Pedro Sette Camara e Silva Dissertacao
Pedro Sette Camara e Silva Dissertacao
Pedro Sette Camara e Silva Dissertacao
Rio de Janeiro
2015
Pedro Sette Câmara e Silva
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B
CDU 82.01
______________________________________ __________________
Assinatura Data
Pedro Sette Câmara e Silva
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha (Orientador)
Instituto de Letras - UERJ
_________________________________________
Prof. Dr. Marcus Vinicius Nogueira Soares
Instituto de Letras - UERJ
_________________________________________
Profa. Dra. Regina Lúcia de Faria
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2015
RESUMO
SILVA, Pedro Sette Câmara e. Ler e usar a literatura: alguns artifícios para o
envolvimento do leitor. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e
Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
SILVA, Pedro Sette Câmara e. Reading and using literature: some artifices for
engaging the reader. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e
Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015
INTRODUÇÃO: CALÍMACO
1
CALLIMAQUE 1972. Tradução nossa. Todas as traduções sem indicação do tradutor são de nossa
autoria.
2
PENA 2012, p. 12.
8
nome da ninfa Ἠχώ (Ekho, Eco) e o verbo ἔχει (ékhei, possui). O jogo de ecos e
aliterações, que sequer foi discutido por completo, reflete o que está sendo dito: o
belo, Lisânias, é posse de outro; quando algo é possuído, torna-se parte de nós, e o
eco pode ser tanto uma representação de como nós mesmos nos repetimos para
nós mesmos, procurando nos outros as nossas próprias preferências, quanto um
eco sonoro que, distanciando-se, vai ficando cada vez mais difícil de ser apreendido.
Mais ainda, o próprio nome de Lisânias pode ser visto não simplesmente como o
nome de alguém, como a pura referência a uma pessoa, que, podendo ser
substituída, permitiria que cada leitor tivesse o seu Lisânias. Isso porque, no poema,
o nome aparece em sua forma vocativa, Λυσανίη, mas a palavra grega λυσανίας
(lysanías) significa “aquilo que acaba com a tristeza”. O belo, enfim, ecoa em nós,
repete-se por aí, e o poema é capaz de reproduzir tudo isso.
Depois dessa reflexão, o que parecia anacoluto revela estar intimamente
relacionado com o que veio antes: o poeta já andou pelas estradas de tráfego
intenso, já leu o poema que é cíclico — essencialmente, os poemas épicos que
narram os ciclos de aventuras de heróis, atribuídos a Homero — e o belo continua a
escapar-lhe. Isso parece reforçado pelo uso da partícula δὲ, aqui usada de maneira
enfática, e por isso traduzida como “sim”: “Lisânias, sim, és belo belo”. Se
pensarmos em Lisânias como “aquilo que acaba com a tristeza” e ainda
identificarmos isso ao belo, podemos imaginar que Calímaco foi depurando sua ideia
de beleza, encontrando-a em lugares cada vez mais rarefeitos, e preferindo escrever
uma poesia extremamente concentrada, mais capaz de dar prazer a quem, de tanto
ler, já não fica impressionado com a mesma facilidade de antes.
Mal começamos a contemplar esta pequena joia que é o epigrama XXVIII de
Calímaco — os ecos e as aliterações dos primeiros versos nem foram mencionados,
por exemplo —, o mais reproduzido em antologias de poesia helenística,
selecionado inclusive para o Oxford Book of Classical Verse in Translation. Contudo,
uma tradução que de fato desse conta de sua riqueza demandaria esforços ou
talentos incríveis, como o comentário acima espera ter deixado claro. Comentário
brevíssimo, mas que poderia alongar-se bastante, recordando toda a riqueza que
pode haver em “experimentalismos e jogos de linguagem”.
Desse comentário a Calímaco sai um dos principais fios condutores deste
trabalho, que pretende discutir algumas características essenciais da literatura que
seria a preferida pelos leitores, na visão de Felipe Pena. Uma literatura que se pode
9
3
Impossível não citar o importante ensaio “Por uma literatura brasileira de entretenimento”, de José
Paulo Paes (São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 25-38). No entanto, no ensaio, Paes opera
dentro de um contexto de “cultura de massas”, opondo “literatura de entretenimento” e “literatura de
proposta” a partir de noções de Umberto Eco. Pretendemos trabalhar num campo mais básico, até
mesmo porque nos parece que muitas obras literárias que talvez fossem consideradas “de proposta”
podem ser perfeitamente lidas como entretenimento, o que depende do leitor.
10
Pela citação, parece que não há muita diferença entre a literatura popular de
mais de dois mil anos atrás e a contemporânea, o que reforça a atualidade — esse
valor tão prezado — do poema de Calímaco. De um lado, uma literatura para
poucos, que chama a atenção para seu processo de composição, que depende de
uma leitura atenta para ser apreciada, uma literatura que incita discussões sobre
temas filosóficos e sobre a própria literatura. De outro, uma literatura que entretém
chamando a atenção para o conteúdo daquilo que está sendo dito.
É preciso observar que o primeiro gênero que Calímaco diz rejeitar — mas
antes de enxergar um esnobismo gratuito nessa rejeição lembremos que, se o poeta
diz que Lisânias é que é belo, então ele já se impressionou com outras belezas
antes… — é o “poema que é cíclico” e, por conseguinte, o primeiro autor que
Calímaco despreza é ninguém menos do que Homero, hoje visto como ninguém
menos do que o fundador da literatura ocidental. Um relato como a Odisseia
certamente tem elementos sensacionais para agradar ao público: é uma “história de
viagem ao estrangeiro”, ou melhor, por terras estrangeiras, repleta “de prodígios e
de acontecimentos estranhos”. E, mesmo que as duas mais longas obras atribuídas
a Homero estejam escritas em verso, é transferido para a literatura popular, escrita
eminentemente em prosa, o seu caráter épico, de sequenciação de acontecimentos.
Estamos cientes do possível anacronismo potencial de nosso projeto. Entre
Calímaco e seus leitores havia uma certa comunhão de códigos, assim como existe
uma certa comunhão, diferente, entre autores e leitores contemporâneos. No
entanto, desejamos investigar elementos bastante básicos, que possam subjazer às
4
WRIGHT 1932, p. 123.
11
Roteiro da dissertação
5
A verdade é que Lewis sequer trabalha com essa distinção. Para ele, o que está em jogo é a
questão do uso e da capacidade de recepção de uma obra de arte. Na única instância em que a
palavra inglesa popular é usada de maneira negativa, ela vem entre aspas: “Aqueles que estão no
nível ‘popular’ em relação a uma arte podem apreciar outra em profundidade; os músicos às vezes
têm preferências deploráveis em poesia.” Mais ainda, na mesma página, Lewis faz uma ressalva
quanto àqueles que nós chamaríamos de eruditos: “O que mais admira e consterna é o fato de que
aqueles que se poderia esperar terem ex officio uma apreciação profunda e permanente da literatura
talvez não a tenham absolutamente.” (LEWIS, p. 6.)
12
6
A noção, proposta por Girard ao contrapor o narrador proustiano de Jean Santeuil com o narrador
da Recherche, aparece no ensaio “From the Novelistic Experience to the Oedipal Myth” (GIRARD
2004), que discutiremos posteriormente.
7
“Plan of a Novel According to Hints from Various Quarters” (1816), em AUSTEN 2007, p. 54-56.
13
Ao ler o poema de Calímaco com que abrimos esta dissertação, com seus
“experimentalismos e jogos de linguagem”, somos tomados de um certo
estranhamento e então convocados a estudá-lo. É com esse estudo que vem a
fruição. Portanto, o poema pede um certo compromisso, um certo empenho, para só
depois entregar o gozo. É preciso relê-lo, tendo notado que sua primeira chave está
no eco; do eco, notar as aliterações; perceber como a estrutura sonora espelha o
que está sendo dito; dar-se conta de que a primeira parte, em que o poeta fala do
que não gosta, está na verdade profundamente relacionada com a segunda; e, por
fim, ficar com a pergunta sobre o nome de Lisânias. Terá sido alguém? Seu nome
terá sido escolhido por seu significado no nominativo? As duas possibilidades ao
mesmo tempo? Cada vez que repetimos esses passos, recuperamos o mesmo
prazer, que vem misturado com admiração. Só é possível deixar-se levar pelo
epigrama XXVIII depois de tê-lo examinado detidamente, depois até de, talvez,
sabê-lo de cor. Esse exame, essa fruição, são experiências eminentemente
solitárias, que podem ser enriquecidas por conversas e até por debates, mas que se
dão antes de tudo na consciência individual.
Já os poemas de Homero a que Calímaco se referia, como bem sabemos,
são originalmente literatura oral, enunciada diante de uma coletividade. Hoje nós os
lemos em livros (em quase todos os casos, traduzidos), mas o costume era que as
aventuras dos heróis fossem cantadas em público, com grande teatralidade, como
nos dá testemunho o Íon de Platão8. Ainda estamos distantes da experiência de
fruição da prosa narrativa moderna, ou, a bem da verdade, nem tão distantes: no
Brasil oitocentista, cada novo capítulo de O Guarani era declamado em voz alta na
rua, e numerosos textos mencionam o hábito de a família reunir-se, normalmente
após o jantar, para ouvir a leitura de uma história — como aliás o próprio Alencar
menciona no opúsculo Como e porque sou romancista.
É claro que uma narrativa pode ter um grau de complexidade comparável ao
dos melhores poemas. Também é claro que uma narrativa pode, da maneira mais
8
Diz Sócrates: “não somente exige essa arte que vos apresenteis ricamente vestidos” (530b). Diz Íon:
“Quando declamo algo patético, enchem-se-me de lágrimas os olhos; mas se se trata de passagem
15
escancarada, chamar a atenção para a maneira como foi composta. Mas, como
observou Felipe Pena, isso, que é a preferência de um profissional das Letras como
Calímaco de Cirene, não é a preferência do público. O público prefere Homero. Ou o
estilo homérico. Uma obra pode prestar-se a quaisquer estudos, mas antes, muito
antes, precisa seduzir. Mais ainda: a fruição não pode depender de um estudo, que
deve permanecer totalmente opcional. E é por dever permanecer opcional que
alguns leitores podem surpreender-se ao descobrir que livros de que eles
simplesmente gostaram são objeto de estudos e de ensaios, como se o livro
morresse com o prazer proporcionado por sua leitura. Aqui, porém, aproximo-me
das ideias de C. S. Lewis; vamos permanecer na discussão do estilo homérico, com
a incontornável presença de Erich Auerbach.
Em seu clássico Mimesis, Erich Auerbach pretende explicar não como surgiu
a literatura preferida pelo público moderno, mas como surgiu o estilo realista
moderno. Segundo o crítico alemão, esse estilo vem, grosso modo, da fusão entre
dois estilos: o homérico e o bíblico, que seriam opostos.
Como vamos nos deter mais longamente no primeiro, apresentemos
brevemente o segundo.
É nos dois primeiros capítulos de Mimesis que Auerbach enfatiza a distância
entre os dois estilos, especialmente no primeiro, A cicatriz de Ulisses.9 Os episódios
que Auerbach escolhe para seu contraponto são o sacrifício de Isaac por Abraão e o
momento em que, no Canto XIX da Odisseia, a serva Euricleia reconhece, graças a
uma cicatriz na perna, o rei Ulisses, que retorna após vinte anos de ausência.
De acordo com Auerbach, o traço profundo e motivador do estilo bíblico é o
anseio de mostrar os acontecimentos já com uma certa interpretação, o que seria
obtido pela concisão extrema e pela omissão de diversos elementos, que seria
impensável no estilo homérico.
10
HOMERO. Trad. LOURENÇO, Frederico. Odisseia. Lisboa: Cotovia, 2003.
17
outro balde. Desses 155 versos, 70 são tomados por uma digressão com a história
de como Ulisses obteve a cicatriz, digressão essa que se inicia no momento em que
Euricleia a descobre. Em vez de haver um grande momento de tensão, Homero
recorre, segundo a correspondência entre Goethe e Schiller citada por Auerbach, a
“elementos retardadores” que dão certa uniformidade à experiência de ouvir ou ler a
história, amenizando esses pontos-chaves dramáticos com vívidas descrições. Por
exemplo, Auerbach enfatiza que, no mundo de Homero, os deuses estão sempre
vindo de algum lugar específico e assumindo uma certa forma para falar com os
mortais; o Deus de Abraão vem de lugar nenhum, e nem mesmo sua “voz” é
descrita. Abraão, “estendendo a mão, tomou a faca para imolar o filho”, mas não
sabemos qual mão; já Homero nos diz que foi com a mão direita que Ulisses agarrou
Euricleia, e com a esquerda que puxou-a para perto de si para ordenar que não
revelasse sua identidade.
11
AUERBACH 2003, p. 13.
18
12
DURAND-DESSERT, Liliane. “Introdução a Les Mystères du Peuple” apud MEYER, Marlyse
(1996). Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 78–9.
19
Um salto temporal tão grande pede também que se marque uma diferença
entre o texto homérico e o folhetim.
Auerbach adverte, logo à página 4, que, em Homero, os elementos
retardadores da ação, como a longa digressão sobre como Ulisses adquiriu a
cicatriz, não possuem, como poderia pensar o leitor moderno, essa mesma função
de incrementação do suspense. Pelo contrário, “nada nos estilo deles [os poemas
homéricos] é calculado para prender o fôlego do leitor ou do ouvinte. As digressões
não pretendem manter o leitor em suspense, mas sim relaxar a tensão.” Auerbach
fala de como a digressão é autossuficiente e pretende nos conquistar para si por si
própria, em vez de ser apenas uma mera engrenagem no maquinário dramático da
Odisseia.
O suspense calculado do romance folhetim de Eugène Sue e de Alexandre
Dumas, como diz Durant-Dessert, vem de um tratamento mais maquiavélico do
desejo, que visa a seduzir o leitor um pouco menos pelo prazer proporcionado e
muito mais pelo prazer prometido; o leitor pode sentir como é vívida a experiência
dos personagens, mas a satisfação de seus desejos finais — desejos dos
personagens e dos leitores — fica protelada para que a história se mantenha.
Já um dos principais recursos do folhetim é o “gancho”; deixa-se o leitor
parado num ponto de tensão particular e aquela história é interrompida para que
outro fio narrativo venha à tona. Esse fio, é claro, vai enriquecer de algum modo
aquele primeiro, interrompido, mas também vai prolongar o prazer da leitura,
preservando o envolvimento do leitor. O gancho, portanto, retarda o suspense, mas
com o fim de torná-lo mais intenso. Em Homero, como diz Auerbach, o retardamento
não amplia o suspense porque, para haver suspense, seria preciso haver um trama
de fundo, mas “em Homero não há fundo”.
20
***
Por mais egoísta que se possa supor que seja o homem, há evidentemente
alguns princípios em sua natureza que fazem com que ele se interesse pela
ventura alheia, e tornem a felicidade dos outros necessária para ele, mesmo
que ele nada obtenha dela além do prazer de vê-la14.
13
Utilizamos a edição de 1982 do Liberty Fund, indicada na bibliografia. Toda a nossa discussão
baseia-se na primeira parte do livro, “Of the Sense of Propriety” [“Sobre o Senso de Adequação”].
14
SMITH 1982, p. 9.
22
Como não temos experiência imediata daquilo que outras pessoas sentem,
só podemos formar uma ideia da maneira como elas são afetadas
imaginando aquilo que nós mesmos sentiríamos numa situação
semelhante.15
Após dar essa explicação, Smith propõe vários exemplos, todos ligados a
alguma espécie de sofrimento, e salienta que não é preciso fazer um esforço
concentrado para sentir sympathy. Basta ver alguém padecendo algo, como uma
vergastada no braço, para retrair o próprio braço.
Algumas linhas depois, Smith começa a ampliar o conceito:
15
SMITH 1982, p. 9.
16
SMITH 1982, p. 10.
17
SMITH 1982, p. 10.
23
Mesmo nossa simpatia pela tristeza ou pela alegria de outrem, antes que
sejamos informados de sua respectiva causa, é sempre extremamente
imperfeita. Reclamações genéricas, que nada expressam além da aflição de
quem sofre, geram mais uma curiosidade em relação à situação, junto com
uma certa disposição de simpatizar com a pessoa, do que qualquer simpatia
efetivamente sensível. A primeira pergunta que fazemos é: o que te
aconteceu? Até que isso seja resolvido, ainda que fiquemos desconfortáveis
com a vaga ideia de seu infortúnio e, mais ainda, com torturar-nos sobre
qual seja, nossa simpatia não é muito considerável.
A simpatia, portanto, não surge tanto da visão da paixão18 quanto da
situação que a suscita.19
18
Preferimos traduzir o inglês “passion” por “paixão” não apenas para preservar a raiz, mas para
preservar o sentido daquilo que é padecido, sofrido, sentido.
19
SMITH 1982, p. 11.
24
Mas quando eles [os sentimentos do outro] não apenas coincidem com os
nossos, mas lideram a conduzem os nossos; quando, ao formá-los, ele
parece ter cuidado de muitas coisas que negligenciamos, e tê-los ajustado a
todas as várias circunstâncias de seus objetos, não apenas aprovamos
esses sentimentos, mas nos maravilhamos, surpresos, diante de sua
acuidade e abrangência incomuns e inesperadas, e ele parece merecer um
20
SMITH 1982, p. 16.
21
SMITH 1982, p. 19.
22
SMITH 1982, p. 19.
23
SMITH 1982, p. 19.
24
SMITH 1982, p. 19.
25
SMITH 1982, p. 19.
26
SMITH 1982, p. 20.
25
27
SMITH 1982, p. 20.
28
HOMERO 2003, p. 289. (Tradução de Frederico Lourenço; Canto XVII, versos 514-21.)
26
enumeração de seus padecimentos. Em vez disso, fala durante “três dias” e mesmo
assim não conta “as dores todas”. “E todos desejam ardentemente ouvi-lo, cada vez
que canta” — todos desejam desfrutar desse prazer de vivenciar vicariamente as
emoções de um personagem, narradas e descritas de maneira demorada, e não
simplesmente apontadas.
Em outra obra, escrita milênios depois, o mesmo procedimento é narrado em
maior detalhe, na qual o poder de manipulação do desejo da narrativa é, mais do
que explicitado, absolutamente escancarado. Estamos falando de Otelo, de
Shakespeare. Eis como o mouro, cercado pela assembleia dos anciãos da cidade,
explica como conquistou Desdêmona, a filha do doge, ansiosa para acompanhá-lo
na guerra (nossa tradução não pretende ser mais do que literal):
Interrompemos aqui a explicação de Otelo por julgarmos que está claro que,
por suas histórias, sua vida foi também uma verdadeira odisseia. Desdêmona sem
dúvida gostaria de participar desse mundo. Otelo foi seu Ulisses: guerreiro e aedo.
Recordemos porém um detalhe que depois será importantíssimo, e que deve
ser bem guardado: a simpatia do espectador, ouvinte ou leitor depende de ele
aprovar um personagem que age de maneira que lhe pareça justificada, porque o
ficcionista lhe apresentou nitidamente uma situação. Insistamos na diferença desse
procedimento em relação àquele que leva ao gosto pela poesia de Calímaco: não é
preciso realizar um estudo auerbachiano para deixar-se envolver por Homero ou por
Ulisses, mas é preciso refletir sobre o poema de Calímaco, meditando sobre sua
29
SHAKESPEARE 1984 (Arden Second Series). Ato I, Cena 2, 128-143.
27
2 USOS DA FICÇÃO
O ponto de partida pode ter sido Calímaco, mas esta dissertação pretende
ser, em parte, um diálogo com o C. S. Lewis que escreveu An Experiment in
Criticism31 e que também não deixa de ser o mesmo que escreveu uma das séries
de livros mais vendidas da história: As crônicas de Nárnia. Esse ponto é importante
para ressaltar que nem An Experiment in Criticism nem o presente trabalho fazem
qualquer equiparação entre má literatura e a literatura preferida pelo público — e,
por conseguinte, entre boa literatura e a literatura preferida pela crítica
especializada.
Nessa obra, Lewis distingue dois tipos de leitores: o literário e o não-literário,
insistindo que eles podem existir tanto no famoso público em geral quanto entre os
profissionais de Letras. Ao distinguir a experiência de leitura dos “literários” (literary)
e a dos “não-literários” (unliterary), que corresponderia a uma experiência em que a
“recepção” da obra por parte do leitor tem precedência em relação a seu “uso”,32
30
FLAUBERT 2010, p. 88.
31
Publicado no Brasil pela Martins Fontes como Um experimento crítico; no entanto, a edição
consultada foi a original, sem que isso implique um mau juízo da tradução, que desconhecemos.
32
LEWIS 2010. O livro inteiro é uma discussão dessas duas experiências; a distinção de Lewis
começa a adquirir contornos definitivos no nono capítulo, à p. 88.
29
33
LEWIS 2010, p. 7.
30
Ela tinha frêmitos ao levantar com o hálito o papel de seda das gravuras,
que se erguia, dobrando-se, e caía suavemente contra a página. Eram,
atrás da balaustrada de um balcão, um rapaz de capa curta que abraçava
uma moça de vestido branco, levando uma pequena bolsa na cintura; ou
talvez os retratos anônimos das senhoras inglesas com caracóis louros
(…).35
34
LEWIS 2010, p. 16.
35
FLAUBERT 2001, p. 88.
36
LEWIS 2010, p. 14-15.
37
FLAUBERT 2001, p. 88.
31
Isso tudo apenas ressalta que, por mais que se possa tentar apenas receber
uma obra, olhando-a como objeto dotado de certa autonomia, muitas obras prestam-
se tão facilmente ao uso que cabe ao artista levar em conta essa dimensão,
antecipando na obra o uso que será feito dela.
Lewis, porém, não está partindo do epigrama de Calímaco, e não fala da
literatura preferida pelo “grande público”. Sua divisão, como mencionado, é entre um
público “literário” e outro “não-literário”. Aqui é que pretendemos inserir algumas
distinções.
A primeira delas é que algumas das características da literatura preferida pelo
leitor não-literário podem certamente coincidir com aquelas preferidas pelo leitor
literário, e esta dissertação vai tratar eminentemente das obras que ocupam essa
interseção. Assim, se, de acordo com Lewis, os leitores não-literários “nunca leem
nada que não seja narrativo”38, nem por isso os leitores literários vão desdenhar da
narrativa.
A segunda distinção é bem mais complexa.
Até agora evitamos usar a palavra “entretenimento”39, antes de tudo por não
vermos nenhuma razão para estigmatizar o entretenimento em si. É verdade que
“entretenimento” talvez tenha sido uma das primeiras noções a ter ocorrido do leitor
deste texto, assim como ocorreu a F. A. Wright, que falava em “Autores que
escreviam com o propósito de (…)entreter…”40 É perfeitamente possível entreter-se
com inúmeras obras canônicas; aliás, não se deixar entreter por uma obra que tem
essa dimensão é, de certo modo, não “recebê-la”. Ninguém disputaria o valor
canônico de Dom Quixote de la Mancha; mas não é possível também divertir-se com
o livro? Cervantes não o escreveu simplesmente para ser admirado por acadêmicos.
Lewis, por sua vez, ao falar das preferências dos leitores não-literários que
fazem parte do grande público, evita a palavra “entretenimento” por considerar que
ela tem muitos sentidos equívocos,41 que podem ser positivos, como acabamos de
ressaltar, ou negativos, associados à ideia de desperdício de tempo.
38
LEWIS 2010, p. 28.
39
Mencionamos no início deste trabalho o ensaio “Por uma literatura brasileira de entretenimento”, de
José Paulo Paes (PAES 1990). No entanto, logo em sua primeira página, Paes diz: “…como a
literatura de entretenimento faz parte da cultura de massa…” Estamos falando de uma escala maior
de tempo, avaliando o valor de entretenimento até dos poemas de Homero, que nunca fizeram parte
diretamente de uma cultura “de massa”.
40
WRIGHT 1932, p. 123.
41
LEWIS 2010, p. 91.
32
A noção proposta por Lewis, mais precisa e mais valiosa para nossa
pesquisa, reforça a interseção entre a boa e a má leitura, que corresponderia a um
conjunto de obras literárias que se prestariam tanto a uma quanto a outra. Um
epigrama de Calímaco talvez só possa ser “bem” lido, como, digamos, certos textos
em prosa de Samuel Beckett. Outros textos talvez só se prestem a uma leitura má
ou superficial, e, mantendo a referência anglo-saxônica, podemos pensar na
expressão airplane reading — a literatura vendida em aeroportos que não pretende
muito mais do que manter os viajantes entretidos durante os voos.
Em “The Meanings of Fantasy” (“Os sentidos da fantasia”), sexto capítulo de
seu livro, C.S. Lewis propõe, enfim, a noção de “construção egoísta de castelos”:
“nesse tipo, a própria pessoa que devaneia é sempre o herói e tudo é visto através
de seus olhos. É ele quem dá as respostas espirituosas, quem cativa as belas
mulheres, possui o iate que cruza os oceanos, ou é aclamado como o maior poeta
vivo.”42
Observemos com atenção um detalhe: mesmo que Adam Smith, naquela
primeira citação, tenha usado a palavra “egoísta”, aqui seu sentido está ligeiramente
modificado. Smith falava de um egoísmo em sentido moral, da suposta ausência de
simpatia pelos males alheios. Lewis está falando de um egoísmo formal, da
identificação de si com o sujeito de uma fantasia, de um devaneio. Esses dois
egoísmos podem até ser opostos. Primeiro, porque — e este sentido é crucial para
nós — , para retomar palavras de Lewis, “ser aclamado como o maior poeta vivo”
significa ser aclamado pelos outros; “cativar as belas mulheres” significa cativar
outras pessoas. Nessa forma de egoísmo, o outro desempenha um papel
fundamental, e mais do que meramente instrumental: o prestígio que se espera
receber, mesmo na fantasia, precisa vir de alguém a quem também se atribua
prestígio. Mais ainda, em outra acepção, caso essa construção egoísta contenha a
identificação com uma figura altruísta, o resultado desse egoísmo formal pode
perfeitamente ser um altruísmo moral.
Voltando a Madame Bovary, novamente verificamos o paralelo entre o caso
de sua protagonista e as palavras de C.S. Lewis. Emma Bovary passou parte da sua
juventude entregue à construção egoísta de castelos, tomada de simpatia pelos
personagens de romances sentimentais. No sexto capítulo da primeira parte, em que
42
LEWIS 2010, p. 52.
33
Havia no convento uma moça mais velha, dessas que já tinham passado da
idade de casar, que vinha todos os meses, e ficava oito dias, trabalhando na
rouparia. (…) Ela (…) emprestava às meninas mais velhas, às escondidas,
algum romance que sempre tinha no bolso do avental, e de que a digna
senhorita devorava ela própria longos capítulos, nos intervalos do trabalho.
Eram amores, namorados, namoradas, damas perseguidas que iam
sumindo pelos pavilhões solitários, postilhões assassinados em todas as
paradas, cavalos que morriam de cansaço em todas as páginas, florestas
sombrias, questões do corações, juramentos, soluços, lágrimas e beijos,
canoas sob o clarão da lua, rouxinóis nos bosques, cavalheiros bravos
como leões, dóceis como cordeiros, virtuosos como ninguém, sempre bem-
vestidos, e que choram como jarras. Aos quinze anos, durante seis meses
sujou as mãos com o pó dos velhos gabinetes de leitura. Com Walter Scott,
mais tarde, ela se apaixonou por tudo que era histórico (…) Ela queria ter
vivdo num grande solar, como as castelãs de corpete longo, que (…)
passavam os dias com o cotovelo sobre a pedra e o queixo na mão,
olhando um cavaleiro com uma pluma branca sobre seu cavalo negro,
43
surgindo do fundo dos campos.
Num trecho anterior, Flaubert não deixa dúvidas quanto ao fato de que Emma
é mais uma usuária da literatura do que uma leitora, delineando uma disposição
fundamental de sua personalidade:
Podemos nos perguntar qual teria sido a reação de Emma Bovary à poesia de
Calímaco, caso tivesse aprendido no convento grego suficiente para poder apreciá-
la. Surge a tentação de dizer que a reflexão sobre o desejo, sobre o papel de
Lisânias como “aquilo que acaba com a tristeza” poderia ter sido o passo além que
teria feito Emma Bovary colocar entre parênteses seus castelos no ar. Mas
imediatamente verificamos que essa reflexão é, para ficarmos nos termos de Lewis,
mais um uso do poema do que um ato de recepção. No entanto, essa discussão
está prevista pela obra, que, afastando-se daquele estilo homérico, como que pede
para ser estudada, interpretada.
43
FLAUBERT 2001, p. 86-87.
44
FLAUBERT 2001, p. 86.
34
Com isso não pretendemos dizer que uso e recepção não possam ser
distinguidos. Um termo do inglês contemporâneo, já usado em português, é o melhor
exemplo disso: spoiler. Spoiler é um dado sobre o enredo revelado antes que o leitor
ou espectador se debruce sobre a narrativa. Seria como, ingenuamente, contar que
Heitor morre no final da Ilíada ou, no caso do universo popular, que, na série de
filmes Guerra nas estrelas, Darth Vader é o pai de Luke Skywalker.
O leitor que se preocupa demais com spoilers não quer que seu consumo da
narrativa seja spoiled, estragado, pelo conhecimento do final. É com sua
possibilidade de usar a narrativa para obter um certo frisson emocional que ele se
preocupa, e não com a admiração de sua estruturação. É por isso que, como diz
Lewis logo na segunda página de An Experiment in Criticism, “O sinal inequívoco de
uma pessoa não-literária é que ela considera ‘Já li’ um argumento conclusivo contra
a leitura de uma obra.”
Contudo, vale observar que diversas obras contemporâneas levam a
releituras seguidas. São conhecidos os episódios de lançamentos de livros de séries
famosas, como Harry Potter, em que os fãs vão às livrarias vestidos como
personagens dos livros45. Aqui temos simpatia, identificação, construção de castelos.
45
Numa nota pessoal, em 4 de fevereiro de 2015, ainda vi, em minha academia de ginástica, um
rapaz que trazia caracteres élficos — a linguagem inventada por Tolkien em O senhor dos anéis —
tatuados na panturrilha.
35
Lewis deixa claro que a “construção egoísta de castelos” pode ser de vários
tipos. Um dos mais importantes é a construção “mórbida”:
Deve-se saber, então, que o aludido fidalgo, nos momentos em que estava
ocioso — que constituíam a maior parte do ano — , deu para ler livros de
cavalaria com tanta paixão e prazer que esqueceu quase por completo o
exercício da caça, e até mesmo a administração de seus bens; e a tanto
chegaram sua curiosidade e desatino que vendeu muitos pedaços de terra
de plantio para comprar livros de cavalaria, levando assim para casa
quantos havia deles (…).46
Enfim, ele se embrenhou tanto na leitura que passava as noites lendo até
clarear e os dias até escurecer; e assim, por dormir pouco e ler muito,
secou-lhe o cérebro de maneira que veio a perder o juízo.47
46
CERVANTES 2012, p. 62.
47
CERVANTES 2012, p. 63.
36
que “Elas exigem uma narrativa rápida. (…) o leitor não-literário quer apenas O
Acontecimento”.48 No Amadis de Gaula, a quantidade de acontecimentos é extrema,
e seu ritmo parece vertiginoso até para os padrões modernos. Nele, o rei Periom de
Gaula conhece a princesa Elisena, engravida-a e volta para seu reino; Elisena dá à
luz em segredo e entrega o filho ao mar, junto com uma espada e um anel; o filho é
encontrado pelo nobre cavaleiro (é claro) Gandales e depois levado pelo rei
Languines para ser criado em sua corte (é claro), destacando-se por sua bravura
desde a mais tenra infância (é claro); enquanto isso o rei Periom casa-se com
Elisena, tem outro filho (ignorando o primeiro) e esse filho é raptado por um gigante
por conta de uma antiga profecia. E, ao descrever tudo isso, falamos apenas da
trama principal, e não chegamos ao final do terceiro capítulo! As aventuras do
próprio Amadis sequer começaram.
Aquilo que fez Dom Quixote “perder o juízo”, portanto, satisfaz plenamente as
condições de simpatia apresentadas por Adam Smith. Há pouca descrição. Não há
qualquer tentativa de embelezamento da linguagem; o acontecimento tem total
precedência, de modo a poder ser usado como estímulo à imaginação, à variação
de sentimentos. Até mesmo uma frase que de início parece apenas contribuir para a
atmosfera revela-se meramente utilitária. Vamos colocá-la em itálico:
CAPÍTULO PRIMEIRO
Como a infanta Elisena e a sua donzela Darioleta foram à câmara onde
estava o rei Periom.
Ou seja: “o luar estava muito claro” apenas para que Darioleta pudesse
confirmar para Elisena sua própria beleza. A que distância não estamos daquele
Flaubert que inspiraria Roland Barthes a criar a noção de “efeito de real”50! Barthes
falava de outro texto de Flaubert, Um coração simples, mas podemos encontrar o
48
LEWIS 2010, p. 30.
49
MONTALVO 2007, p.
50
BARTHES 1968, p. 84-89.
37
mesmo efeito nos trechos que já selecionamos de Madame Bovary. Vimos, por
exemplo, que Emma exalava seu hálito contra “o papel de seda das gravuras, que
se erguia, dobrando-se, e caía suavemente contra a página”, ou que “havia no
convento uma moça mais velha, dessas que já tinham passado da idade de casar,
que vinha todos os meses, e ficava oito dias, trabalhando na rouparia.” E isso
porque nem chegamos a mencionar o poder descritivo de Flaubert.
Montalvo escreve para chamar a atenção para o acontecimento, para
envolver, para intensificar a simpatia e manipular os sentimentos do leitor. Flaubert
escreve em parte para isso, em parte para que o leitor admire a composição verbal
enquanto composição verbal, dando informações que, se em nada contribuem para
o andamento da trama, transmitem o “efeito de real”. Não que se deva inferir que o
“efeito de real” é que distingue a “alta” da “baixa” literatura; mas apenas que de um
lado um texto é apenas usado como estímulo à imaginação, ou, como proporemos,
a um devaneio egoísta; de outro, não é possível apreciar Madame Bovary sem
“receber” a obra numa certa medida.
1. Parece-me que começou a me fazer muito mal o que agora direi. Penso
algumas vezes que mal fazem os pais que não procuram que seus filhos
sempre vejam coisas de virtude de todas as maneiras. Porque, apesar de
minha mãe ser assim como disse, do bom eu não peguei tanto — ao chegar
ao uso da razão. Na verdade quase nada. E o mau me prejudicou muito.
Era ela amante de livros de cavalaria e não lhe causava tanto mal esse
passatempo quanto causou a mim, porque não descuidava de seu trabalho.
Ao contrário, nos desdobrávamos para ter tempo de lê-los. E talvez os lesse
para não pensar nas grandes dificuldades que tinha, e ocupar seus filhos
para que não andassem perdidos em outras coisas. Isso desagradava tanto
a meu pai que era preciso tomar cuidado para que não o visse. Eu comecei
a ficar com o hábito de lê-los, e aquela pequena falta que vi nela começou a
esfriar meus desejos e começar a descuidar do resto. E não me parecia que
fosse errado gastar tantas horas do dia e da noite em ocupação tão vã,
ainda que escondida de meu pai. Era tão forte o que me encantava nisso
que, se não tivesse um livro novo, não me parece que estivesse contente.
2. Comecei a me vestir bem e a desejar agradar por ser bonita, ocupando-
me muito das mãos e dos cabelos, e perfumes e todas as vaidades que
51
podia ter, que eram muitas, porque eu era muito zelosa.
Se não for muito abusivo, podemos pensar que santa Teresa reconhecia seu
potencial de Emma Bovary.
O que a teria impedido de cair num bovarismo deveras avant la lettre seria
também explicado por C.S. Lewis. Afinal, aquilo que Lewis tem em mente é uma
espécie de atividade mental que, sem nunca deixar de ser mental, termina por
impedir os aspectos práticos da vida do leitor ou do usuário da literatura. Essa
atividade “mórbida” não precisa ser perpétua; ela pode ser a base de novas
atividades. Santa Teresa pode ter transferido seu zelo para as atividades religiosas.
O personagem Dom Quixote, como sabemos, também abandonou a fase “mórbida”
e decidiu efetivamente viver sua fantasia:
Enfim, acabado seu juízo, foi dar no mais estranho pensamento em que
jamais caiu louco algum: pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para
o engrandecimento de sua honra como para o proveito de sua pátria, se
fazer cavaleiro andante e ir pelo mundo com suas armas e cavalo em busca
de aventuras e para se exercitar em tudo aquilo que os cavaleiros andantes
se exercitavam, desfazendo todo tipo de afrontas e se pondo em situações
e perigos pelos quais, superando-os, ganhasse nome eterno e fama. O
pobre já se imaginava coroado pelo valor de seu braço com pelo menos o
império de Trebizonda; e assim, com pensamentos tão agradáveis, levado
pelo singular prazer que neles sentia, se apressou em realizar o que
desejava.52
51
D’ÁVILA 2010, p. 40-41.
52
CERVANTES 2012, p. 64.
39
53
LEWIS 2010, p. 52-53. Itálico no original.
54
LEWIS 2010, p. 90-91.
40
refletida na noção de “duplo angélico” de René Girard, que será discutida no capítulo
seguinte.
2.4 O devaneio
55
Dom Quixote tem um aspecto claramente satírico, e Cervantes, até por mencionar-se a si mesmo
na obra, parece estar parodiando-se um pouco. Mas a hipótese de que Flaubert em alguma medida
passou de um devaneio egoísta a um devaneio desinteressado ao escrever Madame Bovary deve ser
temperada pelo fato de que, contrariando a lenda, não há registros de que ele jamais tenha dito
“Madame Bovary, c’est moi” (“Eu sou Madame Bovary”).
42
O desejo não é deste mundo. É isso que nos mostra o melhor Proust: é
para penetrar em outro mundo que se deseja, é para ser iniciado numa
existência radicalmente estrangeira. O objeto desejado frequentemente se
apresenta na forma de uma esfera impenetrável: a curva das bochechas de
Albertine, além do alcance de qualquer beijo; a couraça moldada ao peito
do guerreiro, a ferir donzelas apaixonadas. Por trás de cada porta fechada,
de cada barreira insuperável, o herói sente a presença do domínio absoluto
que lhe escapa, da divina serenidade de que se sente privado.
Desejar é acreditar na transcendência do mundo sugerido pelo Outro.
René Girard, “From the Novelistic Experience to the Oedipal Myth”.56 (“Da
experiência romanesca ao mito edipiano”; o original, “De l’experiénce
romanesque au mythe oedipien”, é de 1965.)
“O desejo não é deste mundo.” Não é difícil ver como essa pequena frase
parece sintetizar muito do que dizíamos. O devaneio egoísta é a realização vicária
de desejos por objetos que não pertencem ao mundo do sujeito que deseja. É por
isso que essa estrutura pode ser aplicada a praticamente qualquer situação. Se
pensamos no exemplo do sujeito pobre que deseja a vida dos ricos, temos também
o clichê do rico que julga que a vida do pobre é mais autêntica e por isso sua
satisfação é mais plena. O primeiro julga que a insuficiência de sua vida vem da
precariedade material dos objetos; o segundo julga-se ele próprio inadequado, talvez
mimado, ou então acredita que existem sensações mais grosseiras e mais intensas.
O que está em jogo é a transcendência, aquilo que parece inatingível, porque
“Desejar é acreditar na transcendência do mundo sugerido pelo Outro”.
Um romance pode não ser nada além de um mundo sugerido — o que já é
muita coisa. Uma oportunidade para, como já se disse, vivenciar vicariamente o
desejo sugerido pelo Outro. Com uma diferença fundamental. Continuemos a leitura
de Girard, exatamente de onde paramos, e sem sair da mesma página:
56
GIRARD 2004, p. 1.
44
Na famosa vida real, podemos ter a experiência descrita por René Girard a
partir de Marcel Proust. No entanto, se insistirmos num devaneio egoísta, jamais a
teremos. A experiência de conquistar a transcendência e vê-la renascida mais além
é, em última instância, a experiência que precisa ser abolida do devaneio egoísta.
Trata-se de um desejo que quer permanecer desejante, sem realizar-se. O desejo
do outro, o personagem, precisa ser mostrado de maneira convincente para
despertar o meu próprio desejo. Ao mesmo tempo, esse desejo precisa ser
manipulado, suspendido, suspenso. O objetivo é continuar querendo.
E ainda sem sair da mesma página:
57
GIRARD 2007, p. 9.
58
GIRARD 1961, p. 21.
47
ajuda a descobrir o mimetismo, nessa obra Girard apresenta uma proposta radical:
“A principal ideia deste estudo é que Shakespeare não é apenas um ilustrador
dramático do desejo mimético, mas seu teórico.”59 Para dar um exemplo de como
Shakespeare explicitou o desejo não apenas mostrando-o mas efetivamente
discutindo-o. “Shakespeare pode ser tão explícito quanto alguns de nós em relação
ao desejo mimético, possuindo um vocabulário próprio para ele, próximo o suficiente
do nosso para ser reconhecido de imediato. Ele fala em ‘desejo sugerido’,
‘sugestão’, ‘desejo ciumento’, ‘desejo emulador’ etc.”60
Porém, um dos exemplos mais interessantes dessa teorização, e que pode
nos levar ao próximo passo, está na primeira cena do primeiro ato de Sonho de uma
noite de verão [A Midsummer Night’s Dream]. Vejamos os versos 139 e 140 da
versão editada por Harold F. Brooks (Arden), um diálogo entre Lisandro e Hérmia:61
Segundo Girard, não poderia haver nada mais claro. Traduzindo literalmente,
sem preocupações métricas, teríamos:
A própria edição Arden do texto da peça nos remete, no que diz respeito à
palavra friends, a uma discussão de duas páginas que pretende convencer-nos de
que ela não significa “amigos”, mas “pais” ou “responsáveis” (guardians). E, de fato,
essa discussão acontece dentro de um pequeno contexto específico: os pais dos
jovens escolheram seus noivos. No entanto, o contexto maior da peça, que se passa
“numa floresta perto de Atenas”, mostra os jovens, ao contrário, alterando o tempo
todo a sua escolha amorosa graças às artimanhas de Puck. Para Girard, esse é o
recurso que permite dar à peça o ar de mentira romântica necessário para que ela
seja aceita pelo público. Sendo a plateia mais predisposta a crer na mentira
romântica do que na verdade romanesca, não se pode contestá-la diretamente, sob
o risco de não gerar simpatia e nenhuma emoção. Shakespeare seria, segundo
59
GIRARD 2009, p. 241.
60
GIRARD 2010, p. 43.
61
SHAKESPEARE 1979, p. 13.
48
Desejar é ter uma carência. Essa carência é “ontológica”, é sentida como uma
carência de ser. É por isso que, como explica Girard em Mentira romântica e
verdade romanesca, referindo-se a Dom Quixote e a Pavel Pavlovitch, personagem
de O eterno marido, de Dostoiévski:
O sujeito que deseja quer tornar-se seu mediador. Ele quer roubar seu ser
de cavaleiro perfeito ou de sedutor irresistível.
(…)
O herói dostoievskiano, assim como o herói proustiano, sonha absorver,
assimilar o ser do mediador. Ele imagina uma síntese perfeita entre a força
do mediador e sua própria “inteligência”. Ele quer tornar-se o Outro sem
deixar de ser si próprio. Mas por que esse desejo, e por que esse mediador
particular, preferido a tantos outros? Por que o herói escolhe o modelo
adorado e odiado com tanta pressa e tão pouco senso crítico?
Para querer fundir-se assim na substância do Outro, é preciso experimentar
uma repugnância invencível pela própria substância.63
62
GIRARD 2007, p. 10.
63
GIRARD 1961, p. 70-71.
49
Nesse ensaio, René Girard faz uma comparação entre o Proust de Jean
Santeuil, seu primeiro romance, e o Proust de Em busca do tempo perdido. Seu
projeto é permitir que o último Proust explique o primeiro, e seu ponto de partida é a
comparação entre duas cenas. Na primeira, em Jean Santeuil, o protagonista
assume um papel divino. “Ele está feliz e confortável num camarote, deliciando-se
com as atenções, invejado por todos. Duas ou três duquesas estão a seus pés. Um
rei ajeita a gravata. Estamos em pleno coração daquilo que, na obra-prima [Em
busca do tempo perdido], nunca será mais do que o objetivo inacessível do
desejo.”66 Na segunda cena, que faz parte de À sombra das moças em flor, segundo
livro da série, o narrador está no teatro, mas na plateia, e é ele quem olha para cima,
é ele quem está na posição de carência.
64
GIRARD 1961, p. 71.
65
GIRARD 2004, p. 4.
66
GIRARD 2004, p. 4.
50
67
GIRARD 2004, p. 4.
68
GIRARD 2008, p. 176.
69
GIRARD 2004, p. 2.
70
GIRARD 2004, p. 4-5.
51
O duplo angélico, enfim, pode nascer como uma projeção do autor, mas a
obra escrita desde esse perspectiva conclama o leitor a identificar-se com ela,
criando um mundo de “nós” e “eles” — exatamente como o mundo de pessoas
“realmente elegantes” contra os “esnobes” do ambiente proustiano. O mal é
transferido para o outro; o eu do leitor imita a confirmação que o eu do narrador
oferece da justiça da sua própria causa. A realização vicária dos desejos passa a
assumir contornos morais, porque começam a entrar em questão a legitimidade dos
desejos e, com isso, a autenticidade e mesmo sua suposta espontaneidade. A obra
pode prestar-se ao papel de guia de uma vida não-examinada, com os talentos do
escritor oferecendo justificativas abundantes e sofisticadas para as disposições que
o leitor já tenha. Mais ainda, aqui começamos a roçar algo que se aproxima da
literatura contemporânea de auto-ajuda, que tem entre seus leitmotivs e ideia de “ser
especial” ou de “não ser como os outros”. Se os outros não são necessariamente
vilões, isso não quer dizer que você deva ser como eles.
Uma leitura superficial de Mentira romântica e verdade romanesca pode nos
deixar com a impressão de que a mediação externa é sempre positiva, apenas por
não estimular o conflito violento imediato. No entanto, a consideração das palavras
52
de C.S. Lewis sobre os aspectos mórbidos do devaneio deixa claro o lado negativo
da mediação externa. Talvez Jean Santeuil não tenha deixado um legado de
admiradores da finesse. Mas Dom Quixana, lendo as aventuras de Amadis de
Gaula, decidiu tornar-se Dom Quixote, e é o próprio Girard quem oferece esse
exemplo como de mediação externa. Emma Bovary leu romances rocambolescos;
as desgraças de sua vida vêm de ela tentar imitar modelos perfeitamente externos.
Assim, podemos pensar em pelo menos dois tipos de mediação externa. O
primeiro, altruísta, em que o sujeito desejante admite sua carência — em vez de
tentar escondê-la — e mantém uma atitude de humildade em relação a seu modelo.
Quanto a esse ponto, as diversas regras de ordens religiosas insistem na distância
absoluta que há entre Cristo e o fiel e na humildade como a primeira das virtudes.
Não por acaso, a grande recomendação da religião é que o fiel tente identificar-se
com a paixão de Cristo, evitando, obviamente, identificar-se com o Cristo que faz
milagres. Assim, a atitude religiosa de mediação externa é protegida do
estabelecimento de uma simpatia que possa confirmar o egoísmo.
Relação análoga pode existe na imitação admitida de modelos literários. O
escritor que imita quer que os traços do imitado permaneçam visíveis, ao menos
para os que tiverem olhos. Mesmo que busque superar o modelo, vai manter a
atitude de gratidão.
A mediação externa egoísta vai acontecer entre o leitor que, tomado de
simpatia por um personagem, identifique-se com ele e passe a viver
imaginariamente em seu mundo, desconsiderando o mundo concreto em que vive. A
isso já se costuma dar o nome de “escapismo”, mas certamente há escapismos e
escapismos. Um momento de escapismo pode servir apenas para a recuperação do
fôlego para a vida cotidiana. Mas é possível evitar a vida cotidiana apenas para
manter-se no universo da leitura, com uma atitude irrefletida, de pura fé na
realização dos desejos dos personagens. É por isso, aliás, que Santa Teresa d’Ávila
falava contra os romances de cavalaria: porque eles se prestavam a esse tipo de
devaneio mórbido.
Nessa mediação externa egoísta, o leitor usa o desejo para transportar-se
para outro mundo, mas de fato só o satisfaz vicariamente, ou seja, não o satisfaz. A
própria concepção de desejo, caso chegue a ser formulada, será infantil.
Essa atitude é totalmente diferente daquela atitude de “recepção” da obra
mencionada por Lewis. Não se trata de fazer uma apologia da literatura que “faz
53
pensar”, porque qualquer literatura pode “fazer pensar”. A questão é que a leitura de
um epigrama de Calímaco suscitará a admiração pelo trabalho com a linguagem. A
mediação externa egoísta é apenas um modo de fugir da banalidade e, por meio de
recursos como apresentação vívida de desejos, de prazeres e de aventuras, bem
como da atenuação do suspense, lograr fugir de qualquer reflexão.
54
71
ARISTÓTELES 1993, p. 35.
55
72
ARISTÓTELES 1993, p. 50-51.
73
ARISTÓTELES 1993, p. 69.
56
περὶ τὸν ἀνάξιον), ou, na tradução de Eudoro de Souza, “a piedade tem lugar a
respeito do que é infeliz sem o merecer”74, trecho que virá a ser muito importante em
nossa argumentação no capítulo seguinte.
Assim, podemos raciocinar da seguinte maneira, acreditando estar em
consonância com o pensamento de Aristóteles: Aquiles e Ulisses, personagens de
epopeias, são spoudaioi, e esse traço une epopeias e tragédias. Para uma obra ter
sucesso — e Aristóteles não duvida do sucesso da Ilíada e da Odisseia — os
spoudaioi precisam contar com a nossa simpatia. Sem essa simpatia, não teríamos
compaixão caso eles sofressem algo imerecido.
A ambiguidade do termo spoudaios nos favorece. De um lado, seu zelo, seu
ardor contagiará o desejo da plateia; de outro, esse mesmo ardor, concentrado por
supuesto numa obra de arte, aliado a sua “grande reputação e fortuna”, fazem do
protagonista um modelo. “Reputação” nada mais é do que a admiração alheia;
“fortuna” nada mais é do que ser bem-aventurado aos olhos dos outros. Outros
esses entre os quais podemos nos incluir, claro.
Ora, uma obra de arte também é feita para atrair os olhos dos outros. O
spoudaios atrai duplamente esse olhar: no seu mundo fictício e também na relação
entre espectador e personagem. Ulisses e Édipo são reis em Ítaca e em Tebas,
respectivamente, e objetos da nossa simpatia por serem personagens. Aquiles é
nada menos do que um semideus, que saberia que, se fosse à guerra de Troia,
morreria, mas seria cantado para sempre. Mítica ou ficcional, a profecia sobre
Aquiles se realiza no mundo da vida, milênios depois, a continentes de distância.
Retomando as ideias de René Girard, estamos no coração do mimetismo.
Cada personagem pode nos servir de modelo, guiando nosso desejo.
Todavia, é preciso dizer algumas palavras sobre Ulisses — e principalmente
sobre Aquiles. Afinal, no mencionado trecho 1453a, Aristóteles já deixou de falar da
epopeia, e explica que, no caso da tragédia, seu spoudaios será ainda mais digno
de compaixão caso sofra um infortúnio imerecido “não porque seja “vil e malvado”75,
ou, numa tradução mais literal, “e não por meio de maldade ou vileza” (“μήτε διὰ
κακίαν καὶ μοχθηρίαν”).
Cabe perguntar-nos que opinião teríamos de Aquiles e Ulisses hoje em dia.
74
ARISTÓTELES 1993, p. 67.
75
ARISTÓTELES 1993, p. 69.
57
76
BELFIORE 1992, p. 100ss.
77
A tradução utilizada será sempre a de Frederico Lourenço; é a ela que remetem as referências,
sempre idênticas ou próximas do texto original grego.
58
outro tentar tomar-lhe qualquer outro bem, “rapidamente da minha lança correrá teu
negro sangue”.
Após finalmente matar Heitor, que matou Pátroclo, Aquiles não pretende
conceder ao príncipe troiano as honras tradicionalmente concedidas aos guerreiros
mortos, as quais provocavam interrupções nos combates: “arrastei para aqui Heitor,
para os cães o comerem cru” (XXIII, 21); depois, arrematando, nos versos
imediatamente seguintes, promete: “e na tua pira funerária cortarei as gargantas a
doze / gloriosos filhos dos troianos”.
A cólera é tão definidora do Aquiles da Ilíada que, no último canto, ficamos
até com a impressão de uma certa magnanimidade quando ele aceita devolver o
cadáver de Heitor a seu pai, o rei Príamo.
Se, por outro lado, a Odisseia se distingue por não enumerar promessas de
violência e truculências de seu protagonista Ulisses, é o próprio personagem que,
após cegar o cíclope Polifemo, entra em seu navio e diz-lhe seu verdadeiro nome:
“Ulisses, saqueador de cidades” (Ὀδυσσῆα πτολιπόρθιος, Odyssea ptolipórthios;
canto IX, verso 504). Chama a atenção, portanto, o epíteto que Ulisses atribui a si
mesmo no momento em que deseja revelar sua identidade.
Numa época como a nossa, em que uma piada de mau gosto pode arruinar
uma carreira, em que a “correção” ideológica é para tantos o primeiro critério de um
exame crítico, parece lícito dizer ao menos que, se Adam Smith estava correto
quanto à necessidade de uma certa aprovação moral como requisito da simpatia,
uma leitura cuidadosa das grandes epopeias gregas não permite uma simpatia
irrestrita por esses personagens. Podemos até vibrar com eles, mas dificilmente
vamos endossar suas atitudes.
Aqui, porém, não pretendemos discutir o que é bom ou mau, mas examinar os
pressupostos de nossas leituras.
Algo aconteceu no ocidente para abalar esses pressupostos, para transformá-
los, para dar-lhes critérios relativamente nítidos.
Esse algo, é claro, chama-se cristianismo. Ou ao menos a tradição judaico-
cristã, que absorveu inúmeros elementos do paganismo greco-romano.
No início desta dissertação, retomamos o contraponto de Erich Auerbach
entre os estilos homérico e bíblico, estilos que, segundo a tese geral de Mímesis,
iriam lentamente fundir-se para criar o realismo moderno. Nessa fusão, sustentamos
59
que um dos elementos trazidos pela Bíblia é justamente uma outra atitude em
relação à violência, atitude essa que ainda vai se tornar mais complexa.
Neste momento, no entanto, queremos enfatizar a diferença, o contraste.
Atendo-nos à figura do spoudaios, esse personagem zeloso cuja ação move a
narrativa, podemos verificar que, já na Idade Média, ele aparece de maneira
bastante diversa de como aparece na Ilíada e na Odisseia no tocante à violência.78
Examinemos uma obra que sob muitos aspectos apresenta spoudaioi que são
uma perfeita oposição de Aquiles e Ulisses: La Quête du Graal, ou A demanda do
Santo Graal em sua versão francesa.
Dificilmente seria possível encontrar guerreiros mais antípodas dos heróis das
epopeias gregas do que os cavaleiros da Távola Redonda.
Erich Auerbach falava de como o estilo homérico apresentava os detalhes do
cotidiano de maneira vívida, usando o recurso da atenuação do suspense de
maneira a manter a atenção e, provavelmente, a suavizar a intensidade dos
elementos representados. Podemos dizer que sob certo aspecto a Ilíada e a
Odisseia são amorais, não por apresentar, segundo o clichê, “as coisas como são”,
mas porque, se nelas existe uma moral, ela nos parece mais um fruto
impremeditado da imitação das ações dos spoudaioi do que um elemento orientador
da composição.
É verdade que já invocamos a palavra “cristianismo” para explicar a diferença,
mas desejamos ir além e, aproveitando o contraste que faremos, mostrar que o
anseio de construir personagens guerreiros que sejam vistos como modelos nos
obriga a lidar com duas questões. A primeira, como dissemos, é a da violência, que
certamente entrou nas deliberações do autor anônimo da versão que examinaremos
da Demanda do Santo Graal, a francesa.
78
Certamente se poderia dizer que até o spoudaios da tragédia já é distinto do spoudaios da epopeia.
Consideremos, porém, que uma Antígona que deseja enterrar o irmão é bem diferente de uma
Medeia que mata os filhos por ter sido abandonada pelo marido. Esperamos mostrar que, já na Idade
Média, as expectativas em torno da legitimidade da violência eram bem mais nítidas.
60
O sr. Étienne Gilson mostrou que uma teologia da graça, muito precisa e
conforme à doutrina de são Bernardo, sustenta como sólida armadura os
episódios da Demanda. Sem entrar nos detalhes dessa doutrina, digamos
que a hierarquia estabelecida entre os três cavaleiros, ou entre os três
graus da santidade representados por eles, repousa sobre essa noção da
graça e do mérito, da vontade divina e da liberdade humana80.
79
Quête 1965.
80
Quête 1965, p. 33. Tradução nossa, bem como a de todos os demais fragmentos de La Quête du
Graal.
81
Quête 1965, p. 38.
61
82
Quête 1965, p. 51.
83
Quête 1965, p. 52.
84
Quête 1965, p. 54.
85
Quête 1965, p. 55.
86
Quête 1965, p. 57.
63
levará a bom termo a Demanda do Santo Graal, Galaad ainda retira a espada da
pedra, “com tanta facilidade que ela nem parecia ter sido fincada”87.
Após a chegada dessa figura perfeita, a narrativa divide-se em diversas
aventuras, normalmente usando as fórmulas “o conto diz que…” para iniciá-las e “o
conto aqui se cala para passar às aventuras de…” para encerrá-las. Assim vamos
vendo o que sucede a cada um dos cavaleiros.
Sem querer dar um passo adiante na argumentação, falando imediatamente
de Galaad como duplo angélico, o primeiro elemento que salta à vista é que seus
personagens principais são todos spoudaioi naquele sentido complexo que
propusemos anteriormente. Em primeiro lugar, todos são nobres. A cada
apresentação de um cavaleiro, tomamos ciência de sua linhagem. Mais ainda, são
zelosos: estão todos empenhados na procura do Graal, a taça em que José de
Arimateia teria guardado o sangue de Jesus após sua crucifixão.
Examinemos agora alguns pontos-chaves da Demanda, em que seus heróis
mais parecem distanciar-se dos spoudaioi gregos.
4.5 Percival e a recusa explícita da violência: “por medo de ser tomado por
vilão”
87
Quête 1965, p. 61.
88
Estamos cientes de que Albert Béguin citou ninguém menos do que são Bernardo — o grande
incitador das Cruzadas — como inspirador dessa Demanda. No entanto, não nos cabe discutir a
diferença entre teoria e prática, e sim ilustrar uma mudança de mentalidade, que pode incluir, se o
leitor quiser, uma dose maior de hipocrisia. Essa crítica, porém, tem implicações mais profundas, que
viremos a explorar.
64
grito de Percival: “Ah! Senhor cavaleiro, pelo amor de Deus, parece um pouco, até
eu conseguir falar-lhe!”89
Prossegue a narrativa, exatamente após a fala de Percival:
O Bom Cavaleiro [Galaad] não deu sinal de ter ouvido, mas seguiu caminho
sem mostrar a menor vontade de voltar. E Percival, que não tinha mais
cavalo, tendo o seu sido morto, tentou ir atrás dele a pé. Logo encontrou um
valete montado num cavalo forte e rápido, conduzindo à sua direita um
grande cavalo de batalha negro. Percival não soube o que fazer: ele teria
adorado dispor daquele cavalo de batalha para seguir o Cavaleiro, mas com
a condição de que o valete lho desse livremente. Por medo de ser tomado
por vilão, ele não teria desejado tomá-lo à força se a necessidade não o
obrigasse. Assim, ele saudou o valete, que lhe respondeu: “Deus vos
abençoe!” — “Bom amigo”, disse Percival, “eu peço em serviço e em
benfeitoria, e porque serei teu cavaleiro no instante em que me rogares, que
me emprestes esse cavalo até que eu consiga encontrar um cavaleiro que
acaba de ir por ali.” — “Senhor”, disse o valete, “não emprestarei, pois ele
pertence a um homem que me amaldiçoaria se eu não o entregasse.” —
“Bom amigo”, disse Percival, “faz o que te rogo que faças. Nunca terei dor
maior do que se perder esse cavaleiro por falta de montaria para segui-lo.”
— “Não”, disse o valete. Percival ficou tão aflito que teve a impressão que
ficaria fora de si. Ele não queria usar de violência contra o valete; porém, se
ele perdesse a pista do Cavaleiro, jamais teria alegria de novo. Essas duas
coisas lhe provocavam tanta cólera no coração que ele não conseguiu
permanecer de pé e caiu aos pés de uma árvore, pálido e lânguido como se
a vida tivesse sido retirada de seu corpo, e tomado por um pesar tamanho
90
que quis morrer imediatamente.
89
Quête 1965, p. 131; o episódio começa na página 130.
90
Quête, p. 131-132.
91
HOMERO 2005, p. 29. Estamos, é claro, nos três primeiros versos da epopeia.
65
92
Quête, p. 223.
93
Quête, p. 226.
66
4.7 Galaad
Diz ele [Gauvain] a Hestor: “Eis aqui confirmada a palavra que ouvi no dia
de Pentecostes, sobre aquela espada em que pus a mão. Foi-me anunciado
que antes de não muito tempo eu receberia dela um golpe terrível, e foi com
essa mesma espada que o cavaleiro golpeou-me ainda agora. Aconteceu-
me exatamente como predito.95
Do mesmo modo como Nosso Senhor, o Cavaleiro que deveis ter por
senhor e pastor veio visitar-vos. Assim como Nosso Senhor apareceu sob a
semelhança do fogo, o Cavaleiro mostrou-se em armas vermelhas, que é a
cor do fogo. E assim como as portas da casa em que se encontravam os
apóstolos estavam fechadas quando chegou Nosso Senhor, também as
portas da sala estavam fechadas quando sobreveio o Cavaleiro, tão
subitamente que ninguém dentre vós compreendeu como ele entrou.96
Sabendo que, num contexto cristão, comparação nenhuma pode ser maior do
que esta, vale a pena ainda rematar os trechos que mostram porque Galaad é o
duplo angélico de um autor cristão observando a graça recebida pelo Bom Cavaleiro
94
Quête 1965, p. 236.
95
Quête 1965, p. 230.
96
Quête 1965, p. 123.
68
após ter encontrado o Graal. À p. 303, ficamos sabendo que ele repetia dia e noite
uma prece em que pedia para ser retirado do mundo na hora em que quisesse. No
mesmo trecho, lemos:
…um dia a voz divina lhe disse: “Não te perturbes, Galaad, porque Nosso
Senhor concederá o que tu pedes; no momento em que requerires a morte
de teu corpo, ela te será outorgada, e receberás a vida da alma e a alegria
eterna.”
E assim acontece.
No entanto, apesar da mudança de contexto, Galaad faz pensar no
personagem Jean Santeuil, que, segundo René Girard, “não experimenta nem o
desejo, nem a verdadeira desilusão”97. Galaad, afinal, é perfeito desde o começo. É
praticamente impassível. Ele parece saber que é o cavaleiro perfeito, e só não
menciona isso porque é pecado.
Ficamos por um momento até mesmo tentados a dizer que não, Galaad não é
um spoudaios, mas a verdade é que ele é zeloso na demanda, e é filho do nobre
Lancelot. Ele satisfaz as condições desde um ponto de vista “técnico”. Seu zelo,
porém, não parece vir de uma carência, mas de um mero senso de missão que se
confunde com sua própria identidade.
Essa é uma razão por que, lendo, a Demanda, ficamos mais comovidos com
o anseio de Lancelot de não pecar mais; nossos olhos se arregalam diante da
atitude do irmão de Bohort; torcemos pelo ingênuo Percival. Galaad pode não ser
Cristo, mas sentimos mais compaixão pelo Deus feito homem flagelado e crucificado
do que pelo cavaleiro que encontra o Graal.
O que acabamos de dizer parece uma extrema obviedade. Mas é uma
obviedade com fortes implicações. Uma obviedade já antecipada por Aristóteles,
aliás, quando disse, num trecho que já citamos, que sentiremos “piedade por alguém
[que sofreu algo] imerecido” (ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον). Cristo é um spoudaios
perseguido; Galaad não é perseguido. O próprio fundador do cristianismo, o homem
sem pecado por excelência, foi perseguido; o duplo angélico do autor cristão não
recebeu essa dignidade.
Eis aqui o gancho para o capítulo seguinte.
97
GIRARD 2004, p. 2.
69
levados em conta por autores de ficção que pretendam ser lidos por eles.
Retomando a metáfora gastronômica, uma pessoa pode dizer que gosta de muito
chocolate, e colocar chocolate demais no seu primeiro bolo; o cozinheiro, por sua
experiência, é quem sabe quanto chocolate é uma dose aceitável até para quem diz
gostar de muito chocolate. O que muda não são os ingredientes: é a dose.
O primeiro ingrediente que aparece é o duplo angélico: temos personagens
perfeitos e irrepreensíveis, que levam uma vida de pura serenidade bucólica,
imersos em seus nobres sentimentos. Leiamos alguns trechos do breve “Plano”99:
Cenário rural, Heroína filha de clérigo, alguém que após viver muito tempo
no mundo retirou-se dele para um vicariato, com uma pequena fortuna. —
Ele, o melhor homem que se pode imaginar, perfeito de caráter,
temperamento e maneiras — sem a mais mínima mácula ou peculiaridade a
impedir que ele seja a companhia mais agradável possível a sua filha o ano
inteiro. — Heroína também personagem sem mácula, — perfeitamente boa,
com muita ternura e sentimento, e, claro, muito espirituosa —
prendadíssima, compreende as línguas modernas e (de modo geral) tudo
que as moças mais prendadas aprendem, mas com um dote especial para a
Música — seu passatempo favorito — e toca igualmente bem o piano e a
harpa — e canta maravilhosamente. Sua aparência é muito bonita — olhos
escuros e rosto rechonchudo [essa era a descrição da própria Jane Austen].
— O livro deve começar descrevendo pai e filha — que, ao conversar, terão
falas longas e linguajar elegante — num tom de emoção séria e sublime.
98
AUSTEN 2007, p. 53-54.
99
“Plan of a Novel according to Hints from Various Quarters”. AUSTEN 2007, p. 54-56.
71
— Muitas vezes raptada pelo Anti-Herói, mas resgatada por seu pai ou pelo
Herói — muitas vezes obrigada a sustentar a si e ao pai com seus talentos,
e a trabalhar pelo pão; continuamente enganada e ludibriada em seu
trabalho, reduzida a pele e ossos, e volta e meia à inanição.
100
No evangelho de são Lucas (22, 54-62): “Prenderam-no então e conduziram-no à casa do príncipe
dos sacerdotes. Pedro seguia-o de longe. Acenderam um fogo no meio do pátio, e sentaram-se em
redor. Pedro veio sentar-se com eles. Uma criada percebeu-o sentado junto ao fogo, encarou-o de
perto e disse: Também este homem estava com ele. Mas ele negou-o: Mulher, não o conheço. Pouco
depois, viu-o outro e disse-lhe: Também tu és um deles. Pedro respondeu: Não, eu não o sou.
Passada quase uma hora, afirmava um outro: Certamente também este homem estava com ele, pois
também é galileu. Mas Pedro disse: Meu amigo, não sei o que queres dizer. E no mesmo instante,
quando ainda falava, cantou o galo. Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro se
lembrou da palavra do Senhor: Hoje, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes. Saiu dali e
chorou amargamente.”
73
101
AUERBACH 2004, p. 41.
74
5.2 Lucíola
102
ALENCAR 2011.
103
Mesmo considerando o atual fetiche brasileiro com prostitutas, de Bruna Surfistinha a personagens
televisivos, ainda parece difícil imaginar alguém apresentando aos pais sua noiva, que continua
trabalhando nesse ramo, como se não houvesse qualquer tabu.
104
ALENCAR 2011, p. 19.
105
ALENCAR 2011, p. 150.
106
ALENCAR 2011, p. 151.
75
107
ALENCAR 2011, p. 163.
76
A essa altura, já temos simpatia demais por Lúcia para não ficarmos do lado
dela diante desse sofrimento imerecido; por pecadora que seja, estamos mais
dispostos a vê-la como um figura cristã, ou mesmo crística, perseguida pela multidão
— o “grupo” que, como diz Cristo na cruz, “não sabe o que faz” (Lucas 23, 34) — ,
do que efetivamente como uma “perdida”.
E de fato o comentário final de Lúcia não apenas repete as palavras de Cristo
crucificado como ainda confirma a ideia de que, mais importante do que a nobreza
de sangue, é a nobreza da alma:
— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do
coração! Perdoa-lhes, Paulo.
E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia
abrir o céu aos arroubos de sua alma.109
108
ALENCAR 2011, p. 157-158.
109
ALENCAR 2011, p. 158.
77
Mal sabia Gregório de Matos que os “fidalgos” a que ele se referia com tanto
desprezo e jocosidade viriam a compor, menos de dois séculos depois, os spoudaioi
da fascinante trilogia indigenista de José de Alencar.
Antes mesmo do romancista do Ceará, o maranhense Gonçalves Dias já tinha
escrito poemas em que o índio era valorizado. O grande destaque sem dúvida é I-
Juca Pirama, um pequeno épico que busca adotar o ponto de vista indígena e não
110
Os poemas de Gregório de Matos são apresentados com muitas variações. Por exemplo, ora
aparece “descendente do sangue tatu”, ora “descendente do sangue de tatu”; tanta variação fez-nos
optar por “descendente do sangue do tatu” primeiro pela sílaba métrica necessária que a preposição
proporciona; segundo, porque quem descende descende de alguém específico: o tatu, com artigo
definido, mesmo que “o tatu” gramaticalmente especificado indique logicamente os tatus e o reino
animal como um todo, marcando a proximidade do índio com a natureza.
111
O dicionário Houaiss, na sexta acepção, dá “europeu” para caramuru; contudo, a palavra também
é interpretada como “mestiço”. A nosso ver, faz mais sentido a acepção do Houaiss, pois supõe a
“empáfia" do índio em supor-se branco ou igual ao branco.
78
emitir um juízo de valor cultural sobre o costume de certas tribos que mais valia aos
índios em geral a acusação de desumanidade: o canibalismo.
Nos famosos versos 112 a 117, o índio celebra a sua própria bravura, sua
própria fidalguia, sua própria qualidade de spoudaios:
5.4 O Guarani
112
ALENCAR 2014, p. 272.
79
Era o corpo de delito, sobre o qual pretendia basear o libelo acusatório que
ia fulminar contra Peri.
Por diferentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a
expulsar o índio que ela não podia sofrer, e cuja presença bastava para
causar-lhe um faniquito.
Mas todos os seus esforços tinham sido baldados; o fidalgo com a sua
lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri, e via nele embora
selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai
de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter
salvado sua filha, circunstância que mais tarde se explicará.
Desta vez porém, D. Lauriana esperava vencer; e julgava impossível que
seu marido não punisse severamente esse crime abominável de um homem
que ia ao mato amarrar uma onça e trazê-la viva para casa. Que importava
que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a
115
existência de toda a família, e sobretudo a dela?
113
ALENCAR 2014, p. 113-119.
114
ALENCAR 2014, p. 88 (Parte I, Cap. VI: “A volta”).
115
ALENCAR 2014, p. 140 (Parte I, Cap. XII: “A onça”).
80
116
ALENCAR 2014, p. 254.
81
ainda mais escancarado. Não apenas temos o Peri impassível de sempre nos
momentos mais cruciais, como, ao falar do plano que o índio fez para sacrificar-se e
salvar os amigos, como um Cristo que salva a humanidade (branca), além de exaltar
o “heroísmo” do nosso spoudaios, o narrador exalta nada menos do que o λόγος
(lógos) de Peri, “o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos, que os
submetera à sua vontade”, e, no mesmo fôlego, seu outro atributo divinal, a
onipotência, “que os submetera [os acontecimentos] à sua vontade, fazendo-os
suceder-se naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível.”117 A
posição de superioridade do índio é inevitável.
Curiosamente, se o plano de Peri tivesse dado certo, ele teria feito do ritual do
canibalismo um verdadeiro apocalipse em nosso sentido atual. Ao envenenar o
próprio corpo, a exaltação da violência por parte dos canibais chegaria a termo
definitivo: a morte generalizada. O impedimento da parte final plano de Peri faz dele
um Cristo abortado.
Sem dúvida, um índio perfeito, irreal, correspondendo a ideais de pelo menos
duas culturas. E que é aristotelicamente programado para despertar a nossa
máxima compaixão, smithianamente preparado para evocar a máxima simpatia,
pretendendo efeitos que transcenderiam a própria literatura.
117
ALENCAR 2014, p. 428-9.
82
CONCLUSÃO
Mesmo na apreciação crítica de uma obra literária, uma distinção estrita entre
uso e recepção, naquele sentido de C.S. Lewis, pode ser extremamente difícil. Uso e
recepção podem ser pólos afastados, podem ser tendências claramente
identificáveis, mas a relação que até o leitor mais sofisticado — ou o leitor que seria
melhor aceito como leitor segundo critérios acadêmicos — estabelece com uma obra
depende de um certo afeto que pode não ser necessariamente literário. Este, na
verdade, é um dos testes ideais da capacidade crítica, um teste da capacidade do
crítico de olhar a si mesmo: ser capaz de distinguir o quanto da preferência por uma
obra se justifica por elementos que se considera dignos de apreciação na própria
obra, e o quanto se justifica por algo que ela evoque. O leitor deste trabalho pode ter
percebido que há uma associação entre o que diz o Epigrama XXVIII de Calímaco e
a teoria do desejo de René Girard: por mais que haja elementos objetivamente
apreciáveis e comparáveis entre eles, nada impede que algo de idiossincrático tenha
contribuído para sua escolha.
Esse, ainda, é apenas um dos lados da questão. Cervantes escreveu um
romance cujo protagonista lia os romances em voga em sua época, fazendo menção
explícita a vários, principalmente o Amadis de Gaula. Flaubert cita naquele sexto
capítulo da primeira parte de Madame Bovary, que descreve a formação de Emma,
o título de outro romance sentimental, publicado em 1798 por Bernardin de Saint-
Pierre: “Ela tinha lido Paul et Virginie…”118. José de Alencar está inteiramente
preocupado com a questão da identidade nacional brasileira. Os três autores têm,
digamos, um desejo de relevância no contexto que lhes é contemporâneo, e tratam
de assuntos — o devaneio heroico, o devaneio sentimental, o índio como elemento
formador de um país americano de independência recente — que independem da
literatura. Afinal, um leitor pode dedicar-se profissional e exclusivamente a uma obra
semelhante à de Calímaco e, caso tenha quixotismos ou bovarismos, ou venha a
preocupar-se com o futuro de seu país, não precisa associar essas experiências
interiores à literatura.
118
FLAUBERT 2001, p. 84.
83
***
119
A referência deliberada é ao famoso trecho 155d do Teeteto, em que Sócrates coloca o espanto,
ou o maravilhar-se (θαυμάζειν, um verbo no infinitivo) na origem da filosofia.
84
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