O Corpo e o Verbo Na Obra de Raduan Nassar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS


MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA

Marcela Magalhes de Paula

O CORPO E O VERBO NA OBRA

LAVOURA ARCAICA DE RADUAN NASSAR

Fortaleza
2008

Marcela Magalhes de Paula

O CORPO E O VERBO NA OBRA

LAVOURA ARCAICA DE RADUAN NASSAR

Dissertao de Mestrado apresentada ao


Programa de Ps-Graduao em Literatura
Brasileira da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Cear, como parte
dos requisitos necessrios obteno do
ttulo de Mestre em Literatura Brasileira.

Fortaleza
Agosto de 2008

FICHA CATALOGRFICA

PAULA, Marcela Magalhes de.


O corpo e o verbo na obra Lavoura arcaica de Raduan Nassar/ Marcela Magalhes de
Paula. Fortaleza:

UFC, 2008.

F. 134 ; Dissertao (Mestrado em Literatura

Brasileira) Universidade Federal do Cear, Programa de Ps-graduao em Letras,


2008. Bibliografia: f . 7 pp.

Orientadora: Vera Lcia Albuquerque de Moraes


Co-Orientadora: Fernanda Maria Abreu Coutinho

1. Nassar, Raduan, 1937XX

. Lavoura arcaica. 2. Romance brasileiro - Sc.

3. Corpo. 4. Imaginrio dos Afetos. I. Moraes, Vera Lcia. II. Coutinho,

Fernanda de Abreu. III. Universidade Federal do Cear, Departamento de Letras. IV.


Ttulo.

CDD: ?

Esta pesquisa foi financiada com recursos do Governo Federal, via Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) e est em consonncia com o
guia de normas de formatao da Universidade Federal do Cear.

E-mail do autora: [email protected]

MARCELA MAGALHES DE PAULA

O CORPO E O VERBO NA OBRA LAVOURA ARCAICA DE RADUAN NASSAR

Dissertao submetida Coordenao do Curso de Ps-Graduao em


Letras da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial
para a obteno do grau de Mestre em Literatura Brasileira. rea
de concentrao: O imaginrio dos Afetos na Literatura Brasileira.

Aprovada em 08/09/2008.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________
Professora Doutora Vera Lcia de Albuquerque Moraes (Orientador)
Universidade Federal do Cear-UFC

__________________________________________
Professora Doutora Fernanda Maria Abreu Coutinho (Co-Orientador)
Universidade Federal do Cear-UFC

___________________________________________
Prof. Doutora Soraya Ferreira Alves
Universidade Estadual do Cear-UECE

__________________________________________
Prof. Dr. Ana Maria Csar Pompeu
Universidade Federal do Cear-UFC

minha me

AGRADECIMENTOS

Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior.

Vera e Fernanda, pela confiana em mim depositada.

madrinha e ao padrinho deste curso de mestrado, Edna Carlos e Seu Clio.

amiga e colega deste curso de mestrado Vnia Castello, pelo incentivo.

Renata Moreira, pelo encorajamento desde antes do incio deste curso de Mestrado.

minha famlia de amigos.

minha irm Samyra.

A Davide.

minha me Lucdia.

A Deus, acima de tudo.

Eu bebo a Vida, a longos tragos


Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu amor eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos ...
(...)
A Vida, meu Amor, quero viv-la!
Na mesma taa erguida em tuas mos,
Bocas unidas hemos de beb-la!
Que importa o mundo e as iluses
defuntas?
Que importa o mundo e seus orgulhos
vos?
O mundo. Amor?... As nossas bocas...

(Florbela Espanca)

RESUMO

Este trabalho analisa de que modo o corpo e o verbo interferem nas relaes de
afeto na obra Lavoura arcaica de Raduan Nassar. Para tanto, observamos o contexto afetivo
familiar, abordando conceitos de temas fundamentais do romance, como o erotismo, o desejo,
a metalinguagem e a ambigidade, que perpassa o comportamento dos personagens no livro
em questo. Mostramos ainda que o corpo representa um mote de tenso, desde o incio da
histria humana, e como ele est presente na obra nassariana. Assim, arrolando determinados
estudos tericos acerca do tpico, cotejamo-os dentro da esfera da construo dos afetos,
inclusive circunscrevendo tais eixos temticos em relao diviso de gneros sexuais.
Apresentamos consideraes sobre a famlia e o contexto familiar, no que concerne ao
imaginrio afetivo. Estudamos como a dimenso do erotismo e do corpo contamina a
linguagem de Andr, atravs de uma postura que, para ns, prega a liberdade contra o
autoritarismo e a palavra falsa do pai. Dentre vrias possibilidades de leitura,
estabelecemos uma aproximao entre a conceituao do libertino, definida por vrios
autores, para iniciar uma anlise que passar pelas proposies entre o discurso potico e o
prprio erotismo. Destacamos tambm a ambigidade como uma das caractersticas mais
marcante da reafirmao do protagonista como sujeito. A dubiedade e o ceticismo de Andr
mostram-se como palcos onde o personagem apresenta e estabelece suas estratgias do uso
do corpo, para tratar de um discurso libertrio contra a excluso, a alienao, a ordem e o
autoritarismo.

Palavras-chave: corpo; metalinguagem; ambiguidade; afeto; Nassar,

ABSTRACT

This study examines how the body and the verb interfere in family relationships, in
the book Lavoura arcaica of writer Raduan Nassar. Thus, we observed the context
affective of family, addressing issues of fundamental concepts of the novel, such as
eroticism, the desire, the metalanguage and ambiguity, running the behavior of
characters in the book in question. Analizes also as the body is a topic of tension,
since the beginning of human history, and how it is in the nassarian work. In
consequence, some theoretical studies are listed on the topic liked within the sphere
of construction of affection, such also in areas like sexual division of gender. We
studied how the magnitude of eroticism and the body contaminated the language of
Andr, through a position that, for us, to fold freedom against authoritarianism and
the word "false" the father. Among various possibilities for reading, we established a
rapprochement between the conceptualization of the libertine, defined by
several authors, to begin an analysis that will address the proposals between the
poetic and own eroticism. Also emphasizes the ambiguity as one of the most striking
features of reaffirmation of the protagonist as subject. The dubiety of Andr
skepticism show up as stage where the character sets and provides their strategies of
using the body to deal with a speech libertarian against exclusion, alienation, the
order and authoritarianism.

Keywords: body; metalanguage; ambiguity, affection; Nassar.

LISTA DE ILUSTRAES

FIGURA 1- Nascimento de Vnus, de Sandro Boticelli ( 1485 d. C. ).................. p. 43


FIGURA 2- O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci (1492 d. C. )................. p. 44
FIGURA 3- Vnus de Willendorf, de annimo,(30.000 a.C.)................................. p. 63
FIGURA 4- Busto de Nefertite, de annimo, (1350 a.C.)........................................ p. 63
FIGURA 5- Alegoria da Prudncia, de Ticiano Vecellio (1565 d. C.).................. p. 76
FIGURA 6- Perseu com a cabea de Medusa, de Benvenuto Cellini
(1540 d.C.).................................................................................................................p. 94

SUMRIO
1.Introduo......................................................................................................... p. 11
2. Arando o terreno de uma lavoura
2.1.Raduan: entre o clebre e o ctico...........................................................

p. 18

2.2.As obras
2.2.1. Lavoura arcaica..........................................................................................

p. 23

2.2.2. Um copo de clera.......................................................................................

p. 34

2.2.3. Cotejamento das obras................................................................................

p. 37

3.Corpo: o lugar primordial nas relaes de afeto .............................

p. 39

3.1. Entre o corpo erotizado e liberado de Andr..................................................... p. 48


3.2. O corpo: interferncias nas relaes de gnero
3.2.1- A mulher, o corpo e a beleza.........................................................................

p. 55

4. Relaes de afeto: entre frutos e fatos


4.1 Uma famlia dividida em dois ramos:............................................................... p. 71
4.2 Pedras na lavoura: o pai e Pedro..........................................................................
p. 76
4.3 - Ana: nuances ambguas entre uma femme fatale e uma mulher
sacralizada............................................................................................................... p. 81
5. O discurso de um libertino: entre o corpo e o verbo
5.1. De um Eros inconformado para uma aproximao com o discurso
libertino.................................................................................................................... p. 96
5.2. ndr x Pai: o discurso do corpo contra o verbo................................................ p. 104
6.Concluso........................................................................................................... p. 117

Bibliografia......................................................................................................... p. 124
Anexo.................................................................................................................... i

10

1. INTRODUO

A arte-literatura fonte inexaurvel que permite uma ponderao sobre o


indivduo e a sociedade, em que a mensagem alm de centrar-se sobre si, em concomitncia
com sua funo potica, descamba para a urgncia comunicativa do sujeito e o modo como
ele se comporta em diversas situaes, inclusive ficcionais. Dentre os distintos fatores que
integram o leque de motivaes para comportamentos e relaes desses indivduos, um dos
mais importantes , sem dvida, o mosaico de afetos que compem e, at mesmo, influenciam
a composio do sujeito.
por acreditar na importncia dos afetos, sua gama de peculiaridades e a sua
ressonncia dentro dos textos literrios, especialmente brasileiros, foi que escolhemos estudar
a obra de Raduan Nassar, esta permeada por uma fora metaforizada de temas
primordialmente humanos: o valor dado a elementos como o desejo e o questionamento da
palavra dentro das relaes afetivas familiares e individuais, pois, como nos lembra Peter
Henning (1996, p. 84): (...) O fluxo verbal to provocativo quanto libertador de Raduan
Nassar disseca de forma exemplar os meios-tons entre afeto e averso, entre amor e dio.
(...)
Assim, este trabalho tem por objetivo principal estudar a obra Lavoura arcaica
(1989) de Raduan Nassar, a fim de verificar em que aspectos o corpo e o verbo desempenham
papis considerveis na construo das relaes afetivas entre suas personagens.
Especificamente, intentamos tambm assinalar de que modo o desejo, a relevncia que Nassar
atribui ao corpo, desenvolve-se como pretexto para a busca de um espao privilegiado para o
11

sujeito e a relao deste com as outras personagens da respectiva obra.


Tambm pretendemos analisar de que forma as personagens, especialmente o
protagonista Andr, se valem de um metaquestionamento sobre a palavra, o verbo, para
justificar seus comportamentos perante as outras figuras ficcionais nassarianas. Outro tpico
interessante ser examinar como o autor compactua e/ou rompe com a produo literria
nacional, principalmente a produzida at a dcada de 70, atravs de seu estilo peculiar.
Lavoura arcaica um texto com traos de uma tragdia familiar, mostrando como
o sujeito, a famlia e a sociedade encadeiam-se e subsumem-se reciprocamente, como nos
lembra Octvio Ianni (1991, p. 01). A narrativa consiste no retorno de Andr, o narrador da
trama, para casa, onde houve uma relao incestuosa1 com uma das irms: Ana. Na primeira
parte do livro, Pedro, o irmo mais velho, vai busc-lo no quarto de penso em que este se
encontra aps ter sado de casa. Aps o regresso dos filhos, na segunda parte do livro, o pai
toma conhecimento do incesto atravs de Pedro e mata Ana, morrendo em seguida de forma
no claramente descrita no final da obra.
A densa narrativa uma leitura livre da parbola do Filho Prdigo2, mesclada de
tons bblicos e cornicos, em que o narrador Andr apresenta seus convulsos sentimentos em
relao famlia. O corpo ento aparece reivindicando seus direitos, explodindo em desejo e
desespero, especialmente figurado na proibio do incesto, cometido contra o patriarcado e a
tradio crist.
Nas palavras de Bella Josef (1982, p. 01), em Incansvel lavoura em busca da
redeno, Lavoura arcaica um romance em que no existem experimentalismos gratuitos,
onde tudo compacto, espasmdico, nesta busca de redeno do homem, na sua incanvel
1

Embora, em Lavoura arcaica, Andr tambm comete incesto com seu irmo mais novo Lula, este no
to significativo na obra quanto o que ocorre com Ana. Alis, de ser descrito veladamente, nenhum outro
membro da casa vai tomar conhecimento do que ocorre entre o protagonista e Lula. pela rejeio de Ana,
aps o incesto, que Andr foge de casa.
2

Andr abandona o lar, retorna casa paterna aps cometer supostos erros, mas, apesar disso, recebido
com festa, assemelhando-se narrativa bblica por este motivo.

12

lavoura, arcaica e moderna, com uma linguagem amassada em sbia alquimia, com a
argamassa da senda atvica, do cho tradicional.
Refletindo sobre tal acepo acima, a inquietao que motivou este projeto partiu
da observao de que Raduan Nassar ainda pouco estudado e conhecido, mesmo no mbito
acadmico. Assim, ainda so poucos os compndios que versam ou citam o autor e a sua obra
esparsa, embora a crtica o tenha acolhido, j na poca da sua primeira publicao, como um
exemplo a ser aclamado de exmio escritor. Outro fator interessante so os grandes temas do
seu romance que so enaltecidos pela presena dos recursos poticos: a ambigidade, o
autoritarismo, o erotismo, a subjetividade e a religio.
Raduan Nassar nasceu em Pindorama, no interior do estado de So Paulo, em 27
de novembro de 1937. Filho de imigrantes libaneses, representa, de acordo com o escritor
Milton Hatoum ( 1996, p. 20), talvez o primeiro ficcionista rabe a evocar de maneira to
densa e lrica certos temas da cultura oriental, mas num ambiente brasileiro e tradicional.
Tal atmosfera rabe pode ser comprovada, por exemplo, no apenas na citao cornica do
Surata IV - 23 que abre a segunda parte do livro (Vos so interditadas: vossas mes, vossas
filhas, vossas irms...), mas tambm no final da obra quando se configura o crime de sangue
e, com ele, a tragdia da famlia. Assim, temos o trecho narrado por Andr sobre a me, aps
a morte do pai e da irm: como se vagasse entre escombros, a me passou a carpir em sua
prpria lngua um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrneo:
tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo spero a dor arenosa do deserto. (NASSAR, 1989,
p.194).
Alm da atmosfera rabe, a literatura de Raduan marcada por um estilo forte e
provocador, muitas vezes hermtico. Octavio de Faria, em 1976 no jornal A ltima hora,
chegou a afirmar que mesmo Lavoura arcaica constituindo uma afirmao inequvoca de
qualidade dentro da nossa literatura, a obra dificilmente conquistaria o grande pblico, ainda
13

que conseguissem retirar dela uma radionovela.


Tambm nos intriga o fato de um autor to importante, inclusive dentro de um
perodo to conturbado quanto o que veio a lume seus textos, como a Ditadura Militar, ser
ainda to pouco conhecido pelo pblico e, de certo modo, pela crtica, mesmo quando seus
dois livros mais importantes foram adaptados, no para o meio radiofnico, mas para o
cinematogrfico.
Apesar de temas relativos ao corpo e sobre o questionamento do poder da palavra
no serem inditos h desde muito, pareceu-nos interessante estudar como tais elementos
influenciam a conduta afetiva das personagens dentro dos gneros ficcionais. Para tanto,
como as obras de Raduan Nassar apresentam-se como uma terra frtil para o estudo das
questes de identidade e alteridade, a partir das relaes afetivas, lanamos o seguinte
problema: Que fatores e/ou evidncias permitem conferir ao corpo e ao verbo, dentro da obra
Lavoura arcaica de Raduan Nassar, papis relevantes na construo das relaes afetivas
entre as personagens e a busca de um espao privilegiado para a liberdade do sujeito?
Aps a elaborao de tal problemtica, encontramos dentro do texto de Nassar
algumas hipteses principais:
1. As relaes afetivas so condicionadas, em Lavoura arcaica, a partir de um
pacto primordial, principalmente do protagonista Andr, com o corpo, um dos fatores mais
relevantes para a constituio da identidade individual daquele dentro do contexto familiar;
2. As questes relativas alteridade parecem desenvolver-se a partir do valor
transgressor e litigante tambm da palavra, pois esta tanto serve de instrumento como meio
para o desenrolar das aes nas narrativas.
Assim, centramos mais nosso estudo no personagem Andr, que, para ns, tem um
posicionamento que se aproxima dos discursos libertinos, ao usar o corpo para defender uma
filosofia libertria contra o discurso autoritrio do pai. Desse modo, concordamos com o que
14

Renata Pimentel Teixeira (2002), em Uma Lavoura de Insuspeitos frutos, fala sobre o
protagonista do primeiro livro de Nassar:

Andr, o filho adolescente, que no se pode fazer surdo aos apelos do


corpo, da idade, do amor querendo manifestar-se, que desnuda o egosmo e a
centralizao do pai, disfarados em aparente zelo e unio pelos seus; que
denuncia a hipocrisia da vivncia cheia de palavras (os dirios sermes
mesa, as rotinas de tarefas divididas, inclusive pelo sexo) e
contraditoriamente marcada pelo silncio, afinal ningum de fato ouvido
em seus apelos mais ntimos, em suas necessidades reais ... S Andr, ao
"esquadrinhar" os objetos pessoais dos membros do cl (o cesto de roupas
sujas), ouve o grito escondido da urgncia dos corpos (...) (TEIXEIRA,
2002, p. 20)

Neste nosso estudo, procuraremos estudar no primeiro captulo a atmosfera ctica


e ambgua que perpassa a obra de Nassar, a partir de explanaes sobre o prprio autor
paulista e sobre os seus livros. Destarte, nossa abordagem se far para demonstrar de que
modo os livros nassarianos foram recebidos pela crtica literria, principalmente Lavoura
arcaica, evidenciando a mescla violenta e hiperblica da linguagem de Raduan entre o
romance e a poesia. Tambm lanaremos interrogaes a respeito do prprio personagem
Nassar e o grande mistrio que constitui seu aparente abandono da literatura.
Tentaremos mostrar, no segundo captulo, como o corpo representa um mote de
tenso, desde o incio da histria humana, e como ele est presente na obra nassariana. Assim,
arrolando determinados estudos tericos acerca do tpico, cotejamo-os dentro da esfera da
construo dos afetos, inclusive circunscrevendo tais eixos temticos em relao diviso de
gneros sexuais. importante ressaltar que o nosso estudo no fixa, num vis esttico, as
hipteses nele desenvolvidas.
Desse modo, o tpico do corpo e do erotismo abre um terreno terico para os
demais captulos relacionados propriamente com as relaes de afeto, j que a pulso ertica
singular de Andr ultrapassa em muito o conflito do incesto. Situado entre o profano e o
15

sagrado, o erotismo do jovem se aproxima ao conceito de erotismo proposto por Georges


Bataille: visceral, convulso, exagerado, lrico, pago, noturno, dionisaco3 e ctnico4. O
ctnico em Andr desenvolvido baseado nos fundamentos de Camille Paglia, entre outros.
No captulo terceiro apresentaremos consideraes sobre a famlia e o contexto
familiar, no que concerne ao imaginrio afetivo. Evidentemente a proposio do tema abarca
muito mais aspectos do que o recorte que realizamos agora, devido sua complexidade,
entretanto, acreditamos ser suficiente ao menos para delinear o contexto tenso de Lavoura
arcaica.
Dessa maneira, estabeleceremos uma anlise atravs da diviso da famlia em
duas faces: os membros da Esquerda e os da Direita da simblica mesa da famlia patriarcal,
elegendo alguns personagens que, para ns, desenvolvem papis relevantes para a composio
da identidade de Andr. Assim, ressaltando a ambigidade presente nos personagens,
teceremos examinaes sobre Pedro e Iohna; Ana e a me.
No quarto captulo, dando continuidade ao tema j aberto no segundo e no

De acordo com Arajo (1993, p. 10), pode-se dizer, de uma forma bastante resumida e reduzida, que no
livro O Nascimento da Tragdia, Nietzsche expe que a tragdia nasce do encontro de duas expresses da
religiosidade grega que so o Apolneo e o Dionisaco. Estas duas expresses mantm suas diferenas, mas
no se contrape. E pela sua unio que a tragdia nasce. O Apolneo a fora que expressa o princpio do
sonho, da iluso, da aparncia, da individuao, da medida, pelo qual possvel a imagem do mundo
chegar ao homem. O Dionisaco a expresso pura da unidade primordial da natureza, que rompe com
qualquer princpio de individuao ou medida, aquilo que embriaga, que coloca todas as foras da
natureza unidas, conciliadas. J na viso de Santos (2006, p. 50), Enquanto o esprito apolneo visa a
uma arte figurativa, escultural e tem por funo, atravs de uma dimenso ilusria, onrica e povoada de
belas imagens, esconder o aspecto sombrio e horroroso da existncia humana, o dionisaco dimensionado
pela arte dos instintos, pela potncia emocional, ou melhor, pela arte no-figurada ou musical. Este ltimo,
provindo de Dioniso o deus do informe, do desmesurado, da rebeldia dos sentidos e da exuberncia em
oposio ao primeiro, no se manifesta por meio do sonho, mas de outro estado fisiolgico, a embriaguez.

Camille Paglia (1999, p. 17), ao estabelecer argumentao a respeito de sexo e violncia, natureza e arte,
diz-nos que o ctnico aquilo que relacionado com a terra: O que o Ocidente reprime em sua viso da
natureza o ctnio, que significa da terra - mas das entranhas da terra, no da superfcie. Jane Harrison
usa o termo para a religio pr-olmpica grega, e eu o adoto como um substituto para dionisaco, que se
contaminou com gracejos vulgares. O dionisaco no nenhum piquenique. So as realidades ctnicas de que

foge Apolo, o triturar cego da fora subterrnea. (...). No nosso trabalho, consideramos dionisaco o ambiente
definido por Santos (2006, p. 50) dimensionado pela arte dos instintos, pela potncia emocional, ou melhor,
pela arte no-figurada ou musical. Tambm consideramos o termo ctnico, entretanto, restringimos o seu uso a
termos ligados ao escuro, ao desejo, ao feminino, prpria terra e Deusa-me, conforme explicao de Paglia,
porm sem equival-lo diretamente ao dionisaco.

16

terceiro, estudaremos como a dimenso do erotismo e do corpo contamina a linguagem de


Andr, atravs de uma postura que, para ns, prega a liberdade contra o autoritarismo e a
palavra falsa do pai. Dentre vrias possibilidades de leitura, estabelecemos uma
aproximao entre a conceituao do libertino, definida por vrios autores, para iniciar uma
anlise que passar pelas proposies entre o discurso potico e o prprio erotismo. Como
essa narrativa depende da observao do discurso da prpria obra, abordaremos uma estratgia
analtica pairando sobre os discursos, um tanto barroco, do pai e do filho.
Destacaremos tambm a ambigidade como uma das caractersticas mais
marcante da reafirmao do protagonista como sujeito. A dubiedade e o ceticismo de Andr
mostram-se como palcos onde o personagem apresenta e estabelece suas estratgias do uso do
corpo, para tratar de um discurso libertrio contra a excluso, a alienao, a ordem e o
autoritarismo. Assim, adotaremos referncias de tericos que abordam a ambivalncia como
meio condicional para a construo essencial do homem e como motor para o
estabelecimento da linguagem.
Se a arte incita vrios sentidos que repercutem sobre o indivduo e capaz de
gerar experincias e sensaes mltiplas, o lirismo de Lavoura arcaica contribui para
questionar a prpria perspectiva da liberdade do homem abordado pela literatura. Assim, para
ns, a literatura, sendo uma forma de arte, no poderia ser estudada em si mesma, articulandoa a um corpo doutrinal que considera um texto literrio como elemento cujo significado pode
ser esgotado por uma averiguao cientfica, portanto no esperamos que este trabalho, que se
apresentar nas prximas pginas, seja encarado como uma abordagem fechada a qualquer
nova interpretao, principalmente por se tratar de um universo por si s ambguo quanto o
encontrado em Lavoura arcaica.

17

2. Arando o terreno de uma lavoura


Como conhecer as coisas seno sendo-as?
Jorge de Lima

2.1- Raduan: entre o clebre e o ctico


Se Walter Benjamim, em seu livro Origens do Barroco Alemo (1984), escreveu
que o Expressionismo, assim como o Barroco, mais um inflexvel querer artstico do que a
era de um fazer artstico, certamente quando nos defrontamos com a obra de Raduan Nassar
temos um exemplo de tal fenmeno que supera e funde num mesmo amlgama o querer e o
fazer artstico num texto de um preciosismo rico em lirismo.
A curta trajetria literria do escritor de Pindorama comeou em 1975 com a
publicao de seu primeiro trabalho: Lavoura arcaica, romance que, no ano seguinte,
receberia o prmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e inmeros elogios da
crtica especializada. Em 1978, surge editorada a novela Um copo de clera tambm
reverberando uma consagrao. Outro texto de Raduan Nassar o conto Menina a caminho
escrito em 1961 e s publicado em 1994, alm de alguns publicados esparsamente durante
estes ltimos anos.
Nos dias atuais, Nassar se recusa a divulgar novos textos, baseado na simples
explicao de que desistiu da Literatura, e de que, perante as formas de criao, prefere criar
galinhas. Em As musas sob assdio: literatura e indstria cultural no Brasil, Walnice
Nogueira Galvo (2005), ressaltando a linguagem refinada nassariana, lembra tambm como
o escritor surpreendeu os leitores quando parou de escrever, a fonte secou de supeto.
Jos Castello (1999) nos faz atentar para o fato de que a figura exterior do escritor
18

Raduan Nassar em si j se confundiu com a interioridade do ato de escrever a que todos os


escritores esto presos. O autor paulista, ento, carregaria o peso de ser um homem com duas
sombras: a do escritor consagrado e a do sujeito que desistiu de escrever.
Com as prprias palavras de Nassar, leiamos uma autodefinio do autor e,
juntamente com ela, uma possvel explicao para sua aclamada desistncia:

Eu sou mais como galinha caipira. No boto um ovo de dia e outro de noite,
sob luz artificial. No entro muito nessa histria de que o escritor precisa se
profissionalizar. Mesmo esse conceito de obra s vezes em 50 pginas
voc pode dizer muito mais que em dez livros. Depois, h tantos autores de
um nico livro que dizem tanta coisa! (CICCACIO, 1981, p. 3).5

Castello (1999, p. 175) explica tal postura de Nassar com o trecho: Raduan
abandonou a ordem do verbo, que est sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para
retornar ordem natural dos animais, que mais silenciosa, mas tambm mais previsvel.
Ovos, poedeiras, raes, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, no.
Cremilda Medina (1996, p. 99) tece consideraes semelhantes a de outros
autores, ressaltando os valores e a sensibilidade do escritor de Pindorama, no livro Povo e
Personagem:

A cabea e a sensibilidade de Raduan Nassar se perdem em outros rumos - os


da cultura rabe, mediterrnea, brasileira, paulista. Tudo isso emerge hoje
pelos speros ngulos da stira. Raduan, por j ter passado por tais cortes
intelectuais, ironiza o fogo de artifcio. Foi se distanciando desse mundo,
vive no interior de So Paulo, e nem mesmo a literatura o emociona diante
do campo, de seus frutos, do homem rstico. Com dois livros publicados,
no se inquieta. O que realmente o fascina a tica. Por trs da bem tecida
trama narrativa de Lavoura arcaica, subsiste o conceito. Raduan Nassar
critica os "bordados" formais de intimismo estril que no desvendam idias.
O estado de tenso, a densa atmosfera de seus livros levam justamente o
leitor prpria tenso e atmosfera do escritor: a procura de um ser tico,
universal.
5

No livro Por que escrevo?, uma coletnea de textos pertencentes coleo Mistrios da Criao literria,
Jos Domingos Brito nos apresenta um trecho de uma entrevista de Raduan Nassar, em que o autor de
Pindorama relaciona a literatura a um jogo: H alguns anos eu poderia talvez dizer por que escrevia, ou
pelo menos supunha ter bons motivos para justificar minha escolha. Depois, o tempo passou e at mesmo
transformou a solenidade de certas razes em um esboo de leviandade de tal modo misturando as cartas,
que hoje eu no sei mais que jogo estou disposto a jogar. Em todo caso, possvel dizer sem ser acusado de
mau gosto, que pode-se jogar hoje s pelo prazer?(p. 184)

19

Para alguns, a postura de Raduan tratar-se-ia de uma estratgia de marketing, j


que a obra, apesar das reclamaes do autor, vem se tornando nos ltimos anos objeto de
inmeras tradues, teses de ps-graduao e adaptaes cinematogrficas. No entanto, cabe
salientar que, para Castello, Raduan Nassar no seria o Rimbaud brasileiro que foi ser
mercenrio na frica quando a Literatura no lhe interessava mais. Ao contrrio do francs
que realmente desistiu da literatura de uma forma categrica, Raduan no se esquiva de
entrevistas que ilustram publicaes literrias, mesmo negando a literatura.
Deixando um pouco de lado a figura do autor para nos atermos ao conjunto da
obra, percebemos que foi a partir da sua primeira edio que a crtica o considerou um marco
dentro do panorama literrio nacional. Desse modo, os textos de Raduan Nassar surgiram no
cenrio da Literatura Brasileira como exemplo de qualidade quase inconteste, conforme lemos
nos Cadernos de Literatura (1996, p. 5):

[] Lavoura arcaica e Um copo de clera foram mais do que suficientes


para situar Raduan entre os escritores de maior envergadura surgidos no pas
depois de Guimares Rosa e Clarice Lispector. Pela extraordinria qualidade
de sua linguagem, os dois livros representam, sem exagero, verdadeiros
momentos de epifania da literatura brasileira. Apesar disso, porm, Raduan
permaneceu conhecido e cultuado apenas por um restrito crculo de leitores.

A afirmao, ao nosso ver verdadeira, contida nas ltimas linhas da citao


acima, seria explicada por um lirismo que impe ao leitor um universo hermtico6, acentuado

O conceito de Hermetismo relacionado Literatura foi utilizado pela primeira vez por Francesco Flora,
em 1936, em um trabalho sobre o italiano Giuseppe Ungaretti. Contudo, a chamada doutrina de Hermes
deu origem ao hermetismo, cincia de honra da Idade Mdia, proclamada, entre outros, pela poesia,
abrangendo os fenmenos da vida universal. No entanto, sabido que essa uma doutrina antiga, de cerca
de 2000 anos antes de Cristo, quando os sacerdotes egpcios se refugiaram nos templos para proteger as
tradies e cincias de Thot (o deus da sabedoria que foi assimilado pelos gregos sob o nome de Hermes)
que representavam a VERDADE. Cerca de 40 livros gregos, populares no sculo III d.C, continham
resqucios da antiga teogonia de iniciao egpcia. A partir da publicao do livro de Hugo Friedrich, na
Alemanha em 1956, o termo passa a ser difundido pela crtica literria de lngua alem. Tambm nessa
poca, surgem os ensaios de Theodor W. Adorno sobre literatura, enfocando um novo tipo de hermetismo,
no qual a arte se permitiria uma recusa da comunicao. O texto Rede ber Lyrik und Gesellschaft surge

20

pela linguagem plena de metforas num ambiente textual com temticas inerentemente tensas.
Dessa maneira, o leitor desavisado encontraria dificuldades para interpretar a filosofia
representada pelos personagens de Nassar.
Contudo, para se comear a entender o sistema de representao, assim como a
filosofia da linguagem nassariana, interessante lembrar que, dentro de sua produo literria,
o escritor de Pindorama admite influncias de Les Gommes de Allain Robbe-Grillet, como
modelo de Nouveau Roman7; bem como dos sofistas que, para ele, desmoralizaram o uso da
conscincia e da razo.
Recordemos ainda que Nassar, em sua obra, reconhece ecos da filosofia de
Francis Bacon com a crtica ao idola. Assim, para o autor brasileiro, devem-se abolir todos os
dolos para se chegar ao conhecimento e desconfiar das verdades ditas por certas
autoridades, inclusive dentro da prpria literatura. Segundo Roland Barthes (1989, p.110):
no interior da lngua que a lngua deve ser combatida, desviada: no pela mensagem de
que ela instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela teatro. Essa desconfiana, de
certo modo teatral, em relao aos emissores do discurso um indcio do universo ctico que
o leitor vai encontrar em Lavoura arcaica e Um copo de clera.
Alfredo Bosi, numa entrevista concedida em Paris Maria Jos Cardoso Lemos
(s.d), no dia 21 junho de 1999, na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, contou-nos
sua ltima conversa com Raduan Nassar na casa do poeta Jos Paulo Paes:

em 1957. Ao tomar em considerao a obra de Paul Celan, Adorno passa a consider-lo como o mais
importante representante da poesia hermtica da contempornea lrica alem. Desse modo, para a crtica
alem da poca, o hermetismo poderia designar tanto o engajamento poltico de um autor, quanto um
proposital distanciamento da realidade, no havendo um consenso especfico sobre o tema.
7

Segundo Eunice Cabral (s.d), Nouveau Roman um termo aplicado a um conjunto de romances
franceses publicados no ps-guerra da autoria de Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor,
Marguerite Duras, Claude Simon. Caracterizados pela renovao das tcnicas romanescas, analisando os
principais vetores que atravessam o termo em questo, tambm designa o romance em superfcie (R.
Barthes) de caractersticas antihumanistas, que acabam por ser as encontradas na produo romanesca de
Robbes-Grillet.

21

[] se falava justamente de como entender a cultura cabocla, a cultura


caipira e como era raro as pessoas que podiam falar de dentro, porque os
professores da USP, por exemplo, [] falam de fora (sem vivncia) e no
podem t-la mesmo porque um outro universo que est abaixo do limiar de
linguagem [] estvamos a conversar de quem entenderia deste universo
caipira e o nome que nos veio, que era do conhecimento dos dois Oswaldo
Elias Xidieh, [] que escreveu um livro que o Raduan preza muito:
Narrativas pias populares onde ele faz uma fenomenologia da devoo
atravs da anlise dos evangelhos apcrifos. [] que no sem relao com
uma linha copta-egpcia-rabe. [] Xidieh foi uma espcie de protetor do
Raduan.8

Foi Ezra Pound (1970) quem apregoou que a grande literatura carregava em si o
mximo de significao. Do mesmo modo, para Raduan Nassar, o bom escritor deve mexer
com a gema e no s a casca (p. 24), conforme podemos constatar na entrevista concedida a
Cadernos de Literatura Brasileira, nmero 2 do Instituto Moreira Salles. Ou seja, o bom
autor deve trabalhar o nvel semntico e no apenas o nvel formal (sons, grafias, sintaxes,
pontuao, ritmo).
Tambm para o autor de Um copo de Clera, melhor explorar mais a idia do que
o plano conceitual (palavras cotidianas, rima comum, sintaxe simples), sem qualquer artifcio
de enunciado, pois, s vezes, isso o suficiente para provocar o fascnio do leitor no contexto
da obra. Dessa forma, para Nassar, a boa prosa a potica: a literatura que nos acompanha
so a dos artistas dos significados.9 (p. 24)

Nassar, em entrevista que concedeu a Maria Jos Cardoso Lemos (s.d), em fevereiro de 2003, assegura
que no conheceu Xidieh.
9

Entrevista concedida a Cadernos de Literatura Brasileira. 2.

22

2.2 As obras
2.2.1. Lavoura Arcaica

Lavoura arcaica (1989) narra uma tragdia familiar em primeira pessoa, atravs
do discurso de Andr, o filho tresmalhado. A densa narrativa remonta parbola do Filho
Prdigo, num misto de tom bblico e helnico, como nos lembra Tristo de Athayde (1996),
em que o Destino Implacvel conflitua com a idia regeneradora do Amor. Tanto o tom misto
de vrias geografias quanto a idia do destino (contida na palavra rabe Maktub e traduzida
como est escrito em nota do prprio autor) esto contidos no trecho abaixo em que Andr
dedica memria do av: (...) o av, ao contrrio dos discernimentos promscuos do pai
em que apareciam enxertos de vrias geografias, respondia sempre com o arroto tosco que
valia por todas as cincias, por todas as igrejas e por todos os sermes do pai: Maktub.
(NASSAR, 1989, p. 91)
Desse modo, o enredo de Lavoura arcaica (1989) inicia-se com o narradorpersonagem deitado no cho do quarto de uma penso interiorana, enquanto chega Pedro, o
irmo mais velho, que vai em busca do irmo prdigo. atravs desse encontro que aquele
personagem e o leitor iro descobrir as motivaes que levaram Andr a buscar um exlio fora
da casa paterna. Aps Pedro conseguir convencer o irmo, ambos retornam ao contexto
familiar. Como nos evidencia o narrador: Pedro cumprira sua misso me devolvendo ao seio
da famlia (1989, p.149).
Referindo-se ao contexto familiar, Octvio Ianni (1991, p. 02) considera Lavoura
arcaica como uma alegoria em que a famlia uma figurao da sociedade. Esse carter
representativo de Mise en Abyme seria marcado pelo circuito fechado da famlia patriarcal
dentro do circuito fechado da sociedade. A famlia ento uma estrutura que se implode, j
23

a sociedade se reparte em pedaos estranhos.


Na obra em estudo, Andr, o protagonista, um jovem que resolve abandonar sua
famlia por um motivo de incio oculto ao leitor: o incesto ocorrido com a irm Ana, fato que
posteriormente desencandear a runa do cl. Ao fugir, Andr parece pr em xeque um
suposto equilbrio familiar, baseado em uma estrutura patriarcal aniquiladora, em que a
palavra do pai mostra-se ineficaz e o resultado possui um tom de tragdia: o pai mata a filha
Ana, ao saber sobre o incesto, e depois, de modo no explcito no livro, tambm acaba por
perder a vida.
A volta de Andr ao lar traz uma aparente, porm suspeita, paz ao ambiente j
conturbado das relaes familiares. Entretanto, tal retorno explicitar ainda mais os aspectos
pertinentes aos relacionamentos problemticos entre os membros da famlia, j inicialmente
delineados pelo discurso de Andr:se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um
templo, a me, transbordando no seu afeto, s conseguiu fazer dela uma casa de perdio
(NASSAR, 1989, p. 136)
Alm da me, do pai e de Pedro devemos destacar tambm a influncia de Andr
sobre outros personagens como, por exemplo, o caula Lula, que tambm pretende, a exemplo
do protagonista, abandonar a casa em busca de um mundo que promete uma possvel
liberdade como comprovado com o trecho abaixo, num dilogo entre os dois irmos:

Vou sair de casa, Andr, amanh, no meio da tua festa, mas isso eu s
estou contando pra voc.
Fale baixo, Lula.
No agento mais esta priso, no agento mais os sermes do pai, nem
o trabalho que me do, e nem a vigilncia de Pedro em cima do que
fao, quero ser dono dos meus prprios passos; no nasci pra viver aqui,
sinto nojo dos nossos rebanhos, no gosto de trabalhar na terra, nem nos
dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, no agento mais a vida
parada desta fazenda imunda...
Fale baixo, eu j disse.
S foi voc partir, Andr, e eu j vivia empoleirado l na porteira,
sonhando com estradas, esticando os olhos at onde eu podia, era s na
tua aventura que eu pensava... Quero conhecer muitas cidades, quero

24

correr todo este mundo, vou trocar meu embornal por uma mochila, vou
me transformar num andarilho que vai de praa em praa cruzando as
ruas feito vagabundo; quero conhecer tambm os lugares mais proibidos,
desses lugares onde os bandidos se encontram, onde se joga s a
dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se cometem todos os vcios,
onde os criminosos tramam seus crimes, vou ter a companhia de
mulheres, quero ser conhecido nos bordis e nos becos onde os
mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu
prprio corpo. (...) ( NASSAR, 1989, pp. 179-180)

Desse modo, influenciando aos outros membros da casa paterna, Andr um


adolescente que, ao reivindicar os direitos de uso do corpo e ao corromper a prdica do pai,
tece discursos grandiosos e inflamados. De acordo com Simon Blackburn (2005), Scrates
fala que Diotima lhe ensinou que no comeo, quando algum jovem, ele (ou ela, podemos
acrescentar) atrado por corpos bonitos. Nesse momento, esse jovem dever amar somente
um corpo e nesse relacionamento produzir belos discursos ( p. 53). Entretanto, a juventude
de Andr parece querer bem mais que apenas um corpo, pois alm do incesto hetero e
homossexual com os irmos, o rapaz relembra a sua iniciao sexual com prostitutas e
animais da fazenda. Para ilustrarmos melhor, escolhemos transcrever abaixo um trecho do
captulo 4, em que Andr parece narrar sutilmente um ato sexual com a cabra Sudanesa (ou
Schuda), principalmente configurado nas ltimas linhas:

e, nesse tempo, adolescente tmido, dei os primeiros passos fora do meu


recolhimento: sa da minha vadiagem e, sacrlego, me nomeei seu pastor
lrico: aprimorei suas formas, dei brilho ao seu plo, dei-lhe colares de
flores, enrolei no seu pescoo longos metros de cip-de-so-caetano, com
seus frutos berrantes e pendentes como se fossem sinos; Schuda, paciente,
mais generosa, quando uma haste mais tmida, misteriosa e lbrica, buscava
no intercurso o concurso do seu corpo. (NASSAR, 1989, p. 21)

De acordo com Pinto (1995), em dissertao sobre tal obra de Nassar, Lavoura
arcaica pode ser considerada um Iceberg, pois o livro apenas encosta-se em outros pedaos de
textos, distanciando-se de outras obras produzidas no Brasil, principalmente em relao ao
suporte bblico, questo do sujeito e tradio parricida.
25

Outro estudioso, Octvio de Faria, tambm atenta para o carter de ruptura


levantado por Raduan Nassar. Lavoura arcaica considerado por Faria (1976) um romance
sui generis dentro da Literatura Brasileira, inclusive no reconhecendo influncias
flagrantes que permeiam a obra, seno vagamente Cornlio Pena, Mrio Peixoto e Paulo
Novaes.
A tcnica de narrativa usada por Nassar o fluxo de conscincia10. Para tanto,
conforme j sublinhamos, o enredo de Lavoura arcaica conduzido em primeira-pessoa por
Andr, personagem que representa uma outra verso do filho prdigo. Tal figura dramtica a
responsvel pelo incesto e pelo desenrolar da tragdia familiar narrada na obra. Desse modo,
Andr o narrador, o que vive o drama e o que reflete sobre ele. Ou seja, o emissor ao
mesmo tempo - o discurso que emite e aquele que ouve. o duplo, o ambguo, que vive e se
comunica, pois atravs do discurso que ele se depara com sua prpria ambivalncia, conforme
abordaremos no ltimo captulo do nosso trabalho.
alis, no tocante ao fluxo de conscincia que percebemos no livro caractersticas
expressionistas11. Esta faceta expressionista, questionadora da insuficincia da palavra,
tambm aparece quando constatamos o estilo abstrato e simblico, prprio das narrativas
psicolgicas, e a realidade interpretada atravs do que se passa no interior das personagens em
detrimento da descrio dessa mesma realidade.
10

De acordo com Jean Pouillon (1974, pp. 39-49), o fluxo de conscincia seria uma busca de unio at
certo ponto ilusria entre a dimenso espao-temporal externa e a ordem do discurso interna que surge na
literatura como aparentemente ilgica. Tal tcnica foi empregada pela primeira vez em 1888 no romance
Ls Lauries Sont Coups de Eduard Dujardin, depois sendo utilizada por grandes nomes da lngua inglesa
como James Joyce e Virginia Woolf. No Brasil, a crtica ressalta bons exemplos em Clarice Lispector e
Autran Dourado. O fluxo de Conscincia rompe com limites espao-temporais e com as regras do realismo
literrio, pois abandona o fluxo linear da narrativa, atravs do monlogo interior, que seria, segundo
Scholes e Kellogg (apud CARVALHO, 1981, p. 52), a apresentao direta e imediata, na literatura
narrativa, dos pensamentos no falados de um personagem, sem a interveno de narrador.
11

Segundo Hertz (s.d, p. 01): a literatura expressionista se constri exatamente a partir das fissuras e
insuficincias da palavra, como constatamos nas obras de alguns escritores brasileiros, que acreditamos que
possuam caractersticas expressionistas, como Cornlio Penna, Mrio Peixoto, Lcio Cardoso e o prprio
Octvio de Faria, que realizaram uma literatura modernista que dista bastante da corrente regionalista do
modernismo brasileiro da dcada de 1930.
26

Dessa maneira, pelo desenvolvimento dos monlogos interiores de Andr no


romance, que se apresenta um tabuleiro que o leitor vai montando feito um desenho de
mosaicos acerca da personalidade dos outros personagens, da tessitura das intrigas e do
desenrolar da ao da narrativa pela sucesso de acontecimentos apresentadas na esfera da
narrativa. Tambm a partir desse foco narrativo, baseado na perspectiva de Andr, que o
leitor pode desconfiar das descries dbias do narrador, quando, por exemplo, em relao
Ana, ele nos apresenta a irm, ora de uma forma sacralizada, ora de um modo demonaco,
como ser abordado mais detalhadamente adiante.
Dentro do que concerne as obras nassarianas, somando-se fora da linguagem
obtida pela extrema carga lrica do texto, h a presena de extensos pargrafos, nos quais,
segundo Leyla Perrone-Moiss (1996), impressionam a riqueza e a preciso das metforas,
bem como o esplio vocabular do texto, conforme constatamos na leitura do texto abaixo, em
que Andr fala do cdigo de conduta exigido pelo pai:

(... ) e enxergando os utenslios, e mais o vesturio da famlia, que escuto


vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a
gua transparente que ainda brota l do fundo; e recuo em nossas fadigas, e
recuo em tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um,
os ossos sublimes do nosso cdigo de conduta: o excesso proibido, o zelo
uma exigncia, e, condenado como vcio, a prdica constante contra o
desperdcio, apontando sempre como ofensa grave ao trabalho; e reencontro
a mensagem morna dos cenhos e sobrolhos, e as nossas vergonhas nos
traindo no rubor das faces, e a angstia cida de um pito vindo a propsito, e
uma disciplina s vezes descarnada, e tambm uma escola de meninosartesos, defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas
prprias mos, e uma lei mais rgida, dispondo que era l mesmo na fazenda
que devia ser amassado o nosso po: nunca tivemos outro em nossa mesa
que no fosse o po-da-casa, e era na hora de reparti-lo que concluamos,
trs vezes ao dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era tambm na
mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazamos de olhos baixos o
nosso aprendizado da justia.) (NASSAR, 1989, p. 78)

27

Para Consuelo de Castro (2003, p. 160) sobre um trecho do nosso livro em estudo:

Era de uma aspereza, de uma economia de verbo to grande e, no entanto ou por isso mesmo -, de uma poesia quase inacreditvel. As palavras tinham
msica, tinham um poder de fogo, entravam na gente. O teatro poesia.
No estou falando da poesia disposta de modo literrio, mas da poesia em
si, da sua essncia.

Outra marca relevante no estilo de Nassar a densidade subjetiva presente em


toda a sua obra. Sobre Lavoura arcaica, enaltece Deise Ellen Piatti, no artigo Narrao e
memria em Lavoura arcaica :

Dentre os inmeros artigos, matrias jornalsticas, ensaios etc. que falam


acerca de Lavoura arcaica, tanto da obra literria de Raduan Nassar como
do filme de Luis Fernando Carvalho, vimos que estes textos, em sua grande
maioria, traziam uma frase que se tornou quase que lugar comum em se
tratando das obras: Nos faltam adjetivos para expressar aquilo que
sentimos diante do filme ou diante desta obra-prima da literatura. E de
fato assim o . No nos contentamos em dizer que aquilo que vemos,
ouvimos e lemos em Lavoura arcaica lindo, belo, forte,
emocionante. (PIATTI, [s.d], p. 05)

Sem uma diretriz cronolgica definida, a narrativa, revelada atravs da perspectiva


do narrador Andr, delineada tanto sob o aspecto espacial (primeiramente longe da famlia,
em uma penso interiorana, e depois na fazenda, perpassando tambm por um bordel) como
tambm se d sob o aspecto temporal, atravs do recurso do flashback. Desse modo, na
primeira parte do romance, Andr recolhe lembranas misturadas no tempo e no espao, em
que parece que forma e contedo se confundem. Assim, ao falar de um tempo personificado e
dar sequncia narrativa temporal no captulo que narra a cena do incesto, Andr mistura
inmeros tempos e aspectos verbais (presente, pretrito e gerndio), fala do espao da casa
velha e ainda denuncia o carter corrosivo do verbo e o mascaramento a que ele induz sobre o
desejo de fantasias desesperadas:

28

O tempo, o tempo verstil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava


comigo, o tempo se espreguiava provocadoramente, era um tempo s de
esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros; era um tempo tambm
de sobressaltos, me embaralhando rudos, confundindo minhas antenas, me
levando a ouvir claramente acenos imaginrios, me despertando com a
gravidade de um julgamento mais spero, eu estou louco! E que saliva mais
corrosiva a desse verbo, me lambendo de fantasias desesperadas, compondo
mscaras terrveis na minha cara, me atirando, s vezes mais doces, em
prembulos afetivos de uma orgia religiosa (...) voltando ao quarto onde eu
ficava, mal entrei voei para a janela, espiando atravs da fresta (Deus!): ela
estava l (...) (NASSAR, 1989, pp. 95-96)

Enquanto um longo discurso deflagrado pelo encontro com Pedro, em que Andr
narra o que aconteceu antes da partida, o leitor vai tomando conhecimento da transgresso da
relao incestuosa, da rebelio contra a palavra e a lei do pai, da revolta escondida no silncio
imposto pela famlia, das motivaes do protagonista ao evidenciar que a opresso sofrida no
interior da casa impunha o distanciamento bem mais que espacial: desde minha fuga, era
calando minha revolta (tinha contundncia meu silncio! Tinha textura a minha raiva!) que
eu, a cada passo, me distanciava l da fazenda (...)(NASSAR, 1989, p. 35)
Entretanto, embora Andr ocupe o lugar do narrador, ele tem seu foco narrativo
invadido pelo pai, atravs das recordaes dos sermes feitos mesa e do dilogo final entre
pai e filho no livro, e da voz de Pedro, nos dilogos na penso. Aps o retorno para casa, na
segunda parte de Lavoura arcaica, os acontecimentos deixam de ser trazidos tona pelo
recurso do flashback e tornam-se contemporneos ao tempo da narrativa, at o momento em
que ocorre um ruptura atravs da morte do pai, em que a narrativa torna ao tom de memria:
(Em memria de meu pai, transcrevo suas palavras (...) (NASSAR, 1989, p. 195)
O livro ainda um romance que levanta indagaes existenciais, possuindo ainda
traos maneiristas (o jogo ininterrupto entre visvel e oculto; a transitoriedade das coisas
humanas e o engano/desengano da vida). H tambm nuances barrocas, com a intensificao
da descrio dos pormenores, e naturalistas, ao dar nfase aos aspectos cruis e dolorosos do
desejo. Porm, se formos enfatizar a estrutura da obra, perceberemos delineaes que
29

descambam para tons trgicos do gnero dramtico, pois temos, no livro em questo, no a
imitao do homem, mas a imitao da ao e da vida sobre o homem, j que como nos
lembra Aristteles (1989, p. 21):

A tragdia uma representao, no de homens, mas de ao e vida, de


felicidade e infortnio - e a felicidade e o infortnio esto relacionados com
a ao. A finalidade da vida um objeto que no uma espcie de atividade,
e sim de qualidade; , na realidade, o carter que faz dos homens o que so,
mas em virtude de suas aes que eles se tornam felizes ou infortunados.

A tragdia grega configura-se como a primeira manifestao estruturada do teatro,


pressupondo um modelo cannico que encontrou na Arte Potica, de Aristteles, seu primeiro
grande registro formal. Para Aristteles (1989, pp. 20-21), a tragdia a representao de uma
ao digna de ateno, completa em si mesma e de alguma amplitude; escrita em linguagem
enriquecida por uma variedade de recursos artsticos adequados s diversas partes da pea,
apresentada em forma de ao, e no de narrao, sob a influncia da piedade e do medo12,
provocando a purgao de tais emoes.
Aristteles (1989) ressalta que so as caractersticas que do aos homens as suas
qualidades, mas so os seus atos que os tornam felizes ou miserveis. Para o filsofo grego,
um heri trgico seria um homem cuja infelicidade o atinge no atravs do vcio ou
devassido, mas em consequncia de algum erro.
Ainda segundo Aristteles (1989), dentro do roteiro da tragdia, o heri sofre um

12

De acordo com Camille Paglia (1992, p.17): A tragdia o mais ocidental dos gneros literrios. S
apareceu no Japo no final do sculo XIX. A vontade ocidental, insurgindo-se contra a natureza, dramatizou
sua prpria e inevitvel queda como um componente humano universal, o que ela no . Uma das ironias
da histria literria o nascimento da tragdia no culto de Dioniso. A destruio do protagonista lembra a
matana e, anteriormente, de seres humanos reais em rituais arcaicos. No por acaso que a tragdia, como
a conhecemos, data do apolneo sculo V a.C da grandeza de Atenas, cuja obra fundamental a Orstia, de
squilo, celebrao da derrota do poder ctnico. O drama, genro dionisaco, voltou-se contra Dioniso ao
passar da Mimese para o ritual, ou seja, da ao para a apresentao. O piedade e medo de Aristteles
uma promessa quebrada, um pedido de viso sem horror.

30

reverso no seu destino: a hamartia13, que o elemento que conduz o personagem ao fracasso
em conseqncia de um erro, sendo definida como resultado de uma ao concretizada ou um
ato falho. A hamartia pode ser o resultado de um juzo errneo, de ignorncia, da transgresso
de algum ato ou quaisquer outras causas.
Um exemplo comum de hamartia, nas tragdias gregas, era o pecado contra a
hybris. Por exemplo, em dipo Rei, de Sfocles, o orgulho de dipo o levara a cumprir as
profecias do orculo: assassinar o pai e desposar Jocasta, sua me. Desse modo, o orgulho de
dipo, sua hybris, o levar desgraa, arrematada pela cegueira fsica. Hybris seria a
transgresso feita contra a ordem social, as leis morais vigentes na polis e as proibies dos
deuses causada pela hamartia, que tambm pode ser simplesmente o orgulho ou excesso de
auto-confiana que conduz o protagonista a desobedecer aos avisos divinos ou a violar
qualquer importante lei moral. Em suma, a hybris conduz inevitvel punio tambm de
uma desmesura na composio do carter (Hamartia).
Na perspectiva trgica aristotlica, o foco o homem em conflito com o mundo
em que se insere, como acontece com Andr ao no aceitar a rigidez familiar autoritria. Se
hybris pode ser definida como o orgulho desmedido e a insolncia excessiva, testemunhamos
bem isso nas palavras do protagonista:

(...) eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sbia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a
sade da famlia, que os meus remdios no foram jamais inscritos nos
compndios, mas que existia uma outra medicina ( a minha!), e que fora de
mim eu no reconhecia qualquer cincia, e que era tudo s uma questo de
perspectiva, e que o valia era o meu e s o meu ponto de vista (...)
(NASSAR, 1989, p.111)

Em Lavoura arcaica, podemos perceber elementos de arqutipo trgico. A partir


de sua hamartia, ento, o heri ultrapassa seu mtron (a medida de cada um), na desordem
13

Recordamos que a mesma palavra Hamartia, j em grego quer dizer erro. Em suma, a hybris conduz
inevitvel punio tambm de uma desmesura na composio (Hamartia).

31

instaurada por ele e no desequilbrio familiar provocado por sua fuga da casa paterna, ponto
de partida da narrativa, levando a uma desmedida (hybris). Atravs de suas aes, vemos que
Andr incorre na falha, a insolncia excessiva contra o pai o leva a cometer o incesto. Depois,
temos a configurao do crime de sangue com o suposto assassinato de Ana pelo patriarca e
a conseqente morte deste, fato deflagrado pela cincia do ato incestuoso atravs da confisso
feita por Pedro.
Destarte, como o enredo do livro remete aos textos trgicos mediterrneos atravs
de uma linguagem de estilo exaltadamente lrico, o tom usado na narrativa o sublime14,
como ressalta Perrone-Moiss (1996, p. 66), o que podemos atestar no lirismo presente em
todo o livro, conforme o excerto:

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num stio l do bosque que eu
escapava aos olhos apreensivos da famlia; amainava a febre de meus ps na
terra mida, cobria meu corpo de folhas e, deitado sombra, eu dormia na
postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso do boto vermelho;
no eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silncio
e cheios de pacincia meu sonho adolescente? (NASSAR, 1989, p.13)

O livro composto por trinta captulos, sendo que vinte e um compem a primeira
parte, chamada A partida e apenas nove constituem a segunda parte intitulada O retorno.
O livro numerado no apenas para indicar a sucesso do tempo; mas tambm como para
representar a impossibilidade de um perfeito recomeo, como ressalta Perrone-Moiss (1996,

14

Aqui usamos o termo sublime conforme a conceituao de Andra Peixoto (2005, p. 01), atravs da
anlise de Longino a Kant, perpassando por Peter Burke, o termo : associado grandiosidade,
elevao e transcendncia. (...) Foi primeiro usado como um termo retrico, dizendo respeito a
determinadas qualidades que uma obra literria possui que possam transmitir ao leitor o xtase e levar
os seus pensamentos a um plano mais elevado. (...) O seu uso inicial diz respeito linguagem ou ao
estilo exaltado e mais tarde percepo fsica. Na filosofia de Kant, o sublime uma mistura de prazer
e dor que se sente quando se est face a algo de grande magnitude. Pode-se ter uma idia de tal
magnitude, mas no se consegue fazer igualar essa idia com uma intuio sensorial imediata. Isto
deve-se ao facto de os objectos sublimes ultrapassarem as capacidades sensoriais. Um exemplo de
sublime, para Kant, seria uma montanha. Pode-se ter idia de uma montanha, mas no intuio sensorial
dela como um todo. (...)

32

p.62). Cada captulo constitui um nico pargrafo escassamente pontuado e, por vezes,
extenso.
De tal modo, conforme se pode confirmar no grfico I15, temos captulospargrafo que variam de trinta pginas a trs linhas. Por conseguinte, a fim de ilustrarmos,
transcrevemos todo o captulo vigsimo oitavo: A terra, o trigo, o po, a mesa, a famlia (a
terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermes, amor, trabalho, tempo. (p.183).
Tematicamente, como j dissemos, a obra tem uma influncia dos textos sagrados
como a Bblia e o Alcoro. Dos textos bblicos, marcante a presena de ressos do
Eclesiastes atravs da demonstrao da impossibilidade de se encontrar o absoluto, de ter
Deus como guia para nos ensinar o caminho da sabedoria, principalmente em relao a um
dos temas principais abordados em Lavoura Arcaica: o tempo. Vejamos um trecho retirado do
captulo 3, do livro dos Eclesiastes, que confirma tal acepo16:

Tempo para tudo:


Tudo neste mundo tem o seu tempo;
Cada coisa tem a sua ocasio. (...)
Tempo de plantar e tempo de arrancar;
(...) tempo de derrubar e tempo de construir.
H tempo de ficar triste e se alegrar;
Tempo de chorar e tempo de danar;
Tempo de espalhar as pedras e tempo de ajunt-las;
Tempo de abraar e tempo de afastar.
H tempo de procurar e tempo de perder;
(...) tempo de rasgar e tempo de remendar;
Tempo de ficar calado e tempo de falar.
H tempo de amar e tempo de odiar;
Tempo de guerra e tempo de paz. (BBLIA, 2002, p. 441)

Para efeito de cotejo, leiamos um excerto das pregaes do pai sobre o tempo:
O tempo o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora
15

16

Em anexo.
Embora o tema do tempo seja um dos mais ricos a ser explorado em Lavoura arcaica, apenas o
citamos aqui a ttulo de ilustrao, tendo em vista no ser este o enfoque principal do nosso trabalho.

33

inconsumvel, o tempo o nosso melhor alimento; sem medida que o


conhea, o tempo contudo nosso bem de maior grandeza: no tem
comeo, no tem fim; um pomo extico que no pode ser repartido,
podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo
est em tudo. (NASSAR, 1989, p. 53-54).

Segundo Leonardo Boff (2001), em depoimento sobre Lavoura Arcaica,


concedido ao diretor da verso cinematogrfica homnima do livro de Nassar, a parbola de
Andr tem forte influncia de Heidegger e sua concepo do tempo no-cronolgico. Assim,
Boff fala-nos que a densidade do tempo uma espcie de imerso na eternidade, chamado por
Heidegger de Kairs (tempo denso, mido). Tal afirmao possvel de ser feita
principalmente no cotejo da frase final da obra, substituindo a expresso estamos indo de
volta para casa17 por : (...) o gado sempre vai ao poo. ( Nassar, 1989, p. 196).
Boff (2001) atenta ainda para o fato da expresso ir para casa em alemo ser
Geheimnis, palavra chave para o pensamento de Heidegger. Filologicamente heim casa,
gehen ir - ir na direo de casa. Em alemo, Geheimnis tambm pode ser traduzido por
mistrio. Assim vlido salientar que, para o universo nassariano, o mistrio no seria oposto
razo, nem um quebra-cabea. Ele seria a profundidade presente em toda realidade.

2.2.2. Um Copo de Clera

Um Copo de Clera18, publicada em 1978, traz a lume um estilo que se distancia


um tanto do primeiro livro de Nassar. Com um tema mais atual e corriqueiro, a novela,
17

Segundo Leyla Perrone-Moiss, essa na verdade seria uma influncia de Novalis. Novalis o pseudnimo
do escritor Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, por vezes chamado do profeta do Romantismo Alemo.
Em 1800, escreve Hymnen an die Nacht (Hinos Noite), a sua nica coleo acabada de poemas dedicado
Sophie von Khn, a noiva morta prematuramente aos 15 anos de idade. O conjunto de seis prosas e versos
lricos foi publicado na Athenum, uma revista literria editada pelos irmos August Wilhelm Schlegel e
Friedrich Schlegel.

18

Embora no seja o foco do nosso trabalho, entendemos como algo interessante nos debruarmos um pouco
sobre o livro Um Copo de Clera, a fim de elaborarmos um panorama mais rico das obras de Nassar, at
mesmo por, em tal obra, existirem inmeros pontos de contato com o nosso objeto de estudo: Lavoura
arcaica.

34

narrada em primeira pessoa, oscila dentro de um discurso existencial, filosfico e poltico,


como bem nos lembra Perrone-Moiss (1996), desencadeado por uma briga de casal,
revelando vrias facetas dos antagonismos presentes na sociedade: anarquista contra
reformista, individualista contra populista, macho contra feminista etc (p. 67).
Quanto estrutura da narrativa de tal novela, o autor d ao primeiro e ltimo
captulos o mesmo nome, configurando um aspecto de circularidade. ainda atravs de um
ritmo de fluxo da conscincia que o leitor toma conhecimento de um incidente trivial
(formigas comendo uma cerca-viva) que vai desencadear uma briga entre um casal,
deflagrada em um jorro verbal masculino.

Desse modo, o receptor passa ento a ser um

espectador do universo privado e subjetivo dos personagens. A representao aqui se d pela


espetacularizao do privado, pois o narrador-personagem faz explicitamente uma
equivalncia entre sua vida particular e uma pea de teatro em diversas passagens: (...) um
ator em carne viva, em absoluta solido sem platia, sem palco, sem luzes, debaixo de um
sol j glorioso e indiferente s voltas cuma zoeira de sangues e vozes, s voltas tambm
com cascalhos mais remotos (NASSAR, 1992, p. 72)
O segundo livro de Nassar tambm pode ser encarado seguindo-se os dois eixos,
j citados, presentes em Lavoura arcaica. A leitura sociolgica e histrica pode ser
fundamentada no discurso unilateral da ditadura militar, vivida na poca em que o autor
escreveu e publicou essa obra, que contamina o eixo individual pelo discurso do poder.
Segundo Roland Barthes (1989, p.17), As foras de liberdade que residem na literatura no
dependem da pessoa civil, do engajamento poltico do escritor que, afinal, apenas um
senhor entre outros, nem mesmo do contedo doutrinal da sua obra, mas do trabalho de
deslocamento que ele exerce sobre a lngua.
Assim, a originalidade do autor pe sua literatura engajada longe daquela
estereotipada por outros autores de sua gerao, atravs de um mtodo literrio crtico
35

fundamentado nas palavras unicamente dos personagens, conforme vemos no discurso do


protagonista de Um Copo de Clera (1999, p. 67): (...) confesso que em certos momentos
viro um fascista, viro e sei que virei, mas voc tambm vira fascista, exatamente como eu, s
que voc vira e no sabe que virou; (...) no h nada que esteja mais em moda hoje em dia do
que ser fascista em nome da razo. Como ainda ressalta Perrone-Moiss (1996, p. 69), a
literatura nassariana configura: (....) um engajamento no combate aos abusos do poder, em
defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem em que a arte no faz concesses
mensagem (...).
O livro tambm se aproxima da representao alegrica abrangente dos conflitos
de gneros sexuais, ao longo do tempo, e o questionamento dos papis exercidos na sociedade
entre homem e mulher. vlido destacar o fato de que os protagonistas so annimos na
narrativa. A prerrogativa da alegoria se torna mais evidente se nos determos ao tpico relativo
esta questo de onomstica. Segundo Pires (1988, p. 78), Umberto Eco fala-nos da
necessidade de um nome prprio para revelar algo peculiar da personagem. O estudioso
tambm afirma que Hegel adverte-nos ao fato de Ado demonstrar seu domnio sobre os
animais ao dar-lhes um nome, ou seja, tirou-os da categoria do sendo e dotou-lhes
condio de seres ideias em si. Ora, se um nome prprio pode ser validado como um esboo
inicial de referenciao do personagem para design-lo e sugerir uma individuao, Nassar
aqui inverte o ato de Ado: tira-lhes a condio de seres e lana-lhes ao sendo.
Assim, em Um Copo de Clera, o leitor tambm se depara com uma atmosfera em
que, ao mesmo tempo que a ausncia de nomes universaliza a narrativa, h uma falta de
presena simblica, j que, segundo Lacan (1986), em Estudos Tcnicos sobre Freud, na
medida em que algo nomevel, ou passa a ser, torna-se sujeito presena simblica.19

19

Um exemplo clssico na Literatura Universal a Terra das Coisas-Sem-Nome de Alice no Pas das
Maravilhas, do ingls Lewis Carroll. Outro exemplo, porm em Literatura Portuguesa, o do romance
Hmus de Raul Brando, que s atribui a uma personagem de sua vila um nome prprio reconhecvel: Joana.

36

2.2.3. Cotejamento das obras

Os dois livros de Nassar possuem vrios pontos de contato. Ambos buscam um


espao privilegiado para o sujeito. Como salienta Jitrik (apud PEIXOTO, 2003, p. 95), uma
das caractersticas nas narraes contemporneas o que diz respeito s personagens que se
projetam em outras para achar uma resposta, numa busca obsessiva pela identidade.
Os sujeitos da obra de Nassar e as suas relaes com o mundo ao redor remetem
ao que assevera Fredric Jameson (1996, p. 155), em seu livro Ps-modernismo: a lgica
cultural do capitalismo tardio, sobre os nouveaux romans:

O sujeito certamente no um mero efeito do objeto, mas no seria to


errneo sugerir que a posio do sujeito exatamente esse efeito. Na mesma
chave, deve-se entender que o objeto aqui no significa um mero conjunto
perceptivo de coisas fsicas, mas uma configurao social ou conjunto de
relaes sociais (uma vez que mesmo a percepo fsica ou as experincias
aparentes mais bsicas do corpo ou da matria so medidas pelo social). O
que se conclui desse argumento no que o sujeito unificado seja irreal,
indesejvel ou inautntico, mas sim que ele depende, para a sua construo e
existncia, de um certo tipo de sociedade e que ameaado, corrudo,
problematizado ou fragmentado por outros tipos de arranjo social.

Assim, levando-se em considerao as palavras de Jameson, a subjetividade e a


desconfiana do leitor a respeito do embuste interpretativo dos personagens narradores seriam
atenuadas ao observarmos o ambiente em que eles se encontram no contexto social de cada
livro. Tanto o narrador de Lavoura arcaica quanto o de Um Copo de Clera encontram-se
num ambiente opressor da famlia contaminada por discursos autoritrios, em que o uso
particular do corpo de cada um afetado pelo social.
O autor portugus d aos outros personagens nomes caricatos como bibliotecria etc. Note-se tambm o
mesmo fenmeno em Ensaio sobre a Cegueira, de Jos Saramago, em que vemos a alienao, a falta de
certezas universais que exigem dos indivduos suas prprias afirmaes como centro de suas prprias
referncias, condio confirmada pela psicanalista Maria Rita kehl, no artigo intitulado A constituio
Literria do Sujeito Moderno.

37

Assim, o litigante dos dois livros de Nassar a questo da representao das


relaes afetivas: da paixo, do desejo e do desespero impostos pelo discurso do corpo e do
verbo. Ambas as obras possuem uma sensualidade exacerbada, uma intensa carga ertica
adensada interiormente na tipologia dos personagens. Tambm os protagonistas das duas
obras parecem querer o corpo antes da roupa (p. 45), como declara o narrador de Um Copo
de Clera. Alis, ser exatamente o tema do corpo que abordaremos no prximo captulo.

38

3. Corpo : o lugar primordial nas relaes de afeto


H cerca de dois mil anos, a tradio crist nos legou a mxima: o corpo o
templo de Deus, facilmente encontrada na citao da Bblia Sagrada no livro de Corntios,
do apstolo Paulo. Assim, o corpo constitui-se o lugar em que, contraditoriamente, abrigamos
o profano e o sagrado. Ora, de tal modo, sendo o templo um espao de culto, em que nos
debruamos, prostrando nossas angstias, desesperos, dvidas, desejos ardentes, certamente
o corpo, sujeito e objeto, que tangencia e encerra as vicissitudes humanas, principalmente
observadas quando nos referimos sexualidade dentro da histria social do homem.
Desse modo, aqui caberia lembrarmos uma citao do artista Armando Manacci,
enunciada no centro Cultural Drago do Mar em agosto de 2005, a respeito do corpo como
lugar, palco de interdio e liberdade dentro do binmio sociedade-sexualidade:

Como diz Foucault, o corpo o lugar de todas as interdies. Todas as


regras sociais tendem a construir um corpo pelo aspecto de mltiplas
determinaes. Toda a sociedade se constri sobre o controle da sexualidade
j que, como sabemos, a libido anrquica. Se ns no controlarmos a base
das pulses individuais, no poderemos construir outras leis. Ou, se ns s
podemos estar de acordo com Foucault ns poderamos nos lembrar de
Michel de Certeau, para quem diz que o corpo o lugar de cristalizao de
todas as interdies ele tambm o lugar de todas as liberdades.

Debater e definir as posies que o corpo desenvolve e desenvolveu na histria


humana sempre representou um tabu nas esferas sociais, especialmente quando se pensava na
dicotomia corpo e mente (ou alma) como instncias diversas do ser humano para justificar
certos comportamentos na civilizao ocidental, notadamente baseados num discurso de
origem masculina.
39

Desse modo, j no sculo XVI, Ren Descartes dividia o Ser Pensante, o sujeito,
em dois tipos de substncias: o mbito fsico e o mental ou espiritual. Essa oposio
direta no permitiria, a priori, uma identificao entre ambas, colocando em instncias
diversas o corpo e a mente. Tal relao entre res cogitans et res extensa s foi reelaborada
anos depois, principalmente pela Psicanlise.
Na Idade Mdia, a concepo do corpo era resultado de varias tenses: entre Deus
e o Homem20; a razo e a f; a cidade e o campo; a riqueza e a pobreza; tempos de violncia e
de paz e, obviamente, entre o homem e a mulher. Para Matos e Gentile (2004), como "lugar
de tentaes", o corpo era considerado perigoso, principalmente o feminino, conforme
abordaremos mais adiante. No entanto, como caracterstico da era medieval, a tenso
principal existente era entre o corpo e a alma ou a relao que o homem tinha com seu prprio
corpo. Vemos bem esta questo conflituosa dentro da esfera comportamental medieval em
sesses de penitncia corporal, tendo em vista que a salvao espiritual do mundo cristo era
perpassada pela idia de sofrimento do corpo.
A exemplo do que foi acima citado, temos o postulado pelo papa Gregrio que
definia o corpo como o abominvel revestimento da alma. As principais virtudes, quela
poca, eram a abstinncia e a continncia, j que os pecados mais graves eram a gula e a
luxria. Um dos exemplos mais visveis desse perodo era o uso do Silcio um instrumento
com cravas de metal utilizado para mutilar a parte superior da perna. Como meio de purificar
o corpo, o cristo apertava a coxa com o aparelho, quando se sentia ameaado por qualquer
pensamento pecaminoso, com o objetivo de ferir a prpria carne. Tendo em vista que, de
acordo com a mentalidade medieval, o corpo era inseparvel da alma, o indivduo punia os
desejos do corpo para alcanar os pensamentos da alma.

20

Ao mesmo tempo em que o corpo possui um papel do que conduz o homem ao pecado, ser no perodo
medieval que, segundo Besen (2004), a festa de Corpus Christi nascer com a finalidade de fazer a
adorao pblica do corpo de Cristo, representada pela Hstia consagrada.

40

Segundo Joo Carlos Rodrigues (1999), a tortura presente na Idade Mdia era
justificada como uma ao sobre o esprito por meio do corpo. A dor fsica era denominada
por termos que designavam tambm amargura, tristeza, solido e luto, entre outros estados
no necessariamente ligados pura corporalidade, especialmente na poca da Inquisio. s
vezes, como complementa Garcia (1997), a tortura at a morte de um indivduo herege no
era suficiente.
Seguindo a linha de pensamento de que morrer no significava o fim das mazelas
emanadas por tais pessoas, havia a necessidade do ritual da cremao, para que a matria
fosse totalmente purificada. Era preciso destruir completamente o corpo sepultado, pois,
sendo uma substncia material que continuava a existir fisicamente, representava ainda a
presena dos atos e pensamentos de heresia.
No sculo VI, o corpo e seu uso mencionado, por vrios autores, sempre
relacionado com a esfera dos vcios. Assim, segundo Schmitt (1995), em Pomerius ele
relacionado com a gula; em Cassiano liga-se fornicao e o orgulho est presente em
Gregrio. Entretanto, na Baixa Idade Mdia, a representao do corpo sofre uma mudana,
possibilitada pelo desenvolvimento do direito de ser tambm meio e lugar de salvao do
homem, rompendo o status de apenas representar a priso da alma.
Ainda segundo Jean-Claude Schmitt (1995), na baixa Idade Mdia, a ateno aos
gestos corporais renovada. O autor explica que a palavra latina gestus significava os
movimentos e as atitudes do corpo em geral, no sendo determinada apenas pelo gesto
particular. J na Alta Idade Mdia, tal conotao da palavra gestus e as reflexes relacionadas
a ela tm seu uso reduzido e vai desaparecendo aos poucos. Pensar a respeito do gesto como
objeto de reflexo tica e comportamental ser mais focalizada no chamado Renascimento
Intelectual do sculo XII21.

21

Segundo Giuliano Finatti (1978), o Renascimento do sculo XII foi num conjunto de transformaes

41

Dentro do contexto da chamada Literatura Moral do perodo, Schmitt cita a


existncia de Tratados de edificaes escritos especialmente para soberanos. Assim, para o
rei Miro de Galcia, o bispo Martim de Braga recomenda discrio (continentia), em que,
dentre vrios exemplos, a linguagem, a alimentao, o riso e o andar deveriam ser realizados
sem tumulto.
Tambm defendido pelo autor romano Ccero, em On Duties (1991), os gestos
corporais deveriam ser contidos como um reflexo da excelncia do esprito: os movimentos e
as atitudes do corpo, o caminhar, a maneira de sentar, de se inclinar mesa, o rosto, os
olhos, o movimento das mos teriam de ser obrigatoriamente suaves para que o indivduo
fosse visto como bom e puro: que a face seja bem reta, que os lbios no se contoram, que
uma abertura imoderada no distenda a boca, que o rosto no se volte para trs, que os
olhos no mergulhem em direo ao sol, que a nuca no se incline, que as sobrancelhas no
estejam nem levantadas, nem cadas.
No Renascimento, com a mudana de pensamento, o corpo ganha uma maior
liberdade. Como ressalta Carlos Eduardo Matos e Paola Gentile (2004), a influncia atingiu a
concepo artstica de pintores, escultores e artistas em geral, que retomaram os padres
ligados ao Antropocentrismo da Antigidade Clssica em suas obras. Em decorrncia desse
fenmeno, a arte renascentista celebrou e difundiu abertamente a beleza fsica e, com ela, o
corpo.

econmicas, sociais, polticas e culturais ocorridas na Europa ocidental, com a renovao da vida
urbana em torno dos castelos e mosteiros; as Cruzadas, a restaurao do comrcio com a emergncia da
burguesia e, principalmente, o renascimento cultural com uma maior base cientfica-filosfica, que
acarretou na Renascena Italaina, de propores eminentemente literrias e artsticas.

42

1. Nascimento de Vnus, de Sandro Boticelli ( 1485 d. C)

Considerando o que nos apresenta Carlos Faraco e Francisco Moura (1995), o


corpo nu renascentista mostra uma nova ideologia de mundo, a da concretude terrena, do
material. Sandro Boticelli com a tela Nascimento de Vnus, de 1485, remete a uma mulher
seminua e deslumbrante sada de uma concha. Tal representao do corpo feminino reflete o
abandono da idia de que a mulher estava sempre ligada culpa e ao pecado.Em relao ao
equilbrio e s propores da figura masculina, Matos e Gentile (2004) mencionam as obras
de Michelngelo como A criao do homem (pintura) e Davide (escultura). Em Leonardo da
Vinci, na gravura conhecida como O Homem Vitruviano (1492), vemos um homem nu no
centro do mundo, no representando mais um indivduo marcado pelo pecado, mas sim pela
pureza da criao.

43

2. O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci (1492 d. C)

No Modernismo, segundo nos lembra Lea Vergine (Apud Fontanive), o corpo do


artista foi totalmente sufocado, visto como um objeto fbico por excelncia. A explicao
seria que o corpo turbulenciaria a razo cartesiana:

Cartesio priva il corpo del suo mondo e lo relega nella res extensa, dove
questo definito come oggetto e decifrato, al pari di tutti i corpi, secondo le
leggi della fisica. Lanima, allopposto, libera dalla gravezza corporea, viene
intesa come puro intelletto, come Ego intersoggettivo, il quale d significato
al mondo e ai corpi che lo abitano.22

A interpretao para o fenmeno descrito acima ser um sujeito privado de


fisicidade. Isso vai significar uma represso do corpo manifesta, principalmente, na
22

Cartesio priva o corpo do seu mundo e o relega res extensa, onde este definido como objeto e
decifrado, a par de todos os corpos, segundo a lei da fsica. A alma, em oposto, liberada da gravidade
corprea, vem definida como intelecto puro, como Ego intersubjetivo, ao qual d significado ao mundo
e aos corpos que os abitam. (Traduo nossa)

44

incapacidade de reconhecer que todas as formas e os produtos da cultura so parte integrante


da sociedade e que o corpo, por ser o coligamento entre o sujeito e o contexto social, tem uma
importncia significativa no processo de interao do sujeito com o mundo. Segundo
Fontanive, ao dar-se um prestgio maior ao Cogito, ou Ego intersubjetivo, asfixia-se uma
espcie de sujeito interessado, que, por sua vez, ao ser mais coligado sua fisicidade, estaria
melhor inserido no seu contexto social.
J na segunda metade do sculo XX, o corpo assume a posio de locus do eu,
onde, de acordo com Amelia Jones (2006, p. 21), o pblico e o privado se encontram e onde
se negocia, se cria e se d sentido ao social . Nesse perodo, o indivduo se encontra em
meio a problemticas surgidas em meio ao contexto capitalista em que vive, j que o corpo se
transforma em uma engrenagem submissa s categorias de produo, consumo e ordem. Em
conseqncia, o sujeito se torna um objeto, fruto do jogo do mercado dominado por uma
economia poltica global. O artista, por exemplo, sente ento a necessidade de exibir e
apresentar seu corpo como um antidoto sociedade, que mercantiliza e controla cada
detalhe do cotidiano. (JONES, 2006, p. 21). Tal comportamento encontrado na observao
das performances de Andr, em que o corpo tambm serve como antdoto represso sofrida
no microcosmo social que a famlia.
Sigmund Freud, especialmente a partir do legado de Arthur Schopenhauer,
postulou que a Mente um modelo terico em que comungam a Conscincia e o
Inconsciente, no conjunto de sua obra. A conscincia seria o estado de viglia em que
estaramos atentos (s) situao(es) de percepo ou sensao internas. Portanto, se ela se
relaciona diretamente com as percepes provocadas pelo mundo que nos rodeia, ela se liga
tambm ao nosso prprio corpo.
Para ns, no parece arbitrrio dizer que a partir de um pacto primordial com o
corpo que constitumos nossa identidade e buscamos um espao privilegiado para ns como
45

sujeito. Assim, em uma oposio prosaica, os relacionamentos que o indivduo estabelece,


muitas vezes, resultam do modo como ele no apenas admite e desenvolve sua relao com o
prprio corpo, mas a maneira por que ele visto e apresentado aos outros.
Dentre os elementos que mais costumeiramente so associados ao corpo, temos o
desejo e o erotismo, que condicionam e determinam as relaes afetivas, j que, como nos diz
Marcelo Carbone Carneiro, A percepo ertica no uma organizao do pensamento ou
do mental. atravs do corpo que visamos um outro corpo; a percepo ertica se faz no
mundo e no em uma conscincia. O Corpo liga um corpo a um corpo.. Dessa forma, o
corpo objeto que passa a tanger as questes de alteridade, refletindo-se sobre elas.
Em meio aos distintos fatores que integram o leque de motivaes para
comportamentos e relaes desses indivduos em relao ao corpo, um dos mais importantes
sem dvida o mosaico de afetos que compem e, at mesmo, influenciam a composio do
sujeito. Carneiro (s.d), em artigo j citado, tece contundentemente ilaes acerca do corpo e
seu papel para a composio das relaes afetivas, asseverando que:
Para Merleau Ponty, o corpo o lugar da apropriao pelo qual (na
nossa existncia) assumimos o espao, o objeto ou instrumento. No
entanto, existe uma dimenso do ser que s visvel para ns: a
afetividade. A afetividade quase sempre considerada como um
mosaico de estados afetivos, prazeres e dores fechados e isolados em si
mesmos. Mas a afetividade outra coisa: um modo original de
conscincia. (CARNEIRO, [s.d], p. 01),

Quanto conscincia e ao corpo, lembramos que, para Jean-Paul Sartre (2000), o


corpo fator de imerso no mundo. Consoante Freud, ele tambm nos faz atentar que
atravs desse corpo, que se d a possibilidade da conscincia, pois esta s existe enquanto
interao com o mundo. O corpo , assim, tanto porta que d passagem, quanto grade que
prende, aniquila e limita o homem.
A conscincia de si mesmo no caracteriza uma identidade imediata, pois depende
46

do resultado das expresses de um sentido manifesto, igual tanto para o sujeito quanto para os
outros, na elaborao de um sentimento individual em relao ao prprio corpo. Em A
Filosofia do Corpo, Claude Bruaire (1972, p. 172), reitera que:
A expresso pessoal do eusingular a superao da individualidade do
corpo pelo sujeito, para a manifestao desse ltimo. A relao da expresso
com a linguagem recproca ligada por oposio opera-se, assim, graas ao
papel do sentido e do no-sentido somtico individual. A unidade parcial de
meu corpo para mim e para outrem, efetiva na expresso muda onde reside,
indecisa, a particularidade prpria de cada um, permite ao sujeito manifestarse distinguindo o que diz e o que faz.

Ora, a linguagem como um efeito do pensamento derivado da reflexo natural do


corpo, no um sentido que existe fora dele, mas constitui o prprio pensamento do indivduo
que est envolvido com o corpo e no pode ser duas coisas com ele. Ou seja, a linguagem
nada mais que o resultado da relao do indivduo com o prprio corpo.
Flavio Fontanive (s.d) nos d uma explanao mais clara sobre a questo do corpo
como linguagem, principalmente ao enfatizar a evoluo da comunicao corporal dos artistas
modernos:

il corpo ha un linguaggio proprio, che, come ogni altro sistema di


comunicazione, in continua evoluzione. Un linguaggio fisico fondato su
segni, in cui il gesto ne la materia e lessenza: luso del corpo pareva,
dunque, lunica via per ritrovare una comunicazione diretta, un rapporto
sensoriale e tattile con lAltro. Naturalmente gli artisti non si prefiggevano di
trovare una sorta di grammatica del linguaggio corporeo categorica e
facilmente decodificabile, come, invece, avviene per il linguaggio verbale. Il
corpo come linguaggio contemporaneamente rigido e flessibile; con i suoi
movimenti in grado di esprimere uninfinita gamma di significati, a volta
anche involontariamente. Mettendo, quindi il corpo al centro di svariate
esibizioni si cercava di contestualizzare e fissare con maggior precisione
questi significati. proprio attraverso questa contestualizzazione, che
lartista pu meglio esprimere il suo modo di essere che altrimenti sarebbe
inafferrabile, per leccedenza simbolica propria del corpo-vivente.23
23

O corpo tem uma linguagem prpria, que, como cada outro sistema de comunicao, est em contnua
evoluo. Uma linguagem fsica fundada sobre sinais, em que o gesto a matria e a essncia: o uso do
corpo parecia, portanto, a nica via para reencontrar uma comunicao direta, um relacionamento
sensorial e ttil com o outro. Naturalmente os artistas nao se negavam a encontrar uma de gramtica da
linguagem corprea categrica e facilmente decodificada, como, ao contrrio, advm para a linguagem
verbal. O corpo como linguagem contemporaneamente rgido e flexvel; como os seus movimentos
est em grau de exprimir uma infinita gama de significados, s vezes tambm involuntariamente.

47

Para ns, o corpo performtico fundamentar a linguagem com que Andr vai
contestar o discurso do pai, atravs da simbologia do seu corpo-vivente, conforme veremos
mais frente.

3.1. Entre o corpo erotizado e liberado de Andr


Eldia Xavier (2007, p. 157), entre vrias tipologias de corpo dentro da literatura,
apresenta o corpo erotizado como aquele que vive sua sensualidade plenamente e que busca
usufruir desse prazer, passando ao leitor, atravs de um discurso pleno de sensaes, a
vivncia de uma experincia ertica. Desse modo, a partir da definio acima, cremos que
Andr , pois, um exemplo de indivduo com o corpo erotizado, ao apresentar-nos vrias
experincias erticas: a masturbao, a iniciao sexual com animais e prostitutas, o incesto
com a irm Ana e, embora veladamente, talvez com o irmo Lula.
Desse modo, o corpo erotizado surge j, na primeira pgina de Lavoura arcaica
(1989), como detentor do primeiro lugar dentre os objetos consagrados pelo quarto, o
templo da individualidade: pois entre os objetos que o quarto consagra esto primeiro os
objetos do corpo. (p. 09).
O romance Lavoura arcaica se inicia com a narrativa de uma masturbao.
Assim, o prazer obtido com o corpo (a masturbao) surge talvez para aliviar a angstia.
Atravs da palavra, a rosa branca do desespero ganha a ambivalncia favorvel da metfora,
ambigidade que marcar todo o livro sob o signo do corpo: Os olhos no teto, a nudez

Colocando, portanto o corpo no centro de variadas exibies procurava-se contextualizar e fixar com
maior preciso estes significados. exatamente atravs desta contextualizao, que o artista pode
melhor exprimir o seu modo de ser que, de todo modo, seria intangvel, pela excedncia simblica
prpria do corpo-vivente. (Traduo nossa.)

48

dentro do quarto; rseo violceo, o quarto inviolvel; o quarto individual, um mundo,


quarto catedral, onde, nos intervalos da angstia, se colhe, de um spero caule, na palma da
mo, a rosa branca do desespero (...) (NASSAR, 1989, p. 9).
interessante perceber que, ao mesmo tempo que se inicia o livro, Andr narra
um ato sexual. Camille Paglia

(1992, p. 48) lembra-nos que, com exceo da nossa,

praticamente todas as cosmogonias (as criaes do mundo) so baseadas no sexo24. Assim, a


estudiosa lembra o deus egpcio khepera que d origem ao mundo com um ato masturbatrio.
25

Andr traz a ns, como leitores, o incio da narrao do seu mundo tambm atravs da

descrio do sexo e do corpo. Sua masturbao torna-se ainda mais evidente frente, quando
Andr, sozinho no quarto, descreve: Minha mo antes dinmica e em dura disciplina,
percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheios
de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente(NASSAR, 1989, p. 10).
Entretanto, logo de incio tambm Andr j concebe sua idia de corpo como algo
sujo, pois no ato masturbatrio Andr diz tocar seu corpo com as mos cheias de veneno.
Na pgina 11, Andr afirma que seu sexo roxo e obscuro, quando se veste para atender
porta o irmo mais velho na penso. Desse modo, tambm os olhos que passam a servir
como uma espcie de espelho do corpo. Viso que parece ser o resultado da prdica do pai:

E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermes do pai que os olhos so
a candeia do corpo, e que se eles eram bons porque o corpo tinha luz, e se
os olhos no eram limpos que eles revelavam um corpo tenebroso, e eu ali,
diante de meu irmo, respirando um cheiro exaltado de vinho, sabia que
meus olhos eram dois caroos repulsivos, mas nem liguei que fossem assim.
(NASSAR, 1989, p.15)

24

Andr dir a Ana na capela ao falar do incesto: (...) Ana, tudo comea no teu amor, ele a semente, o
teu amor pra mim o princpio do mundo. (NASSAR, 1989, p. 130)

25

Segundo a autora cita, o deus teria dito: tive unio com minha mo, e tomei minha sombra num abrao
amoroso; despejei semente em minha boca, e lancei de mim substncia sob a forma dos deuses Shu e
Tefnut.( PAGLIA, 1992, p. 49).

49

Conforme j explicamos anteriormente, as conceituaes do corpo, durante a


histria do homem, enfocaram mais a viso de algo sujo, principalmente na Idade Mdia. Um
indivduo que desse vazo aos desejos corporais deveria combat-lo, resultado da concepo
estica crist. De acordo com Marilena Chau (1990, p. 36), para o estoicismo26 grego, o
desejo como paixo excessiva desvia e perturba a tendncia natural do homem: O desejo,
lemos nas Tuslucanas, fruto dos costumes (mores) e nos faz adoecer porque perverte ou at
apaga a centelha natural (lumen naturale) da virtude. Seguindo o estoicismo grego, Chau
(1990, p. 37) explica que, para os romanos, o desejo cupiditas27 representa a perda do poder
de si e sobre si, perda da faculdade de julgar, ou melhor, doena do juzo.
Em Lavoura arcaica, o pai parece representar esse discurso estico contra o
corpo, pois, nas palavras dele, os membros da famlia deveriam erguer uma cerca ou
guardar simplesmente o corpo, so esses os artifcios que devemos usar para impedir que as
trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro (p. 58). Se o corpo deveria ser
guardado, as paixes deveriam ser combatidas ou trariam o desequilbrio. Confirmando outro
preceito estico, o pai ainda prega nos sermes mesa:

(...) o mundo das paixes o mundo do desequilbrio, contra ele que


devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas
tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada
e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e
26

O Estoicismo foi uma doutrina filosfica fundada, no sculo III ou IV a.C por Zeno de Ctio, que
prope viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferena ('apathea') em relao ao
que externo ao ser. Para o estico, segundo Braga (2008, p, 01), a emoo (pathos) no tem
absolutamente qualquer valor. Segundo os esticos, a emoo como por exemplo, a que decorre do riso
de uma criana no tem qualquer funo na economia geral do cosmos que providenciou, de modo
perfeito, a conservao e o bem dos seres vivos, porque a natureza deu aos animais o instinto e deu aos
homens a Razo.A emoo denota ignorncia, futilidade, estultcia, e no sinal de racionalidade, e por
isso, a emoo dever ser eliminada no sbio estico. A emoo uma doena. Por exemplo, o sbio
estico, nas suas relaes sexuais, deve despir-se de qualquer emoo, porque se trata de um acto fsico e
instintivo assim entendido racionalmente; assim, o sbio estico fornica a sua mulher como um boi vai
vaca (embora o boi ainda solte algum gemido).
27

Chau (1990, p. 35) considera cupiditas como desejo vido contra o appetitus, a inclinao natural de
autoconserva-se. Tal concepo partiria, segundo a autora, das idias de Ccero, na sua obra Tuslucanas.
Assim, as duas mais graves doenas da alma so a aflio crnica (aegritudo) e o desejo (cupiditas).

50

esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum
entre ns h de transgredir esta divisa (NASSAR, 1989, p. 56)

atravs da sua prpria concepo de que o corpo obscuro que Andr vai se
autodefinir como epiltico, possesso, convulso (pp. 41- 42); como aquele que traz o
demnio no corpo (p. 43): Era eu o irmo acometido, eu, o irmo exasperado, eu, o irmo
de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do
demo, e caros nos meus poros (p. 110); eu, o possudo, o tomado, eu, o faminto (p. 122).
Tal obscuridade tambm seria compatvel com a prpria idia do desejo, do
feminino, do noturno ctnico. Paglia (1992, p. 16) nos fala que o prprio dia invadido pela
noite daimnica28. Ou seja, que de dia somos indivduos sociais, todavia noite
submergimos no mundo dos sonhos, onde impera a natureza. Mesmo durante o dia, a noite
retorna em flashes que assombram nosso estado de viglia, para contrariar as tentativas de
virtude e ordem, dando a objetos e pessoas uma aura misteriosa que nos revelada pelos
olhos do artista. Temos ento em Lavoura arcaica a oportunidade de contemplar tal exemplo
com singularidade, quando nos deparamos com as palavras de Andr.
Retomando o mote de Paglia e relacionando-o com o livro de Nassar, vemos bem
como o culto ao dia foi uma inveno do homem civilizado, de tentar racionalizar uma
natureza que o amedrontava, deslocando seu olhar do solo (a Me-Terra pag, a natureza, a
noite e o daimnico) para o cu (o Sol - Amon-R, Apolo, Deus, a civilizao, o dia e o
divino). Assim, Andr

funda a sua prpria igreja, parecendo resgatar os preceitos

arcaicos como nos cultos para a Grande me, ressaltando o valor do corpo, da terra:

28

O daimnico, para Paglia (1989), constituiria no prprio sexo. Segundo a estudiosa, o termo vem do grego
daimon, que significa um espirto de divindade inferior a dos deuses do Olimpo. (...) dipo, expulso, tornase um daimon em Colona. A palavra passou a significar a prpria sombra do homem. O cristianismo
transformou daimnico em demonaco. Os daimons gregos no eram maus- ou melhor, eram ao mesmo
tempo bons e maus, como a prpria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud um domnio
daimnico. (PAGLIA, 1989, 15)

51

eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha sade perfeita e
sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a
igreja que freqentarei de ps descalos e corpo desnudo, despido como
vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti
num momento profeta de minha prpria histria, no aquele que ala os
olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurana sobre os
frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente
querer, e eu posso! (NASSAR, 1989, p. 89)

Dessa forma, concluimos que se a noite ainda assombra o homem moderno, este
nunca se desvencilhou tambm do desejo dos antigos de revelar os mistrios da natureza, da
obscura essncia humana, atravs da filosofia solar. No entanto, o noturno daimnico,
apesar de tantas tentativas de sublimao e denegao, permanece como resduo na
civilizao ocidental.
Em Raduan Nassar, portanto, o termo daimnico tanto cabvel quanto aplicvel,
afinal seu texto parece percorrer os resqucios remanescentes dos esticos modernos, em que
o apagamento da noite e seus conflitos decorrentes intentam se cristalizar em Lavoura
arcaica. Assim, Andr confessa: eu estava era escuro por dentro, no conseguia sair da
carne dos meus sentimentos (p. 16)
vlido ressaltar que na maioria das vezes que Andr remete ao corpo ou ao
desejo temos o contato direto dele com a terra, pois era no bosque que o protagonista:
escapava aos olhos apreensivos da famlia, amainava a febre dos meus ps na terra mida,
cobria meu corpo de folhas e, deitado sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta
de uma planta enferma vergada ao peso de um boto. (p. 31)
O ctnico fica tambm evidente em trechos como: (...) tirava as meias e com os
ps brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcanando abaixo delas a camada de
espesso hmus, e a minha vontade incontida era de cavar com as prprias unhas e nessa
cova me deitar superfcie e me cobrir inteiro de terra mida, (...) ( p. 32)
Desse modo, Andr no apenas vai desnudando os seus desejos, mas chama a

52

ateno de Pedro para aquilo que o pai tenta fazer com que todos escondam: o prprio corpo
da famlia. Se a prdica do pai falseava uma verdade, era no cesto de roupas sujas que o corpo
apresentava suas marcas:

(...) era preciso conhecer o corpo da famlia inteira, ter nas mos as toalhas
higinicas cobertas de um p vermelho como se fossem as toalhas de um
assassino, conhecer os humores todos da famlia mofando com cheiro
avinagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja;
ningum afundou mais as mos ali, Pedro, ningum sentiu mais as marcas da
solido, muitas delas abortadas com a graxa da imaginao (....) (p.45)

Xavier (2007, p. 179) tambm define a concepo de corpo liberado como aquele
que se liberta de esquemas predeterminados, coercitivos e repressores. Para ns, Andr
trilharia um caminho intermedirio entre o corpo liberado e o erotizado. Liberado, pois,
apesar da palavra imposta pelo pai, consegue realizar os desejos da sua libido. Erotizado, pois
narra as diversas sensaes provocada pelo desejo e realizao dos seus atos sexuais.
Defrontamos-nos tambm com um corpo erotizado como uma

investida em direo

completude, quando Andr nos apresenta o mito da androginia.


Aristfanes, em O Banquete de Plato (1995), narra o Mito do Andrgino
concebendo Eros como um impulso restaurar a antiga perfeio dos seres e para recompor a
antiga natureza. Segundo Aristfanes, em uma poca mtica, existiam trs espcies de
indivduos: o homem duplo, a mulher dupla e o homem-mulher, ou seja, o andrgino. Estes,
entretanto, ambiciosos, tentaram alcanar os cus, e Zeus, para punir tal ousadia, os partiu ao
meio, pedindo depois a Apolo que cicatrizasse a ferida.29
No entanto, uma vez separadas, as metades sentiam falta uma da outra e

29

vlido ressaltar que no so apenas os andrginos que se rebelam contra os deuses e so cortados.
Eles tinham os genitais para fora e geravam na terra. epois de voltados para a frente, eles puderam gerar
un no outro. Os seres do mesmo sexo se uniam e se saciavam por algum tempo para dar continuidade
vida. Os andrginos seriam, na verdade, inteirios e no duplos. (Nota sugerida pela professora Ana
Maria Pompeu em ocasio da defesa pblica deste trabalho.)

53

passaram a se procurar desesperadamente, porm, quando se encontravam, abraavam-se e se


chocavam, permanecendo cheias de paixo at morrerem. Querendo evitar a extino da
espcie, Zeus colocou-lhes rgos genitais na frente, a fim de que ao se abraarem pudessem
procriar e, atravs do abrao, a unidade pode ser novamente recuperada.
Reforando a idia de androginia em Lavoura arcaica, Leyla Perrone-Moiss
(1996, p. 65) afirma que a identidade de Andr sublinhada pelo fato do nome prprio Ana
corresponder ao pronome eu em rabe. Desse modo, Andr e Ana teriam a mesma alma sob
o ponto de vista do protagonista:
(...) alm de nossas unhas e de nossas pernas, teramos com a separao dos
nossos corpos mutilados; me ajude, portanto, querida irm, em ajude paar
que eu possa te ajudar, a mesma ajuda que eu posso levar a voc e aquela
que voc pode trazer a mim, entenda que quando falo de mim o mesmo
que estou falando s de voc, entenda ainda que nossos dois corpos so
habitados desde sempre pela mesma alma. (NASSAR, 1989, p. 131)
Outro acontecimento marcante do corpo, em Lavoura arcaica, o incesto entre os
irmos, tanto entre Ana e Andr, quanto entre este e Lula, o irmo mais novo. A irm o
grande objeto do desejo que perpassa toda a narrativa. Conforme o protagonista confessa para
o irmo mais velho, no quarto de penso:

Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome explodi de repente num
momento alto, expelindo num s jato violento meu carnego maduro e
pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu
respiro, a minha lmina, meu arrepio, meu sopro, o assdio impertinente dos
meus testculos (NASSAR, 1989, p. 109)

A interdio do incesto constitui-se ainda um enigma para os estudiosos de vrias


reas, pocas e nacionalidades. Para Georges Bataille, seguindo estudo do socilogo Claude
Lvi-Strauss intitulado As estruturas elementares de parentesco, o incesto coloca-se no
contexto da famlia: sempre um grau, mais precisamente, uma forma de parentesco30 que
30

Na obra Totem e Tabu, Sigmund Freud tece uma explicao para o incesto atravs de uma alegoria que
aborda exemplificaes inclusive do Parricdio. Lewis Morgan defendeu que a proibio de casamentos
entre parentes deu-se para evitar o nascimento de crianas com anomalias, frutos de relaes sexuais

54

determina a interdio que se ope s relaes sexuais ou ao casamento de duas pessoas.


Segundo Lvi-Strauss, a proibio do incesto est ligada diretamente passagem da natureza
para a cultura, sendo um modo do homem se distinguir dos outros animais.

Mas no foi pra fechar seus olhos que estendi o brao, correndo logo a mo
no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de
um lrio; e meu gesto impondervel perdia aos poucos o comando naquele
repouso quente, j resvalava numa pesquisa inslita, levando Lula a
interromper bruscamente seu relato, enquanto suas pernas de potro
compensavam o silncio, voltando a mexer desordenadas sob o lenol;
subindo a mo, alcancei com o dorso suas faces imberbes, as mas do rosto
j estavam em febre; nos seus olhos, ousadia e dissimulao se misturavam,
ora avanando, ora recuando, como nuns certos olhos antigos, seus olhos
eram, sem a menor sombra de dvida, os primitivos olhos de Ana!
(NASSAR, 1989, pp. 181-182)

3.2 O corpo: interferncias nas relaes de gnero


3.2.1- A mulher, o corpo e a beleza
Segundo Luciana Wrege Rassier, da Universit de La Rochelle, em trabalho
apresentado no simpsio internacional Fazendo Gnero, intitulado Manipular e ser
manipulado: as personagens femininas de Raduan Nassar:

Uma primeira abordagem dos textos do paulista Raduan Nassar pode levar a
crer que a representao das personagens femininas reforaria uma
perspectiva de depreciao das mulheres e de afirmao de uma pretensa
superioridade masculina. No entanto, no universo nassariano, a interao
masculino-feminino corresponde busca constante de um equilbrio por
natureza precrio.

De fato, as questes de gnero nos textos nassarianos, alm do equilbrio

consangneas. Entretanto, para ns, essas proibies so relativamente recentes na histria da


humanidade, s surgindo depois do sculo XVI. Tanto que comum vermos, por exemplo, em
retrataes de mmias, esttuas ou afrescos egpcios, indivduos que foram descendentes de pais
consagneos, unies ento defendidas sob a gide da conservao de divisas patrimoniais em famlias
reais.

55

intentado, parecem perpassar tambm a questo do desejo hegeliano: a Begierde, em que o


indivduo tem a afirmao de si pela negao do outro.
De incio, nos textos nassarianos, a beleza parece seguir de perto o rompimento
dos microcosmos. Em Lavoura arcaica, Ana mostra sua beleza atravs de um corpo sedutor,
cuja viso afeta diretamente Andr: e no tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo em
campnia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e
soltos, essa minha irm que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no
corpo. (p. 31)
No trecho acima vemos uma personagem marcada pelo vermelho, pela idia de
pecado, pela peste no corpo que permeia o imaginrio o masculino, herdado por Andr, da
sociedade ocidental. Nas palavras de Mary Del Priore (1999), encontramos uma explicao
acerca do corpo feminino visto como pecado, quando a estudiosa tece consideraes sobre a
obra clssica do historiador Jean Delumeau:

Entre os sculos XII31e XVIII a Igreja identificava, nas mulheres, uma das
formas do mal sobre a terra. Tanto a literatura sacra, quanto a profana,
descreviam-na como um superlativo de podrido. Quer na filosofia, quer na
moral ou na tica do perodo, era considerada um receptculo de pecados. Os
mistrios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da lua, ao mesmo tempo
que seduzia os homens, repugnava-os. O fluxo menstrual, os odores, o
lquido amnitico, as expulses do parto e as secrees de sua parceira
repeliam-os. O corpo feminino era considerado como fundamentalmente
impuro. Plo negativo, portanto, na dicotomia com que era interpretado.
Mal magnfico, prazer funesto, venenosa e traioeira a mulher era acusada
pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a
morte. Pandora grega ou Eva judaica ela cometera o pecado original ao abrir
a caixa que continha todos os males ou ao comer do fruto proibido. O
homem procurava uma responsvel pelo sofrimento, o fracasso, o
desaparecimento do paraso terrestre e encontrou a mulher. Como no
desconfiar de um ser cujo maior perigo consistia num sorriso? A caverna
31

De acordo com Jacques Le Goff (1995: 89), no entanto, no sculo XII que a mulher comea a rebelarse. Nas palavras do historiador, no livro Os Intelectuais da Idade Mdia: existe nesse momento uma
forte corrente antimatrimonial. No mesmo momento em que a mulher se libera, quando no mais
considerada propriedade do homem ou mquina para fabricar crianas, quando no se pergunta mais
se ela tem alma, (...) o casamento se torna objeto de descrdito, tanto nos meios nobres (...), como nos
meios escolares, onde se constitui toda a teoria do amor.

56

sexual tornava-se, assim, uma fossa viscosa do inferno.

Como podemos perceber, a partir da leitura do trecho acima, a cultura ocidental,


baseada numa moral vitoriana e burguesa, fundamentada por um discurso masculino, legou s
mulheres a viso de que as nicas formas potentes de expresso do feminino eram o
casamento e a maternidade, que at hoje perdura. Isso porque as mulheres foram submetidas a
uma condio de inferioridade (que remonta os tempos bblicos da sociedade judaico-crist32),
de desvalorizao e de dependncia do homem, encarado como nico e legtimo provedor.
Para Desy Meneghello, no curso do sculo XII, o imaginrio em relao ao
feminino comeou a mudar, refletindo tambm na viso no negativa do desejo e da paixo,
pois:

con lavvento della cavalleria e del culto di Maria si assistette al


cambiamento dellidea della donna e dellamore. Allimmagine della donna
creata dal clero subentr quella creata dallaristocrazia e il rapporto damore
inizi a modellarsi secondo il codice del vassallaggio feudale. Nacque la
teoria dellamor cortese insieme allarchetipo della dama cortese e si mise
cos a punto una concezione positiva dellamore, in cui il desiderio e la
passione erotica non venivano negati, e la donna era vista come un essere
superiore dotato di pieni poteri sullamante.33

Entretanto, com o advento da Psicanlise, Freud mudou um pouco a viso


medieval de possesso feminina, substituindo-a por outra, a partir dos seus estudos sobre a

32

Como explicam, Kramer e Sprenger (1995), sobre a atitude da Igreja a respeito das caas s bruxas:
(...) que via as mulheres como seres inferiores, naturalmente inclinadas ao engodo e bruxaria e
fabricadas pelo Criador como uma armadilha para que incorressem nos pecados da carne. Os
fanticos, tanto protestantes quanto catlicos, que levaram a cabo as grandes caadas s bruxas,
justificavam seus atos citando Moiss, que havia decretado: No deveis permitir que viva uma bruxa,
e So Paulo, que sustentava a mesma posio.. Assim, percebemos que a misoginia tem sua origem em
teorias religiosas.

33

Com o advento da Cavalaria e do culto de Maria se assiste mudana da idia da mulher e do amor. A
imagem da dama criada pelo clero subentrou naquela criada pela aristocracia e a relao de amor iniciou
a se modelar, segundo o cdigo de vassalagem feudal. Nasce a teoria do amor corts junto ao arqutipo
da dama corts e, se medido assim, a ponto de uma concesso positiva do amor, em que o desejo e a
paixo ertica no so negados, e a mulher vista como um ser superior dotado de plenos poderes sobre
o amante. (traduo nossa)

57

conscincia e o inconsciente. Vejamos o trecho abaixo de James Hilmann (1984, p. 224):

Freud estabeleceu uma linha divisria entre a antiga superstio


denominada possesso e a moderna superstio denominada histeria. (...) A
inferioridade feminina adquire uma nova veste, quando a histeria se torna
assunto secular e cientfico. A bruxa torna-se ento a pobre paciente que
no mais maligna e sim enferma.

A Psicanlise e sua teoria da sexualidade continuou com a idia de que era na


diferena genital entre sexos, ou seja, no corpo, que se dava a valorao dos homens e
mulheres, seus destinos e sua individuao. Desse modo, para a cultura psicanaltica, o rgo
genital masculino representa o flico ativo sdico e o genital feminino o castrado
passivo masoquista. Tal concepo explicaria todo o comportamento de ambos os sexos.
O homem seria o sujeito do desejo, o que faz, o que prov a prole. A mulher
seria o objeto do desejo do outro, a que recebe, a que cria abstratamente a prole, ou seja, a
mulher passa a atuar histericamente por ter inveja de pnis. Assim, Freud deu mulher o
lugar cativo na categoria do patolgico, do inferior, da submisso cultura masculina,
deflagrando que, alm da maternidade, a histeria era uma das nicas manifestaes do
feminino.
preciso salientar, no entanto, a questo da alteridade: se a cultura masculina se
imps mulher, foi deveras devido a uma acomodao feminina majoritria, pois o nico
falo possvel ao homem s existe se os outros e a mulher obviamente reconhecer. Essa
aceitao passiva s passou a ser contestada com voz forte com o movimento feminista, no
sculo passado.
O fato que realmente as mulheres foram aprisionadas numa trama cultural
simblica patriarcal, em que as identidades do homem e da mulher so vistas como
antagnicas, semeada por modos educacionais que diferenciam os gneros, desde o incio, de

58

forma desigual na base familiar.34 Embora no possamos apregoar tal viso a todos,
incontestvel que vivemos sob uma ordem coletiva flica designadora de lugares, posies,
deveres e traos de identidade.
Sendo assim, as mulheres que conseguem subverter essa ordem tm que
construir alternativas entre as posies passivas que so oferecidas de ser me e esposa
virtuosas, moas ingnuas e romnticas, amantes apaixonadas ou histricas. claro que todas
essas opes esto dentro de um discurso fundado pelo homem, sua masculinidade e seu
trabalho ativo ser refletido pela passividade feminina.
Foi com a insero das mulheres no campo de produo e do trabalho, a partir da
modernidade, que elas passaram a construir uma identidade mais livre, atravs do
reconhecimento de atributos e capacidades que at ento eram ditos exclusivamente
masculinos. Desse modo as idias de autonomia do sujeito moderno impulsionaram a negao
da submisso, domesticidade atrelada a uma vida predestinada, desde o nascimento, ao
casamento e maternidade como nicas formas de realizao pessoal. A mulher passou a lutar
por liberdade e reconhecer o direito de livre-arbtrio. Portanto, ser mulher implicava a luta
contra algumas prerrogativas adensadas pela cultura, era preciso lutar por registros histricos
que reforassem a individuao do gnero, ou seja, o reconhecimento de que a mulher
tambm era um indivduo capaz de realizar trabalhos, estudar e no apenas ter e cuidar dos
filhos.
Em Raduan Nassar, principalmente, em Um Copo de Clera, vemos bem o
conflito entre essa tipologia de mulher que deseja ocupar e ocupa uma posio ativa na
sociedade e o homem ainda inadaptado a tal situao. Alis, conforme nos lembra Franconi
(1997, p.141): Na verdade, o discurso da mulher do texto de Raduan Nassar o discurso
34

Basta lembrar aqueles conselhos e bordes que os pais levantam: o homem tem que ser namorador e
a mulher recatada. Aquela mxima coloquial que diz que se um homem tiver muitas mulheres galinha e
a mulher muitos homens puta resume bem o pensamento de discriminao e aceitao do mesmo
comportamento por sexos diferentes.

59

que o homem tenta demolir, no porque o homem est contra a mulher, mas por ver nesse
discurso as falcias que levaram a civilizao ocidental a distanciar-se das leis que
governam a vida natural.
No entanto, ressaltamos que, dentro dessa vida natural, ainda preciso que a
mulher encontre o seu lugar prprio, num universo que no mais apenas masculino.
Tambm necessrio um recondicionamento de ajuste individual e cultural que desconstrua o
que a cultura imps psiquicamente, inclusive. Entretanto, apesar da aparente igualdade da
mulher no que concerne a liberdade do uso do corpo na atualidade, essa legitimao libertria
esbarra na imposio da beleza exigida pelo mundo masculino.
Por exemplo, no conto nassariano Hoje de Madrugada, este fenmeno
deflagrado pelo modo como o narrador cita a maneira como a consorte entra no ambiente,
desnudando a insatisfao dele frente viso do corpo feio dela. Leiamos um trecho do conto
em questo: (...) Descala, entrava aqui feito ladro. Adivinhei logo seu corpo obsceno
debaixo da camisola, assim como a tenso escondida na moleza daqueles seus braos,
enrgicos em outros tempos ( NASSAR, 1996, p. 56).
Em Lavoura arcaica, o discurso de Andr, o protagonista, deflagra a clera como
uma forma de desespero ante a interdio do seu desejo em relao irm. J em Um Copo de
Clera, o casal, que protagoniza a novela, se percebe reduzido hostilidade fundamental da
diferena sexual, ao silncio dos corpos que se atraem e repelem, como lembra PerroneMoiss (1996, p. 63). O homem ento nota que a insatisfao sexual da mulher pode ser a
causa da hostilidade, ou seja, o desejo feminino onde esbarra a condio do macho. Ambas
as situaes se assemelham ao que nos remete Paz (1999, p. 47) sobre o erotismo e a condio
individual e social que este acarreta:

O ato ertico uma cerimnia que se realiza de costas para a sociedade e

diante de uma natureza que jamais contempla a representao. O erotismo ,

60

ao mesmo tempo, fuso com o mundo animal e ruptura, separao desse


mundo, solido irremedivel. Catacumba, quarto de hotel, castelo forte,
cabana na montanha ou abrao na intemprie, tudo igual: o erotismo um
mundo fechado tanto sociedade quanto natureza. O ato ertico nega o
mundo- nada real nos rodeia, exceto nossos fantasmas.

Desse modo, podemos aferir que as personagens esto aprisionadas dentro de um


jogo de representaes, em que o homem no se entrega a uma natureza instintiva esperada,
nem a mulher consegue fugir das amarras sociais histricas. Assim, apesar da ousadia dessa,
ela v seu desejo se entrevar diante do fantasma de uma no mais beleza, ocasionada pela
velhice. Portanto, tambm a falta do belo no corpo que reflete e que interfere na esfera das
relaes afetivas, analisada por exemplo em Hoje de Madrugada.
Leyla Perrone-Moiss (1996), no artigo sobre a obra nassariana, Da clera ao
Silncio, afirma que: Na verdade, todos os textos de Raduan Nassar se constroem em torno
de uma recusa: recusa de obedincia, recusa de cumplicidade, recusa de amor ( p. 76).
Dessa forma, a recusa em dar amor, que o personagem do conto forja companheira, parecenos - dentre vrios motivos possveis - permear a questo da beleza feminina e sua ausncia.
Assim, o narrador, ao traar um paralelo entre a vigorosidade do corpo da mulher no passado
e sua decadncia no presente, faz com que ns lancemos o olhar sobre a questo do belo como
qualidade impulsionadora do interesse sexual masculino.
A beleza tem sido objeto de reflexes sobre a forma e a essncia do ser desde a
Antigidade. Segundo Mafalda Faria Blanc (1998), o amor definido como desejo do belo e
do eterno, em o Banquete de Plato. Para Aristteles (apud Blanc, 1998, p. 173) quanto mais
evoluda for a alma, mais perfeita ser a forma, maior a beleza do vivente.
A tradio helnica acerca da beleza sintetizada pela obra do neoplatnico
Plotino. Em seu Tratado do Belo, a beleza identificada essncia em que a forma sensvel
dos corpos resultantes da matria concebida sob o reflexo da beleza inteligvel, remetida ao
bem inefvel e transcendente. Desta maneira, Plotino (apud Blanc, 1998) articula no seu
61

segundo tratado Da Beleza Inteligvel: onde estaria o belo privado de ser e o ser privado da
beleza? Perder beleza tambm perder o ser. E essa razo pela qual o ser objecto de
desejo, porque ele idntico ao belo e o belo amvel, porque ele o ser. (p. 152).
Assim, tambm deslocando uma terminologia hegeliana, poderamos afirmar que a
personagem nassariana est na categoria do sendo, em detrimento de constituir-se um ser
ideal em si. Para tanto, a mulher, sendo desprovida de beleza, estaria anulada no apenas na
sua condio de forma, mas tambm na sua essncia do ser, ou seja, na sua identidade.
De acordo com Schimitt (1995), a base da teologia moral da Igreja no perodo da
Idade Mdia estaria nas trs virtudes promulgadas pelo apstolo Paulo f, esperana e
caridade. Adicionado a isso, temos as quatro virtudes que, de acordo com Ccero (1991), em
On Duties, compem a beleza moral:

scientia - o discernimento do verdadeiro, a prudncia e a sabedoria;

beneficientia - o ideal de justia, dando a cada um o que lhe devido;

fortitudo - a fora e a grandeza da alma, que inspiram o desprezo s


coisas humanas;

temperantia ou modestia, que consiste em cumprir toda ao e


pronunciar toda palavra com ordem e medida.

Ou seja, a beleza era perpassada por conceitos de virtudes que tangenciavam o


discurso e os comportamentos dentro da esfera cultural. Em relao mulher, tais requisitos
eram fundamentados em uma viso subjugada s relaes sociais ocupadas por ela.35
Entretanto, convm lembrarmos o carter misgino que a questo da beleza
feminina, tanto acerca da sua presena quanto da sua ausncia, passou a ter com o passar dos
anos, devido s configuraes subjugadoras do discurso masculino no decorrer da histria do
35

Lembramos aqui, por exemplo, do mesmo fenmeno apresentado no romance libertino Teresa Filsofa,
de autor francs annimo. Nas pginas do livro, encontramos a narrao baseada na educao sexual de
uma mulher de classe econmica baixa, por um padre. Tal educao certamente divergia daquela das
meninas ricas.

62

homem.
Camille Paglia (1992) remete-nos ao deslocamento das representaes do objeto
que era belo na pr-histria daimnica e a eleita pelo mundo ocidental apolneo, no seu
livro Personas Sexuais. Para tanto, guisa de exemplificao, evocamos duas imagens
reproduzidas na obra de Paglia: a Vnus de Willendorf (30.000 a.C) e a rainha egpcia
Nefertite (1350 a.C). A primeira a me-natureza, a deusa-me, gorda, disforme em seus
seios fartos, ventre exageradamente avantajado. A segunda representa j o perfil da mulher
padro do mundo ocidental: elegante, ornamentada com maquilagem e jias, com um qu de
semblante masculino, no-materno, que ao mesmo tempo atrai, fascina e, entretanto, impe
medo.

Vnus de Willendorf, annimo, (30.000 a.C. )


4
.

Busto de Nefertite, annimo, (1350 a.C.).

63

Ora, concordamos com a citao de Jules Bois ( apud Dottin-Orsini, 1996), na


obra A Eterna Boneca: a mulher ...excitadora do macho, tambm o seu reflexo: seus
pequenos olhos infinitos registram fielmente a histria do povo. Dessa forma, podemos
entender melhor tais representaes se recordarmos o perodo histrico em que foram
produzidas, tanto a Vnus de Willendorf, quanto o busto de Nefertite. Aquela ainda na prhistria, em que a mulher tinha uma posio central dentro das comunidades, e esta, j
esculpida num momento de dominao masculina.
Segundo Rose Marie Muraro & Leonardo Boff (2002), as mais antigas imagens
sagradas so de mulheres grvidas de grandes seios e ancas, pois as primeiras culturas eram
matricntricas, j que o regime de trabalho era baseado na coleta. Assim, como apenas os
frutos providos da natureza eram suficientes para a sobrevivncia das comunidades, as
mulheres no necessitavam possuir uma fora fsica masculina. Seu corpo reverenciava o
belo materno, o ventre farto que procriava. Havia, ento, a inveja do tero por parte dos
homens, pois estes eram seres marginais naquelas comunidades:

Inconscientemente, durante um milho e meio de anos eles foram


desenvolvendo uma inveja das mulheres. Nessas culturas, o rgo
supervalorizado no era o pnis e, sim, o ventre grvido das mulheres,
porque dele dependia a sobrevivncia do grupo e dos seres que alimentavam
a vida recm-criada. (MURARO; BOFF, 2002, p.173)

Andr parece ainda reconhecer esse belo materno, enaltecendo em vrias partes o
ventre, em que est deitado, da me. At mesmo a voz, provinda daquele templo sagrado,
ressalta essa idia de sacralidade. Assim sua Grande Me sagrada vai emanar toda a sua
divindade at mesmo nos gestos mnimos da convivncia:

e sua voz que nascia das calcificaes do tero desabrochava de repente


profunda nesse recanto mais fechado onde eu estava, e era como se viesse do
interior de um templo erguido s em pedras mas cheio de uma luz porosa

64

vazada por vitrais, vem, corao, vem brincar com teus irmos. (NASSAR,
1989, p. 27)

Em outro trecho, Andr justifica o seu comportamento, ao se denominar uma


extenso da me, quando narra que fora procur-la antes de partir para dizer-lhe tais palavras :
eu quis dizer a senhora se despede de mim agora sem me conhecer, e me ocorreu que eu
pudesse tambm dizer no aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu tero
por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce das tuas mos e das tua boca;(
NASSAR, 1989, pp. 66-67)
No entanto, com a chegada do perodo de necessidade da caa, os homens
passaram a delinear uma trajetria at o patriarcado, pois descobriram seu papel na procriao
e, atravs da fora fsica, estabeleceram seu domnio, h cerca de 20 mil anos. Ento, deu-se o
perfil das relaes de gnero que passamos a conhecer nas sociedades patricntricas: a
mulher fica reclusa no domnio da casa do privado e o homem assume o domnio
pblico. (MURARO; BOFF, 2002, p.173)
Na Antigidade, a civilizao egpcia apontada por alguns estudiosos como
uma das mais avanadas em termos de direitos e poder concedidos s mulheres. De acordo
com Karen Gimenez (2003) sobre o pioneirismo daquela cultura que se desenvolveu s
margens do Nilo, a mulher tinha mais direitos do que muitas outras do sculo XXI, de acordo
com a classe social. Prticas como o divrcio, por exemplo, j eram possveis no Novo
Imprio (1555 a 1090 a.C.). Registros encontrados por arquelogos mostram pedidos de
divrcio, inclusive feitos por mulheres

36

. Outros documentos tambm demonstram que l

havia a preocupao com os bens do casal em caso de separao, situao esta em que a
mulher ficava com a casa e com os filhos. A poligamia masculina era permitida, porm no
era to freqente acontecer, pois manter uma nica mulher egpcia j era dispendioso demais,
36

Vale ressaltar que, no Brasil, tal direito s foi conquistado na dcada de 70 e, alm disso, as mulheres
divorciadas eram estigmatizadas socialmente at pouco tempo atrs.

65

devido s responsabilidades financeiras que o homem tinha para com sua esposa.
Quanto vida sexual das sditas do fara, a egiptloga Margaret Bakos (apud
GIMENEZ, 2003) disse no ter sido encontrado ainda, por arquelogos, qualquer referncia
nos papiros que versasse sobre virgindade ou o sexo como um ato meramente com fins
procriativos. Entretanto, sabe-se que aquele era um povo consciente de seus prazeres, no
vendo o sexo como tabu e no sendo tmido em relao ao ato sexual no mbito familiar,
embora no falassem publicamente sobre o assunto. As mulheres casavam cedo, geralmente
pouco tempo antes da menarca, porm sem que isso indicasse que elas no eram sexualmente
ativas antes do casamento.
Apesar do grande desenvolvimento que os gregos alaram na poltica, filosofia e
artes em geral, ficaram aqum da civilizao egpcia quanto aos direitos concedidos s
mulheres, mesmo quando analisamos isoladamente a cultura das duas principais cidadesestado gregas: Atenas e Esparta.
Ora se, para Aristteles, a virtude um hbito, as mulheres atenienses eram to
virtuosas quanto man(tivessem) o hbito de serem submissas ao pai e, posteriormente, ao
marido, costume que foi exemplarmente vivificado na obra musical do cantor e compositor
Chico Buarque de Hollanda: Mulheres de Atenas. Em tal msica, vemos a condio de
servilidade total do feminino, arquetipicamente arraigada na cultura ocidental: vivem por
seus maridos, orgulho e raa de Atenas (...) elas no tm gosto ou vontade nem defeito nem
qualidades, tm medo apenas.
Era do mundo masculino a sociedade ateniense. A mesma cidade que carregava o
lema do prazer de viver dava s mulheres o bordo de que o trabalho das mulheres era a
roca e no o debate. Ao gnero feminino reservavam-se as funes domsticas, o reduto da
casa e do silncio37 (um dos predicados mais apreciados pelo pai e marido atenienses). Os

37

Em Lavoura arcaica notamos que as mulheres quase nunca falam. Da personagem Ana, por exemplo, o

66

casamentos, como no poderia deixar de ser numa sociedade como aquela, eram arranjados
para as adolescentes que passavam ao domnio total do marido, aps as npcias.
Usa-se a expresso vida espartana como sinnimo de vida dura, no entanto,
em relao s outras cidades-estados, as mulheres espartanas gozavam de maior liberdade que
outras: podiam participar de reunies pblicas, praticar ginstica e competir em jogos,
tambm tinham o direito de administrarem o patrimnio da famlia junto com seus esposos.
Desde a infncia, as meninas espartanas recebiam uma educao que as
preparavam para serem esposas e mes de guerreiros, j que a cidade vivia permanentemente
em ao militar. J que a educao visava formao de soldados, as mulheres eram treinadas
fsica e psicologicamente para resistirem s adversidades em situaes de guerra. Em
consequncia, havia uma maior valorizao do corpo.
na mitologia que vemos de forma mais significativa prottipos da Mulher
Ideal grega e, por que no dizer, ocidental. As musas, por exemplo, encarnam a imagem da
mulher que inspira, consola nas horas tristes, cuida das feridas psquicas dos seus
pretendentes. Essas mulheres idealizadas representam, no inconsciente masculino, o tabu das
virgens inacessveis que acalentam os sonhos dos homens que tentam desbrav-las.
Outras representantes da Mulher Ideal so as Ninfas, personificaes das foras
vivas da natureza atreladas a uma fora fertilizante. Eram veneradas nos Ninfeus, locais de
prazer rodeados por jardins, constantemente associados s termas e aos palcios, construdos
pelos atenienses e posteriormente pelos romanos. Podemos associar as ninfas ao mito da
beleza lancinante das mulheres modernas e contemporneas, alm da imagem dbia da
outra que nutre e assombra o imaginrio masculino.
Obviamente, dentre os prottipos de Mulher Ideal, no poderia faltar o nome de
Hera, a protetora da maternidade e do casamento, esposa de Zeus. Talvez se possa afirmar que

leitor no encontra sequer uma frase pronunciada por ela, durante toda a narrativa.

67

Hera foi um dos primeiros smbolos de mulher passiva e abnegada (posio esta s quebrada
por constantes perseguies s rivais e descendentes de Zeus, frutos das infidelidades do
marido - e no perseguio ao esposo diretamente).
Lembramos que, segundo o mito, a deusa desposou o irmo Zeus aps ter
sentido tanta vergonha por ele t-la violentado que o aceitou como marido. A submisso de
Hera38 s ento legitimada no episdio mitolgico da punio de Zeus esposa, quando ele
a deixa suspensa no cu com uma corrente de ouro em cada p, presos por uma bigorna,
libertando-a somente aps for-la a prometer submisso. Isso ocorre aps Zeus ter sido
libertado por Briareu e seus cem braos, a mando da nereida Ttis que temia uma guerra entre
os deuses, pois haviam sido estes os autores da priso do deus, em tiras de couro, a fim de
impedi-lo de ir ter com os mortais e trair Hera.
Em Lavoura arcaica, encontramos os trs tipos de mulheres ideais gregas. Ana
representa a musa inacessvel que acalenta os delrios de Andr, como podemos comprovar
com a leitura do trecho abaixo:

Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome explodi de repente num
momento alto, expelindo num s jato violento meu carnego maduro e
pestilento, era Ana a minha enfermidade, e a minha loucura, ela meu
respiro, a minha lmina, meu arrepio, meu sopro, o assdio impertinente dos
meus testculos.(NASSAR, 1991, p.109)

As Ninfas estariam presentes quando Andr vai aos locais de prazer encontrar
prostitutas, ao narrar o significados dos souveniers remanescentes de suas aventuras sexuais:
(...) este trapo no mais que o desdobramento, o sutil prolongamento das unhas
sulferinas da primeira prostituta que me deu, as mesmas unhas me riscaram as costas
exaltando minha pele branda, patas mais doces quanto corriam minhas partes pudendas (...)
38

De acordo com Maria ngeles Rodriguez, no artigo El male tiene nombre di mujer: Del olimpo a la
Meca del cine, Hera , na verdade, um exemplo de femme fatale, pois, diante das infidelidades de
Zeus, mostrava-se ciumenta e vingativa com as amantes do seu marido e com aqueles que no
satisfaziam os seus desejos.

68

(p. 71)
Hera seria representada pela me, o smbolo de maternidade e submisso
patriarcal. Num sistema paternalista, como caracterizado em Lavoura arcaica, a me
apresenta-se passiva e abnegada.
Quanto representao da mulher feia, Mireille Dottin-Orsini (1996) dedica-se ao
que chamou de a ascenso da carnia39, lembrando-se das esculturas medievais que
representavam de um lado uma mulher bonita e, do outro, a mesma figura feminina
deteriorada e plena de vermes. Tal escultura tinha funo religiosa de remeter ao perdo e
brevidade da vida, inicialmente. Mas, conforme cita na pgina 42:

Tratava-se realmente, oficialmente, de Memento Mori, de Contemplus


Mundi para uso feminino; mas era justamente neste feminino que estava o
problema. Os textos da Idade Mdia e sua correspondente iconografia
visava ao Homem. (...). A partir de Baudelaire, operou-se uma verdadeira
deturpao do discurso religioso, com a finalidade de armamento (pouco
leal) para o combate dos sexos. A imagem macabra no era mais um meio
pedaggico de reflexo sobre a igualdade diante da morte: era tomada em
grau mximo em toda a sua brutalidade, e projetada sobre A Outra. No
se tratava mais, para o homem, de contemplar-se como cadver e
arrepender-se; tratava-se de transformar uma mulher em cadver, no para
convert-la, mas para amedront-la e mudar sua beleza em objeto de horror.

Erigir e lembrar o lado feio, seja a nvel fsico ou psicolgico da mulher, reflete a
necessidade do discurso masculino em ostentar seu domnio, atravs de uma imagem de
deteriorao.Desse modo, parece-nos que o homem criou meios para dominar a mulher como
uma espcie de modo de vingar-se ou expiar-se da inveja do tero. Muraro e Boff (2002)
fala-nos da inveja do ventre, Dottin-Orsini de vingana masculina e Paglia cita o medo
masculino inconsciente que ainda perdura ao nos remeter ao mito da Vagina Dentada, qua
abordaremos no prximo captulo. Afinal a mulher quem devora o homem no ato sexual.

39

Segundo RODRIGUES (1999), para os medievais, a putrefao era continuidade da vida. Durante tal
perodo, eram comuns a existncia de corpos em putrefao em casa, por exemplo.

69

4. Relaes de afeto: entre frutos e fatos


4.1 Uma famlia dividida em dois ramos:

Esses eram nossos lugares mesa na hora das refeies, ou na hora dos
sermes: o pai cabeceira; sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro
Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; sua esquerda, vinha a me, em
seguida eu, Ana, e Lula, o caula. O galho da direita era um desenvolvimento
espontneo do tronco, desde as razes; j o da esquerda trazia o estigma de
uma cicatriz, como se a me, que era por onde comeava o segundo galho,
fosse uma anomalia, uma protuberncia mrbida, um enxerto junto ao
tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a
disposio dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas
linhas da famlia. (NASSAR, 1989, p. 157).

Ao analisarmos o excerto acima, podemos encontrar vrias explicaes que


resumem o comportamento e as relaes de afeto entre os membros da famlia, no livro de
Raduan Nassar. Tanto durante o recebimento do alimento para o corpo (as refeies) quanto
naquele da mente (os sermes), vemos a famlia dividida.
Atravs de uma anlise semitica das posies ocupadas na mesa, podemos
perceber claramente que, direita, estavam aqueles personagens seguidores dos preceitos da
figura paterna: Pedro, Rosa, Zuleika e Huda.40 Esses, segundo Andr, eram uma extenso do
40

Alves da Silva (s.d, p. 01) faz uma anlise a respeito dos significados dos nomes prprios em Lavoura
arcaica: Na Bblia, Andr o irmo de Pedro e ambos filhos de Joo. No texto, o mesmo acontece, sendo
que a correspondncia nomes bblicos/nomes de Lavoura arcaica se verifica de forma bastante clara no
tocante aos nomes dos irmos, Pedro e Andr (do grego Andras, viril, varonil, pelo latim Andreas).
Andr tambm o nome do primeiro apstolo, irmo de Simo Pedro (Do latim Petru-, este do gr. Ptros
(S. Mateus, IV, 18), traduo aproximada de voc. Aramaico, Cep(h)as, que significa rochedo; em gr.
Petros significa igualmente rochedo, petra em lat) cujo pai chamava-se Joo, sendo o nome da me,
tradicionalmente, Joana. Enquanto Andr o viril, forte, vigoroso e potente, carregando no nome
qualidades relativas ao homem e, mais ainda, ao heri, Pedro a pedra, smbolo da fora. E os dois so
filhos de Joo, nome que consta no texto bblico, mas que, em Lavoura arcaica recebe o tratamento Iohna,
que parece ser a forma hebraica para Joo. (Do hebr. Iohanan, com vrias interpretaes que Deus
favorece, agraciado por Deus, O senhor deu graciosamente, a quem Deus mostra a graa). Embora
o nome da me no aparea textualmente - o que nos leva a pensar numa falta de identidade -, podemos
aceitar que o fato de o pai chamar-se Joo faz com que, tradicionalmente, a me seja Joana, reconhecendo,
neste procedimento, a identificao da me embutida na do pai ou, por ser apenas designada como me,
sem nome, cumpre o trajeto simblico da grande ME.

70

pai. Chama-nos a ateno, a presena dos vocbulos tronco e razes. O primeiro


enfatizando a idia de fora e, o segundo, remetendo prudncia e segurana.
Tambm considerando o valor semntico da palavra direita, cabe salientar a
grande carga que ela possui dentro do mundo cristo: o lado direito aquele ocupado por
Cristo em relao ao trono de Deus-pai. Ou seja, aqueles ocupando a parte direita da mesa
eram os bons, os iluminados, os abenoados que levam avante os trabalhos do pai. So os
marcados profundamente sob a gide do verbo de Iohna.
Quanto aos membros do galho esquerdo, esses pertencem categoria dos
marcados pela carga de afeto da me. Ao contrrio do pai, a me no faz parte do tronco da
famlia. Ela mesma constitui o incio de uma outra ramificao, contudo uma parte
artificial, por ter sua existncia diminuda como um enxerto, uma anomalia, uma
protuberncia mrbida. Sero todos os personagens do lado esquerdo que usaro ou tero
usados o corpo de uma forma transgressora.
Desse modo, temos caractersticas gerais que so compartilhadas entre os
membros de cada grupo existente na casa. Os da Direita so indivduos racionais,
prudentes, laboriosos, mas, ao mesmo tempo, marcados por uma resignao sobressaltante.
So figuras apolneas, conforme a classificao dada pela estudiosa Camille Paglia.
Entretanto, os da Esquerda so sublinhados pelo elemento ctnico: a terra, a natureza, o
vinho, o desejo.
O enredo de Lavoura arcaica nos confidencia, como afirma Maria Cristina Poli
Felippi (2002) em seu artigo De volta para a casa, a relao ntima entre uma ordem
institucional guiada pelo ideal familiar e uma legislao moral regida pelo ideal educativo
da tradio higienista. Em ambas, a reduo ao mnimo da expresso do desejo se faz
acompanhar do mximo desenvolvimento de um saber sobre o gozo. (p. 50)
Ora, se para Pedro, o irmo mais velho, os laos sanguneos possuem um valor
71

imensurvel no percurso da harmonia e da felicidade, pois so esses elos que trazem a


segurana para a famlia, para Andr so esses mesmos laos que constituem um empecilho
para a concretizao e/ou continuao de sua paixo por Ana. o sentimento de famlia que
vilaniza as relaes de intimidade.
Para Carneiro Ramos (2006, p. 16), a famlia em Lavoura arcaica por si s j
desenvolveria o papel de uma personagem:
No h, portanto, antagonista externo ao sistema vigente, j que
cotidianamente a vida em famlia, a ordem e a tradio apenas apresentam
estabilidade. Tal sistema, representado primordialmente pelo pai, Iohna,
pode ser considerado em si uma personagem, uma ideologia personificada
em cada uma das tradies familiares e comunitrias.

Lembrando do que nos diz Philippe Aris (1973), , a partir dos sculos XV e
XVI, que o sentimento de famlia comea a se desenvolver, juntamente com um novo olhar
em relao criana, no muito considerada durante a Idade Mdia. Obviamente, seria
errneo pensar que a famlia no existia propriamente, porm podemos enfatizar que, naquela
poca, a vida pblica e as relaes sociais se confundiam e se mesclavam ao ambiente
familiar. Ou seja, o que no se observava era a viso da instituio familiar como algo
privado, reservado intimidade. Por exemplo, em tal perodo o que existiam eram as casas
abertas, concebidas para possibilitar a entrada e a sada de diversas pessoas, onde cmodos
comuns no permitiam muitos momentos ntimos.
De acordo com Aris (1973), A vida profissional e a vida familiar abafaram essa
outra atividade, que outrora invadia toda a vida: a atividade das relaes sociais. (p. 274) A
preservao da famlia parte da vida social, como uma idia conjugada entre a intimidade e
o privado, uma inovao substancialmente da classe burguesa. A partir do alargamento
dessas noes modernas, temos tambm o desenvolvimento da idia de individualismo. Em
Lavoura arcaica, Andr ser tambm quem mais vai defender o individualismo como um
meio de combater a famlia.
72

No entanto, entre as duas foras que se digladiam, Pedro e o pai ressaltam a


importncia da aparente unio da famlia que deveria ser preservada. o que enfatiza
Pedro ao aconselhar Andr, na penso, de acordo com o narrador:

mas que era importante no esquecer tambm as peculiaridades afetivas e


espirituais que nos uniam, no nos deixando sucumbir s tentaes, pondonos de guarda contra a queda (no importava de que natureza), era este o
cuidado, era esta pelo menos a parte que cabia a cada membro, o quinho a
que cada um estava obrigado, pois bastava que um de ns pisasse em falso
para que toda a famlia casse atrs; (NASSAR, 1989, p. 23)

No trecho acima, podemos ver que na idia de Amor apresentada por Pedro no
cabe o desejo. O afeto estaria restrito aos costumes familiares relativos a um comportamento
de permanente tenso, sublinhado pela viglia e pelo cuidado. Tais procedimentos em prol de
um comportamento prudente estaria cosolidado num dever dentro das normas familiares: era
esta pelo menos a parte que cabia a cada membro. Obrigao exigida de tal modo que, se
um membro no cumprisse com o estabelecido pela palavra do pai, o preo seria a runa de
toda a famlia. De acordo com as palavras de Andr : quanto mais estruturada (a famlia),
mais violento o baque, a fora e a alegria de uma famlia assim podem desaparecer com um
nico golpe (NASSAR, 1989, p. 28)
Segundo Andria Delmaschio (2004), dentro do contexto de Lavoura arcaica, a
manunteno de Andr no interior da famlia relaciona-se com uma ligao constante e
ordenada com a terra, possibilitando o procedimento das relaes afetivo-sexuais com a irm
Ana, e ao mesmo tempo remetendo-se, sempre, ao centro da famlia:

O personagem aceita seu pertencimento quela engrenagem de produo e


poder que a famlia, desde que tenha garantida como recompensa por seu
trabalho na fazenda a continuidade das relaes com a irm. Expondo uma
outra faceta imprevisvel da relao entre sexo e poder, o sistema que cerceia
os atos do narrador Andr e o exclui do convvio familiar
automaticamente lhe inspira propostas revolucionrias. (DELMASCHIO,
2004, pg. 121)

73

A evoluo dos valores da civilizao ocidental projetou-se na progresso do


desenvolvimento do conceito de famlia como um grupo social, fundado sobre as bases dos
laos de afetividade. Sendo a famlia patriarcal, aquela que desempenhava funes
procriacionais, econmicas, religiosas e polticas, ela com seu modelo que consagra a
famlia como unidade de relaes de afeto. Desse modo, o princpio da afetividade carregaria
nuances sociolgicas e psicolgicas, no que, em relao aos filhos, levaria a uma progressiva
superao dos elementos causadores de discriminao, entre eles, dentro do contexto familiar:

A afetividade construo cultural, que se d na convivncia, sem interesses


materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue.
Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo
princpio, ostenta fraca densidade semntica, que se determina pela mediao
concretizadora do intrprete, ante cada situao real. Pode ser assim
traduzido: onde houver uma relao ou comunidade unidas por laos de
afetividade, sendo estes suas causas originria e final, haver famlia.
(LBO, [s.d], p. 07 )

No entanto, para Andr, o amor pregado pelo pai no interior da famlia que
massacra e aniquila os sujeitos envolvidos nas relaes sociais familiares. Assim, a carga
afetiva que, no sendo aquela provinda da me, portada por Pedro apresenta-se como malfica
e indesajada. Nos dizeres de Andr: (...) e eu senti a fora poderosa da famlia desabando
sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia ns te amamos muito, ns te
amamos muito (NASSAR, 1989, p. 11)
As relaes afetivas so condicionadas41, na obra de Raduan Nassar, a partir de

41

Para Freud, os afetos e as representaes no esto definidamente ligados. O afeto sempre tem uma
coerncia, mas vai passando de representao em representao. Uma coisa insignificante pode ser
investida de uma carga afetiva espantosa, porque associada a algo. O afeto se separa, s vezes, da
representao original que o justificava e se desloca para uma representao indiferente e incompreensvel.
Em Lavoura arcaica, Andr parece deslocar seu amor da figura da me para a irm Ana. Da mesma forma,
o narrador de Um Copo de Clera v na sua companheira comportamentos maternos.

74

um pacto primordial, principalmente dos protagonistas, com o corpo, um dos fatores mais
relevantes para a constituio da identidade individual daqueles. Tambm vlido ressaltar
que as questes relativas alteridade parecem desenvolver-se a partir do valor transgressor e
litigante da palavra, pois esta tanto serve de instrumento como meio para o desenrolar das
aes nas narrativas.

4.2 Pedras na lavoura: o pai e Pedro


Como em uma lavoura, um solo pedregoso no possibilita o cultivo, dentro do
campo dos desejos de Andr, encontramos dois personagem que dificultam os interesses do
protagonista: Iohna, o pai, e Pedro, o irmo. No contexto da estrutura da famlia,
encontramos a presena do pai como o principal antagonista para a concretizao dos desejos
e da liberdade de Andr.
Segundo Deise Ellen Pitti, na obra em estudo de Nassar, o pai representa a
alegoria do bom conselheiro. Considerando o quadro Alegoria da Prudncia de Ticiano
Vecellio (1565), a estudiosa delineia um paralelo entre a figura do pai e este auto-retrato do
pintor italiano.

75

5. Alegoria da Prudncia de Ticiano Vecellio (1565 d. C.)

Em a Alegoria da Prudncia, Ticiano metaforiza as trs formas de concepo do


tempo clssico (passado, presente e futuro), retratando sua mocidade, maturidade e a velhice.
Conforme nos explica Pitti (s.d, p.09):

Ticiano associa nesta obra estes trs tempos idia de Prudncia, ou com
as trs faculdades psicolgicas em cujo exerccio essa virtude - a prudncia se manifesta, a saber: a memria, que lembra e aprende o passado; a
inteligncia, que julga e age no presente; e a previdncia, que antecipa e
prov para ou contra o futuro. A subordinao destas trs faculdades da
Prudncia aos trs modos do tempo que representam a Tradio Clssica
de concepo do mundo.

Desde o sculo VI, com o tratado formulo vitae honestae, do Bispo espanhol
Martim de Bracara, encontramos a Prudncia como uma qualidade necessria figura do
bom conselheiro, dentro do conjunto de representaes que caracterizam a Tradio
Clssica. Desse modo, o presente, o passado e o futuro so levados em considerao,
medida que, a partir da anlise de precedentes passados, podemos prever as conseqncias
futuras de um problema presente: Assim, Ticiano se auto-retrata enquanto esta figura do

76

Bom conselheiro, um homem idoso para o qual a Prudncia no s condio bsica em


um bom conselho, mas tambm a base de uma vida sbia e feliz. (PITTI, [s.d], pg.09)
O bom conselheiro seria um indivduo que no se afasta de seus domnios e de
sua origem. Tradicionalmente, so figuras representadas pelo campons, tecendo um painel
sob a caracterizao de um sujeito honesto que ganhou sua vida sem sair da freqentao de
origem e que sabedor de sua histria e tradies.
Por ser tambm um narrador encarregado de passar e perpetuar memrias, as
narrativas dos conselheiros so sublinhadas por um senso prtico e utilitrio, proferidos sob o
tom de ensinamentos morais. Assim, Iohna tece seus sermes, debaixo de um estandarte
configurado pela tradio, encontrando em Pedro o seu legtimo sucessor: a voz de meu
irmo, calma e serena como convinha, era uma orao que ele dizia qaundo comeou a falar
(era o meu pai) da cal e das pedras de nossa catedral (NASSAR, 1989, p. 18).
Pedro tem seu papel legitimado e reconhecido como representante da famlia. Sua
identidade parece ser construda atravs do seu papel ativo dentro da famlia, por ser o irmo
mais velho: isso que te compete, a voc, Pedro, a voc que abriu primeiro a me, a voc
que foi brindado com a santidade da primogenitura (p. 110). ainda o irmo primognito
que pensa ter a sapincia do sucesso das coisas, prevendo as conseqncias da fuga de Andr:
s na hora de deitar, quando entrei em teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas
vazias, s ento que compreendi, como irmo mais velho, o alcance do que se passava: tinha
comeado a desunio da famlia (NASSAR, 1991, p. 26)
A desunio da famlia tambm poderia ser algo natural dentro do crculo familiar.
Adauto Novaes (1992) nos diz que: Acontece com os afetos e desejos o mesmo que acontece
com a liberdade: uma prodigiosa desateno, perda de intensidade, um estado de
perturbao profunda pela imaginao delirante (p. 11). Assim, como os personagens
parecem desenvolver uma relao amorosa h tempos, as relaes de afeto teriam se
77

deteriorando naturalmente.
No entanto, de acordo com Andr, Pedro est enganado sobre a origem dos males
da famlia percebendo os acontecimentos de uma forma atrasada:

A nossa desunio comeou mais cedo do que voc pensa, foi no tempo em
que a f me crescia virulenta na infncia e em que eu era mais fervoroso que
qualquer outro em casa eu poderia dizer com segurana, mas no era a hora
de especular sobre os servios obscuros da f, levantar suas partes devassas,
o consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volpia e os
tremores da devoo. (NASSAR, 1991, p. 26)

Tanto o pai como Pedro no so capazes de acolher Andr. Estando do outro lado
da mesa e pertencendo a outra diviso da famlia, o protagonista de Lavoura arcaica se
condena, no apenas pelas conseqncias do uso do seu corpo, mas pela sua linguagem
impositiva e rebelde:

Andr narra lembranas tomadas das zonas de sombras, os silncios, os


no-ditos. Essa tipologia de discurso, e tambm de aluses e metforas, no
encontra na figura paterna elemento de escuta. Ao tentar estabelecer dilogo
com o pai, Andr se expe ao mal-entendido. Isso porque as memrias
clandestinas so intransmissveis, e assim permanecem at o momento em
que se tornam pblicas e reivindicam seus direitos (...) (PITTI, [s.d], p.10)

O universo das memrias de Andr marcado pela presena do agnico, junto


com uma condio grotesca e impiedosa forjada pela insatisfao dos desejos subterrneos da
personagem. Para Paul Dieu ( apud Julien, 2002, p. 112), o mundo do subterrneo o smbolo
do inconsciente, vislumbrado principalmente no mito grego de Persfone. A descida de tal
figura ao mundo dos mortos representaria o recalcamento do desejo. Portanto, em uma
significao psicolgica subjacente para liberar o desejo reprimido, o homem deve descer
ao reino secreto de seu inconsciente para descobrir sua verdadeira natureza e os motivos que
entram na base do comportamento negativo.
Dentro das relaes de afeto, h a existncia de um discurso impotente, pois ele se
distancia, nas palavras de Piatti (s.d, p. 10), daquilo que no pode ser posto distncia,
razo pela qual o narrador invoca a interveno do discurso interior, por meio do qual suas
lembranas traumticas remetem sempre ao presente, mas deformando e reinterpretando seu
78

passado.
A relao entre os irmos, dentro do imaginrio das culturas, sempre foi tema para
a reflexo da humanidade, principalmente enfocando disputas por poder ou por afeto. No
seria, por exemplo, necessrio lembrar o caso bblico de Caim e Abel, a narrativa egpcia
sobre os irmos Osris e Seth ou a grande complexidade das ligaes fraternas no contexto da
mitologia greco-romana.
Dentro do panorama literrio, temos, a partir da infncia com os Contos de Fadas,
contato com as narrativas de rivalidade ou indiferena dentro das chamadas fratrias. Como
observam Guimares e Galvo (s.d): O subsistema fraternal envolve pessoas que no
tiveram a opo de escolher por este convvio, sendo levadas, obrigatoriamente, a viverem
juntas. Por mais que no desejem esta relao, no conseguem se divorciar, os laos
fraternais so eternos assim como os vnculos parentais. (p. 3)
Sendo o resultado de uma intimidade imposta, em uma relao fraterna
podem tanto emergir sentimentos agradveis quanto aqueles desencadeadores de conflitos, j
que a convivncia, ao mesmo tempo em que pode nortear a cumplicidade e a solidariedade,
serve como primeiro laboratrio competitividade, ao cime e rivalidade.
De acordo com Maria Consuelo Passos (2007), em A constituio dos laos na
famlia em tempos de individualismo, os laos de afeto so princpios que servem de
referncias aos indivduos e que permitem construir uma concepo de famlia. Os elos
afetivos tambm constituem e sustentam as relaes internas e externas dentro do contexto
social. No interior da famlia, a criao dos laos depende de um processamento psquico
cujo dispositivo central uma economia de investimentos libidinais, dos quais decorrem os
lugares e as funes de cada membro, indispensveis ao processo de subjetivao.
Sobre a constituio dos laos, a existncia de uma base familiar equilibrada o
resultado da maneira como os membros individuais do grupo se comportam entre o contexto
79

da realidade interna do conjunto afetivo e a realidade social externa. Contudo, se encaramos


apenas o sujeito como um mero elemento no conjunto familiar, o resultado a falncia
redutora da noo de um indivduo anulado.
Dentro da famlia, os sujeitos esto sob um processo em que as relaes so
dbias, pois ao mesmo tempo em que, no interior do processo familiar que o indivduo
constri sua auto-determinao, ele est sempre subordinado ao Outro. Assim, a busca da
auto-soberania est circunscrita e afetada pela esfera do prprio paradoxo da formao dos
laos afetivos. Nessa conjuntura em que o indivduo busca a prpria autoridade, vemos a
construo das singularidades que vai se refletir no comportamento dos sujeitos. Em suma, a
constituio de cada sujeito na cadeia familiar decorre de uma

subjetividade que

constituda, a partir da presena do outro, em que o prprio grupo proporciona um campo


interacional que possibilita a construo da identidade baseada na alteridade.
essa questo da alteridade que se sobrepem a questes concernentes
identidade e metaperspectiva de indagao psicanalstica de Laing (apud Iser, 1996, p. 64)
de percepo interpessoal: A minha viso da viso do outro sobre mim. Ortega y Gasset
(1989, p. 72) complementa afirmando que: em outro me encontro sempre tambm eu
refletido nele e vejo que ele me v a mim.

4.3 - Ana: nuances ambguas entre uma femme fatale e uma mulher
sacralizada
Em A carne, a morte e o diabo na literatura romntica, no captulo A bela
dama sem misericrdia, Mrio Praz (1996) caracteriza a tipologia da mulher que habita a
fantasia masculina na segunda metade do sculo XIX. Ele nos lembra da

lenda
80

vamprica, a figura da Mulher Fatal que encarna, de tanto em tanto, em todos os tempos
em todos os pases, um arqutipo que rene em si todas as sedues, todos os vcios e
todas as volpias (p. 196). Tais palavras se aproximam muito do que narra Andr sobre
Ana:

Ela sabia fazer as coisas, essa minha irm, esconder primeiro bem
escondido sob a lngua a sua peonha e logo morder o cacho de uvas que
pendiam em bagos tmidos de saliva enquanto danava no centro de
todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando
gritos de exaltao. ( NASSAR, 1989, p. 31)

O ambiente dionisaco descrito acima nos remete a uma das caractersticas


principais da mulher fatal que , sem dvida, a seduo. Elas provocam e depois aniquilam
num contexto que sempre resulta no sacrifcio e na tragdia. Como o final do livro em estudo
trgico por excelncia, podemos desconfiar que Ana, pois, um tipo de femme fatale,
seguindo outras mulheres como Medusa, Judite, Salom, Dalila etc.
No entanto, antes de prosseguirmos com uma genealogia sobre as mulheres fatais
para comprovarmos a recorrncia residual de tal figura mitolgica, nos deteremos na
conceituao que permite caracterizarmos a personagem de Lavoura arcaica como uma
femme fatale. Assim, leiamos o seguinte trecho retirado do livro A mulher que eles chamavam
fatal:

No que podemos chamar de uma mitologia da feminilidade, a mulher fatal


no apenas a mulher que mata. Ela se confunde tambm com a Megera,
verso pouco decorativa, mas temvel, daquela que estraga a vida de um
homem, como a depravada de imoralidade contagiosa, como a beldade de
nefasto poder: Leopardi escreveu que o terror o prprio da impresso
produzida pela beleza"; e conhecemos a locuo: bela de dar medo. Ela
nasceu com Lilith, "a filha de sat, a grande mulher da sombra" (Hugo, LA
fin de Satan) [o fim de Sat} com Helena de Tria, "to admirada, coberta
de tantos ultrajes"( Goethe, Second Faust), mas tambm com a mulher

81

leviana, agente irrisrio e funesto do Inconsciente. (...) Certamente ela era,


antes de tudo, a mulher fatal-ao-homem, encarnando o destino da
humanidade masculina sacrificada no altar da Espcie. Aguardava sua presa
na sombra com uma tranqilidade praticamente divina. Dava a morte, mas
tambm era mostrada como cadver vivo, carnia repugnante. Guiada pela
fatalidade, aparecia como um instrumento de foras, alm do seu controle, e
a que ele apenas emprestava, por um tempo, seu corpo. (DOTTIN-ORSINI,
1997, p. 15)

No artigo El mal tiene nombre de mujer: del Olimpo a la Meca del Cine, Maria
ngeles Cruzado Rodrguez afirma que, apesar do mito da mulher fatal ter nascido no sculo
XIX, as suas razes seguem um rastro deixado por uma grande quantidade de representaes
femininas na Histria da Arte e da Cultura, que tm origem na Grcia Clssica, fonte do
imaginrio coletivo da sociedade patriarcal:

La primera fue enviada al mundo como castigo, despus que Prometeo


robara el fuego del Olimpo para darlo a los hombres. Pandora posea uma
impresionante belleza y una excesiva curiosidad, que la llev a abrir la caja
que le haba entregado Zeus, con todos los males que azotan hoy al mundo.
Eva tambin tent con su hermosura a Adn para que comiera del fruto
prohibido, y las consecuencias de su conducta desobediente son de sobra
conocidas.42

Cruzado Rodrguez tambm corrobora, descrevendo uma lista de mulheres fatais,


com a definio de que a femme fatale no apenas a dama que mata, mas aquela que
responsvel por alguma forma de destruio mesmo que de um modo invonluntrio. Para tal,
a periodista sevilhana faz referncia tambm a Helena de Tria, uma mulher bela que deixou
seu marido Menelau para fugir com o jovem troiano Pris, retratada em a Ilada de Homero. A
fuga originou uma guerra, quando o esposo desonrado comeou a travar uma luta para tomar

42

A primeira foi enviada ao mundo como castigo, depois que Prometeu roubou o fogo do Olimpo para
d-lo aos homens. Pandora possua uma impressionante beleza e uma curiosidade excessiva, que a levou
a abrir a caixa que ele lhe havia entregado Zeus, com todos os males que hoje aflingem o mundo. Eva
tambm tentou com sua formosura para que ele comesse do fruto proibido, e as conseqncias de sua
conduta desobediente so de sobra conhecidas. ( traduo nossa)

82

Tria, destruindo a cidade e provocando a morte de milhares de pessoas.43 Como castigo,


talvez como o que acontece com a personagem Ana, Helena recebeu a morte mesmo sem
desconfiar que sua ao provocasse tanto caos.
Na mesma linha de pensamento, porm seguindo a tradio judia-crist, Rodrguez
ressalta mulheres fatais bblicas como Betsab (que impactou com sua beleza o rei David,
fazendo com que ele cometesse adultrio e mandasse matar seu marido); Judith (que seduziu
Holofernes para liberar seu povo do cerco assrio, degolando-o logo em seguida); Dalila (que,
apaixonando Sanso, cortou-lhe os cabelos, origem da fora deste) e Salom (que, com sua
dana sensual, covenceu Herodes a matar Joo Batista.
De acordo com Arianne Conti e Franci Pezzini (2005), em Le Vampire: crimini e
misfatti delle succhasangue da Carmilla a Van Helsing, ser Herodade e Salom o par
tenebroso que vai conotar o sucesso da femme fatale no imaginrio ocidental ao reler uma
polaridade mitolgica dove proprio la cifra plurale (una dualit che assurge a rivelazione
di un intero mondo arcaico, esotico, altro) a compendiare mondo biblico e sincretismi
pagani (p. 30).
Como Salom, Ana tambm usa a dana para chamar a ateno nas festas
ocorridas no decorrer da trama, principalmente naquela quando Andr retorna a casa e o
incesto ainda um segredo a ser revelado. Assim, sob o prisma das palavras do narradorpersonagem encontramos a descrio do fascnio, decadente nesse ponto da narrativa,
provocado pela irm:

(...) todos eles batiam palmas reforando o ritmo, e quando menos se


esperava, Ana (que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente
43

A autora lembra-nos outras figuras mitolgicas como exemplos de mulheres fatais. Uma seria Circe
que, depois de matar seu companheiro para reinar sozinha, foi para a Itlia onde se dedicou a atrair e
encantar os marinheiros para roub-los e transform-los em bestas. Tambm temos as Sereias seduzindo
com seus cantos os marinheiros que, confundidos, se chocavam contra os recifes. Na Mitologia Grega,
Rodrguez ainda cita Medusa, Media, Jocasta e as amazonas, como exemplos de femmes fatales.

83

numa s lufada, os cabelos soltos espalhando lavas, ligeiramente apanhados


num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!),
toda ela ostentando um deboche exuberante, uma borra gordurosa no lugar
da boca, uma pinta de carvo acima do queixo, a gargantilha de veludo roxo
apertando-lhe o pescoo, um pano murcho caindo feito flor da fresta
escancarada dos seios, pulseiras nos braos, anis nos dedos, outros aros nos
tornozelos, foi assim que Ana, coberta com as quinquilharias mundanas da
minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o
crculo que danava, introduzindo com segurana, ali no centro, sua
petulante decadncia, assombrando os olhares de espanto, suspendendo em
cada boca o grito, paralisando os gestos por um instante, mas dominando a
todos com seu violento mpeto de vida. (NASSAR, 1994, pp. 188-189)

Como podemos perceber, Ana conseguia hipnotizar a todos e ser o centro da


ateno, inclusive em uma festa que era para Andr: foi assim que Ana (...) tomou de assalto
a minha festa. A presena do vermelho, a maquilagem forte, os cabelos soltos e os acessrios
mundanos servem para reforar a atmosfera ertica no texto. Essa mesma Ana, que se
mostra decadente e assombra os convidados, vista pelo narrador como segura, dando a
entender que ela teria a conscincia do domnio sedutor que subordinava os outros ao seu
mpeto de vida44. Desy Meneghello (2006), em La seduzione nel corso della Storia ,
delineia bem o ambiente construdo por Ana ao caracterizar a mulher fatal em relao
sensualidade, fascinao e ao decadentismo:

(...) la donna fatale la personificazione della sessualit, l'emblema


dell'amore carnale, della passione e dell'istinto, di un'area dell'anima dove
non regnano pi la ragione e la luce dell'intelletto, ma l'irrazionalit, le
pulsioni istintuali, la notte arcaica. La femme fatale protagonista
dell'iconografia dell'et del Decadentismo.
Espressione di una natura che, non dominata completamente dall'uomo, crea
ma anche distrugge, dietro di lei si nasconde il fantasma di una potente Gran
Madre primordiale che, allo stesso tempo benevola e crudele, come lei
affascina e annienta.45
44

Atravs das figuras de Eros e Thanatos, a mitologia grega legou-nos a alegoria correspondente vida e
morte. Eros, antes de ser meramente a representao do desejo sexual, ele consiste no anseio de viver,
no mpeto de vida, enquanto Thnatos consistiria no instinto de morte.

45

A mulher fatal a personificao da sensualidade, emblema do amor carnal, da paixo e do instinto, de


uma rea da alma onde no reinam mais a razo e a luz do intelecto, mas a irracionalidade, a pulso
instintiva, a noite arcaica. A femme fatale a protagonista da iconografia da idade do Decadentismo.
Expresso de uma natureza que, no dominada completamente pelo homem, cria mas tambm destri, atrs
dela se esconde o fantasma de uma potente Grande Me primordial que, ao mesmo tempo benvola e cruel,
como ela fascina e acalenta.

84

Portanto, podemos afirmar, a partir dos trechos lidos, que a personagem Ana
uma mulher fatal, pois Andr a caracteriza como uma mulher maliciosa, lasciva: cheia de
meiguice, mistrio e veneno nos olhos de tmara (p. 191). Uma dama que sabia esconder
seu veneno, que enfeitiava: mas meus olhos cheios de amargura no desgrudavam de
minha irm que tinha a planta dos ps em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de
mim...(p. 33).
Ressaltando o ambiente dionisaco de msicas e de vinho, Ana, em outro trecho,
caracterizada por Andr como um demnio verstil, uma mulher calculista e impiedosa ao
realizar o seu ritual de seduo. Sublinhando a conscincia de Ana em relao aos
movimentos que ela executava, o irmo chega a afirmar repetidamente haver a certeza de ser
o nico pblico-alvo a quem ela dirigia seu espetculo:

E Ana, sempre mais ousada, mais petulante, inventou um novo lance


alongando o brao, e, com graa calculada (que demnio mais verstil!),
roubou de um circundante a sua taa, logo derramando sobre os ombros nus
o vinho lento, obrigando a flauta a um apressado retrocesso lnguido,
provocando a ovao dos que a cercavam, era a voz surda de um coro ao
mesmo tempo sacro e profano que subia, era a comunho confusa de alegria,
anseios e tormentas, ela sabia surpreender, essa minha irm, sabia molhar a
sua dana, embeber a sua carne, castigar a minha lngua no mel litrgico
daquele favo, me atirando sem piedade numa inslita embriaguez, me pondo
convulso e antecedente, me fazendo ver com espantosa lucidez as minhas
pernas de um lado, os braos de outro, todas as minhas partes amputadas46 se
procurando na antiga unidade do meu corpo (..), eu que estava certo, mais
46

A meno de partes amputadas do corpo de Andr apenas se d, aps o episdio da rejeio de Ana na
capela, depois da concretizao do incesto. atravs dessa imagem que temos um Andr despedaado
sem a possibilidade de concretizar novamente seu amor pela irm e seu desejo carnal, podendo significar
ainda uma perda simblica da atividade sexual, uma espcie de castrao. Segundo Michel Onfray, em A
Arte do Prazer: por materialismo hedonista, a perda real ou simblica da atividade sexual uma idia
antiga: O gosto pela castrao sagrada consubstancial ao desejo: da Grcia antiga ndia
contempornea, em que essas prticas ainda existem, os apreciadores da assexualidade expressam em tal
gesto simblico a recusa do corpo, da carne, da sexualidade e todo o desprezo que tm pelo desejo. Para
no recorrer ao gesto mutilador, os cristos fizeram, mesmo assim, seu o voto de Orgenes: matar o
desejo, extirp-lo de si e tentar domin-lo. (p. 162). Entretanto, Andr diz ver as suas partes amputadas,
demonstrando o que o filosfo Orgenes compreendeu: no se acaba simplesmente com a carne e no
apenas o corpo o responsvel pelo desejo.

85

certo do que nunca, de que era para mim, e s para mim, que ela danava.
(NASSAR, 1989, p. 190)

A mulher, sendo o sujeito no jogo de seduo, quem intenta transgredir o nico


espao tangvel nas relaes de afeto: o corpo. Assim, o homem sente-se perturbado e v, no
deslocamento do seu papel de caador para caa, um tom de teatralidade calculada. Alis,
teatralidade que parece perpassar toda a obra de Nassar. Aqui convm lembrar o que nos diz
Francesco Alberoni sobre o comportamento masculino frente a essa iniciativa feminina, que
bem caberia como hiptese para a inquietao do narrador em relao sua dama:

Outro fato paradoxal que o homem, quando uma mulher se entrega a ele
com muita facilidade e de modo desabrido, tem a impresso de que ela o faz
por clculo, ou por um motivo, isto , que age como uma prostituta. A
expresso pejorativa puta quer dizer afinal que ela finge, que engana, que
usa sua sexualidade com fins no erticos. No nos esqueamos de que, para
o macho, o prazer sexual um fim por si mesmo. A idia de que usado
com outra finalidade o perturba. A idia de que a excitao ertica possa ser
simulada o inquieta. Por que ele no pode fazer isso, porque nele a ereo
uma prova que no pode falsificar. (ALBERONI, 1986, p. 61)

Anteriormente, j tnhamos afirmado que um dos motes de Nassar era a relao


entre a mulher daimnica, noturna, e o homem solar, civilizado, referindo-nos a Camille
Paglia que, em seu livro Personas Sexuais (1992), descreve uma genealogia mais arcaica para
o imaginrio da mulher ao narrar o mito pr-histrico da vagina dentada, responsvel pelo
medo atual e inconsciente que o homem tem da mulher.
O mito da vagina dentata, recorrente entre os ndios norte-americanos, consistia
na idia de que, dentro da vagina da Grande Me Terrvel, havia um peixe carnvoro. O
homem, ento, para transformar essa entidade ameaadora em mulher, deveria venc-la
heroicamente e quebrar-lhe os dentes.47 Tal mito, conforme nos lembra Paglia, no uma
iluso sexista. O pnis engolido pela vagina a representao menor da humanidade sendo

47

Conforme nos foi lembrado pela Professora Ana Maria Pompeu da Universidade Federal do Cear, na
Teogonia de Hesodo, a Terra fabrica uma foice dentada que castra Urano atravs de Crono.

86

devorada pela me natureza. Arquetipicamente, sob a esfera metafrica, a vagina dentada


smbolo remanescente do poder feminino e do medo masculino. Assim, toda mulher tem uma
vulva com dentes secretos que, no ato sexual, drena a energia masculina.
Vagina dentata um tema do universo mitolgico constantemente revisado pela
literatura e pelas artes em geral, desde a construo e elevao do mundo ocidental, em
diversas civilizaes. So as femmes fatales bblicas, as Bruxas de Macbeth de um
Shakespeare renascentista. Aparecem na literatura gtica romntica, no fantstico de Edgar
Allan Poe, em Huysmans e at na literatura contempornea judaica como na obra A Caixa
Preta de Ams Oz. Alm disso, vemos o tema da Mulher Fatal no cinema, como o ttulo
homnimo do filme de Brian de Palma, ou ainda em msicas de pagodes voltadas para o
consumo das massas. Em todas essas obras, a mulher fatal representa o medo masculino em
relao ao domnio feminino, principalmente exercido atravs da beleza. Assim, cabe
lembrarmos a citao de Virgnia Wollf (1985): Da, talvez, a natureza peculiar das mulheres
na fico, os extremos surpreendentes de sua beleza e horror, sua alternncia entre bondade
celestial e depravao demonaca pois assim que um amante a veria medida que seu
amor crescesse ou diminusse, fosse prspero ou infeliz.(p. 35)
No tendo outra alternativa para o comportamento dos homens em frente s
mulheres, o temor masculino em relao a figuras femininas tambm tratado no livro de
Muraro e Boff (2002), Feminino e Masculino, mas numa vertente Psicanaltica sob o
confronto da inveja feminina do pnis e da inveja masculina do ventre.
De acordo com o que nos lembra Franconi (1997, p. 141), seguindo a linha desse
temor masculino, nos textos nassarianos podemos perceber que:

Na verdade, o discurso da mulher do texto de Raduan Nassar o discurso


que o homem tenta demolir, no porque o homem est contra a mulher, mas
por ver nesse discurso as falcias que levaram a civilizao ocidental a
distanciar-se das leis que governam a vida natural.

87

Sobre as leis naturais, Camille Paglia (1992) afirma que um tema recorrente que
tem assombrado os sonhos da humanidade nos dias atuais a fria da natureza. Para a
estudiosa americana, por mais que o homem construa e se proteja em civilizaes, ele
sucumbe s intempries dessa fora incontrolvel. Segundo Paglia (1992, p.17), a vida
civilizada exige um estado de iluso permanente. Isso fica mais evidente quando percebemos
o quanto essa iluso subvive no nosso cotidiano, quando nos abstemos de falar de sexo e de
morte, ou seja, quando estamos prximos de nos reconhecermos como parte do conjunto da
natureza.
Entretanto, cabe relembrarmos que Ana representa o diablico, enquanto que, a
me, apesar da idolatria de Andr, tambm arrolada numa esfera de culpa em relao ao
incesto. Assim nas palavras do protagonista: se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da
casa um templo, a me, transbordando no seu afeto, s conseguiu fazer dela uma casa de
perdio (NASSAR, 1989, p. 136).
Em meio ambigidade, Andr pede ao Deus cristo um milagre para realizar o
ato sexual incestuoso com a irm, contrariando no apenas os preceitos do pai, mas aqueles
tradicionalmente cristos: (...) um milagre, um milagre, meu Deus, eu pedia, um milagre e
eu na minha descrena Te devolvo a existncia, me concede viver esta paixo singular fui
suplicando (...) (p. 104). Para o narrador de Lavoura arcaica, a questo do desejo sagrado e
Ana, por conseguinte, apresentada como sacralizada no momento da consumao do
incesto, no captulo 20, onde nos revelado que a lavoura (como j sublinhava Camille
Paglia) o corpo:

(...) e era, Ana a meu lado, to certo, to necessrio que assim fosse, que eu
pensei, na hora fosca que anoitecia, descer ao jardim abandonado da casa
velha, vergar o ramo flexvel de um arbusto e colher uma flor antiga para os
seus joelhos; em vez disso, com mo pesada de campons, assustando dois
cordeiros medrosos escondidos nas suas coxas, corri sem pressa seu ventre
humoso, tombei a terra, tracei canteiros, sulquei o cho, semeei petnias no

88

seu umbigo; e pensei tambm na minha uretra desapertada como um caule


de crisntemo, e fiquei pensando que muitas vezes, feito meninos,
heveramos os dois de rir ruidosamente, espargindo a urina de um contra o
corpo do outro, (...) e s pensando que ns ramos de terra, e que tudo o que
havia em ns germinaria em um com a gua que viesse do outro (...)
(NASSAR, 1989, p. 115)

Todavia, salutar que, apesar de Ana e a Me serem caracterizadas com nuances


de femme fatale, elas podem tambm ser caracterizadas como prottipos de Mulheres Ideais e
se equivalem, como bem percebemos durante as afirmaes do protagonista de Lavoura
arcaica. Quanto seduo da me ou em relao a ela, ela se mostra contundente,
principalmente quando o rapaz conta suas lembranas. Portanto, atravs do afeto do outro
materno que Andr passa a construir sua identidade, frente figura do pai e sua mulher fatal,
retornando sempre simbologia do tero, do daimnico, do prazer.
Para explicar o relacionamento entre pai-me-filho, Rose Marie Muraro (2002),
seguindo Freud, explica que o desejo a grande lei que se espalha pelo corpo quando
nascemos, mas vem integrado com o nosso primeiro medo da morte, a ameaa da perda, o
Thnatos. Segundo a Mitologia grega, Thnatos era filho da Noite e de rebo, representando a
morte surgindo como um ente alado. No entanto, desde o incio da histria da civilizao,
parece surgir uma estreita ligao entre esta alegoria da morte e o Eros, o instinto de vida.48
Eros tambm filho da Noite e de rebo, apresentado por Hesodo como um deus
criador primordial para o mundo. H ainda dicionrios mitolgicos que apresentam o deus
como filho de Zeus, Hermes ou Ares e, costumeiramente, Afrodite como sua me. Os
primitivos gregos, segundo Julien (2002), o descreviam como uma calamidade alada, uma

48

Como lembra o professor Bastista de Lima, em palestra realizada na Universidade Estadual Do Cear
no I Encontro Nacional de Literatura de Fortaleza em novembro de 2005: No sem razo que Eros se
liga a Thnatos. Essa grande proximidade da criao com a destruio, essa intimidade entre os
extremos, culmina com o desfecho em que a primeira parte do corpo a se decompor, aps a morte, seja
a dos genitais. A morte comea sua devastao exatamente por onde Eros iniciou a sua construo.
Interessante tambm que, para os antigos egpcios, um dos amuletos mais usados pelos cidados era a
imagem do escaravelho, smbolo da fertilidade que poderia nascer at dos ambientes mais grotescos: de
excrementos e de morte.

89

Ker. Associando ao smbolo da paixo sexual, colocaram-no ao lado de alegorias como a


Velhice e a Peste, para fazer compreender que a paixo sexual desordenada podia ser a
causa de distrbios em uma sociedade organizada (p.143).
Assim, a vida e a morte se alimentam mutuamente, so pontos de um ciclo natural,
que, no entanto, para o homem, sexo e morte so pensados diferentemente. Sigmund Freud,
em O instinto e suas vicissitudes (1996), fala-nos que toda a nossa atividade psquica incide
em encontrarmos o prazer e nos desviarmos da dor, ou seja, somos guiados pelo princpio do
prazer. O problema surge, porque nossos desejos so frustrados pela realidade. A natureza
frustrada pela civilizao. O homem criou a civilizao para se proteger das foras de uma
natureza que ele prprio, mas, para tanto, edificou uma cultura repressora, modificando o
meio ambiente ao seu redor.
Retomando o que explica Muraro (2002), sobre a relao do desejo e da famlia,
na fase em que a libido est concentrada na boca que nos deparamos com o primeiro dualismo
entre sujeito e objeto. Como a criana sente prazer com o seio materno esta a sua primeira
defesa contra a morte, porque a qualquer momento a criana pode perder o seio (p. 134). O
instinto de morte na criana vai aparecer mais atenuadamente na fase sdico-anal quando ela
que, antes interiorizava a negao da realidade por ser incapaz de aceitar qualquer separao,
passa a atacar essa mesma realidade num instinto de morte exteriorizado. aqui que o menino
tende a se identificar com o pai, visto como o opressor, o dono.
Na terceira fase da libido, a flica, o menino se depara com a polaridade masculino
e seu oposto: a castrao. O menino sente-se impotente por ter nascido da me e tenta
transformar essa passividade com o projeto edpico de ter filho com a prpria me, de
querer possuir a me, ou seja, de tornar-se pai de si prprio (MURARO; BOFF, 2002, p.
140). Nessa fase, o menino sente medo de perder o pnis, sombra que perdura por toda a vida.
Desse modo, a masculinidade atividade narcsica do pnis que passa a tangenciar todas as
90

relaes do homem, baseadas na posse, especialmente nas classes dominantes.


Eros e Thnatos, ento, surgem frente a frente quando os problemas da
sexualidade masculina aparecem no momento em que o menino tem medo de ser morto (e/ou
castrado) pelo pai, devido ao seu desejo de possuir a me por toda a sua onipotncia antes
da represso, ainda segundo Muraro (2002, p. 141). Assim, o famoso Complexo de dipo49
fraqueja defronte ao Complexo de Castrao. Desse modo, mesmo o menino querendo a me
para si, v que ela pertence ao pai, detentor do poder, e sente vontade de mat-lo.
Entretanto, como percebe que no tem foras suficientes para tal ao, rejeita a idia,
deslocando esse desejo para o pai como se fosse este quem o quisesse mat-lo.
Em uma leitura mais livre, dentro do contexto de Lavoura arcaica, percebemos
bem essa atsmofera de tenso. Andr v o pai como o opressor que quer aniquil-lo por meio
de palavras tambm ambguas, pois, mesmo pregando o amor, o discurso paterno no parece
convincente e no coincide com a realidade familiar. Como um filho que pertence ao pai, a
vontade de Andr libertar-se atravs do corpo e da linguagem do prprio desejo, no
aceitando a idia de que no forte o suficiente para no tentar essa libertao pelos seus
prprios meios e questionamentos. Alm do complexo de castrao, o de dipo parece
circunscrever toda a narrativa dramtica, como podemos ver em inmeros trechos, como
quando Andr fala da me:

E s esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes


acorda, corao e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo at que eu,
que fingia dormir, agarrasse suas mos num estremecimento, e era ento um
jogo sutil que nossas mos compunham debaixo do lenol, e ela cheia de
amor me asseverava num cicio no acorda teus irmos, corao, e ela
depois erguia minha cabea contra a almofada quente do seu ventre e,
curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos. (NASSAR,
1991, p. 27)
49

Conforme j foi dito, lembramos que, segundo Maria ngeles Rodriguez, Jocasta tambm uma
mulher fatal. A explicao se daria ao observarmos que a me de dipo, mesmo sendo uma vtima do
destino na trajetria incestuosa com o filho, ela poderia tambm ser apontada como a causa da runa e
da tragdia.

91

De acordo com o que podemos ler, a me se encontra em situaes de uma


afetividade ambgua. O clima de erotismo da cena descrita acima reforado por chaves
semnticas, tais como: quarto, corpo, lenol. O fato de Andr fingir dormir a espera da
me, o jogo de mos sob o lenol para acariciar o corpo do filho e o segredo pedido pela
mulher acentua a atmosfera intrigante da relao entre me e filho. Se Andr era um filho
como os outros, ento por que a me pede num cicio para que ele no faa barulho e acorde
os outros? Por que Andr envolvido numa esfera de dissimulao to propcia seduo?
Para Renata Pimentel Teixeira, em Uma Lavoura de Insupeitos frutos (2002), a
ternura sufocadora da me no serve como oposio rigidez do pai. Desse modo, vejamos
outro excerto acerca da relao com a me:

com a memria molhada s lembrei dela me arrancando da cama vem


corao, vem comigo e me arrastando com ela pra cozinha e me segurando
pela mo junto da mesa e comprimindo as pontas dos dedos da outra mo
contra o fundo de uma travessa, no era no garfo, era com a ponta dos dedos
grossos que ela apanhava o bocado de comida pra me levar boca assim
que se alimenta um cordeiro ela me dizia sempre. (NASSAR, 1991, p. 38)

A questo do ctnico, ou seja, da ligao com a terra e do afastamento da


civilizao, to peculiar em textos referentes Grande-Me aparece nesse trecho quando a
me usa as prprias mos para alimentar Andr, em detrimento do uso de talheres, sinal de
uma intensificao do contato fsico at nas horas da refeio. Ainda a frase assim que se
alimenta um cordeiro nos remete dubiedade, enquanto smbolo cristo da pureza, o
cordeiro representa o sagrado, mas tambm aquele destinado ao sacrifcio.
Andr desloca o seu amor pela me para a irm, que se confundem em certos
momentos da narrativa como, por exemplo, no captulo 5. Em meio a uma festa, do bosque,
Andr inicia a descrever a dana de Ana e a imaginar desejoso a pele fresca da figura
feminina, o cheiro, a boca. Depois, o protagonista diz que nessa senda oculta no percebia
92

quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados com os olhos amplos e
aflitos(p. 32), ento nos revelado que se trata da me mais adiante em vem, corao, vem
brincar com teus irmos, e eu ali, todo quieto e encolhido, eu s dizia me deixe, me, eu
estou me divertindo (p. 33).
Pimentel Teixeira (2002, p. 19) ressalta que seja mesmo o incesto com a irm Ana
um acontecimento que talvez represente a concretizao do possvel e ambguo sentimento
em relao me e a grande oposio ordem e aos preceitos paternos. Para tanto, vemos
o uso das mesmas expresses tanto para a me, quanto para Ana, como por exemplo: e eu
ento baixava a cabea e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e
se tornavam lentos e pesados, amassando distantamente as folhas secas sob os ps e me
amassando confusamente por dentro (p. 33).
Apesar da desconfiana que as descries feitas por Andr (visto que o
personagem encontra-se num rol de contradies constantes) nos incita como leitores, Ana
pode sim ser considerada um exemplo de femme fatale medusina. A medusa um outro item
mitolgico recorrente, principalmente na histria da arte. Podemos contempl-la, por
exemplo, numa mtopa do templo C em Selinus, na Siclia, num alto-relevo de 550-40 a.C.
Ou ainda de uma forma mais cristalizada numa escultura de Benvenuto Cellini de 1540 d.C,
feita para uma praa da Florena renascentista, a qual tinha a difcil misso de substituir a
obra Davide de Michelangelo. Alis, no tocante a essa obra intitulada Perseu com a cabea
de Medusa, podemos afirmar que tem traos hbridos, tanto do Davide de Donatello, quanto
da escultura homnima de Michelangelo.

93

6. Perseu com a cabea de Medusa de Benvenuto Cellini (1540 d.C) Foto nossa.

Discordamos do que afirma Rassier sobre o perfil da mulher nassariana que a


pesquisadora teceu, conforme j citamos, acerca do equilbrio no arrolamento dos gneros.
Sim, verdade que Nassar ao dar a uma personagem feminina o papel de sujeito a coloca
numa posio de equilbrio quanto ao conflito dos gneros, posto que o homem que
costumeiramente impe mulher o carter de objeto sexual nas relaes de afeto. Entretanto,
convm lembramos, numa metfora aleatria, a j referida escultura do renascentista
Benvenuto Cellini de 1540 d.C: Perseu com a cabea de Medusa. Apesar da mulher ser a
femme fatale, de ter o papel daimnico de seduo, ele, ao final, quem segura sua cabea
ao alto, separando a mente e o corpo dela, que, alis, esse, ele mantm sob seus ps
ocidentais.

94

5. O discurso de um libertino: entre o corpo e o verbo


5.1. De um Eros inconformado para uma aproximao com o discurso
libertino

A obra de Raduan Nassar revela-se atravs de nuances erticas, em que o desejo


do corpo esbarra com as questes castradoras da sociedade ocidental, gerando no sujeito
conflitos que, por vezes, se sobrepem ao ego e super-ego. Entretanto, vale salientar que, em
Lavoura arcaica, o uso que Andr faz do corpo no parece significar apenas a satisfao de
um prazer individual, ele vai alm ao mostrar um indivduo que contesta a ordem aniquiladora
da casa para buscar alternativas de liberdade, atravs do desejo.
O desejo, de acordo com Marilena Chau, carrega em si a concepo fatalista da
paixo ao se relacionar, quando se analisa a etimologia da palavra, ao destino. A origem da
palavra desejo vem de desidero (verbo) que vem do substantivo sidus ou sidera que
significa, em latim, conjunto de estrelas. Em oposio ao verbo considerare, que
significava examinar com cuidado, respeito e considerao a fim de buscar referncias, surgiu
o verbo desiderare, que, por sua vez, significava cessar de olhar, abandonar a referncia do
alto. Assim, desiderium a deciso de tomar o destino em nossas prprias mos, ao mesmo
tempo que significava a perda, a privao do saber sobre o destino. Assim, o homem que no
considerava mais as estrelas, tornava-se um perdido. Acepo da palavra desejo que chegou
at ns via filosofia dos esticos.
95

Desse modo, Andr um perdido ao se apaixonar pela irm, principalmente


atravs do incesto que vai sombrear toda a narrativa no apenas na sua consolidao em
relao a Ana, mas tambm nas insinuaes do contato com a me e, no retorno para casa, na
seduo do irmo mais novo: Lula. De tal maneira, Andr deixa de considerar o verbo do pai
para desejar a liberdade.
No entanto, se para a famlia patriarcal o que assusta a rebeldia do filho
prdigo, para Andr ser estas palavras do pai que ele temer: meu filho, toda palavra, sim,
uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a fora do verbo em
primeiro lugar; precede o uso das mos, est no fundamento de toda a prtica, vinga, e se
expande, e perpetua, desde que seja justo. (NASSAR, 1989, p. 162)
No obstante ser o valor da palavra o fundamento da prdica do pai, o
protagonista comea a desconfiar de certas omisses que talvez o pai estivesse incorrendo.
Afinal, se era a palavra o que nos assombra em primeiro lugar, ento por que pregar contra a
paixo, contra o corpo? Como justificar a paixo, se de acordo com o discurso do pai, havia
ameaa nela: (...) cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes
turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhes confusos,
expurgando do humor das glndulas o visgo peonhento e maldito (pp. 57-58)?
Dessa maneira, Andr elege-se como o mais sbio para contestar a palavra do pai,
confessando que, ao falar sobre o uso do corpo em um jorro verbal revelador, a mesa dos
sermes (o smbolo patriarcal) seria virada:

(...) eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sbia que a
sabedoria do pai (...) e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmdico,
obsessivo, virando a mesa dos sermes num revertrio, destruindo as trevas,
ferrolhos e amarras, tirando no obstante o nvel, atento ao prumo, erguendo
um outro equilbrio, e pondo fora, subindo em altura, retesando sobretudo
meus msculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o
animal, cascos, mandbulas e esporas,(...), eu, o epiltico, o possudo, o
tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma

96

chama, um pano de vernica e o espirro de tanta lama, misturando no caldo


salgado deste fluxo o nome salgado da irm, o nome pervertido de Ana,
retirando das fbrias das palavras ternas o sumo do meu punhal, me
exaltando de carne estremecida na volpia urgente de uma confisso (...).
(NASSAR, 1989, pp. 111-112)

Para Herbert Marcuse (1981, p. 33), O eros inconformado to funesto quanto


sua rplica fatal, o instinto da morte. Sua fora destrutiva deriva do fato deles lutarem por
uma gratificao que a cultura no pode consentir: a gratificao como tal e como um fim
em si mesma, a qualquer momento. Assim, Andr est impregnado de clera sob a influncia
de um Eros inconformado.
Como nos lembra Carneiro Ramos (2006), a descrio do erotismo feito por
Nassar se aproxima daquela feita por Bataille, na medida em que ambos sacralizam o ertico
e divinizam o corpo e suas dejees. Segundo a pesquisadora: Deslindar a correlao entre
as duas perspectivas, mesmo em diferentes vertentes literria e analtica , torna-se
propcio para uma melhor compreenso de como, no romance, a poesia revela-se canal
perfeito para comportar e conduzir tal descomunal fora desestruturadora. ( 2006, p. 40)
Desse modo, Ramos (2006) assevera que Bataille, ao opr as noes de
continuidade e descontinuidade, sagrado e profano, xtase mstico e gozo , explora a
proximidade entre a morte e o sexo, j estudado por outros autores. Assim, continuidade
estaria no cerne da atrao e da repulsa vividas paradoxalmente pelos homens. A morte e o
gozo seria uma maneira de ultrapassar a individualidade,compreendendo a negao do limite
do indivduo em si mesmo. Andr tambm reconhece que est morrendo figurativamente no
texto:

Estou morrendo, Ana, eu disse largado numa letargia rouca, encoberto pela
nvoa fria que caa do teto, ouvindo a elegia das casuarinas que gemiam com
o vento e ouvindo ao mesmo tempo um couro de vozes esquisitos, e um
gemido puxado de uma trompa, e um martelar ritmado de bigorna, e um
arrastar de ferros, e surdas gargalhadas, estou morrendo(...) (NASSAR,
1989, p. 129)

97

Para Bataille (2004), a morte e o extse fundam-se na destruio do ser


descontnuo, numa dissoluo permanente ou momentnea. Tal discontinuidade s pode ser
extrada do indivduo atravs da violncia. Da descontinuidade continuidade, o erotismo
denominaria todo e qualquer excesso ligado ruptura de um estado ao outro. Essa passagem,
no podendo ser feita sem a violao de uma configurao constituda, situaria o erotismo
dentro da esfera da violncia. A violncia dos fatos erticos, o desejo e busca pela
descontinuidade fundem-se, resultando num fenmeno de autoquestionamento do homem.
O interdito e a transgresso constituem outro binmio fundamental, seguindo a
dicotomia entre a continuidade e descontinuidade. A orgia e a prostituio, fundamentadas na
atrao pelo exagero que porta o indivduo a uma dissoluo, seriam transgresses
consideradas, na obra O Erotismo do filosfo francs, como sinnimo de vida: a vida na
sua essncia um excesso, vida que no cessa de gerar mas que no cessa tambm de
destruir o que gera (p. 75), ou luxo destruidor, ciclo infernal e febril agitao (p. 53).
Seria a organizao, o palco em que se consente uma violao de forma prevista e planejada
das proibies, atravs de costumes e ritos.
Atravs dos conceitos de interdito e transgresso, podemos contemplar dois
outros termos que dividem o universo dos conflitos humanos: o sagrado e o profano. De
acordo com Bataille (2004), o profano sublinhado por ser todo elemento cotidiano,
direcionado ao trabalho, sobriedade e s proibies. Como nos lembra Ramos (2006), O
sagrado seria o destinado festa, s licenas de toda ordem, s transgresses. O mundo
profano seria o mundo do trabalho e da razo. O sagrado corresponderia prodigalidade,
dilapidao da vida, violncia.
Na obra de Raduan Nassar, o mais importante na performance de Andr no
tanto a satisfao libidinal deste, mas a necessidade de liberdade configurada atravs do uso
98

do corpo contra o domnio do pai. Andr questiona o valor da palavra, mas tambm por
meio dela que ele faz uso do discurso mais um instrumento para a seduo, conforme veremos
mais a frente quando o personagem tenta convercer a irm da legitimidade do incesto.
Para Carneiro Ramos (2006, p.16):

A tarefa de acusao do protagonista rdua: trata-se de acusar no em


termos
concretos, lineares, demonstrveis atravs de efeitos de causalidade factuais
e de argumentos lgicos pois, na vida cotidiana, em famlia, no h o que
acusar, por no haver, externamente, dolo vida do protagonista. Assim,
pelo contrrio, a argumentao se d atravs dos prprios sentimentos.

O discurso do sedutor desvia o sentido das palavras em prol de uma verdade


particular pretendida, a fim de persuadir o outro dentro do ritual de conquista. Desse modo, o
discurso pode ser caracterizado por um falseamento e a paixo, sendo um ritual, manifesta-se
sob as regras tumultuadas de tal jogo.
Segundo Jean Baudrillard, no livro Da Seduo (1991), a seduo se diferencia do
desejo, pois ela estaria sob o domnio do simblico e do artificial, enquanto que o desejo
estaria sob a ordem do natural. Desse modo, para se obter sucesso no jogo da seduo, o
sedutor deve transformar o natural em artificial, baseando-se na retrica amorosa e num ritual
codificado sob o domnio de um sistema de signos, no apenas socioculturais, mas tambm
ldicos e discursivos.
A seduo, sendo baseada sob as regras de um discurso estratgico de persuaso,
a retrica do desejo. O libertino usa a linguagem como meio para disseminar intenes
disfaradas.

(...) O instinto carnal no se pode legitimar a si prprio. Ele deve fazer-se


perdoar para ter a oportunidade de ser ouvido. Quando a humanidade tinha
uma alma e um redentor, o desejo era o pecado: disfarava-se de ideal o
obsceno acopulamento, dissimulava-se atrs dos vus do sentimento e da
ternura a baixa satisfao dos instintos.(BRUCKNER; FINKIELKRAUT,
1981, p. 336)

99

No entanto, para o libertino, o prazer e o divertimento esto ligados diretamente


liberdade. Atravs da palavra e da representao, o libertino usa todo o seu potencial cnico:
as mscaras, os cenrios, o prprio corpo para performar uma atuao convincente,
principalmente quando se percebe visto. Tal fenmeno corrobora com a seguinte citao de
Barthes (1989, p. 25): (...) A partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva, tudo
muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me
istantaneamente em imagem.
Sobre o conceito de Literatura Libertina, aps a leitura de vrios artigos,
constatamos que no existe um consenso bem estabelecido em torno de tais definies. Para
certos autores, a libertinagem desenvolve-se como um meio utilitrio de contestao, baseada
em um forte contedo ideolgico e filosfico, em que o erotismo nada mais que um plano
secundrio.
Para outros estudiosos, a origem da Literatura dos Libertinos estaria no Antigo
Regime, em que a sexualidade era utilizada para desmascarar as instituies, enfatizando a
liberdade de costumes. Desse modo, eram discutidas o clero, a nobreza e a monarquia.
No sculo XVIII, segundo Srgio Paulo Rouanet (1999), ocorreu uma associao
entre a literatura libertina e literatura filosfica, cujo intuito principal era estimular e
proporcionar, de forma definitiva, a queda do Antigo Regime: Os filsofos forneceram os
argumentos tericos de que os romancistas libertinos precisavam para justificar a
legitimidade do erotismo, e estes retriburam o favor, funcionando como linha auxiliar na
crtica do Antigo Regime e difundindo, em suas novelas, as idias polticas e sociais da
Ilustrao . (p.167)
Assim, levando em considerao a interseco das definies dos especialistas, o
romance libertino aquele em que a liberdade de pensamento e a liberdade de costumes esto
100

associadas de uma maneira tal que no se possa dizer que um dos elementos erotismo ou
reflexo filosfica seja secundrio.
Cremos que tal discusso acima cabvel dentro do propsito deste trabalho, visto
que atravs da idia de libertinagem, que o filsofo tambm o provocador ertico. Ora
transforma

libertinagem

em

fico

para

poder

ir

alm

da

ideologia

do

momento, ora transforma a fico em reflexo filosfica, segundo Novaes (1999, p. 09).
No artigo Libertinagens da Fico Medicina (2006), Mrcia Abreu traa
caractersticas de romances e comportamentos libertinos na passagem do sculo XVIII para o
XIX, em Portugal e no Brasil. Demonstrando as dificuldades de definio, atravs de recortes
no campo semntico de palavras como Licenciosidade, libertinagem e lascvia,
encontramos um panorama que vai da moral religio, da poltica ao sexo. (2006, p. 01).
Assim, segundo a pesquisadora, uma primeira definio seria encontrada no
Diccionario da Lngua Portugueza, de Antonio de Moraes Silva, de 1813, que enfatizaria o
uso da razo para o exame de questes religiosas, recusando uma compreenso dogmtica da
doutrina religiosa revelada por Deus aos homens. (ABREU, 2006, p. 01).. Em tal definio
estaria a explicao de que o vocbulo libertino se aproximaria de licencioso. Em relao a
liberdade, Abreu assevera que:

O verbete relativo a esse adjetivo tambm insere-se no campo semntico da


liberdade, mas, neste caso, no se trata de liberdade religiosa mas legal
no apenas no campo das idias, mas das prticas, sejam elas da vida
cotidiana (uma vida licenciosa), sejam elas do campo da escrita (uma pena
licenciosa). Os termos recobrem, portanto, a reflexo e a prtica nos campos
da religio e da ordem. (ABREU, 2006, p. 01)

Completando a gama de definies contidas nos verbetes relativos aos adjetivos


libidinoso e lascivo, Abreu (2006, p. 01) nos faz atentar para um expressivo conjunto de
qualificativos relacionados sexualidade: impudico, obsceno e luxurioso. No sculo XVIII,
101

o carter negativo de tais assuntos era to extremo que desonestidade e libido surgem no
mesmo campo de sinonmia. No entanto, de acordo com Abreu (2006, p. 02): Seguramente,
possvel imaginar certa independncia entre esses termos e entre as prticas a que eles
remetem, concebendo-se, por exemplo, um comportamento poltico contestador associado
prticas sexuais pudicas, ou vice-versa.
Ainda em relao aos vocbulos libertino, licencioso e lascivo, a pesquisadora nos
assegura que quando tais adjetivos so associados ao substantivo romance, este designa um
conjunto relativamente amplo e no inteiramente uniforme de narrativas. De tal modo que
ainda segundo a autora:

Nos romances libertinos misturam religio, poltica e sexo. Neles cabem


tanto histrias em que se acumulam relaes e parceiros sexuais at enredos
em que se pem em cena estratgias para obteno de favores amorosos
superando obstculos de natureza moral, religiosa ou social. Juntam-se a
essas manobras, discusses e narrativas sobre a atuao dos nobres e dos
polticos bem como debates sobre o papel da religio e do instinto, da fora
da natureza e a da cultura. (ABREU, 2006, p.10)

Sob este pensamento, a grande multiplicidade de acepes concernentes ao


substantivo romance no se distancia muito daquelas relativas aos adjetivos libertino,
licencioso, lascivo. Como as narrativas ficcionais sofreram uma grande proliferao durante o
sculo XVIII e parte do XIX, assim, de acordo com Abreu, se multiplicaram tambm as
formas de design-las.
Para atestar tal afirmativa, a autora cita diversos documentos produzidos pelos
organismos de censura lusitanos encarregados de controlar a circulao desses escritos que
demonstram a hesitao dos censores que ali atuavam na designao desse tipo de texto. Por
exemplo, podemos comprovar ao ler os trechos de Antonio Pereira de Figueiredo que, ainda
segundo Abreu (2006), ao examinar o livro Les Amours de Tibulle, de Mr de la Chapelle, vse em dificuldades at para avaliar o gnero literrio com que se defrontava.
102

Na obra de Raduan Nassar, como j foi afirmado, temos a narrao de uma


releitura singular - e particular - da Parbola do Filho Prdigo, permeado por questionamentos
diversos sobre o sol, a razo, a religio, a luz etc.
Para a filsofa Marilena Chau (1992, p.39), conforme j dissemos, o estoicismo
desenvolveu a teoria da Divinatio de teologia astral, em que desejar (desiderium, deixar de
olhar para as estrelas, para a Providncia Divina) era tomar o destino nas mos. Assim,
tomando o desejo tambm como vontade de conhecer, conforme Aristteles, desejar passou a
ser pecado de orgulho contra Deus.
Alm disso, o estoicismo cristo-romano deixou ao homem um conflito residual
inconsciente arraigado. O homem, como resultante hbrido da velha filosofia pag de destino
e a nova de livre-arbtrio, passou a estar apenas sob seu prprio poder (j que deixando de
olhar a Terra pag tem-se um deus Solar distante); a seguir seu prprio destino e a uma
natureza da qual ele faz parte, mas suplantada pela civilizao; a submeter-se aos caprichos do
Mal e a transgredir a vontade racional da Providncia. Ou seja, mesmo de dia sob a claridade
de um Deus Solar, o homem continuava na noite, em Trevas e em Terra.

5.2 Andr x Pai: o discurso do corpo contra o verbo

Franconi (1997) ressalta que o texto de Raduan Nassar parece-nos evidenciar a


fora do poder do Eros sobre a do poder das ideologias. Em outras palavras: somente a
relao amorosa pode superar o aterrador abandono a que as ideologias reduziram o homem
civilizado. (p. 49). Em Lavoura arcaica, mesmo que isso signifique consumao do ato
ertico, o que vale contrariar o discurso patricarcal.
Em Lavoura arcaica (1989),

a reafirmao do sujeito d-se atravs da

exacerbao do eu no lirismo, qualidade acentuada pela expresso dramtica e pela


103

subjetividade encontrada ao observarmos o protagonista. Tal obra nassariana vai rumo


valorizao do eu: trata-se de uma afirmao da individualidade do personagem Andr, que
pela contestao da palavra do pai e o uso do seu corpo delimita um caminho contrrio sua
anulao como indivduo.

A palavra do pai na trama se constitui um poder capaz de anular, amedrontar


e ao mesmo tempo unir baixo lavoura diria os integrantes da famlia. A
palavra de Andr por sua vez, aps sua vivncia fora do ambiente familiar
passa a constituir sua identidade e se levanta contra a palavra repressora do
pai. Andr atravs de seus olhos enfermios (segundo o lado direito da
famlia) quis ir alm, e atravs de sua palavra tentou mudar a microsociedade dentro da famlia, porm a palavra do pai, a lavoura semeada
durante anos lhe produz a culpa que o faz retroceder. De qualquer forma suas
atitudes j haviam instaurado a mudana e nada mais seria como antes,
depois de conhecer um mundo alm da famlia e do verbo do pai.
(RETAMAR, 2005, p. 05)

Quanto linguagem lrica em Lavoura arcaica, a prosa potica reflete a


ambigidade do personagem Andr, que talvez sem a presena dos elementos poticos, no
teria sua desestruturao compreendida, de acordo com Ramos (2006). O destaque a uma
intensa busca do personagem para a sua contruo como sujeito pode ser percebida atravs
dos recursos poticos, empregados por Nassar para compor sua linguagem. Deste modo,
como acentua a estudiosa (2006, p. 76), configura-se o inslito, alis como convm
poesia: a compreenso da ambivalncia da personagem d-se no atravs de declarao,
mas atravs da polissemia caracterstica construo potica; da incongruncia.
Segundo Gustavo Bernardo (2005), o trgico afirma e nega ao mesmo tempo ao
dar espao para a ambigidade. Dessa forma, atravs do discurso ambguo de Andr, o livro
questiona a representao da verdade como essncia e explicita o carter persuasivo e
impositivo da linguagem patriarcal. ainda um jogo teatral pondo em evidncia a posio do
emissor que, no sendo neutro, duvida dos prprios argumentos e os muda constantemente.
A prpria busca pela representao da realidade pelo discurso, to questionada por
104

Andr, uma utopia, pois a essncia da linguagem j carregaria em si a efgie da conotao.


Assim, lembremos que o francs Roland Barthes, em O efeito de real, fala-nos da propriedade
de conotao da palavra. De tal modo que, mesmo um indivduo pretendendo-a no seu sentido
puro, denotativo, ela escorre pelos dedos e cai em uma rede de significados50:

(...) basta lembrar que, na ideologia do nosso tempo, a referncia obsessiva


ao concreto (naquilo que se pede retoricamente s cincias humanas,
literatura, aos comportamentos) est sempre armada como uma mquina de
guerra contra o sentido, como se, por uma excluso de direito, o que vive
no pudesse significar e reciprocamente. (BARTHES, 1988, p.187)

Assim sendo, o discurso concreto nada mais implica que uma iluso. , ele
prprio, abstrao lquida, cabvel na forma que o sujeito autor e/ou leitor - o colocar.
Lavoura arcaica, possuindo traos de tragdia, comunga tambm com a acepo
de Jean-Pierre Vernant (apud LEMOS, 2007, p. 03) de que a tragdia abre ainda um lugar
para a ambigidade, pois ela no busca demonstrar a absoluta verdade de uma tese, mas
construir discursos duplos. Duplo, esse, que vemos fortemente caracterizado na fala de
Andr em seu questionamento sobre a verdade.
De acordo com Ramos (2006), a ambigidade de Andr reafirma e refora sua
subjetividade, pelo carter questionador da personagem, atravs da construo potica, que
talvez no encontrasse vazo apenas atravs da prosa tradicional. (p.75). A utilizao de
metafras e a dubiedade do que proferido por Andr confronta o arcasmo existente no
ambiente familiar, marcado pelo controle patriarcal refletido no corpo, porm, no como
prazer, mas como marcas de punio fsica:

50

interessante lembrar que no texto de Gnter Lorenz (1991), Dilogo com Guimares Rosa, temos a
seguinte afirmao de Guimares Rosa que se assemelha ao pensamento barthesiano: (...) Hoje, um
dicionrio ao mesmo tempo a melhor antologia lrica. Cada palavra , segundo sua essncia, um
poema. (...)Um dicionrio no to completamente impessoal como voc pensa.(p. 89).

105

(...) Pedro, tudo em nossa casa morbidamente impregnado da palavra do


pai; era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre preciso comear pela
verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas assim,
eram pesados aqueles sermes de famlia, mas era assim que ele os
comeava sempre, era essa a sua palavra angular, era essa a pedra em que
tropevamos quando crianas, essa a pedra que nos esfolava a cada instante,
vinham da as nossas surras e as nossas marcas no corpo (...) (NASSAR,
1989, p. 43)

Utilizando o conceito de ambivalncia elaborado pelo terico polons Zygmunt


Bauman, Ramos (2006) investiga como as estratgias ambivalentes do narrador Andr, entre a
apresentao (simbolizao) e representao (descrio), contribuem para realar a
subjetividade deste. Para Bauman (1999), a ambivalncia seria a incerteza de o conhecimento
ser verdade, a possibilidade de o homem assumir uma vida de contingncias. O terico
designa a ambivalncia como a desordem, a fratura no edifcio de certezas da modernidade,
e ao mesmo tempo, seu complemento, sendo ainda a principal aflio da modernidade.
De acordo com Bauman (1999, p. 10), a linguagem se esforaria em sustentar a
ordem e negar ou suprimir as probalidades de acaso. Desse modo, a ambivalncia, dentro do
corpo da linguagem, se daria como falha ao nomear e segregar que, para o autor, significaria
dar uma estrutura de forma arbitrria ao contrrio do que ocorreria com a preciso semntica.
Um discurso semanticamente preciso evitaria os perigos da indeterminao, resultado da
ambivalncia. Assim, por analogia, o ambivalente por si mesmo equivaleria a desordem.
Ainda segundo Bauman (1999, p. 288), a dicotomia que funda a modernidade
aquela estabelecida entre a ordem e o caos, sublinhando a luta da determinao contra a
ambigidade, da transparncia contra a obscuridade, da clareza contra a confuso. Reforando
tal posicionamento dentro de Lavoura arcaica, Andr - como indivduo ambivalente o
instaurador da desordem, apontando um caminho mais libertrio para o discurso e o corpo. O
pai representa aquele que, com a preciso estabelecida pelos textos sagrados, luta contra a
obscuridade daimnica de Andr. Como o prprio protagonista afirma, era a claridade que lhe
106

cegava os olhos.
Para Ramos (2006), pode-se traar uma analogia entre a dicotomia demonstrada
por Bauman e a que revelada no enredo e na linguagem de Lavoura arcaica, porm
considerando a fala ambgua de Andr no constituinte de uma nova ordem, por suas intensas
caractersticas poticas. O protagonista de tal modo anrquico que no admite qualquer
ordem, o que deseja desestrutur-la contra a palavra pesada do pai, obstculo para a
felicidade da famlia.
Leyla Perrone-Moiss (1996) pontua a problemtica da ordem e da desordem
tanto em Lavoura arcaica, quanto em Um copo de clera. Para a estudiosa, A uma ordem
social hipcrita e autoritria, escorada na razo, os protagonistas de seus livros opem
uma desordem anarquista, exigida pelo corpo e pela paixo. (...) A desordem do mundo
contamina a linguagem. (p.131). Desse modo, contestando a palavra do pai, Andr prega a
anarquia contra a inconsistncia do verbo:

eu disse ainda numa onda mais escura, cansado de idias repousadas, (...) que
tudo fosse queimado, (...) as folhas que em cobriam a madeira do corpo,
contanto que ao mesmo tempo me seja preservada a lngua intil; o resto,
depois, pouco importava depois que fosse tudo entre lamentos, soluos e
gemidos familiares: Pedro, meu irmo, eram inconsistentes os sermes do
pai (NASSAR, 1989, p. 48.)

A desconfiana em relao s palavras fica mais evidente atravs do dilogo,


recurso pouco usado na narrativa, centrado sobre a ambigidade do discurso e o ceticismo de
Andr no captulo 25:

Como posso te entender, meu filho? Existe obstinao da tua recusa, e


isto tambm eu no entendo. Onde voc encontraria lugar mais
apropriado para discutir os problemas que te afligem?
Em parte alguma, menos ainda na famlia; apesar de tudo, nossa
convivncia sempre foi precria, nunca permitiu ultrapassar certos
limites; foi o senhor mesmo que disse h pouco que toda palavra uma
semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva

107

no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.


No receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, voc
sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!
O amor que aprendemos aqui, pai, s muito tarde fui descobrir que ele
no sabe o que quer; essa indeciso fez dele um valor ambguo, no
passando hoje de uma pedra de tropeo; ao contrrio do que se supe, o
amor nem sempre aproxima, o amor tambm desune; e no seria
nenhum disparate eu concluir que o amor na famlia pode no ter a
grandeza que se imagina.
J basta de extravagncias, no prossiga mais neste caminho, no se
aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento,
ponha um ponto na tua arrogncia, seja simples no uso da palavra!
No acho que sejam extravagncias, se bem que j no me faz diferena
que eu diga isto ou aquilo, mas como assim que o senhor percebe, de
que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse
um ramo de oliveiras sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele
simplesmente um ramo de urtigas.
Nesta mesa no h lugar para provocaes, deixe de lado o teu orgulho,
domine a vbora debaixo da tua lngua, no d ouvidos ao murmrio do
demnio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo
humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de vez
com esta confuso!
Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, que no quero criar mais
confuso.
Cale-se! No vem desta fonte a nossa gua, no vem destas trevas a
nossa luz, no a tua palavra soberba que vai demolir agora o que
levou milnios para se construir; ningum em nossa casa h de falar
com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras,
embaralhando as idias, desintegrando as coisas numa poeira, pois
aqueles que abrem demais os olhos acabam s por ficar com a prpria
cegueira; ningum em nossa casa h de padecer tambm de um suposto
e pretensioso excesso de luz, capaz como a escurido de nos cegar;
ningum ainda em nossa casa h de dar um curso novo ao que no pode
desviar, ningum h de confundir nunca o que no pode ser confundido,
a rvore que cresce e frutifica com a rvore que no d frutos, a semente
que tomba e multiplica com o gro que no germina, a nossa
simplicidade de todos os dias com um pensamento que no produz; por
isso, dobre a tua lngua, eu j disse, nenhuma sabedoria devassa h de
contaminar os modos da famlia! No foi o amor, como eu pensava, mas
o orgulho, o desprezo e o egosmo que te trouxeram de volta casa!
(NASSAR, 1991, pp. 167-169)

A partir da leitura acima, percebemos que a afirmao de Andr como sujeito,


dentro do contexto familiar patriarcal, construda tambm pela ambigidade presente no seu
discurso. Sentindo-se rejeitado, o jovem mostra-se capaz de julgar sob o olhar de quem no
acredita num sistema baseado na tradio, ao dizer ao irmo Pedro: e

pergunte em furor

mas como quem puxa um tero o que faz dele um diferente? e voc ouvir, comprimido
108

assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te far traz o demnio no
corpo (p. 42).
Desse modo, o filho tresmalhado encontra-se no lugar privilegiado de um sujeito
que, ao no se vincular a uma verdade imposta pelo verbo do pai, talvez tenha uma
perspectiva mais globalizante. Como Ramos (2006, p. 79) ressalta, A objetividade subjetiva
de Andr permeia todo o livro, apontando obsessivamente a violncia da ordem opressora
sobre sua individualidade.
Lcia Castello Branco (1995, p. 84), em Literaterras: as bordas do corpo literrio,
sublinha uma safra de autores que escrevem sob a insgnia da busca do corpo e da palavra que
marcam a feitura de uma outra escrita, a qual Nassar faz parte:

essa obstinada busca daquilo que parte do corpo, mas que reside alm do
corpo, daquilo que parte da palavra, mas que repousa na superfcie (ou nos
daquilo que parte da palavra, mas que repousa na superfcie (ou nos
subterrneos) da palavra, daquilo que est na gnese do discurso a
inspirao, ou o flego do sujeito no discurso?) Que marcaria,
definitivamente, como uma escrita outra, a dico de Virginia Woolf, Marcel
Proust, algum Joyce - Hilda Hilst, Lya Luft, Raduan Nassar e Clarice
Lispector, entre outros.

Seguindo tal explicao dada por Castello Branco, podemos afirmar que Lavoura
arcaica revela o discurso anrquico do corpo contra o discurso verbal autoritrio do pai.
Assim sendo, o livro expe a guerra entre as linguagens. A linguagem do corpo, ento, dentro
do contexto da obra, exerce a funo de sabotagem do discurso do poder. Todavia, as palavras
do pai, que pretendem representar o mundo, no conseguem melhorar a vida. o corpo que
encerra a apresentao de uma verdade duvidosa e particular de Andr, baseada em instintos
primitivos.
Peixoto (2005) nos faz atentar ao fato de Nassar haver se distanciado dos chamados
romances-reportagens da dcada de 70 (como o caso de O que isso Companheiro?, de
109

Fernando Gabeira) ao encontrar a forma para a fico falar da realidade vivida sem, contudo,
restringir a narrativa a se perder no relato de meras vivncias ou experincias de uma poca.
Como nos lembra Lemos (2007), acerca das duas obras nassarianas: Ambos so livros que,
mesmo escritos durante a ditadura militar no Brasil e tematizarem a violncia e a
constituio de valores, evitam, entretanto, a literatura engajada bastante comum naquele
perodo.
Entretanto, como nos lembra Rodolfo Franconi (1997), erotismo e poder
interessaram grande maioria dos novos escritores que comearam nos anos 60 e 70.
Segundo o estudioso, os vinte anos de ditadura criaram uma temtica peculiar e complexa, na
qual se refletem tais linhas ntidas, que ou se destacavam alternadamente ou muitas vezes
juntas; contudo, sempre sendo possvel encontr-las no tecido narrativo51:

Erotismo e poder constituem um binmio de mo dupla: a represso poltica,


sendo to impiedosa e to incansvel, atingia inclusive a intimidade secreta
dos cidados, transfigurados em personagens de fico. Por outro lado, o
discurso ertico procurava torpedear o discurso do poder, de modo que a
denncia se tornasse ao mesmo tempo uma forma de luta e de revolta contra
o status quo poltico. (FRANCONI, 1997, p.11)

Franconi (1997) ainda salienta o significativo nmero de textos de temtica


ertica que se produziu nos anos 70, no Brasil. O longo perodo de censura, principalmente a
de cunho poltico, as

obras voltadas para a ficcionalizao da histria da ditadura

confluram para um outro tema importante, o do poder. ( p. 16)


Para Carlos Guilherme Mota (2000, p. 65), em Viagem incompleta: a experincia
brasileira (1500-2000) : formao, histrias,

o autor de Lavoura arcaica constitui um

exemplo sui generis dentro da literatura produzida durante o Regime Militar:


51

Para Green, de acordo com Cleusa Passos (1995), o papel da literatura seria o de converter um setor da
realidade psquica ou externa em realidade literria. Seguindo este pensamento, poderamos afirmar que
o contexto da ditatura militar estaria sim dentro da realidade literria dos livros de Nassar, j que foram
concebidos em tal perodo de opresso. Entretanto, a literatura no consegue converter a realidade, apenas a
representa, e se nos limitarmos a isso, distanciamo-nos da histria e da tradio literria.

110

Raduan Nassar um caso parte. Seu romance Lavoura arcaica foi


publicado em 1975 e Um copo de clera (que havia sido escrito em 1970)
em 1978, uma novela de oitenta e poucas pginas que talvez revele melhor o
perodo da ditadura militar do que alguns dos romances que tentaram retratlo de maneira explcita.52 Suas narrativas simples atingem uma densidade
rara, com passagens que tm a marca do sublime. A linguagem lmpida e
rica, cuja intensidade, mesmo quando hiperblica, nunca parece excessiva,
est em harmonia com o perfeito domnio dos climas e dos ritmos.

Desse modo, ressaltamos que Raduan Nassar rompeu com os simples relatos
jornalsticos de sua gerao para dar vazo a uma obra em que as personagens se debatem
num misto de contradies. O pai, representando as esferas de poder repreensivas, o
smbolo da opresso desenvolvida atravs da palavra. na fala de Andr, elegendo o corpo
como meio de fuga para a represso do verbo, que podemos constatar o discurso libertrio
contra qualquer ditadura:

No se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do


carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria
absurdo exigir um abrao de afeto; maior despropsito que isso s mesmo a
vileza do aleijo que, na falta das mos, recorre aos ps para aplaudir o seu
algoz; age quem sabe com a pacincia proverbial de um boi: alm do peso
da canga, pede que lhe apertem o pescoo entre os canzis. Fica mais feio o
feio que consente o belo... (...) E fica mais pobre o pobre que aplaude o rico,
menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o
alto, e assim por diante. (...) A vtima ruidosa que aprova seu opressor se faz
duas vezes prisioneira, a menos que faa essa pantomima atirada por seu
cinismo. ( NASSAR, 1989, p.164)
52

A questo da retratao do contexto histrico dentro de uma obra literria possui uma tradio antiga.
De acordo com o Barbris (1994), no Romantismo, Chateaubriand - com seus escritos - d energia ao
motor de uma nova conscincia, ao colocar a literatura na perspectiva scio-histrica de um exerccio
crtico a favor de uma ideologia incipiente. Madame de Stel, por sua vez, d incio a uma antropologia
literria, ao dar ateno a literaturas de outros lugares alm-Frana. Stel relativiza a literatura e mostra-a
como instituio social. Para ela, deveria ser feita uma leitura diacrnica para que nos interrogssemos
acerca das causas morais e polticas que modificaram o esprito da literatura. Outra prerrogativa
relacionava-se conscientizao de que havia outros territrios para o pensamento e a literatura e, ainda,
que existia, naquele instante, uma contradio na Frana do que era literatura de fato e aquela necessria
para que o indivduo sensvel se sentisse acolhido.Desse modo, a literatura expressava e expressaria a
sociedade. A literatura no seria mais apenas a beleza, era uma militante. Influenciada pelo pensamento de
Madame de Stel, o texto literrio no era mais apenas uma arte, era uma arma para agir e compreender e
no uma atitude intelectual simplesmente abstrata. Para Bonald, no artigo Mercure de France, que lanou
ao mundo a frase a literatura a expresso da sociedade, a literatura expressava e expressaria a
sociedade.

111

A metalinguagem apresenta-se em toda a narrativa para debater o poder da


palavra e do dilogo. Dessa forma, as questes ticas so tambm acerca da representao da
linguagem.Vejamos um trecho da fala do pai: Conversar muito importante, meu filho, toda
palavra, sim, uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a fora
do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mos, est no fundamento de toda prtica,
vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo. (NASSAR, 1989, p. 162)
Ao tom altivo das palavras do pai, Andr parece fazer uma pardia para rebaixar o
sublime, como nos lembra Leyla-Perrone Moiss (1996, p. 63). O tom de pardia53
circunscreve toda a obra para subverter o que imposto. No captulo 13, onde encontramos a
narrao do pai da parbola do faminto, o narrador d um final inusitado, criando uma verso
baseada nos preceitos e reivindicaes da Impacincia. Ou seja, o contrrio dos ensinamentos
pregados pelo patriarca. Assim, transcrevemos a seguinte fala do pai ao final da parbola:

Falou com sobriedade ao faminto com quem dividira imaginariamente sua


mesa: Finalmente, fora de procurar muito pelo mundo todo, acabei por
encontrar um homem que tem o esprito forte, o carter firme, e que,
sobretudo, revelou possuir a maior das virtudes de que um homem capaz: a
pacincia. (NASSAR, 1989, p. 86)

Entretanto, segundo Andr,


antes porm que esse elogio fosse proferido, o faminto com a fora
surpreendente e descomunal da sua fome, desfechara um murro violento
contra o ancio de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua
53

Para este trabalho, usamos o conceito de pardia proposto por Cano (2004, p. 85) que casa bem com a
proposta subversiva de Andr: A pardia contraria dois fundamentos da literatura que tradicionalmente
cumpriria a misso esttica da realizao artstica da linguagem. Primeiramente subverte o objetivo de
descrever temas elevados e nobres. A pardia no est presa nem a moldes nem a convenes artsticas,
sociais ou morais. Em segundo lugar, abdica de qualquer pretenso romntica ao Genie ou
originalidade da criao. A pardia desenvolve-se no terreno da continuidade, do dialogismo e da
subverso: 1- Continuidade - a criao literria vista como uma corrente ininterrupta do esprito
humano, dentro da qual a pardia pretende inserir-se com a conscincia de seu lugar-no-mundo;
Dialogismo antes de qualquer coisa, o texto discurso, e como tal no pode subsistir autonomamente,
pois constri-se a partir da interao com outros discursos pr-existentes.; Subverso a criao
pardica resulta da repetio com diferena.

112

indignao: senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu
escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste tua mesa e a
quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim
mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, Senhor, o esprito
do vinho subiu-me cabea e no posso responder pelo que fiz quando ergui
a mo contra o meu benfeitor. (NASSAR, 1989, p. 86-87)

A verdade, para Andr, se d atravs da experincia e da crena de que a razo no


moral, no fundamentados somente na pregao de palavra. Assim a desconfiana do
narrador-personagem a respeito de qualquer discurso e dilogo: Admito que se pense o
contrrio, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um dilogo pra mim seriam
sempre frutos tardios, quando colhidos.(p. 162). A linguagem tambm no sendo tica pode
muito bem servir teatralidade ou ao querer particular de cada um. De acordo com Carneiro
Ramos (2006):

A caracterstica mais marcante da reafirmao do protagonista, de forma


inusitada, a ambivalncia. A palavra ambgua, dbia, de Andr o canal
perfeito para estabelecer uma subjetividade marcante mas ao mesmo tempo
libertria, incongruente, e tambm para Raduan Nassar tratar de excluso e
incluso, ordem e desordem, no romance e na linguagem. (p. 11)

Portanto, atravs do questionamento da palavra, se ela representa ou apresenta a


verdade, que o sujeito se depara tambm com o outro: o da sua identidade versus alteridade.
Assim, como essas interrogaes no podem se dar seno pela metalinguagem, o verbo passa
a instituir no indivduo tambm seu carter plurissmico, comportamentos que refletem as
relaes com o outro, pois d vazo s pulses do ser em seu carter destrutivo. Para
Bellemim-Nol,54 apud Cleusa Passos (1995, p. 37), o discurso o lugar do encontro
mutuamente fecundante de uma palavra e uma alteridade.

54

Cleusa Passos (1995, p. 37) lembra que, para Bellemin-Nol, o rastreamento do desejo se vincula
pragmtica e retrica, como de fato parece que os protagonistas-narradores de Nassar o fazem. A
pragmtica suporia o enunciado (o ato da palavra) e a enunciao (como uma dimenso libidinal). A
retrica remeteria imagem enquanto percepo visual. A anlise seria suscitar algo do simblico onde
proposto algo do imaginrio.

113

O amor incestuoso que Andr nutre por Ana representa uma nova leitura das
palavras do pai de unio e amor familiar, tambm marcando a tentativa de implantar uma
nova ordem: um espao para o sujeito que acolhesse os valores rejeitados pela cultura
ortodoxa como mero devaneio funesto de um rebelde, tambm fundamentado reinterpretando
o verbo patriarcal. Desse modo, segundo o discurso paterno:

E quando acontece um dia de um sopro pestilento, vazando nossos destinos


to bem vedados, chegar at as cercanias da moradia, (...) alcanando um
membro desprevenido da famlia, mo alguma em nossa casa h de fecharse em punho contra o irmo acometido: os olhos de cada um ser para este
irmo que necessita dela, e o olfato ser para respirar, deste irmo, seu
cheiro virulento, e a brandura do corao de cada um, para ungir sua ferida,
e os lbios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na
famlia a suprema forma de pacincia; o pai e a me, os pais e os filhos, o
irmo e a irm: na unio da famlia est o acabamento dos nossos princpios
(NASSAR, 1989, p. 61)

Assim, se para Andr tudo uma questo de perspectiva, ele usa uma outra
interpretao das palavras do pai para tentar convencer Ana acerca da legitimidade do amor
entre eles:
(...) foi um milagre o que aconteceu entre ns, querida irm, o mesmo
tronco, o mesmo teto, (...), descobrimos que somos to conformes em nossos
corpos, (...) foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos
dentro dos limites da nossa prpria casa, confirmando a palavra do pai de
que a felicidade s pode ser encontrada no seio da famlia (...) (NASSAR,
1989, p. 120)

De acordo com Maria Jos Cardoso Lemos (2007), Raduan Nassar recusa uma
fala sistemtica e dogmtica. Para tal estudiosa, o universo discursivo da obra nassariana
ctico. Desse modo, segundo Sextus Empiricus apud Lemos (2007): o Ctico, porque ama a
humanidade, quer curar tanto quanto possvel, pela argumentao, a presuno e a
precipitao dogmticas. Contudo, Raduan prefiguraria o questionador ctico que produz
certos efeitos no discurso. Conforme ainda cita Lemos (2007, p. 02), para Thomas Bnatouil:
114

os cticos procuram produzir um certo efeito no pensamento e no a descobrir a verdade.


A obra nassariana rica em metforas. Alm disso, dentro da narrativa, tambm
podemos constatar diversas variantes para o mesmo adjetivo, como para filho prdigo
aparecem equivalncias tais: tresmalhado, enfermo, possudo, acometido, arredio,
torto, exasperado, desgarrado etc.
interessante ressaltar que h, nos sermes do pai, a presena forte das palavras
negativas: (...) a sabedoria est precisamente em no se fechar nesse mundo menor: humilde,
o homem abandona sua individualidade para fazer parte de uma unidade maior, (...) nossa lei
no retrair mas ir ao encontro, no separar mas reunir (...) (NASSAR, 1989, p.148).
Outra caracterstica marcante representativa do discurso do pai o uso da
anfora, a figura sinttica que consiste na repetio da mesma palavra ou construo no incio
de vrias oraes, perodos ou versos, prpria dos textos sagrados:

(...) ai daquele que brinca com fogo: ter as mos cheias de cinzas; (...), ai
daquele que cair e nessa queda se largar: h de arder em carne viva; ai
daquele que queima a garganta com tanto grito: ser escutado por seus
gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanas: ter as
mos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir
de modo intenso: ter as mos cheias de gesso, ou p de osso, de um branco
frio, ou quem sabe sepulcral (...) (NASSAR, 1989, p. 57).

Outro fator interessante de notar que, nos trechos iniciais, Nassar usa verbos no
pretrito imperfeito, para reiterar a noo de hbito e repetio: e era no bosque atrs da
casa (...) era ento que se recolhia a toalha (...) era ento a roda dos homens se formando.
(pp. 28-29). Todavia, no final do livro, os tempos verbais encontram-se no pretrito perfeito
para indicar a irreversibilidade e a ao acabada: e foi no bosque atrs da casa (...) foi ento
que se recolheu a toalha (...) foi ento a roda dos homens se formando (...) (pp.186-187).
Dentro do contexto de Lavoura arcaica, conclumos que Andr e o pai sempre
parecem estar em lados opostos, seja ele em diversos nveis:

enquanto h o discurso
115

patriarcal, Andr apresenta o seu discurso libertino; enquanto o pai aponta que a fora do
verbo em primeiro lugar que podem nos assombrar; Andr apresenta os objetos consagrados
pelo quarto o corpo est em primeiro; enquanto o pai tenta representar o amor familiar
baseado nas palavras, Andr apresenta, sim, o amor na famlia atravs do corpo. Ou seja, entre
o abstrato da pregao do verbo e a apresentao de uma natureza corporal que se presta a
concretude, parece ser o filho prdigo quem tinha a razo. Afinal, o pai que pregara tanto a
pacincia, ao ver suas palavras interpretadas distorcidamente, sucumbe ira. , ao saber do
incesto que, usando as palavras de Perrone-Moiss (1996, p.66), o prprio pai assume a
desrazo de seu corpo, e num gesto assassino ingressa no tempo tumultuado das paixes,
dando trama os tons de uma tragdia, atravs do crime de sangue:
(...) a testa nobre de meu pai, ele prprio ainda mido de vinho, brilhou um
instante luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um branco
sbito e tenebroso, e a partir da todas as rdeas cederam, desencandeando-se
o raio numa velocidade fatal: o alfange estava ao alcance de sua mo, e,
fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um s golpe
a danarina oriental (....), mas era o prprio patriarca, ferido nos seus
preceitos, que fora possudo de clera divina (pobre pai!), era o guia, era a
tbua solene, era a lei que se incendiava essa matria fibrosa, palpvel, to
concreta, no era desercarnada como eu pensava (...) (NASSAR, 1989,
p.192-193)

116

6.Concluso

Conforme tentamos abordar neste trabalho, a questo da representao na obra de


Raduan Nassar permeia, dentre tantas, duas esferas: a do discurso autoritrio e a do ertico.
Ambas se interseccionam, enquanto permitem o questionamento acerca da realidade, da
vivncia e da realizao do indivduo. Afinal, a palavra e o corpo representam ou apresentam
uma realidade dentro do discurso patriarcal opressor?
Com a crise da representao, as noes de tempo e espao se diluem, as verdades
absolutas so relativas, o mundo entrou cada vez mais no campo da teatralidade. O social e o
particular desaparecem no exerccio do exibir-se e os olhares da multido se perdem, como
vemos no prprio questionamento dos protagonistas nassarianos sobre o vazio. , alis, nesse
universo de inconstncia, que procuramos fazer um breve esboo sobre a questo da
representao do corpo e do verbo na linguagem no contexto da obra Lavoura arcaica do
brasileiro Raduan Nassar.
Para tanto, estudamos Lavoura arcaica (1989), a fim de verificar em que aspectos
o corpo e o verbo desempenharam papis considerveis na construo das relaes afetivas
entre suas personagens. O corpo mostrou-se fulcral no que concerne ao comportamento dos
personagens esquerda da mesa patriarcal, ou seja, daqueles personagens marcados pela
intensa carga afetiva da me.
De tal modo, principalmente em relao a Andr, tambm propusemos que o
corpo desenvolveu-se como pretexto para a busca de um espao privilegiado para o sujeito
liberto e a relao deste com as outras personagens da respectiva obra. Um espao que
permitisse o visionrio e o ertico. Assinalando o embate entre o desejo do corpo e o desejo
117

de libertao da opresso patriarcal, centramos mais nosso estudo no personagem Andr, que,
para ns, tem um posicionamento que se aproxima dos discursos libertinos, ao usar o corpo
para defender uma filosofia libertria contra o discurso autoritrio do pai.
Assim, da tradio de um grupo que se v unido por meio de laos sanguneos, a
famlia se encontra diluda sob o olhar mais atento de um membro questionador, desconfiado
das verdades impostas pela lei patriarcal: Andr. Dessa maneira, a partir da anlise do texto
nassariano, percebemos que Iohna, o pai, representa a autoridade totalitria e tem sua
imagem enaltecida como algum que tudo controla, resultando na restrio da liberdade no
contexto familiar. Entretanto, a retido pregada pelo pai s ltimas conseqncias acarreta na
ruptura, no desespero.
Esta Dissertao de Mestrado se estruturou a partir do objetivo de pensar o
discurso de Andr no apenas como algum que busca fazer do uso do seu corpo com fins
meramente hedonistas, mas como resultado de um processo de busca pela liberdade do
indivduo contra o mascaramento da suposta verdade contida no verbo dos detentores do
poder. A rebeldia e a revolta do narrador se do contra o peso da tradio que o protagonista
julga no ser autntica, mas sim fundada num iderio hipcrita, demonstrando uma
incapacidade de crer e obedecer guiado apenas pelos preceitos dogmticos partilhados pelos
outros.
Tambm analisamos de que forma os personagens, especialmente Andr, se
valeram de um metaquestionamento sobre a palavra, o verbo, para justificar seus
comportamentos perante as outras figuras ficcionais nassarianas. Outro tpico interessante foi
examinar como o prprio autor Raduan Nassar rompeu com a produo literria nacional da
dcada de 70, atravs de um discurso alegrico representativo contra a ditadura militar
poca da publicao das obras Lavoura arcaica e Um Copo de Clera.
Dentro da conduta afetiva das personagens, encontramos evidncias que
118

permitiram conferir ao corpo e ao verbo, na obra em estudo, papis relevantes na construo


das relaes afetivas entre as personagens e a busca de um espao privilegiado em direo
liberdade do sujeito. Desse modo, conclumos que as relaes afetivas so sim condicionadas,
em Lavoura arcaica, a partir de um pacto primordial, principalmente do narrador Andr, com
o corpo, comprovados, por exemplo, atravs dos atos incestuosos. Assim, se o incesto um
elemento catalisador do texto trgico, em Lavoura arcaica ele consiste tambm na tentativa
de derrubar um conjunto rgido de preceitos e regras, baseado em uma moral construda no
decorrer das geraes.
Vimos como o corpo representa um mote de tenso, desde o incio da histria
humana, e como ele est presente no texto nassariano, atravs do verbo de Iohna que possui
influncia notadamente estica ao combater a idia de paixo e os prazeres corporais. Assim,
o corpo tambm foi arrolado, cotejando-o dentro da esfera afetiva familiar, circunscrito a
viso misgina do corpo feminino como smbolo da perdio.
Ao analisarmos a diviso da famlia em duas faces: os membros da Esquerda e
os da Direita da simblica mesa da famlia patriarcal, tecemos examinaes sobre Pedro e
Iohna; Ana e a me. Sem a inteno de fechar a nossa interpretao em nenhum modo,
apresentamos os personagens das duplas como indivduos que se completam respectivamente
nas esferas do autoritarismo e do erotismo: Pedro o legtimo sucessor do discurso do Pai e
Ana apresentada, sob a tica de Andr, ora como femme fatale ora como uma mulher
sacralizada, entretanto sempre marcada pelo afeto corrupto da me.
Atravs da observao do discurso na obra em questo, estudamos como a
dimenso do erotismo e do corpo contamina a linguagem de Andr, atravs de uma postura
que, para ns, prega a liberdade contra o autoritarismo a palavra falsa do pai, conforme j
havamos dito na introduo. Para tanto, dentre vrias possibilidades de leitura, estabelecemos
uma aproximao entre a conceituao do libertino, definida por vrios autores, e o
119

comportamento de Andr.
Assim, as questes relativas alteridade mostraram-se desenvolver a partir do
valor da palavra. Para tanto, destacamos a ambigidade como uma das caractersticas mais
marcante da reafirmao do protagonista como sujeito. No entanto, salientamos que
tambm atravs das ambivalncias e das contradies encontradas no discurso das
personagens que o texto no deve ser aprisionado dentro de uma temtica meramente
metalingstica, pois eles fazem um convite sedutor para que se originem novos textos, a
partir de outras leituras.
A dubiedade e o ceticismo de Andr mostram-se como palcos onde o
personagem apresenta e estabelece suas estratgias do uso do corpo, para tratar de um
discurso libertrio contra a excluso, a alienao, a ordem e o autoritarismo. Desse modo,
Andr parece questionar o prprio valor da palavra paterna (e quem sabe de toda a palavra):
se ela representa ou apresenta a verdade. Mesmo raciocnio que Andr pareceu aplicar ao
corpo.
Ora, se o erotismo no se presta representao, o mesmo no podemos concluir
sobre a palavra em sua face quirnica divergente: de um lado edifica, do outro destri. Esse
olhar para lados opostos inclusive, j era reconhecido em provrbios antigos, como um
egpcio que confere lngua o signo de pior e melhor instrumento da humanidade. Tambm
interessante relevar o papel que o verbo ocupa na nossa tradio judaico-crist, via textos
bblicos. Assim, em Lavoura arcaica, mesmo o pai tendo sucumbido aos humores do corpo,
ira em detrimento da pacincia, no fim resta a dvida de quem venceu o embate, pois Andr
termina por transcrever as palavras do pai em memria deste: que o gado sempre vai ao
poo.
O prprio questionamento acerca da representao da verdade so fatores e
evidncias que permitem conferir ao corpo e ao verbo, dentro da obra de Raduan Nassar,
120

papis relevantes na construo das relaes afetivas entre as personagens e a busca de um


espao privilegiado para o sujeito. Dessa forma, concordando com Boff (1998), conclumos
que a literatura nassariana faz interrogaes vida como um jogo infinito, pois para Raduan a
vida o maior livro a ser lido. Todos os dias.

121

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130

131

ANEXO

Tamanho dos captulos de L. A de acordo com nmero


de pginas
35

25

20

15

Nmero de pginas

30

10

5
0
A Partida- Primeira Parte

O retorno - Segunda Parte

Captulos

Seqncia1
Seqncia2
Seqncia3
Seqncia4
Seqncia5
Seqncia6
Seqncia7
Seqncia8
Seqncia9
Seqncia10
Seqncia11
Seqncia12
Seqncia13
Seqncia14
Seqncia15
Seqncia16
Seqncia17
Seqncia18
Seqncia19
Seqncia20
Seqncia21

Grfico I
Fonte: terceira edio de Lavoura arcaica pela Companhia das Letras (1989).
A vigsima seqncia (coluna amarela) o captulo em que Andr encontra Ana na capela.

132

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