Pedro Sette Camara e Silva Dissertacao

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Pedro Sette Câmara e Silva

Ler e usar a literatura: alguns artifícios para o envolvimento do


leitor

Rio de Janeiro
2015
Pedro Sette Câmara e Silva

Ler e usar a literatura:


alguns artifícios para o envolvimento do leitor

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
Letras, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Teoria da Literatura e Literatura
Comparada.

Orientador: Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha

Rio de Janeiro
2015
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

S586 Silva, Pedro Sette Câmara e


Ler e usar a literatura: alguns artifícios para o envolvimento
do leitor / Pedro Sette Câmara e Silva. – 2015.
87 f.

Orientador: João Cezar de Castro Rocha.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Literatura – História e crítica – Teses. 2. Leitores –


Reação crítica – Teses. 3. Estética literária – Teses. 4.
Hermenêutica – Teses. 5. Romances de cavalaria – Teses. 6.
Crítica – Teses. 7. Mimese na literatura – Teses. 8. Heróis na
literatura – Teses. I. Rocha, João Cezar de Castro. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III.
Título.

CDU 82.01

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta dissertação desde que citada a fonte.

______________________________________ __________________
Assinatura Data
 
 
 
Pedro Sette Câmara e Silva

Ler e usar a literatura: alguns artifícios para o envolvimento do leitor

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Teoria da Literatura e
Literatura Comparada.

Aprovada em 26 de fevereiro de 2015.

Banca Examinadora:

________________________________________
Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha (Orientador)
Instituto de Letras - UERJ

_________________________________________
Prof. Dr. Marcus Vinicius Nogueira Soares
Instituto de Letras - UERJ

_________________________________________
Profa. Dra. Regina Lúcia de Faria
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2015
RESUMO

SILVA, Pedro Sette Câmara e. Ler e usar a literatura: alguns artifícios para o
envolvimento do leitor. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e
Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Nesta dissertação investigamos como a ficção envolve o leitor. Para isso,


partimos da rejeição a Homero declarada por Calímaco, observando que a suposta
diferença entre a literatura preferida pelo público e a literatura preferida pela crítica
depende de dois fatores distintos. O primeiro é o simples fato de a crítica ler
profissionalmente e o público ler por prazer. O segundo está relacionado à distinção
entre recepção e uso da literatura proposta por C.S. Lewis. Na recepção, a obra
tende a ser admirada por si; no uso, tende a ser instrumentalizada como suporte
para um devaneio em que os desejos do próprio leitor são vicariamente satisfeitos.
Observamos que essa devaneio, que Lewis chama de construção egoísta de
castelos, e que inclui uma variante “mórbida”, tem um paralelo na noção girardiana
do “duplo angélico”. Contudo, o devaneio depende da simpatia como definida por
Adam Smith, a qual por sua vez depende de certa aprovação moral. Investigamos
portanto o tipo de personagem que conquista a aprovação moral do leitor,
contrastando os heróis homéricos com os cavaleiros cristãos a fim de verificar como
o cristianismo dirige a aprovação moral para as vítimas, fazendo com que os heróis
da ficção sejam pessoas perseguidas ou marginalizadas.

Palavras-chave: Adam Smith. Bovarismo. Calímaco. Cervantes. C. S. Lewis. Desejo.


Devaneio. Duplo angélico. Entretenimento. José de Alencar. René
Girard. Romances de Cavalaria. Teoria mimética.
ABSTRACT 

SILVA, Pedro Sette Câmara e. Reading and using literature: some artifices for
engaging the reader. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e
Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015

In this dissertation we investigate how fiction involves the reader. Starting


Callimachus’s rejection of Homer, we note that the supposed diference between the
literature favoured by the public at large and the literature preferred by critics is
actually twofold. First, critics read for business and the public reads for pleasure.
Second, as proposed by C.S. Lewis, there is a distinction between the reception and
use of literature. In reception, a work tends to be admired in itself, whereas in use it
becomes a mere support for a sort of daydreaming in which the reader’s own desires
are vicariously satisfied. We discuss this daydreaming called ‘egotistic castle-
building’ by Lewis, highlighting its ‘morbid’ variant, which finds a parallel in the
Girardian notion of the ‘angelic double’, developed from a reading of Proust. Now, as
’egotistic castle-building’ in its turn depends on sympathy as defined by Adam Smith,
a concept which includes moral approval, we investigate the types of characters who
obtain the moral approval of readers, contrasting the warriors from Homer’s poems
with Christian knights in order to show that Christianity directs moral approval
towards the victims. In a Christian society, fictional heroes must be people who are
persecuted or at least marginalised.

Keywords: Adam Smith. Angelic Double. Bovarism. Callimachus. Cervantes.


Chivalric romance. C.S. Lewis. Daydreaming. Desire. Entertainment.
José de Alencar. Mimetic Theory. René Girard.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: CALÍMACO ..............................................................................7


1 Como a literatura nos envolve ....................................................................... 14
1.1 O estilo homérico ............................................................................................ 15
1.2 Um comentário antecipatório: o folhetim oitocentista................................. 17
1.3 Uma nota sobre o suspense ........................................................................... 19
1.4 A simpatia segundo Adam Smith .................................................................. 20
2 USOS DA FICÇÃO ........................................................................................... 28
2.1 A construção egoísta de castelos: “A atraente fantasmagoria das
realidades sentimentais” .............................................................................. 28
2.2 A construção mórbida de castelos ................................................................ 34
2.3 O bovarismo antes de Quixote....................................................................... 37
2.4 O devaneio ....................................................................................................... 40
3 SOBRE O DUPLO ANGÉLICO: A MEDIAÇÃO EXTERNA EGOÍSTA ............ 42
3.1 Breve recapitulação dos pontos essenciais ................................................. 42
3.2 O desejo não é deste mundo.......................................................................... 43
3.3 O desejo mimético .......................................................................................... 44
3.4 O duplo angélico ............................................................................................48
3.5 Mediação externa egoísta ............................................................................... 51
4 “MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES” ............................ 54
4.1 Simpatia pelos spoudaios .............................................................................. 54
4.2 Aquiles e Ulisses ............................................................................................. 57
4.3 La Quête du Graal, ou A demanda do Santo Graal ...................................... 59
4.4 Breve descrição do início e da estrutura da Demanda do Santo Graal
francesa: spoudaioi em busca do Graal ....................................................... 61
4.5 Percival e a recusa explícita da violência: “por medo de ser tomado por
vilão” ................................................................................................................ 63
4.6 Bohort: “Se defendo minha vida, não me imputeis um pecado” ................ 65
4.7 Galaad .............................................................................................................. 66
5 Heróis (porque) perseguidos ........................................................................ 69
5.1 A dignidade de ser maltratado ...................................................................... 72
5.2 Lucíola ............................................................................................................. 74
5.3 Prólogo a O Guarani: desvalorização e valorização do índio .................... 76
5.4 O Guarani ........................................................................................................ 78
CONCLUSÃO .................................................................................................. 82
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 85
7

INTRODUÇÃO: CALÍMACO

Detesto o poema que é cíclico, e também não gosto


das estradas com muita gente, nem de quem nelas trafega,
odeio o amante rodado, não bebo da fonte comum:
tenho aversão a todas as coisas popularescas.
Lisânias, sim, és belo belo — mas antes de eu falar
isso claramente, Eco diz: “outro o possui”.

(Ἐχθαίρω τὸ ποίημα τὸ κυκλικόν, οὐδὲ κελεύθωι


χαίρω τίς πολλοὺς ὧδε καὶ ὧδε φέρει,
μισέω καὶ περίφοιτον ἐρώμενον, οὐδ᾽ ἀπὸ κρήνης
πίνω: σικχαίνω πάντα τὰ δημόσια.
Λυσανίη σὺ δὲ ναιχὶ καλὸς καλός — ἀλλὰ πρὶν εἰπεῖν
τοῦτο σαφῶς, Ἠχώ φησί τις ‘ἄλλος ἔχει᾽.)

Calímaco de Cirene (310 a.C — 240 a.C.), Epigrama XXVIII1

Dois milênios antes que Felipe Pena organizasse, em 2012, a antologia


intitulada Geração Subzero, que prometia, segundo o subtítulo, 20 autores
congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores, o poeta Calímaco de Cirene,
funcionário do Museu de Alexandria, parecia encarnar a atitude de esnobismo que,
no mundo das Letras, costuma ser atribuída ao país acadêmico.
De fato, existe um curioso paralelo entre o que diz Calímaco em seu epigrama
XXVIII, a forma da expressão do que ele diz, e aquilo que Felipe Pena atribui à
produção brasileira atual:

“A literatura brasileira contemporânea tem poucos autores dispostos a


contar uma boa história, sem a preocupação de produzir experimentalismos
e jogos de linguagem.”2

Atendo-nos primeiro à forma, o poema de Calímaco tem algo de


“experimental”, e sem a menor dúvida está cheio de “jogos de linguagem”. Com
meros seis versos, os dois últimos, um terço da obra, parecem conter uma
digressão, como se fosse um anacoluto, em que o poeta, após arrolar aquilo de que
não gosta, subitamente revela sua preferência por Lisânias e medita sobre situação
em relação ao rapaz. Ao revelá-la, repete o adjetivo καλός (kalós, belo), criando um
eco. No verso seguinte, reproduz o eco em ἄλλος (allos, outro), que fica entre o

1
CALLIMAQUE 1972. Tradução nossa. Todas as traduções sem indicação do tradutor são de nossa
autoria.
2
PENA 2012, p. 12.
8

nome da ninfa Ἠχώ (Ekho, Eco) e o verbo ἔχει (ékhei, possui). O jogo de ecos e
aliterações, que sequer foi discutido por completo, reflete o que está sendo dito: o
belo, Lisânias, é posse de outro; quando algo é possuído, torna-se parte de nós, e o
eco pode ser tanto uma representação de como nós mesmos nos repetimos para
nós mesmos, procurando nos outros as nossas próprias preferências, quanto um
eco sonoro que, distanciando-se, vai ficando cada vez mais difícil de ser apreendido.
Mais ainda, o próprio nome de Lisânias pode ser visto não simplesmente como o
nome de alguém, como a pura referência a uma pessoa, que, podendo ser
substituída, permitiria que cada leitor tivesse o seu Lisânias. Isso porque, no poema,
o nome aparece em sua forma vocativa, Λυσανίη, mas a palavra grega λυσανίας
(lysanías) significa “aquilo que acaba com a tristeza”. O belo, enfim, ecoa em nós,
repete-se por aí, e o poema é capaz de reproduzir tudo isso.
Depois dessa reflexão, o que parecia anacoluto revela estar intimamente
relacionado com o que veio antes: o poeta já andou pelas estradas de tráfego
intenso, já leu o poema que é cíclico — essencialmente, os poemas épicos que
narram os ciclos de aventuras de heróis, atribuídos a Homero — e o belo continua a
escapar-lhe. Isso parece reforçado pelo uso da partícula δὲ, aqui usada de maneira
enfática, e por isso traduzida como “sim”: “Lisânias, sim, és belo belo”. Se
pensarmos em Lisânias como “aquilo que acaba com a tristeza” e ainda
identificarmos isso ao belo, podemos imaginar que Calímaco foi depurando sua ideia
de beleza, encontrando-a em lugares cada vez mais rarefeitos, e preferindo escrever
uma poesia extremamente concentrada, mais capaz de dar prazer a quem, de tanto
ler, já não fica impressionado com a mesma facilidade de antes.
Mal começamos a contemplar esta pequena joia que é o epigrama XXVIII de
Calímaco — os ecos e as aliterações dos primeiros versos nem foram mencionados,
por exemplo —, o mais reproduzido em antologias de poesia helenística,
selecionado inclusive para o Oxford Book of Classical Verse in Translation. Contudo,
uma tradução que de fato desse conta de sua riqueza demandaria esforços ou
talentos incríveis, como o comentário acima espera ter deixado claro. Comentário
brevíssimo, mas que poderia alongar-se bastante, recordando toda a riqueza que
pode haver em “experimentalismos e jogos de linguagem”.
Desse comentário a Calímaco sai um dos principais fios condutores deste
trabalho, que pretende discutir algumas características essenciais da literatura que
seria a preferida pelos leitores, na visão de Felipe Pena. Uma literatura que se pode
9

chamar comercial, de entretenimento3, ou, como será proposto mais adiante, do


devaneio, submetido a um certo uso. Almejaremos ainda explicar um dos motivos da
diferença entre as preferências de leitores como Calímaco, experientes, quiçá
especializados, e as preferências de leitores que preferem absorver as obras sem
questionar-se tanto sobre sua composição.
Calímaco de Cirene foi, como se disse, um homem de letras profissional,
funcionário do Museu, ou Instituto das Musas, de Alexandria, conhecido por sua
biblioteca, que reuniria o saber e as realizações literárias do mundo antigo. Calímaco
era um dos responsáveis por ler o material recebido pela biblioteca e catalogá-lo. Se
no epigrama XXVIII é o talento propriamente poético ou artístico de Calímaco que
fica evidenciado, em seus hinos a deuses transparece sua erudição. Os hinos são
verdadeiros tours de force dos detalhes coletados por um bibliotecário.
Assim, a situação profissional de funcionário do Museu permite a Calímaco
olhar a cultura como algo entre parênteses, catalogável e catalogado, e falar de um
gosto popular, relacionado ao “poema que é cíclico”.
Ora, o poema cíclico é o longo poema épico que conta os ciclos de episódios
de heróis; é, em primeiro lugar, dos poemas homéricos que Calímaco está falando.
Aliás, a famosa rixa entre Calímaco de Cirene e Apolônio de Rodes teria sua origem
justamente no fato de Apolônio ter escrito Os argonautas, poema épico que, apesar
de não ser tão longo quanto a Ilíada ou a Odisseia, era “cíclico”, contando histórias
de heróis. O rei Ptolomeu Sóter, patrono do Museu de Alexandria, teria então
promovido Apolônio a uma posição superior à de Calímaco.
Mas Calímaco parece estar falando não apenas de Homero em seu poema.
Na sociedade rica e cosmopolita da Alexandria helenística havia uma literatura
voltada para o gosto do público, que circulava por meio de cópias manuscritas. Vale
a pena reproduzir, a esse respeito, as palavras do historiador literário F. A. Wright:

Uma das principais diferenças entre os autores atenienses e os


alexandrinos é que os alexandrinos eram homens de letras profissionais,
escrevendo com um propósito claro – instruir ou divertir. Os atenienses,
ainda que dotados de maior talento, eram amadores, e seus textos eram
parte de sua vida pública, não de sua vida privada. Eles não tentavam

3
Impossível não citar o importante ensaio “Por uma literatura brasileira de entretenimento”, de José
Paulo Paes (São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 25-38). No entanto, no ensaio, Paes opera
dentro de um contexto de “cultura de massas”, opondo “literatura de entretenimento” e “literatura de
proposta” a partir de noções de Umberto Eco. Pretendemos trabalhar num campo mais básico, até
mesmo porque nos parece que muitas obras literárias que talvez fossem consideradas “de proposta”
podem ser perfeitamente lidas como entretenimento, o que depende do leitor.
10

divertir; na verdade, eles mantêm seus leitores à distância e raramente lhes


dão confiança. Em Alexandria a literatura se movia numa esfera mais
ampla, e também mais baixa: ela perdeu em profundidade, mas ganhou em
difusão, e autores como Herodes e Sátiro, ainda que não tivessem
nenhuma ideia muito elevada de suas funções, sem dúvida atingiam um
público que nunca teria apreciado Tucídides ou Ésquilo. Muitos livros eram
escritos simplesmente para agradar; e, com a ajuda de Ateneu e dos
papiros, hoje podemos formar alguma ideia dessa literatura popular, e
classificá-la de várias maneiras.
Em primeiro lugar temos as biografias íntimas, repletas de detalhes
pessoais, como aquelas escritas por Hermipo e por Antígono, assim como
as cartas imaginárias atribuídas a mortos ilustres; depois, as histórias
melodramáticas, como a de Alexandre, escrita por Clitarco; as coleções
informativas de prodígios e de acontecimentos estranhos conhecidas como
parádoxa; e, intimamente relacionadas a elas, as histórias de viagens ao
estrangeiro, de que temos um exemplo nas aventuras munchauseanas de
4
Iambo mencionadas por Diodoro Sículo. (…)

Pela citação, parece que não há muita diferença entre a literatura popular de
mais de dois mil anos atrás e a contemporânea, o que reforça a atualidade — esse
valor tão prezado — do poema de Calímaco. De um lado, uma literatura para
poucos, que chama a atenção para seu processo de composição, que depende de
uma leitura atenta para ser apreciada, uma literatura que incita discussões sobre
temas filosóficos e sobre a própria literatura. De outro, uma literatura que entretém
chamando a atenção para o conteúdo daquilo que está sendo dito.
É preciso observar que o primeiro gênero que Calímaco diz rejeitar — mas
antes de enxergar um esnobismo gratuito nessa rejeição lembremos que, se o poeta
diz que Lisânias é que é belo, então ele já se impressionou com outras belezas
antes… — é o “poema que é cíclico” e, por conseguinte, o primeiro autor que
Calímaco despreza é ninguém menos do que Homero, hoje visto como ninguém
menos do que o fundador da literatura ocidental. Um relato como a Odisseia
certamente tem elementos sensacionais para agradar ao público: é uma “história de
viagem ao estrangeiro”, ou melhor, por terras estrangeiras, repleta “de prodígios e
de acontecimentos estranhos”. E, mesmo que as duas mais longas obras atribuídas
a Homero estejam escritas em verso, é transferido para a literatura popular, escrita
eminentemente em prosa, o seu caráter épico, de sequenciação de acontecimentos.
Estamos cientes do possível anacronismo potencial de nosso projeto. Entre
Calímaco e seus leitores havia uma certa comunhão de códigos, assim como existe
uma certa comunhão, diferente, entre autores e leitores contemporâneos. No
entanto, desejamos investigar elementos bastante básicos, que possam subjazer às

4
WRIGHT 1932, p. 123.
11

experiências de uso e recepção da obra literária, como apresentaremos nos


próximos capítulos.
Além disso, vale ressaltar que não é a questão de “o que é bom”, complexa e
inevitável, a que motiva este trabalho, e sim a tentativa de encontrar elementos
comuns a obras que fazem parte do gosto do público, mostrando inclusive o que
sucede quando a literatura hoje canonizada assume conscientemente esses
elementos e tenta dar conta deles.

Roteiro da dissertação

Todavia, estamos ainda bem longe da literatura adorada pelo público


brasileiro do século XXI e defendida por Felipe Pena. Para chegarmos aos
elementos gerais que definiriam essa literatura preferida pelo público, vamos ter de
passar por alguns pontos, pontos esses que constituirão as escalas de nossa
trajetória.
Nossa discussão começará por uma rememoração das características
essenciais do estilo homérico tal como apresentadas por Erich Auerbach em “A
cicatriz de Ulisses”, primeiro capítulo do incontornável Mimesis. Essa rememoração,
por sua vez, será complementada pela teoria da simpatia de Adam Smith. O filósofo
do iluminismo escocês, apesar de conhecido por A riqueza das nações, publicou
antes sua Teoria dos sentimentos morais. A maneira como surge em nós a simpatia
— que hoje alguns talvez preferissem chamar “empatia” — por outro ser humano
também explica como surge a simpatia por personagens de ficção. Um dos pontos
ressaltados por Smith, que será relevante para discussões posteriores, é a
necessidade de aprovação moral. Assim, teremos uma pequena teoria do
envolvimento do leitor.
Em seguida, traremos o irlandês C. S. Lewis, que, em An Experiment in
Criticism, buscou distinguir dois públicos leitores, um “literário” e outro “não-literário”,
divisão que não corresponde à “erudito” e “popular”5. Lewis tenta definir a

5
A verdade é que Lewis sequer trabalha com essa distinção. Para ele, o que está em jogo é a
questão do uso e da capacidade de recepção de uma obra de arte. Na única instância em que a
palavra inglesa popular é usada de maneira negativa, ela vem entre aspas: “Aqueles que estão no
nível ‘popular’ em relação a uma arte podem apreciar outra em profundidade; os músicos às vezes
têm preferências deploráveis em poesia.” Mais ainda, na mesma página, Lewis faz uma ressalva
quanto àqueles que nós chamaríamos de eruditos: “O que mais admira e consterna é o fato de que
aqueles que se poderia esperar terem ex officio uma apreciação profunda e permanente da literatura
talvez não a tenham absolutamente.” (LEWIS, p. 6.)
12

experiência de leitura do público “não-literário” a partir da noção de “construção


egoísta de castelos no ar”. Veremos como a literatura já dava conta desse fenômeno
de “construção de castelos” considerando Dom Quixote e Madame Bovary.
Por essa noção de Lewis chegaremos à de “duplo angélico”6, proposta pelo
pensador francês René Girard, inspirador, em última instância, deste trabalho. A
noção de duplo angélico, criada por Girard como uma projeção do autor e não do
leitor, pode no entanto servir como projeção do leitor, segundo o uso que este faz da
obra.
Retomando a questão da aprovação moral, precisaremos recordar que o leitor
contemporâneo ocidental pertence a um ambiente cristão ou ao menos cristianizado.
A própria literatura ocidental, como observa Auerbach, vem de um cruzamento entre
o estilo homérico e o estilo bíblico. Só que os heróis cristãos não podem ser como
os heróis pagãos. Surge a necessidade de criar heróis que correspondam aos ideais
cristãos, para que não seja gerada simpatia por figuras que poderiam ser vistas
como perniciosas. Assim, verificaremos a diferença entre Aquiles e Ulisses — os
heróis ou spoudaioi na terminologia de Aristóteles — e os cavaleiros que aparecem
na versão francesa da Demanda do Santo Graal (na versão em francês moderno de
Albert Béguin e Yves Bonnefoy), destacando os três que encontram o Graal:
Percival, Bohort e Galaad, este último um perfeito duplo angélico de um autor
cristão.
O século XIX, então, testemunha o nascimento de uma galeria peculiar de
heróis. Num texto jocoso7, Jane Austen explica que, a julgar pelas sugestões de
seus parentes, a protagonista ideal de um romance será uma moça inocente que é
perseguida de maneira implacável. Essa ideia de perseguição é ampliada para os
rejeitados da sociedade, e assim surgem personagens como o órfão Oliver Twist e o
ex-presidiário Jean Valjean. Examinaremos pois duas obras do Brasil oitocentista:
Lucíola e O Guarani, de José de Alencar, que tratam de duas figuras
marginalizadas: a prostituta e o índio. No entanto, mesmo essas figuras
marginalizadas ainda terão algo do duplo evangélico, e por mais que pareçam ser

6
A noção, proposta por Girard ao contrapor o narrador proustiano de Jean Santeuil com o narrador
da Recherche, aparece no ensaio “From the Novelistic Experience to the Oedipal Myth” (GIRARD
2004), que discutiremos posteriormente.
7
“Plan of a Novel According to Hints from Various Quarters” (1816), em AUSTEN 2007, p. 54-56.
13

fruto de uma sensibilidade bíblica, é no estilo homérico que suas aventuras e


desventuras devem ser narradas.
Comecemos, pois, discutindo alguns aspectos importantes da experiência de
leitura.
14

1 COMO A LITERATURA NOS ENVOLVE

Ao ler o poema de Calímaco com que abrimos esta dissertação, com seus
“experimentalismos e jogos de linguagem”, somos tomados de um certo
estranhamento e então convocados a estudá-lo. É com esse estudo que vem a
fruição. Portanto, o poema pede um certo compromisso, um certo empenho, para só
depois entregar o gozo. É preciso relê-lo, tendo notado que sua primeira chave está
no eco; do eco, notar as aliterações; perceber como a estrutura sonora espelha o
que está sendo dito; dar-se conta de que a primeira parte, em que o poeta fala do
que não gosta, está na verdade profundamente relacionada com a segunda; e, por
fim, ficar com a pergunta sobre o nome de Lisânias. Terá sido alguém? Seu nome
terá sido escolhido por seu significado no nominativo? As duas possibilidades ao
mesmo tempo? Cada vez que repetimos esses passos, recuperamos o mesmo
prazer, que vem misturado com admiração. Só é possível deixar-se levar pelo
epigrama XXVIII depois de tê-lo examinado detidamente, depois até de, talvez,
sabê-lo de cor. Esse exame, essa fruição, são experiências eminentemente
solitárias, que podem ser enriquecidas por conversas e até por debates, mas que se
dão antes de tudo na consciência individual.
Já os poemas de Homero a que Calímaco se referia, como bem sabemos,
são originalmente literatura oral, enunciada diante de uma coletividade. Hoje nós os
lemos em livros (em quase todos os casos, traduzidos), mas o costume era que as
aventuras dos heróis fossem cantadas em público, com grande teatralidade, como
nos dá testemunho o Íon de Platão8. Ainda estamos distantes da experiência de
fruição da prosa narrativa moderna, ou, a bem da verdade, nem tão distantes: no
Brasil oitocentista, cada novo capítulo de O Guarani era declamado em voz alta na
rua, e numerosos textos mencionam o hábito de a família reunir-se, normalmente
após o jantar, para ouvir a leitura de uma história — como aliás o próprio Alencar
menciona no opúsculo Como e porque sou romancista.
É claro que uma narrativa pode ter um grau de complexidade comparável ao
dos melhores poemas. Também é claro que uma narrativa pode, da maneira mais

8
Diz Sócrates: “não somente exige essa arte que vos apresenteis ricamente vestidos” (530b). Diz Íon:
“Quando declamo algo patético, enchem-se-me de lágrimas os olhos; mas se se trata de passagem
15

escancarada, chamar a atenção para a maneira como foi composta. Mas, como
observou Felipe Pena, isso, que é a preferência de um profissional das Letras como
Calímaco de Cirene, não é a preferência do público. O público prefere Homero. Ou o
estilo homérico. Uma obra pode prestar-se a quaisquer estudos, mas antes, muito
antes, precisa seduzir. Mais ainda: a fruição não pode depender de um estudo, que
deve permanecer totalmente opcional. E é por dever permanecer opcional que
alguns leitores podem surpreender-se ao descobrir que livros de que eles
simplesmente gostaram são objeto de estudos e de ensaios, como se o livro
morresse com o prazer proporcionado por sua leitura. Aqui, porém, aproximo-me
das ideias de C. S. Lewis; vamos permanecer na discussão do estilo homérico, com
a incontornável presença de Erich Auerbach.

1.1 O estilo homérico

Em seu clássico Mimesis, Erich Auerbach pretende explicar não como surgiu
a literatura preferida pelo público moderno, mas como surgiu o estilo realista
moderno. Segundo o crítico alemão, esse estilo vem, grosso modo, da fusão entre
dois estilos: o homérico e o bíblico, que seriam opostos.
Como vamos nos deter mais longamente no primeiro, apresentemos
brevemente o segundo.
É nos dois primeiros capítulos de Mimesis que Auerbach enfatiza a distância
entre os dois estilos, especialmente no primeiro, A cicatriz de Ulisses.9 Os episódios
que Auerbach escolhe para seu contraponto são o sacrifício de Isaac por Abraão e o
momento em que, no Canto XIX da Odisseia, a serva Euricleia reconhece, graças a
uma cicatriz na perna, o rei Ulisses, que retorna após vinte anos de ausência.
De acordo com Auerbach, o traço profundo e motivador do estilo bíblico é o
anseio de mostrar os acontecimentos já com uma certa interpretação, o que seria
obtido pela concisão extrema e pela omissão de diversos elementos, que seria
impensável no estilo homérico.

terrível ou apavorante, só de medo os cabelos se me eriçam e o coração fica a saltar” (535c).


Tradução de Carlos Alberto Nunes.
9
AUERBACH 2003, p. 3-23.
16

A conhecida narrativa do sacrifício de Isaac — em que Deus chama Abraão,


ordena-lhe que sacrifique o filho e manda um anjo na última hora para impedir o
assassinato — ocupa apenas os primeiros dezoito versículos do capítulo 22 do livro
do Gênesis. Praticamente toda a carga dramática do episódio, segundo Auerbach,
vem de Deus especificar para Abraão que ele deve tomar o “único filho a quem tanto
amas”, o que de certo modo individualiza o menino. No mais, as informações
concretas são poucas: Abraão dirigiu-se para o monte acompanhado do filho, sem
que saibamos se se trata de uma criança, de um adolescente ou de um adulto, e de
dois servos, sem que saibamos sequer os nomes deles; sua viagem demorou três
dias, e não sabemos nada do que sucedeu durante o trajeto; a única fala de Isaac
consiste em perguntar onde está o novilho a ser sacrificado. Não sabemos se fazia
sol, se chovia, se Abraão ficou contrariado com o pedido de Deus, se a voz do
Senhor era retumbante ou se, como em 1 Reis 19, 13, estava “no sopro de uma
branda viração”.
Segundo Auerbach, a omissão de tantos detalhes faz com que aqueles
poucos que são oferecidos pareçam especialmente significativos; e, sendo
especialmente significativos, sugerem a existência de uma interpretação da história.
O leitor ou ouvinte tem contato com a história do sacrifício de Isaac para embeber-se
da visão de mundo contida na história, para que sua vida seja interpretada por ela.
Graças a essa economia, o texto bíblico, ainda que não peça exatamente
fruição, pediria, como o epigrama de Calímaco, para ser estudado. Estaríamos
diante de uma curiosa e significativa semelhança entre o texto bíblico e a literatura
preferida pelo profissional do Museu de Alexandria. (Certamente não por acaso
veremos que Jesus, além de contar histórias — as parábolas — também costuma
oferecer em seguida uma breve explicação.)
No outro polo está o texto de Homero, pleno de descrições, pleno de
discursos eloquentes, pleno de detalhes. O episódio singularizado por Auerbach, o
momento em que Ulisses é reconhecido pela serva Euricleia, tem sua força, como o
sacrifício de Isaac, mas, na tradução do canto XIX empreendida por Frederico
Lourenço,10 temos 155 versos (do 350 ao 505) desde o momento em que Euricleia
se dirige pela primeira vez a Ulisses e o momento em que, após ter começado a
lavar seus pés, ela deixa a água entornar com o susto da descoberta e vai pegar

10
HOMERO. Trad. LOURENÇO, Frederico. Odisseia. Lisboa: Cotovia, 2003.
17

outro balde. Desses 155 versos, 70 são tomados por uma digressão com a história
de como Ulisses obteve a cicatriz, digressão essa que se inicia no momento em que
Euricleia a descobre. Em vez de haver um grande momento de tensão, Homero
recorre, segundo a correspondência entre Goethe e Schiller citada por Auerbach, a
“elementos retardadores” que dão certa uniformidade à experiência de ouvir ou ler a
história, amenizando esses pontos-chaves dramáticos com vívidas descrições. Por
exemplo, Auerbach enfatiza que, no mundo de Homero, os deuses estão sempre
vindo de algum lugar específico e assumindo uma certa forma para falar com os
mortais; o Deus de Abraão vem de lugar nenhum, e nem mesmo sua “voz” é
descrita. Abraão, “estendendo a mão, tomou a faca para imolar o filho”, mas não
sabemos qual mão; já Homero nos diz que foi com a mão direita que Ulisses agarrou
Euricleia, e com a esquerda que puxou-a para perto de si para ordenar que não
revelasse sua identidade.

Os poemas homéricos, então, ainda que sua cultura intelectual, linguística e


sobretudo sintática pareça muito mais amplamente desenvolvida [do que a
do o Antigo Testamento], são comparativamente simples em sua maneira
de retratar os seres humanos; e igualmente em sua relação à vida real, que
descrevem de maneira geral. O deleite na existência física é tudo para eles,
e seu maior objetivo é fazer com que esse deleite seja visível para nós.
Entre batalhas e paixões, aventuras e perigos, eles nos mostram caçadas,
banquetes, palácios e cabanas de pastores, disputas atléticas e dias de
libações — para que possamos ver os heróis na sua vida comum, e, ao vê-
los assim, sintamos prazer com sua maneira de gozar seu saboroso
presente, presente esse que crava fundas raízes em costumes sociais, na
paisagem e na vida cotidiana. E eles nos enfeitiçam e nos gratificam até que
vivamos com eles na realidade de suas vidas; enquanto estamos lendo ou
ouvindo os poemas, não importa se sabemos que tudo isso é só lenda, “faz
11
de conta”.

De um lado, portanto, temos a complexidade da superfície do texto, com uma


certa simplicidade daquilo que está sendo dito; de outro, um texto de construção
simples, mas elíptica, que conclama o leitor a trabalhar para interpretá-lo.

1.2 Um comentário antecipatório: o folhetim oitocentista

11
AUERBACH 2003, p. 13.
18

A estrutura episódica dos textos de Homero, sua linguagem elaborada, seu


foco narrativo no presente e, como viemos ressaltando até agora, sua riqueza de
detalhes vividamente apresentados, estão entre os principais elementos que vão
colocar a literatura preferido pelo público do período moderno em sua linhagem.
Por exemplo, tendo em mente a observação de Auerbach de que o maior
objetivo dos poemas homéricos é fazer com que o deleite dos personagens seja
vívido para nós, além de gratificar-nos e enfeitiçar-nos, logo pensamos na fruição
que o folhetim oitocentista buscava proporcionar a seus leitores. O salto temporal é
grande, mas o elemento comum é básico o suficiente para ser unificador. Leiamos o
trecho de Liliane Durant-Dessert citado por Marlyse Meyer em seu estudo, referência
indispensável em nosso idioma, dessa literatura popular, e que se chama Folhetim:
uma história:

E. Sue e Dumas […] descobrem ou inventam um arsenal técnico de


sedução, no qual o fragmento do texto cotidiano torna-se o
sobredeterminado liame de um encontro poderosamente erotizado pelo
autor e sentido como tal pelo leitor, no quadro de uma vasta estética do
Desejo, em que Sue se tornou mestre: ele manipula com habilidade a
dialética do desejo e do obstáculo, do algoz e da vítima, do mestre e do
escravo… Refinado e seguro, o belo Eugênio considera seu leitor como se
fosse uma mulher a ser seduzida e retida; com isso, preocupa-se mais em
dar do que em receber prazer… O romance-folhetim de E. Sue põe em
ação uma técnica de exacerbação do desejo — desejo de saber — num
contexto sadomasoquista: o leitor fica preso, pela periodicidade, no “acme”
de uma posição “sublime”, no sentido etimológico da palavra, isto é,
encontra-se nos confins de um saber incessantemente prometido, mas
sempre adiado: “Eu digo, para fazer esperar aquilo que eu escolhi não
dizer”; donde o deleite, de certo modo masoquista, do leitor, que aceita ser
sempre frustrado, sempre desconcertado, balançado ao bel-prazer do
romancista entre a deliciosa angústia e a hipotética esperança: “E o desejo
cresce quando se afasta o efeito”, esse verso do velho Corneille sugere
muito bem como toda sua manipulação proteladora contém subentendidos
12
eróticos.

O fragmento assinala uma semelhança fundamental: a centralidade do


desejo. A diferença assinalada, porém, não é de substância, mas apenas de grau: o
desejo e a intensidade de experiência que eram apresentados de maneira simples
no texto homérico agora são manipulados pelo autor para provocar e incrementar o
suspense.

12
DURAND-DESSERT, Liliane. “Introdução a Les Mystères du Peuple” apud MEYER, Marlyse
(1996). Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 78–9.
19

Não se trata do mesmo procedimento que está em jogo no epigrama XXVIII e


na literatura preferida pelos leitores profissionais, para quem a fruição do texto
depende de uma certa percepção da maneira como ele foi composto.

1.3 Uma nota sobre o suspense

Um salto temporal tão grande pede também que se marque uma diferença
entre o texto homérico e o folhetim.
Auerbach adverte, logo à página 4, que, em Homero, os elementos
retardadores da ação, como a longa digressão sobre como Ulisses adquiriu a
cicatriz, não possuem, como poderia pensar o leitor moderno, essa mesma função
de incrementação do suspense. Pelo contrário, “nada nos estilo deles [os poemas
homéricos] é calculado para prender o fôlego do leitor ou do ouvinte. As digressões
não pretendem manter o leitor em suspense, mas sim relaxar a tensão.” Auerbach
fala de como a digressão é autossuficiente e pretende nos conquistar para si por si
própria, em vez de ser apenas uma mera engrenagem no maquinário dramático da
Odisseia.
O suspense calculado do romance folhetim de Eugène Sue e de Alexandre
Dumas, como diz Durant-Dessert, vem de um tratamento mais maquiavélico do
desejo, que visa a seduzir o leitor um pouco menos pelo prazer proporcionado e
muito mais pelo prazer prometido; o leitor pode sentir como é vívida a experiência
dos personagens, mas a satisfação de seus desejos finais — desejos dos
personagens e dos leitores — fica protelada para que a história se mantenha.
Já um dos principais recursos do folhetim é o “gancho”; deixa-se o leitor
parado num ponto de tensão particular e aquela história é interrompida para que
outro fio narrativo venha à tona. Esse fio, é claro, vai enriquecer de algum modo
aquele primeiro, interrompido, mas também vai prolongar o prazer da leitura,
preservando o envolvimento do leitor. O gancho, portanto, retarda o suspense, mas
com o fim de torná-lo mais intenso. Em Homero, como diz Auerbach, o retardamento
não amplia o suspense porque, para haver suspense, seria preciso haver um trama
de fundo, mas “em Homero não há fundo”.
20

Talvez possamos neste ponto discordar levemente do grande mestre alemão.


Todos os episódios da Odisseia dão-se tendo como pano de fundo a dilapidação do
patrimônio de Ulisses, a expectativa de seu filho Telêmaco, a fidelidade de sua
esposa. Mesmo a Ilíada tem como pano de fundo a cólera — a birra — de Aquiles
por Agamemnon e o conselho dos guerreiros terem-lhe tomado a escrava, filha do
sacerdote de Apolo. Mas é verdade que nessas narrativas esse fundo é quase uma
moldura, e que os episódios parecem facilmente destacáveis da trama geral. O fato
de Diomedes destacar-se entre os guerreiros que sitiam Troia não contribui para o
desfecho da narrativa, com a morte de Heitor. Alguma das aventuras de Ulisses
poderia ser removida e ainda assim o herói poderia voltar à Ítaca. Na verdade, os
três primeiros cantos, conhecidos como “Telemaquia”, poderiam ser juntados
diretamente aos cantos finais, que trazem Ulisses disfarçado. Mas o suspense é
retardado, prolongado: no texto homérico, de maneira atenuada, e, no folhetim, de
maneira intensificada.
(E talvez agora seja o bom momento para observar que, se considerarmos
muitos dos livros favoritos do público, veremos que eles, sendo bastante compridos,
proporcionam justamente esse prazer do suspense: O senhor dos anéis, de J.R.R.
Tolkien, cada volume da série Harry Potter; e mesmo Reinações de Narizinho, o
clássico infantil de Monteiro Lobato, com sua natureza episódica e “homérica”, não é
exatamente curto.)

***

Tendo apresentado o lado do texto, é hora de apresentar o lado do leitor, para


tentarmos entender o ato de leitura de maneira mais complexa. De um lado, temos,
portanto, um estilo cujo propósito é tornar os episódios o mais vívidos possível para
o leitor. Segundo a teoria da simpatia de Adam Smith, isso é exatamente o que é
necessário para envolvê-lo.

1.4 A simpatia segundo Adam Smith


21

O filósofo iluminista escocês Adam Smith (1723–1790) é conhecido como pai


filosófico do capitalismo por ter publicado Uma investigação sobre a natureza e as
causas da riqueza das nações em 1776, ano da independência do país capitalista
arquetipal: os Estados Unidos. Certas passagens deslocadas, fora de contexto,
fizeram de Smith, no imaginário popular, uma espécie de profeta do egoísmo.
Nada mais distante das intenções originais do escocês. A riqueza das nações
deve ser entendida à luz de uma obra sua anterior, A teoria dos sentimentos morais,
publicada em 1759.13 O livro inicia-se com nada menos do que uma frase que
minimiza o papel do egoísmo:

Por mais egoísta que se possa supor que seja o homem, há evidentemente
alguns princípios em sua natureza que fazem com que ele se interesse pela
ventura alheia, e tornem a felicidade dos outros necessária para ele, mesmo
que ele nada obtenha dela além do prazer de vê-la14.

Smith fala em “alguns princípios”, e logo começa a depurá-los para chegar a


um dos princípios-chaves de A teoria dos sentimentos morais, sobre o qual versa
toda a primeira parte da obra: sympathy.
Antes de traduzir sympathy por simpatia, termo que iremos preferir, vale
observar que Smith usa sympathy de maneira intercambiável com fellow feeling,
termo ambíguo cuja definição, mesmo constando em diversos dicionários ingleses,
como o Oxford e o Merriam-Webster, sempre começa com a palavra sympathy. No
American Oxford, por exemplo, temos: “sympathy and fellowship existing between
people based on shared experiences or feelings [simpatia e associação que há entre
pessoas baseada em experiências ou sentimentos compartilhados]”.
Mais interessante é que, se quisermos ir à origem grega da palavra sympathy
e buscarmos συμπάθεια (sympátheia) no dicionário grego-inglês Liddell-Scott, a
primeira definição que encontramos é… fellow feeling.
Fellow feeling é uma expressão difícil de traduzir por sua ambiguidade. Pode
significar tanto “sentimento semelhante” quanto “sentimento por um semelhante”. Os
dois sentidos se completam na medida em que o fellow feeling ou a simpatia surgem
sempre na relação com um semelhante. Não se trata nunca de comparar dois
sentimentos de duas pessoas que não tenham uma relação entre si, mas sempre de

13
Utilizamos a edição de 1982 do Liberty Fund, indicada na bibliografia. Toda a nossa discussão
baseia-se na primeira parte do livro, “Of the Sense of Propriety” [“Sobre o Senso de Adequação”].
14
SMITH 1982, p. 9.
22

verificar a semelhança do sentimento dentro da relação. A definição de συμπάθεια


dada pelo dicionário Bailly Abrégé, “communauté de sentiments ou d’impressions”
(“comunhão de sentimentos ou de impressões”) de certo modo confirma isso.
Como se forma a sympathy ou fellow feeling? Diz Smith:

Como não temos experiência imediata daquilo que outras pessoas sentem,
só podemos formar uma ideia da maneira como elas são afetadas
imaginando aquilo que nós mesmos sentiríamos numa situação
semelhante.15

Após dar essa explicação, Smith propõe vários exemplos, todos ligados a
alguma espécie de sofrimento, e salienta que não é preciso fazer um esforço
concentrado para sentir sympathy. Basta ver alguém padecendo algo, como uma
vergastada no braço, para retrair o próprio braço.
Algumas linhas depois, Smith começa a ampliar o conceito:

Nossa alegria com o salvamento daqueles heróis de tragédias ou de


romances que nos interessam é tão sincero quanto nossa aflição por seus
infortúnios, e nosso fellow feeling com sua tristeza não é menos real do que
o que temos com sua felicidade. Ficamos gratos para com aqueles amigos
fiéis que não os desertaram no momento de suas dificuldades; e de bom
grado acompanhamos seu ressentimento contra aqueles pérfidos traidores
que os feriram, abandonaram ou enganaram.16

E assim Smith propõe, após ter dado os exemplos de sofrimento e o exemplo


da nossa relação com obras literárias, se não uma definição, ao menos um modo de
usar o termo sympathy, que agora passaremos a traduzir como “simpatia”:

Pena e compaixão são palavras apropriadas para significar nosso fellow


feeling com a tristeza alheia. Simpatia, ainda que seu sentido fosse talvez
originalmente o mesmo, agora pode, sem grande impropriedade, ser usada
para denotar nosso fellow-feeling com qualquer paixão que seja.17

Em português, dizemos “minhas simpatias” para designar condolências,


palavra que, em suas raízes latinas, pareceria pura e simplesmente reproduzir o
sentido do termo de origem grega. Além disso, hoje o termo “empatia” está em voga,
e parece indicar algo mais próximo do que estamos discutindo, a “comunhão de
sentimentos”.

15
SMITH 1982, p. 9.
16
SMITH 1982, p. 10.
17
SMITH 1982, p. 10.
23

Todavia, uma consulta ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa nos diz


que empatia, apesar de, na terceira acepção, ser a “capacidade de se identificar
com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender
do modo como ela apreende etc.”, só entrou no idioma em 1958. O dicionário Grand
Robert diz que empathie só entrou no francês no século XX, e o American Oxford diz
que empathy só surgiu no inglês no começo do mesmo século. Por outro lado, o
Grand Robert data sympathie de 1420, e o American Oxford data sympathy de fins
do século XVI. Para nosso idioma, o Houaiss data “simpatia" de 1600, e logo na
primeira acepção o vocábulo é definido como “afinidade moral, similitude no sentir e
no pensar que aproxima duas ou mais pessoas”. A palavra “moral” obviamente nos
aproxima de A teoria dos sentimentos morais, e, a bem da verdade, é difícil detectar
no verbete “empatia” algo que já não estivesse contido no verbete “simpatia”. Além
disso, como não só o termo “empatia” parece ter ganhado força em teorias
psicológicas contemporâneas, mas também desejamos ser fiéis a Adam Smith,
preservaremos seu termo e utilizaremos “simpatia”, a fim de distinguir uma
experiência que ainda não acabou de ser definida.
Smith continua a desenvolver a noção de simpatia explicando que:

Mesmo nossa simpatia pela tristeza ou pela alegria de outrem, antes que
sejamos informados de sua respectiva causa, é sempre extremamente
imperfeita. Reclamações genéricas, que nada expressam além da aflição de
quem sofre, geram mais uma curiosidade em relação à situação, junto com
uma certa disposição de simpatizar com a pessoa, do que qualquer simpatia
efetivamente sensível. A primeira pergunta que fazemos é: o que te
aconteceu? Até que isso seja resolvido, ainda que fiquemos desconfortáveis
com a vaga ideia de seu infortúnio e, mais ainda, com torturar-nos sobre
qual seja, nossa simpatia não é muito considerável.
A simpatia, portanto, não surge tanto da visão da paixão18 quanto da
situação que a suscita.19

Falta um último elemento para que tenhamos uma definição completa da


simpatia segundo Adam Smith. Como a obra trata de filosofia moral, é inevitável
discutir a aprovação e a justificação. No início do capítulo III deste primeiro livro,
Smith explica:

Quando as paixões originais da pessoa em questão estão em perfeita


concórdia com as emoções simpáticas do espectador, elas

18
Preferimos traduzir o inglês “passion” por “paixão” não apenas para preservar a raiz, mas para
preservar o sentido daquilo que é padecido, sofrido, sentido.
19
SMITH 1982, p. 11.
24

necessariamente parecem justas e devidas a este último, e adequadas a


seus objetos; e, pelo contrário, quando, considerando o caso em seu seio,
ele verifica que elas não coincidem com aquilo que ele sente, elas
necessariamente lhe parecem injustas e indevidas, e inadequadas em
relação às causas que as suscitam. Aprovar as paixões alheias, portanto,
como adequadas a seus objetos, é a mesma coisa que observar que
simpatizamos inteiramente com elas; e não aprová-las enquanto tais é a
mesma coisa que observar que não simpatizamos inteiramente com elas.20

Smith usa neste trecho um termo importante, espectador, já subentendido


num dos trechos citados acima, em que falava da ventura dos heróis de tragédias e
romances. O espectador precisa então estar de acordo com a proporção da paixão
que observa no sujeito paciente, seja ele uma pessoa real ou um personagem de
ficção; mais ainda, a simpatia será tanto maior quanto maior for o conhecimento das
causas que suscitaram essa paixão.
No capítulo IV, Smith menciona “objetos que se considera não ter qualquer
relação peculiar conosco ou com os sentimentos da pessoa que julgamos”21, e que
seriam, por exemplo, “a beleza de uma planície, a grandeza de uma montanha…”22,
observando que consideramos que a pessoa possui as “qualidades do bom gosto e
do bem julgar”23 quando a opinião dela concorda com a nossa. Um pouco mais
adiante, afirma que, mesmo assim, somos afetados de maneiras diferentes pelas
“várias aparências que a grande máquina do universo perpetuamente exibe”24, e que
essa diferença vem “ou dos diferentes graus de atenção (…) ou dos graus diferentes
da acuidade natural da faculdade da mente”25. Assim, para Smith, o comum da
experiência é os homens serem afetados de maneira igual por certas experiências
impessoais, e que não merece “louvor nem admiração”26 o homem que é afetado de
maneira idêntica à maneira como somos afetados. Incomum, porém, é os homens
serem afetados de maneiras diferentes, segundo o grau.

Mas quando eles [os sentimentos do outro] não apenas coincidem com os
nossos, mas lideram a conduzem os nossos; quando, ao formá-los, ele
parece ter cuidado de muitas coisas que negligenciamos, e tê-los ajustado a
todas as várias circunstâncias de seus objetos, não apenas aprovamos
esses sentimentos, mas nos maravilhamos, surpresos, diante de sua
acuidade e abrangência incomuns e inesperadas, e ele parece merecer um

20
SMITH 1982, p. 16.
21
SMITH 1982, p. 19.
22
SMITH 1982, p. 19.
23
SMITH 1982, p. 19.
24
SMITH 1982, p. 19.
25
SMITH 1982, p. 19.
26
SMITH 1982, p. 20.
25

grau altíssimo de admiração e de aplauso. (…) A decisão do homem que


julga que a beleza invulgar é preferível à deformidade grosseira, ou que dois
e dois são quatro, certamente há de ser aprovada pelo mundo inteiro, mas
certamente não será muito admirada. É o discernimento agudo e delicado
do homem de gosto, que distingue as diferenças mínimas e quase
imperceptíveis da beleza e da deformidade (…) que suscita nossa
admiração, e parece merecer nosso aplauso (…).27

É o exemplo do “homem de gosto” que possui um “discernimento agudo e


delicado” que nos faz pensar no ficcionista. É ele que é capaz de distinguir
“diferenças mínimas e imperceptíveis” não apenas da beleza, mas também das
situações capazes de gerar simpatia no espectador — ou no leitor. Como a simpatia
aumenta com a percepção mais nítida das causas da paixão, maior será a simpatia
do espectador diante de uma situação bem representada, em que o personagem
age de maneira adequada e justificada em relação aos objetos, merecendo a
aprovação do espectador.
Ou seja: se o leitor busca envolver-se com uma obra literária, essa obra
precisa ser capaz de, despertando sua simpatia, ser capaz de manipular seus
sentimentos.
Represente-se vividamente um episódio para despertar uma emoção vívida.
Retarde-se o suspense para prolongar as emoções. A tarefa do escritor que deseja
conquistar o público nos faz pensar outra vez em Ulisses, também um contador de
histórias que sempre desejava angariar a simpatia alheia. Após chegar a Ítaca,
Ulisses diz-se apenas “um estrangeiro”, e hospeda-se na casa do porqueiro Eumeu.
Penélope pede a Eumeu que fale sobre o estrangeiro, que teria muitas notícias a dar
sobre o desaparecido Ulisses. E ele fala:

As coisas que ele diz! Enfeitiçará o teu querido coração.


Há três noites que ele está comigo; três dias passou comigo
no casebre, pois foi primeiro para junto de mim que chegou
quando fugiu da nau; mas não contou ainda as dores todas.
Ouvi-lo é olhar para um aedo, que para os mortais canta
palavras cheias de saudade, que os deuses lhe ensinaram,
e todos desejam ardentemente ouvi-lo, cada vez que canta —
assim o estrangeiro me enfeitiçou, sentado no meu casebre.28

A Odisseia, esse “poema que é cíclico”, conta-nos portanto a história de um


homem que conta histórias e assim enfeitiça os corações alheios, angariando-lhes a
simpatia. O astuto Ulisses não se apresenta diretamente, não faz uma mera

27
SMITH 1982, p. 20.
28
HOMERO 2003, p. 289. (Tradução de Frederico Lourenço; Canto XVII, versos 514-21.)
26

enumeração de seus padecimentos. Em vez disso, fala durante “três dias” e mesmo
assim não conta “as dores todas”. “E todos desejam ardentemente ouvi-lo, cada vez
que canta” — todos desejam desfrutar desse prazer de vivenciar vicariamente as
emoções de um personagem, narradas e descritas de maneira demorada, e não
simplesmente apontadas.
Em outra obra, escrita milênios depois, o mesmo procedimento é narrado em
maior detalhe, na qual o poder de manipulação do desejo da narrativa é, mais do
que explicitado, absolutamente escancarado. Estamos falando de Otelo, de
Shakespeare. Eis como o mouro, cercado pela assembleia dos anciãos da cidade,
explica como conquistou Desdêmona, a filha do doge, ansiosa para acompanhá-lo
na guerra (nossa tradução não pretende ser mais do que literal):

Seu pai me amava, e muitas vezes convidava-me,


perguntando-me sobre a história de minha vida,
sobre cada um dos anos; as batalhas, os sítios, as fortunas
por que passei:
contei tudo, inclusive desde os dias de menino,
até o momento mesmo em que ele me fez contar,
e ao contar falei dos maiores desastres,
de acidentes que comovem, em terra e água;
de fugas por um triz na situação de morte iminente;
de ser preso pelo insolente inimigo;
e vendido como escravo, e redimido,
e de todas as minhas viagens desde então,
de lugares vastos, e desertos imóveis,
duras pedreiras, rochedos e montanhas, cujos topos tocam o céu,
esperava-se que eu falasse, era esse o processo:
29
e dos canibais, que se comem uns aos outros…

Interrompemos aqui a explicação de Otelo por julgarmos que está claro que,
por suas histórias, sua vida foi também uma verdadeira odisseia. Desdêmona sem
dúvida gostaria de participar desse mundo. Otelo foi seu Ulisses: guerreiro e aedo.
Recordemos porém um detalhe que depois será importantíssimo, e que deve
ser bem guardado: a simpatia do espectador, ouvinte ou leitor depende de ele
aprovar um personagem que age de maneira que lhe pareça justificada, porque o
ficcionista lhe apresentou nitidamente uma situação. Insistamos na diferença desse
procedimento em relação àquele que leva ao gosto pela poesia de Calímaco: não é
preciso realizar um estudo auerbachiano para deixar-se envolver por Homero ou por
Ulisses, mas é preciso refletir sobre o poema de Calímaco, meditando sobre sua

29
SHAKESPEARE 1984 (Arden Second Series). Ato I, Cena 2, 128-143.
27

composição, para apreciá-lo. Agora, porém, é o momento de discutir a ideia de uso e


recepção da literatura.
28

2 USOS DA FICÇÃO

A simpatia pode envolver-nos. Mas não necessariamente vamos dar um


passo adiante e estudar a obra que nos envolveu, aumentando (caso ela se preste a
esse estudo) nossa apreciação por ela. Podemos permanecer no estágio de
envolvimento, querendo apenas, talvez, pular de envolvimento em envolvimento, ou
de narrativa em narrativa, de livro em livro. Podemos, enfim, apenas usar as obras.
Mas isso não quer dizer que elas serão usadas apenas como passatempos. Elas
podem ser usadas como apoio para devaneios, para a construção da própria
identidade, ou para inúmeros fins.

2.1 A construção egoísta de castelos: “A atraente fantasmagoria das


realidades sentimentais”30

O ponto de partida pode ter sido Calímaco, mas esta dissertação pretende
ser, em parte, um diálogo com o C. S. Lewis que escreveu An Experiment in
Criticism31 e que também não deixa de ser o mesmo que escreveu uma das séries
de livros mais vendidas da história: As crônicas de Nárnia. Esse ponto é importante
para ressaltar que nem An Experiment in Criticism nem o presente trabalho fazem
qualquer equiparação entre má literatura e a literatura preferida pelo público — e,
por conseguinte, entre boa literatura e a literatura preferida pela crítica
especializada.
Nessa obra, Lewis distingue dois tipos de leitores: o literário e o não-literário,
insistindo que eles podem existir tanto no famoso público em geral quanto entre os
profissionais de Letras. Ao distinguir a experiência de leitura dos “literários” (literary)
e a dos “não-literários” (unliterary), que corresponderia a uma experiência em que a
“recepção” da obra por parte do leitor tem precedência em relação a seu “uso”,32

30
FLAUBERT 2010, p. 88.
31
Publicado no Brasil pela Martins Fontes como Um experimento crítico; no entanto, a edição
consultada foi a original, sem que isso implique um mau juízo da tradução, que desconhecemos.
32
LEWIS 2010. O livro inteiro é uma discussão dessas duas experiências; a distinção de Lewis
começa a adquirir contornos definitivos no nono capítulo, à p. 88.
29

Lewis não se exime de iniciar suas considerações pela experiência de leitura do


profissional de letras de seu tempo, que aparece sob a forma de um professor
cansado de corrigir provas.33 O professor, seu colega, pede que eles parem de
conversar sobre literatura porque já não estão mais trabalhando àquela hora.
Lewis não chega a dizê-lo, mas está claro que, no caso do professor, o uso
da literatura está relacionado à vida profissional antes de estar relacionado a um
amor pessoal. É possível fazer uma carreira falando de literatura, usando-a como
ganha-pão, sem “receber” as obras de que se fala.
Essa “recepção” da obra, por sua vez, seria uma atitude em que a obra
mesma é colocada no centro. A obra não é, por exemplo, usada como pretexto para
falar de outras ideias. O epigrama XXVIII de Calímaco não é usado como pretexto
para falar da estrutura do desejo e do esnobismo, ainda que possa perfeitamente
prestar-se a isso. Por essa visão, um estudo da literatura seria uma recepção
profunda de obras individuais, as quais poderiam revelar por si traços que as
aproximam ou distanciam. É claro, porém, que, sendo a literatura feita de palavras,
as quais têm significados, é impossível fazer um estudo literário sem discutir algo
dos sentidos e referências contidos nas obras.
É possível, contudo, ultrapassar os limites. Adiantando uma das obras a ser
comentadas nesta dissertação, seria possível discutir A demanda do Santo Graal
apenas como apoio à prática do catolicismo, e nesse caso a obra não estaria sendo
“recebida”.
Algo análogo acontece no uso que se pode fazer de imagens. Falando, no
terceiro capítulo, das toscas ilustrações que adornavam certos livros que preferia na
infância, o Lewis adulto reconhece que elas estavam lá apenas para servir de apoio
a sua imaginação. Um exame detalhado delas não rendia uma experiência estética
que Lewis consideraria satisfatória — a da “recepção” da obra.
Vejamos um trecho em que Lewis descreve o uso que fazia das figuras dos
livros:

Era importantíssimo aquilo que estava representado na imagem; a imagem


mesma pouca importância tinha. Uma vez que ela tivesse colocado minhas
emoções e minha imaginação para funcionar a partir das coisas
representadas, ela tinha feito o que eu queria. A observação cuidadosa e

33
LEWIS 2010, p. 7.
30

prolongada da imagem mesma não era necessária. Talvez tivesse até


prejudicado a atividade subjetiva.34

Contudo, a literatura, como sói acontecer, antecipa-se à crítica. Décadas


antes das páginas de Lewis, um dos personagens mais famosos dos grandes
romances canônicos age da mesma maneira. Eis como Flaubert, seu criador,
descreve a relação do personagem Emma Bovary com as imagens:

Ela tinha frêmitos ao levantar com o hálito o papel de seda das gravuras,
que se erguia, dobrando-se, e caía suavemente contra a página. Eram,
atrás da balaustrada de um balcão, um rapaz de capa curta que abraçava
uma moça de vestido branco, levando uma pequena bolsa na cintura; ou
talvez os retratos anônimos das senhoras inglesas com caracóis louros
(…).35

Flaubert termina o parágrafo com mais uma série de elementos que


excitavam a imaginação de Emma Bovary, então adolescente. Se Lewis admite que
seu fascínio pelas imagens, principalmente as dos livros de Beatrix Potter, vinha de
seu interesse por “animais humanizados”36, o interesse de Emma Bovary se volta,
numa expressão de Flaubert na mesma página, para a “atraente fantasmagoria das
realidades sentimentais”37.
Cabe-nos porém agora enfatizar a ideia de uso, por isso retomemos o fio da
argumentação de Lewis, que ainda sugere que mesmo imagens religiosas toscas
podem ser preferíveis para a prática religiosa, pois seu objetivo não seria chamar a
atenção para si — como, no domínio da literatura, chama a atenção para si o
epigrama XXVIII de Calímaco.
Certos usos, como o religioso, podem ser dotados de tanto prestígio em
certos meios que podem perfeitamente tomar o lugar da recepção no sentido de
Lewis. Por vezes, isso também sucede com critérios ideológicos, que se pretendem
pedagógicos. Todavia, antes de cair numa crítica fácil, devemos recordar a visão,
comum entre os gregos, do valor pedagógico das obras de Homero e dos
tragediógrafos. E o comediógrafo Aristófanes, além de receber prêmios teatrais, foi
condecorado pela pólis ateniense pelo aspecto político de algumas de suas peças.

34
LEWIS 2010, p. 16.
35
FLAUBERT 2001, p. 88.
36
LEWIS 2010, p. 14-15.
37
FLAUBERT 2001, p. 88.
31

Isso tudo apenas ressalta que, por mais que se possa tentar apenas receber
uma obra, olhando-a como objeto dotado de certa autonomia, muitas obras prestam-
se tão facilmente ao uso que cabe ao artista levar em conta essa dimensão,
antecipando na obra o uso que será feito dela.
Lewis, porém, não está partindo do epigrama de Calímaco, e não fala da
literatura preferida pelo “grande público”. Sua divisão, como mencionado, é entre um
público “literário” e outro “não-literário”. Aqui é que pretendemos inserir algumas
distinções.
A primeira delas é que algumas das características da literatura preferida pelo
leitor não-literário podem certamente coincidir com aquelas preferidas pelo leitor
literário, e esta dissertação vai tratar eminentemente das obras que ocupam essa
interseção. Assim, se, de acordo com Lewis, os leitores não-literários “nunca leem
nada que não seja narrativo”38, nem por isso os leitores literários vão desdenhar da
narrativa.
A segunda distinção é bem mais complexa.
Até agora evitamos usar a palavra “entretenimento”39, antes de tudo por não
vermos nenhuma razão para estigmatizar o entretenimento em si. É verdade que
“entretenimento” talvez tenha sido uma das primeiras noções a ter ocorrido do leitor
deste texto, assim como ocorreu a F. A. Wright, que falava em “Autores que
escreviam com o propósito de (…)entreter…”40 É perfeitamente possível entreter-se
com inúmeras obras canônicas; aliás, não se deixar entreter por uma obra que tem
essa dimensão é, de certo modo, não “recebê-la”. Ninguém disputaria o valor
canônico de Dom Quixote de la Mancha; mas não é possível também divertir-se com
o livro? Cervantes não o escreveu simplesmente para ser admirado por acadêmicos.
Lewis, por sua vez, ao falar das preferências dos leitores não-literários que
fazem parte do grande público, evita a palavra “entretenimento” por considerar que
ela tem muitos sentidos equívocos,41 que podem ser positivos, como acabamos de
ressaltar, ou negativos, associados à ideia de desperdício de tempo.

38
LEWIS 2010, p. 28.
39
Mencionamos no início deste trabalho o ensaio “Por uma literatura brasileira de entretenimento”, de
José Paulo Paes (PAES 1990). No entanto, logo em sua primeira página, Paes diz: “…como a
literatura de entretenimento faz parte da cultura de massa…” Estamos falando de uma escala maior
de tempo, avaliando o valor de entretenimento até dos poemas de Homero, que nunca fizeram parte
diretamente de uma cultura “de massa”.
40
WRIGHT 1932, p. 123.
41
LEWIS 2010, p. 91.
32

A noção proposta por Lewis, mais precisa e mais valiosa para nossa
pesquisa, reforça a interseção entre a boa e a má leitura, que corresponderia a um
conjunto de obras literárias que se prestariam tanto a uma quanto a outra. Um
epigrama de Calímaco talvez só possa ser “bem” lido, como, digamos, certos textos
em prosa de Samuel Beckett. Outros textos talvez só se prestem a uma leitura má
ou superficial, e, mantendo a referência anglo-saxônica, podemos pensar na
expressão airplane reading — a literatura vendida em aeroportos que não pretende
muito mais do que manter os viajantes entretidos durante os voos.
Em “The Meanings of Fantasy” (“Os sentidos da fantasia”), sexto capítulo de
seu livro, C.S. Lewis propõe, enfim, a noção de “construção egoísta de castelos”:
“nesse tipo, a própria pessoa que devaneia é sempre o herói e tudo é visto através
de seus olhos. É ele quem dá as respostas espirituosas, quem cativa as belas
mulheres, possui o iate que cruza os oceanos, ou é aclamado como o maior poeta
vivo.”42
Observemos com atenção um detalhe: mesmo que Adam Smith, naquela
primeira citação, tenha usado a palavra “egoísta”, aqui seu sentido está ligeiramente
modificado. Smith falava de um egoísmo em sentido moral, da suposta ausência de
simpatia pelos males alheios. Lewis está falando de um egoísmo formal, da
identificação de si com o sujeito de uma fantasia, de um devaneio. Esses dois
egoísmos podem até ser opostos. Primeiro, porque — e este sentido é crucial para
nós — , para retomar palavras de Lewis, “ser aclamado como o maior poeta vivo”
significa ser aclamado pelos outros; “cativar as belas mulheres” significa cativar
outras pessoas. Nessa forma de egoísmo, o outro desempenha um papel
fundamental, e mais do que meramente instrumental: o prestígio que se espera
receber, mesmo na fantasia, precisa vir de alguém a quem também se atribua
prestígio. Mais ainda, em outra acepção, caso essa construção egoísta contenha a
identificação com uma figura altruísta, o resultado desse egoísmo formal pode
perfeitamente ser um altruísmo moral.
Voltando a Madame Bovary, novamente verificamos o paralelo entre o caso
de sua protagonista e as palavras de C.S. Lewis. Emma Bovary passou parte da sua
juventude entregue à construção egoísta de castelos, tomada de simpatia pelos
personagens de romances sentimentais. No sexto capítulo da primeira parte, em que

42
LEWIS 2010, p. 52.
33

são descritos os anos de formação da então recém-casada Emma Bovary, Flaubert


fala de como ela se identificava com as heroínas dos romances que lia:

Havia no convento uma moça mais velha, dessas que já tinham passado da
idade de casar, que vinha todos os meses, e ficava oito dias, trabalhando na
rouparia. (…) Ela (…) emprestava às meninas mais velhas, às escondidas,
algum romance que sempre tinha no bolso do avental, e de que a digna
senhorita devorava ela própria longos capítulos, nos intervalos do trabalho.
Eram amores, namorados, namoradas, damas perseguidas que iam
sumindo pelos pavilhões solitários, postilhões assassinados em todas as
paradas, cavalos que morriam de cansaço em todas as páginas, florestas
sombrias, questões do corações, juramentos, soluços, lágrimas e beijos,
canoas sob o clarão da lua, rouxinóis nos bosques, cavalheiros bravos
como leões, dóceis como cordeiros, virtuosos como ninguém, sempre bem-
vestidos, e que choram como jarras. Aos quinze anos, durante seis meses
sujou as mãos com o pó dos velhos gabinetes de leitura. Com Walter Scott,
mais tarde, ela se apaixonou por tudo que era histórico (…) Ela queria ter
vivdo num grande solar, como as castelãs de corpete longo, que (…)
passavam os dias com o cotovelo sobre a pedra e o queixo na mão,
olhando um cavaleiro com uma pluma branca sobre seu cavalo negro,
43
surgindo do fundo dos campos.

Num trecho anterior, Flaubert não deixa dúvidas quanto ao fato de que Emma
é mais uma usuária da literatura do que uma leitora, delineando uma disposição
fundamental de sua personalidade:

Ela só gostava do mar por causa de suas tempestades, e da vegetação


apenas quando estava espalhada entre as ruínas. Era preciso que ela
pudesse retirar das coisas uma espécie de proveito pessoal; e ela rejeitava
como inútil tudo aquilo que não contribuía ao consumo imediato de seu
coração, possuindo o temperamento mais sentimental do que artístico,
buscando emoções e não paisagens.44

Podemos nos perguntar qual teria sido a reação de Emma Bovary à poesia de
Calímaco, caso tivesse aprendido no convento grego suficiente para poder apreciá-
la. Surge a tentação de dizer que a reflexão sobre o desejo, sobre o papel de
Lisânias como “aquilo que acaba com a tristeza” poderia ter sido o passo além que
teria feito Emma Bovary colocar entre parênteses seus castelos no ar. Mas
imediatamente verificamos que essa reflexão é, para ficarmos nos termos de Lewis,
mais um uso do poema do que um ato de recepção. No entanto, essa discussão
está prevista pela obra, que, afastando-se daquele estilo homérico, como que pede
para ser estudada, interpretada.

43
FLAUBERT 2001, p. 86-87.
44
FLAUBERT 2001, p. 86.
34

Com isso não pretendemos dizer que uso e recepção não possam ser
distinguidos. Um termo do inglês contemporâneo, já usado em português, é o melhor
exemplo disso: spoiler. Spoiler é um dado sobre o enredo revelado antes que o leitor
ou espectador se debruce sobre a narrativa. Seria como, ingenuamente, contar que
Heitor morre no final da Ilíada ou, no caso do universo popular, que, na série de
filmes Guerra nas estrelas, Darth Vader é o pai de Luke Skywalker.
O leitor que se preocupa demais com spoilers não quer que seu consumo da
narrativa seja spoiled, estragado, pelo conhecimento do final. É com sua
possibilidade de usar a narrativa para obter um certo frisson emocional que ele se
preocupa, e não com a admiração de sua estruturação. É por isso que, como diz
Lewis logo na segunda página de An Experiment in Criticism, “O sinal inequívoco de
uma pessoa não-literária é que ela considera ‘Já li’ um argumento conclusivo contra
a leitura de uma obra.”
Contudo, vale observar que diversas obras contemporâneas levam a
releituras seguidas. São conhecidos os episódios de lançamentos de livros de séries
famosas, como Harry Potter, em que os fãs vão às livrarias vestidos como
personagens dos livros45. Aqui temos simpatia, identificação, construção de castelos.

2.2 A construção mórbida de castelos

Mas, se falamos de Emma Bovary, a literatura também já se antecipou ao


fenômeno contemporâneo que acabamos de mencionar. O romance tantas vezes
mencionado como fundador da ficção moderna trata justamente de um personagem
que decide viver em seu mundo de fantasia, ou viver suas fantasias: Dom Quixote
de La Mancha.
Dom Quixote, porém, passa por uma fase bastante comparável àquela dos
anos de formação de Emma Bovary.
Retornemos a An Experiment in Criticism.

45
Numa nota pessoal, em 4 de fevereiro de 2015, ainda vi, em minha academia de ginástica, um
rapaz que trazia caracteres élficos — a linguagem inventada por Tolkien em O senhor dos anéis —
tatuados na panturrilha.
35

Lewis deixa claro que a “construção egoísta de castelos” pode ser de vários
tipos. Um dos mais importantes é a construção “mórbida”:

Uma construção imaginativa agradável, cultivada sem cessar pelo paciente,


com danos para si, mas sem a ilusão de que ela seja uma realidade. Um
sonho acordado — que o sonhador sabe ser um sonho — de triunfos
militares ou eróticos, de poder ou de grandeza, e até de mera popularidade,
é ou repetido monotonamente ou desenvolvido ano após ano. Ele se torna o
principal consolo, e quase o único prazer, da vida do sonhador. Para esse
“tumulto invisível da mente, essa secreta prodigalidade do ser” ele se retira
sempre que as necessidades da vida o liberam. Realidades, inclusive
realidades como as que agradam outros homens, tornam-se para ele
insípidas. Ele se torna incapaz de todos os esforços necessários para obter
uma felicidade não puramente abstrata. O sonhador que sonha com
riquezas ilimitadas não poupará dez centavos. O Don Juan imaginário não
vai se dar qualquer trabalho para tornar-se minimamente agradável para
qualquer mulher que encontre. Essa atividade denomino Construção
Mórbida de Castelos.

A palavra “mórbida” possui uma carga moral considerável. No entanto, não


parece exagerado dizer que é de algo mórbido que Cervantes está falando no
princípio do Dom Quixote, quando escreve, a respeito deste outro famoso leitor e
usuário da literatura:

Deve-se saber, então, que o aludido fidalgo, nos momentos em que estava
ocioso — que constituíam a maior parte do ano — , deu para ler livros de
cavalaria com tanta paixão e prazer que esqueceu quase por completo o
exercício da caça, e até mesmo a administração de seus bens; e a tanto
chegaram sua curiosidade e desatino que vendeu muitos pedaços de terra
de plantio para comprar livros de cavalaria, levando assim para casa
quantos havia deles (…).46

A morbidez assume contornos nada menos do que médicos na página


seguinte:

Enfim, ele se embrenhou tanto na leitura que passava as noites lendo até
clarear e os dias até escurecer; e assim, por dormir pouco e ler muito,
secou-lhe o cérebro de maneira que veio a perder o juízo.47

A principal leitura de Dom Quixote, como sabemos, era o Amadis de Gaula de


Garci Rodríguez de Montalvo. Uma leitura de qualquer trecho do romance revela
aqueles mesmos traços que um dia viriam a ser chamados de “folhetinescos”. Ao
descrever as características da leitura das pessoas não-literárias, C.S. Lewis insiste

46
CERVANTES 2012, p. 62.
47
CERVANTES 2012, p. 63.
36

que “Elas exigem uma narrativa rápida. (…) o leitor não-literário quer apenas O
Acontecimento”.48 No Amadis de Gaula, a quantidade de acontecimentos é extrema,
e seu ritmo parece vertiginoso até para os padrões modernos. Nele, o rei Periom de
Gaula conhece a princesa Elisena, engravida-a e volta para seu reino; Elisena dá à
luz em segredo e entrega o filho ao mar, junto com uma espada e um anel; o filho é
encontrado pelo nobre cavaleiro (é claro) Gandales e depois levado pelo rei
Languines para ser criado em sua corte (é claro), destacando-se por sua bravura
desde a mais tenra infância (é claro); enquanto isso o rei Periom casa-se com
Elisena, tem outro filho (ignorando o primeiro) e esse filho é raptado por um gigante
por conta de uma antiga profecia. E, ao descrever tudo isso, falamos apenas da
trama principal, e não chegamos ao final do terceiro capítulo! As aventuras do
próprio Amadis sequer começaram.
Aquilo que fez Dom Quixote “perder o juízo”, portanto, satisfaz plenamente as
condições de simpatia apresentadas por Adam Smith. Há pouca descrição. Não há
qualquer tentativa de embelezamento da linguagem; o acontecimento tem total
precedência, de modo a poder ser usado como estímulo à imaginação, à variação
de sentimentos. Até mesmo uma frase que de início parece apenas contribuir para a
atmosfera revela-se meramente utilitária. Vamos colocá-la em itálico:

CAPÍTULO PRIMEIRO
Como a infanta Elisena e a sua donzela Darioleta foram à câmara onde
estava o rei Periom.

Quando todos sossegaram, Darioleta levantou-se e, tomando Elisena da


sua cama, nua tal como estava, apenas com a camisa, cobriu-a com um
manto e saíram ambas para a horta. O luar estava muito claro. A donzela
olhou então para a sua senhora e, abrindo-lhe o manto, olhou o seu corpo e
disse-lhe, rindo:
— Senhora, em boa hora nasceu o cavaleiro que esta noite vos terá; e bem
diziam que esta era a mais formosa donzela de rosto e de corpo que então
49
se conhecia. (…)

Ou seja: “o luar estava muito claro” apenas para que Darioleta pudesse
confirmar para Elisena sua própria beleza. A que distância não estamos daquele
Flaubert que inspiraria Roland Barthes a criar a noção de “efeito de real”50! Barthes
falava de outro texto de Flaubert, Um coração simples, mas podemos encontrar o

48
LEWIS 2010, p. 30.
49
MONTALVO 2007, p.
50
BARTHES 1968, p. 84-89.
37

mesmo efeito nos trechos que já selecionamos de Madame Bovary. Vimos, por
exemplo, que Emma exalava seu hálito contra “o papel de seda das gravuras, que
se erguia, dobrando-se, e caía suavemente contra a página”, ou que “havia no
convento uma moça mais velha, dessas que já tinham passado da idade de casar,
que vinha todos os meses, e ficava oito dias, trabalhando na rouparia.” E isso
porque nem chegamos a mencionar o poder descritivo de Flaubert.
Montalvo escreve para chamar a atenção para o acontecimento, para
envolver, para intensificar a simpatia e manipular os sentimentos do leitor. Flaubert
escreve em parte para isso, em parte para que o leitor admire a composição verbal
enquanto composição verbal, dando informações que, se em nada contribuem para
o andamento da trama, transmitem o “efeito de real”. Não que se deva inferir que o
“efeito de real” é que distingue a “alta” da “baixa” literatura; mas apenas que de um
lado um texto é apenas usado como estímulo à imaginação, ou, como proporemos,
a um devaneio egoísta; de outro, não é possível apreciar Madame Bovary sem
“receber” a obra numa certa medida.

2.3 O bovarismo antes de Quixote

Dom Quixote de la Mancha foi publicado em 1605. É preciso observar que, se


Flaubert leu como tragédia a situação que Cervantes leu como comédia, uma
escritora, não exatamente uma autora literária no mesmo sentido que esses dois
(embora ela faça parte do cânon da língua espanhola, segundo a Real Academia)
fazia uma observação que, de um lado, a aproxima de Lewis, e, de outro, dá um
sentido muito mais forte, caso se aceite a cosmovisão cristã, à palavra “mórbido”. A
autora em questão é santa Teresa d’Ávila, e sua observação vem do Livro da vida, a
autobiogria que escreveu com um destinatário bastante preciso: a Inquisição
Espanhola, que pretendia investigar o conteúdo místico de suas palavras.
Dificilmente se poderia dizer que o anglicano C.S. Lewis sofria a mesma pressão;
também não parece razoável comparar as situações de Cervantes e de Flaubert.
Assim, as palavras de santa Teresa parecem ganhar especial relevância — autores
bastante distintos, todos canônicos, em situações distintas, compartilhando
observações muito similares sobre os possíveis efeitos do uso da literatura.
38

Leiamos os dois primeiros parágrafos (numerados no original) do segundo


capítulo do Livro da vida, na excelente tradução de Marcelo Musa Cavallari:

1. Parece-me que começou a me fazer muito mal o que agora direi. Penso
algumas vezes que mal fazem os pais que não procuram que seus filhos
sempre vejam coisas de virtude de todas as maneiras. Porque, apesar de
minha mãe ser assim como disse, do bom eu não peguei tanto — ao chegar
ao uso da razão. Na verdade quase nada. E o mau me prejudicou muito.
Era ela amante de livros de cavalaria e não lhe causava tanto mal esse
passatempo quanto causou a mim, porque não descuidava de seu trabalho.
Ao contrário, nos desdobrávamos para ter tempo de lê-los. E talvez os lesse
para não pensar nas grandes dificuldades que tinha, e ocupar seus filhos
para que não andassem perdidos em outras coisas. Isso desagradava tanto
a meu pai que era preciso tomar cuidado para que não o visse. Eu comecei
a ficar com o hábito de lê-los, e aquela pequena falta que vi nela começou a
esfriar meus desejos e começar a descuidar do resto. E não me parecia que
fosse errado gastar tantas horas do dia e da noite em ocupação tão vã,
ainda que escondida de meu pai. Era tão forte o que me encantava nisso
que, se não tivesse um livro novo, não me parece que estivesse contente.
2. Comecei a me vestir bem e a desejar agradar por ser bonita, ocupando-
me muito das mãos e dos cabelos, e perfumes e todas as vaidades que
51
podia ter, que eram muitas, porque eu era muito zelosa.

Se não for muito abusivo, podemos pensar que santa Teresa reconhecia seu
potencial de Emma Bovary.
O que a teria impedido de cair num bovarismo deveras avant la lettre seria
também explicado por C.S. Lewis. Afinal, aquilo que Lewis tem em mente é uma
espécie de atividade mental que, sem nunca deixar de ser mental, termina por
impedir os aspectos práticos da vida do leitor ou do usuário da literatura. Essa
atividade “mórbida” não precisa ser perpétua; ela pode ser a base de novas
atividades. Santa Teresa pode ter transferido seu zelo para as atividades religiosas.
O personagem Dom Quixote, como sabemos, também abandonou a fase “mórbida”
e decidiu efetivamente viver sua fantasia:

Enfim, acabado seu juízo, foi dar no mais estranho pensamento em que
jamais caiu louco algum: pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para
o engrandecimento de sua honra como para o proveito de sua pátria, se
fazer cavaleiro andante e ir pelo mundo com suas armas e cavalo em busca
de aventuras e para se exercitar em tudo aquilo que os cavaleiros andantes
se exercitavam, desfazendo todo tipo de afrontas e se pondo em situações
e perigos pelos quais, superando-os, ganhasse nome eterno e fama. O
pobre já se imaginava coroado pelo valor de seu braço com pelo menos o
império de Trebizonda; e assim, com pensamentos tão agradáveis, levado
pelo singular prazer que neles sentia, se apressou em realizar o que
desejava.52

51
D’ÁVILA 2010, p. 40-41.
52
CERVANTES 2012, p. 64.
39

Lewis na verdade não menciona o Dom Quixote, mas observa que a


construção “egoísta” de castelos pode passar a uma construção “desinteressada”,
que estaria na base da criação ficcional. Começando por imaginar o que lhe
apetece, o autor passa a imaginar pelo prazer de imaginar, pelo prazer do jogo;
Lewis observa que, entre as crianças, essa imaginação pode até ser cooperativa:
“quando esse estágio é atingido, está em ação algo além do mero devaneio: a
construção, a invenção, numa palavra, a ficção está acontecendo”53. Dom Quixote,
assim, passou a produzir na vida a sua própria ficção, tendo inclusive arrumado um
Sancho Pança que entrasse na brincadeira — em vez de tornar-se, ele também,
autor de romances ficcionais de cavalaria.
Para reforçar a ideia de que a construção egoísta de castelos é antes um
momento possível do que necessário da experiência de leitura, tornando-se algo
potencialmente negativo caso se torne a única modalidade dessa experiência,
vejamos outro trecho um pouco mais longo de Lewis:

Aquilo em que a má leitura consiste como um todo pode entrar como


ingrediente da boa leitura. (…) A construção egoísta de castelos não vai
sobreviver muito tempo no leitor certo. Mas suspeito que, especialmente na
juventude, ela possa levá-lo a ler um livro. Já se afirmou que, para muitos
leitores, a atração de Trollope e até de Jane Austen está na ociosidade
imaginada numa época em que sua classe, ou a classe que eles identificam
com a sua, tinha mais segurança e era mais afortunada do que agora.
Talvez o mesmo suceda às vezes com Henry James. Em alguns de seus
livros, os protagonistas vivem uma vida para a maioria de nós tão
impossível quanto a das fadas ou a das borboletas; dispensados da religião,
do trabalho, de cuidados econômicos, das exigências da família e da
vizinhança. Mas essa atração só pode ser inicial. Ninguém que deseje
principalmente, ou mesmo com muita força, a construção egoísta de
54
castelos vai perseverar longamente com James, Jane Austen, ou Trollope.

Nosso interesse, neste momento, está nessas modalidades de construção de


castelos, a egoísta e a desinteressada. Pretendemos demonstrar que mesmo na
construção “desinteressada” de castelos, isso é, na ficção, que foi um dia o devaneio
de alguém e passou a ser obra escrita, trabalhada, deliberada, permanecem
elementos “egoístas”, que vão servir para que certo tipo de leitor embarque na sua
própria construção egoísta de castelos. Essa tensão entre as duas modalidades será

53
LEWIS 2010, p. 52-53. Itálico no original.
54
LEWIS 2010, p. 90-91.
40

refletida na noção de “duplo angélico” de René Girard, que será discutida no capítulo
seguinte.

2.4 O devaneio

Gostaríamos no entanto de propor um termo mais econômico para a


construção de castelos: devaneio. Estamos cientes de que C. S. Lewis poderia ter
usado o vocábulo inglês reverie, mas supomos que ele deve tê-lo julgado um
galicismo. No entanto, ao falar da construção de castelos, Lewis usa até o verbo to
daydream, “sonhar acordado”. Essa é uma das razões por que nos parece que
devaneio pode ocupar o lugar da “construção de castelos” sem problemas. Lewis,
afinal, propõe sua noção no capítulo que se chama “Os sentidos da fantasia”, mas a
fantasia pode muito bem chamar o fantástico, como aliás também em inglês, ao
passo que o devaneio pode incluir o fantástico e o puro realismo-naturalismo.
Ao falarmos em “devaneio”, ancorando essa noção na de construção de
castelos, podemos nos valer de uma especificidade da língua portuguesa, que
permite trazer à tona um certo sentido de gratuidade e de liberdade da palavra.
Mesmo um profissional das letras, que trabalhe com o devaneio, pode buscar refúgio
em outro devaneio.
Não que exista nisso algo de necessariamente nefelibata: o devaneio é que
pode mover a vontade. “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce”, como diz
Fernando Pessoa em Mensagem. “Devaneio” seria a solução para o abominável
anglicismo brainstorming.
Assim, reformulando as ideias de Lewis sem alterar-lhe a essência, teríamos
um devaneio mórbido, em que o sujeito é esmagado por seus próprios
pensamentos; um devaneio egoísta, em que o sujeito realiza seus desejos
imaginativamente, com todas as implicações que isso tem, e que serão
fundamentais para o próximo passo da exposição; e, por fim, o devaneio
desinteressado, que pode até nascer do devaneio egoísta, mas que acaba sendo
aproveitado pela invenção.
41

Se o devaneio desinteressado pode terminar em literatura, essa mesma


literatura, talvez criada com desinteresse, pode ser usada como apoio para um
devaneio mórbido ou egoísta.
Podemos então propor finalmente uma definição. Se existe uma literatura
para ser recebida, e outra para ser usada, mesmo lembrando que pode haver uma
grande interseção entre as duas, gostaríamos de chamar essa literatura que será ao
menos inicialmente usada de literatura que convida ao devaneio, ou simplesmente
literatura do devaneio. Dentro dessa enorme categoria, podemos encontrar a
literatura do devaneio egoísta.
Calímaco quer escrever obras que chamem a atenção para si. Os
“experimentalismos e jogos de linguagem” mencionados por Felipe Pena podem em
certos casos levar às mais áridas considerações. O devaneio não é completamente
contrário ao estudo — mas um certo tipo de estudo pode ser o antídoto para o
devaneio. Caso olhássemos exclusivamente o “conteúdo” do Epigrama XXVIII, não
encontraríamos a confirmação de que desejos egoístas podem ser satisfeitos, mas,
no máximo, e numa leitura superficial, a ideia de que a beleza não está nas
preferências das multidões e pode ser fugaz. Talvez possamos dizer que Cervantes
e Flaubert fizeram, em Dom Quixote e em Madame Bovary, aquilo que os
protagonistas desses romances não fizeram: passar do devaneio egoísta ao
devaneio desinteressado — para evitar o devaneio mórbido55.
Essa literatura que se presta ao devaneio egoísta é caracterizada por um
elemento: o duplo angélico tal como formulado por René Girard. Antes de discuti-lo,
porém, é importante fazer uma recapitulação.

55
Dom Quixote tem um aspecto claramente satírico, e Cervantes, até por mencionar-se a si mesmo
na obra, parece estar parodiando-se um pouco. Mas a hipótese de que Flaubert em alguma medida
passou de um devaneio egoísta a um devaneio desinteressado ao escrever Madame Bovary deve ser
temperada pelo fato de que, contrariando a lenda, não há registros de que ele jamais tenha dito
“Madame Bovary, c’est moi” (“Eu sou Madame Bovary”).
42

3 SOBRE O DUPLO ANGÉLICO: A MEDIAÇÃO EXTERNA EGOÍSTA

3.1 Breve recapitulação dos pontos essenciais

Partimos do Epigrama XXVIII de Calímaco, autor do período helenístico, para


tentar estabelecer a diferença entre a literatura preferida por profissionais de Letras
e aquela que, aproveitando o mote da capa da antologia Geração Subzero,
caracterizaria a literatura preferida pela maioria dos leitores. Calímaco, afinal, diz
não gostar das estradas muito trafegadas. Porém, o tipo de literatura que ele sugere
ser aquele preferido pelo público é o do poeta cíclico, ou Homero. A literatura de
estilo homérico fez larga fortuna no Ocidente, e, a partir da análise feita por Erich
Auerbach, podemos facilmente delinear elementos típicos da literatura preferida pelo
público, chegando inclusive ao folhetim oitocentista — aliás, um formato hoje mais
adaptado do que superado, considerando que, em muitos romances bestsellers, a
estrutura de um episódio por capítulo se mantém. Para entender como o leitor é
envolvido emocionalmente por uma narrativa, trouxemos a contribuição da teoria da
simpatia apresentada por Adam Smith em A teoria dos sentimentos morais: segundo
o iluminista escocês, o envolvimento emocional não se dá por uma enumeração de
qualidades, mas pela narrativa de acontecimentos ligados a um personagem.
Por meio da simpatia, uma obra literária pode convidar, segundo a noção
formulada por C. S. Lewis em An Experiment in Criticism, à “construção de castelos”,
ou ser usada com essa finalidade (ainda que, é preciso admitir, de modo não muito
consciente). Na obra literária, o personagem pode obter diversos objetos que tornam
sua vida ficcional plena: amor, riquezas, a aprovação alheia por meio de atos de
bravura etc. A ficção pode servir de apoio para que o leitor vivencie vicariamente
essas realidades. C. S. Lewis denominaria esse processo, que já foi tratado por
obras literárias canônicas como Dom Quixote e Madame Bovary, “construção
egoísta de castelos”; todavia, preferimos o termo “devaneio egoísta” por ser mais
econômico e porque a ideia de devaneio já corresponde bem em português ao que
Lewis pretendia dizer.
A noção de devaneio egoísta, calcada em Lewis, pode ser refinada se
trouxermos a contribuição do crítico francês René Girard.
43

3.2 O desejo não é deste mundo

O desejo não é deste mundo. É isso que nos mostra o melhor Proust: é
para penetrar em outro mundo que se deseja, é para ser iniciado numa
existência radicalmente estrangeira. O objeto desejado frequentemente se
apresenta na forma de uma esfera impenetrável: a curva das bochechas de
Albertine, além do alcance de qualquer beijo; a couraça moldada ao peito
do guerreiro, a ferir donzelas apaixonadas. Por trás de cada porta fechada,
de cada barreira insuperável, o herói sente a presença do domínio absoluto
que lhe escapa, da divina serenidade de que se sente privado.
Desejar é acreditar na transcendência do mundo sugerido pelo Outro.

René Girard, “From the Novelistic Experience to the Oedipal Myth”.56 (“Da
experiência romanesca ao mito edipiano”; o original, “De l’experiénce
romanesque au mythe oedipien”, é de 1965.)

“O desejo não é deste mundo.” Não é difícil ver como essa pequena frase
parece sintetizar muito do que dizíamos. O devaneio egoísta é a realização vicária
de desejos por objetos que não pertencem ao mundo do sujeito que deseja. É por
isso que essa estrutura pode ser aplicada a praticamente qualquer situação. Se
pensamos no exemplo do sujeito pobre que deseja a vida dos ricos, temos também
o clichê do rico que julga que a vida do pobre é mais autêntica e por isso sua
satisfação é mais plena. O primeiro julga que a insuficiência de sua vida vem da
precariedade material dos objetos; o segundo julga-se ele próprio inadequado, talvez
mimado, ou então acredita que existem sensações mais grosseiras e mais intensas.
O que está em jogo é a transcendência, aquilo que parece inatingível, porque
“Desejar é acreditar na transcendência do mundo sugerido pelo Outro”.
Um romance pode não ser nada além de um mundo sugerido — o que já é
muita coisa. Uma oportunidade para, como já se disse, vivenciar vicariamente o
desejo sugerido pelo Outro. Com uma diferença fundamental. Continuemos a leitura
de Girard, exatamente de onde paramos, e sem sair da mesma página:

Assim que cede ao desejo que a sitia, a encantadora totalidade revela-se


ilusória. Ela estoura como uma bolha de sabão ao menor contato, mas a
miragem se renova um pouco mais adiante. Imaginar Albertine fiel, adentrar
o círculo dos Guermantes, significa saltar o abismo e abolir a
transcendência.

56
GIRARD 2004, p. 1.
44

Na famosa vida real, podemos ter a experiência descrita por René Girard a
partir de Marcel Proust. No entanto, se insistirmos num devaneio egoísta, jamais a
teremos. A experiência de conquistar a transcendência e vê-la renascida mais além
é, em última instância, a experiência que precisa ser abolida do devaneio egoísta.
Trata-se de um desejo que quer permanecer desejante, sem realizar-se. O desejo
do outro, o personagem, precisa ser mostrado de maneira convincente para
despertar o meu próprio desejo. Ao mesmo tempo, esse desejo precisa ser
manipulado, suspendido, suspenso. O objetivo é continuar querendo.
E ainda sem sair da mesma página:

Esse desejo é masoquista em seu âmago. O obstáculo mais colossal, a


proibição mais humilhante, significam a realeza mais autêntica, o ídolo mais
estável.

Podemos pensar numa estrutura que afeta todos os leitores. Calímaco já


acreditou na estabilidade de vários ídolos e já entende que, se existe algo que acaba
com a tristeza, Lisânias, “outro o possui”. Isso não o impede de continuar lendo. O
profissional de Letras ainda pode querer encontrar algo que o nocauteie. O narrador
mais fascinante, o poema de arquitetura mais inacreditável. Segundo uma lenda,
Joyce teria escrito Ulisses para “manter os críticos ocupados por décadas”.
A mesma estrutura viciante pode repetir-se para o devaneio egoísta. Lê-se
um livro para vivenciar certos desejos. Depois mais outro para vivenciar outros
desejos. Um elemento permanece: a vontade de permanecer imerso o máximo de
tempo em outro mundo, sendo convencido, suspenso, suspendendo voluntariamente
a incredulidade, para dar um sentido não tão outro à famosa definição de Samuel
Taylor Coleridge.
Suspendamos essa discussão para apresentar uma parte da obra de René
Girard.

3.3 O desejo mimético


45

Se Erich Auerbach é facilmente classificável como crítico literário, René


Girard, membro da Academia Francesa, é um tanto mais difícil. Tendo iniciado a
carreira também como crítico, publicando em 1961 Mentira romântica e verdade
romanesca (Mensonge romantique et vérité romanesque), passou a dedicar-se à
antropologia, e seu primeiro livro nessa área, A violência e o sagrado, discute os
bacanais gregos e encerra-se com um capítulo sobre o canibalismo dos índios
tupinambás. Seria talvez mais preciso dizer que Girard é um filósofo do desejo e da
violência, se nos aproveitarmos do sentido mais amplo que a palavra “filósofo" tinha
em séculos pregressos.
Devemos nos ater, por ora, à apresentação de sua primeira teoria, a do
desejo mimético, que foi proposta originalmente no primeiro capítulo de Mentira
romântica e verdade romanesca, ainda com o nome de “desejo triangular”.
Já apresentamos diversos elementos que nos permitem formular as ideias de
René Girard, as quais, apesar de sua simplicidade, permitem aplicações
extremamente sofisticadas.
Falamos, por exemplo, de um leitor e de um personagem, e de como aquele
vive vicariamente o desejo deste, por meio da simpatia — a mesma simpatia que
cria uma relação com outro ser humano concreto.
A teoria do desejo mimético, desenvolvida por René Girard a partir da leitura
de cinco romancistas — Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoiévski e Proust —
propõe que desejar é desejar aquilo que é designado por outro, que é tomado como
modelo ou mediador do desejo.
Esse outro é considerado transcendente; sua vida nos parece autônoma,
plena, contente; isso porque ele possui algum objeto.
O título do livro é Mentira romântica e verdade romanesca justamente porque
René Girard quer contrapor a visão romântica do desejo à visão romanesca, ou
mimética, que é apresentada pelos cinco autores escolhidos.
A verdade romanesca é nada menos do que esta: o desejo tem uma natureza
triangular. “Romanescas”, na terminologia girardiana, são as obras que colocam a
mediação do desejo para o primeiro plano. Como diz Girard na preciosa introdução
de De la Violence à la divinité [Da violência à divindade], a coletânea de seus quatro
primeiros livros, “Representar as relações de desejo em vez de refletir abstratamente
46

sobre elas, com os filósofos e com os psicólogos, favorece um pouco a descoberta


do mimetismo.”57
O capítulo de abertura de Mentira romântica e verdade romanesca começa
justamente com a explicação de Dom Quixote a Sancho Pança sobre por que
Amadis de Gaula deve ser imitado. Julien Sorel, em O vermelho e o negro, de
Stendhal, possui uma relação semelhante com Napoleão Bonaparte, e enxerga
todas as situações como batalhas.
Essas duas relações, segundo René Girard, são relações de mediação
externa: como o modelo do sujeito desejante está efetivamente removido de sua
experiência, ele pode ser imitado sem que haja conflito. Trata-se de uma relação
análoga à de um cristão com Cristo, por exemplo: praticar a religião consiste
justamente em imitá-lo. Igualmente, um escritor pode admirar um mestre do
passado, como por exemplo fizeram tantos autores com os mestres da Antiguidade
Clássica, seguindo os procedimentos da imitatio e da aemulatio. O modelo é claro, é
admitido. Não há problema. No entanto, depois vamos propor uma distinção
importante dentro da mediação externa.
Existe também a relação de mediação interna, na qual o modelo está próximo
e o objeto não pode ser compartilhado. Dois autores podem competir para ver quem
é o melhor imitador de Virgílio, digamos, mas isso provavelmente não levará a um
conflito violento. Não se pode dizer a mesma coisa de dois homens que desejem a
mesma mulher. Ou de duas crianças que desejem o mesmo brinquedo. Na
mediação interna, “O mediador não pode mais desempenhar o papel de modelo sem
desempenhar, ou parecer desempenhar, o papel de um obstáculo.”58 Está presente
a mesma relação de desejar o ser do outro que existe na mediação externa, com a
diferença de que esse ser não pode coexistir com o do sujeito desejante. Ou cessa a
posse, e com isso o ser transcendente do outro, ou cessa o próprio ser. A mediação
interna é portanto essencialmente conflitiva, e capaz de gerar um ciclo
potencialmente infinito de retribuições e de vinganças.
Provavelmente o maior estudo da mediação interna é a obra girardiana Teatro
da inveja (A Theater of Envy, escrito diretamente em inglês pelo pensador francês),
que discute a obra de Shakespeare, e que tivemos a oportunidade de traduzir para o
português. Se, repetindo a citação de Girard, representar as relações de desejo

57
GIRARD 2007, p. 9.
58
GIRARD 1961, p. 21.
47

ajuda a descobrir o mimetismo, nessa obra Girard apresenta uma proposta radical:
“A principal ideia deste estudo é que Shakespeare não é apenas um ilustrador
dramático do desejo mimético, mas seu teórico.”59 Para dar um exemplo de como
Shakespeare explicitou o desejo não apenas mostrando-o mas efetivamente
discutindo-o. “Shakespeare pode ser tão explícito quanto alguns de nós em relação
ao desejo mimético, possuindo um vocabulário próprio para ele, próximo o suficiente
do nosso para ser reconhecido de imediato. Ele fala em ‘desejo sugerido’,
‘sugestão’, ‘desejo ciumento’, ‘desejo emulador’ etc.”60
Porém, um dos exemplos mais interessantes dessa teorização, e que pode
nos levar ao próximo passo, está na primeira cena do primeiro ato de Sonho de uma
noite de verão [A Midsummer Night’s Dream]. Vejamos os versos 139 e 140 da
versão editada por Harold F. Brooks (Arden), um diálogo entre Lisandro e Hérmia:61

Lysander: Or else it stood upon the choice of friends —


Hermia: O hell! To choose love by another’s eyes.

Segundo Girard, não poderia haver nada mais claro. Traduzindo literalmente,
sem preocupações métricas, teríamos:

Lisandro: Ou então dependia da escolha de amigos —


Hérmia: Que inferno! Escolher o amor pelos olhos de outro.

A própria edição Arden do texto da peça nos remete, no que diz respeito à
palavra friends, a uma discussão de duas páginas que pretende convencer-nos de
que ela não significa “amigos”, mas “pais” ou “responsáveis” (guardians). E, de fato,
essa discussão acontece dentro de um pequeno contexto específico: os pais dos
jovens escolheram seus noivos. No entanto, o contexto maior da peça, que se passa
“numa floresta perto de Atenas”, mostra os jovens, ao contrário, alterando o tempo
todo a sua escolha amorosa graças às artimanhas de Puck. Para Girard, esse é o
recurso que permite dar à peça o ar de mentira romântica necessário para que ela
seja aceita pelo público. Sendo a plateia mais predisposta a crer na mentira
romântica do que na verdade romanesca, não se pode contestá-la diretamente, sob
o risco de não gerar simpatia e nenhuma emoção. Shakespeare seria, segundo

59
GIRARD 2009, p. 241.
60
GIRARD 2010, p. 43.
61
SHAKESPEARE 1979, p. 13.
48

Girard, um mestre da mistura da verdade romanesca, a verdade sobre a estrutura


mimética do desejo, com a mentira romântica, necessária para o público.
Na visão “romântica”, portanto, crê-se que o desejo é espontâneo e
despertado pelo objeto. Ainda na mesma introdução de 2007, Girard nos diz que,
“Para o dogma romântico e moderno, o desejo mais intenso é obrigatoriamente
espontâneo.”62 Assim, tendemos a ler os friends como os adultos que estão
impedindo o verdadeiro amor romântico, e ficamos cegos para a ironia que
Shakespeare deseja inserir.
No devaneio egoísta, é claro que, assim como a transcendência deve
permanecer transcendente, como o desejo não pode levar à frustração, como a
bolha nunca pode ser estourada, também não pode haver consciência do rival, a
percepção de que o eu é na verdade definido pelo outro.

3.4 O duplo angélico

Desejar é ter uma carência. Essa carência é “ontológica”, é sentida como uma
carência de ser. É por isso que, como explica Girard em Mentira romântica e
verdade romanesca, referindo-se a Dom Quixote e a Pavel Pavlovitch, personagem
de O eterno marido, de Dostoiévski:

O sujeito que deseja quer tornar-se seu mediador. Ele quer roubar seu ser
de cavaleiro perfeito ou de sedutor irresistível.
(…)
O herói dostoievskiano, assim como o herói proustiano, sonha absorver,
assimilar o ser do mediador. Ele imagina uma síntese perfeita entre a força
do mediador e sua própria “inteligência”. Ele quer tornar-se o Outro sem
deixar de ser si próprio. Mas por que esse desejo, e por que esse mediador
particular, preferido a tantos outros? Por que o herói escolhe o modelo
adorado e odiado com tanta pressa e tão pouco senso crítico?
Para querer fundir-se assim na substância do Outro, é preciso experimentar
uma repugnância invencível pela própria substância.63

E, em seguida, reforçando essa ideia a partir de Proust, autor mais relevante


para a discussão presente:

62
GIRARD 2007, p. 10.
63
GIRARD 1961, p. 70-71.
49

Todos os heróis romanescos odeiam-se a si mesmos num nível mais


essencial do que o das “qualidades”. É precisamente isso que nos diz o
narrador proustiano no começo de O caminho de Swann: “Tudo aquilo que
não era eu, a terra e os seres, parecia-me mais precioso, mais importante,
dotado de uma existência mais real.”64

É por essa razão que este capítulo de Mentira romântica e verdade


romanesca intitula-se “Os homens serão deuses uns para os outros”. Se todos
veem-se a si mesmos como carentes metafísicos, os outros parecem deuses. Mais
ainda, como veremos, esse ódio de si é que faz com que os homens queiram
parecer deuses — qualquer coisa menos do que isso seria inaceitável. Qual a
característica dos deuses? A ausência de carências. A autossuficiência. A
autonomia. Retomando o ensaio “From the Novelistic Experience to the Oedipal
Myth”:

O projeto de bem-aventurada autonomia [blissful autonomy] é igual à paixão


que atrai o Eu para o Outro, transformando este último num duplo
fascinante. O Eu faz o que pode para reforçar as certezas que o estão
dilacerando. Nesse estágio, a obra é uma tentativa de perpetuar e de
exaltar o intervalo diferencial que todos postulamos entre nós e o Outro. O
escritor se esforça, ainda que em vão, para dar a esse intervalo um
conteúdo concreto.65

Nesse ensaio, René Girard faz uma comparação entre o Proust de Jean
Santeuil, seu primeiro romance, e o Proust de Em busca do tempo perdido. Seu
projeto é permitir que o último Proust explique o primeiro, e seu ponto de partida é a
comparação entre duas cenas. Na primeira, em Jean Santeuil, o protagonista
assume um papel divino. “Ele está feliz e confortável num camarote, deliciando-se
com as atenções, invejado por todos. Duas ou três duquesas estão a seus pés. Um
rei ajeita a gravata. Estamos em pleno coração daquilo que, na obra-prima [Em
busca do tempo perdido], nunca será mais do que o objetivo inacessível do
desejo.”66 Na segunda cena, que faz parte de À sombra das moças em flor, segundo
livro da série, o narrador está no teatro, mas na plateia, e é ele quem olha para cima,
é ele quem está na posição de carência.

64
GIRARD 1961, p. 71.
65
GIRARD 2004, p. 4.
66
GIRARD 2004, p. 4.
50

Ou seja: “O Proust de Jean Santeuil julga-se um Outro, ao mesmo tempo


imaginário e real, e é esse Outro que ele representa.“67
No ensaio Narcissism: The Freudian Myth Demythified by Proust (Narcisismo:
o mito freudiano desmistificado por Proust), de 1978, René Girard retoma Jean
Santeuil: “em seu primeiro romance, Jean Santeuil (...), Proust retrata um rapaz
intensamente preocupado consigo mesmo; o efeito que ele produz nas outras
pessoas é quase invariavelmente positivo.”68 Na página seguinte, porém, Girard faz
um contraste com o narrador da Busca, para quem “os objetos de amor sempre dão
uma impressão de ‘bem-aventurada autonomia’ e de ‘autossuficiência.’ Eles
correspondem à ideia freudiana de ‘narcisismo intacto’. Não é mais o sujeito do
desejo que é narcisista, como no primeiro romance, mas seu objeto.” Em suma, o
narrador de Jean Santeuil possui tudo de que o narrador da obra posterior (Em
busca do tempo perdido) carece.”69
Para chegar à formulação que buscávamos, retornemos ao ensaio de 1965:

A perfeição insípida [bland] do protagonista mostra que ele é o “duplo


angélico” da subjetividade criativa. O autor pode igualmente centrar seu livro
no Outro. O protagonista inteiramente positivo é então substituído por outro
totalmente negativo, uma caricatura, o duplo malvado. Os dois tipos de obra
têm suas raízes no mesmo dualismo. O Outro nunca está ausente das
obras líricas e idealistas organizadas em torno do Eu. O Eu nunca está
ausente das obras amargas, satíricas e realistas organizadas em torno do
Outro. A obra-prima desafia esse sistema de oposições.70

Duplo angélico. Uma projeção do autor. Uma versão do narrador e/ou


protagonista que atribui exclusivamente aos demais personagens sua carência
ontológica, que quer dar de si mesmo uma ideia semelhante à maneira como o
sujeito que se sabe desejante enxerga o Outro: um ser etéreo, de “bem-aventurada
autonomia”. Um deus.
Essa modalidade de dualismo é típica do devaneio egoísta. Se nele existe a
satisfação vicária dos desejos, os únicos obstáculos só podem ser os outros, aos
quais são atribuídos males como a inveja e o esnobismo, porque o desejo com que
o leitor do devaneio egoísta deseja identificar-se é autêntico, espontâneo, legítimo.

67
GIRARD 2004, p. 4.
68
GIRARD 2008, p. 176.
69
GIRARD 2004, p. 2.
70
GIRARD 2004, p. 4-5.
51

Uma expressão parcial da verdade romanesca, que contém uma mentira


essencial: os outros é que imitam meu desejo. Se existe imitação, não sou eu o
imitador. Se eu desejo, esse desejo é espontâneo, “legítimo”; os outros é que não
captam a minha diferença, a minha originalidade, a minha espontaneidade; daí,
inclusive, que a atmosfera romântica seja eivada de uma certa paranoia.
A vitória do personagem catalisador da simpatia consistirá, portanto, numa
vitória de sua espontaneidade contra essa imitação mal-intencionada, que deseja
tirar do personagem seu ser, tirando-lhe o objeto que assegura essa plenitude.
Não se trata, ainda, de uma oposição do tipo mocinho contra bandido, mas de
algo ainda mais básico, porque mocinho contra bandido pressupõe uma certa
predisposição moral, que discutiremos depois, mas de uma oposição que decorre
tão-somente da estrutura do desejo e do anseio de demonstrar autonomia.

3.5 Mediação externa egoísta

O duplo angélico, enfim, pode nascer como uma projeção do autor, mas a
obra escrita desde esse perspectiva conclama o leitor a identificar-se com ela,
criando um mundo de “nós” e “eles” — exatamente como o mundo de pessoas
“realmente elegantes” contra os “esnobes” do ambiente proustiano. O mal é
transferido para o outro; o eu do leitor imita a confirmação que o eu do narrador
oferece da justiça da sua própria causa. A realização vicária dos desejos passa a
assumir contornos morais, porque começam a entrar em questão a legitimidade dos
desejos e, com isso, a autenticidade e mesmo sua suposta espontaneidade. A obra
pode prestar-se ao papel de guia de uma vida não-examinada, com os talentos do
escritor oferecendo justificativas abundantes e sofisticadas para as disposições que
o leitor já tenha. Mais ainda, aqui começamos a roçar algo que se aproxima da
literatura contemporânea de auto-ajuda, que tem entre seus leitmotivs e ideia de “ser
especial” ou de “não ser como os outros”. Se os outros não são necessariamente
vilões, isso não quer dizer que você deva ser como eles.
Uma leitura superficial de Mentira romântica e verdade romanesca pode nos
deixar com a impressão de que a mediação externa é sempre positiva, apenas por
não estimular o conflito violento imediato. No entanto, a consideração das palavras
52

de C.S. Lewis sobre os aspectos mórbidos do devaneio deixa claro o lado negativo
da mediação externa. Talvez Jean Santeuil não tenha deixado um legado de
admiradores da finesse. Mas Dom Quixana, lendo as aventuras de Amadis de
Gaula, decidiu tornar-se Dom Quixote, e é o próprio Girard quem oferece esse
exemplo como de mediação externa. Emma Bovary leu romances rocambolescos;
as desgraças de sua vida vêm de ela tentar imitar modelos perfeitamente externos.
Assim, podemos pensar em pelo menos dois tipos de mediação externa. O
primeiro, altruísta, em que o sujeito desejante admite sua carência — em vez de
tentar escondê-la — e mantém uma atitude de humildade em relação a seu modelo.
Quanto a esse ponto, as diversas regras de ordens religiosas insistem na distância
absoluta que há entre Cristo e o fiel e na humildade como a primeira das virtudes.
Não por acaso, a grande recomendação da religião é que o fiel tente identificar-se
com a paixão de Cristo, evitando, obviamente, identificar-se com o Cristo que faz
milagres. Assim, a atitude religiosa de mediação externa é protegida do
estabelecimento de uma simpatia que possa confirmar o egoísmo.
Relação análoga pode existe na imitação admitida de modelos literários. O
escritor que imita quer que os traços do imitado permaneçam visíveis, ao menos
para os que tiverem olhos. Mesmo que busque superar o modelo, vai manter a
atitude de gratidão.
A mediação externa egoísta vai acontecer entre o leitor que, tomado de
simpatia por um personagem, identifique-se com ele e passe a viver
imaginariamente em seu mundo, desconsiderando o mundo concreto em que vive. A
isso já se costuma dar o nome de “escapismo”, mas certamente há escapismos e
escapismos. Um momento de escapismo pode servir apenas para a recuperação do
fôlego para a vida cotidiana. Mas é possível evitar a vida cotidiana apenas para
manter-se no universo da leitura, com uma atitude irrefletida, de pura fé na
realização dos desejos dos personagens. É por isso, aliás, que Santa Teresa d’Ávila
falava contra os romances de cavalaria: porque eles se prestavam a esse tipo de
devaneio mórbido.
Nessa mediação externa egoísta, o leitor usa o desejo para transportar-se
para outro mundo, mas de fato só o satisfaz vicariamente, ou seja, não o satisfaz. A
própria concepção de desejo, caso chegue a ser formulada, será infantil.
Essa atitude é totalmente diferente daquela atitude de “recepção” da obra
mencionada por Lewis. Não se trata de fazer uma apologia da literatura que “faz
53

pensar”, porque qualquer literatura pode “fazer pensar”. A questão é que a leitura de
um epigrama de Calímaco suscitará a admiração pelo trabalho com a linguagem. A
mediação externa egoísta é apenas um modo de fugir da banalidade e, por meio de
recursos como apresentação vívida de desejos, de prazeres e de aventuras, bem
como da atenuação do suspense, lograr fugir de qualquer reflexão.
54

4 “MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES”

Numa nota pessoal, lembro-me do momento, na escola, em que, adolescente,


lendo pela primeira vez a Ilíada, minha professora de português, Vera Lúcia
Fontoura Lima, disse: “O verdadeiro herói da Ilíada é Heitor.” Fiquei impressionado
porque Heitor obviamente não era o protagonista da Ilíada (que, a bem da verdade,
se nos pautarmos pelas expectativas contemporâneas quanto a um roteiro, não tem
exatamente um protagonista); além disso, ele estava do lado troiano, que, na minha
cabeça juvenil, era nada menos do que o lado dos acobertadores de um ladrão de
mulher. Delenda Ilion, pensaria eu se, à época, conhecesse a frase latina sobre
Cartago.
Este capítulo pretende responder à perplexidade daquele dia. Hoje posso
reformulá-la. O que a professora queria dizer é que não temos simpatia por Aquiles,
porque Aquiles não merece aquela aprovação moral de que falava Adam Smith.
Outros heróis nos foram apresentados.

4.1 Simpatia pelos spoudaios

Aristóteles diz na Poética (1449b) que “a epopeia e a tragédia concordam


ambas somente em serem imitações de homens superiores, em verso”71. O termo
grego utilizado por Aristóteles para designar esses “homens superiores” é, no
singular, σπουδαῖος, spoudaios. No trecho original em grego, temos μίμησις εἶναι
σπουδαίων, ou, literalmente, preservando nossos termo-chave, “ser imitação dos
spoudaioi” (sendo spoudaioi o nominativo masculino plural de spoudaios).
A palavra spoudaios é mantida aqui por ser um dos grandes termos
problemáticos da filosofia de Aristóteles, de difícil tradução. Para nossos fins, basta
uma discussão brevíssima dele. Aristóteles utiliza-o na Ética e na Política. Eudoro de
Souza, no trecho citado, traduziu-o como “homem superior”, mas o dicionário Bailly
Abrégé nos diz que, quando se refere a pessoas, spoudaios significa 1. “actif, zélé,

71
ARISTÓTELES 1993, p. 35.
55

ardent” (“ativo, zeloso, ardente”); 2. “sérieux, grave” (“sério, grave”); 3. “bon,


vertueux, honnête” (“bom, virtuoso, honesto”). De fato, a raiz de spoudaios é
σπουδή, spoudé, substantivo que significa, segundo o mesmo dicionário, “pressa” e
“zelo”. O dicionário, portanto, nos permitiria traduzir o termo como “homem zeloso”.
Pouco depois, em 1451a72, Aristóteles menciona especificamente a Odisseia,
mencionando episódios da vida de Ulisses que Homero teria propositalmente
omitido da narrativa. O trecho termina com a menção nominal da Ilíada.
Ou seja: para Aristóteles, Ulisses e os personagens da Ilíada, entre os quais
Aquiles, são spoudaioi.
Ainda, no trecho 1453a, Aristóteles explica qual é o melhor mito, ou enredo,
para a tragédia. Já sabemos que ela é uma imitação de spoudaioi, e Aristóteles
acrescenta que “esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes e outros representantes de famílias
ilustres”73 (“τῶν ἐν μεγάλῃ δόξῃ ὄντων καὶ εὐτυχίᾳ, οἷον Οἰδίπους καὶ Θυέστης καὶ οἱ
ἐκ τῶν τοιούτων γενῶν ἐπιφανεῖς ἄνδρες”.) É por essa razão que spoudaios também
costuma ser traduzido como “nobre”.
De fato, mesmo sendo personagens de epopeias, Aquiles e Ulisses são
homens que “gozam de grande reputação e fortuna”. Ulisses é rei de Ítaca. Aquiles é
filho da deusa Tétis. Os dois são “nobres”. São também spoudaioi nesse sentido.
Depois, Aristóteles passará a discutir especificamente a tragédia, mas o que
ele dirá sobre a relação estabelecida entre público e personagens dependerá de
estes serem spoudaioi.
Os trechos imediatamente posteriores da Poética são dedicados à questão de
como suscitar na plateia os devidos sentimentos, com destaque, como é sabido,
para o “terror” (φόβος, fobos) e a “piedade” (ἔλεος, eleos). Não nos parece haver um
passo exagerado em dizer que a piedade, ou compaixão, supõe ao menos uma
forma de simpatia. Afinal, embora Aristóteles não utilize a palavra grega συμπάθεια,
sympátheia, ou “simpatia”, grande parte da primeira metade da Poética é dedicada à
discussão de como gerar a simpatia em nosso sentido smithiano na plateia.
Podemos destacar, por exemplo, o início do trecho 1453a, em que Aristóteles
explica que sentiremos “piedade por alguém [que sofreu algo] imerecido” (ἔλεος μὲν

72
ARISTÓTELES 1993, p. 50-51.
73
ARISTÓTELES 1993, p. 69.
56

περὶ τὸν ἀνάξιον), ou, na tradução de Eudoro de Souza, “a piedade tem lugar a
respeito do que é infeliz sem o merecer”74, trecho que virá a ser muito importante em
nossa argumentação no capítulo seguinte.
Assim, podemos raciocinar da seguinte maneira, acreditando estar em
consonância com o pensamento de Aristóteles: Aquiles e Ulisses, personagens de
epopeias, são spoudaioi, e esse traço une epopeias e tragédias. Para uma obra ter
sucesso — e Aristóteles não duvida do sucesso da Ilíada e da Odisseia — os
spoudaioi precisam contar com a nossa simpatia. Sem essa simpatia, não teríamos
compaixão caso eles sofressem algo imerecido.
A ambiguidade do termo spoudaios nos favorece. De um lado, seu zelo, seu
ardor contagiará o desejo da plateia; de outro, esse mesmo ardor, concentrado por
supuesto numa obra de arte, aliado a sua “grande reputação e fortuna”, fazem do
protagonista um modelo. “Reputação” nada mais é do que a admiração alheia;
“fortuna” nada mais é do que ser bem-aventurado aos olhos dos outros. Outros
esses entre os quais podemos nos incluir, claro.
Ora, uma obra de arte também é feita para atrair os olhos dos outros. O
spoudaios atrai duplamente esse olhar: no seu mundo fictício e também na relação
entre espectador e personagem. Ulisses e Édipo são reis em Ítaca e em Tebas,
respectivamente, e objetos da nossa simpatia por serem personagens. Aquiles é
nada menos do que um semideus, que saberia que, se fosse à guerra de Troia,
morreria, mas seria cantado para sempre. Mítica ou ficcional, a profecia sobre
Aquiles se realiza no mundo da vida, milênios depois, a continentes de distância.
Retomando as ideias de René Girard, estamos no coração do mimetismo.
Cada personagem pode nos servir de modelo, guiando nosso desejo.
Todavia, é preciso dizer algumas palavras sobre Ulisses — e principalmente
sobre Aquiles. Afinal, no mencionado trecho 1453a, Aristóteles já deixou de falar da
epopeia, e explica que, no caso da tragédia, seu spoudaios será ainda mais digno
de compaixão caso sofra um infortúnio imerecido “não porque seja “vil e malvado”75,
ou, numa tradução mais literal, “e não por meio de maldade ou vileza” (“μήτε διὰ
κακίαν καὶ μοχθηρίαν”).
Cabe perguntar-nos que opinião teríamos de Aquiles e Ulisses hoje em dia.

74
ARISTÓTELES 1993, p. 67.
75
ARISTÓTELES 1993, p. 69.
57

4.2 Aquiles e Ulisses

Em Tragic Pleasures: Aristotle on Plot and Emotion (Princeton: Princeton


University Press, 2012), Elizabeth S. Belfiore faz um exame detalhado do uso da
palavra spoudaios na Poética e ainda o compara ao uso em outras palavras mais
preocupadas com a moral, como a Ética a Nicômaco e a Política76.
Um cruzamento da posição de Aristóteles com a de Adam Smith nos
lembraria de que a simpatia depende de uma certa aprovação moral. E, como vimos
há pouco, o próprio Aristóteles, ao dizer que o spoudaios trágico deve sofrer algo
imerecido “não por baixeza ou vileza”, permite-nos supor que ele estaria de acordo
com Adam Smith nesse ponto.
Voltemos porém à epopeia para examinar seus mais famosos spoudaios,
esses homens ardorosos, zelosos, e de grande reputação e fortuna.
A primeira palavra da Ilíada é μῆνιν, acusativo de μῆνις, “mênis”, “cólera”.
“Canta, deusa, a cólera de Aquiles”, são as célebres palavras iniciais do primeiro
hexâmetro da epopeia. E por que Aquiles está encolerizado? Logo nos primeiros
versos ficamos sabendo que foi por causa de um desentendimento com “o Atrida”,
isso é, Agamêmnon, chefe de todos os aqueus. Agamêmnon ordenou a Aquiles que
abrisse mão da escrava que capturou, a filha de Crises, sacerdote de Apolo. Aquiles,
em represália, recusa-se a guerrear, e só retoma as armas quando seu amigo
Pátroclo é morto. Seu objetivo, então, não é ajudar o exército dos aqueus, mas
simplesmente vingar-se.
Durante o primeiro canto da Ilíada, vemos Aquiles dirigir a seu comandante
invectivas que hoje um soldado jamais ousaria dirigir a seu sargento: “Pesado de
vinho! Olhos de cão! Coração de gamo!” (Canto I, verso 225)77. Aquiles logo depois
demonstra desprezo pelos guerreiros seus companheiros: “Rei voraz com o próprio
povo, é sobre nulidades que tu reinas” (I, 231). E, apenas para “prevenir” os
companheiros, diz que entrega a escrava, mas que, se Agamêmnon ou qualquer

76
BELFIORE 1992, p. 100ss.
77
A tradução utilizada será sempre a de Frederico Lourenço; é a ela que remetem as referências,
sempre idênticas ou próximas do texto original grego.
58

outro tentar tomar-lhe qualquer outro bem, “rapidamente da minha lança correrá teu
negro sangue”.
Após finalmente matar Heitor, que matou Pátroclo, Aquiles não pretende
conceder ao príncipe troiano as honras tradicionalmente concedidas aos guerreiros
mortos, as quais provocavam interrupções nos combates: “arrastei para aqui Heitor,
para os cães o comerem cru” (XXIII, 21); depois, arrematando, nos versos
imediatamente seguintes, promete: “e na tua pira funerária cortarei as gargantas a
doze / gloriosos filhos dos troianos”.
A cólera é tão definidora do Aquiles da Ilíada que, no último canto, ficamos
até com a impressão de uma certa magnanimidade quando ele aceita devolver o
cadáver de Heitor a seu pai, o rei Príamo.
Se, por outro lado, a Odisseia se distingue por não enumerar promessas de
violência e truculências de seu protagonista Ulisses, é o próprio personagem que,
após cegar o cíclope Polifemo, entra em seu navio e diz-lhe seu verdadeiro nome:
“Ulisses, saqueador de cidades” (Ὀδυσσῆα πτολιπόρθιος, Odyssea ptolipórthios;
canto IX, verso 504). Chama a atenção, portanto, o epíteto que Ulisses atribui a si
mesmo no momento em que deseja revelar sua identidade.
Numa época como a nossa, em que uma piada de mau gosto pode arruinar
uma carreira, em que a “correção” ideológica é para tantos o primeiro critério de um
exame crítico, parece lícito dizer ao menos que, se Adam Smith estava correto
quanto à necessidade de uma certa aprovação moral como requisito da simpatia,
uma leitura cuidadosa das grandes epopeias gregas não permite uma simpatia
irrestrita por esses personagens. Podemos até vibrar com eles, mas dificilmente
vamos endossar suas atitudes.
Aqui, porém, não pretendemos discutir o que é bom ou mau, mas examinar os
pressupostos de nossas leituras.
Algo aconteceu no ocidente para abalar esses pressupostos, para transformá-
los, para dar-lhes critérios relativamente nítidos.
Esse algo, é claro, chama-se cristianismo. Ou ao menos a tradição judaico-
cristã, que absorveu inúmeros elementos do paganismo greco-romano.
No início desta dissertação, retomamos o contraponto de Erich Auerbach
entre os estilos homérico e bíblico, estilos que, segundo a tese geral de Mímesis,
iriam lentamente fundir-se para criar o realismo moderno. Nessa fusão, sustentamos
59

que um dos elementos trazidos pela Bíblia é justamente uma outra atitude em
relação à violência, atitude essa que ainda vai se tornar mais complexa.
Neste momento, no entanto, queremos enfatizar a diferença, o contraste.
Atendo-nos à figura do spoudaios, esse personagem zeloso cuja ação move a
narrativa, podemos verificar que, já na Idade Média, ele aparece de maneira
bastante diversa de como aparece na Ilíada e na Odisseia no tocante à violência.78
Examinemos uma obra que sob muitos aspectos apresenta spoudaioi que são
uma perfeita oposição de Aquiles e Ulisses: La Quête du Graal, ou A demanda do
Santo Graal em sua versão francesa.

4.3 La Quête du Graal, ou A demanda do Santo Graal

Dificilmente seria possível encontrar guerreiros mais antípodas dos heróis das
epopeias gregas do que os cavaleiros da Távola Redonda.
Erich Auerbach falava de como o estilo homérico apresentava os detalhes do
cotidiano de maneira vívida, usando o recurso da atenuação do suspense de
maneira a manter a atenção e, provavelmente, a suavizar a intensidade dos
elementos representados. Podemos dizer que sob certo aspecto a Ilíada e a
Odisseia são amorais, não por apresentar, segundo o clichê, “as coisas como são”,
mas porque, se nelas existe uma moral, ela nos parece mais um fruto
impremeditado da imitação das ações dos spoudaioi do que um elemento orientador
da composição.
É verdade que já invocamos a palavra “cristianismo” para explicar a diferença,
mas desejamos ir além e, aproveitando o contraste que faremos, mostrar que o
anseio de construir personagens guerreiros que sejam vistos como modelos nos
obriga a lidar com duas questões. A primeira, como dissemos, é a da violência, que
certamente entrou nas deliberações do autor anônimo da versão que examinaremos
da Demanda do Santo Graal, a francesa.

78
Certamente se poderia dizer que até o spoudaios da tragédia já é distinto do spoudaios da epopeia.
Consideremos, porém, que uma Antígona que deseja enterrar o irmão é bem diferente de uma
Medeia que mata os filhos por ter sido abandonada pelo marido. Esperamos mostrar que, já na Idade
Média, as expectativas em torno da legitimidade da violência eram bem mais nítidas.
60

A segunda é a do duplo angélico como definido por René Girard. Um autor


cristão tenta criar personagens que correspondam a graus de perfeição. No grau
máximo, o personagem — naturalmente, estamos falando de Galaad, o “Bom
Cavaleiro” — acaba se aproximando do duplo angélico proustiano, um personagem
que tem a posse perfeita dos objetos, inclusive o objeto mais precioso de todos, o
Santo Graal.
Escolhemos a versão anônima francesa, cujo texto foi estabelecido e depois
traduzido para o francês moderno por Albert Béguin e Yves Bonnefoy,79 dentre as
tantas versões existentes, por fiar-nos naquilo que Béguin diz em seu prefácio:

O sr. Étienne Gilson mostrou que uma teologia da graça, muito precisa e
conforme à doutrina de são Bernardo, sustenta como sólida armadura os
episódios da Demanda. Sem entrar nos detalhes dessa doutrina, digamos
que a hierarquia estabelecida entre os três cavaleiros, ou entre os três
graus da santidade representados por eles, repousa sobre essa noção da
graça e do mérito, da vontade divina e da liberdade humana80.

O francês Étienne Gilson, falecido em 1978, foi um dos grandes filósofos e


historiadores da filosofia do século XX. Se a versão escolhida da Demanda vem com
seu aval, não apenas podemos ficar seguros de um desejo de distanciamento do
paganismo (em sentido amplo), como podemos supor que o elemento do duplo
angélico vem de um cálculo específico, orientado por uma doutrina. Vem desse
cálculo, mas certos efeitos provocados por ele são involuntários.
Em outro trecho do prefácio, Albert Béguin defende o valor especificamente
literário da obra, ou seu valor como algo a ser “recebido” naquele sentido de C.S.
Lewis. também menciona o uso que se esperava que se fizesse dela:

…esse romance é ao mesmo tempo uma autêntica obra-prima literária, um


dos mais belos de toda a Idade Média. Ele nada tem de pregação ou de
relato meramente edificante; os próprios sermões dos eremitas, que
periodicamente instruem os heróis e lhes explicam seus sonhos ou suas
aventuras, não rompem a trama da invenção romanesca. Esse
desenvolvimento dos símbolos é necessário a uma obra em que toda a
imaginação está orientada para uma inteligência dos sinais ocultos nos
acontecimentos, nos encontros e nos sonhos.81

79
Quête 1965.
80
Quête 1965, p. 33. Tradução nossa, bem como a de todos os demais fragmentos de La Quête du
Graal.
81
Quête 1965, p. 38.
61

A “inteligência dos sinais ocultos”, além de fazer com que a Providência


permeie a obra, vai quase sempre levar os heróis a questionar suas próprias
motivações. Na Demanda do Santo Graal, não bastará ser hábil cavaleiro; é preciso
ter a motivação correta desde o princípio. Não é difícil ver como esse ponto se
tornou fundamental para grande parte dos romances de aventuras. Assim, se o leitor
católico quiser usar a obra em sua prática religiosa, ela vai sempre levá-lo a
questionar-se a si próprio. Se ele não “encontra o Graal”, falta-lhe rever suas
motivações.
Nada disso impede, porém, que a Demanda seja usada como devaneio, como
apoio para a mediação externa egoísta — nem para o desenvolvimento de uma
literatura mais convidativa ao devaneio egoísta. Ou, já que estamos falando de
cavaleiros, podemos também retomar a expressão de Lewis: construção egoísta de
castelos.
Assim, o que esperamos é conseguir mostrar que o spoudaios pode renascer
cristianizado, mas que as mudanças por que ele passa vão além dos parâmetros
morais. As diversas advertências e interpretações de acontecimentos que permeiam
a obra pretendem servir de salvaguarda contra o devaneio. O leitor — ou ouvinte —
que decida imitar qualquer cavaleiro, exceto Galaad, será primeiro obrigado a um
exame de si mesmo, porque aquilo que impede a posse do objeto desejado não é
um outro malvado, mas o próprio desregramento interior.
Porém, como dissemos, essa salvaguarda contra o devaneio não impedirá
que textos posteriores sensacionalizem a vida cavaleiresca, como veremos ao fazer
um breve exame do Amadis de Gaula. Não julgamos necessário demonstrar que o
Amadis de Gaula pode servir a um devaneio mórbido, a uma mediação externa
egoísta, porque uma das obras mais canônicas da literatura ocidental, Dom Quixote
de La Mancha, trata exatamente desse uso. Mas não saltemos etapas.
Julgamos então que aquela salvaguarda doutrinal embutida na Demanda
pode fracassar porque um dos spoudaioi do texto é claramente um duplo angélico —
o duplo angélico de um narrador cristão que escreve para cristãos, mas mesmo
assim um duplo angélico naquele sentido girardiano.
62

4.4 Breve descrição do início e da estrutura da Demanda do Santo Graal


francesa: spoudaioi em busca do Graal

Certamente não faremos uma análise doutrinal da Demanda para provar


aquilo que Gilson já teria provado. Faremos, sim, um exame de como o texto
pretende conquistar nossa simpatia.
Uma descrição detalhada da obra inteira é desnecessária, mas uma descrição
de seu início e de sua estrutura geral são relevantes.
A narrativa se inicia na corte do rei Arthur, “às vésperas de Pentecostes, perto
da hora nona”82 (três da tarde, a hora em que Cristo expirou) com Lancelot sendo
chamado para ir a outro castelo, onde apresentam-lhe um rapaz e pedem que ele o
sagre cavaleiro. Esse rapaz, chamado Galaad (que é filho de Lancelot, mas Lancelot
ainda não sabe), é “um menino tão belo, tão bem-feito que não se acharia outro
como ele no mundo”83. Lancelot sagra Galaad cavaleiro no dia seguinte e volta logo
depois para a corte do rei Arthur.
Nela, enquanto isso, começam a suceder acontecimentos maravilhosos: no
principal assento da Távola Redonda, chamado “Assento Perigoso” (Siège
Périlleux), “os cavaleiros viram letras que pareciam recém-escritas e que diziam:
QUATROCENTOS E CINQUENTA E QUATRO ANOS SE PASSARAM DESDE A
PAIXÃO DE JESUS CRISTO; E, NO DIA DE PENTECOSTES ESSE ASSENTO
ENCONTRARÁ SEU DONO”84. Após a chegada de Lancelot, surge um bloco de
mármore vermelho a flutuar num lago diante do palácio; “sobre esse bloco estava
fincada uma espada, bela e rica, cujo guarda-mão era de pedras preciosas, muito
habilmente trabalhadas com letras em ouro. Os barões olharam essas letras, que
diziam: NINGUÉM JAMAIS ME TIRARÁ DAQUI, EXCETO AQUELE AO LADO DE
QUEM DEVO PENDER. E ESSE SERÁ O MELHOR CAVALEIRO DO MUNDO.”85
Galaad, como cavaleiro, aparece misteriosamente na corte e é reconhecido
por Lancelot. No Assento Perigoso aparecem as palavras: “AQUI É O ASSENTO DE
GALAAD”86. Sendo reconhecido por todos como o cavaleiro esperado, aquele que

82
Quête 1965, p. 51.
83
Quête 1965, p. 52.
84
Quête 1965, p. 54.
85
Quête 1965, p. 55.
86
Quête 1965, p. 57.
63

levará a bom termo a Demanda do Santo Graal, Galaad ainda retira a espada da
pedra, “com tanta facilidade que ela nem parecia ter sido fincada”87.
Após a chegada dessa figura perfeita, a narrativa divide-se em diversas
aventuras, normalmente usando as fórmulas “o conto diz que…” para iniciá-las e “o
conto aqui se cala para passar às aventuras de…” para encerrá-las. Assim vamos
vendo o que sucede a cada um dos cavaleiros.
Sem querer dar um passo adiante na argumentação, falando imediatamente
de Galaad como duplo angélico, o primeiro elemento que salta à vista é que seus
personagens principais são todos spoudaioi naquele sentido complexo que
propusemos anteriormente. Em primeiro lugar, todos são nobres. A cada
apresentação de um cavaleiro, tomamos ciência de sua linhagem. Mais ainda, são
zelosos: estão todos empenhados na procura do Graal, a taça em que José de
Arimateia teria guardado o sangue de Jesus após sua crucifixão.
Examinemos agora alguns pontos-chaves da Demanda, em que seus heróis
mais parecem distanciar-se dos spoudaioi gregos.

4.5 Percival e a recusa explícita da violência: “por medo de ser tomado por
vilão”

Nas “Aventuras de Percival” (“Aventures de Perceval”), a parte da Demanda


lida especificamente com esse cavaleiro, temos um episódio exemplar, que explicita
a mudança de atitude em relação à violência88.
Percival acaba de ser emboscado por nada menos do que vinte cavaleiros.
Sendo excelente nas artes da guerra, consegue defender-se até certo ponto.
Quando começa a perder, após seu cavalo ser morto, e está acossado no chão,
esperando o golpe de misericórdia, Galaad aparece do nada, mata alguns cavaleiros
e afugenta os outros. Depois, simplesmente cavalga mato adentro, sem atender ao

87
Quête 1965, p. 61.
88
Estamos cientes de que Albert Béguin citou ninguém menos do que são Bernardo — o grande
incitador das Cruzadas — como inspirador dessa Demanda. No entanto, não nos cabe discutir a
diferença entre teoria e prática, e sim ilustrar uma mudança de mentalidade, que pode incluir, se o
leitor quiser, uma dose maior de hipocrisia. Essa crítica, porém, tem implicações mais profundas, que
viremos a explorar.
64

grito de Percival: “Ah! Senhor cavaleiro, pelo amor de Deus, parece um pouco, até
eu conseguir falar-lhe!”89
Prossegue a narrativa, exatamente após a fala de Percival:

O Bom Cavaleiro [Galaad] não deu sinal de ter ouvido, mas seguiu caminho
sem mostrar a menor vontade de voltar. E Percival, que não tinha mais
cavalo, tendo o seu sido morto, tentou ir atrás dele a pé. Logo encontrou um
valete montado num cavalo forte e rápido, conduzindo à sua direita um
grande cavalo de batalha negro. Percival não soube o que fazer: ele teria
adorado dispor daquele cavalo de batalha para seguir o Cavaleiro, mas com
a condição de que o valete lho desse livremente. Por medo de ser tomado
por vilão, ele não teria desejado tomá-lo à força se a necessidade não o
obrigasse. Assim, ele saudou o valete, que lhe respondeu: “Deus vos
abençoe!” — “Bom amigo”, disse Percival, “eu peço em serviço e em
benfeitoria, e porque serei teu cavaleiro no instante em que me rogares, que
me emprestes esse cavalo até que eu consiga encontrar um cavaleiro que
acaba de ir por ali.” — “Senhor”, disse o valete, “não emprestarei, pois ele
pertence a um homem que me amaldiçoaria se eu não o entregasse.” —
“Bom amigo”, disse Percival, “faz o que te rogo que faças. Nunca terei dor
maior do que se perder esse cavaleiro por falta de montaria para segui-lo.”
— “Não”, disse o valete. Percival ficou tão aflito que teve a impressão que
ficaria fora de si. Ele não queria usar de violência contra o valete; porém, se
ele perdesse a pista do Cavaleiro, jamais teria alegria de novo. Essas duas
coisas lhe provocavam tanta cólera no coração que ele não conseguiu
permanecer de pé e caiu aos pés de uma árvore, pálido e lânguido como se
a vida tivesse sido retirada de seu corpo, e tomado por um pesar tamanho
90
que quis morrer imediatamente.

A cólera de Aquiles é a primeira coisa a ser mencionada na Ilíada, que logo


no segundo verso nos informa que ela é “mortífera” e que “tantas dores trouxe aos
Aqueus / e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades”.91 A cólera de Percival
praticamente leva-o a ficar deprimido: ele chega a pedir ao valete que o mate. Ele se
recusa a agir movido pela cólera. Sendo cavaleiro treinado e armado, logo após
quase ter sido morto, ele não demonstra raiva dos cavaleiros covardes que ainda
estão vivos e que faziam parte do bando que o atacou. Ele quer, como um cristão, ir
correndo atrás daquele que o salvou. Mas, para isso, ele não pode ferir um preceito
cristão. Ele não pode, como um policial de um filme contemporâneo, alegar que
precisa daquele cavalo. Ele julga que só pode pedir; se o pedido é recusado, cabe-
lhe ficar resignado. Poucos guerreiros em poucos momentos conseguiram oferecer
um contraste tão perfeito ao Aquiles encolerizado por ter sido obrigado a abrir mão

89
Quête 1965, p. 131; o episódio começa na página 130.
90
Quête, p. 131-132.
91
HOMERO 2005, p. 29. Estamos, é claro, nos três primeiros versos da epopeia.
65

de uma escrava, ou ao Ulisses astucioso que se anuncia “saqueador de cidades”.


Afinal, Ulisses teria ludibriado o valete.
Aqui temos o spoudaios devidamente domesticado. Percival é um dos três
cavaleiros escolhidos. Sua conduta, portanto, precisa ser mais perfeita. Outros
cavaleiros podem pecar, falhar, ouvir os conselhos dos religiosos e emendar suas
vidas. Percival, não: ele precisa ser um exemplo entre os exemplos, um modelo,
porque, cabe insistir, a Demanda é uma obra que também foi feita para ser usada.

4.6 Bohort: “Se defendo minha vida, não me imputeis um pecado”

O capítulo sobre as aventuras de Bohort (p. 199-228) nos mostra a recusa da


violência num grau ainda mais elevado. Percival recusou-se a roubar um indefeso.
Bohort irá além. Num determinado ponto de suas aventuras, vê passar pelo caminho
seu irmão, amarrado, quase nu, sendo espetado por dois cavaleiros. Ao mesmo
tempo, passa por ele uma donzela que grita por socorro, afirmando que será
estuprada. Bohort respira fundo e decide socorrer a donzela, entregando o irmão a
Deus. Assim que a salva, procura o irmão. O demônio — o “Inimigo” — o leva a crer
que o irmão está morto e lhe dá interpretações falsas de seus sonhos e de seus
acontecimentos para induzi-lo ao desespero e, assim, ao pecado. Quando Bohort
escolhe não pecar, o demônio se revela e Bohort retoma sua busca pelo irmão, que
encontra vivo e recuperado do ataque. Esse irmão, Lyonnel, está ressentido pela
ausência de socorro e acusa Bohort, prometendo matá-lo. Bohort ajoelha-se,
pedindo perdão ao irmão. Depois, vendo que sua súplica de nada adiantou, monta
no cavalo por julgar que assim ficaria mais protegido. Lyonnel, “insuflado que está
pelo Inimigo”92, derruba-o, e ainda faz com que seu próprio cavalo passe por cima
de Bohort. Um eremita e outro cavaleiro intervêm, e são mortos por Lyonnel.
Vagamente recuperado, Bohort ergue a espada para defender-se do irmão, dizendo:
“Doce e bom pai Jesus Cristo, se defendo minha vida contra meu irmão, não me
imputeis um pecado!”93. Uma intervenção sobrenatural encerra o combate e Bohort
pede ao irmão que enterre dignamente os corpos dos assassinados.

92
Quête, p. 223.
93
Quête, p. 226.
66

Assim, Bohort representa uma situação de recusa da violência num grau


ainda mais elevado. Ele ofereceu a outra face, e foi defender a própria vida pedindo
para não ser visto como pecador. Ele não está recusando a violência — não
esqueçamos que, como cavaleiro, seu ofício é a violência — , mas está se
recusando a reagir diante de uma alegação de desejo de vingança. Além disso,
como a narrativa o tempo todo insiste em quem é o melhor cavaleiro, deixando clara
uma hierarquia na qual Percival, Bohort e Galaad estão no pódio (e para este último
podemos conceber um patamar bastante elevado), não é descabido imaginar que
Bohort sabia que mataria o irmão caso reagisse. De todo modo, é isso que é dito por
uma voz na intervenção sobrenatural que encerra o combate, certamente para
poupar Bohort dessa mácula.

4.7 Galaad

Galaad representa o último grau de perfeição dos cavaleiros, e é por essa


razão que ele se assemelha ao duplo angélico. Os cavaleiros que não fazem parte
do grupo dos “três companheiros” Percival, Bohort e Galaad estão desde o início
excluídos da visão do Graal, mesmo que possam participar da demanda. No meio
do caminho, todos eles invariavelmente encontram religiosos que lhes explicam seus
pecados.
No primeiro capítulo que narra suas aventuras (p. 101-115), Lancelot, pai de
Galaad, chega a ver o Graal, mas misteriosamente não se move; um religioso
explica-lhe que, tendo sido o maior caveleiro de todos, seu pecado com a rainha
Guinevere tornou-o indigno. Lancelot compromete-se a fazer penitência pelo resto
da vida — penitência essa que incluirá ter de ouvir insultos por ele ter visto o Graal
sem fazer nada. O segundo capítulo (p. 155-183) dedicado a Lancelot consiste
essencialmente em admoestações de religiosos sobre seu pecado e sobre a
necessidade de não cair outra vez em pecado mortal. É de notar, porém, que
mesmo o pecado do pai de Galaad não está ligado à violência, mas à
concupiscência.
Galaad distingue-se claramente dos demais cavaleiros. Ele é perfeito desde o
começo, e as tentações parecem nem se dar ao trabalho de aproximar-se dele.
67

Perante os demais cavaleiros, sua mera presença já traz a segurança da resolução


dos acontecimentos. No segundo e último capítulo que narra As aventuras de
Galaad (p. 229-243), aparece para Bohort, Percival e Galaad uma espada
maravilhosa, mas repleta da interdições, lembrando a espada que aparecera pouco
antes do começo da demanda. Após Percival e Bohort tentarem erguê-la, sem
sucesso, ambos dizem a Galaad: “Senhor, tentai tomar esta espada. Bem sabemos
que concluireis a aventura em que fracassamos.”94
Mesmo no único caso em que Galaad comete uma violência indevida e
acidental contra outro cavaleiro, Gauvain, este o desculpa. No começo do capítulo
que acabamos de mencionar, Galaad viu um castelo atacado, entrou na batalha e
golpeou Gauvain simplesmente porque este estava no caminho.

Diz ele [Gauvain] a Hestor: “Eis aqui confirmada a palavra que ouvi no dia
de Pentecostes, sobre aquela espada em que pus a mão. Foi-me anunciado
que antes de não muito tempo eu receberia dela um golpe terrível, e foi com
essa mesma espada que o cavaleiro golpeou-me ainda agora. Aconteceu-
me exatamente como predito.95

Gauvain refere-se ao episódio da aparição de Galaad na noite de Pentecostes


na corte do rei Arthur, e que já mencionamos anteriormente.
Todavia, vale observar que quando Percival, no capítulo dedicado a suas
aventuras (p. 117-154), encontra uma senhora capaz de explicar-lhe o sentido dos
acontecimentos, ela refere o início da demanda e compara Galaad a ninguém
menos do que Jesus Cristo:

Do mesmo modo como Nosso Senhor, o Cavaleiro que deveis ter por
senhor e pastor veio visitar-vos. Assim como Nosso Senhor apareceu sob a
semelhança do fogo, o Cavaleiro mostrou-se em armas vermelhas, que é a
cor do fogo. E assim como as portas da casa em que se encontravam os
apóstolos estavam fechadas quando chegou Nosso Senhor, também as
portas da sala estavam fechadas quando sobreveio o Cavaleiro, tão
subitamente que ninguém dentre vós compreendeu como ele entrou.96

Sabendo que, num contexto cristão, comparação nenhuma pode ser maior do
que esta, vale a pena ainda rematar os trechos que mostram porque Galaad é o
duplo angélico de um autor cristão observando a graça recebida pelo Bom Cavaleiro

94
Quête 1965, p. 236.
95
Quête 1965, p. 230.
96
Quête 1965, p. 123.
68

após ter encontrado o Graal. À p. 303, ficamos sabendo que ele repetia dia e noite
uma prece em que pedia para ser retirado do mundo na hora em que quisesse. No
mesmo trecho, lemos:

…um dia a voz divina lhe disse: “Não te perturbes, Galaad, porque Nosso
Senhor concederá o que tu pedes; no momento em que requerires a morte
de teu corpo, ela te será outorgada, e receberás a vida da alma e a alegria
eterna.”

E assim acontece.
No entanto, apesar da mudança de contexto, Galaad faz pensar no
personagem Jean Santeuil, que, segundo René Girard, “não experimenta nem o
desejo, nem a verdadeira desilusão”97. Galaad, afinal, é perfeito desde o começo. É
praticamente impassível. Ele parece saber que é o cavaleiro perfeito, e só não
menciona isso porque é pecado.
Ficamos por um momento até mesmo tentados a dizer que não, Galaad não é
um spoudaios, mas a verdade é que ele é zeloso na demanda, e é filho do nobre
Lancelot. Ele satisfaz as condições desde um ponto de vista “técnico”. Seu zelo,
porém, não parece vir de uma carência, mas de um mero senso de missão que se
confunde com sua própria identidade.
Essa é uma razão por que, lendo, a Demanda, ficamos mais comovidos com
o anseio de Lancelot de não pecar mais; nossos olhos se arregalam diante da
atitude do irmão de Bohort; torcemos pelo ingênuo Percival. Galaad pode não ser
Cristo, mas sentimos mais compaixão pelo Deus feito homem flagelado e crucificado
do que pelo cavaleiro que encontra o Graal.
O que acabamos de dizer parece uma extrema obviedade. Mas é uma
obviedade com fortes implicações. Uma obviedade já antecipada por Aristóteles,
aliás, quando disse, num trecho que já citamos, que sentiremos “piedade por alguém
[que sofreu algo] imerecido” (ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον). Cristo é um spoudaios
perseguido; Galaad não é perseguido. O próprio fundador do cristianismo, o homem
sem pecado por excelência, foi perseguido; o duplo angélico do autor cristão não
recebeu essa dignidade.
Eis aqui o gancho para o capítulo seguinte.

97
GIRARD 2004, p. 2.
69

5 HERÓIS (PORQUE) PERSEGUIDOS

Na coletânea The Wicked Wit of Jane Austen (O humor sagaz de Jane


Austen), o organizador Dominique Enright conta98 que James Stanier Clarke — que
nos círculos austenianos é conhecido apenas como Mr. Clarke — , bibliotecário de
Carlton House, então a residência londrina do príncipe regente do Reino Unido,
escreveu a Jane Austen em nome do príncipe para felicitá-la por seus romances. O
príncipe os adorava. Mr. Clarke, “como tantos que trabalham com livros, não
conseguiu resistir a tentar participar”, e começou a enviar a Jane Austen sugestões
para seus próximos romances. Mas não era só nesse front que Jane Austen estava
sendo acossada: “Ao mesmo tempo, os parentes enviavam-lhe seus manuscritos
para que ela os comentasse.” Diante de tanto assédio, a autora de Orgulho e
preconceito decidiu aproveitar o material que recebia:

Assim, tendo em mente os excessos dos romances sentimentais e de terror


que faziam o gosto do público, e inspirando-se nas ideias deveras
impraticáveis de Mr. Clarke, Jane Austen produziu a sátira Plano de um
romance, combinando aspectos da literatura popular com aquele tipo de
sugestão que os autores recebem de amigos e parentes…
O texto produzido por Austen, “Plano de romance segundo sugestões de
diversas pessoas”, tem para nós duas virtudes. A primeira é aquela que há em toda
caricatura: o de exagerar um aspecto da realidade para torná-lo mais patente.
Assim, é possível estabelecer uma verdade por meio da generalização; é claro que
nem todos os romances populares são assim, mas também é claro que é possível
discernir certos traços comuns a eles. A segunda, é claro, é documental. Gostar de
comer não significa ser capaz de cozinhar, e analogamente gostar de ler não
significa ser capaz de escrever. O que não impede, é claro, que o leitor forme ideias
daquilo que mais gostaria a partir de sua experiência de leitor, que pode até ser
considerável. Mas, se essa experiência de leitor — se esse devaneio provavelmente
egoísta, quase certamente passivo — nunca passou a uma experiência de escritor
— ao devaneio desinteressado, ativo — , é de se esperar que a primeira sugestão
dada pelo leitor que nunca escreveu revele os preconceitos mais irrefletidos. Seria
fácil descartá-los como ninharias de amadores; no entanto, como esses leitores
compõem o público leitor, é razoável pensar que seus preconceitos devem ser
70

levados em conta por autores de ficção que pretendam ser lidos por eles.
Retomando a metáfora gastronômica, uma pessoa pode dizer que gosta de muito
chocolate, e colocar chocolate demais no seu primeiro bolo; o cozinheiro, por sua
experiência, é quem sabe quanto chocolate é uma dose aceitável até para quem diz
gostar de muito chocolate. O que muda não são os ingredientes: é a dose.
O primeiro ingrediente que aparece é o duplo angélico: temos personagens
perfeitos e irrepreensíveis, que levam uma vida de pura serenidade bucólica,
imersos em seus nobres sentimentos. Leiamos alguns trechos do breve “Plano”99:

Cenário rural, Heroína filha de clérigo, alguém que após viver muito tempo
no mundo retirou-se dele para um vicariato, com uma pequena fortuna. —
Ele, o melhor homem que se pode imaginar, perfeito de caráter,
temperamento e maneiras — sem a mais mínima mácula ou peculiaridade a
impedir que ele seja a companhia mais agradável possível a sua filha o ano
inteiro. — Heroína também personagem sem mácula, — perfeitamente boa,
com muita ternura e sentimento, e, claro, muito espirituosa —
prendadíssima, compreende as línguas modernas e (de modo geral) tudo
que as moças mais prendadas aprendem, mas com um dote especial para a
Música — seu passatempo favorito — e toca igualmente bem o piano e a
harpa — e canta maravilhosamente. Sua aparência é muito bonita — olhos
escuros e rosto rechonchudo [essa era a descrição da própria Jane Austen].
— O livro deve começar descrevendo pai e filha — que, ao conversar, terão
falas longas e linguajar elegante — num tom de emoção séria e sublime.

Como vimos, porém, não é a enumeração de qualidades que gera simpatia,


mas a narrativa de acontecimentos. E, como disse Aristóteles, a piedade é gerada
quando o protagonista enfrenta sofrimentos imerecidos. Assim temos o segundo
ingrediente:

Desse começo procederá a história, que conterá uma impressionante


variedade de aventuras. A Heroína e seu pai nunca passam mais de quinze
dias no mesmo lugar, porque ele é expulso de seu vicariato pelas vis artes
de um rapaz sem princípios nem coração, desesperadamente apaixonado
pela Heroína, que a persegue com paixão incansável.

O contraste entre os bons e os maus deve ser sempre inequívoco:

— Mal assentam-se num país da Europa e precisam deixá-lo e ir a outro —


sempre travando novas amizades, sempre obrigados a deixá-las. — Isso, é
claro, exibirá uma grande variedade de personagens — mas não haverá
mistura; a cena sempre mudará de um grupo de pessoas para outro — mas
tudo que é bom será imaculado sob todos os aspectos — e não haverá
qualquer fraqueza ou defeito, exceto nos maus, que serão completamente

98
AUSTEN 2007, p. 53-54.
99
“Plan of a Novel according to Hints from Various Quarters”. AUSTEN 2007, p. 54-56.
71

depravados e infames, sem que reste neles praticamente nenhum indício de


humanidade.

Em suma, para citar o título de um bestseller contemporâneo, o que temos


são praticamente anjos e demônios.
É claro também que a heroína deve, além de possuir uma alma nobre, ser
uma mulher irresistível, limitada apenas pelo pudor e pela honra:

— No início da trama, durante seus primeiros deslocamentos, a Heroína


tem de conhecer o Herói — alguém obviamente perfeito — , que só será
impedido de dirigir-se a ela por algum excesso de polidez. — Onde quer
que ela vá, alguém se apaixona por ela, e ela recebe repetidas propostas de
casamento — que ela repassa integralmente ao pai, muitíssimo zangado
por não ter sido consultado primeiro.

Segundo Mr. Clarke e os parentes de Jane Austen, além de assediada como


objeto de desejo, a heroína também precisa ser incessantemente perseguida:

— Muitas vezes raptada pelo Anti-Herói, mas resgatada por seu pai ou pelo
Herói — muitas vezes obrigada a sustentar a si e ao pai com seus talentos,
e a trabalhar pelo pão; continuamente enganada e ludibriada em seu
trabalho, reduzida a pele e ossos, e volta e meia à inanição.

Não é preciso explicar porque é razoável associar ser “continuamente


enganada e ludibriada” a uma forma de perseguição, ou ao menos à sensação
subjetiva de estar sendo perseguido, como se houvesse uma intenção comum
apenas manifestada nas ações de várias pessoas.
Quanto à ideia de que ter de trabalhar é uma espécie de perseguição, antes
de descartá-la como preconceito aristocrático, lembremos que ela evoca um anseio
mais antigo, talvez mais ancestral, porque, enfim, é no momento da expulsão de
Adão e Eva do Paraíso que surge o trabalho, quando Deus diz a Adão: “Comerás o
teu pão com o suor do teu rosto” (Gênesis, 3, 19).
O resto do texto, apesar de delicioso, já é redundante para nossos propósitos.
O pai morre (sua morte demora cinco horas; são cinco horas de nobres exortações à
filha) e, na hora em que seria definitivamente raptada pelo malvado anti-herói, o
herói salva a heroína. Como última ressalva, Jane Austen diz, na penúltima frase
que “Ao longo de toda a obra, a Heroína gozará das companhias mais elegantes e
viverá em grande estilo.”
72

5.1 A dignidade de ser maltratado

Jane Austen faleceu em 1817. Porém, a ênfase nos sofrimentos imerecidos,


que ela caricaturou em seu plano de romance, veio a tornar-se um tema dominante
na literatura oitocentista. Quatorze anos depois de sua morte, Victor Hugo deu ao
mundo Quasimodo, o corcunda perseguido de O corcunda de Notre Dame (Notre
Dame de Paris, de 1831, com edição definitiva de 1832). Entre 1837 e 1839 Charles
Dickens publica de maneira serializada Oliver Twist, cujo protagonista é um órfão
que troca a vida de trabalhos forçados pela convivência com criminosos. Em 1862,
em Os miseráveis (Les misérables), Victor Hugo nos dá Cosette, a órfã adotada pelo
ex-presidiário regenerado Jean Valjean, que é perseguido de maneira inclemente
pelo inspetor Javert.
Todos esses personagens têm uma característica em comum: pertencem a
setores marginalizados da sociedade — um aleijado visto como monstruoso, dois
órfãos pobres, um ex-presidiário. Seus sofrimentos imerecidos decorrem
parcialmente de sua condição. Todos esses romances são construídos sobre a
premissa de que, se aqueles que os maltratam pudessem vê-los da maneira como o
narrador os mostra, deixariam de maltratá-los. A simpatia do leitor é dirigida para a
figura marginalizada. Se no capítulo que comparava o spoudaios homérico e o
spoudaios da Távola Redonda já vimos um diferença enorme em relação ao uso da
violência, que diferença maior ainda não vemos na escolha de protagonista!
Recordemos o estranhamento de Erich Auerbach nos dois primeiros capítulos
de Mimesis, particularmente no segundo, no momento em que ele discute a prisão
de Jesus e a negação de Pedro100:

O incidente, inteiramente realista tanto no que diz respeito ao local quanto


às dramatis personae — notemos particularmente sua baixa posição social

100
No evangelho de são Lucas (22, 54-62): “Prenderam-no então e conduziram-no à casa do príncipe
dos sacerdotes. Pedro seguia-o de longe. Acenderam um fogo no meio do pátio, e sentaram-se em
redor. Pedro veio sentar-se com eles. Uma criada percebeu-o sentado junto ao fogo, encarou-o de
perto e disse: Também este homem estava com ele. Mas ele negou-o: Mulher, não o conheço. Pouco
depois, viu-o outro e disse-lhe: Também tu és um deles. Pedro respondeu: Não, eu não o sou.
Passada quase uma hora, afirmava um outro: Certamente também este homem estava com ele, pois
também é galileu. Mas Pedro disse: Meu amigo, não sei o que queres dizer. E no mesmo instante,
quando ainda falava, cantou o galo. Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro se
lembrou da palavra do Senhor: Hoje, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes. Saiu dali e
chorou amargamente.”
73

— está repleto de problema e tragédia. (…) Ele [Pedro] é a imagem do


homem no sentido mais elevado, mais profundo e mais trágico. Claro que
essa mistura de estilos não é ditada por um propósito artístico. Pelo
contrário, ela está desde o começo enraizada no caráter da literatura
judaico-cristã; ela foi dramatizada dura e explicitamente na encarnação de
Deus como ser humano da condição social mais humilde, em sua existência
terrena em meio a pessoas e condições banais e humildes, e em sua
Paixão, que, julgada por critérios mundanos, foi ignominiosa; e ela
naturalmente veio a ter — considerando a ampla difusão e o forte efeito
dessa literatura em épocas posteriores — uma importância das mais
decisivas para a concepção humana do trágico e do sublime.101

Seguindo Auerbach, vemos então a influência do cristianismo: os


personagens que na Antiguidade seriam dignos apenas da comédia agora passam a
representar o sublime.
Diante disso, podemos perguntar: serão ainda spoudaioi? São spoudaioi de
uma era pós-revolucionária e democrática. Sua falta de nobreza de sangue é
compensada pela nobreza de alma, nobreza essa que é aumentada pela ideia do
sofrimento imerecido. (Ainda que, como observamos, o aparecimento da linhagem
nobre de Jesus Cristo no início do evangelho de são Mateus talvez possa ser
interpretado como um modo de torná-lo um spoudaios.) E são spoudaioi naquele
segundo sentido, de ardor e zelo.
Seriam, porém, duplos angélicos? A questão é um pouco mais complexa. O
duplo angélico depende daquilo que se quer projetar como ideal. Se existe o desejo
de fazer um contraste entre personagens, de modo a deixar claro que uma certa
pureza interior compensa de muito longe a ausência de meios exteriores de um
personagem, enquanto outros personagens da história são claramente seus
inferiores, podemos ter Galaads que tiveram a dignidade de serem injustamente
maltratados. Ou mesmo que não sejam Galaads, perfeitos em absolutamente tudo, o
defeito que os impede de obter tudo o que desejam é visto como parte do elemento
trágico.
Um autor oitocentista brasileiro pode nos ajudar a responder melhor essas
perguntas: José de Alencar. Examinemos seus dois primeiros romances, O Guarani
e Lucíola (considerando que suas duas primeiras obras de ficção, pela brevidade,
seriam melhor chamadas de novelas).

101
AUERBACH 2004, p. 41.
74

5.2 Lucíola

Estamos cientes de que Lucíola é imediatamente posterior a O Guarani; no


entanto, como se trata de uma obra mais curta e mais simples, preferimos examiná-
la primeiro.
Lúcia, a protagonista feminina de Lucíola102, apesar de certamente não poder
figurar num romance de Jane Austen, poderia aparecer num de Victor Hugo: como
Fantine, a mãe da Cosette de Os miseráveis, Lúcia é obrigada a prostituir-se para
sobreviver.
A prostituta é um figura quase caricatural; quase paradigmática. Primeiro, por
ser estigmatizada e por isso pertencer a uma camada marginal103. Segundo, porque,
sendo estigmatizada, o paradoxo só aumenta o desejo: ela é proibida por ser
desejável e disponível mediante pagamento. Terceiro, ela é desejável por trabalhar
diretamente com o desejo. Espera-se da prostituta que transmita aquela intensidade
de experiência que a arte pretende imitar. Espera-se dela uma experiência
homérica.
Lúcia, além de prostituta, além de linda, é, como diz o bilhete ao autor escrito
por “G.M.” com que o livro se inicia, “musa cristã”104. Musa cristã porque prostituiu-se
aos quatorze anos para salvar os familiares da doença e tem uma consciência
pesadíssima — o que sinaliza para o leitor a virtude moral, mesmo que ela, no
capítulo XIX, em que revela sua triste história a Paulo, seu amante e narrador do
livro, diga que a palavra virtude soe como “uma profanação”105 em seus lábios;
Paulo mesmo se encarregará de encerrar o capítulo dizendo que ela é “um anjo!”106.
Pela nobreza da alma, Lúcia seria uma spoudaia (não se trata de um neologismo;
spoudaia está previsto nos dicionários de grego).
Alencar naturalmente se apoia no estilo homérico para manipular a simpatia
do leitor. O instrumento dessa manipulação é a perspectiva de Paulo, narrador e
protagonista masculino, rapaz que troca sua Recife natal por uma nova cidade, a

102
ALENCAR 2011.
103
Mesmo considerando o atual fetiche brasileiro com prostitutas, de Bruna Surfistinha a personagens
televisivos, ainda parece difícil imaginar alguém apresentando aos pais sua noiva, que continua
trabalhando nesse ramo, como se não houvesse qualquer tabu.
104
ALENCAR 2011, p. 19.
105
ALENCAR 2011, p. 150.
106
ALENCAR 2011, p. 151.
75

capital do Império (lembremos da frase de Girard: “o desejo não é deste mundo”) e


apaixona-se por uma prostituta. As descrições detalhadas servem para que
compreendamos esse amor, para que tenhamos o mesmo desejo. Como evitar o
interesse pela figura central do luxuriante jantar que perpassa os capítulos VI, VII e
VIII, que se encerra com a representação ao vivo, por Lúcia, das poses devassas
dos quadros pendurados nas paredes? Curioso voyeur como o leitor, Paulo olha o
que acontece e descreve ricamente; demonstrando sua decência para identificar-se
com o público em público, afasta-se após testemunhar o mais interessante, indo
buscar o ar da noite.
A partir desse ponto, a narrativa segue os altos e baixos dos sentimentos de
Paulo, que luta consigo mesmo por estar esperando a fidelidade de uma prostituta.
Ora ele está no céu, nos braços de Lúcia; ora está no inferno, vagando pela cidade,
quando está de mal com ela. O leitor também passa por essa alternância de desejo,
e o suspense que vai sendo criado diz respeito à necessidade de uma explicação
para o comportamento de Lúcia. Essa explicação — prostituiu-se por necessidade
— pode fazer com que ela pareça “um anjo” aos olhos de Paulo, e teria,
dramaticamente, uma função de catarse daquela tensão. Tanto é que, depois dela
os incidentes do romance parecem um epílogo, e até não muito condizentes o que
esperaríamos do exemplo da virtude redimida. Afinal, a própria Lúcia, aquele “anjo”
com ponto de exclamação, a “musa cristã” cujo verdadeiro nome é Maria, fala,
referindo-se ao filho, de “quanto horror me causava a só ideia de que eu talvez
trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras”107.
Contudo, após essa revelação, temos uma cena que é uma repetição
estrutural de outras cenas de O Guarani. Um dos primeiros personagens a aparecer
no romance é o Couto, antigo cliente de Lúcia e anfitrião daquele suntuoso e
luxuriante jantar. Sabendo que Lúcia retirou-se, após ter servido-se dela, fica
ressentido, e vai até sua nova casa, afastada da cidade, com o puro propósito de
persegui-la, lançando-lhe o estigma da prostituição. Passemos ao momento em que
Lúcia estaria estabelecendo boas relações com seus vizinhos, segundo a narração
de Paulo:

O grupo parou a alguma distância; eu reconheci o Couto no momento em


que se adiantava com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia

107
ALENCAR 2011, p. 163.
76

retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei, já a mais


velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos de
sua irmã, atirou-a por cima da grade:
— Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É uma perdida!108

A essa altura, já temos simpatia demais por Lúcia para não ficarmos do lado
dela diante desse sofrimento imerecido; por pecadora que seja, estamos mais
dispostos a vê-la como um figura cristã, ou mesmo crística, perseguida pela multidão
— o “grupo” que, como diz Cristo na cruz, “não sabe o que faz” (Lucas 23, 34) — ,
do que efetivamente como uma “perdida”.
E de fato o comentário final de Lúcia não apenas repete as palavras de Cristo
crucificado como ainda confirma a ideia de que, mais importante do que a nobreza
de sangue, é a nobreza da alma:

— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do
coração! Perdoa-lhes, Paulo.
E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia
abrir o céu aos arroubos de sua alma.109

Vejamos agora O Guarani, em que temos um duplo angélico claramente


definido, e um personagem que faz o mesmo papel do Couto: dona Lauriana.

5.3 Prólogo a O Guarani: desvalorização e valorização do índio

O Guarani, o primeiro romance mais longo de José de Alencar, publicado


originalmente como folhetim, tem como um de seus protagonistas o índio Peri. Ora,
o índio era uma figura absolutamente marginalizada na sociedade e até na literatura
brasileira, mas que vinha passando por um processo de valorização. Mantendo a
referência bíblica, trata-se verdadeiramente de um projeto de fazer com que “a pedra
que os construtores rejeitaram” passasse a ser a “pedra angular” (Mateus 21, 42).
Por exemplo, chama a atenção o mau tratamento dispensado aos índios por
Gregório de Matos em dois de seus sonetos. Do primeiro, intitulado “Aos principais
da Bahia, chamados os Caramurus”, vale a pena citar o quarteto inicial:

108
ALENCAR 2011, p. 157-158.
109
ALENCAR 2011, p. 158.
77

Há coisa como ver um Paiaiá


Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente do sangue do tatu,
Cujo torpe idioma é Cobepá?110

Sendo um “Paiaiá” um pajé que se julga homem branco (“Caramuru”)111 ainda


que seja “descendente do sangue do tatu, / cujo torpe idioma é Cobepá” (Cobepá: a
língua — pá — dos índios cobés), clara fica a rejeição do autor do poema aos índios
que então ousavam imiscuir-se em sua sociedade.
O segundo soneto merece ser citado integralmente:

Um calção de pindoba, a meia zorra,


Camisa de urucu, mantéu de arara,
Em lugar de cotó, arco e taquara,
Penacho de guarás, em vez de gorra.

Furado o beiço, e sem temor que morra


O pai, que lho envasou c’uma titara,
Porém a Mãe a pedra lhe aplicara
Por reprimir-lhe o sangue que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé,


Sem mais leis que a do gosto, quando erra,
De Paiaiá tornou-se em abaité.

Não sei onde acabou, ou em que guerra:


Só sei que deste Adão de Massapé
Procedem os fidalgos desta terra.

Mal sabia Gregório de Matos que os “fidalgos” a que ele se referia com tanto
desprezo e jocosidade viriam a compor, menos de dois séculos depois, os spoudaioi
da fascinante trilogia indigenista de José de Alencar.
Antes mesmo do romancista do Ceará, o maranhense Gonçalves Dias já tinha
escrito poemas em que o índio era valorizado. O grande destaque sem dúvida é I-
Juca Pirama, um pequeno épico que busca adotar o ponto de vista indígena e não

110
Os poemas de Gregório de Matos são apresentados com muitas variações. Por exemplo, ora
aparece “descendente do sangue tatu”, ora “descendente do sangue de tatu”; tanta variação fez-nos
optar por “descendente do sangue do tatu” primeiro pela sílaba métrica necessária que a preposição
proporciona; segundo, porque quem descende descende de alguém específico: o tatu, com artigo
definido, mesmo que “o tatu” gramaticalmente especificado indique logicamente os tatus e o reino
animal como um todo, marcando a proximidade do índio com a natureza.
111
O dicionário Houaiss, na sexta acepção, dá “europeu” para caramuru; contudo, a palavra também
é interpretada como “mestiço”. A nosso ver, faz mais sentido a acepção do Houaiss, pois supõe a
“empáfia" do índio em supor-se branco ou igual ao branco.
78

emitir um juízo de valor cultural sobre o costume de certas tribos que mais valia aos
índios em geral a acusação de desumanidade: o canibalismo.
Nos famosos versos 112 a 117, o índio celebra a sua própria bravura, sua
própria fidalguia, sua própria qualidade de spoudaios:

Meu canto de morte,


guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
nas selvas cresci,
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi. (112-117)

E é com esse brio guerreiro que chegamos ao fascinante personagem do


índio Peri.

5.4 O Guarani

Se, dentro do contexto do romantismo brasileiro, buscava-se valorizar o índio


por ele ser o elemento autóctone do Brasil, dando-lhe um passado e uma natureza
grandiosas, se era preciso destacar a diferença específica do nativo, a primeira
estratégia a que José de Alencar recorreu foi a do duplo angélico. Em O Guarani,
esse duplo, que simbolizará a pura espontaneidade do desejo incorrupto, é o índio
Peri. A integração de Peri com o ambiente selvagem em que se passa quase todo o
romance é total e insuperável. É evidente a tentativa de Alencar de gerar simpatia
por essa figura nativa do Brasil.
Peri é o mais ágil, o mais valente, o mais nobre, um verdadeiro cavaleiro
medieval das matas de Teresópolis, que, como ficamos sabendo no capítulo XII da
segunda parte, serve sua dama Ceci e usa suas cores: “Um dia a menina,
semelhante a uma gentil castelã da idade Média, tinha se divertido em explicar ao
índio, como os guerreiros que serviam uma dama, costumavam usar nas armas de
suas cores.”112
Além disso, Peri protagoniza uma cena semelhante àquela que René Girard
usa para definir o duplo angélico. No ensaio discutido anteriormente, uma cena

112
ALENCAR 2014, p. 272.
79

particular de Jean Santeuil é contrastada com outra cena de Em busca do tempo


perdido: no primeiro romance, o narrador vai ao teatro e observa todos de cima,
tendo a visão geral de tudo; em “Três Linhas”113, o oitavo capítulo da primeira parte
de O Guarani, é Peri quem, do alto da árvore, observa os dois aventureiros que se
aproximam da janela de Ceci. Peri estará sempre no alto das árvores, sempre por
cima, observando a ação e só interferindo de maneira decisiva.
Nosso Galaad das matas de Teresópolis tem, ao contrário do Galaad da
Demanda, a dignidade de ser perseguido pela mais imerecida das razões. Assim
como o Couto de Lucíola persegue Lúcia após ter servido-se dela, Dona Lauriana,
esposa de Dom Antônio de Mariz, uma espécie de senhor feudal isolado no Brasil,
insiste em manter sua má disposição quanto a Peri, mesmo depois de ele ter
salvado a vida de sua filha. Dona Lauriana, porém, tem uma má disposição contra o
índio em geral, o que fica evidente no quarto capítulo da primeira parte, em que ela
minimiza nada menos do que o assassinato acidental de uma índia por seu filho,
alegando que “é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem”114, o que
antecipa sua atitude em relação a Peri.
Assim, mesmo devendo a Peri a vida da filha, Dona Lauriana deseja vê-lo fora
de sua casa quase a qualquer custo, o que fica evidente no episódio da onça que
Peri trouxe viva para mostrar a Ceci. Assim como o Couto veio como líder da
multidão

Era o corpo de delito, sobre o qual pretendia basear o libelo acusatório que
ia fulminar contra Peri.
Por diferentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a
expulsar o índio que ela não podia sofrer, e cuja presença bastava para
causar-lhe um faniquito.
Mas todos os seus esforços tinham sido baldados; o fidalgo com a sua
lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri, e via nele embora
selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai
de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter
salvado sua filha, circunstância que mais tarde se explicará.
Desta vez porém, D. Lauriana esperava vencer; e julgava impossível que
seu marido não punisse severamente esse crime abominável de um homem
que ia ao mato amarrar uma onça e trazê-la viva para casa. Que importava
que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a
115
existência de toda a família, e sobretudo a dela?

113
ALENCAR 2014, p. 113-119.
114
ALENCAR 2014, p. 88 (Parte I, Cap. VI: “A volta”).
115
ALENCAR 2014, p. 140 (Parte I, Cap. XII: “A onça”).
80

Porém, na segunda parte, no capítulo “Despedida”, quando Dom Antônio de


Mariz enfim concorda que Peri não deve mais frequentar a casa, é o próprio Dom
Antônio que vem a interceder pelo índio. Dona Lauriana, ao ser informada de que
Peri tinha salvado a vida de sua filha Ceci pela segunda vez, enfim renuncia à
violência contra o índio:

D. Lauriana, tirados os seus prejuízos, era uma boa senhora: e quando o


seu coração se comovia, sabia compreender os sentimentos generosos. As
palavras de seu marido acharam eco em sua alma.
— Não, disse ela levantando-se e dando alguns passos; Peri deve ficar, sou
eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antônio de Mariz; tenho também a
minha dívida a pagar.116

Vale a pena notar um elemento textual. A palavra “prejuízo”, que pertence à


série sinonímica do “preconceito” do português contemporâneo, é usada quatro
vezes em O Guarani. Em todas elas, a palavra se refere a Dona Lauriana. Ela é a
pessoa que, em todo o romance, menos se aventura fora de casa. Quando sai, está
acompanhada por toda a família.
Assim, essa atitude de D. Lauriana sugere que Alencar deseja oferecer uma
chave para a revisão da figura do índio na literatura brasileira. Como elemento de
identificação com o leitor branco que não se identificava com a cultura nativa do
terra que veio a ser o Brasil, Dona Lauriana passa da rejeição pura e simples ao
reconhecimento de uma dívida. Um coração, que, mesmo pertencendo a “uma boa
senhora”, era tão duro que necessita ver a vida da filha salva duas vezes para
comover-se. As atitudes dela claramente repetem a diferença que há entre a
maneira como o índio é ridicularizado nos poemas de um Gregório de Matos para
sua exaltação nos poemas de Gonçalves Dias.
Mais importante, Dona Lauriana persegue Peri por ter prejuízos.
Preconceitos. Disposições anteriores à formulação racional. Ou seja: Dona Lauriana,
como o grupo que cerca Lúcia e como a multidão que pede que Jesus seja
crucificado, não sabe o que faz.
No quarto capítulo da quarta parte, os índios aymorés estão cercando a casa
da família de Dom Antônio de Mariz para vingar-se da morte daquela índia. O
capítulo significativamente se chama “Revelação” — o mesmo que ἀποκάλυψις,
apokálypsis ou “apocalipse” — o caráter de duplo angélico e de figura crística fica

116
ALENCAR 2014, p. 254.
81

ainda mais escancarado. Não apenas temos o Peri impassível de sempre nos
momentos mais cruciais, como, ao falar do plano que o índio fez para sacrificar-se e
salvar os amigos, como um Cristo que salva a humanidade (branca), além de exaltar
o “heroísmo” do nosso spoudaios, o narrador exalta nada menos do que o λόγος
(lógos) de Peri, “o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos, que os
submetera à sua vontade”, e, no mesmo fôlego, seu outro atributo divinal, a
onipotência, “que os submetera [os acontecimentos] à sua vontade, fazendo-os
suceder-se naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível.”117 A
posição de superioridade do índio é inevitável.
Curiosamente, se o plano de Peri tivesse dado certo, ele teria feito do ritual do
canibalismo um verdadeiro apocalipse em nosso sentido atual. Ao envenenar o
próprio corpo, a exaltação da violência por parte dos canibais chegaria a termo
definitivo: a morte generalizada. O impedimento da parte final plano de Peri faz dele
um Cristo abortado.
Sem dúvida, um índio perfeito, irreal, correspondendo a ideais de pelo menos
duas culturas. E que é aristotelicamente programado para despertar a nossa
máxima compaixão, smithianamente preparado para evocar a máxima simpatia,
pretendendo efeitos que transcenderiam a própria literatura.

117
ALENCAR 2014, p. 428-9.
82

CONCLUSÃO

Mesmo na apreciação crítica de uma obra literária, uma distinção estrita entre
uso e recepção, naquele sentido de C.S. Lewis, pode ser extremamente difícil. Uso e
recepção podem ser pólos afastados, podem ser tendências claramente
identificáveis, mas a relação que até o leitor mais sofisticado — ou o leitor que seria
melhor aceito como leitor segundo critérios acadêmicos — estabelece com uma obra
depende de um certo afeto que pode não ser necessariamente literário. Este, na
verdade, é um dos testes ideais da capacidade crítica, um teste da capacidade do
crítico de olhar a si mesmo: ser capaz de distinguir o quanto da preferência por uma
obra se justifica por elementos que se considera dignos de apreciação na própria
obra, e o quanto se justifica por algo que ela evoque. O leitor deste trabalho pode ter
percebido que há uma associação entre o que diz o Epigrama XXVIII de Calímaco e
a teoria do desejo de René Girard: por mais que haja elementos objetivamente
apreciáveis e comparáveis entre eles, nada impede que algo de idiossincrático tenha
contribuído para sua escolha.
Esse, ainda, é apenas um dos lados da questão. Cervantes escreveu um
romance cujo protagonista lia os romances em voga em sua época, fazendo menção
explícita a vários, principalmente o Amadis de Gaula. Flaubert cita naquele sexto
capítulo da primeira parte de Madame Bovary, que descreve a formação de Emma,
o título de outro romance sentimental, publicado em 1798 por Bernardin de Saint-
Pierre: “Ela tinha lido Paul et Virginie…”118. José de Alencar está inteiramente
preocupado com a questão da identidade nacional brasileira. Os três autores têm,
digamos, um desejo de relevância no contexto que lhes é contemporâneo, e tratam
de assuntos — o devaneio heroico, o devaneio sentimental, o índio como elemento
formador de um país americano de independência recente — que independem da
literatura. Afinal, um leitor pode dedicar-se profissional e exclusivamente a uma obra
semelhante à de Calímaco e, caso tenha quixotismos ou bovarismos, ou venha a
preocupar-se com o futuro de seu país, não precisa associar essas experiências
interiores à literatura.

118
FLAUBERT 2001, p. 84.
83

No entanto, seria inviável ou mesmo impossível estudar essas obras, recebê-


las no sentido de Lewis, sem levar em conta os elementos extraliterários. Podemos
falar de Dom Quixote sem falar do devaneio? Ler uma obra de ficção e ter simpatia
por seus personagens significa reproduzir imaginativamente algo de suas
experiências. Não é incomum, além disso, que mesmo o leitor que já volta diversas
vezes à mesma obra reencontre a mesma emoção, sabendo que vai reencontrá-la.
Não é, portanto, exclusividade do leitor não-literário, para retomar o termo de Lewis,
o desejo de ser emocionalmente manipulado.
O que pode distingui-los seria antes a vontade de compreender como se dá
essa manipulação, colocando o espanto119 na origem de uma pergunta que passa a
influir em sua experiência de leitor. A pergunta influi no gosto literário, que por sua
vez orienta a pergunta para certos objetos, circular e indefinidamente. Por mais
objetivo que possa ser um discurso sobre a literatura, ele sempre vai se dar dentro
dessa subjetividade (o que, é claro, não o invalida).

***

Na suposta querela entre críticos letrados e leitores populares, existe um


pequeno dado que não deve ser desprezado.
É a crítica acadêmica quem preserva e tenta compreender a literatura
popular. A Biblioteca de Alexandria era parte, como preferimos escrever no início da
dissertação, do Museu de Alexandria. Eram profissionais treinados que guardavam e
catalogavam a literatura preferida pelo público. Mesmo que esse público se sinta
esnobado por um Calímaco, Calímaco não se eximiu de trabalhar com a leitura que
esse público preferia. Seu colega e rival Apolônio de Rodes escreveu um poema
épico, Os argonautas, com as características daquele “poema que é cíclico”
preferido pelo público da época. Baudelaire, homem de erudição considerável,
traduziu e apresentou Edgar Allan Poe ao público francês; mais próximo de nós,
Umberto Eco aproveitou o formato do romance policial em O nome da rosa.
Sem recorrer a qualquer argumento de qualidade, ou de aristocracia,
podemos simplesmente observar que estamos falando de profissionais, de pessoas
que trabalham como leitores.

119
A referência deliberada é ao famoso trecho 155d do Teeteto, em que Sócrates coloca o espanto,
ou o maravilhar-se (θαυμάζειν, um verbo no infinitivo) na origem da filosofia.
84

E que têm, como no caso de Calímaco e Apolônio, suas discordâncias e


rivalidades.
Com esta dissertação, esperamos ter contribuído para dissipar a ideia de uma
rivalidade entre crítica e público, enfatizando obras que fazem parte das preferências
de ambos. É fácil imaginar um discurso de duplos, em que um representante dos
leitores populares acusa a crítica de desprezar certos títulos, e a crítica responde
que o público também ignora seus favoritos. Existe, como observamos, uma
interseção nada desprezível entre obras favoritas de muitos leitores profissionais e
não-profissionais.
Na relação entre os dois, o papel que cabe aos profissionais é estar
disponíveis para auxiliar os não-profissionais quando e se eles pedirem.
O resto é barulho.
85

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