adiciona ainda ao
caldo da composição de sua figura um dado político que advém do
papel histórico exercido pela Igreja Católica na luta de independência
da Irlanda do domínio da Inglaterra, país de fé protestante. Na tentativa
de tentar organizar os estivadores como oposição ao sindicato, Barry
chega inclusive a demonstrar conhecimento de táticas de confronto
urbano – como quando, na fuga da igreja cercada após a cena do
shape up, Barry aconselha os estivadores a saírem de dois em dois,
para confundir o ataque dos criminosos.

sumário 111
Porém, ao fazer uso do vocabulário e da concepção de mun-
do cristã, sua fala confere à ação política um aspecto moralizante.
Apoiando-se em uma noção salvacionista de redenção pessoal atra-
vés do sacrifício (a ideia do martírio presente nos símbolos que o
filme elabora), o discurso do padre aponta para a atitude individual (a
delação como forma de oposição ao sindicato) como solução para o
impasse criado pelos acordos sociais (a passividade dos estivadores
diante dos desmandos da máfia):
BARRY – Algumas pessoas acham que a crucificação só acon-
teceu no Calvário. É melhor eles ficarem espertos. Matar Joey
Doyle para impedi-lo de depor é crucificação. Esmagar Kayo Du-
gan porque ele estava pronto para abrir a boca amanhã, isso é
crucificação. E toda vez que a máfia mata um homem bom para
impedi-lo de cumprir seu dever como um cidadão, é crucificação!
(...) Sabe o que está errado aqui no nosso cais? É o amor pelo
dinheiro fácil. É fazer o amor pelo dinheiro – o trabalho fácil – mais
importante do que o amor pelo homem. (...) Mas lembrem-se,
irmãos, Cristo está sempre com vocês. Cristo está na seleção de
trabalhadores, está na estiva, está no sindicato, está de joelhos
bem aqui ao lado de Dugan (...) E apenas vocês, apenas VOCÊS,
com a ajuda de Deus, têm o poder de acabar com isso de vez!

Através do seu discurso o Padre confere validade política ao


gesto individual que rompe o pacto estabelecido pelo coletivo. Como
estamos vendo desde o início, o filme aponta na representação de
uma imagem enfraquecida de grupo. Não é possível esperar dos es-
tivadores o estabelecimento de uma forma de oposição organizada à
ordem do sindicato (a luta desorientada pelas fichas no shape up ou as
reações desencontradas ao discurso do padre nos evidenciam essa
incapacidade). Então, ao estabelecer a comparação entre o sacrifício
dos trabalhadores e o sacrifício de Cristo – o herói fundador da Igreja
Católica – o filme traz para a fala do padre a capacidade de elaborar o
sentido do discurso simbólico que vem construindo ao trazer os vários
aspectos da narrativa do martírio. E a ação apontada pelo padre como
única forma de sacrifício a ser praticada é justamente a delação, que
se torna então a atitude de resistência possível aos estivadores. Ainda
que causando mortes como as de Joey e Kayo, que ergueram sua voz

sumário 112
(no testemunho perante a Comissão do Crime) para desafiar a lógica
do sindicato, seu sacrifício individual visa a salvação de seus irmãos, e
será recompensado no além (à imagem e semelhança de Cristo, que
segundo o padre está lá no cais, sofrendo junto com os estivadores).
Assim, o Padre acusa os trabalhadores de serem, através de seu silên-
cio, coniventes com os crimes cometidos pelo sindicato. Por isso, em
seu discurso ele já ameniza as dores que certamente virão para aque-
les que se decidirem a delatar (e nesse momento, não por acaso a câ-
mera focaliza Terry). Ainda que eles caminhem “no vale das sombras”
da represália do sindicato através do assassinato, os delatores terão
sempre o conforto de Deus ao seu lado, pois terão “feito a coisa certa”.

A defesa da ação individualizada ao invés de um fortalecimento


da presença do coletivo, vai de encontro à noção religiosa de mau. A cor-
rupção torna-se, assim, problema de ordem moral, fruto mais de um vício
inerente ao espírito humano (logo de caráter inescapável, como uma es-
pécie de natureza) do que da conjunção histórica de pactos e esquemas
que organizam a sociedade em sua base. Se o filme assume a ideia de
que o problema da corrupção é de base moral – ou seja, ligada a uma
manifestação que é da ordem abstrata (a ação espiritual) – a reação de
quebra dessa ordem não poderia mesmo ser outra do que uma reação
também moralizada, ao invés de uma organização propriamente política
no sentido de emancipatória. Afinal, o consolo possível aos estivadores
que forem mortos por conta da delação, assim como o estímulo para sua
ação, vem diretamente da fé e do mundo espiritual (através de uma con-
cepção de mundo dualista, partida entre a noção de bem e mau) mais
do que através da consciência política prática ou de uma mobilização
coletiva autônoma – de uma estância por assim dizer humana, de caráter
mais propriamente dialético.56 Ao fim, a ideia é que, com a delação, todo

56 Em um ensaio publicado nos anos 1970 sobre o filme, Peter Biskind também explora
essa dinâmica política moral que o filme estabelece: “(...)a noção de que a extorsão pode
ser endêmica mais do que incidental (...) A corrupção era vista exclusivamente como um
problema moral, um pecado cometido por homens maus (o enquadramento de referência
teológica é reforçado pelo papel predominante ocupado pelo Padre Barry), mais do que
uma forma de mútuo benefício, e um conluio politicamente conveniente entre sindicatos, o
empresariado e a máquina do Tammany Hall”. O Tammany Hall foi uma espécie de organi-
zação com representantes da sociedade civil criada para aconselhar a gestão LaGuardia
na prefeitura de Nova Iorque. Em BISKIND, 1975, pg. 28 (em tradução livre).

sumário 113
o mau será curado, como se a dinâmica de trabalho no cais não fosse a
ponta de todo um sistema de relações que deve ser combatido. E como
se, apenas com a denúncia dos capangas de Friendly os estivadores
fossem capazes de recuperar a dignidade perdida.

Finalizando seu discurso com eloquência e alta tensão emotiva,


e evidenciando mais uma vez o domínio da capacidade de mobiliza-
ção que tem sobre os ouvintes, o padre olha para o morto e diz: “Ok,
Kayo?!” – em um gesto seco e preciso, mas de reverberação quase
melodramática. Então, emerge das profundezas desse inferno de pé
e cabeça erguida, no mesmo guindaste que leva o corpo do delator
(o mártir da cena), com Pop Doyle (pai da primeira vítima que o filme
mostrou) sentado ao seu lado e lhe oferecendo um cigarro. A imagem
é poderosa, e a trilha sonora – um instrumental orquestrado entrecor-
tando a massa aguda de violinos com baques graves e pausados de
tímpano – assim como o movimento dos trabalhadores se levantando
em respeito ao corpo que é carregado, encerra a cena com solenidade.

Retomando o diálogo com a tradição da arte dos anos da


Frente Popular, já apontado em nossa análise como essencial para
a compreensão do filme, o discurso do Padre Barry ecoa referências
comuns à época para a representação de dilemas da classe trabalha-
dora. A imagem de “Cristo no shape up” lembra um famoso romance
de fins da década de 1930 sobre trabalhadores da construção civil
de origem ítalo-americana, Christ in Concrete, de Pietro di Donato,
adaptado para o cinema em 1949 por Edward Dmytryk na Inglater-
ra (onde esse diretor tinha se exilado por ter sido um dos Dez de
Hollywood condenados pela HUAC em 1947)57. Ainda, Barry evoca
figuras do cinema dos anos 1930 como o Padre Jerry, personagem
de Pat O´Brien – ator de ascendência irlandesa que ficou famoso por
interpretar personagens com essa nacionalidade – no clássico do

57 O filme foi lançado no Reino Unido com o título de Gives Us This Day, citando a versão em
inglês da famosa oração do Pai Nosso (“... gives us this day our daily bread”). Nos EUA o
filme foi lançado com o título do romance que lhe deu origem. No Brasil foi traduzido como
“O Preço de Uma Vida”.

sumário 114
cinema de gangster “Anjos de Cara Suja” 58, filme que fez a fama de
James Cagney como o fora da lei terrível e cruel, porém simpático,
cuja trajetória se encontra em ressonância com os desejos de vitória
no sonho americano da classe trabalhadora imigrante nos EUA. Essa
relação, aliás, nos ajuda a entender a ambivalência que a figura do
Padre Barry estabelece em sua significação extra fílmica.

Se nos filmes de gangster, que foi o grande gênero desenvolvido


pelo cinema de problemática social na Hollywood dos anos 1930, os
criminosos assumiam uma valoração ambígua por serem produtos do
desigual e competitivo sistema capitalista dos EUA, crias diretas do
desamparo no qual a Grande Depressão jogou a classe proletária do
país, já em “Sindicato de Ladrões”, um dos mais conhecidos exemplos
de filmes de problemática social dos anos 1950, não sobra nenhum
tipo de figuração simpática (ou ao menos ambivalente) aos gangsters
que formam a gangue de Jhonny Friendly. Se durante a efervescência
política do período expresso nas obras da “cultural front” o gangster
podia ainda ser uma espécie de trágico anti-herói da resistência ao
sistema capitalista já em processo de desmanche, nos anos 1950 os
artistas da época da Frente Popular tiveram que mudar o foco de sua
lente ao discutir as problemáticas sociais do país. Nesse momento,
estava além da capacidade da indústria cultural discutir de forma mais
dialética a criminalidade. De acordo com isso, o gesto individual de
resistência ao sistema não mais poderia vir de um anti-herói – um cri-
minoso que escolhe a contravenção como forma de redenção das mi-
sérias de sua classe, em uma espécie de ação de justiça social. Tanto
porque, a própria noção de “luta contra o sistema” era diferente. Era
então necessário criar um herói justiceiro segundo moldes mais con-
vencionais – no sentido de agir de acordo com a Lei.

A perseguição, seguida do silenciamento que o Macartismo


impôs a toda forma de divulgação do pensamento assumidamente

58 Angels With Dirty Faces, 1939, EUA, Michael Curtiz. Por sinal, um filme também dirigido
por outro imigrante em Hollywood.

sumário 115
de esquerda dentro da indústria do entretenimento, ajuda a explicar
uma nova condição de existência, ou possibilidade de resistência, que
a arte engajada deveria descobrir. Afinal de contas, dada a ideologia
hegemônica que figurava os EUA como o país da prosperidade diante
do caos e da miséria na qual o fascismo e, supostamente, também o
comunismo haviam jogado a Europa do pós-guerra, a arte, ao querer
revelar e problematizar abertamente as complexidades e ambivalên-
cias estruturais da própria sociedade estadunidense, se tornaria auto-
maticamente (sempre do ponto de vista conservador) uma expressão
de antipatriotismo, e uma ameaça à democracia que aparentemen-
te assegurava a posição privilegiada da nação aos olhos do mundo.
Para não incorrer nesse risco, os artistas relacionados ao grande ci-
nema Hollywoodiano tiveram que revestir seus criminosos com uma
roupagem mais cruel e parcial, e eleger como seus protagonistas os
heróis da resistência a essa criminalidade. No caso de “Sindicato de
Ladrões”, isso pode explicar a escolha de Terry como seu protagonista,
ou seu “herói”. Assim, diante do universo montado pelo filme, o silêncio
é uma prática de controle imposta pelo grupo que representa a orga-
nização do CPUSA (a gangue de Jhonny Friendly). O que soa irônico
é que, ao fim, o gesto “heroico” de Terry resultaria em uma atitude de
subserviência ao sistema, representado pela Comissão do Crime.59

Porém, essa problematização do estatuto de Terry como herói


da narrativa parece, de certo modo, ser internalizada na obra, sugeri-
da pelo seu desenvolvimento formal. Como estivemos vendo até ago-
ra, o protagonista não possui autonomia subjetiva necessária para
se constituir enquanto herói. Ainda, é guiado em sua trajetória pelo
padre Barry, que passa a ser, assim, uma espécie de construtor de

59 Elia Kazan, em sua autobiografia, ponderando sobre os motivos que o levaram a cola-
borar com a HUAC em 1951: “Eu era realmente um “esquerdista”? Eu já fui algum dia?
Eu realmente quis mudar o sistema social sob o qual eu estava vivendo? Aparentemente,
isso foi o que eu defendi por algum tempo. Mas que merda! Todas as coisas que tinham
valor para mim eu conquistei sob esse sistema. Depois de dezessete anos assistindo a
União Soviética se tornar uma potência imperialista, era isso o que eu verdadeiramente
queria para nós? Não estaria eu me agarrando a pactos antigos que já não tinham mais
nenhuma validade?” KAZAN, 1988, pg. 493 (em tradução livre).

sumário 116
sua figura – no caso, como um mártir – e que por isso cumpre a fun-
ção de instância narrativa que media nossa relação com a história.
Ao mesmo tempo, a recorrência da representação do silêncio como
elemento de estruturação interna que emperra o desenvolvimento das
relações nos afasta, também, da leitura precipitada de que o filme
defenderia essa ideia de um heroísmo (agora no sentido de um mo-
delo, uma figura exemplar) manipulado. Essa consciência pode ser
evidenciada se lembrarmos de todas as vezes em que um certo có-
digo de silenciamento já foi apontado, nessa análise, como elemento
que impossibilita a realização plena da forma dramática no filme, por
impossibilitar a expressão livre do sujeito – e, como veremos adiante,
mesmo nas cenas em que Terry finalmente se confessa ou delata, sua
fala é silenciada pelo filme de forma brusca. O silêncio, afinal, repre-
senta aqui uma espécie de tabu que emperra o desenvolvimento das
relações interpessoais ou mesmo o espaço da intimidade. Sem auto-
nomia subjetiva e capacidade de expressão da intimidade do sujeito
não há herói dramático no sentido convencional, assim como sem o
desenvolvimento das relações intersubjetivas não há drama. E por fim,
sem um desenvolvimento dramático plenamente realizado, o envol-
vimento catártico do espectador com o destino das protagonistas é,
ainda que sugerido no filme através da trilha sonora ou da condução
climática na sequência final, dificultado internamente pela sua forma.

Assim, tocamos mais uma vez na necessidade de discutir o


que já chamei, acima, do caráter “híbrido”, ou negociador, da forma
do filme. Um caráter que, ao que parece, não era totalmente estra-
nho ao cinema de expressão política, ou de consciência social mais
evidente, produzido dentro do sistema de Hollywood. Em “Sindicato
de Ladrões”, a ideia de percurso do herói, e de discussão da esfera
da subjetividade enquadrando o conflito coletivo, é fundamental para
a compreensão do filme. Ao querer, em uma mesma obra, discutir o
destino da classe artística diante dos impasses colocados pelo Ma-
cartismo e fazer um balanço das experiências de uma fase de ouro
da arte engajada no país (os anos 1930), ao mesmo tempo em que

sumário 117
realizando um filme de problemática social produzido para um grande
estúdio de Hollywood, estabelecendo assim o enredo com base em
uma trajetória convencional de superação pessoal (portanto de ótica
individualista), o filme arma um nó cego. Afinal, “Sindicato de Ladrões”
não é apenas a narrativa do combate da classe de estivadores contra
o sindicato (duas ideias de coletivo em conflito). A obra estabelece
ainda uma narrativa paralela sobre o desenvolvimento de uma relação
amorosa entre o casal de protagonistas, Terry e Edie, que se mistura
ao desenvolvimento da trajetória do protagonista em se decidir pela
delação, e assim possivelmente interferir na organização da rotina de
trabalho de sua categoria. De modo que, assim, um percurso se torna
a motivação do outro: a resistência de Terry ao sindicato é fruto de seu
envolvimento pessoal com Edie, irmã da vítima do crime do qual fora
cúmplice e que lhe acarretou sua discordância com a organização, o
que o leva, assim, a querer combater o sindicato para poder se ligar
definitivamente a Edie – sempre sob a condução de padre Barry.

Ainda, se Terry é figurado desde o princípio como uma perso-


nagem deslocada e sem nenhum vínculo com qualquer grupo, Edie
– também representada como alguém que não encontra mais lugar no
seu ambiente de origem – lhe oferece uma possibilidade de inserção
em uma nova imagem de coletivo que, através da narrativa romântica
convencional, é assumida na ideia de constituição possível de um novo
núcleo familiar. Talvez esse dado nos aponte, assim, para uma ideia
estruturante do filme, ideia que se justifica, ainda, pelo contraste com a
representação de ambientes de relações coletivas desfeitas (conforme
já reconhecido nessa análise): o anseio pela formação de novos víncu-
los, ou novos acordos sociais, diante do ambiente de fraturas motivado
pelo Macartismo – o que foi apontado, há pouco, através da ideia de
coletivo que a Igreja representa, ideia essa que não é tão distante da
noção de família, já que se utiliza da mesma alegoria de filiação para
explicar nossa ligação com Deus (nosso pai) e Jesus Cristo (nosso
irmão), resultando na imagem da congregação como uma só grande
família de fiéis unidas pela fé e pela moral religiosa. A expressão desse

sumário 118
anseio provoca na forma do filme um retorno, ou por assim dizer, um
“realinhamento” a convenções narrativas mais propriamente dramáti-
cas e de caráter mais subjetivista, tergiversando o enquadramento de
abrangência coletiva (ou épica) pelas ferramentas comuns à expres-
são emotiva do enredo romântico e passional.

Isso provoca, assim, um impasse entre, por um lado, a persis-


tência de soluções formais convencionalmente dramáticas que podem
expressar um impulso de ação subjetiva diante da pressão ocasionada
pelos conflitos com o coletivo; e por outro, um movimento de registro
distanciado, mais abrangente, com enfoque maior sobre a experiência
coletiva, que passa a problematizar e mesmo determinar o caminho de
ação das figuras individuais em sua relação com as pautas e deman-
das desse coletivo – movimento esse que nos ocupamos de flagrar em
todas as sequências analisadas do filme até aqui.

O estabelecimento desse impasse nos coloca a necessidade


de entender como a reposição das convenções dramáticas (como a
entrada da trilha sonora sentimental ou de enquadramentos em close
através do jogo de campo e contracampo, que veremos adiante nas
cenas entre Terry e Edie ou entre Terry e Charley) é feita mesmo que
em choque com os demais elementos formais discutidos até agora
na análise que estamos fazendo. E como também, ao fim, esse en-
trelaçamento de novos referenciais técnicos e estratégias narrativas
– através do cruzamento de pontos de vista diversos na montagem,
da estratégia sonora que quebra a lógica da comunicação dialógica
e até mesmo de um uso do Método de interpretação capaz de redi-
mensionar a contribuição do trabalho do ator para a fatura do filme
– configura o registro e a problematização da experiência social que
o filme, enquanto realização formal, se propõe a discutir, e para a qual
pode apontar, ou não, uma saída.

sumário 119
2
Capítulo 2

Romance na beira do cais: o método


como possibilidade de organização
diante de uma nova cultura política

Romance na
beira do cais:
o método como
possibilidade de
organização diante de
uma nova cultura política
a causa [da dissolução do Group Theatre] se encontra na pe-
culiar condição econômica-moral de nossa sociedade hoje em
dia, especialmente no modo como isso afeta o teatro e outros
fenômenos culturais semelhantes. Eu não estou usando o ter-
mo “condição econômica-moral” como um eufemismo para o
capitalismo; como eu já disse, estamos presenciando o flores-
cimento de culturas teatrais em diversos países capitalistas.
Porém, não deve haver dúvidas de que a ênfase quase que ab-
soluta no lucro em relação ao teatro – que mais se intensificou
do que diminuiu nos últimos anos – impediu todo o progresso
nessa direção. Isso não é apenas significativo em si, mas tam-
bém em vista do fato de que, nos anos 1930, desenvolveu-se
uma forte consciência ávida por um mundo espiritualmente
ativo, uma arte relevante e humanamente significativa. No en-
tanto, o desenvolvimento socioeconômico peculiar dos anos
1930, que de bem-sucedido a princípio levou a uma crise no
início da guerra, trouxe uma dissolução do movimento do qual
o Group Theatre foi uma das principais vozes.

Harold Clurman, The Fervent Years

O ator cinematográfico típico só representa a si mesmo. Nisso,


essa arte é a antítese da pantomima. Essa circunstância limita
seu campo de ação no palco, mas o amplia extraordinariamen-
te no cinema. Pois o astro de cinema impressiona seu público
sobretudo porque parece abrir a todos, a partir de seu exemplo,
a possibilidade de “fazer cinema”. A ideia de se fazer reproduzir
pela câmera exerce uma enorme atração sobre o homem mo-
derno. Sem dúvida, os adolescentes de outrora também sonha-
vam em entrar no teatro. Porém o sonho de fazer cinema tem
sobre o anterior duas vantagens decisivas. Em primeiro lugar, é
realizável, porque o cinema absorve muito mais atores do que
o teatro, já que no filme cada intérprete representa somente a
si mesmo. Em segundo lugar, é mais audacioso, porque a ideia
de uma difusão em massa de sua própria figura, de sua própria
voz, faz empalidecer a glória do grande artista teatral.

Walter Benjamin, A obra de arte na era


de sua reprodutibilidade técnica

sumário 121
Como discutimos no capítulo anterior, “Sindicato de Ladrões”
problematiza o caráter heroico de seu protagonista ao constantemente
roubar sua autonomia de fala ou expressão, e mesmo sua consciên-
cia sobre o processo de emancipação que atravessa – e que seria a
trajetória principal de seu enredo, culminando na escolha de Terry por,
finalmente, delatar os negócios da máfia que controla o sindicato dos
estivadores. Ao fim do filme, ainda que alguns elementos de encena-
ção pareçam nos sugerir uma vitória de Terry sobre Jhonny Friendly,
não conseguimos saber exatamente o que de fato mudará nas rela-
ções de trabalho, na organização dos estivadores ou na relação de
Terry com os seus colegas após a delação.

Seria essa problematização da trajetória do protagonista uma


tese que a obra adota ou, pelo contrário, é fruto das tensões surgidas
entre sua forma e seu conteúdo, por conta da relação direta de ambos
com a experiência histórica a qual o filme tenta discutir? Ou, formulan-
do a questão de outro modo (e pensando ainda sobre essa cena final):
que tipo de posição ou estrutura de sentimento60 diante da experiência
histórica, essa tensão reflete?

Obviamente, é necessário conduzir essa reflexão para além de


todo o testemunho vindicativo, ou de desforra, que sempre se pode
extrair das falas de Kazan ou Schulberg sobre a relação entre o filme
e suas trajetórias pessoais. É como se, ainda que seus realizadores
queiram usar a obra para justificar as suas atitudes (a delação peran-
te o Macartismo), a viabilidade de defender essa ideia através do de-
senvolvimento de uma narrativa heroica fosse emperrada pela situa-
ção de crise profunda no sentimento de coletividade, em um exemplo
gritante do envolvimento da experiência histórica na execução formal
de uma obra de arte. Se pensarmos ainda que a postura de Kazan e
Schulberg não era uma unanimidade no conjunto da equipe do filme
(a começar por Marlon Brando, seu protagonista) podemos reconhe-
cer que essa discordância acaba estruturando internamente a obra

60 Sobre a ideia de “estrutura de sentimento” conferir a nota 31.

sumário 122
desde a esfera das suas relações de produção. Porém, parece que
apesar dessa discordância, há o estabelecimento de um espaço que
ainda assim possibilita a colaboração entre os artistas conflitantes no
momento da criação da obra. Essa contradição parece interferir no
produto final, ajudando a explicar o caráter ambíguo que complexifica
o exercício de interpretação final da obra. Esse exercício se encontra
então preso em um movimento pendular entre a percepção de uma
defesa do colaboracionismo através da delação, e o reconhecimento
de uma obra que, dado o refinamento de sua realização formal, pode
representar por si só uma conquista para certos grupos de artistas e
linguagens oriundas da expressão da arte política dos anos da Frente
Popular. O que talvez configure essa obra como um eco distante do
espírito contestador ou dialético que animava essa geração.

No âmbito da forma, o fato de o filme adotar o registro de múlti-


plos pontos de vista sobre as situações, assim como registrar também
o conflito entre esses diversos pontos de interesse, rouba do protago-
nista a capacidade de organizar sua experiência e orientar suas ações.
Porém, a adoção de uma figura mediadora, uma espécie de instância
narrativa que organiza os conflitos e auxilia Terry em sua trajetória até
a delação, o grande assunto da obra, pode servir como um ponto de
superação dessa inabilidade do protagonista em realizar sua oposição.
Ainda que desacreditado tanto pelos criminosos quanto pelos estiva-
dores, Terry não está sozinho. Em primeiro lugar, sua relação com Edie
oferece um ponto de apoio que o estimula a se desligar das atividades
criminosas, e quebrar o vínculo de afeto pouco construtivo que mantém
com Charley, seu único familiar consanguíneo. Depois, a aliança com
Padre Barry serve para que Terry encontre a melhor forma de reagir
diante do ambiente em que vive, e através das informações que possui.

Assim, ao mesmo tempo em que registra uma crise do senti-


mento de coletivização e da ideia de pertencimento de classe, o dis-
curso do filme parece apontar para o desejo de uma espécie de su-
peração da experiência, por meio de um realinhamento a uma ideia

sumário 123
possível (mesmo que utópica) de coletividade, ou do estabelecimento
de novos acordos, novas formas de relação de trabalho, como meio de
solucionar essa crise. É através dessa ideia que podemos redimensio-
nar o peso das relações pessoais de Terry (com Edie e com seu irmão
Charley), e tentar construir pontes de sentido que ligariam, em chave
alegórica, as duas narrativas centrais do filme (o caminho de Terry até
a delação e o desenvolvimento de sua relação com Edie) com a expe-
riência atravessada pela classe artística durante o Macartismo.

“AS PESSOAS NÃO DEVERIAM


SE IMPORTAR UMAS
COM AS OUTRAS?”

A filosofia inclusiva do Group Theatre delineou um cosmos: as-


sim, a função do Group, mesmo seu dever, foi se tornar um cos-
mos. Ele tinha que oferecer o que a sociedade havia falhado em
garantir. Pelo fato de, sob certo aspecto, a crítica que o Group
fazia à sociedade implicar que ele estaria acima dela, ele teve
que se tornar uma outra sociedade dentro da sociedade, uma
unidade protegida, uma utopia, um oásis dentro da cidade de
onde alguém poderia erguer sua carreira e salvação.61

O desejo de um espaço utópico de reorganização da experiên-


cia coletiva é abordado na fábula através da relação entre Terry e Edie
Doyle. Ainda que conferindo talvez o seu aspecto de maior conces-
são às narrativas convencionais dos filmes Hollywoodianos – ou seja,
a de enquadrar toda e qualquer experiência como pano de fundo de
uma relação amorosa entre o casal de protagonistas – essa relação
pode não ser alienada dos campos de força em combate, ou se de-
senvolver apesar dos conflitos exteriores a ela. Pelo contrário, é jus-
tamente por conta de sua relação com Edie que Terry se dobra para
atender ao pedido de delação tanto da Comissão do Crime quanto

61 CLURMAN, 2010, pg. 210 (em tradução livre)

sumário 124
de Padre Barry. Dessa forma, pode ser que a adoção de aspectos de
enredo convencional de Hollywood (como o entrecho amoroso, o en-
quadramento do enredo pelo foco da vida subjetiva ou um certo tom
sentimental e mesmo melodramático em certas passagens) possa
significar mais do que uma simples concessão aos padrões dos mol-
des narrativos da indústria, iluminando assim novos entendimentos
sobre o caráter negociador, ou híbrido, da forma do filme.

A necessidade de construção de novos laços sociais surge


como resultante do ambiente de desagregação dos espaços familia-
res, já reconhecidos nos núcleos de personagens. De princípio, sabe-
mos que o filme apresenta dois núcleos desestabilizados. A morte de
Joey Doyle intensifica o alijamento de sua família, que já não contava
com uma presença materna. Edie, que acaba de voltar de seus estu-
dos em um internato católico, não assume essa função maternal de
cuidado da rotina da casa. Com a morte de seu irmão ela empenha
seus esforços para fora do âmbito doméstico, agindo no cais seja para
ajudar seu velho pai no trabalho – como quando entra no meio da briga
com os estivadores no shape up – seja para investigar o assassinato
de Joey – o que a leva a se aliar ao Padre Barry. Dessa maneira, ela
cumpre funções que não são convencionalmente femininas dentro da
organização familiar tradicional.

Esse aspecto “rebelde” ou contestador de Edie ganha ainda


mais interesse se atentarmos ao fato de que ela é a única mulher den-
tre os protagonistas da história. Num enredo todo movimentado por
homens, Edie interfere em ambientes de trabalho e sociabilidade que
são exclusivamente masculinos – o trabalho no cais, a criminalidade ou
mesmo o sacerdócio católico. Ainda, ela é uma das únicas figuras ins-
truídas no filme, adicionando esse aspecto intelectual ao contraste que
ela estabelece diante do ambiente do cais. Esse tipo de protagonismo
feminino para fora do âmbito doméstico, conquistado pelas filhas da
classe trabalhadora que buscaram se integrar ao mercado através da
formação profissional e do trabalho burocrático (se tornando parte da

sumário 125
categoria que nos EUA se conhece por “white collars”) pode também
ser reconhecido como um legado das mudanças nas relações sociais
ocorridas nos anos 1930 por conta dos efeitos da Depressão. Além
disso, é sabido que nos anos 1940, durante a Segunda Guerra, hou-
ve uma intensificação da presença feminina nas esferas de produção
pelo fato de muitos homens estarem nos campos de batalha. Assim, a
postura de Edie encontra ressonância nas transformações pelas quais
a organização da estrutura familiar passou em meados do século XX.62

Terry representa o outro núcleo familiar abordado pela narrativa,


ainda mais desmembrado do que os Doyle. Ele e seu irmão Charley
são órfãos desde muito cedo, tendo passado a juventude em um refor-
matório. Porém, Charley conseguiu se destacar do irmão estudando e
conquistando uma ocupação formal, enquanto Terry não se especiali-
zou em nada, sendo seu único saber (lutar boxe) explorado pelo irmão
mais velho. Porém, ambos foram adotados pela “família” criminosa
que tem como pai Jhonny Friendly, sendo essa (a máfia) uma segunda
forma de organização familiar que o filme apresenta, de ordem ago-
ra simbólica, mais do que diretamente consanguínea ou institucional.
Com a entrada do padre Barry, surge uma terceira forma, também sim-
bólica, que é a de congregação espiritual representada pela Igreja Ca-
tólica, de ordem mais moralizante. (Já vimos no capítulo anterior que
essa outra “família por adoção”, em contraste direto com a família do
crime, rende um grande aproveitamento para a leitura do filme.)

Há um ponto em comum que devemos salientar entre todas essas


ideias de grupo familiar: a presença de figuras instruídas em um ambien-
te de condições humildes e precarizadas de vida, cumprindo com isso

62 Ao discutir o novo papel social conquistado pelas mulheres na organização do quadro


familiar durante a década de 1930, Michael Denning comenta: “Se não se pode dizer
que os anos da Depressão foram um momento de militância feminista, seguramente
foram, ao menos, tempos de conflito e mudanças nas relações entre os gêneros: muitos
comentadores à época notaram uma crise na masculinidade, que se seguiu ao desem-
prego massivo da Depressão; a taxa de natalidade ‘caiu vertiginosamente’ em 1933;
houve um renovado ataque para cima das trabalhadoras casadas, que se tornaram
então bode expiatório para a Depressão(...) Essas duas décadas testemunharam o
começo do que pode ser visto como a transição de uma formação de gênero moderna
para uma pós-moderna”. DENNING, 1998, pg. 30.

sumário 126
um papel específico de liderança, ou ao menos de aconselhamento, dos
outros membros da família – imigrantes simples que possuem, quando
muito, a instrução básica para executar o seu trabalho e administrar a
rotina das relações. As três figuras que detêm essa autoridade advinda
da instrução intelectual são Charley, Edie e o Padre Barry. Não por acaso,
são as figuras que, de certa forma, servem como “guias” de Terry em
toda sua trajetória. Ao longo do filme Terry passa dos cuidados de seu
irmão mais velho, advogado do sindicato e burocrata que mantém as
transações do esquema criminoso de Jhonny Friendly fora do alcance
da lei, para as mãos de Edie e Barry, ambos ligados diretamente com a
Igreja (Edie acaba de voltar de seus estudos em um internato católico).
As novas relações de Terry moldam sua oposição ao sindicato.

Essa espécie de “mudança de tutoria” de Terry se dá através do


balanço entre uma prática de legalidade institucional secular (o direito),
logo humana e passível de corrupção, para uma noção de legislação
divina (a Igreja), de caráter essencialista, idealmente atemporal e infa-
lível. Porém, ambas se baseiam em uma percepção dualista de ética
social, que se dividiria, assim, entre virtude e corrupção: inocentes e
culpados (no caso da justiça humana) e bem e mal (no caso da Igreja).
O enquadramento dessa concepção de mundo confere uma ordem
moralizante para a discussão que o filme pretende fazer – sobre a va-
lidade da delação como forma de atitude política de responsabilidade
individual perante os acordos sociais do coletivo. Ainda, essa noção
dualista baseada na ideia de culpa e consequente absolvição (seja de
delitos ou pecados) fortalece a recorrência da simbologia do martírio,
já identificada anteriormente, que o filme se utiliza para vestir a ima-
gem dos delatores (Joey, Kayo e Terry), como santos ou mesmo como
Cristo – figuras sacrificadas pelas mãos dos seus pares em nome da
salvação dessas mesmas pessoas que os sacrificam.

Outro dado em comum entre os grupos familiares, que é deter-


minante na estruturação das relações entre as personagens, é a ori-
gem cultural que todos compartilham. O filme se passa em um reduto
de imigrantes irlandeses, o que justifica a influência que a fé católica

sumário 127
tem como fator de orientação moral da comunidade (mesmo em um
país, os EUA, majoritariamente protestante). As referências à identida-
de cultural dos estivadores se espalham pelo filme, e se encontravam
de forma ainda mais explícita no roteiro, em momentos que foram cor-
tados na filmagem. A cena em que Edie vai atrás de Terry no pombal
que foi de seu irmão, por exemplo, tinha em sua abertura a presença
de um casal tocando e dançando nos telhados uma canção folclórica
irlandesa. Na cena seguinte, Terry convida Edie para um primeiro en-
contro mais íntimo, levando-a em um bar (“salloon”) com uma “entrada
especial para mulheres”. E segundo o roteiro, a primeira imagem do
bar seria a de uma irlandesa de meia idade (“a tipsy Irish biddy”) em-
briagada sendo escorraçada para fora. Em outro momento um bêbado
passaria cantando uma “velha balada de marinheiros irlandeses”. Sem
deixar de fora o detalhe, já na versão filmada, da execução de Kayo
se dar em meio a um carregamento de caixas e mais caixas de uísque
irlandês, motivo que leva Pop Doyle a exclamar, no começo da cena,
que “o bom Deus zela por nós o tempo todo”.

Na cena do encontro do casal é possível flagrar, de forma mais


eloquente, o discurso dessa simbologia da formação de novos laços
familiares capazes de reconciliar as personagens com uma experiência
possível de vida coletiva. No roteiro de filmagem a sugestão é que,
depois de conversarem longamente no bar, os dois saiam andando
pelas ruas e cruzem momentaneamente com uma pequena celebração
matrimonial. No filme, a festa de casamento ganha uma importância
maior ao ser deslocada para o interior do bar onde Terry e Edie bebem
e conversam. Quando Edie se levanta para ir embora, a celebração
interrompe seu caminho com estrondo, tomando conta de todo o es-
paço. A música toca animada, e o casal de noivos percorre o salão ao
encontro de um barril de cerveja. Diante do susto de Edie, que começa
a chorar atordoada, Terry a convida para uma dança. É o momento em
que eles têm o primeiro contato físico. A dança, como sugestão de um
envolvimento amoroso, acontecendo nesse ambiente onde uma nova
relação matrimonial é festejada, serve como sugestão simbólica de liga-
ção entre o casal. Sendo, assim como os outros hábitos reproduzidos

sumário 128
na festa, também uma forma de expressão cultural identitária, a dança
se inicia como uma brincadeira de Terry, mas logo se desenvolve a uma
intensidade que chega a quebrar o ritmo da melodia lenta e sentimental
que se ouve ao fundo. Vemos então um plano aberto que mostra Terry
e Edie girando rapidamente pelo salão onde casais dançam sob um
compasso mais lento, contrariando a orientação da música e a dinâ-
mica geral do grupo ao redor (imagem 22). Esse destaque do casal de
protagonistas confirma o padrão, já reconhecido no capítulo anterior,
de compor quadros com a formação de grandes grupos, registrando o
deslocamento entre indivíduo (figuras protagonistas) e coletivo.

Imagem 22 – Edie e Terry invadindo o salão, à esquerda

Imagem 23 – Edie fugindo do bar

sumário 129
Porém, no próximo quadro surpreendentemente a música e
todo o salão se rendem ao ritmo da dança do casal gerando assim,
pela primeira vez no filme até então, uma harmonização que reverte o
conflito estabelecido: os componentes da cena formam uma imagem
de conjunto, sendo que o grupo maior se rende aos indivíduos des-
locados, e não o contrário como se poderia supor, projetando uma
possibilidade de harmonia quase que utópica. Ouve-se uma melodia
agitada, que rememora uma espécie de polca, ou outra dança típica
de origem europeia para ser dançada em grandes grupos – os passos
da dança do casal e o ritmo da música evocam esse tipo de interação.
Se pensarmos ainda que o ritmo tocado anteriormente, uma música
romântica, é uma forma de expressão da indústria cultural que é assim
interrompida, ou substituída, pela melodia mais tradicional, podemos
adicionar mais um elemento na configuração dessa utopia, também
ela de caráter ambivalente: a expressão cultural étnica identitária se so-
brepõe ao produto de cultura de massas, ou é incorporado por essa?

Essa passagem ganha um contorno significativo por ser o mo-


mento em que Terry “ensina” algo de novo para Edie. Ele insiste para
que ela deixe um pouco de lado a rigidez de sua formação católica e
se divirta. A dança típica e a bebida demonstram aqui um tipo de laço
identitário que Edie – descrita no roteiro como uma “jovem e sensível
garota irlandesa” – recupera através de Terry, que ainda comenta,
quase professoral: “Você está indo muito bem! As freiras deveriam
ver você agora”. A cena evidencia assim que o seu ambiente de ori-
gem pode oferecer a Edie outras experiências, para além da confor-
midade à rotina de trabalho forçada e da obediência muda à estrutura
social opressora (ambas atitudes típicas de seu pai). A festa, a alegria
e a celebração ganham assim um caráter de oposição à rigidez da
vida no cais que, aliadas ao fato de estarem na ocasião de um ma-
trimônio, projetam essa resistência na relação de Terry e Edie como
sendo a formação de um novo laço familiar que, dessa maneira, pode
se configurar como uma espécie de utopia em meio ao ambiente de
relações quebradas. A aproximação de ambos, dando-se em meio

sumário 130
à típica celebração de um matrimônio irlandês, aponta para a promes-
sa de um novo pacto social que o casamento, em tese, representa.

Essa leitura ganha força ao lembrarmos da importância que os


laços de uma origem social comum tiveram para a formação da cultura
política da geração de artistas de Kazan e seus colegas nos anos 1930.
A citação de Harold Clurman (fundador e líder do Group Theatre) que
abre essa seção do texto, testemunha o caráter utópico que mobilizou
os grupos engajados com o processo de renovação cultural do país
na década pós-Depressão. O senso de pertencimento à classe so-
cial conferia à experiência estética um caráter configurador de novas
formas de expressão a partir, justamente, do exercício de representa-
ção cênica (no caso do teatro) da experiência coletiva da “vida real”.
É como se, através da arte, a experiência em sociedade pudesse ga-
nhar um outro sentido, sendo o teatro um ambiente acolhedor e capaz
de possibilitar aos artistas a idealização não somente de um testemu-
nho sobre a experiência social – na criação do espaço da cena – mas
também de um novo projeto de sociedade – através da configuração
do ambiente das relações de trabalho. O caráter fundador de um outro
espaço-tempo, ficcionalizado e possível no “aqui e agora” da conven-
ção dramática, garantia que, através da experiência de congregação
entre artistas e plateias possibilitada pelo evento teatral, esse projeto
propositor de uma nova realidade ganhasse uma forma específica.

Esse impulso coletivista, identificado por diversas vezes como


o “espírito dos anos 1930” foi o responsável por fenômenos como a
encenação de Waiting for Lefty, texto com estrutura de agitprop escrito
por Clifford Odetts a pedido do CPUSA para os membros da célula do
partido no Group Theatre, e encenado pelo grupo com grande sucesso
em 1935. Ao final da peça, que se passa durante uma assembleia do
sindicato de taxistas de Nova Iorque – e cuja dramaturgia, ainda que
fazendo uso de expedientes épicos como flashbacks e a interação cons-
tante entre atores e público organiza-se de acordo com uma concepção
dramática de enredo – a plateia acabava fazendo coro exaltado aos gri-
tos dos atores que, infiltrados em todos os pontos do teatro além do

sumário 131
palco, clamavam pelo estabelecimento da greve contra os desmandos
dos dirigentes do sindicato, que tentavam manipular o resultado da as-
sembleia para a direção oposta. Coincidentemente ou não, o persona-
gem que na montagem original puxava o coro de greve ao final da peça
era interpretado por um jovem Elia Kazan, recém integrado ao Group.

Iná Camargo Costa relata um episódio significativo em seu livro


Panorama do Rio Vermelho, dedicado a estudar a expressão desse
“espírito dos anos 1930” na cena estadunidense, assim como suas in-
fluências para a configuração da cultura dos EUA nas décadas seguin-
tes. No capítulo dedicado a Arthur Miller, Iná conta um fato acontecido
no ano de 1953 (portanto, um ano antes do lançamento de “Sindicato
de Ladrões”) durante uma apresentação de “As Bruxas de Salém” (The
Crucible). Nessa obra, Miller faz um paralelo do Macartismo com o pro-
cesso inquisitorial responsável por condenar diversas pessoas à morte
na Nova Inglaterra em 1692 sob a acusação de suposta bruxaria. Du-
rante o processo, a principal prova de acusação era o testemunho das
supostas vítimas das bruxas (numa relação clara à delação perante a
HUAC) que testemunhavam estar sendo acometidas pelo espectro (ou
“espírito familiar”) dos acusados. Na noite da execução do casal Ethel
e Julius Rosenberg, acusados de espionagem a serviço da URSS nos
EUA, a plateia assistiu em pé e de cabeça baixa ao final de “As Bruxas
de Salém” (que encena o caminho de John Proctor, seu protagonista,
em direção à forca) em protesto ao que estava acontecendo fora de
cena. Segundo Iná, “essa deve ter sido a última vez que o espírito do
teatro de agitprop compareceu ao teatro americano dos anos 50”.63

Porém, devemos lembrar que não estamos mais em um teatro


na Off-Broadway durante os dourados anos 1930, mas discutindo o fil-
me distribuído por um grande estúdio de Hollywood nos anos da “lista
proibida”. A construção simbólica da comunhão coletiva evidenciada
pelos laços culturais e a formação dos grupos familiares é problema-
tizada em “Sindicato de Ladrões” pelo fato de a festa e a celebração

63 COSTA, 2001, pg. 154.

sumário 132
estarem sempre associadas com o excesso da bebida. A passagem
do roteiro, logo no início dessa cena (cortada do filme), em que a mu-
lher irlandesa é escorraçada do bar por estar bêbada, sugeria já esse
movimento ambíguo de liberação que a bebida pode significar: se por
um lado ela quebra a rigidez das convenções sociais estabelecidas,
por outro ela pode resultar em uma válvula de escape da realidade
que, no seu limite, leva à alienação através da perda da consciência.64

No decorrer da cena, a embriaguez evidente de Edie a deixa


em um estado em que a perda de consciência é anunciada – “Eu
me sinto como se estivesse flutuando... apenas flutuando...”. Por um
breve momento, a menina se sente deslocada do espaço onde ha-
bita, como se a alegria que esse momento lhe proporciona a fizesse
pairar acima das preocupações que o pertencimento ao seu local lhe
traz. Porém, essa religação com sua origem também a conecta de
forma imediata com a morte do irmão, evento que, sem que ela saiba,
estabelece uma ligação com Terry antes mesmo de seu afeto por ele
surgir – já que ele foi cúmplice do assassinato. Essa conexão evi-
dencia um ponto de inflexão da alegria que a garota sente ao dançar
com o ex-boxeador. É justamente esse laço com a realidade que vai
puxar Edie de volta de seu estado de embriaguez: ao final da dança,
quando o casal vai finalmente se beijar, a mudança do enquadramen-
to – que antes focalizava apenas o casal com uma vegetação ao fun-
do, estabelecendo um cenário quase que paradisíaco, descolado da
urbanidade bruta do cais – inverte a perspectiva enquadrando o casal
pelo lado oposto, e revela em segundo plano, ao fundo do quadro, a
presença de alguns capangas de Jhonny Friendly.
64 Stanley Aronowitz (ele mesmo um ex metalúrgico) comenta sobre a forte recorrência do al-
coolismo no cotidiano da classe trabalhadora dos EUA nos anos 1950: “Muitos trabalhadores
que frequentavam bares como uma forma de socialização bebiam cerveja, mas consumiam
muito. Apenas uma minoria considerável bebia “boilermaker” (uma dose de uísque mistura-
da com um copo de cerveja) todo dia. Alguns desses homens desenvolveram alcoolismo
antes dos trinta anos. Eu não possuo estatísticas sobre o hábito da bebida entre a classe
trabalhadora, mas eu acredito que era disseminado entre os funcionários de todas as idades
nas fábricas onde eu trabalhei. Embora eu mesma nunca tenha sido um “bebedor”, eu ficava
bêbado muito regularmente nas noites de sexta-feira durante o meu primeiro ano de casado,
e certamente eu sabia que, dentre as razões que me levaram a isso, estavam o medo e a
insegurança de ter que sustentar uma família sendo tão jovem, assim como a pressão por
produzir bem no meu trabalho.”. ARONOWITZ, 1992, pgs. 354-355 (em tradução livre).

sumário 133
Então, primeiro Terry recebe através deles a convocação de
Friendly para discutir o caso da possível delação de Kayo (o que signi-
fica uma falha de Terry em seu serviço de espionar a reunião da Igreja).
Depois, ao se desvencilhar dos capangas, ele é abordado pelos dois
oficiais da Comissão do Crime que entregam uma intimação oficial
para depor. Como resultado de todas essas intervenções, Edie tam-
bém o coloca contra a parede ao cobrar uma resposta sobre o envolvi-
mento do sindicato na morte de seu irmão. Após ela ter experimentado
por um breve momento a leveza e a alegria que a embriaguez da cele-
bração lhe ofereceu, Edie volta a se desencantar com Terry e abandona
o bar, em um plano onde, com os noivos dançando alegres ao fundo,
ela corre desesperada em direção à câmera, abrindo caminho pelos
corpos na festa como se fugisse de algo (imagem 23).

O dado de realidade, aqui, coloca-se como um ponto que blo-


queia a experiência de sublimação que o envolvimento amoroso po-
deria oferecer para o casal de protagonistas. Se o início dessa nova
relação aponta para o caminho de reconstrução da experiência coleti-
va (sendo o casamento uma forma de fundar novas famílias como uma
forma de redimir as estruturas familiares desfeitas de ambos), o passa-
do de Terry, e mais especificamente sua relação ainda conflitante com
o grupo do qual faz parte, apresenta um fator que impossibilita essa
nova relação. Para que isso seja expurgado e o relacionamento com
Edie se torne possível (tornando possível, também, os novos acordos
coletivos ansiados pelo filme) é preciso que Terry corte de uma vez os
laços que o ligam à organização criminosa – sua antiga “família”. As-
sim, Terry precisa falar, revelar o que sabe sobre o sindicato. E é o afeto
que ele começa a desenvolver por Edie que vai colocá-lo no caminho
de considerar fazer sua delação – a atitude que poderá, enfim, recupe-
rar a possibilidade de estabelecimento dos novos laços).

É através do interesse de Edie por Terry que o tema da solidarie-


dade, enquanto expressão de responsabilidade do indivíduo perante
o seu grupo (citado no primeiro capítulo como marcante da produção

sumário 134
teatral dos anos 1950) se faz presente no filme. Isso nos leva a supor
então que, diante das relações internas que a obra estabelece, o peso
conferido à história de amor (uma convenção narrativa de Hollywood)
seja utilizado como uma tentativa de fortalecer a ideia de exposição de
uma crise do alinhamento ao coletivo. Assim, o filme poderia apostar
no desejo de reconstrução do laço entre o indivíduo e o grupo ao qual
pertence através da necessidade de um “realinhamento” ao coletivo,
que diz respeito à necessidade de estabelecer novos pactos de solida-
riedade diante dos novos tempos – uma nova conjuntura política que
exigia outras formas de posicionamento do artista perante a indústria,
e dos artistas entre si, para continuarem a produzir.

Essa ideia de “realinhamento”, que uso para tentar compreender


a discussão que o filme estabelece, tomo de empréstimo do termo de
Raymond Williams que Michael Denning utiliza para explicar o que ele
chamou do movimento de “laborização da cultura norteamericana”65
durante os anos 1930. Segundo Denning, o termo “alinhamento”, elabo-
rado por Raymond Williams durante os anos 1970 (em uma tentativa de
diferenciar esse sentido da ideia mais geral de “engajamento”), ajuda a
explicar o fenômeno da construção de um espírito coletivista que mar-
cou a história dos EUA durante os anos 1930. A ideia de alinhamento
diz respeito a um processo que é coletivo, mais do que individual: está
diretamente ligado a uma implicação, por parte dos artistas, em suas
condições e especificidades sociais, e a partir dessas, com os materiais
e formas estéticas disponíveis para a representação dessas realidades.

As noções mais comuns de “engajamento”, “consciência social”


ou mesmo a ideia de vinculação de uma obra a uma causa específica,
diriam respeito mais a uma escolha pessoal, ou a um ideário subjetivo
do artista, não necessariamente expressando uma conexão imediata
e inevitável entre esse e seu objeto de representação – sendo assim
ideias mais abstratas, politicamente falando. O alinhamento, ao contrá-
rio, é coletivo, pois vincula totalmente o conceito de movimento estético
com a noção de classe, ou experiência social direta (através da noção

65 Conferir nota 13 do primeiro capítulo.

sumário 135
de pertencimento a um grupo específico). Diz respeito ao processo
através do qual os artistas são formados, e a como, e por quais meios,
adquirem suas ideias e se vinculam a um projeto estético através do
reconhecimento da interferência direta e obrigatória desse processo de
vinculação social em suas obras. Dessa forma, a obra de arte se politiza
em um sentido que vai além do mero falar sobre uma causa pública,
pois essa politização é implicada pela totalidade das escolhas formais
e das relações de trabalho. A experiência se inscreve na obra de arte
de modo inequívoco, pois é parte inalienável de sua condição de exis-
tência. E ainda, torna mais evidente o nexo entre a obra e a experiên-
cia social, vínculo obrigatório em uma compreensão necessariamente
histórica – e historicizada – do processo artístico e de suas formas de
expressão. Segundo Williams, o processo de alinhamento:
é um reconhecimento da ligação radical e inevitável entre
as relações sociais reais do escritor (consideradas não só
individualmente, mas em termos das relações sociais gerais
da ‘literatura’ numa sociedade e períodos específicos, e den-
tro destes as relações sociais existentes em determinados ti-
pos de literatura) e o ‘estilo’, ou ‘formas’, ou ‘conteúdo’ de
sua obra, agora considerados não abstratamente, mas como
expressões dessas relações.66

O sentido estaria, assim, no processo coletivo, e não em seus


resultados individuais. A partir desse alinhamento, a noção de “com-
prometimento” dos artistas com seus materiais de trabalho se torna
uma consequência, pois ela nada mais é do que “estar consciente de
seus próprios alinhamentos”.

A ideia de “laborização” da cultura norteamericana a partir


dos anos 1930, defendida por Denning, procura reconhecer que a
experiência do período representou um alinhamento dos artistas aos
materiais e formas que sua condição lhes oferecia, o que levou, em
seu limite, a um alinhamento da produção cultural do país na épo-
ca. Esse processo é indistinguível do fato de ser empreendido, em

66 WILLIAMS, 1979, pg. 203.

sumário 136
sua maioria, por artistas oriundos das ditas camadas populares da
sociedade estadunidense (trabalhadores e imigrantes), que traziam
para as páginas, palcos, telas e canções a elaboração formal de um
conteúdo que constituía o tecido de suas próprias vidas e relações
sociais. Nesse sentido, podemos entender esse esforço de trazer a
experiência histórica para o centro da cena, como o pano de fundo
que motivou e orientou as realizações e conquistas estéticas dessa
geração de artistas. No caso do teatro, é esse intuito que pode nos
ajudar a compreender o movimento que levou à conquista de um refe-
rencial técnico de interpretação, o Método, capaz de possibilitar a ins-
tauração de uma ideia de realismo, no trabalho do ator em cena, que
fosse mais fiel com a experiência e o cotidiano da classe proletária
dos EUA, cujos personagens compunham os enredos que marcaram
a dramaturgia (e a ficção como um todo) criada no período – como
os dramas proletários de Clifford Odets criados para o Group Theatre.

Ao compreendermos então que, durante a passagem das dé-


cadas de 1940 para 1950, o Macartismo significou um processo de
revisão sistemática e combate ao espírito mais propriamente poli-
tizado que havia marcado a produção cultural nos EUA no período
que se inicia nos anos 1930 e se encerra após o fim da Segunda
Guerra Mundial, é fácil reconhecer o processo de desmobilização (ou
“desalinhamento”, aqui forçando um pouco o conceito de Raymond
Williams) que o Macartismo empreendeu como projeto político para
a consciência estadunidense durante os anos 1950 – marcados pela
forte polarização ideológica da Guerra Fria que opunha, de um lado,
um projeto de sociedade pautado no ideário econômico liberal (por
assim dizer individualista), e de outro uma concepção socialista ou
mesmo comunista, com uma base coletivista. Diante desse processo,
e considerando o ambiente de relações desmobilizadas que se en-
contrava no período, “Sindicato de Ladrões” pode ser entendido como
uma obra alinhada com a expressão do desejo de estabelecer uma
nova forma de coletividade, capaz de reconquistar, para os artistas que
construíram a tradição da recente cultura politizada do país, as práticas

sumário 137
de colaboração desmontadas pelo Macartismo. É a esse anseio que
estou chamando, aqui, de uma tentativa de realinhamento.

Esse desejo, ao que parece, é estruturador da realização de “Sin-


dicato de Ladrões”. Por um lado, o filme oferece, ainda que sob um pon-
to de vista específico e bem localizado politicamente, um retrato da frágil
situação das relações da classe artística, fazendo o assunto manifestar,
na própria forma, as tensões provocadas pelo conflito entre os anseios
individuais e as pressões de conexão com a coletividade. Por outro lado,
porém, a ideia de estabelecimento de um processo de produção cola-
borativo, reconhecido como uma marca da relação de criação nos filmes
de Elia Kazan, aponta para a tentativa de estabelecer esse espaço de
coletivização como uma nova prática de produção artística dentro do
sistema de Hollywood, cuja ideia de autoria no cinema era centrada, até
então, no domínio quase que autoritário das figuras do produtor (que
exerce o controle financeiro) e/ou do diretor (que exerce o controle artísti-
co). Não por coincidência, os efeitos dessa dinâmica de criação no filme
são percebidos com o resultado alcançado pelo trabalho dos atores
através do Método, que surge então como um novo repertório técnico-
-formal disponível para o trabalho de produção na indústria.

Assim, a despeito do Macartismo e da colaboração direta de


Hollywood no processo de caça às bruxas, o que se percebe é uma
aposta na possibilidade de reconstrução de um espaço de trabalho
colaborativo por dentro da indústria, como forma de oferecer um modo
específico de colaboração com essa, negociando os termos dessa
cooperação entre, por um lado, a cooptação das conquistas técnicas
empreendidas pelo teatro durante os anos 1930 e 1940 (todo o histó-
rico da relação entre Hollywood e os artistas da Broadway, apontado
no capítulo anterior como influente nos destinos do Group Theatre, dá
testemunho dessa relação); e, por outro lado, a tentativa de estabele-
cer um processo mais artisticamente criativo e menos automático, ou
mesmo autoritário, na elaboração dos filmes hollywoodianos.

sumário 138
Porém, nessa negociação, na qual Hollywood estava interessa-
da em adquirir as novas formas técnicas que a geração da década
de 1930 tinha para oferecer em sua bagagem, quem teria que pagar
o preço mais caro seria, justamente, a parte que estava oferecendo
o “produto” em questão. Se o conhecimento técnico que os artistas
traziam em seu repertório permitiu um nível de modernização evidente
na conquista de uma nova qualidade para os resultados dos filmes de
estúdio, Hollywood tinha a oferecer aos artistas o acesso aos meios
de produção e, principalmente, de distribuição do cinema, uma lin-
guagem que, dado os seus altos custos e complexidade de realização
e circulação, depende de um esquema comercial, ou mesmo indus-
trial, de produção. O preço a pagar, ao que parece, era abandonar os
compromissos com as velhas formas mais radicais de mobilização e
engajamento artístico, e aceitar os termos de colaboração impostos
pelo próprio sistema, que no caso significava o testemunho “amigável”
perante a HUAC e, consequentemente, a delação.

“’CONSCIÊNCIA’... ESSA COISA


PODE TE DEIXAR LOUCO”

A delação, assunto que motiva a realização da obra, se torna


inevitável para o desenvolvimento da trajetória de Terry. Após a exe-
cução de Kayo, Terry acumula a morte de duas pessoas inocentes
na conta de sua relação com Jhonny Friendly. Mesmo não sendo o
responsável direto por nenhuma dessas execuções, o conhecimento
que possui como membro da quadrilha lhe garante um papel central.
Se com Joey ele serviu de cúmplice, tendo o atraído para o encontro
de seus assassinos, Terry teve a chance de avisar a Kayo sobre o
que estava prestes a acontecer, podendo ter evitado sua morte (o
que tentou, mesmo que de forma pouco incisiva). Como agravante, o
fato de Terry estar se envolvendo amorosamente com a irmã de Joey

sumário 139
o coloca em um dilema que exige um posicionamento. Não é mais
possível continuar dos dois lados. Ou Terry mantém-se fiel a Friendly,
seguindo o caminho de seu irmão Charley, ou rompe definitivamen-
te com a quadrilha, quebrando também o laço com seu único pa-
rente consanguíneo, para construir um novo laço familiar com Edie.
Em todo caso, não importa qual lado escolha, sua decisão tem ainda
consequências maiores, pois dada a sua condição de informante pri-
vilegiado, ele pode influenciar no andamento das investigações sobre
as ações da quadrilha no controle do sindicato dos estivadores.

A atitude que coloca Terry nesse caminho é tomada quando ele


se confessa ao padre e em seguida, estimulado por Barry, confessa
a Edie seu envolvimento no assassinato de Joey. Do ponto de vista
dramatúrgico, tudo o que aconteceu no filme concorre para esse mo-
mento, e tudo o que acontecerá a partir de então será consequência
disso. Localizada quase que no meio exato do filme (se iniciando
em torno dos 59 minutos da duração total de 1 hora e 47 minutos),
essa cena se torna um ponto de virada a partir da qual, segundo as
convenções dramáticas, o enredo começa a se encaminhar para o
seu desfecho inevitável: a decisão de Terry por delatar, o que ocupa
a segunda metade do filme.

Retomando a discussão do impulso de realinhamento através


da construção de novas relações íntimas, que encerrou a seção
anterior, é interessante notar que o filme trabalha mais o espaço
das relações pessoais do que o evento público que se organiza
ao redor desse assunto (a delação, assim como a necessidade de
“trazer a verdade à tona”, expor o que está oculto). A delação de
Terry na Comissão do Crime, próxima ao fim do filme, não vai se de-
senvolver em cena, sendo interrompida para mostrar os seus efeitos
nos negócios de Jhonny Friendly – com a aparição de Mr. Upstairs,
chefão do esquema, que assiste à delação pela TV (assim como as
audiências da HUAC eram transmitidas nacionalmente) e que, com

sumário 140
isso, deixa claro que corta relações com Friendly para não se impli-
car no processo. Já a confissão pessoal de Terry a Edie se torna um
momento nevrálgico. Assim, as esferas privadas e coletivas da vida,
e suas consequências nos assuntos principais do filme (a corrup-
ção no sindicato dos estivadores/ a dinâmica de relações da classe
artística de esquerda nos EUA/ a colaboração com o Macartismo)
encontram-se inevitavelmente embaralhadas.

Segundo essa lógica, a confissão de Terry não será tomada


apenas pelo sacerdote na igreja, ambiente de caráter íntimo onde o
tabu do sigilo paira sobre a verdade confessada, mas também por
Edie, sua companheira, primeiro na praça pública (com Barry) e de-
pois no meio do cais, onde essa verdade será exposta. Mesmo não
ocupando muito tempo na montagem final (em torno de um minuto),
tecnicamente a realização dessa cena denota uma grande quanti-
dade de trabalho, conjugando o esforço dos vários elementos que
compõem o conjunto de uma obra cinematográfica: imagem, som,
direção de arte e – o que nos interessa discutir aqui – elenco. A rela-
ção produtiva entre atores e direção, desde o momento do registro
no set de filmagem até o aproveitamento do material filmado pela
edição, exemplifica o caráter colaborativo que foi reconhecido como
marca do trabalho de Kazan, assim como um legado do “espírito”
que animava a geração de artistas da qual ele faz parte.

Imagem 24 – Barry observando o casal ao fundo

sumário 141
Imagem 25 – Barry “atrás das grades”

Imagem 26 – Edie e Terry vistos à distância

Imagem 27 – Chaminé liberando fumaça

sumário 142
Imagem 28 – Close em Terry se explicando a Edie

Imagem 29 – Close em Edie ouvindo Terry

Imagem 30 – Terry e a chaminé, com a paisagem alterada

sumário 143
Imagem 31 – Barry desorientado, Edie fugindo ao fundo

Começando pelo ponto de vista que enquadra a cena, e que nos


ajuda a compreender a opção por um registro tão rápido, distanciado
e por consequência sintético. A cena é focalizada pelo olhar do padre
Barry, que aqui volta a assumir sua função de instância narrativa que por
vezes orienta o registro do andamento do filme em momentos de maior
consequência para o encaminhamento – ou mesmo complicação – do
enredo. Barry assiste a cena à distância, do mesmo ponto na paisagem
em que teve sua conversa com Terry, ou seja, nas grades que margeiam
a praça pública em frente à sua igreja e de onde se vê, abaixo, o cais.
Quando Terry vai ao encontro de Edie para finalmente se confessar para
ela, ficamos com Barry assistindo o início da conversa. Então, o olhar
da câmera vai progressivamente avançando na direção da cena a partir
desse ponto de referência: primeiro vemos Terry e Edie caminhando
ao longe através das grades, emulando o campo de visão de Barry,
(imagem 24); em seguida, a câmera muda de perspectiva mostrando
Barry apoiado na grade que barra o acesso ao cais, focado de baixo
para cima por estar em um ponto mais alto do que a cena (novamente
denotando grandeza à sua figura, como mostra a imagem 25); por fim,
o quadro mostra o casal (imagem 26) conversando em uma pequena
elevação de pedras na beira do cais, tendo ao fundo a paisagem ene-
voada e difusa da ilha de Manhattan – essa elevação pode até mesmo

sumário 144
evocar os cenários montanhosos que se encontram na Paixão de Cristo
em momentos cruciais de sua trajetória: o início no Monte das Oliveiras,
onde Judas confessa a Cristo sua traição e onde o mártir é preso, e o
Monte do Calvário, onde Cristo é crucificado, ambos momentos signifi-
cativos em sua relação com a cena e a situação de Terry perante Edie.

Então, o enquadramento se torna mais aproximado registran-


do a cena através de closes fechados nos rostos dos atores. Porém,
ainda não somos capazes de acompanhar com detalhes o diálogo
que se desenvolve entre os dois, devido à intromissão do som am-
biente, um mesmo som ritmado e intermitente de maquinário em fun-
cionamento, que ouvíamos ainda quando Terry estava junto ao padre.
Seguimos acompanhando a cena de forma imprecisa, captando ape-
nas palavras soltas e expressões recortadas, como se também a es-
tivéssemos acompanhando à distância, ouvindo apenas o que Barry
ouviria – ou seja, o som do maquinário no cais – e vendo, nos atores,
expressões grandiloquentes que poderiam corresponder ao que Barry
captaria do diálogo, sem ouvir a conversa. Com o enquadramento da
cena mais aproximado, variando as imagens em primeiríssimo plano
de Edie ouvindo e Terry falando, o som ao fundo torna-se mais volu-
moso. Quando Terry vai começar a se justificar (“Eu juro por Deus,
Edie, eu...”, na imagem 28) sua voz é subitamente coberta pelo baru-
lho intenso de uma chaminé liberando um jorro de pressão de fumaça
a todo vapor. O plano de Marlon Brando falando é então cortado pela
imagem da boca da chaminé liberando a fumaça (também em primei-
ríssimo plano, conforme imagem 27). Terry continua falando sem parar
(ainda que não possamos ouvir palavra alguma), Edie se desespera
cobrindo a boca e os olhos (imagem 29) e, quando o enquadramento
volta a abrir para a panorâmica que mostrou o casal à distância, ela
foge correndo (como na cena do bar) deixando Terry sozinho sobre
o monte. Ao fundo, no canto direito do quadro, vemos a imagem da
mesma chaminé que ainda apita sob o efeito da liberação da pressão
de fumaça, compondo um espelhamento com a figura de Terry no cen-
tro do quadro (imagem 30). Num gesto de impotência, Brando joga

sumário 145
sua cabeça para cima, emulando o movimento da tampa da chaminé
aberta para liberar a fumaça. A entrada da música extradiegética – o
acorde agudíssimo de violinos que pontua as passagens mais tensas
no decorrer do filme – encerra a cena. Quando a imagem volta para o
outro lado da grade, onde está o padre, vemos que ele também está
desorientado com o andamento do encontro, tentando, sem sucesso,
colocar um cigarro todo amassado na boca (imagem 31).

Nessa cena o efeito da presença do padre como instância


narrativa se evidencia, gerando um grande aproveitamento produtivo
para o andamento do filme. O fato de Barry, que serve de referên-
cia ao registro da cena, permanecer à distância, mantendo também
distanciado o foco que, nesse momento, enquadra a cena, traz a
vantagem de não precisarmos acompanhar o ritmo de progressão
do desenvolvimento dramático (que exigiria uma escalada sucessiva
e concatenada de argumentos e falas até o seu clímax). Já que Barry
não ouve o diálogo entre o casal, que está sendo praticamente engo-
lido pela dinâmica do ambiente ao seu redor – o ambiente de trabalho
no cais, assunto indireto do conflito que envolve os protagonistas – o
filme registra apenas o efeito do diálogo nos personagens, ocupan-
do-se nesse momento de uma dramaturgia mais “visual”, através da
composição dos elementos da cena. Pode ser que um dos motivos
para esse registro seja a economia dramática, pois nós já conhece-
mos o teor da conversa e o que Terry tem para confessar, assim como
já podíamos imaginar de antemão a reação de Edie, não tendo a ne-
cessidade do filme registrar toda a conversa – mesmo que a conversa
esteja indicada no roteiro de filmagem, fala a fala.

Porém, ao mesmo tempo em que essa cena é um dos momentos


mais intensos do enredo, o fato de ser filmada de forma extremamente
sintética, que evita e abre mão de todos os passos necessários para
construir o clímax seguindo um encaminhamento dramático convencio-
nal, introduz uma nova quebra nessa lógica. Essa opção deixa a mon-
tagem a cargo de encaminhar o ponto climático da cena, através de

sumário 146
uma interposição dinâmica de imagens e sons que se apoia, também,
no trabalho de interpretação dos atores. O som do ambiente de trabalho
assume o primeiro plano, sobrepondo-se às falas das personagens.
Essa espécie de engrenagem em funcionamento como pano de fundo
da cena faz lembrar uma das ideias primordiais do conceito do drama
enquanto forma: a partir de quando a maquinaria do enredo é posta em
movimento, ela não pode mais ser interrompida a não ser pelo desfecho
definitivo de seus conflitos principais, quando então a forma dramática
alcança novamente a “estase” – ou situação de pausa, de ausência de
conflitos – do qual ela partiu no início da peça.67 Essa noção de movi-
mento é capturada, além do som, através dos elementos do ambiente
ao redor, que não param de se movimentar ao fundo do quadro que
focaliza Terry e Edie: navios indo e vindo, um grupo de pessoas que
caminham na paisagem e um pequeno trem de carga que, na duração
da cena, atravessa o quadro da direita para a esquerda.

Logo, podemos dizer que o movimento intrínseco do drama,


aspecto que idealmente não se deve deixar ver no decorrer do enca-
minhamento da dramaturgia para que a convenção da forma consiga
estabelecer a ilusão de realidade, é capturado e mostrado – logo re-
velado – através de um dispositivo de montagem que sobrepõe os vá-
rios aspectos de construção da cena cinematográfica (imagem, som,
texto, trabalho de atores). Ou seja, o filme traz para o primeiro plano
os aspectos de construção da forma, mas de modo figurado (através
de símbolos, como as imagens do trem de carga ou da chaminé e o
som do maquinário e do apito de vapor). Essa exposição do dispositivo
formal (o movimento dramático) na fábula condensa uma ação que se
desenvolveria em maior duração no tempo, através da sobreposição
de duas atividades que convivem no mesmo espaço: a confissão de
Terry para Edie (um evento extraordinário), de caráter pessoal e subje-
tivo, e o trabalho rotineiro no cais, de caráter público e coletivo. Essa

67 “Todavia, o que prevalece na seleção dramática é a necessidade de criar um mecanismo


que, uma vez posto em movimento, dispensa qualquer interferência de um mediador,
explicando-se a partir de si mesmo.” ROSENFELD, 2004, pg. 33.

sumário 147
sobreposição de “cenas diferentes em uma mesma cena” cria, por
comparação, um complexo simbólico de sentidos que revela a estraté-
gia de “dizer” coisas através das imagens distribuídas pelo filme.

Assim, através dessa consideração conseguimos evidenciar a


estrutura de significação simbólica de elementos que o filme manipu-
la, de forma mais ou menos implícita até aqui, onde eles se tornam
explícitos. A passagem que estamos analisando nos revela uma dis-
cussão abordada pelo filme, que de certo modo determina a organi-
zação de seus materiais na construção das cenas: a ideia de que a
possibilidade de realização nas relações pessoais (família, relações
afetivas, amizades e etc.) é impedida pelas dinâmicas das relações do
ambiente de trabalho, espaço de caráter público cujas consequências
de sua ética e dos acordos firmados em seu nome interferem no an-
damento do espaço de realização individual. Se isso é verdade para
a situação de Terry e os demais estivadores no âmbito da fábula (por
conta das responsabilidades que o código de ética do sindicato os
obriga a seguir) é também verdade para a situação da classe artísti-
ca nos EUA durante o Macartismo – assim como, para a experiência
pessoal dos realizadores do filme, se lembrarmos das queixas de
Kazan, expressas em seu depoimento à HUAC em 1951, em relação
à interferência de seus compromissos com o CPUSA na condução de
sua rotina profissional durante a década de 1930.

Essa ideia se revela dotada de uma enorme capacidade de


constituir um ponto central que mobiliza a significação do filme, ao se
utilizar de elementos que constituem o espaço e a rotina de trabalho
dos estivadores, gerando símbolos que, por acúmulo, constroem o
entendimento da alegoria.

Primeiro, a recorrência imagética de personagens ou cenários


bloqueados, obstruídos ou literalmente “presos”; é muito comum al-
gumas personagens serem focalizadas atrás de grades – Terry no
pombal, Charley empoleirado em uma grade de madeira quando vai
pedir para o irmão espionar o encontro na igreja, e agora, de um lado

sumário 148
Terry e Edie sendo observados pelo padre através das grades, e por
outro o próprio padre quando é focalizado do ponto de vista de fora
das grades onde ele se encontra; podemos também lembrar alguns
outros momentos já citados, por exemplo o beijo apaixonado de Terry
em Edie, escondido atrás da quina da parede, depois que ele invade
a casa dela; ou mesmo, a imagem que finaliza o filme, quando a porta
do galpão para onde a massa de trabalhadores entrou seguindo Terry
se fecha e sobre a porta é ainda projetado o letreiro de “Fim”.

E em relação ao ambiente sonoro, junta-se às imagens de


bloqueio a persistência de um padrão, na montagem do filme, de
interrupção de falas geralmente através da sobreposição de algum
som ligado ao trabalho – as batidas dos bastões dos capangas para
interromper a reunião na igreja, os sons do cais encobrindo a comu-
nicação dos capangas antes da morte de Kayo, a buzina do taxista
que encobre o palavrão solto por Charley quando ele conversa com
Terry (mais para frente no filme), ou, na cena da confissão de Terry, a
chaminé que encobre o diálogo do casal.

O apito da chaminé, porém – que se ouve recorrentemente em


várias transições de cena desde o início – ganha nessa passagem um
sentido específico: a cena evidencia a relação inequívoca entre o som
que a chaminé libera sob o efeito interno da pressão de fumaça com
o movimento da decisão individual de Terry por confessar. Assim, esse
som demarca o tema da necessidade de quebra do silêncio – ou blo-
queio, mantendo a lógica das imagens de personagens “presas” que
abre esse levantamento – através da fala do sujeito dotado de algum
tipo de informação que implicaria em uma mudança na organização
do grupo ao qual pertence, seja essa fala realizada por meio de uma
confissão (ação no âmbito privado, aqui feita junto ao padre ou à com-
panheira) seja por meio de seu correlato público e, por assim dizer,
de significância diretamente política, a delação. Por isso mesmo, esse
som evidencia a pressão ocasionada pelo silenciamento imposto a
esse sujeito que, por sua vez, deseja romper o bloqueio e falar. Pode-
mos então compreender o apito da chaminé como um elemento que

sumário 149
nos informa do trabalho que organiza as relações no cais, ao mesmo
tempo que funciona como um símbolo de expressão da subjetividade
do protagonista, pressionada por conta dos acordos feitos em nome
da manutenção do andamento desse mesmo trabalho.

Perseguindo sempre o movimento de construção da alegoria


que o filme estabelece, podemos através dessa cena encaminhar uma
discussão sobre a importância que o trabalho dos atores adquire na
dinâmica das relações de produção, nesse momento da história da in-
dústria cinematográfica de Hollywood. Anos mais tarde, falando sobre
as filmagens de “Sindicato de Ladrões” em depoimento para um livro
sobre a história do Actor´s Studio, Eva Marie Saint descreveu a rotina
de trabalho no set conduzido por Elia Kazan:
Um set de Kazan é muito especial. Há ensaio constante. Você
nunca está no telefone com o seu agente. Você deve permanecer
“no personagem”. Um dia, Kazan me repreendeu por falar de-
mais no set, me aconselhando a não dissipar energia, pois cada
um de nós tem apenas uma provisão limitada disso. Era rigorosa-
mente um set fechado onde, quando você não estava diante das
câmeras, você estava trabalhando, ensaiando e improvisando.68

Na cena que estamos analisando é evidente que o trabalho do


ator vai além de reproduzir mecanicamente a sequência de falas e
ações pré-estabelecidas pelo roteiro. Vemos no filme pronto que a edi-
ção pôde se aproveitar da dinâmica de improvisação dos atores a par-
tir da situação dada pela cena, selecionando momentos pontuais de
gestos específicos – Edie cobrindo os olhos e a boca, Terry apontando
para o céu ao jurar por Deus – que confirmam o trabalho do intérprete
como figura que, de fato, “age” em frente das câmeras, muito mais do
que reage através de impulsos a estímulos externos (sejam do roteiro
ou da direção). A montagem se aproveita do trabalho dinâmico do ator,
evidenciando por parte desse um entendimento que não se reduz a um
conceito mais fechado de interpretação realista psicológica – ou seja,
de expressão sutil da “vida interior” do personagem.

68 HIRSCH, 2002, pág. 331 (em tradução livre).

sumário 150
Do mesmo modo que, como vimos, a cena atropelou o desen-
volvimento dramático “empurrando” a progressão através da dinâmica
da relação entre imagem e som, o registro dos atores nesse momen-
to vai além de uma expressão apenas subjetiva, do ponto de vista
das emoções e ideias (registro que seria também coerente com uma
dramaturgia mais convencionalmente dramática). A imagem formada
pela conjugação de gestual e expressão facial bem desenhados, exe-
cutados por Marlon Brando e por Eva Marie Saint e capturados com
precisão pela câmera, serve ao trabalho de edição com a mesma efi-
cácia que o som de uma chaminé apitando ou o recorte da imagem
dessa chaminé. O gestual e a expressão de Edie e Terry se valem,
assim, de um registro amplificado quase que ao exagero, recuperando
uma expressão mais identificada com a tradição da pantomima, que
foi hegemônica no teatro dramático antes da instituição do Método de
interpretação realista – assim como no cinema mudo, sendo largamen-
te utilizada pelo cinema expressionista.

A tradição pantomímica se estabeleceu através do estudo e da


criação de um conjunto de gestos e expressões comuns que poderiam
representar atitudes e estados, tais como ódio, paixão, medo, surpresa,
horror e assim por diante. Sendo um repertório cifrado de posturas e
gestuais, partia de uma condição desconectada das situações especí-
ficas de cada cena ou cada trabalho (já que esse repertorio de gestos
era aprendido de antemão) e assim a interpretação ganhava um tom
mais exteriorizado, e por assim dizer, “artificial” (conferir imagens 32 e
33). Por sua vez, o pensamento do Método defende um trabalho de
internalização da expressão, no sentido de que o ator deveria buscar
sutileza e economia nas suas ações, evitando a execução de gestos
que externalizem o movimento interior da personagem aos limites do
exagero dessa expressão – como se, por exemplo, o ator tentasse nesse
caso representar em seu corpo uma imagem “universal” da tristeza (o
que é abstrato), ao invés de uma personagem específica que está triste
por conta de determinadas situações dadas em cena. Esse é o objetivo
capturado através do termo “atuação invisível” (“invisible acting”), que

sumário 151
cunhou, para o cinema nos EUA, um ideal a ser buscado pelo exercício
de interpretação. Em outras palavras, o ator deveria interpretar de modo
a tornar invisível o seu esforço de representação, agindo diante das câ-
meras como se fosse a si mesmo, em sua vida cotidiana.69

Imagens 32 e 33 – Desenhos retirados de antigos manuais de interpretação.


Lessons in the Art of Acting, de Edmund Shaftesbury (1889, imagem 32) e
The Art of Pantomime, de Charles Aubert (1927, imagem 33). Apresentados
por James Naremore em Acting in the Cinema (Ver bibliografia)

Observando a cena da confissão de Terry em “Sindicato de La-


drões”, porém, podemos perceber que, a essa altura do desenvolvi-
mento técnico da compreensão da linguagem do ator pelo cinema em
Hollywood, o trabalho não se estabelece ainda a partir de uma ideia de
embate essencial entre concepções distintas que não se comunicam (o
Método e as tradições de interpretações anteriores a ele). Pelo contrário,
o trabalho de direção de atores, ainda que tendo sua base e fundamento
na linguagem realista do Método, se utiliza de outras ferramentas da tra-
dição, de acordo com as necessidades que o filme como um todo tem
para atingir a proposta estética almejada por seus realizadores.

69 Walter Benjamin, escrevendo na Alemanha de meados da década de 1930, já reconhecia


que “para o cinema é menos importante o ator representar diante do público um outro
personagem, que ele representar a si mesmo diante do aparelho.” (BENJAMIN, 1985, pg.
179). É como se esse desenvolvimento sempre estivesse prenunciado como um ponto
de chegada inevitável da indústria cinematográfica.

sumário 152
É evidente que o encaminhamento do trabalho na cena se deu
de acordo com as convenções do Método. Os planos de Terry falan-
do mostram as características de um diálogo realista em desenvolvi-
mento: sua máscara facial está neutralizada; os olhares se desviam
durante a fala, como se enfrentasse um assunto difícil; a respiração
se altera de acordo com o tensionamento do diálogo; a fala dos ato-
res envolvidos na cena é entrecortada, uma sobrepondo-se à outra
como no fluxo de uma conversa da “vida real”, dando a impressão
de não estar seguindo um roteiro pré-definido, mas agindo de forma
“natural”; por fim, a famosa postura física “relaxada” de Brando, se
movimentando excessivamente através de tiques e reações enquanto
fala, como se estivesse em uma situação cotidiana. Porém, o resul-
tado expressivo ao qual os atores chegam no auge da cena tem um
caráter ampliado que condiz muito mais com um filme mudo dos
anos 1920 do que com uma cena da Hollywood dos anos 1950 (ou
do Group Theatre, ou do Teatro de Arte de Moscou...).

É o que fica evidente no gesto de Edie ao cobrir a boca com


as mãos e arregalar os olhos (em uma expressão de horror diante
da verdade que Terry lhe conta, o que nos remete à imagem 33) ou
na atitude de Terry em jurar por Deus apontando firmemente para os
céus e tensionando a boca e o olhar em direção a Edie (no esforço de
ser ouvido e compreendido, nos remetendo à imagem 32). O gesto
de Brando, conjugando as mãos e a máscara facial de forma nitida-
mente estudada, cria para os limites impostos pelo enquadramento
em primeiríssimo plano uma imagem com potencial de ser a mais
expressiva o possível, sem necessitar das palavras que Terry fala sem
parar, mas que nós não ouvimos. Esse aproveitamento pelo Método
de uma tradição de interpretação anterior ao seu desenvolvimento já
foi observado por James Naremore:
A partir do momento em que o som foi introduzido [no cine-
ma], os gestos se tornaram mais como acessórios. A edição
e o posicionamento de câmera já haviam fragmentado o cor-
po do ator, e agora a trilha sonora promoveu um movimento

sumário 153
em direção à interpretação invisível, nos convidando a ir além
da expressão exterior, como se vozes estivessem nos levando
para dentro das regiões íntimas e revelando os traços “naturais”
dos indivíduos. Ironicamente, porém, quando os filmes falados
queriam enfatizar a habilidade de performance, às vezes faziam
reversões estratégicas para o silêncio melodramático: os atores
então interpretavam personagens mudos (...) ou empregavam o
Método, que sempre suspeitou de palavras aleatórias.70

Diante da proposta de sintetizar a cena toda em poucos se-


gundos, ao invés de desenvolver toda a conversa entre Terry e Edie,
a direção precisava de gestos também sintéticos capazes de, em um
só quadro, expressar todo o movimento interno de cada figura. E foi
justamente um desvio da expressão mais convencional do Método que
deu esse ganho para a cena. Porém, é perceptível que todo o diálogo
previsto no roteiro entre Terry e Edie foi desenvolvido e executado no
set de filmagem, através da uma prática de trabalho intenso com os
atores, garantindo à direção material suficiente para selecionar e recor-
tar momentos específicos que, na montagem, formariam o caleidoscó-
pio de planos que configura o resultado final da cena.

Essa cena evidencia o avanço significado pelo estabelecimento


de um método de trabalho para intérprete de cinema, representando um
progresso nas relações de produção do cinema. Se os anos 1930 re-
presentaram o momento de profissionalização dos artistas no país (não
por acaso a fundação do Screen Actors Guild, sindicato dos atores de
cinema nos EUA, data de 1933), a chegada do Método a Hollywood na
passagem dos anos 1940 para os anos 1950 representou uma emanci-
pação dos atores enquanto profissionais. A técnica capacitou o traba-
lho do ator como uma linguagem a mais dentro do conjunto de ofícios
que formam o complexo da produção cinematográfica, conferindo ao
ator de Hollywood, pela primeira vez, o caráter de um profissional tam-
bém técnico, assim como um fotógrafo ou um operador de câmera ou
de som. Levando em consideração o caráter industrial do sistema de

70 NAREMORE, 1988, pg. 48.

sumário 154
produção hollywoodiano, essa conquista vai de encontro ao sentido de
“laborização” que Michael Denning apresenta como marca do efeito dos
anos 1930 na arte dos EUA. Afinal, o sentido primeiro e mais imediato
do termo “laborizar” é justamente criar uma classe de profissionais, e
instruir esses trabalhadores sobre suas especificidades enquanto pro-
fissionais, assim como sobre as especificidades de seu ofício, gerando
consequências para a dinâmica das relações de produção e para a ima-
gem de determinado setor no conjunto da sociedade.

Porém, a história do desenvolvimento do Método não é unilate-


ral, assim como a técnica não pode ser identificada como um conjunto
único de práticas todas elas estabelecidas sobre um mesmo ponto de
vista, ou posicionamento, a respeito de seu potencial de realização
para a indústria, ou sobre a capacidade de independência do ator em
relação ao seu ofício. Pelo contrário, o Método não forma uma lingua-
gem única, mas é formado por um conjunto de compreensões e “es-
colas”, cada uma capitaneada por uma figura diferente, e todas elas,
muitas vezes, discordantes entre si. Essa diversidade de opiniões e
práticas sobre o Método já era evidente desde os anos 1930, sendo,
nos anos 1950, realidade mais do que comum.

Ao que parece, então, “Sindicato de Ladrões” não é apenas um


marco na história da técnica por comprovar a capacidade do Método
de ser bem-sucedido enquanto instrumental de produção de cinema.
Talvez, ao imbricar a adoção da técnica no conjunto de discussões e
elaborações que a alegoria do filme estabelece como diálogo com a sua
experiência histórica, a obra também propõe uma reflexão sobre os ca-
minhos e limites conceituais que o Método já enfrentava desde sua dis-
seminação no meio teatral, na passagem dos anos 1920 para os 1930.

Para que possamos aprofundar essa leitura é preciso reconstruir


o caminho da técnica desde sua chegada nos EUA até o estabeleci-
mento de sua tradição. Dessa maneira, poderemos compreender em
qual ambiente de relações a produção do filme está inserida, e com
qual histórico de relações a obra dialoga.

sumário 155
ENTRE A CONSCIÊNCIA
E A EMOÇÃO: O MÉTODO COMO
UM CAMPO DE DISPUTA

Por que foi necessário para Stanislavski desenvolver o seu Mé-


todo? Primeiro, porque a organização do conhecimento sobre
interpretação, que o Método representa, facilita os primeiros
passos, diminui a falta de jeito, o desgaste, a perda de tempo
dos anos de aprendizado; e segundo porque a técnica cons-
ciente ajuda o ator, que tem que repetir um papel muitas vezes
nas mesmas horas específicas, a ganhar uma grande maestria
sobre sua interpretação que, sem qualquer forma de controle
consciente, tende a desaparecer através do capricho e da flui-
dez do que é chamado ‘inspiração’.71

a) Um novo modo de interpretar


o drama – e o mundo – em crise

Em 1974, ao refletir sobre o que chamou de o “famoso Méto-


do” em um artigo de mesmo nome escrito para sua coluna no jornal
The Nation, o então crítico teatral Harold Clurman estabelece a ideia de
que a técnica seria uma “gramática” do trabalho do ator. Assim como o
conjunto de normas e convenções linguísticas que garantem a unidade
na expressão dos falantes de uma mesma língua, o Método possibilita
uma “linguagem comum” na compreensão sobre as etapas do traba-
lho de interpretação, facilitando a comunicação entre atores e direção
durante o processo de criação de uma obra – e, em uma escala maior,
entre profissionais envolvidos em um mesmo sistema de produção.
Afinal de contas, esse caráter universalizante do trabalho do intérprete
representa, inequivocamente, um ganho na qualidade de execução de
um ofício que, no mais das vezes, pode ficar dependente de aspectos
abstratos e imprevisíveis, tais como o talento ou a inspiração.

71 CLURMAN, 1974, pg. 77

sumário 156
Essa ideia do Método como uma linguagem comum revela a
compreensão da técnica como um conjunto de práticas e ferramentas
que possibilitam ao ator dramático construir a sua expressão de forma
mais objetiva, de acordo com as necessidades e exigências de cada
trabalho. Se, por exemplo, a dramaturgia tem à sua disposição a teoria
dos gêneros literários ou as convenções para a divisão de um texto em
atos e cenas, ou se a arte da encenação baseia-se em um estudo da
ocupação do espaço a partir da ideia de linhas retas imaginárias cuja
consideração garante um bom uso do palco, o trabalho de interpreta-
ção também necessitaria de uma técnica básica capaz de nomear e ca-
tegorizar as partes que compõem, em seu conjunto, o processo dessa
forma de expressão. Em outras palavras, um conjunto de ferramentas
que auxiliem o intérprete a subdividir as etapas de seu processo de cria-
ção e dominar a mecânica de seu instrumento expressivo – corpo e voz
–, para que ele possa usar esse instrumento a seu favor, construindo de
forma sempre consciente a aparência, em seu corpo, das emoções e
de outros estados interiores, e repeti-los a cada apresentação da forma
mais adequada para a sua comunicação com o público.

Se levarmos em consideração que nas primeiras décadas do


século XX nos EUA, tanto o teatro quanto o cinema já movimentavam
um mercado de produção em ritmo comercial, parte da nascente in-
dústria cultural do país, o Método representa de fato uma revolução
no ofício. Uma conquista que garante, pela primeira vez, um conjunto
de ferramentas capaz de inserir o trabalho do ator em um movimento
de profissionalização da arte através de seu desenvolvimento técnico
enquanto ofício, ou seja: o estabelecimento de um repertório de práti-
cas comuns a uma categoria, que possibilitem a execução e a repro-
dução desse trabalho de forma, por assim dizer, funcional. O sentido
emancipatório que a técnica representa para a profissão do intérprete
é evidente se pensarmos que o estabelecimento dessa linguagem co-
mum de atuação ajuda a dinamizar o processo de formação de atores
e atrizes, criando uma reserva de profissionais capazes de suprir as
demandas que o seu mercado de trabalho lhes impõe. Ainda, o acesso

sumário 157
a esse referencial técnico facilita aos intérpretes a repetição, noite após
noite, das mesmas cenas, com seu gestual, entonações e expressões
emotivas pré-marcadas, em uma rotina de temporadas que às vezes se
estendiam por seis ou sete apresentações ao longo da semana, sen-
do o resultado de processos de ensaios que duravam, quando muito,
um mês. Ou seja: para uma arte produzida em ritmo de mercado, são
necessários profissionais técnicos altamente apropriados de seu ofício.

Porém, o surgimento da ideia de uma técnica de interpretação


realista não se deu no ambiente de produção artística estadunidense,
mas se integra a um movimento inseparável da própria história da
evolução das formas dramatúrgicas e cênicas no teatro de expressão
dramática. A origem do Método encontra-se, assim, no trabalho do
diretor russo Constantin Stanislavski, que na virada do século XIX
para o XX alterou o entendimento comum sobre a arte da interpreta-
ção através das experimentações que conduziu junto a seus atores
no Teatro de Arte de Moscou, e que deram origem ao seu famoso
“sistema de interpretação realista”.

O trabalho de Stanislavski não foi fruto de uma reflexão abstra-


ta, mas partiu da relação dinâmica com o material que a dramaturgia
do tempo estava oferecendo, o que inscreve as pesquisas com o sis-
tema em um mesmo movimento de transformação das artes do palco.
A elaboração do sistema foi uma resposta à necessidade concreta de
encenar os dramas de Anton Tchekhov, que criou um problema para
a maneira convencional de representação dos dramas burgueses ao
desenvolver uma tentativa de expressão dramatúrgica da vida subje-
tiva das personagens. Os longos solilóquios reflexivos, apoiados na
expressão do tempo subjetivo do pensamento e da memória, criam
em suas personagens uma desconexão do espaço-tempo cotidiano
e das outras personagens ao seu redor, quebrando a lógica pré-es-
tabelecida do desenvolvimento da forma dramática – que, como já
vimos, fundamenta-se no “aqui e agora”, acompanhando o ritmo da
relação de fala e resposta (ou ação e reação) da forma dialógica,
para conseguir movimentar a mecânica que estrutura o drama.

sumário 158
Se os textos de Tchekhov, na esteira da expressão de outros dra-
maturgos contemporâneos como Strindberg ou Ibsen (esse último tam-
bém encenado por Stanislavski) apresentavam uma tentativa de explora-
ção das contradições da vida interior do indivíduo burguês, quebrando a
lógica objetiva do desenvolvimento dramático por meio da expressão da
subjetividade, autores como o também russo Máxim Gorki ou o alemão
Gerhart Hauptmann introduziram em seu trabalho personagens que,
convencionalmente, estavam de fora do alcance do repertório dramá-
tico: operários, trabalhadores informais, desempregados e sem tetos,
a chamada “ralé” (na expressão que intitula um dos dramas de Gorki
montado por Stanislavski em 1901). A invasão de personagens oriun-
dos das classes mais baixas da sociedade como protagonistas da cena
dramática, espaço de representação por excelência do cotidiano da vida
burguesa, provoca uma necessidade de revisão da técnica de interpre-
tação do ator treinado para representar nesse gênero de encenações.

Assim, percebemos que as mudanças conquistadas na ex-


pressão do ator através da pesquisa de Stanislavski na passagem do
século XIX para o XX pega carona em um processo de renovação da
expressão formal dramatúrgica face às mudanças que a sociedade
ocidental como um todo estava experimentando, fenômeno que foi
identificado pelo teórico alemão Peter Szondi como a “crise do drama
burguês”.72 Resumindo a ideia de Szondi: para ser capaz de conti-
nuar a representar um mundo em transformação, levado pelos de-
senvolvimentos que reconfiguravam a sociedade capitalista do fim de
século, a dramaturgia foi obrigada a procurar novas soluções para os
problemas formais que as temáticas contemporâneas apresentavam.
Os novos temas – sejam da vida individual, como as interferências
das escolhas do passado no presente ou os conflitos da intimidade
psicológica, sejam do âmbito da coletividade, tais como a desigual-
dade social, a luta de classes e as demais contradições estruturantes
do sistema capitalista – não mais cabiam na velha forma dramática,
exigindo, para sua expressão, outras soluções cênicas.

72 Conforme foi apresentado no capítulo 1, conferir na nota de rodapé 34.

sumário 159
No que toca à interpretação, o ofício dos atores dos dramas
burgueses do século XIX baseava-se em um conjunto cifrado de
posturas e expressões físicas, registrado em manuais de atuação
que compunham, em parte, a tradição conhecida como pantomima.
A pantomima – cuja origem remonta à arte dos mímicos dos teatros
de feira, mas que no século XIX passou a ser identificada como a
expressão do ator dramático quando seu repertório técnico foi absor-
vido pelos manuais de atuação da época – baseia-se, como dito na
sessão anterior, em um entendimento pré-determinado da expressão
humana. Segundo o pensamento que fundamentava a técnica, as
emoções e estados de alma do ser humano são facilmente classificá-
veis e reproduzíveis através de posturas e expressões faciais comuns
(conforme foi exemplificado nas imagens 32 e 33). Essa compreen-
são baseia-se em uma concepção universal e idealista do comporta-
mento, não levando em conta as especificidades capazes de orientar
e formar, por assim dizer, o caráter dos indivíduos. Essa ideia univer-
salista fundamentava a expressão do drama burguês como forma
cênica que pretendia dar conta da totalidade da vida através de um
mesmo ponto de vista comum e restrito, entre atores e plateia, sobre
esse cotidiano: a concepção burguesa de sociedade, expressa na
repetição dos cenários dos dramas – quartos ou salas de casa de
famílias – e de seus personagens e conflitos principais – pais e filhos,
noivos e jovens casados à volta das preocupações que compunham
a organização da vida das famílias da média burguesia europeia.

Assim, diante de uma dramaturgia que reproduz sempre os


mesmos conflitos do mesmo grupo de interesse, formando o reper-
tório de um sistema de produção que gerava incessantemente novas
peças e montagens para um público ávido para suprir sua demanda
por entretenimento, o trabalho do ator era também circunscrito a uma
ideia de expressão mais imediatista, ou seja, mais exteriorizada e su-
perficial. Porém, a partir do momento em que o teatro dramático pas-
sou a complexificar sua abordagem da realidade, considerando o ser
humano como, ao mesmo tempo, produto e produtor das contradições
do tecido social, o trabalho de representação precisou mudar.

sumário 160
Ao tentar descrever a mudança que o sistema de interpretação
realista trouxe para o trabalho do ator, principalmente no cinema, Ja-
mes Naremore estabelece a ideia de passagem de um conceito de
interpretação “retórica” para uma interpretação mais “expressiva”.73
Por interpretação retórica, Naremore identifica o trabalho de ator ba-
seado em uma representação exteriorizada, cujo foco maior estava
na própria execução, no sentido de garantir sua reprodução imediata
através de um código gestual pré-determinado e facilmente apreen-
dido. Por assim dizer, uma “interpretação semiótica”, no sentido de
que baseava-se na repetição de posturas pré-definidas funcionando
como símbolos gestuais que, por si próprios, independente dos con-
textos específicos de cada peça ou personagem, já trariam um sig-
nificado preciso para a expressão de sentimentos como tristeza, dor,
angústia, alegria, paixão e assim por diante. A ideia de “interpretação
expressiva”, por outro lado, corresponde a um trabalho de ator que
se baseia na expressão, por meio do comportamento físico-gestual,
das especificidades subjetivas e objetivas que formam o conjunto
de situações e conflitos inerentes ao universo de cada personagem
– considerando tanto seu histórico de vida quanto sua posição so-
cial – de modo a expressar com mais veracidade o resultado dessas
condições determinantes nas ações do indivíduo representado.

Em outras palavras, um ator pantomímico representa-se a si


mesmo representando uma personagem qualquer – seguindo uma
prática que levou, já no teatro do século XIX, ao estabelecimento de
um star system onde grandes atores e atrizes disputavam quase que a
tapa por mais espaço de exposição de suas qualidades técnicas pe-
rante o público no palco. Por contraste, um ator moderno (identificando
essa modernidade na conquista de um novo sistema de interpretação
realista) deveria representar idealmente, antes de tudo, a aparência do
personagem sob o qual sua própria personalidade individual deve se
esconder, sempre de acordo com a função que cada personagem tem

73 NAREMORE, 1988.

sumário 161
para o desenvolvimento da peça como um todo, em todo o seu com-
plexo de relações e interações – logo, servindo sempre à dramaturgia.

Devemos dizer, a essa altura, que se por um lado essa divisão


pode dificultar a compreensão do caráter semiótico e retórico presen-
te em outras tradições de teatro mais especificamente modernas e re-
novadoras – como os trabalhos dos encenadores Vsevolod Meyerhold
(inspirado na longa tradição física do circo ou de formas de teatro de
feira) e Bertolt Brecht (que aprimorou as pesquisas de Piscator a res-
peito de uma forma de teatro épico) – por outro lado devemos com-
preender que o trabalho de Stanislavski representou o primeiro passo
para um novo entendimento da interpretação teatral. O ator se tornava,
assim, um profissional técnico capaz de responder à necessidade de
lidar com a expressão de uma gama complexa de determinantes e va-
riáveis na constituição da personagem não apenas enquanto indivíduo,
mas como parte de uma estrutura social. Não por acaso, Meyerhold ini-
ciou suas pesquisas como discípulo de Stanislavski, ainda no início dos
anos 1900. E Brecht reconheceu a importância do passo além dado por
Stanislavski para o estabelecimento de novas formas de teatro político:
(...) o sistema de Stanislavski é um progresso pelo simples fato
de ser um sistema. O jogo que ele desenvolve produz a identi-
ficação de maneira sistemática; esta, portanto, não é efeito do
acaso, nem do humor, nem da inspiração. (...) O progresso em
questão fica particularmente visível depois que essa identifica-
ção começa a acontecer com personagens que até então não
tinham nenhum papel no teatro: os proletários. Não é por aca-
so que na América foram justamente os teatros de esquerda
que começaram a se apropriar do sistema de Stanislavski. Esse
modo de representar tem a possibilidade de permitir uma iden-
tificação com o proletário, até então impossível.74

Dessa maneira, fica mais uma vez evidente que o sistema de


interpretação realista se baseia no desejo de atingir a expressão de
uma ideia de realidade da vida cotidiana, levando em consideração
a complexidade da estrutura social que constitui o espaço da vida

74 Bertolt Brecht, conforme citado por COSTA, 2011, pg. 172.

sumário 162
comum, e partindo da intenção de abranger os diversos pontos de
vista que constituem esse espaço.

Para atingir esse objetivo, o sistema se fundamenta justamente


em um dos pilares da longa tradição dramática, desde as origens de
sua conceitualização, ainda em Aristóteles: a possibilidade de identifi-
cação (no sentido de projeção de si mesmo e dos seus próprios con-
flitos) do público com o destino das personagens representadas em
cena. Segundo Brecht, crítico feroz do uso da identificação pela tradi-
ção dramática, o sistema de Stanislavski representou um primeiro pas-
so revolucionário justamente por oferecer a capacidade de identificação
com conflitos e destinos que fugiam totalmente do escopo de interesse
da tradição dramática burguesa (ou dos semideuses e heróis, mem-
bros da aristocracia e da nobreza, desde Aristóteles passando pelos
dramas do neoclassicismo ou do período romântico): os conflitos da
classe trabalhadora. Ainda que não quebrando com a lógica formal do
drama enquanto estratégia ultrapassada de tentativa de apreensão da
totalidade da experiência – passo dado de maneira mais radical pelo
trabalho de Piscator e Brecht com o desenvolvimento do teatro épico – é
a obtenção desse tipo de comprometimento com a realidade tal qual
configurada na experiência social que garante ao sistema Stanislavskia-
no a categorização de “sistema de interpretação realista”.75

E como o sistema pretendia operar sobre o estabelecimento da


identificação entre o público e o personagem de ficção, por intermédio do
trabalho do ator? Em primeiro lugar, é importante ressaltar, a essa altura,
que Stanislavski não nomeava o seu trabalho de “naturalista”, como o sis-
tema passou a ser conhecido depois, principalmente por seus críticos, por

75 Naremore comenta também sobre essa dialética na relação entre a tradição de inter-
pretação realista (ou naturalista, como ficou conhecida) e outros estilos retóricos ou
semióticos, comprometidos com uma visão mais diretamente política de teatro: “Por um
lado, como Brecht e seus sucessores apontaram, a representação naturalista restringe
as possibilidades instrumentais da performance; ao esconder o fato de que os atores
produzem signos, ela oculta o trabalho da ideologia. Por outro lado, como Brecht reco-
nheceu também, certos tipos de expressão naturalista são importantes para um teatro
engajado, ajudando a livrar a interpretação de afetações estilizadas e pretensamente
eruditas” NAREMORE, 1988, pág. 49 (em tradução livre).

sumário 163
conta do histórico do uso da técnica no teatro e posteriormente no cinema,
ao longo do século XX – principalmente nos EUA.

Stanislavski sempre se utilizou do termo “naturalismo” de uma


forma específica. Para ele, o grande objetivo de seu trabalho era atin-
gir uma expressão cênica do ator que estivesse mais afinada com
uma “sensação de verdade”. Por conta disso, para Stanislavski o ter-
mo “natural” estava diretamente conectado com a ideia de natureza
biológica do corpo do intérprete. Por isso que o estudo atento do
comportamento físico-sensório do organismo humano era importante
como uma forma de o intérprete compreender o seu funcionamento e
assim poder, enquanto técnico da arte dramática, dominar o próprio
corpo – que é, ao fim, a sua ferramenta de trabalho. Dessa forma, a
manipulação da natureza (sempre compreendida desse modo) ser-
viria como um caminho de acesso para a vida interior – memória,
emoções e estados – e sua consequente expressão exterior, esse
sim o verdadeiro objetivo maior de toda a pesquisa do mestre russo.

É com esse entendimento que, ao fim da vida, Stanislavski de-


fendia que o compromisso do ator com a expressão da verdade deveria
seguir o que ele chamava de “ultranaturalismo”.76 Assim, Stanislavski
distinguia o objetivo do seu trabalho do naturalismo enquanto corren-
te estética historicamente localizada. Segundo o diretor, a abordagem,
pelo intérprete, de sua natureza biológica, constituía uma etapa anterior
do trabalho de criação e pesquisa de um papel e deveria ser seguido por
um trabalho posterior de edição dos materiais que tal natureza é capaz
de oferecer. É o que ele chama de “senso de proporção” do intérprete.
Ainda em A Preparação do Ator, ele já discute essa questão: “Ora, na
peça de Hauptmann, Hannele, o naturalismo tem seu lugar (...) Como

76 Em A Criação do Papel, o terceiro de seus livros, ele diz: “(...) emprego a palavra ultrana-
turalístico para definir o estado de nossas naturezas espiritual e física, que nós considera-
mos inteiramente natural e normal, e no qual acreditamos sinceramente, organicamente.
Só quando estamos nesse estado é que nossa fonte espiritual abre-se completamente, e
emanações quase imperceptíveis desses mananciais alcançam a superfície: insinuações,
nuanças, o aroma daquele sentimento verdadeiro, orgânico, criativo, que é tão tímido e
tão fácil de assustar”. STANISLAVSKI, 2002, pg. 280.

sumário 164
meio para chegar a um fim, podemos aceitá-lo. (...) nem toda espécie
de verdade pode transferir-se ao palco. O que lá usamos é a verdade,
transformada em um equivalente poético.”77 Ou seja, a compreensão de
“realismo” para Stanislavski já era, nesse momento, dependente de uma
capacidade do artista criador em selecionar o que, da realidade, o inte-
ressava e, a partir dessa seleção, editar sua expressão.

Assim, o grande objetivo da pesquisa de Stanislavski era a ob-


tenção daquilo que ele chamava de “sentimento de verdade”. Não se
deve confundir esse intuito com a expressão da vida sentimental própria
do ator, ou seja, a expressão de sua subjetividade. Antes, é o desejo de
aprimorar o que ele chamava de “sentimento criativo do ator”, ou seja,
um estado ativo de disponibilidade para a criação e a construção do
trabalho de interpretação. Esse sentimento criativo, segundo Stanislavs-
ki, deveria ser alcançado e mantido através de uma rotina constante de
exercícios e estudos do ator debruçado sobre as capacidades expres-
sivas de seu próprio corpo e voz (sua “natureza”) que, bem treinados
e estimulados, seriam capazes de atingir a expressão da aparência de
sensações interiores, tais como sentimentos, emoções ou pensamen-
tos, de forma a sugerir a verdade de sua expressão. O processo de
“preparação do ator”, assim, serviria para que esse encontrasse em
sua constituição física sua forma pessoal de expressar sentimentos e
estados interiores, ao invés de reproduzir imagens falsificadas dessa
verdade interior. É apenas dessa maneira, aliás, que o sistema de inter-
pretação é comprometido com a personalidade individual de cada intér-
prete: tentando possibilitar o acesso ao sentimento de verdade interior
capaz de garantir maior veracidade à representação, no processo do
ator como que “emprestando” a sua forma de, por exemplo, chorar, se
enervar, se apaixonar, enfim, de reagir, para servir de base da construção
dos diversos personagens que deve representar. Dessa forma, para Sta-
nislavski o trabalho do ator era tanto externo quanto interno. Era através
dos estímulos orientados para seu equipamento físico-sensório, logo
sua vida exterior, que o ator poderia alcançar a expressão da vida interior.

77 STANISLAVSKI, 2018, pg. 198.

sumário 165
A ideia que fundamentava o sistema de Stanislavski no início
de sua formulação era, em primeiro lugar, a busca por atingir a ver-
dade artística subconsciente através de uma técnica consciente. Seu
objetivo era “a estimulação natural da criatividade da natureza or-
gânica e de sua subconsciência”. Essa ideia deveria orientar todo
o processo de construção da personagem e a obtenção de sua ex-
pressão cênica final. Para conquistar essa capacidade de afetação
entre a fisicalidade e a emotividade, Stanislavski defendia o que ele
chamava de “princípio de atividade”, ou seja, o ator deveria estar
constantemente em prática de experimentação e treino para manter
ativa a sua capacidade de estímulo da vida interior. Finalmente, ao
executar o trabalho de construção de uma personagem específica o
ator deveria se ocupar do estudo e da compreensão do que ele cha-
mava de “circunstâncias dadas”, ou seja, as situações específicas
que atuam como condicionantes do comportamento da personagem
enquanto parte de um todo formado pelo universo da peça – coisas
como sua origem social, tempo histórico, idade, características físi-
cas, ocupação, ideias sobre a vida, mas também as pessoas que
estão ao seu redor, as ações que acontecem ao longo da peça, e
etc. Caberia ao ator, assim, exercitar a sua imaginação a ponto de
ser capaz de imaginar-se a si mesmo nas condições específicas que
produzem a personagem que representa, de modo a compreender o
resultado dessas condições nas atitudes da personagem.

Para alcançar os resultados esperados por essa ideia de traba-


lho, a prática cotidiana do ator deveria se basear em uma rotina de, em
primeiro lugar, concentração no espaço-tempo da sala de ensaios,
desligando-se dos problemas da sua vida cotidiana e preparando-se
para focar no seu trabalho; em seguida, um relaxamento físico total,
de modo a conectá-lo com as condições de seu corpo e torná-lo apto
a identificar os meios de executar, fisicamente, os desafios e etapas
de seu trabalho; por fim, o ator deveria praticar exercícios e jogos de
imaginação que o colocariam, de forma hipotética, nas condições e
situações vivenciadas por seu personagem.

sumário 166
Nessa etapa entra o famoso “SE mágico”. Para Stanislavski,
o exercício da imaginação é tão essencial para um ator quanto a ati-
vidade constante de seu corpo. A imaginação, assim compreendida,
seria uma espécie de músculo como qualquer outro de sua estrutura
física, e como tal deve ser constantemente exercitado. O “se” é a
pergunta que o ator deve fazer para encontrar, como resposta, a me-
lhor forma de agir em cena: “Se eu fosse essa personagem, vivendo
nessas condições específicas, como eu agiria?”

Assim, para Stanislavski uma personagem não é um indivíduo


real e independente, uma pessoa viva e, portanto, capaz de surpreen-
der-nos e tomar decisões inesperadas por conta própria. Nem tam-
pouco é uma plataforma para os atores expressarem suas próprias
subjetividades de forma descontrolada e narcísica – como divulga a
crítica mais convencional – e apressada – do sistema. Pelo contrário,
uma personagem é um complexo formado por: as circunstâncias da-
das, exteriores e interiores; os seus objetivos distribuídos através da
linha direta de ação (ou seja, de sua trajetória no decorrer da peça)
assim como o seu superobjetivo78 geral (ou seja, a motivação que re-
sumiria, de forma sintética, o percurso dos interesses e atitudes dessa
personagem na peça como um todo); o subtexto79 da personagem,
que seria o conjunto de pensamentos e intenções escondidos através
das palavras que a personagem se utiliza para se expressar; e por fim

78 A tradução desse conceito em português tem sido atualmente revista por estudiosos da
obra de Stanislavski, que sugerem o termo “supertarefa” (como podemos ver em VÁS-
SINA, Elena e LABAKI, Aimar, Stanislavski, Vida, Obra e Sistema, Rio de Janeiro, Funarte,
2015). Porém, para facilitar as citações, continuarei usando “superobjetivo” conforme a
corrente edição brasileira das obras do encenador russo, que se baseia na mesma tradu-
ção em inglês que foi difundida nos EUA.
79 Em A Construção da Personagem, Stanislavski define o que chama de “subtexto”: “É a
expressão manifesta, intimamente sentida de um ser humano em um papel, que flui inin-
terruptamente sob as palavras do texto, dando-lhes vida e uma base para que existam.
O subtexto é uma teia de incontáveis, variados padrões interiores, dentro de uma peça
e de um papel, tecida com ses mágicos, com circunstâncias dadas, com toda sorte de
imaginações, movimentos interiores, objetos de atenção, verdades maiores e menores,
a crença nelas, adaptações, ajustes e outros elementos semelhantes. É o subtexto que
nos faz dizer as palavras que dizemos numa peça.” E mais para diante: “a palavra falada,
no texto de uma peça, não vale por si mesma, porém adquire valor pelo conteúdo do
subtexto e daquilo que ele contém.”. STANISLAVSKI, 2001, págs. 163-165.

sumário 167
a partitura de tempo-ritmo utilizada pelo ator para a expressão física
dos gestos e das falas da personagem em cena.

Em relação ao subtexto, essa talvez seja uma das maiores des-


cobertas de Stanislavski para o trabalho do ator: a percepção de uma
possível vida interior da personagem, não expressa pelas palavras
do texto. Em certo sentido, isso nos permite até mesmo “desconfiar”
daquilo que a personagem expressa através de suas falas ou ações.
Assim como na “vida real” nos utilizamos de estratégias para atingir
nossos objetivos, blefando, dissimulando ou dizendo uma coisa para
expressar outra (consciente ou inconscientemente), uma personagem
também poderia, através de suas palavras e ações, esconder intenções
ocultas – desde que essas possam estar sempre evidentes tanto para
o ator quanto para o público. É a compreensão da possibilidade dessa
expressão sutil da vida psicológica de um indivíduo, configurada na
ideia do subtexto, que engendra o conceito de ação física, fundamental
para o prosseguimento das pesquisas de Stanislavski ao longo de toda
sua carreira, até a década de 1930, quando o encenador morre.

As ações físicas seriam, basicamente, ações que o ator executa


em cena motivadas por um objetivo de dizer ou expressar algo especí-
fico, não necessariamente verbalizado. Para Stanislavski, nada do que
acontece em cena deve ser gratuito, fruto do acaso ou da mera neces-
sidade mecânica de se movimentar. A ideia de ação física, assim, parte
da compreensão de que os gestos executados pelo ator em uma cena
devem ser orientados internamente, como uma forma de expressar
uma intenção, um sentimento ou uma verdade que ele não verbaliza,
mas que fica evidente na sua execução – um subtexto específico que
expressa as intenções daquela personagem, ou uma ferramenta para
construir a comunicação do superobjetivo geral da peça como um
todo. E a ideia de “ação” é realmente importante, pois ela joga foco no
trabalho do ator como essencialmente exterior, mesmo que seja com o
objetivo de expressão de uma vida interior:

sumário 168
Portanto, o objetivo a ser alcançado resume-se nisto: respon-
da cada ator, honestamente, à pergunta sobre qual ação física
executaria, como agiria (não sentiria; a esta altura, pelo amor de
Deus, nada de sentimento deve entrar em jogo) nas circunstân-
cias determinadas criadas pelo dramaturgo, pelo diretor da peça,
pelo cenógrafo, pelo próprio ator, através da sua imaginação, do
técnico de luz, e assim por diante. Quando essas ações físicas
estiverem claramente definidas, tudo o que resta a fazer, para o
ator, é executá-las. (Observem que eu digo executar as ações
físicas, e não senti-las, porque se elas forem feitas com correção
os sentimentos serão gerados espontaneamente).80

Ainda, o trabalho de construção da cena é entendido não como


a mera reposição espacial de algo que já está contido em essência
no texto, de forma acabada. Antes, é baseado em todo o processo
de criação e elaboração armado pelo complexo de relações profissio-
nais técnicas envolvidas na produção de um espetáculo. Esse pen-
samento expressa, já no teatro de Stanislavski, uma compreensão de
autoria da cena como um conceito colaborativo, e não colocado nas
mãos de uma única figura criadora – esse conceito será essencial
para entendermos a ideia de criação no teatro, e posteriormente no
cinema, dos EUA na época que estamos discutindo.

É importante destacar que esse sistema de interpretação não


foi elaborado por Stanislavski em pouco tempo. Pelo contrário, suas
pesquisas continuaram ao longo da vida até sua morte, no ano de
1938, em Paris. Assim, o breve resumo de seus fundamentos apre-
sentado acima é baseado já na compreensão que Stanislavski tinha
de seu trabalho nos anos finais de sua vida. Não por acaso, os títulos
dos livros nos quais Stanislavski elabora a descrição de seu processo
de pesquisa na forma de romances, ou diários de trabalho, expres-
sam essa ideia fundamental de formação, ou construção gradual,
seja do intérprete enquanto profissional, seja da personagem en-
quanto obra, ou mesmo, no limite, seja do sistema enquanto pesqui-
sa que não se conclui: A Preparação do Ator (1936), A Construção da
Personagem (1938) e A Criação de um Papel (esse último publicado

80 STANISLAVSKI, 2002, pág. 240.

sumário 169
postumamente em 1961). Assim, o conjunto dessas obras – às vezes
contraditórias entre si – apresentam conceitos e ideias que não esta-
vam amadurecidos, por exemplo, nos anos iniciais de seu trabalho,
na passagem do século XIX para o XX, época na qual alguns de seus
colaboradores mais famosos entraram em contato com suas pes-
quisas no Teatro de Arte de Moscou e, depois da Revolução Russa
de 1917, disseminaram as propostas iniciais do sistema pelo mundo
ocidental, conforme sua própria compreensão da técnica.

Esse histórico nos evidencia que, desde o início, a transmissão


das ideias de Stanislavski sobre o trabalho do ator já dependeu de uma
espécie de tradução, por parte de seus divulgadores, de suas pesquisas.

b) Uma forma de expressão


para o ator estadunidense:
o Método no teatro e no cinema

Se a crise da forma dramática provocou no teatro a necessida-


de de uma reformulação do trabalho do ator, o grande responsável
pela mudança na expressão do intérprete na história do cinema foi a
transição do cinema mudo para o cinema falado, na passagem das
décadas de 1920 para 1930. A tradição da pantomima foi essencial
para a expressão do ator no cinema narrativo das duas primeiras
décadas do século XX. Ainda, constituiu o repertório básico de inter-
pretação do cinema expressionista, através da composição de uma
representação gestual e facial baseadas no exagero e na ampliação
da significação (novamente, a ideia de “interpretação semiótica”, ou
“gestual codificado”, defendida por James Naremore). Uma vez que
o ator não falava, ele deveria ser capaz de, com sua imagem, expres-
sar o máximo de significado possível. Assim, através de seus gestos
o ator como que “escrevia”, na cena, as falas e pensamentos que
motivavam sua figura a agir e reagir das maneiras sugeridas pelo ro-
teiro. Porém, com o advento do som, o gesto torna-se um acessório
da expressão, que passa a ser amparada também pela fala.

sumário 170
Nos EUA o processo de transformação das convenções da arte
do intérprete deu-se através de um percurso que envolve, de certa
forma, o teatro e o cinema em uma mesma linha do tempo, reprodu-
zindo um ambiente de relações e trocas, colaborações e disputas que
simboliza o histórico da convivência entre as duas formas de arte no
país, ao longo do século XX. Se a montagem do texto As Três Irmãs,
de Tchekhov, em 1901, é considerada o marco inicial das pesquisas de
Stanislavski com o sistema de interpretação realista, foi só na década
de 1920 que a técnica chegou de fato aos EUA. Em 1922 o Teatro de
Arte de Moscou fez uma excursão em Nova Iorque com algumas pe-
ças de seu repertório – dentre elas, os textos de Tchekhov. O impacto
causado pela nova forma de representação foi imediato. Para fazer a
ponte entre seu trabalho e a classe artística estadunidense, Stanislavs-
ki convidou o ator Richard Boleslavski, antigo colaborador, para acom-
panhar a turnê como intérprete e apresentar, ao seu lado, uma série de
palestras sobre o seu sistema. Boleslavski, depois de imigrar da Rússia
por conta da revolução de 1917 e de ter rodado por alguns países da
Europa, havia chegado aos EUA já com experiência no cinema, tendo
trabalhado em filmes do cineasta dinamarquês Carl Theodore Dreyer.

Com o sucesso da turnê do TAM, Boleslavski percebeu a opor-


tunidade de fundar uma escola para formar novos atores, de acor-
do com os ensinamentos aprendidos com Stanislavski. A atriz Maria
Ouspenskaya, que viajara com o TAM para os EUA, resolveu ficar
também no país e integrou a sua equipe de professores no American
Laboratory Theatre. Ainda, Boleslavski foi responsável por uma das
primeiras publicações que tentaram sintetizar as bases do sistema,
o livro Acting – The First Six Lessons, de 1933. Escrito na forma de
diálogo entre o próprio Boleslavski (identificado como “Eu”) e um ator
iniciante e ansioso que deseja aprender os segredos do seu ofício
(identificado como “Criatura”), o livro é dividido em seis lições, ou au-
las, cada uma focada em um aspecto específico do trabalho do ator:
concentração, memória da emoção (“memory of emotion”, no original
em inglês), ação dramática, caracterização, observação e ritmo.

sumário 171
É interessante perceber que, assim como nas obras de Stanis-
lavski, a abordagem do trabalho de interpretação não se dá na forma
de uma escrita de caráter mais técnico, como um manual, mas atra-
vés de textos que, se utilizando da linguagem ficcional do romance ou
do diálogo livre (como na tradição dos escritos de Platão) permitem
uma reflexão mais aberta sobre os assuntos abordados, menos en-
gessada pelas exigências de uma literatura técnica. Isso evidencia,
mais uma vez, o caráter do sistema como uma pesquisa em anda-
mento, aberta a experimentações e desenvolvimentos – assim como
contradições. No caso de Boleslavski, seu principal objetivo com a
fundação do American Laboratory Theatre era se utilizar do sistema
elaborado pelo mestre russo para encontrar uma forma de expressão
própria do ator estadunidense. Em outras palavras, adaptar o sis-
tema para o “temperamento” e modo de comportamentos próprios
da sociabilidade dos EUA, que seria, segundo esse pensamento, de
caráter mais pragmático e objetivo do que a expressão cultural euro-
peia e, especificamente russa, idealmente mais propensa à reflexão
e à expressão da subjetividade. Se o “novo mundo” era fundamen-
tado em uma concepção mais pragmática de sociabilidade – desde
a cosmovisão puritana da vida regrada pelo ritmo do trabalho até
o desenvolvimento contemporâneo frenético da economia industrial
capitalista nas primeiras décadas do século XX – as artes performa-
tivas deveriam encontrar uma técnica capaz de responder com mais
veracidade e realismo a essa concepção de vida.81

A ideia de Boleslavski não era alheia ao projeto inicial do próprio


Stanislavski, para quem seu sistema, mais do que um conjunto de
regras, era “toda uma cultura”, fundada na cultura do intérprete (Sta-
nislavski segundo citado em CAVALIERI e VÁSSINA, 2011, pg. 214).

81 “(Boleslavski) Considera, desde logo, que os atores americanos possuem um pragma-


tismo acentuado e, por serem mais racionais, visam, em primeiro lugar, mais o resultado
prático do que os movimentos interiores da psique para a construção da personagem.
Assim, Boleslavski aplicara o seu método, procurando um caminho mais curto e mais
direto para a consecução dos objetivos e do resultado final da cena. Levando em conta a
natureza e a psicologia dos atores americanos, bem como sua tradição teatral, o enfoque
principal do método será a “ação”, enquanto meio principal para chegar à construção da
personagem cênica.” CAVALIERI e VÁSSINA, 2011, pg. 208.

sumário 172
Ou seja, mais que uma técnica exterior à qual o ator deveria se adap-
tar, o sistema era um conjunto de prática e pensamento que levaria o
ator a compreender melhor sua própria expressão pessoal como pro-
duto do complexo cultural do qual faz parte, e não apenas da sua his-
tória individual – por mais que, por conta do recorte fundamentalmente
dramático da técnica, algumas abordagens acabe privilegiando mais
a vida interior do que outros aspectos na composição da persona-
gem. Se essa tendência mais subjetivista construiu a fama do trabalho
de Lee Strassberg, a concepção da técnica como um instrumento de
compreensão do comportamento social também atravessou a histó-
ria do Método nos EUA. No livro Técnica da Representação Teatral,
escrito já na forma de um manual de exercícios em 1988 por Stella
Adler, uma das sessões é dedicada a traçar uma espécie de breve
descrição do comportamento geral de cada classe social, levando
em consideração sua formação e expressão ao longo da tradição ar-
tística ocidental, como forma de material de trabalho para os atores
comporem seus personagens. No caso, o Método continua a ser uma
técnica preocupada com um trabalho de construção psicológica da
personagem, por parte do intérprete, mas revela-se capaz de tecer a
ideia de uma “psicologia social” (nas palavras de Harold Clurman).82

Depois que o American Laboratory Theatre fechou suas portas


em 1933, Richard Boleslavski e Maria Ouspenskaya continuaram sua
carreira como atores no teatro e, principalmente, no cinema, figurando
entre os pioneiros do sistema de interpretação realista em Hollywood.
Lá, eles se juntaram a figuras como as atrizes Alla Nazipova e Olga Ba-
clanova, também ex-colaboradoras do Teatro de Arte de Moscou que
emigraram para os EUA e fizeram fama mostrando um “estilo novo”
de interpretação. Porém, a grande contribuição dos atores russos se

82 “Atuar se baseia, em grande parte, nas diferenças entre as personagens. Um desenhista


italiano, um camponês russo, um diplomata chinês, todos se comportam de maneiras espe-
cíficas. Eles se dominam diferente, andam, falam, pensam, fumam cigarros e riem de forma
diferente. Seus conhecimentos, educação, tipo físico, moral e posição social são inteira-
mente distintos. Os atores não devem apenas criar essas características nacionais e ocupa-
cionais, mas devem também mostrar as diferenças entre os personagens. Atuar é agrupar
comportamentos humanos de maneiras originais e interessantes.” ADLER, 2016, pg. 105.

sumário 173
deu de forma mais contundente ainda no espaço da sala de ensaio e
na prática de ensino, nos anos iniciais do American Laboratory Theatre,
onde alguns artistas que se reuniriam em 1931 para fundar o Group
Theatre iniciaram sua formação profissional no teatro, dentre eles os
próprios Lee Strasberg, Stella Adler e Harold Clurman.

Assim, fica evidente que o Group representou uma sucessão


imediata às pesquisas da escola de Boleslavski. O que fundamentou
a criação do coletivo foi justamente o desejo de criar uma companhia
de repertório comprometida com a necessidade de fazer um teatro
propriamente estadunidense, no sentido de representar uma imagem
realista dos dilemas do país (sempre sob o enquadramento dramá-
tico), principalmente de seus trabalhadores e imigrantes, origem de
grande parte dos jovens atores que compuseram a primeira forma-
ção do grupo – entre eles Strassberg, emigrado com sua família do
antigo Império Austro Húngaro quando criança. Ainda, o grupo queria
se integrar ao movimento de renovação da dramaturgia estaduniden-
se que desde os anos 1920, ao menos, construía uma tradição teatral
propriamente moderna no país – nas obras de Eugene O´Neill, Elmer
Rice, entre outros – o que passava a exigir atores mais consciente-
mente treinados nas ferramentas de seu ofício.

Assim, do mesmo modo que na Europa do começo do século


XX uma nova dramaturgia trouxe a necessidade de encontrar novas
formas de representação cênica, nos EUA dos anos 1920 e 1930 o
teatro dramático – nesse momento já em concorrência com o cinema
narrativo – necessitava de uma renovação nos modos de representa-
ção. Era necessário, então, acompanhar o nível de progressão formal
que a dramaturgia e a encenação começavam a experienciar, sob o
influxo das correntes modernistas europeias que vinham com os emi-
grados que, a essa altura, procuravam o país como um porto de fuga
do cataclisma da Europa entreguerras – trazendo junto na bagagem
ideias políticas consideradas subversivas, como o anarquismo e o co-
munismo, motivo que levou à criação, na década de 1930, do nosso já
conhecido Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC).

sumário 174
Foi no Group Theatre que, pela primeira vez, o projeto de Boles-
lavski de forjar um modo de representação para o ator estadunidense
ganhou forma e começou a tradição daquilo que foi sendo chamado,
nos EUA, de “Método de interpretação realista”. O início das atividades
do grupo dava conta dessa preocupação. Depois de levantar o dinhei-
ro para a produção de suas primeiras peças, sua equipe de artistas se
refugiou em uma fazenda no interior do estado de Nova Iorque, onde
mergulharam em uma rotina cotidiana de experimentação e prática
nas técnicas do sistema Stanislavskiano – já orientada por Lee Strass-
berg, que assumiu a coordenação dos atores – conforme aprendido
no American Laboratory Theatre. Assim, Strassberg foi o responsável
por estabelecer e unificar a linguagem de interpretação do grupo. Ha-
rold Clurman assumiu a direção artística e o trabalho de encenação e
Cherryl Crawford, a terceira fundadora da companhia, era produtora.
Stella Adler, esposa de Clurman, era integrante do elenco junto com
seu irmão, Luther Adler, ambos oriundos de uma tradicional família de
atores, famosos na comunidade artística judia de Nova Iorque.

O espaço de treinamento e laboratório constante para o aper-


feiçoamento do trabalho dos atores, que se manteve sempre vivo nas
práticas do grupo, garantiu seu sucesso imediato no circuito Off-Broa-
dway. O resultado atingido pelo Group foi tamanho que não demorou
para que Hollywood incorporasse em suas produções os atores do
coletivo, assim como Clifford Odetts, que começou como ator, mas
atingiu um enorme sucesso como figura de ponta da dramaturgia de
cunho social nos EUA à época, após o estrondo que foi a encenação
de Waiting for Lefty (1935), seguida por outros sucessos como Awake
and Sing (1935) e Golden Boy (1937), entre outros. Não foi à toa que,
incapaz de competir com as ofertas de Hollywood, dez anos depois o
Group encerrou suas atividades.

Mas o legado do Group ainda estava vivo no espírito das artes


performáticas no país. O desejo de resgatar um espaço colaborativo de
pesquisa do trabalho do ator, capaz de quebrar a lógica de produção

sumário 175
mecanizada no ambiente de criação dos sets de filmagem foi o que
inspirou a fundação do Actor´s Studio em 1947, pelos ex-membros do
Group Elia Kazan, o ator Robert Lewis e a produtora Cherryl Crawford
– oferecendo para a indústria, com isso, uma reserva de mão de obra
tecnicamente especializada. Como resultado, Hollywood conheceu uma
nova geração de intérpretes que trouxeram para os filmes o mesmo im-
pulso de novidade na interpretação que marcou o teatro dos anos 1930.
E os filmes de Elia Kazan serviram de grande vitrine para a nova técnica.
Nesse momento, porém, o Método já tinha seu histórico estabelecido
sobre formas diversas de compreensão e aplicação do conjunto de prá-
ticas que formavam sua tradição. Práticas com focos tão diversos quan-
to o entendimento de seus professores sobre a técnica. E essas contra-
dições remontam à própria origem do Método, ainda no Group Theatre.

Assim, é possível entender que, mais do que uma técnica unifi-


cadora capaz de produzir de modo quase que automático a adesão de
profissionais sob um mesmo ponto de vista, o Método desde sempre
se estabeleceu como um campo de disputa entre concepções distin-
tas servindo a um mesmo sistema de produção artística. E o motivo
dessa disputa era, grosso modo, o enfoque sobre o trabalho do ator, e
a maneira como isso reverbera e é expresso pela relação direta entre
emancipação profissional dos intérpretes e controle hierárquico de di-
retores e preparadores de elenco.

Harold Clurman, no já citado artigo que abre como epígrafe essa


seção do texto (“The Famous Method”) lança a ideia de que o Método,
nos EUA, seria uma junção do sistema de Stanislavski e suas propos-
tas sobre o poder da imaginação criativa, com as compreensões de
Freud sobre a subjetividade e os limites do inconsciente na formação
da personalidade e do comportamento dos indivíduos. Segundo Clur-
man, essa mistura seria o produto de uma receita tipicamente estadu-
nidense. Não por acaso, alguns dos críticos do Método o relacionavam
diretamente com o pensamento behaviorista que dominava a ideologia
do comportamento no país à época. Isso porque, de acordo com essa

sumário 176
opinião, o Método operaria como uma técnica para “treinar” atores a
reagir de formas pré-determinadas, seguindo estímulos específicos –
como ratos numa caixa de Skinner – ao invés de pensar independen-
temente e atingirem seus objetivos cênicos por conta própria. Assim, a
proposta da receita da junção entre Stanislavski e Freud se justifica por
conta do enfoque cada vez mais comprometido com a exploração da
interioridade dos intérpretes que foi se assumindo como a visão hege-
mônica do Método, em decorrência do sucesso que a técnica atingiu
como meio de trabalho no cinema Hollywoodiano.83

É importante considerar, nessa discussão, a imensa aceitação


que a teoria psicanalítica encontrou nos EUA desde, ao menos, o ano
de 1909, data da primeira visita de Freud ao país, quando ele proferiu
uma série de palestras para médicos e acadêmicos (como podemos ver
em artigo de Eli Zaretsky sobre o histórico da relação dos EUA com a
psicanálise)84. Desde então, as ideias de Freud se alastraram e geraram
frutos com uma rapidez que se deve, em grande parte, à constituição da
crescente cultura de massas do país. Isso porque, em solo estaduniden-
se, a atenção que a teoria psicanalítica tem para com a vida individual foi
de encontro ao desenvolvimento de uma cultura que, paradoxalmente,
ao se destinar para um número cada vez maior de consumidores, forja
uma relação de intimidade, abordando dilemas sociais de forma pessoal
e subjetiva e apelando, inclusive, com o envolvimento emotivo do públi-
co para garantir a identificação desse com seus “produtos”.

Porém, até mesmo essa exploração da vida subjetiva deve ser


olhada de forma dialética. Ela pode ser vista, a princípio, como fruto já
de uma ruptura do trabalho de Freud com a ideia de sujeito vigente na
Europa liberal de fim de século – com sua ênfase vitoriana na virtude,
no trabalho, na formação e manutenção da família e nos “bons costu-
mes”, relegando a satisfação dos desejos do indivíduo para segundo

83 “Já em meados dos anos 1930, divergências e discussões começam a surgir com relação
ao “método” ensinado por Lee Strasberg nos Estados Unidos, principalmente quanto ao
aspecto “behaviorista” e ao caráter de adestramento que tinham ali se transformado na
“única verdade” do sistema de Stanislavski.” CAVALIERI e VÁSSINA, 2011, pg. 212.
84 ZARETSKY, 1997.

sumário 177
plano (ou para debaixo do tapete). Postura que, no decorrer de sua
divulgação e incorporação principalmente nos EUA, foi também coop-
tada e aproveitada em nome de um projeto de educação ideológica do
comportamento. Como explica Zaretsky:
O alcance do significado da vida pessoal, para além e contra
a ênfase do século XIX na família [burguesa], foi expresso em
uma nova forma de cultura – a cultura de massas. Sua ca-
racterística principal era uma aparente capacidade inclusiva.
Refletindo uma característica transformadora do capitalismo
corporativo, a nova forma de cultura idealizou a liberdade indi-
vidual, o consumo de massas e a cooperação. “Dime novels”,
parques de diversão, filmes, o esporte, tudo refletia as tradi-
ções imigrantes e da classe trabalhadora com importantes
elementos democratizantes, mas isso tudo também refletiu a
elaboração de um novo imaginário social, que agia na base
do desejo por uma solução ideal tanto para os problemas pes-
soais quanto para os conflitos sociais: a reconciliação harmo-
niosa desses conflitos em uma esfera imaginária.85

Esse processo, operado pelo desenvolvimento da sociedade


capitalista moderna através da teoria psicanalítica, dá conta de uma
transformação que redefiniu, para o mundo ocidental na primeira me-
tade do século XX, a relação entre os indivíduos e o processo social:
Enquanto os psiquiatras do século XIX focavam no autocontrole,
os terapeutas do início do século XX privilegiavam a catarse e
a liberação. A psicoterapia sancionou a ideia de transcender os
conflitos, especialmente os conflitos sociais, por meio de proces-
sos mentais. Esse processo possibilitou a criação, para a cultura,
de muitos de seus esquemas padrões de auto interpretação86

O próprio desenvolvimento da ideia de um modo de interpreta-


ção realista desde sua origem na Europa acompanhou, mesmo que na
periferia do continente (o império russo) essa mudança de chave que
o mundo ocidental experimentava. Como foi argumentado na seção
anterior, as pesquisas de Stanislavski já davam conta da tentativa de

85 ZARETSKY, 1997, pág. 83 (em tradução livre).


86 Op. Cit.

sumário 178
responder a uma transformação que entrava, no teatro, pela porta da
dramaturgia, mas que noticiava, em uma escala maior, um redimen-
sionamento da relação entre vida individual e processo social (através
de autores como Ibsen, Strindberg, Tcheckhov e Gorki). É importante
considerar que a obra fundadora da teoria psicanalítica, A Interpreta-
ção dos Sonhos, escrita por Freud, foi publicada no mesmo ano que
estreou a montagem do TAM para As Três Irmãs: o ano de 1900. Em
relação às pesquisas de Stanislavski com o sistema, seu ambiente de
trabalho já refletia também os efeitos de todas essas discussões, atra-
vés das abordagens distintas que, imediatamente começaram a surgir
sobre as ideias iniciais do diretor russo – o que faz com que os confli-
tos de abordagem do Método nos EUA nas décadas seguintes sejam
ecos de um debate que se iniciou no próprio ninho da técnica. Não por
acaso, um foco mais psicológico do trabalho do ator tem origem nes-
sas disputas. Nossos já conhecidos Ouspenskaya e Boleslavski, os
artistas responsáveis pela maior divulgação do sistema nos EUA, es-
tavam próximos das ideias de Leopold Sulerzhitski, colaborador direto
de Stanislavski na fundação do Estúdio do Teatro de Arte de Moscou,
ainda nos primeiros anos do século XX.

O Estúdio foi uma espécie de laboratório de pesquisa do sistema


que Stanislavski fundou para continuar suas experimentações com os
membros mais jovens (e portanto, menos resistentes e mais abertos a
experimentações técnicas) de sua companhia, em um espírito que já
preconizava os ideais que insuflariam, anos mais tarde, os coletivos do
American Laboratory Theatre, do Group Theatre e do Actor´s Studio.87
Mesmo entre os membros do primeiro Estúdio era possível perceber
dissidências em relação aos desenvolvimentos da técnica. Foi lá, por

87 No início, a resistência se dava por parte dos atores mais antigos da companhia, figuras trei-
nadas e acostumadas com uma prática mais convencional, e que consideravam excessivas
as preocupações de Stanislavski com a busca de uma expressão mais “realista” do ator em
cena, e a formação de uma nova compreensão do trabalho do intérprete. Esse fato nos faz
reafirmar a necessidade de sempre historicizar todo e qualquer assunto ou técnica, quan-
do falamos em práticas de criação artística. Pois, como estamos exaustivamente tentando
mostrar aqui, mesmo as técnicas de representação derivadas do trabalho de Stanislavski,
já foram também, a seu tempo, uma ruptura com formas mais conservadoras de expressão.

sumário 179
exemplo, que Meyerhold iniciou as inquietações que o levaram, após se
desligar do TAM, a desenvolver suas pesquisas com técnicas como a
biomecânica, na busca de uma expressão mais fortemente exteriorizada
do intérprete, partindo do domínio de seu equipamento físico-sensório,
em uma compreensão quase que atlética do trabalho do ator. Meyerhold
se envolveu na defesa cada vez mais radical de um teatro de representa-
ção simbólica, com inspiração na commedia dell´arte, em detrimento da
pesquisa realista. Foi baseado nesse entendimento que as artes cênicas
e performáticas continuaram a se desenvolver na Rússia pós-revolução,
através das encenações de Meyerhold, sua parceria com Maiakovski, e
no trabalho do próprio Teatro de Arte de Moscou, então sob a direção
de Eugene Vakhtangov, outro ex-aluno de Stanislavski – assim como no
cinema de realizadores como Eisenstein e Pudovkin – mas, foi também
por conta do comprometimento de sua visão de teatro em relação com
a política que Meyerhold foi executado por Stalin em 1940.

Sulerzhistski, por sua vez, engendrou pesquisas do sistema com-


binado a técnicas orientais de meditação e relaxamento de práticas
como o yoga, as quais apresentou a Stanislavski. Alguns comentadores
disseram depois que tanto ele quanto Stanislavski eram no momento
(ainda nos primeiríssimos anos do século XX) politicamente mais parti-
dários de correntes de pensamento que pregavam a transformação da
sociedade russa através de um ideal de “regeneração” do espírito do
povo (logo, de caráter mais idealista, conectada com as tradições nacio-
nais) em oposição aos crescentes ideais revolucionários representados
pela figura e o discurso de Lenin.88 Assim, os experimentos propostos
pela dupla Stanislavski-Sulerzhitski nesse momento específico levaram

88 “Stanislavsky respondeu aos sinais dos tempos com extraordinária consistência e cora-
gem. Ele engendrou a cooperação de artistas de vanguarda (Gordon Craig, Benoit) e por
si próprio também desenhou cenários surrealistas e visionários. Em colaboração com Su-
lerzhitski, discípulo de Tolstói (que injetou vários elementos do tolstoísmo nas ideias de
Stanislavski), e com Meyerhold, que havia cortado suas relações com o Teatro de Arte de
Moscou alguns anos antes por causa de sua aversão ao naturalismo, Stanislavski fundou
vários estúdios experimentais. Nessa época, Stanislavski também sofreu influências do mis-
ticismo indiano, então em voga na Rússia, com efeitos importantes em sua metodologia de
atuação. (...) Interpretar, ele então acreditava, não era apenas uma imitação da realidade,
mas uma penetração na esfera do subconsciente, o que se tornava possível apenas em um
ambiente autêntico, em uma situação concreta.” RUEHLE, 1959, págs. 12 e 13.

sumário 180
a uma tendência crescente de mergulho na interioridade do intérprete.89
É talvez esse estágio das pesquisas de Stanislavski com o sistema que
influenciou Boleslavski e, por consequência, seus primeiros discípulos
nos EUA. Essa tendência, de forma um pouco mais radical e polêmica,
é a base que fundamenta o trabalho de Lee Strassberg.

Seguindo o intuito radical de atingir uma ideia o mais próxima


possível da realidade através da expressão íntima do ator, em função da
personagem e capturada pelo enquadramento do palco ou da câmera,
Strassberg focou o seu método de trabalho na exploração do concei-
to de memória emotiva. Essa noção, cuja abordagem Stanislavski se
ocupa mais longamente no primeiro livro que apresenta seu sistema de
trabalho (A Preparação do Ator) trata de um mergulho do intérprete na
relação intrínseca entre sua vida emotiva e as memórias pessoais que
foram, ao longo de sua trajetória individual, constituindo a sua relação
específica com a expressão dessa emotividade. Segundo essa ideia,
as memórias pessoais do ator servem como porta de entrada para sua
vida sentimental. Uma porta que, uma vez aberta, permite que encontre-
mos as mais diversas emoções, nos mais variados graus de profundi-
dade. Para isso, um outro conceito-chave da visão de Strassberg sobre
o trabalho do ator é a ideia de substituição. Ou seja, no processo de
construção de uma personagem, o intérprete deve, para “se colocar na
pele” do papel, substituir os conflitos e angústias da personagem por
angústias e conflitos pessoais seus, cuja exposição e rememoração
tem como efeito os resultados almejados por si e pela direção, no ato
da representação: em outras palavras, a expressão exterior de emo-
ções, reações sentimentais e outros estados interiores.90

89 “Todo o trabalho que executamos em nós mesmos e em nossos papeis visa a preparar o
terreno para dar início e crescimento a paixões vivas e à inspiração, que jaz adormecida
no reino do superconsciente. Há quem acredite que a inspiração vem espontaneamente,
independente do que faça o ator, e que ela mesmo fornece o seu próprio estado interior
criativo. Mas a inspiração é uma criatura caprichosa. Só consente em aparecer dentro de
circunstâncias preparadas; e qualquer desvio delas a assusta e faz esconder-se, refugian-
do-se nos recessos do superconsciente.” STANISLAVSKI, 2002, pg. 105.
90 Sobre o conceito de substituição e o uso da memória emotiva por Strasberg, conferir em
GORDON, 2010, pág. 53.

sumário 181
Um famoso exercício de Strassberg ilustra bem essa concepção
– assim como a tendência algo “psicoterapêutica” reconhecida por
Clurman no trabalho do diretor. Conhecido como “quarto da infância”,
trata-se de um laboratório onde o intérprete realiza um mergulho nas
suas memórias mais antigas através de uma atualização do cômo-
do onde passou sua infância. Via de regra, a operação era sempre
a mesma: Strassberg propunha um ambiente intimista, geralmente
com poucas luzes e silêncio absoluto. Então, depois de uma etapa de
concentração e relaxamento físico e sensório, o intérprete assumia a
posição central no palco ou na sala de ensaio e, com objetos trazidos
previamente de casa, montava no espaço uma réplica do seu quarto
da infância tal como guarda em sua memória, e tal como se lembra
também, se ocupa em reproduzir ações e relações que constituíam
o cotidiano de sua infância no ambiente imaginado. O exercício não
tinha a princípio uma duração pré-determinada, e o tempo de sua exe-
cução se estendia tanto quanto o intérprete continuasse encontrando
e expressando materiais novos e a prática continuasse ativa. Quem
determinava a duração, assim como conduzia o intérprete através de
uma série de perguntas e respostas como estímulo para a reação da
figura em cena, era o preparador de elenco que, oculto nas sombras
da sala de ensaio, servia como uma espécie de farol para o intérprete
à deriva no oceano tempestuoso de suas memórias indomadas.91

Essa tendência psicologizante da concepção de Strassberg já


era evidente desde seu trabalho no Group Theatre nos anos 1930, sen-
do motivo de conflitos com diversos outros membros do grupo que,
incapazes de se entregar tão profunda e abertamente quanto o pre-
parador exigia, assim como incapazes também de carregar toda essa
emotividade para seu trabalho em cena, discordavam dos métodos
do diretor. Dentre esses membros, estava Stella Adler, que estranhava
a abordagem de seu colega de grupo. Movida por essa discordância,

91 Mais sobre a importância dessa pesquisa de Strassberg com o que passou a ser cha-
mado de “private moment”, ou “momento privado”, no trabalho do ator, pode ser lido em
GARFIELD, David, A Player´s Place – The story of the Actor´s Studio,1980, Nova Iorque:
Macmillan Publishing.

sumário 182
durante sua passagem por Paris em 1934 ela procurou Stanislavski
em pessoa para que ele pudesse ajudá-la. Stella Adler dizia que, por
conta do sistema, havia se transformado em uma má atriz que “não
sabia mais atuar”. Ao que um já idoso e doente Stanislavski (conforme
ele escreveu em seu diário) convidou-a para realizar uma semana de
treinamento intensivo em seu apartamento, nem que fosse para “re-
cuperar a reputação” de seu nome e seu trabalho perante o mundo.92

Durante essa semana de treinamento, Stella Adler entrou em con-


tato com as ideias mais correntes do mestre russo sobre o conceito de
ação física e o foco cada vez mais evidente para Stanislavski no trabalho
de desenvolvimento da imaginação do ator em torno da compreensão
das circunstâncias dadas – em detrimento da ideia da exploração da
vida sentimental do intérprete, através do trabalho com a memória emo-
tiva, etapa anterior de sua pesquisa. Desse encontro, originou-se uma
verdadeira cisão entre as ideias de Strassberg e Stella Adler, quando do
retorno dela de Paris e sua exposição, perante os demais membros do
Group, dos “equívocos” de Strassberg em relação ao sistema de Stanis-
lavski. A cisão entre Strassberg e Adler reverberou imediatamente nos
atores do grupo – dentre eles o ainda jovem Elia Kazan – e levou Strass-
berg a perder cada vez mais espaço e voz de comando, até se desligar
do coletivo. Esse evento gerou, para as próximas décadas, um histórico
de discordâncias a respeito da abordagem do Método.93

Depois da dissolução do Group Theatre, Adler foi também


se focando cada vez mais na prática formativa de atores. Nos anos

92 Essa passagem é descrita por Stanislavski em seu livro Minha Vida na Arte, espécie de
autobiografia do diretor.
93 “(…) é preciso fazer uma distinção entre o [Actor´s] Studio e o Group Theatre (...) Em
anos posteriores Strassberg tirou a ênfase da base política do Método e, como muitos
‘Stanislavskianos’ sempre desvalorizou performances com registros alternativos, mais
propensos ao cômico, ou ao modernista (...). Ainda, sua abordagem quase que analítica
em direção à intimidade dos atores era diferente do foco que o Group Theatre colocava
no conjunto e na relação entre os atores enquanto indivíduos e a sociedade como um
todo” NAREMORE, 1988, pg. 199. Podemos assim reafirmar a tendência que o Group,
enquanto coletivo, tinha de abordar o Método mais como um estudo de uma “psicologia
social” (relembrando o termo de Harold Clurman), do que uma exploração da psicologia
individual das personagens e dos intérpretes.

sumário 183
1940, foi professora no Dramatic Workshop, escola fundada por Erwin
Piscator, então emigrado nos EUA, e ligada à New School for Social
Research, uma instituição de ensino superior privada que reunia, à
época, professores comprometidos com uma visão mais progressis-
ta de educação e sociedade (não podemos esquecer que Piscator foi
o diretor que lançou as bases de fundação da ideia de um teatro épi-
co na Alemanha dos anos 1920.) Posteriormente, Stella Adler fundou
a sua própria escola de formação de atores, a Stella Adler Studio of
Acting, em funcionamento até hoje em Nova Iorque. Porém, foi ainda
no Dramatic Workshop que ela se tornou “mestra” de um jovem ator
que se tornaria, a partir do final da década de 1940, uma das figuras
mais importantes para a divulgação do Método: Marlon Brando.

Assim, a tradição do Método foi se construindo sobre um ba-


lanço constante entre as diversas concepções da técnica, oferecen-
do um ambiente de formação de atores que se estabeleceu através
do aproveitamento paradoxal do que cada professor tinha a oferecer.
Uma das figuras mais essenciais para entendermos esse processo
diverso de constituição do repertório da técnica é, justamente, Elia
Kazan. Isso é evidente, por exemplo, no fato de Kazan ter convidado
Strassberg para assumir a direção artística do Actor´s Studio, mes-
mo tendo uma prática de condução do trabalho do intérprete mais
afinado com as ideias de Adler – a respeito da construção objetiva e
exterior da personagem, através das relações estabelecidas em cena
entre os atores na dinâmica de ação e reação criada no processo de
improvisação e jogo de cena, assim como na utilização do espaço
e dos objetos. Porém, Kazan sabia que, se a concepção de Adler
garante ao ator uma consciência e um domínio maior de seu ofício,
capaz de estabelecer uma relação dinâmica de trabalho colabora-
tivo entre atores e direção, os resultados da preparação conduzida
por Strassberg ofereciam para o cinema um potencial novo e mais
intenso de expressão da emotividade. O que, para uma forma tão
comprometida com a ideia de identificação e simpatia imediata e ir-
restrita do público pelas figuras em cena, tornou-se um prato cheio.

sumário 184
Assim como um facilitador para que o intérprete pudesse encontrar,
com mais rapidez, o melhor momento de expressão a ser capturado
em detalhes pela câmera e aproveitado pelo diretor na montagem.94

Ainda, é preciso adicionar a esse cenário de disputas a lem-


brança de que o momento de criação do Actor´s Studio não era o
mesmo dos “ferventes” anos 1930, período de atividades do Group
Theatre. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, toda a conjuntura
política e social dos EUA era outra, assim como eram outras também
as forças atuantes tanto na opinião pública como no sistema de pro-
dução da indústria cultural do país, em um conflito que deixaria sua
marca de forma inquestionável, como já vimos, com a instauração
do Macartismo. Zaretsky, no ensaio citado acima, comenta o papel
fundamental que o uso da teoria psicanalítica cumpriu como arma na
guerra ideológica empreendida no período (anos 1950):
Mais uma vez o papel dos EUA, para onde quase todos os imi-
grantes se mudaram, foi crucial. Durante a Guerra Fria as ideias
psicanalíticas impregnaram a cultura. Seus praticantes influen-
ciaram uma vasta rede de organizações paralelas e atividades,
incluindo terapias, avaliações, educação, quadros de traba-
lhadores, religião e a lei, especialmente em novos assuntos
como os cuidados com a juventude e as relações domésticas.
A integração da análise dentro de um Sistema de disciplinas
e conhecimentos era inseparável da insistência Macartista no
‘American way of life’. (...) Porém, essa nunca foi toda a história,
mesmo nos anos 1950; Freud continuou a figurar como uma re-
ferência de possibilidades transformadoras em trabalhos como
Eros and Civilization, de Herbert Marcuse (1955) e Life Against
Death, de Norman O. Brown (1959), ambos motivados pelo que

94 Outras concepções da técnica de representação realista foram se estabelecendo também


como “métodos” e propostas de treinamento independentes. Por exemplo, o trabalho de
Mikhail Checkov, sobrinho do dramaturgo Anton Tchekhov e autor do livro Para o Ator,
muito influente nos EUA. Assim como Sanford Meisner, também ator do Group Theatre e
criador de um método próprio de trabalho que leva seu nome, e que se encontra muito
em voga hoje em dia na oferta de oficinas e cursos rápidos de teatro e interpretação para
câmera. Essa tendência se espalhou pelo espaço e pelo tempo, e hoje podemos reco-
nhecer no famoso Método Fátima Toledo, hegemônico nas produções cinematográficas
brasileiras desde o período da Retomada, um braço distante da concepção de Strasberg
de naturalismo para a cena. Não por acaso, esse método se popularizou oferecendo uma
formação para atores e não-atores sob o slogan “Transforme sua dor em estética” ...

sumário 185
Brown chamou de ‘a aposentadoria das categorias políticas que
formaram o pensamento e a ação liberal nos anos 1930’95

Mais uma vez, percebemos que o desenvolvimento do Método


enquanto técnica, assim como sua abordagem e utilização no proces-
so de produção artística, se encontrava diretamente afinado com o
embate ideológico que o país enfrentava, sendo mesmo atravessado
e moldado, de certa forma, por esse embate.

Para ilustrar melhor os efeitos que essa relação paradoxal e,


por assim dizer, dialética entre as diversas formas de compreensão
da técnica gerou para o ambiente de produção do teatro e do cinema
nos EUA, podemos tomar como exemplo uma cena de “Um Bonde
Chamado Desejo”, de Tennessee Williams, obra que se tornou para-
digmática na adoção da técnica.

De acordo com a ideia mais comum que temos sobre o Método


(ligada à concepção de Strassberg), se no auge de seu delírio e no
ponto máximo de confronto com seu cunhado, Blanche Dubois deve
se desesperar, chorar e gritar alucinadamente como forma de tentar
resistir à investida de Stanley e consequentemente ao estupro, a atriz
que a interpreta deve pesquisar profundamente sua subjetividade, com
base na situação dada pela cena. Cabe a ela procurar, no processo
de ensaios, qual memória pessoal ela vai se utilizar para “substituir”
pelas condições em que Blanche Dubois se encontra – rememorando
e por assim dizer revisitando uma lembrança específica de sua vida
pessoal, por exemplo, quando foi perseguida por alguém na rua, ou de
fato abusada sexualmente – e assim atingir o resultado de expressão
objetivado em cena. E cabe ao diretor ou ao preparador de elenco con-
duzir a intérprete, deixando-a totalmente entregue a esse processo de
descobertas, de modo a quebrar as barreiras racionais que a impedi-
riam de abrir as portas certas em sua subjetividade e iluminar os quar-
tos necessários – espaços que permaneceriam, do contrário, escuros

95 ZARETSKY, 1997, págs. 87-88.

sumário 186
e escondidos na memória mais profunda, mantendo inacessíveis tam-
bém as respostas emocionais mais intensas, logo, mais desejáveis.

Segundo a crença de Strassberg (ecoando uma ideia de Sta-


nislavski sobre o sistema como um todo) esse processo é gradual e
cumulativo: uma vez que um intérprete descobre memórias e lugares
ocultos de sua subjetividade, ele aprende o caminho para acessá-las
novamente quando for necessário em outros trabalhos. Logo, esse
processo se torna imensamente produtivo e eficaz para um profis-
sional inserido em um esquema de produção cinematográfica com
velocidade quase industrial. O lado perverso dessa dinâmica – além
da óbvia superexposição da personalidade do intérprete e sua alie-
nação em relação ao domínio consciente de seu aparelho expressivo,
e por assim dizer, de suas ações – é que, ao final, o público não verá
em cena um resultado capaz de oferecer a mínima noção distintiva de
onde termina a atriz e onde começa Blanche Dubois, ou vice-e-versa.
Antes, assistirá à expressão mais verdadeira e profunda o possível de
uma mulher em desespero correndo de seu abusador, e caindo inevi-
tavelmente no domínio desse. Com isso, perde-se a noção distintiva
entre ator e personagem e facilita-se, por sua vez, a identificação
imediata e absoluta da personagem com o público.

Isso nos leva à pergunta: o que acontece quando todo o pro-


cesso de identificação irrestrita entre personagem e público, discutido
acima, acontece com Stanley, o abusador, ao invés de com Blanche,
a vítima? É importante ressaltar, para melhor elucidar esse exemplo
que, na prática, tanto Jessica Tandy quanto Vivien Leigh (que repre-
sentaram Blanche na versão teatral e cinematográfica) eram inglesas,
logo vindas de uma tradição de intérpretes um pouco mais conven-
cional, e por assim dizer “fria”, menos comprometida com o objetivo
de atingir uma representação mais naturalizada, ligada com a expres-
são pessoal da atriz. Ao contrário de Marlon Brando, que interpretou
Stanley Kowalski em ambas as versões da obra.

sumário 187
Sob os efeitos da identificação e da catarse, estamos no âmbito
da expressão e manipulação de estados emotivos em abstrato, desco-
nectados, a princípio, das condicionantes objetivas de cada persona-
gem em cada situação. Assim, se a figura de um intérprete torna-se tão
verdadeira, magnética e, por assim dizer, mais “humana” do que outras
diante dos olhos do espectador, o trabalho do ator passa a oferecer
uma capacidade de identificação idealmente absoluta com o público,
seja em qual personagem e em qual situação for. E, de certa forma, a
obra perde o controle sobre esse processo de identificação. Ou, por
outro lado – e se entendemos que o mundo da subjetividade também
é regido por condicionantes históricas e, por assim dizer, objetivas – a
obra passa então a operar esse processo de forma mais perversa e au-
toritária, algo manipuladora, conduzindo o público, de maneira quase
que irracional, a identificar-se com quem quer que seja sem que se dê
conta do processo que está experienciando (assim como o preparador
de elenco é capaz de fazer ao conduzir o intérprete em seu processo
de pesquisa, manipulando, com suas orientações e sem a resistência
desse último, a expressão de sua emotividade e vida subjetiva).

É esse processo dialético e que pode beirar a perversão que


Harold Clurman também aborda, ao se utilizar desse mesmo exemplo
da relação entre Stanley Kowalski e Marlon Brando para apontar um
certo limite, ou contradição, inerente ao uso do Método – uma espé-
cie de “paradoxo” da técnica: o problema do trabalho de Brando em
“Um Bonde Chamado Desejo”, segundo Clurman, seria o fato de ser
tão bem sucedido a ponto de nos fazer, em determinado momento,
torcer pelo abusador ao invés de se revoltar contra ele junto com a
abusada96. Isso porque a operação de identificação e deslumbre com

96 “Para um alarmante número de jovens atores, Kowalski era Brando e Brando era incrível!
O fato de que Kowalski era largamente um crápula que assustava mais do que fascinava o
próprio autor – a peça pretendia mostrar que, caso não fôssemos cuidadosos, tais crápu-
las poderiam vir a dominar a nossa sociedade – esse fato escapou à horda de imitadores
de Brando. Eles colocaram em uma mesma escala o cara durão, o aspecto delinquente
da caracterização, com uma negligência, uma rebeldia, uma “liberdade” e um senso de
força bruta que a performance parecia a eles simbolizar. Através disso, eles achavam
combinado um ideal inconsciente: forte poder criativo na atuação com uma revolta cega
contra todas as formas de conformidade na vida e no palco.” CLURMAN, 1974, pg. 79.

sumário 188
o magnetismo que o trabalho do ator nos exerce é tão forte que, ao
fim, todos desejaríamos de certa forma estar, como Stanley, subju-
gando a arrogância impertinente e elitista de Blanche através da cena
do estupro; ou ser, como Blanche, dominada nos braços de Marlon
Brando. Ou, dialética e paradoxalmente, ocupando ambos os lugares
da relação de força que se estabelece em cena – e, o que é pior, in-
conscientes de como fomos envolvidos nesse processo de identifica-
ção que nos coloca em tal posição. Logo, incapazes de nos distanciar
(tomando de empréstimo o termo brechtiano) da situação encenada
pelo drama e, com isso, reconhecer os limites e contradições dessa si-
tuação, adquirindo um novo grau de consciência sobre ela. Em outras
palavras, esse uso irrestrito do poder de identificação impediria não só
a emancipação do intérprete enquanto profissional, mas também do
público – e, no limite, essa emancipação em relação ao domínio que
a obra exerce leva à esfera de uma emancipação de ordem política.

Imagem 34 e 35 – Marlon Brando como Stanley Kowalski, em


dois momentos de “Um Bonde Chamado Desejo”: com Jessica
Tandy na montagem teatral de 1947 (Imagem 34 à esquerda)
e com Vivien Leigh na adaptação cinematográfica de 1951
(Imagem 35 à direita), ambas dirigidas por Elia Kazan

sumário 189
Recuperando, porém, a citação de Brecht sobre as conquistas
do trabalho de Stanislavski em relação à simpatia provocada pelo des-
tino de personagens de origem proletária, a identificação possível do
público com Stanley é a vitória do protagonismo de um imigrante po-
lonês trabalhador de uma fábrica em Nova Orleans sobre uma mulher
oriunda da aristocracia rural branca do sul estadunidense (e se torna
essencial considerar aqui que o acento britânico da interpretação de
Jessica Tandy e Vivien Leigh deixa essa expressão aristocrática ainda
mais evidente). E Leigh, não devemos esquecer, estava marcada para
sempre no imaginário do púbco como Scarlet O´Hara, heroína do épico
sulista “E o Vento Levou...”, que foi um sucesso arrebatador de público
e crítica dez anos antes...97 A própria situação de falência de Blanche,
e sua dependência material da hospitalidade da irmã no cortiço onde
mora com o cunhado, já a coloca nessa relação “desprotegida”, tor-
nando-a presa fácil tanto para a manipulação de Stanley no seu jogo
de desmascarar a falsidade por trás de suas afetações, quanto para o
desejo de “desforra” de um público em relação às suas elites históricas.

Essa relação imediata entre a representação da figura proletá-


ria na tela e a identificação do público é mais um resultado do suces-
so do trabalho do Método. E isso se dá em duas instâncias: primeiro,
por conta da potencialidade de permitir ao intérprete um encontro
produtivo com suas capacidades enquanto ator, através mesmo da
consciência das características específicas de sua expressão pes-
soal, em consonância com suas origens – lembrando aqui, mais uma
vez, a ideia de ancoramento do sistema de Stanislavski no complexo
cultural dos próprios intérpretes, no mais das vezes os atores que
integraram essa espécie de “geração heroica” do Método eram de
origem imigrante e proletária; e segundo, pela capacidade do grande
público consumidor do cinema (enquanto meio de cultura de mas-
sas) se ver cada vez mais representado nas telas.

97 Gone With the Wind, Victor Fleming, 1940, EUA.

sumário 190
Ainda que o Método tenha entrado de vez no cinema de Holly-
wood apenas na passagem dos anos 1940 para os 1950, a adoção da
fala através do som no início dos anos 1930 já revelou a capacidade
do cinema de ampliar a imagem que um país possuía de si próprio, ou
transmitia de si para o mundo. Enquanto a comunicação gestual cor-
rente no cinema mudo era baseada (como já foi mostrado através da
pantomima) na execução de um repertório físico pré-determinado que
facilitava a construção de estereótipos conhecidos, o som revelou para
as plateias mais distintas os mais diferentes sotaques e modos de falar
que compõem a diversidade da expressão verbal no país, revelando a
influência inequívoca do uso do idioma por ex-escravos negros e imi-
grantes europeus na constituição geral da língua falada nas ruas das
grandes cidades. Levando em consideração o tamanho e a complexi-
dade de um país como os EUA, podemos entender certo caráter demo-
crático que sempre foi conferido ao cinema por registrar a existência e
garantir a reprodução das mais diversas formas de expressão através
das novas estrelas de cinema que surgiram a partir dos anos 1930.98

Assim, compreendemos como o estabelecimento do Método,


capaz de naturalizar uma expressão cênica mais de acordo com a
origem dos intérpretes, não seria algo incomum de acontecer no
desenvolvimento do sistema produtivo de Hollywood, servindo, pelo
contrário, como uma luva para os objetivos da indústria diante das
grandes massas que surgiam como público em potencial para ser
conquistado para seus filmes. O crítico Michael Denning também co-
menta o papel essencial que a origem popular das grandes estrelas

98 Vale sempre ressaltar, no entanto, que essa representatividade não pode ser nunca
entendida de forma generalizada, sendo evidente o reconhecimento dos limites do ci-
nema hollywoodiano ao tentar abordar, de forma mais radical, os conflitos estruturantes
da organização social dos EUA. Afinal de contas, nem Stanley Kowalski nem Marlon
Brando são, por exemplo, negros, latinos ou asiáticos, o que nos faz pensar na política
de segregação racial que engrossa o caldo do cenário da luta de classes na socieda-
de estadunidense. Porém, discutir a abrangência do Método em relação à inserção e
consequente possibilidade de construção da identificação do público com persona-
gens de um espectro étnico-racial que fuja ao padrão branco europeu demandaria um
aprofundamento bem maior do que cabe, por ora, nos limites desse livro, ficando como
sugestão para uma continuidade dessa discussão, em um outro momento.

sumário 191
surgidas nessa década teve para estabelecer a adesão das massas
aos novos produtos da indústria cinematográfica – figuras como Ja-
mes Cagney ou John Garfield, com suas feições características e seu
modo de falar e agir mais colado com o cotidiano das classes trabalha-
doras. O mesmo papel que, nos anos 1950, facilitou a adesão do pú-
blico a atores como James Dean, Montgomery Clift ou Marlon Brando.

Depois do sucesso arrebatador de Stanley Kowalski, suficiente


para garantir ao seu intérprete um lugar de destaque no interesse das
grandes produções de Hollywood, Brando não opta por trilhar o cami-
nho tradicional que o levaria a interpretar as figuras clássicas da tra-
dição dramática.99 Sua opção por Hollywood ao invés da Broadway,
assim como pela novíssima dramaturgia estadunidense ao invés dos
grandes clássicos do teatro, reflete um movimento de renovação do
imaginário cultural do país. Como diria James Naremore: “Ele [Bran-
do] é um momento decisivo no cinema estadunidense, um desses
atores que representam um tipo com tanta força que seu trabalho se
torna um aspecto persistente de sua cultura.”100

Ao se retirar para as telas do cinema, Brando segue esse mo-


vimento buscando assim novos personagens que uma nova tradição
estava formulando. E essa tradição, como estamos vendo até então,
baseia-se no estabelecimento de um repertório dramático construído
a partir da elaboração da experiência da classe trabalhadora do país,
inaugurando uma espécie de novo cânone de grandes personagens
do cinema. Em “Sindicato de Ladrões”, Terry Malloy cria uma espécie
de “tipo” que se tornaria um modelo a ser reproduzido e atualiza-
do por novos atores de Hollywood durante as próximas décadas.

99 “Quando rejeitou a capa preta de Hamlet e o verso dramático pela jaqueta de couro e
o balbucio feroz de seus mais famosos personagens nas telas, Brando deixou para trás
uma tradição de mais de três séculos, em que um sério candidato pelo posto de “maior
ator vivo” era testado nos maiores papéis do repertório dramático. Ao escolher trabalhar
em Hollywood não apenas pelos grandes salários (motivo que arrastou atores para o
Oeste por décadas) mas também pelas oportunidades artísticas e impacto social dos
filmes, Brando fez mais do que qualquer outro ator para legitimar a atuação no cinema”.
JONES, 1986, pg. 168.
100 NAREMORE, 1988, pg. 205.

sumário 192
Um personagem que expressa, em sua trajetória, uma postura e um
anseio típicos de toda uma geração, tanto de espectadores quanto
de artistas, que tinham em comum a experiência de tentar viver na
contramão de uma cultura direcionada pelo lucro, pelo sucesso pes-
soal espontâneo e pela exigência de seguir as regras de um sistema
desigual, perverso e persecutório.101

Porém, se nos anos 1930 a expressão estética da classe artís-


tica plasmou-se através de um sentido de potência de ação coletiva
como forma de resistência, nos anos 1950 o sentimento de impotência,
dúvida e desorientação de Terry Malloy expressam um testemunho di-
ferente, conferindo uma outra profundidade para o tipo representado.
Assim, é talvez a constatação da possível falência de um projeto cole-
tivo, e o desejo de renúncia à aceitação passiva desse destino, o que
pode estar por trás da famosa fala de Terry para seu irmão Charley:
“Você não entende! Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um
competidor, eu poderia ter sido alguém, ao invés de um vagabundo,
que é o que eu sou, vamos encarar isso.”102

c) Kazan na beira do cais: entre a liberdade


do trabalho colaborativo e o controle
da autonomia de ação

O trabalho de direção é total. O diretor determina tudo. Cada


escolha que você faz, acredite ou não, é igualmente importante.
É você quem deve fazer as decisões básicas, porém, elas não

101 Naremore propõe uma espécie de linhagem de influência de Brando-Malloy no repertório


cinematográfico de Hollywood para as décadas seguintes: “É difícil imaginar [Paul] Ne-
wman em “Um De Nós Morrerá” (The Left-Handed Gun, 1958), [Warren] Beatty in “O Anjo
Violento” (All Fall Down, 1962), [Al] Pacino em “Serpico” (1973), [Silvester] Stallone em
“Rocky: Um Lutador” (Rocky, 1976), [John] Travolta em “Os Embalos de Sábado à Noite”
(Saturday Night Fever, 1977) [Richard] Gere em “Irmãos de Sangue” (Bloodbrothers, 1978)
ou de fato qualquer outro sex symbol proletário Hollywoodiano até os dias de hoje (um
exemplo mais recente é Sean Penn em “Caminhos Violentos”, ou At Close Range, 1985)
sem nos lembramos de Brando nesse papel”. Op. Cit. Pg. 205.
102 “You don´t understand! I coulda had class, I coulda been a contender, I coulda been so-
mebody, instead of a bum, which is what I am, let´s face it.”

sumário 193
devem, e geralmente não são realizadas só por você. Outros
artistas, os quais você escolheu, os quais você guia, irão te aju-
dar a solucionar os problemas que você não consegue. Mas
você deve saber o suficiente para apontar na direção precisa,
para ser capaz de fazer as perguntas certas. Você deve saber o
básico de cada ofício, o bastante para guiar e determinar – ou
seja, para dirigir – esse processo tão multifacetado.103

Tendo encontrado o ponto de flexão entre a expressão técnica


(através do desenvolvimento do Método) e a experiência histórica, po-
demos focar novamente nosso olhar na análise do filme para ver como
essa relação se manifesta na obra.

Já discutimos aqui o diálogo conflituoso entre os artistas e o


sistema de produção, ou mesmo os embates na relação entre realiza-
dores, que se viam tendo que trabalhar através de uma dinâmica de
avanço e concessão que, muitas vezes, conjugou progresso e regres-
são formal em suas obras. É dessa forma que identificamos as marcas
dessa relação na própria fatura de “Sindicato de Ladrões”: através de
uma multiplicidade de pontos de vista que, por vezes, torna difícil a
apreensão da tese defendida pelo filme, não progredindo de modo uni-
lateral, antes gerando contradições internas – que, no seu limite, podem
marcar até mesmo o final, onde o suposto êxito de Terry, o protagonis-
ta, é colocado em xeque pelo próprio conjunto da cena. Da mesma
forma, viemos reconhecendo que esse registro se junta também com
uma representação do protagonista como alguém sempre deslocado
nos ambientes onde circula, uma figura em constante conflito com os
coletivos ao seu redor. Ainda, alguém que não possui muito domínio
ou consciência do processo que empreende. Como se a estrutura do
filme, de certa forma, “desautorizasse” o protagonista. Dessa forma,
ele necessita do apoio que encontra nas figuras de Edie e depois Pa-
dre Barry, para conduzi-lo no processo de romper com Jhonny Friendly
e, por consequência, com seu próprio irmão, Charley. Ao fim, o que
estamos percebendo é que o campo de disputas ideológicas que se

103 KAZAN, 2009, pg. 255.

sumário 194
encontra desde o projeto de realização desse filme em particular, atra-
vés da cisão entre as posturas antagônicas dos artistas perante o Ma-
cartismo, pode também marcar a expressão e desenvolvimento técnico
de toda a geração de artistas na qual seus realizadores se inserem.

Qual a relação existente entre a confiança bruta e manipulado-


ra de Stanley Kowalski (conforme discutimos acima) e a rebeldia in-
consciente e angustiada de Terry Malloy? Entre a expressão das duas
figuras, há uma transição que sofre influência de diversos fatores. Por
exemplo, o ambiente de relações estabelecidos no enredo de ambos
os filmes. Stanley está mais próximo de um antagonista ao subjugar
Blanche, sua vítima e representante falida do polo oposto ao qual ele
se encontra no esquema social da luta de classes; Terry, ao contrário, é
o protagonista, e parte integrante de um ambiente onde as relações de
opressão e submissão acontecem de certa forma “entre iguais”, sendo
o cais um reduto de imigrantes e trabalhadores onde os representantes
do dinheiro e do poder (como os donos dos transatlânticos ou mesmo
a lei do Estado) não aparecem. Ao mesmo tempo, Stanley age por in-
teresses próprios em um processo de trazer à tona os segredos escon-
didos pelo delírio de Blanche, e que dizem respeito à herança devida
à sua esposa, Stella. Terry, também movido por um estímulo pessoal
relacionado ao afeto que sente por Edie, luta para conseguir expor a
verdade que conhece sobre os negócios escusos que se escondem
sob o código de silêncio do cais. Stanley não precisa de ajuda externa
para agir, mas pressiona Stella e manipula Blanche, ou mesmo Mitch,
para atingir seus objetivos. Terry, ao contrário, quer agir, mas não sabe
como, necessitando de Edie e, principalmente, do Padre Barry para
guiar suas ações e, de certa forma, “usá-lo” como peça essencial para
o processo de desmanche do poder de Jhonny Friendly no cais.

Em comum, os dois personagens têm a execução do trabalho


de Marlon Brando construindo sua expressão de forma medida e sis-
temática. Tanto a impulsividade de Stanley quanto a inocência de Terry
não são frutos do acaso, mas forjadas em um processo de elaboração
detalhado e dinâmico através da relação entre os artistas envolvidos

sumário 195
no ambiente de produção e filmagem (ainda, as filmagens de “Um
Bonde...” carregam consigo o histórico da relação entre seus artistas
desde a montagem teatral da obra na Broadway, que estreou quatro
anos antes da produção do filme). Porém, esse ambiente de relações
não é o mesmo no período entre a produção das duas obras.

Se em 1951 Kazan estava no auge do sucesso, acolhido como


uma figura de destaque entre os membros de sua classe, em 1954
ele havia sido, como vimos, relegado ao mesmo tempo à condição de
traidor entre seus colegas de trabalho (Brando entre eles), e pária entre
aqueles que, com sua colaboração à HUAC, ele pensou que agradaria.
Assim, entre a unanimidade do sucesso de “Um Bonde Chamado De-
sejo” e a polêmica sobre “Sindicato de Ladrões” existe a conflagração
de um conflito interno na classe artística, situação que como estamos
argumentando desde a introdução desse trabalho, se deve de imediato
ao testemunho de Kazan perante a HUAC e, em linhas mais gerais, ao
quadro de desmobilização do sentimento de classe operado pelo Ma-
cartismo. Essa relação de desentendimento “entre iguais” – conforme
reconhecida no parágrafo acima sobre os conflitos de Terry Malloy com
a máfia de Jhonny Friendly – marca de forma decisiva a fatura do filme.
Ainda, nos ajuda a redimensionar a expressão daquele desejo de trans-
formação dos laços de coletividade, ou dos pactos sociais de classe,
que seria expresso pela simbologia do casamento e da formação de um
novo laço familiar na relação entre Terry e Edie (identificado na primeira
sessão desse capítulo com uma ideia de “realinhamento” de classe).

Nesse momento, para seguir identificando de que forma o filme


se relaciona com os conflitos que marcaram a experiência da classe
artística no período, ao mesmo tempo que se insere na trajetória de
desenvolvimento do Método, devemos olhar para como a técnica é
utilizada no processo de elaboração e criação do filme. Esse exercí-
cio pode nos revelar, talvez, de que modo o desenvolvimento da téc-
nica e os debates acerca de seu uso é um tópico fundamental para
discutir a trajetória da geração de artistas que estavam, no momento,

sumário 196
sendo alvo do processo Macartista – discussão que pode, talvez,
estar sendo feita pelo próprio filme.

Como já foi reconhecido, o método de trabalho de Kazan, sendo


totalmente tributário das experiências no teatro dos anos 1930, basea-
va-se em uma relação colaborativa entre direção e atores na qual esses
últimos assumiam um papel fundamentalmente criativo, e não apenas
reprodutivo das indicações do roteiro ou mesmo da direção. É por isso
que a etapa de estudos e o processo de pesquisa do elenco sobre os
papéis era tão importante, não se encerrando quando as gravações
começavam. Pelo contrário, o set era ainda um laboratório onde, atra-
vés da improvisação, o ator poderia encontrar a expressão física mais
adequada para os conflitos vivenciados pelos personagens – conflitos
que, sem sua realização concreta em cena e através do corpo do ator,
não são mais do que conceitos e ideias. Para Kazan, “dirigir consiste,
finalmente, no ato de transformar psicologia em comportamento.”104

De acordo com essa ideia, o coração de um filme ou de uma


peça de teatro é a ação, e essa é expressa pelo trabalho do ator. A
coisa mais importante no início dos trabalhos é, assim, descobrir o
que a personagem deseja, e como expressar esse desejo de forma
concreta. Para Kazan, isso é o que ele chamava de “espinha” (spine)
– no sentido de espinha dorsal, ou seja, aquilo que sustenta tanto
as atitudes de cada personagem quanto o filme (ou peça) como um
todo, e que pode ser compreendida como um correlato para o que
Stanislavski chamava de “superobjetivo”.

Desse modo, o trabalho de construção das personagens e le-


vantamento de cenas conduzido por Kazan com seus atores, se dava
praticamente em três etapas:

• primeiro, era necessário descobrir o que cada personagem de-


seja, de modo a revelar a “espinha” de cada papel e, na con-
junção de todos esses objetivos encontrar a “espinha” do filme

104 JONES, 1986, pg. 142.

sumário 197
como um todo. Para isso, Kazan fazia a cada ator a seguin-
te pergunta: “O que você quer?” Essa pergunta, direcionada
diretamente ao personagem, deveria ser sempre respondida
através de uma frase simples, com um verbo de ação no infi-
nitivo, de modo a permitir que o intérprete responda de forma
concreta, evitando a fluidez dos humores ou das emoções.
Esse trabalho constituía um período de análise propriamente
dita dos movimentos que compunham a trajetória da persona-
gem, onde cada cena era decomposta em vários pedaços, ou
“batidas” (“beats”). Cada pedaço corresponde a um momento
do interesse e da ação imediata da personagem que, em seu
conjunto e sequência, formam a trajetória daquela figura em
cada cena, e no enredo como um todo;

• depois, o ator deveria considerar as circunstâncias e situações


em que o personagem vive, e onde ele vai de fato agir para
atingir seus objetivos. É próximo, em certa medida, da ideia de
circunstâncias dadas apresentada por Stanislavski. No caso
do início das pesquisas do diretor russo com seu sistema, par-
te desse trabalho poderia se dar, por exemplo, em laboratórios
de campo em ambientes similares aos abordados pelo texto da
peça, para que os atores pudessem apreender e compreender
ao máximo o espaço habitado por seus personagens. No caso
do trabalho no cinema, o próprio set de filmagem se transfor-
mava, no limite, em uma extensão do trabalho de laboratório.
Se recuperarmos o caráter pretensamente documental de “Sin-
dicato de Ladrões” (filmado, segundo o desejo de Kazan, ao
“estilo neorrealista”), o trabalho de gravação em locação, ao
invés de estúdios que reproduzissem a ambientação necessi-
tada pelo filme, ajudava a compor, com maior concretude, as
circunstâncias onde as personagens vivem e agem. Assim, de
certa forma o cenário torna-se vivo e atuante tanto quanto um
outro membro do elenco, pois ele oferece condições exterio-
res que servem ao ator de estímulo e material de trabalho, e à
direção como elementos para serem apropriados pela cena;

sumário 198
• finalmente, caberia à equipe descobrir o “como” cada perso-
nagem age para atingir seus objetivos. Se as duas etapas an-
teriores (os objetivos de cada personagem e as circunstâncias
dadas nas quais eles agem) configuram, em sua relação, os
conflitos que montam e movimentam a estrutura dramática, é
nessa terceira etapa que os atores podem colocar em prática
esses conflitos, no momento de realização concreta da cena.
E essa realização não se dá de forma pré-determinada ou ime-
diata. Antes, depende de um trabalho de pesquisa da cena in
loco, e essa pesquisa é realizada através da dinâmica de impro-
visação sobre as situações da cena. É através desse trabalho,
realizado também no processo de gravação (que passa a ter um
caráter mais de pesquisa do que de reprodução) que a cena co-
meça a ganhar concretude, e que a colaboração do ator como
propositor de imagem e ação para o filme é sentida.

Desse modo, podemos identificar que a noção de realismo de


Kazan era diretamente ligada à ideia de ação, expressa através da ten-
tativa de tornar físico, ou traduzir por comportamento, tudo o que é do
reino do psicológico, que podemos chamar de subtexto das persona-
gens. Para isso, entra um uso muito particular dos objetos e elementos
da cena como uma forma de expressar, através de seu uso, a melhor
configuração desse universo subjetivo das figuras. E, mais uma vez, a
dinâmica de improvisação dos atores é o meio de encontrar as ações
que permitiriam essa expressão. Com isso, conseguimos estabelecer a
aproximação de Kazan do conceito de ação física, conforme apresen-
tada anteriormente, e que definiria (junto com a exploração ininterrupta
das circunstâncias dadas) a etapa mais posterior das pesquisas de
Stanislavski, e que foi aprendida por Stella Adler com o mestre russo.

Podemos exemplificar esse método de trabalho através de


algumas cenas do filme, onde os conceitos apresentados aqui são
facilmente identificáveis. Não por acaso, escolheremos cenas que
envolvem diretamente Terry Malloy com personagens que formam o

sumário 199
seu núcleo e através das quais ele define sua linha de ação. A ideia,
com essas cenas, é capturar uma trajetória no desenvolvimento de
Terry justamente por meio das relações que ele estabelece, e também
captar como essas relações revelam o seu percurso, de um capanga
manipulado por Charley sob as ordens de Friendly, para alguém que
entra em conflito com o sistema de relações no cais: primeiro, Terry
com Edie no diálogo que o casal estabelece na saída de reunião com
padre Barry na igreja, quando Terry começa a desenhar uma nova re-
lação através da qual ele pode redefinir sua postura perante os laços
que tinha com Jhonny Friendly e o ambiente de trabalho no cais; de-
pois, Terry com Charley na cena do táxi, no momento em que Charley,
a mando de Jhonny, tenta dissuadir Terry de depor na Comissão do
Crime – ameaçando-o com a morte, caso ele se negue a cooperar
– e que de certa forma configura um acerto de contas de Terry com
seu passado e suas velhas relações, através da exposição do conflito
com seu irmão; por fim, poderemos discutir a relação de Terry com o
Padre Barry, para compreender como o pároco se torna uma espécie
de condutor de Terry, aconselhando-o a agir de forma mais estratégica
para atingir seus objetivos – os de Terry e os do Padre que, percebe-
remos, talvez não sejam necessariamente os mesmos.

Com isso, tentaremos demonstrar que essa mudança de chave


nas relações de Terry se torna não apenas representativa do enredo do
filme, mas também de todo um ambiente de cooperação dos artistas
na época, em consonância inclusive com o desenvolvimento de suas
técnicas e relações de trabalho. Em outras palavras: essa trajetória
parece nos sugerir que a consideração do uso do Método é consti-
tuinte não somente do repertório técnico que possibilitou a realização
desse filme, mas também da discussão que o filme tenta estabelecer,
em chave alegórica, com a experiência de seus realizadores em com-
paração com as personagens retratadas em cena – através de uma
compreensão dinâmica entre técnica e assunto, ou forma e conteúdo.

sumário 200
TERRY E EDIE

Uma primeira coisa que nos chama a atenção na cena entre


Terry e Edie é seu enquadramento: ela é, em grande parte, focalizada
através de um plano americano (novamente a tendência aos planos
americanos). Do ponto de vista da análise que vamos empreender
(observando a técnica de interpretação) esse enquadramento nos
interessa pelo fato de abranger, em um mesmo plano, os dois ato-
res envolvidos. O plano americano que vai seguindo as figuras por
meio de um travelling ao longo de grande parte da cena nos permite
apreender o fluxo contínuo do trabalho de interpretação e a dinâmica
ativa de improvisação por parte dos atores, já que a cena apresenta
poucos cortes. O fato de envolver apenas dois atores facilita muito
o processo de captura da improvisação e do jogo, mesmo a cena
sendo gravada em locação, exposta a todo risco de imprevistos que
uma filmagem a céu aberto pode oferecer.

Pensando no cenário, o plano americano ajuda a enquadrar es-


sas duas figuras no ambiente onde elas estão se relacionando – eviden-
ciando aqui a importância das circunstâncias para o desenvolvimento
do diálogo entre o casal. E, em uma segunda instância, compreender
o quanto de informação o ambiente nos oferece para enquadrar esse
diálogo e essa relação dentro do pano de fundo do filme como um
todo. Dessa forma, o cenário, conforme nos é dado a ver pelo enqua-
dramento, age quase como um terceiro intérprete, um outro polo de
significação na cena que se expressa, tal qual um ator silencioso, não
por palavras, mas pelas imagens que oferece. De imediato, vemos Terry
e Edie em uma praça pública que nos traz todas as referências do ce-
nário onde o filme se passa, o cais do porto da periferia de Manhattan.

O espaço público como cenário do desenvolvimento de pri-


meiro contato mais próximo entre os dois traz novamente para a cena
a ausência de intimidade, ou privacidade, que demarca o enquadra-
mento das relações do filme, deixando a vida íntima sempre exposta

sumário 201
à possível vigilância de todos. Não por acaso, esse cenário vivo às
vezes se vale de outras figuras para interagir com o casal, como o
mendigo que os aborda para pedir dinheiro e reconhece que Terry
esteve presente no momento da morte de Joey Doyle, quase o de-
nunciando para Edie como cúmplice. Ainda, há um outro elemento
muito importante na constituição desse cenário: a presença da igreja
ao fundo da cena, o lugar de onde Terry e Edie fugiram na sequência
anterior, quando estavam na reunião promovida pelo padre Barry e
que foi interrompida pelos capangas de Friendly. A igreja se encontra
presente também na notícia da formação de Edie em um colégio de
freiras em Tarrytown, o que reafirma, de maneira indireta, a presença
e a influência de padre Barry. E o desenvolvimento futuro da relação
entre Terry e Edie, mediados pelo padre, só vem a confirmar essa in-
fluência como algo que, mesmo que se afirmando no filme mais para
frente, já se encontrava indicada desde antes.

Um último elemento do cenário que interessa na composição


desse quadro é o ambiente esfumaçado que domina a praça, de cer-
ta forma bloqueando o espaço público. Esse ambiente enevoado,
mesmo que em plena luz do dia, traz um aspecto simbólico que se
comunica com as imagens de bloqueio que já reconhecemos como
constantes ao longo do filme. Nessa cena mesmo, próximo de sua
conclusão, um dos poucos closes enquadra Edie tendo como pano de
fundo o skyline de Manhattan capturado atrás das grades da praça –
as mesmas grades, reconheceremos depois, de onde Barry assiste à
confissão de Terry. É interessante notar que essa fumaça não se deve
às condições climáticas da locação no momento da filmagem, mas
foi produzida pelo fotógrafo Boris Kauffman, através do uso de latões
queimando folhas e troncos, evidenciando, assim, um cenário com-
posto por escolha da direção (é possível ver, ao fundo da cena, esses
latões produzindo fumaça, como se servissem de aquecedores).105

105 Como nos informa Kenneth Hey no ensaio “Ambivalence as a theme in On the Waterfront
(1954): An interdisciplinary approach to film study”, 1979, American Quarterly, Vol. 31, nº
5, Special Issue: Film and American Studies, pags. 666-696.

sumário 202
Com todo esse ambiente armado, o diálogo de Terry e Edie
torna-se um ponto de conflito evidente. Sabemos que ele envolve a
irmã da vítima e alguém que esteve relacionado, indiretamente, com o
assassinato que abre o filme. Assim como sabemos da tensão envol-
vida nesse diálogo, já que Edie está lutando para trazer à luz os cul-
pados pelo crime e Terry está em franco debate com sua consciência.
Porém, é nesse momento que o interesse afetivo entre o casal começa
a se desenhar. Isso traz um outro ponto de consideração do uso do
plano americano. Mesmo que sendo uma cena romântica, ela não
segue o uso convencional da técnica de campo e contracampo, que
possibilita um enfoque dos enamorados por enquadramentos mais
fechados. Como o jogo entre as figuras está se desenvolvendo de
forma subtextual, não dita – já que as palavras propriamente expres-
sam um diálogo mais amistoso de conhecidos antigos que voltam a
se encontrar depois de um tempo – o plano americano dinamiza a
força de expressão da cena. É levando isso em consideração que po-
demos entender o momento mais significativo, que ocorre justamente
por conta de um ato fortuito e aparentemente sem importância.

Quando Edie vai vestir o seu par de luvas, uma das mãos cai
no chão, e Terry a recolhe. Mas, ao invés de devolvê-la para a me-
nina, ele continua andando com a luva, para o desconforto de Edie,
que a todo instante olha para as mãos de Terry, enquanto segue o
diálogo. Terry fica limpando a luva, e em determinando momento a
veste. Curiosamente, nesse momento eles não se olham muito, ape-
nas falam enquanto toda uma outra forma de contato é virtualmente
estabelecida entre os dois através das luvas que eles compartilham,
estando uma peça do par na mão de cada um dos envolvidos na
cena. A luva, aqui, adquire a função de um objeto expressivo pelo
fato de concentrar em seu uso uma gama de sentidos acumulados
que, a princípio, ela por si só não carrega enquanto objeto inanimado.
O contato efetuado através dela pelo casal que está começando a se
aproximar já indica essa espécie de máximo de intimidade permitida,
dando-se de forma quase que cifrada em meio à praça pública.

sumário 203
Ainda, quando Terry veste a luva de Edie o que vemos, em
chave simbólica, é uma espécie de invasão (ou penetração) por meio
da expressão do contraste de suas mãos brutas, assim como toda
sua figura, com a delicadeza do acessório feminino – ainda por cima
branco, cor da pureza – de Edie. Se lembrarmos que Terry é um ex-
-boxeador, o gesto dele ao vestir as luvas traz para a cena, ao mesmo
tempo, uma agressividade que corrobora com o quase estupro que
sua atitude simboliza (o que reverbera ainda o grau de contato íntimo
que Terry é habituado, já que o vimos sendo dominado por trás por
Jhonny Friendly, no bar), mas também um certo elemento patético, já
que agora ele só é capaz de vestir luvas como essa, de uma jovem
solteira, ao invés de luvas de boxe. Ao mesmo tempo, paradoxalmen-
te, Terry é delicado com a luva de Edie, limpando-a com calma e a
vestindo com cuidado, até o momento em que, para compor ainda
mais a contradição dos gestos, é Edie quem executa uma ação vi-
gorosa ao arrancar o acessório das mãos de Terry de forma brusca.

Essa composição de sentidos ocultos no uso do objeto configu-


ra o gesto de Terry (ao recolher do chão e vestir a luva de Edie) como
uma ação física executada pelo ator, para expressar um subtexto que
suas palavras não expressam. É evidente para nós, aliás, que Terry está
interessado em se aproximar de Edie, seja por conta de uma atração
física ou sentimental, seja por conta de sua consciência culpada pela
morte de Joey. Assim, tomar a luva é uma forma de tomar Edie em suas
mãos, unir-se a ela, ou mesmo colocá-la sob seus cuidados. Ainda, a
relação através do objeto torna-se mais interessante por ele adquirir
um valor diferente para cada figura envolvida na relação: é através da
luva que Terry expressa seu desejo de estar com Edie; assim como é
também através da luva, das tentativas frustradas de recuperá-la, que
Edie expressa, pelo menos nesse momento, seu desconforto por estar
sozinha com Terry, e sua intenção de se desvencilhar dele.

Ainda, o aspecto mais interessante na análise da significação


desse objeto se dá ao levarmos em conta que esse momento não
estava previsto no roteiro, nem foi algo combinado como marcação

sumário 204
de cena. Ele aconteceu durante a gravação, seguindo a dinâmica de
improvisação. Brando então aproveitou a deixa e rapidamente pe-
gou a luva do chão para sua colega, continuando a desenvolver o
encontro levando em consideração a interferência, e a oportunidade,
que o evento representou para o andamento do trabalho de ambos
enquanto intérpretes. Desse modo, produz-se um maior acúmulo de
sentidos através da colaboração dos atores, que trazem uma inter-
ferência criativa que se realiza pela operação de uma inteligência in-
terior ao desenvolvimento cênico, própria do ofício dos intérpretes,
constituindo, nas palavras de James Naremore, “uma escolha muito
mais de um ator do que de um roteirista”.106

O fim do evento com a luva marca uma virada no clima da cena.


Quando Edie finalmente recupera o adereço, de certa forma ambos
já se tornaram um pouco mais próximos. Mesmo que saia do quadro
deixando Terry sozinho, quando ele insiste no assunto do passado co-
mum entre ambos (“Você não se lembra de mim, não é”, ao que ela
responde “Lembrei assim que o vi”) Edie passa a sorrir para ele. Nesse
momento também, curiosamente, a cena vai aos poucos assumindo
uma estrutura narrativa mais convencional dentro do esquema de ce-
nas românticas em Hollywood. A trilha, que até o momento se compu-
nha apenas de som ambiente, introduz um tema romântico, delicado.
Quando Terry vai de encontro a Edie nas grades que beiram a praça, o
enquadramento vai se fechando até assumir, ao fim da cena, o jogo de
campo e contracampo, introduzindo um ritmo de edição que se cons-
trói a partir da montagem de diferentes planos e, em consequência,
possivelmente mais cortes na dinâmica de trabalho dos atores.

Porém, ainda assim o Método se mostra como um elemento


constituinte de significação na construção da cena. Em determina-
dos momentos a fala se interrompe, e as personagens se comunicam
106 “A luva em Waterfront também tem um propósito, mas um que parece ser relativamente
não motivado, uma escolha muito mais de um ator do que de um roteirista; o gesto de
Brando em pegar o adereço não é induzido por outra coisa que não um acidente, e por
essa razão isso aparenta espontâneo, contribuindo para o amor pela verossimilhança que
o cinema naturalista tem”. NAREMORE, pg. 204.

sumário 205
apenas por olhares – acompanhados pelo jogo de enquadramentos
em primeiro plano no rosto dos intérpretes. Ou mesmo a fala, quando
vem, é precedida por um tempo de reação de Edie, no caso, que re-
vela, através de sua expressão facial, seu embraço e dúvida quando
Terry pergunta se voltará a vê-la, ao que ela responde apenas, “Para
que?”. Esse tipo de tempo de resposta preenchido pela atividade da
expressão facial da atriz é um exemplo de demonstração do pensa-
mento (subtexto) possibilitada pela técnica de interpretação. A cena,
assim, constrói-se até o fim através de uma dinâmica que depende
tanto quanto, ou até mais, do jogo dos atores do que necessariamente
apenas das palavras escritas no roteiro.

Em relação ao diálogo textual propriamente dito, é preciso res-


saltar o assunto da discussão que engaja o casal. O início da conversa,
por conta da interferência do mendigo que reconheceu Terry, se dá ao
redor da morte de Joey. Edie pergunta a Terry de que lado ele se en-
contra, ao que ele responde “Do meu, Terry!”, expressando o desejo de
uma independência de ação que sabemos que ele não tem – seja pela
sua ligação com a quadrilha de Friendly, seja por sua falta de cons-
ciência sobre como agir de forma autônoma para conduzir suas ações
em direção aos seus objetivos. Edie, ao contrário, se coloca desde o
princípio como uma pessoa que, mesmo sendo uma jovem mulher
solteira nesse ambiente tipicamente masculino, conquistou através da
educação uma independência em relação ao seu lugar de origem, o
que a permite olhar com distanciamento, a ponto de confrontar até
mesmo seu pai para tentar transformar as relações do lugar. Coinci-
dentemente ou não – em um tipo de confluência do acaso que só pode
ser explicado pela repetição constante da dinâmica de improvisação
que compõe o jogo de cena – a luva de Edie cai no chão exatamente
quando Terry pergunta sobre o colégio de freiras onde ela estudou.
O assunto já estabelece um conflito velado entre Edie e o universo de
Terry. Quando ele diz admirar pessoas inteligentes, citando a formação
de seu irmão Charley, Edie, que revelou querer ser professora, respon-
de: “Não é apenas sobre ter inteligência. É sobre como você usa ela.”

sumário 206
Com essa postura Edie não apenas confronta Terry, mas ofe-
rece para ele um ponto de apoio. O fato de o rapaz ainda estar
vestindo a luva durante esse diálogo já estabelece uma conexão
entre ambos, e reverte a ideia inicial de que, através do uso do ade-
reço, ele apenas a mantém presa na conversa. É como se, ao vestir
a luva de Edie enquanto ouve suas ideias, Terry experimentasse
um vislumbre do ponto de vista dela, e pudesse, por um momento,
vislumbrar também a possibilidade de enxergar a vida como ela.
Após recuperar o objeto de forma brusca, Edie ainda oferece uma
chance de aprendizado – ou de reaprendizado – ao criticar a pos-
tura pedagógica que Terry relata ter recebido das freiras no colégio
onde estudou na juventude. Segundo conta, elas batiam muito nele
tentando dominá-lo, e ele as enganava (revelando uma formação
pessoal que se construiu na base da mentira e da desconfiança até
mesmo dentro do colégio). O diálogo segue da seguinte maneira:
EDIE – Talvez elas não soubessem como lidar com você.

TERRY – Como você teria feito?

EDIE – Com um pouco mais de paciência e bondade. Isso é o


que torna as pessoas más e difíceis, os outros não se importa-
rem o suficiente com elas.

É nesse momento então que um jogo silencioso de closes nos


rostos dos dois atores captura o momento em que a aliança é formada:
Terry, agora encabulado, desvia o olhar por um momento enquanto
masca o chiclete e torna a olhá-la; Edie sorri para ele de forma amis-
tosa; quando a câmera retorna ao rapaz, ele oferece companhia para
que ela não volte sozinha para casa, alegando protegê-la contra as
más intenções dos homens que circulam pelas ruas da região – e cuja
índole, nós sabemos, ele conhece muito bem.

É interessante notar como esse tema do processo de forma-


ção, ou instrução, determina a relação do casal. Na cena do casa-
mento (analisada no início desse capítulo) o modo que Edie usa para

sumário 207
se referir a Terry antes de fugir do bar estabelece a imagem comum
do rapaz como uma figura aparentemente irracional, um animal que
apenas age por instinto e que reage somente à fisicalidade. Ela o
chama de “vadio” (“bum”), uma gíria que tem uma conotação muito
específica no original em inglês, e está relacionada a gatos de rua,
algo como “vira-latas”. Terry, nessa mesma passagem justificou-se
por não depor na Comissão dizendo que não iria morder o “queijo”
na “ratoeira” que estava sendo armada – recusando-se assim a agir
como um “rato” (no filme aparece também a expressão “cheese ea-
ter”, ou “comedor de queijo”). Essas duas qualificações se juntam à
recorrência do termo para delator (“pigeon”, ou “pombo”) no estabe-
lecimento de uma representação nada lisonjeira de Terry, como toda
forma de animal urbano rasteiro, marginal (mesmo o pombo sendo
uma ave, é uma ave suja, que é chamada popularmente de “rato de
asas”). E, não por acaso, essa mesma simbologia animal era usada
nas gírias para se referir ao delator (juntando-se ainda à “canary”, que
ouvimos para qualificar Joey Doyle na primeira cena do filme).

Essa qualificação, porém, não afugenta Edie. Ao contrário, pa-


rece atraí-la. Segundo seu pai, ela sempre teve o hábito de cuidar de
animais vadios. Ao conversar com Pop Doyle após o diálogo com Terry
na praça, Edie afaga um pequeno gato no colo. Seu pai refere-se a
Terry, pela primeira vez, com o adjetivo que Edie usa no fim da cena do
casamento (“bum”). Ele então relembra que, certa vez, ela escolheu
para adotar, entre vários gatos saudáveis, um animal com seis dedos
e vesgo de um olho. Edie teria, assim, uma vocação para acolher os
defeituosos. Em relação a Terry, talvez sua incapacidade, seu “defeito
congênito” está em sua ambiguidade moral. Ele é um capanga da gan-
gue de Jhonny Friendly, mas não tem a falta de caráter necessária para
se manter do lado dos criminosos. Assim, ele é um brutamontes “dife-
rente”: um animal irracional que deseja – e precisa – ser domesticado.

sumário 208
TERRY E CHARLEY

Mesmo se passando em um ambiente fechado (o interior de


um carro), ao contrário da cena entre Terry e Edie analisada acima,
o enquadramento mais aberto no diálogo entre Terry e Charley tam-
bém nos permite abranger com o olhar a totalidade da relação entre
os dois atores envolvidos. Desse modo, a tela se configura como
uma espécie de palco de teatro de câmara, o que vai de encontro à
natureza dessa cena em particular: uma conversa íntima entre dois
irmãos, permeada de segundas intenções e interditos, e que resulta
em um acerto de contas com um evento do passado que tensiona, no
presente, a relação de ambos – o fato de Charley ter feito Terry perder
uma grande oportunidade em sua carreira como boxeador por conta
de uma ordem de Jhonny Friendly.

Curiosamente, a cena também mostra, no início, uma ação en-


volvendo um par de luvas, dessa vez por parte de Charley que, ao re-
ceber Terry no carro, aperta nervosamente suas luvas de couro com as
mãos. Essa ação de Rod Steiger nos informa do estado interno de seu
personagem. Afinal, nós o acompanhamos na cena anterior a essa,
quando ele foi incumbido por Jhonny Friendly da missão de manter
Terry em silêncio, novamente negociando as decisões do irmão pelos
interesses do chefe. Porém, dessa vez Charley sabe que não apenas
a carreira de Terry está em jogo, mas a vida de ambos. É Terry apenas
que, ao contrário de nós, não sabe o que o espera nessa conversa,
assim como as consequências futuras do encontro – a execução de
Charley, que o levará finalmente a se decidir pela delação. Mas, em
uma espécie de ironia dramática, Terry entra em cena já tematizando o
silêncio de Charley ao dizer em tom de brincadeira descompromissada
que “Ninguém nunca o impediu de falar” (imagem 36).

sumário 209
Imagem 36 – Plano inicial aberto, com clima amistoso

Imagem 37 – Mesmo plano, mas com clima mais tenso

Imagem 38 – Terry ouvindo Charley

sumário 210
Imagem 39 – Charley ouvindo Terry

Essa observação de Terry é interessante pois evoca de uma vez


os vários assuntos interligados que o filme vem discutindo. A neces-
sidade de falar, ligada à ideia de ter a oportunidade de dizer/impedir
a fala traz de volta o assunto da delação, que é o motivo do encontro
entre os irmãos. Ao mesmo tempo, Charley diz que se aproveitará do
fato de ter que cobrar uma aposta no caminho para usar esse tempo
e falar com Terry, o que introduz o tema do envolvimento de Charley
no negócio de apostas de Friendly, que foi exatamente o motivo pelo
qual, no passado, Terry teve que perder a luta que o levou a abandonar
a carreira de boxeador. Ainda, todo esse jogo entre falar e silenciar,
dizer uma coisa para expressar outra, faz indiretamente um comentário
sobre a técnica de interpretação, que se ocupa largamente em possi-
bilitar a expressão da corrente subterrânea de pensamentos e inten-
ções escondida por baixo da aparente superficialidade das palavras
do texto. Por assim dizer, o Método permite que a expressão física dos
atores “falem por si”, ainda que as palavras silenciem. Dessa forma,
o uso do Método oferece também um modo vigoroso de “quebrar o
silêncio” determinado pelas convenções. É óbvio que, ao entrar no táxi
e comentar sobre o silêncio de Charley, Terry não estava consciente
sobre todos esses sentidos interligados, o que evidencia mais uma vez
o ponto de vista autoral implícito montando a situação para que ela se
encaminhe da melhor forma para atingir o objetivo pretendido.

sumário 211
Quando o assunto toca diretamente a intimação recebida por
Terry para depor, o enquadramento da cena se fecha no rosto dos
dois atores, mas ainda assim abrangendo a ambos em um mesmo
plano. Daqui para frente, a cena seguirá nesse registro, através de
um esquema de planos de campo e contracampo que, ao invés de
mostrar a frontalidade de um rosto em contraste com as costas da ca-
beça do interlocutor, vai estabelecer um jogo de registrar, no mesmo
quadro, um rosto de frente e o outro de perfil (conforme as imagens
38 e 39). Dessa forma, o quadro mantém em evidência a expressão
da figura que ouve, registrando a reação dessa figura através dos
olhares, reações e respiração. Depois, enquanto Charley apresenta
a proposta de Friendly para comprar o silêncio de Terry, é esse quem
vemos de perfil em silêncio, no canto direito da tela, reagindo ao que
ouve de forma dinâmica, o que possibilita a expressão de um “monó-
logo interior” tão eloquente quanto a fala de Rod Steiger.

Então, quando Charley, mais nervoso, revela que a depender


da resposta de Terry o destino da viagem de ambos pode ser a exe-
cução do irmão (“Decida-se antes que a gente chegue na rua River,
437”, aludindo a uma possível emboscada para à qual está levando
Terry), a cena apresenta um close mais demorado apenas no rosto de
Brando, enquanto Terry processa a informação que recebeu. Nesse
momento, a ideia de monólogo interior se expressa com maior elo-
quência. Aqui podemos flagrar, de forma muito evidente, uma mudan-
ça de “batida” (ou “beat”) no percurso de Terry dentro da cena. Du-
rante os quase vinte segundos de silêncio que se seguem à revelação
de Charley, Terry está confuso, tentando entender o que se passa. Ele
franze a testa, olha para o outro lado, suspira (tudo capturado pelo
foco em primeiro plano no seu rosto) e ainda pergunta por duas vezes
“Antes que a gente chegue onde, Charley?”.

É nítida a eloquência do pensamento de Terry, sendo expres-


so apenas pelas alterações da expressão facial de Brando. Charley,
por contraste, quando volta a falar pressionado pela pergunta confusa

sumário 212
de Terry, torna-se mais verborrágico, falando sem parar enquanto Ter-
ry permanece reagindo em silêncio, compondo um diálogo mudo que
nos permite inclusive perceber uma espécie de comentário, ou crítica,
à atitude desesperada de Charley. Essa ação por reação, ou resposta
silenciosa, mas eloquente, da parte de Terry o coloca imediatamente
em uma situação de domínio da cena. Diante do aparente descontrole
executado por Rod Steiger, o gestual medido de Brando assume uma
eloquência tão forte, ou ainda mais poderosa, que as palavras. Isso é
evidente no momento em que Charley aponta uma arma para o irmão,
para forçá-lo a se decidir por colaborar com Friendly. Com um gesto
apenas, repetindo o nome de Charley enquanto balança a cabeça in-
crédulo com o que se passa, Terry abaixa a arma, desarmando seu in-
terlocutor. Desse modo, toda a perplexidade de Terry para com a atitude
do irmão consegue caber em apenas uma interjeição: “Uau, Charlie...”

Essa intervenção introduz uma mudança de clima na cena,


anunciada pela entrada da trilha. Tendo atingido o seu clímax gradati-
vamente através do jogo entre as palavras e o monólogo interior dos
atores, chegamos então a um ponto de inflexão a respeito do assunto
da delação. A discordância dos irmãos os impede de avançar, impe-
dindo, assim, o encaminhamento da cena dramática, que exige uma
reação cumulativa a cada ação apresentada. Diante da recusa de Terry
em colaborar, Charley deveria executá-lo, mas sua relação de frater-
nidade – assim como, talvez, sua consciência pesada pela condição
atual do irmão como um “vadio” dependente dos favores de Jhonny
Friendly – o impede de agir. Então, o nó do passado de ambos (o as-
sunto da luta de boxe perdida por Terry) emerge. Nesse momento, é
como se os subtextos que estavam em plena ebulição no pensamento
dos personagens não se contivessem mais na forma de monólogo
interior, e igual ao conteúdo de uma panela de pressão, exigissem ser
liberados, quebrando o silêncio através da fala.

Essa alusão de um jorro exterior sob o movimento da pressão


interna não foi estabelecida aqui ao acaso, mas evoca a imagem da
liberação da fumaça e do apito da chaminé de um navio, durante

sumário 213
a análise da cena da confissão de Terry a Edie. Porém, no diálogo en-
tre Terry e Charlie o filme não adota a mesma estratégia da sobreposi-
ção dinâmica de sons e imagens para representar o momento através
dos efeitos da montagem (condensando toda a escalada da tensão
em pouco mais de um minuto de cena). Ao contrário, a montagem
abre espaço para o desenvolvimento, em forma dramática (ou seja,
através da dinâmica do diálogo) do acerto de contas necessário.

Nesse momento, é retomado o enquadramento inicial, abran-


gendo a todo o interior do veículo e os dois personagens em um
plano americano. Porém, no expressivo silêncio que se segue, preen-
chido pela trilha e pelo gestual dos atores, percebemos que em com-
paração com o início da cena, a dinâmica da relação está completa-
mente alterada (imagem 37). Então, o passado vem à tona através da
rememoração da noite fatídica da luta perdida por Terry. Apenas com
esse assunto resolvido entre ambos através da conversa – da exte-
riorização verbal do processo de repressão interna sobre o evento do
passado, em um exercício quase que psicanalítico de elaborar a dor
por meio do pensamento e da fala – é que a dinâmica do presente
poderá ser reestabelecida e, com isso, as decisões necessárias para
o prosseguimento do enredo poderão ser tomadas. Mas esse acerto
de contas não foi imediato, e nem motivado por eventos externos.
Antes, foi preparado longamente pelo acúmulo de silêncios carre-
gados de sentido interno, sentido esse que, ao longo da cena, foi
sendo soterrado por um fluxo de diálogo que não se permitia, ou não
sabia, tocar no assunto principal que movia a intenção do subtexto
dos personagens – intenção oculta das palavras, mas perceptível por
meio do comportamento, da ação e da reação das figuras em cena
(não por acaso, é apenas nesse momento, já tendo decorrido mais
de uma hora de filme, que os irmãos podem tocar no assunto).

Diante da resistência de Charley em assumir a culpa pelo que


aconteceu ao irmão (culpando o técnico que o preparava para lu-
tar na época) Terry finalmente fala, produzindo um longo monólogo

sumário 214
através do qual expõe pela primeira vez sua mágoa, e as reverbera-
ções dessa na sua condição atual. Com a situação invertida, agora é
Charley quem ouve em silêncio enquanto sua reação é expressa pelo
seu rosto em primeiro plano, produzindo também, por sua vez, um
monólogo interior capturado pela câmera.

Não é mais necessário, depois disso, revolver ainda mais o as-


sunto, ou Charley responder a Terry. Torna-se evidente sua atitude em fi-
nalmente assumir a responsabilidade pela “vida perdida” do irmão. Tan-
to que, ao fim da cena, a reposta de Charley já volta a colocar o presente
em movimento de maneira imediata: ele diz que vai mentir a Friendly
sobre a conversa, dá a arma para Terry (“Você vai precisar dela”) e parte
após ficar sozinho no carro, para sua execução – dessa vez estando ele,
assim como Terry no início da cena, inconsciente do que o espera, já que
através de uma triangulação do olhar do motorista do carro com a câ-
mera percebemos que Charley não será guiado para onde ele espera ir.

Finalmente, depois desse diálogo entre os irmãos aquele rit-


mo incessante do maquinário dramático (discutido durante a cena da
confissão de Terry a Edie) é posto novamente em movimento – sendo
que, de agora em diante, ele só será interrompido com o fim do filme.
Depois de ter enfrentado a relação não resolvida que tinha com seu
irmão, Terry pode se preparar para cortar esse laço com seu passado
e se encaminhar para a delação. A partir de agora, tudo é decisão.
Ao deixar Terry partir, Charley escolhe o lado do irmão diante de Jhonny
Friendly, o que lhe custa a vida. Terry, por sua vez, decide procurar Edie
para tornar evidente para ela que está ao seu lado, apostando mais no
fortalecimento do novo laço que ele quer estabelecer com ela, do que
na manutenção das antigas relações. Depois, ao ver o irmão morto
Terry decide ir ao confronto do chefe da gangue. Porém, mesmo com
essa atual potência de resolução definitiva do conflito que, desde o
início, o impedia de realizar seus objetivos (sua “espinha”, resgatando
o termo usado por Kazan), Terry ainda não age sozinho. Assim como
seu interesse por Edie e o desejo da menina em solucionar a morte
do irmão o levaram a se desvencilhar de suas obrigações com Jhonny
Friendly, agora é a interferência de Barry que o influencia.

sumário 215
TERRY E PADRE BARRY

Ao deixar o carro onde conversou com Charley – e imediata-


mente antes de encontrar o corpo do irmão pendurado por um gan-
cho no muro – Terry corre para a casa de Edie. Encontrando a porta
trancada por ela, que se recusa a recebê-lo, suas atitudes seguem a
mesma lógica de comportamento que lhe é habitual: com uma fúria
descontrolada que não admite interrupção, ele arromba a porta com
brutalidade e avança sobre a menina para conseguir beijá-la. Se não
soubéssemos se tratar de um homem apaixonado, esperaríamos re-
conhecer em Terry um assaltante ou mesmo um estuprador. Mas a
eloquência e a brutalidade de seus gestos nos lembram, por contras-
te, a sutileza com a qual, na cena da praça, ele pegou do chão a luva
de Edie e, depois de limpá-la cuidadosamente, a invadiu com sua
mão ao vesti-la. Terry, afinal de contas, é todo fisicalidade. Mesmo
agindo por amor, ele não consegue processar o seu impulso racional-
mente. A única forma de conquistar o que deseja é pela força bruta.
Depois dessa expressão de tamanha impotência racional perante os
seus sentimentos, não poderíamos esperar que ele agisse de forma
estratégica ao encontrar seu irmão executado (ainda mais sabendo
que foi para defendê-lo que Charley escolheu enganar Jhonny Frien-
dly). A essa altura já estamos cansados de saber que essa violência
é a norma nas relações no cais. O que oferece um contraste a essa
conduta é justamente a estratégia e a racionalidade.

Se o padre não tivesse ido à procura de Terry para intervir nas


suas ações, o destino de Terry poderia ter sido bem diferente107. Ao não
encontrar Friendly no bar, Terry mantém o barman e alguns homens da

107 Talvez ele acabaria como na versão romanceada da história, que Budd Schulberg pu-
blicou após o lançamento do filme: seu cadáver boiando nas águas do cais do porto
de Hoboken, depois de ser também executado pelos capangas de Friendly. Porém, a
Columbia, distribuidora do filme, exigiu que o final fosse alterado, pois achou que não
seria de bom tom uma história como essa terminar com uma possível “vitória” dos
homens maus, e uma derrota da legalidade. Não devemos ignorar aqui o peso que o
Macartismo ainda pode ter nessa decisão.

sumário 216
quadrilha de Friendly como reféns de sua arma. A intervenção de Barry
na cena quebra o ritmo alucinado da sequência de ação – que acu-
mulou momentos de fuga de Terry e Edie sendo perseguidos por um
carro, a descoberta do cadáver de Charley e a entrada de Terry no bar
todo ferido e fora de si, ameaçando a todos com sua arma enquanto se
embriaga. Barry entra em cena, assim, para mediar uma situação cujo
único desenlace possível seria a troca de tiros. A chegada do padre
interrompe o desenvolvimento esperado da cena.

Nesse momento, Barry age sobre Terry, usando-o para atingir


seus intuitos. Nessa cena específica, o objetivo de Terry é apenas vingar
a morte de seu irmão. Se ele achasse Friendly e o matasse, estaria com
seu desejo pessoal cumprido. Porém, isso não representaria uma que-
bra na lógica violenta das relações do cais. Pelo contrário, é apenas uma
continuidade dessa mesma lógica. Terry nem se lembra da intimação
para depor na manhã seguinte, pois não vê nada, a não ser o seu desejo
de vingança. É Barry quem orienta a situação para poder conduzir o seu
projeto de desmontar o esquema de controle da máfia sobre o sindicato
dos estivadores, por meio da legalidade e do processo burocrático.

Ao vermos prevalecer, nessa cena, o objetivo do padre sobre


Terry, vislumbramos uma equivalência (pensando em termos stanis-
lavskianos) do super objetivo de Barry com o super objetivo da obra
como um todo: justificar a necessidade da delação como atitude ca-
paz de promover uma possível superação das relações desgastadas
de classe, através da necessidade de colaboração com o sistema na
dinâmica de criação e produção. Isso fortalece a figura de Barry como
instância narrativa que conduz, por vezes, a relação entre o especta-
dor e os demais personagens envolvidos no conflito, desestabilizando,
mais uma vez, a autonomia de Terry enquanto protagonista.

Durante essa cena estamos próximos do ápice da curva que


encontrará seu topo na delação de Terry, o momento aguardado – e
anunciado – desde o início do filme. Então, o grande movimento
a ser feito é a decisão definitiva de Terry em aceitar cumprir com

sumário 217
o papel de testemunha perante a Comissão – emulando na tela
o mesmo ritual público no qual Kazan aceitou participar, e que foi
o motivo de sua subsequente execração profissional. O momento
pede solenidade por parte do filme, e talvez seja por isso também
que tantos fatores extremos e pessoais foram criados para que Terry
finalmente aceitasse o seu “destino”. Afinal, se Charley não tivesse
sido morto, talvez Terry ainda oscilasse na linha fina da dúvida. Não
por acaso, esse é um dos grandes motivos apontados pela tradição
crítica do filme para qualificar um suposto egoísmo de Terry Malloy,
agindo apenas pelo impulso pessoal de vingança ao invés de estar
engajado de fato em uma luta maior pela causa coletiva da categoria
dos estivadores.108 Porém, é preciso que não nos esqueçamos que,
mesmo não sendo essa a luta de Terry, é o projeto de padre Barry
para a sua paróquia. Fica evidente, então, que a agência da decisão
pelo testemunho, e consequentemente para o golpe desferido no
esquema das relações através da exposição pública de Jhonny
Friendly, não está nas mãos de Terry, o protagonista, mas do padre.

Imagem 40 – Barry e Terry na entrada do padre

108 Em relação a isso, conferir o já citado artigo de Peter Biskind, onde ele contradiz a ideia
de trajetória de “socialização” de Terry, defendida pelo filme, com o que na verdade se-
ria, nas palavras do autor, um “processo de individuação aparentemente contraditório”
(BISKIND, 1975, pg. 31)

sumário 218
Imagem 41 – Mesma relação, com posições invertidas diagonal

Aquele movimento de Barry, (identificado em passagens como


a cena do shape up ou a confissão de Terry a Edie) sempre oscilando
entre o distanciamento do conflito e a interferência direta, atinge aqui
uma dinâmica interessante. Ao entrar em cena, no bar, o enquadra-
mento emula, de certa forma, o ponto de vista de Terry (imagem 40).
A câmera é colocada nas costas dele, e vemos, ao fundo, assim como
Terry também veria, o padre entrando no bar e se aproximando dele
(é interessante notar, ainda, a repetição do desenho diagonal no es-
paço, que lembra o primeiro plano do filme, conforme podemos ver
na imagem 01). Porém, mais do que assumir um ponto de vista inter-
no (já que não temos aqui ainda o uso de um plano subjetivo, como
teremos efetivamente na última cena) o enquadramento nos coloca,
assim como Terry, em suspensão sobre o desenrolar da intervenção
do padre na situação. Desse modo, quando Barry golpeia o rapaz com
um soco para desarmá-lo, sua atitude nos pega também de surpresa.
Nunca esperaríamos essa atitude de Barry, cuja forma de agir, sempre
por meio do discurso e um pouco distanciado do centro dos conflitos,
contraria a violência que é a norma do local. Porém, logo fica eviden-
te (antes para nós do que para Terry) que o padre age assim com o
objetivo de desviar o rumo dos acontecimentos. Ao golpear Terry, ele
consegue desarmá-lo, e permitir que os reféns, membros da quadri-
lha de Friendly, fujam. Só assim Barry pode conversar tranquilamente

sumário 219
com Terry – cujo comportamento ainda se mostrava descontrolado, ou
“irracional” – para convencê-lo a seguir a intimação para depor. Dessa
forma, Barry não só movimenta o impasse criado pela entrada de Terry
armado no bar, como recoloca o objetivo do filme de volta aos trilhos
que rumam para o momento da delação.

O breve, mas intenso embate entre os dois torna evidente o


descompasso entre os objetivos e estratégia de ação de ambos. Após
ser golpeado, e até o fim da cena, a única fala que Terry consegue
dizer é, “Isso não é da sua conta!”, enquanto Barry segue responden-
do com argumentos que finalmente provam a Terry a validade maior
da delação, ao invés da vingança pela violência. Vale reproduzir o
diálogo entre ambos logo após o soco dado por Barry:
BARRY – Me desculpe, deixe-me ajudá-lo a levantar.

TERRY – Tire suas mãos de mim! (vendo que os capangas fugi-


ram) E agora, o que eu farei?

BARRY – Você quer ser corajoso?

TERRY – Isso não é da sua conta!

BARRY – Você quer ser corajoso atirando em outro homem?

TERRY – Isso não é da sua conta!

BARRY – Isso não é ser corajoso!

TERRY – Cuida da sua própria vida!

BARRY – Cobrir a carne de outro homem de chumbo não é ser


corajoso!

TERRY – Isso não é da sua conta!

BARRY – Você quer machucar Jhonny Friendly? Quer machucá-


-lo? Você quer acertá-lo? Você realmente quer acabar com ele...?

TERRY – O que você acha?

BARRY – ...Pelo que ele fez com Charley e com uma dezena
de homens que eram melhores que Charley? Então não se

sumário 220
comporte como um bandido aqui no meio da selva porque
isso é exatamente o que ele quer. Ele vai te acertar e alegar
legitima defesa. Você vai enfrentar ele amanhã na corte com
a verdade. A verdade que você conhece.

(Em silêncio, Terry caminha até o balcão do bar, onde se apoia)

BARRY – Agora se livre dessa arma. A não ser que você não te-
nha coragem, e se não tiver mesmo, então é melhor ficar com ela.

Após usar da força bruta – a forma de ação corrente no cais,


logo, a que melhor é compreendida por Terry – o Padre não prosse-
gue investindo no embate. Ao contrário, usa da argumentação para
convencer Terry que seu modo de agir estava sendo pouco estratégi-
co. Diante do estímulo da luta corporal, o rapaz sabe responder com
agressividade – ao menos na voz, já que mesmo não tendo coragem
de revidar o soco no padre, ele gritou mais forte. Porém, diante da
argumentação ele continua com a mesma estratégia de reação, o gri-
to. Não tendo melhores argumentos, ele vai aos poucos baixando a
guarda, até ficar em silêncio. Ainda que não diga mais nada até o fim
da cena, seu comportamento fala por ele, indicando que está sendo
convencido. Então, o foco de Terry deixa de ser a briga com o padre,
desviando-se para um ponto fora do quadro, para onde ele olha.

Nesse momento o enquadramento evoca em suas linhas de


composição o plano do início da cena, com a chegada de Barry (ima-
gem 41). Mas agora a perspectiva está invertida: ainda vemos Terry em
primeiro plano, mas agora de frente para a câmera, e de costas para
o padre, que ainda permanece ao fundo, de certa forma “dirigindo a
cena” (ao ordenar que Terry se livre da arma). Terry permanece em si-
lêncio, e apenas age depois que Barry se aproxima e o serve um copo
de cerveja. Com um único gesto ele nos confirma que foi convencido
pelo padre: ao atirar o revólver em um retrato de Friendly na parede do
bar (abraçado com, ao que parece, Mr. Upstairs, o chefão do esquema
de circulação de mercadorias no cais), ele executa a ação que o padre
ordenou e “atinge” Friendly simbolicamente.

sumário 221
Ao mesmo tempo que executando um gesto de violência (atirar
o revólver no retrato a ponto de quebrá-lo), Terry expressa finalmente
sua aliança com Barry (ao escolher agir do jeito do padre, através da
estratégia da delação), o que confere ao seu gesto uma carga simbó-
lica, por não ferir a Friendly diretamente, mas a um retrato seu. Isso
configura, de uma vez por todas, a quebra de sua antiga relação com
a quadrilha criminosa. Através de todo esse complexo de significados
contido no gesto de Terry podemos entender o momento como mais
um exemplo eloquente do uso, pelo filme, da ideia de ação física.

Mais do que apenas expressar o subtexto de uma personagem


em uma cena específica, esse gesto de Terry representa um ponto
climático do filme como um todo. É o momento de decisão do prota-
gonista, a atitude pela qual estávamos esperando desde o início. Se
associarmos essa quebra de relações de Terry com Friendly como sen-
do subsequente ao assassinato de Charley, ou seja, ao apagamento
do único laço de familiaridade que ele ainda possuía (e que o manti-
nha sob controle do chefão) podemos confirmar a simbologia expressa
pelo movimento de formação de novos laços familiares, identificada no
início desse capítulo – através do romance de Terry por Edie e da cena
do casamento situada, coincidentemente ou não, em um outro bar.

Da mesma forma que Edie encontrou na morte de seu irmão


motivos para romper com a dinâmica de relações de seu ambiente de
origem, desafiando até seu pai passivo e obediente, é somente após
a morte de Charley que Terry consegue decidir dar o passo definitivo
para se unir a Edie também na luta pública contra o crime. Fazendo
rodar o mesmo ciclo de mortes de possíveis traidores do sindicato
(Joey, Kayo e agora Charley), o enredo dá uma volta progressiva por
conta do ineditismo da vítima: Charley – afinal de contas, não é um
estivador qualquer, mas alguém de dentro do esquema que desobe-
deceu o chefão para proteger um possível delator (mesmo que no
momento Terry não estivesse decidido a delatar). Ainda, a posição
de Terry querendo justiça pela morte de seu irmão evoca o início do

sumário 222
filme, com a reação de Edie à morte de Joey. Isso dá mais uma volta
no ciclo de execuções onde Terry, que foi uma espécie de cúmplice
do primeiro assassinato, se encontra agora mais próximo da posição
de vítima – não podemos esquecer que o fato de Charley ter sido
executado como um aviso final para que ele não delatasse pode, de
certa forma, configurar essa morte como “responsabilidade de Terry”.

É nesse momento que se concretiza a mudança de posição de


Terry, iniciada na cena do diálogo com Edie na praça, após a fuga da
igreja. Terry cumpriu agora o processo de trocar a vida sob a proteção
e condução de Charley pelos cuidados e a educação oferecida por
Edie, motivado pelo afeto que sente pela menina (não nos esqueça-
mos da observação feita por Edie na cena da praça, ao dizer que ela
saberia educá-lo com “paciência e bondade”). Porém, o amor sentido
por Terry, e sua nova relação com Edie, que é consequente desse sen-
timento, não o liga apenas à sua amada, mas também ao padre Barry,
que por sua vez não está envolvido nos interesses pessoais do casal (o
afeto que sentem um pelo outro) mas que se une a eles através do de-
sejo de desmontar o esquema da quadrilha de operação do sindicato.

Se, por um lado, é apenas com a transformação das relações


no ambiente do cais que seria possível a Terry e Edie vivenciarem o
seu relacionamento (já que ambos tinham laços com o lugar através
de seus familiares, o que não os permitiu simplesmente se mudar de
lá), por outro lado, é por meio do interesse afetivo do casal – e de
certa forma se utilizando dessa relação – que Barry consegue em-
preender até o fim seu objetivo de expor publicamente as atividades
de Friendly, permitindo a interferência da lei. Esse movimento, como
vimos até aqui, não dependia exclusivamente de Terry, já que a pri-
meira tentativa de delação do padre foi com Kayo, executado antes
que ele pudesse prestar seu testemunho. Mas apenas será possível,
nesse momento, através de Terry, o que confere maior significação e
dramaticidade ao seu depoimento por ser ele alguém de dentro da
quadrilha, que conhece melhor as operações da organização.

sumário 223
Dessa forma, até mesmo a aposta do filme na criação dos no-
vos laços de sociabilidade através da relação entre Terry e Edie pode
se configurar como uma espécie de ação simbólica que expressa
bem mais do que um simples discurso de redenção pessoal através
do amor. A presença de Barry conduzindo a relação do casal, assim
como o aproveitamento que ele faz dessa relação (desde seu esforço
por unir Terry a Edie até a ajuda para que Terry processasse de uma
forma “produtiva” para o enredo o seu luto pela morte do irmão) con-
figuram a atitude do padre, também, como o cumprimento de um su-
per objetivo – ou a “espinha” de seu personagem – que denota, como
estamos acompanhando até aqui, mais do que um simples impulso
por transformação das relações de trabalho para os estivadores: um
objetivo elaborado pelo filme como um todo através das ações de
padre Barry ao longo do enredo.

Se seguirmos no caminho de leitura que a alegoria indica, tan-


to em relação à experiência atravessada pela classe artística diante
do Macartismo, quanto à ação escolhida por Kazan como resposta
ao momento histórico (configurada na atitude da sua delação), po-
demos perceber como o filme empreende o processo de configurar
um “projeto” para a postura coletiva da classe, diante do sistema de
produção. A ênfase nos processos de condução ou orientação (de
Terry passando das mãos de Charley para Edie e Barry), assim como
o aproveitamento extensivo do Método no processo de criação da
obra, apontam para uma reflexão sobre o papel da técnica nesse
processo todo de colaboração com o grande cinema de Hollywood.
Barry, assim, simbolizaria bem mais do que um “pastor de almas”:
ele age também como um preparador de elenco ou um diretor – Lee
Strassberg, ou mesmo Kazan, observando e dirigindo o desenvolvi-
mento de um ensaio na penumbra da sala de ensaios do Actor´s Stu-
dio – conduzindo Terry a reagir da forma mais adequada, através de
impulsos, provocações e mesmo ordens (“Você quer ser corajoso?”,
“Você vai enfrentar ele amanhã na corte com a verdade”, “Livre-se
dessa arma!”) estrategicamente orientadas para a figura em cena.

sumário 224
3
Capítulo 3

Reorganizando a categoria: o
filme como campo de disputa

Reorganizando
a categoria:
o filme como campo
de disputa
PROCTOR – Se conforme! Agora o Céu e o Inferno lutam nas
nossas costas e toda a nossa falsidade foi arrancada... Se con-
forme! (...) Concorde. É a providência, e nada muda muito. Nós
somos o que sempre fomos, só que agora nus.

Arthur Miller, “As Bruxas de Salém”

Eu fui acusado de preencher meu filme “Sindicato de Ladrões”


com minha reação à resposta que recebi dos meus amigos e
colegas pelo meu testemunho diante do Comitê de Atividades
Antiamericanas. Eu me declaro culpado. Isso é o que torna o
filme forte. Eu não me esquivei desse paralelo, eu o admiti e
o reforcei. Eu não estava envergonhado disso. Eu alimentei a
minha raiva em ser rejeitado por velhos amigos

Elia Kazan, The Pleasures of Directing

O impacto psicológico do anticomunismo nas pessoas co-


muns desse país é muito profundo. Existe algo sobre a palavra
“comunismo” que, para os desinformados, evoca não apenas
o inimigo, mas também algo de imoral, algo sujo. Entre as vá-
rias razões para a minha decisão de falar publicamente sobre
minha filiação ao Partido Comunista, estava uma crença de
que eu poderia ajudar a explodir alguns mitos sobre os quais o
anticomunismo prospera. Se as pessoas oprimidas pudessem
compreender que os comunistas são profundamente preocu-
pados com elas, seriam forçadas a reavaliar seu medo irracio-
nal de uma “conspiração comunista”.

Angela Davis, Uma Autobiografia

sumário 226
Imagem 42 – Estivadores seguem Terry para o
galpão, no último quadro do filme

Tendo percorrido o percurso de análise da obra e reconstituído


a trajetória da classe artística dos EUA no período de tempo que atra-
vessa as décadas de 1930, 1940 e 1950, chegamos ao final do filme
e desse exercício de leitura tentando identificar os sentidos que sua
narrativa expressa. Porém, o reconhecimento da conjunção entre, de
um lado, os materiais do filme e sua realização formal, e do outro a ex-
periência histórica de seus realizadores, nos aponta que para resolver
essa questão é preciso ir além do enredo. A análise dos elementos
que determinam a trajetória de Terry Malloy, Edie e padre Barry mostrou
que as relações estabelecidas na condução do ambiente de produção
conferem aos atores um papel de coautoria que desequilibra a unila-
teralidade do domínio das figuras de ponta da ficha técnica – diretor,
roteirista e produtor – no controle da obra. Esse processo, resultado
de um desenvolvimento que formou a experiência profissional dos rea-
lizadores do filme, estabelece um novo espaço de colaboração no sis-
tema de produção cinematográfica para o cinema dos EUA, momento
do qual “Sindicato de Ladrões” representa um marco. Esse ambiente
colaborativo gera, como vimos, uma complexidade de elaboração que
afasta a possibilidade de uma leitura automática, ou unilateral, da ale-
goria que o filme tenta estabelecer diante do Macartismo.

sumário 227
Assim, o cruzamento entre materiais, realização formal e a expe-
riência histórica confere múltiplos sentidos à narrativa: primeiro, o per-
curso de Terry Malloy, enquanto sujeito emancipado dos acordos que
emperravam sua realização pessoal, em contraste com a organização
da categoria de estivadores, a quem o processo individual de Terry
influencia, mas que não alcança, enquanto coletivo, a mesma eman-
cipação; em paralelo a esse percurso, a decisão pessoal de Kazan
(ou Schulberg, como tantos outros) pela delação, em contraste com o
processo de emancipação coletiva da categoria dos atores – processo
no qual Kazan foi uma figura essencial. No entanto, entre Terry Malloy e
Elia Kazan, há uma terceira instância de determinação da obra que não
permite que o ponto de contato entre personagem e diretor seja esta-
belecido sem alguma fricção. Sem o desenvolvimento do Método, o
filme não seria o mesmo, seja por conta da trajetória dos artistas que o
realizaram, e da qual esse filme é devedor, seja por conta das técnicas
adotadas diretamente em sua elaboração. Assim, para podermos des-
fazer o nó estabelecido entre a multiplicidade de pontos de vista que
elaboram a trama de “Sindicato de Ladrões”, é preciso ter em mente
que entre Terry e Kazan existe Marlon Brando – e quando cito Brando
não estou considerando sua existência singular enquanto profissional,
seguindo a determinação do star system. Pelo contrário, uso seu nome
para evocar todo o elenco de intérpretes que surgem, como já foi reco-
nhecido, como coautores do discurso da obra cinematográfica.

Ao fundar o Actor´s Studio em 1947 – mesmo ano da primeira in-


vestida da HUAC contra a classe artística e da prisão dos “Dez de Holly-
wood” – Elia Kazan, Cherryl Crawford e Robert Lewis foram movidos
pelo desejo de reestabelecer um espaço agregador onde os atores pro-
fissionais, ou em início de carreira, poderiam se manter em constante
pesquisa e desenvolvimento de seu ofício. O aspecto de continuidade
da experiência, que antes havia sido vivenciada pelos três fundadores
do Studio somente no Group Theatre, estabelece de saída o anseio em
recuperar, para o desenvolvimento da profissionalização das artes cêni-
cas assim como para a rotina de produção do cinema, um ambiente ca-
paz de interromper a relação produtiva comum em Hollywood, através

sumário 228
da recuperação da utopia de um espaço experimental que permitisse
o estudo constante do ofício do ator. Esse desejo nos informa de um
caráter fundamental na constituição do repertório da técnica.

A criação desse ambiente de pesquisa e reflexão constante


sobre o Método foi possível justamente porque seu desenvolvimento
se fundamentou mais sobre um debate aberto a respeito de suas prá-
ticas, do que necessariamente sobre uma abordagem única. É isso o
que justifica a ideia do Método como um campo de disputa, mais do
que uma técnica acabada. Por conta das diferentes abordagens esta-
belecidas a partir da experiência comum a seus professores – nomes
e percursos de pesquisa diversos como Stella Adler, Lee Strassberg,
Sanford Meisner e o próprio Kazan – é impossível perceber um con-
senso sobre a maneira de transmitir esse conjunto de saberes ou de
como utilizá-los no cotidiano prático do trabalho.

Esse cenário, assim como a consideração da importância que o


Método assume para a constituição do cinema dos anos 1950, aponta
a técnica como elemento essencial para essa experiência: uma espé-
cie de expressão formal através da qual se pode capturar o complexo
das relações tal qual estavam sendo elaboradas – ou desestabilizadas
– no período. Hollywood logo percebeu o ganho que o Actor´s Stu-
dio passou a significar para a qualidade da performance de seus as-
tros, estabelecendo um padrão inédito de naturalização da expressão.
O “invisible acting” (a essa altura mais invisível do que nunca) mostrou-
-se capaz de criar um nível nunca antes visto de identificação entre a
plateia e as personagens em cena, que passaram a representar a ima-
gem do anseio, por parte do público, de todo um ideal de liberdade indi-
vidual e fuga dos padrões rígidos estabelecidos pela moral dos tempos.

Curiosamente, em “Sindicato de Ladrões” o caminho dessa


identificação sofre um pequeno desvio. Ainda que a obra se baseie no
desejo, por parte do diretor, de realizar um testemunho pessoal sobre
sua experiência – defendendo uma ideia muito específica de liberdade
individual diante dos conflitos em jogo no processo do Macartismo – ,

sumário 229
o filme acaba por capturar o registro de outros olhares sobre as si-
tuações, internas e externas à sua fábula, que dificultam um pouco a
defesa pretendida por Kazan através de Terry. Levando em considera-
ção tudo o que já foi informado e discutido a respeito da participação
dos atores na constituição das cenas, em colaboração direta com
o diretor e demais realizadores, entendemos que sua atuação pode
gerar consequências para a representação das personagens, em sua
relação com a obra como um todo. O que nos leva possivelmente a
identificar, no trabalho dos atores, a elaboração de um outro ponto de
vista interno à obra. Essa diversidade de opiniões pode encontrar res-
sonância no registro da multiplicidade de olhares na constituição das
cenas e pode nos ajudar a compreender, ao fim, que a convivência
de posições diversas diante do assunto da delação e do Macartismo
(conforme já foi relatado sobre as discordâncias entre Kazan e Bran-
do) é mais do que uma mera curiosidade dos bastidores de produção,
mas revela uma condição específica na produção desse filme, influen-
ciando, significativamente, sua constituição formal.

Com isso torna-se necessário perceber como a obra interme-


dia essas opiniões diversas, e como isso determina a consideração
final a respeito da trajetória de seu protagonista, oferecendo para nós
outros modos de ver a experiência de Terry. De certo modo, essa con-
fluência de pontos de vista sobre o percurso do protagonista pode ter
sido incorporada pela estrutura do filme. Se Terry é o sujeito do pro-
cesso de emancipação que a obra encena, o padre Barry, como já vi-
mos, assume a função de ser uma instância narrativa na relação entre
o filme e o espectador, dessa forma agenciando também o processo
de identificação do público com o protagonista. Esse outro olhar so-
bre as ações de Terry cria, por vezes, uma espécie de comentário.
Da mesma forma, esse comentário não é explícito e nem se estabele-
ce de modo unilateral. Mas pode ser percebido através de um conflito
evidente entre o modo como o roteiro constrói o discurso da trajetória
de Terry ao longo do enredo (tanto nas falas, quanto na sequência
dos eventos) e a forma como as relações entre as personagens foram

sumário 230
interpretadas por seus atores, oferecendo à direção materiais diver-
sos que exigiam serem harmonizados na montagem final. Essa con-
vivência de ideias distintas sobre a matéria do filme pode ser o que
alimenta, por exemplo, o descompasso sentido na última cena, entre
o clímax sugerido pela trilha sonora enquanto vemos a expressão de
vitória de Barry e Edie, e a caminhada silenciosa e algo passiva de
Terry e dos demais estivadores, diante do representante dos donos
do navio, rumo à escuridão do galpão de trabalho.

O argumento utilizado pelo padre para convencer Terry a dela-


tar (na cena que analisamos no fim do capítulo anterior), o de atingir
Friendly com “a verdade”, pode ganhar uma ressonância de duplo
sentido que reverbera para além do enredo. Em uma primeira instân-
cia, no nível de conteúdo da obra, esse argumento apresentado pelo
padre torna-se um pouco ideológico ao querer basear-se na possível
existência de uma verdade absoluta. Diante do tema que motiva o
filme, ou seja, a necessidade da justificativa da delação, devemos
nos perguntar: qual é, e o que configura, essa verdade? Afinal de con-
tas, se no processo de investigação sobre a máfia do sindicato dos
estivadores, a exposição da verdade através do testemunho público
pode garantir um caminho de superação dessas mesmas relações,
já no ambiente estabelecido pela dinâmica do “caça às bruxas” essa
ideia de revelação da verdade não garantiria um efeito similar ao da
luta contra a máfia nos portos de Nova Iorque. Ao contrário, apenas
auxiliaria na manutenção do sistema de condenação pública e silen-
ciamento montado pelo Macartismo. Essa relação expõe a fragilida-
de, e a falsidade, da simetria operada pelo filme entre o sindicato de
Friendly (denominado pela tradução brasileira do título do filme como
“de ladrões”) e o Partido Comunista dos EUA. Assim como entre as
ações da Comissão do Crime do Estado de Nova Iorque e o projeto
empreendido pela HUAC em Hollywood e Washington.

Não é preciso um trabalho de análise muito extenso para re-


conhecer a falsidade dessa simetria. Um pouco de bom senso já
basta. Porém, o que continua intrigando é que o filme não monta

sumário 231
essa relação de maneira imediata, automática e proselitista. Afinal
de contas, a luta de Terry, Edie e do padre Barry é legítima dentro do
universo criado pelo enredo. Esse tema de “problemática social” co-
necta o filme ao “espírito dos anos 1930” que formou a geração dos
realizadores da obra, inscrevendo a narrativa de usurpação do sin-
dicato da categoria pelos esquemas da máfia em uma debate sobre
as possibilidades de organização coletiva diante do desmanche do
sentimento de coletividade que o Macartismo opera – como se o filme
quisesse nos dizer que, dada a dinâmica das relações na época (os
anos 1950), aqueles ideais que animaram as realizações dos artistas
de esquerda nos anos 1930 não eram mais tão permitidos, ao menos
dentro de Hollywood, exigindo para a classe repensar suas estra-
tégias de ação e organização. Contudo, esse debate encontra no
Método a linguagem para ser encenado, afirmando, através da forma
do filme e pelo trabalho colaborativo entre atores e direção, uma vitó-
ria da mesma geração que estava sendo perseguida, em detrimento
dos efeitos devastadores do “caça às bruxas”. Talvez, diante de um
certo sentimento de falência dos projetos políticos da classe artística
sob o Macartismo, a técnica representava ainda uma conquista, pos-
sibilitando um caminho de desenvolvimento e realização profissional
no diálogo com os grandes estúdios. E isso nos leva à uma segunda
instância da obsessão do padre Barry pela “verdade”.

Do ponto de vista formal, a busca incessante pela expressão da


verdade através da técnica consciente do trabalho do intérprete é justa-
mente o que motiva o desenvolvimento do Método, desde suas origens
nas pesquisas de Stanislavski com seu sistema de intepretação. Como
disse Stanislavski: “A verdade em cena é tudo aquilo em que podemos
crer com sinceridade, tanto em nós mesmos como em nossos colegas.
Não se pode separar a verdade da crença, nem a crença da verdade.
Uma não pode existir sem a outra, e sem ambas é impossível viver o pa-
pel ou criar alguma coisa.”109. Elia Kazan diria algumas décadas depois:

109 STANISLAVSKI, 2018, pg. 169.

sumário 232
Ainda que você consiga – e muitos atores efetivamente con-
seguem – se dar bem falseando, fazendo posturas e demons-
trando os sentimentos no palco, é muito difícil, para não dizer
impossível, fazer um bom trabalho trazendo qualquer coisa
que seja falsa diante da câmera. Um close-up exige verdade
absoluta; é um julgamento severo e maravilhoso. Atuar para as
telas é um ofício mais honesto.110

A necessidade de atingir a expressão mais verdadeira o possí-


vel em cena – que não deve ser nunca confundida com o objetivo de
criar uma ilusão completa de verdade através da cena – exige um tra-
tamento específico do trabalho de interpretação, tornando o intérpre-
te consciente de suas potencialidades técnicas enquanto profissio-
nal. Esse trabalho só é possível, de fato, em uma relação colaborativa
dinâmica entre a direção e o elenco, e essa relação, pelo que vimos,
é a ideia que Kazan expressava na elaboração de seus trabalhos (ou
pelo menos atingia na relação de trabalho com seus atores, nessa
etapa de sua carreira, já que seus testemunhos posteriores sobre a
direção de cinema nos afastam um pouco dessa postura111).

Na última passagem analisada, por exemplo, entre Terry e o pa-


dre Barry, a fala do padre convencendo o jovem pela delação, segundo
o roteiro, deveria ser executada como um monólogo diante do silêncio
absoluto de seu interlocutor. A cena, tal como foi registrada através de
um bate-boca onde Barry tenta argumentar com a resistência vigorosa
de escuta de Terry foi, evidentemente, um achado da relação entre di-
reção e intérpretes no set de filmagens. A repetição insistente da frase
“Isso não é da sua conta!” como única reação possível de Terry Malloy,
desorientado diante da lógica de argumentação e das atitudes obje-
tivas e estratégicas do padre é, sem sombra de dúvidas, uma opção
de Marlon Brando para deixar demarcada a incapacidade de Terry de
racionalizar sobre a forma mais consciente e eficaz de atingir seus ob-
jetivos. Isso revela, uma vez mais, a consciência e o controle de Brando

110 KAZAN, 2009, pg. 272.


111 Como se pode ver em alguns conselhos que ele dá a diretores aspirantes no ensaio The Plea-
sures of Directing, publicado em 1995, quando já estava aposentado do cinema há décadas.

sumário 233
e Malden (no caso dessa cena) enquanto intérpretes, da trajetória de
seus personagens, revelando para nós as escolhas realizadas por eles
para configurar essa relação ao longo da obra.

Ao mesmo tempo, as atitudes de Barry para com Terry (e não


de Karl Malden para com Brando), e a forma como o enquadramento
da câmera registra essa relação, configura uma dinâmica que pode
contradizer, no âmbito do enredo, essa prática de colaboração e deci-
são coletiva. Em vários momentos do filme, Barry atua como se fosse
uma espécie de condutor dos passos de Terry, indicando para ele o
que fazer a cada momento – como vimos na cena analisada no final
do capítulo anterior, por exemplo, quando Barry, do fundo do quadro,
dá ordens a Terry. É curioso perceber como essa maneira de agir do
fundo da situação, observando a cena ou interferindo por meio das
ações de um outro personagem (K.O, Edie e Terry) e a estratégia de
argumentação através do estímulo pessoal, usada pelo padre, lembra
um diretor que, de fora da cena (ainda que envolvido diretamente no
ambiente de execução do trabalho) oferece os estímulos necessários
para que o ator aja de acordo com os objetivos e as necessidades da
situação. Ou um preparador de elenco, sussurrando aos pés do ouvido
do intérprete durante os ensaios para conseguir estimulá-lo a atingir a
emoção mais adequada ao desenvolvimento dos conflitos.

Essa condução explícita de Barry ameaça a configuração de


Terry como um protagonista autônomo, responsável por suas escolhas
e consciente de suas ações. Quando chegamos, assim, na sequência
final do filme, logo após a delação de Terry perante a Comissão da Ver-
dade, temos uma contradição posta em cena: ao mesmo tempo que a
obra nos revela um horizonte possível para o qual os conflitos podem
se encaminhar após o testemunho de Terry, e apostando em sua lide-
rança perante os estivadores, sua imagem enquanto herói – seja no
âmbito formal, no sentido da estrutura dramática, seja no âmbito temá-
tico, ligada à moral ou “mensagem” da obra – apresenta lacunas para
se sustentar de pé. Algo no filme parece nos indicar a possibilidade de

sumário 234
que Terry, ao fim, não seja necessariamente apenas um exemplo a ser
seguido. E o que podemos perceber através do trabalho de análise
que realizamos até então é que esse desvio na consideração da figura
de Terry pode ser fruto do trabalho dos atores ao longo de todo o filme.

Assim, as interferências do Padre nas ações de Terry, através


dessa atitude de “direção em cena aberta”, exigem que analisemos
com cautela o desenlace dos conflitos após a delação, onde culmina
o processo de emancipação do protagonista, quando ele finalmen-
te tenta agir por conta própria diante do sindicato e de todo o cais.
As consequências de suas atitudes, assim como a forma através da
qual o filme apresenta a nova situação que se desenha após a possí-
vel “queda” de Jhonny Friendly podem nos revelar os vários sentidos
expressos na defesa que o filme efetua da delação.

CRISTO NO CAIS, JUDAS NO CALVÁRIO

A sequência abre com uma reposição da cena do shape up.


Porém, a rotina de trabalho não se desenvolverá da mesma maneira.
O tema da delação continua a correr de forma subterrânea e a servir
como um motivador das ações das personagens. Mas, se na primeira
passagem a execução de Joey rondava como um fantasma por en-
tre os estivadores, agora Terry é quem cumpre essa função. Ele não
foi executado como Joey, mas o fato de surgir para a seleção, arris-
cando-se ao julgamento de seus colegas ainda que tendo agido “por
eles”, torna-o uma espécie de cadáver incômodo fedendo no meio do
cais. Após finalmente ter sido encaminhado pelo padre a testemunhar
(como forma de ruptura com a quadrilha de Friendly), uma mudança se
concretiza na sua situação e na relação com seu ambiente. Ele não é
mais o mesmo capanga inseguro e desorientado que vimos no come-
ço do filme, na sequência do assassinato de Joey Doyle. Ao quebrar
o código de silêncio, ele foi exposto perante todos como um delator.

sumário 235
Imagem 43 – Terry entrando (à direita, ao alto)
para atravessar a linha de estivadores

Essa nova situação é configurada na cena através do enqua-


dramento: Terry é mostrado como uma figura completamente excluí-
da pelo coletivo. Como já vimos, a experiência de deslocamento é
uma marca na representação do protagonista, mas sempre demar-
cada internamente em cena através de um desencaixe de Terry na
imagem do conjunto do grupo – tanto com os capangas da quadrilha
quanto com os outros estivadores. O primeiro quadro da cena já de-
marca, na configuração do espaço, esse destacamento (imagem 43).
Vemos o grupo configurando uma massa compacta, formando uma
linha diagonal que atravessa o quadro, deixando nas margens dois
espaços vazios: o ponto de onde Terry entra (na direita alta do qua-
dro) e caminha ao encontro de Big Mac, no lado oposto da imagem
(no canto inferior esquerdo). A repetição da composição em linha
diagonal, já presente desde o primeiro quadro (imagem 01), constitui
uma rima no discurso visual do filme, configurando o espaço como
o palco de um conflito constante entre grupos, interesses e opiniões.
Agora, a entrada de Terry mexendo na formação do coletivo mobiliza
essa lógica, colocando-o logo de entrada como alguém que desafiou
o sentido da organização desse espaço. Ele atravessa a linha com-
pacta formada pelo grupo, que em resposta abre caminho para sua
passagem, como se fossem polos negativos de um imã repelindo-se

sumário 236
mutuamente – ou como se Terry furasse o conjunto de homens da
mesma forma que uma bala, ou uma lâmina, perfura um corpo.

Com a entrada de Big Mac, a dinâmica do shape up altera-se


significativamente em relação ao que vimos no início do filme, e essa
mudança efetua-se por conta da intervenção de Terry. Nesse momen-
to, é preciso reconhecer que, pela primeira vez, ele está agindo por
conta própria e de forma premeditada. Se a delação foi efeito de uma
condução do padre Barry, a opção por aparecer no cais no dia se-
guinte, mesmo sabendo que seria exposto perante o coletivo, é uma
escolha de Terry, que opta por reagir à resposta do sindicato – e por
extensão, dos estivadores – à sua delação com um desafio, ao invés
da violência. Terry mostra assim que já está mudado. O processo de
“educação” de Barry e Edie surtiu efeito (quando interpelado por Edie
para que não fosse para o shape up, receando que ele fosse atacado,
ele deixou claro para ela que não iria machucar ninguém dessa vez,
apenas iria “atrás dos seus direitos”, adotando em seu vocabulário os
termos do mundo oficial da legalidade, para além das gírias e ditados
aprendidos nas ruas, sempre comuns em sua fala).

Diante de sua presença, Big Mac aproveita para deixar, através


de Terry, um exemplo para os outros estivadores. Se dessa vez o sin-
dicato não pode executar o traidor – já que a delação de Terry colocou
a organização no foco da opinião pública (“Nós somos um sindicato
cumpridor da lei!”, um acuado Jhonny Friendly agora sentencia aos
seus capangas) – é preciso expor Terry de outra forma, educando os
estivadores por um processo inverso. Assim, Big Mac permite que
todos trabalhem nessa manhã, para poder deixar apenas Terry sem
acesso ao galpão. Essa situação mostra Terry agindo, também pela
primeira vez, como um estrategista, quase um agitador político que
procura continuar o processo de oposição pública ao sindicato, inicia-
do com seu testemunho diante da Comissão do Crime.

Se Terry optasse por fugir, se esconder ou apenas esperar os efei-


tos legais da sua delação, esse momento não aconteceria. Porém, com
sua decisão em se mostrar perante todos ele provoca não somente uma

sumário 237
reação do sindicato, mas expõe para o coletivo de estivadores a possi-
bilidade do desafio que ele protagonizou. Ele também se coloca, diante
de todos, como um exemplo. O enquadramento da cena completa esse
descolamento do grupo ao explicitar, na imagem, sua nova situação. Ter-
ry não é mais enquadrado através do contraste de sua figura em relação
ao grupo. Agora, temos a composição de dois quadros independentes
e opostos: o primeiro com os estivadores silenciosos observando a Terry
(imagem 44), que é mostrado para nós solitário, em um segundo quadro
(imagem 45), com sua figura em primeiro plano devolvendo o olhar de
forma decidida para o grupo compacto que o observa.

Grupo de estivadores observando Terry (Imagem 44),


enquanto ele sozinho os encara de volta (Imagem 45)

sumário 238
Esse registro evidencia, assim, o resultado de um percurso de
individuação de Terry em relação ao coletivo. O close em sua figura,
a ser observada tanto pelos estivadores, espectadores internos da
cena, quanto por nós, espectadores externos do filme, concretiza o
ponto de chegada do percurso de formação atravessado por ele ao
longo do enredo. Da mesma forma, a sua reação à provocação de
Big Mac continua a nos dar notícia da mudança em seu comporta-
mento, mostrando um aparente amadurecimento e valorizando o seu
caráter enquanto figura emancipada dos hábitos da sociabilidade no
cais. Ao invés de partir para o enfrentamento físico, como sempre
fez, Terry continua a seguir uma estratégia de enfrentamento público
ao sindicato, e de expor a situação agora frágil na qual se encontra
a organização. Quando caminha em direção à cabana flutuante que
serve de escritório para Friendly, Terry já tem garantida a atenção de
todos os presentes no cais. Assim, o próximo plano mostra o grupo
seguindo Terry para acompanhar o desenvolvimento da cena – como
se os polos dos imãs, que antes se repeliram, agora se atraíssem
diretamente, ou ao menos os estivadores caminhassem como uma
massa compacta na direção de Terry.

Um detalhe na composição do quadro evidencia a mão do au-


tor implícito à obra, manipulando os detalhes de composição da ima-
gem, e quebrando, dessa forma, qualquer presunção de registro “or-
gânico” ou “documental” do espaço do cais, como se esse não fosse
previamente preparado para servir como locação de uma filmagem.
No canto inferior da cena (imagem 46), a câmera registra uma peque-
na embarcação flutuante na beira do cais cujo nome é “Rebelde NY”
(“Rebel NY”). Esse detalhe da imagem comenta a ação de Terry como
exemplar, deixando evidente para nós (plateia externa cujo olhar, ao
contrário dos estivadores, pode abranger todo o conjunto da cena)
que o filme não julga sua ação como a de um traidor, ou um pária –
assim como Terry estava sendo considerado pela plateia interna ao
filme, ou como Kazan, Schulberg e outros delatores foram julgados
por conta de sua colaboração com o Macartismo. A presença desse

sumário 239
elemento na margem do quadro que mostra a caminhada de Terry
em direção à cabana do sindicato serve de legenda para a cena que
acompanhamos, já expressando um juízo: Terry é a figura que ousou
se rebelar contra a ordem estipulada pela quadrilha de Friendly. Esse
juízo confere um certo caráter heroico à ação de Terry – ainda mais
se lembrarmos que ele foi preparado por Barry, o padre irlandês com
conhecimento de táticas de mobilização política.

Imagem 46 – A barca Rebel NY, entre Terry (à direita)


e o grupo de estivadores (à esquerda)

O registro da plateia que acompanha a ação em silêncio repõe,


de certa forma, a cena em que Barry pregou sobre o corpo de Kayo,
no interior do navio de carga. Agora, igualmente podemos perceber
grupos de espectadores distribuídos nos vários planos de composi-
ção do cenário – por trás de Terry, no mesmo piso em que ele se en-
contra; apoiados na mureta do cais, um pouco mais distante e acima
dele; e ainda de dentro de um armazém, assistindo do plano superior
do espaço, em uma espécie de mezanino. Terry, assim, representa
nessa cena não apenas a figura do mártir, que sempre pairou como
uma ameaça ao seu redor (figura que o inseria na mesma trajetória
de Joey e Kayo, concretizada na passagem da jaqueta de um para o
outro). Com Terry, essa linhagem se quebra. Ao não ser executado e
continuar expondo publicamente sua oposição, Terry compartilha do

sumário 240
mesmo caráter rebelde de Barry, assumindo junto dos estivadores
um posto que apenas o padre ocupava antes, diante do sindicato.

Terry então desafia Jhonny Friendly a também se expor de forma


individualizada (ou seja, sem o amparo, ao fundo, do grupo de crimi-
nosos a sustentá-lo) perante os estivadores. Porém, diante da resposta
de Friendly, e justamente quando se encontrava possuindo o controle
da situação, Terry tropeça na estratégia com a qual estava conduzindo
a relação, voltando ao velho hábito de reagir pela violência. Após ser
desafiado por Friendly, ele se engaja em uma luta corporal com o ma-
fioso. Mas a briga não está equilibrada, já que, ao contrário de Terry,
Friendly não se destaca do seu grupo, nem age só. Os capangas trapa-
ceiam na briga para proteger o chefão, e assim a cena continua a repor
elementos da passagem da execução de Kayo. Essa sequência abriu,
como vimos, com o gesto de Terry puxando uma lona de cima de uma
caixa de mercadorias, performando o que foi então identificado como
um provável gestus da necessidade de revelação do que estava oculto,
através da exposição do esquema do sindicato. Agora, após a delação
efetuada, Friendly realiza, por oposição, um gestus contrário, revelando
assim um modo de agir típico da máfia: quando Terry parte para golpeá-
-lo e é derrubado pelos capangas, o chefão joga um pedaço de lona por
cima dele para cobri-lo e, de certa forma, desorientá-lo, abrindo assim
vantagem na briga. Nessa reversão da ação de Terry com o objeto (a
lona) Friendly executa um gesto de ocultação, ou abafamento de uma
verdade que veio à tona, e deve ser novamente escondida. Com isso, o
chefão tenta tirar Terry da vista dos estivadores, conduzindo-o de volta
ao silêncio que ele tanto lutou para quebrar. Essa ação de Friendly deixa
evidente ainda que algumas peças já se movimentaram nas relações de
trabalho do cais: sua posição de líder foi desafiada, obrigando-o pela
primeira vez a sujar as próprias mãos, ao invés de confiar a execução
de suas ordens aos seus capangas e agir à distância.

Porém, ainda assim Terry está em vantagem. É como se, após


o processo que culminou com a delação, ele conseguisse recuperar
sua potência de ação. Terry golpeia como um boxeador no auge da

sumário 241
forma, e isso não passa despercebido pelos estivadores. Como mais
um efeito da ação de Terry no coletivo, o grupo passa a reagir (“O ga-
roto luta como ele era acostumado a fazer!”, os estivadores comentam
entusiasmados entre si, pela primeira vez falando desde o começo da
cena). Enfim, o grupo se interessa em aderir à rebeldia de Terry, e se
engajar na luta para ajudá-lo. Ele continua a representar um exemplo
de ação para os demais trabalhadores, e dessa vez um exemplo posi-
tivo. Porém, a imposição dos mafiosos impedindo o grupo de avançar
não apenas frustra a ação coletiva, como também impossibilita a vitória
de Terry – já que ele não está mais lutando apenas contra Friendly, que
abandonou a disputa, mas é espancado pelos capangas. A ironia des-
se momento de emancipação de Terry, através da reconquista de sua
força e seu poder de ação como lutador, está no fato de que, mesmo
quando ele competia no boxe profissional (lembrança celebrada pelos
estivadores nesse momento), ainda assim não possuía controle sobre
sua força de trabalho – como já vimos, o filme processou longamente
a sua frustração por ter sido apenas um instrumento do esquema de
apostas de Friendly, manipulado pelo próprio irmão, Charley.

Assim, no momento presente da narrativa a ação de Terry é colo-


cada em xeque. Ao responder à provocação de Friendly e se engajar na
briga, ele perde o controle da situação (que possuía desde o início da
cena). O chefão conseguiu contornar seu desafio e nocauteá-lo (o fato
de a briga ter acontecido nos fundos da cabana é uma manobra para
ocultá-lo da vista de todos). A cena atinge um impasse: Terry foi vencido
na briga. O registro da reação dos trabalhadores a uma possível execu-
ção marca o momento, através de um clímax emotivo: a imagem dos
homens entristecidos, baixando o olhar, é pontuada por uma trilha grave,
quase fúnebre, jogando com a nossa expectativa sobre o destino de
Terry. A passagem segue um desenvolvimento convencional da estrutura
dramática, estabelecendo uma espécie de suspense. Afinal de contas,
esperamos por saber o que seria de Terry após desafiar publicamente o
sindicato. Mesmo a imagem de seu corpo caído de bruços, boiando na
beira da cabana, quase chega a confirmar esse desenlace.

sumário 242
Porém, o anticlímax gerado com a descoberta que ele não foi
espancado até a morte contraria a expectativa gerada, torcendo ain-
da mais o nó de nossa identificação com as figuras em cena – seja
com Terry e seu percurso de individuação, seja com os estivadores
e seu anseio por transformação do ambiente de trabalho, o que nos
faz, em todo caso, quase respirar aliviados pelo fato de que o he-
rói não foi abatido. O aspecto problemático desse momento é que
o silêncio compassivo dos estivadores diante da possível execução
de Terry o confirma como a única esperança de ruptura com esse
ambiente, personalizando o processo de emancipação política que
deveria se dar no âmbito do coletivo. Caso contrário, os estivadores,
que sempre foram em número maior do que os capangas (que nes-
se momento, ainda por cima, estavam desarmados já que Friendly
trancou todas as armas em um cofre para evitar problemas com a lei)
teriam reagido ao ataque e defendido Terry.

Assim, a suposta eficácia da atitude do protagonista é contraria-


da internamente pela própria cena (no fato de ele ter sido nocauteado
pelo sindicato), e pelo repertório de informações que temos a respeito
do histórico do personagem (da ausência de autonomia de sua força
de trabalho, ou potencial de ação, desde os anos em que era boxea-
dor). E ainda: mesmo que o filme registre um ganho na ação de Terry, e
na sua representação diante do grupo de estivadores, esse ganho não
serve para contaminar o ânimo do coletivo, nem se sustenta perante o
espectador mais atento. Isso nos mostra que a ação individual de Terry
não deu um bom resultado. Ainda que agindo por conta própria, ele foi
incapaz de ir até o fim com seu plano, ou de atingir seus propósitos.

Diante do impasse estabelecido, a cena exige uma interferên-


cia externa para poder prosseguir. Então, duas novas forças surgem
para reconfigurar a situação: Padre Barry, acompanhado de Edie, e
uma figura que representa os donos de um navio recém-chegado ao
cais (chamado de “shipper”, que pode ser traduzido como “trans-
portador”), vindo cobrar de Friendly o trabalho dos estivadores para

sumário 243
descarregá-lo. A conjunção dessas duas presenças na cena vai ser
essencial para encaminhar o filme para sua conclusão, já que, como
descobriremos, suas ações se focam em atingir um mesmo objetivo,
mesmo que de forma indireta.

A primeira consequência da entrada desses personagens é redi-


mensionar a representação de Jhonny Friendly como alguém que, as-
sim como Terry (guardadas as devidas proporções), também não tem
domínio total de suas atividades. Por mais que seja um chefe temido
entre os estivadores, Friendly não age por conta própria, mas reponde
a uma instância hierarquicamente superior, aqui representada por esse
“shipper” – e que antes já havia sido introduzida pela rápida aparição
do Mr. Upstairs, interrompendo a transmissão do testemunho de Terry
pela televisão. Vemos assim, pela primeira vez, uma rachadura definiti-
va na imagem de Friendly como figura do topo das relações internas do
cais. Assim como Terry, Jhonny Friendly é também apenas um agente
– ou um ator – com poder limitado de ação dentro do esquema total da
cadeia de transporte de mercadorias.

Com o cais paralisado, o representante dos navios exige que


os estivadores se reorganizem: “Quem está no comando? (...) Nós
precisamos tirar esse navio daqui. Estamos perdendo dinheiro!”
Diante da desordem que atravanca o desenvolvimento do dia de tra-
balho, o empregador dialoga diretamente com Jhonny Friendly (que
como chefe do sindicato é o representante da categoria) ignorando
toda a massa ao seu redor. A cobrança apenas acentua a fraque-
za de Friendly nesse momento: os estivadores, atentos ao que está
se passando, recusam-se a voltar ao trabalho se Terry não for junto
com eles. Essa situação, se desenvolvendo à vista do representante
dos donos do navio, é a oportunidade perfeita para Barry continuar
forçando a resistência da categoria aos desmandos do sindicato, ex-
pondo assim, perante o empregador, o enfraquecimento do controle
da máfia sobre as relações. Diante dos olhos do patrão, dessa ma-
neira, Barry mostra que os estivadores estão prontos para seguirem

sumário 244
as orientações de um novo líder, ao invés de continuar obedecendo
às ordens de seu sindicato, que se revela então com sua estrutura de
poder abalada. Porém, ainda assim, os trabalhadores não seguirão
as ações decididas por um dos seus, ou por um conjunto de re-
presentantes. Ao contrário, eles realizarão um movimento conduzido
pelo padre, que, como já dissemos, assume a direção da cena.

Peça por peça, o cenário vai se apresentando como propício


para a orquestração de Barry. Primeiro, um estivador vai até ele e
Edie, que tentam reanimar Terry, e anuncia: “E como está Terry? Se ele
não trabalha, nós não trabalhamos.” Logo depois, diante do evidente
desespero de Jhonny Friendly que tenta empurrar cada homem para
dentro do galpão, Pop Doyle o joga no mar, realizando seu pequeno
gesto de vingança pessoal diante dos desmandos do chefão (que lhe
custaram a vida de seu filho) – empurrando o mafioso na água depois
de dizer “A vida toda você me maltratou”. Em seguida, a celebração
que explode em todos os estivadores diante da humilhação de Frien-
dly demarca uma virada inédita na postura do grande grupo que, até
o momento, apenas assistia a tudo calado, registrando pela primeira
vez uma força de reação coletiva por parte dessa massa. Como já
vimos antes, o único movimento de quebra dessa passividade do
comportamento geral foi durante a primeira cena do shape up, de-
pois que Big Mac atirou as fichas para o alto. Então, o grupo havia se
mobilizado de forma desordenada para brigar internamente, expon-
do, mais do que uma reação orientada às forças que os controlam,
uma consequência da incapacidade de organização que fraturava
o coletivo. Agora, pelo contrário, a comemoração aponta para uma
possibilidade real de coletivização, ao espalhar uma reação unificada
de todos os estivadores diante da queda de Friendly ao mar.

Porém, a possibilidade de celebração que a passagem apre-


senta é contrariada pelo fato de não ser fruto de uma ação coorde-
nada do grupo. Pelo contrário, o ânimo que incita os estivadores é
ocasionado, em primeiro lugar, por ações individuais e de motivação
subjetiva: Terry enfrentando Jhonny Friendly para se vingar da morte

sumário 245
de Charley, e Pop Doyle fazendo o mesmo para se vingar da mor-
te de Joey. E em segundo lugar, é resultado de descontrole (Terry
aceitando a provocação para lutar) ou de impulso (Pop empurrando
Friendly como resposta a esse querer arrastá-lo de volta ao galpão).
Nesse momento, a rebeldia que o exemplo de Terry espalhou em
todos os estivadores como uma corrente elétrica necessita de uma li-
derança capaz de canalizar essa força em uma mesma direção, caso
contrário ela se dissipará. Diante da pressão do dono do navio em
descarregar suas mercadorias e reestabelecer o andamento do tra-
balho, Barry age para conseguir direcionar a ação dos trabalhadores.
Não devemos esquecer, aliás, que essa rebelião também se deve
indiretamente ao padre, já que foi ele quem orientou Terry a se opor
publicamente ao sindicato, além de todo o seu esforço de, desde o
início do filme, tentar plantar nos estivadores a ideia da resistência.

Nesse momento, torna-se ainda mais evidente, e de forma


mais explícita, a imagem que procuramos estabelecer de Barry como
uma espécie de “diretor” dos passos de Terry. Diante da impotência
do rapaz em se levantar sozinho e liderar os estivadores de volta ao
trabalho – “Se Terry for, nós vamos juntos. Estão todos esperando por
ele”, insiste um dos trabalhadores – o filme evidencia, através de um
close em primeiríssimo plano, o pensamento do padre (seu subtexto
não expresso por palavras, mas explícito em cena) compreendendo a
oportunidade que a situação oferece e planejando uma estratégia de
ação. A delação de Terry perante o tribunal, seguida da sua exposi-
ção como um pária entre os estivadores após o testemunho, coroado
pelo espancamento público que sofreu pelos capangas, finalmente
apontou, para os estivadores, a figura de um possível líder. Assim,
quebrando a relação dialógica estabelecida na cena, que envolvia
ainda na mesma conversa Edie e um pequeno grupo de homens,
Barry sussurra aos ouvidos de Terry, para que só ele ouça, provocan-
do-o a reagir da forma esperada: “Jhonny Friendly apostou que você
não consegue levantar” – exatamente como um diretor do Método
conduzindo as ações de seu ator de dentro da cena. É o suficiente
para Terry abrir os olhos e exigir: “Me ponham de pé.”

sumário 246
Mais uma vez, Terry vai agir por reação às coordenadas rece-
bidas por Barry. Fazendo aqui uma pequena digressão, já vimos na
curta cena que registrou o depoimento de Terry perante a Comissão
do Crime o seu despreparo em assumir o protagonismo da situação.
Incapaz de articular a informação que possuía, e que o motivava a
testemunhar colaborando com o trabalho de investigação, ele ape-
nas repete as palavras que o promotor de acusação lhe pergunta –
em uma atitude de quase ventriloquismo. Por sua vez, os capangas
do sindicato mostraram-se muito mais organizados do que Terry, dis-
simulando perante o promotor, “interpretando”, de certa forma, sua
inocência enquanto tentavam convencer o tribunal (e a opinião públi-
ca, já que a audiência estava sendo transmitida pela TV) a fantasiosa
história de que o livro caixa do sindicato havia sido coincidentemente
roubado do escritório na noite anterior ao depoimento.

Esse contraste nos recoloca no tema da técnica de interpreta-


ção, através de um apontamento interessante sobre o controle que o
intérprete, enquanto profissional, deve ter sobre seu ofício, curiosamen-
te revelando ainda uma nota contraditória sobre a relação dos atores
como autores da realização de seu trabalho. Afinal de contas, os sujei-
tos que estão “interpretando” diante do tribunal – em outras palavras,
falseando ou “fazendo cena” – além de não serem convincentes (rindo
e se comunicando uns com os outros para comentar seus feitos às
vistas de toda a audiência que assiste ao julgamento) agem de acordo
com interesses criminosos, usando de seus artifícios de comunicação
para ocultar cada vez mais uma verdade que deveria, idealmente, ser
exposta ao conhecimento do público (como Friendly jogando a lona
para cobrir Terry no meio do cais). Dessa forma, eles traem a expectati-
va de honestidade de sua expressão, e esse registro de “interpretação”
mais convencional – ou retórica, para recuperar o termo de James Na-
remore – é relacionada ao “lado mau” e desonesto da história.

Terry, por sua vez, está lá para revelar a verdade que suposta-
mente é ocultada pela encenação dos capangas do sindicato. Porém,

sumário 247
ele não tem controle sobre sua expressão, sendo incapaz de coorde-
nar suas palavras. Antes, foi “preparado” por Barry para mostrar pe-
rante o tribunal sua “verdade interior”. Ao expor as informações que
possui (revivendo através do seu testemunho o dia da morte de Joey
para vingar a sua dor pessoal por perder seu irmão, Charley) Terry evi-
dencia em seu depoimento uma motivação inteiramente subjetiva, que
foi aproveitada pelo padre para tornar efetivo o intuito maior de atacar o
esquema mafioso do sindicato – assim como um bom diretor aproveita
as reações surgidas da memória emotiva do ator para compor a cena.

É nesse sentido, afinal, que podemos entender a ideia de que


Barry “dirige” os passos de Terry, como um diretor ou um preparador
de elenco mobilizando os seus atores. A cena montada pelo filme, ao
fim, denota um contraste: enquanto os criminosos usam dos artifícios
de um jogo de interpretação assumido abertamente diante do público
(logo envolvendo uma complexidade maior no planejamento de sua
“performance” ao representarem pessoas representando uma men-
tira) para tentar ocultar a verdade que todo mundo conhece, Terry é
todo honestidade, mostrando sua verdade através de uma atuação
limpa dos vícios e maneirismos canastrões que Big Mac, como um
bufão, não tenta esconder. Mas, ao contrário dos capangas, Terry não
possui controle de suas palavras, emoções ou atitudes, reagindo por
impulso – o que faz, efetivamente, quando quase se envolve em uma
briga corporal com Friendly na frente de todo o tribunal, logo após seu
depoimento, sendo apartado pelos policiais que estavam ao redor.

Porém, a cena esconde a ideologia que ela tenta nos vender


– assim como Brecht constatou sobre os limites do efeito da técnica
de interpretação realista na sua relação com o público. Nessa pas-
sagem, é impossível não pensar que o filme remonta as diferentes
posturas assumidas pelos artistas perante a HUAC, em suas opções
por colaborar ou não com o Comitê. Enquanto centenas de pessoas
executaram, em seus testemunhos, um verdadeiro malabarismo ver-
bal para não assumir suas antigas conexões com o CPUSA e assim

sumário 248
se autoincriminarem no jogo de gato e rato armado pela rotina dos
inquéritos (alegando a primeira e quinta emendas da constituição,
tentando desconversar e dando volteios argumentativos ao invés de
apenas responder “sim” ou “não”) outras pessoas assumiam sem
amarras ou dissimulação toda a verdade exigida pelos promotores –
e diante das câmeras de TV. O próprio Kazan assumiu essa postura.
Ao contrário de Terry, porém, ele não agiu por impulso, ou levado por
um terceiro. Antes, premeditou seu testemunho, escrevendo-o cuida-
dosamente, preparando-se para um espetáculo público assim como
os capangas de Jhonny Friendly, que evidentemente combinaram o
que responder – não devemos nos esquecer, ainda, que Kazan já
havia se apresentado antes ao Comitê de portas fechadas, dessa vez
escondendo nomes, o que fez seu primeiro testemunho ser conside-
rado inválido, e manteve seu nome na lista de pessoas que mereciam
desconfiança da HUAC e, por consequência, dos grandes estúdios.

Voltando à sequência final, vemos que Barry ainda continua a


orientar a ação de Terry, aproveitando o cenário criado pela revolta
dos estivadores. Seguindo essa lógica, a caminhada do protagonis-
ta ao galpão é encenada como um grande momento. A trilha sonora
demarca a passagem de forma eloquente, evocando através da con-
junção do uso de metais com a batida grave de tambores um caráter
grandioso para o esforço do herói que, ainda que cambaio e com o
corpo todo alquebrado, aceita servir de exemplo aos seus colegas.
O enquadramento da cena constrói uma relação de expectativa so-
bre o êxito da caminhada, que contribui para o clímax: o jogo armado
entre os closes no rosto de Terry caminhando em vias de desmaiar e
os planos subjetivos que emulam seu ponto de vista, com a câmera
balançando e perdendo o foco na medida em que avança, estabele-
ce para nós a referência de identificação na cena. Porém, ao mesmo
tempo o registro amplia sua abrangência ao enquadrar Terry diante dos
estivadores que, como uma massa estática, o assistem caminhar, na
expectativa de sua chegada até a porta do galpão. A presença do dono
do navio esperando, fixo no fundo da visão de Terry e o atraindo como

sumário 249
um imã, estabelece uma nova referência de liderança – para além da
força representada no momento pelo rapaz. Afinal de contas, essa fi-
gura que se apresenta quase como um típico capitalista de caricatura
(um homem velho, gordo, de paletó completo e chapéu) posiciona-se
no mesmo ponto que sempre coube a Big Mac, como representante
do sindicato, enquanto escolhia a dedo quem deveria trabalhar a cada
dia. Sua presença, por fim, concentra o foco da expectativa de Terry e
de todos os outros estivadores envolvidos na cena. A conjunção dos
planos subjetivos com a imagem expectante dos trabalhadores nos
posiciona, nesse momento, colados ao grupo dos estivadores – Terry
agora entre eles – querendo nos colocar no papel de aprender uma
lição: o valor final da atitude da delação e do empreendimento da tra-
jetória de martírio do herói, que ainda que sofrendo suas consequên-
cias imediatas colherá frutos para todo o coletivo. Com isso, somos
também, enquanto audiência, de certa forma educados por Barry (que
atinge, nesse momento, aquele desejo expresso por Kazan e Schul-
berg ao querer justificar, com o filme, a necessidade da delação).

Com a chegada de Terry, o enquadramento finalmente estabiliza


o balanço, a trilha atinge o seu auge e a ordem do dono do navio (“Mui-
to bem, ao trabalho!”), seguida do movimento em massa dos estivado-
res entrando no galpão, coroa a trajetória do protagonista, assim como
os esforços do padre. A cena nos devolve ao ponto de vista de Barry e
Edie (como podemos conferir na imagem 42, que abre esse capítulo)
observando de fora o grupo sumir dentro do galpão, as portas se fe-
charem quase que fantasmagoricamente – não vemos ninguém operar
o fechamento dos portões – e o letreiro de “The end” ser projetado,
encerrando o filme com a recolocação de Terry, e todos os estivadores
junto com ele, sob um novo esquema nas relações de trabalho.

Porém, ainda assim o filme parece terminar com uma nota dis-
sonante desafinando a grandiloquência da trilha sonora. Se, por um
lado, ao que tudo indica os estivadores não mais sofrerão a mediação
de Friendly e sua organização criminosa no controle de seu sindicato
(por mais que o mafioso continue gritando impotente “Eu voltarei!”),

sumário 250
por outro lado não é prometido, ou ao menos anunciado, uma nova
forma de mediação entre os empregadores e os trabalhadores, na
negociação de sua força de trabalho. Por mais que algumas figuras
ligadas ao grupo haviam expressado a expectativa de se reorganizar
coletivamente – “Nós vamos caminhar com você Terry (...) Então eles
nos darão de volta nosso sindicato, para que nós possamos contro-
lá-lo” – a imagem do galpão escuro engolindo os estivadores que se-
guem silenciosos a ordem do patrão causa um certo estranhamento,
relativizando o caráter vitorioso anunciado pela trilha sonora e pelos
sorrisos largos de padre Barry e Edie.

sumário 251
CONCLUSÃO

DESENVOLVIMENTO TÉCNICO E AUTONOMIA


DO INTÉRPRETE COMO HERANÇA
PARA O CINEMA PÓS-MACARTISMO

Algumas considerações ainda devem ser feitas sobre a última


cena analisada. Em primeiro lugar, toda a sequência final registra, na
forma do filme, o sucesso do projeto de emancipação de Terry em
relação aos laços que o prendiam à ideia de coletivo com o qual se re-
lacionava – a quadrilha de mafiosos – através da formação de um novo
compromisso com Edie e o padre. Esse processo não cria automati-
camente uma aderência de Terry ao grupo dos estivadores, e nem foi
motivado por um projeto em nome do coletivo. Antes, foi um percurso
movido por causas inteiramente pessoais – sua relação com Edie e o
desejo de vingança pela morte de Charley – cujos movimentos causa-
ram consequências que foram aproveitadas pelo padre para intervir na
situação dos estivadores. Assim, esse processo não se configura em
momento nenhum como uma trajetória de emancipação efetiva, pois
Terry segue até o fim orientado sempre por um terceiro – trocando a
condução de Charley e Jhonny Friendly por Edie e o padre Barry.

Em segundo lugar, a cena estabelece um efeito à primeira vista


positivo do exemplo de individualização da trajetória de Terry, para o
coletivo de estivadores. Afinal, ao contrário de todas as expectativas
de que ele seria executado caso enfrentasse o sindicato (como Joey
e Kayo), Terry está vivo, e mesmo contra todas as suas forças para
conseguir manter-se de pé, ainda consegue ir trabalhar. Porém, assim
como Terry, os estivadores também não se emanciparam enquanto
categoria, colocando-se à inteira disposição para que o dono dos na-
vios se utilize de sua força de trabalho, agora de forma totalmente não

sumário 252
mediada – ou seja, mais facilmente manipulável, já que a categoria não
se organiza coletivamente através de um sindicato.

Em terceiro lugar, a cena mostra uma reação positiva do em-


pregador para a atitude de Terry. Após a delação e sua mostra de
perseverança em se apresentar para o trabalho (evocando uma resis-
tência quase sobre-humana ao estado fragilizado em que se encon-
trava) o dono do navio generosamente abre espaço para que todos
possam trabalhar. Em outras palavras, é prometido para todo o grupo
dos estivadores o acesso livre às oportunidades de trabalho, desde
que esses aceitem colaborar com o sistema. Ao fim, o desmanche
da estrutura do sindicato (que estava até então sob o poder da má-
fia) serviu de grande interesse para o dono do navio, ao possibilitar a
negociação direta com os estivadores, sem serem mediados por uma
representação organizada da categoria.

Indo além da ficção, a opção por colaborar com a HUAC tam-


bém manteve aberto, para os artistas, o acesso aos galpões onde a
mágica do cinema acontecia, seguindo as condições do pacto esta-
belecido entre o governo federal e os chefes de estúdio de Hollywood.
Para a política de Estado dos EUA durante a Guerra Fria, foi necessá-
rio perseguir e condenar a capacidade de representação que orga-
nizações como o CPUSA tinha adquirido após décadas de atividade
de militância em solo estadunidense. Em consequência, o “caça às
bruxas” ofereceu aos grandes estúdios a oportunidade de desmon-
tar o esquema do pensamento organizado que estruturou alguns dos
sindicatos que, no final dos anos 1940, mobilizaram greves históricas
por melhores condições de trabalho e de retorno financeiro dentro do
sistema de produção de Hollywood – de categorias como desenhistas,
cenógrafos e roteiristas, todas elas violentamente reprimidas.112

112 Sobre esse assunto, conferir também o trabalho de Michael Denning em The Cultural
Front. No capítulo 11, “Who´s affraid of big bad Walt?” Disney´s Radical Cartoonists, o
autor remonta a história da greve realizada pelos desenhistas do estúdio no ano de 1941.
Da mesma forma, o livro ainda relata uma paralisação da categoria dos cenotécnicos de
cinema no ano de 1945. Em 05 de outubro desse ano o movimento foi cruelmente repe-
lido pela polícia por meio de um ataque aos piquetes montados nos portões da Warner
Brothers, em uma passagem que ficou marcada, para a história do sindicalismo dos EUA,
como “Hollywood Black Friday” (ou a “Sexta-feira sombria de Hollywood”).

sumário 253
Através da correlação entre a ficção e a realidade, podemos
ver representadas duas formas de um sequestro da força de trabalho
e da voz dos coletivos. No filme, o sindicato (como era controlado por
Friendly) roubava aos estivadores uma possibilidade de representa-
ção diante das relações de trabalho no cais. Já em Hollywood, os
grandes estúdios exigiam dos artistas submissão total às condições
da HUAC, tornando a colaboração com o comitê condicionante de seu
acesso, ou não, às possibilidades de trabalho. E ainda que comba-
tendo ativamente aqueles que, nas décadas anteriores, construíram a
tradição da arte de esquerda nos EUA, Hollywood apropriava-se das
conquistas técnicas desenvolvidas por essa mesma geração, para
efeito de modernização e desenvolvimento da qualidade artística de
suas produções – como atesta a história da inserção do Método na
grande indústria do cinema. Essa apropriação da técnica também
pode ser compreendida como uma forma de sequestro da força de
trabalho e do histórico da classe artística – ainda que, ao fim, esse
sequestro tenha sido operado com a cumplicidade de pessoas que
fizeram parte da construção dessa mesma história.

Inegavelmente, muita coisa mudou na relação entre intérpretes e


produtores depois da entrada do Método em Hollywood, e seu estron-
doso sucesso. Brando, por exemplo, foi uma das primeiras figuras a
quebrar o antigo sistema de contratação de atores como funcionários
exclusivos de um estúdio. Ao assinar contratos por obra, ele podia es-
colher as produções nas quais iria se engajar, além de negociar o valor
e as condições de seu trabalho. Essa conquista emancipa de forma
transformadora o ofício do ator: na esteira da emancipação técnica,
que tornou os atores profissionais conscientes da elaboração prática
de seu ofício por conta do domínio de uma linguagem comum, o Mé-
todo ofereceu aos intérpretes a possibilidade de se tornarem profissio-
nais liberais. Trabalhadores autônomos, com capacidade de negociar
diretamente com os produtores (mediados, obviamente, por seus em-
presários e agentes) as condições de seu contrato de trabalho.

sumário 254
Isso não significa ainda, porém, uma emancipação coletiva da
categoria. Pelo contrário, não é preciso ir muito longe para entender
que essa relação impulsionou a lógica do star system, conferindo au-
tonomia de decisão de contrato como moeda de troca pela fama e o
alcance publicitário das celebridades, que agregavam grande interes-
se e valor aos filmes. Assim como nem todo intérprete tinha o prestí-
gio de Brando em Hollywood, essas condições não se tornaram uma
conquista para toda a categoria, mas um privilégio de suas figuras de
destaque (o que nos faz ainda ressoar a imagem de Terry caminhando
para dentro do galpão, à frente e quase que à parte da massa de esti-
vadores, literalmente figurantes de sua trajetória pessoal).113

Mas essas contradições não foram exclusivas do sistema de


produção da indústria cultural. A narrativa de desmanche da organi-
zação sindical contada em “Sindicato de Ladrões”,e do subsequente
sequestro da capacidade de representação de uma categoria de tra-
balhadores, retrata um amplo projeto político nacional, com efeitos
sentidos em todos os ramos de produção industrial do país à época.
Um outro exemplo desse projeto em ação em Hollywood é a traje-
tória do Screen Actor´s Guild (sindicato da categoria dos atores de
cinema, fundado ainda nos anos 1930) que sempre agiu de acordo
com os interesses dos grandes estúdios, transformando-se em uma
das organizações de classe mais influentes, e conservadoras, da in-
dústria cinematográfica, sendo na época um ardoroso apoiador dos
processos da HUAC por meio de seu presidente, ninguém mais nin-
guém menos que Ronald Reagan – o futuro 40º presidente dos EUA,
no início dos anos 1980, pelo Partido Republicano.

Ao fim desses apontamentos, fica evidente que não podemos


interpretar “Sindicato de Ladrões” como um filme que se posicione de
maneira unilateral ou acrítica diante de todo esse movimento da história.
113 “Indústria cinematográfica e empreendimentos conexos nunca brincam em serviço.
Como atores constituem um insumo precioso, investe-se criteriosamente na criação de
mitos, sobretudo através dos mecanismos de propaganda, pois a empresa que tem um
ídolo entre seus empregados registra lucros seguros. Daí também o cuidado com que se
planeja e administra a exploração da sua imagem.” COSTA, 2001, pg. 155.

sumário 255
Ainda que seja tradicionalmente interpretado como uma defesa aberta
do discurso de colaboração com o Macartismo, não se pode ignorar
que há uma certa ironia em seu desfecho. Ao invés de celebrar a so-
brevivência do protagonista como uma vitória perante a máfia, e por
consequência o vislumbre de uma alternativa de libertação da classe
dos estivadores de um sistema opressivo de organização, a obra pare-
ce revelar uma consciência maior sobre esse processo. Como vimos,
o registro de múltiplos pontos de vista sobre a situação; a relação entre
a falta de autonomia de Terry, a condução do padre Barry e a reação
passiva da massa de trabalhadores, exploradas ao longo de todo o
filme; assim como a imagem final de bloqueio que pontua a trajetória
dos estivadores (no fechamento da porta do galpão) reconhecem, na
conclusão da obra, um impasse para a organização do coletivo.

Dessa forma, conseguimos identificar nesse impasse o aspecto


que torna a obra um testemunho tão representativo, quanto comple-
xo, das relações de trabalho dos artistas diante do Macartismo e das
demandas de Hollywood. Para além de toda a publicidade colabora-
cionista feita por Kazan e Schulberg (assim como por tantos outros di-
vulgadores) é preciso reconhecer no filme uma lucidez amarga, porém
consciente, da situação vivenciada pela classe artística. E essa lucidez
pode ser fruto das próprias dinâmicas de elaboração da obra, que foi
capaz de incorporar, em sua forma, as discordâncias dos artistas que
trabalharam juntos em sua realização. Assim, esse debate, que gera
um desvio no projeto inicial do diretor e do roteirista é, talvez, uma das
maiores marcas da autoria dos atores na estrutura do filme. Como se
o elenco (ou parte dele) tomasse para si a representação do protago-
nista e a configuração, em cena, das relações internas das principais
personagens, tensionando com isso os caminhos determinados pelo
roteiro e pela direção ao revelar, através de seu trabalho de interpreta-
ção, um herói duvidoso de trajetória questionável.

É, talvez, como se a “derrota” do projeto de emancipação de


Terry Malloy fosse determinada pelas escolhas do trabalho do elenco,

sumário 256
estabelecendo uma narrativa que atesta, por contradição, uma con-
quista da categoria dos intérpretes no desenvolvimento das relações
de trabalho que estruturam o filme. Conseguimos, com isso, propor
uma resolução possível para a equação montada pela coexistência, na
mesma obra, do desejo de defesa da delação por Kazan e Schulberg,
e da postura contrária a essa defesa, reconhecidamente representa-
da por Brando, encabeçando o elenco como figura de ponta do star
system à época, e que configurou na relação com os outros atores
em cena seu testemunho sobre a personagem que representou e so-
bre a obra como um todo. De outra forma, não conseguiríamos con-
siderar o poder de escolha do intérprete sobre os modos de executar
seu trabalho (ao determinar como representar seu personagem), nem
compreender o sentido de um processo de criação colaborativa entre
direção e elenco, no resultado final da obra. Com isso, fica claro que
o caráter negociador que conduz a elaboração formal do filme não
se resume apenas à relação entre seus realizadores de um lado e os
representantes do sistema de produção (grandes estúdios, financia-
dores, distribuidores, a própria HUAC, etc) do outro. Pelo contrário, a
necessidade de negociação entre interesses e pontos de vista distintos
determina as próprias relações internas entre os artistas que, de for-
ma colaborativa, executam a criação, gerando materiais, discursos e
imagens que o diretor precisa considerar no trabalho de edição final.

Assim, o impasse reconhecido na cena que conclui “Sindica-


to de Ladrões” é uma ressonância dos impasses sentidos na relação
entre as conquistas da classe artística com o sistema de produção na
história do desenvolvimento da indústria cultural dos EUA. A considera-
ção desse contexto ajuda no esforço de compreender a significação do
Método para o cinema. O que nos leva a tentar identificar, na história da
técnica, o limite que separa um potencial progressivo – no seu desen-
volvimento a partir dos anos 1920 e 1930 – dos efeitos contraditórios
surgidos após sua adoção pelos estúdios de Hollywood, que gerou, a
partir das décadas seguintes, uma homogeneização da expressão do
ator no cinema, através de uma prática mais voltada para a obtenção

sumário 257
de uma simulacro de “verdade”, com a exploração cada vez maior da
expressão íntima dos intérpretes (segundo algumas abordagens). Ain-
da assim, não se pode ignorar o potencial criativo que a técnica repre-
sentou para o cinema na sua chegada em Hollywood, reformulando as
relações de trabalho no ambiente de produção cinematográfica. Dessa
maneira, não é possível categorizar um ponto de visto unilateral sobre
o Método, mas compreender que essas contradições não se resolvem
a partir da defesa específica de uma ou outra abordagem. Mais do que
isso, fazem parte do desenvolvimento de seu repertório.

É esse o sentido expresso ao pensarmos que a própria ideia de


um Método já é, por si, um paradoxo. Afinal, não existe uma técnica
determinada e padronizada em sua utilização pelos artistas de teatro e
cinema. Pelo contrário, o Método é a concentração das diversas abor-
dagens e estilos, ideias e conceitos em constante debate e reformula-
ção, que surgiram a partir de um objetivo em comum: o estabelecimen-
to de uma linguagem de interpretação em sintonia com a verdade da
expressão pessoal de cada intérprete, evitando maneirismos, clichês e
estereótipos, seguindo o projeto de estabelecer uma linguagem própria
de expressão do ator nos EUA. Esse objetivo, não podemos esquecer,
estava inserido em um projeto ainda maior (como vimos ao longo de
todo esse trabalho) de conquistar novas formas de representação das
classes trabalhadoras do país através do reconhecimento de suas par-
ticularidades de expressão (a partir de um movimento de “laborização”
da cultura estadunidense, recuperando o termo de Michael Denning).

Dessa forma, chegamos ao ponto de supor que os debates e


discordâncias internas entre os antigos coletivos que se formaram no
período histórico da arte engajada dos EUA (que é um dos materiais
da elaboração de “Sindicato de Ladrões”), assim como os efeitos pos-
teriores desse ambiente, não sejam talvez uma consequência devida
unicamente ao Macartismo (ou ao Red Scare anterior, nos anos 1930).
Antes, talvez o Macartismo tenha sido tão eficaz porque soube reco-
nhecer, explorar e expandir um contexto de debates, ou disputas, que

sumário 258
já se encontrava em andamento na história da formação da indústria
cultural dos EUA, se infiltrando nesse cenário e aproveitando dessas
divergências. Por fim, essa ação do Macartismo ofereceu à indústria
a oportunidade para conseguir eliminar as tendências consideradas
politicamente mais subversivas, ao mesmo tempo em que absorvendo
referenciais e informações técnicas que aprimoraram e modernizaram
as linguagens do cinema em Hollywood.

Em todo caso, devemos reconhecer que os debates existentes


em torno do Método configuram uma característica de seu desenvol-
vimento (desde suas origens), sendo esse aspecto, também, uma de
suas maiores qualidades e potencialidades. É por conta dessa carac-
terística, assim como da centralidade que a técnica assumiu para o
desenvolvimento da própria história do cinema nos EUA, que defende-
mos aqui a ideia do Método como um campo de disputa.

Do ponto de vista do exercício da crítica, o principal objetivo ao


recuperar aqui a história do Método é se afastar de qualquer possibili-
dade de construir uma narrativa de dualidades essenciais – vencedores
ou vencidos, bons ou maus, certos ou errados – reconhecendo inclusi-
ve nessa tendência de interpretar a história um efeito da infiltração do
sistema, representado aqui pelo Macartismo, na escrita da vida cultural
do país. Pelo contrário, é preciso sempre considerar perdas e ganhos
do processo histórico ao longo de sua formação. As dicotomias entre
desenvolvimento técnico de um lado e a necessidade de aceitação das
demandas do sistema de produção do outro, criam o movimento de
constante negociação que pode ser reconhecido como mais um as-
pecto desse campo de disputa reconhecido na técnica. Isso evidencia
a própria continuidade do desenvolvimento das pesquisas e debates
acerca do Método, assim como a convivência dinâmica e produtiva en-
tre as diversas abordagens de sua execução, como uma postura de re-
sistência da classe artística – o que podemos atestar, como foi reconhe-
cido, no exemplo da relação entre os artistas que realizaram “Sindicato
de Ladrões”, e nas marcas dessa relação para a elaboração do filme.

sumário 259
Podemos perceber, assim, uma dialética na tradição do Método
de intepretação realista ao longo de toda sua história, desde os anos
1930 até os dias de hoje. Ao proporcionar uma ferramenta capaz de
produzir, no espaço ficcional do filme, uma sensação de verdade ab-
soluta que dinamiza a relação de identificação entre o espectador e a
figura do intérprete na tela, e através dessa, a relação entre o espectador
e a obra – que é, ao fim, o objetivo principal da estrutura dramática – ,
o Método tornou-se uma técnica a serviço do sistema. O sucesso de
algumas linhas de trabalho, como a desenvolvida por Lee Strassberg,
principalmente nas décadas em que esteve à frente do Actor´s Studio
(de 1951 até 1982, ano de sua morte), ou mesmo a de Sanford Meisner,
cujo método se tornou uma verdadeira febre hoje em dia em cursos para
atores iniciantes, estabeleceu o repertório comum da linguagem que
formou alguns dos principais astros do grande cinema Hollywoodiano.
O segredo do sucesso dessas abordagens – uma profunda explora-
ção e apropriação do material emotivo mais íntimo dos atores – criou,
como vimos, uma dependência de certos profissionais aos estímulos e
direcionamentos do preparador de elenco, ou da direção, na condução
de seu trabalho. Essa prática evoluiu na contramão da autonomia al-
mejada – e conquistada – pelos atores no início do desenvolvimento da
técnica. É famosa, por exemplo, a história de dependência absoluta de
Marilyn Monroe na presença de sua professora de interpretação, Paula
Strassberg (esposa de Lee) em todo set de filmagens em que trabalhou
desde quando começou a frequentar sessões no Actor´s Studio, com o
objetivo de ser reconhecida como uma atriz “mais séria”.

Porém, a crítica sobre os limites desse uso do Método sempre


existiu – como podemos ver configurada na relação de dependência
entre Terry e Padre Barry. Por isso mesmo, o foco no desenvolvimento
do trabalho do ator como uma prática ativa de reflexão e pesquisa
sobre seus repertórios e resultados foi o grande legado que o Méto-
do proporcionou para a arte cinematográfica no país, configurando,
através do trabalho do intérprete, uma ferramenta de progressão téc-
nica das próprias formas de narrativa e linguagens cinematográficas.

sumário 260
A continuidade dessa história pode ser percebida no desenvolvimento
imediatamente posterior dos filmes estadunidenses, assim como nos
caminhos que construíram, na década de 1960 em diante, um cinema
independente aos esquemas da grande indústria. Essa história pode
ser interpretada como uma continuação daquele espírito de estudo e
pesquisa constantes que, como vimos, animou a geração que, desde
os anos 1930 até a década de 1950, estabeleceu as bases de funda-
mento da técnica, no percurso que vai do trabalho do Group Theatre à
fundação do Actor´s Studio – e de tantos outros estúdios de formação
de atores criados por outros antigos colaboradores do Group.

A prática de pesquisa continuada sobre a técnica de interpre-


tação, entendida como um elemento primordial na elaboração do dis-
curso cinematográfico, possibilitou aos atores e diretores uma forma
de quebrar com certas determinações do sistema de produção e da
indústria cultural, agindo na contramão da hegemonia dos resultados
obtidos pelos usos do Método que se tornaram mais convencionais
ao longo dos anos. Esse processo de formação e desenvolvimento
do repertório técnico do intérprete possibilitou caminhos de diálogo,
interferência e proposição no trabalho de criação, estabelecendo de
vez um ambiente de coautoria colaborativa entre atores, diretores e
roteiristas. Esse caminho vai se tornar cada vez mais determinante na
tendência de produções que se estruturam a partir da consideração da
presença do intérprete como autor, e do espaço de ensaio e improvisa-
ção como práticas de criação da obra – interferindo de forma definitiva
na elaboração do roteiro e nas escolhas da encenação. É esse legado
do Método que se pode perceber, a partir nos anos 1960 e 1970 em
diante, no trabalho de realizadores tão distintos como Denis Hopper
e John Cassavettes, “atores/diretores” assim como foi Kazan, todos
igualmente comprometidos com uma ideia de renovação da expressão
estética e dos modelos de relação de trabalho criativo no cinema.

sumário 261
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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sumário 266
ÍNDICE REMISSIVO

A 136, 137, 172, 177, 178, 185, 190, 192,


ameaça global 15, 267 193, 258
antibelicistas 13 cultura política 9, 24, 30, 120, 131
arte 8, 9, 11, 13, 19, 28, 29, 45, 50, 52, 53, E
103, 114, 116, 117, 121, 122, 123, 131,
epidemia histérica 19
136, 141, 155, 157, 158, 160, 164, 171,
254, 258, 260 F
artistas 15, 16, 18, 19, 20, 24, 25, 26, 27, Filosofia 11
28, 29, 37, 38, 39, 40, 42, 44, 45, 49, 51,
52, 72, 92, 115, 116, 123, 131, 135, 136, G
137, 138, 139, 141, 154, 174, 175, 179, Grande Guerra 14, 16
180, 193, 194, 195, 196, 200, 228, 232, Guerra Fria 14, 26, 37, 45, 137, 185, 253
248, 253, 254, 256, 257, 258, 259 guerra hollywoodianos 14
Atividades Antiamericanas 16, 40, 174, 226
I
C ideias contagiosas 9, 13
capitalista 13, 14, 16, 48, 115, 159, 172, ideias radicais 16
178, 250 indústria 20, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 34, 40,
catástrofe 14 41, 45, 47, 52, 53, 69, 115, 116, 125, 130,
Ciências Humanas 11 135, 138, 150, 152, 155, 157, 176, 185,
cinema 10, 15, 17, 18, 19, 20, 23, 25, 26, 191, 192, 254, 255, 257, 259, 261, 267
28, 34, 37, 38, 40, 45, 49, 52, 53, 54, 55, indústria cultural 26, 29, 45, 47, 52, 115,
68, 92, 114, 115, 116, 117, 121, 138, 139, 130, 157, 185, 255, 257, 259, 261
151, 152, 153, 154, 155, 157, 161, 164, intervenção estadunidense 16
169, 170, 171, 173, 174, 177, 180, 184, invasão alienígena 13
186, 190, 191, 192, 198, 205, 224, 227,
L
228, 229, 233, 252, 253, 254, 255, 257,
258, 259, 260, 261, 264 Letras 11, 263
conflitos violentos 13 M
consciência 10, 19, 21, 27, 28, 36, 37, 45,
66, 68, 72, 74, 75, 76, 77, 82, 86, 87, 103, mercado mundial 15
105, 113, 117, 121, 122, 133, 135, 137, N
156, 184, 189, 190, 194, 203, 204, 206, nação hegemônica 15, 267
213, 233, 256 nazismo 15
constituição socialista 13 nova cultura política 9, 120
cultura 9, 12, 14, 19, 24, 28, 30, 39, 44,
45, 46, 48, 77, 120, 130, 131, 132, 135, O
obra cinematográfica 26, 28, 141, 228

sumário 267
opinião pública 18, 40, 41, 42, 44, 51, 69, S
185, 237, 247 Segunda Guerra Mundial 14, 109, 137, 185
P sistema capitalista 14, 115, 159
sociabilidade 27, 28, 50, 125, 172, 224, 239
panorama histórico 26
socialismo 13, 14
pensamento político 14
solidariedade 9, 13, 19, 27, 42, 45, 47,
pós-macartismo 10, 252
134, 135
proporções globais 14
T
R
terceiro mundo 15
reorganização política 26
Romance 9, 120

sumário 268
SOBRE O AUTOR

Bruno Gavranic Zaniolo

Mestre (bolsista CAPES) pelo Departamento de Línguas Modernas da FFLCH/


USP, onde desenvolveu projeto de pesquisa sobre as relações entre teatro e
cinema nos EUA durante o Macartismo através de uma análise do filme “On the
Waterfront” (“Sindicato de Ladrões”), de Elia Kazan, mais especificamente dis-
cutindo o uso do Método de interpretação realista no filme (trabalho realizado
sob a orientação do Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares). Bacharel e licen-
ciado em letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo, com habilitação em português e inglês. Doutorando
(DLM/FFLCH/USP), realiza projeto de pesquisa sobre o cinema independente
dos EUA nos anos 1970 a partir da obra dos diretores John Waters e John
Cassavetes. Ator, autor (poeta e dramaturgo) e professor de literatura e línguas
portuguesa e inglesa. Possui formação técnica como ator pela Escola de Arte
Dramática da Universidade de São Paulo. É professor de língua portuguesa
dentro da área de Linguagens e Suas Tecnologias no curso de ensino médio
integrado ao técnico do SENAC Nações Unidas. Atualmente, está preparando
a edição do livro baseado em sua dissertação de mestrado, que sairá em 2023
pela editora Pimenta Cultural com o título de “Sindicato de Ladrões - o Método
como campo de disputa em Hollywood”, dentro da coleção Estudos Linguísti-
cos e Literários em Inglês, em parceria com o DLM/FFLCH/USP.

sumário 269

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