Pontifícia Universidade Católica de Goiás Pró-Reitoria de Graduação Escola de Formação de Professores E Humanidades Curso de História
Pontifícia Universidade Católica de Goiás Pró-Reitoria de Graduação Escola de Formação de Professores E Humanidades Curso de História
Pontifícia Universidade Católica de Goiás Pró-Reitoria de Graduação Escola de Formação de Professores E Humanidades Curso de História
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
CURSO DE HISTÓRIA
GOIÂNIA
2022
VERÔNNICA TELES DOS SANTOS SILVA
GOIÂNIA
2022
Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar
Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou à beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada.
(Raul Seixas,1974).
DEDICAÇÃO
Dedico esse trabalho, a todos aqueles que foram e são esquecidos na história, como
uma forma de resgatar a história dos marginalizados. Dedico também a minha avó
Constância Mariana dos Santos, grande influenciadora dessa pesquisa que ajudou
tantas pessoas com suas orações e seus benzimentos, e a todas as mulheres
benzedeiras que lutam pela resistência e permanência das tradições populares.
Saibam que vocês não estão esquecidos(as). A todos aqueles que acreditaram e
também os que não acreditaram. A Pontifícia universidade Católica de Goiás, e seu
quadro de professores por terem me preparado e transmitido tantos conhecimentos
importantes para minha vida. A OVG e CAPES por terem me proporcionado a
realização dos meus estudos com bolsas(PROBEM e RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA)
sem as mesmas não teria concluído os meus estudos.
AGRADECIMENTOS
A Deus por ter me dado forças até aqui nessa longa jornada. Aos meus pais Alnerita
Teles dos Santos Silva e Valdemir Vieira da Silva, que me ajudaram em todos os
momentos e motivaram a buscar desenvolver cada vez mais o meu desempenho e
minha dedicação.
Aos meus tios, primos e primas que também auxiliaram nessa caminhada, dando
conselhos e apoiando como podiam.
Aos meus professores orientadores Rosemary Francisca Neves Silva, e meu
coorientador Ivan Vieira Neto que sempre me apoiaram e trouxeram diversos
conhecimentos para minha vida acadêmica.
A coordenação do curso de História professor Ivan Vieira Neto, por sempre estar
auxiliando nas minhas dificuldades e no meu desenvolvimento nesses quatro anos de
curso.
Aos meus amigos do curso e do meu convívio social que acreditaram em mim e que
estiveram nessa caminhada.
RESUMO
The world, since its first societies, goes through several ills and difficulties, where with
the emergence of beliefs, the use of myths and rituals, were ways to seek to promote
problem solving, perform healing, as a way of reestablishing the cosmos. With the
globalization process, human beings start to lose their daily practices of rituals, myths,
and imagination, giving way to science as the only central element, leaving many
traditions to be erased. The faith and use of medicinal plants become essential to
understand the formation of a certain society and are elements that are part of the
ritualistic practices of blessings, which according to many scientists, bring beneficial
results to reestablish the health and well-being of those most suffer, as presented by
Lemos (2020), the use of prayer can treat chronic pain that affects health. In this sense,
the question is: who are the healers, what moves them and how do they remain in
society, even with the institutionalization of beliefs and bureaucratization of faith? The
objective of this monographic work is to present the figure of faith healers, especially
those from the State of Goiás, focusing on the women of the Kalunga community,
analyzing their customs, resistance, and preservation of memory. The methodology
that guides the research is the bibliography, using books such as the writers Otto
(2007), Eliade (2001), Lemos (2005), Del Priori (2011), in addition to scientific articles,
theses and dictionaries, which could promote hypotheses. possible on the questions,
in addition to the deepening of the theme. However, even with analysis and presenting
articles referring to the figure of faith healers, they are still poorly studied figures, often
creating challenges in the search to understand this popular tradition, in addition to the
fact that prayers and rituals are preserved by the oral history transmitted. generation
to generation, making it difficult to search for information. Therefore, it is necessary to
study and analyze them, as a way of preserving and deepening their cultures,
preservation, and rescue of oral traditions.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15
1 SAÚDE NO PERÍODO COLONIAL: DOENÇAS E PRECARIEDADADE ............. 21
1.1 UM OLHAR SOBRE O CORPO, AS DOENÇAS E AS CURAS .......................... 27
1.2 ADENTRANDO O SERTÃO GOIANO: A FORMAÇÃO CULTURAL E SOCIAL
DO ESTADO DE GOIÁS ........................................................................................... 31
1.3 O IMAGINÁRIO DO POVO SERTANEJO GOIANO: CRENÇAS E SEUS
COSTUMES .............................................................................................................. 38
2 BENZEDEIRAS, BRUXAS OU CURANDEIRAS? DESMITIFICANDO O PAPEL
DAS BENZEDEIRAS NO PERÍODO COLONIAL AO PERÍODO REPUBLICANO .. 43
2.1 O USO DE PRÁTICAS MÍSTICAS E RITUAIS NO PERÍODO COLONIAL:
ENTRE BRUXAS A BENZEDEIRAS ......................................................................... 52
2.2 CHARLATÕES: O MAL DO SOLO BRASILEIRO E DA SAÚDE,
DESVENDANDO OS MISTÉRIOS ............................................................................ 56
2.3.1 Quem São e o que fazem as benzedeiras? O ofício das benzedeiras e sua
missão na sociedade ................................................................................................. 63
2.3.2 Práticas das benzedeiras: um olhar para os rituais .......................................... 68
3 SER MULHER QUILOMBOLA: MULHERES BENZEDEIRAS NO QUILOMBO
KALUNGA-GO .......................................................................................................... 72
3.1 A FORMAÇÃO DO QUILOMBO KALUNGA: UM LUGAR SAGRADO ................ 74
3.1.1 A organização do quilombo: um local de coletividade ...................................... 77
3.2 A ATUAÇÃO DAS BENZEDEIRAS NA COMUNIDADE KALUNGA ................... 80
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 90
15
INTRODUÇÃO
nem ao menos farmácias, sendo disponíveis apenas para aqueles que possuíam
condições econômicas, devido a isso muitos recorriam as figuras das mulheres que
eram curandeiras e benzedeiras e que tinham conhecimentos populares sobre as
plantas e possuíam a fé como elemento de cura.
Mesmo sendo promotoras da saúde e do bem estar da sociedade que era cheia
de mazelas e doenças, as mulheres benzedeiras passam por preconceitos e
discórdias tanto da sociedade científica, tanto por parte da igreja, por praticarem seus
rituais sem a burocracia e a organização única das orações, muitas rezando de forma
espontânea e conforme aquilo que sentem como é demonstrado por Azevedo e
Lemos(2018, p 64) onde no período colonial as práticas mágicas e de adivinhação
eram muito praticadas e acabavam sendo confundidas com as práticas dos
benzimentos que diferente das ações dos conhecidos charlatões, as mulheres que
benzem não buscam receber benefícios em dinheiro, mas são gratas pela cura
daqueles que as procuram.
Mesmo com a grande procura pelas benzedeiras, que hoje são encontradas
principalmente nos ambientes urbanos e nas periferias, essa tradição vem sendo
esquecida, devido que muitas das benzedeiras em seus relatos, como apresentado
na pesquisa feita por Lemos (2012) em seu livro Religião e tecitura da vida cotidiana,
vem ocorrendo um processo de secularização da religião, ou seja, a religião passa a
não ter mais os créditos e centralidade na sociedade. O maior problema é a
desvalorização dos rituais e benzimentos, e a frequente intolerância religiosa contra a
figura das benzedeiras, muitas sendo confundidas com bruxas, feiticeiras ou que
utilizam dos benzimentos como forma de conseguirem dinheiro de forma clandestina.
Ao falar sobre Resistência, compreende-se que as tradições populares e as
crenças, referem-se não a um movimento organizado politicamente, pois a prática e
uso de benzimentos é variável sendo praticado de diferentes maneiras, mas podemos
compreender que refere-se a uma resistência do modo de vida e da permanência do
uso de costumes que remetem a ancestralidade. É através da fé, que a população
sertaneja e dos lugares mais afastados, como também a população quilombola, que
consegue vencer as dificuldades como doenças, desigualdades sociais, como é
apresentado por Martins(1998) que trata sobre o senso comum e o uso das práticas
ritualísticas populares, não como um elemento de descrédito, mas a ideia de uma
coletividade de ideias e de crenças. Ou seja, ao procurar pelas benzedeiras, as
17
presença de médicos, muitas famílias preferem levar seus filhos para serem benzidos,
por considerarem que as benzedeiras têm um carinho e um cuidado com as pessoas,
o que muitas vezes não é possível nos consultórios. Mesmo com esse
reconhecimento, elas muitas vezes preferem que os clientes levem seus casos para
um médico para serem tratados, ou seja, não desmerecem os tratamentos médicos e
nem mesmo a ciência, onde necessita-se de haver uma interlocução entre ciência, fé
e transcendente, por isso a necessidade de se preservar essas tradições que
interligam memoria, tradição e resistência popular.
A metodologia utilizada para buscar responder esses questionamentos, foi a
bibliográfica, recorrendo a livros, enciclopédias, artigos científicos, teses dando
enfoque para escritores como Eliade (2001), Otto (2007), Lemos (2005), Del Priori
(2011), realizando leituras e fichamentos dos elementos que pudessem trazer as
hipóteses, que foram elaborados conjuntamente a Iniciação Cientifica que possibilitou
o reaproveitamento dos materiais adquiridos para a elaboração desse trabalho,
realizando discussões e debates também no Grupo de Estudos Religião, Teologia e
Sociedade (GERETS).
No capítulo um intitulado Saúde no Período colonial: doenças e precariedades
são apresentadas os aspectos da saúde no Brasil colonial realizando uma introdução
do surgimento dos rituais de benzimento e das práticas ritualísticas de cura. Nesse
período a saúde se demonstrava totalmente precária, as ruas sem qualquer higiene e
sem falar das diversas doenças que eram transmitidas devido a chegada frequente
de estrangeiros vindos principalmente de Portugal. Os negros escravizados eram
frequentemente maltratados pelos seus senhores, cabendo as mulheres negras
tratarem de seus ferimentos e doenças com o uso das plantas e rezas aprendidas em
suas terras natais.
Pretende-se nesse capítulo apresentar também os aspectos do corpo e das
doenças, onde Del Priore (2011) descreve que o corpo das mulheres negras era tido
como elemento sexual e de sedução, onde muitos dos colonos tinham casos com as
escravas, tendo filhos considerados bastardos ou passando doenças sexualmente
transmissíveis para essas mulheres, onde a cada ano aumentava-se os números de
doenças como sífilis, muitas delas causando mortes. Isso demonstra que no solo
brasileiro não havia regras que controlassem os atos sexuais e as traições, nem
mesmo havia normas sanitárias como nos dias atuais. Analisa-se também os aspectos
19
possuíam algo em comum, que era suas práticas de orações livres de burocracia,
estando interligadas apenas as divindades e a natureza, realizando suas orações de
forma espontânea buscando trazer o bem comum para todos aqueles que
necessitavam de sua ajuda e apoio, muito diferente dos charlatões, esses apenas
visando o lucro. Pretende-se então nesse capítulo, apresentar a verdadeira essência
das benzedeiras e suas práticas ritualísticas.
Por fim, o capítulo três Ser mulher quilombola: mulheres benzedeiras no
quilombo Kalunga-Go, enfoca-se nas benzedeiras Kalunga, comunidade localizada
no Estado de Goiás, na cidade de Cavalcante, trazendo os aspectos sobre os
quilombos, a resistência dos povos vindos de diversas partes do continente africano
que foram escravizados, o cotidiano dessas mulheres e como é o convívio em um
quilombo e as tradições e crenças dessa sociedade.
Almeida(2017) utilizando as perspectivas de Dutra(2011) apresenta que os
quilombos surgiram devido as constantes fugas de escravos que saiam das fazendas
onde passavam pela escravidão, trabalhavam de forma árdua, passando por castigos,
sendo uma forma de resistência as fugas, indo para lugares afastados das fazendas
construindo comunidades e nelas se estabelecendo. Os Kalunga surgiram dessas
fugas e estabeleceram sua comunidade. Segundo Almeida (2011, p. 06) esse termo
foi introduzido pelos brancos, tido como um termo pejorativo e que demonstrava
inferioridade, relacionando-os a camundongos.
Depois de um tempo, o termo Kalunga passou a ter uma denominação que
representa como um lugar sagrado um local para todos o que representa a filosofia
africana do Ubuntu (Eu sou, porque nós somos). De acordo com Vasconcelos (2017,
p. 10) essa filosofia busca trazer uma união na tomada de decisões de uma sociedade,
onde todas as opiniões são válidas e necessárias para a busca de soluções de
problemas e na resistência contra as desigualdade, onde se retira as ideias
eurocêntricas que buscam trazer o individualismo, o que explica a união dos povos
quilombolas e a importância do quilombo como local de fala e protagonismo,
principalmente das mulheres, essas responsáveis pela promoção da saúde da
comunidade através do uso dos ritos e das plantas. Um exemplo dessa força e da luta
das mulheres quilombolas é Procópio dos Santos Rosa, uma parteira que luta pelo
bem-estar da população quilombola sendo responsável pela instalação de uma escola
na comunidade Kalunga, indicada ao prêmio Nobel da paz. Buscasse nesse capítulo
demonstrar o papel das mulheres benzedeiras e quilombolas como representantes da
21
1
A Botica era constituída por uma sala e uma oficina; a loja ou farmácia propriamente dita, onde
estavam os remédios à disposição do público, presidida por uma imagem, que habitualmente era a de
Nossa Senhora da Saúde; e a oficina ou laboratório, onde se fabricavam os medicamentos. Nesses
espaços, portanto, os padres boticários incumbiam-se de ‘produzir’ e de ‘vender ou distribuir’ os
medicamentos ali produzidos aos moradores daquelas localidades urbanas. Os padres boticários
tinham, assim, esse duplo encargo: o de produtores e o de vendedores ou distribuidores de remédios.
Isso para não falar de sua condição de conhecedores e inventores de produtos boticários (LEITE
apud S. LEITE, 2022. p 8). Podemos ver como é retratada a botica na pintura de Jean Baptiste
Debret no quadro Botica de 1823. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1589/botica Acesso em; 26 maio de 2022.
23
não eram reconhecidas como causadas pela falta de higiene e cuidados com a saúde,
e sim como um castigo de Deus contra os homens devido as suas ações
pecaminosas, como é apresentado por Miranda (2017):
Desde os tempos antigos, explicavam-se as epidemias como uma
manifestação do desagrado dos deuses ou, segundo uma fórmula mais
aproximada dos nossos tempos, um castigo divino pelos pecados do homem.
É também verdade que, desde a Antiguidade, os princípios da doutrina
humoral de Hipócrates estabeleciam que as doenças epidêmicas,
responsáveis por grande mortandade humana, eram uma só entidade
mórbida. Suas diversas formas de apresentação não significavam espécies
ou diferenças típicas, senão sinais ou sintomas, em relação ao humor
afetado. A bubônica, a cólera asiática, o tifo, a febre amarela, a varíola, o
sarampo e outras doenças que assolavam, recebiam, igualmente, a mesma
denominação: peste (MIRANDA, 2017, p. 307).
Assim como é afirmado por Miranda (2007) acreditava-se que somente através
da conversão dos pecados é que as doenças seriam curadas, onde a presença da fé,
é um elemento marcante na cura de doenças, como pode ser observado em diversas
passagens bíblicas onde Jesus realiza as curas, mas fala para seus seguidores que
o que os curou foi a sua fé:
Quando o país sofrer a fome, a peste, a meia e a ferrugem; quando
sobreviverem os gafanhotos ou os pulgões; quando o inimigo deste povo
cercar uma de suas portas, quando houver qualquer calamidade ou epidemia,
seja qual for a oração ou a súplica, seja de um homem qualquer ou de todo o
Israel, teu povo, se sentirem sua desgraça e sua dor e erguerem as mãos
para esta casa (BIBLÍA DE JERUSALEM- Cr 6, 26-29).
Miranda (2017) descreve que a fé era utilizada para a promoção da cura, além
de ser um elemento de busca do bem-estar do indivíduo como também da
comunidade em que ele pertence, onde as realidades do sertão, ainda pouco
desbravado eram de extrema pobreza. A falta de condições de higiene e saúde, além
da constante presença de doenças sexuais decorrentes do alto número de estupros
cometidos pelos colonizadores com as negras escravizadas ou com mulheres nativas,
era algo que promovia o aparecimento de diversas doenças, como é descrito por Del
Priori(2011). Esta realidade demonstra que a insalubridade era algo frequente nos
arraiais, colônias e cidades distantes dos litorais que estavam a margem da
sociedade, vivendo através do uso de plantas medicinais encontradas no cerrado com
frequência devido a biodiversidade dos locais.
Vários viajantes que passaram pelo Brasil e que resolveram desvendar os
mistérios do povo sertanejo, relatam com surpresa, tristeza e horror a precariedade
encontrada nos locais onde esses moradores viviam, distantes de qualquer modelo
de uma civilização europeia, considerada como a correta.
24
2
Johann Baptiste Emanuel Pohl, é um naturalista austríaco, nascido em 22 de fevereiro de 1782, vindo
para o Brasil em 1817, integrando a missão austríaca junto com outros naturalistas que foram
convocados pela família real portuguesa a desbravarem os sertões.
25
região, o que mais uma vez demonstra o olhar sobre os europeus em relação as
regiões mais afastadas dos centros.
O desenvolvimento da saúde no Brasil, ainda que precário, mas com
melhorias, surge com a chegada da família real, vinda fugida de Napoleão Bonaparte
que
Fonte: http://www.salvador-antiga.com/centro-historico/catedral.htm
ameaçava invadir o solo português. Assim ocorre diversas mudanças como a criação
de faculdades as primeiras a existirem como é visto na Figura 23, bibliotecas. Mesmo
com esses avanços, ainda havia falhas na medicina, que possuía ideias consideradas
como atrasadas para a época, já que a grande maioria dos países europeus passavam
pelas luzes do iluminismo 4que trouxe mudanças nos métodos científicos, enquanto
3
Na imagem apresenta a primeira universidade de medicina do Brasil, fundada em 1808, antes era um
colégio jesuíta, e com a expulsão dos jesuítas do Brasil, tornou-se uma das primeiras universidades.
Disponível em: http://www.salvador-antiga.com/centro-historico/catedral.htm Acesso em: 03 Jun 2022.
4
Segundo o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (2007) Iluminismo pode ser definido como: (in.
Enlightenment; fr. Philosophie des lumières; ai. Aufklãrung; it. Illuminismo). Linha filosófica
caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência
humana. Nesse sentido, Kant escreveu: "O I. é a saída dos homens do estado de minoridade devido a
eles mesmos. Minoridade é a incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro.
Essa minoridade será devida a eles mesmos se não for causada por deficiência intelectual, mas por
falta de decisão e coragem para utilizar o intelecto como guia. 'Sapere aude! Tem coragem de usar teu
intelecto!' é o lema do I." (Was ist Aufklàrungí', em Op., ed. Cassirer, IV, p. 169)
26
Portugal ainda perpassava pelos olhos atentos da inquisição 5que proibia as ideias
elaboradas pela ciência e pelos iluministas considerados como ateístas. Essa
caraterística trouxe diversos atrasos para a ciência e para o desenvolvimento de
remédios propícios para a cura de doenças como febre tifoide, sífilis, e dentre outras,
que causavam até mesmo morte em grande número da população, principalmente
dos escravos e dos menos favorecidos que não tinham acesso aos tratamentos:
Durante os três primeiros séculos da colonização, os profissionais que
exerceram a medicina no Brasil foram, predominantemente, os físicos ou
licenciados, os cirurgiões aprovados e os cirurgiões-barbeiros que vieram
para o Brasil com as expedições colonizadoras. Esses profissionais sofreram
forte concorrência dos não habilitados para o exercício da prática médica, ou
seja, curandeiros, entendidos e curiosos (MIRANDA, 2017. p. 243).
Nesse sentido, a saúde era apenas para a alta sociedade de que poderia
receber os tratamentos médicos, enquanto os escravos e pobres, ficavam à mercê,
muitos tendo pouco tempo de vida decorrentes as condições precárias, sendo
frequentemente chicoteados e sofrendo o cansaço excessivo de trabalho:
5
Segundo a Enciclopédia Barsa, volume 8, Inquisição pode ser definida como: É a designação de um
tribunal eclesiástico, vigente na idade média e começos dos tempos modernos, que julgava os hereges
e as pessoas suspeitas de heterodoxia em relação ao Catolicismo. (BARSA, 1976. p 30)
27
O ato de benzer não era formulado para bens materiais ou como elemento de
ascensão social, e sim uma forma coletiva de preservar a saúde de toda uma
comunidade, se utilizando da ligação com a natureza, o sagrado, os mistérios da
natureza e da fé, onde se faz necessário essa compreensão de seu surgimento
através das necessidades de um povo que não tinha vez nem voz, e que era deixado
as margens sem qualquer acesso a saúde, se resguardando na saúde popular e na
fé.
além de usarem as rezas, os rituais que eram feitos sobre utilização do sincretismo6
religioso devido as constantes repressões que as religiões populares e de matriz
africana passavam.
Cabe salientar, que diversos estudiosos vem trazendo uma nova nomenclatura
referente ao processo de junção de diferentes crenças e costumes. Ganglietti(S/A)
utiliza para essa significação a palavra hibridismo, que refere-se a uma junção de
diferentes culturas e tradições. É necessário fazer uma problematização do uso da
palavra Sincretismo, pois ela durante muito tempo foi utilizada pelos europeus, como
forma de diminuir outras tradições que não fossem as suas, onde a historiografia como
também outras áreas de conhecimento, passaram a utilizar hibridismo como um
elemento que abrangesse a junção de diferentes costumes.
Ter acesso a médicos no período colonial, era algo raro. Os primeiros a
utilizarem da medicina no Brasil, foram os jesuítas, que vinham com o papel de
evangelizar a população de indígenas, negros e outras partes da população, e vendo
as constantes doenças que assolavam o Brasil, usavam de parte de seus
conhecimentos para a cura através das preces e missas:
a princípio responsáveis pela “cura das almas”, os jesuítas que aqui se
fixaram procuraram, paralelamente ao trabalho de catequese do gentio,
resguardar também sua saúde – tão fragilizada pela incidência de
enfermidades até então desconhecidas por seus organismos – e expurgar
aqueles rituais mágicos que até então se mostravam tão eficientes entre os
nativos. Um dos grandes nomes da ordem de Inácio de Loyola no Brasil,
Padre José de Anchieta, afirma que não seriam apenas os silvícolas os
dependentes da assistência dos irmãos, pois “[...] mesmo os portugueses
parecem que não sabem viver sem nós outros [os jesuítas], assim em suas
enfermidades próprias, como de seus escravos: em nós outros têm médicos,
boticários e enfermeiros; nossa casa é botica de todos, poucos momentos
está quieta a campainha da portaria” (VIOTTI 2012, p. 17).
6
Segundo o Dicionário de ciência da religião de Usarski (2022, p. 679, provavelmente o conceito mais
geral e heurístico de sincretismo é o de “suspensão de barreiras entre dois sistemas”. Uma tendencia
importante nos estudos sobre sincretismo é a diferenciação entre diferentes níveis de combinação, de
incorporação de elementos sem uma forte conexão até a síntese. Bechert, por exemplo propôs
diferentes níveis de sincretismo. No primeiro nível pode-se identificar uma reapropriação de elementos,
o que representa sincretismo em um uso livre do termo, ocorrendo quando elementos são incorporados
passando por uma reinterpretação dentro de uma determinada religião. No sentido mais estrito o termo
sincretismo é tido como um processo no qual os elementos incorporados possuem um peso comparável
aos elementos existentes, gerando diferentes níveis de verdade. No terceiro nível, o termo pode ser
interpretado como uma relação entre a síntese onde dois sistemas religiosos contribuem para a
formação a formação de um novo movimento.
31
caso por exemplo da população sertaneja, que devido a longa distância das grandes
cidades, e por se encontrarem em extrema pobreza, usavam da fé como elemento de
cura e de acolhimento de seus sofrimentos, como podemos observar na citação:
os questionamentos a que os curandeiros submetiam os doentes seriam,
também, uma das causas que levavam a população a recorrer às suas
práticas terapêuticas. Enquanto os médicos se preocupariam em identificar
“o como” das doenças, tais curandeiros, atendendo diretamente à tentativa
de construir um sentido para a condição dos homens, buscariam
compreender “o porquê” das enfermidades. A doença, nesse sentido, seria
provocada por uma causa sobrenatural e a cura, antes de tudo, um ritual que
teria tanta ou maior eficácia do que a própria substância empregada. O que
se poderia denominar “medicina rústica” encontra-se na interligação dos
estágios mágico, religioso e empírico de identificação das causas das
patologias: para os indígenas, ela seria especialmente mágica enquanto para
os africanos, abrangeria a ordem religiosa. Delimitar os limites dessa noção
de doença e da noção legada pela medicina da época é, ao fim e ao cabo, o
principal intuito deste trabalho (VIOTTI, 2008, p. 18).
Lamento sertanejo
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
7 O termo curandeirismo tem diversas interpretações e definições, mas segundo Matos (2009, p 10) As
práticas de curandeirismo como medicina popular surgiram como parte de uma cultura originalmente
rural, católica, dentro de uma esfera familiar. Nascidas das relações entre os homens, para
satisfazerem suas necessidades, são práticas dinâmicas e atualizadas - à medida que recriadas com
o deslocamento das pessoas do campo para as cidades, nos processos migratórios - permanecendo
resistentes às formas oficiais de cura.
32
8
As bandeiras, eram expedições que saiam de São Paulo, em busca de encontrarem indígenas para
escravizarem ou que haviam fugido de seus senhores, além de escravos negros, destruindo quilombos.
Essas expedições eram os oficiais que recebiam o apoio da coroa portuguesa, onde investiam um
capital para realizar os desbravamentos. As primeiras expedições das bandeiras passaram por Minas
Gerais, depois indo para Goiás e adentrando o sertão em busca de índios, ouro que estava em grande
procura, essas tendo ligação com a coroa portuguesa Fausto(2012. p. 51)
34
Fonte10: https://atlas.fgv.br/marcos/descoberta-do-ouro/mapas/graficos-producao-de-ouro-e-
populacao-mineira-no-seculo-18.
10
FGV- Fundação Getúlio Vargas
35
Figure 3: Cidade de Goyas, Fruher Vila Boa, Hauptstadt der Gleichnahmigen Capitanie 1832.
Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/20033/cidade-de-goyaz-fruher-villa-boa-
hauptstadt-der-gleichnahmigen-capitanie
11
Maranhão era assim chamado o afluente do Rio Tocantins, que era ligado junto a província de Goiás.
(ROSENTHAL, 2010)
37
boa gente estava na ilusão de que eu era inglês e viera explorar as minas de
ouro. Indagaram sobre tudo que pudesse esclarecê-los a esse respeito e
insistiram especialmente em saber dos meus escravos que estariam a
caminho. Asseguraram-me repetidas vezes que a minha chegada era muito
desejada, que menos por três anos (PHOL, 1976. p. 174).
Através dos relatos dos diversos viajantes que passaram pela região norte de
Goiás, o imaginário de várias pessoas foi construído baseado nesses fatos, o que
deve ser analisado com cuidado pelos historiadores, pois estão enraizados de visões
que nos dias atuais podem ser consideradas racistas, mas que eram uma tradição do
período, onde ser branco era símbolo de dominação e de poder, onde além dos
relatos, usava-se também das pinturas como forma de representar o sertão. Se a
sociedade de Goiás era tida como preguiçosa, sem futuro ou cheia de doenças, a
religiosidade também não fugia das críticas constantes.
Na análise de Rosenthal(2010) apud Pohl(1976) ao descrever a fé da
população, vê com um certo desprezo o uso de plantas como remédios eficazes,
devido ele próprio ser um médico, onde as tradições orais da época, segundo
Teixeira(2013) eram vistas com um olhar fixo dos pesquisadores e viajantes, o que
justifica as poucas informações referentes a formação do Estado de Goiás que possui
a criação da figura de heroísmo os colonizadores juntamente com os bandeirantes,
onde durante vários séculos a história da sociedade goiana, dos povos indígenas, dos
negros e também das religiões populares foram silenciados pela historiografia.
Bloch(2002, p 192), descreve que o historiador ao analisar os fatos, deve seguir a
imparcialidade :
Existem duas maneiras de ser imparcial: a do cientista e a do juiz. Elas têm
uma raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. O cientista registra,
ou melhor, provoca o experimento que, talvez, inverterá suas mais caras
teorias. Qualquer que seja o voto secreto de seu coração, o bom juiz interroga
as testemunhas sem outra preocupação senão conhecer os fatos, tais como
se deram. Trata-se, dos dois lados, de uma obrigação de consciência que
não se discute (BLOCH, 2002, p. 192).
repassadas as histórias. Essa forma de transmissão dos fatos pode ser compreendida
segundo (Azevedo 2012 apud Wunenburguer, 2007) como uma forma individual de
ver a realidade, onde daí vem a palavra imaginário de imaginação. Ou seja, o ser
humano através de suas vivências e do local onde vive, cria seus próprios mitos e sua
forma de ver o mundo.
Uma das formas mais claras da formulação do imaginário, são os textos de
literatura de viajem, onde os navegantes de acordo com sua visão, geralmente
eurocêntrica descrevem os locais por ondem viajam, as dificuldades que passam, mas
principalmente as diversidades presentes nos lugares onde passam. Durante o
período colonial, os relatos de viajem ajudaram aos europeus compreenderem como
eram os solos brasileiros, sua população, seus costumes, que são tidos geralmente
com um olhar de estranheza e também de negatividade e admiração a fauna e flora.
Souza(S/D), descreve como os Europeus viam o novo mundo e seus imaginários:
Todo esse imaginário12 presente no olhar dos europeus, era perpassado para
a sociedade ocidental, que criam um olhar negativo sobre a cultura brasileira e os
costumes, sendo tidos muitas vezes como atrasados, sem qualquer presença de
civilização, não sendo admitidos as tradições populares. Enquanto havia por parte dos
europeus uma negação dos costumes brasileiros, a população desfrutava dessa
diversidade de culturas e tradições. Em goiás por exemplo, o imaginário é carregado
de lendas e de costumes principalmente através do uso da literatura, onde uma figura
emblemática da literatura goiana, é Cora Coralina 13que descreve os principais
aspectos da sociedade goiana dando destaque a sua cultura e tradição, dentre um
12
Segundo Garcia; Oliveira (2014, p 46) o termo imaginário é uma variação recentemente utilizada no
mundo, de modo que é inclusive desconsiderada em alguns países. Para Wunenburger (2007, p. 7)
compreende lembrança, fantasia, sonho, devaneio, crença, romance, mito e ficção. Nesse caso,
imaginário seria um relato de algo, de um fato, de uma situação, algo que pode ou não existir conforme
e o que pretende descrever.
13
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas nasceu a 20 de agosto de 1889, na cidade de Goiás, Estado
de Goiás. Filha de Jacintha Luiza do Couto Brandão Peixoto e do desembargador
40
dos aspectos o ato de benzer e de curar através de rezas, costume esse muito
frequente no sertão do cerrado:
Todas as Vidas (Cora Coralina, 1983)14
14
Disponível em: http://zezepina.utopia.com.br/poesia/poesia12.html Acesso em: 02 Jun 2022
41
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Para Weber, a magia, como foi citado, assume uma conotação ligada
diretamente ao imaginário de quem a produz e de quem a recebe como graça
divina. No caso das benzedeiras, é preciso situar a magia dentro das formas
citadas, pois a benzedeira é aqui tipificada no agente ritual e no mago, mas
ela, ao mesmo tempo em que recorre aos elementos naturais e ao seu deus,
ritual ou antepassados, busca sua fonte inspiradora no Deus maior a que
serve (LEMOS, 2018, p. 20).
Fonte: http://mapadecultura.com.br/manchete/as-rezadeiras-de-trajano#prettyPhoto[pp_gal]/1/
forma de acalento. Não poderia ser diferente ao analisar as mulheres benzedeiras que
convivem com diversas adversidades, sejam de visibilidade ou os preconceitos tão
frequentes na sociedade ainda que existam leis que permitam a liberdade de
exercerem sua fé e crenças, existe a intolerância religiosa, elemento que será
explicado mais futuramente.
Esse capítulo visa principalmente analisar o porquê o preconceito contra as
benzedeiras e as religiosidades populares ainda predomina. Para desmitificar os
mitos, é necessário observar e questionar quem são essas mulheres, o que as movem
a realizarem as curas e orações? são cobradas quantias em dinheiro nos
atendimentos? como ainda permanece a utilização dos benzimentos? o que diferencia
as benzedeiras dos “charlatões”? Para responder esses questionamentos cabe
inicialmente analisar o período colonial e as práticas de curandeirismo e feitiçaria.
Na tradição e no convívio social, o povo brasileiro principalmente das regiões
interioranas, preservam muitas de suas tradições e costumes que perpassa as
gerações. Um dos costumes que ainda resistem ao tempo, é o ato de pedir a benção
seja para o pai, a mãe, avó, avô, como uma forma de respeito e de proteção. Tal ato
que pode ser considerado tão simples, é carregado de significados e simbologias.
Segundo Santos (2016) a simbologia nas tradições populares é repleta de
significados e de importâncias onde com a chegada dos colonizadores em 1500 já era
presente em solo brasileiro, o hábito e o costume dos xamãs e dos povos indígenas
utilizarem de ervas e de rituais para buscar curar doenças, prever o futuro, sem falar
do uso da astrologia para se guiarem sobre os fatos e acontecimentos:
forma de abafar as tradições originárias, que eram tidas como primitivas e diabólicas.
Fala-se de sincretismo como um elemento que permeia um processo de dominação
de outras culturas e tradições, que passaram por um processo de evangelização. É o
que ocorre com os povos tradicionais e logo após, com os escravos, que passavam
por batismos, mudanças de nomes, além de terem que deixar suas tradições:
16 Anteriormente, o termo utilizado era aculturação, onde com as mudanças feitas través da
antropologia, passou-se a utilizar para conceituar a junção de diversas cultural a palavra hibridismo.
Autores como Alfredo Bosi, tratam que a aculturação foi um elemento utilizado para sujeitar um povo a
um padrão tido como superior, ocorrendo em períodos históricos diferentes (SILVA)
46
Fonte: https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/view/4390/pdf
17 Outro conceito conhecido vem se dissociando dos antigos termos ligadas às práticas místicas: o
raizeiro. O raizeiro atualmente tem ganhado grande destaque, pois sua atividade trata
especificamente do comércio de plantas medicinais, muitas vezes colhidas da flora local. A medicina
ligada a práticas naturais, herbais, é o centro de uma nova percepção de vida onde se busca um
caminho mais saudável, pela via mais orgânica ou vegana. O raizeiro atual não manipula as plantas,
só as vende. SOUZA (2022, p. 151)
47
Como pode ser visto no gráfico acima, o raizeiro entrevistado por Souza(2017),
apresenta uma facilidade em descrever sobre as plantas do cerrado e suas formas de
utilização, onde se percebe que além das indicações, são informados também o modo
de preparo dos chás e das infusões. Essas indicações e conhecimentos sobre as
plantas do cerrado, são remetidas a tradições passadas de uma população que
convivia com diversas doenças e se valia através do uso de plantas, essa tradição é
tratada por diversas benzedeiras em seus relatos, que além de utilizarem de orações
e de gestos, usam também dos elementos naturais como forma de estabelecer a
saúde:
18
Assumindo o risco de simplificar ao externo, é possível reduzir as inúmeras definições da cultura
popular. dois grandes modelos de descrição e interpretação. O primeiro, no intuito de abolir toda forma
de eurocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo,
que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível a da letrada. O segundo,
preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, per-
cebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes.
(CHARTIER, 1995. p. 01) O conceito de cultura é um dos principais nas ciências humanas, a ponto de
a Antropologia se constituir como ciência quase somente em torno desse conceito. Na verdade, os
antropólogos, desde o século xix, procuram definir os limites de sua ciência por meio da definição de
cultura. O resultado é que os conceitos de cultura são múltiplos e, às vezes, contraditórios. O significado
mais simples desse termo afirma que cultura abrange todas as realizações materiais e os aspectos
espirituais de um povo. Ou seja, em outras palavras, cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade,
seja no plano concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos até ideias e crenças. Cultura é
todo complexo de conhecimentos e toda habilidade humana empregada socialmente. Além disso, é
também todo comportamento aprendido, de modo independente da questão biológica (SILVA, SILVA,
2009, p. 85)
19 Segundo Croatto(2010) em As linguagens da experiencia religiosa, O rito é o equivalente gestual do
símbolo. Dito de outra maneira, o rito é um símbolo em ação. Portanto, é, assim como o símbolo, uma
linguagem primária da experiencia religiosa. O rito é um texto e, portanto, é uma linguagem. Em uma
primeira aproximação, o rito aparece como uma norma que guia o desenvolvimento de uma ação sacra.
O rito é uma prática periódica, de caráter social, submetida a regras precisas. Em sua exterioridade,
porém, a norma é uma rubrica e não define realmente o que é o mito.
20 Segundo Nei Lopes(S/A) em “Novo dicionário banto” Banzo seria nostalgia mortal que acometia
tido como algo simples, mas que na verdade cada prática e ação humana tem uma
significação e um simbolismo.
Ao relatarem como decidiram ser benzedeiras, muitas mulheres entrevistadas
por Santos (2012) relatam que aprenderam as orações observando suas mães, avós
e seus parentes, realizando os benzimentos, e ao conviverem com esses costumes,
aprenderam e perpetuaram os mesmos no seu cotidiano. As tradições populares,
permanecem vivas, devido essa transmissão de saberes para as outras gerações, o
que vem se tornando algo complicado, já que os jovens não possuem a compreensão
da importância dessa preservação das tradições populares, além da medicina que
muitas vezes despreza o uso de rezas e de medicamentos naturais como elementos
promotores de saúde.
Peixoto (2012) ao tratar sobre o termo sincretismo21, demonstra que ele não se
trata de uma violação ou proibição do uso da religião, mas a sociedade passa a não
ser orientada mais pela igreja católica, e sim pelas leis estabelecidas pelo Estado.
Com isso surge a possibilidade de aderências de diversas religiões e credos. É
importante salientar que essa diversidade de credos, uma religião se embasando em
outra, vem desde os primeiros séculos do cristianismo, onde o povo sofria com a
escravidão, a dor, o sofrimento das doenças sem cura, recorrendo a figura de Deus
que atendia suas preces de prontidão, ou conforme a sua vontade. Mesmo com a
aderência ao cristianismo, não há como apagar a presença dos rituais aos deuses e
das crenças pagãs, onde em cada período há uma necessidade específica:
Os séculos em que mulheres parteiras se empenharam na luta contra a
mortalidade materna em nome de Ísis foram seguidos por séculos em que se
fez esse mesmo empenho em nome de Maria, nas casas e maternidades
cristãs. Acontece que, no universo dos símbolos, nada é definitivo. Por
exemplo, algumas igrejas neopentecostais introduzem formas de devoção
semelhantes a formas católicas e que atraem muitos fiéis, como o “jejum das
causas impossíveis”, da Igreja Universal do Reino de Deus. Por conseguinte,
a novidade do cristianismo não tem de ser procurada no nível dos símbolos,
ou seja, das imagens ou dos ritos, mas no nível de uma ação eficiente no
campo das relações sociais e políticas (HOORNAERT, 2013, p. 10).
21 Sincretismo passou a ser identificado com a dominação colonial e por isso considerado por muitos
como ultrapassado. Hibridismo é proposto como termo mais amplo. Ambos possuem defensores e
opositores, daí o interesse de uma revisão da literatura sobre a matéria que apresentamos a seguir. Na
época das pesquisas pioneiras sobre religiões afro-brasileiras de Nina Rodrigues, o conceito de
sincretismo era utilizado, mas não chegamos a localizar o uso desse termo em seus escritos, embora
muitas vezes ele discorra sobre o fenômeno utilizando expressões como fusão, dualidade de crenças,
justaposição de ideias religiosas, associação, adaptação, equivalência de divindades, ilusão da
catequese e outras (FERRETI. 2014. p 16).
51
22 BELTRÃO JUNIOR (2008, p. 03) Descreve que a secularização pode ser entendida pelo declínio da
religião, pela perda de posição axial e pela autonomização das diversas esferas da vida social, da
tutela, do controle da hierocracia. A religião perde força e autoridade sob a vida privada.
RAMOS, JUNIOR(2016) observa que a secularização se relaciona ao desencantamento do mundo,
termo esse criado por Max Weber que considera esse um significado que tem maior amplitude em
relação a secularização, onde ocorre um processo de racionalização da vida, tendo o abandono das
ordens religiosas e em decorrência das guerras de religião e cisões geopolíticas religiosas oriundas do
período da reforma, expropriação da propriedade da igreja e, por fim, emancipação do poder político
em relação do poder religioso. Pode-se dizer que a secularização não é um processo findo, um
fenômeno instantâneo que, uma vez manifestado consolida-se definitivamente em sua amplitude e
profundidade podem oscilar de uma sociedade para outra.
52
Fonte:http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon414816/icon414816.jpg
23A Matinta Pereira é, via de regra, uma senhora idosa em condições de se metamorfosear em uma
espécie de pássaro de hábitos noturnos e transitar pela comunidade. O que marca a presença da
Matinta é seu trinado: fiiite, fiiite, fiiite, Matiiinta Perera. Para a certeza do reconhecimento, é
necessário identificar o nome da divindade em seu canto, aquilo que os moradores dizem que é
dobração do seu assobio caso contrário, o apito noturno pode indicar a presença de outras
entidades6 (a Curupira ou a Mãe d’Água) que emitem o mesmo assobio, com a diferença de não
dobrarem o canto (ALVES JUNIOR, 2014. p. 08)
54
24 O transcendente pode ser visto na história A Águia e a Galinha de Leonardo Boof, onde o ato de
transcender-se é o ato de sair de si e ir para muito longe onde o ser humano se desperta do sono e
abre suas asas para voar onde somos parte de algo que vai além de nossa existência humana e
perpassa pelo divino, como um elemento que faz o ser humano buscar tomar decisões e olhar para
seu interior.
55
no período colonial a taxa de vida era curta, devido a tantas doenças que
amedrontavam a sociedade:
Os feiticeiros e seus feitiços apresentavam respostas e soluções contra
questões aparentemente insolúveis, davam cura e protegiam aos que a eles
recorriam. Também tinham a capacidade de provocar o mal, caso
desejassem ou fossem instigados a isso. A sua ação, ambígua por natureza,
causava medo, repúdio, admiração e até mesmo descrença frente aos
espectadores. O universo mágico do qual participavam – e que tendia a
desaparecer nos olhares dos indivíduos mais próximos ao racionalismo
iluminista de finais do século XVIII145 – dava liga a todo um mundo habituado
à presença do maravilhoso, de pessoas mágicas e inexplicavelmente dotadas
de poderes sobrenaturais ( SANTOS JUNIOR , 2015. p. 91).
É visto que a figura dos feiticeiros, não são apenas procurados no período
colonial por falta de médicos e de remédios, mas também pela questão do costume e
tradições que são preservados naquela comunidade e que são transmitidos de
geração em geração. Mesmo sendo um elemento proibido e visto como negativo pela
medicina tradicional, o curandeirismo e os benzimentos permaneceram sendo usados
por uma sociedade que não se via sendo representada pela medicina. Muitos dos
termos utilizados pelos médicos eram de difícil compreensão para a população, o que
gerava dificuldades, além de usarem de métodos que não solucionaram os problemas:
A atividade dos empíricos era destinada daquela dos médicos, estes
utilizavam termos técnico-científicos de difícil compreensão pelos doentes e
seus familiares, o que os afastava do processo de diagnóstico e cura dos
males, os empíricos praticavam da vivência diária dos habitantes,
compartilhavam o mesmo código cultural e a mesma linguagem, o que
facilitava o processo terapêutico (MAGALHÃES, 2011, p. 04).
Del Priore (2011), em seu livro História das mulheres do Brasil, trata que as
receitas e recomendações médicas se assemelhavam mais a receitas de feitiçaria,
criando definições e termos que causavam um estranhamento para a população:
Enquanto em outros países europeus a experimentação científica orientava
as pesquisas sobre o corpo e as doenças, em Portugal a crença na ação
diabólica era base dos remédios que serviam para combater as desgraças
biológicas, que mais pareciam saídas de tratados de feitiçaria. Tomem um
cão preto, pendure-se com os pés para cima e bem seguro no ramo de uma
árvore, ou coisa semelhante, e estando assim pendurado o açoutem e façam
enraivecer muito, e então lhe cortem a cabeça de repente. Esta cabeça se
meta em uma panela nova (DEL PRIORE, 2011, p. 67).
Esse charlatão era tido como um grande problema para a cidade, por fazer
várias vítimas, alegando-o de receber uma autorização do superintendente municipal,
sendo absolvido dos crimes, apenas alegando ter essa permissão, o que demonstra
que a segurança e o uso de diplomas era algo pouco exigido em determinadas
cidades, devido à falta de médicos preparados e as constantes necessidades das
famílias que estando em situações delicadas, acabavam sendo vítimas fáceis para
esses criminosos.
Um ponto negativo que pode se retirar dessas acusações feitas pela gazeta de
Joinville é a questão de menosprezar o papel dos curandeiros, sendo generalizada a
ideia de que são charlatões que causam prejuízos, onde por isso aqueles que
realizavam as práticas de cura com rezas e ervas no sentido de promoverem o bem-
estar, passam a serem vistos de forma totalmente negativa.
Outro exemplo claro dessa negatividade gerada através das manchetes de
jornais locais, é o caso de Antônio Schlossarszik, um húngaro que foi acusado de
matar um recém-nascido em um trabalho de parto, onde a manchete aumenta a
intensidade do caso, falando que o próprio chegou a arrancar os braços e pernas da
criança, gerando um monstro e uma imagem totalmente negativa dos curandeiros e
principalmente as mulheres curandeiras, (OLIVEIRA, 2011).
Cria-se um espaço de medo e de temor em relação aos casos de mortes onde
se culpabilizam principalmente a população que realiza as curas através de sua fé,
sendo uma intolerância religiosa gerada também pela presença dos criminosos.
Ecco(2011) Santos (2011) apresentam em seu livro Intolerância Religiosa, que a
intolerância gerada em determinadas religiões e práticas ritualísticas, é gerada
principalmente pela ideia de uma verdade absoluta e a imposição de determinados
valores como únicos. Esses valores unitários negam o reconhecimento do outro,
gerando um processo de exclusão de determinado grupo social, provocando danos.
Percebe-se que os danos gerados pela ideia de que as benzedeiras eram bruxas e
charlatãs, causa um apagamento de suas histórias e da preservação de suas
memórias.
59
constrói os templos e a forma como são constituídos, tudo isso se remete ao sagrado,
que representa o centro de tudo:
A relação íntima entre comização e consagração atesta-se já aos níveis
elementares de cultura, por exemplo entre os nômades australianos cuja
economia se encontra ainda no estágio da colheita e da caça miúda. Segundo
as tradições dos achilpa, uma tribo aruunta, o ser divino Numbakula comizou,
nos tempos míticos, o futuro território da tribo, criou seu antepassado e
fundou suas instituições. Do tronco de uma árvore da goma, Numbakula
moldou o poste sagrado (Kauwa-auwa) e, depois de o ter ungido com sangue,
trepou por ele e despareceu no céu. Esse poste representa um eixo cósmico,
pois foi à volta dele que o território se tornou habitável, transformou-se num
mundo (ELIADE, 2001, p. 35).
pessoas a região. Criaram laços com os moradores e devido as curas feitas, a sua
fama ia repercutindo, mesmo não sendo do interesse delas de serem famosas e de
receberem alto crédito, dizendo a maioria que o que curou a pessoa foi a fé, isso fez
com que resguarda-se e preserva-se as tradições de benzer e de fazer orações.
Uma pergunta muito importante a ser feita, é como essas mulheres adquiriram
a prática de benzer? E como ocorre os ritos para se tornar uma benzedeira?
Analisando as pesquisas feitas por Farinha (2012), ela descreve que a maioria dessas
mulheres viviam em suas casas, cuidando dos afazeres domésticos e conviviam em
sua maioria com figuras femininas, como mãe, avó, tia, essas ensinavam os preparos
dos remédios, as rezas, ou muitas vezes as moças observavam o cotidiano de quem
as cercava e aprendiam por contra própria e devido as necessidades. Por serem
transmitidos usando a oralidade, muito desses costumes se perderam, e outros
permanecem vivos. Essas mulheres ao descreverem o que as impulsiona a realizar
as curas, falam que são escolhidas por Deus e recebem vários dons:
As pessoa vem mais aqui pra eu rezá de espinhela, cobrero, [...] vem aqui
benzê, sara, Jesus cura, Jesus é o médico dos médicos. Quando cê confia
em Jesus, cê faz oração e fala: Ó, pode ir embora Jesus te curou já! Tem vez
que num precisa vortá mais uma vez, é uma só, num precisa mais. Pela
misericórdia de Deus, pela graça de Deus (B, março/2011). (FARINHA, 2012,
p. 48).
distribuídos em altares, das festas de reis, das congadas e de outros elementos que
fazem parte da cultura tradicional goiana, onde ao tratar sobre essas práticas se
percebe os espaços da fé, seja pelo uso de uma cruz, uma corrente, cordões, seja
pela roupa que utiliza em seus rituais e nas práticas religiosas, seja pela forma como
se pronunciam as palavras, tudo isso são elementos simbólicos sendo fatos sociais
(CROATTO, 2017) por isso ao se falar sobre as benzedeiras, percebe-se que muitas
pessoas possuem um sentimento de rememoração de sua infância, de terem passado
por alguma benzedeira ou de conhecer algumas, devido os usos de elementos
simbólicos que representam essas mulheres.
Apresentado esses aspectos sobre o local de fala e as representações das
benzedeiras, faz-se necessário compreender o uso da fé como elemento de promoção
da cura e do bem-estar social nos dias de hoje.
2.3.1 Quem são e o que fazem as benzedeiras? O ofício das benzedeiras e sua
missão na sociedade
procuram. Quando percebia alguma doença mais agravada, pedia que a pessoa
procura-se uma assistência médica, onde se percebe que as benzedeiras se
conectam ao uso da medicina, quando não conseguem atuar na cura de determinada
doença.
Ao analisar sobre essa interligação entre ciência e fé, algumas cidades e locais,
vem buscando pela medicina popular, como elemento complementar a cura. Essa
busca é feita, devido que muitas doenças se relacionam ao espiritual, onde através
das orações pode se promover um alívio do sofrimento do paciente, como é
apresentado por Pinto(2013), Falcão(2013) a medicina vem buscando compreender a
importância do uso da religiosidade na promoção da ligação entre médico e paciente,
devido que a maioria dos pacientes hospitalizados possuem uma religião, onde
através dessa fé gera influência nas decisões dos médicos, como uma forma de
estabelecer conexões e buscar de forma mais humanizada atender as necessidade
do paciente, da família e promover uma saúde que ouça aqueles que buscam uma
força através da espiritualidade e de sua fé.
Um exemplo do uso da fé e da medicina popular , é um caso ocorrido no Ceará,
onde estava ocorrendo casos de desidratação dos moradores, esses buscando um
atendimento médico em unidades de saúde, demonstravam certa desconfiança em
receber medicações como o soro fisiológico, o que gerou uma certa dificuldade de
aproximação entre médicos e pacientes. Buscou-se então a ajuda das benzedeiras
da região, e tiveram a ideia de colocar imagens dessas mulheres nos frascos de soro
e nos medicamentos, onde a população da comunidade passou a aceitar receber o
tratamento. Observa-se então a importância dessa ligação entre a medicina tradicional
e o uso da fé e dos métodos populares feitos pelas benzedeiras (CARRANZA, 2005,
p.77).
Nesse exemplo apresentado da união entre medicina tradicional e medicina
integrativa, podemos citar também o uso de plantas do cerrado, como elementos
auxiliares desse processo de cura. As benzedeiras, utilizam das plantas como
auxiliadoras no processo de cura e dos rituais. Ao pesquisarmos sobre a vida dessas
mulheres e suas vivências sociais na comunidade, percebe-se que a grande maioria
são casadas, moram em casas simples, tem como religião o catolicismo ou são de
outras vertentes religiosas como o Candomblé, umbanda, espiritismo, protestantismo
e outras religiões, enquanto outras não frequentam nenhuma igreja ou credo
(SANTOS, 2012).
65
Outra forma em que se concebe o dom mediúnico de ter visões e realizar curas,
é vindo do nascimento, onde algumas benzedeiras relatam que quando suas mães
estão grávidas e o bebe chora no ventre sendo um sinal de mediunidade, como é
apresentado no relato de uma benzedeira entrevistada por Bezerra (2018), Videira
(2018) e Custódio(2018):
Foi de nascença! Quando a minha mãe estava grávida, eu chorei dentro da
minha mãe. Eles estavam todos na sala reunidos, a minha avó, e eles
escutaram o choro de uma criança, a minha vó ficou... “A Isabel já teve esse
moleque, essa menina?”. Disseram: “Mãe ela não gritou, não fez nada”, e
foram ver, a minha mãe estava deitada, aí a minha vó falou: “Meu Deus, a
criança chorou dentro da minha filha!”, aí ficaram naquele negócio, sabe?!
Inclusive, ela falou para a parteira que quando fosse o dia de me pegar, que
não era para ela se admirar, entendeu?! De alguma coisa que eu pudesse
fazer na hora do parto. (BEZERRA 2018, VIDEIRA 2018, CUSTÓDIO 2018)
espírito da pessoa, o corpo fechado como muitos falam, onde há uma variedade de
aspectos onde as benzedeiras são buscadas como ´promotoras do bem estar social.
Na minha infância, há diversas lembranças em que a minha avó realizava
diversas orações além de indicar garrafadas, isso se a pessoa a procura-se, dentre
suas várias orações, haviam aquelas que eram específicas para doenças, ou para
livrar de espíritos malignos, além das formas como organizar a casa, um exemplo o
deixar a chinela virada, era considerado por ela como algo que traz azar, tudo isso
está interligado as simbologias introduzidas pela cultura popular .
Croatto(2009) ao apresentar os símbolos, demonstra que cada indivíduo vê um
elemento de seu cotidiano de uma forma, sendo o símbolo algo que desencadeia uma
vivência humana, por isso os símbolos remetem as memórias e as experiencias de
cada indivíduo, ou seja, se para alguns os benzimentos e as orações são importantes
e fazem parte de sua história, para outros esses são tidos como crendices e que não
possuem o mesmo significado. Cabe a figura do historiador apresentar as
diversidades culturais (BLOCH, 2002).
As práticas das benzedeiras remetem ao uso de simbologias e de suas crenças
que não se configuram em uma única fé, mas que permeiam e bebem de diversas
religiosidades e credos. Para benzer é necessário o uso da fé, e também saber aquilo
que afeta a pessoa que está sendo benzida. Cada benzedeira utiliza as rezas de uma
determinada forma e para cada elementos que aflige a pessoa, havendo o dia mais
específico e próprio para realizar os benzimentos, além da forma como se realizam
esse ritual (DIAS, 2016, p. 44). As orações são diversas, e possuem cada uma sua
especificidade, onde a maioria remetem ao rompimento daquele mal que está
causando determinada doença ou carregando energias negativas na pessoa:
Mal do ar, mal do mar, mal do fogo, mal da lua, mal das estrelas, mal do ponto
do meio dia, mal do ponto da meia noite. Se tiveres com quebranto, mau
olhado, feitiçaria e bruxaria, em nome de Deus e da Virgem Maria, seja levado
paras ondas do mar sagrado, onde não canta o galo nem a galinha e nem
tem criancinha chorando e nem cristão batizado. Depois rezar um Pai Nosso
e uma Ave Maria (DIAS, 2016, p. 47).
Segundo a citação apresentada por Dias(2016), essa oração feita por uma das
benzedeiras entrevistadas, é utilizada para o quebrante ou também conhecido como
mau-olhado como forma de libertar as energias negativas e de proteger a pessoa. A
forma como ela é realizada, não se trata apenas a forma como é recitada, mas aos
elementos utilizados pela benzedeira, essa usando desde ramos preferencialmente o
de arruda e ir molhando o galho no copo, e se ele afundar, é um sinal de que a pessoa
71
está carregada, sendo necessário ao final do benzimento, virar as costas para a rua,
e jogar por trás dos ombros de quem está benzendo. Observa-se que para todas as
orações que são feitas, há uma finalidade e uma simbologia presente nos atos, desde
o simples sinal da cruz, até as posições das mãos e os gestos feitos pelas
benzedeiras, essas tendo grande respeito pelos rituais, seguindo uma ordem desde a
purificação do local até a purificação daquele que está sendo benzido.
Ao tratar sobre as benzedeiras, o que vem à mente de grande parte da
sociedade é que elas estão afastadas de nossa realidade, e que vem perdendo
credibilidade as suas ações, mas ao buscarmos compreender e analisar de onde vem
essas tradições tão ricas, observa-se que ao contrário, elas permanecem na memória
de grande parte da sociedade, e nas tradições como festejos de três reis, nas
congadas, nas festas do divino e dentre outras festividades que representam o sertão
goiano (OLIVEIRA, 2016), onde de acordo com os autores que utilizam como fonte o
livro do Padre Luís Palacin, a sociedade goiana era movida a festas de santos e pelo
calendário litúrgico da igreja, onde essa tradição ainda permanece na atual sociedade
goiana mesmo com o processo de secularização e modernização das cidades.
Apresentados os aspectos das orações e dos rituais utilizados pelas
benzedeiras, faz-se necessário agora aprofundar sobre as benzedeiras de Goiás,
principalmente a do Quilombo Kalunga local que preserva suas tradições e memórias
dos ancestrais sendo um espaço de resistência e de memória. Passemos para o
terceiro capítulo.
72
Fonte: https://docs.ufpr.br/~lgeraldo/upoimagens1.html
Fonte https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/02/11/quilombo-kalunga-e-reconhecido-pela-onu-
como-primeiro-territorio-no-brasil-conservado-pela-comunidade.ghtml
75
26
Essa pesquisa idealizada por Dias 2016, foi utilizada para fundamentar a pesquisa realizada sobre as
benzedeiras, já que não houve a possibilidade de realizar uma pesquisa de campo devido a pandemia e o curto
prazo para a realização do trabalho.
77
filhos na condição de escravos, onde a fuga para campos afastadas também foi uma
forma de resistência e de criação dos quilombos, esses muito temidos pelos
fazendeiros, como apresenta Godinho(2008) apud Silva(1998) onde a palavra
Quilombo possui como significados sítios historicamente ocupados por negros e que
tenham resíduos arqueológicos de sua presença, inclusive as áreas ocupadas ainda
hoje por seus descendentes com conteúdo etnográficos e culturais, ou lugar cercado
e fortificado arraial ou acampamento.
Ao analisar sobre as tradições quilombolas, principalmente sobre as
benzedeiras, é necessário fazer um aprofundamento no espaço onde se reúnem
tradições, histórias, memórias e registros de povos que guardam em sua
ancestralidade a resistência e a diversidade. Ao tratarmos sobre o quilombo, muitas
vezes se compreende de forma pejorativa e preconceituosa, sendo um traço do
eurocentrismo que apresentava os quilombolas como negros fugidos e que eram um
perigo para a sociedade.
O tempo e as novas formas de se estudar as comunidades quilombolas, fez
que muitos pesquisadores olhassem não somente para o local onde se formavam os
quilombos, mas também para as pessoas que habitam e que fazem parte dessa
tradição, dos costumes, passando por constantes modificações e transformações, não
sendo um local com histórias estáticas, mas ao contrário possui memórias e suas
identidades transformadas constantemente(ALVES, 2019).
Ainda utilizando a perspectiva de Alves(2019) ele apresenta citações
referentes ao quilombo como de Sodré, que vê no quilombo um local de
ancestralidade dos povos de matriz africana que é uma terminologia ampla e variada.
Depois de uma análise sobre a terminologia do quilombo, enfoca-se sobre o quilombo
Kalunga, em sua organização social. Como já apresentado, o quilombo Kalunga se
distribui em várias partes do nordeste goiano, havendo em cada parte uma identidade
e aspectos culturais que se diferenciam.
O território quilombola não é apenas um esconderijo, um lugar de fuga, onde
usar essa terminologia se torna algo atrasado e dá um sentido negativo para o
quilombo, como se esse não possui-se uma simbologia, cultura e tradições. O território
quilombola é um espaço de luta, pela permanência das tradições e pela busca da terra
como um lugar de produções, de preservação e de ligação entre a natureza e a
identidade do povo CARRIL, 2006, p. 06)
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Fonte: Na Chapada dos Veadeiros, Kalunga, terra livre - Rede Brasil Atual
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ato de fé, e o cuidado para com o outro, sendo importante essa análise para diferenciar
os grupos de benzedeiras e benzedeiros. (CAVAS, MENDES, 2017). Mesmo havendo
a presença masculina no ato de benzer, o enfoque teórico e metodológico desse
trabalho monográfico objetiva trazer o foco para as benzedeiras quilombolas.
Ao observar como surgem o sentimento e o dom de benzer, os relatos das
benzedeiras se relacionam e se assemelham, essas ou adquirindo um dom de
nascimento ao decorrer de sua vida aprendendo com outras pessoas de seu convívio.
É importante diferenciar os tipos de dons para compreender a mediunidade presente
nas ações dos benzimentos. Muito diferente das benzedeiras Kalunga, as benzedeiras
amazônicas têm uma ligação forte com o xamanismo e com as entidades presentes
no imaginário popular, é o que apresenta Berra(2020), Custódio(2020), Videira(2020)
em um relato recolhido de uma benzedeira, essa apresentando como adquiriu os dons
de benzer:
Foi de nascença! Quando a minha mãe estava grávida, eu chorei dentro da
minha mãe. Eles estavam todos na sala reunidos, a minha avó, e eles
escutaram o choro de uma criança, a minha vó ficou... “A Isabel já teve esse
moleque, essa menina?”. Disseram: “Mãe ela não gritou, não fez nada”, e
foram ver, a minha mãe estava deitada, aí a minha vó falou: “Meu Deus, a
criança chorou dentro da minha filha!”, aí ficaram naquele negócio, sabe?!
Inclusive, ela falou para a parteira que quando fosse o dia de me pegar, que
não era para ela se admirar, entendeu?! De alguma coisa que eu pudesse
fazer na hora do parto (Entrevista concedida a BEZERRA, CUSTÓDIO,
VIDEIRA, 2020, p.03).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de espaços, focando nas benzedeiras Kalunga, e nas mulheres que realizam esse ato
de fé que envolve hibridismos culturais e religiosos e que perpassa a sociedade
brasileira desde o período colonial e se estendem até a atualidade. Para responder
aos apontamentos feitos, utilizamos de elementos textuais que pudessem apresentar
as tradições, os rituais, orações e como surgem o dom de realizar os benzimentos,
sendo possível observar que esse dom pode ser adquirido de forma herdada por pais,
mães e de outros membros familiares e que fazem parte do convívio social, ou podem
ser de um dom específico, transmitido por uma divindade. O que se assemelha em
ambos os aspectos tanto do quilombo como na cidade, é a fé, elemento principal para
que tais ações de cura e de promover sejam idealizados.
Mesmo com a diversidade de pesquisas sobre as práticas religiosas populares,
prevalecem vários tabus e preconceitos contra mulheres que realizam orações e
demonstram suas crenças desvinculadas as igrejas ou que são silenciadas pela
medicina tradicional que por muito tempo criou a ideia de que esses atos eram
criminosos e que não traziam resultados, hoje verificando que ocorre maior aceitação
por ambas as partes e uma introdução da medicina integrativa em várias comunidades
e locais. As benzedeiras utilizam de elementos religiosos como terços, cruz, além de
utilizarem elementos naturais que fazem parte de suas orações, muitas guardando em
segredo as orações por serem fortes, transmitindo apenas para aqueles que possuem
a fé e os dons
Por fim, após realizar uma análise sobre as benzedeiras de outras vertentes
religiosas, percebeu-se que elas não estão presentes apenas no catolicismo ou no
protestantismo, mas estão interligadas também as religiões de matriz africana, muitas
utilizando de várias fés para realizar as práticas. Foi possível analisar também o
quilombo, como um local de interação de culturas e de resistência, sendo não apenas
um local de fuga, mas sendo um território de criação de memórias e de identidade. As
mulheres da comunidade Kalunga, principal local de enfoque da pesquisa, cuidam do
lar desde sua infância e geram contato com todos aqueles que fazem parte desse
território, não sendo apenas atuantes na fé, mas também na atuação como militantes,
lutando pela permanência na terra e das tradições
Esse trabalho teve como objetivo analisar quem são as benzedeiras, quais são
os seus ofícios, como são adquiridos os dons e como a sociedade vem lidando com
as práticas de bem-estar através do uso da fé e de plantas medicinais,
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