O Corpo e o Verbo Na Obra de Raduan Nassar
O Corpo e o Verbo Na Obra de Raduan Nassar
O Corpo e o Verbo Na Obra de Raduan Nassar
Fortaleza
2008
Fortaleza
Agosto de 2008
FICHA CATALOGRFICA
UFC, 2008.
CDD: ?
Esta pesquisa foi financiada com recursos do Governo Federal, via Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) e est em consonncia com o
guia de normas de formatao da Universidade Federal do Cear.
Aprovada em 08/09/2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Professora Doutora Vera Lcia de Albuquerque Moraes (Orientador)
Universidade Federal do Cear-UFC
__________________________________________
Professora Doutora Fernanda Maria Abreu Coutinho (Co-Orientador)
Universidade Federal do Cear-UFC
___________________________________________
Prof. Doutora Soraya Ferreira Alves
Universidade Estadual do Cear-UECE
__________________________________________
Prof. Dr. Ana Maria Csar Pompeu
Universidade Federal do Cear-UFC
minha me
AGRADECIMENTOS
Renata Moreira, pelo encorajamento desde antes do incio deste curso de Mestrado.
A Davide.
minha me Lucdia.
(Florbela Espanca)
RESUMO
Este trabalho analisa de que modo o corpo e o verbo interferem nas relaes de
afeto na obra Lavoura arcaica de Raduan Nassar. Para tanto, observamos o contexto afetivo
familiar, abordando conceitos de temas fundamentais do romance, como o erotismo, o desejo,
a metalinguagem e a ambigidade, que perpassa o comportamento dos personagens no livro
em questo. Mostramos ainda que o corpo representa um mote de tenso, desde o incio da
histria humana, e como ele est presente na obra nassariana. Assim, arrolando determinados
estudos tericos acerca do tpico, cotejamo-os dentro da esfera da construo dos afetos,
inclusive circunscrevendo tais eixos temticos em relao diviso de gneros sexuais.
Apresentamos consideraes sobre a famlia e o contexto familiar, no que concerne ao
imaginrio afetivo. Estudamos como a dimenso do erotismo e do corpo contamina a
linguagem de Andr, atravs de uma postura que, para ns, prega a liberdade contra o
autoritarismo e a palavra falsa do pai. Dentre vrias possibilidades de leitura,
estabelecemos uma aproximao entre a conceituao do libertino, definida por vrios
autores, para iniciar uma anlise que passar pelas proposies entre o discurso potico e o
prprio erotismo. Destacamos tambm a ambigidade como uma das caractersticas mais
marcante da reafirmao do protagonista como sujeito. A dubiedade e o ceticismo de Andr
mostram-se como palcos onde o personagem apresenta e estabelece suas estratgias do uso
do corpo, para tratar de um discurso libertrio contra a excluso, a alienao, a ordem e o
autoritarismo.
ABSTRACT
This study examines how the body and the verb interfere in family relationships, in
the book Lavoura arcaica of writer Raduan Nassar. Thus, we observed the context
affective of family, addressing issues of fundamental concepts of the novel, such as
eroticism, the desire, the metalanguage and ambiguity, running the behavior of
characters in the book in question. Analizes also as the body is a topic of tension,
since the beginning of human history, and how it is in the nassarian work. In
consequence, some theoretical studies are listed on the topic liked within the sphere
of construction of affection, such also in areas like sexual division of gender. We
studied how the magnitude of eroticism and the body contaminated the language of
Andr, through a position that, for us, to fold freedom against authoritarianism and
the word "false" the father. Among various possibilities for reading, we established a
rapprochement between the conceptualization of the libertine, defined by
several authors, to begin an analysis that will address the proposals between the
poetic and own eroticism. Also emphasizes the ambiguity as one of the most striking
features of reaffirmation of the protagonist as subject. The dubiety of Andr
skepticism show up as stage where the character sets and provides their strategies of
using the body to deal with a speech libertarian against exclusion, alienation, the
order and authoritarianism.
LISTA DE ILUSTRAES
SUMRIO
1.Introduo......................................................................................................... p. 11
2. Arando o terreno de uma lavoura
2.1.Raduan: entre o clebre e o ctico...........................................................
p. 18
2.2.As obras
2.2.1. Lavoura arcaica..........................................................................................
p. 23
p. 34
p. 37
p. 39
p. 55
Bibliografia......................................................................................................... p. 124
Anexo.................................................................................................................... i
10
1. INTRODUO
Embora, em Lavoura arcaica, Andr tambm comete incesto com seu irmo mais novo Lula, este no
to significativo na obra quanto o que ocorre com Ana. Alis, de ser descrito veladamente, nenhum outro
membro da casa vai tomar conhecimento do que ocorre entre o protagonista e Lula. pela rejeio de Ana,
aps o incesto, que Andr foge de casa.
2
Andr abandona o lar, retorna casa paterna aps cometer supostos erros, mas, apesar disso, recebido
com festa, assemelhando-se narrativa bblica por este motivo.
12
lavoura, arcaica e moderna, com uma linguagem amassada em sbia alquimia, com a
argamassa da senda atvica, do cho tradicional.
Refletindo sobre tal acepo acima, a inquietao que motivou este projeto partiu
da observao de que Raduan Nassar ainda pouco estudado e conhecido, mesmo no mbito
acadmico. Assim, ainda so poucos os compndios que versam ou citam o autor e a sua obra
esparsa, embora a crtica o tenha acolhido, j na poca da sua primeira publicao, como um
exemplo a ser aclamado de exmio escritor. Outro fator interessante so os grandes temas do
seu romance que so enaltecidos pela presena dos recursos poticos: a ambigidade, o
autoritarismo, o erotismo, a subjetividade e a religio.
Raduan Nassar nasceu em Pindorama, no interior do estado de So Paulo, em 27
de novembro de 1937. Filho de imigrantes libaneses, representa, de acordo com o escritor
Milton Hatoum ( 1996, p. 20), talvez o primeiro ficcionista rabe a evocar de maneira to
densa e lrica certos temas da cultura oriental, mas num ambiente brasileiro e tradicional.
Tal atmosfera rabe pode ser comprovada, por exemplo, no apenas na citao cornica do
Surata IV - 23 que abre a segunda parte do livro (Vos so interditadas: vossas mes, vossas
filhas, vossas irms...), mas tambm no final da obra quando se configura o crime de sangue
e, com ele, a tragdia da famlia. Assim, temos o trecho narrado por Andr sobre a me, aps
a morte do pai e da irm: como se vagasse entre escombros, a me passou a carpir em sua
prpria lngua um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrneo:
tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo spero a dor arenosa do deserto. (NASSAR, 1989,
p.194).
Alm da atmosfera rabe, a literatura de Raduan marcada por um estilo forte e
provocador, muitas vezes hermtico. Octavio de Faria, em 1976 no jornal A ltima hora,
chegou a afirmar que mesmo Lavoura arcaica constituindo uma afirmao inequvoca de
qualidade dentro da nossa literatura, a obra dificilmente conquistaria o grande pblico, ainda
13
Renata Pimentel Teixeira (2002), em Uma Lavoura de Insuspeitos frutos, fala sobre o
protagonista do primeiro livro de Nassar:
De acordo com Arajo (1993, p. 10), pode-se dizer, de uma forma bastante resumida e reduzida, que no
livro O Nascimento da Tragdia, Nietzsche expe que a tragdia nasce do encontro de duas expresses da
religiosidade grega que so o Apolneo e o Dionisaco. Estas duas expresses mantm suas diferenas, mas
no se contrape. E pela sua unio que a tragdia nasce. O Apolneo a fora que expressa o princpio do
sonho, da iluso, da aparncia, da individuao, da medida, pelo qual possvel a imagem do mundo
chegar ao homem. O Dionisaco a expresso pura da unidade primordial da natureza, que rompe com
qualquer princpio de individuao ou medida, aquilo que embriaga, que coloca todas as foras da
natureza unidas, conciliadas. J na viso de Santos (2006, p. 50), Enquanto o esprito apolneo visa a
uma arte figurativa, escultural e tem por funo, atravs de uma dimenso ilusria, onrica e povoada de
belas imagens, esconder o aspecto sombrio e horroroso da existncia humana, o dionisaco dimensionado
pela arte dos instintos, pela potncia emocional, ou melhor, pela arte no-figurada ou musical. Este ltimo,
provindo de Dioniso o deus do informe, do desmesurado, da rebeldia dos sentidos e da exuberncia em
oposio ao primeiro, no se manifesta por meio do sonho, mas de outro estado fisiolgico, a embriaguez.
Camille Paglia (1999, p. 17), ao estabelecer argumentao a respeito de sexo e violncia, natureza e arte,
diz-nos que o ctnico aquilo que relacionado com a terra: O que o Ocidente reprime em sua viso da
natureza o ctnio, que significa da terra - mas das entranhas da terra, no da superfcie. Jane Harrison
usa o termo para a religio pr-olmpica grega, e eu o adoto como um substituto para dionisaco, que se
contaminou com gracejos vulgares. O dionisaco no nenhum piquenique. So as realidades ctnicas de que
foge Apolo, o triturar cego da fora subterrnea. (...). No nosso trabalho, consideramos dionisaco o ambiente
definido por Santos (2006, p. 50) dimensionado pela arte dos instintos, pela potncia emocional, ou melhor,
pela arte no-figurada ou musical. Tambm consideramos o termo ctnico, entretanto, restringimos o seu uso a
termos ligados ao escuro, ao desejo, ao feminino, prpria terra e Deusa-me, conforme explicao de Paglia,
porm sem equival-lo diretamente ao dionisaco.
16
17
Eu sou mais como galinha caipira. No boto um ovo de dia e outro de noite,
sob luz artificial. No entro muito nessa histria de que o escritor precisa se
profissionalizar. Mesmo esse conceito de obra s vezes em 50 pginas
voc pode dizer muito mais que em dez livros. Depois, h tantos autores de
um nico livro que dizem tanta coisa! (CICCACIO, 1981, p. 3).5
Castello (1999, p. 175) explica tal postura de Nassar com o trecho: Raduan
abandonou a ordem do verbo, que est sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para
retornar ordem natural dos animais, que mais silenciosa, mas tambm mais previsvel.
Ovos, poedeiras, raes, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, no.
Cremilda Medina (1996, p. 99) tece consideraes semelhantes a de outros
autores, ressaltando os valores e a sensibilidade do escritor de Pindorama, no livro Povo e
Personagem:
No livro Por que escrevo?, uma coletnea de textos pertencentes coleo Mistrios da Criao literria,
Jos Domingos Brito nos apresenta um trecho de uma entrevista de Raduan Nassar, em que o autor de
Pindorama relaciona a literatura a um jogo: H alguns anos eu poderia talvez dizer por que escrevia, ou
pelo menos supunha ter bons motivos para justificar minha escolha. Depois, o tempo passou e at mesmo
transformou a solenidade de certas razes em um esboo de leviandade de tal modo misturando as cartas,
que hoje eu no sei mais que jogo estou disposto a jogar. Em todo caso, possvel dizer sem ser acusado de
mau gosto, que pode-se jogar hoje s pelo prazer?(p. 184)
19
O conceito de Hermetismo relacionado Literatura foi utilizado pela primeira vez por Francesco Flora,
em 1936, em um trabalho sobre o italiano Giuseppe Ungaretti. Contudo, a chamada doutrina de Hermes
deu origem ao hermetismo, cincia de honra da Idade Mdia, proclamada, entre outros, pela poesia,
abrangendo os fenmenos da vida universal. No entanto, sabido que essa uma doutrina antiga, de cerca
de 2000 anos antes de Cristo, quando os sacerdotes egpcios se refugiaram nos templos para proteger as
tradies e cincias de Thot (o deus da sabedoria que foi assimilado pelos gregos sob o nome de Hermes)
que representavam a VERDADE. Cerca de 40 livros gregos, populares no sculo III d.C, continham
resqucios da antiga teogonia de iniciao egpcia. A partir da publicao do livro de Hugo Friedrich, na
Alemanha em 1956, o termo passa a ser difundido pela crtica literria de lngua alem. Tambm nessa
poca, surgem os ensaios de Theodor W. Adorno sobre literatura, enfocando um novo tipo de hermetismo,
no qual a arte se permitiria uma recusa da comunicao. O texto Rede ber Lyrik und Gesellschaft surge
20
pela linguagem plena de metforas num ambiente textual com temticas inerentemente tensas.
Dessa maneira, o leitor desavisado encontraria dificuldades para interpretar a filosofia
representada pelos personagens de Nassar.
Contudo, para se comear a entender o sistema de representao, assim como a
filosofia da linguagem nassariana, interessante lembrar que, dentro de sua produo literria,
o escritor de Pindorama admite influncias de Les Gommes de Allain Robbe-Grillet, como
modelo de Nouveau Roman7; bem como dos sofistas que, para ele, desmoralizaram o uso da
conscincia e da razo.
Recordemos ainda que Nassar, em sua obra, reconhece ecos da filosofia de
Francis Bacon com a crtica ao idola. Assim, para o autor brasileiro, devem-se abolir todos os
dolos para se chegar ao conhecimento e desconfiar das verdades ditas por certas
autoridades, inclusive dentro da prpria literatura. Segundo Roland Barthes (1989, p.110):
no interior da lngua que a lngua deve ser combatida, desviada: no pela mensagem de
que ela instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela teatro. Essa desconfiana, de
certo modo teatral, em relao aos emissores do discurso um indcio do universo ctico que
o leitor vai encontrar em Lavoura arcaica e Um copo de clera.
Alfredo Bosi, numa entrevista concedida em Paris Maria Jos Cardoso Lemos
(s.d), no dia 21 junho de 1999, na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, contou-nos
sua ltima conversa com Raduan Nassar na casa do poeta Jos Paulo Paes:
em 1957. Ao tomar em considerao a obra de Paul Celan, Adorno passa a consider-lo como o mais
importante representante da poesia hermtica da contempornea lrica alem. Desse modo, para a crtica
alem da poca, o hermetismo poderia designar tanto o engajamento poltico de um autor, quanto um
proposital distanciamento da realidade, no havendo um consenso especfico sobre o tema.
7
Segundo Eunice Cabral (s.d), Nouveau Roman um termo aplicado a um conjunto de romances
franceses publicados no ps-guerra da autoria de Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor,
Marguerite Duras, Claude Simon. Caracterizados pela renovao das tcnicas romanescas, analisando os
principais vetores que atravessam o termo em questo, tambm designa o romance em superfcie (R.
Barthes) de caractersticas antihumanistas, que acabam por ser as encontradas na produo romanesca de
Robbes-Grillet.
21
Foi Ezra Pound (1970) quem apregoou que a grande literatura carregava em si o
mximo de significao. Do mesmo modo, para Raduan Nassar, o bom escritor deve mexer
com a gema e no s a casca (p. 24), conforme podemos constatar na entrevista concedida a
Cadernos de Literatura Brasileira, nmero 2 do Instituto Moreira Salles. Ou seja, o bom
autor deve trabalhar o nvel semntico e no apenas o nvel formal (sons, grafias, sintaxes,
pontuao, ritmo).
Tambm para o autor de Um copo de Clera, melhor explorar mais a idia do que
o plano conceitual (palavras cotidianas, rima comum, sintaxe simples), sem qualquer artifcio
de enunciado, pois, s vezes, isso o suficiente para provocar o fascnio do leitor no contexto
da obra. Dessa forma, para Nassar, a boa prosa a potica: a literatura que nos acompanha
so a dos artistas dos significados.9 (p. 24)
Nassar, em entrevista que concedeu a Maria Jos Cardoso Lemos (s.d), em fevereiro de 2003, assegura
que no conheceu Xidieh.
9
22
2.2 As obras
2.2.1. Lavoura Arcaica
Lavoura arcaica (1989) narra uma tragdia familiar em primeira pessoa, atravs
do discurso de Andr, o filho tresmalhado. A densa narrativa remonta parbola do Filho
Prdigo, num misto de tom bblico e helnico, como nos lembra Tristo de Athayde (1996),
em que o Destino Implacvel conflitua com a idia regeneradora do Amor. Tanto o tom misto
de vrias geografias quanto a idia do destino (contida na palavra rabe Maktub e traduzida
como est escrito em nota do prprio autor) esto contidos no trecho abaixo em que Andr
dedica memria do av: (...) o av, ao contrrio dos discernimentos promscuos do pai
em que apareciam enxertos de vrias geografias, respondia sempre com o arroto tosco que
valia por todas as cincias, por todas as igrejas e por todos os sermes do pai: Maktub.
(NASSAR, 1989, p. 91)
Desse modo, o enredo de Lavoura arcaica (1989) inicia-se com o narradorpersonagem deitado no cho do quarto de uma penso interiorana, enquanto chega Pedro, o
irmo mais velho, que vai em busca do irmo prdigo. atravs desse encontro que aquele
personagem e o leitor iro descobrir as motivaes que levaram Andr a buscar um exlio fora
da casa paterna. Aps Pedro conseguir convencer o irmo, ambos retornam ao contexto
familiar. Como nos evidencia o narrador: Pedro cumprira sua misso me devolvendo ao seio
da famlia (1989, p.149).
Referindo-se ao contexto familiar, Octvio Ianni (1991, p. 02) considera Lavoura
arcaica como uma alegoria em que a famlia uma figurao da sociedade. Esse carter
representativo de Mise en Abyme seria marcado pelo circuito fechado da famlia patriarcal
dentro do circuito fechado da sociedade. A famlia ento uma estrutura que se implode, j
23
Vou sair de casa, Andr, amanh, no meio da tua festa, mas isso eu s
estou contando pra voc.
Fale baixo, Lula.
No agento mais esta priso, no agento mais os sermes do pai, nem
o trabalho que me do, e nem a vigilncia de Pedro em cima do que
fao, quero ser dono dos meus prprios passos; no nasci pra viver aqui,
sinto nojo dos nossos rebanhos, no gosto de trabalhar na terra, nem nos
dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, no agento mais a vida
parada desta fazenda imunda...
Fale baixo, eu j disse.
S foi voc partir, Andr, e eu j vivia empoleirado l na porteira,
sonhando com estradas, esticando os olhos at onde eu podia, era s na
tua aventura que eu pensava... Quero conhecer muitas cidades, quero
24
correr todo este mundo, vou trocar meu embornal por uma mochila, vou
me transformar num andarilho que vai de praa em praa cruzando as
ruas feito vagabundo; quero conhecer tambm os lugares mais proibidos,
desses lugares onde os bandidos se encontram, onde se joga s a
dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se cometem todos os vcios,
onde os criminosos tramam seus crimes, vou ter a companhia de
mulheres, quero ser conhecido nos bordis e nos becos onde os
mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu
prprio corpo. (...) ( NASSAR, 1989, pp. 179-180)
De acordo com Pinto (1995), em dissertao sobre tal obra de Nassar, Lavoura
arcaica pode ser considerada um Iceberg, pois o livro apenas encosta-se em outros pedaos de
textos, distanciando-se de outras obras produzidas no Brasil, principalmente em relao ao
suporte bblico, questo do sujeito e tradio parricida.
25
De acordo com Jean Pouillon (1974, pp. 39-49), o fluxo de conscincia seria uma busca de unio at
certo ponto ilusria entre a dimenso espao-temporal externa e a ordem do discurso interna que surge na
literatura como aparentemente ilgica. Tal tcnica foi empregada pela primeira vez em 1888 no romance
Ls Lauries Sont Coups de Eduard Dujardin, depois sendo utilizada por grandes nomes da lngua inglesa
como James Joyce e Virginia Woolf. No Brasil, a crtica ressalta bons exemplos em Clarice Lispector e
Autran Dourado. O fluxo de Conscincia rompe com limites espao-temporais e com as regras do realismo
literrio, pois abandona o fluxo linear da narrativa, atravs do monlogo interior, que seria, segundo
Scholes e Kellogg (apud CARVALHO, 1981, p. 52), a apresentao direta e imediata, na literatura
narrativa, dos pensamentos no falados de um personagem, sem a interveno de narrador.
11
Segundo Hertz (s.d, p. 01): a literatura expressionista se constri exatamente a partir das fissuras e
insuficincias da palavra, como constatamos nas obras de alguns escritores brasileiros, que acreditamos que
possuam caractersticas expressionistas, como Cornlio Penna, Mrio Peixoto, Lcio Cardoso e o prprio
Octvio de Faria, que realizaram uma literatura modernista que dista bastante da corrente regionalista do
modernismo brasileiro da dcada de 1930.
26
27
Para Consuelo de Castro (2003, p. 160) sobre um trecho do nosso livro em estudo:
Era de uma aspereza, de uma economia de verbo to grande e, no entanto ou por isso mesmo -, de uma poesia quase inacreditvel. As palavras tinham
msica, tinham um poder de fogo, entravam na gente. O teatro poesia.
No estou falando da poesia disposta de modo literrio, mas da poesia em
si, da sua essncia.
28
Enquanto um longo discurso deflagrado pelo encontro com Pedro, em que Andr
narra o que aconteceu antes da partida, o leitor vai tomando conhecimento da transgresso da
relao incestuosa, da rebelio contra a palavra e a lei do pai, da revolta escondida no silncio
imposto pela famlia, das motivaes do protagonista ao evidenciar que a opresso sofrida no
interior da casa impunha o distanciamento bem mais que espacial: desde minha fuga, era
calando minha revolta (tinha contundncia meu silncio! Tinha textura a minha raiva!) que
eu, a cada passo, me distanciava l da fazenda (...)(NASSAR, 1989, p. 35)
Entretanto, embora Andr ocupe o lugar do narrador, ele tem seu foco narrativo
invadido pelo pai, atravs das recordaes dos sermes feitos mesa e do dilogo final entre
pai e filho no livro, e da voz de Pedro, nos dilogos na penso. Aps o retorno para casa, na
segunda parte de Lavoura arcaica, os acontecimentos deixam de ser trazidos tona pelo
recurso do flashback e tornam-se contemporneos ao tempo da narrativa, at o momento em
que ocorre um ruptura atravs da morte do pai, em que a narrativa torna ao tom de memria:
(Em memria de meu pai, transcrevo suas palavras (...) (NASSAR, 1989, p. 195)
O livro ainda um romance que levanta indagaes existenciais, possuindo ainda
traos maneiristas (o jogo ininterrupto entre visvel e oculto; a transitoriedade das coisas
humanas e o engano/desengano da vida). H tambm nuances barrocas, com a intensificao
da descrio dos pormenores, e naturalistas, ao dar nfase aos aspectos cruis e dolorosos do
desejo. Porm, se formos enfatizar a estrutura da obra, perceberemos delineaes que
29
descambam para tons trgicos do gnero dramtico, pois temos, no livro em questo, no a
imitao do homem, mas a imitao da ao e da vida sobre o homem, j que como nos
lembra Aristteles (1989, p. 21):
12
De acordo com Camille Paglia (1992, p.17): A tragdia o mais ocidental dos gneros literrios. S
apareceu no Japo no final do sculo XIX. A vontade ocidental, insurgindo-se contra a natureza, dramatizou
sua prpria e inevitvel queda como um componente humano universal, o que ela no . Uma das ironias
da histria literria o nascimento da tragdia no culto de Dioniso. A destruio do protagonista lembra a
matana e, anteriormente, de seres humanos reais em rituais arcaicos. No por acaso que a tragdia, como
a conhecemos, data do apolneo sculo V a.C da grandeza de Atenas, cuja obra fundamental a Orstia, de
squilo, celebrao da derrota do poder ctnico. O drama, genro dionisaco, voltou-se contra Dioniso ao
passar da Mimese para o ritual, ou seja, da ao para a apresentao. O piedade e medo de Aristteles
uma promessa quebrada, um pedido de viso sem horror.
30
reverso no seu destino: a hamartia13, que o elemento que conduz o personagem ao fracasso
em conseqncia de um erro, sendo definida como resultado de uma ao concretizada ou um
ato falho. A hamartia pode ser o resultado de um juzo errneo, de ignorncia, da transgresso
de algum ato ou quaisquer outras causas.
Um exemplo comum de hamartia, nas tragdias gregas, era o pecado contra a
hybris. Por exemplo, em dipo Rei, de Sfocles, o orgulho de dipo o levara a cumprir as
profecias do orculo: assassinar o pai e desposar Jocasta, sua me. Desse modo, o orgulho de
dipo, sua hybris, o levar desgraa, arrematada pela cegueira fsica. Hybris seria a
transgresso feita contra a ordem social, as leis morais vigentes na polis e as proibies dos
deuses causada pela hamartia, que tambm pode ser simplesmente o orgulho ou excesso de
auto-confiana que conduz o protagonista a desobedecer aos avisos divinos ou a violar
qualquer importante lei moral. Em suma, a hybris conduz inevitvel punio tambm de
uma desmesura na composio do carter (Hamartia).
Na perspectiva trgica aristotlica, o foco o homem em conflito com o mundo
em que se insere, como acontece com Andr ao no aceitar a rigidez familiar autoritria. Se
hybris pode ser definida como o orgulho desmedido e a insolncia excessiva, testemunhamos
bem isso nas palavras do protagonista:
(...) eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sbia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a
sade da famlia, que os meus remdios no foram jamais inscritos nos
compndios, mas que existia uma outra medicina ( a minha!), e que fora de
mim eu no reconhecia qualquer cincia, e que era tudo s uma questo de
perspectiva, e que o valia era o meu e s o meu ponto de vista (...)
(NASSAR, 1989, p.111)
Recordamos que a mesma palavra Hamartia, j em grego quer dizer erro. Em suma, a hybris conduz
inevitvel punio tambm de uma desmesura na composio (Hamartia).
31
instaurada por ele e no desequilbrio familiar provocado por sua fuga da casa paterna, ponto
de partida da narrativa, levando a uma desmedida (hybris). Atravs de suas aes, vemos que
Andr incorre na falha, a insolncia excessiva contra o pai o leva a cometer o incesto. Depois,
temos a configurao do crime de sangue com o suposto assassinato de Ana pelo patriarca e
a conseqente morte deste, fato deflagrado pela cincia do ato incestuoso atravs da confisso
feita por Pedro.
Destarte, como o enredo do livro remete aos textos trgicos mediterrneos atravs
de uma linguagem de estilo exaltadamente lrico, o tom usado na narrativa o sublime14,
como ressalta Perrone-Moiss (1996, p. 66), o que podemos atestar no lirismo presente em
todo o livro, conforme o excerto:
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num stio l do bosque que eu
escapava aos olhos apreensivos da famlia; amainava a febre de meus ps na
terra mida, cobria meu corpo de folhas e, deitado sombra, eu dormia na
postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso do boto vermelho;
no eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silncio
e cheios de pacincia meu sonho adolescente? (NASSAR, 1989, p.13)
O livro composto por trinta captulos, sendo que vinte e um compem a primeira
parte, chamada A partida e apenas nove constituem a segunda parte intitulada O retorno.
O livro numerado no apenas para indicar a sucesso do tempo; mas tambm como para
representar a impossibilidade de um perfeito recomeo, como ressalta Perrone-Moiss (1996,
14
Aqui usamos o termo sublime conforme a conceituao de Andra Peixoto (2005, p. 01), atravs da
anlise de Longino a Kant, perpassando por Peter Burke, o termo : associado grandiosidade,
elevao e transcendncia. (...) Foi primeiro usado como um termo retrico, dizendo respeito a
determinadas qualidades que uma obra literria possui que possam transmitir ao leitor o xtase e levar
os seus pensamentos a um plano mais elevado. (...) O seu uso inicial diz respeito linguagem ou ao
estilo exaltado e mais tarde percepo fsica. Na filosofia de Kant, o sublime uma mistura de prazer
e dor que se sente quando se est face a algo de grande magnitude. Pode-se ter uma idia de tal
magnitude, mas no se consegue fazer igualar essa idia com uma intuio sensorial imediata. Isto
deve-se ao facto de os objectos sublimes ultrapassarem as capacidades sensoriais. Um exemplo de
sublime, para Kant, seria uma montanha. Pode-se ter idia de uma montanha, mas no intuio sensorial
dela como um todo. (...)
32
p.62). Cada captulo constitui um nico pargrafo escassamente pontuado e, por vezes,
extenso.
De tal modo, conforme se pode confirmar no grfico I15, temos captulospargrafo que variam de trinta pginas a trs linhas. Por conseguinte, a fim de ilustrarmos,
transcrevemos todo o captulo vigsimo oitavo: A terra, o trigo, o po, a mesa, a famlia (a
terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermes, amor, trabalho, tempo. (p.183).
Tematicamente, como j dissemos, a obra tem uma influncia dos textos sagrados
como a Bblia e o Alcoro. Dos textos bblicos, marcante a presena de ressos do
Eclesiastes atravs da demonstrao da impossibilidade de se encontrar o absoluto, de ter
Deus como guia para nos ensinar o caminho da sabedoria, principalmente em relao a um
dos temas principais abordados em Lavoura Arcaica: o tempo. Vejamos um trecho retirado do
captulo 3, do livro dos Eclesiastes, que confirma tal acepo16:
Para efeito de cotejo, leiamos um excerto das pregaes do pai sobre o tempo:
O tempo o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora
15
16
Em anexo.
Embora o tema do tempo seja um dos mais ricos a ser explorado em Lavoura arcaica, apenas o
citamos aqui a ttulo de ilustrao, tendo em vista no ser este o enfoque principal do nosso trabalho.
33
Segundo Leyla Perrone-Moiss, essa na verdade seria uma influncia de Novalis. Novalis o pseudnimo
do escritor Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, por vezes chamado do profeta do Romantismo Alemo.
Em 1800, escreve Hymnen an die Nacht (Hinos Noite), a sua nica coleo acabada de poemas dedicado
Sophie von Khn, a noiva morta prematuramente aos 15 anos de idade. O conjunto de seis prosas e versos
lricos foi publicado na Athenum, uma revista literria editada pelos irmos August Wilhelm Schlegel e
Friedrich Schlegel.
18
Embora no seja o foco do nosso trabalho, entendemos como algo interessante nos debruarmos um pouco
sobre o livro Um Copo de Clera, a fim de elaborarmos um panorama mais rico das obras de Nassar, at
mesmo por, em tal obra, existirem inmeros pontos de contato com o nosso objeto de estudo: Lavoura
arcaica.
34
19
Um exemplo clssico na Literatura Universal a Terra das Coisas-Sem-Nome de Alice no Pas das
Maravilhas, do ingls Lewis Carroll. Outro exemplo, porm em Literatura Portuguesa, o do romance
Hmus de Raul Brando, que s atribui a uma personagem de sua vila um nome prprio reconhecvel: Joana.
36
37
38
Desse modo, j no sculo XVI, Ren Descartes dividia o Ser Pensante, o sujeito,
em dois tipos de substncias: o mbito fsico e o mental ou espiritual. Essa oposio
direta no permitiria, a priori, uma identificao entre ambas, colocando em instncias
diversas o corpo e a mente. Tal relao entre res cogitans et res extensa s foi reelaborada
anos depois, principalmente pela Psicanlise.
Na Idade Mdia, a concepo do corpo era resultado de varias tenses: entre Deus
e o Homem20; a razo e a f; a cidade e o campo; a riqueza e a pobreza; tempos de violncia e
de paz e, obviamente, entre o homem e a mulher. Para Matos e Gentile (2004), como "lugar
de tentaes", o corpo era considerado perigoso, principalmente o feminino, conforme
abordaremos mais adiante. No entanto, como caracterstico da era medieval, a tenso
principal existente era entre o corpo e a alma ou a relao que o homem tinha com seu prprio
corpo. Vemos bem esta questo conflituosa dentro da esfera comportamental medieval em
sesses de penitncia corporal, tendo em vista que a salvao espiritual do mundo cristo era
perpassada pela idia de sofrimento do corpo.
A exemplo do que foi acima citado, temos o postulado pelo papa Gregrio que
definia o corpo como o abominvel revestimento da alma. As principais virtudes, quela
poca, eram a abstinncia e a continncia, j que os pecados mais graves eram a gula e a
luxria. Um dos exemplos mais visveis desse perodo era o uso do Silcio um instrumento
com cravas de metal utilizado para mutilar a parte superior da perna. Como meio de purificar
o corpo, o cristo apertava a coxa com o aparelho, quando se sentia ameaado por qualquer
pensamento pecaminoso, com o objetivo de ferir a prpria carne. Tendo em vista que, de
acordo com a mentalidade medieval, o corpo era inseparvel da alma, o indivduo punia os
desejos do corpo para alcanar os pensamentos da alma.
20
Ao mesmo tempo em que o corpo possui um papel do que conduz o homem ao pecado, ser no perodo
medieval que, segundo Besen (2004), a festa de Corpus Christi nascer com a finalidade de fazer a
adorao pblica do corpo de Cristo, representada pela Hstia consagrada.
40
Segundo Joo Carlos Rodrigues (1999), a tortura presente na Idade Mdia era
justificada como uma ao sobre o esprito por meio do corpo. A dor fsica era denominada
por termos que designavam tambm amargura, tristeza, solido e luto, entre outros estados
no necessariamente ligados pura corporalidade, especialmente na poca da Inquisio. s
vezes, como complementa Garcia (1997), a tortura at a morte de um indivduo herege no
era suficiente.
Seguindo a linha de pensamento de que morrer no significava o fim das mazelas
emanadas por tais pessoas, havia a necessidade do ritual da cremao, para que a matria
fosse totalmente purificada. Era preciso destruir completamente o corpo sepultado, pois,
sendo uma substncia material que continuava a existir fisicamente, representava ainda a
presena dos atos e pensamentos de heresia.
No sculo VI, o corpo e seu uso mencionado, por vrios autores, sempre
relacionado com a esfera dos vcios. Assim, segundo Schmitt (1995), em Pomerius ele
relacionado com a gula; em Cassiano liga-se fornicao e o orgulho est presente em
Gregrio. Entretanto, na Baixa Idade Mdia, a representao do corpo sofre uma mudana,
possibilitada pelo desenvolvimento do direito de ser tambm meio e lugar de salvao do
homem, rompendo o status de apenas representar a priso da alma.
Ainda segundo Jean-Claude Schmitt (1995), na baixa Idade Mdia, a ateno aos
gestos corporais renovada. O autor explica que a palavra latina gestus significava os
movimentos e as atitudes do corpo em geral, no sendo determinada apenas pelo gesto
particular. J na Alta Idade Mdia, tal conotao da palavra gestus e as reflexes relacionadas
a ela tm seu uso reduzido e vai desaparecendo aos poucos. Pensar a respeito do gesto como
objeto de reflexo tica e comportamental ser mais focalizada no chamado Renascimento
Intelectual do sculo XII21.
21
Segundo Giuliano Finatti (1978), o Renascimento do sculo XII foi num conjunto de transformaes
41
econmicas, sociais, polticas e culturais ocorridas na Europa ocidental, com a renovao da vida
urbana em torno dos castelos e mosteiros; as Cruzadas, a restaurao do comrcio com a emergncia da
burguesia e, principalmente, o renascimento cultural com uma maior base cientfica-filosfica, que
acarretou na Renascena Italaina, de propores eminentemente literrias e artsticas.
42
43
Cartesio priva il corpo del suo mondo e lo relega nella res extensa, dove
questo definito come oggetto e decifrato, al pari di tutti i corpi, secondo le
leggi della fisica. Lanima, allopposto, libera dalla gravezza corporea, viene
intesa come puro intelletto, come Ego intersoggettivo, il quale d significato
al mondo e ai corpi che lo abitano.22
Cartesio priva o corpo do seu mundo e o relega res extensa, onde este definido como objeto e
decifrado, a par de todos os corpos, segundo a lei da fsica. A alma, em oposto, liberada da gravidade
corprea, vem definida como intelecto puro, como Ego intersubjetivo, ao qual d significado ao mundo
e aos corpos que os abitam. (Traduo nossa)
44
do resultado das expresses de um sentido manifesto, igual tanto para o sujeito quanto para os
outros, na elaborao de um sentimento individual em relao ao prprio corpo. Em A
Filosofia do Corpo, Claude Bruaire (1972, p. 172), reitera que:
A expresso pessoal do eusingular a superao da individualidade do
corpo pelo sujeito, para a manifestao desse ltimo. A relao da expresso
com a linguagem recproca ligada por oposio opera-se, assim, graas ao
papel do sentido e do no-sentido somtico individual. A unidade parcial de
meu corpo para mim e para outrem, efetiva na expresso muda onde reside,
indecisa, a particularidade prpria de cada um, permite ao sujeito manifestarse distinguindo o que diz e o que faz.
O corpo tem uma linguagem prpria, que, como cada outro sistema de comunicao, est em contnua
evoluo. Uma linguagem fsica fundada sobre sinais, em que o gesto a matria e a essncia: o uso do
corpo parecia, portanto, a nica via para reencontrar uma comunicao direta, um relacionamento
sensorial e ttil com o outro. Naturalmente os artistas nao se negavam a encontrar uma de gramtica da
linguagem corprea categrica e facilmente decodificada, como, ao contrrio, advm para a linguagem
verbal. O corpo como linguagem contemporaneamente rgido e flexvel; como os seus movimentos
est em grau de exprimir uma infinita gama de significados, s vezes tambm involuntariamente.
47
Para ns, o corpo performtico fundamentar a linguagem com que Andr vai
contestar o discurso do pai, atravs da simbologia do seu corpo-vivente, conforme veremos
mais frente.
Colocando, portanto o corpo no centro de variadas exibies procurava-se contextualizar e fixar com
maior preciso estes significados. exatamente atravs desta contextualizao, que o artista pode
melhor exprimir o seu modo de ser que, de todo modo, seria intangvel, pela excedncia simblica
prpria do corpo-vivente. (Traduo nossa.)
48
Andr traz a ns, como leitores, o incio da narrao do seu mundo tambm atravs da
descrio do sexo e do corpo. Sua masturbao torna-se ainda mais evidente frente, quando
Andr, sozinho no quarto, descreve: Minha mo antes dinmica e em dura disciplina,
percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheios
de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente(NASSAR, 1989, p. 10).
Entretanto, logo de incio tambm Andr j concebe sua idia de corpo como algo
sujo, pois no ato masturbatrio Andr diz tocar seu corpo com as mos cheias de veneno.
Na pgina 11, Andr afirma que seu sexo roxo e obscuro, quando se veste para atender
porta o irmo mais velho na penso. Desse modo, tambm os olhos que passam a servir
como uma espcie de espelho do corpo. Viso que parece ser o resultado da prdica do pai:
E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermes do pai que os olhos so
a candeia do corpo, e que se eles eram bons porque o corpo tinha luz, e se
os olhos no eram limpos que eles revelavam um corpo tenebroso, e eu ali,
diante de meu irmo, respirando um cheiro exaltado de vinho, sabia que
meus olhos eram dois caroos repulsivos, mas nem liguei que fossem assim.
(NASSAR, 1989, p.15)
24
Andr dir a Ana na capela ao falar do incesto: (...) Ana, tudo comea no teu amor, ele a semente, o
teu amor pra mim o princpio do mundo. (NASSAR, 1989, p. 130)
25
Segundo a autora cita, o deus teria dito: tive unio com minha mo, e tomei minha sombra num abrao
amoroso; despejei semente em minha boca, e lancei de mim substncia sob a forma dos deuses Shu e
Tefnut.( PAGLIA, 1992, p. 49).
49
O Estoicismo foi uma doutrina filosfica fundada, no sculo III ou IV a.C por Zeno de Ctio, que
prope viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferena ('apathea') em relao ao
que externo ao ser. Para o estico, segundo Braga (2008, p, 01), a emoo (pathos) no tem
absolutamente qualquer valor. Segundo os esticos, a emoo como por exemplo, a que decorre do riso
de uma criana no tem qualquer funo na economia geral do cosmos que providenciou, de modo
perfeito, a conservao e o bem dos seres vivos, porque a natureza deu aos animais o instinto e deu aos
homens a Razo.A emoo denota ignorncia, futilidade, estultcia, e no sinal de racionalidade, e por
isso, a emoo dever ser eliminada no sbio estico. A emoo uma doena. Por exemplo, o sbio
estico, nas suas relaes sexuais, deve despir-se de qualquer emoo, porque se trata de um acto fsico e
instintivo assim entendido racionalmente; assim, o sbio estico fornica a sua mulher como um boi vai
vaca (embora o boi ainda solte algum gemido).
27
Chau (1990, p. 35) considera cupiditas como desejo vido contra o appetitus, a inclinao natural de
autoconserva-se. Tal concepo partiria, segundo a autora, das idias de Ccero, na sua obra Tuslucanas.
Assim, as duas mais graves doenas da alma so a aflio crnica (aegritudo) e o desejo (cupiditas).
50
esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum
entre ns h de transgredir esta divisa (NASSAR, 1989, p. 56)
atravs da sua prpria concepo de que o corpo obscuro que Andr vai se
autodefinir como epiltico, possesso, convulso (pp. 41- 42); como aquele que traz o
demnio no corpo (p. 43): Era eu o irmo acometido, eu, o irmo exasperado, eu, o irmo
de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do
demo, e caros nos meus poros (p. 110); eu, o possudo, o tomado, eu, o faminto (p. 122).
Tal obscuridade tambm seria compatvel com a prpria idia do desejo, do
feminino, do noturno ctnico. Paglia (1992, p. 16) nos fala que o prprio dia invadido pela
noite daimnica28. Ou seja, que de dia somos indivduos sociais, todavia noite
submergimos no mundo dos sonhos, onde impera a natureza. Mesmo durante o dia, a noite
retorna em flashes que assombram nosso estado de viglia, para contrariar as tentativas de
virtude e ordem, dando a objetos e pessoas uma aura misteriosa que nos revelada pelos
olhos do artista. Temos ento em Lavoura arcaica a oportunidade de contemplar tal exemplo
com singularidade, quando nos deparamos com as palavras de Andr.
Retomando o mote de Paglia e relacionando-o com o livro de Nassar, vemos bem
como o culto ao dia foi uma inveno do homem civilizado, de tentar racionalizar uma
natureza que o amedrontava, deslocando seu olhar do solo (a Me-Terra pag, a natureza, a
noite e o daimnico) para o cu (o Sol - Amon-R, Apolo, Deus, a civilizao, o dia e o
divino). Assim, Andr
arcaicos como nos cultos para a Grande me, ressaltando o valor do corpo, da terra:
28
O daimnico, para Paglia (1989), constituiria no prprio sexo. Segundo a estudiosa, o termo vem do grego
daimon, que significa um espirto de divindade inferior a dos deuses do Olimpo. (...) dipo, expulso, tornase um daimon em Colona. A palavra passou a significar a prpria sombra do homem. O cristianismo
transformou daimnico em demonaco. Os daimons gregos no eram maus- ou melhor, eram ao mesmo
tempo bons e maus, como a prpria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud um domnio
daimnico. (PAGLIA, 1989, 15)
51
eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha sade perfeita e
sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a
igreja que freqentarei de ps descalos e corpo desnudo, despido como
vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti
num momento profeta de minha prpria histria, no aquele que ala os
olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurana sobre os
frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente
querer, e eu posso! (NASSAR, 1989, p. 89)
Dessa forma, concluimos que se a noite ainda assombra o homem moderno, este
nunca se desvencilhou tambm do desejo dos antigos de revelar os mistrios da natureza, da
obscura essncia humana, atravs da filosofia solar. No entanto, o noturno daimnico,
apesar de tantas tentativas de sublimao e denegao, permanece como resduo na
civilizao ocidental.
Em Raduan Nassar, portanto, o termo daimnico tanto cabvel quanto aplicvel,
afinal seu texto parece percorrer os resqucios remanescentes dos esticos modernos, em que
o apagamento da noite e seus conflitos decorrentes intentam se cristalizar em Lavoura
arcaica. Assim, Andr confessa: eu estava era escuro por dentro, no conseguia sair da
carne dos meus sentimentos (p. 16)
vlido ressaltar que na maioria das vezes que Andr remete ao corpo ou ao
desejo temos o contato direto dele com a terra, pois era no bosque que o protagonista:
escapava aos olhos apreensivos da famlia, amainava a febre dos meus ps na terra mida,
cobria meu corpo de folhas e, deitado sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta
de uma planta enferma vergada ao peso de um boto. (p. 31)
O ctnico fica tambm evidente em trechos como: (...) tirava as meias e com os
ps brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcanando abaixo delas a camada de
espesso hmus, e a minha vontade incontida era de cavar com as prprias unhas e nessa
cova me deitar superfcie e me cobrir inteiro de terra mida, (...) ( p. 32)
Desse modo, Andr no apenas vai desnudando os seus desejos, mas chama a
52
ateno de Pedro para aquilo que o pai tenta fazer com que todos escondam: o prprio corpo
da famlia. Se a prdica do pai falseava uma verdade, era no cesto de roupas sujas que o corpo
apresentava suas marcas:
(...) era preciso conhecer o corpo da famlia inteira, ter nas mos as toalhas
higinicas cobertas de um p vermelho como se fossem as toalhas de um
assassino, conhecer os humores todos da famlia mofando com cheiro
avinagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja;
ningum afundou mais as mos ali, Pedro, ningum sentiu mais as marcas da
solido, muitas delas abortadas com a graxa da imaginao (....) (p.45)
Xavier (2007, p. 179) tambm define a concepo de corpo liberado como aquele
que se liberta de esquemas predeterminados, coercitivos e repressores. Para ns, Andr
trilharia um caminho intermedirio entre o corpo liberado e o erotizado. Liberado, pois,
apesar da palavra imposta pelo pai, consegue realizar os desejos da sua libido. Erotizado, pois
narra as diversas sensaes provocada pelo desejo e realizao dos seus atos sexuais.
Defrontamos-nos tambm com um corpo erotizado como uma
investida em direo
29
vlido ressaltar que no so apenas os andrginos que se rebelam contra os deuses e so cortados.
Eles tinham os genitais para fora e geravam na terra. epois de voltados para a frente, eles puderam gerar
un no outro. Os seres do mesmo sexo se uniam e se saciavam por algum tempo para dar continuidade
vida. Os andrginos seriam, na verdade, inteirios e no duplos. (Nota sugerida pela professora Ana
Maria Pompeu em ocasio da defesa pblica deste trabalho.)
53
Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome explodi de repente num
momento alto, expelindo num s jato violento meu carnego maduro e
pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu
respiro, a minha lmina, meu arrepio, meu sopro, o assdio impertinente dos
meus testculos (NASSAR, 1989, p. 109)
Na obra Totem e Tabu, Sigmund Freud tece uma explicao para o incesto atravs de uma alegoria que
aborda exemplificaes inclusive do Parricdio. Lewis Morgan defendeu que a proibio de casamentos
entre parentes deu-se para evitar o nascimento de crianas com anomalias, frutos de relaes sexuais
54
Mas no foi pra fechar seus olhos que estendi o brao, correndo logo a mo
no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de
um lrio; e meu gesto impondervel perdia aos poucos o comando naquele
repouso quente, j resvalava numa pesquisa inslita, levando Lula a
interromper bruscamente seu relato, enquanto suas pernas de potro
compensavam o silncio, voltando a mexer desordenadas sob o lenol;
subindo a mo, alcancei com o dorso suas faces imberbes, as mas do rosto
j estavam em febre; nos seus olhos, ousadia e dissimulao se misturavam,
ora avanando, ora recuando, como nuns certos olhos antigos, seus olhos
eram, sem a menor sombra de dvida, os primitivos olhos de Ana!
(NASSAR, 1989, pp. 181-182)
Uma primeira abordagem dos textos do paulista Raduan Nassar pode levar a
crer que a representao das personagens femininas reforaria uma
perspectiva de depreciao das mulheres e de afirmao de uma pretensa
superioridade masculina. No entanto, no universo nassariano, a interao
masculino-feminino corresponde busca constante de um equilbrio por
natureza precrio.
55
Entre os sculos XII31e XVIII a Igreja identificava, nas mulheres, uma das
formas do mal sobre a terra. Tanto a literatura sacra, quanto a profana,
descreviam-na como um superlativo de podrido. Quer na filosofia, quer na
moral ou na tica do perodo, era considerada um receptculo de pecados. Os
mistrios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da lua, ao mesmo tempo
que seduzia os homens, repugnava-os. O fluxo menstrual, os odores, o
lquido amnitico, as expulses do parto e as secrees de sua parceira
repeliam-os. O corpo feminino era considerado como fundamentalmente
impuro. Plo negativo, portanto, na dicotomia com que era interpretado.
Mal magnfico, prazer funesto, venenosa e traioeira a mulher era acusada
pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a
morte. Pandora grega ou Eva judaica ela cometera o pecado original ao abrir
a caixa que continha todos os males ou ao comer do fruto proibido. O
homem procurava uma responsvel pelo sofrimento, o fracasso, o
desaparecimento do paraso terrestre e encontrou a mulher. Como no
desconfiar de um ser cujo maior perigo consistia num sorriso? A caverna
31
De acordo com Jacques Le Goff (1995: 89), no entanto, no sculo XII que a mulher comea a rebelarse. Nas palavras do historiador, no livro Os Intelectuais da Idade Mdia: existe nesse momento uma
forte corrente antimatrimonial. No mesmo momento em que a mulher se libera, quando no mais
considerada propriedade do homem ou mquina para fabricar crianas, quando no se pergunta mais
se ela tem alma, (...) o casamento se torna objeto de descrdito, tanto nos meios nobres (...), como nos
meios escolares, onde se constitui toda a teoria do amor.
56
32
Como explicam, Kramer e Sprenger (1995), sobre a atitude da Igreja a respeito das caas s bruxas:
(...) que via as mulheres como seres inferiores, naturalmente inclinadas ao engodo e bruxaria e
fabricadas pelo Criador como uma armadilha para que incorressem nos pecados da carne. Os
fanticos, tanto protestantes quanto catlicos, que levaram a cabo as grandes caadas s bruxas,
justificavam seus atos citando Moiss, que havia decretado: No deveis permitir que viva uma bruxa,
e So Paulo, que sustentava a mesma posio.. Assim, percebemos que a misoginia tem sua origem em
teorias religiosas.
33
Com o advento da Cavalaria e do culto de Maria se assiste mudana da idia da mulher e do amor. A
imagem da dama criada pelo clero subentrou naquela criada pela aristocracia e a relao de amor iniciou
a se modelar, segundo o cdigo de vassalagem feudal. Nasce a teoria do amor corts junto ao arqutipo
da dama corts e, se medido assim, a ponto de uma concesso positiva do amor, em que o desejo e a
paixo ertica no so negados, e a mulher vista como um ser superior dotado de plenos poderes sobre
o amante. (traduo nossa)
57
58
forma desigual na base familiar.34 Embora no possamos apregoar tal viso a todos,
incontestvel que vivemos sob uma ordem coletiva flica designadora de lugares, posies,
deveres e traos de identidade.
Sendo assim, as mulheres que conseguem subverter essa ordem tm que
construir alternativas entre as posies passivas que so oferecidas de ser me e esposa
virtuosas, moas ingnuas e romnticas, amantes apaixonadas ou histricas. claro que todas
essas opes esto dentro de um discurso fundado pelo homem, sua masculinidade e seu
trabalho ativo ser refletido pela passividade feminina.
Foi com a insero das mulheres no campo de produo e do trabalho, a partir da
modernidade, que elas passaram a construir uma identidade mais livre, atravs do
reconhecimento de atributos e capacidades que at ento eram ditos exclusivamente
masculinos. Desse modo as idias de autonomia do sujeito moderno impulsionaram a negao
da submisso, domesticidade atrelada a uma vida predestinada, desde o nascimento, ao
casamento e maternidade como nicas formas de realizao pessoal. A mulher passou a lutar
por liberdade e reconhecer o direito de livre-arbtrio. Portanto, ser mulher implicava a luta
contra algumas prerrogativas adensadas pela cultura, era preciso lutar por registros histricos
que reforassem a individuao do gnero, ou seja, o reconhecimento de que a mulher
tambm era um indivduo capaz de realizar trabalhos, estudar e no apenas ter e cuidar dos
filhos.
Em Raduan Nassar, principalmente, em Um Copo de Clera, vemos bem o
conflito entre essa tipologia de mulher que deseja ocupar e ocupa uma posio ativa na
sociedade e o homem ainda inadaptado a tal situao. Alis, conforme nos lembra Franconi
(1997, p.141): Na verdade, o discurso da mulher do texto de Raduan Nassar o discurso
34
Basta lembrar aqueles conselhos e bordes que os pais levantam: o homem tem que ser namorador e
a mulher recatada. Aquela mxima coloquial que diz que se um homem tiver muitas mulheres galinha e
a mulher muitos homens puta resume bem o pensamento de discriminao e aceitao do mesmo
comportamento por sexos diferentes.
59
que o homem tenta demolir, no porque o homem est contra a mulher, mas por ver nesse
discurso as falcias que levaram a civilizao ocidental a distanciar-se das leis que
governam a vida natural.
No entanto, ressaltamos que, dentro dessa vida natural, ainda preciso que a
mulher encontre o seu lugar prprio, num universo que no mais apenas masculino.
Tambm necessrio um recondicionamento de ajuste individual e cultural que desconstrua o
que a cultura imps psiquicamente, inclusive. Entretanto, apesar da aparente igualdade da
mulher no que concerne a liberdade do uso do corpo na atualidade, essa legitimao libertria
esbarra na imposio da beleza exigida pelo mundo masculino.
Por exemplo, no conto nassariano Hoje de Madrugada, este fenmeno
deflagrado pelo modo como o narrador cita a maneira como a consorte entra no ambiente,
desnudando a insatisfao dele frente viso do corpo feio dela. Leiamos um trecho do conto
em questo: (...) Descala, entrava aqui feito ladro. Adivinhei logo seu corpo obsceno
debaixo da camisola, assim como a tenso escondida na moleza daqueles seus braos,
enrgicos em outros tempos ( NASSAR, 1996, p. 56).
Em Lavoura arcaica, o discurso de Andr, o protagonista, deflagra a clera como
uma forma de desespero ante a interdio do seu desejo em relao irm. J em Um Copo de
Clera, o casal, que protagoniza a novela, se percebe reduzido hostilidade fundamental da
diferena sexual, ao silncio dos corpos que se atraem e repelem, como lembra PerroneMoiss (1996, p. 63). O homem ento nota que a insatisfao sexual da mulher pode ser a
causa da hostilidade, ou seja, o desejo feminino onde esbarra a condio do macho. Ambas
as situaes se assemelham ao que nos remete Paz (1999, p. 47) sobre o erotismo e a condio
individual e social que este acarreta:
60
segundo tratado Da Beleza Inteligvel: onde estaria o belo privado de ser e o ser privado da
beleza? Perder beleza tambm perder o ser. E essa razo pela qual o ser objecto de
desejo, porque ele idntico ao belo e o belo amvel, porque ele o ser. (p. 152).
Assim, tambm deslocando uma terminologia hegeliana, poderamos afirmar que a
personagem nassariana est na categoria do sendo, em detrimento de constituir-se um ser
ideal em si. Para tanto, a mulher, sendo desprovida de beleza, estaria anulada no apenas na
sua condio de forma, mas tambm na sua essncia do ser, ou seja, na sua identidade.
De acordo com Schimitt (1995), a base da teologia moral da Igreja no perodo da
Idade Mdia estaria nas trs virtudes promulgadas pelo apstolo Paulo f, esperana e
caridade. Adicionado a isso, temos as quatro virtudes que, de acordo com Ccero (1991), em
On Duties, compem a beleza moral:
Lembramos aqui, por exemplo, do mesmo fenmeno apresentado no romance libertino Teresa Filsofa,
de autor francs annimo. Nas pginas do livro, encontramos a narrao baseada na educao sexual de
uma mulher de classe econmica baixa, por um padre. Tal educao certamente divergia daquela das
meninas ricas.
62
homem.
Camille Paglia (1992) remete-nos ao deslocamento das representaes do objeto
que era belo na pr-histria daimnica e a eleita pelo mundo ocidental apolneo, no seu
livro Personas Sexuais. Para tanto, guisa de exemplificao, evocamos duas imagens
reproduzidas na obra de Paglia: a Vnus de Willendorf (30.000 a.C) e a rainha egpcia
Nefertite (1350 a.C). A primeira a me-natureza, a deusa-me, gorda, disforme em seus
seios fartos, ventre exageradamente avantajado. A segunda representa j o perfil da mulher
padro do mundo ocidental: elegante, ornamentada com maquilagem e jias, com um qu de
semblante masculino, no-materno, que ao mesmo tempo atrai, fascina e, entretanto, impe
medo.
63
Andr parece ainda reconhecer esse belo materno, enaltecendo em vrias partes o
ventre, em que est deitado, da me. At mesmo a voz, provinda daquele templo sagrado,
ressalta essa idia de sacralidade. Assim sua Grande Me sagrada vai emanar toda a sua
divindade at mesmo nos gestos mnimos da convivncia:
64
vazada por vitrais, vem, corao, vem brincar com teus irmos. (NASSAR,
1989, p. 27)
36
havia a preocupao com os bens do casal em caso de separao, situao esta em que a
mulher ficava com a casa e com os filhos. A poligamia masculina era permitida, porm no
era to freqente acontecer, pois manter uma nica mulher egpcia j era dispendioso demais,
36
Vale ressaltar que, no Brasil, tal direito s foi conquistado na dcada de 70 e, alm disso, as mulheres
divorciadas eram estigmatizadas socialmente at pouco tempo atrs.
65
devido s responsabilidades financeiras que o homem tinha para com sua esposa.
Quanto vida sexual das sditas do fara, a egiptloga Margaret Bakos (apud
GIMENEZ, 2003) disse no ter sido encontrado ainda, por arquelogos, qualquer referncia
nos papiros que versasse sobre virgindade ou o sexo como um ato meramente com fins
procriativos. Entretanto, sabe-se que aquele era um povo consciente de seus prazeres, no
vendo o sexo como tabu e no sendo tmido em relao ao ato sexual no mbito familiar,
embora no falassem publicamente sobre o assunto. As mulheres casavam cedo, geralmente
pouco tempo antes da menarca, porm sem que isso indicasse que elas no eram sexualmente
ativas antes do casamento.
Apesar do grande desenvolvimento que os gregos alaram na poltica, filosofia e
artes em geral, ficaram aqum da civilizao egpcia quanto aos direitos concedidos s
mulheres, mesmo quando analisamos isoladamente a cultura das duas principais cidadesestado gregas: Atenas e Esparta.
Ora se, para Aristteles, a virtude um hbito, as mulheres atenienses eram to
virtuosas quanto man(tivessem) o hbito de serem submissas ao pai e, posteriormente, ao
marido, costume que foi exemplarmente vivificado na obra musical do cantor e compositor
Chico Buarque de Hollanda: Mulheres de Atenas. Em tal msica, vemos a condio de
servilidade total do feminino, arquetipicamente arraigada na cultura ocidental: vivem por
seus maridos, orgulho e raa de Atenas (...) elas no tm gosto ou vontade nem defeito nem
qualidades, tm medo apenas.
Era do mundo masculino a sociedade ateniense. A mesma cidade que carregava o
lema do prazer de viver dava s mulheres o bordo de que o trabalho das mulheres era a
roca e no o debate. Ao gnero feminino reservavam-se as funes domsticas, o reduto da
casa e do silncio37 (um dos predicados mais apreciados pelo pai e marido atenienses). Os
37
Em Lavoura arcaica notamos que as mulheres quase nunca falam. Da personagem Ana, por exemplo, o
66
casamentos, como no poderia deixar de ser numa sociedade como aquela, eram arranjados
para as adolescentes que passavam ao domnio total do marido, aps as npcias.
Usa-se a expresso vida espartana como sinnimo de vida dura, no entanto,
em relao s outras cidades-estados, as mulheres espartanas gozavam de maior liberdade que
outras: podiam participar de reunies pblicas, praticar ginstica e competir em jogos,
tambm tinham o direito de administrarem o patrimnio da famlia junto com seus esposos.
Desde a infncia, as meninas espartanas recebiam uma educao que as
preparavam para serem esposas e mes de guerreiros, j que a cidade vivia permanentemente
em ao militar. J que a educao visava formao de soldados, as mulheres eram treinadas
fsica e psicologicamente para resistirem s adversidades em situaes de guerra. Em
consequncia, havia uma maior valorizao do corpo.
na mitologia que vemos de forma mais significativa prottipos da Mulher
Ideal grega e, por que no dizer, ocidental. As musas, por exemplo, encarnam a imagem da
mulher que inspira, consola nas horas tristes, cuida das feridas psquicas dos seus
pretendentes. Essas mulheres idealizadas representam, no inconsciente masculino, o tabu das
virgens inacessveis que acalentam os sonhos dos homens que tentam desbrav-las.
Outras representantes da Mulher Ideal so as Ninfas, personificaes das foras
vivas da natureza atreladas a uma fora fertilizante. Eram veneradas nos Ninfeus, locais de
prazer rodeados por jardins, constantemente associados s termas e aos palcios, construdos
pelos atenienses e posteriormente pelos romanos. Podemos associar as ninfas ao mito da
beleza lancinante das mulheres modernas e contemporneas, alm da imagem dbia da
outra que nutre e assombra o imaginrio masculino.
Obviamente, dentre os prottipos de Mulher Ideal, no poderia faltar o nome de
Hera, a protetora da maternidade e do casamento, esposa de Zeus. Talvez se possa afirmar que
leitor no encontra sequer uma frase pronunciada por ela, durante toda a narrativa.
67
Hera foi um dos primeiros smbolos de mulher passiva e abnegada (posio esta s quebrada
por constantes perseguies s rivais e descendentes de Zeus, frutos das infidelidades do
marido - e no perseguio ao esposo diretamente).
Lembramos que, segundo o mito, a deusa desposou o irmo Zeus aps ter
sentido tanta vergonha por ele t-la violentado que o aceitou como marido. A submisso de
Hera38 s ento legitimada no episdio mitolgico da punio de Zeus esposa, quando ele
a deixa suspensa no cu com uma corrente de ouro em cada p, presos por uma bigorna,
libertando-a somente aps for-la a prometer submisso. Isso ocorre aps Zeus ter sido
libertado por Briareu e seus cem braos, a mando da nereida Ttis que temia uma guerra entre
os deuses, pois haviam sido estes os autores da priso do deus, em tiras de couro, a fim de
impedi-lo de ir ter com os mortais e trair Hera.
Em Lavoura arcaica, encontramos os trs tipos de mulheres ideais gregas. Ana
representa a musa inacessvel que acalenta os delrios de Andr, como podemos comprovar
com a leitura do trecho abaixo:
Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome explodi de repente num
momento alto, expelindo num s jato violento meu carnego maduro e
pestilento, era Ana a minha enfermidade, e a minha loucura, ela meu
respiro, a minha lmina, meu arrepio, meu sopro, o assdio impertinente dos
meus testculos.(NASSAR, 1991, p.109)
As Ninfas estariam presentes quando Andr vai aos locais de prazer encontrar
prostitutas, ao narrar o significados dos souveniers remanescentes de suas aventuras sexuais:
(...) este trapo no mais que o desdobramento, o sutil prolongamento das unhas
sulferinas da primeira prostituta que me deu, as mesmas unhas me riscaram as costas
exaltando minha pele branda, patas mais doces quanto corriam minhas partes pudendas (...)
38
De acordo com Maria ngeles Rodriguez, no artigo El male tiene nombre di mujer: Del olimpo a la
Meca del cine, Hera , na verdade, um exemplo de femme fatale, pois, diante das infidelidades de
Zeus, mostrava-se ciumenta e vingativa com as amantes do seu marido e com aqueles que no
satisfaziam os seus desejos.
68
(p. 71)
Hera seria representada pela me, o smbolo de maternidade e submisso
patriarcal. Num sistema paternalista, como caracterizado em Lavoura arcaica, a me
apresenta-se passiva e abnegada.
Quanto representao da mulher feia, Mireille Dottin-Orsini (1996) dedica-se ao
que chamou de a ascenso da carnia39, lembrando-se das esculturas medievais que
representavam de um lado uma mulher bonita e, do outro, a mesma figura feminina
deteriorada e plena de vermes. Tal escultura tinha funo religiosa de remeter ao perdo e
brevidade da vida, inicialmente. Mas, conforme cita na pgina 42:
Erigir e lembrar o lado feio, seja a nvel fsico ou psicolgico da mulher, reflete a
necessidade do discurso masculino em ostentar seu domnio, atravs de uma imagem de
deteriorao.Desse modo, parece-nos que o homem criou meios para dominar a mulher como
uma espcie de modo de vingar-se ou expiar-se da inveja do tero. Muraro e Boff (2002)
fala-nos da inveja do ventre, Dottin-Orsini de vingana masculina e Paglia cita o medo
masculino inconsciente que ainda perdura ao nos remeter ao mito da Vagina Dentada, qua
abordaremos no prximo captulo. Afinal a mulher quem devora o homem no ato sexual.
39
Segundo RODRIGUES (1999), para os medievais, a putrefao era continuidade da vida. Durante tal
perodo, eram comuns a existncia de corpos em putrefao em casa, por exemplo.
69
Esses eram nossos lugares mesa na hora das refeies, ou na hora dos
sermes: o pai cabeceira; sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro
Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; sua esquerda, vinha a me, em
seguida eu, Ana, e Lula, o caula. O galho da direita era um desenvolvimento
espontneo do tronco, desde as razes; j o da esquerda trazia o estigma de
uma cicatriz, como se a me, que era por onde comeava o segundo galho,
fosse uma anomalia, uma protuberncia mrbida, um enxerto junto ao
tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a
disposio dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas
linhas da famlia. (NASSAR, 1989, p. 157).
Alves da Silva (s.d, p. 01) faz uma anlise a respeito dos significados dos nomes prprios em Lavoura
arcaica: Na Bblia, Andr o irmo de Pedro e ambos filhos de Joo. No texto, o mesmo acontece, sendo
que a correspondncia nomes bblicos/nomes de Lavoura arcaica se verifica de forma bastante clara no
tocante aos nomes dos irmos, Pedro e Andr (do grego Andras, viril, varonil, pelo latim Andreas).
Andr tambm o nome do primeiro apstolo, irmo de Simo Pedro (Do latim Petru-, este do gr. Ptros
(S. Mateus, IV, 18), traduo aproximada de voc. Aramaico, Cep(h)as, que significa rochedo; em gr.
Petros significa igualmente rochedo, petra em lat) cujo pai chamava-se Joo, sendo o nome da me,
tradicionalmente, Joana. Enquanto Andr o viril, forte, vigoroso e potente, carregando no nome
qualidades relativas ao homem e, mais ainda, ao heri, Pedro a pedra, smbolo da fora. E os dois so
filhos de Joo, nome que consta no texto bblico, mas que, em Lavoura arcaica recebe o tratamento Iohna,
que parece ser a forma hebraica para Joo. (Do hebr. Iohanan, com vrias interpretaes que Deus
favorece, agraciado por Deus, O senhor deu graciosamente, a quem Deus mostra a graa). Embora
o nome da me no aparea textualmente - o que nos leva a pensar numa falta de identidade -, podemos
aceitar que o fato de o pai chamar-se Joo faz com que, tradicionalmente, a me seja Joana, reconhecendo,
neste procedimento, a identificao da me embutida na do pai ou, por ser apenas designada como me,
sem nome, cumpre o trajeto simblico da grande ME.
70
Lembrando do que nos diz Philippe Aris (1973), , a partir dos sculos XV e
XVI, que o sentimento de famlia comea a se desenvolver, juntamente com um novo olhar
em relao criana, no muito considerada durante a Idade Mdia. Obviamente, seria
errneo pensar que a famlia no existia propriamente, porm podemos enfatizar que, naquela
poca, a vida pblica e as relaes sociais se confundiam e se mesclavam ao ambiente
familiar. Ou seja, o que no se observava era a viso da instituio familiar como algo
privado, reservado intimidade. Por exemplo, em tal perodo o que existiam eram as casas
abertas, concebidas para possibilitar a entrada e a sada de diversas pessoas, onde cmodos
comuns no permitiam muitos momentos ntimos.
De acordo com Aris (1973), A vida profissional e a vida familiar abafaram essa
outra atividade, que outrora invadia toda a vida: a atividade das relaes sociais. (p. 274) A
preservao da famlia parte da vida social, como uma idia conjugada entre a intimidade e
o privado, uma inovao substancialmente da classe burguesa. A partir do alargamento
dessas noes modernas, temos tambm o desenvolvimento da idia de individualismo. Em
Lavoura arcaica, Andr ser tambm quem mais vai defender o individualismo como um
meio de combater a famlia.
72
No trecho acima, podemos ver que na idia de Amor apresentada por Pedro no
cabe o desejo. O afeto estaria restrito aos costumes familiares relativos a um comportamento
de permanente tenso, sublinhado pela viglia e pelo cuidado. Tais procedimentos em prol de
um comportamento prudente estaria cosolidado num dever dentro das normas familiares: era
esta pelo menos a parte que cabia a cada membro. Obrigao exigida de tal modo que, se
um membro no cumprisse com o estabelecido pela palavra do pai, o preo seria a runa de
toda a famlia. De acordo com as palavras de Andr : quanto mais estruturada (a famlia),
mais violento o baque, a fora e a alegria de uma famlia assim podem desaparecer com um
nico golpe (NASSAR, 1989, p. 28)
Segundo Andria Delmaschio (2004), dentro do contexto de Lavoura arcaica, a
manunteno de Andr no interior da famlia relaciona-se com uma ligao constante e
ordenada com a terra, possibilitando o procedimento das relaes afetivo-sexuais com a irm
Ana, e ao mesmo tempo remetendo-se, sempre, ao centro da famlia:
73
No entanto, para Andr, o amor pregado pelo pai no interior da famlia que
massacra e aniquila os sujeitos envolvidos nas relaes sociais familiares. Assim, a carga
afetiva que, no sendo aquela provinda da me, portada por Pedro apresenta-se como malfica
e indesajada. Nos dizeres de Andr: (...) e eu senti a fora poderosa da famlia desabando
sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia ns te amamos muito, ns te
amamos muito (NASSAR, 1989, p. 11)
As relaes afetivas so condicionadas41, na obra de Raduan Nassar, a partir de
41
Para Freud, os afetos e as representaes no esto definidamente ligados. O afeto sempre tem uma
coerncia, mas vai passando de representao em representao. Uma coisa insignificante pode ser
investida de uma carga afetiva espantosa, porque associada a algo. O afeto se separa, s vezes, da
representao original que o justificava e se desloca para uma representao indiferente e incompreensvel.
Em Lavoura arcaica, Andr parece deslocar seu amor da figura da me para a irm Ana. Da mesma forma,
o narrador de Um Copo de Clera v na sua companheira comportamentos maternos.
74
um pacto primordial, principalmente dos protagonistas, com o corpo, um dos fatores mais
relevantes para a constituio da identidade individual daqueles. Tambm vlido ressaltar
que as questes relativas alteridade parecem desenvolver-se a partir do valor transgressor e
litigante da palavra, pois esta tanto serve de instrumento como meio para o desenrolar das
aes nas narrativas.
75
Ticiano associa nesta obra estes trs tempos idia de Prudncia, ou com
as trs faculdades psicolgicas em cujo exerccio essa virtude - a prudncia se manifesta, a saber: a memria, que lembra e aprende o passado; a
inteligncia, que julga e age no presente; e a previdncia, que antecipa e
prov para ou contra o futuro. A subordinao destas trs faculdades da
Prudncia aos trs modos do tempo que representam a Tradio Clssica
de concepo do mundo.
Desde o sculo VI, com o tratado formulo vitae honestae, do Bispo espanhol
Martim de Bracara, encontramos a Prudncia como uma qualidade necessria figura do
bom conselheiro, dentro do conjunto de representaes que caracterizam a Tradio
Clssica. Desse modo, o presente, o passado e o futuro so levados em considerao,
medida que, a partir da anlise de precedentes passados, podemos prever as conseqncias
futuras de um problema presente: Assim, Ticiano se auto-retrata enquanto esta figura do
76
deteriorando naturalmente.
No entanto, de acordo com Andr, Pedro est enganado sobre a origem dos males
da famlia percebendo os acontecimentos de uma forma atrasada:
A nossa desunio comeou mais cedo do que voc pensa, foi no tempo em
que a f me crescia virulenta na infncia e em que eu era mais fervoroso que
qualquer outro em casa eu poderia dizer com segurana, mas no era a hora
de especular sobre os servios obscuros da f, levantar suas partes devassas,
o consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volpia e os
tremores da devoo. (NASSAR, 1991, p. 26)
Tanto o pai como Pedro no so capazes de acolher Andr. Estando do outro lado
da mesa e pertencendo a outra diviso da famlia, o protagonista de Lavoura arcaica se
condena, no apenas pelas conseqncias do uso do seu corpo, mas pela sua linguagem
impositiva e rebelde:
passado.
A relao entre os irmos, dentro do imaginrio das culturas, sempre foi tema para
a reflexo da humanidade, principalmente enfocando disputas por poder ou por afeto. No
seria, por exemplo, necessrio lembrar o caso bblico de Caim e Abel, a narrativa egpcia
sobre os irmos Osris e Seth ou a grande complexidade das ligaes fraternas no contexto da
mitologia greco-romana.
Dentro do panorama literrio, temos, a partir da infncia com os Contos de Fadas,
contato com as narrativas de rivalidade ou indiferena dentro das chamadas fratrias. Como
observam Guimares e Galvo (s.d): O subsistema fraternal envolve pessoas que no
tiveram a opo de escolher por este convvio, sendo levadas, obrigatoriamente, a viverem
juntas. Por mais que no desejem esta relao, no conseguem se divorciar, os laos
fraternais so eternos assim como os vnculos parentais. (p. 3)
Sendo o resultado de uma intimidade imposta, em uma relao fraterna
podem tanto emergir sentimentos agradveis quanto aqueles desencadeadores de conflitos, j
que a convivncia, ao mesmo tempo em que pode nortear a cumplicidade e a solidariedade,
serve como primeiro laboratrio competitividade, ao cime e rivalidade.
De acordo com Maria Consuelo Passos (2007), em A constituio dos laos na
famlia em tempos de individualismo, os laos de afeto so princpios que servem de
referncias aos indivduos e que permitem construir uma concepo de famlia. Os elos
afetivos tambm constituem e sustentam as relaes internas e externas dentro do contexto
social. No interior da famlia, a criao dos laos depende de um processamento psquico
cujo dispositivo central uma economia de investimentos libidinais, dos quais decorrem os
lugares e as funes de cada membro, indispensveis ao processo de subjetivao.
Sobre a constituio dos laos, a existncia de uma base familiar equilibrada o
resultado da maneira como os membros individuais do grupo se comportam entre o contexto
79
subjetividade que
4.3 - Ana: nuances ambguas entre uma femme fatale e uma mulher
sacralizada
Em A carne, a morte e o diabo na literatura romntica, no captulo A bela
dama sem misericrdia, Mrio Praz (1996) caracteriza a tipologia da mulher que habita a
fantasia masculina na segunda metade do sculo XIX. Ele nos lembra da
lenda
80
vamprica, a figura da Mulher Fatal que encarna, de tanto em tanto, em todos os tempos
em todos os pases, um arqutipo que rene em si todas as sedues, todos os vcios e
todas as volpias (p. 196). Tais palavras se aproximam muito do que narra Andr sobre
Ana:
Ela sabia fazer as coisas, essa minha irm, esconder primeiro bem
escondido sob a lngua a sua peonha e logo morder o cacho de uvas que
pendiam em bagos tmidos de saliva enquanto danava no centro de
todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando
gritos de exaltao. ( NASSAR, 1989, p. 31)
81
No artigo El mal tiene nombre de mujer: del Olimpo a la Meca del Cine, Maria
ngeles Cruzado Rodrguez afirma que, apesar do mito da mulher fatal ter nascido no sculo
XIX, as suas razes seguem um rastro deixado por uma grande quantidade de representaes
femininas na Histria da Arte e da Cultura, que tm origem na Grcia Clssica, fonte do
imaginrio coletivo da sociedade patriarcal:
42
A primeira foi enviada ao mundo como castigo, depois que Prometeu roubou o fogo do Olimpo para
d-lo aos homens. Pandora possua uma impressionante beleza e uma curiosidade excessiva, que a levou
a abrir a caixa que ele lhe havia entregado Zeus, com todos os males que hoje aflingem o mundo. Eva
tambm tentou com sua formosura para que ele comesse do fruto proibido, e as conseqncias de sua
conduta desobediente so de sobra conhecidas. ( traduo nossa)
82
A autora lembra-nos outras figuras mitolgicas como exemplos de mulheres fatais. Uma seria Circe
que, depois de matar seu companheiro para reinar sozinha, foi para a Itlia onde se dedicou a atrair e
encantar os marinheiros para roub-los e transform-los em bestas. Tambm temos as Sereias seduzindo
com seus cantos os marinheiros que, confundidos, se chocavam contra os recifes. Na Mitologia Grega,
Rodrguez ainda cita Medusa, Media, Jocasta e as amazonas, como exemplos de femmes fatales.
83
Atravs das figuras de Eros e Thanatos, a mitologia grega legou-nos a alegoria correspondente vida e
morte. Eros, antes de ser meramente a representao do desejo sexual, ele consiste no anseio de viver,
no mpeto de vida, enquanto Thnatos consistiria no instinto de morte.
45
84
Portanto, podemos afirmar, a partir dos trechos lidos, que a personagem Ana
uma mulher fatal, pois Andr a caracteriza como uma mulher maliciosa, lasciva: cheia de
meiguice, mistrio e veneno nos olhos de tmara (p. 191). Uma dama que sabia esconder
seu veneno, que enfeitiava: mas meus olhos cheios de amargura no desgrudavam de
minha irm que tinha a planta dos ps em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de
mim...(p. 33).
Ressaltando o ambiente dionisaco de msicas e de vinho, Ana, em outro trecho,
caracterizada por Andr como um demnio verstil, uma mulher calculista e impiedosa ao
realizar o seu ritual de seduo. Sublinhando a conscincia de Ana em relao aos
movimentos que ela executava, o irmo chega a afirmar repetidamente haver a certeza de ser
o nico pblico-alvo a quem ela dirigia seu espetculo:
A meno de partes amputadas do corpo de Andr apenas se d, aps o episdio da rejeio de Ana na
capela, depois da concretizao do incesto. atravs dessa imagem que temos um Andr despedaado
sem a possibilidade de concretizar novamente seu amor pela irm e seu desejo carnal, podendo significar
ainda uma perda simblica da atividade sexual, uma espcie de castrao. Segundo Michel Onfray, em A
Arte do Prazer: por materialismo hedonista, a perda real ou simblica da atividade sexual uma idia
antiga: O gosto pela castrao sagrada consubstancial ao desejo: da Grcia antiga ndia
contempornea, em que essas prticas ainda existem, os apreciadores da assexualidade expressam em tal
gesto simblico a recusa do corpo, da carne, da sexualidade e todo o desprezo que tm pelo desejo. Para
no recorrer ao gesto mutilador, os cristos fizeram, mesmo assim, seu o voto de Orgenes: matar o
desejo, extirp-lo de si e tentar domin-lo. (p. 162). Entretanto, Andr diz ver as suas partes amputadas,
demonstrando o que o filosfo Orgenes compreendeu: no se acaba simplesmente com a carne e no
apenas o corpo o responsvel pelo desejo.
85
certo do que nunca, de que era para mim, e s para mim, que ela danava.
(NASSAR, 1989, p. 190)
Outro fato paradoxal que o homem, quando uma mulher se entrega a ele
com muita facilidade e de modo desabrido, tem a impresso de que ela o faz
por clculo, ou por um motivo, isto , que age como uma prostituta. A
expresso pejorativa puta quer dizer afinal que ela finge, que engana, que
usa sua sexualidade com fins no erticos. No nos esqueamos de que, para
o macho, o prazer sexual um fim por si mesmo. A idia de que usado
com outra finalidade o perturba. A idia de que a excitao ertica possa ser
simulada o inquieta. Por que ele no pode fazer isso, porque nele a ereo
uma prova que no pode falsificar. (ALBERONI, 1986, p. 61)
47
Conforme nos foi lembrado pela Professora Ana Maria Pompeu da Universidade Federal do Cear, na
Teogonia de Hesodo, a Terra fabrica uma foice dentada que castra Urano atravs de Crono.
86
87
Sobre as leis naturais, Camille Paglia (1992) afirma que um tema recorrente que
tem assombrado os sonhos da humanidade nos dias atuais a fria da natureza. Para a
estudiosa americana, por mais que o homem construa e se proteja em civilizaes, ele
sucumbe s intempries dessa fora incontrolvel. Segundo Paglia (1992, p.17), a vida
civilizada exige um estado de iluso permanente. Isso fica mais evidente quando percebemos
o quanto essa iluso subvive no nosso cotidiano, quando nos abstemos de falar de sexo e de
morte, ou seja, quando estamos prximos de nos reconhecermos como parte do conjunto da
natureza.
Entretanto, cabe relembrarmos que Ana representa o diablico, enquanto que, a
me, apesar da idolatria de Andr, tambm arrolada numa esfera de culpa em relao ao
incesto. Assim nas palavras do protagonista: se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da
casa um templo, a me, transbordando no seu afeto, s conseguiu fazer dela uma casa de
perdio (NASSAR, 1989, p. 136).
Em meio ambigidade, Andr pede ao Deus cristo um milagre para realizar o
ato sexual incestuoso com a irm, contrariando no apenas os preceitos do pai, mas aqueles
tradicionalmente cristos: (...) um milagre, um milagre, meu Deus, eu pedia, um milagre e
eu na minha descrena Te devolvo a existncia, me concede viver esta paixo singular fui
suplicando (...) (p. 104). Para o narrador de Lavoura arcaica, a questo do desejo sagrado e
Ana, por conseguinte, apresentada como sacralizada no momento da consumao do
incesto, no captulo 20, onde nos revelado que a lavoura (como j sublinhava Camille
Paglia) o corpo:
(...) e era, Ana a meu lado, to certo, to necessrio que assim fosse, que eu
pensei, na hora fosca que anoitecia, descer ao jardim abandonado da casa
velha, vergar o ramo flexvel de um arbusto e colher uma flor antiga para os
seus joelhos; em vez disso, com mo pesada de campons, assustando dois
cordeiros medrosos escondidos nas suas coxas, corri sem pressa seu ventre
humoso, tombei a terra, tracei canteiros, sulquei o cho, semeei petnias no
88
48
Como lembra o professor Bastista de Lima, em palestra realizada na Universidade Estadual Do Cear
no I Encontro Nacional de Literatura de Fortaleza em novembro de 2005: No sem razo que Eros se
liga a Thnatos. Essa grande proximidade da criao com a destruio, essa intimidade entre os
extremos, culmina com o desfecho em que a primeira parte do corpo a se decompor, aps a morte, seja
a dos genitais. A morte comea sua devastao exatamente por onde Eros iniciou a sua construo.
Interessante tambm que, para os antigos egpcios, um dos amuletos mais usados pelos cidados era a
imagem do escaravelho, smbolo da fertilidade que poderia nascer at dos ambientes mais grotescos: de
excrementos e de morte.
89
Conforme j foi dito, lembramos que, segundo Maria ngeles Rodriguez, Jocasta tambm uma
mulher fatal. A explicao se daria ao observarmos que a me de dipo, mesmo sendo uma vtima do
destino na trajetria incestuosa com o filho, ela poderia tambm ser apontada como a causa da runa e
da tragdia.
91
quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados com os olhos amplos e
aflitos(p. 32), ento nos revelado que se trata da me mais adiante em vem, corao, vem
brincar com teus irmos, e eu ali, todo quieto e encolhido, eu s dizia me deixe, me, eu
estou me divertindo (p. 33).
Pimentel Teixeira (2002, p. 19) ressalta que seja mesmo o incesto com a irm Ana
um acontecimento que talvez represente a concretizao do possvel e ambguo sentimento
em relao me e a grande oposio ordem e aos preceitos paternos. Para tanto, vemos
o uso das mesmas expresses tanto para a me, quanto para Ana, como por exemplo: e eu
ento baixava a cabea e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e
se tornavam lentos e pesados, amassando distantamente as folhas secas sob os ps e me
amassando confusamente por dentro (p. 33).
Apesar da desconfiana que as descries feitas por Andr (visto que o
personagem encontra-se num rol de contradies constantes) nos incita como leitores, Ana
pode sim ser considerada um exemplo de femme fatale medusina. A medusa um outro item
mitolgico recorrente, principalmente na histria da arte. Podemos contempl-la, por
exemplo, numa mtopa do templo C em Selinus, na Siclia, num alto-relevo de 550-40 a.C.
Ou ainda de uma forma mais cristalizada numa escultura de Benvenuto Cellini de 1540 d.C,
feita para uma praa da Florena renascentista, a qual tinha a difcil misso de substituir a
obra Davide de Michelangelo. Alis, no tocante a essa obra intitulada Perseu com a cabea
de Medusa, podemos afirmar que tem traos hbridos, tanto do Davide de Donatello, quanto
da escultura homnima de Michelangelo.
93
6. Perseu com a cabea de Medusa de Benvenuto Cellini (1540 d.C) Foto nossa.
94
(...) eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sbia que a
sabedoria do pai (...) e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmdico,
obsessivo, virando a mesa dos sermes num revertrio, destruindo as trevas,
ferrolhos e amarras, tirando no obstante o nvel, atento ao prumo, erguendo
um outro equilbrio, e pondo fora, subindo em altura, retesando sobretudo
meus msculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o
animal, cascos, mandbulas e esporas,(...), eu, o epiltico, o possudo, o
tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma
96
Estou morrendo, Ana, eu disse largado numa letargia rouca, encoberto pela
nvoa fria que caa do teto, ouvindo a elegia das casuarinas que gemiam com
o vento e ouvindo ao mesmo tempo um couro de vozes esquisitos, e um
gemido puxado de uma trompa, e um martelar ritmado de bigorna, e um
arrastar de ferros, e surdas gargalhadas, estou morrendo(...) (NASSAR,
1989, p. 129)
97
do corpo contra o domnio do pai. Andr questiona o valor da palavra, mas tambm por
meio dela que ele faz uso do discurso mais um instrumento para a seduo, conforme veremos
mais a frente quando o personagem tenta convercer a irm da legitimidade do incesto.
Para Carneiro Ramos (2006, p.16):
99
associadas de uma maneira tal que no se possa dizer que um dos elementos erotismo ou
reflexo filosfica seja secundrio.
Cremos que tal discusso acima cabvel dentro do propsito deste trabalho, visto
que atravs da idia de libertinagem, que o filsofo tambm o provocador ertico. Ora
transforma
libertinagem
em
fico
para
poder
ir
alm
da
ideologia
do
momento, ora transforma a fico em reflexo filosfica, segundo Novaes (1999, p. 09).
No artigo Libertinagens da Fico Medicina (2006), Mrcia Abreu traa
caractersticas de romances e comportamentos libertinos na passagem do sculo XVIII para o
XIX, em Portugal e no Brasil. Demonstrando as dificuldades de definio, atravs de recortes
no campo semntico de palavras como Licenciosidade, libertinagem e lascvia,
encontramos um panorama que vai da moral religio, da poltica ao sexo. (2006, p. 01).
Assim, segundo a pesquisadora, uma primeira definio seria encontrada no
Diccionario da Lngua Portugueza, de Antonio de Moraes Silva, de 1813, que enfatizaria o
uso da razo para o exame de questes religiosas, recusando uma compreenso dogmtica da
doutrina religiosa revelada por Deus aos homens. (ABREU, 2006, p. 01).. Em tal definio
estaria a explicao de que o vocbulo libertino se aproximaria de licencioso. Em relao a
liberdade, Abreu assevera que:
o carter negativo de tais assuntos era to extremo que desonestidade e libido surgem no
mesmo campo de sinonmia. No entanto, de acordo com Abreu (2006, p. 02): Seguramente,
possvel imaginar certa independncia entre esses termos e entre as prticas a que eles
remetem, concebendo-se, por exemplo, um comportamento poltico contestador associado
prticas sexuais pudicas, ou vice-versa.
Ainda em relao aos vocbulos libertino, licencioso e lascivo, a pesquisadora nos
assegura que quando tais adjetivos so associados ao substantivo romance, este designa um
conjunto relativamente amplo e no inteiramente uniforme de narrativas. De tal modo que
ainda segundo a autora:
Assim sendo, o discurso concreto nada mais implica que uma iluso. , ele
prprio, abstrao lquida, cabvel na forma que o sujeito autor e/ou leitor - o colocar.
Lavoura arcaica, possuindo traos de tragdia, comunga tambm com a acepo
de Jean-Pierre Vernant (apud LEMOS, 2007, p. 03) de que a tragdia abre ainda um lugar
para a ambigidade, pois ela no busca demonstrar a absoluta verdade de uma tese, mas
construir discursos duplos. Duplo, esse, que vemos fortemente caracterizado na fala de
Andr em seu questionamento sobre a verdade.
De acordo com Ramos (2006), a ambigidade de Andr reafirma e refora sua
subjetividade, pelo carter questionador da personagem, atravs da construo potica, que
talvez no encontrasse vazo apenas atravs da prosa tradicional. (p.75). A utilizao de
metafras e a dubiedade do que proferido por Andr confronta o arcasmo existente no
ambiente familiar, marcado pelo controle patriarcal refletido no corpo, porm, no como
prazer, mas como marcas de punio fsica:
50
interessante lembrar que no texto de Gnter Lorenz (1991), Dilogo com Guimares Rosa, temos a
seguinte afirmao de Guimares Rosa que se assemelha ao pensamento barthesiano: (...) Hoje, um
dicionrio ao mesmo tempo a melhor antologia lrica. Cada palavra , segundo sua essncia, um
poema. (...)Um dicionrio no to completamente impessoal como voc pensa.(p. 89).
105
cegava os olhos.
Para Ramos (2006), pode-se traar uma analogia entre a dicotomia demonstrada
por Bauman e a que revelada no enredo e na linguagem de Lavoura arcaica, porm
considerando a fala ambgua de Andr no constituinte de uma nova ordem, por suas intensas
caractersticas poticas. O protagonista de tal modo anrquico que no admite qualquer
ordem, o que deseja desestrutur-la contra a palavra pesada do pai, obstculo para a
felicidade da famlia.
Leyla Perrone-Moiss (1996) pontua a problemtica da ordem e da desordem
tanto em Lavoura arcaica, quanto em Um copo de clera. Para a estudiosa, A uma ordem
social hipcrita e autoritria, escorada na razo, os protagonistas de seus livros opem
uma desordem anarquista, exigida pelo corpo e pela paixo. (...) A desordem do mundo
contamina a linguagem. (p.131). Desse modo, contestando a palavra do pai, Andr prega a
anarquia contra a inconsistncia do verbo:
eu disse ainda numa onda mais escura, cansado de idias repousadas, (...) que
tudo fosse queimado, (...) as folhas que em cobriam a madeira do corpo,
contanto que ao mesmo tempo me seja preservada a lngua intil; o resto,
depois, pouco importava depois que fosse tudo entre lamentos, soluos e
gemidos familiares: Pedro, meu irmo, eram inconsistentes os sermes do
pai (NASSAR, 1989, p. 48.)
107
pergunte em furor
mas como quem puxa um tero o que faz dele um diferente? e voc ouvir, comprimido
108
assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te far traz o demnio no
corpo (p. 42).
Desse modo, o filho tresmalhado encontra-se no lugar privilegiado de um sujeito
que, ao no se vincular a uma verdade imposta pelo verbo do pai, talvez tenha uma
perspectiva mais globalizante. Como Ramos (2006, p. 79) ressalta, A objetividade subjetiva
de Andr permeia todo o livro, apontando obsessivamente a violncia da ordem opressora
sobre sua individualidade.
Lcia Castello Branco (1995, p. 84), em Literaterras: as bordas do corpo literrio,
sublinha uma safra de autores que escrevem sob a insgnia da busca do corpo e da palavra que
marcam a feitura de uma outra escrita, a qual Nassar faz parte:
essa obstinada busca daquilo que parte do corpo, mas que reside alm do
corpo, daquilo que parte da palavra, mas que repousa na superfcie (ou nos
daquilo que parte da palavra, mas que repousa na superfcie (ou nos
subterrneos) da palavra, daquilo que est na gnese do discurso a
inspirao, ou o flego do sujeito no discurso?) Que marcaria,
definitivamente, como uma escrita outra, a dico de Virginia Woolf, Marcel
Proust, algum Joyce - Hilda Hilst, Lya Luft, Raduan Nassar e Clarice
Lispector, entre outros.
Seguindo tal explicao dada por Castello Branco, podemos afirmar que Lavoura
arcaica revela o discurso anrquico do corpo contra o discurso verbal autoritrio do pai.
Assim sendo, o livro expe a guerra entre as linguagens. A linguagem do corpo, ento, dentro
do contexto da obra, exerce a funo de sabotagem do discurso do poder. Todavia, as palavras
do pai, que pretendem representar o mundo, no conseguem melhorar a vida. o corpo que
encerra a apresentao de uma verdade duvidosa e particular de Andr, baseada em instintos
primitivos.
Peixoto (2005) nos faz atentar ao fato de Nassar haver se distanciado dos chamados
romances-reportagens da dcada de 70 (como o caso de O que isso Companheiro?, de
109
Fernando Gabeira) ao encontrar a forma para a fico falar da realidade vivida sem, contudo,
restringir a narrativa a se perder no relato de meras vivncias ou experincias de uma poca.
Como nos lembra Lemos (2007), acerca das duas obras nassarianas: Ambos so livros que,
mesmo escritos durante a ditadura militar no Brasil e tematizarem a violncia e a
constituio de valores, evitam, entretanto, a literatura engajada bastante comum naquele
perodo.
Entretanto, como nos lembra Rodolfo Franconi (1997), erotismo e poder
interessaram grande maioria dos novos escritores que comearam nos anos 60 e 70.
Segundo o estudioso, os vinte anos de ditadura criaram uma temtica peculiar e complexa, na
qual se refletem tais linhas ntidas, que ou se destacavam alternadamente ou muitas vezes
juntas; contudo, sempre sendo possvel encontr-las no tecido narrativo51:
Para Green, de acordo com Cleusa Passos (1995), o papel da literatura seria o de converter um setor da
realidade psquica ou externa em realidade literria. Seguindo este pensamento, poderamos afirmar que
o contexto da ditatura militar estaria sim dentro da realidade literria dos livros de Nassar, j que foram
concebidos em tal perodo de opresso. Entretanto, a literatura no consegue converter a realidade, apenas a
representa, e se nos limitarmos a isso, distanciamo-nos da histria e da tradio literria.
110
Desse modo, ressaltamos que Raduan Nassar rompeu com os simples relatos
jornalsticos de sua gerao para dar vazo a uma obra em que as personagens se debatem
num misto de contradies. O pai, representando as esferas de poder repreensivas, o
smbolo da opresso desenvolvida atravs da palavra. na fala de Andr, elegendo o corpo
como meio de fuga para a represso do verbo, que podemos constatar o discurso libertrio
contra qualquer ditadura:
A questo da retratao do contexto histrico dentro de uma obra literria possui uma tradio antiga.
De acordo com o Barbris (1994), no Romantismo, Chateaubriand - com seus escritos - d energia ao
motor de uma nova conscincia, ao colocar a literatura na perspectiva scio-histrica de um exerccio
crtico a favor de uma ideologia incipiente. Madame de Stel, por sua vez, d incio a uma antropologia
literria, ao dar ateno a literaturas de outros lugares alm-Frana. Stel relativiza a literatura e mostra-a
como instituio social. Para ela, deveria ser feita uma leitura diacrnica para que nos interrogssemos
acerca das causas morais e polticas que modificaram o esprito da literatura. Outra prerrogativa
relacionava-se conscientizao de que havia outros territrios para o pensamento e a literatura e, ainda,
que existia, naquele instante, uma contradio na Frana do que era literatura de fato e aquela necessria
para que o indivduo sensvel se sentisse acolhido.Desse modo, a literatura expressava e expressaria a
sociedade. A literatura no seria mais apenas a beleza, era uma militante. Influenciada pelo pensamento de
Madame de Stel, o texto literrio no era mais apenas uma arte, era uma arma para agir e compreender e
no uma atitude intelectual simplesmente abstrata. Para Bonald, no artigo Mercure de France, que lanou
ao mundo a frase a literatura a expresso da sociedade, a literatura expressava e expressaria a
sociedade.
111
Para este trabalho, usamos o conceito de pardia proposto por Cano (2004, p. 85) que casa bem com a
proposta subversiva de Andr: A pardia contraria dois fundamentos da literatura que tradicionalmente
cumpriria a misso esttica da realizao artstica da linguagem. Primeiramente subverte o objetivo de
descrever temas elevados e nobres. A pardia no est presa nem a moldes nem a convenes artsticas,
sociais ou morais. Em segundo lugar, abdica de qualquer pretenso romntica ao Genie ou
originalidade da criao. A pardia desenvolve-se no terreno da continuidade, do dialogismo e da
subverso: 1- Continuidade - a criao literria vista como uma corrente ininterrupta do esprito
humano, dentro da qual a pardia pretende inserir-se com a conscincia de seu lugar-no-mundo;
Dialogismo antes de qualquer coisa, o texto discurso, e como tal no pode subsistir autonomamente,
pois constri-se a partir da interao com outros discursos pr-existentes.; Subverso a criao
pardica resulta da repetio com diferena.
112
indignao: senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu
escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste tua mesa e a
quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim
mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, Senhor, o esprito
do vinho subiu-me cabea e no posso responder pelo que fiz quando ergui
a mo contra o meu benfeitor. (NASSAR, 1989, p. 86-87)
54
Cleusa Passos (1995, p. 37) lembra que, para Bellemin-Nol, o rastreamento do desejo se vincula
pragmtica e retrica, como de fato parece que os protagonistas-narradores de Nassar o fazem. A
pragmtica suporia o enunciado (o ato da palavra) e a enunciao (como uma dimenso libidinal). A
retrica remeteria imagem enquanto percepo visual. A anlise seria suscitar algo do simblico onde
proposto algo do imaginrio.
113
O amor incestuoso que Andr nutre por Ana representa uma nova leitura das
palavras do pai de unio e amor familiar, tambm marcando a tentativa de implantar uma
nova ordem: um espao para o sujeito que acolhesse os valores rejeitados pela cultura
ortodoxa como mero devaneio funesto de um rebelde, tambm fundamentado reinterpretando
o verbo patriarcal. Desse modo, segundo o discurso paterno:
Assim, se para Andr tudo uma questo de perspectiva, ele usa uma outra
interpretao das palavras do pai para tentar convencer Ana acerca da legitimidade do amor
entre eles:
(...) foi um milagre o que aconteceu entre ns, querida irm, o mesmo
tronco, o mesmo teto, (...), descobrimos que somos to conformes em nossos
corpos, (...) foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos
dentro dos limites da nossa prpria casa, confirmando a palavra do pai de
que a felicidade s pode ser encontrada no seio da famlia (...) (NASSAR,
1989, p. 120)
De acordo com Maria Jos Cardoso Lemos (2007), Raduan Nassar recusa uma
fala sistemtica e dogmtica. Para tal estudiosa, o universo discursivo da obra nassariana
ctico. Desse modo, segundo Sextus Empiricus apud Lemos (2007): o Ctico, porque ama a
humanidade, quer curar tanto quanto possvel, pela argumentao, a presuno e a
precipitao dogmticas. Contudo, Raduan prefiguraria o questionador ctico que produz
certos efeitos no discurso. Conforme ainda cita Lemos (2007, p. 02), para Thomas Bnatouil:
114
(...) ai daquele que brinca com fogo: ter as mos cheias de cinzas; (...), ai
daquele que cair e nessa queda se largar: h de arder em carne viva; ai
daquele que queima a garganta com tanto grito: ser escutado por seus
gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanas: ter as
mos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir
de modo intenso: ter as mos cheias de gesso, ou p de osso, de um branco
frio, ou quem sabe sepulcral (...) (NASSAR, 1989, p. 57).
Outro fator interessante de notar que, nos trechos iniciais, Nassar usa verbos no
pretrito imperfeito, para reiterar a noo de hbito e repetio: e era no bosque atrs da
casa (...) era ento que se recolhia a toalha (...) era ento a roda dos homens se formando.
(pp. 28-29). Todavia, no final do livro, os tempos verbais encontram-se no pretrito perfeito
para indicar a irreversibilidade e a ao acabada: e foi no bosque atrs da casa (...) foi ento
que se recolheu a toalha (...) foi ento a roda dos homens se formando (...) (pp.186-187).
Dentro do contexto de Lavoura arcaica, conclumos que Andr e o pai sempre
parecem estar em lados opostos, seja ele em diversos nveis:
enquanto h o discurso
115
patriarcal, Andr apresenta o seu discurso libertino; enquanto o pai aponta que a fora do
verbo em primeiro lugar que podem nos assombrar; Andr apresenta os objetos consagrados
pelo quarto o corpo est em primeiro; enquanto o pai tenta representar o amor familiar
baseado nas palavras, Andr apresenta, sim, o amor na famlia atravs do corpo. Ou seja, entre
o abstrato da pregao do verbo e a apresentao de uma natureza corporal que se presta a
concretude, parece ser o filho prdigo quem tinha a razo. Afinal, o pai que pregara tanto a
pacincia, ao ver suas palavras interpretadas distorcidamente, sucumbe ira. , ao saber do
incesto que, usando as palavras de Perrone-Moiss (1996, p.66), o prprio pai assume a
desrazo de seu corpo, e num gesto assassino ingressa no tempo tumultuado das paixes,
dando trama os tons de uma tragdia, atravs do crime de sangue:
(...) a testa nobre de meu pai, ele prprio ainda mido de vinho, brilhou um
instante luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um branco
sbito e tenebroso, e a partir da todas as rdeas cederam, desencandeando-se
o raio numa velocidade fatal: o alfange estava ao alcance de sua mo, e,
fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um s golpe
a danarina oriental (....), mas era o prprio patriarca, ferido nos seus
preceitos, que fora possudo de clera divina (pobre pai!), era o guia, era a
tbua solene, era a lei que se incendiava essa matria fibrosa, palpvel, to
concreta, no era desercarnada como eu pensava (...) (NASSAR, 1989,
p.192-193)
116
6.Concluso
de libertao da opresso patriarcal, centramos mais nosso estudo no personagem Andr, que,
para ns, tem um posicionamento que se aproxima dos discursos libertinos, ao usar o corpo
para defender uma filosofia libertria contra o discurso autoritrio do pai.
Assim, da tradio de um grupo que se v unido por meio de laos sanguneos, a
famlia se encontra diluda sob o olhar mais atento de um membro questionador, desconfiado
das verdades impostas pela lei patriarcal: Andr. Dessa maneira, a partir da anlise do texto
nassariano, percebemos que Iohna, o pai, representa a autoridade totalitria e tem sua
imagem enaltecida como algum que tudo controla, resultando na restrio da liberdade no
contexto familiar. Entretanto, a retido pregada pelo pai s ltimas conseqncias acarreta na
ruptura, no desespero.
Esta Dissertao de Mestrado se estruturou a partir do objetivo de pensar o
discurso de Andr no apenas como algum que busca fazer do uso do seu corpo com fins
meramente hedonistas, mas como resultado de um processo de busca pela liberdade do
indivduo contra o mascaramento da suposta verdade contida no verbo dos detentores do
poder. A rebeldia e a revolta do narrador se do contra o peso da tradio que o protagonista
julga no ser autntica, mas sim fundada num iderio hipcrita, demonstrando uma
incapacidade de crer e obedecer guiado apenas pelos preceitos dogmticos partilhados pelos
outros.
Tambm analisamos de que forma os personagens, especialmente Andr, se
valeram de um metaquestionamento sobre a palavra, o verbo, para justificar seus
comportamentos perante as outras figuras ficcionais nassarianas. Outro tpico interessante foi
examinar como o prprio autor Raduan Nassar rompeu com a produo literria nacional da
dcada de 70, atravs de um discurso alegrico representativo contra a ditadura militar
poca da publicao das obras Lavoura arcaica e Um Copo de Clera.
Dentro da conduta afetiva das personagens, encontramos evidncias que
118
comportamento de Andr.
Assim, as questes relativas alteridade mostraram-se desenvolver a partir do
valor da palavra. Para tanto, destacamos a ambigidade como uma das caractersticas mais
marcante da reafirmao do protagonista como sujeito. No entanto, salientamos que
tambm atravs das ambivalncias e das contradies encontradas no discurso das
personagens que o texto no deve ser aprisionado dentro de uma temtica meramente
metalingstica, pois eles fazem um convite sedutor para que se originem novos textos, a
partir de outras leituras.
A dubiedade e o ceticismo de Andr mostram-se como palcos onde o
personagem apresenta e estabelece suas estratgias do uso do corpo, para tratar de um
discurso libertrio contra a excluso, a alienao, a ordem e o autoritarismo. Desse modo,
Andr parece questionar o prprio valor da palavra paterna (e quem sabe de toda a palavra):
se ela representa ou apresenta a verdade. Mesmo raciocnio que Andr pareceu aplicar ao
corpo.
Ora, se o erotismo no se presta representao, o mesmo no podemos concluir
sobre a palavra em sua face quirnica divergente: de um lado edifica, do outro destri. Esse
olhar para lados opostos inclusive, j era reconhecido em provrbios antigos, como um
egpcio que confere lngua o signo de pior e melhor instrumento da humanidade. Tambm
interessante relevar o papel que o verbo ocupa na nossa tradio judaico-crist, via textos
bblicos. Assim, em Lavoura arcaica, mesmo o pai tendo sucumbido aos humores do corpo,
ira em detrimento da pacincia, no fim resta a dvida de quem venceu o embate, pois Andr
termina por transcrever as palavras do pai em memria deste: que o gado sempre vai ao
poo.
O prprio questionamento acerca da representao da verdade so fatores e
evidncias que permitem conferir ao corpo e ao verbo, dentro da obra de Raduan Nassar,
120
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128
130
131
ANEXO
25
20
15
Nmero de pginas
30
10
5
0
A Partida- Primeira Parte
Captulos
Seqncia1
Seqncia2
Seqncia3
Seqncia4
Seqncia5
Seqncia6
Seqncia7
Seqncia8
Seqncia9
Seqncia10
Seqncia11
Seqncia12
Seqncia13
Seqncia14
Seqncia15
Seqncia16
Seqncia17
Seqncia18
Seqncia19
Seqncia20
Seqncia21
Grfico I
Fonte: terceira edio de Lavoura arcaica pela Companhia das Letras (1989).
A vigsima seqncia (coluna amarela) o captulo em que Andr encontra Ana na capela.
132